Walcyr Carrasco - Estrelas Tortas

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Estrelas Tortas

WALCYR CARRASCO
Capa e ilustrações de: Getúlio Delphin
Editora Moderna, 1997
ISBN 85-16-01596-3

Digitalizado por SusanaCap


www.portaldetonando.com.br/forumnovo/
SUMÁRIO
1. Gui ........................................................................... 3
2. Mariana ................................................................. 18
3. Bira ....................................................................... 26
4. Aída ...................................................................... 33
5. Gui......................................................................... 50
6. Emílio ................................................................... 59
7. Bruno .................................................................... 64
8. Gilda ..................................................................... 73
9. Marcella .............................................................. 82
10. Gui ....................................................................... 89
ORIENTAÇÃO DE LEITURA.............................. 92
1. Gui

"Sua
irmã
nunca
mais vai
andar."
Foi assim
que papai
me deu a
notícia.
Quando
ele falou,
fiquei um
tempão
tentando
entender
o que
queria
dizer,

exatamente. Como assim, a


Marcella nunca mais vai andar?
Puxa, não é por nada, mas a minha
irmã sempre foi a principal jogadora
de vôlei do colégio. Era só um ano
mais velha do que eu, mas já parecia uma moça. Na escola, muita
gente pensava que ia virar modelo logo logo. (Hoje em dia, muitas
meninas se tornam modelo ainda bem novinhas.)
Marcella era também minha companheirona. Sei lá, pode
até parecer que sou covarde, mas a Marcella vivia me protegendo,
desde pequeno. Talvez porque, quando eu era bem criança,
Tive bronquite alérgica. Nem lembro bem como era, mas dizem
que eu tossia tanto que até tinham medo de que eu botasse o
pulmão pra fora. Desde então, ela cuidava de mim. Sempre me
ajudava nos trabalhos da escola. Principalmente nos de
Matemática, porque nunca fui muito bom com números. Na saída
da escola, se a molecada vinha com brincadeira boba, como
roubar mochila, ela dava uma bronca, e não deixava. A turma
vivia brincando, porque a Marcella era superatlética, das
melhores em Educação Física, e eu, não. Nunca fui bom de gol.
Pra dizer a verdade, quando os capitães iam escolher os times, eu
sempre ficava por último.
E por isso que não conseguia acreditar. Como, justamente a
Marcella, nunca mais ia poder andar? Não podia ser verdade.
Tudo tinha acontecido tão depressa, que eu ainda estava fa-
zendo esforço para entender. Na sexta-feira passada, mamãe e
Marcella tinham saído para visitar vovó Gilda. Ela morava numa
cidade bem perto da nossa, só uma hora e meia de estrada. Eu não
pude ir, porque tinha muito trabalho de escola e minhas notas
andavam péssimas. Mamãe disse que voltaria no dia seguinte. Eu
ainda falei, quando saíram:
— Pede pra vovó fazer rosquinhas!
Sempre que mamãe a visitava, vovó mandava uns doces
deliciosos.
De madrugada, acordei
com umas batidas na porta.
Era a vizinha, que a gente
mal conhecia, porque tinha
se mudado para o bairro
havia pouco tempo. Ouvi
quando meu pai atendeu.
Falaram rapidamente.
Estava chamando para
atender um telefonema
urgente. Meu pai saiu.
Eu sabia que alguma coisa estava acontecendo. Ninguém te-
lefona para ninguém de madrugada. Ainda mais na casa da vizinha!
A palavra urgente me dava medo. Fiquei na cama, de olhos abertos,
curioso. Dali a pouco meu pai entrou, apressado.
— Guilherme, levanta depressa. Tenho de sair. Telefonaram
para dona Matilde. Sua mãe e sua irmã sofreram um acidente. Vou
deixar você na casa da vizinha.
Aí eu tive certeza de que o problema era grave. Meu pai
só me chama de Guilherme quando está nervoso. O resto do
tempo é Gui.
— Que aconteceu, pai?
— Um caminhão bateu no nosso carro.
Dei um pulo na cama, com uma dor horrível no peito.
— A mãe... a mãe morreu, pai?
Era incrível ver meu pai daquele jeito. Parecia... parecia com
vontade de chorar. Eu pensava que homem desse tamanho não
chora nunca! Tive vontade de fazer mais perguntas, mas ele já
estava abrindo a cômoda e tirando minha roupa.
— Depressa, Guilherme. Vista-se. Eu não posso deixar você
sozinho aqui em casa. A dona Matilde disse que você pode passar
o resto da noite lá na casa dela.
— Ah, pai, deixa eu ir com você.
— De jeito nenhum. O hospital é frio. Elas estão internadas.
— Pai, deixa, deixa! Eu quero ficar perto da mamãe!
Vi que ele hesitava. Consegui me vestir rapidamente. Corri
para o banheiro, escovei os dentes. Acho horrível o gosto ruim na
boca, quando a gente acorda. Saímos. Dona Matilde estava na
porta da casa dela, com o marido. Meu pai explicou:
— Ele faz questão de ir comigo. Desculpe.
— Que é isso? Coitadinho... deve estar aflito. Mas, se
quiser, amanhã ele pode passar o dia com a gente — disse
dona Matilde.
O marido abanou um chaveiro.
— Posso levar vocês.
— Não se preocupe, pego um táxi.
Ele insistiu:
— Que é isso? Vocês não vão achar táxi nenhum a esta hora.
Faço questão.
Retirou o carro, entramos. Notei que papai estava em ponto de
bala. Nervoso, emocionado. Quando chegamos, o vizinho avisou:
— Conte comigo para o que precisar.
— Obrigado.
Descemos. O hospital estava tão frio que senti até os ossos
gelarem. Meu pai foi para a recepção. Explicou quem era. Subimos
de elevador até um outro corredor, vazio, sem poltronas, com chão
cinza. O médico de plantão veio conversar com a gente, com uma
prancheta na mão. Era um rapaz, bem mais novo que meu pai, e
parecia cansado. Ouvi quando explicou:
— Pelo que sei, o motorista do caminhão estava dormindo.
Atravessou a estrada e bateu no carro delas. Com o impacto, o
carro voou longe. O caminhão perdeu completamente o controle e
caiu da ponte.
— E minha mulher? Minha filha?
— Calma... calma, meu senhor. Estamos fazendo o possível.
Sua mulher... aqui está... dona Aída... sofreu fratura em um
dos braços. Bateu a cabeça, aparentemente sem conseqüências,
mas só saberemos amanhã, depois da tomografia. A garota,
Marcella... tudo indica que estava sem cinto de segurança.
Quando o carro recebeu o choque, a porta se abriu e ela... bem...
ela voou pelo ar e caiu no asfalto.
Os dois ficaram um momento em silêncio, se olhando. O
médico encheu a boca de ar, como se fosse soprar uma bexiga.
Tomou coragem e continuou:
— Sua filha... bem... ela sofreu fratura nas duas pernas...
e... também... a medula foi afetada, logo acima da bacia.
Meu pai não estava entendendo. Nem eu.
— Ela está bem? Corre risco de vida?
— Também houve uma batida forte na cabeça, mas tudo in
dica que é um problema mais leve. O problema... o problema mais
sério... é a lesão na medula.
O médico ficou quieto um segundo, procurando as palavras.
— Ainda não podemos avaliar qual a capacidade de
recuperação de sua filha. Ocorre que as lesões nas células
nervosas... as células nervosas não se recuperam, como as outras.
Quando são seccionadas... cortadas, como no caso de sua filha...
elas perdem a função.
— Não estou entendendo.
— São as células nervosas que conduzem os impulsos do
cérebro por todo o corpo. Os músculos, os membros, funcionam
comandados pelo cérebro.
— Claro, isso eu sei.
— O interior da medula é formado por um feixe de células...
de nervos... Quando eles sofrem uma lesão... bem... toda a
região comandada pára de funcionar. Fizemos os testes com sua
filha. .. as plantas dos pés, por exemplo, não reagem à sensação
de queimadura... a cócegas...
— Quer dizer que...
Subitamente, meu pai
começou a chorar. Fiquei
parado, olhando, sem
entender o que estava
acontecendo. Na hora,
toda essa conversa sobre
células parecia uma
tremenda perda de tempo.
Eu queria ver mamãe e
Marcella. Só mais tarde,
lembrando de cada palavra,
consegui entender o que ti-
nha acontecido. Eu só
percebia que o médico
estava tentando contar
alguma coisa a meu pai.
Alguma coisa terrível.
Pouco depois, papai se
acalmou. Entrei com ele
numa pequena sala, com
paredes de vidro, onde
Marcella estava deitada, sozinha. Parecia adormecida. Suas pernas
estavam engessadas. O tronco também. Tinha um curativo na cabeça.
Um frasco de soro ao lado da cama, pingando em sua veia. Odiei o
cheiro de hospital. Depois, fomos ver mamãe. Estava em outro local.
Era uma enfermaria com vários leitos. Adormecida, também com
soro na veia, um braço enfaixado e um curativo na testa.
— Mamãe! — eu disse.
Ela não me ouviu, é claro. Fomos para o saguão... o médico
disse que não adiantava ficar ali, porque elas passariam a noite
sob cuidados. Não acordariam, devido aos remédios. Papai sentou-
se em um sofá verde, muito sujo. Fiquei a seu lado.
— O que aconteceu com Marcella, papai? O que o médico
disse?
Ele me abraçou apertado.
— Depois a gente conversa.
— Ela... e mamãe... elas vão morrer?
— Não, querido. Logo estarão de volta pra casa.
Abracei papai, preocupado. Mas também estava exausto.
morrendo de sono. Ele me deitou no sofá, deixou que mergulhas-
se a cabeça no seu colo. Adormeci.
Acordei muito, muito cedo com o barulho. A entrada do hos-
pital estava cheia de gente falando, gritando, chorando. Macas
com pessoas feridas, transportadas de um lado pro outro. Papai
me levou, pela mão, até uma lanchonete. Pediu uma média para
cada um e um pão com manteiga.
— Gui, daqui a pouco você vai poder falar com sua mãe.
Talvez, também, com a Marcella. Mas, depois, você vai embora.
Durante a noite, localizei sua avó, e ela deve chegar no ônibus das
nove. Vem direto para cá, e vai levar você pra casa.
— Quero ficar aqui, pai!
— Mais tarde eu também vou tomar um banho e dar uma
passada no trabalho, para explicar o que está acontecendo. Vou
avisando: não teime. A situação é grave, Gui. Muito grave.
— Você disse que a mamãe estava fora de perigo! E a Mar-
cella também.
— Só que...
Ele hesitou.
— É melhor que você saiba de uma vez. Sua irmã nunca
mais vai andar.
Ele disse que era importante sermos muito corajosos. Que.
inclusive, mamãe ainda não sabia nada sobre isso, e ele teria de
contar. Seria muito difícil, porque, afinal de contas, mamãe é que
estava no volante quando tudo aconteceu. Eu deveria ser forte.
Todos precisariam da minha ajuda.
Fiquei comovido. É claro que iria ajudar papai!
Quando foi permitido, subimos. Mamãe estava meio acordada,
meio dormindo. Papai pegou sua mão.
— Aída!
— Bruno!
Eu me aproximei.
— Mamãe...
— Querido... e a Marcella?
— Está bem, Aída. Está muito bem. Agora você precisa
descansar.
Mamãe já estava fechando os olhos. Adormeceu quase ime-
diatamente. Mais tarde, nem se lembraria dessa visita.
Voltamos ao saguão. O médico preferia que Marcella não ti-
vesse muitas visitas, pelo que entendi. Vovó Gilda chegou logo,
desesperada, com os olhos vermelhos. De tão nervosa, precisou ser
acompanhada pelo meu tio Marcos, irmão de mamãe. Ouviu as no-
tícias, e chorou mais ainda. Depois, meu tio nos levou para casa.
Quando parti, no táxi, ainda vi a figura de papai, desolado,
de pé naquele saguão frio.
Os dias seguintes foram uma tortura. Vovó instalou-se em
nossa casa. Ainda bem, porque senão teríamos ficado sem roupa
limpa, sem comida, sem nada! Papai voltou ao trabalho, mas pas-
sava todo o tempo livre no hospital. Mamãe foi liberada depois de
três dias. Teve sorte: só o problema no braço, que sarou com alguma
rapidez. Marcella demorou mais. Pelo que soube mais tarde, foi
necessária uma operação para colocar a coluna no lugar. Caso
contrário ficaria, também, com as costas tortas. Quando, finalmente,
voltou para casa, ainda tinha as pernas engessadas.
Foi chocante: não era mais a irmã que eu conhecia. Tinha se
transformado em outra pessoa. Marcella era alegre, divertida.
Agora, deitada na cama, ficava de cara fechada o tempo todo.
Quando eu ia falar com ela, dava respostas curtas. Não queria saber
de papo.
O ambiente em casa era horrível. Mamãe vivia chorando pelos
cantos.
— Foi minha culpa. Se não tivesse resolvido viajar de noite...
Vovó também se lastimava:
— Se não tivessem resolvido me visitar...
A melhor coisa que papai fez foi acabar com os comentários:
— Vocês duas, vamos parar com esse negócio de a culpa foi
minha, se eu tivesse feito isso ou aquilo... Agora não adianta mais.
Mamãe revoltou-se:
— Credo, Bruno, parece que você não tem coração!
— Chega, de uma vez por todas! A gente precisa olhar pra
frente. Aída, temos que fazer muita coisa... A Marcella vai pre-
cisar de tratamento constante, fisioterapia... Quando o seguro
devolver o dinheiro do carro, vou completar para comprar uma
perua.
— Isso é hora de pensar em modelo de cano, Bruno?
— É sim, Aída. Só uma perua consegue transportar uma ca
deira de rodas.
Mamãe começou a chorar de novo. Não podia nem ouvir talar
em cadeira de rodas. Nem Marcella:
— Eu não quero cadeira de rodas!
- Filha, você vai precisar — explicava papai, paciente.
— Eu quero voltar a andar!
- Marcella, quem sabe um dia... a medicina está
progredindo muito... mas por enquanto...
— Eu fico na cama! Fico na cama o resto da vida!
Marcella estava insuportável. Minha vida também. Tudo
que era bom, era oferecido a ela. Vovó só fazia os doces de que
ela gostava. A televisão foi para o quarto dela. Pior, perdi o meu!
Pois, agora, eu dormia no chão, e vovó na minha cama. Ainda
por cima, roncava. Quando pedi pro papai comprar uma cama
nova pra mim, ele abanou a cabeça.
— Não vai dar, filho. Vou precisar de muito dinheiro para...
Marcella, sempre Marcella! Eu não podia passar perto da
porta do quarto, que ela gritava:
"Gui, me traz um copo d'água. Gui, me arruma uma laranja!"
Gui, Gui! Onde estava aquela irmã tão legal?
Agora eu ia sozinho pra escola. Não suportava mais quando
a turma perguntava: "É verdade que sua irmã virou paralítica?"
Um dia, o Duda disse que a Marcella tinha ficado aleijada.
Deu uma raiva tão grande que parti pra cima do linguarudo. Rola-
mos no chão. Mordi a orelha dele, quase ficou sem um pedaço.
Estávamos longe da escola, mas havia muita gente do colégio vol-
tando pra casa pela mesma calçada. Foi a sorte, porque me agarra-
ram antes que eu almoçasse a orelha do Duda. Alguém levou Duda
para casa (no outro dia ele apareceu com a orelha toda enrolada
em um curativo). Ouvi uma voz do meu lado:
— Gui, que besteira! Deixe ele falar o que quiser. Não im
porta. O que vale é que a Marcella está melhorando, não é?
Era a Mariana. Não entendi por que parecia tão interes-
sada. Era da mesma classe da Marcella, mas as duas nunca
foram grandes amigas. Fazia um ano, não sei por quê, tinham
brigado.
— Sabe, Gui, ando com vontade de ver a Marcella. Tudo
bem aparecer na sua casa?
Pensei um pouco. No início, é claro, todas as amigas
mais próximas tinham passado por lá, e até levaram uma caixa
de bombons, presente de toda a turma do colégio. Mas a
Marcella estava sempre sem vontade de conversar. As amigas
ficavam sentadas a seu lado, um tempão, e a conversa não saía.
Marcella parecia sem vontade de receber visitas. Mesmo assim,
dei força:
— Vai sim, Mariana.
Minha irmã passava os dias inteiros olhando pro teto, e isso
não era legal.
Dias depois, Mariana apareceu. Trouxe um presente. Um li-
vro. Marcella pôs de lado, sem nem olhar o título direito.
— Obrigada.
E lá ficaram as duas, sem dizer uma palavra.
- Você quer mandar recado pra alguém do colégio, Marcel-
la? — perguntou Mariana, levantando-se.
Até eu fiquei chocado com a reação de Marcella, porque ela
começou a gritar.
— Vai, fala que me viu assim! Fala pra todo mundo! Fala
pro Bira! Gostou do espetáculo? Gostou da minha cara de palhaça?
Gostou de me ver presa nesta cama?
Mariana ficou calada, sem saber o que fazer. Vovó veio
correndo da cozinha, mas Mariana fez um gesto, para que não
interferisse. Marcella gritou coisas hor-
ríveis. No final, deu um berro:
— Por que foi acontecer uma coisa

dessas justo comigo? Por que eu não morri?


Por que não morri, Mariana?
Começou a chorar, um choro tão sen-
tido que era de cortar o coração. Mariana
sentou-se de novo na cama e abraçou Mar-
cella. E chorou, chorou também.
Foi nesse dia que se tornaram gran-
des amigas.
2. Mariana

Nem sei direito por que entrei nessa história. Quer dizer, nunca
fui do tipo boazinha. Não me dava bem com a Marcella. Brigamos,
logo no início do ano, por causa de um doce. Foi assim: a Marcella
ganhou uma caixa de bombons do Bira e, no intervalo, ofereceu
para várias colegas da classe. Cheguei perto e, quando estava
estendendo a mão para pegar um, ela comentou, dando risada:
— Fominha.
Fiquei louca da vida. Soltei o bombom como se tivesse me
dado um choque. A Marcella ainda disse:
— Pode pegar. Ajuda no regime.
Foi o máximo da grosseria. Sei que sou meio gordinha e vivo
dizendo que nunca mais vou comer doces. Depois, não resisto e
mando ver. O pior foi
que as outras
começaram a rir. Senti
o rosto pegando fogo.
Respondi:
— Muquirana. Coma
os seus bombons! Tomara
que tenha uma diarréia!
Desde então, nunca
mais conversamos. Pra
falar a verdade, eu tinha
até um pouco de inveja da
Marcella. Quando estava
na quadra de vôlei, pa-
recia que tinha molas
nos pés. Voava. Flutuava.
Não é à toa que a maior
parte dos garotos do colé-
gio só pensava nela. O Bira,
inclusive.
O Bira era o máximo. Eu e todas as garotas da classe tínhamos
essa opinião. Ele, ele... nem sei como explicar... era só o máximo.
Acho que isso diz tudo. Cabelos castanhos encaracolados. Alto. O
peito largo, de tanta ginástica. Era capitão da equipe de basquete.
Diziam que ia acabar na televisão, de tão bonito. Às vezes eu olhava
no espelho e conferia meu rosto. Feia, eu não sou. Mas nunca me
senti páreo pra Marcella. Nunca achei que um sujeito bonito como
o Bira pudesse se interessar por mim. Acho que isso, no fundo, me
deixava assim, assim... como se o mundo fosse muito injusto
comigo. Ninguém olhava pra mim. Todos ainda me tratavam
como se fosse uma menina. A Marcella, não. Quando eu soube do
acidente, nem quis acreditar. A Celina, uma colega do colégio,
comentou:
— Dizem que ela nunca mais vai poder andar.
Fiquei pasma. Como, justo a Marcella? Senti que o mundo
era bem mais injusto do que eu pensava. Como, justo ela, tão bo-
nita, tão boa jogadora!
Nas primeiras semanas, eu fiquei sem jeito de ir à casa de
Marcella. Afinal, estávamos brigadas. Pensei em me aconselhar
com alguém. Sei que podia ter conversado com minha mãe, mas
fiquei sem jeito. Minha mãe vivia insistindo para eu não comer
tanto doce e, certamente, não ia gostar da história da briga. Final-
mente resolvi bater um papo com Alice, a bibliotecária da escola.
Gosto muito de ler, e sempre me dei bem com ela. Quem vê a
Alice, aquele jeito de senhora, com idade para ser minha mãe, não
imagina como é boa de papo. Quando a gente começa a conversar,
vê que ela tem a cabeça superaberta. Contei a ela o que tinha
acontecido.
— Mariana, tem uma coisa que você precisa entender — dis-
se a bibliotecária.
— Diz, Alice.
— Muitas vezes, a gente briga, discute. Mas nada é tão defi-
nitivo assim. Mesmo que a Marcella não tivesse sofrido o aciden
te, é lógico que vocês voltariam a conversar um dia. Se você não
for visitá-la, nesse momento tão difícil, ela vai pensar que você
realmente não gosta dela. Essa briguinha, que no fundo não foi
nada, vai se tornar uma coisa importante. Talvez nunca mais vocês
voltem a ser amigas.
— Mas como é que eu faço?
— Tome coragem, aperte a campainha da casa dela, e entre.
Mesmo que ela esteja de mau humor, resista. Ela deve estar
sofrendo muito.
Aí, nem sei por quê, eu tive uma idéia:
— Posso levar um livro pra ela?
A Marcella nunca gostou de ler. Achava uma perda de tempo.
Agora, presa na cama, com um colete de gesso, talvez mudasse de
opinião. Um livro faz a gente viajar por países desconhecidos,
conhecer gente nova... descobrir mundos que estão dentro da
gente. Eu e Alice escolhemos um belo romance.
O livro ficou em cima da minha penteadeira. Eu não
achava jeito de ir à casa da Marcella. Até que, um dia, vi o Gui,
irmão dela. brigando com o Duda no meio da rua, na saída da
aula. Era horrível de se ver. O Gui estava transtornado,
realmente fora de si, só porque o Duda chamou a Marcella de
paralítica. Eu percebi que, no fundo, o Gui não queria aceitar a
verdade. Doía saber que não havia solução. Quando eles foram
separados, puxei conversa. Disse que queria ir ver a Marcella.
O Gui fez uma cara esquisita, achei até que eu não seria bem
recebida. Pensei que ele fosse responder que a Marcella não
gostava de mim, mas ele disse que eu podia ir.
Ainda precisei de uns dias para tomar coragem, mas fui. No
início foi horrível. O ambiente da casa estava pesado como chumbo.
A avó, dona Gilda, estava tomando conta da casa. Era impressionante
olhar para ela. Parecia desgastada, com o rosto todo vincado pela dor.
Gui também estava muito diferente do sujeitinho legal que eu
conhecia. Parecia menor... olhando bem, percebi que andava com os
ombros encolhidos, meio corcunda. Era como se uma bomba tivesse
estourado no meio da casa. Senti um cheiro no quarto da Marcella!
Era mofo! Perguntei se podia abrir a janela, e ela disse que não.
— Estou com frio — respondeu, amuada.
A televisão estava ligada e ela nem pegou o controle remoto
para abaixar o volume do som. Ofereci o livro, ela pôs de lado
sem olhar para o título.
Marcella já estava sem o gesso, seu tronco estava enfaixado.
Mal se via, porque ela usava uma camisola larga, de flanela. O
pior era a posição na cama. Parecia uma boneca quebrada. Ficava
sentada de um jeito estranho, como se não tivesse forças para ficar
sequer nessa posição (mais tarde descobri que não tinha mesmo
condições de permanecer com a coluna reta sem auxílio). Olhou
para mim com uma expressão estranha, que, no início, não consegui
identificar. Raiva? Ressentimento? Tentei puxar conversa, não
consegui. De repente, ela gritou:
— Gui! Vó!
Ele veio, de mau humor. Percebi que já não suportava ser
chamado por ela:
— Que foi, Marcella?
— Xixi!
— Posso ajudar? — perguntei.
Dona Gilda estava entrando no quarto e respondeu:
— Ainda bem que você está aqui!
Só então descobri que Marcella havia perdido o controle de suas
necessidades. Ela percebera que estava molhada ao tocar a calcinha
com a mão. (Mais tarde passou a usar um absorvente especial, mas
naquela época todos ainda estavam aprendendo a lidar com ela.) Aju-
dei dona Gilda e Gui a trocá-la. Não foi fácil. Era preciso erguer as
pernas dela — como pesavam! — para trocar a calcinha. Assim como
se troca a fralda de um bebê. Fiquei novamente triste, não só por ela,
reduzida àquela situação, mas também pelo Gui. Percebi que ele não
tinha mais liberdade alguma, pois a avó, sozinha, não dava conta do
problema. E era um problema, ah, como era!
Durante toda a minha vida sempre ouvi as pessoas falarem
que se deve ter um comportamento natural com um paraplégico.
Pode ser, como descobri com Marcella, que a gente consiga viver
uma relação legal. Mas também sou contra quem diz que não se
deve julgar que é um problema. É um problema, sim, e, se as pessoas
considerassem a questão com toda a gravidade, talvez não existissem
tantas entradas de metrô sem rampa de acesso para cadeiras de rodas,
tantos teatros, tantos cinemas cercados por escadarias.
Eu estava pensando nessas coisas, quando terminamos de
cuidar da Marcella. A avó saiu. Quando eu e ela ficamos a sós,
Marcella pareceu se transformar num escorpião, porque começou
a gritar comigo e a dizer coisas horríveis. Como se eu tivesse ido
lá só para ver o estado em que ela estava. Fiquei tão brava que
nem tive forças para responder. Levantei-me, imediatamente, de-
cidida a ir embora. Ela não podia me destratar daquele jeito. Afinal,
eu tinha ido lá com as melhores intenções.
De repente, ela desabou. Aquela Marcella forte, capaz de
vencer uma partida de vôlei com a força de um saque. Aquela
Marcella furiosa, capaz de me atingir com palavras duras, de dizer
coisas horríveis. Tudo isso desapareceu. Percebi que ela gritava,
porque estava desesperada. Só conseguia se debater, como alguém
que cai num rio e está se afogando.
— Por que não morri? — ela gritava.
Vi o rosto apavorado de Gui nos observando. Nenhuma palavra
poderia descrever o que percebi naquele momento. Era dor, dor e
dor. Todos sofriam naquela casa, e. de repente, eu estava ali, de pé,
e seria vergonhoso bancar a ofendida e sair correndo para nunca mais
voltar. Marcella estava sofrendo tanto que nenhuma palavra
aplacaria aquela dor. A mágoa que suas palavras me causavam não
era nada, perto de toda aquela tragédia. De repente, quando ainda
estava gritando, Marcella começou a chorar. Um calor subiu do meu
peito. As lágrimas saltaram dos meus olhos. Chorei também.
Quando vi, estávamos abraçadas, e tudo o que acontecera de
feio e ruim entre nós duas realmente não fazia sentido. Depois
que paramos de chorar, eu disse, simplesmente:
— Gosto de você, Marcella. Virei aqui sempre! Se quiser,
posso pegar as lições da escola e trazer. Quem sabe, você ainda
consegue salvar o ano?
Eu sabia que seria difícil, pois estávamos no final do semestre,
mas em certas situações especiais, como a dela, sempre pode ser
criada uma exceção. Ela nem respondeu. Só apertou minha mão.
Ainda fiquei lá um bom tempo. A emoção foi passando, e comecei
a falar do pessoal. Contei o que estava acontecendo com cada um.
A avó dela trouxe café e bolo de chocolate. De repente. Marcella
perguntou:
— E o Bira, como vai?
Não foi preciso dizer mais nada. Ela ainda gostava do Bira.
Eu precisava falar com ele.
3. Bira

Pô, atolei!
Que droga, meu! A Mariana tinha que vir com um papo desses,
como se eu fosse o cara mais miserável do planeta, só porque não
tinha ido na casa da Marcella? Eu sabia. Quem não sabia que ela
tinha dado uma pirueta no asfalto? É claro que tava chateado, pô.
Eu não sou nenhum monstro e juro que tinha me sentido mal pra
danar. E uma bruta sacanagem do destino, é isso que é, porque a
Marcella sempre foi linda como uma pintura e eu cortava um duro
por ela. A gente já tinha "ficado" umas vezes, e eu dizia, pegando
nos cabelos dela:
— Minha cestinha!
Para um cara louco por basquete como eu, cestinha é a melhor
coisa que alguém pode ser. Muitas vezes eu pensei, quando tava
em casa, sonhando acordado, que quem sabe eu e a Marcella ainda
tivéssemos muitas coisas pra viver. Coisas em comum, a gente
tinha. A gente formava um belo par. Mas aí, quando veio a notícia,
nem sei direito o que passou pela minha cabeça. Eu senti, claro que
senti. Aí eu disse pra mim mesmo: "Amanhã eu dou uma passada
por lá".
Naquele dia não deu, eu tinha treino. Deixei pro outro, e o
tempo foi passando. Aí, eu pensei: "Pode ser que ela esteja cha-
teada comigo, porque não apareci".
Fui deixando rolar. "Qualquer dia, eu vou."
Depois, eu pensei que seria melhor dar mais um tempo, até
que ela estivesse menos abalada. Quem sabe não fosse alarme falso
e ela voltasse a andar, e a gente pudesse sair junto e dançar, como
antes, e até rolar de rir com as histórias?
Foi quando a Mariana veio com aquele papo, dizendo que a
Marcella queria me ver, etecétera, etecétera. Eu me senti mal pra
burro, como se ela estivesse dizendo que eu era culpado de alguma
coisa. Culpado eu não era, não, porque eu e a Marcella nunca
esclarecemos se namorávamos, embora no fundo talvez a gente
estivesse mesmo começando um namoro. Mas compromisso, as-
sim como se falava no tempo dos meus pais, isso não tinha, não.
Fiquei sem jeito, pronto, foi o que aconteceu. Agora, brava
comigo ela não estava, caso contrário não iria ficar mandando
recadinho.
Jamais gostei de coisas tristes, e acho que só estava deixando
aquela fase péssima passar. Me decidi. No outro dia, depois do
treino, fui pra casa da Marcella.
Fiz tudo como manda o figurino. Meu pai sempre diz que é
elegante e sofisticado levar flores quando se visita alguém. Ainda
mais quando é uma garota doente. Acho que ele pensa assim prin-
cipalmente porque é sócio numa floricultura. Isso facilitava bem
as coisas, porque flores são caríssimas, e eu nem teria grana pra
comprar um presente desses. Passei na floricultura e me deram
um maço de flores que já estava ficando passado, mas nem dava
pra notar se a gente tirasse umas margaridas murchas do meio.
Cheguei à casa da Marcella com as flores, e uma velha, com
a cara tão murcha que parecia uva-passa (depois fiquei sabendo
que era a avó), abriu a porta e sorriu. Até que era bem simpática
sorrindo:
— Entra, entra.
Fui entrando com cuidado, porque sei que velha dessa idade
adora pensar em casamento, principalmente quando vê alguém
com flores na mão. O irmão da Marcella, o Gui, também estava
lá, e eu o cumprimentei de longe, porque acho que ele é meio...
sei lá, meio fora do esquema. Quando joga futebol é capaz de ar-
rancar um pedaço de grama do campo, mas a bola, mesmo, não
acerta nem a pau. A velha perguntou meu nome, e gritou:
— Marcella, tem um moço lindo querendo falar com você. E
o Bira.
Eu não sei, não, se sou lindo como todo mundo diz, mas achei
falta de gosto a tal senhora ficar gritando pela casa. A Marcella
gritou:
— Bira, espera
um pouco. — E
chamou o Gui.
Fiquei na
sala, me sentindo
um palhaço com
aquele maço de
flores na mão,
enquanto o Gui
entrava no quarto
e eu ouvia a voz
da Marcella:
— Gui,
pega o batom.
Gu i, pega o
pente!
Era chato ficar ouvindo esses pedidos. Deu pra sentir que a
Marcella não estava mesmo numa boa, porque, se estivesse, ela
mesma pegaria o batom, etecétera. Pensei que, se um dia ela se
casasse, a vida do marido seria um inferno, porque ela sempre
precisaria de alguém ajudando, e aí tive um calafrio.
Quando entrei no quarto, ela estava toda arrumada, e perfu-
mada, mas o cheiro do quarto era mais forte. Sei lá, o quarto pare-
cia... parecia um armário velho, fechado faz tempo. Senti tam-
bém um cheiro tão forte de álcool, de remédio, que me deu enjôo.
Notei, na cabeceira da cama, uma pilha de livros, e estranhei, por-
que Marcella nunca foi muito de ler. Entreguei as flores, ela agra-
deceu, feliz, e pediu para o irmão pôr num vaso.
Gui saiu com o maço, e pensei como a vida dele também
devia andar chata, com a Marcella pedindo alguma coisa o tempo
todo. Ela perguntou como ia minha vida, e eu comecei a falar do
campeonato, porque só conseguia pensar mesmo é que dali a duas
semanas estaria disputando o campeonato entre colégios, e que
tinha de vencer de qualquer jeito. Enquanto eu falava, até esqueci
que ela estava ali, deitada naquela posição esquisita. Aí, eu olhei
pra ela.
Não dava pra olhar e continuar falando. Os olhos dela esta-
vam brilhando, como se estivessem olhando um doce. Só que o
doce era eu. Ela me admirava, prestava uma superatenção em to-
dos os meus gestos, como se eu fosse... um ser especial. Era
isso... eu era um ser especial, porque agora ela estava naquela
cama, e nunca mais... nunca mais?
— É verdade, Marcella, é verdade que você...?
Ela ficou branca, como se estivesse se ofendendo.
— Desculpa, eu não quis chatear você.
— Pode perguntar, Bira, perguntar não dói.
Marcella sempre tinha sido corajosa e respondeu como se
deve:
— Os médicos disseram que... acho que eu nunca mais vou
poder andar como antes... Mas, sabe, Bira, a semana que vem eu
começo a fazer fisioterapia.
— Então tem chance.
— Já me disseram que existem casos... bem, insistindo na
fisioterapia, eu posso conseguir alguma recuperação... e meu pai
está providenciando uma cadeira de rodas. Você não sabe como
custa caro uma boa cadeira... mas toda a família está ajudando.
Meu tio, que tem um armazém no interior, mandou quase metade
do dinheiro.
Eu me senti mal ouvindo aquilo. Porque já estava me sentindo
mal desde o começo. Que a Marcella nunca havia tido muito
dinheiro, eu já sabia. Morava naquela casinha antiga e simples,
que o pai tinha herdado. Os quartos saindo da sala... muito dife-
rente do apartamento novo em que eu morava há um ano. Às
vezes, no colégio, eu ouvia algumas meninas fazendo piada
sobre a mãe dela, dona Aída, que vendia produtos de beleza,
desses que se oferecem de porta em porta. Elas diziam que
a mãe de uma colega tinha comprado, mas o produto era tão
ruim que quase arrancava a pele. O pai de Marcella também
não ganhava muito bem. Trabalhava numa firma pequena,
como contador. O dinheiro deles era curto.
Agora, olhando em volta, eu pensava como é que ia ser. A
Marcella ia passar a vida toda naquele quarto apertado? Pelo
visto, eles não tinham como contratar enfermeira, e a avó e o
Gui é que iam cuidar de tudo. E como ia ser a vida da Marcella
dali em diante?
Só vi sofrimento pela frente. Eu me senti muito mal, porque,
se pudesse, faria alguma coisa. Mas não sabia o que fazer. Porque o
que a Marcella gostaria que eu fizesse, ah, não dava, não. Ela queria
que eu fosse o mesmo Bira de antes, que pegava nos cabelos dela e
dizia coisas legais, mas essas coisas legais, eu dizia pra Marcella
que ria, que fazia piada, que todo mundo achava o máximo.
Aquela Marcella era outra. Era triste, era encolhida, estava
meio torta, e me olhava como se quisesse me abraçar, encostar a
cabeça no meu ombro. Eu não tinha palavras bonitas pra dizer! Só
queria dar o fora dali. Deixei o assunto ir morrendo, morrendo, e,
depois de um certo tempo, levantei e disse que ia embora. Ela pediu
pra eu ficar, mas dei uma desculpa, disse que voltava outro dia.
Saí no pinote. Quando cheguei na rua, pensei:
"Puxa, ainda bem que não aconteceu uma coisa dessas
comigo."
Foi isso mesmo que pensei. Mas achei que era um pensa-
mento muito egoísta e resolvi que não ia sumir, não. A Marcella
precisava da minha amizade.
Tive as melhores intenções. Decidi que iria até a casa dela
sempre que pudesse. E tem mais: nunca deixaria de levar flores.
Prometi a mim mesmo ser um cara legal, mas aí começaram
os treinos para o campeonato. Fui deixando para outro dia, outro
dia... Quando vi, já fazia tanto tempo, desde aquela visita, que
nem valia a pena voltar. E... também, eu tinha conhecido a Cris.
Pô, fiquei amarradão na Cris!
4. Aída

Durante muito tempo, não pude dormir direito. Simples-


mente não me conformava. Passava e repassava cada detalhe
daquele dia. De alguma maneira torta, a culpa devia ser minha,
embora não entendesse exatamente como. Quando saímos, na-
quela tarde, percebi que tinha esquecido a lã e pedi a Marcella
que fosse buscar. Costumava levar novelos de lã para minha mãe
tricotar blusas. Ela sempre tricotou tão bem! Eu havia comprado
novelos azuis para um suéter para o Gui, beges para o Bruno e
verdes para a Marcella. Ainda penso que, se eu não tivesse de-
morado mais alguns minutos por causa da lã, talvez não estivesse
naquele local da estrada, na hora do acidente, e não teria sido
atingida pelo caminhão.
Lembro também da sensação de pânico quando vi aquela
jamanta vindo na minha direção, de meu gesto desesperado tentan-
do virar o volante, e da escuridão. Até hoje não sei por que Marcella
estava sem o cinto de segurança. Também não saberei dizer nunca
se o fecho havia quebrado sem que a gente percebesse. Marcella
não se lembra, e não gosto de me aprofundar no assunto, porque é
como se eu quisesse culpá-la pela própria tragédia. Mas o
sentimento de que, se eu tivesse feito alguma coisa diferente,
Marcella não teria sido afetada, ah, esse sentimento nunca vai sair
do meu coração.
Quando nasceram meus filhos, foi como se florescesse um
jardim de esperanças. Marcella e Guilherme sempre foram bacanas,
prestativos. Bons alunos. Nenhuma mãe pode dizer que prefere este
ou aquele filho. E claro que sempre adorei o Gui, meu caçula. Mas
Marcella era deslumbrante, parecia ter uma luz própria, que
ofuscava tudo.
Nunca apreciei esportes, mas vibrava quando Marcella ia
para as quadras, defender o time do colégio. Minhas amigas
diziam que ela era alta para a idade, talvez em um ano ou dois
pudesse ser modelo. Eu tinha medo (dizem tantas coisas do
mundo das modelos), mas até gostava de me imaginar cuidando
dos negócios de minha filha. Quem sabe indo ao Japão... Soube
que eles gostam muito de contratar modelos ocidentais bem
jovens.
Minha vida, e de meu marido, Bruno, foi sempre muito sim-
ples. Eu não me formei, como gostaria. Minha família é do interior,
e comecei a trabalhar muito cedo. Minha cidade é pequena, e meus
pais não tinham condições de me enviar para uma faculdade de fora.
Também sempre gostei de vendas, e durante muitos anos trabalhei
numa loja de tecidos, no balcão. Vender é gostoso, porque pode-se
conversar com as pessoas. Enfim, não é um trabalho rotineiro...
Acho que não me acomodaria numa rotina, como meu marido. Ao
contrário de mim, ele gosta de tudo certinho, cheio de horários.
Bruno gostava de estudar e sei que ainda sonhava fazer uma
faculdade e prestar concurso para fiscal de rendas. O fato é
que casamos muito jovens e isso atropelou seus sonhos, porque
logo Marcella nasceu e ele parou de estudar. Pensava em prestar
vestibular e, provavelmente, teria entrado num cursinho, se não
fosse o que aconteceu.
Com o acidente, muitos de nossos sonhos se acabaram. Havia
tanta coisa que eu esperava fazer! Era só uma questão de juntar um
pouco mais de dinheiro. Pensava reformar a casa, juntar a sala com
a garagem. Faria apenas uma cobertura para o carro, na frente, mas
aí poderia ter uma sala de jantar. Meu maior sonho era ter uma sala
de jantar conjugada com a de visitas, com uma mesa de madeira
bem polida e seis cadeiras. Colocaria um vaso de flores no centro
da mesa, como vi numa revista de decoração. Também, quem sabe,
eu poderia fazer uma lareira. Sei que os invernos aqui na cidade
praticamente não existem, mas eu acho lareira a coisa mais linda
do mundo! Também pensava em dar um par de patins para o Gui
no Natal. Ele queria tanto! Muitos de seus amigos até iam de patins
para a escola, e ele vivia pedindo um. Mas, depois do acidente, é
claro, eu soube que até uma queda de patins pode deixar alguém
paraplégico.
Um dia, quando fui com Marcella ao centro de fisioterapia,
conheci um senhor que havia caído no banheiro e perdera todos
os movimentos, até dos braços. A medula é muito mais frágil do
que se pensa. Decidi jamais dar os patins ao Guilherme, por mais
que ele pedisse.
Foram muitas as coisas que eu deixei de dar ao Guilherme,
e sentia um aperto no coração só de pensar no que ele estava
passando. Devia ser difícil para um garoto da idade dele, mas,
por mais que eu desejasse, não conseguia que as coisas fossem
diferentes.
Voltei a trabalhar logo que saí do hospital. O braço enfaixado
não me impediu, porque tenho algumas freguesas fixas que
adoram os produtos de maquiagem que represento. São produtos
muito bons, embora baratos e, por isso, minha clientela não é
sofisticada. Quando comecei a vender os produtos, até pedi a
ajuda de Marcella. Ela falou com as amigas, que me
apresentaram suas mães e consegui algumas clientes entre elas.
Deu errado, porque uma dessas mulheres era alérgica e seu rosto
ficou idêntico a um torresmo depois de usar alguns dos meus
cremes. Marcella ficou furiosa, porque todas as amigas
começaram a fazer piada e a me chamar de marreteira. Também
fiquei brava, e, naquele dia, brigamos muito.
— Não somos ricos! — expliquei.
— Seus cosméticos são uma droga! — ela disse.
Sofri com isso, porque como Marcella poderia me ajudar a
vender se não gostava dos produtos? Acontece que boa parte dos
colegas de minha filha são mais ricos que nós (sustentamos os
estudos da Marcella e do Gui com dificuldade, mas queremos que
eles tenham o melhor), e a Marcella só vivia falando em perfume
francês. Queria tanto um frasco que, no último aniversário dela,
comprei a marca que ela queria de uma senhora que vende produtos
do Paraguai. Sei que foi bobagem, porque também vendo perfumes
muito bons. Mas eu queria ver minha filha feliz.
Não podia perder minhas clientes, então voltei a trabalhar,
porque, em vendas, se a gente pisca, dá errado, e também porque
precisávamos de dinheiro. Eu e Marcella fomos socorridas logo
depois do acidente e atendidas no pronto-socorro. A seqüência do
tratamento, porém, era de lascar. Soubemos, eu e o Bruno, que
minha filha precisaria fazer fisioterapia pelo resto da vida. Acon-
tece que, com a falta de movimentos, as pernas tendem a se atrofiar.
Vão ficando raquíticas. O corpo também, sempre na mesma
posição, começa a formar feridas, as chamadas escaras. São feridas
horríveis, que se abrem na carne, muito difíceis de cicatrizar. O
pulmão também pode enfraquecer, e é comum, por falta de exer-
cícios, a pessoa pegar uma pneumonia.
A fisioterapia é uma forma artificial de reproduzir os movi-
mentos do corpo. Embora Marcella não pudesse mexer as pernas,
um profissional faria os movimentos por ela, exercitando os mús-
culos, para impedir que se atrofiassem. Os movimentos também
ajudariam a impedir as escaras. Além disso, ela faria exercícios
com os braços para, mais tarde, suportando o corpo todo, conse-
guir caminhar. Seria um processo longo, cansativo e... caro.
Dinheiro, dinheiro, dinheiro!
Precisávamos comprar uma cadeira de rodas, urgentemente.
Também precisávamos fazer pequenas reformas na casa, não para
deixá-la bonita, como eu pretendia, mas para facilitar os movimentos
de Marcella. O fisioterapeuta aconselhou que eu instalasse uma
barra dentro de casa, mais tarde, para ela se exercitar. Resolvi que
seria na garagem — e desisti para sempre de meu sonho de ter uma
sala de jantar. Também tivemos de comprar um carro mais adequa-
do. Com o dinheiro do seguro — meu carro teve perda total — e o
que tínhamos na poupança, compramos uma perua, na qual pode-
ríamos colocar uma cadeira de rodas com facilidade. Ainda bem que
minha mãe, Gilda, veio ficar conosco. Eu podia trabalhar mais e,
na medida do possível, tornar a vida de minha filha mais agradável.
Trabalhava como louca naqueles dias. Como os meus produ-
tos eram baratos, perdi o medo de ir a alguns cortiços que ficavam
não muito longe de onde morávamos. Arrumei algumas clientes
- não quero fazer fofocas, mas elas eram grandes consumidoras
de maquiagem e, conforme descobri, trabalhavam a noite toda
numa boate do centro da cidade. Mas eu não tinha nada com a
vida de ninguém, e elas eram excelentes pagadoras. Gostavam de
me receber depois do almoço. Mais tarde me disseram que, na
boate, outras colegas poderiam se interessar e muitas vezes lá ia
eu, no início da noite, junto com alguma delas para o centro da
cidade. Entrava em alguma daquelas boates com letreiros lumino-
sos, para falar com as moças, enquanto a clientela ainda não tinha
ocupado as mesas.
Assistia a cenas muito pesadas. Mulheres discutindo entre si,
falando palavrões que eu nem saberia repetir (fui criada com uma
educação muito fechada). Certa vez, uma das mulheres cortou o
rosto da outra com uma faca e chamaram a polícia. Não pude
testemunhar, porque não tinha visto, realmente, nada. Só ouvira
os gritos e vira a vítima entrar sangrando no camarim. Mesmo
assim, foi horrível passar algumas horas na delegacia, entre
bêbados e alguns
tipos muito estranhos.
Fiquei tão assustada
que telefonei para a
vizinha e pedi para
chamar o Bruno. Ele
veio me buscar. Na
volta, nem conse-
guimos falar sobre o
assunto. Sei que ele
queria pedir que eu
parasse de freqüentar
aquel e s ambientes,
mas o fato é que
precisávamos de
dinheiro, e aquela era
uma clientela
fiel. Para falar a verdade, nunca me desrespeitaram, e certa vez
quando contei a história do meu acidente para uma moça, nordestina,
ela chorou, e disse que entendia perfeitamente o que eu estava
passando, porque a maior parte do dinheiro que ganhava ia para
uma senhora que criava seus três filhos, no interior. Até me arrepiei,
porque não se pode julgar ninguém.
De certa maneira, eu tinha sorte por ter Bruno ao meu
lado, minha mãe e meus irmãos, que fizeram uma vaquinha
quando chegou o momento de comprar a cadeira de rodas.
Também era uma sorte ter um filho como Gui, capaz de ajudar
minha mãe em tudo, e cuidar da irmã como um homenzinho. No
início, achei que talvez ele não suportasse e, nesse caso, não
saberia o que fazer, pois não podia deixar de trabalhar, de jeito
nenhum. Ele era muito útil, ajudando a avó em tudo, inclusive
a levar a irmã ao banheiro nas vezes em que ela conseguia dar
o alarme. Sei que era difícil. Pedi que evitasse sair de casa.
Nem brincar com os colegas podia. De manhã, ele ia à escola,
mas eu deixava para sair o mais tarde possível e, assim,
mamãe e Marcella ficavam sozinhas somente algumas horas.
A vizinha da frente, que chamara Bruno no dia do acidente,
também se prontificou a ajudar, mas mamãe só a chamou três
ou quatro vezes, porque Gui estava sempre presente.
Algum tempo depois, apareceu a Mariana. Pelo jeito que se
davam, acho que era a melhor amiga de Marcella no colégio, e
não entendi por que nunca tinha vindo em casa antes. Gordinha,
animada, sorridente, tudo melhorou quando ela apareceu. Prin-
cipalmente por causa dos livros. Tinha a impressão de que Mar-
cella não ligava muito para ler, mas acho que estava enganada,
porque, quando Mariana começou a trazer livros, ela devorava
dois ou três por semana. As duas começaram a passar muito tempo
conversando.
Finalmente chegou a cadeira de rodas — era muito boa.
embora ainda não fosse a ideal. Nós sabíamos que existiam mo-
delos mais avançados, que funcionavam como um pequeno carro.
com motor e tudo o mais. O dinheiro ainda não dava para isso,
mas, é claro, eu e Bruno decidimos poupar tudo, tudo, até com-
prarmos a melhor para nossa filha. Pensei que Marcella ia ficar
contente, mas naquele dia ela chorou muito. Sair da cama era uma
bênção, mas, do ponto de vista dela, sentar naquela cadeira
equivalia a aceitar a situação como definitiva.
Afastamos todos os móveis da sala de encontro à parede,
para que ela pudesse se locomover o melhor possível. A televisão
voltou para a sala, porque ela queria poder conversar com a
Mariana de noite, e a verdade é que passáramos os últimos
tempos amontoados no quarto dela, mesmo quando Marcella
queria dormir.
Com a cadeira, a vida entrava em outra rotina. Marcella já podia
voltar a estudar e a fazer a fisioterapia pra valer. Até então, fora Bruno
quem fizera com ela alguns exercícios que o médico ensinara.
Ninguém pode imaginar o que senti vendo Marcella sentar
naquela cadeira pela primeira vez. Enquanto ela estava na cama, é
como se, talvez, um dia fosse se levantar e andar novamente. Deu
um nó na garganta e até senti dor no pescoço, de tanto esforço
para não chorar.
Bruno foi até a escola e
conversou com a diretora. O
pessoal do colégio já tinha
previsto nosso pedido, e
colocou Marcella numa
classe do térreo, onde não
haveria problemas para
entrar com a cadeira. Foi
um momento muito difícil,
porque eu precisava voltar a
dirigir e tinha calafrios só de
pensar nessa hipótese. O
que fazer? Pedi a Bruno que
me ajudasse. É um marido
maravilhoso e é por isso que
eu o amo tanto. Saímos no domingo e ele me fez sentar ao volante
da perua. Comecei a chorar, e ele disse:
— Aída, não dá pra fazer o tempo voltar. Foi uma tragédia, e
é por causa dessa tragédia que você precisa ser forte. Ninguém
pensa que você foi culpada, em nenhum momento eu achei que
você pudesse ter feito alguma coisa diferente. Estou com o coração
partido, como você está, mas sei que foi uma fatalidade, e é isso
que você precisa pôr na cabeça. Agora, coragem. Dirija, porque
nossa filha precisa de você.
Consegui agarrar o volante, colocar a marcha e partir. Tinha
tanto medo que, na pracinha, achei que as árvores tinham pernas e
vinham em cima de mim. Bruno conversava comigo. Consegui
me acalmar. Era preciso.
Entrei numa rotina pesada: acordava cedo e levava Marcella
e Gui à escola. Corria para atender as clientes mais próximas. Na
hora do almoço, pegava os dois. Três vezes por semana, durante a
tarde, levava Marcella para a fisioterapia. Era complicado, porque
precisava ficar esperando e, às vezes, perdia a tarde toda. Minhas
clientes noturnas eram fundamentais — sem elas não conseguiria
faturar nem metade do que precisava. Algumas vezes, saía também
aos sábados à tarde.
Não era fácil. O pior é que via sempre minha filha triste,
magoada, ferida pela vida. O Gui também: cada vez mais calado,
mais dentro de si mesmo. Queria tanto saber o que fazer! O que
mais me partiu o coração foi um dia em que cheguei mais cedo e
fiquei esperando na porta, conversando com a mãe de outra
aluna — quem sabe ela se interessaria em comprar os meus
produtos? Vi quando o Bira saiu conversando animado com uma
garota, e os dois ficaram na porta, batendo papo, fazendo
charminho. Era uma garota alta, magra, com o tipo da Marcella,
quando estava bem. O Bira era muito bonito: eu lembrava muito
bem dele, porque antes eu sempre assistia aos jogos do colégio.
Todo mundo dizia que ele namorava a Marcella, embora, na mi-
nha opinião, ela fosse muito nova para pensar em namoro. Nesse
instante, a Marcella e o Gui saíram. Ela já aprendera a virar as
rodas da cadeira com alguma rapidez. Quando saiu, o Bira e a
garota a olharam. Vi que ele ficou um tanto sem jeito. A garota
deu um sorrisinho de superioridade. Detestei aquele sorrisinho,
que parecia dizer:
"A coitada é louca por você."
Tive vontade de dar um murro naquele sorriso, mas, é claro,
fiquei quieta, parada, sofrendo. Era óbvio que a Marcella era louca
pelo Bira, porque lhe lançou um olhar tão triste, tão magoado, que
eu quase chorei. Minha mãe tinha me contado que o Bira fora em
casa. que até levara flores (se bem que um tanto murchas, parecia
ter achado no lixo, pelo que notei), e eu pensara, depois daquela
visita, que minha filha tinha um amigo de verdade. Ele nunca mais
apareceu.
Minha mãe me disse também que, durante várias semanas,
cada vez que a campainha tocava, a Marcella ficava angustiada,
torcendo, na expectativa de que fosse o Bira, com novas flores,
novos sorrisos, muitas esperanças. Nunca mais. Com o tempo,
ela foi se fechando, dolorida em suas emoções. Uma vez, per-
guntei ao Gui:
— Por que o Bira nunca mais veio?
— Sei lá. Acho que ele nem lembra mais dela.
Outra vez, quando a Mariana ia saindo, fui com ela até o
portão:
— Mariana, sabe... eu acho que a Marcella pensa muito na-
quele rapaz, o Bira. Ele esteve aqui, com flores. Posso imaginar o
que isso significa. Será que... será que você pode pedir pra ele
visitar a Marcella de novo, um dia?
Mariana ficou sem jeito, quando respondeu:
— Aída, não adianta.
— Não adianta por quê?
— O Bira está em outra.
— Mas ele não era amigo da Marcella? Até achei que tinham
um flerte na época do colégio.
— Foi outra época, Aída.
Ficamos uma olhando para a outra. Respirei fundo:
— Mariana, você acha que ele nunca mais procurou a Mar-
cella porque ela ficou paraplégica?
— É isso aí. Sabe, eu achava o Bira o máximo. Mas depois...
sei lá... ele se comportou de um jeito tão frio, tão egoísta! Agora,
quando olho pra ele, nem o acho tão bonito assim.
Mariana partiu e fiquei sozinha com minha dor. Será que, se
eu estivesse numa situação dessas, agiria diferente? Seria capaz de
namorar e casar com um rapaz paraplégico? Não sei responder, nin-
guém sabe, porque a gente nunca sabe o que faria numa situação
extrema. Todos temos aspectos surpreendentes dentro de nós mes-
mos. Eu, até hoje, nem sei como pude suportar os momentos mais
difíceis, as noites horríveis em que mergulhava a cabeça no traves-
seiro e chorava baixinho, para não acordar meu marido.
No dia em que Marcella encontrou o Bira e a garota (a Cris),
eu sofri muito. Vi o olhar que Marcella lançou ao Bira. Um olhar
de cachorro ferido. Ele desviou o rosto, como se estivesse sem
jeito. Então Marcella fez uma coisa que eu admirei. Quando se
aproximou deles, cumprimentou:
— Tudo legal, Bira? Tudo legal, Cris?
Os dois a observaram, constrangidos. Bira engoliu seco:
— E aí, Marcella?
Ela continuou na minha direção. Abri a porta da perua e, com
a ajuda de Gui, conseguimos instalá-la, empurrando a cadeira pelas
rampas que havíamos adaptado. Bira e a garota saíram andando em
outra direção. Durante todo o trajeto de volta, eu olhava pelo
espelho, via o rosto duro da minha filha, e pensava: "Não é justo
que ela sofra tanto".
Foi por isso que, quando Mariana veio com a idéia de levar
Marcella ao bailinho, fui inteiramente contra. A escola ia fazer
uma festa para arrecadar fundos para a Associação de Pais e
Mestres. Um bailinho. Eu mesma dissera que mandaria uma
bandeja de sanduíches para vender. Afinal, tinham sido muito
legais quando Marcella voltou para a escola. Alguns professores
deram aulas de acompanhamento sem cobrar nada e, quando ela
passava pelos portões, eu ficava tranqüila, porque sempre havia
alguém para ajudar a evitar um obstáculo ou para conversar com
ela.
Desde que voltara às aulas, Marcella estava mais leve, e
isso me aliviava bastante. Agora... deixar que ela fosse ao baili-
nho... ah! isso era muito diferente! Fiquei imaginando Marcella,
sentada a noite toda na cadeira de rodas, enquanto os pares
rodopiavam, de um lado para outro. Bira, tão bonito, cercado
pelas outras garotas.
— Eu fico com ela, Aída — garantiu Mariana.
Eu não queria, de jeito nenhum. Imaginei que ela podia co-
nhecer outro rapaz, se interessar, e sofrer novamente.
"Quem vai querer namorar uma paraplégica?", eu pensava.
Era melhor que não tivesse esperanças. Gui também queria ir:
— Deixa, mãe, deixa!
Mas como poderia permitir que ele fosse e Marcella não?
Mamãe também era contra:
— Você precisa descansar, Marcella — argumentou.
Marcella quase gritou:
— Descansar mais do que estou descansando, vovó?
— E não é bom pegar friagem!
Foi uma gritaria. Bruno chegou naquele instante e re-
solveu:
— Você vai, sim, Marcella. Você promete ficar com ela,
Mariana?
— Mãe, pai, até parece que vou ficar solta no meio de bandi-
dos! — irritou-se Marcella.
Acabei concordando. Comprei um tecido lindo, branco,
cheio de brilhos. Era um tecido que eu gostava desde a época em
que era mocinha e trabalhava numa loja. Uma espécie de seda
sintética, com bordados de flores em branco. Trouxe tecido para o
forro também. Minha mãe sempre costurou bem, e fez para Mar-
cella um vestido lindo, comprido, muito rodado.
No dia da festa, nós a ajudamos a se vestir. Lembrei de um
chale espanhol, legítimo, que eu ganhara há muitos anos, e Mar-
cella o colocou nos ombros. Emprestei também meu colarzinho
de pérolas (falsas, é verdade, mas muito bonitas). Penteamos seu
cabelo para trás, fazendo um rabo-de-cavalo, que prendemos com
um fecho de pérolas. Quando nós a ajudamos a sentar na cadeira,
e ela abriu o vestido, percebemos que ele praticamente ocultava a
cadeira. Sentada daquele jeito, ela parecia uma princesa antiga,
no trono, e estava linda, linda!
Passamos pela casa de Mariana, que apareceu com um vestido
preto, muito severo para a idade dela, mas eu não disse nada, não
queria estragar a festa de ninguém. Em seguida, eu e Bruno
deixamos os três, Gui, Marcella e Mariana, no colégio. O pátio
estava todo iluminado, enfeitado com flores de papel e, de longe, já
dava para ouvir a música animada.
Fomos embora tranqüilos. Fazia muito tempo que eu e Bruno
não tínhamos mais momentos sozinhos. A dor, o sofrimento desde
a tragédia impedia que pensássemos em nós mesmos. Mas, naquela
noite, o clima era diferente. Nossa filha estava linda, feliz por com-
parecer a um bailinho, por ver gente. Gui também parecia feliz,
menos triste do que costumava estar, e até minha mãe, sempre tão
deprimida, estava orgulhosa pelo vestido, pelo sorriso da neta. Apertei
a mão de Bruno e me aproximei dele, no carro.
- Vamos ter uma noite só para nós? — ele disse. Nem precisei
responder. Havíamos combinado, com nossos filhos, voltar só
depois da meia-noite para pegá-los. A noite estava linda, e Bruno
seguiu em direção a uma praça onde costumávamos passear, logo
depois do casamento. Era uma praça muito policiada, porque
muitos casais de namorados costumavam ir até lá, de noite, para
observar a cidade, do mirante, olhar a lua e simplesmente ficar
juntos.
Estacionamos a perua e saímos para passear. Ele colocou
os braços em volta de mim, e me senti segura e confortável. Por
algumas horas esqueci a dor, a dureza de meu trabalho,
vendendo produtos de beleza na boate, enfim... voltei a me
sentir como se fosse aquela garota recém-casada de anos atrás.
Compramos sorvete de palitinho. Sabor de uva. E, depois,
olhando o mirante, ele me beijou.
Quando voltamos ao colégio, eu estava leve, feliz. De
longe ouvi a música. Bruno e eu descemos para buscar
nossos filhos. Não estavam mais lá. Tinha acontecido uma
coisa horrível.
5. Gui

Sei que tinha prometido ajudar papai e mamãe, e fazer o má-


ximo para Marcella ser feliz, e todas as coisas que a gente garante
que vai fazer nessas horas. Tinha prometido tanta coisa boa que já
me sentia um anjo, com as asas crescendo nas minhas costas. Acho
legal pensar que podia ser anjo. Quando eu era pequeno, a moça
que trabalhava na casa da vovó pegava nos dois ossinhos que a
gente tem saltados nas costas e dizia:
— É o toco das asas de anjo que você perdeu quando nasceu.
Eu ficava bravo, furioso, e gritava:
— Não sou anjo, não sou anjo.
Depois, ouvindo tantas pessoas falarem coisas lindas dos an-
jos, eu pensava que devia ser bom me transformar em um, e poder
voar bem alto, na altura dos edifícios. Nos últimos tempos, porém,
francamente! Eu sentia até os chifrinhos nascerem na minha cabeça,
de tanta vontade de ser ruim e deixar todo mundo na mão.
A Marcella tinha virado uma chata. E bota chata nisso! Ver-
dade! Não podia ouvir o barulho dos meus passos e já gritava:
"Gui, faz isso! Gui, faz aquilo!" O tempo todo, uma chateação.
Tinha virado um escravo!
É claro que ficava triste por ver a minha irmã na cama, na-
quela posição meio caída. Depois, quando chegou a cadeira de
rodas, também era de cortar o coração: a Marcella se locomovendo
no meio da casa, batendo na parede, fazendo voltas e voltas para
entrar por uma porta do jeito certo. As portas em casa são muito
estreitas!
Mais tarde, minha irmã voltou para a escola e também foi
muito duro. Se foi duro pra mim, imagino pra ela! Ver todas as
colegas brincando, correndo, fazendo charminho, e saber que nunca,
nunca mais poderia fazer aquilo! E pior de tudo: saber que não era
passageiro. O dia em que a Marcella viu o Bira foi de doer. Ele
tentou fingir que nem tinha visto, quando ela entrou no pátio. Mas
Marcella foi até ele e puxou conversa:
— E aí, Bira, nunca mais apareceu!
— Muito treino.
Ele nem falou. Rosnou, pra dizer a verdade. A Cris, que an-
dava saindo com ele, veio na direção dos dois.
— Tudo bem, Marcella?
Pegou o braço do Bira, e os dois foram saindo:
— Até mais, Marcella.
Minha irmã ficou parada no pátio, e tive uma vontade dana-
da de correr até ela, de dar um abraço e gritar:
"Não se preocupe, eu gosto de você. Você não está sozinha." Só que
fiquei parado, sem ação, como se tivesse vergonha de dar um
abraço em público. Vi quando ela movimentou a cadeira de rodas
com dificuldade — ainda não controlava bem o mecanismo,
faltava força nos braços —
e voltou em direção a um
grupo de amigas, que tinha
visto tudo, em silêncio.
Claro que muitas garotas
deixaram de falar com a Cris,
como se fosse culpa dela. Eu
sabia que não era. Nem do
Bira, talvez.
Só eu sabia como
era difícil a vida perto da
Marcella. Era uma vida
chata, pra dizer a verdade.
Por isso, cada vez que a
Mariana aparecia, eu sentia
um alívio danado. A
Mariana tinha muita boa
vontade, e eu podia até sair,
brincar na rua. ou
simplesmente andar pela
casa sem medo de que, a
cada passo, minha irmã
pedisse alguma coisa.
Outra coisa que me chateava: ninguém mais, em casa, se pre-
ocupava comigo. Se meu pai trazia um agrado da rua, era para ela.
Se minha avó fazia um doce, era sempre o predileto da Marcella.
Tudo bem: é lógico que ela estava sofrendo muito. Mas nunca
mais iam fazer arroz-doce só porque eu gostava e ela não? O tempo
todo me lembravam das minhas responsabilidades:
"Fica junto da sua irmã. Não saia, porque ela pode precisar
de alguma coisa."
Será que o resto da minha vida ia ser assim?
Quando a Mariana começou a falar no bailinho, pensei que
ia ser outra chateação. (Claro que não imaginei que podia acontecer
uma coisa tão ruim como aconteceu.) Mas, conversa vai, conversa
vem com a turma da escola, mudei de opinião. Ia ser uma festa
legal, com coxinha, empadinha, esfiha, doce de todo tipo. Também
seria legal dançar com as garotas da minha turma — se bem que a
maioria delas andava muito chata. A Gislene vivia com o nariz pra
cima, fazendo caras e bocas para os mais velhos, da turma do Bira.
Só que eu não estava nem aí, ela que bancasse a boba o quanto
quisesse!
No dia da festa, a Marcella ganhou um vestido branco que
parecia de princesa de contos de fadas. Estava linda, de verdade.
Eu não ganhei roupa nova, é claro, porque ninguém nem pensou
nisso, mas botei uma calça jeans superlegal, combinando com a
jaqueta, que ainda me servia muito bem. Fomos para a escola na
perua, com papai e mamãe, e parecia que tudo ia dar certo. Fazia
tempo que eu não via meus pais tão tranqüilos. Por um momento
até pensei que tudo iria voltar a ser como era antes do acidente.
A festa estava superlegal, com uma música de lascar, e o di-
nheiro que meu pai tinha dado foi suficiente pra comprar refrige-
rante e sanduíches. A Marcella ficou sentada na cadeira, num lugar
superlegal, perto das cadeiras normais, onde quase todas as garotas
ficavam quando não estavam dançando. Abriu o vestido e colocou
o chale nas costas da cadeira de rodas. Quem olhava nem percebia,
logo de cara, que se tratava de uma cadeira de rodas. Claro que,
observando bem, dava pra notar. Mas, no escuro, só se
via mesmo o rosto claro e lindo de Marcella, com o rabo-de-cavalo,
o colar de pérolas da mamãe e o vestido decotado no ombro Minha
irmã estava linda!
Tudo parecia tão bem que durante certo tempo fui me divertir.
Acontece que nenhum dos rapazes mais velhos tirou a Gislene para
dançar e, quando me aproximei, ela praticamente me empurrou pra
pista. Foi ótimo, porque a gente se afina muito dançando, e só
paramos quando minha camisa estava tão suada que até dava pra
torcer. Aí lembrei de Marcella. Comprei um refrigerante, dei um
gole, e caminhei na direção dela.
Um rapaz estava parado em frente à cadeira. Eu me aproximei,
mas não muito, porque os dois estavam num superpapo. Notei que
não era da turma do colégio. Parecia um pouco mais velho, tinha
cabelos pretos escorridos, também estava vestido de preto e era tão
magro que parecia um guarda-chuva.
- O ano que vem entro no cursinho pra Medicina — dizia
o tal.
— Que legal! Eu bem que gostaria de estar perto do vesti-
bular, mas ainda me falta muito tempo! -- respondeu
Marcella, rindo.
— Quer dizer, pra falar a verdade, pra mim também. Mas já
vou entrar pra ir me preparando bem! Não quero perder um ano, e
meu pai disse que as vagas para Medicina têm muitos candidatos.
Tomei mais um gole do refrigerante. A conversa parecia estar
indo bem.
— Como você chama? — perguntou ele.
— Marcella, e você?
— Emílio.
Aí, quando ele disse a próxima frase, eu gelei:
— Vamos dançar, Marcella?
Pelo jeito do rosto dela, percebi que ficou tão surpresa quanto
eu! Ele não tinha percebido! Notei que a voz de Marcella sumiu,
era apenas um fiozinho, quando respondeu:
— Não... não dá.
Emílio riu:
— Que bobagem! Por que não? Vai ficar aí a festa toda?
— Não, é que...
— Vem cá!
Rindo, certo de que ela só estava fazendo charme, ele pegou
Marcella pela mão e puxou, como se faz normalmente, quando se
quer insistir com alguém que está fazendo fita. Só que o puxão foi
muito forte. Apanhou Marcella desprevenida. Ela caiu no chão. O
rapaz, estarrecido, deu um passo atrás.
Fiquei paralisado. Toda a festa parou, diante da cena. Humi-
lhada, minha irmã tentava se erguer nos cotovelos, mas não tinha
força para levantar. Começou a chorar. O colar de pérolas se rom-
peu e as bolinhas foram caindo de seu pescoço, uma a uma...
Ninguém sabia o que fazer. Por sorte, Mariana estava por
perto. Veio correndo, aos gritos:
— Idiota, imbecil! Veja o que fez!
Mariana ajoelhou-se no chão — notei que não teve medo de
sujar o vestido preto — e abraçou Marcella como se fosse mãe, ou
irmã mais velha. Aí, eu também criei coragem, corri até elas
Muita gente estava tentando ajudar. Ergueram e sentaram minha
irmã na cadeira de novo. Algumas pessoas cataram as pérolas
caídas, e eu também peguei algumas. Coloquei no bolso. O rapaz
ainda tentou falar alguma coisa:
— Desculpa, eu... eu... eu... não...
— Vá embora — gritou Mariana. — Vá embora!
Marcella chorava, sem parar. Algumas pessoas estavam de
pé, ao lado, tentando dizer frases bonitas, ajudar. A diretora veio
oferecer:
— Se você quiser, Marcella, eu abro o escritório e você fica
lá, descansando, até sua família chegar.
A bibliotecária trouxe um copo d'água.
— Quero ir pra casa! — disse Marcella.
— Mas não podemos ir pra casa — respondi. — O papai e a
mamãe só chegam depois da...
Mariana me interrompeu:
— Podemos sim, Guilherme.
— Como?
— Vocês moram só a onze quadras do colégio. Eu e você
ajudamos a Marcella a atravessar as ruas...
Fiquei apavorado, porque era noite e, desde o acidente, nunca
tinha saído com a Marcella sem a presença de meu pai ou minha
mãe.
— E a sarjeta? Como a cadeira vai passar?
— A gente dá um jeito. Você topa, Marcella?
Ela fez que sim, ainda humilhada. A diretora concordou:
— Querem que algum professor os acompanhe?
— Não... não é preciso. É perto. Qualquer problema, o Gui
vem correndo até aqui.
Apavorado, vi quando Mariana deu impulso na cadeira e
atravessou o pátio. Fui atrás das duas. Quando atravessamos os
portões, ouvi a música, que continuava, e imaginei Gislene dan-
çando com outro garoto.
Em seguida, nem pensei mais no assunto. A rua parecia
ameaçadora. Fomos ajudando Marcella que, na maior parte do
tempo, movimentava sozinha a cadeira. Estávamos em silêncio
absoluto. Notei que as lágrimas escorriam pelo rosto da minha
irmã.
Fora horrível, horrível! Imaginei sua dor, sua humilhação,
caída no cimento. O vestido estava rasgado na altura do joelho. O
que restou do colar, guardei no meu bolso.
Sua vida seria sempre assim, uma tragédia? E a minha?
Notei os carros na rua, as janelas dos apartamentos ilumina-
das, e invejei as outras pessoas. As famílias reunidas, vendo tele-
visão, conversando. E nós três ali, na noite triste, voltando para
casa como um time que perdeu o campeonato.
De repente, quando já tínhamos atravessado uns três quartei-
rões (vencer as sarjetas não foi tão difícil assim! Bastava dar um
impulso na cadeira, e pumba, ela subia!), aconteceu uma coisa
incrível. Mariana começou a cantar. Sem mais nem menos, an-
dando ao lado de Marcella, ela começou a cantar em voz alta.
Envergonhado, olhei em volta, para ver se as pessoas estavam sa-
indo nas janelas, irritadas. Mas não. E aí, ela disse:
— Canta comigo, Gui. Canta, Marcella.
Fiquei completamente sem jeito. Ela fez um gesto, incenti-
vando, e eu comecei a cantar junto, porque era uma música super-
conhecida. Aí ouvi a voz fraca de Marcella.
Nós três começamos a cantar, cada vez mais forte, e à medida
que cantávamos a dor ia desaparecendo, o horror daquela noite
evaporando. Então eu cantava, corria à frente da cadeira, fazia
micagens, dançava, Marcella acompanhava batendo palmas, e fo-
mos entrando em novas músicas, e, quando errávamos, era ainda
mais divertido, porque ríamos juntos como bobos e voltávamos a
cantar. Algumas pessoas abriram as janelas, e nem me importei.
Chegamos em casa rindo, rindo. Mariana se despediu na porta,
e eu e Marcella entramos felizes como nos velhos tempos. Es-
távamos tão alegres que até vovó riu com a gente.
Fomos ver televisão e, quando papai e mamãe chegaram, com
cara triste e preocupada, porque tinham sabido de tudo que
acontecera na festa, levaram até um choque ao ver Marcella feliz.
- Papai, mamãe, foi uma noite maravilhosa!
Eles não entenderam nada, mas notei que estavam aliviados.
A partir dessa noite, começaram a acontecer muitas coisas
diferentes.
6. Emílio

Se vergonha matasse, eu já estava duro e frio. Que vexame!


Que vexame! Eu não podia adivinhar, claro que não. A garota
estava sentada... mas há muitas garotas que passam a maior parte
de uma festa sentadas, fazendo charme.
Eu tinha acabado de pegar uma sangria, olhei para o lado e a
vi pela primeira vez. Parecia uma ilusão, era linda demais. O rosto
pálido, a boca vermelha, o cabelo penteado para trás, o vestido
branco e um colar de pérolas no pescoço. Fiquei por perto um
tempo, dando uma de Miguel. Uma garota daquelas não podia estar
sozinha na festa. Quem é que ia deixar uma beleza daquelas dando
sopa? Será que naquele colégio só tinha frouxo?
Fiquei olhando pra garota disfarçadamente. Não seria legal
mostrar que estava na marcação. Só amigas vinham conversar
com ela. Um garoto, irmão dela, soube depois, apareceu duas vezes
para trazer refrigerante. Ela observava o baile com um ar triste,
romântico. Pensei: 'Tem jeito de ser muito delicada".
Eu não entendia como aquela garota podia estar sozinha. No meu
colégio, não ficaria nem meia hora sem companhia. Talvez naquele
colégio as coisas fossem diferentes. Ou, quem sabe, seria filha de al-
gum professor muito bravo, desses que proíbem namoro. Quem sabe?
Decidi levar um papo. Nem acreditei quando ela respondeu
com um sorriso, como se estivesse contente de me ver ali. Não é
que eu me ache feio, não. Em geral, as garotas dizem que tenho
um tipo legal. Naquela noite, estava com umas roupas pretas
superótimas, iguais às de um roqueiro inglês que é uma cabeça!
Mesmo assim, não esperava que fosse tão simpática. A conversa
foi evoluindo, contei que quero fazer Medicina e achei que a gente
estava entrando no melhor dos mundos.
Às vezes eu penso: "Como sou burro! Puxa, sou um asno!"
Acho que tudo deu errado porque eu estava louco de entusiasmo.
Pra dizer a verdade, só tive duas namoradas até agora. A primeira, foi
quando eu tinha onze anos de idade, e foi uma menina que me
emprestou um caderno cheio de desenhos românticos e me mandou
um bilhete dizendo que estava apaixonada. Pode, nessa idade? Quase
morri de vergonha, porque Raul, meu irmão mais velho, pegou o bi-
lhete e todo mundo, lá em casa, morreu de rir. O namoro acabou no
ato. A outra foi mais tarde, mas foi uma coisa meio maluca. Aconteceu
quando eu estava na casa de uns primos, durante as férias.
Fomos para um baile no clube, e lá eu conheci uma garota de
outra cidade, mais ou menos da minha idade. Dançamos a noite
toda, e eu até aprendi a dançar formando parzinho. Depois saímos
para o jardim e então eu quis pedir um beijo, mas, em vez de pedir,
fui aproximando a cabeça, ela também foi aproximando e aí... a
gente bateu o nariz. Vexame total. Tentei de novo, entortando o
pescoço, e deu certo. Encostamos os lábios um no outro. Alguém
saiu do clube e disfarçamos. Ela me deu um papelzinho com o
nome dela, rua, número e cidade. Prometi escrever, mas a primeira
carta veio com um carimbo: "Endereço desconhecido". Achei que
tinha errado o número e mandei várias cartas, com muitas
combinações, e todas voltavam com o mesmo carimbo. Dava uma
raiva ver aquele carimbo!
Até hoje não sei se ela deu o endereço errado, ou se não en-
tendi o número que estava escrito. Ou se ela mudou, e não tinha
como me avisar. Só sei que fiquei apaixonado muitos anos.
Sou do tipo romântico, acho. Por isso, quando a garota sen-
tada começou a bater papo, senti um arrepio. Senti que estava me
apaixonando.
Queria dançar com ela, rodopiar, quem sabe... quem sabe,
beijar? Convidei para dançar. Ela disse que não. Notei que seus
olhos brilhavam, como se tivesse um sentimento escondido lá no
fundo. Pensei: "Ela quer dançar, mas está fazendo gênero". Insisti.
Ela negou, cada vez mais envergonhada. Não tive dúvidas. Peguei
a mão dela, dei um puxão, amigável, só pra estimular.
Foi uma tragédia. Ela despencou, caiu de boca no chão. A
cadeira de rodas, vazia. E aquela garota linda, no chão, tentando
se erguer, mas não conseguindo. As pérolas rolando no cimento.
Eu queria que o chão se abrisse.
Como fui burro, como fui burro! Não tinha percebido. É o
que dá ser romântico: fiquei olhando para a garota como se ela
fosse uma princesa.
'Tomara que aconteça um terremoto!" — pensei. Terre-
motos não acontecem por aqui, e eu fiquei estático. Uma amiga
dela, e depois o irmão, e mais um monte de pessoas vieram
ajudar. Vi quando foi colocada na cadeira. Tentei falar alguma
coisa, mas ela me olhou de um jeito horrível. E a amiga gritava:
— Vá embora, vá embora!
Pensei que não tinha nada que ter vindo à festa do colégio
dos outros. Caí na conversa da turma, e agora estava dando aquele
vexame. Fui para um canto... se pudesse, ficaria invisível. Eu estava
de carona com meu irmão mais velho, e não tinha como sair de lá.
Vi quando ela foi embora, escoltada pelo irmão e a amiga.
Conversei com umas pessoas. Fiquei sabendo que se chamava
Marcella, e que tinha sofrido um acidente de carro. Ficou paraplé-
gica. Era mesmo uma pena, uma garota tão simpática presa numa
cadeira de rodas. Naquela noite, tentei esquecer o assunto e até
dancei com outras garotas.
No outro dia, acordei mortificado. Achei que devia, de algu-
ma maneira, pedir desculpas. Era chato o que tinha acontecido.
Conversei com um colega de classe, que também estava na festa,
mas ele disse:
— Esquece.
Como se fosse fácil! Nos outros dias, fiquei um tempão pen-
sando nela. Naquela figura bonita, sentada na cadeira, com um
vestido de princesa. Tentei conversar com meu irmão, mas ele
respondeu:
— O que você quer com uma paralítica?
Odiei a resposta. Primeiro, porque eu não estava querendo
coisa nenhuma. Só me desculpar, talvez. Segundo, porque as pes-
soas falam tanto... Vivem dizendo que é preciso compreender,
ajudar, ser solidário. Na hora de demonstrar, é outra história. Eu
queria fazer alguma coisa. Queria falar com ela.
Os dias foram passando, e a Marcella não saía da minha ca-
beça. Claro que não fui mais pedir conselho a ninguém. Existem
certas situações nas quais não bastam os conselhos práticos. E pre-
ciso consultar o coração. Sentia as batidas dele ficando mais rápi-
das, cada vez que pensava nela.
Um dia, tomei coragem e conversei com a garota que tinha
nos convidado para a festa. Ela contou que a Marcella estudava
de manhã. Por que eu queria saber? Disfarcei, dizendo que ainda
estava chateado pelo tombo. No dia seguinte, fiquei de olho, es-
perando o fim das aulas.
Estava decidido a falar com ela, mas foi uma decepção. Uma
senhora — depois soube que era a mãe — chegou de perua. Mar-
cella saiu com o irmão e, ajudada por ele, subiu na perua. Foram
embora. Percebi que nunca saía sozinha. Parecia tão cercada pelas
pessoas como uma princesa dos contos antigos, no alto da torre de
um castelo.
E eu queria tanto falar com
ela! Lembrei da amiga
furiosa, que me tocou da
festa. Consegui recordar
perfeitamente a cara dela,
porque era meio gordinha, e
tinha uns cabelos crespos
muito bonitos. Voltei ao
colégio dois dias depois,
mas nem me preocupei em
procurar Marcella. Fiquei
de olho, até ver a outra,
saindo com várias amigas.
— Preciso falar
com você — eu disse.
Ela me olhou de
um jeito estranho, não
me reconheceu.
— Sou o Emílio. Fui eu... você sabe... eu derrubei sua ami-
ga da cadeira... da cadeira de rodas, naquele bailinho.
— Ah, foi você! Agora estou reconhecendo. Nem parece o
mesmo, em roupas normais. Naquele dia estava todo de preto, não
estava?
— Não estava legal?
— Eu acho que preto é uma cor muito triste.
Devia achar mesmo. Estava vestida com uma saia verde, blusa
vermelha, e tênis rosa-choque. Parecia um arco-íris!
— O que você quer?
— Falar com a Marcella.
— Acho que ela não vai querer falar com você.
— Sei que foi um vexame.
— Bota vexame nisso!
— Dá uma força, vá... como você se chama?
— Mariana.
— Puxa, Mariana, faz favor... que é que tem? E se ela quiser
falar comigo?
— Aposto que não quer.
Falei, falei, falei. Venci pelo cansaço. Mariana acabou con-
cordando em levar um bilhete.
7. Bruno

Levei um choque ao encontrar o bilhete escondido dentro


do livro de Marcella. Foi por acaso. O livro estava abandonado
sobre o sofá. Peguei um pouco por curiosidade, um pouco por
interesse. Houve uma época em que gostava muito de ler, mas
com o trabalho, sempre mergulhado em números, fui perdendo
o hábito. É uma pena, porque tenho boas recordações de
alguns livros. Ultimamente, Marcella tem lido muito, e, às vezes,
eu penso em aproveitar os livros que ela pega na biblioteca para
ler também, mas estou planejando entrar num cursinho para a
faculdade de Direito, e talvez não tenha tempo para mais nada.
Quando abri o livro, o bilhete caiu do meio das páginas. Es-
tava aberto e li por reflexo. Era de um rapaz, dizendo à Marcella
que gostaria de vê-la novamente. Um bilhete carinhoso! Tive uma
sensação muito estranha. Um nó no estômago.
Desde o acidente, eu só conseguia pensar que minha fi-
lha tinha se tornado tão frágil como um vaso de cristal. Eu
queria protegê-la de qualquer maneira, como se, criando
uma redoma
em torno dela,
pudesse fazê-la
feliz. Às vezes
me torturava,
pensando: "Se
eu fosse rico,
poderia dar
muito mais
coisas a ela".
Muitas
vezes me sentia
um
fracassado. A
falta de dinhei-
ro era terrível.
Um
tratamento pode ficar muito
caro. A cadeira de rodas,
consegui comprar graças à
ajuda da família.
Breve nos acostumamos a
deixar de lado os pequenos luxos.
Economizávamos no que
podíamos. Certa vez. Guilherme
reclamou que o tênis estava
apertado. Eu e Aída nos olha-
mos, preocupados. Não tínha-
mos dinheiro nem para um par
de tênis dos mais comuns. Eu só
deveria receber em quinze dias
e, mesmo assim, não sobraria
nada. Aída disse:
— Vamos cortar as unhas
do pé, Gui. Quem sabe assim
fica folgado.
O pé do garoto estava
crescendo, e cortar as unhas não
adiantou nada. Foi minha sogra,
dona Gilda, quem conseguiu raspar a miserável pensão de viúva
que recebe e comprar o tênis.
As despesas eram altas, muito acima do que eu estava acostumado a
gastar. Ainda por cima, levar e trazer Marcella da escola e da
fisioterapia ocupava um tempo enorme de Aída. Ela trabalhava
menos e, mesmo conseguindo algumas clientes em boates do centro
(eu não gostava nada dessa história), não faturava o suficiente.
Comecei a pegar trabalho extra para fazer em casa. Tornei-me
contador de alguns clientes particulares. De certa maneira, foi uma
vantagem. Atualmente tantas pessoas me pedem para que eu faça
esse trabalho que, em alguns meses, talvez eu possa deixar meu em-
prego e montar meu próprio escritório. Se der certo, poderei ganhar
bem melhor e arrumar tempo para, finalmente, fazer a faculdade que
sempre quis. Acho que a falta de dinheiro tem sido até um incentivo.
Foi por tudo isso que, quando Marcella se propôs a ir à escola e à
fisioterapia na cadeira de rodas, aceitei, mesmo preocupado. Se
Aída se limitasse a dar carona só em dias de chuva, poderia
trabalhar um pouco mais, e o dinheiro, tão importante naquele
momento, deixaria de ser problema.
O fato de Marcella, Gui e Mariana terem vindo sozinhos do
baile da escola, na noite em que Marcella caiu na festa, diante de
todos, deixou minha filha bem mais segura:
— Se o Gui for comigo, a gente pode ir sem a mamãe.
Quem não gostou da história foi o Guilherme. A vida do meu
filho ficou muito complicada, reconheço. Durante os primeiros
tempos, depois do acidente, nem podia sair de casa. Ficava de
plantão, ajudando dona Gilda, minha sogra, a cuidar da Marcella.
Não gosto nem de pensar nos detalhes horríveis. Mas era ele que
ajudava a limpar a irmã, quando ela se sujava. Transformou-se
em um criado, atento a todos os desejos dela. E isso em troca de
muito pouco. Porque não sobrava dinheiro nem para comprar um
presente pra ele. Nem para um agrado.
Tudo se tornou muito difícil porque, antes, era Marcella
que protegia Gui. Era ela, irmã mais velha, que o ajudava sempre.
Com o acidente, a situação tinha se invertido. Agora, além de
ajudar a cuidar da irmã em casa, ele tinha também de acom-
panhá-la até a escola e a fisioterapia. Às vezes, ficava duas
horas esperando, enquanto ela fazia os exercícios. Sentado na
sala de espera, com cadernos e livros, Gui aproveitava para fazer
as lições.
Eu levei Marcella à fisioterapia poucas vezes, e confesso que
me senti mal. Era um desfile de pessoas com problemas. Aciden-
tados dos mais diversos tipos. Alguns paraplégicos têm a lesão
bem no alto da coluna e só conseguem mover os músculos da face.
Soube que, nos Estados Unidos, foi criada uma linha de aparelhos
para permitir que pessoas capazes apenas de piscar consigam virar
as páginas de um livro.
E claro que ficava com o estômago doendo ao tomar con-
tato com todos esses problemas. A única coisa que me conso-
lava era lembrar do físico Stephen W. Hawking. Até o acidente,
embora já tivesse ouvido falar nele, não tinha me preocupado
com os detalhes da história. Agora, era diferente: descobri que,
apesar da dificuldade de movimentos, uma pessoa pode ter
uma vida brilhante.
Stephen Hawking, confinado a uma cadeira de rodas, movi-
mentando apenas alguns dedos da mão, conseguiu desenvolver al-
gumas das mais importantes teorias da Física moderna. Seu livro
Uma breve história do tempo tornou-se fundamental entre os inte-
ressados no assunto. Sua doença, degenerativa, fez com que fosse
perdendo os movimentos cada vez mais. Quando soube da história
desse homem, inicialmente me admirei: "Como ele conseguiu?"
Mais tarde, pensando melhor, descobri que ele conseguiu transfor-
mar a doença numa vantagem. Pois, em vez de se lamuriar, apro-
veitou o isolamento forçado e o tempo livre, já que não podia ter
um emprego tradicional, para pensar. Para criar. Voou.
Conheci, no centro de fisioterapia, escritores, músicos. Um
rapaz me impressionou muito: paraplégico, com apenas um leve
movimento em um dos braços, conseguiu montar uma loja de
material para piscinas, que dirige com sucesso. Suas funcionárias
o ajudam apenas a folhear as listas de preços e a mostrar os produtos.
É ele quem discute, negocia, vende.
À medida que Marcella foi se acostumando com a cadeira de
rodas, o trajeto até o centro de fisioterapia ficou cada vez mais
fácil. Guilherme a ajudava apenas a subir nas sarjetas e a descer,
ou quando havia um obstáculo qualquer. No centro, alguns técnicos
exercitavam as pernas de Marcella para que não se atrofiassem.
Faziam isso repetindo artificialmente os movimentos que ela
deveria ter se não fosse o acidente. Várias seqüelas, produzidas
pela falta de movimento, são evitadas também porque a fisiotera-
pia ativa a circulação, trabalha os músculos.
Depois de algum tempo, Marcella começou a se exercitar nas
barras. O exercício é aparentemente simples, mas o esforço neces-
sário é imenso. São duas barras colocadas paralelamente ao longo
de alguns metros. A pessoa deve apoiar as mãos nas barras. Aí joga
todo o corpo para a frente — é um passo. Bota as mãos alguns cen-
tímetros à frente nas barras, e joga o corpo de novo — outro passo.
O esforço é enorme, porque a pessoa apóia todo o peso do corpo
nas mãos. É a primeira etapa para começar a andar de muletas.
Quanto mais tempo levar o exercício, melhor para o corpo.
Quando Marcella começou os exercícios, tinha muita difi-
culdade. Caía muito, mas ia exercitando os braços. Depois de al-
gum tempo, já conseguia apoiar o corpo. Pouco a pouco, conse-
guiu ter forças para dar alguns passos. Era cansativo, doloroso,
mas muito importante.
Entusiasmado com os progressos de minha filha, instalei barras
na garagem. Passamos a deixar a perua no jardim, mas tudo bem.
Marcella se exercitava várias horas por dia: de manhã, antes da aula e
no final da tarde. Com isso, começou a ganhar mais independência
também dentro de casa. Para tomar banho, por exemplo, não precisava
da ajuda de mais ninguém. Era uma independência conquistada aos
poucos, com sofrimento e, por isso mesmo, mais valiosa.
Assim que começou a ir sozinha com Guilherme para a escola,
Marcella passou a dispensar a ajuda do irmão na volta das aulas.
Fiquei contente, porque, muitas vezes, ela se demorava con-
versando com os colegas, e ele era obrigado a ficar esperando.
Graças a Mariana e outras amigas, Marcella se tornava cada vez
mais independente.
Agora, porém, o bilhete mudava tudo. Bilhete de um rapaz
para minha filha! Eu estava surpreso! Quais seriam as intenções
desse rapaz? O que queria com minha filha? Fiquei preocupado, é
claro. A gente ouve tanta coisa!
Por que Marcella queria tanto ser independente? Por causa
desse rapaz? Quando pediu para ir e voltar da escola sem a mãe, já
estava pensando, possivelmente, no tal de Emílio, que assinava o
bilhete! Com a mãe levando-a para todos os lados, era impossível.
Nunca fiquei tão nervoso quanto naquele dia. Inicialmente,
me senti mal, porque parecia que Marcella estava dando um golpe
em mim, em Aída, na família toda que tanto se preocupava com
ela. Estava nos enganando! Uma raiva enorme foi crescendo den-
tro de mim. "Que falta de juízo!", pensei.
Quem seria esse rapaz? Que interesse teria ele em minha filha,
realmente? Como Marcella se atrevia a trocar bilhetes e a nos
enganar? A dizer que voltava das aulas com as amigas, quando
provavelmente estava se encontrando com o rapaz?
Lembrei de várias situações. Na última semana, tinha ido
duas noites seguidas à casa de Mariana. Teria ido mesmo à casa
dela? Na ocasião, havia deixado o telefone de Mariana. Disquei o
número. A mãe da amiga atendeu. Fui objetivo. Expliquei o que
estava acontecendo. Ela pareceu preocupada e não ocultou nada.
Marcella estivera lá apenas uma vez. Na outra, Mariana também
saíra. Aparentemente, tinham ido ao cinema do shopping.
— Elas são muito novas para pensar em rapazes — garantiu a mãe.
Suspirei. Aquela, sim, estava fora da realidade. Pois eu sabia
muito bem que Marcella já pensava em namoros muito antes do
acidente. Tinham me contado toda a história do Bira, e eu me ar-
repiei de medo de que minha filha estivesse se interessando por
alguém que a fizesse sofrer.
Era tarde, não podia fazer nada. Deitado na cama, conversei
longamente com Aída. Ela também ficou preocupada.
No dia seguinte, quando Aída avisou que voltaria a levar
Marcella à escola e a buscá-la, ela protestou, furiosa:
— Não quero!
— Não quer, mas eu vou.
Começou a discussão. Eu já estava preparado. Peguei o bilhete.
— Você não tinha o direito de ler, pai!
— Nem você de nos enganar.
— Mas eu não estava mentindo! Só quis esperar para ver o
que aconteceria!
Aída chorava:
— Marcella, você está sendo ingênua. Esse rapaz só pode ter
alguma intenção ruim.
— Por quê? Por que sou paralítica? O Emílio gosta de mim.
Gosta de conversar comigo.
Dona Gilda, minha sogra, assistia à cena, espantada. Gui-
lherme também.
— Você sabia de alguma coisa, Guilherme? — perguntei.
— Não, pai! De jeito nenhum.
— Pois, agora, tudo vai voltar a ser como antes, já que você
não tem juízo, Marcella.
— Quando eu andava, vocês nem se importavam.
— Ficávamos preocupados, sim — garanti. — Mas agora
você está mais exposta. Vamos cuidar de você.
A briga foi tão feia que ela não foi à aula nem à fisioterapia. Fui
trabalhar deixando uma ordem: nada de sair sozinha. Quando
Mariana veio visitá-la, à noite, Aída a recebeu na sala.
— Foi muito feio o que você fez, Mariana.
— Eu?
— Bancar a vela... já soubemos de tudo. A Marcella está
saindo com um tal de Emílio, não é? Na outra semana, vocês fo-
ram ao cinema do shopping. Quem mais foi?
— Também foi o Raul, irmão do Emílio — confessou ela.
— Muito bonito! — eu entrei na discussão. — E quem é esse
Emílio?
— Ele... eles se conheceram no baile... Lembra o rapaz que
puxou a Marcella da cadeira e a derrubou no chão?
— Esse aí? —
nunca
fiquei tão surpreso.
— Ele ficou su-
pertriste com o vexa
me, e me procurou. Eu
também achava que
era um bobo, mas ele
me deu um bilhete, eu
entreguei pra ela. A
Marcella adorou re-
ceber, seu Bruno! Aí,
eles me pediram para
ajudar a marcar um
encontro. Foi após a
aula. Depois conhe-
ci o irmão dele, e as
coisas foram rolan
do, rolando...
Aída soltou um gemido. Eu estava muito bravo:
— Pois a partir de agora nada mais vai rolar! Mariana, sei que
a Marcella gosta muito de você. Não vou proibir que venha à nossa
casa, porque você tem sido uma grande amiga. Mas não quero que
fique bancando a leva-e-traz de namorados. Entendido?
— Sim, senhor.
Mariana entrou no quarto. Ouvi o zunzunzum das duas con-
versando a noite toda. Marcella chorava. "Melhor chorar agora
do que depois, por motivos piores" — pensei. Eu estava decidido
a manter minha proibição.
8. Gilda

Ai, que bafafá, que confusão!


Meus filhos gostam de caçoar de mim, dizendo que sou velha
coroca, talvez porque meus cabelos estejam brancos como farinha
de trigo. Só que sou mais moderninha que muito jovem que há por
aí. Eu fiquei abismada de ver a atitude do Bruno com a Marcella.
Onde já se viu, um pai, nos dias de hoje, ficar bravo porque a filha
anda se encontrando com um garoto da idade dela? Se fosse muito
mais velho, pode ser que eu também não gostasse. Até tentei
aconselhar, mais tarde, porque, na hora do rolo, quem abrisse a
boca apanhava. Ah, se apanhava! O Bruno estava vermelho como
um pimentão e a Aída branca como papel. Eu até pensei: "E a hora
da vingança!"
Quando a Aída era garota... que sufoco! Meus primeiros ca-
belos brancos foram por causa dela. Que namoradeira que era!
Não tinha nem saído das fraldas, e já falava em namorar o filho do
dono do armazém. Esse negócio de sair das fraldas é modo de
dizer, é claro. Mas que era bem novinha, ah, era sim! Depois,
quando começou com o Bruno, eu não queria que namorasse fora
de casa. Sei que é coisa de gente antiga, mas lá no interior a gente
demorou a se acostumar com certas modernidades.
Hoje em dia há muita gente que mora junto sem se casar e
nem por isso é mais feliz ou mais infeliz que o resto. O que vale,
eu sempre digo, é o que está no coração. Se o coração da pessoa é
ruim, não tem papel, não tem assinatura que resolva. Mas, na época,
eu pensava de maneira diferente.
Agora, que a Aída também mudou, mudou. Porque quando
se falou que a Marcella tinha ido ao cinema com o tal de Emílio,
ela ficou louca da vida. Ainda por cima, à noite! Chamaram a
Mariana e deram a maior bronca nela.
Eu estava farta daquela história toda. "Eles deviam aplaudir",
pensei. "A menina querendo levar uma vida normal, e eles
atazanando."
Eu podia ter entrado na briga, mas a resposta eu já sabia O
Bruno era capaz de dizer que sogra não deve meter o bedelho. A
vida é assim mesmo. Quando precisam, chamam, fazem agrado
Para cozinhar, eu servia. Para lavar, eu servia. Para trabalhar como
uma burra, eu servia. Pra dar palpite, não. Apesar de tudo, eu sentia
pena. Coitados!
Eu não agüentava mais ver tanta tristeza naquela casa. Ai,
gente, que tristeza! O Bruno trabalhando como um louco varrido.
A Aída vendendo perfume, maquiagem, até em boate da cidade.
A Marcella presa naquela cadeira. E o Gui preso à Marcella.
"Se cada um puder se libertar do outro, é bem melhor'7 —
resolvi. Fiquei na minha, como os jovens gostam de falar. Quando
a Marcella voltou da aula, no outro dia, eu avisei:
— Fala pra esse moço vir aqui, numa hora em que seu pai
não esteja.
— Ahn?
Em vez de proibir, não era melhor conhecer o rapaz?
A Marcella quase me deu um beijo, de tanta alegria. Só sei
que ela e a Mariana andaram conversando, e, dali a duas tardes,
ela avisou:
— Daqui a pouco ele chega, vó.
Não deu outra. Apareceu na porta um rapaz de cabelo escuro,
calça preta, e camiseta sem mangas, que no meu tempo não se
usava nem pra dormir. Mas os tempos são outros, não é verdade?
E, ainda por cima, tinha uma tatuagem no braço. Um dragão. As-
sim era o dito-cujo. Pensei em dizer: "Foge, bicho ruim!" — por-
que aquele dragão tinha caído mal nos meus pensamentos.
Fui até o fim. Dei um sorriso com todos os dentes e disse:
— Vai lá na garagem, que ela tá fazendo exercício. Depois
vem pra sala com ela que eu vou fazer um café.
Claro que não tomaram café, mas refrigerante com bolo.
Do bolo, eles gostaram. De cenoura, minha especialidade. En-
quanto eles conversavam animados, vi que o Gui aproveitou para
sair pra rua. Ainda bem. Não agüentava mais ver aquele moleque
dentro de casa.
Da cozinha, eu ouvia os dois rindo na garagem. Houve uma
hora em que ouvi um barulho. Corri. A Marcella tinha caído, mas
ele a estava ajudando a levantar. Não disse nada. Voltei a cuidar
do jantar.
O rapaz começou a aparecer quase todo dia. Eu deixava os dois
sozinhos. Se fiz mal, não sei, mas que ela parecia diferente, com um
jeito de olhar mais bacana, parecia sim. Ria por qualquer coisa. E eu,
que desde o acidente pensava: "Minha neta perdeu o sorriso!"
Depois que o Emílio veio, outros amigos começaram a apa-
recer. A Mariana também, quase todos os dias. O Raul, irmão do
Emílio. Umas meninas da escola. Eu descobri por que: adoravam
ficar na garagem. Em suas casas, não tinham um lugar só deles
para ficar. No quarto, nem todo mundo tem liberdade pra trazer a
turma e ficar batendo papo.
Na garagem, era diferente. Eles puseram uns cartazes na pa-
rede, com fotografia desses cantores bem malucos que andam por
aí. Pintaram uma parede de preto. Como era eu quem limpava,
não contei nada para a Aída. Pra quê? Ela sempre chegava cansada
de passar o dia vendendo maquiagem.
Havia uma espécie de acordo entre os garotos e eu. Quando
começava a entardecer, eles iam embora. Antes da Aída e do Bruno
chegarem. Ninguém precisou combinar nada, nem o Gui. Porque
ele também parecia mais feliz, saindo todos os dias, brincando com
os vizinhos. Fiquei mais contente, ainda, porque o Gui estava
voltando a ser quem era. Não ficava trancado com a turma da
Marcella, não. Ia se juntar com a molecada da rua e, às vezes,
voltava todo suado pra casa.
Não contei, também, pra Aída quando os amigos começaram
a se revezar para levar a Marcella pra fisioterapia. O Gui ficou mais
livre. Quando estourou a história do bilhete, a Aída insistiu em pegar
a Marcella com a perua não só para ir à escola mas também pra
fisioterapia. O dinheiro encurtou e ela me fez prometer que tomaria
conta. Ela ficou encarregada da escola: iria levar e buscar. Eu e o
Gui, da fisioterapia. Dizia que eu deveria ir andando junto, e voltar.
Pois sim! Quem iria lavar a roupa? Fazer o jantar?
O Gui ainda foi uns dias. Depois, cada vez ia um dos amigos.
O Emílio, principalmente. Como ele gostava da minha neta! Às
vezes iam em turma, de dois, de três. O que me importava era ver
todo mundo feliz.
Ninguém teria descoberto se não fosse a história do
conjuntinho. Acontece que o Emílio e o Raul adoravam tocar
música e cantar. Dali a umas semanas, eles trouxeram uma
guitarra.
A Mariana gostava de cantar. Enquanto Marcella fazia os
exercícios, ensaiavam. Era um barulhão, mas me acostume.. Que
posso fazer se, hoje, em vez de música, a turma pretere barulho?
O pessoal dizia pra Marcella:
— Sua avó é da pesada!
Eu nem falava nada, porque atualmente parece que "da pesa-
da" é uma coisa boa, e as palavras mudam tanto de significado
que nem consigo acompanhar. O que vale é o sorriso, o jeito como
a pessoa diz.
Vou dizer a verdade: eu adorava aquela turma. Trouxe uma
vida nova pra casa. Tudo ia muito bem, até que aconteceu a con-
fusão.
Eu estava na cozinha, terminando de pôr o jantar na mesa,
quando alguém chegou. Ouvi o Bruno abrir a porta.
— Entra, dona Matilde, a Aída está saindo do banho.
— É só um minutinho.
Nem estava pensando em qualquer problema, mas o Gui veio
correndo pra cozinha.
— Vó, vai dar rolo!
Nessa hora, eu tive um pressentimento. Ainda quis entender:
— Rolo por quê?
— Hoje de tarde eu ouvi a dona Matilde reclamando do ba-
rulho... diz que aqui em casa está cheio de roqueiro maluco.
— Ih!
Sabe quando a gente ouve um trovão e tem certeza de que
vem tempestade? O Gui era o trovão. O raio estava caindo.
Ouvi perfeitamente quando dona Matilde explicou que o barulho
era tão grande que até atrapalhava, e que... foi aí que caiu a
tempestade!
— Dona Gilda! Dona Gilda! — gritava Bruno.
Suei frio, ah, se suei frio! Tomei coragem e fui pra sala. O
Gui atrás de mim. com os olhos do tamanho de xícaras, de tão
assustado.
— Que história é essa de conjuntinhos de música, bando de
adolescentes, tudo na minha garagem? E da Marcella ser vista na
rua com pessoas que ninguém conhece por aqui? E do Gui passar
a tarde toda brincando com a molecada? Respirei fundo e soltei o
verbo:
— Pois são gente muito boa. Faço bolo de cenoura...
sanduíches...
— Mamãe, a senhora ficou louca? — gemeu Aída.
Bruno correu até a garagem. Havia uma porta, na sala, que dava direto
pra ela. Pela primeira vez, em todo aquele tempo, ele a abriu. Ah,
pensei que ia me arrebentar os tímpanos com o grito:
— A garagem parece uma boate!
A parede preta foi o pior. Foi isso que fez o Bruno subir a serra.
— Que tipo de gente vem aqui, dona Gilda?
— Vem gente que gosta da sua filha. É o mais importante.
Dona Matilde, sem jeito, abanava a cabeça. Gui quis ajudar.
— É gente legal, sim, pai. Tem o Emílio, tem o Raul...
— O Emílio? Aquele do bilhete?
— Ele faz tudo pela Marcella, pai! Outro dia trouxe uma gar-
rafa de licor de uva pra ela!
— Licor de uva? A Marcella está bebendo?
Retruquei:
— Só tomou um golinho pra experimentar. A garrafa está
guardada na cozinha. Pode ver. Deixa de ser chato, Bruno! Deixa
sua filha se divertir.
— E a senhora vê se deixa de ser maluca, dona Gilda. De
pois de velha, virou roqueira?
— Não me ofende!
— Eu devia chamar o hospício pra botar a senhora numa ca-
misa-de-força!
— Aída, olha como seu marido está falando comigo!
— Pois eu falo quanto quiser, dona Gilda. Quanto quiser! Eu
confiei na senhora! E a senhora virou a rainha da bandalheira! A
organizadora da loucura!
Perdi as estribeiras:
— Saiba de uma coisa, seu Bruno. Eu estava lá no interior,
sossegada, na minha vidinha de sempre, com meus filhos, cuidan
do da minha casa. Vocês precisaram de mim e eu vim, feliz, por
que faço o que posso por meus filhos e meus netos. Não pense um
minuto que vou reclamar, que vou falar que fiz favor. Eu vim por
que quis. Mas não é por isso que você tem o direito de falar assim
comigo.
— E a senhora não tem o direito de transformar minha casa
em boate!
— Boate coisa nenhuma! Só queria que essa casa ficasse
mais feliz. Não agüentava mais ver todo mundo triste, todo mun
do mergulhado no sofrimento.
— Pois agora, dona Gilda, fique sabendo que não confio mais
na senhora. A senhora me traiu e traiu também a confiança de sua
filha.
— Por isso não. Não fico onde não me querem. Vou embora
agora mesmo.
— Mãe! Não precisa exagerar! — gritou Aída.
— Telefono pro meu filho, e ele vem me buscar ainda esta
noite! Vou fazer as malas. Não é exagero, não, Aída. Eu não fico
mais um minuto aqui se é pra ver todo mundo se rasgando, se
lamentando, sem vontade de melhorar!
Dito e feito. Saí, entrei no quarto, cega de raiva. Peguei
uma sacola e atirei minhas roupas. O Gui entrou no quarto
correndo.
— Vó!
— Que foi?
— A Marcella está na sala. Quer conversar com todo mundo.
— Agora não tenho tempo.
— Ela pediu pra eu dizer que é muito importante. Vem, vó.
Só voltei pra sala por causa da Marcella. E também por curio-
sidade, é claro. O que ela tinha pra dizer de tão importante?
9. Marcella

Olhei um por um, bem no fundo dos olhos. Era uma situação
tão absurda que tive vontade de rir, mas precisava ser séria, bem
séria. Nem sabia explicar direito tudo o que estava pensando, mas
eu precisava falar. Minha vó tinha sido muito legal, e meus pais
não estavam entendendo nada do que estava acontecendo.
— Vocês me tratam como se eu fosse uma incapaz! —
comecei.
— Marcella, não diga uma coisa dessas! — mamãe gritou.
— Mas é isso mesmo! Antes do acidente, vocês não fi
cavam na minha cola o tempo todo. Agora, parece que virei
um vaso de cristal. Só falam em cuidar de mim, em me prote-
ger, em...
Papai não me deixou continuar:
— Marcella, você não vai negar que ficou mais frágil. Que
está mais exposta a...
— Pai, eu não morri. Está certo, eu virei uma deficiente. Pen
sa que eu acho legal ser deficiente? Pois não acho não. E horrível
não poder sair correndo, jogar vôlei... Mas não morri, pai! Olha,
pai, deixa eu falar. Tenho uma porção de coisas pra dizer e, se não
falar, meu coração vai explodir, juro!
Vi que meu pai ficou chocado com o meu tom. Eu não estava
gritando. Só falando bem sério, porque era a minha chance! Notei
que dona Matilde, a vizinha, não sabia o que fazer. Mas era bom
ouvir também.
— Sabe o que está no fundo do seu coração, pai? No fundo
você acha que ninguém vai gostar de mim porque sou deficiente.
Puxa, eu não posso mais andar. Mas minha cabeça voa, pai. Meu
coração bate, bate forte.
Continuei falando e eles ficaram num silêncio pesado. Disse
uma porção de coisas. Contei que, quando o Bira sumiu, eu também
achei que nunca mais alguém iria gostar de mim. Eu amava o Bira, e
sofri tanto, tanto!
Naqueles dias, em que eu tinha ficado só deitada na
cama, olhando pro teto, eu pensava que minha vida ia ser,
para sempre, assim. Deitada, dependendo dos meus pais, do
meu irmão.
Quando eu ficasse velha, talvez só tivesse o Guilherme a
olhar por mim. E, quem sabe, nem tivesse ninguém. Porque ele
poderia se cansar de mim e querer cuidar da própria vida. Eu ficava
desesperada só de pensar.
Às vezes, eu lembrava de histórias de pessoas que são defici-
entes e que, mesmo assim, conseguem ter uma vida, uma profissão.
Existe até um cantor, muito famoso, que perdeu uma perna quando
criança. Mas eu sentia que isso nunca iria acontecer comigo. Só via
tristeza pela frente.
Então, primeiro, surgiu a Mariana. Antes do acidente, achava
que ela era uma gorda chata, sempre com um livro debaixo do
braço. Quando fiquei na cama, ela começou a me trazer livros, e
eu pensei: "Só vai ocupar espaço!" Ela trazia e eu fingia que lia.
Afinal, era a única amiga que ia lá e, mesmo que fosse um pouco
chata, às vezes falava coisas interessantes.
Um dia, peguei num livro, só para olhar. Não tinha mesmo o
que fazer. Abri num trecho e algumas frases despertaram minha
atenção. Quando vi, estava mergulhada na história.
A amizade com a Mariana também foi assim. No início, não
dava muita importância. Mas foi crescendo, crescendo... e aí ela
passou a ser superimportante. Quando não vinha, eu sentia falta.
Foi a Mariana quem me convenceu a ir ao baile.
Até aquela noite, eu fazia as coisas como um robô. Queria
que o tempo passasse logo, porque, cada vez que acordava, olhava
o dia e pensava: "Eu quero morrer!"
Na fisioterapia, não tinha vontade de fazer nenhum esforço
e, às vezes, me diziam: "Se você não quiser, nada vai acontecer".
Resolvi ir ao bailinho por insistência. Mas, quando mamãe
fez o vestido branco e eu me olhei no espelho, com o colar de
pérolas no pescoço, eu não sei, deu um clic dentro de mim. Eu
acreditei em mim!
Adorei ficar na festa, olhando todo mundo dançar, e adorei
quando o Emílio apareceu. Foi horrível quando caí no chão. Pensei
que o mundo ia acabar. Mas não acabou. A gente vive achando
que o mundo vai acabar, mas ele sempre continua!
Na volta do baile, o Gui, a Mariana e eu viemos cantando, e
foi como se tivesse se acendido uma fogueira no meu peito. Eu
percebi que podia andar pelas ruas — na cadeira de rodas, é claro
—, que podia ter minha turma. Na fisioterapia, fui ficando cada
vez mais entusiasmada. Olha, nem sei quantas vezes eu caí quando
ia fazer a barra. Mas insistia. Papai me comprou um aparelho de
metal que a gente prende nas pernas. Com isso, elas se sustentam.
A gente consegue, com muita força, jogando o corpo, voltar a
caminhar. Não é uma caminhada como a de alguém que tem duas
pernas boas, nada disso. Mas é um progresso.
Aprendi a voltar da escola sozinha, sem depender do Gui
nem de ninguém. Normalmente uma amiga me acompanhava.
Mas algumas vezes vim sem ninguém. Nas sarjetas mais altas,
que a cadeira não vencia sozinha, nunca deixei de encontrar al-
guém que me desse uma forcinha. O mundo está cheio de gente
legal, digam o que disserem.
Aí chegou o bilhete do Emílio. E a gente começou a se en-
contrar. Era ótimo ir ao shopping, porque lá existem rampas, e é
mais fácil de se movimentar. Um dia ele pegou na minha mão. A
gente conversava muitas coisas bonitas.
Estava com muito medo de me apaixonar, porque com o Bira
tinha sido horrível. Mas o Emílio me ensinou a gostar de alguém
novamente. As tardes que a gente passava na garagem eram ma-
ravilhosas. Porque, enquanto eles tocavam e cantavam, eu fazia
meus exercícios na barra. Sem parar. Era de cansar qualquer um.
Mas eles me animavam e, ao som da música, era muito melhor do
que sozinha. Meus músculos foram se fortalecendo. Não é por
nada, mas acho que tenho um corpo bonito graças ao monte de
exercícios que faço todos os dias.
Sempre que é possível, o Emílio e eu estamos juntos. Se é
namoro, eu não sei. Ainda não dá pra saber. Mas a gente gosta
de ficar juntos. É bom ter quem goste da gente. O principal é
que eu percebi que a vida estava indo pra frente. Não do jeito
que eu pensava, não do jeito que eu tinha sonhado. Se eu pudesse
fazer o tempo voltar, é claro que não iria querer ficar paraplégica.
Quem quer?
Tenho descoberto muita coisa bonita.
No fundo, acho que eu era uma garota boba. Fiquei diferente,
não sei. Descobri um monte de coisas novas: livros, música...
Na clínica de fisioterapia, conheci uma psicóloga. Converso muito
com ela e, de vez em quando, penso até em estudar Psicologia mais
tarde. Antes, eu nem sabia o que era psicologia!
Perder é difícil. Mas, em vez de ficar chorando o resto da
vida, acho que aprendi a ganhar. Então, não é como se tivesse
perdido tudo. Eu faço questão de ter minha própria vida. Não quero
mais ser a garota de cristal. Quero ter meus amigos, sair. Foi o que
expliquei ao meu pai:
— Cada coisa que eu consigo fazer, é como se fosse um
tijolinho numa construção. Hoje eu sei que, quando estiver mais
ve lha, não vou precisar que o Gui me sustente. Vou estudar, ter
uma profissão. Quem sabe até onde posso chegar? É isso, pai.
Ninguém sabe até onde posso chegar. Mas, se passar a vida
presa dentro de casa, não vou chegar a lugar nenhum.
Quando terminei de falar, vi que minha mãe estava chorando.
Papai, em silêncio. Gui também. Dona Matilde soltou uma lágrima.
Aí vovó fez uma coisa prática. Acho que nunca admirei tanto vovó
quanto naquele momento! Ela foi até a janela e a abriu. Só isso.
Acho que fez isso porque estava calor, mas, quando ela abriu a
janela, a luz da rua entrou em casa, e todos olhamos para o céu cheio
de estrelas.
A lua estava enorme. Um perfume gostoso da dama-da-noite,
que vovó plantou no fundo do quintal de nossa casa, entrou na sala,
junto com os sons da rua, da voz de uma vizinha e do choro, ao
longe, de uma criança.
Todo mundo ficou comovido. Ninguém tinha palavras naquele
momento, mas agora eu sei o que aconteceu. Quando ela abriu a
janela, a vida entrou na casa. Não era isso que vovó tinha feito,
afinal, todo aquele tempo? Trazido a vida pra dentro de casa?
Eu e meu pai nos olhamos. As lágrimas rolaram pela sua
face. Pelas minhas também. Ele se levantou e me abraçou. Ficamos
juntos, abraçados, muito tempo. Depois, mamãe se aproximou,
chorando também.
— Obrigado, Marcella. Você tem muita coragem — disse
papai.
Ninguém precisou dizer mais nada. Dona Matilde saiu. Vovó
foi fazer um bolo. Voltei para meu quarto. Também abri as janelas
e fiquei muito tempo olhando para as estrelas.
"Eu não posso andar, mas se quiser, eu vôo", pensei. "Posso
chegar até as estrelas!"
E, pela primeira vez, depois do acidente, eu me senti leve.
Leve, muito leve!
10. Gui

Foi assim que tudo mudou.


É claro que minha vida continuou cheia de coisas chatas. Até
hoje tenho de acompanhar Marcella em muitas coisas. No ano que
vem, vovó vai voltar para o interior, e eu e Marcella vamos dividir
os trabalhos da casa. Anda muito cansada, a vovó.
Mamãe precisa continuar trabalhando. Papai está atolado,
porque além de tudo entrou no cursinho e, quando tem tempo,
fica estudando. Dinheiro pra pagar empregada, nem pensar. Pro-
meti cuidar da limpeza da casa. Também vou fazer as camas e
pendurar as roupas no varal. Marcella está aprendendo a cozi-
nhar. Por enquanto, é um horror. Outro dia, ela quis fazer um
bolo de abacaxi, mas ficou como se fosse feito de plástico, de
tão grudento. Ainda bem que eu tenho mais jeito pro fogão e,
pelo menos o arroz, eu já sei fazer. Senão todo mundo pode acabar
morrendo de fome! Em compensação, Marcella passa as roupas
até ficarem uma beleza. Papai faz questão que ela cuide de suas
camisas.
O pessoal continua ensaiando na garagem. Acho que os vizi-
nhos se acostumaram. E Marcella faz exercício na barra dia e noite.
Os braços estão bem fortes, e ela já consegue andar pela casa,
quando coloca os aparelhos de metal nas pernas e se apóia em
duas muletas de metal. O melhor de tudo é que ela e o Emílio
estão sempre juntos. Conversam sem parar. Não sei como conse-
guem ter tanto assunto sem criar calo na língua!
Naquela noite, quando Marcella soltou o verbo, ninguém me
deu muita atenção. Costumam achar que sou muito novo pra en-
tender certas coisas. Mas eu entendi muito bem, sim!
Sei que papai e mamãe queriam tratar Marcella como se fosse
um vaso que pudesse virar um monte de pedacinhos de uma hora
pra outra. Pior ainda, eu é que devia carregar o vaso com todo o
cuidado enquanto eles trabalhavam. Imaginem, carregar um vaso
daquele tamanho!
A Marcella não queria ser um vaso. Ela sempre gostou de ser
gente. Sempre teve muitos planos. Antes, ela só falava no vôlei.
Agora, pensa em escrever um livro. Também está aprendendo a pintar.
É como se ela continuasse com a mesma força, só que em coisas
diferentes. Ainda bem. Enquanto ela esteve presa, eu também fiquei
preso. A falta de dinheiro era horrível, sim. Mas o pior era não ter
mais nem um minutinho pra ver meus amigos, pra brincar! E também
pra pensar nas minhas coisas. Quando a gente passa por tanta coisa
difícil, aprende a pensar. Deixa de ser bobo em muitas coisas.
Marcella queria ter uma vida como tinha antes. De um certo modo,
tinha aprendido a andar novamente. É isso aí, ela tinha descoberto um
jeito de andar! Ficou livre! Quando ela ficou livre, eu fiquei também.
A vida nunca mais foi como antes, mas é uma vida cheia de
coisas boas.
Naquela noite, depois que ela falou, falou e falou, vovó abriu
a janela. Todos olhamos para o céu cheio de estrelas. De repente,
lembrei também de uma aula que eu tive, quando olhei no micros-
cópio. O professor pôs um pedaço de vidro, com uma manchinha,
no microscópio. Olhando a manchinha, a gente não dava nada por
ela. Mas, no microscópio, deu pra ver tantas coisas que eu nem
poderia descrever. O microscópio aumentava a mancha tanto, tanto,
que a gente descobria um mundo lá dentro!
Olhando as estrelas de longe, eu pensei: "E se eu tivesse um
microscópio para observar as estrelas? Quer dizer, um telescó-
pio?" De longe, elas parecem todas iguais, mas, chegando perto,
acho que eu descobriria as diferenças de cada uma. Quem sabe,
uma é torta. Na outra, falta um pedaço. A outra é mais apagada.
Estrelas, estrelas, estrelas! Pensei muito nelas. Talvez elas
sejam como a gente. Quando olho pras pessoas que não conheço
direito, parece que tudo está bem, que tudo está certo. Que só
eu, minha irmã e meus pais temos problemas tão difíceis. Que
a vida dos outros é tranqüila. Que todos são iguais, como as
estrelas que a gente vê de longe. Mas, se a gente se aproxima,
como quando olhei a mancha no microscópio, ah, nem se fala!
É outra história.
Quando as estrelas entraram pela janela, foi nisto que pensei.
"Que a gente é como um pedaço da noite. De longe, estrelas
perfeitas. De perto, estrelas tortas!"

FIM
WALCYR CARRASCO

NOME:...................................................................................................
SÉRIE:.................................... NÚMERO:.......................................
ESCOLA:...............................................................................................

ORIENTAÇÃO DE LEITURA
PERSONAGENS

1. Neste livro temos a história contada por todas as personagens, cada uma
delas dando o seu ponto de vista sobre os acontecimentos. Quem são essas
personagens?
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2. Relacione os pensamentos aos personagens:


"Marcella era minha companheirona, vivia me protegendo."..........................

"Todos sofriam naquela casa, e, de repente, eu estava ali, de pé, e seria


vergonhoso bancar a ofendida e sair correndo para nunca mais voltar."
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"Decidi que iria até a casa dela sempre que pudesse. E tem mais: nunca deixa-
ria de levar flores. Prometi a mim mesmo ser um cara
legal.".......................................
"Por algumas horas esqueci a dor, a dureza do meu trabalho, vendendo
produtos de beleza na boate, enfim... voltei a me sentir como se fosse aquela
garota recém-casada de anos atrás."........................................................................

"Fui para um canto... se pudesse, ficaria invisível. Eu estava de carona


com meu irmão mais velho, e não tinha como sair de lá."...................................

"Como Marcella se atrevia a trocar bilhetes e a nos enganar? A dizer que


voltava das aulas com as amigas, quando provavelmente estava se encon-
trando com o
rapaz?"..............................................................................................................

"Enquanto Marcella fazia os exercícios, ensaiavam. Era um barulhão, mas me


acostumei. Que posso fazer se, hoje, em vez de música, a turma prefere
barulho?".......................................................................................................................

"Não quero mais ser a garota de cristal. Quero ter meus amigos, sair."
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A HISTÓRIA

1. Como era Marcella antes do acidente que a deixou paralítica?


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2. Como Mariana contribuiu para que a amiga não se sentisse tão triste com
seu estado?
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3. Por que Bira não conseguiu cumprir o que prometera a si mesmo?


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4. Como foi que Marcella conheceu Emílio?


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5. Apesar do incidente ocorrido no baile, Marcella voltou tranqüila para casa.
Por quê? Podemos afirmar que o incidente contribuiu para melhorar a vida da
garota? Em que sentido?
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6. Você acha que as preocupações de Bruno (quando soube de Emílio) em


relação à filha tinham razão de ser? Por quê?
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7. De que forma a avó, dona Gilda, colaborava para que sua neta vivesse
normalmente?
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8. Explique por que Gui compara a vida das pessoas com um pedaço da noite.
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REFLEXÃO

Marcella provou em sua história que tem vontade de viver. O fato nos leva a
uma reflexão sobre os problemas que muitos deficientes físicos enfrentam.
Numa cidade grande, por exemplo. Pense nisso e elabore uma lista de medidas
que poderiam ser tomadas para facilitar a vida dos deficientes físicos. Siga o
roteiro:

a) Lazer — Os locais de lazer como cinemas, shoppings, praças devem ser


adaptados? Como?
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b) Trabalho — Os deficientes físicos podem exercer trabalhos remunerados?
De que tipo?
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c) Esporte — É possível que os deficientes desempenhem atividades espor-


tivas? Como?
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REDAÇÃO
Escreva um texto em que você dialoga com Marcella. O que você perguntaria
para ela? Imagine o que a garota poderia lhe dizer.

ESCREVA PARA O AUTOR


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Walcyr Carrasco
a/c Editora Moderna
Rua Padre Adelino, 758 - Belenzinho
CEP 03303-904 - São Paulo
Caixa Postal 45.364

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