Walcyr Carrasco - Estrelas Tortas
Walcyr Carrasco - Estrelas Tortas
Walcyr Carrasco - Estrelas Tortas
WALCYR CARRASCO
Capa e ilustrações de: Getúlio Delphin
Editora Moderna, 1997
ISBN 85-16-01596-3
"Sua
irmã
nunca
mais vai
andar."
Foi assim
que papai
me deu a
notícia.
Quando
ele falou,
fiquei um
tempão
tentando
entender
o que
queria
dizer,
Nem sei direito por que entrei nessa história. Quer dizer, nunca
fui do tipo boazinha. Não me dava bem com a Marcella. Brigamos,
logo no início do ano, por causa de um doce. Foi assim: a Marcella
ganhou uma caixa de bombons do Bira e, no intervalo, ofereceu
para várias colegas da classe. Cheguei perto e, quando estava
estendendo a mão para pegar um, ela comentou, dando risada:
— Fominha.
Fiquei louca da vida. Soltei o bombom como se tivesse me
dado um choque. A Marcella ainda disse:
— Pode pegar. Ajuda no regime.
Foi o máximo da grosseria. Sei que sou meio gordinha e vivo
dizendo que nunca mais vou comer doces. Depois, não resisto e
mando ver. O pior foi
que as outras
começaram a rir. Senti
o rosto pegando fogo.
Respondi:
— Muquirana. Coma
os seus bombons! Tomara
que tenha uma diarréia!
Desde então, nunca
mais conversamos. Pra
falar a verdade, eu tinha
até um pouco de inveja da
Marcella. Quando estava
na quadra de vôlei, pa-
recia que tinha molas
nos pés. Voava. Flutuava.
Não é à toa que a maior
parte dos garotos do colé-
gio só pensava nela. O Bira,
inclusive.
O Bira era o máximo. Eu e todas as garotas da classe tínhamos
essa opinião. Ele, ele... nem sei como explicar... era só o máximo.
Acho que isso diz tudo. Cabelos castanhos encaracolados. Alto. O
peito largo, de tanta ginástica. Era capitão da equipe de basquete.
Diziam que ia acabar na televisão, de tão bonito. Às vezes eu olhava
no espelho e conferia meu rosto. Feia, eu não sou. Mas nunca me
senti páreo pra Marcella. Nunca achei que um sujeito bonito como
o Bira pudesse se interessar por mim. Acho que isso, no fundo, me
deixava assim, assim... como se o mundo fosse muito injusto
comigo. Ninguém olhava pra mim. Todos ainda me tratavam
como se fosse uma menina. A Marcella, não. Quando eu soube do
acidente, nem quis acreditar. A Celina, uma colega do colégio,
comentou:
— Dizem que ela nunca mais vai poder andar.
Fiquei pasma. Como, justo a Marcella? Senti que o mundo
era bem mais injusto do que eu pensava. Como, justo ela, tão bo-
nita, tão boa jogadora!
Nas primeiras semanas, eu fiquei sem jeito de ir à casa de
Marcella. Afinal, estávamos brigadas. Pensei em me aconselhar
com alguém. Sei que podia ter conversado com minha mãe, mas
fiquei sem jeito. Minha mãe vivia insistindo para eu não comer
tanto doce e, certamente, não ia gostar da história da briga. Final-
mente resolvi bater um papo com Alice, a bibliotecária da escola.
Gosto muito de ler, e sempre me dei bem com ela. Quem vê a
Alice, aquele jeito de senhora, com idade para ser minha mãe, não
imagina como é boa de papo. Quando a gente começa a conversar,
vê que ela tem a cabeça superaberta. Contei a ela o que tinha
acontecido.
— Mariana, tem uma coisa que você precisa entender — dis-
se a bibliotecária.
— Diz, Alice.
— Muitas vezes, a gente briga, discute. Mas nada é tão defi-
nitivo assim. Mesmo que a Marcella não tivesse sofrido o aciden
te, é lógico que vocês voltariam a conversar um dia. Se você não
for visitá-la, nesse momento tão difícil, ela vai pensar que você
realmente não gosta dela. Essa briguinha, que no fundo não foi
nada, vai se tornar uma coisa importante. Talvez nunca mais vocês
voltem a ser amigas.
— Mas como é que eu faço?
— Tome coragem, aperte a campainha da casa dela, e entre.
Mesmo que ela esteja de mau humor, resista. Ela deve estar
sofrendo muito.
Aí, nem sei por quê, eu tive uma idéia:
— Posso levar um livro pra ela?
A Marcella nunca gostou de ler. Achava uma perda de tempo.
Agora, presa na cama, com um colete de gesso, talvez mudasse de
opinião. Um livro faz a gente viajar por países desconhecidos,
conhecer gente nova... descobrir mundos que estão dentro da
gente. Eu e Alice escolhemos um belo romance.
O livro ficou em cima da minha penteadeira. Eu não
achava jeito de ir à casa da Marcella. Até que, um dia, vi o Gui,
irmão dela. brigando com o Duda no meio da rua, na saída da
aula. Era horrível de se ver. O Gui estava transtornado,
realmente fora de si, só porque o Duda chamou a Marcella de
paralítica. Eu percebi que, no fundo, o Gui não queria aceitar a
verdade. Doía saber que não havia solução. Quando eles foram
separados, puxei conversa. Disse que queria ir ver a Marcella.
O Gui fez uma cara esquisita, achei até que eu não seria bem
recebida. Pensei que ele fosse responder que a Marcella não
gostava de mim, mas ele disse que eu podia ir.
Ainda precisei de uns dias para tomar coragem, mas fui. No
início foi horrível. O ambiente da casa estava pesado como chumbo.
A avó, dona Gilda, estava tomando conta da casa. Era impressionante
olhar para ela. Parecia desgastada, com o rosto todo vincado pela dor.
Gui também estava muito diferente do sujeitinho legal que eu
conhecia. Parecia menor... olhando bem, percebi que andava com os
ombros encolhidos, meio corcunda. Era como se uma bomba tivesse
estourado no meio da casa. Senti um cheiro no quarto da Marcella!
Era mofo! Perguntei se podia abrir a janela, e ela disse que não.
— Estou com frio — respondeu, amuada.
A televisão estava ligada e ela nem pegou o controle remoto
para abaixar o volume do som. Ofereci o livro, ela pôs de lado
sem olhar para o título.
Marcella já estava sem o gesso, seu tronco estava enfaixado.
Mal se via, porque ela usava uma camisola larga, de flanela. O
pior era a posição na cama. Parecia uma boneca quebrada. Ficava
sentada de um jeito estranho, como se não tivesse forças para ficar
sequer nessa posição (mais tarde descobri que não tinha mesmo
condições de permanecer com a coluna reta sem auxílio). Olhou
para mim com uma expressão estranha, que, no início, não consegui
identificar. Raiva? Ressentimento? Tentei puxar conversa, não
consegui. De repente, ela gritou:
— Gui! Vó!
Ele veio, de mau humor. Percebi que já não suportava ser
chamado por ela:
— Que foi, Marcella?
— Xixi!
— Posso ajudar? — perguntei.
Dona Gilda estava entrando no quarto e respondeu:
— Ainda bem que você está aqui!
Só então descobri que Marcella havia perdido o controle de suas
necessidades. Ela percebera que estava molhada ao tocar a calcinha
com a mão. (Mais tarde passou a usar um absorvente especial, mas
naquela época todos ainda estavam aprendendo a lidar com ela.) Aju-
dei dona Gilda e Gui a trocá-la. Não foi fácil. Era preciso erguer as
pernas dela — como pesavam! — para trocar a calcinha. Assim como
se troca a fralda de um bebê. Fiquei novamente triste, não só por ela,
reduzida àquela situação, mas também pelo Gui. Percebi que ele não
tinha mais liberdade alguma, pois a avó, sozinha, não dava conta do
problema. E era um problema, ah, como era!
Durante toda a minha vida sempre ouvi as pessoas falarem
que se deve ter um comportamento natural com um paraplégico.
Pode ser, como descobri com Marcella, que a gente consiga viver
uma relação legal. Mas também sou contra quem diz que não se
deve julgar que é um problema. É um problema, sim, e, se as pessoas
considerassem a questão com toda a gravidade, talvez não existissem
tantas entradas de metrô sem rampa de acesso para cadeiras de rodas,
tantos teatros, tantos cinemas cercados por escadarias.
Eu estava pensando nessas coisas, quando terminamos de
cuidar da Marcella. A avó saiu. Quando eu e ela ficamos a sós,
Marcella pareceu se transformar num escorpião, porque começou
a gritar comigo e a dizer coisas horríveis. Como se eu tivesse ido
lá só para ver o estado em que ela estava. Fiquei tão brava que
nem tive forças para responder. Levantei-me, imediatamente, de-
cidida a ir embora. Ela não podia me destratar daquele jeito. Afinal,
eu tinha ido lá com as melhores intenções.
De repente, ela desabou. Aquela Marcella forte, capaz de
vencer uma partida de vôlei com a força de um saque. Aquela
Marcella furiosa, capaz de me atingir com palavras duras, de dizer
coisas horríveis. Tudo isso desapareceu. Percebi que ela gritava,
porque estava desesperada. Só conseguia se debater, como alguém
que cai num rio e está se afogando.
— Por que não morri? — ela gritava.
Vi o rosto apavorado de Gui nos observando. Nenhuma palavra
poderia descrever o que percebi naquele momento. Era dor, dor e
dor. Todos sofriam naquela casa, e. de repente, eu estava ali, de pé,
e seria vergonhoso bancar a ofendida e sair correndo para nunca mais
voltar. Marcella estava sofrendo tanto que nenhuma palavra
aplacaria aquela dor. A mágoa que suas palavras me causavam não
era nada, perto de toda aquela tragédia. De repente, quando ainda
estava gritando, Marcella começou a chorar. Um calor subiu do meu
peito. As lágrimas saltaram dos meus olhos. Chorei também.
Quando vi, estávamos abraçadas, e tudo o que acontecera de
feio e ruim entre nós duas realmente não fazia sentido. Depois
que paramos de chorar, eu disse, simplesmente:
— Gosto de você, Marcella. Virei aqui sempre! Se quiser,
posso pegar as lições da escola e trazer. Quem sabe, você ainda
consegue salvar o ano?
Eu sabia que seria difícil, pois estávamos no final do semestre,
mas em certas situações especiais, como a dela, sempre pode ser
criada uma exceção. Ela nem respondeu. Só apertou minha mão.
Ainda fiquei lá um bom tempo. A emoção foi passando, e comecei
a falar do pessoal. Contei o que estava acontecendo com cada um.
A avó dela trouxe café e bolo de chocolate. De repente. Marcella
perguntou:
— E o Bira, como vai?
Não foi preciso dizer mais nada. Ela ainda gostava do Bira.
Eu precisava falar com ele.
3. Bira
Pô, atolei!
Que droga, meu! A Mariana tinha que vir com um papo desses,
como se eu fosse o cara mais miserável do planeta, só porque não
tinha ido na casa da Marcella? Eu sabia. Quem não sabia que ela
tinha dado uma pirueta no asfalto? É claro que tava chateado, pô.
Eu não sou nenhum monstro e juro que tinha me sentido mal pra
danar. E uma bruta sacanagem do destino, é isso que é, porque a
Marcella sempre foi linda como uma pintura e eu cortava um duro
por ela. A gente já tinha "ficado" umas vezes, e eu dizia, pegando
nos cabelos dela:
— Minha cestinha!
Para um cara louco por basquete como eu, cestinha é a melhor
coisa que alguém pode ser. Muitas vezes eu pensei, quando tava
em casa, sonhando acordado, que quem sabe eu e a Marcella ainda
tivéssemos muitas coisas pra viver. Coisas em comum, a gente
tinha. A gente formava um belo par. Mas aí, quando veio a notícia,
nem sei direito o que passou pela minha cabeça. Eu senti, claro que
senti. Aí eu disse pra mim mesmo: "Amanhã eu dou uma passada
por lá".
Naquele dia não deu, eu tinha treino. Deixei pro outro, e o
tempo foi passando. Aí, eu pensei: "Pode ser que ela esteja cha-
teada comigo, porque não apareci".
Fui deixando rolar. "Qualquer dia, eu vou."
Depois, eu pensei que seria melhor dar mais um tempo, até
que ela estivesse menos abalada. Quem sabe não fosse alarme falso
e ela voltasse a andar, e a gente pudesse sair junto e dançar, como
antes, e até rolar de rir com as histórias?
Foi quando a Mariana veio com aquele papo, dizendo que a
Marcella queria me ver, etecétera, etecétera. Eu me senti mal pra
burro, como se ela estivesse dizendo que eu era culpado de alguma
coisa. Culpado eu não era, não, porque eu e a Marcella nunca
esclarecemos se namorávamos, embora no fundo talvez a gente
estivesse mesmo começando um namoro. Mas compromisso, as-
sim como se falava no tempo dos meus pais, isso não tinha, não.
Fiquei sem jeito, pronto, foi o que aconteceu. Agora, brava
comigo ela não estava, caso contrário não iria ficar mandando
recadinho.
Jamais gostei de coisas tristes, e acho que só estava deixando
aquela fase péssima passar. Me decidi. No outro dia, depois do
treino, fui pra casa da Marcella.
Fiz tudo como manda o figurino. Meu pai sempre diz que é
elegante e sofisticado levar flores quando se visita alguém. Ainda
mais quando é uma garota doente. Acho que ele pensa assim prin-
cipalmente porque é sócio numa floricultura. Isso facilitava bem
as coisas, porque flores são caríssimas, e eu nem teria grana pra
comprar um presente desses. Passei na floricultura e me deram
um maço de flores que já estava ficando passado, mas nem dava
pra notar se a gente tirasse umas margaridas murchas do meio.
Cheguei à casa da Marcella com as flores, e uma velha, com
a cara tão murcha que parecia uva-passa (depois fiquei sabendo
que era a avó), abriu a porta e sorriu. Até que era bem simpática
sorrindo:
— Entra, entra.
Fui entrando com cuidado, porque sei que velha dessa idade
adora pensar em casamento, principalmente quando vê alguém
com flores na mão. O irmão da Marcella, o Gui, também estava
lá, e eu o cumprimentei de longe, porque acho que ele é meio...
sei lá, meio fora do esquema. Quando joga futebol é capaz de ar-
rancar um pedaço de grama do campo, mas a bola, mesmo, não
acerta nem a pau. A velha perguntou meu nome, e gritou:
— Marcella, tem um moço lindo querendo falar com você. E
o Bira.
Eu não sei, não, se sou lindo como todo mundo diz, mas achei
falta de gosto a tal senhora ficar gritando pela casa. A Marcella
gritou:
— Bira, espera
um pouco. — E
chamou o Gui.
Fiquei na
sala, me sentindo
um palhaço com
aquele maço de
flores na mão,
enquanto o Gui
entrava no quarto
e eu ouvia a voz
da Marcella:
— Gui,
pega o batom.
Gu i, pega o
pente!
Era chato ficar ouvindo esses pedidos. Deu pra sentir que a
Marcella não estava mesmo numa boa, porque, se estivesse, ela
mesma pegaria o batom, etecétera. Pensei que, se um dia ela se
casasse, a vida do marido seria um inferno, porque ela sempre
precisaria de alguém ajudando, e aí tive um calafrio.
Quando entrei no quarto, ela estava toda arrumada, e perfu-
mada, mas o cheiro do quarto era mais forte. Sei lá, o quarto pare-
cia... parecia um armário velho, fechado faz tempo. Senti tam-
bém um cheiro tão forte de álcool, de remédio, que me deu enjôo.
Notei, na cabeceira da cama, uma pilha de livros, e estranhei, por-
que Marcella nunca foi muito de ler. Entreguei as flores, ela agra-
deceu, feliz, e pediu para o irmão pôr num vaso.
Gui saiu com o maço, e pensei como a vida dele também
devia andar chata, com a Marcella pedindo alguma coisa o tempo
todo. Ela perguntou como ia minha vida, e eu comecei a falar do
campeonato, porque só conseguia pensar mesmo é que dali a duas
semanas estaria disputando o campeonato entre colégios, e que
tinha de vencer de qualquer jeito. Enquanto eu falava, até esqueci
que ela estava ali, deitada naquela posição esquisita. Aí, eu olhei
pra ela.
Não dava pra olhar e continuar falando. Os olhos dela esta-
vam brilhando, como se estivessem olhando um doce. Só que o
doce era eu. Ela me admirava, prestava uma superatenção em to-
dos os meus gestos, como se eu fosse... um ser especial. Era
isso... eu era um ser especial, porque agora ela estava naquela
cama, e nunca mais... nunca mais?
— É verdade, Marcella, é verdade que você...?
Ela ficou branca, como se estivesse se ofendendo.
— Desculpa, eu não quis chatear você.
— Pode perguntar, Bira, perguntar não dói.
Marcella sempre tinha sido corajosa e respondeu como se
deve:
— Os médicos disseram que... acho que eu nunca mais vou
poder andar como antes... Mas, sabe, Bira, a semana que vem eu
começo a fazer fisioterapia.
— Então tem chance.
— Já me disseram que existem casos... bem, insistindo na
fisioterapia, eu posso conseguir alguma recuperação... e meu pai
está providenciando uma cadeira de rodas. Você não sabe como
custa caro uma boa cadeira... mas toda a família está ajudando.
Meu tio, que tem um armazém no interior, mandou quase metade
do dinheiro.
Eu me senti mal ouvindo aquilo. Porque já estava me sentindo
mal desde o começo. Que a Marcella nunca havia tido muito
dinheiro, eu já sabia. Morava naquela casinha antiga e simples,
que o pai tinha herdado. Os quartos saindo da sala... muito dife-
rente do apartamento novo em que eu morava há um ano. Às
vezes, no colégio, eu ouvia algumas meninas fazendo piada
sobre a mãe dela, dona Aída, que vendia produtos de beleza,
desses que se oferecem de porta em porta. Elas diziam que
a mãe de uma colega tinha comprado, mas o produto era tão
ruim que quase arrancava a pele. O pai de Marcella também
não ganhava muito bem. Trabalhava numa firma pequena,
como contador. O dinheiro deles era curto.
Agora, olhando em volta, eu pensava como é que ia ser. A
Marcella ia passar a vida toda naquele quarto apertado? Pelo
visto, eles não tinham como contratar enfermeira, e a avó e o
Gui é que iam cuidar de tudo. E como ia ser a vida da Marcella
dali em diante?
Só vi sofrimento pela frente. Eu me senti muito mal, porque,
se pudesse, faria alguma coisa. Mas não sabia o que fazer. Porque o
que a Marcella gostaria que eu fizesse, ah, não dava, não. Ela queria
que eu fosse o mesmo Bira de antes, que pegava nos cabelos dela e
dizia coisas legais, mas essas coisas legais, eu dizia pra Marcella
que ria, que fazia piada, que todo mundo achava o máximo.
Aquela Marcella era outra. Era triste, era encolhida, estava
meio torta, e me olhava como se quisesse me abraçar, encostar a
cabeça no meu ombro. Eu não tinha palavras bonitas pra dizer! Só
queria dar o fora dali. Deixei o assunto ir morrendo, morrendo, e,
depois de um certo tempo, levantei e disse que ia embora. Ela pediu
pra eu ficar, mas dei uma desculpa, disse que voltava outro dia.
Saí no pinote. Quando cheguei na rua, pensei:
"Puxa, ainda bem que não aconteceu uma coisa dessas
comigo."
Foi isso mesmo que pensei. Mas achei que era um pensa-
mento muito egoísta e resolvi que não ia sumir, não. A Marcella
precisava da minha amizade.
Tive as melhores intenções. Decidi que iria até a casa dela
sempre que pudesse. E tem mais: nunca deixaria de levar flores.
Prometi a mim mesmo ser um cara legal, mas aí começaram
os treinos para o campeonato. Fui deixando para outro dia, outro
dia... Quando vi, já fazia tanto tempo, desde aquela visita, que
nem valia a pena voltar. E... também, eu tinha conhecido a Cris.
Pô, fiquei amarradão na Cris!
4. Aída
Olhei um por um, bem no fundo dos olhos. Era uma situação
tão absurda que tive vontade de rir, mas precisava ser séria, bem
séria. Nem sabia explicar direito tudo o que estava pensando, mas
eu precisava falar. Minha vó tinha sido muito legal, e meus pais
não estavam entendendo nada do que estava acontecendo.
— Vocês me tratam como se eu fosse uma incapaz! —
comecei.
— Marcella, não diga uma coisa dessas! — mamãe gritou.
— Mas é isso mesmo! Antes do acidente, vocês não fi
cavam na minha cola o tempo todo. Agora, parece que virei
um vaso de cristal. Só falam em cuidar de mim, em me prote-
ger, em...
Papai não me deixou continuar:
— Marcella, você não vai negar que ficou mais frágil. Que
está mais exposta a...
— Pai, eu não morri. Está certo, eu virei uma deficiente. Pen
sa que eu acho legal ser deficiente? Pois não acho não. E horrível
não poder sair correndo, jogar vôlei... Mas não morri, pai! Olha,
pai, deixa eu falar. Tenho uma porção de coisas pra dizer e, se não
falar, meu coração vai explodir, juro!
Vi que meu pai ficou chocado com o meu tom. Eu não estava
gritando. Só falando bem sério, porque era a minha chance! Notei
que dona Matilde, a vizinha, não sabia o que fazer. Mas era bom
ouvir também.
— Sabe o que está no fundo do seu coração, pai? No fundo
você acha que ninguém vai gostar de mim porque sou deficiente.
Puxa, eu não posso mais andar. Mas minha cabeça voa, pai. Meu
coração bate, bate forte.
Continuei falando e eles ficaram num silêncio pesado. Disse
uma porção de coisas. Contei que, quando o Bira sumiu, eu também
achei que nunca mais alguém iria gostar de mim. Eu amava o Bira, e
sofri tanto, tanto!
Naqueles dias, em que eu tinha ficado só deitada na
cama, olhando pro teto, eu pensava que minha vida ia ser,
para sempre, assim. Deitada, dependendo dos meus pais, do
meu irmão.
Quando eu ficasse velha, talvez só tivesse o Guilherme a
olhar por mim. E, quem sabe, nem tivesse ninguém. Porque ele
poderia se cansar de mim e querer cuidar da própria vida. Eu ficava
desesperada só de pensar.
Às vezes, eu lembrava de histórias de pessoas que são defici-
entes e que, mesmo assim, conseguem ter uma vida, uma profissão.
Existe até um cantor, muito famoso, que perdeu uma perna quando
criança. Mas eu sentia que isso nunca iria acontecer comigo. Só via
tristeza pela frente.
Então, primeiro, surgiu a Mariana. Antes do acidente, achava
que ela era uma gorda chata, sempre com um livro debaixo do
braço. Quando fiquei na cama, ela começou a me trazer livros, e
eu pensei: "Só vai ocupar espaço!" Ela trazia e eu fingia que lia.
Afinal, era a única amiga que ia lá e, mesmo que fosse um pouco
chata, às vezes falava coisas interessantes.
Um dia, peguei num livro, só para olhar. Não tinha mesmo o
que fazer. Abri num trecho e algumas frases despertaram minha
atenção. Quando vi, estava mergulhada na história.
A amizade com a Mariana também foi assim. No início, não
dava muita importância. Mas foi crescendo, crescendo... e aí ela
passou a ser superimportante. Quando não vinha, eu sentia falta.
Foi a Mariana quem me convenceu a ir ao baile.
Até aquela noite, eu fazia as coisas como um robô. Queria
que o tempo passasse logo, porque, cada vez que acordava, olhava
o dia e pensava: "Eu quero morrer!"
Na fisioterapia, não tinha vontade de fazer nenhum esforço
e, às vezes, me diziam: "Se você não quiser, nada vai acontecer".
Resolvi ir ao bailinho por insistência. Mas, quando mamãe
fez o vestido branco e eu me olhei no espelho, com o colar de
pérolas no pescoço, eu não sei, deu um clic dentro de mim. Eu
acreditei em mim!
Adorei ficar na festa, olhando todo mundo dançar, e adorei
quando o Emílio apareceu. Foi horrível quando caí no chão. Pensei
que o mundo ia acabar. Mas não acabou. A gente vive achando
que o mundo vai acabar, mas ele sempre continua!
Na volta do baile, o Gui, a Mariana e eu viemos cantando, e
foi como se tivesse se acendido uma fogueira no meu peito. Eu
percebi que podia andar pelas ruas — na cadeira de rodas, é claro
—, que podia ter minha turma. Na fisioterapia, fui ficando cada
vez mais entusiasmada. Olha, nem sei quantas vezes eu caí quando
ia fazer a barra. Mas insistia. Papai me comprou um aparelho de
metal que a gente prende nas pernas. Com isso, elas se sustentam.
A gente consegue, com muita força, jogando o corpo, voltar a
caminhar. Não é uma caminhada como a de alguém que tem duas
pernas boas, nada disso. Mas é um progresso.
Aprendi a voltar da escola sozinha, sem depender do Gui
nem de ninguém. Normalmente uma amiga me acompanhava.
Mas algumas vezes vim sem ninguém. Nas sarjetas mais altas,
que a cadeira não vencia sozinha, nunca deixei de encontrar al-
guém que me desse uma forcinha. O mundo está cheio de gente
legal, digam o que disserem.
Aí chegou o bilhete do Emílio. E a gente começou a se en-
contrar. Era ótimo ir ao shopping, porque lá existem rampas, e é
mais fácil de se movimentar. Um dia ele pegou na minha mão. A
gente conversava muitas coisas bonitas.
Estava com muito medo de me apaixonar, porque com o Bira
tinha sido horrível. Mas o Emílio me ensinou a gostar de alguém
novamente. As tardes que a gente passava na garagem eram ma-
ravilhosas. Porque, enquanto eles tocavam e cantavam, eu fazia
meus exercícios na barra. Sem parar. Era de cansar qualquer um.
Mas eles me animavam e, ao som da música, era muito melhor do
que sozinha. Meus músculos foram se fortalecendo. Não é por
nada, mas acho que tenho um corpo bonito graças ao monte de
exercícios que faço todos os dias.
Sempre que é possível, o Emílio e eu estamos juntos. Se é
namoro, eu não sei. Ainda não dá pra saber. Mas a gente gosta
de ficar juntos. É bom ter quem goste da gente. O principal é
que eu percebi que a vida estava indo pra frente. Não do jeito
que eu pensava, não do jeito que eu tinha sonhado. Se eu pudesse
fazer o tempo voltar, é claro que não iria querer ficar paraplégica.
Quem quer?
Tenho descoberto muita coisa bonita.
No fundo, acho que eu era uma garota boba. Fiquei diferente,
não sei. Descobri um monte de coisas novas: livros, música...
Na clínica de fisioterapia, conheci uma psicóloga. Converso muito
com ela e, de vez em quando, penso até em estudar Psicologia mais
tarde. Antes, eu nem sabia o que era psicologia!
Perder é difícil. Mas, em vez de ficar chorando o resto da
vida, acho que aprendi a ganhar. Então, não é como se tivesse
perdido tudo. Eu faço questão de ter minha própria vida. Não quero
mais ser a garota de cristal. Quero ter meus amigos, sair. Foi o que
expliquei ao meu pai:
— Cada coisa que eu consigo fazer, é como se fosse um
tijolinho numa construção. Hoje eu sei que, quando estiver mais
ve lha, não vou precisar que o Gui me sustente. Vou estudar, ter
uma profissão. Quem sabe até onde posso chegar? É isso, pai.
Ninguém sabe até onde posso chegar. Mas, se passar a vida
presa dentro de casa, não vou chegar a lugar nenhum.
Quando terminei de falar, vi que minha mãe estava chorando.
Papai, em silêncio. Gui também. Dona Matilde soltou uma lágrima.
Aí vovó fez uma coisa prática. Acho que nunca admirei tanto vovó
quanto naquele momento! Ela foi até a janela e a abriu. Só isso.
Acho que fez isso porque estava calor, mas, quando ela abriu a
janela, a luz da rua entrou em casa, e todos olhamos para o céu cheio
de estrelas.
A lua estava enorme. Um perfume gostoso da dama-da-noite,
que vovó plantou no fundo do quintal de nossa casa, entrou na sala,
junto com os sons da rua, da voz de uma vizinha e do choro, ao
longe, de uma criança.
Todo mundo ficou comovido. Ninguém tinha palavras naquele
momento, mas agora eu sei o que aconteceu. Quando ela abriu a
janela, a vida entrou na casa. Não era isso que vovó tinha feito,
afinal, todo aquele tempo? Trazido a vida pra dentro de casa?
Eu e meu pai nos olhamos. As lágrimas rolaram pela sua
face. Pelas minhas também. Ele se levantou e me abraçou. Ficamos
juntos, abraçados, muito tempo. Depois, mamãe se aproximou,
chorando também.
— Obrigado, Marcella. Você tem muita coragem — disse
papai.
Ninguém precisou dizer mais nada. Dona Matilde saiu. Vovó
foi fazer um bolo. Voltei para meu quarto. Também abri as janelas
e fiquei muito tempo olhando para as estrelas.
"Eu não posso andar, mas se quiser, eu vôo", pensei. "Posso
chegar até as estrelas!"
E, pela primeira vez, depois do acidente, eu me senti leve.
Leve, muito leve!
10. Gui
FIM
WALCYR CARRASCO
NOME:...................................................................................................
SÉRIE:.................................... NÚMERO:.......................................
ESCOLA:...............................................................................................
ORIENTAÇÃO DE LEITURA
PERSONAGENS
1. Neste livro temos a história contada por todas as personagens, cada uma
delas dando o seu ponto de vista sobre os acontecimentos. Quem são essas
personagens?
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
"Decidi que iria até a casa dela sempre que pudesse. E tem mais: nunca deixa-
ria de levar flores. Prometi a mim mesmo ser um cara
legal.".......................................
"Por algumas horas esqueci a dor, a dureza do meu trabalho, vendendo
produtos de beleza na boate, enfim... voltei a me sentir como se fosse aquela
garota recém-casada de anos atrás."........................................................................
"Não quero mais ser a garota de cristal. Quero ter meus amigos, sair."
........................................................................................................................................
........................................................................................................................................
A HISTÓRIA
2. Como Mariana contribuiu para que a amiga não se sentisse tão triste com
seu estado?
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
7. De que forma a avó, dona Gilda, colaborava para que sua neta vivesse
normalmente?
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
8. Explique por que Gui compara a vida das pessoas com um pedaço da noite.
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
....................................................................................................................................
REFLEXÃO
Marcella provou em sua história que tem vontade de viver. O fato nos leva a
uma reflexão sobre os problemas que muitos deficientes físicos enfrentam.
Numa cidade grande, por exemplo. Pense nisso e elabore uma lista de medidas
que poderiam ser tomadas para facilitar a vida dos deficientes físicos. Siga o
roteiro:
REDAÇÃO
Escreva um texto em que você dialoga com Marcella. O que você perguntaria
para ela? Imagine o que a garota poderia lhe dizer.