Maia 100108

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I. Prólogo.

1. Prólogo.

E ste é um ensaio sobre genealogia demográfica, em sua essência. Porque


discutimos aqui as origens da famı́lia da Maia, um dos cinco clãs fundadores
de Portugal — são os senhores da Maia, os de Bragança ou Braganções, ou
Sousas ou Sousões, os senhores de Baião, e os senhores de Ribadouro. Um
argumento simples, que apresentaremos logo abaixo, mostra que praticamente
toda a população portuguesa de hoje descende destes clãs, assim como descende
também do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques. Ou de Carlos Magno.
Ou, conforme nossa tese aqui, de Maomé, o Profeta do Islã.
Toda a população portuguesa, na prática. E boa parte da população ibérica,
e da Europa ocidental. E fração significativa da população brasileira, como
veremos.
Qual a importância desse fato? Reiterando e acrescentando detalhes —
pretendemos mostrar aqui o seguinte: a famı́lia da Maia, um dos cinco clãs
fundadores de Portugal, descendia em linha masculina direta de Ali e Fátima,
sendo Fátima a filha do Profeta do Islã. Assim, não só temos, no Ocidente, a
herança da muito vasta tradição cultural muçulmana que nos veio através dos
emires e califas de Córdova. Temos também a herança do sangue da famı́lia
Quraysh, o clã do Profeta, do qual somos, todos, descendentes.

O argumento demográfico
O argumento demográfico tem diversas variantes, versões elaboradas ou não,
mas o ponto de partida é simples:

• Temos pai e mãe, dois; quatro avós; oito bisavós, e assim em diante.

• Em mil anos ocorrem aproximadamente 30 gerações humanas.

3
4 F. A. Doria

• No ano 1000, terı́amos então 230 = 1 073 741 824 avoengos de 30o grau.
• Ora, no ano 1000 da era cristã, a população mundial não chegava a 500
milhões de habitantes — estaria entre 200 e 300 milhões.
• Logo, é muito provável que cada indivı́duo que vivesse na Europa oci-
dental, há mil anos atrás, seja ancestral de um indivı́duo tı́pico, digamos
assim, de ascendência européia ocidental, hoje.
Indivı́duo tı́pico é: membro da média da população. O argumento acima pode se
sofisticar para que levemos em conta migrações, grupos sociais insulados, enfim,
tudo o que possa servir para refiná–lo. No entanto, seu núcleo é simples: há
mil anos atrás a população mundial era muito menor, toda ela, que o número
de nossos antepassados. Logo, praticamente toda aquela população deve estar
entre os ancestrais do indivı́duo tı́pico de hoje em dia, reis, mendigos, bárbaros,
cristãos; muçulmamos e judeus.
Daı́ decorre outro fato: somos, todos, parentes muito próximos. Embora
não nos reconheçamos como tal, somos uma grande famı́lia, toda a população
humana.

No Brasil
Se nos restringimos à população atual de um só paı́s, por exemplo o Brasil, o
parentesco entre dois indivı́duos genéricos, digamos assim, é ainda mais próximo.
Amostragens empı́ricas revelam antepassados comuns no século XVII, ou seja,
cerca de dez gerações atrás. Se os dois indivı́duos têm origens na mesma região,
é provável que seu ancestral comum esteja no século XVIII, ou mesmo em data
mais recente — ou seja, há seis, sete gerações atrás.
Assim sendo, é altamente provável que, dados dois brasileiros escolhidos ao
acaso, estes possuam um antepassado comum no século XVII. Mais: é muito
plausı́vel que (quase) todo brasileiro descenda ao menos de um dos ditos “casais
fundadores” da população brasileira:
• João Ramalho e sua criada Isabel. Temos pouca documentação contem-
porânea sobre esses. A fonte documenal mais importante é o testamento
de Ramalho, que só conhecemos em cópia posterior ao século XVIII. João
Ramalho deve ter arribado no Brasil em 1508 ou 1509, e sua descendência
com Isabel — ı́ndia batizada, que teria o nome Burtyra — pega porção
significativa da população do centro e do sul do Brasil.
• Diogo Álvares Caramuru e Catarina do Brasil. Diogo Álvares, dito Cara-
muru,1 chegou ao Brasil entre 1509 e 1511. Casa–se com Catarina, ı́ndia
da região do Recôncavo, depois de 1529; como se sabe, Catarina foi bati-
zada na França, para onde havia sido levada. A descendência de ambos
1 Em geral diz–se que a alcunha Caramuru viria do nome de um peixe, moréia, existente

nos baixios do Rio Vermelho, onde Diogo Álvares desembarcou, segundo a tradição. Mas Luı́s
Madeira notou que, ao norte de Portugal, na região de onde proviria Diogo, existe a serra do
Caramulo; nesse caso, Caramuru/Caramulo seria um locativo.
I. Prólogo 5

talvez não seja tão vasta quanto a de João Ramalho e Isabel “Burtyra,”
mas vai do nordeste ao Rio Grande do Sul.

• Jerônimo de Albuquerque e Maria do Arcoverde. Deste casal, melhor


documentado que Ramalho e Izabel, mas não tanto quanto o Caramuru
e Catarina, descendem, pode–se dizer, multidões no nordeste, e inclusive
a famı́lia que virou quase sinônimo de oligarquia em Pernambuco, os Ca-
valcanti de Albuquerque.2

Podemos ainda citar diversos casais fundadores, com descendência mais res-
trita, mas mesmo assim bastante ampla:

• Braz Teves e Leonor Leme. Tendo vivido em fins do século XVI, desse
casal descendem os Lemes brasileiros — e fração significativa, a estimar
com melhor precisão, da população do centro–sul brasileiro hoje. Vale
notar que cerca de 20% dos presidentes da república descendem dos dois.

• Catarina de Almeida e Gaspar de Barros de Magalhães. Chegando ela


ao Brasil em começos de 1555, da pequena nobreza burocrática, ligada
diretamente à corte de Aviz, mas com colaterais na alta nobreza feudal,
Catarina de Almeida se casa com Gaspar de Barros de Magalhães, fidalgo
também de nobreza modesta.
Sua descendência é amplı́ssima, e alcança não só a Bahia como o centro–
sul brasileiro. Como entre os ancestrais de Catarina estava um dos ı́cones
da história de Portugal, D. Inês de Castro, boa parte da população do
Brasil ganhará, entre seus antepassados, a D. Pedro o Cru, rei de Portugal
falecido em 1365, e D. Inês, a quem os esbirros do sogro assassinaram.

• Clemencia Doria e Fernão Vaz da Costa. Clemencia Doria era bastarda de


um banqueiro genovês, Aleramo Doria, cujo pai e avô haviam financiado
as explorações ibéricas. Fernão Vaz da Costa, por sua vez, era filho do
chanceler da relação de Lisboa, o Dr. Cristóvão da Costa, e bisneto de
outro ı́cone da história de Portugal, o navegador Soeiro da Costa, † 1472,
um dos Doze de Inglaterra.
Na descendência do casal, muito ampla na Bahia, Sergipe, Alagoas, e com
ramos em S. Paulo e no Rio, vem o sangue de figuras medievais como os
papas Inocêncio IV e Adriano V, e Branca ou Brancaleone Doria, um ogro
que Dante coloca nos quintos do inferno.
2 Lembremos a quadrinha popular do tempo do governo do Conde da Boa Vista em Per-

nambuco, no século XIX:


Quem nasceu em Pernambuco
Conhece bem o ditado:
Ou se é um Cavalcanti,
Ou se é um cavalgado.
6 F. A. Doria

O mito da oligarquia opressora


Essa dispersão da descendência dos primeiros colonizadores do Brasil acaba,
portanto, com o mito da oligarquia que viria desde o século XVI exercendo o
poder no paı́s. Pegando o caso baiano, podemos traçar até hoje, em começos
do século XXI, a descendência de menos de cerca de uns 50 colonos que para
o Brasil se mudaram no século XVI, aı́ incluindo–se gente da pequena nobreza
e do estamento burocrático português ao tempo dos Avizes. Conhecemos a
descendência até hoje de algumas das órfãs e criadas da rainha, como Catarina
de Almeida, Clemencia Doria, Marta de Sousa, Mécia Lobo de Mendonça, D.
Violante de Eça; de colonizadores como Egas Moniz Barreto, Rodrigo de Argolo,
Fernão Vaz da Costa, Garcia d’Ávila, Gaspar de Barros de Magalhães. Isto
representa uma fração muito restrita do cerca de milhar de habitantes de origem
européia na Salvador no século XVI, e nos seus arredores.
Os destinos dos descendentes destes personagens foram variados, mas seguem
em linhas gerais um padrão regular: no século XVII, aparecem nos registros da
Santa Casa de Salvador e participam, como vereadores, do governo da região. No
século XVIII suas fortunas parecem declinar: já não ocupam cargos públicos com
tanta frequência, e, se julgamos pelos inventários, empobrecem, em contraste a
novos clãs, chegados à Bahia em fins do século XVII e começos do XVIII, como
os Carneiros da Rocha, Pires de Carvalho, Fiúza, entre muitos.
Nos clãs do século XVI vı́amos sobretudo membros da pequena nobreza
não titulada mas de algum modo próximos à coroa, na dinastia de Aviz. No
século XVIII, esse grupo social foi substituı́do por famı́lias com fortes interesses
comerciais, e que se procuram ilustrar mandando seus membros a Coimbra para
a obtenção de graus acadêmicos em cânones, abrindo–lhes a perspectiva de uma
carreira na burocracia judiciária.
O perı́odo com caracterı́sticas mais oligárquicas, na história do Brasil, foi
o século XIX. Com a centralização do governo, no Rio, desde 1808, foram
atraı́dos para a corte diversos grupos familiares, que se encastelam na estrutura
burocrática do estado brasileiro nascente. Por exemplo, os Acciolis baianos e
sergipanos dão uma série de ministros do Supremo Tribunal de Justiça, polı́ticos
e bacharéis: José Marcelino de Brito (baiano, † 1879), casado com Senhorinha
Accioli de Madureira, ministro do STJ do império, tem como filho a Luiz Bar-
bosa Accioli de Brito (carioca, † 1900), também ministro do STJ, e por sua vez
irmão de José Accioli de Brito, sergipano, † 1889, presidente de Goiás de 1884
a 1885.
Outros parentes, alagoanos, dessa gente, são o desembargador Inácio Accioli
de Vasconcellos (n. na atual Marechal Deodoro, Alagoas, c. 1785), constituinte
em 1823, presidente do Espı́rito Santo no primeiro império, desembargador; seu
filho, José inácio Accioli de Vasconcellos (carioca, 1817–1881), ministro do STJ,
e também presidente do Espı́rito Santo; o cunhado de Inácio, Miguel Joaquim
de Cerqueira e Silva, desembargador também; seu filho, o historiador Inácio
Accioli de Cerqueira e Silva. Este ramo alagoano dos Acciolis de Vasconcellos
inclui também o Barão de Pereira Franco, marido de Leonor Felisberta Accioli,
filha do primeiro Inácio, e ministro, presidente de Sergipe e senador do império,
I. Prólogo 7

e, mais remotamente, Francisco de Barros e Accioli de Vasconcellos (1846–1907),


diretor–geral de terras e colonização no império — o coordenador das grandes
imigrações européias para o Brasil.
Apenas um exemplo, entre muitos. Dessa gente, ninguém veio de grandes
fortunas coloniais (que, em geral, não existiam). O pai do primeiro Inácio
Accioli, o desembargador e constituinte citado acima, usurpou as terras de um
engenho do sogro, de uma famı́lia adventı́cia, de origens modestas em Portugal
e enriquecidos no Brasil. O pai do desembargador Inácio Accioli descendia de
uma linha de senhores de terras que poderiam ser vistos como uma espécie de
classe média rural no Brasil colônia, mas com um pedigree em Portugal e na
Itália perdendo–se na noite dos tempos. Aliás o Brasil, no perı́odo da colônia,
tinha uma elite pobre: casos como o do padre Pompeu, em S. Paulo, ou dos
Ávilas e Guedes de Brito, na Bahia, são exceções muito isoladas.

Dos três primeiros presidentes da república, Deodoro da Fonseca foi o que


teve o background imediato mais ilustre, sendo irmão de barão do império, o
Barão de Alagoas, e vindo de uma gente razoavelmente abastada, embora de
origens obscuras.3
Floriano é um caso interessante: seus pais eram senhores de engenho empo-
brecidos, tanto que o fizeram ser adotado por um casal de tios. Mas sua avó
paterna descendia em linha reta masculina de uma das grandes famı́lias por-
tuguesas, os Gomides Albuquerques, a famı́lia de Afonso de Albuquerque, dito
“o conquistador das Índias,” e de Jerônimo de Albuquerque, e seus Peixotos
vinham, segundo as evidências conhecidas de uma famı́lia do Porto passada à
Bahia no século XVII, e com ascendentes nobres perdendo–se na idade média.4
Ou seja: gente com passado oligárquico, mas algo afastada do poder no século
XIX — raı́zes ilustres na oligarquia não garantem automaticamente poder e
status aos descendentes, é o que percebemos. Floriano foi pobre toda a vida;
mesmo tendo tido poderes ditatoriais no tempo em que esteve na presidência,
deixou–a tendo como rendimentos apenas seu soldo de militar, e morreu pouco
após, residindo ao fim da vida numa casa modesta.
Finalmente, Prudente de Moraes, era filho de um tropeiro que vivia de con-
duzir cargas do porto de Santos ao interior de S. Paulo, e que morreu assassi-
nado por um escravo quando Prudente era de muito pouca idade. A famı́lia, de
S. Paulo, depois tendo–se mudado para Itu, era uma famı́lia que provinha de
certo Baltazar de Moraes de Antas, fidalgo de Vimioso, ao norte de Portugal,
vindo para o Brasil no século XVI. Famı́lia muito antiga, em Portugal e no
Brasil, mas quase esquecida em séculos de obscuridade, até chegar à geração
de Prudente, que cataliza momentaneamente o talento polı́tico e empreendedor
de seus irmãos e sobrinhos. (Manuel de Moraes Barros, irmão de Prudente, foi
polı́tico de destaque; os sobrinhos Mendes de Moraes foram generais, dois deles
tendo sido ministros do STM, e um deles, Luiz, ministro da guerra e presidente
de Sergipe. O talento polı́tico, pode–se dizer, persistiu: Otávio Júlio Moreira
3 As origens da famı́lia de Deodoro são confusas; seriam parentes dos Fonsecas Galvões,

gente com foros de fidalguia no Brasil colônia, mas a conexão é desconhecida.


4 Seguindo–se pesquisas de Cássia Albuquerque e de Fábio Arruda de Lima.
8 F. A. Doria

Lima, sobrinho–bisneto de Prudente, foi ministro da aeronáutica no governo


Sarney.)
Pode–se quase dizer: a elite oligárquica, ou semi–oligárquica, do império,
formou–se aleatoriamente a partir de certa classe média incipiente — rural e
urbana — que existia no Brasil em fins do século XVIII. Berço e sobrenome
não determinavam o sucesso na vida polı́tica. Ajudavam, mas não significavam
poder automático.

Os clãs fundadores de Portugal


Vamos estar interessados num dos cinco clãs fundadores de Portugal, a famı́lia
da Maia, de modo que, como num sobrevôo, vamos examinar rapidamente esses
cinco clãs. São os Braganções, Sousões, Baiões, os senhores de Ribadouro e os
senhores da Maia.

Braganções
Dois clãs sobre cujas raı́zes quase nada sabemos são os Braganções e os Sousões.
Os Braganções tem terras, possivelmente desde o século X, ao norte de Portugal,
na região de Bragança, montanhosa e inóspita. São muito poderosos: aliam–se
politicamente e através de casamentos à famı́lia real de Leão e à famı́lia real
portuguesa, então se formando, e possuem cargos de destaque na corte dos
primeiros reis portugueses. Esbatem–se pelo século XIII. Deixam descendência,
várias famı́lias da pequena nobreza, não titulada em geral, como por exemplo
os Moraes de Antas, com um ramo em S. Paulo desde o século XVI.

Sousões
Têm perfil similar aos Braganções, e seus territórios, também ao norte de Por-
tugal, ficam mais ao centro da região. Tomam o nome de um rio, Sousa, e
caracerizam–se pelos nomes estranhos de seus ancestrais mais antigos, no século
X: Vizoi Vizoi, Gomes Echigues, entre outros. Muito poderosos e com cargos
curiais no século XI, no século XIII sua herança muito rica passa a dois ramos
bastardos da casa real, através do casamento das herdeiras das terras dos Sousas,
com Martim Afonso dito o Chichorro (o pequeno), e Afonso Dionı́sio — ances-
trais, respectivamente, dos chamados Sousas do Prado e Sousas de Arronches.
Muitas linhas de seus descendentes pertencem à alta nobreza de Portugal,
nos séculos XVII e XVIII.

Baiões
Ligam–se na origem à mais alta aristocracia do reino de Leão, os antigos Condes
de Lugo, no século IX. Mesmo assim, sua descendência não tem a importância
polı́tica dos dois clãs precedentes, e sobretudo dos Sousões. Deles descendem
os Azevedos, senhores de São João de Rei em Portugal, e os Barretos — que,
ligados no século XV ao Monizes alcaides de Silves, no Algarve, passam ao Brasil
e povoam a Bahia, o Rio, e o Rio Grande do Sul.
I. Prólogo 9

Senhores de Ribadouro
Tomam o nome do rio Douro. Documentam–se desde o século XI, quando já
surgem poderosos. O historiador Armando de Almeida Fernandes pensa que
poderiam descender de outra famı́lia da alta nobreza de Leão, como é o caso
dos Baiões; aqui, seriam ancestrais dos senhores de Ribadouro os Condes de
Coimbra, estreitamente ligados à casa real leonesa.
São gente muito poderosa. É a famı́lia de Egas Moniz, dito o Aio, persona-
gem semi–lendário das cortes do conde D. Henrique e de D. Afonso Henriques.
Destes senhores de Ribadouro descendem Coelhos, Alvarengas, e muito da no-
breza em Portugal do fim da idade média.

Senhores da Maia
Com terras próximas ao Porto, são a famı́lia cujas origens investigamos aqui.
Têm origens nalgum clã árabe, ao menos em parte, devido ao nome de seu
fundador. São tão importantes na corte quanto os senhores de Ribadouro,
e forneceram à história personagens semi–lendários como Gonçalo Mendes da
Maia, o Lidador, ou Soeiro Mendes da Maia, o Bom.
Sua descendência será examinada aqui. Alcança, como dissemos, muito da
popula cão portuguesa até hoje.
II. A Lenda de Gaia
1. A Famı́lia da Maia.

Era uma vez. . .


Dá vontade de começar assim, pois a história da famı́lia da Maia começa
numa lenda. Começa numa lenda — vamos lê–la; chama–se a Lenda de Gaia,
ou A Miragaia. Conta–nos a história do nascimento do fundador de uma dinastia
de grãos senhores feudais ao norte de Portugal, os senhores da Maia. Na versão
mais corrente, eis a Miragaia em resumo e em português de hoje:

D. Ramiro II, rei de Leão, casado com a rainha D. Aldonça, de quem


tem um filho, de nome D. Ordonho, ouve falar da grande beleza de
certa moura de alta linhagem, irmã de Alboaçar Albocadão (ou Al-
bozadão) filha de D. Çadão Çada, bisneta do rei Aboali, que conquis-
tara a terra no tempo do rei Rodrigo. Alboaçar Albocadão era senhor
de toda a terra desde Gaia até Santarém, ao sul.
D. Ramiro procura Alboazar e pede–lhe em casamento a irmã; o
mouro recusa o pedido porque Ramiro, cristão, não poderia ser casado
com várias mulheres ao mesmo tempo; além do mais a princesa es-
tava noiva do rei do Marrocos. Mas Ramiro rapta a moura, leva–a
para Leão, batiza–a como D. Ortega e fá–la sua amante.
Furioso, o mouro Alboaçar rapta em represália a rainha D. Aldonça,
mulher de D. Ramiro, e a traz para seu castelo de Gaia, também
fazendo–a sua amante.
Ramiro convoca o filho D. Ordonho e mais nobres para resgatar a
rainha; arma navios, que leva até a foz do rio Douro, no lugar que
tem hoje o nome de São João da Foz, onde disfarça a frota com
panos verdes para que se percam no meio da vegetação.

3
4 F. A. Doria

Deixa Ramiro a armada vestido de mendigo; leva consigo uma bu-


zina de caça, e se aproxima do castelo de Albocadão. Lá encontra
uma criada a quem pede água; e conhece que se trata de uma criada
à disposição da rainha D. Aldonça. Deixa então cair, na talha de
água que a donzela carregava, a metade de um camafeu cuja outra
metade estava com a rainha.
Quando a moça volta ao castelo e encontra sua senhora, e lhe verte
água para beber, vê a rainha a metade do camafeu. Interrogando a
criada, pede que esta traga o portador da jóia a seu quarto. Esta o
faz, e a rainha prende Ramiro numa alcova junto dos seus aposentos
de dormir.
Chega da caça o mouro Albocadão, e logo procura os aposentos da
rainha, que lhe diz estar Ramiro preso no quarto ao lado. Pergunta
D. Aldonça a Alboaçar o que faria com Ramiro, e este diz que o
mataria. A rainha abre então a alcova, e Alboaçar prende Ramiro e
o condena à morte.
Mas antes Alboazar pergunta ao rei Ramiro de Leão por que se en-
tregara daquele modo à sua sorte; responde Ramiro que agira assim
instruı́do pelo seu confessor, porque pecara ao raptar e violar a irmã
do mouro. Agira por penitência.
Pede então Ramiro para escolher o modo de morrer: subiria a uma
coluna e lá sopraria sua buzina de caça até estourar.
A rainha interrompe a conversa, dizendo que Ramiro é ardiloso e
esperto; o mouro Alboaçar não ouve a rainha.
Era um estratagema: D. Ordonho ouve a buzina do pai, ataca de
surpresa o castelo, e mata todos os mouros, inclusive Alboaçar. Na
volta, no navio que levava o rei, como a rainha, que era apaixonada
pelo mouro, chorasse a sua morte, Ramiro amarra–lhe à volta do
pescoço uma mó e joga–a pela amurada e a afoga.
Viúvo, casa–se então com a moura D. Ortega, enfatizando para seus
nobres a alta estirpe da moura, e dela tem um filho, chamado também
Alboaçar, que vai ser o ancestral dos senhores da Maia.

(Os principais episódios da lenda estão destacados em cada um dos parágrafos


no texto acima; a versão que apresentamos, a ser discutida sobre o texto ı́ntegro
mais adiante, é aquela do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, como se verá.)

Lendas fundadoras
Muitas famı́lias antigas têm lendas fundadoras. Algumas dessas lendas são ob-
viamente falsas, como é o caso da narrativa fundadora sobre os Tudors, que
reinaram sobre a Inglaterra de fins do século XV a começos do século XVII:
diziam–se descendentes do rei Artur das histórias de cavalaria, o que é indocu-
mentável, e muito provavelmente falso, já que nem se sabe se Artur existiu. Ou
II. A Lenda de Gaia 5

o caso dos Médicis de Florença, que têm como ancestral totêmico a Perseu: na
verdade, os Médicis surgem para a história no fim do século XII como banqueiros
e comerciantes, e seu nome e suas armas apontam para a origem numa famı́lia
de médicos e boticários antes que a linhagem comece a ser documentada, e que
logo se tornam em banqueiros quando emergem como personagens históricos.
Vejam que a Lenda de Gaia, que conta a origem dos senhores da Maia, é nar-
rativa plausı́vel, sem traços fantásticos. Em sua essência, conta uma história de
dois adultérios simultâneos, um, praticado pelo rei Ramiro II com uma moura,
e o outro, praticado em represália pelo mouro Alboaçar com a rainha de Ramiro
II, D. Aldonça. Do adultério do rei proviriam os senhores da Maia. Dá para
acreditar.
Mas há um problema: uma parte da Lenda de Gaia pode ser (talvez) ve-
rificada na documentação histórica do tempo de Ramiro, como veremos. En-
quanto a outra parte é comprovadamente falsa. A Lenda de Gaia junta duas
metades inconsistentes: o que parece uma história verdadeira, misturada a uma
patranha descarada.
Bom, esta é a lenda. E a famı́lia da Maia?

A famı́lia da Maia
Trata–se de uma famı́lia bem documentada a partir de seu fundador, cujo nasci-
mento é o tema da Lenda de Gaia. A famı́lia da Maia principia em certo
Abunazar ou Abenazar Lovesendes, senhor de grandes extensões de terras nos
arredores do Porto, ao norte de Portugal. Abunazar Lovesendes funda em 978
o mosteiro de Santo Tirso de Ribadave, na região que tem o nome, genérico, de
terras da Maia; casa-se com Unisco Godinhes ou Godins. Conhece–se um do-
cumento que o cita e a seus descendentes imediatos: é o chamado “documento
de Santo Tirso,” que diz respeito à partilha de bens da famı́lia, relativos ao
mosteiro sob padroado destes, Santo Tirso de Riba d’Ave. Datando de fins do
século XI, é conhecido numa transcrição do século XV, e foi publicado por D.
António Caetano de Sousa, nas Provas da História Genealógica da Casa Real
Portuguesa :

Nos qui sumus progenie neptis, atque prosapiae de Abunazar Love-


sendes, & uxor ejus Unisco Godines, & sumus haeredes de Monas-
terio Sancti Thyrsi de Ripadave hic sumus unus quisque in genera-
tionibus suis de Lovesendo Abunazar, Gundisalvo Nunes, Trastemiro
Nunes, Egas de Pelaez, Egas Lovesendes, tam nos quam pro omnibus
cohaeredibus nostris. De Hermigeo Abunazar, Egas Ermigij, Nonio
Ermigii, Pelagio Petri, Trastemiro Nunes, Egas Nunes, Garsea Ene-
ques, tam nos quam pro omnibus haeredibus nostris. De Trastemiro
Abunazar, Gunsalvo Toderes, Menendo Peres, Suario Gondezen-
des tam nos quam pro omnibus haeredibus nostris. De Adesinda
Abunazar, Toderio Pinoes, Adefonsus Petri, Pelagius Menendes,
Pineolo Garcia, Garcia Trutesendes, tam nos quam pro omnibus
haeredibus nostris. De Cide Abunazar, Adosinda Toderis & filius
6 F. A. Doria

ejus Suario Nunes, & Domina Palla Deo Vote, Suario Pinoes tam
per se quem pro omnibus haeredibus suis. Pactum simul, & plazum
facimus inter nos unos ad alios per scripturam firmitatis quinta Idus
Junijs era 1130 properte de isto Monasterio supradicto quod teneat
illud Dominus Gaudemirus Abbas de nostris manibus, & successores
ejus post eum. . .

Fizemos duas correções, já que este documento é uma cópia, provavelmente
corrompida, do século XV, de um original do século XI: Lovesendes, em vez
de Lavesendes, e Abunazar em vez de Abuuazar — neste último caso houve
confusão entre o u e o n unciais.
O nome Abunazar é bem atestado em fins do século X e começos do XI, e
é preferı́vel às formas só atestadas muito posteriormente, Aboazar e Alboazar.
Mas o nome correto do primeiro senhor da Maia pode ter sido apenas Nazar, ou
Nazeron — forma nominativa, cerimoniosa — que encontramos documentada,
como se verá.
Eis a tradução:

Nós, que somos a progênie dos netos e da prosápia de Abunazar


Lovesendes e de sua mulher Unisco Godins, e somos os herdeiros do
mosteiro de Santo Tirso de Ripadave.
Aqui estamos um e cada um, os descendentes de Lovesendo Abunazar1 :
Gonçalo Nunes, Trastemiro Nunes, Egas Pelais, Egas Lovesendes,
tanto por nós quanto pelos outros nossos co–herdeiros.
De Hermı́gio Abunazar, Egas Hermiges, Nunio [Monio ] Hermiges,
Paio Peres, Trastemiro Nunes [Moniz ], Egas Nunes [Moniz ], Garcia
Inigues, tanto por nós quanto por todos os outros herdeiros.
De Trastemiro Abunazar, Gonçalo Todereis, Mendo Peres, Soeiro
Gondesendes, tanto por nós quanto por todos os outros herdeiros.
De Ausenda Abunazar, Todério Pinholes, Afonso Peres, Pelaio Men-
des, Pinholo Garcia, Garcia Trutesendes, tanto por nós quanto por
todos os outros herdeiros.
De Cid Abunazar, Ausenda Todereis e seus filhos Soeiro Nunes e a
senhora Pala, devota, e Soeiro Pinholes, tanto por nós quanto por
todos os outros herdeiros.
Fazemos um pacto firme entre nós para os outros na quinta dos idos
de junho da era de 1130,2 proprietários daquele mosteiro supraci-
tado, que tem aquele Dom Abade de nossas mãos, e seus sucessores.
1 Como se verá mais adiante, e que enfatizamos desde agora, o nome atestado para esse

personagem em documento que lhe é contemporâneo — o DC 153, de 999 — antes seria


Lovesendo Abenazar, isto é, Leodesindo ibn Nazar.
2 A data é em anos da era de César; a era de Cristo se obtém subtraindo–se 38 anos;

portanto, o ano do documento é 1092. Os nomes Monio, Nuno e Moniz, Nunes, são inter-
cambiáveis, a esta época.
II. A Lenda de Gaia 7

Explicitamos, para maior clareza, em parágrafos separados, a sucessão, de


cada um dos filhos do primeiro senhor da Maia, segundo o documento de Santo
Tirso. Vários dos personagens citados na descendência de Abunazar (ou talvez
só Nazar) Lovesendes são personagens bem conhecidos da história da fundação
de Portugal.
Os senhores da Maia ocupam, desde o quartel final do século X, ao menos,
largas extensões de terra ao norte de Portugal, a norte e nordeste do Porto, entre
a foz do rio Douro e a do Ave. Foram os patronos e fundadores do mosteiro
de Santo Tirso de Riba d’Ave, e eram senhores do castelo de Monte Córdova.
Gonçalo Trastemires da Maia, neto do fundador da linhagem, Abunazar Love-
sendes, organizou uma expedição militar que saqueou, em 1034, Montemor-o-
Velho, perto de Coimbra.
Lovesendo Abunazar, ou melhor, Lovesendo Abenazar, como está documen-
tado em fonte que lhe é contemporânea, filho do patriarca, mete–se numa dis-
puta com Vı́mara Moniz e o mosteiro de Guimarães — e devido a tal disputa
será desta gente o primeiro atestado sem dúvidas, em fonte primária de fins do
século X; Lovesendo deixou descendentes conhecidos. A famı́lia segue através de
outras linhas, no entanto: através de Ermı́gio Abunazar, com geração vastı́ssima
— o grande Egas Moniz “Aio,” que criou o primeiro rei de Portugal, D. Afonso
Henriques, dele descendia (está citado, inclusive, no documento de Santo Tirso;
é o Egas “Nunes”); de Trastemiro Abunazar, que é o tronco da famı́lia em sua
linha principal; através de Ausenda Abunazar, com descendentes entre outros
na famı́lia de maiorinos régios de Leão, dita a famı́lia de Dom Evenando; e
através de Cid Abunazar (cujo nome seria Fromarico Abunazar, cognomento
ou apelidado Cid), com descendentes que se espalham pela Europa, e que são
numerosos até na Inglaterra, no século XV.
O ponto culminante do poder dos senhores da Maia ocorre em fins do século
XI e começos do XII, quando o chefe da famı́lia, Paio Soares, é rico-homem da
corte do conde D. Henrique, onde tem altas funções. Daı́ decaem e passam a
exercer um papel secundário.
São, obviamente, uma famı́lia com origens em parte mouriscas: assim o
percebemos no nome de seu fundador, (que lemos no documento de Santo Tirso),
Abunazar Lovesendes. Segundo a Lenda de Gaia, descenderiam de Ramiro II
de Leão e da moura D. Ortega, irmã de um outro Abunazar — esse, o nome
correto, e filha de um Çadão ou Zadão Zada. É possı́vel identificá–los? É
possı́vel comprovar a lenda?

O mistério das origens paternas de Abunazar Lovesendes


Parece tudo muito razoável, até nos voltarmos para a documentação contem-
porânea, do século X. Pois nenhum documento coetâneo conhecido fala de um
tal filho de Ramiro II, ou identifica o primeiro senhor da Maia a um infante de
Leão. E um personagem com tal nascimento e importância seria, com certeza,
referido na documentação. Por que um tal silêncio?
Há outras incongruências entre a documentação dos séculos X e XI, sobre
os senhores da Maia, e a lenda de suas origens. De inı́cio: o primeiro senhor
8 F. A. Doria

da Maia chamava–se Abunazar, ou apenas Nazar, Lovesendes, e não Alboazar


ou Aboazar Ramires, como está nos livros de linhagens desde fins do século
XIII. Abunazar Lovesendes quer dizer: Abunazar3 filho de Lovesendo; e não
de Ramiro. Seu pai, quem quer que fosse, era alguém, com certeza nobre, de
prenome Lovesendo. E desconhece–se, na famı́lia real de Leão em começos do
século X, quem tenha este prenome, ou similar. Mais ainda: nenhum dos filhos
e netos do primeiro senhor da Maia, Abunazar Lovesendes, tem qualquer dos
prenomes caracterı́sticos à famı́lia real de Leão, Bermudo, Ordonho, Ramiro,
Fruela, Afonso, Sancho.
Prenomes, àquela época, na alta nobreza visigoda, transmitiam–se como se
transmitem hoje em dia os nomes da famı́lia — eram marcas de pertinência a
um determinado clã. Ramiro II, nascido cerca de 900 e falecido em 950, teve,
de fato, uma mulher de nome Ausenda (próximo o bastante a Aldonça para que
reconheçamos Ausenda na “Aldonça” da lenda). E Ramiro II, de fato, repudiou
sua rainha Ausenda em 930.
Mais precisamente: Ramiro II casou–se cerca de 925 com Ausenda Guterres,
da famı́lia do Conde de Coimbra, Hermenegildo Guterres. Dela tem filhos, mas
repudia–a por motivos desconhecidos em 930 ou 931. Em seguida casa–se com
Urraca, e dela também tem filhos — a ex–rainha Ausenda sobrevive, pelo que
se sabe, alguns anos, ao divórcio. Logo, o que está na lenda das origens da
famı́lia da Maia não corresponde com precisão ao que aconteceu de fato. (Mas
notemos, para complicar o caso, que existe uma Ausenda entre os filhos de
Abunazar Lovesendes.)

A famı́lia materna
Voltemo–nos para a ascendência materna do primeiro senhor da Maia, segundo
a lenda. Ortega, sua mãe, Alboazar Abuzadão o tio, Dom Zadão Zada, avô
materno. Ortega, irmã de Alboazar Abozadão e filhos de Dom Zadão Zada, da
famı́lia de el–rei Aboali.
Existiram tais personagens? Vários destes existiram na medida em que
lhes encontramos homônimos, ou quase, na documentação contemporânea. E,
segundo toda a evidência documental, são, de fato, omı́adas, possı́veis descen-
dentes do califa al–Walid (que identificamos a el rei Aboali),4 que reinou em
começos do século VIII, e que comandou a conquista da penı́nsula ibérica pelos
árabes. Próximo a Coimbra descobrimos que lá possuı́a terras, em 933, um
grande personagem, Zahadon, mouro de muito plausı́vel origem nos omı́adas,
casado com Aragunte Fromariques, senhora de alta estirpe e provável sangue
real, dos reis de Leão. Zahadon: Çadão, Zadão. A grande proximidade entre
um e outro nomes é sugestiva, e há muitas outras razões para identificarmos o

3 É um nome de kunya, significando literalmente “pai de Nazar.” Metaforicamente, pode

significar também “o respeitável Nazar.” O Abu pode ser um prefixo cerimonial acrescentado
ao prenome Nazar. Ou, na verdade, podemos ter uma confusão entre Abenazar, forma do
nome atestada em 999 — ibn Nazar — e Abunazar.
4 Devemos esta identificação a Manoel Cesar Furtado.
II. A Lenda de Gaia 9

Dom Zadão Zada da Lenda de Gaia ao Zahadon ibn Halafi, de Coimbra, como
veremos.
Em 933, Zahadon vende terras a certo Gondemiro ibn Dawuti: e confirmam
o ato, como testemunhas, Ramiro II, rei de Leão; um seu filho, Bermudo; a con-
dessa Ilduara Paes, o conde Ximeno Dias. Grandes personagens, cuja presença
como confirmantes numa escritura de venda mostra que Zahadon ibn Halafi era
também um grande personagem.
Encontramos enfim também, um pouco mais tarde, na mesma região, em 967
e 968, um Nazeron ibn Leodesindo! Nome próximo demais a Abunazar ou Nazar
Lovesendes, já que Leodesindo é variante de Lovesendo, e ibn Leodesindo, filho
de Leodesindo, tem o mesmo significado que Lovesendes — seria este o senhor
da Maia? É o que pensamos.
Homônimos, ou quase, todos, Zahadon ibn Halafi, Nazeron ibn Leodesindo,
dos personagens da Lenda de Gaia e, de certo modo, ligados a Ramiro II.

A questão das origens dos senhores da Maia


É como se a lenda da origem dos senhores da Maia tivesse dois lados: um,
claro, nı́tido, a ascendência materna de Abunazar ou Nazar Lovesendes, que
podemos identificar (talvez: qualifiquemos sempre) a personagens atestados na
documentação do século X, perto de Coimbra. O outro, obscuro, inseguro,
a ascendência paterna do primeiro senhor da Maia. Comprovadamente falsa.
Este, o mistério da lenda das origens dos senhores da Maia, o mistério que
existe no núcleo da Lenda de Gaia. Como decifrá–lo? Como traduzir a lenda?
Encontrar o fato histórico encoberto pela narrativa lendária?
Referências
[1] J. Mattoso, “A nobreza rural portuense, nos séculos XI e XII,” in A Nobreza
Medieval Portuguesa, Editorial Estampa, Lisboa (1985).
Para a famı́lia da Maia ver pág. 208 e ss.
[2] J. Mattoso, Identificação de um Paı́s, I, Imprensa Universitária, Lisboa
(1985).
Para a história da famı́lia da Maia ver à pág. 253 e ss.
[3] J. A. de Sotto Mayor Pizarro, Linhagens Medievais Portuguesas, 3 vols.,
Porto (1999).
Para a famı́lia da Maia ver à pág. 253 e ss.

10
2. A Lenda de Gaia: Versões.

E xistem três livros de linhagens que nos chegaram da idade média


portuguesa: o Livro Velho, que data de cerca de 1290 ou pouco antes, o Livro
do Deão, de cerca de 1340, e o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, também
conhecido como Nobiliário do Conde D. Pedro, que também data de circa 1340,
mas que sofreu duas refundições, uma por volta de 1360 e outra vinte anos
depois, em torno de 1380.

A Lenda de Gaia segundo o Livro Velho


O Livro Velho costuma ser atribuı́do a um monge do mosteiro de Santo Tirso;
seu objetivo seria a descrição da descendência de cinco famı́lias, vistas como
as famı́lias fundadoras da nobreza de Portugal: os senhores de Bragança (ou
Braganções), os senhores da Maia, os Sousas ou Sousões, os senhores de Baião
e os senhores de Riba Douro. Mas dele conhecemos apenas as partes relativas
aos Sousas e aos senhores da Maia. Nesta última aparece a primeira versão da
Lenda de Gaia.
Nas suas linhas gerais, a versão do Livro Velho para a lenda da origem dos
senhores da Maia é muito simples, mais simples que a versão exposta à pág. 3:
o rei Ramiro sem número tem de sua rainha sem nome um filho, Ordonho. A
rainha é raptada pelo rei mouro Abencadão, nome que parece fácil corruptela
de ibn Zahadon.5 Abencadão morava em Gaia (cidade perto do Porto), e faz
da rainha sua amante. Ramiro monta uma esquadra, usa de um estratagema
para entrar no castelo do mouro Abencadão, mata–o, resgata a rainha, mas
como essa declara seu amor pelo mouro, mata-a também. Toma então como
mulher à criada Ortiga, que assistia à rainha no castelo do mouro Abencadão;
5 Aben Zadão < iben Zahadon.

11
12 F. A. Doria

batiza–a como Aldara e dela tem um filho, Alboazar, cujo nome explica, será
pai de muito boa fidalguia. (Notemos que Abunazar, ou Abu Násr, pode sempre
significar, também, pai do comandante. Mas este nome, como já vimos, pode
ter outros significados, que discutiremos adiante.)

Eis o texto integral da lenda segundo o Livro Velho:

Este he o linhagem dos mui nobres e muy honrados ricos–homens,


e filhos–dalgo da Maya, em como elles vem direitamente do muito
alto e mui nobre rey D. Ramiro; e este rey D. Ramiro seve casado
com huma rainha, e fege nella rey D. Ordonho; e pois lha filhou6 rey
Abencadão que era mouro, e foilha filhar em Salvaterra no logo7 que
chamão Myer.
Entom era rey Ramiro nas Asturias: e quando Abencadão tornou
adusea8 para Gaya, que era seu castello, e quando veo rey Ramiro
não achou a sa molher e pesoulhe ende muito, e enviou9 por seu filho
D. Ordonho e por seus vassallos, e fretou saas naves, e meteuce em
ellas, e veyo aportar a Sanhoane da Furada;10 e pois que a nave
entrou pela foz cobrioa de panos verdes, em tal guiza que cuidassem
que erão ramos, cá entonce Douro era cuberto de huma parte e da
outra darvores.
E esse rey Ramiro vestiosse em panos de veleto,11 e levou consigo sa
espada, e seu corno, e falou com seu filho e com os seus vassalos que
quando ouvissem o seu corno que todos lhe acorressem, e que todos
jovecem pela ribeira12 per antre as arvores, fóra poucos que ficassem
na nave para mantela.
E el foice estar a huma fonte que estava perto do castello.
E Abencadão era fóra do castello, e fora correr seu monte contra
Alfão;13 e huma donzella que servia a rainha levantouce pela menhã
que lhe fosse pela agoa para as mãos; e aquella donzella havia nome
Ortiga; e ella na fonte achou iazendo rey Ramiro, e nom o conheceo,
e el pediolhe dagoa pela aravia14 e ella deulha por hum autre,15 e el
meteo hum camafeo na boca, o qual camafeo havia partido com sa
molher a rainha pela meadade; el deuse a beber, e deitou o anel no
autre.16
6 Raptou com violência sexual.
7 Lugar.
8 Retornou.
9 Chamou.
10 SãoJoão da Afurada.
11 Valete, criado; servo.
12 Caminhassem pelas margens.
13 Provavelmente Alafões? Lafões?
14 Pediu–lhe água em árabe (algarávia).
15 Odre.
16 Um anel com um camafeu, talvez um sinete; meteu o anel no odre.
II. A Lenda de Gaia. 13

E a donzella foice, e deo agoa á rainha, e cahio–lhe o anel na mão,


e conheceoo ela logo: a rainha perguntou quem achara na fonte: ella
respondeu que não era hi ninguem: ella dice que mentia, e que lhe
nom negace, ca lhe faria por ende bem,17 e mercê; e a donzela lhe
disse entom que achara hum mouro doente e lazarado, e que lhe
pedira d’agoa que bebece, e ella que lha dera; e entonce lhe disse a
rainha que lhe fosse por el, e se hi o achasse que lho adusese.18
A donzela foi por el, e dicelhe ca lhe mandava dizer a rainha que
fosse a ella; e entonces rey Ramiro foise com ella; e el entrando pela
porta do paço conheceo–o a rainha, e dicelhe — “Rey Ramiro quem
te aduse19 aqui?” — E el lhe respondeu — “ca o teu amor” — :
e ella lhe dice que vinha a morrer, e elle lhe respondeu, ca pequena
maravilha; e ella dice á donzela que o metese na camara, e que lhe
não dese que comese nem que bebece; e a dónzela pensou del sem
mandado da rainha.
E el jazendo na camara chegou Abencadão e derãolhe que jantace, e
depois de jantar foise para a rainha; e desque fizerão seu plazer, disse
a rainha — “se tu aqui tivesses rei Ramiro, que lhe farias?” — O
mouro então respondeu — “o que el a mi faria: matalo.” — Então a
rainha chamou Ortiga que o adusese da camara, e ella assim o fez, e
aduseo ante o mouro, e o mouro lhe disse — “es tu rey Ramiro?” —
e elle respondeu — “eu sou” — e o mouro lhe perguntou — “a que
vieste aqui?” — elrey Ramiro lhe disse entom — “vim ver minha
molher que me filhaste a torto; ca tu havias comigo tregoas, e nom
me catava de ti:” — e o mouro lhe disse — “vieste a morrer; mas
querote perguntar: se me tiveces em Mier que morte me darias?”
Elrey Ramiro era muito faminto e respondeolhe assim — “eu te daria
um capão assado e huma regueifa,20 e fariate tudo comer, e dartehia
em cima en sa çapa chea de vinho que bebesses: em cima abrira
partas do meu curral, e faria chamar todas as minhas gentes, que
viessem ver como morrias, e fariate sobir a um padrão,21 e fariate
tanger o corno, até que te hi sahice o folego.” 22
Então respondeo Abencadão — “essa morte te quero eu dar.” — E
fez abrir os currais, e fezeo sobir em hum padrão que hi entom es-
tava; e começou rey Ramiro enton em seu corno tanger, e começou
chamar sua gente pelo corno que lhe acorressem, cá agora havia
tempo; e o filho como ouvio, acorreolhe com seus vassallos, e me-
terão–se pela porta do castello, e el deceuse23 do padrom adonde es-
17 Que a premiaria.
18 Trouxesse, conduzisse.
19 Trouxe; cf. latim, ducet, conduz.
20 Pão em formato de rosca.
21 Pilar com marcas.
22 Que tocasse uma buzina, ou trompa de caça, até perder o fôlego e morrer de exaustão.
23 Desceu.
14 F. A. Doria

tava, e veyo contra elles, e tirou sa espada da bainha, e descabeçando


atá o menor mouro que havia em toda Gaya, andarão todos á es-
pada, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra sobre pedra que tudo
não fosse em terra.
E filhou rey Ramiro sa molher com sas donzellas, e quanto haver ahi
achou, e meteu na nave, e quando forão a foz d’Ancora amarrarão as
barcas, e comerão hi e folgarão, e D. Ramyro deitouce a dormir no
regaço da rainha, e a rainha filhouce24 a chorar, e as lagrimas della
caerão a D. Ramiro pelo rostro, e el espertouse, e diselhe, porque
chorava, e ella diselhe — “choro por o mui bom mouro que mataste”
E então o filho que andava hi na nave ouvio aquella palavra que sa
madre dissera, e disse ao padre25 — “padre não levemos comnosco
mais o demo.” — Entom rey Ramiro filhou uma mó que trazia na
nave, e ligoulha na garganta, e anchorouha no mar, e dês aquella
hora chamarão hi Foz d’Ancora.26
Este Ramiro foice a Myer e fez sa corte, e contoulhe tudo como lhe
acaecera, e entom baptisou Ortiga, e casou com ella, e louvoulho
toda sa corte muito, e poslhe nome D. Aldara, e fege nella hum
filho, e quando naceo poslhe o padre o nome Albozar, e disse entom
o padre, que lhe punha este nome porque seria padre e senhor de
muito boa fidalguia; e morreo rey D. Ramiro. Deos lhe aya saude a
alma, requiescat in pace.

A divisão em parágrafos não consta do texto original, mas foi aqui colocada
para melhor identificarmos os episódios da lenda. Um seu pequeno resumo: são
personagens da lenda, na versão do Livro Velho:

• Rei Ramiro e sua rainha; têm um filho, Ordonho.


Este Ramiro, note–se, tanto pode ser Ramiro II quanto Ramiro I de
Leão, que viveu um século antes do segundo homônimo; ou pode não
ser ninguém.
Neste último caso seria um personagem genérico, algum rei de Leão a
quem se dá nome tı́pico da dinastia, em vez de designá–lo apenas como
“rei” — como ocorre, p.e., na Antı́gone, em que o tio da heroı́na é Creonte
(de Kréon, o governante.)
Uma observação sobre os Ramiros reis de Leão, séculos IX e X: Ramiro
I nasceu cerca de 790, morreu em 850, e tornou–se rei em 842; casou–se
com uma senhora da Galiza, e em seguida com Paterna; da primeira teve
um filho, o futuro rei Ordonho I, assim como Ramiro II, † 950, a quem
sucedeu Ordonho III. Ramiro III, enfim, reinou de 966 a 985.
24 Desatou a chorar.
25 Pai.
26 Pendurou a mó no pescoço da rainha e jogou–a no mar, assim a ancorando, isto é,

afundando–a no mar.
II. A Lenda de Gaia. 15

• O rei mouro Abencadão, senhor de Gaia.


Não existe amir de Córdova ou do Marrocos, ou califa em Damasco, a quem
se possa, ainda que de modo aproximado, fazer identificar esse Abencadão.

• A criada moura Ortiga, depois Aldara.


O nome Ortiga ou Ortega é provavelmente uma corruptela de Onneca,
Oñega, prenome feminino comum na nobreza de Leão no século X. Aparece
na famı́lia do conde Vı́mara Peres, fundador de Guimarães, e na de Diogo
Fernandes, colateral aos Condes de Lugo e, posteriormente, aos senhores
de Baião.

O enredo é simples: a rainha, raptada, se apaixona pelo raptor, e é punida


com a morte pelo marido traı́do, o rei. O rei, então, casa–se com a criada da
rainha e tem um filho que origina a famı́lia da Maia. Note–se, aqui, a principal
inconsistência desta versão da Lenda de Gaia: por que se casaria com uma
criada? Estaria a lenda nos dizendo que o rei de Leão amasiou–se com uma
jovem árabe de origens modestas, e assim fez começar a famı́lia da Maia? O
filho do rei e da criada recebe um nome árabe; embora com significado glorioso,
é uma espécie de capitis diminutio, pois é nome que refere a mãe, uma criada,
e não o pai, o rei de Leão.

Veremos agora que, no caso do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, a


situação é bem mais complexa e melhor articulada, e há mudanças significativas
nos gestos, atitudes, falas e inter–relacionamentos dos personagens.

O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro


O Livro de Linhagens do Conde D. Pedro deve–se ao bastardo do rei D. Di-
niz, D. Pedro Afonso, Conde de Barcelos. É extenso, e trata em detalhe das
famı́lias com destaque na corte portuguesa até a primeira metade do século XIV,
sobretudo. Sua permanência e influência são de tal ordem que os nobiliários por-
tugueses conhecidos, do século XVI ao XVII, são como que extensões e apro-
fundamentos do sempre citado Nobiliário do Conde.
A versão que nos traz para a Lenda de Gaia é mais extensa, e detalhada,
que a versão do Livro Velho; e dela se afasta em pontos cruciais.
Em resumo, nesta segunda versão, Ramiro II27 de Leão é casado com a
rainha D. Aldonça28 ; têm um filho, Ordonho. Ramiro apaixona–se pela irmã
(sem nome nesta versão) do nobre29 Alboazar Albocadão, senhor de toda a
terra desde Gaia até Santarém ao sul, filhos de D. Çadão Çada e descendentes
do califa al–Walid, que conquistara a Espanha ao tempo do rei D. Rodrigo.30
Ramiro se aproxima de Alboazar e pede-lhe a irmã em casamento, dizendo
que se divorciaria de Aldonça. Responde-lhe Alboazar que a irmã já estava
27 O nome do rei é precisado, nessa versão do Livro de Linhagens.
28 Também ganha nome sua rainha
29 E não mais rei.
30 A ascendência de Alboazar é aqui descrita com precisão.
16 F. A. Doria

prometida ao rei do Marrocos.31 Ramiro II sequestra então a moura, e Alboazar,


em represália, sequestra a rainha D. Aldonça.
Seguem–se peripécias mais ou menos como na versão do Livro Velho, até que
Ramiro II mata o mouro, mata a rainha, e casa–se com a moura, que batizara
com o nome Ortiga.
São os seguintes os personagens da versão do Livro de Linhagens:

• Ramiro II, rei de Leão; sua mulher e prima Aldonça (que promete repudiar
para se casar com a moura), e o filho de Aldonça e Ramiro, Ordonho.
Note-se que Ramiro II casou c. 925 com uma prima quase homônima
à rainha da lenda, Ausenda Guterres, que é de fato repudiada em 930
— e Ausenda, a ex–rainha, continua viva durante três lustros. Embora
haja alguma incerteza quanto à filiação precisa desta senhora, que era
sem dúvida neta do Conde de Coimbra, Hermenegildo [Mendo] Guterres,
a opinião predominante acredita–a filha do conde Guterre Osores e de
Aldonça Mendes, filha esta de Mendo Guterres. Viria de uma corruptela
de Ausenda o nome Aldonça para a rainha da lenda, segundo o Livro do
Conde? Ou de uma confusão com o nome da mãe da rainha repudiada?

• Alboazar Albucadão, nobre muçulmano, filho de D. Çadão ou Zadão Zada,


e descendentes do califa al–Walid.
Examinaremos depois com mais cuidado essa identificação, mas desde já
note-se que existiu na Andaluzia um ramo da famı́lia omı́ada, os chamados
al–Habibi, que de fato descendiam de al–Walid, entre os quais sobressaı́a–
se Zahadon ibn Halafi, al–Umawi (o omı́ada).

• Sua irmã, batizada como Ortiga, comprometida com o Rei do Marrocos.


O nome Ortiga é inusitado no século X, em Coimbra, mas é suficientemente
próximo a Onneca, Oñega, prenome comum feminino na alta nobreza,
àquele tempo, para que possamos supor seja Ortiga uma corruptela de
Oñega.
O detalhe do noivado pré–arranjado entre Ortiga e o rei do Marrocos será
decisivo em nossa análise, confrontado às fontes históricas, na busca da
varonia dos senhores da Maia.

• Personagens secundários, como a criada e o astrólogo. (Na versão do Livro


Velho não há personagens secundários.)

O enredo é diverso daquele do Livro Velho. Nesta nova versão, Ramiro II


rapta a moura, noiva do rei do Marrocos, e o irmão da moura rapta a rainha
Aldonça, em represália. Ramiro mata Alboazar e D. Aldonça, e casa–se com
a moura, batizada como Ortiga, presumivelmente rompendo seu compromisso
com o Rei do Marrocos. O filho de ambos leva, significativamente, o nome do
tio materno, cujo alto nascimento é assim confirmado.
31 Este detalhe, como se verá, é crucial.
II. A Lenda de Gaia. 17

Notemos que o drama, a ação, tudo o que provoca todo o movimento da


narrativa, é matéria bem diferente, numa e noutras versões.32
É a seguinte a versão completa do Livro do Conde para a Lenda de Gaia:

El Rey D. Ramiro o segundo de Leom, ouvio falar da fermosura, e


bondade de hua Moura; e como era de alto sangue irmã de Alboazar
Albucadão filha de D. Çadão Çada bisneto del Rey Aboalli o que con-
quereo a terra no tempo del Rey Rodrigo. Este Alboazar era Senhor
de toda a terra desde Gaya até Santarem, e ouve muytas batalhas
com Christãos, estremamente com este Rey Ramiro, e el Rey Ramiro
fez com elle grandes amizades por cobrar aquella Moura, que el muito
amava, e fez em finta, q o amava myito, e mandoulhe dizer, q o
queria ver, por se aver de conheçer com elle por as amizades serem
mais firmes, e Alboazar mãdoulhe dizer, q lhe prazia dello, e q fosse
a Gaya, e hi se veria com el, e el Rey Ramiro foise lá em tres galés
com fidalgos, e pediolhe aquella Moura, q lha desse, e falaia Chris-
tam, e cazaria com ella, e Alboazar lhe respondeu: tu tens molher, e
filhos della, e es christão; como podes tu casar duas vezes? e el lhe
dixe, ca verdade era, mas elle era tam parente da Rainha D. Aldonça
sua mulher, ca a santa Igreja os partiria; e Alboazar juroulhe por sa
ley de Mafamede, ca lha nom daria por todo o Reyno, q elle avia,
que a tinha desposada com el Rey de Marrocos.33
Este Rey D. Ramiro trazia hum grande Astrologo, q avia nome Amão,
e por sas artes tiroua hua noyte, donde estava, e levoua às galés, q
hi estauão prestes, e entrou Rey Ramiro com a Moura em hua galé.
A esto chegou Alboazar, e alli foy contenda grãde entre elles, e des-
parecerom hi dos de Rey Ramiro vinte dous dos bons, q hi levava, e
da outra companhia muyta, e el levou a Moura a Minhor,34 e de ahi
a Leom, e bautizoua, e poslhe nome Ortiga, que queria tanto dizer
em a quel tempo, como castigada,35 e ensinada, e comprida de todos
os bens.
Alboazar tevese por mal viltado desto,36 e pensou em como poderia
vingar tal desonra, e ouvio falar em como a Rainha D. Aldonça
molher del Rey Ramiro estava em Minhor. Postou sas naos, e outras
velas, o melhor que pode, e mais encuberto; e foy à quelle lugar de
Minhor, e entrou a villa, e filhou37 a Rainha D. Aldonça, e meteoa
nas naos com donas, e donzellas, que achou, e das outras companhias
muytas veyose a o Castello de Gaya, que era em a quelle tempo de
grandes edificios, e nobres paços.
32 E, claro, existe o tema obviamente freudiano do corno de Ramiro.
33 Comprometida com o rei do Marrocos.
34 Mier, na versão do Livro Velho.
35 Ortiga, ou Ortega, deriva–se de urtica, urtiga, mas deve ser corruptela de Oñega, como

se disse.
36 Aviltado: ofendido.
37 Raptou–a à força.
18 F. A. Doria

A el Rey Ramiro contarom este feyto, e foi em tamanha tristeza, que


foy louco huns doze dias: e como cobrou38 seu entendimento mandou
por seu filho o Infante D. Ordonho, e por alguns seus vassallos, que
entendeo, que erão para grão feyto, e meteose com elles em cinco
galés, ca nom pode mais aver, e nom quiz levar galeotes, se nom
aquelles, que entendeo que poderiom reger as galés e mandou a os
fidalgos, que remassem em lugar de galeotes; e esto fez elle, porque
as galés eram poucas, e por irem mais fidalgos, e as galés irem mais
aparadas para aquel mester, paraque ia; e el cubrio as galés de pano
verde, e entrou com ellas por Sam Ioão de Furado, que agora chamão
Sam Ioane de Foz, aquel lugar de hua parte, e outra era a ribeyra
cuberta de arbores, e as galés encostouas so os ramos dellas; e porque
eram cubertas de pano verde, nom parecião.
El deceo de noyte a terra com todos os seus, e falou com o Infante,
que se deytassem so39 as arbores o mais encuberto, q fazer podessem,
e por nenhua guiza40 nõ se abalassem, até q ouvissem a voz do seu
corno,41 e ouvindoo, q lhe acorressem agrão pressa.
El vestiose em panos de tacanho,42 e sua espada, e seu lorigom, e
o corno so hi, e foyse deytar a hua fõte, que estava so o castello de
Gaya; e esto fazia Rey Ramiro por ver a Rainha sa molher para aver
cõselho cõ ella,43 como poderia mais cumpridamente aver direito de
Alboazar, e de todos seus filhos, e de toda sa cõpanha,44 ca tinha, q
pelo cõselho della cobraria todo; ca cometendo este feyto em outra
maneyra, poderia escapar Alboazar, e seus filhos, e porq el era de
grão coraçõ punha em esta guiza seu feyto em grão ventura; mas as
cousas, que são ordenadas de Deus, vem a aquello q a elle apraz, e
nom assim, como os homens pensão.
Aconteçeo assi, que Alboazar Albucadão fora a correr mõte contra
Alafons, e hua sergente,45 que avia nome Perona natural de Frãça,
q avião levado com a Rainha, servia ante ella; levãtouse pella menhã,
assi como avia de costume de lhe ir por agoa para as maos a aquella
fonte, e achou hi jazer Rey Ramiro e nom o conhoceo.
El pediolhe na Aravia46 da agoa por Deos, ca se nom podia de alli
levãtar, e ella deolha por hua aceter;47 e el meteo hum camafeo na
boca, e aquel camafeo avia partido com sa molher a Rainha por a
metade; e el deose a bever, e deytou o camafeo no aceter; e a sergente
38 Recuperou.
39 Sob.
40 E de nenhum modo.
41 Trompa de caça.
42 Roupas de gente tacanha, isto é, modesta.
43 Para se juntar e conversar com a rainha.
44 Companhia.
45 Serva, criada.
46 Pediu–lhe em árabe.
47 Púcaro de beber água; o termo vem do árabe.
II. A Lenda de Gaia. 19

foyse; e deo agoa à Raynha, e ella vio o camafeo, e reconheceo logo;


e a Rainha perguntou, quem achara no caminho? e ella respondeo, q
nom achara ninguem; e ella lhe dixe, q mentia, e q nom o negasse,
e q lhe faria bem e mercê; e a sergente lhe dixe, q achara hi hum
Mouro doente, e lazerado, e lhe pedira agoa, que bebese por Deos, e
q lha dera; e a Rainha dixe, q lhe fosse por elle, e o trouxesse encu-
bertamente; e a sergente foy lá, e dixelhe: homem pobre, a Rainha
minha senhora vos manda chamar, e esto hè por vosso bem, cà ela
mandará pensar de vos; e Rey Ramiro respõdeo: so si, assi o mande
Deos.
Foyse com ella, e entrarom pella porta da camara, e conheceo a
Rainha; e dixelhe: Rey Ramiro, q te aduce aqui? e el lhe respondeo:
o vosso amor; e ella lhe dixe: veste morto;48 e el lhe dixe: pequena
maravilha, pois o faço por vosso amor; e ella respondeo: nõ me has
tu amor, pois de aqui levaste Ortiga, que mais prezas, que a mi;
mas vayte hora para essa trascamara, e escusarmeey destas donas,
e dõzellas, e irmeey logo para ti.
A camara era de abobada, e como Rey Ramiro foy dentro, fechou
ella a porta com grande cadeado, e elle jazendo na camara, chegou
Alboazar, e foyse para sà camara, e a Rainha lhe dixe: se tu aqui
tivesses Rey Ramiro, que lhe farias? o Mouro respondeo, o que faria
a mim, matalo com grandes tormentos; e Rey Ramiro ouvia tudo,
e a Rainha dixe: pois, senhor, aprestes o tens, ca aqui está fechado
em ella trascamara, ca ora te podes delle vingar a tua vontade.
Rey Ramiro entende, que era enganado por sa molher, que já de
alli nom podia escapar se nom por arte algua,49 e maginou, que era
tempo de se ajudar de seu saber, e dixe a grão alta voz: Alboazar
Albucadão, sabe, que eu te errey mal; mostrãdote amizade levey desta
caza ta irmã, que nom era de minha ley, e confessey este pecado a
meu Abade, e el me deo em pendença,50 que me veesse meter em teu
poder o mais vilmente, que pudesse; e se me tu matar quizesses, que
te pedisse, q como eu fizera tam grande pecado ante a ta pessoa, e
ante os teus, em filhar ta irmã, mostrandote bom amor; que bem assi
me desses morte em praça vergonhosa; e por quãto o pecado, que eu
fiz, foy em grandes terras soado, que bem assi fosse a minha morte
soada por hum corno, e mostrada a todos os teus; e hora te peço pois
de morrer ey, que faças chamar teus filhos e filhas e teus parentes,
e as gentes desta villa, e me faças ir a este curral, q he de grãde
ouvida, e me ponhas em lugar alto, e me leyxes tanger meu corno,
que trago para esto, a tanto, atá, q me saya o folgo51 e a alma
do corpo: em esto filharas vingãça demi, e teus filhos, e parentes
48 Estás morto.
49 Não podia escapar, que não fosse com a ajuda de algum estratagema.
50 Penitência.
51 Fôlego.
20 F. A. Doria

averão prazer, e a minha alma será salva; esto me nom deves negar
por salvamento de minha alma, q saber q por ta ley deves salvar se
poderes as almas de todas as leys; e esto dezia el, por fazer vir alli
todos seus filhos, e parentes, por se vingar delles, ca em outra guiza
nom os poderia achar em hu; e porq o curral era alto de muros, e
nom avia mais, q hua porta por hu os seus avião de entrar, Alboazar
pensou no q lhe pedia, e filhou dele lastima, e dixe cõtra a Rainha:
esse homem rependido hè de seu pecado, mais ey eu errado a elle,
cà elle a mi; grã torto faria de o matar, pois se põe em meu poder.
A Rainha respõdeolhe: Alboazar fraco de coraçõ, eu sey, qem he Rey
Ramiro, e sey de certo, se o salvas de morte, que nom podes escapar,
que a nom prendas del, ca el he arteyroso, e vingador, assi como tu
sabes.
E nom ouvistes dizer, como el tirou os olhos a D. Ordonho, seu
irmão, q era mór de dias por o deserdar do Reyno, e nom te acordas
quantas lides ouveste com elle, e te venceo; era e te matou, e cativou
muytos bons, e ja te esqueceo a força, que te fez de ta irmã, e em
como eu era sa molher, me trouxeste, que he a mor deshonra, q os
Christãos podem aver; nom es para viver, nem es para nada, se te
nom vingas; e se o tu nõ fazes por tua alma, porq assi a salvas,
porque he homem de outra ley, e em contrario da tua; e tu dalhe a
morte, que te pede, pois já vem acõselhado de seu Abade, ca grão
pecado farias, se lha partisses.
Alboazar olhou o dizer da Rainha, e disse em seu coraçom: de má
venture he o homem, q se fia de nenhua molher: esta he sa molher
lidima, e tem Infantes, e Infantas del, e quer sa morte deshõrada;
eu nom ey porq della fie: eu alõgalaey de mi: e pensou em o q lhe
dezia a Rainha, em como Rey Ramiro era arteyroso, e vingador, e
receouse delle, se o nom matasse, e mandou chamar todos os q erom
naquelle lugar, e dixe a Rey Ramiro: tu vieste aqui, e fizeste gram
locura, q nos teus paços puderas filhar esta pendença; e porq sey,
se me tu tivesses em teu poder, nõ escaparia da morte, eu te quero
cumprir o que me pides por salvamento de tua alma.
Mandouo tirar da camara, e levouo a o curral, e pollo sobre hum
gram padrão, que hi estava, e mandou, que tanjesse seu corno, a
tanto, atá que lhe saı́sse o folgo; e el Rey Ramiro lhe pedio, que
fizesse hi estar a Rainha, e as donas, e dõzellas, e todos seus filhos,
e parentes, e cidadãos naquel curral, e Alboazar fezeo assi.
El Rey Ramiro tangeo seu corno a todo seu poder, para ouvirem
os seus; e o Infante D. Ordonho seu filho, quando ouvio o corno,
acorreolhe com todos seus vassallos, e meteromse pella porta do cur-
ral; e Rey Ramiro deceose do padrão, dõde estava, e veyo contra o
Infante, e dixe: meu filho, vossa madre nom moura, nem as donas e
dõzellas, que com ella vierão, e guardaya de cajom, que outra morte
II. A Lenda de Gaia. 21

merece.
Alli tirou a espada da bainha, e deu com ella a Alboazar por cima da
cabeça, q o fendeo atá os peytos. Alli morrerão quatro filhos, e três
filhas de Alboazar Albucadão, e todos os Mouros e Mouras, q estavão
no curral, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra com pedra, q toda
nom fosse em terra.
Filhou el Rey Ramiro sa molher com sas donas e dõzellas, q estavão
com ella, e quanto aver achou, e meteo nas galés, e despois, que
esto ouve acabado, chamou o Infante seu filho, e os seus fidalgos, e
contoulhes tudo, como lhe aviera com a Rainha sa molher, e elle q
lhe dera ajuda para fazer della mais crua justiça na sa terra.
Ello ouveram todos por estranho de tamanha maldade de molher,
e o Infante D. Ordonho saira õlhe as lagrimas polos olhos, e dixe
contra seu padre: senhor, a mi nom cabe de falar em esto porque
he mi madre, se nom tanto, que olheis por vossa honra; e entrarom
entom nas galés, e chegarom à foz do Ancora, e amarrarão as galés
para flgarem, porque avião muyto trabalhado aquelles dias; alli forom
dizer a el Rey, q a Rainha seia chorando, e el Rey dixe: vamola ver.
Foy lá, e perguntoulhe porque chorava? e ella respondeo, porque
mataste aquelle Mouro, que era melhor, que ti; e o Infante dixe
contra seu padre: isto he o demonio; que quereis della? que pode ser
que vos fugirá; e el Rey mãdoua então amarrar a hua mó, e lançala
no mar, e desaquelle tempo lhe chamarom foz de Ancora.
Por este pecado, que dixe o Infante D. Ordonho contra sa madre,
dixerom despois as gentes, que por esso fora deserdado dos povos de
Castella.52
Rey Ramiro foyse a Leão, e fez sas cortes muy ricas, e falou com os
seus de sas terras, e mostroulhes a maldade da Rainha Aldonça sa
molher; que elle avia por bem de cazar com D. Ortiga, que era de alto
linhage; e elles todos a hua voz o louvarom, e ouveromno por bem.
Ella foy de boa vida, e fez o mosteiro de S. Iulião, e outros hospitaes
muytos; e os que della descenderom foram muyto complidos.

Esta versão do Livro do Conde para a Lenda de Gaia é, muito obviamente,
a fusão de duas tradições: de um lado, o texto da versão do Livro Velho, que
transparece quase literalmente em várias partes da narrativa. Do outro lado,
uma tradição (oral? escrita?) que acrescenta inúmeros detalhes inéditos à nar-
rativa do Livro Velho, muda–lhe significativamente o sentido, e identifica com
precisão vários dos personagens da história. Em especial, a matriarca dos se-
nhores da Maia, aquela que no Livro Velho é uma criada, aqui se torna numa
princesa omı́ada, noiva do amir do Marrocos.
52 Não foi deserdado; reinou durante cinco anos após a morte de Ramiro II, durante um

perı́odo muito conflituado.


22 F. A. Doria

Na Monarchia Lusitana
Uma terceira fonte documental para a idade média portuguesa é a Monarchia
Lusitana. A Monarchia Lusitana é uma obra coletiva, principiada no século
XVI, ao tempo da união ibérica, e cuja primeira parte deve–se a a fr. Bernardo
de Brito. Nesta parte acha–se a terceira versão costumeiramente citada para a
Lenda de Gaia, que apresentamos na ı́ntegra a seguir. Frei Bernardo é visto com
muitas reservas entre os cronistas portugueses, ou seja, não é visto como fonte
confiável. Sua versão para a Lenda de Gaia segue de perto a versão do Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro, com alguns detalhes acrescentados: que o
fundador da famı́lia da Maia se chamaria “D. Andonio,” o que é completamente
falso, e que Ortiga, sua mãe, teria em árabe o nome Zahara.
Eis a versão da Monarchia Lusitana, que, na verdade, deve ser citada apenas
para registro:53
LIVRO SETTIMO - C A P I T V L O. XXI.
“Do SucceSSo que aconteceo a elRey Dom Ramiro com Alboazar Iben
Albucadan, & da certeza que ha nesta materia, memorias que ha em
Portugal deStes annos: tocaSe huma doação que este Rey fez ao
mosteiro de Loruão, & de hum filho qm teue, chamado Andonio.
O Crédito & authoridade do Cõde Dom Pedro, filho delRey Dõ Di-
nis, me forçá, a tratar huma matéria deSte Rey dom Ramiro, qm na
opinião de algums não he auida por mui certa, porque medindo as
cousas daqmlle tempo antigo pellas de agora, lhes parece, que as im-
poSsibilidades de oie correrião já pelo meSmo eStilo, não vemdo qm
muitas das qm oie54 Succedem, Se puderão ter emtão por mõStruoSas,
e deSta opinião errada, nace a muitas peSSoas deSprezar as verdades
das antigas enuoltas na Simplicidade daquelles primeiros tempos,
& introduzir outros sonhos de Sua cabeça, acomodados os tempos
dagora, como acõteceu a quemquis negar a ida do Conde dõ Hen-
rique á terra Santa, o apparecimento de Christo a elRey Dõ AfõSo,
a ida de Egas Monis a CaStella, a batalha de Arcos de Val de Vez,
& outras couSas Semelhantes, cuia irrefragavel verdade Se palpa em
doações, & eScrituras antigas, onde ella não pode faltar.
A a mim me aconteceo nefar na chronica de CiSter o Segumdo
caSamento a Rainha dona ThereSa molher do Cõde dõ Hemrique,
acoStado a Sufriveis fundamemtos, & depois acharme cõ tres eS-
cripturas, qm ella, & Seu Segundo marido fazem, & Se chama mol-
her hum tempo do Conde dõ Henrique, & então do Conde dõ Fer-
nando, dizendo. Ego Regina domina TharaSia uxor quondã Com-
mittis Henrici, nunc autem Comittis doni Ferdinandi, etc. Que quer
dizer: Eu a Raynha dona TareSa molher hum tempodo Conde dõ
Henrique, & agora do Cõde dõ Fernãdo. etc. . . E no moSteiro de
53 A lembrança do texto de Frei Bernardo de Brito foi–nos sugerida por Luis Cavaleiro

Madeira.
54 Hoje.
II. A Lenda de Gaia. 23

Ioiua em Galliza, junto a Ferrol, há huma escritura deSte Conde,


dada na era de 1170, que he o anno de Christo 1132. Semdo já morta
a Raynha, em qm elle confirma, junto com huma filha qm tinha della,
dizendo. Ego Comes Fernandus Pais55 filius Comitis Petri, una cum
filia mea, nata de Regina dona Tereyxa cõf. Quer dizer: Eu o Cõde
Fernão Paez filho do Cõde dõ Pedro, juntamemte com minha filha
auida na Rainha dona ThereSa confirmo esta doação.
A lembrança deSte deScuido em qm cahi, por me deixar leuar de
fundamentos contrarios aos antigos, me faz reSpeitar as couSas de
muitos annos, como verdade irrefragavel, porque noSSos antepaSSa-
dos, inda que foSSem pouco pollidos no que eScrevião, erão todauia
muito eScrupulosos, & firmes na certeza do que contauão, partic-
ularmente o Conde dõ Pedro, qm como filho de Rey, & peSSoa de
tãta qualidade, não cõtaria couSa cõpoSta de Sua cabeça, poSto que
agora nos pareção algumas dellas duuidoSas de crér pella mudança
que o tempo tem feito nos coStumes e termo da gemte, entre as
quaes fazem algums muita duuida, na que refere deSte Rey dom
Ramiro, Segumdo do nome, dizendo qm estando elRey caSado cõ
a Raynha dona Vrraca, a qm ou ele chama Aldara56 ou os EScrip-
tores qm trasladão este liuro de gerações, trocarão o nome, como
ordináriamente Succede.
& gozando iá das tregoas qm lhe pedio Abderramen,57 conStrangido
das grandes rotas qm tinha recebido, aSsi delle como do Conde Fernão
Gonçaluez, veo viSitar a caSa de Sãtiago de Galliza, como conSta
de algums priuilegios que concedeo áquella caSa, & dahi quis recon-
hecer as frõteiras dos Mouros que tinha em Portugal, onde Soube
como Alboazar Iben Albucadan, senhor de muitas terras na LuSita-
nia;58 tinha huma irmã chamada Zahara, que Significa flor, corre-
Spondendo o nome cõ a fermoSura & perfeições de quem o tinha,
e taes eStremos pregoaua o mundo della, que elRey dõ Ramiro Se
lhe afeiçoou So pella fama, e quis ver–Se com o Mouro debaixo de
còr de amizade pera Se deSenganar cõ Seus olhos Se era o eStremo
tanto como a fama publicaua.
Pera iSto Se aSsemtarão viStas no caStello de Gaya, cuias ruynas Se
vem oie defronte da cidade do POrto, & naquelle tempo era força de
muita importancia, onde auia paços & apoSentos capazes de muita
gente, afora o reStante da villa em qm moraua boa copia de vezinhos,
tudo gente luStroSa, qual conuinha a lugar frõteiro, onde Sempre Se
55 Deveria ser Petri em vez de Pais.
56 Na verdade, o Livro do Conde chama Aldonça à rainha de Ramiro II; Urraca foi a segunda
mulher de Ramiro II, desposada após o repúdio de Ausenda Guterres.
57 Abd ar–Rahman III, dito “an–Nazir,” primeiro califa de Córdova, contemporâneo de

Ramiro II.
58 Será isto uma referência oblı́qua ao documento DC 39, datado de 933, confirmado pelo rei

Ramiro II, no qual Zahadon al–Umawi vende terras a Gondemiro ibn Dawudi? Comentaremos
em detalhe, adiante, este documento.
24 F. A. Doria

viue com recato, & não São de proueito peSSoas inuteis pera menear
armas.
Concertadas as viStas neSe lugar Se veo elRey em tres Galles cheas
dos fidalgos & Senhores, mais esforçados qm tinha em Sua corte; &
Sendo recebido pello Mouro cõ o termo deuido a tamanho Principe;
tratarão em negocios tocantes ao bem & conSeruação de Suas terras
& das pazes, & bom amor em que viuião; & certificandoSe elRey cõ
Seus olhos da eStranha fermoSura de Zahara, pedio ao Mouro qm lha
desse por molher, certificandoo, qmem Se tornando christãa a reberia
por tal, & a coroaria por Raynha de ESpanha, cõ que as tregoas &
amor de ambos os reynos, ficarião tendo maiores fundamentos.
Dificultoulhe Alboazar o negocio com a diferença das leis, & cõ Ser
elle caSado cõ a Raynha dona Vrraca, & ter della filhos, que não
cõSintirião no repudio da mãy, nem o Papa aquem cõpetia atal-
har o abuSo de muitos caSamentos entre os Christãos; & por mais
que elRey o certificou, Ser facil de remedear o inconueniente, por
quanto eStaua caSado com a primeira molher indiuidamente, pello
muito paremteSco que auia entrambos, & Se daria logo Sentença de
diuorcio; o Mouro Se declarou com elle, qm nãp conSintiria em tal
caSamento, porque o fizeSSe Senhor de toda ESpanha, pois alem de
encontrar niSto Sua lei, tinha promettido a irmaã a elRey de Mar-
rocos, & agoardava cada dia ordem pera Ser leuada ao marido, com
quem não podia faltar em nenhuma forma do mundo.
A deSeSperação de alcançar o que deSeiua, acrescentou elRey a von-
tade de auer em Seu poder a Moura, & traçando diuersos meos, a
que dificultaua hum fim cheo de impoSsiueis, veo no remate de tudo
a tomar conSelho cõ hum grande AStrologo por nome Amão, & Se-
gundo o remedio qm deu, não Seria muito, que ouueSSe em Suas
artes mais Sciencia que a AStrologia; pois SatiSfez o animo delRey,
obrigandoSe a lhe tirar a Moura huma noyte do caStello Sem que
peSSoa o SintiSSe, & porlha onde Seguramente a pudesse leuar a
Seu reyno. Piquenos lhe parecerão os tiSouros de Seu eStado, pera
satisfazer tamanho Seruiço, e dando largas promeSSas em prendas
do qm determinava fazer, preparou as couSas pello modo qm lhe
aconSelhou o Sábio, preuinindo os Seus pera a hora em que o nego-
cio Se auia de executar, porqm Se a caSo acõteceSSe SintirSe o roubo
da Moura, & Serem acometidos da gemte da fortaleza, os achaSSem
na ordem que conuinha pera Sairem cõ Seu intento.
FezSe tudo da maneira que elRey deSeiaua, Sem qmo Cõde eSpeci-
fique os particulares qm ouue na materia ate Ser a Moura tirada fòra
do castello, e leuada ás Galles, onde á elRei estaua agoardãdo deS-
pedido iá de Alboazar o dia dãtes, & metidas asembarcações ao largo
pera mais diSsimulação do caSo, tendo os bargantins59 Somemte ao
59 Bergantim; pequeno brigue.
II. A Lenda de Gaia. 25

longo da praya, em que Sahio a gente neceSSaria pera efeituar o ne-


gocio, que Senão pode acabar com tanto Segredo, que os Mouros não
SintiSSem o qm paSSaua, & tocãdo arma, forão no alcance dos que
leuauão o roubo, ate iumto da praya em qm os barquos agoardauão,
onde foi a pelleia tam cruel Sobre libertar, ou embarcar a Moura, que
morrerão vinte fidalgos Sinalados da gemte delRey, Sem outros muy-
tos de menos cõta, a cuSta de cuio Sangue Sahio elRey vitorioSo,
& com Sua preSa Segura Se recolheo a huma pouoação maritima,
que o Cõde chama Milhor, onde muitas vezes coStumaua eStar, por
Ser lugar freSco, e de muita recreação, daqui Se paSSou pera Lião,
onde fez baptizar a Zahara, pondolhe nome Artida, ou Artiga, como
outros lhe chamão, dizendo, qm por mui Sabia, & perfeita em Suas
couSas Se lhe deu eSte nome, que na lingoa antiga de Espanha, tem
a meSma significação.60
Teueha elRey por amiga, & ouue della hum filho, chamado Alboazar
Ramirez, de quem falaremos muitas vezes adiante, & huma filha por
nome Dona Artiga Ramirez.
Alboazar Iben Albucadan vendo a irmaã roubada, e Sintindo omao
termo delRei, deSeiaua occaSião de vingança, & trazia eSpias em
terra de Christãos, pera o auiSarem de alguma couSa, em que pu-
deSSe deSgoStar a elRey, & tomar vingança de Seu aggravo.
& como SoubeSSe que a Raynha dona Vrraca eStaua na pouoação
de Milhor, deScudada & Sem goardas baStantes, Se meteo em certas
embarcações, & dando repentinamente no lugar, cattiuou a Raynha,
& muita gente outra, aSsi da terra, como do Serviço, & paço delRey,
a quem eStas nouas forão tam aSperas de Sofrer, que cayndo em
cama teue sezões 22 dias com Febrestam deSatinadas, qm o fazião
muitas vezes Sayr de Seu acordo, falando cousas de homem alienado.
mas todas a prepoSito daquillo qm o atormentaua.
E tornando a melhorar com beneficios que Se lhe aplicarão, o princi-
pal dos quaes foy a eSperança da Satisfação qm determibaua tomar
do Mouro, pera effeito da qual, Se meteo cõ Seu filho dõ Ordonho,
& outros Senhores em cinco Galles cheas de gente tão eScolhida,
que ate os remeiros quis que foSSem fidalgos, & peSSoas eScolhidas
pera o tempo da neceSsidade, & cubertas as embarcações com pãnos
verdes, Se veo meter huma noite por São Ioão da Foz, encoStando
os baixeis iunto a terra, qm naquelle tempo eStaua tão cuberta de
aruoredo pendente Sobre o rio, qm podião eStar eScondidas, Sem
temor de Serem viStas de longe.
& Sayndo em terra cõ o numero de gente qm conuinha, os deixou
embrenhados entre as aruores, aduirtindoos, que Senão deScubreiS-
sem ate ouuir o Som de huma corneta de monte qm leuaua conSigo,
60 Se o nome é Ortega, deriva–se de urtica, urtiga, donde ser sem sentido a explicação de

Brito. Donde, novamente o vermos como Oñega, feminino do prenome basco Iñigo.
26 F. A. Doria

encuberta com Sua eSpada, & hum peito de armas debaixo de veSti-
dos groSSeiros, & mui pobres, com os quaes Se foy lançar iunto a
huma fonte qm fica abaixo do caStello de Gaya, onde achou huma
criada da Rainha, chamada Perona, de nação FranceSa, qm acaSo
vinha buScar agoa pera lhe lançar ás mãos, quãdo Se leuantaSse;
& poSto que lhe elrey falaSse em Arabigo, & lhe pediSsSe de be-
ber fingindoSe muy enfermo, & ao tempo qm meteo a boca no vaSo
lhe lãçaSSe dentro hum seo camafeo, de que a Raynha trazia outra
ametade, a moça não aduirtio quem podia Ser; nem deu boa rezão á
Senhora, quãdo ella ao lauar das mãos, vio a mea pedra dentro na
agoa, & quis Saber donde a ouuera.
E como por muitaimportunação alcãçaSSe, qm dera de beber a hum
mouro enfermo, qm lho pedira por Deos, a Raynha o fez chamar, &
vemdoo, conheceo Ser o marido, a quem iá deSamaua tãto, qm nada
deSeiaua menos qm vello ante Seus olhos; & tomandoo de parte,
lhe preguntou a cauSa deSe atreuer a hum caSo tão arriScado, &
falto de bõ conSelho, & reSpondedolhe elle, qm em negocios guiados
por amor, não auia outro acerto maior, que deSacertar em tudo, &
qm o muito qm lhe queria facilitaua o riSco a que Se punha pella
libertar, das mãos de Seu contrario: ella lhe lançou tudo por alto,
lembrandolhe que não podia Ser grande o amor qm lhe tinha, quãdo o
de Zahara fora baStante pera o fazer arriScar a tanto, & tella a ella
em tão pouco; & com diSsimulação o fez entrar pera huma camara
de abobeda, dizendo, que logo faria volta, e trataria com elle o meo
qm auia pera Se porem a Saluo; mas depois qm o teue fechado, &
a chaue na mãga da cota que veStia, agoardou a vinda de Alboazar,
qm desde a madrugada Sayra á caça, & vemdoo, lhe preguntou, qm
fizera delRey dõ Ramiro, Se a ventura lho puSeSSe em eStado, qm
lhe foSse licito diSpor delle a Seu goSto.
& ouuindolhe, que o menos Seria tirarlhe a vida cõ exquiSitos tor-
mentos, lhe meteo a chaue na mão dizemdo, que ali o tinha, & que
não perdeSSe tão acertada cõiunção, como lhe offerecia a ventura.
VendoSe elRey traydo aleiuosamemte da Raynha, em cuia fé tiuera
confiança átequella hora, diSSe ao Mouro, qm em penitemcia do erro
cometido no roubo da irmaã, lhe fora mandado por Seu cõfeSSor, qm
vindoSe meter em Sua mão, aceitaSSe a morte qm elle lhe quiSeSSe
dar por Saluação de Sua alma; & qm pois o roubo, & mal qm fizera,
fora publico e Soada pello mumdo, lha mãdara, qm publicamemte
tangeSSe huma bozina tãto, ate qm acabaSSe por falta de alemto.
QuiSeralhe o Mouro perdoar, mouido acõpaixão de ver humRey tão
poderoSo em tal eStado, & na verdade o fizera Se lho não impedira
a Rainha, qm influida no amor libidinoSo do Mouro, queria ver o
marido tirado depor meo, e deScãSado o penSamemto cõ ver pre-
Sente Sua morte.
II. A Lenda de Gaia. 27

Pello qm fazemdo aiumtar toda a gemte qm auia no caStello de Gaya


tirarão elrei aopatio dos paços, & poSto Sobre huma columna, qm
estaua no meo delle, o mandarão tocar a corneta, ate acabar a vida
do modo qm elle eScolhera, eStãdo preSemte a Rainha, Suas damas,
e toda a mais gemte da villa a quem o eSpectaculo Se repreSentaua,
cõforme ao odio, ou afeiçaõ em qm Se via.
Começou elRey a tocar a bozina cõ tãta força qm Se ouuia em grande
diStancia ao redor, & colligindo o Infante dom Ordonho, & mais
caualleyros que ficarão na cillada, pella preSSa do tanger, chegarão
com tanta breuidade Sobre a villa, que os Mouros os não Sintirão
antes de os acharem conSigo, & Sintirem o rigor de Seus golpes,
aiudados do exemplo delRey, que deixada a coreta leuou da espada,
& de hum Soo fendente, partio a cabeça de Alboazar ate os peytos, &
deyxãdo a villa deStruida com morte de quatro filhos, & tres filhas
do Barbaro, Sem outra muita copia de gente ordinaria, Se tornou
com a Raynha, & Suas damas pera as Gallés, onde foy recebido dos
que ficarão em goarda, com grandes demoStrações de alegria.
Sò a Raynha Se lamentaua tão Sintidamemte, qm obrigou a el-
Rei a lhe pergumtar a cauSa, créndo qm de arrependida do mao
termo vSado cõ elle o faria; mas ouuindolhe qm de Saudades do
Mouro aquem tirara a vida, a mandou lãçar no mar cõ huã pedra ao
peScoço, e Se chamou depois aqmlla paragem, a Foz de Anchora, ou
de Aldora, qm he o nome ordinario cõ qm o Cõde a nomeam acre-
cemtãdo qm por Seu filho o Infante dõ Ordonho dar cõSelho neSta
morte, Senão lograra depois muito tempo moStrado Deos quãta ven-
eração Se deue aos pais, inda qm tão alheios de razão como era
eSta Raynha, por cuia morte diz o Cõde dõ Pedro, qm recebeo por
Sua molher legitima a dona Artiga de quem tinha iá os filhos qm
nomeei, qm por auidos em vida de dona Aldora ou Vrraca, Senão
podem chamar legitimos, nem deuião correr por taes naquelle tempo,
pois os não achamos cõfirmados em eScrituras como os outros filhos
delRey, auidos de legittimo matrimonio.
Allem diSto achamos a elRey caSado outra vez cõ ainfanta dona
ThereSa Florentina, filha de Dõ Sancho Abarca Rey de Nauarra,
tam apreSSadamente, queou Artiga viueu pouco caSada cõ elRey,
ou não foy mais que amiga Sua; que a meu ver he o mais certo,
porque negarSe qm de todo não teue elrey eStes filhos de Artiga
he contrauir a muytos teStemunhos irrefragaueis de doações, que
aos deScendentes de Alboazar Ramirez, chamão deScendentes del-
Rey dom Ramiro como veremos falãdo da géração dos Tauoras, &
doutras que deScendem deSte Infante.” (. . . )

O que transparece deste texto de frei Bernardo de Brito, desta sua narrativa
da Lenda de Gaia, é que, sendo sua fonte principal a lenda segundo o Livro
do Conde D. Pedro, Brito procurou confirmá–la em documentos do tempo de
28 F. A. Doria

Ramiro II, e neles nada encontrou sobre o romance entre Ramiro e a moura.
Foi o primeiro confronto da lenda à realidade histórica. Sem sucesso.
III. Teoria do Mito e da Lenda.
1. Mito e História.

A identidade de um grupo social está dada no seu imaginário. Portanto,


para teorizarmos sobre a identidade que de si faz, constroi, um grupo, uma
comunidade—ou até um paı́s, devemos nos voltar para seu imaginário.
E que é o imaginário social? De onde se origina? Como se organiza?
Fazemos aqui um longo passeio, um excursus, que nos permitirá elaborar
uma teoria para os mitos, lendas — e para suas relações às genealogias.

Em 1924 E. Forrer publica um artigo de sucesso inesperado—mas inespe-


rado mesmo?—numa revista só frequentada pelos especialistas, as Mitteilun-
gen der deutschen Orientalischen Gesellschaft. Levava o tı́tulo, “Vorhomerische
Griechen in die Keilschrifttexte von Boghazköi,” ou seja, “Gregos pré–homéricos
nos textos cuneiformes de Boghazköi.” Forrer, orientalista e um dos principais
decifradores do hitita, cujas inscrições estava compilando àquela época, desco-
bre, ou pensa descobrir, os personagens de Homero nos arquivos hititas.
Primeiro, o povo grego do tempo, do século XIV a.C. Eles mesmos, os
Aqueus. Akhaiwoi, na forma reconstruı́da para essa lı́ngua que já não ouvimos
ou lemos, o grego de Micenas. Mas está escrito lá, num texto hitita, ahhiyawa.
As surpresas e descobertas continuam: nos anais do rei hitita Tudhaliyas IV
lemos sobre uma região ao norte do império, Taruwiša — a Trôada? — onde,
no reino de Wilusa — (W)Ílion! — reina Alaksandus. Alexandre–Páris.
Um dos textos onde aparecem tais nomes é a chamada “carta de Tawakala-
was.” Fala das queixas do rei hitita a seu colega, o rei dos ahhiyawa, poderoso
senhor de uma armada, a respeito de um trânsfuga cujo exército assolava as
“terras de Lukka,” ou seja, a Lı́cia. E quem era Tawakalawas, prı́ncipe pré–
helênico de há três milênios e meio? Segundo Forrer, Eteweklewes, Eteocles,
filho de Andreus — ou filho, mais provavemente, de um Édipo que aqui se

3
4 F. A. Doria

atesta historicamente? Édipo ! Nada surpreendente, pois Kádmos, fundador de


Tebas, aquele que no mito é o inventor do alfabeto, nos aparece atestado numa
tabuinha descoberta recentemente (depois de 1994, em escavações na própria
Tebas grega).
E, novamente, quem é o trânsfuga sobre quem se queixava, ao rei dos Aqueus,
o imperador hitita? Certo Piyama–Radu, que muitos pesquisadores hoje identi-
ficam a Prı́amo, senhor de Tróia ! Os mitos sobre a idade heróica da Grécia nos
aparecem, cada vez mais, através da documentação arqueológica, como sendo a
realidade histórica [2, 13, 30].

Este exemplo resume nossa teoria do imaginário social:


• O imaginário social constroi–se a partir de narrativas mı́ticas, e o mito
se elabora a partir de fatos históricos eventualmente documentáveis e que
em geral se deixam reconhecer, mesmo a partir da narrativa mı́tica.
• O imaginário social é velho e conservador. Reitera figuras e narrativas que
se têm mantido, nos mitos do grupo, há séculos.
• A lógica do mito, e, por extensão, a lógica que estrutura o imaginário so-
cial, apenas simplifica, aplaina as complexidades das narrativas factuais,
dando–lhes um significado facilmente compreensı́vel a todos os partici-
pantes do grupo. Significado este que acaba se tornando na verdade fun-
dadora do grupo, embora essa verdade imaginária possa ser factualmente
falsa.1
• E a identidade do grupo social é dada pela unidade do imaginário.
E o imaginário? É o que Jung chama “inconsciente coletivo.” Mas não nos
chega nos gens, ou através de alguma telepatetice misteriosa. Vem na cultura,
na linguagem. McLuhan chamou–o de “ambiente invisı́vel.” São as verdades
óbvias (que não são óbvias), as crenças mal percebidas, os valores estruturados
— tudo o que discretamente, imperceptivelmente, dá sentido a nosso quotidiano,
e lhe organiza o horizonte de nossos desejos.
E vem de longe o imaginário.

Teoria esquemática para os mitos


Aqui se esboça, muito tentativamente, e a partir de vários exemplos diferentes,
uma teoria para a estrutura dos mitos. As premissas são as seguintes:
• Mitos têm base histórica. Em geral há um núcleo histórico duro, e fre-
quentemente distorcido, por trás dos mitos.
Essa pode não ser uma regra geral, e com certeza há enfoques onde supor-
mos uma base histórica, factual, para o mito, é quase uma heresia. Mas,
1 No caso de nosso interesse, a lenda afirma que a famı́lia da Maia descende por varonia

(em linha masculina) dos reis de Leão, o que é indocumentado e, muito possivelmente, todo
falso.
III. Teoria do Mito e da Lenda 5

como vamos ver nos exemplos em seguida, supor que, em geral, mitos
refletem a história nada tem de absurdo.
• Mitos manipulam unidades básicas. Neste nosso enfoque informal, ou
semi–formal, seria demais dizermos que mitos são processos digitais —
como Lévi–Strauss o fez, em seu livro Le Cru et le Cuit, de 1964, ou
como já havia proposto dez anos antes, num dos ensaios republicados na
coletânea Anthropologie Structurale.
De qualquer modo, consideraremos aqui serem os mitos estruturações de
certas “letras” básicas, os mitemas (termo que roubamos de Lévi–Strauss,
mas cujo sentido poderá ser, aqui, alterado). Reconheceremos os mitemas
de forma primária — elementar, básica — analisando os textos da Lenda
de Gaia (no capı́tulo anterior, a divisão em parágrafos das tradições tex-
tuais que temos a respeito já sugere essa identificação dos mitemas para
a Lenda de Gaia).
• Mitos possuem uma estrutura dupla, ou eventualmente múltipla. Distin-
guiremos, quando possı́vel, entre uma estrutura primária, cuja gramática
tentaremos compreender, e uma estrutura secundária, que nada mais é do
que um mito antigo colocado dentro do mito mais novo.
Vamos dizer com mais clareza — um mito pode nascer da seguinte maneira:
personagens e situações novas são colocados dentro de uma estrutura
mı́tica pré–existente. Isso acontece, muito claro, sempre, com a Lenda
de Gaia, onde novos personagens são colocados dentro da estrutura pré–
existente de uma narrativa lendária mediterrânea muito antiga.
Seguimos, nesta seção, dois textos, um deles inédito [7, 8].2

O mito e o inesperado
Mitos são conservadores, e se reiteram inesperadamente em lugares onde nunca
estarı́amos à sua procura. Depois do sucesso, nos anos 60 deste século, do seriado
de ficção cientı́fica de televisão, Star Trek (“Jornada nas Estrelas”) produzem–se
nos anos 70 alguns seus clones bem interessantes. Um deles, Battlestar Galactica
(mesmo tı́tulo em português), onde uma nave espacial pilotada pelos humanos
de uma espécie diferente dos da Terra, percorre o universo confrontando–se com
uma raça de robôs, os centurions. A nave é comandada por um garoto, pré–
adolescente louro e sereno e frágil, que concentra em si toda a sabedoria de
todos os tempos e mundos.
Quem é esse garoto? É o adolescente divino, o kouros, a respeito do qual nos
falam até os textos da linear B miceniana, passados trinta e cinco séculos. O
kouros ressurge epicamente na moderna mitologia tecnológica: é o adolescente
hacker do filme War Games, ou o superprogramador de computadores do filme–
piloto Max Headroom. Todos da década de 80. Ou é J. F. Sebastian, o inventor
dos androides, dos replicants, em Blade Runner.
2 O ensaio Viagem à Terra dos Sonhos estuda o mito do paraı́so perdido na história do

Brasil, e recebeu em 1998 o Prêmio Cultural da Bahia, 2o. lugar.


6 F. A. Doria

E é, enfim, a máscara publicitária de Bill Gates ou Steve Jobs, respectiva-


mente o dono da Microsoft e da Apple Computers, cinquentões3 que em público
se apresentam como nerds e geeks adolescentes.

O concreto no imaginário
O imaginário se dá num suporte concreto: de inı́cio a tradição oral, que logo se
apoia em fontes manuscritas, esparsas. Como se fosse um delta que aos poucos
vai–se abrindo: a memória oral, que se fixa numa versão manuscrita, da qual
nascem outras versões orais e mais outras versões manuscritas, quase nunca
trazidas umas e outras à colação. No século XIV, algum monge copiava um
manuscrito e o embelezava com sua própria memória dos fatos ali narrados, e o
corrompia com os seus erros de copista, sem se preocupar com a possibilidade
de existirem versões corretas ou autênticas, ou restauradas [9]. A crı́tica textual
só vai nascer no século XIX, meio milênio depois da invenção da imprensa, e
funda–se em mais um mito redescoberto, um mito que remonta à caverna de
Platão, o mito do texto arquetı́pico, originário, verdadeiro, único, texto do qual
todos os outros são variantes entropizadas, corruptas.
(Mito que, também, funda as epistemologias da história, o mito do fato–
histórico–em–si.)

Arquétipos: Fausto, Robin Hood, a Atlântida


Damos em seguida exemplos para três mitos: Fausto, Robin Hood, a Atlântida
e o mito fundador do americanismo.

Fausto
Quando nasce a imprensa, nasce também um outro mito, o mais recente dos
mitos que fazem nosso imaginário, e o mito que—talvez—funda a nossa visão
do futuro.
É com certeza o mito que deu sentido à história dos últimos cinco séculos.
Foi explorado de inı́cio por um autor anônimo, um quase cordelista alemão.
Ao anônimo seguiram–se Marlowe, Goethe, Gérard de Nerval, Thomas Mann.
Na música, Liszt, Wagner—ainda que impúbere; Mahler, ao fim da sua Oitava
Sinfonia, e Schönberg, que termina personagem (malgré soi–même) do romance
de Thomas Mann, Doktor Faustus.
Para Spengler, enfim, o mito de Fausto dá o espı́rito de nosso tempo.

O personagem que dá base histórica à lenda, ao que parece nasceu em 1480,
em Knittlingen, perto de Bretten, local de nascimento de Melanchton, que lhe é
contemporâneo. Atestando–se esparsamente na Alemanha e fora dela, conhece-
mos passagens suas em Veneza, em Krakow, em Heidelberg, na França. Morreu
(ou desapareceu) por volta de 1540, ou talvez um pouco antes [10, 11]. Qual
era o seu nome? Qualquer coisa como Georg, ou Jörg, ao qual juntou dois
3 Em 2007.
III. Teoria do Mito e da Lenda 7

sobrenomes, Sabellicus, esquecido logo, e Faustus Junior, “filho da Fortuna,”


talvez. Era mestre–escola em Kreuznach em 1508, posição que obteve através de
Franz von Sikkingen, mas seu mau comportamento — schlechte Lebenswandel,
como lemos, mau comportamento, pois era homossexual e pedófilo — fez com
que fugisse de Kreuznach. Virou um ambulante, astrólogo e mago de feira,
Schwarzkünstler — nigromante.
Em 20 de agosto de 1507, numa carta ao matemático Johann Wirdung (outro
nome que esquecemos), o abade Johann Tritheim, Tritemius, abade de Spon-
heim, fala de seu encontro com Sabellicus–Faustus, no Brandemburgo, em al-
guma hospedaria perdida. Faustus quis ser apresentado a Tritemius; vangloriou–
se então de seu conhecimento de Platão e Aristóteles, e sugeriu–se capaz de ir
muito além daqueles. Mas o julgamento de Tritemius foi direto: disse que Fausto
era ein unverschämter Narr, um imbecil sem–vergonha; é o que lhe parecia ser
o magister Sabellicus, Faustus Junior.
Desaparece por volta de 1530, sem que se saiba como morreu, ou por que.

O Faustbuch de 1587
Em 1587, quase meio século depois de sua morte ou desaparecimento, o editor
Johann Spies publica o Faustbuch, “Livro de Fausto,” calhamaço de autoria
anônima, e primeira fonte escrita para o mito como o conhecemos.
No seu frontispı́cio, o livro editado por Spies nos anuncia:

Historia
von D. Johann
Fausten, dem weitbeschreyten
Zauberer unnd Schwartzkünstler,
Wie er sich gegen dem Teuffel auff eine be-
nandte zeit verschrieben, Was er hierzwischen für
seltsame Abentheuwer gesehen, selbst angerich-
tet und getrieben, biß er endtlich sei-
nen wol verdienten Lohn
empfangen.
Ou seja:
História do sr. João Fausto,
o mundialmente famoso mago e nigromante;
como ele se comprometeu com o diabo por um tempo determinado;
quais as notáveis aventuras pelas quais passou, viu e recebeu,
até alcançar a retribuição merecida.

Tudo sobre Fausto sai daı́, do Faustbusch. Weltbeschreyter, com certeza,


“mundialmente conhecido.” E Tritemius só é conhecido dos pedantes — talvez
agora um pouco mais além, quando seu nome ressurge no best–seller de Eco, O
Pêndulo de Foucault.
8 F. A. Doria

A história de Fausto, conforme aparece no livro de 1587, é uma narrativa


popular. Quer dizer: a história de Fausto conta–se a partir da memória do
povo, e não das elites, das classes dominantes. (Isto nem a faz melhor nem pior;
é só uma constatação.) Narrativa popular, mostra ter subsistido na oralidade
por meio século, e mesmo impressa guarda a estrutura das narrações de cordel.
Conta seu nascimento, sua morte, as negociações com o diabo, e, no meio de
tudo isso, mete Fausto na forma de herói em defesa do povo, figura arquetı́pica,
uma espécie de Malazartes, enganando os poderosos em favor dos pobres ou, às
vezes, em proveito próprio.
Muito do que se atribui a Fausto no Faustbuch repete as aventuras do herói
popular, folclórico, Till Uhlenspiegel, ou talvez coisa mais velha ainda. É um
carinha simpático, esse Fausto popular, fixado no livro de 1587.

Robin Hood
E a história de Fausto, podemos compará–la também às narrativas populares
inglesas sobre Robin Hood. Fosse esse um nobre temporariamente banido da
corte, ou fosse a sua figura, como o quis Margaret Murray [20], composta a partir
de restos de uma memória muito mais arcaica, reflexo de uma religião praticada
pela classe baixa, a “velha religião,” resistindo ao avanço da religião da classe
dominante, no caso o cristianismo, o fato é que a história de Robin Hood conta–
se igualmente a partir do povo, a partir da camada mais subjugada da população
medieval inglesa. Basta ver que um personagem tão modesto na hierarquia
anglo–normanda do poder ao tempo dos primeiros Plantagenetas, o alvazil de
uma cidade, o xerife (shire reeve, “capataz do condado”) de Nottingham, torna–
se, na história de Robin Hood, em personagem imenso, conselheiro direto do rei.
(Os outros, os conselheiros de fato, o povo nem sabia quem fossem.) Toda a
distância social entre as classes naquele momento do feudalismo dá–se nesta
identificação. Que só é possı́vel para quem olha o xerife do fundo do poço da
sociedade.

Atlantis a Eterna : o mito da Atlântida


Bom, esta é a mãe de todas as lendas do ocidente. Ei–la, num de seus avatares
brasileiros:
Como sabem, os atlantes se espalharam por todo o mundo, e as
condições de vida que encontraram nos vários pontos do globo foram
alterando a base da cultura que lhes era própria, e modificando a
mentalidade, e, portanto, a linguagem escrita e falada. [. . . ] Aqui
no Brasil, por exemplo, pátria de origem do primeiro homem e da
primeira civilização—a terra que mais cedo assistiu à evolução do
homem, porque é a terra mais antiga do mundo—aqui mesmo temos
frisantes exemplos da força das palavras [. . . ]”
“A palavra ‘Brasil,’ por exemplo. Há quantos milhares de anos ela
designa esta parte do mundo! Quiseram impor–lhe outros nomes,
III. Teoria do Mito e da Lenda 9

mas nada pode vencer a força do primitivo, porque a ele está ligado
o próprio destino da terra. Era Brasil, e ficou Brasil. E será Brasil,
enquanto houver sobre a terra um homem capaz de pronunciar um
nome [. . . ]”
“E a palavra ‘América’ ? Pensam acaso que se deve ao nome daquele
navegador? Não. Nem ele se chamava ‘Américo,’ e sim ‘Alberrico.’
Ele é que modificou o seu nome por vaidade. ‘América,’ com pequena
modificação, foi sempre o nome de todo o continente. ‘Amerrı́qua,’
era como nós, os atlantes, o chamávamos há muitos milhares de
anos—‘amerrı́qua,’ lugar onde sopram livremente os ventos ([19], p.
222).” 4
A narrativa sobre a Atlântida vem–nos de Platão [16]. Em linhas gerais,
Platão conta uma suposta antiga tradição egı́pcia sobre uma grande ilha no mar
ao extremo do ocidente, também uma grande potência naval que teria inclusive
enfrentado várias vezes os egı́pcios. Esta ilha desaparece após um cataclisma
vulcânico, ou grande terremoto.
Na América, a lenda da Atlântida ressurge em duas tradições: o mito da
América paradisı́aca, e uma certa ideologia americanista, que se inicia em Flo-
rentino Ameghino e desaparece com Hrlidčka.

O Jardim do Éden e a ideologia do americanismo romântico


Na conversa, transcrita acima, entre os personagens do romance de Jerônimo
Monteiro e um fantástico sábio atlante, há todo um imaginário, quase toda uma
ideologia do americanismo, o americanismo romântico, a utopia selvagem. Em
sı́ntese, seriam estas suas premissas:

• Nas Américas, e em especial no centro do Brasil, existem as terras mais


antigas do mundo. É natural, portanto, que a vida haja surgido aqui, e
também a espécie Homo.
• Se a espécie Homo é única, também será única a origem das lı́nguas do
mundo. E a lı́ngua–mãe estaria necessariamente nas famı́lias linguı́sticas
amerı́ndias.

A esta face, digamos assim, ‘cientı́fica,’ do americanismo romântico, associa–


se uma outra, sua contrapartida francamente mı́tica, ideológica, e de raı́zes
muito mais profundas no tempo:

• Se nas Américas existem as terras mais antigas do mundo, e se aqui se ori-


ginou a espécie humana, é porque nas Américas—no centro quase virginal,
e arcaicı́ssimo, do Brasil—fica o Jardim do Éden.
• O mito mediterrâneo (e bı́blico) da queda do homem repete–se na narrativa
platônica da Atlântida. Portanto, as narrativas sobre a Atlântida serão as
4 As correções devidas serão feitas adiante.
10 F. A. Doria

narrativas sobre a origem do homem, que explicam agora antes de tudo a


origem do homem americano.

A primeira deriva da segunda. Peccatus non datur infra æquinoxialem. Não há
pecado debaixo do equador, nos disse Barlæus no século XVII; pois aqui está o
Éden, acrescentamos.

De Ameghino a Hrlidčka
A versão cientı́fica do mito do Éden americano surge em Florentino Ameghino
([25], p. 35 e ss.):

Ameghino colocou–se numa posição inesperada: era autoctonista,


porém monogenista, isto é, admitiu a origem do Homem, em geral,
no próprio continente americano. Suas teses foram defendidas numa
série de obras das quais a mais conhecida e citada é La Antiguedad
del Hombre en el Plata (2 vols., Paris e Buenos Aires, 1880 e 1881).
[. . . ]
O povoamento do mundo, para Ameghino, se processaria partindo
da Patagônia, num curioso hiperdifusionismo, inverso dos já admi-
tidos, como se derivando do Velho Mundo. Assim, dos hominı́deos
patagônicos, ter–se–ia destacado um ramo Afer, que teria chegado à
África e depois à Austrália, originando o ramo dos Negros e dos Ne-
groides. O grupo sapiens, originado do Homo pampæus, teria dado
lugar às várias raças do Homo sapiens da América e da Europa.
As correntes migratórias teriam seguido da Patagônia para o norte,
chegando à América do Norte e daı́ passando para a Ásia e a Europa.

Arthur Ramos contesta Ameghino e toda a tradição romântica, e acompanha as


idéias de Aleš Hrlidčka ([25], p. 36 e ss.), antigo diretor da seção de antropologia
do Museu Nacional em Washington, segundo as quais:

1. O homem americano possui no máximo 12 000 anos de antiguidade.

2. É um ramo da população mongólica.

As idéias de Hrlidčka formam o que poderı́amos chamar “dogma central”


do americanismo contemporâneo, dogma do qual nos afastamos [3, 17], desde
que Beltrão, secundada por Henry de Lumley — este, quem identificou os sı́tios
arqueológicos mais antigos da Europa, na Espanha, datados de 700 mil anos
antes do presente — demonstram de forma convincente que a ocupação humana
das Américas possui pelo menos 300 mil anos.
Confrontemos ainda tais conceitos às versões mais contemporâneas.

Hrlidčka e a ideologia do americanismo colonizado


Hrlidčka seguiu–se cronologicamente a Ameghino; publica seus primeiros artigos
em 1912, quando se esbate a carreira do ı́talo–argentino. As idéias de Hrlidčka
III. Teoria do Mito e da Lenda 11

acham–se, num certo sentido, implı́citas nas idéias de Agassiz ([24], p. 119 e
ss.), velhas de meio século, então. Agassiz é um poligenista; defende centros
múltiplos de origem para a espécie humana, que chama de ‘reinos’: os reinos
polinésio, australiano, malásio–indiano (que inclui as populações dravı́dicas), os
hotentotes (que Agassiz, racista, denomina “fauna”); os reinos africano (com
as demais populações negras), europeu (a trı́ade dos povos semito–camitas,
dos fino–urálicos e dos indo–europeus), mongol–asiático, americano e ártico (os
lapões).
Também é similar a classificação proposta por Ameghino: à exceção do
monogenismo, e da origem primeira americana—ou, como veremos mais à frente,
a suposta origem atlante para o homem americano—as diferentes ramificações
do Homo segundo Ameghino acompanham nas linhas gerais as divisões pro-
postas por Agassiz. A diferença fundamental entre Ameghino e Agassiz ou
Hrlidčka é ideológica, mas de um outro gênero: afirmar a origem não–americana
do amerı́ndio pode, implicitamente, significar sua inferioridade ante as culturas
eurasianas, então mais velhas, mais ricas, e em consequência com direito nat-
ural à dominação das Américas. Ideológica, sempre, esta discussão: nasce nas
discussões quinhentistas sobre se o amerı́ndio possuı́a uma alma. A ideologia
por trás do americanismo de Hrlidčka parece dizer: o homem americano é uma
criança, precisa ser educado e guiado pelas culturas mais velhas.

Cavalli–Sforza

Esta mesma classificação de Agassiz, acrescida da hipótese monogênica, é tam-


bém, na sua essência, adotada por Hrlidčka, ao postular a origem da população
amerı́ndia nas populações que Agassiz chamara “reino asiático.” A técnica de
um e outro, e mais a de Ameghino, é impressionista, empı́rica; mas um levan-
tamento recente, com base numa tipagem genética, sugere um retrato seme-
lhante ao de Agassiz—junto, claro, à hipótese monogênica, ou seja, à hipótese
da origem comum da espécie Sapiens sapiens, provavelmente na África. Para
Cavalli–Sforza e associados [5], as populações S. sapiens dividiram–se de inı́cio
em dois grandes ramos, o africano e o eurasiano. O primeiro deu origem a
todas as populações africanas negras, pigmeus, bantu, nilo–saarianos, entre
outros. O segundo ramo bifurca–se em eurasiano do norte (caucasóides—aqui
incluindo–se os lapões; asiáticos—mongois em geral, povos sino–tibetanos; ainus;
esquimós–aleutas; amerı́ndios em geral) e eurasiano do sul (malaio–polinésios,
australoides, micronésios e melanésios). Em paralelo a estes grupos popula-
cionais, Cavalli–Sforza e seus colaboradores identificam grupos linguı́sticos as-
sociados: as lı́nguas africanas, o grupo afro–asiático (camito–semı́tico), o grupo
indo–europeu, o grupo ural–altaico e fino–úgrico, o japonês, o sino–tibetano, e
os grupos amerı́ndios e da polinésia (lı́nguas indo–pacı́ficas). E, se a espécie é
uma só, também terá origem única a multiplicidade das lı́nguas humanas.
Sempre não muito longe, enfim, na sua estrutura, do que esquematizou Agas-
siz no século passado. E do que afirmava na sua essência, com os sinais inver-
tidos, o americanismo romântico.
12 F. A. Doria

Amerrı́qua
Mas a ideologia do americanismo romântico precisava buscar seus fundamentos
em caminhos outros que não os delineados no tratado de Quatrefages [24]. As
premissas, aqui, seriam, como vimos, o monogenismo humano, em muito grande
antiguidade, nas Américas, e também a origem americana comum a todas as
lı́nguas.
Curiosa modernidade, dos americanistas românticos do século XIX. Em pa-
ralelo às primeiras investigações sobre as lı́nguas indo–européias, no romantismo
dos irmãos Schlegel, que viam no indo–europeu não só a lı́ngua–mãe, com toda
a carga simbólica do nome, mas também a lı́ngua ideal, primeva, perfeita, a
lı́ngua edênica; em paralelo às idéias dos Schlegel afirmava–se a existência, entre
os americanistas de há um século, de uma lı́ngua primitiva, nascida com o Homo
nas Américas, e ligada quase de modo essencial às coisas e lugares.
Surge neste ambiente a idéia de que o nome do continente derivar–se–ia de
uma das lı́nguas amerı́ndias: população autóctone, nomes autóctones. Esta pos-
sibilidade aparece num artigo de Cândido Mendes, publicado na venerabilı́ssima
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [25]; é lá onde se cita o
nome amerrı́qua (exato como está no romance de Jerônimo Monteiro), que viria
da lı́ngua Karib, e significaria “terra ou terras altas” (e não a encantadora
tradução do romancista, terra por onde correm livres os ventos).
Mas é factualmente falso. Com certeza no tı́tulo da coletânea Paesi Noua-
mente Retrouati & Nouo Mondo da Alberico Vesputio Florentino, de 1508, o
nome do navegador aparece como “Alberico,” e não “Amerigo” (ver o fron-
tispı́cio em [15], p. 271). Mas o nome “Amerigo” é comum entre os florentinos
dos séculos XIV e XV; é, por exemplo, o prenome de ancestral da mulher de
Lorenzo de’ Medici, irmão de Cosimo Pater Patriæ, Amerigo Cavalcanti, mer-
cador cuja biografia se mistura à história dos últimos reis angevinos em Nápoles.
Deriva–se “Amerigo” da voz germânica Haimrich, Haimrig, “do torrão natal.”
O nome é comum desde o tempo dos lombardos; vem do norte da Itália, assim
como Alberich, Alberig, “Alberico,” parecido mas com outra etimologia, e inda
outros assemelhados.
Depois, conhecemos diversos documentos onde Vespucci é referido como
“Amerigo,” e isso antes da descoberta da América. Um deles, encantador, é
o bilhete (de 14 de setembro de 1489) enviado ao Vespucci por Semiramide Ap-
piana, mulher de Lorenzo de’ Medici il popolano, neto do citado acima, onde esta
pede ao navegador, agente destes Médicis na Espanha, roupas para seus filhos
Pier Francesco, Laudomia, e Averardo ([27], p. 40). É preciso transcrevê–lo, é
delicioso:

Amerigo:
Fate fare uno berrettino di vellutto bugio argentato, ad mezza piega,
per Pier Francesco. Mandate le calze ho chiesto per la Laldomina
et Averardo, ma che siano meglo facte et taglate della altre. Dite
al canovaio che mi mandi le mie tele grosse, che horamai debbono
essere curate.
III. Teoria do Mito e da Lenda 13

Mandianvi la misura del circuito del capo di Pier Francesco. Man-


date un pectinuzzio d’avorio per la Laldomina. Non altro,
Semiramide

Basta. América vem, mesmo, do nome do Vespucci. Tortuosamente podemos


ler em seu nome qualquer coisa como, “referente ao que vem do torrão natal, da
terra–mãe.” Mas, diretamente, quer dizer mesmo “terra de Amerigo Vespucci.”

Pena; a solução do americanismo romântico, do atlante de Jerônimo Mon-


teiro, era mais cativante, mais encantadora, mágica. . . Miticamente, enfatica-
mente verdadeira.

A Atlântida foi talvez a melhor explicação, a mais frustrantemente per-


feita explicação oferecida pelo americanismo romântico para a origem das altas
culturas andinas. Solução que persistiu até os anos cinquenta deste século, re-
speitável nuns poucos cı́rculos, cı́rculos respeitáveis embora marginais. Arthur
Ramos menciona–a no começo de seu tratado [25], embora descarte a “hipótese
Atlântida” como não–cientı́fica. No entanto, dez anos depois da publicação da
antropologia amerı́ndia de Arthur Ramos, Poisson [22] publica, numa coleção—
respeitabilı́ssima—da editora Payot, um texto onde ainda procura reafirmar e
salvar em sua totalidade o mito da Atlântida na versão do Crı́tias : um conti-
nente, entre a Europa e a América, que teria afundado no oceano há dez milênios
durante um terremoto, e cujos habitantes teriam guerreado os atenienses. (A
argumentação de Poisson é hábil e consistente, mas desmentida pela geologia:
não pode ter existido qualquer grande ilha, seja no Atlântico Norte, e muito
menos ao Sul.)
Poisson tenta recuperar a Atlântida da forma como o mito aparece no Timeu
e no Crı́tias. A Atlântida seria um grande império, uma ilha “maior que a Ásia
e a Lı́bia,” fora das Colunas de Héracles, e cujos povos, nove mil anos antes
das narrativas de Platão, tentaram invadir a Grécia, sendo rechaçados. Pouco
depois, um cataclisma afunda–a no oceano [16].

Temos duas atitudes possı́veis diante das narrativas platônicas sobre a Atlân-
tida: ou supomos tudo uma invenção para efeitos retóricos, ou supomos que há
alguma base histórica, factual para este mito. Aceita esta última alternativa,
a reconstrução mais aceita hoje para as fontes do mito parte de umas idéias
levantadas em 1909 por K. T. Frost ([16], p. 35): o mito da Atlântida refletiria
as incursões minoanas sobre Micenas. Esta reconstrução tem a seguinte base:

• Sólon, fonte primeira (segundo Platão) para as duas narrativas sobre a


Atlântida esteve, de fato, no Egito.

• É possı́vel que Sólon, devido à sua proeminência polı́tica, haja estado


em Saı̈s, e haja conversado com algum sacerdote que lhe terá narrado a
história da Atlântida.
14 F. A. Doria

• O império minoano aparece referido nos registros egı́pcios, por volta do


décimo–quinto século a. C., com o nome Kefti, Keftiu ([29], p. 1024). Em
hebraico, Kaphtor : é o nome, numa e noutra lı́nguas, para “Creta.”

• O império minoano era visto pelos egı́pcios como um dos extremos do


mundo, e sendo Creta montanhosa, como um dos suportes da abóbada do
céu. Donde a tradução de Kefti como Atlas.

• E, enfim, por volta do século XV a. C. a ilha vulcânica de Thera—


conhecida pelos gregos como Kallı́stē, “a belı́ssima”—explode, e provoca
um maremoto que deve ter seriamente afetado Knossos e o império mi-
noano.

Em sı́ntese, o núcleo histórico a partir do qual surgiu a lenda platônica da


Atlântida foi:

A ilha de Creta era percebida, pelos cronistas egı́pcios entre a 16a.


e a 19a. dinastias (séculos XVI a.C. ao século XIII a.C) como uma
grande ilha no extremo ocidental do mar. Era a sede de um império
marı́timo poderoso, o império minoano. Fez incursões diversas con-
tra o continente europeu, atacando o reino aqueu de Micenas, que
se defendeu bravamente. E foi destruı́da, ou teve seu poderio muito
abalado, com a explosão vulcânica, e os tsunamis consequentes, da
ilha Kallı́ste — hoje Santorini, de fato uma das maiores explosões
vulcânicas ocorridas em tempos históricos.

Daı́ até o americanismo romântico, é o crescimento da lenda por sobre a


história. . .
Há óbvia base arqueológica, factual tanto quanto o são os dados arqueológicos,
para esta interpretação do mito, que satisfaz até as descrições detalhadas que
se lêem no Crı́tias sobre a vida dos atlantes. (Para os demais aspectos do mito,
ver o livro de Luce [16].)
No entanto, esta Atlântida concreta, menor, mediterrânea, nada tem, fac-
tualmente, a ver com a Atlântida fantasmática dos americanistas [28].
A Atlântida, como território–matriz para a espécie, foi proposta no século
passado por Donnelly e por Lewis Spence; Vivante e Imbelloni atribuem a
Ameghino ([28], p. 153) uma hipótese segundo a qual da “raça atlântida” teriam
origem, na Europa, os ı́beros, os bascos, os bérberes, os Cro–Magnon, os etrus-
cos, e os guanches das Canárias, e nas Américas os esquimós, patagãos antigos,
o homem de Lagoa Santa, o “homem do Ceará,”5 os botocudos e (talvez) os
fueguinos. Outros autores apresentam esquemas parecidos e acabam localizando
a Atlântida na América, no interior do Brasil, e também lá a origem da espécie
e da civilização.
Um reflexo longı́nquo desta romanticı́ssima visão aparece no artigo de G.
Lynch, publicado na revista de ciência popular francesa, Science et Vie, em
5 Provavelmente o indivı́duo cuja calota craniana foi descoberta pelo Barão de Capanema.

Assemelhava–se fisicamente ao S. neandertalensis.


III. Teoria do Mito e da Lenda 15

1925: pergunta o artigo no seu tı́tulo, “est–ce au Brésil qu’on doit rechercher
le berceau de la civilisation?” ([28], p. 170). Neste artigo, a principal ilustração
nos é muito familiar, e nos traz de volta à nossa idée fixe ; são as inscrições que
um documento de 1754 afirma existirem na “cidade abandonada” dos sertões
da Bahia.

Aqui está o núcleo de muito do imaginário brasileiro, o mito da cidade per-


dida, o mito das riquezas adormecidas e protegidas pelo sertão; protegidas pelos
anjos que fecham a porta do Paraı́so.
Este exemplo detalhado, e mais os subsequentes, nos vão ajudar quando
buscarmos, através da Lenda de Gaia, a base histórica plausı́vel sobre as origens
da famı́lia da Maia.

A natureza dos mitos


(Claro, tudo o que se comentar aqui será apenas um breve resumo, um breve
resumo do que poderia ser o começo de uma teoria plausı́vel para os mitos.)
Callado ([4], p. 59) conta uma historieta interessante sobre a tradição oral
dos ı́ndios Bororo e Calapalo a respeito de certa entidade má, o Paı́ Peró :

Há 200 anos, em 1755, o bandeirante Antonio Pires de Campos,


o Moço, apelidado Paı́–Pirá pelos ı́ndios Bororo, fez uma terrı́vel
matança de silvı́colas à beira do rio das Mortes. Pois até hoje os
Calapalo contam a história de um Paı́–Peró alto, forte, branco e
cruel, matador de ı́ndios e finalmente morto pelos ı́ndios. Julgavam
os irmãos Villas Boas que os Calapalo repetiam uma lenda qualquer
com sua história de Paı́–Peró, quando em verdade faziam história
oral, envolvendo um episódio verdadeiro em discursos tradicionais.

Esta passagem diz o essencial a respeito de como concebemos o mito: o mito


nasce num fato histórico, fato este modulado e modificado, e mesmo ampliado,
pela tradição oral. Mecanismos que fazem nascer o mito a partir do fato são, em-
piricamente, aqueles, freudianos, do sonho, tais a condensação, a amplificação,
o paralelismo.

Os Nibelungos
Um outro exemplo, que bem mostra estes mecanismos, está nas narrativas ger-
mânicas sobre os deuses em seu conflito com os gnomos nibelungos. As fontes
históricas são três: as tradições sobre o chefe anglo Wotan, personagem histórico
segundo a tradição oral mais antiga, e que vivia provavelmente na Frı́sia por
volta do primeiro século da nossa era ([1], p. 66); as crônicas—escritas, mas
preservadas para o mito, em paralelo, na tradição oral—dos reis burgúndios, nos
séculos V e VI, em seus conflitos na corte, na guerra contra Átila e os hunos, nas
disputas com Teodorico o Grande, e com outros personagens contemporâneos;
e as crônicas sobre os condes Nibelungos, nos séculos VIII e IX [14].
16 F. A. Doria

O núcleo histórico para essas narrativas mı́ticas são os conflitos dos mero-
vı́ngios no século V. Neles aparecem o rei Sigebert de Metz, que modelou o herói
Siegfried, e sua mulher, a rainha Brünnhilde, uma princesa de sangue visigodo,
última descendente conhecida das dinastias godas dos Amali e dos Balthi, que
é o modelo histórico para a valquı́ria da lenda:
Charibert de Paris morreu prematuramente, em 567. Sigebert de
Metz e Chilperic de Soissons eram inimigos ferozes, enquanto Gun-
tramm da Borgonha fazia–se num aliado infiel de um e outro. A de-
generação e os crimes destes netos de Clóvis já lhes dão a aparência
de ogres lúbricos, apoiados na magia de seu sangue merovı́ngio. Mas
o ódio selvagem, mútuo, das suas rainhas, junta aos acontecimentos
do perı́odo o interesse de um drama, enquanto ao mesmo percebe-
mos de perto os eventos polı́ticos concretos realizando–se. Brünhild
e Gailswintha, filhas ricamente dotadas de Athanagild, rei visigodo
da Espanha, casaram–se respectivamente com Sigebert de Metz e
Chilperic de Soissons. Mesmo entre os merovı́ngios, Chilperic é uma
figura especialmente sinistra. Avarento, devasso, glutão e cruel,
havia repudiado sua primeira mulher (depois assassinada) para se
casar com Gailswintha. Mas logo encantou–se com uma concu-
bina de origens baixas, Fredegunde. Gaiswintha foi estrangulada,
e Chilperic casou–se com Fredegunde. Tal crime produziu uma
vendetta sem perdão da parte de Brünnhild, mulher de imagem quase
simpática, se a comparamos a Fredegunde. Vingativa, incansável,
autoritária, Brünnhild havia sido cuidadosamente educada; protegia
um poeta latino, natural da Itália, Venantius Fortunatus, e se cor-
respondia com o papa Gregório o Grande. Seu marido, Sigebert de
Metz, quase conseguiu dominar o irmão Chilperic, que havia sitiado
em Tournai. Em Arras, Sigebert é assassinado por dois escravos de
Fredegunde, e Brünnhild mal consegue escapar com seu filho criança,
Childebert II (575–595), em nome de quem vai governar.
...
Enquanto isso, Brünnhild sustentava–se através da guerra e de as-
sassinatos. Tinha enfim conseguido dominar os grandes nobres,
súditos de seu filho, que estava firme no trono e buscava mais poder.
Brünnhild conseguira inclusive fazer Childebert sucessor do rei Gun-
tramm, que não tivera filhos, na Borgonha. Quando Childebert
morre muito moço, Brünnhild continua como regente em nome de
seus dois netos, Theodebert da Austrasia e Theodoric da Borgonha.
Fredegunde morre antes de Brünhild, em 597, mas os nobres da
Renânia expulsam da Austrasia a rainha sobrevivente, enquanto
Brünhild tentava dominar a Borgonha. Brünnhild então faz com
que Theodoric ataque seu irmão, mate–o, e fique sozinho no trono.
Mas Theodoric, como todo bom merovı́ngio, morre moço em Metz
(613), e Brünhild procura reinar ainda, em nome do filho mais velho
de Theodoric. Foi demais. Arnulf de Metz, e Pepino, os dois fun-
III. Teoria do Mito e da Lenda 17

dadores da dinastia carolı́ngia, convocam Chlotar II. Brünnhild é


capturada e arrastada até a morte, amarrada na cauda de um cav-
alo selvagem. Seus bisnetos desaparecem ([23], I, pp. 156–157).6

Como no Götterdämmerung : Guntramm, Brünnhild, Sigebert–Siegfried. . .


Onde entram aqui os Nibelungos históricos? São estes os carolı́ngios, ou
melhor, uma linha colateral à segunda dinastia francesa. Vencedores dos mero-
vı́ngios, a quem a história demonizou, os carolı́ngios exibem–se em contrapartida
numa dinastia de santos. Por motivos óbvios: quem ganha a parada, conta a
história.
Ei–los: S. Arnulf, bispo de Metz; S. Begga, sua nora, mulher de Ansegise,
filho de Arnulf; S. Gertrudes de Nivelles, abadessa, irmã de Begga e filhas,
ambas, de Pepino de Landen, prefeito do palácio na Austrasia ao tempo daquele
Sigebert. Os condes Nibelungos, colaterais obscuros à dinastia carolı́ngia,7 dão
o seu próprio nome, no mito, aos prı́ncipes francônios da Borgonha. Talvez,
entre outros motivos, porque seu nome, que se deriva da cidade de Nivelles, na
Bélgica, é homônimo a uma palavra que significa “os que vêm das névoas.”8
Há ainda outros personagens no mito: Átila (tornado em Etzel), Teodorico
(que se corrompe em Dietrich). Tudo isso colocado numa matriz arcaica, uma
série de narrativas à volta de Wotan,9 também personagem histórico, ances-
tral de uma dinastia de chefes anglos, morto presumivelmente num grande
incêndio de sua aldeia—donde o tema do Ragnarök, do fim do mundo num
grande incêndio.
Tudo combinando–se através dos mecanismos de simplificação, de ampli-
ficação e de condensação

• Simplificação. A racionalidade dos processos sociais é pouco nı́tida; de


fato, muito complicada em geral. O mito simplifica os fatos, encadeando–
os de maneira compreensı́vel numa sua lógica própria, com frequência
distante do encadeamento dos fatos.

• Condensação. Um dos processos de simplificação é a condensação. No


caso, por exemplo, os Nibelungos históricos, famı́lia colateral aos carolı́ngi-
os, dá, no mito, o nome para estes, e destes o nome passa aos merovı́ngios.

• Amplificação. A matriz do mito são as narrativas sobre Wotan e o incêndio


final, o Ragnarök. Wotan, de pequeno chefe, torna–se no pai dos deuses, e
6 Para uma visão diversa, embora coincidente nas linhas gerais a este resumo de Prévité–

Orton, veja–se [26].


7 O primeiro conde Nibelung, atestado no século VIII, era filho de Hildebrand ou Childe-

brand, conde da Borgonha. Hildebrand, por sua vez, era filho de Pepino II, † 714, mordomo
do palácio na Austrasia, e de sua amante Alpaı̈s, o que o faz irmão inteiro de Charles Martel.
Para uma crı́tica detalhada, [14].
8 A derivação do nome Nibelung a partir do feudo destes em torno a Nivelles foi proposta

— melhor, endossada — por Lévillain [14] numa nota de seu ensaio, mas David Kelley, em
comunicação intermediada por Don Stone, disse ao autor que prefere a origem no significado
“povo das névoas.”
9 O nome derivaria de wutend, “explodindo de ódio.”
18 F. A. Doria

sobre esta matriz, e a ela se adaptando, constroi–se o mito dos nibelungos,


eles mesmos tornados em seres mágicos, demônios ou deuses.

Três narrativas independentes condensam–se, deste modo, numa só, que vai
de Wotan aos nibelungos. O resultado? O mito dos nibelungos, e tudo o que
destes se conta, até Wagner.

Voltando ao mito brasileiro


Este é um comentário à parte, que merece ser feito.
Aqui examinamos ainda mais um outro exemplo, algo do imaginário do
Brasil. E procuramos o centro, o núcleo estruturante para esse imaginário. Tal
centro parece ser o mito que funda as Américas, o mito do Paraı́so Perdido, o
mito do Jardim do Éden. Para o mito brasileiro, o Brasil é o Éden.
Mas um Éden que se esconde como tal a seus habitantes. A terra é fértil,
rica, mas as gentes que moram aqui são pobres. A terra é abençoada, mas
as pessoas que buscam explorar suas riquezas tornam–se malditas. Prı́ncipes
heróicos tornam–se em reis demonı́acos, se chamados a governar este paraı́so
que não se deixa nunca desvelar.

Podemos seguir dois caminhos na exploração do imaginário brasileiro. O


primeiro é, digamos assim, o caminho da intimidade, o caminho dos mitos fa-
miliares. Podemos retraçar os mitos que cercam a história de alguma famı́lia
baiana, fixada no Brasil desde o século XVI, mas com raı́zes — mı́ticas em
parte, e em parte históricas — na idade média européia. Não seria, neste nosso
modelo, digamos, uma famı́lia de paredros, uma famı́lia de figuras tutelares,
daquelas figuras cujos retratos aparecem em cartões–postais de monumentos,
cujas caras todo mundo conhece, mas cuja legenda foi ensurdecida assim como
estamos surdos para a Quinta Sinfonia de Beethoven depois de ouvı́–la tocada
até pelas furiosas dos fundões do paı́s. Só uma famı́lia de senhores de engenhos,
que une santos protetores, quase como seres totêmicos, a estigmas nascendo
em grandes crimes; e que mistura, lado a lado, a ortodoxia religiosa e uma
velhı́ssima tradição herética.
Genealogias são como a sintaxe de um texto; e o imaginário desse grupo
familiar fornece uma semântica para o arranjo genealógico. Dá unidade à mul-
tiplicidade factual da sua pequena história, faz–lhe um sentido, fornece–lhe uma
continuidade que não se mantem nem mesmo no seu nome de famı́lia. Gentes
das classes dominantes, fidalgos cavaleiros muitos deles com certeza, senhores
de engenhos, oficiais das ordenanças, funcionários e juı́zes da Relação, e, no
império, parlamentares e intelectuais.
Portadores concretos do mito.

Entrelaçando–se à narrativa, o mito brasileiro, que, já foi dito, afirma–se


como uma reelaboração do mito do Paraı́so Perdido.
A micro–história das genealogias e dos mitos familiares é um veı́culo privi-
legiado para o mito brasileiro. E para os mitos em geral.
III. Teoria do Mito e da Lenda 19

O papel das genealogias


Nisso tudo, as genealogias servem para organizar o espaço do imaginário social.
Estruturam–lhe o tempo, que é visto, qualitativamente, como uma sucessão de
reis, de governantes, e não como uma sucessão quantitativa, numérica, de anos
ou quaisquer outras periodizações mais neutras, menos coloridas.
Maisels mostra ([18], p. 172 e ss.), por exemplo, que em Lagash, à volta
do terceiro milênio a. C., as datas e cronologias são imprecisas, ainda que esta
cidade–estado na Mesopotâmia possuı́sse uma organização social muito elabo-
rada e uma história bem definida: conhecemos o primeiro governante de Lagash,
Ur–Nanshe, que viveu vagamente no século XXVI a.C., assim como sabemos os
nomes de seu pai e avô. E, nove governantes depois, aprendemos que o último
soberano, rei, lugal, Uru–Ka–gi–na, depõe o dinasta anterior, Lugal–an–da, e,
para mostrar–se em tudo novo, anuncia–se inaugurando um “programa de re-
formas.”
Nihil nouum sub sole. Esse filme a gente cansou de ver. Mas, datas precisas,
nada.
E lembremos que, segundo o direito inglês, os textos legais são numerados de
acordo com os anos de reinado de um soberano (assim, III Henry VIII significa
a data de uma lei que foi baixada no terceiro ano do reino de Henrique VIII), e,
similarmente, ainda como método de contagem do tempo, outro método quali-
tativo, as eras japonesas, como a era Meiji (reino do imperador Mutsuhito) e a
era Showa, recentemente concluı́da, o reino de Hirohito.
Genealogias de famı́lias não reais são também conhecidas desde há muito.
Como exemplo—dos muitos disponı́veis—podemos tomar a estela egı́pcia de
número 18 da coleção do Museu Nacional, Rio ([12], I, p. 60). Celebra um
burocrata, Paentyni, “inspetor senior dos escribas da cidade do sul,” funcionário
do tempo da 13a. dinastia (século XVIII a. C.) Deste Paentyni aprendemos quem
eram seus pais, mulher, filhos, um dos sogros, além de três colegas. Tipicamente
uma famı́lia extensa. Ligando–se o que apreendemos em diversas estelas, e desde
que a famı́lia se haja mantido na classe dominante, podemos refazer às vezes
dez, quinze gerações de uma dessas famı́lias de burocratas. Dez gerações: de três
a quatro séculos, talvez. Mais extensas tais genealogias do que as de algumas
casas reinantes.

Melchior Dias e as minas


Melchior Dias “Moreia” era neto do Caramuru. Depois de perder–se nos sertões
da Bahia durante quase três lustros, desde 1570, reaparece falando que encon-
trara minas preciosı́ssimas. Oferece–se para lhes revelar a localização em troca
de honrarias — o tı́tulo de Marquês das Minas, segundo a lenda; o foro de fidalgo
cavaleiro, na realidade. Em 1618 organiza–se uma expedição a Itabaiana para
que Melchior Dias mostrasse aos enviados reais o lugar das minas. Desconfiando
de alguma armadilha, Melchior vai ao local mas recusa–se a mostrar o socavão
onde encontrara os minérios. É preso, posto a ferros, e sai apenas em 1622 da
cadeia, aparentemente sem revelar seu segredo.
20 F. A. Doria

Deixa para a famı́lia um roteiro, que conhecemos numa versão de começos do


século XVIII. Este roteiro percorre a provı́ncia mineral baiana e em seu caminho
existiam, de fato, minas de diamantes e de ouro.

O grupo familiar como cadinho de lendas


O papel do grupo familiar, se voltamos à nossa questão, o mito das minas
perdidas, revela–se como sendo:

• Primeiro, o fio condutor básico para a tradição — que é mantida em se-


gredo, já que fala de riquezas perdidas descobertas pelo ancestral que aos
poucos vai–se tornando numa figura totêmica (caso de Melchior Dias).

• Em seguida, a famı́lia, vista como sucessão genealógica, oferece um pri-


meiro quadro, uma primeira matriz lógica para organizarem–se o mito ou
os mitos familiares. É o que vemos em comentários como “as riquezas dos
Moribecas.”

A lógica do tempo familiar


O grupo familiar — nuclear e extenso — funciona como um caminho livre, de-
simpedido, para a tradição oral. Toda famı́lia se vê partindo de um fundador
quase totêmico, nas narrativas internas ao grupo familiar, de quem derivam as
virtudes e os estigmas do grupo. O ancestral primeiro ou é pleno de virtudes, e
estas virtudes marcam sua descendência, ou é autor de um crime, que também
estigmatiza os descendentes.
Muitos exemplos:

• Os Braganções. Trata–se da famı́lia, historicamente bem documentada,


dos primeiros senhores de Bragança, do século X ao século XIII. “As
tradições, chocantes para a nossa sensibilidade, começam logo com o
primeiro membro conhecido dos redatores do Livro Velho e do Livro do
Deão. Este impetuoso antepassado raptou a filha do rei da Armênia que
ia em peregrinação a Santiago de Compostela, e fundou com ela a linha-
gem. Num livro trata–se de um clérigo de nome Alão, noutro de seu filho
Mendo. A lenda está relacionada com o mosteiro de Castro de Avelãs,
onde a infanta se hospedou durante a viagem. As narrativas prolongam–
se na pessoa de Fernão Mendes, que teria casado nada menos do que com
uma filha do próprio rei Afonso VI, irmã, portanto, de D. Teresa e de
D. Urraca. De fato, conhecemos um senhor desse nome documentado en-
tre 1072 e 1112; aparece no primeiro daqueles anos como governador de
Chaves, e depois na corte de D. Teresa. Foi seu filho Mendo Fernandes,
governador de Bragança, e que provavelmente foi alferes de D. Afonso
Henriques em 1146 e 1147, isto é, por ocasião da conquista de Santarem
e Lisboa. Mas o personagem que mais excitou a imaginação dos linhagis-
tas foi sem dúvida Fernão Mendes o Bravo, isto é, o colérico, autêntico
representante dos costumes mais bárbaros da época. Estando no mosteiro
III. Teoria do Mito e da Lenda 21

de Moreruela, fez seu irmão Rui jurar que não lidaria com ele. Como não
cumpriu o juramento, cegou–o e matou–o. Noutra ocasião, a mãe zangou–
se com sua barregã. Para se vingar, meteu–a, à mãe na pele de uma ursa
e atiçou–lhe os cães.” 10
Esta é a lenda fundadora da famı́lia dos Braganções, de grande influência
ao norte de Portugal nos séculos XI e XII, quando decaem. Já sugeri-
mos que esta sua lenda fundadora é a memória distante do casamento em
Bizâncio de um prı́ncipe visigodo, Athanagild, com a neta de Vardan III
Mamikonian, um prı́ncipe armênio. Do filho do casamento de Athanagild
com a neta de Vardan III descende, segundo a tradição,11 a dinastia dos
Condes de Coimbra, cujo fundador é Hermenegildo ou Mendo Guterres,
que se apossa de Coimbra, tirando–a do domı́nio árabe, em 878. Os Bra-
ganções poderiam ser descendentes, ou parentes colaterais, da dinastia de
Mendo Guterres, o que lhes explicaria o mito fundador.

• Os Lusignan. Descendem, segundo a tradição, de certo Raymondin de


Forez (des Forêts, “dos bosques”), que se teria casado com a Fada Melusi-
na, sem saber de sua natureza sobrenatural. Vendo Raymondin à mulher
uma vez no banho—o que lhe era proibido, expressão decerto de algum
tabu sexual—, esta se exibe mudada num grande peixe ou numa sereia.
Com um grito, desaparece Melusina nas águas do Reno, maldita para
todos os tempos.
(O núcleo mı́tico da narrativa é simples, e fala da união inconciliável de
um deus dos bosques a uma deusa das águas: pois sempre serão rivais o
rio e os bosques que o margeiam.)

Ao examinarmos casos mais recentes, por exemplo, o casamento de Bar-


tolomeu de Vasconcelos o Má Pele com Luiza Pacheco, descendente daquele
de cujo assassinato fora cúmplice seu marido, e ancestrais de muitas famı́lias
baianas, como os Borges de Barros, os marqueses de Barral; os Vasconcelos Do-
rias; os Gois Tourinhos, os viscondes de Tourinho; percebemos entre os descen-
dentes alguns tabus ligados ao crime do ancestral, entre os quais, possivelmente,
o abandono e o esquecimento da capela que pertencera à famı́lia, na igreja do
Carmo, em Salvador—isso desde a segunda metade do século XVIII. Neste caso,
a memória familiar será recuperada (com a devida neutralidade acadêmica) por
um historiador, Hermann Neeser [21].

A memória familiar, os estigmas, as tradições boas, acabam, como se sabe,


diluindo–se com a urbanização. A famı́lia extensa—pai como pater familias, mãe
como matrona, como senhora dona, os filhos, e mais agregados e colaterais as-
cendentes e descendentes—a famı́lia extensa mantinha também sua unidade, no
10 Pelo menos uma famı́lia brasileira pretende, desde o século XVI, descender desses Alões

de Bragança [6], e comporta–se de acordo, ao ponto de atribuir à irascibilidade da linhagem—


desde a idade média!—o temperamento agressivo, impetuoso, de seus membros.
11 Apoiada num documento que é em parte contestável, mas onde a genealogia exposta é

cronologicamente consistente.
22 F. A. Doria

imaginário, com a ajuda do mito familiar, que era uma elaboração em torno das
glórias e crimes do primeiro ancestral, repetidas ou recalcadas nas gerações que
se seguiam. No meio urbano, desfaz–se a famı́lia extensa, que acaba reduzindo–
se à single parent family, famı́lia com apenas o pai ou a mãe, e alguns dos filhos,
nem sempre todos.
Nesta estrutura social colapsada, não há tradição que se aguente. Nem
estigma ou passado glorioso. Tudo se apaga, se oblitera, e o imaginário familiar
se substitui agora ao imaginário dos mass media.
Referências
[1] —The Anglo–Saxon Chronicle, Everyman’s Library (1953).
Tradução para o inglês moderno de uma das principais fontes para a história
dos saxões na Inglaterra.

[2] G. Beckmann, Hittite Diplomatic Texts, Soc. Bibl. Literature — Writings


from the Ancient World, Atlanta (1999).
Tradução e comentários a diversos textos cuneiformes dos arquivos de Bog-
hazköy, antiga Hattusas, capital do império hitita.

[3] M. da C. de M. C. Beltrão, J. A. Danon, F. A. Doria, Datação Absoluta mais


Antiga para a Presença Humana nas Américas, Ed. UFRJ, Rio (1988).
Pré–publicação, em português, dosresultados de [17].

[4] A. Callado, Esqueleto na Lagoa Verde, Min. Educação e Saúde, Rio (1953).
Um ensaio–reportagem, da autoria de Antonio Callado, narrando a ex-
pedição em busca do que ocorreu ao Cel. Percy Fawcett, que desapareceu
no Xingu à procura da “cidade abandonada” que é descrita num documento
de 1753.

[5] L. L. Cavalli–Sforza, A. Piazza, P. Menozzi, J. Mountain, “Reconstruction


of human evolution: bringing together genetic, archaeological, and linguis-
tic data,” Proc. Natl. Acad. Sci. USA, 85, 6002 (1988).
Artigo onde se unificam dados linguı́sticos e genéticos, levando a uma teoria
para a dispersão humana (H. Sapiens) sobre o planeta.

[6] F. A. Doria, No Tempo de Vargas, Revan, Rio (1994).


Memórias pessoais sobre a crise de 1954; lá se identifica o autor da “Carta
Testamento” de Vargas.

[7] F. A. Doria, Viagem à Terra dos Sonhos, ms. (1998).


Ensaio que teve o Prêmio Cultural da Bahia, 2o. lugar (1998).

[8] F. A. Doria e P. Doria, Comunicação, Revan (1999).


Texto didático sobre os fundamentos da teoria da comunicação.

[9] E. Eisenstein, The Printing Revolution, Cambridge (1988).


Um estudo sobre os primeiros duzentos anos da imprensa.

[10] H. W. Geißler, Gestaltungen des Faust, I, Verlag Paucus, Munique (1927).


Exame crı́tico dos diferentes textos literários baseados na lenda de Fausto.

[11] H. Hefele, Goethes Faust, Fr. Frommanns Verlag, Stuttgart (1931).


Edição crı́tica do Faustbuch.

23
24 F. A. Doria

[12] K. A. Kitchen, com a colaboração de M. C. Beltrão, Catálogo da Coleção do


Egito Antigo existente no Museu Nacional, Rio de Janeiro (texto bilı́ngue),
I e II, Aris & Philips (1990).
Reelaboração recente do catálogo de Alberto Childe para a coleção egı́pcia
do Rio de Janeiro. Todas as estelas da coleção estão traduzidas, com a
reconstituição das genealogias de altos funcionários e de altos hierarcas
religiosos, da 12a. dinastia até dinastias do novo império.
[13] J. Latacz, Troy and Homer, Oxford (2004).
Um ensaio–relatório sobre as escavações em Tróia desde 1990.
[14] L. Lévillain, “Les Nibelungen historiques et leurs alliances de famille,” Ann.
du Midi 49, 22 (1937).
Um ensaio famoso sobre a história e genealogia da famı́lia que deu seu nome
ao mito dos nibelungos.
[15] E. Lipiner, Gaspar da Gama, um Converso na Frota de Cabral, Nova Fron-
teira, Rio (1986).
Biografia de um navegante judeu no século XVI.
[16] J. V. Luce, The End of Atlantis—New Light on an Old Legend, Paladin
(1975).
Texto de divulgação, bem documentado, sobre a identificação da Atlântida
com a cultura minoana.
[17] H. de Lumley, M.–A. de Lumley, M. da C. de M. C. Beltrão, Y. Yokoyama,
J. Labeyrie, J. A. Danon, G. Delibrias, C. Falguères, J. L. Bischoff,
“Découverte d’outils taillés associés à des faunes du Pleistocène moyen
dans la Toca da Esperança, État de Bahia, Brésil,” C. R. Acad. Sci. Paris
306, série II, 241 (1988).
Artigo onde se mostram evidências (através de datações absolutas de
artefatos) da presença humana no Brasil há 300 000 anos antes do pre-
sente.
[18] C. K. Maisels, The Emergence of Civilization, Routledge (1993).
Monografia ampla e detalhada sobre os mecanismos demográficos dando
origem às culturas urbanas no oriente próximo.
[19] J. Monteiro, A Cidade Perdida, Col. Terramarear, Cia. Ed. Nacional, S.P.
(1948).
Romance pioneiro de aventuras e de ficção cientı́fica, da autoria de um
brasileiro, Jerônimo Monteiro.
[20] M. Murray, The God of the Witches, Oxford (1970).
Margaret Murray dá uma explicação alternativa para a lenda de Robin
Hood.
III. Teoria do Mito e da Lenda 25

[21] H. Neeser, “Uma pedra d’armas ainda não identificada na igreja de N. S.


do Carmo na Bahia,” Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia,
III, 79 (1950).
Hermann Neeser identifica a sepultura de um personagem trágico da
história da Bahia.
[22] G. Poisson, L’Atlantide devant la Science—Étude de Préhistoire, Bibl. Sci-
entifique, Payot, Paris (1953).
Um exame rigoroso do mito; não cita, no entanto, a hipótese minoana,
amplamente aceita hoje em dia.

[23] C. W. Previté–Orton, The Shorter Cambridge Medieval History, I e II,


Cambridge (1952).
Texto standard sobre a história medieval européia.
[24] A. de Quatrefages, L’Espèce Humaine, F. Alcan, Paris (1896).
Texto clássico, ainda que datadı́ssimo, sobre antropologia fı́sica.
[25] A. Ramos, Introdução à Antropologia Brasileira, I, Casa do Estudante do
Brasil, Rio (1943).
O grande texto básico sobre a antropologia brasileira — sutilmente marcado
por Freud, que se correspondia com Arthur Ramos.
[26] P. Riché, The Carolingians, trad. M. I. Allen, Univ. of Pennsylvania Press
(1993).
Monografia recente sobre a famı́lia de Carlos Magno e sua ação na história.
[27] C. Varela, Colón y los Florentinos, Alianza, Madrid (1992).
Um dos ensaios de Consuelo Varela sobre os financiadores das expedições
de Colombo.
[28] A. Vivante e J. Imbelloni, Libro de las Atlántidas, José Anesi, Buenos Aires
(1939).
Um texto que mostra a grande influência do mito da Atlântida na formação
da antropologia americana.
[29] E. A. Wallis Budge, An Egyptian Hieroglyphic Dictionary, Dover (1978).
Dicionário standard, embora datado; texto clássico.
[30] M. Wood, In search of the Trojan War, Univ. of California Press (1996).
Introdução à visão contemporânea sobre a história por trás das narrativas
sobre a guerra de Tróia.
IV. Da Lenda à História.
1. Análise da Lenda de Gaia.

T emos duas versões principais para a Lenda de Gaia, a do Livro Velho,


e a do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro — descartamos por exemplo a
versão da Monarchia Lusitana, desde que esta última é claramente corrompida,
e ainda mais, calcada na do Livro do Conde. A versão do Livro do Conde é,
muito claramente, a versão do Livro Velho, à qual se acrescentaram dados de
uma fonte desconhecida, assim como sabe–se de acordo com a crı́tica textual,
que o evangelho de Mateus é o evangelho de Marcos aos quais se acrescentaram
dados e referências tomados no conjunto de tradições que conhecemos como
Quelle.1
Pode–se ter uma idéia desse texto ou tradição que se acrescentou à versão do
Livro Velho para originar o texto notavelmente mais longo, do Livro do Conde?
Com certeza; eis as principais passagens acrescentadas à narrativa mais antiga:

El Rey D. Ramiro o segundo de Leom, ouvio falar da fermosura, e


bondade de hua Moura; e como era de alto sangue irmã de Alboazar
Albucadão filha de D. Zadão Zada bisneto del Rey Aboalli o que con-
quereo a terra no tempo del Rey Rodrigo. Este Alboazar era Senhor
de toda a terra desde Gaya até Santarem, e ouve muytas batalhas
com Christãos, estremamente com este Rey Ramiro, e el Rey Ramiro
fez com elle grandes amizades por cobrar aquella Moura, que el muito
amava, e fez em finta, q o amava myito, e mandoulhe dizer, q o
queria ver, por se aver de conheçer com elle por as amizades serem
mais firmes, e Alboazar mãdoulhe dizer, q lhe prazia dello, e q fosse
a Gaya, e hi se veria com el, e el Rey Ramiro foise lá em tres galés
1 Quelle é fonte, em alemão; no caso, seria uma tradição oral que se juntou ao texto do

evangelho de Marcos.

3
4 F. A. Doria

com fidalgos, e pediolhe aquella Moura, q lha desse, e falaia Chris-


tam, e cazaria com ella, e Alboazar lhe respondeu: tu tens molher, e
filhos della, e es christão; como podes tu casar duas vezes? e el lhe
dixe, ca verdade era, mas elle era tam parente da Rainha D. Aldonça
sua mulher, ca a santa Igreja os partiria; e Alboazar juroulhe por sa
ley de Mafamede, ca lha nom daria por todo o Reyno, q elle avia,
que a tinha desposada com el Rey de Marrocos.
Este Rey D. Ramiro trazia hum grande Astrologo, q avia nome Amão,
e por sas artes tiroua hua noyte, donde estava, e levoua às galés, q
hi estauão prestes, e entrou Rey Ramiro com a Moura em hua galé.
A esto chegou Alboazar, e alli foy contenda grãde entre elles, e des-
parecerom hi dos de Rey Ramiro vinte dous dos bons, q hi levava, e
da outra companhia muyta, e el levou a Moura a Minhor, e de ahi
a Leom, e bautizoua, e poslhe nome Ortiga, que queria tanto dizer
em a quel tempo, como castigada, e ensinada, e comprida de todos
os bens.
Alboazar tevese por mal viltado desto, e pensou em como poderia
vingar tal desonra, e ouvio falar em como a Rainha D. Aldonça
molher del Rey Ramiro estava em Minhor. Postou sas naos, e outras
velas, o melhor que pode, e mais encuberto; e foy à quelle lugar de
Minhor, e entrou a villa, e filhou a Rainha D. Aldonça, e meteoa nas
naos com donas, e donzellas, que achou, e das outras companhias
muytas veyose a o Castello de Gaya, que era em a quelle tempo de
grandes edificios, e nobres paços.
Este é o prólogo da narrativa no Livro do Conde, prólogo que não existe no
Livro Velho. Aqui se fala da paixão de Ramiro II pela filha de D. Zadão Zada,
um descendente do rei Aboali, que conquistou a terra no tempo de Roderic. A
filha de Zadão estava, ainda mais, noiva do rei do Marrocos.
Segue–se o episódio do rapto da rainha D. Aldonça pelo mouro Alboazar, o
desespero de Ramiro II, e a vingança que concebe e começa a executar. Entra
no castelo do mouro, é preso. No Livro Velho, o mouro Abencadão conversa com
Ramiro e permite–lhe escolher como será morto, e lhe encaminha a execução.
No Livro do Conde, um terceiro personagem entra na conversa entre o mouro e
Ramiro, a rainha D. Aldonça:

Rey Ramiro entende, que era enganado por sa molher, que já de alli
nom podia escapar se nom por arte algua, e maginou, que era tempo
de se ajudar de seu saber, e dixe a grão alta voz: Alboazar Albucadão,
sabe, que eu te errey mal; mostrãdote amizade levey desta caza ta
irmã, que nom era de minha ley, e confessey este pecado a meu
Abade, e el me deo em pendença, que me veesse meter em teu poder
o mais vilmente, que pudesse; e se me tu matar quizesses, que te
pedisse, q como eu fizera tam grande pecado ante a ta pessoa, e ante
os teus, em filhar ta irmã, mostrandote bom amor; que bem assi me
desses morte em praça vergonhosa; e por quãto o pecado, que eu fiz,
IV. Da Lenda à História. 5

foy em grandes terras soado, que bem assi fosse a minha morte soada
por hum corno, e mostrada a todos os teus; e hora te peço pois de
morrer ey, que faças chamar teus filhos e filhas e teus parentes, e as
gentes desta villa, e me faças ir a este curral, q he de grãde ouvida,
e me ponhas em lugar alto, e me leyxes tanger meu corno, que trago
para esto, a tanto, atá, q me saya o folgo e a alma do corpo: em
esto filharas vingãça demi, e teus filhos, e parentes averão prazer, e
a minha alma será salva; esto me nom deves negar por salvamento
de minha alma, q saber q por ta ley deves salvar se poderes as almas
de todas as leys; e esto dezia el, por fazer vir alli todos seus filhos,
e parentes, por se vingar delles, ca em outra guiza nom os poderia
achar em hu; e porq o curral era alto de muros, e nom avia mais,
q hua porta por hu os seus avião de entrar, Alboazar pensou no q
lhe pedia, e filhou dele lastima, e dixe cõtra a Rainha: esse homem
rependido hè de seu pecado, mais ey eu errado a elle, cà elle a mi;
grã torto faria de o matar, pois se põe em meu poder.
A Rainha respõdeolhe: Alboazar fraco de coraçõ, eu sey, qem he Rey
Ramiro, e sey de certo, se o salvas de morte, que nom podes escapar,
que a nom prendas del, ca el he arteyroso, e vingador, assi como tu
sabes.
E nom ouvistes dizer, como el tirou os olhos a D. Ordonho, seu
irmão, q era mór de dias por o deserdar do Reyno, e nom te acordas
quantas lides ouveste com elle, e te venceo; era e te matou, e cativou
muytos bons, e ja te esqueceo a força, que te fez de ta irmã, e em
como eu era sa molher, me trouxeste, que he a mor deshonra, q os
Christãos podem aver; nom es para viver, nem es para nada, se te
nom vingas; e se o tu nõ fazes por tua alma, porq assi a salvas,
porque he homem de outra ley, e em contrario da tua; e tu dalhe a
morte, que te pede, pois já vem acõselhado de seu Abade, ca grão
pecado farias, se lha partisses.
Alboazar olhou o dizer da Rainha, e disse em seu coraçom: de má
venture he o homem, q se fia de nenhua molher: esta he sa molher
lidima, e tem Infantes, e Infantas del, e quer sa morte deshõrada;
eu nom ey porq della fie: eu alõgalaey de mi: e pensou em o q lhe
dezia a Rainha, em como Rey Ramiro era arteyroso, e vingador, e
receouse delle, se o nom matasse, e mandou chamar todos os q erom
naquelle lugar, e dixe a Rey Ramiro: tu vieste aqui, e fizeste gram
locura, q nos teus paços puderas filhar esta pendença; e porq sey,
se me tu tivesses em teu poder, nõ escaparia da morte, eu te quero
cumprir o que me pides por salvamento de tua alma.

Há um objetivo preciso e óbvio nessa passagem: dar um caráter, um de-


lineado nı́tido a cada um dos personagens na discussão. Ramiro II é o herói
ardiloso. Alboazar, o mouro bravo mas ingênuo, cuja honra foi ofendida pelo
rei Ramiro. A rainha D. Aldonça é esperta e maldosa. É uma caracterizacão
6 F. A. Doria

que colore a narrativa, mas desnecessária à ação. Por que difamar–se a rainha,
por exemplo?
A narrativa do Livro do Conde se completa como no Livro Velho.

Uma versão aragonesa da Lenda de Gaia


A versão que se segue para a Lenda de Gaia narra o mesmo drama — a mesma
ação — com personagens muito outros, e é situada em Aragão [6]:2

Enel regno de Nauarra yde a una villa chamada Marziella, he pasa


yde hun rio clamado Aragon. Enel tiempo que yde auia buena pobla-
cion, auia yde algunos caualleros; entre los otros auia yde hun ca-
uallero quele dizian Ferrand Martinez, y tenia una ourrada muller
quel dizian dona Johana de Peralta, los quales ouieron hun fijo cla-
mado Marti.
El dicho mossen Ferrand Martinez en seruicio del rey murio en una
batalla de moros y lexo el dito Marti Martinez de edat de Vo anyos,
al qual la madre dona Johana de Peralta crio con grant diligencia,
nodrido en comer, leuer y bien defrender. Quando uido que sabia
bien leyer y escreuir, enuiolo ala cort del rey, porel qual fue bien
recebido, por razon que su padre auia muerto ensu seruicio. Vidolo
muy gracioso que senblaua asu padre en muchas virtudes.
Como fue en edat de XX anyos, el rey lo fizo cauallero e le dio caual-
lerias enque biuies. En Açagra, otro lugar de Nauarra, tenia hun
hombre rico, quele dizian Garci Sanchez, una fija clamada Catalina,
la qual caso conel dito Marti Martinez.
Su madre, Johana de Peralta, conseruo los bienes que su marido
le auia lexado; el dito Garci Sanchez dio buen matrimonio ala dita
Catalina, y conla renda quel rey le auia dado el dito Marti Martinez
tenia onrrada casa.
El qual uno en aquesta muller algunos fijos y fijas delos quales los
seys fueron caualleros y se ouieron de ausentarse por grant mortal-
dat. Los dos fueron a morar a Peralta, villa questa enel regno de
Nauarra, esto por tal como y teniam parientes de part dela dicha
dona Johana de Peralta su aguela.
Los otros dos hermanos se trobaron enla conquista de Mora y fizieron
hun portiello enla muralla e demandaron en gracia al rey queles dix-
iesen “dAsportiella” y asi les dizian Pero Martinez de Asportiella
y. . . Los otros dos hermanos vinieron a Buenya, aldea de Teruel: al
vno dizian Martin, al otro Garcia.
Asi fueron partidos los seys caualleros hermanos fijos de Marti Mar-
tinez y de Catalina Sanchez, fija de Garci Sanchez de Açagra.
2 Carlos da Fonte comunicou–nos este texto.
IV. Da Lenda à História. 7

Lexemos los quatro, es asaber delos dos que se pusieron en Peralta


y delos otros dos que tomaron nonbre de Asportiella; diremos de los
otros dos que se chamauan Marti y Garcia, los quales conquistando
contra moros tomaron el castlello de Buenya.
Alfanbra, que no esta rnucho luente de Buenya, era del conde don
Rodrigo, honbre mucho virtuoso y de grant esfuerzo, y estaua cerca
de alli en Camanyaz hun rey moro jouen y bien valient.
El conte tenia vna muger bella e liuiana de seso, y hun dia el conte se
encontro con el rey moro e corriolo hun rato. El rey moro leuaua hun
valient ginet, y boluiendose al conte: Que te parece desti venablo?
mostrandole el mienbro. El conte sende ridio, y asi se partieron.
El conte comia en su casa con su muger y tornose a redir, benbran-
dole aquello que auia visto al moro. Dixo la condessa ; Señor, porque
vos redis ? El conte no ge lo queria dir; tanto profidio que jelo dixo.
La condessa, oydos las paraulas del conte, sende fizo esquiua, enpero
tantost envio hun su secretario al rey moro diziendole que era su
enamorada y que pensase como faulariau en vno.
El rey moro fue muy alegre y vno a vn moro que sabia de fetillerias
y dio al tractant hun grano de xoblit, e dixole que quando la con-
desa durmies, que le meties aquel grano de xoblit dius la lengua y
questaria ocho dias que no sespertaria e que semejaria muerta.
El tractante lo fizo asi como le auian dicho. La condesa semejaua
muerta : el conte, quela vidia callent, que senblaua que durmia,
no la lexaua soterrar, y asi la tuuo tres dias. Estando marauella-
dos de su......quantos la vidian.....acordo de reg......mo y echaron....
palma como.....caron la ma..... radada y.....de auia visto.....ento el
conte......soterrar en vna........tura muy gentil.
Como fue de noche el tractant la saco dela tonba, y tiradole el grano
de exoblit y dadole a comer, leuola aquella noche a Camanyas al rey
moro. El rey, que vido ala condesa en su poder, fue muy alegre.
E fizose atan secreto, que nolo sabian sino los tres el rey, la condesa
y el alcauet. A los seruidores.....casa, el rey los......entender que jela
aul..... o de luentes.....uia costado dozientas doblas, tanto era......
Estuuieron asi encerrados ocho meses e no se enprenyo, ni tanpouco
se auia enprenyado del conte. Esdeuinose que hun crlstiano que
demandaua por Dios, que se auia encertado quando auian foradado
la mano ala condesa, vı́no a Camanyas, en tienpo quelos cristianos
y moros tenian tregua, a demandar por Dios.
La condesa era de grant almosna, y saco vna racion de pan y diola al
pobre, el cual le vidola mano foradaba e conociola y no dixo rés. De
fexo fue ai conte ad Alfanbra y dixogelo, el qual fue ala sepoltura y
nola trobo. Creyolo, en especial que quando la soterro estaua callent.
8 F. A. Doria

El conte tomo las uestiduras dei pobre et vistioselas, y dixolo asus


escuderos que a Camanyas yua y que en cierto varanco estuuiesen
escondidos, porque, silostauia menester, le socorriesen.
El conte en manera de romero fue a Camanyas demandando al-
mosna ; La condesa matexa sallio com la almosna, el conte sole dio
a conocer y ella mostro alegrarse conel y secretament metiolo en su
canbra.
La contesa con grandes lagrimas dixo de como, falsamente, era venida
alli contra su voluntat e que querria tornar ael. Diole a comer, e
como estauam asi, el rey vino.
La condesa dixo: Señor, el rey viene; ponet vos enesta arca. El conte
side metio. La contesa echole la clau. El rey entro enla canbra,
abrazo la condesa como aquel quela amaua mucho, echola sobre la
arca endo estaua el conte encerrado, y tomo placer conella.
Como se lexaron del negoclo, dixo la contesa bien alto : Senyor....
vos dos al conte don Rodrigo, quele d....? Respuso el rey,... de mi
regno.... la falsa : Sease.....Tatlo en aquesta arca el conte sal..... su
grado.
El rey le demando como era venido; ella jelo conto. Dixol rey: Sus
peccados lo yde an traydo; tudus tienpos lo tumi por honbre de poco
judicio, y bien se a parezido quando aqui se a puesto.
El rey dixo al conte: como soys venido aqui? Respuso: Por cobrar mi
muller, que si yo pudia tomar otra como vosotros los moros, no auria
venido por ela. He en una......no lexandose de..... an amorosas.....
quel rey se paro,... mo quereilo ma... e pensaua que faria....
Dixol rey: conte, si en vuestro poder me teniays como fago yo a nos,
que fariays de mi? Dixol conte sin negun pensar: Poner nos ya vna
cadena al cuello y vna gentil bozina en las manos, y en hun alto cerro
faria fer vna grant foguera endo vos cremaria; he asi como fuesemos
enla carrera, vos tocariays el cuerno y yo yria en hun carro muy
bien arreado de trapos doro e de seda e mis honbres yrian a cauallo
jugando alas canyas, fendo grandes alegrias.
Dixol rey : Pues tan buen valer me tienes, aquella buena voluntat
que me lieuas auras, e no otra. Tantost sin nenguna tarda arrean el
carro quanto millor pudieron, endo yua el rey en grant cadira, e la
condesa, que ya era mora, en otro carro con bellas donzellas y otras
siruientas, e los escuderos caualleros con sus almexias, desarmados,
sino tan solament adargas.
El conte, con buena cadena al cuello, tocando la bocina tan fuert,
que se huya del castiello de Alfanbra ; he como yua a piet, yua poco
a poco, he tocou al cuerno a grant priesa.
Los del conte questauan en celada sallieron bien armados, he con
grant virtut fieren alos moros. Algunos se fueron a piedes de rocin,
IV. Da Lenda à História. 9

enpero los otros todos murieron.


Al rey e ala reyna lanzaron los en la foguera questa en Palomera en
hun cerro clamado. . . Quando a nuestro señor Dios place, concuer-
danse los fechos.
No sabian res desto aquellos questauan en Buenya. Los dos her-
manos sobre dichos, Marti Martinez y Garci Martinez, los quales
auian sallido de aquel lugar clamado Marziella del regno de Nauarra,
vinieron con mucha gent sobre hun lugar clamado Argent.
Los moros auian sofrido la nuena de su rey, he como fuesen enta
Palomera por ayudar a su rey et eran hun troz fuera del lugar, los
cristianos entraron porel otro cabo, que no fueron recordados. Las
voces fueron alos que auian sallido: quisieron tornar y no pudieron
entrar, que los cristianos auian preso el lugar. Enesta forma fue
tomado Argent e a pocos dias Visiedo.
Pues el conte, apres que vuo lançado en la foguera al rey y a su
muger, tomo los carros con las donzellas y siruientes. Con grant
goyo vinose ad Alfanbra : antes que plyas al lugar, supo de como los
cristianos de Buenya auian tomado ad Argent.
La ora el conte se ynojo y fizo lohores y gradas a nuestro señor
Dios Jesu Cristo. Aqui dixo a todos en general que vuiesen grant
deuocion enla oracion de sant Agostin y enel salmo de confitemini
Domino, enlo qual el auia grant deuocion. Cada dia lo dizia con
mucha grant alegria, fincados los ynojos en tierra, y ciertamente el
creya que aquella oracion le auia fecho auer aquella victoria ; la qual
es segunt se sigue : O dulcissime domine Jesu Criste, uerus Deus
qui de sinu patris omnipotentis misus es in mundum relexare. . .

Interessante narrativa. Começa contando–nos da famı́lia de Ferrand Martı́nez


e de Joana de Peralta. De repente, um desvio: e surge–nos a Lenda de Gaia,
tendo como personagens um conde inominado (no lugar do Ramiro sem número,
como no caso do Livro Velho) e um rei mouro (em paralelo ao rei Abencadão, do
Livro Velho). Um feiticeiro ajuda no sequestro da condessa, que é adormecida
e tomada por morta; e um astrólogo orienta Ramiro, na versão do Livro do
Conde.
Também se safa o conde, na narrativa aragonesa, com a ajuda de uma cor-
neta, como nas versões do Livro Velho e do Livro do Conde. Nestas, o mouro é
abatido no meio da batalha, e a rainha, afogada. Na versão aragonesa, morreu
o mouro e a condessa adúltera na fogueira.
E a narrativa lendária é cuidadosamente posta à parte da história da famı́lia
de Asportiella; os irmãos Martı́ Martı́nez e Garcı́a Martı́nez intervêm apenas
subsidiariamente ao final da narrativa. Pois há dois grupos de personagens: os
da genealogia, e os da lenda — sendo que os primeiros têm nomes, e não os
da lenda. Por sua vez, na Lenda de Gaia, Ramiro, a mulher, o mouro, são
personagens tanto da genealogia quanto da narrativa.
10 F. A. Doria

Melhor: há uma evolução. Na versão do Livro Velho, os personagens são


vagos como na versão aragonesa; na versão do Livro do Conde, a genealogia que
abre a narração é, quase, precisa e exaustiva, e seus personagens são também
os da lenda.

Uma primeira conclusão


Se a narrativa aragonesa puder ser representada como:
“notı́cia genealógica” + “núcleo lendário,”

a narrativa do Livro Velho seria, exclusivamente, o “núcleo lendário,” e o texto


do Livro do Conde teria a forma conjunta, a “narrativa genealógica” + o “núcleo
lendário,” ainda que os personagens da genealogia contaminem, se assim o pu-
dermos dizer, o núcleo lendário.
Ou seria o contrário? Seriam os personagens da genealogia, emanações do
núcleo lendário? Esta dúvida se elimina com o que se expõe a seguir.
2. Liber Testamentorum.

É um códice com umas cinquenta folhas [1]. No frontispı́cio:


Liber
Testamentorum
Cœnobii Laurbanensis
antiquissimus.

E continua:

Continet Donationes & Venditiones Monachis Benedictinis Cœnobii


Laurbanensis factas per Christianos,& Mauros in Lusitania stabili-
tos: Primaque Donatio est de Ecclesia S. Christinæ in Collimbria ad
portam de Almedina facta per Ramirum secundum Hispaniæ Regem
Cœnobio Laurbanensi seu Monachis ejusdem Loci tunc Era 971 sub
Abbate Mestalio existentibus, & pro tempore extituris.

Ou seja, “Livro dos Testamentos do Mosteiro [Cenóbio] de Lorvão, an-


tiquı́ssimo. Contem doações e vendas aos monges beneditinos do mosteiro de
Lorvão, feitas por cristãos, e mouros estabelecidos na Lusitania. E a primeira
doação é a da igreja de Santa Cristina em Coimbra, na Porta de Almedina, feita
pelo rei da Espanha Ramiro II ao molsteiro de Lorvão ou a seus monges então
na era de 971 [ano de 933] na gestão do Abade Mestalio e para o tempo futuro.”
A letra deste frontispı́cio é do século XVIII, e à parte uma ou outra emenda,
muito legı́vel. Passa–se uma página, e caı́mos no século XII. E, de pronto,
vemos a doação de Santa Cristina, feita pelo rei Ramiro II, na “era dccc lxx
i,”ou seja, no ano, segundo o calendário cristão, de 933. E, com certeza, depois
de passarmos, em nossa discussão prévia, pelas diversas versões da Lenda de

11
12 F. A. Doria

Gaia, onde o herói é Ramiro II (ou algum rei Ramiro, ao menos), emociona–
nos ver, na sucessão de assinaturas, “Ranemirus Rex hãc concessionẽ a nbs
factam Conf.” Ramiro, o Rei, confirmo esta concessão por nós feita. Seguem–se
os seus barões: Paio Tedones, neto do conde Afonso “Betote,” Conde de Deza;
Hermenegildo Gonçalves, marido da virago Mumadomna Dias. Osório Guterres,
dito o Conde Santo, neto do Conde de Coimbra, Hermenegildo Guterres. E um
moçárabe, Tauron, “cognomento Mogaria,” ou seja, al–Mughira. Personagem
que usa um nome de clã tı́pico dos omı́adas.
Esta é a elite senhorial em Coimbra, século X.

Uma pausa: onomástica visigoda e onomástica árabe


Antes de continuarmos, é necessário fazer uma revisão dos princı́pios da onomás-
tica visigoda e da árabe.

A onomástica germânica e a visigoda


A onomástica visigoda, até princı́pios do século X, aproximadamente, possui
regras simples. São três: todo nobre visigodo possui um só nome, o prenome. O
prenome visigodo é composto de dois segmentos, duas raı́zes. E, enfim, a per-
tinência a um clã mostra–se no uso de um dos segmentos iniciais caracterı́sticos
àquele clã.
Alguns exemplos: para as famı́lias da alta nobreza germânica, em geral, é
bom exemplo a famı́lia dos chamados condes robertinos de Wormsgau, flores-
cente desde o século VII, da qual descendem os capetos, tem como nome tı́pico
Roberto: Chrode + bert. O segmento tı́pico é Chrode– : assim sendo, um
Chrodegang é, com certeza, através de alguma linha (seja o pai ou a mãe), um
membro do clã robertino.
Nos clãs de origem visigoda, próximos a Coimbra, no século X, o nome com
dois segmentos é ainda encontrável: Hermenegild (Herman + gild, “soldado”
— Heermann, assim seria, em alemão moderno, e “valor,” gelten, ter valor, no
alemão moderno. Ou Leodegild (que alterna com Leowegild), e cujo sentido é
ambı́guo: seria “valor [–gild] do povo” [cf. Leute, em alemão moderno]. Mas
também “valor do leão” (Löwe, em alemão moderno).
Outra combinação: Leodesind, Leowesind; “caminho do povo,” ou “caminho
do leão.”3 Donde Lovesendo, Lovesendes — este, o patronı́mico do primeiro
senhor da Maia, o personagem que conhecemos como Abunazar Lovesendes.

A onomástica árabe
É muito mais sofisticada, na sua estrutura, que a onomástica germânica. O
nome árabe possui diversos nı́veis [4]:
• ism. É o prenome. Em geral tomado num repertório tradicional de nomes,
com conotações religiosas: Mohammed, Abdallah, Yahya, para os homens.
Ou Fatima, Ayesha, por exemplo, para as mulheres.
3O segmento –sind é caminho; cf. senda, em português.
IV. Da Lenda à História. 13

É atribuı́do à criança quando nasce.

• nasab. É o nome genealógico. Lista, para o indivı́duo, seus ancestrais,


numa cadeia tão extensa quanto possı́vel. Yahya ibn Fikhr ibn Ahmed:
Yahia, filho de Fikhr, filho de Ahmed.

• nisba. É o nome de famı́lia; vem ao final do nasab. Al–Umawi, “o


omı́ada.” Al–Hasani, “o hassânida” — descendente de Maomé através
do neto Hasan. Al–Lakhmi, “o lácmida,” membro de um antiquı́ssimo clã
árabe com descendentes na Penı́nsula Ibérica.

• kunya. Tem a forma Abu + X, um nome. Por exemplo, Abu Násr


(Abunazar). No sentido estrito quer dizer, “pai de X.” Costuma ser
atribuı́do ao homem adulto quando tem o primeiro filho homem. Um
Mohammed ibn Abdallah, do clã lácmida, pai de um Ahmed, torna–se em
Mohammed ibn Abdallah, Al–Lakhmi, Abu Ahmed.
No entanto, a kunya pode ter um significado mais geral, como marca de
respeito. Nesse caso, Abu Násr pode significar “o grande general” — o
pai (o maior) de todos os generais; seria a kunya de um militar brilhante.
Ainda: a kunya pode marcar a inclusão do personagem num determinado
clã: Rodoricus, cognomento Abu Al–Mundhir, que encontramos atestado
em Coimbra no século X, seria um personagem de origem visigótica, mas
incorporado — até como um gesto honorı́fico — ao clã do emir de Córdova,
Al–Mundhir (843–888).

Algumas vezes, em situações formais, o nome pessoal aparece declinado, no


nominativo: Zahad torna–se em Zahadum, Zahadon; Násr em Násrum, Nazeron.

O patronı́mico

É possı́vel que a influência da onomástica árabe tenha feito com que os visigo-
dos adotassem, por volta do século X, o nome extenso na forma prenome + pa-
tronı́mico. Menendo Gundisalvi: Mendo Gonçalves, Mendo, filho de Gonçalo.
Osorio Guterrici: Osório Guterres, Osório, filho de Guterre.

O nome do ancestral da famı́lia da Maia, breve exame


Outra questão a ser considerada, o nome correto do ancestral da famı́lia da Maia.
Não é Alboazar Ramires, como está nos nobiliários usuais. Mattoso [7] prefere
a forma Aboazar. Mas o nome atestado, como veremos em seguida, é ou uma
kunya, Abunazar, ou seja, Abu Násr, ou o nome Násr, Nazeron, isoladamente.
Examinaremos depois o motivo deste uso, quando voltarmos em seguida a esta
questão.
14 F. A. Doria

O Liber Testamentorum
Trata–se de um volume encadernado, in quarto, com quarenta e seis folhas, es-
critas em mão que Rui de Azevedo diz ser uma transição da escrita visigótica
para a escrita francesa. Rui de Azevedo [3] data o cartulário de começos do
século XII, pela caligrafia e pelo último documento lá incluı́do. Mais precisa-
mente: de 1115 a 1116. É uma coleção de doações de propriedades, feitas ao
mosteiro de Lorvão, perto de Coimbra.
Podemos retomar nossa leitura do Liber Testamentorum de Lorvão. Vamos
virando as folhas devagar, para primeiro conhecê–lo. Numa lista de confir-
mantes, um nome nos chama a atenção:
Nazeron [ibn ] Leodesindo ibn Ferhe, conf.
(Cf. Abu Nazar Lovesendes.) A data do documento é, 967. Pouco depois, uma
passagem noutro documento nos chama a atenção:
. . . illo molino qui est in uilla nostra anzana ipso molino quem com-
parauerat ipse gundemiro de zaadon falifaz. . .
Ou seja, “aquele moinho que fica na nossa vila de Ançã; o mesmo moinho
que o dito Gondemiro tinha comprado de Zaadon Falifaz. . . ”
Zaadon? O documento é de 966; uma carta régia de concessão, feita por
Sancho I. (Sancho, filho de Ramiro II, sucedeu ao irmão Ordonho III em 955, e
morreu assassinado em fins de 966, ano do documento.)
E, logo depois deste documento, um outro, anterior, de 933, nos prende a
atenção desde o preâmbulo:
In dei nomine. Ego Zahadon et uxor mee aragunti,. . .
Encerrando os confirmantes, Veremu[du]s rex confirmans — Ranemirus rex
cõfirmans.
Zahadon. E Ramiro II e seu filho primogênito, Bermudo. Dom Zadão e o
rei Ramiro?

A venda de Zahadon a Gondemiro


Eis o documento, em transcrição completa:
In dei nomine. Ego Zahadon et uxor mee aragunti, cresconio et uxor
mee smelilo, et ueremudo. Placuit nobis [? ] animo ppa uolumptas
integroq cõsilio nulliusq gentis imperio neque suadentis articulo set
ppria nbis accessit uolũtas ut uenderemus tibi gondemiro et uxor tue
susanna//
sct et uendimus rationes nstras4 que abemus in uillas pnnatas terri-
torio conimbrense, de uilla albalat tertia integra, et de tertia media
uobis cõcedimus pr suos terminos anticos sicq pr ubi ea obtinuit par5
nr6 fromarigus. et diuidet cũ uilla boton. et pr ubi diuidet cũ agro
4 Nostra.
5 Pater.
6 Noster.
IV. Da Lenda à História. 15

de nausti. et inde pr carraria maiore que discurrit ad ciuitate con-


imbrie. et ı̃de pr senrra de epo7 pr medio ualle usque in arca que
est in ipsa llagona. et inde usque in illo porto q diuidet cũ quin-
ione de fonte auria. et de alia parte in campo per ubi diuidet cum
bollon pr arcas antiguas usq ı̃ mondeco et uendimus tibi de senrra
de fonte auria media pr ubi ea commutabit par8 nr9 fromarigus cum
rex domno ordonius, et uendimus ub10 de senrra de pulgaria me-
dia que cõmutabit ptr nsr cũ regem pr uilla uimenaria qd est iusta
ribulo anzo. qd cõtestabit ea regem post parte monasterii ad frs.11
uendimus ub12 iam dictas ipsas rationes in ipsas uillas cũ om̃s13
suas aprestationes cũ montes fontes aquis aquarũ pratis pascuis exi-
tus ut cũ om̃e14 prestationibus suis per ubi uobis delimitabims et corã
testibus assinnauims, et per hũc scriptura uenditionis afirmauimus.
et accepimus de uos precio sldos15 cc.os x.m toletanos tantum nb16
bene cõplacuit penis uos nichil remansit ı̃ dbitũ, ut die odiedie et
t̃pre17 ipsas rationes de ipsas uillas de iuri nro18 abrasas et in nro
dominio traditas ut cõfirmatas. Habeatis uos et om̃is19 posteritas
ura20 quicquid exı̃de facere uolueritis libera in dei nomine habeatis
potestate. Siquis sane qd fieri nõ credimus aliquis homo uenerit q uos
pr ipsas rationes calumniauerit que uobis uendimus an nos an here-
des nri an quolibet homo que nos in indicio defendere non potuerims
post parti uestre. ut pariemus ubs21 ipsum que fuerit cõtaminatum
duplatum uel quantũ ad uos fuerit melioratũ//
et ubs pprtim abitura. Facta karta uenditionis notũ die quod est
klds22 dcbrs.23 Era dcccc lxxi.a

Em tradução as partes mais importantes:


Em nome de Deus. Eu, Zahadon e minha mulher Aragunte; Cresco-
nio e minha mulher Smelilo. E Bermudo. Conveio–nos, de livre
vontade [. . . ] que venderemos a ti, Gondemiro e tua mulher Susana,
a nossa parte que temos em vilas do território de Coimbra, um terço
7 Episcopo.
8 Pater.
9 Noster.
10 Vobis.
11 Fratres.
12 Vobis.
13 Omnes.
14 Omne.
15 Solidos.
16 Nobis.
17 Tempore.
18 Nostro.
19 Omnis.
20 Vestra.
21 Vobis.
22 Kalendas.
23 Decembris.
16 F. A. Doria

da vila de Albalat [. . . ] por suas divisas antigas, que foram obtidas


por nosso pai Fromarico [. . . ]
[segue–se a descrição das confrontações das terras]
[. . . ] e vendemos do meio da Serra da Fonte Áurea, que foi trocada
por nosso pai Fromarico com o rei Ordonho24 [. . . ]
[Conclui–se com as fórmulas usuais, e em seguida a data]
Feita a carta de venda nas calendas de dezembro da era de 96125
Seguem–se os signatários, os vendedores e os confirmantes: primeiro,
Zahadon in hãc scriptura uenditionis a me facta mans m.a confirmo.
Ou seja: Zahadon, nesta escritura de venda por mim feita, pela minha própria
mão, confirmo.
Numa primeira coluna:
Aragunti mans mea conf. Veremudus ms ma conf. Exemeno didaz
conf.
Aragunte, pela minha mão, confirmo. Bermudo, pela minha mão, confirmo.
Ximeno Dias,26 confirmo.
Numa segunda coluna:
Cresconio manus mea conf. Elduara confirmans conf. Froila gutier-
riz conf.
Cresconio (cunhado de Zahadon), por minha própria mão, confirmo. Ilduara,
confirmando, confirmo. Froila Guterres, confirmo.27
O rei e o infante, Ramiro II e Bermudo:
Veremudus rex confirmans. Ranemirus rex confirmans.
Bermudo, rex — no caso significa ou infante ou co–rei — confirmo. Ramiro, rei,
confirmo — é Ramiro II.
Os demais: na primeira coluna,
Didagus adaulfiz test. Daniel prbr28 test. Iquila test. Garseanus
test. Fromarigus test. Ermigius test. Fafila test.
Testemunham Dı́daco Adaulfiz, Daniel presbı́tero. Iquila. Garseano. Fromarico.
Hermı́gio. Fáfila. (Este último é, provavelmente, uma versão deturpada do
nome Halaf, e seria um parente de Zahadon, que sabemos chamar–se Zahadon
ibn Halaf.)
Na segunda coluna:
24 Ordonho II de Leão.
25 Era de César: a data cristã é 933.
26 Conde Ximeno Dias, um dos magnatas da área.
27 Dois outros magnatas: a Condessa Ilduara Eris e o Conde Froila Guterres.
28 Presbiter.
IV. Da Lenda à História. 17

Aloitus test. Prouitius test. Salomon test. Daildo test. Gendus prbr
test. Donadeo test. Justus test.

Ainda outras testemunhas: Alvito, Provı́tio, Salomon, Daildo, Gendus — presbı́tero;


Donadeo. Justo.
Temos aqui boa parte da famı́lia imediata de Zahadon — que, graças ao doc-
umento de 966, DC 92, sabemos que se chamava, como se disse acima, Zahadon
Falifaz. Era, portanto, genro de Fromarico ou Fromarigo, e casado com Ara-
gunte. E cunhado de Cresconio Fromariques, casado com Smelilo, e de Bermudo
Fromariques, presumivelmente solteiro ou viúvo, já que nenhuma mulher lhe é
assinalada. São pessoas de muito alta hierarquia: a venda é testemunhada
pelo conde Ximeno Dias [Exemenus Didaz], casado com Ausenda Guterres, da
famı́lia condal de Coimbra, e a condessa Ilduara Eriz, sogra de Ximeno Dias, da
famı́lia dos condes de Lugo, depois senhores de Baião, e casada na dos Condes
de Coimbra.
Quem era Fromarico? Existe um documento, com data de 911, o DC 17,
do qual conhecemos apenas cópia com certeza adulterada em parte,29 no qual,
na presença do rei Ordonho II e do futuro Ramiro II, descrevem–se os limites
de bens eclesiásticos perto de Braga. Nele comparece, como testemunha, um
Fromarico Cendonis, ao lado de um Cresconio Migiti e ao lado de Ordonho
II e de Ramiro, além do conde Lucidio Vimaranes, filho de Vı́mara Peres, o
fundador de Guimarães. Este Fromarico Cendonis poderia, na verdade, ser
Fromarico Tedonis, da famı́lia de Vı́mara Peres, neto de Lucı́dio Vimaranes.
Outro membro desta famı́lia de Vı́mara Peres poderia ser o Aloitus supra,
entre os confirmantes do DC 39: Alvito Lucides? Um Fromarico é confirmante,
a seu lado; seria Fromarico Cendonis/Tedonis?
De qualquer modo, é tudo gente da mais alta hierarquia. Notemos também
Iquila e Salomon entre as testemunhas; tais nomes vão reaparecer mais adiante
nessa nossa história. Também um Daildo: seria o pai de Gondemiro iben Dauti?
Assim como um Fafila. Fafila: Zahadon Falifaz.30 Seria, levando–se em conta a
transposição silábica, o pai de Zahadon?

Zahadon ibn Halaf, al Umawi


Zahadon era filho de um Halaf, al Umawi, isto é, Halaf, o omı́ada. Vamos citar
na ı́ntegra um outro documento de muita importância, sobre essa gente — sobre
omı́adas e alidas na região de Coimbra, isto é, sobre parentes da dinastia que
reinava em Córdova, os omı́adas, e sobre descendentes do próprio Profeta, os
alidas:

In dei nomine et eius misericordia. Hec est cartulam uenditionis


quam feci ego mohomat filius de abderahmen neptus de harit ad
29 Cita–se nele S. Rosendo antes deste neto do conde Hermenegildo Guterres tornar–se bispo.
30 Jáfoi sugerido que Zahadon seria filho de Fromarico Zahadonis. Não pode ser, porque o
DC 92 é claro: seu nome é Zaadon Falifaz. Depois, existem documentos nos quais aparecem,
lado a lado, um Zaadon/Zahadon e um Cendon, o que distingue um e outro nomes.
18 F. A. Doria

abbatem dulcidium de cenobio laurbano et ad omnis eius congreca-


tionem de omnia mea ereditate que habui de parte de meo auio abder-
ahmen filius de abdella iben harit in uilla uillella territorio colimbrie
a parte aquilonis cum omne quod aprestitum est hominis ex quattuor
partibus terras ruptas uel inruptas cum suos casales uel omnibus ed-
ificiis et ficariis et omnia mea ueritate de pauco et de multo et non
remansi aput me de omne quo nominaui non paucum neque multum
sed omne ad intecrum concessi supradicto abbati pro xxxx solidos de
argento puro, abbas et omnem congregationem dedit et ego accepi et
omnem quo uolui exinde feci et de pretium apud eos nichil remansit,
et illa hereditate in iudicio de illo abbate et de suis fratribus sicut
in iuri meo mansit. Et ille abbas qui comparauit et ego qui uendiui
pariter ex utraque parte sanos animos atque mentes et absque ullam
pressuram homini fecimus. Siquis uero aliquis homo uenerit ad in-
rumpendum hunc meum factum uel quicquid mali eueneri in istam
hereditatem et ego non potuero uindicare pariam uobis it hoc malum
super caput meum et ex meo ganato pactem. Et ille abbas firmiter
habeat supra dicta hereditas. Facta cartulam uenditionis era cccc vii
mense ragab.
Eis a tradução das passagens essenciais:
Em nome de Deus e de sua misericórdia. Esta é a carta de venda que
eu faço, Maomé, filho de Abd ar–Rahmen, neto de Harit, ao abade
Dulcı́dio31 do mosteiro de Lorvão, e a toda sua congregação, de toda
a herença que tive da parte de meu avoengo Abd ar–Rahmen filho
de Abdallah ibn Harit, da vila de Vilela, no território de Coimbra,
[. . . ]
[Segue–se a descrição das terras vendidas.]
Feita a carta de venda na era 407, mês Ragab.
A data, notemos, é uma data segundo o calendário muçulmano. Em seguida
listam–se os confirmantes desse documento:
Iahia iben farh iben abeth [iben ] alhazani test. Filius de iben naui
zaad alamaui test. Halaf iben aada alamaui test. Mozoud iben
maruan test. Maruan iben farh allahami test. Abdella iben naaui
turfah alamaui test. zebit iben suheit alamaui test.
Abdella iben mozoud alkaizi test. Zuleiman iben zaadon alamaui
test. Halaz iben zaada alamaui test. Abdella iben abdilmalic alla-
hami test. Halaf iben abdella allahami test. Iahia iben zaat iben
iahie test. Mohomat iben halaf iben abderahmen alamaui test.
ahmat iben umar almuradi test. Mohomat iben zaata test. Iuzef
iben farh azuhdi test.32
31 Era
um moçárabe, isto é, árabe cristianizado, de nome Dulcı́dio Abu al–Mundhir.
32 Usamosaqui a transcrição de Herculano, DC 229, que se baseia num original não localizado
quando o procuramos. A versão do Liber Testamentorum tem algumas poucas diferenças.
IV. Da Lenda à História. 19

A data deste documento é 407, ano da Hégira. Isso corresponde a 1006/1007,


era cristã.33 Os confirmantes impressionam: o primeiro, no lugar de honra, é
um ibn al–Hasani. Seguem–se omı́adas (alamaui: al–Umawi), lácmidas (alla-
hami, al-Lakhmi) e um Qaysi (alkaizi, al–Qaysi). O ibn al–Hasani, pelo lugar
destacado que ocupa no documento, seria alguém de maior destaque ainda que
omı́adas e os demais. Vamos discuti–lo logo abaixo.
Lemos, entre os confirmantes: Zuleiman ibn Zaadon, al–Umawi. Este con-
firmante se acha junto aos seguintes:

• Halaz iben zaada alamaui.

• Halaf iben aada alamaui.

No documento seguinte em Herculano, DC 230,34 venda similar, encontramos


o confirmante:

• Halafac iben zaada alamaui.

Cremos sejam, os três, o mesmo personagem: Halaf ibn Zaadin. Halaf, filho
de Zaad[on].
Qual o nome de Zahadon, segundo o DC 92? Zaadon Falifaz. Seria na
verdade Fafilaz, filho de Fáfila, nome visigodo? É plausı́vel que não: por dois
motivos,

• O erro de transcrição, de Falifaz a Fafilaz, é compreensı́vel; substitui o


desconhecido ou estranho pelo conhecido. Erros de transcrição tendem a
aproximar formas estranhas a formas conhecidas.
Logo, Falifaz deve ser original.

• Falifaz aproxima–se das variantes Falaf, Falaph, e também do patronı́mico,


na mesma série linguı́stica, K[h]alifazi. A substituição da fricativa aspirada
kh– pela fricativa lı́nguo–dental f– é fenômeno bem conhecido [2] nesta
época e região.
Assim sendo, Falaf, Falifaz, são: Halaf, Halafi/Halifi (a alternância a/u,
em amawi/umawi, e Fakhr/Fekhr/Fikhr, nas transcrições,35 é também
conhecida, pelo caráter fechado, surdo, das vogais em árabe).

Portanto, Zahadon seria, valendo–nos desta análise, Zahadon ibn Halafin. E


o Halaf ibn Zaadin, al–Umawi, acima, um seu filho, com o nome do avô.
Falta–nos explicar só uma coisa: o “Çada” em “Dom Çadão Çada.” Talvez
uma repetição, Zahadon ou Zahad. Ou uma forma muito corrompida de ibn
Halafin, digamos que foneticamente contaminada pelo nome Zahadon/Zaad.
33 Herculanodá 1006/7; usamos uma correção de Lévi–Provençal.
34 NoLiber Testamentorum, é o documento anterior.
35 Como em Ferhe.
20 F. A. Doria

Al–Hasani
Quem era este personagem, cujo nome termina em al–hasani, e que confirma
em primeiro lugar o documento que acabamos de citar? Era com certeza um
alida, um descendente de Ali e de Fátima, a filha de Maomé, o que lhe explica o
nome e a posição de primazia entre os confirmantes — e lembremos que o último
emir do Marrocos foi, precisamente, al–Hasani, nascido c. 860–70, e deposto e
provavelmente morto c. 925, e que vários de seus parentes idrı́ssidas ocupavam
cargos no emirado omı́ada de al–Andaluz. Seria este primeiro confirmante,
Yahya, um bisneto daquele emir al–Hasani? Ou seria al–Hasani uma nisba, o
sobrenome de clã que indica um descendente de Maomé através de seu neto, o
alida Hasan?
Lembremos, aqui, uma passagem do núcleo genealógico da versão da Lenda
de Gaia no Livro do Conde:

. . . e Alboazar juroulhe por sa ley de Mafamede, ca lha nom daria


por todo o Reyno, q elle avia, que a tinha desposada com el Rey de
Marrocos.

É possı́vel que, do núcleo genealógico da Lenda de Gaia, já tenhamos identifi-


cado “Dom Zadão Zada.” Terı́amos aqui, nesta passagem do núcleo genealógico
da lenda, a memória do casamento de uma filha de “Dom Zadão” — Zahadon?
— com um parente do rei do Marrocos? Cremos que se trata de hipótese alta-
mente plausı́vel.

Idris, em Lorvão
No começo dos Diplomata et Chartæ, de Herculano, justo no terceiro documento,
DC 3, ao qual Herculano ainda dá a data errada, corrigida para 911 no artigo de
Rui de Azevedo [3] (a adulteração da data é, inclusive, perceptı́vel no facsı́mile),
lemos que o rei Ordonho — Ordonho II, de acordo com Rui de Azevedo —
dispõe, em favor de Lorvão, de bens que pertenciam a certo Ydriz. Ora, este é o
prenome de onde tiramos o nome do clã descendente de Ali e de Fátima, através
do filho destes, Hasan, e que reina sobre o Marrocos! Documento peculiar:
assinado pelo rei e confirmado por cinco bispos. Ei–lo:

In nñe36 dñi.37 Hordonius rex. In dño sltem38 eternam. Dubium qi-


dem nõ est. sed multis manet notissimũ. Eo quod preendiderunt uilla
tui serui. nominibs picon. et ego ordonius. uilla prenominata. uilla
coua. ad portas de latrones. quod obtinuit. Ydriz. cũ suis parietes.
de suis uiciis. et terminis antiquis. et cũ om̃e39 illorũ prestantia.
qicqt40 ibidem ad prestitũ ominis est. Ita ut ex presenti die. et tp̃re.41
36 nomine.
37 domini.
38 domino salutem.
39 omne.
40 quicquit.
41 tempore.
IV. Da Lenda à História. 21

secdm42 preserunt tui serui. abeas eam deñro dato firmiter. In uita
tua. et post obitum tuũ. sedeat illa uilla. et ille seruo. que sursũ res-
onat. postparte monasterii. lauribans.43 in onore. sci44 mametis.
et sci pelagii. pro remedio. anime nre.45 & parentũ nrõ.46 diue
memorie. Quo iurationem cõfirmo p47 dm̃48 parem omp̃m.49 qia50
cõtra hunc mm̃ factũ. nũquã ero adinrũpendum. Et insup51 quantũ
temptauerit. in quatuor duplo cõponat. Facta k.52 ñt53 die. iiii.
k.54 octbris; Era. dccc[c]. x. viiii a.
Hordonius rex. hanc scriptam.
confirmationis anb55 facta.
Sub xpi nñe.56 nausti eps.57
In xpi nñe. Froarengus. eps.
Sub xpi nñe. Ianarius. eps.
In xpi nñe. recaredus. eps.
Sub xpi nñe. sauarigus. eps.
(Sobre o c extra na data, que incluı́mos, veja–se abaixo.)
Nesse documento, de texto algo confuso, Ordonho II doa terras em Vila Cova
a Lorvão; essas terras eram de certo Idris (Ydriz).
Trata–se de um documento inabitual. Sua data, pode–se ver, está nitida-
mente adulterada no Liber Testamentorum. Deveria ser: era de César de d cccc
xl viiii, ou seja, era de 949, o que corresponde a 911, era Cristã, no começo
do reino de Ordonho II sobre a Galiza. O documento está assinado pelo rei e
por cinco bispos; com tal série de confirmantes eclesiásticos, apenas, é único.
E aparentemente, regulariza uma posse irregular: personagem inominado tem
a posse de terras que foram de Idris. Ordonho e os bispos dão, ao personagem
desconhecido, o direito às terras que controla, que deverão reverter ao mosteiro
de Lorvão após a morte do agraciado.
Idris possuı́a terras em Vila Cova; “obteve–as” — quod obtinuit, termo in-
certo para caracterizar o modo de posse: teria tomado à força estas terras?
Estas terras estão aparentemente na posse de um terceiro, não citado no do-
cumento, com o servo Picon — ou Picon seria o abade de Lorvão? — e o rei
Ordonho, que Rui de Azevedo identifica a Ordonho II, rei da Galiza de 901 a
42 secundum.
43 lauribanus.
44 sancti.
45 nostre.
46 nostrorum.
47 per.
48 deum.
49 patrem omnipotentem.
50 quia.
51 insuper.
52 karta.
53 notum.
54 kalendas.
55 a nobis.
56 Christi nomine.
57 episcopus.
22 F. A. Doria

924, e de Leão, de 914 a 924, quando morre, concede–as ao que tem a posse,
obrigando sua transferência depois da morte do personagem a Lorvão.
Ordonho II, pai de Ramiro II, casou três vezes. Da primeira vez, com Elvira,
filha do Conde Hermenegildo Guterres, presor de Coimbra. Da terceira vez, em
923, com Sancha de Navarra. Sua segunda mulher — casaram–se em 922, e logo
se divorciaram — foi Aragunte, filha do Conde Gonçalo Betotes e de Teresa Eriz.
O núcleo da Lenda de Gaia é a história de um adultério: “Abencadão,” o
mouro, rapta a rainha de Ramiro II, que reage matando o mouro e a rainha.
Zahadon ibn Halaf é casado com Aragunte Fromariques, personagem de alta
hierarquia. Seria parente da rainha que Ordonho II repudia, como o prenome o
sugere? Mais precisamente, seria filha de outra Aragunte, tia da rainha repudi-
ada, Aragunte Betotes, filha do Conde Afonso “Betote,” repovoador do Minho
inferior?
Lembremos que Ramiro II, em 930, também repudiou sua mulher, Ausenda
Guterres, neta do Conde Hermenegildo Guterres. Então, é possı́vel que:

A Lenda de Gaia, ao tratar do adultério da mulher do rei Ramiro,


condense no personagem da rainha Aldonça, que se apaixona pelo
mouro Abencadão, três personagens:

• Aragunte Gonçalves, a mulher que Ordonho II desposa e repu-


dia em 922.
• Ausenda ou Adozinda Guterres, a rainha que dá filhos a Ramiro
II, e que este repudia em 930.
• Aragunte Fromariques, a mulher de Zahadon ibn Halaf, “Dom
Zadão Zada,” possı́vel prima direita de Aragunte Gonçalves.

Estas três senhoras, colapsadas num só personagem, dariam origem ao núcleo
da ação da Lenda de Gaia, a personagem Aldonça e o tema do adultério.

E quem era Idris? O nome, muito peculiar e raro, e a alta hierarquia do


personagem, revelada pelos confirmantes desse documento de 911, apontam para
a dinastia idrı́ssida, que reina sobre o Marrocos até 930. Lembremos aqui a
notı́cia do Livro do Conde, nasua versão da Lenda de Gaia:

. . . que a tinha desposada com el Rey de Marrocos. . .

ou seja, que havia prometido Ortega, filha de Dom adão ada, ao rei do Marrocos
como noiva. Marshall Kirk58 observou que detalhes irrelevantes para a ação,
na narrativa lendária, tendem a ser vestı́gios de fatos reais. Por que o rei do
Marrocos? Por que não o emir omı́ada de Córdova, muito mais próximo?
Será que esta menção breve e isolada não esconde — e também revela — o
casamento de Ortega com algum personagem da famı́lia alida que reinava sobre
o Marrocos? Personagens que, sabemos agora de fonte documental, os DCs 3 e
229, atestam–se em Coimbra?
58 Em comunicação privada.
IV. Da Lenda à História. 23

Será que a Lenda de Gaia não substitui a origem nobilı́ssima, real e factual,
mas muçulmana, da famı́lia da Maia, pela origem nobilı́ssima, real também, mas
agora lendária, e tornada cristã, no rei Ramiro II de Leão?
3. Abu Nazar, ibn Nazar.

A n Nazir li–din Allah, “o general vitorioso para Allah,” é o tı́tulo que


Abd ar–Rahman III, emir de Córdova até começos de 929 (A. H. 316), assume,
junto com os de califa, e amir al–muminin, prı́ncipe dos crentes.
Sabemos que Abunazar, ou Nazar, Lovesendes fundou o mosteiro de Santo
Tirso de Ribadave em 978. Se tivesse neste momento quarenta anos (o que
é pura especulação; poderia ter 50,ou 30), teria nascido cerca de 938–940. O
reino de Abd ar–Rahman III estende–se de 912 a 961 (nascera em 891). Seria
Abunazar — Abu Nazar, Abu Nazir, Abu Násr — um nome referente à kunya
de an–Nazir?
Porque a pertinência à kunya do soberano de Córdova é o que se admite
para explicar o nome de outro personagem com um nome similar: Rodoricus,
cognomento Albomondar, ou seja, Rodoricus dito Abu al–Mundhir.
Ou será que o nome do senhor da Maia seria apenas, Nazar, ou Nazaron/Na-
zarom, a forma nominativa, cerimonial, do nome Nazar? E “Abunazar” derivaria
talvez então, ou também, de “Abenazar” — ibn Nazar, o patronı́mico, usado
pelos seus filhos?

Lovesendo e Trastemiro
Vamos chamá–lo, ao primeiro senhor da Maia, o fundador do mosteiro de Santo
Tirso, Abunazar Lovesendes, por enquanto. Abunazar Lovesendes tem, se-
gundo o documento de Santo Tirso, que já citamos, filhos de nome Lovesendo e
Trastemiro. E encontramos um outro documento que menciona, precisamente,
um Lovesendo e um Trastemiro. Seriam seus filhos?
É um documento cercado de controvérsias. Trata–se de uma doação feita
por um rei Ramiro — segundo ou terceiro? — a monges de Guimarães, ao norte

24
IV. Da Lenda à História. 25

de Portugal, e Lovesendo e Trastemiro aparecem entre os confirmantes.


Por que as dúvidas? O documento tem a data de 957 (era de César de 995),
e Ramiro II falecera em 950, enquanto Ramiro III só começa a reinar em 966.
O que nos permite sugerir uma data corrigida para este documento são quatro
fatos: primeiro, o estar entre os signatários São Rosendo (Rudesindus episco-
pus); o outro, a presença de um personagem de nome árabe, Mozas Tauronis.
E, a maneira pela qual o rei se qualifica: Ego enim Ranemirus principem uobis
domnis inuictissimus mundique triumphatoribus, “eu, Ramiro, vosso prı́ncipe,
senhor invencibilı́ssimo e vencedor do mundo.” É como o grande rei Ramiro
II se qualificava. Ramiro III, um rei fraco, nunca se qualificou deste modo. E
enfim, a data de fundação do mosteiro em Guimarães, para o qual é feita a
doação: o mosteiro foi fundado em 950.
Se o rei Ramiro do documento é Ramiro II, a data do documento se situ-
aria entre 940 e 950, provavelmente mais perto de 950, no apogeu do reino de
Ramiro II. Mas notemos que Mozas Tauronis, Mozas filho de Tauron, seria,
muito provavelmente, filho do Tauron “cognomento Mogaria,” que, novamente
junto com Ramiro II, aqui chamando–se nutu diuino rex, rei pelo direito di-
vino, confirma em 933 a doação da igreja de Santa Cristina a Lorvão. Tauron
“cognomento Mogaria”: com certeza Tauron al–Mughira, um nome que sugere–
lhe conexão aos omı́adas, entre os quais aparecem vários personagens de nome
al–Mughira. O pai aparece junto a Ramiro II em 933, e o filho, uma geração
depois: o que nos dá uma data próxima a 950 para o documento.
O documento em questão existe apenas transcrito no chamado Livro de D.
Mummadona. É o DC 71, de Herculano:
Sub imperio opificis rerum que unus in trinitate extat colendus atque
glorificandus pater et filius et spiritus sanctus siue et honorem sancti
saluatoris et genitricis earum sancte marie semperque uirginis uel
omniummartyrum uirginum et confessorum que domino placuerunt
quorum reliquie recondite sunt in cenobio nunccupato Vimaranes que
est fundata ad redice montis latito inter duas amnes aue et auizel-
laurbium bracarensis. Ego enim Ranemirus principem uobis dom-
nis inuictissimis mundique triumphatoribus siue et uobis tie nos-
tre domna mummadomna et fratribus atque sororibus uestris habi-
tantibus huic loco. Damus atque concedimus uobis cenobio nostro
nunccupato sancti iohannis baptiste que est fundato ripa riuulo aue
prope ponte petrina. damus uobis ipsum cenobium integrum cum
omnis ornatus eorum uel cum cuntis adiacenciis et praestationibus
suis ubique sunt tam de ista parte aue quam ex alia parte. et nem-
inem promittimus que ibidem uobis disturbationem faciat nec inmod-
ico. Siquis sane quod fieriminime credo aliquis homo hunc factum
nostrum infringere tentauerit aut inmodico conaberit quisquis ille
fuerit sit segregatus a corpuset sanguinis redemptoris nostri et insu-
per pariat quantum inde auferre uoluerit in quadrupla,et hunc factum
nostrum plenissimam obtinet firmitatis rouorem longeba dierum.
Facta scriptura testamenti notum die quod erit vi Idus iunii. Era d
26 F. A. Doria

cccc lxxxx v. Ranemiro principem in hac scriptura a me facta


manu mea propria confirmo.
Sub christi nomine Rudesindus episcopus conf. — Ouecus dei gra-
tia episcopus legionensis conf. — Sub imperio saluatoris sisnandus
irensis pontifex conf. — Hegica ennegot conf. — Zanon froianiz
conf. — Ennegus aliotis conf. — Mozas tauronis conf.
Comite gutiere roderici conf. — Uiarigus confesso conf. — Arulfus
confesso conf. — Uiliamirus confesso conf. — Gauinus confesso
conf. Sisnaldo test. — Trasmiro test. Leouesendo test. — Pelagius
clericus. Uiliamirus diaconus. — Sigericus presbiter scripsit.
Fazendo uma breve paráfrase, o documento doa terras ao mosteiro de Gui-
marães, que havia sido fundado apenas com autorização verbal (nunccupato),
terras que se situam perto de Braga, acima do rio Ave. O que nos interessa aqui
são os confirmantes do documento.
Entre os personagens identificáveis entre os signatários deste documento
podemos reconhecer:
• Tie nostre domna Mummadomna. À nossa tia, D. Mummadomna. Trata–
se da Condessa Mumma Domna Dias, atestada desde 926. Tem bens perto
de Coimbra, e também na região de Guimarães. Morre em 968, segundo
o historiador Almeida Fernandes. É filha do Conde Diogo Fernandes, da
casa dos Condes de Lugo. Seu marido é o Conde Hermenegildo [Mendo]
Gonçalves, falecido antes de 950.
• Comite Gutiere Roderici. Conde Guterre Rodrigues. Atestado a partir de
950, até, talvez, 1014. Casa–se com Onega Mendes, filha de Mumadomna
Dias.
• Ennegus Aliotis. Egas Alvites: pela cronologia e pela região onde está,
Guimarães, seria um filho de Alvito Lucides, que era casado (segundo José
Mattoso) com Munia Dias, irmã de Mummadomna Dias. Alvito Lucides
era, por sua vez, neto de Vı́mara Peres, fundador de Guimarães.
Para estes personagens, ver [7].

Lovesendo e Trastemiro são filhos? Ou pai e tio de Abunazar Lovesendes?


É conhecido um documento de 999, o já citado DC 183, no qual se trata de
uma disputa onde um dos litigantes era Louesindo Abenazar, dado como genro
de Egica Honoriques. Se este Lovesendo Abenazar, de 999, for o mesmo do
documento de 950, seria mais que septuagenário. Por outro lado, em 1013,59 no
DC 222, vemos entre os confirmantes um Paio Lovesendes (Pelagio Louesendiz).
Se este último tiver por volta de 30 anos — porque sabemos que seus filhos e
sobrinhos estão vivos no ano de 1092, face ao documento de Santo Tirso — nesta
data, a data provável do nascimento do pai, Lovesendo Abunazar ou Abenazar,
59 A data é incerta, poderia ser 1021, mas colocamos aqui a data mais cedo, apenas para

uso em nosso argumento.


IV. Da Lenda à História. 27

seria em torno de 950. O que eliminaria a hipótese de ser este filho, Lovesendo,
do primeiro senhor da Maia, o signatário do documento de 950.
Se Lovesendo e Trastemiro (o “Tramiro” do documento), forem então, pai
e tio de Abunazar (ou Nazar, face ao patronı́mico abenazar, ibn Nazar) Love-
sendes,60 então este documento ganha maior significação: pois coloca aos dois,
Lovesendo o pai, e Trastemiro o tio plausı́vel, na região de Guimarães, junto
ao rio Ave, mais perto de onde a famı́lia da Maia terá propriedades em fins do
século X do que a região de Coimbra, no centro de Portugal. E cita–os ao lado
de grandes proprietários na área.
Um ponto a mais, ainda, a considerar: segundo a Lenda de Gaia, na versão
do Livro de Linhagens, a mãe de Abunazar Lovesendes chamava–se “Ortega.”
Seria este nome, praticamente desconhecido no século X, na verdade uma leitura
distorcida para Onneca, Oñega, um nome de raiz basca, frequente na famı́lia da
Condessa Mumma Domna Dias? Cremos que sim.

Leovesendo, Leodesindo
Lovesendo, Leovesendo e Leodesindo são, como dissemos, o mesmo nome; de-
rivam–se do nome duplo Leode/Leowe–sind, “caminho do povo (Leute, em
alemão, leode–), ou (menos provável) “caminho do leão” (Löwe, leão, leowe).
Dois documentos, de 967 e 968, mencionam um Leodesindo, ou uma possı́vel
variante deste nome, Teodesindo. Num deles lemos entre os confirmantes,
Lazaron Leodesindo iben Ferhe. No outro, Nazeron iben Teodesindo. Variantes
do mesmo nome, dissemos? Plausı́vel: em 978, num documento de venda de um
moinho a Lorvão, o vendedor é Zuleiman ibn Lazaro, no corpo do texto, e, nos
signatários, Zuleiman ibn Nezeron.61 E nos documentos de 967 e 968, aparecem
nos signatários Salamon ibn Nezeron e Zalama ibn Nezeron.
É razoável, portanto, supormos que aqui, nos documentos de 967 e 968, está
o mesmo indivı́duo: Nazeron ibn Leodesindo ibn Ferhi62 Seriam a mesma pessoa,
Nazeron ibn Leodesindo ibn Ferhe e Abunazar Lovesendes? Assim o supomos,
e identificamos este ao primeiro senhor da Maia, cujo nome será, então:

Nazeron ibn Leodesindo ibn Firhi.

60 Manuel Abranches de Soveral pensa que seriam, no entanto, os filhos homônimos de

Abunazar Lovesendes. Cremos que a cronologia do documento — c. 950 — colocaria então o


primeiro senhor da Maia nascido c. 900, o que o faz excepcionalmente longevo, já que funda
o convento de Santo Tirso em 978 e tem filhos vivos pela virada do milênio. . Mesmo assim,
é importante registrarmos aqui a opinião discordante de Soveral.
61 O primeiro confirmante é Froila Guterres, também entre os confirmantes do DC 39, a

venda de Zahadon a Gondemiro ibn Da’uti. Precede–o, imediatamente, no Liber Testamen-


torum, a doação que a Condessa Ilduara Eriz fez a Gondemiro ibn Da’uti, de um moinho,
que depois passará a Lorvão. Os signatários são: a Condessa Ilduara, o infante Bermudo, e
também, Froila Guterres, filho de Ilduara Eriz. Ou seja, gente do mais alto status.
62 Provavelmente Fikhrı́, prenome derivado do nome de uma das tribos da aristocracia árabe

que se fixaram na penı́nsula ibérica desde a conquista muçulmana.


28 F. A. Doria

Religiões
Qual a religião dessa gente? Zahadon era casado com cristã, Aragunte Fro-
mariques. Um dos personagens de nome Nazeron, casado com com Tortora,
outra cristã. No entanto, consideremos em seguida o DC 85, de 961, que damos
na transcrição de Herculano:
In dei nomine. Ego aldreto olidiz qui sum uigario de domna elduara
prolis pelagii gundisaluiz uobis iquila iben nezeron et uxor tua et filiis
tuis placuitnobis sana mente integroque consilio ut uenderemus uobis
sicuti et uendimus senara nostra propria que abemus in ripa de ar-
cus et abet iacentia de una parte diuidet per fontanello de ferrariolos
cum uillare de caluos et de alia parte per deuesa de sancti cucufati
usque in illo freixeno. uendimus uobis illam integram secundum de
iuri meo mansit. Et accepimus de uos precium uno captiuo chris-
tiano pro remedio anime nostre tantum nobis bene complacuit. et
hoc notum sit ut illa senara habeatis illa in uita uestra et post obi-
tum uestrum que remaneat illa senara ad monasterium lauribanus
uocabulum sancti mametis pro remedio anime nostre. Siquis tamen
quod fieri non credimus et aliquis homo uenerit uel uenerimus contra
hunc nostrum factum ad inrumpendum in primis sit excomunicatus
et ad corpus christi sit segregatus et cum iuda traditore abeat partici-
pio et insuper quantum auferre conaberit in quadruplo componat. et
unc factum nostrum plenam obtineat roborem. Facta kartauenditio-
nis xv kalendas ianuarias. Eradcccc lxxxx viii a. Et ego aldreto
qui anc kartam iussi facere manu mea propria r++oboraui. Gun-
disaluus moneonis conf. Omeir presbiter. Zalama iben recemondo
test. Dulcidio test.
A Condessa Ilduara Pais, mulher do Conde Gonçalo Mendes, através de seu
procurador Aldereto Olides, vende a Iquila ibn Nezeron e à mulher deste, não
nomeada, uma seara próxima a Coimbra. O preço? Uno captivo christiano,
um escravo cristão, presumivelmente na posse de Iquila ibn Nezeron. Depois
da morte de Iquila, as terras passam à propriedade do mosteiro de Lorvão.63
Confirmam o documento o Conde Gonçalo Moniz, presor de Coimbra, e o monge
Dulcidio, que será, possivelmente, Dulcidio Abu Al–Mundhir.
Quem possuiria um escravo cristão? Ora, um muçulmano.
Pensamos que Zahadon, Nazeron, e alguns dos filhos deste, como Iquila ibn
Nazeron, fossem muçulmanos. Outros membros da famı́lia, como Nazeron ibn
Leodesindo — que identificamos a Abunazar Lovesendes — cristãos.

Propriedades
O grande senhorio da famı́lia da Maia é ao norte de Portugal: próximo ao
Porto, na região do rio Ave. Mas as famı́lias de Zahadon e dos personagens de
63 Ao fim do documento, uma fórmula: amaldiciona–se e se excomunga da comunhão cristã

a quem desobedecer aos termos do arranjo. Nada a ver com a religião dos signatários; trata–se
apenas de uma fórmula convencional.
IV. Da Lenda à História. 29

nome Nazeron situam–se mais ao sul, em Coimbra. Como explicar essa aparente
inconsistência?
Há dois fatos:

• Nos documentos de Lorvão, vemos personagens das famı́lias de Zahadon


e dos Nazeron vendendo propriedades em Coimbra.
• Vemos (DC 71) personagens indubitavelmente da famı́lia da Maia confir-
mando documentos ao norte, na região de Guimarães. E, se o sogro de
Zahadon, Fromarico, é o Fromarico Cendonis ou Tedonis do DC 17, de
911, este também se documenta ao norte como confirmante do documento
em causa — presumivelmente porque lá teria bens.

Ou seja, este grupo familiar parece que já possuı́a terras ao norte.

A origem da famı́lia da Maia


Se está correta a identificação entre Nazeron ibn Leodesindo e Abunazar Love-
sendes, abaixo temos a ascendência imediata da famı́lia da Maia, seguindo–se o
nasab do DC 94, de 968, e com as conjecturas sobre as mulheres dos personagens:
1. Fikhri, casado com uma mulher nobre cristã, aparentada à famı́lia do
Conde Hermenegildo Guterres, de Coimbra (porque seus descendentes
usam a onomástica da famı́lia de Hermenegildo, ou Mendo, Guterres).
Pais de:
2. Leodesindo ibn Fikhri, segundo o DC 94, de 967. Casou–se (se seguimos a
genealogia do Livro do Conde) com “Ortega,” mais provavelmente Oñega
bint Zahadon, Oñega filha de Zahadon ibn Halaf, al–Umawi, e de Aragunte
Fromariques. Pais de:
3. Nazeron ibn Leodesindo, ou Abunazar Lovesendes, cujo nome depois se
corrompe em Dom Alboazar Ramires.
Repetindo: por que se diz que Fikhri teria casado com uma parenta de
Hermenegildo Guterres? A famı́lia do Conde Hermenegildo era vista como
descendente do rei visigodo Leovegild, ou Leodegild, e este nome, Leodegild,
pertencia à, digamos, reserva onomástica da famı́lia de Hermenegildo Guterres.
Na descendência imediata de Abunazar Lovesendes aparecem, também, outros
nomes tı́picos da famı́lia dos Condes de Coimbra, como Ausenda e Ermı́gio
(Hermenegildo). Tais nomes apenas podem ter–se incorporado à tradição ono-
mástica da famı́lia da Maia antes da geração de Leodesindo, até devido ao nome
deste personagem.

Datas
De Abunazar Lovesendes sabemos que fundou o mosteiro de Santo Tirso em 978
[7]. Nazeron ibn Leodesindo comparece em documentos pela primeira vez em
30 F. A. Doria

967. Vários documentos precedentes mostram entre os confirmantes personagens


que pertencem ao universo onomástico destes grupos familiares, de Zahadon e
dos Nazeron, mas sem que neles se identifique este Nazeron ibn Leodesindo.
Se este for um adulto jovem em 967, com entre 20 e 25 anos, teria nascido
entre 942 e 947. Digamos, entre 940 e 950. Teria assim entre 30 e 40 anos
quando da fundação de Santo Tirso.
Para Leodesindo, se o vemos entre os confirmantes do DC 71 com o nome de
Leovesendo, dando a esse documento a data conjectural de 950 [7], teria nascido
cerca de 925. Poderı́amos supor que seu pai, Fikhri, tenha nascido c. 900, e o
avô, em 875.

Eram idrı́ssidas os senhores da Maia?


A restauração do pedigree dos idrı́ssidas, feita por Marshall Kirk,64 mostra o
último emir do Marrocos, al–Hasan al–Haddjam, como nascido c. 850. Encon-
tramos, no DC 229, de 1006, um seu descendente, se seguirmos o nasab extenso,
inusitado:

Yahya ibn Fikhri ibn Ahmed ibn al–Hasan.

(Corrigimos Farh para Fikhri, e Abeth para Ahmed, além de colocarmos o


ibn antes de al–Hasan, seguindo nisso o testemunho do Liber Testamentorum.)
Yahya é um prenome frequente entre os idrı́ssidas, e há testemunhos de que
al–Hasan teria tido um filho Ahmed. Identificamos o Fikhri pai de Leodesindo
ao homônimo, no nasab de Yahya, e assim, a origem dos senhores da Maia seria:

1. al–Hasan al–Haddjam, último emir idrı́ssida do Marrocos, n.c. 850, fale-


cido em 930; descendente na varonia de Ali e de Fátima, esta, filha do
Profeta do Islã. Pai de:

2. Ahmed, n.c. 875. C.g. conhecida. Pelo nasab do DC 229, pai de:

3. Fikhri, n.c. 900, casado com uma mulher nobre cristã, aparentada à famı́lia
do Conde Hermenegildo Guterres, de Coimbra. Pais de:

4. Leodesindo ibn Fikhri, n.c. 925, atestado no DC 94, de 967. Casou–


se (se seguimos a genealogia do Livro do Conde) com “Ortega,” mais
provavelmente Oñega bint Zahadon. Pais de:

5. Nazeron ibn Leodesindo, ou Abunazar Lovesendes. Este, n.c. 945–950.

Por que Abu Nazar ? Ou seria ibn Nazar ?


Encontramos um só documento, no Liber Testamentorum, onde aparece um
“Abonazar.” É o DC 127, de 980 (ı́tem 48 do manuscrito) do Liber Testamen-
torum, que em seguida transcrevemos:
64 Ver nas tabelas genealógicas; Marshall Kirk permitiu–nos, cordialmente, usar o material

que nos comunicou em privado em nossas discussões através da internet.


IV. Da Lenda à História. 31

Indinñe.65 Ego gaudinus & uxor ma66 cõposta. Placuit nb67 sana
mnte68 integroq69 cõsilio mente pfecta70 ut faceremus uobis textũ
scripture de ereditate nra71 propria que habemus ul 72 augmntare
potuerim73 usq ad obitum nrm74 id est de uilla alqinitja75 [media]76
ubi est ura77 ecla78 uocabulo scti martini79 teritorio miranda nnras80
cortes cum casas et intrinsecus domorũ om̃a81 q82 ad usum ominis
pertinet et nnras83 uineas iuxta illa eccla84 cũ suas aquas et suos or-
tos. Adicim85 etiã alia uinea qui est in ipsa uilla et nras86 terras rup-
tas ul inruptas. Omma87 ab integro ubis88 domno mestulius abba et
sci89 mameti de cenobio laurbano cõcedidims90 post parte monasterii
uri91 iam supra dicti. Siqis tam̃92 qd93 fieri nõ credimus et aliqis omo
uenerit ul94 uenerimus cõtra hunc nrm95 factm̃ ad inrĩmpendũ.96 In
primis sit excomunicatus et cum iuda traditore habeat participio et in
super quantũ auferre temptareuit in quadruplum uobis componat et
unc nrm97 factũ plenum abeat roborem. Facta k98 testamenti v k99

65 In Deo nomine.
66 mea.
67 nobis
68 mente.
69 integroque.
70 perfecta.
71 nostra.
72 uel, ou seja, vel, ou — é preciso cuidado para distinguir esta abreviatura de ut, como,
porque.
73 potuerimus
74 nostrum.
75 Alquinitia?
76 A palavra “media” está acrescentada como uma interpolação.
77 uostra, vostra, por vestra.
78 ecclesia.
79 Isto é, a igreja de São Martinho.
80 nostras.
81 omnia.
82 que.
83 nostras.
84 ecclesia.
85 adicimus
86 nostras.
87 Omnia.
88 uobis.
89 sancti.
90 concedidimus.
91 uestri.
92 tamen.
93 quod.
94 uel.
95 nostrum.
96 inrumpendum.
97 nostrum.
98 charta.
99 kalendas.
32 F. A. Doria

mrtji100 Era mlla101 xuiii a. Ego gaudinus et uxor mea cõposta hanc
kartula testamenti qd fieri uoluims manus nras102 ro++borauimus.
donnon test. arias test. floride test. iacob test. aluiti test.
Viadeir test. abonazar test. Veila test. Zuleiman test. gudesteo test.
Recemiro test. Salude test. Abzug test. Mestulio test. Leouildo test.

O que nos informa sobre quem seria este Abunazar que aparece em 980 perto
de Coimbra é a lista dos confirmantes no documento. No Liber Testamentorum,
com o no. 49, segue–se outra cessão ao mosteiro de Lorvão, feita por certo “Atila,
presbiter,” com data de 984; é o DC 153. Seguindo–se à cessão feita por pelo
casal Gaudino e Composta, diz respeito ao mesmo grupo familiar, segundo a
lógica do Liber. Não vamos transcrevê–la; apenas listar seus confirmantes:

Abuzuleiman test. Teodesindus test. Viader test.


braulio ansuriz test. Albano test. Ildras test.
floresindo test. Arias test. Zuleiman test.

(Respeitaram–se maiúsculas e minúsculas nos nomes.) Testemunhas em


comum são, Arias, Viader, Zuleiman; talvez Floresindo/Floride. Nesta lista
de confirmantes de 984 aparecem mais ainda um Teodesindo e um Ildras. O
primeiro pode ser uma variante de Leodesindo (é o que depreendemos no caso
dos documentos de 967 e 968, já muito referidos). O segundo, variante de
Idris/Ydriz. E, enfim, Abuzuleiman é quem aparece no DC 95, de 968, onde
vários membros da famı́lia de Zahadon estão listados. No DC 95, aparece Vi-
ader/Viater ao lado de Nazeron ibn [T]eodesindo, inclusive.
Como 980 é próximo à data de fundação do mosteiro de Santo Tirso de
Ribadave, que é 978, é plausı́vel que o confirmante no DC 127 transcrito acima
seja o senhor da Maia, embora a posição de seu nome, aparentemente modesta,
porque está perdido no meio de vários outros dentre os confirmantes do docu-
mento, não lhe pareça atribuir o status exaltado que as tradições posteriores lhe
concedem — e que pode ter sido um exagero das tradições orais.
Há um outro documento, de 998, o DC 179, no qual um Abonazar é citado
indiretamente, no patronı́mico de um dos confirmantes. Trata–se de uma troca
de vinhedos em Vila Cova, por propriedades em Oliveira; os confirmantes são:

magister florit — moohomat iben zaton — azarias test, iustu ben


ligo — frater tamluz test. gaudinas iben ioacino test. maruan test.
— uital iben fazbona test.
daut test. — tudesindo test. — albaro iben elicio103 — ligu iben
ioanne — magister ioanne — florentio iben menendo.
100 martii.
101 millesima.
102 nostras.
103 Herculano mostra–se incerto quanto à leitura de “elicto.”
IV. Da Lenda à História. 33

leouegildo iben medina — gundemaro iben aluino — gaudinas test,


ianneiro test. — ioanne iben rando test. — melec iben abonazar —
donadeo iben leouegildo.
leouegildo iben senior — seruando iben abbaz — ioanne ligoualit —
uakir sesmiro — beniamin manila — marco dadila.
É novamente plausı́vel que este Malik iben Abunazar, na terceira linha acima,
seja um membro da famı́lia da Maia, se o Abunazar de 980 o for: entre os confir-
mantes encontramos um Teodesindo (que pode ser má leitura para Leodesindo),
um Albaro (Albano?), e um ou dois Leovegildos — um dos quais aparece no
patronı́mico.
Quem seria este Malik iben Abunazar, desconhecido entre os filhos do primeiro
senhor da Maia? Ou mais um filho, ou um dos filhos, que tenha assumido Malik
como um alias, um nome árabe alternativo.
Por outro lado, o DC 183, de 999, que trata da disputa judicial em que
se mete Lovesendo, filho do primeiro senhor da Maia, nomina ao litigante
Louesindo Abenazar, Leovesindo ibn Nazar. O que aponta para a forma Nazar
como sendo, de fato, o nome do fundador de Santo Tirso — que seria, então,
como deduzimos do que se expôs aqui, Nazar ibn Leodesindo ibn Firhi. O
nome Abu Nazar seria ou um nome de respeito, dado a um patriarca, ou talvez
um nome de kunya — ou, mais provavelmente, um tratamento respeitoso, “Pai
Nazar,” o “ancião Nazar.”
3. Conclusões.

Jscendente,
á havı́amos formulado, em 1995, a hipótese de ser a famı́lia da Maia de-
em linhas femininas, dos omı́adas [5]. Em 1996, a partir da referência
em Mattoso ([7], p. 119), iniciamos uma análise do documento de 933 (DC 39)
com a venda de Zahadon a Gondemiro. Nathaniel Taylor supôs de imediato
que Zahadon fosse cunhado de Cresconio e de Bermudo, e marido de Aragunte,
sendo os três, Cresconio, Bermudo e Aragunte, filhos de Fromarico. Mais tarde,
em 2003, a partir de uma análise feita por Marshall Kirk, de confirmantes nos
Diplomata et Chartæ, desde o DC 1 até o DC 250, identificamos o Zaadon
Falifaz, do DC 92, de 966, ao Zahadon de 933, casado com Aragunte, assim
confirmando a conjectura de Taylor.
Um estudo mais aprofundado dos Diplomata et Chartæ, feito a partir de
meados de 2002, mostrou–nos a importância, para a questão das origens da
famı́lia da Maia, dos DCs 94 e 95, de 967 e 968. São aqueles onde aparecem os
banu Nezerin, e onde temos o Nezeron ibn Leodesindo ibn Ferhe.
Relacionamos, então, os documentos que nos pareciam mais pertinentes: DC
39, de 933 (venda de Zahadon a Gondemiro); DC 94, de 967 (doação de Neze-
ron e Tortora); DC 95, de 968 (doação de Abu Soleiman e sua mulher Goto);
DC 229, de 1006 e DC 230, mesma data (vendas a Lorvão, confirmadas pelo
hassânida e pelos omı́adas, entre outros). Para nossa surpresa, tais documen-
tos, dispersos entre os muitos dos Diplomata et Chartæ, eram precisamente o
conteúdo principal das sete primeiras folhas do Liber Testamentorum ! Ou seja:
ali se colecionaram documentos com identidades similares — a sucessão dos
proprietários em terras que acabam nas mãos de Lorvão, vendas e cessões pelos
mesmos indivı́duos ou pelos mesmos grupos de indivı́duos.
Isso pareceu confirmar nossa intuição original a respeito da pertinência, de
algum modo, daqueles documentos à questão dos senhores da Maia.

34
IV. Da Lenda à História. 35

Em sı́ntese, cremos ter estabelecido o seguinte:

• Comprovado. Existiam, nos arredores de Coimbra, e lá estabelecidos,


membros da alta aristocracia árabe: Qayzis (al–Qayzi), Lácmidas (al–
Lahami), Omı́adas (al–Umawi), e mesmo alidas (Idris, al–Hasani).
• Comprovado. Tais aristocratas árabes conviviam com a aristocracia cristã
local; eram aceitos e prestigiados, inclusive pelos reis de Leão, Ordonho II e
Ramiro II, sobretudo; casavam–se nas famı́lias da elite local e negociavam
seus bens, regularmente, com esta elite.
• Comprovado. Praticavam sua própria religião, o islamismo, enquanto in-
teragiam com autoridades cristãs na área, sobretudo o abade do mosteiro
de Lorvão.

• Comprovado. O senhor da Maia histórico era Nazar ibn Leodesindo ibn


Firhi, atestado próximo a Lorvão em 967 e 968, e depois como o Abunazar
que confirma o documento de 980.
E (pelo nome, que identifica o antepassado arquetı́pico), o Firhi ancestral
varonil dos senhores da Maia era com certeza um al–Quraysh, um membro
do clã de Maomé.
• Muito plausı́vel. Segundo a versão da Lenda de Gaia que lemos no Livro
de Linhagens, o senhor da Maia era filho de mulher árabe aristocrata, irmã
de um “Alboazar” e filha de Dom Zadão Zada.
Identificamos Dom Zadão Zada a Zahadon ibn Halaf, em quem vemos um
omı́ada, e o Alboazar a Nazar casado com Tortora, atestado nos docu-
mentos de Lorvão.
• Muito plausı́vel. Segundo o Livro de Linhagens, descendiam tais omı́adas
ancestrais da famı́lia da Maia, do califa al–Walid. E de fato há um flores-
cente e conhecido ramo andaluz dos omı́adas descendente de al–Walid, a
chamada linha al–Habibi, à qual podem pertencer estes omı́adas de Lorvão
e Coimbra.
• Plausı́vel. Pelos motivos já discutidos — a ascendência real dos senhores
da Maia, afirmada no Livro de Linhagens, a impossibilidade desta se dar
na famı́lia real de Leão, e a breve referência ao compromisso de “Ortega”
com o rei do Marrocos, supomos que o Firhi ancestral dos senhores da
Maia fosse Firhi ibn Ahmed ibn al–Hasani, neto do último emir idrı́ssida
marroquino.

Ou seja, a famıılia da Maia, e as que desta descendem na varonia, provêm


todas na varonia do Profeta do Islã e representam um ramo da grande famı́lia
alida.
4. Árabes: Coimbra, século X.

O s primeiros documentos do Liber Testamentorum são, na ordem de sua


apresentação:

1. Doação de Santa Cristina pelo rei Ramiro II (DC 37, 933).

2. Testamento feito por Nezeron e Tortora. Boa parte da “famı́lia Nezeron”


confirma este documento (DC 94, 967).[*]

3. Doação de duas partes de Albalat, de Ramiro II (DC 50, 947).

4. Testamento de Gondemiro [ibn Dauti] e de sua mulher Susana, de parte


de Albalat (DC 40, 935). [*]

5. Confirmação de cessões anteriores, feita por Sancho II; documento que


cita Zahadon Falifaz (DC 92, 966). [*]

6. Doação de partes de Albalat por Inderquina “Pala.” Entre os confir-


mantes, Iquila ibn Nezeron (DC 117, 976). [*]

7. Venda feita por Zahadon e outros a Gondemiro e Susana (DC 39, 933).
[*]

8. Testamento de Abu Sulayman e de sua mulher Goto, das várzeas de Vilela.


Outro documento cujos confirmantes vêm da “famı́lia Nezeron” (DC 95,
968). [*]

9. Venda de Vilela por diversos muçulmanos (DC 230, data corrigida, 1006/7).
[*]

36
IV. Da Lenda à História. 37

10. Venda de Vilela por muçulmanos; entre os confirmantes o [ibn?] al–Hasani,


e o ibn Zahadon al–Umawi (DC 229, data corrigida, 1006). [*]

Os documentos assinalados com [*] dizem diretamente respeito à questão da


famı́lia da Maia, e é sintomático estarem todos grupados no Liber Testamen-
torum, embora dispersos nos Diplomata et Chartæ de Herculano. E é também
sintomático ser perceptı́vel a unidade de seu conjunto, mesmo se examinados
primeiramente a partir da coletânea de Herculano.

Confirmantes em documentos, Diplomata et Char-


tæ, século X
A seguir apresentamos um panorama da população árabe em Coimbra sobre-
tudo, no século X, para permitir uma visão de conjunto. (Alguns documentos
sem confirmantes árabes foram incluı́dos para permitir uma melhor compreensão
dos personagens que lá trafegavam.)
O que temos aqui são as listas de confirmantes de documentos relativos
a Lorvão, sobretudo, tomados nos Diplomata et Chartæ de Herculano. Esta
lista foi inicialmente organizada por Marshall Kirk, que nos permitiu usar seu
trabalho; acrescentamos uns poucos outros documentos onde aparecem perso-
nagens que podem ser identificados a figuras dos livros medievais de linhagens.
As abreviaturas utilizadas são óbvias; em especial t é test, c é confirma[t];
entre colchetes [. . . ] colocam–se interpretações dos nomes empregados.

850–66, data duvidosa, data provável entre 900–910, “Hordonius rex”


Gutierre mendiz c Domnus garseanus c Trastemirus diaconus t Dagaredus pres-
biter t Lubanus archipresbiter t Songemirus presbiter t Rodorigus presbiter t
Ranemirus rex Gundisaluus moneonis c Nepuzanus c Onecus episcopus legio-
nensis sedis c Dulcidius episcopus uisense c

850–66, data duvidosa; data provável 907, “Hordonius rex”


[É o documento sobre a vila “quod obtinuit Ydriz,” que Idris obteve — lembre-
mos que Idris é o nome tı́pico da dinastia alida que reinou sobre o Marrocos até
começos do século X]
Nausti episcopus c (?) Froarengus episcopus c Juuarius episcopus c Recare-
dus episcopus c Sauarigus episcopus c

907 “Fradilani presbiteri”


Ranemirus rex c Teodericus comes c Exemenus didaz c Gundisaluus moneonis
c Pelagius episcopus c Froarengus episcopus c Bellitus presbiter t Atanagildus
presbiter t Auriolus presbiter t
38 F. A. Doria

908, “Trudili uiro suo Euenando”

[Seriam personagens da famı́lia condal de Vı́mara Peres, desde que Evenando


tem um filho de nome Guimiro (Wigmar, Vı́mara) Evenandes]
Cita “...suas mancipias nominatas ipsas mauras mariame et sahema et za-
fara,” as muçulmanas Maria (Mariamne, Myriam), Sahema e Sáfara. Evenando
é o ancestral de um clã de maiorinos régios na região.
torsario dauiz t nausti truitemiriz t nausti ianardiz t gamerelle t ianardo t
ramiro notariz t mestallio t amarello presbiter t
gundesindo t uizoi astrulfiz t [uizoi, Vizoi, é um nome tı́pico dos primeiros
Sousões] fromarigu t [seria o pai de Aragunte Fromariques, mulher de Zahadon?
Fromarigo, pelo que conjecturamos, seria também membro da famı́lia de Vı́mara
Peres, ver a lista de confirmantes que se segue] letula ploris truitero c
Cidi presbiter [Sa’id]

911, “D. Hordonio”

Nausti episcopus c Froarengus Episcopus c [veja–se supra o documento de Idriz,


onde estes aparecem como confirmantes] Lucidus Vimarani c [É o filho de
Vı́mara Peres] Nunu Gutierriz c [É o neto de Hermenegildo Guterres, Conde
de Coimbra; irmão de São Rosendo] Cresconius Migiti c Vermudus Lucidi c
[neto de vı́mara Peres] Vimara Froilani c [outro neto de Vı́mara Peres, filho de
um Froila Vimaranes] Spasandus Egani Ermogius Cresconi c
Petrus Vellini c [cf. Veila] Adfonsus Vellini c Hermigildus Froilani c Vermudus
Arnotati c Hordonius Egani c Fromaricus Cendoni c [seria o Fromarigo acima
citado, e pai de Aragunte Fromariques, mulher de Zahadon] Tanoy Braolini c
Hordonius c Ranimirus c [Trata–se de Ordonho II e do futuro Ramiro II]
Florentius presbiter

919 “Gundesindus et Domna Tegla et Onega Lucidi et Rodrigo [Er]o-


tiz”

Veremudus rex c Ranemirus rex c Ordonius rex c Sanctius rex c Tellus aloitiz
c Gundesindus fredenandiz c Aloitus froilaz c Gutierre lucidiz c Arias armen-
tariz c Munio sarraciniz c Rodrigo froiaz c Froia ketizi c Cresconio presbiter
Gresomarus presbiter Arias presbiter

919 “Gundesindus”

Veremudus rex c Ranemirus rex c Ordonius rex c Santius rex c

927 “Adaulfus presbiter”

Fradila t Lazaro t Maiorelle t Octauio t Teodegildus t Gimil t Stephano t


IV. Da Lenda à História. 39

927 “Samuel presbiter. Randulfu. Gonderona. Salomon. Fandilu.


Hamer. Mantila. Gaudio. Benedictu. Uitiza.”

Sisualdus presbiter t Manila t Talaba t Fafalon t Salomon t Vitiza t Nehobon t

928 “[Domna] Honecca una cum filiis meis munna. Ledegundia. Ex-
emenus [didaz]. Et mummadomna.”

Aloytus lucidi t Rodorigus tedoniz t Ermegildus gundisaluiz t Gundesindus di-


daz t Recemondus diaconus t Vittize presbiter t Gundisaluus diaconus t Anse-
mondo t Ranemiru progie regis c Gundisaluus muneoniz c Adaulfus presbiter
scripsit in uilla abozamates Pantaleus episcopus c Pelagius episcopus c Salomon
episcopus c

933 “Ranemirus nutu diuino rex”

Ouuecco episcopus c Pelagio tedoniz t Sarracino nuniz t Hermegildo gunzaluiz


t Elias t Antulina abdiran c Menendo mendiz t Osorius gutierriz t Rodorigo
tedoniz t Cresconius quiriazi t Cresconius presbiter t Pelagius presbiter t Tau-
ron cognomento mogaria c [Tauron Abu al–Mugheyrah, al–Mughira]; pai de
— ver abaixo de — Abu–Walid t Hermegildus diaconus t Dulcidius presbiter t
Fredenandus presbiter t Atanagildus presbiter t Ildefredus diaconus t Aspidius
presbiter t et notuit Cotuma cotumiz c

933 “Zahadon et uxor mee aragunti”

Zahadon et uxor mee aragunti. Cresconio et uxor mee smelilo. Et veremudo.


Gondemiro et uxor tue susanna. . . pater noster fromarigus. . .
Aragunti c Veremudus c Exemenus didaz c [É o conde Ximeno Dias] Cresco-
nio c Elduara [É a condessa Ilduara] c Froila gutierriz c [conde, irmão de
São Rosendo] Veremudus rex [infante] c Ranemirus rex c [Ramiro II] Dida-
gus adaulfiz t Daniel presbiter t Iquila t Garseanus t Sesgudus t Fromarigus t
[talvez o Fromarico pai dos irmãos?] Ermigius t Fafila [seria na verdade erro
de transcrição de Halaf > Falaf > ?] t Aloitus t [Alvito] Prouitius t Salomon d
Daildo t Cendus presbiter t [Cendon?] Donadeo t Justus t

935 “Gondemirus et uxor mea Susana”

Munius gutierriz c Mesiderius abba c Leouegildus abba c Abolinus abba c Don-


adeo cognomento abuzhac abba c [Abu-Is’hak?] Iquila t [Nasr] Lazarus t Hab-
dela t [Abd’allah] Maurecatus t [Mauregato, nome visigótico] Manualdus pres-
biter Daniel presbiter t Nazar t [Nasr] Primus t Salamon t Adaulfus presbiter
t Nezeron. Zacoi. t [Nasrum] Elias t Almundis t [al-Mundhir?] Abuzuleiman
t [Abu-Suleyman] Gudesteo t Ceide presbiter viarigus presbiter t [Sa’id, Cid,
provavelmente]
40 F. A. Doria

936
Exemenus didaz comes c Adaulfus diaconus c Tauron cognomento mogaria c
[see above] kirum c Recesindo t Bittaco garseani t Sendinu. Dabid. T Oesbio
menendiz t Sunimirus iubeni t Ermegildus abba c Senior diaconus t Ermegildus
diaconus Froila confessor t Adulfus notuit

937 “iusta et filiis meis laudandus presbiter et andre”


Laudandus presbiter c Andre c Elias t Teodosindus t Atanagildo t Mohepe t
Abzaada t [Abu–Zaada? Ou Abd’Zaada?] Salama t Farache t [Faraj? Cf. filho
de Mohammed II de Granada] Crescenti presbiter t Dignus presbiter t Stefanus
presbiter t Iohannes presbiter t Vincentius presbiter t Abozaac abba c [seria
Donadeo, abba, ver supra — Abu–Is’hak?] Teodericus abba c Flores presbiter
t Moysen presbiter t [Mohassen??]

937 “Elduara” “Gundemiro iben dauti” [Dawudi]


Veremudis prolis regis Froila gutierriz c

938 “Exemenus comes”


Piniolo ansuriz c Gundemirus t Zahade t [seria Zahadon?] Ikila t [é Iquila]
Salomon t Mestulius presbiter t Mantila t Eskapa t Palmacius presbiter t Za-
hadon presbiter t Donado [Donadeo?] t Juzif t [Yusuf] Nazari t [Nasr] Tauron
cognomento mogaria [al–Mugheyrah]

939 “Ariulfu et uxor mea cenusenda”


Senteiru presbiter t Trasmondo t Ansalon t Meisitu t Daildu t Aldia t Gun-
desindu t Gundulfu presbiter t

943 “Ranemirus rex”


Ordonius prolis regis c Houdonius serenissimus princeps c Gundesindus con-
imbriense episcopus c Dulcidius uisense episcopus c Menendus gundisaluiz c
Osorius lucidi c Pelagius tedoniz c Menendus gundesalui c Exemenus didaz c
Rodorigus gutierriz t Froila gutierriz t Gundesindus froiani t Honorigus didaz
t Frenandus/Fernandus presbiter primi clero t Sisnandus diaconus t Aspidius
presbiter t Gundisalbus muneonis c Menizius presbiter scripsi et t

943 “petrus presbiter cognomento bahalul”


[Bahlul, cf. Bahlul ibn Marzuk, governador de Tudela]
Moisen presbiter notuit [Mohassen??] Siloni presbiter Iucif t [Yusuf] Abidi
t Nazar t [Nasr]
IV. Da Lenda à História. 41

943 “zoleiman cognomento abaiub una cum uxor mea flamula”


[Suleyman e Abu–Ayub]
Randulfus presbiter t Segemundus presbiter t Dauid presbiter t Salomon
presbiter t Benedictus presbiter t Godesteo presbiter t Quintila presbiter t Re-
caredo t Atila t Lico t Leomirus [Leodemiro?] presbiter notuit

946 “ismael presbiter cognomento mestulius”


[Isma’il]
Vitiza abba t Spasandus t Zacarias t Veremudus t Aloitus [Alvito?] t Mau-
relle t Obrigus t Sunimiro t Albarus [Albano?] t Alleigar t Samson t

950 “habundantius presbiter”


O nome seria Abundantius.
Crescentius presbiter t Mohepe presbiter t Donadeo abba c [já citado acima]
Tedoni abba c Zacarias presbiter t Vincenti presbiter t Moisen quasi presbiter
t [Mohassen??] Laudandus presbiter t Flores presbiter t Homar presbitero t
[Omar] Ioannes presbiter t Stefanus presbiter t

951, “Ansur et uxor ejus Eieuva”


[Este documento descreve uma transação perto de Arouca, e provem da cópia
de um original no mosteiro de Arouca; Ansur é Soeiro, e Eieuva, variante para
Eileuva. Ansur, “ansur prolix goesteiz” é Ansur Godesteis, que Mattoso supõe
ser filho, pelo patronı́mico e propriedades que tem, de Godesteu Fernandes e de
Gugina Eriz. Godesteu Fernandes seria tio de Gugina e irmão de Ero Fernandes,
Conde de Lugo e pai de Gugina; este documento mostra proximidade entre
Arualdo e a famı́lia de Ero Fernandes, confirmando uma tradição antiga que
liga os Baiões aos Condes de Lugo]
manilani abba c gvimarigus abba c adaulfus diaconus c arualdus t [trata–se
com certeza de Arualdo, Arnwald, ancestral dos Baiões] bernaldo t leoderigus t
alderedo presbitero104 cesario t maxitus t marecus t vermudus t nunus pres-
bitero105 ilderigus presbitero106 beika presbitero107
vegela t [Veila?] naltidus t eisem t asgarigus t velascus t
berto t godinus t maiorinus t cresconio t gildo t
Egidi108 notuit

952 “Ildras”
[Idris? Seria o citado em 984?]
104 Herculano hesita na leitura “presbitero.”
105 Mesma dúvida.
106 Idem.
107 Idem; Beika seria Bakr.
108 Também há dúvida nesta leitura.
42 F. A. Doria

donate iben hazem t [Hazem, Hazm, ??Hisham] sarracino iben leopelle t


zitello iben aloito t zoleiman iben cascita t [Suleyman] aloito iben homeite t
[al–Humeydi?] zoleiman iben salomon t [Suleyman filho de Salamon] ordonius
princeps c

954 “rodorigus cognomento abulmundar et uxor mea coraxia”


[Abu al–mundhir; neste documento listam–se vários personagens com nomes
caracterı́sticos da dinastia omı́ada]
petrus abba c eronius t valid t [Walid] hadella t [Abd’allah] iubarius presbiter
habdelmek t [Abd al–malek] abohadella t [Ou Abobadella, que provavelmente
corresponde a Ubayd’Allah] neuridius t zahdon t [Zahadon, Zaadum] menendo
t azakri t egriz t

957, data incerta; mais provável 940–950, “Rex donno Ranemiro”


[A data é obviamente truncada, porque “ego enim Ranemirus principem uo-
bis domnis inuictissimus mundique triumphatoribus,” isto é, eu, Ramiro, vosso
prı́ncipe, senhor invincibilı́ssimo e triunfador do mundo, era com certeza Ramiro
II. O documento refere–se a terras perto de Braga e Guimarães, e — vide abaixo
— confirmaria os interesses dos ancestrais dos senhores da Maia ao norte de Por-
tugal]
Rudesindus episcopus c [São Rosendo, † 977] Ouecus episcopus c salua-
toris sisnandus [Sisnando Salvadores?] irensis pontifex c Hegica ennegot [Égica
Iñiguez] c zanon froianiz c Ennegus aliotiz c [Egas Alvites] Mozas tauroniz [filho
de Tauron al–Mogheyrah]
Comite Gutiere roderici [segundo Mattoso, filho de Rodrigo Tedones] c Uiari-
gus confesso c Arulfus confesso c Uiliamirus confesso c [seria repetição de Uiari-
gus?] Gauinus confesso c Sisualdo t [Sisnando?] Trasmiro t Leouesendo t
[seriam, presumimos, irmãos, tio e pai do primeiro senhor da Maia] Pelagius
clericus. Uiliamirus diaconus [outra repetição?] Sigericus presbiter scripsit.

957 “Samuel presbiter qui fui uigario de petro presbitero cognomento


baleuli”
[Bahlul; ver supra, 943]
donadeo abba c [cognomento Abu–Is’hak; see above] tedoni abba c ambu-
lates presbiter t moisen presbiter t [Mohassen?] abundantius presbiter t siloni
presbiter t johanes presbiter t aiubandus presbiter t [Versão latina de Ayub?]
homoroz presbiter t aaron presbiter t tructesindus presbiter t fafila presbiter t
paulus presbiter t dulcidius presbiter t vincenti presbiteri notuit

961, “Carta de uillacoua in cauto de moreira”


[Transação que faz Adosinda em Vila Cova, couto de Moreira, Riba de Vizela,
perto de Braga.]
IV. Da Lenda à História. 43

. . . per aria uetera et conclude casale de arualdi. . . [Na descrição das terras,
termina no “casal que pertence a Arualdo,” que identificamos ao ancestral dos
Baiões]
Uiarigus confesso c Gaudila confesso c Fagildus confesso c Lucidus confesso
c Manilani presbiter c
Aaron confesso c Guandila c Tructus confesso c Onoricus confesso c Aloitus
confesso c
Jafari presbiter c Didacus presbiter c Aerigus presbiter c Viliamirus presbiter
c Suimirus presbiter notauit.

961 “gundisaluus moneonis”


dauid abba c zaccarias abba c exemenus didaz c neponanus [Neponciano] c aibel
presbiter t facebona presbiter t [Fazbona] songemiro presbiter t aspidio t florite
t gaudio t veremudus rex c

961 “inderquina atque palla”


Oueco muneonis c Gundesindus c Didagus c Rudesindus episcopus c Gundis-
aluus episcopus leigione c Uiliulfus episcopus tudense c Auxilio ariani epis-
copi dumiense c Aminiculo sisnando episcopo iriense c Dominicus episcopus
zamorense c Ermegildus episcopus uisense c Ranemirus rex c Santius serenis-
simus princeps c Veremudus rex simili modo c Gutierre gunzaluiz c Nepozanus
didaz c Exemenus didaz c Didagus muneonis c Gunzaluo muneoniz c

961 “Ego aldreto olidiz qui sum uigario de domna elduara prolix
pelagii gundisaluiz”
iquila iben nezeron et uxor tua et filiis tuis” [Iquila filho de Nasr]
Gundisaluus moneonis c Omeir presbiter [Umayr/Omeir ou Omeyyah?]] Za-
lama iben recemondo t [Salama] Dulcidio t

966 “Ego santius [rex]”


[Menciona] gundemiro iben daudi [Dawud?] [menciona] zaadon falifaz [Zahadon
ibn Halafi]
Gundisaluus muneonis c Ennego uegilani c Fernandus uermudiz c Ennego
azinariz maiordomo c Tellus mirelle c Nunu mirelle c Fredenando rodorigiz
c Nepozanus didaz [Neponciano Dias, conde] Gundisaluus uermudi armiger c
Nunu garseani c Veremudus rex c Irmo

967 “nezeron et tortora”


[Nasr, Nazar. Este é, provavelmente, tio materno de Abu–Nasr, Abunazar,
senhor da Maia, que supomos aparece abaixo; assim, é o pai de Iquila, Suleyman,
possivelmente Fromarigo “iben nezar lopazer” — lembremos que a suposta mãe
deste primeiro Nasr/Nazeron era Aragunte Fromariques — e também de Salama,
44 F. A. Doria

e mais Abzicri, todos adultos em 960/70, e portanto da mesma geração que


Abu–Nasr ou Abunazar Lovesendes]
Samson iben abulhiar t [Abu al–Hijar/Hiyyar?] Filios uoizmagal t [ibn Abu–
Isma’il] Gabdella iben zagaz t [Abd’allah; seria ibn Zahad?] Filio suo flores t
Julianus cognomento habzecri t Salamon iben nezeron t [Salamon filho de Nasr]
Hamit suo filio gaudinus t [Ahmed?] Fethe iben rezemondo t [Fath, filho de Re-
cesmundo] Suo germano gazim t [Hazem/Hazm/Hazim/Hasim???] Valid iben
atanagildo t [Walid] Suo germano baron t Motakar iben spidio t [Mokhtar??
Mutawwakil??] Suo germano becar t [Bakr, cf. Abu Bakr] Lazaron leodesindo
iben ferhe t [Nazeron ibn Leodesindo ibn Ferhi, Fikhrı́; a confusão entre Lazaro
e Nazeron aparece em vários documentos do Liber Testamentorum] Zalama iben
floresindo t [Salama] Suo germano gondemiro t Fromarigo iben nezar lopazer t
[que presumimos seria Fromarigo ibn Nazar ibn Zaadon] Zalama iben nezeron t
[Salama filho de Nasr] Kazem presbiter t [Kasim] Cendon presbiter t [Lembre-
mos que se identificou o Fromarico pai de Aragunte a um Fromarico Cendonis].

968 “Ego abzuleman/abzoleiman et uxor mea gotu/gota”

[Abu-Suleyman]
Iquila iben nezeron c Donellus converso t Dulcidio iben almundar t [al–
Mundhir — filho de Rodorigo cognomento a[bu]l–Mundhir, supra?] Juniz iben
salut t Ebrahem [Ibrahim] iben salut t Abscoguleile iben salut t [Abu or Abd’ ?
u–l–leyl; o nome significaria, “da noite.” Ver também abaixo] Haboleazan iben
stefanus t [Abu al–Hasan?] Zagai iben azmon t Spidio t Abzicri iben nezeron t
Abul ualit iben tauron t [Abu al–Walid; seria um filho do supracitado Tauron
cognomento al–Mugheyrah?] Abundantius presbiter t Mestulio iben abtumor t
[Abd’Umar] Sperandeo iben mozeiam t Viarigo iben ebrahem t Ranemir iben
senta t Menendo iben tumron t [Tauron al–Mugheyrah?] Viater. Hamdon.
santon t [Hamdan] Nezeron iben teodosindo [seria nosso personagem, Nazeron
ibn Leodesindo] t Zalama iben nezeron t

968 “Ego mahomat filius de abderahmen neptus de harit. . . mea auio


abderahmen iben abdella

[veja abaixo; é versão corrompida do DC 229]

969 [?] “Munia”

Villelmus episcopus Colimbriensis c Ermegildus episcopus visensis c Jacobus


episcopus lamecensis c Auxilio arrianus episcopus dumensis c Amminiculo ses-
nandus episcopus auriensis c Dominicus episcopus zemorensis c Ordonius rex
c Ramirus rex c Sancius serenissimus princeps c Veremudus rex simili modo
c Gunsaluus munionis c Rodesindus diaz c Ouecus munionis c Gundesindus c
Didacus munionis c Nepozanus diaz [Conde Neponciano Dias] c Remenus diaz
c Dominicus quasi presbiter notauit
IV. Da Lenda à História. 45

970 “christoforus confessor”


Recemondus diaconus t Gundemarus Vitiza presbiter t

972 “uincenti presbiter et martini cognomento homeir et adeizon”


uincenti et martini et ayzon
Abdella t Samson t Louerigu t Iuuero t Aspidio t Ismahel t [Isma’il] Farhon
t [forma de Fehri, Fikhrı́] Sismir t Homar t Mestulio t Ermegildo [Hermenegildo]
t Hazem [Kasim?] st Menendo t Iuliano t Homeir [Umar] t

973 “Samaritana”
Credendo conuerso t Fazbona t Mota..f t [Mutarrif??] Lucido t Melic iben
flores t [Malik] Ermorigu t Maladon t Elias t Gomar [Umar] t Zoleiman abbas t
Zaadon t frater Placentius presbiter Auriol presbiter Lazarus presbiter Vincenti
presbiter Salude presbiter Carlon t Lucido t Zuleiman t Joab t iben Flores t Lone
iben floride Marco t Abaiube t [Abu–Ayub] iben Iaquinto t Abzicri presbiter t
Nezeron t

973 “Ego munna”


Aloitus lucidi c Roderigus tedoniz c Gundesindus didaz c Gundisaluus moneonis
c Sancius rex c Rudesindus episcopus c Christoforus confessor c Gundemarus c
Recemondus diaconus t Vitiza presbiter t

973 “Ego donal”


zuleiman presbiter t vizoi t Teoda t Aleite t Lubenel t Salbator t Branderigu t
Viariagu t

974 “Ego uincenti presbiter cognomento homeir”


[O nome Homeir é Umar, Omar]
Zuleiman iben salamon t Iuliani iben abbilion t Homeir iben abdella [Umar
ibn Abdallah] t Abzuleiman iben iquila t [Abu Suleyman filho de Iquila] Santon
iben senior test [Santon filho de Sa’id. nome que Senior traduziria?] Abuldazir
iben aldemir t Iohanne iben zacoy t Abundantius presbiter t

974 “Ego oueco garseani”


Gutieri muniz c Didagus c Uilulfus colimbrenseis episcopus c Iquilani episcopus
uisense c [¡ Nasrum] Jacobus episcopus lamezense c Hanni didaz t Gundisaluo
scemeniz t Eita maioriz t Guntelli t Maurelle garzez t Garzia muniz t Scapa t [o
mesmo que Eskapa, supra] Gomece muniz t Scemeno sauaricoz t Munio didaz t
Ermigio didaz t Didago uielaz t Teodosius abba Cresconius presbiter Sarrazinus
presbiter martinus presbiter scripsit
46 F. A. Doria

976 “Ego lubigildo et argifonsa”

Zahadon mestulius et laudonie abaiub presbiter julianus presbiter ihoannes et


domna de uilla fundila sesuito frater et aluitus presbiter
Juliano t Saluator t Galindo t Didago t Iben donello t Elias iben apaz t
Santimir iben apaz t Randulfo iben spidio t Lones iben didago t Froila c Romano
iben froila t Jacob iben iohanne t Gontado iben sijoi t Omar iben lucido t [Umar]
Zacarias iben unsuito t Rapario iben sesmiro t Gaudinas. Reirigu. Fagildu. T

976 “Ego enderkina qui est palla”

Dulcidius diaconus t Sancio gartianiz t Magister leui t Sonimiro t Barualdo t


Exemeno enniquez t Habzec ordoniz t [Abu Ish’ak filho de Ordonho] Aluito
ordoniz t Suario arianiz t Menendo iben elias t Arias iben uitus t Teodilla
confessor t Elias iben zekereini t Alhauzan iben mahamudi t [al–Hasan son
of Mohammed] Mudarafe iben fatelion t [Mutarrif son of –?–] Amatorem iben
uassallo t Iquila iben nezeron t [Nasr son of Nasrum] Iulianus presbiter t Albura
presbiter t Godino presbiter t Zeide presbiter t [Sa’id] Ermorigo presbiter t

976 “Ego marcus. . . ”

et uxor mea antulina abdonna et filiis meis meheb et menendo montukem et uxor
mea palma iusto et uxor mea eolalia nausti iulia arias et uxor mea maiorina elias
et uxor mea maiorina item iulia leocadia item menendo et uxor mea faregia totos
de uilla ferreirolos
David de handones Samuel de larzana t Samson de kanellas t Elias de aue-
lanas t Abdella et uitus t [Abd’allah]

977 “Ego Daniel presbiter et zuleima cum uxore mea et filiis”

Muluc aba t [Malik] Selmon iben leim t Lazaro iben gondemiro t [Com certeza
Nazeron ibn Gondemiro, que seria Gondemiro ibn Dauti; cf. o no. 75 do
Liber Testamentorum, no qual aparecem lado a lado Zuleiman ibn Lazaro e
Zuleiman ibn Nazeron] Abzuleiman iben iquila t [Abu Zuleyman filho de Iquila]
Zuleiman iben salomon t [Suleyman filho de Salamon] Abolbalit iben tauron t
[Abu al–Walid filho de Tauron, muito possivelmente Tauron conhecido como al–
Mugheyrah, ver acima] Abzicri presbiter t Garseas presbiter t Homeite iben ab-
dela t [Humeydi filho de Abd’allah] Bakri iben abdela t [Bakr filho de Abd’allah;
provavelmente irmãos] Venze presbiter t Paulus presbiter t

978 “Ego adaulfus presbiter vel conuerso”

Vir obtimo t [um tı́tulo latino, como o seria magnificus; seria algum tı́tulo em
árabe, traduzido para o latim?] Valide t [Walid] Abtauita t [Abd’–?–] Mirualdo
t Melior t item Ualide t [Walid] Dulcidius t
IV. Da Lenda à História. 47

978 “Ego zuleiman iben lazaro et uxor mea et filiis meis”


[Na verdade é, como se vê em seguida, Suleyman ibn Nazeron]
Froila gutierriz t Homeir iben abdella t [Trata–se de Umar, filho de Abd’allah]
Venze presbiter t Zuleiman iben nezeron t [Suleyman filho de Nazeron; trata–
se Nazeron, cremos, do presumido tio de Abunazar, senhor da Maia] Garseas
presbiter t Paulus notuit
[Este é o ı́tem 75, no Liber Testamentorum]

978 “Ego gogilli cognomento bellida”


Seniorino t [seria uma tradução latina de Sa’id?] Dulcidiu t Viliulfu t Arias
gendiz t Moderigu noemiz t

980 “Ego gaudinas et uxor mea composta”


[É o documento que menciona explicitamente um Abunazar]
Donnon t Arias t Floride t Iacob t Aluitu t Viadeir t Abonazar t [ver nossa
análise supra, com a qual identificamos este personagem ao primeiro senhor da
Maia] Veila t zuleiman t [Suleyman] Gudesteo t Recemiro t Salude t [pai de
três irmãos, citados abaixo?] Abzag t [seria al–Asbagh?] Mestulio t Leouildo t
[Leovegildo, com certeza]

980 “Ego bahri et trunquilli”


980 “Ego cresconio”
Dulcidio iben abolmudar t [Dulcidius filho de Abu al–Mundhir] Iunizi iben salut
t Abamor mestalio iben abamor t [Abu Umar? Seria Mestalio, filho de Abu
Umar?] Ebrahim iben salut Abscogaleile iben salut t [para Salud ou Salude,
ver acima; seriam irmãos também Yuniz e Ibrahim] Cundemiro iben zoleiman t
[Suleyman] Heicar iben florit t Beniamin diagonus notuit
[Esse Gondemiro ibn Sulayman poderia ser neto de Nazeron, que damos
como filho de Zahadon]

981 “Ego gundisaluo muniz et uxor mea mamadona”


[Trata–se do Conde Gonçalo Moniz, da famı́lia de Mendo ou Hermenegildo
Guterres, e de Mumadomna Froilaz sua mulher]
Viliulfus episcopus colimbriensis c Iquilani episcopus uisiensis [o nome viria
de Iquila? É o bispo de Vizeu] c Iacobus episcopus lamezensis c Rodesindus fre-
nandiz c Tedon suariz t Telo aloitiz c Menendus gunzaluiz c Fernandus gutierriz
c Osorio ouequiz c Beniamin diaconus notuit

981 “Ego gudesteo”


Eigo t Fromarigo t Ascarigus t Frater andre t Johanne t Dominicus presbiter t
Gondesindo t Sagadus presbiter scripsit hic fui
48 F. A. Doria

981 “Ego gundisaluus menendiz”


Veremudus rex prolix domni ordonii Viliulfus episcopus colimbriense c Ikilani
episcopus uisense c Iacobus episcopus lamezense c Gutierre didaz c Tello eloritiz
[é Telo Alvites, supra, da famı́lia de Vı́mara Peres] c Menendo gundisaluiz c
Rodorigo sarraziniz c Tedon aldretiz [confusão com Telo Alvites? Ou um Tedon,
da mesma famı́lia, onde vemos os nomes Tedon e Cedon? Ver nos documentos
que se seguem] c Gundisaluo aluariz c Rodorigo sarraciniz c Gundisaluo didaz c

981 “Fredenando sandiniz et uxor mea geluira”


Gundisaluus muneonis c Suario sandiniz c Ranemiro gunzaluiz c Menendo gun-
zaluiz c Suario erotiz c Pelagio liedroniz c Meliazar iben alcapzor c Beniamin
diaconus scripsit

982 “Fredenando sandiniz”


“Suario sandiniz absque filiis legitimis” Uiliulfus episcopus colimbrie c Gundis-
aluus erotiz c Tedon aldretiz [Telo Alvites?] c Rodorigo sarraciniz c Suario erotiz
c Vermudo aceriariz c Trastemiro eldretiz c Froila songemiriz c

984 “Ego tegla”


Gutierre didaz c Aloytus froilaz c Ouecco uimaraz c Menendo tedoniz c Astruario
c Kintila t Sauarigu t Odario t Aloitus t Sarracino t Eizon t Rodosindo presbiter
Ermorigus presbiter Arias presbiter notuit
[Rodosindo presbiter pode ser São Rosendo, e Alvito Froilaz, Oveco Vı́mares,
Mendo Tedones, membros da famı́lia de Vı́mara Peres]

984 “Ego atila presbiter”


Abzuleiman t [Abu–Suleyman] Teodesindus t Viader t Braolio ansuriz t Albano
t Ildras [Idris?] t Floresindo t Arias t Zuleiman t

985 “Ego onecca lucidi et rodorigo erotiz”


Veremudus rex c Tellus aloitici c Gundesindus fredenandiz c Aloitus froilaz c
Gutierre lucidi c Rodorigo froilaz c Gresomarus presbiter c Arias amentarizi c
Froila ketici c Munnio sarracinizi c Cresconio presbiter c

985 “munniu gundisalbiz”


Gutier munniuz c Didagus confessor Hanni didaz t Gundisalbo scemeniz t Tedon
aldetriz t Gundisalbo albariz t Aluaro lihoriz t Suario gutteriz t Rodorico mo-
neoniz t Gundisaluo Gomez t Anagulfo t Maurele garsea t Garsea munniz t
Aluito benedictisci t Ecemeno didaz c Menendo luzi c Oueco garseani c Didago
munnioniz c Abolmundar gundulfiz t [Abu al–Mundhir filho Gundulf . . . note–se
IV. Da Lenda à História. 49

um Gundulf, numa geração anterior, embora eclesiástico] Cresconius presbiter


scripsit

985 “Houecco garseani comes . . . munio gundisaluiz”


Gutierre muniz c Didagus muniz c Hanni didaz c Gundisaluo exemeniz c Ouecco
godesteiz c Albaro ansuriz t Gartia muniz t

988 “Munniu gunsaluiz”


Houecus comes c Gutierre muniz c Fortunius sauarigiz c Gundasalus leouegildiz
t Sezoi t Gundisaluo t

992 “Ego seculare qui est abuzat/abuzag”


[Seculare cognomento Abu Zag]
Arias ibhen elictus t Vizoy t Leouegildo t Iohanne sarraziniz t Flores t Gaud-
inus t Azarias t Marcus t Elias t Benedictu t Martin t Sendulfus t Mestulius t
Nazar t

998 “Ligo et [uxor] palmella”


Ioanne iben lusidio t Iquila iben selmon [Iquila bem Sulayman?] t Gundemaro
iben teoderedo Ioanne harraze t Arias iben abraam t [Ibrahim] Mozaut iben
muzarra [Ma’sud filho de Mudarra, Mutarrif?] Zaet iben muzarra t [Sa’id filho
de Muzarra; presumivelmente temos aqui irmãos] Emila iben euelso t Euelso
iben emila t Gundisalbo iben zaton [seria Zahadon? E seria Gundisalvo irmão
de Ortega/Oñega?] Ioanne iben abraam t Martinu iben atalamondo Halifa iben
ordonio [Halifa filho de Ordonho] Floresindus presuiter Sarracinus presuiter

998 “Ego ioacino et uxor mea guntilli et filiis nostris sendamiro et


gaudinas”
Magister florit Moohamat iben zaton [Mohammed filho de Zahadon; seria este
também um irmão de Oñega, identificada à mãe de Abunazar Lovesendes? E
irmãos, portanto, do Nazeron mais velho] Azarias t Iustu iben ligo Frater tam-
luz t Gaudinas iben ioacino t Maruan t [Marwan] Uital iben fazbona t Daut
t Tudesindo [Teodesindo] t Albaro iben elicto [Alvaro ou Albano?] Ligu iben
ioanne Magister ioanne Florentio iben menendo Leouegildo iben medima Gunde-
maro iben aluino Gaudinas t Ianneiro t Ioanne iben rando t Melek iben abonazar
[Malik filho de Abunazar] Donadeo iben leouegildo Leouegildo iben senior [filho
de Sa’id? Senior como tradução de Said?] Seruando iben abbaz [filho de Abbas?]
Ioanne ligoalit Uakir sesmiro Beniamin manila Marco dadila
[Trata–se do DC 180; é óbvio que temos aqui diversos membros da famı́lia
da qual se originam os senhores da Maia]
50 F. A. Doria

999 in Livro de D. Mummadona, a Leouesindo abenazar


[É o documento que encerra uma disputa de Lovesendo Abenazar]

1002 “arianus quasi presbiter”


Petro presibitero t Sauarigo t Songemiro t Iohanne t Onorigo t Gundisaluus t
Fromarigus presbiter t Rodorigo t Aloitus presbiter t Trastemiro notuit

1012 “Ego zacarias iben egriz”


Iohannes t Ruderigo t Gudesteo t Manila t Reuelle t Zaccarias t Menendo t
Marco t Stefanus t Azarias t Suario t Salama t Abdella t Daniel t

1016, data corrigida para 1006/7, “Ego [Maurus] mohomat filius de


abderahmen neptus de harit”
. . . meo auio abderahmen filius de abdella iben harit [Mohammed filho de Abd
ar–Rahman filho de Harith; e o avô materno deste era outro Abd ar–Rahman
filho de Abd’allah filho de Harith.
Iahia iben farh iben abeth alhazani t [Yahya filho de Ferhi filho de Ahmed,
o Hassânida? the Hassanid; hipoteticamente irmão de Leodesind; neste caso,
muito idoso em 1006] Filius de iben naui zaad alamaui t [filho de ibn–navi/nabi
ib Zaad, o Omı́ada; navi/nabi é uma palavra hebraica usada em árabe, tendo
como significado “profeta,” mas aqui parece ser uma espécie de tı́tulo ou trata-
mento] Halaf iben aada alamaui t [deve ser, de novo, Halaf ibn Zaad, o Omı́ada]
Mozoud iben maruan t [Ma’sud son of Marwan] Maruan iben farh allahami
t [Marwan filho de Ferhi o Lácmida] Abdella iben naaui turfah alamaui t
[Abd’allah filho do nabi (?) Turfah] Zebit iben suheit alamaui t [Zebedeu
(?) filho de Shoheyd — cf. os banu Shoheyd, notável famı́lia de Córdova —
o omı́ada] Abdella iben mozoud alkaizi t [Abd’allah filho de Ma’sud, o Qaysid]
Zuleiman iben zaadon alamaui t [Suleyman filho de Zahadon o omı́ada] Halaz
iben zaada alamau [provavelmente de novo Halaf ibn Zaad al Umawi] t Abdella
iben abdil malic allahami t [Abd’allah filho de Abd’al–Malik o Lácmida] Halaf
iben abdella allahami t [Halaf filho de Abd’allah o Lácmida] Iahia iben zaat iben
iahie t [Yahya filho de Zaad filho de Yahya] Mohamat iben halaf iben abderah-
men alamaui t [Mohammed filho de Halaf filho de Abd ar–Rahman o Omı́ada]
Ahmat iben umar almuradi t [Ahmed filho de Umar al–Muradi] Mohamat iben
zaata t [Mohammed filho de Zahad] Iusef iben farh azuhdi t [Yusuf son of Ferhi
Azudi]
Trata–se de uma impressionante listagem de membros da alta aristocracia
árabe perto de Lorvão: um Alida, o al–Hasani; vários omı́adas; lácmidas, mem-
bros do clã al–Qayzi. A data do documento é incerta. Originalmente em anos
da Hégira, Herculano interpreta–a como sendo 1016, mas o ano da Hégira 407
corresponde antes a 1006/7.
No entanto, o abade de Lorvão é dado como sendo Dulcidius Abu al–
Mundhir, que comparece em documentos muito anteriores (como presbiter,
IV. Da Lenda à História. 51

desde 933). Há uma versão corrompida deste DC 229, com data de 968. É
plausı́vel, portanto, que a data de fato desde documento fosse ainda anterior a
1006.

1016 “Ego zuleiman iben giarah aciki”


Acham iben hallaz azubeide t [Hisham filho de Halaf, az–Zubeydi] Abdella iben
satis alamaui t [Abd’allah son of ?, o Omı́ada] Abdella iben zaada alkaizi t
[Abd’allah filho de Zaad, o Qaysid] Galib iben cidello alamaui t [Ghalib son of
Cidelo, diminutivo de Cid, Sa’id, o Omı́ada] Hacem iben umar alkazi t [Hakam
filho de Umar o Qaysid] Humar iben mozoud t [Umar filho de of Ma’sud] Mo-
hamat iben abdelarahmen t [Mohammed filho de Abd ar–Rahman] Mohamat
iben abez alaui t Halafac iben zaada alamaui t [Halaf filho de Zaad, o Omı́ada]
Zalama iben nidriz alamaui t [Salama filho de Nadhr? que também era um
omı́ada]

1018 “Mauro oborroz”


Mohamed iben farfon t Halaf iben maruan t [Halaf filho de Marwan] Ab-
derahamen iben iahia t [Abd ar–Rahman filho de Yahya] Hamed iben zaid t
[Hamid?/Ahmed filho de Sa’id?] Gebir iben Mohamed t Halaf iben houda t
[Halaf] Ahomad iben maauuia t [Ahmed filho de Mu’awiyah] Ebrahimi iben
hamed t [Ibrahim filho de Hamid/?Ahmed?]

1020, “ero suariz et froila erotiz”


[Venda em Parada; documento autógrafo do mosteiro de Moreira. Confirmam
vários membros da famı́lia dos Baiões]
Gundesindo arualdiz t [Filho, supomos, do Arualdo citado supra] fredenando
gundipsalbiz c vidisilo uidisiliz c [Vitiscilo Vitisciles] suario gundesindiz c [Soeiro
Gondesendes, dos Baiões]
arualdo gondesindiz t [Arualdo Gondesendes, que supomos filho do Gonde-
sendo Arualdes supra] vegila gundesindiz t [Veila Gondesendes, outro irmão]
kacem ermiariz t [Kasim] cidi fredenandiz t
trasmiro t [Trastemiro] gundesindo t zomeile t egika t
randulfo notuit
Referências
[1] — Liber Testamentorum, ms., Arquivos Nacionais Torre do Tombo.
Principal fonte documenal utilizada; disponı́vel no site
http://ttonline.iantt.pt
[2] C. M. Adoum, “Glossário de arabismos e arabizações no romance
lusitânico,” dissertação de mestrado em letras, USP (1996).
Um levantamento pioneiro sobre as marcas árabes na documentação por-
tuguesa dos séculos X-XII.
[3] R. de Azevedo, “O mosteiro de Lorvão na reconquista cristã,” Arquivo
Histórico de Portugal, 1, 183 (1932/34).
Análise crı́tica do Liber Testamentorum.
[4] T. Bianquis, “A famı́lia no Islã árabe,” em A. Burguière et al., História da
Famı́lia, II, Terramar (1997).
Referência enciclopédica sobre a famı́lia islâmica.
[5] F. A. Doria, Os Herdeiros do Poder, 2a. ed., Revan (1995).
[6] A. de Mattos, A Lenda do Rei Ramiro e as Armas de Viseu e Gaia, pla-
quette, Porto (1941).
Um ensaio sobre a heráldica de Viseu e de Gaia.
[7] J. Mattoso, A Nobreza Medieval Portuguesa, Estampa (1985).
Texto base de referência sobre as genealogias medievais portuguesas.

52
V. Outras Linhagens Antigas.
1. Linhagens muito arcaicas.

A té onde podemos chegar, seguindo uma genealogia? Consideremos o


caso brasileiro. Seguindo–se traços documentais óbvios — batismos, casamentos
e óbitos — podemos traçar famı́lias cariocas até começos do século XVII, uma
ou outra linha na varonia, isto é, numa linha masculina exclusiva (é o caso dos
Correias, por exemplo, em ramos diversos da famı́lia, conhecida no Rio pelos
nomes duplos Correia de Sá e Correia Vasqueanes). Tais dados complementam–
se com outras fontes: inventários, que existem em abundância desde meados
do século XVIII, a sucessão de bens imóveis — contratos de compra e venda e
sucessão através de herança — e mais depoimentos perante a inquisição, onde os
denunciados e presos eram instigados a enumerar toda a parentela, acusando–os.
Na Bahia, os livros de registro de batismos, casamentos e óbitos chegam
apenas a meados do século XVIII, mas pode–se suprir lacunas com inventários, a
documentação existente nos arquivos da Santa Casa da Misericórdia de Salvador
(que foi fundada e meados do século XVI), e com documentos existentes no
Arquivo Histórico Ultramarino e nos arquivos Nacionais da Torre do Tombo em
Portugal. Novamente traçam–se fam’ılias até meados, agora, do século XVI,
e mesmo na varonia, como os Tourinhos, Argolos, Monizes, Moreiras, entre
outros. A situação em Pernambuco é um pouco mais precária, mas conseguem–
se genealogias bastante confiáveis até o século XVI, e ainda persistem hoje
varonias de famı́lias como os Albuquerques (no ramo Albuquerque Maranhão)
e Cavalcanti (no ramo Cavalcanti de Lacerda).
Um exame do Anuário da Nobreza de Portugal [11] mostra que muitas
famı́lias reconhecidas como tendo status nobre, mesmo se portadoras de tı́tulos
de nobreza, traçam–se na varonia até os séculos XVII ou XVI, onde os antepas-
sados mais remotos são em geral pequenos proprietários rurais despontando para
a classe média do campo que se ia formando naquele tempo. É mais ou menos

3
4 F. A. Doria

o mesmo o perfil majoritário da nobreza italiana: famı́lias que exibem tı́tulos


principescos, ao sul, como os Alliata ou os Tommasi di Lampedusa (do autor
do romance Gattopardo) chegam igualmente, nas suas raı́zes, ao século XVI, e
exibem como primeiros ancestrais algum proprietário rural melhor sucedido que
os seus ancestrais que ficaram anônimos [16].

Famı́lias antigas
Digamos que famı́lia antiga seja uma famı́lia que possa traçar sua varonia até
meados da idade média. Existem muitas famı́lias não soberanas assim: os Ro-
han e Rohan–Chabot, na França, assim como os Polignac, os Lévis; Orsinis
e Colonnas, na Itália; Silvas, Mascarenhas, em Portugal. No entanto, é im-
possı́vel traçar–lhes as genealogias com assentos de batistérios, casamentos e
óbitos, porque estes não existiam. Usam–se inventários, documentos de trans-
missão da posse de propriedades, outros registros cartoriais, inquirições régias,
enfim, o que existir como documentação. As incertezas crescem: há insegurança
na genealogia dos Orsini antes de Matteo “Rosso” Orsini, no século XIII; sabe–
se que os Colonna descendiam dos antigos Condes de Tusculum, e de Marózia,
a lindı́ssima romana cujas aventuras amorosas com papas e leigos inspiraram a
lenda da Papisa Joana (papas de nome João, note–se, surgem no currı́culo de
Marózia). Mas a exata conexão é debatida: a maior parte dos autores fazem–
nos descendentes na varonia dos Condes de Tusculum, mas Settipani crê1 antes
no casamento de uma senhora dos Condes de Tusculum com um nobre de status
talvez inferior, e de origem incógnita.

Um exemplo: os Meneses
Um caso tı́ıpico, a famı́lia dos Meneses, ou Telles de Meneses. Segundo o Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro, que como sabemos data do século XIV, de-
scendem estes de certo D. Pedro Bernardo de Sahagún, casado com uma senhora
da famı́lia da Maia. Vamos examinar a questão: quando surgem como grupo
familiar na história, os Meneses já aparecem como uma das famı́lias mais desta-
cadas na Penı́nsula Ibérica. Vários dos Meneses exibem o tı́tulo de conde (que
àquele tempo, dos séculos XII ao XIV, na região, não era tı́tulo hereditário, e
apenas marcava altas funções administrativas e o senhorio vitalı́cio, a tenência,
sobre certa região). Suas armas mostram o orgulho da linhagem: de ouro, pleno.
Um escudo liso de ouro. E, enfim, escondiam suas origens numa lenda, a Lenda
do Anel:

O rei de Leão tem uma filha que é seduzida e deflorada por um fidalgo
da corte. O rei expulsa a filha desonrada, que vagueia pelos campos
e é acolhida por um lavrador de nome Telo Alfonso. Telo Alfonso
acolhe–a, casa–se com ela, e tem com ela dois filhos. Um dia o rei
perde–se numa caçada e vai dar na casa do lavrador. A princesa
reconhece o pai, mas este não identifica a filha. Esta, para se fazer
1 Em comunicação particular ao autor.
V. Outras Linhagens Antigas. 5

conhecer, e sabendo que o pai gostava de ovos mexidos, prepara–os


e joga no meio da massa um anel que o pai lhe havia dado. O rei
encontra o anel no meio dos ovos, descobre na camponesa que o
recebera a filha que expulsara, aceita como netos os dois filhos da
moça e como genro ao camponês, que nobilita.

A lenda é bonita, mas deve ser tardia. Não era conhecida no século XIV, e
no século XVI as armas dos Meneses, como representadas no Livro do Armeiro–
Mor, de 1506, ainda exibem o escudo de ouro liso. Ao fim do século XVI surge
a versão nova das armas dos Meneses: de ouro, com um anel encoberto do
mesmo, em abismo, com um rubi voltado para o cantão sinistro superior. Ou
seja, incorporam–se às armas dos Meneses o contorno de um anel em seu centro.
É provável que tal móvel heráldico haja sido incorporado para “quebrar” o tão
orgulhoso escudo dos Meneses, e que a Lenda do Anel seja uma explicação a
posteriori.
Que se conhece, na documentação histórica, sobre a origem dos Meneses?
Manoel César Furtado2 não encontrou nenhum Pedro Bernardes notável na
documentação do mosteiro de Sahagún. Há uma famı́lia antiga, de senhores
poderosos, no vale do rio Mena — donde Meneses, nome de localidade ali —
conhecida como os Alfonsos. Nesta famı́lia aparecem diversos personagens de
nome Telo e Ansur ou Soeiro, além de Alfonso, prenomes tı́picos entre os Mene-
ses desde o século XII. Portanto, com certeza os Meneses descendem dessa gente.
Mas como? A solução que apresentamos nas tabelas genealógicas deve–se a
Marı́a Emma Escobar3 e deriva o poderio dos Meneses do Conde Pedro Ansúrez,
potentado que viveu em fins do século XI.
De qualquer forma, trata–se de uma conjectura, embora bem fundada. Há
um grau de incerteza que nunca eliminaremos — com os métodos históricos
atuais.

Outro exemplo: os Vasconcellos


Trata–se de outra famı́lia cuja origem parte de uma lenda: na tomada de Lisboa,
em 1147, Martim Moniz, ancestral primeiro, defende uma das portas do Castelo
de S. Jorge em Lisboa. Luta furiosamente contra os mouros, mas um destes
avança por trás e decapita–o com um golpe de espada. Mas ainda que sem
cabeça, o corpo de Martim Moniz continua de pé alguns momentos, brandindo
a espada com fúria, e ferindo os mouros que o cercam.
A porta de Martim Moniz está lá, no Castelo de São Jorge, abrindo–se para
a praça de Martim Moniz, dezenas de metros abaixo; e dela tem–se uma vista
ampla de Lisboa, que chega às ruinas do antigo convento do Carmo (onde existia
uma capela dos Monizes de Lusignan, famı́lia sem relação a Martim Moniz), e
dali ao horizonte. Numa manhã de sol, de primavera, é um lugar tranquilo,
agradável.
2 Em pesquisa inédita.
3 Em comunicação pessoal.
6 F. A. Doria

Trata–se de uma lenda baseada num fato sangrento mas banal que pode ter
acontecido com algum dos companheiros de D. Afonso Henriques. Mas não há
registro, nas narrativas contemporâneas, de um tal incidente, e o Martim Moniz
que é ancestral dos Vasconcellos seria de qualquer modo, menino, quando da
tomada de Lisboa. Seu pai segundo o Livro de Linhagens, Moninho Osores,
que é documentado como natural do mosteiro de Grijó em 1138, junto com
sua mulher Boa Nunes. O Livro de Linhagens dá por pai a Moninho Osores
a um vago Conde D. Osório, “Conde de Cabreira e Ribeira.” O personagem
que melhor se identifica a esta figura dos livros de linhagens é o Conde Osório
Martı́nez, que morreu na batalha de Lobregal em 1165; de Osório Martı́nez
descendem, no século XIV, Condes de Cabrera, de apelido Osório, derivado de
patronı́mico. Além do mais, Osório Martı́nez era tenente de da terra de Ribera.
Moninho Osores, no entanto, não aparece na relação de seus herdeiros, o que se
explicaria vendo–o como um bastardo que inclusive passou a Portugal por ter
sido excluı́do da herança.4
Novamente temos aqui uma situação na qual os vı́nculos genealógicos mos-
tram–se plausı́veis mas incertos. E não há modo de se reduzir a incerteza.

Linhagens régias
A maior parte das linhagens régias da Europa Ocidental traça–se na varonia
até um per’ıodo entre os séculos X e XII. Os Capetos são a linhagem mais
antiga: seu ancestral mais remoto, seguro, é Robert dito o Forte, Duque da
França, no século IX. De lá até os chefes atuais das diferentes linhas, 33, 34
gerações depois, há pouquı́ssimas dúvidas nas conexões genealógicas. A Casa
de Sabóia, que reinou sobre a Itália em partes do século XIX e do XX, traça–se
até começos do século XI, assim como os Habsburgos e, pouco posteriormente,
os Hohenzollern.
Tal coincidência de datas pode dever–se a uma reacomodaç ao das camadas
sociais, ocorrida entre os séculos X e XI, no ocidente europeu, com uma nova
classe dominante substituindo a antiga, mas é com certeza interessante verifi-
carmos se se podem traçar as origens desses homines novi nalgum outro seg-
mento social. O estudo clássico a respeito foi feito por Glöckner [3], que en-
controu as origens — plausı́veis — dos Capetos nos Condes de Wormsgau, uma
famı́lia conhecida como a famı́lia Robertina, devido à presença do nome Chrode-
bert/Roberto entre seus membros. Com isto, a ascendência dos Capetos recua
para o século VII, onde encontramos um primeiro Chrodebert dentre todos, no
meio da nobreza principal à volta da corte merovı́ngia na França.
Mas como se sabe, Glöckner conclui seu ensaio com a frase: alle Genealogie
ist im Grunde Hypothese. Toda genealogia é, no essencial, hipótese. Bom
resumo para a questão.
Com tais restriç oes e cautelas, é possı́vel estendermos algumas linhagens,
mesmo na varonia, até quase os começos da idade média.
4 Esta conclusão seguiu–se a discussão entre Mar’ıa Emma Escobar, Manoel César Furtado,

e o autor, na lista portugal–[email protected].


V. Outras Linhagens Antigas. 7

Até onde podemos chegar?


É uma anedota apócrifa: conta–se que Napoleão teria encontrado um Prı́ncipe
Massimo, de uma das primeiras famı́lias do patriciado romano, e perguntando–
lhe se era verdade que sua famı́lia remontava aos tempos do império romano,
recebeu a resposta, bom, dizem isso há dois mil anos. (Na verdade esta famı́lia
traça–se até certo Leo de Maximo [16], atestado no século XI.) Mas há de fato
tradições que ligam famı́lias da nobreza romana à antiguidade clássica: por
exemplo, o caso dos Orsinis, ou dos Colonnas.
Tudo bem: dentro de limites razoáveis de plausibilidade poderemos traçar
linhagens familiares desde a antiguidade clássica até o presente? Tirando–se
mitos e romances — como She, de Rider–Haggard, onde o herói, Leo Vincey,
pertencia à 65a. geração de uma famı́lia iniciada pelo século V a.C., com um
sacerdote grego de nome Kallı́krates, e era seu único descendente — a questão
só foi examinada de modo mais atento e de um ponto de vista acadêmico há
meio século, com um ensaio num dos últimos livros de Sir Anthony R. Wagner
[20], ensaio que se chamou “Bridges to Antiquity.” Em resumo, o que se sabe é:

• Podemos traçar, com razoável segurança, as genealogias das diversas di-


nastias egı́pcias, usando sobretudo fontes epigráficas5 A partir da 12a.
dinastia (c. 2000 a.C.) é plausı́vel supor uma ligação entre todas, mesmo
notando–se p.e. que os Raméssidas (dinastias XIX e XX)6 originalmente
vieram da nobreza militar da provı́ncia [5], e ignorando–se as dinastias
XIV–XVI, entre as quais se situam os soberanos de provável origem semita,
não egı́pcia. Fora desta sequência praticamente contı́nua em mais de 1500
anos está a dinastia dos Ptolomeus e Cleópatras (Lágidas).

• É também possı́vel traçarmos genealogias de famı́lias da alta aristocracia


egı́pcia — basicamente, funcionários da corte — usando–se as inscrições
em estelas como fonte [6]. Algumas destas genealogias chegam a 15 ou 16
gerações,7 isto é, 500 ou 600 anos.

• Finalmente podemos traçar as genealogias de certas famı́lias sacerdotais


de alta hierarquia,8 como os sumos sacerdotes de Mênfis, durante seis ou
sete séculos, até o perı́odo dos Lágidas (Ptolomeus), no século IV a.C.

• Podemos também traçar, com base em inscrições sobretudo, e mais re-


ferências em contemporâneos ou quase, a genealogia de dinastias como os
Aquemênidas da Pérsia [15].

• Podemos traçar uma genealogia bastante confiável dos Lágidas (a dinastia


dos Ptolomeus), mostrando suas origens macedônias e gregas, e inclusive
seu entrelace com a alta aristocracia — o patriciado republicano — ate-
niense [1, 15].
5 Inscrições.
6 Fins
do segundo milênio a.C.
7 Comunicação pessoal de K. Kitchen.
8 Comunicação pessoal de C. Bennett, e, independentemente, de T. Stanford Mommaerts.
8 F. A. Doria

• Finalmente conhecemos muito das famı́lias dos imperadores romanos, e,


sobretudo, de algumas famı́lias do patriciado senatorial, como os Anicii,
em linhagens que se estendem desde a era cristã até o século V, e talvez
além [14, 15, 20].

No inı́cio da década de 80 do século findo, T. Stanford Mommaerts propôs


o nome “descents from antiquity,” abreviado DFA, para englobar tal área de
estudos, o exame e reconstituição de genealogias e linhagens que cheguem à
antiguidade clássica, ou mesmo antes. O ensaio de A. R. Wagner [20] fora
um estudo pioneiro, mas mostrava grupos familiares desentroncados, embora
houvesse, plausivelmente, algum entrelace entre diversos deles. Um primeiro
esforço para juntar tudo foi feito pela The Augustan Society, com tábuas que
ficaram conhecidas como as tábuas das DFAs [4]. Tais tabelas deveriam ser
acompanhadas pela justificativa das conexões feitas, mas um tal trabalho foi–
se estendendo, e acabou superado com a publicacão sucessiva de dois livros de
Christian Settipani [14, 15] que já vamos comentar.
Qual a metodologia usada no estudo de linhagens tão arcaicas? Usam–se ins-
crições, relatos de contemporâneos, registros em moedas, sobretudo, e em outros
objetos recuperados em sı́tios arqueológicos. Como as fontes são variadas e de
confiabilidade, digamos, elástica, um critério básico deve ser sempre seguido: o
exame com lupa da consistência dos dados reunidos. Em geral toma–se como
guia um traço arcaicı́ssimo destas famı́lias, os usos onomásticos (a maneira pela
qual se dão os nomes). Certos nomes repetem–se insistentemente, e se usa-
dos consecutivamente e com insistência em grupos familiares distintos, podem
indicar uma conexão segura entre tais grupos.9

As reconstruções de Settipani
Estudos demográficos mostram que Carlos Magno (n. 747, fal. 814) é ancestral
de praticamente toda a população da Europa Ocidental. Um exemplo com uma
famı́lia brasileira, os Albuquerques:

• Hugo Capeto descendia de Carlos Magno através de sua avó paterna


Béatrix de Vermandois, tetraneta de Carlos Magno.

• D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, descendia de Hugo Capeto.

• D. Afonso Sanches, primogênito e bastardo de D. Diniz, rei de Portugal,


provinha através do pai de D. Afonso Henriques. Foi o ancestral dos
Albuquerques portugueses.

• O nome Albuquerque passa através de casamentos de senhoras aos Cunhas


e aos Mellos, e enfim chega a Leonor de Albuquerque, filha de Gonçalo
9 Uma observação pessoal: o prenome Antonio do autor vem sendo utilizado na sua agnação

desde começos do século XVI — a devoção a S. Antonio de Lisboa institucionaliza–se em


Portugal em meados do século XV; o prenome Francisco, vindo–lhe nos Acciolis ou Acciaiolis,
que eram na origem toscanos, chega–lhe desde fins do século XIII, quando começa a se espalhar
a devoção a S. Francisco de Assis.
V. Outras Linhagens Antigas. 9

Vaz de Mello e de Isabel da Cunha, e através desta neta de Vasco Mar-


tins da Cunha e de D. Teresa de Albuquerque. Leonor de Albuquerque
casa–se com João Gonçalves de Gomide, senhor de Vila Verde, que a as-
sassina em 1430 ou pouco antes, e é condenado à morte e degolado em
Évora logo em seguida. Os filhos adotam o nome Albuquerque; entre os
descendentes desta linha surgem Afonso de Albuquerque, o conquistador
das Índias, Matias de Albuquerque, que lutou contra os holandeses no
Brasil, na primeira metade do século XVII, e Jerônimo de Albuquerque,
o Adão Pernambucano, patriarca desta famı́lia em Pernambuco, onde se
fixou na primeira metade do século XVI.
Ou seja, através de Jerônimo de Albuquerque chega a considerável fração da
população de Pernambuco e do nordeste o sangue de Carlos Magno.
De quem descendia Carlos Magno? O ensaio de Settipani [14] mostra que, na
linha varonil direta, Carlos Magno provinha da famı́lia real dos reis dos francos
ripuários, possivelmente aparentados aos reis merovı́ngios, sendo o ancestral
mais antigo nesta linha, Sigebert o Coxo, rei de Colônia entre 496 e 508, quando
foi assassinado por sicários a mando de seu filho Clodéric o Parricida, a quem
Clóvis, rei dos francos, instigara à morte do pai. Era, portanto, um franco em
sua varonia.
Mas em linhas femininas Carlos Magno descendia de uma conhecida famı́lia
de senadores galo–romanos (moradores na Gáulia que viviam segundo a lei ro-
mana), os Ferreoli. Um dos antepassados galo–romanos de Carlos Magno, se-
gundo o propõe Settipani, é Ruricius, bispo de Limoges de 485 a cerca de 507.
E, segundo testemunhos contemporâneos a Ruricius, este descendia da famı́lia
senatorial dos Anicii. Com base nestas duas hipóteses,
• Que Carlos Magno descendia de Ruricius; e
• Que Ruricius era de fato um dos Anicii,
Settipani traça-lhe uma ascendência, nos Anicii, até Antı́oco II, o Selêucida.
Em seu livro seguinte, Nos Ancêtres de l’Antiquité, Settipani [15] propõe
uma outra linha até a antiguidade clássica, através dos imperadores bizantinos,
casados com descendentes dos prı́ncipes mamikonianos da Armênia, que por sua
vez proviriam dos reis arsácidas, dos aquemênidas, e dos lágicas — o que nos
faria a todos parentes dos Ptolomeus e Cleópatras.

Parentescos a Cristo, a David e aos Macabeus


E parentescos a Cristo? O problema, aqui, é infinitamente mais complexo,
porque é possı́vel que a imagem de Cristo, trazida nos evangelhos, seja na
verdade uma figura composta de elementos proféticos, personagens contem-
porâneos, em torno de um indivı́duo histórico. Ou seja: juntaram–se ao per-
sonagem histórico narrativas que confirmam profecias correntes na literatura
religiosa da época, e a isto se amalgamaram partes da biografia de person-
agens contemporâneos, ou quase, que fossem lı́deres polı́tico–religiosos dentre os
judeus.
10 F. A. Doria

Podemos, portanto, estender a questão do parentesco a Cristo ao problema


do parentesco ao rei David. Esta questão, discutimos a seguir.
A Palestina, nos séculos II e I a.C. era um lugar conflagrado [18]. Sob o
domı́nio, primeiro, dos Selêucidas, há um conflito entre dois grandes grupos no
âmbito do judaı́smo, os tradicionalistas ou ortodoxos, e os helenizantes. Em
171 a.C. é assassinado o sumo–sacerdote Onias III, e o assassinato é atribuı́do
ao sumo–sacerdote helenizante, Menelau. Os tradicionalistas, sob o comando
de Judas Macabeu, revoltam–se em 168; em 150, Menelau é executado. Em
140 a dinastia dos Macabeus (ou Hasmoneus) firma–se no trono. O último dos
Macabeus, Hyrcanus, é exilado em 37 a.C., e é executado em 30 a.C.
De um ponto de vista da historiografia leiga, é possı́vel que um dos per-
sonagens, conhecidos ou não, do sangue dos Macabeus, tenha contribuı́do para
a imagem que temos de Jesus Cristo, desde que esta dinastia ascendera ao
trono em defesa da ortodoxia judaica. Nesta famı́lia de tradições heróicas havia
princesas de nome Mariamne/Myriam, ou seja, Maria, e a tradição referente
à matança dos inocentes poderia estar relacionada à sucessão de uma senhora
de tal nome, Mariamne, sucessão que ameaçaria com pretendentes estranhos o
trono de Herodes o Grande, um idumeu que chegara ao trono da Judéia pelo
seu casamento com Mariamne, neta de Aristóbulos, rei da Judéia entre 68 e 49.
Há uma possı́vel linha dos Macabeus, passando pelo usurpador Herodes o
Grande, o idumeu, até os dias de hoje10 Esta linha, suficientemente interessante
para que a coloquemos aqui, é a seguinte, nos seus entrelaces iniciais:
1. Mattathias, fal. 167 a.C. Pai de:
2. Simão Maccabeus, sumo sacerdote 144–135 a.C. Pai de:
3. Yohanaam “Hyrcanus,” sumo sacerdote e prı́ncipe da Judéia, 156–105 a.C.
Pai de:
4. Alexandros Iannaeus, rei da Judéia, 105–78 a.C. C.c. Alexandra. Pais de:
5. Aristoboulos, rei da Judéia, 68–49 a.C. Pai de:
6. Alexandros, fal. 49 a.C., c.c. a prima co–irmã Alexandra, filha de Hyr-
canus, irmão de Aristoboulos, também sumo sacerdote e rei da Judéia, 69
a.C. Pais de:
7. Mariamne, c.c. Herodes o Grande, rei da Judéia, de quem foi a segunda
mulher. Pais de:
8. Alexandros, fal. entre 7 e 6 a.C. C.c. Glaphyra, filha de Archelaus, rei da
Capadócia, 30–17 e da Armenia Menor, 20–17 a.C. Pais de:
9. Alexandros, pai de:

10. [anônima] c.c. Maanu VI, 57–71 d.C, rei de Osrhoene. Pais de:
10 A partir de uma observação de David Kelley; a linha nos foi comunicada por T. Stanford

Mommaerts.
V. Outras Linhagens Antigas. 11

11. Ode, nascida 45/50 d.C., c.c. Mithridates rei da Armenia nascido c. 45,
fal. c. 76/77. Pais de:
12. Sanatroukes, rei da Armenia c. 80, até 110, n. 65, fal. 110. Pai de:
13. Vologaises I, rei da Armenia c. 116, até 137, n. 95, fal. 137. Pai de:
14. Vologaises V, pretendente na Armênia, 162, rei da Partia, 190–207, n. 130,
fal. 207.
15. . . .
O ponto crucial é a sugestão de D. Kelley, reiterada por Stanford Mom-
maerts: a princesa anônima que liga os descendentes dos idumeus e dos macabeus
aos reis da Armênia. Com isto, terı́amos uma linha até o presente — porque os
descendentes de Vologaises V são legião — de parentes dos macabeus. Notemos
que uma famı́lia baiana do século XVI, os Antunes, eram conhecidos como “os
novos Macabeus.” Tal famı́lia deixou ampla descendência na Bahia, mas não se
sabe o motivo da alcunha familiar.
Há, por outro lado, diversas famı́lias — a maior parte delas, famı́lias judaicas
— trazendo há muito a tradição de serem descendentes do rei David. Mas
infelizmente não há uma linha contı́nua, razoavelmente estabelecida, entre o rei
David e a contemporaneidade. Muitas famı́lias que se dizem de raiz davı́dica
descendem — com um salto de algumas gerações — de um grande pensador
judeu, o rabino Solomon ben Isaac (conhecido como Rashi, de Reb Shlomo b.
Isaac), que viveu em Troyes, na França, de 1040 a 1105.
Três grandes linhas provêm de Rashi, sempre segundo a tradição:
• De sua filha Iochebed, casada com Meir ben Samuel (1065–1135), de-
scende, pelo neto de Rashi, Isaac, um personagem de fins do século XIII,
Samuel Spira, ancestral, em linha contı́nua, das famı́lias Luria (Lurié,
Lourié), Katzenellenbogen, Horowitz, Margulies, e mesmo Marx, de Karl
Marx.
• Outro filho de Iochebed foi Jacob (1096–1171). Deste descendia a famı́lia
Zarfaty, Serfaty, do Marrocos.
• De Myriam, filha de Rashi, casada com Judah ben Nathan, era trineto Ju-
dah Leon de Paris (1166–1224), de quem descendia (sem que se conheçam
as gerações intermediárias) o rabino Joseph Trèves, de Marselha, nascido
em fins do século XIII.11
Joseph Trèves é o ancestral das famı́lias Trèves, Dreyfus, Trefusi, entre
outras.
E, enfim, notemos que há uma tradição, na famı́lia dos Lévis–Mirepoix,
de parentesco a Nossa Senhora. Mas nada comprova esta tradição, e os Lévis
traçam–se ao século XI, sem que se lhes possa conectar a linha a alguma possı́vel
linha davı́dica.
11 Provavelmente bisneto de Judah Leon.
12 F. A. Doria

O Código da Vinci e a pseudo “linhagem sagrada.”


O romance O Código Da Vinci, de Dan Brown12 baseia–se noutro best–seller,
Holy Blood Holy Grail, de Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln.13
Em resumo, o núcleo da história contada em Holy Blood Holy Grail, tem duas
partes e uma genealogia, a “linhagem sagrada”:

• A primeira parte é a história de Bérenger Saunière, cura de Rennes–le–


Château. Saunières, nascido em 1852, é nomeado cura de Rennes–le–
Château em 1885. Saunière, que vive em Rennes–le–Château até a morte,
em 1917, vive uma vida descrita como luxuosa, acompanhado de sua criada
e amante, uma camponesa do lugar que o acompanhava desde os dezoito
anos. Era ligado a grupos da direita francesa, e a Charles Maurras.
Comenta–se que teria descoberto algo como um tesouro perdido dos tem-
plários ou dos herejes cátaros, e que junto com tal tesouro teria encontrado
documentos com segredos terrı́veis sobre as origens do cristianismo.

• A segunda parte é a história de Pierre Plantard, chefe de uma ordem


que ele teria fundado, o Priorado de Sion. Plantard foi personagem de
comportamento duvidoso, ligado à direita, como Saunière, colaborador do
regime pró–nazista de Vichy durante a guerra de 1939–45.

• O terceiro elemento é a invenção que junta estes dois personagens, a falsa


“linhagem sagrada.” Em resumo conta–se que os reis merovı́ngios da
França seriam, na verdade, descendentes de um suposto casamento de Je-
sus Cristo com Maria Madalena. Uma famı́lia, dividida em poucos ramos,
teria hoje este peculiarı́ssimo privilégio, de descender do fundador do cris-
tianismo. Seriam os merovı́ngios, e depois seus supostos descendentes,
a famı́lia dos Duques de Bouillon, cujo representante máximo, na idade
média, fora Godofredo de Bouillon, rei de Jerusalém, falecido em 1100. Tal
famı́lia era conhecida como “famı́lia do cisne,” e proviria dos personagens
wagnerianos, Parsifal e Lohengrin, guardiães do Santo Graal.
Na verdade, a linhagem destes seria o próprio Graal: o nome graal viria de
sang royal, sangue real, já que sang royal pronuncia–se quase como Saint
Graal.

Os merovı́ngios não descendem de Cristo: nada há que sequer de longe


sugira isso. Grégoire de Tours e Frédégaire contam que os reis merovı́ngios
descendem de dois chefes tribais, Richimir e seu filho Théodemir, sendo que este
e a mãe, Ascyla, foram decapitados por ordem dos romanos [7]. A genealogia
dos merovı́ngios possui muitas obcuridades, mas é possı́vel que Carlos Magno
descendesse daquela primeira dinastia francesa — o que nos faz a todos que
tivermos ascendentes na Europa ocidental, descendentes dos merovı́ngios.
12 As referências bibliográficas nesta seção aparecem todas em notas ao pé da página.
13 Publicado no Brasil: M. Baigent, R. Leigh e H. Lincoln, O Santo Graal e a Linhagem
Sagrada, Nova Fronteira (1994); ed. original, Holy Blood Holy Grail, de 1982.
V. Outras Linhagens Antigas. 13

A “famı́lia do cisne” existiu, e teve este nome ([19], p. 44). A primeira re-
ferência ao nome foi feita pouco antes de 1173 por um cronista da Primeira
Cruzada, referindo–se ao rei de Jerusalém, Godefroy de Bouillon. Conjectura–
se que o nome viria talvez de Swanehilde, Condessa de Flanders, † 1132; ou
talvez uma referência a certo Rainier dito do–pescoço–comprido, Conde de Hain-
ault, † 973, trisavô pela mãe de Godefroy de Bouillon. Seus descendentes for-
maram famı́lias bem conhecidas: deles provinha, por exemplo, Henri de la Tour
d’Auvergne, Duque de Bouillon, o marechal de Turenne (de seu tı́tulo de Vis-
conde de Turenne, 1611–1675).
E, se o que foi exposto anteriormente, sobre os possı́veis descendentes hoje
dos macabeus, estiver correto, somos todos aqueles com algum sangue europeu,
parentes de aristocratas judeus que viviam na Palestina nos séculos II e I a.C.
Não apenas uma linhagem exclusiva.
2. Miscelânea.

L istamos em seguida diversos personagens, alguns semi–lendários, do perı́odo


medieval até o inı́cio da idade moderna, com descendentes hoje em dia no Brasil.

Attila
Morto em 453 durante sua noite de núpcias com Ildico, de origem germânica, o
chefe huno é dado como ancestral dos reis húngaros. A linha tradicional14 não
tem apoio histórico, no entanto.
Descendem da dinastia de Arpad os reis húngaros e, segundo tradições anti-
gas, os prı́ncipes de Croÿ. Também há uma tradição que faz descendentes destes
reis húngaros os Condes de Perth, na Escócia (a famı́lia Drummond), sem no
entanto qualquer apoio histórico. Na linha feminina, o casamento de Violante
de Hungria, † 1251, irmã de Santa Isabel de Hungria e filhas de André II, rei
da Hungria, † 1235, da dinastia de Arpad, com Jaime I, dito “o conquistador,”
de Aragão (1208–1276, rei em 1213), leva o sangue suposto de Átila a, por ex-
emplo, os Lacerdas, pelo casamento de Violante de Aragão com Afonso X “o
sábio” de Castela e Leão; a uma famı́lia antiga de nome Aragão em Portugal, e
14 Attila era filho de um chefe huno de nome Mundzuk, e sucedeu em 433 a um tio paterno,

Ruas. Ildico é às vezes identificada a Chrimschilde ou Krimhilde, mas esta deveria ser uma
mulher de sangue francônio, talvez uma nobre dos burgúndios.
Seus filhos proviriam de Chrimschilde. Um deles, Chaba, parece ter sido morto na batalha
do rio Netad, junto com milhares de combatentes.
O filho de Chaba, Ellak, teria morrido igualmente na mesma batalha, deixando um filho
sobrevivente, Vergerus, pai de Elendus e avô de Avarius.
Avarius é dado como o ancestral da dinastia húngara, mas seu nome é o de uma tribo, os
ávaros, da qual emerge a população húngara. Avarius seria ancestral — talvez tetravô — de
Almos, chefe magiar que viveu no século IX, pai de Arpad, o ancestral histórico da dinastia
húngara.

14
IV. Outras Genealogias Antigas. 15

aos Pimentéis, através de Pedro de Aragão, bastardo real, meio–irmão de Santa


Isabel de Portugal (1281–1336), mulher de D. Diniz “o lavrador” (1261–1325).
Daı́ o sangue que a tradição vê como se originando em Átila se espalha: as
famı́lias Correia de Lacerda e Lacerda Guimarães descendem longinquamente
destes reis húngaros, como os Rochas Pimentéis, Barros Pimentéis (Alagoas e
Bahia), Acciolis, Melos e Vasconcelos (Bahia), entre muitas.
Attila é Etzel, no poema germânico sobre os nibelungos [9], conhecido como
Nibelunge–nôt,15 assim como Chrismschilde, mutada em Krimhiilde.

Brünnhilde, Siegfried, e os Condes de Coimbra


Siegfried e Brünnhilde são figuras centrais [9] do poema dos nibelungos, têm
fontes históricas bem conhecidas: a Brünnhilde histórica, † 613, foi filha de
Atanagild, † 566, rei dos visgodos, e da princesa Galswintha, e casou–se com
Sigibert, rei de Austrasia (Metz), † 575. Teve um fim trágico: Santo Arnulf,
bispo de Metz e ancestral dos carolı́ngios, determinou sua captura e execução,
e Brünnhilde foi amarrada à cauda de um cavalo e arrastada até a morte.
Uma das filhas de Sigebert e Brünnhilde foi Ingundi, que se casou com Santo
Hermenegildo, † 595. Se há descendência conhecida deste casal Brünnhilde e
Sigebert, esta se dá através de Santo Hermenegildo, mas a questão é controversa.
Em resumo, o que se sabe é o seguinte: Leowegild (o nome possui também a
form Leodegild) sobe ao trono visigodo em 568. Pertence à alta nobreza visigoda
— é irmão de Liuva, co–rei até 571, quando morre, e rei isoladamente de 566 a
567; eram provavelmente filhos de um comes palatinus atestado pelos cronistas.
Casou–se da primeira vez com Teodósia, neta de Teodorico, rei dos ostrogodos,
e teve um filho, Hermengild (o nome significa, “valor do guerreiro”). Este casa–
se com Ingundis, católica — os visigodos eram arianos — e Ingundis faz com
que o marido se converta ao catolicismo. Hermengild declara guerra ao pai por
motivos (ou pretextos) religiosos, é vencido, aprisionado e assassinado na prisão
em 585. Filipe II fá–lo ser canonizado. O filho de Ingundis e Hermengild, de
nome Athanagild, como o avô de Ingundis e pai de Brünnhilde, refugia–se em
Bizâncio onde se casa.
Pois em 578 vemos um prı́ncipe armênio, Vardan ou Vardanes, terceiro do
nome, da dinastia dos prı́ncipes Mamikonianos da Armênia — dinastia que,
segundo fundadas evidências [15], remonta aos Arsácidas, aos Aquemênidas, aos
Ptolomeus, e talvez mesmo aos faraós do Médio Império egı́pcio — vemos este
prı́ncipe Vardan exilar–se em Bizâncio, onde se casa com uma filha do patrı́cio
Philippikos e de Gordia, irmã do imperador Mauricius. Muito provavelmente foi
mulher de Athanagild, filho de Hermengild, uma filha de Vardan Mamikonian.
Este Vardan era sobrinho de outro dos grão–prı́ncipes da Armênia, Artavazd
IV, cujo nome se reproduz naquele do filho de Athanagild, Ardabasto.16
Ardabasto volta à Penı́nsula Ibérica e usurpa o trono visigodo; é deposto
em 649, e morre em 652. Seu filho Erwig volta ao trono e morre em 687. Nos
15 A Tragédia dos Nibelungos.
16 Troca de mensagens entre C. Settipani e o autor.
16 F. A. Doria

começos do século VIII, quando a Espanha é invadida pelos árabes, um descen-


dente destes, Sisebut, é nomeado pelos conquistadores comes, conde dos cristãos
em Coimbra, seguindo a sábia estratégia dos conquistadores muçulmanos: mel-
hor deixar cada comunidade sob a direção de seus próprios lı́deres, e conduzi–
los, aos lı́deres, e não diretamente às populações. Assim sendo, cada região
possuı́a seu conde dos cristãos, assim como cada comunidade judaica (pois que
essas haviam, na Ibéria do ocidente, desde o tempo da queda de Cartago) se
mantinha organizada sob seus rabis.
No entanto, convivência dos condes dos cristãos de Coimbra com os muçul-
manos nunca é muito pacı́fica. Um documento controverso, do qual só existem
transcrições, mas que se dá como datado de 770, era de César de 808, mostra (ou
mostraria) duas intervenções de um abade de Lorvão junto ao vali muçulmano,
o governador da área, em defesa do conde. (Na verdade, o vali em causa poderia
ter sido o próprio emir de Córdova, Hisham, ou Abu al–Walid ar–Radi Hisham.)
Em 878, Hermenegildo ou Mendo Guterres, o último dessa linha, expulsa os
muçulmanos do território de Coimbra e se declara feudatário do rei Afonso III
de Leãoo que na prática o fazia um senhor independente.
O documento em causa é o seguinte:
In nomine Dei Patris genitoris, et fi-/lii eius unigeniti. spiritus
quoq; sãcti / illuminatoris, Trinitas inseparabilis, et / indivisa. Ego
Theoddus Comes Christia-/norum, qui sunt in Colimb. cognoscens
/ multa bona, quae recipio quotidie de ma-/ nu Domini nostri Iesu
Christi, in medio //
//nostroruminimicorum, qui nos undique / praemunt, et vexant quo-
tidie, cum mul-/tis tormentis, et vexationibus, et quoniã / fui iam
per duas vices salvatus à morte, / per petitionem Aydulfi Abbatis
de La-/urbano, et suorum Monachorum, quoniã / me condenavit
Maruan Ibenzorab domi / nus in Colimb. ubi ego remansi cum meo
/ Patre Athanarico, et gubernavi Chris / tianos, qui sunt ibi de suo
rogatu, tanquã / de genere Gothorum, et de generatione / Egicae
boni Regis: et propter hoc ego de / bono animo, et sana mente do
monasterio / praedicto constructo ad honorem Sancti / Mamettis,
et Pelagii, duas hereditates, / quas ego habeo in Almafala territorio
/ Colimb. et sunt valatae suis moionibus, / ex quatuor plagis mundi,
de quas ego do / in pecho octo pesantes de argento, per quem / que
annum; eruntque monachis, et homi / nibus fidelibus qui Deo servi-
unt in mo- / nasterio ad cibum, et vivendam, et red- / dent pro
illas praedicto Maruan Iben- / zorah dictos octo pesantes de suo pe-
cho, / aut salvent per solidum, vel tremissem. Et / quia Dei gratia,
nouimus dictum Mar- / uan Ibenzorah, esse amicum de vobis Ab /
bas Aydulfus, et ire ad vestrum monas- / terium multis vicibus, ad
caçam de ves- / tros venatos, quos dat vobis si matat, et / dormit
ibi, et manducat cum suis; curã / vos habendam tenebitis, cum ego,
et alii / Christiani furmus in praesura, venire ad / illum, et rog-
are pro nobis, et cum ego / fur defunctus de isto seculo, dabunt vo
IV. Outras Genealogias Antigas. 17

/ bis meos heredes triginta pesantes argen / ti, pro cruci faciendo
facere, et vos leva- /bitis meum corpus ad Laurbano, et ro /gabitis
Deo pro anima mea, et mando / meis filiis Theodorico, Ataulpho, et
Hermegil- //
//megildo servare vobis totum istud: quod / ego video mandare, quod
si non fecerint / sint a Deo maledicti, neq; sint habiti pro / genere
Gothorum: neque Christiani ha- / beant eos suos Comites. Si vero
homo / estranius hereditates iam dictas rapien / do turbaverit, cum
Datanio, et Abiro- / nio sumergatur, et cum Iuda proditore / vadat
ad infernum per semper. Facta fuit / cartula testamenti, era DCC-
CVIII./ mense Aprili. Ego Theoddus Comes, propria manu / robo-
ravi. Ego Cisindo Gothus, confirm. / Ego Theodoricus, quod Pater
meus consent. Ego Hermegildus, quod Pater/ meus consent. Ego
Servandus humilis e- / piscopus Col confir. Ego Stephanus praes
/ biter christ. confir. Ego Petrus Diaconus / christi conf. Ego
Ordonius Subdiaconus / christi confir. Ego Salviatus cantor ec- /
clesiae, col. confir. Ego Iulianus Iudex chri / stianorum, confir.
Ego Ariovigildus Go / thus, confir. Ego Egica Gothus, confirm. /
Ego Cimbria vidua famula christi, conf. / Ego Placencia vidua fa-
mula christi, conf. / Ego Dumia vidua famula christi, conf. / Ego
Marcia virgo christi, confir. Ego / Munia virgo christi, confir. Ego
Servi- / ania virgo christi, confir. Ego Lucendria / virgo christi,
confir. Ego prudencia vir / go christi, confirm. Ego Heriana virgo
/ christi, confir. Aydulfus Abba quod vi- / dit, Odorius Praesbiter,
qui notavit.
Este documento é conhecido em duas versões, uma delas publicada na Monar-
chia Lusitana, primeira parte, por fr. Bernardo de Brito. No essencial, para nós,
importa a seguinte passagem, dada em tradução:
. . . e por quanto mediante os rogos de / Aydulfo Abbade de Lorvão,
e de / seus monges, fui já livre duas vezes / da morte a que me tinha
condena / do Marvan Ibenzorah senhor de / Coimbra, onde eu fiquei
com meu pay Athanarico, e governei os chri / stãos que hahi morão,
por elles proprios mo pedirem, como a homem / em fim de geração
Godo, e descen / dente do bom Rey Egica, pellas qua / es obrigações,
eu com bom animo, e / saa vontade, dou ao sobredito mo / steyro,
fundado em honra de São / Mamede, e São Payo martires de Christo,
duas erdades minhas que / tenho em Almasala termo de Coimbra, e
são demarcadas com se / us padrões, pera todas as quatro / partes
do mundo, das quaes pago / em cada hum anno de tributo oi / to
pesos de prata, e servirão pera / mantimento, e comida dos mon- /
ges e pessoas fieis que servirem a / Deos no mosteiro, e pagarão del-
/las ao sobredito Marvan Ibenzo- / rah; os ditos oito pesos de seu
tri- / buto, ou o rimão com soldos e tre / misses. E porque sabemos
que me / diante a graça de Deos, o sobredi- / to Marvan Ibenzorah,
tem grande / amor a vós Abbade Aydulfo, e vai muitas //
18 F. A. Doria

// muitas vezes ao vosso mosteyro á / caça de vossos veados, e


vo los dá / quando os mata, e dorme hahi, e / come com os seus,
ficará á vossa con- /ta ter cudado quando eu e os outros / Christãos
estivermos em tribula- / ção ir ter com elle, e rogar por nòs, / e
quando eu partir deste mundo, / vos darão meus erdeiros trinta pe
/ sos de prata pera mandardes fazer / huma Cruz, e vòs levareis
o meu cor / po a Louvão, e rogareis a Deos por / minha alma: e
mando a meus fi- / lhos, Theodorico, Ataulfo, e Her / megildo, que
vos goardem tudo isto / que me pareceo mandar, e se o não / fizerem
sejão amaldiçoados de Deos / e não sejão avidos por descenden / tes
dos Godos, nem os Christãos os / aceitem por seus Condes: mas se
algum / homem estranho perturbar as ditas / erdades usurpando as
pera si, seja su / mergido com Datão, e Abirão, e và / pera sempre ao
inferno com Iudas / o trèdor. Foy feita esta carta de tes / tamento,
na era de oitocentos e / oito ( que he anno de Christo, setecen / tos
e setenta ) no mês de Abril. Eu Theodo, conde, reitero com minha
prṕria mão. . . [seguem–se os demais confirmantes]
Este documento traz uma pequena genealogia: Teudo, conde dos cristãos
em Coimbra, filho de Athanarico, de nação (origem) goda, declara–se descen-
dente do rei visigodo Egica, e dá como seus filhos a Teodorico, Ataulfo, e
Hermenegildo. O documento é um falso, ou na pior das hipóteses, fortemente
interpolado ou adulterado.17 No entanto, há consistência interna em aspectos
que nos interessam neste documento:
• Os nomes dos personagens dados como membros da famı́lia dos Condes
de Coimbra, Athanagildo, Teudo, Ataulfo, Teodorico e Hermenegildo, são
consistentes com os padrões onomásticos da linha familiar à qual pertencia
o rei Egica, † 701.
• Também é consistente com o que sabemos a cronologia que se dá para o
perı́odo no qual vivem aqueles personagens.
• Por outro lado, Sáez [13], ao estudar essa famı́lia, só encontrou referências
ao pai do presor Hermenegildo Guterres, um Guterre casado com Elvira,
ambos sem patronı́mico. No entanto, a paponı́mia justificaria o primeiro
Hermenegildo, mencionado no documento acima, dado como filho de Teudo
e neto de Athanagildo. Também se referiria à suposta origem régia desta
linhagem dos Condes de Coimbra a inscrição no túmulo da rainha Elvira
([13], nota 60 do texto):
Hic colligit tumulus regali ex / semine corpus Geloyrae reginae,
Ordonis secundi uxor. . .
Aqui está o tumulo do corpo da rainha Elvira, de sangue real, mulher de
Ordonho II. . . . (Nossa ênfase.)
17 Um dos motivos é a referência a São Pelágio, mártir, cujo martı́rio deu–se apenas em 925.

Mas a onomástica dos confirmantes parece consistente.


IV. Outras Genealogias Antigas. 19

Com base neste documento que supomos em decorrência válido nos pontos
de nosso interesse, Vaz de São Payo [17] propõe a seguinte ascendência para os
Condes de Coimbra, ainda baseado (como cita) em H. Livermore:
1. Leuderic ou Leuweric, comes palatinus, dado como correspondente de
Teodorico o Grande em 523 e 526. Pai do rei visigodo Liuva (Leuwa,
Liuba, supracitado) e de:
2. Leudegild ou Leuwegild, rei visigodo de 568 à sua morte, em 586. Casou–
se da primeira vez com Teodora, filha de Severiano, Duque de Cartágena,
e de outra Teodora, filha de Teodorico, rei dos ostrogodos. Pais de:

3. Hermengild, canonizado como Santo Hermenegildo, mártir, †585. Casou–


se com Ingundis, † 586, filha de Sigebert, rei dos francos de Metz, e de
Brünnhilde. Pais de:
4. Athanagild. Radicado em Bizâncio, casa–se com uma neta materna de
Vardan III Mamikonian, filha do patrı́cio Philippikos. P.d.:
5. Artavazd ou Ardabasto, conde. Casa–se, ao voltar para Toledo, com
Galswintha, filha do rei Chindaswinth (570–653). P.d.:
6. Erwig, rei visigodo, † 687. Casa–se com Luibigoto, filha de Swintila, †
636, rei dos visigodos de 621 a 631, e de Teodora, filha do rei Sisebut, †
621. P.d.:
7. Cixilona, que casa com o rei visigodo Egica. P.d., entre outros:
8. Sisebut, irmão de Witiza, rei dos visigodos † 710, conde dos cristãos em
Coimbra. P.d.:
9. Aidulf ou Athaulf, conde dos cristãos em Coimbra. P.d.:
10. Athanagild ou talvez Athanaric, conde dos cristãos em Coimbra. P.d.:
11. Teudo, conde dos cristãos em Coimbra (770). P.d.:
12. Hermengild, atestado em 841, capitão da guarda. P.d.:
13. Guterre, conde dos cristãos (atestado em 860 e 875). C.c. Elvira. P.d.:
14. Hermenegildo Guterres, que retoma Coimbra em 878 e se faz seu
presor, tendo como suzerano a Afonso III de Leão. C.g.
De Hermenegildo Guterres descende praticamente toda a nobreza portuguesa
dos séculos XI e XII, e, pelos argumentos demográficos usuais, toda a população
portuguesa e brasileira. Uma linha mais precisa origina–se em Elvira, mulher de
Ordonho II, cuja descendência alcança todos os reis portugueses desde Afonso
Henriques, e, evidentemente, todos os de Castela e Leão.
Famı́lias que descendem na varonia de Hermenegildo Guterres são os Bar-
bosas e Pereiras. A linhagem dos Barbosas é assinalada nos nobiliários como
20 F. A. Doria

tendo essa origem desde o século XVII, e há plausibilidade documental para tal
ascendência; a dos Pereiras tem uma origem decerto mı́tica num “Dom Mendo,
irmão de Dom Desidério, último rei dos longobardos,” mas um exame da linha
que provem deste fabuloso “Dom Mendo” mostra na verdade um segmento da
famı́lia de Hermenegildo Guterres.

Merovı́ngios e carolı́ngios
Uma linhagem até os merovı́ngios é a precedente, que provem de Brünnhilde
e Sigebert; mas é bem possı́vel que Carlos Magno tivesse diversos ascendentes
merovı́ngios, como Settipani mostrou [14]. Assim sendo, praticamente toda a
população da Europa ocidental descenderia de Carlos Magno.

Santos e papas
Santos como São Rosendo, que viveu no século X, ou São Roberto, padroeiro de
Salzburg, que viveu no século VII, pelo que se supõe [21], aparentam–se a toda
a Europa ocidental — S. Rosendo porque pertenceu à famı́lia de Hermenegildo
Guterres, e S. Roberto porque é um membro da famı́lia robertina, origem da
dinastia dos capetos, da qual também descende um segmento majoritário da
população da Europa ocidental.
Santos pertencentes a linhagens régias, como S. Fernando III de Castela e
Leão, S. Luiz IX de França, que viveram pelo século XIII, também deixaram
vastı́ssima descendência e parentela em Portugal e na Espanha. Famı́lias como
os Lacerdas, Noronhas, Henriques, Eças, descendem de um daqueles santos, ou
dos dois, caso dos Lacerdas. Também se incluem aqui S. Isabel de Hungria e S.
Isabel de Aragão, referidas acima.
Santos fora de linhagens régias, mesmo se provindo da nobreza, têm des-
cendência mais limitada. S. Antonio de Lisboa (1195–1231), no século Fernão
Martins Bulhão, ou de Bulhões,18 tem como representantes assim tradicional-
mente vistos, os membros da famı́lia Ribeiro Soares de Bulhões, cuja herança
passou aos Pintos de Miranda Montenegro, do Marquês de Vila Real da Praia
Grande, no Brasil, e dos Condes de Arroxelas e Castelo de Paiva, em Portugal
[10]. Mais ampla é a parentela de S. Tomás de Aquino em Portugal, parentela
que chega através dos descendentes da famı́lia de Cardaillac–Bourbon.19
Quanto a papas, uma linha que acidentalmente chega ao Brasil faz com que
grande parte da população do Rio Grande do Sul se aparente a dois papas da
idade média, Inocêncio IV (1243–1254) e Adriano V (1276). Eram, respectiva-
mente, os cardeais Sinibaldo e Ottobuono Fieschi, tio e sobrinho. A sobrinha
do último, e sobrinha–neta do outro, Eliana Fieschi, casa–se com Bernabò Do-
ria, régulo genovês com feudos na Sardenha. Trata–se de um ascendente de
18 Linhagistas posteriores entroncam esta famı́lia em Godefroy de Bouillon, mas não há a

menor evidência para tanto. O nome, é possı́vel, deriva–se de Bolon, perto de Coimbra,
ou, menos provavelmente, de uma alcunha, já que bulhão é, como adjetivo, brigão, e como
substantivo, pequeno punhal. Na linha feminina, sendo uma Taveira a sua mãe, o santo
provinha dos Baiões [12].
19 Esta descendência será objeto de um trabalho com A. de Sousa Lara.
IV. Outras Genealogias Antigas. 21

Leonor Doria, mulher de Ruy Gonçalves de Velosa, em fins do século XV, na


ilha da Madeira. A linha prossegue nas famı́lias Teixeira Doria, França Doria,
e Pestana de Velosa Doria, da Madeira, e desta última descendia o fundador de
Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, conhecido como o sesmeiro do Morro de
Sant’Anna,20 Hierônimo Dornelas de Menezes, lá fixado em meados do século
XVIII. É um dos grandes patriarcas familiares da população do Rio Grande do
Sul. A famı́lia Doria fixada na Bahia desde o século XVI também descende de
Eliana Fieschi e Bernabò Doria.
O muito citado parentesco entre os Holandas, Holandas Cavalcantis, Buar-
ques de Holanda, Lins, do nordeste, ao papa Adriano VI (1522–1523), Adriaan
Florenz Dedel, nascido em 1459 em Utrecht, deve existir, mas não da maneira
indicada — o papa seria tio materno de Arnal de Holanda, que se achava vivo
ao fim do século XVI. Há uma evidência, dada pela heráldica: as armas papais,
num de seus quartéis, assemelham–se a um dos quartéis das armas dos Holandas
em Portugal. Mas a questão ainda precisa ser elucidada.

Vilões
Há pelo menos dois vilões literários com vasta parentela no Brasil. O primeiro é
Macbeth, rei da Escócia. Foi, na verdade, um grande rei. Nasceu cerca de 1005;
tornou–se rei em 1040 (não deve ter sido quem matou o antecessor Duncan, que
também não era um velho sábio: morreu com 39 anos) e reinou até 1057. Sua
mulher, de nome quase impronunciável, Gruoch,21 trouxe–lhe o trono, por ser
de sangue real, como aliás também o era Macbeth.
Novamente temos aqui um patriarca: o sangue dos monarcas escoceses chega
a Henrique II da Inglaterra, e deste, através de meandros conhecidos, aos de-
scendentes de Afonso X “o sábio,” que são, novamente, boa parte da população
ibérica.
Outro ogro mencionado na literatura é o genovês Branca Doria (c. 1230–
1325; branca significa, a garra). Extremamente longevo, foi personagem menor,
senhor feudal na Sardenha e potentado gibelino em Gênova. É conhecido pela
referência que a ele fez Dante, colocando–o nas profundezas do inferno porque
assassinara o sogro, Michele Zanche, traiçoeiramente, durante um banquete, no
verão de 1275. Dele descende, através do filho Bernabò Doria, um segmento
numeroso da população brasileira.
Como ocorre com Macbeth, pois o rei escocês revela–se, na história, um
soberano competente e hábil, também não foi Branca Doria o monstro que
Dante retrata22

Tu il dèi saper, se tu vien pur mon giuso,


egli è ser Branca d’Oria, e son più anni
poscia passati ch’ei fu sı̀ racchiuso.
20 A sede da sesmaria é onde está hoje o campus da Universidade Federal do Rio Grande do

Sul, que o autor visitou em 2002 com Sergio Buratto.


21 Pronuncia–se: Grróhh.
22 Inferno, xxxiii, 136–141.
22 F. A. Doria

“Io credo, dissi lui, che tu m’inganni,


che Branca d’Oria non morı̀ unquanche,
e mangia e bee e dorme e veste penni.
Já chegamos ao episódio que fez Dante despejá–lo nos quintos do inferno.
Branca Doria nasce cerca de 1230, provavelmente em Gênova, filho de Niccolò
Doria, senhor de Logudoro na Sardenha, e de Preziosa di Lacon, filha natural
de Mariano III de Lacon–Arborea, régulo de Torres na Sardenha. Casa–se
com Caterina Zanche, filha de Michele Zanche, um dos muitos aventureiros
que possuı́am feudos na Sardenha, amante de Adelasia, herdeira de Torres.
Por motivos desconhecidos — e há apenas o testemunho de Dante — Branca
Doria, no verão de 1275, convida o sogro para jantar e assassina–o durante o
festim. Não era diferente dos demais régulos da região, e seu comportamento
pode ser aproximado do “regime,” se assim podemos chamá–lo, imposto por
traficantes numa favela do Rio hoje, distribuindo benesses e justiça sumárias.
Em 1314 é quem recebe em suas casas, em Gênova, o imperador Henrique VII de
Luxemburgo. Testemunhos tardios dizem–no preso à traição pelos aragoneses,
e decapitado em 1325 [2, 8].
Branca Doria é notável, do ponto de vista da genealogia demográfica, porque
sua descendência é tão impressionantemente espalhada, sendo ele um persona-
gem de segundo plano. De sua neta Valensa ou Valentina Doria, † 1359, casada
com Stefano Visconti, † envenenado em 1327, descendem Viscontis, Duques de
Milão, e mais os Sforzas; os Valois–Orléans, que reinam sobre a França desde
fins do século XV; e, enfim, inúmeras famı́lias da alta nobreza européia até hoje.
Tudo resulta do casamento de seu filho Bernabò com Eliana Fieschi, herdeira da
grande famı́lia dos Condes de Lavagna e sobrinha de dois papas — claramente
um casamento “para cima,” no qual o filho de pequenos régulos de provı́ncia,
Bernabò Doria, casa–se numa famı́lia da aristocracia pontifı́cia. E, continuando
a ascensão através dos casamentos, duas das filhas de Bernabò Doria casam–se
com grandes senhores feudais: Valensa, com Stefano Visconti, senhor de Milão,
e Isabella, que inclusive foi poetisa provençal, com o marquês de Saluzzo.
Por outro lado, o lado modesto, um certo Ceva Doria, do ramo dos se-
nhores de Oneglia, um ramo de senhores feudais empobrecidos desta famı́lia,
cujas riquezas se refazem no comércio, casa–se com Eliana (também chamada
Andreola) Doria, filha de Cassano Doria (atestado a partir de 1312, e † antes
de 1367), este sendo neto de Branca Doria e irmão de Valensa Doria. Deste
casamento descendem os Dorias da ilha da Madeira — deles era trineta Leonor
Doria, mulher de Ruy Gonçalves de Velosa, na Madeira em fins do século XV; e
da bisneta de Ceva, Eliana Doria, casada com outro parente de Oneglia, Leonello
Doria, era por sua vez trineta Clemenza Doria, que passa à Bahia em 1553.
Referências
[1] J. R. Ellis, Philip II and Macedonian Imperialism, Thames & Hudson
(1976).
[2] C. Fusero, I Doria, dall’Oglio (1973).
[3] K. Glöckner, “Lorsch und Lothringen, Robertiner und Capetinger,”
Zeitschrift für die Geschichte des Oberrheins 89, 301 (1936/7).
[4] R. Hartwell, coordenador, Descents from Antiquity, The Augustan Society
(1986; revisto em 1993).
[5] K. A. Kitchen, Pharaoh Triumphant: The Life and Times of Ramesses II,
Aris & Phillips (1982).
[6] K. A. Kitchen, com a colaboração de M. da C. de M. C. Beltrão, Catálogo
da Coleção do Egito Antigo — Museu Nacional, Rio de Janeiro, I e II, Aris
& Phillips (1990).
[7] G. Kurth, Clovis, Albert de Wit, Bruxelas (1923).
[8] T. Luzzatto–Guerrini, I Doria, Alfani e Venturi (1937).
[9] E. de Laveleye, “La formation des épopées nationales et les origines du
Nibelunge–Not,” introdução a Les Nibelungen, traduction nouvelle, Ha-
chette (1861).
[10] J. C. de Macedo Soares, Santo Antonio de Lisboa, Militar no Brasil, José
Olympio (1942).
[11] M. de Mello Corrêa, A. de Mattos e Silva, A. de Sousa Lara, eds., Anuário
da Nobreza de Portugal, I e II, Edição do IPH, Lisboa (1985).
[12] F. A. C. das Neves, Santo Antonio de Lisboa, I e II, Livr. Catholica
Portuense (1899).
[13] E. Sáez, “Los ascendientes de San Rosendo: notas para el estudio de la
monarquı́a astur–leoneza durante los siglos IX y X,” Hispania 1a. parte, 3;
2a. parte, 179 (1945).
[14] C. Settipani, Les Ancêtres de Charlemagne, Ed. Christian (1989).
[15] C. Settipani, Nos Ancêtres de l’Antiquité, Ed. Christian (1990).
[16] D. Shamà, Genealogia delle dinastie nobili italiane, site na url
http://www.sardimpex.com (2003/5).
[17] L. de M. Vaz de São Payo, “A ascendência de D. Afonso Henriques,” Raı́zes
& Memórias, I–VIII (1990).
[18] G. Vermes, The Dead Sea Scrolls in English, Penguin (1966).

23
24 F. A. Doria

[19] A. R. Wagner, Pedigree and Progress, Phillimore (1975).


[20] A. R. Wagner, “Bridges to Antiquity,” in Pedigree and Progress, Phillimore
(1975).

[21] E. Zöllner, “Woher stammte der heilige Rupert?” Mitteilungen des Instituts
für österreichische Geschichtsforschung 57 1 (1949).
VI. Genealogias.
1. Árabes.

A aristocracia árabe na Andaluzia, do século VIII ao século X é nosso


tema.

Os Idrı́ssidas no Marrocos e na Andaluzia


O que se segue é uma genealogia dos idrı́ssidas, que reinaram sobre o Marrocos
do século VIII ao X, e, brevemente, na Andaluzia, no século XI. Tal genealogia
foi compilada por Marshall Kirk e circulada privadamente em 2003.1

I. Idris II. Filho único e póstumo de Idris I, sua mãe era Kenza ou Khenza,
bérbere; n.c. agosto ou setembro de 791 ou 793; fal. 828/9, possivelmente tendo
sido envenenado.
Era, como dissemos, filho de Idris I; neto de Abdallah; bisneto de al–Hasan;
e trineto de outro al–Hasan, gêmeo com al–Husayn, mortos os dois em 680,
filhos de Ali e de Fátima, filha do Profeta e de Khadijja.
Foram filhos de Idris II:

1. Mohammed, c.g. no § 1.1.

2. al–Qasim, c.g. no § 1.2.

3. Omar, c.g. no § 1.4.


1 As fontes utilizadas por M. Kirk foram al–Bakri (século XI), ibn Khaldun (séc. XIV), al–

Maqqari (século XVII); Rouddh al–Kartas (1362 d.C., datada de Fez); genealogias de sharifs
marroquinos, da autoria de Qadiry, Zemmoury e Rahmoun; e Rachid Benblal, Histoire des
Idrissides, Oran, Ed. Dar el Garb (2002).

3
4 F. A. Doria

4. Da’ud, n.c. 803/13; recebeu o comando (senhorio) de Hoouara em 828/9.


Pai de:
(a) Mohammed.
(b) Ahmed.
5. Yahya, n.c. 803/13, recebeu o senhorio da região de Dai em 828/9. P.d.
um Mohammed, que por sua vez teve um filho de nome Abd al-Karim.
6. Eica, ou Isa, n.c. 803/13, recebe em 828/9 Wazacour e Sela. Foi expulso
pelo irmão Omar de Wazacour, refugiando–se em Sela. Pai de:
(a) Ibrahim, pai de Hamza.
(b) Abd al–Kebir, pai de Abdallah.
(c) Abd ar–Rahman, pai de Abd al–Qader.
(d) Horma, pai de outro Abd al–Qader.
(e) Mousa (Musa), pai de Yahya.
(f) Ahmed, pai de Abdallah.
(g) Mohammed, pai de Ahmed.
7. Hamza, n.c. 803/13; recebeu em 828/9 o território de al–Aoudia, perto
de Ouilili. Teve um filho, Ma’soud, com muitos descendentes, segundo o
testemunho de Benblal.
8. Abdallah, n.c. 803/13; enterrado em Sous. Recebeu em 828/9 Lemta e
territórios adjacentes. Teve filhos:
(a) Abu Qasim, pai de Yahya, a quem alguns autores atribuem a pater-
nidade de uma linha de sharifim.
(b) Musa ibn al–Djun, igualmente dado como ancestral de uma linha de
sharifim.
(c) Ali, pai de Zayd e de Ahmed.
(d) Abd ar–Rahman, pai de Zayd.
(e) Zayd, ou talvez Sa’id, pai de Yusuf e de Caleb.
(f) Yazid, pai de Cafouan.
(g) Mohammed, pai de al–Qasim; Da’ud; Omar; Eica ou Isa; Hammud
— estes cinco, segundo as genealogias de famı́lias de sharifim, de
Rahmoun.
9. Ahmed (Kethir?), n.c. 814–828/9. Sem comando de território. Com
muitos descendentes, segundo Benblal: pai de um Abdallah, pai este, por
sua vez, de Ali, Yahya e Omar.
10. Ubayd’Allah, n.c. 814–828/9. Sem comando. Pai de Djaafar e avô de
Hamza.
VI. Genealogias 5

11. Idris, igualmente nascido no mesmo intervalo; sem comando e sem que lhe
indiquem descendentes.

12. Djaafar, n.c. 814–828/9, sem comando e sem descendentes sabidos.

1.1 Mohammed ibn Idris


II. Mohammed ibn Idris (ver p. 3) foi o terceiro emir idrı́ssida do Marrocos.
Reinou com base em Fez, de 828/9 a 836/7. Descrevem–no como tendo sido
louro. Primogênito, dividiu o reino entre os irmãos que chegavam à idade adulta,
enquanto os demais eram educados pela avó, Khenza. Filhos:

1. Ali, dito Aidara, designado sucessor; n.c. 827/8; quarto emir, fal. 848/9.
Pai de:

(a) Ma’soud, pai de um Sa’id.


Não se sabe ao certo o motivo pelo qual a sucessão não passou por
estes filhos de Ali.
(b) Abd as–Sallam.
(c) Mezouar, pai de Sallam.2

2. Yahya [I], quinto emir, de 848 a 863. Pai de:

(a) Yahya [II], sexto emir, de 863 a 866; sucedeu ao pai. Dele se descreve
um incidente crucial durante seu reino: em Fez, nos banhos públicos,
estuprou uma judia, chocando e horrorizando os habitantes locais.
Deposto, morreu na mesma noite no bairro andaluz de Fez. C.c.
Atiqa bint Ali ibn Omar ibn Idris (veja entre os demais filhos de
Idris II), e sucedeu–lhe o sogro, Ali ibn Omar. Pais de:
i. Al Muhallib, pai de Abdallah e avô de Ali.
ii. Abd al–Djalil.
iii. Omar.
iv. Abi Djama.
(b) Ahmed, pai de Ali, com descendência longa.
(c) Suleyman, pai de Isa ou eica.
(d) al–Qasim, pai de Abd ar–Rahman.
(e) Ibrahim. Pai de:
i. Ibrahim, pai de Suleyman.
ii. Ahmed, pai de al–Hasan.
(f) Abd al–Ouahed. Pai de Abu r’Aleb.
2 Poderia ser os dois acima, enumerados como pai e filho.
6 F. A. Doria

1.2 al–Qasim ibn Idris


II. al–Qasim ibn Idris n.c. 803/13 (ver p. 3). Recebeu em 828/9 al–Basra,
Tânger, e territórios feudatários.3 Rebelou–se ao receber de Mohammed, o emir
seu irmão, ordens para lutar contra outro dos irmãos, Eica. Foi despojado de
seus bens e voltou–se para a religião, tendo fundado uma mesquita em Asila,
na costa. Pai de:
1. Ibrahim, n.c. 830, sucedeu no governo de Asila. Pai de Husein, governador
de Asila e avô de al–Qasim, governador de Asila. Depois deste, Hasan al–
Haddjam instalou funcionários governando em seu nome.
2. Yahya III, dito al–Addam, n.c. 830, morto em 904/5. Escolhido oitavo
emir pelo povo do bairro andaluz de Fez depois que Ali foi expulso. Pai
de Mohammed e avô de Yahya.
3. Ahmed al–Aqbar (“o mais velho,” aqui) al–Gareti, n.c. 830, combateu o
sobrinho Hasan, abaixo, a quem denominou “o sanguinário.” Foi con-
hecido como homem de ciência.
4. Mohammed, que segue.
5. al–Qasim Kennoun, n.c. 870, fal. 948/9 na fortaleza de Hadjar an–Nasr,
construı́da pelo irmão Ibrahim. P.d.:
(a) Abu’l Aich Ahmed, n. entre 890 e 910, chamado al–Fadel, “o cheio
de méritos.” P.d.:
i. Eica, n. entre 910 e 930; era adulto em 949/50.
ii. al–Aran, segundo alguns.
(b) al–Hasan, n. entre 890 e 910. Tentou recuperar o reino idrı́ssida, mas
foi derrotado. Ter–se–ia abrigado em Córdova, 945.
(c) Eica, n. entre 890/910, igualmente abrigado em Córdova em 945.
6. Outros filhos, não enumerados.
III. Mohammed é identificado (num ı́ndice a al–Bekri) a Mohammed ibn
al–Qasim, senhor de Astidja ou Ecija, próximo a Sevilha. N.c. 830. P.d.:
1. Hasan, que segue.
2. Ibrahim, no § 1.3.
IV. Hasan al–Haddjam, “o sanguinário,” n.c. 850, décimo emir c. 920.
Teria morrido ou na Andaluzia, ou mais certamente no quarteirão andaluz de
Fez, após fugir e quebrar a perna quando caiu das muralhas de Fez. P.d.:
1. Eica, n.c. 870, com propriedades centradas em Macena.
3 M.Kirk observa que o domı́nio territorial deste al–Qasim fica justo em frente a Gibraltar,
e diante de al–Andalus, a Andaluzia. Tal proximidade geográfica torna plausı́vel que esta seja
a origem da linha idrı́ssida existente em Portugal.
VI. Genealogias 7

2. Ahmed, segue.
3. Mohammed.
V. Ahmed. Pai de:
1. Eica, pai de Ahmed, e avô de Abu Talib.
2. Firh, pelo que supomos. Segue.
VI. Firh.4 Antecipamos o que se diz adiante, à pág. 12. Levava o nome do
ancestral da tribo coraixita, Firh ou Quraysh. Nascido c. 900. N. no Marrocos,
teria vivido em Coimbra, onde se casou, segundo supomos, com uma senhora
— Ausenda? — da famı́lia de Hermenegildo Guterres, Conde de Coimbra.

1.3 Ibrahim ar–Rahouni


IV. Ibrahim ar–Rahouni, filho de Mohammed, III. no § 1.2. Construiu a
fortaleza de Hadjar an–Nasr (“fortaleza da águia”) em 929, após a morte de seu
irmão Hasan al–Haddjam. Teria nascido nos anos 860; era chamado ar–Rahouni.
P.d.:
1. al–Qasim Kennoun. N.c. 880, aprox. Seu filho al–Hasan ibn Kennoun
teria passado a Córdova em 953.
2. Ahmed al–Fadel. Segue.
3. Hasan. Atestado ainda em 965.
4. Mohammed.
V. Ahmed al–Fadel, “o cheio de méritos.” 5 N.c. 880, dado como vivo,
com bisnetos, em 965. P.d.:
1. Hasan. N.c. 900/10, atestado em Córdova em 952, preso, foi trocado pelo
filho em 953, e voltou para o Marrocos.6 P.d. Yahya, n.c. 920, refém em
Córdova em 953, fal. 960/1. Teve um filho, Hussein, n.c. 940, enviado ao
bisavô Ahmed al–Fadel em 965.
2. Eica Abu ’l-Aich, segue.
VI. Eica Abu ’l–Aich, n.c. 900/10. P.d.:

VII. Mohammed. N.c. 920, esteve em Córdova em 953; foi trocado pelo
filho e voltou para o Marrocos. Foi pai de mais outro Hasan, n.c. 940, refém em
Córdova em 953, fal. 961/2, tendo deixado dois filhos, Mohammed n.c. 960, e
Hussein, de idade próxima, enviados a Ahmed al–Fadel em 965.
4 Segundo a hipótese deste ensaio.
5 Esta linha é habitualmente colocada nesta posição, mas há uma tradição alternativa,
apresentada acima, com algumas variantes.
6 Seria este o ancestral da linha de Coimbra?
8 F. A. Doria

1.4 Omar ibn Idris


II. Omar ibn Idris n.c. 803/13; fal. 835 em Fedj al–Feres (ver p. 3), sete meses
antes do irmão Mohammed; enterrado em Fez. Recebeu em 828/9 as terras
de Sanhadja e Gomara. Quando o irmão Eica se revoltou, pouco após 830,
derrotou–o e despojou–o seguindo as ordens de al–Qasim e Mohammed. P.d.:
1. Ali, sétimo emir, 866–880. Usurpou o trono em nome da filha Atiqa,
mulher de Yahya II ibn Yahia. A revolta de Abd ar–Razzac expulsou–o
de Fez, refugiando–se Ali em Aoureba. P.d.:
(a) Hamza, que ajudou o primo al–Haddjam em batalha. Pai de Harum
e de Yahya.
(b) Ubayd’Allah, pai de Hasan, que testemunhos dão como leproso.
(c) Idris, pai de Kennoun, c.g.
(d) Abu’l–Aich, c.g. na Espanha.
(e) Atiqa, que c.c. o primo Yahya II ibn Yahya ibn Mohammed.
2. Idris, o que amaldiçoou o filho. P.d.:
(a) Yahya IV, nono emir, desde a morte de Yahya III até 919/20. Ficou
prisioneiro durante muito tempo em Lokai, e morreu sob a proteção
de seus parentes, os beni Ibrahim. Morreu em 945/6, em al–Mahdiya,
então sofrendo um cerco, cumprindo a maldição paterna de que mor-
reria faminto numa terra estranha.
(b) Mohammed Abu’l–Aich, ibn Meyala. P.d. Mohammed, que foi para
a Espanha em 945/50, como enviado do pai.
3. Ubayd’Allah, segue.
4. Mohammed, pai de Ahmed.
5. Dawoud, pai de Mohammed.
6. Atiq, com longa descendência (segundo Rahmoun).
7. Honain, idem.
8. Abdallah (que pode ter sido confundido — no testemunho de Rahmoun
— com Ubayd’Allah). Pai de um Ali.
9. Mousa, sempre segundo Rahmoun, pai de Mohammed.
III. Ubayd’Allah casou–se primeiro com Melouka, bérbere:
1. Hamza, c.g. ampla.
2. al-Qasim, c.g. ampla.
3. Abu ’l–Aich, ancestral de uma linha que reinou em Córdova. Segue.
VI. Genealogias 9

4. Filhos de nomes não mencionados.

De uma segunda mulher, nome incógnito, teve também filhos Ubayd’Allah:

1. Ali, com filhos, um dos quais de nome Kennoun.

2. Ibrahim, c.g.

3. Mohammed as–Chehid, “o mártir.” C.g.

IV. Abu ’l–Aich foi o pai de:

1. Hammoud, que segue.

2. Yahya, c.g.

V. Hammoud foi o pai de:

1. al–Qasim.

2. Ali, segue.

3. Fatima.

VI. Ali tornou–se califa em Córdova, ao fim da soberania omı́ada, breve-


mente, em 1016/7. Foi o pai de:

1. Yahya, segue.

2. Idris, de Málaga, pai de Mohammed, e de Yahya, este pai de um Idris.

VII. Yahya sucedeu ao pai no senhorio do Maghreb. Teve filhos:

1. Hasan.

2. Idris al–Aali (“o exaltado”). Pai de Mohammed.

A linha omı́ada al–Habibi na Andaluzia


Segundo as investigações de E. Terés [4], são os seguintes os descendentes con-
hecidos de al–Walid, califa damasceno, na Andaluzia. Os números que antece-
dem cada nome correspondem ao ı́ndice de Uzquiza Bartolomé (b. é ben/iben,
“filho de”; M. em X indica “faleceu em X.” Os nomes são dados como o nasab,
o nome genealógico, de forma X filho de Y filho de Z filho de W, da linha clânica
K:

• 375. Aban b. Habib b. Abd al’Malik b. Umar b. al–Walid.

• 399. Ahmad b. Abd Allah b. Muhammad b. Mubarak b. Habib b. Abd


al–Malik b. al–Walid. M. 941 ou 944. (tem erro; seria b. Abd al–Malik b.
Umar b. al–Walid; cf. 401, que deve ser o mesmo.)
10 F. A. Doria

• 401. Ahmad b. Abd al–Malik b. Muhammad b. al–Mubarak b. Habib b.


Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid, Abu al–Qasim, al–Habibi al–Hanafi.
M. 944.
• 413. Bishr b. Habib b. al–Walid b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b.
al–Walid; al–Habibi, Dahhun. M. 821.
• 415. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid; Abu Sulayman.
• 416. Habib b. al–Walid b. Habib d. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid;
Abu Suleyman; Dahhun. M. 815. (Cf. 444.)
• 417. Hafs b. Umar b. al–Walid.
• 423. Ibrahim b. al–Abbas b. Isà b. Umar b. al–Walid; Abu al–Abbas/Abu
Ishaq; al–Qurasi al–Marwani al–Umawi. Nascido 829/831.
• 427. al–Jiyar b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid.
• 433. al–Mubarak b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid.
• 444. Muhammad b. Suleyman b. Ahmad b. Habib “Dahhun” b. al–Walid
b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid; al–Habibi, al–Umawi. M.
938/941. (Cf. 416.)
• 447. Nasr b. al–Abbas b. al–Walid.
• 454. Sulayman b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid.
• 458. Umar b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid.
• 461. al–Walid b. Habib b. Abd al–Malik b. Umar b. al–Walid.

Percebemos alguns nomes tı́picos da famı́lia de Zahadon (ver abaixo), perto


de Coimbra, como (Abu) Suleyman, Nasr/Nazar/Nazeron, ou Hanaf/Halaf.
Conjecturalmente, se o Abu Suleyman supra corresponde ao Abu Suleyman
dos entornos de Coimbra, conforme lemos na documentação de Lorvão, propo-
mos a seguinte linha de ascendentes para Zahadon, iniciando–se em al–Walid e
com outro al–Walid intermediário, trisavô suposto de Zahadon:

I. al–Walid, califa entre 705 e 715. P.d.:

II. Umar. P.d.:

III. Abd al–Malik. P.d.:

IV. Habib. Autor da linha al–Habibi. P.d.:


• (al)–Mubarak, pai de Muhammad iben Mubarak.
• al–Walid, que segue.
VI. Genealogias 11

V. al–Walid foi o pai de:

VI. Habib; Abu Sulayman, Dahhun. M. 815. Pai de:

VII. . . . . P.d.:

VIII. Halaf. P.d.:

IX. Zahadon ibn Halaf, al Umawi, atestado em 933.

(Acrescentamos que h´á um Muhammad al–Habibi, al-Umawi, bisneto de


Habib, e falecido c. 940, o que justifica a cronologia tentativa da linha.)

A famı́lia de Zahadon, Coimbra, século X


Fonte principal para a genealogia que se segue é o Liber Testamentorum, de
Lorvão. Fonte subsidiária é a versão da Lenda de Gaia que encontramos no
Livro de Linhagens do Conde D. Pedro.7

I. Halaf. Um omı́ada na varonia, desde que o filho Zahadon é citado como


“al–Umawi,” o omı́ada, em documento. Nascido c. 865/70, data estimada a par-
tir dos dados referentes a seu filho Zahadon. O nome deduz–se do patronı́mico
deste, em documento de 966. Se damos crédito ao Livro de Linhagens, descen-
deria através de linha masculina do califa damasceno al–Walid (reinou de 705 a
715), identificado como “Aboali” ou “Avali.” Teria vivido nas proximidades de
Coimbra. Pai de:

1. Zahadon, que segue.

2. Susana, casada com Gondemiro iben Da’uti, segundo o documento de 933


onde comparece Zahadon.

II. Zahadon ibn Halaf. Atestado em 933 e em 966, quando lemos seu
patronı́mico — Zaadon Falifaz, que interpretamos como Zahadon, Za’adum, ibn
Halaf.8 Em 933 lemos que sua mulher era Aragunte Fromariques, irmã de um
Bermudo (Veremundo) e de ou Cresconio ou de sua mulher Smelilo. Fromarico
poderia ser o Fromarico Cendoniz, que aparece confirmando um documento de
911, junto de diversos membros da famı́lia de Vı́mara Peres. Se Cendon puder
ser visto como variante de Tedon, é poss’ıvel que este Fromarico fosse da famı́lia
de Vı́mara Peres, filho de Tedon Lucides e sobrinho de Bermudo Lucides, este
confirmante naquele documento de 911.
Estimamos que Zahadon tenha nascido c. 895–900. Pais, Zahadon e Ara-
gunte, de:
7 Esta genealogia foi feita por Marshall Kirk em meados de 2003, numa série de trocas de

mensagens de e–mail com o autor, e a partir da identificação, sugerida pelo autor, de Dom
Çadão Çada a Zahadon ibn Halaf.
8 A aspirada árabe kh– é frequentemente mutada ou transcrita em f.
12 F. A. Doria

1. “Ortega,” mais provavelmente Oñeca, nascida c. 915–925. Não atestada


em nenhum documento; apenas referida no Livro de Linhagens como filha
de Dom Çadão Çada e irmã de Alboazar Abucadam, onde Dom Çadão é
identificado a Zahadon. Se corretamente identificada m̀ãe do primeiro sen-
hor da Maia, casa–se com Lovesendo ou Leodesindo, que seria Leodesind
ibn Firhi.

2. Nazeron/Nasrum, que seria o “Alboazar Abucadam” do Livro de Linha-


gens, talvez pelo nome respeitoso Abu Nazar eventualmente assumido.
N.c. 915–925. C.c. Tortora; filhos nascidos entre 930 e 940:

(a) Iquila ibn Nezeron, casado e c.g.; atestado em 961, 968, 976.
(b) Suleyman ibn Nazeron, atestado em 967 e 978.
(c) Fromarico ibn Nezar Lopazer (?), atestado em 967 com Suleyman;
em 968 com Iquila e Abzicri.
(d) Abzicri ibn Nezeron, atestado em 968.

3. Gundisalvo “iben Zaton,” atestado em 998.

4. Mohammed “iben Zaton,” em 998.

5. Suleyman “iben Zaadon alamaui,” ou seja, ibn Zaadon, al–Umawi. Ateatado


no documento de data corrigida 1006/7 (ver DC 229). É plausı́vel, no
entanto, que este documento tenha data entre 960 e 1006, como já o ob-
servamos.

6. Abdallah, Halaf/Halafac e Ahmed, todos referidos no mesmo documento


supra, DC 229.

A linha hassânida em Coimbra


Esta linha mostra a identificação proposta para os ancestrais de Abunazar
Lovesendes:

I. al–Hasan, que pensamos ser al–Hasan al–Haddjam, n.c. 850?, emir do


Marrocos entre c. 920 e 930; deposto, desaparece, supondo–se que tenha fugido
para a Andaluzia. Era um Alida. Pai de (entre outros):

II. Ahmed. Pai de:

III. Firh. Levava o nome do ancestral da tribo, Firh ou Quraysh. Nascido


c. 900. N. no Marrocos, teria casado com uma senhora — de nome Ausenda,
nome presente nas primeiras gerações dos senhores da Maia? — da famı́lia de
Hermenegildo Guterres, devido à onomástica das primeiras gerações dos sen-
hores da Maya. Pais de:

1. Leodesind, segue.
VI. Genealogias 13

2. Yahya “ibn Firhi ibn Ahmed ibn al–Hasani,” citado no documento de 1006
(ou possivelmente de data entre 960 e esta data).

IV. Leodesind, atestado em 967 e 968 com patronı́mico, além do DC 71,


de data incorreta (provavelmente pouco anterior a 950). C.c. Oñega, “Ortega,”
filha de Zahadon e Aragunte segundo o Livro de Linhagens e nossa identificação.
P.d.:

V. Nazar ibn Leodesind ibn Firhi, atestado em 967 e 968, e talvez em


980 já como Abu Nazar, o nome de kunya que assume; identificado ao senhor
da Maia, Abunazar Lovesendes, fundador do mosteiro de Santo Tirso em 978.
Ancestral da famı́lia da Maia.
2. Famı́lias medievais.

A aristocracia cristã
Os senhores da Maia
Maiorinos régios
Esta famı́lia deixa–se traçar documentalmente desde começos do século X. Tem,
provavelmente, origem mais antiga: o nome Guimiro, que aparece aqui logo na
segunda gerac cão destes, é uma variante de Wigmar, Vı́mara, e é plausı́vel que
Evenando fosse um filho ainda não reconhecido de Vı́mara Peres [1].

I. Evenandus, dominus, [1, 2] proprietário em Freixieiro em meados do


século X,9 junto com a mulher Trudili Davidies. Era provavelmente um fun-
cionário da administração régia (um delegado dos reis de Leão) ao norte de
Portugal, sem a independência dos chefes das outras grandes famı́lias da região,
como os Abunazares da Maia ou os senhores de Riba Douro, com os quais,
por sinal, estes se casam. A famı́lia tinha um status social notório, pois a este
Evenando refere–se um documento como dominus, “senhor.”
Esta gente aparece no DC 14, datado de 907, no qual Odário ou Odório
Davides faz uma doação à irmã Trudili; são da região de Braga, e entre os
confirmantes da doação aparecem um Torsário Davides, com certeza irmão de
Trudili. Também aparece um Trutemiro; cf. Trutesendo Guterres, III, abaixo.
O DC 16, de 908 é um ato conjunto de Trudili e do marido Evenando; entre os
confirmantes, novamente Torsário Davides, um Nausti Trustemires, e também
surge um Fromarico, nome incomum, que pode ser Fromarico Cendonis, pai de
9 Mattoso cita um documento com a data de 909.

14
VI. Genealogias 15

Aragunte que era a mulher de Zahadon. Os dois documentos vieram do mosteiro


de Moreira.
P.d.:

II. Guimiro Evenandes, que c.c. Anı́mia.10 Foi Guimiro Evenandes quem
comprou o mosteiro de S. Salvador de Moreira, patronato destes. Tiveram a:

1. Trutesendo Guimires, que segue;

2. Evenando Guimires, que pode ter sido o magister Evenando, funcionário


da região de Leça, sob as ordens do Conde Mendo Gonçalves, em 1004, e
que também aparece em 1021 e em 1025. Pai de:

(a) Sindo, Godinha e Guimiro Evenandes, atestados em 1019.

III. Trutesendo Guimires, atestado entre 976 e 1027, patrono do mosteiro


de S. Salvador de Moreira. Exerceu funções judicantes em Leça, como o irmão.
Era senhor de Louredo, Guilhabreu, da igreja de S. Verı́ssimo de Paranhos, e
de Freixieiro, além do mosteiro de Moreira da Maia. C.c. Aragunte, atestada
entre 1009 e 1036. P.d.:

1. Diogo Trutesendes, que segue;

2. Guterre Trutesendes, no § 1.5.

IV. Diogo Trutesendes, filho de Trutesendo Guimires, é atestado entre


1040 e 1100. Com propriedades em Gondinhães, Escariz, Besteiros, Santo André
de Ferreira, S. Saturnino de Velinhas, Valungo, Rio Tinto, S. Félix de Corona-
do, Silva Escura, S. João do Campo, Lubazim, S. Jorge de Moreira, Mandim,
Tardinhade, Vila Boa de Arouca.
Nesta famı́lia de funcionários régios e delegados do poder central, foi gover-
nador de Santa Maria, com o filho Mendo.
C. (1) c. Alivergo Vitisciliz, atestada em 1077, filha de Vitiscilo Leoderigues,
e (2) com Ausenda Ermiges, atestada em 1100, possivelmente filha de Ermı́gio
Viegas, dos de Riba Douro.
Do primeiro casamento:

1. Unisco Dias, atestada entre 1077 e 1078, proprietária em Rio Tinto;

2. Gonçalo Dias, atestado entre 1049 e 1090 (na dúvida, aqui); seria o
Gonçalo Dias que confirma duas doações do rei Garcia, em 1068 e 1070.
Teria c.c. Emisu Dias;

3. Trutesendo Dias, atestado entre 1060 e 1077. Funcionário público na


região de Anégia, com terras em Ferreira, proprietário do mosteiro de
Cete, confirma uma doação do rei Garcia em 1068. Pai de:
10 Seria esta uma das senhoras de nome Anı́mia Eris, da famı́lia de Bayão? (Ver [2].)
16 F. A. Doria

(a) Diogo Trutesendes, atestado antes de 1100, e até 1136. Seria o pro-
prietário do mosteiro de Vilar de Andorinho, casado com Ilduara
Cides. Pais de:
i. Trutesendo Dias, at. entre 1109–1146, proprietário em Pedroso
e patrono de Vilar de Andorinha; Gonçalo Dias, at. entre 1113
e 1146; Ermesenda Dias, devota, at. 1113–1146; Monia Dias, at.
1113–1146; Pedro Dias, idem, que talvez fosse o c.c. Ausenda
Dias, e proprietário em Gondomar em 1125; e Gontila Dias,
citada em 1113.
4. Mendo Dias, que segue.
V. Mendo Dias é atestado entre 1059 e 1068. Governador de Santa Maria,
junto com o pai, em 1064. Proprietário em Serzedo (Vila Nova de Gaia).
C.c. Gontinha Guterres, atestada em 1072. A mulher, segundo Mattoso,
seria irmã de Gonçalo Guterres, filhos de Guterre Trutesendes, no § 1.5, IV, e
portanto sua prima. A ver, no entanto, a diferença das gerações, o que indica
ser este ramo o primogênito.
Pais de:
1. Alivergo “Boa,” atestada entre 1072 e 1102. Proprietária em Mandim em
1102. Talvez fosse a “Boa” Mendes que em 1078 doou ao mosteiro do Rio
Tinto um quinto de seus bens. Seria a Adibergo Bona que em 1101 doou
um casal à catedral de Braga. Neste caso, c.c. Paio Daviz, já † nesta data
de 1101.
2. Guterre Mendes, que segue;
3. Diogo Mendes, atestado entre 1072 e 1115, e talvez em 1125. Proprietário
em Fornos, Tardinhado, Romariz, Inha, Escariz e talvez Roge e Padrastos.
C.c. Dulce . . .
4. Unisco Mendes, atestada entre 1072 e 1115. C.c. Mendo Trutesendes, seu
primo, a partir de 1088. Ver entre os descendentes de Guterre Trutesendes,
na próxima seção.
VI. Guterre Mendes, citado a partir de 1072 e † 1117. Proprietário em
Serzedo, Aveleda, Fornos, perto de Castro Portela, Vila Nova da Telha, Enxemil,
Mansores, e do mosteiro de Rio Tinto. Seu túmulo pode ser visto no mosteiro
de Cete, ainda hoje, onde se lê a data de sua morte.
C.c. Ônega Gonçalves, atestada entre 1098 e 1114. P.d.:
1. Ermesenda, devota, prioresa do mosteiro de Rio Tinto.
2. Emisu Guterres, citada em 1140, s.m.n.
3. Gontinha Guterres, atestada entre 1110 e 1179. C.c. Gonçalo Mendes,
citado entre 1110 e 1143, que se supõe seja o Gonçalo Mendes da Maia,
“o lidador,” segundo Mattoso, filho de Mendo Soares da Maia. Uma de
suas filhas, Maria Gonçalves, seria a que c.c. Gonçalo Trutesendes, no §
1.5, VI.
VI. Genealogias 17

1.5 De Guterre Trutesendes a Pedro Pires de Moreira


IV. Guterre Trutesendes, filho de Trutesendo Guimires (pág. 15) atestado
entre 1031 e 1060; teve funções judicantes em 1048, e confirmou vários docu-
mentos em 1042, 1048 e 1060. Foi senhor de Guilhabreu, Terroso, Vila Chã,
Arões, Loureiro, Gemunde, Lagoa, Gondinhães.
C.c. Ermentro Gondesendes, atestada entre 1031 e 1057, filha de Gondesendo
Vitisciliz, de quem herdou Lagoa. P.d.:
1. Trutesendo Guterres, que segue;
2. Gontinha Guterres, que recebe uma doação de Gonçalo Guterres em 1072,
e que casa com Mendo Dias, supra, no número V;
3. Gonçalo Guterres, atestado entre 1042 e 1115, sr. de Perafita, Gemunde,
Mindelo, Vilarinho, Arões, Carvalhido, Figueiró, Vila do Conde, Freixo,
Guilhabreu, Cornes, Azevedo, Vairão, Zabreiros, Rio Tinto, Campanhã,
Serzedo, Segueiros, Osseia, Sezures, Arnoso. Esteve na corte do rei Garcia,
onde confirma documentos. C.c. Elvira Gonçalves, atestada entre 1067 e
1115, filha de Gonçalo Raupariz. P.d.:
(a) Monio Gonçalves, atestado em 1126, proprietário em Arões de bens
que deu ao mosteiro de Moreira; e
(b) Toda, que c.c. Garcia Gonçalves, atestado entre 1049 e 1091; casaram
pouco antes de 1069, ele sendo velho, já. Tiveram dois filhos:
i. Gonçalo Garcia, e Elvira Garcia.
V. Trutesendo Guterres, atestado entre 1030 e 1109. Sr. de Gemun-
de, Loureiro, Moreira, Avioso, Moreiró, Cousso, Vilar de Pinheiro, Carvalhido,
Retorta, Mosteiró, Labruge, Vila do Conde, Parada, Rial, Guidões, Foz do Leça,
Pampelido, Arnoso, Tebosa, Espinho.
C. (1) c. Gontrode Garcia, c.g., tetraneta de Abunazar Lovesendes,11 do
sangue do Profeta. Era filha de Garcia Pinioliz, de quem esta famı́lia recebe
em herança uma parte do mosteiro de Santo Tirso. Garcia Pinioliz é atestado
entre 1052 e 1083, e c.c. Leodegúndia Bermudes; era Garcia Pinioliz filho de
Ausenda Abunazar e de Piniolo, e por Ausenda, neto de Abunazar Lovesendes,
fundador do mosteiro de Santo Tirso de Ribadave em 978, e de sua mulher
Unisco Godinhes. Abunazar Lovesendes está no centro da “lenda da Miragaia,”
e (segundo um fragmento de genealogia que data do século XIII) era trineto de
Abdallah, emir de Córdova, através de sua mãe Ortega, ou Zaı̈ra bint Zahadon,
sendo portanto do sangue dos califas omı́adas—que eram da famı́lia de Maomé.
P.d.:
1. Mendo Trutesendes, atestado entre 1088 e 1113. Com senhorios em Mo-
reira, Foz do Leça, Vilar do Pinheiro. C.c. Unisco Mendes (atestada entre
1072 e 1115), filha de Mendo Dias, VII. Não devem ter tido filhos, porque
doaram seus bens ao mosteiro de Moreira em 1088.
11 Assim reconstrói Almeida Fernandes o nome deste personagem: Abunazar Leodesindes, o

que nos parece correto também. Nos nobiliários, é conhecido como “Dom Alboazar Ramires.”
18 F. A. Doria

2. Garcia Trutesendes, atestado entre 1092 e 1122. Proprietário em Viariz,


Vilarinho, Vilar do Pinheiro, Retorta, Refonteira, Cousso, Sangemil, e
patrono do mosteiro de Santo Tirso por sua mãe. C.c. Elvira Soares “Boa,”
atestada entre 1105 e 1111. Também não devem ter deixado filhos.
3. Guterre Trutesendes, atestado entre 1103 e 1131. Sr. de Sangemil, Vilar
do Pinheiro, Arões, Vila Verde; c.c. Châmoa Mendes, atestada entre 1103
e 1131. Com filhos:
(a) Soeiro Guterres, Gonçalo Guterres e Trutesendo Guterres, citados
entre os patronos do mosteiro de Santo Tirso em 1145.
4. Gonçalo Trutesendes. Segue.
C. (2) c. Elvira Moniz, s.g. Trutesendo Guterres pode, ainda, ter deixado
outros filhos [2].

VI. Gonçalo Trutesendes, atestado entre 1098 e 1121, sr. de terras em


Palmazão, Mandim, Aveleda, Quiraz, azevedo, Fajozes, Carcavelos, Pindelo;
patrono do mosteiro de Sesmonde. Confirma documentos em 1098 e 1105.
C.c. Maria Gonçalves (atestada entre 1102 e 1144). Seria filha de Gonçalo
Mendes da Maia, “o lidador,” e de Gontinha, supra.
P.d.:
1. Pedro Gonçalves, que segue;
2. Soeiro Gonçalves, atestado em 1145 e 1146, patrono de Moreira e de
Mosteiró;
3. Mendo Gonçalves, atestado em 1144 e 1145, igualmente patrono de Mo-
reira e Mosteiró;
4. Rodrigo Gonçalves, atestado em 1145, patrono de Moreira.
VII. Pedro Gonçalves, atestado entre 1145 e 1151; proprietário dos
mosteiros de Moreira, Sesmonde e talvez Mosteiró; com herdades em Aveleda,
Fajosa, quintã, Celeiro da Torre. Teria sido quem fez incendiar uma casa de
Monio Sarracins em 1151. C.c. Mor Peres. P.d.:
1. Gonçalo Pires.
2. Pedro Pires, “de Moreira.” Segue.12
VIII. Pedro Pires “de Moreira,” que vivia no tempo de Sancho I (1154–
1211, rei em 1185) e de Afonso II (1185-1223, rei em 1211), sr. da Quinta da
Torre da freguesia de Santa Maria de Moreira, em Celorico de Basto.13
12 Esta filiação não é dada em nenhum documento, mas ela se deve ao seguinte: consistência

da cronologia e do patronı́mico; explicação do nome Moreira como originalmente derivando–se


do patronato ao mosteiro homônimo; e dos paralelos onomásticos entre a geração de Pedro
Gonçalves e a dos filhos de Pedro Peres.
13 A partir daqui, e até o seu fim, esta seção segue Pizarro, no seu capı́tulo sobre os Moreiras,

[3], com uma ou outra divergência pontual.


Referências
[1] J. Mattoso, “As famı́lias condais portucalenses dos séculos X e XI,” em A
nobreza medieval portuguesa, Estampa (1987).

[2] J. Mattoso, “A nobreza rural portuense nos séculos XI e XII,” em A nobreza


medieval portuguesa, Estampa (1987).
[3] J. A. Pizarro, Linhagens Medievais Portuguesas, Univ. Moderna, Porto
(1999), 3 vols.

[4] A. Uzquiza Bartolomé, “La familia omeya en al–Andalus,” em M. Marı́n


e J. Zanón, Estudios Onomástico–Biográficos de al–Andalus V, Consejo
Superior de Investigaciones Cientı́ficas (1989).

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