Maia 100108
Maia 100108
Maia 100108
1. Prólogo.
O argumento demográfico
O argumento demográfico tem diversas variantes, versões elaboradas ou não,
mas o ponto de partida é simples:
• Temos pai e mãe, dois; quatro avós; oito bisavós, e assim em diante.
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4 F. A. Doria
• No ano 1000, terı́amos então 230 = 1 073 741 824 avoengos de 30o grau.
• Ora, no ano 1000 da era cristã, a população mundial não chegava a 500
milhões de habitantes — estaria entre 200 e 300 milhões.
• Logo, é muito provável que cada indivı́duo que vivesse na Europa oci-
dental, há mil anos atrás, seja ancestral de um indivı́duo tı́pico, digamos
assim, de ascendência européia ocidental, hoje.
Indivı́duo tı́pico é: membro da média da população. O argumento acima pode se
sofisticar para que levemos em conta migrações, grupos sociais insulados, enfim,
tudo o que possa servir para refiná–lo. No entanto, seu núcleo é simples: há
mil anos atrás a população mundial era muito menor, toda ela, que o número
de nossos antepassados. Logo, praticamente toda aquela população deve estar
entre os ancestrais do indivı́duo tı́pico de hoje em dia, reis, mendigos, bárbaros,
cristãos; muçulmamos e judeus.
Daı́ decorre outro fato: somos, todos, parentes muito próximos. Embora
não nos reconheçamos como tal, somos uma grande famı́lia, toda a população
humana.
No Brasil
Se nos restringimos à população atual de um só paı́s, por exemplo o Brasil, o
parentesco entre dois indivı́duos genéricos, digamos assim, é ainda mais próximo.
Amostragens empı́ricas revelam antepassados comuns no século XVII, ou seja,
cerca de dez gerações atrás. Se os dois indivı́duos têm origens na mesma região,
é provável que seu ancestral comum esteja no século XVIII, ou mesmo em data
mais recente — ou seja, há seis, sete gerações atrás.
Assim sendo, é altamente provável que, dados dois brasileiros escolhidos ao
acaso, estes possuam um antepassado comum no século XVII. Mais: é muito
plausı́vel que (quase) todo brasileiro descenda ao menos de um dos ditos “casais
fundadores” da população brasileira:
• João Ramalho e sua criada Isabel. Temos pouca documentação contem-
porânea sobre esses. A fonte documenal mais importante é o testamento
de Ramalho, que só conhecemos em cópia posterior ao século XVIII. João
Ramalho deve ter arribado no Brasil em 1508 ou 1509, e sua descendência
com Isabel — ı́ndia batizada, que teria o nome Burtyra — pega porção
significativa da população do centro e do sul do Brasil.
• Diogo Álvares Caramuru e Catarina do Brasil. Diogo Álvares, dito Cara-
muru,1 chegou ao Brasil entre 1509 e 1511. Casa–se com Catarina, ı́ndia
da região do Recôncavo, depois de 1529; como se sabe, Catarina foi bati-
zada na França, para onde havia sido levada. A descendência de ambos
1 Em geral diz–se que a alcunha Caramuru viria do nome de um peixe, moréia, existente
nos baixios do Rio Vermelho, onde Diogo Álvares desembarcou, segundo a tradição. Mas Luı́s
Madeira notou que, ao norte de Portugal, na região de onde proviria Diogo, existe a serra do
Caramulo; nesse caso, Caramuru/Caramulo seria um locativo.
I. Prólogo 5
talvez não seja tão vasta quanto a de João Ramalho e Isabel “Burtyra,”
mas vai do nordeste ao Rio Grande do Sul.
Podemos ainda citar diversos casais fundadores, com descendência mais res-
trita, mas mesmo assim bastante ampla:
• Braz Teves e Leonor Leme. Tendo vivido em fins do século XVI, desse
casal descendem os Lemes brasileiros — e fração significativa, a estimar
com melhor precisão, da população do centro–sul brasileiro hoje. Vale
notar que cerca de 20% dos presidentes da república descendem dos dois.
Braganções
Dois clãs sobre cujas raı́zes quase nada sabemos são os Braganções e os Sousões.
Os Braganções tem terras, possivelmente desde o século X, ao norte de Portugal,
na região de Bragança, montanhosa e inóspita. São muito poderosos: aliam–se
politicamente e através de casamentos à famı́lia real de Leão e à famı́lia real
portuguesa, então se formando, e possuem cargos de destaque na corte dos
primeiros reis portugueses. Esbatem–se pelo século XIII. Deixam descendência,
várias famı́lias da pequena nobreza, não titulada em geral, como por exemplo
os Moraes de Antas, com um ramo em S. Paulo desde o século XVI.
Sousões
Têm perfil similar aos Braganções, e seus territórios, também ao norte de Por-
tugal, ficam mais ao centro da região. Tomam o nome de um rio, Sousa, e
caracerizam–se pelos nomes estranhos de seus ancestrais mais antigos, no século
X: Vizoi Vizoi, Gomes Echigues, entre outros. Muito poderosos e com cargos
curiais no século XI, no século XIII sua herança muito rica passa a dois ramos
bastardos da casa real, através do casamento das herdeiras das terras dos Sousas,
com Martim Afonso dito o Chichorro (o pequeno), e Afonso Dionı́sio — ances-
trais, respectivamente, dos chamados Sousas do Prado e Sousas de Arronches.
Muitas linhas de seus descendentes pertencem à alta nobreza de Portugal,
nos séculos XVII e XVIII.
Baiões
Ligam–se na origem à mais alta aristocracia do reino de Leão, os antigos Condes
de Lugo, no século IX. Mesmo assim, sua descendência não tem a importância
polı́tica dos dois clãs precedentes, e sobretudo dos Sousões. Deles descendem
os Azevedos, senhores de São João de Rei em Portugal, e os Barretos — que,
ligados no século XV ao Monizes alcaides de Silves, no Algarve, passam ao Brasil
e povoam a Bahia, o Rio, e o Rio Grande do Sul.
I. Prólogo 9
Senhores de Ribadouro
Tomam o nome do rio Douro. Documentam–se desde o século XI, quando já
surgem poderosos. O historiador Armando de Almeida Fernandes pensa que
poderiam descender de outra famı́lia da alta nobreza de Leão, como é o caso
dos Baiões; aqui, seriam ancestrais dos senhores de Ribadouro os Condes de
Coimbra, estreitamente ligados à casa real leonesa.
São gente muito poderosa. É a famı́lia de Egas Moniz, dito o Aio, persona-
gem semi–lendário das cortes do conde D. Henrique e de D. Afonso Henriques.
Destes senhores de Ribadouro descendem Coelhos, Alvarengas, e muito da no-
breza em Portugal do fim da idade média.
Senhores da Maia
Com terras próximas ao Porto, são a famı́lia cujas origens investigamos aqui.
Têm origens nalgum clã árabe, ao menos em parte, devido ao nome de seu
fundador. São tão importantes na corte quanto os senhores de Ribadouro,
e forneceram à história personagens semi–lendários como Gonçalo Mendes da
Maia, o Lidador, ou Soeiro Mendes da Maia, o Bom.
Sua descendência será examinada aqui. Alcança, como dissemos, muito da
popula cão portuguesa até hoje.
II. A Lenda de Gaia
1. A Famı́lia da Maia.
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4 F. A. Doria
Lendas fundadoras
Muitas famı́lias antigas têm lendas fundadoras. Algumas dessas lendas são ob-
viamente falsas, como é o caso da narrativa fundadora sobre os Tudors, que
reinaram sobre a Inglaterra de fins do século XV a começos do século XVII:
diziam–se descendentes do rei Artur das histórias de cavalaria, o que é indocu-
mentável, e muito provavelmente falso, já que nem se sabe se Artur existiu. Ou
II. A Lenda de Gaia 5
o caso dos Médicis de Florença, que têm como ancestral totêmico a Perseu: na
verdade, os Médicis surgem para a história no fim do século XII como banqueiros
e comerciantes, e seu nome e suas armas apontam para a origem numa famı́lia
de médicos e boticários antes que a linhagem comece a ser documentada, e que
logo se tornam em banqueiros quando emergem como personagens históricos.
Vejam que a Lenda de Gaia, que conta a origem dos senhores da Maia, é nar-
rativa plausı́vel, sem traços fantásticos. Em sua essência, conta uma história de
dois adultérios simultâneos, um, praticado pelo rei Ramiro II com uma moura,
e o outro, praticado em represália pelo mouro Alboaçar com a rainha de Ramiro
II, D. Aldonça. Do adultério do rei proviriam os senhores da Maia. Dá para
acreditar.
Mas há um problema: uma parte da Lenda de Gaia pode ser (talvez) ve-
rificada na documentação histórica do tempo de Ramiro, como veremos. En-
quanto a outra parte é comprovadamente falsa. A Lenda de Gaia junta duas
metades inconsistentes: o que parece uma história verdadeira, misturada a uma
patranha descarada.
Bom, esta é a lenda. E a famı́lia da Maia?
A famı́lia da Maia
Trata–se de uma famı́lia bem documentada a partir de seu fundador, cujo nasci-
mento é o tema da Lenda de Gaia. A famı́lia da Maia principia em certo
Abunazar ou Abenazar Lovesendes, senhor de grandes extensões de terras nos
arredores do Porto, ao norte de Portugal. Abunazar Lovesendes funda em 978
o mosteiro de Santo Tirso de Ribadave, na região que tem o nome, genérico, de
terras da Maia; casa-se com Unisco Godinhes ou Godins. Conhece–se um do-
cumento que o cita e a seus descendentes imediatos: é o chamado “documento
de Santo Tirso,” que diz respeito à partilha de bens da famı́lia, relativos ao
mosteiro sob padroado destes, Santo Tirso de Riba d’Ave. Datando de fins do
século XI, é conhecido numa transcrição do século XV, e foi publicado por D.
António Caetano de Sousa, nas Provas da História Genealógica da Casa Real
Portuguesa :
ejus Suario Nunes, & Domina Palla Deo Vote, Suario Pinoes tam
per se quem pro omnibus haeredibus suis. Pactum simul, & plazum
facimus inter nos unos ad alios per scripturam firmitatis quinta Idus
Junijs era 1130 properte de isto Monasterio supradicto quod teneat
illud Dominus Gaudemirus Abbas de nostris manibus, & successores
ejus post eum. . .
Fizemos duas correções, já que este documento é uma cópia, provavelmente
corrompida, do século XV, de um original do século XI: Lovesendes, em vez
de Lavesendes, e Abunazar em vez de Abuuazar — neste último caso houve
confusão entre o u e o n unciais.
O nome Abunazar é bem atestado em fins do século X e começos do XI, e
é preferı́vel às formas só atestadas muito posteriormente, Aboazar e Alboazar.
Mas o nome correto do primeiro senhor da Maia pode ter sido apenas Nazar, ou
Nazeron — forma nominativa, cerimoniosa — que encontramos documentada,
como se verá.
Eis a tradução:
portanto, o ano do documento é 1092. Os nomes Monio, Nuno e Moniz, Nunes, são inter-
cambiáveis, a esta época.
II. A Lenda de Gaia 7
A famı́lia materna
Voltemo–nos para a ascendência materna do primeiro senhor da Maia, segundo
a lenda. Ortega, sua mãe, Alboazar Abuzadão o tio, Dom Zadão Zada, avô
materno. Ortega, irmã de Alboazar Abozadão e filhos de Dom Zadão Zada, da
famı́lia de el–rei Aboali.
Existiram tais personagens? Vários destes existiram na medida em que
lhes encontramos homônimos, ou quase, na documentação contemporânea. E,
segundo toda a evidência documental, são, de fato, omı́adas, possı́veis descen-
dentes do califa al–Walid (que identificamos a el rei Aboali),4 que reinou em
começos do século VIII, e que comandou a conquista da penı́nsula ibérica pelos
árabes. Próximo a Coimbra descobrimos que lá possuı́a terras, em 933, um
grande personagem, Zahadon, mouro de muito plausı́vel origem nos omı́adas,
casado com Aragunte Fromariques, senhora de alta estirpe e provável sangue
real, dos reis de Leão. Zahadon: Çadão, Zadão. A grande proximidade entre
um e outro nomes é sugestiva, e há muitas outras razões para identificarmos o
significar também “o respeitável Nazar.” O Abu pode ser um prefixo cerimonial acrescentado
ao prenome Nazar. Ou, na verdade, podemos ter uma confusão entre Abenazar, forma do
nome atestada em 999 — ibn Nazar — e Abunazar.
4 Devemos esta identificação a Manoel Cesar Furtado.
II. A Lenda de Gaia 9
Dom Zadão Zada da Lenda de Gaia ao Zahadon ibn Halafi, de Coimbra, como
veremos.
Em 933, Zahadon vende terras a certo Gondemiro ibn Dawuti: e confirmam
o ato, como testemunhas, Ramiro II, rei de Leão; um seu filho, Bermudo; a con-
dessa Ilduara Paes, o conde Ximeno Dias. Grandes personagens, cuja presença
como confirmantes numa escritura de venda mostra que Zahadon ibn Halafi era
também um grande personagem.
Encontramos enfim também, um pouco mais tarde, na mesma região, em 967
e 968, um Nazeron ibn Leodesindo! Nome próximo demais a Abunazar ou Nazar
Lovesendes, já que Leodesindo é variante de Lovesendo, e ibn Leodesindo, filho
de Leodesindo, tem o mesmo significado que Lovesendes — seria este o senhor
da Maia? É o que pensamos.
Homônimos, ou quase, todos, Zahadon ibn Halafi, Nazeron ibn Leodesindo,
dos personagens da Lenda de Gaia e, de certo modo, ligados a Ramiro II.
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2. A Lenda de Gaia: Versões.
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12 F. A. Doria
batiza–a como Aldara e dela tem um filho, Alboazar, cujo nome explica, será
pai de muito boa fidalguia. (Notemos que Abunazar, ou Abu Násr, pode sempre
significar, também, pai do comandante. Mas este nome, como já vimos, pode
ter outros significados, que discutiremos adiante.)
A divisão em parágrafos não consta do texto original, mas foi aqui colocada
para melhor identificarmos os episódios da lenda. Um seu pequeno resumo: são
personagens da lenda, na versão do Livro Velho:
afundando–a no mar.
II. A Lenda de Gaia. 15
• Ramiro II, rei de Leão; sua mulher e prima Aldonça (que promete repudiar
para se casar com a moura), e o filho de Aldonça e Ramiro, Ordonho.
Note-se que Ramiro II casou c. 925 com uma prima quase homônima
à rainha da lenda, Ausenda Guterres, que é de fato repudiada em 930
— e Ausenda, a ex–rainha, continua viva durante três lustros. Embora
haja alguma incerteza quanto à filiação precisa desta senhora, que era
sem dúvida neta do Conde de Coimbra, Hermenegildo [Mendo] Guterres,
a opinião predominante acredita–a filha do conde Guterre Osores e de
Aldonça Mendes, filha esta de Mendo Guterres. Viria de uma corruptela
de Ausenda o nome Aldonça para a rainha da lenda, segundo o Livro do
Conde? Ou de uma confusão com o nome da mãe da rainha repudiada?
se disse.
36 Aviltado: ofendido.
37 Raptou–a à força.
18 F. A. Doria
averão prazer, e a minha alma será salva; esto me nom deves negar
por salvamento de minha alma, q saber q por ta ley deves salvar se
poderes as almas de todas as leys; e esto dezia el, por fazer vir alli
todos seus filhos, e parentes, por se vingar delles, ca em outra guiza
nom os poderia achar em hu; e porq o curral era alto de muros, e
nom avia mais, q hua porta por hu os seus avião de entrar, Alboazar
pensou no q lhe pedia, e filhou dele lastima, e dixe cõtra a Rainha:
esse homem rependido hè de seu pecado, mais ey eu errado a elle,
cà elle a mi; grã torto faria de o matar, pois se põe em meu poder.
A Rainha respõdeolhe: Alboazar fraco de coraçõ, eu sey, qem he Rey
Ramiro, e sey de certo, se o salvas de morte, que nom podes escapar,
que a nom prendas del, ca el he arteyroso, e vingador, assi como tu
sabes.
E nom ouvistes dizer, como el tirou os olhos a D. Ordonho, seu
irmão, q era mór de dias por o deserdar do Reyno, e nom te acordas
quantas lides ouveste com elle, e te venceo; era e te matou, e cativou
muytos bons, e ja te esqueceo a força, que te fez de ta irmã, e em
como eu era sa molher, me trouxeste, que he a mor deshonra, q os
Christãos podem aver; nom es para viver, nem es para nada, se te
nom vingas; e se o tu nõ fazes por tua alma, porq assi a salvas,
porque he homem de outra ley, e em contrario da tua; e tu dalhe a
morte, que te pede, pois já vem acõselhado de seu Abade, ca grão
pecado farias, se lha partisses.
Alboazar olhou o dizer da Rainha, e disse em seu coraçom: de má
venture he o homem, q se fia de nenhua molher: esta he sa molher
lidima, e tem Infantes, e Infantas del, e quer sa morte deshõrada;
eu nom ey porq della fie: eu alõgalaey de mi: e pensou em o q lhe
dezia a Rainha, em como Rey Ramiro era arteyroso, e vingador, e
receouse delle, se o nom matasse, e mandou chamar todos os q erom
naquelle lugar, e dixe a Rey Ramiro: tu vieste aqui, e fizeste gram
locura, q nos teus paços puderas filhar esta pendença; e porq sey,
se me tu tivesses em teu poder, nõ escaparia da morte, eu te quero
cumprir o que me pides por salvamento de tua alma.
Mandouo tirar da camara, e levouo a o curral, e pollo sobre hum
gram padrão, que hi estava, e mandou, que tanjesse seu corno, a
tanto, atá que lhe saı́sse o folgo; e el Rey Ramiro lhe pedio, que
fizesse hi estar a Rainha, e as donas, e dõzellas, e todos seus filhos,
e parentes, e cidadãos naquel curral, e Alboazar fezeo assi.
El Rey Ramiro tangeo seu corno a todo seu poder, para ouvirem
os seus; e o Infante D. Ordonho seu filho, quando ouvio o corno,
acorreolhe com todos seus vassallos, e meteromse pella porta do cur-
ral; e Rey Ramiro deceose do padrão, dõde estava, e veyo contra o
Infante, e dixe: meu filho, vossa madre nom moura, nem as donas e
dõzellas, que com ella vierão, e guardaya de cajom, que outra morte
II. A Lenda de Gaia. 21
merece.
Alli tirou a espada da bainha, e deu com ella a Alboazar por cima da
cabeça, q o fendeo atá os peytos. Alli morrerão quatro filhos, e três
filhas de Alboazar Albucadão, e todos os Mouros e Mouras, q estavão
no curral, e nom ficou em essa villa de Gaya pedra com pedra, q toda
nom fosse em terra.
Filhou el Rey Ramiro sa molher com sas donas e dõzellas, q estavão
com ella, e quanto aver achou, e meteo nas galés, e despois, que
esto ouve acabado, chamou o Infante seu filho, e os seus fidalgos, e
contoulhes tudo, como lhe aviera com a Rainha sa molher, e elle q
lhe dera ajuda para fazer della mais crua justiça na sa terra.
Ello ouveram todos por estranho de tamanha maldade de molher,
e o Infante D. Ordonho saira õlhe as lagrimas polos olhos, e dixe
contra seu padre: senhor, a mi nom cabe de falar em esto porque
he mi madre, se nom tanto, que olheis por vossa honra; e entrarom
entom nas galés, e chegarom à foz do Ancora, e amarrarão as galés
para flgarem, porque avião muyto trabalhado aquelles dias; alli forom
dizer a el Rey, q a Rainha seia chorando, e el Rey dixe: vamola ver.
Foy lá, e perguntoulhe porque chorava? e ella respondeo, porque
mataste aquelle Mouro, que era melhor, que ti; e o Infante dixe
contra seu padre: isto he o demonio; que quereis della? que pode ser
que vos fugirá; e el Rey mãdoua então amarrar a hua mó, e lançala
no mar, e desaquelle tempo lhe chamarom foz de Ancora.
Por este pecado, que dixe o Infante D. Ordonho contra sa madre,
dixerom despois as gentes, que por esso fora deserdado dos povos de
Castella.52
Rey Ramiro foyse a Leão, e fez sas cortes muy ricas, e falou com os
seus de sas terras, e mostroulhes a maldade da Rainha Aldonça sa
molher; que elle avia por bem de cazar com D. Ortiga, que era de alto
linhage; e elles todos a hua voz o louvarom, e ouveromno por bem.
Ella foy de boa vida, e fez o mosteiro de S. Iulião, e outros hospitaes
muytos; e os que della descenderom foram muyto complidos.
Esta versão do Livro do Conde para a Lenda de Gaia é, muito obviamente,
a fusão de duas tradições: de um lado, o texto da versão do Livro Velho, que
transparece quase literalmente em várias partes da narrativa. Do outro lado,
uma tradição (oral? escrita?) que acrescenta inúmeros detalhes inéditos à nar-
rativa do Livro Velho, muda–lhe significativamente o sentido, e identifica com
precisão vários dos personagens da história. Em especial, a matriarca dos se-
nhores da Maia, aquela que no Livro Velho é uma criada, aqui se torna numa
princesa omı́ada, noiva do amir do Marrocos.
52 Não foi deserdado; reinou durante cinco anos após a morte de Ramiro II, durante um
Na Monarchia Lusitana
Uma terceira fonte documental para a idade média portuguesa é a Monarchia
Lusitana. A Monarchia Lusitana é uma obra coletiva, principiada no século
XVI, ao tempo da união ibérica, e cuja primeira parte deve–se a a fr. Bernardo
de Brito. Nesta parte acha–se a terceira versão costumeiramente citada para a
Lenda de Gaia, que apresentamos na ı́ntegra a seguir. Frei Bernardo é visto com
muitas reservas entre os cronistas portugueses, ou seja, não é visto como fonte
confiável. Sua versão para a Lenda de Gaia segue de perto a versão do Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro, com alguns detalhes acrescentados: que o
fundador da famı́lia da Maia se chamaria “D. Andonio,” o que é completamente
falso, e que Ortiga, sua mãe, teria em árabe o nome Zahara.
Eis a versão da Monarchia Lusitana, que, na verdade, deve ser citada apenas
para registro:53
LIVRO SETTIMO - C A P I T V L O. XXI.
“Do SucceSSo que aconteceo a elRey Dom Ramiro com Alboazar Iben
Albucadan, & da certeza que ha nesta materia, memorias que ha em
Portugal deStes annos: tocaSe huma doação que este Rey fez ao
mosteiro de Loruão, & de hum filho qm teue, chamado Andonio.
O Crédito & authoridade do Cõde Dom Pedro, filho delRey Dõ Di-
nis, me forçá, a tratar huma matéria deSte Rey dom Ramiro, qm na
opinião de algums não he auida por mui certa, porque medindo as
cousas daqmlle tempo antigo pellas de agora, lhes parece, que as im-
poSsibilidades de oie correrião já pelo meSmo eStilo, não vemdo qm
muitas das qm oie54 Succedem, Se puderão ter emtão por mõStruoSas,
e deSta opinião errada, nace a muitas peSSoas deSprezar as verdades
das antigas enuoltas na Simplicidade daquelles primeiros tempos,
& introduzir outros sonhos de Sua cabeça, acomodados os tempos
dagora, como acõteceu a quemquis negar a ida do Conde dõ Hen-
rique á terra Santa, o apparecimento de Christo a elRey Dõ AfõSo,
a ida de Egas Monis a CaStella, a batalha de Arcos de Val de Vez,
& outras couSas Semelhantes, cuia irrefragavel verdade Se palpa em
doações, & eScrituras antigas, onde ella não pode faltar.
A a mim me aconteceo nefar na chronica de CiSter o Segumdo
caSamento a Rainha dona ThereSa molher do Cõde dõ Hemrique,
acoStado a Sufriveis fundamemtos, & depois acharme cõ tres eS-
cripturas, qm ella, & Seu Segundo marido fazem, & Se chama mol-
her hum tempo do Conde dõ Henrique, & então do Conde dõ Fer-
nando, dizendo. Ego Regina domina TharaSia uxor quondã Com-
mittis Henrici, nunc autem Comittis doni Ferdinandi, etc. Que quer
dizer: Eu a Raynha dona TareSa molher hum tempodo Conde dõ
Henrique, & agora do Cõde dõ Fernãdo. etc. . . E no moSteiro de
53 A lembrança do texto de Frei Bernardo de Brito foi–nos sugerida por Luis Cavaleiro
Madeira.
54 Hoje.
II. A Lenda de Gaia. 23
Ramiro II.
58 Será isto uma referência oblı́qua ao documento DC 39, datado de 933, confirmado pelo rei
Ramiro II, no qual Zahadon al–Umawi vende terras a Gondemiro ibn Dawudi? Comentaremos
em detalhe, adiante, este documento.
24 F. A. Doria
viue com recato, & não São de proueito peSSoas inuteis pera menear
armas.
Concertadas as viStas neSe lugar Se veo elRey em tres Galles cheas
dos fidalgos & Senhores, mais esforçados qm tinha em Sua corte; &
Sendo recebido pello Mouro cõ o termo deuido a tamanho Principe;
tratarão em negocios tocantes ao bem & conSeruação de Suas terras
& das pazes, & bom amor em que viuião; & certificandoSe elRey cõ
Seus olhos da eStranha fermoSura de Zahara, pedio ao Mouro qm lha
desse por molher, certificandoo, qmem Se tornando christãa a reberia
por tal, & a coroaria por Raynha de ESpanha, cõ que as tregoas &
amor de ambos os reynos, ficarião tendo maiores fundamentos.
Dificultoulhe Alboazar o negocio com a diferença das leis, & cõ Ser
elle caSado cõ a Raynha dona Vrraca, & ter della filhos, que não
cõSintirião no repudio da mãy, nem o Papa aquem cõpetia atal-
har o abuSo de muitos caSamentos entre os Christãos; & por mais
que elRey o certificou, Ser facil de remedear o inconueniente, por
quanto eStaua caSado com a primeira molher indiuidamente, pello
muito paremteSco que auia entrambos, & Se daria logo Sentença de
diuorcio; o Mouro Se declarou com elle, qm nãp conSintiria em tal
caSamento, porque o fizeSSe Senhor de toda ESpanha, pois alem de
encontrar niSto Sua lei, tinha promettido a irmaã a elRey de Mar-
rocos, & agoardava cada dia ordem pera Ser leuada ao marido, com
quem não podia faltar em nenhuma forma do mundo.
A deSeSperação de alcançar o que deSeiua, acrescentou elRey a von-
tade de auer em Seu poder a Moura, & traçando diuersos meos, a
que dificultaua hum fim cheo de impoSsiueis, veo no remate de tudo
a tomar conSelho cõ hum grande AStrologo por nome Amão, & Se-
gundo o remedio qm deu, não Seria muito, que ouueSSe em Suas
artes mais Sciencia que a AStrologia; pois SatiSfez o animo delRey,
obrigandoSe a lhe tirar a Moura huma noyte do caStello Sem que
peSSoa o SintiSSe, & porlha onde Seguramente a pudesse leuar a
Seu reyno. Piquenos lhe parecerão os tiSouros de Seu eStado, pera
satisfazer tamanho Seruiço, e dando largas promeSSas em prendas
do qm determinava fazer, preparou as couSas pello modo qm lhe
aconSelhou o Sábio, preuinindo os Seus pera a hora em que o nego-
cio Se auia de executar, porqm Se a caSo acõteceSSe SintirSe o roubo
da Moura, & Serem acometidos da gemte da fortaleza, os achaSSem
na ordem que conuinha pera Sairem cõ Seu intento.
FezSe tudo da maneira que elRey deSeiaua, Sem qmo Cõde eSpeci-
fique os particulares qm ouue na materia ate Ser a Moura tirada fòra
do castello, e leuada ás Galles, onde á elRei estaua agoardãdo deS-
pedido iá de Alboazar o dia dãtes, & metidas asembarcações ao largo
pera mais diSsimulação do caSo, tendo os bargantins59 Somemte ao
59 Bergantim; pequeno brigue.
II. A Lenda de Gaia. 25
Brito. Donde, novamente o vermos como Oñega, feminino do prenome basco Iñigo.
26 F. A. Doria
encuberta com Sua eSpada, & hum peito de armas debaixo de veSti-
dos groSSeiros, & mui pobres, com os quaes Se foy lançar iunto a
huma fonte qm fica abaixo do caStello de Gaya, onde achou huma
criada da Rainha, chamada Perona, de nação FranceSa, qm acaSo
vinha buScar agoa pera lhe lançar ás mãos, quãdo Se leuantaSse;
& poSto que lhe elrey falaSse em Arabigo, & lhe pediSsSe de be-
ber fingindoSe muy enfermo, & ao tempo qm meteo a boca no vaSo
lhe lãçaSSe dentro hum seo camafeo, de que a Raynha trazia outra
ametade, a moça não aduirtio quem podia Ser; nem deu boa rezão á
Senhora, quãdo ella ao lauar das mãos, vio a mea pedra dentro na
agoa, & quis Saber donde a ouuera.
E como por muitaimportunação alcãçaSSe, qm dera de beber a hum
mouro enfermo, qm lho pedira por Deos, a Raynha o fez chamar, &
vemdoo, conheceo Ser o marido, a quem iá deSamaua tãto, qm nada
deSeiaua menos qm vello ante Seus olhos; & tomandoo de parte,
lhe preguntou a cauSa deSe atreuer a hum caSo tão arriScado, &
falto de bõ conSelho, & reSpondedolhe elle, qm em negocios guiados
por amor, não auia outro acerto maior, que deSacertar em tudo, &
qm o muito qm lhe queria facilitaua o riSco a que Se punha pella
libertar, das mãos de Seu contrario: ella lhe lançou tudo por alto,
lembrandolhe que não podia Ser grande o amor qm lhe tinha, quãdo o
de Zahara fora baStante pera o fazer arriScar a tanto, & tella a ella
em tão pouco; & com diSsimulação o fez entrar pera huma camara
de abobeda, dizendo, que logo faria volta, e trataria com elle o meo
qm auia pera Se porem a Saluo; mas depois qm o teue fechado, &
a chaue na mãga da cota que veStia, agoardou a vinda de Alboazar,
qm desde a madrugada Sayra á caça, & vemdoo, lhe preguntou, qm
fizera delRey dõ Ramiro, Se a ventura lho puSeSSe em eStado, qm
lhe foSse licito diSpor delle a Seu goSto.
& ouuindolhe, que o menos Seria tirarlhe a vida cõ exquiSitos tor-
mentos, lhe meteo a chaue na mão dizemdo, que ali o tinha, & que
não perdeSSe tão acertada cõiunção, como lhe offerecia a ventura.
VendoSe elRey traydo aleiuosamemte da Raynha, em cuia fé tiuera
confiança átequella hora, diSSe ao Mouro, qm em penitemcia do erro
cometido no roubo da irmaã, lhe fora mandado por Seu cõfeSSor, qm
vindoSe meter em Sua mão, aceitaSSe a morte qm elle lhe quiSeSSe
dar por Saluação de Sua alma; & qm pois o roubo, & mal qm fizera,
fora publico e Soada pello mumdo, lha mãdara, qm publicamemte
tangeSSe huma bozina tãto, ate qm acabaSSe por falta de alemto.
QuiSeralhe o Mouro perdoar, mouido acõpaixão de ver humRey tão
poderoSo em tal eStado, & na verdade o fizera Se lho não impedira
a Rainha, qm influida no amor libidinoSo do Mouro, queria ver o
marido tirado depor meo, e deScãSado o penSamemto cõ ver pre-
Sente Sua morte.
II. A Lenda de Gaia. 27
O que transparece deste texto de frei Bernardo de Brito, desta sua narrativa
da Lenda de Gaia, é que, sendo sua fonte principal a lenda segundo o Livro
do Conde D. Pedro, Brito procurou confirmá–la em documentos do tempo de
28 F. A. Doria
Ramiro II, e neles nada encontrou sobre o romance entre Ramiro e a moura.
Foi o primeiro confronto da lenda à realidade histórica. Sem sucesso.
III. Teoria do Mito e da Lenda.
1. Mito e História.
3
4 F. A. Doria
(em linha masculina) dos reis de Leão, o que é indocumentado e, muito possivelmente, todo
falso.
III. Teoria do Mito e da Lenda 5
como vamos ver nos exemplos em seguida, supor que, em geral, mitos
refletem a história nada tem de absurdo.
• Mitos manipulam unidades básicas. Neste nosso enfoque informal, ou
semi–formal, seria demais dizermos que mitos são processos digitais —
como Lévi–Strauss o fez, em seu livro Le Cru et le Cuit, de 1964, ou
como já havia proposto dez anos antes, num dos ensaios republicados na
coletânea Anthropologie Structurale.
De qualquer modo, consideraremos aqui serem os mitos estruturações de
certas “letras” básicas, os mitemas (termo que roubamos de Lévi–Strauss,
mas cujo sentido poderá ser, aqui, alterado). Reconheceremos os mitemas
de forma primária — elementar, básica — analisando os textos da Lenda
de Gaia (no capı́tulo anterior, a divisão em parágrafos das tradições tex-
tuais que temos a respeito já sugere essa identificação dos mitemas para
a Lenda de Gaia).
• Mitos possuem uma estrutura dupla, ou eventualmente múltipla. Distin-
guiremos, quando possı́vel, entre uma estrutura primária, cuja gramática
tentaremos compreender, e uma estrutura secundária, que nada mais é do
que um mito antigo colocado dentro do mito mais novo.
Vamos dizer com mais clareza — um mito pode nascer da seguinte maneira:
personagens e situações novas são colocados dentro de uma estrutura
mı́tica pré–existente. Isso acontece, muito claro, sempre, com a Lenda
de Gaia, onde novos personagens são colocados dentro da estrutura pré–
existente de uma narrativa lendária mediterrânea muito antiga.
Seguimos, nesta seção, dois textos, um deles inédito [7, 8].2
O mito e o inesperado
Mitos são conservadores, e se reiteram inesperadamente em lugares onde nunca
estarı́amos à sua procura. Depois do sucesso, nos anos 60 deste século, do seriado
de ficção cientı́fica de televisão, Star Trek (“Jornada nas Estrelas”) produzem–se
nos anos 70 alguns seus clones bem interessantes. Um deles, Battlestar Galactica
(mesmo tı́tulo em português), onde uma nave espacial pilotada pelos humanos
de uma espécie diferente dos da Terra, percorre o universo confrontando–se com
uma raça de robôs, os centurions. A nave é comandada por um garoto, pré–
adolescente louro e sereno e frágil, que concentra em si toda a sabedoria de
todos os tempos e mundos.
Quem é esse garoto? É o adolescente divino, o kouros, a respeito do qual nos
falam até os textos da linear B miceniana, passados trinta e cinco séculos. O
kouros ressurge epicamente na moderna mitologia tecnológica: é o adolescente
hacker do filme War Games, ou o superprogramador de computadores do filme–
piloto Max Headroom. Todos da década de 80. Ou é J. F. Sebastian, o inventor
dos androides, dos replicants, em Blade Runner.
2 O ensaio Viagem à Terra dos Sonhos estuda o mito do paraı́so perdido na história do
O concreto no imaginário
O imaginário se dá num suporte concreto: de inı́cio a tradição oral, que logo se
apoia em fontes manuscritas, esparsas. Como se fosse um delta que aos poucos
vai–se abrindo: a memória oral, que se fixa numa versão manuscrita, da qual
nascem outras versões orais e mais outras versões manuscritas, quase nunca
trazidas umas e outras à colação. No século XIV, algum monge copiava um
manuscrito e o embelezava com sua própria memória dos fatos ali narrados, e o
corrompia com os seus erros de copista, sem se preocupar com a possibilidade
de existirem versões corretas ou autênticas, ou restauradas [9]. A crı́tica textual
só vai nascer no século XIX, meio milênio depois da invenção da imprensa, e
funda–se em mais um mito redescoberto, um mito que remonta à caverna de
Platão, o mito do texto arquetı́pico, originário, verdadeiro, único, texto do qual
todos os outros são variantes entropizadas, corruptas.
(Mito que, também, funda as epistemologias da história, o mito do fato–
histórico–em–si.)
Fausto
Quando nasce a imprensa, nasce também um outro mito, o mais recente dos
mitos que fazem nosso imaginário, e o mito que—talvez—funda a nossa visão
do futuro.
É com certeza o mito que deu sentido à história dos últimos cinco séculos.
Foi explorado de inı́cio por um autor anônimo, um quase cordelista alemão.
Ao anônimo seguiram–se Marlowe, Goethe, Gérard de Nerval, Thomas Mann.
Na música, Liszt, Wagner—ainda que impúbere; Mahler, ao fim da sua Oitava
Sinfonia, e Schönberg, que termina personagem (malgré soi–même) do romance
de Thomas Mann, Doktor Faustus.
Para Spengler, enfim, o mito de Fausto dá o espı́rito de nosso tempo.
O personagem que dá base histórica à lenda, ao que parece nasceu em 1480,
em Knittlingen, perto de Bretten, local de nascimento de Melanchton, que lhe é
contemporâneo. Atestando–se esparsamente na Alemanha e fora dela, conhece-
mos passagens suas em Veneza, em Krakow, em Heidelberg, na França. Morreu
(ou desapareceu) por volta de 1540, ou talvez um pouco antes [10, 11]. Qual
era o seu nome? Qualquer coisa como Georg, ou Jörg, ao qual juntou dois
3 Em 2007.
III. Teoria do Mito e da Lenda 7
O Faustbuch de 1587
Em 1587, quase meio século depois de sua morte ou desaparecimento, o editor
Johann Spies publica o Faustbuch, “Livro de Fausto,” calhamaço de autoria
anônima, e primeira fonte escrita para o mito como o conhecemos.
No seu frontispı́cio, o livro editado por Spies nos anuncia:
Historia
von D. Johann
Fausten, dem weitbeschreyten
Zauberer unnd Schwartzkünstler,
Wie er sich gegen dem Teuffel auff eine be-
nandte zeit verschrieben, Was er hierzwischen für
seltsame Abentheuwer gesehen, selbst angerich-
tet und getrieben, biß er endtlich sei-
nen wol verdienten Lohn
empfangen.
Ou seja:
História do sr. João Fausto,
o mundialmente famoso mago e nigromante;
como ele se comprometeu com o diabo por um tempo determinado;
quais as notáveis aventuras pelas quais passou, viu e recebeu,
até alcançar a retribuição merecida.
Robin Hood
E a história de Fausto, podemos compará–la também às narrativas populares
inglesas sobre Robin Hood. Fosse esse um nobre temporariamente banido da
corte, ou fosse a sua figura, como o quis Margaret Murray [20], composta a partir
de restos de uma memória muito mais arcaica, reflexo de uma religião praticada
pela classe baixa, a “velha religião,” resistindo ao avanço da religião da classe
dominante, no caso o cristianismo, o fato é que a história de Robin Hood conta–
se igualmente a partir do povo, a partir da camada mais subjugada da população
medieval inglesa. Basta ver que um personagem tão modesto na hierarquia
anglo–normanda do poder ao tempo dos primeiros Plantagenetas, o alvazil de
uma cidade, o xerife (shire reeve, “capataz do condado”) de Nottingham, torna–
se, na história de Robin Hood, em personagem imenso, conselheiro direto do rei.
(Os outros, os conselheiros de fato, o povo nem sabia quem fossem.) Toda a
distância social entre as classes naquele momento do feudalismo dá–se nesta
identificação. Que só é possı́vel para quem olha o xerife do fundo do poço da
sociedade.
mas nada pode vencer a força do primitivo, porque a ele está ligado
o próprio destino da terra. Era Brasil, e ficou Brasil. E será Brasil,
enquanto houver sobre a terra um homem capaz de pronunciar um
nome [. . . ]”
“E a palavra ‘América’ ? Pensam acaso que se deve ao nome daquele
navegador? Não. Nem ele se chamava ‘Américo,’ e sim ‘Alberrico.’
Ele é que modificou o seu nome por vaidade. ‘América,’ com pequena
modificação, foi sempre o nome de todo o continente. ‘Amerrı́qua,’
era como nós, os atlantes, o chamávamos há muitos milhares de
anos—‘amerrı́qua,’ lugar onde sopram livremente os ventos ([19], p.
222).” 4
A narrativa sobre a Atlântida vem–nos de Platão [16]. Em linhas gerais,
Platão conta uma suposta antiga tradição egı́pcia sobre uma grande ilha no mar
ao extremo do ocidente, também uma grande potência naval que teria inclusive
enfrentado várias vezes os egı́pcios. Esta ilha desaparece após um cataclisma
vulcânico, ou grande terremoto.
Na América, a lenda da Atlântida ressurge em duas tradições: o mito da
América paradisı́aca, e uma certa ideologia americanista, que se inicia em Flo-
rentino Ameghino e desaparece com Hrlidčka.
A primeira deriva da segunda. Peccatus non datur infra æquinoxialem. Não há
pecado debaixo do equador, nos disse Barlæus no século XVII; pois aqui está o
Éden, acrescentamos.
De Ameghino a Hrlidčka
A versão cientı́fica do mito do Éden americano surge em Florentino Ameghino
([25], p. 35 e ss.):
acham–se, num certo sentido, implı́citas nas idéias de Agassiz ([24], p. 119 e
ss.), velhas de meio século, então. Agassiz é um poligenista; defende centros
múltiplos de origem para a espécie humana, que chama de ‘reinos’: os reinos
polinésio, australiano, malásio–indiano (que inclui as populações dravı́dicas), os
hotentotes (que Agassiz, racista, denomina “fauna”); os reinos africano (com
as demais populações negras), europeu (a trı́ade dos povos semito–camitas,
dos fino–urálicos e dos indo–europeus), mongol–asiático, americano e ártico (os
lapões).
Também é similar a classificação proposta por Ameghino: à exceção do
monogenismo, e da origem primeira americana—ou, como veremos mais à frente,
a suposta origem atlante para o homem americano—as diferentes ramificações
do Homo segundo Ameghino acompanham nas linhas gerais as divisões pro-
postas por Agassiz. A diferença fundamental entre Ameghino e Agassiz ou
Hrlidčka é ideológica, mas de um outro gênero: afirmar a origem não–americana
do amerı́ndio pode, implicitamente, significar sua inferioridade ante as culturas
eurasianas, então mais velhas, mais ricas, e em consequência com direito nat-
ural à dominação das Américas. Ideológica, sempre, esta discussão: nasce nas
discussões quinhentistas sobre se o amerı́ndio possuı́a uma alma. A ideologia
por trás do americanismo de Hrlidčka parece dizer: o homem americano é uma
criança, precisa ser educado e guiado pelas culturas mais velhas.
Cavalli–Sforza
Amerrı́qua
Mas a ideologia do americanismo romântico precisava buscar seus fundamentos
em caminhos outros que não os delineados no tratado de Quatrefages [24]. As
premissas, aqui, seriam, como vimos, o monogenismo humano, em muito grande
antiguidade, nas Américas, e também a origem americana comum a todas as
lı́nguas.
Curiosa modernidade, dos americanistas românticos do século XIX. Em pa-
ralelo às primeiras investigações sobre as lı́nguas indo–européias, no romantismo
dos irmãos Schlegel, que viam no indo–europeu não só a lı́ngua–mãe, com toda
a carga simbólica do nome, mas também a lı́ngua ideal, primeva, perfeita, a
lı́ngua edênica; em paralelo às idéias dos Schlegel afirmava–se a existência, entre
os americanistas de há um século, de uma lı́ngua primitiva, nascida com o Homo
nas Américas, e ligada quase de modo essencial às coisas e lugares.
Surge neste ambiente a idéia de que o nome do continente derivar–se–ia de
uma das lı́nguas amerı́ndias: população autóctone, nomes autóctones. Esta pos-
sibilidade aparece num artigo de Cândido Mendes, publicado na venerabilı́ssima
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [25]; é lá onde se cita o
nome amerrı́qua (exato como está no romance de Jerônimo Monteiro), que viria
da lı́ngua Karib, e significaria “terra ou terras altas” (e não a encantadora
tradução do romancista, terra por onde correm livres os ventos).
Mas é factualmente falso. Com certeza no tı́tulo da coletânea Paesi Noua-
mente Retrouati & Nouo Mondo da Alberico Vesputio Florentino, de 1508, o
nome do navegador aparece como “Alberico,” e não “Amerigo” (ver o fron-
tispı́cio em [15], p. 271). Mas o nome “Amerigo” é comum entre os florentinos
dos séculos XIV e XV; é, por exemplo, o prenome de ancestral da mulher de
Lorenzo de’ Medici, irmão de Cosimo Pater Patriæ, Amerigo Cavalcanti, mer-
cador cuja biografia se mistura à história dos últimos reis angevinos em Nápoles.
Deriva–se “Amerigo” da voz germânica Haimrich, Haimrig, “do torrão natal.”
O nome é comum desde o tempo dos lombardos; vem do norte da Itália, assim
como Alberich, Alberig, “Alberico,” parecido mas com outra etimologia, e inda
outros assemelhados.
Depois, conhecemos diversos documentos onde Vespucci é referido como
“Amerigo,” e isso antes da descoberta da América. Um deles, encantador, é
o bilhete (de 14 de setembro de 1489) enviado ao Vespucci por Semiramide Ap-
piana, mulher de Lorenzo de’ Medici il popolano, neto do citado acima, onde esta
pede ao navegador, agente destes Médicis na Espanha, roupas para seus filhos
Pier Francesco, Laudomia, e Averardo ([27], p. 40). É preciso transcrevê–lo, é
delicioso:
Amerigo:
Fate fare uno berrettino di vellutto bugio argentato, ad mezza piega,
per Pier Francesco. Mandate le calze ho chiesto per la Laldomina
et Averardo, ma che siano meglo facte et taglate della altre. Dite
al canovaio che mi mandi le mie tele grosse, che horamai debbono
essere curate.
III. Teoria do Mito e da Lenda 13
Temos duas atitudes possı́veis diante das narrativas platônicas sobre a Atlân-
tida: ou supomos tudo uma invenção para efeitos retóricos, ou supomos que há
alguma base histórica, factual para este mito. Aceita esta última alternativa,
a reconstrução mais aceita hoje para as fontes do mito parte de umas idéias
levantadas em 1909 por K. T. Frost ([16], p. 35): o mito da Atlântida refletiria
as incursões minoanas sobre Micenas. Esta reconstrução tem a seguinte base:
1925: pergunta o artigo no seu tı́tulo, “est–ce au Brésil qu’on doit rechercher
le berceau de la civilisation?” ([28], p. 170). Neste artigo, a principal ilustração
nos é muito familiar, e nos traz de volta à nossa idée fixe ; são as inscrições que
um documento de 1754 afirma existirem na “cidade abandonada” dos sertões
da Bahia.
Os Nibelungos
Um outro exemplo, que bem mostra estes mecanismos, está nas narrativas ger-
mânicas sobre os deuses em seu conflito com os gnomos nibelungos. As fontes
históricas são três: as tradições sobre o chefe anglo Wotan, personagem histórico
segundo a tradição oral mais antiga, e que vivia provavelmente na Frı́sia por
volta do primeiro século da nossa era ([1], p. 66); as crônicas—escritas, mas
preservadas para o mito, em paralelo, na tradição oral—dos reis burgúndios, nos
séculos V e VI, em seus conflitos na corte, na guerra contra Átila e os hunos, nas
disputas com Teodorico o Grande, e com outros personagens contemporâneos;
e as crônicas sobre os condes Nibelungos, nos séculos VIII e IX [14].
16 F. A. Doria
O núcleo histórico para essas narrativas mı́ticas são os conflitos dos mero-
vı́ngios no século V. Neles aparecem o rei Sigebert de Metz, que modelou o herói
Siegfried, e sua mulher, a rainha Brünnhilde, uma princesa de sangue visigodo,
última descendente conhecida das dinastias godas dos Amali e dos Balthi, que
é o modelo histórico para a valquı́ria da lenda:
Charibert de Paris morreu prematuramente, em 567. Sigebert de
Metz e Chilperic de Soissons eram inimigos ferozes, enquanto Gun-
tramm da Borgonha fazia–se num aliado infiel de um e outro. A de-
generação e os crimes destes netos de Clóvis já lhes dão a aparência
de ogres lúbricos, apoiados na magia de seu sangue merovı́ngio. Mas
o ódio selvagem, mútuo, das suas rainhas, junta aos acontecimentos
do perı́odo o interesse de um drama, enquanto ao mesmo percebe-
mos de perto os eventos polı́ticos concretos realizando–se. Brünhild
e Gailswintha, filhas ricamente dotadas de Athanagild, rei visigodo
da Espanha, casaram–se respectivamente com Sigebert de Metz e
Chilperic de Soissons. Mesmo entre os merovı́ngios, Chilperic é uma
figura especialmente sinistra. Avarento, devasso, glutão e cruel,
havia repudiado sua primeira mulher (depois assassinada) para se
casar com Gailswintha. Mas logo encantou–se com uma concu-
bina de origens baixas, Fredegunde. Gaiswintha foi estrangulada,
e Chilperic casou–se com Fredegunde. Tal crime produziu uma
vendetta sem perdão da parte de Brünnhild, mulher de imagem quase
simpática, se a comparamos a Fredegunde. Vingativa, incansável,
autoritária, Brünnhild havia sido cuidadosamente educada; protegia
um poeta latino, natural da Itália, Venantius Fortunatus, e se cor-
respondia com o papa Gregório o Grande. Seu marido, Sigebert de
Metz, quase conseguiu dominar o irmão Chilperic, que havia sitiado
em Tournai. Em Arras, Sigebert é assassinado por dois escravos de
Fredegunde, e Brünnhild mal consegue escapar com seu filho criança,
Childebert II (575–595), em nome de quem vai governar.
...
Enquanto isso, Brünnhild sustentava–se através da guerra e de as-
sassinatos. Tinha enfim conseguido dominar os grandes nobres,
súditos de seu filho, que estava firme no trono e buscava mais poder.
Brünnhild conseguira inclusive fazer Childebert sucessor do rei Gun-
tramm, que não tivera filhos, na Borgonha. Quando Childebert
morre muito moço, Brünnhild continua como regente em nome de
seus dois netos, Theodebert da Austrasia e Theodoric da Borgonha.
Fredegunde morre antes de Brünhild, em 597, mas os nobres da
Renânia expulsam da Austrasia a rainha sobrevivente, enquanto
Brünhild tentava dominar a Borgonha. Brünnhild então faz com
que Theodoric ataque seu irmão, mate–o, e fique sozinho no trono.
Mas Theodoric, como todo bom merovı́ngio, morre moço em Metz
(613), e Brünhild procura reinar ainda, em nome do filho mais velho
de Theodoric. Foi demais. Arnulf de Metz, e Pepino, os dois fun-
III. Teoria do Mito e da Lenda 17
brand, conde da Borgonha. Hildebrand, por sua vez, era filho de Pepino II, † 714, mordomo
do palácio na Austrasia, e de sua amante Alpaı̈s, o que o faz irmão inteiro de Charles Martel.
Para uma crı́tica detalhada, [14].
8 A derivação do nome Nibelung a partir do feudo destes em torno a Nivelles foi proposta
— melhor, endossada — por Lévillain [14] numa nota de seu ensaio, mas David Kelley, em
comunicação intermediada por Don Stone, disse ao autor que prefere a origem no significado
“povo das névoas.”
9 O nome derivaria de wutend, “explodindo de ódio.”
18 F. A. Doria
Três narrativas independentes condensam–se, deste modo, numa só, que vai
de Wotan aos nibelungos. O resultado? O mito dos nibelungos, e tudo o que
destes se conta, até Wagner.
de Moreruela, fez seu irmão Rui jurar que não lidaria com ele. Como não
cumpriu o juramento, cegou–o e matou–o. Noutra ocasião, a mãe zangou–
se com sua barregã. Para se vingar, meteu–a, à mãe na pele de uma ursa
e atiçou–lhe os cães.” 10
Esta é a lenda fundadora da famı́lia dos Braganções, de grande influência
ao norte de Portugal nos séculos XI e XII, quando decaem. Já sugeri-
mos que esta sua lenda fundadora é a memória distante do casamento em
Bizâncio de um prı́ncipe visigodo, Athanagild, com a neta de Vardan III
Mamikonian, um prı́ncipe armênio. Do filho do casamento de Athanagild
com a neta de Vardan III descende, segundo a tradição,11 a dinastia dos
Condes de Coimbra, cujo fundador é Hermenegildo ou Mendo Guterres,
que se apossa de Coimbra, tirando–a do domı́nio árabe, em 878. Os Bra-
ganções poderiam ser descendentes, ou parentes colaterais, da dinastia de
Mendo Guterres, o que lhes explicaria o mito fundador.
cronologicamente consistente.
22 F. A. Doria
imaginário, com a ajuda do mito familiar, que era uma elaboração em torno das
glórias e crimes do primeiro ancestral, repetidas ou recalcadas nas gerações que
se seguiam. No meio urbano, desfaz–se a famı́lia extensa, que acaba reduzindo–
se à single parent family, famı́lia com apenas o pai ou a mãe, e alguns dos filhos,
nem sempre todos.
Nesta estrutura social colapsada, não há tradição que se aguente. Nem
estigma ou passado glorioso. Tudo se apaga, se oblitera, e o imaginário familiar
se substitui agora ao imaginário dos mass media.
Referências
[1] —The Anglo–Saxon Chronicle, Everyman’s Library (1953).
Tradução para o inglês moderno de uma das principais fontes para a história
dos saxões na Inglaterra.
[4] A. Callado, Esqueleto na Lagoa Verde, Min. Educação e Saúde, Rio (1953).
Um ensaio–reportagem, da autoria de Antonio Callado, narrando a ex-
pedição em busca do que ocorreu ao Cel. Percy Fawcett, que desapareceu
no Xingu à procura da “cidade abandonada” que é descrita num documento
de 1753.
23
24 F. A. Doria
evangelho de Marcos.
3
4 F. A. Doria
Rey Ramiro entende, que era enganado por sa molher, que já de alli
nom podia escapar se nom por arte algua, e maginou, que era tempo
de se ajudar de seu saber, e dixe a grão alta voz: Alboazar Albucadão,
sabe, que eu te errey mal; mostrãdote amizade levey desta caza ta
irmã, que nom era de minha ley, e confessey este pecado a meu
Abade, e el me deo em pendença, que me veesse meter em teu poder
o mais vilmente, que pudesse; e se me tu matar quizesses, que te
pedisse, q como eu fizera tam grande pecado ante a ta pessoa, e ante
os teus, em filhar ta irmã, mostrandote bom amor; que bem assi me
desses morte em praça vergonhosa; e por quãto o pecado, que eu fiz,
IV. Da Lenda à História. 5
foy em grandes terras soado, que bem assi fosse a minha morte soada
por hum corno, e mostrada a todos os teus; e hora te peço pois de
morrer ey, que faças chamar teus filhos e filhas e teus parentes, e as
gentes desta villa, e me faças ir a este curral, q he de grãde ouvida,
e me ponhas em lugar alto, e me leyxes tanger meu corno, que trago
para esto, a tanto, atá, q me saya o folgo e a alma do corpo: em
esto filharas vingãça demi, e teus filhos, e parentes averão prazer, e
a minha alma será salva; esto me nom deves negar por salvamento
de minha alma, q saber q por ta ley deves salvar se poderes as almas
de todas as leys; e esto dezia el, por fazer vir alli todos seus filhos,
e parentes, por se vingar delles, ca em outra guiza nom os poderia
achar em hu; e porq o curral era alto de muros, e nom avia mais,
q hua porta por hu os seus avião de entrar, Alboazar pensou no q
lhe pedia, e filhou dele lastima, e dixe cõtra a Rainha: esse homem
rependido hè de seu pecado, mais ey eu errado a elle, cà elle a mi;
grã torto faria de o matar, pois se põe em meu poder.
A Rainha respõdeolhe: Alboazar fraco de coraçõ, eu sey, qem he Rey
Ramiro, e sey de certo, se o salvas de morte, que nom podes escapar,
que a nom prendas del, ca el he arteyroso, e vingador, assi como tu
sabes.
E nom ouvistes dizer, como el tirou os olhos a D. Ordonho, seu
irmão, q era mór de dias por o deserdar do Reyno, e nom te acordas
quantas lides ouveste com elle, e te venceo; era e te matou, e cativou
muytos bons, e ja te esqueceo a força, que te fez de ta irmã, e em
como eu era sa molher, me trouxeste, que he a mor deshonra, q os
Christãos podem aver; nom es para viver, nem es para nada, se te
nom vingas; e se o tu nõ fazes por tua alma, porq assi a salvas,
porque he homem de outra ley, e em contrario da tua; e tu dalhe a
morte, que te pede, pois já vem acõselhado de seu Abade, ca grão
pecado farias, se lha partisses.
Alboazar olhou o dizer da Rainha, e disse em seu coraçom: de má
venture he o homem, q se fia de nenhua molher: esta he sa molher
lidima, e tem Infantes, e Infantas del, e quer sa morte deshõrada;
eu nom ey porq della fie: eu alõgalaey de mi: e pensou em o q lhe
dezia a Rainha, em como Rey Ramiro era arteyroso, e vingador, e
receouse delle, se o nom matasse, e mandou chamar todos os q erom
naquelle lugar, e dixe a Rey Ramiro: tu vieste aqui, e fizeste gram
locura, q nos teus paços puderas filhar esta pendença; e porq sey,
se me tu tivesses em teu poder, nõ escaparia da morte, eu te quero
cumprir o que me pides por salvamento de tua alma.
que colore a narrativa, mas desnecessária à ação. Por que difamar–se a rainha,
por exemplo?
A narrativa do Livro do Conde se completa como no Livro Velho.
E continua:
11
12 F. A. Doria
Gaia, onde o herói é Ramiro II (ou algum rei Ramiro, ao menos), emociona–
nos ver, na sucessão de assinaturas, “Ranemirus Rex hãc concessionẽ a nbs
factam Conf.” Ramiro, o Rei, confirmo esta concessão por nós feita. Seguem–se
os seus barões: Paio Tedones, neto do conde Afonso “Betote,” Conde de Deza;
Hermenegildo Gonçalves, marido da virago Mumadomna Dias. Osório Guterres,
dito o Conde Santo, neto do Conde de Coimbra, Hermenegildo Guterres. E um
moçárabe, Tauron, “cognomento Mogaria,” ou seja, al–Mughira. Personagem
que usa um nome de clã tı́pico dos omı́adas.
Esta é a elite senhorial em Coimbra, século X.
A onomástica árabe
É muito mais sofisticada, na sua estrutura, que a onomástica germânica. O
nome árabe possui diversos nı́veis [4]:
• ism. É o prenome. Em geral tomado num repertório tradicional de nomes,
com conotações religiosas: Mohammed, Abdallah, Yahya, para os homens.
Ou Fatima, Ayesha, por exemplo, para as mulheres.
3O segmento –sind é caminho; cf. senda, em português.
IV. Da Lenda à História. 13
O patronı́mico
É possı́vel que a influência da onomástica árabe tenha feito com que os visigo-
dos adotassem, por volta do século X, o nome extenso na forma prenome + pa-
tronı́mico. Menendo Gundisalvi: Mendo Gonçalves, Mendo, filho de Gonçalo.
Osorio Guterrici: Osório Guterres, Osório, filho de Guterre.
O Liber Testamentorum
Trata–se de um volume encadernado, in quarto, com quarenta e seis folhas, es-
critas em mão que Rui de Azevedo diz ser uma transição da escrita visigótica
para a escrita francesa. Rui de Azevedo [3] data o cartulário de começos do
século XII, pela caligrafia e pelo último documento lá incluı́do. Mais precisa-
mente: de 1115 a 1116. É uma coleção de doações de propriedades, feitas ao
mosteiro de Lorvão, perto de Coimbra.
Podemos retomar nossa leitura do Liber Testamentorum de Lorvão. Vamos
virando as folhas devagar, para primeiro conhecê–lo. Numa lista de confir-
mantes, um nome nos chama a atenção:
Nazeron [ibn ] Leodesindo ibn Ferhe, conf.
(Cf. Abu Nazar Lovesendes.) A data do documento é, 967. Pouco depois, uma
passagem noutro documento nos chama a atenção:
. . . illo molino qui est in uilla nostra anzana ipso molino quem com-
parauerat ipse gundemiro de zaadon falifaz. . .
Ou seja, “aquele moinho que fica na nossa vila de Ançã; o mesmo moinho
que o dito Gondemiro tinha comprado de Zaadon Falifaz. . . ”
Zaadon? O documento é de 966; uma carta régia de concessão, feita por
Sancho I. (Sancho, filho de Ramiro II, sucedeu ao irmão Ordonho III em 955, e
morreu assassinado em fins de 966, ano do documento.)
E, logo depois deste documento, um outro, anterior, de 933, nos prende a
atenção desde o preâmbulo:
In dei nomine. Ego Zahadon et uxor mee aragunti,. . .
Encerrando os confirmantes, Veremu[du]s rex confirmans — Ranemirus rex
cõfirmans.
Zahadon. E Ramiro II e seu filho primogênito, Bermudo. Dom Zadão e o
rei Ramiro?
Aloitus test. Prouitius test. Salomon test. Daildo test. Gendus prbr
test. Donadeo test. Justus test.
Cremos sejam, os três, o mesmo personagem: Halaf ibn Zaadin. Halaf, filho
de Zaad[on].
Qual o nome de Zahadon, segundo o DC 92? Zaadon Falifaz. Seria na
verdade Fafilaz, filho de Fáfila, nome visigodo? É plausı́vel que não: por dois
motivos,
Al–Hasani
Quem era este personagem, cujo nome termina em al–hasani, e que confirma
em primeiro lugar o documento que acabamos de citar? Era com certeza um
alida, um descendente de Ali e de Fátima, a filha de Maomé, o que lhe explica o
nome e a posição de primazia entre os confirmantes — e lembremos que o último
emir do Marrocos foi, precisamente, al–Hasani, nascido c. 860–70, e deposto e
provavelmente morto c. 925, e que vários de seus parentes idrı́ssidas ocupavam
cargos no emirado omı́ada de al–Andaluz. Seria este primeiro confirmante,
Yahya, um bisneto daquele emir al–Hasani? Ou seria al–Hasani uma nisba, o
sobrenome de clã que indica um descendente de Maomé através de seu neto, o
alida Hasan?
Lembremos, aqui, uma passagem do núcleo genealógico da versão da Lenda
de Gaia no Livro do Conde:
Idris, em Lorvão
No começo dos Diplomata et Chartæ, de Herculano, justo no terceiro documento,
DC 3, ao qual Herculano ainda dá a data errada, corrigida para 911 no artigo de
Rui de Azevedo [3] (a adulteração da data é, inclusive, perceptı́vel no facsı́mile),
lemos que o rei Ordonho — Ordonho II, de acordo com Rui de Azevedo —
dispõe, em favor de Lorvão, de bens que pertenciam a certo Ydriz. Ora, este é o
prenome de onde tiramos o nome do clã descendente de Ali e de Fátima, através
do filho destes, Hasan, e que reina sobre o Marrocos! Documento peculiar:
assinado pelo rei e confirmado por cinco bispos. Ei–lo:
secdm42 preserunt tui serui. abeas eam deñro dato firmiter. In uita
tua. et post obitum tuũ. sedeat illa uilla. et ille seruo. que sursũ res-
onat. postparte monasterii. lauribans.43 in onore. sci44 mametis.
et sci pelagii. pro remedio. anime nre.45 & parentũ nrõ.46 diue
memorie. Quo iurationem cõfirmo p47 dm̃48 parem omp̃m.49 qia50
cõtra hunc mm̃ factũ. nũquã ero adinrũpendum. Et insup51 quantũ
temptauerit. in quatuor duplo cõponat. Facta k.52 ñt53 die. iiii.
k.54 octbris; Era. dccc[c]. x. viiii a.
Hordonius rex. hanc scriptam.
confirmationis anb55 facta.
Sub xpi nñe.56 nausti eps.57
In xpi nñe. Froarengus. eps.
Sub xpi nñe. Ianarius. eps.
In xpi nñe. recaredus. eps.
Sub xpi nñe. sauarigus. eps.
(Sobre o c extra na data, que incluı́mos, veja–se abaixo.)
Nesse documento, de texto algo confuso, Ordonho II doa terras em Vila Cova
a Lorvão; essas terras eram de certo Idris (Ydriz).
Trata–se de um documento inabitual. Sua data, pode–se ver, está nitida-
mente adulterada no Liber Testamentorum. Deveria ser: era de César de d cccc
xl viiii, ou seja, era de 949, o que corresponde a 911, era Cristã, no começo
do reino de Ordonho II sobre a Galiza. O documento está assinado pelo rei e
por cinco bispos; com tal série de confirmantes eclesiásticos, apenas, é único.
E aparentemente, regulariza uma posse irregular: personagem inominado tem
a posse de terras que foram de Idris. Ordonho e os bispos dão, ao personagem
desconhecido, o direito às terras que controla, que deverão reverter ao mosteiro
de Lorvão após a morte do agraciado.
Idris possuı́a terras em Vila Cova; “obteve–as” — quod obtinuit, termo in-
certo para caracterizar o modo de posse: teria tomado à força estas terras?
Estas terras estão aparentemente na posse de um terceiro, não citado no do-
cumento, com o servo Picon — ou Picon seria o abade de Lorvão? — e o rei
Ordonho, que Rui de Azevedo identifica a Ordonho II, rei da Galiza de 901 a
42 secundum.
43 lauribanus.
44 sancti.
45 nostre.
46 nostrorum.
47 per.
48 deum.
49 patrem omnipotentem.
50 quia.
51 insuper.
52 karta.
53 notum.
54 kalendas.
55 a nobis.
56 Christi nomine.
57 episcopus.
22 F. A. Doria
924, e de Leão, de 914 a 924, quando morre, concede–as ao que tem a posse,
obrigando sua transferência depois da morte do personagem a Lorvão.
Ordonho II, pai de Ramiro II, casou três vezes. Da primeira vez, com Elvira,
filha do Conde Hermenegildo Guterres, presor de Coimbra. Da terceira vez, em
923, com Sancha de Navarra. Sua segunda mulher — casaram–se em 922, e logo
se divorciaram — foi Aragunte, filha do Conde Gonçalo Betotes e de Teresa Eriz.
O núcleo da Lenda de Gaia é a história de um adultério: “Abencadão,” o
mouro, rapta a rainha de Ramiro II, que reage matando o mouro e a rainha.
Zahadon ibn Halaf é casado com Aragunte Fromariques, personagem de alta
hierarquia. Seria parente da rainha que Ordonho II repudia, como o prenome o
sugere? Mais precisamente, seria filha de outra Aragunte, tia da rainha repudi-
ada, Aragunte Betotes, filha do Conde Afonso “Betote,” repovoador do Minho
inferior?
Lembremos que Ramiro II, em 930, também repudiou sua mulher, Ausenda
Guterres, neta do Conde Hermenegildo Guterres. Então, é possı́vel que:
Estas três senhoras, colapsadas num só personagem, dariam origem ao núcleo
da ação da Lenda de Gaia, a personagem Aldonça e o tema do adultério.
ou seja, que havia prometido Ortega, filha de Dom adão ada, ao rei do Marrocos
como noiva. Marshall Kirk58 observou que detalhes irrelevantes para a ação,
na narrativa lendária, tendem a ser vestı́gios de fatos reais. Por que o rei do
Marrocos? Por que não o emir omı́ada de Córdova, muito mais próximo?
Será que esta menção breve e isolada não esconde — e também revela — o
casamento de Ortega com algum personagem da famı́lia alida que reinava sobre
o Marrocos? Personagens que, sabemos agora de fonte documental, os DCs 3 e
229, atestam–se em Coimbra?
58 Em comunicação privada.
IV. Da Lenda à História. 23
Será que a Lenda de Gaia não substitui a origem nobilı́ssima, real e factual,
mas muçulmana, da famı́lia da Maia, pela origem nobilı́ssima, real também, mas
agora lendária, e tornada cristã, no rei Ramiro II de Leão?
3. Abu Nazar, ibn Nazar.
Lovesendo e Trastemiro
Vamos chamá–lo, ao primeiro senhor da Maia, o fundador do mosteiro de Santo
Tirso, Abunazar Lovesendes, por enquanto. Abunazar Lovesendes tem, se-
gundo o documento de Santo Tirso, que já citamos, filhos de nome Lovesendo e
Trastemiro. E encontramos um outro documento que menciona, precisamente,
um Lovesendo e um Trastemiro. Seriam seus filhos?
É um documento cercado de controvérsias. Trata–se de uma doação feita
por um rei Ramiro — segundo ou terceiro? — a monges de Guimarães, ao norte
24
IV. Da Lenda à História. 25
seria em torno de 950. O que eliminaria a hipótese de ser este filho, Lovesendo,
do primeiro senhor da Maia, o signatário do documento de 950.
Se Lovesendo e Trastemiro (o “Tramiro” do documento), forem então, pai
e tio de Abunazar (ou Nazar, face ao patronı́mico abenazar, ibn Nazar) Love-
sendes,60 então este documento ganha maior significação: pois coloca aos dois,
Lovesendo o pai, e Trastemiro o tio plausı́vel, na região de Guimarães, junto
ao rio Ave, mais perto de onde a famı́lia da Maia terá propriedades em fins do
século X do que a região de Coimbra, no centro de Portugal. E cita–os ao lado
de grandes proprietários na área.
Um ponto a mais, ainda, a considerar: segundo a Lenda de Gaia, na versão
do Livro de Linhagens, a mãe de Abunazar Lovesendes chamava–se “Ortega.”
Seria este nome, praticamente desconhecido no século X, na verdade uma leitura
distorcida para Onneca, Oñega, um nome de raiz basca, frequente na famı́lia da
Condessa Mumma Domna Dias? Cremos que sim.
Leovesendo, Leodesindo
Lovesendo, Leovesendo e Leodesindo são, como dissemos, o mesmo nome; de-
rivam–se do nome duplo Leode/Leowe–sind, “caminho do povo (Leute, em
alemão, leode–), ou (menos provável) “caminho do leão” (Löwe, leão, leowe).
Dois documentos, de 967 e 968, mencionam um Leodesindo, ou uma possı́vel
variante deste nome, Teodesindo. Num deles lemos entre os confirmantes,
Lazaron Leodesindo iben Ferhe. No outro, Nazeron iben Teodesindo. Variantes
do mesmo nome, dissemos? Plausı́vel: em 978, num documento de venda de um
moinho a Lorvão, o vendedor é Zuleiman ibn Lazaro, no corpo do texto, e, nos
signatários, Zuleiman ibn Nezeron.61 E nos documentos de 967 e 968, aparecem
nos signatários Salamon ibn Nezeron e Zalama ibn Nezeron.
É razoável, portanto, supormos que aqui, nos documentos de 967 e 968, está
o mesmo indivı́duo: Nazeron ibn Leodesindo ibn Ferhi62 Seriam a mesma pessoa,
Nazeron ibn Leodesindo ibn Ferhe e Abunazar Lovesendes? Assim o supomos,
e identificamos este ao primeiro senhor da Maia, cujo nome será, então:
Religiões
Qual a religião dessa gente? Zahadon era casado com cristã, Aragunte Fro-
mariques. Um dos personagens de nome Nazeron, casado com com Tortora,
outra cristã. No entanto, consideremos em seguida o DC 85, de 961, que damos
na transcrição de Herculano:
In dei nomine. Ego aldreto olidiz qui sum uigario de domna elduara
prolis pelagii gundisaluiz uobis iquila iben nezeron et uxor tua et filiis
tuis placuitnobis sana mente integroque consilio ut uenderemus uobis
sicuti et uendimus senara nostra propria que abemus in ripa de ar-
cus et abet iacentia de una parte diuidet per fontanello de ferrariolos
cum uillare de caluos et de alia parte per deuesa de sancti cucufati
usque in illo freixeno. uendimus uobis illam integram secundum de
iuri meo mansit. Et accepimus de uos precium uno captiuo chris-
tiano pro remedio anime nostre tantum nobis bene complacuit. et
hoc notum sit ut illa senara habeatis illa in uita uestra et post obi-
tum uestrum que remaneat illa senara ad monasterium lauribanus
uocabulum sancti mametis pro remedio anime nostre. Siquis tamen
quod fieri non credimus et aliquis homo uenerit uel uenerimus contra
hunc nostrum factum ad inrumpendum in primis sit excomunicatus
et ad corpus christi sit segregatus et cum iuda traditore abeat partici-
pio et insuper quantum auferre conaberit in quadruplo componat. et
unc factum nostrum plenam obtineat roborem. Facta kartauenditio-
nis xv kalendas ianuarias. Eradcccc lxxxx viii a. Et ego aldreto
qui anc kartam iussi facere manu mea propria r++oboraui. Gun-
disaluus moneonis conf. Omeir presbiter. Zalama iben recemondo
test. Dulcidio test.
A Condessa Ilduara Pais, mulher do Conde Gonçalo Mendes, através de seu
procurador Aldereto Olides, vende a Iquila ibn Nezeron e à mulher deste, não
nomeada, uma seara próxima a Coimbra. O preço? Uno captivo christiano,
um escravo cristão, presumivelmente na posse de Iquila ibn Nezeron. Depois
da morte de Iquila, as terras passam à propriedade do mosteiro de Lorvão.63
Confirmam o documento o Conde Gonçalo Moniz, presor de Coimbra, e o monge
Dulcidio, que será, possivelmente, Dulcidio Abu Al–Mundhir.
Quem possuiria um escravo cristão? Ora, um muçulmano.
Pensamos que Zahadon, Nazeron, e alguns dos filhos deste, como Iquila ibn
Nazeron, fossem muçulmanos. Outros membros da famı́lia, como Nazeron ibn
Leodesindo — que identificamos a Abunazar Lovesendes — cristãos.
Propriedades
O grande senhorio da famı́lia da Maia é ao norte de Portugal: próximo ao
Porto, na região do rio Ave. Mas as famı́lias de Zahadon e dos personagens de
63 Ao fim do documento, uma fórmula: amaldiciona–se e se excomunga da comunhão cristã
a quem desobedecer aos termos do arranjo. Nada a ver com a religião dos signatários; trata–se
apenas de uma fórmula convencional.
IV. Da Lenda à História. 29
nome Nazeron situam–se mais ao sul, em Coimbra. Como explicar essa aparente
inconsistência?
Há dois fatos:
Ou seja, este grupo familiar parece que já possuı́a terras ao norte.
Datas
De Abunazar Lovesendes sabemos que fundou o mosteiro de Santo Tirso em 978
[7]. Nazeron ibn Leodesindo comparece em documentos pela primeira vez em
30 F. A. Doria
2. Ahmed, n.c. 875. C.g. conhecida. Pelo nasab do DC 229, pai de:
3. Fikhri, n.c. 900, casado com uma mulher nobre cristã, aparentada à famı́lia
do Conde Hermenegildo Guterres, de Coimbra. Pais de:
Indinñe.65 Ego gaudinus & uxor ma66 cõposta. Placuit nb67 sana
mnte68 integroq69 cõsilio mente pfecta70 ut faceremus uobis textũ
scripture de ereditate nra71 propria que habemus ul 72 augmntare
potuerim73 usq ad obitum nrm74 id est de uilla alqinitja75 [media]76
ubi est ura77 ecla78 uocabulo scti martini79 teritorio miranda nnras80
cortes cum casas et intrinsecus domorũ om̃a81 q82 ad usum ominis
pertinet et nnras83 uineas iuxta illa eccla84 cũ suas aquas et suos or-
tos. Adicim85 etiã alia uinea qui est in ipsa uilla et nras86 terras rup-
tas ul inruptas. Omma87 ab integro ubis88 domno mestulius abba et
sci89 mameti de cenobio laurbano cõcedidims90 post parte monasterii
uri91 iam supra dicti. Siqis tam̃92 qd93 fieri nõ credimus et aliqis omo
uenerit ul94 uenerimus cõtra hunc nrm95 factm̃ ad inrĩmpendũ.96 In
primis sit excomunicatus et cum iuda traditore habeat participio et in
super quantũ auferre temptareuit in quadruplum uobis componat et
unc nrm97 factũ plenum abeat roborem. Facta k98 testamenti v k99
65 In Deo nomine.
66 mea.
67 nobis
68 mente.
69 integroque.
70 perfecta.
71 nostra.
72 uel, ou seja, vel, ou — é preciso cuidado para distinguir esta abreviatura de ut, como,
porque.
73 potuerimus
74 nostrum.
75 Alquinitia?
76 A palavra “media” está acrescentada como uma interpolação.
77 uostra, vostra, por vestra.
78 ecclesia.
79 Isto é, a igreja de São Martinho.
80 nostras.
81 omnia.
82 que.
83 nostras.
84 ecclesia.
85 adicimus
86 nostras.
87 Omnia.
88 uobis.
89 sancti.
90 concedidimus.
91 uestri.
92 tamen.
93 quod.
94 uel.
95 nostrum.
96 inrumpendum.
97 nostrum.
98 charta.
99 kalendas.
32 F. A. Doria
mrtji100 Era mlla101 xuiii a. Ego gaudinus et uxor mea cõposta hanc
kartula testamenti qd fieri uoluims manus nras102 ro++borauimus.
donnon test. arias test. floride test. iacob test. aluiti test.
Viadeir test. abonazar test. Veila test. Zuleiman test. gudesteo test.
Recemiro test. Salude test. Abzug test. Mestulio test. Leouildo test.
O que nos informa sobre quem seria este Abunazar que aparece em 980 perto
de Coimbra é a lista dos confirmantes no documento. No Liber Testamentorum,
com o no. 49, segue–se outra cessão ao mosteiro de Lorvão, feita por certo “Atila,
presbiter,” com data de 984; é o DC 153. Seguindo–se à cessão feita por pelo
casal Gaudino e Composta, diz respeito ao mesmo grupo familiar, segundo a
lógica do Liber. Não vamos transcrevê–la; apenas listar seus confirmantes:
Jscendente,
á havı́amos formulado, em 1995, a hipótese de ser a famı́lia da Maia de-
em linhas femininas, dos omı́adas [5]. Em 1996, a partir da referência
em Mattoso ([7], p. 119), iniciamos uma análise do documento de 933 (DC 39)
com a venda de Zahadon a Gondemiro. Nathaniel Taylor supôs de imediato
que Zahadon fosse cunhado de Cresconio e de Bermudo, e marido de Aragunte,
sendo os três, Cresconio, Bermudo e Aragunte, filhos de Fromarico. Mais tarde,
em 2003, a partir de uma análise feita por Marshall Kirk, de confirmantes nos
Diplomata et Chartæ, desde o DC 1 até o DC 250, identificamos o Zaadon
Falifaz, do DC 92, de 966, ao Zahadon de 933, casado com Aragunte, assim
confirmando a conjectura de Taylor.
Um estudo mais aprofundado dos Diplomata et Chartæ, feito a partir de
meados de 2002, mostrou–nos a importância, para a questão das origens da
famı́lia da Maia, dos DCs 94 e 95, de 967 e 968. São aqueles onde aparecem os
banu Nezerin, e onde temos o Nezeron ibn Leodesindo ibn Ferhe.
Relacionamos, então, os documentos que nos pareciam mais pertinentes: DC
39, de 933 (venda de Zahadon a Gondemiro); DC 94, de 967 (doação de Neze-
ron e Tortora); DC 95, de 968 (doação de Abu Soleiman e sua mulher Goto);
DC 229, de 1006 e DC 230, mesma data (vendas a Lorvão, confirmadas pelo
hassânida e pelos omı́adas, entre outros). Para nossa surpresa, tais documen-
tos, dispersos entre os muitos dos Diplomata et Chartæ, eram precisamente o
conteúdo principal das sete primeiras folhas do Liber Testamentorum ! Ou seja:
ali se colecionaram documentos com identidades similares — a sucessão dos
proprietários em terras que acabam nas mãos de Lorvão, vendas e cessões pelos
mesmos indivı́duos ou pelos mesmos grupos de indivı́duos.
Isso pareceu confirmar nossa intuição original a respeito da pertinência, de
algum modo, daqueles documentos à questão dos senhores da Maia.
34
IV. Da Lenda à História. 35
7. Venda feita por Zahadon e outros a Gondemiro e Susana (DC 39, 933).
[*]
9. Venda de Vilela por diversos muçulmanos (DC 230, data corrigida, 1006/7).
[*]
36
IV. Da Lenda à História. 37
Veremudus rex c Ranemirus rex c Ordonius rex c Sanctius rex c Tellus aloitiz
c Gundesindus fredenandiz c Aloitus froilaz c Gutierre lucidiz c Arias armen-
tariz c Munio sarraciniz c Rodrigo froiaz c Froia ketizi c Cresconio presbiter
Gresomarus presbiter Arias presbiter
919 “Gundesindus”
928 “[Domna] Honecca una cum filiis meis munna. Ledegundia. Ex-
emenus [didaz]. Et mummadomna.”
936
Exemenus didaz comes c Adaulfus diaconus c Tauron cognomento mogaria c
[see above] kirum c Recesindo t Bittaco garseani t Sendinu. Dabid. T Oesbio
menendiz t Sunimirus iubeni t Ermegildus abba c Senior diaconus t Ermegildus
diaconus Froila confessor t Adulfus notuit
952 “Ildras”
[Idris? Seria o citado em 984?]
104 Herculano hesita na leitura “presbitero.”
105 Mesma dúvida.
106 Idem.
107 Idem; Beika seria Bakr.
108 Também há dúvida nesta leitura.
42 F. A. Doria
. . . per aria uetera et conclude casale de arualdi. . . [Na descrição das terras,
termina no “casal que pertence a Arualdo,” que identificamos ao ancestral dos
Baiões]
Uiarigus confesso c Gaudila confesso c Fagildus confesso c Lucidus confesso
c Manilani presbiter c
Aaron confesso c Guandila c Tructus confesso c Onoricus confesso c Aloitus
confesso c
Jafari presbiter c Didacus presbiter c Aerigus presbiter c Viliamirus presbiter
c Suimirus presbiter notauit.
961 “Ego aldreto olidiz qui sum uigario de domna elduara prolix
pelagii gundisaluiz”
iquila iben nezeron et uxor tua et filiis tuis” [Iquila filho de Nasr]
Gundisaluus moneonis c Omeir presbiter [Umayr/Omeir ou Omeyyah?]] Za-
lama iben recemondo t [Salama] Dulcidio t
[Abu-Suleyman]
Iquila iben nezeron c Donellus converso t Dulcidio iben almundar t [al–
Mundhir — filho de Rodorigo cognomento a[bu]l–Mundhir, supra?] Juniz iben
salut t Ebrahem [Ibrahim] iben salut t Abscoguleile iben salut t [Abu or Abd’ ?
u–l–leyl; o nome significaria, “da noite.” Ver também abaixo] Haboleazan iben
stefanus t [Abu al–Hasan?] Zagai iben azmon t Spidio t Abzicri iben nezeron t
Abul ualit iben tauron t [Abu al–Walid; seria um filho do supracitado Tauron
cognomento al–Mugheyrah?] Abundantius presbiter t Mestulio iben abtumor t
[Abd’Umar] Sperandeo iben mozeiam t Viarigo iben ebrahem t Ranemir iben
senta t Menendo iben tumron t [Tauron al–Mugheyrah?] Viater. Hamdon.
santon t [Hamdan] Nezeron iben teodosindo [seria nosso personagem, Nazeron
ibn Leodesindo] t Zalama iben nezeron t
973 “Samaritana”
Credendo conuerso t Fazbona t Mota..f t [Mutarrif??] Lucido t Melic iben
flores t [Malik] Ermorigu t Maladon t Elias t Gomar [Umar] t Zoleiman abbas t
Zaadon t frater Placentius presbiter Auriol presbiter Lazarus presbiter Vincenti
presbiter Salude presbiter Carlon t Lucido t Zuleiman t Joab t iben Flores t Lone
iben floride Marco t Abaiube t [Abu–Ayub] iben Iaquinto t Abzicri presbiter t
Nezeron t
et uxor mea antulina abdonna et filiis meis meheb et menendo montukem et uxor
mea palma iusto et uxor mea eolalia nausti iulia arias et uxor mea maiorina elias
et uxor mea maiorina item iulia leocadia item menendo et uxor mea faregia totos
de uilla ferreirolos
David de handones Samuel de larzana t Samson de kanellas t Elias de aue-
lanas t Abdella et uitus t [Abd’allah]
Muluc aba t [Malik] Selmon iben leim t Lazaro iben gondemiro t [Com certeza
Nazeron ibn Gondemiro, que seria Gondemiro ibn Dauti; cf. o no. 75 do
Liber Testamentorum, no qual aparecem lado a lado Zuleiman ibn Lazaro e
Zuleiman ibn Nazeron] Abzuleiman iben iquila t [Abu Zuleyman filho de Iquila]
Zuleiman iben salomon t [Suleyman filho de Salamon] Abolbalit iben tauron t
[Abu al–Walid filho de Tauron, muito possivelmente Tauron conhecido como al–
Mugheyrah, ver acima] Abzicri presbiter t Garseas presbiter t Homeite iben ab-
dela t [Humeydi filho de Abd’allah] Bakri iben abdela t [Bakr filho de Abd’allah;
provavelmente irmãos] Venze presbiter t Paulus presbiter t
Vir obtimo t [um tı́tulo latino, como o seria magnificus; seria algum tı́tulo em
árabe, traduzido para o latim?] Valide t [Walid] Abtauita t [Abd’–?–] Mirualdo
t Melior t item Ualide t [Walid] Dulcidius t
IV. Da Lenda à História. 47
desde 933). Há uma versão corrompida deste DC 229, com data de 968. É
plausı́vel, portanto, que a data de fato desde documento fosse ainda anterior a
1006.
52
V. Outras Linhagens Antigas.
1. Linhagens muito arcaicas.
3
4 F. A. Doria
Famı́lias antigas
Digamos que famı́lia antiga seja uma famı́lia que possa traçar sua varonia até
meados da idade média. Existem muitas famı́lias não soberanas assim: os Ro-
han e Rohan–Chabot, na França, assim como os Polignac, os Lévis; Orsinis
e Colonnas, na Itália; Silvas, Mascarenhas, em Portugal. No entanto, é im-
possı́vel traçar–lhes as genealogias com assentos de batistérios, casamentos e
óbitos, porque estes não existiam. Usam–se inventários, documentos de trans-
missão da posse de propriedades, outros registros cartoriais, inquirições régias,
enfim, o que existir como documentação. As incertezas crescem: há insegurança
na genealogia dos Orsini antes de Matteo “Rosso” Orsini, no século XIII; sabe–
se que os Colonna descendiam dos antigos Condes de Tusculum, e de Marózia,
a lindı́ssima romana cujas aventuras amorosas com papas e leigos inspiraram a
lenda da Papisa Joana (papas de nome João, note–se, surgem no currı́culo de
Marózia). Mas a exata conexão é debatida: a maior parte dos autores fazem–
nos descendentes na varonia dos Condes de Tusculum, mas Settipani crê1 antes
no casamento de uma senhora dos Condes de Tusculum com um nobre de status
talvez inferior, e de origem incógnita.
Um exemplo: os Meneses
Um caso tı́ıpico, a famı́lia dos Meneses, ou Telles de Meneses. Segundo o Livro
de Linhagens do Conde D. Pedro, que como sabemos data do século XIV, de-
scendem estes de certo D. Pedro Bernardo de Sahagún, casado com uma senhora
da famı́lia da Maia. Vamos examinar a questão: quando surgem como grupo
familiar na história, os Meneses já aparecem como uma das famı́lias mais desta-
cadas na Penı́nsula Ibérica. Vários dos Meneses exibem o tı́tulo de conde (que
àquele tempo, dos séculos XII ao XIV, na região, não era tı́tulo hereditário, e
apenas marcava altas funções administrativas e o senhorio vitalı́cio, a tenência,
sobre certa região). Suas armas mostram o orgulho da linhagem: de ouro, pleno.
Um escudo liso de ouro. E, enfim, escondiam suas origens numa lenda, a Lenda
do Anel:
O rei de Leão tem uma filha que é seduzida e deflorada por um fidalgo
da corte. O rei expulsa a filha desonrada, que vagueia pelos campos
e é acolhida por um lavrador de nome Telo Alfonso. Telo Alfonso
acolhe–a, casa–se com ela, e tem com ela dois filhos. Um dia o rei
perde–se numa caçada e vai dar na casa do lavrador. A princesa
reconhece o pai, mas este não identifica a filha. Esta, para se fazer
1 Em comunicação particular ao autor.
V. Outras Linhagens Antigas. 5
A lenda é bonita, mas deve ser tardia. Não era conhecida no século XIV, e
no século XVI as armas dos Meneses, como representadas no Livro do Armeiro–
Mor, de 1506, ainda exibem o escudo de ouro liso. Ao fim do século XVI surge
a versão nova das armas dos Meneses: de ouro, com um anel encoberto do
mesmo, em abismo, com um rubi voltado para o cantão sinistro superior. Ou
seja, incorporam–se às armas dos Meneses o contorno de um anel em seu centro.
É provável que tal móvel heráldico haja sido incorporado para “quebrar” o tão
orgulhoso escudo dos Meneses, e que a Lenda do Anel seja uma explicação a
posteriori.
Que se conhece, na documentação histórica, sobre a origem dos Meneses?
Manoel César Furtado2 não encontrou nenhum Pedro Bernardes notável na
documentação do mosteiro de Sahagún. Há uma famı́lia antiga, de senhores
poderosos, no vale do rio Mena — donde Meneses, nome de localidade ali —
conhecida como os Alfonsos. Nesta famı́lia aparecem diversos personagens de
nome Telo e Ansur ou Soeiro, além de Alfonso, prenomes tı́picos entre os Mene-
ses desde o século XII. Portanto, com certeza os Meneses descendem dessa gente.
Mas como? A solução que apresentamos nas tabelas genealógicas deve–se a
Marı́a Emma Escobar3 e deriva o poderio dos Meneses do Conde Pedro Ansúrez,
potentado que viveu em fins do século XI.
De qualquer forma, trata–se de uma conjectura, embora bem fundada. Há
um grau de incerteza que nunca eliminaremos — com os métodos históricos
atuais.
Trata–se de uma lenda baseada num fato sangrento mas banal que pode ter
acontecido com algum dos companheiros de D. Afonso Henriques. Mas não há
registro, nas narrativas contemporâneas, de um tal incidente, e o Martim Moniz
que é ancestral dos Vasconcellos seria de qualquer modo, menino, quando da
tomada de Lisboa. Seu pai segundo o Livro de Linhagens, Moninho Osores,
que é documentado como natural do mosteiro de Grijó em 1138, junto com
sua mulher Boa Nunes. O Livro de Linhagens dá por pai a Moninho Osores
a um vago Conde D. Osório, “Conde de Cabreira e Ribeira.” O personagem
que melhor se identifica a esta figura dos livros de linhagens é o Conde Osório
Martı́nez, que morreu na batalha de Lobregal em 1165; de Osório Martı́nez
descendem, no século XIV, Condes de Cabrera, de apelido Osório, derivado de
patronı́mico. Além do mais, Osório Martı́nez era tenente de da terra de Ribera.
Moninho Osores, no entanto, não aparece na relação de seus herdeiros, o que se
explicaria vendo–o como um bastardo que inclusive passou a Portugal por ter
sido excluı́do da herança.4
Novamente temos aqui uma situação na qual os vı́nculos genealógicos mos-
tram–se plausı́veis mas incertos. E não há modo de se reduzir a incerteza.
Linhagens régias
A maior parte das linhagens régias da Europa Ocidental traça–se na varonia
até um per’ıodo entre os séculos X e XII. Os Capetos são a linhagem mais
antiga: seu ancestral mais remoto, seguro, é Robert dito o Forte, Duque da
França, no século IX. De lá até os chefes atuais das diferentes linhas, 33, 34
gerações depois, há pouquı́ssimas dúvidas nas conexões genealógicas. A Casa
de Sabóia, que reinou sobre a Itália em partes do século XIX e do XX, traça–se
até começos do século XI, assim como os Habsburgos e, pouco posteriormente,
os Hohenzollern.
Tal coincidência de datas pode dever–se a uma reacomodaç ao das camadas
sociais, ocorrida entre os séculos X e XI, no ocidente europeu, com uma nova
classe dominante substituindo a antiga, mas é com certeza interessante verifi-
carmos se se podem traçar as origens desses homines novi nalgum outro seg-
mento social. O estudo clássico a respeito foi feito por Glöckner [3], que en-
controu as origens — plausı́veis — dos Capetos nos Condes de Wormsgau, uma
famı́lia conhecida como a famı́lia Robertina, devido à presença do nome Chrode-
bert/Roberto entre seus membros. Com isto, a ascendência dos Capetos recua
para o século VII, onde encontramos um primeiro Chrodebert dentre todos, no
meio da nobreza principal à volta da corte merovı́ngia na França.
Mas como se sabe, Glöckner conclui seu ensaio com a frase: alle Genealogie
ist im Grunde Hypothese. Toda genealogia é, no essencial, hipótese. Bom
resumo para a questão.
Com tais restriç oes e cautelas, é possı́vel estendermos algumas linhagens,
mesmo na varonia, até quase os começos da idade média.
4 Esta conclusão seguiu–se a discussão entre Mar’ıa Emma Escobar, Manoel César Furtado,
As reconstruções de Settipani
Estudos demográficos mostram que Carlos Magno (n. 747, fal. 814) é ancestral
de praticamente toda a população da Europa Ocidental. Um exemplo com uma
famı́lia brasileira, os Albuquerques:
10. [anônima] c.c. Maanu VI, 57–71 d.C, rei de Osrhoene. Pais de:
10 A partir de uma observação de David Kelley; a linha nos foi comunicada por T. Stanford
Mommaerts.
V. Outras Linhagens Antigas. 11
11. Ode, nascida 45/50 d.C., c.c. Mithridates rei da Armenia nascido c. 45,
fal. c. 76/77. Pais de:
12. Sanatroukes, rei da Armenia c. 80, até 110, n. 65, fal. 110. Pai de:
13. Vologaises I, rei da Armenia c. 116, até 137, n. 95, fal. 137. Pai de:
14. Vologaises V, pretendente na Armênia, 162, rei da Partia, 190–207, n. 130,
fal. 207.
15. . . .
O ponto crucial é a sugestão de D. Kelley, reiterada por Stanford Mom-
maerts: a princesa anônima que liga os descendentes dos idumeus e dos macabeus
aos reis da Armênia. Com isto, terı́amos uma linha até o presente — porque os
descendentes de Vologaises V são legião — de parentes dos macabeus. Notemos
que uma famı́lia baiana do século XVI, os Antunes, eram conhecidos como “os
novos Macabeus.” Tal famı́lia deixou ampla descendência na Bahia, mas não se
sabe o motivo da alcunha familiar.
Há, por outro lado, diversas famı́lias — a maior parte delas, famı́lias judaicas
— trazendo há muito a tradição de serem descendentes do rei David. Mas
infelizmente não há uma linha contı́nua, razoavelmente estabelecida, entre o rei
David e a contemporaneidade. Muitas famı́lias que se dizem de raiz davı́dica
descendem — com um salto de algumas gerações — de um grande pensador
judeu, o rabino Solomon ben Isaac (conhecido como Rashi, de Reb Shlomo b.
Isaac), que viveu em Troyes, na França, de 1040 a 1105.
Três grandes linhas provêm de Rashi, sempre segundo a tradição:
• De sua filha Iochebed, casada com Meir ben Samuel (1065–1135), de-
scende, pelo neto de Rashi, Isaac, um personagem de fins do século XIII,
Samuel Spira, ancestral, em linha contı́nua, das famı́lias Luria (Lurié,
Lourié), Katzenellenbogen, Horowitz, Margulies, e mesmo Marx, de Karl
Marx.
• Outro filho de Iochebed foi Jacob (1096–1171). Deste descendia a famı́lia
Zarfaty, Serfaty, do Marrocos.
• De Myriam, filha de Rashi, casada com Judah ben Nathan, era trineto Ju-
dah Leon de Paris (1166–1224), de quem descendia (sem que se conheçam
as gerações intermediárias) o rabino Joseph Trèves, de Marselha, nascido
em fins do século XIII.11
Joseph Trèves é o ancestral das famı́lias Trèves, Dreyfus, Trefusi, entre
outras.
E, enfim, notemos que há uma tradição, na famı́lia dos Lévis–Mirepoix,
de parentesco a Nossa Senhora. Mas nada comprova esta tradição, e os Lévis
traçam–se ao século XI, sem que se lhes possa conectar a linha a alguma possı́vel
linha davı́dica.
11 Provavelmente bisneto de Judah Leon.
12 F. A. Doria
A “famı́lia do cisne” existiu, e teve este nome ([19], p. 44). A primeira re-
ferência ao nome foi feita pouco antes de 1173 por um cronista da Primeira
Cruzada, referindo–se ao rei de Jerusalém, Godefroy de Bouillon. Conjectura–
se que o nome viria talvez de Swanehilde, Condessa de Flanders, † 1132; ou
talvez uma referência a certo Rainier dito do–pescoço–comprido, Conde de Hain-
ault, † 973, trisavô pela mãe de Godefroy de Bouillon. Seus descendentes for-
maram famı́lias bem conhecidas: deles provinha, por exemplo, Henri de la Tour
d’Auvergne, Duque de Bouillon, o marechal de Turenne (de seu tı́tulo de Vis-
conde de Turenne, 1611–1675).
E, se o que foi exposto anteriormente, sobre os possı́veis descendentes hoje
dos macabeus, estiver correto, somos todos aqueles com algum sangue europeu,
parentes de aristocratas judeus que viviam na Palestina nos séculos II e I a.C.
Não apenas uma linhagem exclusiva.
2. Miscelânea.
Attila
Morto em 453 durante sua noite de núpcias com Ildico, de origem germânica, o
chefe huno é dado como ancestral dos reis húngaros. A linha tradicional14 não
tem apoio histórico, no entanto.
Descendem da dinastia de Arpad os reis húngaros e, segundo tradições anti-
gas, os prı́ncipes de Croÿ. Também há uma tradição que faz descendentes destes
reis húngaros os Condes de Perth, na Escócia (a famı́lia Drummond), sem no
entanto qualquer apoio histórico. Na linha feminina, o casamento de Violante
de Hungria, † 1251, irmã de Santa Isabel de Hungria e filhas de André II, rei
da Hungria, † 1235, da dinastia de Arpad, com Jaime I, dito “o conquistador,”
de Aragão (1208–1276, rei em 1213), leva o sangue suposto de Átila a, por ex-
emplo, os Lacerdas, pelo casamento de Violante de Aragão com Afonso X “o
sábio” de Castela e Leão; a uma famı́lia antiga de nome Aragão em Portugal, e
14 Attila era filho de um chefe huno de nome Mundzuk, e sucedeu em 433 a um tio paterno,
Ruas. Ildico é às vezes identificada a Chrimschilde ou Krimhilde, mas esta deveria ser uma
mulher de sangue francônio, talvez uma nobre dos burgúndios.
Seus filhos proviriam de Chrimschilde. Um deles, Chaba, parece ter sido morto na batalha
do rio Netad, junto com milhares de combatentes.
O filho de Chaba, Ellak, teria morrido igualmente na mesma batalha, deixando um filho
sobrevivente, Vergerus, pai de Elendus e avô de Avarius.
Avarius é dado como o ancestral da dinastia húngara, mas seu nome é o de uma tribo, os
ávaros, da qual emerge a população húngara. Avarius seria ancestral — talvez tetravô — de
Almos, chefe magiar que viveu no século IX, pai de Arpad, o ancestral histórico da dinastia
húngara.
14
IV. Outras Genealogias Antigas. 15
/ bis meos heredes triginta pesantes argen / ti, pro cruci faciendo
facere, et vos leva- /bitis meum corpus ad Laurbano, et ro /gabitis
Deo pro anima mea, et mando / meis filiis Theodorico, Ataulpho, et
Hermegil- //
//megildo servare vobis totum istud: quod / ego video mandare, quod
si non fecerint / sint a Deo maledicti, neq; sint habiti pro / genere
Gothorum: neque Christiani ha- / beant eos suos Comites. Si vero
homo / estranius hereditates iam dictas rapien / do turbaverit, cum
Datanio, et Abiro- / nio sumergatur, et cum Iuda proditore / vadat
ad infernum per semper. Facta fuit / cartula testamenti, era DCC-
CVIII./ mense Aprili. Ego Theoddus Comes, propria manu / robo-
ravi. Ego Cisindo Gothus, confirm. / Ego Theodoricus, quod Pater
meus consent. Ego Hermegildus, quod Pater/ meus consent. Ego
Servandus humilis e- / piscopus Col confir. Ego Stephanus praes
/ biter christ. confir. Ego Petrus Diaconus / christi conf. Ego
Ordonius Subdiaconus / christi confir. Ego Salviatus cantor ec- /
clesiae, col. confir. Ego Iulianus Iudex chri / stianorum, confir.
Ego Ariovigildus Go / thus, confir. Ego Egica Gothus, confirm. /
Ego Cimbria vidua famula christi, conf. / Ego Placencia vidua fa-
mula christi, conf. / Ego Dumia vidua famula christi, conf. / Ego
Marcia virgo christi, confir. Ego / Munia virgo christi, confir. Ego
Servi- / ania virgo christi, confir. Ego Lucendria / virgo christi,
confir. Ego prudencia vir / go christi, confirm. Ego Heriana virgo
/ christi, confir. Aydulfus Abba quod vi- / dit, Odorius Praesbiter,
qui notavit.
Este documento é conhecido em duas versões, uma delas publicada na Monar-
chia Lusitana, primeira parte, por fr. Bernardo de Brito. No essencial, para nós,
importa a seguinte passagem, dada em tradução:
. . . e por quanto mediante os rogos de / Aydulfo Abbade de Lorvão,
e de / seus monges, fui já livre duas vezes / da morte a que me tinha
condena / do Marvan Ibenzorah senhor de / Coimbra, onde eu fiquei
com meu pay Athanarico, e governei os chri / stãos que hahi morão,
por elles proprios mo pedirem, como a homem / em fim de geração
Godo, e descen / dente do bom Rey Egica, pellas qua / es obrigações,
eu com bom animo, e / saa vontade, dou ao sobredito mo / steyro,
fundado em honra de São / Mamede, e São Payo martires de Christo,
duas erdades minhas que / tenho em Almasala termo de Coimbra, e
são demarcadas com se / us padrões, pera todas as quatro / partes
do mundo, das quaes pago / em cada hum anno de tributo oi / to
pesos de prata, e servirão pera / mantimento, e comida dos mon- /
ges e pessoas fieis que servirem a / Deos no mosteiro, e pagarão del-
/las ao sobredito Marvan Ibenzo- / rah; os ditos oito pesos de seu
tri- / buto, ou o rimão com soldos e tre / misses. E porque sabemos
que me / diante a graça de Deos, o sobredi- / to Marvan Ibenzorah,
tem grande / amor a vós Abbade Aydulfo, e vai muitas //
18 F. A. Doria
Com base neste documento que supomos em decorrência válido nos pontos
de nosso interesse, Vaz de São Payo [17] propõe a seguinte ascendência para os
Condes de Coimbra, ainda baseado (como cita) em H. Livermore:
1. Leuderic ou Leuweric, comes palatinus, dado como correspondente de
Teodorico o Grande em 523 e 526. Pai do rei visigodo Liuva (Leuwa,
Liuba, supracitado) e de:
2. Leudegild ou Leuwegild, rei visigodo de 568 à sua morte, em 586. Casou–
se da primeira vez com Teodora, filha de Severiano, Duque de Cartágena,
e de outra Teodora, filha de Teodorico, rei dos ostrogodos. Pais de:
tendo essa origem desde o século XVII, e há plausibilidade documental para tal
ascendência; a dos Pereiras tem uma origem decerto mı́tica num “Dom Mendo,
irmão de Dom Desidério, último rei dos longobardos,” mas um exame da linha
que provem deste fabuloso “Dom Mendo” mostra na verdade um segmento da
famı́lia de Hermenegildo Guterres.
Merovı́ngios e carolı́ngios
Uma linhagem até os merovı́ngios é a precedente, que provem de Brünnhilde
e Sigebert; mas é bem possı́vel que Carlos Magno tivesse diversos ascendentes
merovı́ngios, como Settipani mostrou [14]. Assim sendo, praticamente toda a
população da Europa ocidental descenderia de Carlos Magno.
Santos e papas
Santos como São Rosendo, que viveu no século X, ou São Roberto, padroeiro de
Salzburg, que viveu no século VII, pelo que se supõe [21], aparentam–se a toda
a Europa ocidental — S. Rosendo porque pertenceu à famı́lia de Hermenegildo
Guterres, e S. Roberto porque é um membro da famı́lia robertina, origem da
dinastia dos capetos, da qual também descende um segmento majoritário da
população da Europa ocidental.
Santos pertencentes a linhagens régias, como S. Fernando III de Castela e
Leão, S. Luiz IX de França, que viveram pelo século XIII, também deixaram
vastı́ssima descendência e parentela em Portugal e na Espanha. Famı́lias como
os Lacerdas, Noronhas, Henriques, Eças, descendem de um daqueles santos, ou
dos dois, caso dos Lacerdas. Também se incluem aqui S. Isabel de Hungria e S.
Isabel de Aragão, referidas acima.
Santos fora de linhagens régias, mesmo se provindo da nobreza, têm des-
cendência mais limitada. S. Antonio de Lisboa (1195–1231), no século Fernão
Martins Bulhão, ou de Bulhões,18 tem como representantes assim tradicional-
mente vistos, os membros da famı́lia Ribeiro Soares de Bulhões, cuja herança
passou aos Pintos de Miranda Montenegro, do Marquês de Vila Real da Praia
Grande, no Brasil, e dos Condes de Arroxelas e Castelo de Paiva, em Portugal
[10]. Mais ampla é a parentela de S. Tomás de Aquino em Portugal, parentela
que chega através dos descendentes da famı́lia de Cardaillac–Bourbon.19
Quanto a papas, uma linha que acidentalmente chega ao Brasil faz com que
grande parte da população do Rio Grande do Sul se aparente a dois papas da
idade média, Inocêncio IV (1243–1254) e Adriano V (1276). Eram, respectiva-
mente, os cardeais Sinibaldo e Ottobuono Fieschi, tio e sobrinho. A sobrinha
do último, e sobrinha–neta do outro, Eliana Fieschi, casa–se com Bernabò Do-
ria, régulo genovês com feudos na Sardenha. Trata–se de um ascendente de
18 Linhagistas posteriores entroncam esta famı́lia em Godefroy de Bouillon, mas não há a
menor evidência para tanto. O nome, é possı́vel, deriva–se de Bolon, perto de Coimbra,
ou, menos provavelmente, de uma alcunha, já que bulhão é, como adjetivo, brigão, e como
substantivo, pequeno punhal. Na linha feminina, sendo uma Taveira a sua mãe, o santo
provinha dos Baiões [12].
19 Esta descendência será objeto de um trabalho com A. de Sousa Lara.
IV. Outras Genealogias Antigas. 21
Vilões
Há pelo menos dois vilões literários com vasta parentela no Brasil. O primeiro é
Macbeth, rei da Escócia. Foi, na verdade, um grande rei. Nasceu cerca de 1005;
tornou–se rei em 1040 (não deve ter sido quem matou o antecessor Duncan, que
também não era um velho sábio: morreu com 39 anos) e reinou até 1057. Sua
mulher, de nome quase impronunciável, Gruoch,21 trouxe–lhe o trono, por ser
de sangue real, como aliás também o era Macbeth.
Novamente temos aqui um patriarca: o sangue dos monarcas escoceses chega
a Henrique II da Inglaterra, e deste, através de meandros conhecidos, aos de-
scendentes de Afonso X “o sábio,” que são, novamente, boa parte da população
ibérica.
Outro ogro mencionado na literatura é o genovês Branca Doria (c. 1230–
1325; branca significa, a garra). Extremamente longevo, foi personagem menor,
senhor feudal na Sardenha e potentado gibelino em Gênova. É conhecido pela
referência que a ele fez Dante, colocando–o nas profundezas do inferno porque
assassinara o sogro, Michele Zanche, traiçoeiramente, durante um banquete, no
verão de 1275. Dele descende, através do filho Bernabò Doria, um segmento
numeroso da população brasileira.
Como ocorre com Macbeth, pois o rei escocês revela–se, na história, um
soberano competente e hábil, também não foi Branca Doria o monstro que
Dante retrata22
23
24 F. A. Doria
[21] E. Zöllner, “Woher stammte der heilige Rupert?” Mitteilungen des Instituts
für österreichische Geschichtsforschung 57 1 (1949).
VI. Genealogias.
1. Árabes.
I. Idris II. Filho único e póstumo de Idris I, sua mãe era Kenza ou Khenza,
bérbere; n.c. agosto ou setembro de 791 ou 793; fal. 828/9, possivelmente tendo
sido envenenado.
Era, como dissemos, filho de Idris I; neto de Abdallah; bisneto de al–Hasan;
e trineto de outro al–Hasan, gêmeo com al–Husayn, mortos os dois em 680,
filhos de Ali e de Fátima, filha do Profeta e de Khadijja.
Foram filhos de Idris II:
Maqqari (século XVII); Rouddh al–Kartas (1362 d.C., datada de Fez); genealogias de sharifs
marroquinos, da autoria de Qadiry, Zemmoury e Rahmoun; e Rachid Benblal, Histoire des
Idrissides, Oran, Ed. Dar el Garb (2002).
3
4 F. A. Doria
11. Idris, igualmente nascido no mesmo intervalo; sem comando e sem que lhe
indiquem descendentes.
1. Ali, dito Aidara, designado sucessor; n.c. 827/8; quarto emir, fal. 848/9.
Pai de:
(a) Yahya [II], sexto emir, de 863 a 866; sucedeu ao pai. Dele se descreve
um incidente crucial durante seu reino: em Fez, nos banhos públicos,
estuprou uma judia, chocando e horrorizando os habitantes locais.
Deposto, morreu na mesma noite no bairro andaluz de Fez. C.c.
Atiqa bint Ali ibn Omar ibn Idris (veja entre os demais filhos de
Idris II), e sucedeu–lhe o sogro, Ali ibn Omar. Pais de:
i. Al Muhallib, pai de Abdallah e avô de Ali.
ii. Abd al–Djalil.
iii. Omar.
iv. Abi Djama.
(b) Ahmed, pai de Ali, com descendência longa.
(c) Suleyman, pai de Isa ou eica.
(d) al–Qasim, pai de Abd ar–Rahman.
(e) Ibrahim. Pai de:
i. Ibrahim, pai de Suleyman.
ii. Ahmed, pai de al–Hasan.
(f) Abd al–Ouahed. Pai de Abu r’Aleb.
2 Poderia ser os dois acima, enumerados como pai e filho.
6 F. A. Doria
2. Ahmed, segue.
3. Mohammed.
V. Ahmed. Pai de:
1. Eica, pai de Ahmed, e avô de Abu Talib.
2. Firh, pelo que supomos. Segue.
VI. Firh.4 Antecipamos o que se diz adiante, à pág. 12. Levava o nome do
ancestral da tribo coraixita, Firh ou Quraysh. Nascido c. 900. N. no Marrocos,
teria vivido em Coimbra, onde se casou, segundo supomos, com uma senhora
— Ausenda? — da famı́lia de Hermenegildo Guterres, Conde de Coimbra.
VII. Mohammed. N.c. 920, esteve em Córdova em 953; foi trocado pelo
filho e voltou para o Marrocos. Foi pai de mais outro Hasan, n.c. 940, refém em
Córdova em 953, fal. 961/2, tendo deixado dois filhos, Mohammed n.c. 960, e
Hussein, de idade próxima, enviados a Ahmed al–Fadel em 965.
4 Segundo a hipótese deste ensaio.
5 Esta linha é habitualmente colocada nesta posição, mas há uma tradição alternativa,
apresentada acima, com algumas variantes.
6 Seria este o ancestral da linha de Coimbra?
8 F. A. Doria
2. Ibrahim, c.g.
2. Yahya, c.g.
1. al–Qasim.
2. Ali, segue.
3. Fatima.
1. Yahya, segue.
1. Hasan.
VII. . . . . P.d.:
II. Zahadon ibn Halaf. Atestado em 933 e em 966, quando lemos seu
patronı́mico — Zaadon Falifaz, que interpretamos como Zahadon, Za’adum, ibn
Halaf.8 Em 933 lemos que sua mulher era Aragunte Fromariques, irmã de um
Bermudo (Veremundo) e de ou Cresconio ou de sua mulher Smelilo. Fromarico
poderia ser o Fromarico Cendoniz, que aparece confirmando um documento de
911, junto de diversos membros da famı́lia de Vı́mara Peres. Se Cendon puder
ser visto como variante de Tedon, é poss’ıvel que este Fromarico fosse da famı́lia
de Vı́mara Peres, filho de Tedon Lucides e sobrinho de Bermudo Lucides, este
confirmante naquele documento de 911.
Estimamos que Zahadon tenha nascido c. 895–900. Pais, Zahadon e Ara-
gunte, de:
7 Esta genealogia foi feita por Marshall Kirk em meados de 2003, numa série de trocas de
mensagens de e–mail com o autor, e a partir da identificação, sugerida pelo autor, de Dom
Çadão Çada a Zahadon ibn Halaf.
8 A aspirada árabe kh– é frequentemente mutada ou transcrita em f.
12 F. A. Doria
(a) Iquila ibn Nezeron, casado e c.g.; atestado em 961, 968, 976.
(b) Suleyman ibn Nazeron, atestado em 967 e 978.
(c) Fromarico ibn Nezar Lopazer (?), atestado em 967 com Suleyman;
em 968 com Iquila e Abzicri.
(d) Abzicri ibn Nezeron, atestado em 968.
1. Leodesind, segue.
VI. Genealogias 13
2. Yahya “ibn Firhi ibn Ahmed ibn al–Hasani,” citado no documento de 1006
(ou possivelmente de data entre 960 e esta data).
A aristocracia cristã
Os senhores da Maia
Maiorinos régios
Esta famı́lia deixa–se traçar documentalmente desde começos do século X. Tem,
provavelmente, origem mais antiga: o nome Guimiro, que aparece aqui logo na
segunda gerac cão destes, é uma variante de Wigmar, Vı́mara, e é plausı́vel que
Evenando fosse um filho ainda não reconhecido de Vı́mara Peres [1].
14
VI. Genealogias 15
II. Guimiro Evenandes, que c.c. Anı́mia.10 Foi Guimiro Evenandes quem
comprou o mosteiro de S. Salvador de Moreira, patronato destes. Tiveram a:
2. Gonçalo Dias, atestado entre 1049 e 1090 (na dúvida, aqui); seria o
Gonçalo Dias que confirma duas doações do rei Garcia, em 1068 e 1070.
Teria c.c. Emisu Dias;
(a) Diogo Trutesendes, atestado antes de 1100, e até 1136. Seria o pro-
prietário do mosteiro de Vilar de Andorinho, casado com Ilduara
Cides. Pais de:
i. Trutesendo Dias, at. entre 1109–1146, proprietário em Pedroso
e patrono de Vilar de Andorinha; Gonçalo Dias, at. entre 1113
e 1146; Ermesenda Dias, devota, at. 1113–1146; Monia Dias, at.
1113–1146; Pedro Dias, idem, que talvez fosse o c.c. Ausenda
Dias, e proprietário em Gondomar em 1125; e Gontila Dias,
citada em 1113.
4. Mendo Dias, que segue.
V. Mendo Dias é atestado entre 1059 e 1068. Governador de Santa Maria,
junto com o pai, em 1064. Proprietário em Serzedo (Vila Nova de Gaia).
C.c. Gontinha Guterres, atestada em 1072. A mulher, segundo Mattoso,
seria irmã de Gonçalo Guterres, filhos de Guterre Trutesendes, no § 1.5, IV, e
portanto sua prima. A ver, no entanto, a diferença das gerações, o que indica
ser este ramo o primogênito.
Pais de:
1. Alivergo “Boa,” atestada entre 1072 e 1102. Proprietária em Mandim em
1102. Talvez fosse a “Boa” Mendes que em 1078 doou ao mosteiro do Rio
Tinto um quinto de seus bens. Seria a Adibergo Bona que em 1101 doou
um casal à catedral de Braga. Neste caso, c.c. Paio Daviz, já † nesta data
de 1101.
2. Guterre Mendes, que segue;
3. Diogo Mendes, atestado entre 1072 e 1115, e talvez em 1125. Proprietário
em Fornos, Tardinhado, Romariz, Inha, Escariz e talvez Roge e Padrastos.
C.c. Dulce . . .
4. Unisco Mendes, atestada entre 1072 e 1115. C.c. Mendo Trutesendes, seu
primo, a partir de 1088. Ver entre os descendentes de Guterre Trutesendes,
na próxima seção.
VI. Guterre Mendes, citado a partir de 1072 e † 1117. Proprietário em
Serzedo, Aveleda, Fornos, perto de Castro Portela, Vila Nova da Telha, Enxemil,
Mansores, e do mosteiro de Rio Tinto. Seu túmulo pode ser visto no mosteiro
de Cete, ainda hoje, onde se lê a data de sua morte.
C.c. Ônega Gonçalves, atestada entre 1098 e 1114. P.d.:
1. Ermesenda, devota, prioresa do mosteiro de Rio Tinto.
2. Emisu Guterres, citada em 1140, s.m.n.
3. Gontinha Guterres, atestada entre 1110 e 1179. C.c. Gonçalo Mendes,
citado entre 1110 e 1143, que se supõe seja o Gonçalo Mendes da Maia,
“o lidador,” segundo Mattoso, filho de Mendo Soares da Maia. Uma de
suas filhas, Maria Gonçalves, seria a que c.c. Gonçalo Trutesendes, no §
1.5, VI.
VI. Genealogias 17
que nos parece correto também. Nos nobiliários, é conhecido como “Dom Alboazar Ramires.”
18 F. A. Doria
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