Suplemento Didatico
Suplemento Didatico
Suplemento Didatico
Ministério da Educação
Ministro Fernando Haddad
concepção e elaboração
Elisa Larkin NascimentoPh.D., IPEAFRO –
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros
design gráfico
Maria de Oliveira e Bernardo Lac
realização
Ministério da Educação – MEC / Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversida-
de – SECAD, 2007
Dedico este Suplemento à memória do sociólogo Guerreiro Ramos,
Evolução e Primórdios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Desenvolvimento Inicial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
Temas Gerais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18
Primeiras Conquistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
A África no Mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24
Coerência e Continuidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Soberania e Inovação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
Novos Contornos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30
A Revolução do Ferro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
Construção da Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Fontes de Pesquisa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48
Autor da clássica interpretação racional da História, o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel excluiu a África negra
Apresentação da totalidade histórica universal. Apenas duas partes da África, o Egito e a África Mediterrânea, entram na história da
humanidade na concepção de Hegel e de seus seguidores. Para eles, faltam à África negra a objetividade, o ideal de Estado,
o conceito de Deus, do Eterno, do Justo.
As teorias racialistas negaram a contribuição da África ao desenvolvimento humano. Qualquer vestígio de arte, de tec-
nologia ou de civilização encontrado no continente africano seria atribuído a uma intervenção externa européia ou asiática.
Até hoje se especula que a Esfinge do Egito seria uma pedra gigantesca modelada pela força dos ventos e não uma obra
humana com rosto negróide ou até que a construção da cidade murada de Monomotapa seria obra de extraterrestres!
Pesquisas científicas recentes identificam na África o berço da humanidade e demonstram que a África está no início e
no centro da história universal do mundo.
Ao recolocar o Ser negro no início e no centro da história da humanidade, essas pesquisas científicas fazem à África
uma grande justiça, devolvendo-lhe sua contribuição ao mundo que ajudou a povoar e a construir e da qual foi rechaçada
por razões ideológicas.
Assim passamos a constatar que os africanos negros iniciaram e desenvolveram as invenções científicas e tecnológicas
como agricultura, matemática, medicina, embarcações marítimas e tecnologia naval, metalurgia de bronze e de ferro, do-
mesticação das plantas e dos animais, e outras que explicam sua capacidade de migrar para povoar e levar cultura a outros
continentes (Ásia, Europa, América, Oceania).
Nos relatos dos viajantes árabes e europeus estão presentes testemunhos oculares dos impérios, reinos e estados cen-
tralizados, das artes e tecnologias em todas as regiões africanas. No entanto, depois da Conferência de Berlim (1884-1985)
quando as potências coloniais européias dividiram o continente entre si para subjugá-lo e explorá-lo, todas essas realidades
desvaneceram como fumaça. As belezas naturais deixaram o lugar para as selvas perigosas e ameaçadoras; os impérios e
reinos foram substituídos pelas tribos e hordas primitivas em guerras permanentes umas contra outras; as religiões foram
substituídas pela feitiçaria, idolatria e superstições ridículas com o objetivo de justificar e legitimar a Missão Civilizadora
do Ocidente civilizado e do Homem branco.
A historiografia colonial ensinada aos africanos é uma história falsificada, mutilada e reduzida a um espaço-tempo insig-
nificante em relação à verdadeira dimensão espacial e temporal da história da África, dos africanos e de seus descendentes
da diáspora. Esse espaço-tempo de uma história mutilada se inicia apenas a partir dos mais recentes contatos da África e
dos africanos com o mundo externo: o tráfico árabe, os chamados descobrimentos e o tráfico transatlântico seguidos pelos
sistemas escravistas e colonialistas.
Também os países da diáspora negaram, mutilaram e falsificaram a história dos africanos e de seus descendentes, fazen-
do-os aparecer geralmente como objetos e raramente como sujeitos da ação humana no tempo. Omitiram a participação
dos negros na construção das economias, culturas, identidades e transformações políticas desses países. Atribuíram a luta
pela abolição da escravatura aos humanistas brancos e não aos protagonistas negros.
Toda essa história de construção de vida e de resistência à dominação, que resultou nas duradouras religiões, filosofias
de vida e visões do mundo africanas, apenas agora começa a ser reconhecida oficialmente no Brasil pela promulgação da
lei 10.639/03.
A linha do tempo que ora introduzimos, nesta apresentação, é o resultado de um longo, intenso e complexo trabalho
de pesquisa multidisciplinar realizada nos últimos anos pela talentosa pesquisadora e professora Elisa Larkin Nascimento,
com o nobre objetivo de reconstruir o espaço-tempo, a dimensão espacial e temporal, da história da África negra e de sua
diáspora no mundo todo. A finalidade é devolver aos nossos filhos e netos e a todas as pessoas que buscam eqüidade e
justiça social, a autenticidade de “nossa” história, a história da humanidade. E precisamos muito dela para reabilitar nossa
personalidade individual e coletiva como brasileiros e como descendentes de africanos, levantando nossa auto-estima es-
magada pelas mentiras acumuladas na noite do tempo.
A professora Elisa Larkin Nascimento realizou o que eu chamaria um trabalho de formiga e reconstruiu as peças do
quebra cabeça da história autêntica da África, dos africanos e seus descendentes em todos os continentes, numa linha do
tempo que começa no próprio berço e vai até o século XXI, com ramificações em todas as direções onde emigraram os
primeiros africanos.
Trata-se de uma notável contribuição, pois o texto do suplemento didático construído em torno da linha do tempo
é escrito numa linguagem acessível a todos, educadores e alunos. Creio que nós todos, envolvidos no processo de fazer
funcionar a Lei 10.639/03, estamos ganhando um instrumento precioso e de alta qualidade para cumprir os objetivos da
Lei e as reivindicações históricas do Movimento Negro. Vamos viajar nessa linha de tempo para descobrir e preencher as
lacunas, desfazer uma visão histórica herdada da ótica colonial e reconstruir a imagem da qual precisamos para fazer a
justiça histórica da qual nossa dignidade muito precisa.
K abengele Munanga
Diretor do Centro de Estudos Africanos e professor titular
do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de
São Paulo (USP).
O Tempo dos Povos Africanos
Civilizaç
Presença e influência na Á sia , Europa e A méricas antigas a partir da civilização clássica africana [2500 a .C. – 1500 E.C.]
Cativeiro e construção da
liberdade nas Américas
[1500 E.C. – 2000 E.C.]
Na hierarquia das raças socialmen- O que é Antigüidade? dade eles povoaram o mundo e alcançaram os primeiros avanços tec-
nológicos. Mais tarde, durante a Antigüidade, continuavam presentes
te construídas os africanos, os afrodes- O período de mais ou menos 10 mil anos atrás até a Era Cristã, quando culturas em todo o mundo e também viajaram novamente, levando sua influ-
cendentes e as pessoas de pele negra e civilizações se formavam e se consolidavam, passando a interagir entre si ência da África para a Ásia, a Europa e as Américas. Viveram apenas
em todo o mundo. Mais especificamente, até o início do iluminismo europeu a uma ínfima parte de seu tempo histórico amarrados aos grilhões da
em geral são considerados inferiores. partir de aproximadamente 1500 E.C., que marca simbolicamente o advento do escravidão no sistema mercantil europeu e, nas épocas de cativeiro e
Durante séculos, a ciência ocidental mundo moderno. colonização, sempre criaram cultura e conhecimento.
construiu essa inferioridade, alegan-
do não apenas a condição biológica,
histórico. aspectos compartilhados. Esses aspec- gua-mãe do continente. É importante simbolismo religioso bwiti do Gabão, as
tos têm raízes nos tempos remotos das frisar que se trata não de dialetos – um paredes de casas pintadas na região oci-
suas origens. equívoco comum no Brasil – mas de dental dos Camarões, ou as seqüências
Existe uma unidade subjacente em to- línguas africanas. de desenhos utilizados pelos sin’anga
das as regiões africanas, que reflete um (médicos) de Malawi são alguns exem-
processo iniciado nos tempos em que A escrita plos dessa forma de escrita que se en-
surgiram a agricultura e a criação de Segundo as teses racistas, os negros contra em toda a África.
gado. O povoamento do continente en- africanos seriam inferiores porque não O ideograma, já uma representa-
volvia deslocamentos de populações com foram capazes de desenvolverem sis- ção simbólica, é utilizado na escrita
origens comuns que se estabeleciam em temas de escri¬ta. Na realidade, eles chine¬sa e em várias regiões da África.
terras novas como grupos distintos, con- estão entre os primeiros a desenvolver O nsibidi, por exemplo, é um sistema
solidando novas identidades ao mesmo a escrita. Os africanos que constituí- gráfico muito antigo, usado por diversos
tempo em que conservavam semelhan- ram o Egito desenvolviam sua grafia povos das regiões oriental e central da
ças derivadas das tradições originais. desde antes de 4000 a.C., e a escrita Nigéria para transmitir os ensinamen-
As fases férteis do Saara e sua lenta meroítica, que ainda está sendo deci- tos da filosofia. Além dos adinkra, os
transformação em deserto provocaram frada, é uma das mais antigas do mun- povos acã têm a tradição dos djayobwe,
migrações e intercâmbios entre seus do. Além desses hieróglifos egípcios e figuras esculpidas em ferro ou bronze
habitantes e vizinhos. Seguiam popu- meroíticos, existem vários outros siste- utilizadas na pesa¬gem do ouro e que
lações em direção ao leste, nordeste, mas de escrita desen¬volvidos por po- transmitem mensagens esculpidas em
norte e sul, onde se misturavam aos vos negro-africanos antes, e depois da forma de pictogramas ou ideogramas.
povos locais. Assim, do Saara e do Su- invasão muçulmana que introduziu a Existe também o sistema de escrita ide-
dão difundiam-se elementos culturais e escrita árabe. ográfica sona ou tusona entre os povos
simbólicos, bem como instituições e ati- Um preconceito ajudou a reforçar cokwe, lucazi, mbwela e mbanda de An-
tudes sociais, comuns a povos africanos essa tese equivocada: a própria defini- gola e Zâmbia.
geograficamente muito distantes entre ção de escrita. Os europeus usam o sis- A escrita fonológica representa os
si. O domínio da tecnologia do ferro tema fonológico alfabético, onde cada sons da linguagem (fonemas ou sílabas)
se integra a esses fluxos, formando um letra representa um som. O alfabeto e não depende da memorização para
fator de desenvolvimento comum entre árabe, que prevaleceu durante séculos ser compreendida, como é o caso do
os povos do continente. na Europa, é fonológico silábico, cada ideograma. Entre os sistemas antigos
A civilização clássica do Egito é ou- letra representando uma sílaba. Mas há de escrita fonológica na África estão o
tra fonte comum, refletida em vários outros tipos de escrita, como o picto- vai (Libéria), toma (Guiné), mende (Serra
aspectos de fluxo cultural. Mais de mil gráfico e o ideográfico, além da escri- Leoa) e bamun (Camarões).
tra expressões bastante sofisticadas, sibilidade de escrever conceitos abstra- volveu nos reinados de Méroe, que atingiram seu
auge no Sudão Ocidental a partir do terceiro sé-
como é o caso dos djayobwe acima men- tos como amar, lembrar ou tornar-se. culo antes da Era Cristã. Diferente dos hierógli-
cionados. Outro exemplo está no aroko O princípio da homofonia é simples: o fos egípcios, a meroítica é uma escrita essencial-
dos ioruba, um sistema complexo utili- símbolo pictórico de um objeto serve mente alfabética.
zado por líderes militares, reis e prínci- também para escrever foneticamente
pes, consistindo de arranjos de búzios todas as outras palavras pronunciadas A escrita dos Mende, de Serra Leão (acima à direi-
e penas que constroem, às vezes, uma da mesma forma. Assim, por exemplo, ta), é silábica como a Vai, mas ao contrário desta,
sua leitura é da direita para a esquerda devido à
representação silábica e, portanto, foné- a imagem da enxada – cujo nome em influência de antigos sistemas pictográficos e da
tica das palavras. O mekutu aieie dos Ca- egípcio é pronunciado mer – representa- transcrição secreta de textos em árabe.
marões e o ngombo de Angola são outros va também o verbo mer – amar. O ta-
exemplos de escrita por objetos. buleiro de xadrez – men – representava
Os hieróglifos egípcios, a mais anti- o verbo men, que significa permanecer
ga forma de grafia africana, combinam estável. Os escribas egípcios estendiam
a pictografia com mais uma técnica, a esse princípio de diversas formas e assim
homofonia. Assim resolveram o proble- trabalhavam com conceitos abstratos.
conhecimento e tecnologia equivale e no Ma’at, que permaneciam estreita- cício da democracia entre nações em or-
a negar-lhes sua própria condição hu- mente ligados à esfera da espiritualida- ganismos internacionais como a ONU
mana. A verdade é que a reflexão e a de. A tendência era de essa produção in- e a OEA.
construção do conhecimento marcam a telectual permanecer anônimo, diferente Contudo, existiam grandes estados
experiência dos povos africanos desde da prática ocidental a partir dos filósofos e impérios no contexto africano. O Im-
muito cedo. gregos, em que a autoria individual pas- pério de Mali abrangia um território
Em todo o continente e em diversas sa prevalecer sobre a autoridade da tra- maior que o Império Romano. Aqui va-
épocas, os povos africanos desenvolve- dição. Cheikh Anta Diop observa que mos observar algumas características
ram sistemas de escrita e altos conhe- a matemática pitagórica, a teoria dos do estado político na África.
cimentos na astronomia, matemática, quatro elementos de Tales de Mileto, Na maioria dos casos, prevalecia a
agricultura, navegação, metalurgia, ar- o materialismo epicureano, o idealismo monarquia espiritualmente fundada.
quitetura e engenharia. Na medicina, platônico, o judaísmo, o Islã e a ciência Isso significa que os poderes políticos se
praticavam cirurgias desde a cesariana moderna têm suas raízes na cosmogonia baseavam na sanção espiritual reconhe-
até a à autópsia, passando pela remo- e na ciência africanas do Egito. cida por todos. A pessoa do monarca
ção de cataratas oculares e tumores Assim, a experiência africana trazia não era considerada divina mas incor-
cerebrais. Conheciam e aplicavam va- não apenas o acúmulo de riqueza e a porava o consentimento de Deus ao
cinas contra a varíola e outras doenças. centralização do poder, como também o bem-estar de seu povo.
Construíram cidades belíssimas e cen- desenvolvimento tecnológico, cultural e Um fato básico das sociedades tra-
tros urbanos de conhecimento interna- intelectual. Essa experiência africana se dicionais africanas é a propriedade co-
cional que abrigavam bibliotecas enor- integrava ao mundo antigo num inter- letiva da terra. A terra, como o ar, era
mes – em Timbuktu, os maiores lucros câmbio dinâmico. considerada um bem comunitário indi-
eram obtidos com o comércio de livros. visível e inalienável, pois pertencia na
Criaram filosofias religiosas, sistemas Natureza do estado político verdade à natureza. Esse princípio da
políticos complexos e duráveis, obras de e da propriedade terra como bem coletivo fazia com que
arte de alta sensibilidade e sofisticação. Nós costumamos identificar a exis- os reinados africanos fossem mais am-
A riqueza do ouro e do marfim africa- tência de grandes estados e impérios plamente democráticos do que seus con-
de do negro africano. Dizia-se que os para justificar as teses racistas, a civili- “raça páleo-mediterrânea branca”.
civilizações africanas, inclusive a egípcia. negros não construíram civilização. zação e a cultura erudita pertenceriam Mas as imagens originais dos faraós
Mas algumas das primei¬ras civiliza- a essa “África branca” ao norte do con- e dos antigos egípcios mostram pesso-
ções do mundo, como a egípcia e a tinente, distinta de uma outra África, as negras, como exemplifica o retrato
núbia, estão na África. Como justifi- negra e selvagem, ao sul do Saara. Essa do fundador do Egito unido, o primei-
car, então, a idéia da falta de capaci- imagem popular prevalece até hoje, re- ro faraó Hórus Narmer, também cha-
dade dos negros africanos para criar forçada por representações no cinema e mado Menes. A fisionomia de todas as
ou mesmo contribuir para a civiliza- na televisão. representações dos grandes faraões di-
ção humana? Formulou-se ainda a teoria de uma násticos e também a da própria Esfinge
A egiptologia, disciplina surgida raça “hamítica” ou “vermelho-escura” exibem feições negras.
na Europa no século XIX, dedicou-
se durante muito tempo a esse dile-
ma, produzindo as teses que formam O mito do Egito Branco
a base principal das teorias pseudo- A grande riqueza do Egito serviu como ímã para atrair os povos brancos vi-
científicas do racismo. zinhos, os semitas do Oriente Médio. Com o passar do tempo, a região do
extremo norte do Egito, o Delta, se transformou num espaço geográfico de
Uma das mais importantes solu- mistura dessas populações imigrantes com os egípcios autóctones de pele
ções encontradas foi a de extirpar as negra. Esse processo de miscigenação é um fenômeno encontrado em todo o
civilizações clássicas africanas do con- Mediterrâneo e Oriente Médio, e praticamente em todos os cantos do planeta.
Mas a partir dele surgiria o mito de um “Egito Branco”, supostamente o autor
tinente, situando-as como civilizações
do conhecimento e das conquistas tecnológicas, numa tentativa de desapro-
orientais. Assim, o Egito pertenceria priar os africanos do prestígio de sua própria cultura e civilização.
não à África, mas ao Oriente Médio. Os mouros que dominaram a Europa durante séculos, os Tuaregs do Saara, e
os Berberes do Magreb, também são povos miscigenados, produtos de velhas
Apesar de geograficamente impossí-
misturas entre as populações negras autóctones do norte da África e outras
vel, essa operação foi um sucesso ide- que vieram em migrações posteriores. Antropólogos se dedicaram a pintá-los
ológico: ainda hoje existe o hábito de de brancos, classificando-os como mediterrâneos ou brancos. A mulher retra-
identificar o Egito como país do Orien- tada na fotografia, por exemplo, é da etnia tebo do oásis Bordai em Tebesti,
Chade. Os velhos manuais da antropologia diziam que os tebo não eram ne-
te Médio e não do continente africano, gros, embora tivessem a aparência negra.
como era ensinado nas escolas do Oci- A imagem do africano do norte branco, com traços físicos do tipo semítico, es-
dente até muito recentemente. tabeleceu-se séculos após o domínio mouro da península ibérica, quando os
europeus viveram em contato íntimo com africanos do norte. Naquela época,
Outra idéia igualmente importante
documentaram nas artes plásticas e na literatura a fisionomia do mouro de
é que, desde a Antigüidade, o norte da pele negra. O inesquecível Otelo, de Shakespeare, é o mais ilustre exemplo.
África tenha sido racialmente distinto Ícones, estátuas e desenhos confirmam graficamente essa identidade negra
dos mouros, portadores da civilização avançada e do conhecimento técnico-
do restante do continente, formando
científico, responsáveis por uma grande renascença intelectual na Europa e
uma suposta “África branca”. também por nossos números!
nas populações brancas, e ainda assim Seti. A palavra Anu recorre com freqüên- consideráveis no conhecimento que
fortemente miscigenados, apenas na re- cia na mitologia africana antiga e alguns lhe valeram a deificação. Os papiros
gião do Delta, no extremo norte do Egi- pesquisadores o associam à cor negra descobertos por Smith (1650 a.C.) e
to, e em bolsões específicos do território com base em evidências lingüísticas. Ebers (2600 a.C.) revelam conheci-
da Líbia e da Abissínia habitados pelos A existência e as características do mentos médicos avançados, inclusive
lebus. Esse fato contraria a hipótese de reino de Ta-Seti e sua cultura compro- as primeiras suturas e fitas; o início
uma suposta “África branca” no Norte vam que a organização do estado políti- da antissepsia com sais de cobre; e
do Continente. co, bem como a escrita, surgem na Áfri- “a existência de uma medicina ob-
Segundo uma das teses da egiptolo- ca muito antes do que anteriormente se jetiva e científica..., fundamentada
gia, povos brancos imigrantes vindos supunha. na atenta e repetida observação do
do Norte teriam construído o Estado A civilização egípcia protagonizou doente, na experiência clínica e num
egípcio, sua cultura e suas conquistas avanços tecnológicos revolucionários, conhecimento da anatomia que até
de conhecimento e tecnologia. Essa ver- inclusive a invenção da escrita. Conhe- o momento ninguém suspeitava”, de
são está longe da verdade histórica. çamos alguns desses avanços: acordo com o tradutor dos textos des-
A civilização egípcia nasceu dos rei- ses papiros.
nos africanos mais antigos da Núbia, ao • Desde mais de quatro mil anos
Sul do Egito, que também deram ori- antes da Era Cristã desenvolvia sua Os primeiros cientistas-filósofos gre-
gem aos reinos de Querma e de Cush, escrita; de seu conhecimento astro- gos, como Sócrates, Platão, Tales, Ana-
no atual Sudão. Tanto os reinos do Egi- nômico evoluía um calendário mais xágoras e Aristóteles, estudaram no
to pré-dinástico como os da Núbia sur- exato que o ocidental moderno. Egito e de lá absorveram conhecimento
giram da migração de povos africanos • As pirâmides demonstram a teoria e e assimilaram técnicas para a prática
vindos do Sul, do Oeste e do Sudoeste a prática de uma engenharia extrema- da investigação empírica e da reflexão
do Continente. A seca do Saara provo- mente precisa desde há quatro milê- conceitual.
cou, em parte, esse fluxo migratório. nios e meio. Os próprios gregos antigos reco-
Em 1977, no sítio arqueológico de • Os papiros de Ahmes e de Moscou nheciam a grande influência do co-
Qustul, na antiga Núbia, surgiu a evi- mostram uma matemática avançada nhecimento egípcio sobre sua herança
dência material da origem africana da e abstrata desenvolvida desde treze intelectual e cultural. E conheciam os
civilização egípcia. Os artefatos colhi- séculos antes de Euclides. egípcios como africanos negros. O es-
dos em Qustul mostraram a existência critor grego Heródoto, conhecido como
de um reino chamado Ta-Seti. Antece- o “Pai da História”, observou de pri-
dendo por treze gerações a unificação meira mão, na época, a filiação africana
em todo o mundo antigo – Ásia, Euro- tiça e do direito. Além de ensinar aos forma de escadas, no estilo nubiano.
pa e América. O historiador inglês John outros povos do mundo as ciências da Primeira cultura avançada da re-
Baldwin afirmou no século XIX: agricultura e metalurgia, bem como a gião que hoje compreende o Irã, Elam
arte da civilização, Osíris ensinava a apresentava semelhanças significativas
Hoje se aceita que povos da raça cushita mensa¬gem religiosa e os princípios com as tradições culturais e estruturas
ou etíope foram os primeiros civilizadores e éticos do Ma’at. Quando Osíris deixou políticas e sócio-econômicas do vale do
cons¬trutores em toda a Ásia Ocidental, e está o Egito para cumprir essa missão, Ísis, rio Nilo. O caráter matrilinear dessa so-
comprovada a influência de sua civiliza¬ção sua irmã e esposa, reinou soberana com ciedade está consignado na ascendência
na presença de suas línguas e arquitetura aos sabedoria, dignidade e verdade. Esse da divindade feminina Kirisha ou Pi-
dois lados do Mediterrâneo, na África orien- conjunto de referências reflete a expan- nikir, na for¬ma da sucessão real e na
tal e no vale do rio Nilo, como também no são da civilização egípcia evidenciada posição de relativa igualdade da mulher
Hindustão e nas ilhas do mar Índico. na arqueologia, na lingüística e em ou- (ela assinava documen¬tos, conduzia
tros campos científicos. negócios, representava em juízo, herda-
Nesses tempos muito antigos, a mi- va e deixava patrimônios).
tologia e a tradição religiosa se confun- Sumer e Elam Os descendentes de Elam se manti-
dem com o registro histórico. O mito e As primeiras civilizações significati- veram presentes durante a história da
a narrativa oral das tradições religiosas vas na Ásia Oci¬dental são as de Su- região. O Baluquistão, uma área que
refletem a memória dos povos. O regis- mer e Elam, nações que floresceram no compreende parte do Irã e parte de
tro grafado é perecível e o pouco de ma- vale dos rios Tigre e Eufrates durante o Paquis¬tão, ficou conhecido como Ge-
terial que resta nos oferece uma visão terceiro milênio antes de Cristo. Essas drosia, o país dos escuros, e em tempos
muito parcial e fragmentada. Por isso, nações eram formadas, assim como na moder¬nos sua população ainda se des-
os historiadores revisaram o critério Índia, por povos de pele negra. Histo- taca em relação aos vizinhos. Até hoje
de considerar apenas as fontes escritas riadores gregos afirmavam que Sumer essa região se chama Khuzistan, terra
como fidedignas, e o depoimento oral surgiu como uma entre várias colônias de Khuz ou Cush.
preservado ao longo do tempo passou de Cush, com população e cultura vin-
a ter valor como fonte de informações das do vale do rio Nilo. Os próprios Índia
sobre o passado. sumerianos se chamavam de “cabeças O escritor grego Heródoto, conheci-
Assim, as viagens de Osíris pelo pretas”, distinguindo-se dos povos se- do como Pai da História, nos conta que
mundo e sua missão de levar a civili- mitas que começavam a adentrar essa “Existem duas grandes nações etíopes,
período. censão de Amon, divindade cuja con- iniciou o chamado Reino Novo. tural e o sobrenatural. Os ancestrais e
solidação como deus principal levaria os não nascidos compartilham o espaço
mais alguns séculos. Amenemhat, cujo Filosofia e religiosidade humano e estão presentes no tempo dos
nome significa “Amon é o principal”, Entre os pensadores egípcios dessa vivos. Esse conjunto humano interage
subiu ao trono em 1994 a.C., sob o época estava Merikare, filósofo da co- diariamente com o divino e com as for-
nome de Amenemes I, iniciando o pe- municação, que escrevia sobre o valor ças da natureza. A vida em sociedade
ríodo chamado Reinado do Meio. de falar bem e de conduzir com bom significa a interconexão entre essas es-
Um desafio principal e constante à senso as relações humanas. Sehotepibre, feras. Assim, o caos na sociedade sig-
unidade do Egito seria a região do Del- conhecido como “O Lealista”, discorria nifica a desordem do mundo natural
ta, onde se estabeleciam os imigrantes sobre os valores de uma orientação na- e espiritual. Por isso, o princípio da fé
asiáticos. Essas populações semitas cionalista. Amenemhat, filósofo caute- contido na profecia emerge quando o
viriam a formar focos de disputa do loso, duvidava da lealdade de amigos líder restabelece a ordem e a unidade
poder em várias ocasiões da história íntimos e advertia que o líder deve ter após um período de quebra das normas
egípcia. cuidado com aqueles que lhe circun- de convivência e paz:
Um período de estabilidade e de- dam.
senvolvimento se instala durante a 12a Também datam dessa época as lições Eu lhe mostro a terra confusa. Ocor-
dinastia, sobretudo no reino de Sesos- de Khunanup, oriundas da história de re aquilo que nunca aconteceu. Os homens
tris III (1881-1840 a.C.), que construiu um homem comum que se confronta brandem armas de guerra, e a terra vive a
o templo de Karnak e várias obras na com o dilema de o quê fazer quando desordem. Os homens fazem flechas de metal,
cidade de Heliópolis. Também consoli- um rico rouba os seus bens. Khunanup mendigam o pão do sangue, riem um riso do-
dou o domínio do Egito sobre a Núbia desafia o homem rico diante dos ma- entio. Alguém sentado no canto vira as costas
ao sul e liderou a expansão territorial gistrados, e eventualmente ele ganha enquanto um homem mata o outro.
e as conquistas militares em direção ao a causa. As lições morais desse conto, Ra [o Deus Sol] se separa da humani-
Oriente Médio e ao Ocidente. sobre a conquista do bem e da justiça dade. Se ele brilha, é durante apenas uma
Disputas políticas surgiram no Del- sobre o mal e a exploração, continuam hora. Ninguém sabe quando cai o meio dia,
ta e também ao sul, criando uma ins- muito atuais. pois a sombra não se distingue.
tabilidade que culminou na invasão e Peça da literatura clássica que ins- Eu lhe mostro a terra de pernas para o
conquista do Norte pelos hyksos, povo taura essa época, a Profecia de Nefer- ar. A província de Heliópolis, nascedouro
semita originário do norte de Síria e rohu expressa a unidade entre a esfera de cada deus, não está mais na terra.
do Líbano e de parte do Iraq atuais. política e o domínio espiritual. O poeta Então virá um rei, pertencente ao Sul
Os hyksos dominaram o país duran- canta os anseios e as expectativas em – Ameny, o Triunfante, o seu nome.
te o período de 1700 a 1550 a.C., no relação ao soberano, que deveria su- É filho de uma mulher da terra de Nú-
primeiro momento de sua história em perar o caos e cimentar a unidade da bia, nascido no Egito meridional.
que haviam se dedicado a expandir as artístico delicado que combina o me- filosofia das boas maneiras, da etique-
fronteiras do Egito. Hatshepsut se des- lhor do estilo de Amarna com a arte ta e do sucesso na condução da vida
tacou porque se vestia como homem e tradicional. Tutankhamen restaurou a por meio dos provérbios. Venerava os
assumia as funções masculinas do po- religião de Amon, transferiu a residên- ancestrais que deixaram o legado de
der e protocolo. Presidiu uma época de cia real de volta a Mênfis e reinstituiu provérbios, transmitindo sua experi-
paz e prosperidade, também marcada Tebas como centro de poder político. ência e a sabedoria, e sem os quais a
por grandes empreendimentos e por Ramses II e III (1279-1153) expandi- aprendizagem das novas gerações fica-
expedições ao exterior. Seu sucessor ram ainda mais o domínio externo do ria prejudicada.
Tutmose III continuou essa expansão, Egito. Prevaleceram sobre os hititas,
e o Egito se estabeleceu como a maior um povo semita, e sobre os chamados Makeda e as rainhas mães
potência mundial. Assim permaneceu “povos do mar”, uma coalizão de po- A Bíblia se refere a Makeda (1005-
sob Amenhotep III, que se casou com vos semitas e de pele branca oriundos 950 a.C.), Rainha de Sabá, soberana
a rainha Tiye da Núbia. Juntos presi- do Oriente médio e da Europa medi- de um reino cuja influência estendia-se
diram uma época de florescimento da terrânea, que saqueavam todas as civi- do leste da África até à Etiópia, o Su-
cultura no Egito. Construíram o belís- lizações litorâneas da época. dão, Arábia e regiões da Índia. Além
simo templo de Luxor. Seu filho Akhe- de controlar o comércio riquíssimo da
naten (1360-1343 a.C.) casou-se com A Filosofia no Egito região, de ouro, marfim, ébano, pedras
Nefertiti, e os dois viveram, com suas Amenhotep, filho de Hapu, viveu preciosas, óleos e especiarias, Makeda
filhas, no complexo palaciano e cida- por volta de 1400 a.C. e era o mais res- e outras rainhas africanas construíam
de de Amarna. Presidiram um tempo peitado dos antigos filósofos egípcios. complexos urbanos e sistemas hidráu-
de renascença e inovação nas artes, na Considerado o maior mestre do Ma’at licos bem sofisticados.
arquitetura e na religião. Akhenaten – a ética da justiça, da verdade e do
instituiu uma nova religião, o culto a direito que formava a base da filoso- Elam
Aten, uma religião mais simples que fia egípcia – ele foi o segundo mestre, Filho de Titono, governador da
a tradicional e com ênfase na verdade após Imhotep, a ser deificado. Pérsia, Memnon se aliou à Tróia, lide-
e na liberdade individual. Mas quan- Duauf, que escrevia por volta de rando uma força de dez mil susianos e
do transferiu a capital para Amarna, 1340 a.C., era o mestre do protocolo. dez mil etíopes. Escritores romanos o
detonou uma crise política de longa Ensinava como se deve viver coletiva- descreveram como sendo preto como
Akhenaton, ou Amenhotep IV, faraó duração. mente numa comunidade de pessoas. o ébano e o homem mais bonito que
do Egito ca. 1350 a.C., que presidiu Tutankhamem (1343-1333 a.C.), Professor de vocação, ele encorajava vivia. Como Aquiles, ele usava armas
a instalação do monoteísmo e uma
provavelmente o filho mais novo de os jovens a ler e enfatizava a impor- forjadas por Hefestus.
nastia (762-664), iniciado por Piankhy, quinto século a.C. o Estado de Axum,
chegou a seu auge no reino de Taharqa. fruto de intensa interação africana com o Apenas recentemente, ficou com-
Nas artes e na arquitetura, a referência sul da Arábia. A rainha de Sabá se aliou provado que os primeiros americanos
aos estilos sudaneses prevaleceu duran- ao rei Salomão, sendo seu filho Menelik foram populações de pele negra, pa-
te a 26ª dinastia. Depois disso o Egito o mítico fundador da Etiópia. A partir recidas fisicamente com os autóctones
passou a sucumbir gradativamente às de aproximadamente 50 E.C. o porto de da África, da Austrália e da Melanésia.
investidas dos assírios e dos persas. Adulis se tornava um centro mundial de Eles chegaram antes que os povos de
A perda do poder político e militar comércio com a Ásia via Oceano Índico. aparência asiática que a antropologia
não implicava no fim da influência do Adulis fazia parte de uma cadeia de por- costuma identificar como os únicos
Egito, cuja cultura sustentava as bases tos que subiam o litoral desde a região indígenas das Américas. A partir de
da evolução da filosofia no mundo gre- centro-africana. O rei Ezana de Axum, aproximadamente doze mil anos atrás,
co-romano da Antigüidade. primeiro monarca convertido ao cristia- essas populações passam a conviver e a
nismo, derrotou Méroe no quarto sécu- se mesclar no continente.
Núbia lo E.C. e inaugurou a era cristã etíope. Supunha-se antes que os povos de
Ao sul do Egito, Núbia – rica em A cultura urbana de Axum deu origem aparência asiática teriam habitado so-
ouro, ébano e cultura humana – abri- a um dos mais duradouros impérios da zinhos o Continente americano até a
gava as mais longínquas origens da cul- história: a Etiópia sucumbiu apenas à chegada das caravelas européias, sem
tura egípcia. Lá floresceu o império de invasão da Itália fascista em 1935 e logo nenhum contato com o restante do
Cush, com capital em Napata, cujos di- em 1941 reinstalou o imperador Haile mundo.
rigentes lideraram o Egito na 25ª dinas- Selassie no trono. Entretanto, vários pesquisadores
tia. Depois transferiu o centro para Mé- constataram fortes evidências da pre-
roe, de onde historiadores afirmam que Índia sença e da influência cultural de povos
a tecnologia do ferro se espalhou ao sul No sexto século a.C. surge uma for- negros nas Américas e insistiram na
e oeste. Entre 300 a.C. e 300 E.C. – um te contestação ao sistema de castas. O tese de contatos entre africanos e indí-
período em que o Egito já se encontra- culto fundado por Sidhartha Gautama, genas americanos na Antigüidade.
va sob o domínio macedônio e romano o Buda, nasce e floresce entre as popu- Além de uma riqueza enorme de
– o império meroítico de Cush, onde as lações de pele negra das regiões central, testemunhos visíveis na cerâmica e
mulheres exerciam liderança política e oriental e sul da Índia. O próprio Buda escultura pré-colombiana, as evidên-
militar, tinha sua própria escrita, cons- é negro, como mostram as suas estátu- cias surgiam em campos científicos tão
informações sobre como o restante da África se 350 a.C., dois mil anos depois que Djo- Outras guerreiras africanas enfren-
desenvolve. Lembre-se sempre que as evidências ser levantou a primeira em Saqqara. taram as legiões romanas. Amanirenas,
lingüísticas e históricas indicam que as culturas As evidências lingüísticas e históricas uma das Kentakes ou Candaces de Nú-
africanas em geral são herdeiras da civiliza- indicam que as culturas africanas em ge-
ral se baseiam na herança da civilização
bia, atacou os invasores impe¬rialistas
em 29 a.C., liderando durante cinco
ção clássica egípcia. E, claro, vamos continuar clássica egípcia. Um dos mais impor- anos uma guerra de defesa nacional.
vendo a presença africana no mundo. A saga tantes fenômenos no desenvolvimento Com um aparato bélico bem superior,
de Cartago pertence ao período anterior, mas africano é a revolução da tecnologia do os romanos conseguiram destruir várias
merece ser contada. ferro. No Egito, há evidências do uso de cidades e chegar até a capital Napata. A
ferro desde milênios, mas a massifica- rainha não capitulou: atacou as legiões
ção de sua tecnologia e a sua difusão no já cansadas de Roma e obteve uma ne-
restante do continente é o fator que dá gociação direta com César Augusto. Os
ímpeto à concentração de populações e romanos acabaram desistindo do tributo A arte dos povos bantos é rica e fascinante. Esta
ao desenvolvimento político, econômico, que queriam cobrar a Cush. máscara representando uma figura humana com
gorro, oriunda da província de Ufge, Angola. Uma
cultural e científico. das características da escultura Bakongo é sua
Uma das primeiras expressões impor- Os pré-socráticos e o desenvol- representação policromática e expressão profun-
tantes das artes e da tecnologia na África vimento da filosofia damente realista. Utilizada em cerimônias rituais
da circuncisão, esta máscara tem como função
Ocidental é a civilização nok. Na África A história da ciência e da filosofia
testemunhar a transição dos circuncidados de um
central e do sul, surgem outras culturas costuma marcar o seu início a partir estado infantil para o de indivíduos com estatuto
baseadas na tecnologia do ferro, que se do “milagre grego” dos pré-socráticos, socialmente reconhecido.
com contornos diferenciados de outras épocas. se proliferou pelo continente. Outro Sangam, um conselho de estudiosos
exemplo do domínio dos africanos no que estabelecia os padrões da produção O Islão
campo da metalurgia antes dessa revo- intelectual. Além de Pandya, havia os Embora de origem externa ao con-
lução do ferro é o dos haya, um povo reinos de Chola e de Chera, sucedido tinente africano, o islão constitui uma
de fala banta que habi¬ta a região de por Pallava. Esses reinos negros do sul matriz de civilização porque sua ex-
Tanzânia perto do lago Vitória. Há da Índia se engajavam em comércio pansão teve impacto importante sobre
2000 anos atrás, eles produziam aço em com o Ocidente, enviando embaixadas a formação e a sustentação de vários
fornos que atingiam temperaturas mais e Roma e cobrando-lhe grandes somas estados políticos.
elevadas, em 250 graus centígrados, do em tributos alfandegários. De forma geral, de acordo com mui-
que eram capazes os fornos euro¬peus tos historiadores não se trata de uma su-
do século XIX. Á sia perposição de elites ou classes dirigentes
Mas é a massificação da tecnologia do No sudeste da Ásia, os primeiros “árabes” sobre sociedades e populações
ferro e a sua difusão no restante do con- reinados emergiram no terceiro sécu- originais, muito embora a expansão
tinente que dão ímpeto à concentração lo, acumulando riquezas no comércio islâmica tenha implicado em violentos
de populações e o desenvolvimento polí- de coral, minérios e produtos florestais. conflitos, obrigando à supressão de in-
tico, econômico, cultural, e científico. Numerosa parte da população era da tensa resistência. As estruturas dos es-
Uma das primeiras expressões im- etnia negra austric, também conhecida tados islamizados costumavam manter
portantes das artes e tecnologia na Áfri- como mon. a forma descentralizada característica
ca ocidental é a civilização nok. No cen- O primeiro desses reinos do sudeste dos africanos. A expressão “sociedades
tro e no sul da África surgem culturas da Ásia se chamava Fou Nan e se loca- africanas islamizadas” reflete o fato de
baseadas na tecnologia do ferro que se lizava na região hoje compreendida por que esses povos, suas sociedades e seus
consolidam em Katanga, Zâmbia, Zim- Vietnam e o sul da Camboja. Os via- estados preservavam a essência de sua
bábue e Quênia. jantes e historiadores chineses descre- identidade africana.
viam os seus súditos como pequenos e Na maioria dos casos, de acordo
negros. Além das atividades comerciais, com essa interpretação dos fatos histó-
Fou Nan se destacava por sistemas so- ricos, a imposição da religião islâmica
fisticados de canais e obras fluviais para era relativa, sobretudo fora dos grandes
controlar as cheias anuais; isto séculos centros urbanos. As religiões e os cos-
Retrato de um jovem da Malásia, antes da construção de Veneza na Eu- tumes nativos continuavam vigentes no
na Ásia contemporânea, mostra a ropa. Chen-La, reinado sucessor de Fou meio da população, mesmo quando as
presença até hoje de populações de
pele negra na Ásia oriental.
Nan, prosperou até que o comércio com lideranças locais ou as elites assumiam,
mais acelerados na trajetória dos africanos no canos islamizados cujas origens mais maneceu de 711 até 1260, e gerou uma mulheres e negras portando adereços,
continente e na sua diáspora. remotas estão nos povos Garamante, renascença nas artes, ciências e litera- penteados, estilos de barbas e outros de-
que habitavam o Saara desde cinco mil turas. A matemática, a arquite¬tura, a talhes nitidamente parecidos aos estilos
anos antes da era cristã e resistiram o religião, enfim, quase todas as manifes- africanos. São retratos altamente sofis-
domínio dos romanos. tações culturais européias sofre¬ram a ticados e minuciosos, imortalizados na
O desenvolvimento da cultura isla- influência africana através dos mouros. finíssima escultura indígena da época.
mizada na África do Norte resultou no O centro dessa atividade intelectual era As civilizações dos maias, dos tol-
florescimento da pesquisa, da ciência, Cairo, no Egito. tecas e dos astecas erigiam templos e
da literatura e do conhecimento ao pas- O busto do Santo Johannes Morus, complexos cerimoniais dominados por
so que realizou a expansão do domínio esculpido no séc. XIX e hoje exibido pirâmides como a de Chitzén Itzá, sím-
político por meio de jihads conduzidos num museu alemão, mostra a fisiono- bolo da conquista dos maias pelos tol-
ao sul na África Ocidental e ao norte na mia negra do mouro e expressa o res- tecas. As pirâmides apresentam o estilo
Europa. Após invadir o Egito em 640, peito e a exaltação à sua figura, frutos nubiano, com os laterais na forma de
os mouros atravessaram até a Espanha de seu desempenho na civilização do escadarias.
continente europeu. O culto ao deus Quetzalcoatl, a ser-
Quetzalcoatl - Deus da Serpente Plumada pente plumada, coincide com o do pás-
Praça cerimonial em Uxmal, na península Yucatán, Presença africana saro-serpente da África Ocidental de
México, com colunas esculpidas representando nas A méricas uma forma tão abrangente e detalhada
Quetzalcoatl, a serpente plumada, e Chac, o deus
da chuva dos maias. A mesma serpente plumada é
A cerâmica pré-colombiana está re- que dificilmente seria fruto de mero
símbolo principal das culturas da África ocidental pleA cerâmica pré-colombiana está re- acaso. Esse complexo de identidade cul-
na região do antigo império de Mali, cujo Impera- pleta de rostos de africanos. Aparecem tural indica a presença de africanos nas
dor Abubakari II embarcou rumo ao Ocidente em
1311. Nesse mesmo ano, de acordo com o calen-
dário maia que registra uma concepção cíclica do
tempo em que a serpente plumada retorna em de-
terminados intervalos, Quetzalcoatl aparece como
um rei vestido de branco, vindo de onde nasce o
O que significa diáspora?
O conceito básico de diáspora é o de espalhar um povo e sua cultura para out-
sol - uma descrição perfeita de como Abubakari
ros cantos do mundo. Como temos testemunhado, os africanos se espalharam
II teria aparecido ao chegar às Américas. O deus
pelo mundo e deixaram as marcas de sua cultura e civilização desde os tempos
Chac é a figura cerimonial que recebe as oferendas
primordiais.
a Quetzalcoatl.
Além de todo esse conhecimento, os dogon sabiam que Sírio B gira uma vez
em tomo de seu próprio eixo no período de um ano, evento celebrado por
eles com o festival chamado bado. Até a década de 70, esta rotação ainda
não havia sido observada pelos astrônomos ocidentais. A ciência ocidental
confirmou, no entanto, o ciclo de 50 anos que os dogon constataram para sua
órbita em volta de Sírio. Enfim, nas palavras de um cientista ocidental, os
dogon conheciam fatos supostamente impossíveis de constatar sem o apoio
de qualquer instrumento da ciência moderna.
No esforço de negar que o Grande arano a partir de 1230, assim consoli- Denominado “O Pensador”, ela tornou-se o símbo-
lo da cultura angolana. Representa a figura de um
Zimbábue fosse construído por negros, dando a base de seu poder político. O ancião, que pode ser uma mulher ou um homem.
historiadores e estudiosos atribuíram imperador Mansa Musa I expandiu o Na tradição africana, os idosos ocupam um estatu-
sua construção à intervenção de euro- território e a riqueza do império e in- to privilegiado como portadores da sabedoria e da
experiência de longos anos e como conhecedores
peus ou de outros exógenos à África, centivou sua islamização. Como outros
dos segredos da vida. Ana Maria de Oliveira, então
até mesmo à ação de extraterrestres. Estados políticos na África, Mali tinha Ministra de Cultura da República Popular de Ango-
Ao norte do Grande Zimbábue fica- na descentralização uma característica la, comentou em 1991: “A dinâmica emprestada a
esta peça reflete o alto conhecimento e intenção
va Monomotapa, um dos Estados que e prática política que contrastava niti-
estética do seu autor (anônimo). Ele foi capaz de
surgiram a partir de 1000 E.C. entre os damente com o centralismo do Império lhe conferir o equilíbrio do gesto calmo, tranqüilo,
povos de fala Xona descendentes dos Romano. Os sistemas políticos desses sereno e a harmonia da mensagem mais ou menos
agricultores e criadores de gado bantos Estados têm sido categorizados como enfatizada na utilização dos espaços abertos e fe-
chados, de tal maneira humanizada, que acredita-
que migraram para a área a partir de “feudais”, um equívoco derivado da
mos por isso estar em presença de uma das mais
200 a.C. com seus utensílios de ferro, aplicação de critérios próprios à Euro- belas obras de arte jamais concebidas”.
sua liberdade no período da escravidão e colo- O processo de desenvolvimento do a África durante todo o período escra- por Kofi. Na Jamaica, em 1655, o Capi-
Construção da Liberdade
nização, que é muito curto. Você já havia pen- conhecimento e da tecnologia, embora
interrompido pela força da intervenção
vista e colonial. Um dos seus símbolos
é a rainha N’Zinga, soberana do reino
tão Kojo deflagrou uma guerra aberta,
a Guerra dos Maroons (palavra inglesa
sado nisso? Esse período corresponde a menos de escravista e colonialista, continuou se Ndongo e Matamba, que enfrentou o derivada de cimarrón), que durou mais
8% dos seis mil anos da história africana! Ou manifestando. No final do século XIX poderio militar dos portugueses e dos de dez anos. Os ingleses foram obriga-
seja, os africanos viveram 92% de sua história um cirurgião inglês chamado Felkin holandeses. Ao mesmo tempo em que a dos a assinar um tratado de paz.
exercendo sua soberania e contribuindo para a visitava em a região africana que hoje rainha N’Zinga empreendia sua guerra
construção da civilização e do desenvolvimento em compreende Uganda. O médico teste- libertadora em Angola, a República de Um século de combate
todo o mundo! munhou e registrou uma cesariana fei- Palmares resistia aos portugueses e ho- No século XIX, os quilombos e as re-
ta por médicos do povo banyoro. Num landeses no Brasil. voltas nas Américas traçam um paralelo
artigo publicado em revista científica, Palmares, uma comunidade de vá- perfeito com as lutas dos africanos no
Felkin relatou como os cirurgiões su- rios quilombos unidos, fincou pé contra continente.
postamente “selvagens” demonstravam a agressão co¬lonial durante um século Os asante resistiram à incursão ingle-
profundo conhecimento dos concei¬tos (de 1565 até 1695). Sua estratégia mili- sa no interior da Costa do Ouro (hoje
e das técnicas de assepsia, anestesia, he- tar era tão eficaz que os europeus foram Gana) em onze guerras que duraram
mostasia e cauterização, entre outros. obrigados a firmar um acordo de paz. cem anos. Os asante ganharam todas
Aspectos do conhecimento tecnológi- Sua organização social, agrária, política elas, menos a última. Os Fanti, por outro
co africano fizeram-se sentir nas novas e econômica representava um exemplo lado, redigiam petições e documentos.
terras onde os africanos foram levados da continuidade cultural africana no Os fanti, por outro lado, redigiam peti-
escravizados. No Brasil, por exemplo, Novo Mundo. ções e documentos. A constituição Fanti,
muitas técnicas de agricultura, minera- Homens e mulheres lideravam ofen- redigida em conferências realizadas en-
ção e metalurgia utilizadas para cons- sivas militares empreendidas na África, tre 1865 e 1871, era uma petição para a
truir o país foram introduzidas pelos em todo o continente. Entre as mulhe- futura indepen¬dência de Gana.
africanos. res estão: Madame Tinubu da Nigé- Os ingleses exilaram o rei Prempeh
As religiões de origem africana pre- ria; Nandi, mãe de Chaka, o grande dos asante em 1896, e assim provocaram
servam uma matriz da visão cósmica, guerrei¬ro zulu; Kaiphire, do povo He- duas campanhas de resistência: uma
do pensamento e da prática religiosa rero da Namíbia; e o exército feminino política, levada à Europa por Casely
dos africanos em todas as Américas. que seguiu o rei do Daomé, Behanzin Hayford, e outra simultânea em que a
Bowelle. A luta quilombista nas Améri- rainha Yaa Asantewaa conduzia a guer-
Resistência africana: cas contou com mulheres como Danda- ra de resistência na terra natal. Os dois
um panorama mundial ra, em Palmares, e Nanny, a guerreira esforços combatiam a tentativa de con-
Os quilombos existiam em todas as lendária da Jamaica. fiscar o sagrado banco de ouro, símbolo
Américas. Em espanhol se chamavam No Caribe houve uma série intermi- da soberania dos asante.
cimarrones, palenques e cumbes. Esse nável de revoltas e rebeliões. Entre as Durante o mesmo período, desta-
AFRICANOS e transmitem aspectos da história, filosofia, valores e “Nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo
A Linha do Tempo dos Povos Africanos e este Suple- normas socioculturais do povo de Gana”. que ficou atrás: Sempre podemos retificar
no simbolismo do Sankofa
os nossos erros. O ideograma parece origi-
mento Didático fazem parte de um conjunto de realiza- nar-se de uma estilização do pássaro, que
ções do Ipeafro sob a chancela geral Sankofa: palavra O Simbolismo do Adinkra vira a cabeça para trás, representação do
em tuí, língua que pertence ao grupo lingüístico dos O sistema de símbolos e os conceitos transmitidos na tra- mesmo conceito no banco do rei e no bas-
tão do lingüista.
Filosofia e história
povos acã da África Ocidental, significa a sabedoria de dição acã se expressam nos ideogramas adinkra grafados e
conhecer o passado para melhor construir o presente e o também em objetos como o gwa (banco real); o bastão do
futuro. Símbolo ideográfico, o conceito Sankofa passou a lingüista do rei, uma espécie de porta-voz ou embaixador de
representar a busca dos africanos por suas próprias refe- Estado; e os djayobwe, “pesos de ouro” dos acã.
rências históricas e epistemológicas e pela valorização de
sua cultura que o processo colonialista tentou desprezar
e destruir.
O ideograma Sankofa pertence a um conjunto de Gye Nyame
símbolos gráficos de origem acã, chamado Adinkra. Talvez o mais conhecido entre os ideo-
Cada ideograma é um adinkra e tem um significado gramas do adinkra, este significa “aceite
Deus” ou “Deus é onipotente e imortal”.
com¬plexo, representado por meio de ditames ou fábu-
las que expressam reflexões filosóficas. Segundo texto
publicado pelo Centro Nacional de Cultura locali¬zado
em Kumasi, capital do povo asante, o ideograma Sanko-
fa significa “voltar e apanhar de novo”, aprender do pas-
sado, construir sobre as fundações do passado: “Em ou-
tras palavras, volte às suas raízes e construa sobre elas
para o desenvolvimento, o progresso e a prosperidade Obi nka obí (não mordam um ao outro).
humana”.
Tradicionalmente, os adinkra são estampados com tin-
ta vegetal em tecido de algodão. Adinkra significa adeus,
e este tecido é usado em ocasiões fúnebres ou festivais de
homenagem para despedir-se do falecido. O adinkra já
se tornou uma arte nacional em Gana, somando mais de
noventa símbolos destacados pelo conteúdo que trazem (Os desenhos dos adinkra, gwa e bastões apresentados a seguir, e a ex- Owuo atwedie baako nfo (obiara bewu).
seus ideogramas. Conforme o mesmo texto do Centro plicação de seus significados, são reproduzidos dos quadros organizados Todos nós subiremos a escada da morte.
pelo Dr. E. Ablade G/over da Universidade Ganense de Ciência e Tecno- Ver o respectivo gwa no quadro a seguir.
Nacional de Cultura de Kumasi: “Não só os desenhos logia, Kumasi, publicados pela G/o Art Gallery e distribuídos pelo Centro
dos adinkra são esteticamente e idiomaticamente tradi- Nacional de Cultura em Kumasi, Gana).
Símbolo das relações humanas em socie- Osei Bonsu moveu contra o rei Kofi Adinkra de Gyaa-
dade. “Somos ligados na vida e na morte”, man, hoje uma região da Costa do Marfim. Adinkra teve
ou “aqueles que têm laços de sangue nun-
ca se apartam”.
a audácia de copiar o banco real do Asantehene. Assim
provocou a ira do poderoso soberano, que foi à luta para
estabelecer sua supremacia. Vencida a guerra, os asante
dominaram a arte dos adinkra, passando a ampliar o es-
paço geográfico onde impunha a sua presença. Antes dis-
Akoko nan tiaba na enkim ba so, o conjunto adinkra era patrimônio dos mallam e dos
A galinha que pisa no seu pinto não o mata. denkyira, povos da África ocidental que desenvolveram a
Ver o emblema no bastão do lingüista no técnica no passado remoto.
respectivo quadro.
O banco real e o bastão do lingüista representam a com-
plexidade e sofisticação dos Estados políticos africanos, em
pleno desenvolvimento durante séculos antes da invasão
européia. Esses Estados chegaram a constituir impérios O duplo crocodilo em adinkra.
Kontire ne Akwam (anciãos do Estado). com extensão territorial maior que o romano, caso do Im-
“Tikoro nnko agyina.” Uma cabeça só não pério de Mali nos séculos XIII e XIV.
constitui um conselho. Duas cabeças pen-
sam melhor que uma sozinha. Ver o em
blema no bastão do lingüista, no respecti-
vo quadro.
Além de investir-se simbolicamente do poder político e Tem o mesmo significado que o respecti-
representar a soberania do Estado, o gwa comunica conte- vo ideogra¬ma: nunca é tarde para voltar
no simbolismo do Sankofa
e apanhar aquilo que ficou para trás. O
údos epistemológicos, apresentando o ideograma em três pássaro com a cabeça voltada para trás é
Adinkra Gwa
dimensões. Cada chefe tradicional tem o seu gwa, portanto o símbolo desse provérbio. O desenho do Banco do rei Adinkra, soberano de Gyaa-
existem tantos símbolos em ban¬cos reais quanto existem ideograma seria uma estilização desse man, de quem os asante conquistaram o
pássaro. O pássaro se apresenta também conjunto de ideogramas.
Filosofia e história
invocou o poder do gwa e o banco de ouro materializou e A cobra sobe a palmeira. Tentando o inusi-
desceu do céu. Os ingleses furtaram esse gwa no início do tado ou o impossível. Ver o ideograma no
quadro dos adinkra.
século XIX, incidente que motivou as Guerras de Asante
contra os ingleses. Os conflitos perduraram por um sécu- Ede Nka Anum Gwa
lo; os asante ganharam todas as guerras, menos a última. A doçura não fica permanentemente na
boca. Há tempos bons e tempos ruins.
Owuo atwedie baako ‘fo (obiara bewu) do Estado Ga, significa que se chega ao
topo por meio da sabedoria e do bom senso
Todos nós subiremos a escada da morte.
e não pelo peso, pela força ou pela vanta-
Ver o respectivo ideograma no quadro dos
gem do tamanho grande. O emblema repre-
adinkra.
senta a sabedoria da nação. Ver o bastão
do lingüista no quadro a seguir.
Ahema Gwa.
Kotoko Gwa (Banco do Porco-espinho). Banco da Rainha Mãe dos Asante. A seme-
Emblema do Estado Asante, o porco-espi- lhança de seu desenho com o banco do Es-
nho simboliza o poder da nação de atacar tado ao lado simboliza o alto posto da Rai-
de qualquer lado, a qualquer hora. O banco nha Mãe na hierarquia do poder político.
é exclusivo do Asantehene.
O bastão do lingüista do rei transmite significado por Aceite Deus. Deus é onipotente e imortal. O
meio de imagens esculpidas em madeira no seu extremo ideograma adinkra correspondente a este
conceito pode ser uma estilização dessa
superior. Sendo o lingüista do rei o principal articulador e mão com o polegar na posição vertical (ver
intermediário entre o povo e o poder real, o significado do no quadro dos adinkra).
elemento simbólico de seu bastão adquire uma importante
dimensão social e política. Sankofa
Na tradição acã, cada soberano tem o seu lingüista: Sempre podemos retomar e apanhar aquilo
uma espécie de porta-voz, embaixador, ouvidor geral e re- que ficou para trás. Sempre podemos reti-
ficar nossos erros. O pássaro com a cabe-
lações públicas. A fama e o sucesso de um rei dependem, ça voltada para trás lembra o gwa, sendo
Wuso owo ti mua a nea aka no ye ahoma
em grande parte, da eloqüência e do bom desempenho do a imagem grafada uma estilização dessa O homem segura a cobra pela cabeça.
seu lingüista. Este constitui o elo entre o rei e seu povo; o imagem (ver o quadro dos adinkra). Quando agarramos a cobra pela cabeça,
o restante dela não passa de uma corda
bastão simboliza a sua autoridade e o poder político que grossa. Melhor encarar os problemas de
representa. A peça esculpida no topo do bastão, com con- frente.
teúdo simbólico proverbial, simboliza o estado que o lin-
güista representa.
Tikoro nnko agyina (duas folhas)
© Chester Higgins
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