Metodologia Quali-Quantitativa - Bernadete

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IME – USP- maio 2012)

Abordagens quantitativas e a pesquisa educacional

Bernardete A. Gatti
Fundação Carlos Chagas

Nas pesquisas científicas partimos sempre de um problema cujo enunciado já


diz da perspectiva em que nos situamos teórica e epistemologicamente 1. Ao
enunciá-lo ele traduz nosso modo de ver a questão a examinar; ou seja, a
enunciação do problema a investigar já mostra o olhar teórico sobre a temática
em exame e é esse olhar que vai dirigir nossa investigação e as formas de
aproximação do levantamento e da análise dos dados obtidos. Assim, não é o
uso de dados quantitativos ou qualitativos que diferencia formas de abordagem
de questões em investigação, mas, sim, a perspectiva que nos guia nessa
investigação. Podemos trabalhar em formas qualitativas de produção e análise
de dados com uma perspectiva perfeitamente funcionalista, por exemplo, ou
trabalhar dados numéricos, com uma perspectiva dialética.

O problema de pesquisa, ou o foco da pesquisa em educação, que é ponto de


partida da investigação, é elaborado numa dupla conjunção: a de referentes
bibliográficos, pelos quais construímos um modo de ver a realidade, interagindo
com referentes da experiência, que alimentam nossas mediações e
representações sobre a questão a investigar. Com isto, construímos abstrações
que nos permitem voltar ao real à busca de novas interpretações, suscitadas
pelas nossas inquietações. Elaboramos a partir do problema, perguntas que
nos orientam na busca por formas de acesso à empiria, aos dados, aos fatos,
aos eventos que possam contribuir para avançar nossa compreensão sobre o
problema e as questões que nos colocamos, antes ou durante o processo
investigativo. Estaremos, então, em busca de algumas respostas, mesmo que
aproximadas; em busca de informações, quer de natureza qualitativa, quer de
natureza quantitativa (ou ambas), que permitam inferências e interpretações

1
Posição empiricista, ou funcionalista, dialética, dialétic-histórica, neo-positiivista, etc.

1
em certa perspectiva de análise, em um contexto. Esta é a perspectiva mais
contemporânea, embora não seja a única vigente.

Há um aspecto a ressaltar: o ponto de partida e o ponto de chegada das


investigações. Ponto de partida com base ciências da educação, e ponto de
chegada, as ciências da educação, ambos referidos a um dado cenário sócio-
cultural. Trata-se aqui de um fenômeno humano relacional. Métodos e técnicas
de investigação são meios a serviço do campo específico.

Nossas opções para a busca de dados, de elementos para melhor responder


ao nosso problema, podem ser variadas, mas dependem da natureza das
questões que colocamos, da forma como as colocamos e das perspectivas que
temos quanto ao sentido das questões levantadas. Há momentos em que
precisamos de grandezas numéricas para discutir a questão em foco (por
exemplo, para discutir analfabetismo como um problema sócio-político; ou
analisar desempenho escolar em conjuntos de escolas, redes, etc.), há outros
momentos em que se precisa de aprofundamentos de natureza mais psico-
social ou clínica, como é o caso da compreensão das relações nos grupos de
aprendizagem face a face, de estudos do clima socio-educacional de uma
escola, etc. A interlocução com especialistas – estatísticos, politicólogos,
etnólogos, psicólogos, etc – nos dois casos não é trivial em função de
repertórios lingüísticos diferentes, nem sempre traduzidos com adequação por
ambos os lados. Conforme o problema, necessita-se de vários tipos de
aproximação, quando combinamos vários procedimentos de busca para se
conseguir elementos relevantes ao estudo das questões propostas.

Nesta perspectiva é que se busca a superação da dicotomia qualitativo X


quantitativo, por um olhar mais amplo que implica a conjugação de fontes
variadas de informação sob uma determinada perspectiva epistêmica. Também
se propugna a superação do preconceito: tudo o que vem a partir das
abordagens “qualitativas” é bom; o que vem de abordagens “quantitativas” é
mau. Para esta superação temos de lidar com as culturas vigentes em
determinados círculos acadêmicos, com as formas de comunicação e de
trabalho em equipe.

2
Quantitativo - Qualitativo

A dicotomia, quantitativo–qualitativo, como julgamento de valor científico, não


se sustenta, mas, isso não significa negar que as perspectivas metodológicas
em cada caso são diferentes em suas características, métodos e propósitos.
Porém, as exigências de validade e consistência interna e externa valem para
as duas formas de abordagem.

A questão das opções pelo uso de modelos quantitativos de coleta e análise de


dados ou pelos chamados modelos qualitativos, ou seja, aquelas metodologias
que não se apóiam em medidas operacionais cuja intensidade é traduzida em
números, fica, como já colocamos na dependência do enunciado do problema
a investigar.

Mas, é preciso considerar que os conceitos de quantidade e qualidade não são


totalmente dissociados e opostos. Epistemologicamente, quantidade é uma
interpretação, uma tradução, um significado que é atribuído à grandeza com
que um fenômeno se manifesta (portanto é uma mensuração dessa grandeza
sob certos critérios), e ela precisa ser interpretada qualitativamente pois, em si,
seu significado é restrito. De outro lado, a apreciação de uma qualidade
depende de que o fato, o evento, a ocorrência, seja apreendido, portanto é
necessária sua manifestação em certo nível de grandeza. E, ainda, “ausências”
são apreciadas nos dois casos. Pensando dialeticamente, qualidade e
quantidade, formam uma relação dialógica em que uma gera a outra e se
influenciam mutuamente.

Outro aspecto a considerar é que as mensurações quantitativas, tanto quanto


as tematizações ou categorizações qualitativas (elaboradas com base em
observações cursivas, entrevistas, questionários abertos, depoimentos, etc.),
são aproximações quanto ao fenômeno a ser estudado e o problema
levantado, não são o próprio fenômeno. São um tipo possível de tradução
deste sob certas condições, são abstrações que devem ter assegurada sua

3
validade, validade que se produz pelo rigor do método e da teorização que o
sustenta, e de sua confluência com a teorização na área de investigação. O
método não é autônomo. Lembramos, então, que todas as formas de obtenção
de informações, de dados, são criadas, inventadas, consensuadas, e, não
podem ser tomadas como sendo a própria natureza das coisas, muito menos a
totalidade da realidade. Estamos, ao nos voltarmos para a empiria, em
qualquer postura epistêmica que tivermos, observando partes, e, abordando
partes do real, recortes, portando pré-conceitos que precisam ser
conscientizados. Isto também se aplica, tanto ao uso de mensurações como às
categorias dos estudos de análise de conteúdo e outras análises dos modelos
qualitativos. O que se procura ao criar uma tradução numérica ou categorial de
fatos, eventos, fenômenos, é que esta tradução tenha algum grau de
plausibilidade, ou de validade de interpretação, no confronto com a dinâmica
observável dos fenômenos.

O que estamos colocando é que, a questão central na busca de informações,


dados, indícios, para uma determinada pesquisa, não está totalmente e
rigidamente vinculado somente à técnica usada nessa busca, mas, ao
processo de abordagem e compreensão da realidade, ao contexto teórico-
interpretativo. Portanto, nas formas de pensar, de refletir sobre os elementos a
reunir ou já reunidos para responder ao problema da pesquisa. Uma questão
de perspectiva, de concepção, de postura diante da realidade e do conhecer.
Também tem a ver com o que se crê buscar: certezas, verdades, ou
compreensões dinâmicas, processuais, interpretações plausíveis? Nesta última
postura, não estamos buscando rejeitar ou não rejeitar uma hipótese segundo
algum critério arbitrado em um método. Mas, sim, estamos procurando o que é
mais plausível como forma explicativa ou o que é mais possível de considerar
como dinâmica de produção de um fato. Estamos trabalhando, a partir de
pistas/ tendências/ relações, com o uso de algum tipo de lógica: por indução/
dedução; análises/ síncreses; pela dialética, com o uso da contradição como
fator produtor de síntese (o que exige o uso das demais formas analíticas).
Para tanto, as teorizações do campo específico de investigação têm primazia.
Estamos refletindo com os dados e análises básicas, porém, também
transcendendo esses dados e análises iniciais, com fundamento argumentativo

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sólido. Não se trata apenas de inferência estatística, mas, de inferência teórico-
lógica: trata-se de interpretação.

Usando, quer dados de natureza quantitativa, quer de natureza qualitativa,


além da compreensão dos limites das mensurações ou das tematizações e
categorizações e seus significados, da noção quanto aos erros de medida e
probabilísticos, dos viezes categoriais e das configurações subjetivas, é
necessário que estes dados e suas análises sejam colocados em contexto, em
dadas circunstâncias ou numa conjuntura, e, não tomá-los em si. Isto é o que
nos permite dar sentido, construir significados a partir deles. Nesta perspectiva,
qualitativo e quantitativo constituem-se em unidade dialética necessária.2 Deste
modo, uma formação criteriosa para o trabalho de pesquisa nas áreas das
ciências humanas é muito importante, incluindo boa formação quanto às
abordagens possíveis, os instrumentos, etc., sobretudo sobre as limitações
com que trabalhamos a empiria. Por boa formação entendemos uma aquisição
esclarecida e crítica de conhecimentos acumulados na área, sobre os
processos investigativos e seu instrumental de aproximação do real, bem como
das lógicas envolvidas.

Medidas e formas de abordagem

As medidas em sua maior parte têm uma tradução linear, e os tratamentos


estatísticos preferencialmente utilizados também são os lineares 3. Porém,
linearidade na análise não implica linearidade na interpretação, a qual deve ser
elaborada no confronto de informações do tratamento feito, que deverão tomar
sentido interpretativo na dependência do olhar teórico-lógico privilegiado pelo
pesquisador.

Aqui cabe um comentário sobre as mensurações. Estas podem ser tomadas


como sendo a própria “realidade”, o que é um equívoco, pois elas são

2
Não é necessariamente o que ocorre nos meios científicos, na vida social acadêmica. Há disputas e
separações arbitrárias, por crenças em certos métodos: de um lado a reificação do quantitativo, de outro
sua rejeição total e adoção da perspectiva fenomenológica dos significados.
3
Aqui prevalece a idéia de que a ciência deve trabalhar com simplificações (séc. XVII em diante). Hoje
temos controvérsias com as proposições das teorias da complexidade.

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arbitradas segundo algum critério e seu sentido se limita a esses critérios, que
são racionais e não “naturais”. Crítica cabe bem ao que se pode chamar de
“idólatras” dos números. Estes fazem, conscientemente ou não, a identificação
total do instrumento de medida com o fenômeno; por exemplo, os equívocos
que aparecem quando se toma o conceito de temperatura como aquilo que o
termômetro mede. O Q.I. como aquilo que o teste mede. O que o termômetro
mede, ou o teste de inteligência mede, é uma forma possível, arbitrada, de
aproximação operacional do conceito, mas não é o concreto real. A medida não
substitui o fenômeno e essa substituição, de fato, é indevida e leva a equívocos
investigativos freqüentes. Por exemplo, tomar medidas de quociente de
inteligência (QI) como sendo a inteligência humana.

As mensurações são aproximações quanto ao fenômeno a ser estudado e o


problema na forma em que foi colocado, não são o próprio fenômeno; são um
tipo possível de tradução deste sob certas condições. O mesmo ocorre com as
observações, as entrevistas, os questionários abertos, os depoimentos, etc.
Lembramos, então, que todas as formas de obtenção de informações, de
dados, são criadas, inventadas, consensuadas, e, não podem ser tomadas
como sendo a própria natureza das coisas, muito menos a totalidade da
realidade. As mensurações nos aprisionam dentro de certos critérios e estes
devem necessariamente ser considerados quando desenvolvemos análises.
Estamos, em qualquer postura epistêmica, ao nos voltarmos para a empiria
observando partes, e, muitas vezes com parcialidade, pré-conceitos. Atuamos
na ciência com certas crenças, que nem sempre são postas sob o crivo da
crítica lúcida. Isto também se aplica às categorias dos estudos de análise de
conteúdo e outras análises dos modelos qualitativos. O que se procura ao criar
uma tradução numérica ou categorial ou temática de fatos, eventos,
fenômenos, é que esta tradução tenha algum grau de plausibilidade, ou de
validade teórica, no confronto com a dinâmica observável dos fenômenos. E,
aqui nos aparece outra questão: a da visão estática e a da visão dinâmica,
processual da realidade. Na maioria dos casos fazemos análises estáticas,
pós-fato. A visão dinâmica nos coloca questões mais complexas e perspectivas
interativas e de intersecções, de encadeamentos surpreendentes, que, nas
ciências da educação, particularmente, não são simples de se abordar. Seu

6
“comportamento” é, na maioria dos casos, “complicado”. E, muitas vezes
linearizamos sem maiores questionamentos.

O que estamos colocando é que, a questão central na busca de informações,


dados, indícios, para uma determinada pesquisa em educação, não está
totalmente e rigidamente vinculada somente às técnicas ou procedimentos
usados nessa busca, mas, ao método de interpretação e ao contexto teórico-
lógico-interpretativo. Portanto, nas formas de pensar, de refletir sobre os
elementos a reunir ou já reunidos para responder ao problema da pesquisa.
Uma questão de perspectiva, de concepção, de postura diante da realidade e
do conhecer. Também tem a ver com o que se crê buscar: certezas, verdades,
ou compreensões dinâmicas, processuais? Nesta última postura, não estamos
buscando rejeitar ou não rejeitar uma hipótese segundo algum critério
arbitrado, mesmo que utilizemos testes estatísticos de significância. Mas, sim,
estamos procurando o que é mais plausível como forma explicativa ou o que é
mais possível de considerar como dinâmica de produção de um fato. Estamos
trabalhando a partir de pistas/tendências/relações, com o uso de algum tipo de
lógica: por indução/ dedução; análises/ síncreses; pela dialética, com o uso da
contradição como fator produtor de síntese (o que exige as demais formas
analíticas). Estamos refletindo com os dados e análises básicas, porém,
também transcendendo esses dados e análises iniciais, porém, com
fundamento argumentativo sólido.

Ao tratar de dados de natureza quantitativa, além da compreensão dos limites


das mensurações e seus significados, é necessário lembrar das imposições de
um modelo de tratamento de dados, dos viezes, dos erros de medida, dos
erros probabilísticos nas análises inferenciais (que raramente são considerados
e estudados antes do anúncio de “conclusões”), atentar para o “poder” do
tratamento (não só a significância). Também é necessário que estes dados
sejam colocados em contexto, em dadas circunstâncias ou numa conjuntura, e
não tomá-los em si. Isto é que nos permite dar sentido, construir significados a
partir deles.

As investigações quali-quantitativas

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Na esteira das reflexões acima postas há caminhos nas ciências da educação
que procuram a convergência ou integração de vários métodos para o estudo
de problemas relevantes, enunciados com a consciência de sua complexidade.
A idéia de fundo é que se necessita de várias perspectivas e variados
procedimentos para a aproximação do real, em sua dinâmica social ou sócio-
educativa. Então, quanto às formas de investigação, o que se observa nos
últimos anos é o uso combinado de formas de abordagem, sob a égide de uma
perspectiva que conduziu à enunciação do problema e que baliza os caminhos
das análises e interpretações oferecidas. Encontramos nas pesquisas o uso de
“surveys” estatisticamente delineados e tratados, combinado com entrevistas
em profundidade, ou estudos de caso, permitindo interfaces que ajudam a
avançar compreensões sobre os achados e o problema tratado; encontramos
investigações com análise de casos de forma clínica, entrelaçados com
estudos experimentais (ou vice-versa); temos estudos quase-experimentais
combinados com entrevistas abertas, ou reflexivas, ou não dirigidas; dados e
indicadores demográficos, com estudos de caso ou observação etnográfica em
campo; estudo etnográfico, de um lado, com aplicação de questionários
abertos, por outro, e construção e uso de escalas de atitudes ou de valores;
etc. Estas abordagens combinadas envolvem análises quantitativas e
qualitativas, sendo integradas e contrastadas segundo eixos analíticos que
permitem interpretações de diversas naturezas. A questão continua sendo o
rigor em seu emprego.

A estatística

Quanto ao emprego da estatística, partimos lembrando que ela é o estudo da


variabilidade dos fenômenos, no intuito de procurar regularidades mais ou
menos prováveis, de diferentes naturezas, que possam existir, e/ou relações
porventura existentes entre elas, lineares ou não. Há vários modelos
desenvolvidos para esses tratamentos, porém, é preciso que esses modelos
sejam incorporados ao processo de investigação no contexto próprio da área
de conhecimento. Os tratamentos estatísticos devem servir aos propósitos dos
pesquisadores e não ao contrário; por outro lado podem trazer alertas ao

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pesquisador, também, como, postular a necessidade de alguns controles,
questionar sobre variáveis intervenientes ou “ocultas”, etc..Para tanto é preciso
haver comunicação eficaz entre os profissionais envolvidos, dado que suas
linguagens e lógicas podem ser muito diferentes.

Os tratamentos estatísticos contemporâneos podem ser bastante dinâmicos,


mas, em geral, não são assim empregados, e seu uso nem sempre respeita as
condições prévias que eles demandam para ter validade. Nessa esteira,
considerar ainda, que, nesses estudos não há certezas completas, mas, sim,
probabilidades sob determinados critérios. Deixar claros os limites da análise
empreendida é mais do que importante, é absolutamente necessário.

Dois aspectos básicos

No emprego dos métodos quantitativos precisamos considerar dois aspectos,


como ponto de partida: primeiro, que os números, freqüências, medidas, têm
algumas propriedades que delimitam as operações que se podem fazer com
eles, e que deixam claro seu alcance; segundo, que as boas análises
dependem de boas perguntas que o pesquisador venha a fazer, ou seja, da
qualidade teórica e da perspectiva epistemológica na abordagem do problema,
as quais guiam as análises e as interpretações. Sem considerar estas
condições como ponto de partida, de um lado, corre-se o risco de empregar
certos tratamentos estatísticos indevidamente, e, de outro, de não se obter
interpretações qualitativamente significativas a partir das análises numéricas
Em si, tabelas, indicadores, testes de significância, etc., dizem muito pouco . O
sentido dos resultados é dado pelo pesquisador em função de seu estofo
teórico e de seu domínio de contexto. Na educação trata-se de estudar
situações em campo, nas conjunturas, e raramente em situação de
“laboratório”.

O papel da quantificação na pesquisa é o de permitir visualizar, a partir de um


conjunto de dados, por tratamentos específicos, alguns aspectos que não se
revelam nas observações primeiras. O mesmo ocorre com as análises de
entrevistas, observações, etc. Conforme Falcão e Régnier (2000) “a

9
quantificação abrange um conjunto de procedimentos, técnicas e algoritmos
destinados a auxiliar o pesquisador a extrair de seus dados subsídios para
responder à(s) pergunta(s) que o mesmo estabeleceu como objetivo(s) de seu
trabalho.” O grifo dessas duas palavras pelos autores citados é muito
importante porque nos lembra que os métodos quantitativos de análise são
recursos para o pesquisador, o qual deve saber lidar com eles em seu contexto
de construção lógica e técnica (num certo sentido deve dominá-los) e, não,
submeter-se cegamente a eles, entendendo que o tratamento desses dados
por meio de indicadores, testes de inferência, etc. oferecem indícios sobre as
questões tratadas e, não, verdades; que fazem aflorar semelhanças,
proximidades ou plausibilidades e, não certezas.

Os pressupostos que sustentam a estatística em geral e, que sustentam cada


técnica de análise quantitativa empregada e de seus conseqüentes nem
sempre são respeitados e deixados claros nos estudos. Aqui entra a questão
dos pesquisadores em suas áreas nem sempre terem uma idéia de conceitos
básicos da estatística, que lhes permitam fazer perguntas e, minimamente
entender as opções técnicas. Mas, há o outro lado, estatísticos que não
explicitam ao pesquisador, com clareza, as exigências e os limites do
tratamento estatístico, ou os fundamentos das opções de análise que propõe.

Quantificar é importante? Os métodos quantitativos contribuem com o


conhecimento? Sem dúvida: ampliam compreensão por sínteses adequadas,
quando bem empregados e interpretados.

Instrumentos de medida

Medir a intensidade de um fenômeno não é coisa simples e, sob vários aspectos,


particularmente problemático nas ciências humanas e sociais. Isto não quer dizer
que as chamadas ciências exatas não tenham também suas dificuldades de
medida. Fazer uma correspondência biunívoca entre um conjunto de eventos e um
conjunto de números requer uma adequação daquele às propriedades destes, e
vice – versa, adequação que em grande parte dos casos, é difícil de qualificar e

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adequar para estudos de natureza social, psicológica, educacional. Em toda
mensuração existe um grau de arbitrariedade, e as mensurações são sempre uma
tentativa de captação dos fenômenos em termos numéricos, por aproximação em
categorias para verificação de intensidade ou freqüência de ocorrências. Nenhuma
categorização, assim como nenhuma escala de medida é totalmente fidedigna e
válida. Atinge-se um relativo grau de validade e fidedignidade dentro de
determinados limites e parâmetros fixados para um certo problema. O viés é
intrínseco a toda quantificação (como a toda qualificação). O reconhecimento disto
é ponto fundamental para o uso de qualquer modalidade de medida com
consciência crítica e ética.

Limitações de maior ou menor porte existem tanto nos instrumentos ou técnicas de


mensuração como na sua forma de utilização pelo pesquisador. As críticas que
têm sido feitas na literatura sobre os instrumentos que pretendem obter dados
quantitativos na pesquisa nas ciências humanas e sociais são inúmeras. Vão
desde a adequação de se fazer uma pergunta de uma dada maneira e não de
outra, ou construir um item sob determinada forma, até as análises que nos
mostram que esses instrumentos não são tão neutros na obtenção do dado uma
vez que a formulação verbal de questões, seja sob que forma for, já vem
carregada de valor e de sentido, de um lado. E, de outro, as respostas que são
dadas pelas pessoas, a quem a questão ou item são aplicados podem estar
carregadas de sentidos e valores bem diferentes daqueles que o pesquisador julga
estar evocando. Dois “sins” dados como respostas por duas pessoas distintas,
numa questão de resposta aparentemente simples e direta tipo: sim ou não,
podem ter conotação totalmente diferente para cada um. A mesma nota atribuída a
um item numa escala por pessoas diferentes podem ter uma ancoragem de
significado que as tornam incongruentes. Neste sentido, ao agregarmos essas
respostas poderemos estar dando uma conotação idêntica a elefantes, abacates e
pedras. Por isso, bons instrumentos têm itens que tentam acessar essas
significações, ou levá-las em conta através de outras questões mais específicas.
Isto não quer dizer que não se deve ou não se pode utilizar este tipo de questões.
Num coletivo elas têm significação, sim. Apenas é necessário que tenhamos clara
consciência do que estamos processando. Este tipo de questões, entre outros

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fatores, é que levam aos estudos compostos com várias modalidades de coleta,
inclusive as chamadas “qualitativas”.

São, pois, de fundamental importância no uso da quantificação nas pesquisas, os


critérios que se fixam para a mensuração do fenômeno, ou seja, os critérios para
traduzir os fenômenos em números. A definição clara dos níveis de atribuição que
se vai obter é fundamental para o balizamento de eventuais inferências teóricas
que se queira fazer.

Daí a importância dos cuidados com os instrumentos de medida, os cuidados com


que a sua elaboração deve ser cercada. A manutenção de uma vigilância
constante sobre os vieses que podem interferir demais nos dados é uma atitude
indispensável ao uso destes instrumentos. E, no tratamento a ser feito com estes
dados, deve estar presente a consciência de suas limitações. Daí, nas ciências
humanas, a decorrente exigência do recurso a teorias fortes para a compreensão
dos achados, teorias que nos permitam escapar das tautologias e da obviedade.

É fundamental na investigação científica considerar os limites conceituais que


impomos ao construir os instrumentos de coleta de dados, e que eles nos
impõem em retorno, e, os limites das condições que nos são impostas pelas
diferentes técnicas de análise – e isto vale para as modalidades chamadas de
qualitativas também.

Críticas aos tratamentos quantitativos

Muitas das críticas à chamada “pesquisa quantitativa” têm sido feitas sob um
ângulo epistemológico, analisando suas estreitas vinculações com uma concepção
de ciência positivada. Isto se prenderia a determinados padrões de produção de
conhecimento científico tidos como limitantes em suas possibilidades
interpretativas e até esterilizantes na construção de um avanço real e significativo
dos conhecimentos científicos. Se isto é verificável para uma grande parte das
pesquisas que têm se utilizado da quantificação não podemos tomar esta asserção
como válida para todas as pesquisas que utilizam ou utilizarão esta modalidade de

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obtenção de dados. Por outro lado, ela é válida também para boa parte do que tem
sido denominado de “pesquisa qualitativa”.

Há críticas importantes ao uso de dados quantitativos que têm seu suporte no


uso indiscriminado e inadequado de técnicas quantitativas de obtenção e
análise de dados. O emprego abusivo de determinadas técnicas estatísticas a
dados cujas características não suportam as exigências para uso de
determinados modelos de análise ocorre. Por exemplo, raramente se observam
testes quanto à distribuição das variáveis em análise. Na construção de
indicadores, por exemplo, isto é muito importante. A escolha equivocada do
teste estatístico a ser empregado é freqüente. A questão é que um trabalho
assim desenvolvido e que acaba sendo publicado favorece a reprodução do
erro analítico porque outros pesquisadores reproduzirão o modelo apontando
como justificativa apenas o fato da publicação em “revista científica”.
Elaborações analíticas nos trabalhos da pesquisa em educação não são
numerosas.

Elaborações analíticas

A escolha do modelo de análise pode não ser tão trivial como parece. É preciso
que ele tenha qualidades para dar respostas enriquecedoras para a
compreensão do problema em exame, e que tenha suficiente consistência. Um
processamento pode dar margem à necessidade de novas análises
estatísticas, ou até de se fazer análises estatísticas completamente diferentes
em relação às pré-definidas. Pode-se ter necessidade de mudar caminhos no
processo de análise. O que se observa é um aprisionamento a um modelo
inicial de tratamento pré-definido que se aplica e fim. Raramente se observam
revisões analíticas dos dados em processo de tratamento que permitem ir
“questionando” os resultados e revendo análises, acrescentando novas
análises e até buscando novos dados. Ao pesquisador cabe tecer elaborações
analíticas, pois ele é o detentor da teorização e da problematização que foi o
ponto de partida para a investigação, e, é ele que tem questões a deslindar e
que procura ou demanda caminhos em função de sua elaboração lógica e
argumentativa. A análise de dados deve centrar-se em torno de uma lógica – a

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lógica do pesquisador – e, não, em torno da mecânica da estatística ou da
mecânica de métodos. Mas, o profissional estatístico também pode avançar
nesta direção quando se especializa em um dado campo de conhecimento.
Nesse caso sua ajuda fortalece os processos de elaborações analíticas
sucessivas. Na verdade, o que se demanda além da especialidade, em ambos
os casos, é também uma certa interdisciplinaridade. As questões teóricas do
tema em análise têm precedência, e a relevância das análises se deve a um
olhar especializado na área e não aos modelos mecânicos de tratamento dos
dados. Os processos de análise devem contribuir para enriquecer, comunicar
vida e vigor à nossa compreensão dos fenômenos. Ou seja, deve haver uma
significação fundamental e teórica da coleta de dados e de sua análise.
Rosenberg (1976) nos lembra que se deve ter atenção às potencialidades
teóricas e analíticas que estão presentes nos dados recolhidos e que não
podem ser ignoradas. As condições de recolha não podem ser esquecidas. A
análise é uma elaboração em relação a cada problema e o pesquisador é o
responsável por esta elaboração no diálogo com outros especialistas. É preciso
esmiuçar os dados e não apenas modelá-los. Indagações pertinentes devem
ser feitas ao longo dos processamentos. Este comportamento ajuda a escapar
do risco de análises primárias, de ocultamentos, de distorções sérias, de
enganos diversos. Não se pode esquecer que essa análise demanda uma
estreita conexão entre teorizações e dados, um realimentando o outro,
permitindo confirmações, alterações, acréscimos, novas elaborações.

Duas questões estão na base de uma elaboração analítica, com a qual se


procura relações relevantes: “porquê?” e, “em quê condições?” E, assim, “ a
elaboração habilita o analista a submeter a teste seu raciocínio e, ao mesmo
tempo, serve-lhe como instrumento de descoberta.”(op.cit., p. 16) Testa-se com
essa atitude, também, a adequação dos procedimentos.

Encerrando

Os princípios que suportam o estudo de um problema científico dependem em


última instância de uma determinada concepção de realidade e de sua
possibilidade de captação, daí derivando-se formas diferentes de abordagem

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metodológica. A adesão a um ou outro conjunto de princípios analíticos levam a
diferentes formas de captação e interpretação de dados, sejam estes quantitativos,
qualitativos ou quali-quantitavos. Formação de especialistas interdisciplinares entra
em pauta.

Contribuições de estudos com base quantitativa à reflexão no campo da


educação só se produzem com efetividade quando os dados se compõem com
teoria, conhecimento de contexto e interpretações qualitativas. Ferrari (1979)
lembra a importância de se evitar o empirismo, que considera o maior risco na
utilização de estatísticas. É preciso considerar, também, que a mediação
teórica é indispensável para se passar dos dados para as elaborações
analíticas e para a interpretação.

Referências
FALCÃO, Jorge Tarcísio da Rocha; RÉGNIER, Jean-Claude. Sobre os
métodos quantitativos na pesquisa em ciências humanas: riscos e benefícios
para o pesquisador. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília :
MEC/INEP, v. 81, n. 198, p. 229-243, mai./ago. 2000.

FERRARI, Alceu Ravanello. .Utilização das estatísticas educacionais dos


censos demográficos e dos registros escolares: uma tipologia de análises.
Educação e Realidade. Porto Alegre :UFRS, v. 4, n. 2, p. 253-266, jul./set.
1979.

ROSENBERG, Morris. A lógica da análise do levantamento de dados.


EDUSP/Cultrix, 1976.

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