Contos Populares Do Brasil Silvio Romero

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I

CONTOS POPULARES

DO BRAZIL

*
EDIÇÕES DA M A LIVRARIA INTERNACIONAL DE LISBOA
T l i e o p l i i l o B r a g a : Miragens Seculares. Epopéia
cyclica da h i s t o r i a : I Gyclo d a fatalidade; I I Cyclo da l u -
c t a ; I I I Gyclo da liberdade. Edição esmerada. 800 reis.
— Soluções Positivas da Política Portugueza: I Da aspira-
ção revolucionaria e sua d i s c i p l i n a em opinião democrá-
tica. I I Do systema constitucional, como transigência pro-
visória entre o absolutismo e a revolução. I I I e IV Histo-
ria das idéias democráticas em Portugal, desde 1640 até
1880. 3 vol. 920 reis.—Dissolução do systema monarchico
constitucional, 300 reis. — Historia Universal, esboço dó
sociologia descriptiva. 2 v o l . 2$000 reis. — Historia do
Romantismo em Portugal, u l t i m a parte da H i s t o r i a d a
L i t t e r a t u r a Portugueza. 2 v o l . 1$400 reis.
T e i x e i r a B a s t o s : Comte e o Positivismo, ensaio
sobre a evolução e as bases da philosophia positiva, 200
reis. — Vibrações do Século: I Sons do Universo; I I Au-
--reolas l u m i n o s a s ; I I I Gritos da época, 600reis, cart. 900
reis. — Progressos do espirito humano, 160 reis. — Camões
e a Nacionalidade portugueza, commemoração do T r i c e n -
tenario, 100 reis.
S y l v i o R o m é r o : Materiaes para a historia da Lit-
teratura Brazileira : I Cantos populares do Brazü, acom-
panhados de Introducçâo e Notas por Theophilo Braga.
2 volumes com musicas, 1^400 reis. — I I Contos populares
do Brazü, com u m prólogo critico e notas de Theophilo
Braga. 700*reis. — Introducçâo á historia da litteratura
brazileira — 2. parte. No prelo.
A

ÍSil>líoi liecíi das Idéias Modernas: I A


Controvérsia da edade da Terra por Drapper. — I I As ori-
gens da Família p o r Lubbock. — I I I A theoria atômica
na concepção geral do mundo p o r W u r t z . — I V Natureza
dos elementos chimicos p o r Berthelot. — V Reguladores
da vida humana p o r Moleschott. — V I Os Velhos Conti-
nentes p o r Ramsay. — V I I O que é a força p o r Saint-Ro-
bert. — V I I I A Sociedade Primitiva por Taylor — I X A evo-
lução dos sêres vivos p o r Schmidt. Cada v o l u m e 50 reis.
Revista de E s t u d o s L i v r e s — DIRECTORES
LITTERARIO-SCIENTIFICOS : Em P o r t u g a l : Br. Theophilo
Braga e Teixeira Bastos; no Brazü: Drs. Américo Brazi-
liense, Carlos von Koseritz e Sylvio Roméro. Assignatura
(pagamento adiantado) p o r anno : em P o r t u g a l 3Í000 r s ;
união postal 3#250 rs., sem r e g i s t o ; no Brazil 3£840 rs.,
moeda forte, com registo. 1.° e 2.° anno, avulso, 3£600
reis.
CONTOS POPULARES

DO BRAZIL
GOLLIGIDÒS

Pelo DR. SYLVIO ROMÉRO


Professor do Collegiò Pedro n

COM UM ESTUDO IMiEUAllNAlVE XOTAS COMPARATIVAS

Por THEOPHILO BRAGA

L I S DOA
NOVA L I V R A R I A INTERNACIONAL EDITORA
96, Rua do Arsenal, 96

J8«5
ADVERTÊNCIA

E esta a collecção de Contos populares brazi-


leiros que pudemos directamente obter da tra-
dição oral. N'esta faina não tivemos, como
nos Cantos, collaborador; tudo é trabalho nos-
so. Resolvemos não i n c l u i r aqui os contos
tupis que não passaram ás populações actuaes
do império. Consideramos o indio puro como
1

1
Modificámos n'este ponto o plano do collector, com-
pletando a representação dos elementos ethnicos do Bra-
zü com o que actualmente se conhece de tradições dos i n -
dígenas. Couto de Magalhães, notou na l i n g u a p o r t u g u e z a
das províncias do Pará, Goyaz e especialmente Matto Gros-
so, vocábulos tupis e guaranis, phrases, bguras, i d i o t i s -
mos e construcções peculiares d o t u p i ; as dansas canta-
v

das, como o Cateretê e Curará, v i e r a m dos tupis encorpo-


rar-se nos hábitos nacionaes; em S. Paulo, Minas, Paraná
e Rio oe Janeiro ha canções em que se alternam versos
portuguezes e t u p i s ; na v i d a domestica entraram contos e
lendas, como a h i s t o r i a de Saci-Sareré, Boitaitá e Curu-
pira, e muitas fábulas foram colligidas do ditado de sol-
?m £ x
d S
S servindo na guarnição do Rio de Janeiro.
i n d l e n a s

|T. B.)
A
VI ADVERTÊNCIA

extranho á nossa vida presente. O mesmo pen-


samos a respeito do negro da costa. O portu-
guez o emboaba, o reinol está nas mesmissi-
mas condições. O brazileiro é o resultado das
'três almas que se reuniram, e por isso só co-
lhemos os contos que nas villas e fazendas cio
interior correm de bocca em bocca. A colheita
ê ainda pouco avolumada. Possam outros mul-
tipiical-a!... Só quando possuirmos collecções
de cantos e contos de todas as províncias é
que se poderá fazer estudos comparativos. Por
agora achamos tudo prematuro e consideramos
o nosso trabalho sobre a l i t t e r a t u r a anonyma
do Brazil como inteiramente provisório e eiva-
do de immensas lacunas. Em todo caso, po-
rém, é um ponto de partida.
Rio de Janeiro — Novembro
de 1882.

Silvio 3\omèro.
SOBRE A NOVELLISTICA BRAZILEIRA

Parecerá á p r i m e i r a v i s t a estéril a investigação d a s


tradições e m u m a r e c e n t e nacionalidade c o m o o B r a z i l ;
m a s c o m a colonisação (Teste importante paiz dá-se u r a
p h e n o m e n o c o n j u n c t a m e n t e ethnieo e sociológico, q u e
p o r e m o s e m r e l e v o . A p r i m e i r a occupação pelos portu-
g u e z e s Tez-se p o r u m m o d o pacifico, c o m i n t u i t o s mer-
c a n t i s c o n c i l i a d o s c o m a p r o p a g a n d a r e l i g i o s a ; a neces-
sidade d a cooperação agrícola obrigou ao a p r o v e i t a m e n t o
d e u m a raça degradada, e n'esta cohabitação^ermanente
e m u m g r a n d e c a m p o de exploração, o portuguez radi-
cou a s u a tenacidade c o l o n i a l p e l a fusão o u m e s t i ç a g e m
c o m o e l e m e n t o indígena e c o m o elemento negro. E s t e
importante p h e n o m e n o histórico, d'onde d e r i v a m os no-
v o s c a r a c t e r e s de u m a nacionalidade, d i s t i n g u e d e u m
m o d o b e m accentuado o s y s t e m a de colonisação d a Ame-
r i c a do S u l . Sobre este p r o b l e m a , e s c r e v e A u g u s t o Comte,
c o m s u r p r e h e n d e n t e l u c i d e z : « O m o d o próprio d a c o l o n i -
sação i n t r o d u z i u , e n t r e o norte e o s u l d a A m e r i c a , u m a
VIII INTRODUCÇÂO

diiTerença continua, quanto ás relações respectivas com as


populações principaes. Systematisada pelo catholicismo e
pela realeza, a transplanlação ibérica conservou o con-
juncto dos antecedentes, e mesmo permiltiu, como aca-
bo de explicar, um melhor desenvolvimento dos caracte-
res essenciaes. » O portuguez não atacou as raças sel-
1

vagens do Brazil, como o anglo-saxão na America do


Norte; não occupou o novo continente por emigrações
forçadas sob o impulso da revolta política e da dissidên-
cia religiosa; não viu no seu cooperador activo, o escra-
vo negro, esse abysmo inaccessivel da côr, e suscitado
pela ambição pacifica do lucro, conservou instinctivamen-
te o conjuncto dos antecedentes, e esta circumstancia fa-
cilitou o encontro das tres raças produzindo-se gradual-
mente os caracteres essenciaes para a formação de uma
vigorosa nacionalidade. Durante a colonisação portugue-
za, não perdemos na transplantação as tradições poéticas
da mãe-patria, como se vê pelos Cantos populares do
Brazü; pelo seu lado, as raças selvagens, guarani e
tupi, mantiveram as suas tradições primitivas, e o ele-
mento escravo trazido do fóco africano procurou nas fic-
ções do seu fetichismo, n'essas fábulas espontâneas, a
consolação de uma situação monstruosa que se prolon-
gou abusivamente durante quatro séculos. Um dos cara-
cteres essenciaes da nova nacionalidade, será evidente-
mente a reminiscencia d'estas tres tradições, na fôrma
de Mythos, õe Lendas ou de Contos, segundo o desen-
9

volvimento social d'essas tres raças que se aproxima-


ram.
Colligir essas tradições no syncretismo actual em
que se acham, determinar a intensidade de cada ele-
mento ethnico, é um processo de alta importância para
avaliar como a par da assimilação orgânica se está ela-
borando a synthese affectiva, que individualisa e unifica
1
Système de Polüique positive, t. iv, p. 494.
SOBRE A NOVELLTSTICA B R A Z I L E I R A IX

u m a nacionalidade e m todas as manifestações da l i t t e r a -


t u r a e d a arte. F o i sob este aspecto que ligámos u m a
s i n g u l a r importância aos Contos populares do Brazü,
coordenando-os e t h n o l o g i c a m e n t e , de p r e f e r e n c i a a q u a l -
q u e r disposição e s t h e t i c a .
As tres principaes raças h u m a n a s , «as únicas cuja
distincção é v e r d a d e i r a m e n t e positiva» c o m o d i z Comte,
acharam-se e m contacto no sólo do B r a z i l ; o branco, o
amarello e o negro a p r o x i m a r a m - s e e m condições diífe-
rentes, cada u m com as suas qualidades a n t h r o p o l o g i c a s
e psychologicas, e m u m a cooperação inconsciente. A con-
servação dos antecedentes de cada urna facilitando o es-
t a b e l e c i m e n t o de relações moraes, c o m o se vê pelo syn-
cretismo das tradições, foi a base segura para o desen-
v o l v i m e n t o d a n o v a nacionalidade, e l e v a a prevêr-lhe
u m esplendido e assombroso f u t u r o . Analysemos os ele-
m e n t o s q u e c o n s t i t u e m a synthese affectiva da naciona-
lidade b r a z i l e i r a .

1. — Tradições de p r o v e n i e n c i a europêa

Os colonisadores portuguezes do século xvi, conser-


v a n d o o conjuncto dos seus antecedentes t r a n s p l a n t a r a m
c o m s i g o u m g r a n d e n u m e r o de tradições europêas e
persistências consuetudinarias, a l g u m a s actualmente o b l i -
teradas no v e l h o m u n d o . Assim o r u d i m e n t o dramático
do Bumba meu boi, apparece p r o h i b i d o e m u m sermão
do século v n : « Q u e ninguém se e n t r e g u e ás p r a t i c a s
ridículas o u criminosas das kalendas de Janeiro, taes
como fingir velhas ou animaes ( a u t cervulos). » A p a r -
lenda i n f a n t i l «Estava a moura e m seu l u g a r , » a i n d a 1

1
Cantos populares do Brazil, n.° 31.
X INTRODUCÇÂO

se conserva na sua forma antiga na tradição oral da Gal-


liza, por onde se vê como foi modificada por u m equi-
voco na versão b r a z i l e i r a :

Estaba a amôra ea seu lugar,


e ven a mosca pra a picar.

«A mosca n'amôra, a amura n'a silva, a silva n'o


chan,
Chan, chan,
ten man.
Estaba a mosca no sen lugar,
e ven o galo pra a p i l l a r — »
1

Como se vê, a forma gallega, que é muito extensa,


conserva ainda o caracter de u m j o g o p o p u l a r ; e n a
brazileira, a amora converteu-se e m moura, vestígio
da sua proveniencia e processo de adaptação. 0 roman-
ce á morte do príncipe D. Atfonso {Cantos, n.° 10) é tam-
b é m u m documento da vivacidade dos cantos transplan-
tados com os colonisadores no século x v i . Os costumes
domésticos têm impressa essa feição q u i n h e n l i s t a ; é
n'essas relações intimas, que os contos se repetem, taes
como foram recebidos da metrópole, e como passatempo
na vida isolada da província. No nosso estudo sobre A
Litteratura dos Contos populares em Portugal, i n v e s t i -
2

gamos a área de vulgarisação novellesca no século x v i


e x v u , e por elle se vê a abundância dos elementos que
se t r a n s m i t t i r a m para o Brazil. Os novos emigrantes das
varias províncias d e Portugal e ilhas t e m alimentado
1
Biblioteca de Ias Tradiàones populares espanolas, t. iv,
pag. 123.
2
Cantos tradicionaes do Povo portuguez, t. ir, pag. 5 a 30
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A xr

este fundo tradicional europeu, segundo o costume me-


ridional, expresso por Jean le Ghapelain:

Usaiges cst eu Normandie


Qui herbergiez est, qu'ü die
Fable ou chançon íie à 1'hoste.

Gil Vicente, Antônio Prestes e Camões alludem ao


nosso costume popular de contar historias que duram
noites e dias, e patranhas de rir e folgar. Vemos isto,
por exemplo, nos costumes do Ceará: «Em Setembro
começam a desmanchar a mandioca, a fazer a farinha-
da. E que alegres dias e festivos serões na humilde casa
de palha do pequeno lavrador! Parentes, amigos e visi-
nhos, no mais cordial adjutorio, com elle arrancam,
raspam, cevam a bemdita raiz. Levam-n'a á prensa, á
peneira, ao forno. Suor de escravo não vereis alli correr;
é o trabalho livre e fecundo, amenisado pela saudosa
modinha cearense ao tanger da viola, ou por intermi-
naveis historias de cobras e onças.» Em uma poesia 1

de Juvenal Galeno, Saudades do sertão, descreve-se tam-


bém este viver doméstico, em que se repetem os con-
tos :
Conta o moço uma façanha
Das vaquejadas do dia,
O velho recorda um Caso
De quando se divertia;
A velha conta uma historia...
O vaqueiro uma victoria...
Cada qual tem sua gloria,
Seu feito de bizarria.

Em Portugal, a par da Modinha, como descreve To-


lentino, usava-se também o conto, que se foi tornando

1
Rodolpho Theophilo, Historia da Secca do Ceará, pag.
86.
XII INTRODUCÇÂO
4

apanágio das crianças e da i n g e n u i d a d e p r o v i n c i a l ; d i z


o poeta dos costumes burguezes do século x v i i i :
Contando historias de fadas
Em horas que o pae não vem,
E co'as pernas encruzadas
Sentado ao pé do meu bem
Lhe dobo as alvas meadas. 1

O caracter popular das obras de Antônio José da


Silva é u m a p r o v a da vitalidade das tradições do B r a z i l ;
p o r q u e sendo elle de u m a família abastada, esse s e n t i -
m e n t o tradicional q u e i n t r o d u z i a nas creações litterarias
de u m a época decahida, e r a a conseqüência do m e i o fe-
cundo e m q u e se d e s e n v o l v e r a . Na opera Os encantos de
Medêa, a l l u d e a varias contos dos cyclos mais u n i v e r s a -
lisados da Europa. « A R P I A : Pois sabei q u e na q u i n t a d e
Crenza, debaixo d a t e r r a , está u m a e s t r i b a r i a , n a q u a l
está u m burro que caga dinheiro. S A C A T R A P O : E U o u -
v i f a l l a r n'isso do burro caga dinheiro, q u e m i n h a m ã e
o c o n t a v a q u a n d o e u era p e q u e n o ; p o r é m s e m p r e t i v e
isto p o r historia. A R P I A : Não t e d i g o eu q u e todos t e m
n o t i c i a d'esse b u r r o ? — q u a n d o fores á e m p r e z a , t e h e i -
de d a r u m capello, q u e f o i de m i n h a avó, o qual quem
o põe ninguém o vê, e pôde i r p o r o n d e q u i z e r , e en-
t r a r e m t o d a a p a r t e sem s e r v i s t o ; etc. » Quando An-
2

tônio José se a p r o v e i t o u d'estes elementos t r a d i c i o n a e s


ainda elles e r a m considerados c o m o desprezíveis; d e p o i s
a^ sciencia d e t e r m i n o u - l h e s p a r a d i g m a s universaes, e
d'aqui f o i levada a interpretal-os c o m o últimos e apaga-
dos vestígios de concepções, taes c o m o m y t h o s e lendas,
já de p r o v e n i e n c i a de noções religiosas o u de r e m i n i s -
cencias históricas. Hoje a tradição d o burro mija di-
nheiro é conhecida na sua fôrma allemã c o l l i g i d a pelos
1
Obras, pag. 262. Ed. Castro Irmão.
2
Operas portuguezas. t. i, pag. 273.
SOBRE A NOVELLISTICA BRAZILEIRA XIII

irmãos Grimm no Kind und aus Marchen, e por Bech-


stein, no DevAsche Mãrchcnbuch; na sua fôrma noruegue-
za colligida por Abjõrsen, no Norske Folhe eventyr; na
f ô r m a ingleza, colligida por Baring Gould, no appendice
do Folk Lore of the Nothern counties of England; appa-
rece a mesma tradição nos Contos do Decan, colligidos
por Miss Frere, nos contos kalmucos, esthonianos, e
ainda em versão italiana e hespanhola. Na presente col-
lecção (n.° X L I ) O conto do Priguiçoso filia-se n'este i m -
menso cyclo tradicional ao qual se tem procurado a sua
base na d e g e n e r a ç ã o mythira.
Antônio José imita também as fórmulas populares
da narrativa novellesca, como se vê na comedia Vida
do grande D. Quixote: «SANCIIO: Acerca d'isso contarei
uma historia que succedeu não ha vinte annos. Convi-
dou um fidalgo do meu logar, mui rico e principal, por-
que descendia do Neptuno do Rocio, que casou com
Dona Kigueira das Fontainhas, que foi filha de D. Cha-
fariz de Arroyos, homem s o b r e t r a n c ã o e secco, o qual se
afogou em pouca agua, por causa de um furto que lhe
fizeram, de que se originou aquella celebre pendência
das enxurradas, na qual se achou presente o senhor D.
Quixote, que veiu ferido em uma unha; n ã o é verdade,
senhor? D. QUIXOTE: Acaba já com essa historia antes
que te faça c a l a r . . . SANCHO: Como vou contando, vae
s e n ã o q u a n d o . . . Aonde ia eu, que já me esquece? FI-
DALGA: Na pendência das enxurradas. SANCHO: Ah, sim,
lembre Deus em bem ; este fidalgo, que eu conheço como
ás minhas mãos, porque da sua á minha casa n ã o se
mettia mais que uma estribaria, convidou, como vou d i -
zendo, este fidalgo a um lavrador pobre, porém honrado,
porque nunca pariu. D. QUIXOTE : Acaba já com essa his-
toria. SANCHO : Já vou acabando: chegado o tal lavrador
a casa do fidalgo convidador, que Deus tenha a sua alma
na gloria, que já morreu, e por signal dizem que tivera
a morte de um anjo, mas eu me achei presente, que t i -
XIV INTRODUCÇÂO

nha i d o não sei d'onde. D. Q U I X O T E : Por m i n h a vida q u e


acabes, se não t e m o e r e i os ossos. S A N C H O : Foi o caso:
que estando os dois para sentar-se á mesa, o l a v r a d o r
p o r f i a v a c o m o fidalgo q u e tomasse a cabeceira da mesa,
o fidalgo porfiava l a m b e m q u e a tomasse o l a v r a d o r ,
tem d'aqui, t e m d'alli, até q u e enfadado o fidalgo disse
ao l a v r a d o r : Assentai-vos, villão r u i m , aonde vos d i g o ;
p o r q u e onde q u e r q u e e u m e assentar essa é a cabe-
ceira da mesa.
Entrei por uma porta,
Sahi por o u t r a ;
Manda El-Rei,
Que me contem outra.» 1

Este ditado novellesco ainda se repete na tradição


a c t u a l do Brazil (vid. infra, pag. 17 e 6 5 ) ; o t h e m a d o
conto pertence ao cyclo das facecias mais vulgarisadas
na Europa. Antônio José, c o m o Francisco R o d r i g u e s Lo-
bo no século x v n , chasqueia o ditado popular, cheio de
vacillações e incongruências; p o r onde se vê que é er-
rado o processo d'aquelles q u e ao c o l l i g i r e m os contos
do p o v o a t t e n d e m p r i n c i p a l m e n t e ás fôrmas dialectaes,
sacrificando o q u e é persistente, os themas t r a d i c i o n a e s ,
ao m o d o accidental da sua narração. C o n v é m separar o
estudo da N o v e l l i s t i c a do da D i a l e c t o l o g i a .
A u n i v e r s a l i d a d e de u m certo n u m e r o de contos en-
t r e as mais separadas raças e diíferentes civiiisações hu-
manas, é o p r i m e i r o p h e n o m e n o q u e s u r p r e h e n d e o c r i -
tico. D'aqui a i n f e r e n c i a da sua importância e t h n i c a e
psychologica, c o m o d o c u m e n t o inconsciente de u m pe-
ríodo e m o c i o n a l d a v i d a da h u m a n i d a d e . É, p o r t a n t o , ló-
gica a aproximação d o Conto, t a l c o m o elle c h e g o u até
nós, dos Myíhos mais geraes creados pela i n t e l l i g e n c i a
1
Operas portugueza*, t. i, pag. 73.
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A

p r i m i t i v a , e m e s m o consideral-o e m g r a n d e parte c o m o
degeuerações d'esses m y t h o s q u a n d o d e i x a r a m de s e r
c o m p r e h e n d i d o s . N ã o é esta, p o r é m , a n o s s a d o u t r i n a ;
p o r q u e a aproximação do C o n t o p ô d e fazer-se t a m b é m
d a Lenda, estabelecendo-se u m a relação i n t i m a e n t r e e s -
tes dous productos d a imaginação e das concepções s u b -
j e c t i v a s . O Conto é p a r a nós u m producto independente
é simultâneo c o m a creação do Mglho e da Lenda, apro-
priando-se d o s e l e m e n t o s de c a d a u m a d'essas conce-
pções, e c o n s e r v a n d o por isso n a s u a variedade u m a s
v e z e s c a r a c t e r e s mytbicos, outras vezes c a r a c t e r e s len-
dários. É por u m a tal relação que o C o n t o se c o n s e r v a
c o m u m a t e n a c i s s i m a persistência, já entre a s raças atra-
zadas e m e s m o e n t r e os indivíduos m a i s adaptados* á
concepção mythica, c o m o a s crianças, já entre as pes-
soas e m q u e m p r e p o n d e r a a m e m ó r i a histórica, c o m o os
v e l h o s . A feição m y t h i c a dos Contos reconhece-se e m u m
d e t e r m i n a d o n u m e r o de lhe mas i n c i d e n t a e s q u e se r e -
p e t e m entre todos os p o v o s ; taes são as bolas de sete
léguas, mythificação do vento, a toalha sempre com co-
mer, q u e B r u e y r e i n t e r p r e t a c o m o sendo a n u v e m , o s
pomos de ouro, o u o s u l , a menina que bota 'pérolas
quando falia, o u a Aurora, q u e é a gala borralheira no
crepúsculo v e s p e r t i n o ; a l g u n s contos t e m sido aproxi-
m a d o s de m y t h o s definidos, taes c o m o o conto de João
Feijão ( T o m Puce) do m y t h o astronômico da G r a n d e U r s a
e do r o u b o d o s bois p o r H e r m e s , o d a Cendrillon do
m y t h o de Proserpina, a s a l a prohibida do Barbe-Bleu, do
m y t h o do thesouro de Ixion, as botas de sete legaas c o m
as sandálias de o u r o de Minerva, n a Odyssea. E s t a s apro-
ximações p o d e m s e r verdadeiras, m a s é p r e c i s o q u e s e
n ã o s u b m e t t a tudo a o e x c l u s i v o ponto de vista mythico.
S e g u n d o a aproximação do typo lendar, o Conto apre-
s e n t a outros c a r a c t e r e s : c o n s e r v a o s e u t h e m a , modifi-
cando as c i r c u m s t a n c i a s de pessoas e l o g a r e s . E x e m p l i f i -
q u e m o s : Conta-se e m L i s b o a q u e Diogo Alves, a s s a s s i n o
XVI INTRODUCÇÂO
o

célebre, v i v i a nos Arcos das Águas Livres, r o u b a n d o os


visitantes d'aquelle Aqueducto, e precipitando-os d'aquel-
la e n o r m e a l t u r a ; u m a vez t o m a r a u m a criança nos bra-
ços para a precipitar, mas a criança vendo-se ao c o l l o
do assassino sorriu-se n a sua candura, e o m a l v a d o não
t e v e então c o r a g e m para realisar o s e u c r i m e . Esta t r a -
dição local, acha-se contada p o r Herodoto, (ffist., l i v . v ,
cap. x c r i ) e m situação d i v e r s a , m a s c o m o t h e m a f u n -
d a m e n t a l d a criança q u e s o r r i para os seus assassinos e
assim escapa. Ás vezes o Conto, c o n f o r m e p r e v a l e c e o
1

caracter lendário, persiste pela sua applicação m o r a l ;


nos Açores existe o conto, de q u e h a n o céo u m q u e i j o
de ouro, q u e ainda está p o r p a r t i r , e só será encetado
p o t a q u e l l e q u e sendo casado n u n c a se tenha a r r e p e n -
d i d o . Esta tradição apparece com o m e s m o i n t u i t o n a Si-
cilia, dando l o g a r a u m provérbio. Se o conto de Psy-
2

che d e r i v a do m y t h o da Aurora, o conto de Rhodopis, já


citado p o r Strabão ( x x i , 8 0 8 ) e p o r Eliano (fííst. varias,
xííi, 3 3 ) p e r s i s t i u á custa das suas relações lendárias. 3

I)'esta d u p l a relação d o Conto c o m o Mytho e a Len-


da, assim elle se c o n f i n a e x c l u s i v a m e n t e e n t r e O povo,
até o i r e m lá d e s c o b r i r P e r r a u l t c o m u m i n t u i t o artísti-
co, e os G r i m m c o m o seu e s p i r i t o scientiííco; o u o Con-
to se d e s e n v o l v e l i t t e r a r i a m e n t e , c o m o v e m o s n a Grécia
1
Egger, Mem. de Littérature ancienne. pag. 290.
, " qualohe comune delia província d i Siracusa corre la
In

credenza che a Comarano presso Schoglitti, sia u n tesoro i n -


çantato íl qual non potrà esser preso se non la notte dal 14 à
15 Agosto, da chi, presa moglie, non sia pentito dei matrimô-
n i o ; ed e volgare il provérbio :
Cu'si marita e nun si penti
P i g l i a l a truvatura di Comarano. >

Pitre Antichi usi (Rivist. di Lett. popolare, pag. 107).


3
Chassang, Hist. du Roman, pag. 398.
SOBRE A NOVEI.LISTICA B R A Z I L E I R A XVII

c o m os Loci communes e c o m p e n s a m e n t o philosophi-


1

co, c o m o o conto d a s Parcas e da vida humana. T a m - 2

b é m nos escriptores mais individualistas apparecem es-


tas r e m i n i s c e n c i a s n o v e l l e s c a s , c u j a s r a i z e s s e v ã o e n -
c o n t r a r v i v a z e s n a tradição p o p u l a r : V o l t a i r e , d e s c r e v e n -
do o Anjo q u e v i v e e m c o m p a n h i a d e Zadig, e l a b o r a u m
t h e m a a n t e r i o r q u e s e a c h a n o i n g l e z p o r T h o m a z Par-
n e l l , e já no século x i v e m u m a homília de Alberto d e
P a d u a , indo r e m o n t a r n a fôrma e s c r i p t a até a o s fabliaux,
c o m o o affirma Littré. É já possível c o o r d e n a r todos e s -
tes e l e m e n t o s d a mentalidade s u b j e c t i v a e m u m a r e l a -
ção p s y c h o l o g i c a , d e fôrma q u e s e c o m p r e h e n d a m c o -
m o concepções de u m a s y n t h e s e espontânea. Vico fui o
p r i m e i r o q u e estudou o ponto d e p a r t i d a de todas e s -
tas concepções n a s u a fôrma s i m p l e s e i m m e d i a t a d e
Tropos. Quasi todas as p a l a v r a s n a s u a significação n ã o
são m a i s d o q u e abreviações d e tropos; a s s i m o norte
( n o r t h ) s i g n i f i c a o lado d a c h u v a ; sul, batido d o s o l ,
leste, b r i l h a r , a r d e r ; oeste, da casa. 0 7VO/JO d e s e n v o l -
vendo-se s o b o ponto d e v i s t a d a personificação anthro-
p o m o r p h i c a , apparece-nos n a efílorescencia d o Mytho.
A s s i m n a s concepções do E g y p l o , o s o l é o m e n i n o Ho-
rus, a s t r e v a s são persouifieadas e m Set, c o n t r a a s q u a e s
l u c t a Horus, p a r a v i n g a r s e u p a e Osiris ou o s o l r a d i a n -
te. Nos m y t h o s vedicos, a A u r o r a , ou o crepúsculo ma-
tutino é p e r s o n i f i c a d a n a donzella, e m Ushas; o F i r m a -
m e n t o é o pae, Varuna ou Uranos. A aííirmação de q u e
os t h e m a s m y t h i c o s t e m u m a área l i m i t a d a só s e p ô d e
a c c e i t a r e m quanto ao s e u d e s e n v o l v i m e n t o dentro d e
certos s y s t e m a s r e l i g i o s o s ; a s s i m os p h e n o m e n o s s o l a -
res personificados, d e r a m l o g a r á seguinte c a t e g o r i a d e
m y t h o s : os p h e n o m e n o s diários da Aurora, d o Sol e d a
1
Ott. Müller, Hist. de la Littêr ature grécque, t. li, pag.
522.
2
Tylòr, La Civilisation primitive, t . i . pag. 403.
xvin INTRODUCÇÂO

Noite (personificados na Donzella, a criança orphã, a r e -


cém-nascida, a enteada bonita, a rapariga feia tempora-
r i a m e n t e ; no príncipe, no amante, no encantado que ap-
parece; na velha, na madrasta r u i m , na bruxa). Os phe-
nomenos solares annuaes, de Primavera, cie Verão, de
Inverno, foram mythificados anthropopat.hicamente, sen-
do este em geral o fundo das grandes Epopêas. Esta fôr-
ma orgânica das Litteraturas é eíTectivamente o desen-
v o l v i m e n t o de themas mylhicos, que ás vezes subsistem
entre o povo na fôrma de Contos, mas deveram a sua
activa elaboração e interesse ás relações lendárias d e
que se aproveitaram.
Vimos o que era o Mytho; resta-nos definir a Lenda:
esta creação é a narração de u m facto não pelo que elle
teve de realidade, mas segundo a impressão subjectiva
que produziu. O poder da formação lendária é caracte-
rístico da nossa raça árica, que o desenvolveu até che-
gar á veracidade histórica; diz E m i l i o Burnouf: «todos
os povos da raça árica, no Oriente e no Occidente, r e -
montam a sua origem a personificações heróicas que
nunca existiram, e a estes seres ideaes que são deuses
ou symbolos, mas não pessoas reaes.» As Lendas têm
1

também fôrmas definidas na sua divergência da realida-


de: os Eponymos, como Mena, Manu, Bomulo, Hellen,
Dorus, representam u m a raça ou uma civilisação; n a
Toponymia, os logares são representados como i n d i v i -
dualidades históricas, como se vê nos antigos livros he-
braicos, onde o nome de Sem significa a montanha,
íleber, o da m a r g e m de lá, o u da o u t r a banda do r i o ,
Phaleg, a divisão. Á elaboração dos elementos da Lenda
poderia também dar-se o nome de mythificação por piau-
sibilidade, como indica Tylor.
Assim como se chegou a l e r a i m a g e m emblemática
dos brazões, também a linguagem mythica tem as suas
1
Hist. de la Littératnre grêcqne, f. i, png. 19.
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A XIX
0

fôrmas gradativas, podendo coordenar-se na sua depen-


dência psychologica através dos mais inconscientes syn-
cretismos. Todas as classificações dos Contos tradicionaes
feitas sem este conhecimento prévio são de um empiris-
mo sem base, como a de Von Hahn ou a de Baring-
Gould. No presente livro não foi attendida a classifica-
1

ção psychologica dos Contos, não só porque a colheita é


ainda diminuta, como por ser do maior interesse em
uma nacionalidade incipiente, como a brazileira, determi-
nar na sua unificação moral os elementos ethnicos que
a estão constituindo.

2. — Tradições de proveniencia africana

Na época em que os Portuguezes colonisaram o Bra-


zil, a raça negra da África entrava no concurso da civi-
lisação moderna pela fôrma afTrontosa da escravidão;
esta circumstancia destoando completamente do espirito
da corrente histórica, influiu na-degradação simultânea
do negro e do branco, de xando ao futuro que hoje é o
;

nosso presente, um dos mais dilTiceis problemas sociaes


a resolver. Acabara a escravatura antiga, porque esta
situação social era emergente do estado de guerra; en-
trando-so nó régimen industrial e pacifico, determinado
pela grandes navegações, a escravidão tomou uma nova
fôrma, a exploração criminosa de uma raça inferior, de-,
gradada em vez de ser tomada como cooperadora da
actividade dos europeus. Foi preciso que o senso moral
se elevasse para que a escravidão do negro se conside-
rasse uma affronta da humanidade, lançando Filangieri o

1
Nos Contos tradicionaes do Povo portuguez, apresenta-
mos um plano racional e histórico de classificação.
XX INTRODUCÇÂO
o

primeiro brado contra essa iniqüidade. Comte julgou


com bastante clareza esta situação social que explorava
o negro como escravo: « o destino normal da escravi-
dão não convém senão á submissão do trabalhador ao
guerreiro. Emquanto a instituição antiga secundou o
desenvolvimento respectivo do senhor e do servo apro-
ximando-os, a monstruosidade moderna degrada um e
outro separando-os.» Nos anexins populares conhece-
1

se o instincto de aversão e crueldade da população bran-


ca do Brazil para com o negro:

Negro é tôeo,
Quem não lhe atira é louco.

Negro é vulto,
Quando não pede, furta.

Negro quando não canta, assobia;


Deitado é lage;
Sentado é um tôeo,
Correndo é um porco.

O negro tem catinga,


Tem semelhança com o diabo;
Tem o pé de bicho,
Unha de caça
E calcanhar rachado;
Quando se chama, resmunga,
Se resmunga, leva páo.
(Rio de Janeiro).

Apesar d'este barbarismo do branco, a raça negra


deve considerar-se como um elemento cooperador da ci-
vilisação brazileira. Diz Joaquim Nabuco: « Para nós a
raça negra é um elemento.de considerável importância
nacional, estreitamente ligada por infinitas relações or-
gânicas á nossa constituição, parte j integrante do povo

1
Systême de Polilique positive, t. iv, pag. 520.
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A XXI

brazileiro.» 0 mesmo escriptor contintia com a aucto-


1

ridade d a s u a competência: « a p a r t e d a população n a -


c i o n a l q u e d e s c e n d e d e e s c r a v o s é pelo m e n o s tão nu-
m e r o s a c o m o a p a r t e q u e d e s c e n d e d e s e n h o r e s , isto
q u e r dizer, q u e a rapa n e g r a n o s d e u u m p o v o . » Ain- 2

d a a c t u a l m e n t e a população n e g r a e l e v a - s e a o n u m e r o
de milhão e m e i o de a l m a s ; de 1 8 3 1 a 1 8 5 2 o trafi-
3

co t r a n s p o r t o u d a África p a r a a s s e n z a l a s do B r a z i l u m
milhão d e Degros, c a l c u l a n d o - s e a cifra a n n u a l e m c i n -
4

c o e n t a m i l . E r a a n t h r o p o l o g i c a m e n t e impossível, q u e e s -
te e l e m e n t o n ã o a c t u a s s e s o b r e a população b r a n c a ,
a p e s a r do s e u a f a s t a m e n t o c r u e l . A s m u s i c a s e d a n s a s
p o p u l a r e s , c o m o a s sambas, chibas, batuques e candom-
blés, o vapata e o carurú, são a p r o v a d a i n f l u e n c i a
e t h n i c a do negro, n o B r a z i l . C o m o é q u e a s tradições
p o p u l a r e s e d o m e s t i c a s e s c a p a r i a m á influencia d'es-
s a raça n o s e u espontâneo f e t i c h i s m o ? S e o b r a n c o f o i
s e v e r o n o s e u a f a s t a m e n t o do e s c r a v o n e g r o , e s t e obe-
d e c e u á s u a tendência affectiva, l i g o u - s e á n o v a n a c i o -
nalidade de q u e o f i z e r a m cooperador. S o b r e este ponto
e s c r e v e J o a q u i m N a b u c o : « A escravidão, p o r felicidade
nossa, n ã o a z e d o u n u n c a a a l m a do e s c r a v o c o n t r a o se-
nhor, f a l l a n d o c o l l e c t i v a m e n t e , n e m c r e o u e n t r e a s duas
raças o odio r e c i p r o c o q u e e x i s t e n a t u r a l m e n t e e n t r e
o p p r e s s o r e s e opprimidos.» C o m o os factos p a r t i c u l a -
5

r e s c o n f i r m a m a s g r a n d e s leis n a t u r a e s : a raça n e g r a é
e s s e n c i a l m e n t e affectiva, e é e s t e o c a r a c t e r c o m q u e
t e m d e s e r t r a z i d a á cooperação c o m as raças s u p e r i o r e s
da historia. A u g u s t o C o m t e e x p o z e s t e g r a n d e p r i n c i p i o
sociológico, confirmado p e l o s a n t h r o p o l o g i s t a s : « póde-se
já r e c o n h e c e r q u e os n e g r o s são tão s u p e r i o r e s aos^bran-
1
O Abolicionismo, pag. 20.
2
Ibid., pag. 21.'
3
Ibid., pag. 108.
* Ibid., pag. 209.
5
Ibid., pag. 22.
B
XXII INTRODUCÇÂO

cos pelo s e n t i m e n t o , c o m o a b a i x o (Testes p e l a i n t e l l i g e n -


cia.» N o d e s e n v o l v i m e n t o da n a c i o n a l i d a d e b r a z i l e i r a
1

confirma-se este facto d a cooperação s e n t i m e n t a l ; d i z


J o a q u i m N a b u c o : «Alliados de coração dos B r a z i l e i r o s ,
os escravos esperaram e s a u d a r a m a Independência co-
m o o p r i m e i r o passo p a r a a sua a l f o r r i a , c o m o u m a p r o -
m e s s a tácita de l i b e r d a d e , q u e não t a r d a r i a a s e r c u m -
p r i d a . » A relação e t h n i c a d o n e g r o com a pátria b r a -
2

z i l e i r a é vastíssima, c o m o se vê p e l a abundância d e
Fábulas c o l h i d a s da tradição o r a l . Na Grécia a Fábula
era l a m b e m c o n s i d e r a d a c o m o p r o v e n i e n t e de u m a c i v i -
lisação n e g r o i d e , d'onde a sua designação d e Fábulas ly-
bicas, elhiopicas, e a identificação de Esopo c o m Aühiops.
A publicação m o d e r n a dos Contos dos Zulus, p o r H e n r y
C a l i a w a y , v e i u esclarecer-nos s o b r e a evolução das fôr-
m a s tradicionaes e n t r e a raça n e g r a , o n d e a p p a r e c e m os
c o n t o s d o Renard, d o Petü-Poucet, e a elaboração d e u m
f e t i c h i s m o q u e p e r d e u a fôrma c u l t u a i . N o Brazil e x i s t e
nas festas d o Natal e Reis Magos, o a u t o r u d i m e n t a r d o
Bumba meu Boi, análogo á festa d o B o i Geroa, o u o
Muene-llambo dos Ba-Nhaneca, d a África. M u i t a s das 3

fábulas a f r i c a n a s da população n e g r a d o B r a z i l são po-


p u l a r e s e m P o r t u g a l , c o m o o Kdgado e a festa no céo,
Amiga Raposa e amigo Corvo, o Macaco e o Moleque de
cera, o Macaco e o rabo, o Macaco e a cabaça. N o r o -
1
Syst. de Politique positive, t. n, pag. 461. —Virev
Histoire générale du Genre humain, descreve minuciosamente e
te caracter affectivo do negro, que o leva até sacrificar-se pela
pessoa a quem se dedica. Broc, no seu Essai sur les Races hu-
maines. pag. 74, acceita também estas características, que de-
v e r i a m ser conhecidas pelos políticos e chefes temporaes. No li- •
vro A raça negra sob o ponto de vista da Civilisacão de Áfr
de A. F. Nogueira, é onde pela p r i m e i r a vez u m ethnologista
v i n d i c a com factos observados directamente a capacidade afle-
ctiva, que distingue o negro.
2
O Abolicionismo, pag. 50 e 136 seq.
3
A. F. Nogueira, A raça negra, pag. 289.
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A XXIII

manceiro portuguez é frequeDte a allusão á raça negra


na nossa sociedade desde o século x v ; no romance do
Conde Grifos, se diz: «A um pretinho que tinha—Uma
lança lhe ha dado»; no romance da Morena, vem: « Man-
da os pretinhas á lenha — E.as moças buscar agua. »
Vê-se que este elemento penetrou profundamente na so-
ciedade portugueza, e que a sua prolongação no Brazil
foi fortificada pela necessidade da exploração agrícola.
Assim como o cruzamento do elemento negro com o in-
dígena produz essa mestiçagem chamada o cafuzo, tam-
bém as suas tradições n'um ou n'outro ponto se encon-
tram; a fábula da Onça e o Bode, (pag. 149) colligida
em Sergipe, acha-se na tradição dos indigenas do Juruá,
colligida sob o titulo O Veado e a Onça, (pag. 184) co-
mo a fábula do Jabuti apparece na África.
0 elemento africano manifesta-se ainda por uma
grande abundância de superstições populares; em Por-
tugal o preto conserva um perstigio mágico, empre-
gado na venda das cautelas das loterias, como tam-
bém no século passado circularam prophecias em nome
do Pretinho do Japão. Entre as crenças populares por-
tuguezas existe o costume de trazer uma Oração escri-
pta e dobrada dentro de uma pequena bolsa ao pescoço,
a qual livra do raio, dos assassinos, de morrer afogado
ou repentinamente, e de outros males. Em África a Ora-
ção é essencialmente um remédio, que os feiticeiros ex-
ploram, tal como o descrevem minuciosamente Astley e
Caillié. As superstições e medicina popular relacionadas
com o elemento africano, não são tão sympathicas como
os Contos e Fábulas provenientes dò seu fecundo fetichis-
mo, mas são dignas de se estudar como documento da
situação de uma raça violentamente degradada.

*
XXIV INTRODUCÇÂO

3. — Tradições das Raças selvagens do B r a z i l

Todos os que têm colligido tradições populares co-


nhecem o phenomeno psychologico de desconfiança o u
de medo com que os depositários d'esses thesouros poé-
ticos respondem ás interrogações que lhes fazem; r e -
ceiam descobrir essas reminiscencias queridas, julgam-se
expostos ao l u d i b r i o dos indiíferentes, tem medo ás ve-
zes que as suas palavras se t o r n e m sortilegios com que
os persigam. Isto que observámos d u r a n t e a colleccio-
nação do Cancioneiro e Romanceiro geral portuguez e
dos Contos tradicionaes, repete-se com mais intensidade
entre as raças selvagens. O d r . Couto de Magalhães, n o
seu l i v r o O Selvagem do Brazil, onde colligiu as princi-
paes tradições dos T u p i e Guarani, accentua este i m p o r -
tante facto: «Todo aquelle que t e m lidado com homens
selvagens, terá conhecido por própria experiência o quão
pouco c o m m u n i c a t i v o s são elles e m tudo q u a n t o diz res-
peito ás suas idéas religiosas, suas tradições e suas len-
das domesticas. Elles teem medo que o branco, o cari-
na, se r i a d'elles...» Para vencer esta repugnância
1

do povo a revelar a sua tradição, a p r i m e i r a condição é


mostrarmo-nos conhecedor d'ella, repetindo fragmentos
que e s t i m u l e m a imaginação, e assim l h e recordem os
trechos conservados inconscientemente na memória, e
que familiarmente se fazem recitar de u m modo espon-
tâneo. Jacob G r i m m , o grande collector das tradições
populares da Âllemanha, era também o h o m e m que me-
l h o r conhecia o fundo poético e nacional das raças ger-
mânicas; Cástren, o que mais conheceu os dialectos das
t r i b u s mongolicas, f o i p o r isso q u e m m e l h o r soube i n -
t e r r o g a r essas tribus e colligir-lhes as suas tradições
* 1
O Selvagem, pag. 746.
SOBRE A N O V E L L I S r i G A B R A Z I L E I R A XXV

dispersas. Com as tradições das rapas selvagens do Bra-


zil deu-se a mesma circumslancia; o dr. Couto de Ma-
galhães, além do seu caracter audacioso e emprehende-
dor conhece os differentes dialectos da Lingua geral, e
por este meio entrou na familiaridade dos que aciden-
talmente se destacaram da vida selvagem para o con-
tado da civilisapão brazileira. Com o conhecimento da
fôrma amazônica do tupi é que o dr. Couto de Maga-
lhães penetrou depois na investigação das lendas, con-
frontando-as com outras que ouvira em Matto Grosso.
Em alguns logares do seu livro declara a fonte d'onde
colheu as tradições: «Fui auxiliado no trabalho das len-
das por um soldado do 2 . ° regimento de artilheria, que
quasi não fallava o portuguez. » A guerra do Paraguay
1

não deixou de ter influencia no estudo das raças selva-


gens do Brazil; diz o dr. Couto de Magalhães, que du-
rante essa guerra é que ouviu pela primeira vez, a bor-
do de um vapor no rio Paraguay, um marinheiro contar
as Historias do Jabuti, apenas com alguns aphorismos ou
anexins em lingua tupi. Viajando depois para a foz do
Amazonas, parou no Afuá, ancoradouro de muitos bar-
cos que navegam para o Ampá e Guana; ali ouviu de
novo os Contos ou Historias do Jabuti. Mais tarde vol-
tando ao Pará, colligiu das versões oraes de um mari-
nheiro indio mundurucú, algumas das lendas que lhe
serviram de chrestomathia para o seu livro. 2

Alguns d'estes contos são populares também nas


províncias do interior do Brazil: a Existem aqui nos cor-
pos da corte, escreve o dr. Couto de Magalhães, nada

1
Op. cit., pag. 138.
2
Op. cit., pag. 148-150. — Estas lendas e fábulas foram
traduzidas para francez com o titulo: Contes indiens du Brésil,
recuellis par M. le géneral Couto de Magalhães, et traduits par
Emile Allain. Rio de Janeiro. Faro e Lino éditeurs, rua do Ou-
vidor n.° 74. 1883.
XXVI INTRODUCÇÂO

menos do que quarenta a cincoenta praças q u e f a l i a m o


t u p i , e como são indígenas, todos sabem de cór a l g u -
mas lendas que figuram n'esta collecção.» Essas lendas
b e m mereciam ser conhecidas, e pela fôrma q u e o dr.
Couto de Magalhães as i n t r o d u z i u no seu l i v r o debalde
se suspeitará que alli esteja archivado u m tão i m p o r t a n -
te documento tradicional; a fôrma de traducção i n t e r l i -
near, sacrificando a construoção portugueza á i n t e l l i g e n -
cia da construcção da phrase t u p i , é necessária para o
trabalho grammatical, mas prejudica a l g u m tanto a i m -
portância ethnologica du m o n u m e n t o tradicional. Só tor-
nando bem conhecidas as tradições das raças selvagens
do Brazil é q u e se podem fazer comparações com as de
outros povos selvagens, v i n d o assim a deduzir-se rela-
ções que talvez esclareçam problemas instantes da an-
thropologia. Por exemplo, a fábula do Jabuti, q u e vence
o Veado na carreira, foi t a m b é m achada na África e e m
Sião, e já as-dm a interpretação siderica d'essas Fábulas
não será u m esforço de critica subtil e sem realidade.
T a m b é m na collecção de Fábulas africanas, publicadas
pelo Dr. Bleek, c o m o titulo de Reinche Fuchs in Áfri-
ca, encontra-se u m conto dos indígenas de Madagascar
(pag. x x v n ) e u m conto dos Dama, ramo da raça cafre,
com grandes analogias com o conto popular portuguez
do Rabo de gato, dos Contos populares porluguezes, n.°
x, e na tradição popular da Sicilia e de Otranto. Á me- 1

dida q u e estes resultados comparativos se forem alar-


gando, se chegará a determinar que u m grande n u m e r o
de expressões mythicas da nossa l i n g u a g e m , e de con-
tos populares representam u m subsolo selvagem sobre
que se formaram as nossas civilisações, d a mesma fôr-
m a que os ethnologistas e x p l i c a m hoje já a persistência
das guerras
Contose ainda os crimes
populares i n d i v i d u apag.
portuguezes, e s do
x. assassina-
to e do latrocínio como fôrmas de recorrência dos habi-
SOBRE A NOVELLISTICA BRAZILEIRA XXVII

tos selvagens primitivos. Pelo desenvolvimento d'esta


ordem de estudos, que já dotaram a philologia com o ca-
; pitulo novo da linguagem generativa, e a etimologia
com o problema das origens da família, é que se ha de
:
fundar a Sciencia das Civilisacões proto-historicas, sobre
: que se basearam as civilisacões superiores no seu pe-
ríodo do empirismo espontâneo. Uma d'estas civilisa-
• ções proto-historicas é a das raças Scytho-mongolicas,
nome que talvez seja preferível para exprimir as raças
; turanianas, da mesma fôrma que os anthropologistas
propõem o nome de Syro-Arabes em vez de Semitas, e
- Indo-Europeus em vez de Árias. O presentimento d'es-
' tas civiiisações proto-historicas, que se distinguiram por
um grande saber de industria metallurgica e por conhe-
• - cimentos astronômicos, como entre os accádios e kuschi-
tas, é que leva hoje alguns espíritos suggestivos a pro-
1
curarem interpretar os mythos zoológicos das raças sel-
> vagens como expressões de factos sideraes observados
!

- pela condição da sua situação geographica. O professor


ã
Hartt, que também colligiu algumas lendas brazilicas no
Tapajós, considera-as como velhas tradições astronomi-
• ••< cas da raça tupi; no opusculo The Amazoniam Tortoise
»< • mylhes vem os elementos da sua interpretação siderica,
1

- que o dr. Couto de Magalhães applica ás fábulas do Ja-


v buti. Transcreveremos as próprias palavras do iliustre
iff ethnologo brazileiro em que segue o ponto de vista do
tf prof. Carlos Frederico Hartt: «É assim que a primeira
lenda explicada pelo systema solar, parece-me offerecer
i: no Jabuti o symbolo do Sol, e na Anta o symbolo do
planeta Venus.
«Na primeira parte do mytho, o Jabuti é enterrado
.M- pela Anta. A explicação parece natural, desde que se
Í sabe que uma certa quadra do anno Venus apparece jus-
tamente quando o sol se esconde no occidente.
«Chegado o tempo do inverno o Jabuti sâe, e, no
encalso da Anta, vai successivamente encontrando-se
XXVIII INTRODUCÇÂO

cora diversos rastos, mas chega s e m p r e depois q u e a


A n t a t e m passado. Assim acontece c o m o Sol e Venus,
que q u a n d o apparece d e m a n h ã , apenas o s o l f u l g u r a
e l l a desapparece.
« 0 J a b u t i mata f i n a l m e n t e a Anta. Isto é, p e l o f a c t o
de estar a o r b i t a do planeta e n t r e nós e o sol, ha u m a
q u a d r a no anno e m q u e e l l a não apparece mais de ma-
d r u g a d a para só apparecer de tarde. O p r i m e i r o e n t e r r o
do Jabuti é a p r i m e i r a conjuncção, a q u e l l a e m q u e o s o l
se s ó m e n o o c c i d e n t e p a r a d e i x a r Venus" l u z i r . A m o r t e
da Anta pelo J a b u t i , é a segunda conjuncção, a q u e l l a era
que Venus desapparece p a r a d e i x a r l u z i r o sol.» Estas
interpretações astronômicas p o d e r i a m considerar-se s i m -
p l e s m e n t e engenhosas o u g r a t u i t a s , se o d r . Couto d e
Magalhães, q u e andou m u i t o s annos e n t r e os s e l v a g e n s
do Brazil, não tivesse notado os seus c o n h e c i m e n t o s d e
p h e n o m e n o s astronômicos. 0 contacto com u m a c i v i l i s a -
ção c o m p l e t a c o m o a Quichua, q u e possuía u m a theolo-
g i a baseada no c u l t o solar, t o r n a plausível esta i n t e r -
pretação, c o n s i d e r a n d o esses conhecimentos t r a d i c i o n a e s
do s e l v a g e m b r a z i l e i r o c o m o vestígios de u m a c i v i l i s a -
ção_ i n t e r r o m p i d a . Vamos tentar o esboço d'essa c i v i l i -
sação r u d i m e n t a r .
As raças da A m e r i c a do s u l f o r a m classificadas p o r
d ' 0 r b i g n y e m tres grandes troncos, Ando-Peruviana,
Pampeana e Brazilio-Guaraniana; esta divisão a d m i t t i -
da p o r Prichard, condiz c o m u m certo n u m e r o de diffe-
renciações, taes c o m o : a dolichocephalia dos p e r u v i a n o s
característica das raças da A m e r i c a s e p t e n t r i o n a l , o des-
e n v o l v i m e n t o da g r a n d e civilisação dos Quichuas o u I n -
cas sobre as m i n a s de u m a civilisação mais a n t i g a , p o r
v e n t u r a a u t o c h t o n e , dos Aymáras, r e s u l t a n d o d'este lon-
go conflicto a dispersão da raça p a m p e a n a e m n u m e r o -
sos g r u p o s ou hordas, q u e , o u não c h e g a r a m a a s s i m i -
l a r os progressos r e a l i s a d o s pelos Incas, permanecendo
n o estado s e l v a g e m , o u , se i n i c i a r a m essa c u l t u r a , r e -
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A XXIX

< gressaram poreíTeito das iuctas á selvageria primitiva. 1

% A fragmentação das raças da America do sul é um dos


>'í phenomenos que mais impressiona o anthropologista,
bem como a coexistência de civilisações completas ante-
riores aos tempos históricos e estados selvagens que pa-
recem uma regressão á animalidade primitiva. Na raça
) Brazilio-guaraniana, a fácil tendência para a sociabilida-
r

^ de revela-nos que entraram nas primeiras vias de um


"ü! progresso que foi interrompido por circumstancias espe-
•5Í!Í ciaes. De facto as raças do sul caracterisam-se também
íi pela sua brachycephalia, pela obliqüidade dos olhos pe-
culiar dos mongoíios, tendo também numerosas analo-
gias ethnicas com as raças nômadas da Alta Asia. No
wirjg seu grande trabalho Crania americana, o dr. Morton
wraa traz algumas indicações bem características para separa-
rem as raças indígenas da America do norte das da Ame-
i rica do sul; depois de descrever os craneos oblongos
(clolichocephalos) do norte, diz: «As cabeças dos Caraí-
bas, tanto das Antilhas como da terra firme, são também
naturalmente arredondadas (brachycephalas) e, segundo
as observações que pudemos fazer, este caracter persis-
te nas raças mais meridionaes ainda, nas nações situa-
das a leste dos Andes... » Prichard não viu o alcance
2

d'esta diíTerenciação cephalica estabelecida por Morton;


nos modernos trabalhos anthropologicos de Paul Broca,
:i acha-se uma distincção egual entre os povos bascos hes-
4 panhoes e francezes, o que parece fundamentar a exis-
tência de dois typos primitivos: o basco hespanhol é do-
.;. lichocephalo, e o basco francez é brachycephalo. Não
. j admira pois que nas conquistas hespanholas da America
se estabelecesse uma fácil fusão do hespanhol e regres-
1
Prichard, com o seu lamentável biblicismo obscurece es-
ta consideração, dizendo do indígena americano: «Não é o ho-
0' mem primitivo, mas o homem degenerado, que nós vemos n'el-
••Â le. » Hist. naturelle de 1'Homme, li, 266.
2
Apud Prichard, Hist. nat. de FHomme, n, 85.
XXX INTRODUCÇÂO

são ao typo indigena. Na America do sul a brachyce-


phalia também leva á comprehensão de analogias exce-
pcionaes já observadas pelos anthropologistas; diz Mor-
ton : « Entre os índios da America do norte é rarissimo
vér pronunciar-se nitidamente a obliqüidade dos olhos,
que é tão geral nos Malaios e Mongolios; mas Spix e
Martius observaram-n'a em algumas tribus brazileiras, e
ílumboldt nas do Orenoco, etc. » 1

Fallando da côr amarellada, estatura mediana, fronte


deprimida, olhos muitas vezes oblíquos, sempre elevados
no angulo exterior, das raças brazilio-guaranianas (Cari-
bes, Tupi e Guarani), accrescenta Prichard: «Estas fei-
ções que pertencem ás grandes raças nômadas da Ame-
rica do sul, aproximam-se, como se vê, bastante das ra-
ças nômadas da Alta Asia.» Também Spix e Martius
2

acharam nos Caribes uma similhança palpável com os


Chmezes; e fallando das idéas religiosas dos america-
3

nos, acrescenta Prichard: «devemos fazer notar, que ha


sobre todos estes pontos uma grande analogia entre as
opiniões dos Americanos e as dos Asiáticos do norte. » *
Por tudo isto se pôde inferir, que foi das raças nôma-
das da Alta Asia que se destacaram essas migrações que
entraram na Europa antes dos Indo europeus, e que se
conhecem pelo typo brachycephalo do basco francez: a
coincidência da dolichocephalia do basco hespanhol com
o berbére como notou Broca, revela-nos também o ca-
minho por onde o turaniano da Asia entrou no sul da
Europa vindo através da África, onde uma parte estacio-
nou. E por isso que se torna legitima a comparação das
Unçoes provençaes com os cantos accádicos e chinezes, 5

bem como com o phenomeno da persistência da Modi-


1
Apud Prichard. Hist. nat. de 1'Homme, pag. 87.
2
Ibid., n, pag. 223. B

3
Ibid., loc. cit.
4
Ibid., n, 271.
5
No prólogo do Cancioneiro da Vaticana, cap. vi.
SOBRE A N O V E L L I S T I C A B R A Z I L E I R A XXXI

i * n h a brazileira, e o m e s m o processo l e v a a grandes re-


1

sultados a p r o x i m a n d o o R o m a n c e i r o p e n i n s u l a r o u as
Aravias dos cantos históricos ou Yarauis do Perú. 2

D'estas rápidas considerações a n t h r o p o l o g i c a s e e l h n i -


°\ cas somos l e v a d o s a tentar estabelecer u m a n o v a d i v i -
if são e n t r e a Pre-historia e a Historia. Os anthropologistas
: fundaram- u m a divisão i m p o r t a n t e d a Historia, a p a r t i r
desde o t y p o h u m a n o t r o g l o d i t a até ás civilisacões r u d i -
••'«íi mentares, i s t o é, desde o d e s e n v o l v i m e n t o das c o n d i -
k ções de sociabilidade, especialmente d a l i n g u a g e m a r t i -
culada. Depois d'este estado, a que se c h a m a Pre-Historia,
::• deve estabelecer-se c o m o intermédio para a Historia pro-
p r i a m e n t e t a l , u m a phase de connexão e v o l u t i v a , já pre-
; sentida p o r Littré, a q u e c h a m a r e m o s Proto-Historia: de-
<i v e c o m p r e h e n d e r as civilisacões r u d i m e n t a r e s Accàdica,
Kuschita, Mexicana, Peruviana, Etrusca e Chineza. Se a
Pre-Historia f o i fundada pelos anthropologistas, c o m p e l e
aos E t h n o l o g i s t a s o d e s e n v o l v e r a Proto-Historia pelo es-
im tudo c o m p a r a t i v o d'essas civilisacões i m p r o g r e s s i v a s ,
' produzidas p r i n c i p a l m e n t e nas raças turanianas o u mais
p r o p r i a m e n t e Scytho-Mongolicas. Este estudo só pôde ser
fundado pela contribuição da Mythographia, da L i n g u i s -
• ' tica, da E t h n o g r a p h i a , da Chronologia, das L i t l e r a t u r a s
tradicionaes, das Artes ornamentaes e technicas, da Psy-
c h o l o g i a c o m p a r a t i v a e da Cosmographia; n'este v a s t o
. c o m p l e x o de sciencias concretas e subsidiárias da Proto-
,h Hütoria, as superstições populares, as fábulas ou bestia-
r i o s e os contos m y t h i c o s são mais fecundos e m r e s u l -
; tados do q u e as comparações a n t h r o p o l o g i c a s . Vamos
, ' t e n t a r a indicação dos contornos d a Proto-Historia, e m
1
Nas Questões de Litteratura e Arte portugueza, pag. 61
a 80.
2
Nas Epopêas da Raça mosarabe, pag. 127 a 137; e Theo-
ria da Historia da Litteratura portugueza, pag. 24.
XXXII INTRODUCÇÂO

q u e d e v e m s e r e s t u d a d a s a s tradições d a s raças do s u l
da A m e r i c a .
E n t r e a s civilisacões isoladas, q u e p o r e s t a condição
material se tornaram improgressivas, occupam um logar
importantíssimo depois do E g y p t o e d a C h i n a , a s d u a s
civilisacões do México e Perú. É e s t e o s e u l o g a r n a h i s -
toria d a h u m a n i d a d e ; t a l v e z tão a n t i g a s c o m o a do Egy-
pto, m a s a i n d a m a i s i s o l a d a s pelo território, p e l a p u r e z a
da raça e p o r falta d e e s t i m u l o d e outros p o v o s , e s t a s de-
v e m s e r e s t u d a d a s a n t e s d o a p p a r e c i m e n t o d a s raças ári-
cas, e s o b u m critério c o m p a r a t i v o , c o m o o vestígio m a i s
c o m p l e t o d a c a p a c i d a d e s o c i a l do e l e m e n t o t u r a n i a n o . 0
c o n h e c i m e n t o d a C h i n a data n a E u r o p a da época d a i n -
vasão d o s T a r l a r o s ( 1 2 4 0 ) e e s p e c i a l m e n t e depois d a l e i -
t u r a d a s Viagens d e Marco P o l o ; a s m a r a v i l h a s c o n t a d a s
pelo a t r e v i d o v i a j a n t e italiano e x a l t a r a m a imaginação
de Colombo, e este ousado n a v e g a d o r p e n s a n d o que des-
c o b r i a o C a t h a y o u a C h i n a , a b o r d a v a a o c o n t i n e n t e des-
c o n h e c i d o d a A m e r i c a , onde e x i s t i a m o u t r a s civilisações
e g u a l m e n t e i s o l a d a s e c o m a n a l o g i a s profundas c o m a
chineza. Esta circumstancia casual que conduziu Colom-
bo á descoberta da America, explica-nos t a m b é m como
o continente americano chegou a s e r habitado por u m a
raça c i v i l i s a d o r a , q u e n a s s u a s expedições m a r i t i m a s
abordou inconscientemente á America pela corrente do
G u l f - S t r e a m . E s s a raça p r i m i t i v a é t u r a n i a n a , e p o r i s s o
os grãos do s e u p r o g r e s s o , m y t h o s , l i t t e r a t u r a e arfe,
t e m p r o f u n d a s a n a l o g i a s c o m a s creações do gênio c h i -
nez.
A s m u i t a s relações e t h n i c a s e n t r e o México e a ín-
dia, n o s m y t h o s , n a s tradições p o p u l a r e s , n a s fôrmas
s y m b o l i c a s , n ã o e s c a p a r a m a sábios c o m o W i l s o n , T y l o r
e A l e x a n d r e d e H u m b o l d t ; o m o t i v o d'essas relações f o i
d e b a l d e p r o c u r a d o e m cornmunicações históricas i m m e -
diatas c o m a s raças áricas, s u p p o n d o já a h y p o t h e s e d e
u m a migração d o n o r d e s t e d a A s i a p a r a o noroéste d a
SOBRE A NOVELLISTICA BRAZILEIRA XXXIII

America, já a de uma communicação entre os dois con-


t i n e n t e s p o r u m a ponte d e ilhéus n o m e i o do estreito d e
B e h r i n g . A descoberta dos m o n u m e n t o s c u n e i f o r m e s , e a
l e i t u r a d o s l i v r o s accádicos, r e s t a b e l e c e n d o a civilisação
turaniana, v e i u derramar u m a l u z i m m e n s a sobre a
m a r c h a e v o l u t i v a d a h u m a n i d a d e . O n d e a s civilisações
t u r a n i a n a s foram a b s o r v i d a s , c o m o no Egypto, Chaldêa
e A s s y r i a p e l a s raças k u s c h i t o - s e m i t a s , o u n a índia p e l a
raça árica f r u c t i f l c a r a m ; no México e s s a m e s m a c i v i l i s a -
ção tornou-se i m p r o g r e s s i v a p o r falta de e s t i m u l o social.
C o m o r a m o t u r a n i a n o , a civilisação do México torna-se
u m facto c l a r o p e l a c o m p a r a ç ã o c o m a s manifestações
análogas dos outros r a m o s d a m e s m a raça; a s u a theo-
logia é tão d e s e n v o l v i d a c o m o n o Egypto, os s e u s my-
thos p r o d u z e m epopêas c o m o a d e Izdubar e m Babylo-
nia, ou a do Kalevala n a Finlândia; o s e u theatro s a e
dos ritos l i t u r g i c o s , c o m o n a índia, e t a m b é m a socieda-
de é s u b m e t t i d a a u m a a u c t o r i d a d e t h e o c r a t i c a . Os cos-
t u m e s m e x i c a n o s a i n d a a p r e s e n t a m a n a l o g i a s c o m os de
raças t u r a n i a n a s e x i s t e n t e s ; a superstição d e n ã o bolir
no l u m e c o m u m a faca, é t u r a n i a n a , e p o r isso é com-
m u m aos t a r t a r o s , aos índios S i n x d a A m e r i c a do Norte,
e a o s h a b i t a n t e s da e x t r e m i d a d e n o r d e s t e d a A s i a e n t r e
os h a b i t a n t e s do K a m s c h a t c k a ; o m e s m o rito a p p a r e c e
1

referido n'uma m á x i m a p y t h a g o r i c a « N ã o b o l i r no l u m e
c o m u m a faca. » A reconstituição d'essa g r a n d e c i v i l i s a -
ção Proto-Historica v e m e x p l i c a r a u n i d a d e d e u m certo
n u m e r o d e tradições e n t r e p o v o s q u e n ã o t i v e r a m r e l a -
ções e n t r e s i n a s épocas históricas. A civilisação do Mé-
x i c o t e m a importância de n o s m o s t r a r e m u m grande
n u m e r o de instituições o gênio c r e a d o r d a raça t u r a n i a -
n a ; e ao m e s m o t e m p o c o m o a p r e c o c i d a d e d a s u a c a -
pacidadeMaxi nMüller,v e n t i v Essais
a o c o nded uMythologie comp-, pag. e 321.
1
z i u á esterilidade decadên-
cia pelo s e u remotíssimo i s o l a m e n t o , q u e o s u b t r a h i a a
XXXIV INTRODUCÇÂO

toda a pressão social. 0 mesmo facto se repete Da vida f'


histórica da China, talvez o mais vetusto dos ramos tu-
ranianos, que estacionou no familismo pelo seu isola-f
mento na extrema Asia.
No seu pequeno estudo sobre os Usos e Costumes, •
Max-Müller cita este, que se conserva ainda na ilha der
S. Miguel: « Ha, nas tradições populares da America cen> |
trai, a historia de dois irmãos, que na occasião de par- I
tirem para uma perigosa viagem no paiz de Xibalba, o n - 1
de seu pae morrera, plantam cada qual um canavial no 1

meio da casa de sua avó, para que ella possa saber, ;


vendo as canas florirem ou seccarem-se, se os seus n e - 1
tos são vivos ou mortos. A mpsma concepção se encon-1
tra exactamente nos contos de Grimm. Quando os dois !

filhos de ouro querem ir ver o mundo e deixarem seu


pae, este, com tristeza lhes pergunta como poderá sa- ^ l

ber novas d'elles; responderam : — Nós vos deixaremos ;

dois lirios de ouro. Por meio d'elles vós podereis ver


1 1

como passamos. Se estiverem viçosos, é porque n ó a 1

passamos bem; se emmurchecerem, é porque estamos h

doentes; se eahirem ao chão, é porque somos mortos.


— Grimm indica a mesma idéa nos contos indianos. Ora
tal idéa é bastante exiraordinaria, e muito mais ainda o
encontral-a simultaneamente na índia, na Germania e na [

America central. Se ella se encontrasse somente nos con- \


tos indianos e germânicos, poderíamos consideral-a como 1

uma antiga propriedade aryana; mas quando a encontra- :t

mos na America central, só nos restam dois meios de 11

sahir da diíficuldade: ou é preciso admittir que houve,


u'uma época recente troca de idéas entre os colonos eu- I
ropeus e os novelleiros indígenas da America. . . ou en- '
tão se não existe algum elemento intelligivel e verda- I
deiramente humano n'esta supposta sympathia entre a
vida das flores e a dos homens.» O facto da existen-
1

1
Max-Müller. Essais de Mythologie compavêe. pag. 318.
SOBRE A NOVELLISTICA BRAZILEIRA XXXV

cia simultânea na índia e no México de u m a t a l tradição,


conduz a d e t e r m i n a r a única filiação histórica possível e
confirmada hoje na sciencia. Antes da civilisação aryana
existiu n a Asia a civilisação turaniana, q u e l h e s e r v i u
de base d e d e s e n v o l v i m e n t o ; nos costumes do México
conservam-se t a m b é m m u i t a s fôrmas c o m m u n s ás raças
tartaras e basca, que são de o r i g e m m o n g o l o i d e ; além
d'isso na Europa, os elementos basco, t u r c o , m a g y a r e
finlandez são os restos d a p r i m i t i v a civilisação Proto-
Uistonca t u r a n i a n a . O c o s t u m e s u p r a c i t a d o é u m a r e -
viveseeneia de crenças de u m a raça q u e f o i r e p e l l i d a da
E u r o p a c e n t r a l pelas migrações indo-europêas, r e v i v e s -
cencia m o t i v a d a pela tradição de o r i g e m t u r a n i a n a t r a -
zida da Asia central. Max-Müller e x p l i c a v a estas analo-
gias p o r m o t i v o s s u b j e c t i v o s do s e n t i m e n t o h u m a n o « e
que não é necessário a d m i t t i r u m a relação histórica e n -
t r e os aborígenes do G u a t e m a l a e os A r y a n o s da índia
e da Germania.» Diante da descoberta dos m o n u m e n -
1

tos accádicos e da reconstrucção da civilisação t u r a n i a -


na, a verdade está do lado da realidade histórica.
Cremos t e r até a q u i p r o v a d o o grão e condição de
s u p e r i o r i d a d e das raças selvagens do Brazil, pelas suas
relações anthropologicas com a g r a n d e raça a m a r e l l a . A
mestiçagem com este e l e m e n t o indígena deu n a nacio-
nalidade brazileira populações activas e i n d i v i d u a l i d a d e s
dotadas de u m grande sentimento artístico. A raça ama-
r e l l a , c o m o a c a r a c t e r i s a m os a n t h r o p o l o g i s t a s é essen-
c i a l m e n t e a c t i v a . A cooperação das tres g r a n d e s raças
humanas, -a árica pela capacidade especulativa, a n e g r a
pela sua superioridade affectiva, e a indígena pela t e n -
dência activa, unificando-se n o facto social da nacio-
2

nalidadeIbid.,
2
b r a z pag.
i l e i r320.
a , fazem-nos a u g u r a r q u a l será a e x t r a -
1
Com te, Système de Politique, t . II, pag. 462.
XXXVI INTRODUCÇÂO

ordinária grandeza da Civilisação sul-americana, de


q u e o Brazil terá a h e g e m o n i a . Ás tradições a q u i r e u -
nidas r e p r e s e n t a m o q u e os r o m a n o s d e s i g n a v a m c o m o
indole d'essa assimilação orgânica, q u e s e tornará con-
sciente.

THEOPHILO BRAGA.
CONTOS POPULARES

IDO B^JLZIILJ

Secção primeira

CONTOS DE PROVENIENCIA EUROPÊA


1

O B i c h o Mlanjaléo
(Sergipe)

Uma vez existia u m velho casado que tinha tres fi-


lhas muito bonitas; o velho era muito pobre e v i v i a de
'azer gamellas para vender. Quando foi u m dia chegou
i sua porta u m moço m u i t o formoso, montado n'um
>elio cavallo e lhe faltou para comprar u m a de suas fi-
lhas.
0 velho ficou muito magoado, e disse que, por ser
Mibre, não havia de vender sua filha. O moço disse-
he que se não lh'a vendesse o mataria; o velho intimi-
lado vendeu-lhe a moça e recebeu m u i t o dinheiro.
Retirando-se o cavalleiro, o pai da familia não quiz
nais trabalhar nas gamellas, por j u l g a r não o precisa-
r
a mais de então e m diante; mas a mulher instou com
dle para que não largasse o seu trabalho de costume,1
5 elle obedecia.
Quando foi na tarde seguinte, apresentou-se u m ou-
2 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

tro moço, ainda mais bonito, montado n'um cavallo ain-


da mais b e m apparelhado, e disse ao v e l h o q u e queria
comprar-lhe u m a de suas filhas. O pai ficou m u i t o i n -
commodado; contou-lhe o q u e l h e tinha acontecido n o
d i a antecedente, e recusou-se ao negocio. O moço o
ameaçou também de morte, e o velho cedeu.
Se o p r i m e i r o deu m u i t o dinheiro, este ainda deu
mais e foi-se embora.
O v e l h o de novo não quiz c o n t i n u a r a fazer as ga-
mellas e a mulher o aconselhou até elle continuar. Pela
t a r d e seguinte; appareceu o u t r o cavalleiro ainda mais
bonito, e melhor montado, e, pela mesma fôrma, carre-
gou-lhe a filha mais moça, deixando ainda mais d i -
nheiro.
A família cá ficou m u i t o r i c a ; depois appareceu a
velha pejada e deu á luz u m filho q u e f o i criado c o m
m u i t o l u x o e mimo. Quando chegou o tempo do m e n i n o
i r para a escola, n'um d i a b r i g o u c o m u m companhei-
ro, e este l h e disse: « A h ! t u cuidas q u e t e u pai f o i
sempre r i c o ! . . . Elle hoje está assim porque vendeu
tuas irmãs!...» O rapazinho ficou m u i t o pensativo.e
Dão disse nada em casa; mas quando f o i moço lá n'um
dia se armou de u m alfange e f o i ao pai e á mãi e lhes
disse que l h e contassem a historia de suas tres irmãs,
senão os matava. 0 pai l h e teve m ã o , e contou o q u e
se tinha passado antes d'elle nascer. O m o ç o então pe-
diu que q u e r i a sahir pelo m u n d o para encontrar suas
irmãs, e p a r t i u . Chegando e m u m caminho, v i u n'uma
casa tres irmãos b r i g a n d o por causa de uma bota, uma
carapuça e u m a chave. Elle c h e g o u e p e r g u n t o u o q u e
era a q u i l l o , e para que prestavam aquellas cousas.
Os tres irmãos responderam que — aquella bota se
dizia: a Bota, me bota em tal parte!» e a bota b o t a v a ;
â carapuça se d i z i a : a Esconde-me, carapuça!» e ella
escondia a pessoa que ninguém a v i s s e ; e a chave
abria qualquer porta.
ELEMENTO- E U R O P E U 3
O moco offereceu bastante dinheiro pelos objectos, os
irmãos aceitaram, e elle partiu. Quando se encobriu da
casa, disse: «Bota, m e bota na casa de m i n h a irmã p r i -
meira. » Quando abriu os olhos estava lá. A casa era
u m palácio m u i t o ornado e rico, e o moço mandou pe-
d i r licença para entrar e fallar com a irmã, que estava
feita rainha. Ella não queria apparecer, porque dizia
que nunca tinha tido irmão. Afinal, depois de m u i t a
instância, deixou o estrangeiro e n t r a r ; elle contou toda
a sua historia, a irmã o acreditou, e o tratou m u i t o
bem.
Perguntou-lhe como podia ter chegado alli áquellas
brenhas, e o irmão disse-lhe o poder da bota. Pela tar-
de, a rainha se poz a chorar e o irmão lhe indagou da
mi. razão, ao que ella respondeu — que seu marido era o
rei dos peixes, e, quando v i n h a jantar, era muito zan-
gado, em termos de acabar com tudo e não queria que
ninguém fosse ter ao seu palácio... 0 moço disse-lhe
que por isso não se incommodasse, que tinha com que
se esconder e não ser visto, e era a carapuça. Pela
tarde, v e i u o rei dos peixes, acompanhado de uma por-
ção de outros, que o deixaram na porta do palácio e se
r e t i r a r a m . Chegou o r e i muito aborrecido, dando pulos
e pancadas, dizendo: «Aqui m e fede a sangue real,
aqui m e fede a sangue real!...» do que a rainha o
dissuadia; até que elle tomou o banho e se desencantou
n'um bello moço.
Seguia-se o jantar, no qual a rainha perguntou-lhe:
« Se aqui viesse u m irmão meu, cuDhado seu, você o
que fazia?» — «Tratava e venerava como a você mes-
m a ; e si está ahi appareça.»
Foi a resposta do rei. 0 moço appareceu, e foi mui-
to considerado. Depois de m u i t a conversação, e m que
contou sua viagem, f o i i n s t a d o para ficar alli, morando
com a irmã, ao que disse que não, porque ainda lhe
restavam duas irmãs a visitar.
*
4 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

0 rei lhe indagou que prestimo tinha aquella bota,


e quando soube do que valia disse: « Se eu a apanhas-
se ia vér a rainha de Castella.» O moço, não queren-
do ficar, despediu-se, e, no acto da sahida, o cunhado
lhe deu uma escama, e disse-lhe: « Quando vossê esti-
ver em algum perigo, pegue n'esta escama, e diga: «Va-
lha-me o rei dos peixes. » 0 moço sahiu, e, quando se
encobriu do palácio, disse: «Bota, me bota em casa de
minha irmã s e g u n d a ; » e, quando abriu os olhos, lá
estava. Era um palácio ainda mais bonito e rico do que
o outro. Com alguma dificuldade da parte da irmã, en-
trou e foi recebido muito bem. Depois de muita con-
versa, a sua irmã do meio se poz a chorar, dizendo
que era « por estar elle alli, e, sendo seu marido rei
dos carneiros, quando vinha jantar, era dando muitas
marradas, em termos de matar tudo. »
O irmão apaziguou-a, dizendo que tinha onde se es-
conder. Com poucas, chegou uma porção de carneiros
com um carneirão muito alvo e bello na frente; este
entrou e os outros voltaram. (Segue-se uma scena em
tudo semelhante á que se passou em casa do Rei dos
peixes).
Na despedida, o rei dos carneiros deu ao cunhado
uma lanzinha, dizendo: « Quando estiver em perigo,
diga : Valha-me o rei dos carneiros. » Também disse,
depois de saber a virtude da bota: « Se eu pegasse esta
bota, ia ver a rainha de Castella. »
0 moço foi reparando n'isto, e formou logo comsi-
go o plano de ir vêl-a. Sahiu, e pela mesma fôrma, foi
a casa de sua irmã mais moça. Era um palácio ainda
mais bonito e rico do que os outros dous. {Seguem-se
as mesmas scenas que nas outras duas visitas). Era o
palácio do rei dos pombos, e este, na despedida, deu
ao cunhado uma penna, com as palavras: « Quando se I
vir n'algum perigo, diga: «Valha-me o rei dos pombos. » j
Na despedida, sabendo o rei do prestimo da bota, mos-
ELEMENTO EUROPEU 5

trou também desejos de i r visitar a rainha de Cas-


tella.
Logo que o moço se viu longe de palácio, disse:
« Bota, bota-me agora na terra da rainha de Castella.»
Assim foi. Chegado lá, elle indagou que « era uma prin-
ceza que o pai queria casar, e que era tão bonita que nin-
guém passava pela frente do palácio que não olhasse
ogo para cima para vêl-a na janella; mas a princeza
tinha dito ao rei que só casava com o homem que
passasse por ella sem levantar a vista. »
O estrangeiro foi passar, e atravessou toda a dis-
tancia sem olhar, e a princeza-casou com elle.
Depois de casados, ella indagou pela significação
d'aquelles objectos que seu marido sempre trazia com-
sigo; elle tudo lhe contou, e a princeza prestou muita
attencão ao prestigio da chave.
O rei, seu pai, tinha em palácio um quarto que
nunca se abria, e n'este quarto, onde era prohibido a
todos entrar, estava, desde muito tempo, trancado um
bicho Manjaléo, muito feroz, que sempre o rei mandava
matar e sempre revivia. A moça tinha muita curiosida-
de de o vêr, e, aproveitando a sahida do pai e do
marido para uma caçada, pegou na chave encantada e
abriu o quarto. 0 bicho pulou de dentro, dizendo: «A
\i mesmo ê quem queria !...)-) e fugiu com ella para as
brenhas.
Quando voltaram os caçadores, deram por falta da
>rinceza, e ficaram muito afflictos. 0 rei foi ao quarto
lo Manjaléo, e achou-o aberto e vazio, e o novo prin-
;ipe conheceu a sua chave... Ao depois valeu-se de
ma bota e foi ter aonde estava sua mulher. Esta quan-
lo o viu, estaüdo ausente o Manjaléo, ficou muito ale-
gre, e quiz ir-se embora com elle. Mas o marido o não
consentiu, dizendo que ella ficasse ainda para indagar
lo monstro onde estava a sua vida, para assim dar-se
;abo d'elle. 0 príncipe foi-se embora. Quando o Manja-
6 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

léo voltou conheceu que alli tinha estado bicho homem;


a moca o dissuadiu, e quando elle se acalmou, ella lhe
perguntou onde estava a sua vida. O monstro zangou-se
muito, e disse: « Ah! tu queres saber de minha vida
mais o teu marido para darem cabo de mim ! . . . Não
te digo, n ã o . . . »
Passaram-se dias, sempre a moça instando. Aünal,
elle foi amolar um alfange, dizendo: « Eu te digo onde
está a Minha vida; mas se eu sentir qualquer incom-
modo, conheço que ella vai em perigo, e, antes que me
matem, mato a ti primeiro, queres ? 1 »
A princeza respondeu que sim. 0 Manjaléo amolou
o alfange, e disse-lhe : « Minha vida está no mar; den-
tro d'elle ha um caixão, dentro do caixão uma pedra,
dentro da pedra uma pomba, dentro da pomba um ovo,
dentro do ovo uma vela; assim que a vela se apagar
eu morro. » 0 bicho sahiu e foi procurar fructas; che-
gou o príncipe, soube de tudo e foi-se embora. O Man-
jaléo veiu e deitou-se no collo da moça com o alfange
alli perto. 0 príncipe chegou com a sua bota á praia
do mar n'um instante; lá pegou na escama, que tinha,
e disse: « Valha-me o rei dos peixes!» De repente
uma multidão de peixes appareceu, indagando o que
elle queria.
0 príncipe perguntou por um caixão que havia no
fundo do mar; os peixes disseram que nunca o tinham
visto, e só se o peixe do rabo cotó soubesse. Foram
chamar o peixe do rabo cotó, e este respondeu: «N'es-
te instante dei uma encontroada n'elle.» Todos os p e i - 1
xes ;foram e botaram o caixão para fóra. 0 príncipe o ]
abriu e deu com a pedra; ahi pegou na lanzinha e i
disse : « Valha-me o rei dos carneiros !» De repente"
appareceram muitos carneiros e entraram a dar marra-j
das na pedra. O Manjaléo lá começou a sentir-se doen-j
te, e dizia: «Minha vida, princeza, corre perigo! » E
pegou no alfange; a moça o foi dissuadindo e engam-
- ELEMENTO EUROPEU 7

bellando. Os carneiros quebraram a pedra e voou


1

u m a pomba. O príncipe pegou na penna e disse : « Va-


lha-me o rei dos pombos!» Chegaram muitos pombos
e correram atraz da pomba até que a pegaram. O prín-
cipe abriu-a e achou o ovo. Quando estava n'isto, lá o
Manjaléo estava m u i t o desfallecido, pegou no alfange e
ia dando u m golpe na princeza. Foi quando cá o prínci-
pe quebrou o ovo, e apagou a v e l a ; a h i o bicho cahiu
sem ferir a moça. O príncipe f o i t e r com ella, e levou-a
para palácio, onde houve muitas festas.

II
Os tres coroados
(Sergipe)

Foi um dia, havia tres moças já orphãs de pai e


mãi. U m a vez, ellas estavam todas tres na sacada d e
seu sobrado, quando v i r a m passar o r e i . A mais velha
disse: «Se eu m e casasse com aquelle r e i , fazia-lhe
uma camisa como elle nunca v i u . » A do meio disse :
«Se e u m e casasse com elle, l h e fazia uma ceroula co-
mo elle nunca teve. » A caçula disse : « E eu, se me ca-
sasse com elle, paria tres coroados. »
O rei o u v i u perfeitamente a conversa, e, quando f o i
no d i a seguinte, f o i ter a casa das moças e lhes disse :
« Appareça a moça que disse que, se se casasse commi-
go, paria tres coroados.» A moça appareceu, e o r e i l e -
vou-a, e casou-se com ella. As irmãs Gcaram com muita
inveja e fingiram não tel-a. Quando a moça appareceu
grávida, as irmãs meiteram-se dentro do palácio, com
apparencias de ajudal-a em seus trabalhos. Aproximan-
Enganando.
8 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

do-se o tempo de dar a rainha á luz, as suas irmãs se


oífereceram para servi 1-a e dispensar a parteira. Chega-
do o dia, ellas muniram-se de um sapo, uma cobra e
um gato. Quando nasceram os tres coroados, ellas os es-
conderam dentro de uma boceta, e mandaram largar no
mar. Apresentaram, então, ao rei os tres bichos, dizen-
do: «Ahi estão os coroados que aquella impostora pa-
riu. » O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar
a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio,
dando ordem a quem por alli passasse para cuspir-lhe
no rosto. Assim se fez. Mas um velho pescador encon-
trou no mar a boceta, apanhou-a, e abriu e encontrou
os tres meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou
muito alegre, e levou-os para casa para crear. A velha,
sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças.
Quando estas cresceram a ponto de poderem ir para a
escola, foram e passavam sempre pelo palácio do rei.
As cunhadas d'elle viram, por vezes, passar os meninos
e os conheceram.
Um dia os chamaram, e se puzeram com muitos
agrados com elles, e lhes deram de presente tres fructas
envenenadas, a cada um a sua.
Os meninos comeram as fructas, e viraram todos tres
em pedra. Os velhos ficaram muito afflictos com aquillo,
e toda a cidade fallou no caso.
Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido:
« Não tem nada; eu vou a casa do Sol buscar um remé-
dio para as tres pedras virarem outra vez em gente. »
Partiu montada a cavallo.
Depois de andar muito tempo, encontrou um rio
muito grande e bonito. 0 rio lhe disse: « Ó minha
avó, aonde vae ? » A velha respondeu: « Vou a casa do
Sol para elle me ensinar que remédio se deve dar a
quem virou para pedra para tornar a virar para gente. »
0 no lhe disse: « Pois então pergunte também a elle a
razão porque, sendo eu um rio tão bonito, grande e fun-
ELEMENTO EUROPEU 9
do, nunca criei peixe.» A velha seguiu. Adiante encon-
trou u m pé de fructa muito copado e bonito; mas sem
uma só fructa. Ao avistar a velha, a arvore disse: «On-
de vae, minha velhinha ? » — « Vou a casa do Sol buscar
uma mésinha para gente que virou pedra. » — « Pois per-
gunte a elle a razão porque, sendo eu tão grande, tão
verde e tão copada, nunca dei u m só fructo...» A ca-
minheira seguiu. Depois de andar muito, passou pela
casa de tres moças, todas tres solteiras e já passando da
edade de casar. As moças lhe disseram : « Onde vae, mi-
nha avó ? » A velha contou onde ia. Ellas lhe pediram
para indagar do Sol o motivo porque,, sendo ellas tão
formosas, ainda se não tinham casado. A velha partiu e
continuou a caminhar. Ainda depois de muito tempo é
que chegou a casa da mãi do Sol. A dona da casa rece-
beu-a muito bem; ouviu toda a sua historia e encom-
mendas que levava, e escondeu-a em razão de seu filho
não querer extranhos em sua casa, e quando vinha era
muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou
vinha desesperado e estragando tudo o que achava:
« Fum... aqui me fede a sangue r e a l ! . . . aqui me fe-
de a sangue real!...» — « Não é nada não, meu filho,
é uma gallinha que eu matei para nós jantar.»
Assim a mãi do Sol o foi enganando, até que elle se
aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãi lhe per-
guntou: «Meu filho, u m rio muito fundo e largo por-
que é que não dá peixe? » — « É porque nunca matou
gente. » Passou-se u m pouco de tempo e a velha fez ou-
tra pergunta : « E uma arvore muito verde e copada,
porque é que não dá fructa? » — « Porque tem dinheiro
enterrado em baixo. » Pouco tempo depois outra per-
gunta : « E umas moças bonitas e ricas porque não ca-
sam ? » — « Porque costumam mijar para o lado em que
eu nasço. » Deixou passar mais um tempinho e pergun-
tou : « E qual será o remédio para gente que tiver v i -
rado pedra ? » Ahi o Sol enfadou-se e disse: « 0 que
10 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

querem dizer hoje estas perguntas?» A mãi respondeu:


« Não é nada, meu filho ; eu é que ás vezes, porque vivo
aqui sósinha, me ponho a imaginar estas tolices. » 0 Sol
foi e respondeu: « 0 remédio é tirar da minha bocca,
quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima
da pedra. » A velha, d'ahi a pouco, fingiu um espanto,
levou a mão á bocca do Sol e tirou o bocado, dizendo:
« Olha, meu filho, um cisquinho na comida ! » E guardou
o bocado. D'ahi a pedaço a mesma cousa : « Olha um ca-
bello, meu filho! » E escondeu mais um bocado. N'uma
terceira vez, ella fez o mesmo e o Sol se levantou abor-
recido, fallando : « Ora, minha mãi, seu de comer hoje
está muito porco; não quero mais.» Deitou-se, e no dia
seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãi foi á
velhinha, que estava escondida, e lhe contou tudo, dan-
do os tres bocados. A velha pôz-se a caminho para traz.
Passando por casa das moças, ahi dormiu, sem querer
dizef a razão porque ellas não casavam. No dia seguin-
te, bem cedo, ella levantou-se e as moças também. Ellas
correram logo para o logar onde costumavam ouritíar
voltadas para o nascer do sol. A velha as reprehendeu,
dizendo : « É esta a razão de vocês não casarem; per-
cam este costume de ourinar para a banda d'onde o sol
nasce. » As moças assim fizeram e logo acharam casa-
mento. A andadeira tomou o seu caminho e foi-se em-
bora a toda a pressa. Chegando na fructeira, pôz-se de-
baixo d'ella a cavar sem dizer nada; quando puxou um
grande caixão, então disse porque a fructeira não dava I
fructas. O pé da arvore começou logo a carregar que
parecia praga. A velha seguiu. Ao chegar ao rio, elle I
lhe indagou do seu recado : « Logo lhe digo ; » e a velha
foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gri-
tou : «É porque nunca matou gente. » O rio botou logo
uma enchente tão grande, que por um triz não matou
a velha. A final foi ella ter em casa. Sem mais demora
applicou os tres bocados em cima das tres pedras, e os
ELEMENTO EUROPEU 11

meninos se desencantaram. A noticia d'estas cousas che-


g o u aos ouvidos do r e i . Elle mandou u m d i a c o n v i d a r
o velho com os tres meninos para jantarem e m palácio.
O v e l h o não quiz i r , nem mandar os m e n i n o s ; o r e i o
i n t i m i d o u até q u e f o r a m os meninos. Mas a v e l h a ensi-
nou aos m e n i n o s : « Quando vocês lá chegarem, meus fi-
lhinhos, que passarem pela escada, se ponham de joe-
lhos e t o m e m a benção áquella pobre m u l h e r que l a
está enterrada, parecendo u m cadáver, p o r q u e é a mãi
de vocês. Na janta não q u e i r a m i r para a mesa sem que
o r e i mande desenterral-a, e botar também n a mesa.
Quando elle der a cada u m o seu prato não c o m a m e
dêem todos tres a ella, que os ha de devorar n'um i n -
stante, pois está morta de fome. A h i as duas moças que
lá tem, que são tias de vocês, hão dizer : « Que barriga
de monstro que cabe tres pratos de uma vez!» A isto
vocês respondam, tirando os bonés e dizendo : « Não é
de a d m i r a r que caiba tres pratos de comida, quando tres
coroados! » e mostrem ao r e i as cabeças. Assim foi :
os meninos executaram fielmente as recommendações da
velha. (Todas as cousas se repetiram pela fôrma indica-^
da pela velha adivinha com grande surpreza para o rei
e desapontamento para as duas infames malfeitoras).
Tudo acabado, o r e i , que ficou v i v e n d o com sua mulher,
que voltou á sua antiga belleza, e os seus íilhinhos e m
palácio, perguntou-lhes o que queriam que elle fizesse
ás duas damnadas. Os meninos responderam que «elle
mandasse buscar q u a t r o burros bravos e as amarasse
nos rabos. » Assim fizeram, e ellas m o r r e r a m lascadas
ao meio.
12 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

III

O rei Aníli-íitle
(Sergipe)

Havia um rei de nome Andrade, que tinha tres filhas,


e lhes disse que o que sonhassem lhe contassem todos
os dias pela manhã. Uma d'ellas logo no dia seguinte
contou ao rei um sonho que foi o seguinte: « Sonhei
que havia de mudar de estado n'estes poucos dias, e cin-
co reis haviam de me beijar a mão, e entre elles el-rei
meu pai. » 0 rei ficou muito zangado com a filha e lhe
ordenou que, se de novo sonhasse aquillo, não lhe con-
tasse mais, senão a mandaria matar. A moça tornou a
sonhar cousa semelhante, e pela manhã, apesar de lhe
rogarem as irmãs, ella contou o sonho ao pai. Elle man-
dou matal-a, e cortar-lhe o dedo mendinho que os ma-
tadores lhe deviam trazer.
Os criados do rei levaram a princeza para um ermo
e tiveram pena de a matar; cortaram-lhe somente o de-
do, que levaram ao rei, deixando a moça nas brenhas
Mia começou a caminhar, e, muito longe, encontrou
um buraco, e entrou por elle dentro, e, quanto mais en-
trava, mais o buraco se alargava, até que ella f o i dar
n um rico palácio. Ahi ella tinha o almoço, a janta, e a
cea, sem v e r ninguém, porque o palácio era encanta-
do. Apenas ella ouvia, de um quarto que estava fecha-
do, fallar um papagaio. Depois de alguns dias, appare-
ceu-lhe um lindo moço que lhe deu a chave do quarto
e disse que o abrisse e respondesse ao papagaio cousa
que fizesse sentido ao que elle dissesse. O moço desap-
pareceu. A princeza abriu a camarinha, e o papagaio
que era muito grande e bonito, e das azas douradas fi-
cou muito alegre, sacudindo-se todo, e disse:
ELEMENTO EUROPEU 13
« Como vem a filha
Do rei Andrade
Tão bonita,
Tão formosa,
E tão ornada! »
— Ó meu papagaio dourado,
Eu das tuas ricas pennas
Pretendo fazer um toucado.
Ahi o papagaio desencantou-se 'no lindo moço que
d'antes lhe tinha apparecido, o qual moço mandou logo
v i r u m padre e. se casou com a princeza, mandando
convidar cinco reis, que no cortejo beijaram a mão de
sua noiva. No meio d'elles veiu o rei Andrade. Todos os
outros beijaram a m ã o da princeza, e, quando chegou a
vez do r e i Andrade, a nova rainha não lhe quiz dar a
mão ; pelo que elle ficou muito injuriado, e foi queixar-
se ao rei seu amigo, e dono da casa. 0 noivo, indo per-
guntar a razão d'aquillo, a moça lhe contou a sua his-
toria, o que sabendo o rei Andrade foi pedir perdão a
sua filha.
IV
, O pinto pellaclo
- (Sergipe)

Foi um dia um pinto pellado, estava pinicando n'um


terreiro, achou u m papelzinho e disse: « Bravo! vou
levar esta carta a rei, meu senhor. » E partiu. Chegan-
do adiante, encontrou uma raposa,.que lhe disse : « Aon-
de vae pinto pellado?» — « Quirrichi; v o u levar esta car-
ta a rei, meu senhor. » — « Apois eu também quero ir. »
— « Apois entre aqui no meu oveiro;» respondeu o pin-
14 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

to. A r a p o s a entrou e o pinto s e g u i u . C h e g a n d o m a i s


1

adiante encontrou um rio, que lhe perguntou: « Aonde


v a e pinto pellado ? » — « Q u i r r i c h i ; v o u l e v a r e s t a c a r t a
a r e i , m e u senhor.» — « E u t a m b é m q u e r o i r . » — «• Apois
e n t r e a q u i n o m e u oveiro.» S e g u i u . C h e g a n d o a d i a n t e
encontrou um espinheiro, que l h e perguntou: « Aonde
vae pinto pelláclo ? » — « Q u i r r i c h i ; v o u l e v a r e s t a c a r t a
a r e i , m e u s e n h o r . » — « E u t a m b é m q u e r o i r ». — « A p o i s
e n t r e a q u i n o m e u oveiro.» S e g u i u , e, depois de m u i t o
andar, foi t e r no palácio do r e i . E n t r o u e e n t r e g o u a car-
ta. 0 r e i se z a n g o u p o r a q u e l l e a t r e v i m e n t o d o p i n t o
lhe i r l e v a r u m p a p e l s u j o , e o m a n d o u j o g a r e n t r e as
g a l l i n h a s e gallos do p o l e i r o , m u i t o o e s p a n c a r a m . A h i
o pinto l a r g o u a r a p o s a q u e c a h i u e m c i m a dos g a l l o s
e g a l l i n h a s e a c a b o u com tudo. O pinto l a r g o u - s e p a r a
traz a toda a' p r e s s a . 0 r e i , q u a n d o d e u p o r falta d e suas
g a l l i n h a s , m a n d o u p e g a r o pinto. S a h i u gente a t r a z d'el-
le. Mas o pinto q u a n d o a v i s t o u a gente, l a r g o u o r i o .
Foi a g u a p o r c i m a do tempo, e a gente n ã o pôde pas-
sar. A r r a n j a r a m canôas, e p a s s a r a m s e m p r e ; m a s o pin-
to pellado já e s t a v a l o n g e . A t r o p a avançou n a c a r r e i r a ,
e q u a n d o i a c h e g a n d o perto do pinto, elle l a r g o u o e s -
p i n h e i r o , e gerou-se no m u n d o a q u e l l a m a t t a de e s p i n h o s
m u i t o g r a n d e e s e r r a d a q u e n i n g u é m p ô d e v a r a r . Então
v o l t a r a m todos p a r a traz, e o pinto p e l l a d o t e v e t e m p o
de c h e g a r a o s e u t e r r e i r o , onde n i n g u é m m a i s o i n c o m -
modou.

Canis vulpis.
ELEMENTO EUROPEU 15

Uma d a s tle P e d r o M!alas-A.rtes

(Sergipe)

Um dia; Pedro Malas-Artes foi ter com o rei e lhe pe-


i diu tres botijas de azeite, promettendo-lhe levar em tro-
ca tres mulatas moças e bonitas. 0 r e i aceitou o nego-
cio. Pedro sahiu e foi ter a casa de u m a velha alli pela
j n o i t i n h a ; pediu-lhe u m rancho, e que lhe botasse as bo-
ii tijas n o poleiro das gallinhas. A velha concordou c o m
t > tudo. Alta noite, Pedro Malas-Artes levantou-se, foi de
: de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derra-
ci m o u o azeite, lambuzando as gallinhas. De m a n h ã mui-
: to cedo Malas-Artes acordou a velha, e pediu-lhe as boti-
:i, jas de azeite. A velha f o i buscal-as, e, achando-as que-
i bradas, disse: « Pedro, as gallinhas quebraram as botijas
;

e derramaram o azeite.»—« Não quero saber d'isso, dis-


B, se Pedro; quero para aqui meu azeite, senão quero tres
gallinhas.» A velha ficou com medo, deu-lhe as tres gal-
i ; linhas. Malas-Artes partiu e foi á noite a casa de outra
I) v e l h a ; pediu rancho e que agasalhasse aquellas tres
r gallinhas entre os perus. A velha, como tola, consentiu.
r. Alta noite, Pedro se levantou, f o i ao quintal, matou as
tres gallinhas, besuntando de saugue os perús. No dia
seguinte, b e m cedo, acordou a velha, pedindo as suas
gallinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi b u s :

? cal-as e encontrou o destroço; v o l t o u afílicta, contando


a Malas-Artes. Elle fez u m graDde barulho até levar seis
i perús em troca das gallinhas. Na noite seguinte, foi ter
a casa de u m homem que tinha u m chiqueiro de ove-
lhas, e pediu-lhe para passar a noite e m sua casa e que
lhe agasalhasse aquelles perús lá no chiqueiro das ove-
lhas, porque bicho com bicho se accommodavam bem. O
16 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

homem assim fez. Tarde da noite, Pedro foi ao logar on-


de estavam os perús, e matou-os a todos labreando de[
sangue as ovelhas. Pela manhã levantou-se bem cedo ei
pediu ao dono da casa os seus perús. 0 homem indo-os|
buscar, achou-os mortos, e voltou muito afflicto, dizen-j
do: « Pedro, não sabe ? as ovelhas mataram os seus pe-f
r ú s . » Ouvindo isto, Malas-Artes fez um grande espalha-
fato, gritando que o homem tinha morto os perús do rei
e recebeu seis ovelhas pelos perús. Largou-se, indo
dormir na casa de um homem que tinha um curral de
bois. Ahi elle fez as mesmas artimanhas, até pegar seis
bois pelas seis ovelhas. Mais adiante, elle encontrou uns
vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais
adiante encontrou uns homens que iam carregando uma
rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, dis-
seram-lhe que era uma moca. Elle pediu para i r enter-
ral-a e elles deram. Logo que os homens se ausentaram,
elle tirou a moca da rede, encheu-a de bastante ouro e
enfeites, e foi ter com ella nas costas a casa de um ho-
mem rico que havia alli perto. Pediu rancho, e disse ás
filhas do tal homem que aquella era a filha do rei que
estava doente, e elle andava passeando com ella, e pe-
diu que a fossem deitar. Foram levar a moça para uma
camarinha indo Malas-Artes com ella, dizendo que só com
elle ella se accommodava. Deitou a moça defunta na ca-
ma e retirou-se, dizendo ás donas da casa: « Ella custa
muito a dormir, ainda chora como se fosse uma crian-
ça, quando chorar mettam-lhe a corrêa. » Alta noite, Pe-
dro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a
morta e pôz-se a chorar como menino. As moças da ca-
sa suppondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ella
se calar, que foi quando Pedro se calou. Depois elle es-
capuliu e foi para seu quarto. De manhã elle pediu a
moça, que queria ir-se embora. Foram vêr a filha do rei,
s

e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que


estava morta, e vieram dar parte a Malas-Artes. Elle pôz
ELEMENTO EUROPEU 17

as mãos na cabecai dizendo : « Estou perdido: vou oara


a forca; me mataram a (ilha do rei!...» 0 donos a d

casa ficaram muito afflictos, e começaram a offerecer


cousas pela mofa, e Pedro sem querer aceita? nada até
bonitas. O homem nco as deu, e Pedro disse aue d»™
uma desculpa ao rei sobre a morte de sua fllga e he
dava de presente as tres mulatas, para o r e i não se
agastar•muito. Malas-Artes largou-se e foi logo para palá-
cio, onde entregou ao rei as tres mulatas com este d l
to : « ha nao disse a vossa magestade que lhe dava tres
mulatas pelas tres botijas de azeite? Aui estão ella »
O l e i flcou m u iEntrou
t o admirado.
por uma porta,
Sahiu por outra;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte outra.

O Sai-g-ento yei-de

(Sergipe)

> Havia um homem rico que tinha uma filha muito


ormosa; appareceu uma vez u m moco também muito
jomto que quiz casar com ella. Contractaram o casamen-
o. Mas Nossa Senhora, que era madrinha da noiva lhe
ippareceu e d i s s e : - « M i n h a filha, t u vaes te casar
:om o cao; quando for no dia do casamento, depois da
esta acabada, teu marido ha de querer te levar para ca-
^a d e l l e ; t u , então, deves dizer a teu pai que só que-
es i r no cavallo mais magro e feio de todos, e quando
•negares a um logar da estrada onde faz cruz, teu ma-
CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L
18
rido ha de tomar pela esquerda, tu deves tomar pela di-
reita e mostrar-lhe o teu rozario para ehe estourar e
sumir-se para o inferno. » Passou-se. Quando foi no
1

dia do casamento houve muito pagode e divertimento;


mas a moça sempre triste. •
Quando chegou a hora da partida vem um cavai lo
muito bonito e muito bem arreiado para a moça se mon-
tar Ella disse ao pai que não queria aquelle,_e so o j
mais feio e magro. 0 pai se espantou muito e nao quiz
concordar; a final foi obrigado a fazer os gostos da h-
Iha Partiram os noivos; quando chegaram longe^daca-
sa havia no caminho uma encruzilhada; ahi o cao quiz
botar a moça adiante pelo lado esquerdo. Então a mo-
ça disse : « Vá o senhor adiante que sabe do caminho de
sua casa e não eu que nunca lá f u i . » 0 cão ahi se zan-
gou; mas a moça tomou pela estrada da direita, mos-
trando-lhe o rozario. O cão estourou, e foi cahir nas
profundas, e a moça seguiu a toda a bnde. -d mais à

adiante, ella cortou os cabellos e vestiu-se de homem,


toda de verde. Chegando a um reino, foi servir na guar-
da do rei com o posto de sargento. A gente toda a cha-
mava de Sargento verde. 0 rei tomou-lhe muita amiza-
de, tanto que quasi todas as tardes o convidava para ir
passear com elle no jardim. A rainha ficou, com poucos
dias, apaixonada por Sargento verde. Uma tarde, depois
de jantar, tendo-o o rei convidado para passear no jar-
dim, ao passar elle pela rainha, ella lhe disse: «Olha,
Sargento verde, que lindos olhos, e que lindo corpo pa-
ra divertir comtigo! » O Sargento respondeu : « Não sou
falso a meu rei. » A rainha despeitada levantou-lhe um
aleive ao r e i : « Saberá vossa real magestade que Sar

i É crença popular que o diabo quando se vira em algu-


ma pessoa ou animal, e depois se desencanta, dá um estour
que fede a enxofre.
2 Brida.
ELEMENTO EUROPEU 19
gento verde disse q u e se a t r e v i a a s u b i r e a descer as
escadas de palácio m o n t a d o no seu c a v a l l o a toda a b r i -
de, dançando e a t i r a n d o para o ár Ires l i m a s e todas t r e s
c a h i r e m n'um copo. » O r e i ficou m u i t o admirado e man-
dou c h a m a r Sargento v e r d e , e contou-lhe o caso. O
Sargento r e s p o n d e u : « Saberá r e i meu- senhor que e u
não disse t a l ; mas como a r a i n h a m i n h a senhora disse,
eu v o u fazer. » Sahiu m u i t o triste, e f o i t e r com o seu
c a v a l l o e l h e c o n t o u t u d o ; o cavallo disse q u e elle não
se i m p o r t a s s e , q u e no d i a m a r c a d o fosse sem medo.
No d i a m a r c a d o Sargento v e r d e apresentou-se e an-
dou pelas escadas a cavallo, c o r r e n d o para c i m a e para
baixo, dançando e a t i r a n d o para o ár tres l i m a s e apa-
rando todas tres n'um copo. H o u v e m u i t o viva, e a r a i -
nha ficou desesperada. Passaram-se d i a s ; i n d o o r e i
passear de n o v o com Sargento verde no j a r d i m , ao pas-
sar ^ l l e pela r a i n h a , e l l a l h e d i s s e : « Olha q u e lindos
olhos q u e lindo corpo para d i v e r t i r comtigo!» — « Não
n

sou falso a m e u r e i , » f o i o q u e elle disse. A r a i n h a ,


despeitada a i n d a mais, l e v a n t o u - l h e o u t r o aleive, que
f o i : « Saberá vossa r e a l magestade q u e Sargento v e r d e
disse q u e e r a capaz de p l a n t a r na h o r a do almoço u m a
b a n a n e i r a n o chão do palácio, e, q u a n d o fosse na hora
do j a n t a r , estar ella deitando cachos c o m bananas ma-
duras. » O r e i m a n d o u chamal-o e p e r g u n t o u - l h e se elle
se a t r e v i a a tanto, e elle d e u e g u a l resposta á p r i m e i r a
e s a h i u vexado e f o i t e r c o m o seu cavallo, q u e o ani-
m o u m u i t o . No d i a s e g u i n t e , n a h o r a do almoço do r e i ,
Sargento v e r d e l e v o u u m filho da bananeira, q u e na
h o r a do j a n t a r estava cahindo de carregado de bananas
madurinhas. H o u v e m u i t o viva e m u i t a saúde, e a r a i n h a
ficou ainda mais desesperada. Passados dias h o u v e n o v o
passeio do r e i e do Sargento no j a r d i m , e n o v o ofíereci-
m e n t o da r a i n h a , e e g u a l resposta do moço. A r a i n h a
a r m o u - l h e n o v o aleive, q u e f o i : «Saberá vossa r e a l
magestade q u e Sargento verde disse q u e se a n i m a v a a
20 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

andar montado no seu cavallo no largo do palácio, p o r


cima de duas fileiras de ovos s e m quebrar u m só. »
(Segue-se outra scena egual ás precedentes). No d i a se-
guinte o Sargento verde caminhou diante de m u i t a gen-
te, por cima das fileiras de ovos sem quebrar n e n h u m .
Houve m u i t a festa. A rainha ainda mais apaixonada fi-
cou. Passados dias ella armou-lhe novo falso, que foi :
« Saberá vossa real magestade que Sargento verde dis-
se que se atrevia a i r buscar no fundo do m a r a sua i r -
m ã a princeza encantada. » Chamado pelo r e i , Sargento
ficou t r i s t e ; mas não negou, e f o i fallar com o seu ca-
vallo que lhe disse : « Não t e m n a d a ; muna-se m i n h a
senhora de u m garrafão de azeite doce, de u m punhado
de sal e de uma carta de alfinetes; monte-se e m m i m ,
chegue n a praia, com a sua espada corte as ondeas e m 1

cruz, que as águas se hão de a b r i r ; entre, bote a moça


de garupa, e l a r g u e para traz a toda a pressa e bote
sentido nas tres palavras que a mopa disser no caminho.
Tenha cuidado n o bicho feroz que guarda a princeza,
porque elle h a de perseguil-a atraz; largue-lhe o sal e a
carta de alfinetes. » Chegado o dia, Sargento preparou-
se e se pôz a caminho montado no seu c a v a l l o , fez tudo
como l h e disse o cavallo, servindo-se da espada para
abrir, e do azeite pa*a clarear o mar. T i r o u a mopa e
largou-se para traz a toda a bride. Ao sahir do m a r a mo-
pa disse : « Já!» e o Sargento t o m o u nota. Estando u m
pouco adiante o l h o u para traz e avistou o bicho que v i -
nha damnado correndo, l a r g o u o sal e logo gerou-se n o
m u n d o u m nevoeiro tamanho que o bicho não pôde
romper. C o n t i n u o u ; adiante a mopa encantada d i s s e :
« Bella !» e elle t o m o u nota ainda. Olhando para traz, lá
vinha o bicho outra v e z ; l a r g o u a carta de alfinetes e
gerou-seOndas.uma matta serrada de espinhos e a fera não

ELEMENTO EUROPEU 21
pude p a s s a r . Já perto d e palácio a m o ç a d i s s e : « Tudo!»
elle d e n o v o t o m o u sentido, e c h e g a r a m aofimda v i a -
gem, h a v e n d o m u i t a a l e g r i a e m u i t a s festas, e a r a i n h a
a i n d a m a i s p e r d i d a ficou pelo S a r g e n t o v e r d e .
No emtanto a p r i n c e z a e n c a n t a d a n ã o f a l l a v a ; e s t a v a
m u d a . Com p o u c o a r a i n h a l e v a n t o u u m quinto a l e i v e
ao S a r g e n t o , e foi dizer a o r e i q u e elle s e atrevia, s e -
g u n d o d i s s e r a , a d a r falia á m u d a . O S a r g e n t o foi, c o m o
s e m p r e , t e r c o m o s e u c a v a l l o , q u e l h e d i s s e : « N ã o te-
n h a m e d o ; n a h o r a do almoço dê c o m u m a c o r d a n a
m o ç a , até ella dizer q u a l foi a p r i m e i r a p a l a v r a que d i s -
i s e ao s a h i r do mar, e o q u e e l l a q u e r d i z e r ; no j a n t a r
faça o m e s m o e i n d a g u e p e l a s e g u n d a ; n a c e i a o mes-
: m o e i n d a g u e p e l a t e r c e i r a , e a p r i n c e z a ficará fallan-
]
do. »
A s s i m f e z elle. No almoço do d i a s e g u i n t e m e t t e u a
c o r d a n a p r i n c e z a c o m a s p a l a v r a s : « Falle, m o ç a ! q u a l
a p a l a v r a q u e d i s s e a o s a h i r do m a r ? » A. m o ç a c a l a d a ,
e elle a dar-lhe, até que ella d i s s e : « Já! » — « O q u e
i q u e r d i z e r ? » A m u i t o custo e l l a d i s s e : a Já — q u e r d i -
z e r — já e s t o u l i v r e d e tantos trabalhos.» No j a n t a r hou-
v e o m e s m o , e a p r i n c e z a disse : « Bella! — q u e r d i z e r
I — são duas d o n z e l l a s , e l l a e o S a r g e n t o v e r d e q u e s e
i c h a m a L u c i n d a . » Na c e i a o m e s m o , e e l l a disse a u l t i m a
p a l a v r a , q u e q u e r dizer : «Tudo! s i L u c i n d a fosse h o m e m ,
i h a m u i t o el-rei, m e u irmão, s e r i a cornudo. » H o u v e m u i -
to e s p a n t o d e tudo a q u i l l o ; o S a r g e n t o v e r d e v o l t o u a o s
I trajos de m o ç a ; a p r i n c e z a a i n d a ficou n o palácio e fal-
! lando, e o c a v a l l o do S a r g e n t o d e s e n c a n t o u - s e n'um l i n -
i do m o ç o . E s t e s e c a s o u c o m a p r i n c e z a d e s e n c a n t a d a ;
i o rei se casou com Lucinda, porque a rainha morreu
i a m a r r a d a e m dous burros bravos, por ordem de s e u
..ii m a r i d o .
22 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

VII
A. Princeza i'onI>í»íleii*a

(Sergipe)

Havia um pai que tinha tres filhos; um d'elles plan-


tou um pé de laranjeira, outro um pé de limeira, e o
terceiro um pé de limoeiro. Lá n'um dia, o filho mais
velho foi ao pai e lhe disse: « Meu pai, eu já estou mo-
ço feito, quero sahir pelo mundo para ganhar a minha
vida. )> 0 pai o aconselhou para não fazer aquillo; mas
o moço instou e a final o velho lhe disse : « Pois bem,
meu filho, vae, mas tu que queres — a minha benção
com pouco dinheiro, ou a minha maldição com muito ? »
0 moço respondeu que queria a maldição com muito di-
nheiro, e assim o pai fez. 0 moço disse aos irmãos que
quando a sua laranjeira começasse a murchar, era elle
que estava em trabalhos, e lhe acudissem. Partiu. Che-
gando adiante, já muito cançado e com muita fome,
avistou uma fumacinha ao longe e para lá se encami-
nhou. Era a casa de uma senhora muito rica. Pediu um
agasalho e o que comer; a senhora mandou dar-lhe de
jantar. Acabada a janta, o convidou para dar um passeio
em sua horta; antes de chegar a ella tinha de passar
um riachinho. Ahi a moça, que era a Princeza roubadei-
ra, suspendeu bastante o vestido a ponto de deixar vér
um tanto das pernas. Passeavam na tal horta, que. só
tinha couves e mais nada. De volta, a princeza pergun-
tou ao hospede : « Então, o que achou mais bonito na
minha horta?» Elle respondeu : « Couves. » A moça con-
vidou-o ao depois para o jogo, no qual lhe ganhou todo
o dinheiro que levava. Acabado o jogo, mandou-o pren-
der e sustentar de couves. Lá em casa do moço a sua
laranjeira começou a murchar. 0 irmão do meio, vendo
ELEMENTO EUROPEU 23

isto, foi ao pai e disse: « Meu p a i , meu irmão está e m


t r a b a l h o s ; e u quero i r atraz d'elle. » 0 pai custou mui-
to a consentir e a final perguntou : « Tu o que queres —
a minha benção com pouco dinheiro, ou a m i n h a maldi-
ção com muito d i n h e i r o ? » Elle quiz a maldição com
muito dinheiro. O pai assim fez. O moço p a r t i u . Depois
de andar m u i t o , já cançado e com fome, avistou ao lon-
ge uma fumacinha, e caminhou para ella. Appareceu-
lhe, n'um palácio, uma linda moça, a quem elle pediu
de comer e u m agasalho. Ella mandou-o entrar, e ser-
vir-lhe de jantar. Depois convidou-o para dar u m pas-
seio na horta, e elle acceitou. No passar o r i a c h i n h o a
princeza suspendeu os vestidos, deixando v e r as pernas.
De volta, ella perguntou ao hospede: « Então, o que v i u
de mais bonito e m m i n h a horta? » Elle respondeu :
«Couves.» Lá comsigo a moça disse: Este é como o
outro. Convidou-o para j o g a r ; ganhou-lhe todo o d i -
nheiro, e mandou-o prender e cevar de couves. Lá e m
casa d'elle a limeira começou a murchar, e o irmão mais
moço, vendo isto. foi* ao pai e disse-lhe : « Meus irmãos,
que foram g a n h a r \ a vida, estão e m perigo, e eu quero
i r ao seu enconlro. O pai observou : « Meu filho, eu já
estou velho, e sendo t u meu filho único não te vás tam-
b é m embora. » O moço insistiu, e ospai lhe fallou : « En-
tão o que queres — m i n h a maldição com m u i t o dinheiro,
ou minha benção com pouco? » O fillia respondeu: « A
benção com pouco dinheiro. » Partiu. Chegando bem lon-
ge, encontrou uma velhinha, que era Nossa Senhora, que
lhe disse: «Aonde vae, meu netinho? » Ao que respon-
deu : « Vou ganhar a minha vida. » A velha lhe deu uma
toalha, dizendo: «Quando tiveres fome, pega n'ella e
d i z : « Põe a mesa, toalha!» e a mesa apparecerá. Deu-
lhe mais uma bolsa, dizendo: « Esta bolsa tem o m e s m o
prestimo. » Deu também uma violinha, dizendo : « Quando
se acabar a toalha e a bolsa, põe-te a tocar n'ella e não
has de ter fome.» 0 moço seguiu o seu caminho ; ao
2-4 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

longe avistou uma fumacinha e dirigiu-se para lá. Foi


ter a uma casa oude estavam presos os seus dous i r -
mãos. Ahi descancou e jautou. A Princeza rouhadeira o
convidou para dar um passeio na sua h o r t a ; o moço
acceitou e foram. Ao passar o riachinho, a linda moça
levantou os vestidos e mostrou as pernas quasi todas. O
moço botou os olhos com cuidado. De volta, a princeza
perguntou-lhe : «Então, o que viste mais bonito em mi-
nha horta ?» — « Com licença da senhora, foram as suas
pernas. » Lá comsigo disse a moça: « Este me serve.»
Seguiu-se o jogo em que ella lhe ganhou todo o dinheiro
e mandou-o prender. Quando chegou a hora de dar de
comer aos presos, indo a negra com a comida para elle,
nao a quiz, dizendo: «Leve lá a sua senhora, que eu
nao preciso d'ella. » Pegou na toalha e foi comida mui-
ta que appareceu logo. Os presos todos, eram muitos,
que andavam mortos de fome, comeram a fartar-se, e
guardaram muita comida. A negra, vendo aquillo foi ter
com a senhora e lhe disse: « Não sabe, minha senhora?
aquelle preso de hontem tem uma toalha que basta elle
pegar n'ella para apparecer logo muita comida e da me-
lhor. So vosmecé é que devia possuir aquella toalha,
princeza minha senhora. » A princeza rouhadeira dis-
se a negra: «Vae perguntar se elle a quer vender. » A
escrava íoi, e o preso respondeu: «Diga á sua senhora
que para ella não é nada; hasta que me deixe dormir
uma noite na porta do quarto d'ella da banda de fora.»
escr
a v a levou o recado. A senhora tomou aquillo por
um grande desaforo; mas a negra lhe disse que não
desse attençao aquillo, que não queria dizer nada, e ella
íicana com a sua toalha. — No dia seguinte, ao levar o
almoço, nao o quiz, e puxou pela bolsa e foi comida por
cima do tempo. A negra, que via aquillo, correu e f o i
contar a senhora: «Não sabe, princeza minha senhora ?
o preso esta terrível; puxou agora por uma bolsa que
só vosmece possuindo... É melhor que a toalha. » A
ELEMENTO EUROPEU 25
ambiciosa mandou offerecer compra pela bolsa. O preso
lhe mandou dizer que para ella não era nada; bastava
deixal-o dormir no seu quarto da banda de dentro, jun-
to da porta. A rouhadeira ficou muito insultada, e pôz-
se a rascar. Foi preciso que a escrava lhe dissesse :
« Oh ! Chonte! minha senhora, que mal faz ? Vosmecê
dorme em sua cama e aquelle tolo lá no chão. » Fez-se o
negocio, e o maganão dormiu dentro do quarto da prin-
ceza. No dia seguinte, indo a negra levar o almoço, elle
puxou pela viola e pôz-se a tocar, e todos os presos a
dançar, e a negra largou os pratos no chão e pôz-se.
também a dançar, e demorou-se muito, a ponto da rou-
hadeira mandar chamar a negra, admirada d'aquella de-
mora. A preta lhe respondeu: «Minha senhora, aquelle
preso está com o diabo. Tem agora uma violinha que
só vosmecê possuindo...» A princeza mandou logo of-
ferecer dinheiro por ella; o preso não quiz, dizendo:
« Esta... só se ella casar commigo!...» A negra foi dar
o recado. A moça arrufou-se; mas a final consentiu, e
casou-se. Depois d'isto todos os presos foram soltos.
Houve muita festa; eu lá estive (diz a narradeira) e
trouxe uma panellinha de doce, que cahiu alli na la-
deira.
Entrou por uma porta,
Sahiu por um canivete;
Manda o rei,V Imeu
I I senhor,
Que me conte sete.
O Pássaro preto
(Pernambuco)

Uma vez um homem pobre tinha um pássaro preto


que estimava muito, e, tendo um filho muito travesso, foi
26 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

u m dia o menino l e v a r a comida ao pássaro e o soltou.


0 pássaro voou e levou o menino preso pelo bico. De-
pois de uma grande viagem, largou-o n'um rico palácio.
Mandou pôr a mesa para o almoço, a qual appareceu
bem preparada, e, tendo elle de sahir logo depois, d e u
ao pequeno uma chave, dizendo que só abrisse o p r i -
meiro dos quartos que havia na frente da sala, e que
eram sete. O menino, logo que o padrinho (assim cha-
mava ao pássaro) sahiu, f o i e abriu o p r i m e i r o q u a r t o ,
e lá encontrou grande porção de c a v a l l o s ; elle se d i -
.vertiu a ponto de se esquecer de comer. No dia seguin-
te o pássaro, antes de sahir, deu-lhe a chave do segun-
do quarto, e elle o a b r i u e encontrou uma porção de sel-
lins e arreios. Assim o pássaro foi-lhe dando as diífe-
rentes chaves dos quartos até o quinto. 0 terceiro e r a
cheio de moças brancas, o quarto de mulatinhas, e o
quinto de espadas. Passaram-se tempos e o m e n i n o ficou
m o ç o feito, e pedia tudo ao padrinho, que lhe respondia
que, se elle l h e fizesse sempre a vontade, seria dono
de tudo o que alli havia. Depois de vistos os cinco
quartos, o padrinho deu-lhe a sexta c h a v e ; mas lhe d i -
zendo que não abrisse aquelle quarto, do contrario per-
deria tudo que elle lhe havia p r o m e l t i d o . O moço, não
se podendo conter, f o i infiel, e abrindo o quarto, achou
u m bello r i o de prata, e n'elle metteu o dedo, que ficou
prateado. Pensando que o padrinho não viesse a desco-
b r i r , enrolou o dedo n'uma t i r i n h a de p a n n o ; mas o
pássaro que adivinhava tudo, quando chegou, v i u o de-
do atado, e lhe disse: « Já sei que abriste o quarto ! »
ao que elle respondeu com m e d o : «Abri, meu padri-
nho, mas vosmecê não me castigue. » Disse-lhe o padri-
nho : « 0 castigo será ámanhã quando de novo me des-
obedeceres. » Deu-lhe a chave do sétimo quarto, e sahiu.
0 m o ç o não se conteve, e a b r i u o quarto, onde h a v i a
um r i o de ouro. Quando o pássaro voltou deu-lhe o cas-
tigo promettido : tirou-lhe a roupa e mergulhou-o no
ELEMENTO EUROPEU 27
r i o de prata, e, ao depois, no r i o de ouro, e, quando
acabou, deitou-o fóra de casa, dando-lhe uma v a r i n h a
de condão. O moço começou a andar e foi ter a u m
reino. A h i encontrou u m negro velho, a quem chamou
pai Gaforino, e lhe pediu que lhe cedesse a sua roupa
velha e suja para encobrir a sua cor e poder entrar na
cidade. O negro cedeu; mas uma princeza, que estava
na janella do palácio, chegou a v e r a elle vestir a r o u -
pa velha do preto, e, conhecendo que elle se encami-
nhava para o palácio, disse ao r e i que queria se casar
com o peor negro que alli chegasse. O pai, ficando ad-
mirado pelo mau gosto da filha, não teve outro remédio
senão mandar chamar o negro e contractar o casamento,
com o que o m o ç o disfarçado em negro ficou espanta-
dissimo, porque não pensava que tivesse sido visto por
ninguém. Aceitou a princeza p o r mulher, e, sempre
m u i t o desconfiado, não se deitava na cama com ella, e
sim n'uma taboa ao pé do fogo. 0 r e i teve tão grande
desgosto, que poz-se de cama e m estado de morrer. A
família então fez u m a promessa á Padroeira que se o
rei escapasse, mandava fazer uma festa na egreja que
durasse tres dias. O medico receitou ao r e i que comesse
tres pássaros de p l u m a s ; e tendo sabido o negro que
os dous genros, que o r e i tinha, haviam sahido a procu-
rar, cada qual montado e m seu cavallo, pediu á sua
varinha de condão uma carruagem e u m rico vestuário
e tres pássaros de plumas. Metteu-se na carruagem com
os pássaros, e sahiu ; mais adiante encontrou os genros
do r e i . Elles perguntaram se aquelles pássaros eram de
p l u m a e se os queria vender. Respondeu que eram de
pluma, mas que só os cedia se deixasse elle os ferrar
a cada u m n'um quarto com o seu ferro. Os moços con-
sentiram, e voltaram para o palácio com os tres pássa-
ros, que o r e i comeu e ficou bom. Seguiu-se a festa dos
tres dias. 0 negro mandou que sua m u l h e r fosse á egre-
j a vêr a festa, e, occultamente, pediu á sua varinha de
28 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

condão que lhe désse u m a linda carruagem e u m vesti-


do da côr do campo com todas as suas flores. Assim foi,
e a m u l h e r seguiu. Depois elle pediu a mesma cousa
para s i e lá se apresentou com tanta rapidez q u e a mes-
m a m u l h e r não podia pensar q u e fosse elle. As duas i r -
m ã s casadas que a princeza tinha, c o m inveja, e des-
confiadas, estando na egreja, d i z i a m escarnecendo: « Com
u m moco assim é que t u devias t e r casado e não
com u m negro. » Ella recebeu tudo com tristeza. No se-
g u n d o dia de festa, o negro pediu á v a r i n h a de condão
que fizesse apparecer u m a carruagem inda mais rica.e
u m vestido côr do mar, c o m todos os seus peixinhos,
e para elle a mesma cousa, tudo isto sem a m u l h e r sa-
b e r ; e quando v o l t a r a m todos da festa, já elle estava
no palácio aquentando fogo com sua roupa de negro.
No terceiro dia pediu u m a carruagem ainda mais rica e
u m vestido da côr do céo com todas as suas estrellas, e
o mesmo para elle. N'este mesmo dia houve festa em
palácio e foram convidados todos os genros do r e i e
mais mulheres, que se apresentaram m u i t o r i c a m e n t e
vestidas. Então o preto apresentou-se n a sua côr ver-
dadeira, e nos mesmos trajos c o m que estava n o d i a
e m q u e ferrou, os cunhados, p o r seus captivos. Elles fi-
caram m u i t o espantados, e ainda mais quando o m o ç o
foi chamado para a mesa, e disse q u e não se assentava
na mesma mesa com os seus captivos. Então o r e i lhe
perguntou quaes eram alli os seus escravos, e elle apon-
tou para os seus dous concunhados que estavam fer-
rados nos quartos, como el-rei podia examinar. O sogro
os chamou para u m a camarinha, e lá ficou convencido
da realidade, sendo que as mulheres dos dous moços se
atiraram da varanda do palácio abaixo, e elles as acom-
panharam, ficando o r e i tão desgostoso, que e m pouco
tempo morreu, ficando o pai Gaforino senhor de todo o
reino.
ELEMENTO EUROPEU 29

IX
Dona LíiI)i,smiiiM
(Sergipe)

Uma vez havia uma rainha, casada já ha muito tem-


po, que nunca tinha tido filhos, e tinha muita vontade
de ter, tanto que uma vez disse: « Permitta Deus que
seja uma cobra!...» Passados tempos appareceu grávi-
da, e quando deu á luz foi uma menina com uma co-
brinha enrolada no pescoço. Toda a família ficou muito
desgostosa; mas não se podia tirar a cobrinha do pes-
coço da criança. Foram crescendo ambas juntamente, e
a menina tomou muita amizade pela cobrinha. Quando
já mocinha, costumava i r passear á beira do mar, e lá
a cobra a deixava e fugia para as ondas, mas a prin-
cezinha punha-se a chorar até que a cobra voltava, se
enrolava outra vez no seu pescoço e iam ambas para
palácio, onde ninguém sabia d'isso. Assim foram indo
até que u m dia a cobra entrou no mar e não voltou
mais, porém disse á irmã que, quando se visse em pe-
rigo, chamasse por ella. A cobra tinha o nome de La-
bismina e a princeza o de Maria. Passados annos, cahiu
doente a rainha, e morreu; mas na hora de morrer ti-
rou do dedo uma joia e deu ao rei, dizendo: « Quando
tiveres de casar outra vez, deve ser com uma princeza
em que esta joia der sem ficar nem frouxa, nem aper-
tada. » Depois de algum tempo, o rei quiz se casar e
mandou experimentar a joia nos dedos das princezas de
todos os reinos, e não encontrou nenhuma em que o
annel coubesse pela fôrma que lhe tinha recommendado
a rainha. Só faltava a princeza Maria, sua filha; o r e i
chamou-a e botou a joia no seu dedo, e ficou muito
boa. Então elle disse á filha que queria se casar com
30 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

ella; e, como palavra,de r e i não volta atraz, a moça


ficou m u i t o desgostosa e vivia chorando. F o i ter com
Labismina na praia do m a r ; gritou p o r ella, e a cobra
veiu. Maria contou-lhe o caso, e a cobra respondeu:
« Não tenha medo; diga ao r e i que só casa com elle,
se elle lhe der um vestido da côr do campo com todas
as suas ílôres.» Assim fez a princeza, e o rei ficou muito
raassado; mas disse que iria procurar. Levou n'isto
m u i t o tempo, até que afinal sempre conseguiu. A h i a
princeza tornou a ficar muito triste, e f o i ter com a i r -
mã, que lhe disse: «Diga que só casa com elle se lhe
.der um vestido da côr do mar com todos os seus pei-
xes. » A princeza assim fez, e o rei ainda mais aborre-
cido ficou. Levou muito tempo a procurar até que ar-
ranjou. A moça foi ter outra vez com a Dona Labismina,
que lhe disse: « Diga que só casa, se elle lhe der u m
vestido da côr do céo com todas as suas estrellas.» Ella
assim disse ao pai, que ficou desesperado; mas promet-
teu arranjar. Levou n'isto ainda mais tempo do que das
duas outras vezes, até que conseguiu. A princeza,
quando o p a i lhe deu o ultimo vestido, viu-se perdida e
correu para o mar, onde embarcou n'um navio que Do-
na Labismina tinha preparado, durante o tempo que o
rei andou arranjando os vestidos. Labismina recommen-
dou á irmã que seguisse n'aquelle navio, e saltasse no
reino onde elle parasse, que n'essa terra ella encontra-
ria casamento com u m príncipe, e que na hora de casar,
chamasse por ella tres vezes, que ella se desencantaria
n'uma princeza também. Maria seguiu. No reino em que
o navio parou ella saltou em terra. Não tendo de que
viver, foi pedir u m emprego à rainha, que a encarregou
de guardar e criar as gallinhas do rei. Passados tempos,
houve Ires dias de festa na cidade. Todos de palácio
iam á festa, e a criadeira de gallinhas ficava. Mas logo
no p r i m e i r o dia, depois que todos sahiram, ella se pen-
teou, vestiu o seu vestido de côr do campo com todas
ELEMENTO EUROPEU 31
as s u a s flôres e p e d i u a L a b i s m i n a u m a b e l l a c a r r u a g e m
e f o i t a m b é m á festa. T o d o s ficaram muito e s b a b a c a d o s
d e v e r m o ç a tão b o n i t a e rica, e n i n g u é m s a b i a q u e m
e r a . 0 príncipe, filho do r e i , ficou logo muito apaixona-
do por ella. Antes de acabar-se a festa, a m o ç a p a r t i u e
metteu-se n a s u a r o u p i n h a v e l h a , e foi c u i d a r d a s g a l -
l i n h a s . 0 príncipe, q u a n d o c h e g o u a palácio, d i s s e á rai-
n h a : « V i u , m i n h a m ã i , q u e m o ç a bonita a p p a r e c e u ho-
j e n a festa ? Q u e m m e d e r a c a s a r c o m e l l a ! Só pare-
c i a a c r i a d e i r a de g a l l i n h a s . » — « N ã o digas isto, m e u fi-
l h o ; a q u e l l a pobre t i n h a r o u p a tão fina e r i c a ? V a i v e r
c o m o ella está lá e m b a i x o p o r c a e esmolambada. » O
príncipe foi o n d e e s t a v a a c r i a d a e l h e d i s s e : « Ó
c r i a d e i r a de g a l l i n h a s , e u h o j e v i n a festa u m a m o ç a
q u e só se p a r e c i a comtigo...» — O chente, príncipe, m e u
senhor, q u e r mangar c o m m i g o . . . Q u e m s o u e u ? »
No outro d i a , n o v a festa, e a c r i a d e i r a de g a l l i n h a s foi
ás e s c o n d i d a s c o m o s e u v e s t i d o de côr de m a r c o m to-
dos os seus p e i x e s , e n'uma c a r r u a g e m a i n d a mais r i c a .
Ainda m a i s apaixonado ficou o príncipe s e m s a b e r de
q u e m . No t e r c e i r o d i a a m e s m a cousa, e a c r i a d e i r a d e
g a l l i n h a s l e v o u o v e s t i d o côr de céo c o m todas as s u a s
e s t r e l l a s . O príncipe ficou tão e n t h u s i a s m a d o q u e foi s e
pôr a o p é d'ella e l h e a t i r o u n o collo u m a j o i a q u e ella
guardou. C h e g a n d o a palácio, o príncipe cahiu doente d e
paixão e f o i p a r a cama. N ã o q u e r i a t o m a r n e m u m cal-
d o ; a r a i n h a r o g a v a a todas as pessoas p a r a l h e l e v a -
r e m a l g u m caldo, p a r a vêr s e elle acceitava, e e r a mes-
mo q u e nada. Afinal só f a l t a v a a c r i a d e i r a de g a l l i n h a s ,
e a r a i n h a m a n d o u - a c h a m a r p a r a l e v a r o caldo ao prin-
c i p e . Ella r e s p o n d e u : « O r a dá-se! r a i n h a , m i n h a senho-
ra, q u e r caçoar c o m m i g o ?! Q u e m sou e u p a r a príncipe,
m e u senhor, a c c e i t a r u m caldo da m i n h a m ã o ? 0 q u e e u
posso fazer é p r e p a r a r u m caldo p a r a m a n d a r a elle.»
A r a i n h a concordou, e a c r i a d a preparou o caldo, e
botou dentro d a c h i c a r a a j o i a q u e o príncipe l h e t i n h a
32 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

dado na egreja. Quando elle metteu a colher e v i u a joia,


pulou da cama contente e dizendo que estava bom, e
*0
queria se casar com aquella moça que servia de cria-
deira de gallinhas. Mandaram-na chamar, e, quando
ella veiu, já foi prompta, como quando ia á festa. Hou- ê
ve muita alegria e muito banquete, e a princeza Maria
se casou com o príncipe; mas se esqueceu de chamar
pelo nome de Labismina, que não se desencantou, e,
por isso, ainda hoje o mar dá urros e se enfurece ás
vezes. ÍI

A. B a p o s i n h a
(Sergipe)

Foi um dia, sahiu u m príncipe a correr terras alraz


de arranjar u m remédio para seu pai que estava cego.
Depois de muito andar, o príncipe passou por uma ci- i
dade e v i u uns homens estarem dando de cacete n'um
ú
defunto. Chegou perto e perguntou porque faziam aquil-
lo. Responderam-lhe que aquelle homem tinha-lhes fi-
cado a dever, e que por isso estava apanhando, depois r '
de morto, segundo o costume da terra. O príncipe, que
ouvia isto, pegou e pagou todas as dividas do defunto
e o mandou enterrar. Seguiu sua viagem. Adiante en-
controu u m a raposinha, que lhe disse: «Aonde v a i ,
meu príncipe honrado?» O moço respondeu: «Ando
caçando uma mésinha para meu pai que ficou cego.»
A raposinha então lhe disse: « Para isto só ha agora
um remédio, que é botar nos olhos do r e i u m pouqui-
nho de sujidade de u m papagaio do reino dos papa-
gaios. Meu príncipe, vá ao reino dos papagaios, entre, á
meia noite, no logar onde elles estão, deixe os papa-
ELEMENTO EUROPEU 33

gaios bonitos e falladores que estão em gaiolas muito


ricas, e pegue n'um papagaio triste e velho que está lá
n'um canto, n'uma gaiola de pau, velha e feia. » 0 prín-
cipe seguiu. • Quando chegou no reino dos papagaios,
ficou esbabacado de ver tantas e tão ricas gaiolas de
diamantes, de ouro e de prata; nem procurou o papa-
gaio velho e sujo que estava lá n'um canto; agarrou na
gaiola mais bonita que viu, e partiu para traz. Quando
ia sahindo o papagaio deu um grito, acordaram os guar-
das, e o perseguiram, até pegal-o. « O que queres com
este papagaio?! Has de morrer,» disseram os guardas.
0 príncipe, com muito medo, lhes contou a historia de
seu pai; então elles disseram: « Pois bem; só te damos
o papapaio se tu fores ao remo das espadas, e trouxe-
res de lá uma espada.» O moço, muito triste, aceitou e
partiu. Chegando adiante lhe appareceu a mesma raposi-
nha, e lhe disse: «Então, meu príncipe honrado, o que
tem, que vai tão triste ? » 0 moço lhe contou o que lhe
tinha acontecido; e a raposa respondeu: « Eu não lhe
disse ! ? Você para que- foi pegar n'um papagaio bonito,
deixando o velho e feio ? Apois bem ; vá ao remo das
espadas; entre á meia noite. Você lá ha de ver muitas
espadas de todas as qualidades, de ouro, de brilhante e
de prata, não pegue em nenhuma. Lá n'um canto tem
uma espada velha e enferrujada; pegue n'essa. » O mo-
ço seguiu. Quando chegou ao reino das espadas, ficou
esbabacado, vendo tantas espadas e tão ricas. De teimo-
so, disse : « Ora tanta espada rica, e eu hei de pegar
n'uma ferrugenta ! » Pegou logo na mais bonita que
viu. Quando ia sahindo, a espada deu um trinco tão forte
que os guardas acordaram, pegaram o moço e o quize-
ram levar ao rei. 0 príncipe contou então a sua histo-
ria, e os guardas, com pena, disseram : «Nós só lhe
damos uma espada se você fur ao reino dos cavallos e
trouxer de lá um cavallo. » O moço seguiu muito des-
apontado. Adiante n'uma encruzilhada encontrou a rapo-
3
34 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

sinha: «Aonde vai, meu príncipe honrado?» 0 moço


contou tudo. « Ah ! eu não lhe disse !? Para que não se-
guiu o meu conselho ? Vá no reino dos cavallos, e entre
á meia noite. Você lá ha de encontrar muitos -cavallos
gordos e de todas as cures, todos apparelhados, não pe-
gue em nenhum. Lá n'um canto está um cavallo velho
e feio, pegue n'esse. » 0 moço seguiu. Quando entrou
no reino dos cavallos cahiu-lhe o queixo no c h ã o :
« Ora tantos cavallos bonitos, e eu hei de ficar com um
diabo velho e magro ! » E pegou n'um dos mais gordos
e lindos. O cavallo deu um rincho tão grande que os
guardas acordaram e prenderam o príncipe. Elle, com
muito susto, contou toda a sua historia. Os guardas res-
ponderam : « Apois sim; nós lhe damos um cavallo se
vocô fur furtar a filha do rei. » Ahi o moço disse :
« Então me dêem um cavallo para ir montado. » Elles
concederam. 0 moço seguiu; quando ia adiante, lhe ap-
pareceu outra vez a raposinha: «Onde vai, meu prínci-
pe honrado ? » Elle contou tudo. A raposa disse: « Pois
veja: eu sou a alma d'aquelle homem que estava
apanhando de cacete depois de morto e de que você pa-
gou as dividas; ando-lhe protegendo, mas você não
quer fazer caso dos meus conselhos, e, por isso, tem
andado sempre em p e r i g o . . . Vá montado n'este caval-
lo ; chegue á meia noite no palácio do rei, pegue a mo-
ça e bote na garupa, largue a rédea a toda a brida; pas-
se pelo reino dos cavallos para lhe darem o seu, pelo
das espadas para lhe ciarem a sua, e pelo dos papagaios
para levar também o seu, e vá voando para casa de seu
pai, que elle vai mal. Nunca entre por varedas, nem
preste ouvidos a ninguém até á casa. Adeus, que' é esta
a ultima vez que lhe appareço. »
0 príncipe partiu. Chegando no palácio, furtou a mo-
ça ; chegando no reino dos cavallos, recebeu o seu; no
das espadas, a sua, e no dos papagaios, o seu. Seguiu
sempre na carreira. Adiante encontrou uns moços que
ELEMENTO EUROPEU 35

andavam á sua procura, e eram seus irmãos que v i n h a m


• buscar novas d'elle. Os irmãos, quando o v i r a m com
t objectos tão ricos, ficaram com inveja e formaram o pla-
1
no de o matar para roubal-o. — Começaram a conven-
cel-o de que deviam deixar a estrada real e seguir por
uns atalhos para os ladrões não lhe fazerem m a l ven-
^ do-o com aquellas cousas tão bellas e ricas. Elle cahiu na
esparreila, e os irmãos o t i r a r a m de dentro de uma g r u -
ta no matto onde elle t i n h a ido beber agua. Tomaram-
• lhe a moça, o cavallo, a espada e o papagaio. Largaram-
j se para a casa muito alegres, pensando que o irmão
3 estava morto. Mas tudo aquillo chegando a palácio,
• • entrou a marear-se, e a ficar estragado. A m o ç a não quiz
; mais comer nem f a l l a r ; metteu a cabeça debaixo da aza
SÍ e não quiz mais f a l l a r ; a espada ficou enferrujada, e o
cavallo começou a emmagrecer. Quando o moço estava
quasi a m o r r e r na furna, appareceu a raposinha, que o
. tirou para fóra, e o botou outra vez n o caminho. Elle
i seguiu e chegou até ao palácio de seu pai. Quando já
u i a chegando a espada d e u u m trivico, e começou logo
[•r&i a brilhar, o papagaio voou e f o i cahir-lhe no hombro, a
i moça deu uma gargalhada e fallou, e o cavallo engor-
: dou de repente. O principe entrou e foi logo botando
• u m pouco de sujidade do papagaio nos olhos do pai, que
i ficou logo vendo, e muito alegre. 0 principe se casou
• com a princeza que t i n h a furtado, e os seus irmãos foram
castigados por causa de sua falsidade.

10

/
36 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

mi
XI

O homem pequeno

(Sergipe)

Uma vez u m principe sahiu a caçar c o m outros com-


panheiros, e enterraram-se n'uma malta. 0 principe, que
• se chamava D. João, adiantou-se muito dos companhei-
ros e se perdeu. Ao depois de m u i t o andar, avistou u m
m u r o m u i t o alto, que parecia uma montanha, e para lá
se d i r i g i u . Quando lá chegou conheceu que estava n'uma
terra estranha, pertencente a uma família de gigantes. 0
dono da casa era u m gigante enorme, que quasi dava
com a cabeça nas n u v e n s ; tinha m u l h e r t a m b é m gigan-
te, e uma filha gigante de nome Guimara.
Quando o dono da casa v i u a D. João g r i t o u logo :
« Oh ! h o m e m pequerfo, o que anda fazendo ? » 0 p r i n -
cipe contou-lhe a sua historia, e então o gigante disse :
« Pois b e m ; fique aqui como u m criado. » 0 p r i n c i p e lá
ficou, e, passados tempos, Guimara se apaixonou p o r
elle. O gigante, que desconfiou da cousa, chamou u m
dia o principe, e lhe d i s s e : « Oh! h o m e m pequeno, t u
disseste que te astrevias a derrubar n'uma só noite o
m u r o das minhas terras e a levantar u m palácio ? » Não
senhor, m e u amo ; mas, como vossemecê manda, e u
obedeço. » 0 moço sahiu p o r alli vexado de sua vida, e
foi t e r occultamente com Guimara, que l h e d i s s e : « Não
é n a d a ; eu v o u e faço tudo. » Assim f o i : Guimara, que
era encantada, deitou abaixo o muro, e alevantou u m
palácio que dar-se podia. No outro dia o gigante f o i v e r
bem cedo a obra e ficou admirado. « Oh I h o m e m peque-
no ? » — « I n h ô ! » — « Foste tu que fizeste esta obra ou foi
Guimara? » — «Senhor, f u i eu, não foi G u i m a r a ; se meus
olhos v i r a m Guimara, e Guimara v i u a m i m , maufimte-
ELEMENTO EUROPEU 37
riha e u a G u i m a r a , e G u i m a r a m a u fim t e n h a a m i m . »
Passou-se. Depois de a l g u n s dias, o g i g a n t e q u e a n d a v a
c o m v o n t a d e d e m a t a r o h o m e m pequeno, l h e a l e v a n t o u
o u t r o a l e i v e : « O h ! h o m e m pequeno, tu disseste q u e t e
atrevias a fazer da Ilha dos bichos bravos u m jardim
c h e i o d e flores d e todas a s qualidades, e c o m u m c a n o
a deitar, a d e s p e j a r a g u a , tudo n'uma noite ? » — « Se-
nhor, e u n ã o d i s s e isto, m a s c o m o vossemecê o r d e n a
e u i r e i fazer. » S a h i u d'alli m a i s m o r t o do q u e v i v o , e
foi ter c o m G u i m a r a , q u e lhe d i s s e : « N ã o t e m n a d a ;
e u h o j e h e i d e fazer tudo de noite. » A s s i m foi. De noite
e l l a fugiu d e s e u q u a r t o , e, c o m o h o m e m pequeno, tra-
b a l h o u toda a noite, d e m a n e i r a q u e n o outro d i a lá e s -
t a v a o j a r d i m c h e i o de flores, e c o m u m c a n o a j o r r a r
a g u a ; era u m a obra que dar-se podia. O gigante, dono
da c a s a , foi v e r a o b r a e ficou m u i t o espantado, e, e n -
tão, formou o p l a n o d e i r à noite a o q u a r t o de G u i m a r a
e ao d o h o m e m p e q u e n o p a r a os matar. A m o ç a , q u e e r a
a d i v i n h a , c o m m u n i c o u isto a D. João, e convidou-o p a r a
fugir, d e i x a n d o n a s c a m a s e m s e u logar d u a s b a n a n e i r a s
c o b e r t a s c o m os lençoes p a r a e n g a n a r ao p a i .
A l t a noite f u g i r a m m o n t a d o s n o m e l h o r c a v a l l o d a
e s t r e b a r i a , o q u a l c a m i n h a v a c e m léguas de c a d a p a s s a -
da. O p a i quando os foi m a t a r , o s n ã o e n c o n t r o u , e
disse o c a s o á m u l h e r q u e l h e a c o n s e l h o u q u e p a r t i s s e
a t r a z m o n t a d o n o outro c a v a l l o q u e c a m i n h a v a c e m lé-
g u a s d e c a d a p a s s a d a , e s e g u i s s e a toda a b r i d a . O g i -
g a n t e p a r t i u , e, quando i a c h e g a n d o p e r t o dos f u g i t i v o s ,
G u i m a r a s e v i r o u r i a c h o e D. João n'um n e g r o v e l h o , o
c a v a l l o n'um p é de a r v o r e , a s e l l a n'uma l e i r a de cebo-
las, e a e s p i n g a r d a , q u e l e v a v a m , n'um beija-flor. O g i -
gante, quando chegou ao r i a c h o , se d i r i g i u ao n e g r o v e -
lho, q u e e s t a v a t o m a n d o b a n h o : Oh I m e u n e g r o v e l h o ,
você v i u p a s s a r a q u i u m m o ç o c o m u m a m o ç a ? » O
n e g r o n ã o p r e s t a v a attenção, mergulhava n'agua, e
quando a l e v a n t a v a a cabeça, d i z i a : — « P l a n t e i estas ce-
38 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

bolas, não sei se me darão boas!... » Assim muitas ve-


zes, até que o gigante se massou e se dirigiu ao beija-
flor, que voou-lhe em cima, querendo furar-lhe os olhos.
O gigante desesperou e voltou para casa. Chegando lá
contou a historia á velha sua mulher, que lhe disse :
« Como você é tolo, marido ! O riacho é Guimara, o ne-
gro velho o homem pequeno, a leira de cebola a sella,
o pé de arvore o cavallo, e o beija-flor a espingarda.
Corra para traz e vá pegai-os. »
O gigante tornou a partir como um damnado até che-
gar perto d'elles, que se haviam desencantado e seguido
a toda a pressa. Quando elles avistaram o gigante, a
moca se transformou n'uma- igreja, D. João n'um padre,
a sella n'um altar, a espingarda no missal, e o cavallo
n'um sino. O gigante entrou pela igreja a dentro, dizen-
do : «Oh! seu padre, o senhor viu passar por aqui um
moço com uma moça ? » 0 padre, que fingia estar dizen-
do missa, respondeu :

« Sou um padre ermitão,


Devoto da Conceição.
Não ouço o que me diz, n ã o . . .
Dominus vobiscum. »

Assim muitas vezes, até que o gigante se aborreceu


e volta para traz desesperado. Chegando;*em casa contou
a historia á mulher, que lhe disse : « Oh! marido, você
é muito (tolo! Corra já, volte, que a igreja é Guimara,
o padre é o homem pequeno, o missal a espingarda, o
altar a sella, o sino o cavallo. » Elles lá se desencantaram
e seguiram á toda a pressa; mas o gigante de cá partiu
como um feroz; ia botando serras abaixo, e, quando es-
tava, de novo, quasi a pegal-os, Guimara largou no ar
um punhado de cinza e gerou-se no mundo uma neblina
tal que o gigante não pôde seguir e voltou. Depois
d'isto os fugitivos chegaram ao reino de D. João. Guima-
ELEMENTO EUROPEU 39

ra então, lhe pediu que, quando entrasse em casa, para


não se esquecer d'ella por uma vez, não beijasse a mao
de sua tia. O principe prometleu ; mas quando entrou
em palácio a primeira pessoa que lhe appareceu foi sua
tia, a quem elle beijou a mão, e se esqueceu, por uma
vez, de Guimara, que o tinha salvado da morte. A mo-
ça íà perdeu na terra estranha o encanto, e ficou peque-
na como as outras, mas sempre triste.

XII

Dona IHiita,

(Sergipe)

Uma vez havia um rei que linha seu palácio defron-


te de uma casa onde morava um velho que tinha tres
filhas bonitas. A mais bonita de todas chamava-se Dona
Pinta e o rei se apaixonou por ella.
Uma vez estando elle na varanda a querer namora -a,
ella que estava brincando com um gatinho arribou-lhe
o rabinho, e mostrou-lhe o boeiro... O rei ficou muito
zangado e quiz arranjar um meio de entender-se com a
moça livremente para vingar-se. Mandou chamar o po-
bre do velho e lhe disse que precisava que elle fosse ven-
cer umas guerras. 0 velho se desculpou muito, e disse
que ia fallar com suas filhas para vêr o que ellas diziam.
I) Pinta lhe disse que promettesse ao rei ir, mas pedisse
uma espera de alguns dias. Esta espera era para dar tem-
po a ella para fazer um alçapão na casa.
Passados os dias, o velho seguiu para as guerras, dei-
xando a cada uma das filhas uma rosa, dizendo : « Quan-
do eu voltar, cada uma ha de me apresentar a sua rosa
40 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

aberta e fresca, que é o signal de sua virgindade: aquella


cuja rosa estiver murcha terá o meu castigo. »
Depois que o velho sahiu, o rei appareceu na sua ca-
sa, e ü. Pinta o recebeu. Deixou-o na sala conversando
com as irmãs, e foi para a sala de traz, e escondeu-se no
seu subterrâneo. O rei cancou de esperar, e, ficando tar-
de, foi-se embora muito zangado. No dia seguinte tornou
ÍL ' A?-';• V1F
f ° 5 °o terceiro dia a mesma
e
a f z0 m e s m

cousa. Ahi fez mal as duas suas irmãs, que appareceram


pejadas e cujas rosas ficaram murchas. O rei cada vez foi
ÍZZt - / " ' P q«e mais se
m9Í r Va d6 D Pinta ao asso

accendia o seu desejo, quanto mais ella o enganava.


Lm dia ella se vestiu de moleque, e foi buscar favas
nLrl n H ' °. ? . ' conheceu, e,
1 q a l a viu m a s n ã o a

tao cançado e tao suado 1 deite-se


quando o soube, ainda mais desesperado ficou. Passou-se
nhor!»
tempos eE sempre
sentou-se no capim,
o rei a ajuandofez coito e o rei deitou-
se
rnJle ella, se poz a catar-lhe
Av^ m lla piolhos.
a encontrou
f0Í
no Foi indo, foi indo
buscar lenha e 0 rei

até que Ahi


matto. o reiellapegou no «somno.
djsse: A h i vem
O h ! como ella, rei
bemmeudevagari-
senhor
?P^ í ; ' ° ° n'uma trouxa que
b t U a Cab6fa d0 rei
,eVai, U Se
1

a nllf' ,° - ' - P^- 6 I a r g U S e f0i s ee m b o r a a t o d a a

sa Quando o rei acordou, que olhou em roda e não viu


ninguém, ficou desesperado da vida. Passou-se. As h m ã s
de D. Pinta ficaram em ponto de dar á luz e deram Ella
com medo de que o pai descobrisse a falta das^rmãs'
resolveu-se a i r engeitar os meninos no palácio do
Um dia, antes do pae chegar das guerras, preparou
se de negra com taboleiro na cabeça e os do^Sõs
dentro, fingindo eram flores, efoivender no pakcío O
rei, sem saber quem era, foi v e r as flores e atando
descobriu o taboleiro, deu'com os seus dous fi^inhos A
negra disse: « Ahi ficam que são seus 1. . ? E ?ar*òu
§ ELEMENTO EUROPEU 41

se de escada abaixo e foi-se embora. O rei então co-


nheceu tudo, e dizia:.« D. Pinta, D. Pinta ! . . . um dia
eu hei de vingar-me. »
Tempos depois, chegou o pai das tres mocas das
guerras. As duas filhas deshonradas ficaram mais mortas
do que vivas para irem tomar a benção ao pai, porque
não tinham mais a sua rosa viva ! D. Pinta as valeu, di-
zendo a uma d'ellas : « Tome a minha rosa, mana, vá
primeiro você, e ao depois vá fulana, e depois eu. »
Assim fizeram, e enganaram o velho que de nada soube.
Depois d'isto, andava o rei uma vez passeando em-
barcado no mar e encontrou D. Pinta n'um bote também
passeando. Ella, quando o avistou, o convidou para ir para
o seu barco, e passearem juntos. Na occasião do rei en-
trar, ella o atirou no lodo da maré e elle ficou todo em-
porcalhado. Ficou vendendo azeite ás canadas, e procu-
rando um meio de se vingar. Não achando nenhum, fez
o plano de a pedir em casamento, e matal-a depois de
casados. Fez o pedido, e a moça não aceitou. Afinal tan-
to instou que a moça disse ao pai: « Está bom, meu pai,
diga á elle que eu o aceito, mas ha de me dar seis me-
zes de espera. » O velho foi dizer ao rei que a filha
aceitava, mas pedia uma espera. Isto era tempo que D.
Pinta pedia para poder preparar uma boueca, e parecida
com ella, para enganar ao rei.
No fim de seis mezes não estava prompta ainda a bo-
neca, e o rei tendo mandado marcar o dia do casamen-
to, D. Pinta respondeu que só se casaria se o rei man-
dasse fazer um palácio novo. O rei concordou, e man-
dou fazer o palácio. Quando já estava a obra quasi prom-
pta, D. Pinta não tinha ainda a boneca preparada, e, en-
tão, uma hoite foi ao palácio velho ás escondidas, furtou
a roupa do rei, metteu-se n'ella e foi ter com o mestre
da obra, e fingindo que era o rei, e muito zangado di-
zia : «Isto não é obra ; quero já que me botem tudo abai-
xo e façam tudo de novo.» Isto era de noite; o mestre
J

42 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

da obra mandou logo chamar todos os trabalhadores e I


d e i t a r a m o palácio a b a i x o para l e v a n t a r o u t r o de novo. 1

Afinal ficou p r o m p t a a boneca de D. Pinta, e t a m b é m o I


palácio do r e i . Marcou-se o d i a do casamento. D. Pinta, i
quando foi para o q u a r t o de d o r m i r , l e v o u a sua boneca, í
que e r a toda o retrato d'ella: botou-a assentada na c a m a !
c o m u m favo de m e l no seio, e se escondeu d e b a i x o í
da cama, p e g a n d o n'um cordãosinho q u e a boneca t i n h a 1

e que a fazia m o v e r c o m a cabeça. 0 r e i depois e n t r o u ,


e d i r i g i u - s e á boneca, pensando q u e e r a D. Pinta, e d i -
zia : « D. Pinta, t u te alembras q u a n d o t e u p a i f o i para
a g u e r r a q u e e u f u i tres dias á t u a casa, e tu, p'ra caçoa-
res c o m m i g o , t e mettias lá p'ra d e n t r o , e não m e appa-
recias m a i s ? . . . » A boneca bolia c o m a cabeça. A s s i m
foi o r e i r e p e t i n d o todas as pirraças q u e a m o ç a lhe li-
nha feito, e no fim c r a v o u - l h e u m p u n h a l no seio. O m e l
e s p i r r o u e foi tocar nos beiços do r e i , que, s e n t i n d o a
doçura, disse : « A h ! m i n h a m u l h e r , s i depois de m o r t a
estás tão doce, q u e fará q u a n d o eras v i v a ! » E poz-se
a chorar. A h i D. P i n t a p u l o u de b a i x o e a p r e s e n t o u - s e :
«Aqui estou, m e u a m o r ! » Fizeram as pazes e ficaram
v i v e n d o m u i t o bem.
XIII
O príncipe cornudo
(Sergipe)

Uma vez um rei teve um filho e mandou ver que si-


na o m e n i n o t i n h a trazido. A c i g a n a l e u a sorte e disse
que o p r i n c i p e t i n h a trazido a sina de ser c o r n u d o . 0
r e i ficou m u i t o desgostoso, e m a n d o u fazer u m a t o r r e
onde o m e n i n o foi encerrado, e alli foi creado, c o m o r -
d e m de n u n c a s a h i r d ' a l l i , n e m e n t r a r lá m u l h e r n e n h u -
ELEMENTO EUROPEU 43

ma. 0 príncipe cresceu, e, quando se poz moço feito,


u m a vez perguntou ao pai por que razão elle v i v i a a l l i
preso. 0 r e i l h e respondeu: « Por nada, meu filho. »
Quando foi uma vez o principe pediu ao pai para i r ou-
v i r missa. 0 r e i respondeu: «Pois b e m ; t u irás commi-
go o u v i r missa, mas ha de ser com a condição de nun-
ca olhares para traz por causa de umas diabinhas. » O
moço p r o m e t t e u e foram. Na volta o rei lhe p e r g u n t o u :
«Então, m e u filho, o que viste de mais bonito na mis-
sa? » — « Foi o altar, m e u pai. » Passou-se.
Outra vez o principe pediu ao r e i para ir ouvir mis-
sa. O r e i c o n s e n t i u ; mas o moço não pôde se conter,
e olhou para traz e ficou embebido todo o tempo, olhan-
do para as diabinhas que eram as moças. Chegando e m
casa, o r e i lhe perguntou : « Então, o que viste de mais
bonito na missa? » 0 moço respondeu: « Foram as diabi-
nhas. » 0 r e i ficou pensativo, e mandou preparar u m na-
vio para o filho i r v i a j a r ; mas com a condição de nunca
saltar em terra senão n'um reino onde não houvesse no-
ticias de seu reino nem de sua familia. 0 moço seguiu.
Chegando m u i t o longe, n'um reino onde não havia
mais noticias da terra d'elle, mandou dous criados a terra
comprar mantimentos. Os dous criados partiram ; mas
quando lá chegaram, ficaram-se esbabacados, vendo u m
leilão e m que se tinha de arrematar um papagaio muito
fallador, e que p r i v a v a os homens de serem cornudos.
0 lanço já estava m u i t o alto, e nada de se entregar o
papagaio. .
O principe poz-se a esperar e nada dos criados vol-
tarem. Mandou u m outro atraz d'elles, que também la se
ficou. Mandou segundo, e n a d a ! Afinal foi elle mesmo,
e, conhecendo o m o t i v o da demora, arrematou o papa-
gaio e foi para bordo. Seguiu viagem. Depois foi ter a
u m reino onde se casou. Desde então o papagaio nunca
mais f a l t o u ; m e t t i a a cabeça debaixo de u m a aza, e v i -
v i a a l l i triste na gaiola. 0 principe lhe queria muito bem.
44 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Uma vez teve de i r vencer umas guerras e recommendou


muito á princeza o seu papagaio, e ao papagaio a sua
mulher. Partiu.
A princeza tratava muito bem do papagaio e sempre
elle triste. Ella nunca chegava á sacada; mas uma vez
chegou por acaso e ia passando um moco que a v i u e
ficou logo muito apaixonado por ella, e voltou para casa
muito triste. Uma velha, que costumava ir pedir esmola
ao moco, o achando muito triste, lhe perguntou o que
era.- Elle respondeu que era por ler visto a mulher do
principe, que o tinha deixado doente. A velha disse :
« Oh! chente ! meu netinho ! tudo fura isso !... Eu vou ter
com ella e arranjo um modo d'ella lhe fallar. » Largou-
se para palácio e foi convidar a princeza para ser madri-
nha de um baptisado. A moça se desculpou muito, d i -
zendo que uào podia i r , porque o principe não estava
em casa. Mas a velha tanto importunou que a princeza
prometteu: « Pois sim ; vou ámanhã de tarde. »
Quando foi no dia seguinte pela tarde, a velha che-
gou; a princeza se apromptou, e já ia sahindo. Quando
passou por baixo da gaiola do papagaio, elle tirou a ca-
beça de baixo da aza, deu uma gargalhada e disse :
«Onde vai, princeza minha senhora, tão bandarranona?
Princeza minha senhora, quer ouvir uma historia de seu
papagaio ? » — « Pois não, meu papagaio! » Então elle
disse: « Oh! criadas, vão buscar a cadeira e os traves-
seiros para princeza, minha senhora, se assentar e se re-
costar para ouvir uma historia de seu papagaio. » A ve-
lha ficou fumando de raiva, e o papagaio começou:
« Uma vez havia um r e i que tinha só uma filha, a
quem deu ordem que, quando lhe fosse tomar a benção
tosse sempre muito bem prompta, e com as suas jóias.'
Assim fazia a princeza: todas as manhãs, para tomar a
benção ao rei, se preparava como si fosse a uma festa.
ü pai tinha-lhe dito que, no dia em que ella se apre-
sentasse sem os seus adornos, a mandaria prender n'uma
ELEMENTO EUROPEU 45
torre. Aconteceu, que u m principe, que estava para ca-
sar lá no seu reino, andava viajando, e, passando pelo
reino da princeza, a viu na sacada do palácio, e ficou
muito apaixonado por ella.
O principe não achou nunca um meio de fallar com
a princeza; mas sabendo do costume que ella tinira de
se apresentar para comprimentar ao pai, virou-se n'um
pássaro, e n'um dia em que ella estava botando as suas
jóias, entrou pela janella e agarrou uma d'ellas pelo bi-
co e fugiu. —• A mopa lhe disse: « Me dê a minha
joia. » — « Só se casar commigo », respondeu o pássa-
ro, e voou. — No outro dia a mesma cousa; no outro o
mesmo e assim todos os dias, até que só restava uma
joia á princeza para tomar a benpão ao pai. 0 pássaro
veio e arrancou também aquella. A mopa seguiu atraz
d'elle pedindo o aderepo, e o pássaro voando... e d i -
zendo: «Só si casar commigo. A mopa respondia sem-
pre que não, até que entraram por uma igreja a dentro,
isto já muito longe da casa de seu pai. Ahi ainda ella
pediu a joia, e o pássaro respondeu: «Só si casar com-
migo.» A princeza disse: «Só si aquelle Santo Christo
abaixar o brapo e nos casar elle mesmo.» Mal ella aca-
bára de fallar, a imagem abria os olhos, e abençoava o
casamento. Ahi o pássaro se desencantou n'um bello
principe. Seguiram d'alli todos dous. Adiante foram des-
canpar em casa de uma velha, onde a mopa pegou no
somno. O principe entrou a maginar e a ficar triste, por-
que já tinha dado a sua palavra de casar com uma outra
princeza de outro reino. Deu muito dinheiro á velha,
dizendo que quando a mopa acordasse, procurando por
elle, ella não contasse para que banda elle tinha ido e
largou-se n'uma carruagem. A mopa, quando acordou e
não achou o marido, ficou muito desgostosa e entrou a
chorar. A velha alcoviteira a enganou por muito tempo,
passeando com ella pelo j a r d i m ; mas não havia nada
que a consolasse, até que a mesma velha se v i u deses-
46 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

perada e l h e disse para que banda o principe tinha t o -


mado. A moça poz-se como uma desesperada a caminhar
atraz do marido. Adiante encontrou um c a r v o e i r o m u i t o
porco e rasgado, trocou com elle a sua roupa e seguiu.
Adiante mais encontrou o carro que i a com o principe,
que parou e l h e p e r g u n t o u : « Oh! meu carvoeiro, você
passou em casa de u m a velha?» — « Sim, senhor. » —
« Viu lá uma moça ? » — « Sim,, senhor» — « 0 q u e fazia
ella?» — « Chorava e se lastimava, d i z e n d o : Õ h prin-
cipe ingrato, q u e te foste e me deixaste!... » 0 princi-
pe, que o u v i u isto, ficou c o m m u i t a pena, e botou o car-
voeiro no carro. Todo o caminho foi-lhe perguntando a
mesma cousa, e sempre o carvoeiro respondendo o mes-
mo. Assim foram andando até á terra do principe e sem-
pre elle com o carvoeiro. Chegado o dia de seu novo
casamento, sempre elle triste e perguntando a mesma
cousa ao carvoeiro. Toda a família ficou m u i t o desgostosa-
d'aquillo, e a noiva com m u i t o ciúme; mas não t i n h a m
o que fazer, porque o principe disse que não podia v i -
ver sem o seu carvoeiro. Feito o casamento, quando
foram se deitar, o principe, com grande espanto de todos,
levou lambem para o quarto o seu carvoeirp. Deitou-se
no meio, poz a noiva de um lado e o carvoeiro de outro,
e entre ambos o seu alfange. Pegou n o somno. 0 car-
voeiro, que o v i u dormindo, pegou no alfange e se m a t o u ;
o príncipe, que o vê morto, d i z : « Meu carvoeiro morto,
eu também.» E se matou. A moça, que vê isto, d i z :
« M e u marido morto, eu t a m b é m . » E se matou. No
outro dia encontraram aquelle destroço, e foram fazer o
enterro. Quando i a m estando os corpos na sepultura,
chegou u m beija-flor e escreveu nas testas dos t r e s :
« Ninguém desfaça o q u e Deus fizer... » e d e u v i d a ao
principe e ao carvoeiro q u e se r e v e l o u como princeza e
ficou v i v e n d o com o seu marido. » O papagaio, q u a n d o
acabou de contar esta historia, disse á princeza : « Agora,
princeza minha senhora, já é tarde, e deixe-se de ha-
ELEMENTO EUROPEU 47

>tisados de velha. » A alcoviteira ficou desesperada com


> papagaio, e disse ás criadas que o botassem lá para o
erreiro. Elias o botaram, mas elle gritou tanto, até que
l> trouxeram de novo.
No outro dia veio a velha outra vez para levar a
noça para o baptisado.
A princeza se preparou, e, quando ia sahindo, pas-
ou por baixo da gaiola do papagaio, que deu uma gar-
galhada: «Como vae princeza, minha senhora, tão ban-
parranona! Princeza, minha senhora, quer ouvir uma
ristoria do seu p a p a g a i o ? » — « P o i s não, meu papa-
gaio ! » — « Oh, criadas, vão buscar a cadeira e a al-
nofada para princeza minha senhora se sentar, se re-
:-trif|. ostar para ouvir uma historia do seu papagaio. » Elle
omecou :
« Uma vez havia n'uma cidade dous ourives: o ou-
rives do ouro e o ourives da prata. O ourives do ouro
>ra casado e sua mulher muito bonita, nunca apparecia
ia janella. — Tendo elle de fazer uma viagem, apostou
com o ourives da prata que elle não era capaz de ver
(nunca a sua mulher, e se não fosse verdade perderia
odo o seu ouro; e se o ourives da prata perdesse t i -
aha de lhe dar toda a sua prata. Feita a aposta, o ou-
ives do ouro seguiu para sua viagem.
Foram-se passando os dias e nunca o ourives da
)rata pôde ver a mulher do companheiro. Estava ven-
N ílo perder a aposta, quando, indo uma velha lhe pedir
uma esmola, e o vendo triste lhe perguntou o que era,
lhe contou o caso. A velha lhe disse: « Oh! chente,
[meu netinho, não é nada; eu vou passar esta noite na
;asa d'ella, e torno-lhe bem as feições, vejo-lhe bem
bté os signaes de seu corpo e lhe venho contar. » O
ourives aceitou. Quando foi de noite a velha bateu na
porta da mulher do ourives do ouro. Vieram-lhe abrir
i porta, e ella disse que queria fallar a sua Glhinha que
ella tinha creado em seus braços. A moça ficou muito
48 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

admirada d'aquillo, p o r q u e n e m e r a d'aquella terra, mas i -


sempre appareceu e a velha lhe disse: « Oh I m i n h a ne-
tinha, depois que te peguei n'estes meus braços nunca
mais te v i ! Hoje soube que t e u marido andava de
v i a g e m e v i m passar a noite comtigo para t e fazer
companhia.» A moça, sem desconfiar nada, aceitou;
velha foi d o r m i r no quarto d'ella. — Fingiu que estava
dormindo, e, quando a moça tomou seu banho, botou-
lhe os olhos em cima, mirando bem o seu corpo para
lhe descobrir a l g u m signal.
A moça tinha u m segredo no corpo, que v i n h a a 0•
ser u m fio de cabello b e m preto, que, sahindo de u m i ;
signalzinho na coxa, l h e rodeava toda ella e v i n h a •;
m o r r e r no mesmo signalzinho. No o u t r o d i a largou-se-i-
a velha, e contou t u d o ao ourives da p r a t a : «Olhe, é
assim,
u m a moça assim.
assim, assim... t e m u m signal e m tal p a r t e , J t a j
Quando o o u r i v e s do ouro chegou, o da prata l h e
contou como era a sua mulher e até l h e r e v e l o u o se-
gredo do cabello da coxa; g a n h o u a aposta. Acabada
esta segunda historia, disse o papagaio : « Agora, prince-
za m i n h a senhora, já é tarde, e deixemos de baptisados
de velha. » A alcoviteira sahiu desesperada, desconjuran-
do do papagaio, e mandou-o pôr no l u g a r mais porco do
palácio. No dia seguinte a mesma i m p e r t i n e n c i a da ve- ;3

lha, querendo levar a moça para baptisado. 0 papagaio,


quando a princeza ia sahindo, tornou a dar u m a gargalha
da, e convidou a sua senhora para o u v i r o u t r a historia.
A historia e r a :
« U m a vez h a v i a u m r e i e uma r a i n h a ; estavam u m
dia n'uma janella do palácio e v i r a m ao longe u m b i c h i -
nho. 0 r e i disse que e r a u m coelho, e a rainha que era
u m a l e b r e : e é, não é, p e g a r a m u m a aposta que q u e m
ganhasse matava u m ao outro. Mandaram depressa v e r
por u m criado q u e bicho era, e o criado v o l t o u dizendo
que e r a u m coelho. O r e i f o i q u e m g a n h o u a aposta;
ELEMENTO EUROPEU 49

mas teve pena de matar a rainha, e mandou fazer um


caixão, botou-a dentro d'elle e mandou largar no mar.
A rainha, que estava grávida, deu á luz um menino,
que por ter nascido no mar e se ter alimentado dos goivi-
nhos das pedras, se chamou o principe Lodo. A rainha e o
principesinho foram dar n'uma tarde, onde um pescador
os encontrou e levou para sua casa. Por lá elles conta-
vam a sua historia. O rei pensando que a rainha já tinha
morrido, já se havia casado outra vez; mas ouvindo fal-
lar d'aquelle principe, meio desconfiado mandou-o cha-
mar para ouvil-o. O pescador deu duas folhinhas ao prin-
'Mi cipe, e lhe disse : « Quando lá chegar conte a sua histo-
ria direitinha ao rei, e quando elle se fòr zangando diga :
oXMÈ Esta historia era meu bisavô que contava a meu avô,

meu avô a meu pai, meu pai a. mim è eu agora a con-


to a Vossa Magestade; e cheire esta folhinha que você
ficará bem velhinho, e, quando elle for melhorando, chei-
re esta que tornará a ficar mocinho. » O principe Lodo,
chegando a palácio, o rei lhe pediu para contar a sua
. uni historia. O principe lhe contou e fez tudo o que o pesca-
dor lhe ensinou; cheirou a folha e ficou velhinho com a
cabeça branca como uma pasta de algodão 1

Acabada esta terceira historia, a velha foi-se embora


porque já era tarde, e acabou-se a funcção do baptisa-
do; porque o principe no dia seguinte voltou das guer-
ras, que se tinham acabado. Ahi o papagaio, que era
um anjo, voou para os céos.

i
1
Não nos foi possível conseguir o final d'este ultimo e
bello conto do papagaio, que por vezes ouvimos integralmente
'é em Sergipe narrado no seio de nossa família. Pedimos desculpa
por similhantes lacunas, promettendo um dia, talvez, suppril-as.
50 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

XIV
A. moura torta

(Pernambuco)

Uma vez havia um pai que tinha-tres filhos, e, não


tendo outra cousa que lhes dar, deu a cada um uma me-
lancia, quando elles quizeram sahir de casa para ganhar
a sua vida. 0 pai lhes tinha recommendado que não
abrissem as fructas senão em logar onde houvesse agua.
O mais velho dos moços quando foi ver o que dava
a sua sina, estando ainda perto da casa, não se con-
teve e abriu a sua melancia. Pulou de dentro uma moça
muito bonita dizendo : « Dai-me agua, ou dai-me leite. »
O rapaz não achava nem uma cousa nem outra, a moça
cahiu para traz e morreu.
O irmão do meio, quando chegou a sua vez, se achan-
do não muito longe de casa, abriu também a sua me-
lancia, e sahiu de dentro uma moça ainda mais bonita
do que a outra; pediu agua ou leite, e o rapaz não
achando nem uma cousa nem outra, ella cahiu para traz
e morreu.
Quando o caçula partiu para ganhar a sua vida f o i
mais esperto e só abriu a sua melancia perto de uma
fonte. No abril-a pulou de dentro uma moça ainda mais
bonita do que as duas primeiras, e foi dizendo: « QuerO
agua ou leite. » 0 moço foi á fonte, trouxe agua e ella
bebeu a se fartar. Mas a moça estava núa, e então o ra-
paz disse a ella que subisse n'um pé de arvore que ha-
via alli perto da fonte, em quanto elle ia huscar a rou-
pa para ella. A moça subiu e se escondeu nas ramagens.
Veio uma moura torta buscar agua, e, vendo na agua o
retrato de uma moça tão bonita, pensou que fosse o seu
ELEMENTO EUROPEU 51

e pôz-se a dizer: « Que desaforo! pois eu sendo uma


m o ç a tão bonita, a n d a r c a r r e g a n d o a g u a !... »
A t i r o u com o pote n o chão. e arrebentou-o. C h e g a n -
do e r a c a s a s e m a g u a e nem p o t e l e v o u u m repellão
m u i t o forte, e a s e n h o r a m a n d o u - a b u s c a r a g u a o u t r a
v e z ; m a s n a fonte fez o m e s m o , e q u e b r o u o outro po-
te. T e r c e i r a v e z fez o m e s m o , e a m o ç a n ã o s e p o d e n d o
conter deu u m a gargalhada.
A m o u r a torta, espantada, olhou p a r a c i m a e d i s s e :
« A h ! é você, m i n h a n e t i n h a ! . . . Deixe eu l h e c a t a r
u m p i o l h o . » E foi logo t r e p a n d o p e l a a r v o r e a r r i b a , e
foi c a t a r a cabeça d a m o ç a . Infincou-lhe u m alfinete, e
a m o ç a v i r o u n'uma p o m b i n h a e avooic! A m o u r a torta
então ficou no l o g a r d'ella. O m o ç o , q u a n d o c h e g o u ,
a c h o u .aquella m u d a n ç a t a m a n h a e e s t r a n h o u ; mas a
m o u r a torta l h e disse : « 0 q u e q u e r ? foi o s o l q u e m e
q u e i m o u !... Você custou tanto a v i r me b u s c a r ! »
Partiram, p a r a o palácio, a o n d e s e c a s o u . A p o m b i -
n h a então c o s t u m a v a a v o a r por perto do palácio, e s e
p u n h a no j a r d i m a d i z e r : « J a r d i n e i r o , j a r d i n e i r o , c o m o
vae rei, m e u senhor, c o m a s u a m o u r a torta ? » E f u g i a .
Até q u e o j a r d i n e i r o c o n t o u ao rei, que, m e i o desconfia-
do, m a n d o u a r m a r u m laço de d i a m a n t e p a r a prendel-a,
m a s a p o m b i n h a não c a h i u . Mandou a r m a r u m de ou-
ro, e n a d a ; u m de prata, e n a d a ; afinal u m de visco, e
e l l a cahiu. F o r a m l e v a l - a q u e m u i t o a a p r e c i o u . Passados
tempos, a m o u r a torta fingiu-se p e j a d a e pôz m a t t o s
a b a i x o p a r a c o m e r a p o m b i n h a . No d i a em q u e d e v i a m
botal-a n a p a n e l l a , o r e i , c o m p e n a , s e pôz a catal-a, e
encontrou-lhe aquelle c a r o c i n h o n a c a b e c i n h a , e p e n s a n -
do s e r u m a p u l g a , foi p u x a n d o e s a h i u o alfinete e pu-
lou lá a q u e l l a m o ç a l i n d a c o m o os a m o r e s . 0 r e i co-
n h e c e u a s u a b e l l a p r i n c e z a . C a s a r a m - s e , e a m o u r a tor-
ta m o r r e u a m a r r a d a n o s r a b o s d e d o u s b u r r o s b r a v o s , I
l a s c a d a p e l o meio.
52 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

XV
Maria Borralheira

(Sergipe)

Havia um homem viuvo que tinha uma filha chama-


da Maria; a menina, quando ia para a escola, passava por
casa de uma viuva, que tinha duas fdhas. A viuva cos-
tumava sempre chamar a pequena e agradal-a muito.
Depois de algum tempo começou a lhe dizer que faltasse
e rogasse a seu pai para casar com ella. A menina pe-
gou e fallou ao pai para casar com a viuva, porque « ella
era muito boa e agradável. »
O pai respondeu : « Minha filha, ella hoje te dá pa-
pinhas; ámanhã te dará de fel.» Mas a menina sempre
vinha com os mesmos pedidos, até que o pai contractou
o casamento com a viuva. Nos primeiros tempos ainda
ella agradava á pequena, e, ao depois, começou a mal-
tratal-a.
Tudo o que havia de mais aborrecido e trabalhoso
no tracto da casa era a orphã que fazia. Depois de mo-
cinha era ella que ia á fonte buscar agua, e ao matto
buscar lenha ; era quem accendia o fogo, e vivia muito
suja no borralho. D'ahi lhe veio o nome de Maria Borra-
lheira. Uma vez para judial-a a madrasta lhe deu uma
tarefa muito grande de algodão para fiar e lhe disse que
n'aquelle dia devia ficar prompta. Maria tinha uma va-
quinha, que sua mãe lhe tinha deixado; vendo-se assim
tão atarefada, correu e foi ter com a vaquinha é lhe
contou, chorando, os seus trabalhos.
A vaquinha lhe disse : « Não tem nada; traga o algo-
dão que eu engulo, e quando botar fóra é fiado e prom-
pto em novellos. » Assim foi. Em quanto a vaquinha en-
gulia o algodão, Maria estava brincando. Quando foi de
ELEMENTO EUROPEU 53

tarde, a vaquinha deitou para fóra aqueila porção de no-


vellos tão alvos e bonitos ! . . . Maria, muito contente,
botou-os no cesto e levou-os para casa. A madrasta fi-
cou muito admirada, e no dia seguinte lhe deu uma ta-
refa ainda maior. Maria foi ter com a sua vaquinha, e
ella fez o mesmo que da outra vez. No outro dia a ma-
drasta deu á mocinha uma grande tarefa de renda para
:
fazer; a vaquinha, como sempre, foi que a salvou, en-
golindo as linhas e botando para fóra a renda prompta
e muito alva e bonita. A madrasta ainda mais admirada
ficou.
D'outra vez mandou ella buscar um cesto cheio
í d'agua. xMaria Borralheira sahiu muito triste para a fon-
te, e foi ter com a vaquinha que lhe encheu o cesto,
que ella levou para casa. D'ahi por diante a madrasta de
•• Maria começou a desconfiar, e mandou as suas duas fi-
f lhas espiarem a moça. Ellas descobriram que era a va-
quinha que fazia tudo para a Borralheira. D'ahi a tem-
s pos a mulher se fingiu pejada e com antôjos e desejou
i- comer a vaquinha de Maria. O marido não quiz consen-
tir ; mas por fim teve de ceder á vontade da mulher que
era uma tarasca desesperada.
Maria Borralheira foi e contou á vacca o que ia acon-
tecer ; ella disse que não tivesse medo, que, quando fos-
se o dia de a matarem, Maria se oíferecesse para ir la-
var o fato; que dentro d'elle havia de encontrar uma
varinha, que lhe havia de dar tudo o que ella pedisse ;
e que depois de lavado o fato, largasse a gamella pela
correüte abaixo e a fosse acompanhando; que mais
adiante havia de encontrar um velhinho muito chagado
je com fome; lavasse-lhe as feridas e a roupa, e lhe dés-
se de comer, que mais adiante havia de encontrar uma
casinha com uns gatos e cachorrinhos muito magros e
com fome, e. a casinha muito suja, varesse o cisco e
désse de comer aos bichos, e depois de tudo isso vol-
tasse para casa. Assim mesmo foi.
54 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

No dia que a madrasta de Maria quiz que se matas-


se a vaquinha, a moca se oífereçeu para i r lavar o fato
no r i o . A madrasta l h e disse com desprezo : « O chente !
q u e m havia de i r se não t u , porca ? » Morta a vacca, a
Borralheira seguiu com o fato para o r i o ; lá achou
-
nas tripas a varinha de condão, e guardou-a. Depois de
lavado o fato botou-o na gamella e largou-a pela cor- :
renteza abaixo, e a foi acompanhando. Adiante encon-
trou u m v e l h i n h o muito chagado e morto de fome e su-
j o . Lavou-lhe as feridas, e a roupa, e deu-lhe de comer.
Este v e l h i n h o era Nosso Senhor. Seguiu com a gamella.
Mais adiante encontrou uma casinha m u i t o suja e desar-
rumada, e com os cachorros e gatos e gallinhas m u i t o é
magros e mortos de fome. Maria Borralheira deu de co-
m e r aos bichos, v a r r e u a casa, a r r u m o u todos os tras-
tes e escondeu-se atraz da porta. D'ahi a pouco chega-
r a m as donas da casa, que eram tres velhas tatas. 1

Quando v i r a m aquelle beneficio, a mais moca d i s s e : té


« Manas, f a i e m o s ; faiemos, m a n a s : p e r m i t t a a Deus 0
que q u e m tanto bem nos fez lhe apparecam uns chapins t 1.7
de ouro nos pés. » A do meio disse : « Manas, faiemos,
m a n a s ; p e r m i t t a a Deus que quem tanto bem nos fez
lhe nasça u m a estrella de ouro na testa. » A mais velha
disse : « Faiemos, manas: permitta a Deus que q u e m tan-
to bem nos fez, quando fallar lhe sáiam faíscas de ouro !

da bocca. » Maria, que eslava atraz da porta, appare- Iras


ceu já toda formosa com os chapins de ouro nos pés, e
estrella de ouro na testa, e quando fallava sahiam-lhe
da bocca faíscas de ouro. A m a r r o u u m lenço na cabeça,
fingindo doença, para esconder a estrella, e t i r o u os
chapins dos pés, e foi-se embora para casa. Quando lá
chegou, entregou o fato e foi para o seu borralho. Pas-
sados alguns dias, as filhas da madrasta l h e v i r a m a es-
trella e perceberam as faíscas de ouro que l h e sabiam
1
Gagás, tartamudas.
ELEMENTO EUROPEU 55

da bocca, e foram contar á mãi. Ella ficou com m u i t a


inveja, e disse ás filhas que indagassem da Borralheira
o que é que se devia fazer para se ficar assim.
Ellas perguntaram e Maria disse: « É m u i t o fácil;
vocês peçam para i r e m também uma vez lavar o fato
de uma vacca no rio ; depois de lavado botem a gamei-
la com elle pela correnteza abaixo e vão acompanhan-
do ; quando encontrarem u m velhinho m u i t o feridento,
mettam-lhe o páo, e dêem muito ; mais adiante, quando
encontrarem uma casa com uns cachorros e gatos m u i t o
magros, emporcalhem a casa, desarrumem tudo, dêem
nos bichos todos, e escondam-se atraz da porta, e dei-
xem estar que, quando vocês sahirem, hão de v i r com
chapins e estrellas de ouro. » Assim f o i .
As moças contaram á mãe, e ella lhes deu u m fato
para i r e m lavar no rio. As moças fizeram tudo como
Maria Borralheira lhes tinha ensinado. Deram muito no
velhinho, emporcalharam a casa e deram muito nos b i -
chos das velhas, e se esconderam atraz da porta. Quan-
do as donas da casa chegaram e v i r a m aquelle destroço,
a mais moça disse : « Manas, faiemos, m a n a s : p e r m i t t a
a Deus que quem tanto m a l nos fez lhe appareçam-cas-
cos de cavallo nos pés. » A do meio disse : « Permitta
Deus que quem tanto mal nos fez lhe nasça u m rabo de
cavallo na testa. » A terceira disse : « Permitta Deus que
quem tanto m a l nos fez, quando fallar lhe sâia por quei-
ra de cavallo pela bocca. » As duas moças, quando sa-
íram de detrás da porta já v i n h a m preparadas com seus
enfeites. Quando fallaram ainda mais sujaram a casa das
velhinhas. Largaram-se para casa,'e quando a mãi as
viu ficou m u i t o triste. — Passou-se. Quando foi depois,
houve tres dias de festa na cidade, e todos de casa i a m
á igreja, menos a Borralheira que ficava na cinza. Mas,
depois de todos sahirem, ella logo n o p r i m e i r o d i a pe-
i na sua v a r i n h a de condão e disse: « Minha v a r i -
i de condão, pelo condão que Deus vos deu, dai-me
56 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

um vestido da côr do campo com todas as suas flores.»


De repente a p p a r e c e u o v e s t i d o . Maria p e d i u t a m b é m
uma linda carruagem. Apromptou-se e seguiu. Quando
entrou n a i g r e j a , todos ficaram p a s m a d o s , e s e m s a b e r
q u e m s e r i a a q u e l l a m o ç a tão b o n i t a e tão r i c a . A h i
uma das filhas d a m a d r a s t a d i s s e á m ã i : « Olhe, m i n h a
mãi, p a r e c i a Maria. » A m ã i botou-lhe o lenço n a b o c c a
por c a u s a d a s u j i d a d e q u e e s t a v a s a h i n d o , m a n d a n d o
que ella s e c a l a s s e , q u e a s v i s i n h a s já e s t a v a m p e r c e -
bendo. Acabada a festa, q u a n d o c h e g a r a m e m casa, Ma-
ria jd estava lá valha, m e t t i d a no b o r r a l h o . A m ã i
1

lhes d i s s e : « O l h e m , m i n h a s filhas, a q u e l l a p o r c a alli


está, não e r a ella, n ã o ; onde i a e l l a a c h a r u m a r o u p a
tão rica ? » No outro d i a f o r a m todas p a r a a festa e Ma-
r i a ficou ; mas q u a n d o todas se a u s e n t a r a m , e l l a p e g o u
na v a r i n h a de c o n d ã o e d i s s e : « M i n h a v a r i n h a de con-
dão, pelo condão que D e u s v o s deu, dai-me u m v e s t i d o
de côr do m a r com todos os s e u s p e i x e s , e u m a c a r r u a -
g e m a i n d a m a i s r i c a e b e l l a , que a p r i m e i r a . » Appare-
ceu l o g o tudo, e e l l a se a p r o m p l o u e s e g u i u . Q u a n d o lá
c h e g o u , o p o v o ficou esbabacado p o r tão l i n d a e r i c a
m o ç a , e o filho do r e i ficou m o r t o por ella. Botou-se
cerco p a r a a pegar na v o l t a , e n a d a de a p o d e r e m pegar.
Q u a n d o a s o u t r a s p e s s o a s c h e g a r a m e m c a s a , Maria já
lá e s t a v a m e t t i d a no s e u b o r r a l h o . A h i u m a d a s m o ç a s
lhe d i s s e : « Hoje v i u m a m o ç a na i g r e j a q u e s e p a r e c i a
comtigo, M a r i a ! » E l l a r e s p o n d e u : « E u !... q u e m s o u
e u p a r a i r á festa ? . . . U m a pobre c o z i n h e i r a ! » No ter-
ceiro dia, a m e s m a c o u s a ; Maria então p e d i u u m v e s t i -
do d a côr do céo com todas a s s u a s estréllas, e u m a c a r -
r u a g e m a i n d a m a i s rica. A s s i m foi, e a p r e s e n t o u - s e n a
festa. Na v o l t a o rei t i n h a m a n d a d o pôr u m c e r c o m u i -
to a p e rJá t a estava
d o p a rha
a amuito.
garral-a; porém ella escapoliu, e na
1

c a r r e i r a l h e c a h i u u m c h a p i m do pé, q u e o p r i n c i p e apa-
ELEMENTO EUROPEU 57
ihou. Depois o rei mandou correr toda a cidade para
vér se achava-se a dona d'aquelle chapim, e o outro seu
companheiro. Experimentou-se o chapim nos pés de to-
üas as moças e uada. Afinal só faltavam i r á casa de
Viária Borralheira.,Lá foram. A dona da casa apresentou
as filhas que tinha ; ellas, com seus cascos de cavallo,
qnasi machucaram o chapim todo, e os guardas grita-
ram: «Virgem Nossa Senhora! Deixem, deixem!...»
Perguntaram si não havia alli mais ninguém. A dona da
casa respondeu : « Não, ahi tem somente uma pobre co-
zinheira, porca, que não vale a pena mandar chamar.»
Os encarregados da ordem do rei respondem que a or-
dem era para todas as moças sem excepção e chamaram
pela Borralheira. Ella veio lá de dentro toda prompta
como no ultimo dia da festa ; vinha encantando tudo;.
foi mettendo o pésinho no chapim e mostrando o outro.
Houve muita alegria e festas; a madrasta teve u m ata-
que e cahiu para traz, e Maria foi para palácio e casou
com o filho do rei.
XVI
A. 3Xíi<Ii-ítf»tíi

(Sergipe)

Havia um homem viuvo que tinha duas filhas peque-


s, e casou-se pela segunda vez. A mulher era muito
m á para as meninas; mandava-as como escravas fazer
todo o serviço e dava-lhes muito.
Perto de casa havia uma figueira que estava dando
figos, e a madrasta mandava as enteadas botar sentido
aos figos por causa dos passarinhos.
58 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Alli passavam as crianças dias inteiros, espantando-os


e cantando:
Xô, xò, passarinho,
Ahi não toques teu biquinho,
Vae-te embora p'ra teu ninho... »
Quando acontecia apparecer qualquer figo picado, a
madrasta castigava as meninas. Assim foram passando
sempre maltratadas. Quando foi uma vez, o pai das me-
ninas fez uma viagem, e a mulher mandou-as enterrar
vivas. Quando o homem chegou, a m u l h e r lhe disse que
as suas filhas tinham cahido doentes e l h e t i n h a m dado
grande trabalho, e tomado muitas mésinhas, mas sem-
pre tinham m o r r i d o . 0 p a i ficou m u i t o desgostoso.
Aconteceu que nas covas das duas meninas, e dos
cabellos d'ellas, nasceu u m capinzal m u i t o verde e boni-
to, e quando dava o vento o capinzal d i z i a :
«Xô, xò, passarinho,
Ahi não toques teu biquinho,
Vai-te embora p'ra teu ninho... »
Andando o capinheiro da casa a cortar capim para os
cavallos, deu com aquelle capinzal m u i t o bonito, mas te-
ve medo de o cortar, p o r o u v i r aquellas palavras. Cor-
rendo f o i contar ao senhor.
O senhor não o q u i z acreditar, e mandou-o cortar
aquelle mesmo capim, porque estava m u i t o grande e
verde. 0 negro f o i cortar o capim, e quando m e t t e u a
fouce o u v i u aquella voz sahir de baixo da terra e can-
tando :
« Capinheiro de meu pai,
Não me cortes os cabellos;
Minha mãi me penteava,
Minha madrasta me enterrou
Pelo figo da figueira
Que o passarinho picou.»
ELEMENTO EUROPEU 59
O negro, que O u v i u isto, c o r r e u p a r a c a s a a s s o m b r a -
lo, e foi contar ao s e n h o r que o não quiz acreditar, até
jue o n e g r o i n s t o u tanto que e l l e m e s m o v e i u , e m a n -
jando o n e g r o metter a fouce, t a m b é m o u v i u a c a n t i g a
lio fundo da terra. Então m a n d o u c a v a r n'aquelle logar
í encontrou as s u a s d u a s filhas a i n d a v i v a s por m i l a g r e
àe N o s s a S e n h o r a , que e r a m a d r i n h a d'ellas. Quando
i h e g a r a m em c a s a a c h a r a m a m u l h e r m o r t a por castigo.

XVII
O Papagaio do Liino Verde
(Sergipe)

Uma vez havia, n'um logar retirado d'uma cidade,


uma v e l h a que t i n h a tres f i l h a s : u m a de um só olho, ou-
tra de dous, e outra de tres. Perto da c a s a d a v e l h a h a v i a
uma outra casa, onde m o r a v a u m a m o ç a m u i t o bonita. Por
esta m o ç a n a m o r o u - s e o p r i n c i p e r e a l do r e i n o do L i -

Imo V e r d e , que a v i s i t a v a todas as noites, e l h e e s t a v a


dando m u i t a s r i q u e z a s . A v e l h a v i s i n h a entrou a descon-
fiar d'aquellas r i q u e z a s , e, u m a vez por outra, i a á ca-
sa d a m o ç a p a r a ver se p i l h a v a a l g u m a cousa, e nada...
U m a v e z s u a filha m a i s velha, que t i n h a tres olhos,
l h e d i s s e : « M i n h a mãi, m e deixe i r p a s s a r a noite na
casa da v i s i n h a que e u d e s c u b r o o segredo. » A v e l h a
concordou, e a m o ç a dos tres olhos foi. C h e g a n d o lá
disfarçou: « Ó v i s i n h a , ha m u i t o t e m p o que não lhe
v e j o ; v i m hoje p a s s a r a noite com você. » — « Pois não,
v i s i n h a ! a c a s a está ás ordens,» r e s p o n d e u a b e l l a na-
m o r a d a . Q u a n d o foi na h o r a de i r e m dormir, a d o n a da
c a s a deu á s u a c o m p a n h e i r a , em l o g a r de chá, uma dor-
mideira. A m o ç a dos tres olhos ferrou no s o m n o c o m o
u m a p e d r a ; r o n c o u toda a noite e não v i u nada.
60 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

0 principe real do Limo Verde veiu, como de cos-|


lh,"- -f

tume, encantado n'um grande e lindo papagaio; foi che-


gando e batendo com as azas na janella do quarto; a
namorada abriu-a, e elle foi dizendo: «Dai-me sangue, í<
dai-me leite, ou dai-me agua!» A mopa apresentou-lhe > ;

um banho n'uma grande bacia; o papagaio cahiu dentro


da agua á se arrufar e bater com as azas; cada pingo
d'agua que lhe cahia das pennas era um diamante, e as-
sim é que a mopa ia ficando cada vez mais rica. O pa-
pagaio, no banho, desencantou-se n'um lindo principe,
que passou a noite com a sua namorada. De madruga-
dinha tornou a virar em papagaio, bateu azas e foi-se
embora. A mulher dos tres olhos não v i u nada; voltou
para casa e disse á mãi que tudo eram boatos falsos, e
que na casa da visinha não havia novidade.
D'ahi a tempos a irmã de dous olhos se oíTereceu pa- II
ra ir passar também uma noite na casa da visinha; foi
e chupou da dormideira, pegou no somno, e veiu o pa- ê,
pagaio, e ella nada viu. Voltou para casa sem descobrir
o segredo. Passados dias, a mopa de um só olho se of-
fereceu á mãi, dizendo: « Agora, minha mãi, minhas i r -
mãs já foram, e eu quero lambem i r descobrir o segre-
do. » As irmãs capoaram muito d'ella: « Quando nós, que r.
temos mais olhos do que tu, não vimos nada, quanto m
mais tu, que tens um só!... » Emfim a velha consentiu,
e a sua filha de um só olho foi. Chegando lá, fez muita
festa á rica visinha, e, quando foi a hora da ceia, fingiu
que bebia a dormideira, e derramou-a no seio. Deitou-se
e fingiu que estava dormindo. Lá para alta noite chegou
o grande e bonito papagaio, batendo com as azas na ja-
nella; a dona da casa abriu, e elle se desencantou n'um |
mopo m u i t o formoso, e, como das outras vezes, dentro
da bacia do banho ficou muito ouro e muitos brilhantes
que a namorada guardou. A sujeitinha de um olho só
via tudo caladinha. No outro dia bem cedinho largou-se
para casa e contou tudo á mãi. No dia seguinte a v
ELEMENTO EUROPEU 61

sf ha foi quem veiu passar a noite na casa da moca. Quan-


to entrou para o quarto de dormir disfarçou e collocou
imas navalhas bem afiadas na janella por onde tinha
le entrar o papagaio. Elle, quando veiu se cortou todo
ias navalhas e disse para a namorada: « A h ! Maria in-
grata, nunca mais me v e r á s ; só se mandares fazer uma
•oupa toda de bronze e andares até ella se a c a b a r . . . »
íateu azas, e voou. A moça, que não esperava por aquil-
o, ficou muito desgostosa, e logo comprehendeu a razão
Ias visitas d'aquella gente á sua casa. Mandou fazer uma
a- oupa toda de bronze, e com chapéo, sapatos e bastão
-

ambem de bronze, e largou-se pelo mundo a procurar


]) reino do Limo Verde. Depois de muito andar, sem
ringuem lhe dar noticia, foi ter a casa do pai da Lua.
á chegando disse a que ia. O pai da Lua a recebeu
nuito bem, lhe disse que só sua filha lhe poderia dar
:i::ii|aoticia de tal terra, que elle não sabia; mas que ella,
puando vinha para casa, era muito aborrecida e zangada
sàiikom todos, que portanto a peregrina se escondesse bem
Escondida. Assim foi. Quando ella chegou, veio muito en-
joada, dizendo: « Aqui me fede a sangue real! » O pai a
Jenganou, dizendo: « Não, minha filha, aqui não veiu nin-
puem, foi um frango que eu matei para nós cearmos.»
A Lua tomou banho e se desencantou n'uma prince-
aza muito formosa e foi para a mesa cear. Ahi o pai dis-
ise: « Minha filha, se aqui viesse uma peregrina indagar
Jpor uma terra, tu o que fazias ? » — « Mandava entrar
tratava muito bem, e se está ahi appareça. » A moça
feppareceu e disse a sua historia. A Lua lhe respondeu
; i jue andára muitas terras; mas que d'aquella nunca t i -
i lha ouvido nem fallar; mas o Sol havia de saber. A
r. moça se despediu, e, na sahida, a Lua lhe deu de pre-
. sente uma almofadinha de fazer rendas toda de ouro,
com os bilros de ouro, alfinetes de ouro et cetra tudo
, cie ouro. A moça seguiu. Ao depois de muito andar, e es-
% tando já com os vestidos de bronze quasi acabados,
f
62 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

chegou á casa da mãi do Sol. Entrou e disse ao que i a ,


A mãi do Sol a tratou m u i t o b e m ; disse que D ã o sabia
onde era aquella t e r r a ; mas seu filho havia de saber,
porque andava m u i t o ; o que tinha era que quando v i -
nha para casa era m u i t o zangado, queimando tudo, e quer
ella se escondesse bem. Assim foi. Quando o Sol veiu,, 1

foi aquelle quenlurào de acabar tudo, e dizendo: « A q u i


me fede a sangue real, aqui me fede a sangue r e a l ! »Í
A mãi o enganou dizendo que tinha sido uma gallinha
que tinha preparado para o jantar. 0 Sol t o m o u seu ba-
nho e se desencantou n'um bello principe. Na mesa a
mãi lhe disse: « M e u filho, se a q u i viesse u m a p e r e g r i - j
na, perguntando p o r uma terra, t u o que f a z i a s ? » — -
«Mandava entrar e tratava m u i t o b e m . » A moça ap-
pareceu e disse o que queria. 0 Sol l h e respondeu q u e ]
nunca tinha ouvido fallar em s i m i l h a n t e terra, que só
o Vento Grande poderia saber d'ella, porque andava
mais do que elle. — A moça se despediu, e, na sabida,
o Sol l h e d e u uma g a l l i n h a de ouro, com uma ninhada
de pintos todos de ouro, e v i v o s e andando. A moça
seguiu viagem e foi ter, depois de m u i t o trabalho, á casa
do p a i do Vento Grande. Lá chegando disse ao que i a , * v
e o velho pai do Vento Grande respondeu que não s a - f L í

b i a ; mas que seu filho havia de saber, o que t i n h a


era que, quando vinha, era como doido, botando tudo
abaixo, e que a moça se amarrasse bem n'um esteio
da casa. Assim ella fez. 0 Vento Grande quando veio 11 i
chegando era aquelle zoadão, que fazia medo, botando
muros e telhados abaixo, e d i z e n d o : « Aqui me fede a
-angue r e a l ! » — « Não é nada, meu filho, f o i u m ca-
pão para nossa ceia. » Assim o velho foi enganando até
que elle tomou o banho e se desencantou n'um m o ç o |
m u i t o bello. Na mesa o p a i l h e disse: « S e a q u i viesse J-.::
uma peregrina, t u o que fazias ? » — «Mandava entrar
e tratava bem.» A moça appareceu e disse o que que-
r i a . O Vento Grande respondeu : « Ô c h e n t e ! ainda ago-
ELEMENTO EUROPEU 63
a passei por lá; é perto. Monte-se áraanhã na minha
acunda, e, onde avistar u m pé de arvore m u i t o gran-
e e copudo na frente de u m palácio m u i t o rico, agar-
e-se nos galhos, deixe-me passar que é ahi. » No d i a se-
uinte, quando o Vento Grande p a r t i u , a moça montou-
le na cacunda e seguiram.
Depois de m u i t o voar p o r muitas terras e reinos,
vistou ó pé de arvore na frente d'um grande palácio;
Vento logo de longe f o i dizendo: « É a l l i ; agarre-se
os galhos, sinão eu a levo para ofimdo mundo. » As-
i m a moça f e z ; agarrou-se n'um galho da arvore, e o
Fento seguiu. Ella desceu e pôz-se em baixo da arvore,
naginando u m meio de entrar no palácio para v e r o
rincipe, o u ter noticias d'elle. — Com pouco chegaram
^es rolinhas e se puzeram a conversar nos galhos da ar-
ore. Disse uma d'ellas: «Manas, não sabem? O p r i n - '
ipe real do Limo Verde está m u i t o m a l ; talvez não es-
ape. » Disse o u t r a : « E o que será bom para elle?» Res-
ondeu a t e r c e i r a : « Alli não ha mais remédio; as feri-'
as que elle recebeu na guerra são tres e não saram;
ó se pegarem â nós tres, nos tirarem os coraçõezi-
hos, t o r r a r e m e moerem, e deitarem o pó nas feridas. »
moça o u v i u toda a conversa das rolas; armou u m la-
o e pegou todas t r e s ; matou-as, t i r o u os corações,
)rrou-os e fez u m pósinho e guardou. — Lá no reino
nha-se espalhado a noticia de que o principe estava á
orte de umas feridas recebidas n'umas guerras. Não
chando u m meio de entrar no palácio, a peregrina t i -
DU para fóra a almofada de ouro, e se pôz a fazer ren-
a. Veiu passando uma criada do palácio, v i u e foi d i -
?r á rainha, mãi do principe : « Não sabe, rainha m i -
lha senhora, a l l i fóra está uma peregrina cora uma a l -
ofada de ouro, com birros de ouro, fazendo renda
1

1
Não é o ehapéo dos cardeaes, nem o byrrho coleoptero,
uma transformação de Miro, o bilro conhecidissimo.
64 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

t a m b é m d e ouro, cousa m a i s 'linda q u e dar-se p á d e


Só vosmecê possuindo... » A r a i n h a m a n d o u p e r g u n t a
á peregrina quanto queria pela almofada. A moca res
p o n d e u : « Para ella não é nada; basta me deixar d o r '
m i r u m a noite n o quarto do p r i n c i p e q u e está d o e n t e . j
A c r i a d a foi d a r a r e s p o s t a ; m a s a r a i n h a ficou rnuit»
i n s u l t a d a e não quiz. Mas a c r i a d a l h e d i s s e : « 0 que
tem, r a i n h a m i n h a s e n h o r a ? o p r i n c i p e m e u s e n h o
está tão m a l q u e n e m c o n h e c e m a i s n i n g u é m ; q u e m a
faz q u e a q u e l l a tola d u r m a lá no quarto n o c h ã o ? )
A r a i n h a c o n c o r d o u ; foi a a l m o f a d a de o u r o p a r a pâla
cio, e a p e r e g r i n a d o r m i u n o quarto do doente. Log(
nesta p r i m e i r a noite e l l a lavou b e m as feridas q u e 1
p r i n c i p e t i n h a no peito, e botou n'ellas o pó d o s c o r a
ções d a s r o l i n h a s ; mas o p r i n c i p e a i n d a não deu côr dt
•si, e não a c o n h e c e u . No d i a s e g u i n t e a m o ç a foi outra
vez p a r a debaixo da a r v o r e , e p u x o u p a r a fóra a galli
n h a de o u r o c o m os pintinhos, q u e s e p u z e r a m a a n d a r p
A c r i a d a v e i u p a s s a n d o e v i u . C o r r e u logo p a r a palacielís
e d i s s e : « Ó r a i n h a m i n h a senhora, a p e r e g r i n a estolr •
c o m u m a g a l l i n h a de o u r o c o m u m a n i n h a d a de p i n t o s j c
tudo v i vinho e andando... Q u e c o u s a b o n i t a ! Só r a i n h a j t e
m i n h a s e n h o r a , possuindo...» A r a i n h a m a n d o u p r o l ' :
pôr negocio. A m o ç a d i s s e q u e n ã o e r a n a d a ; b a s t a v a i
d e i x a r ella d o r m i r m a i s d u a s noites n o q u a r t o do priníu
cipe. A r a i n h a n ã o q u e r i a ; m a s a c r i a d a a r r a n j o u tudoJo:
e a m o ç a foi d o r m i r no quarto do p r i n c i p e , e d e u a g a l J i s
linha e os pintos d e o u r o . Na s e g u n d a noite q u e e l l a l .
d o r m i u e m palácio, a m o ç a c o n t i n u o u o tratamento, a ;
a h i o p r i n c i p e f o i m e l h o r a n d o e já a i a c o n h e c e n d o . N w i
t e r c e i r a noite a c a b o u o c u r a t i v o e o p r i n c i p e ficou bom.It!
Depois q u e ficou d e todo c o m saúde, s a h i u do q u a r t o p
e apresentou á r a i n h a e a o r e i a p e r e g r i n a c o m o s u a p
n o i v a , e a s s i m s e d e s m a n c h o u o c a s a m e n t o q u e já lhel
t i n h a m a r r a n j a d o c o m u m a p r i n c e z a v i s i n h a . H o u v e mui-
ta festa n a cidade e no palácio... E eu (isto d i z p o r s u a \
ELEMENTO EUROPEU 65
,1
• i
conta o narrador popular) trouxe de lá uma panellinha
de doce para lhe dar (referindo-se á pessoa a quem con-
tou a historia), mas a lama era tanta que alli na ladei-
ra dos Quiabos escorreguei e cahi e lá foi-se o doce.

Entrou por uma porta,


Sahiu por um pé de pato ;
Manda o rei, meu senhor,
Que me conte quatro.

XVIÍI
João Gurumete
(Pernambuco)

Mi Havia u m sapateiro muito tolo que tinha uni*discí-


míà pulo, que o aconselhava. Uma vez o sapateiro, botando
u m caco c o m g o m m a para esfriar, cahiram n'elle sete
moscas, que ficaram presas e morreram. 0 discípulo, ven-
v
do aquillo, aconselhou ao mestre que escrevesse e m le-
tras grandes n a cópa de seu chapéo: João Gurumete
que de um golpe matou sele. Assim elle fez.
0 povo quando v i u aquillo ficou pensando que o sa-
pateiro e r a u m homem muito valente. Aconteceu que
appareceu u m bicho bravo, que andava acabando tudo,
comendo a gente. Era u m bicho de sete cabeças e sete
línguas; todos os dias elle v i n h a buscar sua porção de
gente, e, de sete e m sete, já tinha acabado os meninos
da cidade e estava devorando as donzellas. 0 r e i man-
dou suas tropas acabar com o bicho, mas nada puderam
fazer. Foram dizer ao r e i que havia n a cidade u m ho-
m e m muito destemido que só d'um golpe tinha matado
sete, e que só elle é que podia dar cabo do bicho. 0
rei mandou chamar o João Gurumete e o mandou aca-
bar com aquella fera. 0 sapateiro ficou m u i t o assustado
06 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

m a s n ã o deu a e n t e n d e r a o r e i , e disse q u e i a m a t a r o
m o n s t r o . S a h i n d o d a presença do r e i , foi t e r c o m o dis-
cípulo, q u a s i chorando, q u e o v a l e s s e , q u e d'esta feita 1
elle m o r r e r i a . O discípulo l h e d i s s e : « N ã o t e m n a d a ;
lá o n d e s e e n c o n t r a o b i c h o h a u m a i g r e j a v e l h a ; você
c o r r a , q u a n d o o avistar, e e n t r e pela i g r e j a a dentro, e
saia p o r um b u r a c o q u e t e m n o fundo, e d e i x e e s t a r •
q u e o bicho h a d e e n t r a r t a m b é m , e então você f e c h e
a porta, e elle fica p r e s o lá d e n t r o e m o r r e d e fome, e
está a c a b a d a a historia. » João G u r u m e t e ficou m u i t o
c o n t e n t e e p a r t i u ; m u i t a g e n t e o a c o m p a n h o u p a r a vêr :
a m o r t e do m o n s t r o . Q u a n d o o G u r u m e t e a v i s t o u o b i -
cho m e t t e u - s e n o m u n d o l a r g o n'uma desfilada e e n t r o u
pela i g r e j a a dentro. O bicho-fera o a c o m p a n h o u e e n -
trou t a m b é m . O s a p a t e i r o s a h i u pelo b u r a c o q u e h a v i a
no. fundo da igreja, e o bicho, p o r s e r m u i t o g r a n d e ,
não pôde p a s s a r p o r a l l i . O p o v o q u e e s t a v a d a b a n d a 1
d e fóra fechou a porta, e o a n i m a l m o r r e u lá d e n t r o d e i
fome. João, então, c o r t o u - l h e a s sete cabeças e foi l e v a r j
ao rei, q u e l h e d e u o titulo de c o n d e e m u i t o d i n h e i r o .
Passou-se.
Q u a n d o foi d e o u t r a v e z a p p a r e c e r a m tres g i g a n t e s
h
m u i t o g r a n d e s e temíveis q u e e s t a v a m a s s o l a n d o tudo, í r
m a t a n d o e roubando, e n i n g u é m p o d i a d a r c a b o d'elles. íitii
A v i s a r a m ao r e i q u e só o G u r u m e t e e r a c a p a z de aca-
b a r c o m a q u e l l a peste. O r e i mandou-o c h a m a r e l h e
e n c a r r e g o u d e l i v r a r a c i d a d e d e tanto flagello. O s a p a - Btíl
teiro d'esta v e z s a h i u m a i s m o r t o d o q u e v i v o , e fo
ter c o m o s e u d i s c i p u l o , d i z e n d o : « A g o r a s i m , e s t o u
p e r d i d o ; a q u e l l e b i c h o s e m p r e e r a b i c h o e f o i fácil
e n g a n a r ; m a s e s t e s g i g a n t e s são gente, e c o m o e u h e i d e
a c a b a r c o m e l l e s ? D'esta e u m e vou...» O d i s c i p u l o l h e
d i s s e : « N ã o t e m n a d a ; vá e s c o n d i d o ; a n t e s d o s g i g a n t e s
c h e g a r e m , trepe-se n'um pé d e a r v o r e , o n d e e l l e s c o s t u -
m a m c o m e r e descançar, e a m a r r e lá e m c i m a tres pedras
m u i t o g r a n d e s q u e c o r r e s p o n d a m á cabeça d e c a d a um.
ELEMENTO EUROPEU 67

Quando elles estiverem dormindo, corte a corda de uma


pedra e deixe cahir a pedra em cima da cabeça do pri-
meiro ; depois a outra, e depois a outra, e deixe estar.»
João Gurumete partiu; chegando na tal arvore muito
grande, avistou logo as tres covas, que já havia no chão,
feitas pelo peso dos corpos dos gigantes, por alli dormi-
rem. Pegou em tres pedras muito pesadas e amarrou lá
em cima em tres galhos da arvore, que correspon-
<1B. diam ás cabeças dos tres gigantes, e trepou-se também
lá muito quietinho e escondido nas folhas. Quando os
IB5É gigantes vinham chegando foi aquelle zoadão, e o Guru-
mete teve tanto medo que quasi roda de cima em baixo.
Os gigantes lá chegaram, e quasi baliam com as cabe-
ças onde estava o mestre sapateiro. Alli comeram e be-
beram a rachar; Qcaram muito tontos, se deitaram e
pegaram no somno. Ahi o João cortou a corda de uma
das pedras que cahiu bem em cima da cabeça de um
d'elles, que acordou e disse: «Má está a historia; vocês
já começam com a's brincadeiras, já estão me dando co-
corotes . Tornaram a pegar no somno. Ahi o Gurumete
1

pegou e cortou as cordas de outra pedra, que bateu na


cabeça de outro gigante, e elle pensando também que
era algum cocorote dado por um dos camaradas, zan-
gou-se muito, e disse que se a cousa continuasse elle
ia ás vias de facto. Fizeram muita algazarra e tornaram
a pegar no somno. D'ahi a pedaço o sapateiro largou a
derradeira pedra, que bateu na cabeça do terceiro. Elles
não tiveram mais duvida, não, bateram mão nos alfan-
ges e avançaram um para o outro, e brigaram até fi-
carem todos tres estendidos no chão. João Gurumete
desceu, cortou as cabeças dos tres e levou-as para mos-
trar ao rei.

1
Assim chama-se a pancada dada na cabeça com os de-
dos fechados e com força; é differente do cafunê, que é um es-
talo doce dado com as unhas na cabeça.
68 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Houve muitas festas; o conde Gurumete recebeu o


titulo de g e n e r a l e m u i t o d i n h e i r o , e ficou m u i t o rico.
Passou-se.
D'ahi a t e m p o s s a h i r a m u m a s g u e r r a s p a r a o r e i
v e n c e r , e a s tropas d o r e i e s t a v a m já q u a s i a c a b a d a s e
m o r t o o g e n e r a l Lacaio, e m q u e m o s s o l d a d o s t i n h a m
m a i s a n i m o . 0 r e i ficou m u i t o d e s a n i m a d o , e o s conse-
l h e i r o s l h e d i s s e r a m q u e n ã o h a v i a remédio senão c h a -
m a r o g e n e r a l c o n d e João G u r u m e t e , que de um golpe
matou sete. 0 r e i mandou-o c h a m a r p a r a i r v e n c e r a s
g u e r r a s , e então l h e h a v i a d e d a r s u a filha e m c a s a -
mento. D'esta feita o s a p a t e i r o q u a s i c a e p a r a t r a z de
m e d o . F o i ter c o m o d i s c i p u l o e d i s s e : « 0 b i c h o e os
g i g a n t e s e r a m tolos, e a g o r a a s g u e r r a s c o m f e r r o e fo-
go. .. Valha-me D e u s ! » 0 antigo d i s c i p u l o o a n i m o u ,
dizendo : « Vista-se c o m a fardamenta do g e n e r a l L a c a i o ,
monte-se n o s e u c a v a l l o e d e i x e e s t a r o r e s t o . »
O G u r u m e t e p a r t i u ; lá n o a c a m p a m e n t o d o s s o l d a d o s
não s a b i a m a i n d a d a m o r t e do g e n e r a l L a c a i o , p o r q u e
os e n g a n a v a m d i z e n d o q u e e l l e t i n h a i d o á côrte f a l l a r
c o m o r e i . G u r u m e t e metteu-se n a f a r d a m e n t a de L a c a i o ,
m o n t o u - s e b e m a r m a d o n o c a v a l l o d'elle, e a v a n ç o u
p V a frente. 0 cavallo disparou, e o sapateiro, que não
s a b i a m o n t a r , i a c a h i n d o e poz-se a g r i t a r : « Lá cáio, lá
cáio, lá cáio !... » Os soldados, q u e o u v i r a m isto, s u p -
p u z e r a m q u e e r a s e u antigo g e n e r a l , a v a n ç a r a m c o m
força e d e r r o t a r a m os i n i m i g o s . A s s i m a c a b a r a m - s e a s
g u e r r a s , ficando G u r u m e t e p o r vencedor, e casou-se c o m
a filha d o r e i . N a noite d o c a s a m e n t o h o u v e u m a g r a n -
de festa, e o a n t i g o s a p a t e i r o b e b e u de mais, e q u a n d o
foi s e d e i t a r , c a h i u n a c a m a c o m o u m p o r c o roncando,
e pôz-se a s o n h a r a l t o : « P u x a m a i s e s t e ponto, b a t e
e s t a s o l a , e n c e r a a l i n h a , o l h a a tripeça!» A p r i n c e z a
ficou m u i t o e s p a n t a d a e -desgostosa e q u e i x o u - s e a o p a i
no outro d i a q u e e s t a v a c a s a d a c o m u m s a p a t e i r o , tanto
q u e e l l e t i n h a s o n h a d o toda a noite c o m o s objectos de
ELEMENTO EUROPEU 69
sua tenda. O rei mandou ficar tropa á espreita e disse á
filha: « Se elle esta noite sonhar como hontem, me avi-
sa que elle será preso e morto. » O discipulo de Guru-
mete soube d'isto e o avisou : « Olhe que você está p'ra
levar a carepa, se esta noite sonhar com cousas da ten-
da, como na noite passada; não beba hoje nada; e quan-
do for p Y a cama finja que está dormindo e sonhando
com uma guerra, grite aos soldados, pegue na espada,
risque pelas paredes, e deixe estar.» Assim fez.
Na cama fingiu que dormia, poz-se a gritar, com-
mandando as tropas, pegou na espada e quasi feriu a
princeza que teve um grande susto. O rei, que ouviu is-
to, ficou muito satisfeito e reprehendeu a filha, dizendo:
« Estás casada com um grande homem, um valente guer-
reiro, e me andas com historias de sapateiro! não me
repitas outra.» D'ahi por diante Gurumete dormiu em paz,
sonhando sempre com suasXIXsolas e sapatos.

jManoel da Bengala
(Sergipe)

Uma vez um rei teve um filho que nasceu logo muito


grande e robusto. Nofimde oito dias já o menino comia
um boi inteiro. O rei ficou muito assustado e mandou
chamar os conselheiros para lhe dizerem o que se ha-
via de fazer, pois aquelle filho lhe acabava com toda a
fortuna. Os conselheiros foram da opinião que o rei man-
dasse o filho procurar a sua vida. 0 principe pediu que
lhe mandasse fazer uma bengala de ferro muito grossa
e pesada, u m machado e uma fouce também grandes e
pesadas, e partiu.
Chegando a casa de u m senhor de engenho, pediu
70 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

serviço, e o dono da casa o aceitou. Foi o moço derru-


bar uma roça e deitou com tres ou quatro fouçadas quasi
todas as mattas do engenho e m baixo. O dono ficou
m u i t o assustado, e não o quiz mais no seu serviço.
Além d'isto, na hora de jantar, o principe não quiz o co-
m e r que lhe deram p o r não chegar nem para o buraco
de u m dente, e pediu u m boi e u m alqueire de farinha.
O senhor do engenho, pensando que elle não podesse
comer tudo, mandou dar-lhe para o experimentar, e ain-
da mais espantado ficou quando o v i u devorar tudo, e
o despediu.
Voltou o principe para o palácio de seu pai. A h i es-
teve alguns dias, até que o rei mandou de novo r e u n i r
os conselheiros, que foram de opinião que o rei man-
dasse o principe pegar seis leões bravos nas mattas.
Jsto era para v e r se os leões d a v a m cabo d'elle. O moço
pediu u m carro e uma j u n t a de bois. Chegando nas
mattas dos leões passou lá seis dias. Em cada d i a ma-
tava um boi do carro e pegava u m leão, botava no lo-
gar, e o amansava. Depois cortou umas arvores m u i t o
grandes e botou no carro e largou-se para traz. Quando
o r e i o v i u foi aquelle zoadão que parecia q u e queria
v i r tudo abaixo. E r a o barulho das arvores e dos leões
que v i n h a m com Manoel da Bengala. Assim se ficou cha-
m a n d o o principe, por causa da bengala de ferro. Afinal
o r e i ordenou-lhe q u e ganhasse o m u n d o e não lhe vol-
tasse mais em casa. O principe p a r t i u .
Chegando adiante v i u u m h o m e m passando u m rio
cheio, mas sem se molhar, e disse: «Adeus, Passa-váo. »
— « Adeus, Manoel da Bengala. » — « Passa-váo, você
quer andar n a m i n h a companhia? » — « Quero. » —
«Apois então me passe para banda de lá. » Passa-
váo o passou e seguiram juntos. Mais adiante encontra-
r a m u m h o m e m cortando m u i t o cipó e emendando para
fazer u m laço, e Manoel da Bengala disse : « Adeus, Ar-
ranca-serra. » — « Adeus, Manoel da Bengala.» — « Ar-
ELEMENTO EUROPEU 71

ranca-serra, você quer andar commigo ? . . . » — «Apois


não, Manoel da Bengala! » — « Entonce vamos. » E par-
tiram.
Cada dia um dos tres ia buscar comida para todos.
Quando foi uma vez, Passa-váo foi buscar mantimento e
encontrou no caminho um moleque muito preto, de ca-
rapuça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo.
Passa-váo não quiz dar, e o moleque trepou-lhe o cachim-
bo na cabeça e o derrubou no chão, como morto. D'ahi
a muito tempo é que elle veiu a si, voltou e contou aos
companheiros o que lhe tinha acontecido. Arranca-sprra
disse: «Ora, Passa-váo, você é muito mofino; amanhã
quem vai sou e u . » Assim foi. Quando andava por lon-
ge, appareceu-lhe aquelle moleque da cabeça de latão,
que lhe pediu fogo para o cachimbo. Elle não quiz dar,
e travaram lucta; o moleque arrumou-lhe com o cachim-
bo na cabeça e o deitou por terra. D'ahi a muito tempo .
é que elle deu accordo de si e voltou para os outros.
Manoel da Bengala o debicou muito, chamando-o de mo-
fino, e no dia seguinte quando foi buscar mantimento
foi elle. Lá bem longe encontrou o moleque da cabeça
de latão, que lhe disse : « Como vai, Manoel da Bengala?»
«Vou bem; você como está?» — «Bom ; muito obrigado,
Manoel da Bengala, você me dá fogo para o meu cachim-
b o ? » — «Não te dou, moleque ; sae-te d'aqui. » E met-
teu-lhe a bengala e o moleque metteu-lhe o cachimbo.
Travaram uma briga desesperada. Afinal Manoel da Ben-
gala arrumou-lhe uma cacetada na cabeça, e arrancou-
lhe a carupuça de latão. 0 moleque, então, dizia: « Ma-
noel da Bengala, me dê minha carapuça. » — « Nao te
dou, moleque. » E assim foram andando, até que Manoel
da Bengala lhe disse: « Só te dou a carapuça se me de-
res as tres princezas que tu tens presas.» Ahi o mole-
que, que era o cão, respondeu: « Isto nao, porque nao
são minhas.» E foram andando até que o moleque en-
trou por um buraco a dentro, e Manoel da Bengala enfiou
72 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

atraz. La dentro- foram dar n'um palácio muito rico, ond^


havia um engenho em que estavam trabalhando muitas |
pessoas. Era o inferno. E sempre o moleque a pedir a ca-
rapuça de latão, e o principe a pedir as princezas. O cão,
que conheceu que não podia com a vida d'elle, deu-lhe
as moças; mas o principe lhe disse: « Agora só lhe dou a
carapuça si me botar lá fóra no meu caminho. » 0 mole-
que não quiz e elle metteu-lhe a bengala. Afinal consen-
tiu. Mas os companheiros, que tinham ficado da banda de
fóra do buraco, logo que viram sahir as tres moças que o
cão tinha levado para fóra, fugiram com ellas, querendo
enganar a Manoel da Bengala, que as queria para casar
com uma, e dar aos outros-a cada um a sua. Quando elle
chegou fóra, deu a carapuça de latão ao demônio, e este 5*Bi
1

sumiu-se. Elle procurou as moças, não as encontrou, e fi-


cou desapontado. Os dous companheiros de Manoel da
Bengala tinham ido com ellas, que eram princezas, para
as entregar ao rei, seu pai, e dizerem que elles é que as
tinham salvado, e por isso deviam se casar com ellas. O
IQ
rei ficou muito alegre com a chegada das filhas que não
via ha muito tempo, mas as moças muito tristes e a cho-
rar, dizendo ao pai que não tinham sido aquelles que as
tinham salvado. Manoel da Bengala tinha tres lenços que *
as moças lhe tinham dado; pegou n'um d'elles e disse:
«Avôa e vai cahir no collo de tua dona.» O lenço virou-
se n'um papagaio e voou e foi cahir no collo da princeza
mais velha e lá virou-se no lenço outra vez. A princeza
ficou^ muito contente e disse : « Eu só me caso com o do-
no d'este lenço.» Manoel da Bengala pegou no outro len-
ço e disse : « Avôa e vai cahir no collo de tua dona.» O
lenço virou-se n'um papagaio e foi cahir no collo'/da
princeza do meio. Ella ficou muito contente e disse: «Eu
só me caso com o dono d'este lenço. » Manoel da Bengala
então pegou no terceiro lenço e disse: « Avôa e bota-me
na casa das tres princezas.» De repente lá se achou. Hou-
ve muita alegria; elle se casou com a mais bonita das
ELEMENTO EUROPEU 73
moças, e os o u t r o s d o u s f o r a m e x p u l s o s , d e p o i s de mui-
Ito castigados, e a s d u a s p r i n c e z a s se c a s a r a m c o m ou-
tros príncipes.

XX
Chico Ramela
(Sergipe)

Uma vez um homem tinha tres filhos. Cada um por


sua v e z s a h i u p a r a g a n h a r a s u a vida, i n d o p r i m e i r o o
m a i s v e l h o e ao depois os outros d o u s . 0 p r i m e i r o t i n h a
u m p é de l a r a n g e i r a e d i s s e : « Q u a n d o o m e u p é de la-
r a n g e i r a começar a m u r c h a r , m e a ç u d a m , q u e e u e s t o u
e m perigo.» E l l e g a n h o u o m u n d o e foi d a r n a c a s a de
u m a princeza, q u e t i n h a d u a s irmãs p a r e c i d a s com ella.
Lá chegando, pediu rancho e l h e foi d a d o ; m a s n a ho-
r a d a c e i a a m o ç a p e g o u c o m elle u m a aposta, d i z e n d o
que q u e m c o m e s s e m a i s s e r i a s e n h o r do outro. 0 m o ç o
concordou e puzeram-se na mesa. A m o ç a comeu muito
e, q u a n d o não pôde m a i s , p e d i u licença p a r a i r lá den-
tro, e m a n d o u u m a de s u a s irmãs a s u b s t i t u i r . Esta v e i u
e c o m e ç o u a c o m e r , e o m o ç o , q u e a n ã o t i n h a visto, a
t o m o u p e l a p r i m e i r a . Afinal elle não pode m a i s e a r r i o u ,
e ficou por captivo. Lá e m s u a c a s a e n t r o u a m u r c h a r
o s e u p é d e l a r a n g e i r a , e o irmão do m e i o f o i ao p a i
e d i s s e : « M e u pai, m e u irmão m a i s v e l h o está e m pe-
rigo e e u q u e r o i r e m s o c c o r r o d'elle. » — « Pois bem,
v a i ; m a s tu o q u e q u e r e s — m i n h a maldição c o m m u i t o
d i n h e i r o , ou m i n h a benção c o m p o u c o ? » — « A maldição
c o m m u i t o . » 0 m o ç o partiu, e, ao s a h i r , disse : « Quan-
do o m e u pé de l i m e i r a começar a m u r c h a r me a ç u d a m
q u e e u e s t o u e m perigo. » S a h i u e a n d o u muito. F o i
ter j u s t a m e n t e e m c a s a d a p r i n c e z a onde s e a c h a v a p r e -
74 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

so o seu irmão. Lá pediu rancho, e na hora da j a n t a


lhe aconteceu o mesmo que ao outro, ficou também pre-
so, mas não sabia um do outro. Lá em sua casa entrou
a murchar o seu pé de limeira. 0 irmão caçula f o i ao
pai e pediu para i r em procura de seus dous irmãos O
pai fez a pergunta que havia feito ao outro, e elle res-
pondeu pedindo a benção. Seguiu Chico Ramela, assim
era o seu nome, adiante encontrou uma velhinha que era gr-
Nossa Senhora a sua madrinha, que lhe ensinou onde
estavam seus irmãos, e o que costumava a princeza fa-
zer para prender a q u e m lá ia, e disse que elle aceitasse
a aposta, mas não deixando a moça se levantar da mesa.
Lá chegando, elle executou tudo o que a velhinha lhe
aconselhou e ganhou a aposta; mas não quiz a princeza
por sua captiva, se contentando em soltar todos os presos
que lá se achavam. Os irmãos ficaram muito satisfeitos
e seguiram todos tres juntos.
Mais adiante os dous mais velhos se revoltaram con-
tra o caçula e lhe fizeram a traição de lhe tomarem t u -
do que l e v a v a e o captivarem. Compraram cavallos e
seguiram levando a Chico Ramela por escravo. Foram
dar n'um reino onde uns bichos ferozes v i n h a m to-
das as noites estragar e devorar as hortas e jardins do
rei, e não havia q u e m pudesse dar cabo d'elles. Os dous
irmãos de Chico Ramela se foram offerecer para matar
os taes animaes, e nada poderam fazer. Afinal o Chico
foi-se offerecer e f o i aceito. Foi d o r m i r nas hortas do
rei, munido de uma viola, que poz-se a tocar para não
pegar no somno. Lá p V a terça noite elle o u v i u aquelle
zoadão que v i n h a acabando tudo. Eram os animaes fe-
rozes. Eram tres cavallos encantados. Chegaram ás hor-
tas do r e i e não puderam entrar porque o moço se apre-
sentou em frente d'elles. Cada um pediu por sua vez
uma folha de couve, que o moço deu. Então o p r i m e i r o
cavallo disse: « Quando se achar em a l g u m perigo, d i g a :
Valha-me o meu cavallo baio encerado das crinas pre-
ELEMENTO EUROPEU 75

tas.» E p a r t i u . O outro disse : « Quando se ache n'algum


perigo, d i g a : Valha-me o meu cavallo i a são da estrella
{branca.» Partiu. O terceiro disse : « Quando se achar
!
in'algum perigo d i g a : Valha-me o meu cavallo ruco-pom-
ho das canas pretas. » E sumiu-se. No dia seguinte ap-
pareceram os jardins e hortas do r e i perfeitinhos, e Chi-
co Ramela com muito dinheiro e seus irmãos fugidos e
corridos de vergonha.
Tempos depois, a filha do rei declarou que só se ca-
sava com o moço que, montado a cavallo, e m toda a
desfilada, subisse as sete escadarias do palácio e lhe ti-
rasse o cravo que ella tinha no cabello. Marcou-se o dia
para esta ceremonia e nenhum pude conseguir lá chegar.
Então Chico Ramela disse: « Valha-me o meu cavallo
^ baio encerado das crinas pretas.» De repente lhe appa-
I receu aquelle cavallo todo arreiado de prata que fazia
I inveja a todos, e élle partiu a toda a bride. Chegando
I a palácio o cavallo galgou tres escadarias e voltou. To-
I dos ficaram muito admirados porque foi o cavallo mais
I bonito que appareceu e o cavalleiro que chegou mais
s alto. No dia seguinte também ninguém nada conseguiu,
9 e Chico Ramela disse: «Valha-me o m e u cavallo lazão
1 da estrella branca!» Appareceu o cavallo todo arreiado
I de ouro e o moço partiu. Galgou cinco escadarias e v o l -
1 tou. Todos ficaram ainda mais espantados e a princeza
I já se sentia apaixonada. No terceiro dia a mesma cousa,
e ninguém conseguiu chegar onde estava a princeza.
Então Chico Ramela disse: «Valha-me o meu cavallo
ruço-pombo das canas pretas! » Appareceu aquelle caval-
lo lindo de fazer medo, todo arreiado de diamantes. Hou-
ve bravos geraes; o moço passou pela princeza e m to-
da a desfllada, o cavallo trepou as sete escadarias, fez
u m a mesura, e o moço tirou o cravo dos cabellos da mo-
ça. Teve logar o casamento; houve muitas festas, e os
irmãos do Chico desappareceram envergonhados.
76 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

XXI
-A. Sapa, casada 1

(Sergipe)

Uma vez havia ura homem que tinha tres filhos. 0 li-
mais velho d'elles lá n'um dia foi ao pai e disse: « Meu i í
pai, eu já estou moço feito, vossa mercê já está velho, e J *
por isso eu quero i r ganhar a minha vida.» — « Pois bem, l
meu filho; mas tu o que queres — a minha benção com |
pouco dinheiro, ou a rainha maldição com muito ?» O
moço respondeu: « A sua maldição com muito.» Assim W "
foi, e o moço partiu. Depois de andar muitas terras e 1
passando sempre contrariedades casou-se. Um anno de- p
pois o seu irmão do meio foi ao pai e lhe disse que !>
também queria i r ganhar a sua vida. O pai lhe fez a ' -
mesma pergunta que ao primeiro, e o moço respondeu
como elle e partiu. Depois também de muito viajar e
soífrer, casou-se. D'ahi a um anno o irmão caçula tam-
bém pediu ao pai para ir ganhar a sua vida. O pae per-
guntou-lhe se queria a benção com pouco dinheiro, ou I i t
a maldição com muito. O moço quiz a benção, e seguiu 5
caminho. Depois de andar algum tempo ouviu uma voz j o
muito bonita, estando elle a descançar perto de uma la-
goa. O moço ficou muito maravilhado e disse que se ca- i t>
saria com a dona d'aquella voz, fosse lá ella quem fosse.
De repente elle se viu n'um palácio muito rico e appa-
1
O sapo
receu-lhe umaordinário ó o Bufo
sapa para casarcinereus, o sapo
com elle. d'agua
O moço Pelo-
casou-
se, imas
fuscus.
ficou muito triste. Ora, passando algum° tempo,
elle e os irmãos tiuham de i r visitar a família, pois
isso mesmo tinham contractado com os paes. N'um certo
ELEMENTO EUROPEU 77
dia todos tres tinham que se apresentar. Todos tinham
rjue levar presentes mandados por suas mulheres, e o
apaz mais moço, casado com a sapa, andava muito afíli-
cto sem ter o que levar. A sapa lhe disse que lhe désse
inhas que ella queria apromptar umas rendas para man-
dar á sogra. O moço deu uma gargalhada e atirou-lhe
as linhas na agua. A sapa gritou todo o dia dentro da la-
goa, formando muita espuma e o moco desesperado. Mas,
••«59
|quando foi no dia, apparecu-lhe uma renda tão linda co-
mo elle nunca tinha visto. O moco partiu. Houve muita
alegria lá na casa dos paes, e o presente mais bonito
foi o levado pelo caçula, pelo que os irmãos ficaram com
muita inveja. Despediram-se os mocos para voltar para
suas casas, e os paes lhes pediram para no dia tal volta-
rem, levando cada u m sua mulher. Ahi os dous filhos
mais velhos ficaram mais contentes, porque já rosnava
por lá que o caçula tinha-se casado com uma sapa. O
mais moço nada disse, e andava em casa muito triste,
3B[
pensando na vergonha por que ia passar se apresentando
com uma sapa por mulher. Quando foi no dia da viagem
; Ç5! VÍI a sapa pulou para fóra da lagoa com um rancho enorme
de sapos e sapinhos, e poz-se a caminho com o moço,
elle a cavallo e ella n'um carro de boi com seu acompa-
nhamento. O moço ia muito triste. Mas, quando se apro-
ximaram da casa, a sapa se desencantou e virou-se n'uma
princeza, a cousa mais bonita que dar-se podia, e todos
os sapinhos n'uma grande porção de criados e criadas.
Foi uma festa muito grande, e as duas mulheres dos ou-
tros moços de inveja e vergonha cahiram para traz, e
morreram.
78 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

XXII

C o v a cia L i n d a Flor
(Rio de Janeiro)

Houve n'outro tempo u m r e i que tinha o habito d


jogar, e todos com quem j o g a v a perdiam. Uma vez c o n v i
dou a u m outro r e i para jogar, e, no dia marcado, este
se apresentou; mas perdeu todas as mãos do jogo, até
que se desenganou e despediu-se para se i r embora. 0
dono da casa, que o desejava matar, marcou-lhe u m ou-
tro dia para i r a 'palácio, o que era seu costume fazer
com todos com q u e m jogava.
0 outro foi avisado d'isto, e dirigiu-se a u m ermitão»
para lhe aconselhar o que havia de fazer para evitar a L
morte. Este, não sabendo o conselho que lhe havia de
dar, mandou que fosse ter com o u t r o segundo seu irmão,
que ainda o enviou para terceiro. Este u l t i m o aconselhou \i
ao r e i que se puzesse debaixo de u m a a r v o r e , q u e l h e
indicou, e que tivesse cuidado nos pássaros que n'ella
se assentassem, afim de apanhar u m escripto que u m
d'elles levaria n o bico e largaria no chão, e que elle se-
guisse o q u e o tal escripto ensinasse. Assim fez. Enca-
minhou-se á arvore indicada, sentou-se debaixo, e d'ahi
a u m a hora vieram chegando os pássaros, até que tam-
bém chegou u m que linha o peito amarello que trazia o] ^'
escripto, e o largou. 0 r e i apanhou o papel, e leu as se-
guintes p a l a v r a s : « 0 rei com quem jogaste t e m tres fi-
lhas encantadas, que hão de i r se lavar n o r i o , virando-] | J
se e m tres patas. Põe-te escondido na beira d o r i o até
que ellas c h e g u e m ; depois que ellas tirarem a roupa pa-
ra se banharem, deves apanhar a roupa d a u l t i m a que se
despir e esconder-te corn ella. Depois do banho as p r i n -
cezas hão de procurar a sua roupa, e a mais moça, não
encontrando a sua, ha de ficar m u i t o afflicta e promet-
ELEMENTO EUROPEU 79

ter livrar de todo o mal a quem lh'a restituir.» Assim


fez. Seguindo para a beira do r i o , se escondeu até que
chegaram as tres princezas irmãs; tiraram todas tres as
suas roupas, puzeram-se nuas, viraram-se em tres patas
e atiraram-se ao rio. Depois que se f a r t a r a m de banhar-se
sahiram da agua para se vestirem e tornarem para o pa-
lácio. As duas que t i n h a m roupa vestiram-se; a mais
moça, como faltasse a sua para fazer o mesmo, ficou
desesperada por não poder seguir suas irmãs. Como des-
confiasse que lhe tinham escondido a roupa, e não en-
xergando pessoa alguma, pediu a quem lh'a tivesse tira-
do q u e lh'a entregasse; porém o rei se fez surdo e não
appareceu. Pediu a princeza pela segunda vez e n a d a ;
pediu pela terceira, promettendo a quem lh'a entregasse
de l i v r a r do m a l que tivesse de lhe acontecer. Então sa-
hiu o r e i do esconderijo onde estava e dirigiu-se para a
princeza, dizendo: «Aqui está a vossa roupa q u e eu t i -
nha escondido afim de m e l i v r a r , p o r vossos conselhos,
da morte que vosso pai me quer dar.» A moça respon-
deu : « Tenho p o r costume c u m p r i r o que prometto, e
d'isto não m e afasto; m e u nome é Cova da Linda Flor;

I
hoje é o dia que tendes de i r á casa do r e i m e u p a i ;
chegando lá batei na porta, ella vos será aberta; assu-

bireis até chegardes á porta da sala, a q u a l achareis


também fechada; batei, por dentro vos abrirão, ao abrir
encostai-vos na parede para vos esconder a dita p o r t a ;
não vos assusteis com u m foguetão que ha de sahir da
sala, que é para darfimá vossa v i d a ; passando o fo-
guetão, entrai na sala e fallai com o r e i , m e u pae. » As-
sim fez. Quando o rei j u l g a v a que o foguetão tinha dado
cabo do outro, f o i que este se apresentou em sua frente.
Ficou o pai das princezas m u i t o massado por ser aquelle
o p r i m e i r o que tinha escapado d'aquelle trama. Orde-
1

1
O povo faz de trama masculino; ó o que se dá com ta-
pa, palavras que os diccionarios dão como gênero feminino.
80 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

nou-lhe então que fizesse amanhecer o seu palácio n


meio do mar, sob pena de perder a vida. 0 rei jurad
recolheu-se ao seu aposento no palácio muito triste
pensativo, temendo perder a vida no dia seguinte. Diri-
gindo-se então a princeza para onde estava elle, per-
guntou-lhe a causa da sua tristeza. Respordeu que t i -
nha de perder a vida no dia seguinte, si não fizesse ap-
parecer o palácio no meio do mar, conforme seu pai
lhe tinha ordenado. Ella lhe prometteu que d'essa vez
ainda não morreria; que dormisse descançado, que quan-
do amanhecesse estaria no meio do mar. O que tudo
aconteceu com admiração de todos. Como o pai da Cova 1

da Linda Flôr não pudesse d'esta segunda vez matar o


rei, seu companheiro, ordenou-lhe que désse conta d'um
annel que sua mulher tinha perdido no mar, com pena
de perder a vida no dia seguinte. Retirou-se o hospede
ao seu aposento outra vez triste e pensativo; o que sa-
bendo a princeza, para lá se dirigiu e perguntou-lhe o
motivo. «Tenho de morrer ámanhã si não der conta de
um annel que a rainha vossa mãi perdeu no mar. » A
mopa prometteu-lhe que estivesse descanpado, que tinha
de achar o annel. Deu então ao rei uma varinha, indi-
cando-lhe uma lage que havia no mar, que, quando
amanhecesse, se dirigisse á dita lage e batesse com a
varinha, que havia de comepar a sahir os peixes que es-
tavam no fundo da lage, que havia de ver um de papo
amarello, que o agarasse e o abrisse que dentro encon-
traria o annel. Assim foi. Tudo se passou como a prin-
ceza ensinou; arranjado o annel o rei foi leval-o ao ou-
tro que logo o reconheceu e percebeu que isto eram ar-
tes da Cova da Linda Flôr, e resolveu acabar também
com ella. Porém a mopa adivinhando isto foi ter ao apo-
sento do seu protegido e lhe disse que fosse á estrebaria
de seu pai, que lá encontraria tres cavallos, um muito
gordo e grande que andava como a agua, outro mais
abaixo na figura que andava como o vento, e outro ainda
ELEMENTO EUROPEU 81
mais abaixo que andava como o pensamento, que elle
pegasse n'este e viesse para fugirem ambos. Indo o rei
á estrebaria, não encontrou o que lhe disse a moca e
pegou no cavallo do meio, que andava como o vento, o
que desagradou bastante á princeza. Como já fosse per-
to do dia, montaram-se ambos no cavallo, e fugiram.
Amanhecendo, o rei achou falta de sua filha e indo ao
quarto do outro rei, também o não encontrou, indo tam-
bém à estrebaria não encontrou o cavallo que andava
como o vento. Mandou apparelhar o cavallo que andava
como o pensamento, e seguiu atraz dos fugitivos. Quan-
do os estava para alcançar, a princeza fez virar o caval-
lo em que fugia n'um estaleiro, a sella n'um toro de
pau, o freio n'uma serra, o r e i em cima do estaleiro e el-
la em baixo, ambos com a serra na m ã o a serrar. Che-
gando o rei, perguntou se tinham visto passar u m ho-
mem com uma moça na gar-upa. A resposta que teve f o i :
« Serra, serra, serrador. Eu também sei serrar. » Cança-
do de perguntar e sem ter uma resposta, o rei voltou
desapontado. Chegando contou á rainha o que tinha en-
contrado, ao que ella disse : «És muito innocenle; o es-
taleiro é o cavallo, o toro a sella, o freio a serra, e os
dous eram o r e i e a nossa filha. » O rei volta para ver
se os pegava; no caminho já não encontrou mais os
serradores. Seguiu, e quando já estava a pegar os fugi-
tivos, estes se viraram n'uma ermida, dentro d'ella u m
altar, no altar uma imagem, ao pé do altar um ermilão
rezando em um rosário. Perguntando-lhe o r e i si tinha
visto passar u m homem com uma moça na garupa, a
resposta do frade e r a : « Padre nosso, Ave Maria. » Can-
jcado o r e i de perguntar, voltou de 'rédea, e foi-se em-
bora. Chegando á casa contou á rainha o acontecido, ao
eme esta respondeu: «És muito t o l o ; a ermida era o
cavallo, o altar a sella, a imagem a princeza, o ermitão
o rei, que voltes quanto antes.» 0 r e i partiu, e pelo ca-
minho não encontrou mais ermida, nem ermitão. Depois
6
82 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

de muito andar encontrou uma roseira com uma rosa,


p e r g u n t o u á mamangaba se tinha visto passar p o r alli
u m homem a cavallo com uma mopa na garupa. A ma-
mangaba voou em torno da r o s a ; assim uma segunda
vez. Na terceira pergunta ella voou em cima do r e i e
deu-lhe uma ferroada. 0 r e i - v o l t o u desapontado, con-
tou á rainha o que se tinha passado, e ella lhe respon-
deu : « És ainda m u i t o t o l o ; a roseira e r a a sella, a rosa
nossa filha, o cercado o cavallo, a mamangaba o r e i , por-
tanto volta quanto antes. » O r e i não quiz voltar, e a
rainha de zangada pediu a Deus que o r e i f u g i t i v o fosse
i n g r a t o com sua filha e a desprezasse. Assim aconteceu.
Depois que estiveram residindo n'uma cidade por a l g u m
t e m p o se separaram, e o r e i esqueceu de todo a Cova
da Linda Flor.
Então elle contractou casamento com outra princeza,
e quinze dias antes do casamento mandou fazer annun-
cios para se apresentarem as pessoas que melhores do-
ces soubessem fazer. Entre as que se apresentaram ap-
pareceu u m a mopa que se encarregou de fazer um ca-
sal de pombas que fallassem, com a condição de serem
postas em cima de uma mesa diante de todo o povo na
véspera do casamento. 0 rei concordou e no dia marcado
mandou chamar todo o povo da cidade para presenciar
aquella fonção . Estando todos presentes, disse a p o m b a
1

para o pombo: « P o m b o , não te alembras quando o r e i ,


meu pai, te convidou para jogar, para procurar um meio
de te matar, e t u para te livrares escondeste a m i n h a rou-
pa, quando fui me banhar no r i o , e eu te p r o m e t t i l i v r a r
de todo o perigo si me désses a roupa? Pombo, não t e
alembras quando meu pai te chamou ao seu palácio para
te tirar a vida, e te salvaste p o r meus conselhos? Não
te alembras quando elle te ordenou que fizesses amanhe-
cer seu palácio no meio do mar, e depois q u e lhe dés-
1
Funcção.
ELEMENTO EUROPEU 83
ses c o n t a de u m a n n e l que m i n h a m ã i t i n h a p e r d i d o
t a m b é m no mar, sob p e n a de p e r d e r e s a vida, o que t u -
• do c o n s e g u i s t e por m e u s c o n s e l h o s ? N ã o te a l e m b r a s
q u a n d o fugimos, p a r a e s c a p a r da morte, no c a v a l l o q u e
c o r r i a tanto c o m o o vento, e, sendo p e r s e g u i d o p o r m e u
pai, nos s a l v a m o s por m e u s e n c a n t o s ? N ã o te a l e m b r a s
q u e isto a c o n t e c e u por tres v e z e s , q u e n a u l t i m a nos
v i r a m o s n'uma r o s e i r a com u m a r o s a , e u m a m a m a n -
gaba, que tudo fiz p a r a te s a l v a r a v i d a , e tu i n g r a t o
m e e s q u e c e s t e e vaes-te c a s a r com outra ? 0 p o m b o i a
l a l e v a n t a n d o a cabeça á porporção q u e o r e i se ia lem-
l b r a n d o do q u e s e t i n h a p a s s a d o com elle, e o r e i desfez
o t r a c t o do casamento e r e c e b e u p o r m u l h e r a q u e l l a que
o t i n h a l i v r a d o d a morte.

XXI11

João mais Maria


(Rio de Janeiro e Sergipe)

Uma vez houve um homem e uma mulher que ti-


n h a m tantos ülhos que r e s o l v e r a m d e i t a r fóra u m c a s a l
p a r a se v e r e m m a i s desobrigados. N'um b e l l o d i a o p a i
;:0 d i s s e a João e Maria que s e a p r o m p t a s s e m p a r a i r e m c o m
e l l e tirar mel no matto. Os dous m e n i n o s s e a p r o m p t a r a m
e s e g u i r a m c o m o p a i , que d e s e j a v a mettel-os n a matta
e deixal-os lá ficar. Depois de m u i t o andar, e q u a n d o
já e s t a v a bem e m b r e n h a d o , o p a i d i s s e aos filhos: « A g o -
r a e s p e r e m aqui, que e u v o u alli, e q u a n d o e u g r i t a r
vocês se d i r i j a m p a r a o lado do grito.» Depois de a n d a r
um bom pedaço, o p a i g r i t o u e retirou-se p a r a traz, e m
b u s c a de sua'casa. As crianças ouvindo o grito, s e d i r i -
g i r a m n'aquella direcção, m a s não e n c o n t r a r a m m a i s a o
*
84 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

pai, e se perderam. Chegando a noite alli p o u s a r a m ; n o


dia seguinte desenganados que não achavam o pai, tra-
tou João de trepar em uma das arvores mais altas, que
estavam n'um outeiro afim de v e r se descobria alguma
casa. De cima da arvore descobriu m u i t o louge uma f u -
macinha. Para lá se d i r i g i r a m ; depois de muito andar
descobriram uma casa velha, e o m e n i n o se aproximou,
para explorar, deixando a irmã escondida. Chegando João
á casa encontrou uma m u l h e r velha, quasi cega, que fa-
zia bolos de milho. João fez um espetinho e furtou al-
guns bolos, que comeu e levou também para sua irmã.
Como a velha não enxergava bem, quando sentia o mo-
vimento do m e n i n o lhe tirando os bolos, suppunha que
era o gato, e d i z i a : « Chipe, gato, m i n h a gato, não me
furte meus b o l i n h o s ! » No dia seguinte João voltou á
mesma casa para tirar bolos para si e para Maria. Ou-
vindo a velha o reboliço d i z i a : « Chipe, gato, m i n h a ga-
to, me come meus b o l i n h o s ! » João muniu-se de bolos
e se r e t i r o u . No d i a seguinte quiz i r só, e Maria tanto
insistiu que l a m b e m foi. Logo que chegaram á casa tra-
tou o menino de tirar alguns bolos dos que a velha aca-
bava de fazer. A velha, que o u v i u o r u m o r , disse pela
terceira v e z : «Chipe, gato, m i n h a gato, não me furtes
meus b o l i n h o s ! » Maria não pude-se conter e desatou
uma gargalhada. A velha ficou sarapantada e conheceu
que e r a m os dous meninos, e então disse: « A h ! meus
netinhos, eram vocês! Venham cá, m o r e m aqui com-
migo. » Os dous meninos ficaram. Mas o que a velha
queria era engordal-os para comel-os ao depois. De tem-
pos a tempos a velha lhes pedia o dedo grande para
vêr se já estavam gordos; mas os meninos lhe davam
u m rabinho de lagartixa que t i n h a m pegado. A velha
achava o rabinho muito magrinho, e d i z i a : « Ainda es-
tão m u i t o m a g r i n h o s ! » Assim muitas vezes, até que os
meninos perderam o rabinho da lagartixa e não t i v e r a m
volta senão mostrarem os próprios dedos. A velha os
ELEMENTO EUROPEU 85
a c h a n d o gordos, e os q u e r e n d o c o m e r mandou-os f a z e r
l e n h a p a r a u m a f o g u e i r a , p a r a d a n ç a r e m e m roda. O T i m
d a r a b u j e n t a e r a e m p u r r a r os dou» m e n i n o s dentro do
tacho d e a g u a f e r v e n d o e os m a t a r . Os m e n i n o s f o r a m
b u s c a r lenha, e q u a n d o v i n h a m d e v o l t a t o p a r a m c o m
N o s s a S e n h o r a q u e l h e s d i s s e : « A q u e l l a v e l h a é feiti-
c e i r a e q u e r d a r c a b o d e v ó s ; portanto q u a n d o ella man-
dar fazer a fogueira, fazei-a; assim que vos mandar
dançar, d i z e i - l h e : Minha avósinha, v o s s e m e c ê d a n c e p r i -
m e i r o p a r a nós s a b e r m o s c o m o h a v e m o s d e dançar.
Q u a n d o e l l a e s t i v e r d a n ç a n d o e m p u r r a i - a n a fogueira, e
c o r r e i . T r e p a i - v o s n a a r v o r e q u e t e m perto d a c a s a ;
q u a n d o d e r u m estouro é a cabeça d a v e l h a q u e a r r e -
bentou. D'ella t ê m de s a h i r tres cães f e r o z e s , q u e v o s
hão de d e v o r a r ; por isso t o m a i tres pães. Q u a n d o s a h i r
o p r i m e i r o cão c h a m a i - o Turco, e atirai u m p ã o ; quan-
do s a h i r o s e g u n d o c h a m a i - o Leão, e atirai outro p ã o ;
q u a n d o s a h i r o t e r c e i r o gritai Facão, e atirai o u l t i m o
pão. E serão tres g u a r d a s q u e v o s a c o m p a n h a r ã o . » As-
sim f i z e r a m . P r o m p t a a f o g u e i r a , e a v e l h a os m a n d a n -
3o dançar, p e d i r a m p a r a e l l a dançar p r i m e i r o p a r a l h e s
ensinar, n o q u e c a h i u a v e l h a , e q u a n d o e s t a v a m u i t o
c o n c h a n o s s e u s tregeitos, os dous p e q u e n o s a t i r a r a m - n a
na f o g u e i r a . T r e p a r a m - s e depois n a a r v o r e á e s p e r a de
a r r e b e n t a r a cabeça d a feiticeira e s a h i r e m os tres cães.
\ c o n t e c e u tudo c o m o l h e s t i n h a e n s i n a d o N o s s a Senho-
ra, d e s c e r a m d a a r v o r e e t o m a r a m conta d a c a s a c o m o
ma, e f i c a r a m a l g u n s a n n o s c o m os tres cães c o m o g u a r -
las. Ao depois Maria s e n a m o r o u d e u m h o m e m , e ten-
a r a m os d o u s d a r c a b o d e João, o q u e n ã o p o d i a m con-
seguir p o r c a u s a dos tres c a c h o r r o s q u e n u n c a o d e s a m -
paravam. C o m b i n a r a m então e m Maria p e d i r ao i r m ã o
[ue l h e d e i x a s s e u m d i a ficar c o m os tres b i c h o s p o r
er e l l a m e d o d e ficar sósinha, q u a n d o elle i a p a r a o
serviço. João c o n s e n t i u e cá os m a l v a d o s t a p a r a m o s ou-
vidos dos c a c h o r r o s c o m c e r a p a r a q u a n d o c h a m a d o s , o
86 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

não ouvirem. Depois do que partiu o camarada de Mari


a encontrar João para o matar, levando uma espingarda
carregada. Q d o o avistou disse : « Reza o ac/o dà
uar|

contrição que vaes morrer. » João, que se viu perdido»


pediu "tempo para dar tres gritos; o sujeito lhe responj
deu: « Pôde dar cem. » Trepou-se o moço n'uma arvora
e gritou : « Turco, Leão, F a c ã o ! . . . » Lá os cachorros abai
laram as cabeças. Tornuu o moço a gritar e os animael
despedaçaram as correntes, que os prendiam ; tornou 1
gritar, e elles se apresentaram diante d'elle e devorai
ram aquelle que o queria matar. Voltando para casJ
disse João a sua irmã : « Visto me atraiçoares, fica-tl
ahi só, que vou pelo mundo ganhar a minha vida. 1
E seguiu com os seus tres guardas, até que chegou 1
uma terra que tinha um monstro de sete cabeças, que
tinha de comer uma pessoa por dia, e que lhe tinha de
levar fóra da cidade para elle não se lançar sobre ellaj
Quando João chegou n'esse ponto, topou com uma prinj
ceza em quem tinha cahido a sorte para ser lançada a i
bicho. Perguntou-lhe o moço a causa porque estava aliai
Respondeu que lhe tinha cahido a sorte de ser n'aquellffl
dia devorada pelo monstro de sete cabeças que alli t i j
nha de vir e que elle se retirasse para não ser tambenj
devorado; que o rei seu pai tinha decretado que quem
matasse o bicho casaria com ella, mas que não havij
ninguém que se atrevesse a isso.
O moço então disse que queria ver o tal monstro
e, como estava com somno, deitou a cabeça no collo d
princeza e adormeceu. Quando foi d'ahi a pouco, apr
sentou-se a fera. A princeza, logo que a avistou, poz-
a chorar e cahiu urna lagrima no rosto do moço, e el
acordou; a princeza lhe pediu que se retirasse, mas el
não o quiz, e, quando o bicho se aproximou, mandou
moço seu cachorro Turco se lançar sobre elle. Hou
grande lucta, e estando já cançado o Turco, mandou
Leão, que quasi matou a féra, finalmente mandou o.Ft
ELEMENTO EUROPEU 87
cão, que acabou de a matar. João puxou por sua espa-
da e cortou as sete pontas das línguas do monstro, e
seguiu, bem como a princeza, que foi para o palácio de
seu p a i . Passando u m preto velho e aleijado p o r onde
estava o bicho morto, cortou-lhe os sete cotócos das lín-
guas e levou-os ao rei, dizendo que elle é que tinha
morto o monstro.
0 r e i pensando ser verdade, mandou apromptar a
princeza para casar com o negro, apesar da moça lhe
dizer que não tinha sido aquelle que tinha dado cabo do
monstro e a livrado da morte. Chegando o dia do casa-
mento, mandou o rei apromptar a mesa para o almoço,
e, quando botaram no prato para o negro, entrou o cão
Turco e o arrebatou da m ã o do preto. Quando a prince-
za v i u o cão ficou m u i t o alegre, e disse que era aquelle
um dos que t i n h a m morto o bicho, e que seu dono é
que tinha cortado as sete pontas das línguas com a sua
espada. Veio segundo prato para o negro, e e n t r o u o
cão l&ão e o arrebatou, e a princeza disse o mesmo ao
pai. lfntão o rei mandou u m criado seguir o cão para
saber d'onde era, e quem era o seu senhor, e que o
trouxesse á palácio. O moço, que recebeu o recado, par-
t i u logo a ter com o rei. Quando a princeza o viu, disse
logo que era aquelle, que realmente puxou u m lenço e
mostrou as sete pontas das linguas. 0 rei mandou bus-
car q u a t r o burros bravos e mandou amarrar n'elles o
preto, que morreu despedaçado, e João casou com a
princeza.
88 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

XXIV

A. proteoção do diabo

(Rio de Janeiro)

Houve um rei que tinha um filho; quando este che-


g o u á idade de d e z o i t o annos, sua m ã i mandou v e r a
sua sina, e l h e r e s p o n d e r a m q u e seu filho t i n h a de mor-
r e r enforcado. Desde esse d i a sua m ã i não pôde t e r
mais alegria. 0 p r i n c i p e , logo q u e n o t o u a tristeza de
sua mãi, p e r g u n t o u - l h e q u a l e r a o m o t i v o d'ella. Sua
mãi não l h e q u i z d i z e r ; mas o m o ç o i n c o m m o d a d o p o r
esse rhysterio, t a m b é m c a h i u e m tristeza. No s e g u n d o d i a
t o r n o u a indagar da r a i n h a , e n a d a d'ella l h e querer d i -
z e r ; no terceiro d i a o mesmo. Porém tanto o p r i n c i -
pe i n s i s t i u , q u e ella se v i u obrigada a d e c l a r a r a causa
de sua tristeza, q u e e r a p o r sua triste s i n a de seu filho
m o r r e r enforcado. O p r i n c i p e não se a t e m o r i s o u , e disse
a sua mãi que p o r isso se não i n c o m m o d a s s e , p o r q u e
m o r r e r d'isto ou d'aquillo, de moléstia ou enforcado,
t u d o e r a m o r r e r ; e p o r t a n t o l h e désse licença p a r a i r
elle c o r r e r m u n d o para não m o r r e r aonde t i n h a nascido,
para e v i t a r a seus paes m a i o r dor. Com custo a r a i n h a
lhe concedeu licença, e o m o ç o f o i t e r c o m o r e i q u e
t a m b é m a custo l h e q u i z dar.
0 p r i n c i p e se a p r o m p t o u p a r a s e g u i r , e, Ba despedida,
seu p a i l h e d e u u m a g r a n d e s o m m a de d i n h e i r o para
sua v i a g e m . Depois de t e r o m o ç o c o r r i d o a l g u m a s c i d a -
des e reinos, c h e g o u a u m l o g a r onde h a v i a u m a ca-
p e l l a de São M i g u e l , com sua i m a g e m e a figura d o dia-
bo, tudo já m u i t o a r r u i n a d o . A h i parou o p r i n c i p e a f i m
de m a n d a r c o n c e r t a r a capella e as i m a g e n s .
Mandou c h a m a r operários e se pôz á testa da o b r a .
ELEMENTO EUROPEU 89
Depois que concluiu,, e restando u m pouco de tinta, dei-
xando o pintor por pintar a figura do diabo, v e i u elle
dar parte ao principe que tinha concluído o trabalho, e
que tinha ficado u m resto de tinta por não ter pintado
o diabo. O principe examinou a obra e ordenou que se
pintasse também o demônio, e, deixando tudo prompto,
retirou-se. Depois de ter corrido outras terras, foi dar á
casa de uma velha, pedindo-lhe licença para ahi pernoi-
tar. Depois que a velha lhe destinou um quarto, o p r i n -
cipe pôz-se a contar o dinheiro que lhe restava, o que
fera vendo a velha foi dar parte á auctoridade, dizendo que
um ladrão a estava roubando em sua casa. A auctorida-
de com uma escolta se dirigiu á casa da velha, prendeu
ao principe, e o conduziu para a cadêa para ser proces-
sado, o que aconteceu, sendo elle condemnado á pena
ultima. Chegando o dia de a cumprir, sahiu o moço da
E prisão no meio de uma escolta para ser conduzido à for-
ca. São Miguel, que estava na capella que o principe ti-
nha mandado concertar, perguntou ao demônio: « Então
•'•s u agora não estás mais bonito ? » Respondeu o diabo
•que sim. « E não sabes quem concertou esta capella e
nos enfeitou?» Respondeu que o principe, que linha
iffjl passado por alli. « Pois este principe está em caminho
conduzido por uma escolta para ser enforcado, e cumprir
a sentença a que foi condemnado injustamente, e deves
r defendel-o.» 0 diabo montou n'um fogoso cavallo, d i -
3lO' igiu-se á casa da velha, conduziu-a á justiça, onde ella
p e c l a r o u toda a maquinação que tinha feito para ficar
om o dinheiro do principe. 0 rei, sabendo do occorrido
fcor intermédio do diabo, passou ordem para ser solto o
principe e conduzido á sua presença, sendo o diabo o
portador da ordem. Partiu o demônio no seu cavallo e
ipenas teve tempo de chegar, pois o principe já estava
juasi no acto de ser enforcado. Apresentou a ordem de
oltura, e, livre o principe, o levou ao palácio do r e i .
Iste interrogou ao principe para saber quem era e d'on-
90 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

de v i n h a ; ao que elle respondeu j u s t a m e n t e q u e m e r a


e que tinha sahido da terra de seus paes para não mor
rer enforcado perto d'elles, pois essa era a sina que t i
nha trazido. O r e i obrigou a velha a restituir o dinheir
do principe, e mandou-a levar para a prisão até chega
o dia de ser sentenciada pelo crime que tinha c o m m e t
lido.
O principe, depois que se v i u l i v r e e embolsado d e i
seu dinheiro, indo caminhando por uma estrada encon-
trou-se com um fidalgo montado n'um fogoso cavallo, o
q u a l fidalgo lhe perguntou para onde ia, ao que respon-
deu que andava em terra estranha e não sabia onde iria
pernoitar. E foram andando justamente pelo caminho
que ia dar á capella que o principe tinha mandado con-
certar. Elle pelo caminho foi contando ao fidalgo o que
lhe tinha acontecido, e como se tinha livrado d'aquella
vez, mas que a sua sina era de m o r r e r enforcado. En-
tão lhe disse o fidalgo: « Não sabeis q u e m vos defen-|
deu ? » Respondeu o principe que não. « Pois sabei que
fui eu, que sou a figura do diabo que estava na ca-
pella de São Miguel, que vós mandastes concertar, e tam-
bém pintar a mim. Me dizendo o santo o aperto em que
vós estáveis, montei a cavallo, e ainda cheguei a tempo
de vos salvar. Podeis voltar para vossa terra, porque a
vossa sina está desmanchada, i n d o a velha ser enforca
da em vosso logar. »
Desappareceu o diabo, que f o i para a sua m o r a d i
na capella, onde também foi o principe fazer sua ora
ção. Depois voltou para a sua pátria, onde seus paes
receberam com grande contentamento.
ELEMENTO EUROPEU 91

XXV
j\_ Fonte cias» tres comadres

(Sergipe)

Havia um rei que cegou. Depois de ter empregado


todos os recursos da medicina, deixou de usar de remé-
dios, e já estava desenganado de que nunca mais che-
garia a recobrar a vista. Mas uma vez foi urna velhinha
a palácio-pedir uma esmola, e, sabendo que o rei esla-
va cego, pediu para fallar com elle para lhe ensinar u m
remédio. 0 r e i mandou-a entrar, e então ella disse:
« Saberá vossa real magestade, que só existe uma cou-
sa no mundo que lhe possa fazer voltar a vista, e v e m
ser: banhar os olhos com agua tirada da Fonte das
tres comadres. Mas é m u i t o difíicil ir-se a esta fonte
que fica no reino mais longe que ha d'aqui. Quem f o r
buscar a agua deve-se entender com uma velha que
existe perto da fonte, e ella é quem deve indicar se o
dragão está acordado ou dormindo. 0 dragão é u m
monstro que guarda a fonte que fica atraz de umas
montanhas. » 0 rei deu u m a quantia á velha e a despe-
diu.
Mandou preparar uma esquadra prompta de tudo e
enviou o seu filho mais velho para i r buscar a agua,
dando-lhe u m anno para estar de volta, não devendo
elle saltar e m parte alguma para se não distrahir.
0 moco partiu. Depois, de andar muito, foi aportar a
u m reino m u i t o rico, saltou para terra e namorou-se lá
das festas e das mocas, dispendeu tudo quanto levava,
contrahiu dividas, e, passado o anno, não voltou para
casa de seu pai. O r e i ficou m u i t o massado e mandou
preparar nova esquadra e enviou seu filho do meio pa-
ra buscar a agua da Fonte das tres comadres. 0 moco
92 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

partiu, e, depois de muflo andar, foi ter justamente ao


reino em que estava já arrazado seu irmão mais velho.
Metteu-se lá também no pagode e nas festas, puz fóra
tudo que levava, e, no fim de u m anno, t a m b é m não
voltou. 0 r e i ficou muito desgostoso. Então seu filho
mais moco, que ainda e r a menino, se l h e apresentou e
disse: « Agora quero eu i r , meu pai, e lhe garanto que
hei de trazer a agua ! » O r e i mangou com elle, dizen-
do : « Se teus irmãos, que eram homens, nada consegui-
ram, o que farás t u ?» Mas o principesinho insistiu, e a
rainha aconselhou ao rei para mandal-o, dizendo : « Muita
vezes d'onde não se espera, d'ahi é que vem. » O r e i
annuiu, e mandou preparar uma esquadra e e n v i o u o
principe pequeno. Depois de m u i t o navegar, o mocinho
foi dar á terra onde estavam presos p o r dividas os seus
irmãos ; pagou as dividas d'elles, que f o r a m soltos. O
quizeram dissuadir de continuar a viagem, e o convidan-
do para alli ficar com elles; mas o m e n i n o não q u i z e con-
t i n u o u a sua derrota. Depois de ainda m u i t o navegar, o
principe chegou ao logar indicado pela velha. Desembar-
cou sósinho, levando uma garrafa, e foi ter a casa da ve-
lha, vizinha da fonte, a qual, quando o v i u , ficou m u i t o
admirada, dizendo: « Ó meu netinho, o que veio cá fa-
z e r ? ! Isto é um p e r i g o ; você talvez não escape. O
monstro, que guarda a fonte que fica alli entre aquellas.'
montanhas, é uma princeza encantada que tudo devora.
Você procure uma occasião em que ella esteja d o r m i n -
do para poder chegar, e repare bem que q u a n d o a fera
está com os olhos abertos é que está d o r m i n d o , e quan-
do está com elles fechados é que está acordada. »*0
principe t o m o u suas precauções e p a r t i u . Chegando lá
na fonte a v i s t o u a fera com os olhos abertos. Estava
dormindo. 0 mocinho se a p r o x i m o u e começou a encher
sua garrafa. Quando já se i a retirando, a fera acordou e
lançou-se sobre elle. « Quem t e mandou v i r a meus rei-
nos, m o r t a l atrevido?» dizia o m o n s t r o ; e o moço ia-se
ELEMENTO EUROPEU 93
efendendo com sua espada até cjue feriu a fera, e c o m
sfmgue ella se desencantou e então disse: « Eu devo-
•ne casar c o m a q u e l l e q u e m e desencantou ; dou-te u m
rano para vires-me buscar para casar, senão eu te i r e i
rêr. » A fera e r a u m a princeza, a cousa mais linda que
Jar-se podia. E m s i g n a l para ser o p r i n c i p e conhecido
j u a n d o viesse, a p r i n c e z a l h e d e u u m a de suas eami-
as.
0 p r i n c i p e p a r t i u de v o l t a para a terra de seus paes;
g u a n d o chegou ao r e i n o onde estavam seus irmãos, os
e v o u para bordo para v o l t a r e m para s e u paiz. Os outros
Li II lã
príncipes s e g u i r a m c o m elle. O m e n i n o tinha guardado a
ua g a r r a f a no seu bahú, e os irmãos q u e r i a m roubal-a
|>ara l h e fazer m a l e se apresentarem ao pai como tendo
i d o elles q u e t i n h a m alcançado a a g u a da Fonte das
res comadres. Para isto p r o p u z e r a m ao pequeno dar-se
ím banquete a b o r d o da esquadra a toda oíficialidade,
m c o m m e m o r a ç ã o a t e r elle conseguido a r r a n j a r o r e -
nedio para o r e i . O p e q u e n o c o n s e n t i u , e no banquete
| seus irmãos, de propósito, p r o p u z e r a m muitas saúdes,
om o f i m de o e m b r i a g a r e m e p o d e r e m roubar-lhe a
a r r a f a d o bahü. 0 pequeno de facto bebeu de mais e
cou e b r i o ; os manos então t i r a r a m - l h e a chave do ba-
li, q u e elle trazia comsigo, abriram-no e t i r a r a m a gar-
: l áafa d'agua, e b o t a r a m o u t r a no l o g a r cheia de agua do
ar.
Quando a esquadra se apresentou na terra do r e i ,
dos f i c a r a m m u i t o satisfeitos, sendo o p r i n c i p e m e n i n o
pá ecebido c o m m u i t a s festas; mas q u a n d o foi b o t a r a
'jau gua nos olhos do r e i , este desesperou c o m o ardor, e
ntão os seus dous outros filhos, dizendo que o pequeno
ríÉÍ ü m i m p o s t o r , e que elles é q u e t i n h a m trazido a
e r d a d e i r a agua, d e i t a r a m d'ella nos olhos do p a i , o
uai sentiu l o g o o m u n d o se clarear e ficou vendo, c o m o
antes. Houve grandes festas no palácio e o principe
ais m o ç o f o i mandado matar. Mas os matadores tive-
94 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

ram pena de o matar e deixaram-no n'umas brenhas, cor-


tando-lhe apenas um dedo, que levaram ao rei. 0 meni-
no foi dar á casa de um roceiro, que o tomou como
seu escravo, e muito o maltratava. Passado um anno,
chegou o tempo em que elle tinha de voltar para se ir
casar, segundo tinha promettido á princeza da Fonte
das tres comadres, e, não apparecendo, ella mandou
apparelhar uma esquadra muito forte, e partiu para o
reino do moco principe. Chegando lá mandou á terra um
parlamentar avisar ao rei para lhe mandar o principe,
que ha um anno tinha ido a seus reinos buscar um re-
médio, e que lhe tinha promettido casamento, isto sob
pena de mandar fazer fogo sobre a cidade. O rei ficou
muito agoniado, e o mais velho de seus filhos se apfe
sentou a bordo dizendo que era elle. Chegando a bordo
a princeza lhe disse : « Homem atrevido, que é do signal
de nosso reconhecimento?» Elle, que nada tinha, nada
respondeu e voltou para terra muito enfiado. Nova inti-
mação para terra, e então foi o segundo filho do rei,
mas o mesmo lhe aconteceu. A princeza mandou accen-
der os morrões, e mandou nova intimação á terra. 0
rei ficou afílictissimo, súppondo que tudo se ia acabar,
porque seu ultimo filho tinha sido morto por sua or-
dem. Ahi os dous encarregados de o matar declararam
que o tinham deixado com vida, cortando-lhe apenas um
dedo. Então, mais que depressa, se mandaram commis-
sarios por toda a parte procurando o principe, e dando
os signaes d'elle, e promettendo um prêmio a quem o
trouxesse. 0 roceiro, que o tinha em casa, ficou mais
morto do que vivo, quando soube que elle era filho do
r e i ; botou-o logo nas costas e o levou a palácio choran-
do.
0 principe foi logo lavado e preparado com sua rou-
pa, que a rainha tinha guardado, e que já lhe estava
um pouco apertada e curta. 0 prazo que a princeza t i -
nha concedido, já estava a expirar, e já se iam accen-
ELEMENTO EUROPEU 95

rondo os morrões para bombardear a cidade, quando o


arincipe fez signal de que já ia. Chegando á esquadra,
l i logo reconhecido pela princeza, que lhe exigiu o si-
t i a i do reconhecimento e elle lh'o apresentou. Então se-
i b i u com ella, com quem se casou e foi governar u m
|)s mais ricos reinos do mundo. Descoberta assim a pa-
jalage dos dous filhos mais velhos do r e i , foram elles
^narrados ás caudas de cavallos bravos, e morreram
fcspedaçados.

XXVI

O Pássaro Sonoro
(Sergipe)

Uma vez havia um homem muito rico que tinha


filho meio bobo. 0 rapaz mostrando pouca aptidão
ra a vida, o pai mandou-o educar, mas tudo debal-
. Depois o pai, para vêr si sempre o melhorava, o
viou pelo mundo a correr terras para aprender. 0 mo-
) p a r t i u m u n i d o de bastante dinheiro. Depois de viajar
um tempo, o moço foi dar a uma cidade onde estava
leilão u m pássaro, e já muito crescida era a quantia
• que estava elle a ser arrematado. O rapaz lançou
a quantia ainda maior e o arrematou porque lhe
sseram, p o r ter elle perguntado, que a grande vanta-
m e habilidade d'aquelle pássaro era que, quando can-
va, todos que o ouviam adormeciam.
Seguiu o nosso rapaz com o seu pássaro. Chegando
iante encontrou outro leilão, já n'outra terra, onde
tava-se vendendo u m besouro que i a dando muito
nheiro. 0 moço chegou-se a u m dos do leilão e per-
untou: «Mas qual é a vantagem d'este besouro?»
96 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

« H u m ! A v a n t a g e m d'este besouro é m u i t o g r a n d e ;
que elle faz t u d o que se lhe m a n d a fazer e sem s e r vis
to, e é capaz de a r r o m b a r u m a porta. » 0 m o ç o arrema
tou o besouro e s e g u i u . Chegando já n'ou',ro paiz, v i
o u t r o leilão onde estava para ser a r r e m a t a d o u m rate
O moço perguntou também a h i que vantagem tinh
aquelle rato, ao q u e l h e responderam q u e e r a a de f a
1 í zer t u d o q u e se m a n d a v a , e era até capaz de a r r o m b a
dez paredes. 0 rapaz a r r e m a t o u e s e g u i u .
Chegando a d i a n t e f o i t e r a u m r e i n o , e p a s s a n d j
pela frente de u m palácio onde e s t a v a u m a p r i n c e z a , v h
m u i t a gente na r u a a fazer caretas e tregeitos, e visa
ges de toda a qualidade ; então elle p e r g u n t o u o q u e v i
nha a ser a q u i l l o . Responderam-lhe q u e a q u e l l e e r a i
palácio do r e i , e a q u e l l a a p r i n c e z a real, a q u a l desdel
m e n i n a n u n c a se l i n h a r i d o , de f o r m a q u e o r e i linhí
dito q u e a q u e l l e h o m e m q u e a fizesse r i r se casaria coir.
ella, e q u e p o r isso é q u e estava alli todo a q u e l l e pove
a fazer gatimonhas para fazer r i r a princeza, e nad£
d'ella rir-se. Depois quê isto o u v i u , o moço, sem se i m
p o r t a r c o m a q u e l l a gente, se a p r o x i m o u de u m a s a r v o
res q u e h a v i a d e f r o n t e do palácio e apeou-se de seu ca
v a l l o , e d e p e n d u r o u a g a i o l a de seu pássaro n'um g a l h o
de u m a das a r v o r e s . Feito o que, e l l e , i n d o descançar
d i s s e : « Agora, m e s t r e rato vá buscar a g u a para o c a
vailo, e m e s t r e b e s o u r o vá buscar c a p i m . » Os b i c h i
nhos p a r t i r a m l o g o para fazer a sua obrigação, e, q u a n i
do a p r i n c e z a v i u o besouro trezendo capim p a r a o c a
v a l l o , desandou n'uma gostosa gargalhada.- Ficaram
todos m a r a v i l h a d o s , e toca a d i z e r u m a : « Q u e m fez a
princeza rir-se f u i eu ! » O u t r o : « Não ! f u i e u ! » 0
r e i então se d i r i g i u a sua filha e l h e p e r g u n t o u q u e m é
q u e a t i n h a feito d a r a q u e l l a gargalhada. Ella, então,
disse q u e t i n h a sido a q u e l l e h o m e m q u e estava alli de-
b a i x o da a r v o r e com u m a g a i o l a e uns o u t r o s animaes.
I m m e d i a t a m e n t e o r e i m a n d o u c h a m a r á sua presença o
E L E M E N T O EUROPEU 97
, tal v i a j a n t e e l h e e o m r n u h i c o u que elle t i n h a de casar-
se com a princéza.
O s u j e i t o ficou m u i t o e s p a n t a d o p o r q u e não espera-
v a por a q u i l l o : mas c o m o p a l a v r a de rei não v o l t a
atraz, elle t e v e s e m p r e de casar-se com a princeza. N a
• i noite d o c a s a m e n t o elle mostrou-se muito a c a n h a d o e
enfiado, e, desconfiando a p r i n c e z a que e r a a q u i l l o pouco
• caso que elle fazia d'ella, uo dia seguinte queixou-se
ao pai, d i z e n d o que ella se tinha enganado, e não e r a
j a q u e l l e o h o m e m que a t i n h a feito rir-se, e s i m u m ou-
tro. Annullo.u-se o c a s a m e n t o com a q u e l l e e fez-se com
este outro. Q u a n d o p o r é m foi de noite, o nosso m o ç o ,
, ' j que t i n h a voltado p a r a d e b a i x o de s u a a r v o r e , c a l c u l a n -
, do a h o r a justamente e m que os n o i v o s d e v i a m i r para
;o quarto, d i s s e : «Canta, Sonoro!» O pássaro a b r i u o
;.'. bico e a p r i n c e z a f e r r o u logo no s o m n o , e o noivo, e o
: r e i , e g u a r d a s de palácio, e todos que p a s s a v a m .
Depois d'isto disse o m o ç o : « A g o r a b e s o u r o vá ao
\> quarto dos noivos, e d e s a r r u m e tudo o que lá encontrar,
" r o m p a as roupas, e faça u m desaguisado dos diabos. » O
; besouro, s i bem lhe tinha r e c o m m e n d a d o o seu amo, ain-
:
; da m e l h o r o f e z ; d e s a r r u m o u tudo, que foi uma lastima.
No dia s e g u i n t e a m o ç a acordou, e v e n d o a q u e l l a des-
' ordem, ficou desesperada, e foi queixar-se ao pai, pf-
! d i n d o p a r a d e s m a n c h a r o c a s a m e n t o . O r e i ficou abor-
•; recido com aquillo, e disse-lhe que t i v e s s e paciência e
i e s p e r a s s e m a i s a l g u n s dias até ver. Mas na noite seguiu-
; te o Sonoro cantou de n o v o , e tudo a d o r m e c e u . Foi en-
f tão o rato o e n c a r r e g a d o de i r e s c a n g a l h a r o quarto dos
noivos. S i o b e s o u r o fez bem, o rato a i n d a fez melhor.
!
No dia s e g u i n t e a p r i n c e z a a m a n h e c e u c o m e n d o bi;azas
: e o noivo, coitado, tão enfiado ! Ahi não h o u v e m a i s du-
v i d a ; a p r i n c e z a e x i g i u que q u e r i a o s e u p r i m e i r o ma-
SÍM rido, que e r a o verdadeiro, o qual foi c h a m a d o , e fica-
M, ram casados, ficando o m o ç o m a i s desembaraçado, e não
•••• tendo m a i s de que se q u e i x a r a princeza.
7
98 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

XXVII

Barceloz

(Pernambuco)

Em uma noite chuvosa de fazer horror estavam tres


fadas cumprindo o seu fado no jardim que ficava ao la-
do da casa de Barceloz, namorador das flores em botão,
no que levava as noites todas velando. Como eram, por
esse motivo, as fadas privadas de cumprir com sua mis-
são n'aquelle logar, combinaram encantar a Barceloz na
occasião em que estivesse namorando o bogari. Appare-
ceram n'essa noite tenebrosa as tres fadas, e na occasião
em que chegou o moço á janella puzeram-se a julgal-o.
Dizia a primeira: « Este, que nos tem atrapalhado, ha de
sete annos não fallar, e tendo esta flôr para seu susten-
to. » A segunda disse: « N'este tempo ha de tornar-se
era matto virgem, não vindo alma viva n'estes ermos du-
rante os sete annos. » A terceira disse: « Só ha de ser
desencantado pela filha da peregrina, que está cumprin-
do a mesma pena. » Ditas estas palavras Barceloz
encantou-se, a casa e todos que n'ella existiam. Quando
Barceloz estava com seis annos de encanto a Nympha,
filha da Peregrina, completou os sete, e seguiu o mesmo
destino de sua mãi, retirando-se em direcção ao Reino
da torre de ouro.
Anoitecendo-lhe no meio do caminho, e sendo noite
escura e chuvosa, ella, como mulher, teve medo de fi-
car nas mattas medonhas, e continuou a andar, a vêr se
encontrava alguma casa. Perdendo a esperança de a en-
contrar procurou uma arvore bem copuda e agasalhou-
se debaixo á espera do sol. Alta noite chegaram as fa-
das, e então disse a primeira : « Fademos, manas, fade-
mos ; no Reino dz torre de ouro tem de haver uma
ELEMENTO EUROPEU 99
grande festa, e tem-se de fazer uma escolha para desen-
cantarem a matla que f o i Barceloz, o Campo Negro, e
a Bella das Bellas. Estes tres reinos t e m de ser desencan-
tados pelas tres Peregrinas. Nympha desencanta a Bar-
celoz, a Morena desencanta a Bella da? Bellas, e Nandy
O Campo Negro. » Nympha que ahi estava o u v i u toda a
conversa, pôz-se quieta e assustada.
Ao romper d o dia pôz-se e m caminho, e chegou
t r e m u l a de fome á beira de u m rio, onde estava u m a
velha lavando roupa. A velha disse: «Minha netinha, o
que faz você p o r aqui? Como é tão b o n i t i n h a ! Eu que-
ro leval-a para minha casa : quer morar commigo ? » A
moça respondeu : « Não posso ficar morando, posso ficar
uns dias para descançar da viagem. » — « E u , disse a
velha, só quero ter o gosto de te v e r e m minha casa. »
Seguiram ambas. Chegando ellas á casa, tiniam todas as
cousas como se fossem repiques de sinos, e a Peregrina
ficou pasmada de o u v i r tanto r u m o r e m sua chegada.
A velha respondeu : «Isto é meu filho que te desconhe-
ceu. » A v e l h a apresentou a Peregrina ao filho, e este
perguntou-lhe para onde ia. « Vuu, respondeu a moça,
ao Beino da torre de ouro; vou desencantar a u m infe-
liz que está encantado no Reino das Mattas. » Disse então
o m o n s t r o : « Ainda este anno lá não chegarás, e pódes
i r descançada que não has de desencantar a Barceloz;
pois só u m beija-flôr que elle tem a beijar o bogari dar-
te-ha cabo da pelle, e também uma serpente ao pé da
janella, que só o vêí-a faz horror ; mas como minha mãi
m u i t o te quer, e u te v o u dar alguns esclarecimentos.
Leva este bogari e esta bola de v i d r o ; acharás p o r estes
dois objectos avultada quantia, que não deves aceitar.O
rei também ha de querer compral-os; também lh'o não
vendas. Ao chegares a Barceloz deve ser ao meio-dia,
hora e m que o beija-flor f o i á fonte, e a serpente dor-
me ; põe aflôrna bocca de Barceloz, e a bola n a boc-
ca da serpente, e espera que venha o beija-flor; na che-
*
100 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

gada d'elle tira a flôr do r a m o e g u a r d a . Quando o pas- iíí


s a r i h h o beijar a flôr que está na bocca de Barceloz, o|
p a s s a r i n h o cae, e a serpente a c o r d a e q u e r m o r d e r , mas ;
q u e b r a os dentes na bola. Barceloz então se desencanta, W[
apparece o palacele, e deves t i r a r do dedo do m o c o u m p
annel que deves g u a r d a r para q u a n d o fores c h a m a d a b
pelo r e i , e elle ha de s e r v i r de s i g n a l p a r a casares corri &i<
o moco, vencendo as invejosas. » Assim fez a N y m p h a . p:i
Depois de t u d o acabado, f o i e l l a t e r á presença do r e i . w
Todos os sábios d u v i d a r a m que essa tivesse tanto animo. %t
E l l a m o s t r o u o a n n e l , que todos reconheceram. De r e - J £
pente chegou o u t r a m u l h e r , dizendo que ella é que t i - in
nha desencantado a Barceloz, e a N y m p h a f o i c o n d e m - \m
n a d a á m o r t e ; mas f o i l i v r e por não t e r a o u t r a apre-fjUi
sentado p r o v a a l g u m a ; foi então a q u e l l a c o n d e m n a d a á
m o r t e , casou-se N y m p h a com Barceloz, h a v e n d o muita 0
festa pWá festa.
I
, —— m
IIQ
XXVIII
• •. i :
Tres comedores
!i
(Pernambuco) ];
Andavam tres. irmãos que desejavam se desenganar b
q u a l d'elles c o m i a mais. Todos a q u e l l e s que já uma vez \,
lhes t i n h a m dado agasalho não os q u e r i a m mais aceitar j,;
em casa. Indo elles t e r à casa de u m l a v r a d o r , p e d i r a m ' j.
rancho que lhes f o i dado, e depois p e d i r a m o que cear. j,
O dono da casa p e r g u n t o u o que elles q u e r i a m p a r a cear, |
e r e s p o n d e r a m : « Um b o i , dous porcos, e tres carnei- |,
ros. » Ficou o l a v r a d o r a d m i r a d o e p e r g u n t o u : « E só j
p a r a a ceia t u d o isto?» Responderam : « O r a ! m a l chega !
para o buraco de u m d e n t e ! » O l a v r a d o r deu-lhes a \
ELEMENTO EUROPEU 101

eia pedida, e elles a devoraram, e pediram mais o cai-


lo que tinha ficado nas panella^. Vendo o lavrador que
stes hospedes em poucos dias o deixariam sem uma só
abepa de creapão no cercado, foi a toda a pressa á pre-
enpa do rei e lhe disse: « Saiba rei meu senhor, que
enho na minha casa tres mecânicos que disseram que
iram capazes de devorar toda a comida que rei meu
enhor dá por dia a seus soldados. » Logo o rei mandou
mscal-os com a condipão de si n ã o comessem morres-
em, e si comessem ganharem uma grande riqueza.
presentaram-se os tres comilões, e o rei duvidou de
udo, e lhes perguntou se era verdade o que tinham dito
o lavrador, ao que elles responderam : « Saberá vossa
eal magestade que tal cousa n ã o dissemos ; mas se
ei nosso senhor quer, assim seja. » Ordenou o rei que
10 outro dia Se fizessem comidas para mais mil soldados,
foi a ordem cumprida. Foram os homens para o quar-
il acompanhados do rei e conselheiros. Todos se puze-
am rezando em tenpão dos homens, porque os suppu-
iham mortos. Dentro em meia hora acabaram elles com
oda a comida que havia, e disse um para o r e i : « Sai-
a rei senhor, que se tem de nos dar a ceia seja em
laior porção que esta do jantar. » 0 rei ordenou que
e matassem dez porcos, cinco bois e doze carneiros pa-
a a ceia. Perguntou e n t ã o qual d'elles comia mais: res-
ondeu o mais moço que ainda n ã o se sabia, mas que
esconfiava ser elle. 0 r e i mandou matar trinta bois,
ando dez a cada um, e o mais moço achou pouco e
êl ediu quinze, por ser o que elle costumava comer quan-
o tinha pouca fome ; o rei lh'os deu, e tudo foi devo-
ido. Acabado isto, o rei lhes perguntou o que é que
lies desejavam. Todos responderam : «Dinheiro que
negue para comermos toda a nossa vida. » — « Seja
sita a vossa vontade; ahi tendes a renda de treze cida-
es, e o gado de todo o meu reino. » Assim fallou o
íi, ao que elles responderam : « Foi nossa felicidade
102 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

achar quem nos désse de comer; apesar de que tudi ;


ainda é pouco! »

XXIX
A. r a i n h a q u e tsaliiii do mar
(Rio de Janeiro)

Houve u m r e i que desejava se casar com a moc


mais b o n i t a que houvesse no seu reino. Já se tinhanj
corrido todas as casas, e chamado todos os paes de fa
m i l i a para apresentarem suas filhas, e n e n h u m a tinhí
agradado ao rei. Faziam oito dias que tinha assentadc
praça u m recruta abobado n'um batalhão, e n'este di?
t i n h a m de ser apresentadas as filhas de u m l a v r a d o r
que eram as únicas moças que o r e i ainda não tinh?
visto, e n'este d i a t i n h a m de i r á missa os batalhões
Logo que e n t r o u na igreja o batalhão e m que tinha as
sentado praça o tal abobado, pôz-se este a chorar, o qu<
vendo o commandante do batalhão lhe perguntou o que
Ei
tinha. Respondeu elle « que nada soffria, mas que t e n
do visto aquella i m a g e m (apontando para umaimagen
muito formosa que havia na igreja) tinha ficado c o
saudades de sua irmã, que muito se parecia com aquel
la santa.» Ficaram todos duvidosos e zombando do po
bre soldado; mas chegando aquillo aos ouvidos do r e i
este mandou chamar o rapaz e lhe indagou da verdade
ao que elle respondeu ser exacto ter uma irmã m u i t (
formosa e parecida com a i m a g e m que havia na i g r e
ja. Perguntando o r e i onde m o r a v a ella, respondeu
« Nas gargantas do Monte Escarpado, a dez m i l légua
por terra e cinco m i l por mar. » O rei mandou logo p r e
parar u m a esquadra e enviar uma deputação ao p a
r
ELEMENTO EUROPEU 103

rTaquella mopa, pedindo-a em casamento. O recruta tam-


bém foi com a commissão. Logo que chegaram ao Mon-
te Escarpado avistaram a mopa na janella e ficaram to-
dos esbabacados de v ê r tanta belleza junta. O almiran-
t e entregou ao pai da mopa a carta do r e i , e o velho
enviou a sua filha. Chegando a esquadra na volta do
Monte Escarpado, o mar era muito forte, e a gente sal-
tou para terra, indo com a mopa ter a casa de uma ve-
lha, que alli morava. A velha, que era um desmancha-
prazeres, indagou para onde iam e de onde vinham, e
sabendo de tudo convidou a mopa para ir dar um pas-
; seio pela horta e lá atirou com ella dentro de um popo.
;

4 Ora j á sendo de noite, quando tiveram os da esquadra,


4 de embarcar n ã o deram por falta da mopa, porque a
^ velha pôz em logar d'ella a sua filha, que era um mons-
t r o de feia. Quando os navios largaram e se fizeram ao
.A largo, a velha foi ao popo, tirou a mopa para fora, cor-
:„i l)f tou-lhe os cabellos, furou-lhe os olhos, e botou-a n'um
caixão e atirou no mar. Foi o caixão parar ao reino p r i -
, A; meiro que os navios. Um pescador o achou e levou pa-

l ra casa, e julgando ter dinheiro, pôz-se a gabar-se, di*

1 zendo que tinha dinheiro para combater com o rei. Foi


;,L chamado o pescador e confessou ter achado um caixão
l cheio de dinheiro, e f o i um guarda do palácio para exa-
minar o caso. Aberto o caixão deram com a mopa den-
J, tro, ficando todos penalisados com aquillo por verem
;,i uma mopa tão bonita com os olhos furados e os cabel-
los cortados. Voltou o guarda para palácio, fazendo con-
í duzir a mopa. Quando lá chegou, j á tinha também che-
4 gado a commissão com a filha da velha. O almirante,
. muito triste, disse ao r e i : « Não f u i como vim ; f u i ale-
i!
:: gre e volto triste ; mas me sujeito á pena que rei, meu
2 senhor, me quizer dar. » O rei respondeu : « Nada tenho
a fazer, senão casar-me com esta feia mulher, que me
chegou. » Houve o casamento, mas o rei se conservou
• ! sempre triste e vestido de lucto. Apresentando-se-lhe a
104 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

moca dos olhos furados, ainda mais triste ficou o r e i .


Sendo ella reconhecida por seu irmão e pelos da com-
missão, mandou o rei buscar a velha em cuja casa esti-
veram de passagem. A velha negou tudo e até desco-
nheceu a sua própria filha. O r e i reconhecendo que os
traços da velha eram os mesmos da mopa com quem se
tinha casado, despediu esta e mandou furar os olhos da
velha e cortar-lhe os cabellos. Logo que isto fizeram, os
olhoscasamento
vo da mopa, com
que foi achada que
a rainha, no mar, tornaram a ficar
veio do mar, sendo
perfeitos e cresceram-lhe
n 'elle jogada a velha. os cabellos. Houve então o no-

XXX
A. mal f a l s a ao filho
(Rio de Janeiro)

Havia um homem de forpa e de coragem, de nome


Pedro, que retirou-se para a ropa com sua m u l h e r cha-
mada Maria. Foram viver nos ermos, sustentando-se
com capas do matto. Lá nos ermos nasceu-lhes u m fi-
lho que se chamou João. Quando o menino tinha sete
annos de idade morreu seu pai. Vendo o rapazinho que
a vida dos ermos era rústica, pediu a sua mãi para se
retirarem para a cidade, com o que concordou a mãi.
Juntaram os seus bens, que consistiam n'um cavallo,
uma espingarda e um facão, e entraram na cidade já pe-
la noitinha. Correu o João toda a cidade e não encon-
trou ninguém ; bateu em todas as portas e ninguém lhe
respondeu. Foi t e r a um sobrado, que foi o único que
achou aberto, entrou, fallou e ninguém lhe respon-
deu. Subiu a escada, correu toda a casa e não v i u viva
alma.
ELEMENTO EUROPEU 105

Havia ura único quarto que estava fechado, estan-


lo todos os mais abertos. Então ahi se arranchou com
sua mãi e passaram a noite. No dia seguinte não v i u
ringuem na cidade, nem sentiu m o v i m e n t o algum, e, não
tendo o que comer, f o i para o matto caçar, conforme
usava o seu pai. Quando elle estava no matto, apresen-
tou-se á sua mãi no sobrado u m gigante, dizendo-lhe
que a havia de matar por ter ella se apoderado ('.'aquel-
la casa sem a sua licença; mas que, por ser ella mu-
lher, não a mataria com a condição de viverem juntos.
A mulher lhe respondeu que tinha .um fdho na sua com-
panhia. O gigante lhe disse: « O teu filho eu o^como.»
« O senhor não pôde com meu filho. » — « Então não_é
elle u m h o m e m ! » — « Sim, é u m homem. » — « Como nao
poderei eu com elle, si pude com todo o povo d esta
cidade, e acabei com todo ellft ? » — « O senhor nao pode
com meu filho, que t e m m u i t a força. » — « P o i s se nao
posso com elle, aqui tens uma boa fôrma de lhe dar
fim : Quando elle chegar, t u deves te fingir de doente,
grilando cora u m a dôr nos olhos, e que t u sabes que o
único remédio que existe para este m a l é a banha de
S u m a serpente que ha no m a t t o ; ora nao podendo elle
com a serpente, ella lhe dará cabo da pelle. » Chegan-
do o filho da caçada, assim fez a mulher, como lhe en-
sinou o gigante. O moço então voltou para as mattas.
No caminho encontrou u m velho que lhe perguntou
aonde ia. Respondeu que matar a serpente para tirar a
banha para deitar nos olhos de sua m a i que eslava
doente. O velho lhe disse : « Não vás lá, que nao podes
com a serpente. » — « Como é para minha mai, hei de i r
aconteça o que acontecer», respondeu o mocinho, ü
velho lhe disse: «Pois v a i , que serás feliz. » boi elle e
matou a serpente e tirou a banha. Na volta passou p o r
ca^a do mesmo velho, que o releve para jantar. Quando
estava o mocinho jantando o velho mandou matar uma
gallinha e tirar a banha e trocar pela banha da serpen-
106 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

te. Assim fez a moca que o velho creava e m casa. O


João seguiu, e deitou o remédio nos olhos de sua mãi
que nao tendo nada, nada soíTreu. O gigante, no dià
seguinte, ficou admirado, e estando o João na caça
disse a_ m u l h e r : « É verdade; esse teu filho é homem!
Amanha, quando elle vier, faze o mesmo, e dize-lhe
que n estas mattas ha um porco-espinho, cuja banha é
o remédio que te pôde s e r v i r ; elle, que não pôde c o m
o porco-espinho, morrerá, e ficaremos livres d'eile. »
Tudo fingiu a mulher, e o filho lá voltou para as mat-
tas a matar o porco espinho. Tornou a passar p o r casa
do velho, que lhe fez outra recommendação, a que elle
resistiu. « Vai, disse o velho, e serás feliz. „ Foi e ma-
ou o porco-espinho. Tornou a passar por casa do ve-
no que o reteve para jantar. Mandou matar outra gal-
linha e trocou a banha do porco-espinho pela banha da
gallinha. João seguiu para a cidade e botou a banha
nus olhos de sua mãi, que nada tinha. No dia seguinte,
indo elle para a caça, appareceu o gigante e ficou ain-
da mais admirado da valentia do rapaz e disse á Maria •
«Agora t u pégas estas cordas, e dize-lhe que elle não é
capaz de as arrebentar. » Assim fez a mulher. Chegando
o filho, ella l h e disse: « T u és um homem, que nem
mesmo teu pai fazia o que t u fazes; mas t u não és ca-
paz de quebrar estas cordas em te enleiando c o m ellas »
João aceitou a proposta; a mãi o enleiou, e elle force-
jou e quebrou as cordas. A mãi lhe disse: «És h o m e m
como t r i n t a ! » João seguiu para a caça no dia seguin-
te Veio o gigante, e, sabendo do acontecido, ficou a i n -
elle m nI P a Í m a í l °- \
A m a n h ã
> to* o gigante, diz-lhe que
ene nao é capaz de quebrar estas correntes.» Assim
fez Mana, quando seu filho veiu. « isto não, m i n h a mãi
correntes nao posso quebrar. » - « T u pôde , meu fiTho
experimenta. « - « V o s m e c ê quer, vamos vêr. ». A !
Iher enrolou o filho com as correntes; elle forcejou e
nao as pode quebrar. A h i appareceu o gigante a r m a d o
ELEMENTO EUROPEU 107

e um facão e se arrojou as menino para o matar.


Pôde matar, disse João, só quero que me cumpra tres
fi .edidos que lhe quero fazer. » — « Cumprirei vinte, quan-
, o mais tres. » Os pedidos de João eram : Nao quero
me faca uso dos objectos que meu pai deixou, nem do
•avalio, nem da espingarda, nem do f a c ã o ; quando me
uatar n ã o me estrague o corpo e parta-me em cinco
partes; bote-me dentro de dous jacas no cavallo com a
espingarda e o facão. » Assim cumpriu o gigante. U ca-
vallo seguiu desordenadamente e foi ter a casa do ve-
lho. Chegou a moça na janella e conhecendo que era o
cavallo de João, chamou o velho. Este chegou e dis-
, : « Minha filha, o que alli vês é João que vem morto
s e

• dentro dos jacas; traz-me para aqui o cavallo, que que-


ro dar vida ao nosso João. » O velho pediu a banha de
serpente, e juntou os differentes pedaços do corpo de
João, que logo sarou. « Não sentes cousa alguma nem
te falta n a d a ? » perguntou o velho. Respondeu João :
« Falta-me a vista.» 0 velho pediu a banha do porco-
espinho, e untou com ella os olhos do rapaz, que logo
recobrou a vista. « Péga nas tuas armas, disse então o
velho, e vai a casa de tua mãi e faz o mesmo ou p e o r . »
João partiu; lá chegando encontrou a mai dormindo
com o gigante; poz o seu facão nos peitos do monstro
eTmatou A m ã i se lhe atirou aos p é s , pedindo que a
não matasse; e elle a fez levantar-se d zendo-lhe que a
São offendia por ser sua mãi. Volta a casa do velho
contou"lhe o que tinha feito, salvando sua mai. O velho
íouvou a sua acção, e disse que era o seu anjo da
auarda que o tinha vindo defender. Desappareceu su-
bindo para o céo, e João se casou com a moça que elle
tinha creado.
108 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

XXXI
Historia de João
(Pernambuco)

Houve u m homem q u e teve u m filho chamado João:


morrendo o pai o filho herdou u m gato, u m cachorro,
tres braças de terra e tres pés de bananeiras. João deú
o cachorro ao visinho, vendeu as bananeiras e as terras i
e comprou u m a viola. Foi tocar no pastorador das ove-'
Inas do r e i ; quando o pastor chegava, elle se escondia,^
e nunca o pastor podia v e r q u e m tocava a viola. A s
ovelhas j a m u i t o acostumadas com o som da viola não
queriam mais se recolher ao curral, e quando o vaque-
j a d o r as perseguia ellas se mettiam pelo matto, e cada
dia d e s a p a r e c i a u m a cabeça. João as i a ajunlando e
exercitando ao som da .viola todas as manhãs e tardes,
e acostumando-as com o gato seu companheiro. O re
v e n d as suas ovelhas sumidas, e pensando ser desma-
0

zelo d o pastor, o despediu. Vindo João á feira fazer


compras para levar para o matto, v i u u m criado do r e i
procurando u m homem o u menino q u e quizesse ser
pastejador de suas ovelhas. Logo que o criado v i u a
. vir"" > ^eres tu
d eHe 6 dÍSSe: a Amarello

fn,l« VTA T 0 s e u
P tor?» Respondeu João:
as

ZT ® f f. o ?T P °rado? Esse rei é de penna,


P d 6 8 ast

Trln L í ' : C e, 0?
°r c r i a d 0 ins
»ltou, e, e disse-lhe
S

« C o m o te chamas?» João respondeu: « Ò Menino Dito-


p f ,° ,a
»: d
^ m e e largou-se para o pa-
t o m o l h e 0

a 10 e contou ao r e i o q u e se linha passado. Logo o r e i


mandou buscar o Ditoso debaixo de prisão. Chegou
oao c o m a s u a v l o J a 1 e Q8
ELEMENTO EUROPEU 109

« Deus vos salve, rei senhor,


N'esla sua monarehia!
Salve a mim primeiramente
E depois a c o m p a n h i a . »

Disse o rei: a Saibas que estás com sentença de


morte, se nã J deres conta de todas as ovelhas que fugi-
ram do rebanho. » Respondeu o Ditoso: « Eu sei lá
quantas ovelhas faltam no r e b a n h o ! » Disse o r e i :
K Fugiram mil e quero todas aqui. » Retirou-se o João
bem fresco; foi para o matto e deitou-se a dormir, e o
gato foi caçar rolas para o jantar. Chegando a tarde,
acordou o Ditoso e viu que nada ainda linha feito, e poz-
ge a tocar viola. Logo se reuniram todas as ovelhas, que
eram duas mil e trezentas. Elle foi tocando a viola e
seguindo para o palácio do rei, e as ovelhas foram
acompanhando. O rei ficou espantado de ver tantas ove-
lhas, e disse-lhe: « C o m o pudeste ajuntar tantas ove-
l h a s ? » Respondeu: «Achei-as á tòa. » — « S e r ã o minhas
todas? » perguntou o rei. « Quem sabe n ã o sou eu; veja
se as conhece, eu trouxe as que encontrei. » — « Tu ago-
ra tomarás conta do rebanho, que agora és meu pas-
tor. » No outro dia, antes do sol sahir, o Ditoso pediu
i r a que batessem na porta do rei e dissessem que era tem-
po de seguirem para o matto. O rei acorda e chega á
janella e d i z : «Vai, Ditoso, pastorar. » 0 Ditoso respon-
deu : « Não posso sahir sern rei, senhor, seguir no meio 1

do rebanho, visto ser eu seu pastor, como disse. » — « Es


o pastor das ovelhas do r e i , » disse este. « Agora sim,
respondeu João, já me convenço de que o rei, meu se-
nhor, n ã o é de lã, nem de penna ou pello; é rei de ca-
bello.»
N'isto seguiu com o gato e as ovelhas para o matto.
110 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

XXXII

O £$ai*jatai*io

(Sergipe)
f r

Havia um pescador que tinha mulher e uma filha,


costumava pescar sempre n'um rio que ficava a pouc
distancia de sua casa. Ora uma vez o pescador foi i
pesca, e largou por muitas vezes a tarrafa na agua, •
não tirou nem um peixe. Já desapontado, e depois djs
ter corrido os poços mais apropriados á pesca e se
encontrar nada, ia-se retirando para casa muito tristAcú'
Ao pôr-se a caminho, ouviu uma voz que lhe diziáfci'
«Si me deres a primeira cousa que avistares quando-:.
chegares em tua casa, eu te darei muito peixe. » O hoji.
mem poz-se a considerar comsigo mesmo, e dizia: t i
«Ora, senhor, quando eu chego em casa, a primeirai:
cousa que me apparece é a minha cachorrinha de ba-;
laio; não faz mal.; posso dal-a. » Virou-se para o l a h
do de onde vinha a voz, e disse alto: « Pois bem; a
aceito. » A voz respondeu : « Pois pesca alli. » O pesca] \m
dor metteu a tarrafa, e quando tirou vinha se rasgandç |Nh
de peixe. A voz lhe disse: « Sabbndo a estas horai %ü
vem me trazer a primeira cousa que has de vér ao che! fe::
gares á lua casa.» O homem retirou-se. Ao avistar a Í. ;

sua casa, a primeira cousa que viu foi a sua filha, que
já estando inquieta por causa da sua demora, estava só
pondo o olho no caminho, a ver si o descobria. O hoj j)^
mem ficou muito triste, e entrou em casa com ar fecha-
do, e atirou o peixe para um lado e não deu nem uma
palavra.
A mulher e a filha se admiraram d'aquillo, e per-
guntaram qual a razão d'aquel!a tristeza. Depois dei
muito instado, o pescador confessou a verdade. A moçal
ELEMENTO EUROPEU 111

íão desanimou e disse : « Não tenho medo, m e u p a i ; si


wossemecê deu a sua palavra de honra, eu irei. » A mo-
:a tinha u m cavallo com quem consultava tudo, e foi
er com elle e l h e contou o occorrido. O cavallo disse:
(Não tem nada; monte-se e m m i m no sabhado, e faça
D que eu vou lhe dizer: quando chegarmos á beira do
rio, e depois de seu p a i se despedir da senhora, a tal
voz, que é de u m bicho muito feio, ha de dizer: « Adeus,
úá Maria Gomes !» e a senhora ha de responder: « Adeus,
seu Sarjatario! » Elle ha de dizer: «Muito m e admira,
5iá Maria Gomes, d a senhora não me conhecer e p o r
neu nome tratar. » Ao que a senhora ha de responder:
« Oh! seu Sarjatario, m u i t o me admiro do senhor não
me conhecer e por meu nome tratar. » Elle ha de dizer :
«Está bom, está b o m ! Caminhe, caminhe!» Hão de
t iã
seguir e passar p o r umas campinas muito extensas e
depois p o r umas mattas muito altas e cerradas de fazer
medo. Lá n ofimdas mattas ha u m grande m u r o , que
tem u m portão, e o Sarjatario ha de mandar a senhora
abrir a porta e entrar adiante. A senhora não caia n'es-
sa e d i g a : Não, seu Sarjatario, vá o senhor adiante
que sabe os quatro cantos de sua casa. » Elle ha de abrir
a porta e entrar; n'isso a senhora passe a m ã o na cha-
..: ve, dê a volta e tranque a porta e deixe o bicho lá pre-
m
so, e deixe o resto por minha conta. » Assim foi. No
dia aprazado, a moça montou no seu cavallo Bufanim e
seguiu. Na beira do r i o avistou aquelle bicho-homem de
«ri barbas muito compridas e cabellos enormes da fôrma de
is sambambaias, e fez tudo que o cavallo lhe ensinou. De-
pois que fechou o monstro lá dentro do muro, ella par-
«.ví t i u no Bufanim, voando como o vento. Depois de muito

andarem, e de já não o u v i r e m mais os urros que o Sar-


jatario ficou dando, e quando já estavam muito longe,
foram d a r n'um reino. A h i o Bufanim aconselhou a mo-
ça que se disfarçasse e m homem. Assim fez a m o ç a ;
entrou para a cidade, alugou uma casa e passava p o r
112 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

um moco. Tomou muitas relações e tudo quanto faz i.


era sempre com os conselhos do Bufanim. Passados a
guns tempos — o moço agora não é mais ella, é elle -
foi apresentado ao rei, que era solteiro, por um de seil
amigos. 0 rei gostou muito do moçu e sempre o couv.
dava para ir passar dias em palácio. 0 Bufanim recoa
mendou-lhe todo o cuidado para não ser descoberto
Ora, a mãi do rei começou a dizer ao filho: « Aquell
teu amigo não é homem, é mulher. » Ao que respondi
o rei: «Lá vem minha mãi com as historias d ' e l l a . . | u
qual, minha mãi!*é homem e bem homem! » A rainhji
respondia: «Está bom, vamos para diante. » Um dia
rainha disse ao r e i : Meu filho,"se tu queres ver si te
amigo é mulher ou não, convida-o para dares com eí
um passeio pela cidade, e leva-o aos estabelecimentos d l
roupas e modas, e has de ver como elle se ha de agrajii
dar justamente dos objectos pertencentes ás senhoras, i
0 rei íicou certo de o fazer, e convidou de facto o mo- . f

ço para um passeio, ao que elle accedeu. Foi ter com,.


Bufanim e o cavallo lhe disse: « Estamos perdidos ! . .
agora se descobre o segredo... Emfim, veja bem o que^
vai fazer: quando entrar nas lojas de roupas e moda s M
com o rei, nunca se agrade de objecto algum de senho
ra, sempre dos de homem. Quando o rei lhe mostraru
um bello vestido, mostre-lhe um bonito corte de calças,!
e assim por diante. » Assim f o i ; no dia aprazado paral
o passeio, o rei percorreu com elle toda a cidade enX
trando nas lojas mais importantes, e nunca pôde p i l h a »
nada. Largou-se para palácio c disse á velha rainha:
« Eu não disse, minha mãi ? o rapaz é homem e bem ho-
mem; não se agradou de objecto algum que não fosse
de h o m e m ! » A velha respondeu: «Isto é de propósito
para não ser descoberto; mas elle é mulher; si tu que-
res ver convida o para ir dar um passeio nas tuas fa
zendas com outros teus amigos, e lá convida-o para lo
mar um banho e has de ver que elle não ha de que-
ELEMENTO EUROPEU 113
;r. » 0 rei convidou o moço para i r e m um certo d i a
5 fazendas e tomarem u m banho, e o moço aceitou.
oi t e r o moço com Bufanim e lhe contou o caso. Bu-
n i m disse: « E h ! . . . está tudo perdido! Emfim, fa-
a o que eu lhe vou dizer: Chegando lá nos tanques do
íi não faça ceremonia, vá tirando a sua roupa como os
u l r o s ; quando a senhora já estiver de ceroulas e ca-
íisa eu me solto e entro a dar couces e patadas nos
utros cavallos; os criados do r e i hão de correr pa-
a me pegar, e eu hei de machucar alguns, alé que a
enhora diga que só a senhora é capaz de me pegar.
orra atraz de mim até ficar cançada e suada e depois
ueira tomar o banho; o rei, vendo isto, não ha de con-
entir, e assim a senhora escapa do banho. » Assim f o i ;
o dia marcado deu-se tudo tal e qual, e o moço esca-
>ou do banho com instâncias do rei. Chegando este a
lalacio disse: « Ora minha mãi, o rapaz é h o m e m ; ia já
e pondo nú e queria tomar banho á força apesar de
mado. » — «Mas suado porque, meu filho?» — «Por
er corrido atraz de seu cavallo, » disse o rei. « H o é
le propósito, respondeu a r a i n h a ; si t u queres ver,
:ontinuou ella, si elle é m u l h e r ou não, convida-o para
ir passar uma noite comtigo ajudando-te a copiar a tua
correspondência; elle não ha de agüentar a noite intei-
ra acordado, e quando elle pegar no somno, desabo-
lôa-lhe a camisa e has de v e r os seios de mulher.» O
rei convidou o amigo para passar uma noite em palá-
cio ajudando a copiar a sua correspondência. O moço
consultou com o Bufanim, que lhe respondeu: « D'esta
a senhora não escapa. Emfim faça tudo por não dor-
mir, si não é descoberta com toda a cèrteza.» Na
noite marcada, o moço se apresentou e começou o tra-
balho. O rei dietava e elle escrevia. Foram indo, foram
indo e nada de ninguém dormir. Mas lá para quatro ho-
ras da madrugada o moço cochilou e pegou no somno,
Ahi o r e i veiu devagarinho e desabotoou-lhe a camisa
114 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

e p e g o u nos seios, q u e alli e s t a v a m d u r i n h o s e guarda-


d i n h o s . . . O r e i q u a n d o l h e s botou a m ã o e m cima f o i
d i z e n d o : « O h ! senhora dona!» A h i appareceu logo a
mãi do r e i e d e u á m o ç a roupas de m u l h e r , e ella m u i -
to envergonhada, pediu m u i t a s desculpas ao r e i , q u e l o -
go a pediu e m casamento. Depois de casados o B u f a n i m
conservou-se s e m p r e e m poder da moça. Passados a l -
g u n s mezes a n o v a r a i n h a appareceu pejada e o r e i t e -
ve que s e g u i r para a g u e r r a e l e v o u o Bufanim. Na des-
pedida o c a v a l l o disse á r a i n h a : « Quando se achar e m
a l g u m p e r i g o g r i t e p o r m i m tres vezes, q u e e u l h e
hei d e apparecer.» Depois de estar o r e i na g u e r r a já
a l g u m t e m p o , a r a i n h a deu á l u z dous m e n i n o s a cous
mais l i n d a q u e dar-se podia. A v e l h a mãi do r e i fico
m u i t o contente, e e s c r e v e u ao filho dizendo q u e sua no
ra t i n h a dado á luz dous príncipes, que e s t a v a m m u i t o
fortes, e e r a m m u i t o bellos, e m a n d o u l e v a r a carta p o r
u m soldado, recommendando-lhe m u i t o cuidado. O sol-
dado p o r c a i p o r i s m o , f o i , depois de m u i t o s dias de via-
gem, p e r n o i t a r na casa do Sarjatario, q u e se fingiu d e
t o l o , e p e r g u n t o u q u e novidades h a v i a . 0 soldado l h e
contou que não sabia de nada, mas q u e l e v a v a u m a
carta para o r e i . 0 Sarjatario, q u a n d o o soldado p e g o u
no s o m n o , f o i á sua mala, t i r o u a carta, e b o t o u lá :
o u t r a i m i t a n d o a l e t r a , e dizendo q u e a r a i n h a t i n h a da-
do á luz dous sapinhos, e que a corte estava c o b e r t a de
lucto. O soldado s e g u i u v i a g e m e e n t r e g o u a c a r t a ao
' r e i , que ficou m u i t o aíuicto, mas que m a n d o u e m r e s i
posta á mãi, — q u e sapinhos ou não, fossem e l l e s *
m u i t o b e m tratados. 0 s o l d a d o s e g u i u c o m a resposta,J|:
e, ainda p o r c a i p o r i s m o , f o i p e d i r r a n c h o n a casa d o
Sarjatario. De n o v o este m o n s t r o f o i á m a l a do soldado
e t i r o u a c a r t a e b o t o u o u t r a no l o g a r , i m i t a n d o a l e t r a
do rei, e dizendo q u e a sua m ã i mandasse pôr a sua
m u l h e r e os dous m e n i n o s n a Montanha das feras. O
soldado s e g u i u , e, q u a n d o a r a i n h a v e l h a l e u a resposta,
ELEMENTO EUROPEU 1]5

Picou muito agonisada e mandou reunir os conselheiros


- para l h e d i z e r e m se d e v i a executar aquella o r d e m t e r r i -
• rei. Todos ficaram m u i t o aíflictos, mas responderam q u e
w. lavra de rei não volta atraz, e por isso d e v i a ser
c o m p r i d a a ordem. Assim se fez, e a r a i n h a teve de se-
g u i r com seus dous filhinhos para a Montanha das fe-
ras. As pessoas q u e as f o r a m levar, retiraram-se, e a
;
r a i n h a com seus filhos viram-se sósinhos. Mas as feras
bravias que alli h a v i a não as ofienderam. Eis que de re-
pente appareceu aos olhos da r a i n h a a q u e l l e m o n s t r o
íj íorrivel e medonho, e r a o Sarjatario! « Agora v i m m e
•] v i n g a r , senhora Maria Gomes. Vamos a v e r q u e m pôde
• li mais, » disse o monstro. A r a i n h a ficou m u i t o a t e r r o r i -
sada e p e d i u compaixão, mas o Sarjatario a nada se
• i ) m o v e u . A r a i n h a , c o n v e n c i d a de q u e i a m o r r e r , p e d i u
ÍSS! para dar tres gritos. « Pôde d a r cem ou m i l ! » respondeu
o Sarjatario. Então ella g r i t o u : « Bufanim, ó Bufanim ! »
H isto tres vezes. No fim do terceiro g r i t o o B u f a n i m apre-
.:': sentou-se. O Sarjatario, q u a n d o o avistou, deu u m p u l o
- para o lado, e poz-se e m distancia. Então o cavallo dis-
se á m o ç a : « Eu v o u t e r u m a grande lueta com a q u e l l e
s monstro e v o u m o r r e r ; mas elle t a m b é m ha de m o r r e r .
VB Eu peço somente que a r r u m e u m a grande f o g u e i r a e
deite n'ella o c o r p o do m o n s t r o ; o meu corpo deixe-o
ahi ao t e m p o para os u r u b u s o c o m e r e m . » Dito isto
atirou-se ao Sarjatario e começou a briga. A lueta f o i
f u r i b u n d a , e os dous c a h i r a m mortos, cada q u a l para
seu lado. A m o ç a fez o que o Bufanim l h e t i n h a d i l o , e
l a r g o u na f o g u e i r a o cadáver do Sarjatario e d e i x o u ex-
i posto ao a r o d o cavallo. Depois d e m u i t o chorar, e
• abraçar o pobre cavallo, ella f o i seguindo p o r u m a
grande c a m p i n a q u e alli havia. Depois de m u i t o andar,
avistou m u i t o ao longe u m a casa. Ao chegar perto, re-
conheceu u m palácio grande e m u i t o ornado. E n t r o u e
não v i u ninguém. Á hora de c o m e r v i u apparecer uma
mesa m u i t o preparada, e ella sentou-se e c o m e u , appa-
116 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

recendo somente umas mãos q u e l h e indicavam os ob-


jectos, mas sem a moca v e r ninguém, n e m o u v i r fallar.
T a m b é m as mãos apresentavam comida para as crian-
cinhas. Á noite appareceram luzes accesas e camas para
se deitarem. Assim passou a moca muitos mezes, até
que o rei, v o l t a n d o da campanha, e não encontrando :
mulher, e sabendo de tudo ficou desesperado, e q u i
t a m b é m i r para a Montanha das feras; v i u alguns
ossos pelo chão e signal d e fogo, mas reconheceu
que não eram ossos de gente humana. Poz-se a andar
pela campina, e seguiu n a mesma direccão que tinha le-
vado a rainha. No cabo de m u i t o andar foi ter ao mes-
mo palácio, e avistou u m a moca na janella, ao m e s m o
tempo q u e u m dos meninos, q u e n'este tempo já falla-
vam, g r i t o u : «Olhe, m a m ã i , lá v e m papai!» — « A h !
quem dera que fosse teu pai!» — « Ê elle m e s m o , » ,
respondeu o r e i . Muita foi a alegria e satisfação de to-
dos, que v o l t a r a m para a cidade e v i v e r a m felizes ainda
muitos annos.

(Pernambuco)

Um homem teve tres filhos que lhe pediram para


aprender cada u m o seu officio. João aprendeu a ferrei-
ro, José a carpinteiro e Joaquim a barbeiro. João e José
pediram depois ao p a i para i r e m ganhar a sua vida, e
lhe p e d i r a m a benção. Joaquim t a m b é m pediu para i r
ganhar a sua vida, e e m vez de benção p e d i u a sua he-
rança.
ELEMENTO EUROPEU 117

Quando este sahiu deu uma topada que despegou


uma unha do pé, e disse: « Diabo te leve, portada do
inferno ! » 0 pai respondeu : « N'elle entrarás, maldito. »
O filho partiu para se encontrar com os irmãos; andou
Imais de um mez e não os encontrou. Desenganando-se
Ide os não encontrar deixou-se ficar n'uma cidade, e, por
•ser noite, foi dormir na guarda do thesouro. N'esta noi-
jte entraram quatro ladrões para roubarem o thesouro e
jjoaquim foi preso com elles. Não tendo Joaquim pessoa
•que o conhecesse, escreveu ao pai, que não lhe respon-
Ideu.
0 ferreiro da cadca mandou procurar um ofEcial
Ido oíficio e João se apresentou. Tomou parte na tenda e
• passou a contramestre, e depois a mestre. Precisou-se
• também de um carpinteiro e apresentou-se José. No dia
em que este se apresentou na cadéa, sahia Joaquim es-
coltado para a forca. Os dous irmãos foram-se empenhar
com o rei e a rainha para o soltarem. 0 rei respondeu:
a iMinha palavra não torna atraz. » Partiram-se os irmãos
sem esperança. Os quatro ladrões tinham sido absolvi-
dos e toda a culpa recahia sobre Joaquim. Quando esta-
va elle já para ser enforcado, chegou um cavaileiro, or-
denando que suspendessem os trabalhos, e entrou pelo
palácio adentro e disse ao r e i : « Venho para que at-
tendas ao pedido que te fizeram os irmãos d'aquelle pa-
decente; isto já quanto antes, senão morrerás tu e fica-
rá elle salvo e com a coroa. » N'um abrir e fechar de
olhos, deu o cavalleiro, que era o demônio, tres estou-
ros, e morreu o rei, ficando Joaquim com a coroa. João
e José ficaram como vassallos do irmão. O boato de tal
grandeza chegou aos ouvidos do pai de Joaquim, que
correu e foi pedir perdão ao filho pelo que lhe tinha
dito, quando sahira elle de casa. Joaquim respondeu-
lhe : « Eu passei por muitos maus trances e quem me
salvou foi o diabo; quem ha de °valer a vossemecê dos
mesmos trances será minha mãi:
118 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Quero agora que me mostre


traste que des que nasci
nunca, nunca eu conheci!
Para a sua salvação
quero me diga a final
onde foi ella p a r a r . . . »

Respondeu o velho: «Rei senhor, filho meu, tu


mãi eu a matei por ter dado á luz tres filhos de um
vez ; eu te criei com leite de uma vacca que está e
poder do rei das Columnas no campo das Feras. » 0 re
disse : « Quero minha mãi e a vacca que me amamentou
e isto sem demora. »
Retirou-se o velho muito t r i s t e ; encontrou um ca-
valleiro que lhe perguntou o que tinha, ao que o velh
respondeu que nada soffria, mas sentia i r morrer por
vontade de seu filho ; « porque para livrar-me é preciso
dar-lhe conta de minha mulher e de uma vacca ; a mu
lher matei-a e a vacca vendi-a. Não tenho r e m é d i o ; es
tou perdido, » respondeu o cavalleiro: « Não digas t a l ;
tudo isto tem r e m é d i o . Quando acabares de percorrer o;
tres rios d'este reinado, has do achares o que procuras
os rios distam uns dos outros m i l l é g u a s . » Tratou o ve
lho de seguir viagem. No cabo de quinhentos dias che-
gou ao primeiro rio. Ficou na margem do rio, por o n ã o
poder atravessar, e á noite deitou-se debaixo de um ar-
voredo. Á meia noite chegaram os diabinhos para faze-
rem suas visagens; no mesmo instante o velho acorda
e põe-se a escutar. Pergunta o diabo mais velho : « Ó
capenga, diz-me o que fizeste? » Respondeu o capen-
ga : « No reino das Tres Columnas eu fiz uma mulher
conceber tres filhos de uma s ó vez; porque sabia que o
marido a havia de m a t a r . » Os differentes diabinhos fo-
ram contando as suas façanhas : « Eu fiz o marquez da
Bruma queimar as librés dos seus criados; eu tenho a
filha da condessa escondida no Valle do Sultão ; eu fiz
princeza namorar o estribeiro do r e i ; eu fiz a rainh
ELEMENTO EUROPEU 119
ender a corôa. » Cada diabo dava uma resposta d'cs-
as. Findou-se a sessão. 0 velho levantou-se e pôz-se a
iajar. No f i m de quinhentos dias chegou ao segundo
io, e ahi na margem deitou-se a dormir. Á meia noite
t

omeçaram as fadas a chegar para fazer seu ajunlamen-


o. Disse a fada mais velha: « Fademos, manas, o que
fizeram ? » Começaram as fadas a dar as suas respos-
as : « Eu fiz um r e i desherdar do throno a princeza ;
3ufizo reino das Maravilhas encantar-se, só o desen-
cantará o João ferreiro, que é vassallo do irmão; eu en-
mi cantei a cidade de Âmbar, só a desencanta o José car-
ijnteiro ; eu encantei o reino das Tres Columnas, só o
esencantará Jorge, pai dos tres felizes, que todos tres
íião de ser reis, depois que o pai andar m i l e quinhen-
os dias; terá de passar tres dias debaixo d'agua e ser
j o m i d o pela serpente ; depois de tudo isto será feliz. »
0 velho só por o u v i r isto já estava mais morto do que v i -
VI
vo, por v e r que tinha de passar tantos trabalhos. Pôz-se
a caminho sem descançar. Estando muito fatigado, dei-
r.)f! tou-se n'um capão de mato e pegou no somno. Então
ouviu uma voz que lhe dizia: «Levanta-te, segue t u a
viagem senão serás viclima de uma serpente.» O velho
<> icordou e pôz-se a c o r r e r ; mas já era tarde, e fui engo-
0 lido v i v o por uma serpente. No ventre da serpente es-
A(»9
teve o Jorge 496 dias, quando ella entrou n'um rio e le-
vou tres dias no fundo como se fosse peixe. Depois foi
dar á costa nas maltas encantadas do reino das Tres Co-
lumnas, e ahi morreu, sahindo para fóra o velho ainda
vivo, mas muito magro e abatido. Pegou no somno e
ouviu uma voz que dizia: « Levanta-te, acompanha-me,
péga estas chaves, abre aquella porta, e vai abrindo
quantas fôres achando; has de ver dentro de uma bola
de vidro um cabello, dentro de uma caixa uma pedra e
dentro de uma gaveta-uma espada. Amola esta espada até
ficar bem afiada e corta o cabello nos ares. Se o não cor-
tares de uma só cutilada, todos as bichos ferozes virão
120 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

sobre ti e te devorarão. Se cor lares de uma só vez será


feliz. » Jorge seguiu tremendo e medroso; abre as portas'
e encontra os objectos : amolou a espada um dia intei
ro. Depois deu o golpe no cabello,e o corlou, enchend
a casa de sangue, tantos pingos quantos soldados. Achou
sua mulher e a sua vacca. Houve muitas festas, man-
dando Jorge todos adorar a vacca. Ficou bem com seu
filho, e foram todos felizes.

XXXIV
A. fojrmnig-a e a neve
(Sergipe)

Uma vez uma formiga foi ao campo e ficou presa


n'um puuco de neve. Então ella disse á neve : « Ó ne-
ve, tu és tão valente que o meu pé prendes ? » A neve
respondeu : « Eu sou valente, mas o sol me derrete. »
Ella foi ao sol e disse : « Ó sol, tu és tão valente que
derretes a neve, a neve que meu pé prende ?» 0 sol
respondeu : « Eu sou valente, mas a nuvem me escon-
de. » Ella f o i á nuvem e disse: « Ó nuvem, tu és tão
valente que escondes o sol, o sol que derrete a neve, a
neve que meu pé prende ? » A nuvem respondeu: « Eu
sou valente, mas o vento me desmancha.» Ella foi ao
vento: « Ó vento, t u és tão valente que desmanchas
a nuvem, a nuvem que cobre o sol, o sol que derrete
a neve, a neve que meu pé prende ? » — « Sou valente,
mas a parede me faz parar.» Vai á parede : « Ó pare-
de, tu és tão valente que páras o vento, o vento que des-
mancha a nuvem, a.nuvem que esconde o sol, o sol que
derrete a neve, a neve que meu pé prende ? » — « Sou
valente, mas o rato me fura. » Foi ao r a t o : « Ó rato,
tu és tão valente que furas a parede, a parede que pára
ELEMENTO EUROPEU 121
o vento, o vento que desmacha a nuvem, a nuvem que
esconde o sol, o sol que derrete a neve, a neve que
Éjmeu pé p r e n d e ? » — « Sou valente, mas o gato me co-
me. » Vai ao gato: « Ó gato, tu és tão valente que co-
mes o rato, o rato que fura a parede, a parede que pára
o vento, o vento que desmancha a nuvem, a nuvem que
esconde o sol, o sol que derrete a neve, a neve que meu
pé prende?»— «Sou valente, mas o cachorro me bate. »
Vai ao cachorro: « Tu és tão valente que bates no ga-
to, que come o rato, que fura a parede, que pára o
vento, que desmancha a nuvem, que esconde o sol, que
derrete a neve que meu pé prende ?» — « Sou valente,
mas a onça me devora. » Vai á onça: « Tu és tão valen-
te que devoras o cachorro, que bate no gato, que come
o rato, que fura a parede, que pára o vento, que des-
icr mancha a nuvem, que esconde o sol, que derrete a ne-
ve que meu pé prende ?» — « Eu sou valente, mas o
homem me mata. » Vai ao homem : « Ó homem, t u és
Ms
tão valente que matas a onça, que devora o cachorro,
que bate no gato, que come o ralo, que fura a parede,
que pára o vento, que desmancha a nuvem, que esconde
o sol, que derrete a neve que meu pé prende? » — « Eu
sou valente, mas Deus me acaba. » Foi a Deus: « 0
Deus, tu és tão valente que acabas o homem, que ma-
ta a onça, que devora o cachorro, que bate no gato,
que come o rato, que fura a parede, que pára o vento,
que desmancha a nuvem, que esconde o sol, que derre-
• I te a neve que meu pé prende ? » Deus respondeu : « For-
1

miga, vai furtar. » Por isso.é que a formiga vive sempre


activa e furtando.
122 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

XXXV
O matuto Joào

(Pernambuco}

Havia um homem de nome Manoel, casou-se com


uma mulher chamada Maria e tiveram u m filho que se
chamou João. Os paes, por serem muito pobres, não lhe
ensinaram a l e r ; porém João era muito activo. Um
dia sahiu de casa com uma cachorrinha que sua avó lhe
tinha dado e foi passear. No caminho soube que no Rei-
no das tres princezas havia grande festa e u m casamen-
to, dentro de quinze dias, com uma das filhas do r e i ,
si alguém decifrasse u m a adivinhação. Já muitos ho-
mens tinham m o r r i d o na forra por não poderem decifrar
a adivinhação.
João, chamado o amarello, voltou para casa e disse
ao pai que ia pelo mundo a fóra ganhar a sua vida. 0
pai consentiu e a mãi lhe preparou u m pão muito gran-
de e envenenado e arrumou-o na trouxa. João p a r t i u
com a sua cachorrinha. Não sabendo b e m os cami-
nhos, perdeu-se nas montanhas, e, depois de andar mui-
to errado, deu n'uma campina já de noite. Ahi dormiu.
No dia seguinte passou elle u m rio, que tinha tido u m a
grande enchente e onde v i u u m cavallo morto, e os uru-
bus já lhe estavam dando cabo. Como havia correnteza,
as águas puxavam o cavallo de r i o á baixo. João fez
reparo n'aquillo e seguiu seu .caminho.
0 sol já pendia quando elle sentou-se debaixo de u m
pé de arvore para comer o seu pão, e n'isto deu-lhe o
coração aviso que não comesse sem experimentar e m
sua cachorrinha. Logo que elle deu do pão á cachorri- j
nha, ella expirou. Muito sentido com isto, elle pegou-a
nos hombros, e os urubus começaram a atrapalhal-o. Pa-
ELEMENTO EUROPEU 123
Ta vêr-se l i v r e , elle enterrou a cachorra, mas os urubus
a desenterraram, a comeram e m o r r e r a m . — J o ã o pegou
nos urubus e pôz nas costas e seguiu. Chegou a u m a
estalagem, e, não vendo ninguém, entrou pela porta a
dentro. Lá no fundo avistou sete homens todos armados
de espingardas. Estavam sem comer ha tres dias e logo
que v i r a m o João avançaram para elle e lhe tomaram os
urubus. João largou-se á toda pressa e deixou-se a t r a z ;
mas vendo que o não seguiam voltou e achou-os todos
mortos. Escolheu das sete espingardas a melhor e lar-
gou-se. Chegando adiante, encontrou uma grande cam-
pina ; já morto de fome e sede, sentou-se debaixo de
u m arvoredo. N'isto vôa do capim grosso uma yampu-
pé. 0 tiro e r r o u e foi dar n'uma rolinha que estava
1

entre as folhas. João apanhou a rola e a depennou'; mas


não achou c o m que fizesse fogo para assal-a. Tinha a l l i
u m a santa-cruz e tirou d'ella uma lasca e fez fogo, as-
sou a rola e comeu ; mas tinha muita sede e, não achan-
do agua, p e g o u u m cavallo, que andava alli pastando,
montou n'elle e pôz-se a correr até o cavallo ficar b e m
suado — a ponto de correr o suor e elle aparar e be-
ber. Seguiu sua viagem e passou n'um campo e v i u
uma cova onde havia uma caveira; fallou-lhe e notou
que a caveira também lhe fallava. Mais adiante encon-
t r o u u m burro amarrado debaixo d'uma arvore a cavar
com os pés e conheceu que o b u r r o cavava u m a botija
de dinheiro. Seguiu e foi ter ao palácio do r e i e j e v a r a
sua adivinhação á princeza, certo de que ella não acer-
taria. Apresentou-se o João e disse que era pretendente
á m ã o da princeza ; pois ella era incapaz de decifrar a
sua adivinhação. Riram-se muito d'elle. «Ora! disseram,
quando outros homens sábios não sahiram-se bem, t u
que és u m pobre matuto e amarello é que has de ca-
i Grande ave, maior que| a yambú; é uma espécie de
perdiz.
124 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

s a r c o m a filha do r e i ! » O matuto i n s i s t i u e f o i f a l i a
ao rei. O r e i l h e disse : « S a b e s tu a quanto te arris-
cas ? » João r e s p o n d e u q u e a tudo e s t a v a disposto. Cha-
m a d a a princeza e muito confiada em s i e debicando o
r a p a z , m a n d a - l h e q u e p r o p o n h a a s u a adivinhação. O
matuto a s s i m f a l l o u :
« Sahi de casa com massa e pita;
A m a s s a m a t o u a pita,
A pita m a t o u tres,
Os tres m a t a r a m sete,
Dos sete escolhi a m e l h o r :
A t i r e i no q u e v i
E m a t e i o que não v i ,
Com madeira santa
Assei e c o m i ;
B e b i a g u a sem ser dos céos,
V i o morto c a r r e g a n d o os vivos,
Os mortos c o n v e r s a n d o os v i v o s ;
O que o h o m e m não sabe,
Sabia o jumento:
O u ç a tudo isto p a r a s e u tormento. »
A princeza mandou repetir, e não foi capaz de deci-
f r a r . E c a s o u c o m o João.
XXXVI
O irmão caçula
(Pernambuco)

Havia um homem que tinha tres filhos; João o mais


v e l h o , o o u t r o M a n o e l e o caçula José. T o d o s e l l e s s e
r e v o l t a r a m c o n t r a o p a i . F u g i r a m João e M a n o e l e ficou
José. 0 p a i o b o t o u á p r o c u r a d o s i r m ã o s . José g a n h o u
o m u n d o e foi ter a c a s a de u m a velha, que l h e d i s s e :
« Meu n e t i n h o , v o c ê o q u e a n d a f a z e n d o p o r e s t a s a l t u -
ELEMENTO EUROPEU 125

,. ras ? » — « Minha avó, respondeu c elle, venho buscar


meus irmãos que fugiram de casa de meu pai e elle
iquer que eu os descubra.» — « Pois dorme, meu netinho,
fique eu os farei te acompanhar.» No outro dia a velha,
•depois de lhe dar o que comer, lhe disse que elle fosse
ao Reino das tres pombas, onde encontraria os dous i r -
mãos; porque havia alli uma grande festa para se tirar
por sorte quem devia desencantar as tres pombas, que
estão dentro do mar. « Leva, disse a velha, esta vara e
esta esponja com muito cuidado que ninguém veja; por-
que teus irmãos te hão de calumniar ao rei, dizendo
que tu te gabaste de ir ao fundo do mar quebrar a pe-
dra e desencantar as tres princezas. O rei te ha de cha-
mar, e tu deves sustentar que sim. Vai então á praia
do mar e atira n'elle a esponja; a esponja ha de boiar
e seguir, tu deves acompanhai-a; vai com a varinha e
toca na pedra, que se partirá pelo meio; te ha de ap-
parecer uma serpente, toca com a varinha n'ella e ella
ha de adormecer; entra pela pedra a dentro e tira de lá
uma caixa; toca com a vara na caixa que ha de se abrir,
tira de dentro um ovo; este ovo tem tres gemas; quan-
do o quebrares dá a clara á serpente.» José foi e fez
tudo quanto a velha lhe ensinou. Chegando ao reino viu
lá a grande festa: por estar mal prompto os irmãos fin-
giram que o não conheciam, e trataram de intrigal-o,
dizendo ao rei que elle se atrevia a desencantar as prin-
cezas. O rei o mandou chamar e lhe perguntou. « Sa-
berá, rei meu senhor, que eu não disse t a l ; mas si rei
meu senhor assim o ordena, eu estou prompto. » Todos
, ficaram admirados e duvidavam. No outro dia apresen-
tou-se elle para seguir, e o rei mandou pôr navios á
i:
sua disposição; elle disse que os não precisava, porque
:
iria a nado. Todos acharam impossível ir nadando até á
" pedra. Mas o José largou no mar a esponja e seguiu
^ com ella até á pedra. Bateu n'ella com a varinha e d i a
a * se abriu; appareceu a serpente; bateu também n'ella
;
126 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

e ella adormeceu; bateu na caixa e ella se a b r i u ; t i r o u


o o v o e p a r t i u ; botou a clara na bocca da serpente e
as tres gemas no chapéo e largou-se para traz. Che-
gando n a praia bateu com a varinha nas tres gemas,
que se transformaram nas tres mocas mais bonitas d o
mundo. Chegando a palácio todos se admiraram da sua
coragem. Ainda l h e levantaram os irmãos novo aleive,
dizendo que o José tinha dito que e r a capaz de i r bus-
car n o m a r a própria serpente. Elle f o i , fez o mesmo
com a esponja e a varinha e trouxe a serpente. Como
ainda quizessem mangar com elle, tocou com a vara e m
todos a começar pelo próprio r e i e os fez adormecer.
Mandou então* a g a r r a r os irmãos e leval-os a seu pai.
0 r e i , quando v o l t o u a si, mandou casar o José c o m a
mais bonita das princezas; elle tocou c o m a vara em
todos os presentes e os fez adormecer; m a n d o u buscar
o p a i e os irmãos; casou estes com as outras duas
princezas, e ficaram todos vivendo juntos.
XXXVII
'#• * »

A. m u l l i e i - e ÍX filha, b o n i t a

(Rio de Janeiro)

Uma vez havia uma mulher viuva que tinha uma


filha muito bonita, e a mulher também era m u i t o bella
e tinha inveja da filha.
Um d i a passando em casa d'ella uns viandantes, a
mulher lhes disse: « O s senhores já v i r a m u m a cara
mais formosa do que a m i n h a ? » Elles responderam:
« É muito b e l l a ; mas a sua filha ainda é mais. » A mu-
lher ficou desesperada e f o i tomando odio á filha.
D'outra vez passaram p o r lá outros caminheiros e
ella lhes fez a mesma pergunta e teve a mesma respos-
ELEMENTO EUROPEU 127

ta. Ficou ainda mais desesperada e mandou trancar a


mocinha n'um quarto para não ser vista por ninguém.
A menina soífria tudo com muita paciência e nada dizia.
No quarto em que ella estava tinha uma janellinha
que dava para o caminho, e uma vez que ella se ani-
mou a abril-a vinham passando uns viajeiros e a viram.
Elles chegaram á casa e a mãi da mocinha lhes disse:
« Os senhores já viram uma cara tão bonita como a
minha? » Elles responderam : «É bonita; mas a da mopa,
que está presa no quarto, ainda é mais.» A mulher ficou
desesperada e . ordenou a um negro velho da casa que
levasse a filha para os matos e lá a matasse. 0 negro
levou a rapariga; mas chegando nas brenhas teve pena
de a matar e deixou-a lá ficar e cortou a ponta da lin-
gua de uma cachorrinha e levou à senhora, dizendo que
tinha matado a moça. A mulher acreditou. A mocinha
poz-se a andar por aquella mata a fóra e já sendo tar-
de trepou n'uma grande arvore e muito ao longe avis-
tou uma fumacinha. Desceu e dirigiu-se para lá Saquei-
la direcção. Depois de muito andar, lá chegou.
Era um grande palácio; porém não tinha gente e
estava muito -sujo. A moça arrumou tudo, varreu toda
a casa, limpou os trastes e pôz-se lá á espera. Este pa-
lácio era do Rei dos ladrões. Quando foi mais tarde a
moça viu elle chegar -com a sua grande tropa, teve mui-
to medo e se escondeu. Os ladrões ficaram muito gra-
tos e procurando toda a casa a encontraram. A moça
encantou a todos os ladrões pela sua belleza, e já elles
queriam brigar para ver quem a tinha de possuir e
sem chegar a um accordo. Então o Rei dos ladrões
propoz que a moça ficasse em casa morando com elles;
mas que todos a tratassem e venerassem como si fos-
se uma irmã. Assim fizeram, e a mocinha ficou alli des-
cançada. Correram os tempos e chegou aos ouvidos da
mãi que a "filha estava viva e muito bém, porque estava
muito rica.

I
128 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

A mãi mandou chamar uma feiticeira e lhe pedia


que procurasse a sua filha e lhe désse fim. A feiticeira
aceitou a proposta e largou-se para a casa dos ladrões.
Lá chegando à hora em que a mopa estava sósinha lhe
fez grande festa dizendo: « Oh! minha netinha, ha que I
tempo não te v e j o l t u mamaste n'estes meus peitos! [
Trago-te aqui um presente de pobre; não achei nada
para trazer e trago somente este parzinho de sapatos. » ]
A mopa por delicadeza aceitou os sapatos e logo que os
calçou cahiu p'ra traz como morta. A velha raspou-se
ás carreiras. Quando os ladrões chegaram acharam a mo-
ça morta e ficaram muito tristes. Pegaram n'ella, bota-;
iam n'um bonito carro e mais muito dinheiro e uma
recommendação que quem a encontrasse que a enter-
rasse no sagrado, porque elles não podiam i r á cidade
enterral-a. V'"
Um filho do rei, que andava caçando, encontrou o
carro e abriu o caixão, e vendo a moça, ficou tão na-
morado que em lugar de a enterrar, a levou para o pa-
lácio e a guardou no seu quarto com toda a riqueza que
encontrou.
E a moça sempre a dormir e o principe quasi doido
de paixão. Não deixava ninguém i r ao seu q u a r t o ; mas
uma vez, estando elle fóra, a princeza sua irmã teve
curiosidade de i r ao quarto vêr o que era que lá havia.
Chegou, a b r i u o caixão e v i u a moça e achou tão
bonita e estranhou que ella estivesse com uns sapatos
tão feios de couro. Puxou os sapatos e a moça suspirou
e sentou-se pedindo agua.
A princeza deu-lhe agua, tornou a calçar-lhe os sapa-
tos, e a moça adormeceu de novo.
Quando o principe veio, a irmã lhe disse: «Si me
deres aquelle dinheiro que encontraste, eu descubro u m
segredo que ha em t e u quarto.» 0 principe concordou
e a princeza desencantou a moça. Houve uma grande
festa e o principe casou-se cora a linda moça. No fim
ELEMENTO EUROPEU 129
los n o v e mezes ella deu á l u z dous m e n i n o s , a coisa
!
nais linda q u e dar-se podia. Mas v e i u servir de partei-
a j u s t a m e n t e a feiticeira que t i n h a - l h e dado os sapatos,
i , e m l u g a r dos dous meninos, aprèsentou u m sapo e
i m ã gia. 0 p r i n c i p e a n d a v a ausente n'umas g u e r r a s e
pai l h e m a n d o u dar parte do acontecido. O p r i n c i p e
mandou dizer ao p a i que matasse a m u l h e r ; mas o r e i
e v e pena e somente l h e c o r t o u u m dos peitos e a ex-
í pulsou da casa.
A m o ç a sahiu pelo m u n d o fóra; t e n d o m u i t a sede
chegou a uma fonte e bebeu a g u a ; passou a g u a no peito
o peito t o r n o u a crescer. A h i , ella seguiu v i a g e m e
foi t e r á casa de u m g i g a n t e e t o m o u u m r a n c h o lá com
os seus dous filhos, p o r q u e os filhos a feiticeira l h e en-
tregou. Muito t e m p o depois, andando o principe e m ca-
çadas, passou p o r casa do gigante e v i u os dous meni-
nos e t o m o u p o r elles m u i t a aífeição. N'outros dias con-
t i n u o u as suas caçadas e sempre passava p e l a casa do
g i g a n t e , até q u e u m d i a v i u a sua m u l h e r . Muito se
a r r e p e n d e u d o q u e tinha feito e t o r n o u a v i v e r c o m
ella, m a n d a n d o m a t a r a feiticeira.
XXXVIII

O Careca
(Pernambuco)

Uma vez havia um homem casado que tinha uma


e n o r m e q u a n t i d a d e de filhos e cada vez a m u l h e r p a r i a
mais. 0 h o m e m , p a r a sustentar tão g r a n d e família, fez-
se pescador.
Morava p e r t o d'um r i o , pescava alli e i a sustentando
a filharada. Uma vez, estando a m u l h e r grávida e já
9
130 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

no n o n o m e z , o p e s c a d o r foi a o r i o p e s c a r e metteu- i p';''


t a r r a f a e nada. Metteu p a r a o u t r o lado, e nada, n e n j ^
u m a piabinha. O p e s c a d o r já i a s a h i n d o m u i t o triste ;

q u a n d o o u v i u u m a voz, q u e dizia do fundo d a a g u a : «SÍ 1^


m e déres o q u e d e n o v o e n c o n t r a r e s e m c a s a , e u t€ j $
d a r e i m u i t o peixe.» O h o m e m p e n s o u lá c o m s i g o — o
q u e pode h a v e r d e n o v o é u m c a c h o r r i n h o , p o r q u e e u i
tenho e m c a s a u m a c a d e l l a p a r a p a r i r — e n ã o se l e m b r o i i
da m u l h e r . Então o p e s c a d o r d i s s e q u e s i m , q u e acei- j # f

t a v a o negocio. « Pois então p e s c a p'ra a l l i . » O p e s c f r P 1

dor metteu a tarrafa e tirou p e i x e c o m o o diabo. Ghe- fc 1

g a n d o e m c a s a , u m filho foi-lhe logo dizeüdo : « Papai


m i n h a mãi pariu. » O h o m e m entrou no quarto e v i
s e u filhinho. E r a u m m e n i n o . D i s s e á m u l h e r q u e n
b e i r a do r i o t i n h a u m a c a b o c l a q u e h a v i a d a d o á l u z
a criança t i n h a m o r r i d o e q u e por isso e l l e l e v a v a a q u e l -
le filho p a r a a c a b o c l a c r i a r . A m u l h e r c u s t o u a c o n s e n - 5'' •
tir, m a s p o r fim cedeu. 0 p e s c a d o r l e v o u a criança e'
c h e g a n d o ao r i o a t i r o u - a n'agua n o l u g a r d'onde t i n h a
s a h i d o a v o z . 0 m e n i n o lá n o fundo d'agua foi d a r
n'um palácio muito r i c o ; a h i foi c r i a d o até r a p a z i n h o ,
mas nunca v i a ninguém.
Uma vez lhe appareceu u m h o m e m e disse-lhe: « E
sou t e u p a i ; t e n h o de f a z e r u m a v i a g e m d e q u i n z e d i a s ;
fica a q u i c o m e s t a s c h a v e s (e deu-lhe u m m a ç o d e c h a -
v e s ) , m a s n ã o a b r a s p o r t a n e n h u m a , senão, q u a n d o e u *
voltar, m o r r e s . » O r a p a z ficou e c u m p r i u fielmente a 1

r e c o m m e n d a ç ã o . No fim de q u i n z e d i a s chegou o p a i e
l h e d i s s e : « Então, está tudo direito ? » O r a p a z d i s s e I
q u e s i m . P a s s a r a m - s e m a i s q u i n z e d i a s ; n o fim d'elles
o homem disse : « Vou fazer nova viagem de mais quin-
ze dias, fica a h i c o m a s c h a v e s e n ã o m e b u l a s e m n a - •* o
da. » O r a p a z ficou, m a s d'esta vez n ã o s e pôde c o n t e r ;
p e g o u n'uma c h a v e e a b r i u u m q u a r t o ; d e n t r o h a v i a j p
tres e n o r m e s caldeiras, u m a f e r v e n d o ouro, o u t r a f e r v e n - P

d o p r a t a e o u t r a fervendo cobre. E l l e m e t t e u o d e d o 1:
0 E L E M E N T O EUROPEU 13Í

na de ouro e sahiu com o dedo dourado. Limpava, lim-


pava, e nada de sahir o ouro.
Rasgou uma tirinha de panno e amarrou no dedo.
Abriu outro quarto e viu tres cavallos muito gordos, um
preto, um branco e um castanho; os cavallos em lugar
de capim tinham carne para comer. Abriu outro quar-
to e encontrou um leão muito grande e gordo, que em
lugar de carne tinha capim para comer. Abriu outro
quarto e viu uma mesa muito grande cheia de gavetas;
n'uma tinha uma porção de papeisinhos brancos dobra-
dos, n'outra uma porção de papeisinhos azues dobrados,
n'outra uma porção de armas: espingardas, espadas,
etc. 0 rapaz não quiz bolir em nada e tornou a fechar
tudo. No fim de quinze dias chegou o p a i : « Então ? es-
tá tudo direitinho ? » — « Tudo, não boli em nada. »
De tudo quanto o rapaz tinha visto, o que lhe dava mais
• com o pau na paciência era a carne para os cavallos
ffl comerem e o capim para o leão. Elle fez o plano de tro-
car. No fim de quinze dias, o pai tornou a fazer viagem.
â 0 rapaz, logo que se viu sósinho, foi ao quarto dos ca-
á vallos e abriu, foi pegando na carne para tirar, e um ca-
vallo disse: « Não faça isto, não bula em nada, senão
morre, seu pai lhe mata. Agora, si quizer sahir d'aqui
ei vá ao quarto onde tem a mesa, tire dous papeis, um
azul e outro branco, tire boa roupa e se vista, tire boas
armas e se arme, monte-se em um de nós, vá puxan-
do outro, e quando seu pai chegar ha de seguil-o; quan-
do o estiver péga não péga, largue um dos papeis;
depois largue o outro e deixe o resto por minha con-
ta. » O rapaz fez tudo tintim por tintim.
0 cavallo lhe recommendou também que elle mettes-
se a cabeça na caldeira de ouro e dourasse os cabel-
los. 0 rapaz dourou os cabellos, apromptou-se, armou-
se, pegou dous papeis e metteu no bolso ; montou no
cavallo castanho e foi puxando o branco; para mais
í incommodar o pai tirou o capim do leão e deu ao ca-
*
132 CONTOS POPULARES DO BRAZIL,

vallo preto, que ficou e pegou na carne e.deu ao leão.


Seguiu viagem a toda a pressa. No fim de quinze
dias, o homem chegando ao palácio e vendo tudo des-j
arranjado ficou damnado ; montou no cavallo preto e ]
seguiu atraz do rapaz.
Depois de muito andar, avistou-o; ahi o cavallo em
que ia o moco lhe disse que largasse o papelzinho bran-
co ; o moco largou e gerou-se uma neblina tão espessa
que não se via nada ; mas o cavallo preto era muito
bom e conseguiu romper a neblina depois de muito cus-
to ; mas já o rapaz ia longe. Depois de muito andar, o
pai já o ia avistando, quando elle soltou o outro papel
e gerou-se um espinhal tão cerrado que ninguém podia
atravessar. O homem disse ao cavallo preto: «Eu te des-
encanto, si me passares esta mata de espinhos. » 0 ca-
vallo respondeu : «Tire-me os arreios e vá montado em j
osso, que eu passarei. » O homem tirou os arreios e
montou em osso. Quando cavallo se v i u no meio do
0

espinhal atirou-o no chão e lá deixou-o e seguiu para


diante. O homem lá morreu e o cavallo encontrou-se
com os outros e seguiram todos tres. O rapaz já tinha i
cançado o cavallo castanho e montou-se no branco, j
Foram seguindo; depois de muito andar, chegaram per-
to de uma cidade; ahi os cavallos disseram: «Agora ]
nós ficamos aqui encantados n'esta pedra e o senhor
deixe também aqui suas armas e roupas; siga para ]
a cidade; alli adiante encontrará um boi morto, abra, ti-
re a bexiga, sopre e bote na cabeça para esconder os :

cabellos dourados. Vá e siga a sua vida ; quando pre-


cisar de alguma cousa venha aqui na pedra e nos pe- i
ça. » O rapaz seguiu, encontrou o boi morto, abriu, ti-
rou a bexiga, botou na cabeça e entrou na cidade.
Adiante encontrou um palácio, bateu na porta e ap-
pareceu-lhe o velho jardineiro e perguntou-lhe o que
queria. 0 rapaz respondeu que queria um emprego
para ganhar a sua vida. 0 jardineiro teve pena d-elle e
ELEMENTO EUROPEU 133

o empregou como seu ajudante. Era isto na casa do rei.


O jardineiro perguntou ao rapaz por seu nome. Elle res-
pondeu que não tinha nome. « Pois fica-se chamando o
Careca. » Passaram-se muitos tempos e o Careca ia v i -
vendo em paz.
Uma vez pôz-se debaixo de umas laranjeiras e tirou
a bexiga da cabeça para ver os seus cabellos, e a filha
mais moça do rei, que estava na janella, viu os cabellos
dourados e ficou apaixonada pelo Careca. O jardineiro
tinha o costume de levar todas as manhãs um ramalhe-
te para cada uma das filhas do rei, que eram tres. No
dia seguinte, elle foi levar os ramalhetes e a princeza
mais moça lhe disse : «De amanhã em diante que-
ro que o Careca traga o meu ramalhete. » O rei e as
irmãs da princeza caçoaram muito; mas a moça insistiu
e o Careca todos os dias lhe ia levar o ramalhete.
Passaram-se tempos e houve ahi no reino umas grandes
cavalhadas. O Careca, sabendo d'ellas, e indo todos e
elle não, disse ao jardineiro que queria ir á casa do fer-
reiro para mandar fazer uma faquinha. *•
0 jardineiro consentiu. Depois que todos sahiram,
o Careca também sahiu e foi ter á pedra e contou aos
cavallos o que havia. Sahiu o cavallo castanho todo ar-
reiado, o moço apromptou-se, tomou, uma lança, soltou
os cabellos e apresentou-se nas cavalhadas. Fez a cor-
rida, tirou a argolinha e ofiereceu á filha mais moça do
r e i ; ella lhe deu uma fita verde que elle amarrou na
lança. Todos ficaram admirados d'aquelle lindíssimo mo-
ç o ; mas não sabiam quem era elle.
0 rapaz sahiu a toda a pressa e ninguém mais o
viu. Quando o rei e as princezas chegaram em casa, já
lá se achava o Careca na sua roupa do costume. 0 jar-
dineiro contou-lhe então tudo, fallou na boniteza das ca-
valhadas e no moço de cabello dourado que tinha ap-
parecido e que ninguém sabia quem era; mas que, si
no dia seguinte elle voltasse, seria preso, porque o rei
134 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

ia mandar collocar tropa para o. prender, quando elle


quizesse voltar e desapparecer.
No dia seguinte pela manhã foi o Careca levar suas
flores á princeza caçula e ella estava doentia de paixão,
tendo umas desconfianças de que elle fosse o mesmo mo-
ço que appareceu nas cavalhadas. Á tarde houve novas
cavalhadas, e o Careca disse ao jardineiro que ia de no-
vo ver a faquinha, porque o ferreiro não tinha ainda
lhe dado, distrahido com as festas. Largou-se para a pe-
dra e fez apparecer o cavallo branco e arreios ainda
mais ricos do que os primeiros; soltou a cabelleira,
apromptou-se e partiu para as cavalhadas.
Havia mais povo ainda do que nas primeiras e lá
estava a tropa para p'rendel-o quando elle quizesse
voltar. Ainda mais espantados ficaram do que na pri-
meira vez. Quando deu-se o signal para a corrida o
moço partiu, tirou a argolinha e deu á princeza mais
moça; ella lhe deu uma fita encarnada, que elle amarrou
na lança, e partiu a galope. A tropa cercou-o, mas elle
saltou por cima e foi-se. Quando todos chegaram á
palácio, já o Careca lá estava na forma do costume.
A princeza mais moça começava a definhar; no dia se-
guinte tornou a pilhar o Careca debaixo de um caraman-
chão mirando os próprios cabellos, que eram dourados
e compridos; ficou a princeza mais alegre e teve cer-
teza de que aquelle era o mesmo moço das cavalhadas.
Na tarde d'este dia houve outra cavalhada, que ora a ter-
ceira e ultima. Todos foram e o Careca tornou a sahir
desculpando-se com a faquinha. Foi á pedra e fez appa-
recer o cavallo preto, e arreios lindíssimos.
Partiu, e, chegando ao ponto das cavalhadas, encon-
trou muito reforço de tropas para o prender. Não teve
medo. Na hora da corrida avançou, tirou a argolinha
e offereceu á princeza da sua escolha e partiu a galope.
Fecharam quadrado para o prender, mas o cavallo voou
por cima e perdeu-se na corrida, que ninguém mais o

ELEMENTO EUROPEU 135

viu.- Quaudo o rei chegou á palácio já estava lá o Ca-


reca m u i t o a s e u gosto.
N u n c a n i n g u é m desconfiou q u e o Careca e r a o m o ç o
rico das corridas, senão a p r i n c e z a mais m o ç a . O r a , a h i
n'esse reino c o s t u m a v a de t e m p o s a t e m p o s a p p a r e c e r
u m a fera q u e tudo d e v a s t a v a , c o m i a m u i t a gente e n i n -
g u é m podia d a r cabo d'ella. O r e i t i n h a dito q u e q u e m
m a t a s s e a fera h a v i a de c a s a r c o m a p r i n c e z a m a i s v e -
•• l h a . N i n g u é m s e a t r e v i a . O Careca, sabendo-d'isto, foi
- t e r á p e d r a e c o n t o u aos c a v a l l o s . S a h i u o c a v a l l o preto
e d i s s e - l h e q u e s e m o n t a s s e n'elle, a m a r r a s s e - l h e n o
peito u m g r a n d e e s p e l h o e avançasse c o n t r a a fera, por-
ocis q u e esta, v e n d o o s e u r e t r a t o n o espelho, h a v i a de
#s s u p p u r q u e e r a o u t r a fera, ficaria a t r a p a l h a d a e o m o ç o
a p o d e r i a então matar. A s s i m fez o r a p a z ; matou a fera,
n e cortou-lhe a s s e t e pontas d a s sete línguas. N i n g u é m
i v i u isto.
No d i a s e g u i n t e a p p a r e c e u a fera m o r t a e botou-se
editaes p a r a vêr q u e m a t i n h a morto. N i n g u é m appare-
c e u : então o r e i j u l g o u - s e d i s p e n s a d o quanto á s u a
filha m a i s v e l h a , e decidiu-se a c a s a r todas tres quanto
íi- a n t e s e no m e s m o d i a .
Mandou p r o c u r a r príncipes, m a s a caçula d e c l a r o u
<h q u e só s e c a s a r i a c o m o Careca. O r e i ficou muito des-
gostoso, m a s n ã o t e v e outro remédio. 0 r e i ordenou q u e
q u e r i a d a r u m banquete no d i a do c a s a m e n t o todo de
pássaros caçados p e l o s futuros g e n r o s . T o d o s os tres s a -
t u r a m a caçar, cada u m p a r a o s e u lado. N e n h u m ma-
tou n a d a a n ã o s e r o' Careca, q u e foi t e r á p e d r a e os c a -
v a l l o s l h e d e r a m a v e s a valer. U m dos n o i v o s o encon-
trou, e s e m o c o n h e c e r pediu p a r a q u e lh'as v e n d e s s e .
O Careca c o n s e n t i u , c o m a condição de l h e p a s s a r e l l e
u m a declaração e m c o m o lh'as h a v i a c o m p r a d o . O p r i n c i -
pe a c e i t o u e p a s s o u a declaração. 0 Careca g u a r d o u . Afi-
n a l c h e g o u o d i a do casamento. Todos s e a p r e s e n t a r a m
m u i t o b e m p r o m p t o s e o Careca h u m i l d e m e n t e v e s t i d o .
136 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

No jantar houve muita alegria, mas o Careca lá para


nm canto. No f i m de tudo o rei disse que antes de iodos
se despedirem, q u e r i a que cada u m dos genros contasse
uma historia. 0 marido da princeza mais velha levantou-
se e disse: « 0 que tenho a contar é que quem matou
aquelle bicho, que a todos fazia, medo, fui eu, e não dis-
se ha mais tempo, porque queria me casar com a p r i n -
ceza por escolha natural e não porque tivesse a promessa
do casamento por matar a fera. » K mostrou os cotocos
das linguas. Levantou-se o marido da segunda princeza e
disse: « E u o que tenho a dizer é que quem caçou todos
estes pássaros para esta festa fui eu.»
Então, levantou-se t a m b é m o Careca e disse: «A m i -
nha historia é que os dous genros do rei m e n t i r a m ; quem
m a t o u a fera fui eu, e a q u i está a p r o v a ; estas é que
são as pontas das linguas e aquelles são os cotocos das
linguas. Quem fez a caçada fui eu, e a p r o v a é esta de-
claração que aqui tenho e que podem ler. Além d'islo
o m o ç o que embasbacou a todos nas corridas fui eu, e
a prova são as fitas que a q u i tenho. » A h i elle tirou a
b e x i g a da cabeça e todos o reconheceram. Ficaram os
dous príncipes m u i t o envergonhados, e"a princeza mais
m o ç a quasi doida de contentamento.
XXXIX
-A- combuca de ouro e os marimbondos
(Pernambuco)

Havia dous homens, um rico e outro pobre, que gos-


t a v a m de fazer peças um ao outro. Foi o compadre po-
bre a casa do rico pedir u m pedaço de terra para fazer
uma roça. 0 rico, para fazer peça ao outro, l h e deu a
peor terra que tinha. Logo que o pobre teve o sim,
ELEMENTO EUROPEU 137
- faráp oipara a casa dizer á mulher, e foram ambos v e r o
erreno. Chegando lá nas matas, o marido v i u uma com-
buca de ouro, e, como era e m terras do compadre rico,
o pobre não a quiz levar para a casa, e foi dizer a o
outro que e m suas mattas havia aquella riqueza. 0 rico
ficou logo todo agitado, e não quiz que o compadre tra-
balhasse mais nas suas terras. Quando o pobre se r e t i -
rou, o outro largou-se com a sua m u l h e r para as ma-
tas a vêr a grande riqueza. Chegando lá, o que achou foi
uma grande casa de m a r i m b o n d o s ; metteu-a n'uma mo-
chila e tomou o caminho do mocambo do pobre, e logo
que o avistou foi g r i t a n d o : « Ó compadre, fecha as por-
as, e deixa somente uma banda da janella a b e r t a ! » O
compadre assim fez, e o rico chegando perto da janel-
a, a t i r o u a casa de marimbondos dentro d a casa d o
amigo, e g r i t o u : «Pecha a janella, compadre!» Mas os
marimbondos bateram n o chão, transformaram-se e m
moedas de ouro, e o pobre chamou a mulher e os fi-
nos para as ajuntar. 0 ricaço gritava então: « Ó com-
padre, abra a porta!» Ao que o outro respondia: «Dei-
xe-me, que os marimbondos estão-me matando! » E
assim ficou o pobre rico, e o rico ridículo.
XL
A. 31;ti d'Agua
(Rio de Janeiro)

Foi uma vez havia uma princeza, que era filha de


uma fada e do r e i da Lua. A fada ordenou que a princeza
fosse a r a i n h a de todas as águas da terra, e governasse
todos os mares e rios. A Mãi d'Agua, assim se ficou
chamando a princeza, era m u i t o bonita, e muitos prín-
to cipes se apaixonaram p o r ella. Mas f o i o filho do Sol
138 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

que v e i u a se c a s a r com ella, ao depois de ter v e n c i d o to-


dos os s e u s r i v a e s em c o m b a t e . Quando se deu o c a s a m e n -
to h o u v e m u i t a s festas e danças e b a n q u e t e s , q u e d u r a -
r a m sete d i a s e sete noites. As festas foram n a casa do r e i
d a L u a ; a c a b a d a s e l l a s os noivos p a r t i r a m p a r a a c a s a do
S o l . Ahi a p r i n c e z a Mãi d*Agua d i s s e a o s e u m a r i d o
que d e s e j a v a passar com elle todo o anno, excepto tres
m e z e s que h a v i a d e passar com s u a mãi. O p r i n c i p e
c o n s e n t i u , p o r q u e fazia e m tudo a vontade de s u a m u -
lher. Todos os a n n o s a Mãi d?Agua i a p a s s a r com s u a
m ã i d e b a i x o d o m a r n'um r i c o palácio de o u r o e d e
b r i l h a n t e s os tres m e z e s do contracto. No c a b o de m u i t o
t e m p o a n o v a r a i n h a deu á luz u m p r i n c i p e . Q u a n d o a
p r i n c e z a t e v e de i r de n o v o v i s i t a r a fada, s u a mãi
quiz l e v a r o p r i n c i p e s i n h o , mas o r e i não c o n s e n t i u ; e
tanto r o g o u e pediu, que a r a i n h a p a r t i u sósinha, r e -
c o m m e n d a n d o ao m a r i d o que t i v e s s e m u i t o c u i d a d o no
filho. C h e g a n d o no palácio d a fada, a p r i n c e z a a não
e n c o n t r o u p o r q u e e l l a e s t a v a m u d a d a e m flôr. A m o ç a
d e s e s p e r a d a c o m e ç o u a correr mundo, p r o c u r a n d o á s u a
mãi. Então ella p e r g u n t o u aos p e i x e s dos rios, ás a r e i a s
do mar, ás c o n c h a s das praias por s u a mãi, e n i n g u é m
l h e respondia. T a n t o soffreu e se l a s t i m o u que a final
o r e i das F a d a s t e v e p e n a d'ella e p e r d o o u á s u a mãi,
que se d e s e n c a n t o u . A m b a s , mãi e filha se l a r g a r a m á
toda a p r e s s a p a r a a c a s a do r e i filho do Sol. Mas tinha-se
já p a s s a d o tanto t e m p o que o r e i , v e n d o que s u a espo-
za não v i n h a m a i s , ficou m u i t o desesperado. C o r r e u en-
tão o boato que a r a i n h a tinha-se a p a i x o n a d o por u m
p r i n c i p e e s t r a n g e i r o e t i n h a por isso d e i x a d o de v o l t a r . 1 BC
O r e i , visto isto, s e casou com o u t r a p r i n c e z a , q u e co-
m e ç o u logo a m a l t r a t a r m u i t o o p r i n c i p e s i n h o , botando-o
na cozinha como u m negro. Quando a rainha ia chegan-
do a p r i m e i r a p e s s o a que v i u foi seu filho todo m a l t r a -
tado e sujo, e logo o c o n h e c e u e s o u b e d e tudo. E l l a
f u g i u então com elle p a r a o f u n d o das águas, e por s u a
ELEMENTO EUROPEU 139

ordem ellas começaram a subir, até cobrirem o palácio,


•Mi- o rei, a rainha e todos os embusteiros da curte. Nunca
mais ninguém a viu, porque quem a vê fica logo en-
•'"tfl cantado e cae n'agua e se afoga . l

XLI
31 ml
O preguiçoso
(Pernambuco) "

Havia um homem muito preguiçoso que nada fazia.


Um dia veiu um velho e pediu-lhe rancho em casa; o
velho cançou-se de lhe bater na porta e nada do ho-
mem se animar a levantar-se para abrir a porta. A fi-
':.:)) nal desenganado, o velho pediu á dona da casa que lhe
IIÉ guardasse alli uma toalha que levava, mas que a não
abrisse. 0 velho seguiu seu caminho. Mulher guardou a
toalha, mas teve curiosidade e abriu-a. Appareceu logo
uma grande mesa com tudo quanto é de bom e melhor
de que a mulher se regalou. Ella escondeu a toalha, e,
quando o velho veiu procurar a toalha, a mulher deu-
lhe outra em vez da sua. Chegando o velho em sua ca-
sa, mandou a toalha se estender e a toalha quieta. 0
velho calou-se e no outro dia foi á casa do preguiçoso
e deixou lá ficar uma cabra pedindo-lhe que a guardas-
sem até a sua volta, mas que tivessem o cuidado de
não lhe dizer: « Berra, c a b r a ! » 0 velho retirou-se. A
mulher foi e disse: «Ora, isto é mysterio; aqui temos
novidade! Berra, cabra!» Entrou a cabra a berrar e co-
meçou a cahir muito dinheiro de ouro e prata da bocca
da cabra. Logo que a mulher viu isto, trocou a cabra

1
O snr. José de Alencar publicou este conto no seu Tron-
co do Ipê. Nós cotejamos sua lição com outras que ouvimos.
140 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

por outra, e quando o velho veiu sahiu enganado. Che


gando em casa mandou a cabra berrar, e nada, e nada
Conheceu que estava enganado e calou-se. Chegou po
fim um trabalhador do velho e lhe pediu ao amo o seu
jornal. Respondeu o velho : « Meu filho, eu não tenho
mais dinheiro; mas dou-te um cacete, que aqui tenho,
que te ha de fazer feliz. »
O rapaz recebeu o cacete e seguiu. Foi ter justamen-
te na casa do preguiçoso; pediu rancho e deu o cacete
para guardar. A mulher trocou o cacete por outro, e no
dia seguinte o moço disse: « Dê-me o meu cacete, que
me quero ir. » 0 cacete entrou a dar bordoadas de criar
bichos no marido e na mulher. Puzeram-se elles a gritar,
e o rapaz ficou admirado de ver aquella virtude do ca-
cete.
A mulher afílicta gritou : « Meu senhor, mande seu
cacete parar, que eu lhe dou o que me deu o velho para,
guardar. « O moço disse : « Pára, cacete, e tudo p'ra c á ! »
O cacete parou, e a mulher entregou ao rapaz a toalha
e a cabra. O moço tudo recebeu e voltou para casa do
seu amo, e lhe contou o que se tinha dado com elle na
casa do preguiçoso. O velho então lhe disse : « Esta
toalha e esta cabra têm virtude; quando tiveres fome,
estende esta toalha, e te ha de apparecer comida da
melhor; e esta cabra quando berra bota dinheiro pela
bocca. » O rapaz ganhou o mundo com seus tres pre-
sentes.

XL1I
A. muiliex- dcngosa
(Pernambuco)

Era uma vez um homem casado com uma mulher


muito dengosa, que fingia não querer comer nada dian-

ELEMENTO EUROPEU 141

e do marido. O marido foi reparando n'aquellas affecta-


Ões da mulher, e quando foi n'um dia elle lhe disse
ue ia fazer uma viagem de muitos dias. Sahiu, e em
-ez de partir para longe, escondeu-se por detraz da co-
inha, n'um coxo. ,
A mulher, quando se v i u sósinha, disse para a ne-
*ra: « Ó negra, faz ahi uma tapioca bem grossa, que
i u quero almoçar. » A negra fez e a mulher bateu 1

i;
udo, que nem deixou farello. Mais tarde ella disse á
j
l e g r a : « Ó negra, me mata ahi um capão e me en-
opa bem ensopado para eu jantar. » A negra prepa-
rou o capão, e a mulher devorou todo elle e nem dei-
t o u farello. Mais tarde a mulher mandou fazer uns bei-
•.. I»ús muito fininhos para merendar. A negra os aprom-
2

|otou e ella os comeu. Depois j á de noite ella disse á ne-


gra : « Ó negra, prepara-me ahi umas macacheiras bem
mxutas para eu cear. » A negra preparou as macachei-
1 1 ras e a mulher ceou com café. N'isto cahiu um pé
3


d'agua muito forte. A negra estava tirando os pratos da
09 i mesa, quando o dono da casa foi entrando pela porta a
;:ii|dentro. A mulher foi vendo o marido e dizendo : « Oh ! ma-
•ido, com esta chuva tão grossa você veiu tão enxuto?! »
Ao que elle respondeu: « Si a chuva fosse t ã o grossa
como a tapioca que vós almopastes, eu viria tão enso-
MA pado como o capão que vós jantastes; mas como ella
foi fina como os beijús que vós merendastes, eu v i m t ã o
enxuto como a macacheira que vós ceastes. » A mulher
teve uma grande vergonha e deixou-se de dengos.
1
Por comeu.
Em Pernambuco a tapioca é o beijú de polvilho da man-
2

dioca, e o beijú é o da massa da mesma.


3
O mesmo que aipim em Sergipe, Bahia e Rio de Janei-
ro : Manihot aypi.
Secção segunda

FÁBULAS DE ORIGEM AFRICANA

O Jkãg-ado e a festa nó céo 1

(Sergipe)

Uma vez houve tres dias de festa no céo; todos os


bichos foram, mas nos dous primeiros dias o kágado não
pôde i r , p o r andar m u i t o devagar. Quando os outros
v i n h a m de volta, elle ainda ia no meio do caminho. No
u l t i m o dia, elle, mostrando grande vontade de i r , a gar-
ça se offereceu para leval-o nas costas. 0 kágado acei-
tou, e montou-se; mas a malvada i a sempre perguntan-
do se elle ainda v i a terra, e quando o kágado disse
que não avistava mais terra, ella o l a r g o u no ar, e o po-
bre v e i u rolando e dizendo:
«Léo, léo, léo,
Si eu d'esta escapar
Nunca mais bôdas ao céo. »
E também: « Arredem-se, pedras, páos, senão vos
1
O kágado é a Emys européa, Emys tuctaria, Emys ar-
ran, etc.
144 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

qgebrareis. » As pedras e páos se afastaram, e elle ca-


hiu, porém todo arrebentado. Deus teve pena e ajuntou
os pedacinhos, e deu-lhe de novo a vida em paga da
grande vontade que elle teve de ir ao céo. Por isso é
que o kágado tem o casco em forma de remendos.

II
Of»
O ItÊig-aclo e a fructa
(Sergipe)

Diz que foi um dia, havia no matto uma fructa que to-
dos os bichos tinham vontade de comer; mas era prohibi-
do comer a tal fructa sem primeiro saber o nome d'ella.
Todos os animaes iam a casa de uma mulher que morava
nas paragens onde estava o pé de fructa, perguntavam a
ella o nome, e voltavam para comer; mas quando che-
gavam lá não se lembravam mais do nome. Assim acon-
teceu com todos os bichos que iam e voltavam, e nada
de acertar com o nome. Faltava somente amigo kágado;
os outros foram chamar elle para ir por sua vez. Alguns
caçoavam muito, dizendo : « Quando os outros não acer-
taram, quanto mais elle ! » Amigo kágado partiu munido
de uma violinha; quando chegou na casa da mulher
perguntou o nome da fructa. Ella disse: « Boyoyôboyôyô
quizama-quizú; boyôyâ-boyôyô-qioizama-quizú. » Mas a
mulher, depois que cada bicho ia-se retirando já em al-
guma distancia, punha-se de lá a bradar: « Ó amigo
tal, o nome não é esse, n ã o ! » E dizia outros nomes; o
bicho se atrapalhava, e quando chegava ao pé de fructa
não sabia mais o nome. Com o kágado não foi assim,
porque elle deu de mão á sua violinha, e pôz-se a cantar
o nome até ao lugar da arvore, e venceu a todos. Mas ami-
ga onça, que já lá estava á sua espera, disse-lhe: « Ami-
/

ELEMENTO EUROPEU 145

go kágado, você como não pôde trepar, deixe que eu tre-


pe p a r a tirar as fructas, e você e m p a g a m e dá algumas.»
) k á g a d o c o n s e n t i u ; ella e n c h e u o seu s a c c o e largou-se
sem l h e d a r n e n h u m a . O kágado, m u i t o zangado, l a r g o u -
se a traz. C h e g a n d o os d o u s a u m r i o elle d i s s e á o n ç a :
« A m i g a onça, a q u i você m e d ê o s a c c o p a r a e u passar,
^ q u e s o u m e l h o r nadador, e você p a s s a depois. » A onça
concordou, m a s o sabido, q u a n d o se v i u d a o u t r a ban-
da, sumiu-se, ficando a onça lograda. E s t a f o r m o u o pla-
no de o m a t a r ; e l l e s o u b e e melteu-se d e b a i x o de u m a
raiz g r a n d e de a r v o r e o n d e e l l a c o s t u m a v a descançar.
Ahi c h e g a d a , pôz-se e l l a a g r i t a r : « A m i g o kágado, a m i -
go^ k á g a d o ! » 0 s a b i d o r e s p o n d i a alli d e p e r t i n h o :
« O i ! » A onça o l h a v a d e u m a b a n d a e d'outra e não
v i a n i n g u é m . F i c o u m u i t o espantada, e p e n s o u q u e e r a
o s e u t r a z e i r o q u e r e s p o n d i a . Pôz-se de n o v o a g r i t a r , e
IÍ s e m p r e o kágado " r e s p o n d e n d o : « Ô i ! » e ella : « C a l a a
bocca, oveiro!» e s e m p r e a c o u s a para diante. A m i g o
m a c a c o v e i u passando, e a onça l h e c o n t o u o caso da des-
i obediência de s e u trazeiro e l h e p e d i u q u e o açoitasse.
O m a c a c o tanto e x e c u t o u a o b r a q u e a matou. Deu-se e n -
tão o k á g a d o p o r satisfeito.
III
O líilg-íiílo e o teyii
(Sergipe)

Foi uma vez, havia uma onça que tinha uma filha ;
o teyú q u e r i a c a s a r c o m e l l a , e a m i g o kágado t a m b é m .
O kágado, s a b e n d o da pretensão do outro, disse e m c a s a
d a onça q u e o teyú p a r a n a d a valia, e q u e até e r a o
s e u c a v a l l o . 0 teyú, logo q u e s o u b e d'isto, foi t e r lam-
b e m á c a s a d a c o m a d r e onça, e a s s e v e r o u q u e i a b u s c a r
10
146 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

o kágado p a r a alli p a r a dar-lhe m u i t a p a n c a d a á vista d e


todos, e partiu. 0 kágado, q u e e s t a v a n a s u a c a s a , q u a n -
do o a v i s t o u de longe, c o r r e u p a r a d e n t r o e a m a r r o u u m
lenço n a cabeça, fingindo q u e e s l a v a doente. O teyü che-
gou na porta e o convidou para darem um passeio em
c a s a d a a m i g a onça; o kágado d e u m u i t a s d e s c u l p a s , d i -
zendo q u e e s t a v a doente e n ã o p o d i a s a h i r de pé n'aquel-
le d i a . 0 teyú t e i m o u m u i t o : « Então, d i s s e o k á g a d o , vo-
cê m e l e v e m o n t a d o n a s s u a s costas. » — « Pois s i m , res-
p o n d e u o teyü ; m a s h a de s e r até l o n g e d a p o r t a dá ami-
g a onça. » — « Pois b e m ; m a s você h a de d e i x a r eu bo-
tar o m e u caquinho de sella : porque a s s i m e m osso é
m u i t o feio. » E teyú se m a s s o u muito, e d i s s e : « N ã o q u e
eu não s o u s e u c a v a l l o ! » — « N ã o é p o r s e r m e u c a -
vallo, m a s é m u i t o feio. » A f i n a l o teyú c o n s e n t i u . « A g o -
ra, d i s s e o kágado, d e i x e botar m i n h a br ida. » N o v o ba-
r u l h o do teyú, e n o v o s pedidos e d e s c u l p a s do kágado, até
q u e c o n s e g u i u pôr a b r i d a n o teyú e m u n i r - s e do man-
goal, e s p o r a s , etc. P a r t i r a m ; q u a n d o c h e g a r a m e m Jo-
g a r não m u i t o l o n g e de c a s a d a onça, o teyú p e d i u a o
k á g a d o q u e d e s c e s s e e tirasse os arreios, s e n ã o e r a
m u i t o feio p a r a elle s e r v i s t o s e r v i n d o de c a v a l l o . O ká-
g a d o r e s p o n d e u q u e elle t i v e s s e paciência e c a m i n h a s -
se m a i s u m bocadinho, p o i s e s t a v a m u i t o i n c o m m o d a d o
e n ã o podia c h e g a r a pé. A s s i m foi e n g a n a n d o o teyú até
á p o r t a d a c a s a d a onça, o n d e e l l e m e t t e u - l h e o man-
g o a l e as e s p o r a s a v a l e r . Então gritou p a r a d e n t r o d e
c a s a : « Olá, eu n ã o d i s s e q u e o teyú e r a m e u c a v a l l o ? !
v e n h a m v e r ! » H o u v e m u i t a risada, e o k á g a d o v i c t o -
r i o s o d i s s e á filha da onça: « Ande, m o ç a ; m o n t e - s e n a
m i n h a garupa e vamos casar. » Assim aconteceu com
g r a n d e v e r g o n h a p a r a o teyú.
ELEMENTO EUROPEU 147

IV
O 1<ÍÍÉ»-ÍI<1O e o jacaré 1

(Sergipe)

0 kágado tinha uma gaita em que tocava com grande


admiração de todos os outros animaes, e o jacaré tinha
m u i t a inveja. Uma vez elle foi esperar o kágado no logar
que este costumava ir beber agua, e pòz-se do lado de fó-
r a da fonte deitado. Quando o kágado chegou o saudou,
dizendo: « Oh! amigo jacaré, como vai ?» — Estou apa-
nhando sol, amigo kágado. » 0 kágado bebeu sua agua
e pôz-se a tocar a gaita, e o jacaré disse: « A m i g o ká-
gado, me empresta esta gaita para eu experimental-a. » 0
kágado deu, e o jacaré pulou com ella dentro d'agua, e
foi-se. 0 kágado ficou m u i t o zangado,, e foi-se embora.
Passados dias, elle foi a um cortiço, engoliu muitas abe-
lhas e foi-se pôr no logar aonde o jacaré costumava
apanhar sol, escondeu-se nas folhas com o rabo para ci-
ma. Labreou o trazeiro bem de mel, e, de vez em quan-
do, largava uma abelha : « zum. » 0 jacaré, vendo aquil-
lo, suppôz ser algum cortiço, e m e t t e u o dedo; o kága-
do apertou-o e disse: «Só o largo quando m e der conta
da minha gaita.» E foi arrochando cada vez mais. 0 ja-
caré abriu a bocca no mundo e pôz-se a g r i t a r :
«Ó Gonçalo,
Meu filho máis velho,
A gaita do kágado...
Tango-lê-rè...
A gaita do kágado...
Tango-lê-rê...»
0 rapaz de lá ouvia mal, e dizia: « 0 que, meu pai ?...
1
Aligator Selerops.
a camisa?» 0 jacaré, vexado, gritava com mais força:
148 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

« Não, Gonçalo,
Mou filho mais velho,
A gaita do k á g a d o . . .
Tango-lê-rê...
A gaita do kágado...
Tango-lê-rê... »

0 Gonçalo : «0 quê, meu pai? As calças?» 0 jacaré


tornava a repetir a cantilena, e, só depois de muita mas-
sada e quando o seu dedo estava tóra não tóra, é que o
Gonçalo veiu com a gaita, que o jacaré deu ao kágado. Só
depois da entrega este largou-lhe o dedo.

O l£ág-a<io e a fonte
(Sergipe)

Uma feita, o kágado intrigou-se com o homem, o teyú


e a onça por causa de um casamento com a filha da on-
ça. Havia uma fonte onde todos os bichos costumavam
ir beber; o kágado lá chegou, botou dentro d'ella uma
boa porção de sapinhos e lhes deu ordem que, quando
viesse alli algum bicho beber, elles cantassem:
« Turi, turi...
Quebrar-lhes as pernas,
Furar-lhes os o l h o s . . . »

Feito isto, o kágado foi-se embora.


Chegou o macaco para beber, ouviu aquillo e ficou
com muito medo e foi-se, e espalhou o caso. Outros bi-
chos vieram e todos se retiraram com medo. Veiu o teyú,
a mesma cousa; veiu a onça, o mesmo. Afinal o homem
veiu e também fugiu com medo. Faltava o kágado; fo-
ram chamal-o. Elle disse que estava prompto a ir, mas
acompanhado de todos os outros, e munido de sua gaita
ELEMENTO EUROPEU 149

tocando. Chegando a certa distancia mandou os outros


esperar, avançou, chegou junto á beira da fonte, deu or-
dem aos sapinhos para se calarem; elles obedeceram. O
kágado encheu seu pote e retirou-se victorioso com gran-
de espanto de todos os outros animaes e casou-se com
a ülha da onça.

VI
A. o n ç a e o l>o<le

(Sergipe)

Uma vez a onça quiz fazer uma casa; foi a um lo-


gar, roçou o matto para alli fazer a sua casa. 0 bode, que
ambem andava com vontade de fazer uma casa, foi pro-
curar u m logar, e, chegando no que a onça tinha roça-
do, disse: «Bravo 1 que bello logar para levantar a mi-*
nha casa! » 0 bode cortou logo umas forquilhas e infin-
cou n'aquelle logar, e foi-se embora. No dia seguinte
à onça lá chegando, e vendo as forquilhas inüncadas,
disse : « Oh ! quem me está ajudando ?! Bravo, é Deus que
está me ajudando ! » Botou logo as travessas nas forqui-
has, e a .cumieira, e foi-se. 0 bode quando veiu de no-
ivo, admirou-se e disse : « Oh! quem está me ajudando ?!
" Deus que está me protegendo. » Botou logo os caibros
|ia casa, e foi-se. Vindo a onça, ainda mais se espantou,
botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. 0 bode
/eiu, e envarou a casa e foi-se. A onça veiu e cobriu.
) bode veiu e tapou. Assim foram, cada um por sua vez,
apromptaram a casa. Acabada ella, veiu a onça, fez a
ua cama e metteu-se dentro. Logo depois chegou o bo-
e, e, vendo a outra, disse: «Não, amiga, esta casa é
íninha, porque fui eu quem infinquei as forquilhas, botei
150 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

os c a i b r o s , e n v a r e i , e tapei. » — « N ã o , a m i g o , r e s p o n -
deu a onça, a c a s a é m i n h a , p o r q u e f u i e u q u e rocei o
logar, botei as travéssas, a c u m i e i r a , as r i p a s , os e n c h i -
mentos, e o sapé. »
Depois de a l g u m a questão, à onça, q u e e s t a v a c o m
v o n t a d e de c o m e r o bode, d i s s e : « Mas n ã o h a j a b r i g a ,
a m i g o bode, nós dois p o d e m o s ficar m o r a n d o n a c a s a . »
O bode a c e i t o u , m a s c o m m u i t o medo. O bode a r m o u
a s u a rede b e m longe do girâu d a onça. No outro d i a a i
onça d i s s e : « A m i g o bode, q u a n d o você m e ver frangir
o c o u r o d a testa, e u e s t o u c o m r a i v a , t o m e sentido 1 » — |
« Eu, a m i g a onça, q u a n d o você me vêr balançar a s m i n h a s
b a r b i n h a s alli n a s g o t e i r a s e d a r u m e s p i r r o , você fuja,
q u e e u não estou de caçoada.» Depois a onça s a h i u , d i z e n -
do q u e i a b u s c a r de c o m e r . Lá, por l o n g e de casa, p e g o u
u m g r a n d e bode, e p a r a fazer m e d o ao s e u c o m p a n h e i -
ro, matou-o, e e n t r o u c o m elle p e l a c a s a a dentro. Ati-
rou-o no clião e disse:«Está a m i g o bode, e s f o l e e t r a t e
p a r a nós comer.» O bode, q u a n d o v i u a q u i l l o , d i s s e lá I
c o m s i g o : « Q u a n d o este, q u e e r a tão grande, você ma-
tou, q u a n t o m a i s a m i m ! » No outro d i a elle d i s s e á on-
ça : « A g o r a , a m i g a onça, q u e m v a i b u s c a r de c o m e r s o u
e u . » E largou-se. C h e g a n d o longe, a v i s t o u u m a onça
b e m g r a n d e e gorda, disfarçou e pôz-se a t i r a r cipós n o
m a t o . A onça v e i u c h e g a n d o , e v e n d o a q u i l l o , d i s s e :
« A m i g o bode, p a r a q u e tanto c i p ó ? » — «Fum! P a r a
q u e ? ! O n e g o c i o é sério, t r a t e de s i . . . O m u n d o está
p a r a a c a b a r , e é c o m dilúvio...» — « O q u e está d i z e n -
do, a m i g o bode ? » — « É v e r d a d e ; e você, s e q u i z e r e s -
c a p a r , v e n h a s e a m a r r a r , q u e e u já m e v o u . » A onça
foi, e e s c o l h e u u m p á o b e m a l t o e g r o s s o , e p e d i u a o
b o d e p a r a q u e a a m a r r a s s e . O bode e n l i n h o u - a p e r f e i t a -
m e n t e , e, q u a n d o a v i u b e m s e g u r a , metteu-lhe o c a c e -
te c o m o t e r r a , até matal-a. Depois a r r a s t o u - a , c h e g o u e m
c a s a , I a r g o u - a no chão, d i z e n d o : « Está; s i q u i z e r esfo-
le e t r a t e . »
ELEMENTO EUROPEU 151

A onça ficou espantada e com medo. Ambos dois te-


miam um ao outro.
N'um dia o bode poz-se junto das biqueiras, toman-
do fresco; olhou para a onça, e ella estava com o cou-
ro da testa frangido. Elle teve receio e abalou as bar-
bas, e largou um espirro. A onça pulou do mundéu e
largou na carreira, o bode também abriu o panno. Ain-
da hoje correm cada um para o seu lado.

VII
A. onça? o veado e o macaco
(Sergipe)

Uma vez, amiga onça convidou amigo veado para ir


comer leite em casa de um compadre, e amigo veado
aceitou. No caminho tinham de passar um riacho, e a
onça enganou o veado, dizendo que elle era muito raso,
e não tivesse medo. 0 veado metteu o peito e quasi mor-
reu afogado. A onça passou por um logar mais raso e
não teve nada. Seguiram. Adiante encontraram umas ba-
naneiras, e a onça disse ao veado: « Amigo veado, va-
mos comer bananas; você suba, coma as verdes, que
são as melhores, e me atire as maduras. » Assim fez
amigo veado, e não pude comer nenhuma, e a onça en-
cheu a pança. Seguiram; adiante encontraram uns tra-
balhadores capinando uma roça. A onça disse ao veado :
« Amigo veado, quem passa por aquelles trabalhadores
deve dizer:—Diabo leve a quem trabalha. » Assim f o i ;
quando o veado passou pelos homens gritou: « Diabo le-
ve a quem trabalha! » Os trabalhadores largaram-lhe os
cachorros, e quasi o pegaram. A onça, quando passou,
disse: «Deus ajude a quem trabalha.» Os homens gos-
taram d'aquillo, e a deixaram passar. Adiante encontra-
152 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

ram uma cobrinha de coral, e a onça disse: «Amigo vea-


do, olhe que linda pulseira para você levar á sua filha!»
O veado foi apanhar a cubra, e levou uma dentada; pôz-
se a queixar-se da onça, e ella lhe respondeu : « Quem
manda você ser tolo! ?»
Afinal chegaram á casa do compadre da onça; já era
tarde e foram dormir. O veado a r m o u sua redinha n'um
canto e ferrou no somno. Alta noite, a onça se levantou
devagarzinho de pontinha de pé, abriu a porta, foi ao
curral das ovelhas, sangrou uma das mais gordas, aparou
o sangue n'uma cuia, comeu a carne, voltou para casa,
largou a cuia de sangue em cima do veado para o sujar,
e foi-se deitar. Quando foi de para manhã o dono da ca-
sa se alevantou,- foi ao curral e achou uma ovelha de me-
nos. Fui ver se tinha sido a onça, e ella lhe respondeu:
«Eu não, meu compadre, só si fui amigo veado, veja
bem que eu estou limpa. » O homem foi á rede do vea-
do e acho-o todo sujo de sangue. « A h ! foi você seu la-
drão ?!» Metteu-lhe o cacete até o matar. A onça comeu
bastante leite e foi-se embora.
Passados tempos, ella tomou um capote emprestado
ao macaco e o convidou para ir comer leite em casa do
mesmo compadre. O macaco aceitou e partiram. Chegan-
do adiante, encontraram o riacho, e a onça disse : « Ami-
go macaco, o riacho é raso, e você passe adiante e por
alli.» O macaco respondeu: « A h ! você pensa que eu
sou como o veado que você enganou?! passe adiante se
quizer, senão eu volto...» A onça, que viu isto, passou
adiante. Quando chegaram nas bananeiras, ella disse:
« Amigo macaco, vamos comer bananas; você coma as
verdes, que são as melhores, e me atire as maduras.» —
« Vamos, » disse o macaco, e foi logo se atrepando. Co-
meu as maduras e atirou as verdes para a onça. Ella fi-
cou desesperada, e d i z i a : « Amigo macaco, amigo maca-
co!... Eu te boto a unhaí... » — « Eu vou-me e m b o r a
si você péga com historias. » Assim respondia o macaco
ELEMENTO EUROPEU 153

e foram seguindo. Quando passaram pelos trabalhado-


res, a onça disse: « A m i g o macaco, quem passa p o r
aquelles homens deve dizer: — Diabo leve a quem
trabalha; porque alli elles estão obrigados. » O macaco,
quando passou, disse: «Deus ajude a quem trabalha. »
Os trabalhadores ficaram satisfeitos, e o deixaram pas-
sar. A onça passou também. Adiante avistou uma cobri-
nha de coral, e disse ao macaco: «Olhe, amigo, que
lindo collar para sua filha! apanhe e leve. » — «Pegue
você!» E não quiz o macaco pegar. Afinal chegaram á
casa do compadre da onça e foram-se deitar porque já
era tarde. O macaco, de sabido, armou sua rêde bem al-
to, deitou-se e fingiu que e s t a ^ dormindo. A onça, bem
tarde, sahiu de pontinha de pé, foi ao chiqueiro das ove-
lhas, sangrou a mais bonita, comeu a carne, e foi c o m
a cuia de sangue para derramar no macaco. Elle que es-
tava vendo tudo, deu-lhe com o pé, e o sangue cahiu
todo e m riba da onça. Quando foi de para manhã, o do-
no da casa foi ao curral, e achou uma ovelha de menos,
e disse : «Sempre que a malvada d'esta comadre dorme
aqui, falta-me uma criação! » Largou-se para casa, e já
encontrou o macaco de pé e apontando para a onça, que
fingia que estava dormindo. O h o m e m a v i u toda suja
de sangue, e disse: « A h ! é você, sua diaba!» Deu-lhe
u m tiro e a matou. O macaco comeu muito leite, e foi-
se embora m u i t o satisfeito. 1

1
Os a n i m a e s d'este conto são: a onça — Felis onça, o vea-
d o — Cervus elaphus, Cervtis clama, o m a c a c o Cebus appella,
a c o b r a coral — Coluber Corallinus.
154 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

VIII
O macaco e a cotia
(Pernambuco)

0 m a c a c o foi dançar e m c a s a da cotia ; a cotia, d e


sabida, m a n d o u o m a c a c o tocar, dando-lhe u m a r a b e c a .
A c o t i a c o m e ç o u a dançar, e, no v i r a r á roda, d e u u m a
embigada n a p a r e d e e partiu o rabo. T o d o s os q u e t i -
n h a m r a b o ficaram v e n d o isto, c o m m e d o de dançar.
Então o priá d i s s e : « Opa, vocês estão c o m m e d o de
dançar! m a n d e m tocar, e vão vêr o b r a ! » 0 m a c a c o fi-
c o u logo d e s c o n f i a d o e t r e p o u - s e n'um banco e pOz-se a 1
tocar p a r a o priá dançar. 0 priá d e u u m a s v o l t a s e f o i
d a r s u a e m i i i g a d a no m e s t r e macaco, q u e não t e v e o u t r o
geito senão e n t r a r t a m b é m n a dança d a s c o t i a s e d o s
o u t r o s a n i m a e s , e todos l h e p i s a r a m no r a b o . Então elle
d i s s e : « N ã o danço m a i s , p o r q u e c o m p a d r e priá e c o m -
padre s a p o n ã o d e v e m dançar p i s a n d o no r a b o dos
outros, p o r q u e e l l e s n ã o t e m rabo p'ra n'elle s e pisar. »
P u l o u p a r a c i m a d a j a n e l l a e de lá t o c a v a s e m s e r i n c o m -
modado.
IX

O urufotà e o sapo
(Pernambuco)

0 urubu e o sapo foram convidados para uma festa


n o céo. 0 u r u b u , p a r a d e b i c a r o sapo, foi a c a s a d'elle
e l h e d i s s e : « Então, c o m p a d r e sapo, já s e i q u e t e m
d e i r ao céo, e e u q u e r o i r e m s u a c o m p a n h i a . » —-


ELEMENTO EUROPEU 155

« Pois n ã o ! disse o sapo, eu hei de ir, comtanto que


você leve a sua viola. » — « Não tem duvida, mas vo-
cê ha-de levar o seu pandeiro, » respondeu o urubu.
O urubu se retirou, ficando de voltar no dia marcado
para a viagem. N'esse dia se apresentou em rasa do sa-
po, e este o recebeu muito bem, mandando-o entrar para
vêr sua comadre e os afilhados. E quando o urubu es-
tava entretido com a sapa e os sapinhos, o sapo velho
entrou-lhe na viola, e disse-lhe de longe: « Eu, como
ando um pouco de vagar, compadre, vou indo adiante. »
E deixou-se ficar bem quietinho dentro da viola. O uru-
bu, d'ahi a pedaço, se despediu da comadre e dos afi-
lhados, e agarrou na viola e largou-se para o céo. La
chegando, lhe perguntaram logo pelo sapo, ao que el e
respondeu : « Ora! nem esse moço vem c á ; quando da
em baixo elle não anda ligeiro, quanto mais voar ! »
Deixou a viola e foi comer, que já eram horas.
Estando todos reunidos nos comes e bebes, pulou,
sem ser visto, o sapo de dentro da viola, dizendo : « Eu
aqui estou ! » Todos se admiraram de ver o sapo
n'aquellas alturas. Entraram a dançar e brincar. Acaba-
do o samba, foram todos se retirando, e o sapo vendo
o urubu distrahido, entrou-lhe outra vez dentro da vio-
la. Despediu-se o urubu e largou-se para terra. Che-
gando a certa altura, o sapo mexeu-se dentro da viola
e o urubu virou-a de bocca para baixo, e o sapo des-
penhou-se lá de cima, e vinha gritando : « Arreda pedra,
senão te q u e b r a s ! . . . » 0 urubu: « Qual ? 1 qual ? ! com-
padre sapo bem sabe v o a r ! . . . » O sapo cahiu e ra-
lou-se todo ; por isso é que elle é meio foveiro.
156 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Amiga raposa e amigo corvo

(Pernambuco)

Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem


u m a v i a g e m . A r a p o s a c o n v i d o u o gambá p a r a s e u com-
p a n h e i r o , e o c o r v o c o n v i d o u o caracará. P a r t i r a m
C h e g a n d o n o m e i o d o s m o n t e s , v e i u a noite e f o r a m pe-
dir r a n c h o n a c a s a da a m i g a onça. A onça a n d a v a p o r
tora atraz de u m r e b a n h o de c a r n e i r o s , e c h e g o u a c a s a
m u i t o tarde, t r a z e n d o u m g r a n d e c a r n e i r o m o r t o . O s
hospedes, q u e se a c h a v a m e m casa, ficaram c o m medo.
D i s s e a r a p o s a : « C o m p a d r e corvo, a s coisas n ã o
estão boas. » Disse o caracará: « Ora, esta é boa, n ã o
t e m o s de q u e t e m e r ; m a s você, c o m a d r e r a p o s a , é q u e
d e v e estar e m ieta, s e m t e r onde se metia!» A r a p o s a
deu u m a g a r g a l h a d a e disse : « S e r e i e u p e o r d o q u e
c o m p a d r e c a c h o r r o ? » O caracará : « C o m m i g o n i n g u é m
p o d e ; n a o c o r r o p o r terra, p o r q u e n ã o corto b e m o
c h ã o ; m a s corto o vento. Você, a m i g a r a p o s a , e com-
p a d r e g a m b á , é q u e t ê m de se vêr hoje ; q u a n d o e l l a
pegou e m compadre carneiro, que é maior de que
vocês, q u a n t o m a i s ! » C h e g o u a h o r a d a ceia. — A on-
ça c o n v i d o u os s e u s h o s p e d e s para c e a r e m . Só a rapo-
sa e q u e pode comer, p o r c a u s a do feitio do prato
A onça fez m a i s m i n g á o e e s p a l h o u n'uma p e d r a e
a r a p o s a tornou a l a m b e r . Depois o c o r v o disse • « Co-
m a d r e onça, e u n ã o a c h o boa esta m o d a : q u e m l a m b e
c o m e , q u e m p e n i c a c o m f o m e fica!» F o r a m todos d o r m i r .
O c o r v o disse p a r a o caracará : « N ó s n ã o h a v e m o s de
n c a r c o m l o m e . » Quando a onça p e g o u no s o m n o o cor-
vo a g a r r o u n o s filhos d a onça, e os d e v o r o u c o m o b i -
co; o caracará fez o m e s m o . S a f a r a m - s e , d e i x a n d o a r a -
ELEMENTO EUROPEU 157

posa e o gambá dormindo. Quando a onça acordou, pro-


curou os filhos e só viu os ossos, e investiu para a ra-
posa, que escapou-se e foi ao encontro de seus compa-
nheiros de viagem e os encontrou na casa do macaco. A
raposa : « Agora é occasião de vingar-me do que vocês
me fizeram. » Mas como era hora de jantar ella esperou.
No fim do jantar viu um cachorro, teve medo e despe-
diu-se. Foram o corvo e o caracará para a casa do gallo
e a raposa já lá estava, esperando pela ceia.
Chegada a hora, foram todos cear. 0 gallo espalhou
milho por toda a casa e disse :

«Venham de bico
Que me despico :
Quem tem focinho
Nem um tico. »

A raposa meia desconfiada:


« Façam o que quizer,
Durmao vocês, é que se quer.»

Foram todos dormir, e a raposa foi convidar mais


amigas para virem dar cabo de seus inimigos de pennas.
Deram cabo de todos, só deixando o gambá, por ser
muito fedorento.

XI
Amiga folhagem
(Sergipe)

Uma vez o macaco intrigou-se com a onça, não se


sabe bem o motivo. A onça andava sempre a vêr se
pegava o macaco; mas o macaco, muito arteiro, sem-
pre escapava d'ella. Ora, houve um tempo em que todos
158 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

os rios e fontes do mundo seccaram, e a onça ficou


contente, porque suppunha que d'esta vez o macaco lhe
não escaparia. Largou-se e foi esperal-o no logar único
em que havia agua, e que estava servindo de bebedou-
ro a todos os bichos. — 0 macaco foi beber agua e por
um triz que não morreu. Mas sempre escapou-se, e fi-
cou com muito medo. Então elle engenhou um meio de
escapar da onça, e foi o seguinte: Encontrou um viajan-
te que levava umas cabaças de mel de uruc-ü; apode-
rou-se de uma d'ellas, e lambusou-se bem no mel e de-
pois se cobriu todo de folhas bem verdinhas e largou-
se pelo mundo a fazer estrepolias. Logo chegou aos ou-
vidos de todos os bichos que tinha apparecido um bicho
novo, a que chamavam amiga folhagem. Assim o maca-
co bebeu agua, e escapou. N'essa occasião a onça lhe per-
guntou quem era, e elle respondeu:

<« Eu sou a folharada,


Sempre que vier beber
Tenho de ser transformada.»
E realmente as folhas lhe foram cahindo da pelle e
também o péllo. Foi então o macaco á fonte ; lhe per-
guntaram quem era ; elle respondeu :

« O tronco da folharada;
Todas vezes que aqui bebe
É transformada...
Desde que n'esta casa bati
Nunca mais agua b e b i . . . »
Houve muita gargalhada, e o macaco ficou bebendo
agua desassombrado.
ELEMENTO EUROPEU 159

XII
A. raposa o o tucano
(Sergipe)

A raposa entendeu que devia andar debicando o tu-


cano. Uma vez o convidou para jantar em casa d'ella.
0 tucano foi. A raposa fez mingáo para o jantar e espa-
hou em cima de uma pedra, e o pobre tucano nada
,3Ôde comer, e alé machucou muito o seu grande bico.
0 tucano procurou u m meio de vingar-se. D'ahi a tem-
pos foi á casa da raposa e lhe disse: « Comadre, você
outro dia me obsequion tanto, dando-me aquelle jantar;
agora é chegada a minha vez de lhe pagar na mesma
moeda: venho convidal-a para ir jantar commigo. Va-
no-nos embora, que o petisco está bom.» A rapo-
sa aceitou o convite e foram-se ambos. Ora,- o tucano
preparou também mingáo e botou dentro de um jarro de
pescoço estreito. 0 tucano mettia o bico e quando tirava
vinha-se regalando. A raposa nada comeu, lambendo
.:. apenas algum pingo que cahia fóra do jarro. Acabado o
jantar disse: «Isto, comadre, é para você não querer-se
fazer mais sabida do que osXIIIoutros.»
O m a c a c o e a cabaça
(Sergipe)

0 macaco se intrigou com a onça e andava cora medo


d'ella. Ora havia uma festa em certa parte, e o macaco
para" lá i r tinha que passar em casa da onça. Então
ideou u m meio de ir à festa sem ser visto pela onça.
160 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Então metteu-se dentro de uma cabaça grande e dava


certo impulso e assim andava.
Passando em casa do kágado, este acreditou ser um
bicho novo. Conversaram, e despediu-se o macaco. Na
sahida disse:
«Anda, cabaça,
Que nunca andaste.
Sexta, sabbado,
Domingo, segunda...
Mas, como quizeram,
E m bicho viras te .»

Assim foi andando e passou por casa da onça, e viu


a festa e nada soffreu.

XIV

O macaco e o coelho
(Pernambuco)

O macaco e o coelho fizeram um contracto para o


macaco matar as borboletas e o coelho as cobras. Estando
o coelho dormindo, veiu o macaco e puxou-lhe pelas ore-
lhas, julgando que eram borboletas.
Zangado por esta brincadeira, o coelho jurou vin-
gar-se.
Estando o macaco descuidado assentado n'uma pe-'
dra, veiu o coelho devagarzinho, arrumou-lhe uma paula-
da no rabo, e o macaco sarapantado gritou e subiu por
uma arvore acima a guinchar. Então o coelho ficou com
medo e disse :
Por via das duvidas,
Quero me acautelar:
Por baixo das folhas
Tenho de morar.
ELEMENTO EUROPEU 161

XV
O macaco e o moí /que cie cera
(Sergipe)

Morava em certo logar uma velha que tinha uma por-


tão bonita de bananeiras. Quando ellas estavam carrega-
das de cachos maduros a velha não podia subir para ti-
ral-os. Então appareceu um macaco e se oífereceu para
ir tirar as bananas. Trepou-se nas bananeiras e entrou a
comer as bananas maduras e a atirar as verdes para a
velha. Esta ficou desesperada, e procurava um meio de
se vingar do macaco, mas sempre ficava lograda. Afinal
lembrou-se de fazer u m moleque grande de cera, fin-
gindo um negrote. Depois de preparado o moleque, ella
encheu u m taboleiro de bananas bem amarei linhas e bo-
tou na cabeça do moleque, fingindo que estava venden-
do. Vem o macaco e pede uma banaua ao moleque, e o
moleque calado.
0 macaco: «Moleque, me dá uma banana senão
te arrumo um tapa! » E o moleque calado... 0 macaco
desandou-lhe a mão e ficou com a mão grudada na cera.
0 macaco: «Moleque, solta a minha mão senão te
dou outro tapa! » E o moleque calado... 0 macaco tre-
pou-lhe a outra e ficou com ella grudada na cera.
O macaco:
«Moleque! moleque! solta as minhas duas mãos e
me dá uma banana, senão te arrumo u m pontapé!... »
E o moleque calado... 0 macaco desandou-lhe u m pé e
ficou com elle grudado na cera.
0 macaco:
« Moleque dos diabos, solta minhas duas mãos e meu
pé, e me dá uma banana senão te arrumo o outro'
pé!...» E o moleque calado... 0 macaco arrumou-lhe
o outro pé e ficou com elle preso.
162 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

0 macaco:
« Moleque das confundas, larga as minhas duas mãos
e meus dois pés, e dá-me uma banana senão dou-te
uma embigada! » E o moleque calado... 0 macaco deu-
lhe uma embigada e ficou com' a barriga presa.
Ahi chegou a velha e o agarrou e matou e esfolou
e picou e cozinhou e comeu. Depois, quando teve de ir
ao mato, deitou para fóra aquella porção de macaqui-
nhos, que sahiam saltando e gritando: « Eco, eu vi o tu-
bi da velha!»

XVI

O macaco o o rabo
(Sergipe)

Um macaco uma vez pensou em fazer fortuna. Para


isto foi-se collocar por onde tinha de passar um carrei-
ro com seu carro. 0 macaco estendeu o rabo pela estra-
da por onde deviam passar as rodeiras do carro. 0 car-
reiro, vendo isto, disse : « Macaco, tira teu rabo do cami-
nho, que eu quero passar.» — « N ã o tiro, » respondeu o
macaco. 0 carreiro tangeu os bois, e o carro passou por
cima do rabo do macaco, e cortou-o fóra. 0 macaco, en-
tão, fez um barulho muito grande: «Eu quero meu ra-
bo, ou então me dê uma navalha... » 0 carreiro lhe deu
a navalha, e o macaco sahiu muito alegre a gritar: « Per-
di meu rabo! ganhei uma navalha!... Tinglin, tinglin,
que vou p'ra Angola!...» Seguiu. Chegando adiante en-
controu um negro velho fazendo cestas e cortando os
cipós com o dente.
0 macaco:
« Oh ! amigo velho, coitado de v o c ê ! . . . Ora está cor-
tando os cipós com o dente! tome esta navalha.» 0 ne-
5
ELEMENTO EUROPEU 163
gro a c e i t o u , e, q u a n d o foi p a r t i r u m cipó, q u e b r o u - s e
a n a v a l h a . 0 m a c a c o a b r i u a b o c c a ao m u n d o e poz-se
a g r i t a r : « E u q u e r o m i n h a n a v a l h a ! ou então m e d e
u m c e s t o ! » 0 n e g r o v e l h o l h e d e u u m c e s t o e elle s a -
h i u m u i t o c o n t e n t e g r i t a n d o : « P e r d i m e u rabo g a n h e i
u m a navalha, perdi minha navalha ganhei u m cesto...
Tinglin,'tinglin, q u e v o u p'ra A n g o l a ! » S e g u i u . Che-
g a n d o adiante e n c o n t r o u u m a m u l h e r fazendo p ã o e bo-
tando n a s a i a . « O r a m i n h a sinhá fazendo p ã o e botando
n a s a i a ! A q u i está u n i cesto. » A m u l h e r a c e i t o u , e,
q u a n d o f o i botando os pães dentro, c a h i u o fundo do
cesto. 0 m a c a c o a b r i u a b o c c a n o m u n d o e poz-se a g r i -
t a r : « E u q u e r o o m e u cesto, q u e r o o m e u c e s t o , sinão
m e d ê u m p ã o ! » A m u l h e r deu-lhe o pão, e elle s a h i u
m u i t o contente a d i z e r : « P e r d i m e u rabo g a n h e i u m a
navalha, perdi m i n h a navalha ganhei u m cesto, perdi
m e u c e s t o g a n h e i u m pão!... 0 m e u pão e u v o u co-
m e r ! Tinglin, tinglin, q u e v o u p'ra Angola!...» E f o i
comendo o pão.
XVII
O macaco e o valbo
(Versão de Pernambuco)

Uma occasião achavam-se na beira de uma estrada


u m m a c a c o e u m a cotia e v i n h a passando n a m e s m a e s -
t r a d a u m c a r r o de b o i s cantando. 0 m a c a c o disse p a r a a
c o t i a : « T i r a o t e u r a b o d a e s t r a d a , sinão o c a r r o p a s s a
e corta. » E m b e b i d o n'esta c o n v e r s a , n ã o r e p a r o u o ma-
caco q u e elle é q u e c o r r i a o m a i o r r i s c o , e v e i u o car-
ro e p a s s o u e m r i b a do r a b o d'elle e c o r t o u . E s t a v a u m
gato e s c o n d i d o dentro d e u m a moita, saltou n o pedaço
do r a b o do m a c a c o e c o r r e u . C o r r e u t a m b é m o m a c a c o
*
164 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

atraz, pedindo o seu pedapo de rabo. O gato disse: « Só


te dou, si me deres leite. » — « Onde tiro leite? » disse o
macaco. Respondeu o gato:« Pede á vacca. » O macaco
foi á vacca e disse : « Vacca, dá-me leite para dar ao ga-
to, para o gato dar-me o meu rabo. » — « N ã o d o u ; só
si me deres capim, » disse a vacca. « D'onde tiro capim?»
— « Pede á velha. » — « Velha, dá-me capim para eu dar
á vacca, para a vacca dar-me leite, o leite para o gato
para me dar o meu rabo. » — « Não d o u ; só si me de-
res uns sapatos. » — « D'onde tiro sapatos ? » — « Pede
ao sapateiro. » — « Sapateiro, dá-me sapatos para eu dar
á velha, para a velha me dar capim para eu dar á vac-
ca, para a vacca me dar leite para eu dar ao gato, para
o gato me dar meu rabo. » — « Não dou ; só si me de-
res seda.» — « D'onde tiro s é d a ? » — « Pede ao porco. »
— « Porco, dá-me séda para.eu dar ao sapateiro, para
me dar sapatos para dar á velha, para me dar capim
para dar á vacca, para me dar leite para dar ao gato,
para me dar o meu rabo.» — «Não dou, só si me deres
chuva. » — « D'onde tiro chuva ? » — « Pede ás nuvens.»
— «Nuvens, dai-me chuva para o porco, para dar-me
seda para o sapateiro, para dar-me sapatos para dar á
velha, para me dar capim para dar á vacca, para dar-
me leite para dar ao gato, para dar meu r a b o . . . » —
« Não dou ; só si me deres fogo. » — « D'onde tiro fo-
go ? » — « Pede às pedras. » — « Pedras, dai-me fogo para
as nuvens, para chuva para o porco, para seda para o
sapateiro, para sapatos para a velha, para capim para a
vacca, para leite para o gato, para me dar meu rabo. »
— « Não dou; só si me deres rios. » — « D'onde tiro
rios ? » — « Pede ás fontes. » — « Fontes, dai-me rios, os
rios ser para as pedras, as pedras me dar fogo, o fogo
ser para as nuvens, as nuvens me dar chuvas, as chu-
vas ser para o porco, o porco me dar sêda, a sêda ser
para o sapateiro, o sapateiro fazer os sapatos, os sapatos
ser para a velha, a velha me dar capim, o capim ser
E L E M E N T O EUROPEU 165

p a r a a v a c c a , a v a c c a m e d a r o leite, o leite s e r p a r a
o gato, o gato m e d a r m e u rabo.» Alcançou o m a c a c o
todos os p e d i d o s ; o gato b e b e u o leite, e n t r e g o u o r a -
b o ; o m a c a c o n ã o q u i z mais, p o r q u e o r a b o e s t a v a po-
dre.

XVIII
A. ouça e o boi
(Pernambuco)

' Havia uma onça que morava em uma serra, e só


d e s c i a lá de c i m a p a r a fazer cameaçào. U m dia, q u a n d o
descia, e n c o n t r o u u m boi, e ficou logo c o m v o n t a d e de
o a t a c a r traiçoeiramente. Então disse a onça ao b o i :
« C o m p a d r e , você c o m o bom m a t e i r o , não m e dará no-
ticia de u m c o m p a n h e i r o s e u , q u e v i v i a a q u i n'este car-
rasco, e q u e e r a m e u amigo, e que ha m u i t o s dias não o
v ej ? » — « H o n t e m e s t i v e c o m elle n o bebedouro, e creio
0

q u e e l l e está lá m e e s p e r a n d o ; s i você quer, a m i g a on-


ça, v a m o s j u n t o s até lá. » A s s i m f a l l o u o boi. A onça
r e s p o n d e u ; « N'esta não cáio eu, q u e estou c o m f o r n e c e
por lá n ã o h a c a r n e i r o , q u e s e p o s s a p e g a r , além de t

q u e lá fico p e r t o do m e u i n i m i g o . » — « Q u e m é s e u i n i -
migo ? » perguntou o boi. « É um lavrador, que tem ca-
r a de m a t a r trinta onças, q u e fará a m i m sósinha, e lá
n ã o t e m a r v o r e d o de que p o s s a m e valer.»
O b o i : « Mas você, c o m a d r e onça, s i t e m e é p o r q u e
a l g u m a c o i s a f e z ; q u e m n ã o d e v e não teme. »
A onça: « C o m p a d r e , n ã o se l e m b r a q u a n d o e u pe-
g u e i a q u e l l e b e z e r r o n ' a q u e l l a mamada? C o r r e r a m atraz
d e m i m tres a m i g o s c a c h o r r o s , q u e u m d'elles e r a damna-
do; só de g r i l o s me t r a z i a atordoada. Só d e s c a n s e i quan-
do p u d e m e t r e p a r n'uma a r v o r e , a vêr s e p u n h a a s
166 CONTOS P O P U L A R E S DO BRAZIL

unhas nos moleques. Mas q u a l ? ! Fugiam para traz com o


diabo !! »
O b o i : « Então, comadre onça, você só é gente tendo
arvoredo ? Vamos cá para o limpo. »
A onça: « Mas o compadre está me puxando para o
limpo; parece que está desconfiado! » Assim uma pro-
cura o mato e outro o largo, até que se ausentaram des-
confiando u m do outro.

XIX
A. onça. e o gato
(Pernambuco)

A onça pediu ao gato para lhe ensinar a pular, e o


gato promptamente l h e ensinou. Depois, indo j u n t o s p a r a
a fonte beber agua, fizeram uma aposta para vêr q u e m
p u l a v a mais. Chegando á fonte encontraram lá o calan-
go, e então disse a onça para o gato : « Compadre, vamos
vêr q u e m de u m só pulo pula o camarada calango. »
« Vamos, » disse o gato. « Só você pulando adiante, »
disse a onça. 0 gato pulou em c i m a do calango, a onça
pulou e m c i m a do gato. Então, o gato, pulou de banda
e se escapou. A onça ficou desapontada e disse : « Assim,
compadre gato, é que você m e e n s i n o u ? ! Principiou e
não acabou...» 0 gato respondeu : « N e m tudo os mes-
tres ensinam aos seus aprendizes. »
Secção terceira

MYTHOS E FÁBULAS DE ORIGEM TUPI

(Colllgidos pelo Dr. Couto de Magalhães)

TJnx Ocnesis selvagem


(Sertão do Brazil)

Como a noite appareceu

Duranté o principio não havia n o i t e ; dia somente.


A noite está adormecida no fundo da agua.
Não h a v i a animaes; todas as cousas faltavam.
Da filha da Cobra-Giande, contam se casara com um
joven. .
Este j o v e n tinha tres vassallos fieis.
Em um dia chamou os tres vassallos; disse-lhes:
— Ide passear; m i n h a m u l h e r não quer d o r m i r com-
0s vassallos foram-se. Então elle chamou sua mulher
mig

para d o r m i r com elle. _


Sua m u l h e r respondeu : — « Ainda nao é noite.
— Não ha n o i t e ; dia ha somente.
— « Meu p a i t e m noite. Dormir se queres commigo,
manda-a buscar pelo r i o .
168 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

Elle chamou ostres vassallos; sua mulher mandou-os


a casa de seu pai para irem buscar um caroço de t u -
cumã.
Quando elles chegaram a casa da Cobra-Grande, esta
cieu-íhes um caroço de t u c u m ã , fechado perfeitamente e
disse :
«Aqui e s t á ; levae; eia, não abraes! Se o abrirdes
vos pertlereis.
Os vassallos foram-se; ouviram barulho dentro do
caroço de t u c u m ã : ten! t e n ! ten! t e n ! ten, ten!
Era o barulho dos grillos, e dos sapinhos com elles,
os quaes cantam durante a noite.
Quando os vassallos estavam já longe, um d'ellee
disse aos seus companheiros:
« O que é este barulho? Vamos v ê r ?
0 piloto disse : — N ã o ; de contrario nos perderemos.
Kemae, vamos embora.
Elles se foram. Estavam ouvindo o barulho; n ã o sa-
biam o que era aquelle barulho. Elles estavam muitís-
simo longe j a , quando elles se ajuntaram no meio da
canoa para abrir o caroço da t u c u m ã , para v ê r o que
estava dentro d'elle.
Um accendeu f o g o ; elles derreteram o breu que es-
tava fechando a porta do caroço de t u c u m ã .
• Quando elles abriram, eis repentinamente noite den-
sa j â .
Então o piloto disse: —Perdemo-nos! A moça em
sua casa sabe ja que nós abrimos este caroço de t u c u m ã
Elles seguiram viagem.
A moça em sua casa disse a seu marido :
— «Elles soltaram a noite. Agora vamos esperar a
manha. r

Então todas as cousas, que estavam espalhadas pelo


bosque, metamorphosearam-se em animaes, em pás-
saros. ' F

Todas as cousas, que estavam espalhadas pelo rio, '


ELEMENTO INDÍGENA 169

metamorphosearam-se em patos, em peixes; o paneiro


virou-se em onça.
0 pescador virou-se com sua canoa em pato; sua
cabeça em cabeça de pato, seu remo em pernas de pa-
t o ; a canoa em corpo de pato.
Quando a filha da Cobra-Grande viu a estrella d'al-
va, disse a seu marido j á :
— « Vem a m a n h ã ; eu vou dividir a noite do dia.
Então ella enrolou o fio, e disse:
— «Tu Jucubim serás, para cantar quando vier a
manhã.
Assim fez o Jucubim, branqueou a cabeça d'elle com
tabatinga, avermelhou suas pernas com urucú, e disse
a elle:
— « C a n t a r á s para todo o sempre, quando vier a
manhã.
Depois ella enrolou o fio; disse:
— «Tu Inambú serás.
Tomou cinza, poz sobre elle; disse:
— «Tu Inambú serás, para cantar á tarde, á noite,
á meia noite, noite alta e na madrugada.
De então para cá os pássaros cantaram em tempos
próprios quando vem a manhã, para alegrar o dia.
Quando os tres vassallos chegaram, disse-lhes o
moço:
— Vós não fostes fieis! Vós soltastes a noite. Vós fi-
zestes todas as cousas perderem-se; por isso vos muda-
reis em macaquinhos para todo o sempre; andareis pe-
los galhos das arvores, trepados sobre elles. 1

1
Ap. Dr. Couto de Magalhães, O Selvagem áo Brazil, i .
p. 162-171. Curso de lingua tupi.
170 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

II

Fábulas do Jabuti

(Rio Negro)

Jabuti e a Anta do Mato

Gente Jabuti é boa, não é gente má. Estava debaixo


do taperebá ajuntando sua comida. A Anta do Mato che-
gou ahi, e disse-lhe:
— Retire-se d'aqui, Jabuti; retire-se d'aqui.
Jabuti respondeu a ella :
« Eu d'aqui não me retiro, porque eu estou debaixo
da arvore da fructa de minua.
— Retira-te, Jabuti, senão eu calco-te.
a Calca... para tu vêres se só tu és macho.
Anta, Jurupari, (espirito do mal) calcou o coitado j
Jabuti; a Anta foi-se embora.
Jabuti disse assim:
«Deixa estar, Jurupari! quando vier o tempo d a l
chuva, eu sáio, vou-te no encalço, até onde te encon- ]
trar; então receberás o troco.
Veiu o tempo da chuva, para o Jabuti sahir, e foi-se
embora atraz do grande Jurupari. Encontrou-se com o
rasto da Anta. Jabuti perguntou-lhe:
«Quanto tempo ha que teu senhor te deixou?
O rasto respondeu :
— « J á me deixou ha muito.
Jabuti sahiu alli depois de uma l u a ; encontrou-se com
outro rasto. Jabuti perguntou:
«Teu senhor ainda está longe?
ELEMENTO INDÍGENA 171

O rasto respondeu:
— « Quando tu andares dois dias te encontrarás com
elle.
« Estou aborrecido de procurar; ella foi de vez.
O rasto perguntou:
— « Por que razão a procuras tanto agora ?
Jabuti respondeu:
« Para nada. Eu quero conversar com ella.
O rasto fallou:
— « Então tu vás ao rio pequeno; lá acharás meu
pai grande.
Jabuti assim fallou:
«Então eu ainda vou.
Elle chega ao rio pequeno; perguntou assim:
« Rio, que é do teu senhor ?
Rio respondeu:
— Não sei.
Jabuti fallou ao r i o :
« Por que razão assim me fallas tão bem ?
O rio respondeu:
— Eu fallo assim bem, porque eu sei o que meu
pai fez a você.
Jabuti fallou:
« Deixe estar; eu hei de a achar. Então agora, rio,
Dói vou-me do pé de você; quando o avistares, eu estarei
com o cadáver de teu pai.
Rio respondeu:
— Não bulas com meu pai. Deixa-o dormir.
Jabuti fallou :
« Agora, com certeza alegro-me bastante; rio, vou-
me embora.
Rio respondeu :
— Ah, jabuti, você, pôde ser quereres te enterrar
segunda vez.
Jabuti fallou :
« Não estou no mundo para fazer de pedra; agora
172 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

eu vou v ê r se ha mais valente do que e u ; adeus, r i o ,


vou-me.
Jabuti foi-se embora; na margem do pequeno r i o
encontrou a Anta. Jabuti fallou-lhe assim :
« Eu encontrei-te ou n ã o ? Agora nos veremos. Se-
gundo dizem eu sou macho.
Pulou para diante da Anta, sobre os escrotos da
Anta.
Então fallou : 0 fogo, dizem, queima tudo.
0 Jabuti pulou com valentia sobre os escrotos da
Anta.
A Anta fallou assim:
— Pelo bom Tupan, Jabuti, deixa meu escroto.
« Eu n ã o deixo, porque eu quero v ê r a tua valentia.
A Anta fallou :
— Então, estou desfallecendo.
A Anta levantou-se, correu para o pequeno r i o ; no
fim de dois dias a Anta morreu.
Jabuti e n t ã o fallou :
« Eu matei ou n ã o a você ? Agora eu vou procurar
meus parentes para o virem comer.

O Jabuti e a Onça

0 Jabuti gritou :
« Meus parentes, meus parentes, a ç u d a m !
A Onça ouviu, foi para l á ; perguntou :
— 0 que estás tu gritando, Jabuti ?
O Jabuti respondeu :
« Eu estou chamando estes meus parentes, para v i -
rem comer a minha caça, a Anta.
A Onça disse :
— Tu queres que eu parta a Anta?
ELEMENTO INDÍGENA 173

Jabuti disse:
« Quero, quero ; t u separas uma banda para ti, outra
para mim.
A Onça disse :
— Então vá apanhar lenha.
0 Jabuti partiu, e a Onça carregou com a caça e fu-
giu- c

Quando chegou o Jabuti apenas encontrou as fezes,


ralhou com a onça ; disse :
«Deixa estar! algum dia eu me encontrarei com-
tigo.
ui
Jabuti e o Veado

(Também popular em Minas Geraes)

0 pequeno Jabuti foi procurar seus parentes, e en-


controu-se com o Veado.
0 Veado perguntou-lhe : — Para onde é que t u vas?
Jabuti respondeu : — « Eu vou chamar meus paren-
tes, para virem procurar a minha caçada grande, a Anta.
O veado fallou assim : — Então você matou a Anta ?
Vá, chame toda a gente ; quanto a mim eu fico a q u i ;
eu quero vêl-os.
Jabuti assim fallou : — « Então eu já me vou ; d aqui
mesmo quero esperar que a Anta apodreça, tirar-lhe o
osso para fazer uma gaita. Está bom, Veado, eu parto.
0 Veado fallou assim : — Tu mataste a Anta ; agora
eu quero experimentar a correr comtigo á compita.
Jabuti respondeu : — Então, espere você por m i m
a q u i ; vou vêr por onde hei de correr.
0 Veado fallou: — Quando t u correres por o outro
lado, t u responderás quando eu gritar.
Jabuti fallou : — « Cá vou indo.
174 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

0 Veacto fallou-lhe : — Agora nada de demoras...


Eu quero vêr a tua valentia.
Jabuti fallou assim : — « Espera um poucochinho;
deixa-me chegar á outra banda.
Logo que chegou alli, chamou todos os seus com-
parentes. Postou-os a todos pela margem do pequeno rio
para responderem ao Veado tolo. Depois fallou assim:
— « Ó Veado ! você já está prompto ?
0 Veado respondeu : — E u já estou prompto.
Jabuti perguntou : — « Quem é que vai na dianteira?
O Veado, riu-se e disse : — Tu vás mais adiante, Ja-
buti miserável.
0 Jabuti não correu ; enganou o Veado e foi collocar-
se mais adiante.
O Veado estava seguro confiando nas suas pernas.
0 parente de Jabuti gritou pelo Veado. 0 Veado res-
pondeu para quem lhe ficava atraz. Assim o Veado fal-
lou : — Eis-me que vou aqui, Tartaruga do mato !
0 Veado correu, correu, correu, depois gritou: —
Jabuti!
Outro parente do Jabuti respondeu sempre de diante.
O Veado disse : — Eis-me que vou, ó macho.
0 Veado correu, correu, correu e gritou : — Jabuti!
0 Jabuti sempre de diante respondeu.
0 Veado disse: — Eu ainda vou beber agua.
Então o Veado ficou calado.
0 Jabuti gritou, gritou, g r i t o u . . . Ninguém lhe res-
pondeu.
Disse então : — « Aquelle macho, por ventura mor-
reu. Deixa-me ir vêl-o.
0 Jabuti disse aos seus companheiros:
— Eu vou sorrateiro para espreital-o.
O Jabuti, quando sahiu na margem do rio, disse
assim : — Nem sequer cheguei a suar.
Então chamou pelo Veado : — Veado !
O Veado não deu resposta.
I

ELEMENTO INDÍGENA 175

Quando os companheiros do Jabuti olharam para o


'eado, disseram : — Verdadeiramente, já está morto.
O Jabuti disse: — « Vamos-lhe tirar o osso.
Os outros, perguntaram-lhe : — Para que é que t u o
lueres?
O Jabuti respondeu : — « Para eu assoprar por elle e
ocar em qualquer tempo.
Agora vou-me d aqui embora, e até algum dia.
7

IV

O Jabuti encontra-se com os Macacos


r
O Jabutisinho andou, andou, andou o espaço de dois
dias; encontrou-se com os Macacos que estavam em ci-
ma da arvore da fructa, e disse ao Macaco:
— Macaco ! atira-me alguma fructa para eu comer.
O Macaco respondeu :
Trepa! Você por acaso não é macho?
Disse o Jabuti: — « Em verdade eu sou macho ; eu
não quero subir, porque estou cansado.
Disse o Macaco ; — Somente o que eu posso fazer a
você é il-o buscar d'ahi debaixo para aqui.
Disse Jabuti: — « Você venha-me buscar.
O Macaco desceu, e pegou no Jabuti ás costas, e
foi-o pôr lá em cima.
O Jabuti ficou ahi dois dias, por nao poder descer.

i O prof. Hartt achou esta fábula na África, e em Siao.


Vid. Notes on the Tupi language. Couto de Magalhães, op. c i t . ,
p. 154.
176 CONTOS POPULARES DO BRAZIL
I

O Jabuti e outra vez a Onça'

(Tradição de Tapajós)

A Onça appareceu por alli. A Onça olhou para cima


•viu o coitado do Jabuti, e disse assim :
— Ó Jabuti, por onde subiste t u ?
0 Jabuti respondeu : — « Por esta arvore de f r u c t a !
A Onça, com fome, respondeu : — Desce cá para
baixo.
O Jabuti assim fallou : — « Apara-me lá; abre bem
a bocca, para que eu não cáia no chão.
O Jabuti precipitou-se, e foi de encontro ao focinho
da Onça ; a endiabrada morreu.
O Jabuti esperou até ella apodrecer, e depois tirou a
sua frauta.
Então o Jabuti foi-se, tocando a sua frauta, e assim
cantava :
— A minha frauta é do osso da Onça, ih! ih !
vi

O Jabuti e outra Onça

(Tradição de Tapajós)

Outra Onça ouviu a cantiga, e veiu ter com o Jabuti


e perguntou-lhe:
— Como tocas tão bem na tua f r a u t a !
O Jabuti r e s p o n d e u : — « Eu toco assim a minha
t r a u t a : o osso do Veado é a minha frauta ; i h ! i h !
ELEMENTO INDÍGENA 177

A Onça tornou : — A modo que não foi assim que eu


o ouvi c a n t a r !
O Jabuti respondeu : — « Arreda-te mais para lá u m
pouco ; de longe te ha de parecer mais bonito.
O Jabuti procurou u m buraco, pôz-se na soleira da
porta, e tocou na f r a u t a ; i h ! i h !
Quando a Onça ouviu, correu para o agarrar. O Ja-
. b u t i metteu-se pelo buraco dentro.
A Onça metteu a m ã o pelo buraco, e apenas l h e
agarrou a perna.
O Jabuti deu uma risada, e disse : — « Pensavas que
agarraste a minha perna e agarraste apenas a raiz de
pão !
A Onça disse-lhe assim : — Deixa-te estar!
Largou então a perna do Jabuti.
O Jabuti, riu-se segunda vez, e disse :
— « De facto era a minha própria perna.
A grande tola da Onça esperou alli, tanto esperou,
até que morreu.
VII
Jabuti e a Raposa
Dizem que o Jabuti tinha uma frauta ; um dia quando
estava tocando a sua frauta, dizem que a Raposa f o i
o u v i r o Jabuti, e lhe disse :
— Emprestas-me a t u a frauta ?
« Eu não ! respondeu o Jabuti. — Para tu fugires com
a minha frauta.
A Raposa disse : — Então toca, para ouvir a t u a
frauta.
O Jabuti tocou assim na sua f r a u t a :
Fin, fm, fm, fin!
Galo fon, fm!
12
178 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

A Raposa disse : — Como tu és formosíssimo com a


tua frauta, J a b u t i ! Empresta-me u m poucochinho.
O Jabuti disse : — Péga lá! Agora não me fujas com
a minha frauta ; se t u te vás embora atiro-te ás costas
com esta cera.
A Raposa tomou a frauta do Jabuti, tocou, pôz-se a
dançar, e achou muitíssimo b o n i t o ; botou a fugir com
a frauta.
O Jabuti quiz correr atraz da Raposa, mas não cor-
reu ; dizem que voltou para o mesmo logar onde esta-
va ; então disse : — « Deixa estar, Raposa ! Não é preciso
muito tempo para te apanhar.
O Jabuti foi pelo bosque, chegou á margem do r i o ,
cortou madeira para fazer u m a ponte para atravessar
por c i m a ; chegou á outra margem, atrepou, cortou da
arvore do mel, tirou mel do pau, voltou para traz, che-
gou ao caminho da Raposa, encostou a, cabeça ao chão,
pegou no pau do m e l e untou com elle o trazeiro.
D'ahi a pouco a Raposa chegou alli, e olhou para
aquella a g u a ; que lustrosa e bonita era aquella a g u a !
A Raposa disse : — « I h , . . o que será isto ?
Depois metteu o dedo, lambeu, e disse : — « H i . . .
i . . . i ! isto é mel.
Outra Raposa observou : — « Que ?! aquillo ! mel ?
Qual! Aquillo é o trazeiro do Jabuti.
A outra respondeu : — Que ! o trazeiro do J a b u t i l
Como é que isso é mel ?
•C o m
a muita sede com que estava metteu a lingua
n elle. 0 Jabuti apertou o trazeiro, a Raposa g r i t o u :
— Deixa a m i n h a lingua, ó J a b u t i !
A outra disse : — É o que te eu disse. É o trazeiro
do Jabuti, como eu te disse ; tu disseste : Como que é
isto é mel, então ?
• O Jabuti disse então : — « Han ! han ! foi o que eu
disse a você, ou não ? Cedo te apanhei. Dizem que t u ,
Raposa, és muito esperta! Que é da m i n h a frauta?
ELEMENTO INDÍGENA '179
A Raposa respondeu : — Eu não a tenho, Jabuti!
0 Jabuti disse: — Tu tem-la! traze-irTa, traze-m'a
já, senão eu aperto mais.
A Raposa restituiu logo a frauta.

VIII

O Jabuti e a Raposa

(Tradição de Juruá)

Jabuti metteu-se pela sua toca dentro, assoprou na


frauta, e pôz-se a dançar:
Fin, fin, fin, fin,
Culo fon,fin,te tein,
Te tein, te tein.
Veiu a Raposa, e chamou pelo Jabuti:
— Ó Jabuti!
- O Jabuti respondeu : — Uh 1
A Raposa disse : — Vamos experimentar a nossa va-
lentia ?
O Jabuti respondeu :
— « Vamos, Raposa ! quem vai adiante ?
A Raposa disse : — Tu, Jabuti!
— Está bom, Raposa ; quantos annos são precisos ?
A Raposa respondeu : — Dois annos.
Então a Raposa fechou o Jabuti no fundo da tóca ;
depois que acabou de o fechar disse :
— Adeus, Jabuti, vou-me embora.
De anno em anno, vinha fallar com o Jabuti; che-
gava á boca da tóca, e chamava pelo Jabuti:
— Ó Jabuti!
O Jabuti respondia : — « Ó Raposa ! já estarão ama-
rellas as fructas do taperebá ?
180' CONTOS POPULARES DO BRAZIL

A Raposa respondia: — A i n d a não, Jabuti; agora os


taperebaseiros estão apenas em flôr. Adeus, Jabuti, ainda
me vou d'esta feita.
Quando foi o tempo do Jabuti sahir, a Raposa veiu,
chegou á bocca da tóca, e chamou.
O Jabuti perguntou : — J á estão amarellas as fructas
do taperebá?
A Raposa respondeu : — Agora, sim, Jabuti; agora |
em verdade já estão; agora sim, está em baixo da arvo-
re o grosso d'ella.
O Jabuti sahiu e disse:
— Entra agora, Raposa!
A Raposa respondeu : — Quantos annos são precisos,
Jabuti?
O Jabuti respondeu : — Quatro annos, Raposa.
O Jabuti metteu a Raposa no fundo da tóca e foi-se
embora. Um anno depois o Jabuti voltou para fallar com
a Raposa, chegou á bocca da tóca e chamou :
— Ó Raposa!
A Raposa respondeu :
— Já estarão amarellos os ananazes, Jabuti ?
O Jabuti respondeu :
• — « Ora ! ainda não estão, Raposa. Ainda andam ago-
ra a roçar. Eu vou-me embora! Adeus, Raposa.
Dois annos depois, o Jabuti voltou e chamou:
— Ó Raposa!
Tudo calado. O Jabuti chamou segunda vez. Tudo ca-
lado. Só sahiam moscas do fundo da tóca.
O Jabuti abriu a bocca á toca, e disse: — Este la- j
drão já morreu !
O Jabuti puxou-a para fóra:
— Eu bem te tinha dito, Raposa! Tu não eras macho
para medires forcas commigo!
O Jabuti deixou-a ficar e foi-se embora.
ELEMENTO INDÍGENA 181

IX

O Jabuti e o Homem
(Tradição de Juruá)

Jabuti chegou ao covão, e estava assoprando na sua


frauta.
As gentes que iam passando escutaram.
Um homem disse : — Eu vou apanhar aquelle Jabuti.
Chegou ao covão, chamou : — « Ó Jabuti!
0 Jabuti respondeu: — Uh!
O homem disse : — Vem cá, Jabuti.
— « Pois bem, aqui estou, eu vou já.
O Jabuti sahiu, o homem agarrou-o, levou-o para
casa. Quando chegou a casa metteu o Jabuti dentro de
uma caixa. Logo de manhansinha, o homem disse aos
seus pequeninos:
— Agora não soltem vocês o Jabuti.
E foi-se para a roça.
O Jabuti estava dentro da caixa tocando a sua frauta.
Os meninos ouviram e vieram para escutar.
O Jabuti calou-se.
Então os meninos disseram : — Assopra, Jabuti.
O Jabuti respondeu : — Vocês acham muito bonito;
como não seria se vocês me vissem dançar!
Os meninos abriram a caixa para verem o Jabuti
dançar.
O Jabuti dançou pelo quarto :

Tum, tum ! lum, tum ! tum, tum !


Tum, tum! tein 1
Depois pediu aos meninos para o deixarem ir ourinar.
Os meninos disseram-lhe : — « Vai, Jabuti, mas nao
fujas. ,
182 CONTOS POPULARES DO B R A Z I L

0 Jabuti vai para traz da casa, correu e escondeu-se


no meio do cerrado.
Então os meninos disseram : — O Jabuti fugiu !
Um d'elles disse: —Agora como ha de ser? Gomo é
que havemos dar conta a nosso pai quando elle vier?
Vamos pintar uma pedra da côr do casco do Jabuti, se-
não quando elle chegar aeoitar-nos-ha !
Assim o fizeram.
De tarde chegou o pai d'elles : — Ponham a panella
ao lume, para tirarmos a casca ao Jabuti.
Elles disseram : — J á está ao lume.
O pai deitou a pedra pintada na panella pensando
que era o Jabuti.
Depois disse-lhes: —Tirem vocês os pratos, para co-
mermos o Jabuti.
Os meninos tiraram-os.
O pai tirou o Jabuti da panella, e quando o deitou
no prato quebrou-o !
O pai disse aos meninos : -— Vocês deixaram o Jabuti
fugir ?
Elles responderam : — Não.
Quando estavam dizendo isto, o Jabuti tocou a sua
frauta.
Quando o homem ouviu disse : — Eu vou-o apanhar
outra vez.
Foi e chamou : — Ó Jabuti!
O Jabuti respondeu : — Uh !
O homem foi pelo cerrado abaixo á procura d'elle.
Chamou :
— Vem, Jabuti!
Elle chamava de uma banda, e Jabuti respondia-lhe
de traz. O homem aborreceu-se, voltou para casa, e dei-
xou-o.
ELEMENTO INDÍGENA 183

O J a b u t i e o Gigante (Cahipora)

(Tradição do Juruá)

0 Jabuti chegou ao buraco de uma arvore; estava


tocando na sua frauta. Cahipora ouviu e disse:
— Ninguém pôde ser senão o Jabuti, Eu vou-o apa
üha
Chegou á bocca da tóca da arvore. O Jabuti tocou na
frauta:
Fin, fin, fin,
Culo fon, fin.

' Cahipora chamou : — Ó Jabuti!


O Jabuti respondeu i — Uh ! ,
— Vem, Jabuti! Vamos experimentar ioiças!
O Jabuti retorquiu: -Experimentemol-as, como tu

^Spora foi ao mato, cortou um cipó, trouxe o cipó


á heira do rio, e disse ao Jabuti:
- Experimentemos, Jabuti! tu na agua, eu em terra.
O Jabuti disse : - Bom, Cahipora !
O Jabuti saltou na agua com a corda, e foi amarrar
a rnrda na cauda de uma balêa. . -
' 0 Jabuti voltou para terra e escondeu-se debaixo do
1

rerrado Cahipora puxou a corda. A balca fez foiça, ar


fsíou o C a h f p o r a V l o pescoço até, í, a g u a C a h . p a
fP7 fnrca Dara puxar o rabo da balea paia teira A ud
êa te/forçae puxou Cahipora pelo pesçoçg até a agua,
O Jabuti debaixo do cerrado estava vendo tudo, e
riu-se.
Qu'ando já Cahipora estava cançado, disse :
Basta, Jabuti.
184 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

O Jabuti riu-se, saltou á agua, foi desatar a corda


la cauda c a balea. O Cahipora puxou a corda com elle.
O Jabuti chegou a terra.
Cahipora perguntou-lhe :
— Tu estás bem caDsado, J a b u t i !
O Jabuti respondeu : — Não í Não suei nada !
Cahipora d i s s e : — A g o r a , com certeza, Jabuti sei
que t u es mais macho do que e u ! Vou-me embora. Até

III
O Veado e a Onça

]hn, /nn ! - 0 , 0 d Í S S e ;
~~ E u
e s t o u
P a s s a n d 0
«>«i»08 traba^
uha morada. ° ° S V
' U U m d f l op a r a f a z e r a mi

Foi pela beira do rio, e achou u m logar bom, e disse:


— Ha de ser mesmo a q u i !
t/fc LuT tambem disse :
~ « Eu estou
P^^ando mui-

í&t?2^ G P
° r1 S S
°
V 0 U p r 0 C U r a r siti0
^zera
colhe^ dis sef ° °
ÍU e gand & me8mo l0gar qu
' e 0 Veado
t
- « Q u e bom logar í Vou fazer aqui a minha casa.
^ No dia seguinte, veiu o Veado, capinou, e roçou o
. . . f» seguinte veiu a Onça e disse : - «Tupan me
ct
No

a casa " ° * > "mou m m as for( uiIhas e

aveníura^
ELEMENTO INDÍGENA 185

No outro dia veiu o Veado e disse : — « Tupan me


está ajudando. Cobriu a casa, e fez dois abrigos, um
para. si e outro para Tupan.
No outro dia a Onça, achando a casa prompta, mudou-
se para alli, occupou um abrigo, e pôz-se a dormir.
No outro dia veiu o Veado e occupou o outro abrigo.
No outro dia acordaram, e, quando se avistaram,
tf disse a Onça ao Veado :
— Era você que me estava ajudando ?
0 Veado respondeu:
— Era eu mesmo !
A Onça disse:
— Pois bem, agora vamos morar juntos.
0 Veado disse : — Vamos.
No outro dia a Onça disse :
— Eu vou caçar. Você limpe os tocos, tenha agua
prompta, lenha, que eu hei de de chegar com fome !
Foi caçar; matou um Veado muito grande, trouxe-o
para casa, e disse ao seu companheiro :
— Aprompta para nós jantarmos.
O Veado apromptou, mas estava triste, não quiz co-
mer, e de noite não dormiu com medo que a Onça o
estrangulasse.
No outro dia o Veado foi caçar, encontrou-se com
outra Onça grande, e depois com um Tamanduá :
Disse ao Tamanduá :
— A Onça está alli fallando mal de você!
O Tamanduá veiu, achou a Onça arranhando um pau ;
chegou-lhe devagarinho por detraz, deu-lhe um abraço,
metteu-lhe a unha, e a Onça morreu.
O Veado levou-a para casa, e disse á sua compa-
nheira :
— Aqui e s t á ; aprompta para nós jantarmos.
A Onça apromptou, mas não jantou, e estava triste!
Quando chegou a noite, os dois não dormiam, a On-
ça espiando o Veado e o Veado espiando a Onça.
186 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Á meia noite estes estavam com m u i t o s o m n o ; a


cabeça do Veado esbarrou no giráo, fez : tá! A onça
pensando que era o Veado que já a ia matar, deu u m
pulo.
O Veado assustou-se também, e ambos f u g i r a m , u m
correndo para um lado, outro correndo para outro.

O Veado foi morar em companhia do Cachorro.


Passando m u i t o tempo, a Onça também foi morar lá,
porque o Veado já se tinha esquecido d'ella.
No outro dia foram caçar. A Onça q u e r i a pegar no
Cachorro. O Cachorro, de tarde, quando v o l t o u t r o u x e
caça pequena, cotia, paca, tatu, e inambú.
Jantaram, e depois de jantar f o r a m jogar. '
A Onça j o g a v a e dizia :
— O que eu cacei não pude pegar.
O Cachorro j o g a v a e dizia :
— Quem t e m perna curta não deve caçar.
Assim j o g a r a m até que a Onça saltou no Cachorro.
O Cachorro e o Veado f u g i r a m , a Onça seguiu atraz
e quando p e g o u o Veado, este v i r o u (converteu-se) em
pedra.
O Cachorro atravessou u m rio, e disse para a Onça:
— Agora, se me queres pegar, só se me jogares u m a
pedra. A Onça agarrou na pedra e jogou-a.
Quando a pedra cahiu na outra banda g r i t o u : mé!
e v i r o u outra vez (transformou-se em Veado).
Foi d'ahi que se gerou a raiva do Cachorro contra a
Onça.
ELEMENTO INDÍGENA 187

IV

A. Moça que vai procurar marido

A Moça e o Gambá

Uma moça disse a sua mãi: — Eu vou procurar um


marido; eu estou padecendo muita fome!
Ella foi-se ; chegou aonde haviam tres caminhos,
perguntou :
— Qual será o caminho do Inajé ?
Em um caminho ella viu pennas de I n a m b ú ; então
pensou :
— Este é o caminho do Inajé.
Foi-se por elle.
No fim encontrou uma casa onde estava uma velha
sentada, que estava â beira dp fogo; disse:
— Você é a mãi do Inajé ?
A velha respondeu : — « Sou eu mesma.
A moça disse : — Eu venho ter com elle para casar-
mos.
A veiha disse : — « Meu filho é muito bravio (gente
brava); por isso eu vou esconder você.
Mas a velha, não era a mãi do Inajé ; era a mãi do
Gambá.
De tarde chegou seu filho, trouxe sua caça de pás-
saros.
' A mãi apromptou-os, para elles comerem. Quando
estavam comendo, a mãi perguntou-lhe:
— Se chegasse aqui um habitante d'outra terra, como
que tu o tratadas ?
O Gambá respondeu : -— Chamava-o para vir comer
comnosco.
188 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Então a velha chamou a moca que estava escondida.


A moca comeu com elles. O Gambá estava alegre
porque a mopa era muito formosa.
De noite, o Gambá foi dormir com a moca; ella o
repelliu de si, e disse:
— Não me quero deitar comtigo, porque você é
muito catinguento.
De manhã, quando a velha mandou a moça tirar le-
nha, a moça fugiu.
n

A Moça e o Corvo

Chegou a uma encruzilhada, seguiu por outro, che-


gou a uma casa em que estava uma velha e perguntou :
— Tu és a mãi do Inajé ?
A velha respondeu:
— « Sou ella mesmo !
A moça disse:
— Eu venho ter com elle para casarmos.
A velha disse :
— « Eu vou esconder você, porque meu filho é
gente muito brava!
Esta velha era a mãi do Corvo.
De tarde chegou seu filho, trouxe sua caça de bichi-
nhos pequenos ; disse á mãi:
— Eis aqui estes peixes pequenos, minha mãi.
Sua mãi apromptou a caça; quando elles estavam
comendo, ella perguntou:
— « A quem chegasse aqui vindo de outra terra que
farias t u ?
O Corvo respondeu:
— Eu chamava por. elle para comer comnosco.
ELEMENTO INDÍGENA 189
Então sua mãi chamou a. moca; o Corvo estava
muito alegre, porque a moça era muito formosa.
De noite quando o Corvo se foi deitar com a moça,
ella o enxotou, porque elle era muito catinguento.
Na manhã seguinte, quando a velha mandou a moça
á lenha, ella fugiu.
in

A Moça e o Gavião (Inajé)

Ella chegou ao pé da encruzilhada e foi por outro


caminho; chegou a uma casa e v i u uma velha muito
formosa e perguntou-lhe :
— Você é mãi do Inajé ?
A velha respondeu : — SoTi eu mesma.
A moça disse: — Venho ter com elle para casarmos.
A velha disse: — Eu vou esconder você; meu filho
é gente muito brava.
De tarde quando seu filho veiu da caça, trouxe mui-
tos pássaros pequenos.
Sua mãi apromptou os pássaros pequenos e comeram.
Quando estavam comendo, perguntou-lhe a mãi:
— Quando aqui chegasse alguém d'outra terra, o que
lhe farias?
O Inajé respondeu: — Chamo por elle para comer-
mos juntos.
Então a velha chamou a moça. O Inajé ficou muito
alegre, porque a moça era muito bonita. Elles dormiram
juntos. No outro dia o Corvo chegou a casa do Inajé
para procurar a moça.
Elles brigaram muito por causa da moça.
O Inajé quebrou a cabeça do Urubú. A mãi do Urubu
aquentou agua e lavou-lhe a cabeça ; a agua estava bas-
tante quente, por isso a sua cabeça ficou para sempre
depennada.
190 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Lendas ácerca da Raposa

A Raposa e a Onça

Não faças bem sem saber a quem.


Um dia a Raposa, estando a passear, ouviu um ron-
co : Ü, u, ü !
— 0 que será aquillo? Eu vou vêr.
A Onça avistou-a, e disse-lhe:
— «Eu f u i nada dentro d'este buraco, cresci, e ago-
ra não posso sahir! AjudáVme tu a tirar esta pedra ?
A Raposa ajudou, a Onça sahiu. A Raposa perguntou-
lhe :
— 0 que me pagas ?
A Onça, que estava com fome, respondeu:
— « Agora vou-te eu comer.
Agarrou a Raposa, e perguntou-lhe :
— «Como é que se paga um beneficio?
A Raposa respondeu :
— O bem paga-se com o bem. Alli perto ha um ho-
mem que sabe tudo; vamos lá perguntar-lh'o.
Atravessaram para uma ilha; a Raposa contou ao ho-
mem, que tinha tirado a Onça do buraco, e que ella em
paga d'isso a quiz comer.
A Onça disse:
— « E u a quero comer, porque o bem se paga com
o mal.
O homem disse :
— Está bom; vamos vêr a tua cova.
Foram todos tres e o homem disse á Onça:
— Entra, que eu quero vêr como tu estavas.
ELEMENTO INDÍGENA 191

A Onça entrou; o "homem e a Raposa rolaram a pe-


dra, e a Onça não pôde mais sahir. O homem disse:
— Agora tu ficas sabendo que o bem se paga com
o bem.
A Onça ahi ficou; os outros foram-sç.

n
e
A Raposa e o Homem

A Raposa foi deitar-se no caminho por onde o ho-


mem tinha de passar, e fingiu-se morta.
Veiu o homem e .disse :
— Coitada da Raposa 1
Fez um buraco, enterrou-a e foi-se embora.
A Raposa correu pelo matto, passou adiante do ho-
mem, deitou-se no caminho e fingiu-se morta.
Quando o homem chegou, disse:
— Outra Raposa morta ! Coitada!
Arredou-a do caminho, cobriu-a com folhas e seguiu
adiante.
A Raposa correu outra vez pelo cerrado, deitou-se
adiante no caminho e fingiu-se morta.
O homem chegou e disse :
— Quem terá morto tanta Raposa ?
Arredou-a para fóra do caminho, e foi-se.
A Raposa correu, e foi fingir-se outra vez morta no
caminho.
O homem chegou e disse :
— Leve o diabo tanta Raposa morta!
Agarrou-a pela ponta do rabo, e atirou-a para o meio
do cerrado.
A Raposa disse então:
— «Não se deve abusar de quem nos faz bem.
192 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

III

A Raposa e a Onça

A Onça sahiu do buraco e disse :


— Agora eu vou agarrar a Raposa.
Andou, e passando pelo mato ouviu u m barulho:
— « Txán, txán, txán!
Olhou para a Raposa, que estava tirando cipó.
A Raposa quando a viu, disse :
— « Estou perdida ; a Onça agora, quem sabe, vai
me comer.
A Raposa disse á Onça:
—• « Ahi vem um vento muito forte ; ajuda-me a tirar
o cipó para me amarrar n'uma arvore, senão vento me
arrebata.
— A Onça ajudou a tirar o cipó e disse á Raposa :|
— Amarra-me primeiro ; como eu soú maior, o ven-í
to póde-me arrebatar antes a m i m !
A Raposa disse á Onça que se abraçasse com u m
páo grosso; amarrou-lhe os pés e mãos, e disse :
— Agora fica ahi, diabo,IV que eu cá me vou 1

A Onça e os Cupins

Passado tempo vieram os Cupins e começaram a fa-


zer casa no tronco em que a Onça estava.
A Onça disse :
— Ah, Cupins! Se vocês fossem gente, roíam logo
este cipó e me soltavam.
Os Cupins disseram :
ELEMENTO INDÍGENA* 193
— « Se nós te soltamos, depois t u matas-nos.
A Onça disse :
— Não mato !
Os Cupins trabalharam toda a noite, e na outra ma-
nhã a Onça estava solta. Estava com bastante fome, co-
meu os Cupins, e foi no encalço da Raposa.

A Onça varre o caminho da Raposa

Se o teu inimigo fizer algum cousa, e disser que foi


para teu beneficio, estás em risco!
A Raposa com medo só andava de noite. A Onça
armou um laço, limpou o caminho, e quando a Raposa
chegou, ella disse:
— Eu limpei vosso caminho, por causa dos espinhos.
A Raposa desconfiou e disse:
— « Passa adiante !
Quando a Onça passou desarmou-se o laço.
A Raposa pulou para traz e fugiu.
vi

A Raposa e a Onça

O sol seccou todos os rios, e ficou só um poço com


agua.
A Onça" disse:
— Agora pilho eu a Raposa, porque vou fazer-lhe
espéra no poço da agua.
A Raposa, quando veiu, olhou adiante e enxergou a
Onça; não pude beber agua, e foi-se embora, pensando
como beberia.
13
194 CONTOS- POPULARES DO BRAZIL

Vinha uma mulher pelo caminho com um pote de


mel á cabeça.
A Raposa deitou-se no caminho e fingiu-se morta;
a mulher arredou-a e passou.
A Raposa correu pelo cerrado, sahiu-lhe adiante ao
caminho, e fingiu-se morta. A mulher arredou-a e pas-
sou adiante.
A Raposa correu pelo cerrado, e mais adiante fingiu-
se morta. A mulher chegou e disse:
— Se eu tivesse apanhado as outras, já tinha tres.
Arriou o pote de mel no chão, pôz a Raposa dentro
do paneiro, deixou-o ahi, e voltou para trazer as outras
Raposas.
Então a Raposa lambusou-se no mel, deitou-se por
cima das folhas verdes, chegou ao popo, e assim bebeu
agua.
Quando a Raposa entrou na agua e bebeu, as folhas
se soltaram ; a Onpa conheceu-a,
VII
mas quando quiz saltar-
lhe a Raposa fugiu.
A Raposa e a Onça

A Raposa estava outra vez .com muita sede, bateu


n'um pé de sovereira, lambusou-se bem na sua resina,
espojou-se entre as folhas seccas, e foi para o popo.
A Onpa perguntou:
— Quem és ?
— « Sou o bicho Folha-secca.
A Onpa disse: — Entra na agua, sae, e depois
bebe.
A Raposa entrou ; não lhe cahiram as folhas, porque
a resina não se derreteu dentro d'agua; sahiu e depois
bebeu, e assim fez sempre até chegar o tempo da chuva.
ELEMENTO INDÍGENA 195

VIII

A Onça disse:
— Eu vou-me fingir morta, os bichos vêm vêr se é
certo; a Raposa também vem, e então eu a agarro.
Os bichos todos souberam que a Onça morreu, foram
e entraram na cova d'ella, e diziam:
— A Onca já morreu ; graças sejam dadas a Tupan!
Já podemos passear.
A Raposa chegou, não entrou, e perguntou de fora :
— « Ella já arrotou ?
Elles responderam : — Não !
A Raposa disse :
— « O defunto meu avô quando morreu arrotou tres
vezes.
A*Onça ouviu, e arrotou tres vezes.
A Raposa ouviu, riu-se e disse :
— «Quem é que já viu alguém arrotar depois de
morto ?
Fugiu, e até hoje a Onça não a pôde agarrar por ser
a Raposa muito ladina.

VI

Apólogos da Raposa
I

A filha da Raposa casa-se com o Sinimbú (Camaleão),

Contam que o Sinimbú chegou a casa da Raposa:


— Boas tardes, Raposa !
— « As mesmas; entre, assente-se; então que se
faz?
196 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

— Cousa alguma; venho ler com você.


— « 0 que ha ?
— Porventura tu tens ainda tua filha moça ?
— « Tenho.
— Venho pedil-a para minha mulher.
A Raposa chamou a filha, e disse :
— « Queres casar com este sujeito ?
A filha respondeu : — Quero 1
— « Então, dito ; casem-se.
, Passados dias a Raposa chamou sua filha e disse :
— « Dize ao teu marido que eu quero comer peixe.
A moça disse-o ao marido; elles embarcaram-se em
uma canôa e foram para a outra margem. Desembarca-.
ram, o Sinimbú mandou a mulher apanhar cipó para
elle. Subiu para cima da arvore, e disse á mulher :
— Amontoa muita folha, quando tiveres muitas bota-
lhe fogo.
A moça fez como o Sinimbú mandou.
i Quando o fogo era já grande, disse o Sinimbú de
cima:
— Lá me vou.
Pulou ao meio do fogo, mergulhou na agua, sahiu do
outro lado, e gritou por sua mulher :
— Chega a canôa, é muito pesado este peixe !
Embarcaram-se com um grande tecunaré, e foram-
se para casa; alli a moça deu o peixe- á Raposa.
A Raposa perguntou como seu marido apanhára o
peixe :
A moça narrou-lhe como o Sinimbú o fez.
Em outro dia disse a Raposa á sua mulher:
-— Vamos apanhar peixe, como o Sinimbú apanhou.
Partiram; a velha accendeu fogo, a Raposa saltou
ao meio ; não pôde passar, o fogo chamuscava-lhe a pel-
l e ; a Raposa gritou :
— Velha, traze depressa agua senão eu morro!
A custo se pôde safar.
ELEMENTO INDÍGENA. 197

Quando ella chegou a casa chamou a filha e disse-


lhe :
— Põe teu marido d'aqui para f ó r a ; nao o quero
aqui, fez com que eu me queimasse.

pj
t — A este deveriam seguir-se mais tres episó-
dios, que o dr. Couto de Magalhães summaria:

« Tendo a moça casado de novo com uma espécie


grande de Martim Vaz, e dispondo este, para a pésca, do
seu formidável hico, a Raposa julgou que devia também
pescar atirando-se de cima de uma arvore, como aquel-
les pássaros fazem; ella que não dispunha nem de azas
nem de bico, foi mordida por um peixe, e escapou de
morrer. Desfez também o casamento, attribuindo ao gen-
ro a desgraça, filha unicamente da sua fatuidade.
« No terceiro episódio, casou a filha com uma Man-
bondo ou Gaba, que, graças ás suas azas, pud* roubar
peixe secco de um varal de pescadores. A Raposa, sem
attender que não tinha azas, tentou fazer a mesma cou-
sa, resultando da sua fatuidade o perder a cauda no
dente dos cães que estavam de vigia ao varal. Desíez
ainda este casamento.
« No quarto e ultimo episódio fez casar sua filha çom
o Carrapato, o qual tendo conseguido quebrar ouriços
de castanha, mandando jogal-os sobre sua cabeça, que
é molle ; a Raposa entendeu que podia fazer o mesmo,
e morreu com a pancada que levou sobre a cabeça. »
(Op. cit., p. 264.)
198 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

VII

C o n t o d a "Volha-g-ulosa (Ceineí)

(Das Cachoeiras da Raboca-Tocantis)

Contara que um mopo estava pescando peixe de ci-


ma de uma mutá; veiu a Velha-gulosa (Ceinci, ou Sete-
Estrello) pescando igarapé com tarrafa; ella avistou a
sombra do moco no fundo, cobriu-a com a rêde, mas
não apanhou o moco.
Quando o mopo viu aquillo, riu-se de cima do mutá.
A Velha-gulosa disse:
— Ahi é que estás ? desce para o chão, meu neto.
0 mopo respondeu :
— Eu não!
A velha disse :
— Olha que eu mandarei lá Maribondos!
Ella ianpou-lh'os. 0 mopo quebrou um ramo peque-
no; matou os Maribondos.
A velha disse:
— Desce, meu neto, senão eu mando a tucandira
(formiga venenosa).
0 mopo não desceu; ella mandou tucandiras; estas
deram com elle na agua. A velha atirou acima d'elle a
tarrafa, envolveu-o perfeitamente, e levou-o para casa.
Quando lá chegou, deixou o mopo no meio do chão e
foi-fazer lenha.
Atraz d'ella veiu a filha, e disse:
— Esta minha mãi quando vem da capada, conta
qual é a capa que ella mata; hoje não contou... Deixa-
me vêr o que traria.
Então desembrulhou a rêde e v i u o moço. 0 moco
disse :
ELEMENTO INDÍGENA. 1 9 9

— « Esconde-me.
A. moça escondeu-o; untou u m püao com cera, em-
brulhou-o na tarrafa, e deixou-o no mesmo logar
Então a velha sahiu do mato, e ateou o fogo de
miinuem p o r baixo. 0 pilão aquecendo a cera derreteu-
" l h a a p a r o u . 0 fogo queimou a tarrafa e appa-
receu o pilão. Então a velha disse para a filha
- Si m e não apresentas a m i n h a caça, mato-te. .
A moça ficou com medo, mandou o'moço cortar pal-
mas de uaçahy, para fazer cestos; estes cestos transfor-
mnram-se e m todos os animaes.
" v e t a correu atraz d'elles; quando tornou o moço
m a n d o u os cestos transformarem-se e m antas, veados,
porcos e m todas as caças. A Velha-gulosa .comeu a t o -
A1 nnando o moço v i u q u e a comida era pouca f u g u ,
t? S l ^ l o de apanhar peixe) onde cahiu
t i t o pei™ Qnando chegou alli, entrou dentro do ma-
%Lra SXa^endT^, eUe feriu-a e
!l S ffSK um pássaro cantar
fUgi A
0u

kan, kan, kan, kan, é m i n h a m a i , a qual nao esta l o n


g6
rmòço andou, andou, andou. Quando elle ouviu:
aS

Ua£ Un, chegou onde os Macacos estavam fazendo


mel, e disse-lhes:

alSrS«Ítro de um pote vazio


A velha S e u , chegou, não encontrou o moço, e pas-
"^DeDois^ofMacaeos mandaram que o moço, se fosse
e m l f o T 0°mo ço andou, andou a n d o u ; o u v i u :
M
£
£ Jtó So—I oSuc• escondeu-o.
* vJ, o - o u não o encontrou,
ha che foi-se.
êe Setmoço o u v i u o Surucucu estar conversan-
200 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

um tZl^ lTZe m
hZeaá
° ° mUílUem
' -
lhe7á fali'arT
A U 3 V Ô M a k a u â n ! D e i
" - m e você que eu
O Makauãn ouviu, veiu, e perguntou •
— O que é, meu neto?
0 moco respondeu:

r.?i^ s
s
" ™ u c ü s , que me querem comer.
uham. P i n t o u quantos escondrijos elles t i -
0 moço respondeu:
— Pm sómente.
O Makauãn comeu os dous surucucus
ü moço passou para a banda do campo encontrou
um tamm, que eslava pescando peixe que deite™ em
um naturá (cesto de cannas). O Lço Ve lu-fhé p i o
levar coms,go. Quando o tainiü acabou de pescar man

c m « M T P m
P«? '° W
f
voou

oue n ã n \ n l f
P
.S g^ho de arvore, por-
6 u m r a n u e

que nao o pode levar mais adiante.


De cima viu o moço uma casa; desceu e foi Che
gou na beira da roça, ouviu uma mulher que estava a"

lhando com Cutia para não comer sua maulctT


mhoA
0 mS
mU
ror t^ea r ' *» * -
p
e
s
heCei
NOTAS

SECÇÀO PRIMEIRA.

I. 0 bicho Manjaléo. — Na tradição portugueza é


mais conhecido este conto pelo titulo de A torrè de Ba-
bilônia. É vulgar na tradição hespanhola, italiana, fran-
ceza sérvia e arvárica. Vide Contos tradicionaes do
Povo portuguez, t. r i , nota 46, a pag. 201. 0 conto al-
garvio intitulado Cravo, Rosa e Jasmim, é uma varian-
te muito notável do Bicho Manjaléo. (Op. cit., n.° 8.)

II. Os tres coroados. — Nos Contos tradicionaes


do Povo portaguez, vem uma versão algarvia com o t i -
tulo O Rei escuta (n. 39, 40); na respectiva nota
03

enumeram-se as fontes universaes d'esta tradição, gran-


de parte d'ellas colhidas do trabalho de Stanisláo Prato
sobre Le Ire Ragazze, e do Dr. Reinhold Kceller, anno-
tando a collecção de Schiefner. Aqui reproduzimos uma
versão do Porto, colligida pelo nosso amigo Leite de
202 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Vasconcellos, publicada pela p r i m e i r a vez no nosso jor-


nal A Vanguarda:

Era u m r e i que andava de noite disfarçado nos tra-


jos para escutar pelas portas o que diziam de si. Passou
por u m escriptorio e ouviu vozes de mulher. Poz-se á
escuta e ouviu o seguinte:
— Quem me dera casar com o cosinheiro do r e i pa-
ra comer bons petiscos! — disse uma d'essas vozes.
— Pois eu, disse outra, antes queria casar com o
copeiro.
— Pois eu, disse a terceira, antes queria casar com
o r e i , e havia de ter tres filhos, dois meninos e u m a
menina, cada u m com sua estrellinha de ouro na testa.
O r e i mandou tirar o numero da porta e foi-se em-
bora. Ao outro dia fez v i r á sua presença as tres meni-
nas, e perguntou-lhes:
— Qrtal das meninas disse hontem que desejava ca-
sar com o mou cosinheiro?
E a essa disse:
— Pois casará com o meu cosinheiro.
Ás outras duas satisfez por egual aos seus desejos,
segundo o que lhes tinha ouvido. Como as duas p r i m e i -
ras julgassem que deveria ser mais feliz a terceira (que
era a mais nova), começaram a sentir logo uma raiva
m u i t o grande pela irmã.
A mulher do rei achou-se grávida. Passado o tempo,
teve dois meninos, cada u m com sua estrellinha doura-
da na testa. As irmãs, aproveitando esta occasião, sub-
stituíram os meninos por dous cães, e melteram os me-
ninos em uma condecinha e atiraram-n'os ao rio. Havia
u m fidalgo q u e gostava muito de andar a passear pelo
NOTAS 203

rio onde a condecinha ia a boiar. Vendo do seu barco


esse berço, mandou-o tirar da agua e viu as duas for-
mosas crianças. Ficou encantado com ellas e levou-as
para o seu palácio. Elle era solteiro. Quando o rei sou-
be que a mulher tinha parido, mandou perguntar o que
tinha havido. Foi com espanto que recebeu em respos-
ta que a rainha tinha tido dois cães. Sentiu-se muito
triste, mas soííreu e esqueceu, pela muita amisade que
tinha á rainha. Algum tempo depois, a rainha deu á luz
uma formosa menina com uma estrellinha de ouro na
testa. A menina teve o mesmo destino de seus irmãos.
Cresceram os tres e foram mandados educar no palácio
do fidalgo. Por fim este morreu e deixou tudo ás tres
crianças. Um dia foi lá uma preta pedir esmola, mas não
lh'a deram. Então a preta disse:
— Pois também não hão de saber onde está o Pa-
pagaio que diz tudo, a Arvore que canta, e a Fonte de
ouro. . 4 ,
Deram-lhe depois a esmola, e a preta ensinou tudo,
dizendo que haviam de encontrar um unguento preto
n'uma tigela e veriam muitos cavallos e éguas saltando
pelos bosques; que deveriam chegar e cortar um ramo
da arvore, colher uma pinga da fonte de ouro e trazer
o papagaio; que, quando viessem para baixo, ainda que
ouvissem grandes estrondos-ou harmonias, ou ralhos,
ou quaesquer vozes, não olhassem para traz. Com o un-
guento deveriam untar os cavallos e éguas.
Ao outro dia, um dos irmãos partiu. Chegou la, tez
quanto a preta lhe ensinou; somente, na volta, ouvin-
do gritos e ralhos, musicas e cantorias, olhou para traz:
ficou immediatamente transformado em um cavallo.
Ao outro dia, os dous irmãos, esperando-o e vendo
que não chegava, preparou-se um d'elles a partir. Teve
o mesmo resultado. A menina partiu lambem. Depois de
cortado o ramo da arvore, enfrascada a gotta da onte
de ouro, trazido o papagaio, e untados os cavados e
204 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

éguas, vinha de volta, quando romperam todos esses


alaridos; ella, porém, resistiu e não voltou a cabeça.
Logo todos os cavallos se transformaram em homens e
todas as éguas em mulheres. Ella veiu então com os ir-
mãos e ficaram felizes. Correu fama de que no palácio
dos meninos havia um papagaio que dizia tudo, uma ar-
vore que cantava e uma fonte de ouro.
Quando contaram ao r e i que a m u l h e r tinha tido
uma cadelía, elle nunca mais a quiz vêr, e mandou abrir
uma cova e enterrar n'ella a rainha até á cinta, dando
ordem que quem passasse lhe cuspisse na cara. SoíFria
ella, coitada, aquella sorte, quando o rei, indo á caça, e
sabendo das raridades que havia no palácio d'aquelles
meninos, os foi visitar. Ao jantar estava o papagaio á
mesa. Todas as vezes que o r e i fallava, o papagaio da-
va uma gargalhada. Convidou o r e i os meninos para
jantarem outro dia no seu palácio. Elles aceitaram, mas
pediram licença para levarem o seu papagaio. Chegou o
dia, e os meninos foram. Passaram pela cova em que
estava a rainha, e o r e i empregou todos os meios para
que os meninos cuspissem na cara da pobre mulher.
Elles resistiram. Ao jantar, o papagaio estava também á
mesa, e ria-se quando o r e i fallava. O r e i perguntou o
que aquillo era. O papagaio então disse,:
— Rio-me, porque o r e i está fallando com os seus
filhos e não os conhece.
Depois explicou tudo, dizendo-lhe que visse se na
testa lhes_encontrava alguma n estrella. Com effeito lá es-
tava. Então o r e i teve u m certo remorso, abraçou os fi-
lhos,Umae mandou chamar
vez eram duas a princezas
innocentee rainha, a quem
havia um pe-
principe
diu perdão. As irmãs foram queimadas vivas.
NOTAS 205
que namorava a mais bonita. A outra estava cheia de
raiva e já não sabia o que faaer. Depois d'elles casa-
rem, a princeza andava grávida. N'uma occasião em
que o principe foi a França a mulher deu á l u z duas
crianças. A irmã poz-lhe duas cadellinhas na cama e as
crianças encanastrou-as n'uma canastrinha e deitou-as
ao rio. As crianças foram ter ao moinho de u m padeiro,
que depois as tratou bem, mas os filhos do padeiro ti-
nham-lhes inveja pelo tratamento, e andavam-lhes sem-
pre a bater. As crianças disseram u m dia ao padeiro:
— Queremo-nos i r embora.
Depois foram sósinhas por ahi fóra. Nossa Senhora
encontrou-as e perguntou-lhes se tinham pae ou mãe.
Responderam-lhe que não. A Virgem disse-lhes que não
comessem nada sem ella voltar. Entretanto veiu o Diabo
com uma garrafa de vinho e uma broa de pão, e disse:
— Haveis de comer a broa e beber o vinho, e dei-
xar tudo inteiro.
Quando a Virgem chegou, tirou o miolo com uma
navalha, mandou beber o vinho e mijar dentro. Depois
deu-lhes tres pedrinhas de differentes pores: uma ver-
melha, uma amarella e uma preta, e disse-lhes:
— Pegai n'estas tres pedrinhas e ide pul-as defronte
d'aquelle palácio (o do rei). Durante tres dias, vossês
haveis de lá estar dentro.
Os pequenos appareceram depois dentro do palácio..
Elles estavam á janella, e veiu a t i a e viu-os, e não sa-
bia já como havia de os matar. Arranjou uma criada
bruxa para os matar. A criada todos os dias dizia assim
ao mais n o v o :
— Ha de i r ao j a r d i m buscar um papagaio.
O pequeno respondia que não. O mais velho, como
ouvisse isto, disse:
— Eu vou, eu v o u .
E a bruxa disse:
— Pois vá o menino.
206 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

EJle foi, e tanto andou atraz do papagaio que ficou


encantado n'um leão. fiisse depois a b r u x a ao o u t r o :
— Vá buscar o tal papagaio.
Elle pegou e foi. No caminho encontrou Nossa Se-
nhora que l h e disse:
— Leva esta lança e espeta-a no leão que está de-
fronte, e o papagaio te apparecerá.
O rapaz assim fez, espetou a lança no leão. Appare-
ceu-lhe logo o irmão e o papagaio. Deitaram ambos a
f u g i r pela porta do j a r d i m , mas ficou metade do casa-
co do mais novo preso na porta, rasgado. Foram ter á
casa d'elles (que se tinha formado das tres pedras d a
Virgem), levando o papagaio, a quem ensinaram a fal-
lar. O pae, quando chegou de França, não sabia que os
pequenos e r a m filhos, e assim que v i u os cães mandou
fazer u m buraco ao fundo das escadas, e metter lá a
mulher. Todas as pessoas que passassem, haviam de a
escarrar, senão cortava-lhes a cabeça. Depois c o n v i d o u
os dois meninos para i r e m j a n t a r com elle. Elles disse-
ram-lhe que não i r i a m sem o papagaio. O rei consentiu.
No começo do jantar, a tia, que servia á mesa, dei-
tou veneno na sopa dos meninos. O papagaio disse logo
de cima da mesa:
— Não comam, meninos, que t e m veneno.
Os meninos não comeram. O rei, apenas-viu isto, foi
à cosinha, tirou a sopa e trouxe-a. O papagaio disse:
— Agora podeis comer.
Os meninos comeram. O papagaio pediu-lhes que o
soltassem, e os meninos so!taram-n'o.
Elle chegou-se ao pé do-rei e disse:
—- Eu queria que aquella m u l h e r que está nas esca-
das viesse cá para cima, que é a m ã e dos meninos.
O r e i mandou-a logo buscar.
No fim do j a n t a r o papagaio disse ao r e i que cha-
masse a m u l h e r que estava na cosinha. Ella- veiu, e o
papagaio fallou-lhe assim:
NOTAS 207

— V. como se não podia vingar de outro modo,


quando a princeza esteve de parto, poz-lhe duas cadel-
las, tirou-lhe as crianças, metteu-as n'uma canastra, foi
deital-as ao rio, e V. ainda não estava satisfeita de os
não poder matar, e mandou uma criada para os matar,
mas não conseguiu nada. Depois, aqui ao jantar, deitou-
lhes veneno na sopa; e portanto devemo-nos de vingar
de V.
O principe disse ao papagaio:
— T u que queres?
— Eu quero a pelle para fazer um tambor.
Os meninos também disseram:
— Nós queremos a cabeça para jogar a bola.
A mulher disse:
— Eu quero todos os ossos para fazer uma escada
para subir para a cama.
Depois cumpriram-se estes desejos todos. O pae
pediu aos pequenos que ficassem em casa d'elle, e
os pequenos responderam que se juntariam todos, mas
no palácio d'elles. Assim aconteceu. E acabou a histo-
ria.

Gubernatis, nas Novelline di Sante Stephano di Cal-


cinara, traz este conto com o titulo II re di Napole.
Nerucci, colligiu outro conto com o titulo // canto e 'l sô-
no delia Sara Sibella.

111. 0 rei Andrade. — Este conto baseia-se em par-


te sobre um sonho, como o da lenda de José. A situa-
ção do buraco que conduz a um palácio encantado, on-
de está um principe que casa com a menina, acha-se
como episódio no conto popular portuguez do Principe
das palmas verdes. {Contos populares port., pag. 102.)
O conto do Menino e a Lua (Contos populares, n.° L I X )
é lambem o thema obliterado por onde começa a ver-
são brazileira.
208 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

IV. O P i n t o p e l l a d o . — Eis a versão portugueza de


Coimbra: «Era u m a vez u m pinto borrachudo que an-
dava a gravetar em um monte de terra e achou lá uma
bolsa de moedas, e disse: « Vou levar esta bolsa ao
rei...» Poz-se a caminho c o m a bolsa no bico, mas co-
m o tivesse de atravessar u m r i o , e não podendo, disse:
« Ó r i o ! arreda-te para e u passar.» Mas o r i o conti-
n u o u a correr, e elle bebeu a agua toda.
Foi mais para diante, e v i u u m a raposa no caminho
e disse-lhe: « Deixa-me passar.» Como a raposa se não
movesse, comeu-a. Foi andando e encontrou u m pinhei-
ro e disse-lhe: « Arruma-le para eu passar. » Como elle
se não arrumasse, enguliu-o. Mais adiante encontrou u m
lobo e comeu-o; depois encontrou ainda u m a coruja e
fez-lhe o mesmo.
Chegado ao palácio do r e i , disse que l h e queria fal-
lar, e entregou-lhe a bolsa das moedas, e o r e i ordenou
logo que o mettessem na capoeira das gallinhas, e q u e
o tratassem m u i t o bem. O borrachudo, logo que alli se
v i u começou a cantar:
Qui-qui-ri-qui!
Minha bolsa de moedas
Quero para aqui.
E como visse que lh'a não levavam, lançou a rapo-
sa que t i n h a comido, e ella c o m e u as gallinhas todas.
Foram dar parte a el-rei d o succedido, e elle ordenou
que mettessem o borrachudo dentro da copeira. Cum-
priram-se as ordens, mas o borrachudo continuou sem-
pre a cantar:
Qui-qui-ri-qui 1
Minha bolsa de moedas
Quero para aqui.
Depois como lhe não levassem o dinheiro, lançou o
NOTAS 209

pinheiro, e os copos da copeira foram todos quebra-


dos. Então o rei ordenou que mettessem o borrachudo
na cavallariça, e elle sempre cantando: Qui-qui-ri-qui!
Lançou fóra o lobo, e o lobo comeu os cavallos. O rei
mandou então que o mettessem no pote de azeite; mas
elle lançou a coruja e ella bebeu o azeite.
Então o rei não sabendo já o que havia de fazer,
mandou que aquecessem o forno e que mettessem lá o
borrachudo; mas elle mesmo dentro do forno começou
a gritar: Qui-qui-ri-qui! E foi lançando o rio que tinha
bebido, e já o palácio do rei estava quasi a afundar-se
quando o rei ordenou que fossem levar a bolsa de moe-
das ao borrachudo e o mandassem .embora, antes que
elle lançasse o rio todo. E lá se foi embora outra vez o
borrachudo com a bolsa das moedas no bico.» (Contos
populares portuguezes, pag. 22.)

V. Uma das de Pedro Malas-Artes. — Nos Contos


tradicionaes do Povo portuguez, t. i , n.° 76, vem o cy-
clo de Pero de Malas-Artes, mas sem esta aventura. No
Cancioneiro geral, de Garcia de Rezende (t. m , pag. 650,
ed. Stuttgard) allude-se a este typo:

Pareceys Pero d'Espanha


homensinho de patranha,
de maa feyçam e mãos pelos.

Nas Operas portuguezas, de Antônio José, t. i, pag.


73, vem o estribilho d'este conto tão freqüente entre os
narradores brazileiros:

Entrei por uma porta,


Sahi por outra,
Manda el-rei
Que me contem outra.

Nas Tradições populares de Portugal, de Leite


14
210 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Vasconcellos, a pag. 294, cita-se um outro conto popu-


lar de Pedro de Malas-Artes que logra uns ladrões, cujo
thema se acha na fábula O Macaco e o Moleque de cera.
Na comedia de Antônio José, Os encantos de Merlim, ha
uma referencia a este cyclo tradicional: « m e fez a mim
Pedro de Malas-Artes, ensinando-me em paga de o ser-
vir em Paris a mágica branca, ou negra mágica.»

VI. 0 sargento verde. — Na tradição portugueza,


é conhecido pelo titulo da Afilhada de Santo Antônio.
Vid. Contos populares portuguezes, n.° xix, pag. 43.

VII. A Princeza rouhadeira.— Ha uma versão por-


tugueza de Coimbra intitulada Os dous irmãos. (Contos
populares portuguezes, n.° x v m . ) A larangeira plantada
para se conhecer da sorte do irmão ausente é um ele-
mento mythico commum à tradição da Allemanha, das
ilhas dos Açores, e do México. A versão brazileira con-
funde vários themas novellescos, como o da toalha e da
bolsa.

VIII. 0 pássaro preto. — Este conto apresenta o


thema do Aprendiz do Mago (Contos tradicionaes do Po-
vo portuguez,. n.° 11); a transformação no preto com
quem a princeza quer casar, é o thema do Conde de Pa-
ris, da versão de Coimbra. {Contos populares portugue-
zes, n.° X L I I I . ) Vid. também a variante no conto do Ca~
reca, n.° v i u , da presente collecção.

IX. D. Labismina. — Pertence este conto ao cyclo


da Gata Borralheira ou da Cenerentola, estudado por
Heury Chasles Coste. Nos Contos populares portugue-
zes, n.° x x x i , vem o Conto da versão de Ourilhe, inti-
tulado Pelle de Cavallo, que se aproxima das situações
íinaes do conto brazileiro. Sobre a extensão d'este cyclo,
vid. Contos tradicionaes do Povo portuguez, n.° 19, no-
NOTAS 211

ta. Gubernatis, na sua Storia clelle Novelline popolari, t.


i , pag. 9 a 34 traz um estudo sobre a formação e sen-
tido mythico das Novellas da Cenerentola.

X. A Raposinha. — É uma variante notável dos


contos do cyclo do Morto agradecido, estudado por Kõ-
hler, na Germania, vol. m , pag. 199; por Benfey, no
Orient und Occident,- vol. i , pag. 322, e vol. n , pag.
174, vol. m , pag. 93. Cosquin, nos Contes populaires
lorrains, n.° xix, traz um conto do morto agradecido. Pe-
droso (Positivismo, t. n , pag. 456) cita uma versão po-
pular do conto do Morto agradecido. Na Biblioteca de
Ias Tradiciones populares espanolas, (t. i , pag. 187) o
conto do Marques dei Sol baseia-se sobre a situação do
morto a quem o mancebo paga as dividas.

XI. 0 homem pequeno. — Na tradição portugueza


ha o conto O principe que foi correr sua ventura, aná-
logo á versão brazileira. (Contos tradicionaes, n.° 32, e
nota correspondente.)

XII D Pinta. — Este conto apresenta na tradição


portugueza duas versões A da varanda e a ^riajobi-
da. (Contos tradicionaes do Povo portuguez, n. 28 e
33.) É também freqüente o nome de D. Vintes e D. bs-
vintola, na tradição portugueza.

XIII 0 Principe cornudo. — Fôrma um cyclo de


Contos 'do Papagaio. Na Biblioteca de Ias tradiciones po-
pulares espanolas, t. i , pag. 156 vem este conto El Par
pagayo dei Cuento, colhido em Zafra, província de Ba-
dajoz.
XIV A Moura torta. — Pertence ao cyclo das tres
Cidras do Amor. Sobre a universalidade d'este conto
veja-se os Contos tradicionaes do Povo portuguez, t. n,
212 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

pag. 197, onde se indicam as principaes collecções eu-


ropêas.
XV. Maria Borralheira. — Na tradição portugueza
(Algarve) é conhecido este conto sob o t i t u l o
O sapati-
nho de setim e A Madrasta. (Contos tradicionaes do Po-
vo portuguez, n. 19 e 20, e notas correspondentes.) No
os

Romanceiro do Arc/dpelago da Madeira, pag. 3 6 4 , c o l -


l i g i u o dr. Alvares Rodrigues de Azevedo este conto e m
forma metrificada, com o titulo A Gata Borralheira. Gu-
bernatis, no Florilegio delle Novelline popolari, pag. 5 a
68, traz as versões principaes da Cenerentola entre to-
dos os povos.
XVI. A Madrasta. — Na tradição popular do Algar-
ve, é conhecido este conto com o titulo O figuinko da
figueira. (Contos tradicionaes do Povo vortuquez, t . i
Pag. 60.)
XVII. 0 Papagaio do Limo verde. — Este conto é
corrente na tradição portugueza, com o titulo
A Para-
boinha de ouro. (Contos tradicionaes do Povo portuguez,
n.° 31.) E m Santa Juana, do Chile, este conto foi colli-
gido com o titulo El Principe Jalma (Bibliotheca de Ias
Tradiciones populares espanolas, t . i , pag. 126.)

XVIII. João Gurumete.— Na tradição portugueza,


(Porto) onde tem menos episódios, é conhecido o conto
pelo titulo d e D. Caio. (Contos tradicionaes do Povo
portuguez, n.° 7 9 e nota correspondente.) No Chile é
conhecido pelo t i t u l o de D. Juan Bolondron, mata-siete
de un trompon:
«Has de saber para contar, e entender para saber,
que era u m pobre sapateiro chamado João Bolondrão.
Um dia, que estava sentado no seu banco t o m a n d o u m
pires de leite, cahiram algumas gottas de leite no ban-
NOTAS ^13

co, ajuntaram-se muitas moscas, elle pregou-lhes um


safanão e matou sete. Poz-se então a gritar: _
— Sou muito valente, e d'aqui em diante nei-de-me
chamar Dom João Bolondrão, Mata-sete de um safanao.
Havia nos arredores da cidade um bosque, e n elle
um iavali, que fazia muito mal aos habitantes, tendo jâ
devorado muitos. 0 rei tinha enviado muita gente para
o caçar, mas todos fugiam com medo, e enguha alguns
porque era muito feroz. Chegou um dia aos ouvidos do
rei que havia em sua cidade um homem que se cha-
mava Dom João Bolondrão, Mata-sete de um safa-
na
° —Ah, disse elle, deve ser um valente; mandem-no
vir á minha presença para o conhecer. .
EÍTectivamente trouxeram-o, e quando o viu o íei
d i s s e : - H o m e m , tens um nome de valentão; sempre
é verdade que malas sete de um s a f a n d o ? - b m,
real s e n h o r . - P o i s bem, disse o r e i ; tenho uma filha
galante7 que te darei se matares o javali quertantos; es-
tragos faz na cidade. Tens coragem para ^ o ? - Sim
real senhor. - Pois bem, se o nao m a t a ™ m a n d o £
cortar a cabeça. Fique isso para amanha, e vem ca es
colher as armas que achares melhores.
No dia seguinte, Dom João Bolondrão preparou- se

bem e com as melhores armas que julgou escolher,, e


remendo como eauas verdes, foi ^acar o monstro. E
achava-se então mais furioso, porque havia j a tres dias
que não comia homem nenhum. Dom oa.o poz-se a
matutar o que faria, de que modo matana a fera, po s
o mais provável era matal-o a elle, e se escapava d elle
doTel nao escaparia. De mais a « a i s nunca Unha p

sado em outras armas senão nas sovelas e irape. ue


pressa chegou ao bosque fóra da cidade, e immediaU-
;

men e a fera que alli se acoutava, cheirou-lhe a gente


S do bosque com os olhos coruscantes, os certos
eriçados, com a fdria da fome. Quando Dom íoao Bo-
214 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

londrão viu-o vir para elle, pernas para que te quero,


e fugiu n a direcção do palácio, e o j a v a l i atraz d'elle
qual mais correria. D. João conseguiu chegar ao palácio
e metteu-se detraz da porta da rua. A fera entrou se-
guindo-o no encalço, e foi ter a u m outro pateo onde
estava a guarda. Os soldados que t i n h a m ouvido o r u i -
do, estavam de escopetas promptas, e descarregaram ao
mesmo t e m p o ; o j a v a l i cahiu morto. D. João Bolondrão
que apparecera para vér o que succedia, e ouvindo os
gritos dos soldados, sahiu do escondrijo de espada e m
punho, e poz-se a desafiar os guardas p o r lhe terem ti-
rado a sua preza, e depois f o i direito ao r e i , q u e
também v i n h a v e r que arruido e r a aquelle n o palácio.
— Então, q u e é isto, D. João? — Q u e ha de ser, real
senhor? e u nao somente queria matar o j a v a l i senão tra-
zei-o v i v o para o mostrar, e esses soldados das dúzias
mataram-m'o cobardemente.
— És bem valente, D. João, e bem mereces p o r es-
posa a princeza m i n h a filha.
Em seguida f o i morar para o palácio c o m m u i t a
pompa, e dentro e m poucos dias fizeram-se as bodas
t o m o j a lhe tinha passado o susto da fera, e tudo ficou
tranquillo e feliz, não pôde deixar de pensar nas mise
TLTJ m V
t Í d a
P a l - a c o m o presente,
p a s s a d a e c o m a r

e p o r eííeito d i s t o sonhou uma noite com o officio; co-


mo^tinha o costume de sonhar alto, g r i t o u para a mu-
da n^ssa' "
ha dà
' °
me Cá a§ fôrmaS tirai3é e 0 côco

A princeza tendo acordado c o m estes gritos, ficou


m u i t o triste, cuidando que talvez seu pae a casara c o m
u m sapateiro, e no dia seguinte f o i dizer ao r e i :
— Pae e senhor, p o r v e n t u r a m e tendes casado c o m
u m sapateiro, pois e m sonhos m e u marido pede as fôr-
mas, o tira-pé e o côco da massa; peço-vos q u e averi-
gueis isto. •
NOTAS 215

0 rei mandou logo chamar á sua presença D. João


Bolondrão, Mata-sete de um safanão, e disse-lhe: — Ho-
mem, dar-se-ha caso de tu seres sapateiro? e tenas o
atrevimento de casares com minha filha? —Real senhor,
disse D. João, a senhora princeza, como estava dormin-
do, com certeza não percebeu o que eu dizia, Eu sonna-
va que me estava divertindo com a fera que trouxe ca-
ptiva a vossa magestade; dizia-lhe que tinha os focinhos
de fôrma, os queixos de tira-pé e as unhas de massa.
- - O r a veiam o que são as mulheres! disse o re,. Nao
vês filha, com que bagatellas te desanda o miolo. Yao-
se embora socegados, e não me venham ca com quei-
xas um do outro. . ..
E assim succedeu; viveram felizes muitos annos, t i -
veram muitos filhos, e acabou-se o conto.
(Biblioteca de Ias Tradiciones populares espanolas,
pag. 121.) - -IU^VÍVL;, '
R (

XIX Manoel da Bengala. - Na tradição portugue-


za, é conhecido este conto pelo
zenove quintaes. (Contos tradicionaes do Povo^MWh
n.o 47 e nota correspondente). Pertence ao cyclo das len-
das populares de Gargantua.

XX Chico Ramela. - Max Miiller, nos Ensaios de


Myttologia comparada, pag. 318 _ (trad rance.za) cita
contos allemães e americanos dos irmãos que se au.en
tam deixando uma arvore que indica a sua situação. 0
thema dos cavallos-fadas é muito freqüente.

XXI A sapa casada. - 0 thema d'este conto acha-


se na tradição portugueza, no conto ^ ^ ( " a
(Contos tradicionaes do Povo portuguez, n.° 29, e nota
correspondente.) Gubernatis, no Florilegio delle Novelline
^ f a ^ traz La Ranockiella, da collecção de Nerucci.
216 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

XXII. Cova da Linda-Flôr. — Na tradição portugue-


za e intitulado O principe que foi correr sua ventura.
{Contos tradicionaes do Povo portuguez, D.o 32 nota e

respectiva.) Machado y Alvarez, no Folk Lore anda luz,


pag. 457, traz uma versão hespanhola com o titulo Las
trp.7, Mnnn<:
XXIII. João e mais Maria. — Este conto é formado
pelo syncretismo de dois themas o dos Meninos perdi-
do* (Contos populares portuguezes, n.° x x v m ) , e A Bi-

HoJí Tp aÒeÇaS (Íbíd


-' -° ")
n XLIX Nos Contos
^adi-
cionai do Povo portuguez, n.° 52, traz o titulo de O
Afilhado de Santo Antônio. Nas Tradições populares de

II Portugal, pag. 274, Leite de Vasconceílos traz uma ver-


são d'este conto, de Cabeceiras de Basto.
XXIV. A protecção do Diabo. —Este conto corre-
spoude ao anexim v u l g a r : «Ê bom estar bem ainda que
seja com o diabo.» 0 outro anexim: «Ninguém pôde
rpf NL T' °
P SUa é
Popula-
thema de muitos contos

res. Nao encontramos este na tradição portugueza.


XXV. A fonte das tres Comadres. — Não a encon-
tiamos na tradição portugueza, visto que os seus the-
mas se reproduzem em outras situações. Na tradição
!T/t/ - n ? ° r de
Nulo
VÍIh
V ga 6Ste COnto com 0
fcX
de Mi a publicado pelo nosso amigo Aleiandro Guichot
í a
* ^ * ^ ^adiciones ^opulL espaS,
1. 1, pag. 196. Eil-o: '
«Era u m r e i , que tinha tres filhos; deu-lhe uma
doença de olhos, e consultados todos os médicos ne-
trazer a° FZ ^,^ > 0u Um e fee
*™ ™ preciso

IT/J V > LÜÜa


' o longe. 0
q u e e s t a v a d al,i rauit

re deu ordem para que fosse muita tropa á busSa da


tal flor; porem o filho mais velho disse que não era
preciso, que elle iria sósinho; o pae não queria, porém
NOTAS 217

tanto teimou, até que partiu sósinho no seu cavallo.


Começou a viajar, e ao cabo de muito tempo viu uma
casinha no meio do campo. Logo que chegou alli, appa-
receu-lhe uma velhinha, que lhe disse: — Para onde
ides por estes sítios tão ruins, onde não ha senão lo-
bos? Andaes passeando? Pois filho, ide com Deus.» Ora
a velhinha era Nossa Senhora.
O mancebo andava a bom andar, mas não via senão
-montes, sem encontrar a flôr no seu caminho. Ao cabo
de muito tempo perdeu-se. O pae vendo que elle se de-
morava, tanto se entristeceu que o irmão do meio re-
solveu-se a ir á procura do seu irmão, mesmo contra
vontade do rei. Sahiu no seu cavallo, encontrou uma
velhinha como acontecera a seu irmão, a quem veiu a
achar por fim. Os dous irmãos não faziam mais do que
embrenhar-se por veredas, e perderam-se. Como ambos
tardassem, o mais moço decidiu-se a ir á busca dos ir-
mãos. Chegou á mesma choupaninha, e disse-lhe a ve-
lha: _ p ra onde ides por estes caminhos tão maus?—
a

Ai boa velha, não viste passar por aqui meus irmãos,


que andam á procura da Flor de Lilild para curar a meu
pae que está cego? —Meu filho, teus irmãos sao muito
maus, e já os lobos os terão comido. Vês aquelle mon-
te, e aquella erva? apanha-a que é essa que tu procu-
ras.
O rapaz foi correndo para apanhal-a, e ao regressar
todo contente, viu vir dois cavallos com dois homens,
que eram seus irmãos. Estes, cheios de atrevimento t i -
raram-lhe a flôr, perguntaram-lhe qual era o melhor ca-
minho e o mataram. Chegaram a palácio, e perguntan-
do-lhes o pae pelo irmão mais moço disseram que nao
sabiam d'elle. O rei applicou a flôr, e ficou completa-
mente bom. No mesmo sitio em que enterraram o ir-
mão nasceu uma fonte de agua-clara; passando por alli
um pastor de ovelhas, viu alvejar uma canella de crian-
ça, poz-se a beber por ella e o osso a cantar:
218 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Paslorsinho, não me toques,


Nem me deixes de tocar;
Mataram-me os meus irmãos
Pela Flor do Lililá.
0 pastor tirou o osso, e levou-o comsigo para con-
tal-o por toda a parte. Assim audou por muitas povoa-
eoes, ganhando muito dinheiro, até que chegou aos ou-
vidos do rei, que o mandou ir ao- palácio. 0 pastor to-
cou a flauta, e ella cantou sempre o mesmo; o rei quiz
também tocar, e a flauta dizia:

Pae querido, não me toques


JNem me deixes de tocir,
Mataram-me os meus irmãos
Pela Flor do Lililá.

0 rei mandou chamar o filho mais velho e obrigou-o


a tocar também no osso da canella; e o osso dizia:

Irmão perro, não me toques


Nem mo deixes de toear,
Mataste-me tu e o outro
Pela Flor do Lililá.

O rei chamou o outro irmão e succedeu o mesmo.


Viram-se obrigados a confessar a verdade, e o pae man-
dou-os matar. 0 pastor ficou no palácio para sempre e
eu fui e vim e não me deram nada.»
Este conto é commum á tradição da Europa; a ver-
são portugueza (Contos tradicionaes do Povo portuguez,
n.° 54) é extremamente deturpada, comtudo pelas suas
relações com a versão brazileira é que se vê, compa-
rando-a com a hespanhola, como esta ultima está mais
bem conservada. As fortes comparativas e interpreta-
ções mythicas d'este conto acham-se nos Contos tradi-
cionaes, t. n , pag. 204. —Este thema da cegueira do
rei apparece no conto n.° x da presente collecção intitu-
*
NOTAS 219

lado A Raposinha, q u e pôde c o n s i d e r a r - s e c o m o u m a


v a r i a n t e d'este.
XXVI. O pássaro sonoro. — Themas communs a
m u i t o s o u t r o s contos, p o r é m c o m b i n a d o s c o m certa ori-
ginalidade.
XXVII. Barcelloz. — Conto evidentemente elabora-
d o p o r i n f l u e n c i a c u l t a sobre f r a g m e n t o s de t h e m a s po-
pulares.
XXVlIf. Tres comedores. — É uma facecia que se
r e l a c i o n a c o m a tradição p o p u l a r de Gargantua; n a l i n -
g u a p o r t u g u e z a do século x i v , c o m o s e vê pelos Inédi-
tos de Alcobaça, d e F r e i F o r t u n a t o d e S. Boayentura, a
g u l a e r a d e n o m i n a d a Garganluice. Paul Sébillot colli-
giu a l g u n s contos p o p u l a r e s do c y c l o d e Gargantua, a o
q u a l l i g a m o s o Manoel da Bengala.
XXIX. A rainha que sahiu do mar. — Na tradição
p o r t u g u e z a repete-se este conto c o m o titulo Cabellos de
ouro. (Contos tradicionaes do Povo portuguez, n.° 22.)
N a tradição c h i l e n a (Biblioteca de Ias Tradiciones popu-
lares espanolas, t. i , p a g . 1 3 7 ) intitula-se El Culebron-
cito.

XXX. A mãe falsa ao filho. — Este conto acha-se


m u i t o m a i s d e s e n v o l v i d o n a tradição p o r t u g u e z a ( A b r a n -
tes) e é conhecido .pelo titulo A princeza abandonada.
(Contos populares portuguezes, n.° LX.)

XXXI. Historia de João. —Versão sobre o thema


de u m a flauta mágica, e a p r e s e n t a c e r t a novidade.
XXXII. O Sarjatario. — Este conto é formado pelo
syncretismo de diversos themas tradicionaes; a primeira
220 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

parte, análoga á lenda da filha de Jephté, acha-se no


conto da versão de Coimbra, O Colhereiro (Contos popu-
lares portuguezes, n.° x x v i ) ; a segunda parte, provém
da mesma parte do romance metrificado A donzella que
vae d guerra, que pertence a um cyclo extensissimo; a
ultima parte é uma reminiscencia do conto das Cunha-
das do rei (Contos tradicionaes do Povo portuguez, n.°
39).

XXXIII. Tres irmãos. — Confusão de differentes


themas tradicionaes, taes como o da proteccão do diabo,
o odio pelo nascimento de gêmeos, e ainda o roubo
do thesouro, em que o irmão não pôde ser salvo. 0
conto acha-se immensamente deturpado.

XXXIV. A Formiga e a Neve. — É um conto de


accumulacão, na sua fôrma primitiva. Na Revue des
Cours lilteraires, t. r, pag. ;^91-292, vem este conto na
sua fôrma provencal, publicado por Philarete Chasles:
« ü n coon l'y avie uno cigalo eme uno pauro fourmi-
gueto que s'en anavom faire une vouyage á Jerusalém
rescouutroun un rivoulet; lou rivoulet ero gelat; la ci-
gola lo vouret, la pauro fourmigueto vouguet passar;
lou geou se roumpet et coupet Ia cambo à la pauro four-
migueto:

— O geou, que tu siest fouert


De coupar la cambeto
A la pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire uno vouyage à Jerusalém.
Lou geou diguet: <• Es ben plus fouert
Lou souleou que me fondel
— O souleou, que tu siest fouert
De fondre geou:
Geou de coupar cambeto
A la pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire un vouyage à Jerusalém.
NOTAS 221

Le souleou diguet: « Es ben plus fouert


Lou nivou que me tapo.
— O nivou, que tu siest fouert
De tapar souleou,
Souleou de foundre geou,
Geou de coupar la cambeto
A la pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire un vouyage à Jerusalém.

Lou nivou diguet: «Es bien plus fouert


Lou vent que me coucho.
— O vent, que tu siest fouert
De couchar nivou,
Nivou de tapar souleou,
Souleou de foundre geou,
Geou de coupar la cambeto
A lã pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire un vouyage à Jerusalém.

Lou vent diguet: «Es ben plus fouert


La paret que m'arresto.
— O paret, que tu siest fouert
D'arrestar vent,
Vent de couchar nivou,
Nivou de tapar souleou,
Souleou de foundre geou,
Geou de coupar la cambeto
A la pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire un vouyage à Jerusalém.

La paret diguet: «Es ben plus fouert


Lou rat que me tranco.
— O rat, que tu siest fouert
De trancar paret,
Paret d'arrestar vent,
Vent de couchar nivou,
Nivou de tapar souleou,
Souleou de foundre geou,
Geou de coupar la cambeto
A la pauro fourmigueto,
Que s'enavano faire un vouyage à Jerusalém.
222 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Lou rat diguet: «Es ben plus fouert


Lou cat que me mangeo.
— O cat, que tu siest fouert
De mangear rat,
Rat de trancar paret,
Paret d'arrestar vent.

«Mai 1'amitie sieguet la plus fouerto; doon tempo


de la rioto la cigalo carguet la pauro fourmigueto et la
menet faire un vouyage à Jerusalém.» Nos Trovadores
Galecio-portuguezes, vem uma versão popular d'este con-
to, de Coimbra, a pag. 245, e reproduzida nos Con-
tos populares portuguezes, pag. 5. No Romanceiro do
Archipelago da Madeira, do dr. Álvaro Rodrigues de
Azevedo, pag. 467, vem a Lenga-lenga da Formiga,
ainda em fôrma poética:

La formiga vai á serra,


E seu pé na neve prende.
— Oh neve, tu és tão forte,
Que meu pé em ti se prende ?
« Eu, formiga, são tão forte,
Que a luz do sol me derrete.
— Oh sol, e tu és tão forte
Que derretes fria neve;
La neve que meu pé prende?
«Eu, formiga, são tão forte,
Que qualquer nuvem me tapa.
— Oh nuvem, tu és tão forte
Que tapas la luz do sol;
Lo sol que derrete neve:
La neve que meu pé prende ?
«Eu, formiga, sou tão forte,
Que qualquer vento me espalha.
— Oh vento, tu és tão forte
Que espalhas la negra nuvem;
La nuvem que tapa sol;
Lo sol que derrete neve;
La neve que meu pé prende?
NOTAS 223

« Eu, formiga, são tão forte


Que qualquer muro me véda.
— Oh muro
«Eu, formiga, sou tão forte
Que qualquer rato me fura.
— Oh rato
« Eu, formiga, sou tão forte,
Que qualquer gato me mata.
— Oh gato
«Eu, formiga, sou tão Jforte
Que um eãosinho me mata.
— Oh eãosinho
«Eu, formiga, sou tão forte
Que um pausinho me bate.
— Oh pausinho
«Eu, formiga, sou tão forte
Que qualquer lume me queima.
— Oh lume
«Eu. formiga, sou tão forte
Que qualquer agua me apaga.
— Oh agua
«Eu, formiga, sou tão forte .
Que qualquer cabra me bebe.
— Oh cabra
«Eu, formiga, sou tão forte,
Que qualquer faca me mata.
— Oh faca, t u és tão forte,
Que matas ligeira cabra;
La cabra, que bebe 1'agua;
La agua, que apaga lume;
Lo lume, que queima pão,
Lo páo,alto
Del-lo quetébate no cão;
lo fundo
Lo
Nadacão, que mata
é forte n'estelomundo.
gato;
Lo gato, que come o rato;
Lo rato, que fura muro;
Lo muro, que véda vento;
Lo vento, que espalha nuvem;
La nuvem, que tapa s o l ;
Lo sol, que derrete neve,
La neve, que meu pé prende V
Que
«Eu,n'um
formiga,
ai perdi
sou meu
tão forte
córte.
224 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

Nos Contos de Pomigliano, colligidos por Vittorio Im-


briani, ha este kirie do páo que bate no Mico, do fogo
que queima o páo, da agua que apaga o fogo. (Rev. des
Deux Mondes, de 1 de nov. de 1877, pag. 138.)

XXXV. 0 Matuto João. — Nos Contos tradicionaes


do Povo portuguez, n.° 56, vem uma versão do Minho,
e em a nota correspondente noticia de tres versões hes-
panhola, franceza e italiana. Ha uma outra versão hes-
panhola na Enciclopédia, 3.° anno, pag. 24 a 27, de
1880; a italiana intitula-se Soldatino, publicada no Ar-
chivio per le studio delle Tradizioni popolari, de Pitré e
Salomone Marino, pag. 35-69. Na versão brazileira ha
uma particularidade que merece reparo, é a da Caveira
que falia, vulgar nas superstições do Minho. No seu Es-
tudo sobre as Almas do outro mundo, traz Consiglieri
Pedroso esta tradição: « Uma noite passava um homem
pelo adro de uma egreja e viu n'eüe uma caveira. O ho-
mem era destemido e disse para ella: —Olha que te
não tenho medo. — Pois se me não tens medo, leva-me
para tua casa, retrucou a caveira.—Levo, levo, disse o
homem; e pegou na caveira, e levou-a para casa e pôl-a
sobre a porta do forno. A mulher pediu-lhe por quantos
santos havia, que lhe tirasse aquillo d'alli; mas o ma-
rido não sé importou; recommendou-lhe que não lhe bu-
lisse nem andasse assustada, porque se algum mal pu-
desse vir da caveira, não era para a mulher, mas para
elle. Apesar d'isso a mulher andava transida de susto e
lembrou-se de defumar a cosinha. Foi buscar alecrim e
poz-se a queimal-o, quando a caveira começou a rir e a
desatar ás gargalhadas. — Tu porque te ris? perguntou-
lhe a mulher. — É porque quando tu começaste a fazer
os defumadouros, eram tantos os diabos aos trambolhões
pela porta fóra, que eu não pude deixar de r i r . Mas eu
ainda cá fico.» (Positivismo, t. i v , pag. 396.) Guberna-
tis, no Florilegio delle Novelline popolari, traz este con-
NOTAS 225

to com o titulo Vindovinello e gli Animali riconoscenti,


pag. 313.

XXXVI. 0 irmão Caçula. — 0 thema principal li-


ga-se ao do conto do Bicho Manjaléo, com reminiscen-
cias populares da lenda de José.

XXXVII. A mulher e a filha bonita. — Na tradição


portugueza (Ourilhe) existe este conto com o titulo Os
sapatinhos, encantados. (Contos populares portuguezes,
n.° xxxv.) Gubernatis, nas Novelline di Santo Stephano
di Calcinaia, traz este conto com o titulo La crudel
matrigna.

XXXVIII. 0 Careca. — É uma variante muito apre-


ciável do conto O pássaro preto, n.° v i u da presente
collecção.

XXXIX. A combuca e o ouro dos maribondos. —


Esta tradição acha-se também em Portugal, no conto O
thesouro enterrado. (Contos tradicionaes do Povo portu-
guez, n.° 124).

XL. A Mãe d'Agua. — Este conto com um evidente


caracter mythico, é um pouco análogo ao de Proserpina;
comtudo parece-nos uma transição das tradições indíge-
nas no seu syncretismo com o elemento europeu. í)e-
charme, na sua Mythologie de la Grèce antique, pag.
362, explica este mytho: « 0 rapto de Coré, e a dôr de
Demeter, a permanência de Persephone junto de Hades,
e seu regresso á luz, não significam outra cousa para
nós senão o desapparecimento das flores e dos fructos,
o triste aspecto do sólo durante o inverno, a permanên-
cia das sementes no seio da terra, sua germinação e
floração estivai.»
15
226 CONTOS P O P U L A R E S DO B R A Z I L

XLI. 0 priguiçoso. — ti uma variante do conto da


Cacheira; nos Contos tradicionaes do Povo portuguez,
vem uma versão sob o n.° 49, e em nota respectiva os
documentos da sua universalidade. Nas Operas do Ju-
deu (t. i , pag. 273) ha uma referencia a esta tradição.

XLII. A mulher dengosa. — Esta facecia apparece


na tradição portugueza, com o titulo A mulher gulosa,
(Contos tradicionaes do Povo portuguez, n.° 83.)

SECÇÃO SEGUNDA

I. 0 Kágado e a festa no céo. — Na tradição por-


tugueza (Ourilhe) encontra-se esta fábula: « a raposa
juntou-se e mais a garça para fazerem um caldo de fa-'
rinha; a garça fez o caldo n'uma almotolia; metteu o
bico e bebeu tudo, porque a raposa não podia bebel-o
pela almotolia. Depois a garça disse-lhe: — Tu já me
convidaste para a tua boda; agora vou-te eu convidar
para uma boda que ha no céo. — Eu como hei de ir?
— Vaes nas minhas azas.
Foi; a garça assim que estava mais enfadada disse-
lhe : — Tem-te, comadre, em quanto eu escupo em
mão.
Larga a raposa, e esta quando vinha a cahir dizia:

Isto vai de déo em déo,


Se d'esta escapo
Não torno a bodas do céo.
NOTAS 227

Estava da banda de baixo um penedo grande, e ella


disse : — Arreda-te, lage, que te parto! N'isto cahiu so-
bre a fraga e arrebentou. » (Contos populares portugue-
zes, n.° vir, fine.) Vid. também a fábula i x , da presen-
te collecção na sua parte final, e a fábula x n .

XIII. 0 Macaco e a cabaça. — Esta fábula acha-se


como um episódio na tradição portugueza (Coimbra):
«A velha contou-lhe o encontro que tinha tido com os
lobos, e o homem deu-lhe uma grande cabaça, e disse-
lhe que se meltesse dentro d'ella, que assim iria ter a
casa sem que os lobos a vissem. A velha metteu-se na
cabaça, e esta começou a correr, a correr, até que en-
controu um lobo que lhe perguntou : — Oh cabaça, vis-
te por ahi uma velha?

Não vi velha, nem velhinha,


Não v i velha, nem velhão:
Corre, corre cabaeinha.
Corre, corre cabacão.

Mais adiante outro lobo... (segue-se a mesma par-


lenda.) A velha, julgando que já estava longe dos lo-
bos, deitou a cabeça de fóra da cabaça, mas os lobos
que a seguiam saltaram-lhe em cima e comeram-na.»
(Contos populares portuguezes, n.° vr.)

XV. * O Macaco e o Moleque de cera. — Eis um


conto de Cabeceiras de Basto, em que vem a situação
da presente fábula: «Era uma vez Pedro de Malas-Artes
e foi ter a uma serra aonde havia uma casa de ladrões,
e depois elle pediu soccorro, que era um triste barbeiro
que andava a fazer barbas, e depois elles fugiram todos
d'elle, e só flcou um resolvido a guardar o jantar, e de-
pois Pedro Malas-Artes disse assim: — Oh meu senhor!
*
228 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

tral-a barba tão grande! eu fàço-la. » 0 ladrão afastou-


se e elle fez-la barba, e depois dixe-le que le botasse a
lingua de fóra, e cortou-la e comeu o jantar; depois o
ladrom começou a fugir pelo monte abaixo e dizia: Ex-
plorae por mi! porque não podia dizer esperae. E os
outros cada vez fugiam mais. Depois elles foram fazer o
jantar para outra serra. O Pedro Malas-Artes subiu para
cima de um pinheiro na serra, e levou para lá uma can-
cella velha e elles estavam por baixo a fazer o jantar;
assim que estava o jantar feito, elles descobriram as pa-
nellas e elle mijou por cima d'elles, e depois dizem el-
les . _ Este molhinho vem do céo, ha de ser gostoso.
0 Pedro Malas-Artes fez então a sua vida sobre as pa-
nellas e elles dixeram que a marmelada era boa; de-
pois elle botou-le a cancella velha pol-a cabeça abaixo,
e elles disseram assim: — Ora sempre isto agora foi de
mais; se vem ahi o céo velho, logo vem-no novo, vamos
fugir. » Depois olharam para cima do pinheiro, e dixe-
ram: — Ai que elle é o Pedro Malas-Artes! vamos a fu-
gir! » Foram para a beira de um rio e fizeram um ho-
mem de visgo. D'ahi a poucos dias elle passou por l á :
— Ora para que estará este homem aqui? Deixa-me dar-
le um ponta-pé. Deu-le o ponta-pé e ficou lá com o
p é ; deu-le outro ponta-pé, e ficou lá com o outro p é ;
deu-le com os braços, ficou lá também; emfim, ficou lá
todo. Depois esteve lá tres.dias; estava quasi morto;
passou lá o ladrão que fez o homem de visgo e atirou
ao rio o homem de visgo e o Pedro. Adeus, oh Victoria;
acabou-se a historia.» Ap. Leite de Vasconcellos, Tradi-
ções populares de Portugal, pag. 294.

XVI. O Macaco e o rabo. — Esta fábula acha-se em


uma versão de Coimbra, nos Contos populares portu-
guezes, n.° x, O rabo do gato. No Romanceiro do Ar-
chipelago da Madeira, do dr. Álvaro Rodrigues de Aze-
vedo, pag. 454, vem em fôrma metrificada:
NOTAS

Era uma vez um maeaeo fazel-a barba entrou


N'uma tenda d'um barbeiro que lo rabo lhe cortou
O macaco por desforra uma navalha furtou,
Fugindo logo d'ali pera longe caminhou.

Foi elle mais adiante, uma velha encontrou,


Que á unha escamava Ias sardinhas que comprou,
E á velha das sardinhas la navalha lhe emprestou;
Mas la mofina da velha dar la navalha negou.
Lo macaco por desforra uma sardinha furtou,
Fugindo logo d'ali pera longe caminhou.
Foi elle mais adiante, um moleiro encontrou,
Que sem couducto comia o pão secco que comprou
E la sardinha que tinha por farinha la trocou.
Mas lo mofino moleiro la farinha lhe negou.
Lo macaco por desforra um sacco d'ella furtou;
Fugindo logo d'alli pera longe caminhou.
Foi elle mais adiante, n'uma escola entrou,
Muitas meninas lá estavam com fome todas achou;
E á mestra das meninas la farinha emprestou;
Mas la mofina da mestra la farinha le negou,
Lo macaco por desforra uma menina furtou;
Fugindo logo d'ali pera longe caminhou.
Foi elle mais adiante, lavadeira encontrou
Que já cansada lavava camisas que não sujou.
E p'ra lá ir ajudar la menina emprestou;
Mas la mofina mulher la menina le negou:
Lo macaco por desforra uma camisa furtou,
Fugindo logo d'ali pera longe caminhou.
Foi elle mais adiante, violeiro encontrou,
Que por pobre sem camisa la semana trabalhou;
E ao pobre violeiro la camisa emprestou.
Mas lo mofino do homem la camisa le negou.
Lo macaco por desforra uma viola furtou,
Fugindo logo d'ali pera longe caminhou.
E sem ir mais adiante, alto telhado trepou;
Por bem fazer mal haver, já de todo se fartou,
Pelo que, de lá de riba na sua viola tocou,
E ao som da violinha, d'esta maneira cantou:
230 CONTOS POPULARES DO BRAZIL

«De meu rabo íiz navalha, de navalhafizsardinha;


De sardinhafizmenina, de menina fiz camisa;
De camisa fiz viola, Adeus que me vou embora.»
Ferrum-fumfum, ferrum-fumfum.

SECCÃO TERCEIRA

Sobre estas tradições veja-se o § m da Introducçâo.


ÍNDICE

CONTOS POPULARES DO BRAZtL

Pag.

Advertência do Collector v

INTRODUCÇÂO: Sobre a Novellistica brazileira vn

Secção primeira

CONTOS DE PROVENIENCIA EUROPÉIA

I. O Bicho Manjaléo (Sergipe) 1


II. Os tres coroados (Sergipe) 7
III. O Rei Andrade (Sergipe) 12
IV. O pinto pellado (Sergipe) 13
V. Uma de Pedro Malas-Artes (Sergipe) 1»
VI. O Sargento verde (Sergipe) *7
232 ÍNDICE

Páf.
VII. A princeza rouhadeira (Sergipe) 22"
VIII. O pássaro preto (Pernambuco) •• 2o
IX. Dona Labismina (Sergipe) 29
X. A Raposinha (Sergipe) 32
XI. O homem pequeno (Sergipe) .; 36
XII. Dona Pinta (Sergipe) 39
XIII. O principe cornudo (Sergipe) 42
XIV. A moura torta (Pernambuco) 50
XV. Maria Borralheira (Sergipe).... 52
XVI. A Madrasta (Sergipe) 57
XVII. O papagaio do Limo-verde (Sergipe) 59
XVIII. João Gurumete (Pernambuco) 65
XIX. Manoel da Bengala (Sergipe) 69
XX. Chico Ramella (Sergipe) : 73
XXI. A sapa casada (Sergipe) 76
XXII. Cova da Linda-Flôr (Rio de Janeiro) 78
XXIII. João e mais Maria (Rio de Janeiro e Sergipe). 83
XXIV. A protecção do Diabo (Rio de Janeiro) 88
XXV. A Fonte das tres. Comadres (Sergipe) 91
XXVI. O Pássaro sonoro (Sergipe) 95
XXVII. Barcelloz (Pernambuco) 98
XXVIII. Tres comedores (Pernambuco) 100
XXIX. A rainha que sahiu do mar (Rio de Janeiro)... 102
XXX. A mãe falsa ao filho (Rio de Janeiro) 104
XXXI. Historia de João (Pernambuco) 108
XXXII. O Sarjatario (Sergipe) 110
XXXIII. Tres Irmãos (Pernambuco) 116
XXXIV. A formiga e a neve (Sergipe) 120
XXXV. O Matuto João (Pernambuco) 122

m

ÍNDICE 233

XXXVÍ. O irmão Caçula (Pernambuco) 12i


XXXVII. A mulher e a filha bonita (Rio de Janeiro)... 126
XXXVIII. O Careca (Pernambuco) 129
XXXIX. A combuca de ouro e os maribondos (Per-
nambuco) 136
XL. A Mãe d'Agua (Rio de Janeiro) 137
XLI. O Priguiçoso (Pernambuco) 139
XLII. A mulher dengosa (Pernambuco) 140

Secção s e g u n d a

FÁBULAS DE ORIGEM AFRICANA

I. O kágado e a festa no céo (Sergipe) 143


II. O kágado e a fructa (Sergipe) • 144
III. O kágado e o teyú (Sergipe) 145'
IV. O kágado e o jacaré (Sergipe) 147
V. O kágado e a fonte (Sergipe) 148
VI. A Onça e o Bode (Sergipe) 149
VII. A Onça, o Veado e o Macaco (Sergipe) 131
VIII. O Macaco e a Cotia (Pernambuco) 154
IX. O Urubú e o Sapo (Pernambuco) 134
X. Amiga Raposa e amigo Corvo (Pernambuco). 156.
XI. Amiga folhagem (Sergipe) 157
XII. A Raposa e o Tucano (Sergipe) 159
XIII. O Macaco e a Cabaça (Sergipe) 159
XIV. O Macaco e o Coelho (Pernambuco) 160
XV. O Macaco e o Moleque de cera (Sergipe) 161
234 ÍNDICE

Pag:

XVI. O Macaco e o rabo (Sergipe) :. 162


XVII. O Macaco e o rabo [Pernambuco) 163
XVIII. A Onça e o B o i (Pernambuco) 165
XIX. A Onça e o Gato (Pernambuco) 166

Secção terceira

MYTHOS E FÁBULAS DÊ ORIGEM TUPI

I. Um Gênesis selvagem (Sertão do Brazil): Co-


mo a noite appareceu 167
II. Fábulas do Jabuti (Rio Negro):
i. Jabuti e a A n t a do Mato 170
n. O Jabuti e a Onça 172
m. Jabuti e o Veado (Minas Geraes) 173
iv. O Jabuti encontra-se com os Macacos 175
v. O Jabuti e outra vez a Onça (Tapa-
' jós) 176
v i . O Jabuti e outra Onça (Tapajós) 176
V I Í . Jabuti e a Raposa *. 177
v i u . O Jabuti e a Raposa (Juruá) 179
ix. O Jabuti e o Homem (Juruá) 181
x O Jabuti e o Gigante, (Cahipora) (Ju-
ruá) 183
III. O Veado e a Onça 184
I V . A moça que vai p r o c u r a r m a r i d o :
i. A Moça e o G a m b á 187
u. A moça e o Corvo 188
i u . A Moça e o Gavião (Inajé) 189
ÍNDICE 235

. Pa g\

V. L e n d a s a c e r c a da R a p o s a :
i. A R a p o s a e a O n ç a UK)
n. A R a p o s a e o H o m e m 191
m. A R a p o s a e a Onça 192
i v . A Onça e os C u p i n s 192
v. A Onça v a r r e o caminho da Raposa.. 1 9 3
v i . A R a p o s a e a Onça 193
vn. A R a p o s a e a O n c a 194
VI. Apólogos d a R a p o s a :
i. A filha da R a p o s a casa-se com o Sinimbú
(Camaleão) 19o
li ^ 197
VII. Conto da Velha-gulosa (Ceinci) (Cachoeiras da lia-
boca-Tocantis) 198
NOTAS COMPARATIVAS 20{

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