Enquanto Houver Estrelas No Ceu - Kristin Harmel
Enquanto Houver Estrelas No Ceu - Kristin Harmel
Enquanto Houver Estrelas No Ceu - Kristin Harmel
Título original:
The Sweetness of Forgetting
© 2012, Kristin Harmel
ISBN 978-972-0-68184-3
Aos meus avós de Weymouth
«De um só fez Ele todos os povos,
para que povoassem toda a terra.»
ATOS DOS APÓSTOLOS 17:26
Por volta das sete e meia, quando a Annie se prepara para percorrer os
habituais quatro quarteirões até à Escola Preparatória Sea Breeze, todos os
bolos estão prontos e a confeitaria está repleta de clientes habituais. Sairá
em breve mais uma fornada do nosso Rose’s Strudel, recheado com maçãs,
amêndoas, passas, casca de laranja cristalizada e canela, e o seu aroma
espalha-se lentamente pela confeitaria. A Kay Sullivan e a Barbara Koontz,
as duas viúvas de oitenta anos que vivem do outro lado da rua, vão olhando
pela janela, absortas na sua conversa, enquanto bebem café na mesa mais
próxima da porta. O Gavin Keyes, que eu contratara, no verão, para
recuperar a casa da minha mãe e torná-la novamente habitável, está na mesa
ao lado, a beber café, a comer um éclair e a ler o Cape Cod Times. O Derek
Walls, um pai viúvo que vive perto da praia, veio com os seus dois gémeos
de quatro anos, o Jay e a Merri, que lambem a cobertura de um queque de
baunilha, apesar de ser tão cedo. E a Emma Thomas, a enfermeira de
cinquenta anos que trabalha em cuidados paliativos e ajudou a minha mãe
nos seus últimos dias, está de pé junto ao balcão, a tentar escolher um bolo
para acompanhar o chá.
Estou prestes a embrulhar um muffin de mirtilo para a Emma levar
quando a Annie passa por mim abruptamente, com o casaco e a mochila
pendurados num ombro. Agarro-lhe um braço para não a deixar fugir.
– Deixa-me ver o teu rosto – digo.
– Não – resmunga, olhando para baixo.
– Annie!
– Tanto faz – murmura. Quando ela ergue os olhos, vejo que tem uma
nova camada de rímel e voltou a usar aquele bâton horrível. Fico também
com a sensação de que aplicou uma camada de blush púrpura, mas bem
longe das maçãs do rosto.
– Limpa isso, Annie – digo. – Já. E deixa ficar aqui o estojo da
maquilhagem.
– Não mo podes tirar – responde. – Comprei-o com o meu dinheiro.
Olho em meu redor e percebo que a confeitaria ficou quase em silêncio
e só o Jay e a Merri conversam alegremente no seu canto. O Gavin fita-me
com preocupação e as senhoras sentadas junto à porta limitam-se a olhar-
me fixamente. De repente, sinto-me envergonhada. Sei que já devo ser a
nulidade local por ter deixado ruir o meu casamento com o Rob; todos
acham que ele é perfeito e eu tive a sorte de me casar com ele. Agora, ao
que parece, também sou uma nulidade como mãe.
– Annie – digo, com os dentes cerrados. – Faz já o que te digo. E, desta
vez, estás mesmo de castigo por me teres desobedecido.
– Vou ficar em casa do pai nos próximos dias – atira, com um sorriso
pretensioso. – Não me podes pôr de castigo, lembras-te? Já não vives lá.
Engulo em seco. Não quero que ela perceba que as suas palavras me
magoam.
– Fantástico – digo com ironia. – Estarás de castigo no momento em que
entrares em minha casa.
Ela amaldiçoa-me em surdina, olha em redor e apercebe-se de que todos
a observam.
– Tanto faz – murmura, a caminho da casa de banho.
Suspiro e volto-me para a Emma.
– Desculpe – digo. Noto que as minhas mãos tremem quando pego
novamente no muffin.
– Querida, eduquei três raparigas – diz. – Não te preocupes, tudo vai
melhorar.
Depois de a Emma pagar e sair, vejo a Mrs. Koontz e a Mrs. Sullivan,
que frequentam a confeitaria desde a sua abertura, há sessenta anos,
levantarem-se e coxear até à porta, cada uma com a sua bengala. O Derek e
os gémeos também se preparam para sair, e eu deixo a parte de trás do
balcão para recolher os seus pratos. Ajudo a abotoar o casaco da Merri
enquanto o Derek aperta o fecho do casaco do Jay. A Merri agradece-me o
queque e eu aceno-lhes até chegarem à porta. A Annie sai da casa de banho
um minuto depois, com o rosto imaculado, sem vestígio de maquilhagem.
Atira um tubo de rímel, um bâton e uma caixa de blush para uma das mesas
e dirige-me um olhar ameaçador.
– Aí tens. Estás satisfeita? – pergunta.
– Satisfeitíssima – digo secamente.
Ela permanece imóvel algum tempo, como se quisesse dizer alguma
coisa. Preparo-me para um qualquer comentário sarcástico mas,
surpreendentemente, ela limita-se a perguntar:
– Afinal quem é a Leona?
– Leona? – Tento lembrar-me de alguém que conheça, mas sem sucesso.
– Não sei. Porquê? Onde ouviste esse nome?
– Foi a Mamie – diz. – Está sempre, tipo, a tratar-me assim. E parece
ficar muito triste quando o faz.
– Foste ver a Mamie? – pergunto, sobressaltada. Depois da morte da
minha mãe, há dois anos, tivemos de por a minha avó num lar especializado
em problemas de memória; a sua demência agravara-se muito rapidamente.
– Sim – diz a Annie. – E então?
– Eu apenas… Não sabia que a visitavas.
– Alguém tem de o fazer – responde com desprezo.
Devo ter a culpa estampada no rosto, pois a Annie exibe um ar
triunfante.
– Estou ocupada na confeitaria, Annie – digo.
– Pois, está bem, mas eu arranjo tempo – contrapõe. – Talvez se
passasses menos tempo com o Matt Hines pudesses estar mais vezes com a
Mamie.
– Não há nada entre mim e o Matt. – Subitamente, dou-me conta de que
o Gavin está sentado a apenas alguns metros e sinto-me corar. A última
coisa de que preciso é que toda a cidade saiba o que se passa na minha vida.
Ou o que não se passa na minha vida, consoante o caso.
– Tanto faz – diz a Annie, revirando os olhos. – Seja como for, ao
menos a Mamie gosta de mim. Está sempre a dizer-me isso.
Provoca-me com um sorriso malicioso e eu sei que devo dizer que gosto
muito dela, que o pai e eu gostamos muito dela ou algo semelhante. Não é
isso que uma boa mãe deve fazer? Em vez disso, porque sou uma mãe
terrível, as palavras que profiro são:
– A sério? Bem, parece-me que ela está a dizer que gosta de uma pessoa
chamada Leona.
A Annie fica de queixo caído e fita-me por um momento. Quero
aproximar-me dela, envolvê-la num abraço, pedir-lhe desculpa, dizer que
estava a brincar. Contudo, antes que eu tenha oportunidade de o fazer, ela
dá meia-volta e sai tempestuosamente da confeitaria. Vislumbro uma
lágrima a brilhar-lhe no canto do olho, mas ela não olha para trás.
Com tristeza, olho fixamente a porta por onde ela saiu. Recosto-me
numa das cadeiras que os gémeos deixaram livres poucos minutos antes e
ponho a cabeça entre as mãos. Estou a falhar em tudo, mas o mais grave é
que não consigo comunicar com as pessoas que amo.
Só me apercebo de que o Gavin Keyes está atrás de mim, de pé, quando
sinto a sua mão no meu ombro. Levanto rapidamente a cabeça,
sobressaltada, e dou por mim a olhar diretamente para a sua coxa, onde tem
um pequeno rasgão nas calças de ganga já desbotadas. Por um instante,
sinto uma estranha vontade de me oferecer para as remendar, mas isso é
ridículo; sou tão competente a costurar como a ser mãe ou a manter um
casamento. Abano a cabeça e levanto os olhos, percorrendo a sua camisa de
flanela azul com padrão escocês até chegar ao rosto, marcado por uma
sombra espessa de barba curta e escura que percorre o seu forte maxilar. O
seu cabelo escuro e volumoso parece não ser penteado há vários dias mas
ele não tem um ar desleixado; pelo contrário, está com ótimo aspeto e isso
deixa-me desconfortável. Quando sorri gentilmente, as suas covinhas
recordam-me que ele é muito novo. Tem vinte e oito anos, creio, talvez
vinte e nove. De repente, sinto-me velha, apesar de ter apenas mais sete ou
oito anos do que ele. O que aconteceria se eu fosse assim tão jovem, sem
responsabilidades a sério, sem uma filha pré-adolescente que me odeia nem
um negócio fracassado que é preciso salvar?
– Não te martirizes – diz. Dá-me uma palmadinha nas costas e pigarreia.
– Ela gosta de ti, Hope. És uma boa mãe.
– Sim… obrigada – digo, evitando o seu olhar. É verdade que nos
víamos quase todos os dias nos meses em que ele trabalhou em minha casa
e que, muitas vezes, depois de regressar do trabalho, à tarde, eu fazia
limonada e me sentava com ele no alpendre, procurando evitar olhar para os
seus grandes bíceps bronzeados. Contudo, ele não me conhece. A verdade é
essa. E seguramente não me conhece o suficiente para me avaliar como
mãe. Se me conhecesse assim tão bem, saberia que sou um fracasso.
Volta a dar-me uma palmadinha desajeitada nas costas.
– Estou a falar a sério – diz.
O Gavin sai também, deixando-me sozinha no meu queque gigante, em
tons de rosa, que parece ter agora um sabor muito amargo.
Capítulo 2
QUEQUES
Ingredientes
1 chávena de manteiga sem sal, à temperatura ambiente
1 chávena e 1/2 de açúcar granulado
4 ovos grandes
1 colher de chá de extrato de baunilha puro
3 chávenas de farinha
3 colheres de chá de fermento em pó
1/2 colher de chá de sal
1/2 chávena de leite
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C. Forre vinte e quatro formas com
forminhas de papel.
2. Numa tigela grande, misture a manteiga e o açúcar com uma
batedeira elétrica. Bata a mistura até ficar homogénea e
adicione gradualmente os ovos. Adicione o extrato de
baunilha e mexa bem.
3. Peneire a farinha, o fermento em pó e o sal e adicione-os à
mistura da manteiga, uma chávena de cada vez,
alternadamente com o leite.
4. Encha as formas até meio. Leve-as ao forno durante 15 a 20
minutos ou até verificar que o interior do queque está
suficientemente seco. Deixe arrefecer os queques durante 10
minutos e, em seguida, passe-os para uma grelha metálica
para arrefecerem totalmente.
5. Aguarde que os queques estejam frios e cubra-os com glacé
cor-de-rosa (ver receita abaixo).
GLACÉ COR-DE-ROSA
Ingredientes
1 chávena de manteiga sem sal (ligeiramente amolecida)
4 chávenas de açúcar em pó
1/2 colher de chá de extrato de baunilha
1 colher de chá de leite
1 a 3 gotas de corante alimentar vermelho
Preparação
1. Com uma batedeira elétrica, bata a manteiga numa tigela de
tamanho médio até ficar leve e fofa.
2. Adicione gradualmente o açúcar e continue a bater até
conseguir uma mistura homogénea.
3. Adicione a baunilha e o leite e continue a bater para manter a
mistura homogénea.
4. Adicione uma gota de corante alimentar vermelho e continue
a bater bem para a dissolver. Se preferir que o glacé tenha um
cor-de-rosa mais intenso, adicione mais uma ou duas gotas,
batendo sempre a mistura para dissolver cada uma delas.
Coloque o glacé sobre os queques da receita anterior.
Rose
São quase cinco da manhã, e ainda faltam duas horas para o amanhecer.
Quando eu frequentava a escola primária, a Mamie costumava dizer-me que
cada nova manhã era como desembrulhar um presente de Deus. Isto
confundia-me, pois ela não frequentava a igreja. Contudo, à noite, quando a
minha mãe e eu a visitávamos à hora do jantar, víamo-la muitas vezes
ajoelhada defronte da janela das traseiras, a rezar em voz baixa enquanto a
luz se desvanecia no céu.
– Prefiro ter uma relação minha com Deus – disse-me, uma vez, quando
lhe perguntei porque rezava em casa em vez de orar à Nossa Senhora de
Cape Cod.
Esta manhã, os aromas da farinha, do fermento, da manteiga, do
chocolate e da baunilha dançam pela cozinha, e eu inspiro-os
profundamente, deixando-me descontrair pela familiaridade de tudo isto.
Desde criança que estes aromas me fazem lembrar a minha avó. Mesmo
quando a confeitaria estava fechada, mesmo depois de ela tomar duche e se
vestir em casa, o perfume da cozinha perdurava no seu cabelo e na sua pele.
Enquanto estendo a massa das bases com um rolo e adiciono um pouco
mais de farinha na tijela da batedeira, estou um tanto alheada das tarefas
que tenho em mãos. Medito nas palavras que a Mamie proferiu ontem à
noite enquanto executo metodicamente os gestos comuns dos preparativos
matinais. Verificar o temporizador do forno dos suspiros com pepitas de
chocolate. Estender a massa para as rosas de amêndoa que o Matt Hines
tanto aprecia. Dispor a baklava em camadas e introduzi-la no forno.
Colocar na segunda batedeira o queijo-creme amolecido para o cheesecake
de limão com uvas. Misturar na massa dos croissants pequenos quadrados
de chocolate preto francês para os pains au chocolat. Entrançar os longos
fios da challah de trigo integral, polvilhar com passas e pôr de parte para
voltar a levedar.
Não tens nenhum problema, querida. São palavras da Mamie, mas o que
pode ela saber? Já quase perdeu a memória, os seus sentidos estão
totalmente baralhados. Contudo, há momentos em que os seus olhos
parecem mais clarividentes do que nunca e em que eu tenho a certeza de
que ela olha diretamente para a minha alma. Embora nunca tenha duvidado
de que ela e o meu avô se amavam, sempre me pareceu que tinham uma
relação mais funcional do que romântica. Será que eu tinha uma relação
semelhante com o Rob e deitei tudo a perder por sentir que podia haver algo
mais? Talvez tenha sido tonta. A vida não é um conto de fadas.
O temporizador do forno principal dispara e eu passo os suspiros para
uma grelha. Ligo o forno e preparo-me para introduzir os pains au chocolat.
Comecei a fazer duas fornadas todas as manhãs; vendem-se mais depressa
agora no outono, que a temperatura baixa. As nossas tartes e bolos de frutas
são mais populares nos meses de primavera e de verão, mas os bolos mais
densos e mais doces parecem reconfortar as pessoas quando se aproxima o
inverno.
Comecei por ajudar a Mamie na confeitaria, como a Annie me ajuda
agora, quando tinha oito anos. Todas as manhãs, pouco antes do nascer do
sol, a Mamie interrompia o que estava a fazer e levava-me até à janela
voltada a leste, do lado da sinuosa Main Street. Observávamos o horizonte
até romper a aurora e só depois voltávamos à cozinha.
– O que procuras, Mamie? – perguntei numa dessas manhãs.
– Estou a olhar para o céu, querida – disse ela.
– Eu sei. Mas porquê?
Puxou-me para junto dela, abraçando-me contra o avental cor-de-rosa
desbotado que usava desde sempre. Senti-me algo assustada com a força do
seu abraço.
– Chérie, estou a ver desaparecer as estrelas – respondeu passado algum
tempo.
– Porquê? – inquiri.
– Porque, apesar de não as conseguirmos ver, elas estão sempre lá –
disse. – Estão apenas escondidas atrás do sol.
– E então?… – perguntei timidamente.
Ela libertou-me do abraço e inclinou-se para me olhar nos olhos.
– É muito bom, querida, recordar que não temos de ver uma coisa para
saber que ela existe.
Estas palavras da Mamie, proferidas há quase três décadas, ainda ecoam
nos meus ouvidos no momento em que escuto a voz da Annie à porta da
cozinha, acordando-me abruptamente da minha letargia.
– Porque estás a chorar? – pergunta.
Ergo os olhos, e apercebo-me, surpreendida, de que ela tem razão;
deslizam-me lágrimas pelo rosto. Limpo-as com as costas da mão,
completamente molhada, espalhando massa pegajosa por toda o rosto, e
forço um sorriso.
– Não estou a chorar – digo.
– Não tens de, tipo, mentir.
– Estava só a pensar na Mamie – suspiro.
A Annie revira os olhos e faz uma careta.
– Boa, agora é que decidiste mostrar alguma emoção.
Atira a mochila para um canto, onde ela cai com estrondo.
– O que queres dizer com isso? – pergunto.
– Tu sabes – diz. Arregaça as mangas da camisa e tira um avental de um
cabide da parede, à esquerda das prateleiras onde guardo os tabuleiros.
– Não, não sei – digo-lhe.
Paro o que estou a fazer e observo-a enquanto retira uma caixa de ovos
e quatro barras de manteiga do frigorífico de aço inoxidável. Movimenta-se
pela cozinha com o mesmo à-vontade com que a Mamie o fazia.
A Annie só responde depois de bater a manteiga na batedeira do balcão,
adicionar quatro chávenas de açúcar e partir os ovos, um de cada vez.
– Se tivesses conseguido, tipo, sentir alguma coisa quando estavas
casada com o pai, talvez não estivesses divorciada – diz por fim,
acompanhada pelo zumbido da batedeira.
Respirando com dificuldade, olho-a severamente.
– De que estás a falar? Eu demonstrava os meus sentimentos.
Ela desliga a batedeira.
– Tanto faz – murmura. – Só demonstravas os teus sentimentos quando,
tipo, me mandavas para o quarto e assim. Quando é que demonstraste que
eras feliz com o pai?
– Eu era feliz!
– Tanto faz – diz. – Nem conseguias dizer ao pai que o amavas.
Pestanejo nervosamente.
– Ele disse-te isso?
– Porquê? Não tenho idade suficiente para perceber as coisas sozinha? –
diz. Contudo, pela forma como evita o meu olhar, percebo que acertei em
cheio.
– Annie, não é correto que o teu pai te diga coisas más a meu respeito –
afirmo. – Há muitos aspetos da nossa relação que tu não entendes.
– Tais como? – É um desafio, e ela olha-me com frieza.
Peso as minhas opções mas, no final, sei que não é correto arrastar os
filhos para uma guerra entre adultos a que os devemos poupar.
– Isso é entre mim e o teu pai.
Ela ri-se e revira os olhos.
– Ele confia em mim o suficiente para me contar certas coisas – diz. – E
sabes que mais? Tu estragas tudo, mãe.
Antes que eu possa responder, ouço o carrilhão da porta da frente da
confeitaria. Olho para o relógio. Faltam alguns minutos para as seis horas, a
hora de abertura oficial, mas a Annie não deve ter trancado a porta quando
entrou.
– Continuamos esta conversa mais tarde, minha menina – declaro
rispidamente.
– Tanto faz – resmunga ela. Volta-se novamente para a massa que está a
bater e eu observo-a mais um segundo, enquanto ela adiciona farinha, leite
e uma pequena porção de baunilha.
– Hope, estás aí atrás? – É a voz do Matt, vinda da parte da frente da
loja, e eu tenho de despertar para o trabalho.
A Annie diz, em surdina, «Claro que é ele», mas eu finjo não ouvir
enquanto saio da cozinha.
Rose’s Strudel
STRUDEL
Ingredientes
3 maçãs Granny Smith (maçãs-verdes), descascadas,
descaroçadas e cortadas em pequenas fatias
1 Granny Smith (maçã-verde), descascada, descaroçada e ralada
1 chávena de passas
1/2 chávena de casca de laranja cristalizada
(ver receita abaixo)
1 chávena de açúcar mascavado
2 colheres de chá de canela
1/2 chávena de amêndoas laminadas
1 folha de massa folhada congelada (descongelar previamente)
1 ovo batido
Açúcar com canela para polvilhar
(3 partes de açúcar para 1 parte de canela)
Preparação
1. Misture as maçãs, as passas, a casca de laranja cristalizada,
o açúcar mascavado e a canela numa tigela grande. Reserve
durante 30 minutos.
2. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
3. Espalhe as amêndoas laminadas num tabuleiro forrado com
papel vegetal e leve ao forno durante sete a nove minutos até
ficarem ligeiramente alouradas. Retire-as e deixe-as
repousar durante cinco minutos até estarem suficientemente
frias para lhes poder tocar. Adicione às maçãs.
4. Com uma colher, coloque a mistura das maçãs num coador
coberto por um pano fino e pressione utilizando outro pano
para eliminar a humidade excessiva da mistura. Deixe o
coador coberto pelo pano, enquanto coloca a folha de massa
folhada sobre uma folha de papel vegetal. Estenda
lentamente a massa com um rolo, sem a partir.
5. Espalhe a mistura das maçãs sobre a massa, no sentido
vertical, até às extremidades e dobre a massa à volta da
mistura, fechando todos os lados com os dedos, ligeiramente
húmidos, para unir firmemente as extremidades.
6. Pincele a parte de cima da massa com o ovo batido, faça
cinco ou seis pequenos golpes no topo e polvilhe a gosto com
açúcar com canela.
7. Leve ao forno durante 35 a 45 minutos, até ficar dourado.
Ingredientes
4 laranjas
14 chávenas de água usadas em separado
2 chávenas de açúcar granulado
Preparação
1. Descasque todas as laranjas, tendo o cuidado de retirar, se
possível, a casca de uma só vez ou em dois pedaços.
2. Corte a casca em pequenas tiras.
3. Numa caçarola , ferva seis chávenas de água e adicione as
tiras à água fervida. Deixe ferver as tiras durante três
minutos, seque-as e passe-as por água fria e, em seguida,
repita o mesmo procedimento (destinado a retirar algum do
sabor amargo da casca de laranja).
4. Misture mais duas chávenas de água com duas chávenas de
açúcar e ferva a mistura. Adicione as tiras, reduza a
temperatura do lume e tape o tacho. Deixe em lume brando
durante quarenta e cinco minutos.
5. Retire as tiras da laranja utilizando uma escumadeira e
coloque-as a secar numa grelha metálica. Aguarde pelo
menos duas horas antes de as utilizar na receita anterior.
Mergulhe as tiras que sobraram em chocolate e aproveite
para as degustar ao lanche.
Rose
Quando acordou naquela manhã, Rose sabia. Era como nos velhos
tempos, em que o corpo se manifestava quando algo estava para
acontecer. Esses dias estavam agora muito distantes mas, ultimamente,
com a doença de Alzheimer a privá-la das memórias entre a juventude
e a terceira idade, era como se a sua cronologia se tivesse transformado
num acordeão, dobrado sobre si mesmo, que aproxima cada vez mais o
passado do presente, dobrando e encolhendo os anos intermédios.
Contudo, naquele dia, Rose lembrava-se de tudo: da sua família,
dos seus amigos, da vida que outrora tivera. Por instantes, fechara os
olhos e desejara voltar ao esquecimento habitual. Em certos dias, a
doença apavorava-a, mas noutros era um alívio. Ela não estava
preparada para esta janela límpida com vista para o passado. Acabou
por abrir os olhos e consultar o calendário que tinha ao seu lado na
mesa de cabeceira. Todas as noites, antes de adormecer, riscava o dia
que estava prestes a acabar. Estava a perder tudo o resto, mas ainda
sabia em que dia estava. E, a avaliar pelo X vermelho traçado no
calendário, este dia, 29 de setembro, era um dia especial. Rose percebeu
de imediato que o facto de lhe ser concedido, neste dia em especial, um
rasgo temporário de lucidez, era um sinal divino.
Decidiu então passar a manhã a pôr tudo por escrito, da melhor
forma possível, numa carta endereçada à sua neta. Um dia, Hope iria
lê-la e entendê-la. Mas não agora. Ainda faltavam algumas peças a este
puzzle. Quando Rose fechou o envelope, pouco antes do almoço, sentiu-
se vazia e triste, como se tivesse acabado de encerrar uma parte de si.
Ocorreu-lhe que, de certa forma, era isso mesmo que tinha feito.
Escreveu cuidadosamente a morada de Thom Evans, o advogado
que havia redigido o seu testamento, e pediu a uma das enfermeiras
que colocasse um selo na carta e a enviasse. Em seguida, sentou-se e
escreveu uma lista, desenhando as letras de cada nome de forma
cuidadosa e clara, em letras maiúsculas, apesar de as mãos lhe
tremerem.
Decorridas algumas horas, quando seguia no carro com Hope e
Annie a caminho da praia, verificou três vezes o bolso da saia, apenas
para confirmar que a lista ainda lá estava. Naquele momento, a lista
era tudo para ela e, em breve, Hope saberia também a verdade. Era
impossível conter mais tempo as ondas. De facto, Rose já não tinha a
certeza se queria continuar a fazê-lo. Aguentar sozinha uma barragem
contra a corrente era extenuante.
Naquele momento, sobre as rochas, com a neta de um lado e a
bisneta do outro, na claridade frágil da heure bleue, ergueu os olhos
para o céu e respirou fundo, inspirando e expirando em harmonia com
o mar, segurando nas mãos a tarte das estrelas. Atirou o primeiro
pedaço à água e falou com tal suavidade que as palavras eram abafadas
pelo som rítmico do quebrar das ondas.
– Lamento ter de partir – sussurrou ao vento. – Lamento as decisões
que tomei – acrescentou, lançando um pedaço da tarte sobre uma onda.
– Lamento pelas pessoas a quem fiz mal. – O vento levava as palavras
para longe.
Enquanto atirava os sucessivos pedaços de tarte ao mar, olhou de
relance para Hope e Annie, que a fitavam, confusas. Sentiu uma
enorme culpa por estar a assustá-las, mas sabia que elas a entenderiam
em breve. Tinha chegado a hora.
Voltou a olhar para o céu e a falar serenamente com Deus,
utilizando palavras que não pronunciava em voz alta havia sessenta
anos. Não esperava ser perdoada. Sabia que não tinha esse direito. Mas
queria transmitir a Deus o seu arrependimento.
Ninguém sabia a verdade. Apenas Deus e, naturalmente, Ted, que
morrera vinte e cinco anos antes. Fora um homem bom, um homem
generoso, pai da sua Josephine e avô da sua Hope. Tinha-lhes dado
amor, e Rose, que não fora capaz de fazer o mesmo, estava-lhe
eternamente grata por isso. Porém, ainda se interrogava se ele a teria
amado da mesma forma se tivesse sabido toda a verdade. Ele
desconfiava, certamente, mas contar-lhe tudo, em voz alta, arrasá-lo-ia.
Rose inspirou fundo e fitou Hope, a neta a quem sabia ter falhado.
A mãe de Hope, Josephine, tinha sofrido com os erros de Rose, e Hope
também não ficara incólume. Mesmo naquele momento, Rose via esse
sofrimento nos olhos da neta e na forma como conduzia a sua vida.
Olhou depois para Annie, que a fizera recuperar num ápice todas as
memórias. Desejava-lhe um futuro melhor.
– Preciso de um favor teu – disse finalmente Rose à neta.
– Do que precisas, Mamie? – perguntou Hope delicadamente. –
Farei o que quiseres.
Hope não sabia o que estava a aceitar, mas Rose não tinha
alternativa.
– Preciso que vás a Paris – anunciou calmamente Rose.
Hope arregala os olhos, surpreendida.
– Paris?
– Paris – repetiu Rose com firmeza. Antes de Hope poder fazer
qualquer pergunta, ela prosseguiu: – Tenho de saber o que aconteceu à
minha família. – Rose retira do bolso a lista, aquela que parecia
queimar, bem como um cheque, cuidadosamente preenchido, no valor
de mil dólares. O suficiente para um bilhete de avião para França.
Sentiu um forte ardor na palma da mão quando Hope retirou os dois
documentos da sua mão. – Tenho de saber – repetiu com brandura. As
ondas atacavam a barragem das suas memórias e ela preparava-se
para a enchente.
– A tua… família? – perguntou Hope timidamente.
Rose assentiu e Hope desdobrou a folha de papel. Os seus olhos
percorreram rapidamente os sete nomes. Sete nomes, pensou Rose.
Voltou-se depois para o ponto em que as estrelas da Ursa Maior
começavam a irromper. Sete estrelas no céu.
– Tenho de saber o que se passou – disse à sua neta. – E agora tu
também.
– O que se passa? – interrompeu Annie. Parecia assustada, e Rose
ansiava poder confortá-la, mas sabia que tinha, como sempre tivera,
tantas dificuldades em dar apoio como em enfrentar a verdade. Além
disso, Annie tinha doze anos. Idade suficiente para saber. Apenas dois
anos menos do que Rose quando a guerra começara.
– Quem são estas pessoas? – perguntou Hope, examinando
novamente a lista.
– São a minha família – disse Rose. – A tua família. – Fechou os
olhos por um momento e procurou os nomes no seu coração, o qual,
milagrosamente, continuou a bater durante tantos anos.
– Tu tens, tipo, alguma ideia do que ela está a dizer? – indaga a Annie
logo que chegamos ao carro depois de deixar a Mamie no lar. Debate-se
com o cinto de segurança ao tentar apertá-lo. Só quando noto que as suas
mãos tremem me apercebo de que as minhas estão em igual estado. – Quer
dizer, tipo, quem são essas pessoas? – A Annie consegue finalmente apertar
o cinto e olha para mim. Vejo a agitação no seu rosto, na sua testa suave,
nas poucas sardas que vão desaparecendo à medida que nos distanciamos
do verão. – O nome de solteira da Mamie nem sequer era Picard. Era
Durand.
– Eu sei – murmuro.
Quando a Annie frequentava o quinto ano, a sua turma organizou um
projeto simples sobre árvores genealógicas. Ela procurara utilizar um site da
Internet para descobrir as raízes da Mamie, mas havia tantos imigrantes
com o apelido Durand nos anos 40 que ela não conseguiu avançar. Ficou de
mau humor durante uma semana, acusando-me de não ter pensado em
investigar o passado da Mamie antes de ela começar a perder a memória.
– Talvez se tenha enganado no nome – acaba por dizer a Annie. –
Talvez tenha escrito Picard mas quisesse escrever Durand.
– Talvez – digo lentamente, sabendo que nenhuma de nós acredita nessa
possibilidade. Há muitos anos que não víamos a Mamie tão lúcida. Ela
sabia exatamente o que estava a dizer.
Fazemos o resto do caminho para casa sem dizer uma palavra. Contudo,
por uma vez, o silêncio não é desconfortável; a Annie não está no banco do
passageiro a melindrar-se com tudo o que digo ou faço; está a pensar na
Mamie.
A luz já desapareceu quase por completo; imagino a Mamie à janela,
procurando as estrelas enquanto o crepúsculo dá lugar à escuridão da noite.
Em Cape, sobretudo depois de os turistas de verão desligarem de vez as
luzes dos seus alpendres até à estação seguinte, as noites são escuras e
profundas. As ruas principais têm iluminação artificial mas, quando viro
para a Lower Road e depois para a Prince Edward Lane, o brilho desmaiado
da Main Street desaparece atrás de nós e, à nossa frente, os últimos
vestígios da heure bleue da Mamie desaparecem no vazio escuro que sei ser
o lado oeste da baía de Cape Cod.
Sinto-me numa cidade-fantasma quando descrevo a última curva para a
Bradford Road. Sete das dez casas da nossa rua são casas de verão e, agora
que a estação terminou, estão desertas. Subo a rampa da minha entrada – a
mesma onde, na infância, passei noites de verão a apanhar pirilampos e dias
de inverno a ajudar a minha mãe a abrir caminho na neve para poder tirar a
sua velha carrinha – e desligo o motor. Permanecemos no carro mas, agora
que estamos a um quarteirão de distância da praia, consigo sentir no ar o
cheiro do sal, o que significa que a maré está a subir. Sinto um enorme e
súbito desejo de correr até à praia com uma lanterna e molhar os pés na
espuma das ondas, mas reprimo-o; tenho de ajudar a Annie a preparar-se
para ir passar a noite a casa do pai. Ela parece tão pouco ansiosa por sair do
carro como eu.
– Afinal, porque é que a Mamie quis tanto sair de França? – pergunta
por fim.
– A guerra deve ter sido muito difícil para ela – respondo. – Como
disseram a Mrs. Sullivan e a Mrs. Koontz, penso que os pais dela terão
morrido nesse período. A Mamie teria apenas dezassete anos quando deixou
Paris. Depois, creio que conheceu o teu bisavô e se apaixonou.
– Então ela, tipo, deixou tudo para trás? – insiste a Annie. – Como
conseguiu fazer isso sem ficar triste?
– Não sei, querida – replico, abanando a cabeça.
A Annie fica pensativa.
– Nunca lhe perguntaste? – Olha para mim, e eu concluo que a fúria,
depois de hibernar durante algum tempo, está de volta.
– Claro que sim – digo. – Quando tinha a tua idade, fazia-lhe imensas
perguntas sobre o seu passado. Queria que ela me levasse a França e me
mostrasse tudo o que tinha feito na infância. Imaginava-a na Torre Eiffel, a
subir e a descer o elevador o dia inteiro com um caniche, usando uma boina
e comendo uma baguete.
– Isso são estereótipos, mãe – diz a Annie, revirando os olhos. Contudo,
tenho quase a certeza de que vejo formar-se um pequeno sorriso na sua
boca enquanto sai do carro.
Saio também e percorro atrás dela o relvado da frente. Esqueci-me de
ligar a luz do alpendre antes de sair de casa, e a escuridão parece engolir a
Annie de uma só vez. Corro até à porta e rodo a chave na fechadura.
A Annie permanece bastante tempo na entrada, limitando-se a olhar
para mim. Estou certa de que se prepara para dizer alguma coisa mais, mas
quando abre a boca, não produz qualquer som. Abruptamente, dá meia-
volta e caminha energicamente para o seu quarto, nas traseiras da nossa
pequena casa.
– Estou pronta dentro de cinco minutos – grita, sem olhar para trás.
Tendo em conta que «cinco minutos» significam normalmente, no
mundo da Annie, pelo menos vinte, é uma surpresa vê-la aparecer na
cozinha poucos minutos depois. Estou de pé, junto ao frigorífico, com a
porta aberta, desejando que o jantar caia do céu. Para uma pessoa que
trabalha com alimentos o dia todo, tenho muito pouco jeito para manter o
meu frigorífico de casa devidamente abastecido.
– Tens uma refeição Healthy Choice no congelador – diz a Annie, atrás
de mim. Eu viro-me e sorrio
– Parece que está na hora de ir à mercearia.
– Nã! – diz a Annie. – Eu não reconheceria o nosso frigorífico se
estivesse cheio. Pensaria que tinha entrado sem querer na casa errada.
– Ah, ah, muito engraçado – digo com um sorriso irónico. Fecho a porta
do frigorífico e abro a do congelador, que contém três tabuleiros de cubos
de gelo, meio saco de miniaturas Reese’s com manteiga de amendoim, um
saco de ervilhas congeladas e, como a Annie me assegurara, uma refeição
congelada Healthy Choice.
– Seja como for, até já jantámos – acrescenta a Annie. – Lembras-te? As
sanduíches de lagosta?
Fecho a porta do congelador e aceno afirmativamente.
– Eu sei – digo. Olho para a Annie, que está de pé, junto à mesa da
cozinha, com o saco de desporto inclinado sobre a cadeira mais próxima.
Ela revira os olhos.
– És tão esquisita. Ficas aqui sentada a alimentar-te de comida de
plástico sempre que eu vou para casa do pai?
– Não – minto, embaraçada.
A Mamie enfrentava o stress a preparar bolos. A minha mãe enfrentava
o stress enfurecendo-se com pequenas coisas e, normalmente, pondo-me de
castigo no quarto depois de me dizer que eu era uma péssima filha. Eu, ao
que parece, enfrento o stress empanturrando-me.
– Muito bem, querida – digo. – Tens tudo? – Atravesso a cozinha para ir
ter com ela, caminhando com uma lentidão absurda, como se pudesse
prolongar o tempo que ela passa comigo. Aperto-a contra mim, o que
parece surpreendê-la tanto como a mim. Mas ela retribui o abraço, fazendo
desaparecer temporariamente a dor que me fere o coração.
– Adoro-te, miúda – murmuro sobre o seu cabelo.
– Eu também te adoro, mãe – diz a Annie ao fim de um momento, com
a voz abafada no meu peito. – Agora podes largar-me antes que eu, tipo,
abafe?
Liberto-a, embaraçada.
– Não sei ao certo o que fazer com a Mamie – digo, enquanto ela ergue
o saco de desporto e o põe à tiracolo. – Talvez ela esteja só a dizer coisas
sem sentido.
A Annie fica estarrecida.
– O que estás a tentar dizer?
– Perdeu a memória, Annie – respondo, encolhendo os ombros. – É
horrível, mas a doença de Alzheimer é assim.
– Hoje lembrava-se de tudo – contrapõe ela, franzindo o sobrolho. O seu
tom torna-se subitamente glacial.
– É verdade, mas aquelas pessoas de que nunca ouvimos falar… Tens de
reconhecer que não faz sentido.
– Mãe – diz a Annie lentamente, lançando-me um olhar fulminante. –
Tu vais a Paris, certo?
– Claro – rio-me. – E depois vou às compras a Milão. E esquiar nos
Alpes Suíços. E, mais tarde, talvez passear por Veneza numa gôndola.
A Annie semicerra os olhos.
– Tens de ir a Paris.
Percebo que fala a sério.
– Querida – digo suavemente –, isso não é viável. Sou a única pessoa
que pode gerir a confeitaria.
– Então fecha-a por uns dias. Ou eu ajudo-te depois da escola.
– Querida, isso não vai funcionar. – Penso no facto de estar prestes a
perder tudo.
– Mas, mãe!
– Annie, quem pode dizer que a Mamie se vai lembrar sequer da
conversa de hoje?
– É por isso que tens de ir! – diz a Annie. – Não viste como era
importante para ela? Queria que descobrisses o que aconteceu àquelas
pessoas! Não podes simplesmente ignorá-la!
Suspiro. Pensava que a Annie entendia melhor a situação e sabia que a
bisavó está constantemente a dizer coisas sem sentido.
– Annie… – começo. Ela corta-me a palavra.
– E se esta for a sua última oportunidade? E se esta for a nossa última
oportunidade de a ajudar?
Encolho os ombros. Não sei o que dizer. Não posso, de forma alguma,
contar-lhe que estamos na corda bamba. Após alguns momentos em que
permaneço em silêncio, a Annie parece tomar uma decisão sem a minha
ajuda.
– Odeio-te – atira.
Em seguida, dá meia-volta e sai indignada da cozinha, com o saco de
desporto a balancear-se nas costas. Segundos depois, ouço bater com
estrondo a porta da frente. Respiro fundo e sigo-a até ao carro, preparando-
me para uma viagem silenciosa até casa do pai.
Na manhã seguinte, após uma noite em que quase não preguei olho,
estou na confeitaria, sozinha, a colocar no forno um tabuleiro de biscoitos
gigantes, com cobertura de açúcar, quando ouço alguém bater ruidosamente
num dos quadrados de vidro da porta da frente. Pouso as luvas de cozinha
no balcão, ligo o temporizador do forno, limpo as mãos ao avental e
consulto o relógio: 5h35. Vinte e cinco minutos antes da abertura.
Depois de passar da cozinha para a sala principal, através da porta dupla
oscilante e com ripas, vejo o Matt, com as mãos a proteger os olhos da luz e
o rosto prensado contra o vidro da porta para espreitar o interior. Quando
me vê, recua rapidamente e, em seguida, acena descontraidamente como se
não tivesse deixado a marca do nariz no vidro da porta.
– Matt, ainda não abrimos – anuncio, depois de destrancar as três
fechaduras e abrir ligeiramente a porta principal. – Quer dizer, podes entrar
e esperar, mas o café ainda não está pronto e…
– Não, não. Não vim tomar café – diz ele. Após uma pausa, acrescenta:
– Mas se entretanto tiveres, eu bebo uma chávena.
– Ah, bom – digo, consultando novamente o relógio. – Sim, pode ser. –
Não devo demorar mais do que dois minutos a moer os grãos, colocá-los
com uma colher na máquina e carregar no botão. Apresso essa tarefa,
recapitulando mentalmente todas as outras coisas que tenho de fazer antes
da abertura, mas o Matt segue-me até à cozinha e fecha a porta atrás de si.
– Hope, vim perguntar-te o que tencionas fazer – diz o Matt, enquanto a
máquina de café borbulha e deixa cair as primeiras gotas de café quente na
cafeteira.
Por instantes, pergunto-me se ele sabe o que a Mamie me pediu, mas
acabo por perceber que se refere à confeitaria e ao facto de o banco estar, ao
que tudo indica, disposto a avançar com uma ação judicial para ma retirar.
Invade-me um enorme desânimo.
– Não sei, Matt – digo em tom formal, sem me voltar para ele. Finjo
estar ocupada a preparar o café. – Ainda não tive oportunidade de estudar o
assunto.
Por outras palavras, estou em negação. É essa a minha abordagem
universal quando a vida não me sorri; limito-me a enterrar a cabeça na areia
e esperar que a tempestade passe. Por vezes, passa mesmo. Na maioria dos
casos, acabo apenas com areia nos olhos.
– Hope… – começa o Matt.
Suspiro e abano a cabeça.
– Ouve, Matt, se vieste tentar persuadir-me a vender a confeitaria a
esses teus investidores, já te disse que ainda não sei o que fazer e não estou
preparada para…
– Está a acabar-se o tempo – diz com firmeza. – Temos de falar sobre
este assunto.
Acabo por fitá-lo. Ele está de pé, inclinado sobre o balcão.
– Muito bem – cedo. Sinto um aperto no peito.
Ele faz uma pausa e retira uma partícula invisível da lapela. Aclara a
garganta. O aroma do café paira agora na sala e eu, procurando iludir o
nervosismo, ocupo-me em servir-lhe café antes de a máquina ter acabado de
o preparar. Mexo o café com as natas e o açúcar, e ele aceita a chávena,
agradecendo com um ligeiro aceno.
– Quero tentar persuadir os investidores a aceitarem-te como sócia – diz
por fim, de forma brusca. – Se acabarem por adquirir a confeitaria; ainda
não sabemos ao certo se o farão. Têm de visitar as instalações, avaliar o seu
funcionamento e verificar a tua contabilidade. Mas eu tenho-te elogiado.
– Sócia? – pergunto. Decido não lhe dizer o quanto me magoa ele
considerar uma dádiva a possibilidade de eu ter uma percentagem no
negócio da minha própria família. – Isso significa que tenho de conseguir
dinheiro para cobrir uma percentagem da compra pelo banco?
– Sim e não – responde.
– Não tenho tanto dinheiro, Matt.
– Eu sei.
Encaro-o e espero que continue. Ele pigarreia.
– E se me pedisses algum dinheiro emprestado?
– O quê? – atiro, arregalando os olhos.
– Seria sobretudo um negócio, Hope – apressa-se ele a dizer. – Repara,
eu tenho crédito suficiente. Posso assumir, digamos, um quarto do direito de
propriedade. Tu ficas com setenta e cinco por cento. Eu fico com vinte e
cinco. E podes pagar-me todos os meses apenas o que tiveres.
Conseguíamos manter parte da confeitaria na tua família…
– Não posso – digo, antes sequer de ponderar a proposta. Os fios
invisíveis desta relação acabariam por me estrangular. E, por muito que
abomine a ideia de entregar a maior parte da confeitaria a estranhos, é ainda
pior pensar no Matt como coproprietário.
– Matt, é uma oferta muito simpática, mas não posso, de modo algum…
– Hope, só te peço que a ponderes. – Ele debita as palavras muito
depressa. – Não é assim tão importante. Eu tenho dinheiro. Estou à procura
de um investimento e esta confeitaria é uma instituição da cidade. Sei que
vais recuperar em breve e…
A sua voz desvanece-se e ele fita-me, expectante.
– Matt, isso significa muito para mim – digo com delicadeza. – Mas eu
sei o que estás a fazer.
– Como? – pergunta ele.
– Caridade – respondo, respirando fundo. – Tens pena de mim. E eu
agradeço a ajuda, Matt, de verdade. Só que… não preciso da tua
compaixão.
– Mas… – começa, sem que eu o deixe prosseguir.
– Aconteça o que acontecer, prefiro fazer isto sozinha, está bem? – Faço
uma pausa e engulo em seco, procurando acreditar que estou a agir
corretamente. – Talvez acabe por me afundar, por perder tudo. Talvez os
investidores decidam, de qualquer modo, que o negócio não vale a pena. –
Volto a respirar fundo. – Porém, se isso acontecer, talvez seja obra do
destino.
O seu rosto revela desilusão. Tamborila algumas vezes no balcão.
– Sabes, Hope, tu estás diferente – acaba por dizer.
– Diferente?
– Eras outra pessoa – afirma. – No liceu, nunca te deixavas abater.
Recuperavas sempre. Esse era um dos traços que eu mais apreciava em ti.
Mantenho-me em silêncio, com um nó na garganta.
– Mas agora estás disposta a desistir – acrescenta, ao fim de algum
tempo. Não me olha diretamente. – Eu… pensei que reagirias de outra
forma. Parece que estás a deixar que a vida simplesmente aconteça.
Contraio os lábios. Sei que não me devo ralar com o que o Matt pensa,
mas as palavras ainda me ofendem, sobretudo porque sei que ele não está a
tentar ser cruel. Ele tem razão; sou diferente do que era. Ele observa-me
durante bastante tempo e acena convictamente com a cabeça.
– Penso que a tua mãe ficaria desiludida.
As palavras magoam-me e essa é, de resto, a sua intenção. Contudo, ao
mesmo tempo, ajudam-me, pois sei que ele está totalmente enganado. A
minha mãe nunca se preocupou com a confeitaria como a minha avó;
considerava-a um fardo. Se fosse viva, talvez rejubilasse ao vê-la cair para
poder lavar daqui as suas mãos.
– Talvez, Matt – digo.
Abre a carteira e retira duas notas de um dólar. Coloca-as em cima do
balcão. Eu suspiro.
– Não sejas tonto. O café é por conta da casa.
– Não preciso da tua caridade, Hope – diz, abanando a cabeça e
esboçando um sorriso frouxo. – Tem um bom dia – acrescenta. Pega no café
e sai energicamente pela porta da frente. Quando vejo desaparecer a sua
silhueta, engolida pela escuridão, sinto um arrepio.
A Annie entra e sai rapidamente de manhã e, mais uma vez, quase não
me dirige a palavra, a não ser para perguntar, em tom formal, se tive
oportunidade de me informar sobre os voos para Paris. Por volta das onze
da manhã, a confeitaria está vazia e eu observo, pelos vidros da porta
principal, a queda das folhas na Main Street. Hoje, sente-se uma brisa e, de
vez em quando, as folhas dos carvalhos, de um vermelho quente, e as folhas
dos áceres, de um laranja carregado, vagueiam pelo ar como pássaros
elegantes.
Às onze e meia, ainda sem clientes, sem nada para fazer, e com uma
fornada de tartes das estrelas no forno, ligo o velho portátil que guardo atrás
da caixa registadora, peço «emprestada» a Internet sem fios da Jessica
Gregory, da loja de presentes ao lado, e, lentamente, digito
www.google.com. Quando surge a página, faço uma pausa. Do que estou à
procura? Hesito por instantes e introduzo o primeiro nome da lista da
Mamie. Albert Picard.
Basta um segundo para surgirem os resultados. Existe um aeroporto em
França chamado Albert-Picardie, mas não creio que tenha alguma coisa a
ver com a lista da Mamie. Ainda assim, leio as informações da Wikipédia,
mas percebo claramente que não é o que procuro; trata-se de um aeroporto
que serve uma comunidade chamada Albert, na região da Picardie, no norte
de França. É um beco sem saída.
Volto atrás e consulto os outros resultados da pesquisa. Existe um Frank
Albert Picard, mas é um advogado norte-americano, nascido e criado no
Michigan, que morreu no início dos anos 60. Não pode ser esta a pessoa
que a Mamie procura; não tem quaisquer ligações a Paris. Quando
acrescento a palavra Paris à procura, surgem outros Albert Picard que,
contudo, não se enquadram no período em que a Mamie viveu em França.
Mordo o lábio superior e apago todos os termos da pesquisa. Escrevo
Páginas Brancas, Paris, e, após alguns cliques, vou ter a uma página com o
nome de Pages Blanches, que solicita um nom e um prénom. Sei, graças ao
francês limitado que aprendi no liceu, que a página me pede um apelido e
um nome próprio, e, por conseguinte, introduzo Picard e Albert. No espaço
em branco que pergunta Où?, escrevo Paris.
Surge uma lista e o meu coração agita-se. Será assim tão fácil? Tomo
nota do número e, em seguida, apago Albert e escrevo o segundo nome da
lista da Mamie: Cécile. Existem oito correspondências em Paris, incluindo
quatro pessoas identificadas como C. Picard. Aponto também estes
números e repito a pesquisa com os restantes nomes. Hélène, Claude, Alain,
David, Danielle.
No final, tenho uma lista de trinta e cinco números. Regresso ao Google
para perceber como se efetuam telefonemas dos Estados Unidos para
França e anoto também estas instruções; escrevo o número completo, com
os indicativos, do primeiro Picard e aproximo-me do telefone.
Faço uma pausa antes de o levantar. Ignoro quanto vou pagar por esta
chamada internacional, a primeira que alguma vez tive de fazer. Contudo,
tenho a certeza de que custam pouco menos de uma fortuna. Penso no
cheque de mil dólares que a Mamie me entregou; decido ficar com o valor
necessário para pagar as tarifas internacionais e, mais tarde, depositar o
restante na sua conta à ordem. Seja como for, é muito menos dispendioso do
que comprar um bilhete de avião para Paris.
Olho de relance para a porta. Ainda não há clientes. Lá fora, a rua está
vazia; prepara-se uma tempestade, o céu escurece e o vento ganha força.
Volto a olhar para o forno. O temporizador indica mais trinta e seis minutos.
O cheiro a canela espalha-se pela confeitaria e eu inspiro profundamente.
Marco o primeiro número. Ouço alguns cliques durante a primeira
ligação e, em seguida, dois sons parecidos com campainhas. Alguém
atende.
– Allô? – diz uma voz feminina.
Ocorre-me subitamente que o meu francês é rudimentar.
– Olá… – digo nervosamente. – Procuro os familiares de uma pessoa
chamada Albert Picard.
Do outro lado da linha, um silêncio absoluto. Procuro desesperadamente
recordar as palavras francesas corretas.
– Je… chercher Albert Picard – arrisco, sabendo que não acertei em
cheio mas esperando que a mensagem tenha sido entendida.
– Aqui não há nenhum Albert Picard. – A mulher fala um inglês claro
com uma acentuada pronúncia francesa.
Sinto o coração apertado.
– Oh. Peço desculpa. Pensei que…
– Aqui não há nenhum Albert Picard porque ele é um sacana e um inútil
– prossegue calmamente. – Não consegue manter as mãos longe das outras
mulheres. E eu estou farta.
– Oh, lamento… – digo, hesitante, sem saber o que acrescentar.
– Não é uma dessas mulheres, pois não? – pergunta, parecendo agora
desconfiada.
– Não, não – apresso-me a esclarecer. – Procuro uma pessoa que a
minha avó conheceu noutros tempos ou que pode mesmo ser seu familiar.
Ela abandonou Paris no início dos anos 40.
A mulher ri-se.
– Este Albert tem apenas trinta e dois anos. E o seu pai chama-se Jean-
Marc. Não pode ser o Albert Picard que procura.
– Peço desculpa – digo. Examino rapidamente a lista. – Talvez conheça
alguém chamado Cécile Picard? Ou Hélène Picard? Ou Claude Picard?
Ou… – Faço uma pausa. – Ou Rose Durand? Ou Rose McKenna?
– Não, diz a mulher.
– Muito bem – respondo, desiludida. – Obrigada pelo tempo que lhe
tomei. E espero que… resolva os problemas com o Albert.
– E eu espero que ele seja atropelado por um táxi – resmunga ela.
Ouço novamente um clique e fico a olhar para o telefone, surpreendida.
Abano a cabeça, espero o sinal de linha desocupada e tento o número
seguinte.
Capítulo 8
Quando a Annie chega, pouco antes das quatro, as tartes das estrelas já
arrefeceram, já coloquei os muffins de mirtilo para amanhã no forno e já
telefonei para os trinta e cinco nomes da lista. Atenderam vinte e duas
pessoas. Nenhuma delas conhece os nomes da lista da Mamie. Duas
sugeriram que eu contactasse as sinagogas, pois podem ter registos dos
membros inscritos naquele período.
– Obrigada – disse a ambas, intrigada –, mas a minha avó é católica.
A Annie mal olha para mim enquanto atira a mochila para trás do balcão
e caminha a grandes passadas para a cozinha. Suspiro. Ótimo… Vamos ter
uma daquelas tardes.
– Já limpei todas as tigelas e tabuleiros! – grito à minha filha enquanto
começo a tirar biscoitos da montra e a preparar-me para fechar a confeitaria.
– Hoje, houve poucos clientes, tive algum tempo livre – acrescento.
– E então? Marcaste a tua viagem para Paris? – pergunta a Annie,
surgindo à porta da cozinha com as mãos nas ancas. – Já que tiveste tanto
tempo livre…
– Não, mas… – começo. A Annie ergue a mão para me interromper.
– Não? Tudo bem. Não preciso de ouvir mais nada – diz, utilizando
ostensivamente uma expressão do pai e parece uma adulta em miniatura. Só
me faltava esta.
– Annie, não me estás a ouvir – afirmo. – Telefonei para…
– Ouve, mãe, se não vais ajudar a Mamie, não temos nada para discutir
– diz bruscamente.
Respiro fundo. Tenho tido mil cuidados com ela nos últimos meses,
preocupada com a forma como ela tem vivido o divórcio. Mas estou
cansada de ser a má da fita. Sobretudo porque não sou.
– Annie – digo com firmeza –, tenho feito tudo o que posso para nos
manter à tona de água aqui na confeitaria. Entendo que queiras ajudar a
Mamie. Eu também quero. Mas ela tem Alzheimer, Annie. O pedido que
me fez não tem lógica. Agora, se ouvires o que tenho para te dizer, eu…
– Tanto faz, mãe – interrompe novamente. – Não te interessas por
ninguém.
Regressa indignada à cozinha, e eu sigo-a de perto, com os punhos
cerrados, tentando manter o sangue-frio.
– Minha menina, não me vires as costas a meio de uma discussão!
Nesse momento, ouço o carrilhão da porta principal e, virando-me para
trás, vejo o Gavin, vestido com umas calças de ganga desbotadas e uma
camisa vermelha de flanela. Devolve-me o olhar surpreendido e passa a
mão pelos seus rebeldes caracóis castanhos. Distraidamente, ocorre-me que
precisam de um ligeiro corte.
– Interrompo… alguma coisa? – pergunta, consultando o relógio. – A
confeitaria ainda está aberta? – Forço um sorriso.
– Claro, Gavin. Entra. Em que te posso ajudar?
Parece hesitante quando se aproxima do balcão.
– Tens a certeza? – pergunta. – Posso voltar amanhã se…
– Não – atalho. – Desculpa. A Annie e eu estávamos apenas a…
conversar.
O Gavin faz uma pausa e sorri.
– A minha mãe e eu conversávamos muito quando eu tinha a idade da
Annie – conta em voz baixa. – Tenho a certeza de que sempre gostou mais
desses momentos do que eu.
Rio-me, a contragosto. Nesse momento, a Annie aparece novamente
vinda da cozinha.
– Trouxe-lhe café – diz ao Gavin antes de eu poder dizer alguma coisa.
– Por conta da casa – acrescenta. Olha-me de viés, como que a incitar-me a
desafiá-la. Mal ela sabe que não cobro nada ao Gavin desde o fim das obras
da nossa casa.
– Bem, obrigado, Annie. Isso é muito generoso – diz o Gavin,
recebendo a chávena das mãos dela. Vejo-o fechar os olhos e sentir o
aroma. – Bolas, cheira lindamente.
Arqueio a sobrancelha, pois suspeito que ele sabe tão bem como eu que
o café passou aproximadamente as duas últimas horas no fogão e é tudo
menos fresco.
– Diga-me, Mr. Keyes – começa a Annie. – Gosta de ajudar as pessoas e
assim, certo?
O Gavin parece surpreendido. Pigarreia e acena afirmativamente.
– Claro, Annie, creio que sim. – Faz uma pausa e olha-me, receoso. – E
podes tratar-me por Gavin, se quiseres. Estás a dizer… que ajudo as pessoas
por ser um faz-tudo? Por fazer reparações?
– Tanto faz – diz ela com indiferença. – Ajuda as pessoas porque é o
que devemos fazer, certo? – O Gavin lança-me outro olhar, e eu encolho os
ombros. – Seja como for – continua a Annie –, se uma pessoa tivesse
perdido uma coisa e isso a perturbasse, o senhor quereria, provavelmente,
ajudar a encontrá-la e assim, certo?
– Claro, Annie – confirma o Gavin lentamente. – Ninguém gosta de
perder coisas. – Volta a fitar-me.
– Logo, se alguém, tipo, lhe pedisse ajuda para encontrar parentes há
muito perdidos, o senhor ajudaria, certo? – pergunta.
– Annie… – digo, em jeito de advertência. Ela não me presta atenção.
– Ou, tipo, ignoraria totalmente o pedido de ajuda? – continua, olhando-
me de forma provocatória.
O Gavin pigarreia novamente e procura a minha aprovação. Sei que ele
percebe ter sido arrastado involuntariamente para a nossa discussão, mesmo
não fazendo ideia do que a motivara.
– Bom, Annie – diz lentamente, voltando-se para ela. – Suponho que
tentaria ajudar a encontrar esses parentes. Mas tudo dependeria da situação.
A Annie volta-se para mim com um olhar triunfante.
– Vês, mãe? Mr. Keyes preocupa-se mais do que tu! – Dá meia-volta e
volta a entrar na cozinha. Fecho os olhos e ouço o som de uma tigela de
metal a bater contra o balcão. Abro-os novamente e vejo o Gavin
preocupado. Fitamo-nos por um momento e, em seguida, viramo-nos para a
Annie, que volta a sair da cozinha
– Mãe, os pratos estão todos limpos – diz, sem olhar para mim. – Vou a
pé até casa do pai. Pode ser?
– Diverte-te – digo, inexpressiva. Ela revira os olhos, pega na mochila e
sai com estrondo, sem olhar para trás. Quando volto a encarar o Gavin, o
seu rosto preocupado deixa-me constrangida. Não preciso que ele, ou seja
quem for, se preocupe comigo.
– Desculpa – murmuro. Abano a cabeça e tento fingir-me ocupada. – O
que vais querer, Gavin? Tenho uns muffins na cozinha, acabados de sair do
forno.
– Hope? – diz, após uma pausa. – Estás bem?
– Estou ótima.
– Não pareces – declara.
Pestanejo e continuo a evitar o seu olhar.
– Não?
Ele abana a cabeça.
– Tens o direito de ficar triste, sabes?
O meu olhar deve transmitir severidade, sem intenção, pois ele cora
subitamente.
– Desculpa, não era minha intenção…
Ergo a mão para o interromper.
– Eu sei – digo. – Eu sei. Ouve, agradeço a tua ajuda.
Permanecemos em silêncio por um momento e, em seguida, o Gavin
continua:
– Afinal, de que estava ela a falar? Há alguma coisa em que te possa
ajudar?
– Agradeço a disponibilidade – digo, sorrindo –, mas não é nada de
importante. – O seu rosto diz-me que não acredita em mim. – É uma longa
história – clarifico.
Ele encolhe os ombros.
– Tenho tempo – afirma.
– Mas ias a algum lado, não ias? – pergunto, consultando o relógio. –
Vieste buscar bolos.
– Não tenho pressa. Mas levo uma dúzia de biscoitos. Os de arando e
chocolate branco. Se não te importas.
Aceno com a cabeça e coloco cuidadosamente os biscoitos de cape cod
que ainda restam na montra numa caixa azul-clara com as palavras
Confeitaria North Star, Cape Cod escritas em letras brancas ondulantes.
Aperto-a com uma fita branca e entrego-lha por cima do balcão.
– E então? – incita o Gavin enquanto pega na caixa.
– Queres mesmo ouvir esta história? – pergunto.
– Se ma quiseres contar.
Aceno que sim, apercebendo-me repentinamente de que quero mesmo
contar a outro adulto o que se passa.
– Bom, a minha avó sofre de Alzheimer – começo. Nos cinco minutos
seguintes, enquanto retiro miniaturas, croissants, baklavas, tartes e luas em
quarto crescente da montra e os coloco em embalagens herméticas para
colocar no frigorífico ou em caixas para entregar no abrigo para mulheres
gerido pela igreja, conto ao Gavin o que a Mamie disse na noite anterior. O
Gavin ouve atentamente, mas fica de queixo caído quando lhe digo que a
Mamie atirou ao mar pedaços de uma tarte das estrelas em miniatura.
– É de doidos, não é?
Ele abana a cabeça, com uma expressão estranha no rosto.
– Não, na verdade, não é. Ontem foi o primeiro dia do Rosh Hashanah.
– Está bem – digo lentamente. – Mas a que propósito vem isso?
– O Rosh Hashanah é o Ano Novo judaico – explica o Gavin. – Temos a
tradição de ir até um local com água, como o mar, para realizarmos uma
pequena cerimónia chamada tashlich.
– És judeu? – pergunto.
– Por parte da minha mãe – responde, sorrindo. – Fui educado entre o
judaísmo e o catolicismo.
– Ah… – Olho-o fixamente, surpreendida. – Não sabia.
Ele encolhe os ombros.
– Seja como for, a palavra tashlich significa essencialmente «expulsar».
Percebo de repente que a palavra não me é estranha.
– Penso que a minha avó disse algo parecido ontem à noite.
Ele acena afirmativamente.
– A cerimónia consiste em lançar pedaços de pão para a água para
simbolizar a expulsão dos nossos pecados. Normalmente, utilizam-se
pedaços de pão, mas imagino que pedaços de tarte também funcionem. –
Faz uma pausa e acrescenta: – Seria isso que a tua avó estava a fazer?
Abano a cabeça.
– Não pode ser – digo. – A minha avó é católica. – No momento em que
profiro estas palavras, recordo-me subitamente do facto de duas pessoas de
Paris me terem sugerido hoje que contactasse as sinagogas. O Gavin parece
pouco convencido.
– Tens a certeza? Talvez não tenha sido sempre católica.
– Mas isso é uma loucura. Se ela fosse judia, contava-me.
– Não necessariamente – diz. – A minha avó materna, que eu tratava por
Nana, sobreviveu ao Holocausto – explica. – Esteve em Bergen-Belsen.
Perdeu os pais e um dos irmãos. Por influência dela, voluntariei-me para
ajudar sobreviventes quando tinha cerca de quinze anos. Alguns contam
que, durante um determinado período, abandonaram as suas raízes. Era
difícil manterem-se fiéis à sua identidade quando tudo o resto lhes tinha
sido retirado. Sobretudo às crianças acolhidas por famílias cristãs. Porém,
todos acabaram por regressar ao judaísmo. Como se regressassem a casa.
– A tua avó sobreviveu ao Holocausto? – repito, observando-o e
procurando assimilar este seu lado totalmente desconhecido. – Tu ajudaste
sobreviventes?
– Ainda ajudo. Faço voluntariado uma vez por semana no lar judaico de
Chelsea.
– Mas isso fica a duas horas de distância – digo.
Ele não parece incomodado.
– Foi lá que a minha avó viveu os seus últimos dias. Aquele lugar tem
um significado especial para mim.
– Uau! – Não sei exatamente o que dizer. – O que fazes por lá enquanto
voluntário?
– Aulas de Arte – diz sem rodeios. – Pintura. Escultura. Desenho.
Coisas assim. E também lhes levo biscoitos.
– Então é esse o destino das caixas de biscoitos que vens aqui buscar?
Ele assente e eu limito-me a fitá-lo. Compreendo agora que o Gavin
Keyes é mais complexo do que eu alguma vez imaginara. Que mais me
pode ter escapado?
– Tu és… artista? – acabo por perguntar.
O Gavin afasta o olhar e não responde.
– Ouve, sei que este assunto da tua avó deve ser difícil de digerir. E
posso estar totalmente enganado. Mas a verdade é que algumas pessoas que
escaparam antes de serem enviadas para os campos de concentração saíram
furtivamente da Europa com documentos falsos que os identificavam como
cristãos – explica. – É possível que a tua avó tenha chegado cá com uma
nova identidade?
Abano a cabeça de imediato.
– Não. Nem pensar. Ter-nos-ia contado. – Ocorre-me, porém, que essa
nova identidade explicaria o facto de todas as pessoas da lista terem o
apelido Picard quando o seu nome de solteira fora sempre, julgava eu,
Durand.
O Gavin coça a cabeça.
– A Annie tem razão, Hope. Tens de descobrir o que aconteceu à tua
avó.
Olá, Hope,
Boa sorte,
Gavin
Faço uma pausa e respiro fundo, preparando-me para o que aí vem, e,
em seguida, clico no primeiro link, que me leva até uma base de dados
composta por nomes de vítimas do Holocausto. Sob a caixa de pesquisa,
explicam que a base de dados inclui registos sobre metade dos seis milhões
de judeus assassinados durante a Segunda Guerra Mundial.
Repentinamente, sinto o estômago às voltas; já conhecia este número, mas
agora a questão é mais pessoal. Seis milhões. Meu Deus. Penso mais uma
vez que, seja como for, o Gavin deve estar enganado no que respeita à
Mamie. Tem de estar.
Ingredientes
1 quarta de manteiga amolecida (114 g)
2 chávenas cheias de açúcar mascavado
2 ovos grandes
1/2 colher de chá de extrato de baunilha
2 colheres de sopa de natas
3 chávenas de farinha
2 colheres de chá de fermento em pó
1/2 colher de chá de sal
1 chávena de arandos secos
1 chávena de pepitas de chocolate branco
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C.
2. Numa tigela grande, utilizando uma batedeira, misture a
manteiga e o açúcar mascavado, até obter uma massa
cremosa. Introduza os ovos, a baunilha e as natas,
continuando a bater.
3. Peneire a farinha, o fermento e o sal adicionando à mistura da
manteiga, uma chávena de cada vez. Bata até ter os
ingredientes bem misturados.
4. Adicione os arandos e as pepitas de chocolate. Mexa para os
distribuir uniformemente.
5. Utilizando uma colher de chá, coloque pequenas porções da
massa num tabuleiro, deixando espaço livre para
aumentarem de tamanho. Mantenha os biscoitos no forno
durante dez a treze minutos. Deixe-os arrefecer durante cinco
minutos no tabuleiro e, em seguida, passe-os para uma
grelha metálica.
Rose
Ingredientes
1 chávena e 1/2 de bolacha integral moída
1 chávena de açúcar granulado, em partes separadas
1 colher de chá de canela
6 colheres de sopa de manteiga sem sal (derretida)
2 x 8 onças (2 chávenas) de queijo-creme
1/4 de chávena de sumo de uva branca
Sumo e raspa de um limão
2 ovos
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C. Misture a bolacha moída com
meia chávena de açúcar, canela e manteiga derretida até
obter uma massa homogénea. Espalhe uniformemente numa
forma para tartes com 20 cm de diâmetro.
2. Leve a massa ao forno durante seis minutos. Em seguida,
retire-a do forno e deixe arrefecer.
3. Reduza a temperatura do forno para 150 °C.
4. Numa tigela de tamanho médio, bata o queijo-creme,
utilizando uma batedeira elétrica, até ficar suave. Continue a
bater introduzindo lentamente o açúcar restante. Adicione
gradualmente o sumo de uva, o sumo de limão, a raspa de
limão e os ovos e bata até a massa ficar bem homogénea.
5. Coloque a base de bolacha, depois de arrefecida, num
tabuleiro. Verta a mistura do queijo-creme sobre a base.
6. Leve ao forno durante quarenta minutos, ou até o centro da
base de bolacha estar bem cozinhada.
Rose
2 Esperança.
Capítulo 16
Ingredientes
2 chávenas de açúcar
4 ovos
2 colheres de chá de extrato de anis
3 chávenas de farinha (mais um pouco para moldar a massa)
3 colheres de chá de fermento
1 colher de chá de sal
1 colher de chá de sementes de anis
2 chávenas de açúcar em pó
1 colher de sopa de sementes de funcho
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
2. Numa tigela de tamanho médio, utilizando uma batedeira
manual, bata o açúcar, os ovos e o extrato de anis até obter
uma mistura homogénea.
3. Peneire a farinha, o fermento e o sal para um recipiente à
parte e adicione-os à mistura dos ovos, aproximadamente
uma chávena de cada vez, continuando a bater.
4. Adicione as sementes de anis e verifique se a mistura está
homogénea.
5. Em separado, numa tigela pouco funda, misture o açúcar em
pó com as sementes de funcho.
6. Com as mãos enfarinhadas, molde pequenas porções de
massa em forma de biscoitos. Depois, passe-os pela mistura
do açúcar e coloque-os num tabuleiro untado.
7. Leve os biscoitos ao forno durante doze minutos. Deixe-os
arrefecer no tabuleiro durante cinco minutos e, em seguida,
coloque-os para uma grelha metálica.
Rose
Nos dias seguintes, nada se altera. A Mamie não reage. O Gavin visita a
confeitaria todas as manhãs para tomar café e comer um bolo, perguntando-
me sempre pelo estado de saúde da minha avó. O Alain faz companhia à
Annie de manhã, ajuda-me durante as horas de serviço e, ao fim da tarde,
arquiteta com a minha filha mais uma série de telefonemas infrutíferos.
Depois de fecharmos a confeitaria, percorremos os três, durante meia hora,
o longo percurso até ao hospital de Hyannis para passarmos noventa
minutos à cabeceira da Mamie. O único lado positivo de toda esta rotina é o
facto de, felizmente, a época turística ter terminado e não haver, portanto,
muito trânsito na Estrada 6 quando caminhamos de e para a zona sudoeste
de Cape.
No quarto do hospital, o Alain segura a mão da Mamie e segreda-lhe
algumas palavras em francês, enquanto a Annie e eu nos sentamos em
cadeiras junto à cama. Por vezes, a Annie levanta-se num pulo e coloca-se
ao lado do Alain, alisando o cabelo da Mamie enquanto ele fala em voz
baixa. Não consigo associar-me a esses momentos; sinto-me estranhamente
vazia. A última pessoa em que confio está a eclipsar-se, e eu nada consigo
fazer para o evitar.
No domingo, fecho cedo, ao meio-dia, e o Alain pede-me boleia para o
hospital.
– Também queres ir? – pergunto à Annie.
Ela encolhe os ombros.
– Talvez mais logo. Quero telefonar ainda hoje a mais alguns Levys da
minha lista. Posso ficar em casa enquanto levas o tio Alain?
Hesito por instantes.
– Está bem. Mas não abras a porta a ninguém.
– Credo, mãe, já não sou uma criança – afirma, pegando no telefone.
No carro, a caminho de Hyannis, o Alain descreve-me um restaurante
parisiense de que ele e a Mamie gostavam antes da guerra. O dono do
restaurante ia sempre até à mesa deles, após a refeição, e preparava crepes
especiais para eles, com chocolate, açúcar mascavado e bananas. A Mamie
e o Alain soltavam risinhos e apontavam para os crepes enquanto o dono do
restaurante os envolvia em chamas à sua frente e depois fingia não as
conseguir apagar.
– Foi um período magnífico – diz o Alain. – Antes de se começar a
atribuir tanta importância às nossas convicções religiosas. Antes de tudo ter
mudado. – Faz uma pausa e acrescenta: – Na noite em que levaram a minha
família, passei a correr pelo restaurante. E o dono estava à porta, assistindo
à marcha de todas aquelas pessoas a caminho da morte. E sabes uma coisa?
Ele estava a sorrir. Por vezes, aquele sorriso ainda me assombra nos meus
pesadelos.
O Alain limita-se a olhar fixamente pela janela até ao fim da viagem.
No hospital, sento-me com o Alain, por instantes, à cabeceira da Mamie
enquanto ele lhe sussurra algumas palavras.
– Acha que ela o consegue ouvir? – pergunto antes de sairmos.
– Não sei – diz ele, sorrindo. – Mas sinto-me melhor se fizer alguma
coisa. E estou a recordar-lhe histórias da nossa família, histórias que quis
arredar dos meus pensamentos durante os últimos setenta anos. Acredito
que, se alguma coisa a fizer acordar, serão estas palavras. Quero que ela
saiba que o passado não está perdido, não está esquecido, apesar de ela ter
mudado de país para o tentar apagar.
Quando entro em casa, uma hora mais tarde, depois de deixar o Alain na
biblioteca a seu pedido, a Annie está sentada no chão, no centro da sala de
estar, com as pernas cruzadas e o telefone portátil ao ouvido, dizendo:
– Sim… Certo… Sim… Está bem.
Por momentos, os meus olhos iluminam-se; terá ela encontrado Jacob
Levy? Afinal, as palavras dela não seguem o guião habitual, aquele em que
pede desculpa por ter telefonado para o Levy errado. Contudo, perco a
esperança quando ela se vira e eu reparo na sua expressão.
– Sim, está bem – ouço-a dizer. – Tanto faz. – Carrega no botão para
desligar o telefone e atira-o violentamente para o chão.
– Querida? – pergunto timidamente. Detive-me na passagem entre a
cozinha e a sala de estar e agora fito-a com preocupação. – Era mais um
Levy?
– Não – diz.
– Um amigo teu?
– Não – repete com a voz mais tensa. – Era o pai.
– Muito bem – digo. – Queres falar sobre alguma coisa?
Permanece em silêncio durante bastante tempo, de olhos postos na
alcatifa, que não é aspirada há uma eternidade. Tratar da casa não é um dos
meus fortes. Porém, quando ela ergue o olhar na minha direção, parece tão
furiosa que eu, involuntariamente, dou um passo atrás.
– Afinal porque é que nos meteste nisto? – pergunta a Annie, irada.
Ela coloca os punhos cerrados sobre os pés, deixando cair os braços ao
lado das suas pernas magras, que ainda pertencem a uma criança e não a
uma jovem mulher. Eu pestanejo, surpreendida.
– A que te referes? – pergunto, mas logo me ocorre que, enquanto sua
mãe, deveria dizer-lhe que é inaceitável falar-me naquele tom. Contudo, já é
impossível sustê-la.
– Tudo! – grita.
– Querida, de que estás a falar? – inquiro cautelosamente.
– Nunca o vamos encontrar! Ao Jacob Levy! É impossível! E tu nem
queres saber!
Invade-me algum desalento. Falhei-lhe mais uma vez, pois devia tê-la
preparado melhor para a hipótese, mais do que provável, de todo este
esforço ser inútil porque o Jacob está morto ou desapareceu para não ser
encontrado. Sei que a Annie quer acreditar num verdadeiro amor que dura
para sempre – certamente para contrariar o facto de ter assistido na primeira
fila à derrocada do meu casamento – mas eu esperava não ter de lhe destruir
já as ilusões e explicar-lhe a verdade. Aos doze anos, também eu tinha fé no
verdadeiro amor. Só mais tarde percebi que não passa de uma fantasia.
– É claro que quero saber, Annie – começo, depois de engolir em seco.
– Mas é possível que Jacob não esteja…
Ela interrompe-me antes de eu poder concluir.
– Não é só isso! – exclama. Gesticula em todos os sentidos, com os seus
braços compridos e magros, parecendo não notar que o relógio de pulso se
prende por instantes ao cabelo. Acaba por soltá-lo violentamente e
estremece antes de prosseguir. – É tudo! Tu estragas tudo!
Procuro respirar fundo.
– Annie, se te referes aos dias que passei em Paris, já te disse o quanto
valorizo a tua atitude responsável durante a minha ausência.
Ela revira os olhos e bate com o pé esquerdo no chão.
– Nem sabes do que estou a falar! – diz, lançando-me um olhar
fulminante.
– Pronto, parece que sou mesmo uma idiota! – respondo. Sinto perder
finalmente a paciência. Há uma fronteira ténue entre a compreensão e a
irritação e, neste momento, percebo que estou lentamente a ultrapassá-la. –
O que fiz de mal desta vez?
– Tudo! – grita. O seu rosto fica mais vermelho e, por uma fração de
segundo, vem-me à memória uma imagem estranha, fugaz, em que, a meio
da noite, a seguro nos meus braços e lhe procuro mitigar as cólicas para que
o Rob, que tinha sempre de descansar para um qualquer processo
importante, pudesse dormir. Porque o deixei tratar-me assim? Não creio ter
dormido mais do que duas horas consecutivas nos primeiros três meses,
mas ele conseguiu sempre pelo menos seis horas de sono. Abano a cabeça e
volto a centrar-me na minha filha.
– Tudo? – pergunto, receosa.
– Tudo! – repete de imediato. – Não gostavas o suficiente do pai para
fazer funcionar o casamento! Não o amavas como a Mamie e o Jacob se
amavam! E agora a minha vida está arruinada! Por tua causa!
Sinto um murro no estômago e, por momentos, respiro a custo.
Continuo a olhá-la, atónita.
– De que estás a falar? – pergunto, quando recupero a voz. – Agora
responsabilizas-me pelo divórcio?
– Claro que sim! – grita. Coloca as mãos na anca e volta a bater com o
pé no chão. – Todos sabem que a culpa é tua!
Mais uma vez, as suas palavras atingem-me com uma violência
inesperada.
– Como?
– Se tivesses simplesmente amado o pai, ele não moraria agora do outro
lado da cidade nem teria uma namorada pateta que me odeia! – protesta a
Annie. Subitamente, tudo se torna mais claro. O problema não sou eu nem é
o Rob. O problema é tudo o que a nova namorada do Rob desperta na
Annie. E, apesar de a Annie me estar a agredir sem misericórdia, sinto-me
mais dorida por ela do que por mim.
– Porque dizes que a namorada do teu pai te odeia? – pergunto em voz
baixa.
– Isso interessa-te? – resmunga a Annie, esmorecendo repentinamente.
Arqueia as costas e cruza os braços sobre o peito, fitando o chão.
– Interessa-me porque te amo – digo, alguns segundos depois. – E o teu
pai também te ama. E essa mulher, seja lá quem for, se mostra que não
gosta de ti, só pode ser doida varrida.
– Tanto faz – atira a Annie. – O pai não pensa o mesmo. Acha que a
Sunshine é perfeita.
Procuro acalmar-me. Isto é típico do Rob. Ele comporta-se como um
menino; deixa-se hipnotizar durante algum tempo por coisas novas e
fulgurantes. Por carros. Casas. Roupas. Barcos. E, noutro tempo, por mim.
Conheço, porém, a realidade. Sei que as suas paixões são sempre
temporárias. Acontece que a Annie deveria ser uma paixão permanente na
sua vida.
– Tenho a certeza de que o teu pai não acredita que essa mulher seja
perfeita – digo. – Ele adora-te, Annie. Se ela for desagradável contigo, fala
com o teu pai. Ele resolverá a situação. – Ainda que, por estes dias, não
conte muito com o Rob, só posso esperar que defenda a nossa filha. A
Annie mantém os olhos pregados no chão.
– Eu contei-lhe – diz discretamente. A revolta desapareceu da sua voz e
os seus braços parecem franzinos e sem vida. Continua de cabeça baixa e
não me olha diretamente.
– E o que te disse ele?
– Disse que tenho de aprender a respeitar os mais velhos – conta a
Annie, respirando fundo. – E que devo aprender a conviver melhor com a
Sunshine.
Sinto o sangue a ferver e cerro os punhos. A Annie não é perfeita e eu
não excluo a possibilidade de ela dificultar a vida à namorada do pai.
Contudo, é inaceitável que o Rob tome o partido da sua nova conquista e
não da sua filha, sobretudo tendo em conta que a Annie não deve entender o
facto de ele ter esquecido tão rapidamente o nosso casamento.
– O que faz, em concreto, a Sunshine para te levar a pensar que não
gosta de ti? – pergunto cautelosamente.
A Annie solta um riso sarcástico, que a faz parecer muito mais velha e
mais forte do que é na realidade.
– O que é que ela não faz? – diz. Expira ruidosamente e desvia o olhar.
Quando volta a falar, soa apenas triste. – Ela nunca fala comigo. Conversa
com o pai como se eu fosse invisível ou coisa parecida. Por vezes, ri-se de
mim. Disse-me, um destes dias, que a minha roupa era rídicula.
– Ela disse-te que a tua roupa era rídicula? – repito, incrédula. – Utilizou
mesmo a palavra rídicula?
– Sim – confirma a Annie. – E quando, um dia, ela saiu, tentei falar com
o pai a esse respeito, convencida de que ele me entenderia. Pensei que ele,
tipo, percebia. Mas quando cheguei a casa nessa noite, vinda da confeitaria,
entrei na minha casa de banho e vi, ali mesmo, junto ao lavatório, um colar
de prata que ele tinha comprado para a Sunshine e um bilhete onde
escrevera Lamento que a Annie te tenha feito sentir culpada com as suas
palavras. Tratarei do assunto. Não quero que te sintas mal.
– Ele falou-lhe sobre a conversa que teve contigo? – pergunto, olhando-
a atentamente. A Annie acede.
– E ainda lhe comprou um presente – acrescenta, expelindo a última
palavra como se tivesse um sabor amargo. – Um presente. Para ela se sentir
melhor. E o que faz ela? Deixa o presente na minha casa de banho, como se
se tivesse enganado. Mas eu sei o que ela estava a fazer. Ela queria, tipo,
mostrar-me que o pai ficaria sempre do seu lado.
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – murmuro, obviamente
sem convicção. Sunshine parece ser uma víbora manipuladora. Não me
importo que ela queira dominar o meu ex-marido. Estou cansada de o
proteger e, na verdade, ele merece, por uma vez, ser a parte manipulada e
usada. Porém, não tolero que uma mulher magoe deliberadamente uma
criança de doze anos. E quando essa criança é a minha filha, perco a cabeça.
– Como reagiu o teu pai? – pergunto à Annie. – Disseste-lhe que
encontraste o colar?
Ela acena lentamente que sim e baixa os olhos.
– Disse que eu não devia mexer nas coisas da Sunshine – conta. – Tentei
explicar-lhe que ela deixara o colar na minha casa de banho, mas ele não
acreditou. Pensou que eu, tipo, lhe revirei a carteira ou algo parecido.
– Compreendo – digo com severidade. A seguir, respiro fundo. – Muito
bem. Em primeiro lugar, querida, o teu pai perdeu claramente o juízo. Não
há ninguém no mundo que possa relegar um filho para segundo plano.
Muito menos uma cabra chamada Sunshine.
A Annie parece escandalizada.
– Chamaste-lhe cabra?
– Nem mais – confirmo. – Não tenho dúvidas de que o é. E vou ter uma
conversa com o teu pai a este respeito. Sei que é difícil entender tudo isto
mas, na verdade, a situação nada tem a ver contigo. O problema é que o teu
pai é inseguro e tonto. Asseguro-te que, dentro de seis meses, a Sunshine
estará esquecida. Os interesses do teu pai são efémeros. Contudo, por agora,
é inadmissível que ele te trate desta forma ou deixe que uma fulana
qualquer o faça. E eu vou tratar desse assunto. Está bem?
A Annie observa-me, perplexa, sem saber se deve acreditar nas minhas
palavras.
– Está bem – acaba por dizer. – Vais mesmo falar com ele?
– Sim – asseguro. – Mas não gosto que me culpes por tudo o que corre
mal, Annie. Tens de parar com isso. Sei que estás inquieta, mas eu não sou
um saco de pancada.
– Eu sei – murmura.
– E eu não fui responsável pelo divórcio – afirmo. – O teu pai e eu
deixámos simplesmente de sentir amor um pelo outro. Errámos os dois.
Está bem? – Na verdade, não estou de todo convencida de que tenhamos
cometido os mesmos erros. Senti-me tratada como um capacho durante uma
década, acabando por cair na realidade e fazer-lhe frente. No final, a pessoa
que me pisara sem escrúpulos não gostou particularmente da autoestima
que o seu capacho entretanto adquirira. Porém, a Annie não precisa de saber
tudo isso. Quero que continue a gostar do pai, ainda que eu já não possa
fazer o mesmo.
– Não é essa a opinião do pai – murmura a Annie, baixando o olhar. –
Do pai e da Sunshine.
Abano a cabeça, aturdida.
– E qual é então a opinião do pai e da Sunshine?
– Garantem que tu mudaste – conta. – E que já não eras a mesma
pessoa. E ainda que, quando mudaste, deixaste de amar o pai.
O pai dela tem razão, naturalmente, num aspeto; eu mudei. Isso não
implica, porém, que o divórcio tenha sido provocado por mim. Apesar de
tudo, prefiro não partilhar esta ideia com a Annie. Em vez disso, limito-me
a dizer:
– Bom, acreditar num casal de idiotas é uma idiotice, não achas?
– Sim – ri-se ela.
– Muito bem – digo. – Vou conversar com o teu pai. Lamento que ele e
a namorada te estejam a fazer sofrer. E lamento que a atual situação da
Mamie te preocupe tanto. No entanto, Annie, nenhum desses problemas te
dá o direito de me ofenderes.
– Desculpa – balbucia.
– Eu sei – digo. Respiro fundo. Detesto ser a vilã, sobretudo num
momento em que ela enfrenta todo o tipo de contrariedades, mas, enquanto
sua mãe, não posso tolerar alguns comportamentos. – Menina, infelizmente,
estarás de castigo nos próximos dois dias. E não vais poder usar o telefone.
– Eu estou de castigo? – pergunta com um ar incrédulo.
– Sabes que não deves falar comigo nesses termos – digo – nem
descarregar os teus problemas na tua mãe. Sempre que alguma coisa te
preocupar, basta falares comigo, Annie. Sempre estive aqui para te ajudar.
– Eu sei. – Ela faz uma pausa e, em seguida, olha-me angustiada. –
Espera, isso quer dizer que não posso telefonar a mais Levys?
– Nos próximos dois dias, não – sentencio. – Podes retomar os
telefonemas na terça-feira à tarde.
Ela fica de queixo caído.
– Tu és tão má – afirma.
– Consta que sim – respondo. Ela brinda-me com um olhar furioso.
– Odeio-te! – atira.
– Sim, e tu também és um doce… – replico, suspirando. – Está na hora
de ires para o quarto. Preciso de ter uma conversa com o teu pai.
Quando abrando o carro junto à casa onde vivi, começo por reparar que
as camélias cor-de-rosa do jardim da frente, aquelas a que dediquei tanto
cuidado e afeto durante oito anos, desapareceram. Todas. Ainda aqui
estavam há poucas semanas, no dia da minha última visita.
Noto, em seguida, que há uma mulher no jardim, vestida com a parte de
cima de um biquíni cor-de-rosa e com uns calções de ganga rasgados,
apesar de, ao ar livre, não estarem mais de treze graus. É pelo menos uns
dez anos mais nova do que eu, e os seus cabelos louros compridos estão
apertados num rabo de cavalo demasiado alto que lhe deve provocar uma
enorme dor de cabeça. E espero que lhe provoque uma enorme dor de
cabeça. Tenho de concluir que se trata de Sunshine, a mulher que, por estes
dias, se dedica a torturar a minha filha. Desejo subitamente, mais do que
qualquer outra coisa no mundo, carregar a fundo no acelerador e passar-lhe
por cima, deixando-a esmagada contra o solo. Felizmente, não sou, na
verdade, uma assassina, e acabo por reprimir a minha fantasia. Ainda assim,
gostava muito de pelo menos lhe puxar o rabo de cavalo atrevido até ela
gritar.
Coloco a caixa de velocidades automática na posição de estacionamento
e retiro as chaves da ignição. Ela levanta-se e observa-me enquanto saio do
carro.
– Quem é você? – pergunta.
Uau, nota vinte em boas maneiras, penso.
– Sou a mãe da Annie – respondo severamente. – Deve ser a…
Raincloud3?
– Sou a Sunshine – corrige.
– Ah, evidentemente – digo. – O Rob está em casa?
Ela agita o rabo de cavalo sobre o ombro direito e depois sobre o ombro
esquerdo.
– Sim – acaba por dizer. – Está, tipo, lá dentro.
Bom, fala como uma rapariga de doze anos. Não admira que julgue ter
de competir com a minha filha; o seu nível de maturidade é claramente
semelhante. Suspiro e dirijo-me para a porta.
– Nem sequer me vai agradecer? – grita à distância.
Viro-me e brindo-a com um sorriso.
– Não, não vou.
Toco à campainha, e o Rob surge instantes depois, vestindo apenas
umas bermudas. Será o dia do naturismo? Não compreendem que as
temperaturas vão descer até aos cinco graus esta noite? Fica-lhe bem, ainda
assim, revelar-se algo constrangido quando me vê.
– Oh, olá, Hope – diz. – Recua alguns passos e agarra numa T-shirt do
cesto da roupa suja colocado na lavandaria com ligação ao hall. Veste-a
rapidamente. – Não esperava que fosses tu. Como está… a tua avó?
A sua preocupação, simulada ou não, surpreende-me
momentaneamente.
– Está bem – digo sem pensar. E depois abano a cabeça. – Não, não está.
Não sei porque disse o que disse. Ela ainda está em coma.
– Lamento ouvir isso – diz o Rob.
– Obrigada – respondo.
Por momentos, permanecemos os dois imóveis, olhando um para o
outro, até o Rob se lembrar das boas maneiras.
– Desculpa, queres entrar?
Aceno que sim e ele afasta-se, dando-me passagem. Entrar na minha
antiga casa assemelha-se a irromper pela minha antiga vida num episódio
de Quinta Dimensão. Tudo é igual, mas diferente. As janelas panorâmicas
das traseiras proporcionam-nos a mesma vista da baía, mas as cortinas são
diferentes. A escadaria descreve a mesma curva, mas a carteira pousada no
patamar não é a mesma. Abano a cabeça e sigo-o até à cozinha.
– Queres chá gelado, ou qualquer outra coisa? – oferece.
– Não, obrigada – digo, erguendo a mão. – Não posso demorar-me.
Tenho de visitar a Mamie. Antes disso, porém, preciso de falar contigo.
O Rob suspira e coça a cabeça.
– Ouve, vens falar-me novamente sobre a maquilhagem? Creio que
estás a exagerar, mas tentei ser inflexível, está bem? Ela chegou a casa, há
dias, com bâton nos lábios, e eu forcei-a a limpá-lo e a entregar-me a
embalagem.
– Agradeço – digo. – Mas não é esse o motivo da minha visita.
– Qual é, então? – pergunta, abrindo os braços. Por instantes,
continuamos de pé, fitando-nos mutuamente, sem que nenhum dos dois se
mostre disposto a sentar-se ou a baixar a guarda.
– É a Sunshine – digo num tom de voz inexpressivo.
Ele pestaneja algumas vezes e eu fico com a certeza, depois de observar
esta simples reação, de que ele percebe o que vou dizer e sabe que tenho
razão. É interessante concluir que doze anos com uma pessoa são
suficientes para decifrar todos os seus pequenos sinais de fragilidade.
Ele ri-se, inquieto.
– Hope, vá lá, a nossa relação já acabou – graceja. – Não podes ter
ciúmes da minha nova vida.
Eu mantenho-me impassível.
– A sério, Rob? Achas que é isso que me traz cá?
Ele sorri afetadamente mas, percebendo que eu não desvio o olhar, a
expressão forçada desaparece-lhe do rosto e ele encolhe os ombros.
– Não sei. O que te traz cá?
– Ouve – digo. – Não me interessa quem são as tuas namoradas. No
entanto, quando isso afeta negativamente a Annie, tenho de intervir. E tu
tens uma relação com uma mulher que, ao que parece, sente ter de disputar
com a Annie a tua atenção.
– Elas não disputam a minha atenção – diz o Rob. Observando que ele
esboça um ligeiro sorriso, pergunto-me se, afinal, ele sabe tudo o que se
passa e está, de alguma forma doentia, a alimentar o seu ego com a
situação. Arrependo-me, pela milésima vez, de não ter percebido, aos vinte
e poucos anos, que ter uma filha com um homem egoísta significava
sujeitá-la a um pai egoísta. E Annie está a pagar por esse erro.
Fecho os olhos por momentos, tentando invocar alguma paciência.
– A Annie falou-me do colar de prata – digo – que encontrou junto ao
lavatório na casa de banho dela, onde foi claramente deixado, com o teu
bilhete, pela Sunshine para mostrar a Annie que tu escolhes a tua namorada
em detrimento da tua filha.
– Não escolho ninguém – protesta o Rob, mas com um ar embaraçado.
– Escolhes – digo –, e aí reside o problema. Tu és o pai da Annie. E isso
conta muito mais do que uma relação qualquer com uma pessoa que
conheces há trinta e cinco segundos. Devias escolher a Annie. Sempre. Em
qualquer situação. E, quando a Annie não tem razão, deves, de facto, alertá-
la, mas não de uma forma que a faça sentir-se preterida em favor de outra
pessoa. Repito, és o pai dela, Rob. E, se não começares a comportar-te
como tal, vais deixá-la arrasada.
– Não é esse o meu objetivo – diz ele. A sua voz um tanto contristada
denuncia, apesar de tudo, alguma sinceridade.
– Precisas igualmente de saber como ela é tratada pelas pessoas que
deixas entrar na tua vida – continuo. – Se tens uma namorada que procura
deliberadamente magoar a tua filha, não te parece que alguma coisa está
errada? Em vários sentidos?
O Rob baixa os olhos e abana a cabeça.
– É impossível conheceres toda a situação. – Ele afaga a nuca e
permanece longos minutos a olhar pela janela panorâmica. Faço o mesmo e
avisto um grupo de barcos à vela, brancos, que balançam na água no
horizonte azul, perfeito, e pergunto-me se ele está a recordar, como eu, os
primeiros tempos do nosso casamento, em que ele e eu navegávamos no
nosso barco ao largo de Boston sem nenhuma preocupação. Pensando
melhor, ocorre-me que, nesse período, eu estava grávida e,
consequentemente, muito atreita a enjoos, pelo que o Rob se limitava a
olhar para o lado quando eu vomitava borda fora. Sempre conseguiu o que
queria – a mulher complacente e solícita ao seu lado, criando um quadro
perfeito – e sempre remediou tudo com um sorriso. Foi essa a essência de
todo o nosso casamento? Será possível resumi-lo apenas a uma imagem em
que estou a vomitar e o Rob finge não ver?
Voltamo-nos em simultâneo, e eu interrogo-me se, de algum modo, ele
pressente o que estou a pensar. Surpreendentemente, ele baixa a cabeça e
diz:
– Desculpa. Tens razão.
A minha perplexidade é tal que não consigo encontrar palavras para lhe
responder. Não sei se alguma vez, desde que o conheço, deu o braço a
torcer.
– Muito bem – digo por fim.
– Eu trato desse assunto – assegura. – Lamento ter magoado a Annie.
– Está bem – respondo, genuinamente grata. Não a ele, que foi quem
primeiro errou e afligiu a minha filha. Estou grata pelo facto de a Annie
poder agora deixar de sofrer e ainda ter um pai que se preocupa com ela,
por pouco que seja. O Rob precisa apenas de encorajamento para seguir o
caminho mais correto.
Sinto-me ainda abençoada, mais do que nunca, por estar fora desta vida
com o meu ex-marido. O meu erro não foi pôr termo ao casamento; foi
iludir-me e acreditar, no início, que casar-me com ele era uma boa ideia.
Recordo subitamente as histórias que o Alain me contou sobre a Mamie
e o Jacob e dou-me conta, com uma terrível clareza, de que nunca vivi algo
sequer parecido. Nem com o Rob, nem com ninguém. Não sei sequer se
alguma vez acreditei no amor e, por conseguinte, talvez nunca tenha sentido
a sua falta. As histórias do Alain entristecem-me, não apenas pela Mamie,
mas também por mim.
Sorrio para o Rob e, nesse momento, sinto-me grata por outra coisa. Por
ele me ter libertado. Por ele ter sentido a necessidade de ter uma aventura
amorosa com uma rapariga de vinte e dois anos. Por ele ter assumido a
responsabilidade de pôr fim ao nosso casamento. Tudo isto significa que há
uma pequena possibilidade, por remota que seja, de eu ainda voltar a ser
feliz. Preciso, todavia, de encontrar uma forma de acreditar no tipo de amor
que o Alain me descreve.
– Obrigada – digo ao Rob. E, sem dizer mais uma palavra, dou meia-
volta e encaminho-me para a porta. Sunshine está de pé no jardim, com as
mãos nas ancas, aparentemente furiosa, quando saio pela porta da frente.
Pergunto-me se ela terá permanecido naquela posição desde o nosso
diálogo, tentando encadear uma frase para me responder. Se for o caso, não
me posso esquecer de felicitar o Rob por ter escolhido uma superestrela
intelectual.
– Sabe, não pode ser mal-educada comigo na minha própria casa –
protesta Sunshine, agitando agora o cabelo para trás e para a frente como
um cavalo teimoso e inquieto.
– Terei isso em consideração se alguma vez visitar a sua casa – digo-lhe
alegremente. – Mas tendo em conta que esta casa não é sua e é o sítio onde
vivi durante a última década, sugiro que guarde as suas opiniões para si.
– Bem, agora já não vive – diz, meneando a anca de forma estranha e
lançando-me um sorriso pretensioso, como se tivesse acabado de proferir
palavras devastadoras. A verdade é que se limitou a reforçar o meu novo
sentimento de enorme liberdade, e isso faz-me sorrir.
– Tem razão – respondo. – De todo. Graças a Deus. – Atravesso o
jardim, pisando a terra onde cresciam as minhas adoradas rosas, até
ficarmos frente a frente. – Mais uma coisa, Sunshine – digo calmamente. –
Se fizer seja o que for que magoe a minha filha, vai arrepender-se para o
resto da vida.
– É louca – murmura, recuando um passo.
– Serei mesmo? – pergunto energicamente. – Bom, se me provocar, vai
ficar a saber.
Enquanto me afasto, ouço-a resmungar atrás de mim. Entro no carro,
ligo o motor e conduzo até à estrada principal. Sigo para oeste, na direção
de Hyannis, pois tenciono passar o resto do dia com a Mamie. Começo a
entender as suas lições sobre o amor e só agora me apercebo de que elas me
fazem muita falta.
3 Nuvem negra.
Capítulo 19
MUFFINS
Ingredientes
Cobertura Streusel (ver receita abaixo)
1/2 chávena de manteiga
1 chávena de açúcar granulado
2 ovos grandes
2 chávenas de farinha
2 colheres de chá de fermento
1/2 colher de chá de sal
1/4 de chávena de leite
1/4 de chávena de sour cream
1 colher de chá de extrato de baunilha
2 chávenas de mirtilos
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C. Prepare doze formas para
queques forradas de papel.
2. Prepare o Streusel seguindo as instruções abaixo. Coloque-o
à parte.
3. Numa tigela grande, utilizando uma batedeira manual, bata a
manteiga e o açúcar até obter uma mistura cremosa.
Adicione os ovos e bata até ter os ingredientes bem ligados.
4. Numa tigela separada, misture a farinha, o fermento e o sal.
Adicione gradualmente os ingredientes à mistura de
manteiga com açúcar, alternando com o leite, o sour cream e
a baunilha. Bata apenas até ter todos os ingredientes bem
misturados.
5. Acrescente lentamente os mirtilos.
6. Se desejar muffins maiores, encha as formas até cima.
Polvilhe generosamente com o Streusel destinado à
cobertura.
7. Leve ao forno durante vinte e cinco a trinta minutos ou até
verificar, com uma faca, que o interior dos muffins está
suficientemente cozido. Deixe arrefecer os muffins durante
dez minutos e, em seguida, passe-os para uma grelha
metálica para arrefecerem totalmente.
COBERTURA STREUSEL
Ingredientes
1/2 chávena de açúcar granulado
1/4 de chávena de farinha
1/4 de chávena de manteiga muito fria, cortada em cubos
pequenos
2 colheres de chá de canela
Preparação
Combine todos os ingredientes num robô de cozinha e triture-os
com vários movimentos rápidos até obter migalhas espessas e
consistentes. Polvilhe-as sobre os muffins antes de os levar ao
forno, seguindo as instruções da receita anterior.
Rose
Ingredientes
2 quartas de manteiga sem sal (228 g)
1 chávena e 1/2 de açúcar mascavado comprimido com firmeza
no recipiente
2 ovos grandes
1 colher de chá de extrato de amêndoa
2 chávenas e meia de farinha
1 colher de chá de fermento em pó
1 colher de chá de sal
1 chávena de açúcar com canela (3/4 de açúcar granulado com
1/4 de canela)
Preparação
1. Numa tigela grande, bata a manteiga e o açúcar mascavado
até obter uma mistura cremosa. Adicione os ovos e o extrato
de amêndoa e bata até obter uma massa homogénea.
2. Peneire a farinha, o fermento e o sal para um recipiente à
parte e adicione-os à massa, cerca de meia chávena de cada
vez, batendo após introduzir cada porção, mantendo sempre
todos os ingredientes bem ligados.
3. Divida a massa em cinco partes. Em seguida, dê-lhes a forma
de pequenos rolos, envolva cada um em película aderente e
coloque-os no frigorífico. Retire-os quando a massa estiver
firme.
4. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
5. Deite açúcar com canela num prato. Retire a película dos
rolos e passe-os sobre o açúcar até estarem uniformemente
revestidos.
6. Corte os rolos em fatias de 7 milímetros de espessura e
coloque-as num tabuleiro devidamente untado. Leve ao forno
durante dezoito a vinte minutos.
7. Deixe-as arrefecer durante cinco minutos no tabuleiro e, em
seguida, passe-as para uma grelha metálica para
arrefecerem totalmente.
Rose
Num dia já muito distante, tinha Rose quatro anos, os seus pais
levaram-na, juntamente com a sua irmã Hélène, a Aubergenville, uma
localidade não muito distante de Paris, para desfrutarem de uma
semana no campo. Naquele verão de 1929, a sua mãe estava no final da
gravidez; Claude nasceria apenas seis semanas mais tarde. Contudo,
aqueles momentos aprazíveis passados ao sol pertenciam apenas a Rose
e a Hélène, de quatro e cinco anos, únicas destinatárias da atenção e do
afeto dos seus pais.
Hélène fora incumbida de olhar pela sua irmã mais nova, enquanto
os pais bebiam serenamente vinho branco no terraço da pequena casa
que haviam alugado a amigos por uma semana. Não viram Hélène
levar Rose, contornando a casa, até ao pequeno riacho que fluía num
murmúrio.
– Vamos para a água – disse Hélène, puxando a irmã pela mão.
Rose hesitou. A Maman e o Papa vão zangar-se, pensou. Mas Hélène
insistiu, lembrando a Rose as histórias que a mãe lhes lia, quando se
deitavam, acerca da família de patos que vivia ao longo das margens do
Sena. – Os patos estão sempre a nadar e corre tudo bem – afiançou-lhe
Hélène. – Não sejas tão medrosa, Rose.
E Rose decidiu então acompanhar a sua irmã e entrar na água.
Contudo, a superfície calma era enganadora; havia uma forte corrente
no fundo e, logo que Rose deu os primeiros passos dentro de água,
sentiu a corrente sugar-lhe os dedos dos pés, puxá-la para baixo, levá-la
para longe. Ela não sabia nadar. Subitamente, deu consigo debaixo de
água, empurrada para outro mundo onde quase não havia ar nem som.
Tentou gritar, acabando apenas por encher os pulmões de água. Acima
da superfície, tudo parecia escuro e desconhecido. Via uma luz distante,
muito acima dela, mas não parecia conseguir alcançá-la. Os seus
membros pesavam-lhe, não se moviam, e, nestas estranhas profundezas
aquáticas, ela sentiu o tempo suspenso. Até ao momento em que o pai a
trouxe novamente à superfície, mesmo a tempo, depois de ouvir os
gritos da irmã, Rose tivera a certeza de que iria desaparecer para
sempre naquele mundo turvo e emudecido.
Era assim que Rose se sentia, tanto tempo depois, sob o coma em
que se encontrava havia duas semanas. Estava ciente de que existia
uma superfície – vozes e sons, distantes e abafados; luz e movimento
muito distantes. Sentia os membros pesados, tal como naquele dia, no
riacho de Aubergenville, e sabia que o pai já partira há muito; não
seria ele a retirá-la deste terrível mundo sombrio. Estava sozinha e
continuava a não saber nadar.
Naquele dia, em Aubergenville, ela desejara ser salva. Quisera
encontrar a superfície, regressar à vida. Agora, porém, não sentia
necessariamente o mesmo. Talvez fosse chegado o momento de se
resignar. Talvez fosse chegado o momento de se afastar,
paulatinamente. Talvez as profundezas turvas lhe reservassem algo
mais do que a superfície luminosa que mal distinguia.
Sabia que Hope estava lá em cima, à superfície. E Annie também.
Mas elas ficariam bem. Hope era forte, mais forte do que julgava, e
Annie estava a tornar-se numa jovem excecional. Rose não podia
permanecer com elas eternamente, protegê-las para sempre.
Talvez tivesse chegado a sua hora. Talvez ele estivesse ali, algures
nas profundezas, neste mundo indistinto que parecia existir entre a
vida e a morte. Ela sentia a falta da observação das estrelas, das suas
estrelas, e, sem o céu para a abrigar todas as noites, para lhe recordar
as pessoas que ela tanto amara, sentia-se só e com frio.
Rose tinha a certeza de que também estava a morrer; começava a
ouvir os fantasmas do passado. Foi assim que compreendeu que a sua
vida se aproximava do fim, pois ouvia a voz do irmão Alain, agora
adulta e profunda. Na imaginação dela, a sua voz seria assim se ele
tivesse sobrevivido durante a guerra e pudesse ter crescido e tornar-se
adulto.
«Foste tu que me salvaste, Rose», repetia consecutivamente a voz
distante na língua materna de ambos. «C’est toi qui m’a sauvé, Rose.»
A voz que habitava a mente de Rose gritou: «Eu não te salvei!
Deixei-te morrer! Sou cobarde!» Contudo, as palavras não lhe
chegavam aos lábios e ela sabia que, mesmo que o fizessem, se
perderiam nas profundezas deste mundo sufocado. Limitava-se a
escutar, pois, a voz perseverante do seu querido irmão.
– Ensinaste-me a acreditar – sussurrou ele repetidamente. – Não te
sintas culpada. Foste tu que me salvaste, Rose.
Ela perguntava a si mesma se esta era a absolvição que procurara
durante toda a sua vida, mesmo convencida de que não a merecia. Ou
seria apenas mais um efeito da demência que sabia estar a consumir-
lhe o cérebro? Já não confiava nos seus olhos, nos seus ouvidos, tantas
vezes alheados da realidade ou das memórias autênticas.
E, quando ele lhe começou a segredar «Tens de acordar, Rose, a
Hope e a Annie podem ter encontrado o Jacob Levy», ela soube que
perdera totalmente a lucidez, pois ouvia o impossível. Jacob morrera.
Muitos anos antes. Hope nunca o viria a conhecer. Rose nunca o
voltaria a encontrar.
Se fosse possível derramar lágrimas naquele mar profundo e turvo,
Rose teria chorado.
Capítulo 23
Após uma passagem pelo hospital a caminho de casa, numa curta visita
à Mamie, a Annie deita-se e eu sento-me na cozinha com o Alain, bebendo
um descafeinado e explicando-lhe o que Elida e a avó nos tinham relatado.
– Besa – diz ele pensativamente. – Que maravilhoso conceito. A
obrigação de ajudar o próximo. – Mexe devagar o seu descafeinado e toma
um gole. – Viajas então amanhã para Nova Iorque? Sozinha?
Aceno que sim mas, sentindo-me um tanto irresponsável, corrijo-me
rapidamente.
– Pensei perguntar ao Gavin se quererá vir comigo. Apenas porque ele,
afinal, nos ajudou muito no início desta procura.
– É uma ideia sensata – diz o Alain, sorrindo. Faz uma pausa e, em
seguida, acrescenta: – Sabes, não é nenhum crime apaixonares-te pelo
Gavin, Hope.
A sua frontalidade sobressalta-me de tal forma que me engasgo com o
café que acabei de engolir.
– Não estou apaixonada pelo Gavin – protesto entre a tosse.
– É claro que estás – diz o Alain. – E ele por ti.
Rio-me destas palavras, mas sinto o rosto muito corado e, subitamente,
as palmas das mãos transpiradas.
– Isso é uma loucura!
– Será mesmo? – pergunta o Alain.
Abano a cabeça.
– Bom, em primeiro lugar, não temos nada em comum.
– Têm muito em comum – diz o Alain, rindo-se. – Vejo a maneira como
falam um com o outro. A maneira como ele te faz rir. A maneira como
conseguem conversar sobre qualquer assunto.
– Isso acontece apenas porque ele é simpático – resmungo.
O Alain coloca a sua mão sobre a minha.
– Ele preocupa-se contigo. E, reconheças ou não, tu também te
preocupas com ele.
– Ainda não me falou do que temos em comum – replico teimosamente.
– Ele gosta da Annie – diz o Alain delicadamente. – Não me vais dizer
que não têm isso em comum.
Faço uma pausa antes de aceder.
– Sim – admito. – Ele gosta da Annie, de facto.
– Não é todos os dias que se encontra um homem assim – diz o Alain. –
Pensa na forma como ele a ajudou quando estávamos em Paris e a Rose foi
internada no hospital. Ele esteve lá para a ajudar. E para te ajudar a ti.
Concordo novamente.
– Bem sei. É boa pessoa.
– É mais do que isso – declara o Alain. – Porque não acreditas nisso?
Encolho os ombros e baixo os olhos.
– Para começar, ele é sete anos mais novo do que eu – murmuro.
O Alain solta uma risada.
– A tua avó casou-se com um cristão apesar de ser judia. E ainda agora
visitaste uma mulher casada e feliz com um homem judaico-cristão, ainda
que seja muçulmana. Se é possível superar algo tão significativo como as
diferenças religiosas, achas que sete anos têm alguma importância?
Volto a encolher os ombros.
– Tudo bem. Mas, além do mais, eu tenho uma filha.
O Alain olha-me atentamente.
– Com certeza que sim. Só não entendo porque utilizas esse facto como
justificação.
– Bom, por um lado, ele tem apenas vinte e nove anos. Não lhe posso
pedir que se responsabilize por uma adolescente.
– Penso que nunca o fizeste – diz o Alain –, mas ele já está presente na
vida dela, assumindo essa responsabilidade. Não deverá ser ele a tomar essa
decisão?
Baixo a cabeça.
– Mas a minha mãe sempre colocou os homens em primeiro lugar, sabe?
Eu sentia permanentemente que, para ela, eu era menos importante do que
eles. A sua vida sempre girava em torno da pessoa com quem tinha uma
relação. Prometi a mim mesma que a minha filha nunca, mas nunca, se
sentiria assim.
– Não és a tua mãe – afirma o Alain, momentos depois.
– E se eu me transformar no que ela foi? – pergunto em voz branda. – E
se, agora que estou divorciada, fizer exatamente isso? Não posso seguir esse
caminho. Tenho de pôr a Annie em primeiro lugar, aconteça o que
acontecer.
– Abrires-te a outra pessoa não implica abandonar a Annie – diz o Alain
cautelosamente.
Sinto, surpreendida, as lágrimas deslizarem-me pelo rosto.
– Mas e se ele me fizer sofrer? – pergunto bruscamente. – E se eu o
deixar entrar na minha vida e tiver outro desgosto? E se ele fizer sofrer a
Annie? Ela já passou muito com o pai; eu ficarei certamente destroçada se
também a desiludir.
O Alain bate ao de leve na minha mão.
– É verdade, correrás um risco – afirma. – Mas a vida implica correr
riscos. Se assim não fosse, como conseguiríamos viver?
– Mas eu estou bastante feliz – asseguro-lhe. – Talvez seja suficiente.
Como pode saber que o Gavin não vai alterar tudo isso?
– Não posso – diz o Alain. – Mas só há uma maneira de o descobrir. Ele
levanta-se e vai buscar o meu telefone ao balcão, onde o deixei a carregar a
bateria. – Telefona-lhe. Convida-o a ir contigo amanhã. Não tens de tomar
decisões já. Mas abre a porta, Hope. Abre a porta e deixa-o entrar.
Recebo o telefone das mãos dele e respiro fundo.
– Está bem.
Passa pouco das dez horas quando nos livramos finalmente do trânsito,
saindo da Franklin Roosevelt Drive em direção à Houston Street, em
Manhattan. O Gavin orienta-se agora pelo GPS, e eu olho em redor
enquanto ele serpenteia pelas ruas, evitando à justa os peões e os táxis
parados.
– Detesto conduzir em Nova Iorque – diz, mas com um sorriso.
– És um especialista – digo. Fiz um estágio de verão aqui, nos tempos
da universidade, e regressei posteriormente algumas vezes, mas há mais de
uma década que não visitava Nova Iorque. Tudo tem uma aparência
diferente. A cidade parece agora mais limpa.
– Segundo o GPS, estamos quase lá – anuncia o Gavin após alguns
minutos. – Vamos só procurar um sítio para estacionar.
Encontramos um parque, estacionamos e encaminhamo-nos para a
saída. Quando o Gavin recebe o talão do funcionário, eu mudo
nervosamente o peso do corpo de um pé para o outro. Estamos a apenas
alguns quarteirões da última morada conhecida do Jacob Levy. É possível
que estejamos frente a frente dentro de dez minutos.
O Gavin entrega-me um mapa que imprimiu a partir da Internet. Inclui
uma estrela que assinala a extremidade sul da Battery Place, e eu apercebo-
me, estremecendo, de que o Jacob vive muito perto do Ground Zero.
Interrogo-me se testemunhou a tragédia do 11 de Setembro. Pestanejo
algumas vezes e procuro acalmar-me. Olho para norte, para o espaço vazio
da linha do horizonte onde se erguia o World Trade Center, e sinto um
desalento profundo.
– Esta era a minha zona preferida da cidade – digo ao Gavin quando
começamos a caminhar. – Trabalhei aqui um verão, durante o curso, para
um escritório de advogados. Aos fins de semana, costumava apanhar o
metro nas linhas N ou R, ia até ao World Trade Center, bebia uma Coca-
Cola na zona da alimentação e, em seguida, descia a Broadway até ao
Battery Park.
– Oh yeah? – diz o Gavin, fazendo-me sorrir.
– Costumava olhar para a Estátua da Liberdade e pensar como o mundo
era enorme para lá da Costa Leste. Refletia sobre todas as opções que tinha,
todas as coisas que poderia ainda fazer com a minha vida. – Calo-me e
baixo os olhos.
– Devia ser agradável – diz o Gavin.
Abano a cabeça.
– Eu era uma miúda tonta – murmuro instantes depois. – Parece que a
vida não é tão maravilhosa como eu julgava.
O Gavin detém-se e coloca a mão no meu braço, forçando-me a parar
também.
– O que é que queres dizer?
Encolho os ombros e olho em meu redor. Sinto-me um pouco idiota, de
pé, num passeio de Manhattan, com o Gavin a fitar-me tão intensamente.
Porém, ele não desvia o olhar, aguardando a minha resposta, pelo que acabo
por levantar a cabeça.
– Esta não é a vida que pensei vir a ter – digo.
O Gavin abana a cabeça.
– Hope, isso nunca acontece. Sabes isso, não sabes? A vida nunca é o
que planeamos.
Solto um suspiro. Não espero que me entenda.
– Gavin, tenho trinta e seis anos, e nada do que desejei na vida se
concretizou – tento explicar. – Por vezes, quando acordo, penso Como vim
aqui ter? É como se, um belo dia, tivesse percebido que já não sou nova,
que já fiz as minhas escolhas e que é tarde de mais para mudar seja o que
for.
– Não é tarde de mais – diz o Gavin. – Nunca é. Mas conheço essa
sensação.
– Como? – replico num tom mais severo do que pretendia. – Tens vinte
e nove anos.
– Não há uma idade mágica em que ficamos sem opções – diz, após
uma risada. – Tens tantas possibilidades de mudar a tua vida como eu.
Estou apenas a dizer que ninguém vive a vida que imaginou. É a forma
como encaramos as adversidades que determina se somos felizes ou não.
– Tu és feliz – contraponho, percebendo, mais uma vez, que o meu tom
de voz sugere uma acusação em vez de uma afirmação. – Melhor dizendo,
pareces ter tudo o que queres.
Ele ri-se novamente.
– Hope, achas mesmo que, em criança, eu sonhava ser um faz-tudo?
– Não sei – murmuro. – Sonhavas?
– Não! Queria ser artista. Era o miúdo mais palerma do mundo;
costumava pedir insistentemente à minha mãe que me levasse ao Museu de
Belas-Artes, em Boston, para poder observar os quadros. Dizia-lhe que me
mudaria para França e seria pintor, como Degas ou Monet. Eram os meus
preferidos.
– Querias ser pintor? – pergunto, incrédula. Retomamos a nossa
caminhada em direção à possível morada do Jacob Levy. O Gavin ri-se
entre dentes e baixa os olhos para encontrar os meus.
– Tentei até entrar na SMFA.
– SMFA?
– Ah, vejo que não és grande apreciadora de Arte – diz o Gavin,
piscando-me o olho. – É a escola do Museu de Belas-Artes de Boston. –
Faz uma pausa e encolhe os ombros. – Tinha notas suficientes, um bom
portefólio, mas não tive direito a bolsas de estudo que chegassem para
pagar o curso. A minha mãe não tinha recursos suficientes e eu não queria
pedir não sei quantos empréstimos e endividar-me para o resto da vida. E
aqui estou.
– Então nunca tiraste um curso universitário?
– Ainda tirei – ri-se. – Estudei na Salem State University como bolseiro.
Formei-me em Educação, achando que, se não podia ser artista, conseguiria
pelo menos ser professor de Arte.
– Foste professor de Arte? – pergunto. O Gavin aquiesce e eu
acrescento: – E o que aconteceu? Porque já não és? – Mordo a língua,
evitando dizer que agora é apenas um faz-tudo.
Ele encolhe os ombros.
– Isso não me fazia feliz. Trabalhar com as mãos preenche-me muito
mais. Percebi que não poderia ser artista no sentido mais tradicional. Afinal,
com ou sem curso, não sou nenhum Miguel Ângelo. Mas senti que poderia
criar outras obras de arte se construísse coisas úteis para as pessoas.
– Mas tu consertas tubos e coisas assim – digo em voz baixa.
– Sim – ri-se. – Porque isso faz parte do meu trabalho. Mas também
construo terraços e pinto casas, instalo janelas e portadas e renovo cozinhas.
Posso embelezar o que me rodeia, e isso faz-me feliz. Penso que estou a
transformar a cidade numa gigantesca obra de arte, uma casa de cada vez.
Lanço-lhe um olhar incrédulo.
– Estás a falar a sério?
– Não era o que sonhava em miúdo – diz, encolhendo os ombros. – Mas
concluí que só me senti eu mesmo quando fui para Cape. A vida não
funciona como planeamos, mas talvez acabe por fazer sentido. Entendes?
Aceno lentamente com a cabeça.
– Acho que entendo, sim. – Ele tomou a decisão de procurar a sua
identidade e está satisfeito com o que encontrou. Pergunto-me se algum dia
conseguirei fazer o mesmo. Hoje, encaro a vida como uma série de portas
fechadas; nunca me havia ocorrido que, em alguns casos, me bastará abri-
las. – Não sabia nada disto a teu respeito – digo em voz baixa, após uma
pausa.
– Nunca perguntaste – diz com naturalidade. Eu baixo os olhos e engulo
em seco.
Chegamos finalmente à morada de Battery Place. Observo o edifício,
que exibe uma fachada de tijolo em estilo antigo e parece ter uns doze
andares. É ensombrado pelos edifícios a norte, mas possui uma qualidade
encantadora e tradicional. É com sobressalto que me apercebo pouco depois
de que me faz lembrar, de certo modo, os edifícios franceses.
– É aqui – diz o Gavin. Olha para mim, sorrindo. – Estás preparada?
Aceno que sim. O meu coração bate freneticamente. Mal posso crer que
podemos deparar-nos com o Jacob a qualquer momento.
– Estou preparada.
Segundo o pequeno papel de Elida, Jacob reside no apartamento 1004,
pelo que experimentamos tocar primeiro no respetivo botão. Não obtendo
resposta, o Gavin encolhe os ombros e carrega aleatoriamente nos restantes
botões até ouvirmos o zumbido da porta da frente.
– Voilà – diz ele, segurando a porta para me dar passagem.
No interior, percorremos o átrio pouco iluminado que conduz
diretamente a uma escadaria estreita. Olho em redor.
– Não há elevador? – pergunto.
O Gavin coça a cabeça.
– Não há elevador. Bolas, é mesmo estranho.
Iniciamos a subida e, chegados ao quinto andar, sinto-me envergonhada
quando dou por mim ofegante.
– Talvez devesse praticar mais exercício – observo. – Estou cansada.
Parece que nunca subi umas escadas.
O Gavin ri-se atrás de mim.
– Talvez. Podes estar cansada, não me parece que precises de fazer
muito exercício.
Olho para trás, com o rosto muito vermelho, e ele limita-se a abrir um
sorriso. Abano a cabeça e continuo a subir, mas sinto-me lisonjeada.
Alcançamos finalmente o décimo andar e eu, ansiosa por saber se o
Jacob ainda vive no prédio, não me dou ao trabalho de recuperar o fôlego
antes de bater à porta do número 1004. Ainda respiro com dificuldade
quando a porta se abre, revelando uma mulher sensivelmente da minha
idade.
– Posso ajudá-la? – pergunta ela, olhando alternadamente para o Gavin e
para mim.
– Procuramos Jacob Levy – diz o Gavin, percebendo certamente que eu
não consigo dizer seja o que for.
A mulher abana a cabeça.
– Não vive aqui ninguém com esse nome. Lamento.
Esta notícia é devastadora.
– Um homem com oitenta e muitos anos? Nascido em França?
– Não me diz nada – diz ela, encolhendo os ombros.
– Achámos que ele vivia aqui – diz o Gavin. – Pelo menos até há um
ano.
– O meu marido e eu mudámo-nos em janeiro – diz a mulher.
– Tem a certeza? – pergunto baixinho.
– Acho que repararia se tivéssemos um tipo qualquer a viver connosco –
resmunga, revirando os olhos. – De qualquer forma, podem perguntar ao
zelador. Ele vive no apartamento 102.
O Gavin e eu agradecemos-lhe e encaminhamo-nos de novo para as
escadas.
– Achas que percorremos estes quilómetros todos em vão? – pergunto
enquanto descemos.
– Não – diz o Gavin com firmeza. – Penso que o Jacob se mudou para
outro lugar e que nós o vamos encontrar hoje.
– E se ele tiver morrido? – arrisco. Procurei, enquanto foi possível,
excluir essa possibilidade, mas é irresponsável fazê-lo.
– O marido de Elida não tinha qualquer certidão de óbito – diz o Gavin.
– Temos de acreditar que ele ainda anda por aí.
Quando chegamos ao rés do chão, o Gavin bate à porta do apartamento
102. Como não obtemos resposta, entreolhamo-nos. O Gavin repete o gesto,
desta vez com mais vigor, e é um alívio ouvir, momentos depois, passos do
outro lado da porta. Quando ela se abre, vemos uma mulher de meia-idade
com rolos no cabelo e um roupão de banho.
– Que foi? – pergunta. – Não me digam que os canos do sétimo estão
rotos outra vez. Não sei resolver isso.
– Não, minha senhora – diz o Gavin. – Procuramos o zelador.
– É o meu marido – resmunga –, mas ele é, digamos, um inútil. De que
é que precisam?
– Procuramos a pessoa que morava no apartamento 1004 – digo. – Jacob
Levy. Pensamos que ele se mudou há cerca de um ano.
Ela franze o sobrolho.
– Sim. Mudou-se. E então?
– Precisamos de o encontrar – diz o Gavin. – É muito urgente.
Ela olha-nos com atenção.
– São das Finanças ou assim?
– Como? Não – asseguro. – Somos… – Não sei bem como continuar.
Como lhe posso explicar que sou a neta da mulher que ele amou há setenta
anos? Que posso até ser neta dele?
– Somos da família – atalha o Gavin espontaneamente. Acena na minha
direção. – Ela é da família.
Estas palavras partem-me o coração.
A mulher escrutina-nos por momentos e encolhe os ombros.
– Como queiram. Vou buscar a morada que ele nos deu.
O meu coração bate mais apressado quando ela se arrasta novamente
para o interior do apartamento. O Gavin e eu voltamos a trocar olhares, mas
sinto-me demasiado emocionada para dizer seja o que for.
A mulher reaparece instantes depois com um pequeno pedaço de papel.
– Jacob Levy. Caiu e partiu a anca no ano passado – diz. – Estava aqui
há vinte anos, sabem? Não temos elevador e, quando ele voltou do hospital,
não conseguia subir as escadas, com a anca e assim… Então, o senhorio
ofereceu-lhe o apartamento vago ali ao fim do corredor. O apartamento 101.
Mas o Mr. Levy queria uma casa com vista. Esquisitices, digo eu. Depois
vieram os novos inquilinos, no fim de novembro.
Ela entrega-me o pedaço de papel. A morada indica Whitehall Street e o
número de um apartamento.
– Pediu-nos para mandar o último recibo para essa morada – disse a
mulher. – Não faço ideia se ainda lá está. Mas foi para aí que se mudou.
– Obrigado – diz o Gavin.
– Obrigada – confirmo. Quando ela está prestes a fechar a porta, eu
estendo a mão para a deter. – Um momento – digo. – Só mais uma pergunta.
– Sim? – pergunta com um ar confuso.
– Ele era casado? – Sustenho a respiração.
– Não conheci nenhuma Mrs. Levy – diz a mulher.
Fecho os olhos, aliviada.
– Como… como era ele? – pergunto instantes depois.
Ela observa-me, desconfiada, mas acaba por se comover ligeiramente.
– Era simpático – acaba por dizer. – Sempre muito educado. Alguns dos
outros inquilinos tratam-nos como empregados. A mim e ao meu marido.
Mas Mr. Levy era muito simpático. Tratava-me sempre por «minha
senhora». Dizia sempre «por favor» e «obrigado».
Esta descrição faz-me sorrir.
– Obrigada – digo. – Obrigada por me ter contado isso.
Preparo-me para me afastar quando ela fala novamente.
– Mas parecia ser um homem muito triste.
– Triste? – pergunto.
– Sim. Todos os dias saía para dar um passeio e voltava à noite, depois
de escurecer, com ar de quem tinha perdido qualquer coisa.
– Obrigada – sussurro, dominada pela tristeza, quando nos voltamos e
nos dirigimos para a porta. Ao que parece, em todas aquelas noites em que
a Mamie se sentava à espera que surgissem as estrelas, o Jacob também
buscava alguma coisa.
Demoramos quinze minutos a fazer o percurso para leste, para a
Whitehall Street, e depois para sul, em direção à rua que a mulher do
zelador nos fornecera. Trata-se de um edifício de aspeto moderno que se
ergue sobre os que o circundam. Não tem porteiro, o que me deixa aliviada;
não teremos de explicar a nossa missão a mais uma pessoa.
– Apartamento 2232 – digo ao Gavin, enquanto nos dirigimos para os
elevadores.
As portas abrem-se e eu carrego no número 22, batendo
impacientemente com o pé no chão quando se voltam a fechar.
– Vá lá, vá lá, vá lá – murmuro quando o elevador inicia a sua lenta
subida. O Gavin procura a minha mão e aperta-a.
– Vamos encontrá-lo, Hope – afirma.
– Não sei como te agradecer tudo o que fizeste para me ajudar – digo,
fazendo uma pausa suficientemente longa para o olhar nos olhos e sorrir. Há
um momento em que tudo parece imóvel e eu tenho a certeza de que ele me
vai beijar, mas o elevador emite um tinido e as portas abrem-se. Chegamos.
Percorremos apressadamente o corredor, verificando as portas dos dois
lados, até chegarmos ao apartamento 2232. É o último apartamento do lado
direito do corredor e, enquanto o Gavin bate à porta, eu aproveito para olhar
pela janela onde termina o corredor. A vista é magnífica e inclui a parte sul
de Manhattan e a água que a rodeia. Não posso, porém, concentrar-me nisso
agora. Aproximo-me da porta e desejo muito que ela se abra.
Mas não obtemos resposta, não ouvimos passos no interior.
– Tenta de novo – digo. – O Gavin assente e bate novamente à porta,
desta vez de forma mais ruidosa. Nada. Tento manter uma réstia de
esperança. O que fazemos agora? – Mais uma vez – peço com voz débil.
Desta vez, o Gavin bate com tal estrondo que alguém abre uma porta do
outro lado do corredor. É uma mulher idosa que, de pé, nos olha fixamente.
– Que balbúrdia é esta? – pergunta, irritada.
– Peço desculpa, minha senhora – diz o Gavin. – Estamos a tentar
encontrar Jacob Levy.
– E não podem bater à porta como pessoas normais? – pergunta. – Têm
de derrubar a porta?
– Ninguém nos ouve – lamento, respirando fundo. – Ele ainda vive
aqui? Ele ainda é…? – A minha voz desvanece-se, mas é minha intenção
perguntar se ele ainda é vivo. É uma dúvida aflitiva.
– Acalmem-se – diz a mulher. – Eu não sei onde ele está. Nem sequer o
conheço. Agora, se não se importam, façam pouco barulho. Estou a tentar
ver televisão.
A porta fecha-se com estrondo antes de podermos dizer mais alguma
coisa. Sinto tremer as pernas e apoio-me na parede. O Gavin encosta-se ao
meu lado e coloca o braço sobre o meu ombro.
– Vamos encontrá-lo, Hope. Ele está aqui. Tenho a certeza.
Aceno que sim, mas não sou capaz de acreditar no que diz. E se, apesar
de todo o nosso esforço, tivermos chegado alguns meses atrasados? Olho
novamente pela janela ao fundo do corredor, procurando encontrar forças,
com os olhos turvados pelas lágrimas, na vista magnífica. Abaixo do
prédio, estendem-se alguns pequenos quarteirões de Manhattan até à
extremidade relvada do Battery Park. Mais adiante, entre as águas azuis e
profundas do porto de Nova Iorque, avisto a Governors Island, à esquerda, e
a Ellis Island, à direita. Interrogo-me se terá sido por ali que o Jacob e a
minha avó entraram no país. Para lá da Ellis Island, na Liberty Island, vejo
a Estátua da Liberdade erguendo bem alto a sua tocha. Vejo-a brilhar à luz
do sol e medito por instantes na liberdade que ela representa. Qual seria a
sensação de entrar nos Estados Unidos pela primeira vez, através da Ellis
Island, recebidos por um símbolo tão forte do que esta nação representa?
É então que, inesperadamente, me ocorre algo que me deixa de queixo
caído.
– Gavin – digo, agarrando-lhe o braço. – Sei onde ele está.
– O quê? – pergunta ele, atónito.
– Sei onde está o Jacob – digo. – A rainha. A rainha com a tocha. Meu
Deus, sei onde ele está!
Capítulo 25
Ingredientes
2 ovos (apenas as claras)
1/2 chávena de açúcar refinado
1 colher de chá de extrato de baunilha
1/2 chávena de pepitas de chocolate
Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
2. Numa tigela grande, bata vigorosamente as claras dos ovos
com uma batedeira manual até ficarem firmes.
3. Adicione o açúcar, dividido em oito partes, batendo
continuamente. Continue a bater até as pontas terem
consistência e não se fragmentarem.
4. Reduza a velocidade da batedeira para o valor mínimo e bata
a mistura adicionando a baunilha.
5. Junte lentamente as pepitas de chocolate com uma colher de
pau.
6. Utilizando uma colher de chá, coloque pequenas porções num
tabuleiro revestido de papel vegetal. Procure assegurar que
cada montinho tenha pelo menos uma pepita de chocolate. Os
montinhos devem preservar facilmente a sua forma.
7. Coloque o tabuleiro no forno e desligue-o imediatamente.
8. Deixe o tabuleiro no forno durante a noite. Não vale espreitar!
Quando acordar na manhã seguinte, abra o forno: os suspiros
estão cozidos e prontos a servir.
Rose
O Jacob recusa passar pelo seu apartamento para fazer a mala; insiste
em que cheguemos a Cape Cod o quanto antes, sem desperdiçar um minuto
que seja.
– Preciso de a ver – diz, olhando alternadamente, com ar angustiado,
para o Gavin e para mim. – Preciso de a ver o mais depressa possível.
Espero ao lado dele a chegada do Gavin, que se apressou a ir buscar o
jipe; devido a uma prótese na anca, o Jacob não está apto para grandes
correrias. Enquanto aguardamos, na parte norte do Battery Park, junto à
estrada, ele fita-me como se tivesse visto um fantasma. Tenho muitas
perguntas para lhe fazer, mas quero que o Gavin esteja presente para as
ouvir.
– És minha neta – diz o Jacob delicadamente enquanto aguardamos. –
Não és?
Aceno lentamente com a cabeça.
– Penso que sim. – Tudo isto me provoca uma sensação estranha; é-me
impossível não pensar no homem que toda a vida tratei por avô. Tudo isto é
muito injusto para com ele. Concluo, porém, que ele sempre soube o que
sucedera; tivera de fazer a escolha consciente de perfilhar a minha mãe
como se fossem do mesmo sangue, sabendo que o não eram.
– É muito parecido com a minha filha – reconheço.
– Tens uma filha?
– Sim – confirmo. – Chama-se Annie. Tem doze anos.
O Jacob segura a minha mão e olha-me nos olhos.
– E o teu pai ou a tua mãe? O filho que a Rose teve? Era um rapaz ou
uma menina?
Ocorre-me pela primeira vez como é trágico o facto de a minha mãe ter
morrido antes de conhecer o Jacob, provavelmente sem saber sequer que ele
existia. É desolador perceber que o Jacob, por sua vez, nunca verá a filha
que salvou à custa de tudo quanto possuía.
– Uma menina – digo serenamente. – Josephine.
José, o filho de Jacob, teve de ser salvo para preservar o legado.
Recordo-me do cartaz que vimos na igreja, junto à I-95, e estremeço. A
verdade esteve sempre por perto.
– Josephine – repete o Jacob lentamente.
– Morreu há dois anos – acrescento ao fim de alguns segundos. – De
cancro da mama. Sinto muito.
O Jacob emite o som de um animal ferido e arqueia ligeiramente o
corpo, como se algo invisível lhe tivesse aplicado um soco no estômago.
– Santo Deus – murmura instantes depois, endireitando-se novamente. –
Lamento muito a tua perda.
– E eu a sua – digo, com lágrimas nos olhos. – Não consigo dizer-lhe
quanto. – Os setenta anos perdidos. O facto de ele nunca ter conhecido a
sua filha. A circunstância de, até este momento, ele ignorar que a Rose
tinha sobrevivido.
Surge então o Gavin, que encosta junto ao passeio e sai para vir ter
connosco. Entreolhamo-nos enquanto ajudamos o Jacob a sentar-se no
banco de trás. Sento-me depois ao lado do Gavin que, depois de verificar os
retrovisores, arranca apressadamente.
– Tentaremos que o senhor chegue a Cape o mais depressa possível –
diz o Gavin, olhando pelo espelho para o Jacob, que ergue os olhos para o
observar.
– Obrigado, jovem – diz o Jacob. – Posso perguntar-lhe quem é ao
certo?
Rio-me, libertando a tensão, quando me apercebo de que não lhe
apresentei o Gavin. Faço-o rapidamente, explicando ter sido ele a iniciar
toda esta investigação, além de me ter ajudado hoje na minha procura.
– Obrigado por tudo, Gavin – diz o Jacob após o meu esclarecimento. –
É marido da Hope, então?
O Gavin e eu olhamo-nos, constrangidos, e eu sinto-me corar.
– Bom… Não, senhor – respondo. – É apenas um bom amigo. – Volto-
me novamente para o Gavin, mas ele limita-se a olhar em frente,
concentrado na estrada.
Mantemo-nos em silêncio enquanto percorremos a West Side Highway,
cruzamos a zona norte do Harlem pela I-95 e atravessamos a ponte para sair
de Manhattan.
– Posso fazer-lhe uma pergunta, Mr. Levy? – pergunto, voltando-me
para trás.
– Chama-me Jacob, por favor – diz. – É claro que também me podes
chamar avô, mas provavelmente ainda é muito cedo para ti.
Engulo em seco. Compadeço-me do homem que sempre tratei por avô.
Gostaria de ter sabido a verdade quando ele era vivo. Gostaria de lhe ter
agradecido tudo o que terá feito para salvar a minha avó e a minha mãe.
Gostaria de ter percebido mais cedo tudo o que ele deve ter perdido nesse
caminho.
– Jacob – digo, após uma pausa. – O que aconteceu em França? Durante
a guerra? A minha avó nunca nos falou sobre esse período; aliás, só há
algumas semanas ficamos a saber que ela era judia.
O Jacob parece aturdido.
– Como foi isso possível? Qual era a história em que acreditavam?
– Quando veio de França – explico-lhe – o seu nome oficial era Rose
Durand. Desde que me lembro que ela segue a igreja católica.
– Mon Dieu – murmura o Jacob.
– Eu nunca soube o que lhe aconteceu durante o Holocausto – continuo.
– Nunca nos falou sobre a família. Sobre si. Manteve tudo em segredo até
há algumas semanas, quando me entregou uma lista de nomes e me pediu
que fosse a Paris. – Descrevo-lhe sucintamente a minha visita a Paris, a
descoberta do Alain, a viagem dele comigo para os Estados Unidos. Os seus
olhos iluminam-se.
– O Alain está aqui? – inquire. – Nos Estados Unidos?
– Sim – confirmo. – É provável que esteja com a minha avó neste
preciso momento. – Ocorre-me que tenho de telefonar ao Alain e à Annie,
que tenho de lhes contar que encontrámos o Jacob. Contudo, por agora,
quero desesperadamente ouvir esta história.
– Importa-se de nos contar o que aconteceu? Há muitas coisas que
desconheço.
O Jacob assente mas, em vez de falar, olha pela janela. Mantém-se em
silêncio durante bastante tempo, mas eu continuo voltada para trás, fitando-
o. O Gavin observa-me.
– Sentes-te bem? – pergunta ele em voz baixa.
Aceno que sim e sorrio, concentrando-me novamente no banco de trás.
– Jacob? – digo serenamente.
Ele parece sair do seu transe.
– Sim, peço desculpa. Estou apenas atónito. – Aclara a garganta. – O
que pretendes saber, querida Hope?
A forma como ele me fita é tão afetuosa que me enche, em simultâneo,
de melancolia e felicidade.
– Tudo – murmuro.
E assim o Jacob começa a contar a sua história. Explica-nos como
conheceu a minha avó e o Alain no Jardin du Luxembourg, na véspera de
Natal de 1940, e declara-nos que, quando a viu pela primeira vez, soube que
ela era o amor da sua vida. Diz-nos que, por essa altura, já colaborava com
a Resistência, pois o seu pai também estava envolvido e ele acreditava que
cabia aos judeus salvarem-se a si mesmos. Conta-nos ainda que ele e a
minha avó idealizavam frequentemente um futuro juntos na América, onde
poderiam viver em segurança e liberdade, onde as pessoas não eram
perseguidas devido à sua religião.
– Parecia-nos um lugar mágico – diz, olhando pela janela. – Sei que, no
mundo de hoje, os jovens tomam a liberdade como garantida. Tudo o que
têm ao vosso dispor, todas as liberdades de que desfrutam, nascem
convosco. No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial, não tínhamos
direitos. Durante a Ocupação alemã, nós, judeus, éramos considerados
inferiores, vermes, pelos alemães e também por alguns franceses. Rose e eu
sonhávamos com um lugar onde isso nunca aconteceria e, nos nossos
planos, a América era o sítio ideal. Era a materialização do sonho.
Planeávamos vir juntos, constituir família.
»Mas depois fomos atingidos por aquela noite terrível. A família de
Rose não acreditava no que dizíamos, não acreditava que uma prisão em
massa dos judeus se iria concretizar. Insisti em que ela viesse comigo, para
proteger o nosso filho. Estava grávida de dois meses e meio. O médico
confirmara-o. Ela sabia, tão bem como eu, que o mais importante era salvar
o nosso filho, o nosso futuro. Assim, Rose fez a escolha mais difícil mas, na
verdade, inevitável. Procurou refúgio.
Sinto-me começar a tremer. As palavras do Jacob, com a sua melodiosa
pronúncia francesa, e a emoção da história permitem-me acompanhar os
acontecimentos quase como se assistisse a um filme.
– Na Grande Mesquita de Paris?
O Jacob parece surpreendido.
– Estás mesmo bem informada – diz, fazendo depois uma pausa. – A
ideia foi do meu amigo Jean Michel, que lutava comigo na Resistência. Ele
já tinha ajudado várias crianças órfãs a fugir através da mesquita depois de
os seus pais serem deportados. Sabia que os muçulmanos salvavam judeus,
embora acolhessem sobretudo crianças. No entanto, Rose estava grávida e
era, ela própria, muito jovem. Assim, quando Jean Michel contactou os
líderes da mesquita e pediu ajuda, eles aceitaram ajudar-nos.
»A ideia era deixá-la na mesquita, onde eles a fariam passar por
muçulmana durante algum tempo, talvez algumas semanas, eventualmente
um mês, até ser seguro retirá-la de Paris. Em seguida, viajaria
clandestinamente, com dinheiro que entreguei ao Jean Michel, para Lyon,
onde a Amitié Chrétienne, a Irmandade Cristã, lhe daria documentos falsos
e a enviaria mais para sul, possivelmente para um grupo chamado Œuvre de
Secours aux Enfants, ou Organização de Assistência a Crianças. Ajudavam
sobretudo crianças judias a chegar a países neutros, mas nós sabíamos que,
muito provavelmente, aceitariam e apoiariam Rose, pois ela tinha apenas
dezassete anos e estava grávida. Contudo, a partir daí, não sei ao certo o que
aconteceu nem como conseguiu escapar. Sabes alguma coisa a esse
respeito?
– Não – digo-lhe. – Mas acredito que ela tenha conhecido o meu avô
quando ele combateu na Europa. Imagino que ele a tenha trazido para os
Estados Unidos.
O Jacob parece sentir um golpe.
– Casou-se com outra pessoa – diz lentamente. Em seguida, aclara a
garganta. – Pensando bem, ela acreditava certamente que eu tinha morrido.
Eu pedi-lhe que fizesse tudo o que fosse preciso para sobreviver e para
proteger o bebé. – Faz uma pausa e pergunta: – É um homem bom? O
homem com quem ela casou?
– Era um homem muito bom – digo suavemente. – Morreu há muito
tempo.
O Jacob assente e baixa os olhos.
– Sinto muito.
– E o que lhe aconteceu a si? – pergunto após uma longa pausa.
O Jacob olha demoradamente pela janela.
– Fui buscar a família da Rose. Ela tinha-mo pedido mas, na verdade, eu
iria de qualquer maneira. Sonhava com um dia em que todos pudéssemos
estar juntos, sem a sombra dos nazis. Acreditava que os podia salvar, Hope.
Era jovem e ingénuo.
»Cheguei a meio da noite. Todas as crianças dormiam. Bati
discretamente à porta, e foi o pai da Rose que a abriu. Mal me olhou,
percebeu o que se passava. “Ela já partiu, não é verdade?”, perguntou-me.
Eu disse que sim, que a tinha levado para um lugar seguro. Ele fitou-me
com um ar de profunda desilusão. Ainda me recordo do seu rosto quando
disse, “Jacob, és um irresponsável. Se tiveres provocado a sua morte, nunca
te perdoarei.”
»Tentei convencê-lo, em vão, durante uma hora. Expliquei-lhe que a
rusga teria início algumas horas depois. Disse-lhe que, segundo o jornal
Université Libre, havia registos de aproximadamente trinta mil judeus,
residentes em Paris, entregues aos alemães algumas semanas antes.
Informei-o dos avisos emitidos pelos comunistas judeus, que falavam em
extermínio, e assegurei-lhe que tínhamos de evitar, a todo o custo, ser
presos.
»Ele abanou a cabeça e voltou a chamar-me irresponsável. Ainda que os
rumores fossem verdadeiros, dizia ele, apenas seriam levados os homens. E
certamente apenas os imigrantes. Por conseguinte, acreditava que a sua
família não estava efetivamente em perigo. Assegurei-lhe que desta vez,
segundo as informações de que eu dispunha, não seriam apenas os homens
nem apenas os imigrantes. Além disso, visto que a mãe de Rose nascera na
Polónia, algumas autoridades considerariam os seus filhos estrangeiros.
Não podíamos correr esse risco. Mas ele não quis saber.
O Jacob suspira e interrompe a sua história. Olho para o Gavin e,
quando ele se volta para mim, revela um rosto pálido e triste. Vejo lágrimas
também nos seus olhos. Instintivamente, estendo a mão e coloco-a sobre a
sua mão direita, que descansa sobre a perna. Por momentos, parece
surpreendido, mas depois sorri, entrelaça os seus dedos nos meus e aperta-
os suavemente. Pestanejo algumas vezes e viro-me para o banco de trás,
para o Jacob.
– Não podia ter feito mais nada – digo-lhe. – Tenho a certeza de que a
minha avó sabia que tinha tentado. E tentou.
– Sim – concorda o Jacob. – Mas não fiz o suficiente. Eu estava
convencido de que a prisão em massa ia mesmo acontecer, mas não
transmiti confiança suficiente para persuadir o pai da Rose. Tinha apenas
dezoito anos, sabes? Era um rapaz. E, naquele tempo, um rapaz não
conseguia impor as suas ideias a um homem mais velho. Penso muitas
vezes que, se me tivesse esforçado um pouco mais, os poderia ter salvado a
todos. Mas a verdade é que eu sabia que os rumores podiam ser falsos, pelo
que não falei com a convicção necessária. Nunca me perdoarei por não ter
sido mais insistente.
– A culpa não é sua – murmuro.
O Jacob abana a cabeça e baixa os olhos.
– É, querida Hope. Eu prometi à Rose que os manteria a salvo. E não o
fiz. – Articula um som abafado e volta novamente a olhar pela janela. – Os
tempos eram outros – continua o Jacob após uma longa pausa. – Mas era
minha responsabilidade fazer algo mais. – Solta um suspiro longo e pesado
e prossegue a sua história. – Depois de sair da casa da Rose, fui até minha
casa. Estavam lá os meus pais, bem como a minha irmã mais nova, de
apenas doze anos. O meu pai sabia, tão bem como eu, o que se avizinhava,
e estava preparado. Fomos até ao restaurante de um amigo, no Quartier
Latin, que aceitara esconder-nos na cave. Eu podia também ter levado a
Rose, mas os riscos eram enormes; em breve, começar-se-ia a notar a
gravidez, e eu sabia que, se ela fosse presa, a matariam muito rapidamente.
Por esse motivo, tive de a retirar de França, colocá-la em algum lugar onde
os alemães nunca a pudessem encontrar.
»Entretanto, o meu pai e eu concluímos que a solução mais segura para
a nossa família consistia em esperarmos pacientemente a rusga, num
esconderijo, e depois retomarmos a nossa vida, prestando sempre atenção a
tudo o que ouvíamos para sabermos quando viriam os alemães. Naquela
noite, em quase todo o dia seguinte e ainda num terceiro dia, estivemos
escondidos numa divisão minúscula da cave do restaurante, receando
sermos descobertos. No final do terceiro dia, saímos, famintos e exaustos,
convencidos de que o pior já tinha passado.
»Eu queria muito visitar a Grande Mesquita de Paris, para onde sabia
que a Rose tinha sido levada. Mas o meu pai não mo permitiu. Recordou-
me que, se o fizesse, colocaria em risco a Rose e todas as outras pessoas
que lá estavam. Consegui apenas saber, através do meu amigo Jean Michel,
que ela ainda estava em segurança. Pedi-lhe que lhe dissesse que eu estava
bem, que iria ter com ela em breve, mas não sei se ela chegou a receber esta
mensagem. Passados apenas dois dias, a polícia francesa apareceu-nos à
porta para nos deter, a mim e ao meu pai. Sabiam que eramos membros da
Resistência, e era assim que nos puniam.
»Também levaram a minha irmã e a minha mãe, e, em Drancy, o campo
de trânsito situado nos arredores de Paris, separaram-nos, colocando-nos em
dormitórios diferentes. Nunca mais as vi, embora viesse a saber mais tarde
que haviam sido deportadas para Auschwitz, tal como o meu pai e eu.
Por momentos, ficamos todos em silêncio, e eu noto que, lá fora, o sol
parcialmente encoberto cria extensas sombras sobre os campos de cultivo
em ambos os lados da interestadual. Dá-me a volta ao estômago pensar no
Jacob arrastado para um campo de morte. Engulo em seco.
– O que aconteceu à sua família? – pergunta o Gavin em voz baixa. O
Gavin aperta a minha mão e olha-me com preocupação. O Jacob respira
fundo.
– A minha mãe e a minha irmã não sobreviveram à seleção inicial em
Auschwitz. A minha mãe era frágil, franzina e doente, e a minha irmã era
pequena para os seus doze anos, tendo sido considerada, provavelmente,
inapta para o trabalho. Foram levadas diretamente para a câmara de gás.
Quero acreditar que não perceberam o que lhes estava a acontecer. Mas
receio que pelo menos a minha mãe soubesse o suficiente para compreender
o que se passava. Imagino que tenha ficado aterrorizada.
Ele faz uma pausa para se recompor. Incapaz de dizer uma palavra,
limito-me a esperar que continue.
– O meu pai e eu fomos enviados para os dormitórios – prossegue. – No
início, tentámos encorajar-nos o mais possível. Mas, pouco depois, ele ficou
muito doente. Surgira uma epidemia em Auschwitz. De tifo. O meu pai
começou por ter calafrios durante a noite, ficando muito frágil e a tossir
muito. Os guardas obrigavam-nos a sair para trabalhar e, apesar de eu e os
outros prisioneiros tentarmos facilitar-lhe as tarefas, a doença foi uma
sentença de morte. Sentei-me ao seu lado na última noite, enquanto a febre
o consumia. Morreu num dia de outono de 1942. Era já impossível
sabermos em que dia, semana ou mês estávamos, pois, em Auschwitz, o
tempo deixou de existir em todos os sentidos que normalmente lhe
atribuímos. Sei apenas que morreu antes do aparecimento da neve.
– Sinto muito – consigo, por fim, dizer. Sinto que as minhas palavras
são dolorosamente insuficientes.
O Jacob acena lentamente com a cabeça e olha pela janela por
momentos antes de se voltar de novo na nossa direção.
– No final, ele estava em paz. Nos campos, quando as pessoas morriam,
tinham uma expressão de crianças adormecidas, inocentes, finalmente
imperturbáveis. Aconteceu o mesmo com o meu pai. Fiquei feliz por ver o
seu rosto assim, pois sabia que ele estava enfim livre. No judaísmo, a ideia
que temos do céu é mais indefinida do que no cristianismo. Mas eu
acreditava e acredito que, de alguma forma, o meu pai reencontrou a minha
mãe e a minha irmã. E isso conforta-me até hoje. A ideia de eles se terem
reunido, de estarem juntos outra vez. – Ele esboça um sorriso amargo, triste.
– Havia uma inscrição em Auschwitz onde se lia «O trabalho liberta». No
entanto, a verdade é que só a morte nos libertava. E a minha família estava
finalmente livre.
– Como conseguiu sobreviver? – pergunta o Gavin. – Deve ter estado
em Auschwitz… mais de dois anos?
O Jacob confirma.
– Quase dois anos e meio. Mas a verdade é que não tinha alternativa.
Prometera à Rose ir buscá-la. E não podia, não iria, quebrar essa promessa.
Após a libertação, fui procurá-la. Tinha a certeza de que estaria novamente
com ela, de que nos reencontraríamos, de que poderíamos educar o nosso
filho juntos, de que seria possível termos mais filhos e, de uma maneira ou
de outra, fugir das sombras da guerra.
Profundamente comovidos, ouvimos o Jacob contar que regressou a
Paris e procurou desesperadamente Rose, acreditando do fundo do coração
que ela sobrevivera. Ele fala-nos do desespero que sentiu por não a ter
encontrado, das conversas que teve com o Alain, que, sozinho e à deriva,
depois de perder toda a sua família, recebia apoio de uma organização
internacional para sobreviventes do Holocausto.
– Vim finalmente para a América – diz –, porque foi aqui que a Rose e
eu prometemos reencontrar-nos. Eu estava a tentar cumprir a minha parte da
promessa, como imaginam. E assim, todos os dias, nos últimos cinquenta e
nove anos, esperei naquela extremidade do Battery Park. Foi ali que
combinámos encontrar-nos. Sempre acreditei que ela viria.
– Foi lá todos os dias? – pergunto.
– Quase – sorri o Jacob. – Eu tinha um emprego, naturalmente, mas ia
até ao parque antes e depois do trabalho. Só não esperei no parque quando
fraturei a anca e tive de repousar algum tempo, bem como nos dias que se
seguiram ao 11 de Setembro, em que era impossível entrar na zona. Aliás,
eu estava no parque, quando o primeiro avião atingiu o World Trade Center.
– Após alguns momentos de silêncio, acrescenta: – Foi a segunda vez na
minha vida que vi o mundo desabar diante dos meus olhos.
Reflito algum tempo sobre esta frase.
– Como tinha tanta certeza de que a minha avó viria ter consigo? Não
começou a duvidar de que ela estivesse viva?
– Não – diz, depois de meditar alguns instantes. – Eu tê-lo-ia sentido.
Eu saberia.
– Como? – pergunto em voz branda. Não quero ser indelicada; apenas
não consigo imaginar tal persistência durante setenta anos com base num
pressentimento. O Jacob olha por momentos pela janela e, em seguida, fita-
me com um sorriso contido e triste.
– Eu tê-lo-ia sentido na alma, Hope – diz. – Entendes? Não é algo que
aconteça com frequência, mas quando duas pessoas possuem uma ligação
deste tipo, uma ligação como a que a tua avó e eu temos, estão unidas para
sempre. Eu sentiria a minha alma incompleta se ela desaparecesse. Quando
Deus nos juntou, transformou-nos num só.
O Gavin aperta subitamente a minha mão e fita-me boquiaberto.
– O que foi? – pergunto-lhe.
Em vez de me responder, ele olha pelo retrovisor.
– Jacob? – diz. – O que quer isso dizer? Disse que Deus vos juntou?
E nesse momento, antes do Jacob responder, compreendo onde o Gavin
quer chegar e adivinho o que o Jacob está prestes a revelar.
– No dia em que a Rose e eu nos casámos – afirma o Jacob. – Passámos
a ser um só aos olhos de Deus.
Engulo em seco.
– O Jacob e a minha avó casaram-se? – insisto.
– Claro – diz, aparentemente surpreendido. – Fizemo-lo em segredo,
como imaginas. A família dela não soube, a minha também não. Todos
acreditavam que éramos demasiado jovens. Ansiávamos pelo dia em que
pudéssemos realizar uma cerimónia com eles, festejar com as pessoas que
mais amávamos. Mas nunca tivemos a possibilidade de o fazer.
Ainda um pouco desconcertada, compreendo de repente o que tudo isto
significa; se a minha avó se casou com o Jacob, o seu casamento com o
meu avô nunca foi real. Sinto novamente uma tristeza profunda pelo meu
avô, por tudo o que perdeu sem se dar conta. Pergunto-me, todavia, se terá
sido mesmo assim. Poderia o meu avô ter percebido, em 1949, quando
visitou Paris, que o Jacob Levy sobrevivera, que a mera existência do Jacob
anulava a sua união com a minha avó? Teria ele, por esse motivo, dito à
minha avó que o Jacob morrera? Estas perguntas causam-me um profundo
desconforto, mais ainda porque poderei nunca vir a saber as respostas.
– Casou-se com a minha avó por ela estar grávida? – arrisco.
– Não. – O Jacob abana veementemente a cabeça. – Casámo-nos porque
nos amávamos. Porque temíamos que a guerra nos destroçasse. Porque
sabíamos que estávamos destinados um ao outro. Creio que o bebé foi
concebido na nossa noite de núpcias, na primeira vez que estivemos juntos
enquanto marido e mulher.
Fecho os olhos e assimilo tudo isto. A minha mãe não nascera de um
romance de adolescentes; fora concebida dentro do casamento. Tinha sido o
resultado da consumação do amor entre a Mamie e o Jacob. Ela e eu – além
da Annie – éramos tudo o que restava da união desafortunada entre duas
almas gémeas.
– Compreendes agora? – pergunta o Jacob após um longo silêncio. – Eu
tinha razão desde o início. A Rose estava viva. Eu sabia-o, no meu coração.
E agora vou finalmente revê-la.
Ingredientes
3 chávenas de farinha
1 colher de chá de sal
3 colheres de sopa de açúcar granulado
1 chávena de gordura vegetal
1 ovo (batido)
1 colher de chá de vinagre de vinho branco
1 chávena e quatro colheres de sopa de água (separadas)
1 chávena de figos secos (em pedaços)
1 chávena de ameixas secas (em pedaços)
1 chávena de uvas brancas ou tintas, sem grainha, cortadas em
fatias e divididas
6 colheres de sopa de açúcar mascavado
1 colher de chá de canela
1/2 chávena de amêndoas laminadas
1 colher de sopa de sementes de papoila
Açúcar com canela para polvilhar (três partes de açúcar para
uma parte de canela)
Preparação
1. Prepare a crosta peneirando a farinha, o sal e o açúcar
granulado para dentro de um recipiente. Utilizando duas
facas ou um robô de cozinha, adicione pedaços de manteiga
até a mistura adquirir a consistência de uma amálgama de
migalhas espessas. Adicione o ovo, o vinagre e as 4 colheres
de sopa de água ao preparado e misture-o com um garfo e
depois com as mãos, polvilhadas de farinha, até a massa
formar uma bola.
2. Deixe arrefecer a massa no frigorífico durante dez minutos e
divida-a depois em duas metades. Alise com um rolo uma das
metades até formar um círculo e forre uma forma com
aproximadamente 22 centímetros de diâmetro. Coloque a
outra metade de parte.
3. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
4. Misture os figos, as ameixas, meia chávena de uvas cortadas
em fatias, açúcar mascavado, canela e a chávena de água
numa caçarola resistente, de tamanho médio. Leve ao lume, a
uma temperatura média a alta, até o açúcar se dissolver e a
mistura ferver. Reduza a temperatura para um valor médio a
baixo, tape a caçarola e deixe-a ao lume durante vinte
minutos. Retire a tampa e mantenha a caçarola ao lume, sem
parar de mexer, durante três a cinco minutos até a maior
parte do líquido se ter evaporado e a mistura apresentar a
consistência de uma compota espessa. Retire depois a
caçarola do fogão.
5. Enquanto o recheio arrefece, espalhe as amêndoas numa
camada fina sobre um tabuleiro e deixe-as torrar no forno
durante sete a nove minutos, até ficarem ligeiramente
alouradas.
6. Retire as amêndoas do forno e adicione-as à mistura que
contém os frutos. Adicione as sementes de papoila e a
restante meia chávena de uvas cortadas em fatias. Mexa bem
para ligar os ingredientes.
7. Deite a mistura que contém os frutos na forma forrada com a
massa. Alise com um rolo a restante massa de modo a obter
um quadrado com vinte e cinco centímetros de lado. Corte em
tiras de pouco mais de um centímetro de largura e disponha-
as em forma de estrela, cruzando-as sobre o topo da crosta.
Polvilhe a gosto com açúcar com canela.
8. Leve a tarte ao forno durante trinta minutos ou até que o topo
da crosta adquira uma cor castanha dourada. Retire-a depois
do forno e deixe-a arrefecer totalmente. É possível mantê-la
no frigorífico até cinco dias. Sirva fria ou à temperatura
ambiente.
Rose
Nessa noite, telefono à Annie para lhe contar tudo sobre a herança do
Jacob. É suficiente para resolver o problema da confeitaria e pagar as suas
futuras propinas. E ainda sobra uma bela quantia. Enquanto a ouço gritar e
celebrar do outro lado da linha, sorrio e prometo a mim mesma esforçar-me
mais para a entender. A nossa vida vai melhorar. Ela é uma miúda às
direitas, e eu sei que é minha responsabilidade tentar sempre aperfeiçoar-me
enquanto mãe. Talvez eu possa ser melhor mãe do que pensava.
Digo à Annie que se divirta na celebração da First Night, e ela promete
telefonar-me após a meia-noite, logo que inicie a viagem com as amigas no
carro do Rob. Seguem para casa dele, onde vão passar juntas a noite de Ano
Novo.
Passam poucos minutos das onze quando finalmente me aconchego em
frente à lareira com a carta da Mamie. As minhas mãos tremem quando a
abro; tenho consciência de que este é o último fragmento dela. Tanto quanto
sei, podem ser umas frases sem nexo, por causa da doença de Alzheimer, ou
algo que guardarei para sempre como um tesouro. Em qualquer caso, ela
partiu. O Jacob partiu. A minha mãe partiu. Dentro de seis anos, a Annie
estará muito mais crescida e sairá de casa. Envolvo-me numa manta,
tricotada pela minha avó quando eu era apenas uma menina, tentando não
me sentir tão só.
Retiro a carta do envelope. Tem a data de 29 de setembro. O dia em que
levámos a Mamie à praia. O dia em que ela me entregou a lista de nomes. A
primeira noite do Rosh Hashanah. A noite em que tudo começou. Sentindo
o coração bater desordenamente, respiro fundo.
Minha querida Hope, começa. Nos dez minutos seguintes, leio. Começo
por passar os olhos pela carta e, em seguida, com lágrimas nos olhos, volto
a lê-la, desta vez mais devagar, ouvindo interiormente a Mamie a articular
cada palavra com a sua pronúncia cuidada e melodiosa.
Capítulo 32
Rose
Amar-te-ei sempre,
Mamie
Capítulo 33