Enquanto Houver Estrelas No Ceu - Kristin Harmel

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© Robin Gage

KRISTIN HARMEL formou-se em Jornalismo e Comunicação na Universidade da Florida. Tem


exercido a profissão de jornalista na televisão e em revistas como People, Ladie’s Home Journal e
Woman’s Day entre outras.
Os seus livros estão traduzidos em inúmeros países, onde alcançaram notável sucesso.
Atualmente vive em Orlando, na Florida.
Enquanto Houver Estrelas no Céu
Kristin Harmel

Publicado em Portugal por:


Porto Editora, Lda.
Divisão Editorial Literária – Porto
E-mail: [email protected]

Título original:
The Sweetness of Forgetting
© 2012, Kristin Harmel

Tradução: José Lima Ferreira

Design da capa: Ideias com Peso


Imagens da capa: Corbis/VMI e Getty Images

1.ª edição em papel: maio de 2014


Este livro respeita as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

ISBN 978-972-0-68184-3
Aos meus avós de Weymouth
«De um só fez Ele todos os povos,
para que povoassem toda a terra.»
ATOS DOS APÓSTOLOS 17:26

«O que para um homem é apenas uma vela


para outros é a luz.»
TRATADO SHABBAT, ORDEM MOED DO TALMUDE

«Todas as criaturas de Deus são Sua família,


e o mais amado por Deus é aquele que procura fazer
o maior bem às Suas criaturas.»
PROFETA MAOMÉ
Capítulo 1

A rua que vejo pela janela da confeitaria está silenciosa e calma e, na


meia hora que falta até ao nascer do sol, enquanto os dedos estreitos da
madrugada se estendem sobre o horizonte, quase consigo acreditar que sou
a única pessoa do planeta. Estamos em setembro, semana e meia após o
Labor Day, o que, nas pequenas cidades de norte a sul de Cape Cod,
significa que os turistas regressaram a casa, os habitantes de Boston
taparam as portas e as janelas das suas casas de verão e as ruas passaram a
ter a aparência de um sonho agitado.
Lá fora, a cor das folhas começou a mudar e eu sei que, dentro de
algumas semanas, elas vão começar a refletir as tonalidades indistintas do
pôr do sol, muito embora a maioria das pessoas não pense nesta cidade
como um bom local para ver a queda da folhagem. Os observadores de
árvores preferem o Vermont, o New Hampshire ou as Berkshires, na parte
ocidental do estado, onde os carvalhos e os áceres vão pintar o mundo de
um vermelho ardente e de um laranja sombrio. Contudo, na quietude da
época baixa em Cape Cod, a vegetação que baloiça na praia vai adquirir
tons dourados à medida que os dias ficam mais curtos; as aves que migram
do sul do Canadá vão chegar em grandes bandos para aqui descansarem; os
pântanos vão transformar-se em pinceladas de uma aguarela. E eu vou estar
a ver tudo, como sempre, pela janela da Confeitaria North Star.
Tanto quanto me recordo, senti-me sempre mais confortável neste lugar,
um negócio de família, do que na casa amarela, junto à baía, onde cresci e
para onde tive de regressar depois de concluído o meu divórcio.
Divórcio. A palavra ecoa nos meus ouvidos, uma e outra vez, fazendo-
me sentir, mais uma vez, um fracasso, enquanto tento, num número de
equilibrismo, abrir a porta do forno com um pé, segurar dois tabuleiros
industriais de pequenas tartes de canela e continuar atenta à parte da frente
da confeitaria. Ocorre-me mais uma vez, enquanto introduzo as tartes no
forno, tiro um tabuleiro de croissants e fecho a porta com a anca, que
procurar ter tudo só nos deixa sem mãos a medir. Em sentido literal, neste
caso.
Eu gostaria muito de ter mantido o casamento, a fim de preservar a
Annie. Não queria que a minha filha crescesse num lar onde se sentisse
confusa em relação aos pais como, aliás, me tinha acontecido a mim própria
na infância. Eu queria que ela tivesse algo mais. Mas a vida nunca funciona
de acordo com os nossos planos…
Ouço o carrilhão da porta enquanto retiro os croissants folhados e
amanteigados do tabuleiro. Olho para o temporizador do segundo forno;
tenho de tirar os queques de baunilha dentro de cinquenta e poucos
segundos e isso impede-me de sair da cozinha.
– Hope? – ouço uma voz chamar-me. – Estás aí?
Suspiro de alívio. Pelo menos é um cliente conhecido. Aliás, pensando
bem, conheço quase toda a gente que fica na cidade depois de os turistas
regressarem a casa.
– Saio já, Matt! – grito. Calço as luvas de cozinha, aquelas com queques
bordados sobre tecido azul vivo que a Annie me ofereceu no ano passado,
pelo meu trigésimo quinto aniversário, e retiro os queques de baunilha do
forno. Inspiro profundamente o aroma doce, que me transporta por um
momento até à minha infância. A minha mamie – «avozinha» em francês –
fundou a Confeitaria North Star há sessenta anos, pouco depois de se mudar
para Cape Cod com o meu avô.
Cresci aqui, praticamente ao seu colo, aprendendo esta arte com ela e
ouvindo-a explicar pacientemente como se fazia a massa, como ocorria a
levedura e como se transformavam combinações de ingredientes
tradicionais ou inesperados em bolos de que o Boston Globe e o Cape Cod
Times faziam alarde todos os anos.
Coloco os queques a arrefecer e substituo-os no forno por dois
tabuleiros de biscoitos de anis e funcho. Mais abaixo, no último espaço
livre, introduzo várias luas em quarto crescente: pasta de amêndoa
aromatizada com água de flor de laranjeira, polvilhada com canela,
envolvida em massa e dividida em pedaços cuidadosamente arredondados.
Fecho a porta do forno e sacudo a farinha das mãos. Respiro fundo,
programo o temporizador e saio da cozinha dirigindo-me para a parte da
frente, amplamente iluminada, da confeitaria. Por muito sobrecarregada que
esteja, continuo a sorrir quando transponho aquela porta dupla; a Annie e eu
pintámos a confeitaria no outono passado, quando os clientes não
abundavam, e ela escolheu um rosa digno de uma princesa para as paredes e
branco para os tubos. Parecia-nos, por vezes, que vivíamos dentro de um
queque gigante.
O Matt Hines está sentado de frente para o balcão e, quando me vê, salta
da cadeira e sorri.
– Olá, Hope – diz.
Retribuo o sorriso. O Matt foi meu namorado no liceu, tinha eu metade
dos anos que tenho hoje. Acabámos a relação antes de irmos estudar para
universidades diferentes; voltei, vários anos depois, com uma licenciatura,
metade de um doutoramento inútil, em Direito, um marido e uma filha
bebé. O Matt e eu somos amigos desde o meu regresso. Convidou-me
várias vezes para sair desde o meu divórcio, mas eu fui-me apercebendo,
quase com surpresa, de que crescemos e temos agora outro tipo de relação.
Ele é como uma camisola antiga que adoramos mas já não serve ou já não
nos fica bem. A vida muda-nos, mesmo que essa mudança não seja
consciente, e a verdade é que não podemos recuperar os anos que ficaram
para trás. O problema é que, ao que parece, o Matt ainda não chegou a essa
conclusão.
– Olá, Matt. – Tento parecer neutra e simpática. – Posso oferecer-te um
café? Por conta do tempo que te fiz perder. – Sem esperar pela resposta,
começo a servi-lo. Sei exatamente como o Matt gosta do café: duas colheres
de açúcar e uma dose de natas num copo para levar. Dentro de poucos
minutos, estará a entrar no Banco de Cape Cod, onde é vice-presidente
regional, para começar a tratar da papelada antes da abertura ao público.
Uma vez que trabalha apenas a dois quarteirões de distância, em Main
Street, entra na confeitaria uma ou duas vezes por semana.
O Matt acena afirmativamente e pega no café com um sorriso.
– Que mais te posso oferecer? – pergunto, apontando para o expositor
de vidro da confeitaria. Estou aqui desde as quatro da manhã e, embora não
tenha terminado o meu trabalho, já há bastantes bolos frescos. Retiro uma
miniatura em forma de tarte, feita com uma massa fina e recheada de pasta
de amêndoa, com um leve aroma de limão e pincelada com água de rosas e
mel. – Que tal uma rosa de amêndoa? – pergunto, mostrando-lhe a tarte. –
Sei que é o teu bolo preferido.
Ele hesita apenas um segundo antes de pegar nela. Dá uma dentada e
fecha os olhos.
– Hope, nasceste para isto – diz, com a boca cheia. Sei que se trata de
um elogio, mas sinto-me ferida pelas suas palavras. Não era nada disto que
eu queria fazer. Não era esta a vida que queria e o Matt sabe-o
perfeitamente. Contudo, a minha avó adoeceu, a minha mãe morreu e eu
não tive alternativa.
Enquanto tento abstrair-me das suas palavras, fingindo que elas não me
incomodam, o Matt muda de assunto.
– Ouve, para dizer a verdade, hoje vim falar contigo sobre um assunto
em especial. Podes sentar-te comigo um segundo?
Noto subitamente que o seu sorriso parece um pouco artificial.
Surpreende-me não ter reparado nisso antes.
– Pois… – Olho de relance para a cozinha. As tartes de canela têm de
sair do forno em breve, mas ainda restam alguns minutos até o
temporizador dar sinal. Não há mais ninguém na confeitaria a esta hora.
Encolho os ombros. – Sim, está bem, mas só um minuto.
Preparo-me para tomar uma chávena de café – simples, a terceira esta
manhã – e sento-me numa cadeira diante do Matt. Inclino-me sobre a mesa
e preparo-me para, mais uma vez, ser convidada para sair. Não sei bem o
que dizer; tantos anos de dedicação ao meu marido e à minha filha
custaram-me a maioria das amizades que tive noutros tempos e, por
egoísmo, não quero perder também o Matt.
– O que se passa?
A pausa que ele faz antes de responder leva-me a acreditar que algo não
está bem. Talvez eu me tenha habituado, ultimamente, a receber más
notícias. O cancro da minha mãe. A demência da minha avó. A decisão do
meu marido de deixar de ser meu marido. Fico surpreendida, portanto,
quando o Matt diz:
– Como está a Annie?
Olho-o atentamente, com o coração aos pulos. Ele deve saber algo que
eu não sei.
– Porquê? O que aconteceu?
– Estou só a perguntar – diz o Matt rapidamente. – A ser simpático. A
fazer conversa.
Suspiro de alívio por não haver más notícias. Não me surpreenderia que
a minha filha tivesse sido apanhada a fazer uma tolice qualquer, como
roubar numa loja ou fazer grafitis nas paredes da escola preparatória. Ela
mudou desde que o pai e eu nos separámos: está agitada, nervosa e
impaciente. Revistei mais do que uma vez, de consciência pesada, o seu
quarto à procura de cigarros ou drogas mas, até ao momento, a única prova
de que a Annie mudou é a sua enorme hostilidade.
– Desculpa – digo ao Matt. – Estou sempre à espera que mais alguma
coisa corra mal.
Ele desvia o olhar.
– E se jantássemos hoje? – pergunta. – Tu e eu. A Annie vai estar outra
vez em casa do Rob, não vai?
Confirmo com um aceno. O meu ex-marido e eu partilhamos a custódia
da nossa filha, mas sinto que isso destabiliza a vida da Annie.
– Não sei, Matt – digo. – Mas acho que… – Procuro palavras que não o
magoem. – Acho que ainda é cedo, percebes? O divórcio foi há pouco
tempo e a Annie está a sofrer. Talvez seja melhor…
– É só um jantar, Hope – interrompe o Matt. – Não te estou a pedir em
casamento.
Subitamente, sinto o rosto muito corado.
– Claro que não – digo entre dentes.
Ele ri-se e pega nas minhas mãos.
– Descontrai-te, Hope. – Quando hesito, ele esboça um sorriso e
acrescenta: – Tens de comer alguma coisa. Que dizes?
– Sim, está bem – digo.
Nesse momento, a Annie abre a porta da frente da confeitaria e entra
com a mochila pendurada ao ombro e os seus óculos muito escuros, apesar
de o sol ainda não ter nascido. Observa-nos durante algum tempo,
denunciando imediatamente o que lhe vai na cabeça. Afasto as minhas
mãos das do Matt, mas é demasiado tarde.
– Boa – diz ela. Arranca os óculos de sol do rosto e atira os cabelos
compridos e ondulados, louro-escuros, para cima do ombro, fitando-nos
com os seus penetrantes olhos cinzentos, ainda mais tempestuosos do que
habitualmente. – Vocês iam, tipo, enrolar-se se eu não tivesse chegado?
– Annie – digo, levantando-me. – Isto não é o que parece.
– Tanto faz – resmunga. É a sua nova expressão preferida.
– Não sejas mal-educada com o Matt – respondo.
– Tanto faz – insiste, revirando os olhos para acentuar as palavras. – Vou
lá para dentro. Podem continuar seja o que for que estão a fazer.
Olho para ela, impotente, enquanto ela empurra a porta dupla e entra na
cozinha. Ouço-a atirar a mochila para o balcão e estremeço com o peso dos
livros a ecoar nas tigelas de aço inoxidável que ali tenho amontoadas.
– Desculpa – digo, voltando-me novamente para o Matt. Ele continua a
olhar para onde a Annie estava há pouco.
– Ela é mesmo uma personagem – responde ele.
– Miúdos… – arrisco, forçando o riso.
– Sinceramente, não sei como aguentas – diz.
Respondo-lhe com um sorriso austero. Eu posso ficar irritada com a
minha filha, ele não.
– É só uma fase má – acrescento. Levanto-me e olho para a cozinha. – O
divórcio afetou-a muito. E tu lembras-te do sétimo ano. Não é um ano fácil
para ninguém.
– Mas a maneira como a deixas falar contigo… – diz o Matt,
levantando-se também.
Sinto um aperto no estômago.
– Adeus, Matt – afirmo, com os maxilares tão cerrados que chegam a
doer. Antes que ele possa ripostar, viro-lhe as costas e encaminho-me para a
cozinha, esperando que ele perceba que o convidei a sair.

– Não podes ser mal-educada com os clientes – digo à Annie ao


atravessar a porta dupla da cozinha. Ela tem as costas voltadas para mim e
está a misturar qualquer coisa numa tigela para fazer, creio, um queque de
veludo vermelho. Presumo, por instantes, que me esteja a ignorar, mas
depois percebo que tem os auriculares nos ouvidos. Maldito iPod.
– Minha menina! – digo, subindo o tom de voz. Continuo sem obter
resposta, pelo que me aproximo dela e puxo o auricular do ouvido
esquerdo. Ela salta e revira os olhos, furiosa, como se eu lhe tivesse batido.
– Bolas, mãe, qual é o teu problema? – pergunta, irritada.
A sua expressão de fúria apanha-me de surpresa e, momentaneamente,
não reajo, pois ainda consigo ver a menina doce que saltava para o meu
colo e ouvia os contos de fadas da Mamie, a menina que me pedia mimos
sempre que esfolava o joelho, a menina que me fazia joias de plasticina e
insistia em que eu as usasse quando ia ao supermercado. Ela ainda está ali,
algures, mas esconde-se atrás de uma máscara de agressividade. Quando é
que as coisas mudaram? Quero dizer-lhe que a adoro e que não queria
discutir desta maneira, mas, em vez disso, dou por mim a dizer friamente:
– Não te disse que não podes usar maquilhagem na escola, Annie?
Ela desafia-me com os olhos demasiado pintados e esboça um sorriso
trocista com os lábios muito vermelhos.
– O pai disse que podia.
Mentalmente, amaldiçoo o Rob. Parece que ele tem agora como missão
pessoal contrariar tudo o que eu digo.
– Pois, mas eu decido que não podes – digo com firmeza. – Por isso, vai
à casa de banho e limpa a maquilhagem.
– Não – diz a Annie, colocando as mãos nas ancas para me desafiar.
Olha-me fixamente, sem reparar que sujou as calças de ganga com a massa
do queque. Tenho a certeza de que, quando se aperceber, a culpa também
vai ser minha.
– Não há discussão, Annie – insisto. – Limpa a maquilhagem senão
ficas de castigo.
Apercebo-me da frieza da minha voz e lembro-me da minha mãe.
Odeio-me por isso, mas continuo a enfrentar a Annie. Ela é a primeira a
ceder, desviando o olhar.
– Tanto faz! – Arranca o avental e atira-o ao chão. – Eu nem devia
trabalhar aqui! – grita, esbracejando. – É contra as leis do trabalho infantil!
Reviro os olhos. Já tivemos esta discussão milhares de vezes.
Formalmente, ela não trabalha em troca de um ordenado; este é o nosso
negócio de família, e é normal que ela me ajude como eu ajudei a minha
mãe quando era mais jovem e como a minha mãe ajudou a minha avó.
– Não te vou explicar isto outra vez, Annie – digo em tom severo. –
Preferes cortar a relva e encarregar-te de todas as tarefas lá de casa?
Ela sai, indignada, presumivelmente a caminho da casa de banho, que
fica do outro lado da porta dupla.
– Odeio-te! – grita ao afastar-se.
A palavra atinge-me como um punhal, embora eu me lembre de ter dito
a mesma coisa à minha mãe quando tinha a idade da Annie.
– Pois – resmungo, pegando na tijela com a massa e na colher de pau
que ela deixara no balcão. – Qual é a novidade?

Por volta das sete e meia, quando a Annie se prepara para percorrer os
habituais quatro quarteirões até à Escola Preparatória Sea Breeze, todos os
bolos estão prontos e a confeitaria está repleta de clientes habituais. Sairá
em breve mais uma fornada do nosso Rose’s Strudel, recheado com maçãs,
amêndoas, passas, casca de laranja cristalizada e canela, e o seu aroma
espalha-se lentamente pela confeitaria. A Kay Sullivan e a Barbara Koontz,
as duas viúvas de oitenta anos que vivem do outro lado da rua, vão olhando
pela janela, absortas na sua conversa, enquanto bebem café na mesa mais
próxima da porta. O Gavin Keyes, que eu contratara, no verão, para
recuperar a casa da minha mãe e torná-la novamente habitável, está na mesa
ao lado, a beber café, a comer um éclair e a ler o Cape Cod Times. O Derek
Walls, um pai viúvo que vive perto da praia, veio com os seus dois gémeos
de quatro anos, o Jay e a Merri, que lambem a cobertura de um queque de
baunilha, apesar de ser tão cedo. E a Emma Thomas, a enfermeira de
cinquenta anos que trabalha em cuidados paliativos e ajudou a minha mãe
nos seus últimos dias, está de pé junto ao balcão, a tentar escolher um bolo
para acompanhar o chá.
Estou prestes a embrulhar um muffin de mirtilo para a Emma levar
quando a Annie passa por mim abruptamente, com o casaco e a mochila
pendurados num ombro. Agarro-lhe um braço para não a deixar fugir.
– Deixa-me ver o teu rosto – digo.
– Não – resmunga, olhando para baixo.
– Annie!
– Tanto faz – murmura. Quando ela ergue os olhos, vejo que tem uma
nova camada de rímel e voltou a usar aquele bâton horrível. Fico também
com a sensação de que aplicou uma camada de blush púrpura, mas bem
longe das maçãs do rosto.
– Limpa isso, Annie – digo. – Já. E deixa ficar aqui o estojo da
maquilhagem.
– Não mo podes tirar – responde. – Comprei-o com o meu dinheiro.
Olho em meu redor e percebo que a confeitaria ficou quase em silêncio
e só o Jay e a Merri conversam alegremente no seu canto. O Gavin fita-me
com preocupação e as senhoras sentadas junto à porta limitam-se a olhar-
me fixamente. De repente, sinto-me envergonhada. Sei que já devo ser a
nulidade local por ter deixado ruir o meu casamento com o Rob; todos
acham que ele é perfeito e eu tive a sorte de me casar com ele. Agora, ao
que parece, também sou uma nulidade como mãe.
– Annie – digo, com os dentes cerrados. – Faz já o que te digo. E, desta
vez, estás mesmo de castigo por me teres desobedecido.
– Vou ficar em casa do pai nos próximos dias – atira, com um sorriso
pretensioso. – Não me podes pôr de castigo, lembras-te? Já não vives lá.
Engulo em seco. Não quero que ela perceba que as suas palavras me
magoam.
– Fantástico – digo com ironia. – Estarás de castigo no momento em que
entrares em minha casa.
Ela amaldiçoa-me em surdina, olha em redor e apercebe-se de que todos
a observam.
– Tanto faz – murmura, a caminho da casa de banho.
Suspiro e volto-me para a Emma.
– Desculpe – digo. Noto que as minhas mãos tremem quando pego
novamente no muffin.
– Querida, eduquei três raparigas – diz. – Não te preocupes, tudo vai
melhorar.
Depois de a Emma pagar e sair, vejo a Mrs. Koontz e a Mrs. Sullivan,
que frequentam a confeitaria desde a sua abertura, há sessenta anos,
levantarem-se e coxear até à porta, cada uma com a sua bengala. O Derek e
os gémeos também se preparam para sair, e eu deixo a parte de trás do
balcão para recolher os seus pratos. Ajudo a abotoar o casaco da Merri
enquanto o Derek aperta o fecho do casaco do Jay. A Merri agradece-me o
queque e eu aceno-lhes até chegarem à porta. A Annie sai da casa de banho
um minuto depois, com o rosto imaculado, sem vestígio de maquilhagem.
Atira um tubo de rímel, um bâton e uma caixa de blush para uma das mesas
e dirige-me um olhar ameaçador.
– Aí tens. Estás satisfeita? – pergunta.
– Satisfeitíssima – digo secamente.
Ela permanece imóvel algum tempo, como se quisesse dizer alguma
coisa. Preparo-me para um qualquer comentário sarcástico mas,
surpreendentemente, ela limita-se a perguntar:
– Afinal quem é a Leona?
– Leona? – Tento lembrar-me de alguém que conheça, mas sem sucesso.
– Não sei. Porquê? Onde ouviste esse nome?
– Foi a Mamie – diz. – Está sempre, tipo, a tratar-me assim. E parece
ficar muito triste quando o faz.
– Foste ver a Mamie? – pergunto, sobressaltada. Depois da morte da
minha mãe, há dois anos, tivemos de por a minha avó num lar especializado
em problemas de memória; a sua demência agravara-se muito rapidamente.
– Sim – diz a Annie. – E então?
– Eu apenas… Não sabia que a visitavas.
– Alguém tem de o fazer – responde com desprezo.
Devo ter a culpa estampada no rosto, pois a Annie exibe um ar
triunfante.
– Estou ocupada na confeitaria, Annie – digo.
– Pois, está bem, mas eu arranjo tempo – contrapõe. – Talvez se
passasses menos tempo com o Matt Hines pudesses estar mais vezes com a
Mamie.
– Não há nada entre mim e o Matt. – Subitamente, dou-me conta de que
o Gavin está sentado a apenas alguns metros e sinto-me corar. A última
coisa de que preciso é que toda a cidade saiba o que se passa na minha vida.
Ou o que não se passa na minha vida, consoante o caso.
– Tanto faz – diz a Annie, revirando os olhos. – Seja como for, ao
menos a Mamie gosta de mim. Está sempre a dizer-me isso.
Provoca-me com um sorriso malicioso e eu sei que devo dizer que gosto
muito dela, que o pai e eu gostamos muito dela ou algo semelhante. Não é
isso que uma boa mãe deve fazer? Em vez disso, porque sou uma mãe
terrível, as palavras que profiro são:
– A sério? Bem, parece-me que ela está a dizer que gosta de uma pessoa
chamada Leona.
A Annie fica de queixo caído e fita-me por um momento. Quero
aproximar-me dela, envolvê-la num abraço, pedir-lhe desculpa, dizer que
estava a brincar. Contudo, antes que eu tenha oportunidade de o fazer, ela
dá meia-volta e sai tempestuosamente da confeitaria. Vislumbro uma
lágrima a brilhar-lhe no canto do olho, mas ela não olha para trás.
Com tristeza, olho fixamente a porta por onde ela saiu. Recosto-me
numa das cadeiras que os gémeos deixaram livres poucos minutos antes e
ponho a cabeça entre as mãos. Estou a falhar em tudo, mas o mais grave é
que não consigo comunicar com as pessoas que amo.
Só me apercebo de que o Gavin Keyes está atrás de mim, de pé, quando
sinto a sua mão no meu ombro. Levanto rapidamente a cabeça,
sobressaltada, e dou por mim a olhar diretamente para a sua coxa, onde tem
um pequeno rasgão nas calças de ganga já desbotadas. Por um instante,
sinto uma estranha vontade de me oferecer para as remendar, mas isso é
ridículo; sou tão competente a costurar como a ser mãe ou a manter um
casamento. Abano a cabeça e levanto os olhos, percorrendo a sua camisa de
flanela azul com padrão escocês até chegar ao rosto, marcado por uma
sombra espessa de barba curta e escura que percorre o seu forte maxilar. O
seu cabelo escuro e volumoso parece não ser penteado há vários dias mas
ele não tem um ar desleixado; pelo contrário, está com ótimo aspeto e isso
deixa-me desconfortável. Quando sorri gentilmente, as suas covinhas
recordam-me que ele é muito novo. Tem vinte e oito anos, creio, talvez
vinte e nove. De repente, sinto-me velha, apesar de ter apenas mais sete ou
oito anos do que ele. O que aconteceria se eu fosse assim tão jovem, sem
responsabilidades a sério, sem uma filha pré-adolescente que me odeia nem
um negócio fracassado que é preciso salvar?
– Não te martirizes – diz. Dá-me uma palmadinha nas costas e pigarreia.
– Ela gosta de ti, Hope. És uma boa mãe.
– Sim… obrigada – digo, evitando o seu olhar. É verdade que nos
víamos quase todos os dias nos meses em que ele trabalhou em minha casa
e que, muitas vezes, depois de regressar do trabalho, à tarde, eu fazia
limonada e me sentava com ele no alpendre, procurando evitar olhar para os
seus grandes bíceps bronzeados. Contudo, ele não me conhece. A verdade é
essa. E seguramente não me conhece o suficiente para me avaliar como
mãe. Se me conhecesse assim tão bem, saberia que sou um fracasso.
Volta a dar-me uma palmadinha desajeitada nas costas.
– Estou a falar a sério – diz.
O Gavin sai também, deixando-me sozinha no meu queque gigante, em
tons de rosa, que parece ter agora um sabor muito amargo.
Capítulo 2

Horas depois, fecho a confeitaria mais cedo para tratar de alguns


assuntos. Embora o sol ainda não se tenha posto quando chego a casa, às
seis e um quarto, parece haver uma atmosfera sombria e depressiva no
interior de uma casa onde quero muito sentir-me confortável.
Lá dentro, o silêncio é ensurdecedor. Até ao ano passado, quando o Rob
me surpreendeu, pouco antes do Natal, com o anúncio de que queria o
divórcio, eu ansiava por chegar a casa. Tinha orgulho na vida que
construíramos juntos na nossa casa sólida, caiada e vitoriana, com vista para
a baía de Cape Cod, situada a leste da praia. Tinha sido eu mesma a pintar o
interior, a colocar azulejos novos na cozinha, a instalar portas de madeira
maciça no andar de cima e na sala de estar e a plantar um jardim dominado
por hortênsias azuis e camélias cor-de-rosa, viçosas e bonitas, que
contrastavam com as ripas pintadas de branco sujo.
E é então que, depois de terminar a decoração, quando me preparava
para desfrutar a minha casa de sonho, um dia o Rob pediu-me para eu me
sentar e anunciou, em voz baixa, sem me olhar nos olhos, que também a
relação estava terminada. Fartara-se do casamento, de mim. No espaço de
três meses, ainda a recuperar da morte da minha mãe, de cancro da mama, e
da decisão de internar a Mamie num lar especializado, vi-me obrigada a
regressar à casa da minha mãe, que ainda não tinha conseguido vender.
Alguns meses mais tarde, exausta e desanimada, assinaria todos os
documentos do divórcio, ansiosa apenas por acabar com tudo aquilo.
A verdade é que me senti desalentada e, pela primeira vez, percebi uma
coisa que sempre me intrigara ao longo da vida: a estratégia da minha mãe
para conseguir manter sempre a frieza nas relações com os homens da sua
vida. Nunca conheci o meu pai; ela nunca me disse o seu nome. Como ela,
certo dia, me explicou frontalmente:
– Ele partiu. Há muito tempo. Nunca soube que tu existias. Fez a sua
escolha.
Além disso, à medida que fui crescendo, ela teve sempre namorados.
Estava permanentemente com alguém mas, na realidade, não os deixava
aproximar-se em demasia. Assim, quando a abandonavam, ela limitava-se a
encolher os ombros e a dizer:
– Estamos melhores sem ele, Hope. Sabes que é verdade.
Sempre pensei que ela era insensível, embora admita hoje que ansiava
por esses breves períodos entre namorados, nos quais tinha a minha mãe só
para mim durante algumas semanas. Agora, lamento não a ter entendido
mais cedo, a tempo de falar com ela sobre este assunto. Percebo-te
finalmente, mãe. Se não os deixarmos entrar, se nunca os amarmos
verdadeiramente, eles não nos magoam quando partem. Porém, como
acontece em tantas outras coisas na minha vida, percebi isto demasiado
tarde.
Quando termino o duche, tirando todo o açúcar do cabelo e da pele,
faltam alguns minutos para as sete. Sei que devo ligar para casa do Rob e
pedir desculpa à Annie pela forma como nos separámos ao início do dia,
mas não sou capaz de o fazer. Além disso, é provável que ela esteja a fazer
alguma coisa divertida com ele e que a minha chamada acabe por arruinar a
boa disposição. Independentemente do que sinto pelo Rob, tenho de
reconhecer que, na maior parte do tempo, ele trata bem da Annie. Parece
conseguir falar com ela como há muito eu não consigo. Odeio o facto de, ao
vê-los dar risadas cúmplices, sentir primeiro inveja e só depois felicidade
pela Annie. Parece que estão a criar uma nova família de que já não faço
parte.
Depois de vestir uma camisola cinzenta canelada e umas calças de
ganga pretas e justas, olho-me ao espelho enquanto escovo o meu cabelo
castanho-escuro e ondulado, à altura dos ombros, que ainda não
começaram, felizmente, a ficar grisalhos. Sei, todavia, que isso acontecerá
em breve se a Annie mantiver este comportamento. Procuro no meu rosto as
feições da Annie mas, como habitualmente, não as encontro.
Estranhamente, ela não é, de todo, parecida com o Rob ou comigo, e isso
motivou-o a fazer-me uma pergunta desagradável quando ela tinha três
anos.
– Tens a certeza de que ela é minha filha, Hope?
As palavras magoaram-me profundamente.
– Claro – sussurrei, com lágrimas nos olhos. Ele nunca mais falou no
assunto. À exceção da pele, que, no verão, conseguia o mesmo bronzeado
uniforme e bonito do Rob, não havia nela nada do pai, um homem alto, de
cabelo castanho e olhos azuis.
Examino os meus traços enquanto coloco uma camada de bâton neutro e
um pouco de rímel nas minhas pestanas claras. Enquanto os olhos da Annie
têm uma cor cinzenta irregular, como os da Mamie, os meus são verde-mar,
com tonalidades invulgares e pequenos pontos dourados. Quando eu era
mais jovem, a Mamie costumava dizer-me que os seus traços – à exceção
dos olhos – tinham avançado uma geração. Enquanto a minha mãe, com
cabelo castanho-escuro, liso, e olhos castanhos, fazia lembrar o meu avô, eu
parecia uma cópia exata de algumas fotografias antigas que vi da Mamie.
Os olhos dela, pensava eu, estavam sempre tristes nas fotografias antigas e,
agora que os meus denunciam o peso da vida, estamos cada vez mais
parecidas. Os meus lábios, com a sua curvatura acentuada – «parecidos com
a harpa de um anjo», como dizia a Mamie – são iguais aos dela quando era
jovem e, de certo modo, é um privilégio ter herdado a sua pele branca,
apesar de, no último ano, eu ter desenvolvido uma linha vertical um pouco
estranha entre as sobrancelhas que me faz parecer eternamente preocupada.
Na verdade, por estes dias, estou mesmo eternamente preocupada.
Quando ouço a campainha da porta, fico agitada. Passo mais uma vez a
escova pelo cabelo mas, depois de pensar melhor, volto a despenteá-lo com
a mão. Não quero dar a ideia de que hoje me esforcei. Não quero que o
Matt pense que isto vai ter a algum lado.
Volvidos alguns segundos, abro a porta da frente e, quando o Matt se
inclina para me dar um beijo, viro-me ligeiramente para que os seus lábios
toquem na minha face direita. Consigo sentir o cheiro intenso e sombrio do
perfume no seu pescoço. Veste umas calças esverdeadas imaculadas e uma
camisa azul-clara, com botões no colarinho e uma insígnia de aspeto
sofisticado que não reconheço, e calça uns elegantes mocassins castanhos.
– Posso mudar de roupa – digo. De repente, sinto-me deselegante e
sensaborona.
Ele observa-me de cima a baixo e encolhe os ombros.
– Essa camisola fica-te bem – diz. – Estás muito bem assim.
O Matt leva-me ao Fratanelli’s, um requintado restaurante italiano junto
ao pântano. Tento ignorar o facto de o chefe de mesa examinar a minha
roupa, de forma pouco subtil, antes de nos levar até uma mesa iluminada
por velas, junto à janela.
– Isto é demasiado elegante, Matt – digo, quando ficamos sozinhos.
Olho de relance pela janela e encontro a escuridão. Vejo também o nosso
reflexo num copo. Parecemos um casal simpático e isso leva-me a afastar
rapidamente o olhar.
– Sei que gostas deste restaurante – diz o Matt. – Lembras-te? Viemos
aqui antes do baile de finalistas do liceu.
Rio-me e abano a cabeça.
– Já me tinha esquecido.
Na verdade, já me esqueci de muitas coisas. Tentei, durante muito
tempo, deixar o passado para trás, mas é revelador que, quase vinte anos
depois, esteja sentada na mesma sala de jantar com a mesma pessoa. A
nossa história só pode desaparecer temporariamente. Afasto este
pensamento e olho para o Matt.
– Disseste que querias falar sobre uma coisa.
Ele olha para a ementa.
– Primeiro, vamos pedir.
Escolhemos os nossos pratos em silêncio; o Matt opta pela lagosta e eu
pelo esparguete à bolonhesa, o prato menos caro da ementa. Tenciono
oferecer-me, mais tarde, para pagar a minha parte e, se o Matt recusar, não
quero que ele pague uma fortuna. Não quero sentir que lhe devo seja o que
for. Depois de pedirmos, o Matt respira fundo e observa-me. Está prestes a
falar, mas eu impeço-o antes que ele possa dizer algo embaraçoso.
– Matt, sabes que tenho muita consideração por ti – começo.
– Hope… – Ele tenta interromper-me, mas eu ergo a mão para o deter.
– Deixa-me acabar – digo bruscamente, falando cada vez mais depressa.
– Sei que temos muito em comum e, é claro, todo o nosso passado, que
significa muito para mim, mas eu tentei dizer-te hoje que não me sinto
preparada para sair com ninguém neste momento. Creio que só estarei
preparada quando a Annie for para a faculdade, e isso ainda vai demorar
muito tempo.
– Hope…
Ignoro-o, pois pretendo fazer o discurso completo.
– Matt, a culpa não é tua, juro. Penso é que, por agora, seria muito
melhor sermos apenas amigos. Não sei o que vai acontecer mais tarde mas,
neste momento, a Annie precisa de toda a minha atenção e…
– Hope, não estou aqui para falar sobre a nossa relação – interrompe o
Matt. – Quero conversar contigo sobre a confeitaria e sobre o teu
empréstimo. Deixas-me falar?
Olho-o fixamente enquanto o empregado coloca na mesa um cesto com
pão e um pequeno prato com azeite. Serve-nos ainda vinho tinto – um
cabernet caro que o Matt escolheu sem me consultar – e voltamos a ficar
sozinhos.
– O que tem a minha confeitaria? – pergunto lentamente.
– Tenho más notícias – diz. Evita o meu olhar, molha um pedaço de pão
no azeite e dá uma dentada.
– Muito bem… – digo, preparando-me para o ouvir. Sinto que começa a
faltar o ar na sala.
– O teu empréstimo – diz, com a boca cheia. – O banco vai exigir o
pagamento.
O meu coração dá um salto.
– O quê? – respondo, olhando-o ansiosamente. – Quando é que foi
decidido?
O Matt baixa o olhar.
– Ontem. Hope, atrasaste-te em vários pagamentos. Com o mercado
nesta situação, o banco foi obrigado a exigir o pagamento de vários
empréstimos de pessoas que não pagam as prestações regularmente.
Infelizmente, estás nessa situação.
Respiro fundo. Isto não pode estar a acontecer.
– Mas já paguei todas as prestações deste ano. É verdade que tive alguns
meses difíceis, há alguns anos, quando a economia entrou em colapso, mas,
nesta cidade, dependemos dos turistas.
– Eu sei.
– Quem não teve problemas nessa altura?
– Sim, muita gente teve problemas – concorda o Matt. – Infelizmente,
foste uma das vítimas, e, tendo em conta o teu historial em termos de
crédito…
Fecho os olhos por instantes. Não quero sequer pensar nesses
problemas. Tive despesas com o divórcio, tive de assumir o pagamento da
hipoteca da minha mãe após a sua morte e fui obrigada a fazer equilibrismo
com vários cartões de crédito só para ter os ingredientes na confeitaria.
– O que posso fazer para resolver isto? – pergunto por fim.
– Não há muito que possas fazer, infelizmente – diz o Matt. – Podes
tentar contrair outro empréstimo, naturalmente, mas o mercado está muito
difícil neste momento. Posso garantir-te que não o vais conseguir em mais
nenhum banco. E com o teu historial de pagamentos e a nova loja da
Bingham ao fundo da tua rua…
– A Bingham – resmungo. – Só podia ser.
Tem sido a minha cruz no último ano. Trata-se de uma pequena cadeia
de venda de donuts, criada na Nova Inglaterra e sediada em Rhode Island,
que se está a expandir-se na região para tentar competir com a Dunkin’
Donuts. Abriram há nove meses a sua décima sexta loja regional, a
oitocentos metros da minha confeitaria, precisamente quando eu estava a
sair do buraco financeiro em que me encontrava depois da recessão.
Não fosse o impacto do divórcio e eu teria resistido a essa tempestade.
Mas agora estou desesperadamente a tentar sobreviver e o Matt sabe-o bem;
todos os meus empréstimos foram contraídos neste banco.
– Ouve, só me ocorre uma opção – diz o Matt.
Bebe demoradamente um gole de vinho e inclina-se para frente.
– Trabalho com alguns investidores de Nova Iorque. Eles estão sempre à
procura de pequenos negócios que consigam… ajudar. Eu posso cobrar
alguns favores.
– Sim – digo sem convicção. Não sei se quero ter estranhos a investir
numa confeitaria que foi sempre um negócio familiar. E também não me
agrada que o Matt cobre favores para me ajudar. Mas também sei que a
alternativa pode ser, muito simplesmente, perder a confeitaria.
– Como é que isso funciona?
– Essencialmente, eles compram o teu negócio – diz. – Dessa forma,
assumem o empréstimo junto do banco. Recebes algum dinheiro, o
suficiente para pagar algumas das contas que ainda estão pendentes. E
continuas a gerir a confeitaria e a controlar as atividades diárias. Se eles
aceitarem.
Volto a olhá-lo fixamente.
– Estás a dizer-me que a minha única opção é vender a confeitaria da
minha família a um estranho?
O Matt encolhe os ombros.
– Sei que não é a solução ideal. Mas resolveria o teu problema a curto
prazo. E, se tiveres sorte, talvez eu os consiga convencer a deixarem-te
continuar como gerente.
– Mas é a confeitaria da minha família – digo, com uma foz frágil,
ciente de que me estou a repetir.
O Matt afasta o olhar.
– Hope, não sei que mais te possa dizer. Esta é, na verdade, a tua última
opção, a não ser que tenhas meio milhão de dólares algures por aí. E, com a
dívida que acumulaste, não podes simplesmente reunir todas as tuas forças
e começar de novo noutro local. – Não consigo pronunciar uma palavra. Ao
fim de algum tempo, o Matt recosta-se novamente e acrescenta: – Ouve, são
boas pessoas. Já os conheço há algum tempo. Serão corretos contigo. Pelo
menos, não tens de fechar a porta.
Sinto que o Matt me colocou uma granada no colo, tirou a cavilha e se
ofereceu para limpar o que restou da carnificina, sempre com um sorriso.
– Tenho de pensar – digo, apática.
– Hope – começa o Matt. Afasta o seu copo de vinho e estende os
braços sobre a mesa. Agarra as minhas mãos, muito mais pequenas, num
gesto que me devia fazer sentir segura. – Vamos encontrar uma solução,
está bem? Vou ajudar-te.
– Não preciso da tua ajuda – resmungo. Ele parece ficar sentido e eu,
sentindo-me culpada por isso, deixo ficar as minhas mãos nas suas. Sei que
está apenas a tentar ser simpático. O problema é que tudo isto me parece
caridade. E eu não preciso de caridade. Posso afogar-me ou nadar até à
margem, mas gostava, pelo menos, de o fazer sozinha.
Antes que um de nós possa dizer mais alguma coisa, ouço tocar o
telemóvel dentro da minha carteira. Embaraçada, liberto as mãos para pegar
no telefone. Não deixei o som ligado intencionalmente. Quando atendo,
vejo o chefe de mesa lançar-me um olhar furioso do outro lado do
restaurante.
– Mãe? – É a Annie, e parece perturbada.
– O que se passa, querida? – pergunto, quase de pé, preparada para a ir
salvar onde for preciso.
– Onde estás?
– Num restaurante, a jantar – digo. Evito falar no Matt para que ela não
pense que estou num encontro romântico. – E tu? Não estás em casa do teu
pai?
– O pai teve de ir encontrar-se com um cliente – murmura. – Por isso,
trouxe-me novamente para tua casa. E a máquina de lavar louça está, tipo,
completamente avariada.
Fecho os olhos. Tinha colocado o detergente e ligado a máquina meia
hora antes de o Matt chegar, presumindo que o ciclo estaria quase concluído
quando saísse de casa.
– O que aconteceu?
– Não fui eu – diz a Annie rapidamente. – Mas há, tipo, água pelo chão
todo. Tipo, muitos centímetros. Como uma inundação ou assim.
Sinto um enorme desalento. É provável que tenha rebentado um cano.
Não imagino quanto custará a reparação nem tenho ideia da dimensão dos
estragos nas minhas velhas portas de madeira maciça.
– Está bem – digo, num tom sereno. – Obrigada por me avisares,
querida. Vou já para casa.
– Mas como paro a água? – pergunta. – Ainda continua, tipo, a sair. A
casa vai ficar toda inundada.
Apercebo-me de que não faço ideia de como se fecha a água da cozinha.
– Deixa-me pensar nisso, está bem? Ligo-te já. Estou a caminho de casa.
– Tanto faz – diz a Annie, desligando-me o telefone abruptamente.
Conto ao Matt o que aconteceu e ele, depois de suspirar, chama o
empregado de mesa e pede-lhe que coloque a nossa comida numa
embalagem para levar.
– Desculpa – digo, enquanto caminhamos apressadamente para o carro,
cinco minutos depois. – Ultimamente, a minha vida é uma sucessão de
calamidades.
O Matt limita-se a abanar a cabeça.
– Estas coisas acontecem – diz, em tom formal.
Só fala novamente quando estamos a chegar a minha casa.
– Não podes adiar este problema da confeitaria, Hope – diz. – Se o
fizeres, ficas sem nada. Perdes tudo o que a tua família conquistou e
trabalhou para preservar.
Não respondo. Sei que tem razão e não consigo enfrentá-lo agora. Em
vez disso, pergunto-lhe se sabe fechar a água da cozinha, mas ele responde
negativamente e, por conseguinte, continuamos em silêncio o resto do
caminho.
– De quem é aquele jipe? – pergunta o Matt quando estaciona em frente
a minha casa. – Não há lugar na tua entrada.
– É do Gavin – digo, em voz baixa. O seu Wrangler azul acinzentado,
que tão bem conheço, está estacionado ao lado do meu velho Corolla. O
meu coração aperta-se.
– Gavin Keyes? – indaga o Matt. – O biscateiro? O que está ele a fazer
aqui?
– A Annie deve tê-lo chamado – respondo, com os dentes cerrados. A
minha filha não sabe que ainda não paguei ao Gavin, nem de perto nem de
longe, todo o trabalho que teve em minha casa durante o verão. Nem sabe
que, numa tarde de julho, sentada com ele no alpendre, depois de receber
um extrato bancário, verti muitas lágrimas embaraçosas e que, um mês
depois, quando ele terminou as reparações em minha casa, insistiu em que,
naquele período difícil, eu lhe pagasse apenas com café e bolos da
confeitaria. A Annie não sabe que ele é a única pessoa da cidade que
percebe como a minha vida é confusa nem que, por esse motivo, ele é a
última pessoa do mundo que eu quero ver neste momento.
Entro em casa, seguida do Matt, com a minha comida do Fratanelli’s.
Na cozinha, encontro a Annie com uma pilha de toalhas e o Gavin
inclinado, com a cabeça debaixo do lava-louça. Pestanejo quando percebo
que estou a olhar diretamente para as calças de ganga, na coxa, para ver se o
buraco em que tinha reparado de manhã ainda lá está. E está, naturalmente.
– Gavin – digo. Ele estremece, afasta-se do lava-louça e levanta-se.
Olha alternadamente para mim e para o Matt, meio perdido, e coça a cabeça
quando o Matt passa por ele para guardar a minha comida no frigorífico.
– Olá – diz o Gavin, que volta a olhar de relance para o Matt e depois
para mim. – Vim logo que a Annie me chamou. Consegui fechar a água, por
agora. Parece que o cano que rebentou está na parede, atrás da máquina de
lavar louça. Venho repará-lo depois de amanhã, se não te importares de
esperar.
– Não tens de fazer isso – sussurro. Olho-o nos olhos, na esperança de
que ele perceba o que estou a tentar dizer: que ainda não lhe posso pagar.
Contudo, ele limita-se a sorrir e continua a falar como se não me tivesse
ouvido.
– Amanhã tenho o dia preenchido mas, no dia seguinte, estou livre –
afirma. – Tenho um trabalho pequeno, de manhã, na casa dos Foley. Além
disso, este trabalho não deve demorar muito. Basta reparar o cano e fica
tudo como novo. – Os seus olhos viram-se rapidamente para o Matt e
depois novamente para mim. – Tenho um aspirador de água no jipe. Vou
buscá-lo e ajudo-te a tirar alguma desta água. Podemos ver se provocou
estragos quando as portas estiverem secas.
Olho para a Annie, que ainda permanece de pé, com uma enorme pilha
de toalhas na mão.
– Conseguimos limpar isto tudo sozinhas – asseguro ao Gavin. – Não
tens de ficar. Pois não? – acrescento, olhando para a Annie e depois para o
Matt.
– Acho que não – diz a Annie, encolhendo os ombros.
O Matt desvia o olhar.
– Na verdade, Hope – atalha o Matt, desviando o olhar –, amanhã
levanto-me cedo. Tenho de ir para casa.
O Gavin resmunga e sai sem dizer mais uma palavra. Eu ignoro-o.
– Ah… – digo ao Matt. – Claro. Obrigada pelo jantar.
Enquanto acompanho o Matt até à porta, o Gavin volta a entrar com o
seu aspirador de água.
– Eu disse-te que não tinhas de fazer isso – murmuro.
– Sei o que disseste – declara o Gavin, sem abrandar para olhar para
mim. Um pouco mais tarde, enquanto vejo o Lexus impecavelmente polido
do Matt afastar-se do passeio, ouço ligar o aspirador do Gavin na cozinha.
Fecho os olhos por um minuto, dou meia-volta e começo a caminhar em
direção à única trapalhada da minha vida que tem, de facto, solução.

Na noite seguinte, a Annie está novamente em casa do Rob e eu, depois


do trabalho, enquanto limpo com uma esfregona o que resta de sujidade na
cozinha, dou por mim a pensar na Mamie, que sabia sempre como resolver
estas calamidades. Lembro-me de que já não a visito há duas semanas.
Devia ser uma neta melhor, penso, sentindo o peso da culpa. Devia ser uma
pessoa melhor. Mais uma parte da minha vida em que pareço ficar
eternamente aquém das expectativas.
Com um nó na garganta, acabo de esfregar o chão, ponho um pouco de
bâton em frente ao espelho do hall e pego nas minhas chaves. A Annie tem
razão; preciso de ir ver a minha avó. Visitar a Mamie deixa-me sempre com
vontade de chorar pois, embora o lar seja animado e acolhedor, é terrível
vê-la eclipsar-se. É como estar no convés de um barco, vendo alguém ser
engolido pelas ondas, e saber que não há qualquer colete de salvação para
atirar.
Quinze minutos depois, atravesso as portas do lar onde está a Mamie,
um edifício enorme, pintado de um amarelo baço e repleto de imagens de
flores e criaturas dos bosques. O andar superior é a unidade para doentes
com problemas de memória, onde os visitantes têm de introduzir um código
num teclado digital colocado na parede.
Atravesso o corredor até chegar ao apartamento da Mamie, o último da
ala oeste. As instalações dos residentes são todas privadas e semelhantes a
apartamentos, embora os doentes tomem todas as refeições na sala de jantar
e todos os funcionários tenham chaves mestras para poderem acompanhar
os residentes e dar-lhes a medicação diária. A Mamie toma um
antidepressivo, dois comprimidos para o coração e um medicamento para a
doença de Alzheimer que não parece estar a resultar; reúno-me com o
médico do lar uma vez por mês para fazermos o ponto da situação. Na
nossa última reunião, informou-me de que as capacidades mentais da
Mamie se têm deteriorado rapidamente nos últimos meses.
– A pior parte – disse, olhando para mim por cima dos óculos – é que
ela está suficientemente lúcida para o saber. Esta é uma das etapas mais
difíceis para todos; ela sabe que, em breve, vai perder totalmente a
memória, e isso é muito inquietante e triste para os pacientes que se
encontram neste estado.
Procuro conter a emoção quando toco à campainha ao lado do seu
nome: Rose McKenna. Consigo ouvi-la mexer-se dentro do apartamento,
certamente a levantar-se da sua cadeira reclinável com algum esforço e a
dirigir-se para a porta com a bengala que usa desde que, há dois anos, partiu
a anca numa queda.
A porta abre-se e eu resisto à tentação de me encostar ao seu peito, à
espera de um abraço, como fazia quando era mais nova. Até este momento,
acreditava que vinha ao lar ajudá-la, mas agora percebo que venho, na
verdade, procurar conforto. Preciso disto. Preciso de ver alguém que me
ame, ainda que esse amor seja imperfeito.
– Olá – diz a Mamie, sorrindo. Desde a minha última visita, o cabelo
parece mais branco e as rugas do rosto afiguram-se mais acentuadas. Mas,
como sempre, pôs o seu bâton cor de vinho, escureceu as pálpebras e
aplicou rímel nas pestanas. – Que surpresa, querida.
As suas palavras denunciam pequenos vestígios da pronúncia francesa
que já quase perdeu. Vive nos Estados Unidos desde o início dos anos 40,
mas os traços do seu passado longínquo ainda envolvem as suas palavras
como uma das écharpes francesas, leves como penas, que quase sempre
usava à volta do pescoço.
Aproximo-me para a abraçar. Quando eu era mais pequena, ela era
sólida e forte. Agora, quando ela retribui o abraço, sinto os ossos salientes
da sua coluna e dos seus ombros.
– Olá, Mamie – digo, em voz baixa, pestanejando rapidamente para
conter as lágrimas.
Ela fita-me com os olhos cinzentos e turvados.
– Tem de me desculpar – diz. – Por vezes, sou um pouco esquecida.
Como se chama, querida? Eu sei que me devia lembrar.
Engulo em seco.
– Sou a Hope, Mamie. A tua neta.
– Claro. – Sorri, mas os seus olhos cinzentos estão perdidos. – Eu sabia.
Só preciso que me lembrem as coisas de vez em quando. Entre, por favor.
Sigo-a até ao interior do seu apartamento mal iluminado, onde ela me
conduz até à janela da sala de estar.
– Estava só a ver o pôr do sol, querida – diz. – Em breve,
conseguiremos ver a estrela da tarde.
Capítulo 3

Queques de Baunilha North Star

QUEQUES

Ingredientes
1 chávena de manteiga sem sal, à temperatura ambiente
1 chávena e 1/2 de açúcar granulado
4 ovos grandes
1 colher de chá de extrato de baunilha puro
3 chávenas de farinha
3 colheres de chá de fermento em pó
1/2 colher de chá de sal
1/2 chávena de leite

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C. Forre vinte e quatro formas com
forminhas de papel.
2. Numa tigela grande, misture a manteiga e o açúcar com uma
batedeira elétrica. Bata a mistura até ficar homogénea e
adicione gradualmente os ovos. Adicione o extrato de
baunilha e mexa bem.
3. Peneire a farinha, o fermento em pó e o sal e adicione-os à
mistura da manteiga, uma chávena de cada vez,
alternadamente com o leite.
4. Encha as formas até meio. Leve-as ao forno durante 15 a 20
minutos ou até verificar que o interior do queque está
suficientemente seco. Deixe arrefecer os queques durante 10
minutos e, em seguida, passe-os para uma grelha metálica
para arrefecerem totalmente.
5. Aguarde que os queques estejam frios e cubra-os com glacé
cor-de-rosa (ver receita abaixo).

GLACÉ COR-DE-ROSA

Ingredientes
1 chávena de manteiga sem sal (ligeiramente amolecida)
4 chávenas de açúcar em pó
1/2 colher de chá de extrato de baunilha
1 colher de chá de leite
1 a 3 gotas de corante alimentar vermelho

Preparação
1. Com uma batedeira elétrica, bata a manteiga numa tigela de
tamanho médio até ficar leve e fofa.
2. Adicione gradualmente o açúcar e continue a bater até
conseguir uma mistura homogénea.
3. Adicione a baunilha e o leite e continue a bater para manter a
mistura homogénea.
4. Adicione uma gota de corante alimentar vermelho e continue
a bater bem para a dissolver. Se preferir que o glacé tenha um
cor-de-rosa mais intenso, adicione mais uma ou duas gotas,
batendo sempre a mistura para dissolver cada uma delas.
Coloque o glacé sobre os queques da receita anterior.

Rose

Rose olhava pacientemente pela janela procurando, como era seu


hábito, a primeira estrela no horizonte. Sabia que ela ia aparecer, tão
cintilante e radiosa como uma chama inextinguível, logo depois de o
pôr do sol tingir o céu de fitas de fogo e luz. Na sua infância, chamavam
a este crepúsculo l’heure bleue, a hora azul, a hora em que a Terra não
está totalmente iluminada nem totalmente escura. Rose sempre se
sentira reconfortada por este meio-termo.
A estrela da tarde, que surgia todas as noites durante aquele
crepúsculo profundo e suave, fora sempre a sua preferida, apesar de
não ser, em bom rigor, uma estrela; era o planeta Vénus, batizado com
o nome da deusa do amor. Há muito que o sabia, mas isso nada
alterava; aqui, na Terra, era difícil distinguir as estrelas dos outros
corpos celestes. Durante anos, contara todas as estrelas que avistava no
céu da noite. Procurava sempre uma em especial, mas ainda não a
tinha encontrado. Sabia que ainda não o merecia e isso desgostava-a.
Por esses dias, encontrava muitos motivos para estar triste. Contudo,
em algumas ocasiões, esquecia-se rapidamente do que a levava a
chorar.
Doença de Alzheimer. Ela sabia que a tinha. Ouvia os murmúrios
nos corredores. No lar, os seus vizinhos iam chegando e partindo, cada
vez mais desapossados de memórias. Ela sabia que lhe estava a
acontecer o mesmo, e isso assustava-a por motivos que ninguém
compreendia. Não se atrevia a falar sobre eles em voz alta. Era tarde de
mais.
Rose sabia que a rapariga de cabelo castanho brilhante, traços
familiares e olhos belos e tristes tinha acabado de lhe dizer quem era,
mas já se esquecera. Sentiu-se invadida pelo pânico que tão bem
conhecia. Desejava alcançar as memórias como se fossem boias de
salvação e agarrá-las para não se afundar. Percebeu, porém, que as
boias eram fugidias e impossíveis de segurar. Assim, aclarou a
garganta, forçou um sorriso e resolveu arriscar.
– Josephine, querida, procura a estrela no horizonte – disse.
Apontou para o espaço vazio onde, como bem sabia, a estrela da
tarde iria aparecer a qualquer momento. Esperava ter adivinhado o
nome. Não via Josephine há muito tempo. Ou vira-a recentemente? Era
impossível saber.
A rapariga dos olhos tristes pigarreou.
– Não, Mamie, sou a Hope – disse. – A Josephine não está aqui.
– Sim, claro, eu sei – apressou-se a dizer Rose. – Devo ter
pronunciado mal o nome. – Nenhum dos estranhos podia perceber que
ela estava a perder a memória. Era, afinal, uma situação embaraçosa.
Quase como se ela não se desse ao trabalho de preservar as
recordações. Isso incomodava-a porque nada podia estar mais longe da
verdade. Talvez se ela fingisse um pouco mais, as nuvens
desaparecessem e as suas memórias regressassem do sítio onde estavam
escondidas.
– Não tem importância, Mamie – disse a rapariga, que parecia
muito crescida para ser Hope, a sua única neta, que não tinha mais do
que treze ou catorze anos. Contudo, Rose via as rugas de preocupação
vincadas em redor dos olhos da rapariga, demasiadas rugas para uma
menina daquela idade. Não percebia que peso a vergava. Talvez a mãe
de Hope soubesse qual era o problema. Talvez depois de o saber, Rose
fosse capaz de a ajudar. Queria ajudar Hope. Mas não sabia como.
– Onde está a tua mãe? – perguntou Rose a Hope educadamente. –
Está a chegar, querida?
Rose tinha tanto para dizer a Josephine, tanto por que lhe pedir
desculpa. E temia que o tempo se estivesse a esgotar. Por onde
começaria? Pediria desculpa pelas suas muitas faltas? Pela sua frieza?
Por lhe ter transmitido ensinamentos errados, ainda que sem intenção?
Rose sabia que tivera muitas oportunidades para se penitenciar no
passado, mas que as palavras tinham ficado sempre presas na
garganta. Talvez fosse chegado o momento de se obrigar a dizê-las,
para Josephine as ouvir enquanto é tempo.
– Mamie? – disse Hope timidamente.
Rose sorriu com ternura. Ela sabia que Hope iria crescer e
transformar-se, um dia, numa pessoa forte e bondosa. Josephine
também era assim, mas o seu carácter estava de tal forma escondido
atrás de mecanismos de defesa, desencadeados pelos erros de Rose, que
era difícil discerni-lo.
– Sim, querida? – perguntou Rose a Hope, que tinha parado de
falar. Rose adivinhou exatamente o que Hope estava prestes a dizer.
Desejou poder impedi-la antes de as palavras a ferirem. Mas era tarde
de mais. Era sempre tarde de mais.
– A minha mãe, Josephine, morreu – disse Hope suavemente. – Há
dois anos, Mamie. Não te lembras?
– A minha filha? – perguntou Rose, com a tristeza a atingi-la como
uma onda que rebenta violentamente. – A minha Josephine? – A maré
trouxera consigo a verdade e, por um momento, Rose não conseguiu
respirar. Pensou na partida que a mente lhe pregava, arrastando as
memórias infelizes, levando-as para o mar.
Porém, como Rose bem sabia, algumas memórias não podem ser
apagadas, mesmo que passemos uma vida inteira procurando fingir
que elas não existem.
– Lamento, Mamie – disse Hope. – Tinhas-te esquecido?
– Não, não – disse Rose de imediato. – É claro que não. Hope
desviou o olhar e Rose fitou-a. Por um instante, a rapariga recordou-
lhe algo, ou alguém, mas, antes que pudesse agarrar aquela memória,
ela voou para longe, para fora do seu alcance, como uma borboleta. –
Como poderia esquecer uma coisa dessas? – acrescentou
delicadamente.
Permaneceram durante algum tempo sentadas, em silêncio, a olhar
pela janela. A estrela da tarde já se via no céu e, em breve, Rose iria
poder ver as estrelas da Ursa Maior, a que o seu pai chamara, certa vez,
a «caçarola» de Deus. Como o pai lhe tinha ensinado, Rose seguia a
linha que começa na estrela Merak e atravessa a estrela Dubhe até
encontrar Polaris, a estrela Polar, que começava a abrir, só para ela, o
seu olho sonolento na imensidão do céu. Sabia os nomes de muitas
estrelas e, às que não conhecia, dava nomes de pessoas que há muito
tinha perdido.
Ocorreu-lhe como era estranho não conseguir recordar os factos
mais simples mas ter todos os nomes celestiais eternamente registados
na memória. Tinha-os estudado em segredo durante muitos anos, na
esperança de que um dia lhe indicassem o caminho para casa. Contudo,
naquele momento, ainda estava na Terra. E as estrelas estavam tão
distantes como sempre.
– Mamie? – chamou Hope ao fim de algum tempo, quebrando o
silêncio.
Rose voltou-se para ela e sorriu ao pensar naquele diminutivo.
Tinha boas recordações da sua mamie, uma mulher que sempre lhe
parecera fascinante, uma mulher cujas imagens de marca eram o bâton
vermelho, as maçãs do rosto salientes e os cabelos negros com uma
elegante franja que deixara de se usar nos anos 20. Contudo, lembrou-
se depois do que tinha acontecido à sua mamie, e o sorriso desapareceu.
– Sim, querida? – perguntou Rose.
– Quem é Leona?
Por um momento, as palavras cortaram a respiração de Rose, pois
esse era um nome que não pronunciava havia quase setenta anos. E
porque o haveria de fazer? Não acreditava que os fantasmas se
pudessem ressuscitar.
– Ninguém – começou por dizer Rose. Mas mentia, é claro. Leona
fora alguém. Todos eles foram alguém. Rose sabia que, ao negar
novamente a sua existência, estava a emaranhar-se ainda um pouco
mais na sua teia de falsidades. Ocorria-lhe que, um dia, essa teia
poderia tornar-se suficientemente forte para a sufocar.
– Mas a Annie diz que tu lhe tens chamado Leona – insistiu Hope.
– Não, está enganada – disse Rose de imediato – Não conheço
nenhuma Leona.
– Mas…
– Como está a Annie? – perguntou Rose, mudando de assunto. De
Annie lembrava-se com toda a clareza. Ela representava a terceira
geração de americanos na sua família. Primeiro Josephine. Depois
Hope. E agora a mais pequena, Annie, que desponta precisamente
quando Rose se eclipsa. Rose tinha orgulho em muito poucas coisas na
sua vida. Mas tinha orgulho nas suas descendentes.
– Está ótima – respondeu Hope. Contudo, Rose notou que a boca de
Hope assumiu uma forma pouco natural. – Ultimamente, tem passado
muito tempo com o pai. Passam o verão inteiro a ver jogos da liga de
Cape.
Rose procurou socorrer-se da memória.
– Que tipo de liga?
– Basebol. A liga de verão. Como os jogos a que o avô me levava
quando eu era miúda.
– Ah, isso parece-me bem, querida – disse Rose. – Vais com eles?
– Não, Mamie – disse Hope em voz branda. – O pai da Annie e eu
divorciámo-nos.
– Claro – murmurou Rose. Examinou o rosto de Hope quando a
rapariga baixou os olhos e pareceu entrever nas feições dela a mesma
tristeza que encontrava sempre que se via ao espelho. Porque estaria
ela sempre triste? – Ainda o amas? – arriscou.
Hope ergueu bruscamente os olhos, e Rose arrependeu-se das suas
palavras ao perceber que, muito provavelmente, tinha feito uma
pergunta inconveniente. Esquecia-se, por vezes, das regras de cortesia.
– Não – acabou por murmurar. E, sem olhar para Rose,
acrescentou: – Acho que nunca o amei. É terrível dizê-lo, não é? Devo
ter algum problema.
Rose sentiu um nó na garganta. Concluía que aquele peso também
tinha sido herdado por Hope. Agora já sabia. O seu coração fechado
tivera consequências que ela nunca imaginara. Era responsável por
tudo. Mas como podia dizer a Hope que o amor existia e era capaz de
mudar tudo? Não podia. Em vez disso, pigarreou e tentou concentrar-
se no presente.
– Não tens nenhum problema, querida – disse à sua neta.
Hope olhou de relance para a avó e afastou novamente o olhar.
– Mas e se tiver mesmo? – perguntou em voz baixa.
– Não te deves culpar – disse Rose. – Algumas coisas não estão
destinadas a acontecer. – Parecia ocorrer-lhe, mais uma vez, alguma
memória fugidia. Não se lembrava do nome do marido de Hope, mas
sabia que nunca gostara muito dele. Teria sido indelicado com Hope?
Ou seria apenas o facto de ele parecer sempre, de certa forma,
demasiado frio, demasiado atinado? – Ele tem sido um bom pai para a
Annie, não tem? – acrescentou, sentindo-se obrigada a fazer algum
elogio.
– Claro – disse Hope em tom firme. – É um excelente pai. Compra-
lhe tudo o que ela quer.
– Mas isso não é amor – contrapôs Rose timidamente. – São apenas
objetos.
– Sim, é verdade – disse Hope. De repente, Hope parecia exausta. O
cabelo tombou para a frente, tapando-lhe o rosto como uma cortina e
obscurecendo a sua expressão. Naquele momento, Rose teve a certeza
de que vira lágrimas nos olhos da neta mas, quando Hope voltou a
olhar na sua direção, aqueles olhos dolorosamente familiares tinham o
seu aspeto normal.
– E então, já saíste com outros homens? – perguntou Rose ao fim de
algum tempo. – Depois do divórcio? – Pensou na sua própria situação e
na forma como, por vezes, teve de prosseguir a sua vida mesmo depois
de entregar o coração.
– É claro que não. – Hope baixou a cabeça para evitar o olhar
surpreendido de Rose. – Não quero ser como a minha mãe –
murmurou. – É a Annie que está em primeiro lugar, não uns tipos
quaisquer.
E, nesse momento, Rose entendeu. Lembrou-se repentinamente de
pequenas coisas da infância da sua neta. Lembrou-se de como
Josephine procurara incessantemente o amor nos sítios errados, com os
homens errados, quando o amor estivera sempre ali mesmo, nos olhos
de Hope. Lembrou-se das inúmeras noites em que Josephine deixou a
sua filha com Rose para poder sair. Hope, que era então apenas uma
menina, adormecia a chorar enquanto Rose a apertava num abraço.
Rose lembrou-se das manchas de lágrimas nas suas blusas e a forma
como elas a faziam sentir sempre vazia e sozinha muito depois de Hope
adormecer.
– Não és a tua mãe, querida – disse Rose suavemente. Doía-lhe o
coração porque era responsável por isto. Por tudo isto. Quem poderia
saber que as suas decisões teriam consequências em várias gerações?
Hope aclarou a garganta, afastou o olhar e mudou de assunto.
– Então tens a certeza de que não conheces nenhuma Leona? –
perguntou.
Rose pestanejou algumas vezes, pois o nome parecia abrir mais uma
chaga no seu coração. Talvez a mentira não fosse tão forte se ninguém a
dissesse em voz alta.
– É curioso – murmurou Hope. – A Annie estava mesmo convencida
de que a tinhas tratado por esse nome.
– Que estranho. – Rose gostaria de poder dar àquela jovem as
respostas que ela procurava, mas não estava preparada para o fazer.
Contar a verdade seria como abrir uma comporta. Quase sentia a água
a investir sobre a barragem e sabia que, em breve, a corrente iria
ultrapassá-la. Por agora, os rios, as marés, as águas das cheias ainda
lhe pertenciam e ela navegava-as sozinha.
Por um momento, pareceu-lhe que Hope queria dizer algo mais,
mas, em vez disso, ela levantou-se e deu um forte abraço a Rose,
prometendo regressar em breve. Saiu sem olhar para trás. Rose viu-a
partir e constatou que a noite ainda não caíra totalmente; Hope não
tinha ficado sequer até ao final da heure bleue. Este facto entristeceu-a,
embora não culpasse aquela jovem. Rose sabia que, neste caso, como
em tantas outras coisas, a culpa era sua.
Algum tempo depois, com todas as estrelas já visíveis no céu, a
enfermeira preferida de Rose, uma mulher cuja pele brilhava como o
pain au chocolat que a própria Rose costumava levar para casa e
oferecer ao seu irmão David e à sua irmã Danielle, muitos anos antes,
veio verificar se ela tinha tomado os medicamentos da noite.
– Olá, Rose – disse, abrindo-lhe um sorriso enquanto deitava um
pouco de água num copo e abria a caixa dos medicamentos. – Hoje teve
uma visita?
Rose concentrou-se na pergunta e esforçou-se por se lembrar. Tinha
uma vaga ideia da visita, como uma estrela ténue no fundo da sua
memória, mas acabou por perdê-la. Estava convencida de que tinha
visto o pôr do sol sozinha, como nas outras tardes.
– Não, querida – disse.
– Tem a certeza, Rose? – tentou a enfermeira. Entregou os
comprimidos num pequeno copo de papel e viu Rose tomá-los com um
pouco de água. – A Amy da receção disse que a sua neta esteve cá. A
Hope.
Rose sorriu, pois adorava Hope, que devia ter agora treze ou
catorze anos. Como o tempo voa, pensou. Vai crescer num instante.
– Não – assegurou à enfermeira. – Não esteve cá ninguém. Mas um
dia tem de a conhecer. É uma menina muito simpática. Talvez me
venha visitar com a mãe.
A enfermeira apertou delicadamente o braço de Rose e sorriu.
– Sim, Rose – disse. – Está bem.
Capítulo 4

Nunca foi minha intenção regressar à confeitaria, a Cape, a nada disto.


Aos trinta e seis anos, não devia ser a mãe de uma adolescente, a
proprietária de uma confeitaria. Na universidade, sonhava mudar-me para
um lugar distante, percorrer o mundo, ser uma advogada bem-sucedida.
Mas depois conheci o Rob, finalista de Direito no ano em que eu iniciei
o meu doutoramento. Embora Cape tivesse um forte magnetismo, a força de
atração do Rob era muito superior. Quando o meu contracetivo falhou, a
meio do meu primeiro ano em Direito, e eu tive de lhe dizer que estava
grávida, ele pediu-me em casamento na semana seguinte. Era, nas palavras
dele, a atitude mais correta a tomar.
Decidimos, em conjunto, que eu interromperia os estudos durante um
ano para ter o bebé. A Annie nasceu em agosto; o Rob conseguiu um
emprego numa firma de Boston e sugeriu que eu ficasse um pouco mais
tempo em casa, com a nossa filha, pois ele auferia agora um bom salário.
No início, a ideia agradou-me. Contudo, ao fim do primeiro ano, o fosso
entre nós era tão vasto que eu já não sabia como atravessá-lo. Os meus dias,
preenchidos com fraldas, amamentação e Rua Sésamo, não o interessavam
especialmente, e não me custava reconhecer que invejava o facto de ele ir
para o mundo todos os dias fazer as coisas com que eu, noutros tempos,
sonhara. Não estava arrependida de ter tido a Annie; nunca me arrependi,
em momento algum. Lamentava apenas nunca ter tido a possibilidade de
viver a vida que me parecia estar destinada.
Quando diagnosticaram pela primeira vez o cancro da mama à minha
mãe, há nove anos, o Rob aceitou, após muitas noites de discussão, mudar-
se para Cape, onde, pensava ele, poderia abrir um escritório e ser um dos
poucos advogados especializados em acidentes de trabalho. A Mamie
tomava conta da Annie na confeitaria durante o dia, enquanto eu trabalhava
como assistente jurídica do Rob. Não era exatamente o que eu tinha
sonhado, mas era suficientemente parecido. Quando a Annie estava no
primeiro ano, já colocava coberturas nos queques e preparava bases como
uma profissional. Durante alguns anos, tudo foi quase perfeito.
Contudo, o cancro da minha mãe reapareceu, a memória da Mamie
começou a dar sinais de deterioração e só eu podia salvar a confeitaria.
Quando dei por mim, estava a proteger um sonho que não era meu,
deixando escapar tudo aquilo que tinha idealizado.

São quase cinco da manhã, e ainda faltam duas horas para o amanhecer.
Quando eu frequentava a escola primária, a Mamie costumava dizer-me que
cada nova manhã era como desembrulhar um presente de Deus. Isto
confundia-me, pois ela não frequentava a igreja. Contudo, à noite, quando a
minha mãe e eu a visitávamos à hora do jantar, víamo-la muitas vezes
ajoelhada defronte da janela das traseiras, a rezar em voz baixa enquanto a
luz se desvanecia no céu.
– Prefiro ter uma relação minha com Deus – disse-me, uma vez, quando
lhe perguntei porque rezava em casa em vez de orar à Nossa Senhora de
Cape Cod.
Esta manhã, os aromas da farinha, do fermento, da manteiga, do
chocolate e da baunilha dançam pela cozinha, e eu inspiro-os
profundamente, deixando-me descontrair pela familiaridade de tudo isto.
Desde criança que estes aromas me fazem lembrar a minha avó. Mesmo
quando a confeitaria estava fechada, mesmo depois de ela tomar duche e se
vestir em casa, o perfume da cozinha perdurava no seu cabelo e na sua pele.
Enquanto estendo a massa das bases com um rolo e adiciono um pouco
mais de farinha na tijela da batedeira, estou um tanto alheada das tarefas
que tenho em mãos. Medito nas palavras que a Mamie proferiu ontem à
noite enquanto executo metodicamente os gestos comuns dos preparativos
matinais. Verificar o temporizador do forno dos suspiros com pepitas de
chocolate. Estender a massa para as rosas de amêndoa que o Matt Hines
tanto aprecia. Dispor a baklava em camadas e introduzi-la no forno.
Colocar na segunda batedeira o queijo-creme amolecido para o cheesecake
de limão com uvas. Misturar na massa dos croissants pequenos quadrados
de chocolate preto francês para os pains au chocolat. Entrançar os longos
fios da challah de trigo integral, polvilhar com passas e pôr de parte para
voltar a levedar.
Não tens nenhum problema, querida. São palavras da Mamie, mas o que
pode ela saber? Já quase perdeu a memória, os seus sentidos estão
totalmente baralhados. Contudo, há momentos em que os seus olhos
parecem mais clarividentes do que nunca e em que eu tenho a certeza de
que ela olha diretamente para a minha alma. Embora nunca tenha duvidado
de que ela e o meu avô se amavam, sempre me pareceu que tinham uma
relação mais funcional do que romântica. Será que eu tinha uma relação
semelhante com o Rob e deitei tudo a perder por sentir que podia haver algo
mais? Talvez tenha sido tonta. A vida não é um conto de fadas.
O temporizador do forno principal dispara e eu passo os suspiros para
uma grelha. Ligo o forno e preparo-me para introduzir os pains au chocolat.
Comecei a fazer duas fornadas todas as manhãs; vendem-se mais depressa
agora no outono, que a temperatura baixa. As nossas tartes e bolos de frutas
são mais populares nos meses de primavera e de verão, mas os bolos mais
densos e mais doces parecem reconfortar as pessoas quando se aproxima o
inverno.
Comecei por ajudar a Mamie na confeitaria, como a Annie me ajuda
agora, quando tinha oito anos. Todas as manhãs, pouco antes do nascer do
sol, a Mamie interrompia o que estava a fazer e levava-me até à janela
voltada a leste, do lado da sinuosa Main Street. Observávamos o horizonte
até romper a aurora e só depois voltávamos à cozinha.
– O que procuras, Mamie? – perguntei numa dessas manhãs.
– Estou a olhar para o céu, querida – disse ela.
– Eu sei. Mas porquê?
Puxou-me para junto dela, abraçando-me contra o avental cor-de-rosa
desbotado que usava desde sempre. Senti-me algo assustada com a força do
seu abraço.
– Chérie, estou a ver desaparecer as estrelas – respondeu passado algum
tempo.
– Porquê? – inquiri.
– Porque, apesar de não as conseguirmos ver, elas estão sempre lá –
disse. – Estão apenas escondidas atrás do sol.
– E então?… – perguntei timidamente.
Ela libertou-me do abraço e inclinou-se para me olhar nos olhos.
– É muito bom, querida, recordar que não temos de ver uma coisa para
saber que ela existe.
Estas palavras da Mamie, proferidas há quase três décadas, ainda ecoam
nos meus ouvidos no momento em que escuto a voz da Annie à porta da
cozinha, acordando-me abruptamente da minha letargia.
– Porque estás a chorar? – pergunta.
Ergo os olhos, e apercebo-me, surpreendida, de que ela tem razão;
deslizam-me lágrimas pelo rosto. Limpo-as com as costas da mão,
completamente molhada, espalhando massa pegajosa por toda o rosto, e
forço um sorriso.
– Não estou a chorar – digo.
– Não tens de, tipo, mentir.
– Estava só a pensar na Mamie – suspiro.
A Annie revira os olhos e faz uma careta.
– Boa, agora é que decidiste mostrar alguma emoção.
Atira a mochila para um canto, onde ela cai com estrondo.
– O que queres dizer com isso? – pergunto.
– Tu sabes – diz. Arregaça as mangas da camisa e tira um avental de um
cabide da parede, à esquerda das prateleiras onde guardo os tabuleiros.
– Não, não sei – digo-lhe.
Paro o que estou a fazer e observo-a enquanto retira uma caixa de ovos
e quatro barras de manteiga do frigorífico de aço inoxidável. Movimenta-se
pela cozinha com o mesmo à-vontade com que a Mamie o fazia.
A Annie só responde depois de bater a manteiga na batedeira do balcão,
adicionar quatro chávenas de açúcar e partir os ovos, um de cada vez.
– Se tivesses conseguido, tipo, sentir alguma coisa quando estavas
casada com o pai, talvez não estivesses divorciada – diz por fim,
acompanhada pelo zumbido da batedeira.
Respirando com dificuldade, olho-a severamente.
– De que estás a falar? Eu demonstrava os meus sentimentos.
Ela desliga a batedeira.
– Tanto faz – murmura. – Só demonstravas os teus sentimentos quando,
tipo, me mandavas para o quarto e assim. Quando é que demonstraste que
eras feliz com o pai?
– Eu era feliz!
– Tanto faz – diz. – Nem conseguias dizer ao pai que o amavas.
Pestanejo nervosamente.
– Ele disse-te isso?
– Porquê? Não tenho idade suficiente para perceber as coisas sozinha? –
diz. Contudo, pela forma como evita o meu olhar, percebo que acertei em
cheio.
– Annie, não é correto que o teu pai te diga coisas más a meu respeito –
afirmo. – Há muitos aspetos da nossa relação que tu não entendes.
– Tais como? – É um desafio, e ela olha-me com frieza.
Peso as minhas opções mas, no final, sei que não é correto arrastar os
filhos para uma guerra entre adultos a que os devemos poupar.
– Isso é entre mim e o teu pai.
Ela ri-se e revira os olhos.
– Ele confia em mim o suficiente para me contar certas coisas – diz. – E
sabes que mais? Tu estragas tudo, mãe.
Antes que eu possa responder, ouço o carrilhão da porta da frente da
confeitaria. Olho para o relógio. Faltam alguns minutos para as seis horas, a
hora de abertura oficial, mas a Annie não deve ter trancado a porta quando
entrou.
– Continuamos esta conversa mais tarde, minha menina – declaro
rispidamente.
– Tanto faz – resmunga ela. Volta-se novamente para a massa que está a
bater e eu observo-a mais um segundo, enquanto ela adiciona farinha, leite
e uma pequena porção de baunilha.
– Hope, estás aí atrás? – É a voz do Matt, vinda da parte da frente da
loja, e eu tenho de despertar para o trabalho.
A Annie diz, em surdina, «Claro que é ele», mas eu finjo não ouvir
enquanto saio da cozinha.

A Mrs. Koontz e a Mrs. Sullivan entram às sete horas, como


habitualmente, e, por uma vez, a Annie sai rapidamente para as atender.
Normalmente, é mais feliz na cozinha, a preparar queques e miniaturas de
tartes com o iPod ligado, ignorando-me com toda a naturalidade até ter de ir
para a escola. Contudo, hoje, abre um sorriso, saltita para a sala principal e
serve-lhes café antes de elas terem oportunidade de pedir seja o que for.
– Deixem-me acompanhar-vos à vossa mesa – diz, transportando
habilmente duas chávenas de café e um pequeno jarro de natas, enquanto as
senhoras a seguem, trocando olhares.
– Oh, obrigada, Annie – diz a Mrs. Sullivan enquanto a Annie pousa os
cafés e as natas e lhe puxa a cadeira.
– Não tem de quê! – responde a Annie alegremente. Por um momento,
parece exatamente a rapariga que era antes do divórcio. A Mrs. Koontz
também murmura um agradecimento e a Annie diz, quase a cantar: – De
nada, minha senhora!
Ela aguarda serenamente que as senhoras bebam os primeiros goles de
café e quase dá pulos de alegria quando a Mrs. Sullivan prova o seu muffin
de mirtilo e a Mrs. Koontz escolhe o seu donut com açúcar de canela.
– Posso… tipo, fazer uma pergunta? – pergunta a Annie. Paro de
arrumar as coisas atrás do balcão para tentar ouvir o que ela quer saber.
– Podes, querida – diz a Mrs. Koontz – Mas não deves usar assim a
palavra tipo a meio de uma frase.
– Hum? – pergunta a Annie, confusa. A Mrs. Koontz arqueia a
sobrancelha e a Annie é suficientemente inteligente para se redimir. – Ou
melhor, não se importa de repetir? – corrige.
– A palavra tipo não é uma muleta para se usar em todas as frases – diz
a Mrs. Koontz à minha filha com um ar sério.
– Oh! – diz a Annie. – Quer dizer, eu sei. – Espreito por cima do balcão
e vejo-a vermelha como um pimento. Sinto pena dela; a Mrs. Koontz, que
fora minha professora de inglês há muito tempo, no décimo ano, é dura de
roer. Pondero sair em defesa da Annie mas, antes de eu ter oportunidade de
o fazer, a Mrs. Sullivan intervém.
– Oh, Barbara, deixa a miúda em paz – diz, dando um ligeiro toque no
braço da amiga. E depois, voltando-se para a Annie: – Ignora-a. Agora que
se reformou, tem saudades de poder dar ordens aos alunos.
A Mrs. Koontz esboça um protesto, mas a Mrs. Sullivan dá-lhe um novo
toque e sorri para a Annie.
– Disseste que tinhas uma pergunta para nos fazer, querida?
– Ah, pois – diz a Annie, aclarando a garganta. – Aliás, sim, minha
senhora. Estava só a pensar… – Faz uma pausa, e as amigas aguardam. –
Bem, as senhoras conheceram a minha bisavó, certo?
As duas mulheres entreolham-se e voltam-se depois para a Annie.
– Sim, claro – responde finalmente a Mrs. Sullivan. – Conhecemo-la há
anos. Como é que ela está?
– Bem – diz a Annie de imediato. – Ou melhor, não totalmente. Está
com alguns… problemas. Mas… em geral, está bem. – O seu rosto está de
novo corado. – De qualquer forma, as senhoras sabem quem é… Leona?
As duas mulheres voltam a trocar olhares.
– Leona – repete lentamente a Mrs. Sullivan. Reflete um momento e
abana a cabeça. – Não creio. O nome não me parece familiar. Barbara?
– Não – diz a Mrs. Koontz, abanando a cabeça. – Penso que não
conhecemos ninguém com esse nome. Porquê?
A Annie baixa os olhos.
– A minha bisavó está sempre a tratar-me por esse nome. Eu só gostava
de saber, tipo, de quem se trata. – A Annie entra em pânico por um segundo
e murmura: – Desculpem, não queria dizer tipo.
A Mrs. Sullivan estende o braço e dá uma palmadinha na mão da Annie.
– Agora assustaste a menina, Barbara – diz.
A Mrs. Koontz suspira.
– Estava só a tentar corrigir-lhe a gramática.
– Pois, mas este não é o momento nem o lugar para o fazeres – protesta
a Mrs. Sullivan, piscando o olho à Annie – Porque é que isso é tão
importante para ti, querida? Saber quem é Leona?
– A minha bisavó parece triste – responde a Annie ao fim de algum
tempo, numa voz tão baixa que tenho de me esticar para a ouvir. – E eu não
sei muito sobre ela, infelizmente. Sobre a minha bisavó. Quero ajudá-la,
mas não sei como.
Nesse momento, entram dois clientes, um homem de cabelo grisalho e
uma mulher loura, jovem, que não conheço. Enquanto os atendo, não ouço
o que a Annie e as duas senhoras estão a dizer. A mulher loira pede uma
fatia de bolo de cenoura depois de perguntar se temos alguma coisa light –
não temos – e o seu acompanhante, que parece ter algumas décadas mais,
aperta-lhe a mão, beija-lhe a orelha, e pede um éclair. Quando saem e eu
volto a olhar para a Annie, ela está sentada com as duas senhoras mais
velhas.
Consulto o relógio e pondero avisar a Annie de que, se não sair nos
minutos seguintes, chegará atrasada à escola, mas o seu olhar é tão sério
que, em vez disso, detenho-me durante algum tempo a olhar para ela. Nos
últimos tempos, estou habituada a que sorria com desprezo e revire os olhos
sempre que está comigo mas, neste momento, ela parece apenas inocente e
interessada. Procuro conter a emoção.
Entro na sala principal com um pano e um pulverizador de detergente
para poder bisbilhotar enquanto finjo que limpo. Apercebo-me de que as
senhoras estão a contar a história da vinda da Mamie para Cape Cod.
– Todas as raparigas da cidade estavam apaixonadas pelo teu bisavô Ted
– assegura Mrs. A Koontz.
– Meu Deus! – a Mrs. Sullivan usa o jornal como um leque. – Eu
costumava escrevinhar o nome dele e o meu num caderno todos os dias
quando era finalista no liceu.
– Ele era mais velho do que nós – diz a Mrs. Koontz.
– Quatro anos mais velho – concorda a Mrs. Sullivan. – Ele estudava
(em Harvard, sabes?), mas vinha visitar a cidade com alguma frequência.
Tinha um belo carro, o que, nessa altura, era invulgar por aqui. E as
raparigas simplesmente desmaiavam.
– Era tão amável – concorda a Mrs. Koontz. – E, como muitos outros
rapazes, alistou-se no Exército depois de Pearl Harbor.
As duas mulheres fazem uma pausa ao mesmo tempo e fitam as mãos.
Sei que estão a pensar noutros jovens que tinham perdido há muito tempo.
A Annie endireita-se na cadeira e volta à carga.
– E o que aconteceu depois? Ele conheceu a minha bisavó na guerra,
não foi?
– Em Espanha, creio – diz a Mrs. Koontz, olhando para a Mrs. Sullivan
para confirmar a informação. – Abateram o seu avião algures no norte de
França ou na Bélgica, se bem me lembro. Nunca ouvi a história completa;
aqui, todos acreditaram durante meses que ele tinha desaparecido em
combate. Eu estava convencida de que ele tinha morrido. Mas ele
conseguiu, de alguma forma, fugir para Espanha, onde estava também a tua
bisavó.
A Annie acena afirmativamente, com uma expressão solene, como se
soubesse esta história de cor, apesar de o meu avô ter morrido doze anos
antes de ela nascer.
– A tua bisavó Rose é francesa, como sabes. Mas penso que os seus pais
morreram quando ela era jovem e que ela tinha vontade de abandonar a
França porque o país estava em guerra, não foi? – A Mrs. Sullivan tenta
achar o fio à meada, olhando para a Mrs. Koontz.
A Mrs. Koontz aquiesce.
– Nunca soubemos exatamente como se conheceram mas penso, de
facto, que a Rose estava a viver em Espanha. Foi talvez em… 1944… que
soubemos que ele tinha voltado para os Estados Unidos depois de casar
com uma rapariga francesa?
– Final de 1943 – corrige a Mrs. Sullivan. – Lembro-me perfeitamente.
Foi no dia em que fiz vinte anos.
– Ah, claro, choraste sobre o teu bolo de aniversário. – A Mrs. Koontz
pisca o olho à Annie. – Ela tinha uma paixoneta de menina do liceu pelo teu
bisavô. Mas a tua bisavó arrebatou-o.
A Mrs. Sullivan faz uma careta.
– Ela era dois anos mais nova do que eu e tinha uma exótica pronúncia
francesa. Os rapazes deixam-se encantar muito facilmente pelas pronúncias,
sabes?
A Annie volta a acenar com a cabeça, com a mesma expressão solene,
como se, por instinto, já o soubesse. Escondo um sorriso enquanto finjo
estar concentrada numa mancha particularmente difícil de limpar. Nunca
ouvi a minha avó explicar como conheceu o meu avô. Aliás, ela raramente
fala do passado. Mais um motivo para eu estar interessada no que estas
senhoras sabem.
– Ted conseguiu um emprego qualquer em Nova Iorque, numa escola
secundária, depois de concluir o doutoramento – afirma a Mrs. Koontz. –
Depois, ele e a tua avó mudaram-se para Cape Cod. Foi então que aceitou o
emprego no Sea Oats.
O meu avô, que era doutorado em Pedagogia, fora o primeiro diretor do
Sea Oats, um prestigiado colégio privado da cidade vizinha. Noutros
tempos, o Sea Oats agrupava todo o ensino básico e secundário, mas agora
é apenas um liceu. É lá que a Annie vai estudar a partir do nono ano, graças
a uma bolsa concedida aos familiares dos antigos professores.
– E… a minha avó já tinha nascido? – pergunta a Annie. – Quando a
Mamie e o meu bisavô se mudaram para cá?
– Sim, a tua avó Josephine teria talvez… cinco anos? Seis anos quando
eles se mudaram? – diz a Mrs. Sullivan. – Vieram para Cape em 1950.
Lembro-me bem, pois foi o ano em que casei.
A Mrs. Koontz confirma.
– Sim, se bem me recordo, Josephine começou a frequentar o primeiro
ano quando eles se mudaram para cá.
– E a minha Mamie fundou a confeitaria nessa altura? – indaga a Annie.
– Penso que o fez alguns anos mais tarde – diz a Mrs. Koontz. – Mas a
tua mãe deve saber. Hope, querida?
Finjo não ter ouvido a conversa.
– Sim? – pergunto, olhando para cima.
– A Annie gostava de saber quando é que a tua avó fundou a confeitaria.
– Em 1952 – digo. Olho de relance para a Annie, que me observa. – Os
seus pais tinham sido proprietários de uma confeitaria em França, creio. –
Isto era tudo o que eu sabia sobre o passado da Mamie. Ela nunca falou
sobre o período anterior à relação com o meu avô.
A Annie ignora-me e volta-se para as duas senhoras.
– Não conhecem então ninguém com o nome de Leona? – pergunta.
– Não – diz a Mrs. Sullivan. – Talvez fosse uma amiga que vivesse em
França.
– Na verdade, ela nunca teve amigos aqui – diz a Mrs. Koontz. Olha
para mim com uma expressão arrependida e apressa-se a acrescentar: – É
muito simpática, naturalmente. Era apenas reservada.
Aceno que sim, mas pergunto a mim mesma se, no fundo, a culpa seria
toda da Mamie. Ela é calma e reservada, sem dúvida, mas não me parece
que a Mrs. Koontz, a Mrs. Sullivan e as outras mulheres da cidade a
recebessem de braços abertos. Sinto uma tristeza angustiante por ela.
Consulto novamente o relógio.
– Annie, é melhor ires. Vais chegar atrasada à escola.
Ela fita-me, irritada, e os vestígios da antiga Annie desaparecem; já me
odeia outra vez.
– Não mandas em mim – murmura.
– Na verdade, minha menina – diz a Mrs. Koontz, lançando-me um
olhar incisivo –, manda, sim. É a tua mãe, logo manda em ti até fazeres
dezoito anos. No mínimo.
– Tanto faz – diz a Annie, em voz baixa.
Levanta-se da mesa e entra com estrondo na cozinha. Aparece pouco
depois com a mochila.
– Obrigada – diz a caminho da porta. – Quer dizer, obrigada por me
falarem sobre a minha bisavó. – Não olha sequer para mim quando sai pela
porta da frente para a Main Street.

O Gavin entra na confeitaria à hora de fecho para me devolver as cópias


das chaves que eu lhe emprestei dois dias antes. Veste o mesmo par de
calças de ganga com o buraco na coxa, o qual parece ter aumentado
ligeiramente desde a última vez que o vi.
– O cano está reparado – diz-me, enquanto lhe sirvo o que resta do café
que fiz para a parte da tarde. – A máquina de lavar louça está como nova.
– Nem sei como te agradecer.
– Claro que sabes – o Gavin sorri. – Conheces as minhas fraquezas.
Tartes das estrelas. Strudel de canela. Café frio. – Olha para a chávena e
arqueia a sobrancelha mas, ainda assim, bebe um gole.
Rio-me, apesar do embaraço.
– Sei que não te devia pagar em bolos, Gavin. Desculpa.
– Não tens nada por que pedir desculpa – diz, erguendo os olhos. –
Estás claramente a subestimar a minha dependência dos teus bolos. – Finjo
uma expressão severa, o que o faz rir. – A sério, Hope, não faz mal. Estás a
fazer o que podes.
Suspiro enquanto coloco a última rosa de amêndoa do dia numa
Tupperware que vai passar a noite no frigorífico.
– Acontece que aquilo que posso fazer não é suficiente. – O Matt trouxe
uma pilha de documentos de manhã, mas eu ainda não os comecei a ler,
mesmo sabendo que é obrigatório fazê-lo. Essa tarefa assusta-me.
– Não te valorizas o suficiente – diz o Gavin. Antes de eu poder
responder, acrescenta: – Parece que tens passado muito tempo com o Matt
Hines. – Bebe outro gole de café. Interrompo o que estou a fazer e olho-o
nos olhos.
– São só negócios – digo, apesar de não perceber porque me sinto
obrigada a dar-lhe explicações. «Hum…» é tudo o que o Gavin tem para
dizer.
– Fomos namorados no liceu – acrescento.
O Gavin cresceu na North Shore, perto de Boston. Contara-me, aliás,
tudo sobre o seu liceu de Peabody, certa tarde, no alpendre. Presumo, pois,
que não conheça o meu passado com o Matt.
É com surpresa que o ouço dizer:
– Eu sei. Mas isso foi há muito tempo.
– Há muito tempo – confirmo.
– Como é que a Annie se está a aguentar? – pergunta o Gavin, mudando
novamente de assunto. – Tendo em conta os problemas com o teu ex-
marido e tudo o resto?
Levanto a cabeça e observo-o. Há muito que ninguém me fazia esta
pergunta, e surpreende-me o facto de eu ficar muito agradecida por isso.
– Está bem – digo-lhe. Faço uma pausa e retifico: – Na verdade, não sei
porque te dei esta resposta. Não está bem. Ultimamente, parece furiosa e eu
não sei o que fazer. É como se eu soubesse que a verdadeira Annie está
algures ali dentro mas que ela, neste momento, só me quer magoar.
Não sei porque lhe estou a fazer confidências mas a verdade é que o
Gavin, enquanto acena lentamente que sim, não aparenta qualquer sinal de
reprovação, o que me deixa muito grata. Começo a esfregar o balcão com
um pano molhado.
– Aquela idade é difícil – diz. – Eu era pouco mais velho do que ela
quando os meus pais se divorciaram. Ela está apenas confusa, Hope. Há de
ultrapassar esta fase.
– Achas que sim? – pergunto baixinho.
– Sei que sim – diz o Gavin. Levanta-se e vem ter comigo ao balcão,
onde coloca a sua mão sobre a minha. Paro de esfregar e olho para ele. –
Ela é boa miúda, Hope. Apercebi-me disso este verão, no tempo todo que
passei em vossa casa.
Sinto lágrimas nos olhos, o que me deixa embaraçada. Pestanejo várias
vezes para as fazer desaparecer.
– Obrigada. – Faço uma pausa e retiro a minha mão.
– Se eu puder fazer alguma coisa… – diz o Gavin. Em vez de acabar a
frase, olha para mim com tal intensidade que tenho de desviar o olhar,
sentindo o rosto muito corado.
– É uma oferta muito amável, Gavin – reconheço. – Mas deves ter
coisas melhores para fazer do que preocupares-te com a velhota que gere a
confeitaria.
O Gavin arqueia a sobrancelha.
– Não vejo aqui velhotas.
– Essas palavras são muito simpáticas – murmuro –, mas tu és jovem,
solteiro… – Faço uma pausa. – Espera lá, és solteiro, não és?
– Da última vez que vi, era.
Ignoro o inesperado sentimento de alívio que se apodera de mim.
– Pois, mas eu tenho trinta e seis anos, vou fazer trinta e sete; sou
divorciada; estou a afundar-me financeiramente; tenho uma filha que me
odeia. – Faço uma pausa e baixo os olhos. – Tens coisas melhores para fazer
do que preocupares-te comigo. Não devias andar por aí a fazer… não sei, o
que as pessoas solteiras fazem?
– O que as pessoas solteiras fazem – repete. – O quê, exatamente?
– Não sei – digo. Sinto-me uma idiota. Há séculos que não me sinto
jovem. – Ir a uma discoteca – arrisco com uma voz tímida.
Ele solta uma gargalhada.
– Sim, vim mesmo para Cape por causa da animação noturna. De facto,
acabo de chegar de uma rave.
Sorrio, mas sem convicção.
– Sei que estou a dizer tolices – afirmo. – Mas não tens de estar
preocupado comigo. Tenho muito em que pensar, mas sempre tratei de tudo
no passado. Hei de encontrar uma solução.
– Não morres se deixares entrar alguém na tua vida de vez em quando,
sabes? – diz o Gavin num tom baixo.
Lanço-lhe um olhar austero e preparo-me para responder, mas ele fala
primeiro.
– Como te disse no outro dia, és uma boa mãe – prossegue o Gavin. –
Só tens de deixar de duvidar de ti mesma.
– O problema é que pareço estragar sempre tudo – digo, baixando os
olhos. Sinto-me corar e questiono-me. – Não sei porque te estou a dizer
isto.
Ouço o Gavin respirar fundo e, pouco depois, ele contorna o balcão e
envolve-me nos seus braços. O meu coração estremece, mas retribuo o
abraço. Tento ignorar a força do seu peito quando se aproxima um pouco
mais; em vez disso, concentro-me na sensação agradável de ser abraçada. Já
não há ninguém que me reconforte desta maneira e, até este momento,
ainda não tinha percebido como isto me fez falta.
– Não estragas tudo, Hope – murmura o Gavin junto ao meu cabelo. –
Tens de ser menos exigente contigo mesma. És a pessoa mais forte que
conheço. – Após uma pausa, ele acrescenta: – Sei que, ultimamente, nada te
tem corrido bem. Mas nunca se sabe o que vai acontecer amanhã ou no dia
seguinte. Um dia, uma semana, um mês, podem mudar tudo.
Volto a olhá-lo severamente e recuo.
– A minha mãe costumava dizer-me isso. Exatamente essas palavras.
– Sim? – pergunta o Gavin.
– Sim.
– Nunca falas nela – afirma ele.
– Eu sei – murmuro.
A verdade é que é demasiado doloroso pensar nela. Sempre acreditei, na
infância, que, se me portasse um pouco melhor, lhe agradecesse com mais
convicção ou assumisse mais tarefas em casa, ela gostaria um pouco mais
de mim. Em vez disso, ela parecia distanciar-se cada vez mais a cada ano
que passava. Quando lhe foi diagnosticado cancro da mama, e eu vim para
casa para a poder ajudar, repetiu-se o mesmo ciclo; queria que ela, nos
últimos tempos, visse como eu a adorava mas, em vez disso, ela continuou
a manter-me à distância. Quando me disse, no leito de morte, que me
amava, as palavras não me pareceram reais; eu queria acreditar que eram
sentidas, mas sabia que, muito provavelmente, ela estava confusa e
delirante nos seus últimos momentos, acreditando estar a falar com um dos
seus inúmeros namorados.
– Sempre fui muito mais próxima da minha avó do que da minha mãe –
digo ao Gavin.
O Gavin coloca a mão no meu ombro.
– Lamento que a tenhas perdido, Hope – diz. Não sei ao certo se está a
falar da minha mãe ou da Mamie, pois, de muitas maneiras, já
desapareceram as duas.
– Obrigada – balbucio.
Quando ele sai alguns minutos depois com uma caixa de Strudel,
acompanho os seus passos, ainda com o coração acelerado. Não sei o que o
leva a acreditar em mim quando nem mesmo eu acredito. Mas não posso
pensar nisso agora; tenho de resolver a questão mais premente: os planos do
banco para a execução do empréstimo. Passo as mãos pelas têmporas, ligo a
chaleira elétrica e sento-me numa das mesas da confeitaria para ler os
documentos que o Matt me entregou.
Capítulo 5

– Preciso de falar contigo.


Uma semana e meia depois, estou à porta da casa do Rob, que foi
também a minha casa, com os braços cruzados sobre o peito. Olho para o
meu ex-marido e apenas vejo mágoa e traição; é como se a pessoa por quem
outrora me apaixonei tivesse desaparecido completamente.
– Podias ter telefonado, Hope – diz. Não me convida para entrar;
continuo à porta, como que a guardar os portões de uma vida que ficou no
passado.
– E telefonei – digo com firmeza. – Duas vezes para casa e duas vezes
para o teu escritório. Não me devolveste as chamadas.
Ele encolhe os ombros.
– Tenho estado ocupado. Acabaria por te telefonar. – O Rob inclina-se
para a esquerda e, por momentos, tenho a distinta sensação de que a sua
expressão revela tristeza. Subitamente, toda a emoção desaparece do seu
rosto e ele diz: – De que é que precisas?
Respiro fundo. Detesto discutir com o Rob; sempre detestei. Ele disse-
me, certa vez, que tinha sido boa ideia ele seguir a advocacia e eu desistir
para educar a nossa filha. Não sabes defender-te, disse. É preciso instinto
matador para vencer em tribunal.
– Temos de falar sobre a Annie – afirmo.
– O que se passa? – pergunta ele.
– Bom, por um lado, temos de chegar a acordo sobre regras básicas. Ela
tem doze anos. Não devia usar maquilhagem na escola. É uma miúda.
– Credo, Hope, é sobre isso que queres falar? – Poderia sentir-me
insultada pelo riso dele, mas sei que é apenas mais um subterfúgio que ele
utiliza regularmente contra os advogados e as testemunhas que enfrenta. –
Pelo amor de Deus, ela é quase uma adolescente. Não podes tratá-la como
uma menina para sempre.
– Não é isso que estou a fazer – digo-lhe. Respiro fundo e esforço-me
por me manter serena. – Mas estou a tentar definir alguns limites. E quando
o faço e tu me desautorizas, ela não aprende. E acaba por me odiar.
O Rob sorri, e talvez eu me sentisse diminuída se não o tivesse visto
noites a fio durante o nosso casamento a treinar a estratégia do sorriso
pretensioso à frente do espelho.
– Então é isso que está em causa – diz ele. Eu já tinha saudades da
Tática Argumentativa Número Dois do Rob Smith: fingir que sabe
exatamente o que a outra pessoa está a pensar e dar a entender que está
sempre um passo à frente.
– Não, Rob. – Pressiono a cana do nariz e fecho os olhos por um
segundo. Calma, Hope. Não te deixes arrastar para este tipo de conversa. –
Quero apenas que a nossa filha cresça e se transforme numa mulher às
direitas.
– Uma mulher às direitas que não te odeie – corrige. – Talvez lhe devas
dar espaço para ser ela mesma, Hope. É isso que estou a fazer.
Lanço-lhe um olhar fulminante.
– Não, não é – contraponho. – Estás a tentar ser o pai descontraído para
eu ficar com a parte da disciplina. Isso não é justo.
– É a tua opinião – diz, encolhendo os ombros.
– Além disso – continuo como se não o tivesse ouvido –, é totalmente
incorreto dizeres à Annie coisas desagradáveis a meu respeito.
– O que foi que eu disse? – pergunta, erguendo os braços
sarcasticamente, em sinal de rendição.
– Bom, em primeiro lugar, penso que lhe disseste que eu nunca fui
capaz de te amar. – Sinto a garganta apertar-se ligeiramente e respiro fundo.
O Rob limita-se a olhar para mim.
– Não podes estar a falar a sério.
– É uma estupidez afirmares uma coisa dessas. Eu dizia-te que te
amava.
– Sim, Hope… Uma vez por ano?
Afasto o olhar, sem vontade de continuar esta conversa.
– Afinal, és uma menina insegura? – resmungo. – Querias que eu te
desse um colar da amizade como símbolo de amor eterno?
Ele não parece divertido.
– Só não quero que a nossa filha me culpe pelo nosso divórcio.
– Então o divórcio nada teve a ver com o caso que tiveste com a
rapariga da loja de roupa, em Hyannis?
O Rob encolhe os ombros.
– Se eu me sentisse emocionalmente realizado em casa…
– Ah, então procuraste realização emocional começando a dormir com
uma rapariga de vinte e dois anos – atiro. Respiro fundo. – Sabes, nunca
achei apropriado falar à Annie sobre o teu caso amoroso. Isso fica entre nós.
Ela não sabe que me traíste porque não me parece necessário que olhe para
o pai dessa maneira.
– O que te leva a crer que ela não sabe? – indaga, deixando-me, por
momentos, aturdida e em silêncio.
– Estás a dizer que ela sabe?
– Estou a dizer que tento ser sincero com ela. Sou pai dela, Hope. Tenho
essa obrigação.
Paro por um instante, tentando assimilar o que estou a ouvir. Pensava
que a estava a proteger, a ela e à sua relação com o pai, não a arrastando
para estes problemas.
– O que é que lhe disseste? – pergunto.
Ele mantém a sua expressão de indiferença.
– Ela fez perguntas sobre o divórcio e eu respondi.
– Atirando as culpas para mim.
– Explicando que nem tudo é tão simples como parece à primeira vista.
– E o que quer isso dizer? Que eu te obriguei a traíres-me?
– As palavras são tuas – diz, voltando a encolher os ombros. Eu cerro os
punhos.
– Isto só tem a ver connosco, Rob – digo com voz trémula. – Não metas
a Annie neste assunto.
– Hope – diz –, estou só a tentar fazer o melhor para a Annie. Receio
seriamente que ela venha a ser como tu e a tua mãe.
As suas palavras magoam-me profundamente.
– Rob… – balbucio, sem conseguir dizer mais nada. Ele prossegue
alguns minutos depois, com a mesma indiferença.
– Tivemos esta conversa mil vezes. Tu sabes o que sinto. Eu sei o que
sentes. Foi por isso que nos divorciámos, lembras-te?
Não me revejo nas suas palavras. O que lhe quero dizer é que nos
divorciámos porque ele estava entediado. Tornou-se inseguro. Tornou-se
carente. Deixou-se aliciar por uma rapariga estúpida de vinte e dois anos
com pernas longuíssimas. Sei, contudo, que há um pouco de verdade no que
diz. Quanto mais o senti afastar-se, mais me retraí em vez de lutar. Decido
esconder este sentimento de culpa.
– Não usa maquilhagem – digo com firmeza. – Na escola, não. É
incorreto. Tanto como partilhar os pormenores do nosso divórcio com ela. É
demasiado para uma rapariga de doze anos.
O Rob prepara-se para responder, mas eu ergo a mão para o interromper.
– Já disse tudo, Rob – declaro, desta vez a sério. Olhamo-nos em
silêncio durante um momento e eu pergunto-me se ele está a pensar, como
eu, que já nem sequer nos conhecemos. Parece que passou uma vida inteira
desde que lhe prometi que ficaríamos juntos para sempre. – O que conta
não somos nós – digo. – É a Annie.
Afasto-me antes de ele poder responder.

Na viagem de carro para casa, recebo uma chamada. Vejo no ecrã o


número do telemóvel da Annie, aquele que ela só deve utilizar em situações
de emergência, mas que o Rob a deve deixar utilizar à vontade para enviar
mensagens e telefonar aos amigos. É isso, afinal, que fazem os pais
descontraídos. Sinto um aperto no estômago.
– Porque é que não estás a trabalhar? – pergunta a Annie quando atendo.
– Telefonei primeiro para a confeitaria.
– Tive de sair. – Procuro uma explicação que não envolva o pai dela. –
Para resolver alguns assuntos.
– Às quatro horas de uma quinta-feira? – pergunta. A verdade é que a
confeitaria teve pouco movimento o dia todo. O último cliente saiu à uma
hora e, por conseguinte, tive tempo suficiente para pensar no Rob, na Annie
e em todas as asneiras de ambos enquanto eu ali estava, inutilmente, a
preparar bolos até cair no esquecimento. Eu sabia que a Annie tencionava
visitar a Mamie depois da escola, o que significava que eu podia falar a sós
com o Rob.
– Havia pouco movimento – afirmo, sem dar mais explicações.
– Bem, não há problema… – diz. Percebo que me telefonou porque quer
alguma coisa. Preparo-me para um pedido absurdo como, por exemplo,
dinheiro, bilhetes para um concerto, talvez os sapatos com saltos de dez
centímetros que a vi cobiçar na revista InStylelast ontem à noite, mas, em
vez disso, ela pergunta, quase timidamente: – Podes, tipo, vir ao lar da
Mamie?
– Está tudo bem? – pergunto de imediato.
– Sim – responde, baixando o tom de voz. – Na verdade, é estranho,
mas a Mamie hoje parece normal.
– Normal?
– Sim – sussurra. – Como antes de a avó morrer. Parece que não perdeu
a memória.
Sinto um baque no coração quando recordo o meu diálogo com a
enfermeira, à saída, no dia da minha última visita. Haverá momentos em
que ela entenderá tudo com clareza. Lembrar-se-á de tudo e estará tão
lúcida como qualquer uma de nós. Tem de aproveitar esses dias, pois não
há garantia de que se repitam.
– Tens a certeza? – pergunto.
– Podes crer – diz a Annie, sem o sarcasmo nem a fúria que, nos últimos
tempos, tenho detetado na sua voz. Interrogo-me subitamente se parte do
seu problema de atitude é provocado pelo facto de a bisavó estar a esquecer
o seu nome. Tomo nota mentalmente que devo ter com ela uma conversa
séria sobre a doença de Alzheimer. Contudo, quando o fizer, terei eu mesma
de enfrentar a realidade.
– Ela está, tipo, a fazer-me perguntas sobre a escola e assim – continua a
Annie. – É estranho, mas ela sabe exatamente quem sou, a minha idade e
tudo o resto.
– Está bem – respondo, sempre a olhar pelo retrovisor para ter a certeza
de que é seguro fazer a inversão de marcha. – Estou a caminho.
– A Mamie pede que tragas uma tarte das estrelas da confeitaria –
acrescenta a Annie.
Sempre foram as tartes favoritas da Mamie; recheadas com uma mistura
de sementes de papoila, amêndoas, passas, figos, ameixas secas e açúcar
com canela e cobertas com uma crosta amanteigada e entrançada, em forma
de estrela, são o nosso bolo mais emblemático.
– Está bem – confirmo. – Irei o mais depressa possível. – Pela primeira
vez em muito tempo, tenho uma réstia de esperança. Ainda não me tinha
apercebido das saudades enormes que tenho da minha avó.

– Gostava de ir à praia. – É a primeira coisa que a Mamie me diz,


quinze minutos depois, quando me abre a porta. Perco a esperança, já que
estamos no final de setembro e o ar é frio. A nuvem que lhe tolda a
memória deve estar de volta, pois não faz sentido que a minha avó, com os
seus oitenta e seis anos, queira subitamente tomar banhos de sol. Contudo,
ela sorri e envolve-me num abraço.
– Desculpa – diz ela. – Estou a ser indelicada. É bom ver-te, querida
Hope.
– Sabes quem eu sou? – pergunto, hesitante.
– Claro que sim – responde, ofendida. – Julgas que estou velha e senil?
– Pois… – Tento ganhar tempo. – Claro que não, Mamie.
– Não te preocupes – sorri ela. – Não sou tonta. Sei que por vezes fico
um pouco esquecida. – Faz uma pausa. – Trouxeste-me a tarte das estrelas?
– pergunta, olhando discretamente para o saco da confeitaria que tenho na
mão. Aceno afirmativamente e entrego-lho. – Obrigada, querida.
– De nada – digo lentamente.
Ela inclina afetuosamente a cabeça para o lado.
– Hoje, Hope, tudo me parece cristalino. A Annie e eu acabámos de ter
uma conversa encantadora.
Olho de relance para a Annie. Está empoleirada na parte da frente da
cadeira da Mamie, com um ar nervoso, mas confirma com um aceno.
– Mas agora queres ir à praia? – pergunto a Mamie, receosa. – Está…
um bocadinho frio para dar um mergulho.
– Não tenciono dar um mergulho, naturalmente – assegura ela. – Quero
ver o pôr do sol.
Consulto o relógio.
– O sol só se põe daqui a duas horas.
– Então teremos muito tempo para lá chegar – diz.
Trinta minutos mais tarde, depois de a Annie e eu termos ajudado a
Mamie a agasalhar-se bem, partimos as três para a praia de Paines Creek, o
meu lugar preferido, nos tempos do liceu, para ver o sol desaparecer no
horizonte. É uma praia calma no extremo ocidental de Brewster e, se
caminharmos cuidadosamente sobre as rochas salientes no local onde o
riacho desagua na baía de Cape Cod, temos uma vista fantástica do céu a
oeste.
Paramos a meio caminho, seguindo uma sugestão da Annie, para
comprar sanduíches de lagosta e batatas fritas no Joe’s Dockside, um
pequeno restaurante que está em Cape há mais tempo do que a confeitaria
da nossa família. No verão, alguns visitantes percorrem muitos quilómetros
e esperam em filas de quarenta e cinco minutos para comprar as sanduíches
de lagosta para levar mas, felizmente, às cinco horas de uma quinta-feira
em época baixa, somos as únicas clientes.
A Annie e eu ouvimos, incrédulas, a Mamie pedir uma tosta de queijo –
nunca gostou de lagosta – e contar-nos com toda a lucidez uma história
sobre a primeira vez em que ela e o meu avô levaram ali a minha mãe, na
altura uma criança, que perguntou porque cometiam as lagostas a tolice de
nadar até ao Joe’s se sabiam que iam acabar dentro de uma sanduíche.
Chegamos à praia quando a linha do horizonte se tinge de cor de fogo.
O sol desce, a oeste, sobre a baía, e as nuvens ténues prenunciam um
magnífico pôr do sol. Com os braços enlaçados, caminhamos as três,
lentamente, em direção ao mar, a Annie à esquerda da Mamie e eu à sua
direita, com uma cadeira desdobrável debaixo do braço.
– Estás bem, Mamie? – pergunta a Annie com delicadeza, quando
vamos a meio caminho. – Podemos parar e descansar um pouco, se
quiseres.
Sinto o coração apertado enquanto observo a minha filha. Olha para a
Mamie com um ar tão preocupado e um amor tão profundo que percebo
repentinamente que a atitude dela neste momento não passa mesmo de uma
fase. Esta é a Annie que conheço e adoro. Isso significa que não fiz tudo
mal. Significa que a minha filha ainda é a mesma boa pessoa que sempre foi
interiormente, ainda que, por agora, me odeie.
– Estou muito bem, querida – responde a Mamie. – Quero estar nas
rochas quando o sol se puser.
– Porquê? – pergunta a Annie num tom meigo, após uma pausa.
A Mamie está em silêncio há tanto tempo que começo a pensar que não
ouviu a pergunta da Annie, mas ela acaba por responder.
– Quero recordar este dia, este pôr do sol, estes momentos convosco. Sei
que não vou ter muitos mais dias como este.
A Annie procura o meu olhar, preocupada.
– Claro que vais, Mamie – promete.
A minha avó aperta-me o braço e eu sorrio delicadamente. Percebo o
que diz e aflige-me saber que ela tem consciência da sua situação. Volta-se
então para a Annie.
– Obrigada pela tua confiança – diz ela. – Mas, por vezes, Deus tem
outros planos.
A Annie parece ficar magoada com estas palavras. Desvia o olhar e
concentra-se no horizonte. Sei que começa finalmente a aceitar a verdade e
isso deixa-me desolada. Quando chegamos finalmente às rochas, eu abro a
cadeira que tinha tirado do porta-bagagens do carro. A Annie e eu ajudamos
a Mamie a sentar-se.
– Sentem-se comigo, meninas – pede. A Annie e eu instalamo-nos
facilmente nas rochas, uma de cada lado. Fitamos em silêncio o horizonte
enquanto o sol se funde na baía, pintando gradualmente o céu de cor de
laranja, cor-de-rosa, roxo e violeta até desaparecer.
– Aí está – diz a Mamie suavemente, apontando para o céu, onde uma
estrela brilha na claridade esbatida do crepúsculo. – A estrela da tarde.
Recordo-me subitamente dos contos de fadas que ela costumava
partilhar comigo sobre um príncipe e uma princesa de um reino distante,
aquelas em que o príncipe tem de partir para combater os cavaleiros
malvados, prometendo à princesa procurá-la mais tarde pois o seu amor
nunca morreria. Surpreende-me, pois, que seja a Annie a murmurar:
– «Amar-te-ei enquanto houver estrelas no céu.» Era o que dizia sempre
o príncipe das tuas histórias.
Quando a Mamie se volta para ela, tem lágrimas nos olhos.
– É verdade – diz.
Retira do bolso do casaco a tarte das estrelas que me pediu para trazer
da confeitaria. A tarte está agora um pouco espalmada, e a crosta
entrançada do topo perdeu consistência. A Annie e eu trocámos olhares.
– Trouxeste a tarte contigo? – pergunto. Volto a sentir-me desolada, pois
acreditava que ela estava totalmente lúcida.
– Sim, querida – responde com bastante clareza. Observa a tarte por um
momento enquanto a luz vai desaparecendo. Estou prestes a sugerir que
comecemos a caminhada de volta antes de a noite cair quando ela declara: –
Sabes, foi a minha mãe que me ensinou a fazer estas tartes.
– Não sabia – digo. Ela confirma com um aceno.
– A minha mãe e o meu pai tinham uma confeitaria. Muito perto do
Sena, o rio que atravessa Paris. Trabalhei lá quando era criança, tal como tu
agora, Annie. E como tu, Hope, quando eras uma menina.
– Nunca nos tinhas falado dos teus pais – afirmo.
– Há muitas coisas de que nunca vos falei – explica ela. – Pensei estar a
proteger-vos, a proteger-me a mim. Mas agora estou a perder as minhas
memórias e receio que, se não vos contar estas coisas, elas desapareçam
para sempre, sem que eu possa reparar o mal que fiz. É tempo de saberem a
verdade.
– Do que estás a falar, Mamie? – pergunta a Annie. Deteto preocupação
na sua voz. Ela olha-me e eu sei que está a pensar o mesmo que eu. A
mente da Mamie deve estar a turvar-se outra vez. Antes de eu poder dizer
uma palavra, a Mamie começa a partir a tarte das estrelas em pedaços e a
atirá-los ao mar. Sussurra algumas palavras, falando com tal suavidade que
mal a consigo ouvir entre o som das ondas que rebentam nas rochas.
– O que… estás a fazer, Mamie? – pergunto com a serenidade possível,
tentando evitar que a inquietação se apodere da minha voz.
– Não fales, querida – diz, concentrando-se novamente em atirar
pedaços para a água.
– Mamie, o que estás a dizer? – pergunta a Annie. – Não estás a falar
francês, pois não?
– Não, querida – responde a Mamie calmamente. Annie e eu olhamo-
nos, confusas, enquanto a Mamie atira para a água o último pedaço da tarte.
Pega-nos nas mãos. – Que Deus é como Tu… – declama, em inglês – …e
Tu atirarás todos os seus pecados às profundezas do mar.
– O que estás a dizer, Mamie? – pergunta a Annie novamente. – É um
texto da Bíblia?
– É uma oração – responde, sorrindo.
Fita por momentos a estrela da tarde enquanto a Annie e eu a
observamos em silêncio.
– Hope – diz por fim. – Preciso de um favor teu.
Capítulo 6

Rose’s Strudel

STRUDEL

Ingredientes
3 maçãs Granny Smith (maçãs-verdes), descascadas,
descaroçadas e cortadas em pequenas fatias
1 Granny Smith (maçã-verde), descascada, descaroçada e ralada
1 chávena de passas
1/2 chávena de casca de laranja cristalizada
(ver receita abaixo)
1 chávena de açúcar mascavado
2 colheres de chá de canela
1/2 chávena de amêndoas laminadas
1 folha de massa folhada congelada (descongelar previamente)
1 ovo batido
Açúcar com canela para polvilhar
(3 partes de açúcar para 1 parte de canela)
Preparação
1. Misture as maçãs, as passas, a casca de laranja cristalizada,
o açúcar mascavado e a canela numa tigela grande. Reserve
durante 30 minutos.
2. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
3. Espalhe as amêndoas laminadas num tabuleiro forrado com
papel vegetal e leve ao forno durante sete a nove minutos até
ficarem ligeiramente alouradas. Retire-as e deixe-as
repousar durante cinco minutos até estarem suficientemente
frias para lhes poder tocar. Adicione às maçãs.
4. Com uma colher, coloque a mistura das maçãs num coador
coberto por um pano fino e pressione utilizando outro pano
para eliminar a humidade excessiva da mistura. Deixe o
coador coberto pelo pano, enquanto coloca a folha de massa
folhada sobre uma folha de papel vegetal. Estenda
lentamente a massa com um rolo, sem a partir.
5. Espalhe a mistura das maçãs sobre a massa, no sentido
vertical, até às extremidades e dobre a massa à volta da
mistura, fechando todos os lados com os dedos, ligeiramente
húmidos, para unir firmemente as extremidades.
6. Pincele a parte de cima da massa com o ovo batido, faça
cinco ou seis pequenos golpes no topo e polvilhe a gosto com
açúcar com canela.
7. Leve ao forno durante 35 a 45 minutos, até ficar dourado.

CASCA DE LARANJA CRISTALIZADA

Ingredientes
4 laranjas
14 chávenas de água usadas em separado
2 chávenas de açúcar granulado

Preparação
1. Descasque todas as laranjas, tendo o cuidado de retirar, se
possível, a casca de uma só vez ou em dois pedaços.
2. Corte a casca em pequenas tiras.
3. Numa caçarola , ferva seis chávenas de água e adicione as
tiras à água fervida. Deixe ferver as tiras durante três
minutos, seque-as e passe-as por água fria e, em seguida,
repita o mesmo procedimento (destinado a retirar algum do
sabor amargo da casca de laranja).
4. Misture mais duas chávenas de água com duas chávenas de
açúcar e ferva a mistura. Adicione as tiras, reduza a
temperatura do lume e tape o tacho. Deixe em lume brando
durante quarenta e cinco minutos.
5. Retire as tiras da laranja utilizando uma escumadeira e
coloque-as a secar numa grelha metálica. Aguarde pelo
menos duas horas antes de as utilizar na receita anterior.
Mergulhe as tiras que sobraram em chocolate e aproveite
para as degustar ao lanche.

Rose

Quando acordou naquela manhã, Rose sabia. Era como nos velhos
tempos, em que o corpo se manifestava quando algo estava para
acontecer. Esses dias estavam agora muito distantes mas, ultimamente,
com a doença de Alzheimer a privá-la das memórias entre a juventude
e a terceira idade, era como se a sua cronologia se tivesse transformado
num acordeão, dobrado sobre si mesmo, que aproxima cada vez mais o
passado do presente, dobrando e encolhendo os anos intermédios.
Contudo, naquele dia, Rose lembrava-se de tudo: da sua família,
dos seus amigos, da vida que outrora tivera. Por instantes, fechara os
olhos e desejara voltar ao esquecimento habitual. Em certos dias, a
doença apavorava-a, mas noutros era um alívio. Ela não estava
preparada para esta janela límpida com vista para o passado. Acabou
por abrir os olhos e consultar o calendário que tinha ao seu lado na
mesa de cabeceira. Todas as noites, antes de adormecer, riscava o dia
que estava prestes a acabar. Estava a perder tudo o resto, mas ainda
sabia em que dia estava. E, a avaliar pelo X vermelho traçado no
calendário, este dia, 29 de setembro, era um dia especial. Rose percebeu
de imediato que o facto de lhe ser concedido, neste dia em especial, um
rasgo temporário de lucidez, era um sinal divino.
Decidiu então passar a manhã a pôr tudo por escrito, da melhor
forma possível, numa carta endereçada à sua neta. Um dia, Hope iria
lê-la e entendê-la. Mas não agora. Ainda faltavam algumas peças a este
puzzle. Quando Rose fechou o envelope, pouco antes do almoço, sentiu-
se vazia e triste, como se tivesse acabado de encerrar uma parte de si.
Ocorreu-lhe que, de certa forma, era isso mesmo que tinha feito.
Escreveu cuidadosamente a morada de Thom Evans, o advogado
que havia redigido o seu testamento, e pediu a uma das enfermeiras
que colocasse um selo na carta e a enviasse. Em seguida, sentou-se e
escreveu uma lista, desenhando as letras de cada nome de forma
cuidadosa e clara, em letras maiúsculas, apesar de as mãos lhe
tremerem.
Decorridas algumas horas, quando seguia no carro com Hope e
Annie a caminho da praia, verificou três vezes o bolso da saia, apenas
para confirmar que a lista ainda lá estava. Naquele momento, a lista
era tudo para ela e, em breve, Hope saberia também a verdade. Era
impossível conter mais tempo as ondas. De facto, Rose já não tinha a
certeza se queria continuar a fazê-lo. Aguentar sozinha uma barragem
contra a corrente era extenuante.
Naquele momento, sobre as rochas, com a neta de um lado e a
bisneta do outro, na claridade frágil da heure bleue, ergueu os olhos
para o céu e respirou fundo, inspirando e expirando em harmonia com
o mar, segurando nas mãos a tarte das estrelas. Atirou o primeiro
pedaço à água e falou com tal suavidade que as palavras eram abafadas
pelo som rítmico do quebrar das ondas.
– Lamento ter de partir – sussurrou ao vento. – Lamento as decisões
que tomei – acrescentou, lançando um pedaço da tarte sobre uma onda.
– Lamento pelas pessoas a quem fiz mal. – O vento levava as palavras
para longe.
Enquanto atirava os sucessivos pedaços de tarte ao mar, olhou de
relance para Hope e Annie, que a fitavam, confusas. Sentiu uma
enorme culpa por estar a assustá-las, mas sabia que elas a entenderiam
em breve. Tinha chegado a hora.
Voltou a olhar para o céu e a falar serenamente com Deus,
utilizando palavras que não pronunciava em voz alta havia sessenta
anos. Não esperava ser perdoada. Sabia que não tinha esse direito. Mas
queria transmitir a Deus o seu arrependimento.
Ninguém sabia a verdade. Apenas Deus e, naturalmente, Ted, que
morrera vinte e cinco anos antes. Fora um homem bom, um homem
generoso, pai da sua Josephine e avô da sua Hope. Tinha-lhes dado
amor, e Rose, que não fora capaz de fazer o mesmo, estava-lhe
eternamente grata por isso. Porém, ainda se interrogava se ele a teria
amado da mesma forma se tivesse sabido toda a verdade. Ele
desconfiava, certamente, mas contar-lhe tudo, em voz alta, arrasá-lo-ia.
Rose inspirou fundo e fitou Hope, a neta a quem sabia ter falhado.
A mãe de Hope, Josephine, tinha sofrido com os erros de Rose, e Hope
também não ficara incólume. Mesmo naquele momento, Rose via esse
sofrimento nos olhos da neta e na forma como conduzia a sua vida.
Olhou depois para Annie, que a fizera recuperar num ápice todas as
memórias. Desejava-lhe um futuro melhor.
– Preciso de um favor teu – disse finalmente Rose à neta.
– Do que precisas, Mamie? – perguntou Hope delicadamente. –
Farei o que quiseres.
Hope não sabia o que estava a aceitar, mas Rose não tinha
alternativa.
– Preciso que vás a Paris – anunciou calmamente Rose.
Hope arregala os olhos, surpreendida.
– Paris?
– Paris – repetiu Rose com firmeza. Antes de Hope poder fazer
qualquer pergunta, ela prosseguiu: – Tenho de saber o que aconteceu à
minha família. – Rose retira do bolso a lista, aquela que parecia
queimar, bem como um cheque, cuidadosamente preenchido, no valor
de mil dólares. O suficiente para um bilhete de avião para França.
Sentiu um forte ardor na palma da mão quando Hope retirou os dois
documentos da sua mão. – Tenho de saber – repetiu com brandura. As
ondas atacavam a barragem das suas memórias e ela preparava-se
para a enchente.
– A tua… família? – perguntou Hope timidamente.
Rose assentiu e Hope desdobrou a folha de papel. Os seus olhos
percorreram rapidamente os sete nomes. Sete nomes, pensou Rose.
Voltou-se depois para o ponto em que as estrelas da Ursa Maior
começavam a irromper. Sete estrelas no céu.
– Tenho de saber o que se passou – disse à sua neta. – E agora tu
também.
– O que se passa? – interrompeu Annie. Parecia assustada, e Rose
ansiava poder confortá-la, mas sabia que tinha, como sempre tivera,
tantas dificuldades em dar apoio como em enfrentar a verdade. Além
disso, Annie tinha doze anos. Idade suficiente para saber. Apenas dois
anos menos do que Rose quando a guerra começara.
– Quem são estas pessoas? – perguntou Hope, examinando
novamente a lista.
– São a minha família – disse Rose. – A tua família. – Fechou os
olhos por um momento e procurou os nomes no seu coração, o qual,
milagrosamente, continuou a bater durante tantos anos.

Albert Picard, nascido em 1897


Cécile Picard, nascida em 1901
Hélène Picard, nascida em 1924
Claude Picard, nascido em 1929
Alain Picard, nascido em 1931
David Picard, nascido em 1934
Danielle Picard, nascida em 1937

Quando Rose abriu os olhos, Hope e Annie fitavam-na. Respirou


fundo.
– O teu avô foi a Paris em 1949 – começou. A sua voz era tensa, pois
continuava a ser difícil pronunciar estas palavras em voz alta, mesmo
ao fim de tantos anos. Rose voltou a fechar os olhos e recordou o rosto
de Ted no dia em que regressou a casa. Ele não fora capaz de a encarar.
Falara lentamente enquanto transmitia as notícias sobre as pessoas que
Rose amava mais do que qualquer outra coisa no mundo.
– Morreram todos – prosseguiu Rose após alguns instantes. Abriu
os olhos e voltou-se para Hope. – Era tudo o que eu precisava de saber
naquele momento. Pedi ao teu avô que não me contasse mais nada. O
meu coração não aguentaria.
Mamie explica que só depois de saber as notícias aceitou finalmente
regressar com ele à cidade da região de Cape Cod onde nascera e fora
criado. Antes disso, ela estava determinada a permanecer, pelo sim pelo
não, em Nova Iorque. Acreditava que iria ser localizada ali, no ponto
de encontro que, anos antes, tinha combinado com a família. Mas agora
não havia mais ninguém para a procurar. Estava perdida para sempre.
– Todas estas pessoas? – perguntou Annie, quebrando o silêncio e
trazendo de novo Rose à atualidade. – Morreram, tipo, todos? O que
aconteceu?
Rose fez uma pausa antes de continuar.
– O mundo desmoronou-se – disse por fim. Era a única explicação
que conseguia dar e era a verdade. O mundo tinha desabado sobre si
mesmo, desfigurando-se e transformando-se em algo que ela já não
reconhecia.
– Não entendo – murmurou Annie. Parecia assustada.
Rose respirou fundo.
– Alguns segredos não podem ser revelados sem destruir toda uma
vida – declarou. – Mas sei que, quando a minha memória morrer,
morrerão também as pessoas que mais amei e que mantive sempre
junto ao coração durante todos estes anos.
Rose fitou Hope. Sabia que a sua neta procuraria, mais tarde,
explicar tudo a Annie. Mas primeiro era preciso que a própria Hope
entendesse o que se passara. E, para isso, tinha de visitar o sítio onde
tudo começara.
– Peço-te que viajes para Paris muito em breve, Hope – instou Rose.
– Não sei quanto tempo me resta.
E, depois, o silêncio. O preço a pagar pelas recordações era muito
elevado. Tinha-se exposto agora mais do que nos últimos sessenta e dois
anos, desde o dia em que Ted regressara com as notícias. Ergueu os
olhos para as estrelas e encontrou aquela a que chamava Papa, a outra
a que chamava Maman e as outras a que deu o nome de Hélène,
Claude, Alain, David, Danielle. Faltava ainda uma estela. Ela não a
conseguia encontrar, por muito que a procurasse. E sabia, como sempre
soubera, que era por sua causa que essa estrela não brilhava. Parte
dela desejou que Hope a descobrisse na sua viagem a Paris. Sabia que
essa descoberta mudaria a vida da sua neta.
Hope e Annie faziam perguntas, mas Rose já não as conseguia
ouvir. Em vez disso, fechou os olhos e começou a rezar.
A enchente aproximava-se. Tinha começado a viagem.
Capítulo 7

– Tu tens, tipo, alguma ideia do que ela está a dizer? – indaga a Annie
logo que chegamos ao carro depois de deixar a Mamie no lar. Debate-se
com o cinto de segurança ao tentar apertá-lo. Só quando noto que as suas
mãos tremem me apercebo de que as minhas estão em igual estado. – Quer
dizer, tipo, quem são essas pessoas? – A Annie consegue finalmente apertar
o cinto e olha para mim. Vejo a agitação no seu rosto, na sua testa suave,
nas poucas sardas que vão desaparecendo à medida que nos distanciamos
do verão. – O nome de solteira da Mamie nem sequer era Picard. Era
Durand.
– Eu sei – murmuro.
Quando a Annie frequentava o quinto ano, a sua turma organizou um
projeto simples sobre árvores genealógicas. Ela procurara utilizar um site da
Internet para descobrir as raízes da Mamie, mas havia tantos imigrantes
com o apelido Durand nos anos 40 que ela não conseguiu avançar. Ficou de
mau humor durante uma semana, acusando-me de não ter pensado em
investigar o passado da Mamie antes de ela começar a perder a memória.
– Talvez se tenha enganado no nome – acaba por dizer a Annie. –
Talvez tenha escrito Picard mas quisesse escrever Durand.
– Talvez – digo lentamente, sabendo que nenhuma de nós acredita nessa
possibilidade. Há muitos anos que não víamos a Mamie tão lúcida. Ela
sabia exatamente o que estava a dizer.
Fazemos o resto do caminho para casa sem dizer uma palavra. Contudo,
por uma vez, o silêncio não é desconfortável; a Annie não está no banco do
passageiro a melindrar-se com tudo o que digo ou faço; está a pensar na
Mamie.
A luz já desapareceu quase por completo; imagino a Mamie à janela,
procurando as estrelas enquanto o crepúsculo dá lugar à escuridão da noite.
Em Cape, sobretudo depois de os turistas de verão desligarem de vez as
luzes dos seus alpendres até à estação seguinte, as noites são escuras e
profundas. As ruas principais têm iluminação artificial mas, quando viro
para a Lower Road e depois para a Prince Edward Lane, o brilho desmaiado
da Main Street desaparece atrás de nós e, à nossa frente, os últimos
vestígios da heure bleue da Mamie desaparecem no vazio escuro que sei ser
o lado oeste da baía de Cape Cod.
Sinto-me numa cidade-fantasma quando descrevo a última curva para a
Bradford Road. Sete das dez casas da nossa rua são casas de verão e, agora
que a estação terminou, estão desertas. Subo a rampa da minha entrada – a
mesma onde, na infância, passei noites de verão a apanhar pirilampos e dias
de inverno a ajudar a minha mãe a abrir caminho na neve para poder tirar a
sua velha carrinha – e desligo o motor. Permanecemos no carro mas, agora
que estamos a um quarteirão de distância da praia, consigo sentir no ar o
cheiro do sal, o que significa que a maré está a subir. Sinto um enorme e
súbito desejo de correr até à praia com uma lanterna e molhar os pés na
espuma das ondas, mas reprimo-o; tenho de ajudar a Annie a preparar-se
para ir passar a noite a casa do pai. Ela parece tão pouco ansiosa por sair do
carro como eu.
– Afinal, porque é que a Mamie quis tanto sair de França? – pergunta
por fim.
– A guerra deve ter sido muito difícil para ela – respondo. – Como
disseram a Mrs. Sullivan e a Mrs. Koontz, penso que os pais dela terão
morrido nesse período. A Mamie teria apenas dezassete anos quando deixou
Paris. Depois, creio que conheceu o teu bisavô e se apaixonou.
– Então ela, tipo, deixou tudo para trás? – insiste a Annie. – Como
conseguiu fazer isso sem ficar triste?
– Não sei, querida – replico, abanando a cabeça.
A Annie fica pensativa.
– Nunca lhe perguntaste? – Olha para mim, e eu concluo que a fúria,
depois de hibernar durante algum tempo, está de volta.
– Claro que sim – digo. – Quando tinha a tua idade, fazia-lhe imensas
perguntas sobre o seu passado. Queria que ela me levasse a França e me
mostrasse tudo o que tinha feito na infância. Imaginava-a na Torre Eiffel, a
subir e a descer o elevador o dia inteiro com um caniche, usando uma boina
e comendo uma baguete.
– Isso são estereótipos, mãe – diz a Annie, revirando os olhos. Contudo,
tenho quase a certeza de que vejo formar-se um pequeno sorriso na sua
boca enquanto sai do carro.
Saio também e percorro atrás dela o relvado da frente. Esqueci-me de
ligar a luz do alpendre antes de sair de casa, e a escuridão parece engolir a
Annie de uma só vez. Corro até à porta e rodo a chave na fechadura.
A Annie permanece bastante tempo na entrada, limitando-se a olhar
para mim. Estou certa de que se prepara para dizer alguma coisa mais, mas
quando abre a boca, não produz qualquer som. Abruptamente, dá meia-
volta e caminha energicamente para o seu quarto, nas traseiras da nossa
pequena casa.
– Estou pronta dentro de cinco minutos – grita, sem olhar para trás.
Tendo em conta que «cinco minutos» significam normalmente, no
mundo da Annie, pelo menos vinte, é uma surpresa vê-la aparecer na
cozinha poucos minutos depois. Estou de pé, junto ao frigorífico, com a
porta aberta, desejando que o jantar caia do céu. Para uma pessoa que
trabalha com alimentos o dia todo, tenho muito pouco jeito para manter o
meu frigorífico de casa devidamente abastecido.
– Tens uma refeição Healthy Choice no congelador – diz a Annie, atrás
de mim. Eu viro-me e sorrio
– Parece que está na hora de ir à mercearia.
– Nã! – diz a Annie. – Eu não reconheceria o nosso frigorífico se
estivesse cheio. Pensaria que tinha entrado sem querer na casa errada.
– Ah, ah, muito engraçado – digo com um sorriso irónico. Fecho a porta
do frigorífico e abro a do congelador, que contém três tabuleiros de cubos
de gelo, meio saco de miniaturas Reese’s com manteiga de amendoim, um
saco de ervilhas congeladas e, como a Annie me assegurara, uma refeição
congelada Healthy Choice.
– Seja como for, até já jantámos – acrescenta a Annie. – Lembras-te? As
sanduíches de lagosta?
Fecho a porta do congelador e aceno afirmativamente.
– Eu sei – digo. Olho para a Annie, que está de pé, junto à mesa da
cozinha, com o saco de desporto inclinado sobre a cadeira mais próxima.
Ela revira os olhos.
– És tão esquisita. Ficas aqui sentada a alimentar-te de comida de
plástico sempre que eu vou para casa do pai?
– Não – minto, embaraçada.
A Mamie enfrentava o stress a preparar bolos. A minha mãe enfrentava
o stress enfurecendo-se com pequenas coisas e, normalmente, pondo-me de
castigo no quarto depois de me dizer que eu era uma péssima filha. Eu, ao
que parece, enfrento o stress empanturrando-me.
– Muito bem, querida – digo. – Tens tudo? – Atravesso a cozinha para ir
ter com ela, caminhando com uma lentidão absurda, como se pudesse
prolongar o tempo que ela passa comigo. Aperto-a contra mim, o que
parece surpreendê-la tanto como a mim. Mas ela retribui o abraço, fazendo
desaparecer temporariamente a dor que me fere o coração.
– Adoro-te, miúda – murmuro sobre o seu cabelo.
– Eu também te adoro, mãe – diz a Annie ao fim de um momento, com
a voz abafada no meu peito. – Agora podes largar-me antes que eu, tipo,
abafe?
Liberto-a, embaraçada.
– Não sei ao certo o que fazer com a Mamie – digo, enquanto ela ergue
o saco de desporto e o põe à tiracolo. – Talvez ela esteja só a dizer coisas
sem sentido.
A Annie fica estarrecida.
– O que estás a tentar dizer?
– Perdeu a memória, Annie – respondo, encolhendo os ombros. – É
horrível, mas a doença de Alzheimer é assim.
– Hoje lembrava-se de tudo – contrapõe ela, franzindo o sobrolho. O seu
tom torna-se subitamente glacial.
– É verdade, mas aquelas pessoas de que nunca ouvimos falar… Tens de
reconhecer que não faz sentido.
– Mãe – diz a Annie lentamente, lançando-me um olhar fulminante. –
Tu vais a Paris, certo?
– Claro – rio-me. – E depois vou às compras a Milão. E esquiar nos
Alpes Suíços. E, mais tarde, talvez passear por Veneza numa gôndola.
A Annie semicerra os olhos.
– Tens de ir a Paris.
Percebo que fala a sério.
– Querida – digo suavemente –, isso não é viável. Sou a única pessoa
que pode gerir a confeitaria.
– Então fecha-a por uns dias. Ou eu ajudo-te depois da escola.
– Querida, isso não vai funcionar. – Penso no facto de estar prestes a
perder tudo.
– Mas, mãe!
– Annie, quem pode dizer que a Mamie se vai lembrar sequer da
conversa de hoje?
– É por isso que tens de ir! – diz a Annie. – Não viste como era
importante para ela? Queria que descobrisses o que aconteceu àquelas
pessoas! Não podes simplesmente ignorá-la!
Suspiro. Pensava que a Annie entendia melhor a situação e sabia que a
bisavó está constantemente a dizer coisas sem sentido.
– Annie… – começo. Ela corta-me a palavra.
– E se esta for a sua última oportunidade? E se esta for a nossa última
oportunidade de a ajudar?
Encolho os ombros. Não sei o que dizer. Não posso, de forma alguma,
contar-lhe que estamos na corda bamba. Após alguns momentos em que
permaneço em silêncio, a Annie parece tomar uma decisão sem a minha
ajuda.
– Odeio-te – atira.
Em seguida, dá meia-volta e sai indignada da cozinha, com o saco de
desporto a balancear-se nas costas. Segundos depois, ouço bater com
estrondo a porta da frente. Respiro fundo e sigo-a até ao carro, preparando-
me para uma viagem silenciosa até casa do pai.

Na manhã seguinte, após uma noite em que quase não preguei olho,
estou na confeitaria, sozinha, a colocar no forno um tabuleiro de biscoitos
gigantes, com cobertura de açúcar, quando ouço alguém bater ruidosamente
num dos quadrados de vidro da porta da frente. Pouso as luvas de cozinha
no balcão, ligo o temporizador do forno, limpo as mãos ao avental e
consulto o relógio: 5h35. Vinte e cinco minutos antes da abertura.
Depois de passar da cozinha para a sala principal, através da porta dupla
oscilante e com ripas, vejo o Matt, com as mãos a proteger os olhos da luz e
o rosto prensado contra o vidro da porta para espreitar o interior. Quando
me vê, recua rapidamente e, em seguida, acena descontraidamente como se
não tivesse deixado a marca do nariz no vidro da porta.
– Matt, ainda não abrimos – anuncio, depois de destrancar as três
fechaduras e abrir ligeiramente a porta principal. – Quer dizer, podes entrar
e esperar, mas o café ainda não está pronto e…
– Não, não. Não vim tomar café – diz ele. Após uma pausa, acrescenta:
– Mas se entretanto tiveres, eu bebo uma chávena.
– Ah, bom – digo, consultando novamente o relógio. – Sim, pode ser. –
Não devo demorar mais do que dois minutos a moer os grãos, colocá-los
com uma colher na máquina e carregar no botão. Apresso essa tarefa,
recapitulando mentalmente todas as outras coisas que tenho de fazer antes
da abertura, mas o Matt segue-me até à cozinha e fecha a porta atrás de si.
– Hope, vim perguntar-te o que tencionas fazer – diz o Matt, enquanto a
máquina de café borbulha e deixa cair as primeiras gotas de café quente na
cafeteira.
Por instantes, pergunto-me se ele sabe o que a Mamie me pediu, mas
acabo por perceber que se refere à confeitaria e ao facto de o banco estar, ao
que tudo indica, disposto a avançar com uma ação judicial para ma retirar.
Invade-me um enorme desânimo.
– Não sei, Matt – digo em tom formal, sem me voltar para ele. Finjo
estar ocupada a preparar o café. – Ainda não tive oportunidade de estudar o
assunto.
Por outras palavras, estou em negação. É essa a minha abordagem
universal quando a vida não me sorri; limito-me a enterrar a cabeça na areia
e esperar que a tempestade passe. Por vezes, passa mesmo. Na maioria dos
casos, acabo apenas com areia nos olhos.
– Hope… – começa o Matt.
Suspiro e abano a cabeça.
– Ouve, Matt, se vieste tentar persuadir-me a vender a confeitaria a
esses teus investidores, já te disse que ainda não sei o que fazer e não estou
preparada para…
– Está a acabar-se o tempo – diz com firmeza. – Temos de falar sobre
este assunto.
Acabo por fitá-lo. Ele está de pé, inclinado sobre o balcão.
– Muito bem – cedo. Sinto um aperto no peito.
Ele faz uma pausa e retira uma partícula invisível da lapela. Aclara a
garganta. O aroma do café paira agora na sala e eu, procurando iludir o
nervosismo, ocupo-me em servir-lhe café antes de a máquina ter acabado de
o preparar. Mexo o café com as natas e o açúcar, e ele aceita a chávena,
agradecendo com um ligeiro aceno.
– Quero tentar persuadir os investidores a aceitarem-te como sócia – diz
por fim, de forma brusca. – Se acabarem por adquirir a confeitaria; ainda
não sabemos ao certo se o farão. Têm de visitar as instalações, avaliar o seu
funcionamento e verificar a tua contabilidade. Mas eu tenho-te elogiado.
– Sócia? – pergunto. Decido não lhe dizer o quanto me magoa ele
considerar uma dádiva a possibilidade de eu ter uma percentagem no
negócio da minha própria família. – Isso significa que tenho de conseguir
dinheiro para cobrir uma percentagem da compra pelo banco?
– Sim e não – responde.
– Não tenho tanto dinheiro, Matt.
– Eu sei.
Encaro-o e espero que continue. Ele pigarreia.
– E se me pedisses algum dinheiro emprestado?
– O quê? – atiro, arregalando os olhos.
– Seria sobretudo um negócio, Hope – apressa-se ele a dizer. – Repara,
eu tenho crédito suficiente. Posso assumir, digamos, um quarto do direito de
propriedade. Tu ficas com setenta e cinco por cento. Eu fico com vinte e
cinco. E podes pagar-me todos os meses apenas o que tiveres.
Conseguíamos manter parte da confeitaria na tua família…
– Não posso – digo, antes sequer de ponderar a proposta. Os fios
invisíveis desta relação acabariam por me estrangular. E, por muito que
abomine a ideia de entregar a maior parte da confeitaria a estranhos, é ainda
pior pensar no Matt como coproprietário.
– Matt, é uma oferta muito simpática, mas não posso, de modo algum…
– Hope, só te peço que a ponderes. – Ele debita as palavras muito
depressa. – Não é assim tão importante. Eu tenho dinheiro. Estou à procura
de um investimento e esta confeitaria é uma instituição da cidade. Sei que
vais recuperar em breve e…
A sua voz desvanece-se e ele fita-me, expectante.
– Matt, isso significa muito para mim – digo com delicadeza. – Mas eu
sei o que estás a fazer.
– Como? – pergunta ele.
– Caridade – respondo, respirando fundo. – Tens pena de mim. E eu
agradeço a ajuda, Matt, de verdade. Só que… não preciso da tua
compaixão.
– Mas… – começa, sem que eu o deixe prosseguir.
– Aconteça o que acontecer, prefiro fazer isto sozinha, está bem? – Faço
uma pausa e engulo em seco, procurando acreditar que estou a agir
corretamente. – Talvez acabe por me afundar, por perder tudo. Talvez os
investidores decidam, de qualquer modo, que o negócio não vale a pena. –
Volto a respirar fundo. – Porém, se isso acontecer, talvez seja obra do
destino.
O seu rosto revela desilusão. Tamborila algumas vezes no balcão.
– Sabes, Hope, tu estás diferente – acaba por dizer.
– Diferente?
– Eras outra pessoa – afirma. – No liceu, nunca te deixavas abater.
Recuperavas sempre. Esse era um dos traços que eu mais apreciava em ti.
Mantenho-me em silêncio, com um nó na garganta.
– Mas agora estás disposta a desistir – acrescenta, ao fim de algum
tempo. Não me olha diretamente. – Eu… pensei que reagirias de outra
forma. Parece que estás a deixar que a vida simplesmente aconteça.
Contraio os lábios. Sei que não me devo ralar com o que o Matt pensa,
mas as palavras ainda me ofendem, sobretudo porque sei que ele não está a
tentar ser cruel. Ele tem razão; sou diferente do que era. Ele observa-me
durante bastante tempo e acena convictamente com a cabeça.
– Penso que a tua mãe ficaria desiludida.
As palavras magoam-me e essa é, de resto, a sua intenção. Contudo, ao
mesmo tempo, ajudam-me, pois sei que ele está totalmente enganado. A
minha mãe nunca se preocupou com a confeitaria como a minha avó;
considerava-a um fardo. Se fosse viva, talvez rejubilasse ao vê-la cair para
poder lavar daqui as suas mãos.
– Talvez, Matt – digo.
Abre a carteira e retira duas notas de um dólar. Coloca-as em cima do
balcão. Eu suspiro.
– Não sejas tonto. O café é por conta da casa.
– Não preciso da tua caridade, Hope – diz, abanando a cabeça e
esboçando um sorriso frouxo. – Tem um bom dia – acrescenta. Pega no café
e sai energicamente pela porta da frente. Quando vejo desaparecer a sua
silhueta, engolida pela escuridão, sinto um arrepio.
A Annie entra e sai rapidamente de manhã e, mais uma vez, quase não
me dirige a palavra, a não ser para perguntar, em tom formal, se tive
oportunidade de me informar sobre os voos para Paris. Por volta das onze
da manhã, a confeitaria está vazia e eu observo, pelos vidros da porta
principal, a queda das folhas na Main Street. Hoje, sente-se uma brisa e, de
vez em quando, as folhas dos carvalhos, de um vermelho quente, e as folhas
dos áceres, de um laranja carregado, vagueiam pelo ar como pássaros
elegantes.
Às onze e meia, ainda sem clientes, sem nada para fazer, e com uma
fornada de tartes das estrelas no forno, ligo o velho portátil que guardo atrás
da caixa registadora, peço «emprestada» a Internet sem fios da Jessica
Gregory, da loja de presentes ao lado, e, lentamente, digito
www.google.com. Quando surge a página, faço uma pausa. Do que estou à
procura? Hesito por instantes e introduzo o primeiro nome da lista da
Mamie. Albert Picard.
Basta um segundo para surgirem os resultados. Existe um aeroporto em
França chamado Albert-Picardie, mas não creio que tenha alguma coisa a
ver com a lista da Mamie. Ainda assim, leio as informações da Wikipédia,
mas percebo claramente que não é o que procuro; trata-se de um aeroporto
que serve uma comunidade chamada Albert, na região da Picardie, no norte
de França. É um beco sem saída.
Volto atrás e consulto os outros resultados da pesquisa. Existe um Frank
Albert Picard, mas é um advogado norte-americano, nascido e criado no
Michigan, que morreu no início dos anos 60. Não pode ser esta a pessoa
que a Mamie procura; não tem quaisquer ligações a Paris. Quando
acrescento a palavra Paris à procura, surgem outros Albert Picard que,
contudo, não se enquadram no período em que a Mamie viveu em França.
Mordo o lábio superior e apago todos os termos da pesquisa. Escrevo
Páginas Brancas, Paris, e, após alguns cliques, vou ter a uma página com o
nome de Pages Blanches, que solicita um nom e um prénom. Sei, graças ao
francês limitado que aprendi no liceu, que a página me pede um apelido e
um nome próprio, e, por conseguinte, introduzo Picard e Albert. No espaço
em branco que pergunta Où?, escrevo Paris.
Surge uma lista e o meu coração agita-se. Será assim tão fácil? Tomo
nota do número e, em seguida, apago Albert e escrevo o segundo nome da
lista da Mamie: Cécile. Existem oito correspondências em Paris, incluindo
quatro pessoas identificadas como C. Picard. Aponto também estes
números e repito a pesquisa com os restantes nomes. Hélène, Claude, Alain,
David, Danielle.
No final, tenho uma lista de trinta e cinco números. Regresso ao Google
para perceber como se efetuam telefonemas dos Estados Unidos para
França e anoto também estas instruções; escrevo o número completo, com
os indicativos, do primeiro Picard e aproximo-me do telefone.
Faço uma pausa antes de o levantar. Ignoro quanto vou pagar por esta
chamada internacional, a primeira que alguma vez tive de fazer. Contudo,
tenho a certeza de que custam pouco menos de uma fortuna. Penso no
cheque de mil dólares que a Mamie me entregou; decido ficar com o valor
necessário para pagar as tarifas internacionais e, mais tarde, depositar o
restante na sua conta à ordem. Seja como for, é muito menos dispendioso do
que comprar um bilhete de avião para Paris.
Olho de relance para a porta. Ainda não há clientes. Lá fora, a rua está
vazia; prepara-se uma tempestade, o céu escurece e o vento ganha força.
Volto a olhar para o forno. O temporizador indica mais trinta e seis minutos.
O cheiro a canela espalha-se pela confeitaria e eu inspiro profundamente.
Marco o primeiro número. Ouço alguns cliques durante a primeira
ligação e, em seguida, dois sons parecidos com campainhas. Alguém
atende.
– Allô? – diz uma voz feminina.
Ocorre-me subitamente que o meu francês é rudimentar.
– Olá… – digo nervosamente. – Procuro os familiares de uma pessoa
chamada Albert Picard.
Do outro lado da linha, um silêncio absoluto. Procuro desesperadamente
recordar as palavras francesas corretas.
– Je… chercher Albert Picard – arrisco, sabendo que não acertei em
cheio mas esperando que a mensagem tenha sido entendida.
– Aqui não há nenhum Albert Picard. – A mulher fala um inglês claro
com uma acentuada pronúncia francesa.
Sinto o coração apertado.
– Oh. Peço desculpa. Pensei que…
– Aqui não há nenhum Albert Picard porque ele é um sacana e um inútil
– prossegue calmamente. – Não consegue manter as mãos longe das outras
mulheres. E eu estou farta.
– Oh, lamento… – digo, hesitante, sem saber o que acrescentar.
– Não é uma dessas mulheres, pois não? – pergunta, parecendo agora
desconfiada.
– Não, não – apresso-me a esclarecer. – Procuro uma pessoa que a
minha avó conheceu noutros tempos ou que pode mesmo ser seu familiar.
Ela abandonou Paris no início dos anos 40.
A mulher ri-se.
– Este Albert tem apenas trinta e dois anos. E o seu pai chama-se Jean-
Marc. Não pode ser o Albert Picard que procura.
– Peço desculpa – digo. Examino rapidamente a lista. – Talvez conheça
alguém chamado Cécile Picard? Ou Hélène Picard? Ou Claude Picard?
Ou… – Faço uma pausa. – Ou Rose Durand? Ou Rose McKenna?
– Não, diz a mulher.
– Muito bem – respondo, desiludida. – Obrigada pelo tempo que lhe
tomei. E espero que… resolva os problemas com o Albert.
– E eu espero que ele seja atropelado por um táxi – resmunga ela.
Ouço novamente um clique e fico a olhar para o telefone, surpreendida.
Abano a cabeça, espero o sinal de linha desocupada e tento o número
seguinte.
Capítulo 8

Quando a Annie chega, pouco antes das quatro, as tartes das estrelas já
arrefeceram, já coloquei os muffins de mirtilo para amanhã no forno e já
telefonei para os trinta e cinco nomes da lista. Atenderam vinte e duas
pessoas. Nenhuma delas conhece os nomes da lista da Mamie. Duas
sugeriram que eu contactasse as sinagogas, pois podem ter registos dos
membros inscritos naquele período.
– Obrigada – disse a ambas, intrigada –, mas a minha avó é católica.
A Annie mal olha para mim enquanto atira a mochila para trás do balcão
e caminha a grandes passadas para a cozinha. Suspiro. Ótimo… Vamos ter
uma daquelas tardes.
– Já limpei todas as tigelas e tabuleiros! – grito à minha filha enquanto
começo a tirar biscoitos da montra e a preparar-me para fechar a confeitaria.
– Hoje, houve poucos clientes, tive algum tempo livre – acrescento.
– E então? Marcaste a tua viagem para Paris? – pergunta a Annie,
surgindo à porta da cozinha com as mãos nas ancas. – Já que tiveste tanto
tempo livre…
– Não, mas… – começo. A Annie ergue a mão para me interromper.
– Não? Tudo bem. Não preciso de ouvir mais nada – diz, utilizando
ostensivamente uma expressão do pai e parece uma adulta em miniatura. Só
me faltava esta.
– Annie, não me estás a ouvir – afirmo. – Telefonei para…
– Ouve, mãe, se não vais ajudar a Mamie, não temos nada para discutir
– diz bruscamente.
Respiro fundo. Tenho tido mil cuidados com ela nos últimos meses,
preocupada com a forma como ela tem vivido o divórcio. Mas estou
cansada de ser a má da fita. Sobretudo porque não sou.
– Annie – digo com firmeza –, tenho feito tudo o que posso para nos
manter à tona de água aqui na confeitaria. Entendo que queiras ajudar a
Mamie. Eu também quero. Mas ela tem Alzheimer, Annie. O pedido que
me fez não tem lógica. Agora, se ouvires o que tenho para te dizer, eu…
– Tanto faz, mãe – interrompe novamente. – Não te interessas por
ninguém.
Regressa indignada à cozinha, e eu sigo-a de perto, com os punhos
cerrados, tentando manter o sangue-frio.
– Minha menina, não me vires as costas a meio de uma discussão!
Nesse momento, ouço o carrilhão da porta principal e, virando-me para
trás, vejo o Gavin, vestido com umas calças de ganga desbotadas e uma
camisa vermelha de flanela. Devolve-me o olhar surpreendido e passa a
mão pelos seus rebeldes caracóis castanhos. Distraidamente, ocorre-me que
precisam de um ligeiro corte.
– Interrompo… alguma coisa? – pergunta, consultando o relógio. – A
confeitaria ainda está aberta? – Forço um sorriso.
– Claro, Gavin. Entra. Em que te posso ajudar?
Parece hesitante quando se aproxima do balcão.
– Tens a certeza? – pergunta. – Posso voltar amanhã se…
– Não – atalho. – Desculpa. A Annie e eu estávamos apenas a…
conversar.
O Gavin faz uma pausa e sorri.
– A minha mãe e eu conversávamos muito quando eu tinha a idade da
Annie – conta em voz baixa. – Tenho a certeza de que sempre gostou mais
desses momentos do que eu.
Rio-me, a contragosto. Nesse momento, a Annie aparece novamente
vinda da cozinha.
– Trouxe-lhe café – diz ao Gavin antes de eu poder dizer alguma coisa.
– Por conta da casa – acrescenta. Olha-me de viés, como que a incitar-me a
desafiá-la. Mal ela sabe que não cobro nada ao Gavin desde o fim das obras
da nossa casa.
– Bem, obrigado, Annie. Isso é muito generoso – diz o Gavin,
recebendo a chávena das mãos dela. Vejo-o fechar os olhos e sentir o
aroma. – Bolas, cheira lindamente.
Arqueio a sobrancelha, pois suspeito que ele sabe tão bem como eu que
o café passou aproximadamente as duas últimas horas no fogão e é tudo
menos fresco.
– Diga-me, Mr. Keyes – começa a Annie. – Gosta de ajudar as pessoas e
assim, certo?
O Gavin parece surpreendido. Pigarreia e acena afirmativamente.
– Claro, Annie, creio que sim. – Faz uma pausa e olha-me, receoso. – E
podes tratar-me por Gavin, se quiseres. Estás a dizer… que ajudo as pessoas
por ser um faz-tudo? Por fazer reparações?
– Tanto faz – diz ela com indiferença. – Ajuda as pessoas porque é o
que devemos fazer, certo? – O Gavin lança-me outro olhar, e eu encolho os
ombros. – Seja como for – continua a Annie –, se uma pessoa tivesse
perdido uma coisa e isso a perturbasse, o senhor quereria, provavelmente,
ajudar a encontrá-la e assim, certo?
– Claro, Annie – confirma o Gavin lentamente. – Ninguém gosta de
perder coisas. – Volta a fitar-me.
– Logo, se alguém, tipo, lhe pedisse ajuda para encontrar parentes há
muito perdidos, o senhor ajudaria, certo? – pergunta.
– Annie… – digo, em jeito de advertência. Ela não me presta atenção.
– Ou, tipo, ignoraria totalmente o pedido de ajuda? – continua, olhando-
me de forma provocatória.
O Gavin pigarreia novamente e procura a minha aprovação. Sei que ele
percebe ter sido arrastado involuntariamente para a nossa discussão, mesmo
não fazendo ideia do que a motivara.
– Bom, Annie – diz lentamente, voltando-se para ela. – Suponho que
tentaria ajudar a encontrar esses parentes. Mas tudo dependeria da situação.
A Annie volta-se para mim com um olhar triunfante.
– Vês, mãe? Mr. Keyes preocupa-se mais do que tu! – Dá meia-volta e
volta a entrar na cozinha. Fecho os olhos e ouço o som de uma tigela de
metal a bater contra o balcão. Abro-os novamente e vejo o Gavin
preocupado. Fitamo-nos por um momento e, em seguida, viramo-nos para a
Annie, que volta a sair da cozinha
– Mãe, os pratos estão todos limpos – diz, sem olhar para mim. – Vou a
pé até casa do pai. Pode ser?
– Diverte-te – digo, inexpressiva. Ela revira os olhos, pega na mochila e
sai com estrondo, sem olhar para trás. Quando volto a encarar o Gavin, o
seu rosto preocupado deixa-me constrangida. Não preciso que ele, ou seja
quem for, se preocupe comigo.
– Desculpa – murmuro. Abano a cabeça e tento fingir-me ocupada. – O
que vais querer, Gavin? Tenho uns muffins na cozinha, acabados de sair do
forno.
– Hope? – diz, após uma pausa. – Estás bem?
– Estou ótima.
– Não pareces – declara.
Pestanejo e continuo a evitar o seu olhar.
– Não?
Ele abana a cabeça.
– Tens o direito de ficar triste, sabes?
O meu olhar deve transmitir severidade, sem intenção, pois ele cora
subitamente.
– Desculpa, não era minha intenção…
Ergo a mão para o interromper.
– Eu sei – digo. – Eu sei. Ouve, agradeço a tua ajuda.
Permanecemos em silêncio por um momento e, em seguida, o Gavin
continua:
– Afinal, de que estava ela a falar? Há alguma coisa em que te possa
ajudar?
– Agradeço a disponibilidade – digo, sorrindo –, mas não é nada de
importante. – O seu rosto diz-me que não acredita em mim. – É uma longa
história – clarifico.
Ele encolhe os ombros.
– Tenho tempo – afirma.
– Mas ias a algum lado, não ias? – pergunto, consultando o relógio. –
Vieste buscar bolos.
– Não tenho pressa. Mas levo uma dúzia de biscoitos. Os de arando e
chocolate branco. Se não te importas.
Aceno com a cabeça e coloco cuidadosamente os biscoitos de cape cod
que ainda restam na montra numa caixa azul-clara com as palavras
Confeitaria North Star, Cape Cod escritas em letras brancas ondulantes.
Aperto-a com uma fita branca e entrego-lha por cima do balcão.
– E então? – incita o Gavin enquanto pega na caixa.
– Queres mesmo ouvir esta história? – pergunto.
– Se ma quiseres contar.
Aceno que sim, apercebendo-me repentinamente de que quero mesmo
contar a outro adulto o que se passa.
– Bom, a minha avó sofre de Alzheimer – começo. Nos cinco minutos
seguintes, enquanto retiro miniaturas, croissants, baklavas, tartes e luas em
quarto crescente da montra e os coloco em embalagens herméticas para
colocar no frigorífico ou em caixas para entregar no abrigo para mulheres
gerido pela igreja, conto ao Gavin o que a Mamie disse na noite anterior. O
Gavin ouve atentamente, mas fica de queixo caído quando lhe digo que a
Mamie atirou ao mar pedaços de uma tarte das estrelas em miniatura.
– É de doidos, não é?
Ele abana a cabeça, com uma expressão estranha no rosto.
– Não, na verdade, não é. Ontem foi o primeiro dia do Rosh Hashanah.
– Está bem – digo lentamente. – Mas a que propósito vem isso?
– O Rosh Hashanah é o Ano Novo judaico – explica o Gavin. – Temos a
tradição de ir até um local com água, como o mar, para realizarmos uma
pequena cerimónia chamada tashlich.
– És judeu? – pergunto.
– Por parte da minha mãe – responde, sorrindo. – Fui educado entre o
judaísmo e o catolicismo.
– Ah… – Olho-o fixamente, surpreendida. – Não sabia.
Ele encolhe os ombros.
– Seja como for, a palavra tashlich significa essencialmente «expulsar».
Percebo de repente que a palavra não me é estranha.
– Penso que a minha avó disse algo parecido ontem à noite.
Ele acena afirmativamente.
– A cerimónia consiste em lançar pedaços de pão para a água para
simbolizar a expulsão dos nossos pecados. Normalmente, utilizam-se
pedaços de pão, mas imagino que pedaços de tarte também funcionem. –
Faz uma pausa e acrescenta: – Seria isso que a tua avó estava a fazer?
Abano a cabeça.
– Não pode ser – digo. – A minha avó é católica. – No momento em que
profiro estas palavras, recordo-me subitamente do facto de duas pessoas de
Paris me terem sugerido hoje que contactasse as sinagogas. O Gavin parece
pouco convencido.
– Tens a certeza? Talvez não tenha sido sempre católica.
– Mas isso é uma loucura. Se ela fosse judia, contava-me.
– Não necessariamente – diz. – A minha avó materna, que eu tratava por
Nana, sobreviveu ao Holocausto – explica. – Esteve em Bergen-Belsen.
Perdeu os pais e um dos irmãos. Por influência dela, voluntariei-me para
ajudar sobreviventes quando tinha cerca de quinze anos. Alguns contam
que, durante um determinado período, abandonaram as suas raízes. Era
difícil manterem-se fiéis à sua identidade quando tudo o resto lhes tinha
sido retirado. Sobretudo às crianças acolhidas por famílias cristãs. Porém,
todos acabaram por regressar ao judaísmo. Como se regressassem a casa.
– A tua avó sobreviveu ao Holocausto? – repito, observando-o e
procurando assimilar este seu lado totalmente desconhecido. – Tu ajudaste
sobreviventes?
– Ainda ajudo. Faço voluntariado uma vez por semana no lar judaico de
Chelsea.
– Mas isso fica a duas horas de distância – digo.
Ele não parece incomodado.
– Foi lá que a minha avó viveu os seus últimos dias. Aquele lugar tem
um significado especial para mim.
– Uau! – Não sei exatamente o que dizer. – O que fazes por lá enquanto
voluntário?
– Aulas de Arte – diz sem rodeios. – Pintura. Escultura. Desenho.
Coisas assim. E também lhes levo biscoitos.
– Então é esse o destino das caixas de biscoitos que vens aqui buscar?
Ele assente e eu limito-me a fitá-lo. Compreendo agora que o Gavin
Keyes é mais complexo do que eu alguma vez imaginara. Que mais me
pode ter escapado?
– Tu és… artista? – acabo por perguntar.
O Gavin afasta o olhar e não responde.
– Ouve, sei que este assunto da tua avó deve ser difícil de digerir. E
posso estar totalmente enganado. Mas a verdade é que algumas pessoas que
escaparam antes de serem enviadas para os campos de concentração saíram
furtivamente da Europa com documentos falsos que os identificavam como
cristãos – explica. – É possível que a tua avó tenha chegado cá com uma
nova identidade?
Abano a cabeça de imediato.
– Não. Nem pensar. Ter-nos-ia contado. – Ocorre-me, porém, que essa
nova identidade explicaria o facto de todas as pessoas da lista terem o
apelido Picard quando o seu nome de solteira fora sempre, julgava eu,
Durand.
O Gavin coça a cabeça.
– A Annie tem razão, Hope. Tens de descobrir o que aconteceu à tua
avó.

Conversamos mais uma hora, na qual o Gavin esclarece pacientemente


tudo o que não entendo. Se a Mamie é, de facto, de uma família judaica de
Paris, porque não telefono simplesmente para todas as sinagogas da cidade?
E não haverá organizações dedicadas ao Holocausto que nos ajudem a
localizar sobreviventes? Tenho a certeza de ter ouvido falar de instituições
dessa natureza, apesar de nunca ter tido motivos para as procurar.
O Gavin explica que vale a pena contactar essas organizações num
primeiro momento, mas considera improvável que eu encontre aí todas as
respostas. Na melhor das hipóteses, ainda que consiga encontrar os nomes
numa qualquer lista, apenas terei acesso à data e ao local de nascimento,
porventura à data da deportação, e, com sorte, ao nome do campo para onde
foram levados.
– Mas isso não te vai esclarecer tudo – acrescenta. – E penso que a tua
avó merece saber o que realmente aconteceu às pessoas que amava.
– Se ela for quem diz ser – interponho. – Penso que tudo isto parece
uma loucura.
– Não te censuro – concede o Gavin. – Mas tens de ir descobrir.
Não estou convencida e afasto o olhar quando ele explica que as
sinagogas podem ter registos melhores, podem conduzir-me a outros
sobreviventes que eventualmente se recordem da família Picard.
Além disso, segundo o Gavin, ainda que o Holocausto tenha ocorrido há
setenta anos, alguns dos responsáveis pelos registos mostram relutância em
prestar informações pelo telefone. Apesar de todos os esforços
desenvolvidos ao longo dos anos para tornar acessíveis os arquivos, muitas
pessoas que viveram durante a guerra ainda sentiam que entregar nomes era
como entregar vidas.
– Além disso – conclui –, a tua avó quer muito que vás a Paris. Deve
haver algum motivo para isso.
– E se não houver? – pergunto baixinho. – Ela está doente, Gavin.
Perdeu a memória.
Ele não se mostra convencido.
– O meu pai também sofria da doença de Alzheimer – conta. – É
horrível, bem sei. Mas lembro-me dos seus momentos de lucidez.
Sobretudo quando falava do passado. E, pelo que dizes, parece que a tua
avó estava totalmente lúcida quando te deu a lista de nomes.
– Eu sei – acabo por admitir. – Eu sei.
Quando fecho a confeitaria e saímos, a luz do dia perde vigor, o azul do
céu começa a ficar mais carregado. Sinto um calafrio enquanto aperto um
pouco mais o meu casaco de ganga.
– Estás bem? – pergunta o Gavin, fazendo uma pausa antes de se afastar
para a esquerda. Consigo ver o seu jipe estacionado na Main Street, a
aproximadamente um quarteirão de distância.
– Sim – asseguro-lhe. – Obrigada. Por tudo.
– É muita coisa para assimilares – diz. – Se for verdade – acrescenta,
fora de tempo. Sei que estas últimas palavras se destinam apenas a
tranquilizar-me. Volto a assentir com a cabeça. Sinto-me dormente, como se
as coisas que ele me explicou esta tarde me sobrecarregassem de um modo
avassalador. Simplesmente não consigo acreditar que a minha avó tenha um
passado de que nunca falou. Mas tenho de admitir que tudo o que ele disse
faz sentido. Isso provoca-me calafrios.
– Bom… – arrisca o Gavin. Eu estivera ali de pé, na rua, a olhar sem
expressão para o espaço vazio. Abano a cabeça, forço um sorriso e estendo
a mão.
– Ouve, obrigada mais uma vez. Muito obrigada.
O Gavin parece surpreendido com a minha mão estendida, mas acaba
por apertá-la.
– Foi um prazer.
A sua mão é rugosa e quente e eu demoro um pouco mais do que devia
a largá-la.
– Espero que gostes dos biscoitos – digo, acenando com a cabeça para a
caixa que ele segura na sua mão esquerda.
– Não são para mim – sorri.
Começo a sentir algum embaraço.
– Bom, cuida-te – digo.
– Tu também – responde. Quando o vejo afastar-se, assalta-me, vindo
não sei de onde, um certo sentimento de perda.
Capítulo 9

Dou voltas na cama durante quase toda a noite e, quando finalmente


consigo adormecer, tenho pesadelos em que algumas pessoas são
enfileiradas, mesmo à porta da minha confeitaria, e obrigadas a marchar
para dentro de comboios. No meu sonho, corro por entre a multidão,
tentando encontrar a Mamie, mas ela não está lá. Acordo com suores frios,
às duas e meia da manhã, e, apesar de normalmente sair para trabalhar
apenas às três e quarenta e cinco, levanto-me da cama, visto-me
apressadamente e saio para sentir o ar puro. Sei que não vou conseguir
dormir nem mais um segundo.
A maré deve estar baixa pois, enquanto me encaminho para o carro,
sinto o cheiro a sal e lodo proveniente da baía, a dois quarteirões de
distância. Na quietude da madrugada, ouço o som longínquo das ondas a
chegar à praia. Antes de entrar no carro, permaneço de pé por momentos,
respirando fundo. Sempre adorei o cheiro da água salgada; faz-me lembrar
a minha infância, quando o meu avô nos visitava após um dia de pesca e,
ainda com o odor do mar na pele, me baloiçava no ar.
– Quem é a menina que mais adoro no mundo? – perguntava, enquanto
me fazia voar, como a Supermulher, à volta da sala.
– Euuuuu! – gritava com um risinho, encantada, sempre como se fosse a
primeira vez. Já tinha percebido, mesmo tão pequena, que a minha mãe era,
por vezes, fria e instável, e a minha avó terrivelmente reservada.
Já o meu avó cobria-me de beijos, lia-me histórias para adormecer,
ensinava-me a pescar e jogar basebol e chamava-me «a sua compincha».
Enquanto ligo o motor do carro, apercebo-me de que sinto muito a sua
falta. Ele saberia o que fazer a respeito da Mamie. Pergunto-me
repentinamente se ele conheceria os segredos que ela guardou. Se conhecia,
nunca o deixou transparecer. Sempre julguei que eles tinham um bom
casamento, mas poderá uma relação sobreviver verdadeiramente se houver
mentiras a enfraquecer as suas raízes?
Passam poucos minutos das três quando entro na confeitaria.
Maquinalmente, retiro do frigorífico os muffins, os biscoitos e os queques
do dia anterior, que, mais tarde, vou colocar nos expositores. Em seguida,
sento-me e navego na Internet. Só uma hora mais tarde terei de começar a
preparação dos bolos do dia.
Inicio a sessão no meu e-mail e fico sobressaltada quando vejo uma
mensagem do Gavin, enviada para o endereço das encomendas pela Internet
pouco depois da meia-noite.

Olá, Hope,

Pareceu-me boa ideia enviar-te os links das organizações de que

te falei. Os sites www.yadvashem.org e www.jewishgen.org são os

melhores para começares a tua pesquisa. Depois, podes tentar o

Mémorial de la Shoah, o Memorial do Holocausto, em Paris. Creio

que possuem bons registos de vítimas francesas do Holocausto.

Contacta-me se precisares de ajuda.

Boa sorte,

Gavin
Faço uma pausa e respiro fundo, preparando-me para o que aí vem, e,
em seguida, clico no primeiro link, que me leva até uma base de dados
composta por nomes de vítimas do Holocausto. Sob a caixa de pesquisa,
explicam que a base de dados inclui registos sobre metade dos seis milhões
de judeus assassinados durante a Segunda Guerra Mundial.
Repentinamente, sinto o estômago às voltas; já conhecia este número, mas
agora a questão é mais pessoal. Seis milhões. Meu Deus. Penso mais uma
vez que, seja como for, o Gavin deve estar enganado no que respeita à
Mamie. Tem de estar.

O texto da página principal explica também que milhões de vítimas


permanecem por identificar. Interrogo-me como é isto possível sete décadas
depois. Como pode haver tantas pessoas perdidas para sempre?
Volto a respirar fundo, escrevo Picard e Paris, e seleciono «Pesquisa».
Surgem dezoito resultados e o meu coração dispara quando examino a lista.
Nenhum dos nomes próprios corresponde aos que a Mamie me indicou, e
eu não sei se me devo sentir aliviada ou desiludida. Contudo, há uma Annie
na lista, o que subitamente me deixa agoniada. Seleciono o nome, sem me
aperceber de que a minha mão treme. Leio o texto, muito curto; esta
rapariga nasceu em dezembro de 1934, informam. Viveu em Paris e
Marselha e morreu em 10 de julho de 1943, em Auschwitz. Faço
rapidamente as contas. Não chegou a completar nove anos.
Penso na minha Annie. No seu nono aniversário, o Rob e eu levámo-la
com três amigas a Boston para uma festa, durante a tarde, no Park Plaza.
Disfarçadas de pequenas princesas, soltavam risinhos enquanto degustavam
pequenas sanduíches preparadas com pão sem côdea. A fotografia que tirei
à Annie, com o seu vestido rosa-claro e o seu cabelo comprido e solto, a
soprar a vela que colocámos num queque da cor do vestido, ainda é uma das
minhas preferidas.
Porém, a pequena Annie Picard de Paris não celebrou o nono
aniversário. Não foi adolescente, não conversou sobre maquilhagem com a
mãe, não se apoquentou com trabalhos de casa, não se apaixonou nem
viveu tempo suficiente para perceber o que, na verdade, desejava ser.
Apercebo-me repentinamente de que estou a chorar. Não sei sequer
quando me caíram as primeiras lágrimas. Fecho rapidamente a página,
enxugo os olhos e afasto-me do computador. Preciso de quinze minutos a
trabalhar freneticamente na cozinha para me recompor.

Dedico mais trinta minutos a explorar o primeiro site que o Gavin me


indicou, e quase tudo o que encontro me horroriza. Recordo-me de ler o
Diário de Anne Frank na escola e de estudar o Holocausto nas aulas de
História, mas, por algum motivo, o contacto com estas informações na
idade adulta tem um impacto totalmente diferente.
Sucedem-se números e factos perturbadores. Viviam em Paris, em 1939,
quando a guerra rebentou, duzentos mil judeus. Cinquenta mil morreram.
Os nazis começaram a deter judeus parisienses em maio de 1941, quando
juntaram três mil e setecentos e os enviaram para campos de detenção. Em
junho de 1942, todos os judeus de Paris foram forçados a usar estrelas-de-
David amarelas com a palavra juif, que em francês significa judeu. Um mês
depois, em 16 de julho de 1942, teve lugar uma rusga em grande escala e
doze mil judeus – a maioria nascida no estrangeiro – foram levados para um
estádio denominado Vélodrome d’Hiver e mais tarde deportados para
Auschwitz. Até 1943, os nazis percorriam orfanatos, lares da terceira idade
e hospitais, prendendo os mais vulneráveis. Esta imagem agonia-me.
Escrevo Picard na segunda base de dados que o Gavin me indicou.
Encontro três Picard sobreviventes num jornal de Munique e mais três –
incluindo uma outra Annie Picard – apresentados como sobreviventes e que
residem em Itália. Existem mais três Picard no registo de óbitos do campo
de concentração de Mauthausen, na Áustria, e onze nos registos de Dachau,
na Alemanha. Há trinta e sete Picard numa lista de sete mil trezentos e
quarenta e seis deportados franceses que morreram. Encontro novamente
Annie Picard, de oito anos, nesta lista, e regressam as lágrimas. Tenho os
olhos de tal forma toldados que quase me passam despercebidos dois nomes
familiares surgidos no ecrã. Cécile Picard – o segundo nome da lista da
Mamie – e Danielle Picard – o último.
Com o coração agitado, leio os pormenores associados ao primeiro
nome.
Cécile Picard. Nascida Cécile Pachcinski em 30 de maio de 1901, em
Cracóvia, na Polónia. Residente em Paris, França. Deportada para
Auschwitz, 1942. Faleceu no outono de 1942.
Engulo em seco algumas vezes. Cécile Picard teria quarenta e um anos
na data da sua morte. Apenas mais cinco do que tenho agora. Sei que a
Mamie nasceu em 1925 e, por conseguinte, teria dezassete anos em 1942.
Poderia Cécile ser a sua mãe? A minha bisavó? Se assim for, porque nunca
falámos sobre o assunto?
Pestanejo algumas vezes e, enquanto leio as informações sobre Danielle,
sinto um nó na garganta.
Danielle Picard. Nascida em 4 de abril de 1937. Residente em Paris,
França. Deportada para Auschwitz. Faleceu em 1942.
Tinha apenas cinco anos.
Fecho os olhos e tento voltar a respirar normalmente. Após breves
instantes, procuro no Google a terceira organização sugerida pelo Gavin, o
Mémorial de la Shoah. Sigo o link e introduzo o primeiro nome da lista da
Mamie, Albert Picard, na caixa de pesquisa. Os meus olhos arregalam-se
quando o encontro.
Monsieur Albert PICARD. Né le 26/03/1897. Déporté à Auschwitz par
le convoi n.o 58 au départ de Drancy le 31/07/1942. De profession
médecin.
Copio rapidamente o texto para um programa de tradução na Internet e
leio atentamente o resultado. «Albert Picard. Nascido em 26 de março de
1897. Deportado para Auschwitz no comboio n.o 58, proveniente de
Drancy, em 31 de julho de 1942. Era médico.»
Atordoada, escrevo os outros nomes da família. Não existem
informações sobre o que lhes sucedeu, apenas constam as datas das
deportações. Tinham sido todos deportados para Auschwitz nos comboios
57 ou 58, no final de julho de 1942.
Encontro todos os nomes exceto o de Alain, que, segundo a lista da
Mamie, teria onze anos quando foi preso. Fito o ecrã, desconcertada.
Consulto o relógio. Nos Estados Unidos, são cinco e meia da manhã.
Em França são mais seis horas, logo é provável que haja alguém disponível
nas instalações do Mémorial de la Shoah. Respiro fundo, procurando não
pensar na minha conta telefónica, e marco o número indicado no monitor.
Seis toques depois, ouço o atendedor de chamadas em França. Desligo e
volto e ligar, mas o resultado é o mesmo. Consulto novamente o relógio. O
Memorial deve estar aberto. Marco o número uma terceira vez e, após
alguns instantes, atende uma mulher que me fala em francês.
– Olá – digo, suspirando de alívio. – Estou a telefonar dos Estados
Unidos e, infelizmente, não falo francês.
A mulher passa de imediato a falar inglês, ainda que com uma
pronúncia acentuada.
– O Memorial está fechado – diz. – É sábado. Fechamos sempre ao
sábado. Respeitamos o Sabat. Estou aqui apenas a concluir uma pesquisa.
– Oh! – digo, de coração apertado. – Peço desculpa, não me tinha
apercebido. – Faço uma pausa e pergunto, em voz baixa: – Poderá talvez
responder-me rapidamente a uma pergunta?
– Isso é contrário às nossas regras. – O seu tom é firme.
– Por favor – digo timidamente. – Estou a tentar encontrar uma pessoa.
Ela permanece em silêncio por um momento e, em seguida, suspira.
– Está bem. Rapidamente.
Explico com a brevidade possível que procuro pessoas que podiam
pertencer à família da minha avó e que encontrei todos os nomes menos
um. Ela suspira novamente e informa-me de que o Memorial possui um dos
melhores registos da Europa porque as deportações eram meticulosamente
registadas pela polícia francesa, que era, aliás, quem as realizava.
– Em toda a Europa – diz –, desapareceu metade dos registos. Contudo,
em França, conhecemos os nomes de quase todas as pessoas deportadas do
nosso país.
– Mas como posso descobrir o que lhes aconteceu após as deportações?
– pergunto.
– Em muitos casos, não pode, infelizmente – diz. – Mais, bom, em
certos casos isso é possível. Conservamos nestas instalações os registos
escritos, os documentos de recenseamento e outros recursos. Alguns dos
registos de deportação incluem observações sobre o destino final das
pessoas.
– E como descubro Alain Picard? O nome que não consta da vossa base
de dados?
– Isso é mais difícil – assevera. – Se não foi deportado, não temos
qualquer registo sobre ele. Contudo, pode visitar-nos e examinar os nossos
registos. Temos um bibliotecário que a ajudará. Talvez encontre o nome que
procura.
– Ir a Paris? – pergunto.
– Oui – diz. – É a única solução.
– Obrigada – murmuro. – Merci beaucoup.
– De rien – responde. – Talvez a veja em breve?
Hesito, mas apenas por breves momentos.
– Sim, talvez me veja em breve.

Fico de tal modo abalada pelos resultados da pesquisa, e pela conversa


com a senhora do Memorial, que me atraso a colocar as tartes das estrelas
no forno e a preparar as rosas de amêndoa. Nem parece meu; cumprir
rigorosamente o horário da manhã é, na maior parte dos dias, o que
assegura a minha sanidade mental. Por esse motivo, quando o despertador
da cozinha dispara, alertando-me que são seis da manhã, hora de abrir a
porta principal, impera na confeitaria uma desordem incaracterística.
Precipito-me para a porta principal e surpreendo-me ao ver o Gavin
aguardar na rua, pacientemente. Quando me vê através do vidro, sorri e
ergue a mão para me cumprimentar. Destranco a porta.
– Porque não bateste? – pergunto, abrindo a porta para o lado de fora. –
Eu ter-te-ia deixado entrar.
Ele entra e observa-me enquanto ligo as luzes do letreiro que diz
«Aberto».
– Não estou aqui há muito tempo – afirma. – Além disso, abres a
confeitaria às seis. Não me pareceu correto incomodar-te antes disso.
Com um gesto, convido-o a seguir-me.
– Tenho tartes no forno. Desculpa; esta manhã estou um pouco atrasada.
Café?
– Claro – diz. Ele detém-se no balcão, mas eu faço novo gesto,
convidando-o a entrar na cozinha.
– Posso ajudar em alguma coisa? – pergunta, arregaçando as mangas
como se já estivesse preparado para se entregar ao trabalho. Eu abano a
cabeça e sorrio.
– Não, eu dou conta disto – digo. – A não ser que consigas voltar atrás
no tempo para eu deixar de estar atrasada.
Começo por moer uma chávena de grãos de café mas, quando me volto,
é com surpresa que vejo o Gavin repor a água da máquina de café e colocar
um filtro no respetivo cesto, parecendo sentir-se totalmente em casa.
– Obrigada – digo.
– A manhã está a ser difícil? – pergunta.
– Estranha. Recebi o teu e-mail. Obrigada.
– Ajudou?
– Passei algum tempo naquelas páginas – confirmo.
– E?
– E só não encontrei um nome da lista da minha avó. – Coloco o café
moído no filtro, e o Gavin seleciona o botão de preparação. Por instantes,
permanecemos em silêncio, enquanto o café começa a borbulhar e a cair na
cafeteira. – Não consegui encontrar o Alain. Quanto aos outros, foram todos
deportados. Em 1942. A mais jovem tinha cinco anos. A mãe não era muito
mais velha do que sou hoje. – Inspiro profundamente e sinto um aperto no
peito. – Ainda não estou convencida de que era a família da minha avó.
– E porquê?
Sinto um súbito embaraço e evito o seu olhar.
– Não sei. Isso muda tudo.
– O quê, concretamente?
– A identidade da minha avó – respondo.
– Nem por isso – diz ele.
– Muda a minha identidade – acrescento em voz baixa.
– Tens a certeza?
– Torna-me metade judia. Ou um quarto judia, suponho.
– Não – diz o Gavin. – Significa apenas que tiveste sempre contigo essa
parte do seu passado. Significa que sempre foste um quarto judia. Não
muda nada daquilo que realmente és.
Subitamente, sinto estar a falar com um terapeuta, e isso não me agrada.
– Não importa – concluo. A cafeteira apenas está meio cheia, mas eu
retiro-a abruptamente e encho uma chávena para dar ao Gavin enquanto
mudo de assunto. – Hoje chegaste mais cedo do que o habitual.
Mal profiro estas palavras, receio que ele pense que o estou a controlar.
Sinto-me corar, mas o Gavin parece não se aperceber.
– Não conseguia dormir. E queria saber como estava a correr a tua
pesquisa.
Aceno com a cabeça, assimilando a frase enquanto preparo a minha
chávena de café.
– Vais a Paris? – pergunta ele.
– Não posso, Gavin.
O temporizador do forno dispara, e eu sinto o Gavin observar-me
enquanto calço as luvas de cozinha e retiro dois tabuleiros de tartes das
estrelas. Diminuo a temperatura cinquenta graus para os croissants que já
enrolei e modelei e encaminho-me para a parte da frente da confeitaria para
verificar se entrou alguém sem eu ouvir o carrilhão da porta. A sala está
vazia. O Gavin aguarda que eu introduza os croissants no forno antes de
voltar a falar.
– Porque não podes ir? – insiste.
Mordo o lábio.
– Não me posso dar ao luxo de fechar a confeitaria.
O Gavin está pensativo, e eu procuro censura nos seus olhos, mas sem a
encontrar.
– Pois – diz ele lentamente. Reparo que não pede qualquer justificação,
e isso deixa-me satisfeita. Não quero ter de explicar a minha situação a
ninguém. – Mas não podes pedir a alguém que tome o teu lugar durante
alguns dias? – pergunta pouco depois. Sem intenção, solto uma risada
amarga.
– Quem? A Annie não tem, oficialmente, idade suficiente para trabalhar
aqui. Não tenho dinheiro para contratar outra pessoa.
O Gavin observa-me, pensativo.
– Tens certamente amigos que te podem ajudar.
– Não, não tenho – digo, acrescentando interiormente Eis mais um dos
meus muitos insucessos na vida.
Somos interrompidos pelo carrilhão da porta principal, e eu saio da
cozinha para atender o meu primeiro cliente do dia. É Marcie Golgoski, que
dirige a biblioteca da cidade desde que eu era criança. Enquanto lhe sirvo
café num copo para levar e lhe embrulho um muffin de mirtilo – como
habitualmente – espero que o Gavin permaneça na cozinha. Sei o que ela
pensaria se soubesse que ele estava comigo nas traseiras, e não gosto que
ninguém na cidade faça conjeturas sobre a minha vida pessoal. Por muito
que goste desta cidade, reconheço que tem demasiados boatos.
O temporizador do forno dispara novamente quando acabo de atender
Marcie, e eu apresso-me a regressar à cozinha depois de ela sair, receando
ter deixado os croissants no forno alguns segundos a mais. Surpreendo-me
ao ver o Gavin colocar os croissants numa grelha metálica.
– Obrigada – digo.
Ele acena com a cabeça e retira as pegas.
– Tenho de ir – declara. – Mas estás enganada.
– Em relação a quê? – pergunto. Tenho de reconhecer que devo estar
enganada em relação a muitas coisas.
– Ao facto de não teres amigos – diz. – Tens-me a mim.
Sem saber o que responder, permaneço em silêncio. Contudo, de um
momento para o outro, o meu coração acelera e eu sinto-me corar.
– Sei que pensas que sou só o tipo que repara canos e coisas assim –
acrescenta, instantes depois.
Sinto-me corar ainda mais.
– Sou uma desgraça – digo finalmente. – Porque haverias de querer ser
meu amigo?
– Respondo-te como a qualquer outro amigo – afirma o Gavin. – Porque
gosto de ti.
Fico a vê-lo desaparecer pela porta principal.

A Annie está milagrosamente amável quando regressa à confeitaria de


tarde; parece tão bem-disposta que eu não menciono a pesquisa que fiz na
Internet nem os meus pensamentos contraditórios sobre Paris; não suporto a
ideia de termos mais uma discussão. Ela vai regressar a casa do pai, para lá
passar a noite e, enquanto lavamos os pratos lado a lado na cozinha depois
de fechada a confeitaria, ela quebra o nosso silêncio amistoso fazendo uma
pergunta.
– Então tu, tipo, namoras com o Matt Hines ou assim? – pergunta.
Abano vigorosamente a cabeça.
– Não. De todo.
A Annie parece cética.
– Acho que ele não pensa o mesmo.
– Porque dizes isso?
– A forma como olha para ti – diz. – E fala contigo. Tudo muito, tipo,
possessivo. Como se fosses namorada dele.
Reviro os olhos.
– Bom, ele vai perceber de certeza que não sou.
– Porque é que nunca, tipo, namoras? – pergunta a Annie após uma
pausa; pela forma como fita o lava-louça em vez de olhar para mim, fico
com a sensação de que a conversa a deixa desconfortável. Pergunto-me
porque a terá iniciado.
– O teu pai e eu não nos divorciámos há muito tempo – respondo,
segundos depois.
A Annie lança-me um olhar estranho.
– E então, queres voltar para o pai ou assim?
– Não! – digo de imediato, com grande convicção. – Não. Só não
esperava ficar solteira novamente. Além disso, neste momento, tu és a
minha prioridade, Annie. – Faço uma pausa e pergunto: – Porquê?
– Por nada – apressa-se a dizer a Annie. Permanece depois em silêncio
alguns instantes. Conheço-a o suficiente para saber que, se eu não insistir,
ela acaba por dizer o que pensa. Ou, pelo menos, uma versão aproximada
do que pensa. – É estranho, apenas isso.
– O que é estranho?
– Que não tenhas namorado ou assim.
– Não me parece estranho, Annie – discordo. – Nem todas as pessoas
têm de estar comprometidas. – Não quero que a Annie se transforme, mais
tarde, numa daquelas raparigas que se sentem incompletas sem uma
relação. Não me ocorreu, até este momento, que ela podia estar perdida em
pensamentos deste tipo.
– O pai tem uma relação – murmura. Fita novamente o lava-louça, e eu
não consigo perceber o que me magoa mais nas suas palavras: a perceção
súbita de que o Rob me esqueceu muito rapidamente ou o facto de isso
incomodar claramente a Annie. De qualquer modo, sinto que levei um
murro no estômago.
– Tem? – pergunto com a serenidade possível. – E o que pensas sobre
isso?
– Não me importo.
Não intervenho, aguardando apenas que continue. Ela quebra
novamente o silêncio.
– Ela está sempre presente, sabes? A namorada dele. Ou lá o que é.
– Nunca me falaste sobre ela.
– Pensei que isso te faria sentir mal – murmura a Annie, encolhendo os
ombros.
Pestanejo algumas vezes.
– Não tens de te preocupar com isso, Annie. Podes contar-me o que
quiseres.
Ela assente, mas eu noto que me observa, receosa. Finjo estar
concentrada na louça.
– Como se chama? – pergunto descontraidamente.
– Sunshine – murmura.
– Sunshine? – interrompo o que estou a fazer e arregalo os olhos. – O
teu pai tem uma relação com uma mulher chamada Sunshine1?
Pela primeira vez, a Annie deixa fugir um sorriso.
– É um nome bastante idiota – concorda. Eu solto um grunhido e volto
ao tabuleiro que estou a lavar.
– E tu gostas dela? – pergunto, após uma pausa.
A Annie encolhe os ombros. Fecha a torneira, pega num pano e começa
a limpar uma tigela de aço inoxidável.
– Acho que sim – diz.
– Ela é simpática contigo? – insisto, convicta de que me está a escapar
alguma coisa.
– Acho que sim – repete. – Seja como for, ainda bem que não tens
namorado, mãe.
Aquiesço e tento introduzir algum humor.
– Pois, os homens disponíveis não fazem propriamente fila à minha
porta.
A Annie parece confusa, como se não tivesse entendido a minha
provocação autodepreciativa.
– De qualquer forma – diz –, estávamos melhor quando éramos uma
família. Sem estranhos.
Resisto à tentação de concordar, pois seria uma atitude egoísta. Devo
fazer sempre o mais correto, não é? E o mais correto, neste momento, é
ajudá-la a entender que, mais cedo ou mais tarde, o pai e eu temos de seguir
em frente.
– Podemos continuar a ser uma família, Annie – afirmo. – A
circunstância de o teu pai ter uma namorada não muda o que ele sente por
ti.
A Annie olha-me com indiferença.
– Tanto faz.
– Querida, o teu pai e eu amamos-te muito – asseguro. – Isso nunca
mudará.
– Tanto faz – repete. Coloca a tigela no escorredor. – Posso ir agora?
Tenho muitos trabalhos de casa para fazer.
Aceno lentamente com a cabeça e vejo-a tirar o avental e pendurá-lo
cuidadosamente no cabide junto ao frigorífico maior.
– Querida? – arrisco. – Estás bem?
Ela assente, pega na mochila e atravessa a cozinha para me dar um beijo
esquivo e inesperado no rosto.
– Adoro-te, mãe – diz.
– Eu também te adoro, querida. Estás bem, de certeza?
– Sim, mãe. – O tom enfadado está de volta, e ela revira os olhos. Sai da
cozinha sem me deixar dizer mais nada.

Visito a Mamie à noite, logo após o fecho da confeitaria. Durante a


viagem, invadem-me sensações de agitação, melancolia e pavor que não
consigo entender totalmente. No espaço de um ano, tornei-me numa mulher
divorciada e proprietária de uma confeitaria e que é odiada pela filha.
Agora, existe também a possibilidade de ser judia. Sinto-me como se já não
soubesse quem sou.
A minha avó está sentada junto à janela da sala, a olhar para leste, e eu
entro sem avisar.
– Oh, querida – diz, virando-se na cadeira. – Não te ouvi bater à porta!
– Olá, Mamie – digo. Atravesso a sala, beijo-a no rosto e sento-me a seu
lado. – Sabes quem sou? – pergunto, hesitante, pois todo o nosso diálogo
vai depender do seu grau de lucidez.
– Claro, querida – declara, pestanejando. – És a minha neta. A Hope.
– Exatamente – confirmo, aliviada.
– Que pergunta tonta – censura.
Respiro fundo.
– Tens razão. Que pergunta tonta.
– E como estás, minha querida? – pergunta.
– Estou bem, obrigada – digo. Faço uma pausa, procurando a melhor
forma de averiguar o que preciso de saber. – Estava só a pensar no que me
disseste naquela noite e tenho algumas perguntas para te fazer.
– Aquela noite? – questiona a Mamie. Inclina a cabeça para o lado e
olha-me fixamente.
– A respeito da tua família – digo delicadamente.
Entrevejo um brilho vacilante nos seus olhos, e os seus dedos
ligeiramente deformados movem-se subitamente, remexendo as borlas das
extremidades do seu cachecol.
– Na praia, naquela noite – continuo.
– Não fomos à praia. Estamos no outono – corrige, encarando-me.
Faço uma pausa antes de responder.
– Pediste-nos, à Annie e a mim, para te levarmos. Contaste-nos algumas
coisas.
A Mamie parece ainda mais confusa.
– Annie?
– A minha filha – recordo. – Tua bisneta.
– Claro que sei quem é a Annie! – dispara, desviando o olhar.
– Tenho de te perguntar uma coisa, Mamie – digo, alguns segundos
depois. – É muito importante.
Ela volta a olhar pela janela, e eu convenço-me de que não me ouviu.
Contudo, acaba por me dar uma resposta lacónica.
– Sim.
– Mamie – digo lentamente, articulando cada sílaba para que não haja
mal-entendidos. – Preciso de saber se és judia.
Ela volta-se tão abruptamente para mim que recuo na cadeira,
sobressaltada. O seu olhar fulmina-me e ela abana a cabeça violentamente.
– Quem te disse tal coisa? – pergunta com uma voz aguda e frágil.
É com surpresa que sinto o meu coração apertar-se ligeiramente.
Percebo agora que, por muita dificuldade que tenha em acreditar na teoria
do Gavin, não a posso pôr de parte.
– N-ninguém – digo. – Pensei apenas…
– Se eu fosse judia, teria de usar a estrela – prossegue a minha avó,
exasperada. – É o que diz a lei. Não vês aqui a estrela amarela, pois não?
Não faças acusações que não possas provar. Vou para os Estados Unidos
para visitar o meu tio.
Olho-a com atenção. O seu rosto está ruborizado e os seus olhos lançam
fogo.
– Mamie, sou eu – digo suavemente. – A Hope.
Contudo, ela parece não me ouvir.
– Se continuar a importunar-me, vou denunciá-la – diz. – Estou sozinha,
mas isso não lhe dá o direito de se aproveitar de mim.
Abano a cabeça.
– Não, Mamie, eu nunca…
Ela interrompe-me.
– Agora, se me dá licença… – Observo-a, boquiaberta, levantar-se com
surpreendente agilidade e caminhar diligentemente para o quarto. Fecha a
porta com estrondo.
Levanto-me e começo a segui-la, mas acabo por ficar paralisada. Não
sei o que dizer nem fazer. Sinto-me mal por tê-la perturbado. A violência da
sua resposta confunde-me.
Momentos depois, bato tenuemente à sua porta. Consigo ouvi-la
levantar-se da cama e escuto ainda o queixume das molas do seu velho
colchão. Ela abre a porta e sorri.
– Olá, querida – diz. – Não te ouvi chegar. Peço desculpa. Estava só a
corrigir o bâton .
De facto, tem uma nova camada cor de vinho nos lábios. Fito-a durante
alguns segundos.
– Sentes-te bem? – pergunto, hesitante.
– Claro, querida – responde animadamente.
Respiro fundo. Parece não se lembrar, de todo, da explosão que teve
momentos antes. Desta vez, agarro-lhe as mãos. Preciso de uma resposta.
– Mamie, olha para mim – digo. – Sou a tua neta, Hope. Lembras-te?
– Claro que sim. Não digas tolices.
Aperto-lhe as mãos com firmeza.
– Ouve, Mamie, não te vou magoar. Gosto mesmo muito de ti. Mas
preciso de saber se a tua família é judia.
Os seus olhos fulminam-me novamente mas, desta vez, mostro-me
irredutível e não a deixo desviar o olhar.
– Mamie, sou eu – digo. Sinto-a cerrar os punhos sob as minhas mãos. –
Não te vou fazer mal. Mas preciso de uma resposta.
Ela observa-me por instantes e, em seguida, afasta-se. Sigo-a enquanto
caminha ansiosamente para junto da janela da sala. Quando começo a
pensar que se esqueceu da pergunta, ela fala, por fim, numa voz tão suave
como um murmúrio.
– Deus está em toda a parte, querida – declara. – Não o conseguirás
definir em nenhuma religião. Não sabes isso?
Coloco a mão nas suas costas e encoraja-me perceber que ela não se
retrai. Olha fixamente o céu, enquanto o azul se esbate no mar ao longo do
horizonte.
– Independentemente do que pensarmos sobre Deus – continua, no
mesmo tom suave, sereno –, todos vivemos debaixo deste mesmo céu.
– Os nomes que me deste, Mamie – digo hesitante e delicadamente. –
Os Picard. Eram a tua família? Desapareceram na Segunda Guerra
Mundial?
Ela não responde. Continua a olhar pela janela. Após um momento,
insisto.
– Mamie, a tua família era judia? Tu és judia?
– Sim, claro – diz. A rapidez da resposta sobressalta-me a tal ponto que
dou um passo atrás.
– És?
Ela acena afirmativamente. Por fim, volta-se e olha para mim.
– Sim, sou judia – diz. – Mas também católica. – Faz uma pausa e
acrescenta: – E muçulmana. – Sinto o meu coração apertar-se. Por
momentos, julguei-a lúcida.
– Mamie, o que queres dizer com isso? – pergunto, procurando manter a
voz firme. – Não és muçulmana.
– É tudo igual, não é? São os homens que criam as diferenças. Isso não
significa que o Deus não seja o mesmo. – Volta a olhar pela janela. – A
estrela – murmura, pouco depois, incitando-me a seguir o seu olhar até ao
primeiro ponto de luz que coexiste com o pôr do sol. Observo-o com ela por
momentos, tentando ver o mesmo que ela, tentando compreender o que a
faz sentar-se junto a esta janela, todas as noites, em busca de alguma coisa
que parece nunca encontrar. Bastante tempo depois, volta-se para mim e
sorri.
– A minha filha Josephine virá visitar-me em breve – diz. – Devia
conhecê-la. Iria gostar dela.
Abano a cabeça e baixo o olhar. Decido não lhe dizer que a minha mãe
morreu há muito tempo.
– Imagino que sim – murmuro.
– Creio que vou descansar – diz. Observa-me sem exibir o mais
pequeno sinal de reconhecimento. – Obrigada por ter vindo. Foi uma visita
muito agradável. Eu acompanho-a até à saída.
– Mamie… – tento.
– Não, não – responde. – A minha Mamie não vive aqui. Vive em Paris.
Junto à Torre Eiffel. Mas eu transmito-lhe os seus cumprimentos.
Preparo-me para retorquir, mas não sou capaz de articular as palavras. A
Mamie conduz-me até à porta. Depois de eu sair, quando a porta está quase
fechada, ela volta a abri-la repentinamente, fitando-me com uma expressão
carregada.
– Tens de ir a Paris, Hope – diz solenemente. – Tens mesmo. Estou
muito cansada e está quase na hora de me deitar. – Em seguida, fecha a
porta, deixando-me a olhar para uma paleta incaracterística de azuis-claros.
Ali permaneço longos minutos, atordoada, sem me aperceber sequer de
que a enfermeira, Karen, se aproxima de mim.
– Miss McKenna-Smith? – chama.
Dirijo-lhe um olhar inexpressivo.
– Sente-se bem, minha senhora? – pergunta.
Aceno lentamente com a cabeça.
– Penso que vou a Paris.
– Bom… isso é uma boa notícia – diz Karen, hesitante. Está claramente
convencida de que eu perdi o juízo, e é impossível censurá-la por isso. –
E… quando parte?
– O mais depressa possível – respondo. Abro depois um sorriso. –
Tenho de ir.
– Muito bem – diz, ainda um tanto desorientada.
– Vou a Paris – repito para mim mesma.

1 Luz do sol ou, em sentido figurado, alegria, felicidade.


Capítulo 10

Biscoitos de Cape Cod

Ingredientes
1 quarta de manteiga amolecida (114 g)
2 chávenas cheias de açúcar mascavado
2 ovos grandes
1/2 colher de chá de extrato de baunilha
2 colheres de sopa de natas
3 chávenas de farinha
2 colheres de chá de fermento em pó
1/2 colher de chá de sal
1 chávena de arandos secos
1 chávena de pepitas de chocolate branco

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C.
2. Numa tigela grande, utilizando uma batedeira, misture a
manteiga e o açúcar mascavado, até obter uma massa
cremosa. Introduza os ovos, a baunilha e as natas,
continuando a bater.
3. Peneire a farinha, o fermento e o sal adicionando à mistura da
manteiga, uma chávena de cada vez. Bata até ter os
ingredientes bem misturados.
4. Adicione os arandos e as pepitas de chocolate. Mexa para os
distribuir uniformemente.
5. Utilizando uma colher de chá, coloque pequenas porções da
massa num tabuleiro, deixando espaço livre para
aumentarem de tamanho. Mantenha os biscoitos no forno
durante dez a treze minutos. Deixe-os arrefecer durante cinco
minutos no tabuleiro e, em seguida, passe-os para uma
grelha metálica.

QUANTIDADES SUFICIENTES PARA APROX. CINQUENTA BISCOITOS

Rose

Naquele fim de tarde, o pôr do sol foi mais luminoso do que o


habitual e, enquanto Rose observava o horizonte, a leste, pensava em
como a luz fulgurante do céu era uma das mais maravilhosas ideias de
Deus. Recordava-se, com uma clareza que a surpreendia, de estar
sentada à janela do apartamento da sua família, na rue du Général
Camou, fitando o pôr do sol, a oeste, sobre o Champ-de-Mars. Sempre
pensara que ver o sol esconder-se lentamente era a mais bela
combinação da magia de Deus com a magia do Homem; um magnífico
espetáculo de luzes em torno de uma torre de aço resplandecente e
misteriosa. Imaginava frequentemente que era uma princesa num
castelo e que esta luz se destinava apenas a ela. Tinha a certeza de que
aquela era a melhor janela da cidade, porventura com a melhor vista
do mundo.
Porém, tudo isto se passou quando ela conservava ainda um enorme
orgulho no seu país, orgulho em ser parisiense. A Torre Eiffel
representava um símbolo de tudo o que conferia grandeza à cidade que
amava.
Mais tarde, viria a odiar o que Paris simbolizava. Era assombroso
pensar em como o amor e o orgulho se podiam transformar num
sentimento sombrio e inelutável.
Rose observava o céu de Cape Cod, primeiro pintado de cor de
fogo, depois de cor-de-rosa e, finalmente, de um azul luminoso que a
fazia sentir-se em casa, mesmo tão distante do local onde iniciara a
história da sua vida. Embora o pôr do sol propriamente dito tivesse um
aspeto diferente do de Paris – pelas particularidades da atmosfera,
supunha –, o crepúsculo profundo e azul-celeste era totalmente idêntico
ao de há tantos anos. Confortava-a saber que, no mundo, tudo o resto
podia mudar, mas o epílogo do espetáculo de luzes proporcionado por
Deus permanecia eternamente inalterado.
Rose tinha a sensação, quando olhava pela janela, de que estava
para acontecer algo importante. Não conseguia, porém, situar esse
acontecimento. Sentia que alguém lhe tinha dito uma coisa vital. Mas
quem seria? E quando o disse? Não se recordava de ter recebido
visitas.
A campainha tocou, interrompendo a sua confusão de ideias, e,
depois de observar pela última vez, hesitante, a estrela polar acima do
horizonte, encaminhou-se lentamente para a porta do apartamento.
Perguntava-se quando teria o seu corpo começado a traí-la; lembrava-
se de se movimentar de cabeça levantada, leve como o ar, elegante como
uma brisa. Parecia ter sido ontem. Agora, sentia o seu corpo como um
saco de ossos que tinha de arrastar, com esforço, para onde quer que
fosse.
Abrindo a porta, deparou-se com a enfermeira simpática, aquela
cujo nome não conseguia, de todo, recordar. Mas Rose sabia que o seu
rosto transmitia confiança.
– Olá, Rose – disse a enfermeira, numa voz delicada que fez
lembrar a Rose que, ali, as pessoas tinham pena dela. Ela não queria a
compaixão de ninguém. Não a merecia. – Vai descer para jantar? As
outras três senhoras da sua mesa têm saudades suas na sala de jantar.
Rose sabia que não era verdade. E não conseguia, por nada deste
mundo, recordar os nomes, ou mesmo os rostos, das três mulheres com
quem tomava três refeições por dia.
– Não, vou ficar aqui – disse Rose à enfermeira. – Obrigada.
– E se eu lhe trouxer um tabuleiro ao quarto? – perguntou a
enfermeira. – Hoje temos rolo de carne.
– Sim, agradeço – disse Rose.
A enfermeira hesitou.
– Diga-me, teve hoje uma visita da sua neta?
Rose procurou lembrar-se.
– Ah, tive, de facto. – apressou-se a responder, pois a enfermeira
parecia ter a certeza e Rose, naturalmente, não queria que alguém
pensasse que estava a perder a memória. A enfermeira pareceu
encorajada pela resposta de Rose e esta, por um momento, sentiu-se um
pouco culpada pelo seu truque.
– Que bom – disse a enfermeira. – Tem vindo mais vezes
ultimamente. Isso é ótimo.
– Sim, claro – replicou Rose, procurando lembrar-se da última
visita da neta. Supunha que a enfermeira não tinha qualquer motivo
para lhe mentir e sentiu uma angústia súbita e imprevista por não
conseguir recordar as visitas. Adoraria ter memórias de uma visita de
Hope.
A enfermeira tocou-lhe ao de leve no ombro e disse, com a mesma
voz delicada:
– Parece que ela vai fazer uma viagem emocionante.
– Uma viagem? – perguntou Mamie.
– Ah, sim, ela não lhe contou? – quis saber a enfermeira, mais
animada. – Vai a Paris.
E de repente Rose lembrou-se. A visita de Hope. A perplexidade de
Annie quando Rose entregou a Hope a lista de nomes no início da
semana. A preocupação gravada no rosto de Hope naquela mesma
tarde. Fechou os olhos por um momento, aturdida com todas estas
revelações, até ouvir a voz da enfermeira, distante, a chamá-la de volta
à realidade.
– Rose? Mrs. McKenna? Sente-se bem?
Rose abriu os olhos com dificuldade e simulou um sorriso. Ao longo
dos anos, tornara-se exímia em fingir-se contente. É um talento terrível,
pensou.
– Peço desculpa – disse Rose. – Estava apenas a pensar na minha
neta e na sua viagem.
A enfermeira pareceu aliviada. Rose sabia que a verdadeira
explicação – o facto de a sua mente ter regressado subitamente a 1942 –
assustaria aquela mulher, cujos olhos afáveis revelavam que nunca
tivera de suportar uma daquelas perdas que estilhaçam para sempre a
nossa alma. Rose reconhecia essas perdas noutras pessoas porque as
encontrava nos seus próprios olhos sempre que se via ao espelho.
A enfermeira deixou-a para ir preparar um tabuleiro e Rose fechou
a porta e caminhou, meio perdida, até à janela. Fitou o céu a leste,
polvilhado de estrelas crepusculares, mas notou que o céu se afigurava
agora diferente. Para lá da escuridão do horizonte, do outro lado do
vasto oceano, algures a oriente, ficava Paris, a cidade onde tudo
começou, a cidade onde tudo terminaria. Rose nunca regressaria à
cidade mas sabia que, para ficar em paz com o seu passado, era preciso
que Hope fizesse aquela viagem.
Rose sabia ainda que o final estava próximo. Sentia-o no corpo, tal
como sentira, naquele verão de 1942, que eles estavam próximos.
Quando chegara à costa norte-americana no final desse ano, navegando
até Nova Iorque sob o olhar da Estátua da Liberdade, prometera a si
mesma esquecer para sempre o passado. Porém, com a doença de
Alzheimer a consumir-lhe o cérebro, baralhando a sua noção do tempo,
o passado voltara em força, sem convite.
No lar, quando acordava de manhã, Rose não conseguia agarrar o
presente. Certos dias, acordava novamente em 1936, ou 1940, ou 1942.
Tudo era tão claro como se tivesse acabado de acontecer e, em
momentos raros, parados no tempo, parecia ver a vida à sua frente e
não atrás. Imaginava-se a guardar esses momentos na bonita caixa de
joias que a sua mamie lhe tinha oferecido no seu décimo terceiro
aniversário, fechando-a e atirando a chave para as profundezas
intermináveis do Sena.
Contudo, agora que o presente era indistinto e irregular, parecia
que aquela bonita caixa, repleta de memórias, fechada há já quase
setenta anos, continha os únicos momentos de clarividência que Rose
conseguira viver. Interrogava-se, por vezes, se o esquecimento
intencional teria, na verdade, conservado as memórias totalmente
intactas, da mesma forma que a preservação de um documento num
local estanque e escuro o podem impedir de se desagregar.
Para sua surpresa, Rose percebeu que encontrava tranquilidade nos
momentos de que se escondera durante tantos anos. Regressar por
instantes ao passado era como assistir, em câmara lenta, a um filme
sobre a vida que sabia ter de deixar em breve. E, graças aos espaços
vazios entre as suas memórias, conseguia, por vezes, deliciar-se com o
passado sem sentir de imediato o violento golpe do seu inevitável
desfecho.
Adorava ver a sua mãe, o seu pai, as suas irmãs e os seus irmãos
nessas curtas viagens ao passado. Adorava sentir a mão da sua mamie
envolver a sua; adorava ouvir o riso agudo da sua irmã mais nova;
adorava inspirar o doce aroma do forno na confeitaria dos seus pais.
Agora, vivia na expectativa dos dias em que podia recuar por
momentos no tempo e ver aqueles que jurara nunca mais mencionar.
Era aí que o seu coração permanecia; tinha abandonado tudo, naquela
praia de um país estrangeiro, muito tempo antes.
Sabia agora, sentindo acercar-se o seu próprio crepúsculo, que fora
um erro empenhar-se tanto em esquecer aquele tempo, pois ele era a
chave da sua identidade. Percebeu-o demasiado tarde. Deixara tudo
para trás naquele passado terrível e belo que acabaria fechado para
sempre.
Capítulo 11

No regresso a casa, conduzo em silêncio, dando voltas à cabeça. Vou a


Paris.
No semáforo da Main Street, pego no telemóvel e, sem me conseguir
conter, marco o número do Gavin.
Deixo-o tocar uma vez, mas acabo por sentir que a chamada não faz
sentido. Desligo rapidamente. Porque quereria o Gavin saber que vou para
Paris? Ajudou-me bastante, mas é pretensioso achar que os meus planos lhe
dizem alguma coisa.
O semáforo fica verde e, quando carrego no acelerador, o telefone toca,
assustando-me. Olho para o ecrã e sinto-me corar quando leio o nome do
Gavin Keyes.
– Estou?… – digo timidamente.
– Hope? – A sua voz é profunda e calorosa. Irrito-me comigo mesma
por me sentir imediatamente mais tranquila.
– Sim… Olá.
– Telefonaste-me agora mesmo?
– Não era nada. – Sinto-me ainda mais corada. – Nem sei porque
telefonei – murmuro.
Ele permanece em silêncio por momentos.
– Foste visitar a tua avó?
– Como é que sabes?
– Não sabia. – Faz uma pausa e acrescenta: – Vais a Paris?
– Creio que sim – respondo em voz baixa.
– Ótimo – diz de imediato, como se já soubesse a resposta. – Ouve, se
precisares de alguém para te ajudar a manter a confeitaria aberta durante a
tua ausência…
Corto-lhe a palavra.
– Gavin, és muito simpático, mas isso nunca funcionaria.
– Porque não?
– Bom, por um lado, nunca geriste uma confeitaria, pois não?
– Aprendo depressa.
Sorrio ligeiramente.
– Além disso, tens o teu trabalho.
– Posso perfeitamente tirar alguns dias. Se houver reparações urgentes,
posso sempre fazê-las depois da hora de fecho da confeitaria.
Não estou habituada a que as pessoas se preocupem comigo, que me
ajudem. Sinto-me embaraçada e não sei exatamente como responder.
– Obrigada – acabo por dizer. – Mas nunca te poderia pedir que o
fizesses.
– Hope, sentes-te bem? – pergunta o Gavin.
– Sim – digo, quase certa de que estou a mentir.

Uma semana depois, questionando a minha sanidade mental pelo que


estou prestes a fazer, embarco num voo da Aer Lingus, de Boston para
Paris, via Dublin, o mais económico que encontrei tão em cima da hora.
A Annie ficara tão entusiasmada com a minha decisão que nem me
importunou por ter de passar mais uns dias em casa do pai. Pediu-me para
viajar comigo, naturalmente, mas mostrou-se compreensiva quando lhe
disse que apenas podia comprar um bilhete.
– Além disso, a Mamie só te pediu a ti – murmurou, fitando os pés.
– Porque precisa que fiques com ela – disse -lhe.
Decidi partir num sábado à noite para ter de fechar a confeitaria apenas
três dias; de qualquer modo, segunda-feira é sempre o dia de descanso.
Ainda assim, parece-me uma eternidade, sobretudo tendo em conta a
tempestade financeira que se avizinha. Não sei se e quando os investidores
vão examinar a confeitaria, pois não conversei com o Matt desde que
recusei a sua proposta de empréstimo. Sei que o magoei, mas não posso
enfrentar esse problema agora. É possível que esteja a cometer um erro
enorme, mas sei que não podia dizer não a esta viagem.
Temos duas encomendas para tratar durante a minha ausência – ambas
encomendas regulares de dois hotéis junto à praia – e eu, a contragosto,
aceitei a oferta do Gavin, que se disponibilizou para fazer as entregas de
carro com a Annie. Levariam muffins que eu confecionei previamente e
depois congelei. Na segunda-feira, ela teria de os descongelar antes de ir
para a escola, de manhã, e, após as aulas, o Gavin faria as entregas com ela
e levá-la-ia a casa do Rob.
Onze horas depois da partida de Boston, e após a ligação em Dublin,
olho pela janela enquanto atravessamos o manto de nuvens que cobre o céu
de Paris e descemos em direção à cidade. Não vislumbro os locais
emblemáticos – suponho que os verei em terra daqui a nada –, mas vejo a
faixa cor de safira do rio Sena, a serpentear no solo, bem como as parcelas
alternadas de terreno, ora com relva verde, ora com árvores de folhas
rubras, que se estendem pela paisagem rural a caminho da zona urbana.
Esta foi em tempos a cidade da Mamie, penso, quando estamos prestes a
aterrar. Deve ter sido muito estranho abandonar tudo isto e nunca mais
regressar.
Depois de aterrar, percorro rapidamente os corredores tubulares em
vidro do Charles de Gaulle, passo pela alfândega e aguardo na fila um táxi,
apercebendo-me, surpreendida, de que, em França, os táxis são, na sua
maioria, carros de luxo. Aguardo a minha vez, entro num Mercedes e
entrego ao taxista a morada do hotel que escolhi no Travelocity. Não confio
o suficiente no meu francês para pronunciar as instruções em voz alta.
Demoramos trinta minutos a percorrer uma série de subúrbios
industriais a caminho da periferia de Paris. Atravessamos um enorme
complexo desportivo e eu recordo-me subitamente do que lera na Internet
sobre a rusga em grande escala de 1942, na qual milhares de judeus foram
reunidos num estádio e depois deportados para campos de concentração.
Duvido que seja este o estádio – parece demasiado moderno –, mas essa
imagem sombria permanece comigo, enquanto o taxista serpenteia
habilmente por entre o trânsito, e de repente vira à esquerda, a uma
velocidade aflitiva, para a rue de la Verrerie, travando bruscamente em
frente de um edifício branco com letras grandes e simples, que o
identificam como o Hôtel aux Mille Étoiles. Ergo os olhos para as varandas
de ferro forjado que circundam as portas envidraçadas no segundo andar e
sorrio. De algum modo, Paris é exatamente como a imaginei. Tenho sempre
a sensação de que, pelo menos nesta zona, não mudou muito no último
século. Pergunto-me, pois, se a Mamie alguma vez caminhou junto a este
prédio, se se maravilhou com as mesmas varandas, desejou poder ver
através das cortinas delicadas que adornam as mesmas portas envidraçadas.
É estranho para mim imaginá-la aqui, como uma criança não muito mais
velha do que a Annie.
Uma vez chegada ao quarto do hotel, tomo um duche rápido, visto
rapidamente umas calças de ganga e uma camisola e calço um par de botas.
Munida de indicações facultadas pelo porteiro, caminho alguns quarteirões
até à rue Geoffroy l’Asnier, onde sei poder encontrar o Mémorial de la
Shoah.
Apercebo-me de que Paris é, em outubro, uma cidade fresca e bela.
Nunca a visitei noutros meses, naturalmente, mas as ruas parecem-me
silenciosas e calmas. Fascina-me a forma como o antigo se mistura com o
moderno; em algumas esquinas, os pavimentos em pedra coexistem com o
cimento e, noutras, as lojas de produtos eletrónicos ou de alta-costura
ocupam edifícios que parecem ter centenas de anos. Tendo passado a maior
parte da minha vida no Massachusetts, reconheço esta intimidade natural
entre a história e a vida moderna, mas aqui a sensação é diferente,
porventura porque a história é muito mais antiga ou está mais presente.
Enquanto caminho, sinto o aroma da cozedura do pão e da mudança das
folhas no outono, mas também um ligeiro odor a lenha queimada. Inspiro
fundo, pois é uma combinação a que não estou habituada. As pequenas
portas abobadadas, as bicicletas apoiadas em muros de pedra e os portões
de jardins quase escondidos recordam-me que estou num lugar estranho,
mas há algo em Paris que me parece muito familiar. Interrogo-me pela
primeira vez se o sentimento de pertença acompanha os laços de sangue.
Rejeito a ideia, mas, apesar das ruas desconhecidas e sinuosas, encontro
com facilidade o Museu do Holocausto.
Depois de passar por um detetor de metais à entrada do edifício austero,
sombrio, atravesso um pátio em cimento, ao ar livre, passo junto a um
monumento com os nomes dos campos de concentração nazis encimados
por uma estrela-de-david de metal, e entro no museu através das portas que
se erguem mais à frente. No balcão de atendimento, a funcionária fala,
felizmente, inglês e sugere que eu tente primeiro os computadores do outro
lado da sala, a primeira paragem de qualquer visitante que procure
familiares. Encontro nos computadores, como previa, as mesmas
informações que recolhera na Internet: os nomes da lista da minha avó, com
exceção do de Alain.
Insisto junto da funcionária, explicando que procuro uma pessoa cujo
nome não consta dos registos e necessito de informações sobre o que
realmente aconteceu às pessoas cujos nomes encontrei. Ela assente e indica-
me o elevador, ao fundo da galeria.
– Suba até ao quarto andar – diz. – Encontrará uma sala de leitura. Peça
ajuda à minha colega.
Aceno afirmativamente, agradeço-lhe, e sigo as suas indicações.
A sala de leitura inclui computadores e mesas compridas no primeiro
nível e fileiras de livros e arquivos no segundo nível, sob um teto alto e
envidraçado que irradia claridade. Aproximo-me do balcão, onde uma
mulher me saúda em francês mas responde em inglês quando lhe pergunto:
– Importa-se de me ajudar a procurar algumas pessoas?
– Claro que não, minha senhora – afirma. – Em que lhe posso ser útil?
Mostro-lhe os nomes da lista da Mamie, bem como os anos de
nascimento, e explico que não consigo localizar Alain Picard. Ela assente e
desaparece durante alguns minutos. Regressa com várias páginas de
diferentes registos.
– Eis tudo o que temos sobre estas pessoas – diz. – Como referiu, não
conseguimos encontrar o Alain que procura em nenhuma lista de pessoas
deportadas.
– O que pode isso significar? – pergunto.
– Pode haver várias justificações. Por muito completos que sejam os
nossos dados, existem algumas pessoas que não foram devidamente
registadas, sobretudo crianças. Perderam-se no caos.
Entrega-me os documentos de que dispõe, e eu sento-me para os
examinar. Nos primeiros minutos, tento ler as anotações, algumas
datilografadas, mas sempre em francês. Os meus olhos arregalam-se quando
chego ao terceiro documento que ela me deu, uma página de um
recenseamento.
Ali, numa lista carimbada com a palavra recensement, surge uma
listagem de 1936, escrita numa caligrafia inclinada, relativa à família
Picard, de Paris, que inclui uma filha, Rose, nascida em 1925.
Embora estivesse empenhada em descobrir o destino dos nomes da lista
da Mamie e começasse a acreditar que se tratava, de facto, da sua família,
só caio verdadeiramente em mim quando vejo o primeiro nome da minha
avó e o ano do seu nascimento escrevinhados a tinta permanente.
O meu coração bate velozmente enquanto examino a página.
Leio os escassos pormenores. O documento indica, tal como as
informações sobre deportações que encontrei na Internet, que o possível pai
da Mamie, Albert, era médico. Junto ao nome da sua femme, Cécile, lê-se
sans profession. Ela permaneceria certamente em casa, com os filhos. Os
fils e as filles, incluindo Rose, constam todos da lista, à exceção de
Danielle, a mais jovem, nascida apenas em 1937, um ano após o
recenseamento. O nome Alain também surge na lista. Era tão real como
todos os outros.
Estudo todos os documentos, mas o processo é demorado: lacrimejo
constantemente e tenho de consultar com muita frequência o dicionário
francês-inglês que trouxe comigo. No final, não estou mais próxima de
descobrir o que aconteceu ao Alain nem de perceber o que se seguiu à
deportação da família. Nenhuma das cópias dos documentos relativos às
deportações tem anotações adicionais. O último registo da família completa
– com exceção de Rose e Alain, que não constam destas cópias – indica que
todos os seus membros foram deportados em comboios com destino a
Auschwitz.
Devolvo os documentos à funcionária que me ajudara pouco antes. Ela
ergue o olhar e sorri.
– Encontrou o que pretendia?
Confirmo com um aceno e os meus olhos enchem-se de lágrimas.
– Penso que é a família da minha avó – digo em voz branda. – Mas não
sei o que lhes aconteceu após a deportação.
Ela assume uma expressão solene.
– Dos setenta e seis mil detidos em França, apenas dois mil
sobreviveram. É muito provável que tenham morrido, madame. Lamento
muito.
Agradeço com um gesto e, quando respiro fundo, percebo que estou a
tremer.
– Encontrou o nome que procurava? – pergunta, alguns segundos
depois.
Abano a cabeça.
– Apenas o formulário do recenseamento. Não existe qualquer registo
de detenção ou deportação de Alain Picard.
Ela morde os lábios por um instante.
– Alors. Há outra pessoa que talvez consiga ajudá-la. É investigadora
aqui e fala um pouco de inglês. Vou verificar se está disponível.
Após algumas breves conversas ao telefone, em francês, indica-me que
Carole, do departamento de investigação, me receberá dentro de trinta
minutos. Sugere que eu aguarde no museu propriamente dito, onde posso
percorrer a exposição permanente.
Desço as escadas até chegar à sala da exposição, quase deserta, e
surpreendo-me, desde logo, com o número de fotografias e documentos
alinhados num espaço comprido e estreito. No centro da sala, um ecrã
gigante apresenta um filme em francês e, enquanto ouço a voz do narrador a
falar, presumivelmente, sobre o Holocausto, encaminho-me para a primeira
parede à esquerda e sinto-me encorajada pelo facto de todas as legendas da
exposição estarem disponíveis em inglês e em francês. Na outra
extremidade da sala, existe uma imagem sinistra de uma linha férrea sem
destino visível projetada numa grande parede branca, e eu recordo-me do
sonho que tive logo depois da Mamie me ter entregado a lista.
Durante meia hora, permaneço absorta na leitura de sucessivos
testemunhos sobre o início da guerra, a perda de direitos dos judeus em
França e em toda a Europa e as primeiras deportações para fora do país.
Tudo isto, além de ter tido lugar depois do nascimento da minha avó,
pode muito bem ter acontecido às pessoas que ela mais amava no mundo.
Fecho os olhos e apercebo-me de que estou ofegante. O meu coração
continua a bater descontroladamente quando ouço a voz de uma mulher à
minha frente.
– Madame McKenna-Smith?
Abro os olhos de imediato. Trata-se de uma mulher sensivelmente da
minha idade, com cabelo castanho apanhado num rolo e olhos azuis
rodeados de rugas de expressão. Veste calças de ganga e uma blusa branca.
– Sim, sou eu – digo, apressando-me a acrescentar: – Peço desculpa,
queria dizer oui, madame.
Ela sorri.
– Não tem importância. Falo um pouco de inglês. Chamo-me Carole
Didot. Não se importa de vir comigo?
Sigo-a por entre o resto da exposição, onde passamos velozmente por
outra série de vídeos e por mais paredes cobertas de documentos e
informações. Continuo a segui-la por um corredor repleto de fotografias de
crianças que parece não ter fim.
Paro e leio uma das legendas colocadas ao nível dos olhos.
Rachel Fournier, 1937-1942. Na fotografia, uma menina de cabelo
escuro, preso em duas tranças com fitas, tem um sorriso rasgado. Abraça
uma grande bola de borracha e sorri diretamente para a câmara.
– São crianças francesas que perderam a vida – diz Carole, em voz
baixa.
– Meu Deus – murmuro. Este corredor fere-me mais do que as
fotografias arrepiantes de morte que vi na outra sala. Enquanto fito,
aturdida, as fotografias, não consigo deixar de pensar na minha filha. Se o
destino nos tivesse colocado noutro país, noutro período, ela poderia ser
uma destas meninas.
– Morreram quase onze mil crianças francesas na Shoah – diz Carole,
lendo a minha expressão. – Este corredor recorda-me sempre tudo o que
poderia ter sido e nunca foi.
As suas palavras ecoam nos meus ouvidos enquanto a sigo até um
elevador, onde carrega no botão do quarto andar. Subimos em silêncio, e eu
reflito sobre a família da Mamie e sobre tudo o que se perdeu.
Carole conduz-me a um escritório moderno com duas cadeiras voltadas
para uma secretária repleta de livros e documentos. Pela janela, vejo a torre
de uma igreja acima de uma série de apartamentos e, na parede, encontram-
se desenhos infantis com a palavra Maman. Carole aponta para uma das
cadeiras e senta-se atrás do seu computador.
– Então o que motivou esta longa viagem até Paris? – pergunta,
agitando o rato e carregando nalgumas teclas.
Conto-lhe sucintamente a história da Mamie e digo estar convencida de
que os nomes correspondem a familiares de quem ela perdeu o rasto
durante o Holocausto. Explico que descobri todos os nomes menos o de
Alain, que parece não constar de qualquer registo. Digo ainda que não
consigo entender o que aconteceu à minha avó; também não há registo de
qualquer Rose Picard nos documentos das deportações.
– Mas disse-me que a sua avó fugiu de França antes da rusga, não é
verdade? – pergunta Carole.
– Sim – confirmo. – Melhor dizendo, creio que sim. Ela nunca me
explicou o que aconteceu. E agora sofre da doença de Alzheimer.
Carole abana a cabeça.
– Está, portanto, prestes a esquecer o passado.
Aceno afirmativamente.
– Queria apenas perceber o que se passou. Ela pediu-me que procurasse
descobrir o destino da sua família. Se voltar a casa sem uma resposta sobre
Alain Picard, receio desgostá-la imenso.
– Lamento não podermos ser mais úteis, mas, se o nome não consta dos
registos, nada há a fazer.
Sinto uma profunda deceção.
– Nada? – pergunto em voz baixa. – Posso nunca vir a descobrir o que
lhe aconteceu?
Carole hesita.
– Existe mais uma possibilidade – diz.
– Sim?
– Há um homem… – começa. A sua voz desvanece-se e ela interrompe
a sua explicação. Em vez disso, vira as páginas de uma antiquada agenda
rotativa, faz uma pausa e pega no telefone para marcar um número. Após
um momento, fala rapidamente em francês, fita-me, fala de novo e, em
seguida, desliga.
– Voilà – diz, anotando algo num pedaço de papel. – Aqui tem.
Pego no pedaço de papel e leio um nome, uma morada e uma série de
quatro números seguidos da letra A.
– Trata-se de Olivier Berr – diz. Sorri ligeiramente. – É uma lenda.
Olho-a com curiosidade.
– Ele tem noventa e três anos – prossegue. – Sobreviveu à Shoah e
dedica a sua vida a compilar uma lista de todos os judeus de Paris que se
perderam e outra de todos aqueles que regressaram.
Mostro-me incrédula.
– As listas dele são diferentes das suas?
– Oui – responde. – São construídas pelas próprias pessoas, as pessoas
que estiveram nos campos de concentração, as pessoas que frequentavam as
sinagogas após a guerra, as pessoas que vivem entre nós, ainda com as
cicatrizes da perda. Os nossos registos são oficiais. Os dele são verbais e,
por vezes, mais reveladores.
– Olivier Berr – repito quase num sussurro.
– Ele diz que pode ir visitá-lo. O número que aí vê é o código da porta
principal. Pode entrar diretamente.
Aceno nervosamente com a cabeça.
– Importa-se de me indicar o caminho?
Ela dá-me instruções para o caminho a pé, explicando que posso
demorar menos tempo a fazer o percurso a pé do que a encontrar um táxi.
– Além disso, verá o Louvre e atravessará o Sena na Pont des Arts – diz.
– Aproveite para ver um pouco de Paris durante a sua missão.
Sorrio ao pensar nisso, apercebendo-me subitamente de que ainda não
procurei ver a Torre Eiffel.
– Obrigada – digo. Mantenho-me de pé, sem saber se me devo sentir
dececionada com a ausência de registos no museu ou otimista com a
possibilidade de Olivier Berr me conseguir ajudar.
– Bonne chance – diz Carole com um sorriso. Estende o braço e aperta a
minha mão. – Boa sorte – diz, olhando-me nos olhos.

As indicações de Carole Didot levam-me a atravessar várias ruas


secundárias até chegar à movimentada rue de Rivoli. Vejo à minha esquerda
a fachada renascentista do Hôtel de Ville e prossigo junto às fachadas de
uma sequência de lojas – H&M, Zara, Celio, Etam – que ficariam a matar
na Newbury Street, em Boston. Um ligeiro vento anima várias bandeiras
francesas, com as suas garridas faixas vermelhas, brancas e azuis, que me
saúdam enquanto caminho. As poucas árvores que se erguem ao longo do
passeio adquiriram uma tonalidade vermelha profunda com a chegada do
outono e começaram a deixar cair as suas folhas, pisadas nos passeios por
uma torrente regular de pessoas.
Sigo as instruções de Carole e viro à esquerda no momento em que o
enorme Museu do Louvre começa a surgir ao meu lado. Vou ter a uma praça
ampla, formada pelas paredes do próprio museu e, por breves momentos,
suspendo a caminhada, ofegante. Não sou muito versada em história de
França, mas recordo-me de ler que o Louvre fora um palácio real e, olhando
em volta, quase imagino um monarca do século XVII a percorrer
majestosamente a praça, seguido pela sua corte.
Do outro lado, deparo-me com a ponte pedonal sugerida por Carole. Ela
explicara que as grades da ponte estão repletas de cadeados, ali postos por
pessoas enamoradas para firmar simbolicamente as suas relações. É uma
ideia romântica, mas sei que, com ou sem cadeados, as relações são
temporárias, ainda que acreditemos nelas de todo o coração.
Ao atravessar a ponte, olho para a direita e sorrio ao ver a Torre Eiffel
elevar-se sobre telhados que se veem à distância, do outro lado do rio. Já a
conheço através de milhares de fotografias, mas vê-la pessoalmente pela
primeira vez recorda-me que estou mesmo aqui, a milhares de quilómetros
de casa, a um oceano de distância. Sinto terrivelmente a falta da Annie
nesse momento.
Depois de percorrer metade da ponte, tenho uma sensação súbita de déjà
vu, como se já tivesse aqui estado. Demoro algum tempo a perceber porquê
e, quando por fim isso acontece, paro tão abruptamente que sofro o embate
da mulher que caminhava diretamente atrás de mim. Ela resmunga qualquer
coisa em francês, lança-me um olhar fulminante e contorna-me num
movimento exagerado e amplo. Ignoro-a e volto-me lentamente, de olhos
arregalados. À direita, para lá do brilho do Sena, o ponto mais alto da Torre
Eiffel rasga, à distância, o azul do céu. Atrás de mim, agiganta-se o Museu
do Louvre, palaciano e enorme, na margem do rio. À minha esquerda,
avisto uma ilha ligada por duas pontes. Conto rapidamente os arcos. Sete na
ponte à esquerda; cinco na ponte à direita. E, mais adiante, o edifício a que
Carole chamou Institut de France assemelha-se bastante a um segundo
palácio, como se ele e o Louvre tivessem governado outrora duas partes de
um mesmo reino.
O meu coração dispara, e eu ouço a voz da Mamie, partilhando comigo
o conto de fadas que, por tantas vezes ter ouvido, decorei quando tinha a
idade da Annie.
Todos os dias, o príncipe percorria a ponte de madeira, a ponte do
amor, para ver a sua princesa. Abandonava o grande palácio e
aproximava-se do castelo com uma grande abóboda, à entrada do outro
reino. Precisava de atravessar um fosso enorme para chegar até ao seu
único amor e, à esquerda, existiam duas pontes que conduziam ao coração
da cidade, uma com sete arcos, outra com cinco. À sua direita, uma espada
gigante rasgava o céu, alertando-o para os perigos que o esperavam.
Porém, ele vinha dia após dia, enfrentando as ameaças, pois amava a
princesa. Declarou que nenhum perigo do mundo o manteria afastado dela.
Dia após dia, a princesa sentava-se à sua janela e procurava ouvir os seus
passos, pois sabia que ele nunca a desapontaria. Amava-a e, quando
prometia vir buscá-la, cumpria sempre a palavra.
Sempre pensei que as histórias da Mamie eram simplesmente contos de
fadas que ela ouvira na infância mas, pela primeira vez, admito a
possibilidade de ela as ter criado, escolhendo como cenário a Paris que
amava. Abano a cabeça e tento retomar a caminhada, mas sinto os joelhos a
tremerem. Imagino a minha avó, na adolescência, a atravessar esta mesma
ponte, a apreciar os mesmos edifícios, com o mesmo rio por baixo de si,
imaginando que, um dia, um príncipe viria buscá-la. Teria dado os mesmos
passos que eu, até este exato local, há uns setenta anos? Teria permanecido
de pé nesta ponte a observar as estrelas que surgem a leste, sobre a ilha
situada a meio do Sena, e que ainda agora espera à sua janela todas as
noites? Teria sofrido quando abandonou tudo isto para sempre?
Enquanto caminho, penso nas histórias que me contava e, sobretudo, na
minha preferida, aquela em que o príncipe diz à princesa que, enquanto
houver estrelas no céu, ele a amará.
– Um dia – disse o príncipe à princesa – levar-te-ei, atravessando um
grande oceano, a ver uma rainha cujo archote ilumina o mundo, mantendo
todos os seus súbditos protegidos e livres.
Quando era pequena, agarrava-me àquelas palavras, imaginando que,
um dia, também eu encontraria um príncipe que me resgatasse da frieza da
minha mãe. Sonhava montar o cavalo branco, atrás do príncipe – pois, nas
minhas fantasias, o príncipe tinha sempre um cavalo branco –, e partir, para
não mais voltar, a caminho daquele reino do conto de fadas em que a rainha
zelava pela proteção de todos.
Contudo, tenho agora trinta e seis anos e já aprendi a lição. Não há
príncipes impetuosos, heroicos, prontos para me salvar. Não há rainhas
mágicas para me proteger. No final, conto apenas comigo mesma.
Interrogo-me sobre a idade que a Mamie teria quando percebeu a verdade.
Subitamente, apesar de me sentir, de algum modo, embalada pelo
passado da minha avó, vejo-me mais só do que nunca.

A rue Visconti é escura e estreita, porventura mais uma viela comprida


do que uma rua de pleno direito. Os passeios são pequenas faixas de um e
outro lado, e uma bicicleta solitária encostada a uma porta negra faz
lembrar um postal antiquado. Volto a observar as fachadas de várias lojas e
sigo o caminho previsto, quase até ao final da rua, onde encontro finalmente
o número 24, com uma porta dupla enorme, negra, sob um arco. Introduzo o
código que Carole me forneceu – 48A51 – no teclado à direita e, quando a
porta emite um zumbido moderno, abro-a para o interior. Depois de
atravessar a escuridão fria do pátio, rodeado de arcos, e chegar ao segundo
andar do edifício, a porta já está aberta. Ainda assim, bato levemente à
porta e, das profundezas do apartamento, uma voz grave e áspera grita:
– Entrez-vous! Entrez-vous, madame!
Entro, fecho a porta silenciosamente e percorro uma entrada estreita,
ladeada por estantes, todas apinhadas de volumes antigos, encadernados em
pele. Vou ter a uma sala iluminada pelo sol, onde vejo um homem de
cabelos brancos e ombros caídos sentado junto à janela, observando a rua lá
em baixo.
Volta-se para me receber, surpreendendo-me com as rugas abundantes e
profundas do seu rosto; parece ter vivido centenas de anos e não os noventa
e três que Carole Didot me indicara. Aproximo-me para o cumprimentar, e
ele lança-me um olhar estranho.
– Ah, uma americana. – São estas as suas primeiras palavras. Em
seguida, sorri, impressionando-me com o brilho que parece iluminar os seus
olhos verdes; são olhos de um jovem, em aparente desarmonia com as suas
feições encovadas. – Madame Didot não me contou que era americana. Em
Paris, cumprimentamo-nos com deux bisous, dois beijos nas faces, minha
querida. – Demonstra o ritual, inclinando-se e beijando-me delicadamente
nas duas faces. Sinto-me corar.
– Peço desculpa – murmuro.
– Não tem de pedir desculpa – diz. – Os costumes americanos são
encantadores. – Aponta para uma mesa pequena com duas cadeiras de
madeira, situada junto à janela. – Sente-se, por favor – convida. Espera que
eu me sente, oferece-me uma chávena de chá e, quando declino, senta-se a
meu lado. – Chamo-me Olivier Berr.
– E eu Hope McKenna-Smith. Obrigada por me receber assim, em cima
da hora – digo lentamente. Tento não perder de vista a sua idade e o facto
de o inglês não ser a sua língua materna.
– Não há qualquer problema – afirma. – É sempre um prazer receber
uma jovem bonita. – Sorri e bate ao de leve na minha mão. – Julgo saber
que procura informações.
Aquiesço e respiro fundo.
– Sim, senhor. A minha avó é parisiense. Soube recentemente que a sua
família pode ter morrido durante o Holocausto. Penso que eram judeus.
Ele observa-me durante algum tempo.
– Soube recentemente?
Embaraçada, procuro explicar-me.
– Bom, ela nunca falou sobre o assunto.
– E a menina foi educada noutra religião. – É uma afirmação, não uma
pergunta.
– No catolicismo – confirmo.
Ele acena lentamente com a cabeça.
– Isso não é inaudito. Abandonar o passado dessa forma. Mais, no
coração, suspeito que ela ainda se considere juive.
Conto-lhe sucintamente o sucedido no Rosh Hashanah, com os pedaços
da tarte. Ele sorri.
– O judaïsme não é apenas uma religião, é também um estado de
espírito e de coração. Sucede o mesmo, porventura em todas as religiões,
àqueles que verdadeiramente acreditam. – Faz uma pausa. – Está aqui hoje
em busca de respostas.
– Sim, senhor.
– Sobre o que aconteceu à família da sua avó.
– Sim, senhor. Ela nunca tinha falado sobre eles.
Ele assente de novo, com um ar cúmplice.
– Tem consigo os nomes?
– Sim – digo. Retiro do bolso uma cópia da lista da Mamie e entrego-
lha. Enquanto os seus olhos claros percorrem a página, acrescento
rapidamente: – No entanto, Alain, o seu irmão, não consta de qualquer
registo sobre o Holocausto.
Ele ergue os olhos e sorri.
– Ah, sim. Mas os meus registos são diferentes. – Levanta-se, vacilando
ligeiramente, e, em seguida, aponta uma estante com o dedo arqueado.
Desloca-se lentamente, pé ante pé, num movimento arrastado, até à entrada
ladeada por livros. – Eu tinha vinte anos quando rebentou a Segunda Guerra
Mundial, vinte e dois quando nos começaram a deter, diretamente nas ruas
de França. Foram deportados mais de setenta e seis mil juifs deste país, e a
maioria nunca regressou.
Abano a cabeça, quedando-me sem palavras.
– Estive em Auschwitz – continua. Subitamente, interrompe a sua lenta
caminhada até ao átrio, como se a própria memória o impedisse de avançar.
Após um momento, retoma o seu percurso. – Foram enviadas para esse
campo mais de sessenta mil pessoas provenientes de França. Sabia? – Para
de falar por um instante e, em seguida, tosse. – Após la libération, quando
regressei, percebi que perdera tudo. Todos os meus amigos. Os meus
vizinhos.
– E a sua família? – pergunto.
– Estavam todos mortos. – A sua voz soa impassível. – A minha mulher.
O meu filho. Mãe. Pai. Irmãs. Irmão. Tias. Tios. Primos. Avós. Todos.
Quando voltei para casa, para Paris, voltei para o vazio. Para ninguém.
– Lamento muito – murmuro.
A enormidade de tudo isto começa a perturbar-me. Nunca conheci um
sobrevivente de um campo de concentração e, enquanto as imagens do
Mémorial de la Shoah se repetem incessantemente na minha cabeça,
pestanejo algumas vezes, sentindo-me entorpecida. As atrocidades que eu
vira nas imagens tinham mesmo atingido este homem simpático que tenho
diante de mim. Sinto lágrimas nos olhos. Pestanejo rapidamente para as
enxugar antes que ele se aperceba.
Ele diz-me, com um gesto, que não preciso de dizer nada.
– É o passado. Nada tem a lamentar, mademoiselle. O mundo onde vive
hoje é muito diferente, e ainda bem. – Prossegue a pesquisa, fitando
solenemente a sua parede de livros. Toca com um dedo algo deformado
numa lombada, depois noutra. – O único local que consegui encontrar
quando regressei foi a sinagoga, que frequentara na infância. Mas estava
destruída. Era uma ruína, não um edifício.
Observo-o, paralisada, a percorrer os livros. Retira um, lê-o por
momentos e volta a colocá-lo na estante.
– Quando percebi que aqueles que amava nunca regressariam a casa,
comecei a refletir sobre a grande tragédia que foram não apenas as suas
mortes, mas também a perda dos seus legados – prossegue. – Quando se
deporta e aniquila toda uma família, quem fica para contar as suas histórias?
– Ninguém – murmuro.
– Précisément. E, quando isso acontece, é como se as suas vidas se
perdessem duas vezes. Foi por esse motivo que comecei a organizar registos
próprios. – Retira outro livro e, desta vez, o seu olhar ilumina-se e ele sorri.
Vira algumas páginas, detendo-se numa em particular. Permanece em
silêncio enquanto a lê.
– São os seus registos? – pergunto.
Ele confirma com um aceno e mostra-me a página em que se deteve.
Deparo-me com uma caligrafia indecifrável e fluida ao longo de folhas
pautadas, sem rasuras e amarelecidas nas margens.
– A minha lista de pessoas perdidas. – Sorri e acrescenta: – E achadas. E
das histórias que as acompanham.
Recuo e contemplo reverentemente as suas estantes.
– Todos estes livros são listas suas?
– Sim.
– Compilou-as sozinho? – Olho em volta, incrédula.
– Mantiveram-me ocupado naqueles primeiros tempos – diz. – Foi
assim que deixei de viver envolto em tristeza. Comecei a visitar sinagogas
todos os dias, examinando os seus registos, conversando com todas as
pessoas que tinha oportunidade de conhecer.
– Mas como reuniu tantas informações?
– Pedi a todos os meus conhecimentos nomes de pessoas que tivessem
perdido ou que soubessem ter sobrevivido. Família, amigos, vizinhos,
pouco importava. Nenhuma informação era menor ou insignifiant. Cada
uma representava uma vida perdida ou uma vida salva. Ao longo dos anos,
escrevi e reescrevi as suas memórias, organizei-as em volumes, segui as
indicações que me deram e procurei os sobreviventes.
– Meu Deus – murmuro.
– Cada sobrevivente de um campo de concentração – continua – tem
inúmeras histórias para contar. Essas pessoas são muitas vezes essenciais
para percebermos quem ficou perdido, e porquê. Noutros casos, sabemos
apenas que as pessoas nunca regressaram. Mas os seus nomes estão aqui, tal
como os pormenores que efetivamente conhecemos.
– Mas porque não estão estas listas no Mémorial de la Shoah? –
pergunto.
– Eles não têm, neste momento, registos deste tipo – responde. –
Possuem registos oficiais, elaborados pelos governos. Estes não são
oficiais. E, por enquanto, quero manter as minhas listas perto de mim, pois
estou permanentemente a descobrir novos nomes, e é importante prosseguir
o trabalho a que dediquei a minha vida. Quando morrer, estes livros irão
para o Mémorial. Tenho esperança de que também eles mantenham os
registos vivos e, dessa forma, manter igualmente vivas as pessoas que
habitam essas páginas.
– Isto é notável, Monsieur Berr – digo.
Ele brinda-me com um pequeno sorriso.
– Não é assim tão notável. Notável seria viver num mundo em que não
fosse necessário compilar listas de pessoas mortas. – Antes de eu poder
responder, coloca um dedo na página do livro aberto e diz, calmamente: –
Encontrei-os.
Limito-me a fitá-lo, confusa.
– A sua família – esclarece.
Os meus olhos arregalam-se.
– Espere, encontrou os nomes? Já?
Ri-se entre dentes.
– Vivo dentro destas listas há muitos anos, madame. Sei onde encontrar
o que pretendo. – Fecha os olhos por um momento e, em seguida,
concentra-se na página que tem diante de si. – A família Picard – diz. – Dix,
rue du Général Camou, septième arrondissement.
– O que significam essas palavras?
– Era a morada da sua avó – explica. – O número dez da Rua do Général
Camou. Procurei incluir moradas sempre que possível. – Sorri
discretamente e acrescenta: – A sua avó deve ter vivido numa bela casa, à
sombra da Torre Eiffel.
Engulo em seco.
– E o que mais está aí escrito?
Ele lê previamente as suas anotações antes de responder.
– Os pais chamavam-se Albert e Cécile. Albert era médico. Os filhos
chamavam-se Hélène, Rose, Claude, Alain, David e Danielle.
– Rose é a minha avó – sussurro.
Ele ergue os olhos e parece satisfeito.
– Então terei de alterar a minha lista.
– Porquê?
– Segundo a lista, teria sido morta em 15 de julho de 1942, em Paris.
Observa mais de perto uma secção da página. – Saiu de casa naquela noite e
nunca regressou, segundo as minhas anotações. No dia seguinte, a família
foi toda detida.
Não encontro palavras para lhe responder. Limito-me a olhá-lo
fixamente.
– O dia seguinte, 16 de julho de 1942… – continua. O seu tom de voz é
agora mais frágil. – Foi o primeiro dia da rusga do Vel’ d’Hiv.
Sinto a garganta seca. Trata-se da detenção em grande escala de treze
mil parisienses que vi descrita na Internet.
– Eu também lá estava – acrescenta em voz baixa. – A minha família foi
presa nesse dia.
– Sinto muito – digo, olhando-o fixamente.
– Foi o final da vida que até ali conhecia – diz num tom sereno,
abanando a cabeça. – O início da vida que agora tenho.
Abate-se sobre nós o silêncio.
– O que aconteceu? – acabo por perguntar.
O seu olhar perde-se.
– Vieram buscar-nos antes da alvorada. Não sabia que tinha de estar
preparado. Não sabia que aquilo podia acontecer. Recordando aquele dia,
percebo que devia saber. Devíamos todos. Só que, em certos momentos da
vida, é mais fácil acreditar que tudo vai correr bem. Não quisemos enfrentar
a verdade.
– Mas como poderia saber? – pergunto. Ele parece concordar, em parte.
– É fácil recordar o passado e questioná-lo, mas tem razão; era
impossível saber o que nos aguardava. É que eu, a minha mulher e o meu
filho, de apenas três anos, fomos levados com muitas outras pessoas para o
Vélodrome d’Hiver, no quinzième, mesmo junto à Torre Eiffel e muito perto
do Sena. Seríamos, porventura, sete mil, oito mil pessoas. Era difícil contar
todas. Era um mar de gente. Não havia alimentos. Quase não tínhamos
água. Fomos apertados como sardinhas em lata. Algumas pessoas
suicidaram-se. Vi uma mãe asfixiar o seu bebé e tomei-a por doida mas, ao
fim do terceiro dia, percebi que fora piedosa. Mais tarde, enquanto ela se
lamentava, vi um guarda matá-la a tiro. Recordo-me muito claramente de
pensar que ela tivera sorte.
A sua voz parece indiferente, mas os seus olhos lacrimejam quando
retoma a história.
– Permanecemos ali cinco dias antes de sermos transferidos. No quarto
dia, o meu filho, o meu Nicolas, morreu-me nos braços. E, antes de sermos
levados para Drancy, e depois deportados para Auschwitz, a minha mulher
e eu fomos separados, mas eu percebi no seu olhar que ela já tinha partido.
Perder o Nicolas roubara-lhe a vontade de viver. Soube, mais tarde, que ela
não passara a seleção inicial em Auschwitz, quando lá chegou, e não chorou
uma única vez enquanto a conduziam até à morte.
– Lamento muito – murmuro, mas ele volta a declinar as minhas
palavras de consolo.
– Foi há muito tempo – afirma. Vejo-o regressar ao seu livro, examinar a
página que disse conter os registos que eu procurava. – Alors – diz.
Pestaneja algumas vezes. – A sua família. Os Picard da rue du Général
Camou. Os dois irmãos mais novos, David e Danielle, morreram em
Auschwitz. Logo à chegada. David tinha oito anos. Danielle tinha cinco.
– Santo Deus – desabafo. – Eram crianças pequenas.
Monsieur Berr acena afirmativamente.
– Na maior parte dos casos, as crianças não regressaram. Foram levadas
de imediato para a câmara de gás porque os alemães as consideravam
inúteis. – Recompõe-se e continua a ler. – Hélène, de dezoito anos, e
Claude, de dezasseis, morreram em Auschwitz, em 1942. O mesmo sucedeu
à mãe, Cécile. O pai, Albert, faleceu em Auschwitz no final de 1943. – Faz
uma pausa e acrescenta em voz branda: – Tenho aqui a informação de que
trabalhou num crematório até adoecer, no inverno. Deve ter sido terrível.
Conhecia o seu próprio destino.
Sinto lágrimas nos olhos e, desta vez, é demasiado tarde para as tentar
suster. Monsieur Berr mantém-se em silêncio enquanto dois pequenos rios
rolam pelo meu rosto. Só após alguns momentos assimilo plenamente as
suas palavras.
– Morreram todos lá? – pergunto num sussurro. – Em Auschwitz? – Ele
olha-me piedosamente e acena devagar com a cabeça. – E o Alain, como
morreu?
Pela primeira vez desde que cheguei, Monsieur Berr parece
surpreendido.
– Morreu? Mas foi ele que me deu estas informações.
Esta notícia deixa-me perplexa.
– Não entendo.
Ele volta a observar mais atentamente a página.
– Sim, esta entrevista data de 6 de junho de 2005. Recordo-me dele. Um
homem muito simpático. Com um olhar bondoso. Podemos sempre
distinguir as pessoas pelo seu olhar. Ele estava a jogar xadrez com outro
sobrevivente, meu conhecido. Foi assim que o conheci.
– Espere, por favor – digo. O meu coração bate muito depressa
enquanto procuro assimilar as suas palavras. – Está a dizer-me que o Alain
Picard, irmão da minha avó, ainda está vivo? E que conversou com ele?
Monsieur Berr parece apreensivo.
– Bien sûr, ele estava vivo em 2005. Não sei o que foi feito dele depois
disso. Nunca foi deportado, mas sofreu durante a guerra. Todos sofremos.
Contou-me que esteve num refúgio, onde, durante quase três anos, teve
acesso a pouca comida. Um homem, o seu antigo professor de piano,
arranjava-lhe um lugar para dormir nas noites mais frias de inverno, mas
tinha receio de pôr em perigo a sua própria família. Assim, o Alain
pernoitava nas ruas e, por vezes, as freiras da igreja ofereciam-lhe refeições.
Terá agora oitenta anos, se ainda for vivo. Bem vistas as coisas, eu tenho
noventa e três, minha querida. E não tenciono desistir tão cedo.
Embora ele sorria, eu estou demasiado aturdida para fazer o mesmo.
– O irmão da minha avó – murmuro. – Sabe onde ele vive?
Monsieur Berr pega num bloco de papel.
– Tem uma esferográfica? – pergunta. Confirmo e remexo na minha
carteira. Ele aponta algo num pedaço de papel, rasga-o e entrega-mo. – Esta
é a morada que me indicou em 2005. Fica no Marais, o bairro judeu, junto à
place des Vosges. Foi aí que o conheci. Estava a jogar xadrez.
– É próximo do meu hotel – digo. Leio a morada que me entregou: 27,
rue du Foin, n.o 2B. Sinto um calafrio.
– Bom – diz Monsieur Berr –, é melhor fazer-se ao caminho. O passado
não espera por ninguém.
Capítulo 12

Continuo incrédula quando digo adieu a Monsieur Berr e desço


velozmente as escadas. Dirigi-me para o Sena, onde chamo um táxi e
entrego ao taxista o pedaço de papel que Monsieur Berr me tinha dado. Ele
resmunga uma resposta e arranca. Alterna sucessivamente entre várias
faixas, atravessa uma ponte sobre o Sena e dirige-se para a parte leste da
cidade, paralelamente ao rio, enquanto eu observo, cada vez mais próximas,
as duas torres de Notre-Dame. Por fim, vira à esquerda e, após várias curvas
e contracurvas, trava abruptamente diante de um edifício de pedra cinzenta
com duas enormes portas de madeira escura. Pago ao taxista e, enquanto ele
se afasta, aproximo-me do intercomunicador.
Ali está, a preto e branco, o nome Picard, A. Respiro fundo e carrego no
botão junto àquele apelido cada vez mais familiar. Só então me apercebo de
que as minhas mãos estão a tremer.
O meu coração bate descontroladamente enquanto aguardo. Ninguém
atende. Pressiono novamente o botão, mas continuo sem resposta. Sinto-me
desanimada. E se for demasiado tarde? E se ele estiver morto? Procuro
convencer-me de que é igualmente plausível que apenas tenha saído;
estamos a meio da tarde de um belo dia de outono. Talvez tenha ido dar um
passeio ou fazer compras. Permaneço alguns minutos à porta do prédio, na
esperança de que alguém entre ou saia e me possa esclarecer, mas a rua está
silenciosa e não vislumbro ninguém.
Consulto o relógio. Talvez esteja na place des Vosges, a jogar xadrez,
como no dia em que conheceu Monsieur Berr. Retiro do bolso o meu mapa,
procuro a página correta e concluo que o jardim fica a menos de um
quarteirão de distância. Dou meia-volta e caminho nessa direção.
A meio do percurso, aproximo-me de uma cabine telefónica e, ao fim de
alguns minutos a tentar contactar um operador que fale inglês, utilizo o meu
cartão de crédito para fazer uma chamada direta para o telemóvel da Annie.
É provável que esteja a dormir e não atenda, mas sinto uma vontade
repentina de lhe contar o que descobri. A chamada vai ter ao voice-mail e,
embora eu já o previsse, sinto-me desanimada. Pondero contar-lhe tudo
sobre o Alain, mas acabo por não o fazer.
«Estava a pensar em ti, querida, e queria dizer-te olá. Paris é muito
bonita. Penso que descobri alguma coisa, mas estou a tentar não me iludir.
Telefono-te mais tarde. Adoro-te.»
Cinco minutos depois, entro na place des Vosges por entre três arcos de
pedra erigidos sob um edifício. A praça é totalmente circundada por
edifícios idênticos de tijolo e pedra, com telhados de ardósia acinzentados,
portas envidraçadas e varandas estreitas. Árvores muito altas, com folhas de
um verde vivo, circundam uma estátua equestre no centro do jardim
quadrangular, enquanto quatro fontes com dois patamares guardam os
quatro cantos de relva circundados por caminhos cobertos de gravilha.
Olho em volta, procurando alguém que corresponda à descrição geral do
Alain, mas, até ao momento, o homem mais idoso que vi, passeando um
pequeno cão preto, não teria mais do que sessenta anos. Percorro
rapidamente todo o jardim, atenta aos rostos de quem passa a meu lado, mas
não encontro ninguém que possa ser o Alain. Desalentada, suspiro e saio
por onde entrei. Começo a perceber que posso não o encontrar, aqui ou em
qualquer outro sítio. Luto contra um sentimento de penosa desilusão: ainda
não me posso dar por vencida.
Vagueio em direção a leste simplesmente para passar o tempo antes de
regressar à morada que Monsieur Berr me indicou. Contorno algumas
esquinas, caminho ao lado de prédios de habitação e fachadas de lojas, até
me encontrar numa rua estreita e repleta de pessoas que entram e saem das
inúmeras lojas de designers. Numa placa, leio rue des Rosiers. Desço
lentamente a rua, surpreendida com a combinação desconcertante de talhos,
livrarias e sinagogas em estilo antigo com lojas de roupa de ar moderno.
Detenho-me junto a uma pequena fachada assinalada com uma estrela-
de-David e a palavra synagogue, que, ao que parece, é idêntica em francês e
em inglês. O meu coração bate com força, e eu estendo a mão trémula para
tocar na parede exterior. Interrogo-me há quanto tempo ali estará o edifício
e se a minha avó o terá frequentado em algum momento.
Enquanto permaneço ali, de pé, absorta em pensamentos sobre o
passado, um aroma familiar faz-me regressar ao presente. Sinto no ar, muito
vagamente, o cheiro das tartes amanteigadas, com aroma a canela,
recheadas de figos e ameixas secas, que preparo todos os dias na minha
própria confeitaria, as tartes das estrelas.
Volto-me lentamente e deparo-me com uma fachada pintada de
vermelho-escuro com montras recheadas de várias formas de pão e bolos.
Uma confeitaria. Pestanejo algumas vezes e, como se atraída por um íman
invisível, sinto-me suspensa no ar quando atravesso a rua e transponho as
portas do estabelecimento.
O interior está repleto de clientes. À direita, encontra-se um longo
expositor de charcutaria com carnes e saladas prontas a comer; à esquerda,
uma sucessão aparentemente infindável de bagels, cheesecakes, tortas,
tartes e bolos, todos com pequenas legendas que indicam os seus nomes em
francês e os seus preços em euros.
Permaneço na mesma posição, entorpecida, enquanto o meu olhar
percorre a seleção de produtos que me parece tão familiar. Vejo o
cheesecake de limão com uvas, uma das especialidades da North Star. Há
igualmente um Strudel de aspeto delicado como aquele que nunca chega
para as encomendas na minha confeitaria; aproximo-me e verifico que é
praticamente idêntico: tem maçãs, amêndoas, passas, casca de laranja
cristalizada e canela, como na minha receita. Encontro mesmo um pão de
centeio fermentado semelhante ao que, há dois anos, me assegurou um
lugar cimeiro na sondagem «Melhor Pão de Cape» do Cape Cod Times.
E ali, na montra, repousam fatias de algo a que eles chamam ronde des
pavés. Estou habituada a vê-las em pequenas tartes individuais com uma
crosta em forma de estrela, mas, quando me inclino para observar as fatias,
o recheio é inconfundível. Sementes de papoila, amêndoas, uvas, figos,
ameixas secas e açúcar com canela. Tal como as tão apreciadas tartes das
estrelas da Mamie.
– Que puis-je faire pour vous? – ouço dizer uma voz aguda atrás de
mim. Volto-me, ligeiramente desnorteada.
– Eu… não falo francês – gaguejo. – Lamento. – O meu coração ainda
bate desordenadamente.
A mulher, que parece ter sensivelmente a minha idade, sorri.
– Não há qualquer problema – diz, passando com naturalidade a falar
um inglês com pronúncia. – Temos aqui muitos turistas. O que lhe posso
servir?
Aponto, trémula, para uma das fatias de ronde des pavés. Ela começa a
preparar uma embalagem, mas eu estendo o braço para a deter. Percebo que
a minha mão treme quando toca no seu braço. Ela ergue os olhos,
surpreendida.
– Qual é a origem destas receitas? – pergunto.
Ela franze o sobrolho e olha-me desconfiada.
– São receitas antigas da minha família, madame – diz. – Não as
divulgamos.
– Não, não é isso que pretendo – apresso-me a dizer. – É que tenho uma
confeitaria nos Estados Unidos, no Massachusetts, e preparo os mesmos
bolos. Estava convencida de que todas estas receitas provinham da família
da minha avó…
A desconfiança desaparece do seu rosto, e ela sorri.
– Ah. A sua avó é polaca?
– Não, é daqui. De Paris.
A mulher inclina a cabeça para o lado.
– Mas os pais dela eram da Polónia, não eram? – Morde os lábios. –
Esta confeitaria foi aberta pelos meus bisavós, logo após a guerra. Em 1947.
Eram polacos. Estas receitas têm uma grande influência do leste da Europa.
Aquiesço com um aceno lento.
– Tudo o que preparamos foi desenvolvido na tradition ashkénaze do
passado da minha família. Ainda mantemos essas tradições. A sua avó é
juive? Aliás… judia?
Repito o gesto.
– Sim. Creio que sim. Mas em que consiste a tradition ash… isso que
acabou de dizer?
– É… como se diz… o judaïsme traditionnel da Europa – explica. –
Teve início na Alemanha mas, centenas de anos depois, um grupo de juifs
partiu para outros países do leste da Europa. Antes da guerra, a maioria das
communautés juives da Europa eram ashkénaze, incluindo os meus avós.
Antes de Hitler as exterminar.
Volto a assentir e olho de novo para os bolos.
– A minha avó sempre disse que a sua família tinha uma confeitaria
aqui, em Paris – digo em voz baixa. – Antes da guerra. – Olho em volta e
percebo que faltam muitos dos bolos favoritos da Mamie. – Têm bolos de
pistácio? – pergunto.
Ela abana a cabeça, olhando-me inexpressivamente, e eu continuo a
descrever as luas doces em quarto crescente da Mamie e as suas rosas de
amêndoa. Mais uma vez, a mulher abana a cabeça.
– Não me soam familiares – afirma. Olha em volta, parecendo
aperceber-se repentinamente de como a loja está apinhada. – Peço desculpa
– diz. – Tenho de ir. A não ser que deseje um bolo.
Acedo e aponto para uma fatia de ronde des pavés, sabendo agora que
terá o mesmo sabor de uma das nossas tartes das estrelas.
– Queria uma dessas fatias, por favor – peço.
Ela confirma com um gesto, envolve-a em papel encerado e coloca-a
num pequeno saco de papel branco.
– Não tem nada a pagar – diz, entregando-me o saco com um sorriso. –
Talvez me possa oferecer um bolo se eu, um dia, visitar o Massachusetts.
Eu retribuo o sorriso.
– Obrigada. Agradeço toda a sua ajuda.
Ela assente e afasta-se. Estou já a caminho da porta quando a ouço
chamar-me.
– Madame?
Viro-me para trás.
– Os outros produtos que mencionou… – começa. – Não creio que
pertençam à tradition ashkénaze do leste da Europa. – Despede-se com um
gesto e desaparece numa multidão de clientes à espera de serem atendidos.
Franzo o sobrolho e, enquanto a vejo afastar-se, sinto-me um tanto confusa.

Saboreio a minha fatia de ronde des pavés enquanto repito o caminho


para a morada que Monsieur Berr me indicou. Não é exatamente uma das
nossas tartes das estrelas, mas tem muitas semelhanças. A minha versão
leva mais canela – a Mamie sempre adorou canela – e a nossa crosta é um
pouco mais densa e mais amanteigada. As passas do ronde são douradas,
enquanto eu utilizo as passas escuras tradicionais. Mas é inquestionável que
as receitas têm a mesma origem.
Quando me encontro novamente à porta do prédio do Alain, o bolo já
acabou mas o turbilhão de dúvidas mantém-se. Respiro fundo e fecho os
olhos por um momento, preparando-me para o sentimento de desilusão que
se vai certamente apoderar de mim se ele não responder. Abro os olhos e
carrego no botão do intercomunicador.
A princípio, a resposta é o silêncio. Volto a carregar no botão e,
repentinamente, quando estou prestes a resignar-me, ouço um estalido e
uma voz masculina abafada do outro lado.
– Sim! – Quase grito para a grelha do intercomunicador, sentindo o meu
coração disparar. – Procuro Alain Picard.
Após uma pausa, ouço outro estalido e, de novo, a mesma voz.
– Peço desculpa, não o consigo entender – digo. – Pretendo falar com
Alain Picard.
O altifalante repete o mesmo som exasperante, a voz diz qualquer coisa
e, para meu grande alívio, ouço o zumbido da porta da frente.
Abro-a e avanço velozmente para um pátio pequeno, agradável, onde
videiras trepam velhos muros de pedra ao lado de rosas vermelhas e
narcisos amarelos. Atravesso-o rapidamente e entro no edifício. O Alain
vive no apartamento 2B, segundo Monsieur Berr. Subo o lanço de escadas
na esquina do prédio e perco-me momentaneamente ao ver que os dois
apartamentos que tenho diante de mim são o 1A e o 1B. Contudo, recordo-
me entretanto de que os franceses atribuem ao rés do chão o número 0 e não
o número 1 e subo um segundo lanço de escadas.
Com o coração agitado, bato à porta no apartamento 2B. No momento
em que ela se abre e eu me deparo com um homem idoso, ligeiramente
curvado e com cabelo branco, espesso, deixo de ter dúvidas. Tem os olhos
da Mamie, os olhos cinzento-azulados, a fazerem lembrar duas amêndoas,
que a minha mãe herdou. Encontrei o meu tio-avô. Afinal, a Mamie faz
parte desta misteriosa e desaparecida família Picard e, por conseguinte, eu
também. Respiro fundo.
– Alain Picard? – balbucio quando recupero a voz.
– Oui – diz. Olha-me fixamente. Abana a cabeça e pronuncia
rapidamente algumas palavras em francês.
– Eu… peço desculpa – digo. – Apenas falo inglês. Lamento.
– Perdão, mademoiselle – diz, passando de imediato a falar inglês. –
Acontece que é parecida com uma pessoa que conheci. É como ver um
fantasma.
O meu coração estremece.
– Recordo-lhe a sua irmã? – pergunto. – Rose?
Vejo-o empalidecer.
– Mas como…? – A sua voz parece sumir-se.
– Penso que sou sua sobrinha-neta – digo-lhe. – Sou neta de Rose.
Chamo-me Hope.
– Não – diz em voz baixa, quase sussurrando. – Não, não. É impossível.
A minha irmã morreu há setenta anos.
Abano a cabeça.
– Não – corrijo. – Ainda está viva.
– Non, ce n’est pas possible – murmura. – Não é possível.
– Ela sempre acreditou que o senhor tinha morrido – digo-lhe num tom
suave. Ele não desvia os olhos dos meus.
– Ela está viva? – diz em surdina, após uma longa pausa. – Tem a
certeza?
Aceno afirmativamente, sentindo que as palavras não atravessam o nó
que de repente s me formou na minha garganta.
– Mas como… como veio ter aqui? Como me encontrou?
– A minha avó pediu-me que viesse a Paris para descobrir o que
acontecera à sua família – digo. – O seu nome não constava de qualquer
registo.
Explico sucintamente como os funcionários do Mémorial me
conduziram a Olivier Berr.
– Recordo-me dele – diz lentamente. – Também conversou com o Jacob.
Há muito tempo. Logo após a guerra.
– Jacob? – pergunto.
– Não sabe quem é o Jacob? – inquire, de olhos arregalados.
Abano a cabeça.
– É mais um dos irmãos? – Pergunto-me porque não terá a Mamie
incluído esse nome na lista.
O Alain abana também a cabeça, mas lentamente.
– Não – diz. – Mas era a pessoa mais importante do mundo para a Rose.

Sigo o Alain até ao interior do apartamento, um espaço pequeno e


repleto de livros. Vejo dezenas de chávenas de chá, com os respetivos pires,
em prateleiras e em cima dos armários, algumas mesmo emolduradas na
parede.
– A minha mulher colecionava-as – diz o Alain, seguindo o meu olhar e
acenando para uma prateleira repleta de chávenas e pires, enquanto nos
dirigimos a uma sala de estar. – Nunca gostei delas. Mas, depois da sua
morte, não fui capaz de me desfazer da coleção.
– Lamento – digo. – Quando é que ela…?
– Há muito tempo – afirma, baixando os olhos. Entramos na sala de
estar e ele aponta para uma de duas cadeiras de costas altas, forradas de
veludo vermelho. Sento-me, e ele deixa-se cair, algo trémulo, na cadeira à
minha frente. – A minha Anne foi das poucas pessoas que sobreviveu a
Auschwitz. Costumávamos dizer que tinha tido muita sorte. Porém, as
barbaridades a que foi sujeita impediram-na de ter filhos. Morreu aos
quarenta anos, destroçada.
– Sinto muito – murmuro.
– Obrigado – diz. Inclina-se para a frente, com alguma impaciência, e
fita-me com olhos que me são dolorosamente familiares. – Agora, por
favor, fale-me da Rose. Perdoe-me; ainda estou abalado.
Explico-lhe sucintamente o que sei: que a minha avó emigrou para os
Estados Unidos no início da década de 40, após o casamento com o meu
avô, e que os dois tiveram uma filha, a minha mãe. Falo-lhe da confeitaria
que a Mamie abriu em Cape Cod e conto-lhe como, uma hora antes, me
tinha deparado com uma confeitaria judaica ashkénaze na rue des Rosiers,
com tantos bolos que tão bem conheço.
– Eu sempre soube que a Rose tinha arte da doçaria no sangue – diz o
Alain com ternura. – A nossa mãe era da Pologne. Os seus pais trouxeram-
na para Paris quando era apenas uma menina. Tinham uma confeitaria e,
antes de a nossa mãe se ter casado com o nosso pai, trabalhava lá dia após
dia. Mesmo depois de ter filhos, continuava a ajudar na confeitaria aos fins
de semana e nas noites mais movimentadas. A Rose adorava ir com ela.
Tudo isso faz parte do legado da nossa família.
Abano a cabeça, incrédula. Penso como é incrível ter estado rodeada da
história familiar da Mamie durante toda a vida e nunca a ter conhecido.
Sempre que preparava um Strudel ou uma tarte das estrelas, estava a seguir
uma tradição presente na nossa família há várias gerações.
– Mas como conseguiu ela fugir de Paris? – pergunta ele, inclinando-se
ainda um pouco mais, tanto que quase receio que caia da cadeira. – Sempre
pensámos que tinha morrido, de alguma forma, imediatamente antes da
rusga.
– Não sei – digo, desalentada. – Esperava que me pudesse dizer. – Ele
parece agora confuso.
– Mas disse-me que ela está viva, não disse? Não lhe pode perguntar?
– Ela sofre da doença de Alzheimer – digo, deixando tombar a cabeça. –
Não sei como lhe chamam em francês.
Ergo os olhos e o Alain assente, com as suas feições tomadas pela
tristeza.
– A palavra é a mesma. Não se lembra do que aconteceu, portanto –
sussurra.
– Ela nunca falou do seu passado – explico. – Na verdade, eu soube
apenas há alguns dias que ela era judia.
Ele mostra-se ainda mais confuso.
– Claro que é judia.
– Sempre a vi como católica – asseguro, abanando a cabeça. O Alain
parece perplexo.
– Mas… – Detém-se, como se não soubesse o que perguntar a seguir.
– Também não compreendo – digo. – Só há poucos dias tive
conhecimento de que a nossa família era judia. Não sabia sequer que o seu
nome de solteira fora Picard. Sempre nos disse que era Durand. A minha
filha fez até, há alguns anos, uma árvore genealógica num projeto para a
escola, e é o nome Durand que aparece em todos os documentos que
encontrámos. Não há registo do apelido Picard.
O Alain observa-me demoradamente e suspira.
– Rose Durand é provavelmente a identidade que lhe permitiu fugir.
Para sair de França naquele período, precisaria de conseguir novos
documentos, com certeza nas regiões não ocupadas do país. E, para obter
novos documentos, teria certamente de se fazer passar por outra pessoa.
Deve ter sido ajudada pela Résistance. Eles devem ter fornecido
documentos falsos.
– Documentos falsos que indicam que ela é cristã? Com o nome Rose
Durand em vez de Rose Picard?
– Durante a guerra, era muito mais fácil, naturalmente, fugir enquanto
católica do que enquanto judia. – O Alain acena solenemente. – Se estivesse
convicta de que nos perdera a todos, talvez preferisse esquecer as suas
origens. Talvez se tenha perdido na sua nova identidade por ser essa a única
forma de manter a sua santé d’esprit. A sua sanidade mental.
– Mas o que a levaria a pensar que estavam mortos? – pergunto.
– Após a libertação, tudo era bastante confuso – diz o Alain. – Nós, os
que ficámos em França, encontrávamo-nos no Hôtel Lutetia, no boulevard
Raspail. Era um centro de acolhimento, depois da guerra, para todos os
sobreviventes. Alguns para se tratarem, para receberem cuidados médicos.
Para nós, era um local onde podíamos procurar pessoas conhecidas.
Procurar as famílias que tínhamos perdido.
– Esteve lá? – pergunto. Ele assente.
– Nunca fui deportado – diz discretamente. – Após a guerra, fui ao
Hôtel Lutetia em busca da minha família. Queria muito acreditar que
tinham sobrevivido, Hope. Uma vez lá chegados, escrevíamos os nomes dos
nossos familiares num quadro. «Procuro Cécile Picard. Mãe. Quarenta e
quatro anos. Detida em 16 de julho de 1942. Levada para o Vel’ d’Hiv». As
pessoas vinham dizer-nos Conheci a sua mãe em Auschwitz. Morreu no
terceiro mês, de pneumonia ou Trabalhei com o seu pai no crematório em
Auschwitz. Adoeceu e foi levado para a câmara de gás, pouco tempo antes
da libertação do campo.
Olho-o fixamente.
– Descobriu que todos tinham falecido.
– Todos – sussurra o Alain. – Avós, primos, tias, tios. Rose também era
dada como morta. Duas pessoas juraram tê-la visto ser baleada durante a
rusga. Saí sem indicar o meu nome, pois não havia mais ninguém para me
procurar. Era essa a minha convicção. Por isso não há registos a meu
respeito. Eu queria apenas desaparecer.
– Como evitou ser preso?
– Eu tinha onze anos quando nos vieram buscar. Os meus pais não
acreditavam em todos os rumores que ouvíamos. Mas a Rose levava-os a
sério. Não conseguiu, porém, convencer os meus pais. Pensavam que ela
enlouquecera, que era uma tolice acreditar nos vaticínios do Jacob, que
consideravam um rebelde ignorante.
Ei-lo novamente. Aquele nome.
– Não chegou a dizer-me quem era o Jacob.
O Alain perscruta por instantes o meu rosto.
– O Jacob era tudo – diz com simplicidade. – Foi o Jacob que me
aconselhou a fugir se a polícia aparecesse. Foi o Jacob que me incitou a
tentar convencer a minha família. Foi o Jacob que me salvou, porque,
quando a polícia invadiu a nossa casa, para nos prender, saltei pela janela
das traseiras, caí de uma altura de três andares e corri.
Fita as mãos durante um longo momento. Apresentam algumas
deformações e cicatrizes. Por fim, inspira profundamente e prossegue.
– Deixei morrer a minha família porque tinha medo – declara. Ergue a
cabeça e fita-me, com lágrimas nos olhos. – Não fiz o que era necessário
para os persuadir. Não trouxe comigo Danielle e David, os mais novos.
Estava assustado, muito assustado, e foi por isso que morreram todos.
Rola-lhe uma lágrima pela face. Impelida pela emoção, atravesso a sala
para o abraçar. Ele mantém a rigidez por um momento, mas depois sinto os
seus braços cingirem os meus ombros. Todo o seu corpo treme.
– Tinha onze anos – murmuro. – A culpa não foi sua.
Afasto-me, e ele suspira.
– Seja de quem for a responsabilidade, toda a minha família foi
assassinada e eu continuo aqui, setenta anos mais tarde. Tive de viver com
isto durante toda a vida. É um peso no coração.
Sinto lágrimas nos meus olhos quando me volto a sentar.
– Como é que o Jacob sabia? Porque é que o aconselhou a fugir?
– Fazia parte de um movimento clandestino de combate aos nazis –
conta o Alain. – Acreditava nos rumores sobre os campos de morte.
Acreditava que eles nos estavam a exterminar metodicamente. Pertencia a
uma minoria. Mas a Rose confiava nele. Tal como eu, pois o Jacob era um
herói para mim. Ele deve tê-la salvado.
– Como? – pergunto quase num sussurro.
O Alain observa-me durante bastante tempo.
– Não sei. Mas ela era o grande amor da sua vida. Teria feito tudo o que
fosse necessário para a proteger. Tudo.
Pestanejo, incrédula.
– Ela também o amava?
– Com uma intensidade que eu não julgava possível nela – confirma. O
seu olhar vagueia demoradamente. – Foi por isso que, durante todos estes
anos, tive a convicção firme de que ela morrera. Pensava que ela, se tivesse
sobrevivido, viria procurá-lo.
– Ela também terá presumido que ele estava morto – murmuro. – O
nome dele estava no quadro do Hôtel Lutetia?
O Alain assume uma expressão solene.
– Sim, estava – confirma. – Ele agarrava-se desesperadamente à ideia de
que ela tinha fugido, apesar dos rumores que nos chegavam. O seu nome
esteve sempre na lista para que, se ela regressasse, o pudesse encontrar.
– Mas o meu avô veio a Paris – digo. – Em 1949. Para procurar
descobrir o que aconteceu à família da minha avó. Foi ela que mo disse.
– Não existiam registos meus – diz o Alain. – Foi seguramente por esse
motivo que não me encontrou. Contudo, o Jacob procurou sempre manter-
se na lista para a eventualidade de a Rose ter, de uma forma ou de outra,
sobrevivido.
Engulo em seco e pergunto-me o que significariam estas novas
informações. Teria a Mamie ocultado o nome do Jacob ao meu avô? Ou
teria o meu avô, afinal, encontrado o nome do Jacob na lista de
sobreviventes e contado outra versão a Mamie, percebendo o quanto ela o
amava e preferindo proteger a vida que já iniciara com ela? Estremeço
involuntariamente.
– O Jacob conseguiu fugir, tal como a minha avó? – pergunto-lhe. –
Antes da rusga?
O Alain abana a cabeça e inspira profundamente.
– O Jacob esteve em Auschwitz – diz. – Sobreviveu porque tinha
absoluta certeza de que a Rose se encontrava algures, em segurança, e
prometera encontrá-la. Contou-me, no nosso derradeiro encontro, que não
acreditava na sua morte, pois tê-la-ia sentido na alma. Foi essa esperança de
a reencontrar que o manteve vivo naquele Inferno na Terra.
Capítulo 13

Cheesecake de Limão com Uvas

Ingredientes
1 chávena e 1/2 de bolacha integral moída
1 chávena de açúcar granulado, em partes separadas
1 colher de chá de canela
6 colheres de sopa de manteiga sem sal (derretida)
2 x 8 onças (2 chávenas) de queijo-creme
1/4 de chávena de sumo de uva branca
Sumo e raspa de um limão
2 ovos

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C. Misture a bolacha moída com
meia chávena de açúcar, canela e manteiga derretida até
obter uma massa homogénea. Espalhe uniformemente numa
forma para tartes com 20 cm de diâmetro.
2. Leve a massa ao forno durante seis minutos. Em seguida,
retire-a do forno e deixe arrefecer.
3. Reduza a temperatura do forno para 150 °C.
4. Numa tigela de tamanho médio, bata o queijo-creme,
utilizando uma batedeira elétrica, até ficar suave. Continue a
bater introduzindo lentamente o açúcar restante. Adicione
gradualmente o sumo de uva, o sumo de limão, a raspa de
limão e os ovos e bata até a massa ficar bem homogénea.
5. Coloque a base de bolacha, depois de arrefecida, num
tabuleiro. Verta a mistura do queijo-creme sobre a base.
6. Leve ao forno durante quarenta minutos, ou até o centro da
base de bolacha estar bem cozinhada.

Rose

Annie visitara-a naquele mesmo dia; Rose tinha a certeza. Não


conseguia, porém, entender o que ela lhe dissera.
– A mãe está em Paris agora mesmo – declarara Annie, com os seus
olhos cinzentos brilhantes de entusiasmo. – Deixou-me uma mensagem!
Disse que talvez tenha, tipo, descoberto alguma coisa!
– Que bom, querida – respondera Rose, mesmo não sabendo
exatamente quem era a mãe de Annie. Seria sua familiar? Ou talvez
uma das clientes da confeitaria? Não conseguiu, porém, comunicar
àquela menina que não se lembrava da sua mãe. Preferiu perguntar: –
E a tua mãe encontrou algum artigo bonito numa boutique? Um lenço
ou, talvez, um par de sapatos? – Paris era, afinal, célebre pelas suas
lojas.
Nesse momento, Annie rira-se, emitindo um som vibrante que fez
lembrar a Rose os pássaros que, noutros tempos, cantavam
habitualmente à sua janela na rue du Général Camou.
– Não, Mamie! – exclamara. – Ela foi visitar o Museu do
Holocausto! Bem sabes que foi tentar descobrir o que aconteceu às
pessoas de que nos falaste!
– Oh… – murmurara Rose, sentindo-se repentinamente asfixiada.
Annie partira pouco depois, e Rose ficara entregue aos seus
pensamentos, que a afligiam cada vez mais. As palavras daquela
menina haviam desencadeado um turbilhão de memórias que
ameaçava arrebatá-la e levá-la para longe, para o passado, onde
ultimamente se perdia cada vez mais. Na maior parte dos dias, as
memórias surgiam abundantemente, sem aviso, mas neste dia, foram as
referências a Paris e ao Holocausto, a Shoah, que a precipitaram numa
viagem ao passado, àquele dia terrível de 1949 em que o seu querido
Ted, de regresso a casa, confirmara os seus piores receios.
Amava o marido. E, precisamente porque o amava, falara-lhe de
Jacob. Sabia que devia ser sincera com as pessoas que amava. E ela
fora sincera, mas apenas até certo ponto. Dissera a Ted que havia
amado muito um homem em Paris. Não era preciso dizê-lo; ela sabia
tê-lo deixado já bem claro.
Contudo, quando ele lhe perguntara quem mais amava, ela desviara
o olhar. E ele ficou a saber. Talvez soubesse desde sempre.
Ela preferiria que não fosse assim. Ted era um homem maravilhoso.
Era um pai extraordinário para Josephine. Era honrado e leal.
Proporcionava-lhe uma vida com que ela nunca sonhara em todos os
anos passados na sua cidade natal.
Mas não era Jacob. E esse era o seu único defeito.
Nos primeiros anos após a guerra, preferira não saber o que
acontecera. Pelo menos oficialmente. Depois do casamento com Ted,
quando moravam em Nova Iorque, não muito distante da Estátua da
Liberdade, tivera conhecimento de outros imigrantes que chegavam,
meio perdidos, de França. Consideravam-se sobreviventes. Rose via-os,
ao invés, como fantasmas, pessoas sem vida. Pálidas, exaustas, de olhos
cavos, pairando pelo mundo como se não lhe pertencessem.
Conheci a sua mãe, diria um dos fantasmas. Vi-a morrer em
Auschwitz.
Vi a doce menina Danielle em Drancy, diria outro. Não sei se chegou
a ser deportada para um campo.
E, depois, a notícia que a destroçou, dada por um fantasma
chamado Monsieur Pinusiewicz, que conhecera noutra vida. Era o
proprietário do talho ao fundo da rua da confeitaria dos seus avós.
Aquele rapaz que a acompanhava para todo o lado? Jacob?
Rose olhou-o fixamente. Não queria que ele continuasse, pois via a
verdade nos seus olhos. Ela não aguentaria a notícia. Emitiu um som
abafado, o único que o desespero lhe permitiu, e ele interpretou-o como
um sinal de curiosidade.
Esteve em Auschwitz. Vi-o lá. E vi-o no dia em que o levaram para a
câmara de gás.
Nada mais disse. O fantasma de Monsieur Pinusiewicz partiu, tal
como a última réstia de esperança que Rose alimentava de, de uma
forma ou de outra, reencontrar o seu passado.
Quando abandonou Nova Iorque, sabia que todos tinham partido.
Os fantasmas tinham-na informado. Um vira o seu pai adoecer durante
o trabalho no crematório de Auschwitz. Outro confortara a sua mãe
junto ao leito de morte. Outro ainda havia trabalhado com Hélène e,
certo dia, ao regressar dos campos de trabalho, sabendo-a doente a
ponto de não conseguir sair da cama, encontrou-a espancada até à
morte pelos guardas, com os seus bonitos cabelos castanhos ensopados
de sangue. O destino dos restantes familiares era menos claro, e Rose
não fez perguntas. O que contava era que estavam todos mortos. Todos.
Deste modo, quando Ted lhe prometera uma vida distante destes
fantasmas de olhar vazio, distante de Nova Iorque, num local mágico
chamado Cape Cod, onde, segundo ele, as ondas banhavam praias de
areia fina e os arandos cresciam em pauis, ela disse que sim. Porque o
amava. E porque precisava de concluir a sua transfiguração. Precisava
de se centrar em construir uma família, pois a sua desaparecera para
sempre.
Contudo, em 1949, sete anos depois de deixar Paris, sentira que era
necessário tirar todas as dúvidas. Sabia que não lhe era possível
sepultar Rose Picard sem a certeza que apenas os registos formais lhe
podiam proporcionar. E se um dos fantasmas estivesse equivocado? E
se a pequena Danielle tivesse sobrevivido e residisse num orfanato
qualquer, convencida de que ninguém no mundo a amava? E se Hélène
não tivesse morrido naquele dia e, tendo conseguido fugir, estivesse à
espera de Rose, interrogando-se sobre o seu paradeiro? E se o fantasma
que afirmou ter confortado a mãe no seu leito de morte tivesse
confundido a sua identidade?
Rose, porém, não podia ir. Tinha sido um verdadeiro milagre, de
resto, entrar nos Estados Unidos com os documentos falsos. Sabia que,
provavelmente, as autoridades responsáveis pela imigração a
ignoravam apenas porque se tinha casado com Ted, um herói de
guerra. Já fora bafejada pela fortuna; agora, tinha a sua vida num
novo país e uma filha pequena que precisava dela. Não confiava em
França. Não acreditava que pudesse sair novamente. E receava, em
todo o caso, que o seu coração não suportasse o regresso.
Pediu, pois, a Ted que fosse em seu lugar. E ele, porque a amava, e
porque era um homem bom, acedeu.
Partiu numa quente segunda-feira de verão. Ela esperou, sentindo
que os segundos eram minutos e os minutos eram horas. O tempo
arrastava-se como os caramelos que ela, Ted e a pequena Josephine
haviam experimentado na viagem a Atlantic City no verão anterior.
Quando ele finalmente regressou, já noite cerrada, naquela sexta-
feira, sentou-se com ela, sob o calor quieto e húmido da noite de Cape
Cod, e contou-lhe tudo.
Estivera na sinagoga que Rose tinha frequentado na infância. Foi
profundamente doloroso receber a notícia de que a sinagoga fora
destruída durante a guerra mas depois reconstruída, ficando como
nova. Só ela podia entender que a reconstrução não traz de volta o
passado. Nunca é possível recuperar o que se desmoronou.
– Morreram todos, Rose – disse-lhe ele delicadamente, fitando-a e
segurando com firmeza as mãos dela, receando porventura que ela
partisse, flutuando, como um balão com hélio a caminho das nuvens. –
A tua mãe, o teu pai, as tuas irmãs, os teus irmãos. Todos. Lamento
muito.
– Não… – foi tudo o que ela conseguiu balbuciar.
– Conversei com o rabino local – contou Ted serenamente. – Ele
explicou-me como encontrar os registos. Sinto muito.
Ela manteve-se em silêncio.
– Queres saber o que lhes aconteceu, Rose? – perguntou Ted.
– Não. – Abanou a cabeça, afastou o olhar. Não suportaria saber.
Receava que o seu coração se partisse em mil pedaços. Pensava que, de
coração dilacerado, talvez morresse ali mesmo, à frente do marido, com
a filha no andar de cima. – A culpa é minha – sussurrou.
– Não, Rose! – exclamou Ted. – Não te podes sentir assim. Não tens
culpa de nada disto. – Ele abraçou-a, mas sentiu-lhe o corpo rígido,
fechado.
Ela inclinou lentamente a cabeça contra o peito de Ted.
– Eu sabia – sussurrou. – Eu sabia que nos viriam prender. E não
me esforcei o suficiente para salvar a minha família.
Percebia que era inevitável viver para sempre com aquele peso. Mas
não o conseguia tolerar. Por isso havia encontrado refúgio em Rose
Durand e, mais tarde, em Rose McKenna. Era impossível ser Rose
Picard. Rose Picard morrera na Europa, muito tempo antes, com a sua
família.
– A culpa não é tua – repetiu Ted. – Não podes continuar a
censurar-te.
Ela anuiu, sabendo ser esse o comportamento que se lhe exigia.
Afastou-se dele.
– E o Jacob Levy? – perguntou com uma voz neutra, olhando
finalmente para Ted.
Desta vez, foi ele que afastou o olhar.
– Querida Rose – disse. – O teu amigo Jacob morreu em Auschwitz.
Pouco tempo antes da libertação do campo.
Rose pestanejou algumas vezes. Sentiu-se como se alguém lhe
submergisse violentamente a cabeça. De repente, deixou de ver, de
respirar. Sentiu-se asfixiada.
– Tens a certeza? – perguntou, após um longo momento,
recuperando o fôlego.
– Lamento – disse Ted.
E a conversa terminara. Nesse dia, o mundo tornou-se um lugar
muito mais frio para Rose. Ela anuiu e afastou o olhar do marido. Não
viria a chorar. Não o conseguiria fazer. Tinha já morrido
interiormente, e chorar seria um sinal de vida. Como era possível viver
sem Jacob?
Jacob sempre lhe dissera que o amor os salvaria. E ela acreditara.
Não era, contudo, verdade. Ela fora salva, mas para que serviria existir
sem ele? Que significado teria a sua vida?
Foi nesse momento que surgiu, pela porta entreaberta, Josephine,
vestida com a camisa de noite cor-de-rosa, de algodão, que Rose lhe
costurara, e agarrada à sua boneca Cynthia.
– O que se passa, Maman? – perguntou Josephine, à entrada do
quarto, pestanejando com ar sonolento para os pais.
– Nada, querida – disse Rose, levantando-se e dirigindo-se
rapidamente para a porta, onde se ajoelhou junto da filha. Fitou aquela
menina e pensou que agora aquela era a sua família, que o passado
ficava para trás, que esta vida a obrigava a reagir.
Mas concluiu-o racionalmente, sem emoção.
Depois de voltar a deitar Josephine, embalando-a com uma canção
que a própria mãe lhe havia dedicado muitos anos antes, deitara-se ao
lado de Ted, às escuras, até sentir o seu peito subir e descer
serenamente e a sua mente entrar no domínio dos sonhos.
Rose levantou-se vagarosamente, em silêncio, e encaminhou-se para
o corredor. Subiu a escada estreita para o pequeno miradouro
gradeado construído no telhado da casa e deixou-se envolver pela
tranquilidade da noite.
A lua cheia elevava-se sobre a baía de Cape Cod, e Rose conseguia
ver o horizonte para além dos telhados das casas. A luz ténue da lua
refletia-se na água e, se olhasse para baixo, Rose quase poderia
acreditar que o mar tinha luz própria. Sucede, porém, que o que o
mundo lá em baixo exibia não lhe interessava. Esta noite, procurava no
firmamento as estrelas que tinha batizado. Maman. Papa. Hélène.
Claude. Alain. David. Danielle.
– Lamento – sussurrou ao céu. – Lamento muito.
Não obteve resposta. Conseguia ouvir, a pouca distância, as ondas
beijarem levemente a costa. O céu estava silencioso.
Percorria as estrelas com o olhar, murmurando pedidos de
desculpa, até começar a despontar o dia no horizonte, a leste. Ainda
assim, não o conseguia encontrar. Seria este o destino a que estava
condenada? Perdê-lo para sempre?
– Jacob, onde estás? – gritou, em vão, ao céu.
Mas não obteve resposta.
Capítulo 14

O ar de Paris torna-se mais sereno quando o dia começa a escurecer.


Primeiro, o céu adquire uma cor mais profunda, passando do violeta pálido
e indistinto do fim da tarde para o azul-celeste mais profundo da noite, com
pontos laranja-escuros e dourados no horizonte. Enquanto as estrelas
começam a ornar o manto do anoitecer, as nuvens frágeis acompanham o
pôr do sol, cada vez menos visível, criando tonalidades de rubi e cor-de-
rosa. Finalmente, a cor de safira dá lugar à escuridão da noite e as luzes de
Paris acendem-se, tão brilhantes e eternas como as estrelas. Estou na Pont
des Arts, com o Alain. A Torre Eiffel começa a brilhar, graças a um milhão
de pequenos pontos de luz, contra um céu de veludo.
– Nunca vi nada tão bonito – murmuro.
O Alain sugerira uma caminhada, pois precisava de fazer uma pausa nas
recordações. Estou ansiosa por ouvir a história do Jacob, mas não quero ser
insistente. Procuro nunca perder de vista que o Alain tem oitenta anos e
que, com toda a certeza, estas memórias são dolorosas e estavam há muito
adormecidas.
Estamos inclinados sobre o parapeito de uma das grades da ponte,
olhando para oeste, e, quando ele coloca delicadamente a sua mão sobre a
minha, sinto-me estremecer.
– A tua avó costumava dizer exatamente o mesmo – diz em voz baixa. –
Trazia-me aqui quando eu era miúdo, antes da Ocupação, e dizia-me que o
pôr do sol sobre o Sena era um espetáculo encenado por Deus, só para nós.
Sinto lágrimas nos olhos e abano a cabeça, tentando libertar-me delas,
para poder ver com nitidez.
– Sempre que me sinto só – diz o Alain – venho até aqui. Passei anos a
sonhar que Rose estava com Deus, a iluminar o céu para mim. Nunca
imaginei que, durante todo este tempo, ela estivesse viva.
– Temos de telefonar outra vez – digo. Marcámos o seu número antes de
sairmos de casa do Alain, mas ninguém atendeu; é provável que estivesse a
dormir, algo que ultimamente parecia fazer com mais frequência. – Temos
de lhe dizer que eu o encontrei. Mesmo sabendo que pode não me
compreender ou não se recordar do passado.
– Claro – diz o Alain. – E depois viajo contigo. No teu regresso a Cape
Cod.
Viro-me para ele, surpreendida.
– A sério? Vem comigo?
– Passei setenta anos sem família – responde, sorrindo. – Não quero
desperdiçar nem mais um momento. Tenho de ver a Rose.
Eu abro também um sorriso, de novo voltada para o por do sol.
Depois de os últimos raios de sol desaparecerem no horizonte e todas as
estrelas se revelarem, o Alain cruza o seu braço com o meu, e começamos a
percorrer lentamente o caminho que nos trouxera até ali, em direção ao
Louvre, que irradia uma luz discreta, refletida no rio que passa por baixo de
nós.
– Agora, vou falar-te do Jacob – diz o Alain num tom baixo, quando
começamos a atravessar o pátio do Louvre no sentido da rue de Rivoli.
Encaro-o e aquiesço, quase sustendo a respiração.
O Alain suspira e começa a sua narrativa com uma voz lenta e
comovida.
– Eu estava com a Rose quando ela o conheceu. Estávamos no final de
1940 e, embora Paris já tivesse sucumbido aos alemães, a vida ainda era
suficientemente normal para podermos acreditar que tudo acabaria bem. A
situação agravava-se, mas nunca imaginámos o que nos esperava.
Viramos à direita na rue de Rivoli, ainda repleta de transeuntes, apesar
de as lojas terem fechado. Alguns casais passeiam na noite escura, de mãos
dadas, sussurrando entre si, e, por momentos, consigo imaginar a Mamie e
o tal Jacob a percorrerem esta mesma rua há setenta anos. Estremeço num
calafrio.
– Foi amor à primeira vista, como eu nunca antes tinha visto e como
nunca mais encontrei – continua o Alain. – Não acreditaria se não o tivesse
presenciado. Contudo, parecia, desde o primeiro momento, que tinham
encontrado a outra metade do seu coração.
Ainda que a expressão possa ser piegas, há algo na gravidade da voz do
Alain que me faz acreditar nele.
– O Jacob esteve sempre connosco, desde o primeiro momento –
prossegue o Alain. – O meu pai não gostava dele. Considerava que ele
pertencia a uma classe inferior. O meu pai era médico, enquanto o pai do
Jacob era operário, trabalhava numa fábrica. Mas o Jacob era simpático,
amável e inteligente, e os meus pais acabaram por tolerá-lo. Dedicava-se
sempre a ensinar-me coisas e a brincar com o David e a Danielle.
O Alain faz uma pausa, e eu imagino que esteja a recordar o seu irmão e
a sua irmã, duas crianças há muito desaparecidas. Caminhamos em silêncio
durante algum tempo, e eu tento imaginar como será perder totalmente a
inocência em tão tenra idade e nunca a poder recuperar. Passamos junto ao
Hôtel de Ville, sede da Câmara de Paris, iluminado por uma luz ténue. O
Alain segura a minha mão para atravessarmos a rua e, quando começamos a
dirigir-nos para norte, para o Marais, não a liberta. Percebo que não quero
que o faça. Também sinto falta de uma família, agora que a minha mãe
partiu e a memória da minha avó quase desapareceu.
– Quando começaram a ser impostas as leis antissemitas e toda a nossa
vida se tornou mais difícil, o Jacob decidiu manifestar-se abertamente
contra os nazis, o que preocupou os meus pais – continua o Alain. – Sabes,
o meu pai queria acreditar que estaríamos a salvo por sermos mais
abastados. Queria acreditar que as pessoas estavam a exagerar, que os nazis
não pretendiam verdadeiramente fazer-nos mal. Já o Jacob compreendia
claramente o que estava a acontecer. Fazia parte de um movimento
clandestino. Estava convicto de que os nazis viriam varrer-nos a todos da
face da Terra. Tinha razão, é claro.
– Recordando o passado, pergunto-me porque não conseguiram os meus
pais avaliar a situação com mais clareza – diz o Alain. – Penso que não
queriam crer que o nosso país nos poderia voltar as costas. Queriam
acreditar no melhor cenário. E, quando o Jacob dizia a verdade, eles não
queriam escutar. O meu pai indignava-se e acusava-o de trazer mentiras e
propaganda para nossa casa. Só a Rose e eu acreditávamos nele. – A voz do
Alain é cava, quase um sussurro. – E foi isso que nos salvou.
Caminhamos um pouco mais em silêncio. O som dos nossos passos
ecoa nas paredes de pedra que nos rodeiam.
– Onde está agora o Jacob? – acabo por perguntar.
O Alain detém-se e olha para mim. Abana a cabeça.
– Não sei – diz. – Não sei sequer se ainda é vivo – acrescenta, partindo-
me o coração. – Conversámos pela última vez em 1952, quando o Jacob
partiu para a América – explica o Alain. Eu arregalo os olhos.
– Ele emigrou para os Estados Unidos?
– Sim – confirma o Alain. – Não sei para que região. Mas, como
calculas, isso aconteceu há quase sessenta anos. Ele teria agora oitenta e
sete anos. É bem possível que já não esteja vivo. Lembra-te de que ele
passou dois anos em Auschwitz, Hope. Isso deixa marcas.
Mantenho-me em silêncio no final do percurso até ao prédio do Alain.
Não consigo aceitar o facto de a minha avó e o homem que foi claramente o
amor da sua vida terem vivido no mesmo país durante sessenta anos sem
saberem que o outro havia sobrevivido. Contudo, se o Jacob a tivesse
encontrado durante a guerra, a minha mãe poderia não ter nascido e eu,
naturalmente, também não. Será que se cumpriu o destino? Ou será que a
minha própria existência é a negação do verdadeiro amor?
– Tenho de tentar encontrá-lo – digo, enquanto o Alain introduz o
código no teclado à direita da porta. Segura a porta e convida-me a entrar.
– Sim – limita-se a dizer.
Sigo-o até ao apartamento, ainda desconcertada.
– Tentamos novamente telefonar à Rose? – sugere, depois de trancar a
porta.
– Sim, mas não se esqueça de que ela tem dias bons e dias maus –
recordo. – É bem possível que não compreenda quem o Alain é. Está muito
diferente do que era no passado.
– Estamos todos diferentes – diz ele, sorrindo.
– Compreendo.
Consulto o relógio. São quase dez horas, quatro em Cape, uma fase do
dia em que a Mamie está provavelmente a cumprir o ritual de observação
do pôr do sol; é comum entre os doentes com demência perder
progressivamente alguma lucidez ao longo do dia.
– Podemos mesmo utilizar o seu telefone? – pergunto. – A chamada é
cara.
O Alain ri-se.
– Mesmo que custasse um milhão de euros, eu diria que sim.
Sorrio, pego no auscultador e marco o indicativo 001, seguido do
número da Mamie. Ouço seis toques e acabo por desligar.
– Que estranho – digo. Volto a consultar o relógio. A Mamie não
participa nas atividades sociais do lar. Acha que o bingo é para crianças.
Logo, já deveria estar no seu apartamento. Talvez tenha marcado mal o
número.
Tento novamente e, desta vez, deixo tocar oito vezes antes de desligar.
O Alain olha-me com uma expressão carregada e eu, apesar de atordoada
por um mau pressentimento, forço um sorriso.
– Não atende, mas é possível que a minha filha tenha ido dar um passeio
com ela ou algo semelhante.
O Alain concorda, mas parece preocupado.
– Não se importa que tente falar com ela? – pergunto. – Com a minha
filha?
– Claro que não – diz o Alain. – Está à vontade.
Marco o indicativo 001 e, em seguida, o número do telemóvel da Annie.
Ela atende logo após meio toque.
– Mãe? – diz. Percebo imediatamente na sua voz que algo está errado.
– O que se passa, querida? – pergunto.
– É a Mamie – diz ela com voz trémula. – Teve… teve um AVC.
O meu coração dá um salto e eu ergo os olhos para o Alain, aturdida.
Sei que a minha expressão lhe diz tudo.
– Ela está…? – começo, sem concluir a frase.
– Está no hospital – diz a Annie. – Mas não está bem.
– Meu Deus. – Fito o Alain, que parece apavorado.
– O que aconteceu? – inquire ele.
Cubro o auscultador com a mão e digo:
– A minha avó teve um AVC. Está no hospital.
O Alain tapa a boca com a mão, abalado, e eu volto a concentrar-me na
minha filha.
– Querida, estás bem? Quem está contigo?
– Mr. Keyes – balbucia.
– O Gavin? – pergunto, confusa. – Mas onde está o teu pai?
– Ainda a trabalhar – diz. – Eu… tentei telefonar-lhe, mas a assistente
disse que ele estava ocupado com um julgamento importante. Prometeu que
me telefonaria quando o tribunal fizesse uma pausa.
Fecho os olhos e tento respirar.
– Lamento muito não estar aí contigo, querida. Partirei logo que
possível. Prometo.
– Tentei telefonar-te para o hotel – diz a Annie num sussurro. – Onde
estavas?
Volto-me para o Alain, que tem lágrimas nos olhos.
– Tenho muito para te contar, Annie – digo. – Falamos logo que eu
chegue, está bem?
– Está bem – responde com a mesma voz frágil.
– Posso falar um momento com o Gavin?
Ela não responde, mas eu ouço-a passar o telefone.
– Estou? – diz ele ao fim de algum tempo. Só quando ouço a voz dele
solto um suspiro que, sem saber, estava a reprimir.
– Gavin, o que se passou? – pergunto de imediato. Sei que devo
começar por lhe agradecer por, mais uma vez, ter ido em meu socorro, mas
só consigo pensar na Mamie e no modo como a Annie está a enfrentar a
situação.
– Hope, a tua avó teve um AVC, mas já a estabilizaram – esclarece. Ele
procura manter uma voz formal, mas transmite uma suavidade
reconfortante. – Não recuperou a consciência, mas está a ser acompanhada.
Ainda é cedo para perceber que danos sofreu.
– Como… O que…? – A minha voz desvanece-se, pois não sei o que
perguntar. Volto a fitar o Alain com uma expressão de impotência. Ele
recosta-se numa cadeira diante de mim e observa-me com os olhos
húmidos. – Como é que soubeste? – acabo por perguntar.
– A Annie telefonou-me – explica o Gavin rapidamente. – Estava em
casa do pai. Creio que o lar da tua avó ainda tinha o número da tua antiga
casa como um dos contactos de emergência, e uma enfermeira ligou para lá.
A Annie atendeu e, como não conseguiu contactar ninguém que a trouxesse
ao hospital, telefonou-me.
– Desculpa – murmuro. – Aliás, obrigada.
– Não digas tolices, Hope – replica o Gavin. – Ajudei a Annie com todo
o gosto. Ainda bem que me contactou. Eu estava mesmo ao fundo da rua, a
terminar uma reparação em casa da Joan Namvar, por isso pude logo ir
buscá-la.
Fecho os olhos.
– Obrigada, Gavin. Nem sei como te agradecer.
– Não precisas de o fazer – diz com naturalidade.
– Ela está bem? – pergunto. – A Annie?
– Sim – responde ele. – Abalada, mas bem. Não te preocupes;
permanecerei com ela até o teu ex-marido terminar o trabalho.
– Obrigada – sussurro. – Hei de compensar-te, Gavin.
– Não te preocupes – repete. Respiro fundo.
– Apanharei o primeiro avião que conseguir. – Não sou especialista em
aceitar favores das pessoas e sei que este me fará sentir culpada durante
muito tempo.
– E tu, Hope? Estás bem? – indaga o Gavin.
Pestanejo algumas vezes para evitar as lágrimas. Nunca ninguém me faz
esta pergunta.
– Sim – minto. – Posso falar novamente com a Annie?
– Claro – diz o Gavin. – Sê forte. Vemo-nos em breve. – Ouço-o
devolver o telefone e volto a ter a Annie do outro lado.
– Mãe? – murmura.
– Ouve, lamento o que aconteceu com o teu pai – digo. – Vou telefonar-
lhe agora mesmo para assegurar que…
– Eu estou bem, mãe – interrompe a Annie. – Mr. Keyes está comigo.
Suspiro e aperto a cana do nariz com os dedos.
– Estarei aí logo que possa, querida – asseguro.
– Eu sei – diz a Annie.
– Adoro-te, querida.
A Annie responde alguns segundos depois.
– Eu sei. – Mas acrescenta: – E eu a ti.
Só nesse momento começo a chorar.

O Alain telefona a todas as companhias aéreas enquanto eu procuro, a


muito custo, manter-me controlada. Caminho de um lado para o outro do
apartamento, sentindo-me um animal enjaulado. Pela milésima vez,
imagino a Annie a chorar na sala de espera, confortada apenas pelo Gavin
Keyes. Ele tem-nos tratado maravilhosamente nos últimos meses, mas ela
não o conhece muito bem e deve estar apavorada com a situação da Mamie.
Era o pai que devia estar a seu lado, não o Gavin. Logo que o Alain
desligue o telefone, tenciono ligar ao Rob para o pôr em sentido.
– Troquei o teu bilhete – diz-me o Alain quando finalmente desliga – e
comprei um para mim. O primeiro voo direto que encontrei é o das treze e
vinte e cinco, que aterra em Boston pouco depois das três. Havia voos mais
cedo a partir de Paris mas, com as escalas, chegaríamos a Boston mais
tarde.
Pestanejo e acedo; o tempo que nos separa das treze e vinte e cinco de
amanhã parece uma eternidade.
– Obrigada – digo. – Quanto tenho de lhe pagar? – Sei que, neste
momento, não deveria estar a pensar em questões financeiras, mas sei que,
no final, terei gasto muito mais do que os mil dólares que a Mamie me
confiou. Não tenho ideia de como irei pagar todas estas despesas.
O Alain parece confuso.
– Que tolice – responde. – Não é altura para nos preocuparmos com
isso. Temos de chegar rapidamente a Boston para ver a Rose.
Acabo por me conformar. Insistirei mais tarde. Não tenho forças para o
fazer agora.
– Obrigada – digo em voz baixa.
Pergunto ao Alain se posso utilizar mais uma vez o seu telefone, e ele
observa-me atentamente enquanto falo primeiro com a assistente do Rob e,
depois de a persuadir a fazer a ligação, com o próprio Rob, sempre num
tom severo.
– Credo, Hope, vou logo que possível – diz o Rob. – Estou a meio de
uma audiência importante. A Annie não corre propriamente risco de vida.
– A tua filha está no hospital, sozinha e assustada – digo, rangendo os
dentes. – Isso não te interessa?
– Já disse que vou logo que possível – repete.
– Sim, ouvi à primeira – atiro. – E soaste igualmente egoísta.
Quando pouso o auscultador, percebo que estou a tremer. O Alain
atravessa a sala e abraça-me. Hesito por um momento, mas retribuo o gesto.
– Não és casada com o pai da Annie? – pergunta o Alain após alguns
instantes, levando-me a constatar que, entre tantas conversas a respeito da
Mamie, quase não lhe falei sobre mim.
– Não – afirmo. – Separámo-nos.
– Lamento – diz o Alain.
– Não há nada a lamentar – respondo, encolhendo os ombros. – É
melhor assim. – Tento parecer mais descontraída e despreocupada do que na
verdade me sinto. Porém, vejo no olhar do Alain que ele não se deixa iludir
pela minha aparente indiferença. Felizmente, não me faz mais perguntas.
– Podes passar aqui a noite, se preferires – diz o Alain. – Mas imagino
que tenhas de ir ao hotel buscar as tuas coisas.
– Sim, tenho de fazer as malas – digo entorpecida. – E pagar a conta.
– Esta noite não vou dormir – diz o Alain. – Tenho demasiado em que
pensar. De manhã, regressa à hora que te convier. Por muito cedo que seja.
Tomaremos o pequeno-almoço juntos antes de partirmos para o aeroporto.
Aceno afirmativamente.
– Obrigada – murmuro.
– Obrigado eu – diz o Alain. Aperta as minhas mãos e beija-me em
ambas as faces. – Devolveste-me a minha família.

Também não consigo dormir naquela noite, apesar de o ter tentado.


Sinto vergonha de me acomodar sob os cobertores, enquanto a minha filha
permanece só e assustada a milhares de quilómetros de distância. Tento
telefonar à Annie mais duas vezes, mas ela não atende; a chamada segue
diretamente para as mensagens de voz, e eu interrogo-me se o telefone terá
ficado sem bateria. Por volta das quatro da manhã, hora de Paris, ligo para o
telemóvel do Gavin, e ele diz-me que saiu do hospital quando o Rob lá
chegou, por volta das sete da tarde. Tanto quanto sabe, o estado da Mamie
não se alterou desde então.
– Procura descansar, Hope – diz o Gavin num tom terno. – Não era
possível regressares mais cedo. E não ajudas ninguém mantendo-te
acordada neste momento.
Balbucio um agradecimento e desligo. Quando dou por mim, estou a
olhar fixamente um relógio que me assegura serem 5h45. Não me lembro
de ter ado rmecido.
Chego a casa do Alain às sete, depois de tomar um duche, enfiar as
minhas coisas no saco de viagem, pagar a conta e chamar um táxi ao hotel.
O Alain está já vestido para viajar, envergando umas calças informais,
uma camisa com botões no colarinho e uma gravata azul-marinho, quando
me abre a porta. Dá-me um beijo em cada face e abraça-me.
– Vejo que também não dormiste muito – diz.
– Quase nada.
– Entra – convida, dando-me passagem. – Está cá o meu amigo Simon.
Ele conhecia a nossa família antes da guerra. E o meu amigo Henri.
Também é sobrevivente. Querem conhecer-te.
Sinto um nó na garganta enquanto sigo o Alain pelo apartamento. Na
sala de estar, dois homens bebem pequenas chávenas de café à janela,
enquanto a luz do sol invade a divisão, iluminando os cabelos brancos de
ambos, da cor da neve. Quando entro, os dois erguem-se e sorriem, e eu
noto que, além de parecerem ainda mais velhos do que o Alain, têm as
costas bastante curvadas.
O que está mais próximo de mim intervém primeiro. Os seus olhos estão
húmidos.
– O Alain tem razão. A menina parece-se mesmo com a Rose –
sussurra.
– Simon – diz o Alain, entrando na sala logo atrás de mim. – Esta é a
minha sobrinha. Hope McKenna-Smith. Hope, este é o meu amigo Simon
Ramo. Ele conhecia a tua avó.
– A menina é muito parecida com ela – assegura. Avança alguns passos
para vir ter comigo ao centro da sala. Enquanto se inclina para me beijar em
ambas as faces, apercebo-me de duas coisas: ele está a tremer e, além disso,
tem um número tatuado na parte interna do antebraço esquerdo.
Ele nota que o número me chamou a atenção.
– Auschwitz – diz simplesmente. Aceno com a cabeça e afasto
rapidamente o olhar, embaraçada.
– Tive a mesma sorte – afirma o outro homem. Ergue o braço esquerdo
e eu vejo uma tatuagem semelhante, com a letra B seguida de cinco
algarismos. Ele avança, beija-me nas duas faces e regressa para junto da
janela, sorrindo. – Não conheci a sua avó – diz. – Mas era certamente muito
bonita, pois a menina também o é.
Sorrio timidamente.
– Obrigada.
– Chamo-me Henri Levy.
O meu coração palpita e eu olho para o Alain.
– Levy?
– É um apelido comum – apressa-se a explicar o Alain. – Não tem
qualquer parentesco com o Jacob.
– Oh… – digo, sentindo-me estranhamente desalentada.
– Sentamo-nos? – sugere Henri, apontando para as cadeiras. – O seu tio
esquece-se de que tenho noventa anos. Ele é, como direi…?
– Um rapazote?
Eu rio-me e o Alain sorri.
– Sim, um rapazote – graceja o Alain. – Deve ser exatamente isso que a
Hope vê quando olha para mim.
– Hope, não dê ouvidos a estes velhotes – diz o Simon, regressando com
dificuldade à sua cadeira. – Temos a idade que sentimos. E eu, hoje, sinto
que estou nos trinta e cinco.
Sorrio e, instantes depois, o Alain oferece-me uma chávena de café
expresso, que aceito com prazer. Acomodamo-nos em quatro cadeiras da
sala de estar, e o Simon inclina-se para a frente.
– Sei que me estou a repetir – começa. – Mas o seu rosto faz-me recuar
no tempo. A sua avó era, e continua a ser, com certeza, uma mulher
maravilhosa.
– Ele sempre teve um fraquinho por ela – interpõe o Alain com um
sorriso aberto. – Mas tinha onze anos, como eu. Ela podia ser babysitter
dele.
O Simon abana a cabeça e lança um olhar de desdém ao Alain.
– Ora, ela também tinha um fraquinho por mim – afirma. – Só que ainda
não sabia.
– Estás a esquecer-te do Jacob Levy – escarnece o Alain.
O Simon revira os olhos.
– O meu grande rival na conquista da Rose.
O Alain volta-se para mim.
– O Jacob era inimigo de Simon, mas apenas na cabeça deste meu
amigo – explica. – Para todos os outros, o Jacob era um príncipe encantado
e o Simon era um sapo em miniatura com dois palitos em vez de pernas.
– Então?! – exclama o Simon. – As minhas pernas cresceram
lindamente, muito obrigado. Aponta para as pernas e pisca-me o olho,
fazendo-me rir novamente.
– Agora – diz o Henri, segundos depois –, talvez a Hope nos possa falar
um pouco sobre si. Embora seja muito interessante discutir as pernas do
Simon.
Os três homens observam-me expectantes, e eu pigarreio, subitamente
nervosa por ter de assumir o papel principal.
– Bom… o que gostariam de saber?
– Alain diz-nos que tem uma filha? – indaga o Henri.
– Sim – confirmo. – A Annie. Tem doze anos.
O Simon sorri.
– E que mais, Hope? – pergunta. – Qual é a sua profissão?
– Tenho uma confeitaria. – Lanço um olhar nervoso ao Alain. – A
minha avó abriu-a em 1952. Utilizo apenas as receitas da família, que ela
aprendeu aqui em Paris.
O Alain abana a cabeça e volta-se para os seus amigos.
– É incrível, não é? Que ela tenha mantido a tradição da nossa família
viva durante todos estes anos?
– Seria mais incrível – diz o Henri – se nos tivesse trazido alguns bolos
para o pequeno-almoço. Já que tu, Alain, não te deste ao trabalho de
comprar nenhum.
O Alain faz um gesto trocista de rendição e o Simon inclina a cabeça
para o lado.
– Talvez a Hope nos possa falar de alguns dos seus bolos – sugere. –
Para podermos imaginar que os saboreamos.
Rio-me e começo a descrever alguns dos meus preferidos. Falo-lhes dos
Strudels que preparamos, bem como dos cheesecakes. Menciono as tartes
das estrelas da Mamie e o facto de serem praticamente idênticas às fatias de
tarte que eu encontrara na confeitaria ashkénaze no dia anterior.
Os três homens sorriem e mostram-se entusiasmados, mas algo se altera
quando começo a enumerar algumas das nossas outras especialidades: as
luas em quarto crescente com o leve aroma da flor de laranjeira, os
saborosos biscoitos de anis e funcho, os doces bolos de pistácio embebidos
em mel.
Eles observam-me desconcertados, e o Simon parece ter visto um
fantasma. Fica sem pinta de sangue. Tento sorrir, constrangida.
– O que se passa? – pergunto.
– Esses bolos não existem em nenhuma confeitaria tradicional judaica
que eu conheça – diz o Henri. – A sua avó nunca teria aprendido essas
receitas com a família.
Apercebo-me que trocam olhares entre si.
– O que se passa? – insisto.
É o Simon o primeiro a responder.
– Hope – diz ele com delicadeza, já sem o tom bem-humorado. – Penso
que esses bolos são muçulmanos. Do norte de África.
Olho-o com um ar incrédulo.
– Bolos muçulmanos? – Abano a cabeça. – Como?
O Henri e o Simon voltam a olhar-se de relance. O Alain parece
começar agora a entendê-los. Faz uma pergunta em francês e, quando o
Simon responde, o Alain murmura:
– Não pode ser verdade? Ou pode?
– De que estão a falar? – pergunto, inclinando-me para a frente. Eles
estão a deixar-me nervosa. Os três homens ignoram-me e trocam
velozmente algumas palavras em francês. O Alain consulta o relógio, acena
com a cabeça e levanta-se. Os seus dois amigos fazem o mesmo.
– Vem, Hope – diz o Alain. – Há uma coisa que precisamos de fazer.
– O quê? – inquiro, totalmente desorientada. – Temos sequer tempo?
O Alain volta a consultar o relógio e eu imito o seu gesto. São quase
oito horas.
– Teremos de encontrar tempo – declara. – Isto é importante. Vamos.
Traz as tuas coisas.
Agarro o meu saco de viagem e caminho atrás deles, enquanto
abandonamos em silêncio o apartamento.
– Aonde vamos? – pergunto, quando já nos encontramos na rue de
Turenne. O Henri estende o braço para chamar um táxi.
– À Grand Mosquée de Paris – diz o Simon. – A Grande Mesquita.
Não escondo a minha perplexidade.
– Espere lá, vamos a uma mesquita?
O Alain estende a mão e toca-me suavemente na face.
– Confia em nós, Hope – Os seus olhos cintilam e ele sorri. –
Explicamos-te pelo caminho.
Capítulo 15

– Nunca soubemos se devíamos acreditar nos rumores – começa o Alain


depois de nos apertarmos todos num táxi e iniciarmos a agitada viagem para
sul, em direção ao rio. Lá fora, as ruas dão os primeiros sinais de vida,
enchendo-se de transeuntes, enquanto o sol começa a aquecer a cidade e a
animar os edifícios com uma luz da cor do limão.
– Quais rumores? – pergunto. – A que se refere?
O Alain e o Simon trocam olhares. O Henri intervém primeiro.
– Havia rumores de que os muçulmanos de Paris tinham ajudado muitos
judeus durante a guerra – diz ele com uma voz inexpressiva.
Surpreendida, procuro com o olhar o Alain, que confirma.
– Espere lá, está a dizer-me que muçulmanos salvaram judeus?
– Nunca tivemos notícias dessa natureza durante a guerra – afiança o
Simon. Depois de olhar para o Alain, acrescenta: – Bom, quase nunca.
O Alain confirma.
– O Jacob disse-me, certo dia, algo que me deixou pensativo… – A sua
voz desvanece-se e ele abana a cabeça. – Mas, na verdade, nunca acreditei.
– Houve um período – diz o Henri – em que, de certo modo, nos
considerávamos irmãos. Os judeus e os muçulmanos. Os muçulmanos não
foram perseguidos como nós durante a guerra, mas sempre foram tratados
como intrusos, à semelhança dos judeus. Imagino que alguns muçulmanos
se identificassem pessoalmente com o sofrimento dos judeus. Quem poderia
assegurar que o país não lhes viraria as costas a seguir?
– Surgiu, então, o rumor de que eles nos ajudavam – afirma o Simon. –
Eu nunca soube se isso era verdade.
– Como assim? – pergunto.
– Os rumores indicavam que eles proporcionavam alojamento ou abrigo
a muitas crianças cujos pais foram deportados, bem como a alguns adultos –
explica o Alain. – E que acabaram por ajudar muitas pessoas, através de
redes clandestinas, a alcançar a zona livre. Em alguns casos, conseguiram
arranjar-lhes documentos falsos.
– Está a dizer-me que muçulmanos ajudaram a sair clandestinamente
judeus de Paris? – pergunto. Abano entretanto a cabeça; é difícil acreditar.
– O líder da Grande Mesquita de Paris era, na época, o muçulmano mais
poderoso da Europa – conta o Henri, olhando para o Alain. – Si Kaddour
Beng… comment s’est-il appelé?
– Benghabrit – esclarece o Alain.
– Sim, isso mesmo – assente o Henri. – Si Kaddour Benghabrit. O
governo francês receava tocar-lhe. E é possível que ele tenha utilizado o seu
poder e a sua influência para salvar muitas vidas.
Abano a cabeça e observo atentamente, pela janela do táxi, Paris a
desfilar ao nosso lado. Quando atravessamos uma ponte e aceleramos em
direção à Rive Gauche, vejo à direita as torres de Notre-Dame, recortadas à
distância contra o céu. Mais longe, ouço sinos de igreja assinalarem a hora
certa.
– Está então a dizer-me que talvez tenha sido uma dessas redes que
ajudou a avó a sair de Paris? Que ela pode ter sido ajudada pelos
muçulmanos da Grande Mesquita?
– Isso explicaria como aprendeu a preparar bolos muçulmanos – diz o
Alain.
– E esclareceria muitas dúvidas – acrescenta Henri. – Dificilmente
haverá registos. Ninguém fala sobre o que aconteceu. Os segredos desse
tempo morreram nesse tempo. Hoje, existe muita tensão entre os grupos
religiosos. É impossível saber se é verdade.
– E se for mesmo verdade? – sussurro. Subitamente, recordo-me das
últimas palavras que a Mamie me dirigiu quando insisti em que me
respondesse se era ou não judia. Sim, sou judia, dissera. Mas também
católica. E muçulmana. Compreendo, arrepiada, o significado destas
palavras e os meus olhos arregalam-se.
O táxi estaciona diante de um edifício branco com telhas de cor verde
intensa, arcos adornados e cúpulas reluzentes.
Eleva-se do edifício um minarete com ornamentos verdes que, embora
ostente pormenores indiscutivelmente marroquinos, se assemelha bastante a
qualquer uma das torres de Notre-Dame por que acabámos de passar. Ecoa-
me nos ouvidos outra frase da Mamie. É a humanidade que cria as
diferenças, disse-me na semana passada. Isso não significa que o Deus não
seja o mesmo.
O Henri paga ao motorista e saímos todos do táxi. Dou-lhes a mão para
ajudá-los, enquanto eles estendem as pernas e saem para o passeio.
– Noutros tempos, eu conseguia fazer isto sozinho – diz o Henri com
um sorriso. Pisca-me o olho, e seguimos os quatro em direção a uma
entrada em arco numa esquina do edifício.
– Se aqui ninguém fala sobre o passado – sussurro ao Alain enquanto
atravessamos o pequeno pátio –, o que viemos cá fazer?
Ele enlaça o seu braço no meu e sorri.
– Ver os bolos – diz.
O pátio está repleto de focos de luz solar que, ao atravessarem as
árvores, criam sombras nos ladrilhos brancos do pavimento. No centro do
pátio, e ao longo das paredes, existem pequenas mesas com azulejos azuis e
brancos, todas com cadeiras de madeira que, nos assentos e nas costas, têm
fio entrançado de um azul muito vivo. As paredes são escaladas por plantas
de um verde muito intenso e flores amarelas. Entre as mesas, vão saltitando
pardais. Além de ser calmo e tranquilo, o edifício está de tal forma deserto
que seguramente ainda não abriu.
Um homem árabe de meia-idade, vestido integralmente de preto,
aborda-nos e diz algumas palavras em francês. O Alain responde e faz um
gesto na minha direção; durante um minuto, os quatro homens falam
rapidamente num francês que não consigo entender. A princípio, o homem
abana a cabeça, mas acaba por encolher os ombros e convidar-nos a subir
com ele uma pequena escada de acesso ao edifício principal.
No seu interior, à entrada, encontra-se um homem mais jovem, de
cabelo escuro e pele cor de azeitona, de aproximadamente vinte e cinco
anos, a colocar bolos num expositor de vidro, e, quando eu olho para o seu
interior, o meu coração dá um pulo. Ali, no expositor, estão inúmeros bolos,
quase metade dos quais são exatamente idênticos aos bolos que preparo na
minha confeitaria. Há delicadas luas em quarto crescente polvilhadas com
açúcar em pó da cor da neve; pequenos bolos verde-claros envolvidos por
massa branca e coroados com minúsculos pedaços de pistácio; pedaços de
baklava embebidos em mel; e bolos de amêndoa húmidos com uma cereja
ao centro. Vejo rolos de massa fina com açúcar; grossas fatias de um bolo
açucarado com amêndoas; e mesmo os pequenos e densos anéis de canela
que a Annie adora desde criança.
O meu coração agita-se quando ergo os olhos para o Alain.
– São os mesmos? – pergunta ele.
Aceno lentamente com a cabeça.
– São os mesmos – confirmo.
Ele sorri, com os olhos subitamente lacrimejantes, e dirige-se ao homem
mais velho, que nos observa com um ar severo. Trocam algumas frases em
francês e, em seguida, o Alain volta-se para mim.
– Hope, podes explicar como são os teus bolos? Contei-lhe o que
pensamos poder ter acontecido à Rose.
Sorrio para o nosso anfitrião, que parece pouco convencido.
– Os bolos que preparam aqui – digo – são idênticos aos que a minha
avó me ensinou a fazer. São os mesmos que vendemos na nossa confeitaria
de Cape Cod.
O homem abana a cabeça.
– Isso não tem qualquer significado. São bolos comuns. E há muitos
judeus provenientes do norte de África. Além disso, estes bolos não são
apenas muçulmanos. A sua avó pode ter aprendido a prepará-los em
qualquer lado. Provavelmente aprendeu com outro judeu.
Perco algum alento. De facto, é uma tontice basearmos toda uma ideia
do passado num conjunto de bolos.
– Claro – murmuro. – Peço desculpa. – Agradeço com um gesto e
afasto-me.
O Alain coloca a mão no meu braço.
– Hope? – diz. – Estás bem?
Aceno que sim, mas sem convicção. Não sei como lhe responder, pois
sinto que estou prestes a chorar e não compreendo bem porquê. Por
qualquer motivo, que não entendo, é muito importante para mim conseguir
explicar o que aconteceu à Mamie. Neste momento, estou certa de que ela
pretendia que eu soubesse mais sobre o seu passado. Porém, agora talvez
nunca venhamos a saber como se manteve viva durante a guerra.
– Vamos – consigo por fim dizer. O homem vestido de preto faz um
gesto seco e distancia-se, enquanto Henri e Simon começam a dirigir-se
para a saída. O Alain e eu seguimo-los, mas eu sinto de repente um aroma
familiar e paro de imediato. Volto-me lentamente e vejo o jovem atrás do
balcão introduzir um tabuleiro com bolos retangulares, polvilhados com
açúcar, no expositor. Regresso até junto dele.
– Peço desculpa – digo. – Será que vende, porventura… – Faço um
esforço para recordar o nome do bolo que encontrei na confeitaria do
Marais. – Ronde des pavés?
O homem observa-me.
– Ronde des pavés? – repete. – Não falo bem o inglês. Mais, non, não
sei o que é ronde des pavés.
– Pois… – Olho em volta à procura do Alain. Ele vem ter comigo ao
balcão.
– Importa-se de perguntar a este homem se ronde des pavés é uma tarte
confecionada com sementes de papoila, amêndoas, uvas, figos, ameixas
secas e açúcar com canela? Pode perguntar-lhe se a receita lhe parece
familiar?
Sei que devo estar a enlouquecer, mas poderia jurar que senti no ar o
aroma da tarte das estrelas. Antes da tradução do Alain, ele fita-me com
uma expressão estranha.
– Essa era a receita da minha mãe – diz.
– É a especialidade da nossa confeitaria – digo-lhe, mais animada. – E o
bolo preferido da minha avó.
O Alain fita-me, pestaneja algumas vezes e, em seguida, volta-se para o
homem e traduz rapidamente as minhas palavras. Vejo o jovem anuir e dar
uma resposta. O Alain vira-se para mim.
– Ele confirma. Diz, porém, que aqui fazem as tartes isoladamente e
cada crosta tem a forma de uma estrela.
– Foi assim que a Mamie me ensinou a fazê-las – digo lentamente,
atónita. – Chama-lhes tartes das estrelas.
O Alain afaga a cabeça. Ao meu lado, o Simon e o Henri permanecem
em silêncio. Todos olhamos fixamente para o jovem enquanto o Alain lhe
explica, em francês, o que são as tartes das estrelas. Os seus olhos
arregalam-se e ele olha nervosamente para mim e depois, de novo, para o
Alain. Diz rapidamente algumas palavras em francês e o Alain volta a
esclarecer-me.
– Ele mencionou um homem que vive no sixième arrondissement – diz
o Alain. – Não muito longe daqui. A sua família possui uma confeitaria
muçulmana. A receita é desse homem. Talvez nos consiga explicar a origem
das tartes.
Aquiesço e olho timidamente para o jovem.
– Obrigada – digo. – Merci beaucoup.
– De rien. – Baixa a cabeça delicadamente e sorri. – Bonne chance.
Enquanto sigo o Alain e os seus dois amigos no regresso ao pátio, a
caminho da saída, o meu coração esmaga-me o peito.
– Acredita que as tartes tenham algo a ver com a minha avó? –
pergunto.
– É impossível saber – diz o Alain. Contudo, o brilho dos seus olhos e o
passo acelerado revelam uma esperança que me contagia.
Chamamos um táxi e viajamos em silêncio, durante quinze minutos, até
chegarmos ao local que o jovem nos indicou. Trata-se de uma pequena
confeitaria, de aspeto tipicamente francês, exceto no letreiro, escrito em
árabe e em francês. No seu interior, o aroma a fermento é intenso, e as
paredes estão repletas de baguetes colocadas na vertical. O expositor
principal é uma sequência interminável de bolos salpicados de frutos e
açúcar cristalizado. Reconheço de imediato as grandes tartes das estrelas,
com a sua crosta entrançada que preparo há tantos anos, e o meu coração
volta a palpitar; é seguramente um sinal de que estamos no bom caminho.
Perguntamos à jovem que se encontra atrás do balcão se podemos falar
com o proprietário e, pouco depois, surge de uma divisão interior um
homem alto, de meia-idade, com pele cor de caramelo e cabelo muito
negro, apenas grisalho nas têmporas. Usa um avental de padeiro, branco e
imaculado, sobre umas calças caqui perfeitamente engomadas e uma camisa
azul-clara com botões no colarinho.
– Ah, sim, Sahib telefonou-me da mesquita informando-me de que
estavam a caminho – diz, depois de nos saudar aos quatro. – Chamo-me
Hassan Romyo, e os senhores são muito bem-vindos ao nosso
estabelecimento. Receio, porém, não vos poder ajudar.
Volto a sentir-me desalentada.
– O senhor não conhecerá a origem da receita das tartes com a crosta em
forma de estrela? – pergunto em voz baixa, apontando para as tartes do
expositor. Ele abana a cabeça.
– Sou proprietário desta confeitaria há já vinte anos – explica-me – e a
receita está connosco desde que me lembro. Antes de mim, já era feita pela
minha mãe, mas ela morreu há bastante tempo. Sempre pensei tratar-se de
uma receita da família.
– É uma receita judaica – interpõe delicadamente o Alain. Monsieur
Romyo observa-o, arqueando as sobrancelhas. – Foi trazida pela mãe da
minha avó, desde a Polónia, há muitos anos.
– Judaica? – pergunta Monsieur Romyo. – E polaca? Está seguro do que
diz?
O Alain confirma.
– É exatamente a mesma receita que os meus avós utilizavam na sua
confeitaria, antes da Segunda Guerra Mundial. Julgamos ser possível que,
durante a guerra, a minha irmã tenha ensinado a sua família a confecionar
esta tarte.
Monsieur Romyo fita o Alain durante vários segundos e acaba por
ceder.
– Alors. Os meus pais já faleceram, mas eram jovens durante a guerra.
Apenas crianças. Não teriam seguramente memórias desse tempo. Contudo,
o tio da minha mãe talvez saiba o que aconteceu.
– Ele está aqui? – pergunto.
Monsieur Romyo ri-se.
– Não, madame. É muito velhinho. Tem setenta e nove anos.
– Setenta e nove anos não é assim tanto – sussurra o Henri atrás de mim.
Monsieur Romyo parece não o ter ouvido.
– Vou telefonar-lhe agora – anuncia. – Mas devo dizer-lhe que ele é
quase surdo. É difícil conversar com ele.
– Peço-lhe que tente – digo num sussurro. Ele anui.
– Admito que agora também estou curioso.
Coloca-se atrás do balcão, pega num telemóvel e percorre a lista de
contactos e após alguns instantes, seleciona um número.
Só quando o ouço dizer «Allô? Oncle Nabi?» me apercebo de que
estava a suster a respiração. Expiro lentamente.
Apesar de não compreender o que ele diz, ouço-o falar muito alto para o
telemóvel, repetindo-se várias vezes. Por fim, afasta o telefone e dirige-se a
mim.
– A propósito desta tarte das estrelas… – começa. – O meu tio afirma
que a família dele aprendeu a receita com uma jovem.
O Alain e eu trocamos olhares.
– Quando? – atiro ansiosamente.
Monsieur Romyo fala mais uma vez para o telefone e repete depois o
que disse em voz mais alta.
– Durante l’année mille neuf cents quarante-deux – diz. – Mil
novecentos e quarenta e dois.
– Será possível…? – pergunto baixinho ao Alain. Volto-me para
Monsieur Romyo. – O seu tio tem alguma memória dessa jovem?
Ele repete a minha pergunta, em francês, para o telemóvel. Momentos
depois, volta a erguer o olhar na nossa direção.
– Rose – diz. – Ela chamava-se Rose.
– Como? – pergunto ao Alain ansiosa. Ele abre um sorriso.
– Parece que a jovem se chamava Rose.
– É a minha avó – murmuro, fitando Monsieur Romyo.
Ele acena que sim, profere mais algumas palavras ao telefone e escuta o
tio durante algum tempo. Desliga e afaga o cabelo.
– Tudo isto é muito invulgar – diz, olhando alternadamente para o Alain
e para mim. – Durante todos estes anos, nunca pensei… – A sua voz
desvanece-se e ele pigarreira. – O meu tio, Nabi Haddam, gostaria de vos
receber agora mesmo. D’accord?
– Merci. D’accord – acede o Alain de imediato. – Está bem – traduz-me.
– Vamos agora.

Cinco minutos depois, encontramo-nos todos num táxi, a caminho do


sul da cidade, mais concretamente de uma casa na rue des Lyonnais que,
segundo Monsieur Romyo, ficava muito próxima da confeitaria. Consulto
novamente o relógio. São oito e vinte e cinco. Apanharemos o voo em cima
da hora mas, neste momento, sentimos que esta visita é obrigatória.
Sinto-me a tremer quando o carro estaciona diante do prédio de Nabi
Haddam. Ele já nos aguarda no exterior. Monsieur Romyo informou-nos de
que ele é apenas um ano mais novo do que o Alain, mas a verdade é que
parece pertencer a uma geração totalmente diferente. O seu cabelo é muito
negro e o seu rosto revela muito menos rugas do que o do meu tio.
Veste um fato cinzento e tem as mãos entrelaçadas. Quando saímos do
carro, ele olha-me demoradamente.
– É neta dela – sussurra antes de podermos sequer apresentar-nos. – É
neta de Rose.
– Sim – suspiro.
Ele sorri e aproxima-se, decidido. Beija-me nas duas faces.
– É o rosto dela, sem tirar nem pôr. Acaba por recuar, agora com
lágrimas nos olhos.
O Alain apresenta-se como irmão da Rose e o Henri e o Simon também
o saúdam. Digo a Monsieur Haddam que me chamo Hope2.
– É o nome certo – murmura. – A sua avó sobreviveu graças à
esperança. – Pestaneja algumas vezes e sorri. – Entrem, por favor.
Aponta para a porta do prédio, introduz um código e conduz-nos até
uma entrada escura. Do lado esquerdo, há uma porta encostada, que ele abre
totalmente para nos deixar entrar.
– A minha casa – diz, fazendo um gesto amplo. – Aqui são bem-vindos.
Depois de nos sentarmos numa sala pouco iluminada, forrada de livros e
de fotografias, aparentemente de familiares de Monsieur Haddam, o Alain
inclina-se para a frente.
– Como conheceu a minha irmã? A Rose?
– Pardon? – pergunta. Pestaneja algumas vezes e diz: – Sou quase
sourd. Surdo. Lamento.
O Alain repete a pergunta em voz mais alta e, desta vez, Monsieur
Haddam assente. Sorri e recosta-se na cadeira. Observa o Alain durante
bastante tempo antes de responder.
– O senhor é o irmão mais novo da Rose? Tinha onze anos em 1942?
– Oui – diz o Alain.
– Ela falava muito de si – diz sem rodeios.
– Sim? – pergunta o Alain, comovido.
Monsieur Haddam assente.
– Penso ser esse um dos motivos por que era tão atenciosa comigo. Eu
cumpri apenas o meu décimo aniversário nesse ano. Ela dizia-me
frequentemente que eu lhe fazia lembrar o irmão.
O Alain baixa os olhos, e eu apercebo-me de que ele tenta não chorar
diante dos outros homens.
– Ela julgava ter-vos perdido a todos – diz Monsieur Haddam segundos
depois. – Penso que vivia destroçada por esse motivo. Muitas vezes,
chorava até adormecer, repetindo os vossos nomes.
Quando o Alain volta a erguer o olhar, tem uma lágrima a rolar -lhe pela
face direita. Enxuga-a com a mão.
– Também eu julgava tê-la perdido – declara. – Assim pensei durante
todos estes anos.
Monsieur Haddam volta-se para mim.
– É a neta dela – afirma. – E ela sobreviveu?
– Sobreviveu – digo num tom baixo.
– E ainda é viva?
Faço uma pausa.
– Sim. – Estou prestes a dizer-lhe que ela sofreu um AVC, mas engulo
as palavras. Não sei se por ainda não estar preparada para reconhecer esse
facto ou por não querer arruinar o final feliz de Monsieur Haddam. –
Como… O que aconteceu? – acabo por perguntar.
Monsieur Haddam sorri.
– Tomam uma chávena de chá? – pergunta.
Todos declinamos a oferta. Os homens estão tão ansiosos como eu por
ouvir a história.
– Muito bem – diz Monsieur Haddam. – Vou contar o que se passou. –
Respira fundo. – Ela veio ter connosco em julho de 1942. Na noite em que
se iniciaram aquelas terríveis rusgas.
– Para o Vel’ d’Hiv – digo.
– Sim – aquiesce Monsieur Haddam. – Creio que, até esse dia, muitas
pessoas desconheciam o que estava a acontecer. Mesmo após esse
acontecimento, muitas permaneceram sem saber. Mas Rose sabia o que se
estava a passar. E procurou refúgio entre nós.
»A minha família acolheu-a. Ela explicou aos responsáveis pela
mesquita que a família da sua mãe também administrava uma confeitaria.
Perguntou-nos, pois, se a podíamos acolher durante algum tempo. No
mundo de então, o orgulho numa profissão sobrepunha-se às diferenças
religiosas.
»Admirava a Rose de uma forma que, inicialmente, preocupou o meu
pai, pois não me era permitido nutrir tal admiração por uma jovem de um
mundo diferente. Mas ela, além de ser simpática e amável, ensinava-me
muitas coisas. Penso que, com o passar do tempo, os meus pais
compreenderam que ela não era, afinal, muito diferente de nós.
Faz uma pausa, inclinando a cabeça. Por fim, suspira e continua.
– Ela viveu connosco, como muçulmana, durante dois meses. Todos os
dias, de manhã e à noite, orava connosco, o que agradava bastante aos meus
pais. Continuava, porém, a rezar ao seu Deus; eu ouvia-a sempre, pela noite
dentro, pedir proteção para as pessoas que amava. Eu diria que Deus
respondeu às orações dela. – Sorri para o Alain, que cobre o rosto com as
mãos e afasta o olhar.
»Ensinámos-lhe muito sobre o Islão e sobre as nossas receitas
tradicionais. Mas ela também nos ensinou muitas coisas. Trabalhou na
nossa confeitaria. Ela e a minha mãe permaneciam muitas horas na cozinha,
sussurrando entre si. Não sei de que falavam; a minha mãe asseverava
sempre que eram assuntos de mulheres. E foi a Rose que nos ensinou a
confecionar a tarte des étoiles, a tarte das estrelas, que me trouxeram hoje.
Era a sua preferida. E a minha também, desde quea Rose me contou a
história.
– Qual história? – pergunto.
Monsieur Haddam parece surpreendido.
– A história das crostas em forma de estrela.
O Alain e eu trocamos olhares.
– Porquê? – insisto. – Qual é a história?
– Não a conhecem? – inquire Monsieur Haddam. Depois de o Alain e eu
abanarmos a cabeça, ele prossegue. – Utilizava essa forma porque lhe
recordava a promessa, feita pela sua única grande paixão, de a amar
enquanto houvesse estrelas no céu.
– Jacob – sussurro, olhando para o Alain. Ele assente. Após tantos anos
a preparar tartes das estrelas, percebo agora que estive a preparar um tributo
a um homem cuja existência desconhecia. Emito um som seco ao reprimir
um soluço aparentemente vindo do nada.
– Havia muitas noites em que não era seguro sair, em que as nuvens
cobriam a cidade ou em que existia um fumo espesso no ar – prossegue
Monsieur Haddam. – Nessas noites em que a Rose não conseguia ver as
estrelas, dizia ter de procurar conforto em qualquer coisa. Por esse motivo,
começou a colocar as estrelas nas suas tartes. Anos mais tarde, era eu quase
adulto, a minha mãe costumava fazer-me as mesmas tartes e recordar-me
que o verdadeiro amor vale tudo. Não era uma ideia comum naquele tempo;
havia muitos casamentos combinados. Mas tinha razão. E eu esperei. Casei-
me com o amor da minha vida. Em toda a minha vida profissional, fiz
sempre as tartes des étoiles em honra da Rose. E ensinei os meus filhos, e
os meus primos, e a geração seguinte, a fazer o mesmo, a nunca abdicar de
esperar pelo amor, como a Rose. Como eu.
Monsieur Haddam faz uma pausa.
– Digam-me, então… A Rose voltou a encontrar o homem que amava?
– pergunta. – Depois da guerra?
O Alain e eu trocamos olhares.
– Não – digo, sentindo o peso da perda sobre o meu peito. Monsieur
Haddam baixa os olhos e abana a cabeça com uma expressão triste.
A meu lado, Henri pigarreia. Eu deixara-me envolver de tal forma na
história de Monsieur Haddam que quase me esquecera que ele e Simon
ainda estavam connosco.
– E, no final, como conseguiu ela sair de Paris? – pergunta.
Monsieur Haddam abana a cabeça.
– É impossível saber ao certo. Um dos motivos por que a mesquita
conseguiu salvar tantas pessoas era o secretismo que envolvia todas as suas
atividades. O Alcorão ensina-nos a ajudar quem mais necessita e a fazê-lo
discretamente, pois Deus conhece as nossas ações. Por esse motivo, e face
ao perigo em causa, ninguém discutia estes assuntos, nem sequer naquele
tempo. Muito menos com um rapaz de dez anos. Porém, as informações que
recolhi desde então levam-me a crer que muitos dos judeus que acolhemos
foram conduzidos pelas catacumbas até ao rio Sena. Talvez ela tenha
entrado furtivamente numa barca e descido assim o rio até Dijon. Ou
atravessado a linha de demarcação com documentos falsos.
– Isso não custaria muito dinheiro? – pergunta Henri. – Obter
documentos falsos? Atravessar a linha? – Volta-se para mim e acrescenta: –
A minha família não conseguiu sair da zona ocupada porque não conseguia
pagar as despesas.
– Sim – responde Monsieur Haddam. – Mas a mesquita ajudava a
disponibilizar documentos. Disso tenho a certeza. Quanto ao homem que
ela amava, o Jacob, sei que lhe deixou algum dinheiro. Ela escondeu-o no
forro de um dos seus vestidos. A minha mãe ajudou-a a fazê-lo.
»Depois de alcançar a zona livre, seria mais fácil sair do país. Aqui, em
Paris, vivia como muçulmana, com documentos falsos. Todavia, em Dijon,
ou noutro local de destino, deve ter preenchido um formulário de
recenseamento da gendarmerie. Por ser francesa, é provável que, mediante
um pequeno suborno, a tenham registado como católica. A partir daí, pode
ter viajado para Espanha.
– Ela conheceu o meu avô em Espanha – digo.
– O seu avô não é o Jacob? – inquire Monsieur Haddam com um olhar
severo. – É-me difícil imaginar que se tenha apaixonado tão rapidamente
por outro homem.
– Não – digo em voz branda. – O meu avô chamava-se Ted.
Ele baixa a cabeça.
– Então, casou-se com outro. – Faz uma pausa. – Sempre parti do
princípio de que a Rose falecera – diz. – Morreu muita gente naquele
tempo. Sempre acreditei que nos contactaria após a guerra se tivesse
sobrevivido. Mas talvez ela quisesse simplesmente esquecer esta vida.
Reflito sobre o que o Gavin me disse acerca de alguns sobreviventes do
Holocausto que preferiram começar de novo quando estavam convencidos
de que haviam perdido tudo.
– E não há registo de nenhum destes acontecimentos? – pergunto pouco
depois. – O que a sua família fez é tremendamente corajoso e heroico. Tal
como o que fizeram outras pessoas da Grande Mesquita.
– Nesse período, não podíamos guardar qualquer tipo de registo – diz
Monsieur Haddam, sorrindo. – Sabíamos que estávamos a associar o nosso
destino ao das pessoas que salvávamos. Se os nazis, ou a polícia francesa,
fizessem uma busca à mesquita e encontrassem uma prova que fosse,
poderíamos estar todos condenados. Por conseguinte, ajudámo-los em
silêncio – conclui. – É a ação de que mais me orgulho na minha vida.
– Obrigado – sussurra o Alain. – Pelo que fez. Por ter salvado a minha
irmã.
Monsieur Haddam abana a cabeça.
– Não tem de me agradecer. Cumprimos um dever. Na nossa religião,
ensinam-nos que «Aquele que salva uma vida, salva o mundo».
O Alain emite um som reprimido, estranho.
– No Talmude, lê-se que «Quem salva uma vida salva o mundo inteiro»
– diz delicadamente.
Ele e Monsieur Haddam trocam olhares por um momento e sorriem.
– Não somos, portanto, muito diferentes – declara Monsieur Haddam.
Ele olha para o Henri e para o Simon e, em seguida, volta a observar o
Alain. – Nunca entendi a guerra entre as nossas religiões, nem a guerra
contra os cristãos. Se aprendi alguma coisa no período que a Rose passou
connosco é que todos falamos ao mesmo Deus. Não é a religião que divide
o Homem. É o Bem e o Mal que ele pratica na Terra.
Todos compreendemos as suas palavras e entreolhamo-nos em silêncio.
– A sua irmã – continua Monsieur Haddam, voltando-se para o Alain –
sofreu todos os dias por ter deixado a sua família. Achava que não tinha ter
feito o suficiente para vos salvar. Mas, como certamente entenderá, ela fez o
que tinha de fazer. Era imperioso salvar o seu bebé.
No silêncio que se seguiu, ouvir-se-ia cair um alfinete.
– O seu bebé? – pergunta por fim o Alain, uma oitava acima do que
seria normal. De repente, sinto a garganta seca.
– Sim, naturalmente – diz Monsieur Haddam. Fita-nos com surpresa. –
Foi por isso que a recebemos. Ela esperava um filho. Não sabiam?
O Alain olha-me fixamente.
– Fazias ideia?
– Claro que não – digo. – Não… não é possível. A minha mãe nasceu
apenas em 1944. – Volto-me para Monsieur Haddam. – E não tinha irmãos.
A minha avó não poderia estar grávida em 1942.
Ele faz uma pausa e levanta-se.
– Deem-me licença – diz.
Desaparece no interior do seu quarto, e o Alain e eu entreolhamo-nos.
– Como podia ela estar grávida? – indaga o Alain.
– Bom, ela e o Jacob estavam apaixonados… – arrisca o Henri, com a
voz a fraquejar.
O Alain abana a cabeça.
– Não, nem pensar. Ela era muito religiosa – replica. – Nunca faria tal
coisa. – Volta-se para mim e acrescenta: – Naquele tempo, tudo era muito
diferente. As pessoas não tinham relações sexuais antes do casamento. E
muito menos a Rose.
– Talvez Monsieur Haddam tenha confundido as memórias – sugiro.
Porém, quando ele sai do quarto, instantes depois, traz consigo uma
fotografia e entrega-ma. Reconheço de imediato a minha avó; o seu rosto é
idêntico ao meu quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos, mas a sua
cabeça está coberta por um lenço. Tem os braços à volta dos ombros de
duas pessoas; de um lado, um jovem sorridente, de cabelo escuro, e, do
outro, uma senhora de meia-idade.
– A minha mãe e eu – explica num tom baixo Monsieur Haddam. – E a
sua avó. No dia em que partiu. Foi a última vez que a vi.
Aceno ligeiramente, mas sem emitir um som, pois não consigo afastar o
olhar da barriga proeminente que vejo na fotografia. Não tenho dúvidas de
que a minha avó estava grávida. Ela fita a máquina com olhos muito abertos
que deixam transparecer uma extraordinária tristeza, mesmo numa
fotografia a preto de branco e pouco nítida. O Alain recosta-se a meu lado,
no sofá, e, tal como eu, examina atentamente a fotografia.
– Ela sabia que, se fosse enviada para um dos campos, seria morta logo
que descobrissem a gravidez – diz lentamente Monsieur Haddam, pouco
depois. – Sabia que tinha de se proteger para defender a criança. Foi esse o
único motivo por que deixou que o Jacob a afastasse da família.
– Meu Deus – murmura o Alain.
– Mas o que aconteceu à criança? – pergunto.
Monsieur Haddam fita-me com ar sério.
– Tem a certeza de que não era a sua mãe?
– A minha mãe nasceu um ano e meio depois e era filha do meu avô,
Ted, não do Jacob. – Volto-me para o Alain. – A criança deve ter morrido –
sugiro discretamente. O simples facto de proferir estas palavras horroriza-
me.
O Alain deixa tombar a cabeça.
– Há muitas coisas que desconhecemos. E se ela não acordar? –
murmura. As suas palavras precipitam-me de um passado que conseguimos
entender para um presente que não podemos controlar. Porém, ainda está
nas nossas mãos chegar a tempo ao aeroporto. Consulto o relógio e levanto-
me.
– Monsieur Haddam, peço desculpa, mas temos de ir – afirmo. – Não
sei como lhe agradecer.
– Não tem de o fazer, menina – responde, sorrindo. – Saber que a Rose
sobreviveu e acabou por ter uma vida feliz é agradecimento suficiente para
mil anos.
Interrogo-me, nesse momento, se a minha avó foi feliz. Ter-se-ia alguma
vez libertado da tristeza que certamente a invadiu quando sentiu ter perdido
a sua família e o Jacob para sempre?
– Por favor – diz Monsieur Haddam –, transmita à sua avó que penso
nela frequentemente. E que lhe agradeço por me ter ajudado a acreditar na
busca do amor. Ela mudou a minha vida. Nunca a esquecerei.
– Muito obrigada, Monsieur Haddam – murmuro. – Assim farei.
Ele beija-me nas duas faces e, enquanto saímos, a fim de chamarmos
um táxi para o aeroporto, dou por mim a refletir sobre se seria este o motivo
da viagem que a Mamie me pediu para fazer. Interrogo-me se, algures na
sua mente, ela desejava que eu ouvisse a história do seu primeiro amor e da
criança perdida que ela tudo fez para proteger. Procuro, além disso,
perceber se devo retirar algum ensinamento de tudo isto.
Talvez, no meu caso, seja demasiado tarde. O Alain e eu permanecemos
em silêncio na viagem para o aeroporto, cada um perdido no seu mundo.

2 Esperança.
Capítulo 16

Biscoitos de Anis e Funcho

Ingredientes
2 chávenas de açúcar
4 ovos
2 colheres de chá de extrato de anis
3 chávenas de farinha (mais um pouco para moldar a massa)
3 colheres de chá de fermento
1 colher de chá de sal
1 colher de chá de sementes de anis
2 chávenas de açúcar em pó
1 colher de sopa de sementes de funcho

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
2. Numa tigela de tamanho médio, utilizando uma batedeira
manual, bata o açúcar, os ovos e o extrato de anis até obter
uma mistura homogénea.
3. Peneire a farinha, o fermento e o sal para um recipiente à
parte e adicione-os à mistura dos ovos, aproximadamente
uma chávena de cada vez, continuando a bater.
4. Adicione as sementes de anis e verifique se a mistura está
homogénea.
5. Em separado, numa tigela pouco funda, misture o açúcar em
pó com as sementes de funcho.
6. Com as mãos enfarinhadas, molde pequenas porções de
massa em forma de biscoitos. Depois, passe-os pela mistura
do açúcar e coloque-os num tabuleiro untado.
7. Leve os biscoitos ao forno durante doze minutos. Deixe-os
arrefecer no tabuleiro durante cinco minutos e, em seguida,
coloque-os para uma grelha metálica.

Rose

Rose pressentia uma situação terrível. Durante toda a tarde,


estivera sentada diante do televisor a assistir a repetições de programas
que sabia já ter visto. Pouco importava que fosse repetições pois, em
qualquer caso, não se lembrava dos enredos. Começara a sentir-se
muito fatigada e, já no quarto, percebeu que não sentia o corpo. Pouco
depois, veio a escuridão.
O mundo ainda estava negro como a noite quando os funcionários
do lar vieram em seu auxílio. Ela ouviu-os dizer inconsciente, derrame e
por um fio e quis dizer-lhes que estava bem. Contudo, percebeu que já
não conseguia usar a língua, nem abrir os olhos, e foi assim que
descobriu que o corpo lhe estava a falhar tanto como o cérebro. Talvez
tivesse chegado a hora.
Assim, deixou-se conduzir e voltou a vaguear pelo passado.
Enquanto ouvia soar ao longe a sirene da ambulância, enquanto os
médicos gritavam e davam ordens num local muito distante, enquanto
escutava o choro abafado de uma criança junto à sua cama, ela
libertou-se das amarras que a prendiam ao presente e deixou-se flutuar,
como um objeto perdido sobre uma onda, até um tempo imediatamente
anterior àquele em que o mundo se desmoronou. Também por esses
dias, como agora, houvera vozes na escuridão. Assim, o presente
desapareceu, o passado surgiu com nitidez e Rose deu por si no
escritório do seu pai, no apartamento da rue du Général Camou. Tinha
novamente dezassete anos e sentia-se como se tivesse uma bola de
cristal mas ninguém acreditasse no que dizia.
– Por favor – implorava ao pai, já enrouquecida por tantas horas de
argumentação infrutífera. – Se ficarmos, morremos, Papa! Eles vêm
buscar-nos!
Os nazis estavam em toda a parte. As ruas estavam repletas de
soldados alemães, e os polícias franceses seguiam-nos para todo o lado
como lemingues. Os judeus já não podiam sair à rua sem a estrela-de-
david amarela cosida no peito, do lado esquerdo, um ferrete que os
apartava.
– Que disparate – disse o pai, um homem orgulhoso que acreditava
no seu país e na bondade do próximo. – Quem foge são os criminosos e
os cobardes.
– Não, Papa – sussurrou Rose. – Não são apenas os criminosos e os
cobardes. São pessoas que se querem salvar, que não seguem cegamente
os mais fortes na esperança de que tudo acabe bem.
O pai fechou os olhos e esfregou a ponta do nariz. Ao seu lado, a
mãe de Rose passou-lhe carinhosamente a mão pelo braço e admoestou
Rose.
– Estás a incomodar o teu pai – disse.
– Mas, Maman!… – exclamou Rose.
– Somos franceses – disse o pai secamente, abrindo os olhos. – Eles
não vão deportar franceses.
– Mas já estão a fazê-lo – sussurrou Rose. – E a Maman não é
francesa. Para eles, ainda é polaca. Logo, aos olhos deles, ela e todos
nós somos estrangeiros.
– Estás a dizer tolices, filha – disse o pai.
– Esta rusga vai ser diferente – retorquiu Rose. Sentia já ter dito
estas palavras mil vezes, mas o pai não a queria escutar. – Desta vez,
vêm buscar-nos a todos. O Jacob diz…
– Rose! – interrompeu o pai, dando um murro na mesa.
A seu lado, a mãe de Rose deu um salto, alarmada, e abanou a
cabeça com ar triste.
– Esse rapaz tem uma imaginação descontrolada!
– Papa, não é imaginação! – Rose nunca se havia insurgido contra
os pais, mas tinha de os convencer. Era uma questão de vida ou de
morte. Como podiam estar tão iludidos? – É o chefe da família, Papa.
Tem de nos proteger!
– Basta! – bradou o pai. – Não serás tu a ensinar-me como tratar da
minha família! E muito menos esse rapaz, o Jacob! Cumprindo as
regras, estou a proteger-te a ti, aos teus irmãos, à tua mãe. Não me
digas o que devo fazer enquanto pai! Nada sabes a esse respeito.
Rose esforçou-se por conter as lágrimas. Colocou maquinalmente a
mão direita sobre a barriga, mas retirou-a rapidamente quando notou
que a mãe a observava com uma expressão intrigada e severa. Não
conseguiria ocultar-lhes o volume do ventre durante muito mais tempo
e, por conseguinte, eles viriam a descobrir mais cedo ou mais tarde.
Perdoar-lhe-iam? Entenderiam? Rose pensava que não.
Ela gostaria de lhes poder contar a verdade. Mas este não era o
melhor momento. Contar-lhes apenas complicaria as coisas. Antes
disso, tinha de os salvar.
– Rose – disse o pai segundos depois. Ergueu-se e dirigiu-se ao sofá
onde ela estava sentada. Ajoelhou-se diante dela, como costumava fazer
quando ela era uma menina. Ela lembrou-se, naquele momento, de
como ele tinha sido tão paciente quando a ensinou a apertar os
atacadores, de como a tinha confortado na primeira vez em que ela
esfolou o joelho, de como ele lhe apertava as bochechas, quando ela era
criança, e lhe chamava ma fille en sucre, a minha menina de açúcar. –
Faremos o que nos mandarem. Se seguirmos as regras, tudo correrá
bem.
Ela olhou-o nos olhos e soube, nesse momento, que nunca o
conseguiria persuadir. E então chorou, pois sabia que já o tinha
perdido. Já os tinha perdido a todos.

Quando Jacob veio buscá-la naquela noite, ela não estava


preparada. Como poderia alguma vez estar preparada? Fitou os olhos
verdes, com pequenos pontos dourados, de Jacob, que sempre lhe
faziam lembrar um oceano mágico, e pensou que poderia perder-se
neles para sempre. Já os seus olhos vertiam lágrimas quentes, doridas,
pois tinha consciência de que poderia não voltar a ver aquele mar.
– Rose, temos de ir – sussurrou, impaciente. Envolveu-a nos seus
braços e procurou abafar os soluços dela no seu peito.
– Como posso deixá-los, Jacob? – murmurou contra o peito dele.
– Tem de ser, meu amor – disse ele. – Tens de salvar o nosso bebé.
Ela ergueu os olhos e fitou-o. Sabia que ele tinha razão. Também ele
tinha lágrimas nos olhos.
– Vais tentar protegê-los? – perguntou ela.
– Com tudo o que tenho – prometeu Jacob. – Mas primeiro tenho de
proteger-te a ti.
Antes de partirem, ela entrou silenciosamente no quarto que Alain e
Claude partilhavam. Claude dormia profundamente, mas Alain estava
bem desperto.
– Vais partir, não vais, Rose? – sussurrou Alain ao vê-la aproximar-
se.
Ela sentou-se na borda da cama.
– Sim, meu querido – segredou. – Vens connosco?
– Tenho de ficar com a Maman e o Papa – disse Alain depois de
refletir. – Talvez eles tenham razão.
– Não têm – disse Rose.
– Eu sei – anuiu Alain em voz baixa. Fez uma pausa e, em seguida,
envolveu-a num abraço. – Adoro-te, Rose – disse-lhe ao ouvido.
– E eu a ti, meu homenzinho – retorquiu ela, abraçando-o com mais
força. Tinha consciência de que Alain não entendia a sua partida. Ele
pensava certamente que Rose estava a escolher Jacob em detrimento
da sua família. Contudo, ela não lhe podia contar que tinha um bebé a
crescer dentro de si. Ele tinha onze anos, era muito novo para entender.
Ela esperava que, um dia, Alain percebesse que ela sentia o coração
partido em dois.
Trinta minutos depois, Jacob conduziu-a a uma viela, onde o seu
amigo Jean Michel, que integrava o movimento da Resistência, os
aguardava junto a uma porta escura.
Jean Michel saudou Rose com um beijo em cada face.
– És muito corajosa, Rose – disse simplesmente.
– Não sou corajosa; estou apenas assustada – respondeu ela. Não
queria transmitir uma ideia errada a ninguém. Era absurdo pensar em
coragem quando estava a abandonar a sua família. Sentiu-se, naquele
momento, o pior ser humano à face da Terra.
– Posso ficar a sós com ela um minuto? – perguntou Jacob a Jean
Michel.
Jean Michel acenou afirmativamente.
– Mas sejam rápidos, por favor. Não temos muito tempo. –
Desapareceu atrás da porta, deixando Rose e Jacob sozinhos na
escuridão.
– Estás a agir corretamente – sussurrou Jacob.
– Já não sinto isso – suspirou Rose. – Tens a certeza absoluta? Sobre
esta rusga?
– Tenho – asseverou Jacob. Vai começar dentro de algumas horas,
Rose.
Ela abanou a cabeça.
– O que nos aconteceu? – perguntou ela. – O que aconteceu a este
país?
– O mundo enlouqueceu – murmurou Jacob.
Ela respirou fundo.
– Irás buscar-me?
– Irei buscar-te – respondeu Jacob de imediato. – Tu és a minha
vida, Rose. Tu e o nosso bebé. Sabes que é verdade.
– Sei – segredou ela.
– Vou encontrar-te, Rose – prometeu Jacob. – Quando acabarem
todos estes horrores, e tu estiveres em segurança, irei ter contigo. Dou-
te a minha palavra. Não descansarei enquanto não estiver novamente a
teu lado.
– Nem eu – murmurou Rose.
Ele puxou-a para si e ela sentiu o seu cheiro, memorizou a sensação
de estar envolvida nos seus braços, pressionou a cabeça contra o seu
peito e desejou nunca ter de o libertar. Porém, quando regressou, Jean
Michel tentou delicadamente afastá-la de Jacob, dizendo-lhe em voz
baixa que tinha de partir antes que fosse demasiado tarde. Ela sabia
apenas que Jean Michel, católico, a ia conduzir a outro membro da
Resistência, um homem chamado Ali, muçulmano. Era um conjunto de
circunstâncias que a faria sorrir – católicos, judeus e muçulmanos a
trabalharem em harmonia – se o mundo não estivesse a desmoronar-se
à volta de todos eles.
Jacob puxou-a para si mais uma vez, para mais um longo beijo de
despedida. Perante a insistência de Jean Michel, acabaram por se
separar.
– Jacob? – chamou ela suavemente entre a escuridão.
– Estou aqui – disse ele, mostrando-se uma última vez.
– Vai ter com eles – pediu Rose, suspirando. – Por favor. Salva a
minha família. Não os posso perder. Não conseguirei viver em paz
comigo mesma se morrerem porque eu não me esforcei o suficiente.
Jacob olhou-a nos olhos e, por momentos, Rose arrependeu-se das
suas palavras, pois sabia o que lhe estava a pedir. Mas não havia tempo.
Ele assentiu e disse simplesmente:
– Irei ter com eles. Prometo. Amo-te.
E depois desapareceu na noite cerrada. Rose sentiu-se paralisada,
presa ao chão. Os poucos segundos que permaneceu imóvel pareceram-
lhe uma eternidade.
– Não!… – murmurou para consigo. – Que fui eu fazer?
Voltou-se, como que procurando Jacob, com a intenção de o deter,
de o alertar. Mas Jean Michel passou-lhe o braço sobre os ombros e
cingiu-a com firmeza.
– Não – disse ele. – Não. Agora está tudo nas mãos de Deus. Tens de
vir comigo.
– Mas… – protestou ela, tentando libertar-se.
– Está tudo nas mãos de Deus – repetiu Jean Michel quando os
soluços começaram a agitar o corpo de Rose. Ele abraçou-a ainda com
mais força e sussurrou para a escuridão:
– Por agora, apenas podemos rezar e esperar que Deus nos consiga
ouvir.

Após a separação, foi uma verdadeira tortura viver furtivamente


em Paris, sabendo que, a poucos quilómetros, também poderiam estar
escondidos os seus familiares ou Jacob. Ciente de que não os podia
tentar encontrar, de que a sua única responsabilidade era agora
proteger o filho que crescia dentro de si, chorava todas as noites,
sentindo-se desamparada.
As pessoas que a acolheram, os Haddam, eram amáveis, embora
Rose soubesse que o pai e a mãe da família não a queriam em sua casa.
Ela representava, afinal, um risco; sabia que a sua presença, por si só,
os colocava em perigo. Não fosse a criança que jurara proteger, teria
partido há muito, por uma questão de cortesia. Ainda assim, eram
hospitaleiros e, com o passar do tempo, pareceram aceitá-la. O filho
deles, Nabi, fazia-lhe lembrar o irmão Alain, e foi esta parecença que
lhe permitiu manter a sanidade mental na maior parte dos dias; ela
podia falar com ele da maneira como outrora conversara com o seu
irmão mais novo e, dessa forma, este novo lar assemelhava-se mais ao
que tinha deixado para trás.
Ela e Madame Haddam passavam muitas horas na cozinha e, ao fim
de algum tempo, Rose ganhou coragem para oferecer à sua anfitriã
algumas das receitas da confeitaria ashkénaze da sua própria família.
Madame Haddam, por seu turno, ensinou Rose a preparar
deliciosos bolos de que ela nunca tinha ouvido falar.
– Devias aprender a cozinhar com água de rosas – dissera-lhe certo
dia. – Faz todo o sentido para uma jovem chamada Rose.
E foi assim que Rose se apaixonou pelas luas em quarto crescente
com amêndoa, pela baklava com flor de laranjeira e pelos biscoitos com
água de rosas que se desfaziam na boca como que por magia, ajudando
a alimentar o seu bebé. O seu pai fizera muitas vezes apreciações
negativas sobre os muçulmanos, mas Rose sabia agora que ele estava
tão enganado sobre a religião como sobre as intenções dos nazis. Os
Haddam haviam colocado as suas vidas em risco para salvar a dela.
Encontravam-se entre as melhores pessoas que ela alguma vez
conhecera.
Além disso, sabia que, para confecionar bolos como os dos Haddam,
era preciso ser bondoso e afável. Acreditava que o coração das pessoas
se revelava sempre naqueles momentos e que as pessoas com almas
obscuras criavam produtos à sua semelhança. Contudo, nos bolos dos
Haddam, havia luz e generosidade. Rose conseguia saborear estas
qualidades e esperava que o filho que crescia dentro de si fizesse o
mesmo.
Por vezes, Madame Haddam permitia que Rose a acompanhasse até
ao mercado, contanto que Rose prometesse não falar e usasse um lenço
a cobrir a cabeça. Ela apreciava o anonimato que estes deveres lhe
proporcionavam, e, no mercado, embora os Haddam fizessem as suas
compras num bairro muçulmano, Rose passava desesperadamente os
olhos pela multidão, na esperança de vislumbrar alguém da sua antiga
vida. Certo dia, na rua, avistou Jean Michel, mas não foi capaz de
gritar o seu nome devido a um súbito nó na garganta. Quando
conseguiu novamente falar, ele já desaparecera há muito.
Certa noite, depois de dizer a Salah em árabe com os Haddam, Rose
estava no seu quarto a orar em hebraico quando reparou, pelo canto do
olho, que Nabi a observava.
– Entra, Nabi – disse ela ao rapaz. – Reza comigo.
Ele ajoelhou-se a seu lado enquanto ela terminava as orações e, em
seguida, ficaram ambos sentados em silêncio.
– Rose? – perguntou ele vários minutos depois.
– Acreditas que Deus fala árabe ou hebraico? Conseguirá ouvir as
tuas orações? Ou as minhas?
Rose refletiu por instantes e concluiu que não sabia a resposta; nos
últimos tempos, começara a duvidar se Deus a ouvia de todo,
independentemente da língua em que lhe falava. Se Ele a conseguia
ouvir, como era capaz de permitir que a sua família e Jacob
desaparecessem da sua vida?
– Não sei – acabou por dizer. – O que achas, Nabi?
O rapaz meditou longamente nestas palavras antes de responder.
– Penso que Deus deve falar todas as línguas. – O seu tom de voz
revelava confiança. – Penso que ele nos consegue ouvir a todos.
– Achas que rezamos todos ao mesmo Deus? – perguntou Rose
instantes depois. – Muçulmanos, judeus, cristãos e todas as pessoas que
acreditam noutras coisas?
Também aqui, Nabi parecia refletir muito seriamente.
– Sim – disse por fim a Rose. – Sim. Existe um Deus, que vive no céu
e nos ouve a todos. Acontece é que, aqui na Terra, não sabemos como
acreditar n’Ele. Mas que importância tem isso se todos acreditamos
que Ele está lá?
Rose sorriu ao ouvi-lo.
– Talvez tenhas razão, Nabi – disse ela. Ocorreram-lhe as palavras
que Jean Michel lhe dirigira na última vez em que ela vira Jacob. – Por
agora – disse delicadamente ao rapaz –, tudo o que podemos fazer é
rezar e esperar que Deus nos consiga ouvir.
Capítulo 17

Depois de persuadirmos o funcionário da companhia aérea a aceitar o


nosso check-in depois da hora, passamos o mais rapidamente possível pela
segurança, corremos até à porta de embarque, e entramos no avião cinco
minutos antes de serem fechadas as portas da cabina.
No táxi, tinha utilizado o telemóvel do Alain para ligar à Annie, mas ela
não atendeu. O mesmo aconteceu com o Gavin e o Rob, para quem também
telefonei. O lar da Mamie não tinha novas informações sobre o seu estado e,
no hospital, a enfermeira que contactei assegurou-me que a minha avó se
encontrava estável, embora lhe fosse impossível dizer quanto tempo assim
permaneceria.
Enquanto deslizamos ao longo da pista e levantamos voo sobre Paris,
vejo desaparecer por baixo de nós o Sena, aquela faixa que dividia ao meio
a cidade, e imagino a Mamie escondida numa barcaça, aos dezassete anos,
serpenteando lentamente o mesmo rio cor de topázio até alcançar a zona
não ocupada. Foi assim que ela saiu de Paris? Interrogo-me se alguma vez o
saberemos.
– O que achas que terá acontecido à criança? – pergunta o Alain num
sussurro enquanto o avião ganha altitude. Estamos já acima das nuvens e o
sol ilumina-nos sem obstáculos. É-me inevitável pensar se o céu divino não
será um tanto parecido com este.
– Não sei – respondo, abanando a cabeça.
– Eu devia ter adivinhado que ela estava grávida – diz o Alain. – Isso
explica o facto de nos ter deixado. Nunca compreendi a sua partida. Não era
da natureza dela fugir e deixar-nos para trás. Em condições normais, teria
permanecido e tentado proteger-nos, ainda que isso colocasse a sua própria
vida em risco.
– Mas ela acreditava que era mais importante proteger a criança –
murmuro.
– E era, de facto – assente o Alain. – Ela tinha razão. Ser pai ou mãe é
isso mesmo, não é verdade? Penso que o mesmo se passou com os meus
pais. Estavam realmente convencidos de que o cumprimento das regras nos
protegeria a todos. Quem poderia saber que as suas melhores intenções nos
conduziriam àquela situação?
Abano a cabeça, demasiado triste para falar. Não imagino o horror que a
minha bisavó deverá ter sentido quando Danielle e David lhe foram
arrancados. Teria conseguido ficar com a mais velha, Hélène, depois de os
nazis separarem os homens das mulheres? Teria vivido tempo suficiente
para experimentar a angústia de perceber que havia perdido todos os seus
filhos? Teria o meu bisavô lamentado não ter dado ouvidos aos avisos da
sua filha? O que teriam sentido os pais ao compreenderem, demasiado
tarde, que cometeram um erro terrível, irreversível e responsável pela morte
dos seus filhos?
Olho pela janela durante bastante tempo e depois volto a falar com o
Alain.
– Talvez a minha avó não pudesse tratar da criança. Talvez o bebé tenha,
de facto, nascido, e sido dado para adoção. – Não acredito verdadeiramente
nestas palavras, mas sinto-me melhor quando as digo.
– Creio que seria impossível – diz o Alain, com ar sério. – Se sentisse a
criança como sua e do Jacob, creio que a Rose nunca, em circunstância
alguma, abdicaria dela. – Lança-me um olhar cauteloso e acrescenta: – Tens
absoluta certeza de que a criança não podia ser a tua mãe?
Abano a cabeça.
– Quando a minha mãe morreu, há alguns anos, eu tive de inventariar os
seus bens – digo. – Recordo-me de ler a sua certidão de nascimento. Dizia
claramente 1944. Além disso, ela era muito parecida com o meu avô.
O Alain suspira.
– É provável, portanto, que o bebé tenha morrido.
Afasto o olhar. Não consigo imaginar nada mais triste.
– Mas pensar que ela engravidou tão pouco tempo após… – acrescento
baixinho. Não consigo entender esta peça do puzzle.
– Não é tão invulgar como parece – diz o Alain em voz baixa. Ele
suspira novamente e volta-se para a janela. – Depois da guerra, muitos
sobreviventes da Shoah casaram-se e tentaram ter filhos de imediato,
mesmo os que estavam subnutridos e não tinham dinheiro.
Olho para o Alain, surpreendida.
– Mas porque faziam isso?
– Porque desejavam criar vida quando tudo à sua volta era morte – diz
com candura. – Queriam fazer novamente parte de uma família, depois de
perderem tudo quanto alguma vez tinham amado. Quando Rose conheceu o
teu avô, pensava certamente que todos nós, incluindo o Jacob, estávamos
mortos; além disso, se tivesse perdido, de facto, o bebé, sentir-se-ia decerto
profundamente sozinha. Talvez desejasse apenas criar uma família para
voltar a ter um lugar no mundo.

Demoramos uma eternidade a recolher a bagagem, passar a alfândega e


retirar o meu carro do parque de estacionamento, mas, por fim, lá
conseguimos seguir viagem para Cape. Saímos de Boston pouco antes da
hora de ponta e, enquanto acelero para sul pela Estrada 3, aventuro-me a ir
trocando de faixa trinta quilómetros por hora acima do permitido.
Telefono à Annie durante o caminho e, desta vez, ela atende. A sua voz
é inexpressiva, mas ela diz-me que está no hospital e que o estado de saúde
da Mamie não sofreu qualquer alteração.
– O teu pai está contigo? – pergunto.
– Não – afirma, sem mais explicações.
Começo a sentir-me irritada.
– Onde é que ele está?
– Não sei – diz ela. – Talvez no escritório.
– Pediste-lhe que fosse contigo ao hospital?
A Annie hesita.
– Ele esteve aqui há pouco, mas teve de ir para ir tratar de qualquer
coisa.
As suas palavras magoam-me violentamente. O que mais desejo é
proteger a minha filha, e sinto que a última pessoa que eu deveria
considerar uma ameaça é o seu pai.
– Lamento, querida – digo. – O teu pai está certamente muito ocupado.
Ainda assim, deveria ter ficado contigo.
– Não faz mal – balbucia a Annie. – Está aqui o Gavin.
Sinto o coração apertado.
– Outra vez?
– Sim. Ele telefonou-me para saber se eu estava bem. E eu disse-lhe que
o pai tinha saído. Não lhe pedi, mas ele veio.
– Oh… – digo.
– Queres falar com ele?
Quase digo que sim, mas lembro-me de que estaremos no hospital
dentro de uma hora.
– Diz-lhe só que mando cumprimentos. E lhe agradeço. Nós
chegaremos em breve.
A Annie permanece em silêncio por um momento.
– Nós? Agora também tens um namorado ou algo do género?
Não consigo controlar o riso.
– Não – respondo. Olho de relance para o Alain, que, pela janela, vê
passar a cidade de Pembroke. – Mas tenho uma surpresa para ti.
Uma hora depois, estamos em Hyannis, transpondo as portas
automáticas do Hospital de Cape Cod. A enfermeira do balcão de
atendimento indica-nos o terceiro andar e, uma vez lá chegados, avisto a
Annie sentada na sala de espera, de cabeça baixa. Ao seu lado, o Gavin
folheia uma revista. Erguem a cabeça ao mesmo tempo.
– Mãe! – exclama a Annie, parecendo esquecer-se por instantes de que,
ultimamente, se sente demasiado crescida para me saudar com entusiasmo.
Salta da cadeira e abraça-me. O Gavin acena ligeiramente com a cabeça e
sorri sem convicção. Consigo articular em surdina a palavra «obrigada» por
cima da cabeça da Annie.
A Annie acaba por recuar e repara no Alain pela primeira vez. Ele está
junto a mim, sem reação, olhando-a atentamente.
– Olá – diz a Annie, estendendo a mão. – Chamo-me Annie. Quem é o
senhor?
O Alain aperta-lhe a mão suavemente e, em seguida, abre e fecha a boca
sem dizer nada. Coloco a mão nas suas costas, sorrio para a minha filha e
anuncio pausadamente:
– Annie, este senhor é irmão da Mamie. É teu tio-avô.
A Annie arregala os olhos na minha direção.
– Irmão da Mamie? – Volta a fitar o Alain. – É mesmo irmão da Mamie?
O Alain assente e, desta vez, encontra palavras.
– O teu rosto é-me mesmo muito familiar – diz.
A Annie olha para mim e depois novamente para o Alain.
– Eu sou, tipo, parecida com a Mamie quando ela tinha a minha idade?
O Alain abana a cabeça lentamente.
– Um pouco, talvez. Mas não é com ela que és mais parecida.
– Sou parecida com uma pessoa chamada Leona? – pergunta a Annie
ansiosamente. – É que a Mamie está sempre a tratar-me por esse nome.
O Alain franze o sobrolho e abana a cabeça.
– Não creio que conheça alguém com esse nome.
A Annie assume uma expressão severa e, quando ergo os olhos, noto
que o Gavin atravessou a sala e está apenas alguns passos atrás da minha
filha. Por uma fração de segundo, sinto uma enorme vontade de o abraçar,
mas, em vez disso, pestanejo e recuo ligeiramente.
– Gavin – digo –, este é o Alain. Irmão da minha avó. Alain, apresento-
lhe o Gavin. – Faço uma pausa e, um pouco fora de tempo, acrescento: –
Um amigo.
O Gavin não esconde a sua perplexidade. Estende a mão e cumprimenta
o Alain.
– Não acredito que o senhor e a Hope se encontraram – diz o Gavin.
O Alain olha-me de relance e, em seguida, volta a olhar para o Gavin.
– Sei que ela teve a sua ajuda e o seu encorajamento, meu jovem amigo.
O Gavin encolhe os ombros e afasta o olhar.
– Não, senhor. Foi ela que o procurou. Eu apenas lhe forneci algumas
indicações para a pesquisa sobre o Holocausto.
– Não desvalorize o seu esforço – afirma o Alain. – Ajudou a reunir a
nossa família – Pestaneja algumas vezes e pergunta ao Gavin: – Já a
podemos ver? A minha irmã?
O Gavin hesita.
– Oficialmente, o período de visitas já terminou. Mas eu conheço
algumas das enfermeiras que aqui trabalham. Vou ver o que posso fazer.
Vejo o Gavin aproximar-se de uma bonita enfermeira loura que parece
ter pouco mais de vinte anos. Ela ri-se e enrola o cabelo com os dedos
enquanto fala com ele. Surpreende-me perceber que, ao vê-los juntos, me
sinto um pouco ciumenta. Pestanejo algumas vezes e coloco a mão sobre o
braço do Alain.
– Sente-se bem? – pergunto. – Deve estar exausto.
Ele faz um ligeiro aceno com a cabeça.
– Só preciso de ver a Rose.
A Annie dispara uma série de perguntas – «Quando viu a Mamie pela
última vez?», «Porque pensava que ela tinha morrido?», «Como escapou
aos nazis?», «O que aconteceu aos vossos pais?» – a que o Alain responde
pacientemente. Sorrio ao ver a Annie aproximar-se dele e continuar a
tagarelar com entusiasmo.
Minutos depois, o Gavin regressa e pousa a mão no meu braço,
provocando-me um estranho e impetuoso sobressalto. Retiro de imediato o
braço, como se tivesse sido queimada. O Gavin franze o sobrolho e
pigarreia.
– Falei com a Krista. A enfermeira. Ela diz que nos leva discretamente
até ao quarto. Mas apenas por alguns minutos. Aqui, são muito rigorosos
com o período de visitas.
– Obrigada – digo. Curiosamente, não sou capaz de agradecer a Krista
enquanto ela nos conduz por um corredor estreito, fazendo oscilar
atrevidamente o seu rabo de cavalo e meneando exageradamente os seus
quadris estreitos. Eu juraria que ela caminha daquela forma para
impressionar o Gavin, mas ele não parece notar; tem a mão sobre o ombro
do Alain e conduz delicadamente aquele homem mais velho até uma porta
existente ao fundo do corredor.
– Cinco minutos – sussurra Krista quando nos detemos junto à última
porta à direita. – Senão meto-me em sarilhos.
– Muito obrigado – diz o Gavin. – Fico a dever-te um favor.
– Talvez um dia me possas levar a jantar? – diz Krista. Termina a
pergunta num tom infantil e, quando o fita com olhos expectantes, faz-me
lembrar um desenho animado. Não fico à espera da resposta; digo a mim
mesma que não é importante. Entro no quarto, seguindo a Annie e o Alain,
e estremeço quando me deparo com aquela figura imóvel, deitada numa
cama de hospital, como que submergida numa pequena pilha de lençóis.
A Mamie está frágil, pálida e magra e, ao meu lado, sinto o Alain
encolher-se. Quero dizer-lhe que, da última vez que a vi, ela não tinha este
aspeto. Na verdade, mal a reconheço sem as suas imagens de marca, o
bâton cor de vinho e o pó para escurecer as pálpebras. Porém, estou tão
atónita como ele. Aproximamo-nos os dois, e a Annie segue-nos
lentamente.
– Ela parece mesmo muito doente, não parece? – murmura a Annie.
Volto-me e envolvo-a com o meu braço, que ela não rejeita. Coloco a minha
mão direita sobre a mão esquerda da Mamie, e sinto-a fria. Ela não se
move.
– Ao que parece, encontraram-na curvada sobre a secretária depois de
perceberem que ela não descera para jantar – diz o Gavin em voz baixa.
Viro-me e vejo-o de pé, à entrada do quarto. – Telefonaram de imediato
para o 911 – acrescenta.
Aceno que sim com a cabeça, demasiado comovida para falar. Ao meu
lado, sinto a Annie tremer um pouco e, baixando os olhos, entrevejo as suas
lágrimas cristalinas ligeiramente enegrecidas pela maquilhagem.
Aperto-a com mais firmeza e ela envolve-me num abraço. Vemos o
Alain aproximar-se da cama e ajoelhar-se para que o seu rosto fique ao
mesmo nível do da Mamie. Murmura-lhe algo e, em seguida, afaga-lhe
docemente o rosto. Brilham-lhe lágrimas nos olhos.
– Pensei que nunca mais a veria – sussurra. – Passaram-se quase setenta
anos.
– Ela vai ficar bem? – pergunta a Annie ao Alain, olhando-o como se a
resposta dele decidisse tudo.
O Alain hesita e baixa a cabeça.
– Não sei, Annie. Mas não consigo acreditar que Deus nos tenha
reunido para depois a chamar até si sem que nos possamos sequer despedir.
Tenho de acreditar que há um propósito em tudo isto.
A Annie acena vigorosamente com a cabeça.
– Eu também.
Antes de podermos dizer mais alguma coisa, a enfermeira atrevida volta
a aparecer à entrada.
– Não têm mais tempo – anuncia. – A minha supervisora está a chegar.
O Gavin e eu entreolhamo-nos.
– Está bem – diz o Gavin. – Obrigado, Krista. Vamos sair. – Faz-me
sinal com a cabeça, e eu afasto lentamente a Annie da cama da Mamie.
Olho para trás, sobre o ombro, quando me aproximo da porta e vejo o Alain
novamente com a cabeça inclinada sobre a Mamie. Ele beija-a na testa e,
quando se vira para nós, mostra as lágrimas que lhe deslizam pelo rosto.
– Peço desculpa – diz. – É difícil.
– Eu sei – respondo. Seguro-lhe a mão e, em conjunto saímos do quarto,
deixando para trás a Mamie, na escuridão.

O Gavin e eu separamo-nos à saída do hospital. Ele tem de começar a


trabalhar às sete da manhã do dia seguinte e eu tenho de abrir a confeitaria.
A vida não pode parar. A Annie leva as minhas chaves para aguardar no
carro com o Alain.
– Não sei como te agradecer – digo a Gavin, baixando os olhos.
– Não fiz nada – replica. Ergo os olhos e vejo-o encolher os ombros e
sorrir. – Fico muito satisfeito por teres encontrado o Alain.
– Encontrei-o graças a ti – digo quase num murmúrio. – E a Annie ficou
bem na minha ausência graças a ti.
– Não – insiste ele. – Fiz o que qualquer pessoa teria feito. – Faz uma
pausa e acrescenta: – Talvez esteja a meter-me onde não sou chamado, mas
aquele teu ex-marido é uma personagem.
Engulo em seco.
– Porque dizes isso?
Ele abana a cabeça.
– Não parecia minimamente preocupado com a Annie, sabes? E ela
ficou muito abalada com o que aconteceu à tua avó. Precisava mesmo de ter
alguém ao seu lado.
– E tu estiveste lá para a ajudar – digo. – Nem sei o que te dizer.
– Bom, amanhã tenho de reparar o alpendre do Joe Sullivan. E se me
arranjasses uma chávena de café antes disso? – pergunta. – Ficamos quites.
Solto uma risada.
– Sim, claro, uma chávena de café é mesmo igual a tomar conta da
minha filha e ajudar a reunir a minha família.
O Gavin fita-me demoradamente, de forma intensa, e o meu coração
agita-se.
– Fiz tudo isto porque te queria ajudar – diz.
– Porquê? – pergunto, apercebendo-me, enquanto pronunciava a
palavra, de que ela ia soar deselegante e ingrata.
Ele continua a olhar para mim e encolhe os ombros.
– Não te desvalorizes, Hope – diz, antes de se afastar. Vejo-o entrar no
seu velhinho Wrangler e acenar à Annie ao sair do parque de
estacionamento.
– Mãe, temos de encontrar o Jacob Levy – anuncia a Annie na manhã
seguinte, quando aparece com o Alain, de braço dado, na confeitaria.
Receando que ele estivesse a fazer demasiados esforços, eu sugerira que o
Alain dormisse em nossa casa. Ele e a Annie tornaram-se inseparáveis
desde que se conheceram no hospital, na noite anterior, pelo que eu deveria
ter suspeitado que ela o traria consigo. – O Alain contou-me tudo a respeito
dele – acrescenta, orgulhosa.
– Annie, querida – digo, olhando para o Alain, que arregaça as mangas e
observa a cozinha –, não sabemos sequer se o Jacob ainda está vivo.
– E se ele estiver vivo, mãe? – pergunta, com algum desespero na voz. –
E se estiver algures por aí e tiver procurado a Mamie durante todos estes
anos? E se pudesse vir cá e, quem sabe, fazê-la acordar?
– Querida, isso é pouco provável.
A Annie lança-me um olhar carrancudo.
– Bolas, mãe! Não acreditas no amor?
– Acredito no chocolate – digo, suspirando e acenando com a cabeça
para os pains au chocolat que é preciso meter no forno – e acredito que, se
não começarmos a acelerar o ritmo, não conseguiremos abrir às seis.
– Tanto faz – resmunga a Annie. Utilizando duas pegas, introduz os
croissants de chocolate no forno. Ajusta o temporizador e revira os olhos
para o Alain. – Vê? Eu disse-lhe que ela é terrível de manhã.
O Alain ri-se entre dentes.
– Não creio que a tua mãe esteja a ser indelicada, querida – diz ele. –
Penso que está a tentar ser realista. E talvez também a mudar de assunto.
– Porque é que estás a mudar de assunto, mãe? – pergunta a Annie,
colocando as mãos na anca.
– Porque não quero que cries demasiadas expectativas – digo-lhe. – É
muito provável que Jacob Levy nem sequer esteja vivo. E, mesmo que
esteja, não é garantido que o consigamos encontrar.
Também não é garantido que ele tenha esperado pacientemente pela
minha avó durante todos estes anos. Não quero dizer à Annie que, mesmo
que milagrosamente o consigamos localizar, ele deve estar casado pela
quarta vez ou algo do género. É muito provável que tenha esquecido a
Mamie há setenta anos. Os homens são assim. Além disso, ao que parece, a
minha avó não demorou muito a esquecê-lo.
O Alain observa-me com atenção, e eu desvio o olhar, pois tenho a
desconfortável sensação de que ele sabe exatamente o que estou a pensar.
– Posso ajudar-te em alguma coisa, Hope? – pergunta após uma pausa. –
Em criança, trabalhei na confeitaria dos meus avós.
– A Annie pode mostrar-lhe como preparar a massa para os muffins de
mirtilo – digo, sorrindo. – Mas não quero que se sinta obrigado a ajudar.
Consigo trabalhar perfeitamente sozinha.
– Não disse que não o conseguias – responde o Alain. Arqueio a
sobrancelha, fitando-o, mas ele já se virou para a Annie o ajudar a apertar
um avental.
– Então, tipo, se a Mamie estava tão apaixonada pelo Jacob, porque é
que se casou com o meu bisavô? – pergunta a Annie ao Alain logo que ele
se vira novamente. Ele pega num saco de açúcar e na caixa de mirtilos
frescos que a Annie retirou do frigorífico. – Não o podia amar também, pois
não? – acrescenta a Annie. – Não, uma vez que o Jacob era o seu verdadeiro
amor.
Reviro os olhos mas, na verdade, preferia continuar a acreditar, como a
Annie, no conceito de um só verdadeiro amor. O Alain parece ponderar a
questão enquanto retira do armário uma tigela grande e uma colher de pau e
começa a misturar o açúcar com a farinha. Vejo-o introduzir as quantidades
exatas de sal e fermento. Annie passa-lhe quatro ovos e ele mete mãos à
obra, partindo-os e adicionando-os à mistura.
– Há várias formas de amar neste mundo, Annie – acaba por dizer.
Lança-me um olhar e dirige-se novamente à minha filha. – Não tenho
dúvidas de que a tua bisavó também amava o teu bisavô.
– Como assim? – pergunta ela, fitando-o. – Se a Mamie estava
apaixonada pelo Jacob, como poderia também, tipo, estar apaixonada pelo
meu bisavô?
O Alain encolhe os ombros e verte um pouco de leite e sour cream na
tigela. Mistura tudo vigorosamente com a colher de pau e, a seguir, a Annie
ajuda-o a acrescentar os mirtilos.
– Alguns tipos de amor são mais fortes do que outros – responde, por
fim, o Alain. – Isso não significa que não sejam todos reais. Nalguns casos,
tentamos adaptar-nos à outra pessoa mas nunca o conseguimos totalmente.
– Ele volta-se para mim e eu desvio o olhar. – Há também o amor entre
pessoas boas que se admiram e respeitam mutuamente e acabam por se
amar com o tempo – conclui.
– Acha que era esse o amor que a Mamie e o meu bisavô tinham? –
pergunta a Annie.
O Alain começa cuidadosamente a alinhar as formas dos muffins.
– Talvez – diz. – Não sei. Há também, Annie, o amor que todos
podemos sentir mas poucos tem a sabedoria de ver ou a coragem de agarrar.
Esse é o tipo de amor que pode mudar uma vida.
– Era assim que o Jacob e a Mamie se amavam? – pergunta a Annie.
– Acredito que sim – diz o Alain.
– Mas o que significa ter sabedoria para compreender um amor? –
insiste a Annie.
O Alain observa-me pelo canto do olho, e eu finjo estar ocupada a
encher um tabuleiro de miniaturas de tartes das estrelas. Os meus dedos
tremem ligeiramente enquanto dou a forma de estrela às crostas.
– Significa que o amor está em toda a parte – diz o Alain. – Porém,
quanto mais velhos nos tornamos, mais confusos ficamos. Quanto mais
desgostos sofremos, mais difícil é vermos o amor à nossa frente ou
abrirmos o coração para o receber e acreditar verdadeiramente nele. E quem
não consegue aceitar o amor, ou não é capaz de acreditar nele, nunca o pode
sentir verdadeiramente.
A Annie parece confusa.
– Está a dizer, então, que a Mamie e o Jacob se apaixonaram por serem
jovens?
– Não, acredito que a tua bisavó e o Jacob se apaixonaram porque foram
feitos um para o outro – responde o Alain. – E porque não fugiram do amor.
Não tiveram medo dele. Não deixaram que os seus receios interferissem nos
seus sentimentos. Neste mundo, muitas pessoas nunca se apaixonam com
tal intensidade porque, sem o saberem, já têm o coração fechado.
Coloco um tabuleiro de tartes das estrelas no forno mais pequeno, do
lado esquerdo, e estremeço quando, por descuido, bato com a mão na porta
do forno. Praguejo entre dentes e ajusto o temporizador.
– Mãe? – pergunta a Annie. – Amavas assim o pai?
– Claro que amava – apresso-me a responder, sem me voltar para ela.
Não lhe quero dizer que, se não tivesse ficado grávida dela, eu nunca me
teria casado com o pai. Não foi o amor por ele que me levou a constituir
família; foi o amor pela vida que crescia dentro de mim.
Interrogo-me sobre o que a Mamie terá pensado quando conheceu o
meu avô. Estava convencida, ao que parece, de que tinha perdido o Jacob e,
em determinado momento, podia perder a criança que tinha dentro de si.
Sentia certamente um enorme vazio na sua vida. Teria sido a solidão a
conduzi-la aos braços do meu avô? Como conseguiu passar as noites ao seu
lado, sabendo que já tivera – e perdera – o amor da sua vida?
– Então porque te divorciaste? – inquire a Annie. – Se amavas assim o
pai?
– Por vezes, as coisas mudam – respondo.
– Não foi o que aconteceu com a Mamie e o Jacob – diz a Annie,
confiante. – Aposto que sempre se amaram. Aposto que ainda se amam.
Neste momento, sinto uma profunda tristeza pelo meu avô, um homem
amável e caloroso, inteiramente dedicado à sua família. Pergunto-me se ele
alguma vez compreendeu que a sua mulher tinha, muito provavelmente,
entregado o seu coração muito antes de o conhecer.
Ergo os olhos e noto que o Alain me observa, pensativo.
– Nunca é demasiado tarde para se encontrar o verdadeiro amor – diz-
me diretamente. – Apenas é preciso manter o coração aberto.
– Sim, está bem – gracejo –, mas alguns de nós não têm essa sorte.
O Alain acena lentamente com a cabeça.
– Contudo, por vezes, temos essa sorte mas temos demasiado medo de a
ver.
Reviro os olhos.
– Sim, claro, há por aí uma data de homens decididos a fazer-me a corte.
A Annie olha-me e, em seguida, dirige-se ao Alain.
– Ela tem razão. Ninguém a convida para sair. Exceto o Matt Hines, mas
esse é, tipo, esquisito.
Sentindo-me corar, aclaro a garganta.
– Pronto, Annie – digo bruscamente. – Vamos ao trabalho. Preciso que
prepares o Strudel, está bem?
– Tanto faz – resmunga ela.

Esta manhã, a abertura corre melhor do que eu esperava; com a ajuda do


Alain, estamos prontos a receber os clientes às seis horas. O Gavin chega
por volta das seis e meia, mas a agitação da confeitaria impede-me de lhe
dedicar muita atenção enquanto lhe entrego o café, lhe agradeço novamente
a ajuda e lhe desejo um bom dia de trabalho em casa do Joe Sullivan.
O Alain fica comigo quando a Annie parte para a escola e, depois de
terminar o horário mais movimentado da manhã e de eu ter respondido
secamente a perguntas de uma dezena de clientes sobre o meu
desaparecimento nos últimos três dias, ficamos a sós na confeitaria.
– Uf! – atira o Alain. – Tens aqui um belo negócio, minha querida.
Encolho os ombros.
– Podia ser melhor.
– Talvez – concede o Alain. – Mas penso que deves estar grata pelo que
realmente tens.
O que realmente tenho é uma dívida a crescer e uma hipoteca que, em
breve, serei obrigada a pagar, deixando-me sem negócio. Não conto,
todavia, essa parte da história; não há motivo para sobrecarregar o Alain
com os meus problemas. Afinal, imagino que sejam bastante triviais quando
comparados com os tormentos que o afligiram ao longo da vida. Isso faz-
me sentir terrivelmente insensata por me deixar abater tão facilmente por
pequenas coisas.
O dia passa muito rapidamente, e a Annie regressa da escola com uma
pilha de papéis na mão.
– Quando vamos visitar a Mamie? – pergunta, saudando o Alain com
um abraço.
– Quando fecharmos a confeitaria – digo-lhe. – E se começasses a lavar
a louça na cozinha? Talvez hoje consigamos sair um pouco mais cedo.
A Annie franze o sobrolho.
– Podes lavar tu a louça? Tenho alguns telefonemas para fazer.
Paro de retirar os pedaços de baklava do expositor e brindo-a com um
olhar severo.
– Telefonemas?
A Annie desenrola o maço de papéis que segurava e revira os olhos.
– Para o Jacob Levy. Obviamente…
– Encontraste o Jacob Levy? – pergunto, arregalando os olhos.
– Sim – diz a Annie, baixando a cabeça. – Pronto, a verdade é que
encontrei muitos homens chamados Jacob Levy. E, tipo, nem contei os que
apareciam na lista telefónica como J. Levy. Mas vou ligar a todos até
encontrarmos o homem certo.
– Annie, querida… – começo, suspirando.
– Chega, mãe! – responde ela asperamente. – Não sejas pessimista. És
sempre pessimista! Eu vou encontrá-lo. E tu não me podes impedir.
Abro e fecho a boca, impotente. Espero que ela tenha razão, mas parece
ter consigo centenas de números. Não admira; estou certa de que Jacob
Levy é um nome muito comum.
– Então? Posso utilizar o telefone lá atrás?
Faço uma pausa e aceno que sim.
– Sim, desde que sejam apenas números dos Estados Unidos.
A Annie ri-se com malícia e saltita até à cozinha. O Alain sorri e
levanta-se para a seguir.
– Tenho saudades de ser jovem e de ter esperança – diz ele. – Tu não?
Ele segue a minha filha até à cozinha, deixando-me só, de pé, sentindo-
me como o Ebenezer Scrooge. Quando deixei eu de ser jovem e de ter
esperança? Não era minha intenção ser desmancha-prazeres; eu queria
simplesmente ajudá-la a moderar as suas expectativas. Sei, por experiência
própria, que esperar coisas boas acaba por nos magoar.
Suspiro e regresso à tarefa de colocar os produtos em caixas herméticas
para ficarem no frio durante a noite. A baklava que confecionei ao fim da
manhã durará mais alguns dias, os muffins e os biscoitos ficarão no frio e,
em princípio, conseguirei recuperar pelo menos um dos Strudels amanhã de
manhã. Os nossos donuts caseiros só se mantêm frescos durante um dia, e é
por esse motivo que preparo geralmente apenas uma variedade por dia; os
donuts de açúcar com canela que fiz hoje quase esgotaram, e os três que
ainda restam vão provavelmente acabar no cesto de recolha diária destinado
ao abrigo para mulheres se não entrarem mais clientes nos próximos
minutos.
Ouço a Annie, nas traseiras da confeitaria, tagarelar ao telefone,
provavelmente perguntando a cada interlocutor se conhece um tal Jacob
Levy saído de França após a Segunda Guerra Mundial. Entre chamadas,
apercebo-me de que o Alain lhe murmura alguma coisa e pergunto-me o
que será. Estará a contar-lhe histórias sobre o Jacob para a manter
inspirada? Ou a ser responsável e a recordar-lhe que pode tratar-se de uma
missão impossível e que ela não deve alimentar expectativas?
Uma vez esvaziados os expositores, começo a guardar os bolos no frio.
Lavo diligentemente os tabuleiros e as formas destinadas a muffins e
miniaturas de tartes, enquanto Annie aumenta o tom de voz para se fazer
ouvir sobre o som da água da torneira.
– Olá, chamo-me Annie Smith – ouço-a gritar para o telefone. – Procuro
um senhor chamado Jacob Levy que terá neste momento, tipo, oitenta e sete
anos. É francês. Talvez conheça um Jacob Levy com essas
características?… Ah, bom. De qualquer modo, obrigada. Sim, adeus.
Depois de desligar, o Alain murmura-lhe algumas palavras. Ela solta um
risinho, pega no telefone e repete exatamente as mesmas palavras na
chamada seguinte.
Estou a preparar-me para fechar a confeitaria e dirigir-me ao hospital,
depois de servir uma cliente de última hora, enquanto a Annie efetua
algumas chamadas.
– Estás pronta? – pergunto, enxugando as mãos numa toalha e retirando
as minhas chaves do cabide junto à porta da cozinha.
– Posso fazer mais um telefonema, mãe? – pede a Annie.
Consulto o relógio e acedo.
– Mais uma. Mas depois precisamos de chegar ao hospital ainda durante
o período de visitas. Está bem?
Encosto-me ao balcão e ouço a Annie repetir mais uma vez a sua
cantilena. O seu rosto revela alguma angústia quando desliga o telefone.
– Mais um beco sem saída – murmura.
– Annie, ainda estás na terceira página – recorda o Alain. – Temos
muitos Jacob Levy para contactar amanhã. E depois todos os J. Levy da tua
lista.
– Talvez… – murmura a Annie. Suspira e desce do balcão, deixando a
lista junto ao telefone.
– Annie, não te preocupes – digo, tentando deixar-me contagiar pelo seu
otimismo. – Talvez o encontres.
A expressão severa com que me olha revela que começa a perder a
esperança.
– Tanto faz – diz. – Vamos ver a Mamie.
O Alain e eu entreolhamo-nos, preocupados, e seguimo-la até à porta.
Capítulo 18

Nos dias seguintes, nada se altera. A Mamie não reage. O Gavin visita a
confeitaria todas as manhãs para tomar café e comer um bolo, perguntando-
me sempre pelo estado de saúde da minha avó. O Alain faz companhia à
Annie de manhã, ajuda-me durante as horas de serviço e, ao fim da tarde,
arquiteta com a minha filha mais uma série de telefonemas infrutíferos.
Depois de fecharmos a confeitaria, percorremos os três, durante meia hora,
o longo percurso até ao hospital de Hyannis para passarmos noventa
minutos à cabeceira da Mamie. O único lado positivo de toda esta rotina é o
facto de, felizmente, a época turística ter terminado e não haver, portanto,
muito trânsito na Estrada 6 quando caminhamos de e para a zona sudoeste
de Cape.
No quarto do hospital, o Alain segura a mão da Mamie e segreda-lhe
algumas palavras em francês, enquanto a Annie e eu nos sentamos em
cadeiras junto à cama. Por vezes, a Annie levanta-se num pulo e coloca-se
ao lado do Alain, alisando o cabelo da Mamie enquanto ele fala em voz
baixa. Não consigo associar-me a esses momentos; sinto-me estranhamente
vazia. A última pessoa em que confio está a eclipsar-se, e eu nada consigo
fazer para o evitar.
No domingo, fecho cedo, ao meio-dia, e o Alain pede-me boleia para o
hospital.
– Também queres ir? – pergunto à Annie.
Ela encolhe os ombros.
– Talvez mais logo. Quero telefonar ainda hoje a mais alguns Levys da
minha lista. Posso ficar em casa enquanto levas o tio Alain?
Hesito por instantes.
– Está bem. Mas não abras a porta a ninguém.
– Credo, mãe, já não sou uma criança – afirma, pegando no telefone.
No carro, a caminho de Hyannis, o Alain descreve-me um restaurante
parisiense de que ele e a Mamie gostavam antes da guerra. O dono do
restaurante ia sempre até à mesa deles, após a refeição, e preparava crepes
especiais para eles, com chocolate, açúcar mascavado e bananas. A Mamie
e o Alain soltavam risinhos e apontavam para os crepes enquanto o dono do
restaurante os envolvia em chamas à sua frente e depois fingia não as
conseguir apagar.
– Foi um período magnífico – diz o Alain. – Antes de se começar a
atribuir tanta importância às nossas convicções religiosas. Antes de tudo ter
mudado. – Faz uma pausa e acrescenta: – Na noite em que levaram a minha
família, passei a correr pelo restaurante. E o dono estava à porta, assistindo
à marcha de todas aquelas pessoas a caminho da morte. E sabes uma coisa?
Ele estava a sorrir. Por vezes, aquele sorriso ainda me assombra nos meus
pesadelos.
O Alain limita-se a olhar fixamente pela janela até ao fim da viagem.
No hospital, sento-me com o Alain, por instantes, à cabeceira da Mamie
enquanto ele lhe sussurra algumas palavras.
– Acha que ela o consegue ouvir? – pergunto antes de sairmos.
– Não sei – diz ele, sorrindo. – Mas sinto-me melhor se fizer alguma
coisa. E estou a recordar-lhe histórias da nossa família, histórias que quis
arredar dos meus pensamentos durante os últimos setenta anos. Acredito
que, se alguma coisa a fizer acordar, serão estas palavras. Quero que ela
saiba que o passado não está perdido, não está esquecido, apesar de ela ter
mudado de país para o tentar apagar.

Quando entro em casa, uma hora mais tarde, depois de deixar o Alain na
biblioteca a seu pedido, a Annie está sentada no chão, no centro da sala de
estar, com as pernas cruzadas e o telefone portátil ao ouvido, dizendo:
– Sim… Certo… Sim… Está bem.
Por momentos, os meus olhos iluminam-se; terá ela encontrado Jacob
Levy? Afinal, as palavras dela não seguem o guião habitual, aquele em que
pede desculpa por ter telefonado para o Levy errado. Contudo, perco a
esperança quando ela se vira e eu reparo na sua expressão.
– Sim, está bem – ouço-a dizer. – Tanto faz. – Carrega no botão para
desligar o telefone e atira-o violentamente para o chão.
– Querida? – pergunto timidamente. Detive-me na passagem entre a
cozinha e a sala de estar e agora fito-a com preocupação. – Era mais um
Levy?
– Não – diz.
– Um amigo teu?
– Não – repete com a voz mais tensa. – Era o pai.
– Muito bem – digo. – Queres falar sobre alguma coisa?
Permanece em silêncio durante bastante tempo, de olhos postos na
alcatifa, que não é aspirada há uma eternidade. Tratar da casa não é um dos
meus fortes. Porém, quando ela ergue o olhar na minha direção, parece tão
furiosa que eu, involuntariamente, dou um passo atrás.
– Afinal porque é que nos meteste nisto? – pergunta a Annie, irada.
Ela coloca os punhos cerrados sobre os pés, deixando cair os braços ao
lado das suas pernas magras, que ainda pertencem a uma criança e não a
uma jovem mulher. Eu pestanejo, surpreendida.
– A que te referes? – pergunto, mas logo me ocorre que, enquanto sua
mãe, deveria dizer-lhe que é inaceitável falar-me naquele tom. Contudo, já é
impossível sustê-la.
– Tudo! – grita.
– Querida, de que estás a falar? – inquiro cautelosamente.
– Nunca o vamos encontrar! Ao Jacob Levy! É impossível! E tu nem
queres saber!
Invade-me algum desalento. Falhei-lhe mais uma vez, pois devia tê-la
preparado melhor para a hipótese, mais do que provável, de todo este
esforço ser inútil porque o Jacob está morto ou desapareceu para não ser
encontrado. Sei que a Annie quer acreditar num verdadeiro amor que dura
para sempre – certamente para contrariar o facto de ter assistido na primeira
fila à derrocada do meu casamento – mas eu esperava não ter de lhe destruir
já as ilusões e explicar-lhe a verdade. Aos doze anos, também eu tinha fé no
verdadeiro amor. Só mais tarde percebi que não passa de uma fantasia.
– É claro que quero saber, Annie – começo, depois de engolir em seco.
– Mas é possível que Jacob não esteja…
Ela interrompe-me antes de eu poder concluir.
– Não é só isso! – exclama. Gesticula em todos os sentidos, com os seus
braços compridos e magros, parecendo não notar que o relógio de pulso se
prende por instantes ao cabelo. Acaba por soltá-lo violentamente e
estremece antes de prosseguir. – É tudo! Tu estragas tudo!
Procuro respirar fundo.
– Annie, se te referes aos dias que passei em Paris, já te disse o quanto
valorizo a tua atitude responsável durante a minha ausência.
Ela revira os olhos e bate com o pé esquerdo no chão.
– Nem sabes do que estou a falar! – diz, lançando-me um olhar
fulminante.
– Pronto, parece que sou mesmo uma idiota! – respondo. Sinto perder
finalmente a paciência. Há uma fronteira ténue entre a compreensão e a
irritação e, neste momento, percebo que estou lentamente a ultrapassá-la. –
O que fiz de mal desta vez?
– Tudo! – grita. O seu rosto fica mais vermelho e, por uma fração de
segundo, vem-me à memória uma imagem estranha, fugaz, em que, a meio
da noite, a seguro nos meus braços e lhe procuro mitigar as cólicas para que
o Rob, que tinha sempre de descansar para um qualquer processo
importante, pudesse dormir. Porque o deixei tratar-me assim? Não creio ter
dormido mais do que duas horas consecutivas nos primeiros três meses,
mas ele conseguiu sempre pelo menos seis horas de sono. Abano a cabeça e
volto a centrar-me na minha filha.
– Tudo? – pergunto, receosa.
– Tudo! – repete de imediato. – Não gostavas o suficiente do pai para
fazer funcionar o casamento! Não o amavas como a Mamie e o Jacob se
amavam! E agora a minha vida está arruinada! Por tua causa!
Sinto um murro no estômago e, por momentos, respiro a custo.
Continuo a olhá-la, atónita.
– De que estás a falar? – pergunto, quando recupero a voz. – Agora
responsabilizas-me pelo divórcio?
– Claro que sim! – grita. Coloca as mãos na anca e volta a bater com o
pé no chão. – Todos sabem que a culpa é tua!
Mais uma vez, as suas palavras atingem-me com uma violência
inesperada.
– Como?
– Se tivesses simplesmente amado o pai, ele não moraria agora do outro
lado da cidade nem teria uma namorada pateta que me odeia! – protesta a
Annie. Subitamente, tudo se torna mais claro. O problema não sou eu nem é
o Rob. O problema é tudo o que a nova namorada do Rob desperta na
Annie. E, apesar de a Annie me estar a agredir sem misericórdia, sinto-me
mais dorida por ela do que por mim.
– Porque dizes que a namorada do teu pai te odeia? – pergunto em voz
baixa.
– Isso interessa-te? – resmunga a Annie, esmorecendo repentinamente.
Arqueia as costas e cruza os braços sobre o peito, fitando o chão.
– Interessa-me porque te amo – digo, alguns segundos depois. – E o teu
pai também te ama. E essa mulher, seja lá quem for, se mostra que não
gosta de ti, só pode ser doida varrida.
– Tanto faz – atira a Annie. – O pai não pensa o mesmo. Acha que a
Sunshine é perfeita.
Procuro acalmar-me. Isto é típico do Rob. Ele comporta-se como um
menino; deixa-se hipnotizar durante algum tempo por coisas novas e
fulgurantes. Por carros. Casas. Roupas. Barcos. E, noutro tempo, por mim.
Conheço, porém, a realidade. Sei que as suas paixões são sempre
temporárias. Acontece que a Annie deveria ser uma paixão permanente na
sua vida.
– Tenho a certeza de que o teu pai não acredita que essa mulher seja
perfeita – digo. – Ele adora-te, Annie. Se ela for desagradável contigo, fala
com o teu pai. Ele resolverá a situação. – Ainda que, por estes dias, não
conte muito com o Rob, só posso esperar que defenda a nossa filha. A
Annie mantém os olhos pregados no chão.
– Eu contei-lhe – diz discretamente. A revolta desapareceu da sua voz e
os seus braços parecem franzinos e sem vida. Continua de cabeça baixa e
não me olha diretamente.
– E o que te disse ele?
– Disse que tenho de aprender a respeitar os mais velhos – conta a
Annie, respirando fundo. – E que devo aprender a conviver melhor com a
Sunshine.
Sinto o sangue a ferver e cerro os punhos. A Annie não é perfeita e eu
não excluo a possibilidade de ela dificultar a vida à namorada do pai.
Contudo, é inaceitável que o Rob tome o partido da sua nova conquista e
não da sua filha, sobretudo tendo em conta que a Annie não deve entender o
facto de ele ter esquecido tão rapidamente o nosso casamento.
– O que faz, em concreto, a Sunshine para te levar a pensar que não
gosta de ti? – pergunto cautelosamente.
A Annie solta um riso sarcástico, que a faz parecer muito mais velha e
mais forte do que é na realidade.
– O que é que ela não faz? – diz. Expira ruidosamente e desvia o olhar.
Quando volta a falar, soa apenas triste. – Ela nunca fala comigo. Conversa
com o pai como se eu fosse invisível ou coisa parecida. Por vezes, ri-se de
mim. Disse-me, um destes dias, que a minha roupa era rídicula.
– Ela disse-te que a tua roupa era rídicula? – repito, incrédula. – Utilizou
mesmo a palavra rídicula?
– Sim – confirma a Annie. – E quando, um dia, ela saiu, tentei falar com
o pai a esse respeito, convencida de que ele me entenderia. Pensei que ele,
tipo, percebia. Mas quando cheguei a casa nessa noite, vinda da confeitaria,
entrei na minha casa de banho e vi, ali mesmo, junto ao lavatório, um colar
de prata que ele tinha comprado para a Sunshine e um bilhete onde
escrevera Lamento que a Annie te tenha feito sentir culpada com as suas
palavras. Tratarei do assunto. Não quero que te sintas mal.
– Ele falou-lhe sobre a conversa que teve contigo? – pergunto, olhando-
a atentamente. A Annie acede.
– E ainda lhe comprou um presente – acrescenta, expelindo a última
palavra como se tivesse um sabor amargo. – Um presente. Para ela se sentir
melhor. E o que faz ela? Deixa o presente na minha casa de banho, como se
se tivesse enganado. Mas eu sei o que ela estava a fazer. Ela queria, tipo,
mostrar-me que o pai ficaria sempre do seu lado.
– Tenho a certeza de que isso não é verdade – murmuro, obviamente
sem convicção. Sunshine parece ser uma víbora manipuladora. Não me
importo que ela queira dominar o meu ex-marido. Estou cansada de o
proteger e, na verdade, ele merece, por uma vez, ser a parte manipulada e
usada. Porém, não tolero que uma mulher magoe deliberadamente uma
criança de doze anos. E quando essa criança é a minha filha, perco a cabeça.
– Como reagiu o teu pai? – pergunto à Annie. – Disseste-lhe que
encontraste o colar?
Ela acena lentamente que sim e baixa os olhos.
– Disse que eu não devia mexer nas coisas da Sunshine – conta. – Tentei
explicar-lhe que ela deixara o colar na minha casa de banho, mas ele não
acreditou. Pensou que eu, tipo, lhe revirei a carteira ou algo parecido.
– Compreendo – digo com severidade. A seguir, respiro fundo. – Muito
bem. Em primeiro lugar, querida, o teu pai perdeu claramente o juízo. Não
há ninguém no mundo que possa relegar um filho para segundo plano.
Muito menos uma cabra chamada Sunshine.
A Annie parece escandalizada.
– Chamaste-lhe cabra?
– Nem mais – confirmo. – Não tenho dúvidas de que o é. E vou ter uma
conversa com o teu pai a este respeito. Sei que é difícil entender tudo isto
mas, na verdade, a situação nada tem a ver contigo. O problema é que o teu
pai é inseguro e tonto. Asseguro-te que, dentro de seis meses, a Sunshine
estará esquecida. Os interesses do teu pai são efémeros. Contudo, por agora,
é inadmissível que ele te trate desta forma ou deixe que uma fulana
qualquer o faça. E eu vou tratar desse assunto. Está bem?
A Annie observa-me, perplexa, sem saber se deve acreditar nas minhas
palavras.
– Está bem – acaba por dizer. – Vais mesmo falar com ele?
– Sim – asseguro. – Mas não gosto que me culpes por tudo o que corre
mal, Annie. Tens de parar com isso. Sei que estás inquieta, mas eu não sou
um saco de pancada.
– Eu sei – murmura.
– E eu não fui responsável pelo divórcio – afirmo. – O teu pai e eu
deixámos simplesmente de sentir amor um pelo outro. Errámos os dois.
Está bem? – Na verdade, não estou de todo convencida de que tenhamos
cometido os mesmos erros. Senti-me tratada como um capacho durante uma
década, acabando por cair na realidade e fazer-lhe frente. No final, a pessoa
que me pisara sem escrúpulos não gostou particularmente da autoestima
que o seu capacho entretanto adquirira. Porém, a Annie não precisa de saber
tudo isso. Quero que continue a gostar do pai, ainda que eu já não possa
fazer o mesmo.
– Não é essa a opinião do pai – murmura a Annie, baixando o olhar. –
Do pai e da Sunshine.
Abano a cabeça, aturdida.
– E qual é então a opinião do pai e da Sunshine?
– Garantem que tu mudaste – conta. – E que já não eras a mesma
pessoa. E ainda que, quando mudaste, deixaste de amar o pai.
O pai dela tem razão, naturalmente, num aspeto; eu mudei. Isso não
implica, porém, que o divórcio tenha sido provocado por mim. Apesar de
tudo, prefiro não partilhar esta ideia com a Annie. Em vez disso, limito-me
a dizer:
– Bom, acreditar num casal de idiotas é uma idiotice, não achas?
– Sim – ri-se ela.
– Muito bem – digo. – Vou conversar com o teu pai. Lamento que ele e
a namorada te estejam a fazer sofrer. E lamento que a atual situação da
Mamie te preocupe tanto. No entanto, Annie, nenhum desses problemas te
dá o direito de me ofenderes.
– Desculpa – balbucia.
– Eu sei – digo. Respiro fundo. Detesto ser a vilã, sobretudo num
momento em que ela enfrenta todo o tipo de contrariedades, mas, enquanto
sua mãe, não posso tolerar alguns comportamentos. – Menina, infelizmente,
estarás de castigo nos próximos dois dias. E não vais poder usar o telefone.
– Eu estou de castigo? – pergunta com um ar incrédulo.
– Sabes que não deves falar comigo nesses termos – digo – nem
descarregar os teus problemas na tua mãe. Sempre que alguma coisa te
preocupar, basta falares comigo, Annie. Sempre estive aqui para te ajudar.
– Eu sei. – Ela faz uma pausa e, em seguida, olha-me angustiada. –
Espera, isso quer dizer que não posso telefonar a mais Levys?
– Nos próximos dois dias, não – sentencio. – Podes retomar os
telefonemas na terça-feira à tarde.
Ela fica de queixo caído.
– Tu és tão má – afirma.
– Consta que sim – respondo. Ela brinda-me com um olhar furioso.
– Odeio-te! – atira.
– Sim, e tu também és um doce… – replico, suspirando. – Está na hora
de ires para o quarto. Preciso de ter uma conversa com o teu pai.

Quando abrando o carro junto à casa onde vivi, começo por reparar que
as camélias cor-de-rosa do jardim da frente, aquelas a que dediquei tanto
cuidado e afeto durante oito anos, desapareceram. Todas. Ainda aqui
estavam há poucas semanas, no dia da minha última visita.
Noto, em seguida, que há uma mulher no jardim, vestida com a parte de
cima de um biquíni cor-de-rosa e com uns calções de ganga rasgados,
apesar de, ao ar livre, não estarem mais de treze graus. É pelo menos uns
dez anos mais nova do que eu, e os seus cabelos louros compridos estão
apertados num rabo de cavalo demasiado alto que lhe deve provocar uma
enorme dor de cabeça. E espero que lhe provoque uma enorme dor de
cabeça. Tenho de concluir que se trata de Sunshine, a mulher que, por estes
dias, se dedica a torturar a minha filha. Desejo subitamente, mais do que
qualquer outra coisa no mundo, carregar a fundo no acelerador e passar-lhe
por cima, deixando-a esmagada contra o solo. Felizmente, não sou, na
verdade, uma assassina, e acabo por reprimir a minha fantasia. Ainda assim,
gostava muito de pelo menos lhe puxar o rabo de cavalo atrevido até ela
gritar.
Coloco a caixa de velocidades automática na posição de estacionamento
e retiro as chaves da ignição. Ela levanta-se e observa-me enquanto saio do
carro.
– Quem é você? – pergunta.
Uau, nota vinte em boas maneiras, penso.
– Sou a mãe da Annie – respondo severamente. – Deve ser a…
Raincloud3?
– Sou a Sunshine – corrige.
– Ah, evidentemente – digo. – O Rob está em casa?
Ela agita o rabo de cavalo sobre o ombro direito e depois sobre o ombro
esquerdo.
– Sim – acaba por dizer. – Está, tipo, lá dentro.
Bom, fala como uma rapariga de doze anos. Não admira que julgue ter
de competir com a minha filha; o seu nível de maturidade é claramente
semelhante. Suspiro e dirijo-me para a porta.
– Nem sequer me vai agradecer? – grita à distância.
Viro-me e brindo-a com um sorriso.
– Não, não vou.
Toco à campainha, e o Rob surge instantes depois, vestindo apenas
umas bermudas. Será o dia do naturismo? Não compreendem que as
temperaturas vão descer até aos cinco graus esta noite? Fica-lhe bem, ainda
assim, revelar-se algo constrangido quando me vê.
– Oh, olá, Hope – diz. – Recua alguns passos e agarra numa T-shirt do
cesto da roupa suja colocado na lavandaria com ligação ao hall. Veste-a
rapidamente. – Não esperava que fosses tu. Como está… a tua avó?
A sua preocupação, simulada ou não, surpreende-me
momentaneamente.
– Está bem – digo sem pensar. E depois abano a cabeça. – Não, não está.
Não sei porque disse o que disse. Ela ainda está em coma.
– Lamento ouvir isso – diz o Rob.
– Obrigada – respondo.
Por momentos, permanecemos os dois imóveis, olhando um para o
outro, até o Rob se lembrar das boas maneiras.
– Desculpa, queres entrar?
Aceno que sim e ele afasta-se, dando-me passagem. Entrar na minha
antiga casa assemelha-se a irromper pela minha antiga vida num episódio
de Quinta Dimensão. Tudo é igual, mas diferente. As janelas panorâmicas
das traseiras proporcionam-nos a mesma vista da baía, mas as cortinas são
diferentes. A escadaria descreve a mesma curva, mas a carteira pousada no
patamar não é a mesma. Abano a cabeça e sigo-o até à cozinha.
– Queres chá gelado, ou qualquer outra coisa? – oferece.
– Não, obrigada – digo, erguendo a mão. – Não posso demorar-me.
Tenho de visitar a Mamie. Antes disso, porém, preciso de falar contigo.
O Rob suspira e coça a cabeça.
– Ouve, vens falar-me novamente sobre a maquilhagem? Creio que
estás a exagerar, mas tentei ser inflexível, está bem? Ela chegou a casa, há
dias, com bâton nos lábios, e eu forcei-a a limpá-lo e a entregar-me a
embalagem.
– Agradeço – digo. – Mas não é esse o motivo da minha visita.
– Qual é, então? – pergunta, abrindo os braços. Por instantes,
continuamos de pé, fitando-nos mutuamente, sem que nenhum dos dois se
mostre disposto a sentar-se ou a baixar a guarda.
– É a Sunshine – digo num tom de voz inexpressivo.
Ele pestaneja algumas vezes e eu fico com a certeza, depois de observar
esta simples reação, de que ele percebe o que vou dizer e sabe que tenho
razão. É interessante concluir que doze anos com uma pessoa são
suficientes para decifrar todos os seus pequenos sinais de fragilidade.
Ele ri-se, inquieto.
– Hope, vá lá, a nossa relação já acabou – graceja. – Não podes ter
ciúmes da minha nova vida.
Eu mantenho-me impassível.
– A sério, Rob? Achas que é isso que me traz cá?
Ele sorri afetadamente mas, percebendo que eu não desvio o olhar, a
expressão forçada desaparece-lhe do rosto e ele encolhe os ombros.
– Não sei. O que te traz cá?
– Ouve – digo. – Não me interessa quem são as tuas namoradas. No
entanto, quando isso afeta negativamente a Annie, tenho de intervir. E tu
tens uma relação com uma mulher que, ao que parece, sente ter de disputar
com a Annie a tua atenção.
– Elas não disputam a minha atenção – diz o Rob. Observando que ele
esboça um ligeiro sorriso, pergunto-me se, afinal, ele sabe tudo o que se
passa e está, de alguma forma doentia, a alimentar o seu ego com a
situação. Arrependo-me, pela milésima vez, de não ter percebido, aos vinte
e poucos anos, que ter uma filha com um homem egoísta significava
sujeitá-la a um pai egoísta. E Annie está a pagar por esse erro.
Fecho os olhos por momentos, tentando invocar alguma paciência.
– A Annie falou-me do colar de prata – digo – que encontrou junto ao
lavatório na casa de banho dela, onde foi claramente deixado, com o teu
bilhete, pela Sunshine para mostrar a Annie que tu escolhes a tua namorada
em detrimento da tua filha.
– Não escolho ninguém – protesta o Rob, mas com um ar embaraçado.
– Escolhes – digo –, e aí reside o problema. Tu és o pai da Annie. E isso
conta muito mais do que uma relação qualquer com uma pessoa que
conheces há trinta e cinco segundos. Devias escolher a Annie. Sempre. Em
qualquer situação. E, quando a Annie não tem razão, deves, de facto, alertá-
la, mas não de uma forma que a faça sentir-se preterida em favor de outra
pessoa. Repito, és o pai dela, Rob. E, se não começares a comportar-te
como tal, vais deixá-la arrasada.
– Não é esse o meu objetivo – diz ele. A sua voz um tanto contristada
denuncia, apesar de tudo, alguma sinceridade.
– Precisas igualmente de saber como ela é tratada pelas pessoas que
deixas entrar na tua vida – continuo. – Se tens uma namorada que procura
deliberadamente magoar a tua filha, não te parece que alguma coisa está
errada? Em vários sentidos?
O Rob baixa os olhos e abana a cabeça.
– É impossível conheceres toda a situação. – Ele afaga a nuca e
permanece longos minutos a olhar pela janela panorâmica. Faço o mesmo e
avisto um grupo de barcos à vela, brancos, que balançam na água no
horizonte azul, perfeito, e pergunto-me se ele está a recordar, como eu, os
primeiros tempos do nosso casamento, em que ele e eu navegávamos no
nosso barco ao largo de Boston sem nenhuma preocupação. Pensando
melhor, ocorre-me que, nesse período, eu estava grávida e,
consequentemente, muito atreita a enjoos, pelo que o Rob se limitava a
olhar para o lado quando eu vomitava borda fora. Sempre conseguiu o que
queria – a mulher complacente e solícita ao seu lado, criando um quadro
perfeito – e sempre remediou tudo com um sorriso. Foi essa a essência de
todo o nosso casamento? Será possível resumi-lo apenas a uma imagem em
que estou a vomitar e o Rob finge não ver?
Voltamo-nos em simultâneo, e eu interrogo-me se, de algum modo, ele
pressente o que estou a pensar. Surpreendentemente, ele baixa a cabeça e
diz:
– Desculpa. Tens razão.
A minha perplexidade é tal que não consigo encontrar palavras para lhe
responder. Não sei se alguma vez, desde que o conheço, deu o braço a
torcer.
– Muito bem – digo por fim.
– Eu trato desse assunto – assegura. – Lamento ter magoado a Annie.
– Está bem – respondo, genuinamente grata. Não a ele, que foi quem
primeiro errou e afligiu a minha filha. Estou grata pelo facto de a Annie
poder agora deixar de sofrer e ainda ter um pai que se preocupa com ela,
por pouco que seja. O Rob precisa apenas de encorajamento para seguir o
caminho mais correto.
Sinto-me ainda abençoada, mais do que nunca, por estar fora desta vida
com o meu ex-marido. O meu erro não foi pôr termo ao casamento; foi
iludir-me e acreditar, no início, que casar-me com ele era uma boa ideia.
Recordo subitamente as histórias que o Alain me contou sobre a Mamie
e o Jacob e dou-me conta, com uma terrível clareza, de que nunca vivi algo
sequer parecido. Nem com o Rob, nem com ninguém. Não sei sequer se
alguma vez acreditei no amor e, por conseguinte, talvez nunca tenha sentido
a sua falta. As histórias do Alain entristecem-me, não apenas pela Mamie,
mas também por mim.
Sorrio para o Rob e, nesse momento, sinto-me grata por outra coisa. Por
ele me ter libertado. Por ele ter sentido a necessidade de ter uma aventura
amorosa com uma rapariga de vinte e dois anos. Por ele ter assumido a
responsabilidade de pôr fim ao nosso casamento. Tudo isto significa que há
uma pequena possibilidade, por remota que seja, de eu ainda voltar a ser
feliz. Preciso, todavia, de encontrar uma forma de acreditar no tipo de amor
que o Alain me descreve.
– Obrigada – digo ao Rob. E, sem dizer mais uma palavra, dou meia-
volta e encaminho-me para a porta. Sunshine está de pé no jardim, com as
mãos nas ancas, aparentemente furiosa, quando saio pela porta da frente.
Pergunto-me se ela terá permanecido naquela posição desde o nosso
diálogo, tentando encadear uma frase para me responder. Se for o caso, não
me posso esquecer de felicitar o Rob por ter escolhido uma superestrela
intelectual.
– Sabe, não pode ser mal-educada comigo na minha própria casa –
protesta Sunshine, agitando agora o cabelo para trás e para a frente como
um cavalo teimoso e inquieto.
– Terei isso em consideração se alguma vez visitar a sua casa – digo-lhe
alegremente. – Mas tendo em conta que esta casa não é sua e é o sítio onde
vivi durante a última década, sugiro que guarde as suas opiniões para si.
– Bem, agora já não vive – diz, meneando a anca de forma estranha e
lançando-me um sorriso pretensioso, como se tivesse acabado de proferir
palavras devastadoras. A verdade é que se limitou a reforçar o meu novo
sentimento de enorme liberdade, e isso faz-me sorrir.
– Tem razão – respondo. – De todo. Graças a Deus. – Atravesso o
jardim, pisando a terra onde cresciam as minhas adoradas rosas, até
ficarmos frente a frente. – Mais uma coisa, Sunshine – digo calmamente. –
Se fizer seja o que for que magoe a minha filha, vai arrepender-se para o
resto da vida.
– É louca – murmura, recuando um passo.
– Serei mesmo? – pergunto energicamente. – Bom, se me provocar, vai
ficar a saber.
Enquanto me afasto, ouço-a resmungar atrás de mim. Entro no carro,
ligo o motor e conduzo até à estrada principal. Sigo para oeste, na direção
de Hyannis, pois tenciono passar o resto do dia com a Mamie. Começo a
entender as suas lições sobre o amor e só agora me apercebo de que elas me
fazem muita falta.

3 Nuvem negra.
Capítulo 19

Muffins North Star de Mirtilo

MUFFINS

Ingredientes
Cobertura Streusel (ver receita abaixo)
1/2 chávena de manteiga
1 chávena de açúcar granulado
2 ovos grandes
2 chávenas de farinha
2 colheres de chá de fermento
1/2 colher de chá de sal
1/4 de chávena de leite
1/4 de chávena de sour cream
1 colher de chá de extrato de baunilha
2 chávenas de mirtilos

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 190 °C. Prepare doze formas para
queques forradas de papel.
2. Prepare o Streusel seguindo as instruções abaixo. Coloque-o
à parte.
3. Numa tigela grande, utilizando uma batedeira manual, bata a
manteiga e o açúcar até obter uma mistura cremosa.
Adicione os ovos e bata até ter os ingredientes bem ligados.
4. Numa tigela separada, misture a farinha, o fermento e o sal.
Adicione gradualmente os ingredientes à mistura de
manteiga com açúcar, alternando com o leite, o sour cream e
a baunilha. Bata apenas até ter todos os ingredientes bem
misturados.
5. Acrescente lentamente os mirtilos.
6. Se desejar muffins maiores, encha as formas até cima.
Polvilhe generosamente com o Streusel destinado à
cobertura.
7. Leve ao forno durante vinte e cinco a trinta minutos ou até
verificar, com uma faca, que o interior dos muffins está
suficientemente cozido. Deixe arrefecer os muffins durante
dez minutos e, em seguida, passe-os para uma grelha
metálica para arrefecerem totalmente.

COBERTURA STREUSEL

Ingredientes
1/2 chávena de açúcar granulado
1/4 de chávena de farinha
1/4 de chávena de manteiga muito fria, cortada em cubos
pequenos
2 colheres de chá de canela

Preparação
Combine todos os ingredientes num robô de cozinha e triture-os
com vários movimentos rápidos até obter migalhas espessas e
consistentes. Polvilhe-as sobre os muffins antes de os levar ao
forno, seguindo as instruções da receita anterior.

Rose

Durante muitos anos, na noite escura desta idílica cidade da região


de Cape Cod, tão distante das suas origens, Rose sentiu-se sempre
invadida por imagens do passado. Irreprimíveis. Indesejadas. Imagens
que nunca vira pessoalmente mas que estavam gravadas na sua
memória. Por vezes, a imaginação é mais dolorosa do que a realidade.
Crianças chorosas arrancadas dos braços de mães já incapazes de
reagir.
Gritos de pessoas amontoadas e sujas atingidas pela água de uma
mangueira.
O terror nos rostos dos pais quando compreendem já não ser
possível voltar atrás.
Crianças em longas filas, conduzidas metodicamente para a morte.
E, nessas imagens que se sucedem na sua mente, como se fizessem
parte de um filme interminável, as vítimas têm sempre os rostos dos
seus familiares, dos seus amigos, das pessoas que ela amou.
E Jacob. O Jacob que a tinha amado. O Jacob que a havia salvado.
O Jacob que ela, de forma leviana e horrível, condenara à morte.
E agora, no inferno escuro do seu coma, as imagens das pessoas que
amou continuam a desfilar diante de si como uma sequência
fotográfica. Imaginara tantas vezes os seus últimos momentos que já os
conseguia ver como se os tivesse presenciado.
Enquanto vagueava por este sombrio mundo subaquático, algures
entre a vida e a morte, conseguia ver Danielle e David arrancados à sua
mãe, com os seus pequenos rostos marcados pelas lágrimas, os olhos
arregalados e confusos, os gritos bem audíveis. Interrogava-se sobre
como teriam morrido. Ali mesmo, no Vel’ d’Hiv, a pouca distância da
Torre Eiffel, à sombra da qual tinham passado as suas curtas vidas? Ou
mais tarde, nas carruagens apinhadas e abafadas com destino a campos
de detenção como os de Drancy, Beaune-la-Rolande ou Pithiviers?
Teriam conseguido chegar a Auschwitz, apenas para serem conduzidos,
numa fila organizada e obediente, a uma câmara de gás onde terão
exalado, horrorizados, o seu último suspiro? Terão gritado? Ou sequer
entendido o que lhes estava a acontecer?
Maman e Papa. Terão sido separados no Vel’ d’Hiv ou apenas
quando saíram de França? Como terá suportado Papa o facto de lhe
ser arrancada a família que ele sempre defendeu tão ferozmente? Terá
dado luta? Terá sido atingido pelos guardas, agredido pela sua
obstinação? Ou detido sem resistência, ciente já da inutilidade de
qualquer oposição? Terá Maman ficado só, cingindo os filhos à sua
volta, conhecendo a terrível realidade de que já não os conseguia
proteger? Como será a sensação de já não controlarmos o nosso
destino, de já não sermos capazes de defender os filhos por quem
daríamos a vida sem hesitar?
Hélène. Rose sentia sempre uma enorme mágoa quando pensava na
sua irmã. Poderia ter sido mais insistente com ela? Poderia tê-la salvo
se a convencesse de que o mundo tinha perdido toda a lógica e
enlouquecido? Ter-se-ia Hélène arrependido, nos seus últimos
momentos, de não ter acreditado em Rose? Ou teria mantido até ao fim
a esperança de ter sido enviada para o campo para trabalhar e não
para morrer? Por algum motivo, Rose imaginou-a sempre a expirar
durante o sono, serena, sozinha, ainda que os fantasmas descrevessem
um fim bem distinto. Sempre que se recordava de como Hélène fora,
segundo os relatos, espancada até à morte apenas por se encontrar
demasiado doente para trabalhar, Rose tinha de correr até à casa de
banho para vomitar, passando os dias seguintes sem aguentar nada no
estômago.
Claude. Com apenas treze anos, fizera sempre tudo para ser um
adulto, para fingir entender o que dizia respeito aos mais velhos.
Contudo, era apenas uma criança quando Rose o viu pela última vez.
Ter-se-ia tornado o adulto que sempre desejou ser nos poucos dias que
passou no Vel’ d’Hiv? Teria sido forçado a entender precocemente
alguns factos da vida? Teria tentado proteger os mais novos, a sua
irmã, a sua mãe? Ou teria continuado a ser uma criança, agora
aterrorizada com tudo o que o rodeava? Teria chegado a Auschwitz?
Teria sobrevivido lá algum tempo ou sido retirado da fila logo após a
chegada, considerado demasiado jovem ou demasiado pequeno para
trabalhar e enviado imediatamente para uma câmara de gás? Que
palavra teria proferido com o seu último sopro de vida? Qual teria sido
o seu derradeiro pensamento?
Alain. O que Rose mais amava. E o que entendia tudo, apesar dos
seus onze anos. O coração dela sofria ainda mais por ele, pois, sem a
atitude de negação com que os outros se conseguiam proteger, não
havia forma de atenuar a dor. Provavelmente, sentiu cada momento,
pois entendia tudo, entendia o que se passava, acreditava nos
insistentes avisos de Jacob. Teria tido medo? Ou teria-se-ia tornado
adulto naqueles momentos e decidido enfrentar o seu destino com
valentia? Ele era mais forte do que Rose, do que todos os outros
familiares. Ter-se-ia socorrido dessa bravura para suplantar o terror?
Rose tinha a certeza de que ele não sobrevivera muito tempo; era mais
pequeno do que Claude, muito franzino para a sua idade, e nenhum
guarda no seu perfeito juízo escolheria um pequenote para os trabalhos
forçados. Quando Rose fechava os olhos, à noite, via frequentemente o
pequeno rosto de Alain, com os olhos sombrios, as maçãs do rosto
pálidas e o belo cabelo louro rapado, aguardando o destino que ele
sabia estar-lhe reservado, entre mais um milhar de crianças, na
escuridão gélida de uma câmara de gás algures na Polónia.
E depois Jacob. Não o via há quase setenta anos, mas o seu rosto
permanecia tão nítido na mente da Rose como se se tivessem despedido
no dia anterior. Ela imaginava-o muitas vezes como no dia de inverno
em que se conheceram, no Jardin du Luxembourg. Os seus vivos olhos
verdes, o seu cabelo castanho e espesso, a forma como se fitaram e
como souberam, naquele mesmo instante, o que tinham encontrado.
Ela imaginava, nos momentos mais atrozes, o rosto dele, resoluto e
corajoso, a suportar a tortura do Vel’ d’Hiv, a viagem forçada para um
campo de detenção ou a entrada em Auschwitz. Porém, ao contrário do
que sucedia quando pensava nos seus familiares, não conseguia vê-lo
morrer. Estranhava o facto e interrogava-se se era esta a forma de a
sua mente a proteger, apesar de, conscientemente, ela não desejar essa
proteção. Queria sentir a dor da morte dele porque a merecia.
Contudo, esses não foram os únicos momentos da sua vida que Rose
evocou enquanto se afastava paulatinamente do mundo. Ocorreram-lhe
também os momentos vividos posteriormente, os escassos instantes de
felicidade de que gozou ao longo dos anos, em que o seu coração se
voltou a encher de amor e de alegria, como na sua infância. E agora,
nas profundezas do seu coma, flutuando na escuridão, recordou uma
manhã fria de maio de 1975, resgatando uma das suas memórias
preferidas.
Nessa manhã, Rose verificara, ao acordar, que Ted tinha já saído
para trabalhar. Geralmente, levantava-se muito antes de amanhecer,
mas desta vez, como em outras ocasiões, os pesadelos haviam-na
subjugado quase até às seis horas da manhã. Quando dormia até mais
tarde, Ted deixava-a descansar e pedia a Josephine que substituísse a
mãe e abrisse a confeitaria. Ele não entendia que ela não estava a
repousar, mas sim enleada num mundo de terror de que nunca
conseguia sair. E, por amar o marido, ela não lho dizia. Ted estava
convicto de que, ao casar-se com ela, ao dar-lhe uma vida melhor, a
ajudara a esquecer o passado, como ela tanto desejava. Ela não era
capaz de lhe dizer que, nos trinta e três anos que se seguiram ao dia em
que viu pela última vez as pessoas que mais amava, as memórias, reais
e imaginadas, nunca tinham esmorecido.
Rose mirara-se ao espelho nessa manhã. Continuava bela, aos
cinquenta anos, embora nunca se visse como tal desde a última vez que
Jacob olhara para ela. Aos olhos dele, sabia que era especial. Sem ele,
murchara como uma flor sem luz.
Cinquenta anos, pensou, atenta ao seu reflexo. Era o dia do seu
aniversário, mas ninguém sabia. A acreditar no visto que a trouxera
para os Estados Unidos, na identidade que não lhe pertencia, ela
nascera dois meses depois, em julho. No dia 16 de julho, mais
precisamente. Tratava-se de uma ironia impossível de esquecer, pois
fora esse o dia em que a sua família havia sido presa. Sabia que, em 16
de julho, Ted e Josephine lhe preparariam um bolo e um jantar especial
e lhe cantariam os parabéns, obrigando-a a sorrir e a desempenhar
adequadamente o seu papel. Contudo, aquele dia em que se olhava ao
espelho era só dela. Era o dia em que havia nascido Rose Picard. Só
que Rose Picard morrera em 1942.
Rose não gostava de aniversários. Como poderia ser de outra
forma? Afastavam-na sempre um pouco mais do passado, da vida que
conhecera antes de o mundo desabar. E, nos últimos anos, sentia-se
consumida pela dor quando pensava que nenhum dos seus familiares
atingira a sua idade atual. Papa tinha quarenta e cinco anos quando foi
preso. Ainda que, contrariando as probabilidades, tivesse vivido mais
dois anos em Auschwitz, não teria passado dos quarenta e sete. Maman
tinha apenas quarenta e um anos em 1942, na última vez que Rose a
vira. Naquele tempo, a mãe de Rose parecia-lhe muito velha, mas hoje
seria mais jovem do que ela. Nunca lhe ocorrera que a mãe fora morta
na flor da idade, mas era um facto. Rose percebia-o finalmente.
E agora a própria Rose fazia cinquenta anos. Vivera mais tempo do
que os seus pais e passara nos Estados Unidos quase duas vezes mais
tempo do que em França. Dezassete anos no seu país natal. Trinta e três
no seu país de adoção. Contudo, deixara de viver há muito tempo. O
resto da sua vida era como um sonho que ela atravessava em transe,
deixando-se conduzir.
Nessa manhã, vestiu-se e caminhou até à confeitaria, reparando que
a primavera chegara cedo. As árvores verdejavam e as flores de toda a
cidade de Cape começavam a desabrochar. O céu limpo, azul-claro,
anunciava dias agradáveis, e Rose sabia que, em breve, os turistas
viajariam para sul e o seu negócio iria florescer. Tudo isto a devia fazer
feliz.
Deteve-se por momentos à porta da confeitaria e olhou pelo vidro a
filha, ocupada a colocar um tabuleiro de miniaturas de tartes das
estrelas no expositor. O cabelo de Josephine era espesso e escuro, como
o do pai, e a sua barriga estava redonda e saliente, como estivera a de
Rose muitos anos antes. Um mês depois, Josephine também seria mãe.
Perceberia que um filho é o que há de mais importante no mundo e tem
de ser protegido a todo o custo.
Rose nunca fora capaz de partilhar o passado com a sua filha.
Josephine sabia apenas que a mãe deixara Paris após a morte dos pais e
se casara com Ted, acabando por se radicar em Cape Cod. Rose quis
mil vezes contar-lhe a verdade mas, nesses momentos, refletia sobre a
vida que agora tinha: a sua confeitaria, a sua bela casa e, sobretudo, o
seu marido dedicado, sempre um excelente pai para Josephine. Assim,
em todas essas ocasiões, continha-se para não deitar tudo a perder. Era
como se vivesse num quadro perfeito e só ela percebesse que a tela era
apenas um mundo frágil de pinceladas e sonhos.
Por esse motivo, partilhou com Josephine, quando ela era menina,
contos de fadas, histórias de reinos, princesas e rainhas com que
desejava manter vivo o passado, ainda que apenas Rose o conhecesse.
Imaginava-se a contar as mesmas histórias ao filho de Josephine, para
seu próprio consolo, pois só assim podia viver no passado sem destruir
o presente. Preferia que a sua família acreditasse que os contos de fadas
eram ficção e tudo o resto realidade. Era melhor assim.
Rose preparava-se para entrar na confeitaria quando viu
subitamente a filha curvar-se, colocando a mão sobre a barriga e
contraindo o belo rosto, tão parecido com o do pai, numa expressão de
dor. Rose irrompeu de imediato pela porta da frente.
– Querida, o que se passa? – perguntou, precipitando-se para a
parte de trás do balcão e colocando as mãos sobre os ombros de
Josephine.
– Mãe, é o bebé; vem aí – gemeu Josephine.
Rose arregalou os olhos, apavorada.
– Mas é muito cedo.
Faltavam ainda um mês e três dias para a data prevista.
Josephine curvou-se novamente em sofrimento.
– Acho que a criança não percebe isso. Vai nascer agora, mãe.
Rose sentiu aumentar em si uma aflição doentia. E se acontecesse
alguma coisa ao bebé?
– Vou chamar o teu pai – disse Rose. – Ele virá de certeza. – Rose
sabia que era necessário transportar a filha a um hospital, mas nunca
aprendera a conduzir; nunca fora preciso. Vivia a apenas alguns
quarteirões da confeitaria e raramente tinha de fazer outras
deslocações.
– Pede-lhe que venha depressa – disse Josephine.
Rose anuiu, pegou no telefone e marcou o número do local de
trabalho de Ted. Explicou-lhe, num tom apressado mas cuidadoso, o
que estava a acontecer, e ele prometeu sair da universidade e chegar à
confeitaria dez minutos depois.
– Diz-lhe que a adoro e que estou ansioso por conhecer o meu neto –
disse antes de desligar. Rose não transmitiu a mensagem, embora não
entendesse exatamente porquê. Enquanto aguardavam, Rose puxou
uma das cadeiras da confeitaria para que Josephine se pudesse sentar e
virou o letreiro para fechar a confeitaria. Viu Kay Sullivan e Barbara
Koontz pararem na rua, lançando-lhe um olhar estranho, mas limitou-
se a apontar para Josephine, que respirava com dificuldade e tinha o
rosto rosado e transpirado, e elas perceberam. Não se ofereceram,
porém, para ajudar; desviaram apenas o olhar e afastaram-se
rapidamente.
– Chérie, vai correr tudo bem – disse Rose, puxando uma cadeira
para se sentar ao lado da filha e colocando a mão sobre o joelho dela. –
O teu pai chegará em breve. – Desejava poder fazer algo mais,
confortar melhor a filha. Porém, existia há muitos anos um abismo
entre as duas, totalmente da responsabilidade de Rose. Ela não
encontrara forma de ultrapassar a frieza do seu próprio coração e
poder, dessa forma, aproximar-se de Josephine.
Josephine assentiu, respirando com dificuldade.
– Tenho medo, mãe – disse.
Rose sentia o mesmo. Não podia, contudo, admiti-lo.
– Vai correr tudo bem, querida – disse. – Vais ter um bebé feliz e
saudável. Vai correr tudo bem.
Em seguida, Rose disse algo que lhe traria certamente dissabores
mas precisava de ser dita.
– Minha querida Josephine – disse –, tens de avisar o pai do teu
filho.
Josephine levantou violentamente a cabeça e fulminou a mãe com o
olhar.
– Isso não te diz respeito, mãe.
Rose respirou fundo, imaginou a vida que a criança teria sem pai e
não conseguiu suportar essa ideia.
– Querida, o teu filho precisa de um pai. Como tu precisaste. Pensa
na importância que o teu pai teve na tua vida.
A filha voltou a lançar-lhe um olhar furioso.
– Nem pensar, mãe. Ele não é como o pai. Não quer fazer parte da
vida deste bebé.
Rose sentiu o coração apertado. Colocou a mão sobre a barriga da
filha.
– Nunca lhe disseste que estavas grávida – diz serenamente. – Talvez
ele pensasse de outra forma se lhe tivesses contado.
– Não sabes do que estás a falar – disse Josephine. Fez uma pausa e
curvou-se, sentindo mais uma contração sacudir o seu corpo frágil.
Endireitou-se, mostrando o rosto corado e inquieto. – Nem sequer sabes
quem ele é. Ele abandonou-me.
Os olhos de Rose enchem-se de lágrimas inesperadas e ela sente-se
obrigada a desviar o olhar. Sabia que a culpa era sua. Apesar de tudo o
que tão diligentemente tinha procurado transmitir à filha, aqueles
ensinamentos que tentara ir buscar às memórias da sua própria mãe,
constatava que apenas conseguira legar-lhe a frieza. O seu coração
deixara simplesmente de existir naquele dia escuro e vazio de 1949 em
que Ted regressou de Paris e a informou de que Jacob havia morrido.
Josephine era apenas uma criança, demasiado jovem para saber que,
naquele dia, perdera a mãe.
E agora Rose percebia que tinha falhado no mais importante.
Educara uma filha tão fechada e fria como ela.
– Precisas de alguém que cuide de ti, que te ame, que ame o vosso
filho – sussurrou Rose. – Como o teu pai nos amou às duas.
Josephine lançou um olhar severo à mãe.
– Mãe, já não estamos nos anos 40. Fico muito bem sozinha. Não
preciso de ninguém.
Sentiu de imediato outra contração. De repente, surge Ted a bater
timidamente à porta, com a camisa amarrotada e a gravata fora do
lugar. Rose levantou-se e atravessou a sala para lhe abrir a porta. Ele
beijou distraidamente a mulher e sorriu.
– Vamos ser avós! – disse. Caminhou depois até junto de Josephine,
ajoelhou-se ao seu lado e sussurrou: – Estou muito orgulhoso de ti,
querida. Vamos levar-te ao hospital. Só tens de aguentar um pouco
mais.

O parto foi rápido e, embora a criança tenha nascido um mês antes


do previsto, o médico veio comunicar aos avós que Josephine tivera
uma menina saudável, apesar do peso inferior ao desejável, e que eles a
poderiam visitar em breve. Rose e Ted sentiram passar cada minuto na
sala de espera e, enquanto Ted caminhava pesadamente de um lado
para o outro, Rose fechou os olhos e rezou. Pediu que esta criança,
nascida precisamente no dia do seu quinquagésimo aniversário, não
tivesse a frieza dela nem a frieza que ela transmitira à sua filha. Rogou
para que os erros que cometeu na educação de Josephine não afetassem
o bebé agora nascido, pois ele partia do zero, tinha uma oportunidade
de ser feliz. Pediu forças para demonstrar àquela criança que a amava,
algo de que fora sempre incapaz na relação com a sua filha.
Só uma hora depois foram encaminhados por uma enfermeira até
ao quarto. Josephine estava deitada, exausta mas sorridente, segurando
a filha recém-nascida. Rose emocionou-se ao ver aquele ser minúsculo,
dormindo serenamente, com uma das suas mãozinhas fechada ao lado
do rosto.
– Queres pegar nela, mãe? – perguntou Josephine. Com os olhos
marejados de lágrimas, Rose acenou que sim. Colocou-se de pé ao lado
da filha, que lhe entregou a menina, ainda a dormir. Rose tomou-a nos
braços, imediatamente com a naturalidade com que se segura uma
criança tão pequena que é uma parte de nós e de tudo o que amamos.
Sentiu-se invadida pelo impulso de proteger aquele bebé, tal como
quando pegara pela primeira vez no seu.
Rose olhava para a neta, contemplando o passado e o futuro.
Quando a criança abriu os olhos, Rose sentiu um sobressalto. Juraria
que, por momentos, vira um qualquer brilho sábio e primevo nos olhos
da recém-nascida. Um segundo depois, Rose deixou de o ver e concluiu
que a imaginação lhe pregara uma partida. Embalou suavemente a
recém-nascida e percebeu que já se tinha apaixonado por ela. Pediu a
Deus força suficiente para não falhar desta vez.
– Tenho esperança… – murmurou Rose, perdendo a voz enquanto
fitava a neta. Não sabia como terminar a frase, o que pedir primeiro.
Desejava milhões de coisas para aquela criança, milhões de coisas que
nunca teve. Desejava-lhe tudo.
– Querida, já escolheste um nome? – perguntou Ted. Rose ergueu os
olhos e viu a filha observá-la com uma expressão peculiar. No rosto de
Josephine, desenhou-se um sorriso largo.
– Sim – disse Josephine. – Vou chamar-lhe Hope.
Capítulo 20

Até quarta-feira à noite, a Annie telefona para mais de uma centena de


números da sua lista de Levys, mas continua sem qualquer pista sobre o
Jacob Levy da Mamie. Sinto cada vez mais que procuramos um fantasma.
Assinalo uma dúzia de nomes na lista da Annie, todos com morada na
Costa Oeste, e telefono-lhes depois de ela se deitar. O desfecho é, todavia, o
mesmo.
Todas as pessoas que contacto afirmam nunca ter ouvido falar de um
Jacob Levy que tenha saído de França nos anos 40 ou 50. Procuro até na
Internet os registos dos passageiros chegados a Ellis Island, mas novamente
sem sucesso.
Na manhã seguinte, a Annie entra na confeitaria alguns minutos depois
das seis horas, com uma expressão solene, enquanto eu misturo arandos
secos, pepitas de chocolate branco e pedaços de macadâmia numa massa
açucarada para biscoitos.
– Temos de fazer algo mais – anuncia, atirando a mochila ao chão. O
impacto é tal que me pergunto por instantes se não lhe fará mal às costas
transportar todos os dias tantos livros.
– A propósito do Jacob Levy? – arrisco. Antes de a deixar responder,
acrescento: – Importas-te de começar a colocar os bolos no expositor?
Estou um pouco atrasada.
Ela aquiesce e aproxima-se do balcão para lavar as mãos.
– Sim, a propósito do Jacob Levy – diz. Sacode a água das mãos, seca-
as com uma toalha adornada com um queque azul, pendurada junto ao lava-
louça, e vira-se para trás. – Temos de encontrar um método melhor para o
procurar.
Solto um suspiro.
– Annie, bem sabes que podemos nunca o encontrar.
Ela revira os olhos.
– És sempre tão pessimista.
– Estou apenas a ser realista. – Vejo-a começar a retirar cuidadosamente
as luas em quarto crescente da embalagem hermética. Desembrulha cada
uma delas do papel encerado e coloca-as num tabuleiro destinado ao
expositor.
– Penso que, para o encontrarmos, temos de investigar mais a fundo.
Arqueio a sobrancelha.
– Investigar? – pergunto cautelosamente.
Ela confirma, sem se aperceber do meu ceticismo.
– Sim. Os telefonemas não estão a resultar. Temos de tentar, tipo,
procurar documentos ou assim. Mas não bastam os documentos do site da
Ellis Island, porque havia muitas formas de entrar no país.
– Quais documentos?
A Annie lança-me um olhar reprovador.
– Eu não sei. Tu é que és a adulta. Não posso fazer tudo. – Munida do
tabuleiro de luas, dirige-se à parte da frente da confeitaria, regressando
instantes depois para dispor pedaços de baklava sobre pequenas folhas de
papel encerado. Eu observo-a por momentos.
– Só não quero que acabes desiludida – digo à Annie depois de ela
regressar à cozinha.
Ela olha-me com um ar furioso.
– Isso é apenas uma desculpa para evitares as coisas – diz. – Não podes
abdicar de uma coisa só porque podes vir a sofrer. – Consulta o relógio. –
São seis horas. Vou abrir a porta principal.
Aceno que sim, e observo-a novamente enquanto abandona a cozinha.
Terá ela razão? E, em caso afirmativo, como consegue saber muito mais do
que eu sobre a vida?
Ouço-a falar com alguém, pouco depois, e saio da cozinha para dar
início a mais um longo dia de sorrisos para os clientes, fingindo não haver
nada mais estimulante no mundo do que embrulhar-lhes bolos.
É com surpresa que encontro o Gavin ao balcão, olhando para os
produtos que já se encontram no expositor. Está vestido de maneira mais
formal, com umas calças esverdeadas e uma camisa azul-clara com botões
no colarinho. A Annie está já ocupada a colocar baklava numa caixa para
ele levar.
– Olá! – digo. – Hoje aperaltaste-te. – No preciso momento em que
pronuncio estas palavras, sinto-me ridícula. Contudo, ele limita-se a sorrir e
a dizer:
– Tirei um dia de folga; vou ao lar da Costa Norte. Vim só buscar alguns
bolos para levar aos idosos. Gostam mais de mim quando apareço com
comida.
Solto uma risada.
– Aposto que gostam de ti de qualquer maneira.
A Annie suspira lentamente, como que a recordar-nos que ainda ali está.
Olhamo-la timidamente, e ela entrega ao Gavin a caixa da confeitaria, que,
enquanto falávamos, atou habilmente com uma fita branca.
– Annie – diz o Gavin, transferindo para ela a sua atenção. – Como
corre a procura do Jacob Levy?
– Nada bem – murmura a Annie. – Ninguém o conhece.
– Tens telefonado para as pessoas da tua lista?
– Tipo, centenas de pessoas – diz Annie.
– Hum… – diz o Gavin. – Não haverá outras formas de o procurar?
A Annie anima-se.
– Quais, por exemplo?
O Gavin encolhe os ombros.
– Não sei. Sabes em que data nasceu? Talvez haja uma forma de o
procurar na Internet através da data de nascimento.
A Annie mostra-se agora empolgada.
– Sim, talvez. Boa ideia. – Fico à espera que ela lhe agradeça mas, em
vez disso, ouço-a perguntar bruscamente: – Então o Gavin é, tipo, judeu?
– Annie! – exclamo. – Não sejas indelicada.
– Não – diz ela. – Estou só a perguntar.
Olho com receio para o Gavin, mas ele pisca-me o olho, o que me faz
corar ligeiramente.
– Sim, Annie, sou judeu. Porque perguntas?
– Na verdade, não tenho amigos judeus – explica ela. – E agora que sei
que sou, tipo, judia, estava curiosa sobre, sabe, o judismo.
– Diz-se judaísmo, não judismo – digo-lhe. – Além disso, tu não és
judia, Annie. És católica.
– Eu sei – admite. – Mas posso ser as duas coisas. A Mamie é as duas
coisas. – Vira-se novamente para o Gavin. – O senhor vai, tipo, à igreja
judaica todas as semanas?
O Gavin sorri.
– Nós dizemos templo. E não vou todas as semanas, embora
provavelmente o devesse fazer. Muitas vezes, às sextas-feiras, estou a
trabalhar ou demasiado ocupado com outras coisas. Não me fica lá muito
bem, pois não?
A Annie encolhe os ombros.
– Não sei. Nós, tipo, nunca vamos à igreja nem algo parecido.
– Bom, eu tenciono ir ao templo amanhã – continua ele. – Teria todo o
gosto em levar-te comigo, Annie, se tiveres curiosidade. E se a tua mãe te
autorizar.
– Posso ir, mãe? – indaga a Annie, entusiasmada.
Hesito e olho de relance para o Gavin.
– Tens a certeza? – pergunto-lhe.
– Absoluta – diz ele. – Vou sempre sozinho. Gostava muito de ter
companhia. Na verdade, eu frequento uma sinagoga em Hyannis. Se
amanhã fores visitar a tua avó, posso ir buscar a Annie ao hospital depois
do período de visitas.
A Annie abre um sorriso, e eu encolho os ombros.
– Por mim, tudo bem – digo. – Desde que não seja mesmo um
incómodo.
– De todo – replica o Gavin. – Passarei pelo hospital amanhã ao fim da
tarde. Combinado?
– Porreiro – diz a Annie. – Obrigada. Vai ser o máximo ter, tipo, duas
religiões ao mesmo tempo.
Fito-a, intrigada, durante algum tempo.
– O que é que disseste?
Ela parece embaraçada.
– É só, tipo, outro lado meu, percebes? – Como não respondo, a Annie
faz uma pausa e revira os olhos. – Credo, mãe, sei que sou católica. Não
fiques assim.
– Não – digo, abanando a cabeça. – Não é nisso que estou a pensar.
Acabaste de me dar uma ideia para tentar encontrar o Jacob.
– Qual? – pergunta a Annie. Ela e o Gavin observam-me com
curiosidade.
– Organizações interconfessionais – digo lentamente. – Se o Jacob
confiou num amigo cristão para levar o amor da sua vida para uma
mesquita durante a guerra, é seguramente uma pessoa que respeita as outras
religiões, não acham?
O Gavin aquiesce, mas a Annie parece confusa.
– E depois? – pergunta.
– E se ele tiver imigrado para os Estados Unidos e dado seguimento a
essa tradição? – sugiro. – E se ele fizer parte de uma qualquer organização
interconfessional?
– Como assim? – indaga a Annie.
O Gavin responde por mim.
– Penso que a tua mãe está a tentar explicar que o Jacob pode ter
aderido a uma daquelas organizações em que as pessoas trabalham em
conjunto para promover a compreensão entre as religiões – diz ele. – Como
as pessoas de diferentes religiões trabalharam juntas em Paris para ajudar a
salvar a tua bisavó.
A Annie mostra-se pouco convencida.
– Não sei – diz. – Parece-me um pouco idiota. Mas acho que vale a pena
tentar.
– Vou telefonar hoje para algumas organizações interconfessionais –
digo à Annie.
– E eu vou tentar entrar em contacto com umas quantas sinagogas –
afirma o Gavin. – Procurem descobrir a data de nascimento do Jacob, está
bem?
A Annie e eu assentimos. O Gavin agradece educadamente os bolos a
Annie, sorri para mim e prepara-se para sair.
– Liguem-me se descobrirem alguma coisa, está bem? – diz o Gavin a
caminho da porta. – Até amanhã!
– Adeus! – grita a Annie animadamente, acenando-lhe com a mão.
– Adeus – repito. – Boa viagem – acrescento. Ele sorri mais uma vez
para mim, vira-se e abandona a confeitaria.
– Ele é tão simpático – diz a Annie depois de ele sair.
– Sim – confirmo. Aclaro a garganta e volto à preparação de mais um
dia de trabalho. – É mesmo.

A Annie vai passar a noite em casa do Rob e, tendo eu poucos clientes,


envio-lhe uma mensagem informando-a de que não tem de vir à confeitaria
depois das aulas; hoje consigo arrumar tudo sozinha. Ela telefona-me de
casa do pai, depois de sair do autocarro, dizendo-me, empolgada, que o pai
lhe deixou um bilhete em que promete que os dois passarão a noite sozinhos
e a convida para um jantar especial num restaurante.
– Ótimo, querida – digo. Fico contente; parece que o Rob se está a
esforçar para a fazer sentir-se importante. Talvez as minhas palavras de há
dias tenham, afinal, significado alguma coisa.
– Quando fores ao hospital, podes dizer-lhe olá por mim e prometer-lhe
que a irei visitar amanhã? – pergunta a Annie. – Caso ela te consiga ouvir?
– Claro, querida – prometo.
Depois de fechar a confeitaria, vou buscar o Alain a casa, e
conversamos durante todo o caminho até ao hospital. Vou percebendo como
gosto de o ter por perto; ele ajusta-se perfeitamente à nossa vida. Em certos
dias, ajuda-nos na confeitaria; noutros, permanece à cabeceira da Mamie; e,
em dias como o de hoje, fica em casa e surpreende-me com pequenas
ajudas domésticas. Há pouco tempo, deparei-me com os quadros que ainda
tinha no sótão devidamente pendurados pela casa; hoje, encontrei a
despensa e o frigorífico, que estavam praticamente vazios, totalmente
reabastecidos.
– É o mínimo que posso fazer – disse o Alain quando o confrontei,
incrédula. – Não custou nada. Fui de táxi ao supermercado.
No hospital, o Alain segura a minha mão quando estamos os dois
sentados à cabeceira da Mamie. Ele murmura-lhe algumas palavras em
francês e eu, como prometido, transmito a mensagem da Annie, mesmo
duvidando que a Mamie me consiga ouvir por entre o nevoeiro do seu
coma. Sei que o Alain e a Annie acreditam que ela ainda nos entende, mas
eu não tenho tanta certeza. Opto, ainda assim, por não partilhar esta minha
convicção.
Dou por mim, sem saber exatamente porquê, a pensar no Gavin quando
o Alain sussurra ao ouvido da Mamie. Talvez isso aconteça apenas porque
ele nos tem apoiado muito e eu me sinto mais só do que nunca.
Alain acaba por se recostar na cadeira, tendo terminado, ao que parece,
a história que contava. A Mamie continua num sono profundo, com o peito
magro a subir e a descer lentamente.
– Parece tão serena – diz o Alain. – Como se estivesse num lugar mais
feliz.
Aceno que sim, pestanejando para conter as lágrimas que subitamente
me surgem nos olhos. A sua expressão é, de facto, pacífica, mas isso apenas
reforça a minha ideia de que ela já partiu e aumenta a minha comoção.
– Alain – digo, ao fim de alguns instantes –, suponho que não saiba a
data de nascimento do Jacob.
O Alain sorri e abana a cabeça, levando-me a crer, por momentos, que
sabe tanto como eu. Contudo, ele esclarece-me logo a seguir.
– Na verdade, sei. Rose e eu conhecêmo-lo na noite anterior ao seu
décimo sexto aniversário.
Inclino-me para a frente, empolgada.
– Quando?
– Na véspera de Natal de 1940. – Alain fecha os olhos e sorri. – Rose e
eu atravessávamos o Jardin du Luxembourg. Depois de visitarmos uma
amiga dela no Quartier Latin, tínhamos de caminhar rapidamente para
chegarmos a casa antes do recolher obrigatório; os alemães insistiam em
que todos os habitantes de Paris estivessem em casa e fechassem as cortinas
escuras.
»Contudo, Rose sempre adorou aquele jardim, por isso, quando nos
encontrávamos no sixième arrondissement, sugeriu que fizéssemos um
desvio. Dirigimo-nos, como sempre fazíamos, à sua estátua preferida de
todo o parque, a Estátua da Liberdade.»
– A Estátua da Liberdade? – repito.
Ele abre um sorriso.
– O modelo original utilizado por Auguste Bartholdi, o conhecido
artista. Existe uma outra em pleno rio Sena, não muito longe da Torre
Eiffel. A vossa estátua, a do porto de Nova Iorque, foi oferecida pela França
aos Estados Unidos, sabias?
– Sim, lembro-me de o ter aprendido na escola – digo. – Só não sabia
que existiam estátuas semelhantes em França.
Alain confirma.
– A estátua do Jardin du Luxembourg era a preferida de Rose quando
éramos mais pequenos, e, nesse fim de tarde, quando chegámos junto da
estátua, começou a nevar. Os flocos eram muito pequenos e frágeis, como
se estivéssemos num globo de neve. Estava uma noite muito silenciosa e
tranquila, apesar de nos encontrarmos em guerra. Nesse momento, o mundo
parecia mágico.
A sua voz desvanece-se e ele olha para a Mamie. Estende a mão para
lhe tocar no rosto, causticado por muitos anos de vida longe dele.
– Só quando nos acercámos da estátua – prossegue ele, após uma longa
pausa – percebemos que não estávamos sozinhos. Havia um rapaz de cabelo
escuro e casaco preto, de pé, mais à frente. Ele virou-se para nós quando
estávamos a apenas alguns metros, e Rose parou imediatamente, como se
tivesse ficado sem respiração.
»No entanto, o rapaz não se aproximou e nós também não avançámos.
Limitaram-se a olhar um para o outro durante largos minutos até eu puxar a
mão de Rose e perguntar: “Porque parámos?”
Alain faz uma pequena pausa para se recompor. Olha de relance para a
Mamie e volta a recostar-se na cadeira.
– A Rose inclinou-se e disse-me: «Parámos porque é muito importante
que entendas que o local onde se ergue a verdadeira Estátua da Liberdade é
um sítio onde as pessoas podem ser livres.» – diz Alain, com uma expressão
sonhadora. – Não compreendi as suas palavras. Ela olhou-me nos olhos e
declarou: «Nos Estados Unidos, a religião não define ninguém. Eles
consideram-na apenas uma parte de cada um. E ninguém é julgado por isso.
Um dia, Alain, vou mudar-me para lá e levar-te comigo.»
»Poucos dias depois, surgiriam as piores restrições impostas aos judeus.
A Rose era muito culta, o que me leva a acreditar que ela já soubesse que
existiam perseguições a judeus noutros locais. Ela antecipou os problemas
em que nem os nossos pais acreditavam. Porém, aos sete anos, eu não
percebia que importância tinha a religião.
»Antes de eu lhe poder fazer qualquer pergunta, o rapaz aproximou-se.
Observara-nos desde a nossa chegada, e eu notei que Rose, quando se
endireitou para conversar com ele, tinha o rosto muito vermelho. Perguntei-
lhe: “Porque estás tão corada, Rose? Estás a ficar doente?”
Ele ri-se com esta recordação e abana a cabeça.
– Isto apenas a fez corar mais. Mas o rapaz estava igualmente corado.
Fitou Rose durante bastante tempo e, em seguida, inclinou-se para me olhar
nos olhos e disse: «A sua amiga tem razão, Monsieur. Nos Estados Unidos,
as pessoas podem ser livres. Também irei para lá um dia.» Eu fiz-lhe uma
careta e disse: «Ela não é minha amiga! É minha irmã!»
O Alain esboça um sorriso pálido e prossegue.
– Ambos deram umas boas risadas. Depois, começaram a conversar, e
eu senti-me a mais. Nunca tinha visto a minha irmã assim; a forma como o
olhava nos olhos sugeria que ela queria perder-se neles. Por fim, o rapaz
voltou-se novamente para mim e disse: «Pequeno Monsieur, o meu nome é
Jacob Levy. E o seu?» Eu disse-lhe que me chamava Alain Picard e que a
minha irmã era Rose Picard, e ele fitou-a novamente e murmurou: «Penso
que é o nome mais bonito que alguma vez ouvi.»
»A Rose e o Jacob conversaram durante muito tempo, até começar a
escurecer. Eu não os ouvia com muita atenção porque a sua conversa me
parecia aborrecida. Apetecia-me ir embora, mas eles discutiam política e
liberdade, religião e América. Acabei por puxar novamente a mão de Rose
e dizer: “Temos de ir. Está a escurecer e a Maman e o Papa vão ficar
zangados!”
»Rose anuiu, parecendo acordar de um sonho. Disse a Jacob que
tínhamos de ir. Começámos a afastar-nos, velozmente, para o lado oeste do
parque, mas ele disse-nos em voz alta: “Amanhã é o meu aniversário,
sabiam? Vou fazer dezasseis anos!” Rose virou-se e respondeu: “No dia de
Natal?” Ele confirmou e ela fez uma pausa. Acabou por dizer: “Então
vemo-nos amanhã, aqui, junto à estátua. Para comemorarmos.” Em seguida
corremos, cientes de que a noite estava a cair rapidamente e estaríamos em
sarilhos se não fôssemos para casa de imediato.
»Ela voltou sozinha ao parque, no dia seguinte, e regressou com os
olhos cintilantes. A partir desse momento, tornaram-se inseparáveis. Foi
amor à primeira vista.
Recosto-me na cadeira.
– É uma história maravilhosa – digo.
– Tudo o que envolveu a Rose e o Jacob foi maravilhoso – diz o Alain.
– Até ao fim. Mas talvez a história ainda não tenha terminado.
Fito o vazio.
– Se ele ainda estiver por aí.
– Se ele estiver por aí – repete o Alain.
Suspiro e fecho os olhos.
– Foi, portanto, no dia de Natal – digo. – Nasceu no dia de Natal. No
ano de 1924, presumo, já que iria completar dezasseis anos em 1940?
– Exatamente – concorda o Alain.
– Dia de Natal de 1924 – murmuro. – Antes de Hitler. Antes da guerra.
Antes de tantas mortes sem sentido.
– Quem poderia ter adivinhado o que iria acontecer? – sussurra o Alain.

À noite, com a Annie em casa do pai, o Alain e eu tomamos chá na


cozinha e, depois de ele se afastar lentamente para o quarto, sento-me à
mesa durante bastante tempo, vendo correr o ponteiro dos segundos num
movimento interminável. Ocorre-me que o tempo passa sem que ninguém o
consiga parar. Este pensamento faz-me sentir impotente, insignificante.
Penso no número aparentemente infinito de segundos passados desde que a
minha avó perdeu o Jacob.
São quase onze horas quando pego no telefone para ligar ao Gavin e,
mesmo sabendo que a hora é obscenamente tardia, invade-me uma sensação
súbita e aflitiva de que, se não partilhar com ele agora, neste preciso
segundo, a data de nascimento do Jacob poderei chegar demasiado tarde.
Trata-se de uma ideia absurda, naturalmente. O tempo foi passando durante
setenta anos e nada aconteceu. Porém, a imagem da Mamie a eclipsar-se,
dia após dia, no hospital, não me deixa esquecer o avanço inexorável do
ponteiro dos segundos.
O Gavin atende ao terceiro toque.
– Acordei-te? – pergunto.
– Não, acabei agora mesmo de ver um filme – diz o Gavin.
De repente, sinto-me um pouco ridícula.
– Oh! Se estiveres com alguém, posso telefonar noutra altura…
– Estou sozinho, no meu sofá – ri-se. – Só se o comando for alguém.
Experimento uma inesperada sensação de alívio. Pigarreio, mas ele
volta a falar.
– Hope. Está tudo bem?
– Sim. – Faço uma pausa, mas logo me apresto a dizer: – Descobri a
data de nascimento do Jacob Levy.
– Isso é ótimo! – diz o Gavin. – Como conseguiste?
Dou por mim a contar-lhe a versão resumida de tudo o que o Alain
partilhou comigo.
– Que bela história – diz o Gavin quando termino. – Parece que foram
mesmo feitos um para o outro.
– Sim – concordo.
Permanecemos alguns instantes em silêncio, nos quais eu volto a olhar
para o relógio.
Tiquetaque, tiquetaque. O ponteiro dos segundos parece fazer troça de
mim.
– O que se passa, Hope? – pergunta o Gavin.
– Nada – digo.
– Posso tentar adivinhar – diz o Gavin. – Mas podias simplesmente
dizer-me.
Sorrio para o telefone. Ele está perfeitamente convencido de que me
conhece. E a verdade é que tem razão.
– Acreditas nessas coisas? – pergunto.
– Que coisas?
– Essas coisas – murmuro. – O amor à primeira vista. Ou, digamos, as
almas gémeas. Ou seja o que for que associamos sempre à minha avó e ao
Jacob Levy.
O Gavin faz uma pausa, e naquele momento de silêncio, sinto-me uma
idiota. Porque se lembraria alguém de fazer uma pergunta destas? Ele deve
achar que me estou a insinuar. Abro a boca para retirar o que disse, mas ele
fala primeiro.
– Sim – diz.
– Sim?
– Sim, acredito nesse tipo de amor. Tu não?
Fecho os olhos. Sinto uma dor súbita no coração porque me apercebo de
que não penso o mesmo.
– Não – digo. – Não creio.
– Hum… – profere o Gavin.
– Alguma vez o sentiste por alguém?
Ele responde ao fim de alguns segundos.
– Sim.
Quero perguntar-lhe quem foi o objeto desse amor, mas a verdade é que
não desejo ouvir a resposta. Sinto uma ligeira vertigem de ciúme, mas
esqueço-a rapidamente.
– Bom, isso é ótimo – digo.
– Sim – diz o Gavin serenamente. – O que te leva a não acreditar?
Concluo que nunca me interroguei a esse respeito. Medito um pouco na
pergunta.
– Talvez por já ter trinta e seis anos – digo – e nunca o ter sentido. Se
esse amor existisse, não teria já surgido na minha vida?
As palavras ficam a pairar entre nós, e eu suspeito de que o Gavin
procura uma resposta que não me ofenda.
– Não necessariamente – diz, cauteloso. – Parece-me é que o amor já te
fez sofrer. E muito.
– Durante o meu divórcio? – pergunto. – É um episódio recente. E antes
disso?
– Tu estiveste com o teu marido desde… os vinte e um, vinte e dois
anos?
– Vinte e três – murmuro.
– Achas que ele foi o grande amor da tua vida?
– Não – digo. – Mas não contes à Annie.
O Gavin ri-se delicadamente.
– Nunca o faria, Hope.
– Bem sei.
Por momentos, volta a reinar o silêncio entre nós.
– Penso que deves ter passado mais de dez anos com um homem que
não te amava como qualquer pessoa merece ser amada – diz o Gavin – e
que talvez não amasses como qualquer pessoa deve amar. Habituaste-te a
ceder.
– Talvez – digo em voz baixa.
– E acredito que, sempre que uma pessoa sofre um desgosto, resguarda
ainda mais o coração, sabes? Como se criasse mais um escudo ou algo
parecido. Fizeram-te sofrer muito, não é verdade?
Mantenho-me em silêncio durante algum tempo.
– Desculpa – diz o Gavin. – Foi uma pergunta demasiado pessoal?
– Não – respondo. – Creio que tens razão. Era como se nada do que eu
fizesse fosse suficiente. E não apenas com o Rob. Também com a minha
mãe. – Calo-me. Nunca partilhei isto com ninguém.
– Lamento – diz o Gavin.
– Faz parte do passado – murmuro. Subitamente, sinto-me pouco à
vontade, incomodada com o facto de estar a contar tudo isto ao Gavin e de
o deixar entrar na minha intimidade.
– Estou só a dizer que, quanto mais te protegeres, mais difícil será
reconhecer alguém por quem te poderias realmente apaixonar – diz ele
lentamente.
Assimilo por instantes as suas palavras e sinto-me estranhamente
angustiada.
– Talvez – respondo. – Mas pode acontecer que, depois de muito
sofrimento, eu tenha acordado para a realidade e deixado de sonhar com
coisas que não existem.
– É possível – admite o Gavin, após alguns instantes em silêncio. – Mas
também é possível que não tenhas razão. E que esse amor exista. Não
concordas que fizeram sofrer muito a tua avó ao longo dos anos?
– Claro.
– E ao Jacob Levy, provavelmente?
– Sim, provavelmente – admito. Recordo tudo o que ambos perderam:
as suas famílias, a vida que conheciam, a pessoa por quem estavam
apaixonados. O que pode ser mais doloroso do que ver o mundo inteiro
virar-nos as costas enquanto todas as pessoas que amamos são arrastadas
para a morte? – Sim – confirmo.
– Bom, vamos ver se o conseguimos encontrar – diz o Gavin. – Ao
Jacob. Poderemos perguntar-lhe. E perguntar à tua avó.
– Se ela acordar – digo.
– Quando ela acordar – corrige o Gavin. – Tens de manter o otimismo.
Consulto o relógio. Como podemos manter o otimismo se o tempo
continua a passar?
– Muito bem – digo, suspirando. – E perguntamos-lhes simplesmente se
o amor existe? – Arrependo-me de utilizar um tom jocoso, mas a verdade é
que as palavras dele não fazem sentido.
– Porque não? – responde o Gavin. – O pior que podem dizer é não.
– Pronto, tudo bem – concedo. Abano a cabeça, desejosa de terminar
esta conversa inútil. – Achas então que o conseguiremos encontrar? Agora
que conhecemos a data de nascimento?
– Penso que temos mais possibilidades – diz o Gavin. – Talvez ele ainda
esteja por aí.
– Talvez – concordo. Ou talvez tenha morrido há muito tempo e nós
estejamos a procurar em vão. – Olha, obrigada – digo, sem saber ao certo
se lhe estou a agradecer a conversa que tivemos ou a ajuda na procura do
Jacob.
– Não tens de quê, Hope. Amanhã vou telefonar para várias sinagogas.
Talvez descubra alguma coisa. Vemo-nos amanhã ao fim da tarde, no
hospital.
– Obrigada – digo novamente. Ele desliga e eu continuo a segurar o
auscultador, interrogando-me sobre o que tinha acabado de acontecer. É
possível que eu tenha simplesmente ficado mais velha e mais amarga e que
este tipo, ainda antes dos trinta anos, saiba mais do que eu sobre a vida e o
amor?
Adormeço desejando ardentemente, pela primeira vez desde que me
recordo, que eu esteja apenas a dizer disparates e que todas as coisas que a
experiência me ensinou não sejam, afinal, verdadeiras.
Capítulo 21

Na tarde seguinte, a Annie e o Alain acompanham o Gavin ao templo,


enquanto eu fico junto da Mamie após o período de visitas. Consegui
subornar as enfermeiras do piso com um cheesecake de limão com uvas e
uma caixa de biscoitos que trouxe da confeitaria.
– Mamie, preciso que acordes – sussurro-lhe no quarto, que vai ficando
cada vez mais ecuro. Seguro-lhe a mão e olho pela janela, do outro lado da
cama. O crepúsculo já quase se transformou em escuridão, e as estrelas de
que a Mamie tanto gosta já ocuparam o seu lugar. Parecem brilhar menos
do que noutros dias, o que me leva a pensar que podem estar, como eu, a
perder vigor sem a atenção da Mamie. – Sinto a tua falta – segredo-lhe.
Os equipamentos que a monitorizam continuam a produzir sons
contínuos, a um ritmo tranquilizador, mas não a trazem de volta. A médica
explicou-nos, a Alain e a mim, que por vezes basta esperar. Em certos
casos, o cérebro revitaliza-se quando está preparado para o fazer. O que ela
não disse mas eu consegui ler nos seus olhos é que, em igual número de
casos, o doente nunca regressa. Preparo-me lentamente para a possibilidade
de nunca mais voltar a ver os olhos da minha avó.
Nunca pensei que precisasse de alguém. A minha mãe foi sempre muito
independente. E, após a morte do meu avô, tinha eu dez anos, a Mamie
esteve sempre ocupada na confeitaria, demasiado ocupada para repetir os
contos de fadas, para ouvir as minhas histórias sobre a escola, os amigos e
tudo quanto acontecia na minha imaginação. De resto, a minha mãe nunca
se interessara particularmente por essas histórias, pelo que, aos poucos, fui
deixando de as partilhar.
Não preciso de ninguém, dizia a mim mesma enquanto crescia. Não
falava com a minha mãe nem com a minha avó sobre as notas, os rapazes, a
escolha da universidade ou fosse o que fosse. Ambas pareciam tão absortas
nos respetivos mundos que eu sentia que era uma estranha para as duas.
Criei, pois, um mundo meu.
Só com o nascimento da Annie aprendi a abrir-me. E, agora que ela tem
sensivelmente a idade em que eu tive de aprender a defender-me, noto que,
de certa forma, a estou a segurar com mais determinação. Não quero que ela
se afaste paulatinamente do meu universo para criar o seu, como sucedeu
comigo. E é isso, percebo agora, que me distingue da minha avó e da minha
mãe.
Porém, à medida que a Mamie foi recuando no tempo, praticamente até
à infância, devido ao tempo de vida que a doença de Alzheimer lhe apagou,
percebi que a voltei a integrar progressivamente no meu universo. Concluo
que não estou preparada para o habitar apenas com a Annie. Preciso da
Mamie durante mais algum tempo.
– Volta, Mamie – sussurro à minha avó. – Vamos tentar encontrar o
Jacob, está bem? Só tens de voltar para nós.

Quatro dias depois, o estado de saúde da Mamie mantém-se inalterado.


Eu acabo de abrir a confeitaria quando vejo o Matt com uma imensa pilha
de papéis nas mãos. Sinto-me desolada. Com todas as emoções suscitadas
pelo AVC que a Mamie sofreu e pela descoberta do Alain e do Jacob, quase
me esqueci das dificuldades em que o meu negócio se encontra.
– Vou direto ao assunto – diz o Matt depois de nos saudarmos com
algum embaraço. – Os investidores não gostaram dos números.
– Muito bem… – digo, olhando-o nos olhos.
– E, para ser sincero, a tua viagem a Paris, no preciso momento em que
eles estavam a tomar esta decisão de investimento, foi, digamos, um grande
disparate.
Solto um suspiro.
– Do ponto de vista dos negócios, talvez.
– Que mais poderá haver de importante nesta altura?
Baixo os olhos para o tabuleiro de tartes das estrelas que seguro desde
que o Matt entrou.
– Tudo – digo em voz baixa. Sorrio e observo por instantes as tartes
antes de as colocar no expositor. O Matt fita-me como se eu tivesse perdido
a cabeça.
– Hope, eles vão desistir. Os cálculos mostram-lhes que estás, no
mínimo, numa situação precária. Eles estavam indecisos, e eu fiz tudo para
os persuadir a apoiar-te. Mas, sabendo que fechaste assim a confeitaria, de
um dia para o outro… bom, foi a última gota.
Aceno ligeiramente, com o coração em alvoroço. Compreendo o que ele
me está a dizer: posso ter acabado de perder a confeitaria. E sinto-me
invadida por uma sensação que se assemelha, de certa forma, ao pânico.
Contudo, não estou, de todo, tão abalada como poderia pensar, e isso
preocupa-me um pouco. Não deveria assustar-me mais o facto de astar
prestes a perder o negócio da minha família, o meu único meio de
subsistência? Em vez disso, tenho apenas a estranha sensação de que se
cumprirá o destino, seja ele qual for.
– Estás a ouvir-me, Hope? – atira o Matt. Apercebo-me de que ele
esteve a falar enquanto eu estava absorta.
– Desculpa, o que estavas a dizer? – pergunto.
– Estava a dizer que não posso fazer muito mais. Imaginas o esforço que
tive de fazer apenas para os trazer cá? Mas eles não vão investir, Hope.
Lamento.
O Matt não diz nada enquanto eu reorganizo silenciosamente os bolos
no expositor. O carrilhão da porta faz-se ouvir e Lisa Wilkes, que trabalha
na papelaria ao fundo da rua, entra com Melixa Carbonell, empregada da
loja de animais da Lietz Road. Ambas estudaram no mesmo liceu que o
Matt e eu frequentámos, embora uns anos antes. Costumavam vir juntas à
confeitaria pelo menos uma vez por semana.
O Matt permanece em silêncio quando Lisa pede um café e Melixa um
chá verde, que demoro alguns minutos a preparar, pois preciso de ligar a
chaleira elétrica. Entretanto, elas não conseguem decidir se dividem um
pedaço de baklava ou uma fatia de cheesecake. No final, soluciono a
questão cobrando um pedaço de baklava e oferecendo uma fatia de
cheesecake.
– É por isso que vais perder o negócio, sabias? – diz o Matt depois de
elas saírem.
– Como?
– Não podes simplesmente oferecer bolos às pessoas. Elas estavam a
aproveitar-se.
– Não estavam, não – respondo, indignada.
– Claro que estavam. És demasiado generosa. Elas sabiam que, se
discutissem à tua frente, tu entregarias simpaticamente os dois bolos. E foi
o que fizeste.
Suspiro. Não me dou sequer ao trabalho de explicar que, aconteça o que
acontecer, nunca conseguirei vender hoje o que resta do cheesecake.
– A minha avó sempre geriu esta confeitaria como se estivesse na sua
cozinha e os clientes fossem seus convidados – acabo por dizer.
– Esse não é um bom modelo empresarial – diz o Matt.
Encolho os ombros.
– Eu nunca disse que era. Mas orgulho-me dessa tradição.
Volto a ouvir o carrilhão da porta e, levantando a cabeça, vejo o Alain
entrar lentamente. Ele decidiu caminhar todas as manhãs até à confeitaria.
Preocupa-me que o faça, tendo em conta a sua idade e os mais de mil e
quinhentos metros do trajeto, mas ele mantém um ar perfeitamente saudável
e assegura que, em Paris, percorre todos os dias uma distância muito
superior.
Ele contorna o balcão e dá-me um beijo afetuoso no rosto.
– Bom-dia, querida – diz. – Parece reparar pela primeira vez no Matt. –
Olá, jovem – diz. Volta-se para mim e diz: – Vejo que tens um cliente.
– O Matt ia já sair – asseguro-lhe. Lanço ao Matt um olhar furioso,
esperando que tenha o bom senso de não falar sobre os negócios da
confeitaria diante do Alain. Porém, como seria de prever, ele está noutro
planeta.
– Chamo-me Matt Hines – afirma, estendendo a mão ao Alain sobre o
expositor. – E o senhor é…?
O Alain hesita antes de apertar a mão ao Matt.
– Alain Picard – diz. – Sou tio da Hope.
O Matt parece confuso.
– Como? Conheço a Hope desde a infância. Ela não tem nenhum tio.
O Alain sorri discretamente.
– A verdade é que tem, jovem. Sou seu grand-oncle. Seu tio-avô,
portanto.
O Matt franze o sobrolho e olha para mim.
– É irmão da minha avó – explico. – Vive em Paris.
O Matt fita o Alain por instantes e volta a desviar o olhar para mim.
– Hope, isto não faz muito sentido. Estás a dizer-me que foste a Paris
por mero capricho, estás prestes a perder o teu negócio devido a essa
viagem e trouxeste por acaso um familiar que não sabias que tinhas?
Sinto-me corar, não sei se por me sentir insultada ou pelo Matt ter
anunciado à frente do Alain que estou prestes a perder a confeitaria. Volto-
me lentamente e observo o Alain, na esperança de que a mensagem se tenha
perdido na tradução, mas ele observa-me com um ar de assombro.
– Hope, o que quer isto dizer? – pergunta em voz baixa. – Perder o
negócio? A confeitaria está em dificuldades?
– Nada que o deva preocupar, Alain – digo. Lanço um olhar ao Matt, e
ele revela, pelo menos, dignidade suficiente para parecer ligeiramente
envergonhado. Pigarreia e prepara-se para se afastar, como que para nos dar
alguma privacidade.
– Hope, somos família – diz o Alain. – É claro que me preocupo quando
existem problemas. Porque não me contaste nada?
– Porque a culpa é minha – asseguro, suspirando. – Tomei más decisões
financeiras. O meu crédito pessoal é de alto risco e isso afeta o meu crédito
empresarial.
– Mas isso não explica porque não me contaste – diz o Alain. Em
seguida, dá um passo em frente e coloca a mão quente e rugosa no meu
rosto. – Sou teu tio.
Sinto lágrimas nos olhos.
– Lamento. Não o queria incomodar. Já basta tudo o que se passa com a
minha avó…
– Mais um motivo para pedires o meu apoio – diz. Afaga delicadamente
a minha face com a palma da mão e volta a dirigir-se ao Matt.
– Jovem! – chama.
– Sim? – O Matt vira-se, de olhos arregalados, como se não tivesse
ouvido tudo.
– Já pode sair. A minha sobrinha e eu temos de conversar.
– Mas eu… – começa o Matt. O Alain volta a interrompê-lo.
– Não o conheço nem sei qual é o seu papel em tudo isto – diz o Alain.
– Sou vice-presidente do Banco de Cape Cod – diz o Matt em tom
formal, endireitando-se um pouco mais. – Somos responsáveis pelo
empréstimo da Hope. E, infelizmente, é necessário exigir já o seu
pagamento. A decisão não foi minha. São apenas negócios.
Procuro recompor-me e observo o Alain. O seu rosto está agora muito
vermelho.
– E tudo acaba assim? – diz ao Matt. – Sessenta anos de tradição?
Sessenta anos de serviço à cidade? Basta decidir que tudo acaba, sem mais
nem menos?
– Não é uma questão pessoal – replica o Matt, olhando-me de relance. –
Tentei ajudar, aliás. A Hope poderá confirmá-lo. Acontece que os
investidores que consegui atrair recuaram após a partida dela para Paris.
Lamento, mas creio que o legado tem de terminar.
Inclino a cabeça e fecho os olhos.
– Jovem – diz o Alain após alguns instantes. – O legado não é a
confeitaria em si mesma, mas a tradição familiar que ela representa. Isso
não tem preço. Há setenta anos, a nossa primeira confeitaria foi-nos retirada
por homens que não compreendiam a família nem a consciência, e que se
orientavam apenas pelo poder e pela riqueza. Devemos à minha irmã, à sua
filha e à sua neta a sobrevivência da tradição.
– Não entendo o que tem isso a ver com um empréstimo – diz o Matt.
O Alain estende o braço e aperta a minha mão.
– O senhor e o seu banco estão a cometer um erro – afirma. – Mas a
Hope vai ficar bem. É uma sobrevivente, tal como a sua avó. É esse o nosso
legado, e também ele vai resistir.
Sinto o coração transbordar. O Alain pega-me delicadamente na mão e
encaminha-nos para a cozinha.
– Vem, Hope – diz. – Vamos preparar uma tarte das estrelas para levar à
Rose. Tenho a certeza de que este jovem encontra a saída.

Nessa tarde, munida da data de nascimento do Jacob Levy, dou início às


chamadas para as organizações interconfessionais que encontrei utilizando
o Google. Resisti durante algum tempo a fazê-lo. Sei que dificilmente terei
êxito e não me sinto capaz de suportar mais deceções. Tenho a sensação de
que, por estes dias, apenas recebo respostas negativas.
Consigo salvar a minha confeitaria? Não. Sabemos se a Mamie alguma
vez acordará? Não. É provável que eu vá a tempo de pôr ordem nesta minha
vida caótica? Não.
Começo pela Aliança Interconfessional e, seguindo a lista, contacto
depois o Conselho para um Parlamento das Religiões do Mundo, a Rede
Interconfessional Americana, a Iniciativa para as Religiões Unidas e o
Congresso Mundial da Fé. A cada pessoa que atende explico sucintamente a
história de como o Jacob levou a Mamie até um cristão, que ajudou a
albergá-la numa família muçulmana. Em seguida, indico o nome e data de
nascimento do Jacob e explico que, mesmo não alimentando grandes
expectativas, o procuro por acreditar na possibilidade de ele integrar uma
organização interconfessional nos Estados Unidos. Todos se revelam
encantados com a história, asseguram-me que vão transmitir as informações
às pessoas competentes e prometem telefonar se obtiverem resultados.
No domingo de manhã, por volta das oito horas, a Annie e eu estamos
sozinhas na confeitaria, a estender massa em silêncio, quando o telefone
toca. A Annie limpa as mãos ao avental e pega no auscultador.
– Confeitaria North Star, fala a Annie – diz. Limita-se a ouvir durante
um momento e passa-me o telefone com uma expressão curiosa. – É para ti,
mãe.
Sacudo a farinha das mãos e pego no auscultador.
– Confeitaria North Star, bom-dia – digo.
– Fala Hope McKenna-Smith? – Ouço uma voz feminina com uma
ligeira pronúncia.
– Sim – respondo. – Em que a posso ajudar?
– Chamo-me Elida White – diz. – Estou a telefonar-lhe da Associação
Abraâmica de Boston. Somos um conselho interconfessional.
– Hum… – digo. Não é uma das instituições que contactei nos últimos
dias. Não conheço o nome, aliás. – Abraâmica? – pergunto.
– As religiões muçulmana, judaica e cristã descendem de Abraão –
esclarece. – Dedicamo-nos a unir estes grupos e trabalhar a partir das nossas
semelhanças e não das nossas diferenças.
– Hum… – repito. – Muito bem. Em que a posso ajudar?
– Permita-me que me explique – diz. – A nossa organização recebeu
esta semana um telefonema do Conselho Interconfessional da América.
Essa chamada foi encaminhada para mim. Informaram-me sobre a sua avó e
sobre a circunstância de ter sido ajudada a fugir de Paris por uma família
muçulmana.
– Sim – confirmo em voz baixa.
– Examinei todos os nossos registos, mas não encontrei nos nossos
membros qualquer Jacob Levy nascido na data que indicou – declara.
Solto um suspiro, desalentada. Mais um beco sem saída.
– Obrigada pelo seu esforço. Mas não era necessário telefonar-me.
– Eu sei – diz. – Porém, tenho comigo uma pessoa que gostaria de a
conhecer. Se nos visitar, teremos também muito prazer em ajudá-la. Talvez
possa vir hoje? Julgo saber que a sua avó se encontra bastante doente e, por
conseguinte, o tempo é essencial. Bem sei que faço o convite com muito
pouca antecedência, mas notei que vive em Cape, pelo que a viagem não
demorará mais do que uma ou duas horas. Vivo em Pembroke.
Sei que Pembroke se situa na Costa Sul, junto à autoestrada para
Boston. Eu necessitaria de menos de uma hora e meia para lá chegar. Não
entendo, todavia, porque tenho de me deslocar se, afinal, não encontraram
nenhum Jacob Levy nos seus registos.
– Infelizmente, não vai ser possível – digo. – Tenho uma confeitaria
para gerir e estamos abertos até às quatro.
– Nesse caso, venha depois de fechar – responde ela de imediato. –
Apareça para jantar.
Faço uma pausa.
– Agradeço o convite, mas…
– Por favor – interrompe ela. – A minha avó gostaria de a conhecer.
Tem mais de noventa anos. É muçulmana e também deu guarida a judeus
durante a guerra.
O meu coração acelera.
– Ela também é parisiense?
– Não – diz. – Somos da Albânia. Sabe, os muçulmanos albaneses
salvaram mais de dois mil irmãos e irmãs de fé judaica. Quando lhe contei a
história do seu Jacob Levy, ela ficou boquiaberta. Não sabia que
muçulmanos de Paris haviam feito o mesmo. Peço-lhe que venha, ela
gostaria de ouvir a sua história e adoraria poder contar a dela.
Olho para a Annie, que me observa com um ar expectante.
– Poderei levar a minha filha? – pergunto.
– Com certeza – apressa-se a dizer Elida. – São as duas muito bem-
vindas. E, depois de partilharmos as nossas histórias, nós procuraremos
ajudá-la a encontrar o vosso Jacob, está bem? A minha avó assegura que
sabe como é importante encontrar o passado aqui, no presente.
– Um segundo, por favor – digo. Coloco a mão sobre o auscultador e
explico resumidamente à Annie o que Elida me disse.
– Temos de ir, mãe – declara ela solenemente. – A avó dessa senhora
deve ser exatamente como a Mamie. Só que é albanesa e não francesa. E é
muçulmana e não judia… Devíamos ir falar com ela.
Observo a minha filha por instantes e concluo que ela tem razão. A
minha avó está numa cama de hospital, em coma, mas a avó de Elida ainda
se consegue exprimir. Talvez nunca venhamos a saber tudo o que aconteceu
à minha avó, mas ouvir uma senhora que viveu no mesmo período e esteve
envolvida numa situação semelhante à da Mamie pode ajudar-nos a
entendê-la.
– Combinado – digo a Elida. – Chegaremos por volta das seis. Pode
indicar-me a morada?

A Annie convida o Alain a vir connosco a Pembroke, mas ele prefere


ficar e fazer companhia à Mamie. Fazemos uma curta visita ao hospital,
onde ficámos alguns minutos junto à Mamie, e, em seguida, a Annie e eu
seguimos viagem, depois de prometermos ir buscar o Alain a caminho de
casa. Recorrendo à sua amabilidade, conseguiu persuadir as enfermeiras do
turno da noite a fecharem os olhos às regras das visitas; todas conhecem a
sua história e sabem que ele esteve afastado da irmã durante quase setenta
anos.
Passam alguns minutos das seis quando saímos da autoestrada em
Pembroke. Encontramos com alguma facilidade a casa de Elida, recorrendo
às indicações que ela nos deu. Trata-se de uma casa de dois andares, azul,
com portadas brancas, num pequeno e cuidado bairro situado mesmo atrás
de uma igreja católica. A Annie e eu entreolhamo-nos, saímos do carro e
tocamos à campainha.
A mulher que nos abre a porta e se apresenta como Elida é mais velha
do que eu previa; terá uns quarenta e cinco anos. A sua tez é pálida, e o seu
cabelo espesso e negro pende-lhe sobre as costas, quase até à cintura.
Nunca conheci ninguém da Albânia, mas os seus traços são semelhantes aos
que eu esperaria encontrar numa mulher grega ou italiana.
– Bem-vindas à nossa casa – diz, cumprimentando-nos. Os seus olhos
são profundos e castanhos, e o seu sorriso é bondoso. – Hoje estamos
apenas a minha avó e eu. O meu marido, Will, está a trabalhar. Entrem, por
favor.
Entrego-lhe a caixa de miniaturas de tartes das estrelas que trouxe para a
sobremesa e, depois dos seus agradecimentos, seguimo-la ao longo de um
corredor ladeado de fotografias a preto e branco que retratam, presumo,
parentes seus. Ela explica-nos que, na Albânia, a principal refeição do dia é
o almoço, mas que hoje prepararam um jantar especial.
– Espero que gostem de peixe – diz, voltando-se ligeiramente para trás.
– Escolhi um prato familiar antigo que a minha avó costumava preparar na
Albânia.
– Claro – digo. A Annie assente. – Mas não era necessário darem-se a
este incómodo.
– É um prazer – diz ela. – São nossas convidadas.
A meio do corredor, entramos numa sala de jantar pouco iluminada
onde, à cabeceira da mesa, está sentada uma mulher que parece bastante
mais velha do que a Mamie. O seu rosto está profundamente sulcado e o seu
cabelo branco, da cor da neve, caiu já parcialmente, deixando-a com um
penteado irregular e bizarro. Veste uma camisola preta e uma saia cinzenta
comprida e observa-nos com olhos brilhantes, por entre as lentes de uns
enormes óculos de tartaruga que se afiguram demasiado grandes para o seu
rosto. Pronuncia algumas palavras numa língua que não reconheço.
– Apresento-vos a minha avó, Nadire Veseli – diz Elida voltando-se
para a Annie e para mim. – Fala apenas albanês. Diz que está muito feliz
por jantarem connosco e que são muito bem-vindas a nossa casa.
– Obrigada – respondo.
Annie e eu sentamo-nos juntas, ao lado da velha senhora, e Elida
regressa instantes depois com quatro tigelas num tabuleiro. Coloca-as
diante de nós e senta-se à esquerda da sua avó.
– Sopa de batata e couve – diz Elida, acenando na direção das tigelas.
Pega na colher e pisca o olho à Annie. – Não te preocupes. Apesar do
nome, é deliciosa. Vivi na Albânia até aos vinte e cinco anos, e este era o
meu prato preferido quando eu tinha a tua idade.
Annie sorri e prova a sopa, e eu faço o mesmo. Elida tem razão; é ótima.
Não sou capaz de adivinhar os condimentos, mas o sabor é intenso e fresco.
– É mesmo muito boa – elogia a Annie.
– Tem razão. É deliciosa – concordo. – Vai ter de me dar a receita.
– Com muito gosto – diz Elida. A avó profere algumas palavras em
albanês e Elida acena afirmativamente. – A minha avó pede-lhe o favor de
contar a história da sua avó e o modo como foi salva – traduz Elida. A
senhora assente e observa-me, expectante. Acrescenta algumas palavras e
Elida traduz novamente. – A minha avó espera não estar a ser indelicada.
– De modo algum – murmuro, mas ainda sem saber ao certo o que
fazemos aqui. Ainda assim, nos vinte minutos seguintes, a Annie e eu
explicamos o que descobrimos recentemente sobre o passado da Mamie e
sobre a sua fuga de Paris. Elida traduz as nossas palavras para albanês e a
avó escuta-a, olhando-nos atentamente e acenando com a cabeça. Os seus
olhos começam a encher-se de lágrimas e, a certa altura, ela interrompe
ruidosamente Elida e profere várias frases em albanês.
– Ela quer transmitir-lhe que a história da sua avó é como uma dádiva
para ela – diz Elida. – E que está feliz por terem vindo a nossa casa. Diz
ainda que é importante recordar a jovens como a Hope e a sua filha a noção
de concórdia.
– Concórdia? – pergunta a Annie.
Elida aquiesce, fitando a minha filha.
– Nós somos muçulmanas, Annie, mas acreditamos que tu és nossa
irmã, apesar de seres cristã e de teres raízes judaicas. Eu casei-me com um
homem cristão de origem judaica porque o amo. O amor pode transcender a
religião, sabes? No mundo de hoje, há demasiadas divisões, mas foi Deus
que nos criou a todos, não é verdade?
A Annie assente e olha para mim; percebo que não sabe bem como
responder.
– Sim, deve ser – diz por fim.
– Foi por isso que aceitei um emprego na Associação Abraâmica –
explica Elida. – Para poder incentivar a compreensão entre as religiões.
Após a Segunda Guerra Mundial, parecem ter-se desvanecido muitos dos
laços fraternais que partilhávamos.
– Mas qual é a nossa relação com o seu trabalho? – pergunto
serenamente.
A avó de Elida dirige-lhe mais algumas palavras e ela volta-se de novo
para mim.
– O seu pedido de ajuda chegou às minhas mãos – diz ela. – Na nossa
cultura, isso implica que é agora minha obrigação ajudá-la. Trata-se de um
código de honra denominado Besa.
– Besa? – repito.
Elida confirma.
– É um conceito albanês derivado do Alcorão. Significa que se alguém
nos pede ajuda em momentos de dificuldade, não podemos recusar. Foi por
isso que a minha avó e eu a convidamos para estar connosco esta noite. Foi
por isso que a minha avó e os seus amigos e vizinhos salvaram numerosos
judeus, colocando em risco a sua própria vida. E foi também,
provavelmente, por isso que a sua avó foi resgatada, ainda que os
muçulmanos de Paris não utilizassem o mesmo nome que nós, na Albânia,
para designar esse conceito. E agora a minha avó gostaria de vos contar a
sua história.
A avó de Elida sorri em silêncio enquanto Elida se levanta para retirar
os pratos de sopa. A Annie oferece-se para ajudar e, momentos depois, as
duas regressam com travessas com peixe e vegetais.
– Truta assada com azeite e alho – explica Elida ao mesmo tempo que
ela e a Annie se sentam. – É um prato comum na Albânia. Temos também
alho-francês assado no forno e salada de batata albanesa. A minha avó e eu
queríamos partilhar convosco os sabores do nosso país.
– Obrigada – dizemos a Annie e eu em uníssono.
– S’ka përse – diz a avó de Elida. – De nada – acrescenta em inglês.
Elida abre um sorriso.
– Conhece algumas palavras inglesas. – Faz uma pausa para escutar
novamente a avó. – E agora ela gostaria de vos falar sobre os judeus que
acolheu na nossa cidade-natal, Krujë.
A avó de Elida começa por nos contar, recorrendo à tradução da neta,
que tinha acabado de se casar quando a guerra deflagrou e que o seu marido
era um homem conhecido e respeitado na sua pequena cidade, onde todos
se conheciam.
– Em 1939, os italianos ocuparam o nosso país e, mais tarde, em
setembro de 1943, vieram os alemães – explica Elida. – A minha avó está a
dizer que percebeu imediatamente que eles perseguiam os judeus que
viviam entre os albaneses. Sucede que a Albânia se tornara, de algum
modo, um porto de abrigo para os judeus que fugiam da Macedónia e do
Kosovo, bem como de países um pouco mais distantes, como a Alemanha e
a Polónia.
Elida prossegue enquanto a avó conta a história na língua materna.
– Em 1943, várias famílias judaicas procuraram guarida na nossa
pequena cidade de Krujë. A minha avó foi uma das habitantes da cidade
que se disponibilizou para acolher refugiados. Diz que recebeu a família
Berenstein, de Mati, na Alemanha. Ainda se recorda deles.
Elida faz uma pausa, e a sua avó diz, num inglês pausado e cuidado:
– Ezra Berenstein, o pai. Bracha Berenstein, a mãe. Duas filhas. Sandra
Berenstein. Ayala Berenstein.
– Sim – confirma Elida. – Os Berenstein. As crianças eram muito
pequenas, tinham apenas quatro e seis anos. A família havia fugido no
início da guerra e, para se manter a salvo, afastou-se progressivamente para
sul.
A avó de Elida retoma a história, e Elida prossegue a tradução.
– Segundo a minha avó, ela e o seu marido eram pobres e as provisões
eram escassas, devido à guerra, mas isso não os impediu de acolher os
Berenstein. Toda a cidade os conhecia mas, quando vieram os alemães,
ninguém os denunciou.
»Certa vez, os alemães entraram mesmo na casa da família, mas Mr. e
Mrs. Berenstein esconderam-se no sótão, enquanto a minha avó e o meu
avô fingiam que Sandra e Ayala eram seus filhos e eram muçulmanos. Mais
tarde, disfarçaram todos os Berenstein de camponeses e ajudaram-nos a
mudar-se para as montanhas mais próximas, para uma localidade mais
pequena. Os meus avós juntaram-se a eles algum tempo depois. Ali viveram
com os Berenstein, ajudando a protegê-los até 1944, ano em que os
Berenstein voltaram a seguir para sul, em direção à Grécia.
Apercebo-me de que a história me leva às lágrimas. Lanço um olhar à
Annie e noto que ela está igualmente comovida.
– O que lhes aconteceu? – pergunto. – Aos Berenstein? Conseguiram
fugir em segurança?
– Durante muito tempo, a minha avó não soube nada – diz Elida. – Ela e
o meu avô rezavam diariamente por eles. Depois de os alemães serem
derrotados na Albânia, no final de 1944, o país passou a ser controlado
pelos comunistas, e os albaneses deixaram de poder comunicar com o resto
do mundo. Contudo, em 1952, os meus avós receberam uma carta dos
Berenstein. Estavam vivos, os quatro, e residiam em Israel. Agradeceram
aos meus avós o seu apoio, a sua fidelidade aos princípios da Besa, e Ezra
Berenstein disse ter jurado a si mesmo recompensar a minha avó e o meu
avô caso alguma vez necessitassem de ajuda. Os meus avós não estavam
autorizados a responder e receavam que os Berenstein os julgassem mortos
ou, pior ainda, sem recordações suas.
A velha senhora acrescenta algumas palavras e Elida responde em
albanês, sorrindo. Volta-se depois para a Annie e para mim.
– Eu assegurei à minha avó que conheço o resto da história e que,
portanto, a posso contar a partir de agora – diz. – Eu tinha vinte e cinco
anos quando o comunismo se desmoronou em 1992 e o nosso país se abriu
novamente ao mundo. Contudo, a verdade é que o comunismo nos
destruíra. Éramos bastante pobres. Não tínhamos futuro na Albânia, mas
também não dispúnhamos de dinheiro suficiente para emigrar. Eu vivia com
a minha avó e com os meus pais. O meu avô morrera anos antes. Certo dia,
bateram à nossa porta.
– Era Ezra Berenstein? – interrompe a Annie, empolgada.
– Não, mas quase acertaste – responde Elida com um sorriso. – Mr.
Berenstein falecera alguns anos antes, tal como a sua mulher. Contudo, as
filhas, Sandra e Ayala, nunca haviam esquecido o tempo passado em casa
dos meus avós. Contavam já mais de cinquenta anos e haviam-se
empenhado em que os meus avós fossem declarados Justos entre as Nações,
um título atribuído àqueles que salvaram judeus colocando em risco a
própria vida. Agora, batiam à nossa porta, quase cinquenta anos depois de
entrarem pela primeira vez na Albânia em busca de proteção, determinadas
a retribuir o que a minha avó e o meu avô lhes tinham dado.
»A minha avó explicou-lhes que a Besa não prevê qualquer retribuição.
Pelo menos neste mundo. Afirmou-lhes que fora seu dever ajudá-las,
perante Deus e perante o próximo, e disse-se muito feliz por todos terem
sobrevivido e iniciado vidas mais risonhas. Ayala residia então nos Estados
Unidos, tendo-se casado com um homem abastado, um médico chamado
William. Ela contou à minha avó que se convertera ao cristianismo e que
ela e o marido tinham dois filhos. Disse dever tudo à minha avó, pois, sem a
sua ajuda, ela e a sua família nunca teriam sobrevivido. Explicou ainda que
nos pretendia ajudar a sair da Albânia e a partir para os Estados Unidos. E,
um ano mais tarde, depois de nos assegurar os vistos necessários, cumpriu
fielmente a promessa. Os meus pais decidiram permanecer na Albânia, mas
a minha avó e eu mudámo-nos para aqui, para a região de Boston, para
iniciar uma nova vida.
– Ainda se encontram com Ayala e com a sua família? – pergunta a
Annie.
Elida sorri.
– Diariamente. Sabes, casei-me com o filho mais velho da Ayala, Will.
E agora as nossas famílias estão unidas para sempre.
– Isso é espantoso – digo delicadamente. Sorrio para a avó de Elida, que
pestaneja algumas vezes e devolve o sorriso. Pergunto-me quantas mais
vidas ela terá mudado quando decidiu, com o marido, acolher uma família
judaica apesar de, dessa forma, colocarem em risco a própria sobrevivência.
– Muito obrigada por ter partilhado connosco a sua história.
– Oh, a história ainda não terminou – diz Elida. Sorri e retira do bolso
um pedaço de papel dobrado que, em seguida, me entrega.
– Do que se trata? – pergunto, começando a desdobrá-lo.
– É Besa – diz ela. – O seu esforço para localizar Jacob Levy trouxe-a
até mim. O meu marido, Will, filho de Ayala, que a minha avó salvou há
quase setenta anos, é agente da polícia. Pedi-lhe este favor, e ele encontrou
o vosso Jacob Levy, nascido em Paris, França, no dia de Natal de 1924. –
Ela acena com a cabeça em direção ao pedaço de papel que me entregou. –
Aí encontra a morada dele. Há um ano, vivia em Nova Iorque.
– Espere lá – interrompe a Annie. Arranca-me o pedaço de papel e
examina-o ansiosamente. – Encontrou o Jacob Levy? O Jacob Levy da
minha bisavó?
Elida volta a sorrir.
– Creio que sim. As informações disponíveis coincidem com as que a
tua mãe indicou. – Volta-se para mim. – Agora tem mesmo de o encontrar.
– Como lhe poderei eu agradecer? – pergunto com voz trémula.
– Não é necessário fazê-lo – diz Elida. – A Besa é uma questão de
honra. Peço-vos apenas que nos prometam nunca esquecer o que vos
contámos aqui hoje.
– Nunca – diz a Annie de imediato. Devolve-me o pedaço de papel, com
os olhos arregalados de espanto. – Obrigada, Mrs. White. Prometo-lhe que
nunca esqueceremos. Nunca.
Capítulo 22

Biscoitos de Amêndoa com Canela

Ingredientes
2 quartas de manteiga sem sal (228 g)
1 chávena e 1/2 de açúcar mascavado comprimido com firmeza
no recipiente
2 ovos grandes
1 colher de chá de extrato de amêndoa
2 chávenas e meia de farinha
1 colher de chá de fermento em pó
1 colher de chá de sal
1 chávena de açúcar com canela (3/4 de açúcar granulado com
1/4 de canela)

Preparação
1. Numa tigela grande, bata a manteiga e o açúcar mascavado
até obter uma mistura cremosa. Adicione os ovos e o extrato
de amêndoa e bata até obter uma massa homogénea.
2. Peneire a farinha, o fermento e o sal para um recipiente à
parte e adicione-os à massa, cerca de meia chávena de cada
vez, batendo após introduzir cada porção, mantendo sempre
todos os ingredientes bem ligados.
3. Divida a massa em cinco partes. Em seguida, dê-lhes a forma
de pequenos rolos, envolva cada um em película aderente e
coloque-os no frigorífico. Retire-os quando a massa estiver
firme.
4. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
5. Deite açúcar com canela num prato. Retire a película dos
rolos e passe-os sobre o açúcar até estarem uniformemente
revestidos.
6. Corte os rolos em fatias de 7 milímetros de espessura e
coloque-as num tabuleiro devidamente untado. Leve ao forno
durante dezoito a vinte minutos.
7. Deixe-as arrefecer durante cinco minutos no tabuleiro e, em
seguida, passe-as para uma grelha metálica para
arrefecerem totalmente.

Rose

Num dia já muito distante, tinha Rose quatro anos, os seus pais
levaram-na, juntamente com a sua irmã Hélène, a Aubergenville, uma
localidade não muito distante de Paris, para desfrutarem de uma
semana no campo. Naquele verão de 1929, a sua mãe estava no final da
gravidez; Claude nasceria apenas seis semanas mais tarde. Contudo,
aqueles momentos aprazíveis passados ao sol pertenciam apenas a Rose
e a Hélène, de quatro e cinco anos, únicas destinatárias da atenção e do
afeto dos seus pais.
Hélène fora incumbida de olhar pela sua irmã mais nova, enquanto
os pais bebiam serenamente vinho branco no terraço da pequena casa
que haviam alugado a amigos por uma semana. Não viram Hélène
levar Rose, contornando a casa, até ao pequeno riacho que fluía num
murmúrio.
– Vamos para a água – disse Hélène, puxando a irmã pela mão.
Rose hesitou. A Maman e o Papa vão zangar-se, pensou. Mas Hélène
insistiu, lembrando a Rose as histórias que a mãe lhes lia, quando se
deitavam, acerca da família de patos que vivia ao longo das margens do
Sena. – Os patos estão sempre a nadar e corre tudo bem – afiançou-lhe
Hélène. – Não sejas tão medrosa, Rose.
E Rose decidiu então acompanhar a sua irmã e entrar na água.
Contudo, a superfície calma era enganadora; havia uma forte corrente
no fundo e, logo que Rose deu os primeiros passos dentro de água,
sentiu a corrente sugar-lhe os dedos dos pés, puxá-la para baixo, levá-la
para longe. Ela não sabia nadar. Subitamente, deu consigo debaixo de
água, empurrada para outro mundo onde quase não havia ar nem som.
Tentou gritar, acabando apenas por encher os pulmões de água. Acima
da superfície, tudo parecia escuro e desconhecido. Via uma luz distante,
muito acima dela, mas não parecia conseguir alcançá-la. Os seus
membros pesavam-lhe, não se moviam, e, nestas estranhas profundezas
aquáticas, ela sentiu o tempo suspenso. Até ao momento em que o pai a
trouxe novamente à superfície, mesmo a tempo, depois de ouvir os
gritos da irmã, Rose tivera a certeza de que iria desaparecer para
sempre naquele mundo turvo e emudecido.
Era assim que Rose se sentia, tanto tempo depois, sob o coma em
que se encontrava havia duas semanas. Estava ciente de que existia
uma superfície – vozes e sons, distantes e abafados; luz e movimento
muito distantes. Sentia os membros pesados, tal como naquele dia, no
riacho de Aubergenville, e sabia que o pai já partira há muito; não
seria ele a retirá-la deste terrível mundo sombrio. Estava sozinha e
continuava a não saber nadar.
Naquele dia, em Aubergenville, ela desejara ser salva. Quisera
encontrar a superfície, regressar à vida. Agora, porém, não sentia
necessariamente o mesmo. Talvez fosse chegado o momento de se
resignar. Talvez fosse chegado o momento de se afastar,
paulatinamente. Talvez as profundezas turvas lhe reservassem algo
mais do que a superfície luminosa que mal distinguia.
Sabia que Hope estava lá em cima, à superfície. E Annie também.
Mas elas ficariam bem. Hope era forte, mais forte do que julgava, e
Annie estava a tornar-se numa jovem excecional. Rose não podia
permanecer com elas eternamente, protegê-las para sempre.
Talvez tivesse chegado a sua hora. Talvez ele estivesse ali, algures
nas profundezas, neste mundo indistinto que parecia existir entre a
vida e a morte. Ela sentia a falta da observação das estrelas, das suas
estrelas, e, sem o céu para a abrigar todas as noites, para lhe recordar
as pessoas que ela tanto amara, sentia-se só e com frio.
Rose tinha a certeza de que também estava a morrer; começava a
ouvir os fantasmas do passado. Foi assim que compreendeu que a sua
vida se aproximava do fim, pois ouvia a voz do irmão Alain, agora
adulta e profunda. Na imaginação dela, a sua voz seria assim se ele
tivesse sobrevivido durante a guerra e pudesse ter crescido e tornar-se
adulto.
«Foste tu que me salvaste, Rose», repetia consecutivamente a voz
distante na língua materna de ambos. «C’est toi qui m’a sauvé, Rose.»
A voz que habitava a mente de Rose gritou: «Eu não te salvei!
Deixei-te morrer! Sou cobarde!» Contudo, as palavras não lhe
chegavam aos lábios e ela sabia que, mesmo que o fizessem, se
perderiam nas profundezas deste mundo sufocado. Limitava-se a
escutar, pois, a voz perseverante do seu querido irmão.
– Ensinaste-me a acreditar – sussurrou ele repetidamente. – Não te
sintas culpada. Foste tu que me salvaste, Rose.
Ela perguntava a si mesma se esta era a absolvição que procurara
durante toda a sua vida, mesmo convencida de que não a merecia. Ou
seria apenas mais um efeito da demência que sabia estar a consumir-
lhe o cérebro? Já não confiava nos seus olhos, nos seus ouvidos, tantas
vezes alheados da realidade ou das memórias autênticas.
E, quando ele lhe começou a segredar «Tens de acordar, Rose, a
Hope e a Annie podem ter encontrado o Jacob Levy», ela soube que
perdera totalmente a lucidez, pois ouvia o impossível. Jacob morrera.
Muitos anos antes. Hope nunca o viria a conhecer. Rose nunca o
voltaria a encontrar.
Se fosse possível derramar lágrimas naquele mar profundo e turvo,
Rose teria chorado.
Capítulo 23

A caminho de casa, após a visita a Elida, vejo os olhos da Annie


brilharem no escuro e refletirem as luzes da noite.
– Tens de ir amanhã a Nova Iorque, mãe – declara. – Tens de o
encontrar.
Eu aceno afirmativamente. De qualquer modo, a confeitaria está fechada
às segundas-feiras e, ainda que não estivesse, eu não consigo esperar nem
mais um momento.
– Saímos de manhã – informo a Annie. – Bem cedo.
A Annie vira-se na minha direção.
– Não posso ir contigo – diz pesarosamente, abanando a cabeça. –
Amanhã tenho aquele teste importante de Estudos Sociais.
Aclaro a garganta.
– É uma atitude responsável – afirmo, fazendo depois uma pausa. –
Estudaste para o teste?
– Mãe! – protesta a Annie. – Claro! Óbvio…
– Ainda bem – digo. – Assim sendo, vamos a Nova Iorque na terça-
feira. Podes faltar à escola na terça-feira?
A Annie abana a cabeça.
– Não, tens de ir amanhã, mãe.
Olho-a e volto depois a concentrar-me na estrada.
– Querida, não me importo de esperar por ti.
– Não – diz ela sem hesitar. – Tens de o encontrar o mais depressa
possível. E se o tempo estiver a acabar e nós não soubermos?
– A Mamie está estabilizada – digo à Annie. – Vai aguentar-se.
– Bolas, mãe – diz a Annie lentamente, após alguns segundos em
silêncio. – Tu não acreditas nisso. Sabes que ela pode morrer a qualquer
momento. É por isso que, estando ele tão perto, tens de encontrar o Jacob
Levy o mais depressa possível.
– Mas, Annie… – começo.
– Não, mãe – diz ela com firmeza, como se fosse ela a mãe e eu a filha.
– Vai para Nova Iorque amanhã. Traz de volta o Jacob Levy. A Mamie
precisa de ti.

Após uma passagem pelo hospital a caminho de casa, numa curta visita
à Mamie, a Annie deita-se e eu sento-me na cozinha com o Alain, bebendo
um descafeinado e explicando-lhe o que Elida e a avó nos tinham relatado.
– Besa – diz ele pensativamente. – Que maravilhoso conceito. A
obrigação de ajudar o próximo. – Mexe devagar o seu descafeinado e toma
um gole. – Viajas então amanhã para Nova Iorque? Sozinha?
Aceno que sim mas, sentindo-me um tanto irresponsável, corrijo-me
rapidamente.
– Pensei perguntar ao Gavin se quererá vir comigo. Apenas porque ele,
afinal, nos ajudou muito no início desta procura.
– É uma ideia sensata – diz o Alain, sorrindo. Faz uma pausa e, em
seguida, acrescenta: – Sabes, não é nenhum crime apaixonares-te pelo
Gavin, Hope.
A sua frontalidade sobressalta-me de tal forma que me engasgo com o
café que acabei de engolir.
– Não estou apaixonada pelo Gavin – protesto entre a tosse.
– É claro que estás – diz o Alain. – E ele por ti.
Rio-me destas palavras, mas sinto o rosto muito corado e, subitamente,
as palmas das mãos transpiradas.
– Isso é uma loucura!
– Será mesmo? – pergunta o Alain.
Abano a cabeça.
– Bom, em primeiro lugar, não temos nada em comum.
– Têm muito em comum – diz o Alain, rindo-se. – Vejo a maneira como
falam um com o outro. A maneira como ele te faz rir. A maneira como
conseguem conversar sobre qualquer assunto.
– Isso acontece apenas porque ele é simpático – resmungo.
O Alain coloca a sua mão sobre a minha.
– Ele preocupa-se contigo. E, reconheças ou não, tu também te
preocupas com ele.
– Ainda não me falou do que temos em comum – replico teimosamente.
– Ele gosta da Annie – diz o Alain delicadamente. – Não me vais dizer
que não têm isso em comum.
Faço uma pausa antes de aceder.
– Sim – admito. – Ele gosta da Annie, de facto.
– Não é todos os dias que se encontra um homem assim – diz o Alain. –
Pensa na forma como ele a ajudou quando estávamos em Paris e a Rose foi
internada no hospital. Ele esteve lá para a ajudar. E para te ajudar a ti.
Concordo novamente.
– Bem sei. É boa pessoa.
– É mais do que isso – declara o Alain. – Porque não acreditas nisso?
Encolho os ombros e baixo os olhos.
– Para começar, ele é sete anos mais novo do que eu – murmuro.
O Alain solta uma risada.
– A tua avó casou-se com um cristão apesar de ser judia. E ainda agora
visitaste uma mulher casada e feliz com um homem judaico-cristão, ainda
que seja muçulmana. Se é possível superar algo tão significativo como as
diferenças religiosas, achas que sete anos têm alguma importância?
Volto a encolher os ombros.
– Tudo bem. Mas, além do mais, eu tenho uma filha.
O Alain olha-me atentamente.
– Com certeza que sim. Só não entendo porque utilizas esse facto como
justificação.
– Bom, por um lado, ele tem apenas vinte e nove anos. Não lhe posso
pedir que se responsabilize por uma adolescente.
– Penso que nunca o fizeste – diz o Alain –, mas ele já está presente na
vida dela, assumindo essa responsabilidade. Não deverá ser ele a tomar essa
decisão?
Baixo a cabeça.
– Mas a minha mãe sempre colocou os homens em primeiro lugar, sabe?
Eu sentia permanentemente que, para ela, eu era menos importante do que
eles. A sua vida sempre girava em torno da pessoa com quem tinha uma
relação. Prometi a mim mesma que a minha filha nunca, mas nunca, se
sentiria assim.
– Não és a tua mãe – afirma o Alain, momentos depois.
– E se eu me transformar no que ela foi? – pergunto em voz branda. – E
se, agora que estou divorciada, fizer exatamente isso? Não posso seguir esse
caminho. Tenho de pôr a Annie em primeiro lugar, aconteça o que
acontecer.
– Abrires-te a outra pessoa não implica abandonar a Annie – diz o Alain
cautelosamente.
Sinto, surpreendida, as lágrimas deslizarem-me pelo rosto.
– Mas e se ele me fizer sofrer? – pergunto bruscamente. – E se eu o
deixar entrar na minha vida e tiver outro desgosto? E se ele fizer sofrer a
Annie? Ela já passou muito com o pai; eu ficarei certamente destroçada se
também a desiludir.
O Alain bate ao de leve na minha mão.
– É verdade, correrás um risco – afirma. – Mas a vida implica correr
riscos. Se assim não fosse, como conseguiríamos viver?
– Mas eu estou bastante feliz – asseguro-lhe. – Talvez seja suficiente.
Como pode saber que o Gavin não vai alterar tudo isso?
– Não posso – diz o Alain. – Mas só há uma maneira de o descobrir. Ele
levanta-se e vai buscar o meu telefone ao balcão, onde o deixei a carregar a
bateria. – Telefona-lhe. Convida-o a ir contigo amanhã. Não tens de tomar
decisões já. Mas abre a porta, Hope. Abre a porta e deixa-o entrar.
Recebo o telefone das mãos dele e respiro fundo.
– Está bem.

A Annie e eu acordamos às três da manhã e, à mesa da cozinha,


enquanto eu bebo café e leio o jornal do dia anterior, ela come os seus
cereais e bebe um copo de sumo de laranja, olhando-me com atenção.
– Mr. Keyes disse que sim? – pergunta. – Vai contigo?
– Sim – digo, aclarando depois a garganta. – Vem buscar-me às quatro.
– Ainda bem – diz ela. – Mr. Keyes é muito simpático. Não achas?
Aquiesço e olho para o meu café.
– Sim, é – digo cautelosamente.
– Ele é bom a recuperar coisas.
Lanço-lhe um olhar divertido.
– Disso não há dúvida. É a profissão dele.
Ela solta uma risada.
– Não, quer dizer, ele, tipo, recupera as pessoas e assim. Ele gosta, tipo,
de ajudar as pessoas.
– Sim, creio que tens razão – digo, sorrindo.
A Annie permanece em silêncio um breve instante.
– Tu sabes, tipo, que ele gosta de ti, certo? Deves perceber pela maneira
como ele te olha.
Sinto um arrepio da cabeça aos pés. Não estou preparada para discutir
este assunto com a Annie.
– Como o teu pai olha para a Sunshine? – arrisco, numa tentativa infeliz
de introduzir algum humor na conversa.
Annie faz uma careta.
– Não, nada disso.
Rio-me e preparo-me para protestar contra tantas perguntas, mas a
Annie antecipa-se.
– Penso que o pai olha para a Sunshine como se tivesse medo – diz.
– Medo?
Ela reflete por momentos.
– Medo de ficar sozinho – sugere. – Mas o Gavin olha-te de maneira
diferente.
– Em que sentido? – pergunto serenamente. Dou por mim ansiosa pela
resposta.
Ela encolhe os ombros e volta a fitar os cereais.
– Não sei. É como se ele quisesse simplesmente estar contigo. Como se
achasse que és maravilhosa. Como se quisesse fazer coisas para melhorar a
tua vida.
Permaneço em silêncio um momento, sem saber como reagir.
– Isso incomoda-te? – decido finalmente perguntar.
A Annie parece surpreendida.
– Não. Porque haveria de incomodar?
Encolho os ombros.
– Não sei. Tem sido difícil para ti ver o teu pai assumir outra relação tão
cedo. Talvez eu queira apenas dizer-te que não vou a lado nenhum. És a
minha primeira prioridade. Agora e sempre.
Olho-a com convicção ao pronunciar estas palavras. Quero que saiba
que falo a sério. O seu rosto denuncia algum embaraço.
– Eu sei – diz. – Mas isso não significa que não possas sair com Mr.
Keyes.
– Querida, ele não me convidou para sair – rio-me.
– Ainda – diz ela, fazendo depois uma pausa. – A sério, provavelmente
ainda não o fez porque tu te comportas como se não gostasses dele. Mas
não podes, tipo, ficar sozinha para sempre.
Os meus pensamentos da noite anterior regressam impetuosamente.
– Não estou sozinha – digo em voz baixa. – Tenho-te a ti. E à Mamie. E
agora ao Alain.
– Mãe, não vou ficar aqui para sempre – anuncia solenemente. – Vou
para a universidade e assim daqui a, tipo, alguns anos. O Alain também
deve regressar a Paris, não é? E a Mamie vai morrer um dia.
Inspiro ansiosamente. Ainda não me sentira capaz de abordar o tema da
morte nas conversas com a Annie.
– Sim, é verdade. Mas, antes disso, espero que possamos dispor de mais
algum tempo com ela. – Faço uma pausa. – Aceitas bem essa ideia? De a
podermos perder em breve?
Ela encolhe os ombros.
– Só vou ter muitas saudades dela, sabes?
– Eu também.
Permanecemos em silêncio durante vários minutos. Compadeço-me da
minha filha, que já teve de sofrer demasiadas perdas.
– Não quero que fiques sozinha, mãe – acaba por dizer a Annie. –
Ninguém deve ficar sozinho.
Aquiesço, pestanejando para evitar lágrimas com que não contava.
– Peço-te só que encontres o Jacob, está bem? – pergunta-me com
delicadeza. – Tens de o encontrar.
– Eu sei. Também o quero encontrar. Prometo dar o meu melhor.
A Annie acena solenemente e levanta-se para despejar o leite no lava-
louça e colocar a tigela e o copo de sumo na máquina.
– Volto para a cama. Queria apenas levantar-me e desejar-te boa sorte –
explica. Dirige-se para a porta da cozinha e, subitamente, volta-se para trás.
– Mãe? – diz.
– Sim, querida?
– A maneira como o Mr. Keyes olha para ti… – A sua voz esmorece e
ela baixa os olhos. – Aposto que era assim que o Jacob Levy olhava para a
Mamie.

Quando o Gavin me vem buscar, às quatro, no seu Wrangler, traz-me


um copo de café comprado na bomba de gasolina.
– Sei que estás habituada a levantar-te antes da alvorada – diz, enquanto
aguarda que eu aperte o cinto de segurança. Passa-me o copo de café e diz:
– Mas eu tive de parar para tomar café pois, no meu mundo, ainda se
dorme.
– Desculpa – murmuro.
– Não digas disparates – ri-se. – Gosto de estar contigo. Mas a cafeína
está a ajudar.
– Não tens de conduzir, sabes? Podemos levar o meu carro.
– Nã! – diz. – Este está com o depósito cheio e pronta para a viagem. Eu
conduzo. – Faz uma pausa e acrescenta: – A não ser que queiras muito
trocar de lugar comigo. Eu achei que assim era mais fácil. Podes ser o
copiloto.
– Se tens a certeza de que não te importas… – concluo.
Mantemo-nos em silêncio durante os primeiros trinta minutos, trocando
apenas algumas palavras banais sobre o caminho a seguir para Nova Iorque
e a possibilidade de apanharmos trânsito à chegada a Manhattan. O Gavin
boceja e aumenta o volume do rádio quando passa Livin’ on a Prayer, dos
Bon Jovi.
– Adoro esta música – anuncia. Acompanha o refrão com tanto
entusiasmo que me provoca o riso.
– Não sabia sequer que a conhecias – digo-lhe, quando a canção
termina.
Ele lança-me um olhar incrédulo.
– Quem não conhece Livin’ on a Prayer?
Sinto-me corar.
– Queria apenas dizer que me pareces muito novo para a conhecer.
– Tenho vinte e nove anos – diz o Gavin. – O que significa que estava
tão vivo como tu quando esta música foi lançada.
– Tinhas porventura… três anos? – pergunto. Eu tinha quase onze em
1986. Cada um no seu mundo, portanto.
– Tinha quatro – afirma o Gavin. Volta a olhar-me com surpresa. –
Porque estás tão estranha?
– É que tu és tão novo – explico, baixando os olhos. – Muito mais
jovem do que alguém com trinta e seis anos.
– E então? – pergunta ele, encolhendo os ombros.
– Não achas que sou um pouco velhota? – arrisco, resistindo à tentação
de acrescentar para ti.
– Sim, está atenta ao correio, deves estar prestes a receber o cartão de
idoso – diz o Gavin. Ele apercebe-se, todavia, de que eu não me rio. –
Ouve, Hope, sei a tua idade. Que importância tem?
– Não sentes que pertencemos a mundos diferentes ou algo parecido?
Ele hesita.
– Hope, não podes viver sempre condicionada pelas regras e pelas
expectativas das pessoas sem pensares em ti, sabes? É assim que acordamos
aos oitenta anos, ou por aí, e percebemos que a vida nos passou ao lado.
Pergunto-me se será essa a convicção da Mamie. Terá apenas cumprido
o que se esperava dela? Ter-se-á casado e tornado mãe apenas por ser esse o
destino reservado às mulheres do seu tempo? Ter-se-á arrependido?
– Como podes saber isso? – pergunto, procurando respirar mais
lentamente. – Como sabes, afinal, que regras devemos ou não cumprir?
O Gavin observa-me por breves instantes.
– Não creio que haja propriamente regras. Acho que devemos aprender
com o tempo, com a experiência, e tentar corrigir os erros evoluindo. Não te
parece?
– Não sei – digo em voz baixa. Talvez ele tenha razão. Mas isso quer
dizer que eu não tenho sabido viver todos estes anos. Procurei ser
cumpridora em todos os aspetos. Casei-me com o Rob porque íamos ter
uma filha. Voltei a casa, a Cape, porque a minha mãe precisou de mim.
Tomei conta da confeitaria porque era o nosso negócio de família e eu não o
podia deixar cair. Abandonei o meu sonho de ser advogada porque deixou
de se ajustar ao destino que me parecia estar traçado.
Percebo agora que, ao escolher sempre o caminho mais seguro, mais de
acordo com as expectativas, posso ter abdicado de muito mais do que
alguma vez imaginei. Terei também deixado para trás a pessoa que poderia
ter sido? Terei perdido a minha verdadeira natureza nesse caminho de
previsibilidade? Interrogo-me se ainda disporei de tempo para refletir e
começar a definir as minhas regras. Conseguirei resgatar a vida que
mereço?
– Talvez não seja ainda tarde de mais – penso em voz alta.
O Gavin olha-me de relance.
– Nunca é tarde de mais – diz com simplicidade.
Atravessamos em silêncio a ponte Sagamore, com o seu enorme arco,
cruzando assim todo o canal de Cape Cod. Faltam ainda algumas horas para
o amanhecer, e sinto que estamos sozinhos no mundo quando, sob a
escuridão, chegamos a terra firme. Não há mais carros na estrada. Na
superfície negra da água do canal, o reflexo das luzes da ponte e das casas
de ambas as margens parece apontado ao céu, às estrelas. Às estrelas da
Mamie. Não creio que alguma vez volte a observar o céu à noite sem pensar
na minha avó e em todas as noites que ela passou aguardando a chegada das
estrelas.
Só quando entramos na I-195, com destino a Providence, o Gavin volta
a falar.
– O que se passa com a confeitaria? – pergunta.
Fito-o com uma expressão severa.
– O que é que queres dizer?
Ele lança-me um olhar e volta a concentrar-se na estrada.
– A Annie acha que há algum problema. Ouviu-te conversar com o Matt
Hines.
Sinto-me desolada. Não me apercebi de que a Annie sabia alguma coisa.
Não queria que ela soubesse.
– Nada de especial – digo, evitando o assunto.
O Gavin assente, sem olhar para mim.
– Não quero intrometer-me – diz. – Sei que preferes guardar algumas
coisas para ti. Digo apenas que estou disponível para falar sobre qualquer
assunto. Sei o que a confeitaria significa para ti.
Olho pela janela quando começamos a atravessar Fall River, que, por
entre o nevoeiro da madrugada, me faz lembrar uma cidade industrial
fantasmagórica.
– Estou prestes a perdê-la – digo ao Gavin algum tempo depois. – A
confeitaria. É por isso que o Matt me visita tantas vezes. Havia uma
possibilidade de a salvar, com o apoio de investidores, mas penso que a
comprometi ao viajar para Paris.
– Foi isso que disse o Matt?
Aceno que sim e volto a olhar pela janela.
– Isso é ridículo – declara o Gavin. – Nenhum investidor legítimo
abdicaria de uma oportunidade de negócio promissora só porque alguém
tem de se ausentar por uns dias por causa de uma emergência familiar. Se o
Matt te disse isso, é um idiota. Ou está a tentar que te sintas culpada.
– Porque haveria ele de fazer isso?
O Gavin encolhe os ombros.
– Talvez não seja tão bom tipo como parece.
– Talvez – murmuro. Dir-se-ia que todos os homens que deixei entrar na
minha vida ao longo dos anos se incluem nessa categoria.
– O que sentes quando pensas que podes perder a confeitaria? –
pergunta o Gavin após uma pausa.
– Sinto que fracassei – respondo, depois de refletir por instantes.
– Hope, se perderes a confeitaria, não será por teres falhado – diz o
Gavin. – Trabalhas mais do que qualquer pessoa que eu conheça. Não é um
fracasso. É apenas a economia. É algo que não podes controlar.
Abano a cabeça.
– A confeitaria faz parte da minha família há sessenta anos. A minha
mãe e a minha avó ultrapassaram muitos altos e baixos. Quando chega a
minha vez, eu arruíno-a.
– Não arruinaste nada – afirma o Gavin com veemência.
Volto a abanar a cabeça e baixo os olhos.
– Eu arruíno tudo.
– Bem sabes que isso é um disparate. – O Gavin aclara a garganta. – E
foi sempre isso que quiseste fazer? Gerir a confeitaria da tua família?
Solto uma risada.
– Não. De todo. Tencionava ser advogada. Estava a meio do curso de
Direito em Boston quando descobri que estava grávida da Annie. Por isso,
abandonei a faculdade, casei-me com o Rob e, mais tarde, regressei a Cape.
– Porque abandonaste o curso de Direito?
Encolho os ombros.
– Senti que era a atitude mais correta.
O Gavin assente e parece pesar as minhas palavras.
– Voltarias a estudar? – pergunta. – Ainda queres ser advogada?
Reflito por momentos.
– Sinto-me uma grande falhada por ter desistido – digo. – Mas, ao
mesmo tempo, tenho a estranha sensação de que talvez não estivesse, de
todo, destinada a exercer advocacia. Talvez estivesse destinada a gerir a
confeitaria. Neste momento, não imagino a minha vida sem ela, sabes?
Sobretudo agora que sei o quanto significa para a minha família. Agora que
sei ser tudo o que a minha avó trouxe do seu passado.
– Sabes, acho que não vais perder a confeitaria – diz o Gavin minutos
depois.
– Porque dizes isso? – pergunto.
– Porque acredito que, na vida, tudo se resolve nos momentos realmente
importantes.
Volto-me para ele.
– Só isso? A vida segue o seu destino?
– Sim, pronto – diz o Gavin, rindo-se –, a frase parece saída de um
postal.
Mantenho-me em silêncio alguns instantes.
– A Annie acha que tu consegues, de alguma maneira, fortalecer as
pessoas – digo em voz baixa.
– Oh, acha mesmo? – pergunta, rindo-se novamente.
Olho-o fugazmente.
– Sabes, não tens de me fortalecer. Nem de me salvar. Nem nada disso.
Ele fita-me e abana a cabeça.
– Não creio que precises, Hope – diz. – Acho que subestimas a
capacidade que tens para te salvares a ti mesma.
As suas palavras emocionam-me profundamente, e eu olho pela janela
para evitar que ele veja as minhas lágrimas súbitas e inesperadas. Talvez eu
tenha encontrado a solução de que sempre precisei. Talvez seja isto o que
sempre me faltou. Não o dinheiro do Matt e dos seus investidores. Não de
alguém para me salvar. Apenas de uma pessoa que acredita que eu consigo
ser bem-sucedida sem ajudas.
– Obrigada – sussurro, numa voz tão ténue que não sei se o Gavin me
ouve.
Mas ouve. Sinto a sua mão no meu ombro e, quando me viro para o
fitar, ele aperta-me, delicadamente, e volta a colocar a mão no volante.
Continuo a sentir na minha pele o calor da sua mão.
– Sabes que vai correr tudo bem, não sabes? – pergunta.
– Sei – declaro. – E, pela primeira vez, acredito no que estou a dizer.
Capítulo 24

No Connecticut, saímos da I-95 e fazemos uma paragem para podermos


encher o depósito, tomar o pequeno-almoço e ir à casa de banho. À saída do
McDonald’s, equilibrando dois cafés e dois sumos de laranja num tabuleiro
e transportando ainda um saco cheio de vários tipos de McMuffin, percorro
a rua com o olhar e reparo num grande cartaz impresso, tenuemente
iluminado pelo sol da manhã, anunciando uma aula de estudos bíblicos
intitulada «Compreender a Árvore Genealógica do Antigo Testamento».
Estou prestes a desviar o olhar quando um nome conhecido me chama a
atenção. Ocorre-me subitamente uma imagem, deixando-me de queixo
caído.
– O que estás a ver? – pergunta o Gavin. Volta a fechar o tampão do
depósito da gasolina e coloca-se ao meu lado, junto ao carro. Retira-me das
mãos as bebidas e o saco do McDonald’s e pousa-os sobre o tejadilho do
carro. – Parece que viste um fantasma.
– Repara naquele cartaz – digo.
– «Compreender a Árvore Genealógica do Antigo Testamento» – lê em
voz alta. – «De Abraão a Jacob e José, entre outros.» – Faz uma pausa. –
Sim, e então?
– José era filho de Jacob na Bíblia, não era? – pergunto.
O Gavin acena afirmativamente.
– Sim. E na Torá também, aliás. E ainda no Alcorão, creio. Penso que as
histórias de Abraão contadas no Antigo Testamento inspiram as três
religiões.
– As três religiões abraâmicas – murmuro, pensando nas palavras de
Elida. – Islão, judaísmo e cristianismo.
– Exatamente – diz o Gavin. Volta a olhar por instantes para o cartaz e
depois novamente para mim. – E então o que se passa, Hope? Porque
pareces tão assustada?
– A minha mãe chamava-se Josephine – digo em voz baixa. – Seria
apenas uma coincidência? Que o seu nome fosse idêntico ao do filho de
Jacob?
O Gavin parece ter uma revelação.
– Nos livros sagrados, José foi o único a dar seguimento ao legado dos
seus pais. Era por isso, aliás, que tinha de ser protegido. – Faz uma pausa. –
Estás a dizer-me que a tua mãe podia mesmo ser filha do Jacob?
Engulo em seco e olho fixamente o cartaz. Em seguida, abano a cabeça.
– Sabes que mais? Não, é um disparate. É só um nome. De qualquer
forma, as datas não batem certo. A minha mãe nasceu em 1944, bastante
tempo depois do último encontro entre a minha avó e o Jacob Levy. É
impossível.
Ergo os olhos para o Gavin, sentindo-me ridícula, mas,
surpreendentemente, ele mantém uma expressão séria.
– E se tiveres razão? – pergunta. – E se a tua mãe tiver nascido, de facto,
um ano antes? E se a tua avó e o teu avô tiverem subornado alguém que
pudesse falsificar a certidão de nascimento? Não devia ser nada de
extraordinário naquele tempo. Era um período de guerra. Alguns
funcionários de escalões mais baixos conseguiriam trocar facilmente os
documentos e destruir os originais. Era fácil fazê-lo, pois os registos não
estavam informatizados.
– Mas porque fariam eles isso?
– Para que o teu avô fosse oficialmente o pai – diz o Gavin. Fala agora
muito depressa, com os olhos cintilantes. – Para que a tua mãe nunca
tivesse qualquer dúvida. Para que a tua avó nunca tivesse de explicar a
ninguém quem era o Jacob. Disseste-me que apenas se mudaram para Cape
quando a tua mãe tinha cinco anos. No entanto, com essa idade, seria quase
impossível saber se lhe tinham retirado um ano, sobretudo se dissessem
apenas que ela era alta para a sua idade. E se ela tivesse mesmo seis anos?
Falta-me subitamente o ar.
– Isso não pode ser possível – sussurro. – A minha mãe era até parecida
com o meu avô. Cabelo castanho liso, olhos castanhos. Algumas expressões
semelhantes.
– Cabelo castanho e olhos castanhos são traços muito comuns – lembra
o Gavin. – E nós não sabemos sequer que aspeto tinha o Jacob, pois não?
– Creio que tens razão – murmuro.
– Tens de reconhecer que, se o Jacob fosse o pai da tua mãe, ficariam
esclarecidas muitas dúvidas. Como o que aconteceu ao bebé. E o facto de a
tua avó se ter casado logo após ter perdido o Jacob.
– Mas porque se casaria tão cedo? – pergunto. – Não entendo essa parte.
– Estava certamente convencida de que o Jacob já tinha morrido. Talvez
o teu avô fosse um homem bom que lhe oferecia a oportunidade de
sobreviver e de proporcionar uma vida real à sua filha. E talvez ela tenha
aproveitado essa oportunidade porque acreditava que era a atitude mais
correta.
– Estás a dizer que ela nunca amou verdadeiramente o meu avô? –
pergunto. Esta ideia faz-me sentir angustiada. – Que ele foi apenas um meio
para atingir um fim?
– Não, aposto que ela o amava – diz o Gavin. – Talvez tivesse por ele
um amor diferente do que sentira pelo Jacob. Mas ele proporcionou uma
boa vida à tua avó e à tua mãe.
– A vida que o Jacob desejaria que tivessem – acrescento.
– Sim – assente o Gavin.
– Mas, se isso for verdade, o que sobrava ao meu avô? – pergunto,
subitamente dominada pela tristeza. – Uma mulher que nunca o amou
verdadeiramente, como ele merecia?
– Talvez ele soubesse que o casamento seria assim – diz o Gavin – e a
amasse o suficiente para aceitar a situação. Talvez alimentasse a esperança
de que ela o viesse a amar. Talvez lhe bastasse tê-la consigo, saber que a
protegia, ser um pai para a sua filha.
Afasto o olhar. Gostaria de poder perguntar ao meu avô o que sentira
ele, se tinha racionalizado tudo isto, se o Gavin tem razão. Mas ele partiu há
muito. Interrogo-me se as respostas e os segredos que os meus avós
guardaram vão permanecer sepultados para sempre. Sei que isso acontecerá
se a Mamie nunca recuperar a consciência. Na verdade, ainda que o faça,
pode não ter qualquer recordação do sucedido.
– Achas que a minha mãe alguma vez descobriu? – pergunto. – Se isto
for verdade – acrescento de imediato.
– Quase apostaria que não – diz o Gavin quase num sussurro. – Parece-
me que a tua avó terá preferido deixar tudo para trás. Para sempre.
No caminho de regresso ao carro, apercebo-me de que estou a chorar.
Não sei ao certo quando surgiram as primeiras lágrimas, mas sinto-me
desesperada. Até há pouco tempo, a minha avó era apenas uma mulher
tristonha que, por mero acaso, nascera em França e fora dona de uma
confeitaria. Agora, à medida que vou revelando cada uma das facetas da
verdadeira Mamie, percebo que a sua mágoa era muito mais profunda do
que eu alguma vez podia imaginar. E passou a sua vida a fingir, enleada em
segredos e mentiras.
Desejo agora, mais do que nunca, que ela acorde, para eu lhe poder
dizer que não está sozinha e que a compreendo. Desejo ouvir a história
contada por ela pois, neste momento, ainda são muitas as conjeturas.
Percebo que já não sei de onde vim. De todo. Nunca conheci o lado paterno
da família – não sei sequer quem é o meu pai – e, ao que parece, tudo o que
eu sabia sobre o lado da minha mãe era mentira.
– Estás bem? – pergunta o Gavin, num tom terno. Ainda não ligou o
carro; está apenas ali sentado, vendo-me chorar.
– Já não sei quem sou – digo, após uma pausa.
Ele aquiesce, parecendo compreender as minhas palavras.
– Eu sei – diz com naturalidade. – Mas és a Hope. Só isso importa
verdadeiramente. – Apesar da inconveniente consola central do carro,
quando ele me puxa para si e me abraça, sinto-me no lugar mais natural e
confortável do mundo.
Quando me liberta, murmurando «É melhor irmos para não nos
atrasarmos muito», tenho a sensação de que passaram apenas alguns
segundos, embora o relógio me diga que ele me abraçou durante vários
minutos. Ainda assim, não me pareceram suficientes.
Só quando entramos na autoestrada, e eu vejo pela janela um tabuleiro e
copos a voar, percebo que deixámos a comida do McDonald’s no tejadilho.
Os risos que trocamos quebram a tensão e a melancolia.
– Pensando bem, eu nem tinha fome – diz o Gavin, olhando pelo
retrovisor. Imagino que aviste o resto do nosso pequeno-almoço espalhado
pela estrada.
– Nem eu – concordo.
Ele volta-se para mim e sorri.
– Para Nova Iorque?
– Para Nova Iorque.

Passa pouco das dez horas quando nos livramos finalmente do trânsito,
saindo da Franklin Roosevelt Drive em direção à Houston Street, em
Manhattan. O Gavin orienta-se agora pelo GPS, e eu olho em redor
enquanto ele serpenteia pelas ruas, evitando à justa os peões e os táxis
parados.
– Detesto conduzir em Nova Iorque – diz, mas com um sorriso.
– És um especialista – digo. Fiz um estágio de verão aqui, nos tempos
da universidade, e regressei posteriormente algumas vezes, mas há mais de
uma década que não visitava Nova Iorque. Tudo tem uma aparência
diferente. A cidade parece agora mais limpa.
– Segundo o GPS, estamos quase lá – anuncia o Gavin após alguns
minutos. – Vamos só procurar um sítio para estacionar.
Encontramos um parque, estacionamos e encaminhamo-nos para a
saída. Quando o Gavin recebe o talão do funcionário, eu mudo
nervosamente o peso do corpo de um pé para o outro. Estamos a apenas
alguns quarteirões da última morada conhecida do Jacob Levy. É possível
que estejamos frente a frente dentro de dez minutos.
O Gavin entrega-me um mapa que imprimiu a partir da Internet. Inclui
uma estrela que assinala a extremidade sul da Battery Place, e eu apercebo-
me, estremecendo, de que o Jacob vive muito perto do Ground Zero.
Interrogo-me se testemunhou a tragédia do 11 de Setembro. Pestanejo
algumas vezes e procuro acalmar-me. Olho para norte, para o espaço vazio
da linha do horizonte onde se erguia o World Trade Center, e sinto um
desalento profundo.
– Esta era a minha zona preferida da cidade – digo ao Gavin quando
começamos a caminhar. – Trabalhei aqui um verão, durante o curso, para
um escritório de advogados. Aos fins de semana, costumava apanhar o
metro nas linhas N ou R, ia até ao World Trade Center, bebia uma Coca-
Cola na zona da alimentação e, em seguida, descia a Broadway até ao
Battery Park.
– Oh yeah? – diz o Gavin, fazendo-me sorrir.
– Costumava olhar para a Estátua da Liberdade e pensar como o mundo
era enorme para lá da Costa Leste. Refletia sobre todas as opções que tinha,
todas as coisas que poderia ainda fazer com a minha vida. – Calo-me e
baixo os olhos.
– Devia ser agradável – diz o Gavin.
Abano a cabeça.
– Eu era uma miúda tonta – murmuro instantes depois. – Parece que a
vida não é tão maravilhosa como eu julgava.
O Gavin detém-se e coloca a mão no meu braço, forçando-me a parar
também.
– O que é que queres dizer?
Encolho os ombros e olho em meu redor. Sinto-me um pouco idiota, de
pé, num passeio de Manhattan, com o Gavin a fitar-me tão intensamente.
Porém, ele não desvia o olhar, aguardando a minha resposta, pelo que acabo
por levantar a cabeça.
– Esta não é a vida que pensei vir a ter – digo.
O Gavin abana a cabeça.
– Hope, isso nunca acontece. Sabes isso, não sabes? A vida nunca é o
que planeamos.
Solto um suspiro. Não espero que me entenda.
– Gavin, tenho trinta e seis anos, e nada do que desejei na vida se
concretizou – tento explicar. – Por vezes, quando acordo, penso Como vim
aqui ter? É como se, um belo dia, tivesse percebido que já não sou nova,
que já fiz as minhas escolhas e que é tarde de mais para mudar seja o que
for.
– Não é tarde de mais – diz o Gavin. – Nunca é. Mas conheço essa
sensação.
– Como? – replico num tom mais severo do que pretendia. – Tens vinte
e nove anos.
– Não há uma idade mágica em que ficamos sem opções – diz, após
uma risada. – Tens tantas possibilidades de mudar a tua vida como eu.
Estou apenas a dizer que ninguém vive a vida que imaginou. É a forma
como encaramos as adversidades que determina se somos felizes ou não.
– Tu és feliz – contraponho, percebendo, mais uma vez, que o meu tom
de voz sugere uma acusação em vez de uma afirmação. – Melhor dizendo,
pareces ter tudo o que queres.
Ele ri-se novamente.
– Hope, achas mesmo que, em criança, eu sonhava ser um faz-tudo?
– Não sei – murmuro. – Sonhavas?
– Não! Queria ser artista. Era o miúdo mais palerma do mundo;
costumava pedir insistentemente à minha mãe que me levasse ao Museu de
Belas-Artes, em Boston, para poder observar os quadros. Dizia-lhe que me
mudaria para França e seria pintor, como Degas ou Monet. Eram os meus
preferidos.
– Querias ser pintor? – pergunto, incrédula. Retomamos a nossa
caminhada em direção à possível morada do Jacob Levy. O Gavin ri-se
entre dentes e baixa os olhos para encontrar os meus.
– Tentei até entrar na SMFA.
– SMFA?
– Ah, vejo que não és grande apreciadora de Arte – diz o Gavin,
piscando-me o olho. – É a escola do Museu de Belas-Artes de Boston. –
Faz uma pausa e encolhe os ombros. – Tinha notas suficientes, um bom
portefólio, mas não tive direito a bolsas de estudo que chegassem para
pagar o curso. A minha mãe não tinha recursos suficientes e eu não queria
pedir não sei quantos empréstimos e endividar-me para o resto da vida. E
aqui estou.
– Então nunca tiraste um curso universitário?
– Ainda tirei – ri-se. – Estudei na Salem State University como bolseiro.
Formei-me em Educação, achando que, se não podia ser artista, conseguiria
pelo menos ser professor de Arte.
– Foste professor de Arte? – pergunto. O Gavin aquiesce e eu
acrescento: – E o que aconteceu? Porque já não és? – Mordo a língua,
evitando dizer que agora é apenas um faz-tudo.
Ele encolhe os ombros.
– Isso não me fazia feliz. Trabalhar com as mãos preenche-me muito
mais. Percebi que não poderia ser artista no sentido mais tradicional. Afinal,
com ou sem curso, não sou nenhum Miguel Ângelo. Mas senti que poderia
criar outras obras de arte se construísse coisas úteis para as pessoas.
– Mas tu consertas tubos e coisas assim – digo em voz baixa.
– Sim – ri-se. – Porque isso faz parte do meu trabalho. Mas também
construo terraços e pinto casas, instalo janelas e portadas e renovo cozinhas.
Posso embelezar o que me rodeia, e isso faz-me feliz. Penso que estou a
transformar a cidade numa gigantesca obra de arte, uma casa de cada vez.
Lanço-lhe um olhar incrédulo.
– Estás a falar a sério?
– Não era o que sonhava em miúdo – diz, encolhendo os ombros. – Mas
concluí que só me senti eu mesmo quando fui para Cape. A vida não
funciona como planeamos, mas talvez acabe por fazer sentido. Entendes?
Aceno lentamente com a cabeça.
– Acho que entendo, sim. – Ele tomou a decisão de procurar a sua
identidade e está satisfeito com o que encontrou. Pergunto-me se algum dia
conseguirei fazer o mesmo. Hoje, encaro a vida como uma série de portas
fechadas; nunca me havia ocorrido que, em alguns casos, me bastará abri-
las. – Não sabia nada disto a teu respeito – digo em voz baixa, após uma
pausa.
– Nunca perguntaste – diz com naturalidade. Eu baixo os olhos e engulo
em seco.
Chegamos finalmente à morada de Battery Place. Observo o edifício,
que exibe uma fachada de tijolo em estilo antigo e parece ter uns doze
andares. É ensombrado pelos edifícios a norte, mas possui uma qualidade
encantadora e tradicional. É com sobressalto que me apercebo pouco depois
de que me faz lembrar, de certo modo, os edifícios franceses.
– É aqui – diz o Gavin. Olha para mim, sorrindo. – Estás preparada?
Aceno que sim. O meu coração bate freneticamente. Mal posso crer que
podemos deparar-nos com o Jacob a qualquer momento.
– Estou preparada.
Segundo o pequeno papel de Elida, Jacob reside no apartamento 1004,
pelo que experimentamos tocar primeiro no respetivo botão. Não obtendo
resposta, o Gavin encolhe os ombros e carrega aleatoriamente nos restantes
botões até ouvirmos o zumbido da porta da frente.
– Voilà – diz ele, segurando a porta para me dar passagem.
No interior, percorremos o átrio pouco iluminado que conduz
diretamente a uma escadaria estreita. Olho em redor.
– Não há elevador? – pergunto.
O Gavin coça a cabeça.
– Não há elevador. Bolas, é mesmo estranho.
Iniciamos a subida e, chegados ao quinto andar, sinto-me envergonhada
quando dou por mim ofegante.
– Talvez devesse praticar mais exercício – observo. – Estou cansada.
Parece que nunca subi umas escadas.
O Gavin ri-se atrás de mim.
– Talvez. Podes estar cansada, não me parece que precises de fazer
muito exercício.
Olho para trás, com o rosto muito vermelho, e ele limita-se a abrir um
sorriso. Abano a cabeça e continuo a subir, mas sinto-me lisonjeada.
Alcançamos finalmente o décimo andar e eu, ansiosa por saber se o
Jacob ainda vive no prédio, não me dou ao trabalho de recuperar o fôlego
antes de bater à porta do número 1004. Ainda respiro com dificuldade
quando a porta se abre, revelando uma mulher sensivelmente da minha
idade.
– Posso ajudá-la? – pergunta ela, olhando alternadamente para o Gavin e
para mim.
– Procuramos Jacob Levy – diz o Gavin, percebendo certamente que eu
não consigo dizer seja o que for.
A mulher abana a cabeça.
– Não vive aqui ninguém com esse nome. Lamento.
Esta notícia é devastadora.
– Um homem com oitenta e muitos anos? Nascido em França?
– Não me diz nada – diz ela, encolhendo os ombros.
– Achámos que ele vivia aqui – diz o Gavin. – Pelo menos até há um
ano.
– O meu marido e eu mudámo-nos em janeiro – diz a mulher.
– Tem a certeza? – pergunto baixinho.
– Acho que repararia se tivéssemos um tipo qualquer a viver connosco –
resmunga, revirando os olhos. – De qualquer forma, podem perguntar ao
zelador. Ele vive no apartamento 102.
O Gavin e eu agradecemos-lhe e encaminhamo-nos de novo para as
escadas.
– Achas que percorremos estes quilómetros todos em vão? – pergunto
enquanto descemos.
– Não – diz o Gavin com firmeza. – Penso que o Jacob se mudou para
outro lugar e que nós o vamos encontrar hoje.
– E se ele tiver morrido? – arrisco. Procurei, enquanto foi possível,
excluir essa possibilidade, mas é irresponsável fazê-lo.
– O marido de Elida não tinha qualquer certidão de óbito – diz o Gavin.
– Temos de acreditar que ele ainda anda por aí.
Quando chegamos ao rés do chão, o Gavin bate à porta do apartamento
102. Como não obtemos resposta, entreolhamo-nos. O Gavin repete o gesto,
desta vez com mais vigor, e é um alívio ouvir, momentos depois, passos do
outro lado da porta. Quando ela se abre, vemos uma mulher de meia-idade
com rolos no cabelo e um roupão de banho.
– Que foi? – pergunta. – Não me digam que os canos do sétimo estão
rotos outra vez. Não sei resolver isso.
– Não, minha senhora – diz o Gavin. – Procuramos o zelador.
– É o meu marido – resmunga –, mas ele é, digamos, um inútil. De que
é que precisam?
– Procuramos a pessoa que morava no apartamento 1004 – digo. – Jacob
Levy. Pensamos que ele se mudou há cerca de um ano.
Ela franze o sobrolho.
– Sim. Mudou-se. E então?
– Precisamos de o encontrar – diz o Gavin. – É muito urgente.
Ela olha-nos com atenção.
– São das Finanças ou assim?
– Como? Não – asseguro. – Somos… – Não sei bem como continuar.
Como lhe posso explicar que sou a neta da mulher que ele amou há setenta
anos? Que posso até ser neta dele?
– Somos da família – atalha o Gavin espontaneamente. Acena na minha
direção. – Ela é da família.
Estas palavras partem-me o coração.
A mulher escrutina-nos por momentos e encolhe os ombros.
– Como queiram. Vou buscar a morada que ele nos deu.
O meu coração bate mais apressado quando ela se arrasta novamente
para o interior do apartamento. O Gavin e eu voltamos a trocar olhares, mas
sinto-me demasiado emocionada para dizer seja o que for.
A mulher reaparece instantes depois com um pequeno pedaço de papel.
– Jacob Levy. Caiu e partiu a anca no ano passado – diz. – Estava aqui
há vinte anos, sabem? Não temos elevador e, quando ele voltou do hospital,
não conseguia subir as escadas, com a anca e assim… Então, o senhorio
ofereceu-lhe o apartamento vago ali ao fim do corredor. O apartamento 101.
Mas o Mr. Levy queria uma casa com vista. Esquisitices, digo eu. Depois
vieram os novos inquilinos, no fim de novembro.
Ela entrega-me o pedaço de papel. A morada indica Whitehall Street e o
número de um apartamento.
– Pediu-nos para mandar o último recibo para essa morada – disse a
mulher. – Não faço ideia se ainda lá está. Mas foi para aí que se mudou.
– Obrigado – diz o Gavin.
– Obrigada – confirmo. Quando ela está prestes a fechar a porta, eu
estendo a mão para a deter. – Um momento – digo. – Só mais uma pergunta.
– Sim? – pergunta com um ar confuso.
– Ele era casado? – Sustenho a respiração.
– Não conheci nenhuma Mrs. Levy – diz a mulher.
Fecho os olhos, aliviada.
– Como… como era ele? – pergunto instantes depois.
Ela observa-me, desconfiada, mas acaba por se comover ligeiramente.
– Era simpático – acaba por dizer. – Sempre muito educado. Alguns dos
outros inquilinos tratam-nos como empregados. A mim e ao meu marido.
Mas Mr. Levy era muito simpático. Tratava-me sempre por «minha
senhora». Dizia sempre «por favor» e «obrigado».
Esta descrição faz-me sorrir.
– Obrigada – digo. – Obrigada por me ter contado isso.
Preparo-me para me afastar quando ela fala novamente.
– Mas parecia ser um homem muito triste.
– Triste? – pergunto.
– Sim. Todos os dias saía para dar um passeio e voltava à noite, depois
de escurecer, com ar de quem tinha perdido qualquer coisa.
– Obrigada – sussurro, dominada pela tristeza, quando nos voltamos e
nos dirigimos para a porta. Ao que parece, em todas aquelas noites em que
a Mamie se sentava à espera que surgissem as estrelas, o Jacob também
buscava alguma coisa.
Demoramos quinze minutos a fazer o percurso para leste, para a
Whitehall Street, e depois para sul, em direção à rua que a mulher do
zelador nos fornecera. Trata-se de um edifício de aspeto moderno que se
ergue sobre os que o circundam. Não tem porteiro, o que me deixa aliviada;
não teremos de explicar a nossa missão a mais uma pessoa.
– Apartamento 2232 – digo ao Gavin, enquanto nos dirigimos para os
elevadores.
As portas abrem-se e eu carrego no número 22, batendo
impacientemente com o pé no chão quando se voltam a fechar.
– Vá lá, vá lá, vá lá – murmuro quando o elevador inicia a sua lenta
subida. O Gavin procura a minha mão e aperta-a.
– Vamos encontrá-lo, Hope – afirma.
– Não sei como te agradecer tudo o que fizeste para me ajudar – digo,
fazendo uma pausa suficientemente longa para o olhar nos olhos e sorrir. Há
um momento em que tudo parece imóvel e eu tenho a certeza de que ele me
vai beijar, mas o elevador emite um tinido e as portas abrem-se. Chegamos.
Percorremos apressadamente o corredor, verificando as portas dos dois
lados, até chegarmos ao apartamento 2232. É o último apartamento do lado
direito do corredor e, enquanto o Gavin bate à porta, eu aproveito para olhar
pela janela onde termina o corredor. A vista é magnífica e inclui a parte sul
de Manhattan e a água que a rodeia. Não posso, porém, concentrar-me nisso
agora. Aproximo-me da porta e desejo muito que ela se abra.
Mas não obtemos resposta, não ouvimos passos no interior.
– Tenta de novo – digo. – O Gavin assente e bate novamente à porta,
desta vez de forma mais ruidosa. Nada. Tento manter uma réstia de
esperança. O que fazemos agora? – Mais uma vez – peço com voz débil.
Desta vez, o Gavin bate com tal estrondo que alguém abre uma porta do
outro lado do corredor. É uma mulher idosa que, de pé, nos olha fixamente.
– Que balbúrdia é esta? – pergunta, irritada.
– Peço desculpa, minha senhora – diz o Gavin. – Estamos a tentar
encontrar Jacob Levy.
– E não podem bater à porta como pessoas normais? – pergunta. – Têm
de derrubar a porta?
– Ninguém nos ouve – lamento, respirando fundo. – Ele ainda vive
aqui? Ele ainda é…? – A minha voz desvanece-se, mas é minha intenção
perguntar se ele ainda é vivo. É uma dúvida aflitiva.
– Acalmem-se – diz a mulher. – Eu não sei onde ele está. Nem sequer o
conheço. Agora, se não se importam, façam pouco barulho. Estou a tentar
ver televisão.
A porta fecha-se com estrondo antes de podermos dizer mais alguma
coisa. Sinto tremer as pernas e apoio-me na parede. O Gavin encosta-se ao
meu lado e coloca o braço sobre o meu ombro.
– Vamos encontrá-lo, Hope. Ele está aqui. Tenho a certeza.
Aceno que sim, mas não sou capaz de acreditar no que diz. E se, apesar
de todo o nosso esforço, tivermos chegado alguns meses atrasados? Olho
novamente pela janela ao fundo do corredor, procurando encontrar forças,
com os olhos turvados pelas lágrimas, na vista magnífica. Abaixo do
prédio, estendem-se alguns pequenos quarteirões de Manhattan até à
extremidade relvada do Battery Park. Mais adiante, entre as águas azuis e
profundas do porto de Nova Iorque, avisto a Governors Island, à esquerda, e
a Ellis Island, à direita. Interrogo-me se terá sido por ali que o Jacob e a
minha avó entraram no país. Para lá da Ellis Island, na Liberty Island, vejo
a Estátua da Liberdade erguendo bem alto a sua tocha. Vejo-a brilhar à luz
do sol e medito por instantes na liberdade que ela representa. Qual seria a
sensação de entrar nos Estados Unidos pela primeira vez, através da Ellis
Island, recebidos por um símbolo tão forte do que esta nação representa?
É então que, inesperadamente, me ocorre algo que me deixa de queixo
caído.
– Gavin – digo, agarrando-lhe o braço. – Sei onde ele está.
– O quê? – pergunta ele, atónito.
– Sei onde está o Jacob – digo. – A rainha. A rainha com a tocha. Meu
Deus, sei onde ele está!
Capítulo 25

Suspiros para o Pequeno-Almoço

Ingredientes
2 ovos (apenas as claras)
1/2 chávena de açúcar refinado
1 colher de chá de extrato de baunilha
1/2 chávena de pepitas de chocolate

Preparação
1. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
2. Numa tigela grande, bata vigorosamente as claras dos ovos
com uma batedeira manual até ficarem firmes.
3. Adicione o açúcar, dividido em oito partes, batendo
continuamente. Continue a bater até as pontas terem
consistência e não se fragmentarem.
4. Reduza a velocidade da batedeira para o valor mínimo e bata
a mistura adicionando a baunilha.
5. Junte lentamente as pepitas de chocolate com uma colher de
pau.
6. Utilizando uma colher de chá, coloque pequenas porções num
tabuleiro revestido de papel vegetal. Procure assegurar que
cada montinho tenha pelo menos uma pepita de chocolate. Os
montinhos devem preservar facilmente a sua forma.
7. Coloque o tabuleiro no forno e desligue-o imediatamente.
8. Deixe o tabuleiro no forno durante a noite. Não vale espreitar!
Quando acordar na manhã seguinte, abra o forno: os suspiros
estão cozidos e prontos a servir.

Rose

Em julho de 1980, Rose estava sentada, de olhos fechados, na sala


de estar da casa que Ted lhe oferecera. Lá fora, o calor era de tal forma
intenso que a brisa marítima que entrava suavemente pelas janelas não
era suficiente para a refrescar. Em dias como este, sonhava voltar a
Paris, recordando-se de que, mesmo quando o calor apertava, a cidade
parecia continuar a brilhar. Aqui, nada brilhava a não ser a água, e isso
constituía para Rose uma tentação cruel. Esse brilho atormentava-a,
lembrando-lhe que um qualquer barco navegando para leste era
suficiente para a levar até às praias distantes do seu país natal.
Sabia, contudo, que nunca poderia regressar.
Ouvia vozes alteradas na sala da frente. Queria levantar-se e pedir
que parassem de discutir, mas não conseguia. Não lhe competia fazê-lo.
Josephine contava já trinta e sete anos, o suficiente para não receber
ordens da mãe. Rose fora incapaz de proteger a filha, de lhe incutir
tudo aquilo a que está obrigada uma boa mãe. Se porventura pudesse
voltar atrás, as suas escolhas seriam diferentes. Não compreendera,
quando era mais nova, que o destino pode decidir-se num só momento,
que as decisões mais triviais podiam moldar a vida de cada um. Agora
já o sabia, mas era demasiado tarde; demasiado tarde para mudar o
que quer que fosse.
Ted surgiu depois na sala de estar. Rose ouviu os seus passos
pesados e confiantes, sentindo igualmente o aroma suave e doce dos
charutos que ele gostava de fumar no alpendre enquanto ouvia os
relatos dos jogos dos Red Sox.
– A Jo começou outra vez – disse ele. Quando Rose abriu os olhos,
viu-o fitá-la com uma expressão inquieta. – Não a ouves?
– Sim – limitou-se a dizer Rose.
Ted coçou a nuca e suspirou.
– Não entendo. Ela adora discutir com eles.
– Não a ensinei devidamente a amar – disse Rose em voz baixa. – A
culpa é minha. – Era por isso, sabia Rose, que Josephine afastava os
homens que a amavam. Porque Rose tinha mantido uma certa
distância entre elas. Porque Rose morria de medo de confiar na pessoa
que mais amava. Porque Rose sabia que as pessoas que amamos nos
podem ser inesperadamente arrancadas. Não eram esses os
ensinamentos que pretendera transmitir a Josephine, mas foram essas
as lições que ela aprendeu.
– Querida, a culpa não é tua – disse Ted. Ele sentou-se ao lado dela
no sofá e puxou-a para si. Ela respirou fundo e deixou-o abraçá-la.
Amava-o. Não como havia amado Jacob, nem a sua família em França,
de coração aberto. Depois de o seu coração se fechar, tonara-se
impossível sentir o mesmo. Porém, amava-o como sabia, consciente do
profundo amor que ele lhe dedicava. Consciente de que ele ansiava
transpor o fosso invisível que os separava. Ela gostaria de poder
explicar-lhe como o conseguir, mas ela própria o ignorava.
– É claro que a culpa é minha – disse Rose instantes depois.
Permaneceram algum tempo em silêncio enquanto Josephine gritava
ao namorado que, em todo o caso, ele a iria abandonar um dia, pelo
que não se dava ao trabalho de lhe conceder mais uma oportunidade. –
Ouve-a – acabou por dizer Rose. – As palavras dela poderiam ter saído
da minha boca.
– Que tolice. Nunca me afastaste daquela maneira – disse Ted. –
Não é esse o exemplo que lhe dás.
– Não – disse apenas Rose. Mas o que queria verdadeiramente dizer
é que nunca o afastara porque nunca o tinha sequer deixado
aproximar-se. Ela era um castelo protegido por várias linhas de defesa.
Ted apenas alcançara um outeiro após o primeiro fosso; havia muito
mais muros a escalar e muito mais batalhas a travar até abrir o seu
coração. Contudo, Ted não sabia. E era melhor assim.
Ambos olhavam pela janela quando Hope contornou a casa vinda
das traseiras, onde tinha estado a brincar entre as dunas. Rose estivera
atenta à neta – que tinha apenas cinco anos –, rogando que ela
permanecesse afastada tempo suficiente para não ouvir a discussão
entre a mãe e o mais recente homem que ela trouxera para a vida de
Hope.
– Vou mantê-la distraída – disse Ted, preparando-se para se
levantar.
– Não – interveio Rose. – Vou eu. Beijou Ted no rosto e encaminhou-
se para a porta. Hope voltou-se e os seus olhos iluminaram-se quando a
avó saiu em direção ao alpendre das traseiras. Por momentos, Rose não
conseguiu pronunciar uma palavra. O rosto de Hope assemelhava-se
bastante ao da Danielle do seu passado e, por vezes, era difícil a Rose
fitar a neta sem ver o passado, sem ver a irmã mais nova, cujo destino
ela não suportava sequer imaginar.
– Mamie! – chamou Hope com entusiasmo. Os seus caracóis
castanhos, muito semelhantes aos caracóis soltos que a própria Rose
exibira na sua juventude, dançavam ao sabor da brisa marítima, e os
seus extraordinários olhos verdes, da cor do mar, com pequenos pontos
dourados, brilhavam de excitação. – Apanhei um caranguejo, Mamie!
E dos grandes! Tinha pinças e tudo!
– Um caranguejo? – sorriu Rose, fitando a neta. – Muito bem! E o
que lhe fizeste?
Hope abriu um sorriso e pestanejou, olhando para a avó.
– Deixei-o ir embora, Mamie! Como me tinhas mandado!
– Eu mandei-te fazer isso?
Hope acenou que sim apenas uma vez, confiante.
– Disseste-me para não magoar pessoas nem estragar coisas se não
fosse preciso. E o caranguejo é uma pessoa.
Rose sorriu e inclinou-se para abraçar Hope.
– Fizeste muito bem, minha querida – disse. Ouvia elevarem-se as
vozes de Josephine e do namorado, que, dentro de casa, ainda
discutiam energicamente. Ela aclarou a garganta, na esperança de
bloquear o som. – Vamos ficar aqui fora um bocadinho – disse à neta. –
E se eu te contasse uma história?
Hope abriu um sorriso e deu uns quantos saltos durante alguns
momentos.
– Adoro as tuas histórias, Mamie! Podes contar-me a do príncipe
que ensina a princesa a ser valente?
– Claro que sim, querida. – Rose sentou-se numa espreguiçadeira,
virada para o oceano, e Hope subiu a custo para o seu colo, esticando as
pernas bronzeadas sobre os braços de madeira e aninhando a cabeça
no peito de Rose.
Em breve, seria demasiado crescida para o fazer. Rose desejou que
estes momentos se prolongassem eternamente pois, enquanto pudesse
ter a sua neta ao colo e contar-lhe histórias, conseguiria mantê-la
segura e protegida.
– Era uma vez, num reino distante, um príncipe e uma princesa que
se apaixonaram – começou. Enquanto pronunciava estas palavras tão
familiares, sentiu abrir-se o coração de forma dolorosa, quase aflitiva.
Compreendeu o que a levou a fugir de Paris, a virar costas a tudo o que
era seu. Esta menina que tem agora nos seus braços nunca existiria se
Rose tivesse permanecido no seu país e aceitado o seu destino. Percebeu
naquele momento que tinha agido corretamente. Sucede apenas que, na
vida, não há decisões perfeitas. Pelo menos as grandes decisões. Era
impossível encontrar uma explicação para o preço que foi preciso
pagar. Absolutamente impossível.
– Continua, Mamie, conta mais! – pediu Hope, saltitando no colo da
sua avó, quando Rose interrompeu a história que as duas conheciam.
Rose afagou com ternura o cabelo da neta e sorriu-lhe.
– Bom, o príncipe disse à princesa que ela devia ser valente e agir
corretamente, por muito difícil que isso fosse.
– É como me dizes sempre, Mamie! – interrompeu Hope. – Agir
corretamente! Mesmo quando é difícil!
– Exatamente – assentiu Rose. – Deves sempre agir corretamente. O
príncipe disse à princesa que tinha de a salvar para fazer o que era
mais correto. Mas, para a salvar, teve de a enviar para um lugar muito
distante, para as praias de um reino mágico. Ora, a princesa nunca
tinha estado neste reino mágico, pois era distante, ficava para lá do
grande oceano, mas havia sonhado muitas vezes com ele. Ela sabia que,
naquele grande reino, mandava uma rainha, que espalhava a sua luz
por todo o mundo.
– Mesmo à noite? – perguntou Hope, apesar de ter ouvido a história
dezenas de vezes.
– Mesmo à noite – assegurou-lhe Rose.
– Como o candeeiro que me ajuda a dormir – disse Hope.
– Sim, era muito semelhante – disse Rose, sorrindo. – Porque, com a
luz, todas as pessoas se sentiam seguras. Tal como o teu candeeiro te faz
sentir segura.
– A rainha devia ser simpática.
– Era uma rainha muito amável – garantiu Rose à neta. – Muito
bondosa e justa. A princesa sabia que, se alcançasse aquele reino,
estaria em segurança e que, um dia, o príncipe viria procurá-la ali.
– Porque prometeu – disse Hope.
– Sim, porque prometeu – disse Rose suavemente. – Prometeu que
se encontraria com ela junto ao fosso que protegia o grande trono da
rainha e onde a sua luz brilhava. Assim, a princesa atravessou o oceano
para chegar ao reino da rainha sábia. Ali, sentiu-se finalmente a salvo.
Enquanto a princesa esperava o príncipe, conheceu um feiticeiro forte e
bondoso, que percebeu que ela era princesa, apesar de ela vestir trajes
humildes. Disse à princesa que a amava e que a protegeria até ao fim
da sua vida.
– E o príncipe? – indagou Hope. – O príncipe virá?
Rose já esperava esta pergunta, que a neta nunca deixava de fazer.
Hope crescia num país que acreditava na felicidade eterna. Com cinco
anos, era muito nova para perceber que essa felicidade apenas existia
nos contos de fadas. Contudo, Rose procurou não perder de vista que
este era um conto de fadas. Deu, portanto, a única resposta que
conhecia, pois, de vez em quando, também precisava de acreditar em
mundos encantados.
– Sim, querida – disse Rose, procurando conter as lágrimas e
puxando a neta um pouco mais para si. – O príncipe virá. Um dia, a
princesa vai voltar a vê-lo.
Capítulo 26

– Aonde vamos? – pergunta o Gavin, seguindo-me até à rua. Desato


numa correria na Whitehall e atraio olhares curiosos de transeuntes. Um
casal de turistas, equipados com as suas camisolas «I Love New York» e
máquinas fotográficas, viram a cabeça, apontam e tiram fotografias. Ignoro-
os e corto à direita na State Street. O Gavin acelera o passo e aparece ao
meu lado. – Hope, o que se passa?
– O Jacob está no Battery Park – digo, sem abrandar o ritmo. Passamos
por um edifício colonial de fachada em tijolo, e noto que se trata de uma
igreja católica. Pergunto-me, fugazmente, se o Jacob alguma vez sonhara
que a Mamie assumiria a condição de muçulmana, e mais tarde de católica,
e que todas as suas imagens de Deus se entrelaçariam de forma tão
harmoniosa.
– Como sabes que ele está lá? – pergunta o Gavin. Detemo-nos por
causa do trânsito, mas logo nos precipitamos, através da State, para o amplo
espaço verde do Battery Park.
– A resposta estava nas histórias da minha avó – digo. Estou ansiosa por
atravessar a State de uma vez, mas o Gavin, adivinhando porventura a
minha impaciência, coloca a mão sobre o meu braço até avistar um espaço
entre a torrente de carros.
Apesar do seu ar desconcertado, é ele que me conduz enquanto
atravessamos a estrada. Volta depois a seguir-me na minha corrida entre
turistas errantes, artistas de rua e vendedores de comida até às sólidas
grades pretas que, na orla da ilha, protegem os transeuntes da água. Coloco
as mãos no metal frio e observo, do outro lado das águas agitadas que nos
separam, a Estátua da Liberdade, voltada para sudoeste, para a entrada do
porto de Nova Iorque. O seu rosto seria o primeiro avistado pelos
imigrantes quando vislumbravam a ilha de Manhattan.
– Afinal, o Jacob esteve sempre nas histórias da minha avó – murmuro,
olhando fixamente a estátua, que tantas vezes contemplei durante o verão
que passei em Nova Iorque, sem nunca me dar conta de que a reconhecia
dos contos da Mamie.
Desvio o olhar da Estátua da Liberdade e observo toda a extensão do
gradeamento, primeiro para a esquerda e depois para a direita. O passeio
está inundado de turistas, mesmo num dia frio de outono em que o vento
sopra sem piedade vindo do mar. Por momentos, sinto algum desânimo.
Talvez seja impossível encontrá-lo entre todas estas pessoas.
O Gavin mantém-se em silêncio; parece compreender que estou perdida
no meu mundo. Porém, quando começo a recear, angustiada, ter-me
enganado, sinto os seus dedos gentilmente entrelaçados nos meus, e seguro-
os com uma violência que me surpreende. Não quero largar a sua mão.
Quando estou prestes a admitir que talvez esteja errada, avisto-o entre a
multidão. Sem libertar a mão do Gavin, começo a caminhar para a direita,
entre a fila de bancos e o comprido e cintilante gradeamento. Não sei o que
me transmite a convicção de o ter encontrado, de ter encontrado o Jacob,
mas não preciso sequer de ver o seu rosto para ter a certeza. Tem uma
bengala encostada ao seu lado e bate ritmadamente com os dedos da mão
esquerda no parapeito de uma grade, como a minha filha faz distraidamente.
– É ele – digo ao Gavin.
O homem fita a Estátua da Liberdade como se não conseguisse afastar o
olhar. O seu cabelo, da cor da neve, denuncia alguma calvície, e ele veste
um sobretudo comprido e escuro que, por qualquer motivo, me parece
majestoso.
– O príncipe – murmuro, mais para mim mesma do que para o Gavin.
Quando estamos a apenas alguns metros de distância, ele volta-se de
repente e olha diretamente para mim. Nesse instante, dissipa-se qualquer
dúvida mais persistente. É ele.
Permanece imóvel, com uma expressão incrédula. Eu também me
detenho, e fitamo-nos. Ele assemelha-se muito à Annie; todas as suas
feições, cuja origem o Rob questionou, estão no rosto dele. O mesmo nariz
estreito, aquilino. O mesmo queixo com uma covinha. A mesma testa alta,
lisa. E, enquanto nos fitamos, reconheço outro traço: por detrás dos seus
óculos de armação escura, tem os meus olhos, os tais olhos da cor do mar
com os pontos dourados que, como a Mamie me costumava dizer, eram o
que ela mais gostava de ver no mundo.
– Jacob Levy – digo com suavidade. Trata-se de uma afirmação, não de
uma pergunta, tal é a minha convicção. Ao meu lado, sinto o Gavin agarrar-
me a mão quando se apercebe, pouco depois de mim, do quanto o Jacob é
parecido com a minha filha e do que isso significa.
O Jacob acena lentamente que sim, ainda sem desviar o olhar.
– Chamo-me Hope – digo-lhe em voz baixa. Aproximo-me
ligeiramente. – Neta da Rose.
Os seus olhos enchem-se de lágrimas.
– Ela sobreviveu – murmura. Confirmo com um aceno lento, e o Jacob
aproxima-se, observando-me. Liberto a minha mão da do Gavin e avanço
em direção ao Jacob, até estarmos separados apenas por uns trinta
centímetros. Ele estende a mão e, lentamente, hesitantemente, tenta tocar-
me no rosto. Aproximo-me até sentir a sua mão, rugosa e um tanto
deformada, mas mais delicada do que qualquer outra que tenha sentido na
minha vida. – Ela sobreviveu – repete.
E depois abraça-me. Noto que ele treme quando começa a soluçar.
Retribuo o abraço e rendo-me às minhas próprias lágrimas. Sinto que
seguro uma parte do passado, aquela que dá sentido a tudo. Estou a abraçar
o grande amor da vida da minha avó, com setenta anos de atraso. E, a não
ser que esteja louca, que tenha sonhado ver neste homem traços da minha
filha e os meus olhos, estou a abraçar o avô que não sabia ter.
– Ela ainda está viva? – pergunta depois de se afastar. – A Rose está
viva? – Há pequenos sinais de pronúncia francesa nas suas palavras; fala de
um modo muito semelhante à Mamie. Continua a segurar com firmeza os
meus braços, como se tivesse receio de cair se me libertar. Já rolam
lágrimas pelo meu rosto, cada vez mais molhado.
Aceno afirmativamente.
– Ela sofreu um AVC. Está em coma. Mas está viva.
Ele sobressalta-se e pestaneja algumas vezes.
– Hope – diz. – Tens de me levar até ela. Tens de me levar até à minha
Rose.
Capítulo 27

O Jacob recusa passar pelo seu apartamento para fazer a mala; insiste
em que cheguemos a Cape Cod o quanto antes, sem desperdiçar um minuto
que seja.
– Preciso de a ver – diz, olhando alternadamente, com ar angustiado,
para o Gavin e para mim. – Preciso de a ver o mais depressa possível.
Espero ao lado dele a chegada do Gavin, que se apressou a ir buscar o
jipe; devido a uma prótese na anca, o Jacob não está apto para grandes
correrias. Enquanto aguardamos, na parte norte do Battery Park, junto à
estrada, ele fita-me como se tivesse visto um fantasma. Tenho muitas
perguntas para lhe fazer, mas quero que o Gavin esteja presente para as
ouvir.
– És minha neta – diz o Jacob delicadamente enquanto aguardamos. –
Não és?
Aceno lentamente com a cabeça.
– Penso que sim. – Tudo isto me provoca uma sensação estranha; é-me
impossível não pensar no homem que toda a vida tratei por avô. Tudo isto é
muito injusto para com ele. Concluo, porém, que ele sempre soube o que
sucedera; tivera de fazer a escolha consciente de perfilhar a minha mãe
como se fossem do mesmo sangue, sabendo que o não eram.
– É muito parecido com a minha filha – reconheço.
– Tens uma filha?
– Sim – confirmo. – Chama-se Annie. Tem doze anos.
O Jacob segura a minha mão e olha-me nos olhos.
– E o teu pai ou a tua mãe? O filho que a Rose teve? Era um rapaz ou
uma menina?
Ocorre-me pela primeira vez como é trágico o facto de a minha mãe ter
morrido antes de conhecer o Jacob, provavelmente sem saber sequer que ele
existia. É desolador perceber que o Jacob, por sua vez, nunca verá a filha
que salvou à custa de tudo quanto possuía.
– Uma menina – digo serenamente. – Josephine.
José, o filho de Jacob, teve de ser salvo para preservar o legado.
Recordo-me do cartaz que vimos na igreja, junto à I-95, e estremeço. A
verdade esteve sempre por perto.
– Josephine – repete o Jacob lentamente.
– Morreu há dois anos – acrescento ao fim de alguns segundos. – De
cancro da mama. Sinto muito.
O Jacob emite o som de um animal ferido e arqueia ligeiramente o
corpo, como se algo invisível lhe tivesse aplicado um soco no estômago.
– Santo Deus – murmura instantes depois, endireitando-se novamente. –
Lamento muito a tua perda.
– E eu a sua – digo, com lágrimas nos olhos. – Não consigo dizer-lhe
quanto. – Os setenta anos perdidos. O facto de ele nunca ter conhecido a
sua filha. A circunstância de, até este momento, ele ignorar que a Rose
tinha sobrevivido.
Surge então o Gavin, que encosta junto ao passeio e sai para vir ter
connosco. Entreolhamo-nos enquanto ajudamos o Jacob a sentar-se no
banco de trás. Sento-me depois ao lado do Gavin que, depois de verificar os
retrovisores, arranca apressadamente.
– Tentaremos que o senhor chegue a Cape o mais depressa possível –
diz o Gavin, olhando pelo espelho para o Jacob, que ergue os olhos para o
observar.
– Obrigado, jovem – diz o Jacob. – Posso perguntar-lhe quem é ao
certo?
Rio-me, libertando a tensão, quando me apercebo de que não lhe
apresentei o Gavin. Faço-o rapidamente, explicando ter sido ele a iniciar
toda esta investigação, além de me ter ajudado hoje na minha procura.
– Obrigado por tudo, Gavin – diz o Jacob após o meu esclarecimento. –
É marido da Hope, então?
O Gavin e eu olhamo-nos, constrangidos, e eu sinto-me corar.
– Bom… Não, senhor – respondo. – É apenas um bom amigo. – Volto-
me novamente para o Gavin, mas ele limita-se a olhar em frente,
concentrado na estrada.
Mantemo-nos em silêncio enquanto percorremos a West Side Highway,
cruzamos a zona norte do Harlem pela I-95 e atravessamos a ponte para sair
de Manhattan.
– Posso fazer-lhe uma pergunta, Mr. Levy? – pergunto, voltando-me
para trás.
– Chama-me Jacob, por favor – diz. – É claro que também me podes
chamar avô, mas provavelmente ainda é muito cedo para ti.
Engulo em seco. Compadeço-me do homem que sempre tratei por avô.
Gostaria de ter sabido a verdade quando ele era vivo. Gostaria de lhe ter
agradecido tudo o que terá feito para salvar a minha avó e a minha mãe.
Gostaria de ter percebido mais cedo tudo o que ele deve ter perdido nesse
caminho.
– Jacob – digo, após uma pausa. – O que aconteceu em França? Durante
a guerra? A minha avó nunca nos falou sobre esse período; aliás, só há
algumas semanas ficamos a saber que ela era judia.
O Jacob parece aturdido.
– Como foi isso possível? Qual era a história em que acreditavam?
– Quando veio de França – explico-lhe – o seu nome oficial era Rose
Durand. Desde que me lembro que ela segue a igreja católica.
– Mon Dieu – murmura o Jacob.
– Eu nunca soube o que lhe aconteceu durante o Holocausto – continuo.
– Nunca nos falou sobre a família. Sobre si. Manteve tudo em segredo até
há algumas semanas, quando me entregou uma lista de nomes e me pediu
que fosse a Paris. – Descrevo-lhe sucintamente a minha visita a Paris, a
descoberta do Alain, a viagem dele comigo para os Estados Unidos. Os seus
olhos iluminam-se.
– O Alain está aqui? – inquire. – Nos Estados Unidos?
– Sim – confirmo. – É provável que esteja com a minha avó neste
preciso momento. – Ocorre-me que tenho de telefonar ao Alain e à Annie,
que tenho de lhes contar que encontrámos o Jacob. Contudo, por agora,
quero desesperadamente ouvir esta história.
– Importa-se de nos contar o que aconteceu? Há muitas coisas que
desconheço.
O Jacob assente mas, em vez de falar, olha pela janela. Mantém-se em
silêncio durante bastante tempo, mas eu continuo voltada para trás, fitando-
o. O Gavin observa-me.
– Sentes-te bem? – pergunta ele em voz baixa.
Aceno que sim e sorrio, concentrando-me novamente no banco de trás.
– Jacob? – digo serenamente.
Ele parece sair do seu transe.
– Sim, peço desculpa. Estou apenas atónito. – Aclara a garganta. – O
que pretendes saber, querida Hope?
A forma como ele me fita é tão afetuosa que me enche, em simultâneo,
de melancolia e felicidade.
– Tudo – murmuro.
E assim o Jacob começa a contar a sua história. Explica-nos como
conheceu a minha avó e o Alain no Jardin du Luxembourg, na véspera de
Natal de 1940, e declara-nos que, quando a viu pela primeira vez, soube que
ela era o amor da sua vida. Diz-nos que, por essa altura, já colaborava com
a Resistência, pois o seu pai também estava envolvido e ele acreditava que
cabia aos judeus salvarem-se a si mesmos. Conta-nos ainda que ele e a
minha avó idealizavam frequentemente um futuro juntos na América, onde
poderiam viver em segurança e liberdade, onde as pessoas não eram
perseguidas devido à sua religião.
– Parecia-nos um lugar mágico – diz, olhando pela janela. – Sei que, no
mundo de hoje, os jovens tomam a liberdade como garantida. Tudo o que
têm ao vosso dispor, todas as liberdades de que desfrutam, nascem
convosco. No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial, não tínhamos
direitos. Durante a Ocupação alemã, nós, judeus, éramos considerados
inferiores, vermes, pelos alemães e também por alguns franceses. Rose e eu
sonhávamos com um lugar onde isso nunca aconteceria e, nos nossos
planos, a América era o sítio ideal. Era a materialização do sonho.
Planeávamos vir juntos, constituir família.
»Mas depois fomos atingidos por aquela noite terrível. A família de
Rose não acreditava no que dizíamos, não acreditava que uma prisão em
massa dos judeus se iria concretizar. Insisti em que ela viesse comigo, para
proteger o nosso filho. Estava grávida de dois meses e meio. O médico
confirmara-o. Ela sabia, tão bem como eu, que o mais importante era salvar
o nosso filho, o nosso futuro. Assim, Rose fez a escolha mais difícil mas, na
verdade, inevitável. Procurou refúgio.
Sinto-me começar a tremer. As palavras do Jacob, com a sua melodiosa
pronúncia francesa, e a emoção da história permitem-me acompanhar os
acontecimentos quase como se assistisse a um filme.
– Na Grande Mesquita de Paris?
O Jacob parece surpreendido.
– Estás mesmo bem informada – diz, fazendo depois uma pausa. – A
ideia foi do meu amigo Jean Michel, que lutava comigo na Resistência. Ele
já tinha ajudado várias crianças órfãs a fugir através da mesquita depois de
os seus pais serem deportados. Sabia que os muçulmanos salvavam judeus,
embora acolhessem sobretudo crianças. No entanto, Rose estava grávida e
era, ela própria, muito jovem. Assim, quando Jean Michel contactou os
líderes da mesquita e pediu ajuda, eles aceitaram ajudar-nos.
»A ideia era deixá-la na mesquita, onde eles a fariam passar por
muçulmana durante algum tempo, talvez algumas semanas, eventualmente
um mês, até ser seguro retirá-la de Paris. Em seguida, viajaria
clandestinamente, com dinheiro que entreguei ao Jean Michel, para Lyon,
onde a Amitié Chrétienne, a Irmandade Cristã, lhe daria documentos falsos
e a enviaria mais para sul, possivelmente para um grupo chamado Œuvre de
Secours aux Enfants, ou Organização de Assistência a Crianças. Ajudavam
sobretudo crianças judias a chegar a países neutros, mas nós sabíamos que,
muito provavelmente, aceitariam e apoiariam Rose, pois ela tinha apenas
dezassete anos e estava grávida. Contudo, a partir daí, não sei ao certo o que
aconteceu nem como conseguiu escapar. Sabes alguma coisa a esse
respeito?
– Não – digo-lhe. – Mas acredito que ela tenha conhecido o meu avô
quando ele combateu na Europa. Imagino que ele a tenha trazido para os
Estados Unidos.
O Jacob parece sentir um golpe.
– Casou-se com outra pessoa – diz lentamente. Em seguida, aclara a
garganta. – Pensando bem, ela acreditava certamente que eu tinha morrido.
Eu pedi-lhe que fizesse tudo o que fosse preciso para sobreviver e para
proteger o bebé. – Faz uma pausa e pergunta: – É um homem bom? O
homem com quem ela casou?
– Era um homem muito bom – digo suavemente. – Morreu há muito
tempo.
O Jacob assente e baixa os olhos.
– Sinto muito.
– E o que lhe aconteceu a si? – pergunto após uma longa pausa.
O Jacob olha demoradamente pela janela.
– Fui buscar a família da Rose. Ela tinha-mo pedido mas, na verdade, eu
iria de qualquer maneira. Sonhava com um dia em que todos pudéssemos
estar juntos, sem a sombra dos nazis. Acreditava que os podia salvar, Hope.
Era jovem e ingénuo.
»Cheguei a meio da noite. Todas as crianças dormiam. Bati
discretamente à porta, e foi o pai da Rose que a abriu. Mal me olhou,
percebeu o que se passava. “Ela já partiu, não é verdade?”, perguntou-me.
Eu disse que sim, que a tinha levado para um lugar seguro. Ele fitou-me
com um ar de profunda desilusão. Ainda me recordo do seu rosto quando
disse, “Jacob, és um irresponsável. Se tiveres provocado a sua morte, nunca
te perdoarei.”
»Tentei convencê-lo, em vão, durante uma hora. Expliquei-lhe que a
rusga teria início algumas horas depois. Disse-lhe que, segundo o jornal
Université Libre, havia registos de aproximadamente trinta mil judeus,
residentes em Paris, entregues aos alemães algumas semanas antes.
Informei-o dos avisos emitidos pelos comunistas judeus, que falavam em
extermínio, e assegurei-lhe que tínhamos de evitar, a todo o custo, ser
presos.
»Ele abanou a cabeça e voltou a chamar-me irresponsável. Ainda que os
rumores fossem verdadeiros, dizia ele, apenas seriam levados os homens. E
certamente apenas os imigrantes. Por conseguinte, acreditava que a sua
família não estava efetivamente em perigo. Assegurei-lhe que desta vez,
segundo as informações de que eu dispunha, não seriam apenas os homens
nem apenas os imigrantes. Além disso, visto que a mãe de Rose nascera na
Polónia, algumas autoridades considerariam os seus filhos estrangeiros.
Não podíamos correr esse risco. Mas ele não quis saber.
O Jacob suspira e interrompe a sua história. Olho para o Gavin e,
quando ele se volta para mim, revela um rosto pálido e triste. Vejo lágrimas
também nos seus olhos. Instintivamente, estendo a mão e coloco-a sobre a
sua mão direita, que descansa sobre a perna. Por momentos, parece
surpreendido, mas depois sorri, entrelaça os seus dedos nos meus e aperta-
os suavemente. Pestanejo algumas vezes e viro-me para o banco de trás,
para o Jacob.
– Não podia ter feito mais nada – digo-lhe. – Tenho a certeza de que a
minha avó sabia que tinha tentado. E tentou.
– Sim – concorda o Jacob. – Mas não fiz o suficiente. Eu estava
convencido de que a prisão em massa ia mesmo acontecer, mas não
transmiti confiança suficiente para persuadir o pai da Rose. Tinha apenas
dezoito anos, sabes? Era um rapaz. E, naquele tempo, um rapaz não
conseguia impor as suas ideias a um homem mais velho. Penso muitas
vezes que, se me tivesse esforçado um pouco mais, os poderia ter salvado a
todos. Mas a verdade é que eu sabia que os rumores podiam ser falsos, pelo
que não falei com a convicção necessária. Nunca me perdoarei por não ter
sido mais insistente.
– A culpa não é sua – murmuro.
O Jacob abana a cabeça e baixa os olhos.
– É, querida Hope. Eu prometi à Rose que os manteria a salvo. E não o
fiz. – Articula um som abafado e volta novamente a olhar pela janela. – Os
tempos eram outros – continua o Jacob após uma longa pausa. – Mas era
minha responsabilidade fazer algo mais. – Solta um suspiro longo e pesado
e prossegue a sua história. – Depois de sair da casa da Rose, fui até minha
casa. Estavam lá os meus pais, bem como a minha irmã mais nova, de
apenas doze anos. O meu pai sabia, tão bem como eu, o que se avizinhava,
e estava preparado. Fomos até ao restaurante de um amigo, no Quartier
Latin, que aceitara esconder-nos na cave. Eu podia também ter levado a
Rose, mas os riscos eram enormes; em breve, começar-se-ia a notar a
gravidez, e eu sabia que, se ela fosse presa, a matariam muito rapidamente.
Por esse motivo, tive de a retirar de França, colocá-la em algum lugar onde
os alemães nunca a pudessem encontrar.
»Entretanto, o meu pai e eu concluímos que a solução mais segura para
a nossa família consistia em esperarmos pacientemente a rusga, num
esconderijo, e depois retomarmos a nossa vida, prestando sempre atenção a
tudo o que ouvíamos para sabermos quando viriam os alemães. Naquela
noite, em quase todo o dia seguinte e ainda num terceiro dia, estivemos
escondidos numa divisão minúscula da cave do restaurante, receando
sermos descobertos. No final do terceiro dia, saímos, famintos e exaustos,
convencidos de que o pior já tinha passado.
»Eu queria muito visitar a Grande Mesquita de Paris, para onde sabia
que a Rose tinha sido levada. Mas o meu pai não mo permitiu. Recordou-
me que, se o fizesse, colocaria em risco a Rose e todas as outras pessoas
que lá estavam. Consegui apenas saber, através do meu amigo Jean Michel,
que ela ainda estava em segurança. Pedi-lhe que lhe dissesse que eu estava
bem, que iria ter com ela em breve, mas não sei se ela chegou a receber esta
mensagem. Passados apenas dois dias, a polícia francesa apareceu-nos à
porta para nos deter, a mim e ao meu pai. Sabiam que eramos membros da
Resistência, e era assim que nos puniam.
»Também levaram a minha irmã e a minha mãe, e, em Drancy, o campo
de trânsito situado nos arredores de Paris, separaram-nos, colocando-nos em
dormitórios diferentes. Nunca mais as vi, embora viesse a saber mais tarde
que haviam sido deportadas para Auschwitz, tal como o meu pai e eu.
Por momentos, ficamos todos em silêncio, e eu noto que, lá fora, o sol
parcialmente encoberto cria extensas sombras sobre os campos de cultivo
em ambos os lados da interestadual. Dá-me a volta ao estômago pensar no
Jacob arrastado para um campo de morte. Engulo em seco.
– O que aconteceu à sua família? – pergunta o Gavin em voz baixa. O
Gavin aperta a minha mão e olha-me com preocupação. O Jacob respira
fundo.
– A minha mãe e a minha irmã não sobreviveram à seleção inicial em
Auschwitz. A minha mãe era frágil, franzina e doente, e a minha irmã era
pequena para os seus doze anos, tendo sido considerada, provavelmente,
inapta para o trabalho. Foram levadas diretamente para a câmara de gás.
Quero acreditar que não perceberam o que lhes estava a acontecer. Mas
receio que pelo menos a minha mãe soubesse o suficiente para compreender
o que se passava. Imagino que tenha ficado aterrorizada.
Ele faz uma pausa para se recompor. Incapaz de dizer uma palavra,
limito-me a esperar que continue.
– O meu pai e eu fomos enviados para os dormitórios – prossegue. – No
início, tentámos encorajar-nos o mais possível. Mas, pouco depois, ele ficou
muito doente. Surgira uma epidemia em Auschwitz. De tifo. O meu pai
começou por ter calafrios durante a noite, ficando muito frágil e a tossir
muito. Os guardas obrigavam-nos a sair para trabalhar e, apesar de eu e os
outros prisioneiros tentarmos facilitar-lhe as tarefas, a doença foi uma
sentença de morte. Sentei-me ao seu lado na última noite, enquanto a febre
o consumia. Morreu num dia de outono de 1942. Era já impossível
sabermos em que dia, semana ou mês estávamos, pois, em Auschwitz, o
tempo deixou de existir em todos os sentidos que normalmente lhe
atribuímos. Sei apenas que morreu antes do aparecimento da neve.
– Sinto muito – consigo, por fim, dizer. Sinto que as minhas palavras
são dolorosamente insuficientes.
O Jacob acena lentamente com a cabeça e olha pela janela por
momentos antes de se voltar de novo na nossa direção.
– No final, ele estava em paz. Nos campos, quando as pessoas morriam,
tinham uma expressão de crianças adormecidas, inocentes, finalmente
imperturbáveis. Aconteceu o mesmo com o meu pai. Fiquei feliz por ver o
seu rosto assim, pois sabia que ele estava enfim livre. No judaísmo, a ideia
que temos do céu é mais indefinida do que no cristianismo. Mas eu
acreditava e acredito que, de alguma forma, o meu pai reencontrou a minha
mãe e a minha irmã. E isso conforta-me até hoje. A ideia de eles se terem
reunido, de estarem juntos outra vez. – Ele esboça um sorriso amargo, triste.
– Havia uma inscrição em Auschwitz onde se lia «O trabalho liberta». No
entanto, a verdade é que só a morte nos libertava. E a minha família estava
finalmente livre.
– Como conseguiu sobreviver? – pergunta o Gavin. – Deve ter estado
em Auschwitz… mais de dois anos?
O Jacob confirma.
– Quase dois anos e meio. Mas a verdade é que não tinha alternativa.
Prometera à Rose ir buscá-la. E não podia, não iria, quebrar essa promessa.
Após a libertação, fui procurá-la. Tinha a certeza de que estaria novamente
com ela, de que nos reencontraríamos, de que poderíamos educar o nosso
filho juntos, de que seria possível termos mais filhos e, de uma maneira ou
de outra, fugir das sombras da guerra.
Profundamente comovidos, ouvimos o Jacob contar que regressou a
Paris e procurou desesperadamente Rose, acreditando do fundo do coração
que ela sobrevivera. Ele fala-nos do desespero que sentiu por não a ter
encontrado, das conversas que teve com o Alain, que, sozinho e à deriva,
depois de perder toda a sua família, recebia apoio de uma organização
internacional para sobreviventes do Holocausto.
– Vim finalmente para a América – diz –, porque foi aqui que a Rose e
eu prometemos reencontrar-nos. Eu estava a tentar cumprir a minha parte da
promessa, como imaginam. E assim, todos os dias, nos últimos cinquenta e
nove anos, esperei naquela extremidade do Battery Park. Foi ali que
combinámos encontrar-nos. Sempre acreditei que ela viria.
– Foi lá todos os dias? – pergunto.
– Quase – sorri o Jacob. – Eu tinha um emprego, naturalmente, mas ia
até ao parque antes e depois do trabalho. Só não esperei no parque quando
fraturei a anca e tive de repousar algum tempo, bem como nos dias que se
seguiram ao 11 de Setembro, em que era impossível entrar na zona. Aliás,
eu estava no parque, quando o primeiro avião atingiu o World Trade Center.
– Após alguns momentos de silêncio, acrescenta: – Foi a segunda vez na
minha vida que vi o mundo desabar diante dos meus olhos.
Reflito algum tempo sobre esta frase.
– Como tinha tanta certeza de que a minha avó viria ter consigo? Não
começou a duvidar de que ela estivesse viva?
– Não – diz, depois de meditar alguns instantes. – Eu tê-lo-ia sentido.
Eu saberia.
– Como? – pergunto em voz branda. Não quero ser indelicada; apenas
não consigo imaginar tal persistência durante setenta anos com base num
pressentimento. O Jacob olha por momentos pela janela e, em seguida, fita-
me com um sorriso contido e triste.
– Eu tê-lo-ia sentido na alma, Hope – diz. – Entendes? Não é algo que
aconteça com frequência, mas quando duas pessoas possuem uma ligação
deste tipo, uma ligação como a que a tua avó e eu temos, estão unidas para
sempre. Eu sentiria a minha alma incompleta se ela desaparecesse. Quando
Deus nos juntou, transformou-nos num só.
O Gavin aperta subitamente a minha mão e fita-me boquiaberto.
– O que foi? – pergunto-lhe.
Em vez de me responder, ele olha pelo retrovisor.
– Jacob? – diz. – O que quer isso dizer? Disse que Deus vos juntou?
E nesse momento, antes do Jacob responder, compreendo onde o Gavin
quer chegar e adivinho o que o Jacob está prestes a revelar.
– No dia em que a Rose e eu nos casámos – afirma o Jacob. – Passámos
a ser um só aos olhos de Deus.
Engulo em seco.
– O Jacob e a minha avó casaram-se? – insisto.
– Claro – diz, aparentemente surpreendido. – Fizemo-lo em segredo,
como imaginas. A família dela não soube, a minha também não. Todos
acreditavam que éramos demasiado jovens. Ansiávamos pelo dia em que
pudéssemos realizar uma cerimónia com eles, festejar com as pessoas que
mais amávamos. Mas nunca tivemos a possibilidade de o fazer.
Ainda um pouco desconcertada, compreendo de repente o que tudo isto
significa; se a minha avó se casou com o Jacob, o seu casamento com o
meu avô nunca foi real. Sinto novamente uma tristeza profunda pelo meu
avô, por tudo o que perdeu sem se dar conta. Pergunto-me, todavia, se terá
sido mesmo assim. Poderia o meu avô ter percebido, em 1949, quando
visitou Paris, que o Jacob Levy sobrevivera, que a mera existência do Jacob
anulava a sua união com a minha avó? Teria ele, por esse motivo, dito à
minha avó que o Jacob morrera? Estas perguntas causam-me um profundo
desconforto, mais ainda porque poderei nunca vir a saber as respostas.
– Casou-se com a minha avó por ela estar grávida? – arrisco.
– Não. – O Jacob abana veementemente a cabeça. – Casámo-nos porque
nos amávamos. Porque temíamos que a guerra nos destroçasse. Porque
sabíamos que estávamos destinados um ao outro. Creio que o bebé foi
concebido na nossa noite de núpcias, na primeira vez que estivemos juntos
enquanto marido e mulher.
Fecho os olhos e assimilo tudo isto. A minha mãe não nascera de um
romance de adolescentes; fora concebida dentro do casamento. Tinha sido o
resultado da consumação do amor entre a Mamie e o Jacob. Ela e eu – além
da Annie – éramos tudo o que restava da união desafortunada entre duas
almas gémeas.
– Compreendes agora? – pergunta o Jacob após um longo silêncio. – Eu
tinha razão desde o início. A Rose estava viva. Eu sabia-o, no meu coração.
E agora vou finalmente revê-la.

O Jacob adormece pouco depois de atravessarmos Providence e, com a


luz do dia a perder intensidade, o Gavin e eu mantemo-nos em silêncio,
cada um perdido no seu mundo.
Não sei em que está ele a pensar, mas o seu rosto denuncia tristeza. É
isso que sinto também. Sem saber exatamente porquê, a poucas horas de um
reencontro que tardou quase setenta anos, sinto-me vazia e não exultante.
Talvez porque o saldo se afigura extremamente negativo. Sim, a Mamie
teve uma vida de liberdade e segurança. Sim, teve uma filha e uma neta que
deram continuidade à família que ela prometera ao Jacob proteger. E é
verdade que o Jacob sobreviveu muitos anos num país distante do seu.
Contudo, ambos arrastaram o seu fardo sozinhos quando não tinham de o
fazer. Devido a mal-entendidos, talvez mesmo mentiras, os dois tinham
perdido um tipo de amor em que eu nunca acreditara.
Mas agora acredito. E isso aterroriza-me, pois sei que nunca o tive. Nem
por sombras.
O Gavin para numa bomba de gasolina imediatamente a seguir a Fall
River e, enquanto o Jacob continua a descansar no banco de trás, eu afasto-
me do carro para telefonar à Annie. Digo-lhe que encontrámos o Jacob e
que o levamos connosco. Sorrio quando ela dá um gritinho de alegria e
partilha a notícia com o Alain. Consigo também ouvi-lo soltar uma
exclamação de entusiasmo. Asseguro à Annie que não demoraremos mais
do que duas horas e que, quando chegarmos, Jacob lhe contará tudo.
– Mãe, não acredito que conseguiste – diz ela.
– Não o fiz sozinha – respondo. – Contei contigo, querida. E com o
Gavin. – Olho para ele enquanto abastece o carro, de costas voltadas para
mim. Ele coça distraidamente a cabeça, o que me faz sorrir. – Com o Gavin
– repito.
– Obrigada, mãe – diz, ainda assim, a Annie. Deteto na sua voz um
afeto que há muito não sentia e sinto-me grata por isso. – E afinal como é
que ele é?
Explico-lhe que encontrámos o Jacob no Battery Park e que ele é
amável e educado. Conto-lhe ainda que ele nunca deixou de amar a Mamie
durante todos estes anos.
– Eu sabia – diz ela em voz baixa. – Eu sabia que ele continuava a amá-
la.
– Tinhas razão – admito. – Vemo-nos daqui a umas horas, querida.
Depois de desligar o telefone, enquanto regresso lentamente ao carro,
observo o céu, onde as primeiras estrelas do crepúsculo começam a
pontilhar o céu. Penso em todas as noites em que vi a Mamie sentada à
janela, aguardando estas mesmas estrelas, e pergunto-me se, nesses
momentos, procurava o Jacob, o grande amor da sua vida, que, afinal,
estivera sempre tão perto.
Quando me aproximo do Gavin, ele baixa os olhos e sorri docemente.
– Estás bem? – pergunta.
– Sim – respondo. Lanço um olhar ao banco de trás, onde o Jacob
dorme profundamente. De repente, sinto-me dominada pelas emoções e
começam a rolar lágrimas pelo meu rosto. – Isto é real – digo. – Tudo isto.
– Não espero que ele me compreenda mas, de alguma forma, é isso que
acontece.
– Eu sei – murmura ele. Envolve-me num abraço e, quando descanso a
minha cabeça sobre o seu peito e o cinjo com os meus braços, sinto que me
estou a entregar. Choro enquanto ele me abraça, sem saber ao certo se o
faço pelo Jacob e pela Mamie ou por mim.
Permanecemos ali durante bastante tempo, sem nos sentirmos forçados
a dizer seja o que for. Sei agora que o príncipe existe, que as pessoas que
nos amam nos podem salvar e que o destino nos pode reservar surpresas que
ultrapassam a nossa compreensão. Sei agora que, afinal, os contos de fadas
se podem tornar realidade. Basta que tenhamos a coragem de manter a
esperança.
Capítulo 28

Tarte das Estrelas

Ingredientes
3 chávenas de farinha
1 colher de chá de sal
3 colheres de sopa de açúcar granulado
1 chávena de gordura vegetal
1 ovo (batido)
1 colher de chá de vinagre de vinho branco
1 chávena e quatro colheres de sopa de água (separadas)
1 chávena de figos secos (em pedaços)
1 chávena de ameixas secas (em pedaços)
1 chávena de uvas brancas ou tintas, sem grainha, cortadas em
fatias e divididas
6 colheres de sopa de açúcar mascavado
1 colher de chá de canela
1/2 chávena de amêndoas laminadas
1 colher de sopa de sementes de papoila
Açúcar com canela para polvilhar (três partes de açúcar para
uma parte de canela)

Preparação
1. Prepare a crosta peneirando a farinha, o sal e o açúcar
granulado para dentro de um recipiente. Utilizando duas
facas ou um robô de cozinha, adicione pedaços de manteiga
até a mistura adquirir a consistência de uma amálgama de
migalhas espessas. Adicione o ovo, o vinagre e as 4 colheres
de sopa de água ao preparado e misture-o com um garfo e
depois com as mãos, polvilhadas de farinha, até a massa
formar uma bola.
2. Deixe arrefecer a massa no frigorífico durante dez minutos e
divida-a depois em duas metades. Alise com um rolo uma das
metades até formar um círculo e forre uma forma com
aproximadamente 22 centímetros de diâmetro. Coloque a
outra metade de parte.
3. Pré-aqueça o forno a 180 °C.
4. Misture os figos, as ameixas, meia chávena de uvas cortadas
em fatias, açúcar mascavado, canela e a chávena de água
numa caçarola resistente, de tamanho médio. Leve ao lume, a
uma temperatura média a alta, até o açúcar se dissolver e a
mistura ferver. Reduza a temperatura para um valor médio a
baixo, tape a caçarola e deixe-a ao lume durante vinte
minutos. Retire a tampa e mantenha a caçarola ao lume, sem
parar de mexer, durante três a cinco minutos até a maior
parte do líquido se ter evaporado e a mistura apresentar a
consistência de uma compota espessa. Retire depois a
caçarola do fogão.
5. Enquanto o recheio arrefece, espalhe as amêndoas numa
camada fina sobre um tabuleiro e deixe-as torrar no forno
durante sete a nove minutos, até ficarem ligeiramente
alouradas.
6. Retire as amêndoas do forno e adicione-as à mistura que
contém os frutos. Adicione as sementes de papoila e a
restante meia chávena de uvas cortadas em fatias. Mexa bem
para ligar os ingredientes.
7. Deite a mistura que contém os frutos na forma forrada com a
massa. Alise com um rolo a restante massa de modo a obter
um quadrado com vinte e cinco centímetros de lado. Corte em
tiras de pouco mais de um centímetro de largura e disponha-
as em forma de estrela, cruzando-as sobre o topo da crosta.
Polvilhe a gosto com açúcar com canela.
8. Leve a tarte ao forno durante trinta minutos ou até que o topo
da crosta adquira uma cor castanha dourada. Retire-a depois
do forno e deixe-a arrefecer totalmente. É possível mantê-la
no frigorífico até cinco dias. Sirva fria ou à temperatura
ambiente.

Rose

A água em que Rose está mergulhada começara a adquirir novas


cores, suaves e luminosas, evocando os quadros de Claude Monet de
que ela tanto gostava em criança. Entrevia nenúfares e salgueiros nas
profundezas turvas em que se encontrava e, por vezes, avistava álamos
que estendiam a sua sombra sobre a superfície de que ela estava tão
distante.
Na sua infância, Rose desejara sempre visitar Giverny, o lugar onde
Monet havia pintado muitas das suas obras mais célebres; acreditava
tratar-se inevitavelmente do cenário mais perfeito do mundo.
Só mais tarde compreenderia que o lugar, em si mesmo, não era o
mais belo que alguma vez tinha visto; a beleza encontrava-se no modo
como Monet o representara com as suas tintas e as suas telas. Uma
ocasião, ela e Jacob haviam visitado Argenteuil, nos arredores de Paris,
onde Monet vivera e pintara durante algum tempo. Rose constatou,
dececionada, que a cidade, apesar de agradável, não era tão
extraordinária como Monet a fizera parecer.
Compreendeu então que a essência da beleza é a forma como a
percebemos. Após a guerra, concluíra, um pouco abalada, que já não
era capaz de encontrar essa beleza em nada do que a rodeava. Embora
tivesse a vaga consciência de que o mundo continuava a ser belo, foi
como se as formas se tivessem tornado indistintas e a luz tivesse
desaparecido.
E agora, enquanto cores delicadas rodopiavam à sua volta nestas
misteriosas profundezas de que não se conseguia libertar, ela flutuava e
ouvia. Havia novamente vozes, muito distantes, à superfície deste
oceano amplo e delicado. Ela tentava reunir coragem para emergir;
repentinamente, tornou-se para ela muito importante saber de quem se
tratava. Teria, desta vez, ouvido algo diferente?
Ao flutuar lentamente em direção à superfície, embalada pelas
águas serenas, as cores recordaram-lhe de repente o vestido que
costurara para o seu casamento secreto. Dia 14 de abril de 1942. Uma
terça-feira, uma data que nunca esqueceria. Comprara os tecidos à sua
amiga Jacqueline, a única pessoa informada do que ela e Jacob
planeavam. Lamentavelmente, Jacqueline fora capturada na primeira
semana de março por ousar ser estrangeira e judia. Tratara-se de um
sinal dos horrores que se seguiriam, mas Rose ainda não o sabia. Não
no maravilhoso dia do seu casamento.
O vestido era composto por várias camadas de tecido leve que ela
passou mais de um mês a costurar na escuridão do seu quarto, à noite.
Quando a sua irmã Hélène lhe perguntava que vestido era, ela
escondia-o por baixo dos cobertores e inventava um pretexto. Sempre
acreditou que, de uma forma ou de outra, Hélène sabia. E, embora a
incomodasse a circunstância de a irmã, intimamente, não aprovar
Jacob, Rose também sentiu que, na escuridão cúmplice da noite, Hélène
se regozijava com o facto de ao menos uma delas ter encontrado uma
forma de sair da melancolia que as rodeava.
Rose não quisera vestir-se de branco no seu casamento, apesar de
ser ainda, naturalmente, pura. Contudo, o branco representava a
inocência, e já nada havia de inocente em Paris.
Assim, surgira na cerimónia com um vestido de muitas cores,
aquelas que lhe sugeriam o céu ao amanhecer, a sua hora preferida do
dia. Azul-claro. Rosa suave. Amarelo vivo. Amarelo alaranjado. Lilás
esbatido. Pareciam ser mil camadas, que Rose fazia rodopiar com uma
leveza que lhe fazia lembrar as nuvens.
– Nunca vi nada mais belo – dissera-lhe Jacob quando ela entrara
na sala. E, a avaliar pela forma como ele a olhava, era certo que o dizia
de todo o coração. Em seguida, os seus olhos encontraram-se e, no
olhar dele, ela via tudo o que os aguardava: uma vida juntos, num
qualquer lugar distante de Paris, e, naturalmente, filhos, muitos filhos.
Rir-se-iam, contariam histórias e envelheceriam nos braços um do
outro. Naquele momento, sentiam ter toda uma vida à sua frente, uma
vida imensa e ditosa. E Rose permitiu-se acreditar nela.
– Amo-te – murmurou ela.
De volta ao presente, percebeu que, na verdade, não se encontrava
em oceano algum, mas entre os milhares de camadas finas do seu
vestido de noiva, a embalá-la com o seu toque macio. Contemplou as
cores que diligentemente unira e apercebeu-se de que conseguia ver
imagens difusas por entre cada uma delas. Sentia a suavidade do tecido
na sua pele, tal como naquele dia de abril, agora tão distante.
Procurou escutar os sons com mais atenção, enquanto atravessava
lentamente as cores no percurso até à superfície. E depois, subitamente,
soube o que se passava. Já estava morta, inevitavelmente.
Surpreendeu-a não se ter apercebido antes; era por de mais evidente.
Era por isso, naturalmente, que ouvia a voz de Alain nos últimos dias;
ele chamava-a para casa, desvendando-lhe o caminho a seguir por
entre aquela estranheza luminosa, o caminho até ao lugar onde a sua
família sempre estivera. Ouvindo Alain, presumia que eles não estavam
no céu, mas neste mundo estranho, compartimentado. Ocorreu a Rose,
contudo, que poderia ela própria estar no céu. Seria esta a forma das
nuvens? Talvez se tratasse do nascer do sol. Talvez, a qualquer
momento, este oceano estranho se iluminasse a partir do seu interior.
Foi então que Rose teve a certeza de que morrera e de que o céu era
real, pois conseguia ouvir a voz do seu grande amor, chamando-a.
– Reviens à moi. – A voz de Jacob descia indistintamente até ela. –
Reviens à moi, mon amour! Regressa, meu amor!
Rose queria responder. Tentou gritar-lhe «Estou a caminho, Jacob»
mas os sons morriam-lhe na garganta.
Mas depois sentiu a mão dele apertar a sua. Soube de imediato que
era Jacob; reconheceria o seu toque em qualquer lugar, apesar de não o
sentir há quase setenta anos. A mão dele envolveu a sua como sempre
fizera: quente, forte, familiar. Foi a mão dele que a salvou, noutros
tempos.
Sabia que ele a puxava para si, ao fim de todos estes anos, e que, por
isso, a teria perdoado por tê-lo conduzido à morte. O seu coração
transbordava e, nos seus olhos, sentia lágrimas. Fora por isto que
ansiara ao longo de tantos anos.
Ela respirou fundo e apercebeu-se de que o oceano tinha, na
verdade, o odor a alfazema que ela sentira no dia do seu casamento.
Estava em casa, finalmente em casa. Segurou com firmeza a mão de
Jacob e começou, por fim, a nadar em direção à superfície.
Capítulo 29

É a Annie a primeira a aperceber-se.


– Mãe! – sibila, puxando-me freneticamente o braço, enquanto o Jacob
está inclinado sobre a Mamie e lhe sussurra algumas palavras em francês.
Desde que chegámos ao hospital, há uma hora, que o Jacob se mantém
naquela posição.
– O que foi, querida? – pergunto, incapaz de afastar o olhar daquele
quadro, que se me afigura inútil e melancólico.
– Está a mexer-se, mãe! – diz a Annie. – A Mamie está a mexer-se!
Verifico, estremecendo, que ela tem razão. É com assombro que vejo a
mão da Mamie contorcer-se ligeiramente e, em seguida, apertar a mão do
Jacob. Ele continua a sussurrar-lhe, agora com maior insistência.
– Ela está…? – começa o Alain. A sua voz desvanece-se enquanto olha
fixamente a irmã.
– Ela está a acordar – murmura o Gavin ao meu lado.
Todos vemos as suas pálpebras tremerem e depois, incrivelmente,
abrirem-se. Sei que um de nós deveria chamar um médico ou uma
enfermeira, mas eu dou por mim estática, incapaz de fazer qualquer
movimento.
Ela expira ruidosamente, como se tivesse sustido a respiração durante
uma eternidade, e os seus olhos percorrem sofregamente o quarto até que,
ao encontrarem os do Jacob, se arregalam. Ela diz algumas palavras
ininteligíveis, numa voz que parece diferente da sua. É como se estivesse a
tentar recordar-se de como se articulam os sons.
– A minha Rose – diz o Jacob. – Encontrei-te.
Por momentos, ela mexe os lábios, emite mais um gemido e acaba por
dizer «Tu… aqui», numa voz áspera e rouca mas inconfundível. Ergue o
olhar para o Jacob, que, lacrimejando, se inclina e beija uma vez,
suavemente, os lábios da minha avó.
– Sim, estou aqui, Rose – murmura. Fitam-se como que deslumbrados
um com o outro.
– Estamos… – A voz da Mamie esmorece mas ela persiste. Estamos…
no céu? – As suas palavras são lentas, quase entarameladas, mas ela parece
determinada a falar. O Jacob, por seu turno, estremece e solta um suspiro.
– Não, meu amor. Estamos em Cape Cod.
A princípio, a Mamie parece confusa e os seus olhos turvos perscrutam
a sala, detendo-se primeiro em mim, depois na Annie e no Gavin e, por fim,
no seu irmão.
– Alain? – sussurra.
– Sim – diz ele com simplicidade. – Sim, Rose. Sou eu.
Ela volta a lançar um olhar incrédulo ao Jacob.
– O Alain… está vivo? Tu, Jacob… estás vivo? – pergunta timidamente.
– Sim, meu amor – responde o Jacob. – Tu salvaste-me.
Os olhos da Mamie humedecem-se e as lágrimas começam a rolar pelo
seu rosto como torrentes.
– Eu não… não te salvei – sussurra. – Como podes dizer…? – Faz uma
pausa, suspirando agitadamente. – Eu pedi-te… que voltasses. A culpa
foi… minha.
– Não – diz o Jacob. – Não tiveste culpa de coisa nenhuma, querida
Rose. Sobrevivi porque sempre acreditei que te voltaria a encontrar. Foste
tu que, durante setenta anos, me mantiveste vivo. Nunca deixei de te
procurar.
Ela continua a fitá-lo.
– É melhor chamarmos um médico – segreda-me o Gavin.
– Pois… – replico distraidamente. Nenhum dos dois arreda pé.
Passados alguns instantes, vira ligeiramente a cabeça até me encontrar.
– Hope?
– Sim, Mamie – respondo, dando um passo em frente.
– Porque… estás a chorar? – pergunta, hesitante.
– Porque… – Não me consigo explicar. – Porque senti muito a tua falta
– acabo por dizer, percebendo de imediato que encontrara palavras
certeiras. Ela volta a olhar para o Jacob.
– Como…? – indaga.
Ele acena em sinal de compreensão.
– Foi a Hope que me encontrou – diz. – A Hope, a Annie e o amigo
delas, o Gavin.
– Gavin? – pergunta. Ela vira-se de novo para nós, com algum esforço, e
observa, desconcertada, o rosto do Gavin. – Qual Gavin? Aquele?
– Sim, senhora – responde o Gavin. – Já nos encontrámos algumas
vezes. Sou… amigo da sua neta.
– Sim – murmura a Mamie. – Sim, já me recordo. – Fecha os olhos por
momentos e, quando os volta a abrir, fita longamente o Jacob antes de me
interpelar novamente.
– Como é que… encontraste o meu Jacob?
– Através da lista que me entregaste – explico. – E que me levou a Paris.
– O seu ar desorientado leva-me a crer que não sabe a que me refiro. Com
tamanha comoção, quase me esqueci da doençade Alzheimer. – Mas estava
tudo nos contos de fadas – asseguro, sob o seu olhar atento. – Foram os teus
contos de fadas que nos conduziram até ele. Não sabia que eram
verdadeiros.
– São verdadeiros – murmura a Mamie, olhando, porém, para o Gavin. –
Claro que sim. São sempre verdadeiros. – Volta-se a seguir para o Alain e,
mais uma vez, não consegue suster as lágrimas. – Alain? – chama
suavemente.
– Como me reconheces ao fim de tantos anos? – pergunta ele.
– Tu… és meu irmão – diz sem vacilar. A sua voz começa a recuperar a
cadência habitual; as palavras parecem regressar enquanto vai despertando.
– Reconhecer-te-ia… em qualquer lugar.
– Lamento não te ter encontrado mais cedo – diz ele. – Não sabia… não
sabia que estavas viva. Desperdiçámos muitos anos.
A Mamie fecha os olhos por instantes. Chora novamente.
– Pensava… que tinhas morrido – afirma ela. – Em Auschwitz. Aquele
lugar. Imaginei o teu destino… milhares de vezes.
– Eu também te julgava morta – murmura o Alain.
A Mamie fita em seguida a Annie.
– Leona? – pergunta.
A Annie curva-se, desalentada, e isso provoca-me uma certa angústia;
sei que sofre quando a sua avó não a reconhece.
– Não, Mamie – diz a Annie. – Quem é a Leona?
Contudo, desta vez é o Jacob quem responde.
– Leona era a minha irmã mais nova. – Olha atentamente para a Annie.
– Meu Deus, és mesmo muito parecida com ela.
A Annie volta a fitar a Mamie, agora de olhos arregalados.
– Chamas-me Leona há meses – declara. – Era isso que querias dizer? –
A Mamie parece confusa. A Annie volta-se para o Jacob. – O que aconteceu
à Leona?
O Jacob procura o meu olhar e eu aceno ligeiramente com a cabeça. A
Annie tem idade suficiente para o saber.
– Morreu, querida – explica. – Em Auschwitz. Não creio que tenha
sofrido muito, Annie. Penso que morreu pacificamente.
Os olhos da Annie enchem-se de lágrimas.
– Lamento – diz num sussurro. – Lamento muito o que aconteceu à sua
irmã.
Ele sorri docemente.
– Vejo-a em ti – diz. – E isso deixa-me feliz. – Volta a inclinar-se sobre
a Mamie. – Rose, a Leona partiu há muitos anos. Mas esta menina é a
Annie. A tua bisneta. – Faz uma pausa e acrescenta: – A nossa bisneta.
A Annie lança-me um olhar interrogativo, e eu dou-me conta de que
ainda não lhe contei uma parte da história. Ainda não lhe expliquei que o
Jacob se casou com a Mamie há muito tempo e era o verdadeiro pai da
minha mãe. Aproximo-me da minha filha e aperto-lhe a mão.
– Explico tudo mais tarde – segredo-lhe. Ela parece confusa, e um tanto
alarmada, mas anui. A Mamie observa agora o seu rosto.
– Annie – acaba por dizer. Percebo nos seus olhos que a reconhece. – A
mais jovem.
– Sim, Mamie – balbucia a Annie.
– És… uma boa menina – diz a Mamie. – Sinto orgulho… Tens…
valentia. Isso faz-me lembrar… algo que perdi. Nunca faças… o mesmo.
A Annie acena animadamente com a cabeça.
– Está bem, Mamie.
Por fim, a Mamie volta-se para o Jacob, que permanece junto dela.
– Meu amor – diz ela com ternura. – Não chores. – Noto que o corpo do
Jacob estremece enquanto ele vai soluçando e deixando rolar as lágrimas
pelo rosto. – Agora estamos juntos – prossegue a Mamie. – Eu… esperei
por ti. – Fitam-se em silêncio e eu, ao fim de alguns momentos, percebo que
me é difícil respirar. Vejo o Jacob inclinar-se lentamente, docemente, e
beijar a Mamie nos lábios, demorando-se, com os olhos fechados, como se
nunca mais se quisesse mover. Aquele momento eterno reaviva em mim a
memória de um outro conto de fadas. O Jacob assemelha-se bastante ao
príncipe que beija a Bela Adormecida, despertando-a de um sono de cem
anos. Estremeço quando me apercebo de que, de certo modo, a minha avó
quase a imitou; durante setenta anos, viveu uma espécie de meia-vida.
– Para sempre, meu amor – diz o Jacob.
A Mamie sorri e olha-o nos olhos.
– Para sempre – murmura.
Capítulo 30

Pouco passa das três da manhã, apenas algumas horas depois de


deixarmos o Jacob no hospital, quando a Mamie solta o último suspiro,
tranquilamente, durante o sono.
O Jacob manteve-se à cabeceira da Mamie durante as horas seguintes e,
pouco depois de amanhecer, quando saiu de um táxi à porta da confeitaria
que a Mamie fundara tantos anos antes, parecia um homem diferente.
Presumi que surgiria triste, vencido, pois esperara setenta anos apenas para
ver expirar o amor da sua vida. Ao invés, porém, os seus olhos irradiavam
um brilho diferente do que eu observara em Nova Iorque, no nosso primeiro
encontro, e ele parecia dez anos mais novo.
As enfermeiras relataram-me que, após a nossa saída, o Jacob
conversara com a Mamie pela noite dentro e que, no momento em que
finalmente entraram no quarto e perceberam que ela morrera, a minha avó
sorria e o Jacob ainda lhe segurava a mão, segredando-lhe algo numa língua
que elas não entendiam.
O Gavin contactou o seu rabino e, com a ajuda do sacerdote, o Jacob, o
Alain e eu organizámos um funeral conforme com os rituais judaicos.
Percebi então que a Mamie fora sempre judia; isso nunca mudara. Talvez,
como ela mesma afirmara, fosse também católica e muçulmana. Contudo,
uma vez que, como a Mamie me dissera um dia, nos é possível encontrar
Deus em toda a parte, afigurou-se mais apropriado que ela abandonasse o
mundo pelo mesmo caminho em que nele entrou.
Revezámo-nos numa cadeira junto à Mamie – o Gavin explicou-me que,
na fé judaica, é importante não deixar o corpo desacompanhado – e, um dia
depois, enterrámo-la num caixão de madeira ao lado da minha mãe e do
meu avô. Eu hesitara em tomar essa decisão, pois tinha acabado de
descobrir que o seu casamento com o Jacob anulava formalmente a união
da Mamie com o meu avô. Porém, o Jacob segurara as minhas mãos e
dissera com delicadeza:
– Deus não se preocupa com a nossa última morada. Penso que a Rose
preferiria ser sepultada aqui, onde viveu, ao lado do homem que lhe deu
uma nova vida, ao lado da sua filha. Da nossa filha.
Nos dias que se seguiram, cumpri a rotina da confeitaria, mas sem
convicção. Parecia ter-se aberto um grande vazio na minha vida. Sentia-me
só contra o mundo: responsável por esta confeitaria; responsável pela minha
filha; responsável por dar seguimento a uma tradição familiar que só agora
começava a compreender.

Na sexta noite após a morte da Mamie, o Alain decide dar um passeio


com a Annie e eu sento-me com o Jacob à lareira, ouvindo-o falar
agitadamente sobre os anos que se seguiram à guerra.
– Lamento não ter estado presente para te ver crescer, Hope – diz-me,
apertando as minhas mãos com as suas, que tremem ligeiramente. – Teria
dado tudo para ter estado com vocês ao longo destes anos. Mas tu és uma
mulher admirável, uma mulher bondosa. Fazes-me lembrar muitas vezes a
Rose, a mulher que eu sempre soube que ela seria. E também tu educaste
uma filha com bom coração.
Agradeço-lhe e contemplo as chamas, interrogando-me sobre a melhor
forma de fazer ao Jacob a pergunta que me atormenta desde que o conheci.
– E o meu avô? – pergunto finalmente, em voz baixa. – Ted.
O Jacob inclina a cabeça e fita demoradamente a lareira.
– O teu avó era seguramente um homem excecional – acaba por dizer. –
Construiu uma ótima família, Hope. Gostaria de ter podido agradecer-lhe
por isso.
– Nada disto é justo para com ele – digo em voz branda. – Peço
desculpa – acrescento após uma pausa. – Não é minha intenção ofendê-lo.
– Claro que não – diz o Jacob de imediato. – E tens razão. – Volta-se de
novo para a lareira. – Ele será sempre o teu avô, Hope. Sei que assim é. Sei
que nunca me amarás como o amas a ele, que sempre fez parte da tua vida.
Preparo-me para o contrariar, sentindo agora não estar a ser justa com
ele. Todavia, ele ergue a mão para me interromper.
– Lamentarei sempre o facto de não ter estado presente, de não ter visto
o que ele viu. Mas foram essas as cartas que a vida nos deu. E nós temos de
as aceitar. Na vida, apenas podemos olhar em frente. Podemos alterar o
futuro, mas não o passado.
Hesito, mas aceno em concordância.
– Lamento – digo, embora a palavra me soe desajustada e insuficiente. –
A minha avó contou alguma coisa sobre ele? – pergunto. – Durante a vossa
conversa? Antes de ela morrer?
Ele assente e desvia o olhar.
– Explicou-me tudo, o melhor que pôde – diz. – Ela pensava, creio, que
tinha de me fazer compreender tudo o que se passou mas, na verdade, eu
sempre o compreendi, Hope. A guerra separou-nos e, na vida, há coisas que
não é possível voltar a unir.
– O que é que ela lhe contou?
Ele volta-se para mim.
– Conseguiu chegar a Espanha no final do outono de 1942. Foi então
que conheceu o teu avô. O avião militar dos Estados Unidos em que ele
seguia foi abatido em França e, tal como a tua avó, ele viajou
clandestinamente para Espanha através de localidades francesas solidárias
com os Aliados. Ele e a tua avó estiveram refugiados na mesma casa; foi
assim que se conheceram. Ele apaixonou-se pela tua avó, cujo bebé estava
prestes a nascer. Foi sensivelmente nesse período que se verificou um
afluxo de judeus refudiados, vindos de Paris, pessoas que a Rose conhecia e
que lhe afirmaram que eu tinha morrido. A princípio, ela não acreditou, mas
algumas dessas pessoas asseguraram ter presenciado a minha morte nas
ruas de Paris. Uma outra declarou ter visto os nazis levarem-me para a
câmara de gás de Auschwitz.
– Santo Deus – murmuro, sem saber o que acrescentar.
O Jacob olha pela janela, onde o gelo se vai apoderando do vidro,
toldando a nossa visão da noite escura.
– No início, ela não acreditou – repete. – Disse que não o sentia na
alma. No entanto, quanto mais pessoas lhe diziam que eu havia morrido,
mais ela se convencia de que, de facto, eu partira e de que a sua alma nada
lhe dizia porque eu perdurava na criança que crescia dentro de si. Ela sabia
que tinha de proteger a nossa filha a todo o custo. Assim, quando Ted a
pediu em casamento e lhe assegurou que a traria consigo para os Estados
Unidos, ela percebeu que o nosso bebé teria a oportunidade de ser
americano, algo com que sempre sonháramos juntos. E teria a oportunidade
de crescer num lugar onde poderia ser sempre livre.
»Ela viajou, pois, para os Estados Unidos com o teu avô, que se casou
com ela. Registaram-no como pai, na certidão de nascimento de Josephine,
para evitar complicações. Mais tarde, pagaram para alterar o ano constante
da certidão, de modo que ninguém pudesse fazer as contas e duvidar da
história. O teu avô fez apenas um pedido à tua avó: que lhe permitisse criar
Josephine como se fosse sua filha e que Josephine nunca soubesse da minha
existência.
– Ela nunca falou de si à minha mãe?
O Jacob abana a cabeça.
– Segundo ela, foi uma das grandes mágoas da sua vida. Acontece que
Ted era um pai excecional, e ela sentiu dever cumprir a promessa que lhe
fizera. Trocara uma vida por outra e nunca se esqueceu do que haviam
combinado. Porém, a Rose disse-me que procurou falar de mim a Josephine
de outras formas.
– Nos seus contos de fadas – murmuro. – O Jacob esteve presente em
todas as histórias que ela nos contou, à minha mãe e a mim. – Faço uma
pausa e recordo-me subitamente de algo que a Mamie me disse. – Mas não
é verdade que o meu avô esteve em Paris, em 1949? Para descobrir o que
lhe aconteceu a si e à família da minha avó?
O Jacob respira fundo e acena que sim.
– Essa é uma parte da história que a tua avó não conseguiu explicar –
afirma. – E eu não fui capaz de lhe dizer que Ted poderia ter sabido que eu
sobrevivera. O meu nome constava dos registos. Ainda não me tinha
mudado para os Estados Unidos. Só o fiz em 1952. Antes disso, fiz todos os
possíveis para poder ser encontrado, pois não acreditava que a Rose
falecera. Acreditava que ela tinha sobrevivido e que nos voltaríamos a
encontrar.
»Suponho que nunca saberemos o que aconteceu. Mas se o teu avô
regressou e afiançou à tua avó que eu morrera, presumo que tenha mentido.
– Para proteger o seu casamento, a sua vida com ela – digo, sentindo
repentinamente um calafrio e aproximando-me da lareira.
– Sim – acede o Jacob. – Acredito que sim. Mas poderei eu censurá-lo?
Ele amava a Rose e a Josephine, que se tornara sua filha. Construíra uma
vida boa com elas. Se a Rose viesse a saber que eu sobrevivera, ele poderia
perder tudo. Fez o que pôde para proteger a sua família. E eu não posso
condená-lo por isso. Aliás, eu fiz o mesmo, não é verdade? Fiz as minhas
escolhas para proteger as pessoas que mais amava. Todos fazemos escolhas,
sacrifícios, pelo que acreditamos ser um bem maior.
Procuro conter a emoção.
– No entanto, se for esse o caso, ele impediu que o Jacob e a minha avó
ficassem juntos. Manteve-vos separados durante setenta anos.
– Não, querida – contrapõe o Jacob. – Foi a guerra que nos separou. O
mundo enlouqueceu, e o teu avô foi tão responsável pelo desfecho como eu,
ou mesmo a Rose. Todos fizemos escolhas. Todos tivemos de viver com as
nossas mágoas.
– Lamento muito – digo. Sinto que estou a pedir desculpa ao Jacob
pelas ações do meu avô e pelo destino tremendamente injusto que lhe foi
reservado. Ele limita-se, porém, a abanar a cabeça.
– Não tens de lamentar – diz. – A tua avó pediu-me, antes de morrer,
que a perdoasse; sentia ter-me traído ao casar-se com o Ted. Eu disse-lhe,
todavia, que não tinha nada a perdoar-lhe porque ela nada fez de errado.
Nada. Agiu convencida de que estava a proteger a nossa filha. O mais
importante é que a Rose sobreviveu. Tal como a Josephine. E tu e a Annie.
Independentemente do que aconteceu, Rose salvou a criança que
concebemos juntos, a maior declaração do nosso amor, e proporcionou-lhe
a vida com que sempre sonháramos, uma vida de liberdade.
– Mas passou a sua vida à espera dela – insisto.
– E agora encontrei-a – sorri. – Sinto-me em paz. – Ele segura-me
novamente as mãos e fita-me demoradamente. – Tu és o nosso legado. Tu e
a Annie. Tens de honrar as tuas origens, agora que as conheces.
– Mas como?
– Seguindo o teu coração – afirma o Jacob. – Por vezes, a vida
complica-se. As circunstâncias separam-nos. As decisões orientam o nosso
destino. Mas o teu coração mostrar-te-á sempre o norte. A tua avó sempre o
soube.
Inclino a cabeça.
– Como posso saber que caminho devo seguir? – Não sei como explicar
que o meu coração só me trouxe sarilhos.
– Saberás naturalmente – diz o Jacob. – Basta escutar o coração. As
respostas estão dentro de ti.

Na manhã seguinte, enquanto me preparo para a caminhada até à


confeitaria, entro na sala de estar e vejo o Jacob olhar pela janela,
exatamente onde eu o deixara na noite anterior. Interrogo-me se estará a
observar as estrelas, como a Mamie sempre fazia.
– Olá, Jacob – digo, pegando nas chaves pousadas na mesa da cozinha.
– Vou sair agora. Se sentir vontade, venha até à confeitaria, mais logo.
Preparo-lhe uma tarte das estrelas.
Como ele não responde, aproximo-me da cadeira e ajoelho-me ao seu
lado.
– Jacob?
Tem os olhos fechados e um pequeno e tranquilo sorriso nos lábios,
como se estivesse a meio de um sonho que não quer abandonar. Talvez
esteja a pensar na minha avó.
– Jacob? – chamo novamente. Toco ao de leve no seu braço e, por fim,
compreendo. – Jacob… – murmuro suavemente, começando a sentir as
lágrimas no rosto. O seu braço está frio, tal como a sua face, que acaricio
com ternura. Partiu. E, por algum motivo, não me sinto, de todo, tomada de
surpresa. Ele passou uma vida inteira a tentar encontrar a Mamie. Agora,
tem a eternidade para compensar todos os anos perdidos.
Deixo-o sorrir. Não acordo a Annie nem o Alain. Não vou para a
confeitaria. Sento-me apenas ao seu lado, ao lado deste homem cuja
coragem me deu vida há tantos anos, muito antes, aliás, de eu nascer, e
choro. Choro por tudo o que se perdeu e encontrou. Choro pela minha avó,
e pela minha mãe, que nunca conheceu a história do seu nascimento. Choro
pela Annie, que já teve de suportar muito mais perdas do que seria razoável
na sua idade. E choro por mim, pois não sei que caminho seguir. Não sei
como encontrar as respostas que o Jacob acreditava estarem no meu
coração.

Após uma longa reflexão, o Alain e eu decidimos sepultar o Jacob ao


lado da minha avó. Afinal, não lhe resta família em lugar algum, e ele
preferiria certamente esta última morada, ao lado do amor da sua vida, a
qualquer outro lugar do mundo. Encontrei-a, disse-me na sua última noite.
Sinto-me em paz.
Elida White e a avó viajaram desde Pembroke para estarem presentes no
funeral e, todos unidos – muçulmanos, cristãos e judeus –, ouvimos as
palavras do rabino junto à sepultura. Olho para leste, para onde a lápide do
Jacob ficará voltada quando estiver pronta. A da Mamie será posicionada da
mesma forma. Dentro de algumas horas, as primeiras estrelas da noite vão
começar a despontar no céu, como sempre aconteceu e sempre acontecerá.
É que, enquanto houver estrelas no céu – percebo-o agora – a promessa de
amor feita pelo Jacob à Mamie permanecerá viva. As estrelas que ela
outrora procurava no céu continuarão, em silêncio, a protegê-la e a cuidar
do amor da sua vida, que finalmente regressou para lhe fazer companhia.
Capítulo 31

O inverno de Cape Cod é longo e solitário e, este ano, resignada a


perder a confeitaria, sinto que o tempo parou. Não há potenciais
compradores; afinal, quem estaria interessado num negócio destes em pleno
inverno? Ainda assim, o banco tenciona apoderar-se da confeitaria. O Matt
não se dá ao trabalho de o tentar impedir, nem eu lhe peço que o faça. Todas
as manhãs, expirando pequenas nuvens geladas a caminho do trabalho, me
interrogo se será nesse dia que desaparece a última réstia do legado da
Mamie. Até lá, continuarei a gerir a confeitaria, pois é tudo o que sei fazer.
Seria de prever que esta estação representasse para mim o pior período
do ano, devido a esta angustia que se arrasta e à falta de clientes. Contudo,
sempre encontrei alguma paz nos meses de inverno. Os fins de tarde são de
tal forma tranquilos, sobretudo antes do pôr do sol, que, quando uma
gaivota guincha pairando sobre o mar, eu a consigo ouvir dentro de minha
casa. Quando caminho na praia, o gelo parte-se, de vez em quando, sob as
minhas botas gastas. E, antes do período de Natal e Ano Novo, a Main
Street assemelha-se a uma rua de uma cidade fantasma; de manhã, quando
chego à confeitaria, convenço-me por vezes de que sou a única habitante
deste inverno encantado, imaginando o que faria se ninguém me pudesse
ver.
Na terceira semana de novembro, o Gavin convida-me para jantar e ir ao
cinema e, embora eu decline o convite, ele visita-nos alguns dias depois e
convida a Annie, o Alain e eu para passarmos o Dia de Ação de Graças em
casa da sua família, em Boston. Nesse dia, além de sentir particularmente a
falta da Mamie, estou bastante exaltada devido à situação da confeitaria.
Sem querer, acabo por ser bastante ríspida com ele.
– Ouve, agradeço tudo o que fizeste por mim e pela minha família –
digo-lhe, com um nó no estômago. – Mas não posso fazer isto à Annie.
Ele parece perplexo e magoado.
– Fazer o quê?
– Correr riscos com uma pessoa como tu.
– Alguém como eu? – pergunta, observando-me.
Sinto-me pessimamente, mas, tal como a Mamie colocou a vida da sua
filha em primeiro lugar, descurando as suas próprias necessidades, sei que
tenho de fazer o mesmo. Devo-o à minha filha. – És maravilhoso, Gavin –
tento explicar. – Mas a Annie perdeu muito nos últimos tempos. Agora,
precisa de estabilidade. Não de alguém que pode um dia desaparecer da
vida dela.
– Hope, não tenciono desaparecer.
Baixo os olhos.
– Mas não me podes prometer hoje que ficarás connosco para sempre,
pois não? – pergunto. Como não responde, eu prossigo. – Claro que não. E
eu nunca te pediria que o fizesses. Acontece que não posso acolher ninguém
na minha vida se houver a possibilidade, por reduzida que seja, de fazer
sofrer a minha filha.
– Eu nunca… – começa.
– Lamento – digo com firmeza, odiando-me por isso. Vejo-o cerrar os
dentes.
– Tudo bem – diz. Sai sem dizer mais uma palavra.
– Lamento – murmuro novamente, muito depois de ele ter saído.
Este ano, o Hanukkah coincide com o Natal, e Alain decide permanecer
nos Estados Unidos para podermos celebrar as festas em conjunto. A Annie
fica em casa do Rob durante as duas primeiras semanas de dezembro, mas
passa comigo a segunda metade do mês, enquanto o meu ex-marido e a
namorada fazem uma viagem às Baamas. O Alain pode assim explicar à
Annie as tradições das festas judaicas ao mesmo tempo que trocamos
presentes e acendemos as velas da menorá como teria feito a Mamie setenta
anos antes, quando acreditava ter no seu horizonte uma vida feliz com o
Jacob. A tristeza pela sua morte persiste como um nevoeiro que nos
envolve, embora, em certos dias, me interrogue se lamentamos a sua vida e
não a sua morte. Acontece que ela morreu com um sorriso nos lábios,
seguida de imediato pela única pessoa capaz de completar o puzzle que, sem
nós sabermos, ela procurava resolver.
Há mais de um mês que não tenho notícias do Gavin. Digo a mim
mesma que é melhor assim. A Annie e eu estamos a caminho de nos
entendermos novamente. Ela começa a confiar em mim. Não posso
intrometer um homem no nosso mundo, pelo menos neste momento. Quero
que ela sabia que estará sempre em primeiro lugar.
O Alain procura conversar comigo sobre este assunto no último dia do
Hanukkah, véspera do seu regresso a Paris, mas não me compreende.
– O Gavin gosta de ti – diz-me o Alain. – Ajudou-te a encontrar-me a
mim e ao Jacob. Foi amável com a tua filha. Não tinha de o fazer.
– Eu sei – respondo. – É um tipo maravilhoso. Mas estamos muito bem
sem ele.
– Não duvido. Mas tu queres estar sem ele? – pergunta o Alain,
observando-me de forma atenta e com a convicção de quem sabe a resposta.
Eu mostro-me indiferente.
– Não preciso de ninguém. Nunca precisei.
– Todos precisamos de pessoas que nos amem – diz o Alain.
– Tenho a Annie – respondo.
– E tens-me a mim – diz com um sorriso contagiante.
– Eu sei.
– Não acreditas no amor? – pergunta após uma longa pausa. – Não te
apercebeste, de uma forma tão evidente, na relação entre a tua avó e o
Jacob?
Respondo com um mero encolher de ombros. A verdade, que não posso
explicar ao Alain, é que acredito agora no amor, num amor profundo entre
um homem e uma mulher. Devo-o à Mamie e estar-lhe-ei sempre grata por
isso, pois tratou-se de uma lição que nunca esperei aprender. Suponho que,
tal como a minha mãe, subestimei a Mamie.
Contudo, o meu coração está rodeado de gelo como o alimentador dos
pássaros que ficou congelado no alpendre das traseiras. A existência do
amor não me torna mais apta a senti-lo. Por vezes, na escuridão da noite,
pergunto-me se serei até capaz de amar a Annie da melhor forma ou se
herdei, sem remissão, a frieza da minha mãe. A Annie é minha filha e eu sei
que daria a vida por ela sem hesitar, ou abdicaria de qualquer privilégio da
minha vida para melhorar a dela, mas será isso amor? Não há forma de o
saber. Assim sendo, se duvido da minha capacidade para amar devidamente
a minha filha, como posso acreditar na possibilidade de amar outra pessoa?
De resto, parece-me que a Mamie se agarrou ao seu amor pelo Jacob
como a uma corda que a mantivesse à tona de água. Contudo, ao longo dos
anos, a corda que a salvou tornou-se um laço que se apertava cada vez mais,
ano após ano. Receio que, se o permitirmos, o amor venha a sofrer essa
transformação.
O Gavin tinha razão; há sucessivas linhas de defesa em redor do meu
coração, e não vislumbro que alguém as consiga ultrapassar. Já não acredito
sequer que haja alguém disposto a tentar. Bastou uma conversa para afastar
o Gavin, para o fazer desaparecer de vez, o que prova que ele nunca esteve
particularmente apaixonado. Foi uma tolice acreditar no contrário. E é uma
tolice que isso ainda me magoe.

No dia 30 de dezembro, após o regresso do Alain a Paris, a Annie surge


à porta da confeitaria, às duas da tarde, hora a que deveria estar em casa
com a sua amiga Donna. A mãe de Donna concordara que elas tinham idade
suficiente para passar algumas horas sozinhas em minha casa.
– Está tudo bem? – pergunto de imediato. – Onde está a Donna?
– Foi para casa – diz, sorrindo. – Recebeste um telefonema.
– De quem?
– De Mr. Evans – diz, referindo-se ao único advogado da cidade
especializado em sucessões. – A Mamie deixou um testamento.
Abano a cabeça.
– Não pode ser. Se o tivesse feito, já o saberíamos. A Mamie morreu no
mês passado.
Annie inclina a cabeça para o lado.
– Então agora também minto? – Preparo-me para responder, mas ela
continua. – Ele disse que a Mamie, tipo, queria que ele só te telefonasse no
dia 30 de dezembro, porque há uma carta que ela queria que lesses na
véspera de Ano Novo.
– Estás a brincar – digo, incrédula.
– Foi o que disse Mr. Evans – assegura a Annie, encolhendo os ombros.
Se não acreditas, liga-lhe.
Telefono então a Thom Evans, um dos muitos homens da cidade que
namoraram intermitentemente com a minha mãe quando eu era miúda, e ele
diz-me, no seu tom rígido e cauteloso, que sim, existe um testamento, e sim,
existe uma carta, que eu posso ir buscar a qualquer hora do dia seguinte,
apesar de ser um sábado e, além disso, feriado.
– O direito nunca dorme – diz, obrigando-me a conter uma risada. Toda
a cidade sabe que, quando se visita o escritório de Thom Evans, é tão
plausível que esteja a dormir, com uma garrafa de uísque na mão, como a
trabalhar.
Na tarde do dia seguinte, fecho a confeitaria mais cedo e encaminho-me
para o escritório de Thom Evans, situado a apenas alguns quarteirões da
Main Street. O sol brilha intensamente, mas eu sei que, dentro de apenas
algumas horas, ele irá desaparecer no mar pela última vez este ano. A Annie
vai passar a noite em casa do pai, que aceitou levá-la, com Donna e mais
duas amigas, a Chatham, para todas poderem participar no importante
evento a que chamam First Night. Eu tenciono passar a noite sozinha na
praia, embora vá precisar de várias camadas de lã espessa para me proteger
do vento frio proveniente da baía. Nos últimos tempos, tenho pensado em
todas as noites que a Mamie passou a perscrutar o céu, e parece-me
apropriado terminar o ano da mesma forma, no lugar com melhor
visibilidade.
Tiro o casaco e o chapéu e espreito para o gabinete de Thom Evans,
onde ele parece estar a dormitar sobre o tampo da secretária, mesmo não
havendo álcool à vista. Hesito antes de bater à porta. Ele deve ter quase
setenta anos; sei que concluiu o liceu no mesmo ano que a minha mãe e, por
instantes, o seu rosto evoca o passado e aviva as saudades que tenho dela.
Bato levemente à porta e ele acorda de imediato. Agita alguns papéis e
aclara a garganta, procurando ingenuamente convencer-me de que não
estava a dormir.
– Hope! – exclama. – Entra!
Transponho a porta, e ele aponta para uma das cadeiras voltadas para a
secretária. Levanta-se e revolve os documentos do arquivo, ao mesmo
tempo que faz conversa de circunstância: diz-me que a Annie está muito
crescida e que a sua sobrinha-neta, a Lili, gostou dos biscoitos de gengibre
que ele comprara na minha confeitaria, a caminho de Plymouth, onde
passara a véspera de Natal com a irmã e a respetiva família.
– Ainda bem que os biscoitos foram um sucesso – digo. – Era uma das
receitas preferidas da minha avó na época natalícia.
Quando eu tinha a idade da Annie, levava muito a sério a minha função
de decoradora oficial dos biscoitos de gengibre; adoçava todas as pequenas
figuras com chapéus, luvas e até, por vezes, fatos de Pai Natal.
– Lembro-me disso – diz Thom Evans, sorrindo. Acaba por retirar um
dossiê do arquivo e volta a sentar-se à secretária. – A Lili tem um pedido
especial para o próximo ano. Deseja saber se podes fazer os bonecos de
gengibre com patins de gelo.
– Ela agora dedica-se à patinagem no gelo? – pergunto, soltando uma
risada.
– Neste último ano, só quis saber da equitação, mas agora voltou-se para
a patinagem – diz. – Sabe-se lá qual será a obsessão daqui a um ano.
– Na verdade – digo delicadamente, com um sorriso –, receio que a
confeitaria já não exista no próximo Natal.
Ele ergue a sobrancelha.
– Hã?
Confirmo com um aceno de cabeça e baixo os olhos.
– O banco vai exigir o pagamento do empréstimo. Eu não tenho como
pagá-lo. Têm sido anos difíceis, também por causa do estado da economia.
Thom Evans permanece algum tempo em silêncio. Põe os óculos e
examina um dos documentos que retirou do dossiê.
– Sabes, se estivéssemos em Do Céu Caiu Uma Estrela, eu dir-te-ia que
todos os habitantes da cidade iriam ajudar a salvar o teu negócio.
– Pois – rio-me. – E a Annie diria a toda a gente que «sempre que um
sino toca, um anjo ganha asas». – Trata-se do meu filme preferido; A Annie
e eu vimo-lo na véspera de Natal, com o Alain, ainda na semana passada.
– Queres mesmo salvar a confeitaria? – pergunta ele instantes depois. –
Se pudesses, optarias por outra profissão?
Reflito durante algum tempo.
– Não. Quero mesmo salvá-la. Não sei se diria o mesmo há alguns
meses. Mas agora ela tem para mim um significado totalmente diferente.
Sei que é este o meu legado. – Rio-me sem especial convicção e volto a
recordar o filme. – Afinal, onde é que se encontram vizinhos generosos
quando mais precisamos deles?…
– Hum… – diz Thom Evans. Ele analisa o documento durante mais
algum tempo e ergue o olhar para mim, esboçando um ligeiro sorriso. – E se
eu te dissesse que não precisas dos habitantes da cidade para salvar a
confeitaria?
– Como? – pergunto, fitando-o.
– Eu explico – anuncia ele. – De quanto dinheiro precisarias para pagar
as despesas e pôr a confeitaria a funcionar normalmente?
Rio-me com indiferença e desvio o olhar. Feita por qualquer outra
pessoa, esta pergunta seria indelicada. Todavia, eu conheço Thom desde
sempre e sei que não está a ser metediço; ele é mesmo assim.
– Precisaria de muito mais do que tenho – digo finalmente. – De muito
mais do que alguma vez terei.
– Oh… – Ele põe maquinalmente uns óculos de leitura e concentra o
olhar no documento. – Três milhões e meio serão suficientes?
Quase me engasgo.
– Como? – atiro.
– Três milhões e meio – repete ele calmamente. Espreita-me sobre os
óculos. – Resolveriam os teus problemas?
– Bolas, acho que sim. – Rio-me com algum desconforto. – Eu ganhei a
lotaria?
– Não – responde. – Acontece que esse é o valor que Jacob Levy
acumulou em poupanças e várias aplicações. Deves recordar-te de que,
quando me contactaste a propósito dos preparativos para o funeral dele, no
mês passado, eu conversei com o advogado dele em Nova Iorque. O nome
que constava nos seus documentos?
– Claro que me lembro – murmuro. Apesar do Jacob nunca se ter
voltado a casar e de não haver familiares conhecidos, eu sabia que tínhamos
de comunicar a sua morte a alguém, mais ainda porque pretendíamos
sepultá-lo aqui, em Cape. O Gavin ajudou-me a localizar o advogado
referido nos documentos do Jacob.
– Pois bem, acontece que o testamento de Jacob Levy deixa todos os
seus bens à tua avó, ou aos seus descendentes diretos – prossegue Thom
Evans. – Ao que parece, ele sempre acreditou que ela sobrevivera e que a
viria a encontrar. Foi isso que me transmitiu o advogado dele.
– Mas então… – Sinto a minha voz sumir-se enquanto procuro digerir
tudo o que ele me está a comunicar.
– Tu és a primeira descendente direta de Rose Durand McKenna, que,
como agora sabemos, era anteriormente Rose Picard – continua ele. – O
património de Jacob Levy é teu.
– Então… – repito, esforçando-me por compreender as suas palavras. –
Está a dizer-me que o Jacob tem três milhões e meio de dólares?
Thom Evans acena afirmativamente.
– E agora estou a dizer-te que tu tens três milhões e meio de dólares.
Depois de muita burocracia, é claro. – Ele volta a examinar os documentos.
– Ao que parece, após a sua chegada aos Estados Unidos, ele conseguiu
subir a pulso, passando de ajudante na cozinha de um hotel a gestor de um
hotel e, mais tarde, a coproprietário de um hotel. Foi isso que o seu
advogado me explicou. Seria já milionário em 1975, tendo criado nesse
período uma instituição de apoio a sobreviventes do Holocausto. Construiu
mais seis hotéis de sucesso e vendeu as suas ações há três anos. Parte da sua
fortuna destina-se a uma anuidade que financia a instituição de
solidariedade. O restante, três milhões e meio, está reservado para ti.
– Mas ele não me falou em nada – digo.
Ele encolhe os ombros.
– O advogado dele explicou-me que era muito modesto. Viveu sempre
abaixo das suas possibilidades. Utilizava os seus recursos para contratar
detetives, incumbindo-os de procurar a tua avó. No entanto, ele nunca
soube o nome falso que a tua avó adotou. Nunca a conseguiu encontrar.
– Meu Deus – murmuro. Enquanto tento assimilar estas notícias, Ele
parece compreender a minha estupefação.
– E há mais – continua. – A tua avó também tinha algum património.
Naturalmente, o lar esgotou a maior parte dos seus fundos, como sabes, mas
ainda sobrou algum dinheiro. Contas feitas, cerca de setenta e cinco mil
dólares. O suficiente para pagar o que resta do empréstimo relativo à casa
da tua mãe.
– É inacreditável – murmuro, abanando a cabeça.
– E – acrescenta – há ainda uma carta. A tua avó enviou-ma em
setembro passado. O envelope está fechado – prossegue. – No bilhete que
me escreveu, a tua avó pedia-me que te entregasse a carta no último dia do
ano em que falecesse.
Sinto um nó na garganta que me impede de responder. Pestanejo para
conter as lágrimas enquanto ele me entrega um envelope fino, fazendo-o
deslizar pelo tampo da secretária.
– Sabe o que diz a carta? – pergunto, depois de recuperar a voz.
Thom Evans abana a cabeça.
– Não preferirás lê-la em casa? Preciso apenas da tua assinatura em
alguns documentos para transferir o dinheiro da tua avó para a tua conta. O
advogado de Jacob Levy também está a tratar da transferência do dinheiro
dele. Deverás tê-lo em breve. Entretanto, se quiseres, poderei ir ao banco
falar com o Matt.
Aceno afirmativamente.
– Diga-lhe, por favor, que vou pagar, imediatamente, o empréstimo da
confeitaria – peço. – Chega de pagamentos ao banco. Quero que ela
permaneça para sempre na minha família.
– Muito – diz, fazendo uma pausa. – Hope? – pergunta, hesitante.
– Sim?
Ele suspira e olha pela janela.
– A tua mãe teria muito orgulho em ti, sabes?
– Não creio que isso seja verdade – digo, abanando a cabeça. – Viu-me
sempre como uma desilusão. Penso que desejava nunca me ter tido.
É a primeira vez que profiro estas palavras, sem saber o que me leva a
fazê-lo agora, perante Thom Evans.
– Isso não é verdade, Hope – diz ele com delicadeza. – A tua mãe era
uma mulher de trato difícil, como bem sabes. Mas tu eras o centro da vida
dela, ainda que possas não o ter percebido.
– Não era, não – afirmo. – O centro era o Thom. E todos os homens que
entravam e saíam da vida dela. Sem ofensa.
– Não tem importância – diz ele.
– Era como se estivesse sempre em busca de algo que não conseguia
encontrar – concluo.
– Nos últimos dias de vida, penso que o conseguiu – afirma ele. – Mas
talvez tenha sido demasiado tarde para to conseguir transmitir
adequadamente.
– A que se refere? – pergunto, erguendo os olhos.
Ele solta um suspiro.
– Dizia constantemente que a sua frieza a impedia de se ligar às pessoas.
– Ela disse-lhe isso? – Mesmo no final, a minha mãe nunca me parecera
muito consciente da sua identidade. De resto, eu não sabia sequer que ela se
mantivera em contacto com Thom Evans. Estava convencida de que as
pessoas que saíam da sua vida jamais voltavam. Espanta-me saber que ela o
tinha acolhido de novo.
– Conversámos sobre muitos assuntos – diz ele, encolhendo os ombros.
– Sobretudo nos últimos dias. Penso que, quando sentiu que estava a
morrer, ela se arrependeu de muitas atitudes. Só no fim da vida, Hope, ela
compreendeu que tivera sempre por perto aquilo que procurava.
– Como assim? – pergunto, pestanejando.
– Ela amava-te – diz ele. – Mais do que conseguira efetivamente
entender quando era jovem. Creio que passou a sua vida à procura do amor,
duvidando da sua própria capacidade para o sentir, e que, no final, percebeu
que esse amor estivera sempre por perto. Em ti. E, se o tivesse
compreendido mais cedo, tudo poderia ter sido diferente.
Limito-me a fitá-lo, sem saber o que dizer.
– Vai ler a carta da tua avó, Hope – diz com afeto. – E, se alguma coisa
a tua mãe te pode ensinar, é que não tens de ir tão longe como pensas para
alcançares aquilo que já está mesmo à tua frente.

Nessa noite, telefono à Annie para lhe contar tudo sobre a herança do
Jacob. É suficiente para resolver o problema da confeitaria e pagar as suas
futuras propinas. E ainda sobra uma bela quantia. Enquanto a ouço gritar e
celebrar do outro lado da linha, sorrio e prometo a mim mesma esforçar-me
mais para a entender. A nossa vida vai melhorar. Ela é uma miúda às
direitas, e eu sei que é minha responsabilidade tentar sempre aperfeiçoar-me
enquanto mãe. Talvez eu possa ser melhor mãe do que pensava.
Digo à Annie que se divirta na celebração da First Night, e ela promete
telefonar-me após a meia-noite, logo que inicie a viagem com as amigas no
carro do Rob. Seguem para casa dele, onde vão passar juntas a noite de Ano
Novo.
Passam poucos minutos das onze quando finalmente me aconchego em
frente à lareira com a carta da Mamie. As minhas mãos tremem quando a
abro; tenho consciência de que este é o último fragmento dela. Tanto quanto
sei, podem ser umas frases sem nexo, por causa da doença de Alzheimer, ou
algo que guardarei para sempre como um tesouro. Em qualquer caso, ela
partiu. O Jacob partiu. A minha mãe partiu. Dentro de seis anos, a Annie
estará muito mais crescida e sairá de casa. Envolvo-me numa manta,
tricotada pela minha avó quando eu era apenas uma menina, tentando não
me sentir tão só.
Retiro a carta do envelope. Tem a data de 29 de setembro. O dia em que
levámos a Mamie à praia. O dia em que ela me entregou a lista de nomes. A
primeira noite do Rosh Hashanah. A noite em que tudo começou. Sentindo
o coração bater desordenamente, respiro fundo.
Minha querida Hope, começa. Nos dez minutos seguintes, leio. Começo
por passar os olhos pela carta e, em seguida, com lágrimas nos olhos, volto
a lê-la, desta vez mais devagar, ouvindo interiormente a Mamie a articular
cada palavra com a sua pronúncia cuidada e melodiosa.
Capítulo 32

Rose

Minha querida Hope,


No instante em que me sento para te escrever, sei que esta pode ser a
última oportunidade de que disponho para te falar com clareza. Sei que
os meus dias estão a chegar ao fim. Receberás esta carta depois de eu
partir, e quero que saibas que eu estava preparada. A minha vida foi
longa, teve muitos momentos maravilhosos, mas, nesta fase de declínio, o
passado veio de novo acossar-me, tornando a minha vida insuportável.
Esta noite, se me for possível manter a lucidez, entregar-te-ei uma
lista de nomes que ficaram gravados no meu coração e escritos no céu.
Quando leres esta carta, saberás que a maior parte da minha vida foi uma
mentira. Foi, contudo, uma mentira necessária para, em primeiro lugar,
proteger a tua mãe e, em segundo lugar, me proteger a mim.
Não sei se descobrirás sozinha a verdade. Espero que o consigas.
Mereces saber o que aconteceu e eu, aliás, já to devia ter contado há
muito. Eu sabia que estava obrigada a cumprir a promessa que fiz ao teu
avô enquanto ele fosse vivo, mas, mesmo depois da sua morte, partilhar a
verdade contigo ou com a tua mãe parecia-me uma enorme traição à sua
memória. E ele era um homem maravilhoso, um bom marido, um pai e
avô dedicado. Não lhe quero ser desleal. Todavia, nos últimos meses, com
as visitas cada vez mais frequentes do passado à escuridão das minhas
memórias, sei que não posso levar os meus segredos comigo. Mereces
saber quem sou. E quem és.
Eu sou cobarde. Essa é a primeira coisa que tenho de te transmitir.
Sou cobarde porque fugi do passado. Precisei de menos coragem para me
transformar noutra pessoa do que para enfrentar as fraquezas da pessoa
que outrora fui. Sou cobarde porque escolhi perder-me nesta nova vida.
Caso tenhas ido a Paris, saberás que sou uma Picard. É essa a minha
família. Fui criada num lar judaico progressista. O meu pai era médico.
A minha mãe era uma imigrante polaca cujos pais geriam uma
confeitaria, como acontece agora contigo. Eu tinha duas irmãs e três
irmãos. Morreram todos. Todos. Já aceitei esse facto, mas ainda me
culpabilizo por não os ter resgatado. Essa culpa acompanha-me todos os
dias.
Há também um homem de quem te devem ter falado, um homem
chamado Jacob Levy. Não pronuncio este nome desde 1949, o ano em que
o teu avô, regressado de Paris, me comunicou que o Jacob morrera em
Auschwitz. Desde então, procuro-o todos os dias no céu. Não o consigo,
porém, encontrar.
O Jacob, minha querida Hope, foi o amor da minha vida. Amei
também o teu avô; não quero que tenhas qualquer dúvida a esse respeito.
Porém, acredito que, na vida, apenas podemos ter um grande amor, e o
Jacob foi o meu. A maior parte das pessoas não o encontra. E eu
compreendi, depois de envelhecer, que, ao fechar o meu coração, talvez te
tenha privado da oportunidade de alcançar esse tipo de amor, como
privei, aliás, a tua mãe. Se não nos ensinarem a amar, é difícil
encontrarmos o caminho sem apoio. Não permitas que esse seja o meu
único legado.
Sei que errei em tudo. Fechei o coração quando descobri que o Jacob
partira e não soube voltar a abri-lo. Talvez não o desejasse fazer. No
entanto, por esse motivo, não amei a tua mãe da melhor forma, e isso
alterou o curso da sua vida e, naturalmente, da tua. Nunca conseguirei
transmitir-te a dimensão do meu arrependimento. Falhei a ambas. Espero
apenas que não seja demasiado tarde para reparares esses erros na tua
vida.
O Jacob morreu antes de vos poder conhecer, à tua mãe, a ti ou à
Annie, e, nesse sentido, acho que o destino nos pregou uma partida. É
que a tua mãe era filha dele. Tu és neta dele. O Ted, que sempre
conheceste como teu avô, soube-o sempre e criou-vos como se fossem do
seu sangue. Ele já sabia, quando nos conhecemos, que nunca poderia ter
filhos, devido a um ferimento que sofrera durante a guerra. Ele deu-me
uma nova vida e eu dei-lhe uma família. Era um pacto que ambos
aceitávamos e de que nunca me arrependi. Ele era um homem
maravilhoso, mais do que eu merecia. Não deixes, por favor, que esta
revelação o diminua aos teus olhos, pois, se assim for, terei falhado a
minha última grande tarefa. Ele foi, e será sempre, o teu avô.
Só em 1949 tive a certeza de que o Jacob morrera, embora muitas
pessoas me tivessem assegurado, antes do meu casamento com o teu avô,
que ele fora morto em Auschwitz. Não acreditei nessas palavras. Recusei-
me a fazê-lo. Estava convencida de que, se isso fosse verdade, a minha
alma mo diria, e isso não aconteceu. Perguntar-te-ás, pois, como fui
capaz de me casar com o teu avô se acreditava que o Jacob ainda voltaria.
Foi o ato mais cruel da minha vida. O teu avô nunca soube que o
Jacob e eu nos casáramos em segredo, poucos meses antes de eu
abandonar Paris. Nunca soube que a tua mãe fora concebida na nossa
noite de núpcias. Quando o teu avô me pediu em casamento, não tinha
consciência de que, se o Jacob regressasse, a nossa união seria anulada.
Eu estava disposta a fazer isso ao teu avô, e esse é um facto com que
tenho de viver até ao fim. Eu tê-lo-ia deixado sem hesitar se o Jacob
voltasse e isso constituía, naturalmente, uma enorme injustiça para com
ele. Contudo, casar-me com Ted antes do nascimento da tua mãe
significava que ela seria americana. Seria livre. Ninguém a poderia levar
para um campo de concentração. E ela era, sem qualquer dúvida, a
minha maior responsabilidade. Eu não podia recusar um pedido de
casamento de um americano. Era imperioso salvar a tua mãe, a minha
filha, o último sinal do Jacob na minha vida.
O teu avô e eu tivemos uma boa vida juntos, e eu nutria por ele um
amor profundo, ainda que diferente do que senti pelo Jacob. Amava-o,
acima de tudo, pelo pai que foi para Josephine e, mais tarde, pelo avô que
foi para ti. Dedicou a ambas um afeto que eu era incapaz de vos dar.
Noutras circunstâncias, partir-me-ia o coração vê-lo convosco, mas o
meu coração gelara muitos anos antes. Sem intenção, reprimi o meu
amor por ele, pela tua mãe, por ti e pela Annie.
E esse é, infelizmente, o legado que deixo: um coração frio.
Sei que me recordarás dessa forma. Quero que saibas, porém, que
nem sempre fui assim. Tempos houve em que fui feliz e livre, em que amei
sem reservas, desconhecendo o quanto o amor nos podia ferir. Gostava
que me tivesses conhecido então. E gostava que tivesses conhecido o
Jacob, pois ele ter-te-ia amado com igual intensidade. Ele teria muito
orgulho em ti. Mas a verdade é que cometi todos os erros que podia ter
cometido e, no final, abandono o mundo sem nada.
O meu anseio mais profundo é que o teu destino seja diferente do
meu. Desejo que aprendas a abrir o coração. Mantive o meu fechado
durante todos estes anos, por sentir medo, mas errei. A vida é uma
sucessão de oportunidades, e tu deves ter a coragem de as aproveitar. Não
quero que vejas passar os anos, colecionando apenas arrependimentos.
Tens a vida toda à tua frente, tal como a Annie. Aprende a deixar-te
amar, minha querida Hope, pois mereces esse amor. Aprende a amar
espontaneamente. O amor é muito mais forte do que imaginas. Percebo-o
agora, demasiado tarde para mim.
O que te desejo, minha querida Hope, é uma vida plena. Uma vida em
liberdade num país que te deixa ser quem és. Uma vida em que saibas ter
Deus sempre a zelar por ti, pois Ele vive entre as estrelas. E quero muito
que sejas feliz para sempre, como nos contos de fadas que eu te contava
quando eras ainda uma menina. Tens apenas de procurar esse amor com
todas as forças que encontrares no teu coração. Ama e ousa deixar-te
amar, pois só assim conseguirás encontrar Deus. Ele está presente, mais
do que em qualquer outro lugar, no teu coração.

Amar-te-ei sempre,
Mamie
Capítulo 33

Tenho lágrimas nos olhos quando acabo de ler a carta. Pouso-a e,


embrulhada ainda na manta, caminho vagarosamente até ao terraço,
inspirando o ar frio da noite. Aconchego um pouco mais a manta da Mamie
à volta dos ombros, deixando-me envolver num último abraço.
– Estás aí em cima? – murmuro para o vazio. À distância, porventura
vindos da baía, a um quarteirão de distância, ouço sons indistintos de
pessoas que aproveitam a última hora do ano que agora termina. Penso em
tudo o que podemos começar de novo e em tudo o que não podemos
reparar.
Ergo os olhos para o céu e busco as estrelas, aquelas que a Mamie
sempre procurava. Agora sei onde estão – as da Ursa Maior – e sigo a linha
formada por duas estrelas naquela espécie de caçarola, como ela me
ensinou, até encontrar a estrela Polar, a Polaris, a brilhar mais acima, a
norte. Pergunto-me se assinala o caminho para o céu divino. Pergunto-me o
que procurou a minha avó durante todos estes anos.
A minha observação prolonga-se e, tendo já perdido a noção das horas,
apercebo-me de um pequeno movimento algures entre a Ursa Maior e a
estrela Polar. Concentro o olhar, pestanejando várias vezes, e consigo
finalmente vislumbrá-las.
Entre a escuridão cerrada, tão ténues que mal as distingo, duas estrelas
percorrem o firmamento, imediatamente a norte da Polaris, seguindo
caminho para um céu mais distante. Sei que são estrelas cadentes; afinal, as
noites de Cape são suficientemente escuras e carregadas para avistarmos
mais astros na escuridão do que a maioria das pessoas de toda a Costa
Leste. Passei muitas noites, durante a adolescência, a contar estrelas e a
formular desejos sempre que uma parecia descer do céu.
Contudo, estas estrelas são diferentes. Não estão a descer. Limitam-se a
atravessar o manto da noite, reluzentes e esplendorosas, dançando lado a
lado na escuridão.
Sigo, boquiaberta, o seu percurso. Os sons da Terra – os risos distantes,
o rumor vago de um televisor longínquo, o batimento das ondas na praia –
extinguem-se, e eu observo, na minha redoma de silêncio, as estrelas
diminuírem progressivamente de tamanho e acabarem por desaparecer.
– Adeus, Mamie – sussurro quando deixo de as ver. – Adeus, Jacob. – E
acredito que, de alguma forma, o vento que agora uiva à minha volta lhes
leva as minhas palavras.
Perscruto o céu mais um minuto e, quando o frio se começa a infiltrar
no meu corpo, volto para dentro. Dirijo-me à mesa da cozinha, onde pego
no meu telemóvel. Marco primeiro o número da Annie e sorrio quando ela
atende.
– Está tudo bem, mãe? – pergunta entre os ruídos das comemorações em
Chatham. Há música, risos, felicidade.
– Sim – confirmo. – Queria apenas dizer-te que te amo.
Ela permanece em silêncio alguns instantes.
– Eu sei – acaba por dizer. – Eu também te amo, mãe. Ligo-te mais
tarde.
Digo-lhe que se divirta e, depois de desligar, fito o telefone durante uns
trinta segundos antes de percorrer a lista de contactos e fazer novo
telefonema.
– Hope? – O Gavin atende com uma voz profunda e terna. Respiro
fundo.
– A minha avó deixou-me uma carta – digo, sem delongas. – Acabei de
a ler.
Ele mantém o silêncio durante algum tempo e eu amaldiçoo-me por não
ter mais jeito para estas coisas.
– Estás bem? – acaba por perguntar.
– Sim – digo com convicção. Agora estou bem e sei que tudo vai correr
bem. Falta apenas uma coisa. Quero agora juntar todas as peças. A Mamie
esperou uma vida inteira para o fazer e a minha mãe não teve sequer essa
possibilidade. – Desculpa – digo sem me conter. – Peço-te desculpa por
tudo. Por te ter afastado. Por ter fingido que não significavas nada para
mim.
Não obtenho resposta e, naquele silêncio, os meus olhos enchem-se de
lágrimas.
– Gavin – chamo, respirando fundo. – Quero ver-te. – Ouço a sua
respiração. Esta longa pausa parece distanciar-nos e eu convenço-me de que
o perdi.
– Desculpa – murmuro, conformada. Consulto o relógio, que indica
23h42. – Já é tarde.
– Hope… – diz por fim o Gavin. – Nunca é tarde.
Quinze minutos depois, ouço o seu jipe na minha entrada, e, antes de o
relógio indicar a meia-noite, ele está à minha porta. Eu aguardava-o, com a
porta escancarada, pouco me ralando com o impiedoso frio da noite. Isso já
não me preocupa.
– Olá – diz o Gavin quando se encontra diante de mim, na entrada.
– Olá – respondo. Fitamo-nos, e o Gavin segura a minha mão. Nenhum
de nós está com luvas, mas há calor entre nós, e eu sinto cada centímetro do
meu corpo a arder, apesar do frio glacial da noite. Algures à distância, ouço
vozes imprecisas entoarem uma contagem decrescente e, em seguida,
celebrarem a passagem do ano.
– Feliz Ano Novo – diz o Gavin, aproximando-se um pouco mais.
– Feliz Ano Novo – murmuro.
– Aos novos começos – diz. E, antes de eu poder responder, os seus
braços envolvem-me e os seus lábios beijam os meus. Acima de nós, as
estrelas cintilam e dançam, como que a iluminar-nos desde a imensidão do
firmamento.
Agradecimentos

Este é o livro que há muitos anos eu desejava escrever, e a sua


concretização demonstrou como é importante seguir o meu instinto e
rodear-me de pessoas maravilhosas e dignas em quem verdadeiramente
confio e que muito prezo. A minha agente, Holly Root, e a minha editora,
Abby Zidle, são ambas incrivelmente amáveis, diligentes, sábias e
talentosas, pelo que nunca lhes conseguirei agradecer devidamente o seu
esforço, os seus contributos, a sua amizade e o seu encorajamento.
Considero-me a mulher mais afortunada do mundo por trabalhar com elas.
O agente literário Farley Chase foi fantástico na questão dos direitos de
autor no estrangeiro, e o encantador Andy Cohen preencheu a minha
agenda na Costa Oeste. Estou também muito grata a Lindsey Kennedy, Beth
Phelan, Parisa Zolfaghari, Jane Elias, Susan Zucker, Jennifer Bergstrom e
Louise Burke pelo seu papel na materialização deste romance. Não creio
que fosse possível encontrar uma equipa mais atenciosa e mais solidária. A
romancista Wendy Toliver foi uma incrível «caixa de ressonância», amiga,
primeira editora e parceira de brainstorming; quero igualmente agradecer a
Anna Haze – que faleceu demasiado cedo, apenas aos dezanove anos – por
me apresentar a Wendy. Foi uma dádiva maravilhosa. Henri Landwirth, o
primeiro sobrevivente do Holocausto que conheci, foi uma grande
inspiração. Lauren Elkin, minha boa amiga e antiga companheira de casa
em Paris, voltou a dar-me abrigo durante uma viagem de pesquisa à Cidade
das Luzes; o seu primeiro romance (Cités Flottantes) foi lançado em abril
de 2012, em França, e eu não poderia estar mais feliz por ela.
Gostaria de agradecer às muitas pessoas que não se pouparam a esforços
para responder a perguntas sobre elementos factuais deste livro. Darlene
Shea, dos Bombeiros de Brewster, contribuiu para uma primeira versão, e
Danielle Ganung ajudou-me a obter respostas a perguntas relacionadas com
as receitas. Karen Taieb, do Mémorial de la Shoah, em Paris, foi
extremamente prestável na pesquisa sobre o Holocausto que realizei em
França. Bassem Chaaban, o diretor operacional da Islamic Society of
Central Florida, e o rabino Rick Sherwin, da Congregation Beth Am, em
Orlando, tiveram a amabilidade de me ajudar a verificar informações sobre
algumas das referências religiosas e culturais. Os eventuais erros que
subsistam no livro são da minha responsabilidade.
Agradeço ainda calorosamente a Kat Green, Tia Maggini, Vanessa
Parise, Nancy Jeffrey, Megan Crane, Liza Palmer, Sarah Mlynowski, Jane
Porter, Alison Pace, Melissa Senate, Lynda Curnyn, Brenda Janowitz,
Emily Giffin, Kate Howell, Judith Topper, Betsy Hansen, Renee Blair, GK
Sharman, Alex Leviton, Kathleen Henson, Anna Treiber e Jen Schefft
Waterman, que se revelaram importantes fontes de inspiração,
brainstorming e amizade ao longo dos anos! O meu obrigada também à
equipa do The Daily Buzz, sobretudo a Brad Miller, Andrea Jackson, Andy
Campbell, Mitch English, Kia Malone, KyAnn Lewis, Michelle Yarn e Troy
McGuire.
Agradeço aos muitos outros amigos maravilhosos que tenho, incluindo:
Marcie Golgoski, Kristen Milan Bost, Chubby Checker (e a sua adorável
família), Lisa Wilkes, Melixa Carbonell, Scott Moore, Courtney Spanjers,
Gillian Zucker, Amy Tan, Lili Latorre, Darrell Hammond, Krista Mettler,
Christina Sivrich, Pat Cash, Kristie Moses, Lana Cabrera, Ben Bledsoe,
Sanjeev Sirpal, Ryan Moore, Wendy Jo Moyer, Amy Green, Chad Kunerth,
Kendra Williams, Tara Clem, Megan Combs, Amber Draus, Michael
Ghegan, Dave Ahern, Jean Michel Colin, John e Christine Payne, Walter
Caldwell, Scott Pace, Ryan Provencher e Mary Parise. É uma sorte incrível
ter estas pessoas maravilhosas na minha vida.
Dedico um agradecimento especial a Jason Lietz – por tudo.
É também um privilégio pertencer à melhor família do mundo, que
inclui a minha mãe, Carol (a pessoa mais compreensiva do universo); a
minha irmã, Karen; o meu irmão, Dave; e o meu pai, Rick. Agradeço ainda
ao meu cunhado Barry Cleveland, à minha tia Donna Foley, à minha
madrasta, Janine, ao meu primo Courtney Harmel, aos meus avós e a todos
os meus outros familiares, incluindo Steve, Merri, Derek, Janet, Anne, Fred,
Jess e Greg. Adoro-vos a todos.

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