A Formação Da Personalidade (Padre Leonel Franca S. J.)

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A formação

da personalidade

PE. LEONEL FRANCA S.J.


A formação da personalidade
Pe. Leonel Franca, S.J.
AGIR, 1954 (Obras completas, 15)
2ª edição — julho de 2019 — CEDET
Copyright © by CEDET

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Armando Strazzacappa, 490
CEP: 13087-605 — Campinas–SP
Telefones: (19) 3249–0580 / 3327–2257
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Editor:
Felipe Denardi

Preparação do texto:
Jefferson Bombachim
Vitório Armelin

Diagramação:
Pedro Spigolon

Capa:
Gabriela Haeitmann

Revisão de provas:
Luiz Fernando Alves Rosa
Verônica Rezende

Desenvolvimento de eBook:
Loope Editora | loope.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Franca S.J., Leonel.


A formação da personalidade, Pe. Leonel Franca S.J. – Campinas, SP: Kírion,
2019.

ISBN: 978-85-94090-26-3

1. Teoria e filosofia da educação – 370.1


2. Moral e ética na educação – 370.114
3. Problemas específicos na educação pública: ensino de religião na escola –
379.2
I. Autor II. Título
CDD 370.1 / 370.114 / 379.2

Índices para catálogo sistemático:


1. Teoria e filosofia da educação – 370.1
2. Moral e ética na educação – 370.114
3. Problemas específicos na educação pública: ensino de religião na escola –
379.2

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução


desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica,
fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão
expressa do editor.
IMPRIMI POTEST
P. Josephus da Frota Gentil, S.J.
Ex commissione Emmi. Card. Archiepiscopi
Flumine Januario, 15 augusti 1954.
Sumário

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Formação
Escola única
Educação
Educação sexual
Educação social
O direito de educar
A família
A escola
O Estado e a escola
Laicidade
Conclusão
Unidade e dispersão em pedagogia
Progresso e tradição em pedagogia
Escola Nova e pedagogia social
Pedagogia social I
Pedagogia social II
Pedagogia socialista
O pensamento social
Unidade da pedagogia católica
Renascimento da pedagogia católica
As responsabilidades do educador
Sobre o Manifesto Educacional
O ensino no Brasil
Humanismo e Idade Moderna
I
II
Política educacional
O ensino religioso na Constituição — Aspecto pedagógico
Discurso na inauguração de uma sede de escotismo
Meditação
Escola leiga I
Escola leiga II
Escola leiga III – A
Escola leiga III – B
Ensino do catecismo
Ensino religioso
O decreto de 30 de abril de 1931
Leituras
I - Regras de consciência
II - Leituras de romances
Leituras
III - Boas leituras
Leituras
IV - Boas leituras
Ação Católica e educação
Ação Católica no campo escolar
Moral leiga I
A moral e os destinos do homem
Moral leiga II
A moral e o dever
Moral leiga III
A moral e a sanção
Deus é sanção da ordem moral
Padre Leonel Franca
O que é formação.

Formação e cultura — sinal de grandeza e indigência do


homem.

Formação abrange:

I — Aquisição de técnicas.

Que é uma técnica.


Necessidade e importância de sua aquisição.
Juventude, idade favorável.

II — Formação da personalidade:

a) Problema pessoal da valorização da própria vida.


b) Problema de eficiência do apostolado educativo, que
depende do valor humano:

1º prova de sinceridade.
2º vida que só transmite a vida.

c) Problema do rendimento cristão da atividade social que


deve visar o homem.

Oportunidade da juventude.
Rio, abril, 1938.
Formação

N O LIMIAR do ano letivo, num Instituto de Formação, nenhum


assunto se oferece mais espontâneo, mais a propósito e mais
útil que a análise mesma da idéia de formação, de seu conteúdo, da
sua importância e necessidade.
Quem diz formação diz esforço para adquirir ou comunicar uma
forma. E forma tem, aqui, não o seu significado óbvio e corrente de
feitio, figura, aparência externa das coisas, forma; mas o sentido
mais profundo e filosófico de perfeição, atuação de uma
potencialidade anterior. Formar-se é, no sentido amplo, adquirir
novas qualidades, acordar perfeições que dormiam nas
possibilidades da nossa natureza.
Nesta acepção formação é quase sinônimo de cultura, e a
análise de uma destas noções esclarece a outra. A palavra cultura,
aplicada ao homem, é metafórica e deriva da analogia com os
campos, aos quais se aplicam primeiro e ainda se aplica em sentido
próprio. Cultivai — agricultura. Tomai uma terra no seu estado
nativo; cardos e espinhos, ervilhaca e tiririca; plantas úteis e ervas
venenosas — tudo em desordem e confusão — é uma terra brava
— selvagem. Passai-lhe o arado, arroteai-a, enriquecei-lhe com
adubos apropriados a fecundidade natural e tereis jardins, pomares
e plantações: é uma terra cultivada. Transportai a analogia para a
nossa vida superior. Também aqui, no domínio do espírito — uma
grande possibilidade da natureza, a psicologia humana com toda a
riqueza de suas virtualidades latentes; a inteligência, o sentimento, a
atividade. Também aqui deixai todas estas virtualidades em seu
estado bruto, nativo — tereis o homem selvagem, o bárbaro, o
inculto. Aplicai-lhes o esforço, o trabalho que fecunda a natureza e
desenvolveis as suas forças originais, tereis o homem culto ou
cultivado. A nação que pelas suas instituições oferece aos seus
membros todas as oportunidades e facilidades de se desenvolver,
diz-se uma nação culta ou civilizada; do contrário, bárbara ou
primitiva.
A cultura, como vedes, oriunda, antes de tudo, a grandeza do
homem mas também a sua miséria. A sua grandeza, antes de tudo,
porque indica-lhe a perfectibilidade natural, a possibilidade do
progresso, da conquista de níveis mais altos na realização de ideais
que sempre se elevam. Por isto todas as criações culturais — a
ciência e a arte, a linguagem, o direito, a moral e a religião — são
apanágios da nossa espécie. Constitui título de incontestável
superioridade da nossa natureza. Na série animal, todo o problema
da existência resume-se numa adaptação do organismo ao meio…
No homem, a chama imortal do espírito. Os homini sublime dedit.1
Mas a cultura o homem não a pode tirar de si mesmo; na sua
natureza, isolada, não encontra todos os elementos indispensáveis
ao seu desenvolvimento. O material, os estímulos deste trabalho
fecundo, vou pedi-los ao ambiente físico e social. E ei-lo em
dependência da terra e da sociedade. Cada homem é assim
tributário do tempo e do lugar em que vive. Os que melhor realizam
o ideal humano — o gênio na linha da intelectualidade, o santo na
da perfeição moral —, são os que mais se elevam acima das
contingências particularistas e desenvolvem em si o que há de
universalmente e eternamente humano. Por isto a sua influência
domina os séculos. Numa página de Homero, de Aristóteles ou de
Santo Agostinho, sentimos palpitar algo de eterno, humano, que é
nosso e no fundo de nós ainda hoje desperta consonâncias
profundas. Ainda assim, porém, nem os heróis conseguem de todo
desembaraçar-se das limitações particularizadoras do seu tempo e
do seu ambiente: é esta uma indigência da nossa natureza. Não
somos porém espíritos; pelo corpo, entramos no espaço e no tempo,
pertencemos a um país, a uma raça, e daí sofremos inúmeras
restrições nos nossos desenvolvimentos possíveis. Não nos
detenhamos, porém, neste aspecto da questão, índice apenas de
uma natureza menos perfeita; de um espírito imerso na matéria e
que, na escala dos seres espirituais, ocupa apenas o primeiro
degrau.
Fixemo-nos de preferência na perfeição do espírito, na cultura
como índice de grandeza espiritual, na possibilidade de desenvolver
as nossas riquezas pela formação.
Formação, pois, é cultura e cultura é desenvolvimento e
atuação das nossas virtualidades. A formação implica antes de tudo
e imediatamente a aquisição de técnicos.
E que é uma técnica? De modo geral, a aplicação de
conhecimentos ou descobertas científicas à melhor sistematização e
organização da vida. São instrumentos que ampliam e facilitam a
nossa ação. A inteligência ilumina, a técnica aplica esta luz à
atividade. A ciência descobre as relações de causa e efeito, a
técnica transforma-as em relações de meio a fim. O químico… o
farmacêutico, o químico-industrial… o astrônomo… o navegante… o
biólogo… o cirurgião, o enfermeiro (assepsia)… o físico… (ondas
hertzianas, Branly)… o telegrafista. Por toda parte prende o trabalho
da inteligência — conhecimento da natureza, das suas energias,
descoberta de suas leis, das relações de antecedente e
conseqüente, segue-se a ação iluminada que visa um objetivo
determinado e adapta os meios ao seu conseguimento. A técnica
nasce do diálogo entre a mão e o cérebro.2 E este diálogo não
emudecerá nunca e assegurará ao homem domínio cada vez mais
perfeito sobre a natureza. É o triunfo do espírito sobre a matéria. O
animal não inventa técnicos, porque lhe falta a inteligência; o que
lhe é indispensável para a vida já lhe é dado pela natureza, nas
associações do instinto.
Daí vedes a importância e a necessidade de aquisição das
técnicas. São elas que asseguram o nosso valor profissional e
condicionam em grande parte a eficiência da nossa atividade. Quem
se recusa a este esforço formador, diminui a sua capacidade de
ação, o rendimento do seu trabalho, a utilização real de sua vida.
Amanhã, na família, na escola, na direção de almas, nas múltiplas
responsabilidades que impõe a vida social, cometerá inúmeros
erros, comprometerá o êxito de suas iniciativas, terá o imenso
desgosto de ver atrofiar-se, nas formas mais raquíticas e sem seiva,
todas as sementes que a Providência lhe confiara para que
frutificassem 30%, 60%, 100%. A enfermeira… a professora… a
mãe de família…
Não nos deixemos iludir pelo sofisma fácil que julga poder
substituir-se a competência profissional pela boa vontade. Mas
então não bastam a dedicação e a generosidade para assegurar o
triunfo de uma obra? Não. Quem é generoso, dá tudo o que tem,
mas quem tem pouco não poderá dar senão pouco. A ciência é que
assegura, em boa parte, o sucesso de nossos trabalhos.
E as técnicas adquirem-se principalmente na juventude, que é,
por natureza, a quadra da formação. Todas as nossas faculdades —
inteligência, imaginação, memória — apresentam então uma
capacidade aquisitiva que vai diminuindo com os anos. Há, em toda
natureza nova, uma plasticidade de adaptação e uma exuberância
de recursos, que facilitam a assimilação. Mais tarde, encerra-se o
ciclo das aquisições e cada qual deverá viver dos juros do capital
acumulado. Quem esbanjou a sua mocidade em divertimentos e
frivolidades verá a sua vida escoar-se na esterilidade, vazia,
improdutiva e triste; quem soube aproveitar com seriedade,
constância e afinco, os anos abençoados da vida que sobe,
opulenta de seiva, colherá, nas riquezas de frutos consoladores,
todas as promessas de uma primavera rica de esperança em flores.
Aquisição de técnicas — primeira tarefa da nossa formação,
não, porém, única, nem mesmo a mais importante. Há ainda outro
aspecto da formação, mais profundo, mais difícil, e mais
indispensável — o da nossa personalidade. A aquisição das
técnicas garante-nos o valor profissional; a formação da pessoa
assegura em nós o valor humano. As técnicas aumentam, por assim
dizer, a nossa propriedade, as nossas riquezas, a nossa esfera de
ação; a formação interior desenvolve o que há de mais profundo em
nós mesmos, o nosso eu na orientação para as altas finalidades que
constituem a sua razão de ser. Umas traçam, ao redor de nós, os
limites do que podemos fazer: a outra, gradua na escala dos valores
humanos, aquilo que somos.
Numa época dominada pela fascinação da máquina, numa
civilização que tanto deve do seu esplendor material e externo à
organização das técnicas, nunca será demasiado insistir sobre a
originalidade insubstituível e sobre o primado de grandeza do valor
humano.
1º. A formação do que há de mais profundo em nós mesmos é
antes de tudo um problema estritamente pessoal, melhor, é o
máximo problema, o problema dos problemas, o problema da
valorização da nossa vida.
Cada qual recebe com a existência uma razão de ser própria,
uma vocação rigorosamente sua; realizá-la é realizar a si mesmo; é
responder ao plano divino; falhar a este ideal é fracassar
dolorosamente naquilo que constitui a nossa razão de ser. Nós não
nascemos nem viemos a este mundo para multiplicar os frutos de
uma atividade puramente exterior, mas para fazer do nosso eu uma
obra-prima de perfeição. O que fazemos externamente não tem
valor humano senão, ou como meio de cultivar e desenvolver o
aperfeiçoamento de nossa alma, ou como manifestação
espontânea, irradiação benfazeja da luz e do calor de uma vida
íntima elevada. Separar estes dois aspectos da existência, cultivar
um e descuidar o outro, difundir-se em divertimentos e ocupações
externas e esquecer a nossa elevação íntima é cometer um erro
essencial, que comprometerá, irremediavelmente, com as
finalidades mesmas da vida, o segredo da nossa paz e felicidade.
Não são a multiplicidade e a agitação febril que nos saciam a alma.
Quando, nas horas silenciosas, descemos às profundidades de nós
mesmos para darmos balanço ao que nos vai ficando dos dias, que
irrevogavelmente passam uns após outros, o que nos anima,
consola e pacifica é vermos que, insensivelmente, com os anos vai
também subindo a nossa alma, cada dia mais amiga da verdade e
da justiça, menos egoísta e mais dedicada, menos escravizada à
vicissitude do que nos cerca e mais igual a si mesma, mais
generosa na caridade dos nossos irmãos e iluminada no
conhecimento e mais ardente no amor de Deus. Que paz sentirmos
assim a nossa vida que sobe; sentirmos que a obra-prima de nossa
existência se vai realizando e que um dia poderemos apreciá-la
terminada, num hino de gratidão à contemplação dos olhos de
Deus!
2º. Problema pessoal, valorização da vida e paz interior, mas
também problema de eficiência, problema de apostolado. Todos
nós, de uma ou outra forma, somos e seremos educadores. Tomo
aqui a palavra educação no sentido mais amplo, em toda a força de
sua etimologia, de influência que eleva as almas. Quem não educa
não deve exercer ao redor de si esta irradiação conquistadora, esta
influência que eleva? Não educa só a professora… a mãe… —
educa a diretora de obra… educamos todos na convivência social.
Ora, a influência educadora do homem mede-se pelo seu valor
humano. O homem vale não pelo que diz ou pelo que faz, mas pelo
que é.
Necessário o valor profissional, necessário o valor humano, nos
planos diferentes; como necessário o corpo, necessária a alma para
completar o homem… As técnicas são os instrumentos; quem os
maneja, quem lhes dá o valor para atingir o fim elevado que se
almeja é o homem. Antes de tudo, porque a vida bela é a prova
irrecusável da sinceridade das palavras belas. As nossas
exortações não passarão de sonoridades vazias se não as
garantirmos com o exemplo das nossas realizações vivas. Os que
nos cercam ouvem o que dizemos e vêem o que somos; se houver
desacordo a nossa influência será nula ou pouco menos que isto.
Quando os discursos se orientam num sentido e a vida no outro, os
discursos parecerão hipócritas, e o homem detesta a hipocrisia.
Mais. A educação é um processo vital, é a comunicação de
uma vida. E só a vida comunica e transmite a vida. Este princípio é
geral em toda a biologia: o semelhante gera o semelhante. No
mundo da vida superior, da vida do pensamento e do coração, das
idéias elevadas e dos sentimentos nobres, deixa ele porventura de
ser verdadeiro? Não; muito pelo contrário, aqui mais do que em
qualquer outro domínio, os vivos procedem dos vivos. O educador,
em cuja alma se estancaram as fontes da verdade e do amor,
esterilizou-se como educador. O que ele diz não vai além da
superfície, é uma lição que desliza; é que ele só crê, espera e ama o
que das profundezas da sua consciência lhe inspira e orienta os
atos, que exerce influência profunda. Pobre criança a que cresceu
numa atmosfera de mediocridades! Feliz do homem que na vida
encontrou a luz e o estímulo de grande e nobre exemplar de
homem: “Toda alma que se eleva, eleva o mundo”.3
3º. É ainda esta formação em nós do valor humano que dará à
nossa atividade social a plenitude do seu rendimento. Nós,
católicos, temos da ação social um conceito muito elevado. Em
todas as nossas obras de assistência social, das mais modestas às
de mais larga envergadura, o que visamos em última análise é o
homem, é levar aos nossos semelhantes a possibilidade de se
realizarem integralmente; de atingirem, também eles, esta paz e
felicidade profundas que não se encontra fora da nossa vocação
essencial. Ora, esta finalidade só a poderá compreender
perfeitamente e realizá-la com eficácia quem antes de tudo
trabalhou em si mesmo por desenvolver o que há de mais nobre e
profundo nas riquezas de sua alma.
Importante, como vedes, acima de qualquer encarecimento, a
formação em nós dos valores humanos; oportuna, para este fim
mais do que qualquer outra, a quadra da juventude. Se para a
aquisição das técnicas é favorável a plasticidade dos anos novos,
para a moldagem das almas é de necessidade imprescindível. Nós
não vivemos em vão; cada dia que se passa, cada ato que
praticamos deixa em nós o sulco de sua passagem; é direção que
se firma e uma disponibilidade que se perde. Com o perpassar dos
anos o desenho se vai acentuando nas suas linhas definitivas e não
é possível refazê-lo.
Não somos de cera… somos de mármore. Tomai uma folha de
papel; com ela nova podereis construir um belo modelo; dobrai-a,
porém, num e noutro sentido sem que as dobras obedeçam a um
plano; pior, amarrotai-a desordenadamente; tudo o que quiserdes
fazer mais tarde desta folha trará indelével a fealdade e a anarquia
destes vestígios indeléveis. Na vida espiritual, passa-se o mesmo;
não se destroem as impressões desastrosas de uma juventude mal
vivida. Mesmo uma conversão profunda, que poderá imprimir a uma
vida um rumo de todo em todo diferente, terá que resgatar, numa
luta mais viva com as sobrevivências indesejáveis do passado, as
conseqüências dolorosas de grande erro de princípio. E a conversão
não é o ideal; é um remédio. O ideal de uma vida humana é crescer
para o alto retilínea e elegante como uma palmeira.
Facilitar esta formação moral é a finalidade destas nossas
pequeninas e modestas palestras. Não temos programas rígidos: o
nosso programa obedecerá à flexibilidade orgânica das coisas vivas.
O que elas pedirem de nós, isto faremos. E faremos em colaboração
estreita. Dificuldades que vos ocorreram, questões que desejais
estudar melhor; proponde-me com toda a sinceridade; por escrito ou
de viva voz…

Rio, 1º de abril de 1938.

1 Ovídio, Metamorfoses, I, 85 — NE.


2 Le Roy.
3 Élisabeth Leseur.
Escola única

P ARECE-NOS de bom conselho excluir do programa de


reconstrução nacional a expressão “escola única”. É ambígua e
presta-se a numerosas e disparatadas interpretações, algumas das
quais, se viessem a ser realizadas, representariam regresso nas
nossas instituições de ensino.
1º. Para muitos autores e em vários lugares a “escola única” é
uma reivindicação socialista e comunista. A um comício de
camaradas reunido em julho de 1922 dizia Blum: “Creio que o
dogma republicano da escola única só será realizado pelo
socialismo”. E o Inspetor-Geral da Instrução Pública: “A escola única
é a idéia socialista que cai num meio que ainda o não é”. De fato,
muitas das exigências que se cobrem com este nome supõem que o
Estado é o único pai da família e único patrão, e único proprietário.
É a organização comunista da sociedade. O exemplo da Rússia que
é até agora dos raríssimos países que adotaram oficialmente a
escola única aí está a confirmá-lo.
2º. Para outros autores a “escola única” é sinônimo de
monopólio do Estado; é a morte da iniciativa particular tão benfazeja
em matéria de ensino; é golpe profundo contra a liberdade
profissional que constitui um dos eixos constitucionais na
organização dos países livres. Quando recentemente o pequenino
estado de Oregon, da Confederação Norte--Americana, quis
monopolizar o ensino, estabelecendo a escola única do Estado, a lei
foi denunciada como anticonstitucional ao Supremo Tribunal que na
sua sessão de 1 de junho de 1925 assim fundamentou a sua
sentença: “O Estado não tem de modo algum o poder geral de
estabelecer um tipo uniforme de educação para a juventude,
obrigando-a a receber instrução somente nas escolas públicas”. É
uma sentença a meditar e um exemplo a seguir.
3º. Numa acepção mais aceitável a “escola única” implicaria
uma organização de instrução pública em que as carreiras liberais
não fossem unicamente acessíveis a uma classe social com
exclusão de outras. Este regime já de muito nós o adotamos na
nossa democracia. Das nossas escolas primárias podem os alunos
sem dificuldades passar para os ginásios e daí para as
universidades.
Introduzir portanto uma expressão elástica, equívoca,
imprecisa, que poderá dar margem a controvérsias infindáveis ou a
realizações pedagógicas arriscadas e funestas — num programa de
reconstrução nacional que deve congregar as energias sadias e
tradicionais de todo o povo brasileiro —, não me parece nem justo
nem prudente.
Não há problema tão essencial à vitalidade de um povo como a
educação das gerações que, sucedendo-se no tempo, lhe
asseguram a existência, o vigor e o progresso. Na organização da
escola jogam-se os destinos do futuro.
Debatendo-se numa das crises mais angustiosas que registra a
história, a humanidade de hoje, numa esperança generosa de
desanuviar os horizontes de amanhã, volta-se ansiosa para a
formação de novas gerações.
Onde declina o valor especificamente humano dos cidadãos, a
abundância de bens materiais não assegura a felicidade das
nações; eis a verdade que no grau de crise de civilização que
atravessamos trabalha talvez inconscientemente toda a fermentação
pedagógica dos nossos dias. Mas num problema tão complexo e
delicado como o que de mais perto entende o homem, a sua
formação e o seu destino, não é de maranhar que se entrelacem
com as intenções mais generosas os preconceitos de velhos
sistemas e os arrojos de ideologias temerárias e aventureiras. A
escola, ponto estratégico em que o presente domina o futuro, será
naturalmente o alvo das ambições conquistadoras de quantos
partidos, políticos ou filosóficos, nascidos ontem aspiram assegurar
a duração de sua influência.
Neste momento em que o Brasil, num grande esforço
reconstrutor, procura lançar os alicerces de um porvir mais seguro,
faltaríamos aos nossos deveres de cidadãos, e de brasileiros, se
numa exposição serena e desapaixonada de princípios que
julgamos essenciais a qualquer renovação pedagógica eficaz, não
trouxéramos a sinceridade de nossa cooperação no bem comum.
Exórdio — Do imenso campo da ação católica, a educação ocupa
uma das províncias mais importantes.
Educar é:

I — desenvolver
a) o organismo,
b) a inteligência,
c) a vontade.

II — desenvolver harmônica e hierarquicamente.


Erro de Rousseau — “bondade natural”:
a) contrário à fé,
b) à observação psicológica:
a) registrada na história da humanidade,
b) registrada na nossa própria experiência.
A natureza é decaída.
A educação tem por fim restaurar a harmonia
primitiva, restabelecer o equilíbrio perdido.
Dois corolários:
1º. Educar não é instruir. Diferenças.
2º. Não há educar sem religião.

Peroração — Educação das almas adultas.

Às professoras e normalistas no Sacré-Coeur,


17/05/1928.
Aos congressistas, 02/09/1928.
Educação

O CAMPO da ação é imenso como o das exigências sociais do


bem. Onde chora uma dor, onde se esconde envergonhada
uma miséria, onde precisa de luzes uma inteligência e de conforto
um coração, onde há uma alma humana a defender ou a conquistar,
aí deve a caridade cristã multiplicar a eficácia e a delicadeza dos
seus recursos. É um teatro de atividade grande como o mundo,
perene como as gerações que se sucedem. É assim a ação do Sol,
benfeitor incansável de quantos vivemos cá na Terra. Ele é quem
nos ilumina e com a sua luz matiza o cenário da natureza em toda a
policromia dos seus cambiantes; ele é quem nos aquece, e dos
seus reservatórios inesgotáveis de energia alimenta o movimento e
a vida; ele quem purifica e saneia os ares e as águas dos seus
germes mortíferos, impedindo que as enfermidades normais se
avolumem em epidemias desoladoras, impedindo que as epidemias
passageiras se perpetuem em hecatombes irremediáveis. Iluminar,
fortificar, sanear, hoje e amanhã e sempre, eis a função do Sol no
mundo dos corpos, eis o dever da ação católica no mundo das
almas.
Mas se é universal para toda a Igreja o campo de sua irradiação
benfazeja, para cada alma em particular é necessariamente limitada
e restrita a esfera de influência que lhe assinala a Providência.
Falei-vos já da necessidade e importância da ação católica nas
suas grandes generalidades. É tempo de descer em particular ao
campo que se entreabre e às aspirações de vossas esperanças.
Na distribuição providencial, poucas almas foram tão bem
quinhoadas como vós. Outros terão que reformar almas já
deformadas pela vida; vós podereis dar-lhes a primeira formação,
orientadora profunda de toda a existência. Outros encontrarão, no
exercício do seu zelo, a grande barreira psicológica de hábitos
adquiridos; vós podereis plasmar estes hábitos que constituem para
sempre o caráter do homem. O bem que se faz aos jovens, diz
Lacordaire, é “dos que mais comovem o coração de Deus; porque
Deus é a juventude eterna e se compraz naqueles que, na
caducidade fugaz das nossas idades, trazem por um instante esta
semelhança com a sua própria essência”.
Entremos, pois, no campo imenso e comecemos por formar
hoje uma idéia exata da educação.
Educar é preparar o homem para a vida, é fazer de uma
criança, deste serzinho frágil, inconsistente, plástico, um homem
completo, consciente de suas responsabilidades e de seus deveres,
conhecedor de suas obrigações no tempo e dos seus destinos na
eternidade e decidido a usar os recursos de sua liberdade para a
realização perfeita de sua missão na Terra.
A natureza obedece à lei da continuidade, não dá saltos
improvisos: natura non facit saltus. Antes dos esplendores do meio-
dia, as penumbras do crepúsculo e as cores suaves da aurora;
antes dos ardores do verão, as frescuras da primavera; antes da
utilidade definitiva dos frutos, os encantos da flor. Também na vida
do homem há uma idade de flores, há uma primavera e uma aurora.
É a quadra da formação; tudo nela é desabrochar, tudo são
esperanças, a vida está toda tendida para o futuro num esforço de
realização como para uma promessa, para a atuação de um ideal.
Preparar a criança para a realização deste ideal, colaborar com
Deus, completando-lhe por assim dizer a obra criadora, levando o
homem à perfeição integral de sua natureza, eis a função
nobilíssima do educador.
Educar, portanto, é antes de tudo desenvolver. Tudo na criança
são potencialidades que importa atuar.
Fisicamente é um organismo tenro; importa assistir-lhe no
crescimento, fortalecê-lo para o trabalho pesado da idade viril,
aumentar-lhe a resistência contra os assaltos possíveis da
enfermidade, beneficiar, em matéria de higiene, a sua inexperiência
individual com o patrimônio adquirido da ciência e da experiência
dos que o precederam — desenvolver o organismo: a educação
física.
Acima, porém, do corpo que o aproxima dos animais o homem
é também e principalmente inteligência e vontade, e sobre estas
nobilíssimas faculdades é que se deve com particular esmero
exercer a ação educadora.
A inteligência feita para a verdade, como os olhos para a luz, é,
no princípio da evolução humana, como tabula rasa in qua nil est
scriptum, no dizer de Aristóteles, é uma folha em branco. Não é,
porém, uma folha morta, é um princípio vivo de atividade. Vede o
desejo de saber palpitar nestas pupilas inocentes que se abrem
curiosas ante o espetáculo da natureza, a despertar-lhe o interesse
com os encantos de uma grande novidade; vede como diante de
cada nova manifestação do desconhecido — e tudo então é
desconhecido, aflui espontânea aos seus lábios a série interminável
e por vezes indiscreta dos “porquês” e dos “comos”. Responder
acertada e prudente e progressivamente às interrogações da
inteligência que inquire, fortalecê-la, discipliná-la no exercício dos
seus atos mais nobres, elevá-la bem alto para lhe rasgar os amplos
horizontes do mundo e os horizontes infinitos do céu — numa
palavra, desenvolvê-la — eis a educação intelectual.
Paralelamente à inteligência feita para a verdade, despertam a
vontade e o coração com o frêmito de suas aspirações para um
ideal de beleza e de virtude. Também ela quer desenvolver os
germes latentes de suas virtualidades. Firmá-la na orientação
constante para o bem, robustecê-la na luta contra os obstáculos,
infundir-lhe coragem para a iniciativa, energia na ação,
perseverança contra as veleidades dos caprichos, equanimidade
interior contra as vicissitudes externas de tudo o que nos cerca — é
o campo imenso da educação moral.
Educar, pois, é desenvolver, mas nem todo o desenvolvimento
é educação. Só educa quem desenvolve aperfeiçoando e só
aperfeiçoa quem restabelece e conserva em equilíbrio estável a
hierarquia essencial dos valores humanos.
Encontramos aqui, pela frente, um dos erros modernos mais
funestos à pedagogia; é o erro da bondade ingênita, natural do
homem. Vós lhe conheceis o autor, um desequilibrado genial e
malfazejo que foi muito influenciado pela atmosfera social que
respirou — o século XVIII — e mais funestamente ainda influiu na
sociedade que se lhe seguiu — o século XIX; um homem que
escreveu um tratado célebre da educação, ele, filho que
desamparou o próprio pai, ele, pai que atirou os próprios filhos numa
casa de expostos, sem nunca lhes haver murmurado ao ouvido o
nome de sua mãe; vós já lhe pronunciastes o nome: Jean-Jacques
Rousseau. Segundo as suas teorias expostas no Émile, o homem
nasce naturalmente bom, na criança encontram-se, sem mescla de
tendências más, os germes de todas as virtudes; instintivamente a
sua alma procura o bem, como a planta o Sol.
Deixai que se desenvolvam espontaneamente estes germes
felizes, deixai que cresçam, como as plantas selvagens, sem o
benefício da poda, em toda a força expansiva e indomada de sua
exuberância nativa, e tereis o homem naturalmente e por si mesmo
forte, bom e virtuoso.
A teoria de Rousseau é a antítese do dogma cristão. Todo o
cristianismo — redenção, isto é, regeneração e reabilitação do
homem por Cristo — descansa sobre a verdade histórica de uma
decadência original da nossa raça e do pecado do primeiro homem
a introduzir a desarmonia no plano divino.4 Criatura, isto é, por
essência dependente, o homem devia, pela submissão livre de sua
vontade, gravitar em torno de Deus, como os planetas ao redor do
Sol. O pecado foi a revolta contra esta ordem essencial e, portanto,
necessária e imutável. A esta desordem introduzida pela culpa nas
relações com Deus, corresponde como a pena outra desordem
introduzida no interior do homem. Rompeu-se o equilíbrio harmônico
da sua integridade primitiva; revoltaram-se contra a razão as
paixões, e entre o homem superior e o homem inferior, entre a parte
angélica e espiritual do nosso ser e a parte animal e material
inaugurou-se esta luta épica, mãe de tantas lágrimas, que enche a
história da humanidade, também ocasião dolorosa da ignomínia de
todas as nossas misérias e teatro da grandeza dos nossos
heroísmos. A grandeza moral do homem, antes fruto espontâneo da
nossa natureza, passou a ser a conquista gloriosa e penosa de uma
vida de esforços e de lutas. Eis a verdadeira história da
humanidade, consignada na primeira página dos nossos livros
sagrados.
Antes, porém, de ser uma heresia, a teoria de Rousseau é um
grande erro de observação psicológica. Se contradiz a fé, não se
opõe menos flagrantemente à experiência. Experiência dolorosa que
ecoa como um grito lancinante de angústia, pelos séculos afora.
São Paulo, falando em nome de toda a natureza humana que ele
em si personificava, rompia nesta confissão pungente: “Sinto neste
corpo de morte uma lei que contradiz a lei do meu espírito, pela qual
não faço o bem que quero e faço o mal que não quero”.5 São Paulo
é a voz do homem resgatado pelo Cristo, iluminado já pelos
esplendores da fé, que atesta mais vibrantemente estas deficiências
da natureza decaída. Mas, com a simples luz da razão não a via
menos um pagão, contemporâneo seu, um dos grandes e
corrompidos poetas do século de Augusto. Quem não conhece os
versos tão profundamente humanos de Ovídio:
Video meliora proboque, deteriora sequor.

O melhor, bem o vejo, mas o pior eu sigo, que Petrarca tão


energicamente fez seus e italianos:
Veggio’l meglio ed al peggior m’appiglio.

E as citações poderiam enfileirar-se em séries intermináveis


colhidas com igual facilidade na pena austera de algum cenobita
medieval, ou nos versos levianos de algum literato moderno. Se ao
testemunho, raras vezes convergente, do asceta e do artista
quiséramos acrescentar a voz fria da ciência, lembraríamos o nome
de Le Play. Foi ele, como sabeis, quem, nos meados do século
passado, por primeiro aplicou sistematicamente o método positivo
de observação ao estudo dos fenômenos sociais. Depois de
examinar de perto a condição da vida real de quase todos os povos
da Europa, entre outras muitas conclusões importantes a que
chegou, uma foi de todo em todo contrária às asserções gratuitas de
Rousseau: “Esta opinião”, escreve ele lacônica mas energicamente,
“eu a tenho por errônea”.
Em nome da psicologia fale Morselli: “Toda a nossa vida mental
é um contraste entre a inibição e a impulsão e tudo o que é
verdadeiramente nobre e grande é de origem inibitiva”.6
Em nome da pedagogia fale Förster:
A verdadeira personalidade do homem está no mais profundo de sua vida
espiritual; nós não a desenvolvemos senão na medida em que ajudamos a
alma a assenhorear-se dos sentidos e das paixões. Mas só à viva força é que
se conquista este domínio da alma, esta espiritualização do homem todo. Só
afirmamos a nossa personalidade resistindo à expansão pura e simples do
nosso indivíduo. Quanto mais este se abandona a si próprio tanto mais se
atrofia a nossa personalidade. Só pela disciplina e vitória de si mesmo é que
se alcança a liberdade e a verdadeira independência […]. Os homens de hoje
assemelham-se ao estatuário que atirasse o martelo dizendo que o bloco é
mais belo que a estátua e esculpir é contrariar a natureza em sua glória.7

Mas não há mister recorrer à autoridade alheia. Esta


experiência universal que vem repercutindo de século em século na
consciência da humanidade, nós a sentimos ressoar, forte e
poderosa, no interior das nossas almas. Quem é que, mesmo no
meio do caminho de sua vida, não sente por vezes as rebeldias
desta natureza indômita a conservar, ainda após anos de esforços e
de lutas, a sua triste capacidade de pecar? Um dia, a um possesso
que lhe foi apresentado, perguntou Cristo: “Qual é o teu nome?”.
“Legião” não seria talvez a melhor definição do nosso interior
quando lhe sondamos com sinceridade as profundezas recônditas?
Quantos “eus” desarmonizados não subsistem na unidade do nosso
eu! Há o “eu” maquiavélico, friamente egoísta, capaz de sacrificar
tudo ao seu bem-estar pessoal, desejoso sempre de ser o centro,
em derredor do qual gravite tudo o que o cerca: pessoas e coisas.
Há o “eu” violento e irascível, injusto e impaciente de qualquer
contrariedade, pronto à agressão e à vingança, a ferver muitas
vezes de cólera sob as aparências compassadas e o sorriso artificial
imposto pelas regras da cortesia. Há o “eu” comodista, indolente,
amigo do sono e do dolce far niente, que sabe multiplicar pretextos
para adiar as tarefas duras, que borboleteia sempre à superfície dos
deveres penosos, que descarrega sobre ombros alheios tudo o que
lhe parece pesado, ou se esgueira furtivamente quando um trabalho
desagradável procura voluntários generosos e dedicados. E quantos
outros “eus” não poderíamos ainda encontrar se se iluminassem
todos os cantos da nossa Jerusalém com o clarão sincero de
lanternas bem acesas! Perdoemos, porém, por agora ao nosso
amor-próprio a continuação humilhante deste exame psicológico e
conservemos — o que nos importa — a averiguação incontestável
de um grupo de tendências más que se opõem instintivamente ao
desenvolvimento e perfeição da nossa vida moral.
Ora, estes estigmas de uma decadência não os adquirimos na
idade madura, trazemo-los desde o berço e já na infância se lhe
observam as primeiras manifestações. Quantas vezes não
surpreendemos as mãozinhas inda inofensivas da criança
crisparem-se nervosas num gesto mal esboçado de egoísmo
impotente! Quantas vezes nos olhinhos cândidos, suavemente
iluminados pelos reflexos da inocência, não relampejam chispas que
profetizam cóleras futuras!
Desta triste verdade sobre a natureza humana, não menos
evidentemente afirmada pela fé do que atestada pela experiência,
derivam para a educação conseqüências de uma gravidade
extrema. Não se obtém a unidade e a paz interior da nossa
perfeição humana deixando que se desenvolvam
desordenadamente todos os instintos e tendências que dormem no
fundo da natureza. Há uma hierarquia essencial nas nossas
faculdades que importa respeitar, mas respeitar livremente. A
harmonia, o equilíbrio sadio que condiciona a nossa felicidade não é
um fruto espontâneo, é uma conquista laboriosa. Desde o alvorecer
da consciência, a criança já se deve habituar a vencer a si mesma,
a assegurar o domínio da vontade sobre as paixões, da razão sobre
os instintos, da reflexão sobre a impetuosidade dos primeiros
impulsos; numa palavra, deve aprender a governar-se,
subordinando o que é inferior ao que é superior, introduzindo a
ordem na anarquia das suas tendências, hierarquizando, sob o cetro
firme de uma vontade iluminada pela razão, a multiplicidade
dispersiva e inerente a todos os seus princípios internos de
atividade.
Não queremos ainda entrar no estudo prático dos meios
eficazes de realizar este ideal pedagógico, indispensável para a
formação do homem. Estamos ainda na análise geral do conceito de
educação. Se quisermos lançar um olhar retrospectivo ao caminho
já percorrido, poderíamos cifrar os resultados adquiridos nesta
definição. Educação é a formação integral do homem, pelo
desenvolvimento gradualmente progressivo, harmônico e
hierárquico de todas as virtualidades de sua natureza.
Daí derivam dois corolários de suma importância, a que não
poderei deixar de acenar, ainda que com a brevidade que me
permite o tempo.
O primeiro é a diferença essencial entre instrução e educação.
Comumente se distinguem estes dois termos atribuindo o de
instrução à cultura da inteligência e o de educação à cultura moral.
Não é perfeitamente exato: há também uma instrução moral e uma
educação intelectual. Peçamos luzes à etimologia. Instruir é
primitivamente edificar, construir, e em significação mais estrita é
prover, mobiliar, subministrar; educar é primitivamente tirar para fora
o que se acha dentro, derivadamente atuar o que se achava em
estado de potência, transformar em realidade, em hábitos, as
disposições que se encontram latentes e em germe na natureza.
Como vedes, a instrução subministra conhecimentos à
inteligência; a educação eleva toda a alma; a instrução dirige-se a
uma das nossas faculdades à qual propõe o seu objeto, a educação
desenvolve-as todas harmonicamente. A educação apresenta-se-
nos com um aspecto de totalidade, de perfeição, de acabamento,
enquanto a instrução cultiva uma só das funções humanas, e ainda
assim não integralmente. Sim; ao lado da instrução há também uma
educação intelectual. É instruído quem possui muitos
conhecimentos, quem sabe o que dizem os livros sobre um
determinado assunto; mas é educado intelectualmente quem tem a
sua inteligência desenvolvida, quem sabe fazer análises, sínteses,
raciocínios seguros, críticas exatas, numa palavra quem é capaz de
pensar pessoalmente. Um erudito pode ter lido muitas filosofias e
não ser um filósofo; pode ser versado em muitas literaturas e não
saber dar a suas idéias a elegância ática de uma bela expressão
literária. A educação tem, pois, um caráter de interioridade, de
desenvolvimento vital que falta à instrução, mais receptividade
passiva de conhecimentos comunicados de fora.
Já por vós mesmas chegastes a perceber o vício orgânico de
toda pedagogia que se ocupa exclusivamente ou mesmo
principalmente de instruir e pouco ou nada de educar. É a subversão
mesma do ideal pedagógico. Só a educação forma homens,
enquanto a instrução faz doutos; educar, portanto, é fim; instruir é
meio. Esta pedagogia radicalmente falseada é por desventura em
boa parte a pedagogia moderna.8 Felizmente a crise parece que vai
passando. Já se foi o tempo da frase reboante de Victor Hugo: “Abrir
uma escola é fechar uma prisão”. Hoje já ninguém crê na reforma da
humanidade pela simples cultura da inteligência. A pedagogia de
base exclusivamente intelectualista abriu falência. Multiplicam-se as
escolas e… com elas também os cárceres. Inflaram-se as
inteligências com um enciclopedismo fácil e superficial — e os
caracteres entraram a baixar. À própria instrução foram as vontades
fracas e desorientadas pedir instrumentos dos seus crimes mais
refinados. Depois da psicologia, vem a experiência dar razão a
Rabelais: “Ciência sem consciência é a ruína das almas”; e a
Goethe mais profundamente: “É pernicioso tudo o que liberaliza os
nossos espíritos sem assegurar o domínio do nosso caráter”.
Esta conclusão que fecha o primeiro corolário abre
naturalmente o segundo: a importância transcendental da religião na
pedagogia. Sim, é impossível educar sem educar religiosamente.
Nem a inteligência pode atingir a sua perfeição sem a luz das
verdades religiosas, nem a vontade e o coração fortificar-se contra
as lutas da vida sem o estímulo dos motivos religiosos. Nada mais
evidente.
Se a educação é uma expansão consciente das nossas
faculdades, uma elevação progressiva da nossa natureza para
atingir o seu fim ou a sua perfeição, o que antes de tudo se impõe
ao educador é conhecer e comunicar ao educando uma visão nítida
dos seus destinos.
Preconizamos e reconhecemos sem hesitações a utilidade de
conhecer a natureza na maravilhosa variedade dos seus
fenômenos. Estude-se, na geografia, a configuração do globo
terrestre; na história, a vicissitude dos impérios e das instituições
humanas; na geometria, a certeza imutável dos seus teoremas; nas
ciências físicas e naturais, a estrutura e atividade dos seres e das
energias que nos cercam. Mas de que servirá ao homem todo este
patrimônio de conhecimentos contingentes e particulares se ele não
chega a realizar o único fim para que foi criado? Mais do que tudo o
que lhe importa saber é a finalidade e o valor da vida; os meios que
lhe asseguram a sua felicidade definitiva; o caráter relativo do
tempo; a regra imutável do dever; o que lhe cumpre fazer e o que
pode esperar; o que é, donde vem e para onde vai. Por que tantas
lágrimas? Por que tanta injustiça, depois de tanto progresso e tanta
ciência?
Ora, a solução a estas questões só as pode dar e só as dá a
religião. Ignorá-la é não ter ideal na vida, é deixar para sempre em
estado de dúvida e de enigma e de tortura todas estas interrogações
que reclamam imperiosamente uma resposta de toda alma que
pensa. Inteligência que ignora a religião é necessariamente
incompleta. Poderá saber tudo o mais, mas ignora o essencial, sem
o qual tudo é nada.
Se a religião, pelo ensino das altas verdades que mais nos
interessam, aperfeiçoa e pacifica as inteligências, para o caráter
sobretudo, é a escola insubstituível de toda grandeza moral. O
caráter apresenta uma feição meiga que nós chamamos comumente
coração e uma feição forte à qual reservamos o nome de vontade.
O coração que desabrocha é o que há de mais belo na criança.
“Il est si beau l’enfant avec son doux sourire”.9 Que candura
naqueles olhos inocentes. Como sustentam abertos e serenos e
sem pestanejar o olhar penetrante e investigador das mães que
descem até às profundezas da alma! Que espontaneidade de
sentimentos, que sensibilidade e que ternura! Belo, porém, como
uma rosa que desabrocha, o coração infantil é delicado como um
lírio. Para conservar-lhe a candura virginal, só uma atmosfera
religiosa. Longe dos olhos de Deus, longe da hóstia imaculada, não
se conservam puros os corações. Bem cedo, o vício precoce passa,
como o vento abrasado do deserto crestando toda aquela vida em
primavera. Nos olhos empana-se o brilho da inocência; morre-lhe
nos lábios o sorriso da alegria, o coração fecha-se numa melancolia
taciturna. A alma já não encontra entusiasmos que ecoem
simpáticos aos sentimentos nobres. São meninos velhos, já viveram
antes de entrar na vida. De um deles disse Victor Hugo: “A própria
mãe o aborrecia” (sa mère l’ennugait). Que abismo e que
degradação!
Na evolução normal da criança, à inocência sucede a virtude. A
inocência, que parece envolver no seu conceito um não sei quê de
fragilidade, de delicadeza quebradiça, é um privilégio da idade; a
virtude, que soa fortaleza, energia, sacrifício, é uma conquista da
vontade, que se firma no bem pela vitória dos obstáculos. Aqui
chegamos ao aspecto forte do caráter. Já vimos que sem uma luta
contínua contra as repugnâncias da natureza não há elevação
moral, não há unificação interior e hierárquica da alma para o bem.
Só um “exercício pessoal da vontade, uma disciplina rigorosa mas
benfazeja, uma ginástica moral assegura às molas do querer a força
e a elasticidade necessária ao seu exercício normal”. E onde, fora
dos motivos religiosos, se encontrará o estímulo capaz de sustentar
este esforço incessante que dura tanto quanto a vida? As palavras
de dever, de honra e de pátria, são vazias, elásticas e ineficazes
onde a lei moral se apresenta sem legislador, o dever sem sanções
definitivas que empenhem para sempre a nossa felicidade. Todos os
esforços empregados para a construção de uma moral leiga ou
independente têm sido baldados. Os próprios racionalistas lhe
proclamam a falência: falência científica na incapacidade de
justificar racionalmente a noção de dever; falência prática na
impotência de o fazer amar e seguir contra os impulsos poderosos
do egoísmo humano. Multiplicam-se as morais; e a moral baixou.
Não há, pois, educar sem educar religiosamente. A razão
humana, feita para a plenitude da luz, descansa no conhecimento
das verdades contingentes e particulares; o coração humano, infinito
na sua capacidade de amor, não se satisfaz com o amor efêmero
das criaturas; para os heroísmos do sacrifício precisamos de
energias mais fortes que as que nos podem dar os exemplos e as
relações sociais. Paz nas inteligências, nobreza no amor, dedicação
no dever, só as podemos encontrar numa vida religiosa, sincera e
profunda. Só nesta escola é que se formam os homens, “estes
homens a quem a pátria pode confiar as suas bandeiras e a religião
os seus altares”.
Não quero concluir sem falar mais diretamente a vós, colhendo
para vossas almas um fruto espontâneo do que ficou dito. Falei-vos
de educação, isto é, de elevação das almas. E quando é que as
almas deixam de elevar-se? Quando é que cessa para nós o dever
de nos educarmos? Só quando a morte põe um termo definitivo à
possibilidade das nossas ascensões espirituais. Durante o nosso
curriculum vitae, Deus, o grande e primeiro educador, o grande
artista das almas, continua a trabalhar na perfeição das suas obras-
primas. Ele que, para nos dirigir os primeiros passos da vida, criou
este tesouro de bondade que é um coração de mãe; que ao
desabrochar da adolescência nos confiou à dedicação de mestres
aos quais comunica uma participação de sua autoridade e de sua
paternidade; mais tarde continua, com não menor solicitude, a
elevar-nos, a aperfeiçoar-nos, servindo-nos dos homens e das
coisas, dos contatos duros, dos sofrimentos benfazejos, de todas as
circunstâncias infinitamente variáveis que entretecem a trama de
nossa existência. As nossas almas continuam sempre a ser germes,
isto é, capacidades de novas perfeições, e o nosso grande dever, o
de transformar em realidades todas estas possibilidades de bem,
todas estas promessas, todas estas esperanças.
Oh! se a nossa inteligência se iluminara dia-a-dia com o
conhecimento de todas as verdades de que é capaz; se o nosso
coração se enobrecera com todos os sentimentos elevados e
generosos que a visão cristã da vida nos inspira; se a nossa
atividade se enriquecera a cada instante com a prática de todos os
atos bons que surgem espontâneos no caminho da nossa vida; oh!
se soubéramos educar continuamente as nossas almas, levando-as
à perfeição total de nossa natureza, teríamos realizado, em sua
plenitude, os desígnios amorosos de Deus sobre nós. Há para cada
alma um ideal divino: é sua a história possível escrita pela bondade
de Deus. Há para cada um de nós um programa de vida: elevar a
cada instante a realidade da nossa existência às alturas sublimes
deste grande ideal.
Deo gratias.

Rio, 17 de maio de 1928.

4 Deus não criara o homem tal qual nasce hoje sob os nossos olhos, isto é,
sujeito ao erro, ao vício, à miséria e à morte.
5 Cf. Rm 7, 14–15 — NE.
6 “Limiti della coscienza”, na Riv. di Filosofia, setembro–outubro de 1913.
7 Schule und Charakter, trad. franc. L’école et le Caractere, pp. 118–120.
8 “Une instruction universelle et se perfectionnant sans cesse est le seul remède
aux causes générales des maux de l’espèce humaine”. Condorcet citado por A.
Fouillée, p. 424, que depois critica (p. 427): “Le defaut general de notre sistème
d’enseignement a été la predominance de la conception intellectualiste et
rationaliste, héritée du dernier siècle et qui attribue à la connaissance, surtout
scientifique, um rôle exagere dans la conduite morale” (Revue des Deux Mondes,
15 de janeiro de 1897).
9 Victor Hugo.
Educação sexual

P ARECE-NOS de capital importância excluir qualquer iniciação


sexual feita coletivamente nas escolas. Nos mistérios da vida
quem deve iniciar os adolescentes são os pais. Só o lar reúne as
condições psicológicas e morais para uma educação sadia e
eficiente em matéria tão delicada.
Entre outros, a iniciação coletiva encerra os seguintes
inconvenientes:
1º. Na mesma idade, o desenvolvimento sexual é
extraordinariamente diverso de indivíduo para indivíduo. Uma
instrução adaptada a uns poderia provocar em outros surpresas
funestas, choques nervosos e desequilíbrios morais de que
dificilmente viriam a convalescer mais tarde.
2º. A explicação feita em público de assuntos tão delicados
autorizaria depois entre alunos conversas e trocas de idéias sobre
as matérias vistas em aulas. É mais um incentivo, oficialmente
sancionado, às conversações obscenas e por meio delas à
corrupção sistemática dos mais sadios pelos mais depravados.
3º. A iniciação sexual, para ser verdadeiramente eficaz no dizer
unânime de psicólogos pedagogistas, requer um complexo de
qualidades — e entre elas um respeito e amor à pureza de cada
aluno — que fora ingenuidade esperar se encontrem em cada
professor ou professora das nossas escolas públicas. Na maioria
dos casos, o efeito seria desastroso e os escândalos da vida social
que tanto se deploram, começariam bem cedo a contaminar as
nossas escolas com incrível prejuízo da saúde, higiene e moral das
novas gerações.
4º. A propaganda em favor da iniciação sexual nas escolas é
toda baseada num falso postulado pedagógico: isto é, na opinião de
que a corrupção nasce da ignorância. Engano. Trata-se aqui muito
mais de força moral do que de saber. A verdadeira pedagogia
sexual concentra os seus esforços na formação da vontade e na
educação do caráter e evita despertar imagens e curiosidades
malsãs a que não resistiriam as consciências ainda mal formadas
das crianças.
5º. Por estes e outros motivos, que não nos é dado aqui
explanar, a iniciação coletiva, longe de representar um progresso na
pedagogia, tem despertado entre os mais autorizados mestres,
resistências tenazes e condenações categóricas.
F. W. Förster, professor de filosofia e pedagogia nas
universidades de Viena, Zurique e Munique, aponta como erro
perigoso
a idéia de que a depravação e superexcitação sexuais da juventude moderna
seriam o resultado da insuficiência do ensino sobre a questão sexual,
enquanto que a verdadeira causa deve ser unicamente procurada na terrível
baixa na educação do caráter e no delírio do prazer, comum em nossa época.
Num meio assim que significa só o ensino? Se o homem não é elevado por
uma concepção mais alta da vida, o ensino tenderá, no máximo, a excitar-lhe
a curiosidade do que se lhe não diz.10

Stanley Hall, o príncipe dos pedagogos norte-americanos,


depois de assinalar as crises da alma e as perturbações nervosas
que são muitas vezes as conseqüências de semelhantes
intervenções prematuras, conclui que “devemos detestar toda
espécie de iniciação coletiva”.11
O Dr. W. Stekel, especialista de psicoterapia em Viena, no seu
estudo sobre os Estados de angústia nervosa e seu tratamento,
Berlim, p. 310, conclui as suas reflexões sobre o assunto com estas
palavras:
Sou adversário declarado do sistema de iniciação que se propaga atualmente
e que se me afigura uma epidemia mental, uma espécie de exibicionismo
psíquico. A iniciação coletiva nas escolas é um pensamento monstruoso cuja
realização acarretaria inumeráveis choques sexuais […]. A questão só pode
ser solucionada individualmente, e o melhor meio seria que, a começar de
certa idade, os pais introduzam nas conversas coisas sexuais como coisas
naturais, sem exposição solene nem cerimônias misteriosas. Não
esqueçamos que a raiz de todos os desejos malsãos é a curiosidade sexual e
que a iniciação precoce dos meninos seria, para o desenvolvimento da
humanidade, um grande prejuízo cultural.

Em nome, portanto, da higiene, da pedagogia e da moral


julgamos que se deve excluir dos programas de ensino uma
iniciação coletiva, feita nas escolas públicas.

10 Sexualethik und Sexualpädagogik, trad. franc., p. 203.


11 Educational Problems, Nova York, 1911, v. I.
Solução católica da pedagogia social.
Necessidade da educação social sempre e presentemente.
Como praticamente dá-la?
I — No ensino das diferentes disciplinas — ensino direto e
ocasional:
sociologia,
filosofia,
matemática,
física,
geografia,
história e literatura.

II — Na organização escolar:
organização social da aula,
senso social na exigência de disciplina,
questão do self-government,
vantagens possíveis,
cautelas práticas.

Conclusão.
Educação cristã — solícita sempre da formação social.
Importância da personalidade do mestre.
A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 12/10/1933.


Educação social

E NTRE os exageros opostos do socialismo e do individualismo, a


concepção cristã da vida dá-nos a solução justa do problema
da pedagogia social. Não absorvemos o indivíduo na coletividade,
reduzindo-o a simples células de um grande organismo que constitui
a sua única razão de ser e desconhecendo-lhe os valores
intangíveis e inalienáveis da sua personalidade. Mas tampouco
isolamos o indivíduo do meio social, exaltando-lhe a liberdade
incondicionalmente e com detrimento das disciplinas inevitáveis
impostas pelas exigências do bem comum. Como pessoa o homem
tem um destino seu, imortal, que constitui a sua finalidade natural e
a razão mesma de sua existência; os quadros sociais devem
organizar-se de modo que constituam o meio favorável ao
desenvolvimento das suas personalidades. Por outro lado, como
indivíduos os homens são parte de um grande todo, para cujo bem
devem naturalmente colaborar e não raro sacrificar os seus
interesses particulares ou vantagens individuais e imediatas. A
conciliação destas duas ordens de exigências, à primeira vista
incompatíveis, realiza-se numa síntese superior e mais profunda
que nos mostra na dedicação aos interesses sociais uma das
condições de realização integral da personalidade e no
desenvolvimento e aperfeiçoamento progressivo das personalidades
o segredo da harmonia, da paz e do progresso na convivência
humana.
Uma pedagogia social, isto é, uma formação do homem para a
vida comum, na família, na profissão, no grupo, na sociedade, é,
portanto, antes de tudo, uma exigência da própria natureza. Pela
sua própria natureza e não por uma necessidade fictícia, criada pela
arbitrariedade de convenções mutáveis, o homem é destinado à
vida social. A organização da nossa vida, em contato com os nossos
semelhantes, não obstante a relatividade e a contingência de suas
formas (república, monarquia), corresponde a uma tendência
profunda que se prende ao que há de mais inextirpavelmente
humano em nós mesmos. A nossa perfeição, como pessoa, é a
perfeição de um ser social. Impossível, portanto, e essencialmente
incompleta, mutilada e falha, uma educação que não aparelhasse o
homem para o cumprimento de suas indeclináveis
responsabilidades sociais. Formar na criança o futuro chefe de
família, no homem o cidadão, no indivíduo o membro útil da
coletividade é função essencial de toda pedagogia completa.
Mas, a estas exigências de toda parte e de sempre, cada época
sobrepõe necessidades particulares derivadas dos diferentes
aspectos que vão revestindo, no correr da história, a civilização
multiforme dos povos. A quadra que atravessamos é precisamente
caracterizada, como já vimos, pela gravidade excepcionalmente
ameaçadora da questão social. Todas as instituições fundamentais,
todas as relações entre indivíduos e grupos, classes e nações,
sofrem profundamente as conseqüências funestas de erros que já
remontam longe mas que só com o volver dos anos vão dando toda
a medida de sua nocividade. As relações econômicas, com as
inumeráveis questões que necessariamente se lhes prendem, as
instituições familiares com toda a importância dos seus problemas
que interessam, na sua própria fonte, a vida das nações, a
organização política dos governos e da autoridade social a
condicionar a paz e a estabilidade da vida civil, são alguns dos
aspectos desta imensa questão social de que sofremos algumas
das conseqüências e que ainda nos ameaça com catástrofes talvez
mais dolorosas se lhe não dermos uma solução pronta e satisfatória.
Preparar-nos a nós e, mais ainda, aparelhar as gerações que sobem
ao desempenho das suas responsabilidades atuais é, pois, uma
tarefa que se nos impõe com o rigor indeclinável de um dever de
consciência.
Nós, cristãos, faltaríamos à missão que nos assina a
Providência, neste momento, se não empregáramos todos os
nossos esforços para sermos, nesta época que Deus quis fosse a
nossa, o fundamento que regenera toda a massa, a luz que ilumina,
o sal da terra que conserva e preserva.
Não há, pois, que duvidar sobre a necessidade imperiosa de
uma educação social, imposta inelutavelmente pelas exigências
comuns e constantes da nossa natureza e pelas condições
especiais do momento histórico que vivemos.
Como, porém, praticamente, formar as almas e prepará-las ao
desempenho das suas obrigações sociais? Na educação social
distinguimos, para comodidade de exposição, duas partes de
importância desigual: a formação espiritual propriamente dita, ou a
preparação nas almas das virtudes essenciais à convivência e à
ação social; é uma educação da inteligência, da vontade, do
sentimento e dos atos, orientada para o fim que levamos de mira;
em segundo lugar, os processos pedagógicos, os métodos práticos
e concretos que constituem os veículos através dos quais se vai
transmitindo e formando o senso social. A primeira destas partes
constitui, a bem dizer, a alma da educação social, a outra, o seu
corpo. Começaremos por aqui para terminarmos por lá. Na última
das nossas palestras desceremos a estas profundezas da nossa
vida espiritual que é absolutamente necessário atingir para plasmar
as almas neste espírito de dedicação, de sacrifício, de amor, sem o
qual a solidariedade não passa de uma palavra sonora e vazia.
Hoje, seremos mais concretos e percorreremos rapidamente —
o tempo não nos permite descer a pormenores muito miúdos — os
diferentes meios de que nos é possível servir para ministrar uma
instrução e uma prática sociais.
Na vida de um colégio podemos distinguir as disciplinas que se
ensinam e as molduras gerais da organização escolar que
enquadram toda a vida do aluno. Umas e outras prestam-se de
modo diferente aos nossos desejos.
Não há disciplina ou matéria de estudo que, nas mãos de um
professor competente e zeloso, não ofereça ocasiões freqüentes de
um ensino social.
No alto da escala, encontram-se, já se vê, ciências que
diretamente se ocupam com os fenômenos sociais. É em primeiro
lugar a sociologia, hoje em quase todos os países incluída nos
programas como matéria ordinária de ensino. Sobre o seu professor
pesa, imediatamente, a responsabilidade da formação teórica da
inteligência. O seu merecimento está em incutir idéias claras sobre
os diferentes aspectos da questão social e despertar no aluno um
interesse vivo e pessoal por todos os seus grandes problemas; na
orientação das jovens inteligências e atividades em formação a sua
influência benfazeja poderá ser decisiva.
Ao lado da sociologia, a filosofia. Nenhuma outra, das
disciplinas puramente profanas, desempenha, na formação social,
papel tão importante.
A lógica serve para aguçar-nos o senso crítico, habitua a
inteligência ao rigor das demonstrações, acautela-nos contra as
surpresas do sentimentalismo e a tenacidade dos preconceitos,
orienta-nos na aplicação dos métodos das diferentes ciências,
permitindo dar às suas conclusões o seu grau de certeza ou de
probabilidade e medir-lhe a extensão do seu alcance; qualidades
todas preciosas no estudo e na ação social.
A psicologia revela-nos a estrutura e o funcionamento deste
mecanismo interior que governa as ações humanas, mostra-nos no
homem um composto substancial de matéria e de espírito, de corpo
e de alma. Ser-lhes-á então fácil compreender o duplo aspecto de
todo o problema humano, começando pelo econômico: aspecto
material e aspecto espiritual; influência das condições materiais
ainda nas mais elevadas manifestações da nossa vida superior;
ação dos valores espirituais ainda nas atividades que mais
profundamente mergulham na opacidade da matéria. (O
materialismo histórico de Karl Marx, fazendo do desenvolvimento
econômico uma estrutura que condiciona exclusivamente as
superestruturas de todas as outras formas de civilização, aparecerá
em toda a evidência de seu erro anti-humano). A autoridade da
Igreja para exercer a sua ação no campo social e econômico
ressaltará também em toda a clareza de seus fundamentos
filosóficos: há aí um aspecto espiritual de justiça e de caridade que
cai imediatamente sob a alçada de sua missão espiritual, e não
simplesmente uma técnica que só interessa especialistas e não
repercute na vida total, humana e cristã, dos seus filhos.
O estudo do direito natural levará mais diretamente ao exame
dos fundamentos da ordem social, origem e natureza do poder civil,
às suas diferentes formas com as vantagens e inconvenientes de
cada uma, às bases naturais e imutáveis da constituição familiar;
numa palavra, às grandes linhas humanas de toda e qualquer
organização social, dentro das quais se deverão enquadrar as
instituições contingentes e variáveis de qualquer civilização digna
deste nome.
Nas outras disciplinas o ensino não será assim, sistemático e
orgânico, mas ocasional e indireto. E as ocasiões não faltarão nunca
a um professor atento. Ainda as ciências mais áridas e em
aparência mais alheias à complexidade dos fenômenos sociais
poderão oferecer ensejo freqüente de focalizar na atenção dos
alunos um problema vivo e palpitante de ordem social.
Por que, por exemplo, no estudo das matemáticas não passar
problemas sobre os salários, as caixas econômicas, as
cooperativas, o preço justo das mercadorias, a distribuição das
riquezas e colher daí ocasião para explicações rápidas e lições
salutares?
Por que, no estudo das ciências físicas e químicas, não aludir, a
propósito das suas diferentes aplicações industriais, às condições
do trabalho humano, aos problemas de distribuição de riquezas que
podem levantar?
A geografia é ainda mais fértil de aplicações sociais. As
relações entre o meio físico e as condições de vida que impõe, o
conhecimento da própria região, dos seus recursos e das suas
deficiências, a permitir mais tarde uma influência mais eficaz; a
ampliação destes estudos a todo o mundo, dilatando os limites das
nossas preocupações e permitindo, a propósito do intercâmbio de
mercadorias, das grandes vias de comunicação, e dos problemas
postos pela demografia, pôr em relevo incontestável a solidariedade
econômica e moral de todos os povos, não são, porventura, outros
tantos aspectos interessantes que tornariam de um lado mais vivo e
palpitante o ensino da geografia e de outro ensanchariam aos
professores freqüentes possibilidades de formação social?
De todo este grupo de disciplinas, porém, a que se apresenta
mais rica em lições aproveitáveis é, sem dúvida, a história.
Os meninos gostam muito da história — batalhas, guerras e
lutas avultam às vezes, em certos manuais, como a trama principal
de que se faz a vida da humanidade, reduzida então quase
exclusivamente à narração de episódios militares e às suas
conseqüências políticas na existência, nos governos, nas fronteiras
das nações. É mutilar a realidade integral e tirar a uma disciplina o
melhor de sua eficácia formadora. Ao lado das vicissitudes político-
militares, não menos importantes que elas, são as instituições
sociais, a sua origem, evolução e eficiência. Todas as épocas
defrontaram com o âmago mesmo da questão social: assegurar a
um número cada vez maior de cidadãos uma soma cada vez maior
de bem-estar físico, intelectual e moral.
Pôr em relevo esta organização social, esta arquitetura civil das
nações não é menos importante e certamente é mais útil do que
descrever batalhas.
Por que, ao lado do heroísmo militar dos grandes capitães, não
realçar o heroísmo social e civil dos grandes benfeitores da
humanidade, dos santos e das instituições imortais? Por que não
familiarizar os nossos alunos com a incansável atividade social da
Igreja em todas as épocas: o seu combate finalmente vitorioso
contra a escravidão nos primeiros tempos, o seu esforço indefeso
para, na luta contra o paganismo, acentuar a dignidade da pessoa
humana, defender os direitos dos fracos, da mulher e da criança;
mais tarde a admirável organização das corporações medievais, de
que muitos falam e que poucos conhecem; nos tempos modernos,
todo o trabalho magnífico de atividade social desenrolada pela Igreja
em todos os países. Ao Padre Flajollet contava uma vez um amigo a
impressão profunda que nele havia produzido uma frase de um
historiador polonês que, depois de resumir a história de seus
compatriotas da Silésia, nos últimos dois séculos, rematara
naturalmente com esta observação singela: “Aqui como em toda
parte a Igreja se colocou ao lado dos oprimidos”.12 Quantos são os
alunos que saem das nossas escolas e conhecem algo desta
gloriosa história do cristianismo? Sob a pressão dos programas e
dos textos laicizados nós fomos quase que insensivelmente
laicizando a história dos vinte séculos de civilização cristã. Foi um
erro científico: uma mutilação da realidade integral; já não nos
achamos em face do passado como ele foi de fato, mas diante de
uma caricatura que não nos permite depois entender nem as
instituições nem as reações psicológicas e sociais de outras eras.
Foi sobretudo um erro pedagógico que veio privar a história de
quase toda a sua eficácia formadora do senso social e cristão.
À história propriamente dita a literatura vem prestar o auxílio
valiosíssimo do seu concurso. Os autores clássicos gregos e latinos
oferecem o ensejo freqüente de salientar e corrigir a mentalidade
pagã ou de pôr em contraste as instituições de outrora com as que
lhes sucederam, inspiradas e enformadas pela alma do cristianismo.
Dentre os autores modernos, propostos como modelos literários, por
que não escolher com critério os trechos que se prestam a
comentários de alcance social? Entre nós Vieira, José Bonifácio,
Joaquim Nabuco, Castro Alves, Rui Barbosa, que messe farta de
trechos magníficos não oferecem a um professor de literatura
zeloso? Na literatura francesa, desde as páginas clássicas de
Bossuet e Racine, até Victor Hugo, Bourget, Bordeaux, Barrès, não
há quase autor que, num sentido ou noutro, com erros a corrigir ou
com verdades a inculcar, não multiplique as oportunidades de uma
formação social, tanto mais eficaz, muitas vezes, quanto menos
artificialmente procurada e sistematicamente proposta na aridez de
um compêndio.13
Neste ponto, talvez ainda nos faltem bons guias ou livros,
escritos com esta preocupação social, que apontem em cada
matéria os traços de união ou os pontos de ligação com as questões
de ordem social. Será um progresso a realizar; mas,
indiscutivelmente, todas as disciplinas, direta ou indiretamente,
explícita ou implicitamente podem e devem ser utilizadas neste
sentido. Só assim o seu ensino preencherá a sua finalidade
completa de uma formação integralmente humana.
Ao lado das disciplinas que se ensinam, dizíamos a princípio,
há, em cada estabelecimento de ensino (também na família), a
organização da escola e a vida do aluno. Aqui o campo aberto à
formação social é talvez mais amplo e sobretudo de caráter mais
prático e ativo. No ensino transmitem-se idéias e doutrinas sobre as
questões sociais; fora, vive-se, na sua realidade concreta, a vida
social. O que lá é simples teoria, aqui é realidade experimentada. E
mais e melhor aprendemos fazendo do que ouvindo. Mas é preciso
abrir na estrutura ou na organização da vida colegial mais amplas
possibilidades de formação social. Toquemos apenas alguns pontos
num estudo que para ser de todo prático deverá estender-se mais
longamente.
Antes de tudo a própria organização da aula. Nada mais
freqüente do que, numa coletividade de alunos, nos acharmos em
face do mais absoluto individualismo. Diante do mestre que explica
e toma lições, cada estudante é uma unidade autônoma,
inteiramente desarticulada das outras e alheia aos seus interesses.
Nenhum vínculo social, nenhum espírito de colaboração, nenhuma
solidariedade viva e sentida une estes colegas que constituem uma
aula, como as casas de xadrez formam um tabuleiro:
geometricamente separados pela impossibilidade de linhas
inflexíveis.
Nas escolas primárias os métodos ativos introduziram o estudo
em colaboração. A realização de um projeto constitui um ideal
comum a ser executado por um grupo; dividem-se as tarefas,
trabalha-se em companhia; ajuda recíproca, impressão viva de
solidariedade, consciência de que uns são responsáveis diante dos
outros — outras tantas virtudes sociais que se vão desenvolvendo
progressivamente na criança.
No ensino secundário a tirania dos programas extensos e
obrigatórios torna mais difícil a aplicação imediata destes processos.
Mas dificuldade não é impossibilidade. Aqui e ali um professor hábil
pode organizar a sua aula, e fazê-la passar do estado de turba, de
multidão, ao de corpo socialmente organizado. Nas leituras e
traduções de peças de teatro, dividem-se os personagens; cada
aluno representa por assim dizer o seu papel.
Nas grandes traduções que se fazem quase de improviso para
facilitar a compreensão de uma língua, dividem-se seis ou sete
páginas em pequeninos trechos; cada aluno prepara o que lhe
assinalaram para corrigir ou, quando interrogado, para dizer sobre o
significado das palavras desconhecidas. Um professor de inglês,
que se servia desta didática social, conta que uma vez um vadio
renitente não preparou o seu pequenino trecho; a narrativa era
interessante e havia empolgado a atenção dos alunos; chegado ao
passo do vadio, impossibilidade de ir adiante.
O professor deliberadamente, porque a sabotagem era evidente, recusou dar
as explicações esperadas. Descontentamento dos colegas que excluem o
pequeno rebelde da preparação seguinte. À saída, um dos guias (menores)
da aula, toma-o pelo braço e conversa fraternamente com ele. Durante todo o
ano a sabotagem não recomeçou. Que teria obtido o professor se se tivesse
portado de outro modo? Quanto tempo para levá-lo à resipiscência? Quanto
gesto e quanta caridade para não obter talvez senão um endurecimento na
revolta? Mas o culpado apalpa com as mãos as repercussões sociais de sua
falta; os camaradas descontentes, um grande amigo entristecido, fizeram-lhe
compreender que tinha cometido uma injustiça para com o grupo; corrigiu-
se.14

Nas repetições freqüentes nos fins dos trimestres ou semestres,


em vez das lições monótonas ou das interrogações isoladas poderia
adotar-se o sistema norte-americano do plano formal. Dá-se à aula
a organização social de um grupo definido: uma academia, um
parlamento, uma banca examinadora de concurso; distribuem-se as
categorias sociais, dividem-se os trabalhos e a aula entra a
funcionar socialmente com interesse renovado dos alunos e com
exercício contínuo de virtudes sociais: aprende-se a dirigir e a ser
dirigido, a ver a importância da colaboração individual para um bem
comum que dele resulta, a levar em conta a diferença de
temperamentos, a impor-se umas tantas restrições individuais, a
limar as angulosidades do próprio caráter para assegurar a boa
harmonia com os outros; a respeitar a personalidade alheia, a
desenvolver a delicadeza das maneiras, a fineza dos tratos, a
compreensão dos outros, a elegância em criticar e ser criticado,
outras tantas qualidades preciosas para o nosso futuro convívio
social.
Outras vezes, em lugar do plano formal, de aparência um tanto
espetaculosa, pode adotar-se o sistema dos grupos: um assunto
complexo é distribuído em várias partes que se integram e cada
uma delas é confiada a um aluno ou manípulo de alunos. Organiza-
se o trabalho de pesquisa, de referência, de exposição e obtém-se,
por uma colaboração verdadeira, o resultado final.15
Da organização da aula passemos à disciplina escolar. Também
aqui a preocupação da formação social pode introduzir modificações
vantajosas. Nada mais freqüente entre professores medíocres que
fazer da disciplina uma questão pessoal entre aluno e mestre,
opostos como eternos adversários. “Terá que se haver comigo”;
“havemos de ajustar contas mais tarde”.
Conseqüência: a autoridade aparece aos olhos do aluno como
uma inimiga odiosa; um poder que se impõe em nome da força e
não um princípio de ordem que se aceita com gratidão e com o qual
se colabora com lealdade. Na explicação do regulamento e no modo
de exigir-lhe a execução, acentua-se, pois, o seu caráter social:
mostre-se, na disciplina escolar, a contextura e a defesa dos
quadros exteriores da vida que tornam possível a convivência dos
alunos, a possibilidade do estudo, a formação do caráter, a ordem, a
paz e a seriedade do trabalho educativo. Nas repreensões públicas
ou particulares mostre-se ao transgressor, na sua culpa, uma
injustiça aos colegas, atentado contra o bem comum a que todos
têm incontestável direito. Assim a autoridade aparecerá na sua
verdadeira luz; não a inimiga dos alunos mas a defensora, por
dever, dos seus verdadeiros interesses; já lhes não virá a tentação
de se solidarizarem na desordem e de se unirem, na cumplicidade
da anarquia, mas, pouco a pouco, alunos e autoridades estarão de
mãos dadas para defender a ordem contra as veleidades
perturbadoras dos revolucionários em botão.
Não se poderia ainda dar um passo adiante e associar
gradualmente os próprios alunos ao exercício da autoridade?
Organizar socialmente a escola e confiar-lhe o governo aos mais
capazes escolhidos pelos próprios colegas? É este, como sabem, o
regime do autogoverno — self-government — experimentado já em
várias escolas dos Estados Unidos e da Europa, com resultados
satisfatórios ou deficientes conforme as condições da experiência. É
uma tentativa de conciliar, de uma forma educativa, as exigências
profundas da liberdade e da autoridade, pela concessão gradual da
autonomia dos alunos.
A questão, como vedes, é grave e encontra-se no âmago da
pedagogia nova. Procedamos com moderação, sem preconceitos e
sem entusiasmos; distingamos os princípios pedagógicos em jogo e
o modo concreto de os executar.
Incontestavelmente, a associação do aluno ao governo da
escola, sob a direção de educadores prudentes, encerra vantagens
de grande valor.
Detentores de uma parcela de autoridade — ou por a
exercerem, ou por a escolherem com o seu voto —, esta prova de
confiança reforça-lhes as energias interiores para o bem. Lyttelton,
headmaster de Eton, observou-o com justeza: “No momento em que
se confia a um jovem uma responsabilidade, é nesta alma a história
do interesse que começa”.16 “Nada liga tanto o homem à ordem
moral”, acrescenta Förster, “como fazer alguma coisa para defendê-
la”.17 Muitas vezes este é o meio melhor de corrigir um
temperamento rico, mas indisciplinado: confiar-lhe o cuidado de
velar pela ordem e de a exigir dos seus colegas. As riquezas de
iniciativa, a exuberância da atividade que antes derivava para a
organização das anarquias ou desordens coletivas, orientam-se
agora salutarmente para a manutenção da ordem, que passará a
constituir, por assim dizer, o seu esporte de predileção.
A participação dos alunos tanto na elaboração de algumas
medidas regulamentares como na sua execução é ainda um meio
eficaz de obter a aceitação espontânea e interior da disciplina, ponto
capital da educação. Enquanto a disciplina é sofrida ou tolerada
como jugo exterior, por medo das sanções penais, não começou
ainda o trabalho educativo. Pululam as fraudes, as hipocrisias e as
deslealdades. Obter o consentimento interior do aluno, a aceitação
voluntária das disciplinas indispensáveis é ponto capital na
formação dos caracteres e para consegui-lo contribui não pouco a
própria colaboração dos alunos no regime da sua pequenina
coletividade.
No ponto de vista da formação social propriamente dita, o
autogoverno forma e educa chefes, desenvolvendo neles o senso
da responsabilidade, a capacidade de organização, a energia e a
suavidade no mundo, o conhecimento dos homens, a preocupação
do bem geral. Nos que não chegam a chefes é a responsabilidade
do voto, o discernimento das qualidades dos colegas, o interesse
pela boa ordem de uma pequenina comunidade organizada, de que
eles se sentem parte ativa e membros vivos. No andamento geral da
escola, os mestres ficam aliviados de um sem-número de
pequeninas preocupações; muitas questões de disciplina resolvem-
se com mais facilidade pelos próprios alunos que conhecem melhor
os colegas; pouco a pouco desaparece esta luta de classe — entre
educadores e educandos — substituída por uma solidariedade de
todos e por uma colaboração leal na mesma obra comum.
No domínio dos princípios pedagógicos creio serem estas
verdades que se impõem: achamo-nos em face de uma das muitas
aplicações do princípio, enunciado por Pio XI na encíclica sobre a
educação, nestes termos: “Cooperação ativa e gradualmente cada
vez mais consciente da criança no trabalho de sua educação”.18
Na sua atuação concreta, porém, ou na faina de transformar os
nossos estabelecimentos de ensino em escolas-cidade, tipo norte-
americano, creio que poderá haver precipitações funestas e
entusiasmos que preparam decepções amargas. Antes de tudo,
pode haver um otimismo idealista inspirado na bondade natural da
criança concebida à la Rousseau e que não corresponde à
experiência das realidades vivas. É a mística libertária com todas as
suas conseqüências desastradas. Nenhuma limitação à liberdade
das crianças; qualquer intervenção restritiva por parte do adulto é
uma imoralidade; que o educador contemple o desabrochar
espontâneo de uma alma infantil na sua evolução paradisíaca. Já
conhecemos esta ala extremista da Escola Nova e as experiências
dolorosas que tem provocado. Ainda recentemente Adolphe Ferrière
nos falava desta “anarquia tão acentuada” de certas comunidades
escolares da Alemanha.19 Em muitas houve o governo de intervir e
fechá-las violentamente. Nada de exageros românticos nem de
cândidas ilusões infantis.
Outra observação que aceno apenas. Non omnis fert omnia
tellus. O temperamento de uma raça, as tradições históricas de sua
formação, as modificações inevitavelmente lentas do meio social
são outros tantos fatores que importa ter presentes para não
introduzir num país costumes ou instituições em desarmonia com as
condições que lhe asseguram vitalidade em outros climas.
A participação dos alunos na autoridade colegial deverá ser
lenta e progressiva. Nas aulas e nos recreios podem criar-se alguns
cargos de responsabilidade, aumentar-lhes pouco a pouco o número
e as atribuições preparando assim gradualmente tanto na
consciência dos funcionários quanto na dos outros esta primeira
mentalidade social preliminar ao exercício efetivo de
responsabilidades maiores.
Hoje, o tempo não foi cavalheiro comigo. Muito ainda haveria
que dizer sobre a eficácia do jogo na formação social e ainda sobre
a contribuição preciosa das chamadas obras periescolares:
academias livres, leituras e conferências, congregações marianas,
conferências de São Vicente, circular de estudos, escoteiros:
instituições todas de grande importância formativa e que não devem
faltar — ao menos algumas — em todo o colégio que pretende
realmente formar os seus alunos para as realidades da vida social e
civil.
Terminarei com duas observações. A formação social, como a
preconizam os melhores pedagogos modernos, não é novidade na
história da educação cristã.
Nos nossos colégios antigos — quando tínhamos a liberdade
de organizar o ensino e os seus programas — as nossas aulas eram
organizadas socialmente em decúrias com chefes e subchefes,
eleitos pelos seus colegas; nos recreios, não só o jogo era
organizado e fiscalizado pelos próprios alunos, mas ainda diferentes
ministérios da agricultura, da viação, da justiça, das relações
exteriores, velavam pela ordem geral, pela limpeza dos pátios, pela
conservação dos jardins, pelas relações com as outras divisões,
etc., etc. As congregações onde os dignitários são eleitos pelos
seus próprios colegas, as conferências de São Vicente de Paulo, tão
elogiadas pelo próprio Ferrière, iniciavam os alunos numa ação
beneficente e social fora dos ambientes escolares. Foi o
individualismo rousseauano, foi a confusão fatal de educação com
instrução, foi o laicismo, seccionando a vida escolar da vida familiar
e social, que transformou as escolas modernas em focos de
individualismo, onde cada aluno ia isoladamente haurir meia dúzia
de noções de omni rescivili. Talvez sobre a nossa educação refluiu
um pouco deste espírito ambiente. Retomemos um patrimônio que é
nosso; repristinemos algumas destas tradições que
impensadamente se deixaram cair; adaptemos outras às exigências
mudadas da época e não hesitemos em introduzir de novo os
complementos que aconselham uma experiência segura e
comprovada. A outra observação que vós já fizestes é a importância
capital que, neste ponto como em qualquer outro, em matéria
pedagógica, desempenha a personalidade do professor. Os
processos didáticos e as fórmulas de metodologia são estruturas
mortas se não as aviventa a alma do mestre. A habilidade em colher
no ensino das diferentes disciplinas as oportunidades felizes para
veicular uma lição social, o discernimento, numa aula, dos
elementos-guia, o seu aproveitamento para uma organização social
que não se repetirá duas vezes, idêntica, a superioridade,
indispensável para formar chefes e impor-se, com uma influência
quase invisível, ao respeito, à estima admirada e à imitação de uma
pequenina cidade que se educa — tudo isto supõe uma amplidão de
conhecimentos, um estudo sereno da história, uma visão segura da
nossa época e sobretudo uma solidez de princípios e uma ausência
completa de paixões — que constituem o apanágio, o dever e a
consolação do verdadeiro mestre.
Mães; refleti sobre o alcance destas responsabilidades, e
examinai o tempo e a importância que consagrais à vossa missão
educadora, de que dependerá a grandeza das almas que Deus vos
confiou e são d’Ele e são também vossas.
Professoras que também sois mães, lembrai-vos que sobre
gerações e gerações de alunos que por vós passarão, imprimireis
um cunho indelével que neles refletirá para sempre algo de vossa
personalidade: fazei-a nobre, elevada e digna de reproduzir-se na
riqueza variada de numerosas cópias.
Umas e outras, quantas de algum modo participais desta
missão divina de elevar as almas ao ideal de sua perfeição, nela
tendes um dos estímulos mais eficazes e constantes para a
generosidade das ascensões espirituais, que aproximando-nos de
Deus, e estreitando-lhe a amizade transformadora, apuram em nós
a semelhança com a sua beleza infinita.

A. M. D. G.

Rio, 21 de setembro de 1933.

12 Doc. de la Vie Intellectuelle, VII, 1931, p. 496.


13 Cf. Lamartine.
14 Jaonen, La formation sociale, pp. 43–44.
15 Ver exemplo em Jaonen, p. 41.
16 Förster, L’école et le caractère, p. 84.
17 Idem, p. 85.
18 Divini Illius Magistri, carta encíclica sobre a educação cristã, de 1929 — NE.
19 Pour l’ère nouvelle, março de 1930, p. 59.
O direito de educar

A FAMÍLIA

U M PROBLEMA de ordem jurídica prende e orienta, pela sua


própria natureza, qualquer reforma profunda da educação. A
quem compete, título primário e essencial, o direito de educar? Eis
uma questão fundamental, destas que não se podem abandonar à
arbitrariedade e às flutuações da política. Onde se acham em jogo
os interesses espirituais das almas, a formação moral dos
caracteres, a preparação civil dos futuros cidadãos, aí a família, o
Estado, a Igreja têm incontestável direito a uma intervenção
inelutável. E só na harmonização racional e sincera de todos esses
direitos se encontrará a chave de uma solução justa, pacífica e
duradoura.
Na ordem natural, o direito primário e inalienável de educar
pertence à família. É a sua própria razão de ser; destinada, pela
natureza invencível e irreformável das coisas, à conservação da
espécie, compete-lhe como finalidade própria criar e formar os
novos homens que asseguram a vida perene da humanidade, na
imortalidade das gerações que se sucedem. Autores de uma vida
incompleta, os pais têm o dever estrito de levá-la ao complemento
de sua perfeição natural. Ao direito essencial da criança a uma
educação completa — física, intelectual, moral e religiosa —
corresponde, em quem lhe deu a existência, o dever e portanto
também o direito de lha ministrar. A geração sem a educação seria
essencialmente uma obra falha, imperfeita, sem finalidade. Uma é
complemento espontâneo da outra. A premeditada por Deus
comunicada imediatamente à família, é, ao mesmo tempo, o
princípio da vida e o título natural do direito de formar para a vida.
Aos pais incumbe, portanto, a responsabilidade indeclinável de
subministrar, aos que chamaram à existência, com a alimentação e
os cuidados indispensáveis ao desenvolvimento do organismo, o
patrimônio intelectual e moral que lhes é necessário para bem viver.
Percorram-se os códigos civis de todas as nações cultas e
neles se encontrará explicitamente consagrado o direito-dever
inerente à família de educar a prole. Leia-se a nova Constituição
Alemã e aí se verá o art. 120, que, em fórmula lapidar, doutrina: “A
educação física, moral e social da prole é dever supremo e direito
natural dos pais, sobre cuja execução vela o Estado”. Revolvam-se
as sentenças recentes do Supremo Tribunal Federal da grande
república norte-americana e entre elas se achará, expressamente
excluído, como contrário às teorias fundamentais da liberdade sobre
que repousa a Constituição dos Estados Unidos, “o poder geral do
Estado de dar uma educação uniforme às crianças, constrangendo-
as a aceitar a instrução só dos professores públicos. A criança não é
uma simples criatura do Estado. Os que a alimentam e lhes dirigem
os destinos têm o direito, acompanhado do alto dever, de prepará-
los para o desempenho de outras obrigações”.
É preciso ir à Rússia soviética para encontrar a negação cínica
e funesta de um direito unanimemente reconhecido pelo consenso
das nações civilizadas.
A ESCOLA

No desempenho desta nobre missão, raras vezes são suficientes os


recursos de cada família isolada. Surge então a escola como seu
prolongamento natural. Pela natureza de sua origem, é ela uma
instituição complementar da família, destinada a ajudar, mitigar e
suprir a sua ação educativa. É só em nome dos pais e com a
autoridade por eles delegada que qualquer educador pode, na
ordem natural, exercer as funções do seu magistério.
Aos pais, portanto, assiste, antes de tudo, o direito de optar
livremente pela escola de sua confiança, a que melhor corresponde
ao seu ideal educativo e às exigências da própria consciência moral
ou religiosa. Onde fosse livre ao Estado ou a qualquer pessoa, física
ou moral, impor às famílias uma determinada escola, aí se
consumaria a violação da mais intangível das liberdades. Forçar o
limiar dos lares, arrancar dos braços de seus pais uma criança de 6
ou 8 anos para enclausurá-la numa escola onde se nega o que a
educação doméstica afirmou, e lhe destrói o que ela construiu, é a
mais intolerável opressão das consciências.
E com a violação das liberdades espirituais, a ruína do trabalho
educador. Só o respeito à ordem natural das coisas pode assegurar
à obra pedagógica a sua indispensável unidade, e com a unidade, o
segredo de sua eficácia. Admitir que a escola pode imprimir à sua
pedagogia uma orientação filosófica, moral e religiosa oposta à das
famílias, afirmar que aos seus professores seja lícito transformar-se
de colaboradores em adversários da educação paterna, é opor em
antítese funesta, duas instituições complementares que a razão
exige colaborem na convergência pacífica da mais imperturbável
harmonia. Escola e família, inspiradas em princípios espirituais
opostos, destroem-se reciprocamente com incomensurável prejuízo
da criança. Na sua alma infantil, o antagonismo das duas
influências, ambas prolongadas, profundas ambas, acabará por
produzir o irreparável dano da ruptura psicológica do equilíbrio
interior. Na inteligência, o ceticismo e a indiferença, na vontade o
desânimo e a falta de energias indispensáveis aos sacrifícios do
dever. Consciências sem ideal e sem convicções, sem coesão e
sem virilidade, vítimas amanhã entregues à tirania da primeira
paixão violenta — eis os frutos naturais da oposição desastrosa
entre a escola e ela.
O ESTADO E A ESCOLA

Da certeza destas conclusões se inferem outrossim as relações


jurídicas que existem entre a família e a escola. Escolas pode abri-
las qualquer particular — indivíduo ou associação, que para isto
possua, com a competência técnica e a idoneidade moral, a
confiança das famílias. Escolas pode e deve abri-las o Estado todas
as vezes que as iniciativas particulares forem insuficientes às
exigências da instrução. Preenchendo, porém, esta função
supletiva, o Estado não se transforma em educador, em detrimento
dos direitos naturais e inalienáveis da família. Nada mais oposto à
sua razão de ser essencial. Encarregado de velar pelo bem comum,
sua missão é tutelar o exercício do direito, não usurpá-lo, é defender
a liberdade dos cidadãos, não confiscá-la no açambarcamento de
um monopólio asfixiante.
Mais ainda que na ordem econômica, os direitos do Estado são
limitados em matéria educativa, pela própria natureza da sua
missão. Entre a finalidade do Estado e a da educação existe, não
diremos antagonismo, mas heteronomia. A função do Estado é
assegurar, com a ordem jurídica, um ambiente favorável ao
desenvolvimento das faculdades individuais; não lhe compete,
porém, dirigir imediatamente este desenvolvimento, condicionado
por uma concepção da vida que o poder público, sem degenerar em
tirania, não pode impor à consciência dos cidadãos. Pela sua
origem, pela sua natureza e pelos seus destinos, o homem possui
um valor moral que lhe é próprio e inauferível. É uma pessoa com a
sua dignidade inviolável; transformá-lo em simples meio de que o
Estado pode dispor discricionariamente é rebaixá-lo à inferioridade
de uma coisa e simultaneamente elevar o poder civil, na idolatria de
uma apoteose pagã, às alturas de um absoluto, irresponsável e
onipotente. O direito soberano é e não pode deixar de ser um
direito-função, como se exprimem os juristas modernos, isto é, um
meio de realizar o bem comum, no grupo social a que preside e
portanto um direito condicional e limitado, pelo respeito aos direitos
imperecíveis da generalidade humana.
Pô-lo em dúvida é ratificar o despotismo ilimitado.
Outra é a finalidade da educação; essa, sim, visa levar o
homem à plenitude do desenvolvimento de todas as suas
virtualidades. Seu objetivo é um bem eminentemente pessoal. E, por
isso, toda pedagogia é em própria essência inseparável de uma
concepção filosófico-religiosa da vida.
Há, portanto, na diferença profunda de finalidades, uma
heteronomia que inibe ao Estado avocar a si, numa usurpação
injustificável, o monopólio da educação. E o erro jurídico seria ainda
agravado com uma insuficiência psicológica. Todos sabemos o
complexo de sentimentos naturais que condicionam a evolução
normal da criança e não se substituem pela superficialidade técnica
externa. É no educador uma harmonia equilibrada de firmeza e
ternura que se concretizam nos dois aspectos, paterno e materno
intimamente unidos, da autoridade doméstica. É no educando a
confiança e a docilidade que, em relação aos pais, se encontram
nos filhos com a espontaneidade de um instinto. Sem estes
recursos, que só permitem atingir as profundidades da consciência,
substitui-se a verdadeira evolução interior, orgânica e vital, do
homem por um artificialismo de processos ineficazes.
Ao Estado, solícito de velar pelos interesses da educação,
incumbe, portanto, o dever de respeitar as suas condições naturais
de eficácia, auxiliando, não eliminando, a família na sua
insubstituível função educadora. Estimule, facilite, ampare as
iniciativas particulares a que deve a pedagogia o melhor de seus
progressos, e a educação popular, a mais benfazeja das suas
contribuições. Onde forem insuficientes os recursos individuais, abra
e multiplique os seus estabelecimentos de ensino que venham pôr à
disposição fácil e acessível das famílias os meios indispensáveis ao
cumprimento de sua grande missão social. As escolas oficiais,
assim instituídas, por mais numerosas que sejam não podem
representar uma agressão dos poderes públicos contra os direitos
intangíveis dos cidadãos. Representam apenas o desempenho leal
e inteligente desta função de assistência social pela qual os
governos, cônscios de sua missão, subministram aos indivíduos e
aos grupos naturais, anteriores e superiores ao Estado, os meios
necessários à realização das suas finalidades.
LAICIDADE

As escolas oficiais não podem, portanto, nem devem ser leigas, se


por leiga se entende a escola que dos seus programas exclui o
ensino religioso.
Quando, por motivos extracientíficos e extrapedagógicos, se
tentou justificar a laicização do ensino público, afirmou-se que a
missão da escola era ensinar e não educar, subministrar
conhecimentos sem elevar-se à formação das almas. Toda
pedagogia moderna, reatando o fio de uma longa tradição, partida
por interesses políticos menos dignos, revolta-se contra semelhante
concepção acanhada e mesquinha da escola. Toda pedagogia é
inseparável de uma visão integral da vida. Impossível presidir à
evolução do homem, sem conhecer-lhe a natureza e a finalidade. E
toda visão integral da vida que situa e orienta o homem na
universalidade das coisas, envolve, por si mesma, uma solução
religiosa da existência. Não há como romper as relações essenciais
que ligam a pedagogia ao ensino religioso. “Toda educação”,
escreve um dos mestres da pedagogia alemã, “será sempre
suportada por uma mentalidade religiosa, não só porque visa a alma
na sua totalidade senão também pela sua atitude em relação à vida
no seu conjunto”.
“A educação”, afirma por sua vez um dos grandes pensadores
ingleses contemporâneos, “é essencialmente religiosa”.20 Retirar o
ensino religioso das escolas seria torná-las essencialmente
incapazes de educar. O conhecimento seguro e desenvolvido da
religião não representa só uma riqueza da inteligência, é ainda um
elemento indispensável de formação humana.
Insurge-se ainda, e com direito, a pedagogia mais moderna
contra esta separação artificial entre a escola e a vida, entre o
ambiente educativo e o ambiente social que o enquadra. A criança
continua a viver, nos anos de estudo, a sua vida, espontânea e
completa, como a vivia no lar, como a viverá mais tarde na
sociedade. Interpor um cordão sanitário que vede a entrada da vida
religiosa na escola é isolá-la, com um artificialismo de estufa, de
toda a atmosfera circundante, é desconhecer a profundidade e
complexidade da sua vida real, é impossibilitar uma colaboração
sincera e completa das atividades escolares com as instituições
domésticas e sociais.
A formação moral e social do homem não poderá deixar de
ressentir-se deste erro profundo de longínquas e inevitáveis
conseqüências. O laicismo escolar já fez as suas presas. Os
estudos estatísticos mais insuspeitos e mais exatos aí estão na
demonstração com a correlação constante de causa e efeito, entre a
laicização do ensino e o progresso da criminalidade. Quando
Fouillée averiguou que de cem menores citados aos tribunais de
Paris, apenas dois haviam saído de escolas religiosas, evidenciou,
de modo incontrastável a qualquer mediana sinceridade, o grande
flagelo que para um povo representa a laicização inconsiderada dos
seus estabelecimentos de ensino.
São, pois, os mais altos interesses da ordem social, de par com
as imprescritíveis exigências de uma sã pedagogia, que reclamam a
instrução religiosa nas escolas. Ora, o Estado não pode impor aos
cidadãos, sem lhes violar a liberdade de consciência, uma
concepção espiritual da vida. A César falece a competência de uma
autoridade doutrinal em matéria religiosa. Atribuir-lha fora sancionar
a mais insuportável das tiranias e colocar a orientação das
consciências e o patrimônio das tradições religiosas e morais de um
povo à mercê dos partidos dominantes e das flutuações da política
incerta e volúvel.
A solução do importante problema encontramo-la no princípio
fundamental do direito escolar assim formulado pela Constituição
Alemã no art. 146: “Leve-se na maior consideração possível a
vontade das pessoas a quem pertence o direito de educação”. A lei
de 15 de julho de 1921 assim demonstra no seu § 1º o princípio
constitucional: “Sobre a educação religiosa da criança decide o livre
acordo dos pais na medida em que lhes assistem o direito e o dever
de cuidar da pessoa da criança”.
A laicização da escola pública é, pois, um atentado contra a
liberdade espiritual das famílias e uma injustiça na aplicação dos
dinheiros públicos, recolhidos, sob formas de imposto, de todos os
cidadãos e empregados, num serviço de utilidade universal, de
modo a torná-lo inaproveitável à maioria dos que dele terão o direito
de se beneficiar.
Para conciliar estas exigências do respeito aos direitos
espirituais do povo e de uma reta distribuição da justiça social,
excogitaram-se, nos diferentes países civilizados, vários regimes
escolares, cuja adaptação ao nosso meio deveria ser objeto de
estudos mais profundos e inspirados na mais absoluta liberdade.
Adotando o regime de repartição proporcional do orçamento da
instrução pública pelas escolas oficiais e particulares ou fundando
escolas confessionais para os diferentes credos religiosos em que
se acha dividida a população, resolveram já com maior ou menor
felicidade a questão do ensino religioso quase todas as nações
cultas: Alemanha, Inglaterra, Irlanda, Bélgica, Holanda, Suécia,
Noruega, Dinamarca, Itália, Tchecoslováquia, Polônia, Áustria,
Hungria, Romênia e Grécia.
Somos, portanto, contra a laicidade do ensino. A exigência de
uma articulação essencial entre a formação do homem e uma
concepção da vida, a indispensável colaboração entre a escola e o
lar, a unidade imprescindível da obra educativa, proclamados pela
mais moderna pedagogia; a esterilidade moral do laicismo
evidenciada pela observação psicológica e pela estatística; o
respeito à liberdade de consciência e uma justa aplicação dos
dinheiros públicos, que as ciências sociais reclamam como
condições essenciais de uma paz sólida e duradoura; a
conservação do patrimônio cristão, moral e religioso de um povo, de
sua alma espiritual através das gerações, que a história proclama
como essencial à continuidade e grandeza de sua vida; as lições
irrecusáveis da legislação comparada — unem-se, numa admirável
convergência de luzes, para proclamar o laicismo um regime escolar
antipedagógico e anti-social, injusto e estéril, sectário e funesto.
Assegurados estes princípios fundamentais, que prendem as
suas raízes na própria natureza humana, nas condições do seu
desenvolvimento integral, respeito à sua dignidade inviolável de
pessoa, abrimos os braços acolhedores a todas as inovações
pedagógicas aconselhadas por uma ciência mais adiantada e
sancionadas por uma experiência mais profunda e completa. Na
grande efervescência de renovação pedagógica dos nossos dias,
distinguimos, nitidamente, a questão dos fins ou do ideal educativo e
a dos métodos ou meios empregados para realizá-lo. Todos os
progressos reais que às ciências e à arte de educar pode trazer a
contribuição da biologia, da psicologia e das ciências sociais, não só
os aceitamos com reconhecimento, mas provamo-los com
entusiasmo.
Na questão, porém, do ideal educativo cuja determinação, por
sua natureza, transcende os métodos e o alcance das ciências
experimentais, reivindicamos o direito de uma crítica serena e
elevada. Aos que tentam estabelecer vínculos artificiais de
solidariedade entre a modernidade sadia dos métodos pedagógicos
e a antigüidade sempre renascente de concepções materialistas ou
naturalistas da vida, respondemos que estas idéias nem são novas,
nem representam conquistas da ciência. Valem o que vale a
fragilidade dos sistemas filosóficos de que são, em pedagogia, a
repercussão funesta.
Na determinação do ideal educativo reclamamos a integridade
de uma compreensão mais vasta. Não ouvimos só a higiene ou a
biologia; consultamos, sem exclusivismos nem parcialidades, todas
as ciências que têm o direito de dizer uma palavra acerca do
homem, da nobreza de suas origens e da sublimidade dos seus
destinos.
Sem esta visão superior e completa da existência humana, na
universalidade de suas relações, só poderá haver, em educação,
exageros unilaterais, supervalorização estéril da técnica, mutilações
na totalidade da vida, a desfecharem por último um imenso fracasso
pedagógico, em que, de envolta com a paz, o equilíbrio e a
felicidade dos indivíduos, se compromete o grande patrimônio
espiritual da civilização.
CONCLUSÃO

A nossa mais séria aspiração é trabalhar por uma profunda reforma


pedagógica no Brasil. A escola liberal com o seu laicismo incoerente
e estéril, sem ideais e sem convicções, mais talvez que para
nenhum outro foi para o nosso país uma experiência desastrosa.
Com a difusão do ensino não se elevou, antes baixou o padrão da
nossa moralidade individual, doméstica e social. Urge reformar, mas
reformar radicalmente, sem reincidir nos mesmos erros que viciaram
a primeira tentativa e iriam tornar uma segunda experiência mais
dolorosa que a primeira. Uma reforma pedagógica, sim; mas
inspirada numa compreensão mais perfeita e num equilíbrio mais
justo de todos os elementos de uma questão vital para os nossos
destinos. Conciliação harmônica e leal de todos os direitos;
colaboração indispensável e sincera de todas as autoridades
pedagógicas — civis e espirituais —; articulação inteligente da
escola com a família e a sociedade; adaptação dos métodos mais
aperfeiçoados sem a violência dos abalos sísmicos nem o
mimetismo dos povos sem tradições; apelo à colaboração precisa
da iniciativa particular, e estimulada, promovida e amparada pelos
poderes públicos; respeito na obra educativa à hierarquia essencial
dos valores humanos — eis alguns dos pontos capitais do nosso
programa. O desconhecimento ou descaso de qualquer destas
exigências comprometeria a eficácia de todo esforço em prol da
elevação da nossa cultura. Só a sua realização harmoniosa e
integral logrará transformar a nossa escola neste ambiente puro,
tranqüilo e elevado em que a personalidade, num desenvolvimento
homogêneo, equilibrado e vital, poderá atingir a plenitude de sua
perfeição humana, ideal supremo da verdadeira educação.

20 Whitehead, The aims of Education, 1929, p. 23.


Unidade e dispersão em pedagogia

U MA das diferenças essenciais que cava um abismo de distância


entre a pedagogia católica e a inspirada no laicismo, é a idéia e
a realização da unidade orgânica inseparável de toda formação
verdadeiramente humana.
A pedagogia laicista é dispersiva, fragmentária e
estruturalmente desarticulada na incoerência dos seus elementos.
Não é difícil, remontando o curso das idéias e dos acontecimentos,
encontrar a primeira origem deste vício fundamental. A ruptura da
unidade viva que lamentamos nos sistemas de educação é apenas
um reflexo de um desequilíbrio interior não menos funesto de que
sofre o homem moderno em toda a sua vida espiritual.
A Reforma Protestante rompeu com a Igreja, orgânica e
hierarquicamente constituída por Cristo para a conservação
autêntica e infalível do patrimônio doutrinal que constitui o
fundamento da nossa vida religiosa.
Com a separação do centro de unidade, o cristianismo, sob a
ação da força centrífuga do livre exame, que continha em germe
ativo todos os subjetivismos, entrou a fragmentar-se num processo
de divisão incoercível que tende irreparavelmente à pulverização do
mais radical individualismo. O dogma, eixo da vida espiritual,
perdeu, com a unidade, o caráter mais visível da verdade divina, e,
com ele, o segredo de sua eficácia na educação das almas.
A Revolução Francesa deu um passo além. À cisão contra a
unidade e universalidade católica levada a efeito pelo
protestantismo, acrescentou o rompimento com qualquer forma de
religião positiva. Sob a pressão da ideologia revolucionária, a vida
da nação entrou a organizar-se alheia a qualquer influência do
cristianismo. Era em germe, senão já na sua realidade atual, todo o
laicismo contemporâneo. Destas rupturas sucessivas entre a
atividade interior e a organização externa da sociedade, origina-se o
desequilíbrio profundo em que tantas vezes se debatem,
dilaceradas, as almas modernas. Mais, porém, do que os adultos,
ressentiram-se as almas em formação.
Avocando a si a missão de educar, o Estado, conculcando, em
algumas nações, os direitos primordiais e imprescritíveis da família,
plasmou a instrução pública à própria imagem e semelhança. Como
as outras instituições do governo, também as escolas oficiais foram
submetidas ao regime do laicismo. E o laicismo pedagógico é a
mutilação do homem; é a separação entre a instrução e a educação;
a descontinuidade entre o lar e a escola; o dualismo entre a
consciência religiosa do homem e a consciência social do cidadão.
A instrução fica decapitada do que lhe constitui a coroa
indispensável depois de lhe ter servido de fundamento insubstituível.
Durante todo o período de formação da criança, a escola leiga ou
neutra não atinge o que há de mais essencial e profundo no homem:
a consciência.
Estes males agravam-se ainda com o culto destes ídolos da
pedagogia moderna que se chamam metodomania, psicologismo,
sobreestima da instrução, especialização excessiva. Perdendo o
contato com a totalidade da vida na multiplicidade de seus aspectos,
cada especialista enclausura-se num setor acanhado da realidade,
esquecendo as conexões indestrutíveis com os outros setores que
integram e completam a vida do homem concreto.
Um vê na sociedade o fim derradeiro e a salvação suprema, e
sacrifica o desenvolvimento dos valores da personalidade às
exigências externas do viver comum. Vista por este ângulo, a
educação transforma-se numa socialização da criança, tipo
socialista ou comunista.
Outro fixa mais a atenção na expansão da individualidade,
obtida pela evolução espontânea e incoibida de todas as tendências
e instintos que dormem no fundo da nossa natureza. É a educação
individualista, tipo Rousseau ou Spencer, fomentadora de todos os
egoísmos e indisciplinas sociais.
Fragmentos de verdades que não se uniram nem se integram
na harmonia de uma síntese coerente. Visão unilateral da realidade;
ditadura exclusiva de um método, negação brutal de tudo o que se
acha fora do campo de visão assim arbitrariamente delimitado.
E a pedagogia total, perdido o seu centro de gravidade
unificador, entrou a cindir-se e multiplicar-se em fragmentos
desconexos. Educação física, educação social, educação cívica,
educação sexual, etc., etc. No desenvolvimento de todas estas
pedagogias parceladas predominou quase sempre o velho
preconceito do século XVIII: instrução equivale a moralização;
enriquecer a inteligência de conhecimentos é necessariamente
tornar o homem melhor. Daí a tendência a educar por meio da
“iniciação”.
Nas questões de ordem sexual, a sociedade moderna
apresenta visivelmente um desequilíbrio que arruína tantos
organismos e compromete tantas felicidades? Remédio: “iniciação
sexual” nas escolas. Umas tantas preleções de fisiologia e patologia
imunizarão a juventude do contágio fascinador do prazer.
Nas ambições do seu egoísmo crescente, o indivíduo recusa-se
de dia para dia aos sacrifícios indispensáveis à conservação do
bem-estar coletivo? “Iniciação social”, instrução cívica. Umas
dissertações sobre a solidariedade serão eficazes para refrear os
apetites insaciáveis e assegurar a dedicação e o espírito de
sacrifício sem o qual não pode haver vida em comum.
A toda esta pedagogia desarticulada e fragmentária falta um
centro de unidade interior, a articulação de uma síntese orgânica
que na alma do aluno — essencial e indivisivelmente una —
comunique esta força formadora que lhe advém de uma visão da
vida, coerente e unificada em toda a diversidade de suas
manifestações. As conseqüências deste grande erro pedagógico aí
estão visíveis.
Nunca se falou tanto de educação sexual e a crise da
moralidade entre os sexos, longe de se atenuar, agrava-se de ano
para ano. Nunca se repetiu com mais insistência o termo de
solidariedade social e as vantagens do bem comum vão sendo cada
vez mais sacrificadas pelo egoísmo de governos e governados.
Contra este exclusivismo de uma pedagogia de mosaico,
delineia-se nestes últimos tempos uma reação salutar em nome da
unidade do homem. Com um acordo crescente até a unanimidade
vai-se reconhecendo a solidariedade essencial que liga
inseparavelmente a pedagogia a uma concepção total da vida, e,
portanto, a uma doutrina filosófico-religiosa. Chega-se, assim, após
uma odisséia de erros e digressões, à concepção fundamental do
catolicismo. Para nós, a pedagogia nunca se divorciou da
concepção religiosa da existência. Esta dependência, outrora objeto
de críticas, é hoje reconhecida como título de glória.
A pedagogia católica é universal e compreensiva; não mutila o
homem, mas o educa na sua totalidade; não é tributária exclusiva de
uma ciência nem se enfeuda ao jugo de um só método. Todos os
métodos que nos podem levar ao conhecimento de um dos
aspectos da realidade humana são adotados sem receio; todas as
ciências que podem iluminar qualquer das suas faces são aceitas
com atenção e docilidade. A educação católica atinge assim o
homem na integridade dos seus elementos e na totalidade de suas
exigências e aspirações. Tudo aqui se unifica admiravelmente. A
vida, na variedade dos seus aspectos, na diversidade dos seus atos
desde estas decisões profundas que imprimem a toda uma
existência uma orientação definitiva até as mais insignificantes
ações cotidianas exigidas pelos deveres do nosso estado, reveste,
na síntese cristã, a importância transcendente de uma missão
divina. Nada então é sem interesse nem significado. Para cada uma
de suas obrigações o homem leva toda a energia, toda a
serenidade, toda a constância fiel de uma alma unificada que realiza
a grandeza dos seus destinos com não menor elegância moral na
sublimidade rara do heroísmo do que na continuidade coerente das
pequeninas ações.
Só assim uma pedagogia compreensiva prepara o homem para
o seu desenvolvimento integral e a realização harmônica da sua
felicidade completa.
Rio, setembro de 1932.
Progresso e tradição em pedagogia

E NTRE extremos igualmente funestos nem sempre é fácil


encontrar o equilíbrio sensato de justo meio. Há amigos da
tradição que a comprometem, confundindo-a com a invariabilidade
das coisas mortas. Há amigos do progresso que não compreendem
o benefício das renovações salutares sem o radicalismo das
revoluções destruidoras. Como preservar o fiel da balança dos
extremos destas oscilações perigosas?
Quer-me parecer que um justo conceito do progresso é a
primeira condição para formar a justeza moderada do critério. Da
marcha evolutiva da humanidade não raro se apresenta uma noção
inteiramente falsa. O homem, ao que se diz, avança na história
pelas sendas de um progresso indefinido; o diagrama deste
movimento poderia representar-se por uma linha ininterruptamente
ascensional. O que para trás ficou não tem mais que um valor
histórico; hoje representa um peso morto que devemos alijar; que o
presente se desvencilhe do passado; a condição do progresso é a
ruptura com a tradição.
Visão precipitada e insuficiente das coisas. Nas ciências há dois
domínios nitidamente distintos: o das ciências da natureza — e
conseqüentemente da técnica — e o das ciências do homem nos
seus valores mais altos e específicos. No campo da observação dos
fenômenos naturais o progresso é função quase exclusiva do tempo
que multiplica os observadores e as observações. Os que foram
grandes outrora conservam hoje o direito à nossa admiração e
reconhecimento pelos serviços prestados à causa científica. Mas já
nos não sentamos à sua escola; não vamos estudar astronomia em
Kepler nem química em Lavoisier; foram, já não são mestres.
Há, porém, outro domínio muito diverso das ciências positivas e
suas aplicações técnicas: é o das ciências do espírito. Aqui, o
progresso não é a função principal do tempo; do valor de uma obra
decide em primeira linha o gênio do seu autor, a profundeza dos
seus conhecimentos da vida interior das almas, a capacidade de
discernir, sob a superfície das aparências que passam e mudam, a
natureza humana no que ela tem de essencial, eterno e imutável.
Por isso, na religião, na filosofia, no direito, nas artes, na pedagogia,
a tradição não tem só o valor de história do que já se foi, mas ainda
o de ensino perenemente vivo do que deve ser. Os mestres nestas
disciplinas do homem não se sucedem, eliminando-se; superpõem-
se, completando-se. Platão e Aristóteles continuam a ensinar-nos
filosofia ao lado de Santo Agostinho e de São Tomás; Bergson e
Husserl não suprimem Kant ou Leibniz; Homero e Virgílio
sobrevivem ao lado de Dante e de Camões. Nos monumentos de
Atenas e de Corinto, como nas obras de Bernini ou de Michelangelo,
vamos ainda educar o nosso sentimento estético. Porque lemos
Bourget ou Dostoiévski, não deixamos de aprender os refolhos do
coração humano em Goethe ou Shakespeare. Todos estes foram e
são mestres, ainda que separados por intervalos de séculos e
milênios.
Em todo este imenso domínio em que entra no que tem de mais
profundo a pedagogia, a tradição não só continua como mestra viva
que quer e deve ser escutada, mas é ainda a cláusula necessária do
verdadeiro progresso. Triste e mesquinha concepção esta que faz
da ruptura com o passado a condição de vida para o presente e de
salvação para o porvir. Neste corte de fio que nos liga às gerações
de ontem, querem ver um enriquecimento onde na realidade não há
mais que uma dilapidação temerária que nos empobrece. O que é a
sociedade no espaço, é a tradição no tempo. A comunhão com os
contemporâneos amplia-nos o campo visual, opulentando a nossa
experiência própria que é de um só, com a experiência dos que
vivem ao nosso lado e são muitos. Sem esta solidariedade no
trabalho, seria a esterilidade do isolamento. A tradição vem alargar
no tempo os benefícios desta sociedade das inteligências. Já não
são somente as vozes contemporâneas, são as vozes de todos os
séculos que nos vêm trazer a experiência de sua sabedoria.
Este contato benfazejo com os gênios de outras eras imuniza-
nos ainda contra um perigo que não é quimérico: a ditadura da
moda, a tirania da geração atual. Como todos os outros, o nosso
século tem as suas paixões desorientadoras, sente a fascinação de
influências efêmeras e naturalmente reveste-as com o rótulo sedutor
de “progresso moderno”, de “conquistas da ciência”. Corrigir-lhes os
desvios, temperar-lhe os excessos, ampliando no tempo o campo de
observação, é uma verdadeira benemerência científica. O
isolamento de cada geração das que a precederam é que é a
verdadeira morte do progresso, a condenação a um recomeço
indefinido. Não assistimos, porventura, nestas últimas gerações, ao
nascimento, vida efêmera e morte precoce de tantos sistemas
pedagógicos que se apresentavam em nome dos fatos e dos
resultados definitivos das ciências positivas?
Muito larga e mais compreensiva é a pedagogia católica. Sem
renunciar a nenhuma inovação que se imponha em nome de
progresso real, ela não rompe os contatos com o passado. A sua
experiência é mais ampla: a segurança dos seus fundamentos mais
consolidada pela prova dos séculos.
Esta atitude sensata, preconizara-a, já há quase um século, um
dos nossos grandes mestres:
Se importa não imobilizar ou prender a educação na rotina, se, pelo contrário,
é necessário estudá-la sempre para melhorá-la, fortificá-la, torná-la mais e
mais eficaz e fecunda, convém, outrossim, nos acautelemos contra as
inovações temerárias que vão quebrar a obra dos séculos, calcar aos pés as
experiências do passado e lançar, neste grande trabalho da educação, as
perturbações mais tempestuosas. O que a sabedoria das idades consagrou,
o que a natureza das coisas — regra suprema — exige e impõe, convém
respeitar profundamente, combinando-o sem o destruir, com o que podem
exigir as necessidades novas, a marcha dos tempos, os progressos do
espírito humano e as transformações sociais.21

Eis uma visão mais compreensiva e justa da história,


colaboradora indispensável de todo progresso estável e duradouro.
Fora daí, revoluções destruidoras, renovação perpétua de tentativas
efêmeras.
Um grande pedagogo contemporâneo apontou na
“transplantação da idéia de progresso contínuo, do domínio da
técnica para o da atividade especificamente humana, a causa
principal da tragédia de nossa cultura contemporânea.22
Na lealdade de um esforço reconstrutor tentaremos conciliar as
justas exigências da tradição e do progresso, ampliando
incessantemente os tesouros do passado com as novas riquezas do
presente. É a nobre, pacífica e fecunda missão da pedagogia
católica.

Rio, julho de 1932.

21 Dupanloup, De la Haute Éducation Intellectuelle, t. III, p. 566.


22 Frans de Hovre, Le Catholicisme, ses pédagogues, sa pedagogie, Bruxelas,
1930, p. 403.
Fins e meios em pedagogia.
Incerteza sobre fins na Escola Nova.
Congresso de Nice.
Kirchensteiner.
Paulsen e Chesterton.
Apelo para o futuro.
Ideal de Escola Nova: reconstrução do futuro.
Educação social na Idade Média.
Advento do individualismo.
Reação da Escola Nova.
Imprecisão do ideal social.
Interpretação absolutista:
Hegel — Fischer: Socialismo. Comunismo.
Perigos de equívocos.
Necessidade de estudar a questão para dissipá-los e
para renovar a educação católica.
Voz das autoridades eclesiásticas, Cristo, solução do
problema social.
A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 13/07/1933.


Escola Nova e pedagogia social

T ODA pedagogia completa envolve uma doutrina sobre os fins da


educação e preconiza um sistema de meios para atingi-lo. O fim
é o ideal que esplende ante os olhos do educador e lhe orienta, de
modo mais ou menos imediato, todas as suas intervenções na
formação do educando: os meios subministram-lhe os caminhos
seguros que o levam ao termo almejado.
O conhecimento do ideal educativo desprende-se
espontaneamente de uma concepção integral da vida, de uma
noção do homem, do que lhe constitui a natureza e a perfeição
própria que lhe importa atingir para realizar-se plenamente na
expansão, na harmonia, na felicidade. O discernimento dos meios
mais eficientes quem lho facilita é a observação exata da criança,
das aspirações e tendências, das suas ações e reações, dos
estímulos e motivos que mais profundamente atingem as molas
vitais de sua atividade. Pelo ideal pedagógico que lhe norteia a
ação, todo educador é tributário de uma filosofia, de uma metafísica,
de uma moral, de uma religião. Pensador de envergadura, poderá
formulá-la em princípios explícitos, organizá-la em sistema de
proposições logicamente concatenadas, expô-la e talvez demonstrá-
la na integridade de todos os seus elementos. Inteligência menos
vigorosa ou menos culta, esta concepção filosófico-religiosa da vida
informar-lhe-á, como substrutura latente, todos os seus juízos de
valor que necessariamente acompanham qualquer atividade prática
pela opção de um determinado caminho na vida.
Pelo conjunto de meios empregados, o educador depende de
uma ciência da criança, de uma psicologia experimental, de uma
observação mais ou menos rigorosamente científica da alma dos
seus educandos. Presa pela orientação inevitável das suas
finalidades humanas a uma concepção geral da vida e pela
estrutura da sua técnica a um complexo de ciências de observação,
a pedagogia é, por isso mesmo, o campo onde necessariamente
vão ecoar todas as grandes lutas de pensamento que agitam e
dividem a família humana.
Dos dois elementos — fins e meios — que a integram é, já se
vê, a questão de fins a que mais se presta ao choque das idéias e
dos sistemas e é também, inquestionavelmente, a de maior
importância. Uma pedagogia, como um educador, valem pelo ideal
que os inspira e que se esforçam de transmitir ao educando. A
questão de meios é uma técnica, isto é, uma ciência e uma arte, e a
arte vale pelo ideal de beleza que exprime aos sentidos, a ciência é
um instrumento que pode ser posto tanto a serviço do bem como do
mal. As técnicas pedagógicas mais aperfeiçoadas, o conhecimento
mais fino dos recursos psicológicos da alma infantil, nas mãos de
uma ideologia desorientada no que respeita às finalidades
essenciais do homem, poderá acarretar sobre um povo a maior das
calamidades que lhe comprometem o futuro das suas gerações.
O trabalho educativo depende inteiramente da nitidez, da elevação, e da
imutabilidade do ideal educativo. Mesmo sem uma metodologia ricamente
desenvolvida, o ideal educativo constitui por si mesmo uma força que anima e
eleva. Pelo contrário, sem um ideal fixo e determinado, o melhor método de
nada serve. […] O fator decisivo de toda educação reside na profundidade e
solidez do conceito que o educador faz da vida.23

Muito natural, portanto, que ao estudarmos o grande movimento


pedagógico moderno, conhecido sob o nome de Escola Nova, lhe
indaguemos com curiosidade os novos ideais que o norteiam. Fala-
se de novos caminhos e de novos fins; os caminhos, em última
análise, só serão bons se a bom termo nos levarem.
Ora, o que para logo impressiona o observador, ao percorrer a
imensa literatura pedagógica que preparou e propaga o movimento,
é uma difusão minuciosa e inesgotável sobre os processos
educativos e uma parcimônia impressionante sobre os grandes
ideais da educação. Fórmulas vagas e imprecisas, aspirações de
um humanitarismo vaporoso e impalpável, reticências a cobrirem
discretamente um ceticismo mal dissimulado — eis o que mais
freqüentemente se nos depara sob a rubrica importantíssima: ideal
da educação moderna.
Em agosto do ano passado (1932) reuniu-se em Nice o último
Congresso Internacional da Educação Nova.24
Dos discursos, numerosos e em todas as línguas, transparecia
um anelo geral à paz, à solidariedade internacional contra as
estreitezas dos nacionalismos opostos, um desejo de fraternização
humana, um esforço de emancipação das tendências
mecanizadoras da vida industrial moderna e de conquista de valores
espirituais mais elevados. Mal, porém, se descia das regiões deste
idealismo vago a ecoar na sonoridade magniloqüente das grandes
palavras de efeitos, estalava logo a divergência incoercível ou a
insuficiência e desproporção manifesta dos meios preconizados
para o conseguimento de fins tão nobres. Longevin propunha a
ciência, o espírito científico, como base da unificação universal; o
professor Piéron, chefiando o grupo francês, não via outro
fundamento desta unificação senão “a defesa contra as forças
adversas da natureza”; H. Wallon, professor da Sorbona, negou à
cultura a sua eficiência unificadora; ela divide e aparta, não
aproxima os ânimos; só o trabalho manual possui a eficácia deste
segredo; Claparède não vê outro meio de realizar o grande
desiderato senão educar os homens a um “pensamento leal”. Uma
educadora americana, Miss Helen Parkhurst, exalta a eficiência
pedagógica de três princípios: 1º. educação da liberdade; 2º.
organização social da escola; 3º. consciência do valor do tempo.
“Estes princípios”, concluía ela, “construirão a escola nova onde
serão formados os novos cidadãos de um mundo novo”.
Esta imprecisão de fórmulas e sonoridade de expressão não é
privilégio da retórica dos congressos; os tratados escritos a sangue-
frio no silêncio dos gabinetes deixam-nos a mesma impressão geral
de insatisfação e incerteza. Kerschensteiner, um dos grandes
pioneiros da Escola Nova, que durante 25 anos, à frente da
instrução pública de Munique, organizou a escola do trabalho, tem
confissões de um ceticismo desconsolador… No entretanto
reconhece que não há outro meio de vir em auxílio do homem
moderno: “O sentido verdadeiro e objetivo da vida ficará talvez para
o homem um enigma eterno”.
“Procuro na noite a finalidade da vida. Não vejo nenhuma luz a
dissipar a escuridão”.25
“Apresentai de novo aos homens um conteúdo digno da vida”.26
Este conteúdo, Kerschensteiner vê-o no “cuidado de outrem”.
“Não é a ciência que libertou o mundo mas o amor, não dominar
mas servir, eis o que assegura à vida um conteúdo digno dela”.
Praticamente este ideal se encarna no trabalho. “O homem só é
homem pelo trabalho”. Sentir-se instrumento no seu foro interior, eis
o que dá nobreza e valor à existência. Como vedes, expressões
belas, com o seu aspecto de verdade que atrai, mas inoperantes e
ineficazes na sua indeterminação vaga e incompleta. Instrumento,
mas para realizar que plano? Trabalho, mas que natureza de
trabalho, que hierarquia estabelecer nos exercícios das nossas
atividades e ainda uma vez para construir que ideal? De novo, sobre
as finalidades que mais nos importam, sobre as finalidades
definitivas e profundamente motrizes da vida, faz-se de novo a
sombra de uma escuridão que nenhum raio de luz e de esperança
vinga atravessar.
Não; não é exagerado o juízo de Paulsen a denunciar, na
multiplicidade dos movimentos pedagógicos contemporâneos, uma
ausência de orientação fundamental:
O domínio da educação e da instrução sofre de modo particular pela falta de
uma direção capital da vida, pela ausência de verdades eternas […]. Reforma
de ensino é o brado da moda, mas nós não possuímos uma filosofia da
educação, um ideal da educação solidamente articulado numa concepção
total da vida e com isto não nos inquietamos. Pretendemos assim melhorar a
educação sem antes estarmos de acordo sobre o seu fim, a sua possibilidade
e as suas condições.

A razão tocou-a profundamente Chesterton:


O único elemento eterno de toda educação consiste no seguinte: estar
alguém tão certo de uma verdade que ouse inculcá-la a uma criança; ousar
apresentar-se como fiador da tradição humana, ousar transmitir esta verdade
às novas gerações com a voz da autoridade, com palavras serenas […]. De
todos os lados fogem os modernos a este supremo dever. A sua única
desculpa é naturalmente que as suas concepções modernas da vida são de
tal modo insuficientes e hipotéticas que eles próprios não estão
suficientemente convencidos para se atreverem a persuadir uma criança que
acaba de nascer.27

Na ausência de bases sólidas provadas pela experiência, sobre


as quais construir o edifício completo da pedagogia, muitos dos
pioneiros da educação nova atiram-se afoitamente ao futuro. Ante
as realidades dolorosas do presente fecham os olhos da observação
positiva e abrem-nos para as perspectivas douradas de um porvir
que nos pintam com as tonalidades mais róseas da sua paleta.
Ouvimos há pouco uma pedagoga americana construir com os seus
princípios “um mundo novo”. “Por uma era nova” é o lema e o título
de quase todas as revistas do movimento.
Sinal de força construtora? Não; sintoma de fraqueza. Notou-o
ainda finamente Chesterton a propósito aqui não de escola mas da
poesia do futuro. As considerações, porém, são do caráter geral e
aplicam-se a todos estes ideólogos, que fogem das realidades
passadas ou presentes para as possibilidades inverificáveis e
inverossímeis do futuro. “Os modernos”, diz Chesterton,
estão possuídos do temor do passado. […] A verdade é que todos os
espíritos fracos vivem naturalmente no futuro, porque o futuro é uma folha
virgem. É extremamente cômodo; dele podeis fazer o que quiserdes. Mas é
mister coragem para olhar o passado de frente, porque o passado está cheio
de fatos que se não podem negar, de homens mais sábios que nós, de
trabalhos e de livros que não temos força de fazer. Sei que me é impossível
escrever uma elegia como a Lycidas de Milton. Mas é sempre fácil pretender
que as poesias que eu faço serão a poesia do futuro.28

É nesta reconstrução de um futuro melhor, nascida de uma


inquietude e de uma insatisfação do presente, que talvez se possa
colocar o ideal da educação nova.
Os pontos do seu programa que estudamos, no ano passado,
referem-se imediatamente à questão de meios e de processos e
inculcam-se em nome de um conhecimento mais real da criança.
Ser vivo, o homem deve desenvolver-se pelo exercício da própria
atividade. Apele-se, portanto, na sua educação para os métodos
ativos; em vez de uma simples passividade receptora de uma
memorização mecânica, de uma ciência puramente livresca, um
contato mais íntimo com a realidade e com a natureza, uma
assimilação de conhecimentos hauridos na necessidade sentida de
vencer as dificuldades da ação. Mas para ser vital e espontânea
esta atividade deve corresponder a uma exigência interior da vida
que se desenvolve; estudem-se portanto os interesses naturais da
criança, a sua evolução progressiva nas diferentes fases da infância
e da adolescência e proporcione-se um ambiente educativo, a
distribuição das disciplinas, o seu grau de abstração crescente, a
este desabrochar gradual da flor humana, de modo que se
conserve, entre o mundo interior da criança que evolve e a
atmosfera educativa que o envolve, o equilíbrio da mais perfeita
harmonia. Não haverá assim o constrangimento de violências
deformadoras mas a espontaneidade fecunda na colaboração entre
educadores e educandos.
Atividade, interesse, espontaneidade — eis o trinômio em que
se resumem as principais reivindicações reformadoras da Escola
Nova no que se refere aos processos de educação. Estudamo-las, o
ano passado, procurando realçar-lhes o fundamento real e fazendo-
lhes as ressalvas que se nos pareciam impor em nome de uma
objetividade científica integral. Não raras vezes, de fato, alguns
processos pedagógicos são apregoados menos em nome de uma
observação completa e imparcial da criança do que em virtude das
concepções otimistas e ingênuas do naturalismo de Rousseau.
Ao trinômio acima relativo aos meios costumam os programas
da pedagogia nova acrescentar um quarto termo expresso sob as
designações variadas de: colaboração, organização social da
escola, socialização da criança, etc. Com ele, julgamos exprimir-se
quase sempre o ideal dos novos educadores. Integrar a escola no
ambiente social; preparar assim a criança pelo próprio exercício da
vida social a uma adaptação perfeita aos seus deveres para com a
comunidade, eis o segredo de preparar melhor a sociedade do
futuro e realizar o ideal de uma educação eficiente.
Neste ponto, a Escola Nova afirma uma reação enérgica contra
o individualismo pedagógico de Rousseau.
A educação cristã da Idade Média era eminentemente social. À
Igreja sempre repugnaram todos os individualismos que isolam e
esterilizam. A sua própria constituição orgânica e hierárquica é uma
afirmação positiva da solidariedade que liga todos os homens.
Na esfera religiosa, as almas resgatadas não se dispersam,
como bólides no firmamento, sem um centro de unidade; agrupam-
se na solidariedade de uma organização espiritual, de um corpo
místico caracterizado pela influência recíproca de seus membros,
pela reversibilidade de merecimentos, por estas articulações sociais
misteriosas que se resumem no dogma da comunhão dos santos.
Todos os nossos sacramentos, desde o Batismo que agrega o
recém-nascido ao corpo místico da Igreja, até a Eucaristia que no
nome de comunhão frisa o seu caráter anti-individualista, são
eminentemente sociais. Social a liturgia da Igreja, social a sua
hierarquia, a tradição ou transmissão da doutrina por um magistério
autorizado. Um católico individualista é uma contradição nos
próprios termos.
Fora da esfera sobrenatural e religiosa, o cristianismo acentuou
ainda por todas as formas o caráter social que condiciona todo o
desenvolvimento da vida humana. A família, a profissão, o Estado
são quadros sociais queridos por Deus; constituem a atmosfera
natural em que se embebe e respira toda a nossa vida física,
intelectual e moral. A salvação da sua alma, o cristão não a realiza
senão nestes grupos aos quais o ligam deveres de consciência
invioláveis.
Tais são os princípios supratemporais do cristianismo em que
se encerram os germes inexaurivelmente fecundos de uma
organização e de uma educação sociais perfeitas. A realidade
medieval, presa ao tempo, não os pôde pôr em prática, em toda a
sua perfeição e universalidade. Assim é, nenhuma forma
contingente de civilização, por isto mesmo que se acha ligada às
condições restritivas de um espaço e de tempo determinado,
consegue esgotar as riquezas divinas do cristianismo, feito para
todas as épocas e todos os lugares. Os princípios fecundos
reconheceu-os, porém, a Idade Média e esforçou-se por atuá-los
nos limites e nas possibilidades das suas condições culturais.
Com a Renascença e a Reforma Protestante inaugurou-se o
individualismo que havia de atingir o seu apogeu em Rousseau. Na
esfera religiosa, o protestantismo negara a Igreja e fizera do
cristianismo — do enunciado dos seus dogmas como das fórmulas
dos seus mandamentos — uma questão de livre exame individual.
No campo propriamente humano, a sociedade civil perdeu para
Rousseau o seu caráter de sociedade natural, ordenada por Deus,
para descer à categoria de um simples fato contingente, baseado
num “contrato social” livremente estipulado pelos homens.
As repercussões pedagógicas destas doutrinas não podiam
deixar de ser desastrosas. O Emílio de Rousseau é isolado da
sociedade que perverte, para crescer nos campos onde a natureza
conserva a sua bondade natural. O princípio que preside a esta
educação individualista é o “deixar correr”. Nenhum
constrangimento que venha limitar a expansão livre de todas as
tendências individuais. É, sob outra forma, o campo aberto a todos
os egoísmos e o descaso sistemático das tendências sociais ou
altruístas como lhes queriam chamar. Rousseau teve seguidores
ilustres no século XIX e os tem ainda hoje. Nietzsche, com a sua
teoria feroz do super-homem, que passa por cima de todos os
preceitos morais, de todas as exigências da caridade e da
compaixão para afirmar a sua força de domínio e a sua potência de
expansão; Renan que não vê na humanidade mais que o homem
desprezível onde de quando em quando com a raridade das flores
exóticas germina um grande homem; Ellen Key, em nossos dias,
chegando em nome dos direitos do indivíduo até a negação da
família, continuaram a tradição do autor do Emílio e do Contrato
social.
Contra estes exageros funestos surgiram, no campo
econômico, o socialismo e o seu irmão mais violento, o comunismo;
no terreno pedagógico, as diferentes correntes que circulam sob o
nome genérico de Escola Nova. Com assinar, porém, à escola um
fim social não resolvemos ainda em termos claros e precisos o
problema do ideal pedagógico. Sob a mesma expressão podem
ocultar-se concepções profundamente diversas e mesmo
radicalmente antagônicas. A pedagogia social não é um ideal em si
definido mas transforma-se e modifica-se no seu valor, nas suas
exigências, nos seus métodos preferidos, consoante as concepções
diferentes da sociedade, da pessoa humana e das relações entre
uma e outra.
Hegel e Fichte fazem do Estado um absoluto, uma divindade,
fonte originária de todos os direitos, fim a que se devem sacrificar
como meios todos os cidadãos. É o menosprezo da dignidade
inauferível da pessoa humana com a superioridade intangível dos
seus direitos, e da autonomia indispensável à realização dos seus
destinos imortais.
O socialismo e mais ainda o marxismo não vêem também no
indivíduo mais que uma parcela do Estado, a ele pertencente e que
para ele se há de formar. A criança pertence à comunidade: pela
comunidade e para a comunidade deve ser educada.
A elevação do gênero humano todo inteiro à altura da natureza humana;
educação do povo, isto é, de todos os trabalhadores pelo trabalho e pela
cooperação até ao mais alto grau de cultura científica, moral e estética, e isto,
na comunidade, pela comunidade enquanto comunidade.29

Paul Natorp, um dos mestres da pedagogia radical-socialista,


propõe-se este ideal coletivo como o mais elevado objetivo a que
deve visar a ação educativa.
As lições dos mestres não foram desaproveitadas e o
comunismo russo, mal galgou o poder, confiscou a escola e
transformou-a em arma de guerra contra a burguesia e instrumento
eficaz de propaganda e de consolidação revolucionária. A escola,
dizia Lênin, nunca foi neutra; neutralidade escolar é uma
“hipocrisia”. A escola comunista não é nem quer ser neutra: seu
objetivo é instilar nas almas infantis o ódio das classes e o
entusiasmo místico pelas conquistas do bolchevismo. Pistrak, que
ao lado de Krupskaia, viúva de Lênin, foi um dos principais autores
da organização escolar russa, assim se exprime.30 O que significa
que o fim da educação não é enriquecer a inteligência de
conhecimentos nem desenvolver a personalidade do aluno, mas
incorporá-lo imediatamente na coletividade, transformando-o num
instrumento de produção econômica e identificando os seus
interesses com os da comunidade, tal qual a concebe o
materialismo de Marx. A quem opusesse a necessidade pedagógica
de adaptar-se à psicologia da criança, de seguir-lhe de perto as
fases da evolução dos seus interesses, de não obrigar as crianças a
pensarem em política e revolução quando as suas propensões
naturais as inclinam para outras preocupações, Pistrak responde
desembaraçadamente que tudo isto é preconceito hereditário
acumulado durante séculos pela dominação da burguesia. É preciso
reagir, e reorganizar a psicologia infantil em função das novas
exigências revolucionárias.31
Como vedes, enquadrada nestas concepções da sociedade e
do homem a educação social assume aspectos diametralmente
opostos. “Nós queremos opor uma concepção do mundo a outra
concepção do mundo”, lê-se na Educação socialista de Viena. Ora,
com o socialismo e o comunismo entramos no âmago dos debates
que agitam o nosso tempo; é a questão social com a urgência de
sua solução e com a gravidade de suas conseqüências,
regeneradoras ou catastróficas. Aqui nascem os grandes ódios e os
grandes amores que dividem a sociedade atual. Sob o nome de
Escola Nova ou de “progresso pedagógico” infiltram-se
insidiosamente todos os princípios de concepção materialista da
vida que se encontra na origem da filosofia do socialismo e do
comunismo. O valor da criança, a sua liberdade e finalidade, as
relações essenciais entre o indivíduo e a comunidade, os direitos
intangíveis da personalidade humana são questões capitais que se
debatem e se resolvem muitas vezes implicitamente, sem ousar
encará-las de frente e propor em toda a sua nitidez os postulados
filosóficos que as orientam. O perigo é tanto maior quanto alguns
dos mais conhecidos orientadores da Escola Nova são socialistas, e
a serviço do socialismo querem pôr a educação das novas
gerações. Natorp, na Alemanha, Dewey, nos Estados Unidos,
Kerschensteiner e Durkheim prendem-se, pelas suas idéias
filosóficas, à corrente radical-socialista que, pelos seus elementos
externos, confina com as fronteiras do comunismo onde militam
Lunatcharski e Prinkevitch. Todos estes autores são lidos e
utilizados indiscriminadamente pelos que, entre nós, modestamente
se intitulam “pioneiros” da Escola Nova.
O oceano em que navegamos é semeado de parcéis e baixios,
é preciso viajar com faróis acesos e com uma carta de marear
minuciosa e segura, sob pena de naufragarmos ruinosamente na
insídia do primeiro banco de areia ou na traição da primeira penedia
que não aflora à superfície das águas. Muito mais do que na
questão dos meios onde os debates facilmente se podiam quase
que limitar ao terreno das ciências positivas, é no domínio das idéias
educativas que, sob expressões equívocas e posições mal
definidas, se podem introduzir sob o rótulo falaz e sedutor da
modernidade pedagógica as antigualhas de muita metafísica
avariada e de mau cunho.
Mas não é só uma necessidade de defesa e de clareza de
idéias que nos leva ao estudo do aspecto social da educação; é
ainda uma necessidade de progresso e de adaptação real às
condições dos nossos tempos. Nós, católicos, não queremos nem
podemos ficar abaixo do quanto de nós espera a civilização
periclitante. A formação social, talvez aqui e ali, algum tanto
descuidada, nos nossos institutos e obras de educação, impõe-se
hoje com a força de uma necessidade imperiosa e inadiável. As
mais altas autoridades religiosas declaram-nos sem reticências os
nossos deveres atuais.32
Por todos estes motivos — de defesa e de conquista, de
clareza de idéias e de eficácia de ação — pareceu-me conveniente
estudar este ano alguns aspectos da pedagogia social. Espero que
ao entrar mais no vivo do assunto se lhe comece a perceber melhor
com a atualidade o interesse universal e a importância indiscutível.
A aridez que não posso dissimular nestas primeiras palestras é a
inerente ao esforço de quem desbasta o terreno e fixa os pontos de
referência e delimita as posições vagas. Trabalho de engenharia
necessário mas ingrato. Aqui nem a imaginação encontra a poesia
das flores e o colorido das imagens cintilantes nem o sentimento
vibra ao calor das grandes emoções. E falar sem imagens e sem
emoções — principalmente a um auditório feminino — é desafiar o
demônio do tédio e da sonolência. Já lhe vencestes as primeiras
tentações. A seguir, o caminho se tornará mais plano e ameno, não
desta amenidade de retóricas fáceis e vazias, mas deste interesse
que desperta espontâneo das grandes causas. Entrar no estudo da
pedagogia social à luz segura do cristianismo é iluminar os mais
angustiosos problemas dos nossos dias com os fulgores de uma
claridade que não engana. Esta atualidade perene do Evangelho,
fonte inexaurível de verdades e de energia para a humanidade em
todas as suas fases e em todas as crises de sua evolução será
ainda um argumento apologético de sua divindade, tanto mais eficaz
quanto mais inesperadamente jorrante do borbulhar da nossa vida
em efervescência. Veremos que Cristo não morreu só para a
salvação dos indivíduos senão também para a da sociedade. O
cristianismo não é apenas um código de vida moral que leva as
almas aos cimos da sua perfeição humana, mas ainda o
fundamento insubstituível, o suporte eterno da vida em comum.
Aprofundando a nossa interioridade cristã, não só asseguramos a
nossa felicidade eterna, senão também daremos à nossa vida
terrena, individual e social, toda a sua força, toda a sua beleza, toda
a sua energia de irradiação, toda a sua vitalidade de persistência, a
auréola de sua consagração suprema. Não são apenas as nossas
inquietudes profundas, as nossas aspirações mais íntimas, os
anelos dos nossos mais altos ideais que apelam para Cristo; para o
Cristo, como para o seu Mestre, a sua luz, a sua redenção, apela
também a complexidade da nossa vida social com todos os seus
atritos e contrastes, com todas as suas grandezas e misérias, com
toda a angústia de suas tragédias.
O contato mais íntimo com a realidade, com a realidade total,
com a realidade interna das almas e com a realidade externa das
sociedades nos convencerá ainda uma vez de que em toda parte:
“Voltar à vida significa voltar a Cristo”.33

Rio, 15 de abril de 1933.


23 Förster. Cf. De Hovre, I, pp. 125–126.
24 Cf. Civ. Catt., IV, pp. 21–26.
25 Apud De Hovre, I, 108.
26 Ibid.
27 What’s Wrong with the World, pp. 203–204, apud De Hovre, I, p. 68 [Cf. a
edição brasileira O que há de errado com o mundo?, Campinas, Editora
Ecclesiae, 2013 — NE].
28 G. B. Shaw, p. 240. De Hovre, I, p. 171.
29 Paul Natorp.
30 Cf. Dévaud, La Pédagogie Scolaire en Russie Sovietique, pp. 17, 22 e 23, a
quem vou agora seguindo.
31 Dévaud, p. 19.
32 Ler a carta da Congregação do Concílio ao Cardeal Liénart e as ordenações
do Cardeal Dubois e Verdier em M. Rigaux, L’équipement social des jeunes, pp.
12–13.
33 Förster.
Antinomia aparente: a educação deve ser individual e social; uma
parece contradizer a outra.
Sistemas unilaterais.
O individualismo — religioso, filosófico, social, econômico,
pedagógico.
O socialismo.
Evolução.
Distinção entre indivíduo, sujeito e pessoa.
O indivíduo é para a sociedade.
A sociedade é para a pessoa.
Educação da personalidade. Alma da pedagogia social.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 08/06/1933.


Pedagogia social
I

O ESTUDO da pedagogia social, antes de se concretizar em


normas práticas e processos didáticos de escola, envolve
questões de princípios de um interesse transcendente. A natureza e
a finalidade do indivíduo, a razão de ser e os destinos da sociedade,
as relações complexas que ligam estes dois termos — sociedade e
indivíduo — são naturalmente outras tantas questões preliminares
em cuja solução não poderá deixar de inspirar-se qualquer
pedagogia social. Haverá portanto tantas formas ou orientações
social-pedagógicas quantas as maneiras de conceber e formular
estes problemas de ordem geral e de repercussões ilimitadas.
Logo, no limiar, a questão se nos põe diante dos olhos quase
sob a forma de uma antinomia, ou de uma coexistência de dois
termos antagônicos entre os quais não parece possível uma
conciliação perfeita.
Por um lado, a pedagogia é essencialmente individual. O seu
objeto é a criança, o educando, um indivíduo, com a sua inteligência
e a sua vontade, o seu temperamento e a sua índole, a sua
sensibilidade e as suas inclinações. Adaptar todos os processos
pedagógicos — instrução, educação, formação — às capacidades
individuais de cada educando deve ser a preocupação primordial do
mestre. Obter o desenvolvimento integral de todas as suas
virtualidades, conseguir que o aluno encontre, no curso de sua
formação, a possibilidade de levar à plenitude da sua evolução
todos os bons germes latentes nos tesouros de sua natureza
individual — eis o ideal de toda educação. É ponto este fora de
controvérsia; sobre estas conclusões não pode reinar entre
pedagogos senão a harmonia da mais completa unanimidade.
Por outro lado, porém, a educação não pode deixar de ser
social. O homem não vive isolado no planeta. Nasce no seio de uma
sociedade já constituída, dela e por ela recebe todos os bens que
lhe asseguram a possibilidade da vida e do progresso. A cultura e a
civilização — e com estes nomes entendemos aqui todo o
patrimônio de valores físicos, intelectuais, morais e religiosos
necessários à vida humana — a cultura e a civilização são uma
herança social que se vai transmitindo e acrescendo de geração em
geração. Sem ela, o indivíduo ficaria reduzido à impotência dos
próprios recursos atrofiados e à esterilidade do isolamento. A
educação apresenta essencialmente um aspecto social; de sua
natureza é uma transmissão de um patrimônio de uma geração que
se vai a uma geração que sobe. Nascendo no seio de uma
sociedade já formada, dela recebendo, como de uma matriz
inexaurivelmente fecunda, todos os bens indispensáveis ao pleno
desabrochar de sua individualidade, o homem necessariamente terá
que viver na sociedade e para a sociedade. O convívio com os seus
semelhantes condiciona-lhe a natureza e o seu progresso. A
educação é, portanto, de si mesma, uma adaptação social. Suprimir-
lhe este aspecto fora perder de vista o homem concreto e as
condições de sua existência real para não ter diante dos olhos
senão o fantasma de uma abstração: um indivíduo despojado de
todas as relações e vínculos que o prendem à sociedade.
Mas a educação social praticamente traduz-se numa limitação
da liberdade, num constrangimento à livre expansão individual. Viver
em sociedade significa respeitar os direitos alheios, cercear o
próprio egoísmo na medida indispensável exigida pelo atrito dos
egoísmos de outrem. Dedicação, esquecimento de si, caridade,
serviço mútuo, todo este cortejo de virtudes que tornam possível e
agradável a vida em comum, importam: em outras tantas restrições
à espontaneidade dos movimentos individuais. São sacrifícios do
“eu” ao “nós”, do bem-estar de cada um ao bem-estar de todos.
E aí se vai desenhando a antinomia a que há pouco aludimos.
Necessária uma pedagogia individual, indispensável uma pedagogia
social. Uma não se pode desenvolver livremente sem encontrar os
limites inevitáveis impostos pelo desenvolvimento da outra. Qual
delas deverá prevalecer? Qual eclipsar-se em benefício da outra?
Como conciliá-las no contraste aparentemente irredutível de suas
exigências contraditórias?
Como vedes, ainda uma vez nos achamos diante de um destes
problemas delicados e complexos que consistem na determinação
exata e bem equilibrada da relação entre dois termos. O ano
passado já estudamos um caso semelhante, a propósito da
disciplina e da espontaneidade. Essencial à formação do homem o
respeito à sua espontaneidade e liberdade, não menos inelutável a
exigência de uma disciplina. Como praticamente harmonizar, na
educação, estas exigências, ao parecer, antagônicas? A solução
não era fácil, e vimos como não poucos educadores fascinados por
um dos aspectos do problema, em vez de se esforçarem por
conciliar os termos em presença, ambos igualmente
imprescindíveis, acabam sacrificando um em proveito do outro, e
rompendo assim a harmonia necessária ao equilíbrio da vida. Os
partidários exagerados de uma espontaneidade incoibida e sem
limites entregavam a criança à anarquia de suas impulsões e
dissolviam-lhe a personalidade na desordem dos instintos e das
paixões sem governo. Os adeptos de uma disciplina exterior, rija e
inflexível, preconizavam a regularidade mecânica de uma ordem
aparente da qual se ausentava no interior da criança a consciência
de uma submissão racional a um bem mais alto.
Estes exageros que se costumam repetir em quase todos os
problemas de relações, encontramo-los também aqui a inspirar dois
sistemas pedagógicos extremados, que nos pólos opostos de um
mesmo diâmetro se afastam igualmente da verdade, um, por
defeitos, outro, por excesso: o individualismo e o socialismo.
O individualismo deixou-se impressionar, de um modo
unilateral, pelo que há de verdade no valor inegável do indivíduo e
exaltou-o desmesuradamente em detrimento do bem social e, em
última análise, do próprio indivíduo. Para o individualista a
sociedade é apenas a soma dos indivíduos, e reflete
necessariamente no seu bem-estar coletivo o bem-estar dos seus
membros, como uma soma resulta do valor das suas parcelas.
Cultivar, portanto, nos indivíduos a inteligência, a liberdade, a
autonomia, a independência, é trabalhar ao mesmo tempo para o
progresso geral.
Esta mentalidade individualista irrompe na história com o
alvorecer dos tempos modernos, e, uns após outros, invade todos
os domínios da atividade e da cultura.
Lutero introduziu-a no campo religioso: o indivíduo, com a teoria
do livre exame, é arvorado em árbitro supremo da sua vida
espiritual: autor independente do credo que regula as suas crenças
como do código que serve de norma aos seus costumes. No tratado
Contra Henricum regem Angliae, publicado em Wittenberg em 1522,
afirma sem rebuços: “A todos os cristãos e a cada um em particular
pertence conhecer e julgar a doutrina. Anátema a quem lhes tocar
um fio deste direito”.34 Mais tarde, ante a dissolução anárquica que
ameaçava o protestantismo nascente ele pôs uma surdina ao
radicalismo estridente destas declarações; mas o princípio fora
proclamado e as suas conseqüências a história as vai desfiando
inexoravelmente. A Igreja Católica velara sempre pela unidade da
concepção da vida, pela comunhão dos supremos ideais no seio da
cristandade, como pedira Cristo na sua oração litúrgica: “ut sint
unum”.35
O protestantismo rompeu a unidade doutrinal do Ocidente
cristão que continha talvez em germe fecundo a unidade religiosa de
toda a família humana. As cisões se foram multiplicando, as
rupturas tornaram-se mais fundas, e hoje nos achamos em face
desta Babel religiosa que tanto nos divide e tantos males nos
acarreta.
Com a destruição da unidade doutrinal na concepção da vida e
das suas finalidades supremas desapareceu a maior força de união
social e o vínculo mais ativo e poderoso da paz entre os homens.
Com razão escreveu Förster: “O problema da Igreja é o maior
problema social da humanidade; todos os outros problemas sociais
nele se acham encerrados”.36
Descartes inaugurou em filosofia o império do individualismo
extremado que Lutero havia introduzido no terreno religioso. O
reformador francês rompeu desabaladamente com a tradição do
pensamento especulativo e empreendeu a tarefa de reconstruir toda
a filosofia com o simples esforço de sua meditação individual. Era
desconhecer o valor da tradição como instrumento de progresso e
esquecer que a colaboração das gerações que se sucedem é a
primeira condição de uma evolução orgânica do saber. A esta
evolução orgânica substituiram-se os sobressaltos de revoluções
indefinidas. Daí por diante cada pensador terá como Bacon a
ambição de construir toda a filosofia ab imis fundamentis. E há três
séculos que assistimos, na história da especulação moderna, este
suceder-se vertiginoso de sistemas que geralmente não estendem a
sua duração além da vida do seu autor ou da geração que lhe foi
contemporânea. Descartes, Bacon, Locke, Leibniz, Hume, Kant,
Comte, Schopenhauer, Hartmann, Hegel, representam outras tantas
orientações especulativas que é impossível reduzir a uma unidade
fundamental. “Há somente a ânsia de destruir”, escrevia o nosso
Farias Brito, “a preocupação de produzir alguma coisa de novo,
como se a verdade pudesse estar subordinada aos caprichos da
fantasia ou às ambições desregradas da vontade. O resultado é que
de novo se fez o caos no pensamento”.37 Fruto do individualismo
nos domínios da filosofia.
Para o campo social foi Rousseau quem o transplantou com a
doutrina exposta no seu Contrato social: o viver em comum não é
natural ao homem; seu estado nativo é o da natureza isolada na
liberdade das selvas. A sociedade é um produto artificial, resultado
de um contrato livre entre os homens que cedem uma parte dos
seus direitos para com ela constituírem a autoridade indispensável à
vida coletiva. Desnaturou-se assim o caráter genuíno da sociedade
e subtraiu-se à autoridade civil do fundamento racional e religioso de
sua inviolabilidade jurídica. Os países em que as idéias de
Rousseau lograram vulgarizar-se nas massas entraram no regime
das revoluções crônicas que caracterizam a instabilidade social dos
países latinos e neolatinos na primeira metade do século XIX.
Mais profundas talvez foram ainda as devastações do
individualismo no mundo das relações econômicas onde o introduziu
a Revolução Francesa e o liberalismo do século passado. Todos os
grupos que na Idade Média se interpunham entre o indivíduo e a
sociedade para a regulamentação do trabalho e a defesa dos
interesses dos que dele vivem foram violentamente suprimidos. As
corporações, as gildes dissolveram-se para restituir o indivíduo à
plenitude da sua autonomia. Ao Estado vedou-se a interferência nas
relações entre patrões e operários. Que o mundo econômico fique
entregue ao jogo espontâneo das liberdades individuais; elas
naturalmente se equilibrarão construindo um mundo orgânico em
que se hão de conciliar o máximo de independência individual com o
máximo de bem comum. Mas os fatos mentiram à expectativa idílica
destas esperanças. Na prática, o homem não foi para o homem um
irmão, mas um lobo: homo homini lupus. O mais forte explorou o
mais fraco; o capital opôs-se ao trabalho e deste imenso conflito
entre um e outro nasceu a questão social com toda a extensão de
seus males e a ameaça de suas conseqüências. O individualismo —
é este ponto sobre o qual hoje ninguém discute — é o grande
responsável por este profundo desequilíbrio orgânico que ameaça a
vida da nossa civilização ocidental.
A pedagogia não podia subtrair-se ao envolvimento desta
imensa onda de individualismo avolumada pela convergência de
tantas causas agindo simultaneamente em tão diferentes esferas.
E ao lado do individualismo religioso, filosófico, econômico e
social, surgiu também o individualismo pedagógico que encontrou
os seus mais notáveis representantes em Rousseau, Locke, Kant,
Herbert, Nietzsche e outros. Rousseau é talvez o porta-voz mais
típico do individualismo pedagógico e certamente o que mais
profunda influência exerceu na evolução da pedagogia no século
XIX. Não lhe voltaremos a expor as idéias mais de uma vez já
acenadas e de todos bem conhecidas. O centro de gravidade do
sistema é a cultura do indivíduo e como cultura do indivíduo
entende-se a expansão livre de todas as suas tendências e
instintos. Tudo o que vem da natureza é bom; desenvolvê-lo é
encaminhar a criança à perfeição e à felicidade. Assim viviam e
cresciam os primeiros homens no paraíso das suas selvas; o mal
vem da sociedade: ela é a grande pervertida e a grande
pervertedora; fonte de toda a depravação, de todos os crimes e de
todas as desgraças. Conserve-se pois o educando de Rousseau, o
seu Emílio, o mais tempo que for possível longe do contato funesto
da vida social; cresça na liberdade dos campos, na preocupação
exclusiva de cultivar as suas qualidades individuais e não entre no
convívio dos seus semelhantes senão na idade de constituir família.
Sem perfilhar todas as idéias de Jean-Jacques, os outros
individualistas concordam mais ou menos:
1º. num otimismo ingênuo acerca da onímoda bondade natural
do homem;
2º. numa confiança de que pelo simples desenvolvimento da
inteligência e da autonomia do indivíduo se chegará a assegurar a
felicidade social;
3º. num descaso sistemático de uma formação especificamente
social durante a fase educativa da criança. É a pedagogia do “deixar
correr” e da confiança ilimitada na influência necessariamente
benéfica de uma liberdade sem peias. No campo pedagógico, o
individualismo não frutificou melhor que nos outros. A cultura do
egoísmo foi a conseqüência espontânea dos seus princípios e dos
seus processos.
Responsável por tantos males, em tantos domínios, não é de
maravilhar que o individualismo acabasse despertando uma reação
enérgica, violenta e excessiva. No ritmo do progresso dificilmente o
pêndulo se conserva na posição central de equilíbrio estável: quase
sempre oscila de um a outro extremo. Aqui o extremo oposto, não
menos nocivo que o outro, foi o socialismo.
Toda a alma do socialismo, toda a sua força de propaganda
derivou-a ele da sua reação contra o individualismo. O socialismo foi
a queixa da sociedade contra os abusos e as desordens do regime
individualista.38 Daí a sua grande força como elemento de
destruição. Os males por ele apontados na organização atual da
sociedade serão talvez exagerados mas não são irreais. O egoísmo
explorador de alguns contra as exigências superiores do bem
comum é um fato. A necessidade de uma justiça social mais
universalmente distribuída impõe-se como um dever imperioso. O
vício congênito do socialismo não reside tanto na crítica das
desordens atuais quanto na insuficiência radical dos meios de
reconstrução. Passando de um a outro excesso, o novo sistema
endeusou a sociedade com detrimento do indivíduo. A sociedade é
a fonte de todos os bens; um indivíduo, sem ela, não passa de uma
abstração; sua razão de ser toda está em viver da sociedade e para
a sociedade. Esta passa a ser um verdadeiro absoluto ao qual se
devem sacrificar como simples meios os que a compõem. Todas as
conseqüências pedagógicas que desta concepção fundamental
derivou o socialismo nós as estudaremos mais detidamente numa
palestra unicamente consagrada à pedagogia socialista.
E aí estão opostos dois sistemas pedagógicos, o individualismo
e o socialismo, soluções unilaterais de uma questão delicada e
complexa, cada qual com uma alma de verdade que não chega a
conciliar com a verdade incontestável do sistema antagonista. Como
realizar esta síntese superior em que se desapareçam, fundidas
numa unidade mais compreensiva, as antíteses ou antinomias
aparentes?
Comecemos com esclarecer as noções fundamentais. O
homem é ao mesmo tempo indivíduo, sujeito e pessoa.
Indivíduo é, como o diz a própria etimologia, todo ser que
constitui em si uma unidade distinta dos outros seres (indivisum in
se et divisum a quolibet alio); é uma totalidade indivisa cujas
qualidades que não se repetem duas vezes o singularizam no tempo
e no espaço. O indivíduo é único e singular. Todo ser que verifica
esta definição é indivíduo: um homem e um animal, uma planta e
uma pedra (esta formiga, esta situação).
Na noção de sujeito já se inclui a perfeição do conhecimento: o
sujeito opõe-se ao objeto: é um indivíduo diante do qual se coloca o
mundo como termo de conhecimento, como objeto de percepção.
Sujeito é portanto algo de mais perfeito que o indivíduo e aplica-se,
de sua natureza, a um número menor de seres: só aos dotados de
faculdades cognoscitivas.
A pessoa é um indivíduo de natureza espiritual. Inteligência e
vontade caracterizam-na essencialmente. A pessoa é ao mesmo
tempo indivíduo e sujeito. Como sujeito, isto é, como ser dotado de
conhecimento e de conhecimento intelectivo, relaciona-se com um
mundo de objetos, com um sistema de valores distintos de si mas
cuja realização lhe condiciona o aperfeiçoamento. A pessoa é
portadora de valores morais.
Todos os seres singulares no nosso universo sensível são
individuais: só o homem é pessoa.
À luz destas primeiras noções fundamentais já podemos
esclarecer as relações entre o homem e a sociedade. O homem é
para a sociedade, ou a sociedade para o homem? Uma e outra
coisa; nem uma nem outra coisa.
Como indivíduo o homem é para a sociedade, e como uma
parte para o todo, como um membro para o organismo inteiro. A
sociedade pode exigir-lhe todos os sacrifícios individuais — inclusive
o da vida, como o todo e o organismo reclamam para a sua
conservação a imolação de uma parte ou de um membro. O
indivíduo como tal é uma parte da espécie, um representante
singular da espécie, é um portador das perfeições específicas,
subordinado aos interesses superiores do bem específico, do bem
coletivo concretizado nas exigências da vida social.
Como pessoa, o homem já não é uma parte mas um todo, não
se acha subordinado a uma espécie mas lhe transcende os limites;
seus destinos, não os encerra o tempo e o espaço; estendem-se na
vida imortal dos espíritos. Porque, pela inteligência e vontade, a
pessoa acha-se em face de valores infinitos, cuja realização em si
lhe condicionam o desenvolvimento e a perfeição. A pessoa é, por
isto, realizadora de valores morais e titular de direitos intangíveis; na
sua autonomia não depende nem pode depender de nenhuma
criatura, nem pode, em caso algum, ser rebaixada às simples
condições de meio, à categoria de coisa a serviço total de um fim.
Como pessoa, o homem só depende de Deus e quando as
exigências divinas estão em jogo, pereat mundus et glorificetur
Deus, antes qualquer malcriado do que uma ofensa aos direitos
infinitos de Deus. Como pessoa o homem não é para a sociedade,
mas a sociedade para o homem. Esta magnífica estrutura da vida
social, com a estabilidade de sua ordem jurídica, com a
complexidade de suas relações interindividuais, com a riqueza dos
seus bens culturais, constitui apenas o grande quadro favorável ao
desenvolvimento das personalidades, a atmosfera em que as almas
possam desabrochar para a perfeição de sua imortalidade. Os
quadros e as estruturas sociais, uns após outros, varre-os o tempo
na sua missão inexorável de devorar tudo o que é caduco; as almas
desprendem-se dos seus invólucros materiais, para se fixarem,
belas e grandes como a beleza e a grandeza atingida de sua vida
moral, nos esplendores indefectíveis da eternidade. E uma
civilização terá realizado tanto mais perfeitamente o ideal de sua
finalidade quanto mais fácil e mais abundante houver oferecido aos
seus beneficiários a oportunidade de desenvolverem os valores
eternos depositados nas suas almas imortais.
O bem comum universal — este patrimônio da humanidade para o qual,
queiramos ou não, trazemos todos a nossa parte e do qual participamos —, é
coisa muito diferente da riqueza econômica, ainda que a suponha; mais do
que a prosperidade temporal ainda que a requeira; mais do que as culturas
nacionais, ainda que delas resulte; acima de todas as civilizações terrestres,
porque, patrimônio espiritual, é, por sua finalidade última, substrato de vida
divina.39

E eis as razões dos contrastes que assinalamos a princípio. O


homem é complexo; ao mesmo tempo indivíduo e pessoa; imerso
na natureza sensível e a ela transcendente; unidade de uma
espécie que passa e depositário autônomo de valores eternos;
vivendo no espaço e no tempo, mas emergindo, pela sua vida
superior, destas condições inelutáveis dos seres materiais; preso
como uma malha na trama complicada e limitadora das relações
sociais, efêmeras e precárias, e livre peregrino em demanda de uma
pátria que será a sua morada definitiva. Aí está o grande enigma da
vida humana; aí está a última raiz de tantas divergências e de tantos
conflitos. Porque não somos puramente indivíduos, a sociedade
humana não é um rebanho de carneiros. Indivíduos, temos deveres
sociais indeclináveis; pessoas, temos direitos humanos
imprescritíveis. E o sistema planetário das nossas organizações
políticas, solicitadas continuamente pela atração poderosa destes
dois pólos opostos, oscila entre as imposições da vida coletiva e as
reivindicações das liberdades pessoais.
Ainda uma vez, soluções unilaterais, vistas incompletas que
importa fundir numa visão total e compreensiva.
A pedagogia individualista preconizava-vos há pouco
indiscriminadamente a expansão das qualidades individuais. Esta
formação individual não pode ser ilimitada e arbitrária. O indivíduo
encontra necessariamente um limite na própria natureza. O
indivíduo é a realização singular de uma perfeição específica. Tudo
o que no indivíduo pode ameaçar a hierarquização essencial dos
valores de que depende esta perfeição da espécie não constitui
para ele um bem a conquistar, mas um perigo a fugir; não é uma
ascensão, é uma decadência; não representa uma plenitude, mas
uma diminuição. O desenvolvimento dos instintos e tendências
individuais não deve ser anárquico, mas condicionado à formação
do que no homem é especificamente humano: a cultura da sua
personalidade. Ora, pela sua inteligência a pessoa entra em contato
com valores mais altos cuja realização constitui o seu ideal. Muito se
tem discutido e muito se tem escrito modernamente sobre a filosofia
dos valores. Não entraremos agora nestes debates: deles apuramos
como resultado que valor é tudo o que assegura um
desenvolvimento harmônico de vida.
Na série dos valores há uma escala que os gradua ou
hierarquiza;40 no cimo mais elevado encontramos a Verdade — que
nos introduz no conhecimento do que é, no reino do Eterno e do
Necessário; o Bem, que transporta a verdade para a ordem da ação,
e aponta em cada ser o que lhe convém para atingir a plenitude da
sua perfeição; o Belo, que nos atrai o amor para a realização do
bem. ‘‘Realizar o verdadeiro bem por amor”, eis indiscutivelmente o
destino da pessoa humana, a perfeição que a sua natureza lhe
propõe como um ideal e cuja conquista progressiva constitui o
progresso pessoal.
Rasgam-se assim novas e amplas perspectivas à tarefa
educativa. Põe-se termo à anarquia do individualismo, cultura de um
eu acanhado que “não conhece outra lei senão o desejo movediço
ou o grito imediato do seu capricho […]. Mas perdendo o seu eu, o
homem”, continua Robert d’Harcourt,
encontra a sua personalidade. Que abismo profundo separa individualismo e
personalidade! Individualismo significa contração da alma sobre si mesma,
estreitamento vital por oclusão voluntária das fontes externas. Personalidade
é expansão, dilatação em algo de maior e de mais alto que nós,
intensificação da vida verdadeira por saturação das realidades supremas.41

Substitui-se assim na formação do homem a cultura do eu


estreito do individualismo pela emancipação da sua personalidade
humana.
E ao mesmo tempo resolvestes o problema da pedagogia social
sem os exageros do socialismo. Assegurando ao homem o máximo
de seu valor pessoal, destes-lhe ao mesmo tempo o máximo de sua
eficiência social. O maior obstáculo às colaborações e aos
sacrifícios da vida em comum é o egoísmo, fonte de todas as
discórdias, de todas as lutas, de todas as ambições anti-sociais.
Cultivar no homem os valores espirituais é emancipá-lo.
(Personalidade significa autonomia, dominus sui). Emancipá-lo do
jugo de suas paixões, da tirania de seus instintos, da volubilidade de
seus caprichos, é restituir-lhe a sua liberdade e pô-la dedicada e
forte a serviço dos bens superiores. Espiritualidade é universalidade.
Espiritualizar é universalizar e universalizar é socializar. Na medida
em que o homem conseguir o domínio de suas tendências e
progredir na renúncia e no dom de si e organizar a sua unidade
interior e a harmonia de sua consciência, realizará melhor a sua
personalidade, mas ao mesmo tempo se porá melhor em estado de
servir o próximo, de dar-lhe alguma coisa e de ver nele um irmão. A
vida social eleva-se e intensifica-se na proporção da grandeza moral
dos seus membros.
As antinomias eram, pois, aparentes. Uma visão unilateral e
superficial da questão acentuava as antíteses. Um olhar mais
profundo na realidade revela a síntese de aspectos que pareciam
inconciliáveis.
Que a educação trabalha em desprender o homem do que nele
é inferior, em libertá-lo de seu egoísmo, em restituir-lhe a liberdade
dos movimentos nas suas ascensões interiores — e ele se
encaminhará mais seguro, com esta conquista progressiva de si
mesmo para o conseguimento de sua perfeição que é o fim da
pessoa; e ele se sentirá capaz de agir sobre os seus irmãos, de
elevar, no surto de sua própria alma, as massas humanas para uma
realização melhor de si mesmo —, que é a sua missão de indivíduo,
membro da grande família humana.
A alma da pedagogia social é a formação superior da
personalidade. A formação superior da personalidade é
condicionada pela realização no homem dos grandes ideais da
Verdade, do Bem e da Beleza. E Verdade, Bem e Beleza só em
Deus são Realidade e Vida. Nas mais íntimas profundezas da nossa
alma religiosa estão as fontes inexauríveis das energias sociais. O
amor do próximo que não descansa no amor de Deus é precário e
incerto; dissimula muitas vezes o egoísmo e não resiste à ação
antagonista e esterilizadora das ingratidões e das decepções
humanas. Profundamente Förster: “Só na medida da nossa
socialização com Deus a socialização da Terra dará os seus
frutos”.42

Rio, 27 de abril de 1933.

34 IRC, p. 252.
35 Jo 17, 11 e 22 — NE.
36 Das Kulturproblem der Kirche, p. 35. De Hovre, I, p. 128.
37 Base física do espírito, p. 9.
38 Wilbrandet, Sozialismus, Iena, 1921; apud De Hovre, I, p. 129.
39 C. Jarlot, S.J., RA. LIII (1932), p. 690.
40 Cf. Munnynk, La V. I., XVIII, 1932, p. 223.
41 Romano Guardini, L’esprit de la Liturgie, pp. 12–13.
42 Christus, p. 228.
A alma da pedagogia social

I — Supervalorização da iniciação social.


Perigos da organização externa pura.
Defeitos que se originam da vida social.
Necessidade da formação interior da personalidade.
Pedagogia socialista (fazer) e pedagogia católica (agir).

II — Meios práticos.
Desenvolver os sentimentos sociais naturais, principalmente a
solidariedade.
Completar com a formação religiosa só capaz de assegurar o
sacrifício e combater os sofismas do egoísmo.
Riquezas sociais do cristianismo:
a) formação integral da alma — caridade cristã,
b) comunhão dos santos.
Vida sacramental sobretudo eucarística.
A. M. D. G.

Ao Sacré-Coeur, 09/11/1933.
Pedagogia social
II

A PEDAGOGIA social abrange duas partes de valores diferentes: a


formação interior das virtudes que condicionam a nossa vida
em sociedade, os processos práticos e os métodos didáticos de
veicular com mais eficácia o ensino e o espírito social. Trata-se de
formar a consciência no cumprimento de um dos seus deveres mais
importantes e de encontrar os meios mais eficientes para assegurar
o resultado que se almeja. Chamamos a estas duas partes, pela sua
importância desigual e pelas relações que ligam uma à outra: corpo
e alma da pedagogia social.
Do corpo, já nos ocupamos na reunião passada. Vimos como o
ensino das diferentes disciplinas e a organização da vida escolar se
prestam admiravelmente, nas mãos de professores e educadores
competentes, ao ensino e à formação prática dos alunos — para o
desempenho dos seus deveres sociais. Hoje desceremos mais
profundamente a estes recessos invisíveis da nossa consciência
onde se elaboram as resoluções que orientam a nossa atividade, a
esta raiz escondida que alimenta com a sua seiva a sinceridade das
virtudes e assegura à vida exterior a constância na dedicação e a
generosidade no sacrifício.
E esta é precisamente a primeira objeção que fazemos a este
grande movimento em prol da pedagogia social empreendido pela
Escola Nova em bom número dos seus representantes: uma
confiança excessiva nos meios exteriores e um descaso quase
sistemático da formação interior das almas. É um erro de pedagogia
nascido de um conhecimento incompleto da natureza humana.
É a supervalorização da eficácia educativa da iniciação, fruto
deste intelectualismo exagerado que tanto prejuízo tem causado à
verdadeira formação das almas. Mal se nota uma deficiência no
trabalho educativo para logo se lhe propor como remédio eficaz a
instrução especializada de um técnico. Daí é que nasceram a
iniciação cívica, a iniciação sexual e tantas outras iniciações
perfeitamente estéreis quando não contraproducentes. Não se vê
que a iniciação fala exclusivamente à inteligência; não é a força
motriz das nossas resoluções. Com ela ficamos conhecendo o que
importa fazer mas nem por isso nos sentimos necessariamente
decididos a fazê-lo. A questão não é tanto de formação
especializada quanto de formação integral do homem. Não se trata
tanto de conhecimento quanto de força de alma, de vontade
emancipada do egoísmo para elevar-se praticamente à altura do
ideal entrevisto pela inteligência.
No domínio da educação social podemos conhecer
perfeitamente os nossos deveres sociais, a importância da
dedicação, a beleza do sacrifício, a sua função capital nas relações
com os nossos semelhantes, e no entanto não sentimos o ânimo
livre capaz de romper as cadeias do nosso egoísmo e pôr a serviço
dos nossos irmãos a riqueza dos nossos bens. A fraternidade será
assim um ideal, nunca uma vida. A solidariedade será uma palavra
sonora na abstração dos nossos discursos enquanto o egoísmo
mais estreito será o inspirador real das nossas ações. A educação
social deve começar pela educação interior da alma.
É uma emancipação interna antes de ser uma adaptação
externa. Sem a primeira, a outra é inteiramente ineficaz e pode até
agir a contravapor. Acentuar predominantemente a socialização
aparente, insistir sobre a necessidade de dar uma organização
social à vida escolar e esquecer ou deixar na penumbra este
trabalho interior da formação da alma e do caráter, do combate ao
egoísmo, da educação para o sacrifício que é o nervo de toda
dedicação sincera, é ficar muito à flor das coisas e comprometer,
com uma pedagogia superficial, a profundidade dos resultados que
se desejam.
Sem a cultura interior da personalidade, os quadros externos de
organização social podem até oferecer a oportunidade do
desenvolvimento de numerosos defeitos eminentemente anti-
sociais. A simples convivência organizada com os nossos
semelhantes não tem o condão taumaturgo de nos infundir as
virtudes sociais, mas pode oferecer o caldo de cultura favorável ao
desabrochar de um sem-número de germes nocivos ao bem comum
que dormem latentes nas profundidades desta pobre natureza
humana que não é espontaneamente boa nem tende sempre
espontaneamente para o bem.
“Gemenischaft macht geonein”, escreveu Nietzsche. A vida em
comum tende a tornar comum, isto é, vulgares, medíocres, as
almas.43 Ao lado de uma expressão repreensível de individualismo,
o aforismo nietzscheano encerra verdade profunda. A sociedade
exerce sobre os seus membros uma tirania indiscutível e esta tirania
é fonte de males sem conta. Os moralistas não se cansam de pôr
em evidência este influxo degradante do meio, ao qual mesmo os
melhores não deixam de pagar o seu tributo. É a ditadura da moda,
da opinião pública, dos juízos feitos a exercer continuamente sobre
a autonomia da consciência uma pressão formidável.
Por isso mesmo que somos sociáveis já nos inclina facilmente a
natureza a agradar àqueles que conosco vivem; a este instinto que
tem sua razão de ser e, bem canalizado, é um contrapeso ao
individualismo sem peias, acrescem as nossas paixões
indisciplinadas: a vaidade, a ambição da glória e da popularidade, o
desejo dos aplausos. Tudo isto cria no homem um estado de
sugestibilidade que pode ser fatal à formação do seu caráter. Os
juízos apressados e as paixões volúveis das massas passam a
exercer sobre as suas ações uma influência funesta e
incontrastável. No altar da “opinião pública”, mutável e inconsistente,
imola-se a retidão das grandes atitudes, a virilidade dos gestos
nobres, a coerência entre a consciência e a vida. Todas as vezes
que vivi entre homens saí menos homem, escreveu Sêneca.
Nos meninos onde o caráter se acha ainda em estado quase
embrionário e a individualidade ainda se não firmou nas suas
grandes linhas fundamentais, este perigo da tirania social é mais
forte e as suas conseqüências mais nocivas. Como as grandes
massas populares assim as multidões infantis são
excepcionalmente sensíveis às sugestões coletivas. Bastam dois ou
três orientadores ou agitadores para determinar a nota do diapasão
pelo qual afinarão os outros. É a psicologia dos rebanhos. Por onde
arrancam os chefes de fila por aí enveredam todos os demais. Daí
nos colégios uma diferença enorme entre um aluno tomado
singularmente no seu modo de tratar com os professores e colegas
e o mesmo aluno enquadrado num grupo sob a ação de um
movimento coletivo.
Esta influência da opinião pública, este desejo de se ver
aprovado pelos colegas é tão forte que determina freqüentemente
uma atitude de hipocrisia às avessas. O hipócrita genuíno afivela
uma máscara de bondade para esconder uma malícia real; é mau e
procura parecer bom. Nos meninos e moços não raro observa-se
uma inversão ou um contraste entre o que são e o que aparentam
mas em sentido oposto. Nos grupos de companheiros mais
desenvoltos jactam-se de ações que não fizeram, fazem praça de
sentimentos em desarmonia com as disposições autênticas de suas
almas. Por comprazer aos outros fazem-se piores do que são,
hipócritas às avessas.
A vida social não é, portanto, de si geradora espontânea de
virtudes; no estado atual da nossa natureza pode muito
freqüentemente exercer até uma pressão deformadora do caráter,
substituindo aos ditames da razão e às prescrições da consciência a
volubilidade superficial dos caprichos da moda e da opinião pública
ou os interesses efêmeros da ambição e da vaidade.
Uma verdadeira educação social, portanto, deve começar por
um robustecimento interior da personalidade contra as possíveis
influências deformadoras do meio; uma resistência do indivíduo
contra o grupo. Quando a pedagogia socialista não nos fala senão
na organização social da escola, na adaptação do indivíduo ao
ambiente, na incorporação na comunidade, mostra quão pobre é a
psicologia e quão superficial o conhecimento da natureza humana
que constitui o substrato de sua pedagogia. Não basta envolver a
criança num ambiente social para socializá-lo. O instinto social que
faz parte da nossa natureza é uma grande força, mas uma grande
força que pode ser canalizada tanto para o bem quanto para o mal.
Com o instinto que nos inclina a viver com os nossos semelhantes
verifica-se o mesmo que se dá com os outros instintos fundamentais
da conservação do indivíduo ou da espécie. Sem uma disciplina
severa, sem um ascetismo rigoroso, desgarram da sua finalidade
primordial e só espalham ao redor de si lágrimas e cinzas.
Em vez de servirem aos objetivos superiores que lhes
constituem a razão de ser degeneram em impulsões violentas a
serviço do egoísmo mais feroz. Como estas iniciações sexuais
isoladas de uma formação da vontade e de um robustecimento
interior das energias superiores da alma não fazem senão agravar
de dia para dia a indisciplina dos costumes, assim as iniciações
sociais feitas só de organizações externas e de preleções de
intelectualismo abstrato e inoperante só conseguirão desenvolver no
homem não o anjo mas o demônio social, não cidadãos dedicados
que trabalharão para a sociedade mas parasitas egoístas que
viverão da sociedade.
A verdadeira educação para a vida em comum começa por uma
disciplina interior, por um desenvolvimento das forças de inibição
social, por uma libertação da vontade relativa à pressão das paixões
sociais.
É preciso firmar no jovem a sua independência de caráter, a
sua fidelidade inquebrantável aos imperativos da sua consciência, o
seu entusiasmo refletido por um ideal que o eleve e liberte dos
atrativos das seduções inferiores do ambiente social.
Vien dietro a me, e lascia dir le genti;
Sta come torre ferma che non crolla
la cima per soffiar de’ venti.44

Escravizado ao desejo de parecer, à ambição da glória, à magia


da moda, à exibição do fasto, à adaptação incondicionada às
multidões, à fascinação da popularidade e das suas aprovações e
elogios, à tendência ao mimetismo, à imitação servil do que fazem,
pensam e dizem os mais, vós não tereis nunca um cidadão
prestimoso, um servidor leal do bem comum, mas o homem de
expedientes, o explorador hábil, o oportunista multicolor, pronto, em
qualquer emergência, a sacrificar à satisfação destas paixões
sociais os interesses superiores da coletividade.
Por aí vedes a diferença essencial e profunda que separa a
nossa educação social da preconizada pela pedagogia socialista e
comunista. Enquanto nós colocamos na formação interior da
personalidade a alma da educação social, os radicais vermelhos
colocam todas as suas esperanças de uma regeneração da
sociedade na eficácia das iniciações intelectuais ou das estruturas
dos quadros externos da vida escolar socialmente organizada. Esta
tendência, mais ou menos latente em toda literatura pedagógica
inspirada pelo socialismo, revela-se em toda a sua clareza e
virulência no tipo da organização escolar implantado pelo
bolchevismo. O fim da pedagogia russa, pode dizer-se, é ensinar o
homem não a agir mas a fazer. Na nossa atividade intelectual
podemos, com efeito, distinguir dois aspectos: um especulativo,
outro prático. Em face do universo a nossa inteligência entra em
relações de conhecimento com os outros seres, vê as diferentes
relações que os ligam, a finalidade de cada um deles e
principalmente a finalidade nossa, humana. É uma visão
panorâmica do nosso lugar no universo, dos destinos para que
fomos feitos e em cuja realização livre consiste, com a nossa
perfeição, o segredo da nossa felicidade. Orientar a nossa atividade,
para conseguir e realizar o nosso fim, eis a missão da inteligência
no seu trabalho de conhecer a razão e o valor das coisas.
Na sua finalidade prática a mesma inteligência indica os
diferentes meios proporcionados ao conseguimento do objetivo
visado e a vontade aplica-se ao seu emprego. Enquanto orientamos
os nossos atos para conseguir o nosso fim supremo, a realização
plena de nossa natureza humana, agimos; enquanto os aplicamos
fora de nós à fabricação de algum objeto, fazemos. Agir é orientar a
personalidade para os seus destinos, é proceder moralmente; fazer
é trabalhar para produzir alguma coisa fora de nós mas de qualquer
modo a nosso serviço. O agir como agir visa o aperfeiçoamento de
quem age; o fazer como fazer mira a perfeição da obra feita. No agir
acentua-se o aspecto moral da nossa atividade, no fazer sublinha-se
o seu lado econômico. Na nossa pedagogia o fim dominante é a
perfeição do agir, isto é, do homem como personalidade, com o seu
valor próprio e a sua finalidade intangível; na pedagogia soviética, o
que prevalece é a perfeição do fazer, e se alguma vez se fala no
desenvolvimento da personalidade, na cultura das suas qualidades
intelectuais e volitivas, é não em vista do valor humano
propriamente dito, mas somente com o intento de aperfeiçoar no
homem o instrumento de produção elevando ao máximo o seu
rendimento econômico. Daí o nome de escola do trabalho produtivo
dado à escola russa e o seu feitio particular de se apresentar como
uma pequena comunidade organizada de modo a produzir
imediatamente um trabalho de utilidade social.
Tudo isto corolário da visão materialista da vida que constitui o
substrato filosófico do marxismo. Se o homem não tem um valor
espiritual, próprio, toda a sua felicidade consiste na maior soma de
bens terrenos. O fim da vida social será acumular, portanto, a maior
quantidade destes bens para saciar a todos os desejos e a todas as
cobiças humanas. A eficácia da escola se resumirá no seu poder de
transformar os pequeninos seres humanos que lhe são confiados
em instrumentos econômicos de capacidade máxima de produção.
Daí a estrutura de sua organização social obediente a uma
finalidade puramente material. Aqui o que nós chamamos corpo da
pedagogia social se apresenta no seu aspecto extremo, desanimado
de qualquer sopro de idealidade espiritual. Em outras orientações
menos radicais da Escola Nova a materialização não vai tão longe,
mas há ainda uma confiança excessiva e ingênua na eficiência dos
quadros exteriores e um descaso funesto da formação interior das
almas.
Para nós a educação da personalidade é a artéria vital da
formação eficiente da sociabilidade; a organização da alma, a
primeira condição de organização externa da vida social. As
estruturas sensíveis, os processos didáticos de que falamos na
última palestra, úteis em si serão, porém, insuficientes, se
exclusivos. O corpo da pedagogia social não passará de puro
cadáver se o não aviventar a alma interior da formação da
personalidade.
Praticamente, porém, como formar as almas ao desempenho
dos seus deveres sociais? No cultivo dos elementos bons da nossa
natureza social e no complemento indispensável da vida religiosa e
cristã nos seus aspectos mais profundos de sociabilidade e
fraternidade humana.
Por natureza somos sociais, isto é, destinados a viver com os
nossos irmãos; um instinto profundo inclina-nos a esta convivência;
sentimo-nos espontaneamente atraídos a procurar a companhia dos
outros; correntes de simpatia ligam-nos àqueles com quem
entramos em contato mais freqüente. Daí uma inclinação natural a
quanto pode tornar esta convivência não só possível mas ainda
agradável: é feixe de sentimentos sociais que desabrocha do fundo
da nossa própria natureza. Cultivá-lo com cuidado; desenvolver este
capital precioso que é um primeiro dom de Deus. Opor, na
consciência da criança, em contraste instintivo as estreitezas do
egoísmo estéril e a expansão enriquecedora das dedicações
sociais. Fechando-se no isolamento do seu pequenino eu, o homem
atrofia as suas melhores qualidades, azeda a sua vida e, no
extremo, fecha-se, como um ouriço intratável, na solidão de uma
misantropia eriçada de pontas. Dedicando-se aos seus irmãos é a
expansão de suas melhores energias, é a diminuição de sofrimento,
é, com a multiplicação dos serviços e dos benefícios que prestamos,
o aumento, em torno de nós, do sorriso e da felicidade. Insistir,
principalmente, na solidariedade real que une os nossos destinos
aos dos outros homens e nos torna inevitavelmente dependentes
uns dos outros no trabalho do nosso aperfeiçoamento e na
possibilidade mesma da nossa vida. É esta lição que nunca se
repetirá demasiadamente e se poderá adaptar sob mil formas
diversas à capacidade das crianças nas suas diferentes idades.
Tomai, por exemplo, um pedaço de pão que se come no café e falai
assim: “Já refletiste, meu filho, quantos homens trabalharam para
que pudesses almoçar esta manhã? Quantos padeiros passaram
talvez a noite em claro, à luz das grandes fornalhas, para que
tivesses fresco e quente o teu pãozinho da manhã. Este pão é de
trigo, este trigo vem-nos da Argentina: quantos agricultores durante
meses a fio não semearam, mondaram para colher a espiga loura
que hoje é pão. A farinha deste trigo trouxe-nos a estrada de ferro,
primeiro, depois o vapor. As locomotivas fabricou-as a Inglaterra, o
cargueiro veio da Alemanha; pensaste nos operários que
trabalharam o ferro, nos mineiros que talvez perderam a saúde na
extração do carvão de pedra; nos foguistas que penam esbraseados
pelo calor das caldeiras, nos marinheiros isolados das suas famílias
para assegurar a navegação na amplitude silenciosa dos mares.
Toma um atlas: não há talvez uma parte do mundo em que não se
tenha trabalhado por ti. Conta, se podes, quantos direta ou
indiretamente contribuíram para que tivesses a tempo e a hora o teu
almocinho de hoje: são talvez milhares e milhares de homens a teu
serviço. E estes homens são teus irmãos; o trabalho deles é a tua
vida; os sacrifícios do seu tempo e da sua saúde é a condição de
teu bem-estar. Tiveste alguma vez para com eles afeto de gratidão?
Talvez o teu coração e os teus olhos nunca se estenderam além das
grades do teu jardim. Cumpre alargar os teus sentimentos e querer
bem a todos os homens. E como lhes amostrarás o teu
reconhecimento? Não podes abrir no mundo inteiro um inquérito
para apurar o número exato dos teus benfeitores anônimos. Mas ao
redor de ti não faltam irmãos teus aos quais podes estender o
reconhecimento do teu afeto e os benefícios de tua atividade.
Querer bem aos nossos semelhantes, fazer-lhes bem na medida
das nossas possibilidades é um dever ressaltante desta
solidariedade profunda que une os nossos destinos e a nossa
felicidade à felicidade e aos destinos dos nossos irmãos”.
Cultivar nas crianças e nos jovens estes sentimentos de
simpatia, de dedicação e desinteresse, alargar-lhes os horizontes
para além dos círculos estreitos do egoísmo individual ou do
egoísmo familiar é preparar nobremente as almas à vida social;
desenvolver o que há de melhor, de mais sadio nas reservas da
nossa natureza.
Basta, porém, esta educação puramente natural? Podemos
esperar uma verdadeira fraternização dos homens só com este jogo
de simpatias nascidas do instinto social e que podem, aqui e ali, em
algumas almas bem-nascidas alimentar verdadeiras dedicações e
inspirar criações de incontestável benemerência social? Digamo-lo
imediatamente e sem rebuços: não. Toda educação social que não
prender profundamente as suas raízes na formação religiosa da
consciência é precária, ineficaz, superficial e, com raras exceções,
não resistirá por muito tempo à ação esterilizadora do egoísmo.
Eis por que todos os sociólogos que desceram, numa análise
conscienciosa, às causas mais profundas da conservação e do
progresso da vida social, viram na religião a condição essencial da
solidariedade humana.45
Benjamin Kidd:
Trabalhar para o bem geral, sacrificar-se pela sociedade, viver a serviço do
organismo social, numa palavra, esquecer a si mesmo, eis a tarefa que devia
desempenhar o indivíduo. E essa tarefa ele não a pôde desempenhar senão
desde o momento em que os grandes deveres sociais lhe foram
apresentados a uma luz superior, como meio de atingir bens maiores. Este
horizonte moral desdobrou-se aos seus olhos quando foi iluminado pela luz
do universal, pelo Sol do Infinito, que o cristianismo fez brilhar no espírito
individual e com que o sentimento individual exerceu uma atração magnética
infinita.46

Boutroux: “A sociedade supõe a religião, inspira-se da religião


[…]. A religião desempenha um papel de princípio, não de simples
instrumento […]. Na origem de todo progresso social encontra-se a
fé, a esperança e o amor”.47
As razões já começaram a entrever-se nestas mesmas
citações. A primeira é que não há vida social sem sacrifícios
individuais. O bem comum nem sempre coincide com o bem de
cada indivíduo; não raro exige sacrifícios particulares. Não há
servirmos aos nossos irmãos sem nos esquecermos a nós mesmos:
não há dedicação sem renúncia; não há verdadeira caridade sem
mortificação do nosso egoísmo. E uma concepção puramente
naturalista da vida não explica à inteligência a razão de ser do
sacrifício nem subministra à vontade motivos eficazes para o
inserirmos valorosamente na trama da nossa vida. O cético não tem
nenhuma razão para dedicar-se e o ateu é logicamente um egoísta.
Se de fato serve e se dedica é porque na realidade da existência se
guia ainda por outros princípios e por outras verdades que não são
o corolário do seu ateísmo. No nosso mundo ocidental sobretudo
são numerosas as almas que vivem ainda inconscientemente do
cristianismo que renegaram e, sem o saber, devem o melhor dos
seus corações a esta atmosfera de amor com que o Evangelho
embalsamou a nossa civilização.
A outra razão é que só a concepção religiosa dissipa o sofisma
que o egoísmo opõe ao princípio de solidariedade! Quem me
assegura que também os outros cumprirão o seu dever, que todos
cederão de seu bem-estar o indispensável para aumentar o bem-
estar coletivo? E se os outros se desinteressam do bem comum, por
que me hei de sacrificar eu? Cada um por si; procurarei viver o
melhor que me for possível, e os outros que façam o mesmo: après
moi le déluge. Contra este sofisma, notava Bureau, numa memória
apresentada ao 3º Congresso Internacional de Educação Moral, são
inoperantes todos os argumentos da moral sociológica fundada na
simples solidariedade humana.
[Il faut] donner à l’homme una conscience profonde des valeurs spirituelles et
le convaincre de la destinée transcendente qui est la raison d’être et la fin de
sa vie terrestre. Puisque l’homme, envisagé dans sa seule existence terrestre,
ne saurait être considéré comme sa propre fin; puisque, d’autre part, la
société ne saurait devantage être considérée comme une fin capable de
justifier le sacrifice, il faut développer dans les consciences le sentiment
profond dos relations étroites et mysterieuses qui existent entre nos chétives
personnes et l’idéal que nous devons servir… Il resterait à montrer comment
cette oeuvre d’espiritualisation croissante ne se peut poursuivre qu’au sein
d’une religion organisée et notamment à l’Ecole du Christ Rédempteur, de
Celui qui connaissant le mieux nos indecibles misères, nous a cependant
invités à devenir parfaits, comme le Père celeste est parfait.48

Paul Bureau acaba de indicar-nos a superioridade social do


cristianismo. Se as verdades fundamentais que formam o substrato
indispensável da vida religiosa — a crença na existência de Deus,
na imortalidade da alma, na vida de além-túmulo, que reflete a
fidelidade com que neste mundo cumprimos a vontade de Deus —
constituem os elementos necessários à possibilidade mesma de
uma organização social — e por isto a história ainda não conhece
uma sociedade de ateus coerentes — é de prever a riqueza de
elementos socializadores encerrada na religião verdadeira.
E não deixa de ser doloroso como, muitas vezes, por culpa
nossa, ficam inexplorados e quase ineficientes todos estes tesouros
inestimáveis do nosso cristianismo, na formação religioso-social dos
nossos alunos.
O cristianismo, em primeiro lugar, assegura esta formação
integral da personalidade, que vimos ser a primeira condição de
toda educação humana eficaz. Em vez de iniciações puramente
intelectuais e especializadas, uma concepção integral da vida a
modelar as almas e infundir-lhes estas energias profundas para o
cumprimento de todos os deveres em qualquer das múltiplas
relações da nossa existência.
Além desta influência geral, porém, o cristianismo projeta sobre
as nossas relações humanas o esplendor de claridades mais altas.
O amor ou a simpatia puramente natural transfiguram-se à luz da
caridade cristã e a solidariedade da natureza recebe outra
interpretação na doutrina sobre todas consoladora da Igreja,
considerada como corpo místico de Cristo, vivificado pela graça
sobrenatural.
Todos os nossos atos bons apresentam então, inseparáveis,
dois aspectos: um natural e humano, outro sobrenatural e divino.
Poderá ser que não vejamos logo os resultados imediatos de um ato
virtuoso na ordem dos efeitos naturais acessíveis à nossa
observação. Mas o que vemos ou podemos ver não representa o
seu conteúdo total. Este mesmo ato apresenta ao mesmo tempo um
sentido sobrenatural que o completa e que dele é inseparável.
Todos os sacrifícios sociais, todas as dedicações aos nossos
semelhantes, são amplamente compensados. Qualquer ato do
cristão implica necessariamente um aumento da vida divina na
Terra, e esta certeza de uma eficácia segura no aumento da nossa
grandeza pessoal condicionada pela grandeza dos nossos irmãos é
estímulo eficaz a todas as renúncias e à generosidade de todos os
heroísmos. Constituímos todos em Cristo um só corpo; não
podemos ser bons ou ser maus isoladamente. São eternas e
coletivas as conseqüências de todas as nossas ações.
E eis como “a vida da Igreja dá fundamentos eternos às
relações sociais entre os homens e abre um campo ilimitado ao
amor e à dedicação”.49 Os nossos semelhantes começam então a
aparecer-nos como irmãos verdadeiros: a nós unidos não só pela
comunhão do sangue, mas pelos vínculos do espírito; não os
amamos só pelas suas qualidades naturais, por uma repercussão
de simpatia que talvez em nós despertem, mas porque neles há
algo de Deus, de Cristo, há uma vida divina a infundir, conservar e
desenvolver em cada alma. Amamo-lo com o mesmo amor com que
amamos a Deus. Destacar o homem deste conjunto magnífico do
plano divino é expô-lo à miséria de todas as paixões anti-sociais.
Sem este alto conceito da dignidade de cada alma que só o
cristianismo assegura, o homem acaba quase sempre desprezando
o outro homem. “Odi profanum vulgus et arceo”, dizia Horácio.
Nietzsche e Schopenhauer e Renan são nos nossos dias exemplos
típicos desta atitude cruel.
Só o cristianismo dá fundamentos sólidos à fraternidade
humana, à caridade real; a caridade intensificando-se desabrocha
em zelo; o zelo inspira a ação benfazeja e torna possíveis todas as
renúncias que a condicionam. E aí tendes como a ação social
católica é um corolário espontâneo dos nossos dogmas mais
consoladores: na instrução religiosa das almas, porque não insistir
mais nestes aspectos sociais e deduzir-lhes todas as conseqüências
práticas.
Mas o cristianismo vai além: não é só a riqueza da doutrina que
transfigura as nossas relações sociais; é a intensidade interior da
sua vida, que só ele é capaz, pelos seus sacramentos, de alimentar
nas almas, que torna possível a realização do seu ideal. O
Evangelho é o código sublime do amor entre os homens. Mas Cristo
conhecia a inconstância da nossa natureza. Promulgá-lo e ausentar-
se fora entregá-lo ao destino de tantos outros sistemas cuja beleza
e eficácia original vão empalidecendo com a longa sucessão dos
anos. Um túmulo vazio não defende uma lei viva. A saudade de uma
lembrança não supre uma presença amada. Para se construir uma
humanidade em que o homem fosse irmão de outro homem, Cristo
perpetuou entre nós a sua presença divina. A lei do amor será
guardada pelo tabernáculo onde Ele permanece, vivo e real, como
nos dias ditosos da Palestina, em que vazava os corações dos seus
primeiros discípulos nos moldes do seu coração infinitamente
generoso. Desde esta noite misteriosa que precedeu a trágica
imolação do Gólgota, o grande mandamento que resume todo o seu
Evangelho ficou indissoluvelmente associado ao grande sacramento
em que se consubstancia o seu amor. A Eucaristia, o mais
intimamente pessoal de todos os sacramentos, será também e por
isto mesmo o sacramento social por excelência: será a comunhão, a
sinaxe, isto é, a assembléia, a união íntima dos fiéis que devem ser
irmãos; será o banquete, o convívio, isto é, o símbolo da
fraternidade, a expressão e o alimento do amor na família e na
sociedade. O contato íntimo com Cristo na Eucaristia irá
transformando profundamente as almas num ideal mais alto. A
quem comunga, o mundo vai aparecendo à claridade de outra luz; já
não é um instrumento de nossas satisfações egoístas, um cenário
onde só há bens sensíveis que excitam a febre do gozo, multiplicam
os germes de discórdias e exasperam as concorrências, os conflitos
e as lutas. A existência apresenta outro sentido; o de uma vida em
que se trabalha por Deus e pelo próximo, em que dar é mais feliz
que receber; em que sacrificar-se é o segredo de realizar-se
plenamente. Ao contato do coração de Cristo, ardente e generoso,
intimamente unido ao nosso, opera-se insensivelmente a
transfiguração maravilhosa; desbastam-se as arestas rudes da
nossa intratabilidade, dissolvem-se os gelos do nosso egoísmo e o
coração do homem entra a palpitar ao ritmo do Coração de Deus.
Cada tabernáculo transforma-se assim num foco de irradiação
fraterna, num manancial vivo de amor entre os homens, deste amor
que defende as famílias e salva as sociedades das devastações
mortíferas do egoísmo.
Para comprimir todas as causas interiores de divisão, de
discórdia e de guerras; para dar a todas as forças divinas da
harmonia o máximo de sua expansão unificadora, não há como
estabelecer nas almas pela participação freqüente, intensa,
profunda da vida Eucarística, o reino de Cristo que só é capaz de
assegurar a paz de Cristo no seio das sociedades remidas com o
seu sangue: non est in aliquo alio salus.
Fazer com que as almas compreendam profundamente a
beleza destas verdades e vivam intensamente a plenitude desta
vida: eis o segredo e a alma da pedagogia social.

Rio, 03 de novembro de 1933.

43 Este desenvolvimento segue de perto a Förster, L’école et le Caractère, pp.


75–83.
44 Purgatório, 13.
45 Demosntração desta verdade em Rudolf Allers, Das Werden der sittlichen
Person, Herder, 1930.
46 Social Evolution, pp. 183–185. D. H., I, p. 210.
47 Science et Religion, p. 207, D. H., I, p. 140.
48 “Psychologie de la tentation”, em L’Education et la Solidarieté, pp. 228–229.
Jaonen, La formation sociale, pp. 109–110.
49 Brequet, O.S.B, Sagesse de Vie, p. 28.
Individualismo.
Reação do socialismo.
Concepção socialista da vida.
Suas conseqüências pedagógicas.
Fim da educação.
Sociologia — scientia rectrix.
Monopólio educativo do Estado (Escola única).
Socialização da escola.
Co-educação.
Crítica
Desconhecimento da dignidade da pessoa humana.
Sociologia não pode ser scientia rectrix da pedagogia.
Monopólio educativo do Estado.
Mutilação da natureza humana e desconhecimento da sua
psicologia.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 13/07/1933.


Pedagogia socialista

O S RESULTADOS do individualismo, no campo econômico e


pedagógico, foram tão evidentemente funestos que — pode
afirmar-se sem perigo de erro — ninguém há hoje que o preconize,
em teoria, como sistema ideal. Praticamente, como forma de vida,
encontramo-lo ainda a cada passo: é o sistema do “cada um por si”,
fórmula vulgar com que se acobertam todas as manifestações do
egoísmo. Na esfera superior das doutrinas, porém, a reação contra
o individualismo acentua-se em todas as escolas econômicas e
pedagógicas, mesmo nas que descendem em linha reta do
liberalismo do século XIX, que já não se pode sustentar sem rever
mais de uma das suas posições fundamentais.
Dentre estas atitudes reacionárias, uma das mais extremadas e
ativas é a do socialismo em todos os inúmeros matizes de suas
manifestações que vão das fórmulas mais róseas às mais
carregadamente rubras do comunismo radical. É daí principalmente
que, em nossos dias, mais iminente ameaça o perigo. Conhecer
portanto as posições doutrinárias do socialismo — as suas
reivindicações justas e as suas lacunas essenciais — é um dever
que se nos impõe tanto para formar o critério dos nossos juízos
quanto para orientar com segurança a direção das nossas ações.
O individualismo exaltara demasiadamente o indivíduo em
detrimento do bem social. Seu ponto de partida era o respeito a
umas tantas leis, por ele chamadas naturais, contra cujo
determinismo era inútil e prejudicial qualquer tentativa de reação.
Em pedagogia preconizava-se o desenvolvimento da criança na
espontaneidade absoluta de seus instintos e tendências. Era a
ruptura contra as exigências superiores de uma disciplina interna
que nos assegurou, com a educação de uma vontade forte, a paz da
unidade resultante de uma hierarquia conhecida com clareza e
respeitada com fidelidade.
Em economia afirmava-se a intangibilidade das liberdades
individuais, capazes de per si de regularem o intercâmbio das
relações econômicas. Que a lei não se intrometesse a regulamentar
as horas de trabalho, a fixar salários mínimos, a proteger a
possibilidade de uma família regularmente constituída e assegurar o
futuro de quantos vivem do trabalho de suas mãos. As chamadas
leis naturais econômicas — da procura e da oferta, da livre
concorrência, etc. — não poderiam ser contrariadas e o seu
resultado final, não obstante crises passageiras, só poderia ser
favorável. A prosperidade geral seria assim um fruto espontâneo
das liberdades individuais não coagidas nem limitadas pela
intervenção das leis positivas como, em matéria educativa, a
formação perfeita do homem e do cidadão seria um corolário natural
da livre expansão de todas as suas tendências. Num e noutro caso,
o indivíduo entregue plenamente a si mesmo e o bem comum a
resultar automaticamente do livre jogo das autonomias individuais.
Os resultados da concepção individualista foram desastrados. A
sociedade entrou a corromper-se não obstante a robustez de alguns
dos seus membros; o capital aumentou mas, ao lado do capital,
aumentou também a miséria; a facilidade da produção acrescida
pela máquina não coincidiu com uma distribuição mais justa da
prosperidade comum.
Contra as misérias semeadas pela concepção individualista,
reagiu o socialismo e inverteu os termos do problema. A grande
realidade não é o indivíduo, mas a sociedade. O indivíduo não é e
não se desenvolve senão pela comunidade, substrato e portadora
de todos os valores humanos. As ciências e as línguas, a técnica e
a arte, a moralidade e a religião são bens sociais; na sociedade
nascem e crescem, conservam-se e desenvolvem-se.
Dela, como de fonte primeira, recebem os indivíduos todos os
seus valores de vida: tanto na sua existência material como na
atividade superior do espírito: sem a sociedade o indivíduo não
passaria de uma abstração. Não há portanto uma autonomia
individual, um valor e um fim próprio do indivíduo; a grande
realidade existente é a sociedade: “O homem não chega a ser
homem senão pela comunidade humana”. “A falar com propriedade,
o indivíduo não passa de uma abstração”.50
Para frisar melhor esta onímoda dependência do indivíduo em
relação à sociedade é freqüente entre os teóricos do socialismo a
comparação da estrutura social com a do organismo. Também este
é um todo complexo: célula e tecidos, sistemas e aparelhos fundem-
se harmoniosamente na grande unidade orgânica. Mas a realidade
primeira é o organismo: só ele tem vida autônoma e finalidade
própria; as células não vivem senão do todo e para o todo; sua
razão única de ser é a vida superior da unidade, complexidade de
que são os primeiros elementos. E a comparação biológica que,
como simples analogia, pode ter o seu interesse e utilidade, forçada
até uma perfeita identidade com todas as suas conseqüências.
Esta inversão completa na visão da realidade social em sua
relação com os indivíduos que a integram é celebrada como a
grande conquista das ciências sociais dos nossos dias, comparável
à revolução que em astronomia e cosmogonia produziu no século
XVI a teoria copernicana. Já não é o Sol que gravita em redor da
Terra; o centro do nosso sistema não está no nosso insignificante
planeta, mas no Sol em torno do qual ele gravita, com os outros
irmãos seus, na dependência das pequeninas massas. Assim, no
assunto que nos interessa, o grande centro de gravidade é a vida
social: ao redor dela movem-se na mais completa e inevitável
dependência todas as existências individuais: não é o indivíduo que
explica a sociedade, mas a sociedade que explica o indivíduo. Eis a
grande conquista do pensamento social contemporâneo: é inteira
concepção nova que se projeta em amplas e prolongadas
perspectivas.
Não lhe seguiremos as aplicações no campo econômico:
supressão da propriedade individual, transferência para a sociedade
organizada de todas as fontes de produção; concentração absoluta
do poder nas mãos do Estado, a quem compete discernir as
vocações, determinar o exercício das profissões ou carreiras
individuais, repetir o trabalho, regular a produção segundo as
exigências do bem comum, distribuí-la pelos consumidores segundo
as necessidades de cada qual e assegurar assim, com perfeita
igualdade e na eliminação das diferenças de classe, a satisfação e a
felicidade de todos.
O que unicamente nos interessa, ao presente, é a repercussão
profunda do socialismo na pedagogia. Ainda uma vez averiguamos
a relação íntima, inevitável e indestrutível entre uma concepção da
vida e um sistema pedagógico. O modo de educar é uma função
necessária do modo de conceber o homem, a sua natureza e os
seus destinos.
A primeira conseqüência pedagógica do socialismo é que o
homem não tem um valor próprio, o indivíduo não tem uma
finalidade sua. É ponto importante este e sobre o qual estão de
acordo os mestres da pedagogia socialista; vale a pena ouvir os
seus nomes mais representativos: Natorp e Bergmann.
A meta da educação fica assim inteiramente deslocada. Sem
fim próprio, o homem já não vale senão como meio para promover a
prosperidade social. É instrumento que importa formar para o
trabalho de construção do bem comum. No homem não se forma o
homem, mas simplesmente o cidadão. As energias culturais que
nele se devem desenvolver durante a fase de formação — atividade,
instrução, moralidade, não têm outra razão de ser senão habilitá-lo a
melhor contribuir para a grande tarefa comum, o bem ideal do
Estado, que se apresenta como um valor absoluto, fim último, ao
qual tudo o mais se deve subordinar como meio. Aos textos.
Natorp: “O fim da educação não pode ser outro senão a
socialização e, por ela, a moralização de toda a vida de um povo”.51
Bergmann: “A educação não pode ter outro fim senão formar
cada um de sorte que se julgue feliz de viver para a comunidade e
de consagrar as suas melhores forças à conservação e ao
aperfeiçoamento da vida da raça humana”.52
Kerschensteiner: “O fim supremo da atividade humana consiste
na realização do Estado cultural e jurídico no sentido de uma vida
moral coletiva”. “A vida bem ordenada do Estado possui um valor
absoluto”. “O ideal mais elevado é ser cidadão”. “A educação é o ato
cultural de comunidade que distribui ao aluno bens culturais
determinados (religião, moral, direito, ciências, artes, técnica,
costumes sociais) de tal forma que desenvolvam na criança, em
conformidade com as suas disposições, o máximo de energia
cultural, em proveito do máximo de bem-estar da comunidade”.53
Durkheim: “Bem longe de ter a educação como objeto único ou
principal o indivíduo e seus interesses, é antes de tudo o meio pelo
qual a sociedade renova perpetuamente as condições da própria
existência. […] A educação consiste numa socialização metódica da
jovem geração. […] Constituir em cada um de nós o ser social, eis o
fim da educação”.54
“Quando se trata de determinar o fim da educação, o indivíduo
não possui valor algum, constitui-lhe apenas o elemento material. O
indivíduo não pode ser o fim da educação”.55
“Que o homem possua um valor por si e para si é uma ilusão”.56
“Nunca ao educador foi mais necessária uma cultura
sociológica […]. Ela pode dar-nos o de que temos mais urgente
necessidade, isto é, um corpo de idéias diretrizes que sejam a alma
de nossa prática e que a sustentem, que dêem um sentido à nossa
ação e a ela nos prendam, condição necessária para que toda a
ação seja fecunda”.57
Fica assim inteiramente deslocado o eixo em torno do qual
gravitava a pedagogia humana. As conseqüências vão-se desfiando
umas após outras.
Se só a sociedade é real e o indivíduo, sem um fim próprio e
autônomo, não passa de um instrumento a seu serviço, a ciência
que passa a regular a pedagogia e assinalar-lhe os ideais supremos
já não é nem a moral, nem a religião, mas a sociologia. Seu objeto é
estudar a sociedade como tal, isto é, a única realidade verdadeira.
Pertence-lhe, portanto, indicar os fins essenciais da educação. “O
fim da educação”, escreve Bergmann, “não pode ser tomado, como
de ordinário se pretende, à religião e à moral; deve ser deduzido da
biologia”.58 Lembremo-nos que Bergmann é organicista, identifica a
sociedade como um organismo e conseqüentemente a sociologia
com a biologia. Durkheim não é menos explícito.
A sociologia é assim elevada à dignidade primeira de scientia
rectrix. Todas as outras lhe são ancilas e dela devem receber as
suas normas e a sua orientação. Psicologia, sim; mas psicologia
social que, aplicando-se à vida psíquica da coletividade, por ela
esclarece, explica e orienta a psicologia do indivíduo. Moral,
outrossim, mas num sentido muito diferente do que lhe atribui a
tradição clássica do pensamento. Já não é a ciência dos atos
humanos enquanto devem ser orientados para a realização dos fins
supremos do homem, com uma indicação de todos os seus deveres,
assim sociais como outros. O fim único e supremo do homem é a
vida social: bom, moralmente, portanto, será o que para isto
contribui; mau o que se lhe opõe. O capítulo da moral social dilata-
se e amplia-se, no interior da ética, a ponto de absorver tudo o mais.
Socializar, pois, é sinônimo de moralizar.
Religião, também, por que não a religião? mas num sentido
radicalmente diverso do que geralmente se lhe atribui. Os
socialistas, pelo menos alguns, continuam ainda a falar de religião
como de um dos produtos necessários da cultura humana, mas nela
já não vêem o complexo dos deveres que decorrem das nossas
relações essenciais com Deus, mas apenas o auxiliar poderoso do
instinto social. “Doravante”, escreve Natorp, “a religião se restringirá
nos limites da natureza humana”.59 Sua finalidade não se estende
além das fronteiras do tempo e das realidades tangíveis da história.
“Construir não o reino de Deus”, diz Müller-Lyer, “mas o reino da
humanidade, tal a tarefa da religião futura”.60 Substituir, portanto, “o
culto da Humanidade” (com H maiúsculo) como já fizera Comte, eis
a transformação radical da idéia de religião, que nos propõe o
socialismo, reduzindo-a a uma mera sociolatria.
Destas conseqüências de ordem teórica derivam outras,
práticas, e que se traduzem imediatamente em disposições
legislativas que vão invadindo os regimes escolares dos diferentes
países. Apontemo-las apenas.
A primeira é o monopólio educativo do Estado. O homem, sem
finalidade própria, distinta da realidade social, não tem direitos
intangíveis. É uma criatura ou propriedade do Estado, representante
jurídico da sociedade organizada. Ao Estado portanto e só ao
Estado pertence o direito de educar. Se ainda se fala na função
educativa da família não é porque se reconheça aos pais um direito
próprio de educar os filhos, direito que se impõe ao respeito do
Estado; é porque o Estado lhes delega parte dos seus direitos
absolutos e totais; delegação, aliás, provisória na fase atual de
transição entre o regime burguês e o socialista. O ideal é que as
crianças apenas recém-nascidas sejam arrancadas aos braços de
suas mães e confiadas às instituições oficiais que se incumbirão de
educá-las do berço à adolescência. Esta educação será
verdadeiramente social, feita longe do egoísmo familiar que constitui
um obstáculo à plena dedicação do indivíduo à coletividade. Escola
única, portanto, não só no sentido justo e aceitável de instituições
escolares que não façam das classes grupos fechados, mas
permitam a todos os cidadãos, sem diferença de origem, o acesso
aos bens superiores da inteligência, mas escola única no sentido de
instrução monopolizada pelo Estado: uma só escola: a escola
pública e esta moldada e orientada pelo tipo único do Estado, sem
nenhuma consideração para com os direitos da consciência dos
educandos e das suas famílias.61
Segunda conseqüência: socialização da escola. Transposto o
fim da educação, impõe-se outrossim a reorganização total da
escola. Educar é formar o cidadão, prepará-lo para a vida social;
ora, não se aprende a nadar senão entrando na água; não há
infundir nos educandos o espírito social sem mergulhá-lo num
ambiente social. “A única via”, escreve Kerschensteiner, “para
preparar a vida no Estado é mover-se na vida social”. Para este fim,
a escola deve transformar-se numa “comunidade em miniatura”.62
Em vez do cultivo individual da inteligência, da memória, da
vontade, o trabalho em comum a formar prática e ativamente as
crianças para a colaboração da vida coletiva. A escola transforma-
se, pois, numa pequena organização social, organicamente
articulada à vida e às exigências da sociedade maior que a envolve.
Na Rússia, já se multiplicam as escolas anexas às grandes
fábricas, transformadas elas também em fábricas menores onde
trabalhando e produzindo já se preparam os meninos ao trabalho
produtivo de mais tarde. Esta socialização da escola envolve
naturalmente a co-educação dos sexos estendida
indiscriminadamente a todas as idades e períodos da educação, do
primário ao superior.
Tal, em suas linhas gerais, a nova concepção da vida
preconizada pelo socialismo e as suas imediatas e profundas
repercussões no domínio da pedagogia.
Expusemos com brevidade; com brevidade ainda maior
critiquemos. Não desceremos, por ora, a minúcias de segunda
importância nem a apreciar a eficiência de certas medidas
pedagógicas e de processos escolares, destinados à formação ativa
do senso social. Aqui, na sua justa reação contra o individualismo
anterior, há muita sugestão útil e que merece ser aproveitada. Por
hoje, cingimo-nos à esfera superior dos grandes princípios que, pela
sua universalidade, dominam, esclarecem e orientam e valorizam ou
desvalorizam tudo o mais.
O defeito essencial, o vício congênito do socialismo é o
desconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana. Daí
esta inversão completa dos valores, pela subordinação
incondicionada e total, do homem à sociedade, como de um meio ao
seu fim único e supremo, de uma coisa ou de instrumento ao
destino que lhe constitui a razão exclusiva de sua existência. Ora, já
o frisamos em outra ocasião, pela sua inteligência e vontade o
homem transcende o tempo e o espaço, entra em contato com um
mundo de valores mais altos, cuja realização constitui o seu ideal
supremo, o fim da sua natureza racional. No conseguimento desta
sua finalidade, o homem é autônomo, portador de valores morais,
de ordem superior, isto é, sujeito a deveres indeclináveis e titular de
direitos intangíveis. Transformá-lo em simples célula que não vive e
não pode viver senão no organismo e para o organismo de que é
elemento integrante fora desconhecer o que há no homem de
especificamente humano. Rebaixá-lo ao nível de um instrumento a
serviço do bem social e de um bem social limitado e restrito à soma
de uns tantos valores puramente terrenos e temporais é degradar-
lhe a dignidade e mutilar-lhe essencialmente a natureza. O homem
não é uma coisa a serviço de outra coisa; a sociedade humana não
é uma colméia de abelhas ou um rebanho de cordeiros, onde só há
indivíduos a serviço total da espécie. Por isso mesmo que somos
pessoas e não só indivíduos — por isso mesmo que somos
inteligências e vontades capazes de atingir um mundo de objetos
transcendentes, os nossos destinos não se encerram nas
estreitezas do tempo, e as sociedades que evolvem, se aperfeiçoam
e declinam, no ritmo das suas vicissitudes históricas, não encerram
a totalidade dos nossos destinos nem a plenitude das nossas
aspirações nem a imensidade das nossas esperanças. A
organização indispensável da nossa existência social constitui
apenas o quadro necessário em que as almas se formam, se
desenvolvem e amadurecem para a imortalidade de sua vida
definitiva. Esta mutilação essencial da autonomia dos nossos
destinos pessoais, autonomia que é corolário da nossa natureza
humana — constitui o vício original de toda a concepção da vida
preconizada pelo socialismo.
Por aí já podeis ver imediatamente que a sociologia não pode
ser a sciencia rectrix da pedagogia; não lhe pertence nem lhe pode
pertencer a função de determinar o fim supremo do homem e
portanto o ideal primeiro de sua educação. Seu objeto limita-se ao
estudo da sociedade na qual vivemos, para a qual deveis trabalhar
mas que não enfeixa nem resume a totalidade dos nossos destinos.
Neste apelo insistente à sociologia, para pedir-lhe os novos
rumos da educação e da vida, há ainda uma série de equívocos que
importa dissipar. Que é a sociologia? Qual o seu caráter científico?
Qual a certeza de suas conclusões? Eis outras tantas questões a
que não é fácil responder.
Quereis considerar a sociologia como uma ciência puramente
positiva, análoga às outras ciências de simples observação? Então
o seu objeto será investigar a realidade social, os fenômenos que se
sucedem e se condicionam, as leis que regem estas coexistências
ou sucessões. O seu método será o da observação exata e
completa dos fatos em toda a sua complexidade. Mas este objeto e
este método limitam outrossim os seus resultados. Os resultados
não podem ser outros senão o conhecimento objetivo dos fatos
sociais como a física estuda os fatos físicos, a astronomia, os fatos
astronômicos. Reduzida a este caráter de ciência positiva ou
experimental, a sociologia não pode ter pretensões de ditar leis ou
de ser ciência normativa. Os juízos que pronuncia são juízos de
existência, não juízos de valor. Poderá dizer: assim é, assim se
passam os fenômenos sociais; não poderá nunca sentenciar: assim
deve ser; neste rumo se devem orientar os fatos. As ciências
positivas, já o disse Poincaré, não falam em imperativo; o modo
único que lhes convém é o indicativo. Mas a educação não
prescinde de imperativos.
A razão de ser da pedagogia não é observar a criança que se
desenvolve, mas orientar-lhe o desenvolvimento; ver e contemplar o
aluno, ainda com o auxílio de todos os instrumentos mais perfeitos
de observação científica, não é educar; educar é intervir, intervir é
orientar, orientar é conhecer um rumo e para ele dirigir a criança.
Impossível uma educação sem um ideal educativo: e ideal educativo
não é a ciência do que é, do que deve ser o homem. Enquanto,
pois, se restringir a sociologia a ciência puramente positiva e de
observação — e esta é a tendência de todos os empiristas —, não
há como apelar para ela a fim de orientar a pedagogia. Por sua
própria natureza — por seu objeto e por seus métodos —, ela se
acha irremediavelmente condenada à incapacidade visceral de
preencher a esta função.63
Quereis, pelo contrário, considerá-la como uma ciência
normativa, incumbida não só de investigar e registrar os fatos
sociais mas de traçar as normas a seguir na sua orientação?
Quereis elevá-la à categoria não só de ciência mas de filosofia
social? Quereis que sobre a vida coletiva ela possa pronunciar
juízos de valor, condenando ou inculcando processos, rumos,
orientações, realizações sociais? Bem está! Mas, então a sociologia
terá que pedir a outras ciências filosóficas uma concepção do
homem e dos seus destinos. A psicologia racional, a ética, a
teodicéia, longe de serem ancilas da sociologia, lhe impõem as suas
conclusões certas como princípios de que a filosofia social deduzirá
as conseqüências próprias do seu domínio. A alma do homem é
espiritual e imortal? Deus existe e impõe às suas criaturas uma lei
moral, que condiciona a sua felicidade definitiva? Eis aí verdades
densas de conseqüências sociais. Ou pelo contrário: a imortalidade
é um sonho, Deus uma quimera, a moral, um código de convenções
relativas? Outros serão nessas hipóteses os corolários sociais,
outros os rumos a imprimir-se à organização da nossa vida coletiva.
Longe, pois, de dar-nos uma nova concepção da vida, a sociologia é
condicionada por uma concepção anterior da existência que a
inspira e orienta. Que o diga o insuspeito Wundt:
Que a sociologia, como ciência positiva e empírica, ainda não exista na hora
atual, eis o que, após exame das doutrinas sociológicas, não pode ser
negado. Todas estas teorias saíram não do estudo objetivo dos fenômenos
da vida social, mas de concepções a priori da vida. A sociologia mergulha
não na vida social mas na concepção da vida […]. As doutrinas sociológicas
modernas quem as construiu não foram os fatos da vida social mas as teorias
da vida que professaram os sociólogos.64

Sob o rótulo de sociologia, da mais moderna das ciências, os


pedagogos do socialismo — e a este grupo pertence um bom
número dos que se acham atualmente à testa da nossa instrução
pública — não fazem senão inculcar velhas e avariadas metafísicas.
A concepção filosófica da vida que constitui a subestrutura latente
de sua orientação é, mal disfarçada sob as roupagens de uma
terminologia moderna, o mais completo e radical materialismo. As
diferenças são acessórias e de superfície, as analogias são
profundas e essenciais.
Para o materialismo o homem reduzia-se a um simples
fenômeno da natureza; para o socialismo a um simples fenômeno
da sociedade. Num e noutro caso, negação de Deus, negação do
espírito no homem, negação de uma lei moral no sentido restrito e
superior da palavra. Tudo o que em nós há — vida física, intelectual,
moral e religiosa — explicava-se no materialismo em função das leis
e dos processos físicos; no socialismo explica-se em dependência
do meio social, dos seus processos e leis. Ateísmo lá e ateísmo
aqui. Idolatria lá e idolatria aqui: lá o ídolo se chamava matéria, aqui
se denomina sociedade. Mas como nesta sociedade nada há que
realmente transcenda o espaço e o tempo, nada há que se não
reduza ao jogo das energias inferiores, de ordem físico-química, a
matéria que com o seu nome próprio dominava no materialismo
volta a reinar no socialismo com outro nome de disfarce. Sob a
diversidade das suas caras não chega a dissimular a sua identidade
fundamental. A nova filosofia social nasceu do materialismo da
extrema esquerda hegeliana. Marx depende de Feuerbach.
É ainda esta concepção materialista da vida e este menoscabo
radical pela dignidade da pessoa humana que o leva a divinizar o
Estado e põe-lhe nas mãos discricionárias não só o monopólio mas
o poder absoluto de orientar a educação do povo. Vedes aqui como
este problema de política escolar se prende à questão de princípios
fundamentais sobre os quais não é lícito transigir. Esclareçamos
brevemente o ponto, para que tenhamos convicções profundas e
esclarecidas.
Quando negamos ao Estado o direito total e exclusivo de
educar não queremos de modo algum recusar-lhe o direito e o dever
de velar pelo desenvolvimento da instrução no país, de pôr os bens
da inteligência ao alcance de todos, de multiplicar-lhe as escolas na
medida das exigências sociais. A instrução é um bem comum e
como tal cai sob a alçada de sua competência. Este direito, porém,
é secundário e supletivo; às famílias, na ordem natural, incumbe o
dever primário de educar e com ele o direito de fundar escolas. Na
medida das deficiências ou insuficiências das iniciativas particulares,
entra a ação complementar do Estado, que vem auxiliar as famílias,
não confiscar-lhes os direitos essenciais. Em que medida e até que
ponto se estende esta intervenção do Estado na fundação de suas
escolas oficiais? Material ou quantitativamente, pouco importa. O
Estado pode promover as iniciativas particulares ou fundar por si as
escolas indispensáveis às necessidades da população.
Numericamente poderia mesmo dar-se o caso em que todas as
escolas de uma nação — pelo menos as primárias — fossem
escolas abertas e mantidas pelo seu governo. O que, porém,
negamos ao Estado é o direito absoluto de orientar, filosófica, moral
e religiosamente a educação do povo. Este direito intangível
pertence à Igreja na ordem sobrenatural e aos pais na ordem
natural. Assim, por exemplo, na Alemanha e na Holanda as escolas
primárias são, na sua quase totalidade, mantidas pelo Estado, mas
orientadas espiritualmente pelas diferentes confissões religiosas a
que pertencem as famílias: aos católicos o Estado dá escolas
católicas, aos protestantes, escolas protestantes.
A razão profunda, já a entrevistes. Como pessoa, o homem tem
um fim superior a realizar; é autônomo nesta realização dos seus
destinos; nenhum poder civil pode violentar-lhe a consciência. A
sociedade, feita para favorecer o desenvolvimento da
personalidade, deve constituir, nas suas instituições e nas suas leis,
este meio favorável ao pleno desabrochar do homem no que ele tem
de mais alto e nobre. Atribuir ao Estado o poder de desrespeitar os
direitos das famílias em matéria de educação significa divinizar os
poderes públicos, fazer de César uma divindade, destruir os direitos
da consciência e entregar ao arbítrio da força o cidadão, indefeso e
reduzido à categoria de mero instrumento dos detentores do poder.
Amanhã o Estado poderia licitamente arrancar um filho da família
católica para fazer dele um protestante, tomar uma alma batizada e
fazer dela um adepto do Corão. A consciência da nação ficaria ao
arbítrio incerto e oscilante do partido dominante. Hoje, domina o
positivismo? Laicizam-se as escolas públicas para transformá-las
num instrumento seguro de lenta descristianização do país.
Amanhã, subirão os comunistas? As escolas se converterão, como
na Rússia, em laboratório de alquimia em que todos os cérebros são
cientificamente elaborados na concepção materialista de Marx-
Lênin.
Quando, portanto, o socialismo, sob o rótulo de “escola única”,
de monopólio da instrução, desconhece os direitos naturais da
família à educação dos filhos e preconiza o absolutismo do Estado,
não faz senão tirar mais uma conseqüência do erro fundamental que
desconhece a eminente dignidade da pessoa humana.
Esta mutilação essencial da nossa natureza falseia-lhe de todo
a visão social e esteriliza, pela raiz, a eficácia de todas as suas
medidas reformadoras.
A sociedade ficou inteiramente privada de todos os seus
fundamentos ideais. No jogo complexo das relações humanas, não
se viu senão a exterioridade tangível do que aparece nos olhos, do
que pode ser pesado, medido e contado. Tudo se reduziu ao
trabalho e ao trabalho produtivo; todo o bem-estar se reduziu à
prosperidade e à prosperidade econômica.
Para consegui-la pede-se ao indivíduo esquecimento de si
mesmo, dedicação ao bem comum, espírito de abnegação e de
sacrifício, e secaram-se-lhe na alma todas as fontes profundas que
tornam possível, alimentam e desenvolvem estas virtudes sociais.
Ao primeiro erro de mutilação da nossa natureza seguiu-se o
segundo de visão incompleta e superficial da nossa psicologia. Os
resultados não poderiam deixar de ser contraproducentes. Queria-
se dedicação e exaltou-se o egoísmo; exigia-se desprendimento e
sacrifício e acirrou-se a luta pelos bens materiais efêmeros e
sobreexcitou-se a febre dos prazeres dos sentidos, e bens de um
dia e prazeres de um instante passaram a constituir o único paraíso
plantado no horizonte das esperanças humanas.
Queria-se amor, único cimento capaz de fundar uma
solidariedade profunda e pregou-se o ódio, o ódio a tudo o que a
humanidade já viu e produziu de mais alevantado e de mais
humano. Ouvi esta página de um dos corifeus da pedagogia
marxista encarregado por muitos anos pelo governo soviético de
organizar a instrução pública na Rússia:
Nós odiamos a cristandade e o cristianismo; ainda os melhores dentre eles
devem ser considerados como os nossos piores inimigos. Eles pregam o
amor do próximo e a misericórdia, o que é contrário aos nossos princípios. O
amor cristão é um obstáculo ao desenvolvimento da revolução. Abaixo o
amor do próximo! O que precisamos é de ódio! Devemos saber odiar; só
assim conquistaremos o universo. Acabamos com os reis da Terra; ocupemo-
nos agora com os reis dos Céus. A campanha anti-religiosa não deve limitar-
se à Rússia; deve ser levada ao mundo inteiro. A luta deve desenvolver-se
também nos países muçulmanos e nos países católicos, com os mesmos
objetivos e empregando os mesmos meios.65

Por este desconhecimento profundo da natureza humana, na


integridade dos seus elementos e no dinamismo de suas energias
psicológicas, o socialismo, com toda a utopia generosa de suas
promessas, não tem feito, na realidade, senão agravar a
profundidade dos nossos males e ampliar a extensão dos nossos
sofrimentos.
Não se tenta impunemente desmantelar a harmonia integral da
obra divina. Não se pode edificar a cidade da Terra sem trabalhar ao
mesmo tempo na construção da Cidade de Deus. As grandes
virtudes pessoais de que precisa a vida social para conservar-se e
desenvolver-se só a profundidade do sentimento religioso é capaz
de alimentá-las na fonte de suas energias misteriosas. O problema
da felicidade social resume-se, em última análise, num problema de
santificação das almas. “Buscai, antes de tudo, o reino de Deus e
tudo o mais vos será dado por acréscimo”.66 À medida que subimos,
aproximando-nos de Deus, dilatamos as estreitezas do nosso
egoísmo e fraternizamos melhor com o nosso próximo. É assim que
se verifica a verdade da palavra inspirada: Nisi Dominus custodierit
civitatem frustra vigilat qui custodit eam.67 E este é o critério genuíno
pelo qual se afere o progresso ou o regresso das civilizações
humanas. Na medida em que as almas se elevarem e unirem a
Deus, a cidade da Terra se irá transformando em Jerusalém — visão
de paz, de justiça e de amor; na medida em que d’Ele se forem
afastando, irá degenerando em Babilônia — confusão, anarquia,
ódio e desespero. Entre estes dois extremos oscila na história a vida
dos povos e a medida da grandeza moral das nossas almas será
dada pela generosidade, pela dedicação, pela perseverança com
que durante a nossa peregrinação terrena houvermos colaborado na
construção da Cidade de Deus.

Rio, 17 de junho de 1933.

50 Natorp, Socialpaedagogik, p. 84. De Hovre, I, pp. 74 e 76.


51 Sozialpädagogik, p. 245. De Hovre, I, p. 107.
52 Sozialpädagogik, p. 192. De Hovre, I, p. 107.
53 Citações exatas em De Hovre, I, pp. 110–111.
54 Pédagogie et Sociologie, p. 46. De Hovre, I, p. 122.
55 Natorp, Sozialpaedagogik, p. 273. De Hovre, I, p. 102.
56 Bergmann, Soziale Paedagogik, p. 134. De Hovre, I. p. 105.
57 Durkheim, Sociologie et Pédagogie, p. 54. Outro texto, p. 121. De Hovre, I, p.
122.
58 Sozialpädagogik, p. 92. De Hovre, I, p. 106.
59 De Hovre, I, p. 81.
60 Der Sinn des Lebens, p. 262. De Hovre, ibid.
61 Natorp e Bergmann. De Hovre, pp. 104–107.
62 Apud De Hovre, I, p. 113; cf. pp. 102–103.
63 E já atingiu a sociologia este caráter de ciência positiva? Nada menos. Cf. D.H.,
I, 136, citação de Sten.
64 Logik, II, 3ª edição, 1903, pp. 480–481. De Hovre, p. 138.
65 Lunatcharski, num discurso proferido em Moscou sobre o tema “Por que não
se deve crer em Deus”. Apud Dévaud, La Pédagogie Scolaire en Russie
Soviétique, p. 184.
66 Mt 6, 33 — NE.
67 Sl 127, 1 — NE.
Síntese baseada na idéia de pessoa

Erros do socialismo.

Concepção social cristã baseada na noção de pessoa.


Noção de Direito que daí deriva.

Direitos do indivíduo:

a vida física,
a vida intelectual,
a vida livre,
a vida moral;
vida de família,
vida divina.

Deveres sociais:

de indivíduo para indivíduo,


justiça e caridade;
de indivíduo para com a sociedade.
Como o cristianismo concilia e sintetiza.

Às professoras do Sacré-Coeur, 10/06/1933.


O pensamento social

O ERRO primeiro da pedagogia social-radical está no


desconhecimento da eminente dignidade da pessoa humana.
Na sua reação violenta e extremada contra o individualismo e suas
funestas conseqüências o socialismo não viu senão a sociedade
com as suas exigências imperiosas; o homem desapareceu como
um átomo insignificante, como uma célula que não tem outra razão
de ser senão o organismo de que faz parte. Os valores ideais da
sua natureza, que o distinguem e elevam acima da ordem material,
foram eclipsados numa sombra definitiva; não se lhes viu mais que
a capacidade de produção econômica a ser posta a serviço do bem
comum, a fim de assegurar a prosperidade puramente terrena e
material da sociedade incumbida, por sua vez, ao depois, de a
distribuir com justiça e universalidade a todos os seus membros.
Maior soma de bens temporais, obtida por uma colaboração mais
racionalmente regulada e mais justamente repartida — eis o único e
definitivo paraíso terrestre proposto pelo socialismo aos anseios
infinitos de felicidade que palpitam no coração inquieto da
humanidade.
Notamos, entre outras, as duas lacunas essenciais desta
concepção da vida: natureza humana mutilada na integridade dos
seus elementos e desconhecida nas exigências psicológicas da sua
atividade. Tudo o que em nós transcende a matéria e se eleva
acima do espaço e do tempo é, para o socialismo, inexistente: eis a
mutilação. Todos os motivos superiores de agir que condicionam a
renúncia e o esquecimento de si, o espírito de solidariedade e de
sacrifício, indispensáveis ao viver social, ficam, por isto mesmo,
esvaziados de seu conteúdo objetivo e destituídos de sua eficácia
motriz: eis o desconhecimento prático da psicologia humana.
Propõe-se-nos uma visão da vida em que só o egoísmo mais
intratável se pode lógica e psicologicamente desenvolver e com
estes elementos se pretende e espera construir espontaneamente a
cidade do futuro, pátria natural do mais perfeito altruísmo.
A esta concepção da vida, radicalmente incapaz de fundar uma
pedagogia social verídica e eficaz, convém opor a profundidade da
concepção cristã em que tão harmoniosamente se fundem os
contrastes das antinomias aparentes e se conciliam, numa síntese
superior, as aspirações incoercíveis da personalidade humana com
as condições imperiosas da vida e da prosperidade social.
É tão importante e tão fundamental esta concepção do homem
como pessoa que em torno dela cremos poder apresentar uma
súmula de toda a sociologia cristã. Gratry afirmava haver em todas
as questões uma idéia central e luminosa donde irradiava uma
claridade segura em todas as direções: ele a chamava idéia estelar.
Encontrá-la e pô-la no foco dominador de sua evidência é o segredo
de iluminar tudo, e ver a multiplicidade das conseqüências na
unidade coerente do seu único princípio. Quer parecer-me que na
questão social uma concepção exata da personalidade humana é a
idéia estelar. Desenvolvamos este pensamento.
A pessoa, já o dissemos, é caracterizada por uma finalidade
própria. Conhecer o próprio fim e realizá-lo livremente: eis o que a
distingue dos outros seres. Só, portanto, uma natureza dotada de
inteligência e vontade verifica na Terra o conceito de pessoa. A
inteligência manifesta-lhe o para que é e para que foi criada: a
perfeição que comporta o desenvolvimento de suas virtualidades e
em que se resume a sua felicidade. Esta felicidade, em última
análise, é a posse de Deus, Verdade suprema que aquieta a nossa
sede de saber, Bem infinito que satisfaz plenamente a nossa imensa
capacidade de amar. Antes de aí chegarmos: inquietum est cor
nostrum:68 desassossegado e irrequieto estará o nosso coração
como uma agulha magnética que ainda não encontrou o seu Norte.
A vontade aplica-se livremente ao emprego dos meios que
condicionam o conseguimento do fim entrevisto e almejado. Não se
chega a Deus senão pelo caminho por Ele traçado, pela submissão
livre à sua vontade manifestada na ordem natural das coisas e nos
preceitos positivos da ordem sobrenatural.
Na Terra, entre os seres visíveis, só o homem é pessoa, porque
só ele é dotado de razão e de liberdade: só ele, no dizer do poeta
pagão, pode elevar para os céus, com o seu rosto, o olhar de sua
inteligência e as aspirações de sua alma. Os homini sublime dedit…
69 Na simples ordem natural dos valores, não encontramos nenhum

que se lhe avantaje: todos os outros seres ficam-lhe infinitamente


aquém. Todos eles preenchem a sua razão de ser quando, como
simples meios, contribuíram, num instante fugitivo do tempo e numa
porção limitada do espaço, para a realização momentânea de um
fim distinto de si e, também ele, localizado e fugaz. A planta como o
animal, nos seus indivíduos efêmeros, aparecem um instante no
cenário da vida e desaparecem para sempre sem deixar de si outro
vestígio além da memória de sua existência de um dia e da matéria
inerte que por um instante organizaram e, no ciclo cósmico, passou
logo depois a outras combinações.
Só o homem é, em cada indivíduo da espécie, portador de
valores eternos; só ele tem um fim próprio, que é o seu bem, dele, e
cujo sacrifício ninguém lhe pode exigir ou impor. A pessoa, nunca
poderá ser rebaixada à simples categoria de meio ou de coisa.
Na ordem sobrenatural, que é a ordem histórica em que de fato
vive a humanidade, este valor já tão alto de natureza espiritual é
realçado infinitamente pela nova e mais alta finalidade a que
gratuitamente nos elevou a bondade infinita de Deus. Assim, à
ordem magnífica da natureza se vem sobrepor a ordem da graça,
com todas as exigências que ela comporta na Terra para a sua
existência e desenvolvimento e com todas as esperanças de uma
eterna participação inefável da vida e da felicidade mesma de Deus.
Eis a dignidade eminente da pessoa humana. Dela deriva como
de sua primeira raiz a essência mesma do direito.70 Não podendo
ser rebaixada à categoria de coisa, a pessoa é inviolável no
prosseguimento de sua finalidade. Mas este fim não poderá ser
atingido sem uns tantos meios que lhe condicionem a realização,
como caminhos indispensáveis a atingir um termo. Fora irrisória e
ineficaz a inviolabilidade da pessoa, em relação ao fim, se esta
inviolabilidade se não estendera outrossim a todos os meios
necessários ao seu conseguimento.
Esta soberania legítima da pessoa que, em vista da sua
finalidade essencial, chama e subordina assim os meios que lhe são
para isso indispensáveis — eis, na sua mais profunda origem, a
definição do direito. Estes meios são o objeto do direito e por esta
relação com o fim da pessoa passam a ser seus. Só a pessoa,
porque diz “eu”, isto é, natureza intelectual consciente de si e de
seus destinos, pode também dizer “meu”, a indicar uma relação de
posse inviolável dos meios ligados a sua pessoa para o
conseguimento dos seus fins. Entre os meios ou objetos invioláveis
de direito há antes de tudo os atos de que somos senhores: o direito
de agir; certos bens externos, seres inferiores dos quais devemos
poder dispor, arrancando-os à sua inércia e pondo-os ao nosso
serviço: direito de amar; finalmente, atos ou prestações de nossos
semelhantes mas que nos são indispensáveis a nosso
desenvolvimento: direito de exigir. Sobre estes meios estende-se a
inviolabilidade que compete essencialmente à pessoa enquanto
ordenada ao seu fim. E assim encontramos a definição clássica do
direito que costuma vir nos manuais: direito é a faculdade moral
inviolável de agir, de ter, de usar e de exigir. Esta faculdade, porém,
ou este poder inviolável deriva, como de sua primeira fonte, da
soberania e da dignidade superior da pessoa humana. Aí temos,
portanto, a origem dos nossos direitos, presa à própria natureza e
essencialmente relacionada com a autonomia intangível dos seus
destinos.
Não é do Estado nem das suas leis positivas que dimana a
totalidade dos nossos direitos. Anterior à sua existência, há um
patrimônio de direitos naturais, isto é, inseparavelmente inerentes à
própria natureza humana e que lhe compete respeitar e não lhe é
permitido confiscar ou ofender. A sociedade, com a organização
jurídica indispensável à sua conservação e desenvolvimento e que
nós chamamos Estado, constitui o meio natural em que se devem
desenvolver as personalidades ou os indivíduos da espécie
humana. O Estado não é, pois, um poder absoluto; tem um fim
determinado que lhe limita a autoridade e as funções: conservar e
desenvolver estas estruturas sociais que constituem o quadro
necessário à expansão completa e harmônica do homem, em toda a
amplitude de sua dignidade.
Em torno destas noções fundamentais podemos por assim dizer
cristalizar todo o nosso pensamento social.71
O nosso ponto de partida é a dignidade original da pessoa
humana.
Na ordem natural: ser inteligente e livre: identidade de valor
espiritual específico para todos os homens, a assegurar-lhe
patrimônio comum, de direitos humanos.
Na ordem sobrenatural: todos os homens elevados à mesma
dignidade superior de filhos adotivos de Deus, resgatados com o
mesmo sangue de Jesus Cristo, destinados à mesma visão intuitiva
de Deus, partícipes dos mesmos meios de santificação sintetizados
nos sacramentos, submetidos à mesma lei moral, que se impõe
identicamente a homens e mulheres, ricos e pobres, patrões e
operários, sem distinção de raças nem de classes.
Eis a visão profunda e real da humanidade que nos propõe o
cristianismo. Desta dignidade genealógica e de estirpe deriva
imediatamente e para todos os homens, uma soma de direitos
fundamentais: direitos que se prendem diretamente aos indivíduos,
direitos que resultam necessariamente da convivência social de uns
indivíduos com outros.

Antes de tudo o indivíduo tem direito à vida e a tudo que a


condiciona essencialmente; e quando dizemos direito à vida, damos
a este termo toda a amplitude de significado que comporta uma vida
humana, isto é, digna do homem.
Vida material ou física, em primeiro lugar: é o substrato de
todas as outras: direito de propriedade sobre o que é indispensável
à alimentação, direito a um salário capaz de fazer frente a estas
imprescindíveis necessidades vitais; direito a uma habitação com
um mínimo de conforto, de higiene, a ser determinado com o grau
de civilização de um povo: e como o trabalho, meio normal de
sustento da vida, está sujeito às alternativas e às eventualidades
dos acidentes, da desocupação, do cansaço, da velhice, direito às
instituições destinadas a garantir de modo permanente o mínimo
vital indispensável: proteção contra os acidentes de trabalho, contra
as moléstias, enfermidades profissionais, a velhice; direito à higiene
protetora nos locais de trabalho. Aqui nesta grande moldura entram
todas as leis de defesa do trabalhador, todas as obras de
cooperativas, assistência social, todas as instituições públicas de
higiene, economia, de repressão à fraude, ao roubo, ao crime, etc.
Mas não basta assegurar aos homens a existência e a defesa
de sua vida física, é preciso oferecer-lhes a oportunidade de um
desenvolvimento humano, integral. Este homem é um ser
inteligente: cumpre facultar-lhe a possibilidade de a desenvolver e
cultivar, ao menos, nos limites mínimos que lhe impeçam o
embrutecimento humilhante do animal. Acessibilidade, portanto, de
uma instrução relativamente desenvolvida nos quadros gerais do
grau de adiantamento de um povo e de uma época.
É um ser livre: responsável pelos seus destinos e senhor de
sua atividade. Todo regime social ou econômico que viesse coarctar
esta liberdade além de limites em que o homem perdesse o domínio
de si mesmo para ser reduzido a uma coisa sujeita
incondicionadamente aos arbítrios e caprichos de outrem, seria
incompatível com a dignidade. É o caso da escravidão pagã em que
o homem descera ao mais baixo nível de degradação, reduzido até
a pasto de peixes nos aquários dos grandes senhores de Roma. É o
caso do moderno regime capitalista, em que o proletário ficou
rebaixado a simples instrumento de produção, sujeito à entrosagem
escravizadora de leis econômicas que se julgam inexoráveis e
fatais.
É ainda porque, inteligente e livre, também é um ser moral, com
um ideal humano a realizar e a realizar livremente: a vida moral do
homem outra coisa não é senão o governo da própria atividade na
sua orientação para a perfeição de sua natureza e o conseguimento
dos seus destinos. É o que há de mais importante e de mais
especificamente humano. Daí, o direito de cada indivíduo não só à
instrução mas ainda à educação: instrução que lhe forme a
consciência no conhecimento nítido e seguro dos seus deveres;
educação que, desde pequeno, lhe vá robustecendo a vontade e
firmando os bons hábitos no exercício de uma liberdade
disciplinadora. Direito ainda a um ambiente social que não constitua
uma tentação contínua e quase irresistível à integridade de uma
vida honesta: é a raiz primeira de toda uma legislação defensora da
moralidade pública: repressão da literatura pornográfica ou obscena,
dos espetáculos, teatros, cinemas, etc., que poderiam transformar
as vantagens superiores do convívio social numa fonte envenenada
de corrupção e decadência humana.
Mas o homem não é isolado: depois de o haver criado, disse
Deus: não é bom que o homem esteja só, faciamus ei adjutorium
simile sibi, demos-lhe uma companheira, igual no valor da natureza,
diferente nas suas qualidades complementares.72 O homem,
portanto, é naturalmente destinado à vida de família; tem direito
natural de constituí-la e, como seu chefe, sobre ele pesam as
grandes responsabilidades de sua existência, conservação e
desenvolvimento. Mas já reparastes, neste simples direito
fundamental, que gravidades de conseqüências se encerram? Para
manter sua família, o homem não tem, de ordinário, senão o recurso
dos seus braços, a atividade produtora do seu trabalho. O trabalho
do operário não é, pois, uma simples mercadoria que se deve
estimar e avaliar, no seu valor puramente econômico, como a
produção de uma máquina: é uma atividade humana, que
corresponde a exigências humanas de ordem mais elevada. Com
ele e só com ele, terá que fazer face aos seus deveres naturais não
só de homem senão ainda de chefe de família.
O valor do trabalho humano, praticamente determinado pelo
salário, não poderá ser avaliado unicamente com critérios de ordem
econômica, deverá outrossim proporcionar-se a este coeficiente
humano que transcende as normas do puro mercantilismo.
Como há, portanto, um mínimo de salário vital, isto é,
indispensável para manter a vida do trabalhador, abaixo do qual
sem injustiça não pode descer, assim também há um salário familial,
variável com os encargos crescentes de uma família mas a eles
proporcionado, que não pode ser recusado a quem trabalha sem lhe
desconhecer os direitos primordiais da sua dignidade de pessoa. E
foi pelo descaso sistemático destas normas elementares de justiça
que a economia liberal e materialista do século passado foi pouco a
pouco reduzindo todo o mundo dos trabalhadores manuais, isto é,
cerca de 4/5 da humanidade, à impossibilidade material e moral de
constituir uma família regular, de mantê-la dignamente e assegurar-
lhe o exercício normal de suas funções de conservadora da espécie
e educadora e felicitadora do homem. Não entramos aqui em meios
práticos de atuar estas exigências; estamos apenas indicando
princípios e deduzindo suas conseqüências imediatas. Já é sabido
como modernamente, por meio das locações familiais, das caixas
de compensação e de outras instituições sociais, se têm corrigido
em boa parte os erros funestos do economismo anterior. Por ora,
frisamos apenas como o destino natural do homem à vida da família
lhe assegura imediatamente um patrimônio de direitos inalienáveis:
direito a um quadro conveniente de família, direito aos filhos, isto é,
aos recursos maternais indispensáveis para criá-los e aos recursos
pedagógicos convenientes para instruí-los e educá-los em harmonia
com os ditames de sua consciência (liberdade de ensino e
educação); direitos de assegurar-lhe, quanto possível, um futuro
despreocupado (liberdade de possuir e de testar).
Acima da vida do indivíduo, resumida no desenvolvimento
físico, intelectual e moral; acima da vida de família com as suas
exigências indeclináveis, a pessoa humana tem ainda direitos a uma
vida divina, à vida da graça que lhe condiciona a sua elevação à
ordem sobrenatural e o conseguimento de sua felicidade definitiva.
Na ordem histórica em que vivemos, o cristianismo determina, de
modo mais positivo e concreto, a soma essencial destes direitos
superiores. Direito, antes de tudo, à instrução religiosa, que nos
revela as grandezas deste mundo sobrenatural do espírito, e
constitui a condição insubstituível da vida cristã. Sem o
conhecimento dos planos misericordiosos de Deus a seu respeito,
sem a transmissão, por via de ensino, da mensagem evangélica
com todas as suas inefáveis riquezas, como poderia o homem crer e
agir na linha dos seus destinos sobrenaturais? Direito ao sacerdote
e aos sacramentos e, com esta expressão, resumimos todos os
meios que, na economia providencial do cristianismo, condicionam a
possibilidade de uma vida cristã que naturalmente aspira a
conservar-se, desenvolver-se e expandir-se. Direito enfim à
liberdade de consciência, subtraída pela sua própria natureza a
qualquer violência ou coação no domínio inviolável das convicções
religiosas.
Eis, imediatamente e em rápido escorço, o que de direitos
invioláveis reclama a dignidade da pessoa humana para
desabrochar e atingir a perfeição de sua finalidade. Só? Ainda não.
Por isso mesmo que vivemos uns ao lado dos outros e todos nos
unimos numa inevitável organização social, surgem desta situação
imperiosa novos direitos e novos deveres: direitos e deveres de
pessoa a pessoa; direitos e deveres de cada pessoa para com a
sociedade incumbida de velar pelo bem comum que se não
identifica necessariamente nem com o bem de cada indivíduo nem
com a soma dos bens individuais.
Pessoas e pessoas — convivemos todos, isto é, vivemos uns
em companhia dos outros, entramos em contato contínuo nas
diferentes sociedades naturais ou positivas que resultam
espontaneamente desta convivência: família, sociedade civil,
associações profissionais, etc., etc. Desta inevitável convivência
onde cada pessoa conserva a sua autonomia essencial na
realização dos seus próprios destinos resulta um grande dever: o de
respeitarmos nos outros os direitos, que a eles como a nós são
essenciais. Esta vontade fundamental de dar a cada um o que é
seu, respeitando-lhe a totalidade dos direitos, constitui a justiça,
primeiro e insubstituível fundamento de ordem social.
Mas se todos somos iguais na dignidade da natureza, somos
desiguais na participação dos seus dons. Eis ainda um fato natural
que todas as declamações socialistas não conseguirão nunca
escurecer. Saúde e inteligência, capacidade de trabalho e força de
vontade são qualidades que se acham desigualmente repartidas
entre os homens. Não somos iguais nem em face da vida nem em
face da morte. A vida, afrontamo-la com cabedal de talentos
diversos; a morte visita-nos com a sua inexorabilidade na idade, no
dia e nas circunstâncias que a nenhum de nós é lícito prever ou
modificar. E não há racionalização ou padronização que consiga
vazar todas as vidas humanas na identidade e monotonia do mesmo
molde. A esta distribuição variada dos dons da natureza acresce,
ainda, como outra causa de diferenciação, a própria vida social com
a sua inevitável divisão de trabalho e especialização profissional.
Nos planos admiráveis da Providência esta desigualdade
acidental a ressaltar sobre a identidade essencial do homem
constitui um dos fundamentos da caridade pela qual podemos e
devemos uns aos outros entreajudar-nos na viagem que nos deve
conduzir ao mesmo termo.
A convivência dos homens é pois regida por uma grande lei: a
lei da solidariedade, que, numa reciprocidade admirável de
influências inevitáveis e misteriosas, torna os homens dependentes
uns dos outros na conquista de sua felicidade. Concretiza-se a
generalidade da grande lei nos dois pólos da vida em comum:
justiça e caridade ou serviço social.
A justiça dá a cada um o que é seu: impõe-nos o respeito dos
bens de outrem, do valor do seu trabalho, de sua reputação, da sua
capacidade e virtudes: mas não basta para fundar a paz e a
concórdia entre os indivíduos como entre os povos. A este fim é
indispensável o amor: amor que mais se manifesta nos fatos que
nas palavras: o ato do amor é o dom: quem ama dá dons do nosso
supérfluo material (função social da propriedade), dons dos bens
espirituais — ciência, experiência, exemplo, dons do nosso serviço
social, pelas prestações com que generosamente orientamos para o
bem comum social as reservas disponíveis da nossa atividade e das
nossas energias.
Justiça e caridade: virtudes essencialmente complementares e
irredutíveis. Impossível suprimir a função de cada uma delas sem
comprometer a harmonia das relações sociais.73 Os homens
separam-se pela distinção de suas personalidades; aproximam-se
pelos vínculos de uma natureza comum. Como pessoas distintas,
titulares de direitos, regula-lhes as relações a justiça; como irmãos
na natureza e na graça aproxima-os a caridade nas atrações de
uma recíproca benevolência. A justiça põe uma em face da outra
duas pessoas, a cada uma dá-lhe o que é devido; distingue-as,
separa-as, remove os princípios do ódio que a iniqüidade gera; mas
por si não aproxima, senão negativamente (removens prohibens) os
corações. A amizade que funde as almas numa união fecunda de
bens e de consolações e de serviços mútuos, é filha da caridade,
que é, portanto, a virtude social por excelência.
A justiça não se move senão no campo da obrigação estrita;
onde expira o dever aí paralisa ela a sua ação e cala as suas
exigências. A caridade não mede as suas dádivas generosas; onde
quer que o próximo manifeste uma necessidade aí está de mãos
abertas para distribuir os seus dons. Todas as misérias, todos os
infortúnios que não têm a defendê-los o rigor de um direito, apelam
confiadamente para o seu coração generoso.
A justiça não olha o sentimento interior, satisfaz-se com o
cumprimento externo, friamente jurídico, de suas imposições,
simbolizado, se quiserdes, na impassibilidade da estampilha de
recibo; a caridade rompe estas exterioridades de gelo, movimenta e
aquece os corações, cultiva a simpatia e só se contenta com as
delicadezas mais finas de todos os afetos nobres.
E se quiserdes completar a beleza desta visão da realidade
humana iluminando-a de mais alto com os reflexos que lhe projeta o
cristianismo, elevai o amor humano à sublimidade do amor cristão,
baseado na mesma graça que nos faz filhos adotivos de Deus,
incorporados na grande família de que Cristo é o primogênito;
enaltecei a solidariedade que tem o seu fundamento na identidade
da natureza, com esta solidariedade mística, da comunhão dos
santos, que alarga até às relações com a divindade as
possibilidades da nossa colaboração fraterna e prolonga até à
eternidade as repercussões benfazejas dos nossos esforços de
ascensão espiritual. Une âme qui s’élève, élève le monde.74
Demos o último passo. Na vida social não há só o interesse do
indivíduo que aspira a viver e aperfeiçoar-se; não há este complexo
de direitos e deveres, estas relações de justiça e caridade que
prendem umas às outras as pessoas que convivem; há ainda um
bem comum geral, um interesse da sociedade como sociedade.
Este bem superior não se confunde nem identifica com a soma
aritmética dos bens individuais: foi este o grande erro do liberalismo
econômico inspirado todo num individualismo de horizontes
estreitos. A sociedade para conservar-se e defender-se tem que
fazer muitas vezes um apelo a sacrifícios individuais penosos:
sacrifícios de bens materiais, sacrifício de parte das nossas
liberdades, sacrifício mesmo da vida em circunstâncias
extraordinárias. Enquanto estas renúncias são exigidas realmente
pelo bem comum, são justas e devem encontrar nas almas bem
formadas a repercussão fiel e, se for mister, heróica das
aquiescências generosas. Há, portanto, uma necessidade de educar
nas consciências o senso social, feito de espírito de colaboração e
de um conhecimento vivo das exigências superiores do bem comum
a primarem os nossos interesses particulares e individualistas. E
nisto nenhum sacrifício da personalidade na sua autonomia
intangível. De um lado, por parte do Estado um limite intransponível
imposto às suas intervenções pelas exigências do bem comum; não
arvoramos, como os coletivistas ou socialistas, o poder civil numa
onipotência discricionária. De outro, o cumprimento dos deveres
sociais é uma condição mesma de desenvolvimento das
personalidades na tendência para a realização dos seus destinos. O
cidadão que recusasse as prestações que lhe pede a sociedade,
fechando-se no pequenino círculo do seu egoísmo intratável, não
realizaria a sua finalidade de homem e atrofiaria irremediavelmente
a expansão superior de sua personalidade. Dedicando-se ao bem
comum, levando o desprendimento dos seus interesses individuais,
particulares e momentâneos, ao extremo do heroísmo e da
dedicação, o homem de fato não sacrifica a sua personalidade,
enaltece-a e à vida terrena dá o máximo de valor no
desenvolvimento da própria grandeza moral. Joana d’Arc que morre
para libertar a sua pátria, São Luís, que vive todo para ses trois
grands amours: “Margueritte, France, Dieu”; Pedro Claver, que
passa toda a sua vida entre os pobres escravos africanos,
transportados para a América, curando-os, instruindo-os,
cristianizando-os; Luís de Gonzaga, que na flor dos anos morre de
uma enfermidade contraída no serviço das vítimas de uma grande
epidemia, e tantos e tantos outros heróis nossos, conhecidos na
celebridade de sua glória ou ocultos no silêncio de sua humildade,
dão-nos a prova magnífica de como o cristianismo, numa harmonia
maravilhosa, sabe conciliar toda a grandeza individual da
personalidade humana com o máximo de sua eficiência social.
E aí temos, em brevíssima síntese, todo o pensamento que
deve inspirar a nossa pedagogia social, a gravitar em torno da idéia
da eminente dignidade da pessoa humana, que lhe serve de
fundamento e de chave de abóbada. Já vistes como assim se
conciliam as verdades latentes no individualismo e no socialismo,
sem incorrer em seus exageros e utopias.
Do individualismo salvamos o respeito à liberdade, a iniciativa
particular, fonte de bem-estar e de progresso.
Ao mito do igualitarismo que os socialistas adoram e que a
natureza e os fatos desmentem, substituímos o universalismo
cristão, isto é, a vocação de todo o homem à grandeza moral, à
santidade, à salvação definitiva de sua alma. Daí em cada indivíduo
uma soma de direitos imprescritíveis, mas compatível com as
diferenças sociais, com as hierarquias indispensáveis, com a ordem,
a subordinação, a paz e a concórdia.
Nesta concepção, nada há que represente um bem comum e a
sociedade não possa exigir dos seus membros, nada há que
constitua um meio necessário à expansão superior das liberdades
pessoais na tendência aos seus destinos e a sociedade civil ou
religiosa, no campo de suas atribuições respectivas, lhe não deva
subministrar. Estas exigências e estes deveres do organismo social
encontrarão, por sua vez, no indivíduo, formado na visão integral
dos seus destinos, as forças psicológicas indispensáveis para o
sacrifício dos grandes heroísmos como para a tenacidade
incansável das justas e nobres reivindicações.
Eis o quadro de uma visão ideal. Corresponde-lhe a realidade
que vemos? Todos os homens, que nos cercam e são irmãos
nossos, irmãos na dignidade da natureza e irmãos na nobreza do
Batismo, estão realmente em condições econômicas, intelectuais,
morais e religiosas de atingirem a meta da felicidade para que foram
criados? A nossa organização social respeita efetivamente este
patrimônio essencial de direitos humanos que acabamos de analisar
sucintamente? A resposta não pode ser duvidosa e é por isso que a
sociedade sofre. E esta simples averiguação — sobre a qual
havemos de voltar mais de sobremão, está-nos a traçar a grandeza
das nossas responsabilidades e, com ela, a importância de uma
educação social que, de geração em geração, prepara as almas
cristãs para elevá-las à altura da missão que neste mundo lhes
assina a Providência. Sobre nós pesam grandes responsabilidades.
Não se acende a luz para abafá-la sob o módio; põe-se no
candelabro para que ilumine quantos estão em casa. E vós sois a
luz do mundo; vós sois o sal da Terra, disse Jesus aos seus
discípulos.75 E é com esta palavra de Cristo que hoje vos deixo. Ela
nos dá toda a medida da nossa grandeza: ouçamo-la com
humildade e com gratidão; mas ela também indica-nos toda a
extensão dos nossos deveres e toda a amplitude das nossas
possibilidades de bem fazer; meditemo-las com a consciência viva
que sabe ver e fazer, proporcionando, à serenidade tranqüila da sua
visão, o entusiasmo, a confiança, a constância generosa de sua
atividade.
A. M. D. G.

Rio, 24 de junho de 1933.

68 Cf. Santo Agostinho, Confissões, I, 1 — NE.


69 Ovídio.
70 Sobre esta definição do direito quase à letra de Vermeersch, Principes de
Morale Sociale, I, pp. 15–16.
71 Esta síntese do pensamento social em torno da idéia de pessoa é de M.
Rigaux, L’équipement social des jeunes, pp. 34–54.
72 Cf. Gn 2, 18 — NE.
73 Esta página é tirada da alocução aos bacharelandos de direito pronunciada no
Rio a 07/09/1931.
74 Élisabeth Leseur — NE.
75 Cf. Mt 5, 13–15; Mc 4, 21; Lc 8, 16 — NE.
Especialização e superintelectualismo.
Falta-lhe unidade.
Reação moderna e volta à concepção católica.
Universalismo da pedagogia católica.
Representação esquemática.
Religião: núcleo central da educação.
Educação moral articulada com a formação religiosa.
Educações acidentais em articulação com as outras.
Exemplo na educação física.
Exemplo na educação profissional.
Harmonia e unidade da pedagogia católica.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 11/06/1931.


Unidade da pedagogia católica

U MA das diferenças essenciais que cava um abismo de distância


entre a pedagogia católica e a inspirada no laicismo é a idéia
de que a realização da unidade orgânica é inseparável de toda
formação verdadeiramente humana.
A pedagogia moderna é dispersiva, fragmentária, especializada
e estritamente desarticulada na coesão vital dos seus elementos.
Não é difícil, remontando o curso das idéias e dos acontecimentos,
encontrar a primeira origem deste vício fundamental. A ruptura da
unidade viva, que lamentamos nos sistemas de educação, é apenas
reflexo de desequilíbrio interior não menos funesto de que sofre o
homem moderno em toda a sua vida espiritual.
A Reforma Protestante rompeu com a Igreja, orgânica e
hierarquicamente organizada por Cristo para a conservação
autêntica e infalível do patrimônio doutrinal que constitui o
fundamento da nossa vida religiosa. Com a separação do centro de
unidade, o cristianismo, sob a ação da força centrífuga de livre
exame, que continha, em germe ativo, todos os subjetivismos,
entrou a fragmentar-se num processo de divisão incoercível que
tende irreparavelmente à pulverização do mais radical
individualismo. O dogma, que constitui o eixo da vida espiritual, com
a unidade, perdeu o caráter mais visível da verdade divina e, com
ele, o segredo de sua eficácia na educação das almas.
A Revolução Francesa deu um passo além. À cisão contra a
unidade e universalidade católica levada a efeito pelo
protestantismo, acrescentou o rompimento contra qualquer forma de
religião positiva. Sob a pressão da ideologia revolucionária a vida da
nação deveria organizar-se alheia a qualquer influência de
cristianismo. Era em germe, senão já em sua realidade atual, todo o
laicismo contemporâneo. Destas sucessivas divergências entre a
atividade interior e a organização social, entre a filosofia e a vida,
origina-se o desequilíbrio profundo em que tantas vezes se
debatem, dilaceradas, as almas modernas. Mais, porém, do que os
adultos ressentiram-se as almas em formação.
Avocando a si a missão de educar, o Estado, em algumas
nações, plasmou a instrução pública à própria imagem e
semelhança. Como as outras instituições do governo, também as
escolas oficiais foram submetidas ao regime do laicismo. E o
laicismo pedagógico é a mutilação do homem; é a separação entre
a instrução e a educação; a descontinuidade entre o lar e a escola;
o dualismo ou pluralismo entre a consciência religiosa do homem e
a consciência cívica e social dos cidadãos. A instrução fica
decapitada do que lhe constitui a coroa indispensável depois de lhe
ter servido de fundamento insubstituível; e durante todo o período
de formação a escola leiga ou neutra não atinge o que há de mais
essencial e profundo no homem: a consciência.
Estes males inerentes a todo laicismo agravaram-se com a
tirania de alguns desses ídolos pedagógicos a que já nos referimos
em outra ocasião: a metodomania, o psicologismo, a sobrestima da
instrução, a especialização excessiva. Perdendo o contato com a
totalidade da vida na multiplicidade de seus aspectos que se devem
fundir na estrutura de uma unidade orgânica, cada especialista
enclausura-se num setor acanhado da realidade, esquecendo as
conexões indestrutíveis com os outros setores que integram e
completam a vida do homem concreto. Este vê na sociabilidade o
fim derradeiro e a salvação suprema do homem, e sacrifica o
desenvolvimento dos valores da personalidade às exigências do
imediatismo do viver comum. E a educação, vista por este ângulo,
transforma-se numa socialização da criança, entendida em sentido
socialista. Aquele fixa mais a sua atenção na expansão da
individualidade obtida pela evolução espontânea e incoibida de
todos os instintos que dormem no fundo da nossa natureza. É a
educação individualista, fomentadora de todos os egoísmos e
indisciplinas sociais. São fragmentos de verdades que não se
limitam nem se integram na harmonia de uma síntese coerente. É
uma visão unilateral da realidade; o predomínio exclusivo de um
método; a negação brutal de tudo o que se acha fora do campo
visual assim arbitrariamente delimitado. E a pedagogia total, perdido
o seu centro de gravidade unificador, entrou a cindir-se e multiplicar-
se em fragmentos desconexos. Cada especialista desenvolveu a
zona de sua competência sem se incomodar com as articulações
essenciais que no homem vivo a ligam ao domínio de outras
especialidades. Nunca como em nossos dias se falou tanto de
educação física, educação social, educação da virtude, educação
cívica, educação sexual, educação de normais e de anormais. No
desenvolvimento de todas estas pedagogias parceladas predomina
quase sempre o velho preconceito do século XVIII que instrução
equivale a moralização, e enriquecer de conhecimentos a
inteligência do homem é, sem mais, torná-lo melhor. Daí a tendência
a educar por meio da “iniciação”. Nas questões de ordem sexual a
sociedade moderna apresenta visivelmente um desequilíbrio que
ameniza tantos organismos e compromete tantas felicidades?
Remédio: iniciação coletiva nas escolas. Umas tantas preleções de
fisiologia e patologia imunizarão os moços do contágio fascinador do
prazer. O indivíduo, nas ambições de seu egoísmo crescente,
recusa-se de dia para dia aos sacrifícios indispensáveis à
conservação do bem-estar coletivo? Iniciação social; instrução
cívica. Umas tantas dissertações sobre a solidariedade que prende
todos os elementos do organismo social serão eficazes para refrear
as ambições insaciáveis e assegurar o espírito de sacrifício sem o
qual não há possibilidade de vida comum.
Se a esta pedagogia desarticulada e fragmentária quiséramos
dar uma expressão gráfica, poderíamos representá-la por um
tabuleiro de xadrez em que as diferentes casas se justapõem sem
mais nexo ou ligação que a contigüidade quantitativa ou local.
Assim, nos nossos programas escolares, as diferentes disciplinas
formadoras — intelectuais, cívicas e morais — se dispõem sem
outro vínculo mais que uma sucessão cronológica. Falta-lhes um
centro de unidade interior, falta-lhes a articulação de uma síntese
orgânica que na alma do aluno — essencial e individualmente uma
— lhes dê esta força formadora insubstituível que lhe advém duma
visão coerente e unificada da vida em toda a diversidade de suas
manifestações. As conseqüências deste grande erro pedagógico aí
estão visíveis: nunca se falou tanto de educação sexual e a crise da
moralidade nas relações entre os dois sexos, longe de se atenuar,
se vai agravando de dia para dia. Nunca se repetiu com mais
insistência o termo de solidariedade social e as vantagens do bem
comum vão sendo cada vez mais sacrificadas pelo egoísmo
individual de governantes e governados.
Contra este exclusivismo de uma pedagogia de mosaico se foi
acentuando nos últimos tempos uma reação em nome da unidade
do homem. O homem essencialmente uno, como na sua dignidade
humana, como na sua entidade metafísica, como na multiplicidade
dos seus aspectos vários mas complementares, distintos mas
subordinados na estrutura de uma hierarquia essencial. Os
unilateralismos pedagógicos tendem, portanto necessariamente, a
deformar-lhe a natureza, a romper-lhe o equilíbrio interior com
detrimento irreparável de sua formação integral. Era a visão
exclusiva de um só setor da realidade; a tirania de um só método; a
autoridade competente de uma só ciência. Para estes eram os
métodos sociais, as ciências sociais, o aspecto social do homem:
pedagogia do sociologismo. Para aquele era a psicologia
experimental com as suas medidas de laboratório, com a sua
exterioridade intelectualista alheia às profundezas da alma:
pedagogia do psicologismo. Para outros ainda (Spencer por
exemplo) era o homem no seu aspecto animal, objeto da biologia
chamada então a diretora exclusiva da educação: era a pedagogia
naturalista.
Hoje o homem real, concreto, vivo — não já fragmentário e
mutilado —, começa a voltar do exílio a que o haviam condenado as
filosofias ou pedagogias unilaterais que tinham esquecido a
realidade concreta pela ilusão de abstrações livrescas. De dia para
dia, com um acordo crescente até a unanimidade, se vai
reconhecendo a solidariedade essencial que liga inseparavelmente
a pedagogia a uma concepção total da vida — e portanto a um
sistema filosófico-religioso. Chega-se assim após uma odisséia de
erros e disposições à concepção fundamental do catolicismo. Para
nós a pedagogia nunca se divorciou da concepção religiosa da
existência; tão íntimas, tão profundas, tão contínuas são as relações
que ligam a nossa educação à nossa doutrina da vida que é
impossível conceber, expor ou explicar a pedagogia católica sem
supor ao mesmo tempo conhecido todo o dogma, toda a moral do
catolicismo. Esta dependência que outrora tinha sido objeto de
críticas é hoje, como veremos logo, reconhecida como um título de
glória.
Deste universalismo católico que não mutila o homem mas o
educa na sua totalidade, nasce outrossim este caráter de
compreensividade, de universalismo da pedagogia católica. Ela não
é tributária exclusiva de uma ciência nem se enfeuda ao jugo de um
só método. Todos os métodos que nos podem levar ao
conhecimento de um dos aspectos da realidade humana são
adotados sem receio; todas as ciências que podem iluminar
qualquer das suas faces são ouvidas com atenção e docilidade. Na
nossa pedagogia têm direito a ser ouvidas não só a biologia mas
também a teologia; não só a filosofia mas também a história; a
ascética fala com a mesma autoridade que a psicologia
experimental; a moral não se faz ouvir com menos força que a
sociologia. A nossa pedagogia é verdadeiramente católica; não só
de uma catolicidade exterior enquanto de direito é destinada a
estender-se como a religião verdadeira a todo homem que vem a
este mundo, senão ainda de uma catolicidade interna enquanto
atinge cada homem na integridade dos seus elementos, na
totalidade de suas experiências e aspirações. Este caráter
fundamental de unidade, universalidade, coerência interior, estrutura
orgânica, hierarquia sintética da pedagogia católica, podemos
representá-lo como De Hovre por meio do esquema seguinte que
passamos a elucidar mais de sobremão.
No sistema pedagógico católico a educação religiosa ocupa o
centro de onde irradia em todas as direções a sua influência
universal. Esta posição de importância fundamental compete à
formação religiosa, não por uma vontade positiva e acidental da
Igreja, mas por uma exigência essencial inerente à própria natureza
invencível das coisas. Não é possível formar o homem sem ter uma
idéia de sua natureza e de seus destinos. Não é possível prepará-lo
para a vida, na expressão mais ampla do termo, sem conhecer as
razões supremas do viver. Sem a luz deste ideal a mostrar-lhe a
atividade, a pedagogia é um navio sem bússola.76 Mas resolver o
problema do homem, das suas origens e dos seus destinos, dar um
ideal à vida, à beleza de sua perfeição e à grandeza de suas
responsabilidades que outra coisa é senão entrar em cheio na
solução religiosa da existência humana?77 Como descer até à
consciência do aluno no que ela tem de mais profundo, e atingir o
homem no que ele tem de mais humano, sem uma convicção de
ordem religiosa, isto é, sem um complexo de idéias amplas e
verdadeiras que dêem às eternas e indeclináveis interrogações da
vida uma resposta exata, determinada, coerente. Como estabelecer
a organização interior, a unificação psicológica, que é tudo na
educação — sem estes grandes centros unificadores que
constituem a solução religiosa da vida?
Eis o papel capital da religião na pedagogia: organizar a nossa
vida interior, ordenar as nossas idéias, hierarquizar os nossos
interesses, colher o homem todo, na sua realidade completa, para
transformá-lo no ideal que constitui a perfeição de sua natureza e a
razão suprema de sua existência. Eliminai a religião e tereis a
superficialidade, a desorientação, a desordem, a anarquia, o caos
interior. Será uma pedagogia sem unidade, sem ordem, sem estilo,
sem hierarquia. A alma da educação é a educação da alma. E a
educação da alma é essencialmente religiosa. Que na formação do
homem a religião ou é tudo ou não é nada não é só uma verdade
profundamente católica, mas que tende a adquirir em pedagogia,
pela luz de sua própria evidência, os foros de um axioma
incontestável.
Spranger Whitehead:
Na essência da educação há três coisas principais: 1ª a evolução da alma
não pode ser influenciada senão por valores de vida; 2ª toda educação tem o
seu centro na cultura formal, isto é, num desenvolvimento de energia e não
numa comunicação de matérias; 3ª toda educação será sempre suportada
por uma mentalidade religiosa não só porque visa a alma na sua totalidade
senão também pela sua atitude em relação à vida no seu conjunto. […] A
educação é essencialmente religiosa.

A religião constitui, portanto, o cerne, o âmago, a alma de toda


educação. Religião e educação são de sua natureza indissociáveis.
E uma pedagogia que pretende formar prescindindo da religião ou
relegando-a a um plano acessório é uma pedagogia superficial,
nula, insuficiente, inevitavelmente deformadora do homem.
Em torno deste núcleo constituído pela formação religiosa, e
com ele em continuidade ininterrupta, se acha a formação moral.
Também aqui a prática secular da pedagogia católica está na mais
perfeita harmonia com a exigência interna das coisas. A educação
da consciência e do caráter articula-se essencialmente com a
concepção religiosa da vida. Já tive ocasião de desenvolver
amplamente este ponto em outras circunstâncias. Resumi-lo-ei em
duas palavras. O caráter é feito de solidez nas convicções e de
tenacidade no querer. As convicções não se enraízam
profundamente na inteligência sem uma concepção compreensiva,
uma filosofia integral da vida. É do ideal que nós formamos da
perfeição humana que deriva a unidade, a coerência, a harmonia
dos nossos atos. Ora este ideal outra coisa não é senão uma
solução do problema dos destinos humanos, de importância capital
em ética. O conhecimento do fim é, nas ciências práticas, como a
moral, o que nas especulativas é a inteligência dos princípios. Sem
princípios bem compreendidos toda demonstração é impossível;
sem conhecer o fim de uma ação, impossível traçar-lhe qualquer
norma. A questão dos destinos do homem domina, pois, uma
necessidade interna indeclinável, toda a ciência normativa da
atividade humana. Sem este ideal abstrato falta de todo o critério
para estabelecer a hierarquia dos valores morais.
Ao lado de convicções profundas o caráter exige uma vontade
firme. Não basta esclarecer a inteligência, é mister subministrar à
vontade estímulos eficazes. Regulamentação e motivação: dois
elementos inseparáveis e indispensáveis à formação das
consciências.
Mas o dever é austero, exige por vezes sacrifícios penosos,
íntimos, prolongados. Sem abnegação interior, sincera e continuada,
não há grandeza moral. Ora, apagai nas consciências a idéia de um
legislador supremo, juiz infalível e incorruptível de nossas ações
mais secretas, deixai na sombra o pensamento eficaz das sanções
inevitáveis de além-túmulo — e destruístes irremediavelmente toda
a ordem moral. A voz da consciência não passará então de um eco
subjetivo das influências externas de preconceitos ou convenções
sociais, os imperativos éticos perderão toda a sua força obrigatória e
o governo da vida se reduzirá a um cálculo de interesses mais ou
menos imediatos. Ante os impulsos poderosos dos instintos
inferiores, a vontade se achará desarmada para a resistência. Ao
reino soberano e pacífico do dever sucederá aos poucos a anarquia
das paixões.
A certeza psicológica destas influências, confirmam-na todos os
dias as mais variadas experiências.78
Mas a pedagogia católica vai ainda mais longe na travação
interna de sua coerência, levando desassombradamente até às
últimas conseqüências o respeito à unidade completa e total do
homem. Com efeito, no esquema, depois da educação religiosa a
ocupar o centro que lhe é devido pela sua própria natureza, depois
da educação moral articulada em toda a sua extensão à formação
religiosa da consciência, vedes ainda uma coroa periférica dividida
em vários setores constituídos pelo que chamamos modernamente
educação física, educação cívica, educação sexual, educação
profissional, isto é, pela preparação educativa do homem, não para
a sua função geral de homem, mas para a conservação de um bem
particular de sua natureza, por exemplo, a saúde, ou para o
exercício de alguma das suas funções na vida: a de cidadão, de
profissional, etc. Notai, porém, todos estes setores não se acham
isolados ou dispersos mas soldam-se imediatamente à coroa média
da formação moral e por meio desta ao núcleo central de educação
religiosa. Aqui temos sem dúvida um dos pontos de mais vivo
contraste entre a compreensividade da pedagogia católica e o
unilateralismo da pedagogia moderna. Sob a influência da
civilização que obrigou as escolas a se organizarem fora da idéia
religiosa, ou sob o domínio ainda do velho preconceito do século
XVIII acerca da onipotência exclusiva da instrução, os modernos
pedagogos constituíram todos aqueles setores em unidades
autônomas e independentes. Organizou-se assim um sistema de
educação física, de educação sexual, de educação cívica em
completa ruptura com a formação interior da consciência e com a
concepção ético-religiosa da vida. Julgou-se ingenuamente que,
com um punhado de noções de direito constitucional ou umas
retóricas fofas sobre o amor da pátria se formava o cidadão ao
cumprimento dos seus deveres cívicos; acreditou-se, não sei se
sincera ou maliciosamente, que umas tantas explicações de
fisiologia ou de patologia sexual iriam premunir eficazmente a
juventude contra as seduções do prazer que degrada e envenena as
fontes da vida. Numa palavra, dissociou-se na pedagogia o que na
vida se acha indissoluvelmente associado: o valor religioso e moral
do homem com a manifestação de todas as outras atividades
humanas. Desdobrou-se ou multiplicou-se a consciência de cada
indivíduo, justapondo, sem se fundirem na coesão de uma síntese
forte, a consciência do homem religioso, do cidadão, do profissional,
do eugenista. Não se viu ou não se quis ver o nexo essencial que
une todas as ações de uma consciência; não se percebeu que toda
a força para o cumprimento dos nossos deveres na família, na
profissão, na pátria nos advém precisamente da nossa visão
religiosa da vida, da articulação nitidamente apreendida entre estes
deveres da atividade cotidiana e a finalidade primordial do homem.
Cortaram-se os canais, veículos da seiva fecunda que subia das
profundezas religiosas da consciência e iam aviventar a verdura do
mais distante dos ramos ou desprender-se em perfume no mais
longínquo botão que se entreabria aos raios do Sol. Faltou a seiva:
as folhas entraram a estiolar e amarelecer, os frutos a enfezar. Sem
metáfora nem poesia, é tão íntima e tão indestrutível a unidade da
nossa vida interior que não é possível formar eficazmente para
qualquer exercício de nossa atividade sem descer até as
profundezas em que vive a consciência, esclarecida, orientada,
alimentada pelos princípios da nossa visão religiosa da existência.
Não me seria difícil percorrer um por um todos aqueles setores
e evidenciar a multiplicidade dos laços que os prendem à formação
interior do homem. Escolherei apenas dois e estes, precisamente,
entre os que, à primeira vista, parecem independentes da vida
moral.
O primeiro é a educação física. Quem não diria à queima-roupa
que a formação e conservação de um organismo robusto depende
apenas dos preceitos de uma boa higiene? Alimentação sadia,
exercícios criteriosamente escolhidos, de modo a assegurarem uma
boa hematose e, com ela, o andamento regular de todas as outras
funções orgânicas. No entretanto são muitos os traços de união
entre um estabelecimento de educação física e escola de formação
moral. Separá-los é mutilá-los vitalmente diminuindo-lhes a
eficiência. A medicina moderna já o vai reconhecendo ante a lição
dos fatos. O predomínio da Konstitution therapie ou terapêutica total,
em oposição à terapêutica dos elementos — ou terapêutica local e
especializada — é já uma das expressões deste movimento de
reação. O dito — “a têmpera moral do enfermo representa 75% da
sua cura” — diz mais ou menos o mesmo em outros termos. E quem
não vê todos os dias tantos e tantos destroços físicos que vão
povoar os nossos hospitais começarem por ter sido destroços de
vida moral. Em se tratando principalmente de doenças nervosas tão
freqüentes em nossos tempos, a influência de nova vida espiritual
sadia é ainda mais poderosa. Mens sana in corpore sano diziam os
antigos. Não é menos verdadeira a recíproca corpus sanum in
mente sana. “Onde quer que se feche um santuário”, disse Förster,
“aí se abre um hospício”.79
O homem é uma unidade orgânica e descuidar a formação
superior do espírito é eliminar um dos fatores mais vitais da saúde
física. A experiência mostra, como observa um autor norte-
americano,80 que enquanto nós podemos visar a verdade e a virtude
por si mesmas, os bens vitais superiores não se podem assegurar
plenamente senão enquanto se consideram como meios para uma
vida mais alta. Assim é que os servimos melhor. Se nós vivemos só
para viver, não viveremos bem e não ficaremos satisfeitos da vida.
Viver para viver nunca nos ensinará a viver. O homem deve zelar
pela sua saúde a fim de servir a sua atividade superior. Quem não
pensa na saúde senão pela saúde acabará doente desta
preocupação. Quem come só pelo prazer de comer acabará
ultrapassando os limites e comprometendo espírito e corpo.
O problema da saúde humana apresenta, portanto, uma
complexidade muito maior que a que lhe atribui a higiene naturalista.
Não visando senão formar um bom animal, degradou o homem e
não salvou o animal.
Os estabelecimentos de educação física que dão aos fatos
biológicos uma importância total e exclusiva ficam abaixo das
exigências complexas da realidade humana.
Como a educação física, também a educação profissional, que
tão distanciada parece da vida religiosa, dela no entanto depende
inteiramente: as virtudes da intrepidez, do trabalho, da iniciativa, da
perseverança, da castidade, do domínio de si mesmo, que são
antes fatores de primeira ordem para a saúde física, não o são
menos para o êxito na própria profissão. Um célebre pedagogo
norte-americano, Booker Washington, escrevera no frontispício de
sua escola profissional: “Aqui, de mercenários se fazem homens”.
Original, mas profundamente pensado. Mais talvez que iniciação
técnica o que decide do êxito de uma carreira é muitas vezes a
formação geral. O valor do homem condiciona o do profissional. Por
que naufragam tantos médicos, tantos negociantes, tantos
advogados? Por preguiça, por desonestidade, por falta de
constância, de lealdade, de dedicação, de espírito de sacrifício, de
assiduidade ao trabalho. Um desfalque corta a carreira ao
caixeirinho de balcão; um abuso de confiança envolve a clínica de
um médico de uma atmosfera isoladora. A indisciplina, que os vícios
alimentam, fecha a um oficial o acesso às altas patentes da
hierarquia militar. Uma firma comercial vale quase sempre a
honestidade do nome que representa. O bom êxito de uma empresa
é quase sempre função das qualidades de chefe — delicadeza,
generosidade, dignidade, distinção no trato com os subalternos —
dos homens que lhe estão à frente. Homens e não instituições, ou
melhor, homens honestos para termos instituições boas — eis o
grande princípio da vida econômica e social. Como os povos, assim
os indivíduos precisam mais de caráter que de saber.
Esta relação incontestável que acabamos de apontar entre a
educação profissional ou física e a formação profundamente
humana da personalidade, muito mais facilmente poderia ser posta
à evidência em se tratando da educação social, sexual, etc. O que
dissemos, porém, é mais que suficiente para pôr em relevo este
caráter orgânico, universal, compreensivo da pedagogia católica.
Com as mutilações e unilateralismos do laicismo o homem fica
radicalmente desequilibrado na sua vida espiritual. É essa a origem
desta dilaceração interior que constitui um dos males mais
dolorosos da alma contemporânea. A vida superior do espírito, a
iluminar os destinos imortais do homem, atrofiada na profundidade
de suas raízes religiosas e morais. A vida externa, profissional e
cívica seccionada da consciência e reduzida a uma atividade febril,
estimulada pelas necessidades do ganha-pão, mas sem a
orientação de normas morais eficazes e sobretudo sem um ideal
superior digno do homem. Daí, de lado a crise de caráter cada vez
mais acusada, de outro o descontentamento, a inquietude, o tédio,
freqüentes no homem moderno e inevitáveis em quem não resolveu
o grande problema da vida.
A educação católica visa formar o homem na harmonia de sua
totalidade. Tudo aqui se unifica admiravelmente. A vida, na múltipla
variedade de seus aspectos, na diversidade multiforme de seus
atos, desde estas decisões profundas com que imprimimos a toda a
nossa existência uma orientação definida e estável até as mais
insignificantes ações cotidianas exigidas pelos nossos deveres de
estado, reveste a importância transcendente do desempenho de
uma missão divina. Nada então é sem interesse e significação. Para
cada uma de nossas obrigações levamos toda a energia, toda a
serenidade, toda a constância fiel de uma alma unificada que realiza
com não menos elegância moral a grandeza dos seus destinos na
sublimidade rara dos heroísmos do que na continuidade coerente
das pequeninas ações.
É assim que uma pedagogia compreensiva prepara o homem
para o seu desenvolvimento integral e para a sua verdadeira
felicidade.
Realizar a nossa unidade interior é, com efeito, realizar a nossa
plenitude. Um ser vale o que vale a sua unidade: dividi-la é destruí-
lo; conservá-la, intensificá-la é dar-lhe o máximo de estabilidade e
perfeição. Ora, enquanto não nos elevamos acima da multiplicidade
criada estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem da
realidade, Deus é o princípio de toda a unidade; Ele, Causa Primeira
de tudo o que é; Ele, Fim para o qual tudo tende; α e ω do universo.
Na ordem psicológica e moral, começamos seriamente o nosso
trabalho de unificação quando refletimos esta ordem essencial das
coisas e entramos a ver, julgar, agir, através dessa luz que vem de
Deus. Deus melhor conhecido e mais amado vai aos poucos
elevando, e concentrando, todas as nossas aspirações na unidade
da Sua paz infinita. Através das vicissitudes de multiplicidade
terrena é a melhor preparação à felicidade definitiva das
inteligências fixas numa instituição beatífica da Suprema Verdade,
que encerra, na simplicidade do Ato puro, a plenitude de todas as
perfeições.

Rio, 1º de maio de 1931.

76 Paulsen.
77 Harnack: “A religião e sobretudo o amor de Deus e do próximo, eis o que dá
sentido à vida; a ciência é disto incapaz. Que me seja permitido falar aqui de
minha própria experiência, como de quem há trinta anos se ocupa de ciência.
É belo consagrar-se à ciência pura e ai daquele que a menospreza ou nela se
endurece. Mas quanto aos problemas da origem da vida e da sua finalidade, a
ciência não os resolve hoje como os não resolvia há dois ou três mil anos”.
78 Dupanloup.
79 Rudolf Allers: “Nunca encontrei um caso de nevrose em que o último problema,
o último conflito, não se resolvesse num problema de vida não resolvido […]. Por
isto, compreendemos que uma terapêutica inteligente, dedicada, paciente,
puramente religiosa da alma, provoca simultaneamente e, em muitos casos, a
cura religiosa e a cura da nevrose, porque a ação vai logo ao problema central”.
80 Cf. De Hovre, II, p. 429.
Renascimento da pedagogia católica

A SSISTIMOS nesses últimos anos, com olhos vivos de curiosidade


e ânimo dilatado de consolação, a uma verdadeira renascença
da pedagogia católica. Não que antes houvesse a Igreja esmorecido
na sua árdua e nobre tarefa de educadora das gerações, ou nela
houvesse colhido resultados menos positivos. Mas uma coisa é a
formação individual das almas na vida das nossas escolas e
instituições, outra, a expressão científica, a exposição metódica de
uma pedagogia na solidez de seus princípios fundamentais e na
harmonia de todos os seus elementos. Lá, era a prática; aqui, a
teoria; lá, vida concreta, palpitante, indefinível na mobilidade plástica
de situações que se sucedem sem interrupção; aqui, ciência,
abstrata, fria, cristalizada na universalidade de seus princípios e no
rigor concatenado de suas demonstrações.
Da ciência pedagógica desta pedagogia católica é que nós
presenciamos uma reflorescência rica de promessas e esperanças.
Basta lançar um olhar sobre a nossa atividade literária neste
domínio, em quase todos os países, para facilmente nos
convencermos de que nos achamos, de fato, na presença de um
movimento de proporções imponentes. Por toda parte as revistas e
as coleções ou bibliotecas pedagógicas organizadas com critério
católico multiplicam-se e expandem-se rapidamente, enquanto as
obras de larga envergadura se vão sucedendo umas às outras à
distância de pequenos intervalos. Citemos um ou outro exemplo.
Na Bélgica, François de Hovre, professor de pedagogia nas
Universidades de Gand, Bruxelas e Antuérpia e autor de duas obras
de fôlego sobre a filosofia pedagógica, dirige com o Dr. Décour uma
coleção flamenga de Estudos pedagógicos, de que já saíram mais
de trinta volumes. Para os belgas de língua francesa, J. Renault,
inspetor-geral do ensino primário na Bélgica, iniciou há pouco uma
série histórica sob o título Idéias pedagógicas, nas quais vai
sucessivamente reconstituindo a teoria e a prática dos grandes
pedagogos católicos, desde Santo Inácio e Fénelon, até Dom Bosco
e a Bem-aventurada Júlia Billiart.81
Na Alemanha, a atividade é, quase diríamos, prodigiosa. As
bibliotecas pedagógicas de todos os feitios, de alto estilo científico
ou de vulgarização mais acessível, sucedem-se ou se desenvolvem
simultaneamente com uma facilidade que supõe um círculo de
leitores numeroso, interessado e de elevada cultura. Ainda há dois
anos, o Dr. Max Ettlinger, professor de filosofia na Universidade de
Munique e diretor científico do Instituto Alemão de Pedagogia
Científica, planejou a publicação de um grande curso de pedagogia
católica que se desenvolverá em 25 volumes in-8, dos quais já
saíram os primeiros tomos. Mais importante, talvez, pela sua
utilidade, foi a edição de um grande dicionário de pedagogia em
cinco volumes, sob a direção de Roloff. Em 1917 aparecia o último
volume. A grande enciclopédia compreendia 1717 artigos ou
monografias e 1227 lembretes ou simples vocábulos com as suas
significações técnicas. Pois bem, volvidos pouco mais de dez anos
já se fez mister a necessidade de atualizar este trabalho
monumental que não tem símile em nenhum outro país e agora
mesmo acaba de sair o 1º tomo de um novo Dicionário de
pedagogia atual, destinado a refundir algum artigo que já pudesse
parecer antiquado e a pôr em dia e completar nos outros, com a
informação bibliográfica, os resultados mais recentes adquiridos
para a ciência. O volume recém-vindo a lume conta 370 artigos; e
nele colaboram 192 autores, quase todos lentes de universidades
ou de institutos superiores de ensino.
Ao lado da atividade literária propriamente dita, poderíamos
lembrar a fundação de institutos, de cátedras especiais, de ligas e
associações, de semanas e congressos destinados a facilitar a
corrente das idéias e pôr em contato vivo os mais notáveis
representantes do importante movimento científico. Neste gênero de
fatos significativos, citaremos só o mais recente, e um dos mais
importantes: o 1º Congresso Internacional de Ensino Livre, reunido
o ano passado, em Bruxelas, na comemoração do centenário da
independência belga. A esta importante reunião fizeram representar-
se quase trinta nações.
Mas é também dos arraiais acatólicos que nos chegam os
testemunhos mais insuspeitos não só de surpresa ante a marcha
conquistadora e vitoriosa das nossas idéias, mas também de
admiração ante o valor intrínseco, científico e vital desta pedagogia
que eles, por tanto tempo, quiseram voluntariamente ignorar. Entre
os grandes mestres já não se identifica atabalhoadamente a
pedagogia tradicional com rotina, velharia, e inútil antigualha de
museu. Esta continua a ser a linguagem dos primários que vão
papagueando o que se dizia há cinqüenta anos quando se julgava o
que se não conhecia. Hoje, outro é o tom dos que sabem o que
dizem e têm consciência do que escrevem. Quereis ouvir um ou
outro destes depoimentos expressivos? Sorokin; Stanley Hall,
Förster, Paulsen?
Pitirim Sorokin:
Devemos reconhecer que, em meios práticos, estes educadores [medievais]
conheciam mais do que nós estes problemas […]. Todos estes métodos são
muito eficientes e, importa confessá-lo, muito apropriados no ponto de vista
da ciência moderna. A leitura de livros, como os exercícios espirituais de
Inácio de Loyola, mostra claramente a visão profunda que tinha o seu autor
do mecanismo da atividade humana e a sua genialidade na invenção de
métodos eficientes para modificá-la numa direção desejada. Não é
necessário acrescentar que a sua técnica é essencialmente psicológica e
baseada na modificabilidade da psicologia humana.82

Stanley Hall:
Se a Igreja Católica nos parece em atraso em matéria de higiene e ciência
aplicada, em quase todos os outros domínios ela tem muito mais a ensinar
que a aprender dos que estão fora de seu grêmio.83

F. W. Förster:
Para aprofundar os problemas fundamentais de sua missão, em nenhum
outro lugar poderão os educadores aprender mais que nos outros clássicos
que penetraram e descreveram o cristianismo em toda a sua profundidade. É
um dislate que o valor de um livro dependa da época em que foi escrito. Só
um cego poderá negar que sobre a vida interior as grandes fontes do
cristianismo podem informar-nos melhor que a literatura moderna no domínio
da filosofia, da pedagogia e da psicologia, devido à grande ignorância dos
imperecíveis tesouros espirituais da Igreja.

Paulsen:
A obra de Förster cria uma atmosfera nova; respira-se outro ar: é como se
ouvíramos um homem sóbrio que fala entre os clamores de ébrios. […] Com
razão salienta Förster que à velha Igreja reverte o mérito imperecível de
haver sempre tomado a peito a educação da vontade e de ter formado nos
santos os heróis do sacrifício. Que nós vivemos ainda hoje de sua tradição é
para mim fora de dúvida. Que levianamente nós deixamos destruir e dissipar
esta herança preciosa por toda espécie de teorias perversas, eis na realidade
o grande perigo dos nossos dias.84

De Spranger, um dos filósofos mais em foco na Alemanha atual,


professor na Universidade de Leipzig, em 1912, e, desde 1919, em
Berlim, referirei um episódio que se passou há pouco com o Padre
Schröthler. Quando o jesuíta foi se matricular na Universidade de
Berlim, Spranger interpelou-o: “Padre, que vem fazer aqui? Estudar
pedagogia? Nós nada temos que ensinar-lhe. Vós, católicos, pondes
a Deus como base de toda educação. Nós, pelo contrário, estamos
ainda à procura desta base e cada um recomeça onde acabou o seu
predecessor”.85
E poderia lembrar-vos as citações de Eucken, Payot e muitos
outros. O que me interessava, porém, era frisar apenas a realidade
deste acontecimento, atestado assim pelas provas positivas de sua
vitalidade quanto pela confissão desinteressada de mestres de valor
que trabalham longe de nós e mesmo contra nós.
Deste fato assim averiguado, parece-nos interessante e
instrutivo investigar as causas, ao menos as principais.
A primeira, creio eu, foi um estudo histórico, mais profundo e
objetivo, da pedagogia católica. Aconteceu, nestes últimos anos,
com a pedagogia o que há mais tempo sucedeu com a nossa
filosofia escolástica. Sabeis como a Renascença, enfeitiçada pelas
belezas de forma da literatura antiga, voltou enfastiada o rosto a
alguns escolásticos decadentes do século XV que sutilizaram
demais e carregaram o seu estilo de chumbo com barbarismos
técnicos e solecismos rebarbativos. Sobre estes poucos
representantes, degenerados e imbeles, da grande filosofia do
século XIII formou-se no século XVI e XVII o juízo de toda a
escolástica e contra ela os humanistas elegantes do tempo
aceraram, à porfia, a sátira pungente dos seus epigramas
envenenados. A imprensa, há pouco descoberta, ocupou os seus
tipos em belas edições dos clássicos gregos e latinos. E os
remanescentes da grande atividade intelectual dos séculos áureos
da Idade Média ficaram sepultados, em grandes in-fólios
manuscritos, sob o pó de vetustas bibliotecas. Era então moda falar
no obscurantismo medieval, no grande eclipse da cultura que datara
a espessura de suas sombras dos últimos crepúsculos da civilização
romana aos primeiros albores da época moderna. O Renascimento
apareceu aureolado com os esplendores de um início brilhante da
filosofia das ciências, das letras, das artes, de todos os valores da
cultura e da civilização moderna. Nas mãos dos inimigos da Igreja
estes lugares comuns, sobre os quais podia esvoaçar livremente a
retórica declamadora, foram leitmotiv de inúmeras variações, um
pouco monótonas, certamente inconsistentes, mas de efeito seguro
porque altissonantes. Certamente inconsistentes, disse, porque toda
esta visão simplificadora da história não correspondia à realidade
dos fatos. O obscurantismo não estava na Idade Média, estava na
inteligência moderna, que julgara precipitadamente, por interesse ou
paixão, pouco nos importa agora, o que não conhecia.
A verdadeira Idade Média, a escolástica genuína, começaram a
revelar-no-la as investigações históricas do século XIX. Do túmulo
das bibliotecas foi ressuscitando um mundo de pensamentos, de
sistemas, de obras e autores desconhecidos, a revelarem uma
atividade intelectual tão intensa como a das eras mais brilhantes da
história.
A esta reabilitação histórica seguiu-se de perto a reabilitação
doutrinal. Estas idéias, que pareciam e muitos julgavam
mumificadas para sempre, sacudiram de si a mortalha superficial de
uma forma antiga e desceram à liça do pensamento moderno ágeis
e fortes de uma vitalidade não suspeitada. Testemunho de Von
Ihering:
Recriminaram-me com razão a ignorância das doutrinas de São Tomás; com
muito mais razão se podem acusar os filósofos modernos e os teólogos
protestantes de haverem esquecido os pensamentos másculos deste espírito
vigoroso. Agora que os conheço, admiro-me como foi possível que verdades
como as que ele professou viessem entre os sábios protestantes a cair no
mais completo olvido. Quanto a mim creio que se as houvera conhecido
antes não teria escrito o meu livro. As idéias fundamentais que desejava
publicar já se acham expressas com clareza perfeita e notável profundidade
neste pensador robusto.86

Hoje, a escolástica ocupa na filosofia moderna um lugar de


honra. Nos congressos internacionais de filosofia, ao seu estudo
histórico e doutrinal reservam-se sessões especiais, e São Tomás é
comentado com interesse nas jovens universidades norte-
americanas como na velha Sorbona. Quem o dissera há cinqüenta
anos!
Algo de semelhante se passou com a nossa pedagogia. O
estudo puramente histórico pôs, pouco a pouco, os modernos em
contato imediato com as fontes genuínas da pedagogia católica,
com os nossos grandes educadores de outras eras. E esses
mestres foram avultando aos seus olhos maravilhados em toda a
grandeza e majestade de sua estatura.
Quanto mais se estudava a pedagogia dos séculos passados, o
desenvolvimento da educação e da instrução, a história dos sistemas e dos
pedagogos antigos, mais se foram habituando a encarar sob outro ângulo a
pedagogia católica. Ela foi (aos poucos) aparecendo como o princípio vital do
organismo pedagógico de todo o Ocidente.87

Paulsen, talvez o melhor historiador não-católico da pedagogia,


escreveu: “A Igreja Católica foi a educadora de todos os povos
ocidentais”.88
A pedagogia cristã suportou o peso da história e a prova dos
séculos. Toda a nossa civilização com o melhor de suas conquistas
nasceu da sua inexaurível fecundidade; todos os grandes heróis da
virtude — que são a glória mais pura da nossa humanidade —
formaram-se nas suas escolas.
E os tesouros inapreciáveis de psicologia e de pedagogia que
encerra a literatura cristã, foram pouco a pouco mais apreciados no
seu justo valor. Folgamos em encontrar sob a pena de um Payot
citações de São Francisco de Sales, ou métodos de Santo Inácio,
de um Förster referências a São João da Cruz ou a Ruysbroeck.
Este último o mais moderno entre os modernos pedagogos,
explicitamente reconhece este valor excepcional…
Mais. Este mesmo estudo histórico foi aos poucos mostrando
que muitos dos defeitos reais que os pedagogos recentes
assacavam à por eles com desdém chamada “pedagogia
tradicional”, não eram na realidade senão desvios posteriores da
pedagogia genuinamente cristã. Citarei, por ora, dois exemplos,
entre inúmeros outros que poderia aduzir e a que provavelmente me
reportarei mais tarde.
Uma das acusações mais freqüentes à educação antiga é a de
mecanismo rígido, deformidade monstruosa de falta de adaptação
plástica à espontaneidade da vida, e à liberdade da criança. Deste
desconhecimento da realidade naturalmente o grande responsável
era o catolicismo. Pois não é, não, senhores. Esta mecanização do
ensino remonta à mania militarizadora de Napoleão. Eis como Taine
neste ponto nos descreve a sua reforma do ensino:
A vida escolar é circunscrita e definida em conformidade com um plano,
rígido, único, idêntico para todos os colégios e liceus do império. É o
estrangulamento premeditado da curiosidade nativa, da investigação
espontânea, da originalidade inventiva e pessoal, a tal ponto que um dia um
ministro, tirando o relógio, poderá dizer com satisfação: nesta hora, em tal
classe, todas as escolas do império explicam tal página de Virgílio.89

E foi um grande pedagogo católico, Dupanloup, quem, em


nome das tradições cristãs, reagiu, há quase um século: no volume I
da sua grande obra em três volumes Sobre a educação, que ainda
hoje se imprime e já conta dezesseis edições, lêem-se estas
palavras que exalam um perfume de modernidade contemporânea:
Não tenho receio de dizer: o grande mal da educação em França, há
cinqüenta anos, é a falta de liberdade. A liberdade da criança não é
respeitada: liberdade intelectual, liberdade moral, tudo é constrangido.90

Outra, que muitas vezes se pretende invenção da Escola Nova,


é o aspecto social da educação. A educação, dizem, é uma função
social: é uma transmissão pela sociedade de uma soma de bens
culturais e é uma preparação da criança para o desempenho de
seus deveres para com a comunidade. Não é para aqui nem para
agora o examinarmos o que encerra de repreensível, unilateral e
ineficaz — nas doutrinas da Escola Nova — esta socialização da
escola, baseada numa filosofia materialista e socialista da vida. Fá-
lo-emos talvez em outra oportunidade. Mas no que tem de justo e
incontestável não é descoberta nem novidade alguma; é apenas
uma reação justa contra o individualismo que remonta precisamente
a Rousseau — o pai da pedagogia moderna, no conceito ingênuo e
na visão histórica superficial de alguns. Para Rousseau a sociedade
é um agregado artificial fonte de todos os males e de toda a
perversão do indivíduo que é naturalmente bom.
E por isso o seu Emílio ele o retira do convívio humano para
formá-lo isolado no seio da natureza pura. Com Rousseau, Locke e
Kant, a pedagogia toda se foi orientando para esse individualismo
contra o qual se quer hoje reagir. Outra era a concepção cristã. Para
a Igreja a instrução e a educação foram sempre consideradas no
seu aspecto social. Formar o indivíduo era ao mesmo tempo
prepará-lo para salvar a sua alma e para incorporá-lo na sociedade
cristã: família, pátria, Igreja. O ensino era a transmissão das
verdades cristãs — deste grande capital espiritual — feita por uma
geração a outra; a educação era a incorporação das gerações
novas na comunidade cristã. Todo trabalho pedagógico visava
assegurar a transmissão de uma concepção da vida e do mundo e
conservar assim todos os benefícios da civilização e da cultura.
Natorp, um dos iniciadores da escola ativa na Alemanha, confessa-o
explicitamente.
Krieck: “Só as comunidades religiosas se aproximaram do ideal
que perseguimos”. Natorp:
A Igreja Católica fortificou a sua consciência social muito desenvolvida não só
pelo sacramento, mas deu-lhe uma só significação mística e metafísica e se
declarou o corpo místico do Salvador. A Idade Média concebeu igualmente as
suas instituições profanas como organismos supra-individuais que dão a vida
aos seus membros. Devemos retomar este conceito de comunidade; só por
ele podemos conceber a essência da educação.91

Eis como um estudo mais profundo da história vai reabilitando a


pedagogia católica e preparando-lhe essa influência cada vez mais
ampla e viva que ainda recentemente registrava o Padre Allers,
docente de psiquiatria na Universidade de Viena:
Na filosofia teórica, como ciência prática e empírica como a pedagogia, a
sociologia, a psicologia, a antropologia, vemos as velhas idéias e vistas
católicas renascerem a uma vida nova.92

Ao lado desta primeira causa de caráter mais geral, poderíamos


assinalar outras, sob a epígrafe comum de destruição de ídolos.
A pedagogia moderna construiu uns tantos ídolos, queima-lhes
o incenso de suas adorações, espera deles uma salvação certa. E
eles mentiram a todas estas esperanças de seus devotos; uns após
outros vão sendo derribados do pedestal onde receberam efêmeras
apoteoses.
O primeiro destes ídolos é o progresso. Da marcha evolutiva da
humanidade se fez um conceito inteiramente falso. O homem, dizia-
se, avança na história, pelas sendas de um progresso indefinido; o
diagrama deste movimento poderia representar-se por uma reta
ininterruptamente ascensional. O que para trás ficou não tem mais
que um valor histórico; hoje representa um peso morto, que nós
devemos alijar; que o presente se desvencilhe do passado; a
condição do progresso é a ruptura com a tradição. E a pedagogia de
hoje rompeu com a de ontem; a esta, chamaram desdenhosamente
pedagogia tradicional, rotineira, envelhecida, rêmora a retardar a
liberdade dos nossos movimentos para uma era nova.
Visão precipitada e insuficiente das coisas. Nas ciências há dois
domínios nitidamente distintos: o das ciências da natureza e o das
ciências do espírito. No campo da observação dos fenômenos
naturais — física, química, anatomia, técnica, etc. — o progresso é
função quase exclusiva do número de observadores e de
observações. Aqui é preciso estar sempre em dia: um tratado de
física de quinze ou vinte anos já hoje é antiquado. Os que foram
grandes mestres em seu tempo conservam hoje apenas um valor
histórico. Nós os lemos — Copérnico ou Kepler, Lavoisier ou
Ampère — para assinalar os grandes marcos históricos da evolução
de uma ciência; nós lhes conservamos toda a admiração e o
reconhecimento pelos serviços prestados à causa da verdade
científica; mas já nos não sentamos à sua escola; foram, já não são
mestres.
Há, porém, outro domínio muito diverso das ciências positivas:
é o das ciências do espírito. Aqui o progresso não é função principal
do tempo; o que decide do valor de uma obra é o gênio do seu
autor, é a profundeza dos seus conhecimentos da nossa vida
interna, da nossa alma; é a capacidade de discernir, sob a superfície
das aparências que passam e mudam, a natureza humana no que
ela tem de essencial, eterno, imutável. Por isso na religião, na
filosofia, no direito, nas artes, na pedagogia a tradição não tem só o
valor de história do que já se foi, mas ainda o de ensino vivo do que
deve ser. Os mestres nestas disciplinas do homem não se sucedem,
eliminam-se; superpõem-se, completando-se. Platão e Aristóteles
continuam a ensinar-nos filosofia ao lado de Santo Agostinho e São
Tomás; Leibniz e Kant não suprimem Descartes e Bacon. Homero e
Virgílio sobrevivem ao lado de Dante e de Goethe. Nos monumentos
de Atenas e de Corinto como nas obras de Michelangelo e Rafael
vamos ainda educar o nosso sentimento estético, admirar a
harmonia das linhas, a tonalidade das tintas, a proporção das
coisas. Porque temos Bourget e Dostoiévski não deixamos de
aprender os refolhos e as complicações do coração humano em
Goethe e Shakespeare. Todos estes foram e são mestres ainda que
separados por intervalos de séculos e milênios.
Em todo este imenso domínio, no qual entra também a
pedagogia, a tradição não só continua como mestra viva que quer e
deve ser escutada mas é ainda a cláusula necessária do verdadeiro
progresso. Triste e mesquinha concepção esta que faz da ruptura
com o passado a condição de vida para o presente e de salvação
para o porvir. Neste corte do fio que nos liga às gerações mortas
vêem um enriquecimento, onde na realidade não há mais que uma
dilapidação temerária que nos empobrece. O que é a sociedade no
espaço, é a tradição no tempo. A comunhão dos contemporâneos
amplia-nos o campo visual opulentando a nossa experiência que é
uma só com a experiência dos que vivem ao nosso lado e são
muitos. Sem esta solidariedade no trabalho, seria a esterilidade do
isolamento. A tradição alarga-nos desmesuradamente os benefícios
desta sociedade das inteligências. Já não são só as vozes
contemporâneas, são as vozes de todos os séculos que nos vêm
trazer a sabedoria de suas experiências. Este contato benfazejo
com os gênios de outras eras imuniza-nos contra um perigo que não
é quimérico: a ditadura da moda, o despotismo da geração atual. O
nosso século tem as suas paixões, sente a fascinação de influências
efêmeras e naturalmente reveste-as com o título sedutor de
“progresso moderno”, de “conquistas da ciência”. Corrigir-lhes os
desvios, temperar-lhes os excessos, com ampliar no tempo o campo
de observação, é uma verdadeira benemerência científica. O
isolamento de cada geração das que a precederam é que é a
verdadeira morte do progresso; a condenação a um recomeço
indefinido. Um exemplo. Ainda há vinte anos escrevia Durkheim da
pedagogia de Spencer: “Esta teoria de Spencer nunca foi praticada
por nenhum povo conhecido; ela não passa de um desiderato
pessoal”.93
Ora, notai, há trinta ou quarenta anos Spencer tentava a sua
reforma pedagógica em nome da ciência positiva; queria ser um
pedagogo dos fatos e “foi parar no país da Utopia”.94 Hoje já se vai
dizendo o mesmo de Durkheim que há cinco lustros vem exercendo
sob o laicismo francês a sua influência ditatorial.
Muito mais larga e compreensiva é a pedagogia católica. Sem
renunciar a nenhuma inovação que se imponha em nome de um
progresso real, ela não rompe os contatos com o passado. A sua
experiência é mais ampla; a segurança dos seus fundamentos mais
consolidada pela prova dos séculos. Ouvi como Dupanloup já há
muitos decênios exprimia esta atitude sensata:
Se importa não imobilizar, ou prender a educação na rotina, se pelo contrário
é necessário estudá-la sempre para melhorá-la, fortificá-la, torná-la mais e
mais eficaz e fecunda, convém também nos acautelarmos contra as
inovações temerárias, que vão quebrar a obra dos séculos, calcar aos pés as
experiências do passado e lançar, neste grande trabalho da educação, as
perturbações mais tempestuosas. O que a sabedoria das idades consagrou,
o que a natureza das coisas, que deve ser aqui a regra suprema, exige e
impõe, convém respeitar profundamente combinando-o, sem o destruir, com
o que podem exigir as necessidades novas, a marcha dos tempos, os
progressos do espírito humano e as transformações sobrevindas à
sociedade.95

É uma visão mais compreensiva e justa da história,


colaboradora indispensável de todo progresso estável e verdadeiro.
Fora daí, revoluções destruidoras, renovação perpétua de tentativas
efêmeras!
Outro ídolo, cuja queda justificou a pedagogia católica, foi o
psicologismo. Durante alguns decênios a pedagogia ficou quase
inteiramente reduzida à psicologia e esta à psicotécnica ou
psicologia experimental de laboratórios. E como os antigos não
usavam dinamômetros nem faziam inquéritos proclamou-se a
pedagogia tradicional — apriorista, dogmática, verbalista, paroleira,
arquitetada na inconsistência das nuvens sem fundamento sólido na
realidade das coisas. Era mister construir uma pedagogia
experimental que deveria começar fazendo tábua rasa de todo este
passado inútil.
Mas… a psicologia experimental entrou em crise. Hoje as
grandes correntes psicológicas rumam para outros horizontes. É a
psicologia do personalismo de Stern (Psychologie und
Personalismus) e Max Scheler; é a psicologia da forma
(Gestaltpsychologie) de Wertheimer, Köhler e Koffka; e a psicologia
da estrutura que lhe é aparentada de Dilthey, Spranger, Lilt, Nohl,
Fischer; é toda a corrente psicanalítica — Freud, Jung-Adler. Não
deixa de ser também significativo este fato: de quando em 1929 se
celebrou o seu 25º aniversário de fundação, a Gesellschaft für
Experimentelle Psychologie resolveu modificar o nome suprimindo o
experimental.
Todo este movimento convergente de reação contra a
psicologia dos laboratórios concorda em denunciar-lhe o caráter
analítico exagerado, a esterilidade prática, o desconhecimento da
verdadeira realidade psíquica, que é uma unidade viva, uma
totalidade incindível.
Professores e sociólogos, psiquiatras e diretores de
consciência, governadores de povos e reformadores políticos,
confessaram unânimes a inutilidade quase completa dos
conhecimentos de laboratório no exercício real de suas funções.
Não é lidando com aparelhos de precisão que se aprende a
conhecer os homens. Um sábio que manejou por anos e anos a
complicação dos aparelhos psicológicos poderá ser um péssimo
professor; e ótimo pedagogo encontraremos em quem não sabe
medir o limiar diferencial de uma sensação. Mais aprende da
verdadeira psicologia humana, viva, real, concreta, quem durante
um ano se aplicou seriamente a corrigir um defeito do que quem tem
uma dezena de manuais de psicologia. Mas, ouçamos estas críticas
dos lábios dos psicólogos e pedagogos modernos…
Nos problemas fundamentais da vida da alma, os verdadeiros empiristas
competentes só se acham entre as grandes almas, que viveram os fatos da
vida psíquica — lutas e vitórias — e que portanto se acharam em condições
de basear no contato mais íntimo com os fatos os seus juízos sobre a vida da
alma. Nenhuma ciência de laboratório se acha em estado de despertar o
nosso conhecimento de nós mesmos com tanta segurança quanto os dados
destes psicólogos experimentados no verdadeiro sentido do termo […]. Raras
vezes a juventude foi tratada de modo tão antipsicológico como pelos
apóstolos da psico-experimental.96

Spranger:
A pedagogia experimental é o simples estudo das vias e meios como se
soubéramos com certeza onde está o fim. É esta estreiteza da pedagogia que
combato. Pode fiar-se o linho sem saber donde vem nem para onde vai o
produto obtido. Mas a educação não é um trabalho de usina.

Willmann:
A vida psíquica não se revela senão quando se considera como um todo,
quando pode ser abraçada do alto. À observação e experimentação que
investigam as minúcias deve associar-se o projeto superior que, do ponto de
vista dos destinos do homem e dos problemas fundamentais da vida, irradie
sobre o labirinto de nossa vida interior. A vida da alma consiste em que a
alma vive de alguma coisa. Registrar simples atividades psíquicas é ridículo e
acaba eliminando a alma.97

Em Homero e Shakespeare o jovem colherá mais conhecimento da vida da


alma do que em todos os nossos manuais de psicologia. O mesmo se passa
em sociologia e moral: Homero e Heródoto, a Bíblia e as lendas da época
heróica, os resumos históricos e as relações de viagens produzem no
estudante muito mais efeito que os Elementos de sociologia e ética de
Spencer.

Paulsen: “Conhecimento pedagógico dos homens em oposição à


nossa psicologia experimental científica — eis o que atualmente se
exige do educador”.98
Desta viravolta da mentalidade, deste contato mais vivo com a
realidade por parte de uma pedagogia hipnotizada pelo
experimentalismo psicológico, beneficiou a pedagogia católica, que
longe estava de aparecer como apriorista e dogmática e começou a
ser encarada e estimada no seu justo valor, de profundamente
conhecedora da realidade humana. Ela se conservará sempre em
contato com a vida concreta e positiva; e os seus mestres avultaram
como finos observadores da alma humana nas suas mais recônditas
profundezas.
Com isto não queremos afirmar que a psicologia experimental
não tenha a sua razão de ser nem preste à pedagogia serviços
reais. Fora o exagero no sentido oposto. O que se obteve foi reduzi-
la ao seu papel verdadeiro — muito mais modesto do que julgavam
a princípio os seus panegiristas — de ciência subsidiária da
educação, ao lado da anatomia, da higiene, etc. A psicologia
experimental permitira conhecer melhor alguns elementos psíquicos
da criança, distinguir mais positivamente os normais dos anormais,
demonstrar a superioridade técnica de certos métodos. Mas daí a
invadir todo o domínio da educação e constituir o fundamento
exclusivo de uma “pedagogia experimental” vai um abismo que a
natureza das coisas, posta em relevo pela clarividência das
inteligências mais perspicazes, não permite transpor com tanta
facilidade.
Outros ídolos adorou também a pedagogia moderna que agora
já começa a queimar: sobrestima da técnica; superintelectualismo;
exclusivismos unilaterais, metodomanias e outros. O tempo não nos
permite estudá-los por miúdo.
O resultado deste movimento crítico foi sentirem melhor a
necessidade de uma reforma ou restauração pedagógica de grande
estilo. Por todos fale Stanley Hall:
Apesar de todos os nossos professores e professoras, apesar de todos os
nossos programas e lições, apesar dos nossos milhares de livros e manuais,
em muitos domínios sob vários respeitos a pedagogia superior está morta
entre nós. Vivemos em séculos de obscuridade pedagógica. […] Precisamos
de uma grande, de uma vasta Renascença pedagógica […]. Até agora nos
limitamos a estudar a história da pedagogia por causa de minúcias práticas;
hoje devemos concentrar-nos sobre as grandes idéias que foram a alma das
épocas clássicas.99

A esta aspiração, nascida espontaneamente de tantas


esperanças falidas, de tantas decepções dolorosas, de tantas
tentativas malogradas, corresponde maravilhosamente a perene
vitalidade da pedagogia católica. Também aqui vale o texto
evangélico: “Vos estis sal terrae”. Em filosofia como em sociologia,
em pedagogia como em moral, as paixões desvairam
freqüentemente a inteligência; pululam os sistemas, que se
apresentam, sob o rótulo de modernidade, como panacéias
infalíveis; sucedem-se rapidamente na sua inconsistência uns aos
outros; à realidade indestrutível não se adapta o seu artificialismo,
mas, no entanto, os resultados funestos das experiências temerárias
multiplicam as dores e sofrimento, o mal-estar. Quando a lógica
incoercível dos fatos deduz as últimas conseqüências dos desvios
da inteligência, quando de novo os bárbaros batem às fronteiras da
civilização — venham de fora ou de dentro, pouco importa —, sente-
se então mais viva a nostalgia da Igreja. Na corrupção ambiente ela
guardará incontaminado o sal preservador; enquanto subiam as
águas do dilúvio ela fabricava a arca salvadora.
No campo da instrução, sirva de estímulo ao vosso trabalho
esta certeza de sermos depositários de um capital pedagógico de
valor inestimável, de colaborarmos para um verdadeiro
renascimento, segredo do progresso real e humano das almas. Que
a consciência, porém, de uma superioridade incontestável não
degenere em vaidade fátua mas seja uma percepção mais viva dos
deveres que nos impõe esta responsabilidade.
Deveres antes de tudo de um conhecimento sério da pedagogia
católica. Estendemo-la com afinco e com amor; familiarizemo-nos
com os seus grandes mestres antigos e modernos — que os há
numerosos e de primeira plana em todos os países; não seja caso
pensarmos ser pedagogia católica a primeira idéia que nos cruza
pela cabeça ou os desacertos que se cometem em escolas
católicas. A nossa pedagogia não é feita de ignorância, mas de
estudo; não se defende com boas vontades superficiais mas com
razões sólidas e profundas.
Deveres ainda, e principalmente, de incansável
aperfeiçoamento moral. Esta é talvez uma das notas mais
características da educação cristã. Nós não nos fiamos tanto do
mecanismo da técnica ou da multiplicidade dos métodos quanto da
elevação da personalidade. A educação é o complemento da obra
criadora. Deus só tira a alma do nada e dá-lhe existência, mas para
levá-la à perfeição de sua natureza pede a colaboração do homem,
e o homem que presta a Deus a dignidade de sua cooperação é o
educador. Ora, uma pessoa não atua profundamente sobre outra
pessoa senão pelo seu valor moral. As idéias que triunfam, as idéias
que se transmitem são as que mostraram a sua potência criadora
transformando primeiro os seus aderentes. Não é burilando frases, é
cultivando virtudes que nos preparamos para o desempenho desta
elevada função de formar almas na família, na escola, na sociedade.
Na proporção em que conquistarmos o domínio de nossas paixões,
em que vencermos o nosso egoísmo, em que estabelecermos a
nossa vida interior na paz, na unidade, na sinceridade da dedicação,
no amor eficaz dos bens superiores, crescerá em nós a energia
pedagógica. É árdua esta responsabilidade: mas não se faz nenhum
bem verdadeiro senão a preço de sacrifícios. Desta lei divina de
fecundidade da vida cristã, Élisabeth Leseur achou uma fórmula
singularmente feliz: “Toda alma que se eleva, eleva o mundo”.
Traduzi-a também de outro modo e será igualmente verdadeira: toda
alma — e só ela — que se educa educará o mundo.

Rio, 22 de março de 1931.

81 Santa Júlia Billiart, canonizada por Paulo VI em 1969 — NE.


82 Pitirim Sorokin, Contemporary sociological theories, W. J., 1928, p. 602.
83 Educational problems, II, p. 221.
84 Paulsen, Pädagogik Alhandbengen, p. 545; apud De Hovre, I, 203. Sobre
Förster, ler o seu prefácio ao Catolicismo de De Hovre.
85 De Hovre, Le Catholicisme, p. 421.
86 Der Zurick Recht.
87 De Hovre, Le Catholicisme, p. 408.
88 Pädagogik, p. 346.
89 Taine, Origines de la France Contemporaine. Regime moderne, III, p. 226.
90 De l’Éducation, I, p. 369.
91 Krieck-De Hovre, II, pp. 409–410.
92 Rudolf Allers, Das Werden der sittlichen Person, Herder, 1929, p. 11.
93 Règles de la méthode sociologique, Alcan, 1907, p. 11.
94 De Hovre, II, 4, 7.
95 L. H. E. I., III, p. 566.
96 De Hovre, I, p. 338.
97 De Hovre, p. 328.
98 Dr. Herman Nohl. De Hovre, II, p. 401.
99 Educational problems, II, p. 19.
Associação de professores católicos

I — O valor profissional dos professores depende em grande parte


do seu valor humano. O cristianismo desenvolvendo a
personalidade moral eleva o educador.
Ser bom.
II — Irradiar o bem. Ação social do professor. Pedagogia moderna:
progresso material.
Ausência de ideais.
Deveres cristãos do professor: enformar o progresso material
pedagógico com o ideal cristão.

A. M. D. G.

No Círculo Católico, 14/10/1931.


As responsabilidades do educador

A BAIXO do sacerdócio, não há outra carreira humana em que o


exercí-
cio da atividade profissional seja tão intimamente condicionado pelo
valor pessoal do homem como o magistério.
Nas outras profissões a capacidade técnica pode assegurar um
êxito pelo menos parcial até certo ponto independente da estatura
humana do profissional. No educador não é assim. Nele se requer a
formação especializada da sua função — ciência da disciplina que
ensina, conhecimento da psicologia da criança a quem ensina e da
metodologia didática de quem ensina — mas sobre todas estas
exigências prima a de uma vida nobre e irrepreensível, capaz de
moldar as existências novas à sua imagem e semelhança. Sem esta
condição essencial poderá ser quando muito um explicador, regular
nunca será um educador perfeito.
A educação é de sua natureza um processo vital; uma
comunicação de vida a vida; é o complemento natural da obra
criadora de Deus; é a paternidade das almas. Ora toda transmissão
da vida obedece a uma lei geral pela qual o ser vivo não transmite
senão o que é e o que possui. Aplicada à pedagogia, esta lei
ressalta a influência da personalidade do educador no desempenho
de sua missão formadora de homens. Não é tanto do material
didático, da escolha de livros, da elegância arquitetônica dos locais
escolares que depende o essencial da educação; é principalmente
do homem que está à frente de todo este material inanimado. Tal
escola, tais alunos; e tal professor, tal escola. Fortes creantur
fortibus — Horácio;100 não ensinará a bem pensar senão quem se
habituou a disciplinar na ordem e na clareza o próprio pensamento;
não formará caracteres fortes, enérgicos, íntegros senão quem, a
preço de muito esforço, conquistou o domínio de si mesmo e
assegurou a liberdade da virtude sobre a anarquia das paixões que
tiranizam. Homens de bem, só os formará um homem de bem. Pelo
que é, infinitamente mais do que pelo que sabe, ou pelo que diz,
exercerá o mestre a profundidade de sua influência educadora.
Daí a importância para um país da formação moral e humana
dos seus professores, e para os professores a gravidade
excepcional do dever, que lhes incumbe na consciência de
trabalharem para transformar a própria vida numa obra-prima de
perfeição irrepreensível.
Professores que se elevam para elevar mais alto, que se
educam continuamente para educar mais eficazmente as
existências novas, plásticas, instintivamente imitadoras, confiadas
às suas responsabilidades — eis o ideal a atingir.
Falando numa assembléia católica: é mister acentuar a força
santificadora que nós possuímos no conhecimento profundo e na
prática sincera das riquezas investigáveis do nosso cristianismo?
Que outra coisa é a mensagem de Cristo senão este sursum (para o
alto! para o céu! para Deus!) intimado à humanidade como a mais
nobre de suas aspirações, e o mais indeclinável e urgente dos seus
deveres? Ser cristão é trabalhar incessantemente na reforma de si
mesmo; é desprender em cada homem a humanidade na sua
pureza original, qual saiu das mãos criadoras de Deus, das
decadências todas com que a degradou o pecado; é copiar em nós,
como é possível, os esforços da nossa fraqueza, a imagem perfeita
do Homem ideal, de Cristo Jesus.
Na mesma medida em que nos esforçarmos para realizar a
nossa vocação cristã, trabalhamos também para formar esta
personalidade, humana, nobre e sincera que constitui a alma do
educador. O domínio de suas tendências inferiores, a caridade, a
paciência, a dedicação, o amor e o respeito da criança, o desejo
desinteressado de ser bom, a mortificação continuada do próprio
egoísmo em toda a variedade multiforme de suas manifestações —
são a um tempo as virtudes específicas do cristão e do mestre.
E sem que eu vos diga explicitamente, já por vós inferistes a
primeira das finalidades da Associação de Professores Católicos. O
primeiro alvo que com ela visamos é intensificar a nossa vida cristã
para valorizar a nossa atividade profissional. Os primeiros e naturais
beneficiários da sociedade serão os seus membros. Assistência
econômica, entreajuda social, formação técnica por meio de
conferências, cursos, bibliotecas, revistas, tudo isto com o tempo
esperamos poder-lhes-á assegurar a associação desenvolvida; mas
acima de tudo — porque nós católicos somos os respeitadores
intransigentes da hierarquia essencial dos valores humanos —
acima de tudo esperamos constituir na nossa associação um
ambiente moral e religioso que nos permita esta elevação contínua
das nossas almas para uma vida melhor, mais pura, mais cristã. Por
natureza somos, em todas as nossas atividades, sociais, isto é,
precisamos da sociedade e nela devemos desenvolver
harmoniosamente todas as nossas virtualidades. Por que, pois, na
vida religiosa e cristã, nos havemos de isolar como bólides que
descrevem num instante a sua trajetória luminosa, irregular e
efêmera, quando nos podemos reunir em grandes constelações, e
na harmonia de leis constantes que asseguram a regularidade dos
movimentos e a continuidade dos esplendores? Por que não
havemos de pôr a serviço do nosso aperfeiçoamento moral e da
nossa observação religiosa todas as vantagens da vida socializada:
o intercâmbio de impressões, a influência contagiosa do exemplo, o
estímulo das nobres emulações, o conforto da amizade humana e a
solidariedade sobrenatural da graça, um dos aspectos mais belos do
nosso dogma da comunhão dos santos?
Facilitar aos professores católicos o conhecimento e a utilização
de todas as riquezas espirituais do cristianismo, subministrar-lhes os
meios mais eficazes para elevarem de dia para dia o nível de sua
grandeza moral, dever supremo do educador — eis uma finalidade
digna da associação nascente. É a primeira; não é a única. Não
basta ser bom; é mister irradiar o bem. Ou melhor dito: a bondade é
de sua natureza comunicativa, o bem que possui tende, numa
efusão espontânea, a expandi-lo generosamente. Irradiar o bem é o
corolário natural do ser bom.
Ora não sei se haverá outra profissão que ofereça como a do
educador em nossos dias um campo tão vasto de apostolado social.
Nunca talvez se falou tanto de pedagogia, nunca se preconizou
tanto a necessidade de reformas pedagógicas como em nossos
dias. Mas neste imenso movimento de idéias nem sempre os
resultados coroam a grandeza dos esforços. E se eu vos falasse
aqui de uma crise da pedagogia moderna, não faria senão repetir
uma averiguação que encontrareis nos lábios ou na pena de todos
os grandes mestres.
Para justificar a expressão que escandaliza os idólatras do
moderno, bastará distinguir. Os equívocos são sempre funestos. A
distinção das idéias é o primeiro fator da nitidez do pensamento.
Em toda pedagogia há duas grandes questões a distinguir: a
dos fins ou ideal educativo e a dos meios ou métodos inculcados
para a sua realização; se quiserdes, a alma e o corpo da educação.
Constituem o corpo da educação ou o seu elemento material todos
os instrumentos externos ou conhecimentos científicos de que se
serve o educador para melhor realizar o ideal de sua vocação: a
formação do homem. Neste campo indiscutivelmente a pedagogia
moderna tem realizado progressos consoladores. Ou, se quisermos
falar com mais precisão, tem-se feito no domínio pedagógico a
aplicação vantajosa dos progressos de outras disciplinas: higiene,
medicina, psicologia. Os locais escolares: amplos, arejados, alegres;
os gabinetes, museus, laboratórios bem apetrechados para facilitar
a aplicação do método intuitivo; os alunos, fisiológica e
psicologicamente melhor conhecidos, podem ser orientados com
mais segurança; previnem-se males possíveis; corrigem-se ou
atenuam-se anomalias hereditárias, aproveitam-se e dirigem-se
melhor as vocações discernidas a tempo com mais acerto. Quem
negará a realidade de todos estes progressos incontestáveis? Quem
não saudará com entusiasmo todas estas conquistas da ciência
para a formação de uma humanidade melhor? Não nos
deslumbrem, porém, os esplendores destas exterioridades. Tudo
isto não é educação, como o corpo não é o homem se o não vivificar
a alma. A alma da educação, a sua finalidade essencial e superior, é
a formação do caráter, da vontade, da consciência, de que constitui
a dignidade específica do homem. Tudo o mais não passa de
simples meio ou instrumento nas mãos do educador. Que importa
estes palácios escolares, construídos segundo todas as exigências
estéticas de arquitetura e profiláticas da higiene, se deles nascem
consciências infiéis aos seus deveres, vontades escravizadas ao
vício, candidatos à delinqüência precoce? Que grande vantagem
haverá em robustecer os organismos para pôr ao serviço do crime
músculos mais enrijados, enriquecer as inteligências de
conhecimentos para multiplicar os instrumentos de uma malícia
mais refinada?
Bem outro, senhores, é o fim da educação. Nesta imensa
riqueza material da pedagogia é preciso infundir uma alma
formadora de homens. Toda escola que não desce até ao âmago
das consciências para aí esculpir as grandes linhas diretrizes da
atividade humana é uma escola vitalmente mutilada; poderá instruir
inteligências, não formará homens. E ao âmago das consciências
não é possível descer, com luz que ilumine, com motivos eficazes
que estimulem, sem uma concepção da vida, sem um ideal. E eis a
origem profunda desta crise da pedagogia moderna que se divorciou
do cristianismo. “Não possuímos um ideal educativo”, exclama
Eucken, “e sem ideal educativo todas as reformas são condenadas
ao fracasso”. Förster, Stanley Hall, Spranger não falam
diversamente.
Para restituir às nossas escolas a sua eficiência disciplinadora de vontades
enérgicas, viris, é mister operar na pedagogia que a enforma uma revolução
conservadora, é mister rebatizá-la. Em matéria pedagógica a Igreja Católica
tem muito mais que ensinar do que aprender dos que se acham fora do seu
grêmio.101

Nós possuímos um ideal, um ideal da vida e do homem, um


ideal de luz e de força, de verdade e de bondade.
E aqui às perspectivas da nova associação se entreabre, em
toda a sua grandeza, a grande missão regeneradora, em que se
pode cifrar a segunda das suas finalidades essenciais: reintegrar na
nossa pedagogia — porque nós brasileiros mais talvez que nenhum
outro povo sofremos as conseqüências funestas e desmoralizadoras
do laicismo escolar — reintegrar na nossa pedagogia a influência
profunda, salutar, insubstituível do cristianismo. Não rejeitamos
nenhum dos progressos mais modernos da ciência — almas
plenamente abertas a todas as conquistas da verdade; mas não
toleramos que sob pretexto de não sei que modernidades,
pedagógicas ou jurídicas, se fechem às crianças as páginas do
Evangelho, se eclipse a almas batizadas a visão de Cristo, se
arranque à consciência humana o Único Necessário de que ela
nunca poderá prescindir, Deus.
Eis, meus caros, sem artigos ou parágrafos de estatutos — mas
nas linhas gerais de grandes pensamentos orientadores, os
objetivos supremos que vos inspiraram a fundação rica de
esperanças e promessas que aqui vemos. É uma pequenina
semente; Deus há de abençoá-la. Tem irmãs mais velhas em todos
os países do mundo e em alguns estados do Brasil; delas espera o
prestígio do seu apoio; a elas oferece o esforço leal de sua fraterna
colaboração.
Vamos trabalhar juntos para um Brasil melhor. Nos contrastes
de forças adversas que se empenham, mais que em qualquer outro
teatro de luta, é na escola que se fere a peleja capital que decidirá
do futuro dos nossos destinos, é sobre a alma da criança que
convergem os esforços supremos. Quem conseguir plasmar nas
suas mãos o maior número de almas novas, será o senhor da
sociedade e do mundo civilizado de amanhã. Nós que deploramos
profundamente esta luta do mal contra o bem, aceitamo-la, porém,
sem hesitações nem covardias, pela nossa dedicação
incondicionada aos direitos soberanos e imprescritíveis de Deus,
pelo amor imenso que consagramos às almas remidas com o
sangue de Cristo. Corona mea et gaudium meum, minha coroa e
minha alegria, clamava São Paulo aos seus queridos neófitos.102
Para o educador cristão, que também é apóstolo, não deve haver
maior consolação no Céu — porque não há mais perfeito
cumprimento de seu dever na Terra — do que levar à plenitude feliz
dos seus destinos eternos as alminhas em botão ou em flor que a
divina Providência um dia lhe confiou à solicitude de seu zelo e às
dedicações inesgotáveis de seu amor.
100 Odes, IV, IV, 29 — NE.
101 Stanley Hall.
102 Cf. Fl 4, 1 — NE.
Sobre o Manifesto Educacional

N A EFERVESCÊNCIA de idéias e sentimentos que se agitam


tumultuariamente nesta quadra atormentada da nossa vida
nacional, alguns pioneiros da Escola Nova julgaram oportuno atirar
à opinião pública um vasto programa de “construção educacional no
Brasil”. Entre os seus signatários lêem-se alguns nomes revestidos
da autoridade inseparável de quem já desempenhou funções de
altas responsabilidades no país. Destes, sinceramente,
esperávamos maior ponderação nos juízos e consciência mais
nítida da gravidade de atitudes assumidas.
O que de fato para logo impressiona o leitor é a aliança híbrida
entre as justas reivindicações da Escola Nova e as injustas e
injustificáveis pretensões de uma política escolar inspirada no
radicalismo dos princípios mais subversivos. É este o desacerto
fundamental de que se originam as contradições imanentes que, de
cabo a cabo, desvirtuam o longo documento. Nada mais fácil do que
evidenciá-lo em um ou outro ponto dos muitos que se poderiam
submeter à análise de uma crítica serena e imparcial.
Na questão das relações entre a família e o Estado quanto ao
seu direito de educar, o manifesto toma nitidamente posição em
favor do Estado. “A educação é uma das funções de que a família
se vem despojando […] para se incorporar definitivamente entre as
funções essenciais e primordiais do Estado”?
Se ainda só nos fala em colaboração da família é mais por uma
medida de oportunidade nas transições do que por convicção de
princípios estáveis que condicionam a vida social. Que razão, de
fato, alega em favor desta abdicação imposta à família da mais alta
e mais nobre de suas funções? “Do direito de cada indivíduo à sua
educação integral, decorre logicamente para o Estado […] o dever
de considerar a educação […] como uma função social e
eminentemente pública”.103 Em outro lugar, qualifica-se de
“biológico” este direito à educação integral. Ora, se desse “direito
biológico” decorre logicamente para o Estado o dever de considerar
a educação como uma função pública, não tem outrossim cada
indivíduo direito e “direito biológico” ao sustento da vida, à sua
indispensável alimentação cotidiana? “Decorrerá” porventura
logicamente do governo o dever de prover, por si, como por
desempenho de uma função pública, à manutenção de todos os
cidadãos? É o princípio do mais radical absolutismo. É o Deus-
Estado, o Leviatã monstruoso, devorador insaciável de todos os
direitos individuais, confiscador insaciável de todas as liberdades
mais intangíveis. É o Estado-cozinheiro, o Estado-industrial, o
Estado-comerciante, o Estado-agricultor, o Estado-mestre-escola. É
o comunismo todo nos flancos de um dos seus princípios mais
venenosos. E quando pensamos a que se reduz na prática o
Estado, resumido quase sempre a um pequeno grupo de detentores
dos pontos estratégicos do poder, trememos pela sorte de um povo
cuja educação, no que ela tem de mais profundo e delicado, fica
assim entregue à oposição legal de todas as violências e às
oscilações e caprichos de todas as vicissitudes políticas.
E esta doutrina mais que suspeita se nos inculca como uma
reivindicação da Escola Nova! Sim, da Escola Nova, qual a entende
a Rússia. Outros povos, os que melhor conhecem e praticam os
progressos da pedagogia moderna, afinam por outro diapasão. A
constituição da Alemanha contemporânea, promulgada em Weimar,
enuncia em fórmula lapidar, no seu art. 120 que “a educação física,
moral e social da prole é dever supremo e direito natural dos pais,
sobre cuja execução vela o Estado”. Aí está: a educação é função
da família, sua função natural e direito intangível. Aos poderes
públicos compete velar pela sua execução e, onde for mister, suprir
as suas deficiências acidentais. A absorção dos direitos da família
pelo Estado, a substituição de um órgão natural por um artificial, eis
o que há de mais antijurídico e antipedagógico. O que se ensina na
Alemanha, repete-se nos Estados Unidos. É de ontem (1925) a
decisão do Supremo Tribunal norte-americano em que se lêem
estas solenes afirmações:
A teoria fundamental da liberdade sobre a qual repousam todos os governos
da União exclui o poder geral do Estado de dar uma educação uniforme às
crianças, constrangendo-as a aceitar a instrução só dos professores públicos.
A criança não é uma simples criatura do Estado. Os que a alimentam e lhe
dirigem todos os destinos têm o direito, acompanhado do alto dever, de
prepará-los para o desempenho de outras obrigações.

Por que não se inspiraram os “pioneiros da Escola Nova” na


elevação e segurança destas doutrinas? Por que casar, em conúbio
forçado e funesto, o princípio de absolutismo liberticida com as
conquistas benfazejas da psicologia educativa?
Infelizmente, esta associação violenta de elementos
heterogêneos, continua pelo documento a fora. Entre os princípios
sobre que assenta a Nova Escola, “decorrentes da subordinação à
finalidade biológica (sic!) da educação de todos os fins particulares”,
incluem-se a laicidade, gratuitidade, obrigatoriedade e co-educação.
Cada um deles abriria margem a críticas numerosas e bem
fundadas. Examinaremos o primeiro: a laicidade. Preconizam-no
como meio de “colocar o ambiente escolar acima de crenças e
disputas religiosas, alheio a todo dogmatismo sectário”, e de impedir
a sua transformação em “instrumento de propaganda de seitas e
doutrinas”.
Raras vezes, em tão poucas frases, se falseou tanto a natureza
do ensino religioso e se afirmaram tantas heresias pedagógicas.
Como estas já as havíamos encontrado em libelistas sem
responsabilidades, apostados por fás e por nefas a combater a
religião; num manifesto assinado pelos “pioneiros da Escola Nova”,
surpreendem-nos dolorosamente. Não; o ensino religioso não é um
“instrumento de propaganda de seitas e doutrinas”. A escola não é
um teatro de concorrência e de proselitismo que o Estado abre ou
fecha arbitrariamente a esta ou àquela confissão religiosa ou
ideologia filosófica. Não lhe assiste o direito, sem degenerar em
opressor das consciências, de impor, compulsoriamente, aos
educandos esta ou aquela concepção do mundo e, por isto mesmo,
de converter a instrução pública em instrumento de propaganda do
laicismo e do ateísmo. Enformando a sua escola única, gratuita e
obrigatória do espírito agnóstico ou materialista, o Estado violenta
as liberdades espirituais das famílias e, despoticamente, põe a
organização de um serviço público, alimentado pela contribuição
dos cidadãos, a serviço de uma ideologia, pelo menos,
inconsistente, unilateral e exclusivista. Nunca se transformou tão a
capricho a escola em “instrumento de propaganda de seitas e
doutrinas”. O ensino religioso, a escolha dos pais, é a única fórmula
de respeito leal às consciências. Eis porque a moderna Constituição
Alemã, no seu art. 146 prescreve que, “em matéria de educação
religiosa, se deve levar em conta, quanto possível, a vontade das
pessoas às quais pertence o direito de educação”. E a lei de 15 de
julho de 1921 relatou no seu § 1 que: “Sobre a educação religiosa
da criança decide o livre acordo dos pais, na medida em que lhes
assistir o direito e o dever de cuidar da pessoa da criança”.
Mais. Não só é falseada a noção genuína do ensino religioso,
mas, com o preconizado laicismo, se introduz e se propugna uma
política escolar em antagonismo completo com os princípios
fundamentais da pedagogia que, segundo o próprio manifesto,
devem enformar a Escola Nova.
Sob diferentes formas se nos repete incessantemente que a
educação é função necessária de “uma concepção da vida”, que o
educador deve ser “integral”, a prepará-lo para a totalidade da vida.
Nunca se nos define explicitamente e sem rodeios qual a
“concepção da vida” que norteia os pioneiros da Escola Nova e que
eles pretendem impor ao Brasil inteiro de amanhã. O laicismo aqui
inculcado ou nos dá a chave do enigma ou evidencia uma
contradição imanente inevitável. Na nova concepção da vida não há
lugar para Deus nem para a religião, eliminada sumariamente como
uma superfluidade perigosa.
A nova e insólita atitude tem, pelo menos, a vantagem de
projetar novos feixes de luz sobre a verdadeira finalidade do
laicismo. Os seus primeiros defensores, para evitar choques
violentos com a consciência religiosa, pregaram uma heresia
pedagógica deplorável. O fim da escola era apenas instruir; ensinar
números e letras era toda a sua função; não havia, pois, lugar para
instrução espiritual. Formar religiosa e moralmente as crianças era
dever, não do Estado mas da família e da Igreja; o lar e o templo,
não a escola, eis onde se deviam transmitir os conhecimentos que
interessam a vida das consciências. Em desespero de causa,
recentemente, foi esta a miserável atitude assumida por
protestantes e positivistas na sua oposição inconcebível ao decreto
do ensino religioso. A Escola Nova em pedagogia já fez outros
progressos, descobriu ou reaprendeu verdades esquecidas. A
escola é um ambiente educador; a criança é um todo vivo e
orgânico; impossível formá-la sem uma concepção da vida na
totalidade das suas manifestações e exigências. Enxertar, agora,
sobre esta pedagogia o laicismo significa declarar abertamente que
laicismo, ateísmo, irreligião e materialismo são sinônimos
perfeitamente reciprocáveis. Na “doutrina da vida organizada” pelos
nossos educadores, no “horizonte mental” por eles “ampliado”, não
há lugar nem para Deus, nem para a vida futura, nem para a
religião. O Brasil de amanhã que deverá ser moldado na escola
única, obrigatória e gratuita, é um Brasil ateu e irreligioso. Arquive-
se a lição.
Mais adiante, inculca ainda sensatamente o manifesto a
necessidade de uma colaboração estreita entre a escola e a família
na obra educadora. “Essas duas forças sociais […] operavam de
todo indiferentes, senão em direções diversas e às vezes opostas”.
O laicismo apregoado vem levantar uma barreira intransponível a
esta colaboração e agravar o mal que se deplora. Entre essas “duas
forças sociais” não se pode “restabelecer a confiança e estreitar
relações”, sem a convergência de vistas na concepção da vida. A
obra da educação escolar e doméstica não se pode realizar
harmoniosamente se a criança não respira o mesmo clima na escola
e no lar. Ora, nos nossos lares, a religião é uma realidade inegável.
Deus não é um ausente ou um desconhecido, muito menos um
desprezado nas nossas famílias. A Ele sobem pela manhã e pela
tarde as orações dos seus filhos; a Ele as lágrimas nos momentos
das grandes angústias e dos sofrimentos profundos. Quando não
sempre na prática da vida, pelo menos na estima das inteligências
Deus é o Absoluto, é o Princípio e o Fim, a Razão suprema do
mundo e da vida. Quando as crianças criadas neste ambiente
passarem para a Nova Escola, encontrá-la-ão enformada de um
espírito diametralmente oposto. Aí à “finalidade biológica” se
subordinam com fins particulares e parciais todas as outras
finalidades da vida (“de classes, grupos ou crenças”). Não pode
haver maior inversão de valores. Passa-se da religião para a
idolatria. Lá Deus adorado; aqui adorada uma criatura e a ela
subordinada tudo o mais, Deus inclusive. Evidentemente, a ruptura
é completa; a unidade da educação, irremediavelmente
comprometida; a confiança das famílias, para sempre afastada; as
relações entre a escola e o lar, em vez de estreitadas, convertidas
em antagonismos latentes e não raro em hostilidades abertas. O
novo manifesto é uma declaração de guerra permanente entre a
escola brasileira e a família brasileira.
Demos ainda um passo. Se há regime educativo em que a
formação moral das almas assuma relevância primordial é
precisamente o da escola ativa. Desenvolver o espírito de iniciativa
e de atividade é ao mesmo tempo impor-se o dever indeclinável de
regulá-lo por uma educação cada vez mais apurada do senso de
responsabilidade. Notou-o muito a ponto Franz Weigl, um dos
admiradores mais entusiastas e dos propugnadores mais ativos da
Escola Nova na Alemanha. Na nova pedagogia, que leva pela
atividade pessoal à independência pessoal, não devemos esquecer
de “despertar a responsabilidade ético-religiosa que constitui o
fundamento de qualquer ação livre e independente”.104 Ora, a
educação da vontade sabem-no todos, e lembra-nos recentemente
outro dos grandes protagonistas do novo movimento, Claparède,
consiste evidentemente em “dar à criança ou ao adolescente um
ideal bastante vivo para triunfar das tendências inferiores”.105
Ora, quais são os ideais que a experiência nos tem mostrado
como bastante vivos para triunfar das tendências inferiores e
dissolventes da personalidade?
Ainda uma vez a palavra a um dos chefes da cruzada pela
Escola Nova, Adolphe Ferrière:
O dom de si a um ideal — saúde das nações, progresso, raças, triunfo do
espírito sobre a matéria, consagração a valores religiosos, obediência ao
imperativo da consciência ou à vontade de Deus — é a condição sine qua
non de dar um significado à existência e unir em feixe coerente todas as
energias sãs da personalidade.

Não vamos aqui — fora impróprio o lugar — estabelecer uma


discussão psicológica acerca do valor comparado destes diferentes
ideais, indicados por Ferrière. Registramos apenas como entre eles
ocupam lugar preponderante os ideais religiosos. No Brasil, os da
nova “construção educacional” assim não entendem.
A escola brasileira será uma escola mutilada; o laicismo
incoerente irá apagar no horizonte moral das futuras gerações todas
estas idéias superiores, todas estas aspirações elevadas, todos
estes grandes ideais religiosos sem os quais não é possível “dar um
significado à existência nem unir em feixe coerente todas as
energias sãs da personalidade”. O alimento que se dará às almas
será um terra-a-terra plasmado de “finalidades biológicas”; fecham-
se todas as abertas que olham para o alto, para o calor, para a luz,
para o Sol, para o céu; estancam-se inexoravelmente todas as
fontes superiores da vida. Os grandes ideais que alimentaram a
dedicação e o heroísmo de Colombo, de Anchieta e das nossas
humildes Irmãs da Caridade; os grandes mananciais de vida moral
que fecundaram vinte séculos de cristianismo e produziram o que há
de mais belo na nossa civilização, extinguir-se-ão no plano
regenerador de educação que deve replasmar o Brasil de amanhã.
E todos estes exclusivismos estreitos, todos estes unilateralismos
acanhados, todas estas mutilações incompreensíveis em nome de
uma reforma pedagógica que pretende basear-se numa concepção
integral da existência, firmar-se nas lições da experiência viva,
integrar a atividade escolar na atividade social ambiente! Ainda uma
vez, a inserção violenta do laicismo quebrou as harmonias do
conjunto e introduziu no manifesto o desar de uma contradição
imanente.
Esses “princípios fundamentais da laicidade, gratuidade e
obrigatoriedade”, continua o programa, foram “consagrados na
legislação universal”.
Aqui passamos do ilogismo nas idéias para a negação
incompreensível da evidência dos fatos. O que a legislação quase
universal consagra é precisamente a proscrição da laicidade. A
demonstração deste asserto ultrapassaria os limites deste artigo.
Esboçamo-la porém aqui quase com a brevidade e a concisão de
um índice. E para sermos mais atuais e contemporâneos lembramos
apenas os países que, após a Grande Guerra, reformaram
profundamente a sua constituição ou o seu regime escolar.
Em 1919 a Alemanha promulga a sua nova Constituição,
considerada como um dos mais notáveis monumentos da ciência
jurídica, e estatui no art. 149 que “a instrução religiosa é matéria
ordinária do ensino nas escolas”.
Em 1920 a Holanda reforma o seu regime escolar e determina
que o orçamento da instrução pública seja proporcionadamente
distribuído entre as escolas abertas por iniciativa do Estado, nas
quais o ensino religioso é facultativo, segundo a vontade dos pais, e
as escolas confessionais, exigidas pela consciência religiosa das
famílias, e mantidas pelo erário público no mesmo pé de igualdade
que as escolas oficiais.
Em 1921, a Polônia, reatando a sua vida interrompida de nação
independente, promulga a sua nova Constituição e no seu art. 120
prescreve:
Em todos os estabelecimentos de educação, cujo programa comporta a
formação de jovens abaixo de dezoito anos e que é mantido total ou
parcialmente pelo Estado ou pelas coletividades autônomas, o ensino
religioso é obrigatório para todos os alunos. A direção e fiscalização deste
ensino pertencem à autoridade religiosa interessada, sob reserva do direito
superior de inspeção que pertence às autoridades escolares do Estado.

Na Polônia não se concebe educação sem formação religiosa.


Na Itália, Gentile, inspirado nas idéias da pedagogia mais
adiantada, reforma o ensino em 1924 e reintroduz o ensino da
doutrina cristã, “segundo a forma recebida pela tradição católica”.
Na Baviera, em 1925, o governo declara “garantir à Igreja a
vigilância e direção da instrução religiosa nas escolas elementais,
médias e superiores”. Kerschensteiner, um dos grandes pioneiros da
escola do trabalho, foi quem, em Munique, aplicou ao ensino os
métodos da nova pedagogia.
Na Romênia, o governo declara em 1929, num documento
oficial, que “a Igreja Católica tem o direito de dar instrução religiosa
aos alunos católicos em todas as escolas públicas e particulares do
reino” e declara tomar todas as medidas indispensáveis ao exercício
livre deste direito.
A Áustria acaba de reformar toda a sua organização escolar
inspirada nos mais adiantados princípios da escola única: a religião
é conservada, com caráter facultativo, em todas as escolas do
Estado.
Poderíamos percorrer, um por um, outros países da Europa, em
quase todos eles encontraríamos — contra os postulados
injustificáveis e antipedagógicos do laicismo — o ensino religioso
ministrado nas escolas oficiais. É o caso da Inglaterra, da Irlanda, da
Bélgica, da Dinamarca, da Suécia, da Noruega, da Hungria, da
Tchecoslováquia, da Grécia, etc., etc.
Mais ainda. Se passarmos do direito público de cada nação ao
mais moderno direito internacional, em cinco dos grandes
tratados106 que se seguiram à conflagração mundial e regulam o
moderno equilíbrio político da Europa, encontramos firmado o
princípio que prescreve a atribuição proporcional dos orçamentos da
instrução pública à manutenção de escolas confessionais exigidas
pelas consciências religiosas das famílias, ainda quando constituem
minorias. É o regime de repartição proporcional escolar de que a
Holanda nos apresenta atualmente o modelo mais acabado. Desses
grandes tratados pós-bélicos foram signatárias 27 nações e entre
elas o Brasil.
Diante destes fatos, como explicar a afirmação do manifesto de
que o princípio da laicidade é consagrado pela legislação universal?
O caso lamentável da Rússia e a legislação da inexperiente e
violenta república espanhola, bastam porventura para constituir uma
universalidade que se possa invocar como argumento e modelo?
Esqueceram porventura os signatários do manifesto, muitos dos
quais homens habituados aos rigores do trabalho científico e às
exigências de uma objetividade escrupulosa, que a primeira
condição de um documento sério é o respeito leal à realidade dos
fatos? Por que ainda uma vez a introdução forçada e artificiosa de
princípios heterogêneos vem perturbar-lhes a serenidade superior e
imparcial e a harmonia coerente de um programa que poderia ter
sido um princípio de remodelações benfazejas?
Nestes termos, o seu efeito será contraproducente. Em vez de
cooperar para a unidade nacional será um agente de discórdias,
suscitadas e mantidas pelo desrespeito às justas liberdades
espirituais acatadas na legislação de quase todos os países cultos.
Nenhum esforço leal para a incompreensão de outras idéias e
outras convicções, pelo menos tão dignos de acatamento como os
expostos no manifesto. Em vez de uma educação moldada numa
concepção integral da vida, a mutilação das realidades espirituais
mais eficazes na orientação das consciências, o exclusivismo
unilateral incapaz de situar a escola na plenitude real da existência.
Em vez de uma aproximação efetiva entre a escola de um lado e o
lar e a sociedade do outro, um isolamento do ambiente escolar
envolvido numa atmosfera de estufa que não é certamente a que se
respira na intimidade das famílias e nas relações da vida social.
Sinceramente não se podia prestar maior desserviço à causa
da pedagogia nova do que solidarizar assim as conquistas
autênticas e benfazejas da ciência com os postulados de uma
metafísica precária e mal segura e com as reclamações tumultuárias
de uma política partidária e aventureira.

103 Neste movimento de espoliação progressiva dos direitos da família em


benefício do Estado, seguido pela gratuidade e obrigatoriedade do ensino, temos
o caminho aberto ao monopólio educativo com toda a odiosidade dos seus
caracteres de opressão das liberdades individuais. A palavra “monopólio”, porém,
não aparece no manifesto. É uma tática que coincide com a preocupação
aconselhada recentemente pela Maçonaria: “A palavra monopólio soa
desagradavelmente aos ouvidos de I. I. Em vez de simples monopólio de Estado
querem eles a nacionalização do ensino com toda a organização que este título
comporta”. Couvert du Grand-Orient, 1924, p. 121; e às pp. 132–3: “[…]
monopólio, este termo nos fez mal. Preferimos a nacionalização”.
104 Franz Weigl, Wesen und Zestaltung der Arbeitschule, 6ª edição, Paderborn,
1931, p. 18.
105 Édouard Claparède, L’éducation fonctionnelle, Neuchatel, 1931, p. 180.
106 Versalhes (2º) art. 9, Saint-Germain, art. 68, Neuilly, art. 55, Trianon, art. 61,
Sèvres, art. 148.
O ensino no Brasil

A IMPRENSA vem debatendo nestes últimos tempos a questão do


valor do nosso ensino secundário. Variam os critérios de
apreciação e multiplicam-se as soluções alvitradas. A discussão, se
bem orientada, só poderá ser útil. O acerto na diagnose do mal é a
primeira condição de uma terapêutica eficiente. Mas é preciso
encarar o problema com objetividade serena e compreensiva para
colocá-lo nos seus verdadeiros termos.
Antes de tudo não me parece justo falar de decadência do
ensino. Quem diz decadência supõe um esplendor, em outras eras,
de que nos precipitamos nos abismos de hoje. Ora, por mais alto
que remontemos no nosso passado não longo de nação
independente, o que ouvimos são sempre acusações e
recriminações cada vez mais acerbas e violentas. Leia-se, para não
citar senão grandes nomes, o que, do ensino no Brasil em seu
tempo escreveram Rui Barbosa, Sílvio Romero, Gonçalves Dias.
Numa série de artigos publicados no Diário de notícias, ao expirar
da monarquia, verberou o grande Rui, com a sua pena acerada,
todos os desmandos do tempo, entre os quais “um sistema de
suborno que é a derradeira expressão da decadência do ensino”.
Onde, pois, este antigo período áureo de nossa instrução de que o
nosso, o contemporâneo, é apenas um sucessor degenerado?
Não há decadência; o que tem havido — ainda que pareça
paradoxo — é progresso, não tão rápido nem tão substancial como
desejáramos, mas, ainda assim, progresso verdadeiro. Não se
escandalizem os leitores. Examinemos a realidade com olhos
desanuviados de preconceitos.
Em 1932 havia no país cerca de 400 estabelecimentos de
ensino secundário; em 1946, isto é, quinze anos depois, 1.183.
Durante quinze anos quase que triplicou o número. As nossas
escolas secundárias foram surgindo, freqüentavam-lhe as aulas, em
média, na razão de uma por semana, há três lustros, 56.208 alunos;
hoje, mais de 260.000 (mensagem presidencial de 1947). Em outras
palavras, onde havia 1 ginásio, em 1932, hoje há 3; para 1 brasileiro
que então recebia instrução secundária, hoje há 5! Com o número
de estabelecimentos, aperfeiçoou-se a nossa rede escolar. Há trinta
ou quarenta anos, numerosos estados da federação não possuíam
ginásios senão nas capitais; hoje, num avançar vitorioso, os
estabelecimentos de ensino super-primários vão conquistando, um
após outros, os centros urbanos mais importantes do interior. Ao
inegável progresso quantitativo corre de par uma melhoria de
qualidade, também incontestável. Graças às exigências mínimas
para o reconhecimento oficial, os que conhecem de perto os
professos de verificação dos ginásios e colégios podem afirmar, sem
risco de erro, que dificilmente se encontrará no Brasil um destes
estabelecimentos de ensino que, nestes últimos anos, não tenha
aperfeiçoado consideravelmente as suas instalações didáticas,
edifícios, gabinetes, laboratórios e bibliotecas. Podemos até, neste
ponto, apresentar, hoje, ao visitante estrangeiro, numerosos
educandários capazes de figurar, sem deslustre, em qualquer das
nações mais civilizadas do mundo. Mais ainda: a duração do curso
secundário elevada a sete anos, mínimo dos grandes povos cultos,
a seriação das disciplinas na regularidade dos currículos, a inspeção
oficial, que, não obstante os seus inconvenientes e excessos
burocráticos, tem contribuído para a regularidade das matrículas, da
freqüência escolar, das provas de capacidade, são outros tantos
fatores que vão imprimindo aos nossos estudos estrutura nacional
bem como uma eficiência que ele nunca possuiu nos anos dos
regimes de preparatórios ou exames parcelados.
Tal é o panorama geral que nos oferece hoje o nosso ensino
secundário. Neste sistema escolar, que não é de todo condenável,
encontram-se colégios ótimos, bons, medíocres e maus. Mas esta
tão triste sina não é exclusiva nem do ensino secundário nem dos
estabelecimentos particulares. Examinai as nossas escolas
superiores: encontrá-las-eis também dignas de louvor e
merecedoras de censura, entre as mantidas pelos poderes públicos
como entre as oriundas da iniciativa particular, a quem se deve a
criação de quase todo o nosso sistema escolar.
— Acha então V.ª R.ª que não há motivo para alarmes e que o
nosso ensino secundário satisfaz plenamente às suas finalidades?
— Não, longe, bem longe disso. Quis apenas dizer que o mal
de que sofremos não parecia bem diagnosticado com a
caracterização de “decadência” do ensino. Não, não decaímos,
pelos motivos já expostos; pelo contrário, progredimos, avançamos,
estamos hoje numa situação melhor que a de nossos pais e avós.
Mas progredimos pouco, não atingimos ainda um nível satisfatório.
O nosso ensino secundário que não decaiu, ainda é insuficiente.
— Quais as causas desta insuficiência? Como remediá-las?
— Aí está um problema complexo que merecia mais largo
exame. Os limites de uma entrevista são manifestamente
demasiado estreitos para uma análise objetiva e menos lacunosa da
importante questão. Aí vai, no entanto, à maneira quase de índice, a
enumeração de algumas causas que me parecem exercer uma
influência decisiva.
Causas de ordem geral: a penúria econômica que não permitiu
ainda a governos e particulares investir no aparelhamento da nossa
rede escolar as somas avultadas que ela está a exigir. A situação
geral da sociedade, principalmente, nos grandes centros, com o
afrouxamento da disciplina familiar, com a tentação poderosa de mil
passatempos para a juventude, com a preocupação exclusiva de
possuir um diploma, a impedir a aplicação séria e a atenção aturada
nos estudos, são também fatores cuja ação funesta não há
educador experimentado que não reconheça sem hesitações.
A estas associam-se outras causas mais intimamente ligadas
com o problema educacional no Brasil. Antes de tudo, o
professorado. Só há poucos anos é que nos convencemos
praticamente de que o homem destinado a formar outros homens,
transmitindo-lhes o rico e variado patrimônio de uma cultura, precisa
de uma preparação profissional longa e acurada. A autodidaxia, aqui
como em tudo o mais, é mãe fecunda de desacertos e
inexperiências desastrosas. Para obviar a estes males fundaram-se,
há pouco mais de um decênio, as faculdades de filosofia. Mas os
seus licenciados, esperanças que iluminam os horizontes do futuro,
são ainda bem jovens e não sobem a muitas centenas, enquanto os
nossos ginásios e colégios já ocupam mais de 15.000 professores.
Todas estas conseqüências de erros passados não as elimina da
noite para o dia uma reforma de ensino. Outros defeitos há no nosso
regime escolar que um legislador prudente poderá corrigir com mais
rápida eficiência. Quis parecer-nos que os nossos currículos estão
sobrecarregados, que substituímos um enciclopedismo indigesto a
um desenvolvimento harmonioso das faculdades do adolescente,
que à formação profunda e equilibrada do homem, patrimônio seu
permanente, preferimos a informação memorizada, efêmera e
superficial. Estamos sobretudo convencidos de que o nosso ensino
secundário deve inspirar-se mais ampla e sinceramente nas
grandes tradições humanistas que plasmaram a nossa civilização
ocidental. Há mais de três séculos — numa experiência já bem
longa e ainda não desmentida — por esta orientação organizaram o
seu ensino secundário as nações que marcham à frente da cultura
moderna: França, Inglaterra, Alemanha, Itália e Polônia, para não
citar senão as maiores. Na nossa petulância juvenil quisemos
corrigir-lhes a sabedoria pedagógica, de experiências feitas; os
resultados… aí estão…
Como vê, algumas causas da insuficiência do nosso ensino só
irão desaparecendo com os anos. Há que pacientar. Quando temos
diante dos olhos uma criança e a queremos ver homem feito,
resignamo-nos a esperar três ou quatro lustros. A evolução cultural,
como a biológica, é orgânica e só se processa no tempo. Mas é
preciso acompanhá-la de perto com inteligência e solicitude a fim de
orientá-la no bom rumo e, onde possível, acelerar-lhe o ritmo do
crescimento. E o papel da legislação sensata que siga a realidade,
legislação baseada na experiência, que não inove pelo gosto de
inovar mas retoque apenas o que a observação demonstrou ser
menos eficiente, que aproveite as lições passadas e não multiplique
as “reformas” que nada reformam, e muitas vezes não fazem senão
repristinar erros passados. Só assim se consolidará a tradição do
nosso ensino secundário, e uma tradição que vive e se renova na
sua própria vida é o que chamamos progresso.
Humanismo e Idade Moderna107

C ONCEITUAR com precisão e propriedade, nas estreitezas de


umas poucas páginas, o humanismo e analisar-lhe as relações
com a civilização contemporânea na complexidade de seus
problemas, é um desafio à prudência e quase à probidade
intelectual. Esforçar-nos-emos, pelo menos, por balizar a região,
indicando rumos e apontando direções que outros estudos e a
reflexão individual poderão prolongar e aprofundar com proveito.
A própria noção de humanismo nestes últimos anos ampliou
desmesuradamente as suas fronteiras. O termo é relativamente
novo. Pierre de Nolhac reivindica-lhe a paternidade. O seu livro
Petrarca e o humanismo, publicado em 1892, introduziu o vocábulo
na língua francesa com uma significação visivelmente ligada à
cultura, ao espírito, a todo o movimento artístico e literário do
Renascimento. Pouco a pouco, porém, o substantivo sonoro se foi
desligando semanticamente de “humanista” e “humanidades”,
termos mais antigos, em cuja parentela nascera, para aproximar-se
mais de “humano” e “homem” e adquirir assim um sentido universal.
Nesta acepção, hoje corrente, poderíamos esboçar a tentativa
de dar-lhe uma definição histórica. Encontraríamos o humanismo
grego, que eles chamavam παιδεία, a formação do homem culto, do
cidadão livre em oposição ao ignorante, apedeuta, ao escravo, ao
bárbaro. O humanismo romano, a humanitas, com que os latinos
traduziam ora o παιδεία, ora o φιλανθρωπία, e designavam as
maneiras distintas e afáveis, a sociabilidade fina do homem
superiormente educado in bonis artibus, que repetia o verso imortal
de Terêncio: “Sou homem, nada de humano me é estranho”. O
humanismo medieval, o humanismo do Renascimento, o
humanismo moderno. Defini-los por miúdo e caracterizá-los em seus
elementos específicos é trabalho de erudição que deixamos aos
historiadores da pedagogia.
Das descrições históricas poderemos subir a uma definição
filosófica, de realizações concretas a uma essência pura. Visto
desta eminência, o humanismo aparece-nos como a formação do
homem, a estruturação de uma cultura, de acordo com o tipo ideal
de humanidade. Seu alvo é desenvolver harmoniosamente no
indivíduo todos os elementos essenciais que lhe integram a
natureza e enriquecer organicamente a sociedade de todos os
valores indispensáveis à plena e livre expansão dos que nela vivem.
A natureza humana é rica e complexa; é corpo e espírito; é
tendência para a Verdade, para a Justiça e para a Beleza, é
inteligência e imaginação, vontade e sentimento. Formar o homem
todo é proporcionar-lhe a oportunidade de sua realização completa
em todas estas direções: disciplinar-lhe a razão na conquista da
verdade, afeiçoar-lhe a vontade à prática do bem e da virtude; é
educar-lhe o coração e aprimorar-lhe o senso estético para amar e
contemplar as coisas belas.
Mais. O homem é social, essencialmente social; viver em
contato com os seus semelhantes não é para ele uma simples
contingência, é a condição mesma da sua existência,
desenvolvimento, atividade e progresso. Assistem-lhe, por isto,
direitos e deveres em cada uma das sociedades em que nasceu ou
se incorporou: a família, o Estado, a Igreja. Através destes grupos,
participa de uma herança social, que lhe vem do passado e que,
melhorada no seu presente, deverá transmitir ao futuro.
Como se vê, o humanismo é uma concepção integral; visa
desenvolver e exercer todas as virtualidades do homem: nenhuma é
negada, descurada ou excluída. O verso de Terêncio, com todos os
enriquecimentos que lhe trouxeram vinte séculos de civilização e de
cristianismo, continua a ser a sua expressão autêntica: “Sou
homem; nada humano me é estranho”. De modo concreto e no seu
ponto de vista nacional, também o exprimiu com felicidade um poeta
alemão:
Em mim, que sou um, há três: o grego, o cristão, o germano;
As lutas da história, no interior de minha alma, eu as pelejo.
Oh pudera eu em cada idéia, em cada sentimento, conciliar
Cultura, fé e natureza: fora o mais feliz dos homens.

Drei sint Einer in mir: der Hellene, der Christ und der Deutsche.
Ach! und die Kampfe der Zeit Kämpf ich eignen Gemüt!
Könnt in jeden Gefühl sie versöhoren, in jeden Gedanken,
Bildung, Glaube, Natur, wäre, ich ein suiger Mensch.108

Sim, sobre ser uma concepção integral, o humanismo é uma


concepção harmoniosa e harmonizadora do homem. Não só a cada
um dos aspectos de sua natureza lhe dá o valor — os ingleses
dizem a ênfase — que lhe é próprio, mas ainda e principalmente
porque o habilita a refletir, do modo mais completo, na harmonia do
cosmos. Na formação humanista do homem há o que os psicólogos
põem em relevo na inspiração criadora do artista: uma condensação
poderosa de experiências múltiplas e várias na beleza simples e
espontânea da unidade. Um ideal que se desprende aos poucos
com toda a sua força de integração da multiplicidade dispersa. Ideal
que não é o produto de uma criação subjetiva, fictícia e
inconsistente mas o reflexo, em cada plano da realidade, daquela
harmonia que é, no universo criado, o sigilo da Inteligência Criadora.
A educação humana já se não reduz a mobiliar de noções
classificadas e rotuladas os compartimentos estanques da
inteligência; é um crescimento orgânico e vital, em contato fecundo
com este “esplendor da ordem” que é o cosmos. É uma adaptação,
não parcial a este ou àquele aspecto da realidade, mas “adaptação
integral à totalidade do universo, passado e presente; material e
espiritual; natural, humano e divino”.109 O homem assim formado
conhece o seu lugar na hierarquia dos seres e dá um sentido pleno
e verdadeiro à vida.
Uma noção caracteriza-se, antes de tudo, de modo positivo,
pelo que é. Mas também o que não é ajuda a definir-lhe as
fronteiras. A oposição dos contrastes pode ser luminosa.
À formação humanista opõe-se a formação enciclopédica com a
sua frondosidade luxuriante de disciplinas; a formação laicista
desterrando das influências escolares uma concepção da vida em
que se possa inspirar um ideal e fundar uma hierarquia de valores; a
formação técnica prematura inspiradora do sistema eletivo, numa
palavra a formação, que, de modo geral, poderíamos chamar
utilitária ou pragmatista, cujo fim é uma utilidade imediata, cuja
preocupação principal é transmitir métodos e técnicas. O aluno
estuda uma língua para que a possa falar corretamente; aprende
ciências para habilitar-se, no menor tempo, como bom profissional.
O mal deste utilitarismo está em que não é de todo ponto falso, mas
incompleto, parcial e mutilado. O princípio é, em parte, bom mas
não é levado coerentemente às suas últimas conseqüências. A
envenenar insidiosamente a atitude utilitária está, subjacente, mas
ativamente inspiradora, uma concepção materialista da vida. Se o
mundo em que vivemos não passa de uma pura matéria, força e
riqueza são as únicas realidades que pesam e treinar os homens
em hábitos de eficiência resumirá todas as preocupações do esforço
educativo. Mas se o homem é espírito, inteligência que pode abstrair
e elevar-se a um ideal de liberdade, capaz de modelar por este ideal
o próprio eu, o significado e o alcance da educação ampliam-se em
outras perspectivas. Para o primeiro plano das suas preocupações
passam a integração da inteligência pela assimilação orgânica e
harmoniosa da verdade, a formação de idéias dinamogênicas da
ação pelo contato e contemplação da beleza, a aquisição laboriosa
de hábitos de retidão e justiça. Com isto, não preconizamos uma
fuga da realidade, uma evasão das exigências positivas da vida.
Não; como dissemos há pouco, o utilitarismo peca por não ver que
maior utilidade está em facilitar o homem a expandir
harmoniosamente a riqueza total de suas energias, do que limitar as
suas capacidades nas fronteiras acanhadas de uma especialidade.
Os objetivos da formação utilitária também nós os visamos, mas
vamos além e queremos mais. O homem não é feliz se não for bom.
Uma sociedade de malfeitores é um caos e inferno em que se não
pode viver. E a capacidade prática não é necessariamente garantia
de bondade moral. Pelo contrário, a periculosidade de um homem
mau cresce na proporção de sua eficiência técnica. A fim de
integrar, portanto, o homem numa vida verdadeiramente humana
cumpre cultivá-lo na totalidade harmônica das suas possibilidades.
Como?
Assimilando em cada disciplina o ideal que lhe é próprio não menos que os
métodos e processos correspondentes. O método assegura a eficiência, mas
o ideal dá a força, o impulso, o desejo. Métodos sem ideal atrofiam-se e
morrem. O ideal, ao invés, trabalha e inspira a criação de métodos e
processos. Importa, pois, em cada gênero de estudo, desprender os ideais
intelectuais, morais e estéticos, capazes de comunicar ao nosso espírito vigor
intelectual, moral e estético. Mais; importa ainda integrar numa unidade todos
estes ideais. Soltos e desconexos e sem coordenação, perdem, em muito, da
sua eficácia prática. Quando se integram os nossos motivos de ação, a força
de um se exerce sobre todos os demais. O homem que sabe que Deus ama
tudo o que é belo, tudo o que é bom, tudo o que é verdadeiro, inclinará todo o
peso de sua vida religiosa em benefício de suas tarefas artísticas ou
científicas.110

Eis o ideal do humanismo: compreensivo e amplo como o homem e


o universo.
Enquanto o utilitarismo, parcial, limitado e estreito, não aspira
senão a adaptar o homem à sua ambiência material, o humanismo
rasga os horizontes e o coloca em cheio num mundo harmonioso,
aberto a todas as exigências materiais, morais e religiosas de sua
natureza una e complexa.

Esta caracterização do humanismo, simples e concisa, já é


suficiente para situá-lo em face do mundo contemporâneo. Que a
nossa civilização atravessa uma crise profunda já não é mister
demonstrá-lo; é lugar comum; basta ter olhos de ver e abri-los. Nem
menos evidente é que esta crise prende as suas raízes mais
profundas numa ruptura de equilíbrio humano. Já de há muito, com
imagem viva, o disse Bergson:
Os utensílios do homem são um prolongamento do seu corpo […]. Ora, neste
corpo que cresceu desmesuradamente, a alma ficou o que era, muito
pequena para o encher, muito fraca para o governar […]. O corpo
engrandecido está à espera de um suplemento da alma e a mecânica está a
exigir uma mística.

Na linguagem que vínhamos usando, a técnica aumentou o poder


do homem sobre a matéria, mas os valores espirituais do homem,
que lhe condicionam a felicidade pessoal e o próprio convívio social
não se desenvolveram na mesma cadência progressiva. Daí
desequilíbrio, desintegração, multidão de valores sem hierarquia,
em conflitos subversivos e, como conseqüência, a inquietude e a
ansiedade das almas, a incompreensão e a hostilidade das nações.
Venha o humanismo salvador para pacificar indivíduos e povos.
Restabeleça-se a hierarquia dos valores, o primado do homem e
entraremos numa fase construtiva…
A missão do humanismo é unir, porque acentua os valores da
natureza comum. O operário que materializa o seu trabalho, afasta-
se do ideal. O cientista que, na sua especialização, se isola da vida,
afasta-se do ideal. O operário, o camponês, o intelectual de
qualquer raça ou cultura, que, partindo das mesmas realidades
concretas e, através de disciplinas ou atividades diversas, se
elevam ao mesmo ideal humano, aí se encontram, se
compreendem, se prendem com vínculos de simpatia e comunhão.
A convergência para este ideal comum de Verdade, de Bondade e
de Beleza fraterniza os homens. A distinção de culturas, orientadas
para uma finalidade comum, cessa de ser um princípio de
contrastes e conflitos para transformar-se em elementos de
harmonia e consonância na variedade e solidariedade
enriquecedora. As diferenças artificiais ou de superfície esbatem-se
na penumbra, ante esta comunhão profunda em que cada indivíduo
ou cada povo contribui para o bem geral com todos os tesouros de
perfeição humana, acumulados pela sua cultura pessoal ou
nacional. Cria-se assim uma atmosfera espiritual, à qual todos,
seguindo os impulsos profundos da própria natureza, se podem
entregar de toda a alma. Intensifica-se a coesão pela cooperação.
O humanismo é o bem comum; o traço de união dos espíritos mais diversos;
é a unidade humana reconquistada pelo aprofundamento do ser que cada um
traz em si; é uma comunhão universal neste absoluto por que ativamente
aspira todo homem, como acabamento supremo de sua natureza.111
II

Da eminência desta altura em que nos colocamos estudando o


humanismo na pureza de sua essência, como formação do homem
segundo um ideal humano, convém lançar um rápido olhar sobre as
chamadas “humanidades”, espontânea e historicamente associadas
ao problema do humanismo. Não vamos tão longe a ponto de
identificar as duas noções, afirmando a necessidade imprescindível
de uma cultura greco-latina para formar o homem. O humanismo
impõe-se-nos como uma exigência indeclinável, os estudos
clássicos não passam de uma técnica cultural, de um instrumento
de primeiro valor para obter o resultado visado, mas cuja eficiência
ou imprescindibilidade poderão ser discutidos. O humanismo é um
fim; as humanidades, um meio.
Historicamente, é certo que os estudos clássicos constituíram
até hoje o substratum constante da cultura ocidental. As mudanças
ocorridas com o desenvolvimento da civilização moderna sugerem
ou impõem uma nova orientação de rumos?
No Renascimento, o estudo do latim, como base da formação
humanista, não se apresentou como uma opção, mas como o
corolário inevitável da evolução histórica numa época
imediatamente posterior à Idade Média que, bem ou mal, falava
ainda a língua do Lácio. No século XV ou XVI o latim era de uma
utilidade incontestável: ótimo instrumento de relações sociais,
vínculo de unidade da civilização européia e veículo de transmissão
de toda cultura superior. Os professores da Península Ibérica,
Coimbra ou Salamanca, iam ensinar em Roma, Paris ou Praga, sem
se preocupar do idioma em que se haviam de explicar aos seus
ouvintes. Com 400 ou 500 palavras latinas um homem mediano
podia tratar os seus negócios em toda a Europa.
Hoje são outras as condições da vida das inteligências. O latim
já não é língua internacional. Para nos entendermos, temos que
resignar-nos a aprender três ou quatro das chamadas línguas
universais. As literaturas modernas, por outro lado, enriqueceram-se
nestes quatro séculos de obras-primas, que rivalizam em perfeição
com as da Antigüidade clássica. Ante esta mudança incontestável
de perspectiva histórica, convém ainda insistir nos estudos dos
velhos autores gregos e latinos, como instrumentos eficientes de
formação humanista? Problema interessante e que a escassez do
tempo não nos permite tocar senão muito por alto.
Diminuiu inegavelmente o valor pragmático das línguas
clássicas, não tanto, porém, como à primeira vista pode parecer. Até
ao século XVI, aproximadamente, todas as fontes da cultura
ocidental, no seu significado mais amplo, a compreender a religião,
a filosofia, a arte, o direito, as ciências, as instituições sociais e
políticas, foram escritas em grego e latim. Do século XVI até aos
nossos dias grande número de pensadores, sábios e literatos
escreveram ainda ou só em latim ou também em latim.
Na grande língua clássica compuseram algumas das suas
melhores obras: Bacon, Descartes, Copérnico, Newton, Kepler,
Leibniz, Grotius, Pufendorf, Althusius, Kant, Schopenhauer, Lineu,
Lamarck, Bergson… Este fato maciço traz uma conseqüência de
largo alcance: sem o conhecimento do latim é vedado o acesso às
fontes primárias de toda a civilização ocidental. Nem é mister
lembrar o cânon fundamental da metodologia científica: sem contato
imediato com as fontes primárias na sua expressão original não há
trabalho científico verdadeiramente digno deste nome. Conclusão.
Quem aspira a uma cultura realmente superior não pode ignorar as
línguas que abrem a porta aos imensos repertórios de documentos
de toda a nossa história.
Conserva, pois, o latim um valor de utilidade inquestionável.
Mas não é este caráter pragmático que lhe assegurava um lugar
dominante nos programas. No estudo das línguas clássicas os
educadores do século XVI viam uma cultura. O conhecimento
profundo dos gênios antigos oferecia-lhes a oportunidade de formar
o homem, de transmitir um ideal de humanismo. “Quam non sit
homo qui literarum expers est!” exclamava Erasmo. Um dos
primeiros educadores jesuítas, e que mais contribuíram para a
elaboração do Ratio, saudava no conhecimento das boas letras “o
esplendor, o orçamento e a perfeição da natureza racional”. Outro
contemporâneo de Ledesma, o grande humanista Perpigniani via na
razão e na palavra, intérprete da razão, as notas distintivas do
homem: “Haec duo sunt quae nos homines reddunt?”. No próprio
vocábulo, humanitas, humanidades, com que se denominava o
curso secundário, buscava-se uma confirmação etimológica da
convicção comum. O nome de humanidades, dizia Pontanus, foi
dado a estes estudos porque transformam os que a eles se dedicam
em “homens educados, afáveis, lhanos, acessíveis e tratáveis”.
“Chamam-se humanidades esses estudos”, escrevia por seu turno
Possevino; “que nos tornem, pois, mais homens”.
Tornar mais homem: eis o alvo a que mirava todo o trabalho
educativo. A utilidade instrumental do latim era um subproduto do
currículo; a formação do homem pelo desenvolvimento harmonioso
de suas faculdades, o seu objetivo primordial. Para atingi-lo, a
linguagem constitui o instrumento mais adequado e eficiente. Só
pela palavra pode o educador atingir o espírito do aluno; só pela
palavra pode o aluno manifestar o próprio espírito. Uma faculdade
revela-se na ação, que lhe é própria e que, por isso, se pode
chamar a sua expressão. A linguagem é a expressão do espírito, e,
portanto, com a prova de sua existência, a medida do seu
desenvolvimento. Mais. Quem se expressa, exercita a sua atividade
mental, imagina, pensa, julga, raciocina, concatena idéias. Através
da expressão pode, portanto, o professor excitar a atividade interior
do estudante e medir-lhe e orientar-lhe o progresso. A linguagem é,
pois, o instrumento natural da formação humana.
E a linguagem, não técnica ou científica, linguagem seca e fria,
mas a linguagem literária. A literatura é uma escola de idealismo e
de espiritualidade; não só deste ou daquele ideal, mas de todos os
ideais. Porque a literatura se ocupa com toda a vida, com o passado
e o presente, com a natureza e o homem, enriquece-nos com seus
tesouros de valores ideais em todos os campos do conhecimento. E
utilidade específica destes ideais é de participar dos atributos da
beleza. Expressos em forma concreta, plástica, sensível, falam aos
olhos, revelam a vida emotiva do artista e falam aos sentimentos do
jovem… A obra literária — seja ela um princípio de moral, uma
verdade científica ou uma tese filosófica, porque revestida de
beleza, empolga o homem todo, sentidos e imaginação, sentimentos
e inteligência, e sobretudo cativa-lhe o amor.112
Ora, os grandes clássicos de Roma e Grécia, são, por unânime
consenso, os maiores artistas da palavra. Pôr jovens em contato
com as suas obras-primas, proporciona-lhes, além de inúmeras
outras vantagens, a influência educativa dos mestres mais
autorizados.
Esta influência é altamente humanizadora. O trabalho do
professor não se reduz a uma simples tradução ou leitura, é uma
preleção que visa diretamente o estudo, a análise viva do modelo:
as suas idéias, os seus sentimentos, os seus processos de
expressão. Segue-se o trabalho do aluno: a composição ou
imitação. Depois de haver contemplado e admirado o modelo, o
aluno esforça-se por assimilá-lo e reproduzi-lo. No silêncio do seu
estudo repetirá depois os processos vitais percorridos pelo autor e
analisados na preleção. Focaliza e ordena idéias, escolhe palavras,
articula frases, balanceia períodos, dispõe os argumentos, num
esforço altamente ativo e fecundo de rivalizar com o modelo
entrevisto. Imitação um tanto servil nos primeiros tempos, a
composição ganhará em originalidade e cunho pessoal na medida
que o aluno for enriquecendo o seu patrimônio de idéias e os seus
recursos de expressão.
Aí temos como se vai acordando e formando o homem todo
com muito mais eficiência do que empregando o melhor de seu
tempo em decorar dados positivos, de geografia, de botânica ou de
química.
Não basta ensinar os clássicos para dar uma formação
humanista. Não é a presença do latim, quinhoado num currículo
com maior ou menor número de aulas, que lhe dá jus a essa
denominação. Há modo e modo de ensinar uma língua clássica.
Poderíamos discriminá-los chamando-os de modo científico e de
modo artístico.
O primeiro predomina no ensino universitário, o segundo deve
caracterizar o curso humanista de formação secundária. A ciência é
analítica; examina um texto, disseca-lhe as palavras, investiga-lhes
a etimologia. A arte é sintética, orgânica e vital; na presença de uma
obra-prima de expressão não começa por estendê-la numa mesa
anatômica para esquadrinhar-lhe as entranhas, cadaverizando-a;
mas extasia-se na sua presença, admira-a e, contemplando-a como
um todo, recebe, intacta e formativa, toda a irradiação da sua
harmonia.
A ciência é impessoal; interessam-lhe as coisas e os fatos na
abstração fria e geral de sua objetividade. Ante uma página célebre
da Antigüidade, o cientista põe-se a colecionar formas gramaticais
raras e interessantes, a esmerilhar informações históricas e
geográficas, mitológicas e heráldicas, e organiza a sua colheita de
verbetes, leva-os, satisfeito, como outros tantos fósseis, para o seu
museu de antigüidades. A arte é pessoal; através da obra o artista
põe-se em contato com o seu autor, com o ideal que lhe fulgiu no
espírito criador de beleza. A Ilíada e a Eneida, aos seus olhos, não
são apenas, nem principalmente, um pretexto para escavações
arqueológicas ou excursões de filologia comparada; são, antes de
tudo, a expressão de uma alma humana, a realização de uma
inspiração genial, a projeção movimentada através dum espírito
privilegiado, de uma humanidade com todas as suas idéias e
paixões, as suas grandezas e misérias. O homem de ciência estuda
os autores para melhor conhecer a Antigüidade; o homem de arte
estuda a Antigüidade para melhor interpretar e compreender os
autores.
A ciência é, por natureza, teórica; a arte, essencialmente
prática. Uma, visa conhecer; arquivar fatos, inferir leis. Outra aspira
a realizar, produzir, criar beleza. O ensino de finalidade científica, na
sua fase inicial de transmissão, apela muito para a memória; na sua
fase superior de investigação e pesquisa aguça as faculdades de
análise e raciocínio. O ensino com o objetivo artístico interessa o
homem todo e mobiliza-lhe todas as virtualidades criadoras.
Na verdadeira pedagogia, o curso secundário deve ser
essencialmente humanista, pendente mais para a arte do que para a
ciência. Sua finalidade não é transformar os adolescentes em
pequeninas enciclopédias que depois de alguns anos já precisam
ser reeditadas. Todo o esforço do educador deve concentrar-se,
nesta fase da vida, em desenvolver as capacidades naturais do
jovem, em ensinar-lhe a servir-se da imaginação, da inteligência e
da razão para todos os misteres da vida. Os conhecimentos
positivos de geografia ou de física poderão estar antiquados ao
cabo de poucos lustros; o raciocínio seguro, o critério na apreciação
dos homens, a capacidade de expressão exata, bela e enérgica de
uma alma harmoniosamente desenvolvida representam aquisições
humanas de valor perene.
Para a realização deste ideal de humanismo, as humanidades
clássicas têm sido até hoje o instrumento de eficiência mais
comprovada, e que ainda não foi substituído, porque não se pode
apagar a história.

107 Oferecemos aos leitores de Verbum esta página do R. Pe. Leonel Franca,
S.J. Representa sua contribuição para a “Semana de humanismo” realizada em
1947 na Universidade Católica. Nem omitamos a anotação que o autor
acrescentou ao original: “As páginas que se seguem representam apenas as
primeiras notas de um estudo que não pôde receber a última elaboração. Assim
são apresentadas e assim deverão ser lidas. Era idéia inicial tratar em duas
contribuições distintas o problema do Humanismo e Idade Moderna e Letras
clássicas na formação humanística. Não sendo possível multiplicar
demasiadamente os assuntos, na segunda parte deste trabalho se resumirão
apenas alguns princípios gerais que poderão contribuir para o estudo da
momentosa questão pedagógica. Com esta condensação de dois temas num só
estudo, se nenhum foi esquecido, ambos foram um tanto sacrificados”. Verbum,
dezembro de 1948 (tomo V, fasc. 4). Comparar com O Ratio (parte está nesse
livro).
108 Gerbel, V Hum. der Lex. der Paedg.
109 Castiello, A Humane Psychology of Education. Nova York, Sheed and Ward,
1936, p. 166.
110 Castiello, p. 143.
111 Charmot, L’Humanisme et l’humain. Paris, Spes, 1934, p. 28.
112 Castiello, p. 143, ad sensum.
Política educacional

O ENSINO RELIGIOSO NA CONSTITUIÇÃO — ASPECTO PEDAGÓGICO

D OS DOIS aspectos — jurídico e pedagógico — sob os quais nos


propusemos estudar o ensino religioso, o primeiro examinamo-
lo resumidamente em artigo anterior.113 Resta-nos salientar a
importância fundamental e imprescindível da educação religiosa na
formação integral do homem. É este um dos resultados adquiridos
da pedagogia mais nova e uma das verdades que os estudos
modernos de psicologia e sociologia vão, de dia para dia,
envolvendo na claridade intensa de uma evidência irrecusável.
Um dos erros mais funestos da pedagogia do século XIX,
dominada em parte pelas influências laicistas, foi a concepção
fragmentária, inorgânica e desarticulada da obra educadora. O que
era simples abstração de idéias julgou-se poder realizar como
separação das coisas. A escola atribuiu-se a tarefa de instruir; a
missão de educar reservou-se à família e à sociedade. Nos bancos
das aulas desenvolvia-se os intelectos; no convívio do lar
temperava-se o caráter, enobrecia-se o coração, formava-se o
homem. Compartimentos estanques isolavam assim a ação das
grandes forças educativas: nos professores laicizados vedava-se o
entrar no domínio das consciências; às influências extra-escolares
da casa ou da igreja reservava-se a formação espiritual das almas.
Subjacente a esta concepção pedagógica encontra-se, como se vê,
uma psicologia fácil e inconsistente que esquecera a evidência
fundamental da unidade orgânica de todo ser vivo, da solidariedade
indissolúvel do seu dinamismo funcional. O homem é um todo e
como um todo deverá ser formado. Educa-se a criança na escola e
no lar, na rua e na igreja, no jogo e no estudo. Educa-se explicando
um capítulo de história ou comentando um trecho de antologia;
educa-se escolhendo os dados de um problema matemático ou
distribuindo as tarefas na organização de uma festa escolar. Nem a
unidade palpitante da alma infantil, nem a integridade de caráter
coerente e leal do professor, nem a interdependência indestrutível
das coisas, permitem separações artificiais ou unilateralismos
desorganizadores. À escola, portanto, como ao lar, incumbe a
missão de instruir não só, mas também e acima de tudo, de educar.
Questão pacífica.
Mas que é educar, no sentido mais profundo do termo?
Encaminhar o homem à realização plena de sua perfeição
específica. E esta perfeição própria de sua natureza, em que se
resume e como alcançá-la? O homem é uma unidade viva que se
integra, como elemento, na grande totalidade das coisas. Sua
unidade individual não é a de um ser simples, realiza-se numa
ordem entre diferentes partes, numa hierarquia entre funções
múltiplas; sua integração no consenso universal resulta da
obediência consciente às relações essenciais que o ligam aos
demais seres. Realizar no homem esta dupla harmonia, interior e
exterior, esta unidade d’alma e esta adaptação ao meio: eis a
missão mais sublime e a aspiração mais profunda do educador.
A unidade interna, dizíamos há pouco, é uma unidade de
hierarquia: entre os instintos e a razão, entre as paixões e a
vontade, entre a inteligência e a ação, há relações essenciais que
importa respeitar. Da subordinação hierárquica das múltiplas
virtualidades nascem a paz interior e a expansão harmoniosa de
todos os valores humanos. Onde não se chega a realizar esta
unidade de ordem, cedo ou tarde estalam as rupturas profundas, as
dilacerações angustiosas e os dualismos funestos. O homem
dividido e dissipado decai da grandeza de sua perfeição específica.
Na sua adaptação ao ambiente é ainda do conhecimento das
relações essenciais que o ligam aos outros seres e de uma vontade
generosa de as observar que depende o valor do homem como ser
social. Conquista da liberdade interior, dedicação a todos os
interesses do convívio humano, cifram assim os fins imediatos da
tarefa educadora. Mais sinteticamente ainda poderiam elas
condensar-se na preparação do homem para submeter-se
moralmente a todas as exigências da ordem universal.
Estas primeiras conclusões já situam em seu lugar primordial a
importância da formação religiosa. A hierarquia dos deveres não se
pode organizar senão em função dos destinos do homem. É a sua
finalidade última que constitui o princípio unificador e dominante de
toda a sua vida, como o termo de uma viagem é a luz que orienta os
passos do peregrino. Só a grandeza dos nossos destinos constitui a
craveira insubstituível por onde se hão de aferir todos os valores
humanos. E o conhecimento dos nossos destinos é uma questão
essencialmente religiosa.
As nossas relações externas prendem-se necessariamente a
uma concepção do homem e do universo, das suas origens e das
suas finalidades. A natureza, física ou social, não se nos apresenta
como uma ordem, uma harmonia, um complexo de exigências que
impõe deveres, se não a considerarmos como expressão de uma
Inteligência criadora e de uma Vontade suprema que realiza os seus
planos através das leis naturais e sociais. Uma concepção integral
do universo prende-se assim inevitavelmente a uma concepção
religiosa.
E aí está a surgir das próprias exigências psicológicas mais
profundas a necessidade insubstituível da formação religiosa. Só ela
fala ao homem todo, à inteligência, à vontade e aos sentimentos, só
ela dá-nos, na plenitude do termo, um ideal à vida, ideal que seja luz
para o espírito e estímulo para a ação. A ciência positiva, enquanto
se mantém fiel à natureza de seu objeto e aos limites dos seus
métodos, não vai além dos conhecimentos dos fenômenos e das
relações constantes de solidariedade que os ligam no espaço e no
tempo. A ciência técnica não passa de um instrumento nas mãos do
homem. É a religião que lhe dita os fins e se integra assim no mais
profundo da personalidade, como vida, como fonte de progresso
moral, como estímulo de purificação, de generosidade, de sacrifício.
Por isso dizemos de um homem que se serve da mecânica ou da
química, mas que é religioso. Procurando caracterizar a essência
dos fenômenos religiosos no ponto de vista psicológico, um dos
grandes mestres da pedagogia alemã contemporânea, Spranger,
frisa como condição única que os caracteriza, que iluminem não só
este ou aquele aspecto da vida, mas recaiam sobre toda a vida
subjetiva e toda a ordem cósmica correspondente e que apresentem
este todo à luz do mais alto valor acessível. Este laço vital peculiar e
— como dissemos — definitivo que une o sujeito ao conjunto do
mundo objetivo contém dois aspectos: nele revela-se o último valor
do mundo para mim e meu último valor para o mundo!114
A religião, portanto, é para o homem uma necessidade vital; o
sentimento religioso nele desperta com o primeiro acordar do seu
psiquismo superior. É uma tendência espontânea e primitiva como
todas as que se prendem ao que há de mais profundo na natureza.
As investigações da psicologia moderna puseram esta verdade
numa luz mais viva. Ballard, surdo-mudo, aos nove anos já se
preocupava com o problema da Causa Primeira, e quando se lhe
falou de Deus, mostrou-se profundamente compenetrado:
Ao ver que se dissipavam as trevas da origem do universo, senti-me como
transportado num mundo de luz, senti que me transformava num ser novo. A
esta revelação tudo me pareceu mais grandioso e o mundo revestiu-se de
uma nova dignidade.

Just resume as suas observações nestes termos: “Enquanto o


sentimento estético se manifesta muito tarde, o sentimento religioso
aparece muito cedo na criança”. Miss Shinn: “Com os seus porquês
a criança nos faz seguir a cadeia das causas até que cheguem à
primeira, e isto desde a idade dos quatro aos cinco anos”.115
Toda a formação que descura o elemento religioso é, portanto,
essencialmente antipedagógica, mutila a integridade do psiquismo
humano, atrofia-lhe o desenvolvimento espontâneo, abre a porta a
degenerescências perigosas,116 e não prepara o homem para as
exigências superiores da vida.117
É o que de dia para dia vão reconhecendo os pedagogos que à
luz da experiência descem ao fundo do nosso dinamismo humano.
“A atitude negativa, do movimento ético”, escreve Stanley Hall,
em relação às forças religiosas na formação do caráter é, em parte, causa,
em parte, efeito da falta de interesse a respeito da evolução moderna da
psicologia religiosa. O grande erro dos moralistas (partidários da moral leiga)
consiste em não querer reconhecer que a religião é um auxiliar
extraordinariamente poderoso na formação moral. São retardatários em
relação às recentes investigações sobre a idade infantil e a puberdade.
Mostram estes estudos que a alma dos jovens é organizada sobre a religião
de um modo muito mais profundo do que até aqui se acreditara. A “cultura
ética”, como se pratica nas associações designadas com este nome, deve ser
altamente recomendada nos seus esforços positivos, mas quanto ao seu
elemento negativo, está antiquada e é unilateral, porque, em contradição com
o que de melhor podemos saber atualmente, tenta separar a fé religiosa e a
atividade moral que Deus e a natureza inseparável uniram.118

Förster, um dos mestres mais experimentados e profundos da


pedagogia contemporânea, consagrou uma das suas últimas obras
ao estudo precioso desta questão. Na maior parte dos porta-vozes
atuais de uma moral leiga ele vê “escritores estranhos à vida, cuja
consciência ainda é alimentada pelas antigas tradições e que, nem
em si nem nos outros, tiveram a oportunidade de observar
profundamente e provar a capacidade vital das suas pretensões”.119
Quanto mais, em nós e nos outros, descemos das abstrações para a
natureza humana concreta, quanto mais nos aprofundamos nos mistérios do
egoísmo, na dilaceração da vontade, no dinamismo da paixão, na psicologia
da tentação, tanto mais claramente reconhecemos quão pouco os modernos
sucedâneos (da religião) se adaptam aos fatos e às exigências da natureza
humana.120

Numa circular dirigida aos diretores e inspetores escolares da


Itália, a 5 de janeiro de 1924, Gentile, ministro da instrução pública,
assim se exprimia:
O ensino da religião à infância é uma garantia de formação séria na geração
vindoura. Só aquele que tem o conhecimento do absoluto pode dar
expressão à própria vida e respeitar em si e nos outros o mesmo ideal pelo
qual aspira a sua alma […]. Civilização é sinônimo de cristianismo.121

Citamos apenas autores acatólicos, onde nem sequer


suspeição de parcialidade fosse possível. O seu número
poderíamos aumentá-lo de muito se para numerosas referências
dispuséssemos de espaço. O que aí fica, porém, cremos suficiente
para evidenciar como, à medida que se aprofundam os nossos
estudos psicológicos e sociais, mais vivamente ressalta a
importância pedagógica fundamental da formação religiosa. Não é
em nome da pedagogia nem da sociologia que se pode combater a
introdução do ensino religioso nas escolas: motivos extracientíficos
inspiram inconfessadamente as oposições que tentam enfeudar a
organização escolar de um povo à propaganda de ideologias
secretamente preferidas. O respeito às exigências integrais do
dinamismo psicológico da criança, a indispensável harmonia e
colaboração educativa entre a atmosfera do lar e a da escola, os
vínculos essenciais de solidariedade que ligam a atividade moral à
concepção religiosa do homem, a necessidade de prender a
orientação das múltiplas ações da vida à raiz sólida e estável das
grandes convicções: são verdades que ensina a experiência dos
séculos e que a pedagogia moderna sublinha com insistência. São
também verdades que mostram na religião “a força pedagógica mais
insubstituível de todos os tempos”.

113 V. Revista brasileira de pedagogia, 1934, n. 7, pp. 81–89.


114 Eduard Spranger, Psychologie des Jugendalters, Leipzig, 1927, 8ª ed., pp.
284–285. E pouco mais adiante: “Nada há que seja por completo indiferente à
religião, nem o espetáculo da natureza inanimada, nem o mais leve e efêmero
sentimento. Psicologicamente é de importância decisiva o fato de que todo o
grupo fundamental de valores, através de uma atividade correspondente da
estrutura subjetiva, pode conduzir ao centro mesmo da interpretação religiosa” (p.
286).
115 Ver outras citações e observações em De la Vaissière, Psychologie
pédagogique, Paris, 1916, pp. 194–209. O autor conclui: “Il est de toute évidence
que l’enfant de très bonne heure est très apte à recevoir un enseignement
religieux exact et précis” (p. 205).
116 “Destruir bruscamente as crenças religiosas de um adolescente é arriscar-se
a abrir um vazio no seu sistema mental. Na instabilidade que caracteriza este
período poderá seguir-se uma desorganização completa… uma catástrofe: crise
de melancolia, pessimismo ou suicídio”. (Claparède, Psychologie de l’enfant, 4ª
ed., p. 279). E na página anterior: “A supressão brutal das tendências religiosas,
em nome de qualquer dogma ‘positivista’ pode originar no jovem e sobretudo na
jovem, perturbações graves, principalmente nos indivíduos de temperamento
nervoso ou predispostos à histeria”.
117 Esta afirmação poderá ser provada em qualquer terreno em que se queira
colocar o leitor. Filosoficamente, demonstrada a existência de Deus, os deveres
religiosos aparecem como a função primordial do homem, condição de sua paz e
felicidade. A psicologia experimental salienta os efeitos benfajezos em todas as
manifestações da vida, de uma alma equilibradamente religiosa. William James,
pragmatista, consagra uma boa parte da sua Varieties of religious experience a
desenvolver o que ele chama efeitos biológicos do sentimento religioso:
iluminação interior, satisfação lógica, fecundidade prática. No domínio da
sociologia, a religião aparece cada vez mais como a aliada natural e insubstituível
da vida social. A irreligião e a imoralidade preparam irremediavelmente a
decadência dos povos.
118 Stanley Hall, Educational problems, t. I, p. 142.
119 F. W. Förster, Religion und Charakterbildung. Zurique, Leipzig, 1925, p. 10.
Em outra obra, tratando da educação sexual, escreve estas palavras tão
palpitantes de experiência humana e de vida profunda: “No ponto de vista
pedagógico o cristianismo é de um poder incomparável e inegável… Em verdade,
não se pode vencer a vida toda de baixo, senão pela vida total do alto. É neste
sentido que a religião é a força pedagógica mais insubstituível de todos os
tempos. A cultura mental mais elevada que se possa imaginar não é capaz, por si,
de impedir o triunfo da matéria, se a verdade do alto não quebra os ferros da
escravidão humana”. Sexualethik und Sexualpaedagogik, trad. franc. Paris, 1930,
p. 254.
120 Id. op. cit., p. 20.
121 Não temos diante dos olhos o original italiano. Citamos traduzindo imediata-
mente do inglês. Educational Yearbook of the International Institute of Teachers
College, Columbia University, 1932; Nova York, 1933, p. 307.
Discurso na inauguração
de uma sede de escotismo

T ODA inauguração é uma festa que comemora um triunfo sobre o


passado e anuncia esperanças para o futuro. Raras vezes,
porém, como na inauguração de uma sede destinada à educação da
juventude, são estas alegrias vitoriosas de ontem, mais justas e
mais ricas de promessas, as esperanças de amanhã. Educar para o
bem e para a virtude as gerações que surgem é exercer a mais
profunda, a mais eficaz, a mais duradoura das influências sociais.
Exulta pois, com todos os corações aqui presentes, exulta
sinceramente o coração do sacerdote, ele que pelo mais grato dos
deveres do seu ministério não tem outra aspiração senão educar, no
sentido mais amplo da palavra, isto é, elevar as consciências, ajudar
as almas a subirem, a vingarem as eminências destas alturas em
que o homem é mais homem porque se acha mais perto de Deus.
Sinto-me bem, portanto, assistindo à inauguração desta sede de
uma instituição altamente educativa.
Altamente educativa, chamei-a, e tal é não só na intenção do
seu fundador mas ainda na escolha dos meios que pôs em ação.
Pela rapidez de sua difusão, pela combinação de seus
processos educativos, pela eficiência dos resultados já obtidos a
instituição das bandeirantes ocupa um lugar de relevo entre as
instituições pedagógicas dos tempos modernos.
Nascida em outros arraiais que não os nossos a idéia escoteira
nos seus dois ramos não encontrou logo a princípio, entre católicos,
a unanimidade de um acolhimento simpático. Alguns, num gesto
severo de ortodoxia suspicaz, franziram a sobrancelha, ante o
perigo de uma infiltração contaminadora.
Não me sobressaltam estes temores.
Há em Roma uma igreja magnífica, e até há poucos anos a
única em estilo gótico na Cidade Eterna. As suas colunas múltiplas
enfeixadas elevam-se na rapidez ininterrupta das linhas verticais
céleres, como uma ascensão da alma a Deus, e lá no alto,
continuam nas ogivas que se vão unir como as mãos em atitude de
prece, enquanto no silêncio das naves austeras desce a meia luz
joeirada pelos vidramentos coloridos com cenas do Evangelho.
Nunca como no estilo gótico a arquitetura logrou interpretar tão
expressivamente o pensamento cristão. Ora, este magnífico
santuário, consagrado à Virgem, tão imponente pela grandeza das
proporções quão leve e gracioso pela esbelteza elegante das linhas,
eleva-se sobre as ruínas de um templo pagão consagrado à deusa
da inteligência e da sabedoria. Os romanos chamam-no
vulgarmente “Maria sopra Minerva”.
Admirável simbolismo nesta expressão! O cristianismo nada
destrói do que é belo, nobre, elevado na nossa natureza. Na
sabedoria pagã havia lampejos de verdade, havia visão parcial de
idéias alevantadas, havia surtos nobres de entusiasmo — restos,
ruínas gloriosas a atestarem a grandeza primitiva de que havíamos
decaído. A Igreja recolheu solícita e carinhosa estas nobres
relíquias, e sobre estes fundamentos naturais elevou a grandeza
dos seus edifícios espirituais. A graça celebrizou, elevou, divinizou a
natureza. Santa Maria sopra Minerva.
Algo, não direi idêntico, mas de semelhante se passou com o
escoteirismo. O brilhante oficial inglês que o ideou e realizou deu
admiráveis provas de sagacidade psicológica. Profundamente
impressionado pela “deterioração da raça” quis formar uma geração
de fortes, fortes na robustez do organismo físico, fortes na têmpera
moral do caráter. Dos nobres estímulos da honra, da inclinação
instintiva à dedicação na solidariedade, da beleza moral da
lealdade, de tudo enfim que naturalmente possui um valor e uma
eficácia pedagógica lançou ele mão para a realização do seu ideal
de formar homens.
E tudo isto é justo, tudo isto é nobre, tudo isto é humano. É
completo como sistema educativo? Não ousaria afirmá-lo. Há aí
fórmulas algo vagas que importaria precisar, há lacunas que
importaria preencher; o catolicismo trará esta última demão
indispensável. Neste organismo ele insuflará o sopro fecundo de
sua vida divina; às suas expressões ele dará a plenitude de sua
significação suscitadora de entusiasmos sólidos e duradouros; numa
palavra, só no catolicismo o novo sistema educativo dará o máximo
do seu rendimento pedagógico. O escoteirismo é uma flor que para
atingir o esplendor de sua beleza deverá ser cultivada nos jardins da
Igreja. Senão vede.
A honra é ao lado da lealdade a primeira das grandes molas do
sistema. Honra! Gosto de ouvir este nome em lábios cristãos. Em
outros é sempre retumbante mas nem sempre preciso. Melindres de
vaidade, suscetibilidades de amor-próprio, excrescências do orgulho
podem por vezes ocultar-se sob esta sonoridade vibrante. Para nós
a honra é algo de definido: é o sentimento da nossa dignidade, do
nosso valor pessoal, do que ele exige, do que impõe. E o nosso
valor pessoal, e a nossa dignidade mede-se pela sublimidade dos
nossos destinos: somos talhados para grandezas eternas. E tendes
logo aí uma craveira para avaliar os nossos atos, uma tabela de
valores humanos. A norma cristã consiste em subordinar o que é
efêmero ao que não passa, o sensível ao espiritual, o corpo à alma.
Ela é a expressão mais bela do caráter: convicção profunda de
princípios a iluminarem a inteligência, constância da vontade a
orientar a contingência dos atos cotidianos pelos ditames eternos da
consciência.
Depois da honra a bandeirante católica cultiva a solidariedade.
Quem diz solidariedade diz fraternidade humana, diz dependência
recíproca, diz deveres mútuos de nos entreauxiliarmos nas
contingências da vida. Feitos para a vida social nós não atingimos a
nossa perfeição física, moral e intelectual sem o concurso dos
nossos semelhantes. Daí este grande dever humano da
solidariedade. Nada mais evidente em teoria, nada mais fácil em
surtos de oratória que exaltar a importância, a majestade, a beleza
destes vínculos nobilíssimos que uns aos outros prendem os
membros da imensa família humana. Descei, porém, da região
abstrata das idéias ao domínio concreto da prática. As dificuldades
pululam então numerosas, profundas, eternamente renascentes
como o nosso egoísmo. Fazer bem aos outros em concreto traduz-
se então quase sempre por sacrificar-nos a nós, sacrificar os nossos
interesses, as nossas paixões, os nossos apegos, a nossa vida pelo
bem dos nossos irmãos. Pequeninas bandeirantes, florinhas que
apenas desabrochais para a existência, crede o que ainda não
podeis compreender. Mais tarde, quando conhecerdes por
experiência os homens e as coisas, vereis que as coisas não são
tão dóceis aos nossos desejos, que os homens não são tão bons
como julgávamos.
Quando tiverdes este conhecimento experimental da realidade
da vida vereis outrossim quanta generosidade de sacrifício requer o
cumprimento do grande dever de amarmos os nossos irmãos. E
onde haurimos a força que alimenta esta dedicação e este espírito
de sacrifício? Num grande amor. Imprimi nas vossas memórias o
que eu vos vou dizer para o lembrardes mais tarde. É mister que lá
nas profundezas d’alma, onde não atinge nenhuma afeição humana
sem destruir nenhum dos amores legítimos, mas harmonizando-os
todos em justa hierarquia, domine, sofra, console, espere, irradie um
amor melhor. Só este amor de Deus pode ser a garantia eficaz de
amor de nossos irmãos. Fora daí o homem não faz bem a outro
homem senão quando o bem-fazer a outrem coincide com a
satisfação pessoal do seu egoísmo. Não há verdadeira fraternidade
humana onde não há sentimento vivo da comum paternidade divina.
E aí tendes como ao organismo pedagógico do escoteirismo a
Igreja infunde um sopro fecundo de vida nova. Era um edifício bem
construído com os princípios da psicologia humana, bem fundada
nas teses de um espiritualismo teísta, a Igreja impõe-lhe a cúpula
sobrenatural que lhe faltava. E assim vos achais na feliz
necessidade de não poderdes atuar o vosso programa em toda a
sua plenitude sem ao mesmo tempo viverdes em toda a sua
intensidade o vosso cristianismo.
Estai, pois, de parabéns, pequeninas bandeirantes, por
haverdes encontrado na vossa associação uma escola de formação
completa do caráter cristão.
Estai de parabéns de modo particular no dia de hoje em que
inaugurais e tomais posse da vossa nova sede. Na comodidade de
suas instalações, no alegorismo expressivo de sua decoração ela
não só vos oferecerá oportunidade de novos desenvolvimentos mas
repetirá sempre aos vossos olhos uma elevada lição moral. Ela vos
falará do espírito de iniciativa, da dedicação e do amor ao sacrifício
destas almas nobremente cristãs que consagram o melhor de suas
energias à formação dos vossos corações. A sua generosidade
desinteressada edificou-vos a sede material, à vossa generosidade
cabe corresponder aos seus desvelos para elevar o edifício das
vossas almas. Elevá-lo-eis certamente se fordes fiéis na atuação de
vosso programa que eu agora resumo nos dois pontos acima:
cultivai o sentimento da honra e fazei o bem.
Cultivai a honra. Exortação altamente cristã que eu fui colher
nos lábios de um grande Papa: “Agnosce, christiane, dignitatem
tuam”; lembra-te, cristão, da tua dignidade.122 Acima de tudo,
pequeninas bandeirantes, prezai a vossa dignidade de cristãs. Esta
nobreza do coração é infinitamente mais preciosa que a aristocracia
dos pergaminhos. Ela vos há de inspirar sempre a delicadeza de
sentimentos.
Delicadeza de sentimentos é aversão instintiva a tudo o que é
vil e ignóbil, a tudo o que degrada, a tudo o que pode empanar a
pureza das inteligências e corações, da imaginação e dos sentidos.
Delicadeza de sentimentos é ainda horror a tudo o que é trivial
e comum, nos gestos, nas palavras, nas ações, nas atitudes.
Delicadeza de sentimentos é mais, é sensibilidade viva a tudo o
que é belo, a tudo o que é grande, a tudo o que é nobre; é o desejo
de dedicação e de sacrifício, o entusiasmo pelas grandes coisas, a
generosidade em imolar-se pela felicidade dos nossos irmãos.
Cultivai assim a honra e a delicadeza dos sentimentos cristãos
e tereis acendido a chama interior que alimentará a vossa caridade
ativa que resume o vosso decálogo — o fazer bem. A bondade é de
sua natureza expansiva. As almas boas irradiam o bem,
naturalmente, como as flores exalam o seu perfume.
Irradiai o bem, em torno de vós, ativamente, continuamente,
generosamente. Cada ação boa que fizerdes é mais uma alegria
que sorri na Terra, é menos uma dor que chora. Do pecado, cedo ou
tarde nascem lágrimas; só a virtude é mãe de felicidade verdadeira.
Felicidade no curso desta vida, envolvendo a consciência
contra as vicissitudes dos acontecimentos, numa atmosfera interior
de paz imperturbável. Felicidade na preparação ativa e eficaz de um
futuro melhor.
Sai o semeador, pelos fins do outono e confia a sua pequenina
semente à terra humilde e obscura. Sobrevém o inverno. Aqui, nas
nossas regiões montanhosas, a gaza de uma bruma espessa, além,
em outras zonas, lençóis de neve parecem amortalhar tudo em
fúnebre sudário. Mas o germe de vida não perece. Deixai que a
natureza desperte aos primeiros sóis de primavera e vereis, como
por encanto, os prados esmaltarem-se de flores, os pomares
opulentarem-se de frutos, as searas acariciadas pela brisa
ondearem louras para a messe. E o lavrador, num olhar de
complacência, contempla o fruto dos seus trabalhos e abençoa as
fadigas que, num momento, lhe pareciam estéreis.
A quadra da semeadura é a vida presente. Com gesto
esplêndido e liberal esparzi, ainda entre as lágrimas do sacrifício, as
sementes das boas ações. Um dia, estai certas, estas lágrimas
cristalizarão em brilhantes de fulgor inextinguível, estas sementes
germinarão nos encantos de primavera eterna, nas opulências de
um outono sem termo.
E neste dia que não conhecerá ocaso, entre os esplendores de
uma vida melhor, abençoareis em hinos de reconhecimento e de
amor a hora bendita que vos filiastes entre as bandeirantes do
Sagrado Coração de Jesus onde aprendestes a praticar a virtude
com fidelidade desinteressada, com entusiasmo sem intermitências,
com a nobre generosidade das almas profunda e sinceramente
cristãs.

Rio, 05 de setembro de 1927.


122 São Leão Magno, Homilia in Nativitate Domini, 21, 3 — NE.
Importância da meditação.

Meditação e devaneio.

A meditação organiza o nosso mundo interior:

a) combatendo a dispersão,
b) eliminando os imprevistos.

No Instituto de Formação Social, 18/05/1938.


Meditação

N A ORGANIZAÇÃO interior da nossa personalidade o ideal


desempenha uma função insubstituível; só ele concentra, numa
síntese poderosa, os nossos pensamentos e as nossas tendências;
só ele assegura a toda a nossa vida, com a sua unidade, o
rendimento máximo de todas as suas energias.
Não terá, porém, esta eficiência psicológica se não for
escolhido com acerto; se não for bastante amplo para dominar a
nossa existência em toda a variedade de suas circunstâncias e
vicissitudes; se não for bastante prático e concreto para responder
às exigências reais de nossas aptidões no desenvolvimento da linha
que constitui, na multiplicidade das almas e da missão particular de
cada uma delas, a nossa vocação pessoal.
Com isto, não está feito tudo, nem mesmo o mais difícil. Quem
não escolheu um ideal na vida? Quantos mesmo o escolheram com
critério e prudência? Mas quantos o realizaram? Quantos o
transformaram em realidade? Já foi dito por um grande poeta — não
raro os poetas têm a intuição de grandes verdades — “uma grande
existência é um grande ideal concebido na juventude e realizado na
idade madura”.123 O difícil não está em formular o ideal no
entusiasmo dos primeiros anos, o difícil está em realizá-lo mais
tarde. A flor é bela e desabrocha rapidamente aos primeiros sóis da
primavera; mas são poucas as que chegam a fruto e o maturar dos
frutos pede tempo e paciência.
Ao vapor perdido na imensidade dos mares não basta a
bússola que lhe indique o norte ou o leme que lhe trace a rota; é
mister ainda nas hélices a força propulsora que devora as
distâncias. Para progredirmos havemos mister de luz e de força; ao
ideal importa assegurar a sua motricidade realizadora.
Na evolução das relações entre a idéia e a ação
correspondente cumpre distinguir dois momentos: o primeiro é de
preparação: a idéia do bem a fazer aparece no campo da
consciência somente como o seu aspecto inteligível, com um valor
indicativo geral: não é honesto mentir; é bom aproveitar o tempo; é
belo dominar-se a si mesmo em tudo. Na segunda fase — a de
orientação, a idéia abstrata desce às condições concretas da vida,
relaciona-se com o nosso comportamento, torna-a imperativa e
eficaz: não hei de dizer nunca uma mentira; não perderei em
frivolidades a mínima parcela de minha existência; não me deixarei
nunca empolgar e arrastar por uma paixão que me tira das mãos o
governo dos meus atos. No primeiro instante a idéia era luz, agora é
força; antes indicava, agora impulsiona. A primeira fase é tarefa
relativa; instrução — ensino puro e simples dos manuais de ética; a
segunda já depende da educação, que é impulso eficaz para o bem,
ascese de uma vida que se organiza e disciplina.
Qual é o fator que se acrescenta assim à idéia-luz para
transformá-la em idéia-força, e ao seu valor teórico da verdade
ajunta-lhe a eficiência prática da ação?
De um modo geral podemos dizer que a idéia ganha tanto mais
em eficácia motriz quanto mais profundamente se integra na
totalidade das nossas tendências psíquicas das quais depende
imediatamente o nosso proceder. O problema prático que se nos
apresenta é, pois, o seguinte: como integrar os grandes princípios
do nosso ideal no conjunto das forças ativas do dinamismo moral?
Como assegurar-lhes uma eficiência real e vitoriosa na luta
inevitável contra os agentes da anarquia e dissolução interior que,
sem tréguas, conjuram contra a nossa grandeza humana e a nossa
dignidade cristã.
Os meios são vários e de eficiência desigual. Nenhuma
maravilha. Trata-se de organizar e unificar toda a nossa psicologia;
inteligência e vontade, sentimentos, paixões, atividade — tudo se
acha interessado. Consoante o fim imediato que se visa, hão de
variar profundamente os processos empregados. Entre eles, porém,
um há cuja importância de muito avulta sobre os demais e que
condiciona o emprego continuado de quase todos os outros: é a
meditação. Já ouvistes, provavelmente, quase todos a insistência
com que se vos inculcou esta prática de piedade nos bons colégios.
Agora já estais em idade e condições de entender-lhe a eficiência
psicológica, de vos formardes uma convicção sólida e pessoal, que
não só dará à vossa vida de piedade fundamento mais estável mas
estenderá a outros que mais tarde dependerem de vós o benefício
deste hábito que, da aplicação à nossa vida moral e religiosa se
deverá estender a toda a nossa atividade. Não só firmareis a vossa
resolução pessoal de nunca omitir a meditação mas vos
convencereis de que, onde quer que venhais a ter uma influência
pedagógica, nela tereis um instrumento de formação do caráter e da
personalidade de eficácia insubstituível. É o que proclamam
unânimes os psicólogos de todos os matizes — crentes ou não.
É que de fato a meditação:
1º. intensifica todas as nossas energias interiores,
2º. permite praticamente adaptar as nossas ações ao valor real
e objetivo das coisas.
Eis bifurcada em duas proposições a nossa tese fundamental.
Meditar é recolher-se para refletir. A solidão foi sempre a pátria
dos fortes… Mas há solidão e solidão. Há quem se isola para
retemperar as suas forças e há quem se isola para dissipá-las. Uns
se separam da convivência social para meditar, outros para
devanear. Vede aquela jovem que, em atitude recolhida, de quando
em quando interrompe a leitura; pensa, reflete, assimila, propõe e
ora — para depois levantar-se mais forte, enérgica, dedicada e mais
ativa — meditou. Lá está outra, afundada em almofadas e coxins, no
silêncio de uma varanda, que a intervalos também ela deixa cair das
mãos o romance e, olhos vagos a perder-se no longínquo dos
horizontes, deixa correr o tempo ao encalço da irrealidade das
quimeras, para depois, sacudindo rapidamente a cabeça como
quem acorda de um pesadelo, entrar de novo na vida — mais
irritadiça e incontentável, mais áspera e caprichosa, mais desigual,
mais melancólica e sobretudo mais egoísta — devaneou. Sob a
identidade superficial de uma mesma atitude solitária, meditação e
devaneio opõem-se num contraste psicológico que vai ao mais
completo antagonismo.
Durante o sono, impede-se o uso normal das faculdades
superiores: não há atenção, reflexão, deliberação. Sem a
fiscalização da inteligência e o domínio da vontade, as imagens
sucedem-se à mercê de associações fortuitas, de vagas sensações
atuais, ou das tendências surdas dos instintos inferiores
desgovernados.124 É o sonho. O devaneio aproxima-se-lhe por
quase todos estes elementos. De atenção intelectiva subsiste o
quantum satis para conservar certa unidade — muito frouxa — ao
desfilar das miragens. A vontade abdica o governo afetivo dos
estados interiores e passiva, ou quase, em relação a tudo o mais,
conserva a responsabilidade desta atitude geral de abandono. A
imaginação livre guia só estes passeios pela região das quimeras.
Todas as idéias malsãs, outrora reprimidas pela vontade firme, todas
as aspirações incoerentes de um sentimentalismo vago, todos os
desejos mórbidos de um coração que palpita longe da consciência
invadem tumultuariamente o campo da alma imprudente, associam-
se, organizam-se em sínteses resistentes, para constituir um dos
maiores obstáculos ao governo livre, racional, humano da vida. O
homem que passasse o seu tempo a dormir e sonhar atrofiaria tudo
o que há de mais nobre na sua natureza. Os que sonham acordados
nunca levarão o desenvolvimento de suas mais elevadas faculdades
à altura de um caráter. A inteligência que vive de clareza, precisão,
rigor lógico de raciocínio, vai-se aos poucos destruindo no vago, no
impreciso, no incoerente do sonho; a vontade, à força de renúncia,
uma, duas e muitas vezes, o governo real da imaginação e do
sentimento, acabará capitulando definitivamente ante a tirania
destas forças cegas e indisciplinadas; o coração que se nutre de
delicadeza, desinteresse e dedicação vai-se concentrando e
endurecendo no egoísmo invasor que já não admite resistência aos
seus caprichos, nem conhece a generosidade de um sacrifício
capaz de levar a felicidade a um coração amigo. A vida toda,
alimentada de fantasmagorias, vai perdendo aos poucos o contato
com a realidade, e nesta desadaptação profunda a tudo o que
constitui a nossa verdadeira e mais alta razão de ser, definha na
incapacidade da ação, na moleza, e numa melancolia profunda e
incurável, a princípio por intervalos, mais tarde transformada em
estado permanente.
O devaneio, alimentado principalmente pela leitura excessiva da
literatura de ficção constitui, em nossos dias, um dos fatores mais
ativos e generalizados do desfibramento dos caracteres.
Pelas qualidades diametralmente opostas que a distinguem
deste sonhar enervante, a meditação robustece e viriliza o querer.
Aqui a atividade é intensa, hierárquica, organizada. À inteligência e
à vontade cabe a primazia.
Trabalham também a imaginação e o sentimento mas para
prestar às faculdades superiores, que distinguem especificamente o
homem, o inestimável concurso de uma colaboração harmoniosa.
Definida assim a natureza da meditação nada mais fácil do que
pôr em toda a luz a sua eficiência na educação da vontade.
Um dos maiores obstáculos à unificação da nossa
personalidade é a dissipação. Nunca talvez como em nossos dias
foi maior o perigo de nos inutilizarmos na incoerência dos
dispersivos. A facilidade de comunicações — jornais, telefones,
telégrafos, rádios —, a freqüência das relações sociais, a
intensidade da vida moderna, multiplicam prodigiosamente as
nossas impressões. Desde os jornais que pela manhã nos trazem
as notícias de todos os países até ao cinema que pela noite nos
desenrola ante os olhos cansados cenas e panoramas das cinco
partes do mundo, ou o rádio, que com um simples movimento de
interruptor nos faz ouvir Berlim, Londres, Roma ou Moscou, é um
suceder-se ininterrupto de idéias, sentimentos, impressões que
cruzam pela consciência rápidas, e incoerentes como uma
turbamulta em desordem. Se todos estes progressos podem por um
lado dar-nos uma consciência mais viva de solidariedade humana, e
ampliar-nos a cada instante a riqueza dos nossos conhecimentos,
que perigo também de deixar-nos levar por este torvelinho que
envolve e atordoa, que tentação fácil e comum a de viver, digo mal,
de deixar viver assim à mercê de todas estas impressões de fora.
Quantos os que nesta efervência febril entram em si mesmos para
se conhecerem, se orientarem nesta multiplicidade estonteadora,
para se governarem à luz da própria razão!
Γνωθι σεαυτόν, conhece-te a ti mesmo — foi o preceito que a
sabedoria antiga pôs na base de todo aperfeiçoamento humano.
Sem nos conhecermos, como nos poderemos governar, valorizar?
Este conhecimento íntimo do nosso interior, só no-lo pode dar, na
calma do recolhimento, a introspecção meditativa, útil em todos os
tempos, indispensável nos nossos. É no silêncio bendito destes
momentos tranqüilos em que conversamos a sós conosco e com a
verdade, que vamos adquirindo a consciência dos nossos recursos
e dos nossos defeitos, do bem que podemos fazer e dos perigos
que nos ameaçam. É principalmente nestas horas fecundas que
damos à nossa vida a sua orientação fundamental e asseguramos o
emprego eficaz dos meios que lhe condiciona a realização, em
outras palavras, que elaboramos o nosso ideal e lhe damos toda a
sua força realizadora.
Em toda a vida humana séria há uma grande resolução que a
dirige para um pólo definitivo. Que fará esta jovem trilustre125 que
entra no cenário do mundo rica de esperanças, exuberante de seiva
primaveril, ardente de entusiasmo? Que fará ela do grande capital
da vida de cujo emprego só se decide uma vez? Resolução capital,
tão importante como a própria vida e a felicidade para a qual nos foi
dada. E como amadurecê-la prudentemente fora do recolhimento de
sérias reflexões, sem que possamos utilizar o melhor de nossas
energias. Onde as almas não se encontram, aí não pode haver
escolha consciente de um fim; onde a vida não se organiza
conscientemente em vista de um fim a alcançar, aí há incoerência e
dispersão de energias. Quem de um ou de outro modo não se
habituou a meditar não conseguirá nunca elaborar o seu ideal de
vida.
Não basta, porém, haver fixado à vida o seu ideal: é mister
ainda escolher os meios que nos levam a realizá-lo. À grande
resolução — única e fundamental — que fixa o alvo, devem suceder
outras menores e parciais, em que abraçamos, cada dia e nas
diferentes circunstâncias em que nos podemos encontrar, os meios
apropriados a atingi-lo.
Quais estes meios? A reflexão no-lo dirá sem dificuldade. Como
nos decidimos a abraçá-los mesmo quando penosos? A
consideração de que são indissoluvelmente unidos ao ideal que
constitui o centro das nossas aspirações mais profundas, nos
subministrará com o tempo as energias exigidas para a vitória das
repugnâncias mais teimosas. Assim se vai organizando a solidez da
unidade interior. Na multiplicidade das impressões dispersivas a
consciência, esclarecida e confortada, vai fazendo uma seleção
judiciosa. Elimina as sensações, as leituras, as conversas, relações
que constituem obstáculos ao plano traçado; escolhe, cultiva,
desenvolve as que lhe são favoráveis. E temos assim introduzida na
vida a coerência. Quantos infelizes, afora os atos obrigatórios e
habituais da vida cotidiana, são incapazes de levar a termo uma
tarefa qualquer que exija continuidade de esforços, precisamente
porque vivem sempre à superfície das coisas e nunca se habituaram
a prever um fim, num futuro distante, e a organizar a sua atividade
em função deste objetivo! Dissipam-se e esterilizam-se na
incoerência das impressões fortuitas de cada hora!
Ao lado da incoerência é também o imprevisto que a meditação
elimina da vida. A surpresa é um dos grandes inimigos das vontades
fracas. Quem não prevê, não provê e quem não provê é quase
sempre vítima desarmada da primeira solicitação. Um convite, uma
insinuação, um oferecimento não encontram nem podem encontrar
resistência nas almas que vivem à superfície das coisas. Só os que
na calma do recolhimento organizam a própria atividade preparam
as reações correspondentes aos próprios princípios, sabem aceitar
e sabem rejeitar, sabem dizer sim e sabem dizer não.
E que força admirável é a providência! Um ato previsto, pré-
imaginado, é ato meio feito! Já há uma meia tensão psíquica
orientada no sentido que facilita a ação. Um exemplo em
pequeninas coisas. Na vossa meditação da manhã organizareis o
vosso programa: consagrareis durante o dia este quarto de hora à
leitura espiritual, aquela hora ao estudo, etc., prevedes os
obstáculos que vos poderão ameaçar a fidelidade ao vosso horário
e o modo de resistir-lhes. Mais tarde virá a tentação de uma
curiosidade, a solicitação de uma companheira para uma distração
frívola; a resposta já está preparada; o ato segue-se com rapidez e
facilidade não deixando tempo em meio para que a sedução
presente de um prazer se venha sobrepor à utilização racional do
tempo no cumprimento exato do nosso programa. No fim do dia
tereis feito o que quereis fazer e não vivido à mercê dos
acontecimentos exteriores ou dos estímulos e excitações
passageiras das pequeninas paixões de cada momento. Há em vós
algo que desejais realizar e realizais de fato. A nossa vida é um
programa que se traçou à luz serena de um grande ideal e se vai
executando com fidelidade e constância. É uma linha reta que sabe
o alvo que mira e não se dispersa em sinuosidades frívolas e
estéreis.
Este magnífico resultado, porém, não se obtém sem o hábito do
recolhimento e da reflexão meditativa. Só nestes momentos de
silêncio exterior nós começamos a ser nós mesmos; tomamos
posse do nosso mundo interior conhecendo-lhe os recursos e as
energias úteis, as deficiências e lacunas a corrigir. Assim é que
lentamente se vai elaborando o ideal com a sua força unificadora, e
se vai sentindo a atração decisiva de sua beleza. Sem os benefícios
destes silêncios amigos a vida sem bússola e sem leme, agitada
pelas contradições da incoerência, pelo imprevisto de todas as
surpresas esgota-se em veleidades estéreis. Será certamente vida
falha.
Conhecimento e a organização do nosso mundo interior:
primeira vantagem da meditação. Conhecimento exato e real das
coisas: segunda vantagem — assunto da próxima palestra.

Rio, maio de 1938.

123 Alfred de Vigny — NE.


124 Freud.
125 De três lustros, ou seja, quinze anos — NE.
Exórdio — Influência do ambiente na escola.
A escola leiga é praticamente impossível:
1º. por parte das disciplinas.
Deus enche a criação e Cristo a história.
2º. por parte dos mestres.
Impossível não tomar partido na gravidade
excepcional do problema religioso — tanto por parte do
mestre católico quanto do incrédulo. Diversas atitudes
deste último. O mestre neutral — monstro de hipocrisia.
3º. por parte dos alunos.
Impossível mutilar a criança — separando instrução
de educação (juízo de Salomão). Necessária a educação
para a instrução. A instrução repercute na educação.
Confirmação desta impossibilidade da escola leiga:
a) pelo caráter subversivo dos partidos que a preconizam;
b) pela confissão explícita dos seus fautores.
Conclusão: — Educação é evolução — impossível sem dirigi-la —
sem conhecer-lhe o termo — sem ter um ideal do homem.

A. M. D. G.

Rio, 06 de junho de 1928.


Escola leiga
I

E DUCAR é elevar o homem à perfeição total de sua natureza, é


desenvolver todas as capacidades de bem que, em germes
latentes, dormem na perfectibilidade de nossas almas. Mas toda a
evolução vital está essencialmente subordinada às condições do
ambiente em que se realiza. Vede uma árvore das nossas florestas.
Quanto mais rico for o solo onde mergulha as suas raízes, quanto
mais desafogada a atmosfera que lhe cede o seu oxigênio
vivificante e mais livre a ação do Sol que lhe empresta as suas
energias tanto mais ela desenvolverá a exuberância de sua
vitalidade na pompa das folhagens e na riqueza dos frutos. O
ambiente em que devem crescer e medrar estas plantazinhas
delicadas que são as almas infantis, é a princípio o conchego do lar
com as suas intimidades profundas, com o calor dos seus afetos
serenos, com a continuidade ininterrupta de suas influências
multiformes. Mais tarde a escola entra a colaborar com a família,
ampliando o círculo das relações e temperando as suavidades
domésticas com a severidade dos primeiros e indispensáveis rigores
disciplinares. Paralelamente à escola, vai-se desenvolvendo numa
progressão de dia a dia crescente o influxo social, pelos
variadíssimos órgãos das relações pessoais, da imprensa cotidiana
e periódica, da literatura, do teatro e de todos os demais veículos de
idéias e sentimentos. Da família, círculo íntimo mas estreito, à
escola, meio um pouco mais amplo, passa o homem a sentir a ação
educadora da sociedade e da humanidade inteira. Tudo isto, os
vivos que ainda nos cercam, os mortos que já se foram mas que
continuam ainda pelos seus livros e instituições a exercer a
influência dos seus pensamentos, afetos e atividade, tudo isto
constitui nos planos da Providência o grande ambiente em que se
desenvolvem e aperfeiçoam as almas. Este intercâmbio de
recíprocos influxos de um sobre todos e de todos sobre um, é um
dos mais importantes aspectos da solidariedade humana. Também
no plano ainda mais vasto da criação, a humilde plantazinha dos
prados vai pedir ao grande astro que nos ilumina as tintas mais
belas para colorir o veludo de suas pétalas efêmeras. E nem
Salomão na opulência de suas glórias trajou mais
esplendidamente.126
Da influência doméstica e da influência social na formação dos
caracteres não nos queremos por ora ocupar. É na ação educativa
da escola que concentraremos hoje os nossos olhares e,
individuando ainda mais, não da escola em geral, ou da escola livre,
senão da escola pública, qual a reduziram alguns governos
modernos, numa palavra, da escola leiga.
Comecemos por esclarecer bem as idéias e definir as posições.
Que entendemos, antes de tudo, por escola leiga? Não chamamos
assim a escola dirigida por leigos, em oposição à mantida por
eclesiásticos. Sacerdotes, religiosos e leigos podem e devem
colaborar harmoniosamente, em santa emulação, na nobilíssima
tarefa de formar homens. Nem tampouco, com este nome,
designamos a escola que adota este ou aquele método de ensino
preconizado pelo governo num determinado momento. Ajuizar da
utilidade e da excelência dos métodos é da alçada da pedagogia.
Muitas congregações religiosas têm os seus baseados num estudo
profundo da natureza humana, no que ela tem de eterno, e
sancionado por uma experiência multissecular, enquanto, nos
governos democráticos, as escolas oficiais se deixam facilmente
sugestionar por novidades efêmeras e vão repetindo experiências à
custa das almas infantis e fazendo das novas gerações um campo
de experimentação in anima vili.
Não é, portanto, nem pelo estado, eclesiástico ou civil, dos
professores nem propriamente pelos métodos pedagógicos que
caracterizareis a escola leiga de que agora nos vamos ocupar.
Escola leiga é a escola que exclui dos seus quadros o
sacerdote como sacerdote ou, por outra, que elimina por princípio e
sistematicamente toda e qualquer influência religiosa na formação
escolar dos alunos. Para ela, a religião é, em teoria, como se não
existisse. Professores e alunos, no campo religioso, devem
professar a mais completa abstenção. Instrução religiosa que a
dêem os sacerdotes na igreja, ou os pais em casa, se o quiserem.
Na escola, silêncio, reserva, neutralidade. Foi a França, como
sabeis, que, separando-se de todas as outras nações civilizadas da
Europa e da América, com imenso escândalo, proclamou, por
primeira, a laicidade ou neutralidade das escolas oficiais. Nós, por
desventura, em grande parte, lhe seguimos cordeiramente o
exemplo funesto.
Deste ensino neutro dizemos que é impossível na prática,
funesto nas conseqüências, injusto em direito. Anti-religioso, anti-
social, antijurídico — eis os três artigos do nosso requisitório contra
a escola leiga. A acusação é séria e forte, mas, espero que as
provas não lhe ficarão abaixo. É preciso que vejamos a realidade
como ela é, é preciso que nós, brasileiros e católicos, tenhamos,
neste ponto capital, nitidez de idéias e consciência dos nossos
direitos e deveres, das nossas responsabilidades sociais e
religiosas.
I – Uma escola religiosamente neutra é antes de tudo uma
impossibilidade prática. Impossibilidade por parte das disciplinas,
por parte do mestre e por parte do aluno.
a) Há indiscutivelmente algumas matérias como por exemplo as
matemáticas que se podem ensinar sem perigo de encontrar a
questão religiosa. Outras há, porém, e muitas, que são de todo
refratárias a qualquer tentativa de neutralização. Deus imprimiu tão
profundamente nas suas obras os vestígios de sua onipotência que
não é possível abrir o livro imenso da natureza sem encontrar em
todas as páginas a assinatura inconfundível do seu Autor. Não são
unicamente os poetas que diante das grandezas do firmamento
exclamam extasiados.
Glória a Deus! eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.127

Kepler e Newton, Le Verrier e Faye e os grandes mestres da


astronomia terminam os seus estudos de joelhos, entoando um hino
de glória ao Criador. Hino de glória ao Criador entoam ainda os
sábios que se ocuparam com o mundo não menos maravilhoso dos
infinitamente pequenos. Deus magnus in magnis, maximus in
minimis, disse um deles.128 E estes problemas postos pela natureza
das coisas são inevitáveis; a nossa própria inteligência reclama uma
solução. Em face das harmonias dos astros como diante da
finalidade admirável que resplende na complexidade de um
organismo o mestre deve dar uma resposta aos porquês
incoercíveis da razão. Afirmará que tudo isto é o resultado
necessário de uma evolução cega? Ei-lo a ensinar o ateísmo.
Reconhecerá a ação de uma Inteligência criadora e ordenadora? Ei-
lo diante de Deus. E em ambos os casos ei-lo a resolver, pelo sim
ou pelo não, um dos pontos fundamentais do problema religioso.
Deus enche a natureza com a imensidade de sua presença
infrustrável. Cristo ilumina a história com os raios de seus divinos
esplendores. Na marcha da humanidade através dos séculos Ele é
a figura central que tudo domina, o passado, o presente e o futuro, é
a chave que explica todos os enigmas da história, a síntese que
recapitula, explica, harmoniza a série dos acontecimentos. Toda a
história do povo judaico é ininteligível sem a figura do Messias.
Israel vive quinze séculos com os olhos fitos nesta grande
esperança.
Instituições sociais e religiosas, grandezas e vergonhas, vitórias
e derrotas, tudo, neste povo admirável pela sua singularidade,
gravita em torno do futuro Salvador, tudo só nele tem a sua razão de
ser e portanto só nele a sua explicação psicológica e histórica.
Chegada a plenitude dos tempos anunciada pelos profetas, aparece
o Cristo. E o seu nascimento inaugura era nova para a humanidade.
Hoje, quando datais uma carta ou assinais um contrato, o ano que
escreveis vos reporta ao maior acontecimento da história. É que há
1928 anos que todo o mundo civilizado sente esta ação penetrante,
profunda e indelével, universal d’Aquele que, só, entre os filhos dos
homens, pôde dizer: “Eu sou a luz do mundo”; “eu sou a Verdade e
a Vida”.129 Lançai um rapidíssimo olhar sobre a história destes dois
milênios. Os três primeiros séculos enche-os a luta épica entre o
paganismo decrépito e cruel na sua agonia e o cristianismo
nascente que envolve a glória do seu berço na púrpura dos seus
mártires. Comprada a liberdade de consciência a preço de sangue,
enquanto o Império Romano caía em frangalhos sob o golpe das
hordas invasoras, o cristianismo enche os séculos seguintes com a
sua ação conquistadora e civilizadora de bárbaros. Seguem-se os
contrastes intermináveis entre o Sacerdócio e o Império, a
consciência cristã que reivindica a sua autonomia contra as
usurpações de César. Com a grande apostasia do protestantismo
inaugura-se a época moderna.
São ainda quatro séculos de antagonismo cada vez mais
radical e irredutível entre os que amam e os que odeiam a Cristo.
Toda a história é a admirável realização desta profecia: positus est
hic in signum cui contradicetur.130 Uma contradição íntima e perene
se levantou a respeito de Jesus desde o seu primeiro aparecer na
Terra e esta contradição penetra toda a história no sentido mais
amplo da palavra. Instituições sociais e políticas, arte e literatura,
moral e direito, tudo sentiu a sua influência incontrastável. E não é
possível percorrer uma só destas disciplinas sem encontrar a cada
passo a necessidade inevitável de tomar um partido. Em todas elas
a neutralidade é uma quimera. Que fará um professor ante este
campo imenso do saber profundamente influenciado pela ação de
Cristo e sua Igreja? Fechar-se-á porventura no mutismo de um
silêncio agnóstico? Mas com que direito pode ele mutilar a
realidade, passando uma esponja mentirosa sobre a maior e melhor
parte da vida das nações e dos indivíduos? “Apagai”, escreve Ernest
Legouvé,
apagai todos os vestígios que na Terra deixou o sangue d’Aquele que se
chama algumas vezes o Crucificado. Depois, terminada a vossa tarefa, voltai-
vos, abraçai com um longo olhar estes dezoito séculos que se encadeiam
diante de vós, e vede, sem espanto, se o podeis, o vazio imenso que abriu
nos séculos só esta Cruz de menos.131

E os fatos, que sobreviverem a este corte anticientífico,


desarticulados e dispersos, como membros amputados de um
organismo sem alma, como propô-los à inteligência das crianças,
como encadeá-los em séries de causas e efeitos, numa palavra,
como explicá-los? Impossível o silêncio sem lesar os direitos da
verdade integral; impossível ainda sem resolver implicitamente o
problema religioso que se pretende evitar. O paliativo é ineficaz. O
descaso da indiferença já é uma solução. Não se ofende só o
presidente da república dirigindo-lhe insultos grosseiros; passar-lhe
ao lado sem lhe tirar o chapéu com a indiferença com que
acotovelamos um varredor de ruas, já é um menosprezo de sua
autoridade. Assim, para ofender os direitos soberanos e
imprescritíveis de Deus não é mister atirar-lhe a injúria soez da
blasfêmia impotente; não lhe dobrar o joelho ante a majestade
infinita, passar diante d’Aquele que é como se não fora já é
apostasia. Calar é, pois, impossível porque o vedam as exigências
de objetividade científica, ineficaz pela própria natureza da questão
religiosa. O falar impõe-se como uma necessidade inevitável. Mas
como falar sem assumir atitudes definidas? A vida admirável de
Cristo, a propagação do cristianismo, a sua ação profundamente
civilizadora, a sua imutabilidade doutrinal, a juventude eterna do
Evangelho ao lado dos sistemas humanos que se sucedem ao seu
lado, a imortalidade da Igreja a sobreviver, após vinte séculos, a
todas as instituições humanas, impérios e dinastias, a presença
deste fermento inesgotável de heroísmo que na massa corrupta da
humanidade alimenta perenemente a seiva da santidade — como
apresentar e explicar, isto é, tornar inteligível tudo isto à razão que
desabrocha com as suas exigências de causalidade?
Respeitais a totalidade dos fatos e apelais para a divindade de
Cristo e de sua Igreja como para a sua única razão suficiente?
Asseverastes as verdades fundamentais da apologética cristã.
Mutilais, pelo contrário, a complexidade real dos acontecimentos
para forçá-los a entrar nos quadros estreitos de um naturalismo
nivelador e de valores irredutíveis? Ensinastes o racionalismo,
negastes o sobrenatural. Numa e noutra hipótese invadistes o
domínio religioso, violastes uma neutralidade insustentável.
b) Mais evidentemente quimérica aparece esta neutralidade se
passarmos das coisas às pessoas, da análise do conteúdo das
disciplinas que se devem ensinar à psicologia viva e humana de
ensinantes e ensinados.
É o mestre antes de tudo quem não pode conservar-se na fria
impassibilidade dos neutros. Não é humano. Vede dois homens que
discutem acalorados sobre câmbio ou política, sobre modas ou
regatas. Depois de os ouvirdes por uma hora infalivelmente já tereis
tomado partido por um dos contendores contra o outro. (Começar a
torcer). É inevitável. Quando à nossa inteligência se propõem
motivos ou razões não podemos deixar de apreciá-los e julgá-los.
Diremos que uma das alternativas é verdadeira e outra falsa, que
ambas são falsas, que uma é mais provável que outra, numa
palavra, julgamos, sentenciamos. Poderemos errar no nosso juízo,
não podemos deixar de julgar.
Possível que fosse esta abstenção nas questões particulares
que desinteressam a nossa personalidade, é de todo o ponto
irrealizável quando entra em jogo a gravidade transcendente da
questão religiosa.
O problema religioso domina soberano toda a nossa vida
porque é o problema mesmo dos nossos destinos, do nosso valor
moral, da razão de ser da nossa existência. “É impossível”, escreve
Jouffroy, “que um homem, por mais irrefletido que o suponhamos e
em qualquer condição em que o queiramos imaginar, escape,
durante o curso de uma vida longa, à concepção do problema dos
destinos”.132 Todos, implícita ou explicitamente formulamos a nossa
visão da vida e por ela pautamos as nossas ações. O próprio
diletantismo pretendendo fugi-la não se esquiva a esta necessidade
inerente à essência das coisas. A sua solução religiosa será
superficial, leviana, temerária; mas será sempre uma solução. Deus
é o grande Inevitável e ninguém passa pela vida sem o encontrar no
seu caminho.
O mestre, portanto, como qualquer homem e mais do que
qualquer homem porque mais instruído, terá também ele a sua
religião e como esta constitui o que há de mais profundo e de mais
caro nas nossas convicções, é psicologicamente impossível, não
poderá passar indiferente ante as inúmeras ocasiões de as
manifestar.
É um mestre católico? Mas como quereis que ele não transmita
a estas almazinhas em flor o patrimônio de verdades e de
sentimentos que constituem o seu mais precioso tesouro na vida e
sem o qual está certo que aquelas criancinhas marcharão para a
sua desgraça aqui e na eternidade? Como quereis que não lhes
imprima este impulso profundo que as há de levar à verdadeira
felicidade? Amaria ele realmente os seus alunos — e quem não
ama não pode educar — se se tornara o cúmplice voluntário da sua
maior desventura? Cumpriria ele os seus deveres diante de Deus se
não evangelizasse às consciências que a Providência lhe confiou e
de que um dia deverá dar conta no grande tribunal das
responsabilidades indeclináveis? É incrédulo o professor? Vê-lo-eis
infalivelmente esforçar-se segundo as suas idéias para libertar as
crianças do jugo de superstições superadas, de crendices de outras
eras, de práticas inúteis e nocivas, a fim de plasmar as novas
consciências segundo a sua imagem e semelhança. O modo por
que se efetuará esta educação irreligiosa, demolidora da fé
aprendida nos joelhos maternos, variará segundo as condições
sociais de uma época ou de uma nação, e principalmente segundo o
temperamento individual do incrédulo.
Há o incrédulo violento, agressivo e brutal que facilmente
irrompe em tempestade de blasfêmias, injúrias, insultos baixos e
grosseiros. É o mais insolente, mas nem sempre é o mais perigoso.
Há o incrédulo irrisor à la Voltaire, com um sorriso sardônico e
amarelo no canto dos lábios, a salpicar ironias sobre o que há de
mais sério na vida. As suas armas prediletas serão epigramas, o
grotesco da comédia, o ridículo da caricatura.
Há ainda o incrédulo à la Renan ou à la Anatole France todo
sentimentalismo reverente, todo nostalgias afetadas destas idéias
tão belas, tão ricas de poesia, tão embalsamadas de perfumes
antigos que alimentaram a vida espiritual de nossos pais e
inspiraram o segredo de suas grandezas, mas que hoje… só se
podem conservar com o cuidado carinhoso com que nos museus de
arqueologia se conservam as múmias egípcias, testemunhas frias e
sem vida de eras que já não voltam. São estes incrédulos que se
nos apresentam com uma serenidade olímpica a “envolver os
deuses mortos em mantos de púrpura”133 os mais sutis, os mais
perigosos, os mais profundamente demolidores. E esta obra
demolidora não requer longos discursos nem doutas dissertações,
ainda que muitas vezes nem estas faltem. Basta um inciso
passageiro, um gracejo equívoco, um sorriso cético, um encolher de
ombros, um menear de cabeça, o eliminar um autor e adotar outro.
Não há, pois, na prática e na realidade, um formador de
consciências infantis que se conserve sempre numa zona neutra
sem invadir as fronteiras do domínio religioso. Esta é a verdade
verdadeira. Mas quero levar a argumentação até ao cabo,
esgotando todas as hipóteses possíveis. Suponhamos que se
encontre esta singularidade fenomenal. Este homem que assim se
conserva silencioso, obstinadamente fechado e taciturno, sobre tudo
o que se refere à religião e à moral, ou tem convicções religiosas ou
não. Se as tem e as recalca no fundo da consciência sem as deixar
transparecer nunca, é um hipócrita. Ter convicções e agir como se
não as tivera é a definição mesma da hipocrisia; é um homem que
não tem a coragem de suas opiniões, que não sabe pautar a
manifestação de seus atos sociais pelos ditames internos da
consciência. Não tem convicções firmadas sobre moral ou religião?
Passai-lhe imediatamente certidão de incapacidade radical e
incurável para educar almas. Como há de formar para a vida as
gerações do futuro quem não sabe o que é a vida e o que ela vale?
Quem, sobre estas grandes realidades do dever, do heroísmo, de
Deus e da pátria, da virtude e do bem, do sacrifício e do amor, não
tem nas suas experiências de homem ou nas suas idéias de
pensador uma noção, um conselho, uma norma para transmitir aos
homens de amanhã é a negação personificada do educador.
Compreende-se agora o juízo severo que da escola neutra emitiu
Jules Simon, tanto menos suspeito de parcialidade quanto se trata
de um simples teísta sem nenhuma religião positiva:
Não quero professor neutro; não quero porque não o estimo; neutralidade em
matéria de opinião é o que há de mais vergonhoso no mundo. Quem é o
vosso mestre? Tem uma opinião ou não? Se tem, esconde-a. E é este o
modelo que propondes aos vossos filhos? Se não a tem, deploro-o… Escola
neutra é escola desonrada; ou não existe na realidade, ou se existe
envergonhemo-nos dela.134

c) Depois da do mestre e mais do que a dele é incompatível


com a neutralidade a psicologia da criança. Algumas vezes se tem
ouvido em defesa da possibilidade de uma escola imparcial um
apelo à distinção entre instruir e educar. Na escola ministra-se
unicamente a instrução; a educação moral e religiosa dêem-na os
pais em casa e os sacerdotes na igreja. Por parte das disciplinas já
vimos como é irrealizável esta demarcação geométrica de fronteiras.
Deus nas suas manifestações cósmicas de Criador, a religião cristã
nas suas influências históricas compenetram tão intimamente todo o
campo do cognoscível que é impossível percorrê-lo sem encontrar o
problema religioso. Agora é a psicologia do aluno que vem reforçar,
por outro lado, a mesma conclusão. “Sobre a criança”, disse Leão
XIII, “não é possível renovar o juízo de Salomão, dividi-lo em dois
com um golpe de espada, irracional e cruel, que lhe separa a
inteligência da vontade”.135 O que caracteriza o ser vivo é a unidade
indivisível. Quando na mesa de experiências o anatomista começa a
separar os ombros de um corpo humano, já não tem diante de si um
organismo vivo mas um cadáver. Mais estreita ainda que a que
solda seus membros é a unidade que vincula umas às outras as
faculdades psíquicas e preside ao seu desenvolvimento harmônico.
O homem não pode ser educado senão como um todo. Senão vede.
Estamos na escola onde só se pretende instruir e comunicar
conhecimentos. Mas o aluno A não estuda porque tem preguiça, o
aluno B engana o professor pretextando doenças fictícias ou
falsificando firmas paternas; o aluno C perturba, com suas
brincadeiras intempestivas, a atenção da aula indispensável ao
ensino; o aluno D calunia ou importuna os colegas, etc., etc. As
letras do alfabeto não bastariam para enumerar os defeitos morais
que impedem já não digo a formação completa do homem, mas
simplesmente a sua instrução. E eis o professor pela própria
estrutura psicológica do aluno forçado a exigir o cumprimento do
dever, isto é, a definir-se e a explicar-se no campo da moral e da
religião. Necessária, pois, a formação da vontade para instruir a
inteligência. Por outro lado, qualquer instrução da inteligência vai
necessariamente repercutir na formação do caráter. As idéias são
também princípios de atividade; são uma representação e uma
força, são um reflexo da realidade e um impulso para a ação. A
cada passo, no decorrer das aulas, a propósito de uma
personalidade histórica ou de um grande acontecimento, de uma
instituição discutida ou de uma guerra de religião, de uma obra
literária ou de um autor de nomeada, de um herói antigo ou de um
criminoso do dia, sob as perguntas que a justa curiosidade da
inteligência multiplica nos lábios infantis, o professor terá que dar o
seu juízo, a sua apreciação. E este juízo, de louvor ou de censura,
apaixonado ou cético, vai refletir-se na alma da criança e aí
estabelecer uma hierarquia de valores morais, pela qual mais tarde
pautará o seu procedimento.
Se o tempo já não nos fora escasseando, poderia multiplicar no
campo da psicologia prática as provas desta impossibilidade de uma
escola neutra. Creio, porém, que já bastarão os argumentos
aduzidos, tirados da própria natureza da escola e dos seus
elementos essenciais: o aluno, o professor, as disciplinas de estudo.
A neutralidade é, pois, uma quimera; e disto estão persuadidos
antes de tudo os nossos próprios adversários, os advogados da
escola leiga.
De Maistre disse uma sentença profunda, quando escreveu: “O
instinto da impiedade não se engana. Quereis ver onde está a
verdade? Vede o que ela ataca”. Apliquemos o critério. Percorrei
atualmente no tabuleiro da política os partidos que preconizam a
laicidade do ensino. Quais são eles? Precisamente aqueles que
juraram guerra de extermínio a qualquer religião positiva e antes de
tudo ao catolicismo. Pela confessionalidade do ensino lutam não só
os católicos, mas os protestantes chamados ortodoxos e os
israelitas. Pela laicização das escolas: três partidos.
1º. O radicalismo anticlerical francês que lançou mão da escola
como do mais eficaz instrumento de descristianização do país.
2º. A Maçonaria (na França quase coincide com o partido
anterior). O Bulletin du Grand-Orient de France apontava “como alvo
da atividade da Maçonaria o assegurar-se, por meio da imprensa e
das corporações políticas, tanto poder no campo da escola e da
educação popular que ninguém nele pudesse tocar que não fosse
persona grata à Maçonaria”. O Herald, órgão das lojas de Berlim,
aponta entre os objetivos que mais devem concentrar o interesse
das lojas “a escola popular, livre, a-religiosa”. E esta indicação se
segue imediatamente a um período em que se assinala como
missão capital da Maçonaria “a guerra contra o clericalismo”. E as
citações poderiam multiplicar-se.
3º. Em terceiro lugar o socialismo rubro, ateu. Na Alemanha, o
programa do partido elaborado em Gotha inclui entre outros pontos:
“Educação popular geral e idêntica, subministrada pelo Estado”.
Mais precisamente o programa de Espert: “Laicização do ensino”.
O protocolo da ordem do dia do partido, reunido em Halle, não deixa
nenhuma possibilidade de equívocos: “Nosso partido é um partido
científico […]. A ciência zela pela boa escola — é o melhor meio
contra a religião”.136 E pouco antes: “A escola deve ser mobilizada
contra a Igreja”.
Só não vê, portanto, quem não quiser abrir os olhos. A
neutralidade é apenas um título de fachada. Proclamar a guerra
aberta à religião e à moral cristã não era de boa diplomacia.
Suscitaria a reação compacta de todas as forças conservadoras da
sociedade. Para enganar as turbas sempre superficiais e ilógicas,
para embalar a consciência dos católicos menos clarividentes
inventou-se o rótulo equívoco da neutralidade escolar. Com o
tempo, porém, para a descristianização crescente das massas já
não eram necessários semelhantes paliativos e os preconizadores
da escola leiga desafivelam a máscara. Já em 1883 Henri Maret
escrevia declaradamente: “A pretendida neutralidade é uma tolice
[une bêtise]. Não há neutralidade possível. Desde que um professor
não ensina a religião com isto mesmo já ensina a incredulidade.
Tudo isto é uma tartufice ao 17º grau”. Maret era uma voz isolada
que empunhava, só, as suas responsabilidades individuais. Com o
tempo vieram as declarações mais autorizadas, quase oficiais, pelos
órgãos políticos mais qualificados para falar em nome do partido.
Citarei apenas a declaração de Viviani pouco antes de sobraçar
uma pasta ministerial:
Falam-nos de neutralidade escolar; mas já é tempo de declarar que a
neutralidade escolar nunca passou de uma mentira diplomática e uma
tartufice de circunstância. […] Nós a invocamos para adormecer os
escrupulosos e os timoratos; hoje já não se trata disto; joguemos limpamente
com cartas à mesa. O que tivemos sempre em mira foi organizar uma
universidade anti--religiosa de uma maneira ativa, militante, belicosa.

À míngua de outro agradecemos o merecimento da sinceridade. Ao


menos é falar com franqueza. Não creio, portanto, que se possa
demonstrar uma tese com mais evidência. Que a neutralidade
escolar seja uma impossibilidade prática, um título colorido para
cobrir a triste e nefasta realidade de uma escola atéia e anti-
religiosa, é a conclusão para a qual convergem, em condensação de
luzes, os resultados diretos de uma psicologia humana integral e as
confissões insuspeitas dos paladinos que com mais ardor a
preconizam. Temos, portanto, um resultado adquirido.
Concluirei com a razão mais profunda da impossibilidade de
uma escola neutra.
Educar é dirigir uma evolução e é impossível dirigir uma
evolução ignorando-lhe o termo. Educar é presidir a uma formação,
a um vir-a-ser, um fieri, um devenir, e é impossível formar ignorando
a forma que se deve dar. Dirão: educar é formar um homem.
Resposta vaga e insuficiente. Basta conservar a vida corporal, para
ser homem. Um homem belo e bom, καλός και αγαθός, na
expressão grega. De acordo. Ideal magnífico. Mas precisemos o
valor dos termos. Quando é que um homem é belo e bom? Que é
que constitui a harmonia de faculdades, o equilíbrio de
desenvolvimento necessário à realização deste ideal de beleza e
bondade?
Concretizar estas abstrações é definir a natureza do homem, a
finalidade do valor da vida, as nossas relações com Deus e os
nossos semelhantes, numa palavra é resolver o problema religioso.
Explicitamente formulada em princípios nítidos e conscientes pelas
inteligências mais robustas ou implicitamente envolvidas em normas
práticas de ação pelas inteligências menos especulativas ou mais
anêmicas, a solução religiosa da vida inevitavelmente preside ao
trabalho educativo e orienta-lhe todos os passos.
Educar, poderemos definir agora, é transmitir um ideal. Quanto
mais elevado, mais nobre, mais vívido for o ideal do educador, tanto
mais profunda e benfazeja será a sua influência formadora de
almas. Quando na vida dos povos surge um destes grandes
caracteres que sulcam na história um vinco profundo de sua
passagem, mais ainda, quando o firmamento da Igreja se constela
dos esplendores de um novo astro de santidade, instintivamente nós
volvemos um olhar interrogador para o passado do herói, e
com uma curiosidade comovida indagamos e percorremos os lares
longínquos de sua primeira existência. Que mãos plasmaram este belo
caráter de homem e de cristão? Que mãe ditosa se inclinou sobre este berço
onde se embalavam tão grandes esperanças? Que pai lhe deu os primeiros
exemplos de dedicação e de honra? Que educadores souberam discernir e
aproveitar todas estas riquezas em germe na sua alma infantil?137

E no grande homem de hoje rico de virtudes e aureolado de glória


nos comprazemos em contemplar todos estes vestígios ditosos e
indeléveis de sua primeira educação, como na beleza esguia de
uma catedral gótica subsiste, ainda, imortalizado na perenidade do
granito, o gesto feliz do gênio, talvez anônimo, que a elevou aos
ares com fé e amor.
Minhas senhoras. Em cada geração Deus escolhe algumas
almas privilegiadas para depositárias e transmissoras do ideal
cristão. São as almas de quem recebeu como vós a missão
nobilíssima de educar.
Felizes das que sabem viver em toda a sua sublimidade o
grande ideal divino. Mais felizes ainda as que consagram todas as
suas energias a transmiti-lo em toda a sua pureza às novas
gerações que surgem, ricas de todas as promessas e esperanças
do futuro. Qui ad justitiam erudierint multos fulgebunt quasi stellae in
perpetuas aeternitates; os que dedicam a vida à difusão de justiça
verão a sua existência como estrela, no firmamento das almas,
prolongar-se eternamente em fulgores perenes de gloriosa
imortalidade.138

Rio, 05 de junho de 1928.

126 Cf. Mt 6, 28–29; Lc 12, 27 — NE.


127 Soares de Passos, O firmamento — NE.
128 Provavelmente Mary Somerville, que escolheu esta frase de Agostinho como
epígrafe de On Molecular and Microscopic Science, 1869 — NE.
129 Cf. Jo 8, 12 e 14, 6 — NE.
130 Cf. Lc 2, 34 — NE.
131 Baunard, Le vieillard, p. 302.
132 Mélanges philosophiques, p. 410.
133 Renan.
134 Discurso na Câmara pronunciado em 1886.
135 Lett. del Card. Vicario de 25/06/1878.
136 P. 177.
137 Mainage.
138 Cf. Dn 12, 3 — NE.
A escola leiga é anti-social — não educa moralmente.
Exórdio — Papel da religião na vida e na escola.
I — Aumento da criminalidade juvenil atestado:
a) pelas estatísticas oficiais;
b) pelas autoridades mais insuspeitas.
(no Brasil Rui Barbosa)
II — Suas causas:
a) causas biológicas
b) causas econômicas } melhores ocasiões
c) causas sociais
Educação da vontade deficiente, de que são
responsáveis:
a) a família
b) principalmente a escola leiga; provas:
1 — coincidência cronológica,
2 — depoimento de autoridades insuspeitas,
3 — confissão dos delinqüentes,
4 — comparação direta da educação leiga e
confessional.
III — Razão filosófica da incapacidade educadora da escola
leiga:
a) falta de princípios diretores — anarquia das idéias
morais;
b) falta de estímulo ao esforço e ao sacrifício.
Peroração — Vitalidade e atualidade indispensável da
pedagogia cristã.
A Igreja depositária das grandes realidades espirituais.

Rio, 10/08/1928.
Escola leiga
II

S E EDUCAR é formar para a vida, a religião deve ocupar na


pedagogia o mesmo primado que exerce na realidade da nossa
existência. Na realidade da nossa existência a religião compenetra,
informa, vivifica e domina toda a nossa atividade ou não é religião.
Deus não pode ser um acessório dispensável na vida. Se o homem
lhe reconhece a existência e, através das vicissitudes da sua
inconstância, das quedas de sua fragilidade, orienta profundamente
a sua alma para o Princípio de todo o bem — é religioso. Se com a
blasfêmia da negação ou o descaso da indiferença destrói com as
palavras ou com os fatos a necessidade essencial do Princípio
absoluto de todo o ser, é irreligioso, ateu — teórico ou prático. Na
questão religiosa não há neutralidade possível; a vida moral do
homem necessariamente afirma ou nega a divindade.
Na pedagogia, a educação religiosa por sua natureza
desempenha o mesmo papel soberano. Ela não constitui
uma classe ou um dos ramos da formação da criança, mas é a alma de toda
a sua instrução e educação, a alma de toda a cultura; tudo compenetra e
vivifica, como a seiva que não é uma parte da árvore como o são as raízes e
o tronco, os ramos e as folhas, mas a todos se estende e a todos leva a ação
profunda de sua força vivificadora.139

Reconhecer esta transcendência da religião na formação do homem


é dar-lhe uma educação religiosa; desconhecê-la é formá-lo para o
ateísmo e a irreligião.
A neutralidade escolar portanto em matéria de religião é
praticamente impossível; escola leiga é um título enganador para
cobrir a triste realidade de uma escola irreligiosa e atéia, de um
ensino sem moral e sem Deus. Ora, instruir sem educar é um erro
fundamental em pedagogia, educar sem formar a consciência
religiosa uma utopia. Eis-nos chegados ao segundo requisitório que
formuláramos contra a escola leiga: antipedagógica e anti-social e
funestíssima nas suas conseqüências. Passamos assim da
discussão das idéias ao terreno dos fatos. Vejamos a escola leiga
em ação, contemplemos de perto as realizações de sua capacidade
educadora.
O campo de observação será a França. Se há país em que a
laicidade do ensino pudera produzir ótimos resultados é este.
Poucos povos possuem inteligência tão clara e metódica, tradições
pedagógicas tão excelentes e nenhum governo despendeu tão
largos recursos financeiros e se empenhou tão profundamente em
valorizar o laicismo escolar. Ora qual foi o resultado deste esforço
ingente, desta experiência realizada em condições tão favoráveis,
por uma nação privilegiada?
Aos fatos. Vós me haveis de perdoar a aridez das cifras e o
fastio das citações. Diante de outro auditório eu me contentaria de
resumir os resultados: fora mais simples e mais agradável, porém
menos científico e menos convincente. Não queremos declamar,
queremos mostrar a realidade tal qual ela é.
A criminalidade juvenil progride de ano para ano numa marcha
ascensional assustadora. Às estatísticas oficiais.
O número de menores punidos pelos tribunais franceses foi
nestes últimos anos de:

1872 18.000
1882 16.000
1886 23.000
1889 27.000
1896 36.000
1901 34.457
1908 33.619
1911 40.333140

Depois de duas tentativas efêmeras (1817… e 1833) a escola


leiga foi definitivamente instalada em França em 1882. A começar
deste ano a criminalidade ascende rapidamente. Já em 1886 atinge
23.000… até 1896, em que aparentemente estaciona e mesmo
decresce de pouco para elevar-se de novo a 40.000 em 1911. Disse
aparentemente, porque a marcha ascendente da criminalidade de
menores continuou a ser real inda que não visível. A população
juvenil tem baixado com a crise de natalidade cada vez mais aguda.
De 1897 a 1905 o número dos inscritos nos alistamentos militares
diminuiu de 16.398. Mais. Por esta época alterou-se o método de
registro. Enquanto se contavam os delitos punidos, começaram
depois a contar-se somente os delinqüentes. Assim um recidivo que
antes concorria com vários delitos por ano figura agora nas
estatísticas com uma só unidade. Mais; o governo atemorizado com
o efeito desastroso que produziam na opinião republicana estes
resultados lamentáveis do novo regime escolar, expediu ordens
sobre ordens a todos os magistrados para que relaxassem de rigor
na punição dos menores delinqüentes. Em 1898 uma circular
recomendava à polícia grande “discernimento”, espírito “largamente
humanitário” na prisão de certos delinqüentes. Os relatórios do
Ministério da Justiça de 1900 a 1905 contêm todos infalivelmente a
mesma exortação à indulgência animadora dos maus hábitos da
juventude desviada. Os jovens presos são quase todos enviados ao
procurador geral da república, repreendidos e enviados às suas
famílias sem que do delito e da sua punição fique o menor vestígio
nas estatísticas oficiais. O guarda-sigilos e depois ministro da justiça
Guyot-Dessaigne informa que em 1905 de 100 menores
denunciados 92 escaparam a uma repressão efetiva e, por este alto
feito, congratulava-se com “a benevolência refletida dos
magistrados”.
Há, portanto, um aumento real e contínuo que se pôde disfarçar
por algum tempo para revelar-se de novo evidente em 1911 em que
a criminalidade atinge a elevada cifra de 40.000.
Com o número cresce a gravidade dos delitos. Cruppi,
advogado-geral e mais tarde ministro do comércio, requerendo
contra um destes delinqüentes precoces, exclamou em plena
audiência: “Hoje, todos os grandes crimes são cometidos pelos
adolescentes”.141 Por volta de 1880 contavam-se anualmente 36
assassinos menores, de 1906 em diante este número passou a 76,
isto é, cresceu de mais de 100٪. A estatística de 1895 acusa 52
assassínios, 3 parricídios, 44 infanticídios, 2 envenenamentos, 7
abortos e 91 atentados ao pudor cometidos por menores de vinte
anos. Num só ano sobre 26.000 malfeitores presos em Paris,
16.000, isto é, quase dois terços não chegavam aos vinte anos. A
proporção dos recidivos, segundo a Revue Penitentiaire de maio de
1904, aumentou de 1884 a 1904 de 11% a 16% nos moços e de 9%
a 14% nas moças. Aumento de reincidência equivale a aumento de
delinqüentes habituais, de profissionais do crime.
Juridicamente o suicídio não pertence à categoria dos delitos,
mas o seu estudo no nosso caso é altamente interessante e as suas
estatísticas não se prestam tão facilmente à escamoteação que
vimos há pouco. Eis um gráfico representando a gradação dos
suicídios de menores entre 16 e 21 anos…
No quadriênio de 1871–76: 168; em 1896: 529; em 1900: 781;
em 25 anos quase que quadriplicaram. Eis a lição fria dos números,
tão eloqüente que se impôs aos mais ardentes advogados da escola
leiga. Ouçamos um outro testemunho. A Lanterne em 1908 fala das
“estatísticas sobre a criminalidade infantil de dia a dia mais
inquietante, do desenvolvimento atingido nestes últimos anos pela
precocidade dos criminosos”.142 No mesmo ano a Petite République:
“O aumento da criminalidade juvenil acusa-se tão inquietantemente
que toda a gente se preocupa com descobrir os meios de conjurar o
perigo”,143 e termina alvitrando a criação de tribunais para crianças.
Estes tribunais acabam de ser criados este ano. O próprio
Ferdinand Buisson, um dos grandes mestres da pedagogia leiga,
num Congresso Internacional de Educação Moral (1908), reunido
em Londres, escreveu estas linhas de uma concisão cínica que
muito revelam a quem as sabe entender:
É a experiência mais ousada que um povo ainda tentou sobre si mesmo: nós
chegamos a privar-nos deste resíduo impalpável, deste minimum de
religiosidade que a pequena democracia helvética e a grande república
americana tão cuidadosamente conservaram.

Fechemos com o veredictum do mais autorizado tribunal no


assunto, da Academia de Ciências Morais e Políticas, uma das
grandes cinco academias que constituem o Instituto de França. Em
1908, o assunto do concurso submetido ao prêmio do orçamento foi:
“Das causas e remédios da criminalidade crescente da juventude”.
Infelizmente no Brasil não dispomos em matéria criminal de
dados estatísticos que nos permitam avaliar numericamente a
progressão da delinqüência juvenil.
Mas não são necessários algarismos mortos, bastam olhos
vivos para ver a evidência da nossa crise moral.
Não há quem conheça de perto o meio social das nossas
grandes cidades que não generalize o que das classes armadas
afirmava há uns vinte anos com todo o peso de sua autoridade o
nosso Rui Barbosa:
Estudem o desenvolvimento da criminalidade militar entre nós e hão de
verificar, tenho por certo, que a delinqüência adquiriu nessa esfera expansão
notável e crescente desde que se varreu dos quartéis a influência civilizadora
do culto. Os nossos exércitos de terra e mar constituem hoje a este respeito,
pela mais errada inteligência das nossas liberdades, uma exceção absurda
entre os povos civilizados. Das coisas sérias, em nossa terra, por via de
regra, não se cogita.144

É, pois, um fato indiscutível e indiscutido o crescendo


assustador, pavoroso, da decadência moral da juventude.
Quais as suas causas?
Os fenômenos sociais, sobretudo nas condições da nossa vida
moderna, apresentam-se sempre à análise do observador imparcial
com tal complexidade orgânica que não é possível reduzi-los
simplisticamente à ação de uma causa única. Fora deformar a
realidade. Nesta trama tão complicada basta tocar um ponto para
estremecer nas mais variadas direções inúmeros fios que lhe vêm
trazer influências longínquas.
No caso que estudamos do avolumar-se da delinqüência dos
menores não é possível desconhecer a ação convergente de muitos
fatores.
Fatores biológicos. Infelizmente é muitas vezes sobre os pais
que recai o mais grave na responsabilidade dos filhos. Queimados
pelo alcoolismo ou avariados pelo vício transmitem aos seus
descendentes, com uma vida diminuída, a triste hereditariedade da
inclinação para o crime. Estas inteligências atrofiadas que raiam
com a idiotia, estas vontades anêmicas que já não sabem querer,
estes corações refratários à impulsão generosa dos sentimentos
elevados, tudo isto enxertado num sistema nervoso desequilibrado,
candidato a uma nevrose convulsiva, representa muitas vezes a
hipoteca funesta com que pais e mães viciosos agravaram de
antemão a existência que transmitiram aos herdeiros de seu nome.
É assim que, nas eras de decadência moral, quando uma raça entra
a declinar, de geração em geração se vai visivelmente acentuando a
degenerescência. Cantou-o Horácio, dos seus contemporâneos,
numa estrofe célebre: Aetas parentum…145
A tradução de Castilho poderia espelhar também um fato
contemporâneo.

Nós…
Afronta dos avós, produziremos
Raça pior, mais vil que nos afronte.

E estas taras congênitas — resultantes da hereditariedade


biológica, constituem inegavelmente um terreno favorável ao
desenvolvimento da criminalidade.
Fatores econômicos. Indicamo-los apenas. O industrialismo
moderno com as suas conseqüências: o desamparo dos campos e o
afluxo para as grandes cidades, a acumulação de milhares de
operários, desenraizados dos seus ambientes tradicionais e
amontoados em grupos heterogêneos, o pauperismo crescente, a
superexcitação das tendências demagógicas — tudo isto constitui
uma atmosfera mais funesta à higiene das almas do que o ambiente
fétido e intoxicado das vendas e dos cabarés à saúde dos corpos.
Mais perniciosos ainda os fatores sociais. A descristianização
crescente nas manifestações públicas da vida das nossas
sociedades modernas parece multiplicar de indústria as excitações
ao vício, revestindo o crime de todos da fascinação empolgante de
suas seduções. É a imprensa com as suas descrições passionais e
as suas complacências de cumplicidade, é a pornografia a excitar a
curiosidade mórbida das crianças, é a rua com as suas exibições
licenciosas, é o teatro e o cinema a resumirem numa síntese todas
as forças tentadoras do mal.
Causas biológicas, causas econômicas, causas sociais, quem
poderá negar, sem parcialidade, a ação de todos estes
componentes na desagregação da moralidade de crianças e
adultos? Mas não está ainda dita toda a verdade. Causas, chamei-
as agora; com mais exatidão filosófica de termos devera tê-la
chamado ocasiões. A causa do crime é uma só: a vontade livre do
homem. Onde não há liberdade como no sonâmbulo e no louco, aí
não há crime. Somos responsáveis dos atos que estão em nosso
poder e o ato de que somos senhor é, por definição, ato livre: liber
dominus sui actus, diz Aristóteles.
É, portanto, na liberdade humana malformada que devemos
procurar a causa mais profunda da delinqüência moral da nossa
juventude. O ambiente que a cerca — modificado, como vimos,
pelas modernas condições econômicas e sociais — pode constituir
e constitui de fato uma formidável tentação mas não uma
necessidade de praticar o mal; alicia mais ou menos fortemente mas
não determina irresistivelmente. Até a influência mais íntima dos
fatores biológicos pode ser vitoriosamente contraminada pelos
esforços sadios de uma educação bem orientada. Com exceção dos
anormais irresponsáveis — a moderna psiquiatria, reagindo “contra
a importância exagerada concedida ao fator fisiológico na gênese do
crime” pela escola antropológica italiana demonstrou claramente
que os meninos de hereditariedade carregada se bem educados
chegam a ser honestos e não se manifestam inferiores à moralidade
média. Demonstrações experimentais deste gênero subministram os
nossos institutos católicos de educação. Citarei apenas o Ospizio
Educativo dei Figli dei Carcerati, fundado em 1891 por Bartolo
Longo, na cidade de Pompéia, perto de Nápoles. Aí só se recebem
filhos de criminosos com a condição de lhe serem entregues na
primeira infância. Nos seus quase quarenta anos de existência o
instituto já formou para a sociedade, às centenas, operários
laboriosos, honestos pais de família e até sacerdotes exemplares.
O âmago da questão está pois na educação moral da vontade.
Se os incentivos externos se multiplicam ou se tornam mais
poderosos em força sedutora, tanto mais imperiosamente se impõe
à pedagogia o dever de temperar para a resistência caracteres de
aço.
Ora, corresponde a educação moderna a esta exigência
inadiável? Evidentemente não, respondem por nós os fatos. As duas
grandes instituições de educadores — a família e a escola, ficaram,
muitas vezes, abaixo de sua missão.
Não quero aqui fazer o processo à família moderna. Mas a sua
desagregação se acentua de dia para dia, a olhos vistos. O
individualismo dos seus membros tende a separá-los em unidades
distintas que, numa ambição de sempre mais independência,
buscam isoladamente os seus interesses pessoais. O egoísmo
exalta-se na febre do prazer com diminuição do espírito de
sacrifício. Daí uma crise de autoridade, uma crise de amor conjugal,
uma crise de solidariedade doméstica, uma crise de dedicação
constante, abnegada e generosa, tudo a refletir-se necessariamente
numa crise da sua eficácia educativa como santuário onde se
formam as consciências fortes.
Mas é à escola leiga que cabe sem contestação a grande
responsabilidade na deseducação moral da juventude moderna. É
uma conclusão que se impõe a qualquer observador imparcial pela
análise serena da totalidade dos fatos.
Aí está antes de tudo a coincidência cronológica entre os dois
fenômenos sociais: instalação da escola leiga e aumento da
criminalidade juvenil. Em 1882: 16.000 delinqüentes menores; em
1896: 36.000; isto é, em pouco mais de dez anos, a cifra duplicou! O
gráfico dos suicídios não é menos eloqüente: 128 em 1836; ligeiro
aumento (168) no quadriênio 1871–75, aumento explicável pelas
conseqüências da guerra e da revolução de 1870–71; órfãos sem
pais, famílias na miséria, etc. Apenas começam a amadurecer os
primeiros frutos da educação leiga, a linha dos suicídios ergue-se
quase vertical e, num crescendo incessante e incoercível, aí está a
atestar-nos as centenas de vidas ceifadas cada ano pela cobardia
de vontades malformadas para as lutas da existência. Em 1900
quase 800 suicidas menores! Menos de um quartel de século, o
número desses infelizes quintuplicou!
Esta coincidência altamente significativa não podia escapar aos
olhos de quantos estudaram de perto a questão. Já ouvimos os
depoimentos insuspeitos de Buisson e da revista maçônica
Lanterne. Ouçamos outras vozes autorizadas. Bonjean, juiz no
tribunal do Sena, escrevia em 1907, no Figaro: “A questão da
criminalidade juvenil é para a nossa pátria uma questão de vida ou
de morte. […] A causa principal desta volta à barbárie é sem dúvida
a educação irreligiosa”.146 Guillot, magistrado de singular
competência, juiz de instrução em Paris: “Nenhum homem sério
poderá deixar de verificar que o pavoroso aumento da criminalidade
coincidiu com as modificações introduzidas na organização do
ensino público”.147
Heilmaier, num livro recente e muito interessante unicamente
consagrado ao assunto que nos interessa:
Já em 1831 foi desterrado das escolas francesas o ensino da religião. A
criminalidade começou desde então a subir. O número de delinqüentes
elevou-se de 113.000 a 280.000, sem que para isto houvesse nenhuma crise
econômica ou outra causa, como a grande guerra mundial […]. Quando em
1856, em virtude da Lei Falloux, de novo se introduziu nas escolas o ensino
religioso o número de criminosos entrou a baixar anualmente de 14.000. Em
1882 as escolas foram novamente laicizadas. De novo, a começar de 1886,
observa-se um aumento na delinqüência.148

Paul Leroy-Beaulieu, um dos mais célebres economistas


franceses, escrevia nos primeiros anos do século XX: “De há muito,
mas principalmente de uns quinze anos para cá, tem-se dado à
instrução pública de meninos e meninas uma orientação que
equivale a um verdadeiro suicídio do país”.149 E as citações
poderiam multiplicar-se.
Ouvistes o testemunho dos números, ouvistes o depoimento de
magistrados e sociólogos, ouvi a confissão das vítimas. Aqui às
vezes são as vozes da desgraça que comovem. Citarei uma só, a
de um pobre soldado condenado à morte por crime gravíssimo.
Pouco antes de ser executado, escreve a um amigo: “Estas poucas
linhas têm por fim comunicar-te que, se resvalei em abismo tão
profundo, apesar de descendente de uma família honrada, foi só por
culpa da educação que recebi nas escolas durante minha
juventude”. E enumera alguns ensinamentos recebidos. Conta em
seguida que na prisão veio a conhecer um sacerdote que lhe
explicou quais os destinos da vida: até então nunca ouvira falar
deste assunto. E o infeliz remata:
Só desejara que estas linhas viessem abrir os olhos de tantos jovens que se
deixam iludir pelas falsas idéias que lhes inculcam. Hei de morrer bem, certo
de que Deus, misericordioso, me há de perdoar os meus crimes […]. O meu
coração, porém, sangra ao pensar nos meus pobres pais que hão de ficar
inconsoláveis. Saibam ao menos o meu arrependimento e o infinito de minha
dor. Meu último pensamento será deles. No Céu, espero, havemos de rever-
nos.150

Resta-nos ainda um último e eficacíssimo meio de prova: a


comparação direta entre os frutos da escola leiga e da escola
confessional. Falar do ensino religioso livre, glória da França
católica. Este confronto foi feito por homem de competência e de
absoluta insuspeição, por um racionalista sem fé, por A. Fouillée.
Em 1897 verificou ele numa das prisões de Paris, na Petite
Roquette, que sobre 100 menores detidos, 2 apenas saíam das
escolas confessionais. Não pode haver apologia social mais eficaz
do ensino religioso nem condenação mais peremptória do caráter
anti-social da pedagogia leiga.151
Como vistes não saímos até aqui do terreno positivo dos fatos,
ao qual quisemos absolutamente restringir a demonstração da
nossa tese. O aumento da criminalidade precoce acusando uma
perda progressiva do senso moral na juventude é um fato,
indiscutível e indiscutido. A responsabilidade do ensino leigo neste
grande desastre social, cuja importância dificilmente se pode
exagerar, é outro fato, tão evidentemente incontestável que só o
poderá pôr em dúvida quem desconhecer de todo a documentação
e informação positiva do assunto.
Observamos até aqui; filosofemos agora. Citamos fatos,
elevemo-nos à região superior das idéias. Vimos o que é;
investigamos a sua razão de ser.
A razão de ser deste fracasso pedagógico é a incapacidade
radical e irremediável em que se acha a escola leiga de formar
caracteres, de dar uma educação moral eficiente.
Para formar os jovens à virtude é necessário o concurso
indispensável de dois fatores psicológicos: é mister esclarecer-lhes
a inteligência sobre a natureza dos seus deveres, é mister
subministrar-lhes à vontade motivos poderosos para vencer as lutas
interiores e as dificuldades externas que muitas vezes se opõem ao
cumprimento dos deveres conhecidos. A escola neutra, por sua
mesma natureza, se acha na impossibilidade de incutir eficazmente
nas consciências infantis uma e outra coisa.
O primeiro elemento de um caráter é a firmeza de princípios
diretores, é um complexo coerente de juízos de valor, capazes de
orientar constantemente a ação e de prestar à vontade o apoio de
convicções profundas. O adolescente deve conhecer com certeza e
particularidade os seus deveres, os deveres atuais e os deveres que
se irão manifestando, pelo tempo adiante, nas diferentes condições
da vida. Agora, pergunto eu, como irá formular o seu código de
moral uma escola que, por princípio, corta todas as comunicações
com a filosofia e a religião, isto é, com os fundamentos
insubstituíveis de toda e qualquer moral? Não quero aqui agitar a
questão, teoricamente interessante, de saber determinar em
abstrato, quais os preceitos de ética que pode conhecer a razão
humana desamparada de qualquer revelação religiosa.
Conservando sempre o contato sadio e seguro com a realidade
experimental contento-me em registrar no campo da chamada moral
leiga a mais pavorosa anarquia intelectual. Passou-se apenas uma
geração e já não têm conto as morais que se sucederam nestes
quarenta anos. Já vai longe a primeira fase espiritualista de Jules
Ferry, que plagiou o catecismo cortando-lhes os deveres positivos e
os dogmas divinos que lhe dão a força educativa. Com Buisson
tivemos a fase do protestantismo liberal, com Payot a do
evolucionismo monista, com Dufrenne a do materialismo, com
Jaurès a do socialismo, com Bayet e Reinach a que se inculca moral
científica. Nesta deliqüescência progressiva não ficou de pé
nenhuma destas noções fundamentais sobre as quais repousa a
moralidade: bem, dever, obrigação, virtude e sanção, tudo foi
negado e ridicularizado.
No domínio da ética particular — individual, doméstica e social
— não houve monstruosidade que não encontrasse o seu
apologista. Justificou-se o suicídio como prova de fortaleza, o
homicídio passional e a devassidão em nome do amor, os adultérios
como um “direito do coração”, o divórcio e a união livre como um
corolário do “direito à felicidade”, o egoísmo individual, o egoísmo
profissional, o egoísmo nacionalista como conseqüência espontânea
da “luta pela vida”, o struggle for life darwiniano que é a lei da
existência.
Minhas senhoras, é impossível descrever em poucos instantes
o caos doutrinal que por aí reina. Só quem tem acompanhado de
perto este movimento de idéias pode avaliar a profundeza desta
desorientação das inteligências, desta anarquia que reina no ensino
moral das escolas leigas. Citar-vos-ei apenas um fato recente.
Reuniu-se em Roma anteontem, quero dizer, em 1926, o 4º
Congresso Internacional de Educação Moral Leiga, com o fim de
investigar e formular “um código de moral universal”, naturalmente
em substituição ao Decálogo já cansado e ao Evangelho já fora de
uso. O que houve de divergências irredutíveis ou de superficialidade
palavrosa é indescritível. Muitos dos congressistas declararam-se
imediatamente pela impossibilidade de semelhante empresa, outros
ocultaram esta impotência insanável sob a retumbância vazia de
uma fraseologia ampolosa. O inglês Frederick Gould, secretário-
geral da comissão, depois de votar pela impossibilidade de um
código, julga útil que se ensine a juventude de todas as nações “a
apreciar as normas do sentimento, do pensamento, da ação social,
da luta cósmica comum pela ordem em todas as esferas”. Quais são
estas normas e em que consiste esta ordem… Outro inglês, Spiller,
organizador do 1º congresso da série, julga “possível a elaboração
de um código, mas adaptado a cada tipo de escola, a cada nação
em particular e sem pretensão a exaurir qualquer um dos problemas
morais”. Em resumo, entre o sim e o não Spiller é de parecer
contrário. Adolphe Ferrière, suíço, um dos grandes promotores da
“pedagogia nova” de inspiração anticristã, e cujo órgão em quase
todas as nações é o Ere Nouvelle, disse que “se pode conceber um
código de moral universal, não imposto mas proposto aos homens
consistindo em leis de higiene social e espiritual, leis no sentido
naturalista não jurídico”. Um código de leis proposto mas não
imposto significa: Fazei assim se quiserdes; se não quiserdes, fazei
o que bem vos agradar.152 Remate: antes de se separarem os
operários do pensamento, a presidência declara que o Congresso
não tomará deliberação nem formulará conclusões. Fórmula
parlamentar para encobrir ao público a falência completa da moral
leiga. Eis, portanto, a instrução moral que se pode dar nas escolas
neutras: os nossos jovens entram para a vida sem ter o
conhecimento certo de um só dos seus deveres, isto é,
psicologicamente, organismos sem resistências, prontos a ceder à
violência da primeira inclinação viciosa, à sedução do primeiro
prazer criminoso.
Existência de princípios diretores e de juízos de valor, primeira
condição indispensável da educação moral, mas condição
insuficiente. Não basta conhecer a lei para observá-la. A lei, por si,
não dá a energia e a força de fazer o bem, sua ação é iluminar a
inteligência sem estimular a vontade. Precisamos de luz que nos
indique o caminho, mas precisamos outrossim de força motriz para
progredirmos nele.
A instrução, mesmo a instrução moral, é de todo ponto
insuficiente: é ponto que já tratamos. O verso de Petrarca decalcado
sobre Ovídio resume perfeitamente a experiência humana: “Veggio il
meglio ed al peggior m’appiglio”.153 O cumprimento do dever na
prática impõe quase sempre sacrifícios penosos — sacrifícios para
vencer as dificuldades externas — toda espécie de solicitações
tentadoras do ambiente, sacrifícios para vencer a luta interior
resultante das paixões que pululam no fundo da nossa natureza.
Cumpre então fortificar a vontade, subministrando-lhe motivos
capazes de lhe inspirar e sustentar a continuidade do esforço contra
todos os adversários do dever. Aqui a bancarrota da moral leiga.
Depois do vazio doutrinal, a importância prática. O sacrifício —
pedra angular da vida moral — não o pode justificar nem inspirar
nenhum laicismo naturalista. Vede-o. Há no homem uma tendência
inata, profunda, incoercível — para a felicidade — mola primeira e
última de toda e qualquer ação.
Desejar o sacrifício pelo sacrifício é contra a natureza da
vontade. O sacrifício é a privação de um bem e a vontade tende
para o bem como o termo natural de suas aspirações. O sacrifício
só nos aparece racional, aceitável e apetecível como meio para o
conseguimento de um bem maior. É mister que no fundo da nossa
consciência — lá onde se orienta toda a nossa atividade moral,
domine incontestável a certeza absoluta da união indissolúvel do
dever com a felicidade. Só assim os sacrifícios impostos pela
fidelidade à consciência se nos apresentam como condição
iniludível da nossa felicidade, isto é, da perfeição definitiva da nossa
natureza. Ora, apagai das almas a idéia de um Deus legislador que
só pode intimar às consciências a voz imperiosa do dever, apagai a
idéia de um Deus juiz que só pode ler no íntimo dos nossos
corações o valor dos sacrifícios ocultos para um dia unir
eternamente a felicidade à virtude, estreitai o horizonte das nossas
esperanças à caducidade vertiginosa da vida terrena — e tereis
irremediavelmente minado todos os fundamentos da grandeza
moral. Esta vida toma então aos nossos olhos um valor absoluto; o
problema da felicidade deve resolver-se definitivamente aqui. Cada
qual, segundo o seu temperamento, colocará o seu ideal de
felicidade num bem terreno, no prazer o sensual, na glória o
soberbo, no poder o ambicioso. Estes bens assumem o valor de
bem último — e todos os meios que lhe condicionarem o
conseguimento serão abraçados pela vontade com o mesmo ímpeto
incoercível com que aspira à sua felicidade. Não há força humana
capaz de impor o sacrifício. Sinceramente cuidam estes sonhadores
incorrigíveis, que andam a caminhar sobre as nuvens, que um
jovem porá freios aos ímpetos veementes das paixões em
efervescência em nome de umas tantas leis promulgadas por um
prefeito municipal ou um ministro da instrução pública? Pensais que
um operário se resignará aos desconchegos da pobreza e aos
sofrimentos de sua vida modesta porque assim o exige a ordem
social e o bem comum da coletividade? Não; o filho do povo
raciocinará de outro modo. Sou homem igual a qualquer homem.
Tenho tanto direito à felicidade como os que possuem e os que
mandam. Por que a mim, por toda a vida, a privação, o trabalho mal
remunerado, a morte na miséria e a outrem o gozo de todos os
prazeres, a abundância de todos os luxos, o repouso de todos os
divertimentos? Assim o exige a ordem social? Pois bem, nós somos
a força do trabalho, a força do número, a força da organização;
dinamitemos a presente ordem social. Invertamos a posse da
propriedade. E quando amanhã o ouro, o prazer e o mando
estiverem nas nossas mãos, quando os mimados da fortuna de hoje
respirarem o ar infecto das nossas fábricas e se estiolarem na
umidade das galerias subterrâneas de nossas minas, pregar-lhes-
emos a resignação e o sacrifício em nome da nova ordem social.
Que responder à terrível lógica da revolução com os recursos
da moral leiga? Nada, minhas senhoras. Só se poderá viver opondo
a força à força. A ordem moral desaparece. Não nos admira,
portanto, que o laicismo não só seja impotente para inspirar
praticamente o sacrifício — isto é, o dever, mas que até em teoria já
lhe não perceba a grandeza. Um episódio. No último congresso da
“pedagogia nova” reunido o ano passado (1929) em Locarno, uma
professorinha ingênua da Suíça pergunta “quais os meios práticos
de desenvolver na criança a renúncia e espírito de sacrifício”. A
conferencista do dia, a Sra. Guéritte, arqueando as sobrancelhas
num gesto de admiração escandalizada: “Renúncia, espírito de
sacrifício? Mas com que fim?”.154 É a apoteose do egoísmo elevada
sobre os destroços da consciência e da moral.
E aí tendes as razões psicológicas do triste fato que
assinalamos na primeira parte. A escola leiga não educa porque é
incapaz de educar.
É antipedagógica porque não forma o homem no que ele tem
de mais nobre, é anti-social porque na generalização progressiva do
vício e na multiplicação deplorável do crime prepara a desagregação
das sociedades. Atualmente, em França, a escola leiga atira cada
ano no convívio civil mais de 50.000 menores delinqüentes!

Sobre os escombros de tantas ruínas morais acumuladas pelo


laicismo sem Deus, bem pudera a Igreja entoar um hino de triunfo.
Não há mais persuasiva apologia de sua insubstituível ação
civilizadora do que esta catástrofe — feita de anarquia doutrinal e de
esterilidade prática — dos que resolveram esquivar-se aos
benefícios de sua influência educadora. Mas a Igreja não canta
quando as almas sofrem. Ante os sofrimentos desta tragédia
espiritual em que se debatem angustiosas e perplexas tantas
consciências sem luz e sem força, sem vida e sem esperança, sem
ideal e sem amor, ela multiplica os recursos do seu zelo, os
prodígios inesgotáveis de sua caridade divina. Mais do que nunca, a
Igreja se ocupa em nossos dias do grande problema da educação,
porque só ela possui o segredo de sua solução integral. Não nos
corramos de proclamar bem alto esta verdade salvadora.
Saibamos ter a coragem de nossas convicções e a seu tempo
dar a resposta que deu o deputado italiano Bodrero, em nome do
ministro da instrução pública, ao convite feito pelo 4º Congresso
Internacional de Educação Moral Leiga:
O governo nacional italiano está convencido que a única forma possível de
educação moral é a estabelecida pelo Evangelho de Cristo, na interpretação,
na tradição e no ensinamento católico, dos dez mandamentos da lei de Deus
ao catecismo.155

Católicos há, por vezes, tímidos que, ante a fraseologia dos


paladinos da pedagogia anticristã, invocam pomposamente o
patrocínio da ciência e as exigências da consciência moderna; que
se envergonham do que devera ser um título de honra e encolhem-
se humilhados como que a suplicarem para a educação cristã um
edito de tolerância. Não! O fundamento dos nossos direitos, a
solução jurídica do regime escolar, vê-lo-emos na próxima palestra;
por hoje podemos concluir que é precisamente a ciência moderna, a
psicologia experimental e a eloqüência dos fatos sociais que nos
vieram trazer no campo pedagógico mais uma confirmação
incontrastável de uma grande verdade geral. A Igreja não envelhece
nunca na perene juventude de sua imortalidade.
Ela é feita para os eternos renascimentos; nunca é de ontem; é
sempre de hoje; concidadã de todas as pátrias e coeva de todas as
idades. Há vinte séculos que as civilizações se sucedem ao seu
lado, ela não é solidária de nenhuma das formas contingentes da
vida social humana. A todas vivifica com a seiva de sua vida divina,
mas quando as instituições humanas caem desfeitas e gastas pelo
tempo que consome tudo o que é feitura de nossas mãos, ela,
sempre viva e imortal, vai aviventar as novas formas que surgem
viçosas nas esperanças da sua juventude. É que Deus a fundou no
seio da humanidade como depositária incorruptível das verdades
essenciais, como distribuidora fiel dos auxílios indispensáveis de
que a humanidade há mister para atingir os cimos elevados dos
seus eternos destinos. Nela e só nela se conservam intactas estas
realidades espirituais sobre as quais descansa a vida, a grandeza e
a felicidade dos indivíduos e dos povos.

A. M. D. G.

Rio, 07 de agosto de 1928.

139 Cardeal Guisarola.


140 Klimke, pp. 51–52.
141 RPA. I, p. 162.
142 30/09 e 07/12/1908. DAFC.
143 05/09.
144 Discurso no Colégio Anchieta.
145 Odes, III, VI, 46 — NE.
146 Klimke, p. 51.
147 Ibid. RPA.
148 Der Moralunterricht in der französischen Laienschule, 1918, p. 85. Klimke, p.
51.
149 Klimke, p. 59.
150 Klimke, p. 50.
151 V. a demonstração experimental da eficácia do ensino religioso sobre a
moralidade nos Études, t. 179 (1924), p. 317.
152 Cf. Civ. Catt., 1927, I, p. 53.
153 Canzoniere, CCLXIV, 136 — NE.
154 Civ. Catt., 1927, II, p. 291.
155 Cf. Civ. Catt., 1926, IV, p. 193.
Solução jurídica

Exórdio — Necessidade do ensino religioso. Como conciliá-lo com o


agnosticismo dos governos? Eis o aspecto jurídico da questão.
I — Complexidade da questão. Família, Igreja, Estado na
educação.
Aos pais incumbe o dever de educar:
a) é a razão de ser da família;
b) só nela se encontram os sentimentos exigidos para uma
boa educação.
Direito positivo confirmando o direito natural.
A escola — instituto complementar da família, quem a pode
instituir?
Direitos dos pais sobre as escolas.
II — A escola oficial leiga.
Sua origem e sua justificação jurídica.
A solução do problema no terreno do direito comum.
A escola leiga é:
a) uma iniqüidade material;
b) uma opressão das consciências.
A consciência das maiorias.
A consciência dos fracos e pobres.
Peroração — A escola — teatro da luta das duas cidades
cristã e anticristã.
A. M. D. G.

Dada às professoras do Sacré-Coeur, 20/09/1928.

Rio, 12/09/1928
Escola leiga
III – A

A MARCHA ascendente da criminalidade juvenil constitui um dos


sintomas mais alarmantes da moderna vida social. Um vício
orgânico desequilibrou a nossa pedagogia e as gerações que
surgem acusam, com uma depressão do ideal humano, um
abastardamento progressivo dos caracteres. A diagnose serena e
desinteressada do terrível mal aponta-lhe como uma das causas
principais a eliminação do ensino religioso nas escolas. Com
exceção de sectários fanáticos, incapazes de observar e falar com
imparcialidade, é ponto este sobre o qual estão de acordo católicos
e protestantes, crentes e incrédulos. Para os que não vêem a
realidade com olhos mais penetrantes alumiados pela luz da fé, a
influência moralizadora do ensino religioso impõe-se com a
evidência brutal de um fato, fato social e fato psicológico.
Colocando-se exclusivamente no campo da psicologia experimental,
escreveu Claparède:
Destruir bruscamente as crenças religiosas de um adolescente é correr o
risco de produzir um vazio [un trou] no seu sistema mental. Com a
instabilidade que caracteriza este período, pode seguir-se uma
desorganização completa. Se este acidente sobrevém no momento preciso
em que o jovem tomara as suas crenças religiosas como suporte de todas as
suas idéias, como ponto de apoio de seu procedimento, esta demolição
acarreta uma catástrofe: crise de melancolia, pessimismo ou suicídio.156

Alfred Fouillée chega à mesma conclusão partindo da observação


social da delinqüência juvenil. Ocupando-se do caso particularmente
doloroso da França para investigar-lhe as causas e os remédios, diz
o filósofo das idéias-forças:
Além do abuso dos preconceitos intelectualistas, da confiança exagerada na
virtude moralizadora das ciências positivas, fomos também vítimas de
preconceitos políticos, religiosos, anti-religiosos […]. Qualquer que seja a
opinião que se forma sobre os dogmas religiosos, cumpre reconhecer esta
verdade elementar da sociologia: as religiões são um freio moral de primeira
ordem; mais ainda, uma alavanca moral. O cristianismo particularmente foi
definido um sistema completo de repressão para todas as tendências más.
Particular merecimento seu, pelo qual se opõe a todas as religiões antigas, é
o de prevenir as determinações más da vontade, combatendo-as no seu
primeiro germe: o “desejo”, a mesma “idéia”; daí a expressão pecar por
pensamento, expressão, diz Garofalo, de que só se poderá servir uma
psicologia superficial.157

O que Claparède e Fouillée afirmaram em nome das ciências


de observação confirmaram todos os grandes condutores de povos
desde Napoleão até Mussolini, desde Washington até Coolidge.
Para quantos cremos em Deus e encaramos os grandes
problemas pedagógicos de uma altura mais elevada e menos
utilitarista, o desequilíbrio moral do educador sem religião não se
apresenta apenas como a contingência de um fato histórico mas
como a conseqüência inevitável de uma necessidade essencial. O
homem é, por construção, um ser religioso. Apagar-lhe Deus da
consciência é tirar-lhe o centro natural de gravitação, é abrir-lhe na
vida moral um vazio infinito que a finitude de coisa alguma criada
poderá jamais preencher.
Católicos e não-católicos, sábios e estadistas, estamos, pois,
todos de acordo em afirmar a necessidade insubstituível do ensino
religioso. Como, porém, conciliar este ensino ministrado nas escolas
oficiais com o agnosticismo religioso professado por muitos Estados
modernos? Em países de população dividida entre vários credos
como ensinar um deles sem ferir a liberdade de consciência dos
dissidentes? Eis-nos assim chegados ao aspecto jurídico da escola
leiga, que me parece de importância capital. O laicismo oficial da
nossa Constituição aparece a muitos como um obstáculo
insuperável, como um espectro que paralisa, nas suas primeiras
iniciativas, qualquer energia que se queira aplicar a uma solução
séria do problema moral na educação do nosso povo.
Importante, porém, nem por isso deixa a questão de ser árida.
Com outro auditório feminino dificilmente eu me decidiria a fazer a
travessia monótona deste deserto onde não há a frescura de um
oásis para descansar um pouco, onde não encontraremos uma só
flor de poesia para colhermos no nosso caminho. Mas vós já
mostrastes que eu posso submeter a provas rudes a boa vontade da
vossa atenção e da vossa paciência.
A solução jurídica do problema escolar relaciona-se
essencialmente com os grandes princípios sobre que se baseia a
existência, o equilíbrio e a harmonia da vida social. Não é destas
questões que se podem abandonar à arbitrariedade dos legisladores
ou às flutuações da política. Onde se acham em jogo os interesses
espirituais das almas, a formação moral dos caracteres, a
preparação civil e patriótica dos futuros cidadãos, aí a Igreja, a
família e o Estado têm incontestável direito a uma intervenção
inelutável. E só na harmonização racional e sincera de todos esses
direitos se encontrará a chave de uma solução justa, pacífica e
duradoura.
O primeiro princípio que domina toda a controvérsia é o do
direito natural dos pais à educação dos seus filhos.
Para o homem, para o rei da criação, nada tão humilhante
como o seu nascimento. Vede-o a vagir entre as cambraias do
berço: é a expressão da impotência. O corpo, frágil, incapaz de
procurar o alimento indispensável ao seu desenvolvimento físico; a
inteligência adormecida numa letargia de que não despertará senão
com o lento decorrer dos anos; a vontade, paralisada a princípio e,
depois, por longo prazo incerta ainda e sem as energias capazes de
imprimir, por entre a anarquia dos instintos, uma orientação firme e
constante a toda a atividade humana. Que distância desta
criancinha frágil ao homem completo, autônomo, capaz de viver por
si e de bastar a si! Serão necessários, aproximadamente, uns vinte
anos antes de atingir esta plenitude do seu desenvolvimento natural.
E a quem incumbe o dever de prover às exigências de sua evolução
física, intelectual e moral, de amparar a sua fraqueza, de suprir a
sua inexperiência, de defendê-lo do vício, de encaminhá-lo para a
virtude, de formá-lo para a vida, homem apto à realização dos seus
destinos, numa palavra; de educá-lo?
Indiscutivelmente à família. É a sua mesma razão de ser. A
família é a grande instituição a quem a natureza confiou a
conservação da espécie, isto é, a formação de novos homens, que
se vão sucedendo na imortalidade das gerações. Autores de uma
vida incompleta, os pais têm o dever estrito de levá-la ao
complemento de sua perfeição natural. A geração sem a educação
seria essencialmente uma obra falha, imperfeita e sem finalidade.
Uma é o complemento natural da outra.
Aos pais, portanto, incumbe primeiro o dever de educar os
filhos; e só eles o podem fazer. A educação exige como condição
essencial de sua eficácia um complexo harmonioso de sentimentos
que só se encontram normalmente no santuário da família. No
educador quer-se autoridade, firme mas temperada pela suavidade,
forte mas terna, que se imponha sem discussão à obediência e à
confiança — tal é a autoridade paterna e materna; quer-se ainda
longanimidade, paciência, sacrifício e dedicação que nunca se
desmintam durante o longo, difícil e delicado período da obra
educativa, e estes sentimentos só os pode inspirar o grande amor
que consagram os pais aos que são a carne de sua carne, os ossos
de seus ossos, o prolongamento querido de sua existência terrena.
No educando quer-se confiança, docilidade, obediência e tudo isto
nos filhos se encontra com a espontaneidade de um instinto.
Acrescentai a continuidade da influência educativa, que a torna mais
eficaz, a intimidade das relações domésticas que permite
conhecimento mais profundo da índole das crianças e vos
convencereis facilmente de que à paternidade, fonte da vida, impõe
a própria natureza imutável das coisas a responsabilidade
indeclinável da educação, aperfeiçoamento essencial da mesma
vida. Numa época em que se procura — às vezes
anticientificamente — esclarecer as leis da humanidade com as
analogias tiradas da psicologia comparada dos animais, poderíamos
ainda acrescentar este argumento: em todo o reino animal os
filhotinhos incapazes ainda de se bastarem a si mesmos recebem o
complemento educativo daqueles mesmos de quem receberam a
vida.
O que no-lo diz a razão, o que no-lo inculcam os instintos
reconheceu-o sempre a consciência da humanidade. Com uma
magnífica unanimidade moral o direito positivo sanciona o direito da
natureza. Com exceção de Esparta na Antigüidade e do socialismo
bolchevista nos nossos dias, todos os códigos civis, antigos e
modernos, reconhecem e promulgam o grande dever escrito com
caracteres indeléveis no fundo das consciências.
Grócio: “Jurisconsulte veteres liberorum educationem ad jus
naturale referunt, id est, ad illud, quod cum instinctus naturae aliis
quoque animantibus commendat, nobis ipsa praescribit ratio”.158
Código Civil Italiano: “Il matrimonio impone ad ambedue i
coniungi l’obbligazione di mantenere, educare e istruire la prole”.159
Constituição de Weimar: “A educação física, moral e social da
prole é dever supremo e direito natural dos progenitores, sobre cuja
execução vigia o Estado”.160
Dever natural e portanto direito também natural. Todas as vezes
que a natureza nos impõe uma obrigação, nos outorga outrossim
todas as faculdades morais indispensáveis ao seu desempenho.
Como direito natural, o direito educativo dos pais é inviolável:
nenhuma lei positiva pode confiscá-lo ou pôr-lhe obstáculos; como
dever natural é indeclinável; nenhum pai pode, sem ferir sua
consciência, eximir-se às conseqüências naturais da paternidade, e
nenhuma sociedade, civil ou religiosa, pode dispensá-lo. “Somos
livres”, diz Lacordaire, “de abrir mão de um direito, mas não somos
livres de renunciar a um dever”.
Longa, porém, e complexa é a tarefa educativa. Para levá-la a
termo míngua muitas vezes aos pais o tempo e a competência, o
tempo absorvido pelas necessidades da vida material, a
competência que, de si, não pode estender-se à universalidade do
enciclopedismo. Como auxiliar e colaboradora dos pais na obra
educadora surge então a escola, que de sua natureza é uma
instituição complementar da família, destinada a ajudar, integrar e
suprir a sua ação educativa. É só em nome dos pais e com a
autoridade por eles delegada que qualquer educador pode, na
ordem natural, exercer as funções de seu magistério.
A quem compete instituir escolas? Antes de tudo, aos próprios
pais. Os que têm o direito primordial de instruir e educar têm
outrossim o direito de associar-se para obter com a convergência
dos esforços o objetivo comum que as forças isoladas seriam
incapazes de atuar. Depois aos indivíduos, livres e associados, que
quiserem oferecer aos pais a colaboração de sua competência
profissional. Finalmente quando as iniciativas particulares são
insuficientes, ao Estado, cuja função é, juntamente com a tutela da
justiça, promover a prosperidade pública. Na educação da juventude
ao Estado não assiste nenhum direito primário e exclusivo; sua
função é supletiva: auxiliar as famílias no cumprimento de sua
missão, respeitando-lhes todos os direitos naturais e inalienáveis.
Daí nada mais fácil que deduzir os direitos dos pais sobre as
escolas, quaisquer que elas sejam, fundadas livremente pela
iniciativa particular ou instituídas pelos poderes públicos.
Às famílias assiste antes de tudo o direito de optar livremente
pela escola de sua confiança, a que melhor corresponde ao seu
ideal educativo e às exigências da própria consciência moral e
religiosa. Esse direito implica necessariamente o de escolha do
mestre. O mestre é a alma e a vida da escola. Tal mestre, tal escola;
tal escola, tais alunos. A evidência desse direito não pode ser
negada sem destruir a ordem jurídica natural que já estabelecemos.
Onde fosse lícito ao Estado ou a qualquer pessoa, física ou moral,
impor uma escola às famílias, aí se consumaria a violação da mais
intangível das liberdades. Forçar o limiar dos lares, arrancar dos
braços de seus pais uma criança de seis ou oito anos para
enclausurá-la numa escola onde se nega o que a educação
doméstica afirmou, onde se afirma o que ela nega, onde se destrói o
que ela construíra — é a mais intolerável opressão das
consciências.
Com a livre escolha da escola não se desempenharam ainda os
pais de todas as suas obrigações. Incumbe-lhes ainda o dever e
portanto assiste-lhes o direito de seguir e fiscalizar uma educação
que é dada em seu nome e em seu lugar. Os professores ficam
sempre representantes e delegados dos direitos paternos, mas
educadores natos e essenciais são sempre os pais que não podem
nunca alijar sobre ombros alheios todas as responsabilidades desta
incumbência. Acompanhem, portanto, de perto, os seus filhos,
fiscalizem os livros de textos, as doutrinas ensinadas, o
procedimento dos mestres, para sancionar com a sua autoridade a
educação, se corresponde aos ditames de sua consciência, ou
retirar a tempo os meninos de uma escola que, em vez de educar,
perverte e corrompe.
Só assim se salvaguardam as prerrogativas naturais,
intangíveis e inalienáveis da paternidade; a escola conserva o seu
caráter essencial de prolongamento da família e os que nela
educam não exorbitam das suas atribuições de mandatários e
representantes dos pais.
Só assim também — corolário espontâneo da ordem natural
respeitada — se pode assegurar à obra educativa a sua unidade
indispensável e, com a unidade, o segredo de sua eficácia. Admitir,
por uns instantes, que a escola possa imprimir à sua pedagogia uma
orientação moral oposta à das famílias, admitir que aos seus
professores seja lícito transformar-se de colaboradores em
adversários da educação paterna e tereis oposto, em antítese
funesta, duas instituições complementares que a natureza das
coisas exige colaborem na convergência pacífica da mais
imperturbável harmonia. Escola e família inspiradas em princípios
morais e religiosos opostos destroem-se reciprocamente com
incomensurável prejuízo da criança. Na sua alma infantil o
antagonismo de suas influências, ambas prolongadas, profundas
ambas, acabará por produzir o irreparável dano da ruptura
psicológica do equilíbrio interior: na inteligência o ceticismo, na
vontade o desânimo e a falta de alento para os sacrifícios do dever.
Consciências sem ideal e sem convicções, sem energia e sem
virilidade, vítimas amanhã da tirania das primeiras paixões violentas.
Não são estes os homens que passarão pela vida fazendo o bem,
fiéis a Deus, úteis à família e à pátria. A oposição entre a escola e o
lar deformou-os: a obra educadora e formativa, que exige a unidade
como condição essencial de êxito, ficou irremediavelmente
comprometida.
À luz destes princípios podemos examinar imparcialmente a
situação jurídica de um Estado que decreta a laicidade confessional
e filosófica do seu ensino. A educação a-religiosa ou irreligiosa era
uma monstruosidade desconhecida nos fastos pedagógicos da
humanidade. Inventou-a a Revolução Francesa. Nos paroxismos de
uma crise de demência, a humanidade decretou a própria apoteose
e condenou Deus a um ostracismo que lhe pareceu irrevogável. Mas
Deus, o Indispensável de toda a vida humana, Deus, o Eterno
necessário, Deus voltou, voltou à vida social pelo restabelecimento
da hierarquia eclesiástica que havia sido exilada ou guilhotinada,
voltou aos seus templos que se haviam fechado e voltou às
consciências que d’Ele não podem prescindir. Não voltou, porém,
definitivamente à escola. A sua laicização preconizada por
Condorcet, conservou-a o liberalismo de alguns Estados que a
pusera sob a proteção jurídica de um princípio mal entendido. O
Estado, na moderna divisão religiosa que separa as consciências
dos cidadãos, não se pode ligar a nenhuma religião positiva, a
nenhuma igreja. De sua natureza é incompetente em matéria
religiosa. Indiferente a todas as formas do culto, a todos respeita, a
nenhuma protege. A escola de Estado deverá, necessariamente, ser
uma escola leiga, uma escola neutra.
Creio que bem poucos juristas sérios estejam sinceramente
convencidos da procedência de semelhantes argumentos.
Manejam-nos, porém, com habilidade os políticos interessados em
enfeudar o Estado à sua propaganda sectária.
A força de pisada e repisada, esta defesa pseudojurídica de
uma instituição nefasta acaba atuando, por sugestão, nas esferas
de meia cultura e adquire em muitos espíritos os foros de dogma
indiscutível, afirmado pomposamente como uma das conquistas
intangíveis da civilização moderna.
A realidade, porém, é bem outra. A questão das relações entre
a Igreja e o Estado e a do ensino religioso nas escolas não são
solidárias. Diversos e independentes são os princípios jurídicos que
presidem à solução de uma e de outra.
Sem pressupormos, portanto, resolvida favoravelmente pelo
Estado a aceitação oficial de uma religião positiva, defendemos a
necessidade do ensino religioso, no terreno do direito comum, em
nome dos princípios incluídos em todos os pactos fundamentais dos
povos cultos e unanimemente reconhecidos como condição
essencial da vida jurídica e social da civilização moderna. É
precisamente em conseqüência de sua atitude tomada diante da
religião que ao Estado incumbe o dever de conservar o ensino
religioso nas escolas. Com o risco de parecermos enunciar um
paradoxo, diremos que o ensino confessional é um postulado da
laicidade do Estado.
De fato contra a escola leiga, tal qual é praticada entre nós,
formulamos juridicamente duas acusações: fere a justiça social e
ofende a liberdade de consciência: é uma iniqüidade material e uma
opressão espiritual.
Uma iniqüidade material. Muitas vezes ao ensino oficial se dá o
nome de gratuito. É eufemismo de convenção ao qual não responde
a realidade. Gratuito foi só o ensino ministrado pela Igreja na Idade
Média. Centenas de milhares de escolas havia a Igreja semeado
pela imensa extensão da Europa, “de tal maneira”, dizia Lutero, “que
sem um milagre de Deus não era possível que delas escapasse
uma criança”. Esta magnífica cruzada de luzes representava o
esforço da caridade cristã em prol do progresso intelectual: de
doações generosas dos ricos, dos legados pios, dos sacrifícios do
clero saiu o imenso capital que permitia franquear indiferentemente
e sem mais ônus a ricos e pobres o acesso à instrução.
Hoje não é assim: escolas oficiais são custeadas pelos cofres
públicos mas os cofres públicos alimentados pelo imposto do
contribuinte. Os milhares de contos que se gastam e se esbanjam
em instalações e manutenção das escolas saem da bolsa dos
cidadãos espremida à força pelos oficiais do fisco. Ora, a justiça
distributiva exige que um imposto pago por todos a todos aproveite
na medida do possível. Ou mais rigorosamente: para cortar a
possibilidade a qualquer trica forense, “os impostos destinados a
cobrir as despesas de um serviço público de utilidade universal
devem, quanto possível, aproveitar a todos os cidadãos”.161 Ora,
que faz o Estado? Abre escolas e a todas impõe o laicismo oficial, a
instrução e educação a-religiosa, incompatível com a consciência de
uma fração, grande ou pequena, pouco importa, dos seus
habitantes. Ao católico, ao protestante ortodoxo, ao judeu que ainda
é religioso — que se julgam em consciência obrigados a não
mandar os seus filhos à escola leiga, o Estado impõe o ônus
dobrado de pagar a escola livre, única que lhe serve e mais a escola
do Estado que não lhe pode servir.
Era como se a um viajante para Santos se dissesse: “O senhor
é livre de escolher dois caminhos: um por terra, outro por mar, a
cargo de companhias diferentes. No caso, porém, de o senhor
escolher a viagem por mar será obrigado a pagar o seu bilhete à
Costeira e também à Central”. Evidentemente, a Central lançaria
aqui um imposto sem que para isto tivesse a sombra de um título. “E
seria mais do que um imposto”, pondera justamente Émile Faguet,
porque um imposto não passa de uma remuneração que se dá ao Estado por
um serviço que nos presta. O que ele nos cobraria seria um tributo como os
que os vencedores impõem aos vencidos. E é exatamente o que faz o Estado
pagando os seus professores com o dinheiro de quem tem outros, taxando-os
assim com uma contribuição de guerra. É um pouco bárbaro,

conclui Faguet.162 Tão bárbaro que as nações civilizadas, quase


todas, já incluíram este princípio elementar de justiça distributiva no
seu regime escolar. E, como veremos logo, os grandes tratados de
Versalhes e Saint-Germain lhe deram solenemente entrada no
direito internacional. Exemplos de outras nações citá-los-ei adiante.
Aqui lembrarei apenas os das nações escandinavas, Noruega,
Suécia e Dinamarca. Nelas a quase totalidade da população é
protestante. Nas escolas públicas o ensino e a educação religiosa
são obrigatórios, mas é o luteranismo a religião ensinada. Era mister
salvaguardar a liberdade de consciência dos poucos católicos. A
estes faculta a lei a abertura das escolas confessionais livres. Era
mister salvar ainda a justiça: o contribuinte cujos filhos freqüentam a
escola livre ipso facto fica exonerado do imposto escolar. Solução
justa. Mas alimentar com o imposto de todos os contribuintes
escolas oficiais a-religiosas que a maioria das famílias recusa, é
uma ofensa flagrante da justiça.
E, mais, uma violação da liberdade de consciência. Nada mais
evidente a quem quiser examinar fria e serenamente a questão. A
escola leiga, apesar de se chamar, muitas vezes, neutra, nada tem
de neutralidade. Não é um tribunal de arbitragem desinteressado em
cuja sentença imparcial depositam a sua confiança dois
contendentes que diretamente não se podem entender num litígio;
não é um território inviolável que não beneficia a nenhum dos
beligerantes. Nada disto. A escola leiga é incompatível com a
consciência católica. Temos lei expressa que aos pais veda enviar
os seus filhos a semelhantes institutos. É o cânon 1374: “Pueri
catholici scholas acatholicas, neutras, mixtas, quae nempe etiam
acatholicis patent, ne frequentent”.163 As razões desta lei são muitas
e ponderosas.
Não queremos a escola neutra porque não pode dar uma
instrução completa. A religião é parte integrante da cultura
intelectual; Deus a suma Verdade ocupa o vértice das coisas
cognoscíveis. A Ele se prende necessariamente a solução das
grandes questões da vida, da origem e dos destinos do homem. O
cristianismo nos seus vinte séculos de existência é chave da nossa
história e a alma inspiradora das grandes conquistas da nossa
civilização. Por princípio, a escola leiga fecha à inteligência todo
este campo de verdades não menos importantes no seu valor
relativo nas suas dependências com as ciências e as artes do que
no seu valor absoluto, tanto na ordem especulativo-filosófica, quanto
na prático-moral.
Não queremos a escola neutra porque é incapaz de educar, de
formar o caráter. Não há formar moralmente o homem e muito mais
o cristão, sem lhe falar à consciência religiosa. Já o provamos
largamente.
Não queremos a escola leiga porque não continua e aperfeiçoa
a educação doméstica, antes a contradiz e contamina. Em casa
educa-se todo o homem: inteligência e sentidos, vontade e coração.
A idéia e o sentimento religioso tudo vivifica, compenetra e
consagra; nas famílias cristãs a Deus ensina-se a elevar os olhos
agradecidos nos dias de alegria e os olhos úmidos de lágrimas mas
resignados e confiantes nos momentos de tristeza. A escola leiga
divide o que a natureza ensinou as mães a unir deixando atrofiar-se
na inação a parte mais bela e mais nobre da nossa vida interior.
Não queremos a escola leiga, porque não só não continua a
educação religiosa mas a deforma. Envolver com as sombras de um
silêncio inviolável as verdades religiosas “num lugar onde se
ensinam todas as verdades é insinuar na criança, habituada a só
valorizar o que lhe ensinam nas escolas, a idéia de que o
cristianismo não merece ocupar um posto no santuário da ciência”,
é partir o nexo orgânico que vincula o cristianismo à cultura. A
atmosfera de indiferença religiosa acaba por desgastar as bases de
qualquer religião positiva e preparar o caminho ao ceticismo e à
incredulidade.
Não queremos a escola leiga, porque onde não se fala de
religião não se pode exigir do mestre títulos de idoneidade religiosa
e os filhos de nossas famílias poderão amanhã ser educados por
professores incrédulos, que nas suas almas plásticas e maleáveis
poderão inocular com o desprezo da religião aprendida em casa o
menosprezo da autoridade paterna.
Não nos faltam, portanto, razões para recusar a escola leiga.
Mas, notai bem, não temos que dar razões ao Estado das nossas
crenças religiosas; faltam-lhe credenciais para nos pedir conta à
consciência. O que exigimos é respeito à nossa liberdade religiosa.
Não querem a escola leiga, os católicos; não a querem os
protestantes ortodoxos; não a querem os judeus ainda religiosos,
não a querem todos os adeptos de uma religião positiva. Os que a
preconizam já o vimos: são a Maçonaria, o socialismo sectário, o
anticlericalismo perseguidor. A escola leiga é, portanto, uma escola
propugnada por uma seita, é uma escola sectária, não é uma escola
neutra. Vedes agora a opressão espiritual exercida pelo Estado que
laiciza os estabelecimentos de ensino.
Fazendo-se mestre-escola, ele tem diante de si duas categorias
de famílias: umas que recusam o ensino leigo como inconciliável
com a sua consciência, outras que o desejam como correspondente
aos seus ideais educativos. Não podendo evidentemente satisfazer
a ambas com um tipo único de escola, o Estado decreta que este
tipo único satisfaça às exigências dos laicizantes com exclusão de
todas as famílias religiosas. Destarte, uma instituição pública por
sua natureza de utilidade universal converte-se em instrumento de
propaganda a-religiosa e muitas vezes anti-religiosa. O Estado
advoga então as idéias e os interesses de uma seita ou de um
partido — e precisamente dos partidos subversivos da ordem social
— e oprime a liberdade religiosa dos demais. Nem se diga: “Não há
opressão de consciências: o Estado vos deixa a liberdade de
escolher entre a escola pública e a escola particular”. A resposta
não faz senão agravar uma injustiça com uma ironia cruel. Imaginai
que um governo dissesse: “Respeito a liberdade de todos os cultos
e de todas as religiões” e depois com os dinheiros públicos
coalhasse o país inteiro de magníficas lojas maçônicas, e deixasse
à iniciativa e aos recursos das bolsas particulares a simples
faculdade de construção das igrejas. Seria isto imparcial e honesto?
Loja maçônica e escola leiga — como se devem aproximar estas
duas instituições equivalentes! — parecem-se como mãe e filha; a
escola leiga é uma criação maçônica para começar na criança o
trabalho de demolição religiosa que as lojas continuam mais tarde
na grande vida social. Um Estado que assim procedesse
conservaria a neutralidade?… É isto neutralidade? É isto respeitar
igualmente os direitos espirituais de todos os cidadãos? Não há, aí,
evidentemente uma atitude assumida em face do problema religioso
a favor de uma fração das famílias contra a outra?
Atitude tanto mais irritante, quanto são precisamente os
interesses de uma imensa maioria de famílias os que assim se
sacrificam aos de uma minoria insignificante. As famílias em seu
maior número não querem o ensino leigo. Citar-vos-ei estatísticas
de três nações bem diversas.
Na Itália quando mais fervia a propaganda anticlerical, Villari,
ministro da instrução pública, expediu uma circular aos inspetores
escolares a fim de que fizessem uma estatística dos alunos que
freqüentavam as aulas de religião. Resultado: mais de 90% dos
matriculados. Em Gênova sobre 15.000 alunos, apenas 74 não
queriam instrução religiosa (5/1.000). Na Bélgica a instrução
religiosa é obrigatória. Dela porém são dispensados os alunos cujos
pais o solicitarem. Verifiquei nas estatísticas pouco anteriores à
guerra, de 1911, em toda a população escolar não chegavam a 4%
os dispensados.
Na Alemanha, instrução religiosa obrigatória. Delas, porém,
podem ser eximidos os alunos a requerimento dos pais,164 se o
menino é menor de quatorze anos, do próprio aluno depois dessa
idade.165 Em toda a Prússia não chegam atualmente os dispensados
do ensino religioso a 2٪ da população escolar. Que magnífico
plebiscito em favor do ensino religioso! Mas também que ironia para
os governos que se dizem democráticos, representantes da vontade
soberana do povo expressa pelo voto livre das maiorias! Não quero
revolver a questão delicada da liberdade de consciência com
sufrágios de maiorias ou de minorias, com a opressão de muitos
sobre poucos ou de poucos sobre muitos. Nós católicos que
compramos a liberdade de consciência religiosa com o sangue dos
nossos mártires prezamo-la em muito para a expormos aos azares
da política e à volubilidade das massas. Na solução do problema
escolar que reivindicamos, respeita-se a integridade de todos os
direitos espirituais. Mas não nos é possível não salientar o caráter
de incoerência profundamente anti-social de um governo que,
fazendo-se educador, abre e modela as suas escolas por um tipo
uniforme repudiado por 90, 96, 98% das famílias, para dobrar-se às
exigências intolerantes de uma fração insignificante dos
educadores.
Opressão irritante porque de poucos sobre a quase totalidade
da nação. Opressão odiosa porque exercida sobre fracos e
indefesos. Sim. As famílias religiosas abastadas e cônscias dos
seus deveres, mais que o dinheiro, prezam o bem dos seus filhos.
Sujeitando-se de preferência à injustiça material, resgatam-se à
imposição violadora da liberdade de suas consciências. Pagam
duas vezes: ao governo os impostos que vão alimentar as escolas
oficiais incompatíveis com os seus ideais educativos, ao ensino livre
e confessional que só responde às exigências dos seus deveres.
Resta a grande massa — a massa dos pobres e ignorantes,
incônscios dos seus direitos, a massa dos remediados — a quem os
vencimentos limitados e reduzidos pela multiplicidade dos tributos
não permitem abrir uma verba para a educação dos filhos, em
estabelecimentos particulares. A esta imensa maioria de famílias —
na sua quase totalidade religiosas e que na religião querem
educados os que são o prolongamento natural da sua existência —
apresenta-se o Estado e diz-lhes: “Dai-me os vossos filhos e eu vo-
los educarei gratuitamente nas minhas escolas”. E as criancinhas de
sete ou oito anos deixam o lar paterno e durante a sua meninice e
adolescência passam os dias quase inteiros na escola, sujeitos à
influência espiritual de todas as crenças e de todas as descrenças
às quais o automatismo irresponsável da máquina administrativa do
Estado aprouver confiar a direção dos seus estabelecimentos.
É destarte que um governo, que na letra de sua constituição
inscreve a liberdade de consciência como um direito inviolável e o
respeito à autonomia religiosa dos cidadãos como uma condição de
paz social — na prática com a inclusão do laicismo imposto à
educação dos seus estabelecimentos de ensino, se transforma em
proselitista do indiferentismo religioso, em órgão de propaganda do
ateísmo e da incredulidade.
Evidentemente a escola leiga, que já vimos não corresponder
aos ideais da sã pedagogia, não pode tampouco ser a solução
jurídica do problema escolar. Eis por que quase todas as nações
buscaram em outras formas de regime escolar conciliar a liberdade
de consciência das famílias com os direitos do Estado numa fórmula
que salvaguardasse, com a totalidade dos direitos em jogo na
formação das gerações de amanhã, os interesses mais vitais dos
povos. Escola leiga, tal qual a descrevemos não a conhecem, na
Europa, a Inglaterra, a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, a
Escandinávia (Suécia e Noruega), os grandes Estados da
Confederação Alemã — Prússia, Baviera, Saxônia, Württemberg e
Baden, Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Áustria, Iugoslávia, Itália,
Espanha, isto é, a quase totalidade da velha Europa. Na próxima
palestra veremos a solução prática que do grande problema sugere
o estudo da legislação comparada destes países.
Concluamos. Dificilmente se encontrará na vida das nações
uma questão mais vital que a da educação das novas gerações.
Desenvolver as inteligências, temperar os caracteres, formar as
consciências é assegurar, com o progresso econômico e material, a
prática do dever, o espírito de sacrifício, a dedicação na
solidariedade, a grandeza da família, o respeito das leis, enfim, a
vitalidade de todos estes valores espirituais que constituem a alma
dos povos. A questão da escola é, portanto, de uma complexidade
transcendente: é uma questão jurídica, é uma questão moral, é uma
questão religiosa. As soluções que para ela se adotam envolvem
implicitamente uma concepção da família, da pátria, da vida. E por
isso ela é hoje o teatro das lutas onde se encontram as grandes e
eternas forças do bem e do mal, as duas cidades, cristã e anticristã.
Não é nos campos de batalha, como nos tempos de David; não é
mesmo sempre ao redor dos altares que se decide a sorte do povo
de Deus. É na escola que se fere a peleja capital, é sobre a alma da
criança que convergem os esforços decisivos. Quem conseguir
plasmar nas suas mãos o maior número de almas novas será o
senhor da sociedade e do mundo civilizado de amanhã. Nós, que
deploramos profundamente esta luta do mal contra o bem,
aceitamo-la, porém, sem hesitações nem covardias, pela nossa
dedicação incondicionada aos direitos soberanos e imprescritíveis
de Deus, pelo amor imenso que consagramos às almas remidas
pelo sangue de Nosso Senhor. Com a atuação do nosso prestígio
social, com a força radiante da palavra, com o poder conquistador
do exemplo, com as realizações eficazes da nossa operosidade,
lutaremos sempre para fazer felizes os nossos irmãos. Corona mea
et gaudium meum, minha coroa e minha alegria, chamava São
Paulo aos seus queridos neófitos.166 Para o educador cristão — que
também é apóstolo — não deve haver maior consolação no Céu,
porque não há mais perfeito cumprimento da sua missão na Terra —
do que levar à plenitude bem-aventurada dos seus destinos eternos
as almazinhas em botão que a divina Providência um dia lhe confiou
à solicitude do seu zelo e às dedicações inesgotáveis do seu amor.
A. M. D. G.
Rio, 11 de setembro de 1928.

156 Cf. De la Vaissière, p. 96.


157 RDM, 15 de jan. de 1897, pp. 429–430.
158 De jure belli et pacis, II, 7, 4.
159 Art. 138.
160 31 de julho de 1919, art. 120.
161 Fallon, Études, t. 140, p. 217.
162 Le libéralisme, pp. 134–135. DAFC, II, 927.
163 “As crianças católicas não devem freqüentar escolas acatólicas, neutras ou
mistas, ou seja, abertas também a acatólicos”, cânon 1374 do Código de Direito
Canônico de 1917 (o tema aparece, no Código de 1983, no cânon 798) — NE.
164 Decreto de 1º de abril de 1919.
165 Lei federal de 15 de julho de 1921.
166 Cf. Fl 4, 1 — NE.
Aspecto jurídico

1) Exórdio — Importância do estudo comparado das legislações


escolares.
2 tipos:
1º. Escola confessional — Alemanha.
A confessionalidade implica:
a) ensino religioso;
b) prática religiosa;
c) confessionalidade dos mestres.
Escola interconfessional.
Como se salvaguarda a liberdade de consciência dos
dissidentes.
Ensino secundário.
Ensino universitário.
Ensino normal.
Fiscalização do ensino — o Estado, a família e a Igreja.
Impressão de novidade.
2º. Repartição proporcional escolar. Holanda
Explicação do regime.
Vantagens:
financeira,
pedagógica,
jurídica — (liberdade de consciência) diminuição
da influência do Estado,
social — pacificação dos ânimos.
RPE — no direito internacional.
Aplicação ao Brasil.
Necessidade de sua reforma:
dever patriótico,
dever religioso.
Escola leiga
III – B

O ENSINO religioso nas escolas é um postulado da sã pedagogia,


uma necessidade vital para a conservação da moralidade dos
povos, um direito intangível das famílias. Nada mais evidente no
campo especulativo dos princípios. Mas a evidência dos princípios
nem sempre implica a evidência da prática. A atuação de uma
verdade encontra muitas vezes na complexidade orgânica do real
dificuldades inesperadas e limitações impostas pelas exigências de
outros princípios. E, não raro, só após tentativas infrutíferas, ensaios
malogrados, experiências penosas, é que se chega à solução
definitiva, que harmoniza todas as exigências, concilia as antíteses
aparentes e respeita a integridade de todos os direitos.
A quebra da unidade religiosa no mundo moderno introduziu na
resolução de muitos problemas sociais — e entre eles o da escola,
dificuldades desconhecidas em outras eras.
Nada mais vantajoso, portanto, que examinar como os povos
modernos resolveram a conciliação da necessidade do ensino
religioso com o respeito à liberdade das consciências religiosas
divergentes. É um breve estudo de legislação comparada que terá a
grande vantagem de fazer-nos beneficiar da experiência alheia.
Praticamente as soluções tentadas e postas em execução nos
diferentes países (para conciliar a necessidade do ensino religioso
com o respeito à liberdade de consciência dos cidadãos e o direito
educativo dos pais), podem reduzir-se, creio eu, a dois grandes
tipos: a escola pública confessional e a repartição proporcional do
orçamento da instrução pública pelas escolas particulares.
Para sermos mais concretos estudaremos estes tipos em dois
países que o atuaram com ótimos resultados: a Alemanha e a
Holanda.
Na Alemanha não há uma lei única que uniformize o ensino em
toda a confederação; cada estado conserva a sua autonomia
legislativa e dela usa largamente. Há, porém, algumas linhas gerais
comuns a todos os estados e que lhes dão uns traços de afinidade
distintivos dos outros países.
Assim é que, por via de regra, a escola primária é confessional,
isto é, católica ou protestante conforme são católicos ou
protestantes os pais que a ela enviam os seus filhos.
A confessionalidade de uma escola implica uma instrução e
uma educação inteiramente enformadas pelos princípios religiosos.
Antes de tudo, portanto, ensino religioso obrigatório que
comporta nas classes inferiores um minimum de quatro horas por
semana e nas superiores cinco. A este ensino são consagradas as
melhores horas do dia: as da manhã; e as notas de religião figuram
em primeiro lugar nas cadernetas escolares; o que já é altamente
significativo, e apto a inculcar no ânimo da criança a importância
transcendente da religião. A instrução religiosa abrange a letra do
catecismo, a história sagrada e a história eclesiástica, geralmente
lecionadas pelo próprio mestre-escola; o dogma, a moral, a liturgia,
mais freqüentemente confiadas a um sacerdote.
Não basta ensinar, é mister praticar, viver a religião na escola
como se vive na família, como se vivera na sociedade; a escola,
traço de união entre uma e outra, não pode ser um parêntese
antipedagogicamente aberto entre a vida doméstica e a social. Os
alunos que recebem instrução religiosa são por isso obrigados a
assistir a todos os atos de culto praticados no edifício escolar e fora
dele, nas igrejas, quando se trata de ritos ou cerimônias feitas para
a escola ou pela escola. Os decretos ministeriais de 1919, 1920 e
1926 obrigam os mestres que se incumbem da instrução religiosa a
tomar parte em todas as práticas de culto prescritas aos alunos.
Corolário espontâneo da confessionalidade do ensino e da
educação religiosa é também a confessionalidade do mestre. A
alunos católicos: mestres católicos; a alunos protestantes, mestres
protestantes.
Para melhor apreciarmos como se entende e pratica a
educação religiosa nas escolas públicas alemãs, não resisto à
tentação de resumir o último programa didático para as escolas
primárias da Baviera, publicado no jornal oficial do Ministério da
Instrução e Culto.167 Este programa que entrou em vigor no ano
1927–28
declara explicitamente que o alvo da educação escolar é educar
harmonicamente a personalidade do aluno nos sentimentos, idéias e ações
inspiradas pelos princípios da religião, da moral e da vida nacional e social;
quer que nas escolas confessionais se desenvolvam com particular cuidado e
se valorizem os pontos que oferecem ocasião de formar o aluno ao espírito
de sua religião; estabelece que o fim do ensino religioso nas escolas não é
somente o conhecimento dos dogmas da fé, mas também o cumprimento dos
deveres morais e religiosos e a prática da vida cristã segundo os preceitos da
Igreja; e exige que o mestre de religião seja bem compenetrado da doutrina
religiosa e moral que ensina aos alunos, seja homem de fé profunda, piedade
exemplar e especial devoção à Igreja.168

Isto se lê nas páginas de um diário oficial do Ministério da Instrução


Pública da culta Alemanha!… E nós!…
Ao lado da escola confessional, existe principalmente na
Prússia a escola interconfessional, também chamada simultânea,
paritética ou comum. Não é uma escola leiga ou a-religiosa mas
escola aberta a católicos e protestantes simultaneamente e onde
simultaneamente ensinam mestres católicos e protestantes. Nelas o
ensino religioso confessional é obrigatório: protestante para os
protestantes, católico para os católicos, israelita para os judeus. Nas
primeiras horas os alunos dividem-se segundo a religião e vão em
grupos aos locais reservados a cada confissão ou religião e aí
recebem respectivamente a instrução religiosa do sacerdote, do
pastor ou do rabino. Nas outras matérias ou escolas, o ensino é
neutro.
Para as práticas do culto, missas, etc., dividem-se regularmente
de novo segundo as confissões. Nós, católicos, combatemos
vivamente a escola interconfessional. E a própria legislação
prussiana169 começa com esta disposição: “As escolas primárias
públicas devem ser, por via de regra, organizadas de modo que o
ensino seja ministrado aos meninos evangélicos por mestres
evangélicos e aos católicos por mestres católicos”. A escola
interconfessional só é admitida de fato ou por motivos de ordem
econômica ou pelo escasso número de alunos pertencentes a uma
confissão numa determinada localidade. As estatísticas oficiais do
ano escolástico 1921–22 davam para a Prússia 8.638 escolas
confessionais católicas, 23.159 protestantes e apenas 1.331
interconfessionais. Encontram-se apenas 187 interconfessionais
para 1.947 confessionais protestantes e 5.191 católicas. Em toda a
Alemanha a escola interconfessional representa pouco mais de 10%
das escolas; a escola confessional protestante 56%; e a escola
confessional católica 29%; mais ou menos segundo a percentagem
da população protestante e católica…170
No intuito de salvaguardar a liberdade de consciência das
minorias a lei escolar introduz numerosos e minudenciosos
dispositivos que se podem resumir no seguinte.
São dispensados do ensino religioso os alunos cujos pais o
solicitarem; já vimos que em toda a Prússia não atinge a 2٪ o
número dos alunos dispensados, e estes quase todos se acham em
Berlim, onde a corrupção na juventude assume proporções
assustadoras. Sempre a mesma coincidência entre ensino irreligioso
e decadência moral. Círculo vicioso.
Assim se respeitam os direitos dos livres-pensadores e
laicizantes. Os que são adeptos de uma seita protestante, ou
pertencem a uma religião diferente da que se ensina na escola
confessional do lugar são, ipso facto, dispensados de freqüentar as
aulas de instrução religiosa, antes positivamente a ela não podem
assistir sem uma autorização expressa dos pais. A fim de que não
fiquem privados do ensino religioso, tanto o pároco quanto um
pastor podem obter os locais da escola para nelas ministrar o ensino
religioso aos alunos cuja confissão religiosa é diversa da ensinada
na escola.171
A instrução religiosa que assim se começa a ministrar na escola
primária continua a ser desenvolvida no curso secundário. A
diferença única é que, enquanto no ensino primário a escola
confessional é a regra e a interconfessional a exceção, os ginásios
são quase sempre interconfessionais (já explicamos o que
significa).172
No ensino superior, quase todas as universidades prussianas
conservam a sua faculdade de teologia ao lado das outras
faculdades, medicina, direito, filosofia, etc.
Nas regiões onde é maior a proporção dos católicos, a
faculdade teológica subdivide-se em duas: uma de teologia católica,
outra de teologia protestante. É o caso das universidades de Bonn,
Münster e Breslau,173 na Prússia. Na Baviera, de maioria católica, as
duas antigas universidades de Wurtzburgo e Munique (outrora em
Ingolstadt) possuem só faculdade de teologia católica, a de
Erlangen, também de teologia protestante. Além disto a Baviera
possui seis institutos católicos superiores de filosofia e teologia
católica (Philosophisch theologische hochschulen): Bamberg,
Dilinga, Eichstäte, Frisniga e Regensburg (Ratisbona), todas (exceto
a de Eichstäte, que é diocesana) mantidas pelo Estado e
equiparadas às outras faculdades universitárias.
Mais interessante para nós é a organização das escolas
normais. A confessionalidade das escolas primárias determinada
principalmente pela confessionalidade dos mestres exige
absolutamente uma formação religiosamente acurada daqueles a
quem mais tarde as famílias hão de confiar os seus filhos e que são
a pedra angular da escola. Por isso estas escolas são
rigorosamente confessionais. “O fim da escola magistral”, diz a lei
bávara, “é dar aos futuros mestres uma verdadeira educação moral
e religiosa, segundo os princípios do cristianismo ativo”. As escolas
normais inferiores são submetidas a um inspetor eclesiástico; as de
grau superior ou são dirigidas por um eclesiástico ou, se o diretor é
leigo, aprovado pela autoridade diocesana, é eclesiástico o
subdiretor. Em todas estas escolas não só a religião é matéria
obrigatória de ensino e de exame, mas também obrigatórios são os
atos do culto; para os alunos católicos missa diária, e freqüência da
comunhão algumas vezes no ano.174 Assim se formam os mestres
na Alemanha!
Tal é a organização do ensino nos seus órgãos ativos: a fim,
porém, de assegurar a execução das leis é mister fiscalizar e a
fiscalização naturalmente deve ser feita por todos os que têm
direitos a salvaguardar na educação das crianças: o Estado, a
família, a Igreja. O município confia este mister de inspeção, nas
cidades, a uma deputação escolástica (Schuldeputation) e nas
zonas rurais a um conselho escolástico (Schulvorstand) constituído
por alguns representantes do conselho municipal, alguns cidadãos
práticos em pedagogia, o decano do clero católico e do clero
protestante da zona e pelo rabino, se na escola há pelo menos vinte
judeus.
Ao lado do município a família participa também na gerência
dos negócios escolares. Um decreto ministerial de 1918 e outro de
1919 prescrevem a instituição de um “conselho dos pais”
(Elternbeirat), constituído unicamente de pais de alunos que
freqüentam uma determinada escola.
Os seus membros são eleitos a cada dois anos; e nesta eleição
pais e mães indiscriminadamente têm voz ativa e passiva. Outro
decreto ministerial de 1921 estatui que na reunião do conselho dos
pais tomem parte, por via de regra, os membros do corpo docente e
quando na ordem do dia se acha algum assunto que interessa a
religião, o pároco e o catequista.175
Além da parte importante que à Igreja se atribui nas comissões
inspetoras precedentes, a lei prussiana reconhece às autoridades
eclesiásticas — ao bispo, para as escolas católicas; ao
superintendente consistorial, para os protestantes ou aos seus
respectivos delegados — o direito de visitar as escolas normais para
fiscalizar o ensino religioso e o de assistir aos exames finais para o
diploma de normalista, com direito de voto nas matérias
religiosas.176 Também nas escolas secundárias da Prússia se deixa
à Igreja a direção e fiscalização do ensino religioso.177 Na Baviera, a
lei de 1º de agosto de 1922, atualmente em vigor, prescreve que
relativamente ao ensino religioso a inspeção do governo se deve
limitar à ordem externa, à disciplina e à freqüência dos alunos; a
determinação do conteúdo e do método de ensino é da competência
das respectivas autoridades eclesiásticas, que para isto têm o direito
de visitar e fiscalizar as escolas, recorrendo, onde haja mister às
autoridades escolares governativas para obviar qualquer
inconveniente. Estas disposições no que concerne à Igreja Católica
foram sancionadas solenemente pelo art. 8 da concordata firmada
em 1924 entre a Santa Sé e o governo bávaro.178
Não dissimulo a impressão da surpresa que, mesmo num
auditório católico, produz o conhecimento mais exato dessa
legislação escolar. Que na Alemanha, por um lado, conhecida como
pioneira da ciência moderna, admirada pela disciplina de sua
organização social, por outro, desligada oficialmente de qualquer
igreja e profundamente dividida nas crenças de seus habitantes, se
dê, em todos os ramos da instrução pública, do primário ao
universitário, tanta importância ao ensino religioso, se reconheçam
tão desassombradamente os direitos de intervenção das
autoridades eclesiásticas nas questões pedagógicas, é, para a
quase totalidade do nosso mundo oficial que se ocupa da instrução
pública, uma novidade insólita que parece arrancá-lo às decantadas
conquistas da civilização moderna para lançá-lo em pleno mundo
medieval. Tão profunda é a perversão de idéias aclimadas entre nós
pela superficialidade do laicismo desorientador. No entretanto, nada
mais justo, nada mais coerente, nada mais em harmonia com o
respeito à liberdade de consciência. Compreendereis agora o que
vos dizia, da outra vez, com o risco de parecer enunciar um
paradoxo: a necessidade do ensino religioso nas escolas oficiais é
um corolário da laicidade do Estado. Vede como logicamente se
concatenam os dois termos, à primeira vista tão distantes, desta
proposição. O Estado leigo respeita a liberdade de consciência de
todos os cidadãos; não impõe nem pode impor um sistema filosófico
ou um credo religioso. Fazendo-se educador, não pode, por isso
mesmo, transformar as suas escolas em instrumento de propaganda
da irreligião e do indiferentismo; impõe-se-lhe absolutamente o
respeito às convicções religiosas ou filosóficas das famílias, cujo
direito educativo ele deve tutelar e não confiscar. Há famílias que
desejam uma instrução leiga, a-religiosa? Não se imponha aos seus
filhos a obrigação de estudar um credo que não admitem. Há
famílias — e são a quase totalidade — que exigem a instrução
religiosa, para as quais uma escola leiga é um atentado aos deveres
de sua consciência? Fundem-se escolas em harmonia com estas
exigências sagradas e invioláveis, que o Estado, por isso mesmo
que é leigo, se declara incapaz de discutir. Mas estas famílias —
pelas suas idéias religiosas, pertencem a uma sociedade espiritual,
a uma igreja, que elas declaram depositária autêntica de seus
dogmas e exclusivamente capaz de julgar da ortodoxia do ensino
religioso — dogmático, moral e litúrgico. Pois bem, entre o Estado
em relações jurídicas com esta sociedade espiritual e com ela
“estipule” as condições de sua intervenção necessária na escolha
dos mestres, dos textos, de modo a oferecer às famílias, na
sinceridade da educação religiosa, todas as garantias exigidas pela
sua consciência. E aí tendes como, dos primeiros princípios
jurídicos que presidem necessariamente a toda questão escolar, se
derivam espontaneamente todos estes corolários que tanto alarmam
os nossos laicizantes. Só assim se respeitam e harmonizam os
direitos da família, do Estado e da Igreja. A laicização, no sentido
em que a entendemos nós, é um exorbitar do poder civil fora da sua
esfera natural, uma invasão usurpadora, anárquica na soberania
dos bens espirituais de que ela não é nem árbitro nem depositário.
A solução dos estados da confederação alemã procura
respeitar as liberdades essenciais das famílias, nos quadros gerais
de uma organização escolar onde se acentua fortemente a
intervenção, quase diria, o monopólio do Estado. Não é esta, ainda
assim, nem em teoria, nem em prática, a melhor das soluções. A
solução mais justa, mais acertada e que tende a prevalecer é a da
repartição escolar. Estudá-la-emos concretamente no país que dela
soube fazer a aplicação mais coerente: na Holanda.
O ensino nacional holandês compreende duas categorias iguais
de escolas: a escola pública e a escola particular.
A escola pública é aberta, mantida e dirigida pelos poderes
públicos: municipais, provinciais, reais. Estas escolas são neutras; o
que não significa exclusivas da educação religiosa, mas abertas aos
meninos de todas as confissões. Em todas elas é prescrito o ensino
religioso, que faz parte do horário e do regulamento da escola, com
a mesma sanção que as outras matérias. Este ensino não é
ministrado pelo mestre-escola, mas aos alunos de cada confissão
religiosa, por um professor determinado pela respectiva autoridade
eclesiástica, que entra em concerto com a diretoria da escola para
as condições práticas mais favoráveis de sua execução.
A escola particular beneficia-se da repartição proporcional do
orçamento da instrução. Pode abri-la qualquer sociedade que goze
de personalidade jurídica: uma diocese, uma paróquia, uma obra
pia, uma associação de pais de família, etc., que ofereça ao Estado
as garantias de um ente moral análogo ao município que mantém as
escolas públicas.
Para abrir uma escola, uma sociedade nestas condições faz o
requerimento ao município, que é obrigado a construir-lhe o edifício
escolar ou adaptar-lhe um edifício já construído, ou dar-lhe a soma
necessária para a sua construção. Ao município incumbe ainda
fazer todas as despesas de iluminação, aquecimento, água, material
escolar, administração, conservação e restauração do edifício — no
mesmo pé de igualdade que as escolas públicas. Ao Estado, não
mais ao município, compete pagar os professores — em número
proporcional aos alunos e munidos do diploma de capacidade e
moralidade no que concerne à higiene, à moralidade pública e ao
cumprimento das obrigações acima — com vencimentos idênticos
aos dos professores públicos e com os mesmos direitos de
aposentadoria.
Eis fundada uma escola particular. Suas obrigações: o corpo
docente deve ser constituído por professores munidos do diploma
de capacidade e moralidade; deve ensinar todas as matérias
prescritas pela lei, não pode exigir dos alunos impostos escolares
superiores aos exigidos para a escola pública, está sujeita à
inspeção das autoridades escolares do município ou do reino. Seus
direitos: pode acolher os alunos que bem lhe parecer, escolher os
mestres que desejar (dentro das condições acima), adotar os
programas, os métodos de ensino, os livros de texto que julgar
melhores, acrescentar às matérias oficiais todas as que julgar
convenientes à sua orientação filosófica ou religiosa.
Se uma escola, pública ou particular, durante três anos não tem
uma freqüência de alunos acima de um minimum legal, é fechada;
se a escola era particular, o edifício que tinha passado para a
propriedade da associação que a abrira, reverte ao município.
Para o ensino secundário, superior e normal, vigoram com
algumas modificações as disposições acima. Assim, nós, católicos,
temos quarenta escolas normais, mantidas pelo Estado, nas quais
se formam catolicamente e se diplomam os 10.000 professores
necessários às nossas escolas.
O regime da repartição proporcional escolar — que também
para o nosso laicismo constitui quase um escândalo — tem dado na
prática os melhores resultados — é a solução ideal da questão
escolar, em todos os pontos de vista.
Financeiramente é o aspecto utilitário da questão — oferece ao
Estado as melhores vantagens. Na Bélgica onde vige também ainda
que não com tanta perfeição o R.P.E. — uma metade das crianças é
educada nas escolas públicas e custava ao erário nacional antes da
guerra 25 milhões de francos, a educação da outra metade, feita
pelas escolas livres, adotadas ou adotáveis, apenas 8 milhões, isto
é, menos de 1/3. Todo o interesse financeiro do Estado consiste,
portanto, em substituir as escolas públicas pelas particulares.179
Com a carestia da vida e a difusão do ensino, naturalmente, o
orçamento da instrução tem aumentado de muito na Holanda; de
1880 a 1922 foi multiplicado por 12 passando de 8 a 98 milhões de
florins. No mesmo período, porém, o orçamento francês foi
multiplicado não por 12 mas por 33. Com que resultado
pedagógico? Atualmente segundo os últimos inquéritos e as
confissões do próprio Briand, Henriot e Daladier, em França há
cerca de 25 a 20% de analfabetos; na Holanda, não chegam a
8/1.000.
Mais econômico no ponto de vista financeiro, mais eficaz como
instrumento de difusão do ensino, o regime da R.P.E. representa, no
ponto de vista jurídico, pedagógico e moral, a melhor solução do
problema escolar na moderna constituição dos governos. Deriva,
como corolário espontâneo, dos dois princípios inexpugnáveis do
direito natural: o direito paterno à educação dos filhos, a finalidade
do Estado de promover o bem comum, tutelando os direitos dos
cidadãos e facilitando-lhes o cumprimento dos deveres. Aqui, sim,
há respeito à liberdade das consciências. Equiparadas
integralmente a escola pública e a escola particular, os pais são
verdadeiramente livres de escolher a escola que corresponde aos
seus princípios morais e religiosos, sem agravo de despesas nem
perda de nenhuma prerrogativa. A perfeição técnica do edifício e do
material escolar, idêntica na escola pública e na escola particular,
idêntica a competência do professorado, retribuído com os mesmos
honorários e com as mesmas regalias; idêntica a contribuição dos
pais numa e noutra escola; idêntico o valor legal dos diplomas. Os
dinheiros públicos, as regalias oficiais não vão alimentar um ensino
a-religioso que favorece o ateísmo, a indiferença e a incredulidade,
obrigando as escolas particulares que só satisfazem às
consciências de muitas famílias a impor-lhes pesada contribuição
que ainda assim é insuficiente para rivalizar com as munificências
do erário público. Esta equiparação das duas escolas abre o campo
à mais justa e benfazeja das concorrências — de que só poderá
beneficiar a educação. Uma escola já não se sustenta só porque é
pública, ou porque dá lucros ao seu diretor. Se num estabelecimento
de ensino decresce a perfeição técnica da instrução ou deixa a
desejar a moralidade dos professores ou dos alunos — as famílias
— e ninguém se interessa pela boa educação dos seus filhos mais
do que elas — as famílias não encontram o menor obstáculo —
financeiro, pedagógico ou jurídico — de mudar de escola. (A lei
prevê até o caso em que a escola preferida pelos pais se ache a
mais de quatro quilômetros de distância — nesse caso os pais
recebem do Estado uma indenização pelo transporte). Destarte, a
escola pública ou particular que não correspondeu à sua missão, vê
desertadas as suas aulas e no prazo de três anos é obrigada a
fechar. Assim é que nós católicos só nestes três últimos anos
abrimos mais de 400 escolas e em muitos lugares estas escolas
paroquiais são apenas a transformação das antigas escolas
públicas. Diminui assim o número de escolas oficiais? Tanto melhor.
É sinal de que as escolas públicas não merecem tanto a confiança
das famílias; é sinal de que o Estado deve aos poucos deixar à
iniciativa privada as questões do ensino, porque como diz Émile
Faguet o Estado “não é nem professor, nem filósofo, nem pai de
família”;180 ele não pode educar bem porque como, com a sua
rudeza sincera, disse um dia Clemenceau, em pleno senado: “O
Estado tem muitos filhos para ser um bom pai de família”,181 porque
enfim, como dizia Jules Simon, no Congresso das Ciências Sociais
em Gante: “O Estado ensinante deve preparar a sua abdicação”.182
Promova, ampare, fiscalize a iniciativa privada: é a sua missão; não
absorvê-la, suplantá-la. O ensino só tem a lucrar! O magistério
cessará de ser uma carreira para voltar ao que era e ao que deve
ser: uma vocação. Para formar os seus filhos, as famílias querem
educadores, não funcionários públicos.
Respeitando todos os direitos e todas as justas e sagradas
liberdades de consciência este regulamento da instrução é também
a solução que corta cerce por todas as divisões e lutas escolares e
contribui para a paz social. Na Holanda, a lei de 1889 e a de 1920,
seu complemento, tem o nome glorioso de “lei da pacificação”. Foi
ela votada quando era presidente do ministério um grande estadista
católico, Carlos Ruys de Beerenbrouck, que, apesar de seus 83
anos, presidiu a todas as sessões parlamentares prolongadas
freqüentemente até alta noite; propôs a lei ao parlamento e
defendeu-a magnificamente o doutor De Visser, protestante, ministro
da instrução pública; submetida à votação foi aprovada pela quase
unanimidade do congresso: 75 votos contra 3.
A repartição proporcional é também, ainda que não com tanta
perfeição, o regime escolar da Bélgica, da Inglaterra, da Escócia, da
Islândia e de quase todas as colônias inglesas. E será,
inevitavelmente, o verdadeiro regime dos países livres. O seu
princípio consagrou-o definitivamente o direito internacional
moderno nos grandes tratados sobre que assenta o atual equilíbrio
europeu. O tratado de Versalhes, assinado pelas cinco potências
principais, com a Polônia reconstituída, estipula no art. 9:
Nas cidades e distritos onde reside número considerável de súditos do
Estado polaco, pertencentes a minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, a
estas minorias se há de assegurar uma parte équa nos benefícios e na
aplicação das verbas, que, para finalidades de educação, religião e caridade,
forem distribuídas, pelos erários públicos, nos orçamentos do Estado, ou do
município, ou em outros.

Com as mesmas palavras se encontra este dispositivo no tratado de


Saint-Germain (art. 68) assinado com Áustria, do Trianon (art. 61)
assinado com a Hungria, de Neuilly (art. 55) assinado com a
Bulgária, no tratado de Sèvres (art. 147 e 148) assinado com a
Turquia. O mesmo regime foi ainda imposto à Tchecoslováquia, à
Iugoslávia, à Grécia e à Armênia. Vinte e sete nações ao todo
subscreveram estes tratados. Mais interessante ainda é o
comentário oficial, feito, em nome das cinco potências principais
pelo presidente da Conferência de Versalhes, Jorge Clemenceau, e
contido na carta por ele dirigida a Paderewski, presidente do
Conselho de Ministros da Polônia a 24/06/1919:
As disposições relativas ao ensino nada contêm que já não seja previsto
pelas instituições escolares, em muitos Estados modernos, bem organizados.
Não é incompatível com a soberania do Estado reconhecer e subsidiar as
escolas em que os meninos se achem submetidos ao influxo religioso a que
estejam habituados nas suas famílias.

Magnífica sanção jurídica dada ao regime da repartição escolar


pelo maior senado internacional que ainda se reuniu na história para
deliberar sobre os destinos dos povos.
De vários destes tratados foi signatário também o Brasil. E qual
para nós a conclusão a tirar deste estudo? Que se nos impõe
absolutamente uma reforma da nossa legislação escolar,
evidentemente antiquada, injusta, antipedagógica e antinacional.
Não é aqui o lugar de discutir os pormenores desta reforma,
determinando-lhe todas as condições práticas de viabilidade que
exigiria a elaboração de um texto legislativo. Nas suas grandes
linhas, a reforma exige que demos um ideal à nossa pedagogia, que
nas nossas escolas públicas formemos homens, não só leitores e
contadores, mas caracteres e consciências, que integremos o
aperfeiçoamento técnico do nosso ensino com a alma insubstituível
da pedagogia, que é a formação moral e religiosa.
Nenhum obstáculo insuperável se opõe à atuação deste
programa. Aí está a demonstrá-lo o exemplo de inúmeras nações
que tiveram que lutar com dificuldades muito maiores legislando
para populações profundamente divididas nas suas crenças e
carregadas com um triste atavismo histórico de hostilidades
religiosas e etnológicas.
Nenhuma das objeções que às vezes por aí se movem contra o
ensino religioso resiste à crítica serena. Vós mesmos já as podeis
resolver todas; lembrarei apenas duas mais vulgares.
Se abrirmos amanhã as portas das nossas escolas ao
sacerdote católico, dizem alguns, deveremos franqueá-las também
aos pastores protestantes de todos os matizes, ao barbeiro espírita,
ao pontífice positivista da humanidade — e eis a escola convertida
numa babel religiosa, seminário de infinitas discórdias. Só poderá
falar assim quem ignora de todo os primeiros princípios do direito
escolar. A escola não é uma tribuna de propaganda, à disposição do
governo e que ele franqueia ou interdiz a quem bem lhe apraz. Não
é lícito ao Estado abrir a escola ao ministro protestante, porque as
crianças que lá se educam são católicas e como católicas querem
ser educadas pelos seus pais. E como as famílias católicas não
permitem que lhes entre por casa o predicante metodista ou
presbiteriano, nem aos seus filhos dão licença que freqüentem os
templos heterodoxos, assim não querem outrossim — e o governo
não pode desrespeitar este direito — que nas escolas sejam
submetidas a outras influências religiosas ou irreligiosas, em
antagonismo com as influências domésticas. Se em algum lugar —
talvez em algum estado do Sul — o núcleo protestante da
população escolar for considerável, que para ele se abra uma
escola onde os filhos de protestantes recebam a instrução religiosa
dos seus pastores, com proibição clara aos filhos de católicos de
freqüentar estas escolas ou estas aulas sem explícito consentimento
dos pais — tal qual vimos praticado na Alemanha. (Não somos
intolerantes).
Outra dificuldade é o espectro do laicismo constitucional. O § 6
do art. 72 da Constituição prescreve que o ensino seja leigo. Mas a
expressão ensino leigo não deve, não pode significar ensino a-
religioso, ou irreligioso. Interpretá-lo assim é opor em flagrante
antinomia este § 6 do art. 72 ao § 3 do mesmo artigo que sanciona a
liberdade de consciência. Ora já vimos que não há mais clamorosa
violação da liberdade de consciência e da justiça distributiva do que
submeter os filhos das famílias católicas à influência de uma
educação em desarmonia com os ditames de sua consciência ou
impor-lhes o ônus dobrado (impossível a muitas) de pagar a escola
particular que satisfaz aos seus princípios morais e religiosos. Esta
interpretação única razoável, única em harmonia com a finalidade
do Estado, única que não poria o nosso regime escolar em antítese
com a legislação “dos Estados mais bem organizados”, não é nova.
Poderia invocá-lo em seu apoio o parecer dos mais conceituados
juristas estrangeiros e nossos. Deixemos os estrangeiros, cuja voz
ouvimos ecoar nos lábios insuspeitos de Clemenceau. Dos patrícios
lembramos apenas, entre os falecidos, os nomes de Rui Barbosa e
Pedro Lessa; entre os ainda vivos, a opinião de um dos nossos
estadistas mais clarividentes, o Dr. Calógeras:
Nada, na Constituição vigente, impede que, sem prejuízo dos programas
pedagógicos e a pedido dos pais, seja ministrado nos próprios edifícios
escolares o ensino religioso […]. Se se verificasse acaso que existem dúvidas
sobre a ortodoxia constitucional de tal modo de agir [o de Minas] sem
hesitação se deveria aprovar a exegese da lei e tornar bem claro que é
perfeitamente lícito o que a emenda propôs.183

Não há, pois, obstáculos legais. A grande dificuldade está na


nossa opinião pública, na mentalidade dos nossos dirigentes
infelizmente falseada por quase meio século de laicismo dominante
quase sem contrastes. Refazer esta mentalidade, eis o primeiro
dever da ação católica. Não é tarefa que se possa ultimar em
poucos dias nem com um ou outro artigo de jornal. O trabalho é
longo e exige uma colaboração multiforme e disciplinada. O que
urge é que cada qual ponha a serviço desta grande causa os seus
meios de influência intelectual e social, em todos os campos que a
Providência proporcionar à sua ação. Mostremos os inconvenientes
da escola leiga, a necessidade iniludível da instrução religiosa, a
decadência da moralidade pública que acompanha o ensino leigo,
procuremos dar às famílias uma consciência mais viva dos seus
direitos e deveres, insistamos sobre a injustiça da aplicação
exclusiva dos dinheiros públicos a escolas a-religiosas, sobre a
opressão das consciências católicas exercida pela legislação atual,
vulgarizemos o conhecimento dos regimes escolares atuados por
outros países; mostremos como a nossa legislação do ensino se
acha num lamentável atraso em relação à de outros países
civilizados. Muitos dentre eles não se deixaram cair nunca na
armadilha do ensino leigo. Outros, apenas o puseram em prática, e
lhe viram as funestíssimas conseqüências, logo voltaram atrás e
corrigiram o erro cometido. Admitiu-o a Bélgica em 1879, repudiou-o
em 1884 e a lei do ensino leigo por lá é conhecida com o triste nome
de Loi de malheur. Admitiu-o a Holanda em 1857 e o repudiou em
1888; admitiu-o a Inglaterra em 1870 e repudiou-o em 1902. Hoje só
conservam o laicismo os poucos governos sectários que pretendem
fazer do ensino público instrumento de propaganda anti-religiosa,
mobilizando a escola contra a Igreja, o professor contra o sacerdote.
Acrescentai que não há um só país em que o ensino leigo tivesse
contribuído para a elevação da moralidade pública e da
tranqüilidade social e que em todos os países — em que foi
temporária ou definitivamente introduzido, a laicização do ensino
determinou um aumento da criminalidade infantil e uma ruptura no
equilíbrio social, cujas conseqüências de dia para dia se mostram
mais assustadoras.
Esta campanha benfazeja em torno da regeneração de uma
pedagogia oficial impõe-se como um dever patriótico e como um
dever cristão.
Nas nossas escolas prepara-se lentamente o futuro do Brasil. A
moralidade do povo irá inelutavelmente decaindo se não receber
uma educação religiosa. A coesão nacional não encontrará um
baluarte mais forte contra a ação dissolvente de elementos
perturbadores do que a unidade espiritual do nosso povo na visão
dos grandes ideais da vida. Foi na vivacidade do seu sentimento
religioso profundo que a Polônia e a Irlanda, através de todas as
vicissitudes de opressões políticas, encontraram a força indomável
de uma resistência heróica e o segredo de uma ressurreição
gloriosa.
Mais, porém, do que um dever de patriotismo natural, a
educação religiosa da nossa juventude é, para a nossa consciência
cristã, um dever religioso, um campo aberto ao zelo do nosso
apostolado, ao nosso amor das almas.
Poucas expressões há no Evangelho tão enternecedoras como
aquelas palavras saídas do Coração divino de Jesus: Sinite parvulos
venire ad me. Deixai que venham a mim os pequeninos.184 Oh!
deixemos que nas nossas escolas os pequeninos possam ir a
Jesus. É para eles a maior ventura na vida! Jesus apresenta-se às
consciências infantis como o grande ideal — concreto, vivo,
inexcedível — da perfeição humana. Conhecê-lo e amá-lo é, para a
infância, a única defesa de sua inocência; é para a juventude, a
fonte pura de entusiasmos generosos, é para a vida humana a
chave única da verdadeira felicidade. A Ele virá o adulto, nas horas
de desalento, pedir forças para a fidelidade ao dever, consolação
nas inevitáveis tristezas da vida, heroísmo para a tragédia dos
grandes sacrifícios. E quando o véu da morte inevitável cobrir com
as suas sombras o cenário das coisas que passam, Jesus
aparecerá então Senhor em todo o esplendor eterno de sua
majestade que não passa, pai em toda a ternura de sua bondade
que nunca se desmente e a vida humana essencialmente orientada
para Deus, através de Cristo, se encerrará não num ato de
desespero inconsolável, numa inaudição que remate a catástrofe
irremediável de uma existência mal compreendida, mas pacífica,
serena, radiante num ósculo ao Crucifixo, num ato supremo de amor
que se perpetuará no êxtase indefectível da felicidade divina. A
escola leiga não ensina nem a viver, nem a morrer assim.

Rio, 10 de outubro de 1928.

167 Amtsblatt des bayerischen Staatsministerium für Unterricht und Kallis, 1920,
pp. 127 e ss.
168 Apud Monte, p. 463.
169 Art. 33 da lei de 1906. Monte, p. 435.
170 Monte, p. 486.
171 Idem, p. 438.
172 Idem, p. 445.
173 Idem, p. 452.
174 Idem, p. 464. Sobre a Prússia, cf. p. 441.
175 Monte, pp. 432–434.
176 Idem, p. 439.
177 Idem, p. 446.
178 Ler AAS, 1925, p. 46.
179 Études, 140, p. 215.
180 Le libéralisme, Paris, 1902, pp. 161–162.
181 Discours du 30 Set. 1902.
182 DAFC.
183 Pandiá Calógeras, “Emendas religiosas”, no O Jornal de 24 de outubro 1925.
184 Mt 19, 14; Mc 10, 14; Lc 18, 16 — NE.
Ação católica da professora — visando o futuro e o presente.
Ensinar a religião:
a) na escola (incidentemente),
b) fora da escola — catecismo.
Ensino pessoal.
Ensino dirigido e aconselhado.
Grandeza do ministério catequético.
Cristianismo — religião da caridade.
Prova de amor ao próximo.
Maior dom da caridade a verdade — a verdade religiosa, de que é
principal credora a infância.
Eficácia da primeira educação para a vida terrena.
Conseqüências para a eternidade. Os que se extraviam
geralmente
voltam. (Verlaine).
O catecismo, prova do amor de Deus. — Diligis? Pasce.
O amor do apostolado.
O ministério é só aparentemente humilde — influência do
anonimato — e realmente de sacrifício — prova por isso do amor de
Deus.
Pensamento que deve alentar no sacrifício.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 22/08/1929.


Ensino do catecismo

T ERMINADOS os nossos ligeiros estudos sobre a co-educação


antes de iniciarmos uma nova série sobre a moral leiga ou
científica, pareceu-nos bem intercalar uma palestra de caráter mais
prático. É bom contemplar a verdade, mas cumpre não esquecer a
realização do bem. Os estudos teóricos têm a vantagem de projetar
a luz da verdade nos caminhos da vida; mas é a ação, esclarecida e
eficaz, que faz passar a verdade salvadora das esferas das
possibilidades ao terreno positivo das realidades vivas.
Ora, já vos disse em outra ocasião, neste mesmo ano, que nos
horizontes da vida de uma professora católica se entreabre a
perspectiva de uma dupla atividade: a primeira visando preparar um
futuro melhor aos que depois de nós vierem, a outra, empenhando-
se por assegurar, nas possibilidades atuais, a maior soma de bens à
geração que é nossa contemporânea.
Trabalhemos com os olhos fitos no porvir. A laicização do nosso
ensino público, com a hermenêutica jurídica que lhe tem sido dada
na maior parte dos estudos, foi um dos maiores erros cometidos
pelos constituintes de 1891. A decadência da nossa moralidade
pública, o aumento da criminalidade infantil são dos seus efeitos
imediatos mais visíveis. Aproveitemos esta experiência dolorosa e
reparemos o erro cometido. Também a Inglaterra, também a
Bélgica, também a Holanda introduziram por algum tempo o
laicismo no seu sistema educativo, mas bem cedo voltaram atrás. A
Alemanha, a Áustria, a Espanha, a Escandinávia não separaram
nunca a instrução pública da educação religiosa: protestante para os
filhos de famílias protestantes, católica para os filhos de famílias
católicas. Para nós aqui no Brasil, o ponto mais importante do
problema da instrução pública popular é a questão da educação
moral e esta é inseparável da educação religiosa. A ação católica
incumbe, como um dos deveres mais graves e mais urgentes,
envidar os seus esforços com serenidade, prudência e
perseverança, para defender neste ponto os direitos inalienáveis da
consciência católica, assegurando às nossas famílias a
possibilidade de educar religiosamente os seus filhos nas escolas
públicas. A situação atual, como já provamos outras vezes, é
profundamente lesiva da liberdade de consciência.
Enquanto, porém, afagamos, num otimismo sadio, as
esperanças de um futuro melhor e orientamos os nossos esforços
para transformá-lo o mais brevemente possível num presente
consolador, não podemos esquecer a situação dolorosa das
gerações que ora passam pelos bancos das nossas escolas, e
crescem e se preparam para a vida sem o benefício de uma
instrução religiosa. Não nos pode sofrer o coração cristão
presenciar, inativos, o mal de tantas almas sem lhes estender a
mão, num gesto generoso de caridade e de zelo. É muito o que
podeis fazer, não pode deixar de ser muito o que quereis fazer. Não
fiquem as generosidades da dedicação abaixo das possibilidades da
ação.
E que podeis fazer? Podeis de fato ensinar a religião, na escola
e fora da escola, fragmentariamente e organicamente.
Na escola são muitas as ocasiões que se vos oferecem de
esclarecer os mais importantes problemas da vida moral e religiosa,
sem a menor quebra da legalidade constitucional; aproveitai-a sem
respeitos humanos e com a solicitude de um zelo inteligente. A
história universal, a nossa história do Brasil, as noções elementares
das ciências físicas e naturais trazem naturalmente à curiosidade
infantil e à habilidade dos mestres as questões da existência de
Deus Criador e Providência, de Jesus Cristo e de sua vida, da
influência regeneradora do cristianismo, da eficácia civilizadora da
Igreja. As explicações breves, incisivas, exatas, dadas assim
incidentemente, calam fundo nas almas dóceis das crianças e lá
ficam como sementes fecundas que a seu tempo germinarão em
frutos abençoados de bondade. Os incidentes da vida cotidiana
oferecem outro ensejo à professora de formar o critério moral das
consciências, radicando nelas o horror ao vício ou despertando
entusiasmo pela virtude. Quem não se lembra por exemplo, o ano
passado, da morte admirável de Del Prete, que nos deu um exemplo
magnífico da fé mais robusta e viril a enformar uma vida modelar de
filho, de soldado e de patriota, na grandeza de um heroísmo que se
impôs à unanimidade da admiração universal? Por que não
aproveitar, para a instrução moral e religiosa — cristã — estas
muitas lições de coisas, que se impõem cada dia pelo interesse da
atualidade e pela força penetrante das instituições da vida? Nada de
estiradas longas, de sermões ou de homilias soporíferas, mas
narrações breves e vivas, alusões profundas, incisivas, que desçam
até ao fundo das almas e lá deixem indelevelmente gravadas
impressões da seriedade da existência e da grandeza das nossas
responsabilidades morais e religiosas.
Esta instrução incidente e fragmentária é útil, fácil, eficaz, mas
insuficiente. Importa seja compelida por um curso orgânico e
graduadamente adaptado ao desenvolvimento das inteligências
infantis. O catecismo é indispensável.
E é para o ensino de catecismo que eu vos venho convidar
hoje, minhas senhoras. Bem sei que muitas dentre vós já se
ofereceram com uma generosidade admirável a este ministério
trabalhoso mas profícuo como nenhum outro. Mas por que não farão
todas o que já fazem muitas? Se não é igual a possibilidade de
todas, desiguais também são as tarefas que se podem assumir no
exercício deste apostolado. Por que cada qual não escolheria entre
elas a que correspondesse mui certamente à possibilidade de suas
forças e às inspirações de sua generosidade? O princípio geral que
deve orientar os vossos propósitos é este: uma professora católica
não deve sofrer que os alunos que a Providência lhe confiou não
recebam instrução religiosa. Este princípio não deve variar; poderão
variar o lugar e o modo de o pôr em prática. Em algumas escolas
municipais aqui do Rio, e em alguns distritos escolares, por ação de
professores e inspetores zelosos sei positivamente que, com a
anuência das entidades superiores, já se ministra o ensino religioso
nos próprios edifícios escolares. Talvez um pouco mais de zelo
prudente de outras professoras e outras inspetoras poderia elevar
este número abençoado.
Onde não se conseguir esta autorização — sem a qual não
convém agir, para não dar exemplos de indisciplina — o local deverá
ser outro, indicado pelas circunstâncias particulares de cada caso.
Será a casa da própria professora, será o jardim de uma família
amiga e zelosa, será uma capela particular, um colégio ou um
convento religioso da vizinhança, será por último a própria igreja
paroquial: o local só faltará a quem não o quiser descobrir.
Vários os lugares — vários os modos. O ideal é que a instrução
religiosa seja ministrada pessoalmente pela própria professora, por
cada uma de vós. Assim, a auréola de prestígio, que naturalmente
envolve no ânimo dos alunos a autoridade da mestra, realça na
estima deles o valor e a importância do ensino religioso. Mais: a
formação técnica, adquirida num tirocínio especializado de alguns
anos, e a experiência pedagógica entesourada na prática do
magistério, darão ao vosso ministério uma vida, um interesse, uma
eficiência educativa que nem sempre se encontram nas aulas de
catecismo.
Se não for possível realizar este ideal, ou por falta de saúde ou
por falta de tempo (em afirmar, porém, a falta de tempo, sede
severas convosco; há quase sempre na nossa vida leituras curiosas
de jornais, revistas e romances, conversas ociosas, visitas
desnecessárias, ocupações dispensáveis que nos roubam um
tempo precioso que poderá ser com vantagem empregado em
atividade mais útil e mais consoladora), se não for possível, digo,
realizar este ideal do ensino direto, ao menos tomar sobre vós a
responsabilidade de encaminhar as vossas alunas aos centros de
ensino catequético: grupos dirigidos por zeladoras, aulas dominicais
organizadas nos colégios e comunidades religiosas ou ainda o
catecismo paroquial. Tomai, porém, esta tarefa com zelo: organizai a
lista das vossas alunas; uma vez encaminhadas interrogai-as de
tempos a tempos se continuam a freqüentar as aulas começadas.
Este interesse da professora será um estímulo poderoso para a
aluna e suprirá muitas vezes o desleixo de tantas famílias cristãs
esquecidas do mais importante dos seus deveres, e a falta de
iniciativa e irreflexão das próprias crianças incapazes ainda de
avaliar o valor inestimável de uma sólida formação religiosa.
Para assegurarmos um apoio positivo à vossa boa vontade e
constituir um núcleo de organização eu vos pediria a gentileza de
comunicar por escrito a M. B. o trabalho pessoal feito ou a fazer por
cada uma de vós. Esta comunicação deverá indicar o número de
alunos ou alunas que dependem da informante, e se recebem
instrução religiosa dada por ela ou por outrem e o número de
crianças preparadas para a primeira comunhão.
Neste cuidado em dirigir pessoalmente ou acompanhar de perto
a instrução religiosa dos vossos alunos, um ponto eu vos queria
recomendar com particular insistência: a primeira comunhão!
Comungar é unir-nos a Cristo, é o completar a nossa iniciação
cristã. O Batismo não nos faz cristãos senão porque nos dá o título,
o direito à comunhão: e este é o mais seguro penhor de salvação:
qui manducat meam carnem habet vitam aeternam.185 Há tudo a
esperar de quem fez bem a sua primeira comunhão. Anualmente,
cerca de 25 ou 30 mil crianças passam aqui no Rio pela idade de
fazerem o grande ato religioso de sua vida. Quantas, dentre estas,
terão realmente a dita de o realizarem! Ao menos, que pelas vossas
mãos não passe nenhuma que não leve pela vida adiante este
penhor de sua predestinação eterna.
Assumi convosco este compromisso de estatística: é um pouco
molesto, bem o sei; mas é um estímulo à ação e uma garantia de
perseverança. Sem sacrifício não se faz o bem.
Se me dirigi neste apelo imediatamente às professoras não foi
de modo algum com a intuição de excluir as outras, dentre as
minhas ouvintes, que diretamente não se ocupam do magistério. A
todas estendo o convite do mesmo modo, com a mesma eficácia da
instância (às senhorinhas). Segundo as circunstâncias particulares
poderá cada uma determinar o modo positivo e concreto de
colaborar nesta grande obra de apostolado cristão e de regeneração
social, a mais importante e fundamental, talvez, de quantas podem
atrair o zelo das almas generosas ávidas de fazer o bem e trabalhar
para aumentar a felicidade dos nossos irmãos. Sobre a grandeza
desta missão, para a qual hoje vos convido, e que tantas vezes não
é aquilatada em seu justo valor, deixai que vos diga duas palavras.
Deus charitas est.186 Deus é amor. E o cristianismo, que encerra
a verdade das relações do homem com Deus, é uma religião de
amor; no seu dogma, a epopéia magnífica do amor de Deus às suas
criaturas; na sua moral, a resposta do amor das criaturas às
generosidades divinas. Quod est mandatum maximum in lege, qual
é o maior… perguntou um dia um escriba a Nosso Senhor. Diligis
Dominum Deum tuum… ex toto… Hoc primum et maximum
mandatum… Secundum autem, acrescentou logo Jesus, simile est
huic.
O segundo é semelhante ao primeiro: amarás o teu próximo
como a ti mesmo. In his duobus mandatis universa lex pendet et
prophetae.187 Toda a Escritura resume-se nestes dois preceitos: e o
que nos ensina o nosso catecismo… Estes 10 mandamentos se
encerram em dois, etc…
Este analismo que sintetiza toda a moral do cristianismo ainda
se pode fundir numa só unidade: os dois mandamentos não são —
não digo antagônicos, mas nem sempre membros coordenados, que
subsistem independentemente um do outro: são dois aspectos
inseparáveis de uma mesma disposição fundamental da nossa
alma. Não podemos amar a Deus sem amar o nosso próximo; não
podemos amar ordenadamente o nosso próximo sem nos
aproximarmos mais de Deus. Progredir no amor divino é aumentar a
nossa capacidade de dedicação ao próximo; sacrificarmo-nos para o
bem dos nossos irmãos é preparar melhor a nossa alma para as
intimidades com Deus.
Que magnífico programa de vida nos traça o cristianismo; que
grandeza de perspectivas nos entreabre às mais nobres aspirações
da alma! Estamos neste mundo para amar, para amar a Deus
amando o nosso próximo. Amar é querer bem. Amar a Deus é
querer o bem de Deus, a realização da sua vontade, a dilatação da
sua glória da execução livre do plano divino manifestador das suas
infinitas perfeições. Amar o nosso próximo é querer-lhe bem,
desejar que os nossos irmãos conheçam e amem a Deus e realizem
a sua vontade, que é amor, a verdadeira perfeição das criaturas
racionais essencialmente unida à sua felicidade definitiva e
inamissível. Eis o verdadeiro objeto da caridade cristã.
Por aí já vedes que o primeiro e maior dom do amor é a
verdade. A estas alminhas que vos são confiadas vós podeis dar os
vossos bens, podereis dar a vossa fortuna;188 é alguma coisa, mas é
pouco; dais assim um bem que vos é extrínseco e que lhes poderá
proporcionar uma melhor situação, material. Podeis dar-lhe o vosso
coração, o vosso afeto; é mais, é muito mais. Mas o vosso afeto é
uma dádiva frágil e efêmera; amanhã talvez já não podereis repetir
com a mesma sinceridade o movimento para renovar a vossa
doação; e esta doação do vosso afeto não é uma perfeição definitiva
e interior da alma querida. Há, porém, um bem superior espiritual,
que vós podeis comunicar com o que há de mais íntimo em vós; e
que passará a ser o que há de mais íntimo na pessoa amada; um
bem que vós possuís e podeis dar, mas que é maior que vós e que
vos há de sobreviver, que há de continuar a irradiar a sua luz
benfazeja, quando vós já não fordes; um bem que é o mais
indestrutível patrimônio do homem: a verdade.
É da verdade religiosa, mais que de nenhuma outra, que se
verifica em toda a sua plenitude o rigor desta afirmação. Das
verdades particulares — históricas ou científicas, geográficas ou
matemáticas — o homem pode auferir inúmeras vantagens na vida.
Nenhuma delas é indispensavelmente essencial ao homem.
Indispensavelmente essencial ao homem é só a verdade religiosa.
O animal para guiar-lhe a existência tem a espontaneidade do
instinto, sabiamente orientado segundo as exigências da
conservação do indivíduo e da espécie. O homem, racional, guia-se
por princípios. Sem idéias, sem convicções, que é o homem senão
uma vítima infeliz das paixões efêmeras, da concupiscência do
momento que passa, do egoísmo que isola, esteriliza e mata? E que
nos poderá fazer ela da vida, se não sabe o que ela é, e para que
lhe foi dada; a origem donde ela começou, os destinos que deve
realizar e atingir, a norma necessária de sua atividade moral,
essencialmente condicionada pela finalidade última da nossa
natureza racional? A resposta a todas estas perguntas constitui
substancialmente o objeto do ensino religioso. E é impossível
imprimir uma orientação à vida sem assumir uma atitude religiosa. A
suprema caridade é pois a caridade da doutrina. O maior dom que
podemos oferecer ao nosso próximo é o dom da verdade religiosa.
E o primeiro credor deste inestimável benefício é a infância.
Muito mais do que às vezes se pensa, a primeira idade é a quebra
decisiva da nossa vida. A criança, o jovem, abrem os olhos
iluminados de inocência e interrogadores, vivos de curiosidade,
sobre o grande espetáculo que a natureza e a sociedade lhe rasgam
à contemplação extasiada, e aceitam com docilidade e avidez as
primeiras revelações sobre a grandeza da vida, sobre a nobreza da
virtude, sobre a imortalidade dos nossos destinos que tão bem
respondem às mais elevadas aspirações íntimas da sua alma
virgem e vibrante ainda não tisnada pelo vício ou metalizada pelo
mercantilismo dos interesses materiais. A verdade ou o erro que lhe
ensinardes então modelará a plasticidade das suas consciências,
presidindo à formação destes primeiros hábitos tão profundos que
nelas influirão sempre pela vida adiante: bons hábitos, asas que as
elevam, tornando espontânea, fácil, agradável a prática do bem;
maus hábitos, peso morto a tolher-lhes a liberdade e a elegância
dos movimentos morais superiores, a arrastá-las constantemente
para o que degrada, envergonha e humilha. Um grande e desditoso
poeta cantou em versos célebres a infelicidade do coração humano,
vaso profundo em que, se for impura a primeira água que nele se
versa, debalde por cima lhe passaria o mar; não lhe levaria a
mancha, “car l’abîme est immense et la tâche est au fond”.189
É que as primeiras verdades formam as primeiras virtudes,
como os primeiros erros preparam a queda das primeiras
degenerescências. Oh! minhas senhoras, não calculais o bem
imenso que podeis fazer aos vossos alunos; estas verdades tão
simples e tão profundas do catecismo irão constituir pela vida a fora
o fundamento da vida moral; são sementes que germinarão virtudes,
energia nas lutas da vida adulta, valor e constância nas
adversidades, consolações profundas e esperanças imortais nas
horas tristes do sofrimento inimitável. Mais. Nesta instrução religiosa
— que talvez estas criancinhas sem a abnegação de vossa caridade
não receberão nunca — vós lhes dais o penhor mais seguro de sua
salvação eterna.
Nem vos desanime o ver que tantas e tantas crianças educadas
religiosamente ao entrarem em contato com o mundo nas primeiras
inexperiências da juventude deixam as práticas de piedade, como
que esquecidas de todo do trabalho longo e paciente de tantos
anos. A semente fecunda e imortal lá fica; um dia desabrocharão
frutos de uma vida eterna. Daqui a vinte ou trinta anos, sob o abalo
de uma emoção mais profunda e dolorosa, o infeliz que as paixões
transviaram descerá às profundezas insondáveis da sua alma e lá
encontrará uma florzinha que parecia seca, e dela se exalará um
perfume de paz e de saudade que pouco a pouco lhe embalsamará
toda a alma; as perguntas e respostas do velho catecismo que
pareciam para sempre sepultadas no olvido da morte ressuscitarão
de novo evocadas por uma reminiscência tenaz e iluminadas agora
em toda a sua profundidade pelas lições reais da vida; as práticas
religiosas dos primeiros anos, os primeiros encantos da inocência
com Jesus, a singeleza das orações infantis, tudo voltará a dizer-lhe
que o homem só é feliz quando possui a Deus. E começa o trabalho
da ressurreição espiritual que às vezes pode ser longo, mas, se a
alma não opõe resistência de obstinações irredutíveis, cedo ou tarde
lhe há de restituir a vida. “Como uma água viva que foi comprimida
sob um imenso desmoronamento, conserva-se por algum tempo
escondida e como morta; depois, pela sua própria força, abre um
caminho, cava através das voltas canais misteriosos e aparece de
novo à luz do Sol, gota a gota, a princípio, depois em fios
intermitentes e por fim num repuxar vitorioso”,190 assim a fé
inoculada nos primeiros anos, sufocada mas viva nas profundezas
do ser, agita-se, remorde, luta e acaba triunfante rasgando à alma
os caminhos para a luz.
Desta força vivaz da primeira educação religiosa a trabalhar
após um longo período de letargia ou morte aparente, poderiam
citar-se exemplos aos milhares. Lembrarei apenas um. Quem não
conhece a história deste poeta simbolista, alma doentia e terna, que
se chama Paul Verlaine? Verlaine teve uma infância calma, doce e
piedosa. A sua primeira comunhão, escreveu ele mais tarde nas
suas confissões, foi boa, e deixou-lhe na alma impressões
indeléveis. Vem depois o meio sedutor de Paris, o ambiente
corruptor dos jovens poetas. Aí encontrou o amigo mau da sua vida,
o equívoco Arthur Rimbaud, que sobre ele exerceu uma influência
literária nociva e uma influência moral ainda mais funesta,
ensinando-o a buscar alegrias na vida sem costumes e a afogar o
esquecimento das dores na inconsciência do absinto. Corpo e alma
e consciência — tudo estragou e devastou a influência desastrosa
de Arthur Rimbaud. Verlaine o sentia e um dia, em Bruxelas, numa
crise de alcoolismo, desfechou-lhe dois tiros de revólver, como se
nele quisera matar o seu pecado. As balas feriram apenas, e
Verlaine foi condenado a dois anos de cadeia: foi sua salvação: o
isolamento trouxe a reflexão, a reflexão a paz. Através das
devastações do erro e do ócio, ele encontrou a sua alma infantil; o
que nela depositara a vasa imunda, lavaram as lágrimas benditas da
contrição e diante do seu crucifixo ele escreveu então a mais bela
das suas poesias e que termina:

Vous, Dieu de paix, de joie et de bonheur


Vous connaissez tout cela, tout cela
Et que je suis plus pauvre que persone
Vaus connaissez tout cela, tout cela
Mais ce que j’ai mon Dieu, je vous le donne.191

Eis a força reabilitadora de uma primeira educação religiosa.


Sem talvez a notoriedade trágica da vida de Verlaine, vós podeis
reviver inúmeras vezes esta cena consoladora: podeis preparar
todas as almas que vos passam pelas mãos para que um dia,
mesmo as que tiveram a desdita de esquecer ao Deus que alegrou
as inocências de sua juventude, a ele voltem num ato supremo de
doação.

Vous, Dieu de paix, de joie et de bonheur


ce que j’ai mon Dieu, je vous le donne.
E este é o grande ato que lhes há de assegurar a sua felicidade
definitiva. Eis o grande bem, que podeis ir semeando, dia a dia, pelo
caminho da vossa vida. A vida cristã é a vida de caridade: devemos
viver amando ao próximo, devemos viver amando a Deus. O ensino
da doutrina cristã é a expressão suprema da caridade para com o
próximo, o zelo em vos desempenhardes com fidelidade e
constância deste compromisso voluntário é uma das provas mais
inequívocas do vosso amor a Deus.
Lembrai-vos daquela cena solene e comovedora que teve por
cenário as margens do mar de Tiberíades em que Jesus investiu a
Pedro do cargo de Pastor supremo da sua Igreja. Simon Joannis
diligis me…192 Numa confissão de amor: ministério de zelo. Desde
então é lei universal: quem ama é pastor. O cristão que se fecha
num egoísmo estéril, e conserva as luzes com que Deus lhe
iluminou a alma como uma riqueza individual que basta para lhe
assegurar a própria salvação, não compreendeu nada do
cristianismo. Repete todos os dias o seu adveniat regnum tuum num
movimento de lábios cuja sinceridade é desmentida pela inação de
uma vida cômoda e infecunda. A lei da luz é iluminar; podeis apagá-
la: impedir que seja luminosa, não. Assim um coração que ama
sinceramente a Deus não pode enterrar a verdade divina na frieza
de uma mudez indiferente. Quando Deus acende numa alma uma
luz, por mais humilde que seja, é para que ela ilumine o seu meio; e
se os dons de Deus são mais abundantes; se a luz é mais intensa,
se a nossa posição social lhe permite uma irradiação mais ampla,
crescem com a grandeza dos dons as dívidas do amor e as
responsabilidades do zelo. Somos cristãos para colaborar
ativamente com Cristo na grande obra da redenção do homem. É a
grande prova de amor a Deus.
Cristo vos pôs nas mãos esta imensa possibilidade de iluminar
e de bem-fazer. Sobre as crianças — que ele tanto ama e que
tantas vezes chama a si num gesto de carinho e de predileção,
sobre as crianças — as almas inocentes preferidas do seu
apostolado, Ele vos concedeu esta imensa influência de mestra, de
professora, para que o vosso amor a transformasse num
instrumento de sua glória.
O ministério é de aparência humilde e penosa, bem o sei; mas,
por isto mesmo estais na via real do cristianismo; por isto mesmo é
que o apostolado é a grande prova do amor de Deus.
Mas não vos deixeis enganar pelo esplendor das
exterioridades. São as influências anônimas que, multiplicadas,
preparam as grandes restaurações sociais. A ciência moderna não
tem feito senão pôr em luz mais evidente a importância dos
infinitamente pequenos.193 Vede em biologia: os micróbios são as
grandes potências em todos os domínios: eles que nos governam,
eles que nos alimentam, eles que nos defendem, eles que nos
matam. Eles que pareciam quase nada, depois dos trabalhos de
Pasteur nos aparecem como quase tudo. A vida e a morte dos
grandes organismos dependem da multidão incalculável destes
infinitamente pequenos. Vede em geologia: o trabalho gigantesco
das madréporas e dos corais: cada infinitamente pequeno das
grandes colônias constrói o seu invólucro calcário que não chega às
dimensões da cabeça de um alfinete. E o trabalho multissecular
destes seres minúsculos consolida as substruturas resistentes de
ilhas e de continentes. Vede na história: Taine julgou poder explicar
tudo, na sua filosofia positiva, com o fatalismo da tríplice influência
da raça, do meio e do ambiente. Depois dos legítimos protestos da
liberdade humana resta ainda uma verdade fecunda: é que a
história é feita de impulsos obscuros, de pressões imperceptíveis,
que uns sobre os outros exercem, estes grãos de poeira fugitiva, a
humanidade; é que os desconhecidos e os desprezados, criadores
do “meio” e criadores do “ambiente” (porque afinal de contas são os
homens que compõem estas influências, antes de as sofrer),
merecem ser considerados como os verdadeiros tecedores da trama
histórica; é que o mundo em geral é conduzido — não, como queria
Taine, por um determinismo necessário — mas por esta coletividade
anônima formada pela associação das liberdades de todos. “Não
esqueçamos portanto a força do anonimato diante dos homens, não
esqueçamos o merecimento do anonimato diante de Deus”.
E se são grandes este poder e este merecimento, quando se
trata da menor das nossas ações, quer queiramos ou não, pelo
simples fato de vivermos em sociedade, na convivência dos nossos
semelhantes, exercer na complexidade do mecanismo de ações e
reações sociais influências de repercussões cujo alcance não nos é
dado avaliar, mérito maior, incomparavelmente maior, é quando se
trata diretamente da formação religiosa das almas. Não é só a
restauração social cristã que assim se prepara de um modo obscuro
mas eficaz; é a salvação eterna das almas para a qual colaborais; é
a felicidade definitiva e imutável que lhes assegurais para sempre
na posse irrevogável dos seus destinos eternos.
Não; a humildade deste grande ministério é só aparente; vós
vos eclipsais sim, diante dos homens — e esta penumbra voluntária
é muito cristã —, mas o bem que fazeis diante de Deus só lhe
alcançareis a amplitude na luz da eternidade.
O que não é aparente é o sacrifício: esse é real e, por vezes,
bem árduo. Ser apóstolo é dar às almas um pouco do vosso tempo,
das vossas comodidades, das vossas relações sociais; é vencer as
repugnâncias instintivas aos deveres constantes e monótonos da
vida; é semear hoje entre lágrimas e adiar para mais tarde as
alegrias e consolações da colheita. Mas, por isso mesmo que é
ministério laborioso, aí temos uma prova da vossa caridade para
com Deus. Não ama quem não sabe sofrer. E é neste amor de Deus
que deveis haurir as forças de uma dedicação inesgotável. Quantas
vezes nos momentos de fervor não perguntais à vossa alma o que
podeis fazer por Deus! Quantas vezes, quando Ele vos envia o anjo
da dor, não perguntais como vos podeis consolar, sem O ofender!
Ide às almas; estas almas que Deus ama e que O ignoram; almas a
que nas nossas escolas se ensina o que é necessário para bem
viver na Terra, mas que sentem também elas um desejo de uma
felicidade maior, ávidas de verdade e de paz, cujos olhos abertos de
inocência aspiram a refletir a imensidade dos Céus. Ide a elas, para
levá-las a Deus. Iluminar estas inteligências com as verdades
divinas da fé; depor nestas consciências algumas das virtudes
cristãs; sobrenaturalizar estas almas para que elas possam viver a
vida divina que Cristo nos mereceu com o seu sangue: que
consolação nos vossos sofrimentos pessoais, que satisfação às
aspirações generosas do vosso amor! Evocai estes grandes
pensamentos nos momentos em que mais sentirdes o peso ingrato
deste ministério difícil. Charles Péguy, recém-convertido, quando
percorria as ruas de Paris, a cada esquina atirava aos céus uma
Ave-Maria fervorosa; do alto dos ônibus outra Ave-Maria; não havia
canto da grande metrópole que ele não aspirasse santificar com o
fervor de sua oração sincera. Também vós quando vos moverdes
neste burburinho humano da nossa grande capital, no cumprimento
de vosso ministério divino, evocai, no silêncio consolador do vosso
recolhimento, um pensamento semelhante. Nesta turba que se agita
apressada pelas nossas ruas e praças, quantos e quantos escravos
de suas paixões não vão praticar o mal: passos tristes do pecado.
Quantos, na inconsciência da seriedade da vida, não se movem
senão para verem e serem vistos: passos frívolos da vaidade.
Quantos num terra-a-terra utilitarista não pensam senão na
conquista dos bens materiais: passos caducos de ambições
efêmeras. Que haja também os que se movem pelos interesses de
Deus: são os passos mais ditosos da vida. Deles está escrito no
livro das verdades que não passam. Quam especiosi pedes
evangelizantium pacem, evangelizantium bona.194 Belos os passos
dos que anunciam a paz, bem-aventurados os passos dos que
evangelizam o bem.
A. M. D. G.

Rio, 06 de julho de 1929.

185 Cf. Jo 6, 55 — NE.


186 1Jo 4, 16 — NE.
187 Cf. Mt 22, 36–40 — NE.
188 Paráfrase de um trecho de Lacordaire, citado por Tissier, Soyons apôtres, 5.
189 Alfred de Musset — NE.
190 Jean Calvet, Renouveau catholique, p. 55.
191 Apud Jean Calvet, Le Renouveau catholique, pp. 32 e ss.
192 Cf. Jo 21, 15 — NE.
193 Idéias colhidas em Georges Goyau, Autour du Catholicisme Social, 2ème
série, pp. 89 e ss.
194 Rm 10, 15.
Aspecto pedagógico do ensino religioso.
Aspecto social — criminalidade em França, inquéritos nos eua.
Aspecto jurídico — Tentativa ou justificação jurídica do ensino leigo.
O ensino leigo não é neutro — postulados que envolve.
O novo decreto: verdadeiro regime da liberdade.
Respostas às dificuldades.
Ensino religioso no lar.
Separação entre a Igreja e o Estado.
Dissídios entre alunos.
Perigo da luta religiosa.
Deveres das professoras católicas.
Deveres de defesa — de medida preventiva.
Deveres de conquista apostólica do novo campo.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 14/05/1931.


Ensino religioso

O DECRETO DE 30 DE ABRIL DE 1931

C OM O DECRETO de 30 de abril de 1931 inaugurou-se uma nova


fase na história da nossa pedagogia oficial. O ensino religioso
que durante quarenta anos de ditadura laicista fora condenado ao
mais injusto e funesto dos ostracismos volta agora, à sombra da lei,
a entrar nos estabelecimentos em que se vão formando as gerações
de amanhã.
Há quatro anos quando iniciamos esta série de palestras — as
fiéis da primeira hora hão de estar lembradas — consagramos um
ano inteiro ao estudo do ensino religioso nos seus diferentes
aspectos e apontamos, no trabalho constante para alcançar o
reconhecimento dos direitos das famílias no campo escolar, um dos
objetivos mais importantes da ação católica no Brasil. Não podemos
ainda dizer que se acham hoje plenamente realizadas as nossas
esperanças. Mas fora injustiça não reconhecer que o passo que
acabamos de dar foi grande e talvez o mais difícil. Não se destroem
da noite para o dia os inumeráveis preconceitos aclimados entre
nós, durante quase duas gerações. A mentalidade dos nossos
juristas e homens de Estado, ainda dos mais bem-intencionados,
não consegue desembaraçar-se de influências de um meio
artificialmente deformado e continua hermeticamente impermeável à
ação de princípios correntes do direito escolar em outros países.
Não é, pois, de maravilhar que logo do primeiro jato nova legislação
não tenha logrado vencer todos estes obstáculos e sair obra de todo
o ponto perfeita. Há, no importante decreto, senões visíveis, alguma
ligeira incoerência, desproporção entre esta instabilidade e
ineficácia dos meios empregados e o fim que se levava de meio.
Não é, porém, sobre estas falhas que me quero hoje deter. O
que há de novo, de real, de prático, representa, de si, uma conquista
tão importante que bem podemos por ora esquecer-lhe as
imperfeições que, esperamos, serão transitórias, para fixar
unicamente a atenção no seu conteúdo positivo.
O ensino religioso pode considerar-se sob um tríplice aspecto:
pedagógico, social e jurídico.
Dos dois primeiros direi uma palavra rápida, reservando-me
para tratá-lo mais amplamente em outra ocasião; sobre o aspecto
jurídico deter-me-ei um pouco mais.
Pedagogicamente podemos dizer que é impossível formar o
aluno sem falar-lhe à consciência religiosa. A finalidade essencial da
escola não é, com efeito, instruir só, mas educar, não enriquecer a
inteligência de noções geográficas ou matemáticas mas formar o
homem, isto é, a sua vontade, o seu caráter, a sua alma toda em
face da vida. Em confronto com esta finalidade primordial, o cabedal
de noções adquiridas no estudo das ciências positivas não passa de
um simples meio ou instrumento. Como uma consciência bem
formada poderá utilizá-lo para o bem, dele igualmente se poderá
servir para o mal uma consciência perversa. Tudo está, portanto, na
formação desta consciência, no valor que se dá ao homem como
homem. E como a razão de ser da escola é a formação do homem,
uma escola que só instrui é uma instituição que mente à sua
finalidade. Mas, por outro lado, como formar o homem sem falar-lhe
da dignidade de sua natureza e da finalidade pelo domínio das
realidades superiores, propondo explicitamente ou implicitamente
supondo uma solução do problema religioso qualquer que ela seja?
Se há campo em que a mentalidade, pela própria natureza das
coisas, se torna impossível, é o da educação. Não há educação sem
ideal educativo, não há ideal educativo sem o conhecimento dos
destinos do homem, não há falar dos destinos humanos sem
interferir com a vida religiosa. O raciocínio é de um rigor impecável.
Pedagogicamente o ensino religioso impõe-se como uma
necessidade essencial: desconhecê-la é mutilar a educação e
condená-la à mais irremediável esterilidade.
E por estas conseqüências funestas de uma educação leiga já
entramos no aspecto social da questão. A eficácia da moralidade
está intimamente conexa com a formação religiosa das
consciências. As razões mais profundas deste nexo estudá-la-emos
na próxima vez. Hoje, deixando a filosofia para quando houver mais
lazer, contentamo-nos, como simples observadores da realidade
social, de registrar esta dependência como um fato incontestável
que a “mentalidade anti-religiosa e laicista que devia salvaguardar a
liberdade da criança não lhe dera, em última análise, senão uma
liberdade maior para o mal”.195 Já tivemos ensejo de mostrar como
as estatísticas da criminalidade juvenil acusam por toda parte um
aumento assustador, paralelo ao crescer das influências laicizadoras
da escola pública. Numa das prisões de Paris — La Petite Roquette
— Alfred Fouillée averiguou em 1897 que sobre 100 menores
detidos 2 apenas haviam saído das escolas religiosas. O grande
contingente da criminalidade contemporânea é alimentado pelos
desventurados que nas escolas sem Deus não ouviram, durante a
sua infância, uma voz amiga que lhe falasse das grandes
responsabilidades da vida e das grandezas imortais que no homem
asseguram o cumprimento fiel e heróico do dever.
Mais recentemente, à prova objetiva das estatísticas em
França, de uma eloqüência tão trágica, os Estados Unidos vieram
acrescentar outros meios de demonstração positiva que trazem
mais o cunho de originalidade norte-americana. Colhemo-los num
livro publicado há pouco (1923) pelo Dr. Walter Atheam, membro de
um instituto com sede em Nova York e destinado especialmente a
dirigir os inquéritos sobre o estado social e religioso da grande
república. Depois de registrar, de modo geral, alguns sintomas de
decadência na moralidade pública, os autores do inquérito procuram
lançar uma sonda na consciência das novas gerações em formação.
Neste intuito, em inquéritos ordenados, multiplicam, entre a
juventude escolar, as ocasiões de um deslize moral — induzir (cair
na tentação) e contar proporcionalmente as quedas. Assim, em
várias escolas, comparam as crianças — desempenho de uma
comissão de compras com valor de um dólar, deixando-lhes a
margem de um pequeno troco que elas poderiam conservar, sem
possibilidade de suspeita da fiscalização a que eram submetidas.
Experiências análogas foram tentadas no pagamento dos bondes,
cafés, etc. Em outras escolas, punha-se-lhes à prova a lealdade,
impondo-lhes um exame escrito e ensejando, com a ausência de
vigilância, a facilidade de copiar.
Os resultados foram desastrosos. Na prova de lealdade em
algumas escolas sucumbiu a totalidade dos alunos. No das
comissões sobre o conjunto dos meninos experimentados caíram
64%. Distribuindo em categorias os estabelecimentos de ensino, as
escolas públicas levaram a palma na triste porfia: em algumas a
média dos delinqüentes em botão passou de 80%. Nas escolas
particulares a percentagem desceu a 78%, a 75% e até numa de
meninos mais escolhidos a 59%. Ainda assim, mais de metade.
Nos escoteiros onde já se começa a sentir a influência da
educação religiosa — Suit God not Yourself — foram mais
consoladores os resultados. Em grupos de formação muito recente
a proporção dos meninos honestos já se elevava a 58 e 60%
enquanto, como vimos, na melhor das escolas não passava de 41%.
As seções mais antigas, organizadas, há meses ou 2 anos, já
ofereciam um coeficiente de moralidade que atingia 80,4% e 82,3%.
Esta coincidência, já de si tão expressiva, orientou o inquérito
para uma investigação mais direta da influência do fator religioso na
formação moral das jovens consciências. As experiências
orientaram-se neste sentido de vários modos. Dois grupos de
meninos confiados a pedagogos de habilidade reconhecida foram
submetidos durante algumas semanas, o primeiro a uma série de
lições morais, sem educação religiosa; o segundo a uma educação
ético-religiosa harmônica. Resultado: no 1º grupo a média de
moralidade atingiu 60%; no 2º elevou-se a 85%, a média mais
elevada que se registrara até então. Em outra cidade, foi diverso o
caminho seguido. Numa escola a totalidade dos alunos naufragara
na prova das comissões; não houve um só que restituísse o troco.
Submeteram-se a um período de instrução religiosa e renovou-se a
experiência. Todos, exceto um, entregaram a moedinha que
sobrara; o que a retivera, depois de refletir durante a noite, restituiu-
a também ele no dia seguinte. Era o recorde: moralidade a cento por
cento.
E o Dr. Atheam, muito satisfeito com a genialidade da
descoberta, proclama: “Chegamos a esta averiguação: os meninos
não são religiosos se não se lhes ensina a religião; e por outro lado
se se lhes ensina a religião de modo científico, toda a orientação da
sua vida poderá com isto vir a ser modificada”. Já o sabíamos: mas
folgamos de registrar esta demonstração de uma verdade que tem
por si todas as provas da psicologia e todas as confirmações da
história. Eis as imensas conseqüências de ordem social que pode
acarretar a ausência da instrução religiosa nas escolas.
Educação religiosa, portanto, exige a sã pedagogia, reclamam-
na os interesses mais vitais da sociedade; por que então desterrá-la
das escolas oficiais destinadas a formar a grande massa do povo?
Aqui toma a palavra o direito laicista para cobrir com um manto
jurídico a escola agnóstica (sem Deus). O Estado deve respeitar a
liberdade das consciências; não lhes pode impor uma religião
determinada; abrir as portas das escolas aos ministros de um culto e
fechá-las a outros fora não só odioso, atentatório da igualdade
jurídica de todos os cidadãos. Para respeitar igualmente todas as
liberdades elimine-se qualquer ingerência religiosa dos
estabelecimentos educativos do governo. Um dos principais fautores
do laicismo na França, mais tarde ministro da instrução pública
Viviani, que se gloriou de haver apagado as estrelas do céu, e
pouco depois viu apagar-se-lhe a razão numa casa de alienados —
chamou à neutralidade escolar uma mentira diplomática.
Infelizmente parece que entre nós ainda há muitos ingênuos que se
deixaram enganar por esta diplomacia mentirosa. Não há, já o
dissemos tantas vezes, não há, não pode haver pedagogia neutra. A
pedagogia do laicismo, como qualquer outra pedagogia, supõe uma
concepção, uma filosofia da vida. Suponhamos a melhor das
hipóteses, uma escola que realize o irrealizável: uma reticência
contínua, leal e sincera sobre todos os problemas que interessam a
consciência religiosa do aluno; um silêncio inviolavelmente
observado sobre quanto, nas ciências, na história, na apreciação da
vida social, possa interferir com os ensinamentos do cristianismo.
Quais são os postulados que envolve uma pedagogia assim
concebida? 1º. postulado: A escola pode preencher a sua missão
elevada de preparar os homens para a vida, de formar os cidadãos
para os seus deveres na família e na sociedade sem nunca lhes
falar em Deus. Deus, portanto, é uma “quantidade desprezível”, é
um “dispensável” na formação do homem. Ora, que significa esta
atitude senão negação implícita de Deus? Por sua natureza, por
aquilo que aos nossos olhos constitui o âmago mesmo de sua
essência, Deus é o Absoluto, o Necessário, o Indispensável por
excelência. Envolvê-lo na penumbra de um silêncio de dez ou
quinze anos que abrangem todo o período de formação do homem,
é inculcar da maneira mais eficaz o papel insignificante de Deus na
vida de um homem, precisamente na época em que nele forma,
quase sempre, de uma maneira definitiva, a sua escala de valores.
Mais. Calar tudo quanto se refere à vida futura, a sua existência e as
sanções de além-túmulo, equivale a afirmar com as realidades vivas
da escola que é possível fortificar uma consciência contra os
assaltos das paixões mais violentas prescindindo absolutamente
das repercussões eternas dos nossos atos; em outras palavras, as
realidades supraterrenas são uma superfetação parasitária na nossa
atividade moral; podemos inteiramente regular a nossa vida,
subministrar à consciência normas e motivos de bem agir
combinando apenas, de modo mais ou menos artificial, os
interesses em jogo ou em conflito na existência presente. Como
vedes, estes são pressupostos que interessam os próprios
fundamentos da vida religiosa.
O 2º postulado, envolvido na atitude do laicismo pedagógico,
concerne os fundamentos do cristianismo. Não abrir às crianças as
páginas do Evangelho, não lhes falar em Jesus Cristo, na sua
doutrina, nos seus preceitos, na Igreja por Ele instituída, equivale,
ainda uma vez, a afirmar a superfluidade de todos estes elementos
na educação do homem. Jesus Cristo, podemos impunemente alijá-
lo; a perfeição e finalidade da nossa natureza, podemos atingi-la
desconhecendo o conteúdo de sua mensagem divina à
humanidade. Entre uma atitude assim e a negação da divindade do
cristianismo não há mais que uma diferença de palavras: as
realidades incluídas sob as duas expressões, uma astutamente
cautelosa, outra mais brutal, equivalem-se perfeitamente.
A pedagogia laicista não é, pois, uma pedagogia neutra; fere a
consciência dos crentes no que ela tem de mais profundo e
sensível. Nenhuma maravilha, portanto, que a Igreja proíba às
famílias católicas o enviarem os seus filhos a estabelecimentos de
ensino nestas condições. E notai bem: pouco importa, se outros
estão persuadidos de que é possível uma moral leiga,
independente, eficaz. Em face do direito não se trata tanto de impor
a outrem as nossas opiniões quanto de as fazer respeitar pela lei. E
aqui vedes como a liberdade de consciência, de que tão
pomposamente fazem alarde nos seus protestos os adeptos do
laicismo, é precisamente a que impõe o ensino religioso, e o regime
escolar inaugurado pelo novo decreto constitui a fórmula jurídica e
sincera do verdadeiro respeito às liberdades espirituais. No regime
anterior do laicismo o Estado impunha indiscriminadamente a todo o
país uma fórmula pedagógica de educação que, se satisfazia aos
positivistas, aos naturalistas, aos ateus, a todos os negadores das
realidades transcendentes, contrariava vivamente não só aos
desejos, mas às exigências mais profundas das almas religiosas. O
novo regime é a libertação deste ambiente de asfixia. Começamos a
respirar um oxigênio vivificante de liberdade espiritual.
Agora, todas as famílias que, por um motivo ou por outro,
opinam que a escola deve ser leiga, basta que declarem a sua
vontade e os seus filhos continuarão a receber a instrução do
mesmo modo que a recebiam até aqui: a nova lei não lhes toca a
sombra sequer de um direito. Mas, da mesma maneira e com o
mesmo sentimento de eqüidade com que o Estado atende às
reclamações das famílias laicistas, deve outrossim prestar ouvidos
às vontades não menos respeitáveis das famílias religiosas. Eis a
verdadeira tolerância; eis o sentimento leal de respeito às liberdades
espirituais. Intolerância se acha somente entre aqueles que aspiram
a monopolizar a instrução pública e transformá-la num instrumento
de propaganda das próprias idéias, quaisquer que elas sejam, sem
a menor consideração pelas convicções alheias. Com o ensino
religioso introduzido nas escolas nas condições estipuladas pelo
decreto não há uma só família no Brasil inteiro que possa afirmar
sinceramente que foi lesada nos seus direitos espirituais; uma só!
quaisquer que sejam as suas crenças ou descrenças. Haverá
fórmula jurídica mais justa, mais compreensiva, mais lealmente
respeitadora da liberdade das consciências?
Com estas reflexões, aliás muito à flor da terra, podereis
responder a todas as objeções tão inconsideradamente formuladas
contra o decreto de 30 de abril e que não chegou a dissimular com
habilidade uma hostilidade latentemente agressiva contra a religião
e, sobretudo, contra o catolicismo.
A religião, dizem alguns, deve ensinar-se nos lares; é o dever
das mães e das famílias. Respondemos: 1º, os que assim julgam
peçam dispensa do ensino religioso escolar para os seus filhos, mas
respeitem as convicções dos que pensam de outro modo.
Respondemos em 2º lugar e diretamente: a dificuldade procede da
mais completa incompreensão da importância e amplitude do ensino
religioso e só poderia impressionar os ânimos num ambiente, como
o nosso, longamente trabalhado pela mais profunda ignorância
religiosa. Por que é que há escola? Por que é que os pais não
ensinam aos seus filhos a ler e a escrever, a aritmética e a
geografia, a história e a física? Eh! porque os pais ou não têm
tempo ou não têm competência. Bem; pelos mesmos motivos,
ensina-se a religião na escola e não só em casa. Os que assim
argumentam parecem reduzir a formação religiosa de uma alma às
orações elementares ou às primeiras noções de história sagrada,
que de fato se aprendem tão bem nos joelhos maternos. Concepção
muito acanhada. A instrução religiosa compreende o dogma e a
moral, a liturgia e a história, a apologética e a ascética. Todas as
grandes questões da vida e da morte desde a existência de Deus
até aos deveres cotidianos do próprio Estado são do domínio da
instrução religiosa. Como e onde encontrar tempo em casa para um
ensino orgânico e eficaz de todas as disciplinas? Onde e como,
exceto raríssimos casos, encontrar nas famílias, sobretudo nas
famílias populares, encontrar competência para ensinar com
precisão todas estas doutrinas — as mais complexas e elevadas?
Bem interessante seria ver como seria acolhida uma dificuldade
destas num país como a Alemanha onde durante os cinco anos de
curso primário se consagram ao estudo da religião quatro horas por
semana e mais duas durante os oito ou nove anos de curso
secundário.
— A Igreja está, entre nós, separada do Estado; logo não é
permitido o ensino religioso nas escolas oficiais. — Deplorável
confusão de idéias. A admissão do ensino religioso depende do
direito escolar, do respeito que o Estado deve às consciências das
famílias. A questão das relações entre a Igreja e o Estado depende
do direito internacional e nada tem que ver com a primeira. Ensina-
se religião católica nas escolas da Alemanha, da Holanda, da
Romênia — da Inglaterra e em nenhuma destas nações o
catolicismo é religião do Estado.
— O ensino facultativo das diferentes confissões religiosas vai
introduzir atritos e discussões irritantes nos grupos escolares. — Por
quê? O ensino religioso não produziu este efeito em nenhum dos
grandes países, religiosamente muito mais divididos que o nosso,
em que foi sempre ou conservado ou readmitido: Alemanha ou
Inglaterra; Holanda ou Bélgica; Itália ou Espanha; Polônia ou
Hungria. Retorcendo ad hominem o argumento: é exato que existem
no seio da população brasileira grupos tão consideráveis
pertencentes a outros credos? Pois bem; então deveríamos viver
socialmente uns ao lado dos outros, em boa harmonia respeitando-
nos mutuamente. Ora, a escola é a preparação para a vida social;
aprendem as nossas crianças a conviverem na sociedade escolar
como hão de mais tarde conviver na sociedade civil sem insultos
nem agressões, na dignidade de um respeito mútuo. Preencherá
assim a escola uma de suas funções principais: preparar os
meninos para as realidades da vida. É apenas um aspecto da
convivência social de vários credos. Por dificuldades disciplinares
não se sacrificam bens maiores.
— Mas este século vem suscitar uma luta religiosa no Brasil,
sempre pacífico. — Luta religiosa, por quê? Luta religiosa provoca-
se num país quando o governo, exorbitando das suas funções,
invade o domínio da vida espiritual, levando-lhe os direitos
intangíveis. É o caso da Rússia e do México; onde se fecham os
templos; se desterram ou encarceram os sacerdotes, se proíbe a
administração dos sacramentos, se constrangem os indivíduos com
medidas vexatórias por causa das suas convicções espirituais. Mas
uma disposição legislativa que não faz senão conceder às
consciências religiosas — sem lesar as que o não são — a
satisfação de uma das suas aspirações mais legítimas — como se
pode com lealdade acoimar de provocadora de lutas religiosas?
Saiamos do Brasil e vejamos os efeitos que em outras nações
produziu respectivamente a introdução do laicismo e do ensino
religioso. Na Holanda, a grande lei de 1880, que acabou com as
escolas leigas, conservou na história o grande nome de “lei da
reconciliação”. Desde esse dia cessou no pequenino país a questão
escolar que tantas lutas e tantos males sociais acarreta nos países,
como a França, o México e a Rússia, que se obstinam em vexar as
famílias cristãs impondo-lhes a uniformidade injusta do ensino leigo.
Na Bélgica, a laicização das escolas públicas, introduzida pela lei de
1879, promulgada sob o ministério maçônico do Sr. Orlean, no
mesmo dia em que na Câmara francesa se votavam as medidas
vexatórias das leis Ferry e do célebre art. 7, não durou mais de
cinco anos. Em 1884 o ensino religioso voltou às escolas, e a lei
efêmera que delas o havia desterrado ficou, entre os belgas,
estigmatizada com o nome significativo de Loi du malheur. Fato
análogo registra a história do regime escolar na Inglaterra. O que,
portanto, em toda parte encontramos é o laicismo, introduzido como
meio legal de opressão das consciências, como regime de
perseguição disfarçada das maiorias religiosas pelas minorias
sectárias, enquanto em todos os países é saudado o ensino
religioso como disposição libertadora das consciências, como
expressão leal do mais sincero respeito aos direitos espirituais das
famílias. Não há, portanto, por que intimidar quixotescamente o
país, agitando nos horizontes do novo futuro o espantalho de uma
luta religiosa. Mas se a luta religiosa vier, toda a responsabilidade
deste mal pesará não sobre um decreto que respeita todas as
liberdades, que não constrange nenhuma consciência, que não
ofende os direitos de uma só família, nem sobre os católicos que
não impõem o ensino católico, nem mesmo o religioso, a quem quer
que seja contra a sua, mas sim sobre a intolerância estreita e
acanhada dos que, não contentes de que a lei integralmente lhes
respeite as próprias opiniões religiosas ou irreligiosas, pretendem
ainda impô-las opressivamente às consciências alheias que pesará
toda a responsabilidade do grande mal.
Não quero, porém, deter-me aqui em polêmicas. Graças a Deus
é mais tranqüilo e pacífico o nosso ambiente. Antes de terminar
chamarei de freqüência a vossa atenção sobre os nossos deveres
que nos incumbem a nós católicos de modo geral e muito
especialmente às nossas professoras em que a Igreja tem
encontrado até agora a colaboração sincera e desinteressada da
mais generosa das dedicações.
Impõe-se-nos imediatamente um duplo dever: de defesa e de
conquista.
Defesa da nova medida legislativa; não é perfeita, embora; não
satisfaz ainda plenamente às exigências de um direito escolar
coerente; reconhecemo-lo sem dificuldade; mas sem contestação
representa o primeiro passo, talvez o mais difícil, num caminho que,
há algum tempo atrás, nos parecia cerrado ainda por longos anos.
Defendamo-lo, portanto, por todos os meios lícitos ao nosso
alcance. “Quando o bem da religião ou da pátria corre perigo”,
escreveu Pio X, “a ninguém é lícito conservar-se inativo”. Os
inimigos da Igreja aí estão a dar-nos um triste exemplo: num
momento — apesar de divididos e retalhados por mil lutas intestinas
—, uniram-se para protestar contra o decreto e produzir na opinião
pública, artificialmente agitada, uma atmosfera hostil ou pelo menos
fria à inovação regeneradora. Não se verifique conosco e para
nossa condenação o que diz o Evangelho: os filhos das trevas são
muitas vezes mais prudentes que os filhos da luz.196 Ainda há dias
dizia-me um advogado paulista, senão católico praticante ao menos
simpático à nossa causa e decidido a defendê-la agora em São
Paulo mesmo com grandes sacrifícios financeiros com a fundação
de um novo jornal: “Vocês, católicos”, exclamava ele na sua
linguagem franca e rude, “afirmam sempre que são maioria, mas
todas às vezes que se trata de provar que o são calam-se
timidamente e deixam as minorias ativas atordoarem os ares com a
sua vozeria ensurdecedora”.197 Alguma razão não lhe podemos
negar. Lembremo-nos do que diz Joseph de Maistre: “O mundo
pertence aos que sabem trabalhar [prendre la peine] e diante do
esforço e do sacrifício não começam por dizer: de que serve [à quoi
bon]. Movamo-nos, portanto; dissipemos preconceitos,
esclareçamos as opiniões” (inúmeras famílias criticaram o decreto
sem nunca o haverem lido); façamos sentir ao governo a
solidariedade destemida do nosso apoio. De que modo? De todos
os modos lícitos: telegramas individuais e coletivos; moções de
aplauso; conversas particulares; artigos, entrevistas escritas por
quem sabe manejar uma pena, provocados ou estimulados por
quem não se exercitou na arte de escrever; com a colaboração
multiforme do nosso trabalho pessoal. Sermos bons e cumprirmos o
nosso dever: significa incomodarmo-nos. Quando alguns anos atrás
um deputado na Itália teve a infeliz idéia de propor ao Parlamento
um projeto de lei sobre o divórcio, dos Alpes à Sicília a família
católica italiana estremeceu num frêmito de sobressalto e reagiu na
decisão de uma energia dos grandes momentos. Em pouco tempo
chegaram ao governo milhões de assinaturas protestando contra a
lei que iria enxovalhar a dignidade e as tradições gloriosas da
família italiana, vintessecularmente monogâmica. O chefe do
governo mandou retirar o projeto com estas palavras: “Inútil que
discutam os representantes do povo uma questão sobre a qual o
povo já se manifestou num plebiscito tão espontâneo e imponente”.
Trabalho de defesa: mas também trabalho de conquista.
Esqueçamos, ao terminar, estas atitudes belicosas, um dos
aspectos inevitáveis na vida da Igreja militante, para nos elevarmos
tranqüilamente à serenidade destas regras superiores da vida
sobrenatural em que se jogam os destinos imortais das almas
remidas por Cristo. A nova medida legislativa abre-nos agora, ante
as aspirações do vosso zelo cristão, as perspectivas de um
apostolado imenso. São milhares, são milhões de crianças que nós
agora podemos atingir, em cujas almas nos será fácil insuflar estes
germes fecundos de vida eterna. Só aqui no Distrito Federal mais de
80 mil freqüentam as nossas escolas primárias. Levantai os vossos
olhos, poderá dizer-vos Nosso Senhor como dizia aos apóstolos nas
planícies e nos trigais dourados da Palestina, e vede estas searas
que já lourizam para a messe. Mas esta messe é preciso ceifá-la, e
a ceifa exige o trabalho e a fadiga do operário dedicado. Cada
professora católica deve agora formar-se um coração sacerdotal; e
coração de sacerdote é coração que não vive para si, mas para
Deus e para as almas. Neste primeiro momento de adaptação a um
regime novo, em que se deverá introduzir em pouco tempo o ensino
religioso em tantos estabelecimentos educativos, o trabalho é
imenso, a soma de esforços realizados superior a qualquer cálculo.
Mas a vossa generosidade inesgotável estará à altura de todos os
sacrifícios.
Agradecei a Deus que assim vos chama de perto a colaborar na
obra mais eficaz de regeneração moral do nosso querido Brasil. Um
grande doutor da Igreja escreveu esta sentença profunda: “De todas
as obras divinas a mais divina é cooperar para a salvação das
almas”.198 Amanhã estes milhares de alminhas em flor que aos
caminhos de vossa solicitude e à abnegação de vossa atividade
incansável deverão o conhecimento mais profundo de Deus, e das
riquezas divinas do cristianismo, que os há de levar a sua grandeza
humana e a sua felicidade imortal, hão de constituir a mais bela
coroa da vossa vida.

195 Cardeal Verdier, Lettre sur la question scolaire.


196 Cf. Lc 16, 8 — NE.
197 A. E. de Sousa Aranha.
198 São Dionísio Areopagita — NE.
I — Regras de consciência.
Influência do livro.
Regras de direito positivo — O Índice.
Regras de direito natural.
Perigo dos livros doutrinais.

II — Leitura de romances.
Influência psicológica das idéias.
Influência do romance.
Escolha dos romances.
Critérios.

III — Boas leituras.

IV — Boas leituras.

No Instituto de Formação Familiar e Social, novembro de 1937.


Leituras

I
REGRAS DE CONSCIÊNCIA

D OS LIVROS ocupam-se, a títulos diferentes, o bibliotecário e o


moralista. Quem tem sobre si as responsabilidades de uma
biblioteca zela sobretudo pela defesa do livro contra as injúrias do
tempo, a agressão das traças e a rapacidade dos homens. Cada um
dos habitantes silenciosos destas vastas necrópoles do pensamento
é para ele um objeto precioso, um escrínio que conserva um tesouro
de valor insubstituível. Uma pessoa que passa pela vida é um
original que não se repete; não há duas cópias iguais do mesmo tipo
de homem. Conservar alguns dos pensamentos que lhe iluminaram
a existência e dos afetos que lhe vibraram na alma é defender
contra a morte total algumas relíquias desta humanidade que vai
peregrinando através dos séculos. Assim compreende a sua missão
quem zela pela conservação das bibliotecas: o livro é um arquivo
das almas e das coisas do passado; toda solicitude para conservá-lo
é bem empregada, é uma defesa do que, sem este cuidado, voltaria
para nós à inexistência do olvido completo.
Por outro ângulo encara a questão o moralista. Para ele o livro
é o veículo de influência entre alma e alma; é o instrumento de
transmissão de idéias e sentimentos que descem ao fundo das
consciências e aí vão orientar atitudes em face da vida e dos seus
destinos. A ação do livro na vida moral, eis o que o preocupa. E
nada mais justo.
A saúde das almas, como a dos corpos é, em grande parte,
função do ambiente. Os antigos médicos que gostavam muito de
aforismos diziam que circumfusa et ingesta — o que nos envolve e o
que ingerimos — decidem do bem-estar dos organismos. E como o
que ingerimos sai do que nos envolve, é sobretudo a ambiência que
influi como fator preponderante na euforia vital. As almas não vivem
de ar e água e pão, senão de idéias e sentimentos, mas idéias e
sentimentos nós os vamos colher no meio que freqüentamos. Que
homem não poderá apontar como decisiva na orientação de sua
vida a ação de uma mãe, de um professor, de um amigo? Seríamos
hoje os mesmos se no caminho da vida não tivéramos cruzado com
esta ou aquela influência? Ora, esta ação de homem a homem não
se exerce só através da palavra falada senão também através da
palavra escrita. Há na linguagem viva de alma a alma um não sei
quê de incomunicável e insubstituível; a flexão da voz, a expressão
da fisionomia, todo este encanto que se desprende de uma
personalidade superior, asseguram à convivência, às relações vivas,
um poder de ação absolutamente singular. Por este motivo o ensino
oral vivo e vibrante e comunicativo nunca poderá ser substituído
pelo contato mudo e frio com o livro de texto. Mas sob outros
aspectos a influência do livro ganha as vantagens perdidas.
O livro é quase sempre um amigo silencioso a quem nos
abandonamos com plena confiança. Em face de outro homem, que
se ergue diante de nós, em carne e osso, também nós aprumamos
a nossa personalidade num gesto de dignidade e de defesa. E o que
nunca permitiríamos se nos dissesse de viva voz, lemos
complacentes nas páginas insinuantes e indefesas de um livro
morto.
Mais. O autor apresenta-se-nos sempre com uma auréola de
superioridade. Já notastes a lição da etimologia: “autoridade” deriva
de “autor”. Como quem dissesse: que o fato de escrever um livro
confere a um homem a dignidade de uma soberania, o prestígio de
uma elevação superior às massas, o direito de impor leis, idéias e
atitudes. Está escrito! Vi num livro!
Ainda. A ação da palavra falada é rápida, passa com a violência
dos grandes aguaceiros, que deslizam e não penetram. A da
palavra escrita insinua-se lenta e profundamente como a chuva
miúda dos invernos. Sobre um livro, sobre algumas de suas
páginas, voltamos uma e outra e mais outra vez, até
embalsamarmo-nos de todo com o seu perfume ou intoxicarmo-nos
com todo o seu veneno.
Por estas e muitas outras razões que facilmente podeis
desenvolver, o livro desempenha um papel de primeira importância
na orientação da nossa vida moral. Não se contam as confissões de
grandes delinqüentes que o responsabilizam pelos seus crimes e
pela sua desgraça. Do livro serviu-se a Providência para enveredar
pelo heroísmo da santidade um Santo Agostinho ou um Santo
Inácio. Sem chegar a estes extremos podemos aqui repetir o que há
pouco dizíamos da influência das boas ou más companhias: não há
quase homem de certa cultura que não possa de si afirmar: “Não
seria hoje o que sou, em bem ou em mal, se nesta ou naquela idade
me não houvera caído nas mãos tal ou qual livro”. “Todas as
grandes leituras são uma data na existência”.199
Não há, portanto, maravilhar-nos que sobre fatos tão decisivos
na orientação dos nossos atos não tenha a moral regras importantes
a ditar-nos.
Para nós católicos duas são as fontes donde dimanam os
princípios reguladores da consciência nesta matéria: uma de direito
positivo, outra de direito natural.
I. De direito positivo é o que se chama Índice dos livros
proibidos, lista oficial publicada pela Igreja em que se indicam aos
fiéis os livros perigosos para a fé ou costumes. As proibições do
índice são de duas espécies; particulares ou individuais e gerais.
Individualmente são proibidos numerosos autores dos quais se
condenam todas as obras (Anatole France, Dumas, etc.) ou
somente algumas. A Igreja, porém, não pode praticamente organizar
uma lista completa dos livros maus que se publicam em todo o
mundo. Pessoalmente são condenados só os autores mais célebres
ou os mais discutidos. Por este motivo, ao lado da lista individual
promulga o Índice alguns princípios gerais que compreendem
categorias inteiras de publicações. Assim são proibidos.200
A proibição do índice impõe as seguintes obrigações: não ler,
editar, traduzir, vender ou comunicar a outrem.201
Esta proibição é de sua natureza grave; violar conscientemente
e com plena deliberação esta lei da Igreja é cometer falta grave. Há,
porém, a possibilidade do que se chama exigüidade de matéria.
Das proibições do Índice pode dispensar a autoridade
competente: a Santa Sé, o núncio, em casos particulares o bispo.
Todas as vezes que há uma razão grave para ler um livro proibido e
que por circunstâncias pessoais cessa o perigo imediato, as
autoridades eclesiásticas suspendem as proibições legais. Esta
licença, porém, não atinge os livros proibidos por direito natural;
acerca destes nenhuma autoridade pode dar permissão válida.
II. Entramos assim na segunda fonte donde derivam também
princípios reguladores da consciência nesta matéria: o direito
natural. Por direito natural entendemos aqui os ditames da
consciência, os princípios impostos pela própria natureza das
coisas, ainda que não se achem escritos em lei alguma, eclesiástica
ou civil.
O princípio de direito natural que regula aqui o nosso assunto é
o seguinte: Ninguém pode, sem falta de consciência, expor-se a
uma ocasião de pecado. Ocasião de pecado é qualquer
circunstância que a ele leva, a ele impelindo e criando-lhe a
oportunidade. Se entre a ocasião e o pecado existe uma espécie de
necessidade moral, de modo que na quase totalidade das vezes o
expor-se e o cair sejam a mesma coisa, a ocasião é próxima. Se a
relação não é tão estreita, de modo que quem se expõe umas vezes
caia, outras não, a ocasião é remota. A ocasião próxima pode ser tal
absoluta ou relativamente. Absoluta, quando vale para todos,
quando se baseia na psicologia humana, na força da solicitação ou
na fragilidade geral. Assim, para um operário, o freqüentar em más
companhias lugares de bebida e de jogos. É relativa quando
constitui um perigo para determinadas pessoas, por motivos que lhe
são particulares. A idade, o sexo, o grau de instrução, o
temperamento, o estado de vida, associações de imagens
anteriores ligadas a fatos da vida passada, podem constituir perigos
particulares, próprios de indivíduos ou classes particulares de
pessoas.
Destas noções ressalta a evidência do princípio que
enunciávamos há pouco: não é permitido expor-se livremente à
ocasião próxima de pecado; seria querer abraçar livremente o
pecado que, pela explicação acima, se acha moralmente ligado com
a ocasião próxima.
Ora, que as leituras possam constituir perigo sério para as
almas, nenhuma dúvida. Perigo de duas espécies: para as
inteligências e para os corações. Há livros que atacam os princípios
e livros que ameaçam os costumes; livros maus de doutrina e livros
maus de ficção. Nos primeiros é a fé que se expõe à ruína, nos
outros é a pureza de consciência.
Quais os mais perigosos? Por si, os livros de doutrina.
Desorientar as inteligências, abalar a certeza dos princípios é
trabalhar para a ruína completa de um destino. Quando os costumes
desgarram, mas a fé permanece intata, o desastre é relativamente
menor e de mais fácil remédio. A consciência reconhece que
procedeu mal, e um esforço generoso da vontade, auxiliada pela
graça de Deus, pode, de um momento para outro, elevar a vida à
altura do ideal e harmonizar os atos com os princípios, o coração
com a inteligência. Mas quando é a inteligência que se desorienta,
quando é a própria concepção da vida que de todo se falseia, o mal
é então mais profundo e por vezes assume as proporções de uma
catástrofe quase irremediável. Por este motivo, os maus livros, em
matéria de doutrina, são de si extremamente perniciosos. Muito
maior mal fizeram um Kant, um Marx ou um Darwin do que muito
romancista que dura alguns anos no cartaz da moda. O mundo
governa-se, em última análise, por idéias; são elas que preparam e
orientam os grandes movimentos que constituem a história. São
como as neves eternas dos grandes cimos; lá estão, nas alturas,
serenas em sua cândida imobilidade. Mas é de lá que descem as
avalanches poderosas que, precipitando-se de despenhadeiro em
despenhadeiro, rolam as grandes massas destruidoras de cidades e
aldeias; é lá que se alimentam inesgotavelmente os filetes d’água
que vão engrossando, pelas encostas das montanhas, e levam
depois às planícies a bênção das águas fecundas ou a calamidade
das inundações ruinosas.
Todas as grandes revoluções da história, benfazejas ou
maléficas, prendem-se, nas suas origens, a um grande movimento
de idéias. Nas almas individuais, não menos profundas são as suas
influências para o bem como para o mal.
Muitas vezes, principalmente na mocidade, costumamos
anestesiar a nossa consciência com dizermos e julgarmos que
essas leituras não nos fazem mal; temos muito espírito crítico,
saberemos discernir o bem do mal, assimilar um e rejeitar outro.
Ilusão quase sempre. Nada há mais raro neste mundo sublunar
que o espírito crítico, crítico não no sentido vulgar — espírito
bisbilhoteiro e maldizente —, crítico no sentido científico, isto é,
espírito capaz de analisar uma doutrina, de distinguir-lhe o certo do
provável, o demonstrado do hipotético. O espírito cientificamente
crítico supõe um complexo de qualidades naturais raras:
perspicácia, sagacidade, dom de análise, inteligência penetrante,
supõe ainda uma cultura filosófica sólida, lógica bem assimilada,
hábito de demonstrações rigorosas, supõe por último, sobretudo em
alguns domínios, um tesouro de conhecimentos adquiridos, uma
erudição de primeira mão, larga e segura. Abri, por exemplo, um
livro de história das religiões comparadas… Um livro de polêmica
protestante…
Por onde se vê que o espírito crítico, pelo conjunto de
qualidades naturais e adquiridas bem equilibradas que envolve, não
pode deixar de ser muito raro. E de fato é raríssimo. Sobre mil que
julgam tê-lo talvez só um de fato o possua. Naturalmente a nossa
vaidade presume muitas vezes que somos aquela unidade precisa e
os que nos cercam pertencem à multidão dos três 9. É quase
sempre a temeridade e a presunção que expõem as almas aos
perigos das más doutrinas que ameaçam a integridade da fé e o
equilíbrio sadio da inteligência.
Se em si são mais perigosos os livros de doutrina, para a
grande massa dos leitores e em concreto são os livros de fantasia
os que imediatamente produzem mais estragos. Pelo seu teor
severo, os livros de idéias são menos acessíveis; os ledores de
Kant, de Comte, ou de Rousseau nunca serão tão numerosos como
os de Zola, Anatole France ou D’Annunzio. É através da
vulgarização popular e sobretudo dos romances que as idéias e as
filosofias se disseminam entre as multidões e se transformam em
sentimentos e atos.
Eis-nos assim diante do problema candente do romance. Seria
necessário dispor de pelo menos mais uma aula para tratá-lo com
certa amplidão e desenvolver todas as distinções necessárias. Nas
estreitezas de tempo em que nos achamos demos apenas algumas
linhas gerais de orientação. Antes de tudo, para entendermos a sua
ação, desmontemos a nossa psicologia. Em nós, toda idéia é
acompanhada de uma imagem, e tende a realizar-se; é uma ação
principiada.
Um estudo mais profundo da sua influência exigiria uma
exposição preliminar da nossa estrutura psicológica e das suas
possíveis reações ante as idéias, imagens e sentimentos que
haurimos nas leituras. E a leitura aqui não nos oferece uma simples
exposição de idéias, fria, difícil, austera, por vezes soporífera como
uma lição da “filosofia positiva” de Comte. É todo um mundo de
imagens e de sentimentos, de descrições vivas e diálogos
empolgantes, é como um pedaço da vida, talhado na realidade
palpitante e que nos entra pela alma, apoderando-se de todas as
faculdades e despertando ressonâncias profundas. Para descer aqui
um pouco mais a pormenores concretos e proferir juízos prudentes
matizados seria mister levarmos a análise mais longe do que nos
permitem as estreitezas do tempo. Contentemo-nos concluindo com
aplicar apenas de um modo geral o princípio que deixamos
enunciado acima: na medida em que uma leitura, pelas idéias que
inculca, pelos sentimentos que inspira, pela impressão geral que
deixa na alma, constitui, para nós, uma incitação ao pecado, uma
ameaça ao equilíbrio interior, a consciência no-la proíbe. Não é
mister que exista uma interdição de direito positivo, um ato da
autoridade eclesiástica; bastam as leis naturais que nos regem a
vida moral, bastam os ditames da prudência que constitui a primeira
sentinela da nossa paz interior. Aqui, como em tudo o mais, uma
consciência, sincera, delicada, bem instruída, é, no santuário íntimo,
a melhor defesa da alma, a mais segura promulgação da lei natural,
porque o eco mais fiel da voz de Deus.

No Instituto Social, 15 de julho de 1941.

199 Lamartine apud Charmot, L’Humanisme et l’humain, p. 217.


200 V. Codex, c. 1399.
201 C. 1398.
II
LEITURAS DE ROMANCES

Que a leitura desempenha um papel de primeira importância na


orientação da nossa vida moral é um fato que se não pode
contestar. Ver-lhe-emos hoje a explicação psicológica. Que,
portanto, a moral, nesta matéria, nos imponha regras e nos lembre
conselhos, nenhuma maravilha. Nós católicos temos no Índice,
organizado pela Igreja com solicitude materna, as indicações de
direito positivo a este respeito. Indicações, umas de caráter
particular, visando este livro, aquele autor; outras de caráter geral,
enunciando princípios universais que abraçam categorias inteiras de
obras, capazes de oferecer à generalidade dos fiéis um perigo sério
para a integridade da fé ou pureza dos costumes.
Ao lado destas prescrições de direito positivo, as leituras são
regidas por um ditame da lei natural que se impõe a todas as
consciências e em virtude do qual não nos podemos expor, sem
falta, a uma ocasião próxima de pecado. Todas as vezes que um
livro, de doutrina ou de ficção, pode causar a uma alma detrimento
grave, de ordem intelectual ou moral, veda-nos a consciência a sua
leitura. Além tratamos do grande perigo que encerram as leituras
doutrinárias. Resta-nos dizer uma palavra dos livros de ficção.
Achamo-nos em face do problema do romance, tão grave, tão
delicado e tão complexo! Estudemo-lo com toda a serenidade e com
toda a sinceridade, sem exageros contraproducentes mas também
sem reticências culposas.
Para melhor entendermos a influência das leituras lembremos
em resumo a nossa estrutura psicológica e as leis fundamentais do
seu dinamismo. Em toda a nossa vida interior, a idéia ocupa um
lugar central, um posto de primeira importância. (Damos aqui à
palavra idéia um sentido amplo, sinônimo de todo e qualquer
conhecimento, quer de ordem sensível, quer de ordem intelectual.
No sentido estrito, idéia significa uma representação puramente
intelectiva e opõe-se a imagem, representação sensível). Ora, toda
idéia, neste sentido, tende de sua natureza a realizar-se; é uma
ação começada, como a ação é uma idéia perfeita, acabada. O
conhecimento, luz interior, foi-nos dado para esclarecer o caminho
da vida. Já nos animais, toda a sua atividade especificamente
animal é orientada pelo jogo das imagens. A colméia, o favo e o
mel, antes de serem uma realidade são associações espontâneas
de imagens na abelha. Estes complexos psíquicos destinados a
velar pela conservação do indivíduo e da espécie constituem o
instinto próprio de cada espécie. No homem não há conhecimentos
inatos; todas as idéias são adquiridas; e é com estas idéias
adquiridas que vamos dirigir a nossa vida; nós seremos o que elas
fizerem de nós.
Por isto mesmo que na sua finalidade essencial a idéia é
orientadora da ação, e que ela já incluía espontaneamente o ato,
tende de todo o seu peso natural a realizá-lo. Toda a psicologia é
uma longa e variada confirmação desta lei fundamental. Lembremos
apenas uma ou outra prova.
1º. Comecemos pelos estados anormais ou patológicos, que,
muitas vezes, pela simplificação interior ou pela dissociação de
elementos complexos permitem analisar melhor as leis elementares
da vida psíquica. Sugestão a um hipnotizado de uma série de atos a
que se acha habituado: uma comunhão. — Idéias obsessivas fortes
nos estados de neurastenia (diminuição da tensão vital e do domínio
da vontade). Exemplos: mãe quer matar a filha; jovem que deseja
matar a mãe, etc.202
2º. No estado normal a cada instante surpreendemos esta lei
em jogo. “Água à boca”.203 Vertigens.204 Imitação (bocejo). Contágios
coletivos.205 (Suicídio de Werther, de Goethe).
De fato todas as idéias não se realizam em virtude da mesma
lei — que permite a inibição pela intervenção de outras idéias. A
criança e o homem adulto que assistem a uma partida de futebol.
A relação entre a idéia e a sua realização não é sempre a
mesma; varia em função de diferentes fatores ou coeficientes,
coeficientes que modificam a natureza da idéia; e coeficientes que
dependem da natureza do sujeito.
A força motriz da idéia depende dos elementos sensíveis que
envolve, da riqueza e complexidade dos seus elementos. Princípios
abstratos movem pouco; encarnados em fatos concretos, vivos, são
de um dinamismo irresistível. Princípio: não se deve expor
inutilmente a própria vida. Uma bomba que fumega e um grito de
alarme: “Salve-se quem puder”.206 As idéias que se associam a
sistemas anteriores… que organizam novas sínteses mentais, etc…
A natureza do sujeito influi também poderosamente na ação
que sobre ele exercem as idéias: cada indivíduo é diversamente
impressionável. Há pessoas mais ou menos abúlicas, isto é, fracas
de vontade, incapazes de orientar e governar o curso das idéias,
devaneadoras. Há organismos mais ou menos frágeis e delicados
que à ação da idéia opõem uma resistência fraca. Por estes
motivos, varia a impressionabilidade com a idade e com o sexo.
Concluamos esta breve síntese: Toda a idéia tende a realizar-
se; com uma força diretamente proporcional à sua capacidade
dinâmica, e inversamente proporcional à resistência do sujeito.
Tendes agora a chave da influência profunda que pode exercer
na orientação da nossa vida a literatura de ficção. Os livros de
doutrina lidam com idéias abstratas, muito especulativas, e quase
desacompanhadas de ressonâncias sensíveis; exigem notável
esforço de atenção e não repercutem em toda a alma. O romance,
não. As idéias, aqui, atingem o seu máximo de riqueza e
complexidade. O elemento puramente intelectual é acompanhado
aqui de todos os harmônicos — afetos, sentimentos, emoções —
que lhe asseguram uma ação poderosa sobre todo o nosso
psiquismo. A imaginação, a sensibilidade, as paixões todas
despertadas com estímulos poderosos, põem o homem inteiro em
vibração uníssona com o autor e as suas idéias. Pelo pinturesco das
descrições, pela vivacidade dos diálogos, pelo movimento
contagioso das emoções, nada há que não seja atingido e não seja
habilmente mobilizado em serviço do resultado final. Pela sua
própria natureza, o romance exerce necessariamente no ânimo dos
leitores uma influência profunda e incontrastável. O seu poder
sugestivo é comparável ao de um hipnotizador.
Quem diz, portanto “esta leitura não me faz mal” — engana-se.
Às leis da natureza não nos podemos subtrair. Pode ser que no
momento outras idéias evocadas e profundamente radicadas no
nosso psiquismo reajam e produzam um efeito de inibição — como
freios que paralisam ou diminuem um movimento iniciado. Mas
alguma coisa sempre fica. Uma jovem gravemente doente.207 O que
lemos entra a fazer parte do nosso psiquismo, desce muitas vezes à
subconsciência e mais tarde daí subirá como estímulo ao mal, como
tentação perigosa. Um soldado traidor que se introduz na praça
forte. A imaginação fica para sempre manchada como o vaso
trincado de Prudhomme: “N’y touchez pas, il est brisé”. Louis Veuillot
queixava-se ainda na velhice da sua memória “ainda envenenada
por certas leituras da mocidade”.
Os grandes romancistas conhecem esta força sedutora do
romance e, quando se lhes toca no mais sensível da alma, fala
neles mais alto a força da verdade que o amor da vaidade. Jean-
Jacques Rousseau da sua Nova Heloísa: “Uma alma virgem não
deve ler o meu livro; ai! da moça que o ler; estará perdida”.
Montesquieu surpreende a filha que ia ler as suas Lettres persanes:
“Deixa, filha; é um livro de minha mocidade que não é feito para a
tua”.208
Por aí vedes a importância que na orientação moral de uma
vida pode exercer a leitura de um romance, e a solicitude com que
neste ponto uma alma cônscia de suas responsabilidades deve
escolher suas leituras de diversão. E assim eis-nos conduzido a
outro problema não menos delicado e complexo: mas qual é o
romance mau? Quando é que a leitura de um romance começa a
ser perigosa? Se para alguns — infelizmente para muitos — esta
apreciação é fácil e a sentença condenatória decisiva, para muitos
outros — situados na zona média — qual o critério para julgar com
acerto?
Enunciemos alguns princípios gerais, objetivos.
1º. É mau o romance de tese condenável, que visa minar na
alma dos leitores uma verdade cristã ou natural. É, de fato, através
dos romances que se tem criado nas massas esta mentalidade
anticristã que vai dando de dia para dia os seus frutos mais
amargos. Pode dizer-se que no século XIX uma grande legião de
escritores pôs a serviço da descristianização todos os seus talentos
literários. E, pela eficiência psicológica do romance, que já
estudamos, com grandes resultados. O arcabouço lógico — a força
demonstrativa dos argumentos — é por vezes de uma pobreza
miserável — mas a ação sobre as almas é poderosa. Um exemplo:
a campanha em favor do divórcio. George Sand, Ibsen, Dumas,
Hervieu, Anatole France, os irmãos Margueritte, Ellen Key.209
Outros exemplos: Eurico o presbítero, Zola, Le rêve.210
Foi com estes processos que se criou uma atmosfera de
hostilidade contra o cristianismo e as suas instituições: a confissão,
o clero, as ordens religiosas, etc. Foi assim que se solaparam os
fundamentos da vida social: a família, o princípio de autoridade, a
solidariedade… A deslealdade lógica de semelhantes processos
ressalta à primeira vista. Nada mais fácil do que, estabelecida uma
destas teses de combate, inventar um enredo, de molde a
desprestigiar no ânimo dos leitores e tornar-lhe antipática a
instituição visada. Um pouco de imaginação e um pouco de arte
literária — e o resultado será seguro. Não é digno, não é justo, não
é leal.
A primeira condição, portanto, de um romance para não ser
mau é não estar a serviço do erro ou de uma teoria condenável.
Tese boa. Primeira condição mas não única. A doutrina sã não faz
necessariamente bom um romance. Há certos autores que têm a
arte sutil de dissociar a tese da impressão geral. A tese é
irrepreensível; a impressão pode ser fatal. A tese enuncia-se no fim
do trabalho numa proposição seca, abstrata, teórica: condenação do
divórcio, do adultério, do egoísmo. O enredo desenvolve-se através
de cenas, descrições, diálogos que revolvem na alma tudo o que há
de menos nobre e digno. Psicologicamente, já o vimos, a conclusão,
extremamente pobre no seu intelectualismo inerte, correrá todo o
risco de deslizar pela superfície, sem abrir nenhum vinco profundo
enquanto as particularidades de ação, ricas de elementos
dinâmicos, produzirão todo o seu efeito nefasto. De um lado só a
razão pura, de outro… tudo o mais… É fácil prever de que lado cairá
o leitor.211
Para que um romance seja bom é mister portanto aliar a uma
doutrina boa uma impressão sadia. Que tudo contribua
harmonicamente para elevar as almas, para dar-lhes um sentimento
elevado da dignidade humana.
Só? Não poderíamos ainda encontrar no próprio gênero literário
um perigo sutil, que se faria sentir não precisamente na leitura de
um ou outro romance, mas no hábito freqüente, no abuso da sua
leitura? Creio que sim.
Passemos rapidamente pelo primeiro inconveniente: a perda de
tempo. O romance empolga; a curiosidade fica suspensa enquanto
se não vê um desenlace de uma situação complexa e interessante!
Sucedem-se assim umas às outras, horas e horas; e, terminado um
romance, começa-se outro. Com o tempo, é uma espécie de hábito
que se forma, uma escravidão como a do fumo, do álcool ou da
morfina: sempre novas doses e cada vez mais fortes. Calculastes o
tempo perdido? Na juventude, é o tempo de formação que se
malbarata inconsideradamente. Tempo de plasticidade, destinado a
enriquecer a nossa personalidade, a acumular conhecimentos,
cultivar aptidões para assegurar ao nosso futuro a plenitude do seu
rendimento humano. Mais tarde é a idade das grandes realizações.
Passa-se pela vida e nada se fez. Gastou-se tanta parte delas nos
prazeres de um egoísmo estéril. O tempo é o grande capital da vida,
condição essencial do seu aproveitamento. Uma fortuna perdida,
pode refazer-se. O tempo é irrevogável; uma vez perdido, não volta.
E quem não extraiu das horas e dos dias que passam o que eles
encerram de eternidade perdeu irremediavelmente um dos maiores
benefícios de Deus.
Além da perda do tempo, o romance concorre para a
deformação da mentalidade, desadaptando as almas à vida real e
habituando-as a viver na região dos sonhos… Que é um
romance?… Que é a vida real?… Decepções: “A vida me
enganou”… “Não foi o romance”. O que importa cultivar, o que se
cultivou.
Outro defeito da leitura habitual do romance é a “complicação
das almas”. À força de fazer “anatomia” das almas; “química moral”,
“vivissecção de sentimentos”, perde-se a espontaneidade, a unidade
e a beleza das coisas simples e cai-se no artificialismo de atitudes,
no “preciosismo ridículo” de procurar ou alimentar em si estados de
alma raros.212
Qual a conclusão? Do que expendemos se infere:
1º. Quem não lê romances nada perde com isto e corta, pela
raiz, um sem-número de perigos.
2º. Quem quiser lê-los deve conservar-lhes sempre o caráter de
leitura amena, de repouso, de horas vagas — nunca de leitura
habitual ou dominante e, na escolha destas leituras para os
momentos de descanso, aplicar os mais rigorosos critérios de
seleção: que os romances tenham um valor literário para não
corromper o bom gosto; que sobretudo, pela tese que defendem e
pela impressão que produzem, tenham um grande valor moral,
sejam fatores de elevação, nunca de degradação das almas.
Os critérios práticos na escolha podem ser:
a) o Índice dos livros proibidos;
b) os livros e revistas que apreciam de um modo geral o valor
dos romances, antigos e recentes — L’abbé Bethléem, Sage-
Homme, Fr. Pedro Sinzig;
c) o conselho de uma pessoa prudente — os pais, o diretor
espiritual e, acima de tudo:
d) a própria consciência. A impressão do livro é, em última
análise, um fato individual. Sinceridade absoluta. Quando a
consciência começa a fraquear, a sobressaltar-se — nenhuma
hesitação. Estamos em presença do mal. É a agulha da bússola que
entra a oscilar porque perdeu a sua direção. Agir lealmente em
conseqüência.
Quem proceder assim nunca se arrependerá. São sem conta os
que, desprezando estas regras de bom senso humano e de
prudência cristã, encontraram numa má leitura o princípio de suas
desgraças, o primeiro elo de uma cadeia de males que desfecharam
talvez na catástrofe irremediável em que para sempre soçobrou um
destino humano.
O bom senso e a lealdade perfeita serão em todas as leituras,
mesmo nas de romances, a defesa de nossa felicidade. Livros
escolhidos e lidos assim servirão para distrair-nos das agruras da
vida, para elevar-nos pela contemplação do ideal, para inspirar-nos
os sentimentos nobres e magnânimos de que a vida deve ser,
quanto possível, a realização completa.

Rio, 11 de novembro de 1937.

Segunda vez no Instituto Social, 22 de julho de 1941.

202 Eymieu.
203 P. 42.
204 P. 45.
205 Pp. 46–47.
206 P. 73.
207 Hoornaert, p. 3.
208 Marcel Prévost. V. Hoornaert, p. 25. Confissão de Proal, Eymieu, p. 99.
209 Ver Divórcio, p. 235.
210 Hoornaert, pp. 27 e 49.
211 Les Demi-Vierges de Proust. Hoornaert: pp. 23–24.
212 Hoornaert, p. 24.
A leitura em geral.
A boa leitura.
Indispensável:
I — Para defender a fé.
Insuficiente o estudo do Colégio:
a) Pela amplidão do objeto — imensidade do domínio da
fé;
b) pela evolução do sujeito — maior capacidade de
apreender as razões de credibilidade — argumentos morais.
Ex. Unidade da Igreja.
Santidade.
Autoridade dos seus adversários.
Conclusão.
A. M. D. G.

Às alunas do Instituto de Formação, 19/07/1938.


Leituras

III
BOAS LEITURAS

C OMPANHEIRA inseparável da meditação no trabalho formador da


personalidade, e seu complemento quase insubstituível no
esforço lento e continuado de passar a grandeza do ideal para a
realidade da vida, é a boa leitura. Ao livro leva-nos quase
espontaneamente a curiosidade natural do espírito. Natura dedit
nobis ingenium curiosum.213 Inteligência, imaginação, emotividade,
tudo encontra no livro alimento e estímulo. Queremos conhecer o
universo, os segredos de sua estrutura, as fases de sua evolução, a
beleza de suas harmonias? Tomamos um livro de ciência.
Desejamos pôr-nos em contato com o homem de outras eras e de
outros lugares, rastrear alguma coisa de seu longo passado,
percorrer em espírito o itinerário desta velha humanidade que há
milênios vem peregrinando na superfície da Terra, construindo e
destruindo civilizações? Abrimos um livro de história. Apraz-nos
espairecer a imaginação no mundo dos sonhos, despertar emoções
profundas e delicadas ante o espetáculo das grandezas morais, ou
emoções veementes ante o jogo das paixões exasperadas no
conflito das grandes tragédias humanas? Estendemos a mão a um
livro de arte, de ficção, de poesia, alegre ou melancólica, lírica ou
épica. Para todas as aspirações da alma, o livro pode ser portador
de um estímulo e de uma satisfação. Para a fome insaciável de
saber e de sentir pode trazer-nos um alimento ou um veneno. É um
grande amigo e pode ser um inimigo fatal. Porque os livros, como os
homens que os escreveram, distinguem-se em bons e maus. O
discernimento com que procedemos na escolha das nossas
relações pessoais de convivência e amizade impõe-se-nos com
mais rigor na seleção dos nossos companheiros mudos de
cabeceira. Sobre os princípios que devem informar-nos e
esclarecer-nos a consciência dissolvente do livro frívolo, já tive
ocasião de vos entreter no ano passado. Hoje, teremos a
consolação de só falar do livro bom. E leitura boa chamamos aqui
aquela de fim instrutivo ou moral, a que se dirige à inteligência para
enriquecer-lhe o tesouro de verdade, a que nos fala ao coração para
nela despertar e robustecer as energias do bem. Chamam-na
também leitura espiritual porque desenvolve a parte mais nobre de
nossa natureza, o espírito, nas suas relações superiores com a vida
moral e religiosa; chamam-na ainda leitura edificante, porque a sua
finalidade é toda construtiva, edificar o bem nas almas.
A boa leitura — será mister dizê-lo? — deve ocupar um lugar
necessário em toda a vida que aspira a ser boa. Como regra geral
não compreendo em nossos dias uma existência cristã que não
consagre cada dia alguns minutos — um mínimo de quinze — a
uma leitura que eleve o espírito e enobreça os sentimentos. Nas
circunstâncias complexas da vida moderna, estes minutos
abençoados de convivência com um amigo da alma, sincero, sábio
e desinteressado, têm uma dupla função a desempenhar: defender-
nos e desenvolvermos. Finalidade defensiva, apologética; finalidade
construtiva, vital. O livro deve ser um companheiro inseparável da
nossa vida moral e superior na medida indispensável para ressalvá-
la dos perigos que a ameaçam e para vivê-la em toda a sua
plenitude.
Perigos que ameaçam a integridade da nossa fé e a solidez das
nossas convicções morais, será mister acentuá-los? Lá se foram os
belos tempos de unanimidade espiritual das inteligências; tempos
em que as nações, a civilização ocidental toda pertencia a uma só
família religiosa, respirava numa atmosfera serena e sadia,
impregnada das verdades de que viviam ou aspiravam viver todas
as almas. Hoje, bem outra é a situação. Por um complexo de
circunstâncias históricas, que não é para aqui minudenciar, hoje o
que reina é a discórdia dos espíritos, a dilaceração dolorosa das
almas, o embate, o choque, a luta inevitável das idéias. Nenhum
obstáculo maior, talvez, à solução das nossas crises sociais, ao
estabelecimento da paz entre cidades e povos do que esta divisão
profunda que arregimenta os homens em campos opostos e
irredutíveis. Bem ou mal? Mal certamente. A discórdia não pode
representar um ideal da convivência humana. A unidade dos
espíritos é condição imprescindível de paz profunda e de
colaboração sem reservas — uma e outra vantagens inestimáveis
na vida social. Bem pode ser que na sabedoria do seu governo a
Providência de Deus tire o bem do mal e não permita o mal senão
em vista do bem que dele indireta e acidentalmente pode derivar.
Não entremos, porém, em profundas filosofias de história; ponhamo-
nos em face da realidade e tiremos as conseqüências que ela
impõe.
A realidade é que nos achamos num mundo que já não é
totalmente cristão e onde as idéias cristãs são continuamente
desfiguradas ou combatidas por idéias a-cristãs ou anticristãs. Nesta
atmosfera vivemos imersos e não é possível estabelecer um cordão
sanitário, que nos preserve por isolamento completo. Através de
todos os meios de sociabilidade humana — livros, jornais, rádio,
conferências, conversas — entramos a cada instante em contato
com um mundo espiritual que nem sempre coincide com o nosso e
muitas vezes ameaça a integridade e a coerência da concepção
cristã da vida e dos seus valores essenciais. A cada momento é
uma ameaça para a saúde da alma como para a saúde do corpo.
Nesta atmosfera física que nos envolve e que necessariamente
respiramos, pululam os germes de todas as moléstias contagiosas
desde a gripe quase sempre inocente até a tuberculose sempre
traiçoeira. A higiene, a profilaxia, um conhecimento das nossas
resistências e fraquezas orgânicas, congênitas ou adquiridas,
impõe-nos, para a defesa da saúde, umas tantas normas que não
podemos transgredir, sem pagar a imprudência, até com a própria
vida. Há também para a conservação da euforia da alma uma
higiene espiritual cujos preceitos se não podem desprezar sem
comprometer o equilíbrio interno da vida superior.
E o primeiro e mais óbvio destes preceitos inculca-nos o
trabalho de imunização que se obtém precisamente pelo estudo
mais profundo das nossas razões de crer. Mas, não bastará para
isto o curso de apologética que já fizemos num bom colégio
religioso? Antigas alunas do Sion ou Sacré-Coeur… não se nos
foram tantas horas de estudo em assimilar o nosso Cauly ou
Devivier?214 Estudo fundamental e precioso foi este, cujo valor só
apreciareis em toda a sua justa medida com o crescer dos anos e a
experiência da vida. Mas ainda assim insuficiente; alicerces,
apenas, de um grande edifício cuja construção importa continuar
sempre e a que só com a morte se porá a última cúpula.
As razões são óbvias; subministram-nas tanto o objeto que se
estuda quanto o sujeito que o estuda.
a) Impossível percorrer em algumas lições de curso feito entre
os dezesseis e os dezessete anos todas as dificuldades que nos
podem ocorrer no domínio da fé. Com a própria vida que sobe e se
torna mais complexa e estende para novos campos as suas
atividades multiformes, surgem problemas novos e dificuldades
imprevistas ou imprevisíveis. É a evolução mesma da nossa
consciência religiosa que nos coloca em face de incógnitas
insuspeitadas ou de interrogações para as quais ainda não
tínhamos respostas. É também a evolução externa da vida social, a
efervescência das idéias em luta que, de um dia para outro, irá
colocar no tapete da discussão questões que não preocuparam os
nossos maiores ou que se apresentam hoje sob aspectos bem
diversos de quando passamos pelos bancos do colégio. Hoje surge
o debate sobre o divórcio, amanhã uma reforma sobre a educação
nos colocará em face da discriminação exata dos direitos da Igreja,
do Estado e da família, na tarefa educadora da criança; depois o
comunismo se apresenta armado de poucas idéias e de muita
dinamite para reconstruir, da noite para o dia, a sociedade do futuro
sobre as ruínas fumegantes de todos os valores espirituais do
passado; mais tarde é o próprio desenvolvimento orgânico da vida
moderna que nos chamará a atenção sobre a doutrina social da
Igreja e sua justificação no confronto com outras doutrinas: o
liberalismo de ontem, o socialismo de amanhã, que também
pretendem moldar as sociedades à sua imagem a semelhança. Ora,
na presença de todas estas questões não podemos cruzar os
braços num gesto de apatia ou desinteresse. Elas constituem, ao
redor de nós, assuntos candentes de conversas e discussões; elas
são forças vivas que vão plasmando ao redor de nós as instituições
em que forçosamente havemos de viver. Não as podemos evitar
porque são indeclináveis e precisamos resolvê-las à luz mesma das
verdades do cristianismo, sob pena de comprometermos a
coerência e a unidade da nossa vida interior e atraiçoarmos a nossa
vocação de batizados, que é sempre e em toda parte dar
testemunho de Cristo e da verdade divina de sua mensagem. Qui
me confitebitur…215 Ora, para satisfazer plenamente à grandeza
destas responsabilidades bastarão as noções apologéticas
elementares que hauristes num compêndio estudado na
despreocupação dos quinze anos?
b) A estas razões decisivas tiradas do imenso objeto que se
relaciona com o domínio da fé, cumpre acrescentar outras não
menos peremptórias, que entendem com a evolução psicológica do
sujeito ou da pessoa que estuda. Hoje estais ainda a pequena
distância dos vossos dias de colégio; esta distância irá aumentando
com os anos; mas já podeis agora, e melhor podereis mais tarde,
apreciar uma diferença no nosso modo de ver e compreender as
coisas. As lições da vida são imprescindíveis para a compreensão
profunda das suas realidades mais complexas. Já lá Aristóteles
punha em relevo esta menor capacidade da juventude para o estudo
das questões morais. “Os jovens”, dizia ele,
podem vir a ser bons geômetras, bons matemáticos e ainda exímios neste
gênero de ciências. Mas não há jovem, ao que parece, que seja prudente. A
razão é simples: o jovem não é experimentado porque só o tempo dá
experiência. Poder-se-ia ainda dizer que é porque as matemáticas são
ciências abstratas enquanto a sabedoria (ciência das coisas morais e da vida
prática) tira os seus princípios da observação e da experiência.
Ora, a inexperiência nascida dos poucos anos é talvez o único
defeito de que nos corrigimos cada dia. Cada dia vamos
envelhecendo ou, se quiserem, adolescendo, e se neste contínuo
crescer não perdermos nunca o hábito de conservarmos em dia as
nossas leituras, este estudo continuado pelos anos a fora vai
desenvolvendo e confirmando os motivos de credibilidade
percorridos um tanto esquemática e sumariamente nas páginas de
um manual de apologética. As novas leituras enriquecem o
patrimônio dos fatos; a experiência da vida habilita a inteligência a
estimar em seu mais justo valor estes “argumentos morais”,
distintivos da verdadeira Igreja e que a primeira juventude é tentada
quase a menosprezar.
Quando melhor se conhecem os homens tão facilmente levados
a se desentenderem, quando se estuda mais de perto e mais por
miúdo a história das seitas, que mal separadas do tronco da Igreja,
onde circula a seiva da vida sobrenatural da graça, entram a
desagregar-se numa pulverização crescente e incoercível, aprecia-
se com mais admiração a unidade da Igreja a perpetuar-se através
dos séculos como um milagre da Providência. Somos hoje perto de
quatrocentos milhões de católicos esparsos por todo o mundo… e
rezamos todos o mesmo credo… assistimos ao mesmo culto… E o
credo que hoje ecoa sob as cúpulas majestosas de São Pedro ou as
ogivas das nossas catedrais góticas é o mesmo que se repetia a
meia voz na penumbra silenciosa das catacumbas. É uma confissão
de fé que tem dois mil anos! E este símbolo encerra uma resposta
precisa a todas as grandes questões que atormentam a curiosidade
do homem, interessam os seus destinos e constituem, na história do
pensamento filosófico, o pomo de discórdias e discussões
infindáveis. Esta coerência de ensinamentos que se sucedem, se
precisam, se definem e se desenvolvem, sem nunca se
contradizerem, esta unidade de doutrina, esta solidez de
organização social — exposta ao embate de todas as forças de
destruição da história e sempre vitoriosa —, constituem fato inédito
na evolução humana, inexplicável pelo simples jogo dos fatores
naturais, cujos limites o estudo e a experiência nos ensinam melhor
a avaliar. E a unidade católica vai-nos aparecendo cada vez mais
brilhante como um sinal divino característico da verdadeira Igreja.
Diga-se o mesmo da santidade. É aos poucos, pela experiência
própria e pela observação alheia, pelo conhecimento da violência
das paixões humanas e dos estragos que causam ao redor de nós,
que se vai formando uma idéia justa da fraqueza humana e dos
limites naturais de suas virtudes desajudadas da graça e, por
contraste, se consolida e amplia a concepção exata da santidade
católica. Os santos, nós os vamos encontrando na vida, humildes,
dedicados, espontâneos na simplicidade de seu heroísmo; no seio
de uma família, no silêncio dos claustros, nas salas dos hospitais,
nas obras sociais e caritativas onde quer que a dor e a miséria
reclamam uma dedicação desinteressada e o conforto de um
coração amigo. E estas almas, que passam pela vida, aureoladas
por um halo de luz celeste, a Igreja as suscita, aos milhares, em
cada geração. Não há cidade, não há aldeia, em país católico, ou
em missões de infiéis, que não os conte e por vezes muito
numerosos mas escondidos. E apesar deste escondimento que
irradiação poderosa a destas almas privilegiadas, são verdadeiros
focos de luz viva e de calor! O bem que fazem no mundo moral é
incalculável. Imaginai a elevação de almas provocada em poucos
anos pelo exemplo de Élisabeth Leseur. Vede esta admirável
Teresinha do Menino Jesus… E a história dos santos é toda assim;
e a história da Igreja é uma história de santos. Vede que
contribuição admirável poderá trazer, com os anos, o estudo e a
experiência a este admirável argumento apologético.216
O conhecimento vivo e real dos adversários da Igreja, dos
motivos que os inspiram e dos processos de que se servem,
contribui não raro para diminuir a impressão das suas invectivas e o
valor das suas argumentações. Vê-se melhor o muito que nelas há
de incompreensão e de paixões e o pouco de inteligência sincera
das doutrinas, das intenções e da vida sobrenatural do catolicismo.
Voltaire é o patriarca da incredulidade moderna; ninguém como ele,
com a ironia, a calúnia e o sarcasmo, contribuiu tanto para afastar
as almas do cristianismo. Ora, conhecer de perto a vida de Voltaire
e estudar os seus processos científicos e literários de controvérsia é
um dos capítulos mais eficazes de apologia que se possam
escrever. Ao conhecer mais de perto toda a baixeza do homem e as
indignidades dos seus processos é impossível não experimentar
algo do sentimento de Tertuliano, que se alegrava ao pensar que o
primeiro perseguidor do nome cristão se chamava Nero.217
Só a idade ainda ensina em concreto a distinguir a grandeza da
Igreja, como instituição, das fraquezas humanas dos seus
representantes; a não confundir nos corifeus da incredulidade a sua
competência, por vezes incontestável, num determinado domínio
científico com uma superficialidade e, não raro, uma ignorância
pasmosa, em matéria religiosa: a ver nas virtudes naturais de muitos
incrédulos o fruto de uma educação religiosa ou a influência não
confessada de uma atmosfera cristã. Destarte, insensivelmente,
com o amadurecimento da razão, com a experiência da vida, com o
cabedal de novos conhecimentos, se vão fortalecendo os
fundamentos da fé na solidez de convicções cada vez mais
raciocinadas e robustas. “A luz aumenta com os anos”, escreve com
sua habitual fineza psicológica Léonce de Grandmaison,
as razões de crer multiplicam-se com as exigências crescentes da
inteligência; a fecundidade moral dos princípios recebidos, sua aptidão para
resolver os problemas postos pelo mundo e pela vida, sua harmonia interna,
os autoriza e confirma; desta maneira, sem ser necessário recorrer a um
exame em forma, sem abalos nem crises agudas (ao menos, na maioria dos
casos), por seu trabalho pacífico e contínuo de apropriação pessoal, o crente
ingênuo dos primeiros anos transforma-se em cristão convicto, consciente de
sua fé.218

Eis as grandes vantagens que no domínio da defesa da fé, ou


da apologética, pode trazer uma leitura assídua e constante,
proporcionada às exigências crescentes da nossa evolução
espiritual. Defendemos assim o nosso mais precioso tesouro contra
os perigos indeclináveis do ambiente que nos envolve; evitamos as
crises de fé que tantos sofrimentos e tantas ruínas acumulam nas
almas, tornamos cada vez mais sólidas e profundas as convicções
intelectuais que devem constituir o fundamento insubstituível de
toda a vida espiritual que aspira à coerência, à estabilidade e à
constância.
No domínio positivo de desenvolvimento vital — não já no
negativo e de defesa — são talvez ainda maiores os serviços que
nos assegura a convivência amiga do bom livro. É o assunto da
próxima palestra.

Rio, 12 de julho de 1938.

213 Aristóteles.
214 Curso de religião escrito pelo Monsenhor Eugène-Ernest Cauly, o chamado
“Catecismo Cauly”, e o Curso de apologética cristã do Padre Walter Devivier, S.J.
— NE.
215 Cf. Mt 10, 32; Lc 12, 8 — NE.
216 Bergson (sobre os místicos).
217 Psicologia da fé, p. 118.
218 Idem, p. 119.
A leitura como meio de desenvolver positivamente a vida
religiosa facilitada pelo amadurecimento dos anos.
Conseqüências práticas:

1º. Leitura espiritual cada dia.


2º. Organização das bibliotecas nas obras sociais.

No Instituto de Formação Familiar e Social, 02/07/1938.


Leituras

IV
BOAS LEITURAS

A PRIMEIRA função da boa leitura continuada com perseverança


após os primeiros anos de formação escolar é defensiva e
apologética. As dificuldades contra a religião não desarmam, antes
multiplicam-se e mais complexas se tornam com o tempo. É mister
proporcionar sempre os recursos da defesa à multiplicidade e às
violências do ataque. Só assim poderemos salvar o precioso tesouro
da fé e evitar estas crises de alma, funestas sempre, algumas vezes
irreparáveis. O desenvolvimento natural da inteligência e o
enriquecimento interior que resulta espontaneamente da experiência
da vida facilitam-nos neste trabalho de aprofundamento dos
primeiros estudos. Os motivos de credibilidade, repensados com
inteligência mais amadurecida e estofados, por assim dizer, na sua
estrutura dialética, com a riqueza de novos fatos, irão
subministrando à nossa vida religiosa uma base cada vez mais
sólida e resistente de convicções profundas.
Mas a leitura dos bons livros tem ainda outra função, positiva
esta e talvez mais importante que a primeira: a de acompanhar
organicamente o crescimento natural da nossa vida interior.
Julgamos porventura que os conhecimentos assimilados na
infância e no limiar da adolescência podem constituir um viático
suficiente para todo o resto da nossa existência? Já Hettinger punha
em relevo esta lacuna na vida de muitos católicos:
Neles a instrução religiosa não progride, permanece o que era na infância,
enterrada, esquecida sob a poeira da vida cotidiana de seus cuidados e
penas, de suas dissipações e prazeres. Desenvolveram-se e fortificaram-se
todas as faculdades e energias do homem; só o sentimento religioso que é o
primeiro dos nossos atributos naturais, se estiolou e feneceu. Cultivam-se
todas as regiões da alma, exceto a mais profunda, a mais íntima, a mais
essencial, que permanece inculta, estéril e desolada como um terreno
baldio.219

Os conhecimentos profundos desenvolvem-se e aperfeiçoam-


se como uma luz de Sol que se vai intensificando até aos fulgores
do meio-dia; os conhecimentos religiosos, estes permanecem em
sua fase infantil, como a luz frouxa de uma lamparina que bruxuleia
em penumbra invencível. Como quereis depois que não sintamos as
conseqüências deste desequilíbrio e que a nossa vida religiosa não
atinja todo o vigor e toda a beleza de sua plenitude?
É de fato, antes de tudo, uma exigência interna da própria vida
religiosa que nos inculca os cuidados de uma cultura sem
intermitência. São Paulo chama investigáveis as riquezas de Cristo,
investigabiles divitias Christi;220 mas para apreciá-las é preciso que
no-las apropriemos, que as assimilemos e façamos nossas.
Contentar-nos-emos na juventude e na virilidade com as noções
elementares de Deus e dos mistérios cristãos que nos ensinaram na
infância? Da grande mensagem salvadora que Cristo trouxe à Terra
para ser a luz do mundo, a fonte inexaurível de consolação, de
energia e de paz para as almas não havemos de conhecer mais que
as fórmulas e as explicações adotadas à capacidade dos primeiros
anos? Oh! de quantos auxílios para a sua vida moral, de quantas
consolações, de quanta força nas lutas de cada dia não se privam
as almas que permaneceram eternas crianças nos seus
conhecimentos religiosos sem os desenvolver nem elevar à altura
de uma idade mais exigente!
Aqui está uma que se põe fervorosamente a pedir a Deus uma
graça temporal, a saúde de um ser querido, o emprego para
resolver as dificuldades de uma situação econômica. Novenas sobre
novenas, e o bem almejado não se alcança. Desânimo;
descontentamento; abandono da oração, talvez crise religiosa total.
Por quê? Pobre alma! Da oração, só lhe ficou a idéia de petição; a
que mais impressiona os pequenos. Uma cultura religiosa mais
desenvolvida não lhe mostrou que oração é também e
principalmente elevação da alma a Deus; amor, contato inefável das
profundezas das almas com a bondade, a riqueza, o mistério
insondável da divindade: e que nesta forma de oração reside o
melhor da nossa vida espiritual. Da eficácia infalível da oração só se
lhe conservou no espírito uma noção imperfeita, diríamos quase
supersticiosa e mágica. Uma novena a Santo Expedito: e logo
aparece o emprego que se cobiça; uma trezena a Santo Antônio e
eis o noivo suspirado. A hierarquia de bens, a ordem da
Providência, a subordinação essencial dos valores do tempo aos da
eternidade — ter-lhe-iam completado, na inteligência amadurecida,
as noções incompletas da apreensão infantil, subministrando uma
visão mais compreensiva das coisas, única, capaz de corresponder
aos problemas religiosos mais complexos de uma vida em plena
expansão.
Aqui está outra alma, visitada pelo anjo da dor, mensageiro de
uma Providência sempre paterna ainda quando nos fere. Nos
catecismos elementares o problema da dor não é objeto de nenhum
capítulo especial. Para crianças e jovens, não é problema
interessante, e dificilmente entenderiam, nesta idade, o que lhes
poderia dizer a experiência dos que já viveram. Nos anos floridos de
primavera, todos formamos o nosso programa do futuro e neste
programa o sofrimento não costuma constituir número obrigatório ou
facultativo. Mas o que omite a nossa inexperiência, não o esquece a
realidade viva. O sofrimento vem cedo ou tarde sob uma ou outra
forma, bate-nos à porta. Surgem, então, nas almas desaparelhadas,
as lamúrias inacabáveis, os desalentos sem virilidade e, talvez, as
revoltas interiores que fecham as almas às grandezas do heroísmo
e as concentram num egoísmo estéril e intratável. Por que foi a
Providência feri-las? Elas não fizeram mal nenhum para merecer
castigo. Ao seu lado, há tantas piores e esquecidas de Deus e no
entanto visitadas por todos os dons que podem fazer uma felicidade
na Terra. Semelhante alma ignora de todo a função providencial do
sofrimento na história da redenção humana; o que a dor bendita
representa na nossa vida cristã como instrumento que purifica,
liberta, exalta, sublima e desprende para as grandes alturas. Santa
Liduvina de Huysmans, La bonne souffrance de François Coppée,
Paroles d’un revenant de Jacques d’Arnoux, Confiteor de Paulo
Setúbal.
A vida religiosa com o subir dos anos afirma exigências
ineludíveis de maior amplitude e intensidade; a estas exigências
normalmente deve responder um cuidado constante de enriquecer,
em extensão e profundidade, o tesouro dos nossos conhecimentos
religiosos: as riquezas de Cristo são investigáveis e nunca as
assimilaremos em sua plenitude exaustiva.
Neste trabalho continuado, as vantagens do nosso
desenvolvimento psicológico trazem-nos facilitações preciosas. A
madureza dos anos vai-nos providencialmente dispondo para uma
inteligência mais profunda desta vida superior do espírito. É a idade
das sínteses largas, compreensivas, serenas. O jovem apreende por
pontos, o seu pensar é desarticulado, fragmentário, parcial; uma
idéia empolga-o na sua primeira aparição e ele deixa-se fascinar por
seu aspecto sedutor, sem lhe inquirir as possíveis e longínquas
repercussões; seus juízos são, de regra, precipitados, unilaterais,
exclusivos. É a virilidade que enfeixa os conhecimentos dispersos,
unindo os pontos em linhas e as linhas na harmonia de uma
arquitetura completa. Quem está nos flancos dos primeiros
contrafortes ou apenas galgou a altura dos primeiros cerros não tem
ante os olhos senão a confusão e a desordem; é mister vencer as
asperezas da ascensão e dominar das eminências mais sublimes a
amplitude dos horizontes para perceber, numa visão panorâmica, a
direção e as linhas do movimento orogênico em toda a unidade de
sua grandeza majestosa. É precisamente o conhecimento religioso
que, nas elevações da inteligência, realiza esta síntese suprema: ele
abraça toda a nossa existência, responde a todas as grandes
aspirações humanas, unifica-nos toda a atividade interior; para
compreender a religião é preciso ter dado volta à vida, e quem lhe
fechou os livros ao sair do colégio privar-se-á para sempre de uma
das maiores consolações e de uma paz intelectual inefável.
Quanto mais observo a diferença das vidas tanto melhor vejo o erro terrível
que cometem os homens, muitas vezes os mais cristãos e mais capazes em
muitos assuntos — o erro de não procurar a ciência de Deus como se
procura a ciência deste mundo. Apesar de sua fé, de suas virtudes e
capacidades, o vazio na sua formação é assombroso. Falta-lhes uma ciência
sem a qual não se fecha o ciclo das outras, sem a qual as outras são como
um anel aberto ou um anel partido; falta-lhes a ciência de Deus que completa
o horizonte da inteligência humana, como o brilhante completa o anel de
ouro.221

Outra vantagem que provém também da nossa evolução


psicológica e interessa não imediatamente o vigor intelectual, mas a
serenidade de ânimo. Com os anos também as paixões arrefecem
na violência dos seus primeiros ardores; a inteligência ganha em
serenidade, em limpidez e profundeza de visão. Mais do que a dos
corpos entra-nos a encantar a formosura das almas e a formosura
das almas é a virtude e a virtude é o reflexo de Deus na pureza das
consciências. As realidades espirituais avultam na importância dos
seus valores que não passam. Como é então agradável, útil,
indispensável um estudo mais profundo do divino cristianismo! Já
nele não nos pesa, como tantas vezes ao jovem, o que há ou pode
haver de limitativo nas prescrições do culto ou nas proibições da
moral; empolga-nos e enche-nos a alma o que há de expansivo, de
libertador, de vivificante. A medida que se vai alargando assim os
horizontes, o espírito vai-se encaminhando para a simplificação da
unidade final. Realizar a nossa unidade interior é realizar a nossa
plenitude. Tudo o que nos dispersa, nos dissipa ou dilacera é uma
diminuição de nós mesmos, uma fonte de inquietude e de
sofrimento. Um ser vale o que vale a sua unidade; dividi-lo é destruí-
lo; unificá-lo é dar-lhe o máximo de estabilidade e perfeição.
Enquanto nos não elevamos acima da multiplicidade criada,
estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem real
(ontológica), Deus é o princípio de toda unidade, como de toda
realidade, Ele, Causa Primeira de tudo o que é; Ele, fim para o qual
tudo tende, alfa e ômega do universo. Na ordem psicológica e
moral, começamos o nosso trabalho de unificação quando refletimos
a ordem da realidade e entramos a ver, julgar e agir através da luz
que vem de Deus. Melhor conhecido e mais amado Deus vai aos
poucos concentrando as nossas idéias e as nossas aspirações na
unidade de sua imperturbabilidade infinita. Na religião desconhecida
a origem freqüente da incredulidade, na religião estudada com
intelletto d’amore e vivida com sinceridade profunda e generosa, a
perfeição e a paz suprema do homem.222
Antes de encerrarmos este assunto firmemos duas conclusões
práticas.
A primeira refere-se a cada uma de vós. Tomai desde logo a
resolução de consagrar todos os dias alguns minutos — ao menos
quinze — a uma boa leitura. Não há boa vontade sincera que não
encontre em 24 horas a quarta parte de uma delas para assegurar
as vantagens superiores que acabamos de examinar e que se hão
de prolongar e acentuar com o passar do tempo. Quem, porém, se
não habituou desde os primeiros anos da adolescência a esta
prática cotidiana dificilmente aos trinta ou quarenta introduzirá na
sua vida este hábito novo. Na multiplicidade das nossas ocupações
cotidianas, na vulgaridade e mediocridade que são muitas vezes as
conversas domésticas e sociais, o contato com pensamentos nobres
e sentimentos elevados representarão a nota alta do dia, o penhor
da elevação continuada da nossa alma, a defesa contra o perigo
real e contínuo de que na convivência comum e vulgar a nossa vida
não acabe por se tornar também ela comum e vulgar. Gemmishaft
macht gemein.
Ao lado desta conclusão prática de caráter pessoal, outra de
caráter, digamos assim, social. Vós estais aqui formando-vos para
amanhã formardes; o que hoje em vós se concentra como calor e
luz de vossas almas, amanhã na família e nas obras de assistência
social irradiará para iluminar e aquecer outras almas. Ora, na
grandeza desta missão a que vos chama a Providência, o problema
da leitura se vos põe como um dos mais transcendentes e
indeclináveis.
A leitura má — do livro, do folhetim, do jornal — encontra-se na
origem de quase todas as desgraças individuais e sociais. Quando
se estudam de perto estes fenômenos dolorosos que os tratados de
sociologia catalogam sob a rubrica de “patologia social” —
delinqüência infantil, criminalidade sob a imensa variedade de suas
formas, desorganização da família, suicídios, etc. — entre as suas
causas mais ativas se encontra sempre o mau livro. O mau livro é
uma fonte envenenada de males incalculáveis. Desde a criança que
num folhetim passional de uma folha vai haurir a sugestão
fascinadora do crime até o homem feito e instruído, a quem, num
momento de crise, o Werther de Goethe lembra a idéia do suicídio,
não há delito, não há desgraça que ele não lembre, não inculque,
não inspire, por vezes, com o impulso irresistível de uma
obsessão.223
Combatê-lo é uma das necessidades mais urgentes; é uma das
medidas mais eficazes de profilaxia moral. Não é intenção nossa
ocupar-nos agora dos meios de combate direto ao mau livro. Do que
dissemos, porém, se infere um processo eficacíssimo de combate
indireto. Não se destrói senão o que se substitui; o meio mais
eficiente de destruir o livro mau, é substitui-lo pelo livro bom. O
hábito da leitura hoje é inextirpável; e quanto mais eleva uma nação
o nível de cultura e desterra o analfabetismo tanto mais
generalizado se torna. Lê-se nas cidades e nos campos; nas casas
e ruas; nas oficinas e nas fábricas. No livro procura-se uma
distração, uma instrução profissional, uma orientação moral e
religiosa. Muito interessante sob este aspecto o inquérito feito há
pouco (1932) pela Ligue patriotique des françaises que nesta data
ainda não havia operado a sua fusão com a Ligue des femmes
françaises. O relatório deste inquérito apresentado por Melle. Du
Rostu encerra lições de alto valor.
Objeto do inquérito — Études, t. 217 (1933), p. 541.
Nº de respostas — 20.000 — senhoras e moças, p. 542.
Natureza dos livros — (um ano) e dos autores, pp. 544–545.
Motivos que levam à leitura, pp. 545–546.
Influência das leituras, pp. 457–549; 550; 555.

Conclusão: Toda obra de assistência social deve possuir


organizada e ativa uma biblioteca e orientar a leitura dos seus
membros. Sem isto, arrisca-se a perder em grande parte o fruto de
seus esforços e priva-se de um instrumento de primeiro valor para
atingir as almas. A nossa ação social inspirada pela visão cristã da
vida — qualquer que seja o campo em que se exerça, qualquer que
seja a sua finalidade imediata, visa em última análise o homem na
sua integridade, o homem na perfeição de sua vida especificamente
humana […]. O que desejamos, através do reajustamento das
estruturas sociais, é melhorar o homem, é fazê-lo mais homem e
mais capaz de realizar, com a plenitude dos seus destinos, a paz de
sua felicidade. O livro subministra-nos para este fim um instrumento
de apostolado social e cristão, de primeiro valor. Daí o dever
indeclinável de lhe utilizarmos todas as vantagens. Organizem-se
bibliotecas, bem orientadas, acessíveis, que satisfaçam a todas as
exigências, repouso, distração, instrução, orientação — daqueles a
que se destinam. Mais; habilite-se cada organização a orientar os
seus membros na escolha delicada de suas leituras; serviço de
informação bem organizado e sempre em dia; extensivo não só ao
depósito constituído da biblioteca, mas à produção contínua dos
nossos livros que aparecem. Formação de bibliotecárias. Livros de
orientação bibliográfica. Revistas, Index Librorum Prohibitorum,
Sage-Homme, Sinzig, Les Sources; Casale, Revue des livres.

219 Psicologia da fé, p. 115.


220 Ef 3, 8 — NE.
221 Tourville.
222 Psicologia da fé, pp. 120 e ss.
223 Ver Bethléem, La presse.
I — Movimento atual da ação católica.
Eras do cristianismo:
1a, conquista do mundo pagão;
2a, organização interior da Idade Média;
3a, rupturas dos séculos xvi e xvii, e
4a, reconquista do mundo paganizado.
É preciso restituir ao mundo a verdade e a luz.
Para isto a mobilização das grandes massas.
Os leigos e sua função na Igreja.

A educação na ação católica, sua importância:

a) no campo político;
b) no campo pedagógico.

Para a ação, necessidade da doutrina.


Importância da pedagogia para todos.
A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 20/04/1933.


Ação Católica e educação

Q UASE recém-nascida entre nós, a Ação Católica, num surto de


entusiasmo e vitalidade admiráveis, já nos vai alegrando com a
riqueza dos seus primeiros frutos e animando com a promessa de
mais ricas esperanças para o futuro.
São as primeiras repercussões no Brasil de um movimento,
amplo como o mundo, católico em toda a força genuína da
etimologia do termo, isto é, universal, superior aos interesses
particulares dos indivíduos e das nações, vasto como a humanidade
reunida por Cristo; um destes movimentos, inspirados pela
Providência à Igreja, para salvar a imensa família humana nos
paroxismos das suas grandes crises. Os que o vêem de perto e com
olhos de curto alcance não lhe percebem talvez toda a grandeza de
sua importância; julgam-no porventura semelhante a uma destas
agitações superficiais provocadas por entusiasmos efêmeros ou
propagandas ativas — como as pequeninas ondas em que se
encrespa por instantes o espelho cristalino do lago, acariciado pela
brisa da tarde. Não; o movimento renovador da Ação Católica tem
tanto de amplitude quanto de profundidade. Prende suas raízes no
âmago do dogma católico e dele desabrocha como uma destas
florações providenciais destinadas a alimentar com os seus frutos
uma nova época na história. Os que, num porvir mais longínquo, já
tiverem o recuo do tempo indispensável para avaliar, numa vista
panorâmica, a natureza e o sentido das grandes correntes
históricas, saudarão talvez na organização católica do século a
aurora de uma nova era do cristianismo.
A primeira foi a da expansão conquistadora,224 o pequeno
manípulo de enviados, os Apóstolos, ricos de amor de Cristo e
fortes na imortalidade de suas promessas, atiraram-se à conquista,
a olhos humanos temerariamente impossível, do Império Romano.
As almas cansadas do paganismo e atormentadas por este ideal
divino de perfeição moral sempre latente no fundo da nossa
natureza ainda quando desfeada pela corrupção e pelo vício, foram-
se voltando para as esperanças da Cruz redentora. E cada
catecúmeno que se regenerava nas águas do Batismo, era amanhã
mais um soldado que ia aumentar as fileiras dos conquistadores.
Todo cristão era, por vocação, uma testemunha, mártir, algumas
vezes pela voz eloqüente do sangue, sempre pela irradiação de
uma vida moral reformada e pela incoercível força expansiva de um
zelo, filho do amor de Cristo e da consciência da solidariedade de
todos os remidos pelo seu sangue. Hierarquia e fiéis porfiavam nos
ardores do mesmo apostolado. São Paulo alude freqüentemente
nas suas epístolas a estes fiéis de um e de outro sexo, dedicados
todos à obra evangelizadora de Cristo. Escrevendo aos filipenses
diz: “Rogo-te que ajudes os que trabalharam comigo no Evangelho e
com Clemente e com os outros cooperadores quorum nomina sunt
in libro vitae”.225 Bela recompensa dos heróis da Ação Católica,
idêntica à feita por Cristo aos Doze escolhidos de sua predileção,
gaudete quia nomina vestra scripta sunt in coelis.
Foi assim que em pouco tempo o cristianismo se foi difundindo
de família em família, de profissão em profissão, de cidade em
cidade até estender-se a todo o Império Romano a princípio e logo
depois também aos povos que nos séculos seguintes o invadiram e
retalharam.
Inaugura-se então a segunda era que poderíamos denominar
de organização. As fronteiras do cristianismo coincidem com as do
mundo civilizado então conhecido. São os séculos medievais. As
grandes descobertas do século XV e XVI ainda não haviam revelado
a existência dos novos continentes. As incursões esporádicas de
Marco Polo e dos missionários franciscanos e dominicanos nos
reinos da Ásia Central não conseguiram despertar o interesse da
Europa. As dificuldades de comunicação aumentando a grandeza
natural das distâncias, o Ocidente vive como que fechado sobre si
mesmo. A cristandade organiza-se interiormente. O Estado cristão
atinge o seu apogeu nos tempos de São Luís. A unidade de fé
incontrastada, a impregnação de todas as manifestações da vida
social e política pelos princípios do Evangelho esmoreceram nos
fiéis o zelo do apostolado. Clero e laicato separam-se nitidamente;
ao clero a incumbência de ensinar e pregar a verdade cristã, de
fundar confrarias e instituições de beneficência e caridade; aos
leigos o de beneficiarem deste ensinamento, de aperfeiçoarem a
sua vida moral alistando-se nestas organizações para as quais
contribuíram com a fidelidade de suas práticas piedosas e a
generosidade das suas esmolas.
Mas o perigo de lutas não tardou a reabrir-se. O século é o
período das primeiras rupturas, grandes e dolorosas. A majestosa
arquitetura cristã da unidade medieval entrou a fender-se aqui e ali e
uns aos outros foram-se sucedendo os desmoronamentos.
Desabituados, por longos séculos de paz, às lutas do apostolado
conquistador ou reconquistador, os fiéis deixaram-se ficar numa
quase inação ante um grande movimento transformador cuja
gravidade e extensão não reconheceram a princípio. Durante o
século XVII não se vê na incredulidade mais que a manifestação
episódica de alguns espíritos céticos ou negadores ou as atitudes
intelectuais correspondentes naturalmente ao desmando dos
costumes dos então chamados libertinos. Contra esta minoria
insignificante bastaria a defesa organizada e dirigida pelo clero. O
edifício social conservava ainda, em suas linhas mestras, a antiga
estrutura cristã que parecia destinada a uma resistência
eternamente vitoriosa. A Revolução Francesa foi a grande
revelação. Clero guilhotinado e desterrado, igrejas fechadas ou
demolidas, culto interdito, reorganização da sociedade e dos
governos em bases inteiramente anticristãs, mostraram de repente a
profundidade dos males sociais e o progresso de uma
descristianização assustadora. Mas parece que a lição ainda não
aproveitou. Viu-se no movimento de 1789 a violência passageira de
um grande ciclone. Passado o tufão revolucionário voltaria a
bonança e o que parecia destruído se reergueria espontaneamente
sobre as antigas bases. É a interpretação justa do movimento
artificial conhecido com o nome de Restauração, restauração do
antigo trono e da antiga dinastia, restauração das leis ab-rogadas,
restauração dos quadros sociais partidos pelo vendaval
passageiro… Como se nada de grande e de profundo houvera
passado após a queda do antigo regime; como se se pudera dar
contravapor à marcha da história e reviver em sua integridade
material instituições e estruturas definitivamente gastas e
cadaverizadas. A Restauração foi e não podia deixar de ser um
movimento efêmero e sem profundidade. O trabalho de renovação
social continuou o seu caminho e porque alguns católicos menos
clarividentes se obstinaram em solidarizar o cristianismo com as
formas contingentes e mutáveis do viver social — com uma dinastia,
uma forma política, um regime de propriedade — a grande
transformação se foi processando independente de uma intervenção
eficaz e esclarecida dos católicos. Assim é que nos achamos hoje
em face de uma sociedade repaganizada em quase todas as suas
instituições.
A compreensão justa desta situação dolorosa e a organização
das forças católicas para a reconquista do mundo infiel ao seu
Batismo, eis o que há de caracterizar uma nova era, a quarta na
história do cristianismo.
Realmente, para nós cristãos, contemplar, na inação das
atitudes egoístas de espectador curioso, esta imensa miséria que
nos aflige, fora um pecado que não mereceria perdão. O mundo
sofre da falta de Deus, e de todos os bens espirituais que só n’Ele
têm a sua origem, a sua defesa e a sua realização suprema. As três
grandes rupturas que prepararam a tristeza dos nossos dias, da
Renascença, da Reforma, da ofensiva racionalista do século XVIII,
caracterizam-se por uma separação cada vez mais acentuada entre
a civilização material e a cultura superior da personalidade humana.
Dominado por uma ciência toda positivista, o homem voltou-se para
a matéria; julgou assim emancipar-se a si e dominar a ela, mas
acabou escravo de tudo o que lhe é inferior. “Sob as aparências
otimistas da pseudociência positivista”, diz Maritain,
elevou-se como uma grande ilusão uma espécie de falsa unidade do espírito
humano; o homem pensou atingir o termo, tornar-se o dono e o senhor de si
mesmo, da natureza inteira e da história: e no entanto aproximava-se a
catástrofe e, enquanto a matéria, em aparência dominada e vencida, impunha
à vida humana o seu ritmo e as exigências indefinidamente multiplicadas das
suas satisfações, o homem se achava mais que nunca dividido, dividido dos
outros e dividido em si mesmo: a matéria princípio de divisão não pode
engendrar senão a divisão. Nações contra nações, classes contra classes,
paixões contra paixões… no fim é a própria personalidade humana que se
dissolve; debalde, o homem procura a si mesmo nos pedaços dispersos de
suas veleidades inconscientes e de suas sinceridades inconsistentes; uma
espécie de febre de desespero apodera-se do mundo.226

A este grande enfermo — o organismo social moderno a


debater-se em paroxismos de uma dor profunda —, importa restituir-
lhe o sem o que nenhum homem pode viver dignamente: verdade e
amor.
O erro é múltiplo, a verdade é uma; o erro divide, a verdade
unifica; o erro oscila continuamente de um a outro extremo, a
verdade permanece na solidez de sua estabilidade definitiva.
Pretender fundar a colaboração social, sincera e sem reticências,
sem um núcleo de verdades essenciais sobre a natureza e os
destinos do homem é pretender o impossível. Com a multiplicação
dos erros, prepara-se inevitavelmente a anarquia e a dissolução do
corpo social.
Verdade e amor. Só o amor aproxima realmente os homens,
que os interesses materiais dividem. E todo o sentimentalismo
humanitário, que não descansa na solidez de fundamentos
intelectuais sólidos, poderá florear toda uma retórica flamejante
sobre solidariedade, nunca fará eficazmente com que um homem
veja noutro homem um irmão. Praticamente, resolver-se-á na
adoração de si ou no suicídio: duas formas extremas do egoísmo,
uma orgulhosa, outra covarde.
Restituir os homens à verdade e ao amor equivale a restituí-los
a Deus, a levá-los a Cristo. E eis a função capital da Ação Católica.
Já não se trata de defender o patrimônio cristão dos assaltos dos
seus adversários, mas de recristianizar a sociedade divorciada do
Evangelho. É preciso reconquistar de novo o mundo. Com a
modernidade dos meios mais aperfeiçoados, com toda a diversidade
de condições impostas pela diferença profunda de civilizações
distantes vinte séculos, é uma tarefa, senão idêntica, análoga pelo
menos à do apostolado primitivo, no seio da sociedade pagã do
Império Romano. Nessa atmosfera social, viciada e asfixiante, é
preciso purificá-la, é preciso iluminá-la com os esplendores do
cristianismo.
Ora, esta conquista imensa, esta recristianização das massas
não pode ser o efeito de uma simples doutrinação do clero que não
ecoa fora das abóbadas dos nossos templos. É uma vitória que não
se pode obter sem a mobilização das grandes massas católicas. Só
assim, levado por um grande exército móvel, disciplinado e
espalhado por toda parte poderá de novo fulgir o ideal cristão na
família e na escola, na usina e no negócio, na vida doméstica,
econômica, política e social. “A Ação Católica é esta organização de
ofensiva católica”.
Assim, pelo concurso providencial das circunstâncias, os leigos
vieram a reencontrar a sua missão divina de apóstolos e ao lado do
apostolado hierárquico, a sua função ativa no corpo místico da
Igreja.
Ah! como em tantas almas o laicismo desolador havia reduzido
as riquezas inefáveis do cristianismo a uma caricatura esquálida e
irreconhecível!
Para quantos cristãos a vida religiosa não se lhes estiolara,
reduzida a umas pequeninas devoções a alguns santos para lhes
alcançar uma boa morte. Práticas religiosas: uma meia hora de
missa por semana; umas orações no ângulo mais escondido de
casa. Na vida social e econômica, abstração completa de Deus.
Para o profissional ou o negociante, o chefe de família ou de
empresa, os princípios da moral cristã eram inexistentes ou
inoperantes. A moral dos negócios não era a moral da consciência.
Para as relações da família ou da sociedade há o código das
conveniências ou das convenções tácitas, pouco severo e sempre
de uma elasticidade complacente e inesgotável. Uma Igreja assim,
em que os católicos, unidade por unidade, fossem pedir os meios de
bem morrer e que, de quando em quando, repetisse umas
declamações inofensivas sobre os “erros revolucionários” e “os
males do tempo”, era o ideal com que sonhava o laicismo: assim
seria tida por tolerante e “de boa companhia”. Infelizmente, o caráter
“individualista” da devoção de inúmeros católicos vinha trazer a este
trabalho laicizador a cumplicidade de sua colaboração.
Começamos a compreender melhor a nossa dignidade de membros da
comunidade cristã. Os deveres sociais que daí resultam se vão delineando
com mais nitidez. O número de almas atormentadas pela sede do apostolado,
pelo desejo de irradiar ao redor de si uma influência religiosa, aumenta de dia
para dia em todas as classes sociais. A Igreja transfigura-se-lhes ante os
olhares extasiados. Nela vêem o prolongamento de Cristo e da sua missão
redentora. Mas é precisamente com a colaboração constante das gerações
sucessivas que ela realiza a sua imortalidade, indispensável ao exercício de
sua função benfazeja. Desejamos também morrer bem, porém morrer, em
remate de contas, significa ter vivido, e trabalhar para a vida da Igreja é a
maneira cristã de viver bem e portanto de bem morrer.227

É com esta compreensão mais real da vida e das razões


supremas do viver, é com esta inteligência mais profunda do
cristianismo, das suas responsabilidades e das suas grandezas, da
eficácia das suas consolações e da riqueza das suas promessas,
que, ao apelo taumaturgo do Vigário de Cristo, se levantam em todo
o mundo, aos milhões, os exércitos da Ação Católica, em cuja
organização e eficiência repousa, numa hora de tão fundas
apreensões para o mundo atormentado, a mais consoladora das
nossas esperanças.
Ora, no imenso campo da Ação Católica, tão amplo como as
necessidades e exigências da vida social, ocupa um dos setores
mais importantes a educação da juventude. “A criança é a única via
que leva ao futuro”.228 Nas escolas preparam-se as novas gerações,
em cuja formação se jogam os destinos da sociedade de amanhã.
Deus, nos desígnios da sua Providência, determinou que a
humanidade não realizasse a plenitude de sua perfeição num só
indivíduo ou numa só geração mas que se perpetuasse na
superfície do planeta. A vida renova-se continuamente em ondas
sucessivas. Quando nas tristezas do inverno um imenso lençol de
neve parece envolver a natureza na candura imaculada de uma
mortalha definitiva, a seiva fecunda retrai-se, concentra-se, revigora-
se para expandir-se, aos primeiros calores do Sol de maio, na
esplêndida exuberância da vitalidade primaveril. Nas gerações que
sobem a humanidade renova continuamente as suas energias vitais.
A juventude é a natureza humana na plenitude de sua beleza.
Iniciativa, entusiasmo, dedicação, espírito de sacrifício, sobretudo,
estas riquezas de alma que estimulam a atividade e o progresso são
o privilégio das vidas em flor. “O idealismo da juventude é o veículo
da civilização”.229
Não é de admirar, portanto, que em torno da criança se travem
as batalhas decisivas do futuro. Toda concepção da vida que aspira
a durar, todo sistema filosófico que não se resigna a morrer no
cérebro que o concebeu, todo movimento social que ambiciona abrir
um sulco profundo na história, vai bater à escola, para conquistá-la,
reformá-la, plasmá-la à sua imagem e semelhança. Ao lado de cada
doutrina filosófica — positivismo ou naturalismo — vereis germinar
uma pedagogia; em qualquer renovação social profunda —
comunismo ou fascismo — encontrareis uma reforma escolar
correspondente ao idealismo de suas aspirações. E se em nenhuma
outra época talvez tanto se debateram, como na nossa, as questões
pedagógicas e tanto se batalhou pela hegemonia na orientação do
ensino, é precisamente — entre outras causas — porque, nos
nossos dias de crise civilizadora e de transição social, pululam, em
confusão caótica, as ideologias e os partidos que aspiram ao
monopólio na remodelação do mundo de amanhã, e cada qual
planta no horizonte suas esperanças.
Ora nesta efervescência de reformas, nesta agitação de idéias
e de pessoas, não podemos sem traição, nós os depositários dos
tesouros divinos do Evangelho, cruzar os braços na apatia dos
indiferentes e na inércia dos pusilânimes, chorando um passado que
não volta, fulminando anátemas sobre um presente, que é o quadro
histórico assinalado pela Providência à atividade da nossa vida, e
desesperando de um futuro para o qual recusamos o dever
imperioso da nossa colaboração cristã. O tempo marcha, as idéias
vencem, as ambiências sociais modificam-se; fundam-se
agrupamentos, votam-se leis, interessam-se as massas. Ausentes
de toda esta renovação social — condição da vida humana —
teremos, talvez, a pesar-nos sobre a consciência a responsabilidade
de ver que todas estas remodelações se fazem sem nós e por isso
muito provavelmente contra nós. Seríamos, o que Deus não
permitirá, uma geração infiel à sua vocação de conservar, transmitir
e acrescer o patrimônio da nossa civilização cristã, a soma de bens
divinos na Terra.
Ora, a Ação Católica em matéria de educação desdobra-se em
dois campos distintos mas, até certo ponto, solidários: um que se
poderia chamar político ou, se quiserem, legislativo, outro
pedagógico.
Há em todos os países uma legislação escolar, orientada pelo
que se vem chamando recentemente política educacional. Esta
elaboração de leis, cuja importância soberana não escapa aos olhos
do observador mais superficial, pode inspirar-se em princípios que
respeitam ou que ferem os interesses vitais do cristianismo. As leis,
sob pretextos mais ou menos falazes, podem proscrever do ensino
público a instrução religiosa e formar a grande massa da população
na ignorância, na indiferença e no ateísmo prático que prepara o
teórico. É o plano de descristianização adotado pelas lojas
maçônicas e por elas executado onde quer que os católicos se não
uniram séria e resolutamente para a defesa dos seus direitos.
As leis podem desrespeitar os direitos invioláveis e
imprescritíveis dos pais à educação dos seus filhos e concentrar nas
mãos do Estado a orientação total da instrução pública. É sob uma
forma nova a restauração da tirania das consciências exercida pelo
absolutismo ilimitado do Estado pagão. Praticamente o desrespeito
ao direito natural das famílias põe nas mãos do partido ou da facção
política dominante o arbítrio de moldar as novas gerações à feição
de suas ideologias preferidas…
As leis podem consagrar ou confiscar a liberdade do ensino,
reconhecendo ou denegando às famílias, às associações
particulares e à Igreja o direito de abrir e manter escolas. É um
atentado contra a liberdade profissional, em benefício de um
monopólio açambarcador da instrução, mais funesto no domínio da
instrução do que em qualquer outro.
Por estes poucos exemplos, que ainda se poderiam facilmente
multiplicar, vedes como, sem arriscar interesses de uma importância
fundamental, não podem os católicos alhear a sua atenção alerta e
a sua intervenção eficaz da elaboração das leis que pouco a pouco
se vão consolidando no regime escolar de um país.
Nem menos importante é o aspecto que chamamos
pedagógico. Pela sua própria natureza complexa e pela sua
finalidade essencial que é a formação do homem, a pedagogia
entende e limita com todas as ciências do homem e da sociedade.
A educação de uma criança, preconizada por um sistema
pedagógico, enquadra-se naturalmente nas grandes perspectivas de
uma concepção geral da vida e das suas finalidades superiores.
Consciente ou inconscientemente, há em todo pedagogo um
filósofo, um moralista, um sociólogo e até um teólogo. A tabela de
valores humanos, pela qual não lhe é possível deixar de pautar os
seus atos e as suas intervenções educativas, é necessariamente o
resultado de uma escolha, talvez não explícita mas nem por isso
menos real, entre uma concepção materialista ou espiritualista do
homem, entre uma visão cristã ou pagã da existência.
De nenhuma ciência ou arte é lícito ao cristão alhear o seu
interesse com a apatia ou indiferença de um cético. Toda visão
objetiva do ângulo mais insignificante da criação é uma parcela da
verdade integral, e portanto uma manifestação do pensamento
criador, uma revelação de Deus ao homem. “Toda verdade é um
sacramento do absoluto”.230
Mas as ciências que interessam imediatamente os nossos
destinos morais, com toda a gravidade de suas repercussões
eternas, essas impõem-se ao nosso estudo com a necessidade de
um dever imperioso. É bela a obra visível da criação, mas o que
nela há de mais belo são as almas. Tudo o que lhes interessa o
conhecimento, a perfeição, os destinos, tem para nós um valor
duplamente divino: é da imagem de Deus que se trata, é da
aplicação eficaz do sangue redentor de Cristo que se decide.
Indeclinável, portanto, pesa sobre a consciência cristã a
responsabilidade de quanto num país, quer sob a forma de leis, quer
de doutrinas pedagógicas, se relaciona com a educação das almas
e o futuro das novas gerações. Neste ponto, porém, como ou mais
do que em outros, o êxito eficaz da Ação Católica é condicionado
por uma sólida formação doutrinária. A boa vontade, já se vê, é
indispensável; muito não é, porém, tudo. O vigor da ação sem a luz
da verdade é desperdício de energias. As grandes forças motrizes
da vontade só vencem distâncias e alcançam o porto quando
orientadas pela segurança da bússola e a firmeza do leme. Todos os
movimentos católicos filhos de uma exaltação de entusiasmos,
dissociados de uma verdadeira cultura intelectual, fracassaram, a
breve trecho, no mais lamentável malogro. Nos próprios indivíduos
que trabalham e se dedicam, a condição de um entusiasmo
duradouro e de uma dedicação sem reservas nem esmorecimentos
é a solidão de convicções profundas.
E aí tendes a razão deste fervor de estudo, desta solicitude por
uma formação intelectual e social, que se encontra na Ação Católica
contemporânea como um dos penhores mais seguros da sua
duração e eficácia. No nosso pequenino campo não é outra a razão
de ser destas palestras que retomamos hoje inaugurando o 6º ano
de existência. Aqui tenho de novo a grande consolação de vos
encontrar com a mesma assiduidade na freqüência, com a mesma
paciência na atenção, com a mesma benevolência, com o mesmo
interesse, com a mesma simpatia que lhe asseguraram a
possibilidade de viver nos anos passados e, esperamos em Deus,
lhe há de garantir a vida pelo menos neste ano que hoje
começamos, e de modo muito particular colocamos neste 19º
centenário da nossa redenção, sob a égide de Cristo Redentor.
Continuaremos, naturalmente, a ocupar-nos de questões
pedagógicas; de dia para dia, já se vai difundindo e radicando a
convicção de que não é este assunto da competência exclusiva dos
profissionais do ensino. Alguns conhecimentos seguros da
pedagogia são de interesse geral para todo cidadão e de utilidade
imprescindível para todo homem.
No seu aspecto político, que respeita ao cidadão, já o vimos, as
leis do ensino jogam com os direitos fundamentais da liberdade de
consciência, da existência da família, da possível formação ou
deformação religiosa e moral dos que, depois de nós, hão de
continuar a existência desta pátria que é nossa e para cuja
felicidade temos o dever de colaborar. Encolher ombros ante a
grandeza destas responsabilidades sociais, afirmar implicitamente,
pela nossa inação, que pouco se nos dá seja ou não cristão o Brasil
de amanhã, é desconhecer os deveres (digo deveres) mais
elementares do cidadão e as obrigações mais altas da solidariedade
cristã. E o segredo para interessar-se vivamente e sinceramente nas
questões de política educativa? O seu estudo, o seu conhecimento,
a convicção pessoal de sua grande importância. Do que
desconhecemos não nos interessamos.
No seu aspecto pedagógico, que se refere ao homem, são
ainda mais visíveis as vantagens gerais de bons conhecimentos na
ciência de educar. Todo homem é, até certo ponto, educador. Não
educa só o mestre nos recintos de sua escola; não educam só os
pais nas intimidades contínuas da vida de família; não educa só o
sacerdote na lição dos púlpitos ou na direção dos confessionários.
Educa também o oficial na severa disciplina das casernas; educa o
chefe no trabalho cotidiano de uma repartição pública ou na direção
de um escritório ou de empresa; educa o patrão nas suas relações
complexas e delicadas com os seus operários; numa palavra educa
ou deve educar todo homem que entra em contato com outro
homem. Se a finalidade essencial da obra educadora é levar o
homem à expansão plena e perfeita de sua personalidade, educam-
se não somente as crianças senão também os adultos, educa não
só a escola e a família mas ainda a sociedade inteira. E o bem-
estar, o progresso moral e a felicidade nas nossas multiformes
relações domésticas e sociais estão, em grande parte,
condicionadas pela habilidade e segurança da nossa pedagogia.
Quantas empresas naufragam, quantas colaborações preciosas
desarticulam-se por falta de perícia no manejo dos homens que lhe
estão à frente! Quantas famílias não comprometem a paz, a
harmonia, a felicidade do seu lar, porque a esposa não soube
exercer sobre o esposo esta ação educativa que o fosse
humanizando e elevando à altura dos seus ideais!
Conhecimentos seguros e práticos de pedagogia não serão
nunca um luxo supérfluo na formação intelectual da nossa
inteligência; constituem um destes elementos indispensáveis da
nossa adaptação social, e um instrumento de eficácia incomparável
na irradiação da nossa influência benfazeja. Não há cristão que
sinta palpitar-lhe no peito o amor de Cristo e se resigne a passar
pela vida malbaratando os seus dons e contemplando, sem dor, a
mediocridade dos que o cercam. Valorizar os talentos que a cada
um liberalizou a Providência é pô-los todos ao serviço deste trabalho
na redenção do mundo que, perfeito em Cristo Redentor, se vai
realizando penosamente em cada um dos remidos; é a suprema
aspiração de quem entendeu algo das inefáveis riquezas do
cristianismo. Que por descuido ou negligência nossa não se deixe
de realizar em nós ou ao redor de nós uma só parcela do bem que
Deus pôs ao alcance das nossas possibilidades. Pela solicitude em
desenvolver nas próprias almas toda a sua capacidade de perfeição
pessoal, pelo zelo esclarecido e infatigável em colaborar pela
perfeição de quantos possam entrar em relação com ele, a todo
cristão se deve aplicar o elogio do Batista: erat lucerna ardens et
lucens;231 luzeiro que arde e ilumina; foco de luz e calor, alma que,
abrasando-se, esplende e inflama.

Rio, 06 de abril de 1933.

224 Esta divisão em 4 idades é de Leclerq, “Credo”, maio de 1929, p. 30.


225 Fl 4, 3.
226 Le Docteur Angélique.
227 Goyau, Autour du catholicisme social, I, p. 83.
228 De Hovre, II, p. 22.
229 Idem, I, p. 221.
230 Sertillanges.
231 Jo 5, 35 — NE.
Importância da ação católica na educação.
Estado atual do Brasil.
Impõe-se uma:
a) ação imediata — que vise a geração atual;
b) ação a longo prazo — que vise o futuro, pelo advento de um novo
regime escolar. Para alcançá-lo:
a) sejamos práticos — alcançando o que nos for
imediatamente possível;
b) e idealistas — Importância do ideal como gula da ação —
ideal
pedagógico que temos em mira para atuá-lo.
1) — ação perseverante — (exemplo da Bélgica);
2) — ação multiforme e convergente — combatendo o
laicismo:
no campo pedagógico,
no campo social,
no campo jurídico.
Parte dos pais e dos professores.

A. M. D. G.

Às professoras públicas, 18/04/1929.


Ação Católica no campo escolar

É COM o mais vivo prazer que de novo aqui vos vejo reunidas,
atraídas pela grandeza do mesmo ideal e pelo zelo do mesmo
bem. A constância e benevolência com que seguistes, no ano
passado, as nossas reuniões que começamos modestamente, o
zelo e espírito de sacrifício, com que, durante a época agitada dos
exames, já pesada pelos primeiros rigores do verão, vos
encerrastes aqui para o recolhimento benfazejo dum retiro espiritual,
bem mostram o quanto de vós pode esperar a Igreja e a pátria nesta
tarefa imensa e carregada de responsabilidades de formação das
gerações futuras. Com o novo ano, recomeçamos com novo ardor.
A natureza só se conserva porque se renova sempre. Quando
apontam os primeiros sóis da primavera, toda ela se prepara para a
grande festa anual com todo o entusiasmo de uma novidade. E as
primaveras assim se sucedem com os seus encantos que nunca
envelhecem. Na nossa atividade espiritual, imitemos a natureza.
Não voltemos os olhares para o que já se foi. Flores que já
desabrocharam, riqueza de frutos já colhidos; esqueçamo-los no
passado para só pensarmos em preparar novas primaveras que, na
exuberância de sua seiva, tragam a promessa das colheitas
abundantes do outono.
A educação da infância ocupa hoje em todo o mundo um dos
setores mais amplos e mais importantes da Ação Católica. Para
onde convergem, condensados, pertinazes e repetidos os esforços
inglórios dos demolidores da ordem cristã, aí desabrocha em
prodígios de zelo e de sacrifícios a caridade dos corações em que
se imprimiu indelevelmente a palavra salvadora de Cristo: “Deixai vir
a mim os pequeninos”.232 A batalha em torno da escola é, hoje,
como sempre, decisiva. Quem nela vencer, conseguindo plasmar as
almas tenras das novas gerações que surgem, terá reconstituído, à
sua imagem e semelhança, a sociedade de amanhã. E não por uma
simples questão de cronologia: o tempo na sua marcha incoercível
vai, dia a dia, recalcando as ondas humanas e substituindo as
gerações que declinam pelas fileiras dos novos que sobem. Quando
amanhã os frios da velhice nos engelharem na inação de uma
aposentadoria forçada ou a morte nos riscar da lista dos que contam
na cidade dos vivos, é a petizada gárrula e despreocupada das
nossas escolas que terá nas mãos fortes dos que começam os
destinos da nossa sociedade. É questão de anos. Mas é também
questão de psicologia. O homem é normalmente na sua idade
adulta o que dele houverem feito na infância. As impressões que se
gravam na cera virgem dos corações são indeléveis. Desde Horácio
até Musset, os poetas cantaram esta persistência dos perfumes que
primeiro embalsamaram a nossa primeira idade. Mais grave do que
a poesia, a observação psicológica nos mostra que nas alminhas
em flor, eminentemente sugestíveis e plásticas, providencialmente
inclinadas a imitar, receber e assimilar, a energia vital toda se
concentra em elaborar estes primeiros extratos de imagens,
impressões, reações espontâneas, que constituirão o fundo
subconsciente mas inamissível de nossa vida intelectual e moral. As
primeiras lições do lar e da escola descrevem-se para sempre nas
fibras mais profundas e ainda virgens do nosso coração.
Daí a importância capital da primeira formação religiosa do
homem. Não o ignora a impiedade; melhor do que ela o sabe a
Igreja, a quem foi confiada por missão divina a educação espiritual
da humanidade. E a luta escolar, que é uma luta de almas, enche
com a grandeza de uma epopéia e às vezes com as angústias
dolorosas de uma tragédia a história social de todos os povos cultos
da nossa civilização ocidental. Ainda o ano passado, as aulas
parlamentares do Reichstag vibraram, durante meses, dos debates
encandecidos em torno da confessionalidade da escola pública. Os
socialistas, partidários incorrigíveis da laicização do ensino oficial,
deram assalto poderoso contra o ensino religioso nas escolas
alemãs, confessionais. Ainda uma vez foram batidos. Numa pastoral
coletiva da primavera de 1922 o episcopado alemão refletia ainda
uma vez e consagrava a palavra de ordem, que na questão escolar,
desde Bismarck, une todos os católicos da Germânia. “Pela defesa
dos seus direitos escolares, os católicos poderão morrer, ceder
nunca”.
Qual a triste situação do regime escolar, no Brasil, vós bem o
sabeis. Sob a influência momentânea de uma minoria insignificante
— positivista e liberal — a laicização do ensino foi inscrita na nossa
carta constitucional de 1891. Assim, de golpe, sem brado de
protesto, sem uma tentativa de organização de resistência, a grande
maioria das famílias foi esbulhada de um dos seus direitos naturais
inalienáveis e inatingíveis: o de educar religiosamente os seus
filhos.
Pior que a lei foi a hermenêutica que lhe inspirou a sua
interpretação. Enquanto os nossos melhores constitucionalistas
como Rui Barbosa, Pedro Lessa, Pandiá Calógeras proclamam a
perfeita compatibilidade do ensino religioso com a letra do § 6 do
art. 72 da nossa Constituição, a jurisprudência que prevaleceu na
prática de quase todos os estudos da federação excluiu todo o
ensino religioso na formação da nossa juventude, com
incomensurável dano do país. Sem a religião, subtraiu-se o único
fundamento eficaz, teórico e prático da formação das consciências.
Hoje nas nossas escolas públicas poderá instruir-se mais ou menos
bem, mas educar, formar caracteres, insculpir profundamente nas
almas o respeito eficaz do dever, isso não é possível. Todas estas
expressões clássicas conservam-se ainda na nossa linguagem
como uma homenagem forçada à virtude. Ainda se diz aos nossos
meninos que devem ser homens de caráter, dedicados, prontos a
qualquer sacrifício pelo dever, a todos os heroísmos pela pátria.
Ainda se confessa que só este fundamento das virtudes individuais
condiciona a paz das famílias e a existência da sociedade. Mas,
digamos a verdade toda como ela é, sem Deus todas estas palavras
sonoras e belas não passam de abstrações vazias e ineficazes. Não
é mister remontar a altas filosofias para demonstrá-lo — e pode ser
que este ano demos largamente esta demonstração —; aí está a
demonstrá-lo inelutavelmente a experiência social de outros países,
e a experiência social do nosso. O nível moral do nosso povo que
sabe ler não se elevou. E enquanto as nossas escolas forem leigas,
serão incorrigivelmente incapazes de educar o homem que é
essencialmente religioso. Do regime das escolas públicas norte-
americanas, ainda assim melhores do que as nossas, mas também
elas leigas, disse recentemente um professor de Princeton que eram
“um sistema de matar almas”.233 É o pecado original do laicismo
escolar.
Tal é, sem otimismos ingênuos, e sem pessimismos
paralisadores de iniciativas generosas, a nossa situação atual no
Brasil. O dever católico já está de si mesmo traçado; urge ganhar o
tempo perdido, e reparar os erros passados e para isto, trabalhar,
agir. Ação dupla:

a) uma imediata, que visa salvar a geração atual;


b) outra, a longo prazo, de horizontes mais amplos, que mira a
preparação de um futuro melhor.

a) Antes de tudo, minhas senhoras, uma ação imediata para dar


à nossa juventude uma instrução religiosa, uma formação moral,
dentro das possibilidades da nossa estrutura jurídica em vigor. É o
nosso primeiro dever: trabalhar, sofrer, dedicar-nos pelo bem dos
nossos contemporâneos, pela reabilitação do século que a
Providência quis fosse o nosso. Este mundo é um vasto cenário em
que se empenham, em luta sempre renovada, as forças do bem e
do mal; de um lado as nossas paixões que, seguindo a linha do
mínimo esforço, nos arrastam para baixo, nos degradam, nos
infelicitam, nos aproximam da animalidade; do outro, a razão e a fé,
que nos elevam, respeitando a dignidade da nossa natureza, que
equilibram o nosso interior na harmonia da paz humana, que nos
emancipam da tirania dos impulsos inferiores e vão adelgaçando em
nós a opacidade da matéria em benefício da diafaneidade cristalina
da inteligência. Esta luta perene como a nossa natureza reveste em
cada época feição característica, e cada idade tem as suas
deficiências próprias, e tem as suas virtudes distintivas. Não nos
esgotemos em lastimar os nossos tempos. As lamentações são
estéreis; as lamúrias são quase sempre o disfarce com que a
maledicência das virtudes sem energia dissimula a sonolência inerte
de sua preguiça. Não, outro é o nosso dever; o de contribuir, durante
a nossa passagem pela Terra, para aumentar a soma de bens e de
contraminar o contágio do mal. Ponhamo-nos diante da realidade,
tal qual é. As almas grandes são as que compreendem, não só em
teoria, mas também em prática, as necessidades sociais e religiosas
do seu tempo, e vão confiadamente, generosamente, até o
cumprimento total de seus deveres cristãos, até o dever dos
corações leais e generosos: o apostolado. Na tarefa imensa da
redenção, exceto a parte divina do Redentor, nada está terminado.
As almas precisam continuamente ser conduzidas e reconduzidas a
Cristo. Em cada alma que vem a este mundo, em cada criancinha
que passa pelas vossas escolas há um Cristo a formar, porque nele
há um candidato à bem-aventurança dos remidos pelo sangue
divino. E neste trabalho divino, silencioso, o nosso Redentor procura
“a colaboração sem reservas, o dom dos corações leais, o sacrifício
de vida a uma causa maior do que ela e única portanto que só
merece gastemos nela generosamente todas as nossas
energias”.234 E é tanto o que vós podeis fazer nesta cruzada
gloriosa, tais as magníficas perspectivas de apostolado entre as
almas infantis que vos entreabre a vossa profissão de professores,
que não me parece se possa resumir em poucas palavras; espero
consagrar uma das nossas palestras a esta organização eficiente do
nosso apostolado escolar.
b) Mas uma ação imediata que vise tão-somente o bem da
geração contemporânea é pouco para a grandeza das nossas
ambições. Dedicando-nos ao presente não esqueçamos de preparar
um futuro melhor para os que depois de nós vierem. Precisamos
trabalhar energicamente para uma reforma da nossa legislação
escolar, no que concerne à formação moral e religiosa da nossa
infância. A consciência católica não pode definitivamente resignar-
se a um estado legal que desconhece suas liberdades mais
invioláveis. Às nossas famílias, que possuem o direito e o dever de
educar catolicamente os seus filhos, o Estado não oferece a menor
garantia jurídica de respeito a esta liberdade espiritual. E amanhã
criancinhas católicas poderão, nas nossas escolas públicas, ser
submetidas, pela escolha dos livros de textos, pela ação de
professores acatólicos ou incrédulos, pelo contágio de uma
atmosfera fria de indiferença religiosa, a influências
descristianizadoras, de que os pais têm pleno direito de as querer
subtrair na escola, como o fazem no próprio lar. Urge, pois, preparar
o advento de um regime escolar em que se respeite a integridade
dos direitos de todos os cidadãos. Nesta obra de preparação,
sejamos práticos e idealistas.
Práticos, antes de tudo, trabalhando por alcançar o bem
imediatamente possível. O otimismo é muitas vezes inimigo do bem.
O terreno perdido, havemos de conquistá-lo palmo a palmo. É
quimera esperar da noite para o dia uma revolução completa do
nosso regime escolar. Há muitos preconceitos a dissipar, muitos
obstáculos a remover. Contentemo-nos do que é possível obter logo
e cada posição tomada de assalto será uma nova base de
operações que facilitará a escalada de novas posições mais difíceis.
Onde pudermos obter uma concessão para o ensino religioso nos
edifícios escolares, mesmo fora das horas de aulas, não hesitemos
em aceitá-la. É pouco; tem inconveniente grave: o menino habitua-
se a considerar a religião como uma superfluidade dispensável; o
ensino do catecismo, obrigando-o a sacrificar algum recreio, ou
prendendo-o por mais tempo na escola, assume facilmente aos
seus olhos um aspecto de castigo; o ensino da religião torna-se
então pesado, odioso. Mas enfim sempre melhor do que nada. Dado
este primeiro passo será mais fácil conseguir a inclusão do ensino
religioso facultativo dentro do programa escolar, e possivelmente
nas melhores horas do dia, como vimos o ano passado que se
pratica na Alemanha. Estas concessões já se vão alcançando em
vários pontos da federação, a exemplo do estado de Minas.
Aceitemo-las. Trabalhemos por alcançá-las. É ser práticos.
Sendo práticos, porém, não sacrifiquemos o ideal. O católico é,
em tudo, e sempre, um idealista incorrigível, a aspirar
infatigavelmente pela perfeição, pela integridade da ordem, pela
realização completa da beleza eterna das idéias na contingência
dos acontecimentos que passam, pela equação perfeita do direito
com o fato. Trabalhamos incansavelmente a fim de que o que é seja
o que deve ser. Nas vicissitudes dos esforços cotidianos, nos
altibaixos de entusiasmos e desânimos não desfitamos nunca os
olhos da visão do ideal. Do ideal que orienta e do ideal que estimula.
Orienta, porque enquanto a ação é essencialmente condicionada
pelas balizas industrializadoras do tempo e do espaço, o ideal é a
expressão pura da verdade, é a exigência integral da ordem; a ação
oscila, intensifica, adapta-se às circunstâncias mutáveis de cada
momento; o ideal é luz de estrela fixa que brilha inextinguível nas
alturas, a iluminar com a quietude do seu esplendor sereno as
peripécias acidentadas da rota. A ação é a luta contra o furor
desencadeado dos ventos, contra os vagalhões avolumados pela
procela; o ideal é a serenidade da bússola a indicar
imperturbavelmente o norte que orienta. Mas o ideal não orienta só;
estimula também. As realizações da nossa atividade ficam sempre
aquém da perfeição acabada, a que nada se pode acrescentar. É a
visão clara da distância que separa o feito do que ainda é possível
fazer, é incentivo a nossos esforços. Quem se sinta satisfeito do
caminho andado, paralisa-se na imobilidade dos fracos. A
complacência vã e estéril do passado jarreteia-lhe as iniciativas que
melhoram o futuro.
Para orientar-nos, e estimular-nos nas dedicações que
permitam as circunstâncias atuais das nossas instituições escolares,
não esqueçamos o nosso ideal pedagógico. O nosso ideal
pedagógico: meninos católicos em escolas católicas. Escolas
católicas não são as em que se ensina o catecismo uma ou duas
vezes por semana. Não; isto não basta para educar catolicamente.
A educação católica exige instrução religiosa, exige professores
religiosamente exemplares, exige uma vida complexiva inspirada
toda na doutrina, na moral, na prática do culto católico.235 Só assim
a escola não é infiel à sua função de prolongamento da educação
doméstica, só assim se respeita o direito natural dos pais de educar
os próprios filhos, só assim não se comete a injustiça social, para
com a parte católica do país, de alimentar com os seus impostos
escolas incompatíveis com as exigências de sua consciência
religiosa.
Bem sei quão longe se acha este programa da mentalidade
oficial, desviada por quase cinqüenta anos de laicismo dominante
sem contraste. Mas por que desanimar? Por que não havemos de
conseguir aqui, numa reação quase totalmente católica, o que já
alcançamos em outras nações onde a fração católica constitui uma
minoria? Por que não havemos de obter escolas públicas católicas,
mantidas pelo governo, como temos na Alemanha, na Inglaterra e
na Holanda, países de maiorias protestantes, na Bélgica, na
Espanha, na Itália, na Áustria, na Polônia, predominantemente
católicos? Que exige a realização deste programa?
Antes de tudo uma ação perseverante. Nós brasileiros —
estamos em família, podemos fazer a confissão dos nossos defeitos
— somos muito inconstantes. Entusiasmamo-nos com facilidade,
mas esmorecemos logo à vista da primeira dificuldade — seja esta
só a do tempo. Somos generosos no sacrifício, mas que este não se
prolongue. A luta perseverante, pertinaz, silenciosa mas indomável
na existência, prudente mas enérgica na ofensiva, até essa
amedronta a nossa pusilanimidade. Na nossa história, que começou
ontem, não tivemos dessas grandes causas cuja vitória difícil e
prolongada tempera os caracteres na luta e forma a consciência
cívica dos grandes deveres sociais. A luta pela independência e a
campanha abolicionista — ambas ainda assim breves e moderadas
numa atmosfera de poesia muito de molde a excitar os entusiasmos
do nosso sentimentalismo — são os únicos exemplos de uma
mobilização nacional em prol de uma grande idéia. Cumpre reagir
contra esta tara do nosso temperamento coletivo. (Individualmente,
graças a Deus, há brasileiros que sabem querer). E a questão
escolar, a luta pela regeneração moral e religiosa da nossa instrução
pública, oferece-nos para isto uma rara oportunidade. Aqui já
encontramos em outros países nobres exemplos a imitar. Os
esforços dos católicos pela defesa e reconquista dos seus direitos
escolares na Alemanha, na Holanda, na Inglaterra, constituem uma
verdadeira epopéia na história social dos séculos XIX e XX.
Minguando-nos o tempo citarei apenas o exemplo da Bélgica.
Perseverante na ação, primeiro segredo de sua eficácia.
Segundo: ação multiforme e convergente.
Nem todos os auditórios, nem todos os meios sociais são
igualmente sensíveis aos mesmos argumentos. Adaptemo-nos
manejando com habilidade e discrição as armas que a prudência
nos indicar como mais eficientes. O laicismo trabalha por eliminar
toda e qualquer influência religiosa na instrução e educação escolar
da nossa juventude. Combatamo-lo energicamente mostrando-lhe
todas as insuficiências. Por todos os flancos ele presta-se a uma
crítica vitoriosa.
No ponto de vista pedagógico, é uma impossibilidade prática,
uma hipocrisia, “uma mentira diplomática” como o chamou
sinceramente um dos seus grandes paladinos, Viviani, ministro da
instrução pública em França. Não é possível educar, prescindindo
da solução religiosa do problema da vida. Educar é desenvolver, é
formar um homem. Cumpre, portanto, definir o homem, a sua
natureza, os seus destinos, para saber que orientação imprimir à
pedagogia que o há de formar. E a solução destas questões
entende essencialmente com a questão religiosa. E os que
pretendem educar, neutramente, leigamente, prescindindo como
dizem da religião, de fato resolvem implicitamente a questão que
cuidam evitar pela negativa — formando o homem como se não
houvera Deus, como se não houvera deveres transcendentais que
submetem sempre e em toda parte a criatura ao seu Criador. Com o
pretexto de educar religiosamente, educar irreligiosamente.
Por isto mesmo que pedagogicamente o laicismo é um erro
capital, socialmente a educação leiga não poderá formar homens à
altura das exigências cívicas e dos deveres morais que exige a vida
em sociedade. Mostramos amplamente, o ano passado, o aumento
pasmoso da criminalidade juvenil causada pela laicização do ensino.
Atualmente os dois únicos grandes países da nossa civilização
ocidental que laicizaram as suas escolas públicas são também os
que lhe sentem os mais perniciosos efeitos: neles a delinqüência de
menores se avantaja de muito à das outras nações que
conservaram o ensino religioso nos seus estabelecimentos. Era
então, na eloqüência muda das cifras, o testemunho coletivo das
grandes massas. O depoimento individual das almas de escol não é
menos peremptório. Para a França, citaremos o exemplo recente de
um ilustre acadêmico que, num livro publicado no ano passado, Une
Destinée, La nouvelle education sentimentale,236 nos faz as
confidências dolorosas das terríveis devastações que na alma da
criança produziu o ensino leigo. Só uma natureza singularmente
bem-dotada, com o instinto poderoso de asseio moral, e as
exigências sobreviventes de uma longa ascendência cristã,
preservaram-no parcialmente de se afundar na vasa do lodo em que
naufragavam lentamente tantos dos seus companheiros mais fracos
ou menos defendidos. Esta página triste mas corajosa, vigorosa e
desassombrada de autobiografia é um dos requisitórios mais fortes
e mais vivos contra a ação deletéria de uma educação malfazeja
porque sem princípios e sem ideal. Sobre os educadores de sua
geração Louis Bertrand faz pesar toda a responsabilidade de uma
acusação singularmente grave.237 Para os Estados Unidos citamos o
testemunho autorizado do presidente que acaba de deixar o
governo da grande república estrelada. Falando o ano passado, por
ocasião do 150º aniversário da fundação da Phillips Academy
Andover, no estado de Massachusetts, Coolidge lamenta que nos
estabelecimentos de educação
o ensino retrograde para o que é material sem se preocupar da vida
espiritual, atraiçoando assim não só a causa por que foram fundados mas
ainda a humanidade e o próprio Deus. […] Se o nosso povo não for instruído
a fundo das grandes verdades da religião, será incapaz de formar uma idéia
justa das nossas instituições, ou de lhe dar o apoio que precisam. Enquanto
nos nossos colégios […] se descuidam neste ponto o seu dever, os seus
graduados voltarão ao nosso meio com uma capacidade acrescida de se
entredevorarem. O abandono do dever faria correr os maiores riscos a todo o
edifício social.

Eis os frutos sociais do ensino sem religião. Por último


juridicamente o regime escolar que laiciza todas as escolas
públicas, encerra uma violação flagrante da distribuição de justiça
social, é uma lesão grave à liberdade de consciência, como em
outra ocasião demonstraremos largamente.
Em todos os campos, portanto, pedagógico, social, jurídico, a
Ação Católica poderá dar combate ativo ao laicismo.
A quem compete, porém, de modo mais particular e direto a
iniciativa de ação no terreno escolar? A todos os católicos sem
dúvida: a educação é problema de interesse comum, nacional, que
não pode ser estranho a ninguém de modo particular, porém é dever
que incumbe, antes de tudo, aos pais de família, mais diretamente
interessados na educação dos seus filhos, e ao lado dos pais de
família, ao professorado católico. Não sei ainda quando
conseguiremos sacudir a inércia das nossas populações e
organizar, em grandes associações, a ação dos pais, para a
reivindicação e defesa dos seus direitos. “Nunca em nenhuma
época e em nenhum país os direitos dos cidadãos se acham
seguros se os próprios interessados não consagram todas as suas
forças à sua defesa, e já se não sabem para este fim agrupar-se e
unir-se”.238
O magistério católico dá-nos maiores esperanças não só de
ação direta, pessoal, senão também de um trabalho prudente e
eficaz de educação das próprias famílias.
E eis, minhas senhoras, a razão de ser destas nossas
modestas reuniões. Sois professoras e sois católicas; quereis que a
religião informe a vossa consciência profissional; quereis pôr ao
serviço do bem toda a imensa influência que vos assegura a
importância singular da vossa missão social.
Agrupando-vos, tereis a imensa vantagem da união, do
estímulo recíproco, da orientação homogênea e convergente. O
número ainda não é grande, mas os pequenos núcleos, fortes e
coesos, são os que preparam as grandes vitórias. E por que não
havereis de começar o vosso apostolado entre os vossos colegas,
as professoras entre as professoras, as normalistas entre as
normalistas? Por que cada uma de vós, com alma de apóstolo, não
se resolve a tomar consigo o compromisso de trazer duas ou três
colegas? Em pouco tempo duplicaríamos ou triplicaríamos os
nossos efetivos. Com um número maior a discussão dos assuntos
se tornaria mais interessante e mais ampla a irradiação benfazeja
da vossa ação associada. Como no ano passado, nas nossas
modestas palestras estudaremos assuntos de interesse pedagógico.
Começaremos este ano pelo estudo do problema da co-educação,
que faremos brevemente em duas ou três conferências. Se algum
assunto vos interessar de modo particular, dizei-mo, que eu vos
agradecerei a oportunidade da sugestão. Com os problemas de
ordem propriamente pedagógica, entremearemos alguma
conferência dirigida mais imediatamente à vossa vida espiritual.
Procuraremos assim quanto nos for possível satisfazer à ampla
exigência essencial de toda ação católica.
Exigência da verdade na inteligência, a iluminar-nos os passos.
Não basta a boa vontade. No conflito de idéias e doutrinas que se
entrechocam, se cruzam, na ambiência que nos cerca, impõe-se-
nos inelutavelmente o alto dever de conhecer e de estudar o nosso
cristianismo salvador com todas as suas aplicações práticas e
inúmeras repercussões em todos os domínios do saber e do agir.
Que o nosso desleixo não nos extravie a atividade, que a nossa
ignorância não comprometa o triunfo da causa divina. A verdade,
que é o nome abstrato de Deus, bem merece que a sirvamos com
toda a generosidade, com todos os recursos da nossa inteligência.
Inteligências cultas, e vontades ativas, enérgicas, dedicadas.
Sem este fogo misterioso, alimentado por uma vida interior intensa,
as mais belas iniciativas bem depressa murcham, fenecem e
morrem com a caducidade efêmera e caprichosa dos entusiasmos
humanos.
A Ação Católica prende as suas raízes mais profundas e
vivazes na caridade divina, neste amor sincero e profundo de Deus,
que espontaneamente, com toda a força exuberante de sua
natureza, desabrocha em flor de zelo difusivo do bem. É nesta
riqueza inexaurível da vida cristã que se alimenta a tenacidade de
sua perseverança, a generosidade inesgotável na dedicação, e a
integridade desta força indômita e insaciavelmente conquistadora de
almas. Conservar sempre aceso este foco íntimo que em língua
cristã chamamos fervor é perenizar a juventude da alma, e irradiar
sobre a nossa vida a paz de uma consolação inefável. Sobre a
monotonia cansativa das nossas ocupações cotidianas, sobre a
insignificância aparente dos pequeninos nadas que enchem os
nossos dias, resplende raio de eternidade de uma luz do Infinito. Da
aurora ao crepúsculo de nossa jornada terrestre, trabalhamos para
Deus, e o tempo que destrói todas as coisas humanas respeita o
que é divino. O que fizermos para a construção da cidade das almas
ficará para sempre imortalizado em perfeição e felicidade nossa e
em glória d’Aquele que nos mandou amássemos os nossos irmãos
para gozarmos um dia da infinidade do seu amor.

Rio, 09 de abril de 1929.

232 Mt 19, 14; Mc 10, 14; Lc 18, 16 — NE.


233 Christianity and Liberalism, Nova York, 1923, p. 13.
234 Pierre Charles, II, 58.
235 Educar não é só instruir a inteligência, é formar bons hábitos — e não se
formam bons hábitos religiosos se não se vive uma vida religiosa.
236 Paris, Plon, 1928.
237 Études, t. 196, 1928, p. 250.
238 Hébrard de Villeneuve.
I — Atravessamos uma crise moral:
a) crise de moralidade ou de costumes;
b) crise da moral ou de princípios (sua gravidade).

A crise vem de longe — do século xvi. Esforços para


constituir:

a) uma moral independente do dogma;


b) uma moral independente da metafísica.

Multiplicação das morais.


Moral leiga — sua definição.

Deslealdade dos fundadores da escola leiga.

II — Impossível prescindir da questão dos destinos do homem na


solução do problema moral.
Fim da moral — orientar a liberdade. Ora, para isto é mister
conhecer o fim do homem, e precisamente o fim último.
O laicismo — o grande inimigo.

Às professoras do Sacré-Coeur, 20/09/1929.


Moral leiga
I

A MORAL E OS DESTINOS DO HOMEM

S E TODAS as grandes questões sociais repercutem cedo ou tarde


na organização pedagógica de um povo, de nenhuma outra é
tão estreita esta solidariedade entre a sociedade e a escola como da
questão moral. A sociedade deve à escola o envolvê-la numa
atmosfera sadia que facilite o desenvolvimento regular das
consciências novas e não as exponha à força sedutora de tentações
superiores à sua inexperiência e fraqueza. A escola, acima de
qualquer outra obrigação, deve à sociedade a formação de
caracteres fortes, de vontades retas, de cidadãos que, antes de
tudo, sejam cumpridores incondicionados dos seus deveres.
Tocamos aqui um dos problemas mais delicados da pedagogia
moderna, simplesmente agravado nos países, como o nosso, que
cometeram o erro de laicizar o ensino: o problema da educação
moral.
Dizer que passamos por uma crise moral grave é hoje afirmar
uma evidência que entra pelos olhos de todos. Os católicos
representam apenas uma nota no coro quase universal de
lamentações que se levantam de todas as proveniências. O mal-
estar social, esta inquietude dos povos ansiosos de paz e de
felicidade, é em grande parte uma crise de costumes. Crise de
costumes individuais — a manifestar-se na marcha ascendente da
criminalidade que avulta em número e se refina na gravidade dos
delitos e se estende do sexo masculino ao feminino, da idade adulta
à triste precocidade dos menores.
Crise dos domésticos a preparar na freqüência dos adultérios,
no número progressivo de divórcios, na proporção sempre maior de
incompatibilidades conjugais, a dissolução crescente da família.
Crise dos costumes sociais no desrespeito às autoridades, na
violação das leis, neste fermento de insubordinação revolucionária a
armar governados contra governos, classes proletárias contra as
classes possuidoras, ameaçando continuamente a estabilidade e a
paz das nações.
Aí estão alguns dos sintomas mais evidentes da nossa crise
social, e, na raiz de todos eles, uma crise de moralidade. Nem se
diga que esta é apenas uma impressão falsa proveniente de uma
ilusão óptica: vemos mais de perto a nossa sociedade
contemporânea, enxergamos melhor os seus defeitos e por isso
julgamo-la mais corrupta que as passadas. Todas as épocas foram
assim: apelaram da decadência dos contemporâneos para a
austeridade dos antigos. A humanidade foi sempre a mesma,
mescla de bons e maus, cenário de grandes virtudes e de grandes
vícios. Que haja uns laivos de verdade nesta observação, não o
negamos. Muitos há que são por natureza levados a maldizer os
tempos presentes e a enaltecer a grandeza moral dos que foram.
Com esta ressalva, porém, não se destrói a grande verdade
atestada pela história: a da existência de períodos dolorosos e
vergonhosos para a humanidade. Os povos ascendem e declinam,
alternam eras de grandeza moral com decadências inegáveis: aí
estão a corrupção do Império Romano, do Baixo Império, da
Renascença. Que nos nossos dias haja uma baixa notável de
costumes é fato inegável. Os que já não são de ontem e que
poderão observar pessoalmente por alguns anos têm na sua própria
experiência uma prova toda sua: a sociedade de hoje não é a de
vinte ou trinta anos atrás.
E que esta impressão de um declínio sensível não seja
puramente subjetiva, aí estão a confirmá-la as cifras frias mas
eloqüentes das estatísticas.
Muito mais grave, porém, do que ao observador superficial
poderia à primeira vista parecer, é a crise contemporânea. Não se
trata só de uma crise da moralidade mas de uma crise da moral.
Não é uma crise de fato, é uma crise de direito. Não é só a
decadência lamentável dos costumes a varar pelos olhos dos mais
obstinados otimistas; é a incerteza, a dúvida, a incoerência a
implantar-se no âmago mesmo dos princípios que sempre
regularam a atividade humana. Indivíduos e povos não só já não
praticam o bem, mas interrogam ansiosos o que é o bem e se o bem
existe. Elevando-se do terra-a-terra dos fatos contingentes que
passam à região superior dos princípios e da ciência dos costumes,
a crise aumenta infinitamente em gravidade. Eis ainda uma
realidade incontestavelmente averiguada pelos observadores de
idéias filosóficas mais disparatadas. Aqui Jules Michelet, L. Roure,
Monsenhor d’Hulst se encontram de acordo com Alfred Fouillée e
Bernis, Dauriac e Belot. A expressão “crise da moral”, no sentido
mais profundo que acabamos de definir, ocorre, freqüente e
emoldurada de epítetos fortes, na pena de todos estes escritores.
Jules Michelet:
A existência de uma crise contemporânea da moral não pode ser seriamente
contestada por ninguém que tenha seguido com ansiedade dolorosa os
profundos abalos do pensamento contemporâneo.239

Alfred Fouillée:
Em nossos dias, mais que há trinta anos, é a própria moral que está em jogo
[…]. A fim de me esclarecer nestes assuntos li com o maior cuidado o que
escreveram os meus contemporâneos nos sentidos mais diversos e
contraditórios. Tentei formar uma opinião sobre todas as opiniões. Deverei
confessá-lo? Encontrei no domínio moral tal desconchavo [desarroi] de idéias
e de paixões […] que me pareceu indispensável pôr em evidência o que se
poderia chamar a sofística contemporânea.240

Poucos anos depois: “É a crise da moral que explica em grande


parte a crise da moralidade”.241
Belot, um dos mestres do pensamento leigo em França: “No
momento atual, por mais indiferente e otimista que um seja, não é
fácil contestar que passamos por uma crise moral de excepcional
gravidade”.242 “São os próprios fundamentos da vida moral que
parecem abalados”.243
Isto escrevia ele em 1899; mais recentemente, em 1926, no 4º
Congresso Internacional de Educação Moral Belot confessava “que
um individualismo desenfreado penetrou todas as atividades,
estéticas, literárias e econômicas”, que o homem moderno já “não
tem ideal a que se possa referir numa sociedade que não sabe bem
para onde vai e nem o procura saber”, que a família “vai perdendo
sempre mais a autoridade sobre os filhos”, que importa “impor à
criança a obediência em vista de interesses superiores que ela
ainda não compreende”.244
Eis, portanto, na sua dolorosa realidade a crise moral que nos
assoberba: crise da moralidade e crise da moral; costumes
decadentes e idéias desorientadas; vontades corrompidas e
inteligências transviadas. A inteligência — esta faculdade divina
como a chamava Aristóteles, é o que há de mais sublime no
homem; é ela que marca a dignidade específica da nossa natureza;
é ela que nos permite assimilar, de uma maneira toda sua, a
realidade cognoscível; é dela que depende o valor dos nossos atos
humanos, como tais. Imaginai o que é a perturbação desta
faculdade superior no homem; que mal imenso! Se por instante, no
mundo dos corpos, cessasse a lei da atração que mantém os astros
na harmonia das suas órbitas, o caos que se seguiria do
entrechoque destas massas desorientadas dá-nos pálida idéia do
que é, no mundo espiritual, uma inteligência que desgarrou das leis
naturais da verdade que lhe regem a atividade cognoscitiva. É
perigoso ser salteado em alto mar pela violência de uma
tempestade; mas que esperança de salvação resta a uma nave, na
obscuridade revolta dos mares, sem leme, sem bússola? É esta
imagem, precisamente, a que representa com mais fidelidade a
anarquia intelectual que reina, fora da Igreja Católica, no domínio da
ciência que deve regular a vida.
O mal, nas suas primeiras raízes, vem de longe. Quando se
rompeu, no século XVI, a magnífica unidade espiritual da
cristandade, as seitas protestantes entraram a pulular com uma
fecundidade pasmosa e incoercível. A Bíblia, atirada às
intemperanças do livre exame, servia naturalmente de fundamento
às doutrinas mais extravagantes e contraditórias. No entanto,
enquanto discutiam as seitas, era mister viver e para isto regular os
costumes. Daí um primeiro esforço para tornar a moral
independente do dogma ou dos dogmas protestantes. Religião e
moral são coisas distintas; se a religião nos divide, una-nos a moral.
E para salvar a indispensável unidade da moral na multiplicidade
anárquica das dogmáticas protestantes surgiu o primeiro esforço de
fundar a ciência dos costumes nos princípios racionais da que no
século XVIII se chamou religião natural. A existência de Deus, a
liberdade, espiritualidade e imortalidade da alma, são verdades
acessíveis à razão, independentes de qualquer religião positiva,
patrimônio comum de toda a humanidade pensante. Eis aí o
fundamento inconcusso da ciência dos costumes. As religiões
positivas poderão oscilar, opor-se nas suas contínuas variações, a
moral ficará inabalavelmente imóvel sobre a rocha firme da filosofia.
E temos o primeiro passo na via das independências funestas:
a moral divorcia-se da religião; da Igreja, primeiro, em seguida, de
todo o cristianismo positivo.
Mas depois do século XVIII veio o século XIX; depois do
protestantismo e o racionalismo, o positivismo e o agnosticismo.
Infelizmente os “ismos” são quase sempre exageros mórbidos de
tendências ou exigências justas quando se conservam nos limites
da normalidade. Que a ciência dos costumes seja racional e
positiva, nada mais justo; racionalista ou positivista, porém, entra
logo em conflito com as exigências integrais da razão e com a
necessidade de explicar a totalidade dos fatos, isto é, trabalha para
a própria destruição na sua incoerência teórica e ineficácia prática.
As verdades sobre as quais o racionalismo julgara possível
fundamentar a unidade da moral, ao positivismo pareceram sujeitas
à discussão e fermento de discórdias eternas. A existência de Deus,
espiritualidade e imortalidade da alma não são fatos, não são objeto
de experiência sensível. Pouco importa que sejam verdades
racionais tão solidamente demonstradas como qualquer teorema de
geometria ou qualquer lei física. O positivismo arbitrária e
incoerentemente restringe ao lado sensível todo o domínio do
cognoscível humano, chumbando o homem à matéria e cortando-lhe
as asas para qualquer ascensão ideal. A moral, já antes libertada
dos vínculos que a prendiam à religião, cumpria ainda torná-la
independente da metafísica, isto é, de qualquer verdade supra-
sensível. Era mister reduzi-la a uma ciência positiva, experimental,
observar os fatos e daí inferir normas de procedimento. A tarefa era
mais difícil do que à primeira vista poderia parecer (veremos mais
tarde a sua impossibilidade radical). Os construtores da nova moral
apenas puseram mãos à empresa, em vez de edificar destruíram.
As morais entraram a pulular; moral positivista, moral evolucionista,
moral biológica, moral social, moral do prazer, moral da
solidariedade, moral das idéias-forças, morais sem obrigação nem
sanção, etc., etc. Cada um destes sistemas, subdivididos em
inúmeras variedades, não resistem à crítica da própria geração que
os viu nascer. O campo da moral está hoje juncado de destroços.
Multiplicaram-se as morais e a moral baixou. Os costumes em
franca decadência, as doutrinas em caótica anarquia. Já vimos a
dolorosa impressão que a sofística contemporânea produziu no
ânimo do racionalista Alfred Fouillée. Ouçamos outro adversário, o
pastor Wagner:
Os que olham para o futuro preocupam-se com a nossa situação moral. O
que vêem é a incerteza nos princípios diretores do procedimento: hesitação e
confusão no juízo e na ação […]. E esta desorientação observa-se não só no
vulgo, senão também — sintoma muito mais inquietador — naqueles cuja
situação designa para traçar diretivas. Nosso estado moral assemelha-se ao
de uma tropa em marcha que chega a uma região duvidosa. A hesitação
paira no ar. A tropa olha para os chefes, os chefes olham uns para os outros.
Erramos o caminho? Não seria melhor arrepiar carreira?245

Esta profunda anarquia na ciência normativa da vida tornou-se


ainda mais dolorosa e de conseqüências mais funestas com a
laicização recente das escolas, levada a efeito, num ou noutro país
e entre eles o Brasil. Se há domínio em que para a formação dos
costumes seja necessária uma doutrina verdadeira e uma disciplina
eficaz, é o domínio da pedagogia. Às gerações que se formam
importa ensinar-lhes à inteligência com segurança o código dos
seus deveres e subministrar-lhes à vontade os motivos capazes de
contrabalançarem a violência dos impulsos inferiores e das
tendências passionais. Mas a escola leiga, qual se instalou em
França e nós imitamos sensivelmente, abstém-se ou diz abster-se
de qualquer ensino religioso ou mesmo filosófico que envolva as
verdades fundamentais da vida religiosa. Como formar então as
novas gerações? Que moral ensinar-lhes? Problema de uma
gravidade excepcional, porque dele depende não só a salvação
eterna dos indivíduos, mas ainda a vida social dos povos. “Quando
se dissocia a moral”, escreveu Gustave Le Bon, “dissociam-se
igualmente todos os vínculos do edifício social”.246
Neste ponto, os fundadores da escola leiga procederam com
uma má- -fé inqualificável e os católicos com uma credulidade
infantil. Quando em 1881, numa sessão do Senado, o Duque de
Broglie perguntava a Jules Ferry, que moral se ensinaria nas nossas
escolas, o “fundador da escola leiga” respondeu-lhe serenamente:
“L’école n’a charge d’enseigner qu’une morale, à savoir la bonne
vieille morale de nos pères”.247
La bonne vieille morale de nos pères era a moral cristã, fundada
em Deus e na sanção definitiva da vida futura. No entanto quando
poucos dias depois Jules Simon pedia que se inscrevessem nos
programas os deveres para com Deus, Ferry opunha-se com todas
as suas forças. Jules Ferry que, cinco anos antes, em 1876, na sua
loja La Clémente Amitié, havia dito redondamente: “O instinto
secular da Maçonaria é que a moral social tem suas garantias, suas
raízes na consciência humana, que ela pode viver só, que ela pode
enfim atirar as suas muletas teológicas e marchar livremente à
conquista do mundo”.248 Infelizmente, o que Ferry chamava
ironicamente de “muleta teológica” era a alma da moral. Atiradas as
muletas, a moral não deu um passo; “la bonne vieille morale de nos
pères” volatiliza-se em menos de uma geração. Hoje nas escolas
leigas de França o que se ensina é a moral socialista,
revolucionária, comunista.
Eis a origem da chamada “moral leiga”: moral para ser ensinada
nas escolas leigas. Moral leiga, portanto, não vale o mesmo que
moral racional, isto é, moral baseada nas verdades racionais,
abstraindo ou prescindindo de uma revelação positiva. A existência
de uma moral racional, nesta acepção, nós católicos admitimos sem
nenhuma dificuldade. Já São Paulo falava na lei natural, escrita no
fundo das nossas consciências e acessível à certeza do nosso
conhecimento. Moral leiga é moral sem Deus, uma moral que afirma
a inutilidade desta idéia. Como vedes, a questão é grave, como as
que mais o podem ser. Equivale a esta outra: “Deve-se desterrar a
Deus da moral, isto é, da consciência humana? A humanidade é
soberanamente independente, não precisa de Deus para realizar os
seus destinos?”.
Eis o que nos propomos tratar com a brevidade condensada
que nos impõe o pequeno número de duas ou três palestras que
ainda nos faltam. Não faremos um curso de moral, não refutaremos,
por miúdo, as diferentes formas de moral leiga ou científica. Limitar-
nos-emos ao que os alemães chamam uma crítica principal,
principiell — … Examinaremos as exigências racionais da ciência
dos costumes e a incapacidade radical, em que se acha qualquer
moral leiga, de as satisfazer.
Antes de tudo, é impossível tratar o problema moral sem haver
previamente resolvido a questão dos destinos do homem. Esta
proposição tem a evidência analítica de um axioma. Senão vede.
O fim da moral é orientar a nossa atividade humana, como tal;
dizer-nos o bem e o mal, o que importa fazer e o que cumpre evitar,
no exercício multiforme da nossa atividade individual, doméstica e
social, numa palavra, imprimir à nossa vida uma direção inteligente,
e direção inteligente por dizer que nos leve à perfeição de nossa
natureza humana.
Ora, a perfeição de um ser é essencialmente condicionada pelo
seu fim. Se eu vos mostro uma máquina e vos pergunto se esta
máquina é perfeita, dir-me-eis logo “que máquina é, para que serve,
qual o seu fim?”. E só do conhecimento prévio deste fim lhe
podereis aquilatar a perfeição. Relógio… uma máquina de escrever,
etc.
Ora, todo ser, tanto artificial como natural, tem um fim; ser e
agir, dizia Leibniz, são idênticos. A ação é a florescência do ser, é o
próprio ser que se manifesta e se realiza plenamente. Um ser que
nada fizesse, seria ininteligível, não poderia existir. Aquilo que um
ser faz, o que ele deve realizar é o seu fim; e tanto mais perfeito
será ele, quanto mais acabadamente o realizar.
Ora, no mundo inorgânico, a finalidade de cada ser é
assegurada pelo determinismo das leis físicas que lhe regulam a
atividade. Os astros obedecem à lei da atração universal; cada
molécula química tem a sua função determinada pelas leis das suas
afinidades.
No mundo biológico, botânico ou animal, a atividade complica-
se, mas ainda assim cada ser vivo realiza o seu tipo específico, a
sua finalidade, sob o império das leis fisiológicas e psicológicas
inferiores. Cada planta assimila e elabora os elementos necessários
para tecer a sua folhagem, colorir as suas corolas, maturar os seus
frutos. Cada animal tem, no complexo dos seus instintos admiráveis,
as leis que espontaneamente mas necessariamente lhe asseguram
o desenvolvimento e conservação de sua própria natureza.
O homem é corpo, é planta, é animal; por todos estes aspectos
da sua natureza está sujeito às leis físicas, fisiológicas e instintivas.
A execução destas leis furta-se parcialmente ao domínio direto da
nossa vontade, para ser guiada pelo determinismo que rege o
mundo da matéria. Mas nada disto nos constitui na dignidade
específica de homens. Somos homens porque somos inteligentes, e
porque somos inteligentes vemos o fim dos nossos atos, e
adaptamos os meios ao seu conseguimento. A finalidade que os
seres inferiores atingem inconscientemente nós devemos realizá-la
conscientemente. A seta fere o alvo sem o saber; o atirador que a
despediu viu a meta, calculou a distância e deu-lhe o impulso
necessário para atingi-la. Assim, impelidos pela sua própria
natureza, os planetas gravitam em torno dos seus centros, os
germes evolvem em seus tipos específicos; só o homem realiza o
seu fim conscientemente, conhecendo-o e orientando-se para ele. E
eis aqui a função da moral: imprimir à nossa atividade
especificamente humana — inteligente e livre, uma direção racional
— indicar-nos entre os diferentes atos que nos são possíveis quais
os que realizam nossa finalidade, quais os que a frustram; os que
nos levam à perfeição ou à ruína da nossa natureza.
Estabelecer esta norma supõe o conhecimento do fim que deve
realizar a nossa natureza, o conhecimento dos nossos destinos. A
lei moral é a lei do homem; impossível conhecer a lei da atividade
do homem, sem saber o que ele é e qual o fim de sua atividade.
Importa, portanto, conhecer o fim e precisamente o fim último
do homem. Porque há fim e fim, e entre eles existe uma
subordinação ou hierarquia essencial. Há o fim imediato que se visa
numa ação. Um tiro tem por fim matar a caça…
Há os fins mediatos ou intermediários que constituem o alvo de
uma série de ações. A este fim subordinam-se outros fins que ele
domina e regula. Quero ser bom pianista, não é desiderato que se
alcance num dia. Cumpre-me começar estudando música, as notas,
o seu valor, a sua representação gráfica, as claves, os sustenidos e
os bemóis: tudo isto para ler a composição musical. Cumpre-me em
seguida adquirir a segurança e perfeição da técnica, “agilidade e
limpidez nas escalas, igualdade nos dedos, independência e
flexibilidade das mãos, harpejos seguros, viveza nos trinados, jogo
firme de oitavas, excelente pedalar”.249 Cumpre-me, por último,
infundir na perfeição do mecanismo técnico uma alma de artista, a
interpretação do sentimento, a expressão artística do ideal. Para
cada um destes fins subalternos haverá meios próprios e imediatos,
como conseguir cada um deles (fins subalternos) é meio
imprescindível para realizar o ideal que me propus de ser bom
pianista. Assim, na sua elevação e distância, este fim domina,
regula, legisla uma atividade longa e complexa.
Acima destes fins intermediários, eleva-se, porém, absoluto,
incondicionado, subordinando a si todos os outros fins sem se
subordinar a nenhum deles, o fim último do homem. O que ele deve
realizar, não para ser bom pianista ou bom professor, bom médico
ou bom poeta, mas simplesmente para ser bom homem, para atingir
a perfeição essencial de sua natureza. Atingi-lo para ele é tudo,
porque é a sua razão de ser, é a sua perfeição, é a sua felicidade;
não o atingir, é dever falido irremediavelmente na vida; ser inútil, ser
infeliz. O fabricante quebra inexoravelmente todos os termômetros
que, por defeito de calibramento, não podem marcar com precisão
os graus de temperatura. Não realiza o seu fim? artefato inútil;
homem que não realizou o seu fim de homem, ser inútil. Mas o ser
inútil, quando é consciente, é o mais desgraçado dos seres; é, sem
razão de ser, é, sem realizar nenhum ideal; é, e a sua existência
cifra-se na consciência dolorosa de uma desordem irreparável.
A natureza mesma das coisas exige, portanto, uma solução
determinada — qualquer que ela seja — da questão dos nossos
destinos. Desta solução — deste fim último, depende a lei toda da
nossa atividade; depende, notai bem, a lei que vai reger ainda os
fins particulares, porque todos eles se acham essencialmente
subordinados ao fim último, e só serão dignos do homem enquanto
não se opuserem à realização do seu ideal definitivo. Mais um
exemplo para esclarecer esta eficácia transcendente do fim último, a
soberania indeclinável que exerce sobre todos os fins particulares e
portanto sobre todas as ações que os realizam. Tomo um
transatlântico para ir à Europa; eis o fim da minha viagem. Na
grande cidade flutuante há um mundo de empregados e uma
harmonia complexa de atividades; são os pilotos e foguistas que
dirigem o movimento das máquinas; são os camareiros que
atendem ao serviço da rouparia e dos camarotes; são os
cozinheiros e copeiros que se desempenham do serviço da mesa;
são os músicos, os artistas que se encarregam da diversão dos
passageiros; e para cada uma destas finalidades, no mesmo
paquete, assinalam-se os seus lugares próprios — oficinas,
depósitos, camarotes, salas, salões, etc., etc. Tudo, porém, traçado
e executado em harmonia com as exigências do fim último do navio:
tornar a travessia mais rápida, mais cômoda, mas agradável.
Imaginai um comandante que para melhor divertir os seus
passageiros atirasse as caldeiras ao mar, para converter as salas de
máquinas numa vasta piscina de natação, num flutuante agora
imobilizado nas águas. Seria um tollé geral, um protesto unânime de
todos os viajantes. A ação inconsiderada do comandante frustraria o
fim último do navio — que passaria a ser tudo o que quiserem —
mas cessaria de ser meio de transporte.
Os destinos definitivos de um ser dominam inevitavelmente a
sua atividade, e toda a ação que viesse contrariá-la seria irregular,
desordenada, irracional. Impossível, pois, traçar uma norma à
atividade do homem sem lhe conhecer a finalidade última. Qualquer
que seja a solução, é preciso conhecê-la e levá-la em linhas de
conta. Ou Deus existe e tendemos para uma vida imortal — e a luz
desta verdade necessariamente deve projetar os seus reflexos
sobre toda a nossa peregrinação terrestre — ou Deus não existe e a
imortalidade é um sonho, e então o problema da nossa felicidade
deve resolver-se todo e inelutavelmente durante a vida presente.
Qualquer das duas alternativas repercute sobre todas as
particularidades como sobre o sentido geral da existência. No
primeiro caso, tudo aqui é relativo e o Absoluto está além,
valorizando tudo o que d’Ele depende pelas suas relações com Ele;
na segunda hipótese, a vida atual adquire um valor absoluto e um
dos bens terrenos — prazer, glória — progresso social — impõe-se-
nos à vontade como o ideal único da nossa felicidade — e tudo o
mais será meio lícito para o atingirmos. Impossível prescindir,
impossível tentar preterir com o descaso uma questão que se impõe
inelutável a cada momento, necessária como necessidade de agir.
Toda ação consciente — dirigida pela inteligência, toda ação
humana implica pela sua inseparável finalidade uma posição
definida na questão dos nossos destinos, como o navio em cada um
dos seus movimentos aproxima-se ou afasta-se do seu termo. Por
outra, Deus não é um dispensável na vida do homem — Deus é o
eterno Imprescindível. Não podemos passar pela existência como
se Ele não existisse. Ou lhe reconhecemos o seu caráter absoluto
— e a nossa situação essencial de criatura, isto é, de seres
dependentes — e este reconhecimento implica não só deveres
definidos e impreteríveis para com Ele, mas uma atitude profana
que embebe e pervade toda a nossa orientação moral; ou não
reconhecemos esta dependência essencial com todos os seus
corolários inevitáveis e esta atitude envolve a negação completa de
Deus, pela negação do mais essencial dos seus atributos,
identificado com o que há de mais divino em Deus. Não há, pois,
moral leiga porque não há moral neutra; não há possibilidade de
organizar a nossa atividade moral como se Deus não existira. A
moral ou se funda explicitamente em Deus e é moral, ou é atéia e
cessa de ser moral. Nós o veremos amplamente estudando em
outras palestras o problema do dever e da sanção da ordem moral.
Mas é coisa evidente e o confessam os próprios ateus. Félix Le
Dantec, que escreveu um livro sobre o ateísmo disse-o
explicitamente: “Il n’y a pas d’athée parfait”, e é uma felicidade,
porque “une société dont les membres seraient de purs athées,
allant jusqu’au bout des conclusions de leur athéisme, finirait par
une epidémie de suicides”.250
Mas quase sempre a incoerência dos nossos adversários não
tem a coragem de ir até ao termo lógico das conclusões do seu
ateísmo, ou a sua insinceridade não tem o desassombro franco de
professar desveladamente o ateísmo. Daí as denominações veladas
e insidiosas de moral leiga, de moral científica, de moral
independente a disfarçar às inteligências menos clarividentes as
negações brutas de todas as grandes verdades sobre as quais em
todos os tempos fundou a humanidade a possibilidade da ordem
moral.
Aqui, neste campo moral e pedagógico, mais talvez do que em
qualquer outro, ressalta o caráter irredutivelmente anticristão do
laicismo. E não há, talvez para os católicos cultos, para o escol dos
que dirigem e influem na nossa ação social, necessidade mais
urgente que a de tomarem consciência deste antagonismo profundo.
O laicismo é a forma contemporânea da anti-Igreja; é o nome
comum sob o qual se arregimentam todas as forças contra o
cristianismo. Neste imenso duelo que domina a história
contemporânea, no que ela tem de mais vital e humano, temos a
continuação da imensa luta que enche a história de todos os tempos
entre as duas cidades, duas crenças, dois amores, dois estandartes
— o do Bem e o do Mal. Tenhamos ao menos a consciência de
nossas posições. Sejamos perspicazes — e não vítimas de uma
ingenuidade pueril.
Esta luta inevitável — que acabamos de exprimir nos termos
quase belicosos — é no entanto filha da caridade mais
desinteressada e mais sublime. Se a Igreja não passara de um
grupo de filósofos que se comprazem em fazer admirar a beleza
arquitetônica dos seus sistemas, nesta grande desorientação
contemporânea — feita de decadência de costumes e de
entrechoques contraditórios de doutrinas efêmeras —; se se
recolhera em si no esplêndido isolamento de uma torre de marfim e
daí contemplara a dissolução lenta das sociedades à espera que os
seus contraditares se pusessem de acordo num sistema a opor ao
seu, seria um triunfo magnífico mas um triunfo orgulhoso. A Igreja é
mãe das almas; como Cristo ela tem piedade das “turbas” incapazes
de analisar os sistemas, mas terríveis em traduzir em fatos as suas
conseqüências lógicas. E, por isso, a Igreja luta, luta para defender
a moral, luta para salvar a dignidade humana, a estabilidade e
grandeza dos povos, luta como luta o Bem contra o Mal, para
vencê-lo e, fazendo-o bom, fazê-lo feliz. Reconhecem-no os nossos
próprios adversários, quando, não prestando ouvidos aos
preconceitos sistemáticos, deixam falar na razão sincera a voz da
natureza: “Saibamos ver as coisas como elas são”, escreveu
Scherer em 1884: “a verdadeira moral precisa do Absoluto: só em
Deus ela encontra o seu ponto de apoio. A consciência é como o
coração: precisa de um além. O dever não é nada se não é sublime
e a vida se torna frívola se não implica relações eternas”.251
Eis o grande benefício da moral verdadeira; salvar a nossa vida
da frivolidade, engrandecer a pequenina trama das nossas ações
que fogem no tempo com o infinito das suas repercussões eternas,
numa palavra, tornar a nossa vida digna de ser vivida, porque digna
do homem e digna de Deus.
A. M. D. G.

20 de setembro de 1929.

239 R. R. A., t. II, 1906, p. 97.


240 Le moralisme de Kant et l’ammralisme contemporain, Paris, Alcan, 1904.
241 La France au point de vue moral, Paris, 1911, p. 23.
242 Morale sociale, p. 102.
243 Idem, p. 103.
244 Civ. Catt., 1927, I, p. 51.
245 Wagner, em Morale sociale, pp. 65–66. Apud Chénon, p. 383.
246 Psychologie de l’éducation, p. 266.
247 [À escola não cabe ensinar senão uma única moral, a saber, a boa e velha
moral de nossos pais — NE] Cf. Chénon, p. 379.
248 Chénon, p. 384.
249 Aloísio de Castro, A expressão sentimental na música de Chopin, p. 25.
250 [não existe ateu perfeito […] uma sociedade cujos membros fossem ateus
puros, levando a cabo as conclusões de seu ateísmo, terminaria numa epidemia
de suicídios — NE] L’athéisme, Paris, Flammarion, pp. 93–94.
251 Baunard, Le vieillard, p. 427.
Recapitulação.
Não é possível estabelecer a diferença entre o bem e o mal
sem resolver a questão dos destinos do homem.
A moral leiga não explica o dever.

Análise da noção de dever: é um imperativo categórico.

As morais leigas pretendem exclusivamente basear-se no exame


dos fatos (trilogia sociológica).
Ora, o que é não explica o que deve ser.

O que se pode responder a um laicista.

Não há, pois, dever — reconhecem-no os pensadores laicistas.

Guyau, Fouillée, Ferrière.


Explicação e fundamento do dever.

Como se conhece a moral. (Falsa acusação de extrinsecismo).


Como se justifica racionalmente o caráter obrigatório do dever.
Grandeza da nossa vida moral.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 16/10/1929.


Moral leiga
II

A MORAL E O DEVER

C UMPRIR o seu dever, cumprir todo o seu dever, cumprir sempre


o seu dever, levando, se for mister, a dedicação da vontade até
as alturas magníficas do heroísmo — eis a aspiração de toda alma
nobre.
Iluminar a inteligência sobre os princípios que devem dirigir a
nossa atividade humana: objeto da moral-ciência; subministrar à
nossa vontade estímulos eficazes à fidelidade constante na prática
do bem — eis o objeto da moral-arte.
A moral — de mores = costumes, ou, em grego, a ética, de
ethos = costumes — é por definição etimológica e real a ciência da
ação, a ciência do governo da vida.
Pretender traçar à vida humana as normas de sua atividade,
prescindindo de qualquer verdade supra-sensível: Deus e
imortalidade, baseando-se exclusivamente no empirismo da
observação sensível dos fatos, é a utopia de certos sistemas
modernos da que se vem chamando moral independente, moral
científica, moral leiga. Leiga — sem nenhuma relação com as
verdades que são o fundamento comum de toda e qualquer vida
religiosa; independente não só dos dogmas de uma fé positiva mas
ainda dos princípios racionais de qualquer espiritualismo filosófico;
científica — limitada aos recursos exclusivos dos métodos indutivos
em uso contínuo nas ciências positivas ou experimentais.
Evidenciar o que há de quimérico — com imenso prejuízo para
a perfeição individual das almas e para a vida social dos povos —
nesta empresa de Sísifo do positivismo e do laicismo
contemporâneo — eis o objetivo que levamos em mira nestas
nossas palestras, forçadamente resumidas e restritas à
generalidade dos grandes princípios.
A base primordial da ciência dos costumes é a distinção e a
determinação do bem e do mal. Bem é o que se deve fazer; mal, o
que importa evitar. Sem estabelecer esta diferença fundamental e
sem a justificar aos olhos da razão, não há, não pode haver ciência
moral.
Ora, os conceitos de bem e de mal, por sua própria natureza,
se relacionam essencialmente com a idéia de fim. Bom é para um
ser o que convém à sua natureza, à realização dos seus destinos;
mal o que impede, o que frustra a sua razão de ser, a sua finalidade.
É bom o relógio que indica as horas com exatidão, a navalha que
corta com facilidade e delicadeza, o navio que transporta com
segurança, rapidez e comodidade. É mau o correio que extravia a
correspondência ou lhe retarda a distribuição, o tubo de caucho que
perdeu a sua elasticidade, o sistema nervoso incapaz de preencher
as suas funções essenciais na nossa vida orgânica ou psíquica.
Numa palavra, o fim último de um ser é a razão de toda a sua
atividade, o critério que regula e dirige todos os seus atos. Para
determinar racionalmente o que é bom, o que é mau na atividade
humana, importa conhecer qual a perfeição que a nossa natureza
humana deve atingir, quais os destinos supremos que são a razão
derradeira da nossa existência.
Há, para nós, uma vida além-túmulo, uma vida definitiva, na
qual nos encontraremos em face do Infinito que nos criou e de quem
inelutavelmente dependemos? Então essa verdade projeta os
esplendores de suas luzes eternas sobre a fugacidade de todos os
nossos atos terrenos. Esta vida é um relativo essencialmente
ordenado para um absoluto: é uma peregrinação para uma pátria de
imóvel e imperitura grandeza,252 é uma aurora magnífica que
anuncia e prepara os esplendores meridianos de um dia sem ocaso.
O valor moral de cada um dos nossos atos é a sua relação de meio
ou de obstáculo ao conseguimento deste estado definitivo de
perfeição e felicidade da nossa natureza. Este termo único e imóvel
será o princípio unificador da multiplicidade dispersiva de todas as
ações, grandes ou pequenas, que tecem a trama de cada uma das
nossas existências; a esperança de uma felicidade inamissível será
a fonte de energias inexauríveis nas vicissitudes da nossa vida
semeada de dificuldades e de sofrimentos. Quando Dante,
inspirado, se lançou ao imenso trabalho de composição da sua
Divina Comédia, fulgia-lhe ante o olhar de artista o ideal estético de
cantar a dor eterna e o eterno gáudio do homem. E este ideal
explica, regula, anima tanto a estrutura majestosa das grandes
linhas como os surtos líricos dos pequeninos episódios.
Se lhe ignoramos os destinos, como poderemos cantar o
grande poema da nossa vida, cujas estrofes são desigualmente
inspiradas pela tristeza e pela alegria?
Se, pelo contrário, a vida futura é um sonho que embala com as
suas ilusões toda a humanidade desde o seu berço, se o ciclo da
nossa existência se fecha inexoravelmente com o último respiro,
então a vida terrena assume outro aspecto radicalmente diverso e
os nossos atos antes relativos a um Absoluto eterno, passam a
referir-se a uma finalidade temporal, a um bem sensível, relativo
também ele às preferências de cada filósofo e praticamente de cada
homem.
Numa ou noutra hipótese, o problema dos destinos do homem
impõe-se à moral como uma necessidade lógica indeclinável. À
questão da existência de Deus e da imortalidade da alma importa
responder sim ou não, porque deste sim ou deste não depende todo
o valor da vida, todo o critério para a distinção do bem e do mal,
toda a norma que aspira a dirigir racionalmente o nosso proceder.
Moral leiga — que pretende abstrair ou prescindir destas verdades
indeclináveis, é um contra-senso lógico e impossibilidade prática.
A moral, ou se funda em Deus, e é moral, ou prescinde de Deus
e é então atéia e materialista, isto é, não é moral.
Eis a conclusão a que havíamos chegado na nossa última
reunião. Reatamos assim o fio partido das nossas idéias.
A moral, se atéia ou materialista, não é moral. Não é moral,
porque incapaz de dar um fundamento lógico à idéia de dever, de
explicar racionalmente a noção de obrigação moral.
Analisemos esta noção fundamental do dever; sondemos para
isto a nossa consciência: esta observação psicológica é,
necessariamente, o ponto de partida da moral. E concretizemos a
observação num exemplo para daí inferirmos os atributos ou
qualidades do dever.
Um amigo, antes de partir, confia-me um depósito para pagar-
lhe uma dívida a um terceiro. Mal sai de casa, fulmina-o um ataque
de apoplexia. O depósito já está nas minhas mãos; ninguém o sabe.
Se eu o conservo poderei melhorar a minha situação social, passar
uma vida mais folgada, sem perder um ponto na estima de que me
cercam os meus concidadãos, sem mesmo causar grave prejuízo ao
credor, homem abastado, a quem sorriu sempre a fortuna. Seguir,
porém, este alvitre fora rebaixar-me na minha própria estima. Uma
voz interior me diz: “não podes ficar com o que não é teu”; a um
sentimento de indescritível mal-estar acompanharia a resolução
inspirada pelo egoísmo do meu interesse, como pelo contrário um
parabém profundo, uma elevação nobre na minha própria estima
sancionaria a ação desinteressada que executasse à risca as
disposições do meu amigo e coroasse com os fatos a fidelidade da
palavra empenhada.
Neste fato concreto temos todos os elementos para o estudo da
consciência moral — para o conhecimento do dever. Muitas vezes
na minha vida encontro-me ante a possibilidade de dois atos.
Internamente, na complexidade de fenômenos psíquicos que se
sucedem então eu posso distinguir:
1º. Atos da inteligência, juízos que antes pronunciam o valor do
ato: este ato é bom; deve ser feito; este ato é mau; deve evitar-se;
depois de feita a ação, uma sentença interior pronuncia o seu
veredito no tribunal da consciência, em harmonia com os juízos
anteriores: fizeste bem; procedeste mal.
2º. Estes atos de ordem cognoscitiva são acompanhados de
outros de ordem afetiva, de sentimentos; antes do ato, sentimento
de aversão do que é mau, de atração para o que é bom — depois
do ato, sentimento de alegria, paz, quietude se procedi bem, de
desassossego, inquietude, remorso se procedi contra as intimações
de minha consciência.
Esta voz que fala assim tão alto no interior de cada homem que
vem a este mundo é a voz do dever; seu acento é inconfundível, é o
acento de um legislador soberano e de um juiz incorruptível.
Ela fala em imperativo: faze o bem; evita o mal. O que não se
impõe, não é dever. Mesmo diante de um bem — se não é
obrigatório — outra é a indicação da consciência: podes dar, se
quiseres, todos os teus bens aos pobres. O que não é teu deves
restituir. Antes um podes; agora um deves; antes um conselho,
agora uma ordem; antes uma alternativa livre; agora uma
determinação exclusiva. Quando agimos por prazer, sentimos o
poder sedutor de uma atração; quando agimos por interesse, a
sugestão de um conselho; só um dever faz ressoar nas
profundidades da alma a força incontrastável de um império. O
dever é obrigatório e a obrigação é uma necessidade moral. Todo
agente é necessitado quando se acha exclusivamente determinado
a um só efeito. No mundo inferior ao homem a necessidade é física,
isto é, absolutamente imposta ao agente que a ela não se pode
subtrair; chegando a 100º a água entra em ebulição; explodindo a
pólvora, a bala parte. No mundo humano, a necessidade é moral,
isto é, impõe um efeito, mas deixa ao agente a possibilidade física
de o não produzir. Devo pagar o que devo, mas posso
materialmente não pagar. A lei física não pode ser violada, a lei
moral pode; lá não há liberdade, aqui sim. A determinação física é
uma barreira de aço — que não pode ser transposta; a
determinação moral é uma barreira de éter, que separa a luz das
trevas, podeis atravessá-la sem sentir a oposição de obstáculos
materiais, mas lá ficará a linha luminosa a assinalar
indestrutivelmente a fronteira que separa o bem do mal. O agente
físico, não tem merecimento quando age segundo a sua natureza, o
homem é digno de louvor quando faz o seu dever. Para isto nos foi
dado o grande dom da liberdade; para atingirmos o nosso fim de
uma maneira digna de seres racionais.
A lei moral, o dever é pois um imperativo — mais; é um
imperativo absoluto — categórico como lhe chamou Kant. Há outros
imperativos, mas hipotéticos, condicionados — todos aqueles que
exprimem uma relação de causalidade entre um antecedente e um
conseqüente livre. Faze esta operação — se queres recuperar a
saúde. Consagra cinco horas diárias ao estudo do piano, se queres
chegar a ser bom artista. Estes imperativos são condicionados
porque unem um meio a um fim de apetibilidade livre. O dever não é
condicionado, não depende do meu interesse, não depende do
prazer. Não caluniar, ainda que a calúnia possa servir aos teus
interesses ou causar-te o prazer de uma vingança. Faze o bem,
porque é bem. O bem que nos impõe o dever não é o bem útil —
que serve aos nossos interesses —, não é o bem agradável, que
nos traz um prazer — é o honesto — o bem em si, o bem absoluto,
independente de minhas vantagens, o bem que se impõe sem
condições nem restrições.
Eis a lei majestosa do dever — lei, obrigação absoluta — tal
qual se revela à observação interior, a lei do homem, digna de sua
grandeza e indispensável à existência e grandeza social dos povos.
Toda tentativa que fracassar na explicação racional deste atributo,
que não conseguir dar ao dever uma base sólida, condenará para
sempre um sistema ético à esterilidade e à morte.
Ora, a aspiração de todas as morais independentes é fundar a
regra do procedimento sobre os fatos. As teorias hoje já não se
contam; são inumeráveis; cada laicista-pensador começa por pesar
os sistemas dos que o precederam e achá-los leves; começa
destruindo para depois elevar a sua construção tão efêmera e
ineficaz como as precedentes. Um ponto, porém, há comum a todos
estes esforços e que constitui a essência mesma ou a razão de ser
da moral leiga: a aspiração de transformar a moral numa ciência
positiva, experimental, de dar-lhe como fundamento exclusivo os
fatos. Eliminemos tudo o que é transcendente, tudo o que se acha
acima da nossa experiência sensível e imediata; são abstrações
metafísicas. Como a física e a química, a moral deve descansar
unicamente sobre a rocha dura das realidades tangíveis. E cada
qual procura na ciência de sua preferência a solidez dos alicerces
das novas construções.
O biólogo diz: estudemos a biologia, a biologia humana, a
biologia comparada; os fatos biológicos examinados com o rigor dos
métodos experimentais nos levam ao conhecimento de um certo
número de leis — leis que têm por fim a conservação e o
desenvolvimento dos indivíduos, leis que presidem à propagação e
melhoramento da espécie. Obedecer a estas leis é para o homem
um dever e é a ciência da vida quem lho revela; aí está uma moral
positiva, científica, universal. Assim falam os partidários da moral
biológica, nome genérico que cobre grande número de espécies e
variedades inspiradas nas inúmeras modalidades de evolucionismo,
desde o de Darwin e Spencer até o de Fouillée.
O sociólogo diz: o homem é antes de tudo um ser social; na
sociedade nasce, vive e morre, da sociedade recebe todos os bens;
para a sociedade deve viver. O estudo das revelações sociais —
tudo o que condiciona a existência, a conservação, a atividade, o
progresso desta grande coletividade de uma pátria, do gênero
humano — se impõe à consciência com a necessidade de um dever.
O altruísmo, a solidariedade, a dedicação — outras tantas normas
impostas às vontades individuais como condição essencial ao bem
comum. E aí temos uma moral elevada, nobre, baseada sobre o
fundamento positivo do estudo da realidade social. É a moral
sociológica — também ela a apresentar as tonalidades de mil
cambiantes diversos; mais teórica e imperativa em Auguste Comte;
mais inclinada à simples observação dos fatos e ao registro da
evolução histórica dos costumes humanos em Durkheim e
principalmente em Lévy-Bruhl.
Expor por miúdo cada um destes sistemas — e fazer-lhes a
crítica minuciosa pondo em relevo todas as lacunas de informação
histórica na exposição dos fatos, todo o apriorismo metafísico na
sua sistematização arbitrária, todas as deficiências metodológicas a
viciarem de antemão as conclusões fora trabalho muito instrutivo
mas inevitavelmente longo, de muito superior às nossas
disponibilidades de tempo. Limitar-me-ei ao que os alemães
chamam uma crítica de princípio — principiell — restrita ainda assim
ao nosso tema, a explicação do dever — da idéia de obrigação —
de imperativo categórico.
Querer explicar o dever com o único auxílio dos fatos é uma
quimera, uma impossibilidade lógica absoluta. O fato nos diz o que é
— não o que deve ser. As leis científicas — expressão generalizada
dos fatos, nos manifestam a realidade tal qual é — sem dizer-nos
coisa alguma sobre o que deve ser. Na expressão feliz de Henri
Poincaré, as outras ciências falam em indicativo — a moral em
imperativo. E não há lógica que seja capaz — ficando só no terreno
positivo dos fatos — de transformar um indicativo em imperativo. E
aí já vedes a impossibilidade de medir com a mesma craveira a
moral e as ciências positivas. Estas, na sua finalidade especulativa,
não aspiram senão a conhecer os fatos e as leis que regem; na sua
finalidade prática a pôr por este meio as energias da natureza a
serviço do homem; por isto, contentam-se com observar o que é. A
moral visa mais alto; sua razão de ser é dirigir a atividade e a vida
do homem; por isto importa-lhe saber, não só o que é, mas
principalmente o que deve ser. A realidade infra-humana submetida
à observação das ciências positivas é regida pela necessidade
física, pelo determinismo de leis inquebrantáveis. Uma vez que
verifique que a água pura à pressão normal de 76 cm de Hg entra
em ebulição a 100º, estou certo que este fato é e será sempre
assim. Não há aqui lugar a dever. A água, nas mesmas condições,
ferverá sempre a 100º, porque não está em seu poder variar a seu
talante a temperatura em que entra em ebulição. A realidade à qual
a ética aplica as suas leis é o homem, e precisamente à atividade
livre do homem, a esta vontade que, nas mesmas condições, pode
tomar por um caminho ou por outro, restituir-lhe o depósito ou
conservá-lo em seu poder, imprimir a toda a vida de um homem uma
orientação que o leva aos cimos da virtude ou às degradações do
vício. Esta vontade só poderá ser dirigida por uma necessidade
moral — por uma obrigação. E esta obrigação imposta a um ser
inteligente deve ser racional, a razão deve sentir-se logicamente
ligada, inevitavelmente submetida ao dever.
Dirá um médico a um alcoólico: Meu caro, a temperança é a
condição de uma vida longa; o excesso do álcool é punido com
doenças dolorosas que arruínam para sempre o indivíduo e vão
tristemente repercutir pela sua posteridade a fora. São leis
biológicas, cientificamente incontestadas. Bem, retrucará o outro,
isto é uma necessidade hipotética: se quero viver muito, devo ser
temperante. Prefiro gozar agora dos prazeres do copo; depois…
veremos. Quando a vida já não tiver alegrias para mim,
queimaremos com uma bala o cérebro já inútil. Mas, meu caro
amigo, o senhor não é só, vive na sociedade, a ela deve os frutos de
sua atividade, aos seus descendentes uma vida sadia para que eles
não venham a ser de peso aos que depois de nós viverem. Sejamos
racionais; esta é a ordem das coisas; a ordem biológica, a origem
social, e é próprio de seres racionais respeitar a ordem que lhes
revela a razão no estudo das relações essenciais entre os seres.
Não, retrucará o outro, vós não sois coerentes, não sabeis o
que estais dizendo, falais como os que crêem em Deus e na ética
tradicional nele fundada. Apelais para a ordem. Com que direito?
Sabeis o que é a ordem? Ordem é a finalidade, é a disposição dos
meios para o conseguimento de um fim, ordem é a manifestação
inconfundível da inteligência. Em ordem do universo, em ordem dos
seres, física, biológica ou social, só tem direito de falar quem vê no
cosmos a manifestação de uma Inteligência criadora, de uma
sabedoria ordenadora. Vós ignorais tudo isto. Para vós, o
espetáculo atual do universo é o resultado fortuito de uma evolução
cega, e desta evolução nós somos os produtos mais aperfeiçoados.
Por que nos havemos de sujeitar a este jogo de leis inferiores? Por
que não havemos de tentar subtrair-nos a elas, senão por outro
motivo, ao menos pela afirmação magnífica da nossa
independência? Aludistes a esta solidariedade que prende uns aos
outros numa trama complicada de ações e reações recíprocas os
indivíduos de uma sociedade. É exato. Mas esta solidariedade é um
fato — que eu e vós observamos —; por que pretendeis erigi-lo em
direito? Com que título? Eu prefiro considerá-la como uma
necessidade penosa da qual devemos esforçar-nos por libertarmo-
nos. Eu prefiro ver a grandeza da minha vida num esforço para
emancipar-me, para ver-me livre de todas as peias, sacudir o jugo
de todas as escravidões. Se a solidariedade, com tudo o que lhe
implica de dedicação, sacrifício, benevolência, simpatia, é uma
necessidade fatal, ela se realizará sem o meu concurso — apesar
de todas as minhas oposições. Se ela requer o concurso livre de
todos, é preciso que todos sejam obrigados. Ora, na vossa
sociologia positiva vós conheceis a solidariedade como um fato, um
complexo de relações de dependência recíproca. Ora, um fato é um
fato — e enquanto não saís do vosso positivismo ele não vos dirá
mais do que isto; em si nenhum fato encerra a idéia de obrigação ou
de deveres. Insensivelmente vós confundis duas espécies de leis,
totalmente diversas. Há a lei-fato, que se contenta de registrar o que
se passa, na realidade, em qualquer ordem — física, biológica ou
social. Assim as leis estatísticas se contentam de exprimir em
números ou fórmulas a marcha dos acontecimentos ou dos
costumes de uma coletividade, sem pretensão nenhuma a fundar
um direito. Enquanto não saís dos vossos métodos positivos,
indutivos, experimentais, não podeis falar de outra espécie de lei. A
lei-direito que pretende não resumir a ordem em que elas se devem
passar — a lei que impõe deveres e traça normas à vida — essa,
pela sua mesma natureza transcende o domínio da ciência
experimental. Falar em deveres, obrigações, ideal da vida — com os
recursos exclusivos da moral positiva — é uma contradição.
Obrigação envolve no seu conceito a idéia de uma autoridade, de
uma vontade superior ao homem. O homem, com propriedade, não
pode obrigar-se a si mesmo. Do contrário, com a mesma autoridade
com que ele se obriga pode desobrigar-se, e quem pode obrigar-se
e desobrigar-se com igual autoridade, de fato não está obrigado.
Todo este raciocínio, no ponto de vista lógico, é irrepreensível e
inexpugnável. Se contra ele se revolta a nossa consciência e a
consciência mesma dos nossos adversários é porque mais pode
sobre eles a natureza bem formada do que a incoerência dos seus
sistemas. Este protesto depõe em favor da sua consciência, mas em
desabono de sua lógica. Aonde leva a força desta lógica vêem-no
os mais perspicazes e profundos entre os laicistas. Enquanto a
turbamulta dos vulgarizadores continua ainda a falar de justiça, de
dever, de consciência — porque estas palavras magníficas
despertam sempre entusiasmos generosos nas almas bem
formadas — os mestres proclamam coerentemente a incapacidade
insanável em que se acha a nova moral de dar um fundamento
racional ao dever. Guyau escreveu há tempos um livro que teve um
quarto de hora de celebridade intitulado Ensaio de uma moral sem
obrigação nem sanção. Alfred Fouillée, que escreveu uma crítica
fina de todos os sistemas contemporâneos de moral, acaba também
ele propondo o seu; mas, forte como crítica destruidora, o seu
trabalho é de uma fragilidade desconsoladora como esforço
construtivo. Por último confessa abertamente que já não é possível
falar de imperativo categórico, mas de um simples optativo; por
outra, já não há deveres mas aspirações vagas. À consciência
humana não se pede intimar um faze o teu dever; mas um “oxalá se
faça o que cada qual julga melhor”. No IV Congresso de Moral Leiga,
reunido em Roma, em 1926, em busca de um Código de Moral
Universal, Adolphe Ferrière, que presidiu o 3º Congresso em
Genebra disse: “Pode conceber-se um código de moral universal,
não imposto mas proposto aos homens, consistindo em leis de
higiene social e espiritual, leis no sentido naturalista, não jurídico”,
isto é, leis-fatos, não leis-direito; leis que dizem o que é, não o que
deve ser. Isto é a volatilização completa da idéia do dever. A moral
reduzida a uma história natural dos costumes do homem, mas sem
nenhum caráter normativo de regra orientadora das liberdades. Ora,
sabeis o que significa o desaparecimento do dever — um código
não imposto mas proposto aos homens? Significa a mais completa
anarquia dos costumes, a falência absoluta da moral. Significa que
ao ladrão não podeis dizer: “Deves restituir o que não é teu”; ao
adúltero: “Deves guardar a fidelidade dos teus juramentos”; ao
homicida: “Deves respeitar a vida dos teus semelhantes”; significa
que à torrente impetuosa e avassaladora das paixões humanas, de
todos os egoísmos, de todas as ambições, de todas as luxúrias, de
todas as injustiças, de todas as opressões e violências, não podeis
levantar no foro da consciência nenhuma barreira intransponível. Ao
homem que se degrada, que desce na escala dos instintos
indomados a um nível inferior ao da animalidade, não se pode impor
coisa alguma — mas simplesmente propor. A lógica implacável da
moral leiga já não pode formular o imperativo do dever; emudece no
interior das nossas almas o que nelas há de mais nobre: a voz
suprema da consciência que proíbe o mal e manda o bem. Mas se
se oprime no homem a voz da consciência como será possível a
vida social? No dia em que se persuadissem todos os cidadãos que
o dever é uma ilusão, que nada há de obrigatório para o homem,
como conseguir dos seus egoísmos desencadeados as prestações
de dedicação e sacrifícios indispensáveis à vida em comum? Pela
força, só pela força. O que se tirou à consciência, se dará à polícia.
Enquanto as carabinas do Estado prevalecerem, haverá uma
aparência exterior de ordem social; no dia em que os
individualismos coligados puderem mais que os gendarmes
cansados de uma função inglória, será a desordem completa. O
despotismo ou a anarquia, o esmagamento do indivíduo pela
sociedade, ou a revolta contra a sociedade do indivíduo exasperado
— eis o paradeiro lógico da moral leiga.
Mudemos de cenário e digamos, em duas palavras, qual o
verdadeiro e o único fundamento do dever.
O homem, racional, segundo triunfa uma ou outra das duas
forças antagonistas — únicas a regular a atividade do homem,
quando se lhe apagou na consciência a voz suprema do dever,
conhece não só a natureza dos seres que o cercam mas também as
relações que os ligam. Antes de tudo, em si mesmo, um complexo
de atividades diferentes, vegetativas, sensitivas, intelectivas, uma
hierarquia de faculdades, inferiores umas, superiores outras; umas
comuns com os animais, outras próprias e específicas. O ideal do
homem é realizar esta harmonia, respeitar esta hierarquia; dominar
com a razão e a consciência o corpo feito para servir; desenvolver
na alma todas as virtualidades que nela dormem em estado latente.
Deste primeiro olhar da inteligência nascerá todo um código de
moral individual.
Mas o homem não é só; cercado de outros homens que devem
realizar, também eles, a sua finalidade individual, impõe-se-lhe o
respeito dos direitos alheios. Membro a princípio da sociedade
doméstica, depois da sociedade civil, ambas indispensáveis ao seu
desenvolvimento, a razão lhe mostra num complexo de relações as
condições indispensáveis à conservação e ao desenvolvimento
destas coletividades. O estudo destas relações necessárias
manifesta novas harmonias, um ideal mais vasto — a que nós
chamamos moral social.
Tudo isto revela-nos um plano magnífico — mas ainda não
obrigatório. Por ele já vemos o infundado da crítica do extrinsecismo
que alguns laicistas formularam contra a moral tradicional — que
eles com olímpico desdém chamam de teológica. Nesta moral,
dizem, os deveres são impostos ao homem de fora, por um decreto
arbitrário da divindade. Nada mais pueril do que semelhante
concepção de deveres sem nenhuma relação com a natureza do
homem. Não; é estudando a natureza — a nossa — e a dos seres
que nos cercam — que chegamos a conhecer o nosso dever. O
conhecimento das leis biológicas e sociológicas — feito com todo o
rigor dos métodos positivos, é parte integrante da nossa moral e,
neste sentido, todo o trabalho sincero dos nossos adversários
reverte indiscutivelmente em proveito nosso. A diferença está em
que eles ficam a meio caminho e nós vamos, sem receio, até o
termo das exigências racionais. Eles levantam um edifício e não lhe
dão alicerce. Eles formulam um programa, mas não o podem impor
às consciências, porque mutilaram a realidade total e nesta
mutilação suprimiram o que nela é indispensável, o de que não se
pode prescindir, o Absoluto, Deus. Esta ordem — que resulta da
harmonia das leis estudadas, não é para nós uma coincidência
fortuita, resultado de uma evolução cega; é uma verdadeira ordem,
isto é, a expressão de uma inteligência, da inteligência suprema e
criadora de que todos os seres inelutavelmente dependem tanto na
sua natureza quanto na sua existência. Há no mundo uma
finalidade, há um plano divino a realizar, e deste pensamento divino
todos os seres são executores. Uns, porém, o executam
necessariamente; as leis da sua natureza determinam-lhe de um
modo irresistível toda a sua atividade. É todo o mundo físico, onde
não há livre-arbítrio. Quando chegamos ao domínio da inteligência,
começa a liberdade. Aos seres livres se impõe outrossim de um
modo mais nobre, mas não menos imperativo, a realização do
pensamento criador. A lei do homem já não é uma lei física, mas
uma lei moral, impõe-se com a força de um império divino, mas este
império deve ser obedecido com a espontaneidade de um ato livre.
Como a luz, se fora livre, deveria querer iluminar, porque esta é a
sua natureza; assim o homem, que de fato é livre, deve querer ser
homem, isto é, realizar todo o ideal de sua natureza, em todas as
suas exigências individuais e sociais. “O estudo da moralidade
reduz-se a esta questão metafísica: que será da eficácia e da
direção do movimento impresso por Deus à criação no momento em
que ele atinge o homem?”.253
Vede a que alturas magníficas nos eleva imediatamente a
verdade salvadora! Quão grande é a nossa dignidade e que densa
de gloriosas responsabilidades a nossa vida! Somos colaboradores
de Deus! Em nossas mãos Deus confiou uma parte da realização do
seu pensamento criador. A mínima falta, a traição ao nosso dever, é
de certo modo uma impiedade. Aqui a moralidade se explica
plenamente e toma um sentido que, fora desta concepção
necessária, não lhe é possível dar. A moralidade é a criação, isto é,
“a dependência total de Deus compreendida pela criatura quando se
torna inteligente”.254 E como esta dependência é completa e
evidente à razão — Deus é o Ser e tudo o que é fora dele, só por
Ele é — o dever se impõe à nossa consciência com a plenitude de
evidência fulgurante e com o caráter infrustrável de um imperativo
categórico. Eu não sou o meu único juiz, nem o árbitro caprichoso
de minhas ações. Como recebi de Deus a minha natureza humana,
como d’Ele recebi a minha existência, que fez passar esta natureza
da ordem dos possíveis ao domínio das coisas reais, recebi também
uma função na vida: atuar a vontade de Deus contida nesta
natureza. A minha felicidade definitiva se acha essencialmente
condicionada pela fidelidade ao cumprimento da minha função na
vida, do meu dever. Assim, às luzes que iluminam a inteligência se
acrescenta — como veremos — o estímulo das sanções inevitáveis
às energias da vontade.
Isto é inteligível, isto é completo, isto é consolador. Não
tenhamos medo de encontrar a Deus. Ele é o Absoluto, é o
Inevitável, o termo necessário de todo o sistema de provas que
satisfaz. Impossível desconhecê-lo ou esquecê-lo sem provocar
catástrofes irremediáveis. Não fora Ele Deus, a Plenitude do Ser, se
em retirando não ficara só a infinita miséria do nada. Não se
entende o universo físico, na harmonia de sua ordem, sem a
Primeira inteligência, que tudo concebeu; não se explicam as
belezas e as responsabilidades do mundo moral sem a Primeira
vontade que tudo governa para a realização de suas altas
finalidades. Para a nossa grandeza, como para a nossa felicidade, o
infinito se acha na perspectiva de todos os nossos horizontes; no
termo de todas as avenidas do pensamento, de todas as aspirações
do coração como de todos os deveres da consciência.

Rio, 10 de setembro de 1929.

252 Perene grandeza — NE.


253 Étienne Gilson, Saint Thomas d’Aquin, Paris, 1925, p. 18.
254 RA, 1928, p. 142.
Idéia de Deus — termo de toda demonstração completa.
Comparação do Sol.
O que é sancionar. Problema da sanção:

a) indispensável à eficácia da lei moral;


b) indispensável à própria existência da lei moral.

Diversos tipos de sanções. Classificação.


Insuficiência das sanções naturais.
Insuficiência das sanções sociais.
Insuficiência da consciência.

Só Deus pode sancionar plenamente a ordem moral.


Eficácia que à lei moral advém das sanções divinas.

Acusação de utilitária e interesseira levantada contra a moral


católica.
A graça — sanção da ordem moral — na presente economia da
Providência.

A. M. D. G.

Às professoras do Sacré-Coeur, 21/11/1929.


Moral leiga
III

A MORAL E A SANÇÃO

A NTES de entrar no assunto, duas palavras: uma de


agradecimento, outra de convite.
Agradeço-vos antes de tudo a fidelidade com que viestes
regularmente assistir às nossas pequeninas reuniões. Não deixa de
ser consolador para um coração sacerdotal ver o interesse que
tomastes pelo estudo de questões que, áridas em si e abstratas, só
apresentam o atrativo austero da verdade, mas desta verdade
benfazeja e superior, cujo conhecimento mais importa ao homem.
Ao obrigado, acrescento um convite. Como sabeis, já
costumamos terminar as nossas reuniões com um retiro espiritual,
chave de ouro dos trabalhos do ano.
Para estes dias benditos de repouso e de paz, convido-vos com
toda a instância de minha alma. Mais aproveitareis nestes três que
em toda a série das nossas modestas palestras mensais. É bom
conhecer a verdade; mas a que pró, se nos falta a energia de
realizá-la. O retiro é o foco criador de energias espirituais. A
inteligência se eleva, o ideal se purifica e resplende em toda a sua
beleza, a vontade tempera-se na força de resoluções profundas e
eficazes. Para a matéria de vossos propósitos recomendo muito
particularmente o ensino do catecismo. Já vos falei uma vez desta
grande obra de apostolado social. A fidelidade e o entusiasmo a
muitas dentre vós é já um penhor seguro do proveito que ainda se
poderá alcançar. Para o ano, se Deus nos der vida, começaremos
desde o princípio a organização desta grande cruzada; cada uma,
pois, nestes três dias de recolhimento e de sinceridade com Deus,
dê um balanço exato às suas ocupações e à sua generosidade e
veja lealmente o que é possível fazer por Deus, pelas almas dos
seus pequeninos que vos foram confiadas.
DEUS É SANÇÃO DA ORDEM MORAL

“A idéia de Deus”, escreveu J. Simon, “é a encruzilhada onde se


encontram todas as avenidas do pensamento humano”. Não há
aprofundar um problema, não há querer a última palavra de uma
questão sem encontrar a solução suprema, a razão última que
condiciona todo o ser, o termo final de toda a demonstração
completa.
No mundo da luz, onde o Sol é rei e causa suprema, tudo o que
brilha a ele nos leva. É a sua luz branca que se irisa nos mil
cambiantes de todas as cores, de todos os esplendores da
natureza. A púrpura das papoulas e o cetim delicado dos lírios, a
limpidez serena de um olhar ingênuo e o cintilar vivo e metálico dos
coletes dos insetos revelam-nos a riqueza admirável que na sua
limpidez pura encerra a luz branca. E do grãozinho de poeira que
cintila como um brilhante no ar podeis, de ascensão em ascensão,
de reflexão em reflexão, seguindo a trajetória luminosa, chegar ao
supremo esplendor da primeira luz.
Assim Deus no mundo do ser. Do pequenino átomo que vibra
nos espaços, do pensamento fugaz que perpassa ligeiro no campo
da consciência, podeis, nas asas seguras de uma lógica inflexível,
elevar-vos de porquê em porquê, de razão suficiente em razão
suficiente, até o ser Primeiro, razão Suprema e Absoluta de tudo o
que é. Assim como ser nenhum pode existir sem Deus, assim
nenhum é, sem Ele, plenamente inteligível.
É o que temos verificado de modo particular na ordem moral.
As noções fundamentais que ela envolve, e sem as quais fora
ininteligível, resolvem-se por último numa afirmação vitoriosa da
existência indispensável de Deus. A moralidade supõe conhecido o
ideal da vida humana. Impossível orientar inteligentemente a
atividade do homem, ignorando-lhe os destinos, a finalidade de sua
natureza. E eis que nos aparece inelutável o problema da vida
futura. Deus como termo da nossa perfeição definitiva.
A moral é a ciência do dever. Impossível justificar a idéia de
obrigação estrita de consciência sem apelar para um ser Superior
ao homem e do qual ela dependa absolutamente. Dos seres que
nos cercam nenhum atinge o santuário misterioso da consciência
para nela proclamar leis infrangíveis. A si mesmo, rigorosamente
falando, ninguém se obriga. Se a fonte última da obrigação fôramos
nós mesmos, com o mesmo poder com que nos obrigamos,
poderíamos lícita e logicamente desobrigar-nos. E a lei moral já não
dominaria os indivíduos, mas seria por eles dominada, isto é,
cessaria de ser lei. O império do dever que ecoa no fundo das
nossas consciências ou é a voz soberana de Deus ou não tem
nenhum valor moral.
Há ainda uma terceira noção, também ela essencialmente
indispensável à ordem moral: é a idéia de sanção. Demonstrar-vos
que é impossível sancionar perfeita e eficazmente a lei da
consciência sem apelar para Deus — eis o que vos proponho nesta
última palestra. Dai-me ainda uma vez a benevolência da vossa
atenção e sede exigentes no rigor das provas.

Sancionar uma lei é etimologicamente torná-la santa, isto é,


inviolável; subministrar à vontade motivos que lhe impeçam a
transgressão, ou que, depois de transgredida, lhe restituam a
integridade da ordem perturbada. É um sistema de recompensas e
de penas montado pelo legislador para defesa da lei.
A sanção é uma exigência fundamental da justiça; é a equação
final, pela qual clamam todos os sentimentos da nossa alma, entre o
que queremos ser e o que devemos ser, entre a felicidade e a
virtude.
Todos irresistivelmente queremos ser felizes; todos
inevitavelmente devemos ser bons. Como conciliar aos olhos da
inteligência e do coração estas exigências racionais e volitivas
indestrutíveis? Como assegurar aos bons a posse inamissível da
felicidade e como defender a ordem perturbada pelos maus? Eis em
toda a realidade trágica o grande problema da sanção moral.
Da sua solução depende toda a eficácia, toda a existência
mesma do grande imperativo categórico do dever. É toda a ordem
moral que está em jogo. E que pensar de qualquer sistema que nos
der uma resposta satisfatória às nossas exigências racionais? Antes
de tudo a sua eficácia. Nada mais óbvio. Lei sem sanção é lei
praticamente nula. O legislador que se limitasse a promulgar um
código de prescrições sociais sem lhe acrescentar um código penal
seria um ideólogo cuja ingenuidade passaria os limites permitidos. É
proibido furtar; vai o ladrão, apodera-se do que não é seu, e a
autoridade contempla impassível e inerte a atuação tranqüila do
modo proibido de transferir assim as propriedades. Credes que uma
sociedade assim poderia existir por muito tempo?
Transportai agora a toda a ordem moral esta indiferença
suprema ante o dever e a injustiça. Imaginai que o mesmo resultado
final igualasse os sacrifícios da virtude e as alegrias ruidosas do
vício; julgais porventura que esta convicção da inutilidade de todo
esforço firmada nas inteligências seria um estímulo eficaz à
fidelidade ao dever?
Onde a lei moral encontraria súditos fiéis, se as consciências se
chegassem a persuadir de que os dois caminhos tão diferentes, o
do dever semeado de urzes, o do prazer marchetado de rosas,
levariam à justiça niveladora da mesma igualdade definitiva?
Esta convicção, se ela pudera implantar-se realmente nas
consciências, tiraria à obrigação moral toda a sua eficácia; mais,
comprometeria até a sua existência. Em que se funda em última
análise a lei moral? Na idéia de que vivemos e agimos num universo
ordenado. Nós homens temos uma finalidade, um ideal humano a
realizar. Tudo o que destrói ou diminui em nós este ideal, tudo o que
inverte as relações essenciais necessárias à conservação da
família, da sociedade, do direito supremo dos outros homens a
realizarem também eles os seus destinos, é um mal porque
contraria a ordem, e a ordem é um bem, é um bem supremo que a
nossa consciência coloca acima dos nossos caprichos ou dos
instintos e desejos desregrados do nosso egoísmo. Mas quando me
dizeis que a ordem moral não tem uma sanção suficiente e
completa, minais pela base todo o fundamento da moralidade. Já
não há mais ordem; ao universo pouco se lhe dá a prática do bem e
do mal porque no fim os nivela brutalmente; por outra, não há um
bem a realizar na atividade universal das coisas; a ordem é uma
ilusão, uma quimera, e sacrificar-me a esta ordem, ingenuidade
pueril.
Por que impor-me privações e desgostos para observar a lei
suprema da justiça e da caridade, se esta lei nunca há de ser
observada comigo, isto é, se à própria natureza é indiferente a
realização definitiva da ordem que se me pretende impor?
Sacrificava-me pelo bem, por ele submetia-me por vezes ao
heroísmo de abnegações profundas e prolongadas na convicção de
que o bem fosse uma realidade, tivesse um valor supremo, e
triunfasse definitivamente na estabilidade de uma esplêndida vitória
para a qual eu desejava cooperar com todos os recursos de minha
liberdade. Suprimindo a sanção, destruís irremediavelmente todos
estes fundamentos lógicos da moralidade. O bem já não é a lei
suprema das coisas; o seu reino definitivo não chegará nunca; este
mundo marcha, mas a sua marcha é inconsciente, é cega, não nos
leva a nenhum termo que satisfaça a nossa idéia de justiça; a
fidelidade se achará unida com o mal; e a virtude poderá ser
desgraçada sem compensações. Não há portanto uma ordem real;
esta ordem, em nome da qual se me impunha o dever, é uma
aparência, uma ilusão, um mal. Não há nenhum motivo para que eu
a favoreça, para que eu a respeite, para que lhe submeta os meus
atos. Ela não trabalha para o bem; se eu trabalho para o bem ela
me poderá esmagar definitivamente; a virtude para ela não tem
valor. Que a felicidade se ache no mal e a infelicidade no bem é
uma desordem inadmissível. Se esta desordem é real, só me resta
uma solução ao problema da vida. Sinto em mim incoercível o
desejo da felicidade: é um fato; o melhor caminho para lá chegar, eis
o que para mim será o bem. Se para este fim for mister conculcar
todas as leis da caridade, da justiça, do respeito aos direitos alheios,
pouco se me dá. Estas leis não estão a serviço do bem. A luta
selvagem do meu egoísmo contra as forças coligadas e cegas que
em redor de mim conjuram contra mim será o meio mais eficaz de
me defender contra a suprema injustiça das coisas que não me
revoltam definitivamente, nem ante o escândalo do pecador feliz que
violou a ordem universal em proveito dos interesses efêmeros do
seu egoísmo, nem ante o escândalo do justo infeliz que tudo
sacrifica a esta ordem e por ela foi tratado como todos os outros.
Como vedes, moralidade e sanção são indissoluvelmente
solidárias; caindo uma, cai também a outra. Não só porque só a
sanção oferece à vontade um estímulo eficaz à prática do bem e à
fuga do mal, senão também porque a ausência da sanção destrói,
aos olhos da inteligência, os próprios princípios fundamentais da
ordem universal que constituem a base insubstituível da moralidade.
Todo sistema, portanto, que não der uma resposta satisfatória a
estas exigências racionais acha-se por isto mesmo não só
condenado à mais triste esterilidade prática mas ainda à inevitável
contradição lógica que é o ferrete inseparável do erro.
Cumpre, portanto, sancionar a ordem moral, sob pena de a
destruir. Os nossos próprios adversários, procurando aqui ou ali
uma sanção que lhes parece suficiente, não fazem senão confirmar
esta solidariedade indestrutível. O que nos importa agora é
percorrer estas diferentes sanções e verificar-lhes a sua eficácia
moral.
Nenhum sistema — coesão de partes solidárias — pode
mostrar-se indiferente diante de uma ação que tende a destruí-lo ou
a favorecê-lo. A toda ação, dizem os físicos, corresponde uma
reação. Agir, portanto, sobre um sistema, ou uma ordem solidária de
coisas, é esperar naturalmente uma reação — reação que será
favorável a tudo o que se lhe adapta ou tende a conservá-lo, que
será de defesa contra tudo o que tende a destruí-lo. Esta reação, na
ordem moral, esta defesa da ordem, chama-se sanção.
Ora, o homem, por sua mesma natureza, acha-se empenhado
em vários sistemas de ordens diversas.
Pelo seu organismo, faz parte do grande sistema físico,
obedece às suas leis, que, seguidas, podem favorecê-lo;
transgredidas, vingar-se duramente. E aí temos um sistema de
sanções naturais.
Mais acima, o homem acha-se envolvido num sistema mais
complexo de relações com seus semelhantes; na vida em
sociedade, por parte da coletividade, os seus atos poderão
despertar reações favoráveis ou desagradáveis: são as sanções
sociais.
Internamente, há em nós todo um mundo interior de realidades
psicológicas — idéias, sentimentos, tendências, que atingem uma
complexidade muito superior ao que ordinariamente se crê. Também
aí as nossas ações poderão repercutir bem ou mal, muitas
aprovações que confortam ou remorsos que pungem.
Finalmente o homem se acha ainda envolvido na ordem
universal, na que se pode chamar ordem divina. Todas as ordens
inferiores, consideradas acima, não passam de manifestações
parciais da vontade divina na realização do plano criador.
Transgredi-las é portanto insurgir-se contra a vontade divina;
submeter-se é colaborar com elas. E aí temos outra fonte de
sanções inelutáveis: Deus não pode ser indiferente à execução de
Sua vontade soberanamente independente e sábia. A ordem aqui
violada será restabelecida e vingada na medida que Ele julgar justo:
eis o último sistema de sanções: as sanções divinas.
Destas quatro grandes categorias de sanções, a moral leiga,
por princípio, sistematicamente exclui a quarta (é preciso construir
uma moral sem Deus — só com fatos). Ora, as três classes
anteriores não nos podem absolutamente satisfazer as exigências
racionais da justiça, nem sancionar a moralidade de um modo eficaz
e coerente.
As sanções naturais, já o dissemos, são uma reação das leis da
natureza contra os que as transgridem. Sobre elas insistem
principalmente os evolucionistas. O homem acha-se envolvido numa
trama complexa de leis físicas e biológicas, que constituem um
sistema harmônico e ordenado. Impossível perturbá-lo sem ser
punido com um choque em retorno, contra-ofensiva da ordem que
se vinga… Tudo neste mundo se paga (dizia Napoleão). Observar
as leis da temperança é prolongar as forças de uma saúde
longamente jovem. Os excessos de prazeres enfraquecem o
organismo. A natureza, como castiga inexoravelmente o vício, assim
recompensa a virtude.
Basta um minuto de reflexão para saltar logo aos olhos a
insuficiência das sanções naturais; sanções se quiserem no sentido
genérico de reação da ordem natural contra o agente que a
pretende perturbar, mas evidentemente incapazes de constituírem o
que nós chamamos uma sanção moral.
A noção mais rudimentar de justiça exige que a reintegração da
ordem moral seja proporcionada à culpabilidade ou merecimento do
agente; ora, a natureza é cega, a intenção de que depende em
grande parte o valor do ato humano escapa-lhe inteiramente; a
natureza não é livre, é portanto incapaz de dosar, na justa
proporção, os seus castigos e os seus prêmios.
De fato que é o que vemos? As mais flagrantes injustiças na
distribuição das sanções naturais. Um organismo robusto pode
impunemente entregar-se por longo tempo ao vício sem ressentir as
suas devastações biológicas, um corpo franzino e raquítico com
menos culpas é mais flagelado. Saem numa mesma noite de
temporal o médico para fazer um ato de caridade e o bandido para
cometer os seus crimes: este, mais afeito às intempéries, volta são
e salvo; o médico apanha uma pneumonia que o leva para o outro
mundo. O terremoto de Lisboa sepultou inúmeros cidadãos
inofensivos e libertou os presos condenados por grandes delitos. E
os exemplos poderiam multiplicar-se infinitamente. Com sinceridade,
quem poderia sustentar que os desastres ocasionados pelos
agentes físicos, que as enfermidades humanas atingem as suas
vítimas na proporção da sua culpabilidade moral? Não atingem nem
poderiam atingir. O que a natureza entende é conservar a ordem
física, na ordem biológica, é salvar a espécie, em ambos os casos, o
que está a cargo da natureza é a ordem material. Por uma
orientação primitiva, podemos ainda dizer com mais precisão que
esta ordem material está a serviço do bem, mas não do indivíduo
que faz o bem. Sem inteligência e sem liberdade — a natureza é
uma coisa, um mecanismo, não é uma pessoa, um agente moral. As
suas sanções, por isto mesmo, não são nem podem ser sanções de
ordem moral.
Nem satisfazem mais as chamadas sanções sociais. Com este
nome podemos designar os atos da autoridade civil no exercício
normal da repressão do crime e as reações espontâneas de estima
ou desprezo com que o grupo ou a coletividade se portam diante da
virtude e do vício. Praticai o bem, dizem-nos, tereis como
recompensa a estima, a simpatia de vossos concidadãos; evitai o
mal que é mais penoso e duro para o delinqüente do que a
execração pública que estigmatiza o vício.
Sanção, se quiserem, em um ou outro caso, justa e eficaz,
quase sempre, porém insuficiente e quase pelas mesmas razões
que as sanções naturais. A opinião pública não atinge a consciência
individual, a intenção de que depende a bondade das nossas ações.
A humildade da virtude sabe ocultar-se; a hipocrisia do vício sabe
iludi-la. E que há de mais incompetente e de mais volúvel que a
ventoinha da opinião pública?
Non è il mondan romore altro ch’un fiato
Di vento, ch’or vien quinci e or vien quindi
E muta nome perché muta lato.255

A opinião pública hoje grita hosana e cinco dias depois clama


crucifige. Olhai em torno de vós, e vereis se há equação entre a
virtude e a glória. Quase sempre a grandeza moral está em resistir
aos desvios e à fascinação momentânea das paixões populares.
Mais, o rumor das praças ocupa-se com os que se põem em
evidência. A pobre mãe de família que passa a sua vida, silenciosa
e obscura, heróica talvez na fidelidade constante aos humildes
deveres de cada dia, a glória ou popularidade a desconhece: dela
não se falará nem bem nem mal.
Da sanção legal, creio que se me dispensará grande luxo de
considerações, tão evidente é a sua insuficiência. O gendarme — e
sob este nome vai toda a legalidade armada contra o crime desde o
supremo tribunal até o carcereiro —, o gendarme não pode tomar
sobre si a defesa justa de toda a ordem moral; nos casos mais
felizes defenderá a lei civil — e quase sempre mal. Quem rouba
uma galinha vai para a cadeia; quem rouba uma província recebe
uma coroa de louros. Em todos os grandes processos célebres na
história, a sentença dos contemporâneos foi pela posteridade
argüida de injustiça. Esses ilustres réus poderiam repetir o que nos
lábios de Maria Stuart, uma destas grandes vítimas, pôs Schiller:
“Ich bien besser als main Ruf”.256
Numa palavra as forças sociais, como as potências cósmicas,
não têm meios de atingir a fonte íntima da moralidade; são
incapazes de discernir com infalibilidade o bem e o mal e
proporcionar eficazmente os castigos e as recompensas à dose das
responsabilidades individuais, estão sujeitas às mil influências dos
erros e paixões humanas. A ordem moral ainda não está garantida,
ainda não se acha satisfeito o nosso sentimento de justiça.
Satisfá-lo-á talvez a sanção íntima da consciência, refúgio
supremo da moral sem Deus? À primeira vista, parece que sim. A
consciência é um fato interior, individual; atinge o ato livre na sua
fonte, nas suas intenções mais recônditas. Não haverá aqui
proporção entre a moralidade dos nossos atos e a intensidade de
sua sanção? Parecem crê-lo os que afirmam em belas páginas —
de uma inspiração certamente elevada — que a única recompensa
digna do dever é a consciência de o haver cumprido.
E no entanto um exame mais profundo e sereno, facilmente nos
convencerá do contrário. Como as outras sanções, as satisfações e
os remorsos da consciência são insuficientes como tutela da ordem
moral.
Antes de tudo, ações há que ela não atinge: a última de toda a
vida humana. O nosso último ato livre — ao qual se seguiria por
hipótese a extinção completa da consciência, escaparia à sua
jurisdição. Se for um crime — um suicídio, por exemplo, o remorso
não o há de punir; se for um ato heróico — o soldado que cai varado
por uma bala no campo de batalha, o nadador que se atira para
salvar uma vítima e morre dando a vida, a consciência extinta para
ele não terá louvores; o suicídio e o martírio, a cobardia levada à
destruição da própria vida, a dedicação levada até a imolação de si
mesma — dois extremos na vida moral, ficariam sem sanção.
Mais. As sanções da consciência intensificam-se — notável
paradoxo! — na razão inversa do nosso aperfeiçoamento moral. O
criminoso que multiplica as suas iniqüidades como quem bebe água
(na expressão da Escritura)257 acaba cauterizando a sua
consciência. O que se torna habitual já não impressiona. A voz do
remorso à força de reprimida e desprezada acaba por emudecer ou
quase; reina a insensibilidade numa consciência anestesiada pelo
cinismo. O virtuoso, pelo contrário, quanto mais se esforça por
atingir um ideal de santidade, mais sofre da desproporção
irremediável entre a perfeição entrevista e a mesquinhez das suas
realizações. Não há gritos de dor mais lancinantes como os que
saíram dos corações dos santos, das almas místicas, a quem uma
visão mais clara da santidade infinita de Deus ilumina, de luzes
desconhecidas, as almas vulgares, a fealdade dos nossos desvios
morais. E aí tendes esta paradoxal inversão das sanções internas:
remorsos mais amargos nas almas que o progresso no bem torna
mais exigentes e severas consigo; tranqüilidade cínica nas
consciências endurecidas pela repetição do mal.
E tudo ainda não está dito. As consciências estão também
sujeitas a mil variações acidentais alheias à ordem da moralidade. O
nosso meio interior, o nosso microcosmo, sofre todas as vicissitudes
do cosmo externo. A sensibilidade mais delicada ou mais embotada
depende do sistema nervoso e este está sujeito a influências
fisiológicas complexas e caprichosas. Quem ousasse afirmar que as
penas e as alegrias internas são proporcionadas aos graus de
virtude e de vício, não conheceria o coração humano. A nossa vida
inteira está também ela sujeita à desordem, à irregularidade, às
variações acidentais, e onde entram a desordem e a irregularidade
não temos ainda o domínio definitivo da ordem moral.
A consciência, portanto, isto é, a ordem psicológica, como a
ordem social e a ordem física, não correspondem nas suas reações
aos estados do agente moral. Sem transcendermos a ordem natural
não conseguimos assegurar de maneira eficaz e justa a felicidade
da virtude e o castigo do vício. Um sistema ético que não tiver
outros recursos que os examinados até aqui ofende às nossas
exigências racionais de justiça, solapa os fundamentos da ordem,
compromete inevitavelmente a vida moral.
É preciso subirmos mais alto. As considerações feitas já nos
indicam os requisitos indispensáveis a uma sanção para ser
verdadeira, suficiente e eficaz. O princípio que há de velar pela
moralidade deve ser uma inteligência, inteligência infalível que
desça até ao fundo das consciências e aí possa discernir, sem
possibilidades de erro, o grau de responsabilidade do agente moral
em cada uma de suas ações livres. Inteligência infinitamente sábia e
santa, superior a todas as influências perturbadoras das paixões,
que, no seu amor indefectível da justiça, não leve os prêmios e
castigos além dos méritos e deméritos.
Inteligência infinitamente poderosa, superior a todos os agentes
naturais, físicos, sociais e morais, capaz de os dominar
inteiramente, para que as alegrias e penas que deles nos podem
advir não excedam as exigências da recompensa ou da penalidade;
senhora ainda do coração humano para poder nele assegurar
definitivamente o reino do bem, isto é, da felicidade na virtude.
Ora, uma onipotência inteligente e santa, postulada logicamente
para coroar a moralidade humana — já vós a nomeastes — é Deus.
Só Ele pode sancionar justa e eficazmente as harmonias sublimes
do mundo moral. As sanções naturais — as leis biológicas, sociais e
às vezes da consciência — tomam aqui outro relevo; instrumentos
da Providência que tudo governa, assumem de fato muitas vezes o
caráter de uma verdadeira sanção. Não é, porém, nesta vida que
Deus assegura a integridade da sua justiça. O reino de Deus, na
nossa bela linguagem evangélica, é o reino definitivo da justiça e do
bem — o reino em que as inevitáveis sanções morais
corresponderão às nossas mais profundas aspirações de ordem, o
reino em que se fará a síntese indissolúvel do que devemos ser com
o que queremos ser, da virtude com a felicidade. A necessidade
destas conclusões racionais impressionou profundamente o próprio
Kant: Deus e a vida futura; Deus para fazer definitivamente feliz; a
bondade, a imortalidade para assegurar a possibilidade desta união
indestrutível, ao solitário de Königsberg se afiguram como
postulados indeclináveis da moralidade humana.
E não é só nos seus fundamentos de ordem, nas suas
exigências de justiça que assim se garante a lei moral, é também e
principalmente na sua eficácia prática. Aqui a vitória sobre os
adversários é tão fácil e intuitiva que até insistir sobre ela não seria
elegante e generoso.
Por nós temos aqui o grande testemunho da história que nos
mostra, na evolução dos povos, a crise da moralidade a coincidir
com o entibiamento da vida religiosa. Todas as vezes que a idéia de
Deus vai empalidecendo nas inteligências, indivíduos e povos rolam
para os abismos; a lei do dever — que é a lei do homem, perde a
sua eficácia preservadora; ao espírito de sacrifício e de dedicação
sucede o egoísmo, e as exaltações do egoísmo desencadeado
levam direito à anarquia, à dissolução e à morte.
Por nós teríamos o testemunho de todas as almas sinceras que
só teriam uma voz para nos dizer que nos momentos difíceis da vida
moral, quando as tentações sacodem a fragilidade das nossas
virtudes, quando a fidelidade ao bem exige heroísmos de mártir,
heroísmos ou pela grandeza do sacrifício ou pela diuturnidade
obscura das imolações cotidianas, mais pode sobre a nossa
consciência o pensamento de Deus que todas as considerações
frias, abstratas e estéreis de beleza estética ou de solidariedade
social.
Por nós teríamos ainda a confissão explícita dos mais ilustres
dentre os nossos adversários aos quais a força da verdade arrancou
depoimentos valiosos de uma imparcialidade insuspeita. Jules
Simon: “Se a Igreja se retirasse para o deserto, levando consigo o
seu catecismo e todos os raios da verdade cristã, voltariam à Terra
todos os horrores do paganismo e da escravidão antiga”. Renan,
fora das crenças divinas não vê o meio de dar à humanidade um
catecismo moral aceitável.258 Edmond Schérer: “Saibamos ver as
coisas como elas são: a moral, a boa, a verdadeira, a antiga, a
imperativa, precisa do Absoluto; aspira à transcendência; só em
Deus encontra o seu ponto de apoio”.259
Sim; sem Deus não há ponto de apoio, nem para o mundo
físico, nem para o mundo moral. Sem Ele, a vida humana não tem
ideal ou o ideal é uma ilusão; sem Ele não há dever ou o dever é
palavra vã; sem Ele não há sanção e a virtude infeliz sem
esperanças é um insulto à razão e à dignidade do homem. A moral
leiga, pretendendo organizar a nossa atividade, como se Deus não
existira, é moral sem ideal, sem dever e sem felicidade, isto é, não é
moral; absurda em teoria, estéril na prática.
Antes de terminar, uma resposta a uma objeção que já se fez à
nossa moral cristã e tradicional. Moral interesseira, disse alguém.
Com a esperança do Céu, ou o espantalho do Inferno, vós tirais ao
agente moral o segredo de sua força e dignidade. Fazer o bem por
esperança de prêmios ou temor de castigos não é nobre. O bem
pelo bem; o dever pelo dever. Sair desse ideal é degenerar, é pregar
uma moral interesseira, utilitária, egoísta.
Moral interesseira! Egoísmo! Egoístas então estas legiões de
mártires que davam generosamente o seu sangue para salvar a
liberdade de suas consciências inabalavelmente fiéis ao seu dever.
Egoístas estes milhares de missionários e missionárias que deixam
os seus lares, as suas pátrias, todo o conforto das grandes
civilizações européias para viverem na pobreza e no sofrimento,
sem outra consolação que a de dedicar uma vida inteira à salvação
física e moral dos seus irmãos mais desamparados. Egoístas estes
exércitos de religiosos e religiosas, cristãos e cristãs de todas as
categorias que, nos colégios, nos hospitais, no orfanotrófios, nos
asilos, não vivem senão para diminuir as devastações do mal e
verter uma gota de bálsamo sobre todas as misérias que o pecado
multiplica na humanidade decaída! Oh! é preciso ter fronte de
bronze para atirar a pecha de egoísta e interesseira a uma moral
que inspirou e alimentou os mais belos heroísmos de que se pode
gloriar a história das nossas civilizações!
E a moral leiga! Onde estão os seus mártires e as suas irmãs
de caridade! Por que os seus pregadores não voam nas asas de
seu heroísmo às ilhas perdidas da Polinésia, para civilizar, sem
remuneração, estes pobres povos primitivos? Por que não vão
enclausurar para sempre os fervores de sua dedicação no túmulo
vivo dos nossos leprosários? Ah! um pouco de pudor não destoaria
nestes senhores que ousam tachar de mercenária a moral que
inspirou os mais dedicados heróis!…
É justo o movimento de indignação; mas vamos à serenidade
das razões e respondamos diretamente à dificuldade, nascida da
mais radical incompreensão da nossa moral. Há espírito de
mercenário quando se pratica o bem, o dever, não pelo dever e pelo
bem, mas por um prêmio que lhe é extrínseco. A criança que estuda
exclusivamente porque mamãe lhe prometeu uma bicicleta; o militar
que serve à pátria exclusivamente pelo soldo que se lhe paga. Mas
imaginar o Céu como salário, um soldo, um doce que se promete a
uma criança indócil é a mais ridícula e pueril das concepções. O
Céu é a perfeição integral, completa e definitiva da nossa natureza;
nada aí nos é extrínseco e alheio ao nosso bem: o Céu é a nossa
inteligência elevada à perfeição da posse definitiva da verdade com
exclusão de qualquer erro, dúvida ou ignorância; o Céu é a vontade
inamovivelmente fixa no amor à Bondade Infinita sem risco de
desvios lamentáveis ou de amores desordenados; o Céu é a paz
suprema e inalterável de todas as faculdades a repousarem na
posse dos seus objetos realizados de um modo supereminente no
Infinito, que encerra todas as perfeições no ato puro de sua
simplicidade inefável. A virtude pela virtude; a perfeição pela
perfeição: aceitamos a fórmula à qual só nós podemos dar uma
significação racional e eficaz. É nobre e belo trabalhar pela própria
perfeição, pela expansão harmoniosa de todas as virtualidades da
nossa natureza? É o que fazemos quando trabalhamos pela posse
de Deus, na paz da eterna bem-aventurança. “Todas as vezes”, diz
profundamente São Tomás, “que uma ordem é instituída em vista de
um fim, é necessário que a fidelidade a esta ordem conduza ao fim,
como sair dela seja excluir-se deste mesmo fim”. A ordem moral —
orienta a nossa atividade para a perfeição da nossa natureza;
obedecer-lhe é atingir esta perfeição; e a posse da perfeição de um
ser é a sua suprema felicidade; sair da ordem moral é pôr-se fora do
caminho que nos leva aos nossos destinos; é para um ser a perda
de sua finalidade, de sua razão de ser, é a sua suprema desgraça.
Se quisermos integrar a grandeza dos planos divinos,
acrescentando à ordem natural que estudamos os mistérios da
ordem sobrenatural que a fé nos revela, diremos que a verdadeira
sanção da ordem moral está na graça, nesta realidade inefável que
constitui um título à nossa participação na felicidade definitiva. Cada
ato bom que praticamos aumenta o nosso tesouro divino, e quando,
no último instante da nossa vida, houvermos atingido, com uma
fidelidade nunca desmentida, a plenitude da nossa estatura moral, a
morte, mensageira da liberdade e porta da vida, transformará
automaticamente a graça em glória, como o botão desabrocha em
rosa, consumando as harmonias maravilhosas da ordem moral pela
união indissolúvel da virtude com a felicidade.

A. M. D. G.

Rio, 04 de novembro de 1929.

255 Purg., XI, 100–102.


256 [Eu sou melhor que minha reputação — NE] Maria Stuart, ato III, cena 4.
257 Jó 15, 16 — NE.
258 Avenir de la science, prefácio, p. 18.
259 Apud Antonin Sertillanges, Les sources de la croyance en Dieu, p. 293.
Padre Leonel Franca

Tristão de Athayde

É RAMOS cinco em nossa geração, os companheiros de 1893;


Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, Leonel Franca, Sobral
Pinto e eu.
O primeiro a nos deixar foi Ronald de Carvalho, em 1936,
depois de ter dado à nossa geração o balanço mais perfeito de
nossas letras, do ponto de vista estético e uma obra poética da mais
aguda versatilidade e elegância.
Em seguida, Mário de Andrade, em 1945, depois de ter
empreendido a mais profunda revolução literária dos nossos tempos
e ter aberto o caminho a uma nova fase de nossa literatura.
Agora, Leonel Franca. Já somos apenas dois e sabe Deus até
quando?
De todos, foi incontestavelmente Leonel Franca o que subiu
mais alto, o que se colocou tão acima de sua própria geração, que
dominou de longe todas as gerações ainda conviventes, nesta hora
sulcada por opções decisivas.
No panegírico que o Provincial da Companhia de Jesus traçou
do nosso grande companheiro, do púlpito de Santo Inácio, ante a
face ainda descoberta daquele que naquela hora se mostrava “tel
qu’en lui-même enfin l’éternité le change”, disse o Padre Alonso por
duas vezes, com a autoridade do seu cargo, da circunstância e das
qualidades dos presentes, que aquele cujos despojos ali estavam
fora indiscutivelmente um santo.
Escolheu desde cedo o caminho da santidade e daí o domínio
absoluto e silencioso que exerceu não só sobre a sua geração toda,
mas ainda sobre a sua época. Ninguém o excedeu em prestígio
intelectual no Brasil, nesses últimos vinte anos. É evidente que nem
todos o seguiam. É evidente que nem todos o aceitavam. Já não
digo suas idéias ou sua direção, mas ainda mesmo o seu feitio
intelectual, a sua intangível disciplina, a sua “lógica de cimento
armado”, como me dizia Murilo Mendes, um dia, ao lado ainda de
Ismael Nery, durante as memoráveis conferências que por três anos
o Padre Franca pronunciou no Santo Inácio uma vez por mês, às
sextas-feiras à noite, a convite do Centro D. Vital, aí por volta de
1932 a 1935, se não me engano.
Se não havia naturalmente unanimidade, nem podia haver, em
torno de um homem que tinha optado desde menino por uma
Verdade que não admite vacilações no rigor dos seus princípios e
das suas adesões profundas ao Dogma, se bem que permita todas
as liberdades nos caminhos que chegam a ela ou que partem da
encruzilhada central — se assim tinha de ser considerável a
margem de atitudes diversas em frente a um homem como o Padre
Franca, o que não havia era discordâncias quanto à profundidade, à
solidez, à harmonia incomparável do seu saber e à agilidade
assombrosa de sua dialética.
Leonel Franca foi, no plano teológico e filosófico, o que Rui
Barbosa foi no plano político e jurídico. Um florete de analista
invencível, nas mãos de um lutador de cultura inabalável e profunda.
Sua cultura não era brilhante. Não era como em geral é a nossa
aqui no Brasil, alimentada pelos brotos das árvores. Era cultura de
raízes, de profundidade, de baixo para cima. Não dava, à primeira
vista, a impressão de saber muito. Sabia calar. Sabia ouvir. Sabia
ouvir como ninguém! Não fazia questão de brilhar. Muito pelo
contrário. Silenciava quanto podia. Mas à medida que íamos
debatendo o assunto, à medida que íamos entrando no âmago da
sua ciência, íamos sendo tomados de uma impressão de respeito,
até desistirmos de avançar mais, pois quanto mais descíamos e
aprofundávamos um tema, mais sólido encontrávamos o terreno,
mais difícil ia sendo qualquer contradição, mais convincentes iam
sendo os seus argumentos, a sua dialética de “cimento armado”.
Não conheci, no Brasil, nenhuma cabeça mais organizada que
a do nosso glorioso companheiro de geração, cujo saber no entanto
ainda era nada ao lado da santidade.
O segredo da consagração que foi o seu enterro e da influência
incomparável que exerceu sobre esses últimos vinte anos da vida
brasileira estava, como todos os oradores à beira do seu túmulo
acentuaram, novos e velhos, na aliança profunda entre o saber e o
amor, entre o sábio e o santo.
A virtude máxima, por isso mesmo, que irradiava dessa figura
ascética, que agia pela simples presença, tal a irradiação espiritual
daquele corpo esbelto e daquele olhar agudo e bom, como já em
1928 me advertia Jackson de Figueiredo, quando me aconselhava a
ir ter com ele para pôr ordem e paz em minhas angústias
metafísicas — a virtude máxima desse homem singular, que talvez
um dia se instale ali em Santo Inácio no altar reservado a Anchieta,
foi o equilíbrio. Um equilíbrio que não prejudicava em nada, antes
ressaltava, a vivacidade, a autenticidade, a plenitude de cada
elemento em jogo, nessa personalidade diferente e solitária, em que
se encarnou tudo o que temos de melhor em nossa alma brasileira,
com a exclusão de tudo o que tem de ruim e imperfeito.
Tanto saber e tanta bondade, reunidas na mesma pessoa, não
podiam deixar de produzir esse milagre de nossa geração. Geração
traumatizada por duas guerras mundiais, por uma revolução social,
por uma crise contínua e universal, que Leonel Franca estudou com
a meticulosidade que punha em todas as suas análises da
realidade, geração de inquietos, de sacrificados, de angustiados ou
de fanáticos, de que ele foi o centro de gravidade. Girávamos em
torno dele, mesmo os que não participavam de suas idéias, mesmo
os que o combateram violentamente ou recusaram as suas idéias
ou o seu feitio. Estávamos com ele ou contra ele. Mais longe ou
mais perto dele. Com o seu temperamento, sem o seu
temperamento ou contra o seu temperamento.
Não importa. Pelo equilíbrio, pela profundidade do saber, pela
harmonia da cultura filosófica, teológica, científica, sociológica e
pessoal, que ia do trato íntimo diário com Deus em suas meditações
das madrugadas e das noites altas, ao trato não menos íntimo com
o segredo das almas atormentadas, no confessionário ou na cela —
por tudo isso, em face dos amigos, indiferentes ou inimigos, foi o
centro de gravidade de nossa geração, a encruzilhada de nossos
caminhos nesses últimos vinte anos.
E para nós, os companheiros de 1893, era a nossa glória, a
nossa honra, o nosso refúgio.
Éramos cinco. Depois quatro. Depois três. Hoje dois…

“Letras e Artes”, suplemento de A manhã.

Rio, domingo, 12/09/1948.

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