Amy Tan - Cem Sentidos Secretos

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Nota

Este livro foi scaneado e corrigido por Vera Lúcia Figueiredo,


para uso exclusivo de deficientes visuais, de acordo com as leis de direitos
autorais.
Os números das páginas são acompanhados do sinal #.
Abril de 2003.

AMY TAN

Os Cem Sentidos Secretos

Rocco

AMY TAN

OS CEM SENTIDOS SECRETOS

Tradução de
LÉA MARIA VIVEIROS DE CASTRO

Rocco

Rio de Janeiro - 1996

Título original
THE HUNDRED SECRET SENSES

Copyright 1995 by Amy Tan


Primeira publicação pela G.P. Putnam's Sons

Direitos de tradução para O português autorizados por Sandra Dijkstra


Literary Agency para a Editora Rocco Ltda.

Copyright da tradução 1996 by Editora Rocco Ltda.

Direitos para a língua portuguesa reservados


com exclusividade para o Brasil à
EDITORA ROCCO LTDA.
Rua Rodrigo Silva, 26 - 5º andar
20011-040 - Rio de Janeiro - RJ
Tel.: 507-2000 - Fax: 507-2244

Printed in Brazil/Impresso no Brasil

preparação de originais
LENY CORDEIRO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

T166c Tan, Amy


Os cem sentidos secretos / Amy Tan; tradução de Léa Maria Viveiros de
Castro. - Rio de Janeiro: Rocco, 1996

Tradução de: The hundred secret senses

1. Ficção norte-americana. I. Castro, Léa Maria Viveiros de. II.


Título.

96-0961
CDD -813
CDU- 820(73)-3

Para Faith

Para escrever esta história, contei com a tolerância, os conselhos, as


conversas e o apoio de muitas pessoas: Babalu, Ronald Bass, Linden e Logan
Berry , Dr. Thomas
Brady, Sheri Byme, Joan Chen, Mary Clemmey, Dr. Asa DeMatteo, Bram e Sandra
Dijkstra, Terry Doxey, Tina Eng, Dr. Joseph Esherick, Audrey Ferber, Robert
Foothorap,
Laura Gaines, Ann e Gordon Getty, Molly Giles, Amy Hempel, Anna Jardine; Peter
Lee Kenfield, Dr. Eric Kim, Gus Lee, Cora Miao, Susanne Pari, os moradores da
aldeia
de Pei Sa Bao, Robin e Annie Renwick, Gregory Atsuro Riley, os Rock Bottom
Remainders, Faith e Kirkpatrick Sale, Orville Schell, Gretchen Schields, a
equipe da Shelbume
House Library, Kelly Simon, Dr. Michael Strong, Daisy Tan, John Tan, Dr.
Steven Vandervort, Lijun Wang, Wayne Wang, Yuhang Wang, Russell Wong, o povo
de Yaddo e
Zo.
Agradeço a eles, mas não os responsabilizo pela forma oportuna e às
vezes involuntária com que contribuíram para a verdade desta ficção.
#11

Aos seis anos de idade, a americana Olivia conhece a meia-irmã chinesa Kwan.
Com a morte do pai das duas, um chinês que emigrara para os Estados Unidos,
e de sua própria mãe, Kwan chega para morar com a família de Olivia.
Imediatamente Kwan assume o papel de mãe superprotetora da irmã, mesmo sob os
constantes protestos
de Olivia. No quarto que dividem, Kwan murmura segredos sobre fantasmas e pede
a Olivia que jamais os revele.
Trinta anos depois, Olivia está se divorciando de Simon, após um longo
casamento. Por motivos profissionais, no entanto, fazem uma viagem à China, e
Kwan
os acompanha. Na cidadezinha onde Kwan cresceu, Olivia busca entender o que a
lógica ignora e que só pode conhecer por meio de seus sentidos secretos.
Ambientada em San Francisco e numa remota cidade ao sul da China, Os
cem sentidos secretos aborda as diferenças culturais entre a América e a
China. Na figura
das duas irmãs, unem-se os dois universos. Olivia é uma pessoa racional e
cética sobre os aspectos místicos de sua, ascendência chinesa; Kwan tem visões
e acredita
que uma pessoa pode ter vidas múltiplas.
Para Amy Tan, o sucesso inquestionável de seus livros se deve as
emoções e sentimentos
universais que são seu motivo condutor. Em seus livros, assim, não
existe uma confusão de identidades culturais, mas a aceitação de uma dualidade
cultural orgânica.
Os personagens de Os cem sentidos secretos habitam um espaço entre a
realidade e o mundo da fábula. Com habilidade, a autora nos conduz ao cerne
dessas vidas
e aos pormenores das relações humanas em toda a sua complexidade.

Amy Tan nasceu em Oakland, Califórnia, em 1952, e foi criada em San


Francisco. Estudou em Montreux, na Suíça, e recebeu o título de mestre em
lingüística
na Universidade Estadual de San Jose. É autora de O clube da felicidade e da
sorte, A mulher do deus da cozinha e do livro infantil A dama da Lua, todos
publicados
no Brasil pela Rocco.

I
1
A MOÇA DE OLHOS YIN

Minha irmã Kwan acredita que tem olhos yin. Ela enxerga aqueles que já
morreram e que agora habitam o Mundo de Yin, fantasmas que saem das brumas
apenas para visitá-la
em sua cozinha na rua Balboa, em San Francisco.
- Libby-ah - ela costuma me dizer. - Adivinha quem eu vejo ontem, você
adivinha. - E eu não preciso adivinhar que ela está se referindo a alguém
morto.
Na verdade, Kwan é minha irmã: meia-irmã, embora eu não deva mencionar
isto em público. Seria um insulto, como se ela merecesse apenas cinqüenta por
cento
do amor da nossa família. Mas, apenas para esclarecer o aspecto genético, Kwan
e eu temos o mesmo pai, só isso. Ela nasceu na China.
Meus irmãos, Kevin e Tornmy, e eu nascemos em San Francisco depois que
meu pai, ] ack Yee , imigrou para cá e se casou com nossa mãe, Louise
Kenfield.
Mamãe se refere a si mesma como "churrasco misto americano, um pouco
de tudo que é branco, gorduroso e frito". Ela nasceu em Moscow, Idaho, onde
foi campeã
de manejo de bastão e uma vez recebeu um prêmio numa feira por ter cultivado
uma batata deformada que tinha o perfil de Jimmy Durante. Ela me contou que
sonhava
que um dia ia ser diferente - magra, exótica e aristocrática como Luise
Rainer, que ganhou um Oscar pelo papel de O-lan em Terra dos deuses. Quando
mamãe se mudou
para San Francisco e se tornou, em vez disso, uma secretária, ela

#12

fez a segunda melhor coisa. Casou com nosso pai. Mamãe acha que o fato de ter
casado fora da raça anglo-saxônica faz dela uma liberal.
- Quando Jack e eu nos conhecemos - ela ainda diz às pessoas -, havia
leis contra casamentos mistos. Nós desobedecemos à lei por amor. - Ela não
menciona
que aquelas leis não valiam na Califórnia.
Nenhum de nós, incluindo mamãe, conheceu Kwan até ela ter dezoito anos.
De fato, mamãe nem mesmo sabia que Kwan existia até pouco antes de meu pai
morrer por
insuficiência renal. Eu ainda não tinha quatro anos quando ele faleceu. Mas
ainda me lembro de alguns momentos com ele. Deslizando em um escorrega e
caindo nos braços
dele. Pescando no laguinho as moedas que ele tinha atirado lá dentro. E a
última vez que o vi no hospital, quando o que o ouvi dizer me deixou
amedrontada durante
anos.
Kevin, que tinha cinco anos, estava lá. Tommy era apenas um bebê, então
tinha ficado na sala de espera com a prima de mamãe, Betty Dupree - nós
tínhamos de
chamá-la de tia Betty -, que também tinha vindo de Idaho. Eu estava sentada
numa cadeira grudenta de vinil, comendo uma tigela de cubos de gelatina de
morango que
meu pai tinha me dado da bandeja dele de almoço. Ele estava recostado na cama,
respirando ruidosamente. Mamãe uma hora chorava, outra hora parecia animada.
Eu tentava
entender o que havia de errado. A próxima coisa que me lembro é que meu pai
estava sussurrando e mamãe inclinou-se mais para perto para ouvir .Ela foi
abrindo uma
boca cada vez maior. Depois virou a cabeça na minha direção, com as feições
contorcidas de horror. E eu fiquei aterrorizada. Como é que ele sabia? Como
papai descobrira
que eu havia colocado minhas tartaruguinhas, Slowpoke e Fastpoke, no vaso
sanitário aquela manhã e puxado a válvula? Queria ver como elas ficavam sem o
casco e acabei
arrancando suas cabeças.
- Sua filha? - Ouvi minha mãe dizer. - Trazê-la de volta? - E tive
certeza de que ele tinha dito a ela para me levar para o canil, que

#13

era o que tinha feito com nossa cadela Buttons depois que ela comeu o sofá,
que eu me lembro depois de uma grande confusão: a tigela de gelatina se
espatifando no
chão, mamãe olhando fixamente para um
retrato, Kevin agarrando-o e rindo, depois eu estava olhando para aquele
instantâneo preto e branco de um bebê magrinho de cabelos espetados. Numa
certa altura,
ouvi minha mãe gritando:
- Olivia, não discuta, você tem de sair agora. - E eu estava chorando.
- Mas eu vou ser boazinha.
Logo depois disso, minha mãe anunciou:
- Papai nos deixou. - Ela também nos disse que ia trazer a outra
filhinha do papai da China para morar na nossa casa. Ela não disse que ia me
mandar para o
canil, mas eu ainda chorei, achando que estava tudo vagamente relacionado - as
tartarugas sem cabeça descendo pelo vaso, meu pai nos abandonando, a outra
menina
que vinha tomar o meu lugar. Tive medo de Kwan antes mesmo de conhecê-la.
Quando eu estava com dez anos, soube que os rins de meu pai o haviam
matado. Mamãe disse que ele tinha nascido com quatro em vez de dois, e todos
defeituosos.
Tia Betty tinha uma teoria sobre o motivo de isso ter acontecido. Ela sempre
tinha uma teoria, geralmente obtida de uma fonte como o Weekly World News. Ela
disse
que ele devia ser um gêmeo siamês. Mas no útero, meu pai, o gêmeo mais forte,
engoliu o mais fraco e ficou com dois rins extras.
- Talvez ele também tivesse dois corações, dois estômagos, quem sabe?
Tia Betty pintou este cenário mais ou menos na época em que a revista
Life publicou uma reportagem sobre gêmeas siamesas da Rússia. Eu vi a mesma
história:
duas meninas, Tasha e Sasha, ligadas pelo quadril, lindas demais para serem
aberrações da natureza. Isto deve ter sido no meio dos anos sessenta, mais ou
menos na
época em que eu estava aprendendo frações. Lembro-me de ter desejado que
pudéssemos trocar Kwan por essas gêmeas siamesas. Então eu teria duas meias-
irmãs, o que
dava uma inteira, e imaginei que todas as crianças do quarteirão iam
querer ser nossas

#14

amigas, na esperança de que as deixássemos nos ver pular corda ou jogar


amarelinha.
Tia Betty também passou adiante a história do nascimento de Kwan,
que não era triste, apenas embaraçosa. Durante a guerra ela disse, meu pai
tinha sido
um estudante universitário em Guilin. Ele costumava comprar rãs vivas no
mercado, para o jantar, de uma moça chamada Li Chen. Mais tarde ele se casou
com ela, e
em 1944 ela teve essa filha; o bebê magricela do retrato, Kwan.
Tia Betty também tinha uma teoria sobre o casamento.
- Seu pai era bonito para um chinês. Ele era formado numa universidade.
E falava inglês como eu e sua mãe. Ora, por que ele se casaria com uma
camponesa? Porque
foi obrigado, só por isso. - Nessa altura eu já tinha idade
suficiente para entender o que significava este foi obrigado.
Seja como for, em 1948 a primeira mulher do meu pai morreu de uma doença
de pulmão, talvez tuberculose. Meu pai foi para Hong Kong procurar emprego.
Deixou
Kwan aos cuidados da irmã mais moça da mulher, Li Bin-bin, que morava numa
pequena aldeia na montanha chamada Changmian. É claro que ele mandava dinheiro
para sustentar
a filha - que pai não o faria? Mas, em 1949, os comunistas dominaram a China e
meu pai não pôde voltar para buscar a filha de cinco anos. Então o que mais
podia
fazer? Com o coração pesado ele partiu para a América para começar uma nova
vida e esquecer a tristeza que tinha deixado para trás. Onze anos depois,
quando estava
morrendo no hospital, o fantasma de sua primeira esposa apareceu no pé da sua
cama.
- Exija a sua filha de volta - ela avisou - ou sofra as conseqüências
depois da morte! - Esta foi a história que meu pai contou pouco antes de
morrer - isto
é, como ela foi contada anos mais tarde pela tia Betty.
Olhando para trás, eu posso imaginar como minha mãe deve ter se sentido
quando soube disto. Outra mulher? Uma filha na China? Éramos uma família
americana
moderna. Falávamos inglês. É claro que comíamos comida chinesa, mas comprada
pronta, como

#15

todo mundo. E morávamos numa casa tipo rancho em Daly City. Meu pai trabalhava
na Secretaria de Finanças. Minha mãe freqüentava reuniões da associação de
pais e
professores. Ela nunca tinha ouvido meu pai falar sobre superstições chinesas
antes; em vez
disso, eles freqüentavam a igreja e tinham seguro de vida.
Depois que meu pai morreu, minha mãe vivia dizendo a todo mundo que ele
a tratava como a "uma imperatriz chinesa". Fez todo tipo de promessas a Deus e
ao túmulo
de meu pai. De acordo com tia Betty , no enterro minha mãe jurou jamais tornar
a se casar. Jurou que ia nos ensinar a honrar o nome Yee. Jurou encontrar a
filha
mais velha de meu pai, Kwan, e trazê-la para os Estados Unidos.
A última promessa foi a única que cumpriu.

Minha mãe sempre padeceu de um coração bondoso, combinado com erupções


periódicas de autoritarismo. Um verão ela funcionou como mãe adotiva para o
Yorkie Rescue;
a casa ainda fede a xixi de cachorro. Durante dois Natais, preparou comida
para enviar aos desabrigados do refeitório de St. Anthony; agora ela viaja
para o Havaí
com quem quer que seja o seu namorado do momento. Ela circulou petições,
levantou fundos, trabalhou com medicina alternativa. Embora o seu entusiasmo
seja genuíno,
no fim, sempre, ele acaba e ela parte para alguma coisa nova. Acredito que
pensava em Kwan como uma estudante estrangeira de um programa de intercâmbio
que ela fosse
alojar por um ano, uma Cinderela chinesa, que se tornaria auto-suficiente e
levaria uma maravilhosa vida americana.
Durante o tempo anterior à vinda de Kwan, mamãe era uma animadora,
incentivando meus irmãos e eu a aceitar-mos com prazer uma irmã mais velha em
nossas vidas.
Tommy era pequeno demais para fazer outra coisa a não ser balançar
afirmativamente a cabeça toda vez que mamãe dizia:
- Vocês não estão felizes em terem outra irmã grande? - Kevin apenas
sacudia os ombros e fazia um ar de tédio.

#16

Eu era a única que saltava como um boneco de molas, em parte porque estava
extasiada em saber que Kwan seria além de mim e não em vez de mim.
Embora eu fosse uma criança solitária, teria preferido uma nova
tartaruga ou mesmo uma boneca, não alguém que iria competir comigo pela
atenção já dividida
da minha mãe e me forçar a dividir os parcos suvenires do seu amor. Ao
recordar isto, eu sei que minha mãe me amava - mas não de forma absoluta.
Quando comparava
a quantidade de tempo que ela passava com os outros - mesmo com completos
estranhos -, eu me sentia descambando na lista dos favoritos, ficando cheia de
contusões
e machucados.
Ela sempre tinha tempo de sobra na sua vida para encontros com homens ou
almoços com suas amigas. Comigo, ela não era confiável. Promessas de me levar
ao cinema
ou à piscina pública eram quebradas com desculpas ou esquecimentos, ou pior,
com covardes variações do que era dito e do que se queria dizer:
- Detesto quando você faz bico, Olivia - disse-me um dia. - Eu não
garanti que ia ao clube de natação com você. Disse que gostaria de ir: - Como
eu poderia
discutir minhas necessidades frente às suas intenções?
Aprendi a não dar importância às coisas, a colar um lacre nas minhas
expectativas e colocá-las numa prateleira alta, fora do alcance. E, ao dizer a
mim mesma
que afinal de contas essas expectativas não continham nada, eu evitava as
feridas causadas pela decepção profunda. A dor não era pior do que a rápida
picada de uma
agulha de injeção. E, no entanto, só de pensar nisso torno a sentir a dor.
Como é que eu podia saber, em criança, que deveria ter sido mais amada? - Será
que todo
mundo nasce com um reservatório
emocional sem fundo?
Então, é claro, eu não queria ter Kwan como irmã. Justamente o
contrário. E era por isto que eu fazia um enorme esforço na frente da minha
mãe para parecer
entusiasmada. Era uma forma distorcida de lógica inversa: se a expectativa
nunca se realiza, então crie expectativa pelo que você não quer.

#17

Mamãe tinha dito que uma irmã mais velha era uma versão mais velha de
mim mesma, doce e linda, só que mais chinesa, e capaz de me ajudar a fazer
todo tipo
de coisas divertidas. Então imaginei não uma irmã, mas eu outra vez, eu mesma
mais velha, que dançava e usava roupas provocantes, que tinha uma vida triste
mas fascinante,
como uma versão oriental de Natalie Wood em West Side Story, que havia visto
quando tinha cinco anos. Só agora me ocorre que tanto eu quanto minha mãe
tomamos como
modelo, de nossas esperanças atrizes que falavam com sotaques que não eram os
seus.
Uma noite, antes de minha mãe me pôr na cama, ela me perguntou se eu
queria rezar. Eu sabia que rezar significava dizer coisas boas que outras
pessoas queriam
ouvir ,que era o que minha mãe fazia. Então pedi a Deus e a Jesus para me
ajudarem a ser boa. E então acrescentei que esperava que minha irmã mais velha
chegasse
logo, já que minha mãe tinha acabado de falar nisso. Quando eu disse "amém",
vi que ela estava chorando e sorrindo orgulhosamente. Sob a orientação de
minha mãe,
comecei a juntar presentes de boas-vindas para Kwan. A echarpe que tia Betty
me dera de presente de aniversário, a colônia de flor de laranjeira que ganhei
de Natal,
o doce melado do Halloween - guardei amorosamente todos esses artigos
variados, fedorentos e velhos numa caixa que minha mãe tinha marcado "Para a
irmã mais velha
de Olivia". Convenci a mim mesma de que me tornara tão boa que em breve mamãe
iria perceber que nós não precisávamos de outra irmã.
Minha mãe mais tarde contou a mim e a meus irmãos como foi difícil
encontrar Kwan.
- Naquela época - disse ela - não bastava escrever uma carta, colar um
selo nela e mandá-la para Changmian. Tive de enfrentar uma enorme burocracia e
preencher
dúzias de formulários. E não havia muita gente que se dispusesse a ajudar
alguém de um país comunista. Tia Betty achou que eu estava maluca! Ela me
disse: "Como
você pode ficar com uma garota quase adulta que não sabe falar uma palavra de
inglês? Ela não vai saber distinguir o certo do errado nem a direita da
esquerda. "

#18

A papelada não foi o único obstáculo que Kwan teve de vencer sem saber.
Dois anos depois da morte do meu pai, mamãe se casou com Bob Laguni, que Kevin
chama
hoje de "o golpe do acaso na história de namorados estrangeiros de mamãe - e
isso só porque ela pensou que Laguni fosse mexicano em vez de italiano". Mamãe
adotou
o nome de Bob, e foi por isso que eu e meus irmãos também acabamos nos
chamando Laguni; que troquei satisfeita por Bishop quando me casei com Simon.
A questão é
que Bob nunca quis que Kwan viesse. E normalmente mamãe colocava os desejos
dele acima de tudo. Depois que eles se divorciaram - eu estava na faculdade na
época
-, mamãe me contou o quanto Bob a havia pressionado, pouco antes de se
casarem, para cancelar a papelada de Kwan. Acho que ela pretendeu fazê-lo mas
esqueceu. Mas
foi isto o que ela me disse:
- Eu vi você rezar. Parecia tão doce e triste pedindo a Deus: "Por
favor, traga a minha irmã mais velha da China. "

Eu já tinha quase seis anos quando Kwan chegou a este país. Estávamos
esperando por ela na área da alfândega do aeroporto de San Francisco. Tia
Betty também
estava lá. Minha mãe estava nervosa e excitada, falando sem parar:
- Agora ouçam, crianças, ela provavelmente é tímida, então não pulem em
cima dela... E ela deve ser magra como um varapau, então eu não quero ver
nenhum de
vocês rindo dela...
Quando o funcionário da alfândega finalmente trouxe Kwan até o saguão
onde estávamos esperando, tia Betty apontou e disse:
- É ela. Estou dizendo a vocês que é ela. - Mamãe estava sacudindo
negativamente a cabeça. Esta pessoa parecia uma velha senhora esquisita, baixa
e gorducha,
não exatamente a criança abandonada e faminta que mamãe tinha imaginado ou a
glamourosa adolescente que eu tinha em mente. Vestia um conjunto tipo pijama
cinza pardo
e seu rosto largo e moreno era emoldurado por duas grossas tranças.

#19

Kwan era tudo menos tímida. Largou a bolsa, agitou os braços e gritou:
- O-lá!O-lá!"
Ainda agitando os braços e rindo, ela pulou e guinchou como o nosso
cachorro fazia sempre que alguém o deixava sair da garagem. Esta completa
estranha se
atirou nos braços de mamãe, depois nos de papai Bob. Agarrou Kevin e Tommy
pelos ombros e os sacudiu. Quando me viu, ficou calada, agachou-se no saguão e
estendeu
os braços; Eu me agarrei na saia de mamãe.
- É essa a minha irmã mais velha?
Mamãe disse:
- Veja, ela tem os mesmos cabelos negros e grossos do seu pai.
Ainda tenho a fotografia que tia Betty tirou: mamãe com seus cabelos
crespos, usando um conjunto de mohair, ostentando um sorriso evasivo; nosso
padrasto
ítalo-americano, Bob, com um ar perplexo; Kevm e Tommy usando chapéus de
caubói e fazendo caretas; uma Kwan sorridente com a mão no meu ombro; e eu com
um vestido
de festa e o dedo enfiado na boca escancarada.
Eu estava chorando porque momentos antes de a foto ser tirada Kwan me
dera um presente. Era uma pequena gaiola de palha que ela tinha tirado de
dentro da ampla
manga do seu casaco e me entregado orgulhosamente. Quando a ergui e espiei
para dentro, vi um monstro de seis pernas, verde-claro, com uma mandíbula que
parecia
um serrote, olhos saltados e chicotes no lugar de sobrancelhas. Dei um berro e
atirei a gaiola longe.
Em casa, no quarto que dividimos desde então, Kwan pendurou a gaiola com
o gafanhoto, agora sem uma das pernas. Assim que a noite caiu, o gafanhoto
começou
a cricrilar tão alto quanto uma campainha de bicicleta avisando às pessoas
para sair da estrada.
A partir desse dia, minha vida nunca mais foi a mesma. Para mamãe, Kwan
era uma cômoda baby-sitter, disposta, competente e disponível. Antes de minha
mãe sair
para passar a tarde no salão de

#20

beleza ou fazer compras com suas amigas, ela me dizia para não desgrudar de
Kwan.
- Seja uma boa irmãzinha e explique a ela tudo o que ela não entender,
Promete?
Então, todos os dias depois da escola, Kwan se grudava em mim e me seguia
aonde quer que eu fosse. Já no primeiro ano eu me tornei uma especialista em
humilhação
e vergonha públicas. Kwan fazia tantas perguntas idiotas que todas as crianças
da vizinhança achavam que ela tinha vindo de Marte. Ela dizia:
- O que M&M? O que chin-clete? Quem esse marinheiro
Popeye? Por que não tem um olho? Ele bandido? - Até Kevin e Tommy riam.
Com Kwan por perto, minha mãe podia navegar sem culpas pela sua fase de
lua-de-mel com Bobo Quando minha professora ligou para mamãe para dizer que eu
estava
com febre, foi Kwan quem apareceu no serviço médico da escola para me apanhar.
Quando eu levei um tombo andando de patins, foi Kwan quem enfaixou os meus
cotovelos.
Ela trançava os meus cabelos. Preparava a merenda para Kevin, Tommye eu.
Tentava me ensinar a cantar canções chinesas de ninar. Consolou-me quando eu
perdi um dente.
Esfregava o meu pescoço quando eu tomava banho.
Eu devia ser grata a Kwan. Podia sempre confiar nela. A coisa que ela
mais gostava era ficar do meu lado. Mas, em vez disso, a maior parte do tempo
eu me ressentia
por ela ter tomado o lugar de minha mãe.
Lembro-me do dia em que tive pela primeira vez a idéia de me livrar de
Kwan. Foi no verão, poucos meses depois de ela ter chegado. Kwan, Kevin,
Tommye eu estávamos
sentados na varanda da frente, esperando que algo acontecesse. Uns dois amigos
de Kevin se esgueiraram até a lateral da nossa casa e ligaram o sistema de
irrigação.
Meus irmãos e eu ouvimos o ruído revelador da água correndo nos canos e
fugimos antes que uma dúzia de irrigadores começassem a funcionar. Kwan, no
entanto, simplesmente
ficou parada, molhando-se toda, maravilhada pelo fato de tantas fontes terem
brotado da terra ao mesmo tempo. Kevin e seus amigos rolaram de rir. Eu
gritei:

#21

- Isto não foi nada bonito.


Então, um dos amigos de Kevin, um gabola do segundo ano por quem todas as
garotas tinham uma queda, disse para mim:
- Essa china idiota é sua irmã? Ei, Olivia, isto significa que você
também é uma china idiota?
Fiquei tão nervosa que gritei:
- Ela não é minha irmã! Eu a odeio! Quero que ela volte para a China! -
Tommy mais tarde contou ao papai Bob o que eu tinha dito, e papai Bob disse:
- Louise, é melhor você tomar uma providência com relação à sua filha. -
Minha mãe sacudiu a cabeça, com um ar triste.
- Olivia - disse ela -, a gente nunca deve odiar ninguém. Ódio é uma
palavra terrível. Ela faz tanto mal a você como aos outros. - É claro que isto
só me
fez odiar Kwan mais ainda.
A pior parte era dividir o meu quarto com ela. De noite, ela gostava de
abrir a cortina para que a claridade do poste entrasse no quarto, onde nos
deitávamos
lado a lado em nossas camas gêmeas. Sob essa "linda lua americana" , como
dizia, Kwan ficava tagarelando em chinês. Ela continuava falando enquanto eu
fingia estar
dormindo. E ainda estava matraqueando quando eu acordava. Foi assim que me
tornei o único membro da família a aprender chinês. Kwan me infectou com isso.
Absorvi
a língua dela pelos poros enquanto dormia. Ela enfiou no meu cérebro seus
segredos chineses e mudou a minha maneira de ver o mundo. Em pouco tempo eu
estava tendo
pesadelos em chinês. Em troca, Kwan aprendeu inglês comigo - o que, pensando
nisso agora, pode ter sido o motivo pelo qual ela nunca falou muito bem esta
língua.
Eu não era uma professora muito entusiástica. Uma vez, quando eu tinha sete
anos, fiz uma maldade com ela. Estávamos deitadas em nossas camas, no escuro.
- Libby-ah - Kwan disse. E então perguntou em chinês:
- Aquela pêra deliciosa que comemos esta noite, como se chama em
americano?

#22

- Barf - eu disse e depois cobri a boca para ela não ouvir minhas
risadinhas.
Ela tropeçou neste novo som - "bar-a-fa, bar-a-fa". - antes de dizer:
- Wah! Que palavra desajeitada para um gosto tão delicado. Eu nunca
provei uma fruta tão boa. Libby-ah, você é uma menina de sorte. Se ao menos
minha mãe não
tivesse morrido. - Ela podia usar qualquer assunto como gancho para as
tragédias de sua vida passada, tendo me revelado todas elas em nossa língua
secreta, o chinês.
De outra vez, ela me viu examinando todos os meus cartões de Valentine's
Day que tinha espalhado em cima da cama. Aproximou-se e apanhou um cartão.
- Que forma é esta?
- É um coração. Significa amor. Veja, todos os cartões têm esta forma.
Tenho de dar um para cada garoto da minha classe. Mas isto não quer dizer que
eu ame
todos eles. Ela voltou para a cama dela e se deitou.
- Libby-ah - ela disse. - Se ao menos minha mãe não tivesse morrido de
mal do coração. - Suspirei, mas não olhei para ela. Isso de novo. Ela ficou
calada por
alguns momentos, depois continuou. - Você sabe o que significa mal do coração?
- O quê?
- É aquecer o seu corpo ao lado da sua família e depois ver o teto de
palha ser arrancado pelo vento e carregar você embora.
- Oh.
- Sabe, ela não morreu de doença do pulmão, nada disso. E então Kwan me
contou que o nosso pai pegou uma doença de sonhar demais com coisas boas. Ele
não podia
parar de pensar em riquezas e numa vida mais fácil, então ficou perdido, saiu
de suas vidas e apagou as lembranças da mulher e do bebê que deixou para trás.
- Não estou dizendo que o nosso pai fosse um homem mau - Kwan murmurou
com voz rouca. - Não é isso. Mas sua lealdade não era forte. Libby-ah, você
sabe o que
é lealdade?

#23

- O quê?
- É assim. Se você pede a alguém que corte fora a mão para salvá-la de
sair voando junto com o telhado, ele imediatamente corta fora as duas mãos
para mostrar
que está mais do que feliz em fazer isso.
- Oh.
- Mas nosso pai não fez isso. Ele nos abandonou quando minha mãe estava
para ter outro bebê. Não estou mentindo para você, Libby-ah, isto é verdade.
Quando
isto aconteceu, eu tinha quatro anos pelo calendário chinês. Nunca vou me
esquecer de estar deitada ao lado de minha mãe, acariciando sua barriga
inchada. Como uma
melancia, de tão grande.
Ela esticou bem os braços.
- Então toda a água da sua barriga se derramou pelos seus olhos, em
forma de lágrimas. Ela estava tão triste. - Os braços de Kwan baixaram
subitamente. - Aquele
pobre bebê faminto em sua barriga comeu um pedaço do coração de minha mãe, e
ambos morreram.
Tenho certeza de que Kwan falava dessas coisas de modo figurado. Mas,
sendo uma criança, eu considerava tudo o que Kwan dizia como se fosse uma
verdade literal;
mãos arrancadas voando para fora de uma casa sem telhado, meu pai flutuando no
mar da China, o bebezinho sugando o coração de sua mãe. As imagens se
transformaram
em fantasmas. Eu era como uma criança assistindo a um filme de terror, com as
mãos tapando os olhos, espiando nervosamente por entre os dedos. Eu era a
prisioneira
voluntária de Kwan e ela era a minha protetora.
No final de suas histórias, Kwan sempre dizia:
- Você é a única a saber. Não conte a ninguém. Nunca. Promete, Libby-ah?
E eu sempre sacudia negativamente a cabeça, depois concordava, atraída a
esta aliança tanto pelo privilégio quanto pelo medo.
Uma noite, quando minhas pálpebras já estavam pesadas de sono, ela
começou a matraquear de novo em chinês:
#24

- Libby-ah, preciso lhe contar uma coisa, um segredo proibido. E um


fardo pesado demais para continuar guardando dentro de mim.
Bocejei, na esperança de que ela percebesse a indireta.
- Tenho olhos yin.
- Olhos o quê?
- E verdade. Tenho olhos yin. Posso ver pessoas yin.
- O que quer dizer?
- OK, eu vou contar para você. Mas primeiro tem de me prometer que nunca
vai contar a ninguém. Promete, ah?
- OK. Prometo.
- Pessoas yin são aquelas que já morreram.
Meus olhos se arregalaram.
- O quê? Você vê gente morta?... Você quer dizer fantasmas?
- Não conte a ninguém. Nunca. Promete, Libby-ah?
Eu parei de respirar.
- Esses fantasmas estão aqui agora? - sussurrei.
- Oh, sim, muitos. Muitos, muitos, bons amigos.
Cobri a cabeça com o lençol.
- Mande-os embora - supliquei.
- Não tenha medo. Libby-ah, pode aparecer. Eles são seus amigos também.
Oh, veja, estão rindo de você por estar tão assustada.
Comecei a chorar. Depois de algum tempo, Kwan suspirou e disse numa voz
desapontada:
- Está bem, não chore mais. Eles foram embora.
Então foi assim que começou a questão dos fantasmas. Quando eu
finalmente saí de baixo do lençol, vi Kwan sentada bem reta, iluminada pelo
brilho artificial
da sua lua americana, olhando pela janela como se estivesse vendo os seus
visitantes desaparecerem na noite.
Na manhã seguinte, cheguei para minha mãe e fiz o que prometi que nunca
faria: contei a ela sobre os olhos yin de Kwan.

Agora que sou aldulta, compreendo que não foi por minha culpa que Kwan foi
para o hospital psiquiátrico. De certa forma, foi ela mesma

#25

a culpada. Afinal de contas, eu era uma garotinha na época, só tinha sete


anos. Eu estava morta de medo. Tinha de contar à minha mãe o que Kwan estava
dizendo. Achei
que mamãe ia apenas pedir a ela para parar. Então papai Bob soube dos
fantasmas de Kwan e ficou furioso. Mamãe sugeriu levá-la a Old St. Mary para
ter uma conversa
com o padre. Mas papai Bob disse que não, que a confissão não seria
suficiente. Ele internou Kwan na ala de psiquiatria do Mary's Help.
Quando a visitei lá na semana seguinte, Kwan murmurou para mim:
- Libby-ah, ouça, eu tenho segredo. Não conte para ninguém, ah? - E
então passou a falar em chinês. - Quando os médicos e as enfermeiras me fazem
perguntas,
eu os trato como fantasmas americanos - não os vejo, não os ouço, não falo com
eles. Logo eles vão saber que não podem me modificar, vão saber por que
precisam deixar
que eu saia. - Lembro-me da aparência dela, tão imóvel quanto uma escultura de
pedra.
Infelizmente, a sua terapia de silêncio chinês causou o efeito
contrário. Os médicos acharam que Kwan tinha ficado catatônica. Do jeito que
as coisas eram
no início dos anos sessenta, os médicos diagnosticaram os fantasmas chineses
de Kwan como uma séria doença mental. Deram-lhe eletrochoques, uma vez, ela
disse, duas
vezes, ela gritou, depois muitas e muitas vezes. Até hoje os meus dentes doem
só de pensar nisto.
Na próxima vez que eu a vi no hospital, ela tornou a confiar em mim.
- Toda aquela eletricidade soltou a minha língua e eu não pude mais
ficar calada como um peixe. Eu me tornei um pato do campo, gritando gwa-gwa-
gwa! - alardeando
o Mundo de Yin. Os quatro fantasmas malvados gritaram "Como você pôde contar
nossos segredos?" Eles me deram
um yin-yang tou - forçaram-me a arrancar metade do meu
cabelo. Foi por isso que as enfermeiras rasparam o resto. Eu
não conseguia parar de puxar, até que um dos lados da
minha cabeça estivesse tão careca quanto um melão, e o

#26

outro lado cabeludo como um coco. Os fantasmas me acusaram de ter duas faces:
uma leal, uma traidora. Mas eu não sou uma traidora! Olhe para mim, Libby-ah.
O meu
rosto é leal? O que você, está vendo?
O que vi me deixou paralisada de medo. A cabeça dela parecia ter sido
raspada com um cortador de grama. Era tão horrível quanto ver um animal
correndo na rua
e imaginar o que ele tinha sido antes. Só que eu sabia como o cabelo de Kwan
costumava ser. Antes, ele ia até abaixo de sua cintura. Antes, os meus dedos
corriam
por ele como se fossem ondas de cetim preto. Antes, eu agarrava sua cabeleira
e a sacudia como se fossem rédeas de uma mula, gritando:
- Giddyap, Kwan, diga hee-haw!
Ela pegou minha mão e a esfregou em seu crânio, que parecia uma lixa,
murmurando coisas acerca de amigos e inimigos na China. Ficou falando sem
parar, como
se o tratamento de choque houvesse destruído as engrenagens do seu queixo e
ela não pudesse mais parar. Fiquei apavorada de pegar aquela doença de falar
loucamente.
Até hoje não sei por que Kwan não me culpou pelo que aconteceu. Tenho certeza
de que ela sabia que eu é que a tinha colocado naquela situação. Depois que
voltou
do Mary's Help, deu-me seus braceletes de identificação para eu guardar de
lembrança. Falou sobre as crianças da escola dominical que foram ao hospital
cantar "Noite
feliz", como elas tinham gritado quando um velho berrou "Calem a boca!" Contou
que alguns pacientes de lá eram possuídos por fantasmas, que não eram como as
bondosas
pessoas yin que ela conhecia, e que isto era uma pena. Nem uma vez ela disse:
"Libby-ah, por que contou o meu segredo?"
No entanto, o modo como me lembro disso é o modo como sempre me senti -
que a havia traído e que isto é que a deixara louca. Achava que era culpada
também
pelos tratamentos de choque. Eles libertaram todos os seus fantasmas.

#27

Isso aconteceu há mais de trinta anos, e Kwan ainda se lamenta:


- Meu cabelo tão lindo, macio e brilhante como uma cachoeira, liso e
sedoso como uma enguia. Agora veja. Todo esse tratamento de choque, foi como
uma permanente
malfeita, deixando o líquido vagabundo tempo demais. Toda a minha linda cor -
queimada. Toda a maciez - encrespada. Meu cabelo agora parece arame, espetando
mensagem
no meu cérebro: nada mais de conversa yin! Eles me fizeram isso, hah, mas eu
não mudei. Vê? Eu continuo forte.
- Kwan tinha razão. Quando seu cabelo voltou a crescer, estava duro,
espetado, como um terrier. E, quando ela o escovava, mechas inteiras estalavam
e se erguiam,
cheias de estática, espocando como filamentos de uma lâmpada ao se queimar.
Kwan explicou:
- Toda aquela eletricidade que o médico enfiou no meu cérebro
agora corre pelo meu corpo como um cavalo dando voltas na pista.
Ela afirma que é por isso que não pode mais chegar perto de um aparelho
de televisão sem que ele chie. Ela não usa o walkman que seu marido, George,
lhe deu;
ela tem de encostar o rádio na coxa para fazer terra senão, em qualquer
estação que sintonize, só ouve "uma música horrível, boom-pah-pah, boom-pah-
pah". Não pode
usar qualquer tipo de relógio. Ela ganhou um relógio digital de prêmio no
bingo e, quando o colocou no pulso, os números começaram a mudar como as
frutas de uma
máquina caça-níqueis. Duas horas depois o relógio parou.
- Eu ganhei o prêmio - ela disse. - Oito-oito-oito-oito-oito. Números de
sorte, relógio ruim.
Embora Kwan não seja tecnicamente treinada, consegue identificar em um
segundo o ponto defeituoso em um circuito elétrico, seja num interruptor de
parede ou
num equipamento fotográfico. Ela já fez isso com alguns equipamentos meus.
Aqui estou eu, uma fotógrafa de publicidade, e ela mal consegue operar uma
câmera automática.
No entanto, sempre foi capaz de identificar a parte específica da câmera
ou do cabo ou da bateria que estava

#28

com defeito, e depois, quando mando a câmera para consertar na Cal


Precision em Sacramento, vejo que ela estava certa. Também já a vi ativar
temporariamente um telefone sem fio mudo apenas pressionando com os dedos os
pontos de
recarregar que ficam na parte de trás do telefone. Ela não consegue explicar
nada disto e nem eu. Só o que posso dizer é que já a vi fazer tudo isso.
A mais estranha de suas capacidades, na minha opinião, tem a ver com o
diagnóstico de doenças. Quando ela troca um aperto de mãos com um estranho, é
capaz
de dizer se ele já teve algum osso quebrado, mesmo que a fratura tenha se
consolidado há muito tempo. Sabe instantaneamente se uma pessoa
teve artrite, tendinite, bursite, ciática - ela é realmente boa
com relação a todos os Problemas musculoesqueléticos -, doenças que ela chama
de "ossos ferventes", "braços febris", "juntas estragadas", "pernas
traiçoeiras", e
que considera causadas pelo fato de se comer coisas frias e quentes ao mesmo
tempo, de se contar as decepções nos dedos, de sacudir a cabeça de tristeza ou
de armazenar
preocupações entre o queixo e os punhos. Ela não consegue curar ninguém
imediatamente; não é nenhuma Gruta de Lurdes ambulante. Mas um bocado de gente
diz que ela
tem o toque curativo. Como seus fregueses do Spencer's, a drogaria nos
arredores de Castro onde trabalha. A maioria das pessoas que compra remédios
lá é formada
de gays - "solteiros", como ela os chama. E, como trabalha lá há mais de vinte
anos, já viu alguns dos seus fregueses habituais caírem doentes com Aids.
Quando eles
entram, ela faz uma massagem rápida em seus ombros, enquanto oferece conselhos
médicos:
- Você ainda toma cerveja, come comidas picantes? Junto, ao mesmo tempo?
Wah! O que foi que eu disse? Tst! Tst! Como vai ficar bom assim? Ah? - como se
eles
fossem garotinhos atrás de atenção.
Alguns dos seus fregueses aparecem lá todos os dias, embora possam
receber os remédios em casa, sem nenhum ônus. Eu sei por quê. Quando ela põe a
mão no lugar
que está doendo, você sente um formigamento, como se mil fadas estivessem
dançando para cima e para baixo, e então é como se circulasse água quente por
suas veias.

#29

Você não fica curado, mas, se sente aliviado, sem preocupações, flutuando em
um mar de tranqüilidade.
Kwan me disse uma vez:
- Depois que eles morrem, os yin solteiros ainda vêm me visitar. Eles me
chamam de doutora Kwan. Brincando, é claro. - E então ela acrescentou
timidamente
em inglês: - Talvez também por respeito. O que você acha, Libby-ah? - Ela
sempre me pergunta isto: - O que você acha?
Ninguém na nossa família fala sobre as estranhas habilidades de Kwan.
Isto chamaria atenção para o que nós já sabemos, que Kwan é doida, mesmo pelos
padrões
chineses - mesmo pelos padrões de San Francisco. Um bocado do que ela diz e
faz despertaria a incredulidade da maioria das pessoas que não tomam drogas
antipsicóticas
nem moram em fazendas pertencentes a seitas religiosas.
Mas eu não acho mais que minha irmã seja louca. Ou, se é, é inteiramente
inofensiva, isto é, se as pessoas não a levarem a sério. Ela não fica
recitando na
calçada como aquele cara em Market Street que berra que a Califórnia está
fadada a mergulhar no oceano como uma placa de mariscos. E ela não ganha
dinheiro com a
Nova Era; você não precisa lhe pagar cento e cinqüenta dólares a hora só para
Ninguém ela revelar o que há de errado com sua vida passada. Ela diz isso de
graça,
mesmo que você não pergunte.
A maior parte do tempo, Kwan é como todo mundo, fazendo fila, comprando
coisas em liquidação, cantando vitória com cada economia:
- Libby-ah - ela disse esta manhã pelo telefone -, ontem comprei dois
sapatos pelo preço de um na liquidação, no Emporium Capwell. Adivinha quanto
eu deixei
de pagar. Adivinha.
Mas Kwan é estranha, não há como negar. Às vezes isso me diverte. Às
vezes me irrita. Na maioria das vezes fico aborrecida, até zangada - não com
Kwan, mas
pelo fato de as coisas nunca saírem como você esperava. Por que eu tive de ter
Kwan como irmã? Por que ela teve de ter a mim?

#30

De vez em quando, imagino como seriam as coisas entre mim e Kwan se ela
fosse mais normal. Mas quem pode dizer o que é ser normal? Talvez em outro
país Kwan
fosse considerada normal. Talvez em algumas partes da China, de Hong-Kong ou
de Taiwan ela fosse reverenciada. Talvez exista algum lugar no mundo onde
todos tenham
uma irmã de olhos yin.

Kwan agora está com quase cinqüenta anos, enquanto eu sou doze anos mais moça,
um fato que ela menciona orgulhosamente sempre que alguém pergunta
educadamente qual
de nós duas é a mais velha. Na frente de outras pessoas, ela gosta de beliscar
a minha bochecha e dizer que minha pele está ficando "franzida" porque eu fumo
cigarros
e bebo vinho e café demais - maus hábitos que ela não possui.
- Não entre nisso, não vai precisar parar - gosta de dizer. Kwan não é
profunda nem sutil; tudo está bem ali na superfície, para quem quiser ver. A
questão
é que ninguém jamais adivinharia que somos irmãs.
Kevin uma vez disse brincando que talvez os comunistas tivessem nos
mandado a garota errada, imaginando que nós, americanos, achávamos mesmo todos
os chineses
iguais. Depois de ouvir isto, fantasiei que um dia receberíamos uma carta da
China dizendo: " Sentimos muito, camaradas. Cometemos um engano." Em diversos
aspectos,
Kwan nunca se enquadrou em nossa família. A nossa fotografia anual de Natal
parecia um daqueles quebra-cabeças infantis tipo "O que está errado nesta
foto?" Todos
os anos, na frente e no meio, lá está Kwan - usando roupas bem coloridas
deverão, presilhas de plástico em forma de gravata-borboleta de cada lado da
cabeça, e um
sorriso aparvalhado de orelha a orelha. Mamãe acabou arranjando um emprego
para ela como ajudante de garçom em um restaurante sino-americano. Kwan levou
um mês para
descobrir que a comida que eles serviam era supostamente chinesa. O tempo não
contribuiu em nada seja para americanizá-la ou para mostrar qualquer
semelhança entre
ela e nosso pai.

#31

Por outro lado, todo mundo diz que eu sou a que mais me pareço com ele, tanto
fisicamente quanto em temperamento.
- Vejam quanto a alivia consegue comer sem engordar um só quilo - tia
Betty está sempre dizendo. - Exatamente! como Jack.
Minha mãe disse uma vez:
- Olivia analisa cada detalhe exaustivamente. Ela tem a mentalidade de
contador do pai. Não é surpresa que tenha se tornado fotógrafa. - Esses tipos
de comentários
me fazem pensar o que mais foi transmitido para mim pelos genes de meu pai.
Será que herdei dele o meu mau humor, a mania de pôr sal nas frutas, minha
fobia de germes?
Kwan, ao contrário, é um pequeno dínamo, mal chega a li um metro e meio
de altura, um touro em miniatura numa loja de porcelana. Tudo nela é
exagerado. Ela
usa um casaco de xadrez roxo por cima de uma calça turquesa. Sussurra alto com
uma voz rouca, parecendo que sofre de laringite crônica, quando de fato nunca
fica
doente. Fornece conselhos sobre saúde, recomenda ervas medicinais, e ensina
como consertar qualquer coisa, desde xícaras quebradas até casamentos
desfeitos. Ela
pula de um assunto para outro, entremeando dicas sobre onde achar pechinchas
para comprar. Tommy disse uma vez que Kwan acredita em discurso livre, livre
associação,
lavagem de carros livre para quem encher o tanque. A única mudança no inglês
de Kwan nos últimos trinta anos é a velocidade com que fala. No entanto, ela
acha o
seu inglês fantástico. Freqüentemente ela corrige o marido.
- Não é stealed - ela diz a George. - É stolened.
Apesar das nossas diferenças óbvias, Kwan acha que ela e eu somos
exatamente iguais. Considera que estamos ligadas por um cordão umbilical
cósmico chinês que
nos deu os mesmos traços inatos, motivações pessoais, destino e sorte.
- Eu e Libby-ah - diz às pessoas que acaba de conhecer -
somos iguais aqui. - E ela dá um tapinha na minha cabeça.

#32

- Nós duas nascemos no Ano do Macaco. Qual é a mais velha? Adivinha. Qual? -
E então ela espreme a bochecha dela contra a minha.
Kwan nunca foi capaz de pronunciar corretamente o meu nome, Olivia. Para
ela, serei sempre Libby-ah, não simplesmente Libby, como o suco de tomate, mas
Libby-ah,
como o país de Muhammar al-Kadhafi. Em conseqüência disto, o marido dela,
George Lew, os dois filhos do primeiro casamento dele, e todo esse lado da
família me chamam
também de Libby-ah. O "ah" é o que mais me aborrece. É o equivalente chinês de
"ei", como em "Ei, Libby, venha cá". Uma vez eu perguntei a Kwan se ela
gostaria que
eu a apresentasse a todo mundo como "Ei, Kwan". Ela me deu um tapa no braço,
ficou sem fôlego de tanto rir, depois disse roucamente:
- Gostei, gostei. - Chega de paralelos culturais, vai ser Libby-ah
para todo o sempre.
Não estou dizendo que não amo Kwan. Como posso deixar de amar a minha
irmã? Em muitos aspectos, ela foi mais minha mãe do que minha própria mãe. Mas
me
sinto mal por não querer ser íntima dela. O que eu quero dizer é que somos
íntimas de certo modo. Sabemos de coisas uma sobre a outra, principalmente
pela nossa
história, pelo fato de termos partilhado o mesmo armário, a mesma pasta de
dentes, o mesmo cereal todas as manhãs durante doze anos,
por todas as rotinas e hábitos decorrentes de fazermos parte da mesma família.
Acho realmente que Kwan é doce, e também leal, extremamente leal. Ela
arrancaria fora
a orelha de qualquer pessoa que dissesse uma palavra depreciativa a meu
respeito. Isto conta um bocado. Apenas não gostaria de ser mais íntima dela,
não como algumas
irmãs que se consideram a melhor amiga uma da outra. Não compartilho tudo com
ela como ela faz comigo, contando-me os detalhes mais íntimos de sua vida -
como o
que ela me contou na semana passada sobre o marido:
- Libby-ah - disse ela. - Descobri uma verruga, do tamanho da minha
narina, no - como é que se chamam essas coisas entre as pernas do homem, em
chinês nós
dizemos yinnang, redondas e enruga das como duas nozes?

#33

- Escroto.
- Sim-sim, encontrei verruga grande no escroto! Agora todo dia - todo
dia, tenho de examinar Georgie-ah, escroto dele, para ter certeza de que a
verruga não
cresceu.
Para Kwan, não há fronteiras na família. Tudo está aberto a uma terrível
e exaustiva dissecação - quanto você gastou nas suas férias, o que há de
errado com
a sua pele, por que você está tão abatida quanto um peixe num tanque de
restaurante. E ela ainda pergunta por que não faz parte da minha vida social.
Ela, entretanto,
me convida para jantar uma vez por semana, além de me convidar para qualquer
cansativa reunião familiar - na semana passada foi para uma festa em homenagem
à tia
de George, comemorando o fato de ela ter recebido a cidadania americana depois
de cinqüenta anos, coisas deste tipo. Kwan acha que só uma catástrofe de
grandes proporções
é que pode evitar que eu vá. Ela pergunta preocupada:
- Por que você não vem ontem à noite? Alguma coisa errada?
- Não.
- Está doente?
- Não.
- Quer que eu vá aí, levar uma laranja? Eu tenho extra, bom preço, seis
por um dólar.
- Eu estou muito bem, de verdade.
Ela é como um gato órfão, tentando ganhar o meu coração. Foi assim a
vida inteira, descascando minhas laranjas, comprando balas para mim, admirando
os meus
boletins escolares e dizendo como eu era inteligente, mais inteligente do que
ela jamais poderia ser. No entanto, nunca fiz nada para que ela gostasse de
mim. Em
criança, freqüentemente me recusava a brincar com ela. Ao longo dos anos,
gritei com ela, disse que ela me envergonhava. Nem me lembro de quantas vezes
menti para
evitar vê-la.
Mas ela sempre interpretou os meus rompantes como, conselhos úteis, as
minhas fracas desculpas como boas intenções, meus pálidos gestos de afeição
como lealdade
fraternal. E, quando não consigo mais suportar isto, me descontrolo e digo que
ela e louca. Antes que eu possa me desculpar, ela dá um tapinha no meu

#34

braço, sorri e depois ri. E a ferida que ela recebe cicatriza imediatamente.
Enquanto eu me sinto culpada para sempre.

Nos últimos meses Kwan se tornou mais difícil. Geralmente, depois que eu digo
não três vezes para alguma coisa, ela desiste. Agora é como se a mente dela
estivesse
enguiçada numa tecla automática de rebobinar. Quando não estou irritada com
ela, estou preocupada, achando que ela está a ponto de sofrer outro colapso
nervoso.
Kevin disse que ela deve estar na menopausa. Mas eu sei que é mais do que
isso. Ela está mais obsessiva do que o normal. A conversa de fantasmas está se
tornando
mais freqüente. Menciona a China cada vez que fala comigo, que precisa voltar
lá antes que tudo mude e que
seja tarde demais. Tarde demais para quê? Ela não sabe.
E tem o meu casamento. Ela simplesmente não aceita o fato de que eu e
Simon tenhamos nos separado. De fato, ela está tentando sabotar o divórcio. Na
semana
passada, dei uma festa de aniversário para Kevin e convidei o cara com quem
estou saindo, Ben Apfelbaum. Quando ele disse a Kwan que trabalhava como
descobridor
de talentos para locução em comerciais de rádio, ela disse:
- Ah, Libby-ah e eu também, nós duas temos talento para sair de
situações difíceis, também temos talento para fazer as coisas do nosso jeito.
Não é verdade,
Libby-ah? - Ela sacudiu as sobrancelhas. - Seu marido, Simon, acho que ele
concorda comigo, ah?
- Meu muito em breve ex-marido. - Então fui obrigada a explicar para
Ben: - Nosso divórcio será homologado daqui a cinco meses, no dia quinze de
dezembro.
- Talvez não, talvez não - Kwan disse, depois riu e beliscou o meu
braço. Ela se virou para Ben: - Você conhece Simon?
Ben sacudiu a cabeça e começou a dizer:
- Olivia e eu nos conhecemos no...
- Oh, muito bem - Kwan cricrilou. Ela pôs a mão em concha no canto da
boca e confidenciou: - Simon parece irmão gêmeo de Olivia, metade chinês.

#35
- Metade havaiano - disse eu. - E não somos nada parecidos.
- O que sua mãe e seu pai fazem? - Kwan examinou o casaco de cashmere de
Ben.
- Ambos estão aposentados e moram no Missouri - Ben disse. - Que
tristeza! Tst! Tst! - Ela olhou para mim. - Isto é muito triste .
Toda vez que Kwan menciona Simon, acho que o meu cérebro vai implodir de
tanto que eu me esforço para não gritar de raiva. Ela acha que, como fui eu
que dei
início ao divórcio, posso voltar atrás.
- Por que não perdoar? - Ela disse depois da festa. Ela estava
arrancando as folhas mortas de uma orquídea. - Teimosia e raiva juntas, muito
ruim para você.
- Como não respondi, ela tentou outra tática: - Acho que você ainda tem
sentimentos fortes por ele - mm-hm! Muito, muito fortes. Ah -
veja! -, olhe
para o seu rosto. Tão vermelho! É o amor saindo com força do seu coração.
Estou certa? Responda. Estou certa?
E eu continuei examinando a correspondência, rabiscando MUDOU-SE nos
envelopes endereçados a Simon Bishop. Nunca discuti com Kwan os motivos da
nossa separação.
Ela não entenderia. É complexo demais. Não há qualquer fato ou briga para que
eu possa apontar e dizer: "Este foi o motivo." Nossa separação resultou de
muitas coisas:
um começo errado, uma adaptação errada, anos e anos achando que hábito e
silêncio eram o mesmo que intimidade. Depois de dezessete anos juntos, quando
finalmente
percebi que precisava de mais alguma coisa na minha vida, Simon pareceu
desejar menos. É claro que eu o amava, demais. E ele me amava, só que não o
suficiente. Só
o que eu quero é alguém que me coloque em primeiro lugar em sua vida. Não
estou mais disposta a aceitar migalhas emocionais.
Mas Kwan não entenderia isto. Ela não sabe que as pessoas podem ferir
você irremediavelmente. Ela acredita nas pessoas que pedem desculpas. É do
tipo ingênuo,
crédulo, que acredita em tudo

#36

que é dito nos comerciais de televisão. Veja a casa dela: está entulhada de
acessórios - facas Ginsu, fatiadores e trituradores, processadores de suco e
máquinas
de fazer batatas fritas, tudo o que você imaginar ela comprou por "apenas
dezenove e noventa e cinco, peça agora, oferta válida até meia-noite".
- Libby-ah - Kwan me disse hoje no telefone. - Tem uma coisa que eu
preciso contar, notícia muito importante. Esta manhã falei com Lao Lu. Nós
decidimos: você
e Simon não devem se divorciar.
- Que bom - eu disse. - Vocês decidiram. - Eu estava pondo em dia o meu
talão de cheques, somando e subtraindo enquanto fingia restar atenção.
- Eu e Lao Lu. Você se lembra dele.
- O primo de George. - O marido de Kwan parecia ter parentesco com todos
os chineses de San Francisco.
- Não-não! Lao Lu não é primo. Como pôde esquecer? Já falei nele uma
porção de vezes para você. Velho, careca. Braço forte, perna forte, gênio
forte. Quando
perde a paciência, perde a cabeça também! Decepada. Lao Lu diz...
- Espere um minuto. Alguém sem cabeça está agora me dizendo o que fazer
com o meu casamento?
- Tst! Cabeça decepada mais de cem anos atrás. Agora está bem, sem
problema. Lao Lu acha que, se você, eu e Simon, nós três formos para a China,
tudo vai ficar
bem. OK, Libby-ah?
Suspirei:
- Kwan, não tenho tempo para falar sobre isto agora. Estou no meio de
uma coisa.
- Lao Lu diz que não basta pôr em dia talão de cheques, ver quanto
restou. Precisa pôr em dia vida também.
Como é que Kwan soube que eu estava pondo em dia o meu talão de cheques?
Sempre foi assim comigo e Kwan. Assim que eu me descarto dela, ela faz
um truque que me deixa assustada, que me torna de novo prisioneira dela. Com
ela por
perto, jamais terei uma vida independente. Ela irá sempre reivindicar juros
mais altos.

#37

Por que eu permaneço sendo a sua querida irmãzinha? Por que ela acha que
eu sou a pessoa mais importante da vida dela? - a mais importante! Por que ela
repete
sem parar que mesmo que não fôssemos irmãs ela sentiria a mesma coisa?
- Libby-ah - ela me diz -, eu nunca vou abandonar você.
Não! Tenho vontade de gritar, eu não fiz nada, não diga mais isto.
Porque, toda vez que ela diz isso, transforma todas as minhas traições em amor
que precisa
ser recompensado. Saberemos para sempre: ela foi leal, um dia eu vou ter de
ser.
Mas, mesmo que eu cortasse fora as minhas duas mãos, não adiantaria.
Como Kwan já disse, ela jamais me deixará ir. Um dia o vento vai soprar e ela
estará agarrada
a um tufo do telhado de palha, pronta para voar para o Mundo deYin.
"Vamos! Venha depressa!", ela estará murmurando por sobre o
barulho da tempestade. "Mas não conte a ninguém. Prometa; Libby-ah."

#38

2
PESCADOR DE HOMENS

Antes das sete da manhã, O telefone toca. Kwan é a única pessoa que ligaria
numa hora tão inconveniente. Deixo a secretária eletrônica atender.
- Libby-ah? - ela murmura. - Libby-ah, você está aí? Aqui é sua irmã
mais velha... Kwan. Tenho uma coisa importante para contar para você... Você
quer ouvir?...
A noite passada eu sonhei com você e Simon. Sonho estranho. Você vai ao banco,
retira suas economias. De repente, assaltante de banco entra. Rápido! Você
esconde
a bolsa. Então assaltante rouba o dinheiro de todo mundo menos o seu. Mais
tarde, você vai para casa, enfia a mão na bolsa - ah! - onde está? -
Sumiu! Não o
dinheiro, mas o seu coração. Roubado! Agora você não tem mais coração, como
pode viver? Não tem energia, não tem cor no rosto, pálida, triste, cansada.
Presidente
do banco onde você tinha suas economias, ele diz: "Eu empresto meu coração.
Sem juros. Você paga quando quiser." Você ergue os olhos, vê o rosto dele -
sabe quem,
Libby-ah? Adivinha... Simon! Sim-sim, dá o coração dele para você. Está vendo!
Ainda ama você. Libby-ah, você acredita? Não é só sonho... Libby-ah, você está
ouvindo?

Por causa de Kwan, tenho capacidade de me lembrar de sonhos. Até hoje, consigo
me lembrar de oito, dez, até doze sonhos. Aprendi isso

#39

quando Kwan voltou do Mary's Help. Assim que eu acordava, ela perguntava:
- Na noite passada, Libby-ah, quem você encontrou? O que você viu?
Com a mente ainda meio desperta, eu me agarrava aos fragmentos de um
mundo que estava desaparecendo e me puxava de volta para ele. De lá eu
conseguia descrever
para ela os detalhes da vida que tinha acabado de deixar - os arranhões no meu
sapato, a pedra que eu tinha deslocado, o rosto da minha verdadeira mãe me
chamando
lá de baixo. Quando eu parava, Kwan perguntava:
- Onde você esteve antes disto? - Estimulada, eurefazia o caminho até o
sonho anterior, depois para o que vinha antes deste, uma dúzia de vidas, e às
vezes
suas mortes. Esses são os momentos que eu nunca esqueci, os últimos momentos
antes de morrer.
Ao longo de anos de vida sonhada, provei cinzas que caíam na neblina da
noite. Vi mil lanças faiscando no alto de uma colina. Toquei minúsculos grãos
de um
muro de pedra enquanto esperava ser morta. Senti o cheiro almiscarado dó meu
próprio medo enquanto a corda era apertada ao redor do meu pescoço. Senti o
peso de
voar no ar sem gravidade. Ouvi o chiado da minha voz no momento em que minha
vida chegava ao fim.
- O que você vê depois que morre? - Kwan sempre perguntava.
Eu sacudia a cabeça.
- Não sei. Meus olhos estavam fechados.
- Da próxima vez, abra os olhos.
Durante a maior parte da minha infância, achei que todo mundo se
lembrava dos sonhos como sendo outras vidas, outros eus. Como Kwan. Depois que
ela voltou
do hospital psiquiátrico, ela me contava histórias sobre eles, sobre o povo
yin, na hora de dormir: uma mulher chamada Bandeira, um homem chamado Capa,
uma bandoleira
de um olho só, um homem meio a meio. Ela fazia parecer que todos esses
fantasmas eram nossos amigos. Não contei nem para

#40

minha mãe nem para papai Bob o que Kwan dizia. Vejam o que aconteceu da última
vez que fiz isso.
Quando fui para a faculdade e pude finalmente escapar do mundo de Kwan,
já era tarde demais. Ela tinha plantado a imaginação dela na minha. Seus
fantasmas
se recusavam a sair dos meus sonhos.
- Libby-ah - ainda posso ouvir Kwan dizendo em chinês -, já lhe contei o
que a Srta. Bandeira prometeu antes de nós morrermos?
Ainda me vejo fingindo que estava dormindo.
E ela continuava:
- É claro que não sei exatamente há quanto tempo isto aconteceu. O tempo
não é o mesmo entre uma vida e a outra. Mas acho que foi durante o ano de
1864. Não
tenho certeza se era o ano lunar chinês ou o ano do calendário ocidental...
No fim eu acabava dormindo, em que ponto da história dela eu sempre
esquecia. Então que parte do sonho era dela e que parte era minha? Qual era o
ponto de
interseção entre eles? Toda noite ela me contava estas histórias. E eu ficava
lá deitada, em silêncio, indefesa, desejando que ela calasse a boca.

Sim, sim, tenho certeza de que era 1864. Lembro agora, porque o ano soou muito
estranho. Libby-ah, ouça só: Yi-ba-liu-si. A Srta. Bandeira disse que era como
dizer:
Perca a esperança, deslize para a morte. E eu disse, não, isto quer dizer:
Leve a esperança, os mortos permanecem. As palavras chinesas são boas e más,
tantos significados,
dependendo do que você tem no coração.
De todo modo, esse foi o ano em que eu dei o chá à Srta. Bandeira. E ela
me deu a caixa de música, a que eu roubei dela uma vez e depois devolvi.
Lembro-me
da noite em que pusemos a caixa de música entre nós com todas as coisas que
não queríamos esquecer lá dentro. Éramos só nós duas, estávamos sozinhas na
Casa do Mercador
Fantasma, onde moramos durante seis anos junto com os

#41

Adoradores de Jesus. Estávamos em pé ao lado do arbusto sagrado, o mesmo


arbusto que dava folhas especiais, as mesmas folhas que eu
usei para fazer o chá. Só que agora o arbusto tinha sido abatido e a Srta.
Bandeira estava dizendo que sentia muito ter deixado o General Capa matar
aquele arbusto.
Uma morte tão triste e quente, a água correndo pelos nossos rostos, suor e
lágrimas, as cigarras gritando cada vez mais alto, e depois silenciando. E,
mais tarde,
ficamos paradas na arcada, mortas de medo. Mas também estávamos felizes.
Estávamos felizes em saber que estávamos infelizes pelo mesmo motivo. Aquele
foi o ano que
os nossos céus pegaram fogo.
Seis anos antes, quando a conheci, eu tinha catorze anos e ela vinte e
seis, talvez um pouco mais ou um pouco menos. Nunca soube calcular a idade de
estrangeiros.
Vim de um pequeno lugar na Montanha do Cardo, ao sul de Changmian. Nós não
éramos punti, os chineses que afirmam terem mais sangue Rio Amarelo Han
correndo em suas
veias e que por isso tudo deveria pertencer a eles, E também não pertencíamos
às tribos zhuang, sempre lutando umas contra as outras, aldeia contra aldeia,
clã contra
clã. Éramos hakka, Povo Visitante - Hnh! -, quer dizer, hóspedes que não são
convidados a ficar muito tempo em nenhum bom lugar .
Então morávamos em uma das muitas casas redondas hakka,
numa parte pobre das montanhas, onde é preciso plantar
em desfiladeiros e ficar de quatro como um cabrito e desencavar dois carrinhos
de rochas antes de conseguir cultivar um punhado de arroz.
Todas as mulheres trabalhavam tão pesado quanto os homens, não havia
diferença entre quem carregava as pedras, quem fazia o carvão, quem protegia a
plantação
dos bandidos à noite. Todas as mulheres hakka eram assim, fortes. Não
enfaixávamos os pés como as moças han, as que saltavam de um lado para o outro
em cima de cotos
tão pretos e podres como bananas velhas. Tínhamos de caminhar pelas montanhas
para fazer nosso trabalho. Nada de ataduras, nada de sapatos. Nossos pés
descalços
pisavam nos cardos afiados que tornaram famosa a nossa montanha.

#42

Uma noiva hakka das nossas montanhas tinha calos nos pés e um rosto
bonito, de ossos largos. Havia outras famílias hakka vivendo perto das cidades
grandes
de Yongan, nas montanhas, e Intian, à beira do rio. E as mães das famílias
mais pobres gostavam de casar os seus filhos com moças bonitas e trabalhadoras
da Montanha
do Cardo. Durante os festivais de contratação de casamento, esses rapazes
subiam até as aldeias elevadas e nossas moças cantavam as velhas canções da
montanha que
tínhamos trazido do norte mil anos antes. Um rapaz tinha de cantar de volta
para a moça com quem queria casar, encontrando palavras que combinassem com a
canção
dela. Se a voz dele fosse macia, ou suas palavras desajeitadas, que pena, nada
de casamento. É por isso que o povo hakka, além de ser muito forte, tem uma
boa voz,
e uma mente esperta para conseguir o que quer.
Nós tínhamos um ditado: quando você se casa com uma moça da Montanha do
Cardo, recebe como esposa três bois: um que dá cria, um que ara, um que
carrega a sua
velha mãe. Assim é que era uma moça hakka. Nunca se queixava, mesmo que uma
rocha rolasse pela encosta da montanha e esmagasse um de seus olhos.
Isso aconteceu a mim quando eu tinha sete anos. Fiquei muito orgulhosa
da minha ferida, chorei só um pouco. Quando minha mãe costurou o buraco que
tinha antes
sido o meu olho, eu disse que a pedra tinha sido afrouxada por um cavalo
fantasma. E o cavalo era cavalgado pela famosa donzela fantasma Nunumu - o nu
que significa
"moça", o numu que significa "um olhar tão feroz quanto um punhal". Nunumu, a
Moça do Olho de Punhal. Ela também perdera o olho quando jovem. Ela tinha
visto um
homem punti roubando o sal de outro homem, e, antes que pudesse fugir, ele
enfiou o punhal no rosto dela. Depois disso, ela cobriu o olho cego com uma
ponta do pano
que usava na cabeça. E o outro olho ficou maior, mais escuro, penetrante como
o de uma águia. Ela só roubava dos punti, e quando eles viam o seu olho de
punhal,
oh, como tremiam.
Todos os hakkas da Montanha do Cardo a admiravam, e não apenas porque
ela roubava os punti. Ela foi a primeira bandoleira

#43
hakka a se unir à luta pela Grande Paz quando o Rei Celestial voltou para nos
ajudar. Na primavera, levou um exército de donzelas hakka para Guilin, e os
manchus
a capturaram. Depois que cortaram a cabeça dela, seus lábios ainda se moveram
e lançaram a maldição de que ela iria voltar e arruinar suas famílias por cem
gerações.
Esse foi
o verão em que eu perdi o meu olho. E, quando contei a todo mundo sobre Nunumu
galopando no seu cavalo-fantasma, as pessoas disseram que este era um sinal de
que
Nunumu me havia escolhido para ser sua mensageira, assim como o Deus Cristão
havia escolhido um homem hakka para ser o Rei Celestial. Começaram a me chamar
de Nunumu.
E às vezes, tarde da noite, eu pensava que podia mesmo ver a Donzela
Bandoleira, não com muita clareza, é claro, porque naquela época eu só tinha
um olho yin.
Logo depois disso eu conheci o meu primeiro estrangeiro. Sempre que
chegavam estrangeiros na nossa província, todo mundo que vivia no campo - de
Nanning a
Guilin falava sobre eles. Muitos ocidentais vinham negociar lama
estrangeira, o ópio que provocava nos estrangeiros sonhos
loucos sobre a China. E alguns vinham vender armas -
canhões, pólvora, rifles, não os modernos, rápidos, mas os
lentos, do tipo antigo que se acende com um fósforo,
remanescentes de velhas batalhas já perdidas. Os missionários vinham à nossa
província porque tinham ouvido dizer
que os hakkas eram Adoradores de Deus. Eles queriam
ajudar mais gente a ir para o céu deles. Não sabiam que um
Adorador de Deus não é o mesmo que um Adorador de Desus. Mais tarde entendemos
que os nossos céus não eram os mesmos.
Mas o estrangeiro que eu conheci não era um missionário. Era um general
americano. O povo hakka o chamava de Capa porque era o que ele sempre usava,
uma capa
grande, e também luvas pretas, botas pretas, nenhum chapéu, e um casaco curto
cinzento com botões - como moedas brilhantes! - indo da cintura até o queixo.
Na mão
ele carregava uma longa bengala de junco com ponteira de prata e cabo de
marfim na forma de uma mulher nua.

#44

Quando ele chegou à Montanha do Cardo, gente de todas as aldeias desceu


a montanha e se reuniu na grande planície verde. Chegou empinando o cavalo,
conduzindo
cinqüenta soldados cantonenses, antigos barqueiros e mendigos, agora montando
cavalos de corrida e usando vistosos uniformes do exército, que ouvimos dizer
que não
eram nem chineses nem manchus, mas sim remanescentes das guerras na África
francesa. Os soldados vinham gritando:
- Adoradores de Deus! Nós também somos Adoradores de Deus!
Algumas pessoas acharam que Capa era Jesus, ou, como o Rei Celestial,
outro dos seus irmãos mais moços. Ele era muito alto, tinha um grande bigode,
uma barba
curta, e cabelos negros e ondulados que lhe batiam nos ombros. Os homens hakka
também usavam o cabelo comprido daquele jeito, não usavam mais rabo-de-
cavalo,
porque o Rei Celestial disse que o nosso povo não devia mais obedecer às leis
dos manchus. Nunca tinha visto um estrangeiro antes e não tinha meios de saber
a verdadeira
idade dele. Mas para mim ele parecia velho. A pele dele era cor de nabo, seus
olhos tão lodosos quanto águas rasas. O rosto dele tinha pedaços afundados e
pontas
agudas, como uma pessoa com uma doença debilitante. Raramente sorria, mas ria
muito. E dizia palavras duras com um zurro de burro. Havia sempre um homem ao
lado
dele, servindo de intermediário, traduzindo com uma voz elegante tudo o que
Capa dizia.
A primeira vez que vi o intermediário, achei que parecia chinês. Logo
depois me pareceu estrangeiro, depois nenhum dos dois. Era como um desses
lagartos que
tomam a cor dos galhos e das folhas. Soube mais tarde que este homem tinha o
sangue materno de uma chinesa e o sangue paterno de um mercador americano.
Estava manchado
de ambos os lados. O General Capa o chamava de Yiban ren; o homem meio a meio.
Yiban nos contou que Capa tinha acabado de chegar de Cantão, onde fez
amizade com o Rei Celestial da Revolução da Grande Paz. Ficamos todos
estupefatos. O
Rei Celestial era um homem santo que tinha nascido um hakka e depois sido
escolhido

#45

por Deus para ser o seu amado filho mais moço, irmãozinho de Jesus. Ouvimos
atentamente.
Capa, Yiban disse, era um líder militar americano, um supremo general, o
posto mais elevado. As pessoas murmuraram, cheias de admiração. Tinha
atravessado
o mar até a China para ajudar os Adoradores de Deus, os seguidores da Grande
Paz. As pessoas gritaram:
- Bom! Bom!
Ele mesmo era um Adorador de Deus, e nos admirava, às nossas leis contra
o ópio, contra o roubo, contra os prazeres das partes secretas do corpo das
mulheres.
As pessoas concordaram, e eu fiquei olhando com o meu único olho para a dama
nua no cabo da bengala de Capa. Ele disse que tinha vindo para nos ajudar a
vencer a
batalha contra os manchus, que este era o plano de Deus, escrito mais de mil
anos antes na Bíblia que estava segurando. As pessoas chegaram mais perto para
ver.
Conhecíamos este plano. O Rei Celestial já tinha nos contado que o povo hakka
herdaria a terra e governaria o reino chinês de Deus. Capa contou que os
soldados da
Grande Paz já tinham capturado muitas cidades, tinham reunido muito dinheiro e
muita terra. E agora a luta estava pronta para avançar para o norte - se o
resto dos
Adoradores de Deus da Montanha do Cardo se juntassem a eles como soldados.
Aqueles que lutassem, ele acrescentou, iriam compartilhar a recompensa -
roupas
quentes, comida à vontade, armas e, mais tarde, terras, novo status e novo
posto, escolas e casas, homens e mulheres separados. O Rei Celestial enviaria
comida para
suas famílias. Nessa altura todo mundo já estava gritando:
- Grande Paz! Grande Paz!
Então o General Capa bateu com a bengala no chão. Todo mundo ficou
calado de novo. Ele chamou Yiban para nos mostrar os presentes que o Rei
Celestial tinha
pedido a ele para trazer. Barris de pólvora! Montes de rifles! Cestas cheias
de uniformes franco-africanos, alguns rasgados e já manchados de
sangue.
Mas todo mundo concordou que eles ainda estavam ótimos. Todo mundo estava
dizendo:
- Ei, olhem estes botões, sintam este pano.

#46

Aquele dia, muitas, muitas pessoas, homens e mulheres, se juntaram ao


exército do Rei Celestial. Eu não pude. Era jovem demais, só tinha sete anos,
então fiquei
muito infeliz. Mas então os soldados cantonenses distribuíram os uniformes -
só para os homens, nenhum para as mulheres. E, quando vi isto, não me senti
tão infeliz
quanto antes.
Os homens vestiram as roupas novas. As mulheres examinaram seus rifles
novos, os fósforos para acendê-los. O General Capa bateu de novo com a bengala
no chão
e pediu a Yiban para trazer o presente dele para nós. Todos nos aproximamos,
ansiosos para ver mais uma surpresa. Yiban trouxe uma gaiola de vime, e lá
dentro havia
um par de pombos. O General Capa anunciou no seu chinês curioso que tinha
pedido a Deus um sinal de que seríamos um exército sempre vitorioso. Deus
enviou os pombos.
Os pombos, o General Capa disse, significavam que nós, pobres hakkas,
receberíamos a recompensa da Grande Paz que vínhamos esperando há milhares de
anos. Então ele
abriu a porta da gaiola e tirou as aves. Ele as atirou no ar, e o povo urrou.
Correram e se empurraram, pulando para pegar as criaturas antes que elas
fugissem.
Um homem caiu de cara numa pedra. A cabeça dele rachou e os miolos começaram a
sair para fora. Mas as pessoas pularam por cima dele e continuaram a perseguir
aquelas
aves raras e preciosas. Um dos pombos foi apanhado, o outro fugiu. Então
alguém teve o que comer aquela noite.
Minha mãe e meu pai se juntaram ao exército. Meus tios, minhas tias,
meus irmãos mais velhos, quase todo mundo de mais de treze anos da Montanha do
Cardo e
das cidades abaixo. Cinqüenta ou sessenta mil pessoas. Camponeses e
proprietários de terra, vendedores de sopa e professores, bandidos e mendigos,
e não apenas hakkas,
mas também yaos e miaos, tribos zhuang, e até os puntis que eram pobres. Foi
um grande momento para o povo chinês, todos nós nos juntando desse jeito.
Fui deixada para trás na Montanha do Cardo, com minha avó. Éramos uns
restos lamentáveis da aldeia, bebês e crianças, os velhos e os aleijados, os
covardes
e os idiotas.
#47

No entanto estávamos felizes, porque, como havia sido prometido; o Rei


Celestial enviou seus soldados para nos trazer comida, mais variada do que
jamais poderíamos
imaginar em cem anos. E os soldados também trouxeram histórias de grandes
vitórias: como o Rei Celestial havia estabelecido seu novo reino em Nanquim.
Como as moedas
de prata eram mais abundantes que o arroz. As belas casas onde todo mundo
morava, homens num conjunto, mulheres no outro. Que vida tranqüila - igreja
aos domingos,
nenhum trabalho, Só descanso e felicidade. Ficamos contentes em saber que
agora vivíamos em uma época de Grande Paz.
No ano seguinte, os soldados vieram com arroz e peixe salgado. No ano
seguinte foi só arroz. Mais anos se passaram. Um dia, um homem que tinha
morado na nossa
aldeia voltou de Nanquim. Disse que estava farto da Grande Paz. Quando há
muito sofrimento, ele disse, todo mundo luta como igual. Mas, quando há paz,
ninguém quer
ser igual. Os ricos não dividem mais. Os menos ricos ficam com inveja e
roubam. Em Nanquim, disse ele, todo mundo estava atrás de luxo, prazer, dos
lugares secretos
das mulheres. Disse que o Rei Celestial agora vivia num belo palácio e tinha
muitas concubinas. Ele permitia que o seu reino fosse governado por um homem
possuído
pelo Fantasma Sagrado. E o General Capa, o homem que aliciou todos os hakkas
para lutar, tinha se juntado aos manchus e era agora um traidor, atraído pelo
ouro de
um banqueiro chinês e pelo casamento com a filha dele. Felicidade em demasia,
disse o homem que tinha voltado, sempre resulta em lágrimas de sofrimento.
Podíamos sentir em nossos estômagos a verdade do que o homem dissera.
Estávamos com fome. O Rei Celestial havia se esquecido de nós. Nossos amigos
ocidentais
tinham nos traído. Não recebíamos mais nem comida nem histórias de vitória.
Estávamos pobres. Não tínhamos nem mãe, nem pai, nem donzelas e rapazes que
cantavam.
Tiritávamos de frio no inverno.
Na manhã seguinte, deixei minha aldeia e desci a montanha. Tinha catorze
anos, idade suficiente para viver minha própria vida.

#48

Minha avó tinha morrido no ano anterior, mas o fantasma dela não me deteve.
Era o nono dia do nono mês, eu me lembro disto, um dia em que o povo chinês
deve subir
montanhas e não descer, um dia para se honrar os ancestrais, um dia que os
Adoradores de Deus ignoravam para provar que se orientavam por um calendário
ocidental
de cinqüenta e dois domingos e não pelos dias sagrados do
almanaque chinês. Então desci a montanha, depois atravessei o vale que ficava
entre as montanhas. Não sabia mais em que acreditar, em quem confiar. Decidi
esperar
por um sinal, ver o que ia acontecer.
Cheguei na cidade à margem do rio, a que se chamava Jintian. Àqueles
hakkas que encontrei disse que era Nunumu. Mas eles não sabiam quem era a
Donzela Bandoleira.
Ela não era famosa em Jintian. Os hakkas não admiraram o meu olho que um
cavalo fantasma tinha arrancado. Tiveram pena de mim. Puseram uma velha bola
de arroz na
minha mão e tentaram fazer de mim uma mendiga meio cega. Mas eu me recusei a
me tornar o que as pessoas acharam que eu devia ser.
Então eu tornei a perambular ao redor da cidade, pensando que trabalho
poderia fazer para ganhar o meu pão. Vi cantonenses que tiravam esporões de
dedos, yaos
que arrancavam dentes, puntis que espetavam agulhas em pernas inchadas. Não
sabia nada sobre tirar dinheiro de partes podres do corpo de outras pessoas.
Continuei
a andar até estar na margem de um rio largo. Vi pescadores hakkas em pequenos
barcos, atirando redes na água. Mas eu não tinha nem rede nem barco. Não sabia
pensar
como um peixe rápido e esperto.
Antes que eu pudesse decidir o que fazer, ouvi pessoas gritando ao longo
da margem do rio. Estrangeiros tinham chegado! Corri para o cais e vi dois
barqueiros
cule chineses, um jovem e um velho, caminhando sobre uma tábua de madeira
estreita, descarregando caixas e caixotes e baús de um barco grande. E então
eu vi os estrangeiros,
em pé na proa - três, quatro, cinco deles, todos vestidos de preto, exceto o
menor deles, cuja roupa e cabelo eram de

#49

um marrom lustroso como um besouro. Aquela era a Srta. Bandeira, mas é claro
que eu não sabia disto na época. Meu único olho analisou a todos. Seus cinco
pares de
olhos estrangeiros estavam pousados no barqueiro jovem e no barqueiro velho
que desciam pela prancha estreita. Nos ombros dos dois barqueiros havia duas
varas compridas
e no meio um baú grande pendurado em cordas. De repente, a estrangeira
bronzeada correu pela prancha de madeira - quem ia saber por quê? - para
alertar os homens,
para lhe pedir que tivessem mais cuidado. E subitamente a prancha começou a
sacudir, o baú começou a balançar, os homens começaram a perder o equilíbrio e
os cinco
estrangeiros no barco começaram a gritar. Para trás e para a frente, para cima
e para baixo - nossos olhos saltavam enquanto observávamos os barqueiros
retesando
os músculos e a estrangeira lustrosa sacudindo os braços como um filhote de
passarinho. No instante seguinte, o homem mais velho, na parte mais baixa da
prancha,
deu um grito agudo - eu ouvi o barulho, vi sua clavícula espetada para fora.
Então dois cules, um baú e uma estrangeira de roupa lustrosa caíram
ruidosamente na
água.
Corri para a beira do rio. O cule mais moço já tinha nadado até a praia. Dois
pescadores em um pequeno barco estavam tentando pegar o conteúdo do baú que
tinha caído
na água, roupas coloridas infladas como velas, chapéus emplumados que
flutuavam como patos, longas luvas que revolviam a água como os dedos de um
fantasma. Mas ninguém
estava tentando ajudar o barqueiro ferido ou a estrangeira lustrosa. Os outros
estrangeiros não iam ajudar; estavam com medo de descer pela prancha. O povo
punti
na praia não ia ajudar; se eles interferissem com o destino, seriam
responsáveis pela vida daquelas duas pessoas que não se afogaram. Mas eu não
pensava assim. Eu
era uma hakka. Os hakkas eram Adoradores de Deus. E os Adoradores de Deus eram
pescadores de homens. Agarrei então uma das varas de bambu que tinham caído na
água.
Corri ao longo da margem e estiquei a vara, deixando as cordas penduradas
sobre a correnteza. O cule e a estrangeira se agarraram a elas com toda a
força. E, com
toda a minha força, os recolhi.

#50

Logo depois, os puntis me puxaram de lado. Deixaram o barqueiro ferido


no chão, ofegando e praguejando. Aquele era Lao Lu, que mais tarde se tornou o
porteiro,
já que com o ombro quebrado não podia mais trabalhar como cule Quanto à Srta.
Bandeira, os puntis a arrastaram mais para cima na praia, onde ela vomitou e
depois
chorou. Quando os estrangeiros finalmente desceram do barco, os puntis se
amontoaram em volta deles gritando:
- Queremos dinheiro. - Um dos estrangeiros atirou pequenas moedas no
chão e os puntis se juntaram como pássaros para devorá-las e depois foram
embora.
Os estrangeiros colocaram a Srta. Bandeira numa carroça e o barqueiro
quebrado em outra. Encheram mais três carroças com suas caixas e caixotes e
baús. E,
quando eles partiram na direção da casa da missão em Changmian, fui correndo
atrás. Foi assim que nós três acabamos morando na mesma casa. Nossos destinos
tinham
navegado junto naquele rio e se tornado tão embaraçados quanto o cabelo de uma
mulher afogada.
Foi assim: se a Srta. Bandeira não tivesse sacudido a prancha, Lao Lu
jamais teria quebrado o ombro. Se o ombro dele não tivesse quebrado, a Srta.
Bandeira
não teria quase se afogado. Se eu não tivesse salvo a Srta. Bandeira de se
afogar, ela não teria ficado triste por ter quebrado o ombro de Lao Lu. Se eu
não tivesse
salvo Lao Lu, ele nunca teria dito à Srta. Bandeira o que eu havia feito. Se a
Srta. Bandeira não soubesse disto, ela jamais teria me convidado para ser sua
acompanhante.
Se eu não tivesse me tornado sua acompanhante, ela não teria perdido o homem
que amava.
A Casa do Mercador Fantasma ficava em Changmian, e Changmian ficava também na
Montanha do Cardo, mas ao norte da minha aldeia. De Jintian era meio dia de
viagem.
Mas, com tantos baús e pessoas gemendo nas carroças, levamos o dobro do tempo.
Soube mais tarde que Changmian significa "canções que não têm fim".

#51

Atrás da aldeia, bem mais alto nas montanhas, havia muitas cavernas, centenas.
E, quando o vento soprava, as bocas das cavernas cantavam wu! wu! - exatamente
como
as vozes de damas tristes que perderam seus filhos.
Foi lá que fiquei nos últimos seis anos da minha vida - naquela casa.
Morava com a Srta. Bandeira, Lao Lu e os missionários - duas senhoras, dois
cavalheiros,
Adoradores de Jesus da Inglaterra. Eu não sabia disto na época. A Srta.
Bandeira me contou muitos meses depois, quando conseguimos nos comunicar em
uma mesma língua.
Ela disse que os missionários tinham viajado de navio para Macau, pregado lá
por algum tempo e depois viajado para Cantão, pregando lá por mais algum
tempo. Foi
lá que conheceram a Srta. Bandeira. Por volta desta época, foi assinado um
novo tratado dizendo que os estrangeiros podiam morar em qualquer lugar da
China. Então
os missionários partiram para Jintian, usando o rio Oeste. E a Srta. Bandeira
foi com eles.
A missão era um amplo complexo, com um grande pátio no meio, depois mais
quatro menores, uma elegante casa principal e mais três menores. No meio havia
corredores
cobertos ligando tudo entre si. E em volta havia um muro alto, separando o
lado de dentro do lado de fora. Ninguém tinha morado ali por mais de cem anos.
Só estrangeiros
morariam numa casa amaldiçoada. Eles diziam que não
acreditavam em fantasmas chineses.
O pessoal local disse a Lao Lu:
- Não more lá. A casa é assombrada por espíritos astutos. - Mas
Lao Lu disse que não tinha medo de nada. Ele era um cule cantonense que
descendia de
dez gerações de cules! Era forte o bastante para se matar de trabalhar,
esperto o bastante para encontrar resposta para o que quisesse saber. Por
exemplo, se você
lhe perguntasse quantas peças de roupa as senhoras estrangeiras possuíam, ele
não iria adivinhar e dizer que talvez uma dúzia cada. Entraria no quarto das
damas
quando elas estivessem comendo e contaria cada peça, sem roubar nenhuma, é
claro. A Srta. Bandeira, ele me contou, tinha dois pares de sapatos, seis
pares de luvas,
cinco

#52

chapéus, três costumes compridos, dois pares de meias pretas, dois pares de
meias brancas, dois pares de calções brancos, um guarda-chuva e sete
outras coisas
que poderiam ser roupa mas que ele não sabia determinar que partes do corpo
poderiam cobrir.
Por meio de Lao Lu, aprendi rapidamente muitas coisas sobre os
estrangeiros. Só mais tarde ele me contou por que o pessoal local achava que a
casa era amaldiçoada.
Muitos anos antes, ela tinha sido uma casa de veraneio, e pertencia a um
mercador que morreu de uma forma terrível e misteriosa. Então as esposas dele
morreram,
quatro delas, uma por uma, também de formas terríveis e misteriosas, primeiro
a mais moça e por último a mais velha, tendo tudo isto acontecido entre uma
lua cheia
e a seguinte.
Como Lao Lu, eu não me assustava facilmente. Mas devo confessar a você,
Libby-ah, que o que aconteceu lá cinco anos depois me fez acreditar que o
Mercador
Fantasma estava de volta.

#53

3
O CACHORRO E O BOÁ

Desde que nos separamos, Simon e eu temos disputado a custódia de Bubba, o meu
cachorro. Simon quer o direito de visitas, passeios nos fins de semana. Não
quero
lhe negar o privilégio de recolher o cocô de Bubba. Mas detesto sua atitude
cavalheiresca com relação a cachorros. Simon gosta de passear com Bubba sem
coleira.
Ele o deixa correr pelas trilhas de Presidio, pela pista de areia para
cachorros ao longo de Cressy Field, onde as mandíbulas de um pit bull, de um
rottweiler, até
mesmo de um cocker spaniel maluco poderiam partir em dois um Yorkie-chihuahua
de dois quilos.
Esta noite, estávamos no apartamento de Simon, examinando um ano de
recibos relativos ao trabalho free-lance que ainda não dividimos. Considerando
a dedução
de impostos, decidimos optar ainda por uma "declaração conjunta".
- Bubba é um cachorro - Simon disse. - Tem o direito de correr livre
de vez em quando.
- É, e ser assassinado. Você se lembra do que aconteceu com Sarge?
Simon revirou os olhos, seu olhar de "isso de novo não". Sarge era o
cachorro de Kwan, um pequinês-maltês briguento que desafiava qualquer cachorro
macho
na rua. Há cerca de cinco anos, Simon o levou para passear - sem coleira - e
Sarge feriu o nariz de um boxer. O dono do boxer

#54

apresentou a Kwan uma conta de veterinário no valor de oitocentos dólares.


Insisti que Simon devia pagar. Simon disse que o dono do boxer é que devia
pagar, já que
o cachorro dele tinha provocado a briga. Kwan brigou com o hospital
veterinário sobre cada item cobrado.
- E se Bubba der de cara com um cachorro como Sarge? - eu disse.
- Foi o boxer quem começou - Simon disse teimosamente.
- Sarge era um cachorro mau! Foi você que o deixou solto e Kwan acabou
pagando a conta do veterinário!
- O que você está dizendo? O dono do boxer pagou.
- Oh, não, ele não pagou. Kwan só disse que ele tinha pago para você
não ficar sem jeito. Contei isto para você, lembra?
Simon entortou a boca, uma careta que sempre precedia qualquer
declaração de dúvida.
- Não me lembro disto - ele disse.
- É claro que não! Você só se lembra do que quer se lembrar.
Simon debochou:
- Oh, e suponho que você não? - Antes que eu pudesse responder, ele
ergueu a mão, com a palma virada para cima, para me interromper. - Eu sei, eu
sei. Você
tem uma memória indelével! Você nunca se esquece de nada! Bem, deixe-me dizer-
lhe uma coisa, o fato de você se lembrar de cada detalhe não tem nada a ver
com sua
memória. Isto se chama guardar rancor.

O que Simon disse me aborreceu a noite inteira. Será que eu sou mesmo o tipo
de pessoa que guarda rancor? Não, Simon estava sendo defensivo, devolvendo
farpas. O
que posso fazer se nasci com a tendência de me lembrar de todo o tipo de
coisas?
Tia Betty foi a primeira pessoa a me dizer que eu tinha uma memória
fotográfica; o comentário dela me fez acreditar que eu ia ser fotógrafa

#55
quando crescesse. Ela disse isso porque uma vez a corrigi na frente de um
monte de gente por causa de um filme que tínhamos visto juntas. Agora que
estou ganhando
a vida há mais de quinze anos atrás das lentes de uma câmera, não sei o que as
pessoas querem dizer com memória fotográfica. O que eu me lembro do passado
não é
como folhear uma pilha de instantâneos. É mais seletivo do que isto.
Se alguém me perguntasse qual era o meu endereço quando eu tinha sete
anos de idade, os números não surgiriam diante dos meus olhos. Teria de
reviver um
momento específico: o calor do dia, o cheiro do gramado cortado, o slap-slap-
slap de tiras de borracha no meu calcanhar. Então eu estaria subindo de novo
os dois
degraus da varanda de concreto, enfiando a mão na caixa preta de
correspondência, com o coração batendo, procurando com os dedos - onde está?
Onde está aquela estúpida
carta de
Art Linkletter me convidando para participar do seu show? Mas eu não perdia as
esperanças. Pensava comigo, talvez eu esteja no endereço errado. Mas não, lá
estão
eles, os números em metal, 3-6-2-4, precisando ser lustrados e cheios de
ferrugem em volta dos parafusos.
É disto que eu me lembro mais, não de endereços, mas da dor
- daquela velha convicção que dá um nó na garganta de que o mundo me escolhera
para
ser maltratada e negligenciada. Isso é o mesmo que rancor? Queria tanto ser
convidada para o Kids Say the Darndest Things. Era o caminho infantil para a
fama, e
eu queria mais uma vez provar à minha mãe que eu era especial, apesar de Kwan.
Queria esnobar as crianças da vizinhança, deixá-las furiosas por eu estar me
divertindo
mais do que elas jamais se divertiriam. Enquanto dava voltas e mais voltas de
bicicleta pelo quarteirão, planejava o que iria dizer quando fosse finalmente
convidada
para o show. Contaria ao Sr. Linkletter sobre Kwan, só a parte engraçada -
como a vez que ela disse que adorava o filme Southern Pacific. O Sr.
Linkletter iria
erguer as sobrancelhas e fazer um bico. "Olivia", ele diria, "sua irmã não
está querendo dizer South Pacific?"

#56

Então as pessoas da platéia iriam dar tapas nos joelhos e cair na gargalhada,
e eu faria uma expressão de inocência infantil.
O velho Art achava que as crianças eram tão doces e ingênuas que não
sabiam que estavam dizendo coisas embaraçosas. Mas todas aquelas crianças do
show sabiam
exatamente o que estavam fazendo. Senão, por que nunca mencionavam os
verdadeiros segredos - que brincavam de médico e roubavam chicletes, cápsulas
de pólvora e
revistas de musculação na loja mexicana da esquina. Eu conhecia crianças que
faziam estas coisas. Eram as mesmas que uma vez me agarraram pelos braços e
mijaram
em cima de mim, rindo e gritando:
- A irmã de Olivia é retardada. - Elas sentaram em cima de mim até eu
começar a chorar, odiando Kwan, odiando a mim mesma.
Para me consolar, Kwan me levou à Sweet Dreams Shoppe. Estávamos
sentadas do lado de fora, lambendo casquinhas de sorvete. Capitão, o vira-lata
mais recente
que minha mãe tinha livrado da carrocinha e que Kwan tinha batizado, estava
deitado aos nossos pés, esperando atento pelos pingos de sorvete.
- Libby-ah - Kwan disse - que palavra é essa, letadada?
- Re-tar-dada - corrigi, esticando bem a palavra. Ainda estava zangada
com Kwan e com os garotos da vizinhança. Dei outra lambida no sorvete,
pensando nas
coisas idiotas que Kwan havia feito. - Retardada significa Jantou - eu disse.
- Você sabe, uma pessoa estúpida que não entende nada. - Ela balançou a
cabeça. - Que
diz as coisas erradas na hora errada - acrescentei. Ela tornou a balançar a
cabeça. - Quando as crianças riem de você e você não sabe por quê.
Kwan ficou calada por tanto tempo que o meu peito começou a ficar
apertado. Finalmente ela disse em chinês:
- Libby-ah, você acha que esta palavra sou eu, retardada? Seja honesta.
Continuei a lamber as gotas que escorriam pela minha casquinha,
evitando o olhar dela. Notei que Capitão também me olhava atentamente.

#57

O aperto no peito aumentou, até que dei um longo suspiro e resmunguei:


- Não exatamente. - Kwan sorriu e deu um tapinha no meu braço, o que
quase me deixou maluca; - Capitão - gritei. - Cachorro mau! Pare de mendigar!
- O cachorro
recuou.
- Oh, ele não está mendigando - Kwan disse com uma voz alegre. - Só está
desejando. - Deu um tapinha no traseiro dele, depois ergueu a casquinha sobre
a cabeça
do cachorro. - Fale inglês! - Capitão espirrou umas duas vezes e depois deu um
latido alto. Ela deixou que ele desse uma lambida. - Jang Zhongwen! Fale
chinês! -
Seguiram-se dois ganidos estridentes. Ela deu outra lambida para ele, depois
mais outra, falando com ele docemente em chinês. E eu fiquei aborrecida de ver
como
qualquer coisa boba podia fazer com que ela e o cachorro ficassem
instantaneamente felizes.
Mais tarde, naquela mesma noite, Kwan me perguntou de novo o que aqueles
garotos tinham dito. Ela me aborreceu tanto que achei que fosse mesmo
retardada.

- Libby-ah, você está dormindo? Ok, desculpe, desculpe, torne a dormir, não é
nada importante... Só queria perguntar mais uma vez sobre essa palavra,
retardada.
Ah, mas você está dormindo agora, talvez amanhã, depois que você chegar do
colégio...
Engraçado, eu estava pensando que um dia achei que a Srta. Bandeira
fosse assim, retardada. Ela não entendia nada... Libby-ah, você sabia que eu
ensinei a
Srta. Bandeira a falar? Libby-ah? Desculpe, desculpe, pode voltar a dormir.
Mas é verdade. Fui professora dela. Quando a conheci, ela falava como um
bebê! Às vezes eu ria. Não conseguia evitar. Mas ela não se importava. Nós
duas nos
divertimos muito falando coisas erradas o tempo todo. Éramos como dois atores
de circo, usando nossas mãos, nossas sobrancelhas, o movimento rápido dos
nossos pés
para mostrar uma à

#58

outra o que queríamos dizer. Foi assim que ela me contou sobre sua vida antes
de vir para a China. Foi isso que eu achei que ela disse:
Ela nasceu em uma família que morava numa aldeia bem distante, a
oeste da Montanha do Cardo, do outro lado de um mar revolto. Era depois do
país onde
moram os negros, além da terra dos soldados ingleses e dos marinheiros
portugueses. A aldeia dela era maior do que todas essas terras juntas. O pai
dela tinha muitos
navios que cruzavam o mar e iam para outras terras. Nessas terras, ele colhia
o dinheiro que crescia como flores e o cheiro deste dinheiro fez a felicidade
de muita
gente .
Quando a Srta. Bandeira tinha cinco anos, seus dois irmãozinhos entraram
num buraco escuro atrás de um frango. Eles caíram até o outro lado do mundo.
Naturalmente,
sua mãe queria encontrá-los. Antes de o sol nascer e depois de o sol se pôr,
ela inchava o pescoço como um galo e chamava pelos filhos perdidos. Depois de
muitos
anos, a mãe encontrou o mesmo buraco ria terra, entrou nele, e então caiu
também do outro lado do mundo.
O pai disse à Srta. Bandeira, precisamos procurar nossa família. Então
eles saíram navegando pelo mar revolto. Primeiro pararam numa ilha barulhenta.
Seu pai
a levou para morar em um grande palácio governado por pessoas pequeninas que
se pareciam com Jesus. Enquanto seu pai estava nos campos colhendo mais
dinheiro-flor,
os pequenos Jesuses atiraram pedras nela e cortaram o seu longo cabelo. Dois
anos depois, quando seu pai voltou, ele e a Srta. Bandeira navegaram para
outra ilha,
esta governada por cachorros loucos. Mais uma vez ele pôs a Srta. Bandeira num
grande palácio e foi colher mais dinheiro-flor. Enquanto ele estava fora, os
cachorros
perseguiram a Srta. Bandeira e rasgaram seu vestido. Ela correu ao redor da
ilha, procurando pelo pai. Em vez disso encontrou um tio. Ela e o tio
navegaram para
um lugar na China onde viviam muitos estrangeiros. Ela não encontrou sua
família lá. Um dia, enquanto ela e o tio estavam deitados na cama, o tio ficou
quente e
frio ao mesmo tempo, ergueu-se no ar e depois caiu no mar.

#59

Por sorte dela, a Srta. Bandeira encontrou outro tio, um homem que tinha
muitas armas. Ele a levou para Cantão, onde também viviam estrangeiros. Toda
noite, o tio
colocava as armas em cima da cama e a obrigava a poli-las antes de dormir. Um
dia, este homem arrancou um pedaço da China, onde havia muitos templos
bonitos. Ele
navegou para casa sobre esta ilha flutuante, deu os templos para a mulher e a
ilha para o seu rei. A Srta. Bandeira encontrou um terceiro tio, um ianque,
que também
tinha muitas armas. Mas este penteava o cabelo dela. Ele lhe dava pêssegos
para comer. Ela amava muito este tio. Uma noite, muitos homens hakka invadiram
o quarto
deles e levaram o tio embora. A Srta. Bandeira foi correndo pedir ajuda aos
Adoradores de Jesus. Eles disseram, ajoelhe-se. Então ela se ajoelhou. Eles
disseram,
reze. Então ela rezou. Depois eles a levaram para o interior, para Jintian,
onde ela caiu na água e rezou para ser salva. Foi quando eu a salvei.
Mais tarde, depois que a Srta. Bandeira aprendeu mais palavras em
chinês, ela tornou a me contar sua vida, e, como o que ouvi então foi
diferente, o que vi
na minha mente também foi diferente. Ela nasceu na América, um país que fica
além da África, além da Inglaterra e de Portugal. A aldeia da sua família
ficava perto
de uma cidade grande chamada Nu Ye, soa como Lua Vaca. Talvez fosse Nova York.
Uma companhia chamada Rússia ou Russo era dona daqueles navios, não o pai
dela. Ele
era escriturário. A companhia navegadora comprava ópio na Índia - essas eram
as flores e o vendia na China, espalhando uma doença de sonhos entre o povo
chinês.
Quando a Srta. Bandeira tinha cinco anos, seus irmãozinhos não entraram
em um buraco atrás de um frango, eles morreram de varíola e foram enterrados
no quintal.
E sua mãe não inchava o pescoço como um galo. Sua garganta inchou e ela morreu
de bócio e foi enterrada ao lado dos filhos. Depois desta tragédia, o pai da
Srta.
Bandeira a levou para a Índia, que não era governada por pequenos Jesuses. Ela
freqüentou uma escola para crianças Adoradoras de Jesus da Inglaterra, e eles
não
eram santos e sim levados e selvagens. Mais tarde, seu pai a levou para
Málaca, que não era governada por cachorros.

#60

Ela estava se referindo a outra escola, onde as crianças também eram inglesas
e ainda mais desobedientes do que as da Índia. Seu pai partiu de navio para
comprar
mais ópio na Índia e jamais regressou - ela não sabia por quê, então cultivou
muita tristeza no seu coração. Agora ela não tinha nem pai, nem dinheiro, nem
casa.
Quando ainda era muito jovem, conheceu um homem que a levou para Macau. Havia
muitos mosquitos em Macau, ele morreu de malária lá e foi enterrado no mar.
Depois
ela viveu com outro homem, um capitão inglês. Ele ajudou os manchus, lutou
contra os Adoradores de Deus, ganhou muito dinheiro por cada cidade que
capturou. Mais
tarde, ele foi embora para casa, levando muitos tesouros roubados de templos
para a Inglaterra e para sua esposa. Então a Srta. Bandeira foi viver com
outro soldado,
um ianque. Este, ela disse, ajudou os Adoradores de Deus, lutou contra os
manchus, também ganhou dinheiro saqueando cidades que ele e os Adoradores de
Deus queimaram.
Esses três homens, a Srta. Bandeira me disse, não eram seus tios.
Eu disse a ela:
- Srta. Bandeira - ah, esta é uma boa notícia. Dormir na mesma cama
com seus tios não é bom para suas tias. - Ela riu. Como você está vendo, nessa
altura
nós podíamos rir juntas porque nos entendíamos muito bem. Nessa altura, os
calos dos meus pés tinham sido trocados por um velho par
dos sapatos de couro apertados da Srta. Bandeira. Mas, antes que isto
acontecesse, eu tive de ensiná-la a falar.
Para começar, disse a ela que o meu nome era Nunumu. Ela me chamava de
Srta. Moo. Costumávamos sentar no pátio e eu ensinava a ela o nome das coisas,
como
se ela fosse uma criancinha. E, como uma criancinha, ela aprendia com
entusiasmo, rapidamente. A mente dela não estava fechada a novas idéias. Ela
não era como os
Adoradores de Jesus, cujas línguas eram rodas velhas e emperradas seguindo os
mesmos sulcos. Ela tinha uma memória extraordinária, fantástica. O que quer
que eu
dissesse, entrava por seu ouvido e saía por sua boca.

#61

Ensinei-lhe a apontar e nomear os cinco elementos que formam o mundo


físico: metal, madeira, água, fogo, terra.
Ensinei-lhe o que faz do mundo um lugar habitável: nascer e
pôr-do-sol, calor e frio, poeira e calor, poeira e vento, poeira e chuva.
Ensinei-lhe o que vale a pena ouvir neste mundo: vento, trovão,
cavalos galopando na poeira, pedrinhas caindo na água. Ensinei-lhe o que é
assustador de
se ouvir: passos rápidos na noite, um pano macio rasgando devagar, cachorros
latindo, o silêncio de grilos.
Ensinei-lhe que duas coisas misturadas produzem outra: água e terra
fazem lama, calor e água fazem chá, estrangeiros e ópio fazem encrenca.
Ensinei-lhe os cinco gostos que nos dão as lembranças da vida: doce,
azedo, amargo, picante e salgado.
Um dia, a Srta. Bandeira tocou a frente do corpo com a palma da mão e
me perguntou como se dizia isso em chinês. Depois que eu respondi, ela me
disse em
chinês:
- Srta. Moo, quero conhecer muitas palavras para falar sobre meus
seios! - E só então entendi que ela queria falar sobre os sentimentos que
tinha no coração.
No dia seguinte, levei-a para passear na cidade. Vimos muitas pessoas
brigando. Raiva, eu disse. Vimos uma mulher colocando comida em um altar.
Respeito, eu disse.
Vimos um ladrão com a cabeça trancada em uma canga de madeira. Vergonha, eu
disse. Vimos uma menininha sentada na beira do rio, atirando uma velha rede
cheia de
buracos na parte rasa do rio. Esperança, eu disse.
Mais tarde, a Srta. Bandeira apontou para um homem que tentava fazer
um barril largo demais passar por uma porta estreita demais.
- Esperança - a Srta. Bandeira disse, mas para isto não era esperança,
era estupidez, arroz em vez de miolos. E eu imaginei o que a Srta. Bandeira
estaria
vendo quando eu nomeei todos aqueles outros sentimentos para ela. Imaginei se
os estrangeiros teriam sentimentos inteiramente diferentes dos sentimentos do
povo
chinês. Será que eles achavam que todas as nossas esperanças eram estúpidas?

#62

Com o tempo, no entanto, ensinei a Srta. Bandeira a ver o mundo quase


que exatamente como um chinês. Ao falar de cigarras, ela dizia que se pareciam
com
folhas mortas esvoaçando, quando se tocava nelas, davam a impressão de papel
crepitando, soavam como fogo rugindo, cheiravam a poeira levantada e tinham
gosto de
demônio frito em óleo. Ela as odiava, decidiu que não tinham qualquer razão de
existir neste mundo. Está vendo, de cinco maneiras ela conseguia sentir o
mundo como
um chinês. Mas havia sempre esta sexta maneira, seu senso americano de
importância, que mais tarde causou problemas entre nós. Porque seus sentidos
levavam a opiniões,
e suas opiniões levavam a conclusões, e às vezes elas eram diferentes das
minhas.

Durante a maior parte da minha infância, tive de lutar para não ver o mundo do
modo como Kwan o descrevia. Como a conversa dela sobre fantasmas. Depois que
ela recebeu
o tratamento de choque, eu disse que ela tinha de fingir que não via
fantasmas, senão os médicos não a deixariam sair do hospital.
- Ah, guardar segredo - ela disse, balançando a cabeça. - Só você e eu
sabemos.
Quando ela voltou para casa, eu tive de fingir que os fantasmas
estavam lá, como parte do nosso segredo de fingir que não estavam. Esforcei-me
tanto para
manter essas duas visões contraditórias que logo comecei a ver o que não
devia. Como podia deixar de fazê-lo? A maioria das crianças, sem irmãs como
Kwan, imagina
que há fantasmas espreitando debaixo de suas camas, prontos para agarrar seus
pés. Os fantasmas de Kwan, por outro lado, sentavam-se sobre a cama,
encostados na
cabeceira. Eu os via.
Não estou falando de lençóis brancos transparentes que dizem
"Ooooohh". Os fantasmas dela não eram invisíveis como as gentis aparições de
tevê em Topper
que moviam canetas e xícaras pelo ar. Os fantasmas dela pareciam vivos.
Conversavam sobre os velhos tempos. Preocupavam-se e reclamavam. Cheguei
até a ver
um deles coçando o pescoço do nosso cachorro, e Capitão batia com a perna no
chão e abanava o rabo.

#63

Fora Kwan, jamais contei a ninguém o que via. Achei que seria mandada para o
hospital para ser tratada com choques elétricos. O que eu via parecia tão
real, nem
um pouco como um sonho. Era como se os sentimentos de outra pessoa tivessem
fugido, e meus olhos se tivessem tornado o projetor de cinema que dava vida a
eles.
Lembro-me especialmente de um dia - eu devia ter oito anos - em que
estava sentada sozinha na minha cama, vestindo minha boneca Barbie com suas
melhores
roupas. Ouvi uma voz de menina dizendo:
- Gei wo kan. - Ergui os olhos e na cama de Kwan estava uma menina
chinesa mais ou menos da minha idade, com um ar melancólico, pedindo para ver
minha boneca.
Não fiquei com medo. Esta era outra característica de ver fantasmas: eu sempre
ficava perfeitamente calma, como se o meu corpo inteiro tivesse sido
mergulhado em
um tranqüilizante. Educadamente, perguntei à menina, em chinês, quem ela era.
E ela disse: - Lili-lili, lili-lili - num guincho estridente.
Quando atirei a minha Barbie na cama de Kwan, esta menina lili-lili
apanhou-a. Tirou o boá de plumas cor-de-rosa da Barbie, espiou por baixo do
vestido de
cetim da mesma cor. Ela torceu violentamente os braços e pernas da boneca.
- Não quebre ela - eu avisei. Eu podia perceber a curiosidade da
menina, sua admiração, seu medo de que a boneca estivesse morta. No entanto,
nunca questionei
por que tivemos esta simbiose emocional. Eu estava preocupada demais, temendo
que ela levasse a Barbie com ela para casa. Eu disse: - Já chega. Me dá ela de
volta.
- E a menininha fingiu que não tinha ouvido. Então fui até lá e arranquei a
boneca da mão dela, e então voltei para a minha cama.
Percebi imediatamente que o boá de plumas estava faltando.
- Me dá ele de volta! - gritei. Mas a menina tinha desaparecido, o que
me assustou, porque só então os meus sentidos normais voltaram, e eu soube que
se
tratava de um fantasma. Procurei o boá de plumas - debaixo das cobertas,
entre o colchão e a parede, debaixo das duas camas.

#64

Não podia acreditar que um fantasma pudesse apanhar algo real e fazer
desaparecer. Procurei aquele boá de plumas a semana inteira, em todas as
gavetas, bolsos e
cantos. Nunca o encontrei. Decidi então que a menina fantasma realmente o
havia roubado.
Agora eu consigo pensar em explicações mais racionais. Talvez Capitão
o tenha apanhado e enterrado no quintal. Ou minha mãe o tenha sugado com o
aspirador.
Provavelmente foi algo assim que aconteceu. Mas, quando eu era criança, não
tinha fronteiras rígidas entre imaginação e realidade. Kwan via o que
acreditava. Eu
via o que não queria acreditar.
Quando fiquei um pouco mais velha, os fantasmas de Kwan seguiram o
mesmo caminho das outras coisas em que as crianças acreditam, como Papai Noel,
a Fada
do Dente, o Coelho da Páscoa. Não contei isto para Kwan. E se ela ficasse
doida de novo? Em segredo, substituí as idéias dela de fantasmas e do Mundo de
Yin pelos
santos endossados pelo Vaticano e por uma vida futura condicionada ao sistema
de mérito. Adotei de bom grado o conceito de colecionar pontos por boas ações,
como
aqueles selos verdes do S&H que podiam ser colados em álbuns e trocados por
torradeiras e balanças. Só que, em vez de ganhar utensílios, você ganhava uma
passagem
só de ida para o céu, inferno ou purgatório, dependendo de quantas boas e más
ações você tinha cometido e do que os outros diziam a seu respeito. Mas, se
você conseguisse
ir para o céu, não voltava à terra como fantasma, a menos que fosse um santo.
Este provavelmente não seria o meu caso.
Uma vez perguntei a minha mãe o que era o paraíso, e ela disse que era
um lugar de férias permanentes, onde todos os seres humanos eram iguais -
reis, rainhas,
vagabundos, professores, crianças.
- Estrelas de cinema? - perguntei.
Mamãe disse que eu poderia encontrar todo tipo de pessoas, desde que
elas tivessem sido boas o bastante para entrar no paraíso. De noite,

#65

enquanto Kwan tagarelava com seus fantasmas chineses, eu listava as pessoas


que queria encontrar, tentando colocá-las em alguma ordem de preferência, caso
eu só
pudesse encontrar, digamos, cinco por semana. Havia Deus, Jesus e Maria - eu
sabia que os devia mencionar primeiro. E então eu escolhia o meu pai e
quaisquer outros
membros mais chegados da família que pudessem ter morrido - embora não o papai
Bob. Esperaria cem anos antes de colocá-lo no meu cartão de dança. Então isto
ocupou
a primeira semana, um tanto aborrecido, mas necessário. A semana seguinte é
quando a parte boa começaria realmente. Conheceria pessoas famosas, caso elas
já estivessem
mortas - os Beatles, Hayley Mills, Shirley Temple, Dwayne Hickman - e talvez
Art Linkletter, o desgraçado, que finalmente compreenderia por que me deveria
Ter convidado
para o seu show idiota.
Lá para o meio do primeiro grau, a minha versão da outra vida era um
tanto mais sombria. Eu a imaginava como um lugar de infinita sabedoria, onde
todas as
coisas seriam reveladas - uma espécie da biblioteca da cidade, só que maior,
onde vozes piedosas enumerando o que vós podeis e não podeis ecoariam através
de alto-falantes.
Também, se você fosse ligeiramente mas não irremediavelmente mau, não iria
para o inferno, mas teria de pagar uma enorme multa. Ou talvez, se fizesse
algo pior,
fosse para um lugar semelhante ao reformatório, que era onde todos os garotos
maus terminavam, os que fumavam, fugiam de casa, furtavam nas lojas, ou tinham
filhos
sem ser casados. Mas, se você tivesse seguido as regras, e não se mostrasse um
fardo para a sociedade, poderia avançar até alcançar o paraíso. E lá
aprenderia todas
as respostas para todas as coisas que os professores de catecismo viviam
perguntando, como:
O que nós, seres humanos, devemos aprender?
Por que devemos ajudar os menos afortunados do que nós?
Como podemos evitar as guerras?
Também imaginei que iria aprender o que acontecia com certas coisas
que eram perdidas, como o boá de plumas da Barbie e, mais

#66

recentemente, meu colar de imitação de diamantes; que eu suspeitava ter sido


roubado por meu irmão Tommy, embora ele dissesse:
- Eu não o apanhei, juro por Deus.
Além disso, eu queria encontrar respostas para alguns mistérios não
solucionados, como: foi mesmo Lizzie Borden que matou seus pais? Quem era o
Homem da
Máscara de Ferro? O que aconteceu realmente Com Amelia Earhart? E, de todas as
pessoas que foram condenadas à morte e executadas, quais eram realmente
culpadas e
quais eram inocentes? Ainda com relação a esse assunto, o que era pior, ser
enforcado, morto com gás ou eletrocutado? Entre uma pergunta e outra,
encontraria a prova
de que foi meu pai quem contou a verdade acerca da morte da mãe de Kwan, e não
Kwan.
Quando fui para a faculdade, já não acreditava mais nem em céu nem em
inferno, nem em qualquer dessas metáforas para recompensa e castigo com base
no bem
ou no mal em termos absolutos. Eu já tinha conhecido Simon nessa época. Ele e
eu fumávamos um baseado com nossos amigos e conversávamos sobre a outra vida:
- Simplesmente não faz sentido, cara - quer dizer, você vive menos de
cem anos, depois tudo é computado e, bum, você passa bilhões de anos na boa
vida ou então
assando como churrasquinho no espeto. - E não aceitávamos a lógica de que
Jesus era o único caminho. Isto significava que os budistas, os hindus, os
judeus, os africanos,
que nunca tinham sequer ouvido falar em Cristo Todo-Poderoso, estavam fadados
ao inferno, enquanto membros da Ku Klux Klan não. Entre uma tragada e outra,
falávamos,
tomando cuidado para não soltar a fumaça: - Uau, qual o sentido deste tipo de
justiça? O que o universo aprende depois disto?
A maioria dos nossos amigos acreditava que não havia nada após a morte -
luzes apagadas, nada de dor, nem de recompensa, nem de castigo. Um cara, Dave,
disse
que a imortalidade só durava enquanto as pessoas se lembrassem de você.
Platão, Confúcio, Buda,Jesus - eles eram imortais, ele disse. E disse isso
depois que Simon
e eu tínhamos ido ao enterro de

#67

um amigo, Eric, cujo número apareceu na lista de recrutamento e que foi morto
no Vietnã.
- Mesmo que eles não fossem do jeito que são lembrados agora? -
Simon perguntou.
Dave fez uma pausa, depois disse:
- Sim.
- E quanto a Eric? - perguntei. - Se as pessoas se lembrarem mais
tempo de Hitler do que de Eric, isto significa que Hitler é imortal e Eric
não?
Dave fez outra pausa. Mas, antes que ele pudesse responder, Simon
disse com firmeza:
- Eric era um grande sujeito. Ninguém jamais se esquecerá de Eric.
E, se houver um paraíso, é lá que ele está agora. - Lembro que amei Simon por
ter dito
isso. Porque era o que eu também sentia.
Como é que esses sentimentos desapareceram? Será que sumiram como o
boá de plumas, quando eu não estava olhando? Será que eu devia ter tentado com
mais
afinco reencontrá-los?
Não me agarro só a rancores. Lembro-me de uma menina na minha
cama. Lembro-me de Eric. Lembro-me do poder do amor invencível. Na minha
memória, ainda
existe um lugar onde guardo todos esses fantasmas.

#68

4
A CASA DO MERCADOR FANTASMA
Minha mãe tem outro namorado, Jaime Jofré. Não preciso conhecê-lo para saber
que ele tem charme, cabelo escuro, e um green card. Fala com sotaque e minha
mãe mais
tarde vai me perguntar: "Ele não está apaixonado?" Para ela, as palavras são
mais ardentes quando um homem tem dificuldade para encontrá-las, quando ele
diz amor
com um suspiro em vez de dizer simplesmente love.
Embora seja romântica, minha mãe é uma mulher prática. Quer provas de
amor: é dando que se recebe. Um buquê, aulas de dança de salão, uma promessa
de fidelidade
eterna - isto é o homem quem decide. E há sempre o corolário de Louise do amor
que exige sacrifícios: deixe de fumar por ele e ganhe uma semana em um spa.
Ela prefere
o Calistoga Mud Baths ou o Sonoma Mission Inn. Acha que os homens que
compreendem este tipo de troca são de nações emergentes - ela jamais diria
"Terceiro Mundo".
Uma colônia dominada por um ditador estrangeiro é excelente. Quando não dispõe
de uma nação emergente, decide pela Irlanda, Índia, Irã. Acredita firmemente
que homens
que sofreram opressão e viveram em economias dominadas pelo mercado negro
sabem que há mais coisas em jogo. Esforçam-se mais para conquistar você.
Concordam em negociar.
Com base nessas premissas, minha mãe encontrou amores verdadeiros tantas vezes
quantas deixou de fumar.

#69

Que diabo, é verdade, eu estou furiosa com a minha mãe. Esta manhã ela
perguntou se podia me visitar para me animar um pouco. E então passou duas
horas comparando
o meu casamento fracassado com o dela com Bob. A recusa em se comprometer, em
fazer sacrifícios, não querer dar e só receber - esses são os defeitos que ela
notou
em Simon e Bob. E ela e eu "demos, demos, demos do fundo do coração". Ela me
filou um cigarro, depois um maço.
- Percebi o que estava para acontecer - ela disse, e tragou
profundamente. - Há dez anos. Lembra aquela vez que Simon foi para o Havaí e
deixou você em casa
com gripe?
- Eu disse a ele para ir. Tínhamos passagens de avião que não podiam
ser reembolsadas e ele só podia vender uma. - Por que eu o estava defendendo?
- Você estava doente. Ele devia ficar dando canja para você em vez de
saracotear na praia.
- Ele estava saracoteando com a avó dele. Ela tinha tido um derrame. -
Eu estava começando a parecer tão queixosa como uma criança. Ela me deu um
sorriso
cheio de compaixão.
- Queridinha, você não precisa mais negar. Sei o que você está
sentindo. Sou sua mãe, lembra? - Ela apagou o cigarro antes de assumir seu
jeito prático,
de assistente Social:
- Simon não a amava o bastante por um problema dele e não seu. Você é
capaz de despertar muito amor. Não há nada de errado com você.
Balancei a cabeça rigidamente .
- Mamãe, preciso mesmo trabalhar agora.
- Pode trabalhar. Só vou tomar mais uma xícara de café. - Olhou para o
relógio e disse: - O meu apartamento foi dedetizado contra pulgas às dez
horas. Só
para não arriscar, vou esperar mais uma hora antes de voltar.
E agora eu estou sentada na minha mesa, incapaz de trabalhar,
completamente esgotada. O que ela pensa que sabe sobre a minha capacidade de
amar? Será
que ela faz idéia de quantas vezes me magoou

#70

sem saber? Ela se queixa de que todo o tempo que passou com Bob foi um
desperdício. E quanto a mim? E quanto ao tempo que não passou comigo? Será que
isto também
não foi um desperdício? E por que estou agora dedicando minha energia a pensar
nisto? Fui outra vez reduzida a uma garota chorona. Lá estou eu, aos doze
anos, de
bruços na cama, com uma ponta do travesseiro enfiada na boca para Kwan não
escutar os meus soluços abafados.
- Libby-ah - Kwan murmura -, aconteceu alguma coisa? Você está doente?
Comeu biscoitos de Natal demais? Da próxima vez não vou fazer tantos... Libby-
ah,
você gostou do meu presente? Se não gostou pode dizer, Ok? Faço outro suéter
para você. Você pode escolher a cor. Só levo uma semana para fazer. Eu
termino, embrulho,
como se fosse outra surpresa... Libby-ah? Acho que papai e mamãe vão voltar de
Yosemite Park com um presente bonito para você, e retratos também. Neve bonita
na
montanha... Não chore! Não! Não! Você não está falando sério. Como você pode
odiar sua própria mãe? ... Oh?' Papai Bob também? Ah, zemma zaogao...

Libby-ah, Libby-ah? Posso acender a luz? Quero lhe mostrar uma coisa...
Ok, Ok! Não fique zangada! Sinto muito, vou apagar a luz. Está vendo?
Está escuro outra vez. Volte a dormir... Eu ia lhe mostrar a caneta que caiu
do bolso
do paletó do papai Bob... Você inclina para um lado e vê uma dama vestida de
azul. Inclina para o outro, wah! - o vestido cai. Eu não estou mentindo. Veja
você mesma.
Vou acender a luz. Você está preparada?.. Oh, Libby-ah, seus olhos estão tão
inchados que parecem duas ameixas! Torne a colocar a toalha molhada sobre
eles. Amanhã
não vão estar coçando tanto... A caneta? Eu a vi saltando para fora do bolso
dele quando estávamos na missa de domingo. Ele não notou porque fingia rezar.
Sei que
ele estava só fingindo, mm-hmm, porque a cabeça dele caiu de lado - booomp! -
e ele começou a roncar. Nnnnnnhhh! é verdade! Dei um empurrão nele.

#71

Ele não acordou, mas seu nariz parou de fazer aqueles ruídos. Ah, você
acha isso engraçado? Então por que está rindo?
De qualquer maneira, depois de algum tempo eu olhei para as flores de
Natal, as velas, o vidro colorido. Vi o padre sacudindo a lanterna de fumaça.
De repente
vi Jesus andando no meio da fumaça! Sim, Jesus! Achei que ele tinha vindo para
apagar suas velinhas de aniversário. Disse a mim mesma, finalmente posso vê-lo
- agora
sou uma católica! Oh, fiquei tão excitada. Foi por isso que Papai Bob acordou
e me empurrou para baixo.
Fiquei sorrindo para Jesus, mas então percebi - ah? -, aquele homem
não era Jesus e sim o meu velho amigo Lao Lu! Ele estava apontando para mim e
rindo.
- Enganei você - ele disse. - Não sou Jesus! Ei, você acha que ele é
careca feito eu? - Lao Lu se aproximou de mim. Sacudiu a mão diante do papai
Bob. Nada
aconteceu. Pôs o dedinho de leve como uma mosca na testa do papai Bob. Papai
Bob deu um tapa em si mesmo. Tirou devagarinho a caneta do bolso do papai Bob
e a fez
rolar para uma dobra da minha saia.
- Ei - Lao Lu disse. - Por que você ainda está indo a uma igreja de
estrangeiros? Você acha que um calo na bunda vai ajudá-la a ver Jesus?
Não ria, Libby-ah. O que Lao Lu disse não foi educado. Acho que ele
estava se lembrando da nossa última vida juntos, quando ele e eu tínhamos de
ficar sentados
no banco duro todos os domingos durante duas horas. Todos os domingos! A Srta.
Bandeira também. Fomos à igreja por tantos anos e nunca vimos nem Deus nem
Jesus,
nem Maria também, embora naquela época não fosse tão importante vê-la. Naquela
época, ela também era mãe do bebê Jesus, mas apenas concubina do pai dele.
Agora é
Maria isso, Maria aquilo! - Old St. Mary's, Mary's Help, Maria mãe de Deus,
perdoando os meus pecados. Fico contente por ela ter ganho uma promoção. Mas,
como eu
disse, naquela época, os Adoradores de Jesus não falavam tanto nela. Então eu
só precisava me preocupar em ver Deus e Jesus. Todo domingo, os Adoradores de
Jesus
me perguntavam:

#72

- Você acredita? - Eu tinha de dizer que ainda não. Queria dizer que
sim para ser gentil. Mas aí eu estaria mentindo, e quando eu morresse talvez
eles viessem
atrás de mim e me obrigassem a pagar dois tipos de multa para o diabo
estrangeiro, uma por não acreditar, outra por fingir que acreditava. Eu achava
que não podia
ver Jesus porque tinha olhos chineses. Mais tarde descobri que a Srta.
Bandeira também nunca viu nem Jesus nem Deus. Ela me disse que não era uma
pessoa religiosa.
Eu disse:
- E por quê, Srta. Bandeira?
E ela disse:
- Rezei para Deus salvar os meus irmãos. Rezei para ele poupar a minha
mãe. Rezei, pedindo para o meu pai voltar para mim. A religião ensina que a fé
se
encarrega da esperança. Todas as minhas esperanças se foram, então por que eu
preciso da fé?
- Ai! - disse eu. - Isto é muito triste! Você não tem qualquer
esperança?
- Muito poucas - ela disse. - E nenhuma que valha uma reza.
- E quanto ao seu namorado?
Ela suspirou.
- Decidi que ele também não vale uma reza. Ele me abandonou, você
sabe. Escrevi cartas para um oficial da marinha em Shangai. Meu namorado
esteve lá. Esteve
em Cantão. Esteve até em Guilin. Ele sabe onde estou. Então por que não veio?
Fiquei triste ao ouvir isso. Na época, eu não sabia que o namorado
dela era o General Capa.
- Ainda tenho muita esperança de encontrar a minha família - eu disse.
- Talvez eu devesse me tornar uma Adoradora de Jesus.
- Para ser uma adoradora de verdade - ela disse -, você tem de dar
todo o seu corpo para Jesus.
- Quanto você dá?
Ela ergueu o polegar. Fiquei perplexa, porque todo domingo ela pregava o
sermão. Achei que isto devia valer pelo menos duas pernas. É claro que

#73

ela não tinha escolha a não ser pregar. Ninguém compreendia os outros
estrangeiros, e eles não conseguiam nos entender. O chinês deles era tão ruim
que parecia com
o inglês. A Srta. Bandeira tinha de servir de intermediária para Pastor Amém.
Pastor Amém não pediu. Ele disse que ela tinha de fazer isso, senão não
haveria lugar
para ela na Casa do Mercador Fantasma.
Então, todo domingo de manhã, ela e Pastor ficavam na porta da igreja.
Ele gritava em inglês:
- Bem-vindos, bem-vindos!
A Srta. Bandeira traduzia para o chinês:
- Venham depressa para a Casa de Deus! Comam arroz depois da reunião!
A Casa de Deus era na verdade o templo familiar do Mercador Fantasma.
Ele pertencia aos seus ancestrais mortos e seus deuses. Lao Lu achava muito
mal-educado
da parte dos estrangeiros escolher aquele lugar para ser a Casa de Deus.
- Como uma bofetada na cara - ele dizia. - O Deus da Guerra vai fazer
cair bosta de cavalo do céu, espere só. - Lao Lu era assim - você o deixava
zangado,
ele dava o troco.
Os missionários sempre entravam primeiro, a Srta. Bandeira em
segundo, depois Lao Lu e eu, bem como os outros chineses que trabalhavam na
Casa do Mercador
Fantasma - o cozinheiro, as duas criadas, o cocheiro, o carpinteiro e não me
lembro quem mais. Os visitantes entravam na Casa de Deus por último. Eram na
maioria
mendigos, uns poucos Adoradores de Deus hakkas, e também uma velha que juntava
as mãos e se inclinava três vezes diante do altar, embora já tivessem dito a
ela inúmeras
vezes para não fazer mais isso. Os recém-chegados se sentavam nos
últimos bancos - acho que era para o caso de o Mercador Fantasma voltar e eles
terem de
fugir. Lao Lu e eu tínhamos de nos sentar na frente com os missionários,
gritando "Amém!" sempre que o pastor erguia as sobrancelhas. Era por isso que
o chamávamos
de Pastor Amém - também porque o nome dele soava como Amém, Hammond ou
Halliman, algo assim.

#74

Assim que achatávamos nossos traseiros naqueles bancos, não podíamos


mais nos mexer. A Sra. Amém freqüentemente dava saltos, mas só para sacudir o
dedo para
quem estivesse fazendo muito barulho. Foi assim que aprendemos o que era
proibido. Nada de coçar a cabeça por causa dos piolhos. Nada de assoar o nariz
na palma
da mão. Nada de dizer "merda" quando nuvens de mosquito Zumbissem no seu
ouvido - Lao Lu dizia isso sempre que alguma coisa perturbava o sono dele.
Essa era outra regra: nada de dormir , exceto quando Pastor Amém
entoava longas e chatas orações a Deus que deixavam Lao Lu muito contente.
Porque, quando
os Adoradores de Jesus fechavam os olhos, ele podia fazer o mesmo e tirar uma
longa soneca. Eu mantinha meu olho aberto. Ficava olhando para Pastor Amém
para ver
se Deus ou Jesus estava descendo dos céus. Eu tinha visto isto acontecer para
um Adorador de Deus numa feira no templo. Deus entrou no corpo de um homem
comum e
o atirou no chão. Quando ele tornou a se levantar, tinha grandes poderes.
Espadas atiradas contra o estômago dele se dobravam ao meio. Mas nada disso
jamais aconteceu
com Pastor Amém. Embora uma vez, quando Pastor estava rezando, eu tenha visto
um mendigo parado na porta. Lembrei que os deuses chineses às vezes faziam
isto, chegavam
disfarçados de mendigos para ver o que estava acontecendo, quem estava sendo
leal, quem estava prestando homenagens a eles. Imaginei se o mendigo seria um
deus,
zangado ao ver estrangeiros diante do altar onde ele costumava estar. Quando
tornei a olhar alguns minutos depois, o mendigo tinha desaparecido. Então quem
sabe
se ele não foi o motivo das desgraças que aconteceram cinco anos depois.
Quando terminavam as orações, começava o sermão. No primeiro domingo,
Pastor Amém falou durante cinco minutos - falou, falou, falou! - uma porção
de sons
que só os outros missionários conseguiram entender. Depois a Srta. Bandeira
traduziu por cinco minutos. Alertas contra o demônio. Amém! Regras para ir
para o céu.
Amém! Tragam seus amigos com vocês. Amém! Eles iam para a frente e para trás,
como se estivessem

#75

brigando. Muito chato! Por duas horas tivemos de ficar sentados, imóveis, com
nossas bundas e nossos cérebros ficando dormentes.
No fim do sermão, havia um pequeno show, usando a caixa de música que
pertencia à Srta. Bandeira. Todo mundo gostava muito desta parte. O canto não
era tão
bom, mas, quando a música começava, sabíamos que nosso sofrimento estava quase
chegando ao fim. Pastor Amém erguia as duas mãos e nos mandava levantar. A
Sra. Amém
ia até a
frente da sala. Assim como a missionária nervosa chamada Lasher, como laoshu,
"camundongo", então era assim que nós a chamávamos, Srta. Camundongo. Havia
também
um médico estrangeiro chamado Swan, que soava como suanale, "tarde demais" -
não era de espantar que as pessoas doentes ficassem amedrontadas ao vê-lo. O
Dr. Tarde
Demais era encarregado de abrir a caixa de música da Srta. Bandeira e lhe dar
corda com uma chave. Quando a música começava, os três cantavam. A Sra. Amém
derramava
lágrimas. Algumas das pessoas mais idosas perguntavam alto se a caixa continha
estrangeiros pequeninos.
A Srta. Bandeira me disse um dia que a caixa de música era um presente
do pai dela, a única lembrança da família que ela tinha. Lá dentro, ela
guardava um
pequeno álbum para anotar seus pensamentos. A música, ela disse, era na
verdade uma canção alemã que falava em beber cerveja, dançar e beijar lindas
garotas. Mas
a Sra. Amém tinha escrito outra letra, que eu ouvi centenas de vezes, mas
apenas como um conjunto de sons: "Nós estamos marchando felizes com Jesus,
quando a Morte
dobrar a esquina, encontraremos Nosso Senhor. " Algo assim. Sabe, eu me lembro
da velha canção, mas agora as palavras têm outro sentido. Bem, esta era a
canção que
ouvíamos toda semana, dizendo a todo mundo para sair e comer uma tigela de
arroz, um presente de Jesus, para muitos mendigos que achavam que Jesus era um
proprietário
de terras com muitas plantações de arroz.
No segundo domingo, Pastor Amém falou por cinco minutos, a Srta.
Bandeira três. Então o pastor falou mais cinco minutos, a Srta. Bandeira

#76

um. Tudo se tornou cada vez mais curto do lado chinês, e as moscas só beberam
o nosso suor durante uma hora e meia naquele domingo. Na semana seguinte, foi
só por
uma hora. Mais tarde, Pastor Amém teve uma longa conversa com a Srta.
Bandeira. Na semana seguinte, Pastor Amém falou durante cinco minutos, a Srta.
Bandeira também.
Mais uma vez Pastor Amém falou por cinco minutos, a Srta. Bandeira também. Mas
agora ela não falava sobre as regras para se ir para o céu. Ela dizia:
- Era uma vez, num reino muito distante, um gigante e uma filha
dedicada de um pobre carpinteiro que era na verdade um rei... - E, no fim dos
cinco minutos,
ela parava numa parte bem excitante e dizia algo como: - Agora eu tenho de
deixar pastor falar durante cinco minutos. Mas,
enquanto vocês esperam, perguntem a si mesmos: será que a princesinha morreu
ou ela salvou o gigante? - Depois que o sermão e a história terminavam, ela
mandava
as pessoas gritarem "Amém" se estivessem prontas para comer sua tigela de
arroz. Ah, os gritos eram animados!
Aqueles sermões de domingo se tornaram muito populares. Muitos
mendigos vinham ouvir a Srta. Bandeira contar as histórias da sua infância. Os
Adoradores
de Jesus estavam contentes. Os comedores de arroz estavam contentes. A Srta.
Bandeira estava contente. Eu era a única que estava preocupada. E se Pastor
Amém descobrisse
o que ela estava fazendo? Será que ele ia bater nela? Será que os Adoradores
de Deus iam derramar brasas sobre o meu corpo por ensinar uma estrangeira a
ter uma
língua chinesa desobediente? Será que Pastor Amém ficaria desacreditado e
teria de se enforcar? Será que as pessoas que vinham para comer arroz e ouvir
histórias
e não por causa de Jesus iriam para um inferno estrangeiro?
Quando contei minhas preocupações à Srta. Bandeira, ela riu e disse
que nada disso aconteceria. Perguntei como ela podia saber. Ela disse:
- Se todo mundo está feliz, o que pode acontecer de ruim? Recordei o
que o homem que voltou para a Montanha do Cardo tinha dito:

#77
- Felicidade demais sempre transborda em lágrimas de dor.

Tivemos cinco anos de felicidades. A Srta. Bandeira e eu nos tornamos grandes


e leais amigas. Os outros missionários permaneceram desconhecidos para mim.
Mas, por
assistir a pequenas mudanças todos os dias, eu conhecia muito bem seus
segredos. Lao Lume contou sobre coisas vergonhosas que via do lado de fora das
janelas deles,
e também sobre coisas estranhas que via quando estava dentro dos quartos
deles. Como a Srta. Camundongo costumava chorar sobre um medalhão que continha
o cabelo
de uma pessoa morta. Como o Dr. Tarde Demais costumava tomar pílulas de ópio
para a sua dor de estômago. Como a Sra. Amém escondia pedaços de hóstia da
comunhão
em sua gaveta, nunca as comendo, apenas as guardando para o fim do mundo. Como
Pastor Amém relatou à América que tinha convertido uma centena de pessoas
quando na
verdade tinha convertido uma só.
Em troca, contei a Lao Lu alguns dos segredos que eu mesma tinha
visto. Que a Srta. Camundongo gostava do Dr. Tarde Demais, mas que ele não
percebia. Que
o Dr. Tarde Demais gostava muito da Srta. Bandeira, e ela fingia não notar.
Mas não contei a ele que a Srta. Bandeira ainda gostava muito do seu namorado
número
três, um homem chamado Wa-ren. Só eu sabia disso. Durante cinco anos, tudo
ficou igual, exceto por essas pequenas mudanças. Esta era a nossa vida naquela
época,
um pouco de esperança, um pouco de mudança, um pouco de segredo.
E sim, eu também tinha os meus segredos. Meu primeiro segredo foi
este. Uma noite, sonhei com Jesus, um estrangeiro de cabelo comprido, barba
comprida, muitos
seguidores. Contei à Srta. Bandeira, só que esqueci de mencionar aparte sobre
o sonho. Então ela contou a Pastor Amém, e ele me registrou como uma centena
de convertidos
- por isso eu sabia que era só um. Não disse à Srta. Bandeira para corrigi-lo.
Senão ele ficaria com vergonha de que seus cem convertidos não fossem nem um.

#78

Meu segundo segredo era muito pior.


Isto aconteceu depois que a Srta. Bandeira me contou que tinha perdido
sua família e suas esperanças. Eu disse que tinha tanta esperança que podia
usar as
sobras para desejar que seu namorado mudasse de idéia e voltasse. Isto a
agradou muito. Então foi para isto que rezei, por pelo menos cem dias.
Uma noite, eu estava sentada num banquinho no quarto da Srta.
Bandeira. Estávamos conversando sem parar. Quando terminamos as queixas
habituais, perguntei
se podíamos ouvir a caixa de música. Sim, sim, ela disse. Ah! O que é isto?
Apanhei uma escultura de marfim e a ergui até o olho. Era na forma de uma
mulher nua.
Muito fora do comum. Lembrei-me de ter visto algo semelhante uma vez.
Perguntei de onde tinha vindo a pequena estátua.
- Pertencia ao meu namorado - ela disse. - Era o cabo de sua bengala.
Quando ela quebrou, ele me deu de lembrança.
Wah! Foi então que eu soube que o namorado da Srta. Bandeira era o
traidor, General Capa. Todo esse tempo eu estivera rezando para ele voltar. Só
de pensar
nisso meu cabelo ficou arrepiado.
Então este era o meu segundo segredo: eu sabia quem ele era. E o
terceiro era este: comecei a rezar para ele ficar longe.
Deixe-me dizer-lhe, Libby-ah. Eu não sabia o quanto ela estava faminta
de amor, de qualquer tipo. Doce amor não durou e era difícil de encontrar. Mas
amor
podre! - havia muito para encher o buraco. Então foi com isto que ela se
acostumou, foi isto que ela aceitou assim que teve de volta.

#79

5
DIA DE LAVAR ROUPA

O telefone toca às oito em ponto. Esta é a terceira manhã seguida que Kwan
liga exatamente no momento em que estou passando manteiga na torrada. Antes
que eu possa
dizer alô, ela dispara:
- Libby-ah, pergunte a Simon - nome da loja de consertar estéreo, qual
é?
- O que há de errado com o seu estéreo?
- Errado? Ahhhh... barulho demais. Sim-sim, eu ligo o rádio, ele faz
cccchhhhhsssss.
- Você tentou ajustar a freqüência?
- Sim-sim! Ajusto sempre.
- Que tal ficar longe do estéreo? Talvez você esteja conduzindo muita
estática hoje. Estão anunciando chuva.
- Ok-Ok, talvez tente isto primeiro. Mas, só por precaução, ligue para
Simon, pergunte o nome da loja.
Estou de bom humor. Quero ver até onde ela vai com a desculpa.
- Conheço a loja - digo, e tento encontrar um nome plausível. - Sim, é
Bogus Boomboxes. Na Market Street. - Praticamente posso ouvir a mente de Kwan
zumbindo
e estalando alternadamente.
Finalmente ela ri e diz:
- Ei, garota malvada - mentira! Não é esse nome.
- E não há qualquer problema com o estéreo - digo.

#80

- Ok-Ok. Você liga para Simon, diz a ele que Kwan deseja feliz
aniversário.
- Na verdade, eu ia ligar para ele pelo mesmo motivo.
- Oh, você tão má! Por que me tortura, me envergonha desse jeito! -
Ela dá uma risada estridente, depois engasga e diz: - Oh, Libby-ah, e depois
de Simon
liga para mamãe.
- Por quê? O estéreo dela também quebrou?
- Não brinque. O coração dela está mal.
Fico alarmada.
- O que foi que houve? É alguma coisa grave?
- Mm-hrnrn. Tão triste. Você se lembra do novo namorado dela, Ai Mei
Rofri?
- Rai-mei ro-frei - pronuncio devagar. - Jaime Jofré.
- Eu sempre me lembro, Ai Mei Rofri. E foi isso que ele fez! Acontece
que já era casado. Dama chilena. Ela aparece, belisca a orelha dele, leva para
casa.
- Não! - Uma onda de alegria invade o meu rosto e mentalmente dou um
tapa em mim mesma.
- Sim-sim, mamãe está tão zangada! Semana passada ela comprou duas
passagens para um cruzeiro no barco do amor. Rofri diz use seu Visa, eu pago
de volta.
Agora nem dinheiro, nem cruzeiro. Ah! Pobre mamãe, sempre acha homem errado...
Ei, talvez eu banque a casamenteira para ela. Escolho melhor para ela do que
ela mesma.
Se fizer bom casamento, vai me trazer sorte.
- E se não for tão bom?
- Então tenho de consertar, fazer melhor. Meu dever.
Depois que desligamos, penso no dever de Kwan. Não é de espantar que
ela considere o meu divórcio um fracasso pessoal e profissional da parte dela.
Ela ainda
acredita que foi nossa mei-po espiritual, nossa casamenteira cósmica. E eu não
posso dizer a ela que não foi. Fui eu que pedi a ela para convencer Simon de
que estávamos
destinados um ao outro, unidos pelo destino.

Simon Bishop e eu nos conhecemos há mais de dezessete anos. Naquele momento


de nossas vidas, estávamos dispostos a colocar todas as nossas

#81

esperanças no ridículo - força pirâmide, figas brasileiras, até mesmo nos


conselhos de Kwan e seus fantasmas. Estávamos terrivelmente apaixonados, eu
por Simon e
ele por outra pessoa. Aconteceu que a outra pessoa morreu antes que eu
conhecesse Simon, embora eu só ficasse sabendo disto três meses depois.
Descobri Simon numa aula de lingüística na Universidade de Berkeley,
na primavera de 1976. Notei-o imediatamente porque, como eu, ele tinha um nome
que não
combinava com suas feições asiáticas. Estudantes eurasianos não eram tão
comuns na época como são agora, e, ao olhar para ele, tive a sensação de estar
vendo o meu
doppelgänger masculino. Fiquei olhando e pensando como os genes interagem, por
que um conjunto de características raciais predominam em uma pessoa e não em
outra
com os mesmos antecedentes. Uma vez conheci uma garota cujo último nome era
Chan. Tinha cabelos louros e olhos azuis, e não, ela explicou impaciente, não
era adotada.
Seu pai era chinês. Calculei que os ancestrais do pai dela tinham trocado
carícias secretas com os ingleses ou os portugueses de Hong Kong. Eu era como
aquela garota,
tendo sempre de explicar o meu sobrenome, por que eu não parecia uma Laguni.
Meus irmãos pareciam quase tão italianos quanto o nome dava a entender. Os
rostos deles
eram mais angulosos que o meu. O cabelo deles era ligeiramente ondulado e de
um castanho mais claro.
Simon não parecia ser de qualquer raça em particular. Era uma mistura
perfeitamente equilibrada, meio sino-havaiano, meio anglo, uma fusão de
diferentes
genes raciais e não uma diluição. Quando nossa turma de lingüística se dividiu
em grupos de estudo, Simon e eu nos dirigimos para o mesmo. Não mencionamos o
que
tão obviamente partilhávamos.
Lembro-me da primeira vez que ele mencionou sua namorada, porque eu
estava torcendo para ele não Ter nenhuma. Cinco de nós estávamos dando uma
virada para
os exames. Eu estava listando os atributos do etrusco: uma língua morta, bem
como isolada, não relacionada a outras línguas... No meio do meu resumo, Simon
deixou
escapar:

#82

- Minha namorada, Elza, fez uma viagem de estudos à Itália e viu


aqueles incríveis túmulos etruscos.
Olhamos para ele - como que perguntando, e daí? Note, Simon não disse
"Minha namorada, que, aliás, está tão morta quanto esta língua." Ele falou
nela de
passagem, como se ela estivesse viva e bem, viajando pelo Eurail e enviando
cartões-postais da Toscana. Após alguns segundos de um silêncio embaraçoso,
ele fez uma
cara sem graça e resmungou do jeito que as pessoas fazem quando são apanhadas
falando sozinhas na rua. Pobre cara, pensei, e naquele momento as cordas do
meu coração
fizeram twing.
Depois da aula, Simon e eu normalmente nos revezávamos para pagar o
café um do outro no Bear's Lair. Lá juntávamos nossas vozes ao zumbido de
centenas de
outras conversas e manifestações transcendentais. Discutíamos primitivismo
como um conceito ocidental tendencioso. Mestiçagem como a única resposta
viável a longo
termo para o racismo. Ironia, sátira e paródia como as formas mais profundas
da verdade. Ele me contou que queria criar sua própria filosofia, uma
filosofia que
orientasse o seu trabalho, que o capacitasse a realizar mudanças substantivas
no mundo. Procurei no dicionário a palavra substantivo naquela noite, e então
percebi
que também queria uma vida substantiva. Quando eu estava com ele, tinha a
sensação de que uma parte melhor e secreta de mim mesma tinha sido finalmente
libertada.
Eu já tinha saído com outros caras pelos quais me senti atraída, mas esses
relacionamentos raramente foram além de um divertimento normal causado por
festas que
duravam a noite inteira, conversas movidas a maconha e às vezes sexo, sendo
que tudo isso ficava logo rançoso como o hálito matinal. Com Simon, eu ria
mais, pensava
com mais profundidade, sentia a vida com mais paixão, com uma visão menos
limitada. Atirávamos idéias de um lado para o outro como profissionais de
tênis. Espicaçávamos
a mente um do outro. Desencavávamos o passado um do outro com um prazer
psicanalítico.
Era fantástico o fato de termos tanta coisa em comum. Nós dois
tínhamos perdido um dos pais antes dos cinco anos, ele a mãe, eu o pai.

#83

Nós dois tínhamos tido tartarugas de estimação; as dele morreram depois que
ele as deixou cair acidentalmente dentro de uma piscina tratada com cloro. Nós
dois tínhamos
sido crianças solitárias, abandonadas a responsáveis - ele a duas irmãs
solteiras de sua mãe, eu a Kwan.
- Minha mãe me deixou aos cuidados de uma pessoa que conversava com
fantasmas! - disse a ele uma vez. - Meu Deus! Não sei como você não é mais
doida do
que já é. - Rimos e eu fiquei atordoada por estarmos rindo
do que um dia tinha me causado tanto sofrimento.
Grande mamãe - acrescentei. - Ela é a típica assistente social,
totalmente obcecada em ajudar estranhos e ignorando a própria família. Não
faltaria à hora
marcada com a manicure para erguer um dedo para ajudar os filhos. Isso é que é
fingimento! Não que fosse algo patológico, mas, você sabe...
E Simon completou:
- É, até mesmo uma negligência benigna pode doer a vida inteira.
- Isto era exatamente o que eu sentia e não conseguia expressar em palavras. E
então
ele capturou meu coração: - Talvez a falta de atenção dela seja o que a tenha
tornado forte como você é hoje. - Concordei enfaticamente e ele continuou: -
Estava
pensando nisso porque a minha namorada, você sabe, Elza, bem, ela perdeu os
pais quando era bebê. E que pessoa decidida - opa!
Era assim quando estávamos juntos, íntimos em todos os aspectos -
até certo ponto. Eu percebia que nos sentíamos atraídos um pelo outro. Do meu
lado,
havia uma forte carga sexual. Do dele era mais como uma onda de estática - da
qual ele se desvencilhava facilmente:
- Ei, Laguni - ele dizia, e punha a mão com firmeza no meu ombro. -
Estou exausto, tenho de correr. Mas, se você quiser repassar a matéria este
fim de
semana, ligue para mim. - Com esta dispensa jovial, eu voltava para o meu
apartamento, sem nada para fazer numa noite de sexta-feira, porque tinha
recusado um encontro
na esperança de que Simon me convidasse para sair. Nessa época eu estava
idiotamente apaixonada por

#84

Simon - olhares doces, voz melosa, cabeça nas nuvens, totalmente caída. Muitas
vezes eu ficava deitada na cama, aborrecida por sentir tanto desejo. Pensava:
será
que estou maluca? Será que só eu me sinto assim? Claro, ele tem uma namorada.
E daí? Como todo mundo sabe, quando se está na faculdade e mudando a cabeça a
respeito
de milhões de coisas, uma namorada pode se transformar em ex-namorada da noite
para o dia.
Mas Simon não parecia saber que eu estava flertando com ele.
- Sabe o que eu gosto em você? - ele me perguntou. - Você me trata como
um bom camarada. Podemos conversar sobre qualquer coisa sem deixar que aquela
outra
coisa atrapalhe.
- Que outra coisa?
- O fato de sermos... Bem, você sabe, de sexos opostos.
- É mesmo? - eu disse, fingindo espanto. - Você quer dizer que eu sou
uma garota mas você é - eu não fazia a menor idéia! - E então caímos na
gargalhada.
De noite eu chorei amargamente, dizendo a mim mesma que eu era uma
idiota. Jurei muitas vezes desistir da esperança de ter um romance com Simon -
como se fosse
possível me obrigar a não estar apaixonada! Mas pelo menos eu sabia como me
comportar. Continuei a bancar a companheira jovial, ouvindo com um sorriso nos
lábios
e um aperto no coração. Esperava pelo pior. E sem dúvida, mais cedo ou mais
tarde, ele ia falar sobre Elza, como se soubesse que ela estava também na
minha mente.
Durante três meses de atenção masoquista, vim a conhecer os detalhes da
vida dela: que ela morava em Salt Lake City , onde ela e Simon tinham sido
criados,
brigando um com o outro desde a quinta série. Que ela tinha uma cicatriz de
seis centímetros atrás do joelho esquerdo, com forma e cor de minhoca, um
legado misterioso
da infância. Que era atlética; andava de caiaque, fazia caminhadas e era uma
ótima esquiadora cross-country. Que tinha dotes musicais, tinha talento para
compor,
e tinha estudado com Artur Balsam em um famoso acampamento musical de verão
em Blue Hill, Maine. Tinha até escrito a sua própria variação

#85

temática sobre as Goldberg Variations.


- É mesmo? - eu dizia a cada elogio feito a ela. - Que coisa
incrível.
O mais estranho é que ele só falava dela no presente.
Naturalmente, achei que ela estava viva. Uma vez, Simon me avisou que eu
estava com o dente manchado de batom e, enquanto eu o limpava apressadamente,
ele acrescentou:
- Elza não usa pintura, nem mesmo batom. Ela não acredita nisso. -
Tive vontade de gritar: o que há para acreditar?! Ou você usa pintura ou não
usa! Nessa
altura eu já tinha vontade de socá-la, uma garota tão moralmente digna, tinha
de ser o humanóide mais odioso que já pisara no planeta Terra, com seus
sapatos de
couro não-animal. Mes mo que Elza fosse doce e sem graça, isto não teria
importado, eu ainda a desprezaria. Para mim, Elza não merecia Simon. Por que
ela o teria
como um dos seus benefícios indiretos da vida? Ela merecia uma medalha de ouro
olímpica por lança mento de disco. Ela merecia um Prêmio Nobel da Paz por
salvar filhotes
retardados de baleia. Ela merecia tocar órgão no Coro do Tabemáculo Mórmon.
Simon, por outro lado, merecia a mim, alguém que o podia ajudar a
conhecer os recessos de sua alma, as passagens secretas que Elza tinha
obstruído com seu
constante criticismo e censura. Quando eu cumprimentava Simon - dizia que o
que ele havia dito era profundo, por exemplo ele dizia:
- Você acha? Elza diz que um dos meus maiores defeitos é me deixar levar
pelo que é fácil e agradável, que eu não me esforço o suficiente para pensar.
- Você não pode acreditar em tudo o que Elza diz.
- É, é isso que ela diz também. Ela detesta quando eu simplesmente
concordo com o que ela me apresenta como verdadeiro. Ela acha que as pessoas
devem confiar
em suas intuições, como o cara que escreveu Walden, como é mesmo o nome dele,
Thoreau. Bem, ela acha importante a discussão, para podermos chegar ao âmago
do que
acreditamos e por quê.
#86

- Eu detesto discutir.
- Não quero dizer discutir no sentido de brigar. Mais de debater, como
nós dois fazemos.
Detestava ser comparada e ficar em desvantagem. Tentei parecer
brincalhona.
- Oh? E o que é que vocês dois debatem?
- Coisas como será que as celebridades têm uma responsabilidade como
símbolos e não só como pessoas. Você se lembra quando Muhammad Ali se recusou
a ser
recrutado?
- Claro - menti.
- Elza e eu achamos que ele foi o máximo, tomando um partido assim
pessoal contra a guerra. Mas depois ele recuperou o título dos pesos pesados e
o falecido
presidente Ford convidou-o a ir à Casa Branca. Elza disse: "Você pode
acreditar nisso?" Eu disse: "Que diabo, se eu fosse convidado, também iria à
Casa Branca. "
E ela disse: "Convidado por um presidente republicano? Durante um ano
eleitoral?" Ela escreveu uma carta para ele.
- Para o presidente?
- Não, para Muhammad Ali.
- Oh, certo. É claro.
- Elza diz que você não pode apenas conversar sobre política ou
assistir ao que acontece pela televisão. Você tem de fazer alguma coisa, senão
se torna parte
daquilo.
- Parte de quê?
- Você sabe, da hipocrisia. É o mesmo que corrupção.
Imaginei Elza parecida com Patty Hearst, usando uma boina e uniforme
de combate, com um rifle automático pousado nos quadris.
- Ela acredita que todas as pessoas devem assumir uma posição moral
ativa na vida. Senão, o mundo vai acabar dentro de trinta anos ou menos.
Muitos amigos
nossos dizem que ela é pessimista. Mas ela acha que é a verdadeira otimista,
porque quer fazer alguma coisa para mudar o mundo de uma forma positiva. Se
você pensar
bem, ela tem razão.
Enquanto Simon ia ficando mais expansivo acerca das opiniões ridículas
de Elza, eu analisava sonhadoramente as feições dele, o quanto

#87

eram camaleônicas. O rosto dele mudava - de havaiano para asteca, de persa


para sioux, de bengalês para balinês.
- Que tipo de nome é Bishop? - perguntei uma vez. - Do lado do meu
pai, missionários excêntricos. Sou descendente dos Bishop - sabe? -, a célebre
família
de Oahu Island. Eles foram para o Havaí por volta de mil e
oitocentos para converter leprosos e gentios e acabaram casando com a realeza
e ficando donos de metade da ilha.
- Você está brincando.
- Infelizmente, eu também sou do lado da família que não herdou nada
da riqueza, nem uma única plantação de abacaxi ou campo de golfe. Do lado da
minha mãe,
somos sino-havaianos, com umas duas princesas reais nadando no poço genético.
Mas, de novo, nenhum acesso direto a propriedades na praia. - E então ele riu.
- Elza
disse uma vez que eu herdei do lado missionário da minha família a preguiça da
fé cega, e do lado da realeza havaiana uma tendência de usar os outros para
cuidar
das minhas necessidades em vez de trabalhar para provê-las.
- Não acho que isso seja verdade, essa história sobre caráter herdado,
como se estivéssemos destinados a nos tornar um determinado tipo de pessoa sem
escolha.
Quer dizer, Elza nunca ouviu falar em determinismo?
Simon ficou aturdido.
- Hummm - ele disse, pensando. Por um momento, tive a satisfação de
ter derrotado um competidor com uma jogada rápida e sutil.
Mas então ele observou:
- A doutrina do determinismo não diz que todos os acontecimentos e até
mesmo todas as escolhas humanas seguem leis naturais, o que significa que de
algum
modo está de acordo com o que Elza estava dizendo?
- O que eu quero dizer - e comecei a gaguejar enquanto tentava
recordar o que tinha absorvido superficialmente numa aula de filosofia -,
isto é, como
podemos definir natural? Quem pode dizer o que é e o que não é natural? - Eu
estava nadando às cegas, tentando manter-me pateticamente na superfície. -
Além disso,
quais são os antecedentes dela?

#88

- Os pais dela eram mórmons, mas eles a adotaram quando ela tinha um
ano de idade e a chamaram de Elsie, Elsie Marie Vandervort. Ela não sabe quem
foram
seus pais biológicos. Mas, desde os seis anos, antes de saber ler música, ela
ouvia uma canção uma única vez e depois conseguia tocá-la, nota por nota, sem
erro.
E gostava especialmente da música de Chopin, Paderewski, Mendelssohn,
Gershwin, Copland - me esqueci dos outros. Mais tarde descobriu que todos
eles eram ou poloneses
ou judeus. Issonão é estranho? Então isso a fez pensar que ela era
provavelmente judia polonesa. E começou a chamar a si mesma de Elza em vez de
Elsie.
- Gosto de Bach, Beethoven e Schumann - eu disse -, mas isto não faz
de mim uma alemã.
- Não era só isso. Quando ela tinha dez anos, aconteceu uma coisa que
vai parecer esquisita, mas que eu juro que foi verdade, porque eu assisti a
uma parte
dela. Ela estava na biblioteca da escola, folheando uma enciclopédia, e viu
uma foto de uma criança chorando e sua família, cercados por soldados. A
legenda dizia
que eram judeus sendo levados para Auschwitz. Ela não sabia onde ficava
Auschwitz e nem que se tratava de um campo de concentração. Mas sentiu
literalmente um cheiro
horrível que a fez tremer e sentir náuseas. E então ela caiu de joelhos e
começou a entoar: "Osh-vee-en-shim, osh-vee-en-shim", ou algo parecido. A
bibliotecária
sacudiu-a, mas Elza não parou - ela não conseguia. Então a bibliotecária
arrastou-a até a enfermeira da escola, Sra. Schneebaum. E a Sra. Schneebaum,
que era polonesa,
ouviu Elza dizendo "Osh-vee-en-shim" e ficou histérica. Achou que Elza estava
dizendo aquilo para zombar dela. Bem, veja só: "Oswiecim " é como se diz
Auschwitz
em polonês. Depois que Elza saiu do transe, ela soube que seus pais eram
judeus poloneses que tinham sobrevivido a Auschwitz.
- O que você quer dizer com ela soube?
- Ela simplesmente soube - como falcões sabem flutuar em correntes de
ar, como coelhos ficam paralisados de medo. É um conhecimento que

#89

não pode ser ensinado. Ela disse que as lembranças de sua mãe passaram do
coração para o útero, e que estão agora indelevelmente impressas nas paredes
do cérebro
dela.
- O que é isso! - eu disse incredulamente. - Ela parece a minha irmã
Kwan.
- Como assim?
- Oh, ela simplesmente recupera qualquer teoria velha para dar conta do
que acredita. De qualquer modo, instinto biológico e lembranças emocionais não
são
a mesma coisa. Talvez Elza tivesse lido ou ouvido falar de Auschwitz antes e
não se lembrasse. Você sabe como as pessoas costumam ver velhas fotos ou
filmes e mais
tarde pensam que são lembranças pessoais. Ou têm uma experiência de déjà vu -
e se trata apenas de uma má sinapse introduzindo uma percepção sensorial
imediata na
memória de longo prazo. Quer dizer, ela ao menos parece polonesa ou judia? -
E, assim que eu disse isso, tive um pensamento perigoso. Você tem um retrato
dela? -
perguntei o mais naturalmente que pude.
Enquanto Simon pegava a carteira, podia sentir meu coração acelerando
como um carro de corrida, pronto para dar a largada. Temia que ela fosse
incrivelmente
linda - uma mistura de Ingrid Bergman, iluminada pelas luzes da pista do
aeroporto, com Lauren Bacall, entediada dentro de um bar cheio de fumaça.
O retrato mostrava uma garota acostumada a viver ao ar livre, recortada
contra a luz do entardecer, cabelos crespos emoldurando um rosto mal-humorado.
O nariz
era longo, o queixo pequeno demais, o lábio inferior para fora no meio de uma
frase, de modo que ela parecia um buldogue. Estava em pé ao lado de uma
barraca de
camping, com as mãos nos quadris avantajados. O short jeans era apertado
demais, formando pregas nas virilhas. Havia também uma ridícula camiseta, com
"Questione
a Autoridade" estampado sobre os seios grandes.
Pensei comigo mesma, ora, ela não é uma beleza. Não é nem bonitinha. É
tão sem graça quanto um cachorro polonês sem mostarda.

#90

Estava tentando evitar um sorriso, mas podia ter dançado a polca de tão feliz.
Sabia que me comparar com ela daquele jeito era superficial e irrelevante. Mas
não
pude deixar de me sentir alegremente superior, achando que eu era mais bonita,
mais alta, mais magra, mais alinhada. Você não tinha de gostar de Chopin ou de
Paderewski
para saber que Elza descendia de camponeses eslavos. Quanto mais eu olhava,
mais me alegrava. Até ver finalmente os demônios da minha insegurança, e eles
não eram
mais ameaçadores do que seus joelhos de querubim.
Que diabo Simon viu nela? Tentei ser objetiva, olhar para ela do ponto
de vista masculino. Ela era atlética, era isso. E certamente dava a impressão
de ser
inteligente, mas de uma forma intimidante, antipática. Seus seios eram muito
maiores do que os meus; eles poderiam agir a seu favor se Simon fosse estúpido
o bastante
para gostar de globos carnudos que um dia iriam ficar pendurados até a
cintura. Podia-se dizer que seus olhos eram interessantes, oblíquos e felinos.
Embora, ao
se olhar com mais atenção, eles fossem perturbadores, marcados por profundas
olheiras. Ela estava olhando diretamente para a câmera e seu olhar era ao
mesmo tempo
penetrante e vazio. Sua expressão sugeria que ela conhecia os segredos do
passado e do futuro e que eram todos tristes.
Concluí que Simon havia confundido lealdade com amor. Afinal de contas,
ele conhecia Elza desde a infância. De certa forma, você tinha de admirá-lo
por isso.
Devolvi-lhe o retrato, tentando não mostrar meu contentamento.
- Ela parece terrivelmente séria. Isso é algo que se herda por ser um
judeu polonês?
Simon estudou a foto.
- Ela pode ser engraçada quando quer. Consegue imitar qualquer
pessoa - gestos, maneiras de falar, sotaques estrangeiros. Ela é cômica. Pode
ser. Às
vezes. Mas - Ele parou, indeciso. - Mas você tem razão. Ela fica remoendo um
bocado, imaginando que as coisas deviam ser melhores, por que deveriam, até
entrar em
fossa. Sempre foi assim, pensativa, séria, acho que se poderia até dizer
deprimida.

#91

Não sei de onde vem isso. Às vezes ela pode ser tão, você sabe, irracional - e
ele ficou calado, aparentemente perturbado, como se a estivesse enxergando sob
uma
nova luz e suas feições se tornassem desinteressantes.
Guardei essas deliciosas observações como armas para usar no
futuro. Ao contrário de Elza, eu me tornaria uma otimista de verdade. Eu
agiria. Em contraste
com a soturnidade dela, eu seria animada. Em vez de ser crítica, admiraria os
insights de Simon. Também me posicionaria politicamente. Mas riria com
freqüência e
mostraria a Simon que a vida com uma alma gêmea espiritual não precisava ser
triste e sombria. Estava determinada a fazer tudo o que fosse necessário para
arrancá-la
do coração de Simon.
Depois de ver o retrato de Elza, achei que ela seria fácil de desbancar.
Tolice minha, eu não sabia que ia ter de arrancar Simon das garras de um
fantasma.
Mas aquele dia eu fiquei tão feliz que até aceitei um convite de Kwan para
jantar. Levei minha roupa suja e só para ser agradável fingi prestar atenção
aos conselhos
dela.
Libby-ah, deixe-me fazer isso. Você não sabe usar a minha máquina de lavar.
Nem muito sabão nem tão quente, sempre vire os bolsos para fora...
Libby-ah, ai-ya, por que você tem tantas roupas pretas? Você devia usar
cores bonitas! Florzinhas, bolinhas, roxo é uma boa cor para você. Branco, eu
não gosto.
Não por superstição. Algumas pessoas acham que branco significa morte. Nada
disso. No Mundo de Yin, existem muitas, muitas cores que você nem imagina,
porque você
não as pode ver com os olhos. Você tem de usar os seus sentidos secretos,
imaginá-las quando está cheia de sentimentos e lembranças verdadeiras, tanto
alegres quanto
tristes. O alegre e o triste às vezes vêm da mesma coisa, sabia disto?
Bom, eu não gosto de branco porque suja demais, é muito difícil de
limpar. Não é prático. Eu sei, porque na minha última vida, tive de lavar
muita roupa branca
- montes e montes. Era uma das maneiras de pagar pelo meu quarto na Casa do
Mercador Fantasma.

#92

No Primeiro Dia de cada semana, tinha de lavar. No Segundo Dia, passava


a ferro o que tinha lavado. O Terceiro Dia era para engraxar sapatos e
remendar roupas.
O Quarto Dia era para varrer o pátio e os corredores, o Quinto Dia para
esfregar o chão e limpar a mobília da Casa de Deus. O Sexto Dia era para
negócio importante.
Gostava mais do Sexto Dia. Juntas, eu e a Srta. Bandeira percorríamos a
aldeia, entregando panfletos chamados "Boas Novas". Embora o papel tivesse
palavras
inglesas traduzidas para o chinês, eu não podia lê-las. Já que não podia ler,
não podia ensinar a Srta. Bandeira a ler. E nas partes pobres da aldeia que
percorríamos,
ninguém sabia ler também. Mas as pessoas gostavam de receber os panfletos.
Elas os utilizavam para enfiar por dentro das roupas de inverno. Colocavam-nos
por cima
das tigelas de arroz para evitar as moscas. Enfiavam-nos nas fendas das
paredes. A cada poucos meses, um barco de Cantão trazia mais caixas desses
panfletos. Então,
toda semana, no Sexto Dia, nós tínhamos muitos para distribuir .Não sabíamos
que o que estávamos realmente dando para aquelas pessoas era um bocado de
problema no
futuro.
Quando voltávamos para a Casa do Mercador Fantasma, felizes e de mãos
vazias, Lao Lu fazia um pequeno show para nós. Ele escalava uma coluna e
caminhava ligeiro
na borda do telhado enquanto nós gritávamos:
- Não vá cair! - Então ele se virava, apanhava um tijolo e o colocava na
cabeça, depois colocava uma xícara de chá sobre ele, depois uma tigela, um
prato,
todo tipo de coisas de diferentes tamanhos e pesos. E tornava a caminhar pela
beirada estreita, enquanto nós gritávamos e ríamos. Acho que ele estava sempre
tentando
se retratar da vez que caiu na água com a Srta. Bandeira e seu baú.
O Sétimo Dia, é claro, era para ir à Casa de Deus, depois descansar à
tarde, conversando no pátio, apreciando o pôr-do-sol, as estrelas ou os
relâmpagos de
uma tempestade.

#93

Às vezes eu arrancava folhas de um arbusto que crescia no pátio. Lao Lu sempre


me corrigia:
- Isto não é um arbusto. é uma árvore sagrada. Olhe aqui. - Ele ficava
em pé com os braços esticados, como um fantasma caminhando na noite, afirmando
que o
espírito da natureza fluía dos membros da árvore para os dele. - Você come as
folhas - ele dizia - e encontra paz, equilíbrio, não liga para os outros. -
Então,
todo domingo, eu usava aquelas folhas para fazer chá, como um presente de
gratidão a Lao Lu pelo seu show. A Srta. Bandeira sempre tomava um pouco. Toda
semana,
eu dizia:
- Ei, Lao Lu, você tem razão, o chá deste arbusto faz a a pessoa se
sentir em paz. - Então ele respondia:
- Isto não é um arbusto qualquer, para servir de depósito de urina de
cachorro, é uma árvore sagrada. - Então, como você vê, as folhas não serviram
para curá-lo
do hábito de praguejar, que pena.
Depois do Sétimo Dia, vinha de novo o Primeiro Dia, do qual vou falar
agora. Como disse, tinha de lavar a roupa suja. Eu lavava roupa na ampla
passagem murada
que ficava ao lado da cozinha. A passagem tinha chão de pedra e era aberta
para o céu, mas protegida por uma grande árvore. A manhã inteira, eu fervia
grandes caldeirões
de água e cal, dois caldeirões, porque os missionários não permitiam que os
homens e as mulheres nadassem juntos na mesma água quente. Um caldeirão eu
perfumava
com cânfora, o outro com casca de cássia, que cheira como canela. Ambas eram
boas para evitar traças. Na água de cânfora, eu fervia
camisas brancas e as roupas de baixo secretas do Pastor Amém e do Dr. Tarde
Demais. Fervia a roupa de cama deles, os panos que usavam para enxugar o nariz
e a testa.
No caldeirão com casca de cássia, eu fervia as blusas, as roupas de baixo
secretas das mulheres, a roupa de cama delas, os panos que usavam para enxugar
seus narizes
de damas.
Estendia as roupas molhadas na roda de um velho moinho de pedra,
depois rolava a pedra para espremer a água. Colocava as roupas espremidas em
duas cestas,
homens e mulheres ainda separados. Jogava o resto da água de cânfora no
chão da passagem. E depois carregava as

#94

cestas até a área dos fundos, onde havia dois abrigos ao longo do muro, um
para uma mula, outro para uma búfala. Entre os dois abrigos havia uma corda
bem esticada.
E era ali que eu pendurava as roupas para secar. À minha esquerda
havia outro muro e um corredor que ia dar num amplo jardim, cercado de altos
muros de pedra.
Era um lindo lugar, antigamente cuidado por vários jardineiros, agora
abandonado e selvagem. As pontes de pedra e as rochas ornamentais ainda
estavam lá, mas os
laguinhos estavam secos, não havia peixes, só mato. Tudo estava emaranhado -
os arbustos floridos, os galhos das árvores, mato e vinhas. Os caminhos
estavam cheios
de folhas e botões de vinte estações, macios e frescos sob meus pés. Os
caminhos subiam e desciam de forma surpreendente, fazendo-me sonhar que estava
subindo a
Montanha do Cardo. O topo de uma dessas colinas dava apenas para conter um
pequeno pavilhão. Dentro do pavilhão havia bancos de pedra cobertos de limo.
No meio do
chão de pedra havia um lugar queimado. Deste pavilhão, eu podia olhar por cima
do muro, ver a aldeia, os picos de calcário, o arco que dava no próximo vale.
Toda
semana, depois de lavar a roupa, eu molhava ovos de pata no resto da cal e os
enterrava no jardim para defumar. E quando terminava, ficava no pavilhão,
fingindo
que o mundo que avistava além do muro era meu. Fiz isso por muitos anos, até
que um dia Lao Lu me viu parada ali. Ele disse:
- Ai, Nunumu, não vá mais lá em cima, foi lá que o mercador Punti
morreu, no pavilhão.
Lao Lu disse que o mercador estava lá em pé uma noite, com suas quatro
esposas lá embaixo. Ele olhou para o céu e viu uma nuvem de pássaros negros. O
mercador
amaldiçoou-os e então ardeu em chamas. Wah! O fogo rugiu, a gordura do
mercador chiou e respingou. Lá embaixo, suas esposas aterrorizadas gritaram,
sentindo o cheiro
picante de
chili frito e alho. De repente, o fogo apagou e uma fumaça com a forma do
mercador subiu e se dissolveu no ar. Quando as esposas chegaram no pavilhão,
não encontraram
cinzas, só restavam os pés e os sapatos dele.

#95

E também o cheiro, terrível e delicioso ao mesmo tempo.


Depois que Lao Lu me contou isto, eu ficava preocupada com o cheiro
toda vez que pendurava a roupa, toda vez que ia no jardim enterrar os meus
ovos. Sentia
cheiro de cânfora, de cássia, de folhas mortas e de arbustos floridos. Mas, no
dia a que me refiro agora, pensei sentir o cheiro do Mercador Fantasma, seu
medo da
morte, muito forte, de chili e alho, talvez um pouco de vinagre também. Era um
dia de grande calor, durante o mês em que as cigarras se desenterram depois de
permanecerem
quatro anos na terra. Elas estavam cantando, os machos gritando pelas fêmeas,
cada um querendo gritar mais alto. Mantive o olho virado para o corredor, para
o caso
de o Mercador Fantasma estar lá, procurando os seus pés. Ouvi um ruído
farfalhante, folhas secas estalando, galhos se partindo, e pássaros negros
voaram dos arbustos
e se espalharam no céu. As cigarras emudeceram.
Meus ossos estavam tremendo. Queria fugir .Mas ouvi a Donzela
Bandoleira Fantasma dentro de mim dizer:
- Está com medo? Como você pode ter medo de um mercador Punti sem pés?
Vá lá dentro e veja onde ele está. - Então eu fiquei com medo e envergonhada
de estar
com medo. Cautelosamente, fui até o corredor e espiei para dentro. Quando as
cigarras começaram a zumbir, corri para dentro do jardim, meus pés esmagando
as folhas
mortas. Atravessei correndo a ponte de pedra, passei pelo lago seco,
atravessei as colinas que subiam e desciam. Quando o zumbido se transformou em
estalos, parei,
sabendo que as cigarras ficariam logo exaustas e se calariam. Usando a música
delas, eu corria e parava, corria e parava, até estar no sopé da colina do
pavilhão.
Circulei sua base quando os estalos pararam, e fiquei olhando para um homem
sentado em um banco de pedra, comendo uma pequena banana. Nunca tinha ouvido
falar em
fantasma comendo banana. É claro que, desde então, outros fantasmas me
disseram que eles às vezes fingem comer bananas, embora nunca as que têm um
monte de manchas
pretas, que era o que a banana daquele homem tinha.

#96

Quando o homem me viu, ergueu-se de um salto. Tinha um rosto peculiar


mas elegante, nem chinês nem estrangeiro. Usava roupas de um cavalheiro. Já
tinha visto
aquele homem antes, tinha certeza de que sim. Então ouvi sons vindos do outro
lado da colina, um barulho alto de água batendo nas pedras, um homem
suspirando, pés
esmagando vinte estações de folhas. Vi o clarão de uma bengala com ponta
prateada, o rosto encovado do homem que a possuía. Suas mãos estavam ocupadas
abotoando
os diversos botões de sua calça. Era o General Capa, e o homem elegante da
banana era o homem pela metade chamado Yiban.
Wah! Lá estava o homem que eu tinha rezado para que voltasse para a
Srta. Bandeira. Mais tarde rezei para ele ficar longe, mas não devo ter pedido
isto a
Deus tantas vezes quantas tinha pedido para ele voltar.
Capa gritou para Yiban e então Yiban me disse:
- Senhorita, este cavalheiro é um famoso general ianque. Esta é a casa
onde moram os estrangeiros adoradores de Deus?
Não respondi. Estava lembrando o que o homem que voltou para a
Montanha do Cardo tinha dito: que o General Capa tinha traído os hakkas. Vi o
General Capa
olhando para os meus sapatos. Ele tornou a falar e Yiban traduziu:
- A senhora que lhe deu esses sapatos de couro é uma grande amiga do
general. Ela está ansiosa para vê-lo.
Então os sapatos com os meus pés dentro conduziram os dois homens até
a Srta. Bandeira. E Yiban estava certo. Ela estava ansiosa para ver o General
Capa.
Ela atirou os braços em volta dele e deixou que ele a erguesse no ar. Ela fez
isso na frente do Pastor Amém e senhora, que embora fossem marido e mulher
nunca se
tocavam, nem mesmo em seu próprio quarto - foi o que Lao Lu me contou. Tarde
da noite, quando todo mundo devia estar dormindo mas não estava, a Srta.
Bandeira abriu
a porta do quarto dela e o General Capa entrou rapidamente. Todo mundo
escutou; nós não tínhamos janelas, só telas de madeira.
Eu sabia que a Srta. Bandeira ia chamar o General Capa para o quarto
dela. Mais cedo aquela noite, eu tinha contado a ela que Capa era

#97
um traidor do povo hakka, e que também a iria trair. Ela ficou muito zangada
comigo, como se eu tivesse dizendo aquilo como uma maldição. Disse que o
General Capa
era um herói, que ele só a tinha deixado em Cantão para ajudar os Adoradores
de Deus. Então eu contei a ela o que o homem que voltou para a Montanha do
Cardo tinha
dito: que o General Capa tinha se casado com a filha de um banqueiro chinês
por dinheiro. Ela disse que o meu coração era carne podre e que minhas
palavras eram
larvas se alimentando de boatos. Disse que, se eu acreditava naquelas coisas
sobre o General Capa, então não era mais sua leal amiga.
Eu disse a ela:
- Quando você acredita em alguma coisa, como pode parar de acreditar
de repente? Quando você é uma amiga leal, como pode deixar de ser? - Ela não
respondeu.
Tarde da noite, eu ouvi a caixa de música tocando, a que o pai tinha
dado a ela quando ela era menina. Ouvi a música que fez lágrimas saltarem dos
olhos
da Sra. Amém, mas agora a música estava fazendo um homem beijar uma moça. Ouvi
a Srta. Bandeira suspirar, e tornar a suspirar. E sua felicidade foi tão
grande que
se derramou, se infiltrou no meu quarto e se transformou em lágrimas de
tristeza.
Eu tinha voltado a lavar minha roupa na casa de Kwan. Simon costumava se
encarregar da lavagem - esta era uma das coisas boas de estar casada com ele.
Ele gostava
de arrumar a casa, colocar lençóis limpos e esticá-los na cama. Desde que ele
foi embora, tive de lavar minhas roupas. As máquinas que funcionam com moedas
ficam
no porão do meu prédio, e a umidade e a luz fraca me causam arrepios. A
atmosfera mexe com a minha imaginação. Mas, na verdade, Kwan também.
Sempre espero até não ter mais roupa de baixo limpa. E então atiro
três sacos cheios de roupa suja no carro e me dirijo a Balboa Street. Mesmo
agora, enquanto
enfio minhas roupas na máquina de secar de

#98

Kwan, penso na história que ela me contou no dia em que estava cheia de
esperanças amorosas. Quando ela chegou na parte que falava na alegria se
transformando em
tristeza, eu disse:
- Kwan, não quero mais ouvir isso.
- Ah? Por quê?
- Isso me aborrece. E neste momento eu quero ficar de bom humor.
- Talvez se eu contar mais, você não fique aborrecida. Você veja o
erro que a Srta. Bandeira cometeu...
- Kwan - eu disse. - Não quero ouvir falar na Srta. Bandeira. Nunca
mais.
Que poder! Que alívio! Fiquei espantada com a força que Simon me fez
sentir. Eu podia enfrentar Kwan. Podia decidir a quem devia escutar e por quê.
Podia
estar com alguém como Simon, que era racional, lógico e são.
Nunca pensei que também fosse encher a minha vida de fantasmas.

II
#101

VAGA-LUMES

Foi na noite que Simon me beijou pela primeira vez que eu finalmente soube a
verdade a respeito de Elza. O período escolar da primavera tinha terminado e
caminhávamos
pelas colinas atrás do campus de Berkeley, fumando um baseado. Era uma noite
quente de junho e nós chegamos numa área em que luzinhas brancas faiscavam nos
carvalhos
como se fosse Natal.
- Será que estou tendo alucinações? - perguntei.
- Vaga-lumes - Simon respondeu. - Eles não são incríveis?
- Você tem certeza? Não achava que eles existissem na Califórnia.
Nunca os vi antes.
- Talvez algum estudante os tenha criado para uma experiência e depois
os tenha soltado.
Sentamo-nos no tronco de uma árvore caída. Dois insetos faiscantes
ziguezagueavam um na direção do outro, dando a impressão de uma atração casual
e ao mesmo
tempo predestinada. Eles acendiam e apagavam como aviões se dirigindo para a
mesma pista, cada vez mais próximos, até brilharem por um instante como se
fossem um
só, logo depois se apagando e se separando.
- Isto é romance para você - eu disse.
Simon sorriu e olhou para mim. Colocou desajeitadamente o braço o
redor da minha cintura. Passaram-se dez segundos, vinte, e nós não

#102

tínhamos nos movido. Meu rosto ficou quente, meu coração batia depressa,
enquanto compreendia que estávamos cruzando os limites da amizade, prontos
para saltar a
cerca e correr para a floresta. E foi assim mesmo, nossas bocas, como aqueles
vaga-lumes, se moveram hesitantes na direção uma da outra. Fechei os olhos
quando os
lábios dele alcançaram os meus, ambos trêmulos e inseguros. Quando me
aproximei mais para que ele pudesse me abraçar com mais paixão, ele me soltou,
praticamente
me empurrou. E começou a se desculpar.
- Oh, Deus, sinto muito. Gosto realmente de você, Olivia. Um bocado.
Mas é complicado, porque - bem, você sabe.
Afastei um inseto do tronco com um peteleco, fiquei olhando tolamente
enquanto ele se debatia de costas.
- Sabe, a última vez que a vi, tivemos uma briga horrível. Ela ficou
muito zangada comigo, e eu não a vi mais desde então. Isto foi há seis meses.
A questão
é que ainda a amo. Mas...
- Simon, você não precisa dar explicações. - Fiquei em pé, com as pernas
bambas. - Vamos simplesmente esquecer, Ok?
- Olivia, sente-se. Por favor. Tenho de contar para você. Quero que
você compreenda. É importante.
- Me solte. Esqueça, OK? Que merda! Finja que nunca aconteceu!
- Espere. Volte. Sente-se, por favor, Olivia. Preciso contar isso para
você.
- Mas para quê, droga?
- Porque eu acho que também amo você.
Prendi a respiração. É claro que eu preferia que ele não tivesse
qualificado sua declaração com "eu acho" e "também", como se eu pudesse fazer
parte de um
harém emocional. Mas, apaixonada como eu estava, "amor" já era o bastante para
funcionar como bálsamo e isca. Sentei.
- Se você ouvir o que aconteceu - ele disse -, talvez possa entender
por que levei tanto tempo para dizer o que sinto por você.

#103

Meu coração ainda batia descontroladamente, com uma estranha mistura


de raiva e esperança. Ficamos alguns minutos sentados num silêncio nervoso.
Quando eu
estava pronta, disse numa voz fria:
- Vá em frente.
Simon limpou a garganta.
- A briga que Elza e eu tivemos foi em dezembro, durante o período de
férias. Voltei para Utah. Tínhamos planejado praticar esqui cross-country em
Little
Cottonwood Canyon. Na semana anterior, estávamos rezando para cair neve
fresca, e finalmente ela veio aos borbotões, um metro de poeira fresca.
- Ela não quis ir - arrisquei, tentando acelerar a história.
- Não, ela foi. Estávamos subindo o canyon de carro e eu me lembro de
que estávamos conversando sobre a associação de poupança e empréstimo e
debatendo se
o fato de dar comida aos pobres tornava menos repreensível a extorsão e o
assalto a bancos. De repente, sem nenhum motivo, Elza me perguntou: "Como você
se sente
sobre o aborto?" E eu achei que tinha ouvido mal. "Suborno?" Eu disse. E ela
disse: "Não, aborto." Então eu disse: "Você sabe, como dissemos antes, sobre o
caso
Roe versus Wade, que a decisão não foi suficientemente ampla." Ela me
interrompeu e disse: "Mas o que você realmente sente sobre o aborto?"
- O que ela quis dizer com sentir realmente?
- Foi o que eu perguntei. E ela disse vagarosamente, enunciando cada
sílaba: "Quero dizer emocionalmente, o que você sente?" E eu disse:
"Emocionalmente, acho
que tudo bem." Então ela explodiu: "Você nem refletiu sobre a pergunta! Não
estou perguntando o que você acha do tempo. Estou perguntando sobre a vida de
seres humanos!
Estou falando sobre a vida real de uma mulher versus a vida potencial em seu
útero!"
- Ela estava histérica. - Eu estava ansiosa para enfatizar a
personalidade volátil e irracional de Elza.
Ele concordou com a cabeça.

#104

- No alto da trilha, ela saltou do carro, realmente zangada, e calçou os


esquis. Pouco antes de começar a descer, ela gritou: "Eu estou grávida, seu
idiota.
E não há a menor possibilidade de eu ter este bebê e arruinar a minha vida.
Mas abortá-lo me deixa desesperada e você fica aí sentado, sorrindo, achando
que está
tudo bem."
- Meu Deus, Simon. Como você podia saber? - Então era isto, pensei. Elza
tinha querido se casar e, confrontado com o fato, Simon tinha recusado. Que
bom para
ele.
- Fiquei estarrecido - Simon continuou. - Não fazia idéia. Sempre fomos
cuidadosos com controle da natalidade.
- Você acha que ela fez de propósito?
Ele franziu a testa.
- Ela não é esse tipo de pessoa. - Ele pareceu defensivo.
- O que foi que você fez?
- Calcei os esquis, segui as pegadas dela. Fui gritando para ela
esperar, mas ela ultrapassou uma elevação e eu não consegui mais vê-la. Meu
Deus, lembro o
quanto o dia estava lindo, ensolarado, tranqüilo. Você sabe, a gente nunca
acha que pode acontecer algo terrível quando o tempo está bonito. - Ele riu
com amargura.
Achei que ele tinha terminado - desde aquele dia, ele e Elza não tinham
mais se visto, fim da história, hora de continuar, comigo.
- Bem - eu disse, tentando me mostrar compreensiva -, o mínimo que ela
poderia ter feito era dar a você uma chance de discutir a situação antes de
começar
a agredi-lo.
Simon inclinou-se para a frente e enterrou o rosto nas mãos.
- Oh, Deus! - ele disse com uma voz angustiada.
- Simon, eu compreendo, não foi sua culpa, e agora está acabado.
- Não, espere - ele disse com a voz rouca. - Deixe-me terminar. - Ele
ficou olhando para os joelhos, respirou fundo algumas vezes. - Cheguei naquela
ladeira
íngreme, e havia um aviso de que ali era fora dos limites.

#105

Logo adiante, ela estava sentada no alto de uma saliência, chorando. Chamei
por ela e ela olhou para cima, realmente zangada. Ela se levantou e começou a
descer
pela encosta íngreme. Ainda consigo ver: a neve, era incrível, pura e
insondável. E ela deslizava pela linha de desnível. Mas, na
metade do caminho, ela alcançou uma neve mais pesada, seus esquis afundaram e
ela parou.
Olhei para os olhos de Simon. Eles estavam fixos em algo muito distante
e perdido, e eu fiquei assustada.
- Gritei o nome dela o mais alto que pude. Ela estava revolvendo a neve
com os bastões, tentando soltar a ponta dos esquis. Tornei a gritar: "Pelo
amor de
Deus, Elza!", e ouvi aquele barulho, como um tiro abafado, e então ficou tudo
quieto de novo. Ela se virou. Estava apertando os olhos - devia estar ofuscada
pelo
sol. Acho que ela não chegou a ver a encosta, duzentos metros acima dela.
Estava se rompendo vagarosamente, sem ruído, como um zíper gigantesco se
abrindo. A costura
se transformou numa fenda, uma sombra azul gelada. E então começou a se
alastrar rapidamente. A fenda desceu um pouco, e era enorme, transparente como
um rinque
de gelo. Então tudo começou a ribombar, o chão, meus pés, meu peito, minha
cabeça. E Elza, eu posso dizer que ela sabia. Ela estava lutando para se
livrar dos esquis.
Como Elza, eu sabia o que estava por vir.
- Simon, acho que não quero ouvir mais nada...
- Ela se livrou dos esquis e da mochila. Começou a saltar pela neve,
enterrada até os quadris. Comecei a berrar: "Vá para o lado!" E então a
montanha despencou
e só o que pude ouvir foi aquele rugido de trem, árvores se partindo, fileiras
inteiras, quebrando como palitos.
- Oh, Deus - murmurei.
- Ela estava deslizando no topo da avalanche - é isso que se tem de
fazer, deslizar, deslizar, deslizar sem parar. E então... ela foi engolida...
sumiu. Tudo
rangeu e se ajeitou, e ficou perfeitamente imóvel. Eu sentia o cheiro de
pinho das árvores quebradas. Minha cabeça corria a um milhão de milhas por
minuto. Não
entre em pânico, disse a mim mesmo, se você entrarem pânico está tudo acabado.
Desci pelo lado, entre as árvores onde

#106

a neve estava intacta. Fiquei repetindo para mim mesmo, lembre onde foi que
ela afundou. Procure pelos esquis apontando na neve. Use um dos seus esquis
como marcador.
Cave com o seu bastão. Vá fazendo um círculo cada vez maior.
"Mas, quando eu cheguei no fundo, nada parecia igual ao que eu tinha
visto do alto. O ponto que eu tinha marcado na minha cabeça, merda, não estava
lá, só
aquela enorme extensão de entulho de neve, pesada como cimento molhado. Fiquei
tropeçando ali em volta, sentindo como se estivesse num desses pesadelos em
que suas
pernas ficam paralisadas.
- Simon - eu disse -, você não tem de...
Mas ele continuou falando:
- De repente, uma estranha calma me atingiu, o olho do furacão. Pude ver
Elza na minha mente, o lugar onde ela estava. Éramos tão ligados. Ela estava
me guiando
com seus pensamentos. Fui abrindo caminho até onde achava que ela estava.
Comecei a cavar com um dos meus esquis, dizendo a ela que já a tiraria de lá.
E então ouvi
um helicóptero. Graças a Deus! Acenei como louco, e então dois patrulheiros
saltaram com um cão de resgate e equipamento de avalanche. Eu estava tão doido
que fiquei
repetindo o quanto ela era aerobicamente bem preparada, qual o seu índice de
batimentos cardíacos, quantos quilômetros ela corria por semana, onde eles
deviam cavar.
Mas os patrulheiros e o cachorro começaram a descer a encosta em ziguezague.
Então eu continuei a cavar na mesma área em que tinha certeza de que ela
estava. Logo
depois eu ouvi o cachorro ganindo e os caras gritando lá embaixo que a haviam
encontrado. Isto me surpreendeu, porque ela não estava onde eu pensava. Quando
cheguei
onde os caras da patrulha estavam, vi que eles já tinham desencavado a parte
de cima do corpo dela. Fui me aproximando com dificuldade, suado e sem fôlego,
agradecendo
a eles, dizendo o quanto eles eram fantásticos, porque eu podia ver que ela
estava bem. Ela estava ali, bem ali, o tempo todo estava só a meio
metro da
superfície.
#107

Fiquei tão feliz de ver que ela estava viva.


- Oh, graças a Deus - murmurei. - Simon, até você dizer isso, sabe de
uma coisa? Eu pensei que...
- Os olhos dela já estavam abertos. Mas ela estava imobilizada,
encolhida de lado, com as mãos em concha diante da boca, assim, como eu tinha
ensinado a
ela, para formar uma bolsa de ar de modo a conseguir respirar por mais tempo.
Eu estava rindo e dizendo: "Meu Deus, Elza, não posso acreditar que você tenha
tido
calma suficiente para se lembrar dessa parte sobre a bolsa de ar." Só que os
patrulheiros estavam me empurrando para trás, dizendo: "Sentimos muito, cara,
mas ela
se foi." E eu disse: "Que diabo vocês estão dizendo? Ela ainda está aqui, eu
posso vê-la, tirem-na daí. " E um dos caras pôs a mão no meu ombro e disse:
"Ei, amigo,
estamos cavando há uma hora e a avalanche foi notificada uma hora antes disso.
O máximo que ela poderia ter eram vinte, vinte e cinco minutos."
- E eu gritei de volta: "Só se passaram dez minutos!" Eu estava tão
enlouquecido - sabe o que pensei? Que Elza tinha mandado eles me dizerem
aquilo porque
ainda estava zangada comigo. Eu me aproximei. Sabe, eu ia dizer a ela que
sabia - sabia no meu coração e nas minhas entranhas - o quanto a vida é
especial, como
é difícil desistir dela, seja a sua ou a de outra pessoa.
Pus a mão no ombro de Simon. Ele estava ofegando como um asmático.
- Quando cheguei perto dela - ele disse -, tirei a neve que estava
grudada em sua boca. E, e, e - e foi quando percebi que ela não estava
respirando, você
sabe, ela não estava realmente respirando naquele espaço de ar que eu a tinha
ensinado a fazer. E, e, e vi como o rosto dela estava escuro, as lágrimas
congeladas
em seus olhos abertos, sabe, e eu disse, Elza, por favor, não faça isso, por
favor, não tenha medo. Agarrei as mãos dela assim - oh, Deus, que merda, elas
estavam
tão frias - mas ela não parava, ela não. ..Ela estava...
- Eu sei - disse eu baixinho.

#108

Simon sacudiu a cabeça.


- Ela estava rezando, sabe, com as mãos juntas, em concha, como eu
tinha ensinado a ela. E, embora eu já soubesse, que merda, oh Jesus, embora
soubesse que
ela não estava dizendo realmente nada, eu podia ouvi-la, ela estava gritando:
"Por favor, Deus, por favor, por favor, por favor não me deixe morrer."
Virei o rosto. Minha garganta estava fazendo ruídos estúpidos enquanto
eu tentava não chorar. Não sabia o que dizer, como consolá-lo. E sabia que
devia ter
sentido uma imensa tristeza, uma grande simpatia por Simon, o que realmente
sentia. Mas, para ser totalmente honesta, o que eu
mais sentia era um medo horrível. Eu a odiara, desejara que ela estivesse
morta, e agora era como se a tivesse matado. Eu teria de pagar por isso. Tudo
voltaria
para mim, o ciclo cármico completo, como Kwan e o hospital psiquiátrico. Olhei
para Simon. Ele estava contemplando as silhuetas dos carvalhos, o brilho dos
vaga-lumes.
- Sabe, a maior parte do tempo eu sei que ela se foi - ele disse com
uma calma assustadora. - Mas às vezes, quando penso nela, nossa música
favorita começa
a tocar no rádio. Ou um amigo dela de Utah telefona naquele exato momento. E
eu não acho que seja só coincidência. Eu a sinto. Ela está ali. Porque, sabe,
éramos
ligados, realmente ligados, de todas as maneiras. Não era só uma coisa física,
esta era a menos importante. Era como, bem... posso ler para você uma coisa
que ela
escreveu?
Balancei a cabeça. Simon pegou a carteira e desdobrou um pedaço de
papel colado com durex nas dobras. - Ela me mandou isto um mês antes do
acidente, como
parte do meu presente de aniversário. - Ouvi com o coração apertado.
- "O amor é astucioso" - ele leu com a voz trêmula. - "Nunca é prático
nem diário. Você jamais consegue se acostumar com ele. Você tem de caminhar
com ele,
e depois deixá-lo caminhar com você. Você nunca pode empacar. Ele o faz mover
como a maré. Ele o leva para o mar, depois
toma a atirá-lo na praia. Ador de hoje é a base de um passeio pelo paraíso.

#109

Você pode fugir dele, mas nunca pode dizer não. Isto inclui todo mundo." -
Simon tomou a dobrar a carta. - Eu ainda acredito nisto - ele disse.
Eu estava tentando desesperadamente entender aquelas palavras. Mas minha
mente transformava tudo o que tinha ouvido em um palavrório sem sentido. Será
que
ele tinha lido a carta para dizer que era isso que queria de mim?
- Isso foi lindo. - Fiquei com vergonha de não conseguir pensar em mais
nada para dizer.
- Meu Deus! Você não sabe o quanto eu estou aliviado, quer dizer, por
ter conseguido falar sobre ela com você. - Os olhos dele estavam brilhantes,
ágeis, suas
palavras derramaram-se com naturalidade. - É como se ela fosse a única pessoa
que me conhecesse, que me conhecesse de verdade. Sinto isso o tempo todo, e
sei que
tenho de deixá-la ir .Mas fico caminhando pelo campus, pensando, não, ela não
pode ter partido. E então eu a vejo, o mesmo cabelo ondulado, só que, quando
ela se
vira, é outra pessoa. Mas, não importa quantas vezes eu me engane, não consigo
parar de procurá-la. É como ser viciado e sofrer o pior tipo de síndrome de
abstinência.
Eu a vejo em tudo, em todos. - Os olhos dele fixaram-se enlouquecidos nos
meus. - Como a sua voz. Quando eu a conheci, achei um bocado parecida com a
dela.
Devo ter dado um pulo, porque Simon acrescentou rapidamente:
- Você tem de compreender que eu estava um tanto fora do ar quando a
conheci. Fazia só três meses que ela, você sabe, tinha sofrido o acidente.
Queria acreditar
que ela ainda estava viva, morando em Utah, e por isso é que eu estava há
algum tempo sem vê-la... Na verdade, pensando nisso agora, vocês duas não têm
a voz muito
parecida não. - Ele passou o dedo pelos nós dos meus dedos. - Eu não queria
amar mais ninguém. Achei que era o suficiente o que eu e Elza tivemos. Quer
dizer, calculei
que a maioria das pessoas não experimenta este tipo de amor a vida inteira -
entende o que quero dizer?
- Você teve sorte.

#110

Ele continuou a acariciar os nós dos meus dedos.


- E então me lembrei do que ela escreveu sobre fugir do amor, sobre não
dizer não. Que não é possível. - Ele olhou para mim. - Bem, foi por isso que
precisei
lhe contar tudo, para poder ser franco com você daqui por diante. E então você
iria compreender que eu tenho outros sentimentos, além do que sinto por você,
e se
eu não estiver sempre ali... bem, você sabe.
Eu mal podia respirar. Murmurei do modo mais doce possível:
- Eu compreendo. Compreendo de verdade. - E então nós dois ficamos em pé
e, sem trocar nem mais uma palavra, caminhamos de volta para o meu
apartamento.
O que deveria ter sido uma das noites mais românticas da minha vida foi
um pesadelo para mim. O tempo todo em que fizemos amor, tive a sensação de que
Elza
estava nos observando. Senti como se estivesse fazendo sexo durante um
funeral. Tive medo de fazer um ruído. No entanto, Simon não agiu como se
estivesse triste
ou culpado. Jamais se adivinharia que ele tinha acabado de contar a história
mais triste que eu já ouvira. Ele foi como qualquer outro amante na primeira
noite,
ansioso por mostrar o quanto era versátil e experiente, preocupado em me
agradar, pronto para uma segunda rodada.
Depois, fiquei deitada na cama, sem sono, pensando sobre a música de
Chopin e de Gershwin, o que eles poderiam ter em comum. Vi os joelhos de
querubim de Elza,
um deles com um sorriso beatífico, e imaginei como um bebê podia conseguir uma
cicatriz com a forma e a cor de uma minhoca. Pensei nos olhos dela - nas
memórias
de esperança, dor e violência que ela teria herdado. O amor o faz mover como a
maré, ela tinha dito. Eu a vi flutuando na onda de uma avalanche.
De madrugada, pude ver Elza como Simon a tinha visto. A cabeça dela
estava rodeada por um halo de luz, sua pele era tão macia quanto as asas de um
anjo. E
seus olhos azuis gelados podiam ver tudo, o passado e o futuro. Ela seria
sempre perigosamente linda, tão pura e sedutora quanto
uma encosta coberta de neve fresca e insondável.

#111

Olhando para trás, vejo como fui idiota em continuar com Simon. Mas eu era
jovem, estava perdidamente apaixonada. Confundi uma situação patética com uma
situação
romântica, simpatia com um mandato para salvar Simon da dor. E eu sempre fui
um ímã para culpa. Meu pai, depois Kwan, agora Elza. Sentia-me culpada por
todos os
maus pensamentos que já tivera a respeito de Elza. Como penitência, busquei a
aprovação dela. Tornei-me sua cúmplice. Ajudei a ressuscitá-la.
Eu me lembro da vez que sugeri a Simon que fôssemos fazer uma caminhada
em Yosemite.
- Você me contou o quanto Elza amava a natureza - eu disse. - Eu estava
pensando, se fôssemos, bem, ela estaria lá também. - Simon pareceu grato pela
minha
compreensão, e para mim isto era o suficiente, achava que era assim que o
nosso amor ia crescer. Só tinha de esperar um pouco. Foi isso que eu disse a
mim mesma
mais tarde, quando estávamos acampados num lugar chamado Rancheria Falls.
Acima de nós havia um maravilhoso dossel de estrelas. Era tão vasto, tão
vívido, e minhas
esperanças também. Lutei no meu coração, depois no meu cérebro, para dizer
isso a Simon, mas tudo saiu como uma coisa banal.
- Simon, olhe - eu disse. - Você compreende que são as mesmas estrelas
que os primeiros amantes da terra contemplaram?
E Simon respirou fundo. Percebi que ele o fez não com admiração e sim
com tristeza. Então eu fiquei calada, compreendi, como disse que o faria.
Sabia que ele
estava pensando de novo em Elza. Talvez estivesse pensando que ela costumava
contemplar essas mesmas estrelas. Ou que ela havia um dia expressado este
mesmo pensamento,
só que de modo mais elegante. Ou que no escuro a minha voz fosse a dela, com o
mesmo tom apaixonado, o tom que eu usava para expressar pensamentos banais, o
que
ela usaria para salvar o maldito mundo.

#113
7

OS CEM SENTIDOS SECRETOS

A forma como eu adotei o modo de vida de Elza, dava para pensar que ela tinha
sido a minha melhor amiga. Quando Simon e eu tivemos de escolher receitas para
o Dia
de Ação de Graças, escolhemos o recheio de ostras e castanhas em vez da minha
receita chinesa de arroz papa e lingüiça. Tomávamos café em duas canecas de
cerâmica
de duas alças que Elza tinha feito em um acampamento de verão para crianças
bem-dotadas musicalmente. Às noites e nos fins de semana, ouvíamos as fitas
favoritas
de Elza: gravações de Blues Project, Randy Newman, Carole King, além de uma
sinfonia um tanto forçadamente patética que a própria Elza havia composto, que
a orquestra
da faculdade tinha recentemente tocado e gravado em homenagem a ela. Para
Simon, eu disse que a música era uma prova viva das convicções dela. Mas
secretamente achava
que soava como
um bando de gatos de rua miando no meio do lixo, com um finale de latas
despencando no chão quando um sapato certeiro era atirado pela janela.
Então dezembro chegou e Simon perguntou qual o presente especial que
eu queria ganhar de Natal. O rádio estava tocando canções festivas e eu
tentava pensar
o que Simon iria querer dar a Elza - uma doação no nome dela para o Sierra
Clube? Uma coleção de discos de Gershwin? Foi quando ouvi Yogi Yorgesson
cantando "Yingle
Bells".

#114

A última vez que ouvira aquela música eu tinha doze anos e achava que
o sarcasmo era o máximo da ousadia. Naquele ano, dei um tabuleiro Ouija de
Natal para
Kwan*. Enquanto ela contemplava desconcertada as velhas letras e números, eu
disse que ela poderia usar o Ouija para perguntar aos fantasmas americanos
como se soletravam
palavras em inglês. Ela deu um tapinha no tabuleiro e disse:
- Maravilhoso, tão útil.
Meu padrasto teve um ataque.
- Por que você acha que tem de debochar dela? - Papai Bob disse
severamente. Kwan examinou o tabuleiro Ouija, mais intrigada do que antes.
- Foi só uma brincadeira, Ok?
- Então é uma brincadeira malvada e você tem um coração mau. -
Ele agarrou minha mão e me levantou, dizendo: - Senhorita, o Natal acabou para
você.
Sozinha, no quarto, liguei o rádio. Foi quando ouvi "Yingle Bells"
tocando. A canção era para ser uma "yoke", como o presente de Kwan. Eu estava
chorando
amargamente: como poderia estar sendo má com Kwan se ela nem ao menos sabia?
Além disso, raciocinei, se eu estava sendo má, o que não era verdade, ela bem
que merecia
por ser tão abobada. Ela convidava as pessoas a pregar peças nela. E o que
havia de tão errado em se divertir no Natal? As pessoas metidas a santas é que
eram más.
Bem, já que todo mundo achava que eu era má, mostraria a elas o que era ser
má. Aumentei o volume do rádio. Imaginei que o botão do volume era o
grande nariz
italiano do papai Bob e o torci com tanta força que ele quebrou, e agora Yogi
Yorgesson estava cantando "laughing all the way - ha-ha-ha!" a plenos
pulmões enquanto
papai Bob berrava:
- Olivia, desligue esse maldito rádio - o que não era exatamente uma
expressão cristã e que ele não devia dizer, especialmente no Natal. Arranquei
a tomada
da parede violentamente. Mais tarde Kwan entrou no quarto e me

____________
* Espécie de tabuleiro para se receber mensagens mediúnicas. (N. da E.)

#115

disse que tinha gostado do meu presente de soletrar, "oh, muito mesmo".
- Pare de agir como uma retardada - resmunguei. E tentei fazer uma
cara bem má, mas fiquei assustada de ver o quanto a tinha magoado.
Agora aqui estava Simon perguntando o que eu queria de Natal. Mais uma
vez me vi escutando "Yingle Bells" no rádio. E tive vontade de gritar que ser
compreensiva
não leva você a lugar algum. Naquele momento, eu soube o que queria realmente
de presente de Natal. Queria arrancar a tomada da parede. Queria Elza morta.
Mas, depois de seis meses agindo como a nobre segunda colocada, como
podia dizer subitamente a Simon que queria chutar o traseiro do fantasma de
Elza para
fora da nossa cama? Imaginei-me empacotando os retratos dela, os discos, os
irritantes objetos kitsch. "Para protegê-los", diria a Simon, "enquanto faço
uma boa
faxina." Depois colocaria o caixote na mala do meu carro e, tarde da noite,
iria até o lago Temescal. Usaria algumas garrafas cheias de areia para tornar
o caixote
mais pesado, atiraria aquela porcaria toda na água escura e ficaria olhando as
bolhas subirem à superfície enquanto minha nêmesis afundava em líquido
esquecimento.
E, mais tarde, o que eu diria a Simon, que explicação daria a ele?
"Meu Deus, que coisa horrível, sabe o caixote com todas as coisas de Elza? Foi
roubado.
Também não consigo acreditar. Os ladrões devem ter pensado que era valioso.
Quer dizer, era, mas só para nós dois. Meu Deus, você tem razão, não sei por
que eles
não levaram o estéreo."
Ele notaria os meus olhos evasivos, os cantos da minha boca virados
para cima num sorriso irreprimível. Eu teria de confessar o que tinha feito, o
que realmente
sentia sobre Elza e suas canecas de café de duas alças. Ele ficaria danado e
este seria o fim de mim e Simon. Se isto ocorresse, ele podia ir para o
inferno. Mas,
depois de exaurir a minha imaginação com variações desta vitória de Pirro, eu
ficava perdida. Não podia largar Simon, do mesmo modo que ele não podia largar
Elza.

#116

Foi com este estado de espírito desesperado e homicida que eu procurei


um cúmplice para fazer o trabalho sujo. Liguei para Kwan.

Descrevi discretamente a situação para minha irmã. Não disse que estava
apaixonada por Simon. Para Kwan? E agüentar suas risadinhas fraternas, suas
provocações,
seus conselhos malucos? Disse que Simon era um amigo.
- Ah! Namorado - ela adivinhou, toda excitada.
- Não. Só um amigo.
- Amigo íntimo.
- Só um amigo.
- Ok-Ok, agora eu entendi.
Contei a ela que uma amiga de Simon tinha morrido num acidente de
carro. Disse que Simon estava triste, que não conseguia se desligar dessa
amiga que estava
morta. Ele estava obcecado, isso não era saudável. Disse que talvez ajudasse
se ele tivesse notícias da amiga como uma pessoa yin. Sabendo o quanto Kwan
era sugestionável,
e também o quanto ela estava sempre ansiosa por me ajudar, explicitei ao
máximo o pedido.
- Talvez - sugeri - a amiga de Simon possa dizer a ele que ambos devem
começar uma nova vida. Ele deve se esquecer dela, jamais mencionar o seu nome.
- Ah! Ela era namorada.
- Não, só amiga.
- Ah, como você, só amiga. - Ela sorriu, depois perguntou: - Chinesa
também?
- Polonesa, acho. Talvez também judia.
- Tst! Tst! - Kwan sacudiu a cabeça. - Judia polonesa, muito difícil
de achar, tantas judias polonesas mortas. Muitos chineses mortos também, mas
eu tenho
muitas conexões para chineses - esta pessoa yin conhece aquela pessoa yin,
mais fácil de achar se fosse chinesa. Mas judia polonesa - ah! - talvez ela
não tenha
ido para Mundo Yin, talvez tenha ido para outro lugar.
- O outro mundo é segregado? Só chinês pode ir para o Mundo de Yin?

#117

- Não-não! Srta. Bandeira, ela não é chinesa, ela vai para Mundo Yin.
Tudo depende do que você ama, em que acredita. Você ama Jesus, vai para a Casa
de Jesus
.Você ama Alá, vai para Terra de Alá. Você ama dormir, vai dormir.
- E se você não acreditar muito em nada antes de morrer?
- Então vai para lugar grande, como Disneylândia, muitos lugares para
experimentar - você gosta, você decide. Sem custos, é claro.
Enquanto Kwan continuava a tagarelar, imaginei um parque de diversões
cheio de ex-agentes de seguros vestidos de anjos, sacudindo raios de mentira,
exortando
os passantes a fazer um passeio introdutório ao Limbo, ao Purgatório, ao
Pequeno Mundo das Crianças Não- Batizadas. Enquanto isso, hordas de antigos
seguidores de
Moon e da igreja oficial se inscreviam para andar em brinquedos chamados
Pandemônio, Fogo e Enxofre, Roda da Tortura Eterna.
- Então quem vai para o Mundo de Yin?
- Montes de pessoas. Não apenas chineses, também pessoas que têm
muitos arrependimentos. Ou pessoas que acham que perderam grande chance, ou
sentem falta
de esposa, marido, filhos, irmã. - Kwan parou e sorriu para mim. - Também,
pessoas que sentem falta de comida chinesa, vão para Mundo Yin, esperam lá.
Mais tarde,
podem nascer como outras pessoas.
- Ah, você quer dizer que as pessoas yin são aquelas que acreditam em
reencarnação?
- Que quer dizer reencarnação?
- Reencarnação. Você sabe, depois que você morre, seu espírito ou alma
ou seja lá o que for pode renascer como outro ser humano.
- Sim, talvez essa mesma coisa, algo assim. Se você não for muito
exigente, pode voltar logo, quarenta e nove dias. Se quiser algo especial -
nascer desta
pessoa, casar com aquela pessoa - às vezes tem de esperar muito tempo. Como
grande aeroporto, pode ir para muitos lugares. Mas, se quiser primeira
classe, janela,
vôo direto, ou desconto, talvez demora

#118

grande. Cem anos pelo menos. Agora eu vou dizer uma coisa, um segredo, não
pode dizer para ninguém, ah. Muitas pessoas yin, na próxima vida, adivinhe
quem querem
ser? Adivinhe.
- Presidente dos Estados Unidos.
- Não.
- O Quem.
- Quem?
- Não importa. Quem elas querem ser?
- Chinesas! Estou dizendo verdade! Nem francesas, nem japonesas, nem
suecas. Por quê? Acho porque comida chinesa melhor, fresca e barata, muitos,
muitos
sabores, cada dia gosto diferente. Também, família chinesa muito unida, amigos
muito leais. Você tem amigo chinês ou família a vida inteira, ficam com você
dez mil
vidas, bom negócio. É por isso que tantas pessoas chinesas vivem no mundo
agora. Mesma coisa com pessoas da Índia. Muito cheio lá. Povo da Índia
acredita também
em muitas vidas. Também, ouvi dizer que comida indiana não é muito ruim,
muitos pratos picantes, tempero de curry também. É claro, curry chinês melhor
ainda. O que
você acha, Libby-ah? Gosta do meu prato de curry? Se gosta, posso fazer para
você hoje à noite, Ok? Trouxe Kwan de volta para a questão de Elza.
- Então qual é a melhor maneira de encontrar a amiga de Simon? Para
onde vão geralmente os judeus poloneses? Kwan começou a resmungar:
- Judeus poloneses, judeus poloneses. Podem ir para tantos lugares.
Alguns não acreditam em nada depois da morte. Alguns dizem que vão para
lugares intermediários,
como um consultório médico. Outros vão para Sião, como uma estação de águas
elegante, ninguém reclama, não precisa dar gorjeta, o serviço é bom de
qualquer maneira.
- Sacudiu a cabeça, depois perguntou: - Como essa pessoa morreu?
- Num acidente de esqui em Utah. Avalanche. É como afogamento. -
Ah! - esqui aquático após o lanche! Estômago cheio demais, não é surpresa que
tenha
se afogado.

#119

- Eu não disse após o lanche. Disse...


- Não lanchou? Então por que se afogou? Não sabia nadar?
- Ela não se afogou! Ficou enterrada na neve.
- Neve! - Kwan franziu a testa. - Então por que se afogou?
Suspirei, já quase ficando maluca.
- Ela muito jovem?
- Vinte e um.
- Tst! Muito triste. Quando aconteceu?
- Há cerca de um ano.
Kwan bateu palmas.
- Como posso ter esquecido! Meu amigo solteiro! Toby Lipski. Lipski,
soa como "esqui". Judeu também. Oh! - pessoa yin muito engraçada. Morreu ano
passado,
câncer de fígado. Ele me diz: "Kwan, você tem razão, bebida demais na
discoteca, ruim para mim, muito-muito ruim. Quando eu voltar, nada de bebida.
Então posso ter
vida longa, amor longo, pênis longo." Última parte, é claro que ele estava só
brincando... - Kwan olhou para mim para se certificar de que tinha deixado bem
claros
os horrores do álcool. - Toby Lipski também diz: "Kwan, se precisar de algum
favor yin, chame Toby Lipski." OK. Talvez eu possa pedir a Toby para encontrar
esta
moça. Como é o nome dela?
- Elza.
- Sim-sim, Elza. Primeiro tenho de mandar mensagem para Toby, como
escrever uma carta com minha mente. - Fechou bem os olhos e bateu no lado da
cabeça. Seus
olhos se abriram de novo. - Manda para Mundo Yin. Tudo com coração e mente
juntos, use cem sentidos secretos.
- O que você quer dizer com sentido secreto?
- Ah! Já falei tantas vezes! Você não presta atenção? Sentido secreto
não é realmente secreto. Só dizemos secreto porque todo mundo tem, apenas
esqueceu.
Mesmo tipo de sentido como patas de formiga, tromba de elefante, nariz de
cachorro, bigode de gato, ouvido de baleia, asa de morcego, concha de molusco,
língua de
cobra, pelinho de flor. Muitas coisas, mas todas misturadas.

#120

- Você quer dizer instinto.


- Indistinto? Talvez às vezes seja indistinto...
- Não é indistinto, é instinto. Um tipo de conhecimento com o qual
você nasce. Como. .. bem, como Bubba, o modo como ele cava a terra.
- Sim! Por que você deixa cachorro fazer isso! Isso não é sentido, é
sem sentido, estraga os canteiros de flores!
- Eu só estava fazendo uma - ah, esquece. O que é um sentido secreto?
- Como posso dizer? Memória, visão, audição, tato, tudo vem junto,
então você sabe algo de verdadeiro em seu coração. Como um sentido, não sei
como dizer,
talvez sentido de formigamento. Você sabe disto: ossos formigando querem dizer
chuva chegando, para refrescar a mente. Braços formigando, alguma coisa
assustando
você, bem perto, pele toda arrepiada. Couro cabeludo formigando, oh-oh, você
sabe algo verdadeiro, vazando para o coração, mas você não quer acreditar.
Então também
tem pelinho formigando no nariz. Pele formigando debaixo do braço. Ponto
formigando no fundo do cérebro - este, se você não tomar cuidado, vai sofrer
grande desastre,
mm-hm. Você usa sentido secreto, às vezes consegue mandar mensagem rápida
entre duas pessoas, vivas, mortas, não importa, mesmo sentido.
- Bem, faça o que for preciso - eu disse. - Mas seja rápida.
- Wah!- Kwan resmungou. - Você pensa eu trabalho correio
- compra tarde, põe no correio na véspera de Natal, entrego dia de Natal, tudo
correndo?
As coisas não são assim aqui, e nem lá também! De todo modo, no Mundo Yin, não
precisa poupar tempo. Tudo já é tarde demais! Você quer se comunicar com
alguém, precisa
perceber a pessoa sentindo, a pessoa percebe você sentindo. Então - pung! -,
como quando duas pessoas se encontram por um feliz acaso.
- Bem, seja o que for. Só não esqueça de dizer a esse cara, Toby, que
o nome da mulher é Elza Vandervort. É o nome adotado dela. Ela não sabe quem
foram
os seus pais verdadeiros. Ela acha que eram judeus poloneses que estiveram
em Auschwitz. E ela pode estar pensando em Chopin, coisas musicais.

#121

- Wah! Você fala muito depressa.


- Deixa que eu vou escrever para você.
Só depois refleti sobre a ironia da situação: que eu estava cultivando
as ilusões de Kwan para que ela pudesse ajudar Simon a livrar-se das dele.
Duas semanas depois, Kwan me contou que Toby tinha tido muita sorte. Tinha
marcado um encontro com Elza para a noite da próxima lua cheia. Kwandisse que
as pessoas
do Mundo de Yin eram péssimas para marcar encontros, porque ninguém usava mais
nem calendário nem relógio. O melhor método era observar a lua. Por isso é que
aconteciam
tantas coisas estranhas quando a lua estava mais brilhante ,
Kwan disse:
- Como luz da varanda, dizendo às visitas sejam bem-vindas, entrem.

Foi tão fácil enganar Simon que eu ainda me sinto culpada. Aconteceu assim.
Disse a ele que tínhamos sido convidados para jantar na casa de Kwan.
Ele aceitou. Assim que entramos na casa de Kwan, ela disse:
- Ohhh, tão bonito. - Como se tivesse ensaiado, ele respondeu:
- Você está brincando. Não parece ter doze anos mais que Olivia.
- Então Kwan riu satisfeita e disse:
- Ohhh, e é educado também.
O curry não estava ruim, a conversa não foi muito difícil. O marido e
os enteados de Kwan conversaram animadamente sobre uma briga a que tinham
assistido
no estacionamento do Safeway. Durante o jantar, Kwan não pareceu tão
esquisita, embora tenha feito perguntas intrometidas a Simon sobre os pais
dele.
- Qual deles chinês? Lado da mãe. Mas não chinesa?.. Ah, havaiana, eu
sei, chinesa pré-misturada. Ela dança hula-hula?.. Ah. Morta? Tão jovem? Ai,
tão triste.
Vi hula-hula na tevê uma vez, quadril gira como máquina de lavar, mãos sacodem
como asas de passarinho...

#122

Quando Simon foi ao banheiro, ela piscou o olho para mim e murmurou
alto:
- Ei! Por que você disse que ele era só amigo? Esse ar no seu rosto,
no rosto dele, hah, não é só amigo! Estou certa? - E deu boas risadas.
Depois do jantar, mediante uma indireta, George e os meninos foram
para a sala íntima ver Jornada nas estrelas. Kwan pediu a Simon e a mim que
fôssemos para
a sala de estar; ela tinha algo importante para nos dizer. Sentamos no sofá,
Kwan em sua espreguiçadeira. Ela apontou para a lareira falsa com aquecedor a
gás embutido.
- Está muito frio? - ela perguntou.
Sacudimos negativamente a cabeça.
Kwan cruzou as mãos no colo.
- Simon - ela disse, sorrindo como um gênio -, diga-me, você gosta da
minha irmãzinha, ah?
- Kwan -eu avisei, mas Simon já estava respondendo:
- Muito.
- Hmm-mm. - Ela parecia satisfeita como um gato depois de se lamber. -
Mesmo que você não me contasse, eu já tinha percebido. Mm-hmm... Sabe por
quê?
- Acho que é aparente - Simon disse com um sorriso acanhado.
- Não-não, seu parente não me contou. Eu sei - aqui - e ela deu um
tapinha na testa; - Eu tenho olhos yin, mm-hm, olhos yin.
Simon me lançou um olhar inquiridor, como que pedindo, ajude-me a sair
dessa, Olivia - o que está acontecendo? Sacudi os ombros.
- Olhe ali. - Kwan estava apontando para a lareira. - Simon, o que
você está vendo?
Ele se inclinou para a frente, depois arriscou, pensando provavelmente
que se tratava de algum jogo chinês.
- Você se refere àquelas velas vermelhas?
- Não-não, você vê lareira. Estou certa?
- Oh, sim. Ali, uma lareira.
- Você vê lareira. Eu vejo outra coisa. Uma pessoa yin ali parada,
alguém que já morreu.

#123

Simon riu.
- Morreu? Você quer dizer, um fantasma?
- Mm-hm. Ela diz o nome dela - Elsie. - Grande Kwan, acidentalmente
ela disse errado o nome de Elza exatamente da forma certa. - Simon-ah, talvez
você conheça
essa moça Elsie? Ela diz que conhece você, mm-hm.
Não mais sorrindo, Simon chegou para a frente.
- Elza?
- Oh, ela agora tão feliz você se lembra dela. - Kwan esticou o ouvido
na direção da imaginária Elza, ouvindo atentamente. - Ah?.. Ah. Ok-Ok. - Ela
tornou
a se virar para nós. - Ela diz que você não vai acreditar, ela já conheceu
muitos músicos famosos, todos mortos também. - Ela consultou a lareira. -
Oh?.. Oh...
Oh!... Ah, ah. Não-não, pare, Elsie, nomes demais! Você diz tantos nomes
famosos que eu não consigo repetir! Ok, um só. ..Showman? Não? Eu não estou
pronunciando
direito?
- Chopin? - arrisquei.
- Sim-sim. Chopin também. Mas este que ela está dizendo parece
Showman. ..Oh! Agora entendi - Schumann!
Simon estava hipnotizado. Eu estava impressionada. Não sabia que Kwan
tinha algum conhecimento de música clássica. Suas canções favoritas eram
baladas country
sobre mulheres sofridas.
- Ela está dizendo também tão feliz de ter encontrado o pai, a mãe e o
irmão mais velho. Ela se refere a outra família, não a adotiva. O nome
verdadeiro
dela soa como Wawaski, Wakowski, acho que nome japonês... Oh? Não japonês?..
Mm. Ela diz polonês. Judeu polonês. O quê?.. Oh, Ok. Ela diz que família
morreu muito
tempo atrás, porque Autowitz virou.
- Auschwitz - eu disse.
- Não-não. Autowitz virou. Sim-sim, eu estou certa, automóvel alemão
Autowitz virou, capotou, bateu! - Kwan pôs a mão em concha na orelha direita.
- Muito
tempo, está ficando difícil compreender o que pessoa yin está dizendo.
Excitada demais, fala muito depressa. Ah? Ela inclinou ligeiramente a cabeça.
- Agora ela
está dizendo que avós morreram nesse lugar, Auschwitz, Polônia, tempo da
guerra.

#124

- Kwan olhou para mim e piscou o olho, depois olhou de volta para a lareira
com uma expressão surpresa e preocuada - Ai-ya! Tst! Tst! Elsie, você sofreu
muito. Triste
demais. Oh. - Kwan tocou o próprio joelho. - Ela diz, acidente de carro, foi
assim que conseguiu a cicatriz em sua perna de bebê.
Não me lembrava de ter escrito esse detalhe sobre a cicatriz de Elza.
Mas devo ter escrito, e fiquei contente por isso. Dava um toque de
autenticidade.
Simon fez uma pergunta:
- Elza, o bebê. E quanto ao bebê que você estava esperando? Ele está
com você?
Kwan olhou para a lareira, intrigada, e eu prendi a respiração. Merda!
Tinha esquecido de mencionar o maldito bebê. Kwan concentrou-se na lareira.
- Ok-Ok. - Ela se virou para nós e sacudiu a mão com naturalidade. -
Elsie diz sem problemas, não se preocupe. Ela conheceu essa pessoa, uma pessoa
muito
simpática que ia ser o bebê dela. Ele ainda não tinha nascido, então não
morreu. Só teve de esperar mais um pouco, agora já nasceu outra pessoa.
Soltei o ar aliviada. Mas então vi que Kwan estava olhando para a
lareira com um ar preocupado. Estava franzindo a testa, sacudindo a cabeça. E,
assim que
ela fez isso, o alto da minha cabeça começou a formigar e eu vi centelhas
voarem em volta da lareira.
- Ah - Kwan disse em voz baixa, mais hesitante. - Agora Elsie e está
dizendo que você, Simon, você não deve mais pensar nela. .. Ah? Mm-hm. Isto
errado,
sim-sim - você está desperdiçando sua vida pensando nela... Ah? Hm. Você
precisa esquecê-la, ela diz, sim, esquecer - nunca dizer o nome dela. Ela tem
nova vida
agora. Chopin, Schumann, sua mãe, seu pai. Você tem nova vida também...
E então Kwan disse a Simon que ele devia me agarrar antes que fosse
tarde demais, que eu era seu verdadeiro amor, que ele se arrependeria para
sempre se
deixasse escapar esta oportunidade. Ela ficou falando sem parar no quanto eu
era sincera, boa, leal, inteligente.

#125

- Oh, talvez não seja boa cozinheira, ainda não, mas tenha paciência,
espere e verá. Senão eu ensino a ela.
Simon estava balançando a cabeça, ouvindo tudo, parecendo triste e
agradecido ao mesmo tempo. Eu devia ter entrado em êxtase, mas estava
nauseada. Porque
eu também tinha visto Elza. Eu a tinha escutado.
Ela não era como os fantasmas que eu via na minha infância. Era um
bilhão de centelhas contendo cada pensamento e cada emoção que já tivera. Era
um ciclone
de estática, dançando ao redor da sala, suplicando a Simon para escutá-la. Eu
soube disso tudo com os meus cem sentidos secretos. Com a língua da cobra,
senti o
calor do desejo de ser vista. Com a asa de um morcego, soube onde ela
esvoaçava, batendo as asas ao lado de Simon, me evitando. Com minha pele
formigando, senti
cada lágrima que ela derramou como um raio batendo no meu coração. Com o único
pêlo de uma flor, eu a senti tremer, enquanto esperava que Simon a ouvisse.
Exceto
que era eu que a ouvia - não com meus ouvidos, mas com o local que formigava
no alto do meu cérebro, onde você sabe que uma coisa é verdade ainda que não
queira
acreditar. E os sentimentos dela não eram os que saíam da boca bem
intencionada de Kwan. Ela estava implorando, chorando, repetindo sem parar:
- Simon, não se esqueça de mim. Espere por mim. Eu vou voltar.

Eu nunca contei a kwan o que vi ou ouvi. Em primeiro lugar, não queria


acreditar que fosse mais do que uma alucinação. No entanto, nos últimos
dezessete anos, vim
a aprender que o coração tem vontade própria, não importa o que você queira,
não importa quantas vezes você arranque as raízes dos seus piores medos. Como
hera,
eles voltam sorrateiramente, agarrando-se às paredes do seu coração, sugando a
segurança da sua alma, depois infiltrando-se pelas suas veias e saindo pelos
seus
poros. Inúmeras noites, acordei no escuro Com uma febre recorrente, minha
cabeça girando, com medo da verdade. Será que Kwan ouvira o que eu ouvi?

#126

Será que ela mentiu por minha causa? Se Simon descobrisse que o tínhamos
enganado, o que faria? Será que compreenderia que não me amava?
As perguntas vinham sem parar, e eu as deixava acumular-se, até ter
certeza de que o nosso casamento estava fadado ao fracasso, que Elza o
destruiria. Era
uma avalanche esperando para acontecer, equilibrando-se em uma única e
escorregadia pergunta: por que estamos juntos?
E então o sol subia no batente da janela. A luz da manhã me fazia
apertar os olhos. Olhava para o relógio. Erguia-me e mexia nas torneiras do
chuveiro. Ajustava
a quente e a fria, depois despertava a minha mente com a água que caía com
força em minha pele. E ficava grata de voltar ao que era real e rotineiro,
confinada aos
sentidos comuns em que podia confiar.

E então senti que estava me tornando menor mas mais densa, prestes a ser
esmagada pelo peso do meu próprio coração, como se as leis da gravidade e do
equilíbrio
tivessem mudado e eu as estivesse violando. Tornei a olhar para as estrelas
pequeninas, faiscando como vaga-lumes. Só que agora elas estavam borradas e se
dissolvendo,
e o céu noturno estava inclinando e rodopiando, imenso demais para continuar a
se sustentar.

#127

8
O APANHADOR DE FANTASMAS

Tenho de agradecer ao Imposto de Renda por nos ter levado ao altar.


Estávamos vivendo juntos há três anos, sendo que dois já depois de
formados. Para nos manter fiéis ao sonho de "fazer algo verdadeiramente
importante" ,
trabalhávamos na área de serviço social. Simon era consultor do Clean Break,
que ajudava adolescentes problemáticos com fichas criminais. Eu trabalhava
para o Another
Chance, um programa para grávidas viciadas em drogas. Não ganhávamos muito,
mas, depois que vimos o quanto o imposto de renda tirava do nosso salário todo
mês, calculamos
quanto economizaríamos se preenchêssemos uma declaração conjunta; trezentos e
quarenta e seis dólares por ano!
Com esta soma diante dos nossos olhos empobrecidos, discutimos se era
correto o governo favorecer casais. Ambos concordamos que as taxas eram uma
forma insidiosa
de coerção governamental. Mas por que dar ao governo trezentos e quarenta e
seis dólares para comprar mais armas? Podíamos usar esse dinheiro para comprar
novos
alto-falantes estereofônicos. Foi Simon quem sugeriu que nos casássemos, eu me
lembro bem.
- O que você acha? - ele disse. - Será que nos deixamos cooptar e
fazemos uma declaração conjunta?

#128

O casamento foi realizado perto do Jardim dos Rododendros, no Golden


Gate Park, um lugar que achávamos livre e romanticamente al fresco. Mas,
naquele dia
de junho, a neblina desceu num vento gelado, fazendo voar nossas roupas e
nossos cabelos, de modo que nos retratos do casamento nós e os convidados
estamos todos
desarrumados. Enquanto o pastor da Igreja Vida Universal entoava as bênçãos do
casamento, um funcionário do parque anunciou bem alto:
- Desculpe, pessoal, mas vocês precisam de uma licença para manter uma
reunião dessas. - Então fizemos os juramentos bem depressa, juntamos os
presentes
de casamento e o piquenique e os arrastamos de volta para o nosso apartamento
apertado em Stanyan Street.
Como glacê para o nosso bolo destruído, os presentes de casamento não
incluíam nenhuma das coisas práticas de que tanto precisávamos para substituir
nosso
sortimento ordinário de lençóis, toalhas e utensílios de cozinha. A maioria de
nossos amigos nos deu presentes engraçados, equipamentos de auxílio conjugal.
Meu
ex-padrasto, Bob, nos deu um vaso de cristal. Os pais de Simon nos
presentearam com uma bandeja de prata de lei.
O resto da família tentou suplantar uns aos outros para encontrar
aquela "coisa especial" que nossos futuros netos receberiam de herança. Da
parte da minha
mãe, foi uma escultura original de metal de um homem e uma mulher se
abraçando, uma peça que Bharat Singh, seu namorado do momento, tinha feito.
Meu irmão Tommy
nos deu uma espécie de fliperama que punha para funcionar sempre que nos
visitava. Kevin nos deu uma caixa de vinho tinto, que devíamos deixar
envelhecer por cinqüenta
anos. Mas, depois de algumas festas de fim de semana improvisadas com amigos,
ficamos com uma coleção de garrafas vazias.
O presente de Kwan foi surpreendentemente lindo. Era uma
caixa chinesa de pau-rosa com uma tampa trabalhada. Quando ergui a tampa, a
melodia
de The Way We Were começou a tocar num ritmo tenso e insensato. No
compartimento de jóias havia um pacote de chá.

#129

- Faz OS bons sentimentos durarem muito tempo - Kwan explicou, e me


lançou um olhar significativo.

Durante os primeiros sete anos de nosso casamento, Simon e eu nos esforçamos


para concordar em quase tudo. Nos sete anos seguintes, demos a impressão de
fazer o
contrário. Não discutíamos, como ele e Elza costumavam fazer, sobre questões
importantes, como direitos iguais para todos os cidadãos, aumento da
participação política
das minorias e reforma da previdência. Brigávamos por coisas sem importância:
a comida fica mais gostosa se você aquecer a panela antes de despejar o azeite
dentro?
Simon dizia que sim e eu que não. Não tínhamos brigas feias. Mas discutíamos
com freqüência, como que por hábito. E isto nos deixava mal-humorados um com
o outro,
nada amorosos.
Quanto a nossas esperanças, sonhos, desejos secretos, não conseguíamos
conversar sobre isso. Eles eram por demais vagos, assustadores, importantes. E
então
ficavam dentro de nós, crescendo como um câncer, um corpo devorando a si
mesmo.
Em retrospecto, fico estarrecida ao ver o quanto o nosso casamento
durou. Fico pensando no casamento de outras pessoas, dos nossos amigos, se
eles continuam
por hábito, letargia, ou alguma estranha combinação de medo que nasce da
esperança e depois de esperança que liberta o medo. Nunca achei que o nosso
casamento fosse
pior que o de ninguém. Em alguns aspectos, acreditava que era melhor do que a
maioria. Formávamos um belo casal nas festas. Mantínhamos nossos corpos em
forma, tínhamos
uma vida sexual decente. E tínhamos uma grande coisa em comum, nosso próprio
negócio, relações públicas, principalmente para instituições sem fins
lucrativos e grupos
da área médica.
Ao longo dos anos, conseguimos uma relação estável de clientes - a
National Kidney Foundation, a Brain Tumor Research Foundation, a Paws for a
Cause, alguns
hospitais e uma conta lucrativa, uma clínica desprezível que insistia em
publicar anúncios

#130

usando um monte de fotos antes-e-depois de bundas femininas lipoaspiradas.


Simon e eu trabalhávamos em um dos cômodos do nosso apartamento. Eu era
fotógrafa, diagramadora,
digitadora e arte-fmalista. Simon: era revisor, responsável pelos clientes,
pelos contratos de publicidade e pelo recebimento de contas. Em questões de
estética,
tratávamo-nos com um respeito cauteloso. Procurávamos chegar a um acordo no
que se referia a leiaute de folhetos, tamanhos de tipos e cabeçalhos. Éramos
extremamente
profissionais.
Nossos amigos costumavam dizer:
- Vocês dois são tão sortudos. - E durante anos eu quis acreditar que
éramos tão sortudos quanto eles invejosamente achavam que éramos. Ponderava
que as brigas
que tínhamos eram apenas irritações sem importância, como farpas sob a pele,
amassados no carro, fáceis de remover quando tivéssemos tempo de dar atenção a
elas.
E então, há quase três anos, Dudley, meu padrinho, um contador
aposentado que eu não via desde que era bebê, morreu e me deixou ações de uma
pequena companhia
que manipulava genes. Não valiam muito quando ele morreu. Mas, na época em que
o executor testamentário passou-as para o meu nome, a companhia tinha se
tornado pública,
as ações tinham dado filhotes e, graças ao milagre comercial do ADN, Simon e
eu tínhamos dinheiro suficiente para comprar, mesmo com os preços
inflacionados de San
Francisco, uma casa decente num bairro fantástico. Tínhamos, quer dizer, até
minha mãe sugerir que eu devia partilhar a minha sorte com meus irmãos e com
Kwan. Afinal,
ela disse, Dudley era amigo de papai e não era alguém que me fosse
especialmente chegado. Ela tinha razão, mas tive esperança de que Kevin,
Tommye Kwan fossem dizer:
"Fique com o dinheiro, obrigado pela lembrança." Mas foi só esperança. Quem
mais me surpreendeu foi Kwan. Ela gritou e pulou como uma concorrente da Roda
da fortuna.
Depois de repartirmos o bolo da herança e de reservarmos uma boa fatia para os
impostos, Simon e eu ficamos com o suficiente para dar uma entrada numa casa
modesta,
num bairro problemático.

#131

Por isso, a procura por uma casa demorou mais de um ano. Simon tinha
sugerido uma casa dos anos 50, precisando de reformas, no bairro coberto de
neblina de
Sunset, que ele achava que poderíamos vender dentro de poucos anos pelo dobro
do nosso investimento. O que eu tinha em mente era mais uma maltratada casa
vitoriana
no promissor bairro de Bernal Heights, um lugar que pudéssemos reformar e
transformar em lar doce lar e não em investimento:
- Você quer dizer choupana doce choupana - Simon disse, depois de
visitar uma propriedade. Nosso ponto de vista não coincidia quanto ao que
chamávamos de "potencial
futuro". O potencial, evidentemente, tinha mais a ver conosco. Nós dois
sabíamos que morar numa espelunca apertada exigia o tipo de amor fresco e
exuberante em que
nada importava a não ser dormir abraçados para esquentar na mesma cama dura e
estreita. Simon e eu já tínhamos progredido há muito tempo para uma cama king
size
e um cobertor elétrico com duplo controle.
Num domingo nublado de verão, descobrimos um anúncio de um apartamento
em um prédio de seis unidades nos limites de Pacific Heights. Por limites
quero dizer
que ele estava preso por um fio à vizinhança chique. Os fundos do prédio
ficavam na Western Addition, onde janelas e portas eram cobertas por grades de
ferro à prova
de serrote. E ele ficava a três quarteirões e a duas categorias de impostos
das melhores ruas de Pacific Heights, povoadas por famílias que podiam pagar
babás de
cachorros, arrumadeiras e duas segundas casas.
No saguão, Simon apanhou um folheto crivado de defeitos hifenizados.
- Um apartamento semiluxuoso, em dois níveis, na cooperativa do baixo
Pacific Heights - ele leu alto -, localizado em prestigiada, outrora grandiosa
mansão
vitoriana, construída em 1893 pelo renomado arquiteto Archibald Meyhew. -
Surpreendentemente, o folheto também anunciava orgulhosamente dez cômodos e
vaga para
estacionar, tudo por um preço só um tiquinho além da nossa verba.

#132
Todo o resto que tínhamos visto dentro do nosso orçamento não tinha mais de
cinco cômodos, seis se não tivesse garagem.
Toquei a campainha da unidade cinco.
- É um bom preço para este bairro - eu disse.
- Não é nem um condomínio - disse Simon. - Com cooperativas, eu ouvi
dizer que você tem de seguir regras malucas até mesmo para trocar a voltagem
das suas
lâmpadas.
- Olhe este corrimão. Será que é a madeira original? Não seria o máximo?
- É falso. Você pode ver pelas espirais mais claras. São regulares
demais.
Já que Simon parecia estar negando qualquer interesse pelo lugar, ia
sugerir que fôssemos embora. Mas aí ouvimos passos rápidos na escada e um
homem dizendo:
- Estarei com vocês em um segundo.
Simon me deu a mão. Não conseguia lembrar a última vez que ele tinha
feito isso. Apesar das críticas, ele deve ter gostado das possibilidades do
prédio, o
suficiente pelo menos para querer que déssemos a impressão de um casal feliz,
financeiramente sólido, suficientemente estável para durar durante todo o
período da
tramitação dos documentos.
O corretor e, como viemos a saber, criador do folheto de propaganda era
um cara jovem, elegantemente vestido e quase careca, chamado Lester Roland ou
Roland
Lester. Tinha o hábito irritante de pigarrear a todo momento, dando a
impressão de que ou estava mentindo ou estava prestes a fazer uma confissão
embaraçosa.
Entregou-nos um cartão de visita.
- Os senhores já compraram algum imóvel antes nesta vizinhança, Sr. e
Sra. hum...?
- Bishop. Simon e Olivia - Simon respondeu. - Moramos atualmente no
bairro da Marina.
- Então sabem que esta é uma das melhores zonas residenciais da cidade.
Simon fez um ar blasé.

#133

- Pacific Heights, o senhor quer dizer, não Westem Addition.


- Ora! Vocês devem ser especialistas nisto. Suponho que queiram ver
primeiro o porão.
- Sim. Vamos cuidar disso logo.
Lester nos mostrou os medidores de luz individuais e os tanques de água
quente, o aquecedor comum e os canos de cobre, enquanto emitíamos grunhidos
experientes,
evasivos.
- Como podem notar - Lester pigarreou -, os tijolos das fundações são
originais.
- Bonitos - Simon disse de forma apreciativa.
Lester franziu a testa e nos brindou com um momento de profundo
silêncio.
- Menciono isto porque - ele tossiu -, como já devem saber, a maioria
dos bancos não financia prédios com fundações de tijolo. Medo de terremotos,
compreendem.
Mas o proprietário está disposto a arcar com uma segunda hipoteca, e a preços
de mercado, se os senhores se habilitarem, é claro.
Aí está, pensei, o motivo de o apartamento ser tão barato.
- Houve algum problema com o prédio?
- Oh, não, de jeito algum. É claro que ele sofreu acomodações,
rachaduras de superfície, coisas assim. Todos os prédios clássicos têm algumas
rugas - este
é o privilégio da idade. Que diabo, quem dera que estivéssemos todos tão bem
assim aos cem anos! E devem lembrar também que esta velha senhora maquiada
sobreviveu
ao terremoto de oitenta e nove, sem falar no grande terremoto de mil
novecentos e seis. Não se pode dizer isto dos prédios novos, não é?
Lester parecia ansioso demais, e eu comecei a sentir o cheiro
desagradável de mofo. Nos cantos escuros, vi pilhas de malas velhas, o couro
roído de ratos e
o plástico rachado cobertos de poeira. Em outro depósito, havia um monte de
coisas pesadas enferrujadas - peças de automóveis, halteres, uma caixa de
ferramentas
de metal -, um monumento à superprodução de testosterona de algum inquilino
anterior.

#134

Simon soltou minha mão.


- A unidade vem apenas com uma vaga de garagem - Lester disse. - Mas,
por sorte, o homem da unidade dois é cego e os senhores podem alugar a vaga
dele para
um segundo carro.
- Por quanto? - Simon perguntou, ao mesmo tempo que eu dizia:
- Não temos um segundo carro.
Como um gato, Lester olhou serenamente para nós dois e depois me disse:
- Bem, isto evita um bocado de problemas, não é? - Começamos a subir uma
escada estreita. - Vou levá-los pela entrada dos fundos, que era antigamente a
escada
de serviço, e que vai dar na unidade disponível. Oh, antes que eu me esqueça,
a dois quarteirões daqui - dá para ir a pé, sabe? - há uma escola particular
incrível,
absolutamente fantástica. Quando chegam ao terceiro ano, aqueles monstrinhos
já sabem como abrir um computador 386 e transformá-lo em um 486. É incrível o
que ensinam
aos garotos hoje em dia!
E, desta vez, Simon e eu dissemos ao mesmo tempo:
- Não temos filhos. - Olhamos um para o outro, espantados. Lester sorriu
e disse:
- Às vezes isso é muito sábio.

No início do nosso casamento, ter filhos era um dos nossos grandes sonhos.
Simon e eu estávamos apaixonados pelas possibilidades de nossa mistura
genética. Ele queria
uma menina parecida comigo. Eu queria um menino parecido Com ele. Depois de
passar seis anos medindo a minha temperatura diariamente, abstendo-me de
álcool entre
um período menstrual e outro, fazendo sexo com hora marcada, fomos a um
especialista em fertilidade, Dr. Brady, que nos disse que Simon era estéril.
- O senhor quer dizer que Olivia é estéril - Simon disse.
- Não, os testes indicam que você é que é - Dr. Brady respondeu. - Os
seus relatórios médicos dizem também que seus testículos só desceram quando
você tinha
três anos.
#135

- O quê? Não me lembro disto. Além do que eles agora estão no lugar
certo. O que uma coisa tem a ver com a outra?
Aquele dia nós aprendemos um bocado sobre a fragilidade do
espermatozóide, que o espermatozóide tem de ser mantido abaixo da temperatura
do corpo; por isso
é que os testículos ficam pendurados, um ar condicionado natural. Dr. Brady
disse que a esterilidade de Simon não era simplesmente uma questão de baixa
contagem
ou pouca motilidade dos espermatozóides, que provavelmente ele era estéril
desde a puberdade, isto é, desde a sua primeira ejaculação.
- Mas isso é impossível - Simon disse. - Já sei que posso - bem, não
pode ser. Os testes estão errados. Dr. Brady disse, com a prática de já ter
consolado
uns mil homens incrédulos:
- Eu lhe asseguro que esterilidade não tem nada a ver com masculinidade,
virilidade, desejo sexual, ereção, ejaculação, nem com a sua capacidade de
satisfazer
uma parceira. - Percebi que o médico disse "uma parceira" e não "sua esposa",
como que para incluir várias possibilidades, passadas, presentes e futuras.
Passou
então a discutir os conteúdos da ejaculação, a mecânica da ereção e outras
trivialidades que não tinham nada a ver com as botinhas de borracha que
estavam em cima
da nossa cômoda, com os livros de Beatrix Potter que minha mãe já tinha
juntado para o futuro neto, com a lembrança de Elza, grávida, gritando com
Simon do alto
de uma encosta prestes a sofrer uma avalanche.
Sabia que Simon estava pensando em Elza, imaginando se ela estaria
enganada a respeito da gravidez. Se fosse assim, sua morte tinha sido ainda
mais trágica,
com base em um erro estúpido atrás do outro. Também sabia que Simon tinha de
estar considerando a possibilidade de Elza ter mentido, de não estar grávida
coisa nenhuma.
Mas por quê? E, se ela estivesse grávida, quem seria o seu outro amante? Por
que, então, ela agrediu Simon? Nenhuma das respostas possíveis fazia sentido.
Desde nossa sessão yin com Kwan anos antes, Simon e eu tínhamos evitado
tocar no nome de Elza. Agora nos víamos com os

#136

lábios duas vezes selados, incapazes de discutir a esterilidade de Simon, as


questões que ela levantava sobre Elza e nem os nossos sentimentos acerca de
inseminação
artificial e adoção. Ano após ano, evitamos falar sobre bebês, reais,
imaginários ou desejados, até estarmos ali, no alto da escada do terceiro
andar, informando
àquele estranho detestável chamado Lester:
- Não temos filhos - como se tivéssemos tomado esta decisão anos antes e
que ela tivesse sido tão definitiva então quanto era agora.

Lester estava experimentando dezenas de chaves penduradas num arame.


- Está aqui em algum lugar - ele resmungou. - Deve ser a última. Não
disse - voilà! - Ele abriu a porta e tateou pela parede até encontrar o
interruptor de
luz.
O apartamento a princípio pareceu familiar - como se eu tivesse visitado
aquele lugar secretamente mil vezes antes, a casa dos meus sonhos noturnos.
Estava
tudo lá: as pesadas portas duplas de madeira com painéis de vidro ondulado, o
amplo hall com seus lambris de madeira escura, a janela de batente deixando
entrar
um raio de luz cintilante por causa da poeira. Era como estar de volta a uma
velha casa, e eu não sabia se minha sensação de familiaridade era confortadora
ou opressiva.
E então Lester anunciou animadamente que devíamos começar dando uma olhada na
"sala de visitas" e a sensação desapareceu.
- A arquitetura é o que chamamos de Eastlake e estilo gótico - Lester
estava dizendo. Passou a explicar que o lugar tinha se tornado uma pensão para
caixeiros-viajantes
e viúvas de guerra nos anos vinte. Nos anos quarenta, o "estilo gótico"
evoluiu para "estilo jeitoso", quando o prédio foi convertido em vinte e
quatro apartamentos
mínimos, moradia barata no tempo da guerra. Nos anos sessenta, ele se tornou
um prédio de estudantes e, durante o boom imobiliário do início dos anos
oitenta, o
prédio foi outra vez ressuscitado, desta vez com seis apartamentos
"semiluxuosos".

#137

Imaginei que "semiluxuoso" se referia ao candelabro de vidro do saguão.


"Semi-funky" seria uma maneira mais honesta de descrever o apartamento, que
incorporava
uma mistura incongruente de suas antigas encarnações. A cozinha com seus
ladrilhos vermelho-Espanha e armários de laminado de madeira tinha perdido
qualquer traço
de sua linhagem vitoriana, enquanto os outros cômodos ainda eram generosamente
decorados com sancas inúteis e de mau gosto e frisos de gesso nos cantos do
teto.
Os canos do radiador não estavam mais ligados a radiadores. As lareiras de
tijolos estavam com suas mandíbulas cerradas por tijolos. Portas de fundo oco
serviam
de armários improvisados recentemente. E, por meio da conversa grandiloqüente
de corretor de Lester, espaços vitorianos inúteis ganharam ova importância. Um
antigo
patamar de escada, mal-iluminado por um painel de vidro amarelo, tornou-se "a
sala de música" - perfeita, imaginei, para um quarteto de cordas formado por
anões.
O que antes era o quartinho sufocante da empregada menos qualificada se
tornou, por sugestão de Lester, "a biblioteca das crianças", não que houvesse
uma biblioteca
de adultos. E metade de um outrora espaçoso quarto de vestir , com um armário
embutido de cedro - a outra metade ficava no apartamento ao lado - era agora
"o escritório".
Ouvimos pacientemente o que Lester dizia, as palavras deslizando para fora de
sua boca como cachorros de desenho animado sobre um chão recém-encerado, indo
freneticamente
para lugar nenhum.
Ele deve ter notado o nosso interesse minguando; moderou a fanfarronice,
mudou de tática, e chamou nossa atenção para "a grande economia de linhas
clássicas
e um pouco de trabalho árduo". Fizemos uma inspeção superficial dos demais
cômodos, um labirinto de cubículos, igualmente valorizados com termos
pseudobaroniais:
os aposentos infantis, a sala de almoço, o lavatório, sendo que este último
mais parecia um armário, com espaço apenas para um vaso e seu ocupante sentado
com os
joelhos encostados na porta. Em um apartamento moderno, todo o andar teria no
máximo quatro cômodos de tamanho médio.

#138

Só faltava ver um dos cômodos, no último andar. Lester nos convidou a


subir a escada estreita que ia dar no antigo sótão, agora o "grande boudoir".
Lá, nossos
queixos caíram de nossas caras cínicas. Olhamos em volta devagar, como pessoas
subitamente convertidas a alguma religião. Diante de nós estava um enorme
cômodo com
o teto inclinado. Era equivalente em tamanho aos nove cômodos de baixo. E, em
contraste com a escuridão bolorenta do terceiro andar, o sótão era claro e
arejado,
pintado de branco. Oito janelas projetavam-se do teto inclinado, dirigindo o
nosso olhar para o céu manchado de nuvens. Sob nossos pés, o chão de largas
tábuas corridas
faiscava, brilhante como um rinque de gelo. Simon tornou a pegar minha mão e
apertou-a. Eu apertei a dele de volta.
Isto tinha potencial. Juntos, pensei, Simon e eu podíamos sonhar
maneiras de encher o vazio.

No dia em que nos mudamos, comecei a retirar camadas das paredes do antigo
aposento infantil, logo apelidado de meu "santuário". Lester tinha dito que as
paredes
originais eram de mogno trabalhado e eu estava ansiosa para revelar este
tesouro arquitetônico. Auxiliada pelos vapores inebriantes do removedor de
tinta, imaginei-me
uma arqueóloga cavando através de camadas de vidas anteriores cujas histórias
poderiam ser reconstruídas por meio de suas escolhas de revestimentos de
parede. A
primeira camada a sair era uma crosta yuppie de látex cor de uva Chardonnay,
pontilhada para se parecer com as paredes de um monastério florentino.
Seguiam-se crostas
das décadas anteriores - verde anos oitenta, laranja psicodélico anos setenta,
preto hippie anos sessenta, tons pastéis anos cinqüenta. E por baixo havia
rolos de
papel de parede em padrões de borboletas douradas, cupidos carregando cestas
de flores, a flora e fauna monótona de gerações passadas que contemplaram
estas mesmas
paredes no decorrer de noites insones, acalmando um bebê com cólicas, uma
criança febril ou uma tia tuberculosa.

#139

Uma semana depois, com os dedos em carne viva, cheguei a uma última
camada de reboco e depois à madeira, que não era mogno, como Lester havia
dito, mas pinho
ordinário. Onde ele não estava chamuscado, estava escurecido pelo mofo,
provavelmente o resultado de uma mangueira de incêndio diligente do início do
século. Apesar
de eu não ser dada a violências, desta vez chutei a parede com tanta força que
uma das tábuas cedeu e expôs massas de cabelo grisalho grosso. Dei um tremendo
berro,
do tipo filme de horror classe B, e Simon pulou para dentro do quarto,
brandindo uma colher de pedreiro - como se isso pudesse ser uma arma eficaz
contra um assassino.
Apontei um dedo acusador para os restos cabeludos do que acreditava ser um
velho crime não solucionado.
Depois de uma hora, Simon e eu tínhamos arrancado quase toda a madeira
velha e podre. No chão havia pilhas de cabelo parecendo ninhos de ratos
gigantescos.
Foi só quando chamamos um empreiteiro para construir a parede que descobrimos
que tínhamos removido quilômetros de crina de cavalo, um material isolante da
época
vitoriana. O empreiteiro disse também que crina de cavalo era um poderoso
isolante acústico. Vitorianos ricos, conforme aprendemos, construíam suas
casas de modo
a que ninguém fosse obrigado a ouvir algo tão indelicado quanto o êxtase
sexual ou explosões de indigestão vindas dos quartos próximos.
Menciono isto porque Simon e eu não nos demos o trabalho de pôr de volta
a crina, e a princípio acreditei que isto tivesse algo a ver com a estranha
acústica
que começamos a perceber no primeiro mês. O espaço entre nossa parede e o
apartamento vizinho tinha se tornado um poço oco de cerca de trinta
centímetros de largura.
E este poço, pensei, funcionava como uma mesa de som, capaz de transmitir
ruídos do prédio inteiro, convertendo-os em pancadas, chiados, e o que às
vezes parecia
aulas de lambada sendo dadas no nosso quarto, no andar de cima.
Sempre que tentava descrever o nosso problema de barulho, eu imitava o
que tinha ouvido: Tink-tink-tink, whumpa-whumpa-whumpa, chh-chh-chh. Simon
comparava
o barulho a uma possível

#140

fonte: o som de uma tecla de piano desarmada, o bater das asas dos pombos,
gelo sendo raspado. Nós percebíamos o mundo de forma tão diferente isto
mostrava o quanto
nos havíamos distanciado um do outro.
Havia um outro aspecto estranho em tudo isto: Simon nunca estava em casa
quando os ruídos mais sinistros ocorriam - como a vez em que eu estava no
chuveiro
e ouvi o tema de Jeopardy sendo assobiado, uma melodia que achei especialmente
mal-assombrada já que não consegui tirá-la da cabeça o dia inteiro. Tive a
sensação
de que estava sendo perseguida.
Um engenheiro de estruturas sugeriu que o barulho poderia estar vindo
dos canos inúteis do radiador. Um consultor sísmico me disse que o problema
poderia ser
simplesmente a acomodação natural da estrutura de madeira. Com um pouco de
imaginação, ele explicou, dá para pensar que os rangidos e estalos são todo
tipo de coisas,
portas batendo, pessoas correndo para cima e para baixo nas escadas - embora
ele não conhecesse qualquer outra pessoa que tivesse reclamado do som de vidro
quebrando
seguido por frouxos de riso. Minha mãe disse que eram ratos, possivelmente até
gambás. Ela tinha tido este problema uma vez. Um limpador de chaminés
diagnosticou
pombos fazendo ninhos na nossa chaminé sem uso. Kevin disse que obturações
dentárias podem às vezes transmitir ondas de rádio e que eu devia procurar
Tommy, que
era meu dentista. O problema persistiu.
Estranhamente, nossos vizinhos disseram que não eram incomodados por
qualquer ruído estranho, embora o homem cego que morava no apartamento de
baixo tenha
mencionado azedamente que ouvia o nosso som bem alto, especialmente de manhã.
Exatamente quando ele fazia sua meditação Zen diária, ele disse.
Quando minha irmã ouviu as pancadas e chiados, deu o seu diagnóstico:
- O problema não é alguma coisa, é alguém. Mm-hm. -
Enquanto eu continuava desempacotando os livros, Kwan caminhava pelo meu
escritório, o nariz
erguido, farejando como um

#141

cachorro à procura do seu arbusto favorito. - Às vezes os fantasmas ficam


perdidos - disse. - Se você quiser, posso tentar apanhá-lo para você. - Ela
ergueu uma
das mãos como se fosse uma varinha de rabdomante.
Pensei em Elza. Há muito tempo ela tinha sumido das conversas, mas
conseguia habitar o fundo do meu cérebro, congelada no tempo, como um
inquilino de quem
era impossível se livrar. Agora, com os fantasmas de Kwan, ela tinha se
esgueirado para fora.
- Não são fantasmas - eu disse com firmeza. - Retiramos o material
isolante. O quarto ficou igual a uma câmara de eco.
Kwan fez pouco-caso da minha explicação com uma fungadela autoritária.
Pôs a mão sobre um ponto no chão. Caminhou pelo quarto, a mão tremendo,
seguindo o rastro
como um sabujo. Emitiu uma série de "hmmms", cada um mais conclusivo que o
outro. - Hhhhmm! HhhmmMM! - Finalmente, ficou parada na porta,
perfeitamente
imóvel.
- Muito estranho - ela disse. - Alguém aqui, estou sentindo. Mas não
fantasma. Pessoa viva, cheia de eletricidade, presa na parede, também debaixo
do chão.
- Bem! - brinquei. - Talvez devêssemos cobrar aluguel desta pessoa.
- Pessoas vivas causam mais problemas que fantasmas - Kwan
continuou. - Pessoas vivas incomodam porque zangadas. Fantasma só causa
problema porque
triste, perdido, confuso.
Pensei em Elza, suplicando a Simon que a escutasse.
- Fantasma, eu sei pegar disse Kwan. - Minha terceira tia me ensinou. Eu
chamo fantasma - "Ouça, fantasma!" -, um coração falando com o outro. - Ela
olhou
para cima, parecendo sincera. - Se for mulher velha, mostro chinelos velhos,
com as solas macias, confortáveis de usar . Se for jovem, mostro pente
pertencente à
mãe. Meninas sempre adoram o cabelo da mãe. Ponho esses tesouros que
fantasmas amam tanto em grande jarro de óleo. Quando ela entra - rápido!
- coloco a tampa bem apertada. Agora ela está pronta para escutar. Eu digo a
ela:
"Fantasma! Fantasma! Está na hora de ir para Mundo Yin."
#142

" Kwan olhou para a minha testa franzida e acrescentou:


- Eu sei - eu sei! Na América não tem jarro grande de óleo, talvez nem
tenha do tipo que mencionei. Para fantasma americano, precisa usar outra coisa
- talvez
grande pote de plástico. Ou mala de viagem, do tipo Samsonite. Ou caixa de
loja muito elegante, não lugar de liquidação. Sim-sim, esta idéia é melhor, eu
acho. Libby-ah,
qual é o nome daquela loja elegante, onde todo mundo sabe que tudo
custa muito caro? No ano passado Simon comprou uma caneta de cem dólares para
você lá.
- Tiffany.
- Sim-sim, Tiffany! Eles dão uma caixa azul, da cor do céu. Fantasma
americano gosta do céu, lindas nuvens... Oh, eu sei. Onde está caixa de música
que dei
de casamento para você? Fantasma adora música. Pensa que pessoas pequeninas lá
dentro tocam canção. Entram para ver. Minha última vida, Srta. Bandeira tinha
uma
caixa assim...
- Kwan, eu tenho trabalho para fazer...
- Eu sei - eu sei! De qualquer modo, você não tem fantasma, você tem
pessoa viva andando furtivamente em sua casa. Talvez tenha feito uma coisa má
e agora
está se escondendo, não quer ser apanhada. Que pena que eu não sei agarrar
pessoa solta. Melhor chamar o FBI. Ah -eu sei! Chame aquele homem do show da
tevê, Criminosos
mais procurados da América. Você chama. Estou lhe dizendo, toda semana eles
agarram alguém. - Este foi o conselho de Kwan.
E então aconteceu outra coisa, que eu tentei achar que era coincidência.
Elza voltou às nossas vidas de uma forma um tanto dramática. Um de seus-
colegas de
faculdade, que tinha se tornado um produtor de música New Age, regravou um
conjunto de peças que Elza tinha composto com o nome de Higher Consciousness.
A música
depois se tornou trilha sonora de uma série de televisão sobre anjos, o que
era irônico, como Simon observou, uma vez que Elza não gostava da mitologia
cristã. Mas,
então, parece que do dia

#143

para a noite, todo mundo ficou louco por tudo o que tinha a ver com anjos. A
série teve altos índices de audiência, um CD da trilha sonora vendeu
razoavelmente bem,
e Simon começou a se autopromover com a pequena fama de Elza. Eu nunca pensei
que odiaria tanto os anjos. E Simon, que antes detestava música New Age,
tocava o álbum
dela toda vez que recebíamos amigos. Observava casualmente que a compositora
havia dedicado a música a ele. Mas por quê, as pessoas perguntavam. Bem, eles
tinham
sido amantes, grandes amigos. Naturalmente, isto fazia alguns amigos sorrirem
para mim de um jeito consolador que me deixava doida. Então eu explicava que
Elza tinha
morrido antes de eu conhecer Simon. No entanto, de alguma forma aquilo parecia
mais uma confissão, como se eu tivesse dito que eu mesma a tinha matado. E
então o
silêncio invadia a sala.
Portanto, além de todos os efeitos sonoros de nossa casa, eu ainda
tentei fingir que a música de Elza não me incomodava. Tentei ignorar a
distância cada vez
maior entre mim e Simon. Tentei acreditar que em questões de casamento, como
acontecia com terremotos, câncer e atos de guerra, pessoas como eu estavam
imunes a
desastres inesperados. Mas, para poder fingir que estava tudo bem com o mundo,
eu primeiro tinha de saber o que estava errado.

#144

9
OS CINQÜENTA ANOS DE KWAN

Simon e eu nunca substituímos o lustre de vidro barato. Quando nos mudamos, o


consideramos ofensivo, um insulto ao bom gosto. Depois ele se tornou uma
piada. E em
pouco tempo passou a ser simplesmente uma fonte de luz que estava ali mas não
era notada, exceto quando uma das lâmpadas queimava. Tentamos até nos livrar
deste
problema comprando doze lâmpadas de uma organização de veteranos cegos, de
sessenta watts cada, com garantia de durar cinqüenta mil horas, o que
significava para
sempre numa sala. Mas cinco das seis lâmpadas queimaram em um ano. Nunca nos
demos o trabalho de subir numa escada para trocá-las. Com uma única lâmpada
acesa, o
lustre era praticamente invisível.
Uma noite, há cerca de seis meses, a última lâmpada queimou, deixando-
nos no escuro. Simon e eu estávamos de saída para jantar no nosso restaurante
habitual.
- Amanhã vou comprar umas lâmpadas de verdade - Simon disse.
- Por que não um lustre novo?
- Para quê? Este aqui não é tão feio assim. Vamos logo, estou com
fome.
Enquanto caminhávamos para o restaurante, eu pensava sobre o que ele
tinha dito, ou melhor, sobre o modo como tinha falado, como se não se
importasse mais
com a nossa vida em comum. Qualquer porcaria servia para nós.

#145

O restaurante estava meio vazio. Uma música lenta, soporífera, tocava


ao fundo, um som inócuo, do tipo que ninguém escuta realmente. Enquanto
consultava
um cardápio que conhecia de cor, notei um casal de uns cinqüenta anos sentado
em frente a nós. A mulher tinha uma expressão azeda. O homem parecia
entediado. Observei-os
por algum tempo. Eles mastigavam, passavam manteiga no pão, bebiam água, sem
se olhar nos olhos, sem dizer uma palavra. Não pareciam estar tendo uma briga.
Apenas
agiam com resignação, desconectados tanto da felicidade quanto da inquietação.
Simon estava estudando a lista de vinhos. Alguma vez pedimos outra coisa que
não o
vinho branco da casa?
- Quer dividir uma garrafa de vinho tinto desta vez? - eu disse.
Ele não ergueu os olhos.
- O tinto tem muito tanino. Não quero acordar às duas da manhã.
- Bom, vamos tomar algo diferente. Um fumé blanc talvez.
Ele me entregou a lista de vinhos.
- Eu vou tomar o Chablis da casa. Mas você pode variar se quiser.
Enquanto eu examinava a lista, comecei a entrar em pânico. De repente,
tudo referente à nossa vida pareceu previsível mas sem sentido. Era como
juntar as
peças de um quebra-cabeça e no fim descobrir que o resultado era uma
reprodução de arte banal, um grande esforço levando a uma decepção trivial.
Claro, em alguns
aspectos éramos compatíveis - sexualmente, intelectualmente,
profissionalmente. Mas não éramos especiais, não como pessoas que pertencem
verdadeiramente
uma à outra. Éramos sócios, não almas gêmeas, duas pessoas separadas que por
acaso estavam compartilhando um cardápio e uma vida. O nosso todo não era
maior do que
a soma de nossas partes. O nosso amor não era predestinado. Era o resultado de
um trágico acidente e de um truque bobo de fantasmas.

#146

Por isso é que ele não tinha uma grande paixão por mim. Por isso é que um
lustre barato se encaixava em nossa vida.
Quando chegamos em casa, Simon atirou-se na cama.
- Você está um bocado silenciosa - ele disse. - Algum problema?
- Não - menti. E em seguida: - Bem, não sei exatamente. - Sentei-me do
meu lado da cama e comecei a folhear um catálogo de compras, esperando que ele
tornasse
a perguntar. Simon estava usando o controle remoto da televisão para trocar de
canal a cada cinco segundos: um flash jornalístico sobre uma menininha que
havia sido
raptada, uma telenovela em espanhol, um homem parrudo vendendo equipamentos de
ginástica. Enquanto pedaços de vida televisada passavam diante de mim, tentei
transformar
minhas emoções em algo coerente, que Simon pudesse entender. Mas, seja lá o
que fosse que eu estivesse sufocando, me atingiu de forma confusa, fazendo
minha garganta
doer. Havia o fato de não podermos conversar sobre a esterilidade de Simon -
não que eu quisesse ter filhos nessa altura de nossas vidas. E os sons
fantasmagóricos
da casa, que fingíamos ser normais. E Elza, apesar de não podermos conversar
sobre ela, estava em toda parte, na lembrança das mentiras que Kwan havia dito
durante
sua sessão de conversa yin, na maldita música que Simon tocava. Eu ia sufocar
se não promovesse mudanças drásticas em minha vida. Enquanto isso, Simon
continuava
pulando de um canal para outro.
- Você sabe como isso é irritante? - perguntei, tensa.
Simon desligou a tevê. Virou-se para olhar para mim, apoiado no
cotovelo.
- Qual é o problema? - Ele parecia ternamente preocupado.
Meu estômago apertou.
- Eu só fico pensando às vezes se isto é tudo. É assim que vamos ser
daqui a dez, vinte anos?
- O que você quer dizer com isto?
#147

- Você sabe, morando aqui nesta casa horrorosa, agüentando o barulho,


o lustre vagabundo. Tudo parece sem graça. Vamos sempre ao mesmo restaurante.
Dizemos
as mesmas coisas. É a mesma merda o tempo todo.
Ele pareceu espantado.
- Eu quero amar o que fazemos juntos. Quero que sejamos mais unidos.
- Nós ficamos juntos vinte e quatro horas por dia.
- Não estou falando de trabalho! - Eu me sentia como uma criança, com
fome e calor, irritada e cansada, frustrada por não conseguir dizer o que
realmente
queria. - Estou falando de nós, do que é importante. Sinto como se
estivéssemos estagnando, criando lodo nas extremidades.
- Não me sinto assim.
- Admita, a nossa vida juntos não vai ser melhor no ano que vem do que
é hoje. Vai ser pior. Olhe para nós. O que partilhamos agora além de fazer o
mesmo
trabalho, ver os mesmos filmes, dormir na mesma cama?
- O que é isso? Você está apenas deprimida.
- É claro que estou deprimida! Porque estou vendo para onde estamos
indo. Não quero ficar igual àquelas pessoas que vimos esta noite no
restaurante - olhando
fixamente para a comida, sem nada para dizer um ao outro a não ser: "Como está
o seu macarrão?" Aliás, nós nunca conversamos, não de verdade.
- Conversamos esta noite.
- Ah, claro. O nosso novo cliente é um neonazista. Devemos pôr mais
dinheiro na nossa conta da poupança. O condomínio quer aumentar as taxas. Isto
não é
conversar de verdade! Não é a vida real. Não é o que importa para a minha
vida.
Simon esfregou o meu joelho.
- Não me diga que você está tendo uma crise de meia-idade? As pessoas
só tinham isso nos anos setenta. Além do mais, hoje em dia existe o Prozac.
Afastei a mão dele.
- Pare de ser tão condescendente.
Ele pôs a mão de volta.

#148

- Vamos lá, eu estou brincando.


- E por que você sempre brinca com coisas importantes?
- Ei, você não é a única. Também penso na minha vida, sabe, quanto
tempo eu tenho para fazer as coisas que importam realmente.
- É? Como o quê? - debochei. - O que importa realmente para você?
Ele ficou calado. Imaginei o que ia dizer: os negócios, a casa, ter
dinheiro suficiente para se aposentar cedo.
- Vamos. Diga-me.
- Escrever - disse finalmente.
- Você já escreve.
- Não me refiro ao que escrevo agora. Você acha mesmo que é só isso
que eu quero - escrever folhetos sobre colesterol e sobre como aspirar gordura
de coxas
flácidas? Dá um tempo.
- O quê, então?
- Histórias. - Olhou para mim, esperando uma reação.
- De que tipo? - Imaginei se ele estaria inventando aquilo na hora.
- Histórias sobre a vida real, sobre pessoas daqui ou de outros
países, Madagascar, Micronésia, uma daquelas ilhas da Indonésia onde nenhum
turista jamais
esteve.
- Jornalismo?
- Ensaios, ficção, o que quer que me permita escrever sobre a forma
como vejo o mundo, onde eu me encaixo, perguntas que tenho... É difícil
explicar.
Ele começou a tirar o catálogo das minhas mãos. Agarrei-o de volta.
- Não. - Estávamos de novo na defensiva.
- Está bem, continue no buraco! - ele gritou. - Então não somos
perfeitos. Cometemos erros. Não conversamos o bastante. Será que isto nos
torna uns fracassados?
Quer dizer, não estamos desabrigados nem doentes nem subempregados.
- O quê, tenho de ficar feliz ao pensar, puxa, tem alguém que está
pior do que eu? Quem você pensa que eu sou - Poliana?

#149

- Merda! O que você quer? - ele respondeu. - O que a poderia fazer


feliz?
Senti-me presa no fundo de um poço dos desejos. Queria
desesperadamente gritar o que desejava, mas não sabia o que era. Só sabia o
que não era.
Simon deitou a cabeça no travesseiro, com as mãos cruzadas no peito.
- A vida é sempre um acordo filho da mãe - ele disse. Parecia um
estranho falando. - Você nem sempre consegue o que quer, por mais inteligente
que seja,
por mais que trabalhe, por mais que seja bom. Isso é um mito. Estamos todos
nos segurando o melhor que podemos. - Ele deu uma risada cínica.
E então despejei o que estava com medo de dizer:
- Sim, bem, estou cansada de me segurar no lugar de Elza.
Simon sentou-se na cama.
- Que diabo Elza tem a ver com isso? - ele perguntou.
- Nada. - Eu estava sendo estúpida e infantil, mas não conseguia
parar. Passaram-se alguns minutos tensos antes que eu dissesse: - Por que você
tem de tocar
aquele maldito CD o tempo todo e dizer a todo mundo que ela foi sua namorada?
Simon olhou para o teto. Suspirou longamente, um sinal de que estava a
ponto de desistir.
- O que está havendo?
- Só quero que a gente, você sabe, tenha uma vida melhor - gaguejei. -
Juntos. - Não conseguia encará-lo. - Quero ser importante para você. Quero que
você
seja importante para mim... Quero que sonhemos juntos.
- É, que tipo de sonhos? - ele disse hesitante.
- Aí é que está - eu não sei! É sobre isso que eu quero que a gente
converse. Já faz tanto tempo que não sonhamos juntos que nem sabemos mais o
que isso
significa.
Estávamos num beco sem saída. Fingi que lia a minha revista. Simon foi
para o banheiro. Quando voltou, sentou na cama e me abraçou. Eu me odiei por
chorar,
mas não consegui parar.

#150
- Não sei, não sei - repeti soluçando. Ele enxugou meus olhos com um
lenço de papel, limpou o meu nariz, depois me fez deitar na cama.
- Está tudo bem - ele me consolou. - Você vai ver, amanhã vai estar
tudo bem.
Mas sua bondade me deixou ainda mais desesperada. Ele se enroscou em
mim e eu tentei sufocar os soluços, fingindo estar mais calma, porque não
sabia que
outra coisa podia fazer. E então Simon fez o que sempre fazia quando não
sabíamos que outra coisa fazer - começou a fazer amor. Acariciei seus cabelos,
para que
ele pensasse que era isto que eu queria também. Mas estava pensando: ele não
se preocupa com o que vai acontecer conosco? Por que não se preocupa? Estamos
condenados.
É só uma questão de tempo.
Na manhã seguinte, Simon me surpreendeu. Trouxe-me o café na cama e
anunciou alegremente:
- Estive pensando no que você disse ontem à noite - sobre sonharmos
juntos. Bem, tenho um plano.
A idéia de Simon era fazer uma lista de desejos: algo que poderíamos
fazer juntos, que nos permitiria definir o que ele chamou de parâmetros
criativos da
nossa vida. Conversamos abertamente, animadamente. Concordamos que o sonho
deveria ser arriscado mas divertido, deveria incluir viagens exóticas, boa
comida, e,
mais importante, uma chance de criar algo que fosse emocionalmente
satisfatório. Não mencionamos romance.
- Isso dá conta do sonho - ele disse. - Agora temos de pensar como o
faremos acontecer.
No fim de uma discussão de três horas, tínhamos elaborado uma proposta
que iríamos enviar para meia dúzia de revistas de viagem e culinária. Íamos
nos oferecer
para escrever uma reportagem com fotos sobre a cozinha do interior da China;
esta excursão serviria de modelo para futuros artigos sobre culinária e
cultura popular,
possivelmente um livro, uma série de conferências e talvez até uma série de
tevê a cabo.
Foi a melhor conversa que eu e Simon tivemos em muitos anos. Eu ainda
achava que ele não tinha entendido totalmente os meus medos e o

#151

meu desespero, mas tinha respondido da melhor maneira que podia. Eu queria um
sonho. Ele fez um projeto. E, pensando bem, não era o bastante para nos dar
esperanças?
Percebi que tínhamos um zilionésimo por cento de chance de conseguir
um pedacinho do que tínhamos proposto. Mas, assim que as cartas foram soltas
no universo,
eu me senti melhor, como se tivesse entregue a minha velha vida à Providência.
O que quer que viesse em seguida teria de ser melhor.

Alguns dias depois do nosso tête-à-tête, minha mãe telefonou para me lembrar
de levar minha câmera fotográfica para a casa de Kwan aquela noite. Olhei para
o calendário.
Merda, tinha esquecido completamente que tínhamos de ir ao aniversário de
Kwan. Subi correndo para o quarto, onde Simon estava assistindo ao campeonato
de futebol
americano, com o corpo esbelto esticado no tapete defronte da tevê. Bubba
estava deitado ao lado dele, mastigando um brinquedo de borracha.
- Temos de estar na casa de Kwan dentro de uma hora. É aniversário
dela.
Simon gemeu. Bubba sentou imediatamente nas patas traseiras, sacudindo
as patas da frente, uivando para pedir sua coleira.
- Não, Bubba, você tem de ficar. - Ele se atirou de volta no chão, com
a cabeça sobre as patas, olhando-me com olhos tristes.
- Vamos ficar o suficiente para não sermos indelicados - sugeri - e
sair cedo.
- Oh, claro - Simon disse, com os olhos grudados na tela. - Você
conhece Kwan. Jamais nos deixará sair cedo.
- Bem, temos de ir. Ela está fazendo cinqüenta anos.
Examinei a estante atrás de alguma coisa que pudesse servir de
presente de aniversário. Um livro de arte? Não, Kwan não iria apreciar, ela
não tinha qualquer
senso estético. Procurei na minha caixa de jóias. Que tal este colar de prata
e turquesa que eu nunca usava? Não, foi presente da

#152

minha cunhada e ela ia estar na festa. Desci até o escritório e foi lá que eu
a descobri: uma caixinha imitando tartaruga, pouco maior que um baralho, o
acompanhamento
perfeito para a parafernália kitsch de Kwan. Tinha comprado a caixa ao fazer
compras de Natal dois meses antes. Na época, pareceu-me um desses presentes
que servem
para tudo, compacto o suficiente para guardar na bolsa, no caso de alguém, por
exemplo um cliente, me surpreender com um presente de Natal. Mas este ano
ninguém
o fez.
Fui até o escritório de Simon e vasculhei sua mesa atrás de papel de
embrulho e barbante. Na última gaveta do lado esquerdo, enfiado lá atrás,
encontrei
um disquete. Já ia guardá-lo na caixa de disquetes de Simon quando notei o
título que ele havia escrito na etiqueta: "Romance. Iniciado: 20/2/90." Então
estava mesmo
tentando escrever algo importante para ele. Estava trabalhando nisso há muito
tempo. Fiquei magoada por ele não ter compartilhado isso comigo.
Nessa altura, deveria ter respeitado a privacidade de Simon e guardado
o disquete. Mas como podia deixar de olhar? Ali estava seu coração, sua alma,
o que
importava realmente para ele. Liguei o computador com as mãos trêmulas, enfiei
o disquete. Abri o arquivo chamado "Cap. I. " Uma tela cheia de palavras
brilhou no
fundo azul e então veio a primeira frase: Desde os seis anos, Elise ouvia uma
música uma única vez e depois a tocava de memória, uma memória herdada dos
seus avós
já falecidos.
Li a primeira página, depois a segunda. Isto é baboseira, é conversa
fiada, repetia para mim mesma. Fui lendo uma página atrás da outra,
envenenando minha
alma. E a imaginei, Elza, acariciada pelos dedos dele, olhando para ele da
tela. Eu a podia ver debochando de mim: "Eu voltei. Por isso é que você nunca
foi feliz.
Eu estava aqui o tempo todo."
Calendários não medem mais o tempo para mim. O aniversário de Kwan foi há seis
meses, uma vida atrás. Depois que voltei da festa, Simon e eu brigamos
ferozmente
por mais um mês. A dor pareceu durar para sempre, mas o amor se
desintegrou em um segundo. Ele acampou no escritório,

#153

depois saiu de casa no final de fevereiro, e parece que foi há tanto tempo que
nem consigo me lembrar do que fiz nas primeiras semanas que passei sozinha.
Mas estou me acostumando com as mudanças. Nada de rotinas, nada de
padrões, nada de velhos hábitos, esta é a minha regra agora. Combina comigo.
Como Kevin
me disse semana passada na sua festa de aniversário:
- Você está com boa aparência, Olivia, muito boa mesmo.
- É o novo eu - eu disse num tom de desafio. - Estou usando um novo
creme facial, frutas ácidas.
Surpreendi todo mundo por estar tão bem - não estou apenas enfrentando
a situação, estou moldando uma nova vida. Kwan é a única que pensa o
contrário. A
noite passada, no telefone, ela disse o seguinte:
- Sua voz parece tão cansada! Cansada de viver sozinha, eu acho. Simon
também. Esta noite vocês dois vêm na minha casa jantar, como nos velhos
tempos, só
amigos...
- Kwan, não tenho tempo para isso.
- Ah, tão ocupada! OK, não esta noite. Amanhã também muito ocupada?
Vem amanhã, ah?
- Não se Simon for.
- Ok-Ok. Só você esta noite. Vou fazer ensopado, seu favorito. Também
vou dar wonton para você levar para casa e congelar.
- Nada de conversas sobre Simon, certo?
- Nada de conversa, só comer. Prometo.

Já estou no meu segundo prato de ensopado. Esperando que Kwan faça alguma
menção ao meu casamento. Ela e George estão conversando animadamente sobre
Virginia, uma
prima da falecida esposa de George, de Vancouver, cujo sobrinho na China quer
imigrar para o Canadá.
George está com a boca cheia.
- A namorada dele queria ir de carona para o Canadá também. Forçou-o a
se casar com ela. Minha prima, ela teve de refazer toda a papelada.

#154

Tudo estava quase aprovado, agora - Ei! Volte para o final da fila. Espere
mais dezoito meses.
- Duzentos dólares, mais papelada. - Kwan serviu-se de vagem com seus
pauzinhos. - Muitas horas desperdiçadas, indo para este escritório, aquele
escritório,
E depois? Surpresa - surge bebê.
George balança a cabeça.
- Minha prima disse: "Ei, por que não esperaram? Agora temos de
acrescentar o bebê, começar o processo todo de novo." O sobrinho disse: "Não
conte aos funcionários
que temos um bebê. Nós dois vamos primeiro, entramos na faculdade, conseguimos
bons empregos, compramos casa, carro. Depois encontramos um jeito de levar o
bebê,
daqui a um ou dois anos."
Kwan largou sua tigela de arroz.
- Deixar o bebê para trás! Que idéia é essa? - Ela olha para mim, como
se a idéia de abandonar o bebê fosse minha. - Faculdade, dinheiro, casa,
emprego -
onde se encontram essas coisas? Quem paga a faculdade, enorme depósito?
Sacudo a cabeça. George resmunga, e Kwan faz um cara de nojo.
- Vagem não macia, velha demais, sem gosto.
- E aí? O que aconteceu? - Eu perguntei. - Eles vão trazer o bebê?
- Não. - Kwan largou os pauzinhos. - Nem bebê, nem sobrinho, nem
esposa. Virgie vai se mudar em breve para San Francisco. América não tem
imigração para
sobrinho, tia Virgie não pode patrocinar. Agora a mãe do sobrinho na China,
irmã de Virgie, nos acusa de fazer o filho perder boa chance!
Aguardo mais explicações. Kwan agita os pauzinhos no ar.
- Wah! Por que pensa seu filho tão importante? Própria irmã não avalia
quanto problema! Seu filho estragado. Posso cheirar daqui. Hwai dan. Ovo
podre.
- Você disse isso a ela?
- Nunca a vi.
- Então por que ela está acusando você?

#155

- Acusou na carta porque Virgie disse a ela que nós a convidamos para
ficar conosco.
- Vocês convidaram?
- Antes não. Agora que a carta disse isso, nós convidamos. Senão ela
ia passar vergonha. Semana que vem ela chega.
Mesmo constantemente exposta a Kwan, acho que jamais compreenderei a
dinâmica de uma família chinesa, toda a complexidade dos parentescos, quem é
responsável,
quem é culpado, toda aquela besteirada de passar vergonha. Fico contente por
minha vida não ser tão complicada.
No final da noite, Kwan me entrega um vídeo. É da festa de aniversário
dela, o dia em que Simon e eu tivemos nossa pior briga, a que nos levou à
separação.
Lembro-me de ir correndo para cima, onde Simon estava se vestindo.
Abri uma janela do quarto, segurei o disquete do lado de fora e gritei:
- Olha o que eu vou fazer com o seu maldito romance! Com o que é
importante para você! - E larguei o disquete.
Berramos um com o outro durante uma hora e então eu disse com uma voz
calma e neutra as palavras mais terríveis que qualquer xingamento.
- Quero o divórcio.
Simon me deixou chocada ao responder:
- Ótimo - e então desceu as escadas, bateu com a porta e desapareceu.
Nem cinco minutos depois, o telefone tocou. Procurei me controlar ao máximo.
Nada de
mágoa, nada de raiva, nada de perdão. Ele que suplicasse. No quinto toque, eu
atendi.
- Libby-ah? - Era Kwan, com uma voz tímida e infantil. - Mamãe ligou
para você? Você vem? Já está todo mundo aqui. Um monte de comida...
Resmunguei uma desculpa.
- Simon doente? De repente?.. Ah, intoxicação. Ok, tome conta dele.
Ele é mais importante que aniversário. - E, quando ela disse isso, resolvi que
Simon
não seria mais importante do que nada na minha vida, nem mesmo Kwan. Fui para
a festa sozinha.
- Vídeo muito engraçado - Kwan está dizendo, enquanto me leva até a
porta. - Talvez não tenha tempo de ver.

#156

Leve assim mesmo. - E assim termina a noite, sem nenhuma menção a Simon.
Em casa, sinto-me desconsolada. Tento ver televisão. Tento ler. Vejo
as horas. Muito tarde para ligar para alguém. Pela primeira vez em seis meses,
minha
vida parece vazia e eu me sinto desesperadamente só. Vejo o vídeo de Kwan em
cima da cômoda. Por que não? Vamos a uma festa.
Sempre achei que vídeos domésticos eram chatos, porque nunca são
editados. Você vê momentos de sua vida que jamais deveriam ser revistos. Você
vê o passado
acontecendo no presente e no entanto você sabe o que vem depois.
Este começa com luzes piscando, depois uma panorâmica da casa em estilo
mediterrâneo de Kwan e George na rua Balboa. Com um movimento desfocado de
câmera,
entramos. Embora seja final de janeiro, Kwan sempre conserva a decoração de
Natal até depois do aniversário. O vídeo mostra tudo: guirlandas de plástico
penduradas
em janelas com esquadrias de alumínio, o carpete verde e azul, os painéis
imitando madeira e uma miscelânea de móveis comprados em depósitos e
liquidações.
A parte de trás do permanente do cabelo de Kwan entra em foco. Ela
exclama com sua voz alta demais:
- Mamãe! Sr. Shirazi! Sejam bem-vindos, entrem.
Minha mãe e o namorado da ocasião surgem no vídeo. Ela está usando uma
blusa de leopardo, leggings e uma jaqueta de veludo preto enfeitada de
dourado. Seus
óculos bifocais têm um sombreado roxo. Desde sua plástica, mamãe vem usando
roupas cada vez mais horrorosas. Ela conheceu Sharam Shirazi numa aula de
dança de salão.
Ela me disse que gostava mais dele do que do último namorado, um nativo de
Samoa, porque ele sabia como segurar a mão de uma dama, "não como se fosse uma
batuta
de tambor". Além disso, na avaliação de minha mãe, o Sr. Shirazi era
um amante e tanto. Ela uma vez cochichou no meu ouvido:
- Ele faz coisas que talvez nem vocês, jovens, façam. - Não perguntei
que coisas eram essas.
Kwan olha para a câmera para se certificar de que George registrou
adequadamente a chegada de mamãe.

#157

E então chega mais gente. O vídeo se aproxima delas: os dois enteados de Kwan,
meus irmãos, suas mulheres, seus quatro filhos. Kwan cumprimenta todo mundo,
gritando
o nome de cada criança:
- Melissa! Patty! Eric! Jena! - depois faz sinal para George filmar as
crianças todas juntas.
Finalmente, a minha chegada.
- Por que tão tarde? - Kwan reclama alegremente. Agarra o meu braço e
me leva na direção da câmera, de modo que nossos rostos enchem a tela. Tenho
um ar
cansado, embaraçado, os olhos vermelhos. É óbvio que quero fugir.
- Esta é minha irmã, Libby-ah - Kwan está dizendo para a câmera. -
Minha irmã favorita. Qual de nós mais velha? Adivinha. Qual?
Nas cenas seguintes, Kwan age como se tivesse tomado anfetaminas,
saltando das paredes. Lá está ela, ao lado da árvore de Natal artificial.
Aponta para os
enfeites, gesticulando como se fosse a apresentadora de um programa de
variedades. Lá está ela, pegando seus presentes. Exagera o peso deles, depois
sacode, apalpa,
cheira cada um antes de ler o nome do feliz destinatário. Finge surpresa:
- Para mim? - E então ri grosseiramente e ergue os dez dedos, abrindo-
os e fechando-os como um sinal: - Cinqüenta anos! - ela grita. - Podem
acreditar? Não?
Que tal quarenta? - Ela se aproxima da câmera e balança a cabeça. - Ok-Ok,
quarenta.
A câmera ricocheteia de uma cena de dez segundos para outra. Lá estão
eles, minha mãe sentada no colo do Sr. Shirazi: alguém grita para eles se
beijarem
e eles obedecem de boa vontade. Depois meus irmãos no quarto, assistindo ao
canal de esportes; eles acenam para a câmera com latas de cerveja. Agora
minhas cunhadas,
Tabby e Barbara, estão ajudando Kwan na cozinha; Kwan ergue uma fatia de
lombinho redonda como uma moeda e grita:
- Prove só! Chegue mais perto e prove!
Em outro quarto, as crianças estão amontoadas em volta de um
computador; dão vivas cada vez que um monstro é morto. E agora a família
inteira e eu estamos
em pé na fila do bufê, a caminho de uma mesa de jantar acrescida de uma mesa
de mah jong de um lado e de uma mesa de jogo de cartas do outro.

#158

Vejo uma tomada de mim mesma: aceno, faço um brinde a Kwan, depois
volto a espetar meu prato com um garfo de plástico, o comportamento normal de
festa. Mas
a câmera é impiedosamente objetiva. Qualquer um pode ver no meu rosto: minhas
expressões são sem vida, minhas palavras são indiferentes. É óbvio que estou
deprimida,
inteiramente resistente ao que a vida tem a oferecer. Minha cunhada Tabby esta
conversando comigo, mas eu contemplo o meu prato com um ar vago. O bolo chega
e todo
mundo começa a cantar "Parabéns pra você". A câmera dá uma panorâmica da sala
e me encontra no sofá, movimentando um enfeite de mesa feito de bolas de aço
que fazem
um perpétuo e aborrecido claque-claque. Pareço um zumbi.
Kwan abre,seus presentes. O bibelõ Hummel de crianças patinando e um
presente dos seus colegas da drogaria.
- Oh, que lindo - ela diz, colocando-o ao lado dos outros bibelôs. A
cafeteira é da minha mãe. - Ah, mamãe! Como você sabe que minha outra
cafeteira está quebrada?
- A blusa de seda em sua cor favorita, vermelho, é do enteado, mais moço,
Teddy. - Boa demais para usar - Kwan lamenta com alegria. Os castiçais de
prata são do
outro enteado, Timmy; ela põe velas neles, depois os coloca sobre a mesa que
ele a ajudou a restaurar no ano passado. - Exatamente como a primeira dama na
Casa Branca!
- ela se gaba. A escultura de barro de um unicórnio adormecido é de nossa
sobrinha Patty; Kwan a deposita cuidadosamente sobre a lareira, prometendo: -
Nunca vou
vender isso, nem mesmo quando Patty se tomar uma artista famosa e esta peça
valer um milhão de dólares. - O robe estampado de margaridas é presente do
marido. Ela
examina a etiqueta: Ohhh. Giorgio Laurentis. Caro demais. Por que foi gastar
tanto? - Sacode o dedo para o marido, que sorri, timidamente orgulhoso.
Outra pilha é colocada diante de Kwan. Faço o vídeo rodar rapidamente
para a frente, desvendando jogos americanos, um ferro de passar a vapor, uma
maleta com
monograma.

#159

Finalmente eu a vejo pegando o meu presente. Aperto o botão Stop, depois o


Play.
- ... Sempre deixo o melhor por último - ela está declarando. - Deve ser
muito-muito especial, porque Libby-ah é minha irmã favorita. - Ela desmancha o
laço,
deixa a fita de lado para guardar. Tira o papel. Aperta os lábios olhando para
a caixa de tartaruga. Gira-a devagar, depois abre a tampa e olha para dentro.
Toca
o rosto com uma das mãos e diz: - Linda, e tão útil também. - Ergue a caixa
para ser filmada para a posteridade: - Estão vendo? - ela diz, sorrindo. -
Saboneteira
de viagem.
Nos bastidores, pode-se ouvir minha voz tensa:
- Na verdade, não é para guardar sabonete. É para jóias e coisas assim.
Kwan torna a olhar para a caixa.
- Não é para sabonete? Para jóias? Ohhh! - Ela torna a erguer a caixa,
com mais respeito. De repente sorri satisfeita. - George, você está ouvindo?
Minha irmã
Libby-ah diz que eu mereço belas jóias. Compre-me um diamante, um diamante bem
grande para eu guardar na saboneteira!
George resmunga e a câmera balança loucamente enquanto ele grita:
- As duas irmãs, fiquem em pé ao lado da lareira. Estou protestando,
explicando que tenho de ir para casa, que tenho trabalho me esperando. Mas
Kwan está me
puxando do sofá, rindo e dizendo:
- Venha-venha, menina preguiçosa. Nunca ocupada demais para irmã mais
velha.
A câmera zumbe. O rosto de Kwan se congela em um sorriso, como se ela
estivesse esperando o flash espocar. Ela me abraça apertado, obrigando-me a
chegar ainda
mais perto dela, depois murmura numa voz maravilhada:
- Libby-ah, minha irmã, tão especial, tão boa para mim.
E eu estou à beira das lágrimas, tanto no vídeo quanto agora, assistindo
a minha vida acontecer de novo. Porque não posso mais negar. A qualquer
momento meu
coração vai se partir.

III

#163

10
A COZINHA DE KWAN
Kwan diz para eu chegar às seis e meia, que é a hora que ela sempre me manda
chegar, só que normalmente não começamos a comer antes das oito. Então eu
pergunto se
o jantar vai ser mesmo às seis e meia, senão eu vou mais tarde, porque estou
mesmo ocupada. Seis e meia com certeza, ela diz.
Às seis e meia, George atende a porta, com os olhos turvos. Ele não
está usando os óculos, e seu chumaço ralo de cabelo parece um anúncio de
produtos adesivos
à prova de estática. Ele acabou de ser promovido a gerente de uma loja Food-4-
Less em East Bay. Quando foi trabalhar lá, Kwan não notou o 4 no nome da loja,
e até
hoje a chama de Foodless.
Encontro-a na cozinha, tirando as hastes de cogumelos pretos. O arroz
ainda não foi lavado, os camarões não foram limpos. O jantar está a duas horas
de distância.
Atiro a bolsa em cima da mesa, mas Kwan não liga para a minha irritação. Dá um
tapinha na cadeira.
- Libby-ah, sente-se, preciso dizer-lhe uma coisa. - Ela fatia
cogumelos durante meio minuto antes de atirar sua bomba. - Estive falando com
uma pessoa yin.
- Ela agora está falando em chinês.
Suspiro profundamente, para mostrar a ela que não estou com disposição
para esse tipo de conversa.

#164

- Lao Lu, você também o conhece, mas não em vida. Lao Lu disse que
você precisa ficar junto com Simon. É o seu yinyuan, o destino que une os
amantes.
- E por que esse é o meu destino? - pergunto impaciente.
- Porque, na última vida que tiveram juntos, você amou outra pessoa
antes de Simon. Mais tarde, Simon confiou a vida a você, acreditando que você
também
o amava.
Quase caí da cadeira. Nunca contei a Kwan nem a ninguém a verdadeira
razão do meu divórcio. Disse simplesmente que tínhamos nos distanciado um do
outro.
E agora Kwan estava falando sobre isso - como se o mundo inteiro, morto e
vivo, soubesse.
- Libby-ah, você tem de acreditar - diz em inglês. - Este amigo yin,
ele diz que Simon está dizendo a verdade. Você pensa que ele ama você menos e
ela mais
- não! -, por que você pensa assim, sempre compara amor? Amor não é como
dinheiro...
Fico lívida de ouvi-la defendendo-o.
- Que é isso, Kwan? Percebe o quanto isso que você está dizendo parece
maluquice? Se alguém a ouvisse falar assim, pensaria que você está doida. Se
existem
mesmo fantasmas, por que eu nunca os vejo? Me diga, hem.
Ela agora está limpando os camarões, retirando seus intestinos pretos,
deixando as cascas.
- Uma vez você conseguiu ver - diz calmamente. - A vez da menininha.
- Eu estava fingindo. Os fantasmas vêm da imaginação, não do Mundo de
Yin.
- Não diga "fantasma ". Para eles esta é uma palavra racista. Você só
chama de fantasma pessoa yin má.
- Oh, está bem. Esqueci. Até mesmo os mortos se tornaram politicamente
corretos. OK, então como são essas pessoas yin? Me diga. Quantos estão aqui
esta noite?
Quem está sentado nesta cadeira? Mao Tsé-tung? Chu En-lai? Que tal a
Imperatriz Viúva?
- Não-não, eles não estão aqui.
- Bem, diga-lhes que apareçam! Diga-lhes que eu quero vê-los. Quero
perguntar a eles se são formados em aconselhamento matrimonial.

#165

Kwan estende o jornal no chão para aparar a gordura do fogão. Despeja


os camarões numa panela quente e instantaneamente o rugido do óleo fervendo
enche a
cozinha.
- As pessoas yin só vêm quando querem - diz. - Eles nunca dizem
quando, porque me tratam como membro da família - vêm sem convite, "Surpresa,
estamos aqui".
Mas a maior parte das vezes vêm para jantar, quando talvez um ou dois pratos
não estão muito bem-feitos. Dizem: "Ah! Esse peixe, firme demais, não leve,
talvez cozinhou
um minuto a mais. E esse nabo, não suficientemente crocante, devia fazer som
como andar na neve, crunch-crunch, então você sabe que está pronto para comer.
E este
molho - tst! -, açúcar demais, só estrangeiro vai querer comer.
Blá, blá, blá. É tão ridículo! Ela está descrevendo precisamente o que
ela, George e o lado dele da família fazem o tempo todo, o tipo de conversa
que acho
insuportável. Tenho vontade de rir e gritar ao mesmo tempo, ouvindo a versão
dela dos prazeres da vida depois da morte descritos como uma crítica de um
restaurante
feita por um amador.
Kwan despeja os camarões numa tigela.
- A maioria das pessoas yin muito ocupadas, trabalhando duro. Querem
relaxar, vêm me procurar, para conversar, e também porque dizem que sou
excelente cozinheira.
- Faz um ar convencido.
Tento pegar Kwan na sua própria lógica capenga:
- Se você é tão boa cozinheira, por que eles vêm com tanta freqüência
e criticam a sua comida?
Kwan franze a testa estica o lábio inferior - como posso ser tão burra
a ponto de fazer aquela pergunta?
- Não criticam de verdade, são só sinceros, francos como amigos
íntimos. E não vêm realmente para comer. Como podem comer? Já estão mortos! Só
fingem comer.
De qualquer maneira, na maioria das vezes elogiam minha comida, sim, dizendo
que nunca tiveram a sorte de comer um prato assim tão bom. Ai-ya, se ao menos
pudessem
comer a minha panqueca de cebola, morreriam felizes. Mas - tarde demais - já
estão mortos.
- Talvez eles devessem tentar ir à forra - resmungo.

#166

Kwan faz uma pausa.


- Ah-ha-ha, engraçado! Você faz piada. - Cutuca o meu braço.
- Garota levada. De qualquer modo, pessoas yin vêm me visitar, conversar sobre
vida passada, como banquete, muitas-muitas iguarias. "Oh ", dizem, "agora me
lembro. Esta parte eu gosto, esta não gosto tanto. Isto eu comi depressa
demais. Por
que não provei aquilo? Por que deixei este pedaço da minha vida estragar,
completamente desperdiçado?"
Kwan enfia um camarão na boca, movimenta-o de um lado para o outro,
até retirar a casca intacta, sem nenhum pedacinho de carne. Sempre fico
fascinada com
isso. Para mim, é como um truque de circo. Ela estala os beiços, aprovando.
- Libby-ah - diz, erguendo um pratinho de tirinhas douradas -,
você gosta de vieiras secas? - Balanço a cabeça afirmativamente. - Virgie, a
prima de
Georgie, me mandou de Vancouver. Sessenta dólares o quilo. Algumas pessoas
acham que é bom demais para dia comum. Devia guardar para depois. - Joga as
vieiras numa
panela junto com aipo picado. - Para mim, melhor hora é agora. Você espera,
tudo muda. Pessoas yin sabem disto. Sempre me perguntam: "Kwan, para onde foi
a melhor
parte da minha vida? Por que melhor parte escorregou entre meus dedos como
peixe veloz? Por que guardei para o fim, descobri depois que o fim já tinha
vindo antes?"
... Libby-ah, tome, prove. Diga-me, salgado demais, sem sal?
- Está ótimo.
Ela continua:
- "Kwan", eles me dizem, "você ainda viva. Ainda pode criar lembrança.
Ensina para nós como criar boa lembrança para que da próxima vez a gente
lembre o
que não deve esquecer."
- Lembrar o quê? - pergunto.
- Por que eles querem voltar, é claro.
- E você os ajuda a lembrar.
- Já ajudei muita gente yin a fazer isso - ela se gaba.
- Exatamente como o colunista Dear Abby.
Ela reflete sobre isso.
- Sim-sim, como Dear Abby. - Fica visivelmente satisfeita com a
comparação. - Muitas-muitas pessoas yin na China.

#167

Na América também, muitas. - E então ela começa a contá-las nos dedos: -


Aquele jovem policial - que veio na minha casa quando meu carro foi roubado?
-, última
vida foi missionário na China, sempre dizendo "amém, amém". Aquela garota
bonita, que trabalha no banco e cuida tão bem do meu dinheiro, ela outra -
garota bandoleira,
muito tempo atrás roubava pessoas gananciosas. E Sarge, Hoover, Kirby, agora
Bubba, cachorros, todos eles tão leais. Última vida eram uma mesma pessoa.
Adivinha
quem.
Sacudo os ombros. Odeio este jogo, o modo como ela sempre me arrasta para os
seus delírios.
- Adivinha.
- Não sei.
- Adivinha.
Ergo as mãos.
- Srta. Bandeira.
- Ha! Você adivinha errado!
- Está bem, diga. Quem então?
- General Capa!
Dou um tapa na testa.
- É claro. - Tenho de admitir que a idéia do meu cachorro ser o
General Capa é muito engraçada.
- Agora você sabe por que primeiro cachorro chamava Capitão -
Kwan completa.
- Eu o batizei assim.
Ela sacode o dedo.
- Rebaixou-o de posto. Você esperta, ensinou-lhe uma lição.
- Ensinar! Puf. Aquele cachorro era tão burro. Não sabia sentar, não
atendia quando se chamava, só o que sabia fazer era pedir comida. E depois ele
fugiu.
Kwan sacode a cabeça.
- Não fugiu. Foi atropelado.
- O quê?
- Mm-hm. Eu vi, não quis contar para você, você tão pequena. Então eu
digo, oh, Libby-ah, cachorro foi embora, fugiu. Não estou mentindo. Ele fugiu
para
rua antes de ser atropelado. Também, meu inglês na época não era muito bom.

#168

Fugiu, morreu, tudo soava parecido... - Enquanto Kwan fala na morte de


Capitão, sinto uma pontada de tristeza, um desejo de voltar no tempo, de
acreditar que posso
mudar o fato de não ter sido nada gentil com Capitão se ao menos pudesse vê-lo
mais uma vez.
- General Capa, na última vida, não foi leal. Por isso voltou tantas
vezes como cachorro. Ele mesmo escolheu fazer isso. Boa escolha. Última vida
ele foi
tão mau-tão mau! Eu sei porque seu homem pela metade me contou. Também posso
ver. Tome, Libby-ah, huang do-zi, broto de feijão, está vendo como está
amarelo? Comprei
fresco hoje. Tire as pontas. Se vir
algum pedaço podre, jogue fora...

General Capa, ele também era podre. Jogou fora outras pessoas. Nunumu, disse a
mim mesma, finge que o General Capa não está aqui. Tive de fingir por muito
tempo.
Durante dois meses, o General Capa morou na Casa do Mercador Fantasma. Durante
dois meses, a Srta. Bandeira abriu a porta do quarto dela todas as noites para
ele
entrar. Durante esses mesmos dois meses, ela não falou comigo, não como sua
amiga sincera. Ela me tratou como se eu fosse uma empregada. Apontava para
manchas nos
fundilhos da sua roupa branca, manchas que ela dizia que eu não tinha lavado,
manchas que eu sabia serem as impressões dos dedos sujos do General Capa. Aos
domingos,
ela repetia exatamente o que Pastor Amém dizia, nada mais de boas histórias. E
houve outras grandes mudanças durante este período.
Nas refeições, os missionários, a Srta. Bandeira e o General Capa
sentavam-se na mesa de estrangeiros. E onde o Pastor Amém costumava sentar,
foi onde o
General se instalou. Ele falava com sua voz alta, como um latido de cachorro.
Os outros apenas balançavam a cabeça e escutavam. Se ele erguesse a colher de
sopa
até a boca, os outros faziam o mesmo. Se ele largasse a colher para contar
mais vantagens, os outros também largavam suas colheres para escutar .
Lao Lu, os outros empregados e eu nos sentávamos na mesa dos chineses.
O homem que traduzia para Capa, o nome dele, conforme ele disse, era Yiban
Johnson,
Metade Johnson.

#169

Embora ele fosse meio a meio, os estrangeiros decidiram que ele era mais
chinês do que Johnson. Por isso ele também tinha de sentar na nossa mesa. A
princípio, eu
não gostava desse Yiban Johnson, do que ele dizia - como Capa era importante,
que era um herói tanto para americanos quanto para chineses. Mas então eu
compreendi:
o que ele falava era o que o General Capa punha em sua boca. Quando ele se
sentava na mesa conosco, usava suas próprias palavras. Conversava abertamente
conosco,
de gente comum para gente comum. Era realmente educado, não estava fingindo.
Brincava e ria. Elogiava a comida, não comia além da sua cota.
Com o tempo, passei a achar que ele era mesmo mais chinês do que
Johnson. Com o tempo, nem o achava mais estranho. O pai dele, ele nos contou,
era americano,
amigo do General Capa desde que eram crianças. Freqüentaram a mesma escola
militar. Foram expulsos juntos. Johnson navegou para a China com uma companhia
americana
que negociava com tecidos, seda de Nanquim. Em Shangai, ele comprou a filha de
um empregado pobre para ser sua amante. Quando ela estava para ter o filho
dele, Johnson
disse a ela:
- Estou voltando para a América, sinto muito, você não pode ir comigo.
- Ela aceitou seu destino. Agora ela era a amante abandonada de um demônio
estrangeiro.
Na manhã seguinte, quando Johnson acordou, adivinha quem estava enforcada na
árvore bem defronte da janela do quarto dele? Os outros empregados a tiraram
de lá,
amarraram um pano em volta da ferida do pescoço onde a corda tinha arrancado a
vida do seu corpo. Como ela tinha se matado, não celebraram qualquer
cerimônia. Colocaram-na
em um caixão de madeira e o fecharam. Aquela noite, Johnson escutou um choro.
Levantou-se e foi até o quarto onde estava o caixão. O choro ficou mais forte.
Abriu
o caixão e lá dentro encontrou um bebê, deitado entre as pernas da amante
morta. Em volta do pescoço do bebê, bem debaixo do seu queixinho, havia uma
marca vermelha,
da grossura de um dedo, com o mesmo formato de meia lua que a queimadura da
corda tinha deixado no pescoço da mãe dele.

#170

Johnson levou o bebê que tinha metade do seu sangue para a América.
Pôs o bebê no circo, contava às pessoas a história do enforcamento, mostrava-
lhes a cicatriz
misteriosa. Quando o menino estava com cinco anos, o pescoço dele cresceu e a
cicatriz diminuiu, e ninguém pagava mais para ver se ela era misteriosa. Então
Johnson
voltou para a China com o dinheiro do circo e seu filho mestiço. Desta vez,
Johnson se dedicou ao comércio de ópio. Ia de uma cidade portuária para outra.
Fazia
uma fortuna em cada cidade, depois perdia toda a fortuna no jogo. Encontrava
uma amante em cada cidade, depois deixava cada amante para trás. Só o pequeno
Yiban
chorava por perder tantas mães. Foram elas que o ensinaram a falar tantos
dialetos chineses - cantonense, shangainense, hakka, fukien, mandarim -,
aquelas amantes-mães.
Inglês ele aprendeu com Johnson.
Um dia, Johnson encontrou seu velho colega de escola, Capa, que agora
trabalhava para qualquer exército - britânico, manchu, hakka, não importava
qual -
contanto que lhe pagassem. Johnson disse a Capa:
- Ei, tenho uma enorme dívida, um bocado de problemas, você pode
emprestar algum dinheiro ao seu velho amigo? - Como prova de que iria saldar a
dívida, Johnson
disse: - Fique com o meu filho. Tem quinze anos e fala várias línguas. Pode
ajudá-lo a trabalhar para qualquer exército que você escolher.
Desde aquele dia, pelos próximos quinze anos, o jovem Yiban Johnson
pertenceu ao General Capa. Ele era a dívida nunca paga por seu pai.
Perguntei a Yiban: para quem o General Capa luta agora - para os
britânicos, os manchus, os hakkas? Yiban disse que o General Capa tinha lutado
por todos
os três, tinha ganho dinheiro de todos os três, tinha feito inimigos em todos
os três. Agora estava se escondendo de todos os três. Perguntei a Yiban se era
verdade
que o General Capa tinha se casado com a filha de um banqueiro chinês por
dinheiro. Yiban disse que Capa tinha se casado com a filha do banqueiro não só
por dinheiro,
mas também pelas jovens esposas do banqueiro.

#171

Agora o banqueiro também estava atrás dele. Capa, ele disse, sonhava com
espigas de ouro, riquezas que pudessem ser colhidas em uma estação, e depois
esmagadas pelo
arado, transformadas em pó.
Fiquei feliz em saber que tinha razão acerca do General Capa, que a
Srta. Bandeira estava errada. Mas logo depois fiquei doente de tristeza. Eu
era sua leal
amiga. como podia ficar contente vendo esse homem terrível devorar seu
coração?
Então Lao Lu disse:
- Yiban, como você pode trabalhar para um homem destes? Sem lealdade,
nem para com o país nem para com a família!
Yiban disse:
- Olhe para mim. Nasci de uma mãe morta, então não nasci de ninguém.
Tenho sido ao mesmo tempo chinês e estrangeiro, o que me torna nenhum dos
dois. Pertenci
a todo mundo, então não pertenço a ninguém. Tive um pai que não me considera
nem metade seu filho. Agora tenho um senhor que me considera uma dívida. Diga-
me, a
quem eu pertenço? A que país? A que povo? A que família?
Olhamos para ele. Em toda a minha vida, nunca tinha visto uma pessoa
tão inteligente, tão séria, tão merecedora. Não tivemos resposta para ele.
Aquela noite, fiquei deitada no meu tapete, pensando nessas perguntas.
Que país? Que povo? Que família? Para as duas primeiras perguntas, encontrei
logo
as respostas. Eu pertencia à China. Pertencia aos hakkas. Mas, quanto à última
pergunta, eu era como Yiban. Não pertencia a ninguém, só a mim mesma.
Olhe para mim, Libby-ah. Agora eu pertenço a muitas pessoas. Tenho
família, tenho você... Ah! Lao Lu diz que chega de conversa! Coma, coma antes
que esfrie.

#172

11
MUDANÇA DE NOME

Acontece que Kwan tinha razão a respeito dos ruídos da casa. Havia mesmo
alguém nas paredes, sob o assoalho, e estava cheio de raiva e eletricidade.
Descobri depois que o nosso vizinho de baixo, Paul Dawson, foi preso
depois de dar telefonemas ofensivos para milhares de mulheres na Bay Area.
Minha reação
automática foi de simpatia; afinal de contas, o pobre homem era cego e
solitário. Mas então fui informada da natureza dos seus telefonemas: ele dizia
ser membro
de um culto que raptava mulheres "moralmente repreensíveis" e as transformava
em "bonecas sacrificatórias" destinadas a serem penetradas por membros do sexo
masculino
do culto durante um rito de iniciação e depois estripadas vivas pelas abelhas
operárias do culto. Quando as mulheres riam das ameaças, ele perguntava:
- Você quer ouvir a voz de uma mulher que também pensou que isto fosse
uma brincadeira? - E então punha para tocar uma gravação de uma mulher
gritando aterrorizada.
Quando a polícia revistou o apartamento de Dawson, encontrou uma
parafernália de equipamentos eletrônicos: gravadores conectados ao seu
telefone, rediscagem
automática, fitas com efeitos sonoros, e mais. Ele não tinha limitado suas
atividades terroristas ao telefone. Aparentemente, achava que os antigos donos
do nosso
apartamento também tinham sido barulhentos demais, sem consideração pelas suas
meditações matinais Zen.

#173

Quando fizeram obras no apartamento e se mudaram temporariamente, ele fez


buracos no teto do apartamento dele e instalou alto-falantes e equipamentos de
escuta sob
o assoalho do andar de cima, para poder controlar a vida dos vizinhos do
terceiro andar e assustá-los com efeitos sonoros.
Minha simpatia transformou-se imediatamente em raiva. Queria que
Dawson mofasse na cadeia. Aquele tempo todo eu tinha ficado quase maluca
pensando em fantasmas
- um em particular, embora fosse a última a admitir isso.
Mas estou aliviada em saber o que causava os ruídos. Morar sozinha
deixa a minha imaginação mais sensível com relação a perigos. Simon e eu nos
vemos apenas
por motivos profissionais. Assim que nos tornarmos independentes nos aspectos
fiscais, também nos divorciaremos dos nossos clientes. De fato, ele virá aqui
mais
tarde para entregar a cópia de um folheto para um dermatologista.
Mas agora Kwan apareceu, sem ser convidada, enquanto eu estou no meio
de um telefonema para a gráfica. Abro a porta para ela, depois volto para o
meu escritório.
Ela trouxe alguns wontons feitos em casa, que está guardando no meu freezer,
comentando em voz alta a falta de mantimentos no freezer e nos armários:
- Por que mostarda, pickles e nenhum pão nem carne? Como você pode
viver assim? E cerveja! Por que cerveja e não leite?
Alguns minutos depois ela entra no escritório, toda sorridente. Tem
nas mãos uma carta que eu tinha deixado na bancada da cozinha. É de uma
revista de viagens,
Terras Desconhecidas, que aceitou a proposta, minha e de Simon, para fazer uma
reportagem fotográfica sobre culinária de aldeia na China.
Quando a carta chegou, no dia anterior, senti como se tivesse ganho na
loteria e perdido o bilhete. É uma peça cruel que os deuses da sorte, da
coincidência
e do azar me pregaram. Passei boa parte do dia e da noite remoendo os
acontecimentos, ensaiando diferentes cenários com Simon.
Imaginei-o examinando a carta e dizendo: "Meu Deus! Isto é
inacreditável! Então, quando vamos partir?"

#174

"Nós não vamos", eu diria. "Vou recusar o trabalho."


Então ele diria algo assim: "O que você está dizendo, vai recusar?"
E eu diria: "Como você pode pensar em irmos juntos?" Então talvez - e isto fez
o meu sangue ferver -, talvez sugerisse que ele poderia ir e levar um outro
fotógrafo.
E aí eu diria: "Não, você não vai, porque eu vou e vou levar outro
escritor, um escritor melhor:" E então tudo acabaria numa troca de insultos
sobre moral,
ética profissional e talento, e eu passei a maior parte da noite em claro
imaginando variações em torno disso.
- Ohhh! - Kwan estava dizendo, sacudindo a carta, toda feliz. - Você e
Simon, indo para a China! Se quiser, vou com vocês, como guia, como
intérprete, ajudar
vocês a encontrar um monte de pechinchas. É claro, pago minhas despesas. Há
muito tempo estou querendo voltar, ver minha tia, minha aldeia...
Eu a interrompi:
- Eu não vou.
- Ah? Não vai? Por que não?
- Você sabe.
- Eu sei?
Virei-me e olhei para ela.
- Simon e eu vamos nos divorciar. Lembra?
Kwan refletiu dois segundos antes de responder:
- Podemos ir como amigos! Por que não só amigos?
- Pare com isso, Kwan, por favor.
Ela me lança um olhar trágico.
- Tão triste, tão triste - ela geme, depois sai do escritório. - Como
duas pessoas famintas, brigam-brigam, ambas jogam arroz fora. Por que fazer
isso, por
quê?
Quando mostro a carta a Simon, ele fica estupefato. São mesmo lágrimas
o que estou vendo? Em todos os anos em que o conheci, nunca o vi chorar, nem
em filmes
tristes, nem mesmo quando me contou sobre a morte de Elza. Ele enxuga o rosto.
Finjo não notar.
- Meu Deus - ele diz -, aquilo que tanto desejamos aconteceu. Mas nós
não...

#175

Ficamos calados, como que para prestar uma homenagem silenciosa ao


nosso casamento. E então, num lance de coragem, respiro fundo e digo:
- Sabe, por mais doloroso que tenha sido, acho que a separação foi boa
para nós. Quer dizer, obrigou-nos a examinar nossas vidas separadamente, sem
presumir
que nossos objetivos sejam os mesmos. - Sinto que meu tom foi pragmático mas
não conciliatório demais.
Simon balança a cabeça e diz baixinho:
- É, eu concordo.
Tenho vontade de gritar: o que você quer dizer com isso, você
concorda? Todos esses anos nós nunca concordamos a respeito de nada, e agora
você concorda?
Mas não digo nada, e até fico satisfeita comigo mesma por ter sido capaz de
disfarçar meus sentimentos, de não mostrar o quanto estou magoada. Um segundo
depois,
sinto-me afogada em tristeza.
Ser capaz de refrear minhas emoções não é uma grande vitória - é a triste
prova da perda do amor.
Cada palavra, cada gesto está carregado de ambigüidade, nada pode ser
considerado por seu valor nominal. Falamos um com o outro de uma distância
segura,
fingindo que todos os anos em que ensaboamos as costas um do outro e urinamos
na frente um do outro nunca aconteceram. Não usamos os apelidos carinhosos, o
código
secreto ou os gestos que foram o símbolo da nossa intimidade, a prova de que
pertencíamos um ao outro.
Simon olha para o relógio.
- É melhor eu ir .Vou me encontrar com uma pessoa às sete horas.
Será que ele vai se encontrar com uma mulher? Tão depressa? Eu me vejo
dizendo:
- É, eu também tenho de me aprontar para um encontro. - Ele mal pisca e
eu fico vermelha, certa de que ele sabe que eu contei uma mentira patética.
Enquanto
nos dirigimos para a porta, ele olha para cima.
- Estou vendo que você se livrou finalmente daquele estúpido lustre. -
Ele examina o apartamento. - Isto aqui está diferente - mais simpático, eu
acho, e mais
silencioso.

#176

- Por falar em silêncio - digo, e conto a ele sobre Paul Dawson, o


terrorista da casa. Simon é a única pessoa que pode apreciar inteiramente o
desfecho.
- Dawson? - Simon sacode a cabeça, incrédulo. - Que filho da mãe. Por
que ele faria uma coisa dessas?
- Solidão - digo. - Raiva. Vingança. - E percebo a ironia do que
acabei de dizer, um atiçador espetando as cinzas do meu coração.
Depois que Simon vai embora, o apartamento parece terrivelmente
silencioso. Deito no tapete do meu quarto e olho para o céu pela bandeira da
janela. Penso
no nosso casamento. A trama dos nossos dezessete anos juntos foi desfeita com
tanta facilidade. Nosso amor era tão comum quanto os capachos de boas-vindas
idênticos
que havia nos subúrbios onde fomos criados. O fato de nossos corpos, nossos
pensamentos, nossos corações terem um dia se movido no mesmo ritmo nos fez
pensar que
éramos especiais.
E toda essa conversa da separação ter sido boa para nós - a quem estou
tentando enganar? Estou solta, sem amarras, sem pertencer a nada nem a
ninguém.
E então penso em Kwan, no quanto o amor dela por mim é mal empregado.
Nunca me dou o trabalho de fazer nada por ela a menos que seja motivada por
coerção
emocional dela e culpa da minha parte. Nunca ligo para ela de repente para
dizer: "Kwan, que tal irmos ao cinema ou jantar, só nós duas?" Nunca tenho o
prazer de
ser simplesmente simpática com ela. No entanto, ela está sempre sugerindo que
podemos ir juntas à Disneylândia, ao Reno ou à China. Eu espanto as sugestões
dela
como se fossem moscas incômodas, dizendo que detesto arriscar ou que o sul da
Califórnia está definitiva mente fora da lista de lugares que quero visitar a
curto
prazo. Ignoro o fato de que Kwan quer simplesmente passar mais tempo comigo,
que sou sua maior alegria. Oh, Deus, será que ela sofre como estou sofrendo
agora? Não
sou melhor que minha mãe! - relapsa com o amor. Não posso acreditar no quanto
tenho sido ignorante da minha própria crueldade.
Resolvo ligar para Kwan e convidá-la para passar o dia, talvez o fim
de semana, comigo. O lago Tahoe seria bom. Ela vai ficar radiante.

#177

Mal posso esperar para ouvir o que vai dizer. Ela não vai acreditar.
Mas, quando Kwan atende o telefone, não espera que eu explique por que
estou ligando.
- Libby-ah, esta tarde conversei com meu amigo Lao Lu. Ele concorda,
você tem de ir para China - você, Simon e eu, juntos. Este ano é o Ano do
Cachorro,
ano que vem do Porco, tarde demais. Como você pode deixar de ir? É o seu
destino esperando para acontecer!
Ela continua a falar, contrabalançando o meu silêncio com sua lógica
irrefutável.
- Você meio-chinesa, precisa ver China algum dia. O que você pensa? Se
não formos agora, talvez não haja outra chance! Alguns erros você pode
consertar,
este não pode. Então o que vai fazer? O que acha, Libby-ah?
Na esperança de que ela acabasse desistindo, digo:
- Está bem. Vou pensar no assunto.
- Oh, eu sabia que você ia mudar de idéia!
- Espere um instante. Não disse que ia. Disse que ia pensar.
Ela dispara:
- Você e Simon vão amar China, cem por cento garantido, principalmente
a minha aldeia. Changmian é tão lindo que você nem acredita. Montanha, água,
céu,
como paraíso e terra juntos. Tem coisas que deixei lá, sempre quis dar para
você... - Ela continua falando por mais cinco minutos, entoando as virtudes da
sua aldeia
antes de anunciar: - Oh-oh, a campainha está tocando. Ligo para você
mais tarde, Ok?
- Na verdade, fui eu que liguei para você.
- Oh? - A campainha torna a tocar. - Georgie! - Ela grita: - Georgie,
atende a porta! - Então ela grita - Virgie! Virgei - Será que a prima de
George, de
Vancouver, já está morando lá? Kwan volta ao telefone. - Espere um instante,
vou atender a porta. - Eu a ouço recebendo alguém e depois ela volta a falar
um tanto
sem fôlego. - Ok. Por que você ligou?
-Bem, queria perguntar uma coisa a você. - Arrependo-me imediatamente
do que ainda não disse. Em que estou me metendo?

#178

Penso no lago Tahoe, em me enfiar com Kwan num quarto de motel. - É um tanto
em cima da hora, então, se você estiver muito ocupada eu vou entender...
- Não-não, nunca muito ocupada. Se precisar de alguma coisa, peça.
Minha resposta sempre sim.
- Bem, estava imaginando, bem - e então digo depressa -, o que você
vai fazer amanhã na hora do almoço? Tenho de tratar de alguns assuntos perto
do seu trabalho.
Mas, se você estiver ocupada, podemos deixar para outro dia, não tem
importância.
- Almoço? - Kwan diz toda contente. - Oh! Almoço! - A voz dela soa
feliz de cortar o coração. Xingo a mim mesma por ter sido tão mesquinha com
meu presente.
E então escuto, perplexa, ela anunciar:
- Simon, Simon - Libby-ah me convidou para almoçar amanhã! -
Ouço Simon dizer:
- Certifique-se de que ela a leve a um lugar bem caro.
- Kwan? Kwan, o que Simon está fazendo aí?
- Veio jantar. Ontem eu convidei você. Você disse que estava ocupada.
Não é tarde demais, se quiser vir, tenho comida extra.
Olho para o relógio. Sete horas. Então este era o compromisso dele.
Quase pulo de alegria.
- Obrigada - digo a ela. - Mas estou ocupada esta noite. - A mesma
desculpa de sempre.
- Sempre ocupada demais - ela responde. O mesmo lamento de sempre.
Esta noite, cuido para que minha desculpa não seja uma mentira. Como
penitência, ocupo-me fazendo uma lista de tarefas desagradáveis que tenho
adiado, uma
das quais é mudar o meu nome. Isto exige mudar minha carteira de motorista,
cartões de crédito, título de eleitor, conta bancária, passaporte, assinaturas
de revistas,
sem mencionar informar aos meus amigos e aos meus clientes. Também significa
decidir que sobrenome vou usar. Laguni? Yee?
Mamãe sugeriu que eu mantivesse o nome Bishop.
- Por que voltar para Yee? - ponderou. - Não tem nenhum outro Yee de
suas relações neste país. Então quem vai se importar? - Não lembrei a mamãe
sua promessa
de honrar o nome Yee.

#179

À medida que penso mais sobre o meu nome, percebo que nunca tive
nenhum tipo de identidade que combinasse comigo, pelo menos desde os cinco
anos, quando
minha mãe mudou o nosso nome para Laguni. Ela não se deu o trabalho de mudar o
nome de Kwan. O nome de Kwan permaneceu sendo Li. Quando Kwan veio para a
América,
mamãe disse que era tradição chinesa as meninas conservarem o sobrenome das
mães. Mais tarde, admitiu que nosso padrasto não quis adotar Kwan porque ela
era quase
adulta. Além disso, ele não quis ser legalmente responsável por qualquer
problema que ela pudesse causar como comunista.
Olivia Yee. Repito várias vezes este nome em voz alta. Parece
estranho, como se eu tivesse me tornado totalmente chinesa, como Kwan. Isto me
incomoda um
pouco. O fato de ter sido obrigada a crescer junto de Kwan era provavelmente
um dos motivos pelos quais nunca soube quem era ou quem queria me tornar. Ela
era um
modelo para múltiplas personalidades.
Ligo para Kevin para saber a opinião dele acerca do meu novo nome.
- Nunca gostei do nome Yee - ele confessa. - As crianças costumavam
gritar "Ei, Yee! Ia, lu, iee-ai-iee-ai-oh."
- O mundo mudou - digo. - Está na moda ser étnico.
- Mas usar um distintivo chinês não vai garantir pontos extras para
você - Kevin diz. - Cara, eles estão cortando os asiáticos, não abrindo mais
espaço para
eles. Acho que você estará melhor com Laguni. - Ele ri. - Que diabo, algumas
pessoas pensam que Laguni é mexicano. Mamãe pensou.
- Laguni não me parece certo. Não pertencemos realmente à linhagem
Laguni.
- Ninguém pertence. - Kevin responde. - É o sobrenome de um órfão.
- Do que é que você está falando?
- Quando estive na Itália há dois anos, tentei encontrar algum Laguni.
Descobri que não passava de um nome inventado que as freiras davam aos órfãos.
Laguni
- como lagoa, isolado do resto do mundo. O avô de Bob era órfão. Somos
parentes de um bando de órfãos na Itália.
- Por que você nunca nos contou isto antes?

#180

- Contei à mamãe e ao Tommy. Acho que esqueci de contar para você


porque - bem, achei que você não era mais uma Laguni. De qualquer maneira,
você e Bob não
se davam muito bem. Para mim, Bob é o único pai que conheci. Não me lembro de
nada sobre o nosso verdadeiro pai. Você lembra?
Tenho algumas lembranças dele: voar para os braços dele, vê-lo abrir
as garras de um caranguejo, passear sentada nos ombros dele no meio de uma
multidão.
Isto não é o bastante para homenagear o seu nome? Não está na hora de me
sentir ligada ao nome de alguém?

Ao meio-dia, vou até a drogaria apanhar Kwan. Ela leva vinte minutos me
apresentando a todo mundo da loja - o farmacêutico, o outro balconista, seus
fregueses, todos
são "seus favoritos". Escolho um restaurante tailandês na Castro, de onde
posso vigiar O tráfego de uma mesa na janela enquanto Kwan mantém uma conversa
unilateral.
Hoje eu vou levar tudo na esportiva; ela pode falar sobre a China, o divórcio,
o fato de eu fumar demais, o que quiser. Hoje é o meu presente para Kwan.
Ponho os óculos e estudo o cardápio. Kwan analisa o restaurante, os
cartazes de Bangcoc, os leques roxos e dourados pendurados nas paredes.
- Simpático. Bonito - ela diz, como se a tivesse levado ao lugar mais
elegante da cidade. Ela nos serve de chá. - Então! - proclama. - Hoje você não
está
ocupada demais.
- Só estou tratando de coisas pessoais.
- Que coisas pessoais?
- Você sabe, renovando meu cartão de estacionamento, mudando meu nome,
este tipo de coisa.
- Mudando de nome? O que é mudar de nome? - Ela estende o guardanapo
no colo.
- Tenho de fazer tudo isso para trocar o meu sobrenome para Yee. É uma
confusão, ir à DMV, ao banco, à prefeitura... O que foi?
Kwan está sacudindo vigorosamente a cabeça. O rosto dela está
congestionado. Será que ela está engasgada?

#181

- Você está bem?


Sacode as mãos, incapaz de falar, muito agitada.
- Ai meu Deus! - Tento recordar como fazer a manobra de Heimlich.
Mas agora Kwan está fazendo sinal para eu me sentar. Engole o
chá, depois geme:
- Ai-ya. Libby-ah, agora sinto ter de contar uma coisa. Mudar nome
para Yee, não faça isso.
Eu me preparo. Sem dúvida ela vai mais uma vez dizer que eu e Simon
não devemos nos divorciar.
Ela se inclina para a frente como uma espiã.
- Yee - sussurra - não é o nome verdadeiro de Ba.
Encosto-me na cadeira, o coração disparado.
- O que é que você está dizendo?
- Senhoras - o garçom diz -, já decidiram?
Kwan aponta para um item do cardápio, perguntando primeiro como se
pronuncia aquilo.
- Está fresco? - pergunta. - O garçom balança afirmativamente a
cabeça, mas não com o entusiasmo que Kwan exige. Ela aponta para outro item. -
Macio?
O garçom balança a cabeça.
- Qual deles melhor?
Ele sacode os ombros.
- Tudo está gostoso - ele diz. Kwan olha para ele desconfiada, depois
pede o macarrão tailandês.
Quando o garçom se afasta, eu pergunto:
- O que você estava dizendo?
- Às vezes o cardápio diz fresco - não fresco! - reclama. - Se a
pessoa não perguntar, eles talvez sirvam restos de ontem.
- Não, não, não me referia à comida. O que você estava dizendo sobre o
nome de papai?
- Oh! Sim-sim. - Arqueia os ombros e torna a fazer sua pose de espiã.
- O nome de Ba. Yee não é o nome dele, não. Isto é verdade, Libby -ah! Só
estou
contando para você não passar o resto da vida com nome errado. Por que alegrar
antepassados que não são seus?
- Do que é que você está falando? Como o nome dele podia não ser Yee?

#182

Kwan olha de um lado para o outro, como se estivesse para revelar a


identidade dos chefões das drogas.
- Agora vou contar uma coisa, ah. Não conte a ninguém, promete, Libby-
ah?
Concordo, relutante mas já vencida. E então Kwan começa a falar em
chinês, a língua dos fantasmas da nossa infância.

Estou dizendo a verdade, Libby-ah. Ba tomou o nome de outra pessoa. Ele roubou
o destino de um homem de sorte.
Durante a guerra, foi quando isto aconteceu, quando Ba estava na
Universidade Nacional de Guangxi, estudando física. Isto foi em Liangfeng,
perto de Guilin.
Ba era de uma família pobre, mas o pai dele o mandou para um Internato de
missionários quando era menino. Não precisava pagar nada, só prometer amar
Jesus. Por isso
é que o inglês de Ba era tão bom.
Não me lembro de nada disto. Só estou contando a você o que Li Bin-bin,
minha tia, disse. Nessa ocasião, minha mãe, Ba e eu morávamos num quartinho em
Liangfeng,
perto da universidade. De manhã, Ba assistia às aulas. De tarde, trabalhava
numa fábrica, montando componentes de rádio. A fábrica pagava a ele pelas
peças prontas,
então ele não fazia muito dinheiro. Minha tia disse que Ba era mais ágil com a
cabeça do que com os dedos. À noite, Ba e seus colegas dividiam o dinheiro
para comprar
querosene para um lampião. Nas noites de lua cheia, eles não precisavam de
lampião. Podiam sentar do lado de fora e estudar até de manhã. Era isso que eu
fazia também
quando estava crescendo. Você sabia disto? Pode perceber como na China a lua
cheia além de linda é barata?
Uma noite, quando Ba estava voltando para casa depois de estudar, um
bêbado saiu de um beco e o fez parar. Ele sacudiu um paletó.
- Este paletó - ele disse - está na minha família há muitas gerações.
Mas agora preciso vendê-lo. Olhe para mim, sou apenas um homem comum de uma
centena de
sobrenomes. De que me servem roupas elegantes?
Ba olhou para o paletó. Era feito de uma fazenda excelente, cortado e
costurado em estilo moderno. Você tem de lembrar, Libby-ah, que isto foi em
1948, quando
os nacionalistas e os comunistas estavam brigando na China.

#183

Quem teria dinheiro para comprar um paletó daqueles? Alguém importante, um


funcionário graduado, um homem perigoso que conseguiu dinheiro aceitando
propinas de pessoas
assustadas. O nosso Ba não tinha algodão no cérebro. Hnh! Ele sabia que o
bêbado tinha roubado o paletó e que ambos podiam perder suas cabeças
negociando uma mercadoria
daquelas. Mas, quando Ba pôs a mão naquele paletó, sentiu-se como uma mosca
presa numa teia de aranha. Não conseguiu soltá-lo. Uma nova sensação o
percorreu. Ah!
Sentir as costuras do paletó de um homem rico - pensar que aquilo era o mais
perto que chegaria de uma vida melhor. E então aquela sensação perigosa levou
a um
desejo perigoso, e este desejo levou a uma idéia perigosa.
Ele gritou para o bêbado:
- Sei que este paletó é roubado porque conheço o dono. Rápido! Diga-me
onde o conseguiu ou chamo a polícia! - O ladrão largou o paletó e fugiu.
De volta ao nosso quartinho, Ba mostrou o paletó à minha mãe. Ela mais
tarde me contou como ele enfiou os braços nas mangas, imaginando que o poder
do seu
antigo dono agora corria pelo seu corpo. Num dos bolsos encontrou um par de
óculos de lentes grossas. Colocou-os e estendeu um dos braços, e na sua cabeça
uma centena
de pessoas pularam e se curvaram. Ele bateu palmas de leve e uma dúzia de
empregados saiu dos seus sonhos para lhe dar de comer. Ele bateu no estômago,
satisfeito
com sua refeição de faz-de-conta. E foi então que Ba sentiu uma outra coisa.
Ei, o que é isto? Havia uma coisa dura por dentro do forro do paletó.
Minha mãe usou sua tesourinha para abrir a costura. Libby-ah, o que eles
encontraram
deve ter feito suas cabeças girarem como nuvens numa tempestade. De dentro do
forro caíram vários papéis - documentos oficiais para imigrar para a América!
Na primeira
página havia um nome escrito em chinês: Yee Jun. Embaixo, a tradução em
inglês: Jack Yee.
Você tem de imaginar, Libby-ah, durante a guerra civil papéis como
aqueles valiam a vida e a fortuna de muitos homens. Nas mãos trêmulas do nosso
Ba havia
certidões escolares, um atestado de quarentena, um visto de estudante e uma
carta de matrícula na Universidade Lincoln de San Francisco, com um ano de
estudo já
pago.

#184

Ele olhou dentro do envelope: havia uma passagem só de ida na American


President Lines e duzentos dólares americanos. E havia também o seguinte: uma
apostila para
passar no exame da imigração ao chegar.
Oh, Libby-ah, aquilo era um negócio muito sério. Você entende o que
estou dizendo? Naquela época, o dinheiro chinês não valia nada. Aquele homem
Yee devia
ter comprado aqueles papéis por um monte de ouro e favores terríveis. Será que
ele tinha traído segredos para os nacionalistas? Será que tinha vendido os
nomes dos
líderes do Exército Popular de Libertação?
Minha mãe ficou com medo. Disse a Ba para jogar o paletó no rio Li. Mas
Ba estava com um olhar de cachorro louco. Ele disse:
- Eu posso mudar o meu destino. Posso me tornar um homem rico. - Ele
mandou minha mãe ir morar com a irmã dela em Changmian e esperar. - Quando eu
chegar na
América, mando buscar você e nossa filha, prometo.
Minha mãe olhou para a foto do homem que Ba ia se tornar, Yee Jun, Jack
Yee. Era um homem magro, sério, só dois anos mais velho que Ba. Não era
bonito, não
como Ba. Este homem Yee tinha cabelo curto, um rosto mau, e usava óculos
grossos sobre os olhos frios. Pode-se ver o coração de uma pessoa pelos seus
olhos, e minha
mãe disse que esse homem Yee parecia o tipo de pessoa que diria "Saiam do
caminho, seus vermes miseráveis!"
Aquela noite minha mãe viu Ba se transformar nesse homem Yee vestindo as
roupas dele, cortando o cabelo. Ela o viu pôr os óculos grossos. E, quando ele
olhou
para ela, ela viu os olhos dele pequenos, tão frios. Ele já não tinha mais
sentimentos amorosos por minha mãe. Ela disse que foi como se ele tivesse se
tornado aquele
homem Yee, o homem da foto, um homem arrogante e poderoso - ansioso para se
livrar do passado, com pressa de começar o seu novo destino.
Então foi assim que Ba roubou o nome dele. Quanto ao nome verdadeiro de
Ba, não sei qual era. Eu era tão pequena, e então, como você já sabe, minha
mãe morreu.

#185

Você tem sorte de que nenhuma tragédia semelhante tenha ocorrido com você.
Mais tarde, minha tia se recusou a me contar o nome verdadeiro de Ba porque
ele tinha
abandonado a irmã: dela. Esta foi a vingança de minha tia. E minha mãe também,
não quis me contar, nem depois de morta. Mas eu muitas vezes imaginei qual
seria o
nome dele. Convidei Ba algumas vezes para vir do Mundo de Yin me visitar. Mas
outros amigos Yin disseram que ele está preso em outro lugar, um lugar cheio
de neblina
onde as pessoas acreditam que suas mentiras são verdades. Isto não é triste,
Libby-ah? Se eu pudesse descobrir seu nome verdadeiro, contaria para ele.
Então ele
poderia ir para o Mundo de Yin, pedir desculpas à minha mãe, muitas desculpas,
e viver em paz com nossos antepassados.
É por isso que você tem de ir para a China, Libby-ah. Quando vi aquela
carta ontem, disse para mim mesma: este é o seu destino esperando para
acontecer!
As pessoas em Changmian podem se lembrar ainda do nome dele, minha tia, por
exemplo, tenho certeza. O homem que se tornou
Yee, era assim que a Grande Ma, minha tia, sempre o chamava. Pergunte à Grande
Ma quando chegar lá. Pergunte a ela qual era o nome verdadeiro de Ba.
Ah! O que estou dizendo! Você não vai poder perguntar. Ela não fala
mandarim. Ela é tão velha que nunca foi à escola aprender a língua comum do
povo. Fala
o dialeto de Changmian, não hakka, nem mandarim, algo entre os dois, e só
gente da aldeia sabe falar esse dialeto. Além disso, você tem de ser muito
esperta com
as perguntas sobre o passado, senão ela vai correr com você como um pato doido
bicando os seus pés. Conheço o jeito dela. Que gênio ela tem! Não se preocupe,
entretanto,
eu vou com você. Já prometi. Nunca esqueço minhas promessas. Você e eu, nós
duas, podemos trocar de volta o nome do nosso pai. Juntas nós podemos mandá-
lo finalmente
para o Mundo de Yin.
E Simon! Ele tem de ir também. Assim, vocês ainda podem fazer o artigo
para a revista, conseguir algum dinheiro. Além disso, precisamos dele para
carregar
as malas. Tenho de levar um monte de presentes. Não posso ir para casa de mãos
vazias.

#186

Virgie pode cozinhar para Georgie, a comida dela não é muito ruim. E Georgie
pode tomar conta do nosso cachorro, não precisa pagar a ninguém.
Sim, sim, nós três juntos, Simon, você e eu. Acho que este é o modo
mais prático, o melhor modo de você mudar o seu nome.
Ei, Libby-ah, o que você acha?

#187

12
A MELHOR ÉPOCA PARA SE
COMER OVOS DE PATA

Kwan não discute para conseguir o que quer. Ela usa métodos mais
eficazes, uma combinação da velha tortura chinesa da água e da isca e anzol
americanos.
- Libby-ah -diz. - Que mês vamos China, ver minha aldeia?
- Eu não vou, lembra?
- Oh, certo-certo. OK, que mês você acha que eu devo ir? Setembro,
provavelmente quente demais. Outubro, muitos turistas. Novembro, nem muito
quente nem
muito frio, talvez seja a melhor época.
- Você é quem sabe.
No dia seguinte, Kwan diz:
- Libby-ah, Georgie não pode ir, não tem direito ainda a tempo de
férias. Você acha que Virgie e Ma vão querer ir comigo?
- Claro, por que não? Pergunte a elas.
Uma semana depois, Kwan diz:
- Ai-ya! Libby-ah! Já comprei três passagens. Agora Virgie tem emprego
novo, Ma tem namorado novo. Ambas dizem, desculpe, não posso ir. E agente de
viagem,
ela também diz sinto muito, não posso devolver dinheiro. - Ela me lança um
olhar de agonia. - Ai-ya, Libby-ah, o que eu faço?
Penso a respeito. Podia fingir que tinha caído no jogo dela. Mas não
consigo fazer isso.

#188

- Vou ver se encontro alguém para ir com você - digo.


De noite, Simon me telefona.
- Estive pensando na viagem à China. Não quero que a nossa separação
seja o motivo de você perder esta oportunidade. Leve outro escritor - Chesnick
ou Kelly,
ambos são ótimos em reportagens de viagens. Eu falo com eles se você quiser.
Fico estarrecida. Ele vive me convencendo a ir com Kwan, usar a volta
dela para casa como um ângulo pessoal para a história. Fico remoendo na cabeça
todas
as possíveis nuances de sentido do que ele está dizendo. Talvez haja uma
chance de nos tornarmos amigos, de recuperar a
camaradagem que tínhamos quando nos conhecemos. Enquanto conversamos no
telefone, lembro-me do que nos atraiu inicialmente um pelo outro - o modo como
nossas idéias
cresciam em lógica ou hilaridade ou paixão à medida que conversávamos. E é
então que sinto a tristeza pelo que perdemos ao longo dos anos: a excitação e
a admiração
por estarmos no mundo ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
- Simon - digo no final de duas horas de conversa -, fico realmente
grata por isso... acho que seria ótimo se ficássemos amigos um dia.
- Nunca deixei de ser seu amigo - ele diz.
E nesse momento eu deixo de lado qualquer censura.
- Bem, sendo assim, por que você não vai para a China também?
No avião, começo a procurar por presságios. Isto porque Kwan disse, quando
embarcamos no aeroporto:
- Você, eu, Simon - indo para a China! Unindo nossos destinos
finalmente!
E, eu penso, Destino como no "destino misterioso de Amelia Earhart"
.Destino com sua conotação de fatalidade. E, para piorar, a companhia aérea
chinesa que
Kwan escolheu por causa do desconto no preço da passagem sofreu três desastres
nos últimos seis meses, dois deles ao pousar em Guilin, para onde estávamos
indo,
depois de uma escala de quatro horas em Hong-Kong. Minha confiança na
companhia sofreu outro baque quando embarcamos.

#189

As aeromoças chinesas nos receberam usando boinas e saias escocesas, uma moda
inexplicável que me faz questionar a habilidade de nossos responsáveis em
lidar com
seqüestradores, perda de peças do motor e pousos de emergência no oceano.
Enquanto Kwan, Simon e eu nos esprememos para passar pelo corredor
estreito, noto que não há uma única pessoa branca a bordo, a não ser que se
incluíssem
Simon e eu. Será que isto quer dizer alguma coisa?
Como muitos dos chineses a bordo, Kwan leva uma sacola de presentes em
cada mão. Além da mala cheia de presentes que foi despachada junto com o resto
da
bagagem. Imagino o noticiário de televisão do dia seguinte: "Uma garrafa
térmica, potinhos de plástico para guardar comida, pacotes de ginseng de
Wisconsin - tudo
isto estava no meio dos detritos que cobriram a pista depois do trágico
acidente aéreo que matou Horatio Tewksbury III de Atherton, que estava sentado
na primeira
classe, e quatrocentos chineses que sonhavam em voltar, depois de uma
trajetória de sucessos, à terra natal."
Quando vemos os nossos assentos, dou um gemido. Fileira do centro,
espremidos no meio, com gente dos dois, lados. Uma velha, sentada na outra
ponta do corredor,
olha zangada para nós e depois tosse. Ela reza alto para uma divindade
qualquer para que ninguém tome os três lugares ao lado dela, diz que tem uma
doença muito
ruim e que precisa de espaço para deitar e dormir. A tosse dela fica mais
violenta. Infelizmente para ela, a divindade devia ter saído para o almoço,
porque nós
nos sentamos.
Quando o carrinho de bebidas finalmente aparece, peço alívio na forma
de um gim-tônica. A aeromoça não entende.
- Gim-tônica - repito, e depois digo em chinês: - Com uma rodela de
limão, se você tiver.
Ela consulta sua colega, que também dá de ombros, sem entender.
- Non tem scotch, non? - eu tento. - Você tem scotch?
Elas riem da piada.

#190

É claro que têm scotch, tenho vontade de gritar. Olhem para essas
roupas ridículas que vocês estão usando!
Mas "scotch" não é uma palavra que eu tenha aprendido a dizer em
chinês, e Kwan não está disposta a me ajudar. De fato, ela parece bem
satisfeita com a minha
frustração e com a confusão da aeromoça. Escolho uma Diet Coke.
Enquanto isso, Simon está sentado ao meu lado, brincando de Simulador
de Vôo no seu laptop.
- Ô-ô-ô! Merda. - Isto é acompanhado pelos ruídos de um desastre
seguido de incêndio. Ele se vira para mim. - Capitão Bishop diz que as bebidas
são por conta
da casa.
Durante toda a viagem, Kwan parece tonta de felicidade. Aperta o meu
braço a toda hora e sorri. Pela primeira vez em mais de trinta anos ela vai
estar em
solo chinês, em Changmian, a aldeia onde viveu até os dezoito anos. Vai ver
sua tia, a mulher que ela chama de Grande Ma, que a criou e que, segundo Kwan,
a maltratou
horrivelmente, beliscando suas bochechas com tanta força que as deixou com
cicatrizes em forma de lua crescente.
Ela também vai reencontrar velhos colegas de escola, pelo menos os que
sobreviveram à Revolução Cultural, que começou depois que ela partiu. Está
louca para
impressionar os amigos com seu inglês, sua carteira de motorista, os retratos
do seu gato sentado no sofá estampado de flores que ela comprou recentemente
numa liquidação
- "cinqüenta por cento mais barato por causa de buraquinho, talvez nem dê para
ver".
Fala em visitar o túmulo da mãe, para se certificar de que está limpo.
Vai me levar a um pequeno vale onde um dia enterrou uma caixa cheia de
tesouros. E,
como sou sua irmã querida, quer me mostrar o esconderijo de sua infância, uma
caverna que contém uma fonte mágica.
A viagem também me traz uma porção de novidades. É a primeira vez que
vou à China. A primeira vez, desde que eu era pequena, que Kwan será minha
companhia
constante por duas semanas. A primeira vez que Simon e eu viajamos juntos e
dormimos em quartos separados.
Agora, espremida no meu assento entre Simon e Kwan, percebo a loucura
que é a minha vinda - a tortura física de estar em aviões e aeroportos a quase
vinte
e quatro horas, o estresse emocional de viajar com as pessoas que são a fonte
de minhas maiores dores de cabeça e temores.

#191

E no entanto, para o bem do meu coração, é isto que tenho de fazer.


Evidentemente, tenho motivos pragmáticos para vir - o artigo da revista,
descobrir o nome do
meu pai. Mas minha principal motivação é o medo do arrependimento. Se eu não
viesse, um dia podia olhar para trás e imaginar: e se eu tivesse ido?
Talvez Kwan tenha razão. O destino é o responsável pela minha vinda. O
destino não possui qualquer lógica, você não pode discutir com ele do mesmo
modo que
não pode discutir com um furacão, um terremoto, um terrorista. Destino é o
outro nome de Kwan.

Estamos a dez horas da China. Meu corpo já está confuso, sem saber se é dia ou
noite. Simon está ressonando, eu não preguei olhos e Kwan está acordando.
Ela boceja. Em um segundo, está alerta e inquieta. Ajeita o
travesseiro.
- Libby-ah, no que você está pensando?
- Oh, você sabe, trabalho.
Antes da viagem, preparei um itinerário e uma checklist. Levei em
conta diferença de fuso horário, orientação, escolha de locação, a
possibilidade de que
a única iluminação disponível fosse azul fluorescente. Escrevi lembretes para
fotografar pequenos armazéns e grandes supermercados, barracas de frutas e
hortas,
fogões e utensílios de cozinha,
temperos e óleos. Também passei muitas noites em claro, preocupada com
logística e orçamento. A distância até Changmian é um grande problema, três a
quatro horas
de Guilin, segundo Kwan. O agente de viagem nem conseguiu localizar Changmian
no mapa. Ele reservou um hotel para nós em Guilin, dois quartos, com diária de
sessenta
dólares cada. Pode ser que haja lugares mais perto e mais baratos, mas teremos
de procurar depois que chegarmos.
- Libby-ah - Kwan diz. - Em Changmian, as coisas podem não ser muito
rebuscadas.

#192

- Está ótimo. - Kwan já me disse que os pratos são simples, como os


que ela prepara, não como os que são servidos nos restaurantes chineses mais
caros. -
Na verdade - tranqüilizo-a -, eu não quero fotografar nada rebuscado.
Acredite, não estou esperando nem champanhe e nem caviar.
- Cavi-ah, o que é isso?
- Você sabe, ovas de peixe.
- Oh! Tem, tem. - Fica aliviada. - Ova de cavi, ova de caranguejo, ova
de camarão, ovo de galinha - tudo tem! Também, ovo de pata de mil anos. É
claro, não
realmente mil anos, só um, dois, três anos no máximo... Wah! Que bobagem! Eu
sei onde encontrar ovo de pata mais velho que isso para você. Há muito tempo,
eu escondi
alguns.
- É mesmo? - Isto parece promissor, um detalhe simpático para o
artigo. - Você os escondeu quando era menina?
- Quando tinha vinte anos.
- Vinte? ...Você já estava nos Estados Unidos com essa idade.
Kwan sorri misteriosamente.
- Não desta vez vinte. Outra vez. - Ela encosta a cabeça no encosto da
poltrona. - Ovo de pata - ahh, tão bom... Srta. Bandeira, ela não gostava
muito. Mais
tarde, quando veio a fome, comia qualquer coisa, rato, gafanhoto, cigarra. Ela
acha que yadan de mil anos tem gosto melhor que isso... Quando estivermos em
Changmian,
Libby-ah, mostro onde nós os escondemos. Talvez alguns ainda estejam lá. Você
e eu vamos procurar, ah?
Concordo. Ela parece tão contente. Pela primeira vez, seu passado
imaginário não me aborrece. De fato, a idéia de procurar ovos de faz-de-conta
na China
me parece atraente. Consulto o relógio. Mais doze horas e estaremos em Guilin.
- Mmm - Kwan murmura. - Yadan...
Vejo que Kwan já está lá, no seu mundo ilusório de outrora.
#193

Ovos de pata, eu gostava tanto deles que me tornei uma ladra. Antes do café,
todo dia menos domingo, eu os roubava. Eu não era uma ladra horrível, como o
General
Capa. Só tirava o que não ia fazer falta a ninguém, um ou dois ovos,
algo assim. De qualquer modo, os Adoradores de Jesus não os queriam. Eles
gostavam mais
de ovo de galinha. Não sabiam que ovos de pata eram uma grande iguaria - muito
caros se você os comprasse em Jintian. Se eles soubessem quanto custava um ovo
de
pata, iam querer comê-los o tempo todo. E aí? Pior para mim.
Para fazer ovos de pata de mil anos, você tem de começar com ovos
muito frescos, senão, deixe-me pensar... senão... Não sei, já que só usava
ovos frescos.
Talvez os velhos tenham ossos e bicos crescendo lá dentro. Bem, eu punha esses
ovos bem fresquinhos dentro de uma jarra de água de cal e sal. O pó de cal eu
economizava
ao lavar roupa. O sal era outra questão, não era barato como hoje em dia. Para
minha sorte, os estrangeiros tinham aos montes. Queriam que a comida deles
desse a
impressão de ter sido mergulhada no mar. Eu também gosto de coisas salgadas,
mas não tudo. Quando eles se sentam para comer, revezam-se dizendo: "Passe o
sal, por
favor" e colocam mais sal ainda.
Eu roubava o sal da cozinheira. O nome dela era Ermei, Segunda Irmã, uma
filha a mais numa família de nenhum filho. A família a deu de presente para os
missionários
para não ter de casá-la e pagar um dote. Ermei e eu tínhamos um pequeno
negócio clandestino. Na primeira semana dei um ovo para ela. Ela então
despejou um punhado
de sal na palma da minha mão. Na semana seguinte ela quis dois ovos em troca
da mesma quantidade de sal! Aquela garota sabia pechinchar.
Um dia, o Dr. Tarde Demais viu a nossa troca. Fui até a passagem onde
lavava roupa. Quando me virei, ele estava lá, apontando para o montinho branco
na palma
da minha mão. Tive de pensar depressa:
- Ah, isto - eu disse. - Para manchas. - Não estava mentindo. Precisava
tirar as manchas das cascas dos ovos. O Dr. Tarde Demais franziu a testa, sem
entender
o meu chinês. o que eu podia fazer?

#194

Joguei todo aquele precioso sal num balde de água fria. Ele ainda estava
olhando. Então tirei algo da cesta de roupa de baixo das mulheres, atirei no
balde e comecei
a esfregar. - Está vendo? - eu disse, e ergui uma peça de roupa salgada. Wah!
Eu estava segurando a calcinha da Srta. Camundongo, manchada no fundilho do
sangue
da sua menstruação. O Dr. Tarde Demais - ha, você precisava ver a cara dele!
Mais vermelha do que aquelas manchas. Depois que ele foi embora, tive vontade
de chorar
por ter estragado o meu sal. Mas, quando pesquei a calcinha da Srta.
Camundongo - ah? -, vi que tinha dito a verdade! A mancha de sangue tinha
sumido! Era um milagre
de Jesus! Porque, daquele dia em diante, eu podia pegar todo o sal que
quisesse, um punhado para as manchas, outro para os ovos. Não precisava pedir
a Ermei escondido.
Mas de vez em quando eu dava um ovo para ela.
Eu punha a cal, o sal e os ovos em jarras de barro. As jarras eu
conseguia de um mascate que só tinha uma orelha, chamado Zeng, na via pública
que ficava ao
lado da passagem. Um ovo trocado por uma jarra que não servia para guardar
óleo. Ele sempre tinha um bocado de jarras rachadas. Isto me fazia pensar que
o homem
era ou muito desastrado ou louco por ovos de pata. Mais tarde vim a saber que
ele era louco por mim! É verdade! Sua única orelha, meu único olho, suas
jarras rachadas,
meus ovos saborosos - talvez por isso ele achasse que formávamos um bom par.
Ele não disse que queria se casar comigo, não tão abertamente. Mas eu sabia
que ele
pensava nisso, porque uma vez me deu uma jarra que nem estava rachada. E,
quando chamei a atenção dele para o fato, ele pegou uma pedra, quebrou um
pedacinho da
boca da jarra e a devolveu para mim. De todo modo, foi assim que consegui
jarras e um namoro.
Depois de várias semanas, a cal e o sal penetravam nas cascas. As claras
dos ovos ficavam firmes e verdes, as gemas duras e pretas. Eu sabia disso
porque às
vezes comia um para ter certeza de que os outros estavam prontos para serem
cobertos de lama. A lama eu não precisava roubar. No jardim do Mercador
Fantasma conseguia
bastante.

#195

Enquanto os ovos cobertos de lama ainda estavam úmidos, eu os embrulhava em


papel, páginas arrancadas dos panfletos chamados "Boas Novas". Enfiava os ovos
num pequeno
forno que tinha construído com tijolos. Não roubei os tijolos. Eles tinham
caído do muro e estavam rachados. Tapei cada rachadura com cola tirada de uma
planta venenosa.
Assim o sol podia passar pelas rachaduras, os insetos, ficavam grudados e não
podiam comer meus ovos. Na semana seguinte, quando a camada de barro estava
dura, eu
tornava a pôr os ovos na jarra. Enterrava-os no canto noroeste do jardim do
Mercador Fantasma. Antes do fim da minha vida, eu tinha dez fileiras de
jarras, com dez
passos de comprimento. É lá que eles ainda podem estar. Tenho certeza de que
não comemos todos. Eu guardei tantos.
Para mim, um ovo de pata era bom demais para se comer. Aquele ovo podia
ter se tornado um patinho. O patinho podia ter se tornado um pato. Aquele pato
podia
ter alimentado vinte pessoas na Montanha do Cardo. E, na Montanha do Cardo,
raramente comíamos um pato. Se eu comesse um ovo - e às vezes comia -, via
vinte pessoas
famintas. Então como podia ficar satisfeita? Se eu tinha vontade de comer um
ovo, mas em vez de comer eu o guardava, isto me satisfazia, uma menina que um
dia não
teve nada. Eu era econômica e não gananciosa. Como disse, de vez em quando eu
dava um ovo para Ermei, para Lao Lu também.
Lao Lu também guardava os seus ovos. Enterrava-os debaixo da cama na
portaria, onde ele dormia. Assim, dizia, ele podia sonhar com o gosto deles um
dia. Ele
era como eu, esperando pela melhor época para comer aqueles ovos. Não sabíamos
que a melhor época mais tarde seria a pior.

Aos domingos, os Adoradores de Jesus sempre tomavam um grande café da manhã.


Este era o costume: oração longa, depois ovos de galinha, fatias grossas de
carne de
porco, bolos de milho, melancia, água fresca do poço, depois outra oração
longa. Os estrangeiros gostavam de comer coisas frias e quentes junto, muito
pouco saudável.
No dia a que estou me referindo agora, o General Capa comeu muito.

#196

Depois ele se levantou da mesa, fez uma cara feia e anunciou que estava com
dor de estômago, era uma pena, mas não ia poder visitar a Casa de Deus naquela
manhã.
Foi isso que Yiban nos disse.
Então fomos para a reunião de Jesus, e, enquanto eu estava sentada
no banco, notei que a Srta. Bandeira não conseguia parar de bater com o pé no
chão.
Parecia ansiosa e feliz. Assim que a cerimônia terminou, ela pegou sua caixa
de música e foi para o quarto.
Durante a refeição do meio-dia, composta de sobras frias, o General Capa
não apareceu na sala. Nem a Srta. Bandeira. Os estrangeiros olharam para a
cadeira
dele vazia, depois para a dela. Não disseram nada, mas eu sabia o que estavam
pensando, mm-hmm. Depois os estrangeiros foram para os seus quartos para
dormir a sesta.
Deitada no meu colchão de palha, ouvi a caixa de música tocando aquela canção
que eu tinha passado a detestar tanto. Ouvi a porta do quarto da Srta.
Bandeira abrir
e depois fechar. Tapei meus ouvidos com as mãos. Mas na minha mente podia
vê-la esfregando o estômago doente de Capa. Finalmente, a música parou.
Acordei ouvindo o cavalariço gritar enquanto corria pela passagem do
quintal:
- A mula, o búfalo, a charrete! Sumiram. - Saímos todos dos quartos.
Então Ermei veio correndo da cozinha, gritando:
- Um pernil de porco e um saco de arroz. - Os Adoradores de Jesus
estavam confusos, gritando para a Srta. Bandeira vir traduzir para o inglês as
palavras em
chinês. Mas a porta do quarto dela continuou fechada. Então Yiban contou aos
estrangeiros o que o cavalariço e a cozinheira tinham dito. Então todos os
Adoradores
de Jesus saíram correndo para os seus quartos. A Srta. Camundongo saiu,
chorando e beliscando o pescoço; ela tinha ficado sem o medalhão com o cabelo
do seu amado
morto. O Dr. Tarde Demais não conseguiu achar sua maleta de remédios. O pastor
e a Sra. Amém ficaram sem um pente de prata, uma cruz de ouro e todo o
dinheiro da
missão para os próximos seis meses.

#197

Quem tinha feito uma coisa dessas? Os estrangeiros ficaram parados como
estátuas, incapazes de falar ou de se mexer. Talvez eles estivessem pensando
por que Deus
tinha deixado aquilo acontecer no dia em que eles o adoravam.
Nessa altura, Lao Lu estava batendo na porta do General Capa. Nenhuma
resposta. Ele abriu a porta, olhou para dentro e disse uma única palavra:
sumiu! Bateu
na porta da Srta. Bandeira. Mesma coisa. Sumiu.
Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Acho que os estrangeiros
estavam tentando decidir o que fazer, onde procurar pelos dois ladrões. Mas
agora eles
não tinham nem mula, nem búfalo, nem charrete. E, mesmo que tivessem, como
poderiam saber onde procurar? Para que lado Capa e a Srta. Bandeira foram?
Para Annam,
no sul? Para o leste, ao longo do rio, até Cantão? Para a Província Guizhou,
onde viviam os povos selvagens? O yamen mais próximo para se dar queixa de
grandes crimes
era em Jintian, a muitas horas a pé de Changmian. E o que o funcionário yamen
ia fazer quando soubesse que os estrangeiros tinham sido roubados por gente
deles?
Ia rir ha-ha-ha.
Aquela tarde, na hora dos insetos, eu fiquei sentada no pátio, vendo os
morcegos caçarem os mosquitos. Eu me recusei a deixar que a Srta. Bandeira
entrasse
nos meus pensamentos. Eu estava dizendo para mim mesma: "Nunumu, por que
perder tempo pensando na Srta. Bandeira, uma mulher que prefere um traidor a
uma amiga leal?
Nunumu, lembre-se, a partir de agora, de que não se pode confiar em
estrangeiros. " Mais tarde, fiquei deitada no meu quarto, ainda sem pensar na
Srta. Bandeira,
recusando-me a lhe dar um único pedacinho da minha preocupação ou raiva ou
tristeza. No entanto, alguma coisa vazou, não sei como. Senti um aperto no
estômago, um
fogo no meu peito, uma dor nos meus ossos, sensações que percorreram o meu
corpo, tentando escapar.
A manhã seguinte era o primeiro dia da semana, dia de lavar roupa.
Enquanto os Adoradores de Jesus estavam tendo uma reunião especial na Casa de
Deus, fui
até o quarto deles juntar a roupa suja. É claro que não me preocupei com o
quarto da Srta. Bandeira. Passei direto por ele.

#198

Mas então meus pés começaram a andar para trás e eu abri a porta. A primeira
coisa que vi foi a caixa de música. Fiquei surpresa. Talvez ela tenha achado
que era
pesada demais para carregar. Garota preguiçosa. Vi a roupa suja dela na cesta.
Olhei no armário. Seu vestido de domingo e os seus sapatos tinham sumido,
também seu
chapéu mais bonito, dois pares de luvas, o colar com o rosto de mulher
esculpido na pedra cor de laranja. Suas meias com um buraco no calcanhar ainda
estavam lá.
E então eu tive um mau pensamento e um bom plano. Enrolei a caixa de
música numa blusa suja e a coloquei na cesta de roupas. Carreguei a cesta pelo
corredor,
pela cozinha, depois pelo hall, até a área descoberta. Atravessei o portão que
ia dar no jardim do Mercador Fantasma. Caminhei ao longo do muro noroeste,
onde guardava
meus ovos de pata, e foi lá que cavei outro buraco e enterrei a caixa e todas
as lembranças da Srta. Bandeira.
Enquanto alisava a terra sobre aquele túmulo musical, ouvi um som alto,
como um sapo:
- Wa-ren! Wa-ren!
Fui andando, e, por sobre o crunch-crunch das folhas, tornei a ouvir
aquele som, só que agora eu sabia que era a voz da Srta. Bandeira. Escondi-me
atrás
de um arbusto e olhei para o pavilhão. Wah! Lá estava o fantasma da Srta.
Bandeira! O cabelo dela, foi isto que me deu essa idéia, estava despenteado,
caindo até
a cintura. Fiquei tão assustada que caí em cima do arbusto, e ela ouviu o
barulho.
- Wa-ren, Wa-ren? - ela chamou, enquanto descia correndo, com um ar
selvagem, desamparado. Fui me arrastando o mais rápido que podia. Mas então vi
seus sapatos
de domingo diante de mim. Ergui os olhos. Soube imediatamente que ela não era
um fantasma. Tinha muitas picadas de mosquito no rosto, no pescoço, nas mãos.
Se também
houvesse mosquitos fantasmas lá, eles poderiam ter feito aquilo. Mas só agora
é que pensei nisso.

#199

Mas isso não vem ao caso, ela estava carregando sua maleta de couro
para fugir. Coçou o rosto, e me perguntou, com uma voz cheia de esperança:
- O general, ele voltou para me buscar?
Foi então que eu soube o que tinha acontecido. Ela tinha ficado
esperando no pavilhão desde a véspera, prestando atenção a qualquer ruído.
Sacudi a cabeça.
E me senti ao mesmo tempo contente e culpada ao ver a tristeza invadir o rosto
dela. Ela se jogou no chão, depois riu e chorou. Fiquei olhando para a parte
de trás
do seu pescoço, as marcas inchadas do banquete dos mosquitos, a prova de que
suas esperanças tinham durado a noite inteira. Tive pena dela, mas também
fiquei com
raiva.
- Para onde ele foi? - perguntei. - Ele disse a você?
- Ele falou em Cantão... Não sei. Talvez tenha mentido sobre isso
também. - A voz dela estava apática, como um sino que a gente toca mas não
soa.
- Você sabe que ele roubou comida, dinheiro, uma porção de coisas
valiosas?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- E ainda assim você queria ir com ele?
Ela gemeu em inglês. Não sabia o que ela estava dizendo, mas soava como
lamento por não estar com aquele homem terrível. Ela olhou para mim.
- Srta. Moo, o que devo fazer?
- Você não respeitou a minha opinião antes. Por que me consultar agora?
- Os outros, eles devem achar que sou uma tola.
Concordei.
- E também uma ladra.
Ficou calada por muito tempo. Depois disse:
- Talvez eu devesse me enforcar. Srta. Moo, o que acha? - Ela começou
a rir como uma louca. Depois pegou uma pedra e pôs no meu colo. - Srta. Moo,
por favor,
arrebente a minha cabeça. Diga aos Adoradores de Jesus que o demônio Capa me
matou. Deixe-me ser lamentada em vez de desprezada. - Atirou-se ao chão,
chorando.
- Mate-me, por favor, mate-me. Eles querem mesmo que eu morra.

#200

- Srta. Bandeira - eu disse -, está me pedindo para ser uma assassina?


E ela respondeu:
- Se você for uma amiga leal, vai me fazer este favor.
Amiga leal! Como um tapa na cara! Disse para mim mesma: "Quem é ela
para falar em amiga leal?" Mate-me, Srta. Moo! Rnh! Sabia o que ela realmente
queria
- que eu a consolasse, lhe dissesse que os Adoradores de Jesus não iam ficar
zangados, que iam entender que ela foi enganada por um homem mau.
- Srta. Bandeira - disse, escolhendo cuidadosamente as palavras
-, não seja mais tola ainda. Você não quer realmente que eu arrebente a sua
cabeça.
Está fingindo.
Ela respondeu:
- Sim, sim, mate-me! Quero morrer! - Ela socou o chão.
Eu devia tentar demovê-la desta idéia, pelo menos mais uma ou duas
vezes, argumentando até ela concordar, com muita relutância, em viver. Mas, em
vez disso,
disse:
- Hum. Os outros vão odiá-la, isto é verdade. Talvez até a expulsem.
Então para onde você irá?
Olhou para mim. Expulsá-la? Eu podia ver essa idéia invadindo sua
mente.
- Deixe-me pensar sobre isto - eu disse. Alguns instantes depois,
anunciei com uma voz firme: - Srta. Bandeira, decidi ser sua amiga leal.
Os olhos dela eram dois buracos escuros cheios de confusão.
- Sente-se com as costas encostadas na árvore - eu disse. Ela não se
mexeu. Então eu a agarrei pelo braço e arrastei-a para a árvore e a empurrei
para
o chão. - Vamos, Srta. Bandeira, só estou tentando ajudá-la. - Coloquei a
bainha do vestido dela de domingo entre os dentes e arranquei-a.
- O que você está fazendo! - ela gritou.
- O que importa? - eu disse. - Você vai estar morta mesmo daqui a pouco.
- Rasguei a bainha em três pedaços. Usei uma das tiras para amarrar as mãos
dela atrás
do tronco da árvore. Nessa altura ela estava tremendo um bocado.

#201

- Srta. Moo, por favor, deixe-me explicar - começou a dizer, mas aí eu


amarrei outra tira em volta de sua boca. - Agora, mesmo que você grite - eu
disse
-, ninguém vai ouvir. - Ela estava resmungando uh-uh-uh. Amarrei a outra tira
em volta dos olhos dela. - Agora você não pode ver a
coisa terrível que eu vou ter de fazer. - Começou a dar chutes. Avisei a ela:
- Ah, Srta. Bandeira, se você lutar assim eu sou capaz de errar e acertar
apenas o
seu olho ou o seu nariz. E então vou ter de tentar de novo...
Ela estava dando gritos abafados, sacudindo a cabeça e saltando sobre
o traseiro.
- Está pronta, Srta. Bandeira?
Ela estava fazendo uh-uh-uh e sacudindo a cabeça, o corpo inteiro, a
árvore, sacudindo tanto que as folhas começaram a cair como se fosse outono.
- Adeus - eu disse, e toquei de leve em sua cabeça com meu punho. Como
eu imaginava, ela desmaiou imediatamente.
O que eu tinha feito era mau mas não terrível. O que fiz em seguida
foi um ato de bondade, mas uma mentira. Fui até um arbusto. Arranquei um
espinho e espetei
o dedo. Espremi e deixei o sangue pingar na parte da frente do vestido dela,
ao longo de sua sobrancelha e seu nariz. E então fui
correndo chamar os Adoradores de Jesus. Oh, como eles a elogiaram e
consolaram. Corajosa Srta. Bandeira! - Tentou impedir que o general roubasse a
mula. Pobre Srta.
Bandeira! - Espancada, abandonada para morrer. O Dr. Tarde Demais se desculpou
por não ter nenhum remédio para colocar nos calombos do rosto dela. A Srta.
Camundongo
disse que era muito triste ela ter perdido a caixa de música. A Sra. Amém
preparou uma sopa de doente para ela.
Quando eu e ela ficamos sozinhas em seu quarto, a Srta. Bandeira
disse:
- Obrigada, Srta. Moo. Não mereço uma amiga tão leal. - Foram essas as
suas palavras, eu me lembro, porque fiquei muito orgulhosa. Ela também disse:
- De agora em diante, vou sempre acreditar em você. - Foi então que
Yiban entrou no quarto sem bater.

#202

Atirou uma maleta de couro no chão. A Srta. Bandeira ficou sem fala. Era a
maleta de roupas que ela tinha preparado para ir. Agora o segredo dela tinha
sido descoberto.
Toda a minha maldade e a minha bondade tinham sido para nada.
- Encontrei isto no pavilhão - ele disse. - Acho que pertence a você.
Contém seu chapéu, dois pares de luvas, um colar, uma escova de cabelo. -
Yiban e a
Srta. Bandeira se encararam por muito tempo. Finalmente ele disse:
- Você teve sorte, o general esqueceu de levar com ele. - Foi assim
que ele deu a entender que também guardaria o triste segredo dela.
Aquela semana inteira, enquanto fazia o meu trabalho, eu me
perguntava: por que será que Yiban salvou a Srta. Bandeira da desgraça? Ela
nunca foi amiga dele,
não como eu. Lembrei-me de quando tirei a Srta. Bandeira do rio. Quando a
gente salva a vida de uma pessoa, essa pessoa se torna uma parte de você. Por
que será?
E então me lembrei de que Yiban e eu tínhamos os mesmos corações solitários.
Nós dois queríamos alguém que pertencesse a nós.
Logo Yiban e a Srta. Bandeira estavam passando muitas horas juntos. A
maior parte do tempo eles conversavam em inglês, então eu tinha de perguntar à
Srta.
Bandeira o que estavam dizendo. Oh, ela me dizia, nada de importante: a vida
dos dois na América, na China, o que era diferente, o hoje era melhor. Eu
sentia ciúmes,
porque sabia que eu e ela nunca tínhamos conversado sobre essas coisas nada
importantes.
- O que é melhor? - perguntei.
Ela franziu a testa e refletiu. Acho que estava tentando decidir qual
das muitas coisas chinesas de que gostava devia mencionar primeiro.
- Os chineses são muito educados - disse, depois refletiu mais um
pouco. - Não são tão gananciosos.
Esperei que ela continuasse. Tinha certeza de que ia dizer que a China
era mais bonita, que nossas idéias eram melhores, o nosso povo mais refinado.
Mas
ela não disse nada disto.
- Tem alguma coisa melhor na América? - perguntei.

#203

Ela pensou um pouco.


- Oh... conforto e limpeza, lojas e escolas, calçadas e ruas, casas e
camas, doces e bolos, jogos e brinquedos, chás e aniversários, oh, e desfiles
grandes
e barulhentos, piqueniques na grama, passeios de barco, colocar uma flor no
chapéu, usar belos vestidos, ler livros e escrever cartas para os amigos... -
E ela continuou,
até eu me sentir pequena e suja, feia, tola e pobre. Muitas vezes eu tinha
lamentado a minha situação. Mas era a primeira vez que tinha este sentimento
de não gostar
de mim mesma. Fiquei doente de inveja - não pelas coisas americanas que ela
mencionou, mas por ela poder dizer a Yiban do que sentia falta e ele poder
entender seus
velhos desejos. Ele pertencia a ela de uma forma que eu não podia pertencer.
- Srta. Bandeira - perguntei -, você sente algo por Yiban Johnson, ah?
- Sentir? Sim, talvez. Mas só como amigo, embora não tão amigo quanto
você. Oh! E não um sentimento entre homem e mulher - não, não, não! Afinal,
ele é chinês,
bem, não completamente, mas metade, o que é quase pior. ..Bem, no nosso país,
uma mulher americana não poderia...O que eu quero dizer é que um romance
desses jamais
seria permitido.
Sorri, tranqüilizada.
Então, a troco de nada, ela começou a criticar Yiban Johnson.
- Sabe de uma coisa, ele é sério demais! Não tem qualquer senso de
humor! É tão pessimista com relação ao futuro. A China está com problemas, ele
diz, em
breve nem mesmo Changmian vai ser um lugar seguro. E, quando tento animá-lo,
brincar um pouco com ele, ele não ri... - Ela passou o resto da tarde
criticando-o,
mencionando todas as suas pequenas faltas e o que faria para mudá-las. Tinha
tantas queixas dele que percebi que ela gostava mais dele do que tinha
admitido. Não
só como amiga.
Na semana seguinte, eu os vi sentados no pátio. Vi que ele tinha
aprendido a rir. Ouvi as vozes excitadas com as brincadeiras entre moça e
rapaz. Soube que
algo estava crescendo no coração da Srta. Bandeira, porque tive de fazer
muitas perguntas para descobrir o que era.

#204

Vou lhe dizer uma coisa, Libby-ah. O que a Srta. Bandeira e Yiban
estavam sentindo era um amor tão grande e constante quanto o céu. Ela me
contou. Ela disse:
- Conheci muitos tipos de amor antes, nenhum como este. Com minha mãe
e meus irmãos, foi um amor trágico, do tipo que deixa você sofrendo ao
imaginar o
que poderia ter recebido mas não recebeu. Com meu pai, tive um amor incerto.
Eu o amava, mas não sei se ele me amava. Com meus outros namorados, foi um
amor egoísta.
O que me deram foi em troca do que queriam receber de mim.
"Agora estou satisfeita", a Srta. Bandeira disse. "Com Yiban, eu amo e
sou amada, de forma plena e desprendida, sem esperar nada e recebendo mais do
que
o suficiente. Sou como uma estrela cadente que finalmente encontrou o seu
lugar ao lado de outra numa linda constelação, onde iremos brilhar no céu para
sempre."
Fiquei feliz pela Srta. Bandeira e triste por mim mesma. Lá estava
ela, falando de sua grande felicidade, e eu não compreendia o significado de
suas palavras.
Imaginei se esse tipo de amor viria do seu senso de importância americano e
tinha levado a conclusões diferentes das minhas. Ou talvez esse amor fosse
como uma doença
- muitos estrangeiros ficam doentes ao menor sinal de calor ou de frio. A pele
dela andava sempre ruborizada, seus olhos grandes e brilhantes. Ela não se
dava conta
da passagem do tempo.
- Oh, já é assim tão tarde? - vivia dizendo. Ela também andava muito
desastrada e precisava que Yiban a apoiasse quando andava. Sua voz também
mudou, ficou
aguda e infantil. E à noite ela gemia. Gemia por muitas horas. Fiquei com medo
de que tivesse contraído malária. Mas de manhã ela estava sempre bem.
Não ria, Libby-ah. Nunca tinha visto este tipo de amor às claras
antes. Pastor e Sra. Amém não eram assim. Os rapazes e as moças da minha
aldeia nunca agiram
assim, não diante de outras pessoas, pelo menos. Teria sido vergonhoso -
mostrar que você gostava mais do namorado do que de toda a sua família, viva e
morta.

#205

Achei que o amor dela era outro dos seus luxos americanos, algo que o
povo chinês não podia sustentar. Ela e Yiban conversavam durante horas, todos
os dias,
as cabeças juntas, inclinadas, como duas flores buscando o mesmo sol. Embora
falassem em inglês, eu podia perceber que ela iniciava um pensamento e ele
terminava.
Depois ele falava, olhava para ela, se esquecia do que estava dizendo e ela
encontrava as palavras que ele tinha perdido. Às vezes, falavam baixinho,
docemente,
e suas mãos se tocavam. Eles precisavam de que o calor de suas peles igualasse
o calor de seus corações. Olhavam para o mundo no pátio - o arbusto sagrado,
uma folha
no arbusto, uma mariposa na folha, a mariposa ele punha na palma da mão dela.
Contemplavam a mariposa como se ela fosse uma criatura nova na terra, um sábio
imortal
disfarçado. E eu podia ver que essa vida que ela segurava com tanto cuidado
era como o amor que ela iria sempre proteger, não deixando nunca que algum mal
o atingisse.
Mas, ao ver tudo isso, eu aprendi o que era romance. E logo eu também
fui cortejada - você se lembra de Zeng, o mascate de uma orelha só? Era um
homem simpático,
não era feio, mesmo com uma orelha só. Não era muito velho. Mas eu pergunto a
você: que romance pode haver numa conversa sobre jarras rachadas e ovos de
pata?
Bem, um dia Zeng me procurou como sempre com outra jarra. Disse a ele:
- Chega de jarras. Não tenho mais ovos para curtir, nenhum para lhe
dar.
- Fique com a jarra assim mesmo - ele disse. - Dê-me um ovo na semana
que vem.
- Na semana que vem eu também não vou ter nenhum para dar. Aquele
falso general americano roubou o dinheiro dos Adoradores de Deus. Só temos
comida suficiente
para esperar o dinheiro do Ocidente que vem no próximo barco de Cantão.
Na semana seguinte Zeng voltou e me trouxe a mesma jarra. Só que desta
vez estava cheia de arroz. Tão pesada de sentimentos!

#206

Será que isso era amor? Será que amor é uma jarra cheia de arroz, é não
precisar devolver um ovo?
Aceitei a jarra. Eu não disse, obrigada, como você é bondoso, um dia
pago de volta. Fui - como você costuma dizer? - uma diplomata.
- Zeng-ah - chamei quando ele estava indo embora. - Por que suas
roupas estão sempre tão sujas? Veja essas manchas de gordura nos seus
cotovelos! Amanhã
traga suas roupas para cá, eu lavo para você. Se você vai me cortejar, pelo
menos tem de estar limpo.
Está vendo? Eu também sabia fazer romance.

Quando o inverno chegou, Ermei ainda estava xingando o General Capa por ter
roubado o pernil de porco. Isto porque toda a carne defumada tinha acabado, e
a fresca
também. Um a um, ela tinha matado os porcos, as galinhas, os patos. Toda
semana, o Dr. Tarde Demais, Pastor Amém e Yiban caminhavam muitas horas até
Jintian para
ver se o barco de Cantão tinha chegado com o dinheiro. E toda semana eles
voltavam para casa com os mesmos rostos compridos.
Uma vez, eles voltaram com sangue escorrendo pelo rosto. As senhoras
correram para eles, gritando e chorando: Sra. Amém para o Pastor Amém, Srta.
Camundongo
para o Dr. Tarde Demais, Srta. Bandeira para Yiban. Lao Lu e eu corremos para
o poço. Enquanto as damas se agitavam e limpavam o sangue, Pastor Amém
explicava o
que tinha acontecido e Yiban traduzia para nós.
- Eles nos chamaram de demônios, inimigos da China!
- Quem? Quem? - As damas gritaram.
- Os taiping! Não vou mais chamá-los de Adoradores de Deus. Eles são
uns loucos, esses taiping. Quando eu disse "nós somos seus amigos", eles
atiraram pedras
em cima de mim, tentaram me matar!
- Por quê? Por quê?
- Por causa dos olhos deles, dos olhos! - Pastor gritou mais algumas
coisas, depois caiu de joelhos e rezou. olhamos para Yiban e ele sacudiu a
cabeça. Pastor
começou a dar socos no ar, depois tornou a rezar. Apontou para a missão e
gemeu, rezou mais.

#207

Apontou para a Srta. Camundongo, que começou a chorar, dando tapinhas no rosto
do Dr. Tarde Demais, embora não houvesse mais sangue para limpar. Ele apontou
para
a Sra. Amém, cuspiu mais palavras. Ela ficou em pé, depois se afastou. Lao Lu
e eu éramos como surdos-mudos, ainda inocentes do que ele havia dito.
À noite, fomos ao jardim do Mercador Fantasma para nos encontrar com
Yiban e a Srta. Bandeira. Vi a sombra deles no pavilhão no alto da colina, a
cabeça
dela no ombro dele. Lao Lu não quis ir até lá por causa do fantasma. Então eu
assobiei até eles me ouvirem. Eles desceram, de mãos dadas, soltando as mãos
ao me
verem. À luz de uma lua igual a uma fatia de melão, Yiban nos contou as
notícias.
Ele tinha conversado com um pescador quando foi com o Pastor e o Dr.
Tarde Demais até o rio para saber sobre a chegada de barcos. O pescador disse
a ele:
- Nada de barcos, nem agora, nem tão cedo, talvez nunca. Os barcos
ingleses bloquearam os rios. Ninguém entra nem sai. Ontem os estrangeiros
lutavam por
Deus, hoje pelos manchus. Talvez amanhã a China se parta em pedacinhos e os
estrangeiros os recolham e vendam junto com o ópio.
Yiban disse que havia luta desde Suzhou até Cantão. Os manchus e os
estrangeiros estavam atacando todas as cidades governadas pelo Rei Celestial.
Dez-dez
mil taiping mortos, bebês e crianças também. Em alguns lugares, só se viam
corpos de taipings apodrecendo em outras cidades, só ossos brancos. Logo os
manchus chegariam
a Jintian.
Yiban nos deixou refletir sobre essas notícias.
- Quando contei a Pastor o que o pescador tinha dito, ele caiu de joelhos e
rezou, como vocês o viram fazer esta tarde. os Adoradores de Deus atiraram
pedras em
nós. O Dr. Tarde Demais e eu começamos a correr, chamando Pastor, mas ele não
vinha. As pedras atingiram suas costas, seu braço, uma perna, depois sua
testa. Quando
ele caiu no chão, sangue e paciência escorreram de sua cabeça. Foi quando ele
perdeu a fé. Ele gritou: "Deus, por que o senhor me traiu? Por quê? Por que
mandou
aquele falso general, deixou que ele roubasse as nossas esperanças?"

#208

Yiban parou de falar. A Srta. Bandeira disse alguma coisa para ele em
inglês. Ele sacudiu a cabeça. Então a Srta. Bandeira continuou.
- Esta tarde, quando vocês o viram cair de joelhos, ele tornou a
deixar os maus pensamentos escorrerem do seu cérebro. Só que agora ele não
perdeu só a fé,
perdeu também a razão. Ele estava gritando: "Odeio a China! Odeio os chineses!
Odeio esses olhos tortos, esses corações tortos.
Eles não têm uma alma para ser salva." Ele disse: "Matem os chineses, matem
todos eles, só não deixem que eu morra junto com eles. " Apontou para os
outros missionários
e gritou: "Leve-a, leve-o, leve-a."
Depois desse dia, muitas coisas mudaram, igual aos meus ovos. Pastor
Amém agia como um garotinho, reclamando e chorando a toda hora, teimando,
esquecendo
quem era. Mas a Sra. Amém não ficava zangada com ele. Às vezes ela ralhava com
ele, mas quase sempre tentava consolá-lo. Lao Lu disse que de noite ela
deixava Pastor
se enroscar nela. Agora eles eram como marido e mulher. O Dr. Tarde Demais
deixou a Srta. Camundongo cuidar dos ferimentos dele muito tempo depois de não
ter mais
nada para cuidar. E tarde da noite, quando todo mundo devia estar dormindo mas
não estava, uma porta se abria, depois se fechava. Eu ouvia passos, depois os
cochichos
de Yiban, depois os suspiros da Srta. Bandeira. Fiquei tão envergonhada de
ouvi-los que logo depois desenterrei a caixa de música da Srta. Bandeira e a
devolvi para
ela. Eu disse a ela:
- Olhe o que mais o General Capa se esqueceu de levar. Um por um,
todos os empregados foram embora. Quando o ar se tornou frio demais para os
mosquitos aparecerem
à noite, os únicos chineses que restavam na Casa do Mercador Fantasma eram Lao
Lu e eu. Não estou contando Yiban, porque já não achava que ele fosse mais
chinês
do que Johnson. Yiban ficou por causa da Srta. Bandeira. Lao Lu e eu ficamos
porque ainda tínhamos nossa fortuna em ovos de pata enterrada no jardim do
Mercador
Fantasma. Mas nós também sabíamos que se partíssemos nenhum daqueles
estrangeiros saberia como se manter vivo.

#209

Todo dia Lao Lu e eu procurávamos comida. Como eu tinha sido uma


menina pobre das montanhas, sabia onde procurar. Cavávamos debaixo dos troncos
de árvores,
onde as cigarras dormiam. Sentávamos à noite na cozinha, esperando os insetos
e os ratos saírem atrás de migalhas que não conseguíamos ver. Subíamos as
montanhas
e colhíamos chá selvagem e bambu. Às vezes pegávamos um pássaro velho demais
ou estúpido demais para escapar. Na primavera, catávamos gafanhotos nos
campos. Procurávamos
sapos, lagartas e morcegos. Morcego você tem de caçar num lugar pequeno e
mantê-lo voando até ele cair de exaustão. Fritávamos no óleo o que
conseguíamos pegar.
O óleo eu conseguia com Zeng. Agora ele e eu conversávamos sobre outras coisas
além de jarras rachadas e ovos - coisas engraçadas, como a primeira vez que eu
servi
um novo tipo de comida à Srta. Bandeira.
- O que é isso? - ela perguntou.
Enfiou o nariz na tigela, olhou e cheirou. Tão suspeito.
- Camundongo - eu disse.
Ela fechou os olhos, levantou-se e saiu da sala. Quando o resto dos
estrangeiros quis saber o que eu tinha dito, Yiban explicou na língua deles.
Todos sacudiram
a cabeça e depois comeram com apetite. Mais tarde perguntei a Yiban o que ele
tinha dito.
- Coelho. Eu disse que a Srta. Bandeira tinha tido um coelho de
estimação.
Depois disso, sempre que os estrangeiros perguntavam o que Lao Lu e eu
tínhamos cozinhado, eu fazia Yiban dizer:
- Outro tipo de coelho. - Eles sabiam que não deviam perguntar se
estávamos dizendo a verdade.
Não estou dizendo que tivéssemos muito o que comer. Era preciso ter
muitos tipos de coelho para alimentar oito pessoas duas ou três vezes por dia.
Até a
Sra. Amém ficou magra. Zeng disse que a luta estava piorando. Torcíamos para
que um lado ganhasse e o outro perdesse para a vida melhorar. Só Pastor Amém
estava
feliz, balbuciando como um bebê.
Um dia, Lao Lu e eu concluímos que as coisas tinham piorado de forma a
ficarem insuportáveis. Concordamos que era a melhor época para comer os ovos
de pata.

#210

Discutimos um pouco sobre quantos ovos dar a cada pessoa. Isto dependia de
quanto tempo Lao Lu e eu achávamos que aquela situação ia durar e de quantos
ovos dispúnhamos
para melhorar as coisas. Depois tivemos de decidir se daríamos os ovos às
pessoas de manhã ou à noite. Lao Lu disse que de manhã era melhor, porque
podíamos sonhar
que estávamos comendo ovos e o sonho se tornava realidade. Isto nos alegraria,
ele disse, acordar e descobrir que ainda estávamos vivos. Então, todas as
manhãs dávamos
um ovo para cada pessoa. A Srta. Bandeira, oh, ela adorava aqueles ovos de
casca verde - salgados, cremosos, melhor que coelhos, ela dizia.
Ajude-me a contar, Libby-ah. Oito ovos, todos os dias, por quase um
mês, quanto dá isso? - duzentos e quarenta ovos de pata. Wah! Eu tive tudo
isso! Se vendesse
esses ovos hoje em San Francisco, ah, que fortuna! Na verdade, juntei mais do
que isso. No meio do verão, o fim da minha vida, eu tinha pelo menos duas
jarras ainda
guardadas. No dia em que nós morremos, Srta. Bandeira e eu estávamos rindo e
chorando, dizendo que devíamos ter comido mais ovos.
Mas como uma pessoa pode saber quando vai morrer? Se soubesse, o que
mudaria? Será que se pode quebrar mais ovos e evitar arrependimentos? Talvez a
pessoa
morresse de dor de estômago.
De qualquer modo, Libby-ah, agora que estou pensando nisso, não me
arrependo. Estou contente de não ter comido aqueles ovos. Agora tenho alguma
coisa para
mostrar para você. Em breve vamos poder desenterrá-los. Você e eu vamos poder
saborear os que sobraram.

#211

13
DESEJO DE MOÇA

Na minha primeira manhã na China, acordei num quarto escuro de hotel em Guilin
e vi uma figura debruçada sobre a minha cama, olhando-me com o olhar
concentrado de
um assassino. Já ia gritar quando ouvi Kwan dizendo em chinês:
- Dormindo de lado - então é por isso que sua postura é tão ruim. De
agora em diante, você deve dormir de barriga para cima. E também fazer
exercícios.
Ela acende a luz e começa a demonstrar, com as mãos nos quadris,
curvando-se na cintura como uma professora de educação física dos anos
sessenta. Fico imaginando
quanto tempo ela ficou parada ao lado da minha cama, esperando que eu
acordasse para poder me apresentar seu mais recente conselho não pedido. A
cama dela já está
feita.
Olho para o relógio e digo irritada:
- Kwan, são só cinco horas da manhã.
- Estamos na China. Está todo mundo acordado. Só você é que ainda está
dormindo.
- Não estou mais.
Estamos na China há menos de oito horas, e ela já está controlando a
minha vida. Estamos pisando no terreno dela, temos de agir de acordo com suas
regras,
falar sua língua. Ela está no paraíso chinês.
Arrancando minhas cobertas, ela ri.

#212

- Libby-ah, ande logo, levante. Quero ir visitar minha aldeia e


surpreender todo mundo. Quero ver o queixo da Grande Ma cair e ouvir suas
palavras de surpresa:
"Ei, pensei que tivesse mandado você embora. Por que está de volta?"
Kwan abre a janela. Estamos hospedados no Guilin Sheraton, que dá para
o rio Li. Lá fora ainda está escuro. Ouço o trnnng! trnnng! do que parece ser
um barulhento
salão de pachinko. Vou até a janela e olho para baixo. Mascates em triciclos
tocam seus sinos, cumprimentando uns aos outros enquanto carregam suas cestas
de grãos,
melões e nabos para o mercado. A rua está coberta com as sombras das
bicicletas e carros, operários e estudantes - todo mundo tagarelando e
buzinando, gritando e
rindo, como se fosse meio-dia. No guidom de uma bicicleta estão penduradas as
cabeças gigantescas de quatro porcos, amarrados pelas narinas, seus focinhos
brancos
estampando o sorriso da morte.
- Olhe. - Kwan aponta para um conjunto de barraquinhas iluminadas por
lâmpadas fracas. - Podemos comprar o café da manhã ali, barato e bom. Melhor
do que
pagar nove dólares por pessoa no hotel - e para quê? Rosquinha, suco de
laranja, bacon, quem quer comer isso?
Lembro-me das advertências dos guias turísticos para se evitar comer
alimentos vendidos na rua.
- Nove dólares não é muito - argumento.
- Wah! Você não pode mais pensar assim. Agora está na China. Nove
dólares é um bocado de dinheiro aqui, o salário de uma semana.
- É, mas comida barata pode dar intoxicação.
Kwan aponta para a rua.
- Veja. Todas aquelas pessoas ali, elas pegam intoxicação? Se você
quer fotografar comida chinesa, tem de provar comida chinesa de verdade. Os
sabores entranham
na sua língua, vão para o estômago. É no estômago que estão os seus
sentimentos verdadeiros. E, se você tirar foto, esses sentimentos verdadeiros
do seu estômago
vão aparecer, de modo que todo mundo possa sentir o gosto da comida só de
olhar para suas fotos.

#213

Kwan tem razão. Quem sou eu para me queixar por levar para casa uns
poucos parasitas? Visto roupas quentes e vou bater na porta do quarto de
Simon. Ele abre
imediatamente a porta, pronto para sair.
- Não consegui dormir - confessa.
Cinco minutos depois, nós três estamos na calçada. Passamos por
dezenas de barraquinhas de comida, algumas equipadas com fogareiros portáteis,
outras com
grelhas. Defronte das barraquinhas, os fregueses ficam agachados, formando um
semicírculo, comendo talharim e bolinhos de massa. Meu corpo está agitado de
cansaço
e excitação. Kwan escolhe um vendedor que frita algo parecido com panquecas
num tambor de óleo bem quente.
Me dá três - diz em chinês.
O vendedor pega as panquecas com os dedos escurecidos e Simon e eu
gritamos enquanto fazemos malabarismos com as panquecas como se fôssemos
artistas de circo.
- Quanto? - Kwan abre a carteira.
- Seis yuan - o vendedor de panquecas diz.
Faço o cálculo e vejo que dá um pouco mais de um dólar, baratíssimo.
Mas para Kwan é uma extorsão.
- Wah! - Ela aponta para outro freguês. - Você cobrou dele apenas
cinqüenta fen cada panqueca.
- É claro! Ele é um trabalhador do local. Vocês três são turistas.
- O que você está dizendo! Eu também sou do local. - Você? - O
vendedor olha para ela com ar de deboche . - De onde, então?
- Changmian.
Ele ergue as sobrancelhas, desconfiado.
- É mesmo? Quem você conhece lá em Changmian? - Kwan cita alguns
nomes.
O vendedor dá um tapa na coxa.
- Wu Ze-min? Você conhece Wu Ze-min?
- É claro. Quando éramos crianças, morávamos um defronte do outro.
Como vai ele? Não o vejo há mais de trinta anos.
- A filha dele se casou com meu filho.

#214

- Não diga!
O homem ri.
- É verdade. Há dois anos. Minha mulher e minha mãe foram contra o
casamento - só porque a moça era de Changmian. Elas são antiquadas, ainda
acham que Changmian
é amaldiçoada. Eu não, não sou mais supersticioso. E agora eles tiveram um
bebê, na última primavera, uma menina, mas eu não me importo.
- É difícil acreditar que Wu Ze-min já seja avô. Como vai ele?
- Perdeu a mulher, há uns vinte anos, quando foram mandados para os
estábulos por terem idéias contra-revolucionárias. Eles esmagaram as mãos
dele, mas não
a mente. Mais tarde ele se casou com outra mulher, Yang Ling-fang.
- Não é possível! Ela era a irmã mais moça de uma antiga colega minha.
Não posso acreditar! Ainda posso vê-la, uma tenra garotinha.
- Não tão tenra agora. Ela tem pele de jiaoban, dura como couro,
passou por muitas dificuldades, fique sabendo.
Kwan e o vendedor continuam a fofocar enquanto Simon e eu comemos
nossas panquecas, soltando fumaça na manhã fria. Elas têm um gosto que é uma
mistura de
focaccia e omelete de cebola. No final da refeição, Kwan e o vendedor agem
como velhos amigos, ela prometendo levar suas lembranças para a família e os
amigos, ele
ensinando como contratar um motorista por um bom preço.
- Está bem, irmão mais velho - Kwan diz -, quanto lhe devo?
- Seis yuan.
- Wah! Ainda seis yuan? Muito caro. Vou pagar dois, não mais do que
isso.
- Pague três, então.
Kwan resmunga, paga, e nós vamos embora. Quando estamos a meio
quarteirão de distância, cochicho para Simon:
- Aquele homem disse que Changmian é amaldiçoada. Kwan escuta.

#215

- Tst! Isto é só lenda, de mil anos atrás. Só gente estúpida ainda


acha que Changmian é um lugar azarado para se viver.
Traduzo para Simon, depois pergunto:
- Que tipo de azar?
- Você não quer saber.
Já ia insistir quando Simon me aponta a primeira oportunidade de foto
- um mercado ao ar livre, entulhado de cestas de palha cheias de laranjas,
feijão,
chá de canela, pimenta-malagueta. Pego a minha Nikon e começo a fotografar,
enquanto Simon toma notas.
- Colunas de fumaça acre do café da manhã se misturam à névoa matinal
- ele diz em voz alta. - Ei, Olivia, fotografe desta direção. Pegue as
tartarugas,
vai ficar uma beleza.
Respiro profundamente e imagino que estou enchendo os pulmões com o
mesmo arque inspirou meus antepassados, quem quer que tenham sido. Como
chegamos tarde
na noite anterior, ainda não tínhamos visto a paisagem de Guilin, seus picos
fabulosos, suas cavernas de pedra calcária, e todos os outros lugares citados
no nosso
guia como motivos para ela ser considerada na China como "o lugar mais lindo
da Terra". Dei o devido desconto e estou preparada para focalizar minhas
lentes nos
aspectos mais prosaicos e monocromáticos da vida comunista.
Não importa para que lado vamos, as ruas estão apinhadas de gente da
terra, usando roupas bem coloridas, e ocidentais vestindo conjuntos de
jogging, tanta
gente quanto se veria em San Francisco depois de uma vitória no campeonato de
futebol americano. E ao nosso redor toda a confusão de uma economia de mercado
livre.
Podemos ver, em abundância: os vendedores de bugigangas; os vendedores de
bilhetes de loteria, cupons da bolsa, camisetas, relógios e bolsas
contrabandeadas com
logotipos dos fabricantes. E os indispensáveis suvenires para turistas
- buttons de Mao, os Dezoito Lohan esculpidos numa noz, Budas de plástico
tapto no
modelo tibetano-magro quanto no modelo rechonchudo.

#216

É como se a China tivesse trocado sua cultura e suas tradições pelos piores
atributos do capitalismo: mercadorias vagabundas, descartáveis, e o frenesi do
mercado
de massa de comprar o que todo mundo tem e não precisa.
Simon concorda comigo:
- É fascinante e deprimente ao mesmo tempo. - E então acrescenta: -
Mas estou feliz por estar aqui. - Imagino se ele se refere também ao fato de
estar comigo.
Olhando para cima, na altura das nuvens, ainda podemos ver os picos
fantásticos, que se parecem com dentes de tubarões pré-históricos, o tema
batido de todo
calendário chinês e pintura de pergaminho. Mas, enfiada nas gengivas dessas
velhas formações de pedra, está a praga dos arranha-céus, sua pintura
engordurada pela
poluição industrial, suas tabuletas cobertas de caracteres vermelhos e
dourados. No meio deles há prédios mais baixos de um período anterior, todos
pintados de um
verde proletário. E aqui e ali vê-se o entulho de casas de antes da guerra e
depósitos de lixo improvisados. Esta paisagem dá a Guilin a aparência e o
cheiro de
um rosto bonito manchado de batom de cor berrante, dentes faltando e um caso
avançado de doença periodontal.
- Puxa vida - Simon murmura. - Se Guilin é a cidade mais linda da China,
mal posso esperar para ver a cara da aldeia amaldiçoada de Changmian.
Alcançamos Kwan.
- Está tudo completamente diferente, nada é como antes. - A voz dela
parece um tanto nostálgica. Deve estar triste de ver o quanto Guilin mudou
para pior nos
últimos trinta anos. Mas então Kwan diz com orgulho e encantamento: - Tanto
progresso, tudo tão melhor.
Dois quarteirões adiante, chegamos numa parte da cidade ideal para
fotografar: o mercado de aves. Penduradas nos troncos das árvores há centenas
de gaiolas
decorativas, contendo tentilhões cantantes e pássaros exóticos com belas
plumagens, cristas eriçadas e caudas em leque. No chão estão as gaiolas dos
pássaros grandes,
águias ou gaviões, magníficos, com garras e bicos ameaçadores.

#217

Há também as aves comuns, galinhas e patos, destinados à panela. Um retrato


deles, contra um fundo de aves lindas e de destino mais nobre, poderia dar um
belo visual
para a reportagem.
Eu só tinha batido metade do filme no mercado de aves quando vejo um
homem me chamando.
- Ssssss!
Ele faz sinal para eu me aproximar. O que será ele, polícia secreta?
Será que é ilegal tirar retratos ali? Se ele ameaçar tomar a minha máquina,
quanto
devo oferecer de propina?
O homem tira solenemente uma gaiola debaixo de uma mesa.
- Você gosta - ele diz em inglês. Olhando para mim está uma coruja
branca como a neve, com mechas cor de chocolate. Parece um gato siamês gordo
com asas. A
coruja pisca seus olhos dourados e eu me apaixono.
- Ei, Simon, Kwan, venham até aqui. Vejam isto.
- Cem dólares americanos - o homem diz. - Muito barato.
Simon sacode a cabeça e diz numa estranha combinação de mímica e inglês
macarrônico:
- Levar ave no avião, não possível, funcionário da alfândega vai mandar
parar, não é permitido, vamos ter de pagar multa grande...
- Quanto? - O homem pergunta bruscamente. - Pode dizer. Dou preço da
manhã, melhor preço.
- Não adianta pechinchar - Kwan diz em chinês para o homem. -
Somos turistas, não podemos levar a ave de volta para os Estados Unidos, não
importa
o preço.
- Aaah, quem está falando em levar de volta? - O homem responde num
chinês rápido. - Compre hoje, depois leve até aquele restaurante do outro lado
da rua.
Por pequena quantia, eles podem cozinhá-la para o jantar de hoje.
- Meu Deus! - Eu me viro para Simon. - Ele está vendendo a coruja para
comer!
- Isso é um absurdo. Diga que ele é um sem-vergonha.

#218
- Diga você!
- Não sei falar chinês.
O homem deve estar pensando que eu estou pedindo ao meu marido para
comprar a coruja para o meu jantar. Concentra-se em mim para fazer a venda.
- A senhora tem muita sorte por eu ainda ter uma. A coruja é rara,
muito rara - ele diz. - Levei três semanas para agarrá-la.
- Eu não acredito - digo a Simon. - Acho que vou vomitar .
Então ouço Kwan dizendo:
- Uma coruja não é assim tão rara, só é difícil de pegar. Além disso,
ouvi dizer que o gosto é comum.
- Para ser honesto -diz o homem -, não é tão picante quanto, por
exemplo, um pangolim. Mas se come coruja para ter força e ambição, não por
causa do gosto.
Também é boa para os olhos. Um dos meus fregueses estava quase cego. Depois
que comeu coruja, conseguiu enxergar a mulher pela primeira vez em quase vinte
anos.
O freguês voltou e me xingou: "Merda! Ela é feia a ponto de assustar um
macaco. Por que você me deixou comer a coruja, seu filho da mãe?"
Kwan riu animadamente.
- Sim, sim, já ouvi falar nisso. É uma boa história. - Ela abre a
carteira e tira uma nota de cem yuan.
- Kwan, o que você está fazendo? - grito. - Nós não vamos comer esta
coruja.
O homem não aceita os cem yuan.
- Só dinheiro americano - diz com firmeza. - Cem dólares americanos.
Kwan puxa uma nota de dez dólares.
- Kwan! - eu grito.
O homem sacode a cabeça, recusando os dez dólares. Kwan sacode os
ombros, e começa a se afastar. O homem grita para ela pagar cinqüenta, então.
Ela volta
e oferece uma nota de dez e uma de cinco, e diz:
- Esta é a minha última oferta.
- Isto é insano! - Simon resmunga.

#219

O homem suspira, depois entrega a gaiola com a coruja de olhos


tristes, reclamando o tempo todo.
- Que vergonha, tão pouco dinheiro por tanto trabalho. Veja as minhas
mãos, três semanas subindo em árvores e arrancando galhos para agarrar esta
ave.
Quando nos afastamos, agarro o braço livre de Kwan e digo indignada:
- Você não vai comer esta coruja de jeito nenhum. Não importa que
esteja na China.
- Shh! Shh! Você vai assustá-la! - Kwan põe a gaiola fora do meu
alcance. Abre um sorriso irritante e depois vai até um muro de concreto que dá
para o
rio e põe a gaiola sobre ele. Ela conversa com a coruja. - Oh, amiguinha, você
quer ir para Changmian? Quer ir comigo até o alto da montanha, e deixar minha
irmãzinha
ver você voar? - A coruja inclina a cabeça e pisca os olhos.
Quase choro de alegria e remorso. Por que tenho pensamentos tão maus
sobre Kwan? Envergonhada, conto a Simon o meu engano e a generosidade de Kwan.
Kwan
não me deixa pedir desculpas.
- Vou voltar para o mercado de aves - Simon diz - para fazer
anotações sobre os pássaros mais exóticos que eles estão vendendo como comida.
Quer vir?
Faço um sinal negativo com a cabeça, contente em admirar a coruja
que Kwan salvou.
- Estarei de volta dentro de dez ou quinze minutos.
Simon se afasta e eu noto como o passo dele parece americano, especialmente em
solo estrangeiro. Ele caminha num ritmo próprio; não segue a multidão.
- Está vendo aquilo? - ouço Kwan dizer. - Lá adiante. - Ela está
apontando para um pico em forma de cone ao longe. - Pertinho da minha aldeia
tem uma
montanha pontuda, mais alta ainda do que aquela. Nós a chamamos de Desejo de
Moça, por causa de uma jovem escrava que fugiu para o alto da montanha e
depois saiu
voando com uma fênix que era seu amante. Mais tarde, ela virou fênix e,
juntos, ela e seu amante foram viver numa floresta imortal de pinheiros
brancos.

#220

Kwan olhou para mim.


- É uma história, só superstição.
Acho graça por ela achar que deve dar explicações.
Kwan continua:
- No entanto, todas as moças da nossa aldeia acreditavam nesta lenda,
não por serem burras, mas porque queriam ter esperanças de uma vida melhor.
Acreditávamos
que, se fôssemos até o topo e fizéssemos um desejo, ele poderia se realizar.
Então criamos passarinhos e os pusemos em gaiolas feitas por nós mesmas.
Quando os passarinhos
estavam prontos para voar, fomos até o alto do Desejo de Moça e os soltamos.
Os pássaros iriam voar até onde as fênix viviam e lhes contar os nossos
desejos.
Kwan funga.
- Grande Ma me disse que o pico se chamava Desejo de Moça porque uma
moça louca subiu até o topo. Mas, quando tentou voar, ela caiu e afundou tanto
na terra
que se transformou em seixo. Grande Ma disse que era por isso que havia tantos
seixos sob aquele pico - são todas as moças estúpidas que tiveram a mesma
idéia louca,
desejando coisas impossíveis. Rio. Kwan me olha ferozmente, como se eu fosse a
Grande Ma:
- Você não pode impedir que as jovens tenham esperanças. Não! Todo
mundo precisa sonhar. Sonhamos para ter esperança. Parar de sonhar - bem, é
como dizer
que você nunca pode mudar o seu destino. Não é verdade?
- Acho que sim.
- Agora adivinhe o que eu desejei.
- Não sei. O quê?
- Vamos, adivinhe.
- Um belo marido.
- Não.
- Um carro.
Ela sacode a cabeça.
- Um pote de ouro.
Kwan ri e dá um tapa no meu braço.
- Você errou! OK, vou contar para você. - Ela olha para os picos da
montanha. - Antes de partir para a América, criei três pássaros, não um
apenas, para poder
fazer três desejos do alto da montanha.

#221

Disse a mim mesma: se estes três desejos se realizarem, minha vida está
completa, posso morrer feliz. Meu primeiro desejo: ter uma irmã que eu pudesse
amar de todo
o coração, só isso, eu não pediria mais nada dela. Meu segundo desejo: voltar
à China com minha irmã. Meu terceiro desejo - a voz de Kwan tremeu - era que a
Grande
Ma visse isso e dissesse que sentia muito por me ter mandado embora.
- Esta é a primeira vez que Kwan demonstra quanto rancor é capaz de
sentir por alguém que a maltratou.
- Abri a gaiola - ela continuou e libertei os meus três pássaros. -
Ela demonstra com um gesto. - Mas um deles bateu as asas inutilmente, e foi
descendo
em círculos, até cair como uma pedra no fundo do abismo. Agora, veja, dois dos
meus desejos já se realizaram: eu tenho você e estamos juntas na China. A
noite passada
compreendi que o meu terceiro desejo jamais se tornaria realidade. A Grande Ma
jamais me dirá que sente muito.
Ela ergue a gaiola da coruja.
- Mas agora tenho uma linda coruja que pode levar o meu novo desejo.
Quando ela voar, toda a minha velha tristeza irá embora com ela. Então nós
duas estaremos
livres.
Simon apareceu de volta.
- Olivia, você não vai acreditar nas coisas que o povo daqui
considera como comida.
Fomos para o hotel, atrás de um carro que levasse uma nativa, dois turistas e
uma coruja para a aldeia de Changmian.

#222

14
ALÔ ADEUS

Às nove horas, contratamos os serviços de um motorista, um rapaz amável, que


sabe como lidar com a pressa capitalista.
- Limpo, barato, rápido - ele afirma em chinês. E em seguida faz um
aparte em favor de Simon.
- O que foi que ele disse? - Simon pergunta.
- Está dizendo que fala inglês.
Nosso motorista lembra os rapazes de Hong Kong que ficam se mostrando
nos salões de bilhar de San Francisco, o mesmo cabelo gomalinado, a unha do
dedo mínimo
de três centímetros de comprimento, perfeitamente manicurada, simbolizando a
sorte de não fazer trabalho braçal. Ele abre um sorriso, revelando os dentes
manchados
de nicotina.
- Podem me chamar de Rocky ele diz num inglês carregado. - Como o
famoso ator de cinema. - Mostra um retrato de revista de Sylvester Stallone
que tira de
dentro do seu dicionário chinês-inglês.
Guardamos uma mala de presentes e meu equipamento reserva na mala do
carro. O resto da bagagem está no hotel. Rocky vai ter de nos levar de volta
para lá
à noite, a menos que a tia de Kwan insista para ficarmos na casa dela - sempre
uma possibilidade em se tratando de famílias chinesas. Com isto em mente,
enfiei um
kit para passar a noite na bolsa da minha máquina. Rocky abre a porta com um
floreio e nós embarcamos num Nissan preto, um modelo recente que,
curiosamente, não
possui cintos de segurança nem encostos de cabeça.

#223

Será que os japoneses acham que a vida dos chineses não vale a pena ser
protegida?
- Ou a China tem motoristas melhores ou não tem advogados criminais -
Simon conclui.
Ao ser informado de que somos americanos, Rocky presume satisfeito que
gostamos de música alta. Ele coloca uma fita animada, que foi presente de um
dos seus
"excelentes clientes americanos". E assim, com Kwan no banco da frente, Simon,
a coruja e eu no banco de trás, iniciamos nossa viagem para Changmian,
ensurdecidos
pelo ritmo de "Sisters Are Doing It for Themselves".
Os excelentes clientes de Rocky também o ensinaram a selecionar frases
para pôr turistas à vontade. Enquanto percorremos as ruas apinhadas de Guilin,
ele
as recita como um mantra: "Para onde vai? Eu conheço. Entre, vamos." "Ir mais
depressa? Depressa demais? De jeito nenhum, José." "Onde fica? Não muito
longe. Longe
demais." "Estacionar carro? Espere um instante. Volto logo." "Não perdido. Sem
problemas. Fica frio. " Rocky explica que está ensinando inglês a si mesmo
para um
dia realizar o seu sonho de ir para a América.
- Minha idéia - diz em chinês - é me tornar um famoso ator de cinema,
especializado em artes marciais. Pratiquei tai-chi-chuan por dois anos. É
claro que
não espero fazer sucesso logo de início. Talvez quando chegar eu me empregue
como motorista de táxi. Mas sou trabalhador. Na América, as pessoas não sabem
o que
é trabalhar duro como na China. Nós também sabemos suportar qualquer situação.
O que é insuportável para os americanos é o normal para mim. A senhora não
acha que
é verdade, irmã mais velha?
Kwan responde com um ambíguo "hum". Imagino se ela estará pensando no
seu cunhado, um químico que imigrou para os Estados Unidos e agora trabalha
como lavador
de pratos porque tem medo de falar inglês e as pessoas o acharem burro. Neste
instante Simon arregala os olhos e eu grito "puta merda " quando o carro quase
atropela
duas estudantes de mãos dadas.

#224

Rocky continua falando calmamente sobre o seu sonho:


- Ouvi dizer que se pode ganhar cinco dólares por hora na América.
Para ganhar tanto eu trabalharia dez horas por dia, todos os dias do ano. São
cinqüenta
dólares por dia! Eu não ganho isso por mês, mesmo contando as gorjetas.
Ele olha para nós pelo espelho para ver se entendemos a insinuação. No
nosso guia está escrito que dar gorjetas na China é considerado um insulto;
calculo
que o livro deva estar ultrapassado.
- Quando eu morar na América - Rocky continua -, vou economizar quase
todo o meu dinheiro, só vou gastar um pouco em comida, cigarro e talvez um
cinema de
vez em quando, e é claro um carro para trabalhar de motorista. Minhas
necessidades são simples. Após cinco anos, vou ter quase cem mil dólares
americanos. Aqui é
meio milhão de yuan, mais se eu trocar nas ruas. Mesmo que eu não me torne um
astro de cinema em cinco anos, posso voltar para a China e ser um homem rico.
- Ele
está sorrindo de felicidade com esta perspectiva. Traduzo para Simon o que
Rocky disse.
- E quanto às despesas? - Simon diz. - Aluguel, gás, tarifas, seguro
do carro.
- Não esqueça o imposto de renda - eu digo.
E Simon acrescenta:
- Sem mencionar cupons de estacionamento e assaltos. Diga a ele que a
maioria das pessoas provavelmente morreria de fome na América com cinqüenta
dólares
por dia.
Já ia traduzir para Rocky quando me lembrei da história de Kwan sobre
o Desejo de Moça. Não se pode impedir que as pessoas desejem uma vida melhor.
- Ele provavelmente jamais conseguirá ir para a América - digo a
Simon. - Por que estragar o sonho dele com informações que nunca vai usar?
Rocky olha para nós pelo espelho e ergue o polegar. Um segundo depois,
Simon agarra o banco da frente do carro, e eu grito "puta merda!"

#225

Estamos quase atropelando uma moça numa bicicleta com seu bebê sentado no
guidom. No último instante, a moça desvia a bicicleta para a direita.
Rocky ri.
- Fica frio - diz ele em inglês. E então explica em chinês por que não
precisamos nos preocupar. Kwan se vira e traduz para Simon:
- Ele disse que, na China, se motorista atropelar uma pessoa a culpa é
sempre dele, não importa que a outra pessoa tenha sido imprudente.
Simon olha para mim.
- Isto é para nos tranqüilizar? Será que alguém se perdeu na tradução?
- Isso não faz sentido algum - digo a Kwan, enquanto Rocky costura no
meio do tráfego. - Um pedestre morto é um pedestre morto, não importa de quem
é a culpa.
- Tst! Isto é raciocínio americano. - Kwan responde. A coruja inclina
a cabeça e olha para mim, como se estivesse dizendo: preste atenção, gringa,
isto aqui
é a China, suas idéias americanas não funcionam aqui. - Na China - Kwan
continua - você é sempre responsável por outro, não importam as
circunstâncias. Se você
for atropelada, a culpa é minha, você é minha irmãzinha. Entende agora?
- Sim - Simon diz baixinho. - Não faça perguntas. - A coruja pia na
gaiola.
Passamos por uma fileira de lojas que vendem móveis de vime e chapéus
de palha. E então chegamos nos arredores da cidade, com quilômetros e
quilômetros de
restaurantes idênticos dos dois lados da estrada. Alguns estão sendo
construídos, suas paredes com camadas de tijolos, reboco e caiação. Julgando
pela pintura espalhafatosa
das placas na parte da frente, chego à conclusão de que todas as lojas
empregam o mesmo artista. Elas, anunciam as mesmas especialidades: soda
laranja e sopa de
talharim bem quente. Este é o capitalismo competitivo levado a um deprimente
extremo. Garçonetes desocupadas ficam agachadas do lado de fora, vendo o nosso
carro
passar. Que vida. Os cérebros delas devem estar atrofiados de tédio. Será que
elas algum dia se revoltam contra a falta de propósito de suas vidas?

#226

É como conseguir o espaço livre no cartão de bingo e mais nada. Simon está
tomando notas furiosamente. Será que ele observou a mesma desesperança?
- O que você está escrevendo?
- Bilhões e bilhões não atendidos - responde.
Alguns quilômetros à frente, os restaurantes dão lugar a simples
barraquinhas de madeira com telhado de sapê e, mais à frente, a mascates sem
nenhum abrigo
contra o frio. Eles ficam parados do lado da estrada, gritando a plenos
pulmões, sacudindo suas sacas de laranjas, suas garrafas de molho de pimenta
feito em casa.
Estamos andando para trás na evolução da propaganda e marketing.
Quando atravessamos uma das aldeias, vemos cerca de uma dúzia de
homens e mulheres usando jalecos idênticos de algodão branco. Ao lado deles há
banquinhos,
baldes de água, baús de madeira e placas pintadas a mão. Como não sei ler em
chinês, sou obrigada a perguntar a Kwan o que está escrito nas placas.
- Corte de cabelo - ela lê. - Cada um deles também sabe drenar
furúnculos, tirar calos, remover cera do ouvido. Dois ouvidos pelo preço de
um.
Simon está tomando mais notas.
- Ufa! O que você acharia de ser a décima pessoa se oferecendo para
remover cera de ouvido, quando ninguém parou para a primeira? Esta é a minha
definição
de inutilidade. Lembro-me de uma discussão que tive uma vez, quando disse que
uma pessoa não podia comparar a sua infelicidade com a de outra e Simon
perguntou por
que não. Talvez estivéssemos ambos errados. Agora, ao ver essas pessoas
fazendo sinal para pararmos, eu me sinto uma pessoa de sorte por não estar no
negócio de
remoção de cera. No entanto, temo também que lá no fundo, despojada de todos
os acessórios, eu não seja diferente dessa décima pessoa parada na estrada
desejando
que alguém pare e a escolha. Cutuco Simon.
- Eu me pergunto o que esperam, se é que esperam alguma coisa.
Ele responde entre debochado e animador:

#227

- Ei, O céu é O limite - desde que não chova.


Imagino cem Ícaros chineses, moldando asas de cera de ouvido. Você não
pode impedir que as pessoas tenham desejos. Elas não podem deixar de tentar.
Enquanto
puderem ver o céu, sempre desejarão voar o mais alto possível.
Os intervalos entre aldeias e vendedores de beira de estrada foram
ficando maiores. Kwan está adormecendo, a cabeça cada vez mais abaixada.
Acorda com um
ronco cada vez que o carro cai num buraco. Em pouco tempo, ela está emitindo
longos roncos ritmados, ignorando beatificamente o fato de que Rocky está
dirigindo
cada vez mais depressa pela estrada de mão dupla. Ultrapassa sistematicamente
os veículos mais lentos estalando os dedos ao ritmo da música. Cada vez que
acelera,
a coruja abre ligeiramente as asas, depois torna a ficar quieta na sua gaiola
apertada. Aperto os joelhos e trinco os dentes cada vez que Rocky desvia para
a esquerda
para fazer uma ultrapassagem. O rosto de Simon está tenso, mas quando ele me
pega olhando para ele, sorri.
- Você não acha que devíamos dizer a ele para ir mais devagar? - eu
digo.
- Está tudo bem, não se preocupe.
Interpreto o "não se preocupe" de Simon como um tanto condescendente.
Mas resisto ao impulso de discutir com ele. Estamos agora grudados atrás de um
caminhão
cheio de soldados com uniformes verdes. Eles acenam para nós. Rocky toca a
buzina, depois desvia bruscamente para passar. Enquanto ultrapassamos o
caminhão, vejo
um ônibus vindo na direção contrária, o toque de sua buzina cada vez mais
próximo.
- Oh, meu Deus, oh, meu Deus - eu gemo. Fecho os olhos e sinto Simon
agarrar a minha mão. O carro volta com um solavanco para a pista da direita.
Ouço um
ruuush, e em seguida o barulho da buzina do ônibus diminuindo.
- Já chega - digo num sussurro tenso. - Vou dizer a ele para ir mais
devagar.
- Não sei, Olivia. Ele pode se ofender.
Olho zangada para Simon.
- O quê? Você prefere morrer a ser rude?

#228

Ele finge que está à vontade.


- Todos eles dirigem deste jeito.
- Então o suicídio em massa justifica o suicídio? Que tipo de lógica é
esta?
- Bem, nós não vimos qualquer acidente.
O nó de irritação na minha garganta arrebentou.
- Por que você acha sempre que é melhor não dizer nada? Diga-me, quem
vai juntar os pedaços depois que o estrago estiver feito?
Simon fica olhando para mim, e eu não sei se está zangado ou
arrependido. Nesse momento, Rocky freia abruptamente. Kwan e a coruja acordam
batendo braços
e asas. Talvez Rocky tenha compreendido o tema da nossa discussão - mas não,
estamos agora quase parados num engarrafamento. Rocky abre o vidro e põe a
cabeça para
fora. Pragueja baixinho, depois começa a tocar a buzina do carro com o punho.
Após alguns minutos, podemos ver a causa da demora: um acidente, muito
feio, a julgar pela quantidade de vidro, metal e pertences espalhados pela
estrada.
O cheiro de gasolina e borracha queimada enche o ar. Eu já ia dizer para Simon
"viu só?" Mas agora o nosso carro está passando pertinho de uma minivan preta,
de
barriga para cima, as portas entortadas como as asas quebradas de um inseto
esmagado. A parte da frente está destruída. Não há esperança para quem
estivesse ali.
Um dos pneus está caído numa plantação próxima. Segundos mais tarde, passamos
pela outra metade do impacto: um ônibus público vermelho e branco. O vidro da
frente
está despedaçado, o capô arredondado está torcido e horrivelmente manchado de
sangue, e o assento do motorista está vazio, um mau sinal. Cerca de cinqüenta
curiosos,
carregando pás e enxadas, circulam ao redor do ônibus, apontando para diversas
partes amassadas do veículo como se estivessem numa mostra de ciência. Ao
passar pelo
outro lado do ônibus, vejo cerca de uma dúzia de pessoas feridas, algumas
gritando de dor, outras deitadas em choque. Ou talvez mortas.
- Merda, não posso acreditar nisso - diz Simon. - Não há nem
ambulâncias nem médicos.

#229

- Pare o carro - ordeno em chinês. - Temos de ajudá-los. - Por que eu


disse isto? O que posso fazer? Mal posso olhar para as vítimas, quanto mais
tocar nelas.
- Ai-ya. - Kwan olha para o local. - Tantas pessoas yin. - Pessoas
yin? Kwan está dizendo que há pessoas mortas lá? A coruja pia agourentamente e
minhas
mãos ficam geladas.
Rocky mantém os olhos na estrada, sem parar, deixando a tragédia para
trás.
- Não vamos poder ajudar - ele diz em chinês. - Não temos remédios nem
ataduras. Além disso, não é bom nos metermos, principalmente porque vocês são
estrangeiros.
Não se preocupem, a polícia vai chegar logo.
Secretamente, fico aliviada por ele não obedecer às minhas instruções.
- Vocês são americanos - ele continua, a voz cheia de autoridade
chinesa. - Não estão acostumados a presenciar tragédias. Sentem pena de nós,
sim, porque
depois podem ir para casa, para uma vida confortável, e esquecer o que viram.
Para nós, este tipo de acidente é comum. Temos tanta gente. Esta é a nossa
vida, sempre
um ônibus cheio demais, todo mundo tentando achar um lugar, sem ar para
respirar, sem espaço para piedade.
- Será que alguém pode fazer o favor de me dizer o que está
acontecendo? - Simon diz. - Por que não paramos?
- Não faça perguntas - eu digo. - Lembra?
Agora eu estou contente pelo fato de o sonho americano de Rocky jamais
se tornar realidade. Quero contar a ele sobre os imigrantes chineses ilegais
que são
enganados por quadrilhas, que apodrecem nas prisões e são deportados de volta
para a China. Vou encher os ouvidos dele com histórias sobre pessoas sem teto,
sobre
o índice de criminalidade, sobre pessoas com diplomas universitários que mofam
nas filas de desempregados. Quem é ele para achar que suas chances de se dar
bem são
melhores do que as deles? Quem é ele para presumir que nós não sabemos nada
sobre a miséria? Vou rasgar seu dicionário chinês-inglês e enfiar em sua boca.
E então me sinto doente de nojo de mim mesma. Rocky tem razão. Não
posso ajudar a ninguém, nem a mim mesma.

#230

Peço para ele parar para eu poder vomitar. Enquanto me debruço para fora do
carro, Simon dá tapinhas em minhas costas.
- Você está bem, está tudo bem. Eu também estou meio enjoado.
Quando retomamos à estrada, Kwan dá alguns conselhos a Rocky. Ele
balança solenemente a cabeça e diminui a velocidade.
- O que foi que ela disse? - Simon pergunta.
- Lógica chinesa. Se nós morrermos, ele não recebe nada. E, na próxima
existência, vai ficar nos devendo um bocado.

Passam-se mais três horas. Eu sei que devemos estar perto de Changmian. Kwan
está apontando para a paisagem.
- Lá! Lá! - ela grita, pulando como uma criança. - Aqueles dois picos.
A aldeia que eles cercam se chama Esposa Aguardando Retorno de Marido. Mas
onde está
a árvore? O que aconteceu com a árvore? Bem ali, perto da casa, havia uma
árvore enorme, que devia ter uns mil anos.
Ela examina a paisagem.
- Aquele lugar ali! Costumávamos ter uma grande feira ali. Mas agora,
vejam, é só um descampado. E lá aquela montanha lá na frente! A que chamamos
de Desejo
de Moça. Uma vez fui até o topo.
Kwan ri, mas em seguida parece intrigada.
- Engraçado como a montanha parece pequena agora. Por que será? Será
que encolheu por causa da chuva? Ou talvez o pico tenha ficado gasto com
tantas moças
correndo até lá para formular um desejo. Ou talvez seja porque eu fiquei
americana demais e agora vejo as coisas com outros olhos, tudo parece menor,
mais pobre,
não tão bom.
De repente, Kwan grita para Rocky virar numa estradinha de terra que
acabamos de ultrapassar. Ele faz uma curva fechada em U, fazendo Simon e eu
darmos um
encontrão um no outro e a coruja reclamar indignada. Agora estamos sacolejando
por uma estrada esburacada, passando por campos cobertos de terra vermelha
úmida.

#231

- Vire à esquerda! Vire à esquerda! - Kwan ordena. Ela está com as


mãos cruzadas no colo. - Tantos anos, tantos anos - ela diz, como que entoando
um hino.
Aproximamo-nos de um conjunto de árvores, e então, assim que Kwan
anuncia "Changmian", eu a vejo: uma aldeia aninhada entre dois picos
recortados, as encostas
das colinas de um verde-musgo aveludado com partes cor de esmeralda. Mais
coisas entram na linha de visão: fileiras de construções caiadas de branco,
com telhados
de sapê no formato tradicional de cauda de dragão. Ao redor da aldeia há
campos bem cuidados e lagos espelhados divididos por muros de pedra e valas
para irrigação.
Saltamos do carro. Milagrosamente, Changmian livrou-se dos detritos da
modernização. Não vejo telhados de zinco nem postes de energia elétrica. Em
contraste com
outras aldeias por onde passamos, as terras ao redor da aldeia não se tornaram
depósitos de lixo, as ruas não estão cheias de maços de cigarro amassados nem
de sacos
plásticos cor-de-rosa. Calçadas de pedra cruzam a aldeia, depois sobem entre
dois picos e desaparecem no meio de um arco de pedra. À distância, outro par
de picos
altos, cor de jade, e, mais adiante, as sombras roxas de mais dois. Simon e eu
nos entreolhamos, de olhos arregalados.
- Você pode acreditar numa coisa destas? - ele murmura, e aperta minha
mão.
Lembro-me de outras ocasiões em que ele disse estas mesmas palavras: o
dia em que fomos à Prefeitura para nos casarmos, o dia em que nos mudamos para
o novo
apartamento. E então penso: momentos felizes que se transformaram em outra
coisa.
Tiro a câmera da bolsa. Ao olhar pelo visor, tenho a sensação de
termos tropeçado numa terra misteriosa, metade lembrança metade ilusão. Será
que estamos
no nirvana chinês? Changmian se parece com as fotos cuidadosamente escolhidas
que encontramos em folhetos de agências de viagens anunciando "um mundo
encantador
de antigamente, onde os visitantes podem recuar no tempo". Transmite toda a
singularidade sentimental que os turistas buscam mas nunca vêem.

#232

Deve haver alguma coisa errada, fico repetindo para mim mesma. Ao dobrarmos a
esquina, vamos dar de cara com a realidade: a loja de fast-food, o depósito de
pneus,
as placas indicando que esta aldeia é na verdade uma terra da fantasia chinesa
para turistas: Comprem suas entradas aqui! Vejam a China dos seus sonhos!
Intocada
pelo progresso, afundada no passado!
- Tenho a sensação de já ter visto este lugar - cochicho para Simon,
com medo de quebrar o encanto.
- Eu também. É tão perfeito. Talvez tenha sido num documentário -
ele ri. - Ou num comercial de carros.
Contemplo as montanhas e compreendo por que Changmian parece tão
familiar. É o cenário das histórias de Kwan, as que penetraram nos meus
sonhos. Lá estão:
os arcos, as cássias, os muros altos da Casa do Mercador Fantasma, as colinas
que levam à Montanha do Cardo. E ali eu sinto como se a membrana que separava
as duas
metades da minha vida tivesse finalmente se rompido.
De repente ouvimos gritos e vivas. Cinqüenta pequenos estudantes
correm para .um pátio cercado, dando boas-vindas. Quando nos aproximamos, as
crianças gritam,
dão meia-volta e correm de volta para o prédio da escola, rindo. Segundos
depois, elas voltam correndo e gritando na nossa direção, como um bando de
passarinhos,
acompanhadas pela professora. Perfilam-se e então, como a um sinal invisível,
gritam juntas em inglês:
- A-B-C! Um-dois-três! Como vão vocês? Alô adeus! - Será que alguém
avisou a elas que estavam chegando visitantes americanos? Será que as crianças
ensaiaram
isso para nós?
As crianças acenam e nós acenamos de volta.
- Alô adeus! Alô adeus! - Seguimos pelo caminho que passa pela escola.
Dois rapazes de bicicleta diminuem a velocidade e param para olhar para nós.
Continuamos
andando e viramos uma esquina. Kwan fica sem fala. Mais adiante, defronte de
um portão, estão paradas umas doze pessoas, sorrindo. Kwan cobre a boca com a
mão, depois
corre para elas.

#233

Quando alcança o grupo, agarra a mão de cada pessoa, depois puxa uma mulher
gorda e dá tapas em suas costas. Simon e eu nos aproximamos de Kwan e seus
amigos. Eles
estão trocando insultos amigáveis.
- Gorda! Você está incrivelmente gorda!
- Ei, olhe para você - o que houve com o seu cabelo? Você o estragou
de propósito?
- A moda é assim! Será que você ficou tanto tempo no campo que não
reconhece o que é moda?
- Oh, ouçam só o que ela diz, mandona como sempre.
- Você é que sempre foi mandona, não...
Kwan interrompe a frase pelo meio, olhando hipnotizada para um muro de
pedra. Dava a impressão de ser a coisa mais fascinante que ela já tinha visto.
- Grande Ma - ela murmura. - O que aconteceu? Como pode ser?
Um homem na multidão diz:
- Ah! Ela estava tão ansiosa para vê-la que acordou bem cedinho e
pulou num ônibus para encontrá-la em Guilin. E agora veja - você está aqui,
ela está lá.
Como vai ficar furiosa!
Todo mundo ri, exceto Kwan. Aproxima-se do muro, chamando com voz
rouca:
- Grande Ma, Grande Ma. - Várias pessoas cochicham e todo mundo recua,
assustado.
- Uh-oh - eu digo.
- Por que Kwan está chorando? - Simon murmura.
- Grande Ma, oh, Grande Ma. - As lágrimas escorrem pelo rosto de Kwan.
- Você precisa acreditar em mim, não era isto que eu queria. Que azar você ter
morrido
no dia em que voltei para casa. - Algumas mulheres cobrem a boca, espantadas.
Aproximo-me de Kwan.
- O que você está dizendo? Por que acha que ela está morta?
- Por que está todo mundo tão agitado? - Simon olha em volta.
Eu ergo a mão.
- Não tenho certeza. - Torno a me virar para ela. - Kwan? - Digo
docemente. - Kwan? - Mas ela não parece me ouvir.

#234
Está olhando ternamente para o muro, rindo e chorando.
- Sim, eu sabia disto - ela está dizendo. - É claro. Eu sabia. No
fundo do meu coração eu sempre soube.

De tarde, os habitantes da aldeia dão uma festa de boas-vindas para Kwan no


salão comunitário. A notícia de que Kwan viu o fantasma da Grande Ma já se
espalhou por
Changmian. Mas, como ela não anunciou isto para a aldeia, e como não há prova
de que a Grande Ma tenha morrido, não há motivo para cancelar uma festa com
comida
em abundância que evidentemente seus amigos levaram dias preparando. Durante a
festa, Kwan não conta vantagens sobre seu carro, seu sofá, seu inglês. Ouve
calada
enquanto seus amigos de infância falam sobre os principais acontecimentos de
suas vidas: o nascimento de filhos gêmeos, uma viagem de trem até uma cidade
grande,
e a vez em que um grupo de estudantes intelectuais foi mandado para Changmian
para ser reeducado durante a Revolução Cultural.
- Eles achavam que eram mais inteligentes do que nós - conta uma mulher
cujas mãos estão deformadas pela artrite. - Queriam que nós plantássemos um
arroz que
dava mais depressa, três colheitas por ano em vez de duas. Eles nos deram
sementes especiais. Eles nos trouxeram veneno contra insetos. Então os
sapinhos que nadam
nas plantações de arroz e comem os insetos morreram todos. E os patos que
comem os sapos também morreram todos. Então o arroz também morreu.
Um homem de cabelos espetados gritou:
- Então nós dissemos: "De que adianta plantar três colheitas de arroz
que morrem em vez de duas que vingam?"
A mulher com artrite continua:
- Esses mesmos intelectuais tentaram cruzar as nossas mulas! Ah! Você
pode acreditar numa coisa dessas? Durante dois anos, toda semana, um de nós
perguntava:
"Tiveram sorte?" E eles diziam: "Ainda não, ainda não." E nós tentávamos ficar
sérios e incentivá-los. "Continuem tentando, camaradas, não desistam. "

#235

Ainda estamos rindo quando um menino entra correndo na sala, gritando


que um funcionário de Guilin chegou num elegante carro preto. Silêncio. O
funcionário
entra na sala, e todo mundo fica em pé. Ergue solenemente a carteira de
identidade de Li Bin-bin e pergunta se ela pertencia à aldeia. Várias pessoas
olham nervosamente
para Kwan. Ela caminha vagarosamente até o funcionário, examina a carteira de
identidade e balança a cabeça afirmativamente. O funcionário faz um
pronunciamento
e a sala se enche de gemidos e lamentações.
Simon se inclina para mim.
- Qual é o problema?
- A Grande Ma está morta. Morreu naquele acidente de ônibus que vimos
hoje de manhã.
Simon e eu nos aproximamos de Kwan e colocamos a mão no ombro dela, um
de cada lado.
- Sinto muito - Simon gagueja. - Eu... sinto muito por você não ter
podido revê-la. Por nós não termos podido conhecê-la.
Kwan sorri por entre as lágrimas. Na qualidade de parente mais próximo
de Li Bin-bin, ela se oferece para executar o ritual burocrático de trazer o
corpo
de volta para a aldeia no dia seguinte. Nós três vamos voltar para Guilin.
Assim que Rocky nos vê, apaga o cigarro e desliga o rádio do carro.
Ele deve ter ouvido a notícia.
- Que tragédia - ele diz. - Sinto muito, irmã mais velha, eu devia ter
parado. A culpa é minha...
Kwan interrompe suas desculpas.
- Ninguém tem culpa. De qualquer maneira, é inútil qualquer
arrependimento, sempre vem tarde demais.
Quando Rocky abre a porta do carro, vemos que a coruja ainda está no
banco de trás, dentro de sua gaiola. Kwan ergue delicadamente a gaiola e olha
para a
ave.
- Não é preciso mais subir a montanha - ela diz. Coloca a gaiola no
chão e abre a porta. A coruja estica a cabeça para fora, vai saltitando até a
porta da
gaiola e depois para o chão. Inclina a cabeça e, batendo amplamente as asas,
sai voando na direção das montanhas.

#236

Kwan fica olhando até ela desaparecer. - Chega de remorsos - ela diz. E então
entra no carro.
Enquanto Rocky esquenta o motor, pergunto a Kwan:
- Quando passamos pelo ônibus acidentado esta manhã, você viu alguém
parecido com a Grande Ma? Foi assim que soube que ela tinha morrido?
- O que está dizendo? Eu só soube que ela tinha morrido quando vi seu
eu yin parado perto do muro.
- Então por que você disse a ela que sabia?
Kwan franze a testa, intrigada.
- Sabia o quê?
- Você estava dizendo a ela que sabia, que no fundo do coração sabia
que era verdade. Você não estava se referindo ao acidente?
- Ah -ela diz, compreendendo finalmente. - Não, não ao acidente -
suspira. - Eu disse à Grande Ma que o que ela estava dizendo era verdade.
- O que foi que ela disse?
Kwan se vira para a janela, e eu vejo o reflexo de seu rosto cheio de
dor.
- Ela disse que estava errada sobre a história do Desejo de Moça. Disse
que todos os meus desejos já foram realizados. Ela sempre se arrependeu de ter
me mandado
embora. Mas nunca pôde me dizer isso. Senão eu não a teria deixado em troca da
chance de uma vida melhor.
Procuro alguma forma de consolar Kwan.
- Pelo menos você ainda pode vê-la - digo.
- Ah?
- Quer dizer, como uma pessoa yin. Ela pode visitar você.
Kwan olha para fora pela janela do carro.
- Mas não é a mesma coisa. Nós não podemos mais criar novas
lembranças juntas. Não podemos mudar o passado. Não até a próxima existência.
- Ela suspira
profundamente, liberando todas as palavras não ditas.
Enquanto o nosso carro sacoleja pela estrada, as crianças no pátio
correm na nossa direção e espremem os rostos na cerca.
- Alô adeus! - elas gritam. - Alô adeus!
#237

15
O SÉTIMO DIA

Kwan está devastada, eu posso ver. Ela não está chorando, mas quando sugeri
mais cedo que nós simplesmente usássemos o serviço de quarto do hotel em vez
de sair
para comer mais barato, ela concordou prontamente.
Simon oferece mais condolências a ela. Dá-lhe um beijo no rosto,
depois nos deixa a sós. Estamos comendo lasanha, doze dólares o prato,
extremamente extravagante
pelos padrões chineses. Kwan fica olhando para o seu jantar, o rosto
impassível, uma planície varrida pelo vento antes da tempestade. Para mim,
lasanha é uma comida
consoladora. Estou esperando que ela me dê forças para consolar Kwan.
O que devo dizer? " A Grande Ma foi uma grande dama. Todos nós vamos
sentir falta dela?" Isto não seria sincero, Simon e eu jamais a vimos. E as
histórias
de Kwan sobre os maus-tratos de Grande Ma com relação a ela sempre me
pareceram assunto para uma biografia do tipo Auntie Dearest. No entanto, aqui
está Kwan, sofrendo
com a perda desta mulher malvada que literalmente a deixou cheia de
cicatrizes. Por que será que amamos as mães de nossas vidas mesmo que elas
tenham sido péssimas?
Será que nascemos com os corações em branco, esperando ser impressos com
qualquer imitação de amor?
Penso na minha própria mãe. Será que eu ficaria desolada se ela
morresse? Só de pensar nisso eu me sinto aterrorizada e culpada.

#238

Mas penso a respeito: será que eu revisitaria a minha infância para colher
lembranças felizes e veria que elas são tão raras quanto amoras maduras num
galho já colhido?
Será que tropeçaria em espinhos, incomodando a abelha rainha cercada por seus
zangões apaixonados? Será que quando minha mãe morresse eu a perdoaria e em
seguida
daria um suspiro de alívio? Ou iria para um pequeno vale imaginário onde minha
mãe agora é perfeita, atenciosa e amorosa, onde ela me abraça e diz: "Sinto
muito,
Olivia. Fui uma mãe horrível, uma verdadeira merda. Não a culparia se você
jamais me perdoasse." É isso que eu quero ouvir. Imagino o que me diria de
fato.
- Lasanha - Kwan diz de repente.
- O quê?
- A Grande Ma pergunta o que nós estamos comendo, Agora ela diz que
tem muita pena de não ter tido tempo para provar comida americana.
- Lasanha é italiana.
- Shh! Shh! Eu sei, mas, se disser isso a ela, ela vai se arrepender
de não ter tido tempo de ver a Itália. Já se arrepende de muita coisa.
Inclino-me para Kwan e digo baixinho:
- A Grande Ma não entende inglês?
- Só dialeto de Changmian e um pouco de conversa do coração. Depois
que estiver morta há mais tempo, vai aprender mais conversa do coração, talvez
até um
pouco de inglês...
Kwan continua falando, e eu fico contente por ela não estar se
afogando na tristeza, porque eu não saberia como salvá-la.
- ...Pessoas yin, depois de algum tempo, só falam conversa do coração.
Mais fácil, mais rápido assim. Sem palavras mal interpretadas.
- Como é a conversa do coração?
- Já disse a você.
- Disse?
- Muitas vezes. Não usa só língua, lábios, dentes para falar. Usa cem
sentidos secretos.

#239

- Oh, certo, certo. - Recordo trechos de conversas que tivemos sobre


isto: os sentidos que estão relacionados aos instintos primitivos, os que os
seres humanos
tinham antes de seus cérebros desenvolverem a linguagem e outras funções
superiores - a capacidade de se equivocar, dar desculpas e mentir. Frio na
espinha e cheiros
almiscarados, arrepios e rubores no rosto - esses são o vocabulário dos
sentidos secretos. Eu acho.
- Os sentidos secretos - digo para Kwan. - É como quando você fica com
o cabelo em pé e isto quer dizer que você está com medo?
- Alguém que você ama está com medo.
- Alguém que você ama?
- Sim, sentido secreto é sempre entre duas pessoas. Como você pode ter
sentido secreto que só você sabe, ah? Seu cabelo fica em pé, você sabe o
segredo de
alguém.
- Pensei que você queria dizer que eles eram secretos porque as
pessoas se esqueceram de que têm esses sentidos.
- Ah, sim. As pessoas freqüentemente esquecem até morrerem.
- Então é uma língua de fantasmas.
- Língua de amor. Não só do tipo amor meloso de namorados. Qualquer
tipo de amor, mãe-filho, tia-sobrinha, amiga-amiga, irmã-irmã, estranho-
estranho.
- Estranho? Como você pode amar um estranho?
Kwan sorri.
- Quando você conhece Simon, ele estranho, certo? Primeira vez que
conheci você, você estranha também. E Georgie! Quando vi Georgie pela primeira
vez, disse
para mim mesma: "Kwan, de onde você conhece este homem?" Sabe de uma coisa?
Georgie é meu namorado da outra vida.
- Realmente? Yiban?
- Não, Zeng!
Zeng? Me dá um branco.
E ela responde em chinês:
- Você sabe - o homem que me trazia jarras de óleo.
- Sim, agora me lembro.

#240

- Espere, Grande Ma, estou contando a Libby-ah a respeito do meu


marido. - Kwan olha para além de mim. - Sim, você o conhece - não, não nesta
existência,
na anterior, quando você era Ermei e eu lhe dava ovos de pata e você me dava
sal.
Enquanto enfio meu garfo na lasanha, Kwan conversa alegremente,
distraída da dor por suas lembranças de um passado de faz-de-conta.

A última vez que vi Zeng antes de ele se tornar Georgie foi... ah, sim, na
véspera da minha morte.
Zeng me levou um saquinho de cevada seca e, más notícias. Quando lhe
entreguei suas roupas lavadas, ele não me entregou nada para lavar. Eu estava
parada
ao lado dos meus caldeirões, fervendo as roupas.
- Não precisa mais se preocupar com o que está limpo ou sujo - ele me
disse. Ele estava olhando para as montanhas, não para mim. Ah, eu pensei, ele
está
dizendo que nosso namoro terminou. Mas então ele anunciou: - O Rei Celestial
está morto.
Wah! Foi como ouvir um trovão quando o céu está azul.
- Como isto pôde acontecer? O Rei Celestial não pode morrer, ele é
imortal!
- Não é mais - Zeng disse.
- Quem o matou?
- Morreu por suas próprias mãos, é o que o povo está dizendo.
Esta notícia foi ainda mais chocante que a primeira. O Rei Celestial
não permitia o suicídio. E agora tinha se matado? Agora estava admitindo que
não era
o irmãozinho de Jesus? Como um hakka podia desgraçar o seu próprio povo desta
maneira? Olhei para Zeng, seu rosto sombrio. Percebi que ele estava sentindo a
mesma
coisa. Ele também era hakka.
Pensei sobre isto enquanto tirava as roupas pesadas da água.

#241

- Pelo menos as guerras vão terminar agora - eu disse. - Os rios vão


se encher de barcos outra vez.
Foi então que Zeng me deu a terceira notícia, pior ainda que as outras
duas.
- Os rios já estão cheios, não de barcos mas de sangue. - Quando
alguém diz "não de barcos mas de sangue", você não ouve simplesmente e diz:
"Ah, sei." Tive
de arrancar dele cada pedacinho de informação, como implorar por uma tigela de
arroz e conseguir um grão de cada vez. Ele estava muito pão-duro com as
palavras.
Aos pouquinhos, foi isto que eu soube.
Dez anos antes, o Rei Celestial tinha enviado uma maré de mortes das
montanhas para a costa. Correram rios de sangue, milhões de pessoas morreram.
Agora
a maré estava voltando. Nas cidades portuárias, os manchus tinham assassinado
todos os Adoradores de Deus. Eles estavam se deslocando para o interior,
queimando
casas, cavando túmulos, destruindo ao mesmo tempo o céu e a terra. - Todos
mortos - Zeng me disse. - Ninguém é poupado, nem mesmo os bebês.
Quando ele disse isto, eu vi muitos bebês chorando.
- Quando eles chegarão na nossa província? - murmurei. - No mês que vem?
- Oh, não. O mensageiro alcançou a nossa aldeia apenas alguns passos na
frente da morte.
- Ai-ya! Duas semanas? Uma? Quanto tempo?
- Amanhã os soldados vão destruir Jintian - ele disse.
- No dia seguinte, Changmian.
Meu corpo ficou como que anestesiado. Encostei-me na pedra do moinho. Na
minha cabeça, eu já podia ver os soldados marchando pela estrada. Enquanto eu
imaginava
as espadas gotejantes de sangue, Zeng pediu para eu me casar com ele. Na
verdade, ele não usou a palavra "casar". Ele disse numa voz rouca:
- Ei, esta noite eu vou para as montanhas, me esconder nas cavernas.
Você quer ir comigo ou não?
Para você, isto pode parecer desajeitado, não muito romântico. Mas, se
alguém se oferece para salvar sua vida, isto não tem o mesmo valor que ir até
uma igreja
vestida de branco e dizer "sim"?

#242

Se a minha situação fosse diferente, era isto que diria: sim, quero. Mas eu
não tinha espaço em minha mente para pensar em casamento. Estava pensando no
que aconteceria
com a Srta. Bandeira, Lao Lu, Yiban - sim, até com os Adoradores de Jesus,
aqueles rostos brancos do Pastor e da Sra. Amém, da Srta. Camundongo e do Dr.
Tarde Demais.
Que estranho, pensei. Por que deveria me preocupar com o que vai acontecer com
eles? Não temos nada em comum - nem a língua, nem as idéias, nem os mesmos
sentimentos
acerca do céu e da terra. No entanto, uma coisa eu podia dizer: as intenções
deles são sinceras. Talvez algumas das intenções não sejam muito boas, porque
conduzem
a maus resultados. Ainda assim, eles se empenham muito. Quando se tem certeza
disto com relação a uma pessoa, como é possível não ter nada em comum com ela?
Zeng interrompeu meus pensamentos:
- Você vem ou não vem?
- Deixe-me pensar um pouco - respondi. - Minha mente não é tão rápida
quanto a sua.
- O que há para pensar? - Zeng disse. - Você quer viver ou quer
morrer? Não pense muito. Isto a faz acreditar que tem mais chances do que
realmente tem.
E aí a sua mente fica confusa. - Ele foi até o banco que ficava encostado no
muro, pôs as mãos atrás da cabeça e se deitou.
Pus as roupas para torcer. Rolei a pedra para tirar a água. Zeng tinha
razão; eu estava confusa. Num canto da minha mente, pensava, Zeng é um bom
homem.
Pelo resto da minha vida, eu posso não ter outra chance igual a esta,
especialmente se morrer cedo.
Então fui para o outro canto da minha mente: se eu for com ele, então
não terei mais qualquer pergunta nem resposta só minhas. Não vou poder mais
perguntar
a mim mesma: "Sou uma amiga leal? Devo ajudar a Srta. Bandeira? E quanto aos
Adoradores de Jesus?" Essas perguntas não existiriam mais. Zeng decidiria com
que eu
deveria me preocupar, e com que não deveria. É assim que as coisas são entre
homem e mulher.

#243

Minha mente estava andando para a frente e para trás, de um lado para
o outro. Uma vida nova com Zeng? A velha lealdade aos amigos? Se eu me
escondesse nas
montanhas, sentiria medo e depois morreria do mesmo jeito? Se ficasse, minha
morte seria rápida? Que vida, que morte, que caminho? Era como caçar uma
galinha e depois
se tornar a galinha que está sendo caçada. Eu só tinha um minuto para decidir
que sentimento era mais forte. E foi este que eu segui.
Olhei para Zeng deitado no banco. Os olhos dele estavam fechados Ele
era uma pessoa gentil, não muito inteligente, mas sempre honesta. Decidi
terminar o
nosso amoro do mesmo modo que o tinha começado. Agiria com diplomacia e o
faria acreditar que a idéia de terminar tinha sido dele.
- Zeng - ah - chamei.
Ele abriu os olhos e sentou no banco.
Comecei a pendurar a roupa lavada.
- Por que deveríamos fugir? - eu disse. - Não somos seguidores dos
taiping.
Ele pôs as mãos nos joelhos.
- Preste atenção ao seu amigo, ah - ele disse, com toda a paciência.
- Os manchus só precisam de uma pista de que você é amiga dos Adoradores de
Deus.
Veja só onde você mora. É o suficiente para uma sentença de morte.
Eu sabia disto, mas, em vez de concordar, argumentei:
- O que está dizendo? Os estrangeiros não adoram o Rei Celestial. Eu
os ouvi dizer muitas vezes:" Jesus não tem nenhum irmãozinho chinês."
Zeng ficou irritado comigo, como se nunca tivesse percebido o quanto
eu era burra.
- Diga isto para um soldado manchu e sua cabeça rola imediatamente. -
Ele se levantou. - Não perca mais tempo falando. Vou partir esta noite. Você
vem comigo?
Continuei com a minha conversa boba:
- Por que não esperar mais um pouco? Vamos ver o que vai acontecer. A
situação não pode ser tão ruim quanto você está dizendo. Os manchus vão matar
algumas
pessoas aqui e ali, mas só algumas, para servir de exemplo.

#244

Quanto aos estrangeiros, os manchus não vão mexer com eles. Eles têm
um tratado. Agora que estou pensando nisso, talvez seja mais seguro ficar
aqui. Zeng-ah, venha morar conosco. Temos espaço.
- Morar aqui? - ele gritou. - Wah! É melhor eu cortar minha garganta
agora mesmo! - Zeng se agachou e eu pude ver que sua mente borbulhava como o
meu caldeirão
de roupa. Ele estava dizendo uma porção de coisas grosseiras, alto o bastante
para eu escutar: - Ela é uma idiota. Só um olho - não surpreende que não
possa ver
qual é a coisa certa a fazer!
- Ei! Quem é você para me criticar? - eu disse. - Talvez uma mosca
tenha voado para dentro do seu ouvido e enchido a sua cabeça com febre de
gafanhoto. -
Ergui a ponta do meu dedinho e fiz ziguezagues no ar. - Você ouve zzz-
zzz e acha que nuvens de tempestade estão chegando por trás. Assustado à toa.
- À toa! - Zeng gritou. - O que houve com a sua cabeça? Será que você
está morando há tanto tempo nas nuvens sagradas dos estrangeiros que pensa que
é imortal?
- Ele se levantou, me olhou zangado por alguns instantes, depois disse - Bah!
- Virou-se e foi embora. Meu coração começou a doer na mesma hora. Enquanto
ele se
afastava, eu o ouvi dizer: - Que garota maluca! Perdeu o juízo e agora vai
perder a cabeça...
Continuei a estender a roupa, mas agora meus dedos estavam tremendo.
Com que rapidez bons sentimentos se transformam em maus. Com que rapidez ele
foi enganado.
Uma lágrima queimava no meu olho. Eu a reprimi. Nada de autopiedade. Chorar
era um luxo de gente fraca. Comecei cantar uma das velhas canções da
montanha, não me
lembro qual. Mas minha voz era forte e clara, jovem e triste.
- Tudo bem, tudo bem. Chega de discussão. - Quando eu me virei, lá
estava Zeng, com um ar cansado. - Podemos levar os estrangeiros para as
montanhas também
- ele disse.
Levá-los conosco! Concordei. Enquanto se afastava, ele começou a
cantar a resposta masculina à minha canção. Este homem era mais esperto do que
eu tinha
pensado.

#245

Que marido esperto ele daria! E com uma boa voz também. Ele parou e chamou:
- Nunumu?
- Ah!
- Duas horas depois do pôr-do-sol, eu venho. Diga a todo mundo para
estar pronto no pátio principal. Entendido?
- Entendido! - gritei.
Ele deu mais alguns passos e tornou a parar.
- Nunumu?
- Ah!
- Não lave mais roupas. Só vão restar cadáveres para usá-las.
Está vendo? Ele já estava sendo mandão, tomando decisões por mim. Foi
assim que eu soube que estávamos casados. Foi assim que ele me disse sim.

Depois que zeng saiu, fui para o jardim e subi até o pavilhão onde o Mercador
Fantasma morreu. Olhei por cima do muro e vi os telhados de muitas casas, o
pequeno
atalho que levava às montanhas. Quem estivesse vendo Changmian pela primeira
vez, poderia pensar: "Ah, que lugar lindo. Tão silencioso. Tão tranqüilo. Eu
devia passar
minha lua-de-mel aqui."
Mas eu sabia que aquela tranqüilidade significava que a etapa de
perigo estava terminando e que a de desgraça ia começar logo. O ar estava
pesado e úmido,
difícil de respirar. Não vi nem pássaros nem nuvens. O céu estava manchado de
cor de laranja e vermelho, como se o derrama mento de sangue já tivesse
atingido o
céu. Eu estava nervosa. Tinha a sensação de que algo estava se arrastando
sobre a minha pele. E, quando olhei, subindo pelo meu braço estava um dos
cinco demônios,
uma lacraia, suas pernas marchando a um só tempo! Wah! Eu a tirei do meu braço
com
um piparote e depois pisei nela até achatá-la completamente. Embora ela já
estivesse morta, meu pé continuou a pisar nela, até ela não passar de uma
mancha escura
no chão de pedra. E mesmo assim eu não consegui me livrar da sensação de que
algo estava se arrastando sobre a minha pele.

#246
Após algum tempo, ouvi Lao Lu tocando a sineta do jantar. Só então me acalmei.
Na sala de jantar, sentei-me ao lado da Srta. Bandeira. Não tínhamos mais
mesas separadas
para chineses e estrangeiros desde que eu começara a dividir com eles os meus
ovos de pata. Como sempre, a Sra. Amém fez uma oração. Como sempre, Lao Lu
trouxe um
prato de gafanhotos fritos, que disse ser coelho. Eu ia esperar até acabarmos
de jantar, mas meus pensamentos escaparam por minha boca:
- Como posso comer sabendo que amanhã poderemos estar mortos?
Quando a Srta. Bandeira terminou de traduzir minhas más notícias, todo
mundo ficou calado por um momento. Pastor Amém saltou da cadeira, ergueu os
braços
e gritou por Deus numa voz feliz. A Sra. Amém conduziu o marido de volta para
a cadeira e o fez sentar-se. Depois ela falou e a Srta. Bandeira traduziu suas
palavras:
- Pastor não pode ir.Vocês estão vendo como ele está, ainda agitado.
Lá ele poderia atrair atenção sobre si mesmo, pondo em risco a vida dos
outros. Nós
vamos ficar aqui. Tenho certeza de que os manchus não nos farão mal, já que
somos estrangeiros.
Seria coragem ou estupidez? Talvez ela tivesse razão e os manchus não
matassem os estrangeiros. Mas quem podia ter certeza?
A Srta. Camundongo falou em seguida.
- Onde é essa caverna? Você sabe como encontrá-la? Nós podemos nos
perder! Quem é esse homem Zeng? Por que deveríamos confiar nele? - Ela não
conseguia parar
de se preocupar. - Está tão escuro! Devíamos ficar aqui. Os manchus não podem
nos matar. Não é permitido. Somos súditos da Rainha...
O Dr. Tarde Demais correu para a Srta. Camundongo e tomou-lhe o pulso.
A Srta. Bandeira foi traduzindo baixinho para mim o que ele dizia:
- O coração dela está batendo depressa demais... Uma viagem para as
montanhas iria matá-la... Pastor e a Srta. Camundongo são seus pacientes...
Ele vai ficar
com eles...

#247

Agora a Srta. Camundongo está chorando e o Dr. Tarde Demais está segurando a
mão dela... - A Srta. Bandeira estava traduzindo coisas que eu podia ver por
mim mesma.
Isto mostrava o quanto ela estava desorientada.
Então Lao Lu falou:
- Eu não vou ficar. Olhem para mim. Onde está o meu nariz comprido,
meus olhos claros? Não posso me esconder atrás deste velho rosto. Pelo menos
nas montanhas
existem mil cavernas, mil chances. Aqui eu não tenho nenhuma.
A Srta. Bandeira olhou para Yiban, com muito medo nos olhos. Eu sabia
o que ela estava pensando: que aquele homem que ela amava parecia ser mais
chinês do
que Johnson. Agora que penso nisso, o rosto de Yiban era parecido com o de
Simon, às vezes chinês, às vezes estrangeiro, às vezes misturado. Mas naquela
noite, para
a Srta. Bandeira, ele parecia muito chinês. Eu sei disto porque ela se virou
para mim e disse:
- A que horas Zeng vem nos buscar?
Não tínhamos relógios de pulso naquela época, então eu disse algo do
tipo: "Quando a lua tiver ido até o meio do céu", o que significava por volta
das dez
horas. A Srta. Bandeira balançou a cabeça e foi para o seu quarto. Quando
saiu, estava usando suas melhores coisas: seu vestido de domingo com a bainha
rasgada,
o colar com o rosto de mulher gravado na pedra laranja, luvas do mais puro
couro, seus prendedores de cabelo favoritos. Eles eram de tartaruga, como a
saboneteira
que você me deu de aniversário. Agora você sabe por que gostei tanto dela.
Essas foram as coisas que ela resolveu usar caso morresse. Eu, eu não me
importei com
roupas, embora aquela fosse ser a minha noite de núpcias. Além disso, minha
outra calça e minha outra blusa ainda estavam molhadas, penduradas no jardim.
E não eram
melhores do que as que eu estava usando.

O sol se pôs. A meia-lua surgiu e foi subindo. Estávamos agitados, esperando


por Zeng no pátio escuro. Para ser honesta, não precisávamos esperar por ele.
Eu conhecia
o caminho para as montanhas tão bem quanto ele, talvez até melhor.

#248

Mas não contei isto para os outros.


Finalmente, nós ouvimos um punho batendo no portão. Pom! Pom! Pom! Zeng
tinha chegado! Antes que Lao Lu chegasse no portão, o som se repetiu: Pom!
Pom! Pom!
Então Lao Lu gritou:
- Você nos fez esperar, agora pode fazer o mesmo enquanto eu urino! -
Ele abriu um dos lados do portão e instantaneamente dois soldados manchus
armados saltaram
para dentro, derrubando-o no chão. A Srta. Camundongo deu um grito longo -
"Aaaaahhhhh!" - seguido de gritinhos curtos - "Aahh-aahh-aahh!" O Dr. Tarde
Demais tapou
sua boca barulhenta. A Srta. Bandeira empurrou Yiban e ele se escondeu atrás
de um arbusto. Eu não fiz nada. Mas no meu coração, eu estava chorando. O
que houve com Zeng? Onde estava o meu novo marido?
Nesse instante, outra pessoa entrou no pátio. Outro soldado. Este era de
alta patente, um estrangeiro. O cabelo dele era curto. Ele não tinha barba nem
capa.
Mas, quando falou gritando "Nelly!" enquanto batia com a bengala no chão -,
soubemos quem era esse ladrão e traidor. Lá estava ele, General Capa,
examinando o pátio
à procura da Srta. Bandeira. Ele parecia arrependido pelo que tinha feito. Os
Adoradores de Jesus saíram correndo para esmurrá-lo. Ele estendeu o braço para
a Srta.
Bandeira.
- Nelly - disse mais uma vez. Ela não se moveu. E então tudo de errado
aconteceu de repente. Yiban saiu de trás do arbusto e caminhou zangado na
direção de
Capa. A Srta. Bandeira correu na frente de Yiban e se atirou nos braços de
Capa murmurando:
- Warren.
Pastor Amém começou a rir. Lao Lu gritou:
- A cadela mal pode esperar para foder o cachorro!
Uma espada desceu - crack! - e mais uma vez - whuck! E, antes que
qualquer um de nós pudesse gritar pare, uma cabeça veio rolando em minha
direção, os lábios
ainda na forma de um grito. Fiquei olhando para a cabeça de Lao Lu, esperando
ouvir suas habituais imprecações. Por que ele não falava?

#249

Atrás de mim, ouvi os estrangeiros, seus soluços e gemidos. E então um urro


saiu do meu peito e eu me atirei no chão, tentando juntar de novo os pedaços
de Lao Lu.
Inútil! Fiquei em pé de um salto, olhei para Capa, pronta para matar e ser
morta. Dei um único passo e minhas pernas ficaram moles, como se não tivessem
ossos por
dentro. A noite ficou mais escura, o ar ainda mais pesado, enquanto o chão
subia e batia de encontro ao meu rosto.
Quando abri o olho, vi minhas mãos e as levei ao pescoço. Minha cabeça
estava lá, bem como um grande calombo de um lado. Será que alguém tinha me
golpeado?
Ou eu tinha desmaiado? Olhei em volta. Lao Lu tinha desaparecido, mas a terra
em volta ainda estava molhada com o sangue dele. No momento seguinte, ouvi
gritos vindo
do outro canto da casa. Escondi-me atrás de uma árvore. De lá, podia espiar
pelas janelas e portas abertas da sala de jantar. Foi como assistir a um sonho
estranho
e terrível. Os lampiões estavam acesos. Onde os estrangeiros conseguiram óleo?
Na mesa pequena onde os chineses costumavam jantar estavam sentados os dois
soldados
manchus e Yiban. No meio da mesa dos estrangeiros havia um osso enorme, sua
carne enegrecida ainda soltando fumaça. Quem trouxe essa comida? O General
Capa tinha
uma pistola em cada mão. Ele ergueu uma e apontou para Pastor Amém, que estava
sentado ao lado dele. A pistola estalou mas não houve qualquer explosão. Todo
mundo
riu. Pastor Amém começou a arrancar pedaços de carne com as mãos.
Logo em seguida, Capa deu uma ordem para os seus soldados. Eles
recolheram as espadas, atravessaram rapidamente o pátio, abriram o portão e
saÍram. Capa então
ficou em pé e se inclinou para os Adoradores de Jesus como que para lhes
agradecer por terem sido seus honrados convidados. Ele estendeu a mão para a
Srta. Bandeira,
e, como se fossem imperador e imperatriz, caminharam pelo corredor até o
quarto dela. Logo depois, ouvi os horríveis sons da caixa de música.
Meu olho voou de volta para a sala de jantar. Os estrangeiros não
estavam mais rindo. A Srta. Camundongo cobria o rosto com as mãos.

#250

O Dr. Tarde Demais a consolava. Só Pastor Amém estava sorrindo enquanto


examinava o osso. Yiban já tinha saído.
Tantos maus pensamentos giravam em minha cabeça. Não era de estranhar
que os estrangeiros fossem chamados de demônios brancos! Eles não tinham
moral. Não eram
confiáveis. Quando eles dizem para dar a outra face, querem realmente dizer
que têm duas faces, uma enganadora, a outra falsa. Como pude ser burra a ponto
de achar
que eles eram meus amigos? E agora onde estava Zeng? Como pude arriscar sua
vida por eles?
Uma porta se abriu e a Srta. Bandeira apareceu, segurando uma lanterna.
Respondeu alguma coisa para o General Capa num tom de brincadeira, depois
fechou a porta
e saiu para o pátio.
- Nuli! - ela gritou asperamente em chinês. - Nuli, venha! Não me faça
esperar! - Oh, fiquei com ódio. Quem ela pensa que está chamando, uma escrava?
Ela estava
procurando por mim, andando em círculos. Minha mão procurou uma pedra no chão.
Mas só o que achei foi uma pedrinha, e, agarrando esta frágil arma, disse a
mim mesma:
"Desta vez vou mesmo arrebentar a cabeça dela."
Saí de trás da árvore.
- Nuwuf- respondi.
Assim que eu a chamei de bruxa, ela se virou, a lanterna brilhando em
seu rosto. Ainda não podia me ver.
- Então, bruxa - eu disse -, você sabe o seu nome? - Um dos soldados
abriu o portão e perguntou se estava havendo alguma coisa. Cortem a cabeça
dela, esperei
que ela dissesse. Mas, em vez disso, ela respondeu numa voz calma: - Estava
chamando a minha empregada.
- Quer que a procuremos?
- Ah! Não precisa, já a encontrei. Veja, ela está ali. - Ela estava
apontando para um lugar escuro do outro lado do pátio. - Nuli! - gritou para o
lugar vazio.
- Rápido, traga-me a chave da minha caixa de música!
O que ela estava dizendo? Eu não estava ali. O soldado tornou a sair,
fechando o portão. A Srta. Bandeira virou-se e se aproximou rapidamente de
mim.

#251

Em um instante, o rosto dela estava pertinho do meu. À luz da lanterna, pude


perceber a angústia em seus olhos.
- Você ainda é a minha amiga leal? - ela perguntou com uma voz doce e
triste. Ergueu a chave da caixa de música. Antes que eu pudesse pensar no que
ela estava
querendo dizer, ela murmurou: - Você e Yiban têm de partir esta noite. Deixe
que ele me despreze, senão ele não vai querer partir. Cuide para que ele fique
em segurança.
Prometa-me isto. - Ela apertou minha mão. - Prometa - ela repetiu.
Balancei a cabeça afirmativamente. Então ela abriu minha mão e viu a pedrinha
lá dentro.
Tirou-a e a substituiu pela chave. - O quê? - ela gritou. - Você deixou a
chave no pavilhão? Garota estúpida! Agora pegue esta lanterna e vá até o
jardim. Não ouse
voltar antes de encontrá-la.
Fiquei tão feliz ao ouvir aquelas coisas sem sentido.
- Srta. Bandeira - murmurei. - Venha conosco - agora.
Ela sacudiu a cabeça.
- Aí ele nos matará a todos. Depois que ele partir, nós nos
reencontraremos. - Ela soltou minha mão e voltou para o quarto, no escuro.

Encontrei Yiban no jardim do Mercador Fantasma, enterrando Lao Lu.


- Você é uma boa pessoa, Yiban. - Cobri a terra com folhas secas para os
soldados não encontrarem o túmulo.
Quando terminei, Yiban disse:
- Lao Lu sabia manter o portão fechado para tudo, a não ser sua própria
boca.
Concordei, depois me lembrei da minha promessa. Então disse numa voz
zangada:
- A culpada da morte dele foi a Srta. Bandeira. Atirando-se nos braços
do traidor! - Yiban estava olhando para os próprios punhos. Puxei o braço
dele. - Ei,
Yiban, vamos fugir .Por que morrer por causa dos pecados desses estrangeiros?
Nenhum deles vale nada.

#252

- Você está enganada - Yiban disse. - A Srta. Bandeira apenas finge


entregar seu coração a Capa para nos salvar. - Está vendo como ele a conhecia
bem? Então
você também sabe o quanto eu tive de mentir.
- Hnh! Finge! - eu disse. - Sinto muito ter de contar a verdade. Ela me
disse muitas vezes que queria que ele voltasse para buscá-la. É claro que ela
gostava
de você, mas só a metade do que gosta de Capa. E sabe por quê? Você só é
metade estrangeiro! É assim que esses americanos são. Ela ama Capa porque ele
é igual a
ela. Não é fácil desmanchar sulcos feitos na lama.
Os punhos de Yiban ainda estavam cerrados, e seu rosto ficou triste,
muito triste. Para minha sorte, não tive de contar muitas mentiras mais sobre
a Srta.
Bandeira. Ele concordou que devíamos partir. Mas, antes disso, fui até o canto
noroeste e enfiei a mão numa jarra aberta que tinha dois ovos de pata dentro.
Não
havia tempo para desenterrar mais.
- Vamos para a Montanha das Cem Cavernas - eu disse. - Eu sei o caminho.
- Apaguei a lanterna que a Sra. Bandeira havia me dado e a entreguei para
Yiban. Então
nós dois nos esgueiramos pelo portão do corredor.
Não tomamos o caminho através da aldeia. Caminhamos pelo sopé da
montanha, onde cresciam os espinheiros. Quando começamos a subir na direção do
primeiro despenhadeiro
de pedra, meu coração batia forte com medo de que os soldados nos vissem.
Embora eu fosse uma moça e Yiban fosse um homem, eu subia mais depressa. Eu
tinha pernas
feitas para a montanha. Quando alcançamos o arco, esperei por ele. De lá, meu
olho procurou a Casa do Mercador Fantasma. Estava escuro demais. Imaginei
Srta. Bandeira
contemplando a noite, imaginando se eu e Yiban estaríamos a salvo. E então
pensei em Zeng. Será que ele tinha visto Capa e seus soldados? Será que tinha
fugido sozinho
para as montanhas? Assim que pensei nisto, ouvi a voz dele me chamando bem
atrás.
- Nunumu?
- Ah! - eu me virei. Vi a sombra dele do outro lado do arco. Como fiquei
feliz. - Zeng, você está aí! Estava preocupada com você.

#253

Nós esperamos, então os soldados chegaram...


Ele me interrompeu.
- Nunumu, depressa. Não perca tempo falando. Venha por aqui. - Ele ainda
estava mandão, não tinha tempo para dizer: "Oh meu tesouro, finalmente a
encontrei."
Enquanto atravessava o arco, fiz com que soubesse que estava feliz em vê-lo,
reclamando em tom de brincadeira:
- Ei, quando você não chegou, achei que tinha mudado de idéia, arranjado
outra mulher, uma com dois olhos. - Eu saí do outro lado do arco. Zeng estava
andando
pela beira do despenhadeiro. Fez sinal para que eu o seguisse.
- Não vá pelo vale - ele disse. - Vá pelo alto da montanha.
- Espere! - Eu disse. - Outra pessoa está vindo. - Ele parou. Virei-me
para ver se Yiban estava me seguindo. E então ouvi meu novo marido dizer: -
Nunumu,
esta noite os soldados me mataram. Agora eu vou esperar por você para sempre.
- Ai-ya! - resmunguei. - Não brinque assim. Esta noite os soldados
mataram Lao Lu. Nunca vi uma coisa tão terrível...
Finalmente, Yiban apareceu.
- Com quem você está falando? - ele perguntou.
- Com Zeng -eu disse. - Ele está aqui. Está vendo? - eu me virei.
- Zeng? Não posso vê-lo. Acene com a mão... Ei, onde você está? Espere!
- Vou esperar por você para sempre - eu o ouvi murmurar no meu ouvido.
Ai-ya! Foi então que eu soube que Zeng não estava brincando. Ele estava morto.
Yiban se aproximou de mim.
- O que houve? Onde ele está?
Mordi o lábio para não gritar.
- Eu estava enganada. Era só uma sombra. - Meu olho estava ardendo e eu
fiquei grata pela escuridão. Que diferença fazia morrer agora ou depois? Se eu
não
tivesse feito uma promessa à Srta. Bandeira, voltaria para a Casa do Mercador
Fantasma. Mas agora ali estava Yiban, esperando que eu decidisse que caminho
seguir.

#254

- Pelo alto da montanha - eu disse.


Enquanto Yiban e eu abríamos caminho no meio dos arbustos e tropeçávamos
nas pedras, não dissemos nada um para o outro. Acho que ele estava igual a
mim, sofrendo
pelas pessoas que tinha perdido. Ele e a Srta. Bandeira poderiam se
reencontrar um dia. Não havia esta esperança para mim e Zeng. Mas então eu
ouvi Zeng dizer:
- Nunumu, como você pode decidir o futuro? E quanto à próxima
existência? Não podemos nos casar? - Wah! Ao ouvir isso eu quase rolei
montanha abaixo. Casar!
Ele usou a palavra "casar"!
- Nunumu -ele continuou -, antes de partir , vou levá-la até uma caverna
onde você deve se esconder. Use meus olhos no escuro.
Imediatamente, pude ver através do tapa-olho que cobria o meu olho cego.
E diante de mim havia uma trilha, iluminada pelo crepúsculo. Todo o resto
estava oculto
pela noite. Virei-me para Yiban.
- Rápido - eu disse, e fui marchando na frente tão corajosamente quanto
qualquer soldado.
Depois de várias horas, estávamos diante de um arbusto. Quando afastei
os galhos, vi um buraco que só dava para uma pessoa passar. Yiban entrou
primeiro. Ele
disse:
- É raso demais. Termina a poucos passos daqui.
Fiquei surpresa. Por que Zeng nos levaria para uma caverna tão
inadequada? Minha dúvida o insultou.
- Não é rasa demais - ele disse. - Do lado esquerdo há dois blocos de
pedra. Procure no meio. - Entrei e encontrei uma abertura que se inclinava
para baixo.
- Esta é a caverna correta - eu disse para Yiban. - Você apenas não
procurou com cuidado. Acenda a lanterna e desça atrás de mim.
O buraco era o início de um longo e sinuoso túnel, com um riacho
correndo de um lado. Às vezes o túnel se dividia em duas direções.
- Quando houver um caminho para cima e outro para baixo - Zeng disse -,
sempre vá para baixo. Quando um tiver um riacho e o outro for seco - Zeng
disse -,
siga sempre a água.Quando um for estreito e o outro largo - Zeng disse -,
esprema-se.

#255

Quanto mais caminhávamos, mais fresco o ar se tornava, muito refrescante.


Viramos uma esquina atrás da outra, até vermos uma luz celestial. O que
era isso? Estávamos em um lugar, que parecia o salão de um palácio, onde
cabiam mil
pessoas. Era muito claro. No meio havia um lago - com uma água que brilhava.
Era uma cor dourado-esverdeada, diferente da luz de uma vela, de um lampião ou
do sol.
Achei que eram raios de lua entrando por um buraco no mundo.
Yiban achou que poderia ser um vulcão borbulhando por baixo. Ou antigas
criaturas marinhas com olhos brilhantes. Ou talvez uma estrela que se partiu
em duas,
caiu na terra e mergulhou no lago.
Ouvi Zeng dizer:
- Agora você pode encontrar o resto do caminho sozinha. Não vai se
perder.
Zeng estava me deixando.
- Não vá! - gritei.
Mas só Yiban respondeu:
- Eu não me mexi.
E então eu não consegui mais enxergar com o meu olho cego. Esperei que
Zeng tornasse a falar. Nada. Partindo desse jeito. Sem dizer "adeus, meu
amorzinho.
Espero você em breve no outro mundo". Este é o problema das pessoas yin. Não
se pode confiar nelas! Vêm quando querem, partem quando lhes apraz. Depois que
eu morri,
tive uma grande briga com Zeng por causa disto.
E então eu disse a ele o que estou lhe dizendo agora, Grande Ma: que,
com a sua morte, soube tarde demais o que havia realmente perdido.

#256

16
O RETRATO DA GRANDE MA

Ouvi Kwan conversar com a Grande Ma durante metade da noite. Agora estou com
os olhos pesados. Ela está mais esperta do que nunca. Rocky está nos levando
para Changmian
numa caminhonete que promete dar problemas. O corpo embalsamado da Grande Ma
está estendido no banco de trás. Em cada cruzamento, a caminhonete engasga e
morre.
Rocky então salta, abre o capô e dá socos em várias partes metálicas, gritando
em chinês:
- Fodam-se os seus antepassados, seu verme preguiçoso.
Milagrosamente, estas palavras mágicas funcionam, para alívio nosso e
dos motoristas que buzinam atrás de nós. Dentro, a caminhonete parece um
congelador;
por consideração à Grande Ma e seu triste estado, Rocky manteve o aquecimento
desligado. Olhando pelas janelas, vejo a névoa que sobe das valas de
irrigação. Os
picos das montanhas estão cobertos de neblina. O dia não promete ser dos
melhores.
Kwan está sentada atrás, conversando em voz alta com o corpo da Grande
Ma, como se fossem duas garotas a caminho da escola. Estou um banco à frente e
Simon
está sentado bem atrás de Rocky, entabulando uma camaradagem proletária e,
desconfio, atento a qualquer manobra perigosa.

#257

Mais cedo nesta manhã, depois de fechar nossa conta no Sheraton e de levar a
bagagem para a caminhonete, eu disse a Simon:
- Graças a Deus esta vai ser a última viagem que vamos ser obrigados a
fazer com Rocky.
Kwan lançou-me um olhar horrorizado:
- Wah! Não diga "última". Dá azar dizer uma coisa dessas.
Azar ou não, pelo menos não vamos ter de ir e vir diariamente de
Changmian. Vamos ficar na aldeia por duas semanas, de graça, uma cortesia da
Grande Ma,
que, segundo Kwan, "mesmo antes de morrer nos convidou para ficar na casa
dela".
Por sobre os ruídos metálicos da caminhonete, posso ouvir Kwan
contando vantagens para a morta:
- Este suéter, está vendo, parece de lã, não parece? Mas é de
crílic-ah, mm-hmm, lava máquina. - Ela diz "acrílico" e "lavável a máquina" na
sua versão
de inglês, depois explica como máquinas de lavar e de secar se enquadram no
sistema judiciário americano: - Na Califórnia, não se pode pendurar a roupa na
janela
ou na varanda, oh, não. Os vizinhos chamam a polícia porque você os
envergonhou. Na América não há tanta liberdade como você pensa. Tantas coisas
são proibidas,
você não iria acreditar. Mas acho que algumas regras são boas. Você não pode
fumar, exceto na cadeia. Não pode atirar casca de laranja na rua. Não pode
deixar seu bebê fazer cocô na calçada. Mas algumas regras são ridículas. Você
não pode conversar no cinema. Não pode comer alimentos gordurosos...
Rocky força o motor e acelera na estrada esburacada. Agora eu me
preocupo não só com o estado de espírito de Kwan, mas também com a
possibilidade do corpo
da Grande Ma rolar para o chão.
- Também não se pode obrigar os filhos a trabalhar - Kwan está dizendo
com absoluta autoridade. - Estou dizendo a verdade! Você se lembra como me
obrigava
a juntar pauzinhos e galhos para servir de combustível? Oh, sim, eu me lembro.
Eu tinha de sair andando para baixo e para cima, para lá e para cá no inverno!
Meus
pobres dedos inchados e duros de frio.

#258
E então você vendia o que eu juntava e ficava com o dinheiro. Não, não a estou
acusando, não agora. Eu sei, é claro, naquela época todo mundo tinha de
trabalhar
duro. Mas, na América, você teria ido para a cadeia por me tratar daquele
jeito. Sim, e por bater tanto no meu rosto e beliscar minhas bochechas com
suas unhas afiadas.
Você não se lembra? Veja as cicatrizes, aqui no meu rosto, duas, como mordidas
de rato. E, agora que estou me lembrando disto, vou dizer de novo, eu não dei
aqueles
bolos de arroz mofados para os porcos. Por que mentiria agora? Como eu disse
na ocasião, quem os roubou foi a Terceira Prima Wu. Eu sei porque a vi tirando
o mofo
deles, um bolinho de cada vez. Pergunte a ela. Ela já deve estar morta nesta
altura. Pergunte por que ela mentiu e disse que eu os tinha jogado fora!
Kwan fica estranhamente calada durante os dez minutos seguintes, e
calculo que ela e a Grande Ma estão dando uma à outra o castigo chinês do
silêncio. Mas
então ouço Kwan gritar para mim em inglês:
- Libby-ah! A Grande Ma está me pedindo para você tirar um retrato dela.
Diz que não tem nenhum retrato bom de quando era viva. - Antes que eu possa
responder,
Kwan traduz mais conversa yin: - Ela diz que esta tarde é a melhor hora para
tirar retrato. Depois que eu a vestir com suas melhores roupas, melhores
sapatos. -
Kwan sorri satisfeita para a Grande Ma, depois se vira para mim. - A Grande Ma
diz que está muito orgulhosa de ter uma fotógrafa tão famosa na família.
- Não sou famosa.
- Não discuta com a Grande Ma. Para ela, você é famosa. Isto é o que
importa.
Simon vem cambaleando e se senta ao meu lado, cochichando:
- Você não vai tirar retrato de um cadáver, vai?
- O que eu posso dizer: "Sinto muito, não fotografo gente morta, mas
posso indicar outra pessoa?"
- Talvez ela não seja muito fotogênica.
- Não brinque.

#259

- Você compreende que é Kwan quem quer a foto, não a Grande Ma?
- Por que você está dizendo coisas totalmente desnecessárias?
- Só estou conferindo, agora que estamos na China. Um bocado de coisas
estranhas já aconteceram, e este é só o segundo dia.

Quando chegamos em Changmian, quatro mulheres idosas agarram nossas malas,


riem dos nossos protestos e afirmam que cada uma delas é mais forte do que nós
três juntos.
De mãos vazias, percorremos um labirinto de ruas calçadas de pedra e passagens
estreitas até chegar na casa da Grande Ma. Esta é idêntica a todas as outras
casas
da aldeia: um chalé térreo, feito de tijolos. Kwan abre o portão de madeira e
eu e Simon entramos. No meio de um pátio aberto, vejo uma velhinha enchendo um
balde
com a ajuda de uma bomba manual. Ela ergue os olhos, primeiro surpreendida,
depois encantada de ver Kwan.
- Ahhhh! - ela grita, soltando nuvens de fumaça pela boca.
Um de seus olhos é fechado, o outro virado para fora como o de um sapo à
procura de moscas. Kwan e a mulher se agarram pelos braços. Elas cutucam a
cintura
uma da outra, desandam a falar rapidamente em dialeto de Changmian. A velha
gesticula na direção de um muro em ruínas, faz um muxoxo de desprezo para o
fogo apagado.
Parece estar se desculpando pelas condições precárias da casa e por não ter
preparado um banquete e uma orquestra de quarenta e cinco músicos para nos
receber.
- Esta é Du Lili, minha velha amiga - Kwan diz a mim e a Simon em
inglês. - Ontem ela foi até a encosta da montanha, colher cogumelos. Quando
voltou, soube
que eu já tinha chegado e partido.
Du Lili faz uma careta de tristeza, como se compreendesse esta tradução
da sua decepção. Balançamos a cabeça, solidários.
Kwan continua:

#260

- Há muito tempo, moramos juntas, nesta mesma casa. Pode falar mandarim
com ela. Ela entende. - Kwan se vira para a amiga e explica: - Minha
irmãzinha,
Libby-ah, fala um tipo estranho de mandarim, estilo americano, seus
pensamentos e frases correndo de trás para a frente. Você
vai ver. E este aqui, o marido dela, Simon, ele é como se fosse
surdo-mudo. Só fala inglês. É claro que eles são só metade chineses.
- Ahhhh! - O tom de voz de Du Lili sugere ou choque ou repugnância. - Só
metade! O que falam um com o outro?
- Língua americana - Kwan responde.
- Ahhhh! - Outra nota de aparente repulsa. Du Lili me examina como se a
parte chinesa do meu rosto fosse se soltar a qualquer momento.
- Consegue compreender um pouco? - ela me pergunta vagarosamente em
mandarim. E, quando balanço a cabeça afirmativamente, ela reclama falando mais
depressa:
- Tão magrinha! Por que você é tão magrinha? Tst! Tst! Pensei que as pessoas
na América comessem muito. Você tem a saúde fraca? Kwan! Por que você não
alimenta a
sua irmãzinha?
- Eu tento - Kwan protesta. - Mas ela se recusa a comer! As moças
americanas, todas querem ser magras.
Em seguida, Du Lili examina Simon:
- Oh, como um artista de cinema, este aqui. - Ela fica na ponta dos pés
para ver melhor.
Simon olha para mim erguendo as sobrancelhas.
- Tradução, por favor.
- Ela diz que você daria um bom marido para a filha dela. - Pisco o
olho para Kwan e tento ficar séria.
Simon arregala os olhos. Este é um jogo que costumávamos fazer quando
fomos morar juntos. Eu fazia traduções erradas e nós dois mantínhamos a
mentira até um
dos dois entregar os pontos.
Du Lili pega a mão de Simon e o leva para dentro, dizendo:
- Venha, quero lhe mostrar uma coisa.
Kwan e eu vamos atrás.

#261

- Ela precisa examinar os seus dentes primeiro - digo a Simon. - É um


costume antes do noivado.
Estamos numa área de cerca de seis metros por seis, que Du Lili chama de
sala central. É escura e escassamente mobiliada com dois bancos, uma mesa de
madeira
e uma miscelânea de jarras, cestas e caixas. O teto é inclinado. Nas traves
estão penduradas carne-seca e pimenta, cestas e nenhum equipamento de
iluminação. O chão
é de terra batida. Du Lili aponta para um altar de madeira encostado na
parede. Ela pede a Simon que fique em pé ao lado dela.
- Ela quer ver se os deuses aprovam você - eu digo. Kwan faz um ar de
riso e eu pisco o olho para ela.
Na parede acima da mesa estão pregados estandartes de papel cor-
de-rosa com inscrições apagadas. No meio há um retrato de Mao com uma fita
colante amarelada
sobre um rasgo em sua testa. À esquerda há um porta-retrato dourado, rachado,
contendo um retrato de Jesus, as mãos erguidas para um raio de luz dourado. E
à direita
está o que Du Lili quer que Simon veja: uma velha foto de calendário mostrando
um gêmeo de Bruce Lee usando um velho traje guerreiro, bebendo avidamente um
refrigerante
verde.
- Está vendo este artista de cinema? - Du Lili diz. - Acho que você se
parece com ele - cabelo grosso, olhos ferozes, boca forte, igual, oh, muito
bonito.
Olho para a foto e depois para Simon, que está esperando por minha
tradução.
- Ela diz que você se parece com este criminoso que encabeça a lista dos
mais procurados na China. Esqueça o casamento. Ela vai receber mil ienes pela
sua
captura.
Ele aponta para a foto do calendário, depois para si mesmo, dizendo:
- Eu? - Sacode a cabeça vigorosamente e protesta num inglês arrevesado:
- Não, não. Pessoa errada. Eu americano, cara legal. Este homem mau, outra
pessoa.
Não consigo mais me conter. Caio na gargalhada.
- Eu venci - Simon se vangloria.
Kwan traduz a nossa brincadeira boba para Du Lili. Por alguns segundos
eu e Simon sorrimos um para o outro. É o primeiro momento afetivo que
compartilhamos
em muito tempo.

#262

Em que ponto do nosso casamento as nossas brincadeiras se transformaram em


ironias?
- Na verdade, o que Du Lili disse foi que você é tão bonito quanto este
artista de cinema.
Simon junta as mãos e faz uma reverência, agradecendo a Du Lili. Ela se
inclina de volta, feliz por ele ter finalmente compreendido o seu elogio.
- Sabe - digo a ele -, por algum motivo, sob esta luz, você parece, bem,
diferente.
- Hum. Como assim? - Ele sacode as sobrancelhas, com ar de conquistador.
Fico sem graça.
- Oh, não sei - resmungo, com o rosto vermelho. - Talvez você pareça
mais chinês ou algo assim. - Eu me viro e finjo que estou absorvida pelo
retrato de Mao.
- Bem, você sabe o que dizem sobre casais, que eles se tornam cada vez
mais parecidos com o decorrer do tempo.
Fico olhando para a parede, imaginando o que Simon está realmente
pensando.
- Olhe para isto - digo -, Jesus ao lado de Mao. Isto não é ilegal na
China?
- Talvez Du Lili não saiba quem é Jesus. Talvez ela pense que ele é um
artista de cinema vendendo lâmpadas.
Já ia perguntar a Du Lili sobre o retrato de Jesus quando Kwan se vira e
grita para umas figuras escuras paradas na porta bem iluminada.
- Entrem! Entrem! - Ela fica logo toda eficiente. - Simon, Libby-ah,
rápido! Ajudem as tias com a bagagem. - Nossas idosas mensageiras de hotel nos
empurram
e, bufando, terminam de arrastar nossas malas e mochilas, com as bases cheias
de lama.
- Abra a bolsa - Kwan diz, e, antes que eu possa obedecer, ela começa a
vasculhar a minha bolsa. Deve estar procurando dinheiro para dar de gorjeta.
Mas, em
vez disso, pega o meu Marlboro Lights e dá o maço inteiro para as mulheres.
Uma das mulheres passa o maço de mão em mão e depois guarda o resto. As velhas
senhoras
começam a fumar. E depois saem, numa nuvem de fumaça.

#264

Kwan arrasta sua mala para um quarto escuro à direita.


- Nós dormimos aqui.
Ela faz sinal para eu a seguir. Espero um quarto comunista austero, com
uma decoração combinando com o estilo minimalista do resto da casa. Mas,
quando Kwan
abre uma janela para deixar entrar o sol da manhã, vejo uma cama de casal de
madeira trabalhada, protegida por um mosquiteiro acinzentado. É uma bela
antigüidade,
quase igual a uma que eu cobicei numa loja da Union Street. A cama está feita
do mesmo modo que Kwan faz a dela em casa: um lençol bem esticado sobre o
colchão,
o travesseiro e a colcha dobrada bem arrumadinhos nos pés da cama.
- Onde foi que a Grande Ma conseguiu isto? - pergunto maravilhada.
- E isto. - Simon passa a mão sobre uma cômoda com tampo de mármore, o
espelho mostrando mais prata do que reflexo. - Pensei que eles tivessem dado
fim a todos
esses móveis imperialistas durante a revolução.
- Oh, essas coisas antigas. - Kwan faz um gesto de pouco-caso, toda
orgulhosa. - Estão na nossa família há muito tempo. Durante a Revolução
Cultural, a Grande
Ma os escondeu sob um monte de palha, no depósito. Foi assim que eles se
salvaram.
- Se salvaram? - pergunto. - Então onde nossa família os conseguiu
originalmente?
- Originalmente, senhora missionária deu para o avô da nossa mãe, em
pagamento de uma grande dívida.
- Que grande dívida?
- História muito longa. Isto aconteceu, oh, cem anos...
Simon interrompe.
- Podemos falar sobre isto mais tarde? Gostaria de me instalar no outro
quarto.
Kwan dá uma risadinha irônica.
- Oh -Simon faz uma expressão de espanto. - Estou vendo que não tem
outro quarto.
- Outro quarto é de Du Lili, só uma cama pequena.

#264

- Bem, onde nós todos vamos dormir? - Examino o quarto atrás de um


colchão extra, uma almofada.
Kwan faz um gesto despreocupado na direção da cama de casal. Simon sorri
para mim e ergue os ombros se desculpando de uma forma obviamente insincera.
- Aquela cama mal dá para duas pessoas - digo para Kwan. - Você e eu
podemos dormir ali, mas vamos ter de arranjar uma cama para Simon.
- Onde você vai conseguir arrumar uma cama? - Ela olha para o teto,
erguendo as mãos, como se camas pudessem se materializar do ar.
Entro em pânico.
- Bem, alguém deve ter um colchão extra ou alguma outra coisa.
Ela traduz isto para Du Lili, que também ergue as mãos.
- Está vendo? - Kwan diz. - Nada.
- Está tudo bem. Posso dormir no chão - Simon oferece.
Kwan traduz isto também para Du Lili, o que provoca uma risadinha. -
Você quer dormir com os insetos? - Kwan diz. - Aranhas? Ratazanas? Oh, sim,
muitos ratos
aqui, vão comer os seus dedos. - Ela finge que está mastigando. - Que tal
isso, ah? Não. Único jeito, nós três dormirmos na mesma cama. De qualquer
modo, é só por
duas semanas.
- Isso não é solução - respondo.
Du Lili parece preocupada e cochicha com Kwan. Kwan cochicha de volta,
inclina a cabeça na minha direção e de Simon.
- Bu-bu-bu-bu-bu! - Du Lili grita, os nãos pontuados por movimentos
rápidos de cabeça. Ela agarra o meu braço, depois o de Simon, e nos empurra um
para o outro,
como se fôssemos duas crianças malcriadas. - Ouçam, seus brigões - ela
repreende em mandarim. - Nós aqui não temos esses luxos para atender a esse
tipo de tolice
americana. Ouçam sua tia, ah. Durmam na mesma cama e de manhã estarão tão
aquecidos e felizes como antes.
- Você não compreende - digo.
- Bu-bu-bu! - Du Lili descarta qualquer desculpa esfarrapada americana.

#265

Simon suspira, exasperado.


- Acho que vou dar um passeio enquanto vocês três chegam a uma
conclusão. Por mim, tanto faz três numa cama ou ratos no chão. De verdade, o
que vocês decidirem.
Será que ele está zangado comigo por protestar tanto? A culpa não é
minha, tenho vontade de gritar. Quando Simon sai, Du Lili vai atrás dele,
repreendendo-o
em chinês:
- Se vocês estão com problemas, é você quem tem de resolver. Você é o
marido. Ela vai ouvir suas palavras, mas você precisa ser sincero e pedir
perdão. Marido
e mulher se recusando a dormir juntos! Isto não é natural.
Quando ficamos sozinhas, reclamo com Kwan:
- Você planejou tudo isto, não foi?
Kwan faz um ar ofendido.
- Isto não plano. Isto China.
Após alguns instantes de silêncio, peço desculpas.
- Preciso usar o banheiro. Onde fica?
- Siga a rua, vire à esquerda, vai ver barracão, grande pilha de
carvão...
- Quer dizer que não há banheiro na casa?
- O que foi que eu disse? - Kwan responde, agora sorrindo vitoriosa. - Isto
China.

Comemos um almoço proletário de arroz e soja. Kwan insistiu para Du Lili


servir apenas algumas sobras simples de comida. Depois do almoço, Kwan volta
para o salão
comunitário, para preparar a Grande Ma para a sua sessão de fotografia. Simon
e eu saímos em direções diferentes para explorar a aldeia. O caminho que eu
escolho
leva a uma estradinha de pedra que atravessa os campos encharcados. À
distância, vejo patos nadando numa linha paralela ao horizonte. Será que os
patos chineses
são mais ordeiros do que os americanos? Será que o grasnido deles é diferente?
Tiro uma dúzia de fotos com minha câmera, para me lembrar mais tarde do que
estava
pensando neste momento.
Quando volto para casa, Du Lili anuncia que a Grande Ma já está
esperando há mais de meia hora pela sua sessão de fotos.

#266

Enquanto caminhamos até o salão, Du Lili pega a minha mão e fala comigo em
mandarim:
- Sua irmã mais velha e eu já brincamos juntas naquela plantação de
arroz. Veja, lá adiante.
Imagino Du Lili jovem, cuidando de uma versão infantil de Kwan.
- Às vezes apanhávamos girinos - ela diz, com um ar travesso
- usando nossos panos de cabeça como rede, assim. - Faz movimentos giratórios
e depois
finge que está patinando na lama. - Naquela época, os líderes da aldeia diziam
às mulheres casadas que engolir alguns girinos era
bom para controle da natalidade. Controle da natalidade! Nós nem mesmo
sabíamos o que era isto. Mas sua irmã disse: "Ou Lili, temos de ser boas
comunistas. " Ela
me mandou comer aquelas criaturas pretas.
- Você não comeu!
- Como podia desobedecer? Ela era dois meses mais velha do que eu!
Mais velha ?Meu queixo cai. Como Kwan podia ser mais velha que Du Lili?
Du Lili parece uma velhinha de cem anos. Suas mãos são ásperas e nodosas. Seu
rosto
é todo enrugado e faltam diversos dentes em sua boca. Acho que é isso que
acontece quando você não usa Óleo de Olay depois de trabalhar um dia inteiro
nos canteiros
de arroz.
Du Lili estala os beiços.
- Engoli uma dúzia, talvez mais. Podia senti-los descendo pela minha
garganta, nadando no meu estômago, depois escorregando para cima e para baixo
nas minhas
veias. Eles se infiltraram por todo o meu corpo, até que um dia caí com febre
e um médico da cidade grande disse: "Ei, camarada Du Lili, você andou comendo
girinos?
Você está com vermes no
sangue!"
Ela ri, e em seguida faz um ar sombrio.
- Às vezes eu me pergunto se foi por isso que ninguém quis se casar
comigo. Sim, acho que o motivo foi este. Todo mundo soube que eu tinha comido
girinos e
que jamais poderia ter um filho.

#267

Contemplo o olho enviesado de Du Lili, sua pele curtida de sol.


- Não se preocupe. - Ela dá um tapinha na minha mão. - Não estou
culpando a sua irmã. Muitas vezes fiquei contente por não ter casado. Sim, sim
- dá muito
trabalho cuidar de um homem. Ouvi dizer que metade do cérebro de um homem fica
entre suas pernas - hah! - Ela agarra a virilha e cambaleia para a frente.
Depois
torna a ficar séria. Algumas vezes, no entanto, digo para mim mesma: "Du Lili,
você teria sido uma boa mãe, sim, atenta e severa com relação a princípios
morais."
- Às vezes crianças também dão um bocado de trabalho - digo.
Ela concorda.
- Um bocado de dor de cabeça.
Caminhamos em silêncio. Ao contrário de Kwan, Du Lili parece sensata, pé
no chão, alguém em quem se pode confiar. Ela não se comunica com o Mundo de
Yin, ou
pelo menos não fala sobre isto. Ou será que sim?
- Du Lili - digo. - Você consegue ver fantasmas?
- Você quer dizer como Kwan? Não, eu não tenho olhos yin.
- Alguém mais em Changmian vê fantasmas?
Ela sacode a cabeça.
- Só a sua irmã mais velha.
- E, quando Kwan diz que vê um fantasma, todo mundo acredita nela? - Du
Lili desvia os olhos, sem jeito. Insisto, tentando fazê-la se abrir comigo: -
Eu mesma
não acredito em fantasmas. Acho que as pessoas vêem o que desejam ver. Os
fantasmas vêm de sua imaginação e do seu desejo. O que você acha?
- Ah! O que importa o que eu acho? - Ela não me olha nos olhos. Inclina-
se e limpa a ponta do seu sapato enlameado. - É assim. Durante tantos anos
outras pessoas
têm nos dito em que acreditar. Acreditar nos deuses! Acreditar nos
antepassados! Acreditar em Mao Tsé-tung, nos líderes de nosso partido, nos
heróis mortos! Quanto
a mim, acredito em tudo que é prático, que não causa problemas.

#268

A maioria das pessoas aqui faz a mesma coisa.


- Então vocês não acreditam realmente no fantasma da Grande Ma aqui em
Changmian. - Eu queria comprometê-la.
Du Lili toca no meu braço.
- Grande Ma é minha amiga. Sua irmã também é minha amiga. Jamais
prejudicaria uma dessas amizades. Talvez o fantasma da Grande Ma esteja aqui,
talvez não.
O que importa isso? Agora você compreende? Ah?
- Hum. - Continuamos andando. Será que algum dia o meu cérebro vai se
acostumar com o raciocínio chinês? Como se tivesse me ouvido, Du Lili dá uma
risadinha.
Sei o que ela está pensando. Sou como um daqueles intelectuais que vieram para
Changmian, tão espertos, tão seguros de suas idéias. Tentaram criar mulas e
acabaram
fazendo papel de burros.

Chegamos no portão do salão comunitário no momento em que uma chuva pesada


começa a cair com tanta violência que o meu coração dispara, assustado.
Atravessamos o
pátio correndo, passamos pelas portas duplas que dão numa sala grande e
gelada. Paira no ar um cheiro de mofo, que eu imagino que seja o subproduto de
centenas de
anos de deterioração de ossos. O ameno outono, pelo qual Guilin é supostamente
famosa, se retirou mais cedo, e, embora eu esteja vestida com tantas camadas
de roupas
quantas consegui que coubessem por baixo do meu casaco, meus dentes estão
batendo, meus dedos estão dormentes. Como vou conseguir bater fotos esta
tarde?
No salão há uma dúzia de pessoas, pintando estandartes brancos para o
funeral e decorando as paredes e mesas com cortinas e velas brancas. Suas
vozes se elevam
acima do ruído da chuva, ecoam na sala. Kwan está em pé ao lado do caixão.
Quando me aproximo, vejo que estou horrorizada com a idéia de olhar para o
objeto de minhas
fotos. Imagino que ela vá estar bem machucada. Aceno para Kwan quando ela olha
para mim.

#269

Quando olho para dentro do caixão, fico aliviada ao ver que o rosto da
Grande Ma está coberto com um papel branco. Tento manter minha voz respeitosa.
- Acho que o acidente desfigurou o rosto dela.
Kwan parece surpresa.
- Oh, você se refere a este papel? - ela diz em chinês. - Não, não, é
costume cobrir o rosto.
- Por quê?
- Ah? - Ela entorta a cabeça, como se a resposta fosse descer do céu e
cair dentro de seu ouvido. - Se o papel se mexer - ela diz -, então a pessoa
ainda está
respirando, e é cedo demais para enterrar o corpo. Mas a Grande Ma está mesmo
morta, ela acabou de me dizer. - Antes que eu possa me preparar, Kwan remove o
papel.
Não há dúvida de que a Grande Ma parece morta, embora não horrivelmente
morta. Sua testa está franzida numa expressão preocupada e sua boca está
torcida numa
careta eterna. Sempre pensei que quando uma pessoa morre seus músculos faciais
relaxam, dando-lhe uma expressão de tranqüilidade.
- Sua boca - digo num chinês penoso. - Do jeito que está torta, parece
que sua morte foi muito dolorosa.
Kwan e Du Lili se inclinam ao mesmo tempo para olhar para a Grande Ma.
- Pode ser - Du Lili diz -, mas ela agora está muito parecida com o que
era quando estava viva. Ela sempre entortava a boca desse jeito.
Kwan concorda.
- Mesmo antes de eu partir da China, o rosto dela era assim, ao mesmo
tempo preocupado e descontente.
- Ela era muito pesada - observo.
- Não, não - Kwan diz. - Você só está achando isto porque agora ela está
vestida para a sua viagem para o outro mundo. Sete camadas de roupa na parte
de cima,
cinco na parte de baixo.
Aponto para a jaqueta de esqui que Kwan escolheu como a sétima camada. É
roxo fosforescente com detalhes ocidentais, um dos presentes que ela comprou
na liqüidação
do Macy's, querendo impressionar a Grande Ma.

#270

A etiqueta com o preço ainda está presa, para provar que a jaqueta não é de
segunda mão.
- Muito bonita - digo, desejando estar vestida com ela.
Kwan faz um ar orgulhoso.
- Prática também. À prova d'água.
- Quer dizer que chove no outro mundo?
- Tst! É claro que não. O tempo é sempre igual. Nem muito quente, nem
muito frio.
- Então por que você disse que a jaqueta era à prova d'água?
Ela me olha sem entender.
- Porque é.
Sopro meus dedos dormentes.
- Se o tempo é tão agradável no outro mundo, por que tantas roupas, sete
e cinco camadas?
Kwan se vira para a Grande Ma e repete a minha pergunta em chinês.
Balança a cabeça como se estivesse falando no telefone.
- Ah. Ah. Ah. Ah-ha-ha-ha! - Depois traduz a resposta para os meus
ouvidos mortais: - A Grande Ma diz que não sabe. Fantasmas e pessoas yin
ficaram tanto tempo
proibidos pelo governo que agora até ela esqueceu todos os costumes e seus
significados.
- E agora o governo permite fantasmas?
- Não, não, eles apenas não multam mais as pessoas por permitirem que
eles voltem. Mas este é o costume correto, sete e cinco, sempre mais duas em
cima do
que embaixo. A Grande Ma acha que sete está ligado aos sete dias da semana,
uma camada para cada dia. Antigamente, as pessoas deviam guardar luto por seus
parentes
por sete semanas, sete vezes sete, quarenta e nove dias. Mas, hoje em dia, nós
somos tão ruins quanto os estrangeiros, bastam uns poucos dias.
- Mas por que só cinco camadas na parte de baixo?
Du Lili abre um sorriso.
- Isto quer dizer que dois dias por semana a Grande Ma vai andar com o
fundilho nu no outro mundo.

#271

Ela e Kwan riem tanto que as pessoas que estão na sala se viram para
olhar.
- Pare! Pare! - Kwan grita, tentando reprimir o riso. - A Grande Ma está
ralhando conosco. Diz que não está morta há tanto tempo assim para fazermos
estas
brincadeiras. - Quando recupera a compostura, Kwan continua: - A Grande Ma não
tem certeza, mas acha que cinco é por todas as coisas comuns que ligam os
mortais
ao mundo dos vivos - as cinco cores, os cinco sabores, os cinco sentidos, os
cinco elementos, as cinco emoções...
E então Kwan pára.
- Grande Ma, há sete emoções, ah, não apenas cinco. - Ela as conta nos
dedos, começando pelo polegar: - Alegria, raiva, medo, amor, ódio, desejo...
Mais uma
- qual é mesmo? Ah, sim, sim! Tristeza. Não, não, Grande Ma, eu não esqueci.
Como poderia esquecer? É claro que estou triste agora que você está deixando
este mundo.
Como você pode dizer uma coisa dessas? Na noite passada eu chorei, e não foi
só para me mostrar. Você viu. Minha tristeza era genuína, não falsa. Por que
você sempre
pensa o pior a meu respeito?
- Ai-ya! - Du Lili grita para o corpo da Grande Ma. - Pare de brigar
agora que você está morta. - Ela olha para mim e pisca o olho.
- Não, eu não esqueço - Kwan está dizendo para Grande Ma. - Um galo, um
galo dançante, não uma galinha ou um pato. Já sei.
- O que ela está dizendo? - pergunto.
- Ela quer um galo amarrado na tampa do seu caixão.
- Por quê?
- Libby-ah quer saber por quê. - Kwan escuta por um minuto, depois
explica. - A Grande Ma não se lembra exatamente, mas acha que seu fantasma
deve entrar no
galo e sair voando.
- E você acredita nisto?
Kwan dá um sorriso malicioso.
- É claro que não! Nem a Grande Ma acredita nisto. É só superstição.

#272

- Bem, se ela não acredita, por que fazê-lo?


- Tst! Por causa da tradição! Também para fazer as crianças acreditarem
em algo assustador. Os americanos fazem a mesma coisa.
- Não fazemos não.
Kwan me lança um olhar superior de irmã mais velha.
- Você não se lembra? Quando cheguei nos Estados Unidos, você me disse
que os coelhos punham ovos uma vez por ano e que os mortos saíam dos túmulos
para procurá-los.
- Não disse isso.
- Disse sim, e disse também que, se eu não a obedecesse, Papai Noel
desceria pela chaminé e me poria num saco, e depois me levaria para um lugar
muito frio,
mais frio que um freezer.
- Nunca disse isso. - Mas, enquanto protesto, me lembro de uma
brincadeira que fiz com Kwan no Natal. - Talvez você tenha entendido mal o que
eu disse.
Kwan fez um bico.
- Ei, sou sua irmã mais velha. Você acha que eu não ia entender o que
você dizia? Hnh! Ah, não importa. A Grande Ma diz que não quer mais conversa.
Está na
hora de tirar o retrato.
Tento clarear a cabeça fazendo uma leitura de rotina com o medidor de
luz. Definitivamente, é caso de usar um tripé. Fora a luz de umas poucas velas
brancas
perto de uma mesa, a luz disponível vem do norte, através de janelas sujas.
Não há iluminação de teto, nem tomadas nas paredes para luzes estroboscópicas.
Se eu
usar flash, não vou poder controlar a quantidade de luz necessária e a Grande
Ma vai parecer ainda mais fantasmagórica. Um efeito de claro-escuro é o que
prefiro
mesmo, uma combinação de luz e sombras. Um segundo em f/8 vai causar um belo
efeito na metade do rosto da Grande Ma, deixando a outra metade na sombra da
morte.
Armo o tripé, preparo minha Hasselblad e junto uma Polaroid colorida
atrás para fazer um teste.
- Ok, Grande Ma - eu digo -, não se mova. - Será que estou perdendo a
razão? Estou falando com a Grande Ma como se eu também acreditasse que ela
pode me ouvir.

#273

E por que estou tão preocupada com o retrato de uma mulher morta? Não vou
poder usá-lo no artigo, Mas na verdade tudo importa, ou deveria importar. Toda
foto deve
ser a melhor que posso tirar. Ou será este mais um dos mitos da vida, passado
adiante por pessoas de sucesso para que todas as outras se sintam fracassadas?
Antes que possa pensar mais sobre isto, uma dúzia de pessoas se junta em
volta de mim, querendo ver o que sai da câmera. Sem dúvida muitas delas já
viram bancas
de fotos para turistas, oferecendo instantâneos por preços exorbitantes.
- Parem, parem - digo, quando eles se aproximam.
Coloco a foto de encontro ao peito para apressar a revelação. Os aldeões
ficam calados; eles devem achar que barulho perturba o processo. Tiro a folha
da frente
e examino o teste. O contraste está forte demais para o meu gosto, mas mostro
a eles a foto assim mesmo.
- Muito realista! - uma pessoa exclama.
- Ótima qualidade! - outra diz. - Veja a aparência da Grande Ma - como
se ela fosse acordar e dar comida aos porcos.
Alguém brinca:
- "Wah!"Ela vai dizer. "Porque tem tanta gente em volta da minha cama?"
Du Lili se manifesta.
- Libby-ah, agora tire o meu retrato.
Ela está alisando uma mecha eriçada de cabelo com a palma da mão,
puxando a manga do casaco para disfarçar os vincos. Olho pelo visor. Ela
assumiu a postura
dura de um soldado em posição de sentido, o rosto virado para mim, o olho
enviesado apontando para cima. A câmera assobia. Assim que puxo o teste da
Polaroid, ela
o arranca da minha mão e o aperta de encontro ao peito, batendo com o pé no
chão e rindo loucamente.
- A última vez que vi um retrato meu foi há muitos anos - ela diz
excitada. - Eu era muito jovem. - Quando dou o Ok a ela, ela arranca a folha
da frente e
olha ansiosa para a fotografia. Aperta o olho torto e pisca várias vezes. -
Então é assim que eu sou. - A expressão dela demonstra a reverência pelo
milagre da fotografia.

#274

Eu fico tocada, orgulhosa de um jeito "ah, que bobagem". Du Lili entrega a


foto a Kwan com cuidado, como se ela fosse um pintinho recém-nascido.
- Está muito parecido - Kwan diz. - O que foi que eu disse? Minha
irmãzinha é muito competente. - Ela passa a Polaroid de mão em mão para os
outros verem.
- Muito fiel à realidade - um homem diz entusiasmado. Os outros se
juntam ao coro:
- Excepcionalmente nítida.
- Extraordinariamente realista.
A Polaroid volta à mão de Du Lili. Ela a aninha na palma da mão.
- Então eu não tenho uma aparência tão boa - ela diz com voz triste. -
Sou tão velha. Nunca pensei que fosse tão velha e tão feia. Sou assim tão
feia, tão
abobalhada?
Algumas pessoas riem, pensando que Du Lili está brincando. Mas Kwan e eu
podemos ver que ela está mesmo chocada. Ela tem a expressão de alguém que foi
traído,
e fui eu que a magoei. Com certeza ela deve ter se Visto recentemente no
espelho. Mas, do jeito que vemos nosso reflexo, de diferentes ângulos, podemos
editar o
que não gostamos. A câmera é outro tipo de olho, um olho que vê um milhão de
partículas de prata em preto, não as velhas lembranças do coração de uma
pessoa.
Du Lili sai andando, e eu quero dizer algo para confortá-la, dizer que
sou uma péssima fotógrafa, que ela tem qualidades maravilhosas que uma câmera
jamais
poderá ver. Começo a segui-la, mas Kwan segura meu braço e sacode a cabeça.
- Mais tarde eu falo com ela - ela diz, e antes que eu possa dizer
alguma coisa, sou cercada por uma dúzia de pessoas, todas pedindo para eu
tirar uma foto
delas.
- Eu primeiro! - Tire uma de mim com meu neto!
- Wah! - Kwan ralha. - Minha irmã não está no ramo de tirar retratos de
graça.

#275

As pessoas continuaram insistindo:


- Só uma! Me dá um retrato também!
Kwan ergue as mãos e grita com severidade:
- Quietos! A Grande Ma acabou de me dizer que todo mundo deve sair
agora. - Os gritos cessam. - A Grande Ma diz que precisa descansar antes da
sua viagem para
o próximo mundo. Senão ela pode ficar louca de tristeza e permanecer aqui em
Changmian. - Seus camaradas absorveram tranqüilamente esta declaração e depois
saíram
em fila, resmungando com bom humor.
Quando ficamos sozinhas, sorrio agradecida para Kwan.
- A Grande Ma disse realmente isso?
Kwan me lançou um olhar enviesado e caiu na gargalhada. Comecei a rir
também, grata por sua presença de espírito.
Então ela acrescenta:
- A verdade é que a Grande Ma disse para tirar mais
fotos dela, mas desta vez de outro ângulo. Disse que a última que você tirou a
faz parecer quase tão velha quanto Du Lili.
Fico chocada.
- Que maldade.
Kwan parece não entender.
- O quê?
- Dizer que Du Lili parece mais velha que a Grande Ma.
- Mas ela é mais velha, pelo menos cinco ou seis anos.
- Como você pode dizer isto! Ela é mais moça que você.
Kwan inclina a cabeça, atenta.
- Por que você acha isto?
- Du Lili me contou.
Kwan agora está argumentando com o rosto sem vida da Grande Ma:
- Eu sei, eu sei. Mas, como Du Lili mencionou isto, temos de contar a
verdade a ela. - Kwan se aproxima de mim. - Libby-ah, agora eu preciso lhe
contar um
segredo.
Uma pedra cai no meu estômago.
- Há quase cinqüenta anos, Du Lili adotou uma menininha que encontrou na
estrada durante a guerra civil. Mais tarde, a menina morreu e Du Lili ficou
tão enlouquecida
de tristeza que acreditou ter se tornado sua filha.

#276

Lembro-me disto porque a menininha era minha amiga, e, se estivesse viva,


seria dois meses mais moça do que eu e não a mulher de setenta e oito anos que
Du Lili
é hoje. E agora que estou lhe contando isto - Kwan interrompe o que estava
dizendo e começa a discutir outra vez com a Grande Ma. - Não, não, eu não
posso contar
isto a ela, é demais.
Olho para Kwan. Depois olho para a Grande Ma. Penso no que Du Lili
disse. Em quem e no que devo acreditar? Todas as possibilidades giram em meu
cérebro, e
tenho a sensação de que estou num desses sonhos onde as relações lógicas entre
as frases estão sempre se desintegrando. Talvez Du Lili seja mais moça que
Kwan. Talvez
ela tenha
setenta e oito anos. Talvez o fantasma da Grande Ma esteja aqui. Talvez não
esteja. Todas essas coisas são verdadeiras e falsas, yin e yang. O que
importa?
Seja prática, digo a mim mesma. Se os sapos comem os insetos e os patos
comem os sapos e o arroz floresce duas vezes por ano, por que questionar o
mundo em
que eles vivem?

#277

17
O ANO EM QUE NÃO
HOUVE INUNDAÇÕES

Por que questionar o mundo? Porque não sou chinesa como Kwan. Para mim, yin
não é yang, e yang não é yin. Não posso aceitar duas histórias contraditórias
como sendo
toda a verdade. Quando Kwan e eu estamos voltando para a casa da Grande Ma,
pergunto baixinho:
- Como foi que a filha de Du Lili morreu?
- Oh, é uma história muito triste - Kwan responde em chinês.
- Talvez você não vá gostar de saber.
Prosseguimos em silêncio. Sei que ela está esperando que eu torne a
perguntar, então finalmente digo:
- Vá em frente.
Kwan pára e olha para mim.
- Você não vai ficar com medo?
Sacudo a cabeça, pensando: "Como posso saber se vou ficar com medo ou
não?" Quando Kwan começa a falar, eu estremeço e não é de frio.

O nome dela era Bolinho e tínhamos cinco anos quando ela se afogou. Ela era da
mesma altura que eu, olho no olho, sua boca calada na altura da minha boca
tagarela.
Era disto que minha tia se queixava, de que eu falava muito.

#278

- Se você disser mais uma palavra - Grande Ma costumava avisar -,


mando você embora. Nunca prometi a sua mãe que ia ficar com você.
Naquela época, eu era magrinha, meu apelido era Panqueca, bao-
bing - uma tripinha frita, como a Grande Ma me chamava -, sempre com
machucados nos
joelhos e cotovelos. E Bolinho, ela era gordinha, seus braços e pernas cheios
de covinhas, como um bao-zi. Foi Du Yun quem a encontrou na estrada - este era
o nome
de Du Lili na época, Du Yun. Foi a Grande Ma quem chamou a garotinha de
Bolinho Lili, porque, quando ela chegou na nossa aldeia, o único som que fazia
era lili-lili-lili,
o pio de um papa-figo. Lili-lili-lili era o que saía da sua boquinha vermelha,
como se ela tivesse mordido um caqui esperando que estivesse doce e ele
estivesse
azedo. Contemplava o mundo como um passarinho, os olhos pretos e redondos,
atenta para os perigos. Por que ela era assim ninguém sabia, exceto eu, porque
ela nunca
falava, pelo menos não com palavras. Mas de noite, quando a luz do lampião
dançava nas paredes e no teto, suas mãozinhas brancas falavam. Elas planavam e
mergulhavam
com as sombras, alçavam vôo e flutuavam, aqueles pássaros pálidos no meio das
nuvens. A Grande Ma ficava olhando e sacudia a cabeça: ai-ya, que estranho,
que estranho.
E Du Yun ria como uma idiota assistindo a um espetáculo. Só eu compreendia a
conversa de sombras de Bolinho. Sabia que suas mãos não eram deste mundo. Você
sabe,
eu também era uma criança, ainda estava próxima do tempo anterior a esta vida.
E portanto também me lembrava de que um dia tinha sido um espírito que saiu
desta
terra no corpo de um pássaro.
Na frente de Du Yun, as pessoas da aldeia sorriam e brincavam:
- Esta sua Bolinho, ela é esquisita, não é?
Mas, fora do nosso pátio, elas murmuravam palavras más, e esses sons
flutuavam por cima do nosso muro e entravam nos meus ouvidos.
- Aquela menina é tão mimada que ficou maluca - ouvi o vizinho Wu
dizer. - A família dela devia ter idéias burguesas.

#279

Du Yun devia bater nela com freqüência, pelo menos três vezes por dia.
- Ela está possuída - outro disse. - Um piloto japonês caiu do céu e
se alojou em seu corpo. Por isso é que ela não sabe falar chinês, só sabe
grunhir e
torcer as mãos como um avião suicida.
- Ela é estúpida - outro vizinho disse. - A cabeça dela é tão oca
quanto uma cabaça.
Mas, segundo Du Yun, Bolinho não falava porque Du Yun podia falar por
ela. Uma mãe sempre sabe o que é melhor para a filha, ela dizia, não é
verdade? - o
que ela deve comer, o que ela deve sentir e pensar. Quanto às mãos dançantes
de Bolinho, Du Yun disse uma vez que elas eram a prova - a prova genuína - de
que suas
antepassadas tinham sido damas da corte. E a Grande Ma respondeu:
- Wah! Então ela tem mãos contra-revolucionárias, mãos que um dia vão
ser decepadas. É melhor ela aprender a apertar uma das narinas com o dedo e
soprar
o catarro na palma da mão.
Só uma coisa deixava Du Yun triste com relação a Bolinho. Rãs. Bolinho
não gostava das rãs da primavera, rãzinhas verdes, pequeninas como o seu
punho. Ao
cair da tarde você podia ouvi-las, rangendo como portões fantasmas: Ahh-wah,
ahh-wah, ahh-wah. A Grande Ma e Du Yun
agarravam baldes e redes e depois iam para os campos alagados. E todas aquelas
rãs prendiam a respiração, tentando desaparecer com seu silêncio. Mas em pouco
tempo
não podiam mais abafar os seus desejos: Ahh-wah, ahh-wah, ahh-wah, mais alto
ainda que antes, implorando para que alguém as amasse.
- Quem poderia amar tal criatura? - Du Yun costumava dizer brincando.
E a Grande Ma sempre respondia:
- Eu posso - depois de cozida.
Com que facilidade elas apanhavam aquelas criaturas doentes de amor.
Elas as colocavam em baldes, brilhantes como óleo ao luar. De manhã, a Grande
Ma e Du
Yun iam para a beira da estrada, gritando:

#280

- Rãs! Rãs suculentas! Dez por um iene! E lá estávamos nós, Bolinho e


eu, sentadas em baldes emborcados, descansando o queixo nas mãos, sem nada
para fazer
a não ser sentir o calor do sol aquecendo um lado do rosto, um braço, uma
perna.
Não importa o quanto conseguissem vender, Grande Ma e Du Yun guardavam
pelo menos uma dúzia de rãs para o nosso almoço. No meio da manhã, nós
voltávamos
para casa, com sete baldes vazios e um cheio pela metade. No pátio ao lado da
cozinha, a Grande Ma acendia uma fogueira bem grande. Du Yun enfiava a mão no
balde
e agarrava uma rã, e Bolinho se escondia atrás de mim. Eu sentia o peito dela
subindo e descendo, depressa e com força, igual à rã se debatendo na mão de Du
Yun,
esticando e encolhendo o pescoço.
- Prestem atenção, ah - Du Yun dizia para Bolinho e para mim. - Esta é
a melhor maneira de se cozinhar uma rã.
Ela virava a rã de costas e - rápido -, enfiava a ponta da tesoura no
ânus dela - szzzzzzz! -, furando-a até o pescoço. Enfiava o polegar no buraco
e com
um puxão rápido arrancava mosquitos e moscas azul-prateadas. Com
outro puxão, no pescoço da rã, arrancava a pele, do focinho ao rabo, e esta
ficava pendurada
nos dedos de Du Yun como se fosse o uniforme amassado de um antigo guerreiro.
Depois, chop, chop, chop, e a rã ficava em pedacinho, corpo e pernas, e a
cabeça era
jogada fora. Enquanto Du Yun limpava as rãs, uma depois da outra, Bolinho
mantinha o punho entre os dentes, com força, como um saco de areia impedindo
um vazamento
na margem de um rio. Então não saía qualquer grito. E, quando Du Yun via a
angústia no rosto de Bolinho, ela dizia numa voz doce e maternal:
- Bebê-ah, espere mais um pouquinho. Ma já vai te dar comida.
Só eu sabia que palavras estavam presas na boca de Bolinho. Nos olhos
dela, eu podia ver o que ela tinha visto um dia, tão claramente como se as
lembranças
fossem minhas também. Que este arrancar de pele da carne era o modo como seu
pai e sua mãe tinham morrido.

#281

Que ela tinha visto isto acontecer do alto de uma árvore onde seu pai a havia
escondido. Que na árvore um papa-figo piou, avisando para Bolinho se afastar
do seu
ninho. Mas Bolinho não podia emitir nenhum som, nem mesmo um soluço, porque
tinha prometido à mãe que ficaria calada. Era por isso que Bolinho não falava.
Ela tinha
prometido à mãe. Em doze minutos, doze rãs e peles de rãs voavam para dentro
da panela e chiavam no óleo, tão frescas que algumas pernas saltavam da panela
- wah!
- e Du Yun as agarrava com uma das mãos, enquanto com a outra continuava a
mexer. Esta era a competência que Du Yun tinha para cozinhar rãs.
Mas Bolinho não tinha estômago para apreciar isto. Sob a luz fraca do
lampião, ela nos observava, gulosas, devorar aquelas criaturas deliciosas,
nossos dentes
procurando nacos de carne em ossos tão pequeninos quanto agulhas de bordado. A
pele era a melhor parte, macia e saborosa. Em segundo lugar eu gostava dos
ossinhos,
os que ficavam logo
acima dos pés.
Freqüentemente Du Yun erguia os olhos e incentivava a filha:
- Não brinque agora, coma, meu tesouro, coma.
Mas as mãos de Bolinho continuavam a agitar-se e voar, planando junto
com suas sombras. Então Du Yun ficava triste porque sua filha se recusava a
comer o
prato que ela fazia melhor. Você devia ter visto o rosto de Du Yun - tanto
amor por uma menina abandonada que ela encontrou na
estrada. E eu sei que Bolinho tentou amar Du Yun com os farrapos remanescentes
do seu coração. Ela seguia Du Yun pela aldeia, erguia um dos braços para que
sua nova
mãe pudesse lhe dar a mão. Mas nas noites em que as rãs cantavam, quando Du
Yun pegava os seus baldes, Bolinho corria para um canto, se encolhia e
começava a cantar:
Lili-lili-lili.
É assim que eu me lembro de Bolinho. Eu e ela éramos boas amiguinhas.
Morávamos na mesma casa. Dormíamos na mesma cama. Éramos como irmãs.

#282

Mesmo sem falar , uma sabia o que a outra estava sentindo. Ainda tão pequenas,
conhecíamos a tristeza, e não só a nossa. Conhecíamos a tristeza do mundo. Eu
perdi
a minha família. Ela perdeu a dela.
O ano em que Du Yun encontrou Bolinho na estrada, foi um ano estranho,
um ano sem inundações. No passado, sempre chovia demais na nossa aldeia, e
tinha pelo
menos uma inundação na primavera. Os rios invadiam as nossas casas, varrendo
insetos e ratos, chinelos e bancos, e arrastando tudo isso para os campos. Mas
no ano
em que Bolinho chegou - nenhuma inundação, só chuva, o suficiente para as
plantações e as rãs, o suficiente para o pessoal da aldeia dizer:
- Nada de inundação, por que estamos com tanta sorte? Talvez seja a
menina que Du Yun encontrou na estrada. Sim, deve ser por causa dela.
No ano seguinte, não houve chuva. Em todas as aldeias ao redor da
nossa, a chuva caiu como sempre, chuva forte, chuva fraca, chuva longa, chuva
curta. Mas
na nossa aldeia, nada. Nenhuma chuva para a brotação da primavera. Nenhuma
chuva para a colheita do verão. Nenhuma chuva para o plantio do outono. Nada
de chuva,
nada de brotos. Nada de água para cozinhar o arroz que não florescia mais, nem
restos para alimentar os porcos. Os arrozais ficaram secos, como crosta de
mingau,
e as rãs mortas, como pauzinhos secos. Os insetos saíam das fendas do chão,
sacudindo as antenas na direção do céu. Os patos emagreceram e nós os comemos,
pele e
ossos. Quando olhávamos por muito tempo para os picos das montanhas, nossos
olhos famintos viam batatas-doces assadas, com as cascas estalando. Um ano
terrível,
tão terrível que as pessoas da aldeia disseram que Bolinho, aquela menina
maluca, devia ser a culpada.
Num dia quente, Bolinho e eu estávamos sentadas na beirada de uma vala
que corria ao lado da nossa casa, Estávamos esperando por um barco imaginário
que
nos levaria à terra das fadas. De repente, ouvimos um ronco vindo do céu,
depois outro ronco, depois um estrondo kwahhh! - e começou a cair uma chuva
grossa como
bolas de arroz.

#283

Eu fiquei tão feliz e assustada! Houve mais relâmpagos e mais trovões. Nosso
barco está finalmente partindo, gritei. E Bolinho riu. Pela primeira vez, ouvi
a risada
dela. Eu a vi estender as mãos para os relâmpagos no céu.
A chuva continuou a gorgolejar - gugu-gugu-gugu -, rolando montanha
abaixo, enchendo suas rugas e veias. E os espaços vazios não conseguiam
engolir com a
rapidez necessária, tanta era a água. Logo, muito depressa, aquela vala
simpática se transformou num rio marrom, batendo de encontro às nossas pernas.
Rabos brancos
de água agarraram nossos punhos e tornozelos. Fomos rolando cada vez mais
depressa, primeiro de frente, depois de costas, até a água nos cuspir num
campo.
Por conversas murmuradas, mais tarde eu soube o que aconteceu. Quando
a Grande Ma e Du Yun nos tiraram da água, estávamos pálidas e imóveis,
envoltas em
ervas daninhas, dois casulos encharcados sem nenhum sinal de respiração. Elas
tiraram a lama de nossas narinas e bocas,
arrancaram as ervas de nossos cabelos. Meu corpo magro estava em pedaços, o
corpo gorducho dela não. Elas nos vestiram com roupas de despedida. Depois
foram até
o pátio, lavaram dois bebedouros de porcos que não eram mais necessários,
quebraram dois assentos de bancos para servirem de tampa. Colocaram-nos nesses
dois caixõezinhos
modestos, depois se sentaram e choraram.
Durante dois dias, ficamos deitadas nesses caixões. Grande Ma e Du Yun
estavam esperando que a chuva passasse para poderem nos enterrar no solo
rochoso onde
nada crescia. Na terceira manhã, soprou uma forte ventania, que afastou as
nuvens. O sol apareceu e Du Yun e a Grande Ma abriram os caixões para ver
nossos rostos
pela última vez.
Senti dedos acariciando o meu rosto. Abri os olhos e vi wo rosto de Du
Yun, sua boca aberta num sorriso de alegria.
- Viva! - ela gritou. - Ela está viva! - Agarrou minha mão e
esfregou-a de encontro ao rosto. E então lá estava também a Grande Ma, olhando
para mim, me
examinando.

#284

Eu estava confusa, minha cabeça espessa como a névoa da manhã.


- Quero me levantar. - Esta foi a primeira coisa que disse. A Grande
Ma deu um pulo para trás. Eu a ouvi urrar:
- Não pode ser! Não pode ser!
Ergui o corpo.
- Grande Ma - eu disse -, o que houve? - Elas começaram a gritar,
gritos altos, tão terríveis que eu pensei que minha cabeça fosse explodir de
susto. Vi
a Grande Ma correr para o outro caixão. Abriu a tampa. Vi a mim mesma. Meu
pobre corpo quebrado! E então minha cabeça girou, meu corpo caiu, e não vi
mais nada até
a noite.
Quando acordei, estava deitada na cama que costumava partilhar com
Bolinho. Grande Ma e Du Yun estavam em pé do outro lado do quarto, na porta.
- Grande Ma - eu disse, bocejando -, tive um pesadelo. A Grande Ma
gritou:
- Ai-ya, ela fala. - Ergui-me e saí da cama, e a Grande Ma gritou:
- Ai-ya, veja, ela se move. - Reclamei que estava com fome e que queria
urinar.
Ela e Du Yun recuaram. - Vá embora senão vou lhe bater com galhos de
pessegueiro! - Grande Ma gritou.
E eu disse:
- Grande Ma, nós não temos pessegueiros.
Ela cobriu a boca com a mão. Na época, eu não sabia que se supunha que
os fantasmas tivessem medo de galhos de pessegueiro. Mais tarde, é claro, eu
soube
que isto era apenas superstição. Já perguntei a diversos fantasmas e todos
riram e disseram:
- Medo de galhos de pessegueiro? Nada disso!
Bem, como eu estava dizendo, minha bexiga estava a ponto de explodir.
Eu estava nervosa, pulando e prendendo a urina.
- Grande Ma - eu disse, desta vez com mais educação -, quero visitar
os porcos. - Ao lado do chiqueiro, tínhamos um pequeno fosso, com uma prancha
de madeira
de cada lado para nos equilibrarmos enquanto fazíamos as nossas necessidades.
Isto foi antes de a aldeia sofrer uma reeducação acerca de dejetos coletivos.

#285
E, depois disto, não era mais suficiente dar a sua mente, o seu corpo e o seu
sangue para o bem comum - você tinha de dar também a sua merda, exatamente
como os
impostos americanos!
Mas a Grande Ma não disse que eu podia ir visitar os porcos.
Aproximou-se e cuspiu no meu rosto. Esta era outra superstição a respeito de
fantasmas: cuspa
neles e eles desaparecerão. Mas eu não desapareci Molhei minhas calças, um
córrego quente descendo pelas minhas pernas, uma poça escurecendo o chão. Tive
certeza
de que a Grande Ma ia me bater, mas em vez disso, ela disse:
- Veja, ela está urinando.
E Du Yun disse:
- Como pode ser? Fantasmas não urinam.
- Bem, use os seus próprios olhos, sua tola. Ela está urinando.
- Ela é um fantasma ou não?
E assim elas continuaram, discutindo sobre a cor, o cheiro e o tamanho
da minha mijada. Finalmente decidiram me oferecer algo para comer. Este foi o
raciocínio
delas: se eu fosse um fantasma, aceitaria esse suborno e iria embora. Se fosse
uma garotinha, pararia de reclamar e voltaria a dormir, que foi o que fiz
depois de
dar uma dentada num bolinho de arroz azedo. Dormi e sonhei que tudo que tinha
acontecido era parte do mesmo longo sonho.
Quando acordei na manhã seguinte, tornei a dizer à Grande Ma que tinha
tido um pesadelo.
- Você ainda está dormindo - ela disse. - Agora .levante-se. Vamos
levá-la para ver uma pessoa que vai despertá-la deste sonho.
Caminhamos até uma aldeia chamada Retorno do Pato, seis li ao sul de
Changmian. Nesta aldeia morava uma cega chamada Terceira Tia. Ela não era
minha tia
de verdade. Não era tia de ninguém. Era só um nome, Terceira Tia, o nome que
se dá a uma mulher quando não se deve dizer "a que conversa com fantasmas". Na
juventude,
ela ficou famosa em toda a região por conversar com fantasmas. Na meia-idade,
um missionário cristão a redimiu e ela desistiu de conversar com espíritos,
todos exceto
o Espírito Santo.

#286

Quando ficou velha, foi reformada pelo Exército de Libertação do Povo e


desistiu do Espírito Santo. E, quando ficou muito velha, esqueceu se era
redimida ou reformada.
Estava finalmente velha o suficiente para esquecer tudo o que lhe haviam
ensinado.
Quando entramos, a Terceira Tia estava sentada num banquinho no meio
do quarto. A Grande Ma me empurrou para a frente.
- O que há de errado com ela? - Du Yun perguntou cheia de pena.
A Terceira Tia segurou minhas mãos com suas mãos ásperas. Ela tinha olhos da
cor do céu e das nuvens. O quarto estava silencioso a não ser por minha
respiração.
Finalmente, a Terceira Tia anunciou:
- Há um fantasma dentro desta menina. - Grande Ma e Du Yun engasgaram.
E eu pulei e gritei, tentando livrar-me do demônio.
- O que podemos fazer? - Du Yun gritou.
E a Terceira Tia disse:
- Nada. A menina que habitava este corpo antes não quer voltar. E a
menina que mora nele agora não pode partir enquanto não encontrá-la. Foi
quando eu a
vi, Bolinho, olhando para mim pela janela do quarto. - Olhem! Lá
está ela! - E quando eu a vi apontando para mim e dizendo as
mesmas palavras, percebi que estava olhando para o meu próprio reflexo.
No caminho de volta para casa, Grande Ma e Du Yun brigaram, dizendo
coisas que uma menina não devia ouvir.
- Nós devíamos enterrá-la, colocá-la no chão, que é o lugar dela.
- Esta era a Grande Ma falando.
- Não, não - Du Yun gemeu. - Ela vai voltar, ainda como fantasma, e
zangada o bastante para nos levar com ela.
Então Grande Ma disse:
- Não diga que ela é um fantasma! Nós não podemos levar um fantasma
para casa. Mesmo que ela seja - wah! Que problema! - Nós vamos ter de
ser reformadas.

#287

- Mas quando as pessoas virem esta menina, quando ouvirem a voz da


outra...
Quando chegamos em Changmian, Grande Ma e Du Yun tinham decidido que
iam fingir que não havia nada de errado comigo: Esta era a atitude que as
pessoas tinham
de adotar com relação a muitas coisas na vida. O que antes era errado agora
era certo. O que era direito agora era esquerdo. Então se alguém dissesse:
"Wah, esta
menina deve ser um fantasma" , Grande Ma iria responder: "Camarada, você está
enganado. Só reacionários acreditam em fantasmas".
No enterro de Bolinho, eu olhei para o meu corpo no caixão. Chorei por
minha amiga e chorei por mim mesma. Os outros ainda estavam confusos sem saber
quem
estava morto. Choravam e chamavam meu nome. E, quando a Grande Ma os corrigia,
tomavam a chorar e chamavam o nome de Bolinho. Então era Du Yun quem começava
a gemer.
Durante muitas semanas, assustei todo mundo que ouvia minha voz sair
de dentro daquela boca franzida. Ninguém falava comigo. Ninguém tocava em mim.
Ninguém
brincava comigo. Ficavam me vendo comer. Ficavam me vendo andar pela rua.
Ficavam me vendo chorar. Uma noite, eu acordei no escuro e vi Du Yun sentada
ao lado da
minha cama, implorando com uma voz doce.
- Bolinho, tesouro, volte para a sua ma.
Ela ergueu minhas mãos, levou-as para perto do castiçal. Quando eu as
puxei de volta, ela agitou seus braços no ar - oh, tão desajeitada, tão
desesperada,
tão triste, um pássaro de asas quebradas. Acho que foi aí que ela começou a
acreditar que era a filha. É isto que acontece quando você tem uma pedra no
coração e
não pode gritar nem se livrar dela. Muitas pessoas em nossa aldeia tinham
engolido pedras como esta, e compreendiam. Fingiam que eu não era um fantasma.
Fingiam
que eu tinha sido sempre a garota gorducha e Bolinho a magrinha. Fingiam que
não havia nada de errado com a mulher que agora chamava a si mesma de Du Lili.

#288
Com o tempo, as chuvas voltaram, depois as inundações, depois os novos
líderes que disseram que tínhamos de trabalhar mais duro para apagar os Quatro
Velhos
e construir os Quatro Novos. Os grãos cresceram, as rãs coaxaram, as estações
passaram, um dia comum depois do outro, até que tudo mudou e ficou igual outra
vez.
Um dia, uma mulher de outra aldeia perguntou à Grande Ma:
- Ei, por que você chama essa menina gorda de Panqueca?
- A Grande Ma olhou para mim, tentando lembrar-se.
- Antes ela era magrinha - ela disse - porque não comia rãs. Agora não
consegue parar de comê-las.
Está vendo, todo mundo resolveu esquecer. E, mais tarde, esqueceram
realmente. Esqueceram que houve um ano sem inundações. Esqueceram que Du Lili
um dia
se chamou Du Yun. Esqueceram qual a menina que tinha se afogado. Grande Ma
ainda me batia, só que agora eu tinha um corpo mais gordo, então os seus
punhos não me
machucavam tanto quanto antes.
Olhe para estes dedos e para estas mãos. Às vezes até eu acredito que
sempre foram meus. O corpo que acreditei ter tido um dia talvez fosse um sonho
que
eu confundi com a realidade. Mas então me lembro de outro sonho.
Neste sonho, eu fui para o Mundo de Yin. Vi tantas coisas. Bandos de
pássaros, alguns chegando, outros partindo. Bolinho voando com sua mãe e seu
pai. Todas
as rãs cantoras que eu comi, agora com suas peles de volta. Eu sabia que
estava morta, e estava ansiosa para ver minha mãe. Mas, antes que pudesse
encontrá-la, vi
alguém correndo na minha direção, com uma expressão de raiva e preocupação.
- Você tem de voltar - ela gritou. - Dentro de sete anos eu vou
nascer. Está tudo combinado. Você prometeu esperar. Já esqueceu? - E ela me
sacudiu, sacudiu,
até eu me lembrar.
Voei de volta para o mundo mortal. Tentei voltar para o meu corpo. Fiz
força para entrar. Mas ele estava quebrado, meu pobre corpo magrinho.

#289

E então a chuva parou. O sol estava aparecendo. Du Yun e Grande Ma estavam


abrindo a tampa dos caixões. Rápido, o que vou fazer?
Então diga-me, Libby-ah, o que fiz de errado? Eu não tive escolha. De
que outra forma poderia manter a promessa que fiz a você?

#290

18
FRANGO PRIMAVERIL
DE SEIS ROLOS

- Agora você se lembra? - Kwan pergunta.


Eu estou hipnotizada por suas bochechas gordas, pelo franzido de sua
pequena boca. Olhar para ela é como ver um holograma: presa atrás da
superfície brilhante
está a imagem tridimensional de uma menina que se afogou.
- Não - eu digo.
Será que Kwan - quer dizer, esta mulher que diz ser minha irmã - é na
verdade uma pessoa demente que acreditava ser Kwan? Isto explicaria a
disparidade entre
o retrato do bebê magrinho que nosso pai nos mostrou e a garota gorducha que
conhecemos no aeroporto. Também explicaria por que Kwan não se parece nada nem
com meu
pai nem com meus irmãos e nem comigo.
Talvez meu desejo infantil tenha se tornado realidade: a verdadeira
Kwan morreu e a aldeia nos enviou outra moça, achando que não saberíamos a
diferença
entre um fantasma e alguém que achava que era um fantasma. Mas como Kwan pode
não ser minha irmã? Será que um trauma terrível de infância fez com que ela
acreditasse
ter trocado de corpo com outra pessoa? Mesmo que não sejamos geneticamente
relacionadas, ela não continua sendo minha irmã? Sim, é claro. No entanto,
quero saber
que partes de sua história podem ser verdadeiras.

#291

Kwan sorri, apertando minha mão. Aponta para os pássaros que voam no
alto. Se ao menos ela dissesse que são elefantes... Então, pelo menos, sua
loucura seria
consistente. Quem pode me contar a verdade? Du Lili? Ela não é mais confiável
que Kwan. Grande Ma está morta. E mais ninguém na aldeia, com idade suficiente
para
lembrar, fala outra coisa que não seja o dialeto de Changmian. Mesmo que
falassem mandarim, como eu poderia perguntar? "Ei, digam-me, minha irmã é
mesmo minha irmã?"
Ela é um fantasma ou só é louca?" Mas eu não tenho tempo para decidir o que
fazer. Kwan e eu estamos entrando no portão da casa da Grande Ma.
No aposento central, encontramos Simon e Du Lili conversando
animadamente na linguagem universal das charadas. Simon abre o vidro
imaginário de um carro
e grita:
- Então eu enfio a cabeça para fora e grito: "Vamos, sacode esse
traseiro!" Ele aperta uma buzina imaginária e - então - Bbbbrr-ta-ta! Bbbbrrr-
ta-ta! - imita um tiro de Uzi - estourando os pneus.
Du Lili diz em Changmian o que soa como o equivalente a:
- Hnh! Isso não é nada.
Ela imita um pedestre carregando sacos de compras - sacos pesados,
somos convidados a observar, que esticam seus braços como se fossem fios de
macarrão.
De repente, ergue os olhos, salta para trás quase no pé de Simon, e atira para
cima os sacos pesados justo quando um carro ziguezagueando como uma cobra
passa voando
pelo seu nariz e atropela uma multidão de pessoas. Ou talvez ela esteja
querendo dizer um grupo de árvores. De qualquer maneira, galhos ou membros
voam para todo
lado. Para terminar seu pequeno drama, ela vai até o motorista e cospe na cara
dele, o que nesta encenação é o balde perto dos sapatos de Simon.
Kwan rompe em aplausos, eu bato palmas. Simon faz bico como se fosse o
segundo colocado do programa Rainha por um dia. Ele acusa Du Lili de exagero -
talvez
o carro não estivesse andando tão rápido quanto uma cobra, e sim devagar como
uma vaca aleijada.

#292
- Bu-bu-bu! - ela grita, rindo e batendo com os pés. Sim, e talvez ela
estivesse andando com a cabeça nas nuvens e ela tenha causado o acidente. -
Bu-bu-bu!
- Quando ela soca as costas dele, Simon se acovarda:
- Está bem, você ganhou! Seus motoristas são piores. A não ser pela
diferença de idade, eles parecem amantes novos que flertam um com o outro,
implicando,
provocando, encontrando desculpas para se tocarem. Sinto um aperto no coração,
embora não possa ser ciúme, pois quem iria pensar que aqueles dois - bem, seja
ou
não verdadeira a história de Kwan sobre Du Lili e sua filha, uma coisa é
certa: Du Lili é muito velha.
Terminadas as charadas, ela e Kwan vão para o pátio, discutindo o que
vão preparar para o jantar. Quando não podem mais ouvir, chamo Simon de lado.
- Como foi que você e Du Lili chegaram ao tema de maus motoristas,
pelo amor de Deus?
- Tentei contar a ela sobre a viagem de ontem para cá, com Rocky
dirigindo, sobre o acidente.
Faz sentido. Então eu conto a ele o que Kwan me contou.
- O que você acha?
- Bem, em primeiro lugar, Du Lili não me parece louca, e nem Kwan. Em
segundo lugar, são as mesmas velhas histórias que você tem ouvido a vida
inteira.
- Mas esta é diferente. Não está vendo? Talvez Kwan não seja realmente
minha irmã.
Ele franze a testa.
- Como ela pode não ser sua irmã? Mesmo que não seja irmã de sangue,
ainda é sua irmã.
- É, mas isto quer dizer que havia outra menina que também era minha
irmã.
- Mesmo assim, o que você faria? Rejeitaria Kwan?
- É claro que não! É só que - bem, preciso saber com certeza o que
aconteceu.
Ele sacode os ombros.
- Por quê? Que diferença faria? Tudo que sei é o que vejo. Para mim,
Du Lili parece ser uma senhora simpática.

#293

Kwan é Kwan. A aldeia é fantástica. E eu estou contente de estar aqui.


- E quanto a Du Lili? Você acredita quando ela diz que tem cinqüenta
anos? Ou acredita em Kwan que diz que Du Lili tem...
Simon me interrompe:
- Talvez você não tenha entendido o que Du Lili estava dizendo. Você
mesma disse que o seu chinês não é lá essas coisas.
Fico aborrecida.
- Eu só disse que não falava tão bem quanto Kwan.
- Talvez Du Lili tenha usado uma expressão como - bem, "jovem como
umfranguinho novo". - A voz dele tinha o tom seguro da racionalidade
masculina. - Talvez
você tenha pensado que ela estava dizendo literalmente que achava que era um
frango.
- Ela não disse que era um frango. - Minhas têmporas estavam
latejando.
- Está vendo, agora você também está interpretando as minhas palavras
literalmente. Eu só estava dando um exemplo de...
Entrego os pontos.
- Por que você sempre tem de provar que está com a razão?
- Ei, o que é isso? Achei que estávamos apenas conversando. Não estou
tentando provar...
E então ouvimos Kwan chamar do pátio:
- Libby-ah! Simon! Venham depressa! Vamos cozinhar agora. Vocês querem
tirar fotos, não?
Ainda irritada, corro até o quarto da Grande Ma para apanhar o meu
equipamento. Lá está de novo: a cama de casal. Não pense nela, digo a mim
mesma. Olho
pela janela, depois para o meu relógio: já está escurecendo, a meia hora
dourada. Se algum dia houve um tempo e um lugar que me permitissem colocar
toda a paixão
visceral no meu trabalho, é aqui e agora, na China, onde eu não posso
controlar nada, onde tudo é imprevisível, totalmente insano. Pego a Leica,
depois enfio dez
rolos de filme de alta velocidade no bolso do meu casaco.

#294

No pátio, pego um rolo numerado e coloco na máquina. Depois da


chuvarada, o céu ficou de um azul de guache, com nuvens fofas deslizando por
trás dos picos
das montanhas, Respiro profundamente e sinto o cheiro de fumaça que vem da
cozinha das cinqüenta e três casas de Changrnian. E por trás deste perfume
paira o cheiro
maduro de esterco.
Analiso os elementos do cenário. As paredes de tijolos do pátio
servirão muito bem como pano de fundo. Eu gosto do tom alaranjado, da textura
grosseira.
a árvore no meio tem folhas anêmicas - é melhor evitá-la. O chiqueiro tem
um bom potencial - bem posicionado à direita do pátio, sob uma aba do telhado
de sapê.
É de uma simplicidade rústica, como a manjedoura numa peça infantil de Natal.
Mas, em vez de Jesus, Maria e José, há três porcos chafurdando na lama. E meia
dúzia
de galinhas, uma sem pé, outra com parte do bico faltando. Danço num arco
aberto e depois mais fechado ao redor do meu objeto. Com o canto do olho, vejo
um balde
cheio de uma papa acinzentada de arroz e moscas. É um fosso com um cheiro
horrível, um buraco de água suja. Debruço-me e vejo uma criatura de pêlo
cinzento, junto
com restos de arroz que se contorcem - larvas, é isso que são.
A vida em Changmian agora parece fútil. Eu devia estar
"pré-visualizando" o momento que quero, fazendo a espontaneidade coincidir com
o que
existe. Mas só o que vejo em minha cabeça são leitores bem-vestidos folheando
uma revista de viagens chique que se especializa em imagens bucólicas de
países do
Terceiro Mundo. Eu sei o que as pessoas querem ver. Por isto é que o meu
trabalho normalmente parece insatisfatório, pré-editado para ter um certo tom
de imbecilidade.
Não é que eu queira tirar fotos que sejam propositadamente pouco lisonjeiras.
De que adiantaria fazer isto? Não há mercado para elas, e, mesmo que houvesse,
um realismo
absoluto causaria uma impressão errada nas pessoas, de que toda a China é
assim, atrasada, sem saneamento, miseravelmente pobre. Odeio a mim mesma por
ser suficientemente
americana para fazer estes julgamentos. Por que sempre altero o mundo real?
Para o bem de quem?

#295

Dane-se a revista. Para o inferno com impressões certas e erradas.


Verifico a luz, o foco. Vou simplesmente fazer o máximo para capturar um
momento, a sensação
desse momento acontecendo. E é então que vejo Du Lili agachada ao lado da
bomba manual, enchendo uma panela de água. Ando em volta dela, focalizo e
começo a fotografar.
Mas, ao ver minha máquina, ela se ergue de um salto para posar e ajeita o
velho casaco verde. Lá se vai a espontaneidade.
- Você não precisa ficar parada - eu digo a ela. - Pode se movimentar
por aí. Me ignore. Faça o que quiser.
Ela balança a cabeça e então caminha pelo pátio. E, na sua ansiedade
para esquecer a presença da câmera, ela admira um banquinho, aponta para as
cestas penduradas
na árvore, faz um ar de espanto para um machado coberto de lama, como se
estivesse exibindo inestimáveis tesouros nacionais.
- Um, dois, três - eu conto em chinês, e então tiro alguns retratos
posados para satisfazê-la. - Bom, muito bom - digo. - Obrigada.
Ela fica espantada.
- Eu fiz errado? - ela pergunta numa vozinha queixosa. Ah - ela estava
esperando por um flash, pelo clique do disparador, coisas que a Leica não faz.
Decido
contar uma mentirinha.
- Não estou realmente tirando fotos - explico. - Estou só olhando
- ensaiando.
Ela abre um sorriso de alívio e volta para o chiqueiro. Quando abre o
portão, os porcos roncam e correm para ela, com os focinhos erguidos,
cheirando a comida.
Umas poucas galinhas andam em volta dela pelo mesmo motivo.
- Uma bem gordinha - Du Lili diz, escolhendo. Esgueiro-me pelo pátio
como um ladrão, tentando não ser notada, enquanto procuro a melhor combinação
de tema,
luz, pano de fundo e enquadramento. O sol desce mais um pouco e envia raios de
luz filtrados pelo telhado de sapê, lançando uma luminosidade suave no rosto
doce
de Du Lili. Com este golpe de sorte, meus instintos assumem. Sinto a mudança,
a força que resulta de se abrir mão do controle. Agora disparo a câmera sem
parar.

#296

Ao contrário de outras câmeras, que me deixam cega quando o visor se abre, a


Leica me deixa ver o momento que estou capturando: o gesto da mão de Du Lili
agarrando
uma galinha, o agitar das penas das outras galinhas, os porcos se virando
juntos como uma banda de música. E Simon - tiro algumas fotos dele tomando
notas para possíveis
legendas. É como nos velhos tempos, do modo como costumávamos trabalhar no
mesmo ritmo. Só que agora ele não está com o seu jeito
profissional-durão.
Seus olhos estão maravilhosamente intensos. Ele olha para mim e sorri.
Viro minha câmera de volta para Du Lili. Ela está andando na direção da
bomba manual, segurando firmemente a galinha, que berra sem parar. Ela a
segura por
cima de uma tigela branca colocada sobre um banco. Sua mão esquerda agarra
firmemente o pescoço da galinha. Na outra mão ela tem uma pequena faca. Como é
que ela
vai decepar a cabeça da galinha com aquilo? Pelo visor, eu a vejo pressionar a
lâmina no pescoço da ave. Vai cortando vagarosamente. Surge um fio de sangue.
Fico
tão perplexa quanto a galinha. Ela posiciona a ave de modo que seu pescoço
fique esticado para baixo, e o sangue começa a escorrer para dentro da tigela.
Ao fundo, ouço os porcos gritando. Eles estão realmente gritando, como
pessoas aterrorizadas. Alguém me disse uma vez que os porcos podem contrair
uma febre
mortal quando estão sendo levados para o matadouro, que são espertos o
bastante para saber o que os aguarda. E agora eu me pergunto se eles também
podem se solidarizar
com o sofrimento de uma galinha moribunda. Será que isto evidencia
inteligência ou a existência de uma alma? Apesar de todas as operações
cirúrgicas de coração aberto
e dos transplantes de rim que fotografei, eu fico tonta. No entanto, continuo
fotografando. E noto que Simon não está mais tomando notas.
Quando a tigela está com sangue até a metade, Du Lili deixa a galinha
cair no chão. Durante vários minutos agonizantes, nós a vemos estrebuchar e
gorgolejar.
Finalmente, com os olhos vítreos, ela cai. Bem, se Du Lili pensa que é
Bolinho, certamente deve ter perdido sua compaixão por aves.

#297

Simon se aproxima de mim.


- Isto foi uma barbaridade. Não sei como você conseguiu continuar
fotografando.
A observação dele me irrita.
- Pare de ser tão etnocêntrico. Você acha que matar galinhas nos
Estados Unidos é mais humano? De qualquer maneira, ela provavelmente agiu
desta maneira
para a carne ficar livre de toxinas. É como uma tradição, um processo kosher
ou algo assim.
- Kosher uma ova! Kosher é matar o animal rapidamente para que ele não
sofra. E o sangue é retirado depois do animal morto, e depois jogado fora.
- Bem, ainda acho que ela agiu assim por motivos de saúde. - Eu me
viro para Du Lili e pergunto em chinês. - Bu-bu - ela responde, sacudindo a
cabeça e rindo.
- Depois que eu tenho sangue suficiente, geralmente corto fora a cabeça
imediatamente. Mas desta vez deixei a galinha dançar um pouco.
- Por quê?
- Por sua causa! - diz alegremente. - Para as suas fotos! Mais
excitante deste jeito, não acha? - Ergue as sobrancelhas enquanto espera os
meus agradecimentos.
Dou um sorriso forçado.
- Bem? - Simon diz.
- Bem... Você tem razão, não é kosher. - E então não me contenho, ao
ver aquele ar debochado em seu rosto. - Não é kosher num sentido judeu -
acrescento.
- É mais como um antigo ritual chinês, uma limpeza espiritual... para a
galinha. - Volto minha atenção para o visor.
Du Lili mergulha a galinha num caldeirão de água fervendo. E então,
com as mãos nuas, começa a arrancar as penas da ave como se estivesse lavando
um suéter.
Ela tem tantos calos que eles cobrem suas mãos como luvas de amianto. A
princípio parece estar acariciando a galinha morta, consolando-a. Mas, a cada
carícia, sai
um punhado de penas, até que a ave surge do banho rosada e arrepiada.

#298

Simon e eu seguimos Du Lili enquanto ela carrega a carcaça pelo pátio,


até a cozinha. O teto é tão baixo que temos de nos abaixar para evitar raspar
a cabeça
no sapê. De um canto escuro no fundo da cozinha, Kwan apanha um feixe de
galhos, depois o enfia na boca de um forno de tijolos. Sobre o fogo está um
caldeirão que
daria para cozinhar um porco. Ela sorri para mim.
- Boas fotos?
Como pude duvidar de que ela é minha irmã? São apenas histórias, digo
a mim mesma. Ela tem uma imaginação alucinada.
Kwan retira as tripas da galinha com um só movimento, depois a corta,
cabeça, pés e rabo, e joga os pedaços num caldo fervente. Nesta mistura, ela
atira vários
punhados de verdura, parecendo acelga.
- Fresca - ela esclarece em inglês para Simon. - Tudo sempre fresco.
- Você foi ao mercado hoje?
- Que mercado? Não tem mercado. Só horta, você mesmo colhe. -
Simon anota isto.
Du Lili está agora trazendo a tigela de sangue de galinha. O sangue tem
a cor e a consistência de gelatina de morango. Ela corta o sangue em cubos e
mistura
no caldo. Enquanto eu vejo os cubos vermelhos girarem, me lembro das bruxas de
Macbeth, seus rostos iluminados pelo fogo, com fumaça saindo do caldeirão.
Como era
mesmo a fala?
- "Para fazer o encantamento de poderosa força" - eu recito -, "fervei e
borbulhai como um filtro infernal."
Simon ergue os olhos.
- Ei, era isto que eu estava pensando. - Ele se inclina para cheirar o
ensopado. - Este é um material fantástico.
- Não se esqueça de que nós temos de comer este material fantástico.
Quando o fogo apaga, o mesmo acontece com a luz disponível. Guardo a
Leica no bolso do casaco. Meu Deus! Estou faminta! Se não comer a galinha com
seu caldo
ensangüentado, quais são minhas outras opções? Não há nem presunto nem queijo
na geladeira - também não há geladeira.

#299

E, se eu quisesse presunto, teria de matar os porcos histéricos primeiro. Mas


não há tempo para pensar em alternativas. Kwan está agachada, agarrando as
alças de
um caldeirão gigantesco. Ela ergue o caldeirão.
- Comida - ela anuncia.
No meio do pátio, Du Lili acendeu uma pequena fogueira numa armação de
ferro. Kwan coloca o caldeirão em cima e Du Lili distribui tigelas, pauzinhos
e xícaras
para o chá. Seguindo seu exemplo, nós nos agachamos ao redor da nossa mesa
improvisada.
- Comam, comam - Du Lili diz, apontando para mim e para Simon com seus
pauzinhos. Examino o caldeirão, procurando algo que se pareça com minha versão
de supermercado
de carne embalada. Mas, antes que consiga encontrar, Du Lili pesca um pé de
galinha de dentro do caldeirão e coloca no meu prato.
- Não, não, você fica com isto - protesto em chinês. - Pode deixar que
eu me sirvo.
- Não seja educada - ela argumenta. - Coma antes que esfrie.
Simon sorri maliciosamente. Transfiro o pé de galinha para a tigela
dele.
- Coma, coma - eu digo com um sorriso gracioso, e então me sirvo de uma
coxa. Simon contempla melancolicamente o pé que antes dançava. Dá uma mordida
tímida
e mastiga com uma expressão pensativa. Em seguida inclina a cabeça
educadamente na direção de Du Lili e diz:
- Humm- mmm. Bom, muito bom. - Do jeito que ela sorri, dá a impressão
de que acabou de ganhar um prêmio de culinária.
- Foi bondade sua dizer isto.
- Está mesmo bom - ele diz. - Não estava apenas sendo educado.
Enfio os dentes numa pontinha da coxa e tiro um pedacinho. Mastigo,
deixo a carne rolar na língua. Nenhum gosto de sangue. A carne é
surpreendentemente saborosa,
aveludada! Eu como mais, até o osso. Chupo o caldo, tão leve e ao mesmo tempo
gorduroso. Pesco uma asa no caldeirão. Mastigo e concluo que as galinhas de
quintal
chinesas são mais gostosas do que as americanas.

#300

Será que o sabor vem do que elas comem? Ou será o sangue no caldo?
- Quantos rolos de filme você bateu?
- Seis - eu digo.
- Então vamos chamar este prato de frango primaveril de seis rolos.
- Mas estamos no outono.
- Estou dando este nome em homenagem a Du Lili, que não é nenhuma
franguinha primaveril como você observou. - Simon treme e implora, à maneira
de Quasímodo:
- Por favor, Senhora, não me bata.
Faço o sinal-da-cruz sobre sua cabeça.
- Está bem, você está perdoado, seu debilóide.
Du Lili ergue uma garrafa de uma bebida incolor.
- Quando a Revolução Cultural terminou, eu comprei este vinho - ela
anuncia. - Mas não tive nada para comemorar nos últimos vinte anos. Esta
noite, tenho
três. - Inclina a garrafa na direção da minha xícara, suspira como se
estivesse aliviando a bexiga e não servindo vinho. Depois que todas as xícaras
estão cheias,
ela ergue a dela: - Ganhei! - e bebe ruidosamente, inclinando lentamente a
cabeça para trás enquanto esvazia a xícara.
- Estão vendo? - Kwan diz em inglês. - Tem de ir inclinando a xícara
até beber tudo. - Ela demonstra esvaziando a dela. - Ahhhh! - Du Lili torna a
encher
sua xícara e a de Kwan.
Bem, se Kwan, a rainha dos abstêmios, pode beber isto, não deve ser
muito forte. Simon e eu clicamos as xícaras e depois despejamos a bebida em
nossas gargantas,
e engasgamos imediatamente, como almofadinhas num saloon do faroeste. Kwan e
Du Lili dão tapas nos joelhos e riem. Apontam para as nossas xícaras, ainda
cheias pela
metade.
- O que é isto? - Simon pergunta, engasgado. - Acho que arrancou
minhas amígdalas.
- Bom, ah? - Kwan enche a xícara dele antes que possa recusar.
- Tem gosto de meia suada - ele diz.
- A gente fica meia suada? - Kwan dá outro gole, estala os beiços e
concorda.

#301

Três rodadas e vinte minutos depois, minha cabeça está clara, mas meus
pés estão dormentes. Eu me levanto e sacudo as pernas, sentindo-as formigar.
Simon
faz o mesmo.
- O gosto é horrível. - Ele espreguiça os braços. - Mas quer saber de
uma coisa, eu me sinto ótimo.
Kwan traduz isto para Du Lili.
- Ele diz que não é mau.
- Mas que nome tem esta bebida? - Simon pergunta. - Talvez a gente
possa levar um pouco quando voltar para os Estados Unidos.
- Esta bebida - diz Kwan, e faz uma pausa para contemplar sua xícara
com grande respeito -, esta bebida nós chamamos de vinho de camundongo em
conserva,
ou algo parecido. Muito famosa em Guilin. Tem gosto bom, também faz bem à
saúde. Leva muito tempo para preparar. Dez, talvez vinte anos. - Ela faz um
sinal para
Du Lili, pedindo para ela mostrar a garrafa. Du Lili ergue a garrafa e dá um
tapinha no rótulo vermelho e branco. Passa a garrafa para mim e Simon. Está
quase vazia.
- O que é isto no fundo? - Simon pergunta.
- Camundongo - diz Kwan. - Por isso é que nós chamamos de vinho de
camundongo em conserva.
- O que é de verdade?
- Veja você mesmo. - Kwan aponta para o fundo da garrafa.
- Camundongo.
Nós olhamos. Vemos uma coisa cinzenta. Com um rabo. Em algum lugar do
meu cérebro sei que devo vomitar. Mas, em vez disso, Simon e eu olhamos um
para o outro
e começamos a rir. E não conseguimos parar. Rimos até ficarmos sufocados,
apertando o estômago dolorido.
- Por que estamos rindo? - Simon está ofegante.
- Devemos estar bêbados.
- Sabe de uma coisa, não me sinto bêbado. Eu me sinto, bem, feliz por
estar vivo.
- Eu também. Ei, veja aquelas estrelas. Não parecem maiores? Não
apenas mais brilhantes, mas maiores? Sinto que estou encolhendo e que tudo
está ficando
maior.
- Você está vendo como se fosse um camundongo bem pequeno Kwan diz.

#302

Simon aponta para as sombras das montanhas que se erguem acima do


muro do pátio.
- E aquilo - ele diz. - Os picos. São enormes.
Contemplamos em silêncio as montanhas e então Kwan me provoca.
- Agora talvez você veja dragão - ela diz. - Dois dragões um ao lado
do outro. Está vendo?
Tento enxergar. Kwan agarra meus ombros e me direciona. - Aperte bem
os olhos - ela ordena. - Tire da cabeça idéias americanas. Pense chinês. Finja
que está
sonhando. Dois dragões, um macho e uma fêmea.
Abro os olhos. É como se estivesse vendo o passado em primeiro plano e
o presente como um sonho distante.
- Os picos subindo e descendo - eu digo, fazendo desenhos no ar -, ali
estão as espinhas deles, certo? E a forma como os dois picos da frente se
juntam com
aqueles dois morros, aquelas são as duas cabeças, com o vale enfiado entre os
dois focinhos.
Kwan dá um tapinha no meu braço, como se eu fosse uma aluna que
tivesse recitado bem sua lição de geografia.
- Algumas pessoas acham, "Oh, aldeia fica bem ao lado da boca do
dragão - que má feng shui, nenhuma harmonia". Mas, no meu modo de pensar, tudo
depende do
tipo de dragão. Esses dois dragões muito leais, bom chi - como se diz em
inglês bom chi?
- Boas vibrações - eu digo.
- Sim-sim, boa vibração. - Ela traduz o que estamos dizendo para Du
Lili.
Du Lili abre um amplo sorriso. Ela diz alguma coisa em Changmian e
começa a cantarolar:
- Daaa, dee-da-da.
Kwan canta de volta:
- Dee, da-da-da. - Então, para nós, ela diz - Ok, Ok, Simon,
Libby-ah, voltem a sentar-se. Du Lili diz que eu devo contar a história de
amor dos dragões
para vocês.
Somos como crianças de jardim de infância ao redor de uma fogueira.
Até Du Lili está inclinada para a frente.
- Esta é a história - Kwan começa, e Du Lili sorri, como se entendesse
inglês. - Há muito tempo, dois dragões negros, marido e mulher, moram debaixo
do chão,
perto de Changmian.

#303

Toda primavera, acordam, erguem-se da terra como montanha. Por fora, esses
dois dragões parecem seres humanos, só pele preta, também muito fortes. Em um
só dia,
os dois juntos podem cavar fosso em volta da aldeia. Água desce da montanha,
fica presa no fosso. Assim, nenhuma chuva vem, não tem importância, tem
bastante para
plantas crescerem. Libby-ah, como se chama este tipo de regar , por si mesmo?
- Irrigação.
- Sim-sim. O que Libby-ah diz, irritação.
- Irrigação.
- Sim-sim, irrigamento, eles fazem isso para toda a aldeia. Então todo
mundo ama essas duas pessoas-dragões pretos. Todo ano dão grande festa em
homenagem
a eles. Mas um dia, Deus da Água, de nível realmente muito baixo, ele fica
zangado: "Ei, alguém tirou água do meu rio sem pedir licença."
- Maldição. - Simon estala os dedos. - Direito à água. É sempre isso.
- Sim-sim. Então grande briga, de um lado para o outro. Mais tarde
Deus da Água contrata gente selvagem de outra tribo, não nossa aldeia, outro
lugar, muito
longe. Talvez Havaí. - Ela dá uma cotovelada em Simon. - Ei, brincadeira, eu
só estava brincando! Não Havaí. Não sei de onde. Ok, então pessoas usam
flecha, matam
dragão homem e mulher, exibem corpo deles por toda parte. Antes de morrer,
eles voltam para baixo da terra e viram dragões. Vejam! Aquelas duas costas
agora parecem
seis picos. E onde flechas entraram, surgem dez mil cavernas, todas
entrelaçadas, levando a um só coração. Agora, quando chuva chega, água desce
pela montanha, escorre
pelos buracos, como lágrimas, não pode parar de correr. Chega no fundo -
inundação! Todo ano faz isso.
Simon franze a testa.
- Eu não entendo. Se tem inundação todo ano, qual é o bom chi?
- Tst! Inundação não muito grande. Só inundação pequena. O bastante
para limpar o chão. Durante a minha vida, só uma inundação má, uma seca longa.

#304

Então muita sorte.


Eu poderia lembrar-lhe que ela só morou dezoito anos em Changmian
antes de se mudar para a América. Mas por que estragar sua história e nosso
divertimento?
- E quanto ao Deus da Água? - pergunto.
- Oh, aquele rio - não existe mais. A inundação o levou
embora.
Simon bate palmas e assobia, despertando Du Lili do seu cochilo.
- O final feliz. Muito bem! - Du Lili se levanta e espreguiça, depois
começa a retirar os restos do nosso banquete de galinha. Quando tento ajudar,
ela me
faz sentar.
- Quem lhe contou esta história? - pergunto a Kwan.
Ela está pondo mais galhos no fogo.
- Todo o povo de Changmian sabe. Durante cinco mil anos, toda mãe
canta esta história para crianças, canção chamada "Dois dragões".
- Cinco mil anos? Como você sabe disto? Pode ter sido escrita em
qualquer lugar.
- Eu sei porque - bem, vou lhe dizer uma coisa, um segredo. Entre os
dois dragões, em pequeno vale depois deste, fica pequena caverna. E esta
pequena caverna
leva à outra caverna, tão grande que você quase não acredita. E dentro dessa
caverna grande - lago, grande o bastante para barco navegar! Água tão linda
você nunca
viu, turquesa e ouro. Profunda, brilhante. Você esquece levar lanterna, ainda
consegue ver toda a antiga aldeia na margem do lago...
- Aldeia? - Simon interrompe. - Uma aldeia de verdade? Eu quero dizer
a ele que esta é outra das histórias de Kwan, mas não consigo atrair seu
olhar.
Kwan fica contente com a animação dele.
- Sim-sim, antiga aldeia. Que idade, ninguém sabe exatamente. Mas casa
de pedra ainda em pé. Nenhum telhado, mas parede, pequena porta para entrar
engatinhando.
E dentro...
- Espere um segundo - Simon interrompe. - Você esteve nesta caverna,
viu esta aldeia?
#305

Kwan prossegue com certa petulância:


- É claro. E, dentro da casa de pedra, muitas coisas, cadeira de
pedra, mesa de pedra, balde de pedra com alça, dois dragões esculpidos em
cima. Está vendo
- dois dragões! Esta mesma história em aldeia da idade da pedra. Talvez mais
velha, talvez cinco mil anos não correto. Talvez dez mil anos. Quem pode saber
com certeza?
Um arrepio percorre as minhas costas. Talvez ela esteja falando de
outra caverna.
- Quantas pessoas estiveram nessa aldeia? - pergunto.
- Quantas? Oh, não sei ao certo. Casa muito pequena. Não podia abrigar
muitas pessoas ao mesmo tempo.
- Não, o que quero dizer é, as pessoas vão lá agora?
- Agora? Não, acho que não. Assustadas demais.
- Porque...
- Oh, você não quer saber.
- Vamos, Kwan.
- Ok-Ok! Mas, se ficar assustada, a culpa não é minha.
Simon se debruça sobre a bomba d'água.
- Vá em frente.
Kwan respira fundo.
- Algumas pessoas dizem, você entra, não só nessa caverna, em qualquer
caverna deste vale, nunca sai. - Ela hesita, depois acrescenta: - A não ser
como fantasma.
- Ela espera a nossa reação. Sorrio. Simon está siderado.
- Oh, estou entendendo. - Tento mais uma vez atrair a atenção de
Simon. - Esta é a maldição de Changmian, que aquele homem mencionou ontem.
Simon está andando de um lado para o outro.
- Meu Deus! Se isto for verdade...
Kwan sorri.
- Você acha que é verdade, eu sou fantasma?
- Fantasma? - Simon ri. - Não, não! Estou me referindo à parte sobre a
caverna - se isso for verdade.
- É claro que é verdade. Já disse a você. Eu vi com os meus olhos.
- Eu só estou perguntando porque li em algum lugar, onde foi?.. Já me
lembrei. Foi no guia turístico, algo sobre uma caverna com habitações da idade
da pedra
dentro. Olivia, você leu sobre isto?

#306

Sacudo negativamente a cabeça. E me pergunto se fui cética demais acerca


da história de Nunumu e Yiban.
- Você acha que esta é a caverna?
- Não, essa é uma atração turística que fica mais perto de Guilin. Mas
o livro diz que esta região montanhosa é tão cheia de cavernas que há
provavelmente
milhares delas que nunca foram descobertas.
- E a caverna a que Kwan se refere pode ser outra...
- Isto não seria incrível? - Simon se vira para Kwan. - Então você
acha que ninguém jamais esteve lá?
Kwan franze a testa.
- Não-não. Não estou dizendo isto. Muitas pessoas estiveram.
Simon fica decepcionado. Ele rola os olhos para cima. Ah, bom.
- Mas agora todos mortos - Kwan acrescenta.
- Oba. - Simon ergue a mão, como fazendo sinal para parar. - Vamos ver
se conseguimos esclarecer isto. - Ele volta a andar de um lado para o outro. -
O que
você está nos dizendo é que ninguém vivo sabe sobre a caverna. A não ser você,
é claro. - Ele espera para ouvir Kwan confirmar o que ele disse até agora.
- Não-não. O povo de Changmian sabe. Só não sabe onde ela fica.
- Ah! - Ele anda vagarosamente em volta de nós. - Ninguém sabe onde
fica a caverna. Mas sabem que a caverna existe.
- É claro. Muitas histórias em Changmian sobre isto. Muitas.
- Por exemplo. - Ele faz sinal para Kwan tomar a palavra.
Ela cerra as sobrancelhas e franze o nariz, como se estivesse
examinando o seu extenso repertório de histórias de fantasmas, todas secretas
e que nós teríamos
de jurar jamais revelar.

#307

- As mais famosas - ela diz depois desta pausa - sempre se referem a


estrangeiros. Quando eles morrem causam muitos problemas.
Simon balança a cabeça compreensivamente.
- Ok, uma história é assim. Isto acontece talvez cem anos atrás. Então
eu não vi, só ouvi povo de Changmian contar. Diz respeito a quatro
missionários, vindos
da Inglaterra, viajando em pequenas carroças, guarda-chuva grande em cima, só
duas mulas puxando aquela gente gorda. Dia quente também. Saltam duas senhoras
protestantes,
uma jovem e nervosa, outra velha e mandona, também dois homens, um tem barba,
outro, oh, tão gordo que ninguém na aldeia pode acreditar. E esses
estrangeiros usam
roupas chinesas - sim! - mas assim mesmo têm aparência estranha. Homem gordo,
ele fala chinês, um pouquinho, mas muito difícil entender o que diz. Ele diz
algo como
"Podemos fazer piquenique aqui?" Todo mundo diz: "Seja bem-vindo, seja bem-
vindo." Então eles comem, comem, comem, tanta comida.
Interrompo Kwan.
- Você está falando sobre Pastor Amém?
- Não-não. Pessoas totalmente diferentes. Eu já disse que não vi, só
ouvi. Bem, depois de comerem, homem gordo pergunta: "Ei, ouvimos dizer que
vocês têm
caverna famosa, com cidade antiga dentro. Podem nos mostrar?" Todo mundo
arranja desculpa: "Oh, muito longe. Muito ocupado. Nada para ver." Então velha
senhora protestante
ergue lápis: "Quem quiser este lápis, me leva até a caverna!" Naquela época,
há muito tempo, nosso povo nunca tinha visto lápis - pincel de escrever sim,
mas lápis
não. É claro, provavelmente povo chinês inventou lápis, nós inventamos tantas
coisas - pólvora, mas não para matar, macarrão também. Povo italiano sempre
diz que
inventou macarrão - não é verdade, só copiaram chineses do tempo de Marco
Polo. Também povo chinês inventou zero como número. Antes de zero, as pessoas
não sabiam
não ter nada. Agora todo mundo tem zero. - Kwan ri da própria piada. O que
mesmo eu estava dizendo?

#308
- Você estava falando da senhora protestante com o lápis.
- Ah, sim. Na nossa pobre aldeia, ninguém tinha visto lápis. Senhora
protestante, ela mostra que pode fazer marca sem precisar misturar tinta. Um
rapaz,
sobrenome Hong - sempre sonhava ser melhor que os outros -, ele pegou o
lápis. Hoje, a família dele ainda tem, sobre o altar, mesmo lápis que lhe
custou a vida.
- Kwan cruza os braços, como que sugerindo que a ganância pelo lápis mereceu a
morte.
Simon apanha um galhinho.
- Espere um instante. Está faltando alguma coisa aí. O que aconteceu
com os missionários?
- Nunca voltaram.
- Talvez tenham ido para casa - argumento. - Ninguém os viu partir.
- Aquele rapaz também não voltou.
- Talvez tenha se tornado cristão e seguido os missionários.
Kwan me lança um olhar de dúvida.
- Por que alguém faz isso? Também, por que aqueles missionários não
levam carroças, mulas? Por que igreja protestante depois manda tantos soldados
estrangeiros
para procurá-los? Causando tantos problemas, batendo numa porta, em outra: "O
que aconteceu? Se você não contar, vamos queimar sua casa." Em pouco tempo,
todo mundo
teve a mesma idéia, eles dizem: "Oh, tão triste, bandidos, foi isto. " E
agora, hoje, todo mundo ainda conhece esta história. Se alguém quiser ser
melhor que você,
você diz: "Huh! Tome cuidado para não acabar como o homem do lápis."
- Ouviu isto? - cutuco Simon.
Kwan endireita o corpo e inclina o ouvido na direção das montanhas.
- Ah, estão ouvindo?
- O quê? - Simon e eu perguntamos ao mesmo tempo.
- O canto. Pessoas yin cantando.
Ficamos calados. Passados alguns instantes, ouço um ruído sibilante.
- Parece o vento.

#309

- Sim! Para a maioria das pessoas, é só o vento - wu! wu! - soprando


pela caverna. Mas, quando você tem grande remorso, então ouve povo yin
chamando você:
"Vem cá, vem cá." Quanto mais triste você fica, mais alto eles cantam:
"Depressa! Depressa!" Você vai olhar lá dentro, oh, eles tão felizes. Então
você toma o lugar
de alguém, eles podem sair. Então voam para Mundo Yin, finalmente em paz.
- Uma espécie de pega-pega - Simon diz.
Finjo achar graça, mas estou incomodada. Por que Kwan tem tantas
histórias sobre trocar de lugar com gente morta?
Kwan se vira para mim.
- Então agora você sabe por que o nome da aldeia mudou para Changmian.
Chang quer dizer "cantar", mian quer dizer "seda", algo suave masque continua
para
sempre como linha. Canção suave, interminável. Mas algumas pessoas pronunciam
Changmian de outro jeito, descendo um
tom ao invés de subir , assim: Chang. Deste jeito, chang significa "longo",
miansignifica "sono". Longo Sono. Agora você compreende?
- Você quer dizer canções que fazem você dormir? - Simon pergunta.
- Não-não-não-não. Longo Sono - outro nome para morte. Por isso é que
todo mundo diz: caverna de Changmian, não vá lá. Portão de entrada para o
Mundo de
Yin.
Minha cabeça vibra.
- E você acredita nisto?
- Acredita o quê? Eu já estive lá. Eu sei. Montes de pessoas yin
presas lá dentro, esperando, esperando.
- Então como você conseguiu voltar? - concluo antes que ela possa
responder. - Eu sei, você não precisa me dizer. - Não quero que Kwan comece a
contar aquela
história sobre Bolinho ou Zeng agora. Está tarde. Preciso dormir, e não quero
ter a sensação de estar deitada ao lado de alguém que tomou posse do corpo de
uma menina
morta.
Simon se agacha ao meu lado.

#310

- Acho que devíamos ver essa caverna.


- Você está brincando.
- Por que não?
- Por que não! Você está maluco? As pessoas morrem lá dentro!
- Você acredita nesta história de fantasmas?
- É claro que não! Mas deve haver alguma coisa ruim lá dentro. Gases,
alçapões, Deus sabe o que mais.
- Afogamento - Kwan acrescenta. - Montes de pessoas tristes se afogam,
caem lá no fundo, descem, descem, descem.
- Ouviu isto, Simon? Afogado, descendo, descendo, descendo.
- Olivia, você não percebe? Esta poderia ser uma descoberta incrível.
Uma caverna pré-histórica. Casas da idade da pedra. Cerâmica...
- E ossos - Kwan acrescenta, com um ar prestativo.
- E ossos! - Simon repete. - Que ossos?
- Principalmente ossos estrangeiros. Eles se perdem, ficam loucos. Mas
não querem morrer, Então se deitam na beira do lago por muito tempo, até corpo
virar
pedra.
Simon se levanta, olhando para os picos.
Eu digo a ele:
- As pessoas perdem a razão lá dentro. Viram pedra.
Mas Simon não está mais ouvindo. Eu sei que ele está traçando
mentalmente o seu caminho para dentro da caverna e para o mundo da fama e da
fortuna.
- Você pode imaginar o que os editores de revistas dirão quando virem
a nossa história? Merda! De caldo de galinha à grande descoberta arqueológica!
Ou talvez
devêssemos ligar para a National Geographic ou algo assim. Quer dizer, a Lands
Unknown não tem os direitos desta história. E nós poderíamos trazer algumas
peças
de cerâmica como prova.
- Não vou entrar lá - digo com firmeza.
- Muito bem. Eu vou sozinho.
Tenho vontade de gritar: eu proíbo. Mas como posso? Não tenho mais
nenhum direito exclusivo ao seu corpo, mente ou alma.

#311

Kwan está olhando para mim e eu tenho vontade de gritar para ela também: a
culpa é sua! Você e suas malditas histórias! Ela me lança um daqueles
incômodos olhares
fraternais, dá um tapinha no meu braço, tentando me acalmar. Eu puxo o braço.
Ela se vira para Simon.
- Não, Simon. Não pode ir sozinho.
Ele se vira para ela.
- O que você quer dizer?
- Você não sabe onde fica a caverna.
- É, mas você vai me mostrar. - Ele diz isso como se fosse um fato
consumado.
- Não-não. Libby-ah tem razão, muito perigoso.
Simon coça o pescoço. Imagino que ele está reunindo argumentos para
nos derrubar, mas em vez disso ele sacode os ombros.
- Bem, talvez. Mas por que não deixamos isto para amanhã?

Eu me deito no meio da cama de casal apinhada, tão dura quanto a Grande Ma no


seu caixão. Meus membros doem com o esforço de não tocar em Simon. Estamos na
mesma
cama pela primeira vez em quase dez meses. Ele está usando roupa de baixo de
seda térmica. De vez em quando eu sinto a ponta de suas canelas ou de seu
traseiro de
encontro à minha coxa, e me afasto cautelosamente, só para ser repelida pelos
joelhos de Kwan, seus dedos dos pés. Desconfio que ela está me empurrando na
direção
de Simon.
Ouvem-se gemidos estranhos.
- Que foi isso? - murmuro.
- Eu não ouvi nada - Simon responde. Então ele também está acordado
ainda.
Kwan boceja.
- Canto da caverna. Eu já disse isto.
- Parece diferente agora, como alguém se queixando.
Ela se vira de lado. Alguns minutos depois, ela está roncando, e logo
depois Simon está respirando profundamente. Portanto, lá estou eu, apertada no
meio
de duas pessoas, e no entanto sozinha, acordada, olhando para a escuridão,
revendo as últimas vinte e quatro horas: a corrida na caminhonete refrigerada
e o casaco
de esqui da Grande Ma.

#312

Bolinho e Kwan em seus caixões. A pobre galinha e sua dança da morte. O


camundongo morto dentro do vinho, os missionários mortos na caverna. E o rosto
de Simon,
sua excitação quando olhamos juntos para os picos dos dragões. Isso foi bom,
especial. Seria a mesma sensação que tínhamos antes? Talvez pudéssemos ficar
amigos.
Ou talvez isso não quisesse dizer nada. Talvez fosse apenas o vinho de
camundongo em conserva.
Eu me viro de lado e Simon também. Fico rija como uma tábua para
evitar tocar nele. O corpo, entretanto, não é feito para ficar duro e imóvel,
exceto na
morte. O meu desejo é moldar meu corpo ao dele, permitir-me este consolo. Mas,
se eu fizer isto, talvez ele presuma demais, pense que eu o estou perdoando.
Ou admitindo
que preciso dele. Ele estala os beiços e funga - os sons que sempre faz quando
entra em sono profundo. E logo eu posso sentir sua respiração rolando em ondas
no
meu pescoço.
Sempre invejei o modo como ele consegue dormir a noite inteira, sem se
perturbar com alarmes de carros, terremotos, e agora com aqueles persistentes
rangidos
debaixo da cama. Ou será mais como um barulho de serrote? Sim, são os dentes
de um serrote, os dentes de serrote de um rato, roendo um dos pés da cama,
afiando suas
presas antes de subir na cama. - Simon - murmuro -, está ouvindo
isto? Simon! - E então, como nos velhos tempos, ele passa um dos braços pelo
meu quadril
e enfia o rosto no meu ombro. Fico imediatamente rígida. Será que ele está
dormindo? Será que fez isso por instinto? Sacudo de leve o quadril para ver se
ele acorda
e tira a mão. Ele geme. Talvez esteja me testando.
Tiro a mão dele do meu quadril. Ele se mexe e diz numa voz grogue:
- Mmm, desculpe.
Depois se afasta, ronca e vira de bruços. Então seu abraço foi um
acidente. Não quis dizer nada. Minha garganta aperta, meu peito dói.

#313

Lembro-me de como sempre queríamos nos acariciar e fazer amor depois


de uma briga, como se juntando os nossos corpos pudéssemos reparar qualquer
diferença
que houvesse entre nós. Eu me ressentia com a suposição fácil de que tudo está
bem quando acaba bem. E no entanto eu só resistia um pouco quando ele erguia o
meu
queixo. Prendia a raiva e o fôlego quando ele beijava meus lábios, meu nariz,
minha testa. Quanto mais zangada eu estava, mais lugares ele acariciava: meu
pescoço,
os bicos dos meus seios, meus joelhos. E eu deixava - não porque fraquejasse
e desejasse sexo, mas porque seria vingativo, imperdoável, não nos deixar uma
esperança.
Planejei falar no problema mais tarde. Como ele considerava não tocar
no assunto uma coisa normal e eu considerava como um sinal de alarme. Como não
sabíamos
mais conversar um com o outro, como ao proteger nosso próprio território
estávamos perdendo terreno comum. Antes que fosse tarde demais, eu queria
dizer que o amor
que nos tinha unido tinha minguado e agora precisava ser reforçado. Às vezes
eu temia que o nosso amor jamais tivesse sido abundante, que fora suficiente
para alguns
anos, mas que nunca tivera a intenção de durar uma vida inteira. Confundimos
uma única safra com uma colheita constante. Éramos duas pessoas famintas por
um amor
abundante, mas cansadas demais para dizer isto, acorrentadas juntas até o
tempo passar e nós deixarmos o mundo, duas vagas esperanças sem sonhos, só
mais uma combinação
ao acaso de espermatozóide e óvulo, macho e fêmea, um dia vivos, no outro
mortos.
Costumava pensar estas coisas enquanto ele me despia, ressentindo o
fato de que ele confundia nudez com intimidade. Eu o deixava acariciar-me onde
ele me
conhecia melhor, ou seja, o meu corpo e não o meu coração. Ele buscava o meu
ritmo, dizendo:
- Relaxe, relaxe, relaxe.
E eu me deixava levar, largando tudo o que era ruim. Submetia-me ao
meu ritmo, seu ritmo, nosso ritmo, amor por experiência, hábito e reflexo.

#314

No passado, depois que fazíamos amor, eu me sentia melhor, não mais


tão zangada. Tentava me lembrar de novo das preocupações - sobre colheitas e
abundância,
amor infrutífero e morte irremediável - e não eram mais sentimentos, e sim
idéias, bobas, até ridículas.
Agora que o nosso casamento acabou, eu sei o que é o amor. É um truque
do cérebro, as glândulas supra-renais liberando endorfinas. Inundam as células
que
transmitem preocupação e bom senso, afoga-as num bem-estar químico. Pode-se
saber de tudo isto sobre o amor, entretanto ele permanece irresistível, tão
enganador
quanto os braços flutuantes do longo sono.
#315

19
A ARCADA

Eu acordo assustada com gritos - garotas sendo estupradas ou assassinadas ou


as duas coisas! Então ouço a voz de Du Lili:
- Esperem, esperem, seus gulosos. - E os porcos berram ainda mais
alto, enquanto ela murmura: - Comam, comam. Comam e engordem.
Antes que consiga relaxar, tenho outra surpresa desagradável. Durante
a noite, meu corpo deve ter gravitado em direção à fonte de calor mais
próxima, ou
seja, Simon. Mais precisamente, o meu traseiro está aninhado em sua virilha,
que, como noto, exibe uma ereção matinal, que antigamente chamávamos
carinhosamente
de "desperta pau". A terça parte da cama pertencente a Kwan está vazia, já
fria ao toque. Quando será que ela saiu? Oh, sim, eu sei o que ela está
tramando, a safada.
E Simon, será que está mesmo dormindo? Estará rindo secretamente?
A terrível verdade é que eu fico excitada. Apesar de tudo o que pensei
na noite anterior, a parte de baixo do meu corpo apresenta uma pulsação, um
desejo
por calor e contato. E o resto de mim clama por consolo. Xingo a mim mesma:
você tem uma vagina burra! O Q.I. de uma ameba! Eu me afasto do perigo e saio
da cama
pelo lado de Kwan. Simon se mexe. Tremendo dentro da camisola, vou até o pé da
cama, onde deixei minha bagagem ontem. A temperatura do ar deve estar próxima
de zero
grau.

#316

Minhas mãos procuram roupas quentes.


Simon boceja, se senta na cama e se espreguiça, em seguida afasta o
mosquiteiro.
- Eu dormi bem - diz ambiguamente. - E você? Pego o casaco e o coloco
no ombro, Ele está tão duro do frio que estala. Meus dentes estão batendo
quando falo:
- Como é que se toma banho por aqui? - Simon tem um ar divertido no
rosto. Será que ele suspeita de alguma coisa?
- Há um banheiro público ao lado do toalete - ele diz. - Eu verifiquei
ontem enquanto você tirava fotos. Tem um certo charme. Gênero neutro. Uma
banheira,
sem espera. Mas acho que não é usado há anos. A água é um tanto espumosa. E,
se você quiser um banho morno, leve um balde de água quente.
Eu estava preparada para condições ruins, mas não tanto.
- Eles usam a mesma água de banho - o dia todo?
- A semana toda, ao que parece. Meu Deus, eu sei, nós éramos tão
perdulários nos Estados Unidos.
- Do que é que você está rindo? - eu pergunto.
- De você. Sei o quanto é obcecada por limpeza.
- Não sou não.
- Oh? Então por que é que quando você se hospeda num hotel a primeira
coisa que faz é tirar a colcha da cama?
- Porque não costumam trocar a roupa de cama com muita freqüência.
- E daí?
- Daí que eu não gosto de dormir em cima de partículas de pele de
outra pessoa e de fluidos corporais secos.
- Aha! Sustento o argumento. Agora vá até o banheiro. É um desafio.
Por um momento, ponderei o que era pior, me lavar naquele caldo comum
ou ficar fedorenta durante o resto da semana.
- É claro que você podia encher uma bacia e tomar um banho de esponja
aqui mesmo. Eu posso ajudá-la.
Finjo que não ouço. Os músculos do meu rosto estão contraídos do
esforço para não rir. Pego dois pares de leggings.

#317

Rejeito o de algodão fino e escolho o mais grosso, arrependendo-me de não ter


trazido mais. A sugestão de Simon é boa, quer dizer, a parte sobre o banho de
esponja.
Ajudar, hum, que pretensão. Posso até imaginar, Simon vestido de escravo
egípcio, usando um daqueles calções de pano retorcido, uma expressão de desejo
no rosto
enquanto derrama silenciosamente água quente sobre os meus seios, meu
estômago, minhas pernas. E eu, impiedosa, o trataria como a uma torneira: mais
quente! Mais
fria! Depressa! A propósito - ele diz, interrompendo meus pensamentos -, você
falou dormindo outra vez.
Evitei o olhar dele. Algumas pessoas roncam. Eu falo dormindo, não em
resmungos, mas frases completas, bem articuladas. Toda noite. Alto. Às vezes
chego
até a acordar. Simon já me ouviu contar piadas, encomendar uma refeição com
três sobremesas, gritar com Kwan para manter os fantasmas longe de mim.
Simon ergue uma sobrancelha.
- Na noite passada, o que você disse foi certamente revelador.
Merda. Que diabo eu tinha sonhado? Eu sempre me lembro dos meus
sonhos. Por que não estou conseguindo me lembrar? Será que Simon estava no
sonho? Será que
fazíamos sexo?
- Sonhos não significam nada - eu digo. Pego uma camiseta térmica e
uma blusa de veludo verde-garrafa. - São apenas fragmentos e refugos.
- Você não quer saber o que disse?
- Não.
- Está relacionado a algo que você adora fazer.
Atiro as roupas e respondo:
- Não adoro tanto quanto você pensa.
Simon pisca duas vezes, depois começa a rir.
- Adora sim! Porque você disse, Simon, espere, eu ainda não paguei! -
Ele espera cinco segundos até as palavras assentarem. - Você estava
fazendo
compras. A que você pensou que eu estava me referindo?

#318

- Cale a boca. - Meu rosto está pegando fogo. Enfio a mão na mala e
agarro umas meias de lã. - Vire de costas. Eu quero me vestir.
- Eu já vi você nua mais de mil vezes.
- Bem, esta não vai ser a milésima primeira. Vire-se.
De costas para ele, tiro o casaco e a camisola, ainda irada por ter
sido enganada por ele. Ele lançou a isca e eu fui idiota a ponto de agarrá-la.
Eu devia
saber que ele ia me enrolar. E então sinto outra coisa. Me viro.
- Você não precisa encolher a barriga. - Ele levantou o mosquiteiro.
- Você está ótima. Como sempre. Nunca me canso de olhar para você.
- Seu cabeça de merda!
- O quê! Nós ainda somos casados!
Enrolo uma meia e atiro em cima dele. Ele se abaixa, soltando o
mosquiteiro, que deve ter uns cem anos, porque, quando a meia bate, o
cortinado rasga, soltando
fiapos que voam pelo ar.
Nós examinamos o estrago. Eu me sinto como uma criança que quebrou o
vidro da janela do vizinho com uma bola, maldosamente excitada.
- Uh-oh - cubro a boca e dou uma risadinha.
Simon sacode a cabeça.
- Garota má.
- A culpa é sua.
- Não vem com essa! Foi você quem atirou a meia.
- Você estava olhando!
- Ainda estou.
E lá estou eu, nua em pêlo, com a bunda congelada.
Atiro a outra meia em cima dele, depois meus leggings, a blusa de
veludo, a camisola. Agarrando um chinelo, vôo para cima de Simon e o atinjo
nas costas.
Ele agarra a minha mão e nós dois caímos sobre a cama, onde rolamos e lutamos,
aos tapas e empurrões, contentes por termos finalmente uma desculpa para tocar
um
no outro. E, quando nos cansamos da briga, olhamos um para o outro,
silenciosamente, olho no olho, sem precisar dizer mais nada. De repente, nós
damos um pulo, como
um casal de lobos que se reencontra, buscando aquilo que prova que pertencemos
um ao outro: o cheiro de nossas peles, o gosto de nossas línguas, a maciez de
nosso
cabelo, o gosto salgado de nossos pescoços, o contorno de nossas espinhas, as
elevações e depressões que conhecemos tão bem e que no entanto parecem tão
novas.

#319

Ele é temo e eu sou selvagem, fuçando e mordendo, ambos rolando até esquecer
completamente quem éramos até este momento, porque neste momento nós somos um
só.
Quando saio para o pátio, Kwan me lança um dos seus sorrisos inocentes mas
perspicazes.
- Libby-ah, por que você está sorrindo?
Olho para Simon.
- Não está chovendo - eu respondo. Não importa quem Kwan seja
realmente, irmã ou não, estou feliz que ela tenha sugerido que viéssemos para
a China.
Diante dela, no chão, está uma mala aberta, cheia de uma miscelânea de
artigos. Segundo Kwan, Grande Ma deixou tudo isto para Du Lili, exceto uma
caixa de
música que toca uma versão animada de "Home on the Range". Preparo a câmera e
começo a fotografar.
Kwan ergue o primeiro item. Simon e eu nos inclinamos para ver. É um
Motel de Baratas.
- Na América - ela explica para Du Lili com um ar sério - chamam isto
de hospedaria para baratas. - Ela aponta para o rótulo.
- Wah! - Du Lili grita. - Os americanos são tão ricos que constroem
casinhas para insetos! Tst! Tst! - Sacode a cabeça, os cantos da boca virados
para baixo,
externando uma indignação proletária. Conto a Simon o que ela disse.
- Sim, e os americanos dão comidas deliciosas para elas. - Kwan espia
pela porta do motel. - E a comida é tão boa que as baratas nunca querem
sair .Ficam
aqui para sempre.
Du Lili dá um tapa no braço de Kwan e finge estar zangada.

#320

- Você é tão má! Pensa que eu não sei o que é isto? - Ela então me diz
numa voz excitada: - Os chineses têm uma coisa igual. Usamos pedaços de bambu,
abertos
e cheios de uma seiva doce. Sua irmã e eu costumávamos prepará-los juntas.
Nossa aldeia fazia concursos para ver quem agarrava mais animais nocivos -
moscas, ratos,
baratas. Sua irmã muitas vezes ganhou o concurso por pegar mais baratas. Agora
ela está tentando me pregar uma peça.
Kwan revela mais tesouros, e é óbvio que muitos deles vieram de lojas
de material esportivo. Primeiro, há uma mochila.
- Forte o suficiente para carregar tijolos, com muitos bolsos, dos
lados, embaixo, aqui, ali, veja. O zíper abre assim - wah, o que temos aqui? -
Ela tira
um purificador de água portátil, um fogãozinho, um kit de primeiros socorros,
uma almofada inflável, sacos de lixo, um cobertor, e - wah! Inacreditável! -
mais
coisas ainda: uma caixa de fósforos à prova d'água, uma lanterna e um canivete
suíço com palito embutido, muito prático. - Como uma vendedora da Avon, Kwan
explica
a utilidade de cada item.
Simon examina os artigos.
- Incrível. Como você pensou em tudo isto?
- Jornal - Kwan responde. - Artigo sobre terremoto, se houver um
grande, o que você precisa para sobreviver. Em Changmian, sabe, não precisa
esperar terremoto.
Não tem eletricidade, nem água corrente, nem aquecimento. Depois Kwan tira da
mala um caixote de plástico, do tipo que se usa debaixo da cama para guardar
porcaria,
e lá de dentro saem luvas de jardinagem, palmilhas recheadas de gel, leggings,
toalhas, camisetas. Du Lili suspira e lamenta o fato da Grande Ma não ter
vivido o
bastante para gozar de tais luxos. Tiro um retrato de Du Lili cercada por sua
herança. Ela está usando óculos escuros e um boné do Super Bowl, com a palavra
"Campeão"
enfeitada de brilhantinhos.
Depois de um café da manhã simples de mingau de arroz e legumes em
conserva, Kwan traz um pacote de fotos que documentam seus trinta e dois anos
de vida
americana. Ela e Du Lili sentam-se num banco, debruçando-se sobre elas.

#321

- Olhe aqui - Kwan diz. - Esta é Libby-ah com seis anos. Não é uma
gracinha? Está vendo o suéter que ela está usando? Eu o tricotei antes de sair
da China.
- As garotinhas estrangeiras - Du Lili aponta -, quem são e as elas?
- Coleguinhas dela de colégio.
- Por que elas estão sendo castigadas?
- Castigadas? Elas não estão sendo castigadas.
- Então por que estão usando esses chapéus de burro?
- Ah-ha-ha-ha! Sim, sim, chapéus altos para punir
contra-revolucionários, são mesmo parecidos! Na América, os estrangeiros usam
chapéus
altos para comemorar aniversário, e também Ano-Novo. Esta é a festa de
aniversário de Libby-ah. É um costume americano. Os coleguinhas levam
presentes, nada útil,
só coisas bonitas. E a mãe faz um bolo e acende velinhas em cima. A criança
pensa num desejo e, se conseguir soprar todas as velinhas ao mesmo tempo, o
desejo se
realiza. Então as crianças comem bolo, tomam refrigerantes, comem doces, tanto
doce que suas línguas rolam para trás e elas não conseguem mais engolir.
Du Lili faz um ar de incredulidade.
- Tst! Tst! Uma festa em cada aniversário. Um encantamento simples
para um desejo de aniversário. Por que os americanos têm de desejar tanto
quando já têm
demais? Por mim, eu nem queria uma festa. Bastava realizar um desejo a cada
vinte anos...
Simon me puxa de lado.
- Vamos dar uma volta.
- Aonde?
Ele me leva para fora do pátio, depois aponta para a arcada entre as
montanhas, a entrada do próximo vale. Eu balanço o dedo para ele como uma
professora
de jardim de infância.
- Simon, você não está pensando ainda naquela caverna, está?
Ele finge que está ofendido.
- Moi? É claro que não. Eu só pensei que seria agradável dar um
passeio. Temos coisas para conversar.

#322

- Oh? Que tipo de coisas? - digo timidamente.


- Você sabe. - Ele toma a minha mão e eu grito por cima do muro: -
Kwan! Simon e eu vamos dar um passeio.
- Aonde? - Ela grita de volta.
- Por aí.
- Quando vocês voltam?
- Você sabe, quando der vontade.
- Como vou saber a que horas ficar preocupada?
- Não se preocupe. - E então penso melhor sobre o nosso provável
destino. E acrescento: - Se não voltarmos dentro de duas horas, chame a
polícia.
Eu a escuto resmungar para Du Lili em chinês:
- Ela diz que é para eu telefonar para a polícia se eles se perderem.
Telefonar como? Nós não temos telefone...
Caminhamos devagar, de mãos dadas. Eu estou pensando no que dizer.
Tenho certeza de que Simon está fazendo o mesmo. Não quero fazer as pazes
automaticamente.
Quero um compromisso de nos aproximarmos mais, de que nossas mentes se tornem
mais íntimas e não apenas os nossos corpos. E assim, com nossos pensamentos
ainda não
expressos, caminhamos na direção do muro de pedra que separa Changmian do
resto do vale.
Nossas andanças nos levam a atravessar passagens particulares que
ligam conjuntos residenciais, e pedimos desculpas às famílias que nos olham
com curiosidade,
depois tornamos a pedir desculpas quando elas correm para a porta, querendo
vender moedas azinhavradas que afirmam ter pelo menos quinhentos anos. Tiro
algumas fotos
e imagino uma legenda que serviria muito bem: "Habitantes de Changmian olhando
para intrusos. "Nós espiamos para dentro dos portões abertos dos pátios e
vemos velhos
tossindo, fumando guimbas de cigarro, jovens mulheres carregando bebês, suas
bochechas gordas vermelhas do frio. Passamos por uma mulher idosa com um
enorme feixe
de lenha equilibrado nos ombros. Sorrimos para as crianças, muitas das quais
têm lábio leporino ou pés tortos, e eu me pergunto se isto será resultado de
casamentos
consangüíneos. Nós vemos isto juntos, dois alienígenas no mesmo mundo.

#323

No entanto, o que vemos também é diferente, porque fico penalizada com tanta
dureza, com a vida que Kwan teve um dia, que eu poderia ter tido. E Simon
observa:
- Sabe de uma coisa, de certa forma eles têm sorte .
- Como assim?
- Sabe como é, uma comunidade pequena, histórias familiares unidas há
gerações, o foco nas necessidades básicas. Quando você precisa de uma casa,
reúne os
amigos, põe um tijolo em cima do outro, nada da porcaria de empréstimo.
Nascimento e morte, amor e filhos, comer e dormir, uma casa com uma vista -
quer dizer, de
que mais você precisa?
- De aquecimento central.
- Estou falando sério, Olivia. Isto é... bem, isto é vida. - Você está
sendo sentimental. Isto é um buraco, é sobrevivência básica.
- Ainda acho que eles têm sorte.
- Mesmo que eles não pensem assim?
Ele faz uma pausa, depois ergue o lábio superior como um buldogue.
- Sim. - Seu tom de sabichão está pedindo uma discussão. E então eu
penso, o que há comigo? Por que tenho de transformar tudo numa batalha moral
entre certo
e errado? As pessoas aqui não ligam para o que nós pensamos. Deixa pra lá,
digo a mim mesma.
- Acho que entendo o seu ponto de vista - digo. E, quando Simon sorri,
as fagulhas da minha irritação são mais uma vez apagadas.
O caminho leva ao alto de uma colina. Enquanto rodeamos o topo, vemos
duas meninas e um menino, com cerca de cinco ou seis anos, brincando na terra.
Uns
dez metros além de onde eles estão fica o muro alto de pedra e a arcada,
bloqueando a nossa visão do que vem depois. As crianças erguem os olhos,
cautelosas e alertas,
seus rostos e roupas cobertos de lama.
- Ni hau? - Simon diz com sotaque americano, "Como vai?" - uma das
poucas coisas que sabe dizer em chinês.
Antes que as crianças notem, pego a Leica e tiro cinco fotos. As
crianças riem, depois voltam a brincar. O menino está dando os retoques finais
numa fortaleza
de lama, as impressões dos seus polegares ainda visíveis nos muros e portão.

#324

Uma das meninas está usando os dedos para arrancar pequenos fios de grama. A
outra menina transfere delicadamente os fios verdes para o telhado de sapê de
uma cabana
em miniatura. E andando perto da cabana estão diversos gafanhotos marrons, os
habitantes deste conjunto.
- Aqueles garotos não são espertos? - eu digo. - Criam brinquedos do
nada.
- Espertos e sujos - Simon responde. - Estou brincando. São umas
gracinhas. - Ele aponta para a menina menor.
- Aquela ali parece um pouco com você aos seis anos, você sabe, no
retrato da festa de aniversário.
Quando nos encaminhamos para a arcada, as crianças ficam em pé de um
pulo.
- Aonde vocês vão? - O menino pergunta rudemente no seu mandarim
infantil.
- Vamos ver o que tem do outro lado. - Aponto para o túnel. - Vocês
querem vir? - Eles correm na nossa frente. Mas, quando chegam na entrada,
viram-se e
olham para nós. - Podem ir - eu digo a eles. - Vocês vão na frente. - Eles não
se mexem, apenas sacodem as cabeças solenemente. - Vamos juntos. - Estendo a
mão para
a menina menor. Ela recua e se esconde atrás do menino, que diz:
- Nós não podemos.
A menina maior acrescenta:
- Temos medo. - Os três ficam bem juntinhos, olhando para a arcada com
os olhos arregalados.
Depois que traduzo isto para Simon, ele diz:
- Bem, eu vou passar agora. Se eles não quiserem vir, tudo bem.
- Assim que ele põe o pé na arcada, as crianças gritam, dão meia-volta e saem
correndo.
- Por que essa gritaria? - A voz de Simon ecoa na abertura arredondada.
- Não sei. - Eu sigo as crianças com os olhos até elas desaparecerem
atrás da colina. - Talvez eles tenham sido alertados para não falar com
estranhos.
- Vamos - ele diz. - O que você está esperando?
Examino as paredes do túnel. Ao contrário das paredes de tijolos das
casas da aldeia, estas são feitas de enormes blocos de pedra.

#325

Eu imagino os operários de muito tempo atrás colocando-os no lugar. Quantos


terão morrido de exaustão? Será que seus corpos foram usados como argamassa,
como os
dos operários que construíram a Grande Muralha? De fato, isto parece ser uma
versão em miniatura da Grande Muralha. Mas por que está aqui? Será que também
foi construída
para servir de barreira na época dos líderes militares e dos invasores
mongóis? Quando entro na arcada, o pulso do meu pescoço começa a bater. Minha
cabeça começa
a flutuar. Paro no meio do túnel e ponho a mão na parede. O túnel tem cerca de
um metro e meio de comprimento e um metro e meio de altura, parecendo um
túmulo. Imagino
uma tropa de fantasmas esperando por nós do outro lado.
Mas o que vejo é um pequeno vale, uma pastagem encharcada de chuva de
um lado, um campo dividido do outro, com o atalho em que estamos continuando
reto pelo
meio, como uma fita marrom. De ambos os lados do vale há dúzias de montanhas
muito menores do que os dois picos à nossa frente. Seria o cenário perfeito
para um
romance pastoral, quanto mais não seja pelo fato de que não consigo tirar da
cabeça os rostos assustados daquelas crianças. Simon já está descendo a
colina.
- Você acha que estamos invadindo? - digo. - Quer dizer, talvez esta
seja uma propriedade particular.
Ele se vira para olhar para mim.
Na China? Você está brincando? Eles não são comunistas à toa, você
sabe. Todas as terras são públicas.
- Não acho que ainda seja assim. Atualmente as pessoas podem possuir
casas e até seus próprios negócios.
- Ei, não se preocupe. Se estivermos invadindo, não vão atirar em nós.
Vão apenas nos dizer para sair e então nós saímos. Vamos. Quero ver o que tem
no vale
que fica depois deste.
- Fico esperando ver surgir um fazendeiro zangado nos ameaçando com
uma enxada. Mas a pastagem está vazia, os campos estão silenciosos. Hoje não é
dia de
trabalho? Por que não há ninguém aqui? E essas muralhas de pedra, por que
estão aqui senão para evitar que alguém entre?

#326

Por que tudo está tão mortalmente quieto? Nenhum sinal de vida, nenhum pássaro
piando.
- Simon - eu digo -, não está parecendo, bem...
- Eu sei, é incrível, parece mais com os campos de uma propriedade
inglesa, uma cena tirada de Retorno a Howards End.
Em uma hora atravessamos o vale. Começamos a subir outra colina, esta
mais íngreme e cheia de pedras do que a outra. O atalho se transforma numa
trilha estreita.
Eu posso ver a muralha e a segunda arcada acima, os picos das montanhas
parecendo recifes de coral erguendo-se do Oceano. Nuvens escuras giram diante
do sol e o
ar fica gelado.
- Acho melhor voltarmos - eu digo. - Parece que vai chover.
- Vamos ver primeiro o que tem no topo.
Sem esperar pela minha resposta, Simon começa a escalada. Enquanto
subimos, penso na história que Kwan contou sobre os missionários, que os
aldeões tinham
dito que haviam sido mortos por bandidos. Talvez haja alguma verdade na
mentira. Pouco antes de deixarmos o hotel em Guilin - quando foi isto? Apenas
ontem?
- peguei The China Daily, o jornal de língua inglesa. Na primeira página
havia uma reportagem mostrando que o crime violento, antigamente inexistente
na China,
estava aumentando, principalmente em locais turísticos como Guilin. Em uma
aldeia de apenas duzentas e setenta e três pessoas, cinco homens foram
executados há poucos
dias, um por estupro, dois por assalto, dois por assassinato, todos os crimes
Cometidos no ano passado. Cinco crimes violentos, cinco execuções - e numa
pequena
aldeia! Isto é que é rapidez de justiça: acusado, condenado, pumba. O jornal
dizia também que a onda de crimes vinha da "poluição e das idéias degeneradas
do Ocidente".
Antes de ser executado, um dos bandidos confessou que sua mente tinha
deteriorado depois que assistiu a um filme americano chamado Naked Gun 33 1/3.
Ele jurou, entretanto,
que era inocente do assassinato, que bandidos da montanha haviam matado a
turista japonesa e que seu crime fora apenas comprar o relógio Seiko roubado
da mulher
morta.

#327

Lembrando-me deste relato, faço uma avaliação do nosso potencial como vítimas
de assalto. Meu relógio é um Casio barato de plástico. Embora, quem sabe,
talvez os
bandidos das montanhas adorem relógios digitais com calculadoras do tamanho de
uma unha. Deixei meu passaporte na casa da Grande Ma, graças a Deus. Ouvi
dizer que
passaportes valem cinco mil dólares no mercado negro. Um ladrão mataria por
eles.
- Onde está o seu passaporte? - pergunto a Simon.
- Bem aqui. - Ele dá um tapinha na mochila. - Porquê, você acha que
vamos dar de cara com uma patrulha da fronteira ou algo assim?
- Que merda, Simon! Você não devia carregar seu passaporte com você!
- Por que não?
Antes que eu possa responder, ouvimos um barulho no mato, seguido por
ruídos de cascos. Imagino bandidos a cavalo. Simon continua andando.
- Simon! Volte aqui!
- Num segundo. - Ele vira uma curva e desaparece.
E então eu o ouço gritar:
- Ei, ô! Espere... ei, espere! - Ele desce escorregando, berrando
- Olivia, sai... - e então voa para cima de mim com tanta força que me deixa
sem
ar. Enquanto estou deitada no chão, minha mente se afasta do meu corpo. Que
estranho, estou tão lúcida e calma. Meus sentidos parecem mais aguçados.
Examino o calombo
na minha canela, a veia saltada no meu joelho. Nenhuma dor. Nenhuma dor! Eu
sei sem nenhuma dúvida ou temor que isto é sinal de que a morte está na virada
da curva.
Eu li isto em livros sobre como morrer, que de alguma forma você sabe, embora
não consiga explicar por quê. Os momentos passam devagar. Este é aquele flash
de um
segundo que os moribundos têm, e eu fico surpresa com a demora desse segundo
em passar. Pareço ter um tempo enorme para avaliar tudo o que foi importante
na minha
vida - risos, alegria antecipada, Simon... até Simon. E, sim, amor,
compaixão, uma paz interior sabendo que não estou deixando para trás nem
grandes pendências
nem grandes tristezas.

#328

Eu rio: graças a Deus que estou usando roupa de baixo limpa, embora quem iria
se importar com isto na China? Graças a Deus Simon está comigo, e eu não estou
sozinha
neste momento terrível e ao mesmo tempo maravilhoso. Graças a Deus ele vai
estar ao meu lado mais tarde - isto é, se houver um paraíso ou Mundo de Yin,
ou algo semelhante.
E, se houver mesmo algo semelhante, e se... e se Elza estiver lá? Para quais
braços angélicos Simon voará? Meus pensamentos não estão mais tão lúcidos ou
confortadores,
os segundos passam na sua velocidade normal, e eu fico em pé, dizendo para mim
mesma chega desta merda.
É então que eles aparecem, nossos pretensos assassinos, uma vaca e seu
bezerro, tão espantados com meu grito que param abruptamente.
- O que foi? - Simon pergunta.
A vaca dá um longo mugido. Se humilhação fosse fatal, era disso que eu
teria morrido. Minha grande epifania espiritual é uma piada. E eu nem posso
rir dela.
Como me sinto idiota. Não posso mais confiar nas minhas percepções, nos meus
julgamentos. Eu sei como os esquizofrênicos devem se sentir, tentando
encontrar ordem
no caos, inventando uma lógica própria que segure o que de outro modo poderia
desintegrar-se.
A vaca e seu bezerro saem correndo. Mas, quando tornamos a pisar na
trilha, um rapaz aparece, carregando um cajado. Ele está usando um suéter
cinza sobre uma
camisa branca, calça jeans nova, e tênis branco limpo.
- Deve ser o condutor do rebanho - Simon diz.
Estou cansada de fazer suposições.
- Pelo que sabemos, pode muito bem ser um bandido.
Nós nos afastamos para ele passar. Mas, quando o rapaz chega bem
diante de nós, ele pára. Fico esperando que nos pergunte alguma coisa, mas ele
não diz nada.
Sua expressão é suave, seu olhar intenso, observador, quase crítico.
- Ni hau? - Simon acena, embora o cara esteja bem diante de nós.

#329

O rapaz continua calado. Ele nos examina de alto a baixo. Começo a


balbuciar em chinês.
- Aquelas vacas são suas? Elas me deram um susto. Talvez você tenha
ouvido o meu grito... Meu marido e eu, nós somos americanos, de San Francisco.
Conhece
o lugar? Sim? Não? ...Bem, nós estamos visitando a tia da minha irmã em
Changmian. Li Bin-bin.
Nenhuma resposta.
- Você a conhece? Na verdade ela está morta. Foi ontem que ela morreu,
antes que pudéssemos conhecê-la, uma pena. Então agora nós queremos fazer
um... -
Estou tão nervosa que não consigo lembrar como se diz funeral em chinês, então
digo - uma festa para ela, uma festa triste. - Rio nervosamente, com vergonha
do
meu chinês, do meu sotaque americano.
Ele me encara. E eu digo a ele em minha mente, Ok, imbecil, se você
quer brincar disto, eu vou encarar também. Mas após dez segundos eu baixo os
olhos.
- O que há com esse cara? - Simon pergunta.
Sacudo os ombros. O condutor de vacas não se parece com outros homens
que vimos em Changmian, homens de mãos calejadas e cabelos cortados em casa.
Ele está
bem arrumado, suas unhas estão limpas. E parece arrogantemente inteligente. Em
San Francisco, ele poderia passar por um doutorando, um professor
universitário, um
poeta-ativista deprimido. Aqui ele é um condutor de vacas que nos desaprova
por razões que não consigo imaginar. E, por causa disto, eu quero conquistá-
lo, fazê-lo
sorrir, assegurar a mim mesma que não sou tão ridícula quanto me sinto.
- Nós estamos dando um passeio - continuo em mandarim. - Dando uma
olhada por aqui. A paisagem é muito bonita. Queremos ver o que há no meio
daquelas montanhas.
- Aponto para a arcada, caso ele não esteja entendendo.
Ele ergue os olhos, depois vira de costas com um olhar zangado. Simon
sorri para ele, depois inclina-se para mim.
- Ele obviamente não entende o que você está dizendo. Vamos embora.

#330

Eu insisto.
- Está tudo bem? - Eu digo para o condutor de vacas. - Precisamos
pedir permissão a alguém? É seguro? Você pode nos aconselhar? -
Imagino o
que é ser inteligente e não ter qualquer perspectiva além de uma pastagem em
Changmian. Talvez ele nos inveje.
Como se tivesse lido meus pensamentos, ele dá um sorriso irônico.
- Imbecis - ele diz num inglês perfeito, depois dá as costas e desce
pela trilha. Por alguns segundos, ficamos perplexos demais para dizer alguma
coisa.
Simon começa a andar.
- Que coisa estranha. O que foi que você disse para ele?
- Eu não disse nada!
- Não estou acusando você de ter dito algo errado. Mas o que foi que
você disse?
- Disse que estávamos dando um passeio. OK? Perguntei se precisávamos
de permissão para estar aqui.
Começamos a subir a colina de novo, não mais de mãos dadas. Os dois
estranhos encontros, primeiro com as crianças e agora com o condutor de vacas,
estragaram
qualquer tipo de conversa romântica. Eu tento me esquecer deles, mas como não
consigo entender sua atitude, fico preocupada. Isto é um aviso. É tão claro
quanto
sentir um mau cheiro, sabendo que conduz a algo podre, morto, estragado.
Simon põe a mão nas minhas costas.
- O que é?
- Nada. - No entanto eu estou louca para confiar nele, para que os
nossos temores, se não nossas esperanças, entrem em sintonia. Paro de andar. -
Você vai
achar uma bobagem, mas eu estava pensando - talvez essas coisas sejam como
presságios.
- Que coisas?
- As crianças dizendo para não virmos aqui...
- Elas disseram que elas não podiam vir. Há uma diferença.
- E esse cara. Seu riso mau, como se soubesse que não deveríamos
entrar no próximo vale, e não quisesse contar.

#331

- A risada dele não era má. Era apenas uma risada. Você está agindo
como Kwan, juntando duas coincidências e encontrando uma superstição.
Eu tenho uma explosão:
- Você perguntou o que eu estava pensando, e eu disse! Você não
precisa me contradizer o tempo todo e debochar de mim.
- Ei, ei, calma. Desculpe... Só estava tentando acalmar você. Quer
voltar agora? Você está mesmo tão nervosa assim?
- Meu Deus, eu odeio quando você diz isso!
- O quê? O que foi que eu fiz agora?
- Tão nervosa assim - digo. - Você só diz isso em relação a mulheres e
cachorrinhos. É condescendente.
- Não foi esta a minha intenção.
- Você nunca descreve homens como nervosos.
- Está bem, está bem! Declaro-me culpado. Você não está nervosa, está...
está histérica! Que tal isto? - Ele ri. - Vamos Olivia, anime-se. O que há?
- É só ... bem, eu estou preocupada. Estou com medo de que estejamos
invadindo propriedade alheia e não quero que pensem que somos uns americanos
folgados,
achando que temos o direito de fazer o que quisermos.
Ele me rodeia com o braço.
- Então ouça. Nós já estamos quase no topo. Vamos dar uma olhada rápida
e depois voltar. Se virmos alguém, pediremos desculpas e partiremos. É claro
que, se
você estiver realmente nervosa, quer dizer preocupada...
- Quer parar! - Dou um empurrão nele. - Vá andando. Eu vou atrás.
Ele sacode os ombros, depois começa a subir com grandes passadas. Fico
parada um instante, recriminando-me mentalmente por não ter dito o que estou
sentindo.
Mas me irrita o fato de Simon não conseguir perceber o que eu realmente quero.
Eu não devia ser obrigada a falar com todas as letras, como se estivesse
exigindo,
fazendo o papel de carrasco e ele o de um cara bonzinho e sofredor. Quando
chego no topo, ele está na segunda arcada, que é quase idêntica à primeira,
exceto por
parecer mais velha, ou talvez mais gasta.

#332

Parte da parede desmoronou, e dá impressão de que não foi uma coisa gradual,
mas sim o resultado de uma bala de canhão ou de tiros de espingarda.
- Olivia! - Simon grita do outro lado. - Venha aqui. Você não vai
acreditar!
Ando mais depressa, e, quando saio do outro lado e olho para baixo,
vejo uma paisagem que me deixa ao mesmo tempo gelada e encantada, um lugar de
contos
de fada que já vi em pesadelos. É completamente diferente do vale liso e
ensolarado que acabamos de atravessar. Trata-se de uma garganta estreita e
profunda, formada
por desníveis violentos, tão cheia de protuberâncias quanto uma cama desfeita,
um cobertor de musgo com trechos de luz e bolsões de sombra, a luminosidade
suave
de um perpétuo entardecer.
Os olhos de Simon estão vidrados de entusiasmo.
- Não é demais?
Aqui e ali há rochas amontoadas, da altura de um homem. Parecem
monumentos, sepulturas ou um exército de soldados petrificados. Ou talvez
sejam a versão
chinesa da estátua de sal da mulher de Lot, pilares da fraqueza humana, Os
restos fossilizados daqueles que entraram neste lugar proibido e ousaram olhar
para trás.
Simon aponta.
- Veja aquelas cavernas! Deve haver centenas delas!
Ao longo das muralhas, do fundo da garganta ao topo dos picos, há
fendas e rachaduras, buracos e cavernas. Parecem as prateleiras e depósitos de
um gigantesco
necrotério pré-histórico.
- É incrível! - Simon exclama. Eu sei que ele está pensando nas
cavernas de Kwan. Ele desce uma espécie de trilha, mais uma fossa do que um
caminho, com
degraus de pedra que cedem sob seu peso.
- Simon, eu estou cansada. Meus pés estão começando a doer.
Ele se vira.
- Espere aí. Vou ficar uns cinco minutos andando por aqui e depois
voltamos juntos. Ok?

#333

- Cinco minutos no máximo! - grito. - E não entre nas cavernas. - Ele


está descendo pela trilha. O que será que o faz tão indiferente ao perigo?
Provavelmente
uma dessas diferenças biológicas entre homens e mulheres. O cérebro das
mulheres usa funções mais elevadas e evoluídas, o que explica sua
sensibilidade, sua humanidade,
sua preocupação, enquanto os homens se apóiam em funções mais primitivas. Vê
pedra, caça. Perigo, cheira, vai atrás. Fuma charuto depois. Eu me ressinto da
falta
de cautela de Simon. E no entanto, tenho de admitir, acho sedutora a
indiferença dele em relação ao perigo, a sua busca de divertimento sem medir
as conseqüências.
Penso no tipo de homens que considero sensuais: são sempre os que escalam o
Himalaia, que atravessam de barco rios infestados de jacarés. Não é que eu os
considere
corajosos. Eles são ousados, imprevisíveis, não merecem confiança. Mas, como
as ondas perigosas e as estrelas cadentes, eles também emprestam emoção a uma
vida que
de outra forma seria tão regular quanto as marés, tão rotineira quanto o dia e
a noite.
Olho para o relógio. Já se passaram cinco minutos. Depois se
transformam em dez, quinze, vinte. Onde está Simon? A última vez que o vi, ele
estava se dirigindo
para um conjunto de monumentos de pedra, ou seja lá o que forem. Ele entrou
atrás de um arbusto, e então eu não o vi mais. Uma gota de chuva cai no meu
rosto. Outra
no meu casaco.
Em instantes, está uma chuvarada.
- Simon! - eu grito. - Simon!
Tenho a intenção de fazer minha voz ecoar, mas ela soa abafada por
causa do barulho da chuva. Eu me protejo sob a arcada. A chuva cai com tanta
força que
forma uma cortina. O ar cheira a metal, minerais contidos nas pedras. Os picos
e encostas estão ficando escuros, brilhantes. A chuva desce em cachoeira,
carregando
as pedras soltas. Enchente repentina, e se houver uma enchente repentina? Eu
xingo Simon por me deixar preocupada com ele. Mas no minuto seguinte minha
preocupação
se transforma em pânico. Tenho de sair do abrigo e procurar por ele. Cubro a
cabeça com o capuz do casaco, entro na chuva e marcho na direção da encosta.

#334

Estou confiando em que uma coragem altruística tome conta de mim e me


guie até embaixo. No entanto, quando me debruço sobre a garganta, o medo
invade as
minhas veias e paralisa as minhas pernas. Minha garganta aperta e eu imploro
em voz alta:
- Por favor, querido Deus, ou Buda, quem estiver escutando. Faça-o
voltar agora mesmo. Eu não agüento mais. Faça-o voltar e eu prometo...
A cara de Simon surge de repente. Seu cabelo, seu casaco, seu jeans
estão encharcados, e lá está ele, ofegando como um cachorro que quer continuar
brincando
de apanhar alguma coisa. Meu um segundo de gratidão se dissolve em raiva.
Corremos para a arcada. Simon tira o casaco e torce as mangas, fazendo
uma poça no chão.
- E agora, o que vamos fazer? - gemo.
- Vamos nos esquentar. - Os dentes dele estão batendo. Ele se encosta
na parede do túnel e me puxa para ele, minhas costas de encontro ao seu peito,
seus
braços em volta de mim. As mãos dele estão geladas. - Vamos, relaxe. - Ele
me balança devagarzinho. - Pronto, assim está melhor.
Tento recordar nossa transa daquela manhã, a alegria inesperada, o
transbordamento de uma emoção mútua. Mas feixes de músculos no meu corpo
inteiro estão
retesados e doloridos - meu queixo, meu peito, minha testa. Eu me sinto tensa,
sufocada. Pergunto a mim mesma, como posso relaxar? Como posso esquecer tudo o
que
aconteceu? Para isto é preciso confiar completamente.
E então um mau pensamento surge em meu cérebro: será que Simon dormiu
com outra mulher desde a nossa separação? É claro que sim! O cara não consegue
ficar
mais de dois dias sem fazer sexo. Uma vez - isto foi há alguns anos - nós
vimos um desses questionários de revista. "A vida sexual do seu amante", ou
algo assim
idiota. Eu li alto a primeira pergunta para Simon: "Com que freqüência o seu
amante se masturba?" E eu estava mentalmente marcando "nunca ou raramente"
quando Simon
disse:
#335

- Três ou quatro vezes por semana. Depende.


- Depende? - eu disse. - De quê? Do tempo?
- Um certo tédio, eu acho - ele respondeu. E eu pensei, duas vezes por
semana comigo é chato?
E agora estou pensando, quantas mulheres o entediaram desde que nos
separamos?
Simon massageia o meu pescoço.
- Nossa, como você está rígida. Pode sentir?
- Simon, esta manhã, você sabe?
- Hum, foi ótimo.
- Mas você não acha que devíamos ter usado uma camisinha? - Estou
torcendo para ele dizer "Para quê? Eu não estou transando com ninguém. Você
sabe disto."
Mas em vez disso ele fica sem jeito. Seus dedos param de trabalhar. E então
ele esfrega com força um dos meus braços.
- Hum. É. Acho que esqueci.
Fecho os olhos. Tento respirar normalmente. Vou perguntar a ele. Mas
não importa o que ele disser em seguida, eu posso agüentar. Além do mais, eu
também
não sou nenhuma santa. Dormi com aquele sinistro diretor de marketing, Rick -
ou melhor, nós nos apalpamos, não chegamos a usar a camisinha que estava em
cima da
mesinha-de-cabeceira, porque "o triturador", como meu amigo chamava seu
flácido pênis, entrou em greve, algo que jamais havia feito antes, conforme me
assegurou.
E, evidentemente, eu me senti sexualmente humilhada, especialmente depois de
fingir com suspiros e arrepios que estava excitada.
A boca de Simon está próxima à minha orelha. Sua respiração me lembra
os sons náuticos que se ouvem numa concha, uma lembrança agora guardada para
sempre
numa espiral.
- Simon, sobre a camisinha - você está dizendo que dormiu com outra
pessoa?
Ele pára de respirar. Afasta a cabeça da minha orelha.
- Bem... bem, se dormi, não me lembro mais. - Ele me aperta. - De
qualquer maneira, elas não foram importantes. Só você importa. - Ele acaricia
o meu cabelo.
- Elas? Quantas foram elas?

#336

- Uh... Que diabo, eu não sei.


- Dez? doze?
Ele ri.
- Dá um tempo.
- Três? Quatro?
Ele fica calado. Eu fico calada. Ele suspira, muda ligeiramente a
postura.
- Hum. Algo assim.
- Afinal, três ou quatro?
- Olivia, não vamos falar sobre isto. Só vai deixar você aborrecida.
Afasto-me dele.
- Eu já estou aborrecida. Você dormiu com outras quatro mulheres e nem
se deu o trabalho de usar uma maldita camisinha esta manhã! - Vou para o outro
lado
da arcada e lanço a ele o meu olhar de detetor de merda.
- Foram três. - Ele está olhando para os pés. - E eu tomei cuidado.
Não peguei nada. Usei camisinha todas as vezes.
- Todas as vezes! Caixas e mais caixas de camisinhas!
Que consideração a sua ter pensado em mim.
- Vamos, Olivia, pare com isto.
- Quem eram elas? Alguém que eu conheço? Conte-me.
E então penso numa mulher que eu desprezo, Verona, uma diretora de arte
free-lance que contratamos no ano passado para um projeto. Tudo nela era
falso, o nome,
os cílios, as unhas, os seios. Uma vez eu disse a Simon que os seios dela eram
simétricos demais para serem de verdade. Ele riu e disse:
- Bem, eles na verdade amassam como se fossem de verdade.
E, quando eu perguntei como ele sabia, ele disse que, sempre que
examinavam os leiautes juntos, ela se inclinava por cima do ombro dele e
apertava os seios
de encontro às suas costas.
- Por que você não disse nada? - eu perguntei.
Ele disse que isto teria chamado ainda mais atenção para o fato de que
ela o estava provocando, que era melhor ignorar, já que ele não estava mesmo
interessado.

#337

- Uma delas foi Verona? - cruzo os braços com força, num esforço para
parar de tremer. Ele entreabre a boca, depois torna a fechá-la, resignado. -
Você transou
com aquela vagabunda, não foi?
- É você que está dizendo isto, não eu.
Eu fico louca de raiva.
- Então me conta, eles são de verdade? Ela tem seios macios?
- Vamos, Olivia. Pare com isto. Por que isto é tão importante para
você? Não significa nada.
- Significa que você nunca teve a intenção de voltar para mim!
Significa que eu não posso confiar em você. - Estou furiosa, me afogando,
precisando arrastar
Simon comigo. - Nunca fui importante para você! Eu só enganei a mim mesma
pensando que era. E Kwan enganou você com aquela estúpida sessão, com seu
truque de fantasmas.
Está lembrando? O que foi que Elza disse? Que você devia esquecê-la, tocar a
sua vida. E sabe de uma coisa? Kwan inventou aquilo. Ela mentiu! Fui eu que
mandei.
Simon dá uma risada.
- Olivia, você está parecendo maluca. Você acha mesmo que eu
acreditei? Achei que estávamos apenas distraindo Kwan.
Eu estou soluçando:
- Está certo, pode rir... Só que não foi uma piada, Simon, ela estava
lá! Eu juro, ela estava, eu a vi. E sabe o que ela estava dizendo? Para você
esquecê-la?
Nada disto! Ela estava implorando para você me esquecer. Ela disse para você
esperar...
Simon põe a mão na testa.
- Você não desiste nunca, não é?
- Eu não desisto? Você é que nunca desistiu dela.
Simon aperta os olhos.
- Quer saber qual é o verdadeiro problema? Você usa Elza como bode
expiatório para as suas inseguranças. Você fez com que ela tivesse um papel
muito mais
importante na sua vida do que ela jamais teve na minha. Você nem a conheceu,
mas projeta todas as suas dúvidas nela...

#338

Tapo os ouvidos com as mãos. E, enquanto ele continua a atirar a sua


pseudo-análise de merda em cima de mim, vasculho meu cérebro atrás de outra
arma, uma
arma definitiva, uma bala fatal diretamente no coração. E é então que me
lembro de ter lido em segredo algumas cartas que Elza tinha escrito para
Simon, seus apelidos
carinhosos, suas promessas juvenis. Eu me viro para ele.
- Você acha que eu estou maluca? Bem, talvez esteja, porque estou
vendo ela neste momento. Sim, Elza! Ela está parada na sua frente. Ela acabou
de dizer:
"Meu anjinho, que história é essa de dizer que eu não fui assim tão
importante?"
O rosto de Simon fica paralisado. "Você tinha de esperar, nós devíamos
plantar aquelas árvores juntos, uma por ano."
Simon tenta tapar a minha boca. Eu pulo para trás.
- Você não compreende? - eu grito. - Ela está aqui! Ela está na sua
cabeça. Ela está no seu coração! Ela está sempre aqui, agora mesmo, neste
maldito lugar,
com seus estúpidos presságios, dizendo que estamos condenados, Simon, que
estamos condenados!
Finalmente, o rosto de Simon mostra uma dor que eu nunca vi antes.
Isto me assusta. Ele está tremendo. Gotas escorrem pelo seu rosto - serão de
chuva ou
de lágrimas?
- Por que você está fazendo isso? - ele urra.
Eu me viro e saio correndo para a chuva. Atravesso o vale correndo,
sem fôlego, querendo que o meu coração estoure. Quando chego na casa da Grande
Ma, a
chuva já parou. Atravesso o pátio e Kwan me lança um dos seus olhares
compreensivos.
- Libby-ah, oh, Libby-ah - ela geme. - Por que você está chorando?

#339

20
O VALE DE ESTÁTUAS

Simon ainda não voltou. Olho para O relógio. Já se passou uma hora. Imagino
que ele esteja curtindo a raiva sozinho. Ótimo, ele que congele o traseiro lá
fora. Ainda
não é meio-dia. Eu pego um livro e subo na cama. A viagem para a China se
transformou num fiasco. Simon vai ter de partir. Isto faz mais sentido. Afinal
de contas,
ele não fala chinês. E esta é a aldeia de Kwan, e ela é minha irmã. Quanto ao
artigo da revista, é só eu fazer algumas anotações e pedir a alguém para
transformá-las
em um artigo quando voltar para casa.
Kwan grita que está na hora do almoço. Faço um ar de serenidade,
pronta para enfrentar a inquisição chinesa. "Onde está Simon", ela vai
perguntar. "Ai-ya,
por que vocês brigam tanto?" Kwan está na sala central, colocando uma travessa
fervendo na mesa.
- Está vendo? Tofu, cogumelo, verdura em conserva.
Quer tirar foto?
Eu não estou com vontade de comer nem de tirar fotos. Du Lili entra na
sala com uma panela de arroz e três tigelas. Nós começamos a comer, ou melhor,
elas
começam, ansiosamente, criticamente.
- Primeiro não tem bastante sal - Kwan reclama. - Agora salgado
demais. - Será esta uma espécie de mensagem velada sobre Simon e mim?

#340

Alguns minutos depois, ela diz para mim: - Hoje cedo muito sol, agora olhe, a
chuva voltou.
Será que ela está fazendo uma analogia com a minha briga com Simon?
Mas, durante o resto do almoço, ela e Du Lili nem mesmo mencionam o nome dele.
Em vez
disso, fofocam animadamente sobre as pessoas da aldeia, trinta anos de
casamentos e doenças, tragédias inesperadas e fatos engraçados, coisas que não
me interessam
a mínima. Meu ouvido está sintonizado com o portão, esperando pelo rangido
indicando a volta de Simon. Ouço apenas o barulho da chuva.
Depois do almoço, Kwan diz que ela e Du Lili vão até o salão
comunitário visitar a Grande Ma. Eu quero ir? Imagino Simon voltando para
casa, procurando por
mim, ficando inquieto, preocupado, talvez até histérico. Merda, ele não ia se
preocupar, eu é que faço isso.
- Acho que vou ficar aqui - digo a Kwan. - Preciso organizar o meu
equipamento e fazer algumas anotações do que já fotografei até agora.
- Ok. Vá mais tarde visitar a Grande Ma. Última chance. Amanhã vai ser
o enterro.
Quando fico finalmente sozinha, examino meu estoque de filmes para ver
se algum está molhado. Maldito tempo! Está tão frio e úmido que mesmo com
quatro camadas
de roupas minha pele está gelada, meus dedos dos pés praticamente dormentes.
Por que deixei que o orgulho tivesse precedência sobre roupas quentes?
Antes de partirmos para a China, Simon e eu discutimos o que
deveríamos trazer. Eu separei uma mala grande, uma mochila e meu equipamento
fotográfico. Simon
disse que tinha dois sacos com rodinhas e então me gozou:
- Não conte comigo para carregar sua tralha extra.
Eu respondi:
- Quem foi que pediu para você fazer isso?
E ele tornou a atacar:
- Você nunca pede, você espera.
Depois desta observação, decidi que não deixaria Simon me ajudar -
mesmo que ele insistisse. Como um pioneiro diante de uma junta de bois mortos
e um deserto
para atravessar, examinei criteriosamente a minha lista de bagagem.

#341

Estava determinada a reduzir minha bagagem até conseguir completa auto-


suficiência: um saco com rodinhas e meu equipamento. Cortei tudo que não era
absolutamente
essencial. Saíram o aparelho de CD portátil e os CDs, o creme de limpeza, o
tônico e o creme rejuvenescedor, o secador de cabelo e o creme de enxaguar,
dois pares
de leggings e as túnicas combinando, metade do meu estoque de meias e roupas
de baixo, dois livros que eu tinha intenção de ler nos últimos dez anos, um
saco de
ameixas pretas, dois ou três rolos de papel higiênico, um par de botas
forradas de pele, e a omissão mais triste, uma camisola comprida roxa. Ao
decidir o que colocar
naquele espaço apertado, apostei num clima tropical, antevi uma ou outra noite
na ópera chinesa, e nem cheguei a considerar a hipótese de não ter
eletricidade.
Portanto, dentre as coisas que pus na mala e que agora me arrependo,
estão dois coletes de seda, um par de shorts de brim, um ferro de passar
roupa, um par
de sandálias, um maiô e um paletó de seda cor-de-rosa. A única ópera onde vou
usar isto é a novela que está acontecendo no meu próprio quintal. Pelo menos
eu tenho
meu casco à prova d'água. Pequeno consolo, grande arrependimento. Anseio pela
camisola como uma pessoa à deriva no mar sonha com água. Calor - o que eu não
daria
por isto! Maldito tempo! Maldito Simon por estar protegido e confortável no
seu sobretudo...
Seu sobretudo - está encharcado, inútil. Pouco antes de deixá-lo, ele
estava tremendo, de raiva, eu pensei na hora. Mas não tenho mais certeza. Oh,
Deus!
Quais são os sinais de hipotermia? Uma vaga lembrança de frio e raiva cruza a
minha mente. Quando foi isto, há cinco ou seis anos?
Eu estava tirando fotos num serviço de emergência, as fotos dramáticas
de sempre para o relatório anual do hospital. Um grupo de paramédicos entrou
empurrando
a maca de uma mulher pobremente vestida que fedia a urina. A voz dela estava
enrolada, ela se queixava de estar queimando e que precisava tirar um casaco
de mink
que não tinha.

#342

Achei que ela estivesse bêbada ou drogada. E então ela começou a ter
convulsões.
- Desfibrilador! - alguém gritou.
Mais tarde eu perguntei a uma das enfermeiras o que deveria colocar na
legenda - ataque cardíaco? alcoolismo?
- Escreva que ela morreu de janeiro - a enfermeira disse, zangada. E,
como eu não compreendesse, ela disse: - Estamos em janeiro. Está frio. Ela
morreu de
hipotermia, assim como seis outras pessoas sem teto este mês.
Isto não vai acontecer com Simon. Ele é saudável. Está sempre com
calor. Ele abre o vidro do carro quando outras pessoas estão morrendo de frio,
e nem mesmo
pede licença. Ele é assim mesmo, sem consideração, Deixa as pessoas esperando.
Nem imagina que elas podem estar preocupadas. Ele vai chegar a qualquer
momento. Vai
chegar com aquele sorriso irritante dele, e eu vou ficar chateada por ter me
preocupado sem motivo.
Depois de passar cinco minutos tentando me convencer destas coisas,
vou correndo até o salão comunitário atrás de Kwan.

No túnel da segunda a arcada, Kwan e eu encontramos o casaco de Simon jogado


no chão como um cadáver desconjuntado. Pare de choramingar, digo a mim mesma.
Chorar
significa que você espera pelo pior.
Fico parada no alto do precipício que vai dar na garganta e olho para
baixo, tentando enxergar algum movimento. Diversos cenários cruzam a minha
mente. Simon,
delirando, vagando semidespido pela garganta. Rochas rolando pelas encostas. O
rapaz, que não é um condutor de vacas e sim um bandido moderno, roubando o
passaporte
de Simon. Digo para Kwan:
- Nós passamos por umas crianças, elas gritaram conosco. E mais tarde
aquele cara com umas vacas, ele nos chamou de imbecis... Eu estava tensa.
Fiquei um
tanto enlouquecida, e Simon... ele estava tentando ser gentil, mas depois
ficou zangado. E o que eu disse, bem, não foi de coração.

#343

- No túnel cavernoso, minhas palavras soaram confessionais e ocas ao mesmo


tempo.
Kwan ouve em silêncio, triste. Ela não diz nada para aliviar a minha
culpa. Não responde com falso otimismo que tudo vai dar certo. Ela abre a
mochila que
Du Lili insistiu que trouxéssemos. Estende o cobertor no chão, enche a
almofada, arruma o pequeno fogão e uma lata extra de combustível.
- Se Simon voltar para a casa da Grande Ma - ela raciocina em chinês
-, Du Lili vai mandar alguém nos avisar. Se ele vier para cá, você vai estar
aqui para
ajudá-lo a se aquecer. - Ela abre o guarda-chuva.
- Aonde você vai?
- Vou só dar uma olhada por aí.
- E se você se perder também?
- Meiyou wenti. - Ela diz para eu não me preocupar. - Este é o lar da
minha infância. Cada pedra, cada curva das colinas, eu conheço todas, como
velhas amigas.
- Ela sai na chuva.
Grito para ela:
- Quanto tempo você vai demorar?
- Não muito. Talvez uma hora, não mais.
Olho para o relógio. São quase quatro e meia. Às cinco e meia, a meia
hora dourada vai chegar, mas agora o entardecer me assusta. Às seis, estará
escuro demais
para andar.
Depois que ela parte, fico andando de uma abertura da arcada para a
outra. Olho para fora de um lado, não vejo nada, depois repito o processo do
outro lado.
Você não vai morrer, Simon. Isto é uma idiotice fatalista. Penso nas pessoas
que conseguiram se safar. O esquiador perdido em Squaw Valley que cavou uma
caverna
na neve e foi resgatado três dias depois. E aquele explorador que ficou preso
numa banquisa de gelo e que ficou saltando a noite inteira para se manter
vivo. E,
é claro, havia aquela história de Jack London sobre um homem apanhado por uma
nevasca que conseguiu acender uma fogueira com pauzinhos molhados. Mas então
eu me
lembrei do final: um monte de neve cai de um galho bem em cima da fogueira e
apaga as suas esperanças.
#344

E então outros finais me vêm à mente: o corredor de trenó que caiu num buraco
e foi encontrado morto na manhã seguinte. O caçador que se sentou para
descansar um
dia na fronteira entre a Itália e a Áustria e só foi
descoberto no degelo da primavera milhares de anos depois.
Tento meditar para bloquear esses pensamentos negativos: palmas das
mãos abertas, mente aberta. Mas só consigo pensar no quanto meus dedos estão
gelados.
Será que Simon está sentindo este mesmo frio?
Eu imagino a mim mesma como sendo Simon, parada na mesma arcada,
encalorada por causa da nossa discussão, os músculos retesados, querendo me
atirar na direção
do perigo. Eu já vi isto acontecer antes. Quando ele soube que o nosso amigo
Eric tinha morrido no Vietnã, foi caminhar sozinho e acabou perdido nos
bosques de eucalipto
do Presidio. A mesma coisa aconteceu quando estávamos visitando uns amigos de
amigos no campo e um homem começou a contar piadas racistas. Simon se levantou
e anunciou
que o cara. tinha uma telha de menos. Na época, fiquei zangada por ele ter
feito uma cena e me deixado para agüentar as conseqüências. Mas agora,
recordando aquele
momento, eu sinto uma tristonha admiração por ele.
A chuva parou. É isto que ele também deve estar vendo. "Ei", eu o
imagino dizendo, "vamos tornar a verificar aquelas pedras." Eu caminho pela
beira do precipício,
olho para baixo. Ele não veria aquele precipício de dar nó no estômago do
mesmo jeito que eu. Ele não veria uma centena de maneiras de se quebrar o
crânio. Ele simplesmente
desceria pela trilha. É o que eu faço. Será que Simon foi por aqui? Ao chegar
na metade do caminho, olho para trás, depois em volta. Não existe outro
caminho até
este lugar, a menos que ele tenha se atirado no precipício e caído uns vinte
metros até o fundo. Simon não é um suicida, digo a mim mesma. Além disso,
suicidas falam
em se matar antes de fazê-lo. E então eu me lembro de ter lido uma história no
Chronicle sobre um homem que estacionou o seu Range Rover novo na Ponte Golden
Gate
durante a hora do rush, e depois se atirou da mureta.

#345

Seus amigos expressaram o choque e a incredulidade de sempre.


- Eu o vi na ginástica a semana passada - um tinha dito. - Ele me
disse que tinha comprado duas mil ações da Intel a doze e que agora elas
estavam valendo
setenta e oito. Cara, ele estava falando no futuro.
Ao me aproximar do fundo da garganta, observo o céu para ver quanto
resta de luz do dia. Vejo pássaros escuros esvoaçando como mariposas; eles
caem subitamente,
depois tornam a subir. Estão dando gritos agudos, como se estivessem
assustados. Morcegos - é isso que são! Eles devem ter saído de uma caverna
para voar ao entardecer,
a hora dos insetos. Vi morcegos no México uma vez - mariposas, era como os
garçons os chamavam, borboletas, para não assustar os turistas. Eu não tinha
medo deles
na época, e nem tenho agora. Eles são arautos da esperança, tão bem-vindos
quanto a pomba que trouxe um ramo coberto de folhas para Noé. A salvação está
próxima.
Simon também. Talvez os morcegos tenham voado para fora porque ele entrou na
toca deles e perturbou o seu sono de cabeça para baixo.
Sigo o caminho sinuoso, irregular, tentando ver de onde os morcegos
estão vindo e para onde eles voltam. Meu pé escorrega e eu torço o tornozelo.
Vou mancando
até uma pedra e me sento.
- Simon! - Tenho esperança de que o meu berro ecoe como num
anfiteatro. Mas meus gritos são sugados para os espaços vazios da garganta.
Pelo menos não estou mais com frio. Quase não venta aqui embaixo. O ar
é parado, pesado, quase opressivo. É estranho. O vento não deveria soprar mais
depressa?
O que dizia aquele livrinho que Simon e eu fizemos sobre a Medida J, aquele
contra Manhattanização - o efeito Bernouille, como as florestas de arranha-
céus criam
túneis de vento, porque o volume
menor por onde passa o ar diminui a pressão e aumenta a velocidade - ou será
que aumenta a pressão?
Olho para as nuvens. Elas passam sem parar. O vento está com certeza
soprando lá em cima. E, quanto mais eu olho, mais o chão parece estar se
mexendo, como
o fundo de um misturador de salada.

#346

E agora os picos, as árvores, as rochas ficam enormes, dez vezes maiores do


que há um minuto. Eu me levanto e torno a andar, desta vez tomando cuidado
onde piso.
Embora o chão pareça firme, é como se eu estivesse subindo uma ladeira
íngreme. Uma força parece me puxar para trás. Será que este é um daqueles
lugares da terra
onde as propriedades normais de gravidade e densidade, volume e velocidade se
descontrolaram? Agarro-me nas fendas de uma rocha e faço tanta força para
me puxar
para cima que tenho certeza de que um vaso vai se romper no meu cérebro.
E então eu perco a respiração. Estou caminhando na beira de um abismo.
Abaixo há uma queda súbita de cerca de seis metros, como se a terra tivesse
afundado
como um suflê, criando um buraco gigantesco. Estendendo-se na direção das
montanhas na outra ponta da garganta, há uma extensão de terra salpicada
daquelas coisas
que eu vi antes - sepulturas, monumentos, o que quer que
sejam. Dá a impressão de ser ao mesmo tempo uma floresta petrificada de
árvores queimadas
e um jardim subterrâneo de estalagmites de uma antiga caverna. Será que um
meteoro caiu aqui? O Vale das Sombras da Morte, isto é o que é.
Vou até uma das formações e ando em volta dela como um cachorro,
depois torno a rodeá-la, tentando compreender. Seja o que for, é evidente
que não surgiu
espontaneamente. Alguém empilhou deliberadamente estas pedras - e em ângulos
que não parecem equilibrados. Por que as pedras não caem? Rochas grandes estão
penduradas
na ponta de pequenas pedras pontudas. Outras pedras descansam em locais do
tamanho de uma moeda, como se fossem obturações de ferro grudadas em um ímã.
Elas poderiam
passar por arte moderna, esculturas de luminárias e chapeleiras, planejadas
exatamente para dar a impressão de terem se formado ao acaso. Em uma das
pilhas, a pedra
que está no alto parece um chapéu-coco furado, seus buracos sugerindo órbitas
vazias e uma boca aberta num grito, como a pessoa naquele quadro de Edvard
Munch. Vejo
outras formações com as mesmas feições.

#347

Quando foram feitas? Por quem e porquê? Não é de estranhar que Simon tenha
querido descer até aqui. Ele voltou para investigar mais. Enquanto continuo a
andar, este
estranho conjunto de pedras se parece cada vez mais com as vítimas queimadas
de Pompéia, de Hiroxima, do apocalipse. Estou cercada por um exército de
estátuas de
pedra, corpos erguidos dos restos calcificados de antigas criaturas marinhas.
Um cheiro desagradável, de mofo, atinge o meu nariz e o pânico sobe em
minha garganta. Olho em volta à procura de sinais de putrefação. Já senti este
mesmo
cheiro antes. Mas onde? Quando? Parece muito familiar, uma versão olfativa do
déjà vu - déjà senti. Ou talvez seja instintivo, como os animais sabem que a
fumaça
vem do fogo e que o fogo leva ao perigo. O cheiro está preso no meu cérebro
como uma lembrança visceral, o resíduo emocional de um medo e de uma tristeza
de dar
cãibras no estômago, mas sem o motivo que o ocasionou.
Passo rapidamente por outro monte de pedras. Mas meu ombro bate numa
ponta afiada e eu grito enquanto o monte inteiro cai. Fico olhando para os
destroços.
A mágica de quem eu acabei de destruir? Tenho a sensação desconfortável de ter
quebrado um encanto e que esses metamorfismos logo irão começar a oscilar e
marchar.
Onde está a arcada? Agora parece haver mais montes de pedras - será que eles
se multiplicaram? - e eu preciso encontrar o caminho no meio deste labirinto,
minhas
pernas indo numa direção, minha mente dizendo que eu deveria ir na outra. O
que Simon faria? Sempre que eu ficava insegura na hora de realizar uma proeza
física,
ele era a voz da razão, assegurando-me de que eu era capaz de correr mais um
quilômetro, ou caminhar até a próxima colina, ou nadar até o cais. E houve
momentos
no passado em que acreditei nele, e em que fiquei feliz por ele acreditar em
mim.
Imagino Simon me incentivando agora. "Vamos, escoteira, sacode esse
traseiro." Procuro a muralha de pedra e a arcada para me orientar. Mas nada é
distinto.
Só vejo gradações de sombras. Então me lembro das vezes em que fiquei zangada
com Simon porque dei ouvidos a ele e falhei.

#348

Quando gritei com ele depois de tentar patinar e cair de bunda. Quando chorei
porque minha mochila estava pesada demais.
Sento-me no chão, exasperada, choramingando. Foda-se, eu vou chamar um
táxi. Veja como eu estou abobalhada. Será que estou mesmo pensando que posso
erguer
a mão, chamar um táxi e me livrar desta trapalhada? Será que foi só isto que
eu consegui, armazenar na seção de emergência dos meus recursos internos -
minha vontade
de pagar uma corrida de táxi? Por que não uma limusine? Devo estar perdendo a
razão!
- Simon! Kwan!
Ao ouvir o pânico em minha voz, fico ainda mais assustada. Tento
mover-me rapidamente mas meu corpo parece pesado, puxado para o centro da
terra. Dou um
encontrão numa das estátuas. Uma pedra cai, arranha meu ombro. E de repente
todo o terror que sinto escapa pela minha boca e eu começo a chorar como um
bebê. Não
consigo andar. Não consigo pensar. Despenco no chão e me encolho. Estou
perdida! Eles estão perdidos! Nós três presos nesta terra terrível. Vamos
morrer aqui, apodrecer,
depois petrificar e nos tornar outras estátuas sem rosto! Vozes agudas
acompanham os meus gritos. As cavernas estão cantando, canções de dor, canções
de tristeza.
Tapo os ouvidos, fecho os olhos, para me isolar da loucura do mundo,
da minha mente, de ambos. Você pode fazer isto parar, digo a mim mesma. Faço
força para
acreditar nisto. Sinto uma corda no meu cérebro sendo esticada até arrebentar
e então estou pairando, livre do meu corpo e de seus medos mortais, ficando
leve e
tonta. Então é assim que as pessoas se tornam psicóticas, elas simplesmente se
soltam. Posso ver a mim mesma num filme chato sueco, reagindo devagar a
ironias cansativamente
óbvias. Berro como uma doida pelo papel ridículo que estou fazendo, pela
estupidez que é morrer num lugar como este. E Simon jamais saberá o quanto eu
fiquei nervosa.
Ele tem razão, eu estou histérica!

#349

Duas mãos me agarram pelos ombros e eu grito.


É Kwan, com o rosto cheio de preocupação.
- O que aconteceu? Com quem você está falando?
- Oh, Deus! - Ergo-me de um salto. - Eu estou perdida. Achei que você
também estivesse. - Estou fungando e balbuciando entre respirações ofegantes.
- Quer
dizer, onde estamos? Estamos perdidas?
- Não-não-não - ela diz. Então eu noto que ela está com uma caixa de
madeira enfiada debaixo do braço e apoiada no quadril. Parece uma antiga caixa
de faqueiro.
- O que é isso?
- Caixa. - Com a mão livre, Kwan me ajuda a me firmar sobre pernas
bambas.
- Eu sei que é uma caixa
- Por aqui. - Ela me guia pelo cotovelo. Não diz nada sobre Simon.
Está estranhamente solene, incomumente taciturna. E, temendo que ela tenha más
notícias
para me dar, sinto um aperto no peito.
- Você viu... - Ela me interrompe com um movimento negativo de cabeça.
Eu fico aliviada, depois desapontada. Já não sei mais como devo me sentir de
instante
a instante. Estamos passando pelas estranhas estátuas. - Onde você conseguiu
essa caixa?
- Encontrei-a.
Eu já estou mais que frustrada.
- É mesmo! - respondo. - Pensei que a tivesse comprado no Macy's.
- Esta é a minha caixa, que escondi há muito tempo. Já contei isto
para você. Esta caixa sempre quis mostrar para você.
- Desculpe. Estou em frangalhos. O que tem dentro?
- Vamos subir e abrir para ver.
Caminhamos em silêncio. À medida que o meu medo diminui, a paisagem
começa a parecer mais benigna. O vento bate no meu rosto. Eu estava suando
antes, agora
estou ficando gelada. O caminho ainda é desigual e perigoso, mas eu não sinto
mais nenhum estranho puxão gravitacional. Ralho comigo mesma: garota, a única
coisa
desequilibrada neste lugar é a sua mente.

#350

Eu não passei por nada mais perigoso que um ataque de pânico. Pedras, eu tinha
medo de pedras.
- Kwan, o que são estas coisas?
Ela pára e se vira.
- Que coisa?
Mostro uma das pilhas.
- Pedras. - Ela recomeça a andar.
- Eu sei que são pedras. O que quero saber é como elas vieram parar
aqui, o que representam? Significam alguma coisa?
Ela torna a parar, baixa os olhos para a vala.
- Isto segredo.
Meu cabelo fica em pé na nuca. Tento fazer minha voz soar despreocupada.
- Deixa disso, Kwan. São sepulturas? Estamos andando em um cemitério ou
algo assim? Pode me contar.
Ela abre a boca, quase respondendo. Mas então faz um ar teimoso.
- Eu conto depois. Agora não.
- Kwan!
- Depois que voltarmos. - Ela aponta para o céu. - Escuro logo. Vê? Não
perca tempo falando. - E então acrescenta carinhosamente. - Talvez Simon já de
volta.
Meu peito se enche de esperança. Ela sabe alguma coisa que eu não sei,
tenho certeza. Concentro-me nisto enquanto subimos e rodeamos várias rochas,
descemos
por um fosso, depois passamos por uma fenda profunda. Logo estamos na pequena
trilha que leva ao topo. Posso ver a muralha e a arcada.
Subo com dificuldade na frente de Kwan, o coração batendo. Estou
convencida de que Simon está lá. Acredito que as forças do caos e da incerteza
me darão outra
chance de me redimir. Quando chego no topo, meus pulmões estão quase
explodindo. Estou tonta de alegria, chorando de
alívio, porque sinto a claridade da paz, a simplicidade da confiança, a pureza
do amor.

#351

E lá! -, a mochila, o fogão, o casaco molhado, tudo como deixamos,


nada mais nada menos. O medo me ataca o coração, mas eu me agarro ao poder
absoluto da
fé e do amor. Vou até o outro lado do túnel, sabendo que Simon vai estar lá,
tem de estar.
A plataforma de pedra está vazia, não há nada além do vento. Encosto-
me na parede do túnel e escorrego para o chão, abraçando os joelhos. Ergo os
olhos.
Kwan está lá.
- Eu não vou embora - digo a ela. - Não vou embora antes de encontrá-
lo.
- Eu sei disto.
Ela se senta em cima da caixa de madeira, abre a mochila e tira uma
garrafa de chá frio e duas latas. Uma delas tem amendoim torrado, a outra
grãos de fava
fritos. Ela abre um amendoim e me oferece.
Sacudo a cabeça.
- Você não precisa ficar. Sei que você tem de se preparar para o
funeral da Grande Ma amanhã. Eu vou ficar bem. Ele provavelmente vai aparecer
logo.
- Eu fico com você. A Grande Ma já disse: adie funeral dois, três
dias, tudo bem. De qualquer maneira, mais tempo para preparar comida.
Tenho uma idéia.
- Kwan! Vamos perguntar à Grande Ma onde Simon está.
Assim que digo isto, percebo o quanto estou desesperada. É assim que
os pais de crianças moribundas reagem, recorrendo a médiuns e curandeiros da
Nova Era,
qualquer coisa, desde que haja um fiapo de esperança neste mundo ou no outro.
Kwan me lança um olhar tão terno que compreendo que estou esperando
demais.
- Grande Ma não sabe - ela diz baixinho em chinês. Ela tira a capa do
fogão e acende o queimador. Chamas azuis saem de pequenos furos com um chiado.
- Pessoas
yin - ela diz agora em inglês - não sabem tudo, não como você pensa. Às vezes
elas mesmas se perdem, não sabem para onde ir .É por isto que algumas pessoas
yin voltam
tantas vezes.

#352

Sempre procurando, perguntando: "Onde foi que me perdi? Para onde vou?"
Fico contente por Kwan não poder ver o quanto estou deprimida. O fogão
só ilumina o suficiente para delinear nossas silhuetas.
- Se você quiser - ela diz baixinho -, eu peço à Grande Ma para nos
ajudar a procurar. Vamos fazer como grupo de busca do FBI. Ok, Libby-ah?
Fico comovida com sua ansiedade em me ajudar. É a única Coisa que faz
sentido por aqui.
- De qualquer maneira, nada de funeral amanhã. Grande Ma não pode
fazer mais nada. - Kwan derrama chá frio na caneca de metal e coloca no fogo.
- É claro,
não posso pedir a ela esta noite - ela diz em chinês. - Já está escuro -
fantasmas, ela morre de medo deles, embora ela mesma seja um fantasma...
Fico olhando distraída para as chamas azuis e alaranjadas lambendo o
fundo da caneca.
Kwan estende as mãos para o fogo.
- Quando uma pessoa tem o mau hábito de ter medo de fantasmas, é
difícil deixar de ter. Eu tenho sorte, nunca adquiri este hábito. Quando os
vejo, simplesmente
conversamos como amigos...
Nesse momento, uma terrível possibilidade me ocorre.
- Kwan, se você visse Simon, quer dizer, como uma pessoa yin, você me
diria, não é? Você não fingiria...
- Eu não o vi - ela responde logo. Ela faz festa no meu braço. - Pode
acreditar, estou dizendo a verdade.
Eu me permito acreditar nela, acreditar que ela não mentiria e que ele
não está morto. Enterro a cabeça entre os braços. O que devemos fazer em
seguida,
que plano racional, eficiente, devemos adotar de manhã? E mais tarde, digamos
ao meio-dia, se ainda não o tivermos encontrado, o que vamos fazer? Uma de nós
deve
ir chamar a polícia? Mas então eu me lembro de que não há telefones, nem
carro. Talvez eu possa pedir carona e ir diretamente para o consulado
americano. Será que
há um posto em Guilin? Que tal um escritório do American Express? Se houver
um, eu vou mentir e dizer a eles que tenho um Platinum Card, que podem me
cobrar seja
o que for, busca e resgate, transporte aéreo de emergência.

#353

Ouço ruídos e ergo a cabeça. Kwan está enfiando o canivete suíço na fechadura
da caixa. - O que você está fazendo?
- Perdi chave. - Ela ergue o canivete, procurando qual o melhor
instrumento. Escolhe o palito de plástico. - Há muito tempo, guardei muitas
coisas aqui dentro
- Ela enfia o palito no buraco. - Libby-ah, a lanterna está na mochila, -
procura para mim, Ok?
- Com a luz, eu posso ver que a caixa é feita de uma madeira escura,
avermelhada, e enfeitada de latão. Na tampa há um trabalho em baixo-
relevo representando
árvores, um caçador de aparência bávara, com um pequeno veado morto pendurado
no ombro e um cachorro pulando na frente dele.
- O que tem aí dentro?
Ouve-se um clique e Kwan endireita o corpo. Ela sorri, aponta para a
caixa.
- Você abre, veja por si mesma.
Seguro na alça de latão e vagarosamente ergo a tampa. Sons tilintantes
saem lá de dentro. Espantada, deixo a tampa cair. Silêncio. É uma caixa de
música.
Kwan dá uma risadinha.
- Hnh, o que você pensa - fantasma aí dentro?
Torno a erguer a tampa, e os sons de uma música alegre enchem o
pequeno túnel, desafinadamente animada, uma marcha militar apropriada para um
desfile de
cavalos e pessoas com roupas alegres. Kwan cantarola junto, obviamente a
melodia lhe é familiar. Ilumino o interior da caixa. Num canto, sob um painel
de vidro,
está o aparato que faz a música, um pente de metal roçando nos pinos de um
cilindro que rola.
- Isto não soa muito chinês - digo a Kwan.
- Não chinês. Feito na Alemanha. Você gosta da música?
- Muito agradável. - Então esta é a fonte da história da caixa de
música. Fico aliviada em saber que existe ao menos uma base para os seus
delírios. Eu também
cantarolo junto.

#354
- Ah, você conhece Canção?
Balanço negativamente a cabeça.
- Uma vez eu dei caixa de música para você, presente de casamento.
Lembra?
Abruptamente, a musica pára; a melodia ainda permanece suspensa no ar
por alguns segundos antes de desaparecer. Resta apenas o terrível chiado do
fogão,
um lembrete do frio e da chuva, do fato de Simon estar em perigo. Kwan abre um
painel de madeira dentro da caixa. Ela tira uma chave, enfia num buraco e
começa a
dar corda. A música recomeça, e eu fico grata por esse consolo artificial.
Olho para a parte da caixa que está exposta agora. É uma gaveta de bugigangas,
um lugar
para se guardar botões, fitas, um vidrinho vazio - coisas um dia apreciadas
mas finalmente esquecidas, coisas que se tinha a intenção de consertar, mas
que foram
Postas de lado por tempo demais.
Quando a música torna a parar, eu mesma dou corda na caixa. Kwan está
examinando uma luva de pelica, Os dedos permanentemente apertados. Ela a leva
ao nariz
e cheira.
Eu apanho um livrinho Com as beiradas salientes. Uma visita a Índia,
China e Japão, por Bayard Taylor. Entre duas páginas há um marcador, a ponta
rasgada
de um envelope. Uma frase numa das páginas está sublinhada: "Seus olhos tortos
são típicos de sua visão moral torta." Quem era o fanático que tinha este
livro? Viro
o envelope. Escrito em tinta marrom há o endereço do remetente: Russell and
Company, Acropolis Road, Route 2, Cold Spring, New York.
- Esta caixa pertencia a alguém chamado RUssell? - pergunto.
- Ah! - Kwan arregala os olhos. - Russo. Você se lembra.
- Não - ilumino o envelope. - Diz aqui "Russell and Company", está
vendo?
Kwan parece desapontada.
- Naquela época, eu não sabia inglês - ela diz em chinês. Não podia
ler isto.
- Então esta caixa pertencia ao Sr. Russell?

#355

- Bu-bu. - Ela pega o envelope e fica olhando para ele. - Ah!


Russell. Pensei que fosse Russo ou Rússia. O pai trabalhava numa companhia
chamada Russell.
O nome dele era... - Kwan me olha nos olhos. - Bandeira - ela diz.
Eu rio.
- Oh, certo. Como a Srta. Bandeira. É claro. O pai dela era um
comerciante marítimo ou algo assim.
- Navio de ópio.
- Sim, eu me lembro agora... - E então percebo o quanto aquilo é
insólito, que não estamos mais falando sobre uma história de fantasmas. Aqui
está a caixa
de música, aqui estão as coisas que supostamente pertenciam a eles. Mal posso
falar. - Esta era a caixa de música da Srta. Bandeira?
Kwan faz sinal que sim.
- O primeiro nome dela - ai-ya! - agora me fugiu da cabeça. - Ela
enfia a mão na gaveta de bugigangas e tira uma latinha. - Tst! O nome dela -
ela fica dizendo
para si mesma -, como posso esquecer o nome dela? Dentro da latinha, ela tira
um tijolinho preto. Eu penso que é uma pedrinha, até que ela parte um
pedacinho e joga
no chá, que agora está fervendo no fogão.
- O que é isso?
- Erva. - Ela passa para o inglês. - De árvore especial, só folha
nova, muito pegajosa. Eu mesma fiz para a Srta. Bandeira. Bom para beber,
também para cheirar.
Solta a imaginação. Faz você sentir paz. Talvez devolva a minha memória
- É tirada da árvore sagrada?
- Ah! Você se lembra!
- Não. Eu me lembro da história que você contou.
Minhas mãos estão tremendo. Estou louca por um cigarro. Que diabos
está acontecendo? Talvez eu esteja tão louca quanto Kwan. Talvez a água de
Changmian esteja
contaminada com um alucinógeno. Ou talvez eu tenha sido picada por um mosquito
chinês que infecta o cérebro e causa loucura. Talvez Simon não tenha
desaparecido.
E eu não tenha no colo coisas que pertenceram a uma mulher que é produto de um
sonho infantil.

#356

A fumaça e o cheiro forte do chá se erguem no ar. Inclino-me sobre a


caneca, o vapor umedecendo meu rosto, fecho os olhos e inalo o aroma. Ele tem
um efeito
calmante. Talvez eu esteja realmente dormindo. Isto é um sonho. E, se for, eu
posso me arrastar para fora dele...
- Libby-ah, veja.
Kwan me entrega um livro costurado a mão. A capa é feita de um pano
macio. NOSSO ALIMENTO, está gravado em letras góticas. Traços de partículas de
ouro cobrem
o final das letras. Quando viro a capa, pedacinhos de papel se soltam e eu
vejo pelo couro exposto por baixo que a capa agora desbotada foi um dia roxa,
uma cor
que me faz lembrar de uma gravura bíblica da minha infância: um Moisés de
aparência enlouquecida, em pé sobre uma rocha, contra um céu roxo, quebrando
as tábuas
diante de uma multidão de pagãos com turbantes nas cabeças.
Abro o livro. No lado esquerdo de uma das páginas, há uma mensagem
gravada em linhas tortas: "A confiança em Deus nos livra das tentações do
demônio. Se
você estiver tomada pelo Espírito, irá sentir-se plenamente saciada." Na
página oposta está escrito: "O canto do amém." E, embaixo disto, numa
caligrafia cheia de
borrões de tinta, há uma estranha lista: feijões rançosos, rabanetes pútridos,
folha de ópio, bolsa-de-pastor, artemísia, repolho podre, sementes secas,
vagens e
bambus. Muitos servidos frios ou boiando num mar de óleo de rícino. Deus tenha
piedade." As páginas seguintes contêm justaposições semelhantes, inspiração
cristã
ligada a sede e salvação, fome e plenitude, respondida por um canto do amém
listando alimentos que o dono deste diário obviamente achava ofensivos mas
úteis para
um humor herege. Simon adoraria ver isto. Ele pode usá-lo em nosso artigo.
- Ouça. - Leio alto para Kwan: "Costeletas de cachorro, fricassê de
passarinho, holotúria ensopada, minhocas e cobras. Um banquete para convidados
respeitáveis.
No futuro, vou me esforçar para ser menos respeitável." Largo o diário. - O
que será holotúria?
- Nelly.

#357

Ergo os olhos.
- Holotúria quer dizer Nelly?
Ela ri, e bate de leve na minha mão.
- Não-não-não! Srta. Bandeira, o primeiro nome dela Nelly. Mas eu
sempre a chamo de Srta. Bandeira. Por isto é que quase não consigo lembrar
nome todo. Ah.
Que memória ruim! Nelly Bandeira. - Ela dá uma risadinha.
Agarro o diário. Meus ouvidos estão apitando.
- Quando foi que você conheceu a Srta. Bandeira?
Kwan sacode a cabeça.
- Data exata, deixe-me ver...
- Yi ba liu si. - Recordo as palavras de uma das histórias que Kwan me
Contava na hora de dormir. - Perde esperança, desliza para a morte. Um oito
seis quatro.
- Sim-sim. Você boa memória. Mesma época que Rei Celestial perdeu
Revolução da Grande Paz.
O Rei Celestial. Eu também me lembro desta parte. Havia realmente
alguém chamado Rei Celestial? Gostaria de saber mais sobre história chinesa.
Esfrego a
palma da mão na capa macia do diário. Por que não podem fazer livros assim
hoje em dia? - livros que parecem afetuosos e amistosos quando você toca
neles. Viro outra
página e leio: "Arrancar com os dentes as cabeças de fósforos (agonizante).
Engolir Ouro em folha (extravagante). Engolir cloreto de magnésio (infame).
Comer ópio
(indolor). Beber água não fervida (minha sugestão). Ainda com relação ao
suicídio, a Srta. Moo me informou que ele é estritamente proibido entre os
seguidores de
Taiping, a não ser que estejam se sacrificando na guerra em honra a Deus.
Taiping. Tai significa grande. Ping significa paz. Taiping, Grande
Paz. Isto aconteceu - quando? - em meados do século dezenove. Minha mente está
sendo puxada
e eu estou resistindo, mas a muito custo. No passado, sempre mantive
suficiente ceticismo para usar como antídoto para as histórias de Kwan quando
necessário. Mas
agora estou olhando para a tinta cor de sépia sobre papel amarelado, uma
fechadura azinhavrada, a luva amassada, as letras de imprensa: NOSSO ALIMENTO.
Estou ouvindo
a música, sua melodia alegre e antiquada.

#358

Examino a caixa para ver se há alguma indicação de data. E então me lembro do


diário. Nas costas da folha de rosto, lá está: Glad Tidings Publishers,
MDCCCLIX. Em
romanos, maldição! Transformo as letras em números: 1859. Abro o livro de
Bayard Taylor: G. P. Putnam, 1855. Mas o que provam estas datas? Isto não quer
dizer que
Kwan tenha conhecido alguém chamado Srta. Bandeira durante a Rebelião Taiping.
É só coincidência, a história, a caixa, as datas no livro.
Mas, apesar de toda a minha lógica e dúvida, não consigo esquecer de
algo mais importante que sei sobre Kwan: que mentir não faz parte de sua
natureza. O que
quer que ela diga, acredita que seja verdade. Como o que disse sobre Simon,
que não o tinha visto na forma de fantasma, o que significa que ele está vivo.
Acredito
nela. Tenho de acreditar. Mas, se eu acredito no que ela diz, isto quer dizer
que agora acredito que ela tem olhos yin? Acredito que ela conversa com a
Grande Ma,
que existe realmente uma caverna com uma aldeia da Idade da Pedra dentro? Que
a Srta. Bandeira, o General Capa e o meio Johnson foram pessoas de verdade?
Que ela
era Nunumu? E, se tudo isso for verdade, as histórias que ela contou ao longo
destes anos... bem, ela deve tê-las contado por alguma razão.
Eu sei a razão. Soube desde criança, soube mesmo. Enterrei esta razão há
muito tempo num lugar seguro, assim como ela fez com a caixa de música. Por
culpa,
eu escutei suas histórias, agarrando-me o tempo todo às minhas dúvidas, à
minha sanidade. Muitas e muitas vezes eu me recusei
a dar a ela o que ela mais desejava. Ela dizia: "Libby-ah, você se lembra?" E
eu sempre sacudia negativamente a cabeça, sabendo que ela estava torcendo para
que
eu dissesse: "Sim, Kwan, é claro que me lembro. Eu era a Srta. Bandeira..."
- Libby-ah - ouço Kwan dizer agora -, em que você está pensando?
Meus lábios estão dormentes.
- Oh. Você sabe. Em Simon. Fico pensando e meus pensamentos vão ficando
cada vez piores.

#359

Ela se aproxima até estarmos sentadas lado a lado. Massageia meus dedos
gelados, e na mesma hora o calor flui por minhas veias.
- Que tal conversar? Nada para dizer, é sobre isso que vamos conversar.
Ok? Falar sobre filme que vimos. Sobre livro que você está lendo. Ou falar
sobre o
tempo - não-não, isso não, senão você preocupada de novo. Ok, falar de
política, o que eu voto, o que você vota, talvez discutir. Então você não
pensa demais.
Eu estou confusa. Retribuo o sorriso dela.
- Ah! Ok. Não fale. Eu falo. Sim, você só ouve. Vamos ver, sobre o que
eu falo? ...Ah! Eu sei. Conto para você a história da Srta. Bandeira, como ela
decidiu
me dar a caixa de música.
Eu prendo a respiração.
- Ok. Claro.
Kwan passa a falar em chinês:
- Tenho de contar esta história em mandarim. É mais fácil para eu
lembrar. Porque, quando isto aconteceu, eu não sabia falar inglês. É claro que
eu não falava
mandarim na época, só hakka, e um pouquinho de cantonense. Mas mandarim me
permite pensar como pessoa chinesa. É claro, se você não entender uma palavra
aqui e ali,
você pergunta, e eu vou tentar lembrar da palavra inglesa. Deixa eu ver, por
onde devo começar?
"Ah, bem, você já sabe isto sobre a Srta. Bandeira, que ela não era como
os outros estrangeiros que eu conhecia. Ela abria sua mente a diferentes
opiniões.
Mas eu acho que às vezes isto a deixava confusa. Talvez você saiba como é.
Você acredita uma coisa. No dia seguinte, você acredita o contrário. Você
discute com
outras pessoas, depois discute consigo mesma. Libby-ah, você costuma fazer
isto?"
Kwan pára e busca uma resposta em meus olhos. Sacudo os ombros e isto a
satisfaz.
- Talvez seja um hábito americano opiniões demais. Eu acho que povo
chinês não gosta de ter diferentes opiniões ao mesmo tempo. Acreditamos numa
coisa, nos
mantemos fiéis por cem anos, quinhentos anos. Menos confusão assim.

#360

É claro, eu não estou dizendo que povo chinês nunca muda de opinião, nada
disso. Podemos mudar se houver uma boa razão. Eu só estou dizendo que não
mudamos de opinião
a torto e a direito, sempre que temos vontade, só para sermos interessantes.
Na verdade, talvez hoje o povo chinês esteja mudando demais, se inclinando
para onde
o dinheiro está soprando.
Ela me cutuca.
- Libby-ah, você não acha que isto é verdade? Na China, hoje, as pessoas
criam mais idéias capitalistas que porcos. Elas não se lembram de quando o
capitalismo
era o inimigo número um. Memória curta, grandes lucros.
Respondo com uma risada educada.
- Americanos também têm memória curta, eu acho. Nenhum respeito pela
história, só pelo que é popular. Mas a Srta. Bandeira tinha uma boa memória,
muito incomum.
Foi por isso que ela aprendeu tão depressa a nossa língua. Ela ouvia uma coisa
uma única vez, e no dia seguinte repetia. Libby-ah, você tem uma memória
assim, não
tem? Só que é com os olhos, não com os ouvidos. Como se chama esta espécie de
memória em inglês?.. Libby-ah, você está dormindo? Você ouviu o que eu
perguntei?
- Memória fotográfica - eu respondo. Ela está apertando todos os botões
agora. Não vai deixar que eu me esconda desta vez.
- Fotográfica, sim. A Srta. Bandeira não tinha uma câmera, mas tinha a
parte da memória. Ela sempre podia lembrar o que as pessoas diziam, como um
gravador.
Às vezes isto era bom, às vezes ruim. Ela podia lembrar o que as pessoas
disseram na hora do jantar, como diziam algo completamente diferente na semana
seguinte.
Ela lembrava coisas que a aborreceram, não as conseguia esquecer. Ela lembrava
o que as pessoas pediam em orações e o que conseguiam. Também, ela era muito
boa para
se lembrar de promessas. Se você prometesse uma coisa a ela, oh, ela jamais a
deixaria esquecer. Esta era uma especialidade da memória dela. E ela também
lembrava
das promessas que tinha feito a outras pessoas. Para algumas pessoas, fazer
uma promessa não é o mesmo que cumprir uma promessa.

#361

Não para a Srta. Bandeira. Para ela uma promessa era para sempre, não só
durante a vida. Como o que ela me prometeu, depois de me dar a caixa de
música, quando a
morte marchou em nossa direção... Libby-ah, aonde você vai?
- Ar fresco.
Vou até a arcada, tentando tirar da cabeça o que Kwan estava me
contando. Minhas mãos estão tremendo e eu sei que não é por causa do frio.
Esta é a promessa
sobre a qual Kwan estava sempre falando, a promessa que eu nunca quis ouvir,
porque tinha medo. Por que ela tem de me contar isto logo agora?...
E então eu penso: do que é que eu tenho medo? De acabar acreditando
que sua história é verdadeira - que eu fiz uma promessa e a cumpri, que a vida
se repete,
que nossas esperanças resistem, que temos uma outra chance? O que há de tão
terrível nisto?
Examino o céu, agora limpo de nuvens. Recordo outra noite há muito
tempo, com Simon, quando eu disse algo idiota sobre o céu noturno, como as
estrelas eram
as mesmas que os primeiros amantes da terra tinham visto. Eu esperava de todo
coração que um dia ele viesse a me amar acima de tudo e de todos. Mas foi só
por um
breve momento, porque minha esperança parecia grande demais, como o céu, e foi
mais fácil ficar com medo e me abster de voar até lá. Agora eu estou de novo
contemplando
o céu. É o mesmo céu que Simon está contemplando agora, que contemplamos a
vida inteira, juntos e separados. O mesmo céu que Kwan vê, que todos os seus
fantasmas
viram, inclusive a Srta. Bandeira. Só que agora eu não o sinto como um vácuo
para as esperanças ou como um pano de fundo para medos. Vejo o que é tão
simples, tão
óbvio. Ele sustenta as estrelas, os planetas, as luas, toda a vida, por toda a
eternidade. Eu sempre posso achá-lo, ele sempre me achará. Ele é eterno, luz
na escuridão,
escuridão na luz. Ele não promete nada além de ser constante e misterioso,
assustador e milagroso. E, se eu puder me lembrar de olhar para o céu e pensar
sobre isto,
posso usar isto como minha bússola. Posso achar o caminho no meio do caos não
importa o que aconteça.

#362

Posso esperar de todo coração, e o céu estará sempre lá, para me puxar para
cima...
- Libby-ah, você pensando demais outra vez? Quer que eu fale mais?
- Eu só estava imaginando.
- Imaginando o quê?
Fico de costas para ela, ainda examinando o céu, procurando o meu
caminho de uma estrela para outra. O brilho delas viajou um milhão de anos-
luz. E o que
vejo agora é uma lembrança distante, no entanto tão vibrante quanto a vida
jamais poderá ser.
- Você e a Srta. Bandeira. Alguma vez vocês ficaram juntas olhando
para o céu numa noite como esta?
- Oh, sim, muitas vezes. - Kwan se levanta e se aproxima de mim. -
Naquela época, é claro que não tinha televisão, então à noite a única coisa
que tinha
para fazer era contemplar as estrelas.
- O que eu quero dizer é: alguma vez você e a Srta. Bandeira passaram
uma noite como esta, em que estavam ambas assustadas e não tinham idéia do que
iria
acontecer?
- Ah... sim, é verdade. Ela estava com medo de morrer, também com medo
porque tinha perdido alguém, um homem que ela amava.
- Yiban.
Kwan balança a cabeça.
- Eu também estava assustada... - Ela faz uma pausa antes de dizer num
sussurro rouco: - Eu era o motivo de ele não estar lá.
- O que você quer dizer? O que aconteceu?
- O que aconteceu foi - ah, talvez você não queira saber.
- É... é triste.
- Triste, sim, alegre também. Depende de como você lembre.
- Então eu quero lembrar.
Os olhos de Kwan estão úmidos.
- Oh, Libby-ah, eu sabia que um dia você lembraria comigo. Eu sempre
quis mostrar que era realmente sua leal amiga.

#363

- Ela se vira, se controla, depois aperta minha mão e sorri. - Ok, Ok. Mas
isto é um segredo. Não conte para ninguém. Prometa, Libby-ah... Ah, sim, eu me
lembro
de que o céu estava escuro, nos escondendo. Entre aquelas duas montanhas ali,
estava ficando cada vez mais claro. Um grande fogo laranja estava ardendo...
E eu escuto, sem temer mais os segredos de Kwan. Ela me ofereceu sua
mão. Eu a estou tomando livremente. Juntas nós estamos voando para o Mundo de
Yin.

#364

21
QUANDO O CÉU PEGOU FOGO

Mais cedo eu estava com Yiban, na caverna - aquela que tem o lago que brilha e
uma aldeia de pedra na margem. E quando eu estava lá, Libby-ah, fiz uma coisa
terrível,
que levou a outra. Fiz do meu último dia na terra um dia de mentiras.
Primeiro, quebrei a promessa que tinha feito à Srta. Bandeira. Fiz
isto para ser gentil. Contei a verdade a Yiban: a Srta. Bandeira estava
fingindo com Capa.
Ela queria protegê-lo, certificar-se de que você estaria a salvo. E veja,
agora você está aqui.
Você devia ter visto o rosto dele! Alívio, alegria, raiva, depois
susto - como a mudança das folhas, todas as estações acontecendo ao mesmo
tempo.
- De que adianta ficar vivo se ela não está comigo? - ele gritou. - Eu
vou matar o filho da mãe do Capa. - Ele se ergueu de um salto.
- Wah! Aonde você vai?
- Encontrá-la, trazê-la para cá.
- Não, não, você não pode. - E então eu contei a primeira mentira do
dia: - Ela sabe como chegar aqui. Eu e ela estivemos aqui muitas vezes. Por
dentro,
eu estava preocupada com a Srta. Bandeira, porque é claro que isto não era
verdade. Então contei minha segunda mentira. Pedi desculpas, dizendo que
precisava de
privacidade feminina, querendo dizer que precisava encontrar um lugar escuro
para urinar.
#365

Apanhei a lanterna, porque sabia que, se a levasse, Yiban não poderia


encontrar a saída da caverna. E então saí correndo pelas curvas e voltas do
túnel, jurando que iria trazer a Srta. Bandeira de volta.
Quando saí do útero da montanha, achei que estava nascendo de novo.
Era de dia, mas o céu estava branco e não azul, destituído de cor. Em volta do
sol havia
um anel de muitas cores pálidas. Será que o mundo já tinha mudado? O que
haveria do outro lado destas montanhas - vida ou morte?
Quando alcancei a arcada logo acima de Changmian, vi que a aldeia
estava lá, o mercado cheio de gente, tudo igual a antes. Vivos! Todos estavam
vivos! Isto
me deu esperanças quanto à Srta. Bandeira, e eu chorei. Enquanto descia
correndo pela trilha, dei com um homem que conduzia um boi. Eu o fiz parar,
contei-lhe as
novidades, e pedi a ele para
avisar sua família e os outros:
- Remova todos os sinais de As Boas Novas, Deus e Jesus. Fale baixo e
não cause tumulto. Senão os soldados vão ver o que estamos fazendo. Então a
desgraça
virá hoje em vez de amanhã.
Corri para outras pessoas e disse a mesma coisa. Bati no portão das
casas onde moravam os hakkas, dez famílias sob o mesmo teto. Fui rapidamente
de casa
em casa. Hah! Achei que estava sendo tão esperta, alertando a aldeia de uma
maneira tão calma e ordenada. Mas então ouvi um homem gritar:
- A morte vem buscar você, seu verme comedor de merda!
E o vizinho respondeu:
- Você vai me acusar, é? Vou contar aos manchus que você é o irmão
bastardo do Rei Celestial.
Naquele instante - ki-kak! - nós todos ouvimos, como lenha seca
rachando. Todo mundo ficou quieto. Então houve outro barulho, este como se o
tronco grosso
de uma árvore estivesse sendo partido. Ali perto, um homem gemeu:

#366

- Armas! Os soldados já estão aqui - Em instantes as pessoas começaram


a correr para fora das casas, agarrando-se nas mangas daqueles que corriam
pelas ruas.
- Quem está chegando?
- O quê! Uma sentença de morte para todos os hakkas?
- Vá! Vá! Encontre os seus irmãos. Nós vamos fugir!
Os avisos se transformaram em gritos, os gritos em berros, e acima
deles eu podia ouvir os gemidos agudos de mulheres chamando por seus filhos.
Fiquei parada
no meio da rua, sendo atropelada por pessoas que corriam para todos os lados.
Olha o que eu tinha feito! Agora a aldeia toda
ia ser morta com uma única saraivada de tiros. As pessoas estavam subindo as
montanhas, espalhando-se como estrelas no céu.
Corri pela rua, na direção da Casa do Mercador Fantasma. Então ouvi
outro tiro e soube que tinha vindo de dentro daqueles muros. Quando cheguei no
portão
dos fundos, houve outra explosão, que ecoou pelas ruas. Eu entrei correndo no
pátio, e então parei. Estava respirando e ouvindo, depois ouvindo a minha
respiração.
Fui em disparada até a cozinha, encostei o ouvido na porta que dava para a
sala de jantar. Nenhum som. Abri a porta, corri para a janela que dava para o
pátio. De
lá eu podia ver os soldados ao lado do portão. Que sorte! - eles estavam
dormindo. Mas então eu tornei a olhar. O braço de um dos soldados estava
torcido, a perna
do outro estava dobrada. Ai! Eles estavam mortos! Quem tinha feito isso? Será
que eles tinham irritado Capa? E agora ele estava matando todo mundo? E onde
estava
a Srta. Bandeira?
Quando entrei no corredor que dava no quarto dela, vi o corpo nu de um
homem, caído de cara no chão. Moscas se banqueteavam no cérebro dele. Ai-yai
Quem
era este infeliz? O Dr. Tarde Demais? Pastor Amém? Passei na ponta dos pés
pelo corpo, como se ele pudesse acordar. Alguns passos adiante, vi a mesa com
o jantar
da véspera, o osso agora marrom de cabelo e sangue. O General Capa deve ter
feito isto. Quem mais ele tinha matado? Antes que eu pudesse raciocinar, ouvi
sons vindos
da Casa de Deus.

#367

A caixa de música estava tocando, e Pastor estava cantando, como se este


Sétimo Dia fosse igual a qualquer outro. Enquanto eu corria pelo pátio na
direção da Casa
de Deus, o canto de Pastor se transformou em soluços, depois no uivo de um
animal. E, por sobre este ruído, eu ouvia voz da Srta. Bandeira - ainda viva!
- ralhando
como se estivesse falando com uma criança levada. Mas um instante depois ela
começou a gemer:
- Não, não, não não! - antes que uma grande explosão a interrompesse.
Corri para dentro da casa, e o que vi fez o meu corpo virar pedra, depois
areia. Ao
lado do altar, caída toda torta - a Srta. Bandeira no seu vestido amarelo, os
Adoradores de Jesus com suas roupas pretas de domingo - como uma borboleta e
quatro
besouros esmagados no chão de pedra. Wah! Mortos tão depressa - eu ainda podia
ouvir os gritos deles ecoando na sala. Ouvi com mais atenção. Não eram ecos,
mas...
- Srta. Bandeira - eu chamei.
Ela ergueu a cabeça. Seu cabelo estava solto, sua boca um buraco
escuro e silencioso. Havia sangue respingado em seu peito. Ai, talvez ela
estivesse mesmo
morta.
- Srta. Bandeira, você é um fantasma?
Ela gemeu como se fosse, depois sacudiu a cabeça. Estendeu o braço.
- Venha me ajudar, Srta. Moo. Minha perna está quebrada.
Enquanto caminhava na direção do altar, pensei que os outros
estrangeiros também fossem levantar-se. Mas eles permaneceram imóveis, de mãos
dadas, dormindo
para sempre em poças de sangue. Eu me agachei ao lado dela.
- Srta. Bandeira - murmurei, vigiando os cantos da sala. - Onde está
Capa?
- Morto - ela respondeu.
- Morto! Então quem matou...
- Não posso falar sobre isso agora. - A voz dela estava trêmula,
nervosa, o que evidentemente me fez imaginar se... Mas não, eu não podia
imaginar a Srta.
Bandeira matando ninguém. E então eu a ouvi perguntar com o rosto assustado:
- Diga-me depressa. Yiban - onde está Yiban?

#368

Quando eu disse que ele estava a salvo numa caverna, o rosto dela
refletiu o seu alívio. Ela soluçou, sem conseguir parar. Eu tentei acalmá-la.
- Logo você estará com ele. A caverna não é assim tão longe.
- Eu não posso dar nem um passo. Minha perna.
Ela ergueu a saia e eu vi que a perna direita dela estava inchada, com
uma ponta de osso espetada para fora. Então eu contei minha terceira mentira:
- Não está assim tão ruim. Onde eu me criei, uma pessoa com a perna
deste jeito ainda podia caminhar pelas montanhas sem problemas. É claro que,
sendo estrangeira,
você não é tão forte. Mas, assim que eu der um jeito de enfaixar sua perna,
nós vamos fugir daqui.
Ela sorriu, e eu fiquei contente em saber que uma pessoa apaixonada
acredita em tudo, desde que possa ter esperanças.
- Espere aqui - eu disse.
Corri até o quarto dela e procurei na gaveta que guardava suas roupas
íntimas. Encontrei a peça dura que ela usava para afinar a cintura e empinar o
peito,
também a meia com buracos nos tornozelos. Voltei correndo e usei estas roupas
para amarrar sua perna. E, quando terminei, ajudei-a a se levantar e a ir
mancando
até o banco que ficava nos fundos da Casa de Deus. Só então, longe dos outros
que estavam vivos até pouco antes, é que ela foi capaz de dizer como e por que
cada
pessoa foi morta.
Ela começou me contando o que aconteceu depois que Lao Lu perdeu sua
cabeça e eu caí desmaiada no chão. Os Adoradores de Jesus, ela disse, deram-se
as mãos
e cantaram a música da caixa de música: "Quando a morte dobrar a esquina,
encontraremos Nosso Senhor."
- Parem de cantar! - Capa ordenou então. E a Srta. Camundongo -
você sabe como ela era sempre tão nervosa -, ela gritou com Capa:
- Eu não temo nem você nem sua morte, só Deus. Porque, quando eu
morrer, vou para o céu como aquele pobre homem que você matou. E você, filho
bastardo do
demônio, você vai assar no inferno.

#369

Sim! Você pode imaginar a Srta. Camundongo dizendo isto? Se eu


estivesse lá, teria aplaudido.
Mas as palavras dela não assustaram Capa.
- Assar? - ele disse. - Vou mostrar a você o que o demônio gosta de
assar. - Ele gritou para os soldados: - Arranquem a perna daquele homem morto
e a cozinhem
na fogueira.
Os soldados riram, achando que era uma piada. Capa tornou a gritar a
ordem e, os soldados correram para obedecer. Os estrangeiros choraram e
tentaram sair.
Como eles podiam assistir a uma coisa tão malvada? Capa berrou que, se eles
não assistissem e rissem, a mão direita de cada um deles seria a próxima coisa
a ir para
a fogueira. Então os estrangeiros ficaram e assistiram. Eles riram e vomitaram
ao mesmo tempo. Todo mundo tinha um medo terrível de Capa, todo mundo exceto
Lao Lu,
já que este já estava morto. E, quando ele viu a perna dele rodando num espeto
- bem, quanto pode um fantasma suportar antes de procurar vingança?
De manhã cedinho, antes de o sol nascer, a Srta. Bandeira ouviu uma
batida em sua porta. Ela se levantou e deixou Capa dormindo profundamente na
cama dela.
Do lado de fora, ouviu uma voz zangada. A voz ainda não soava familiar. Era um
homem, gritando no cantonense grosseiro dos operários:
- General Falso! General Falso! Acorde, seu cão preguiçoso! Venha ver!
O irmão Jesus chegou. Ele veio para arrastar a sua carcaça para o inferno. -
Wah!
Quem poderia ser? Certamente não um dos soldados. Mas quem mais falava como um
grosseiro cule?
Então Capa praguejou:
- Maldição, homem. Vou matá-lo por ter estragado o meu sono.
A voz chinesa gritou de volta:
- É tarde demais, seu filho de um cão bastardo. Eu já estou morto.
Capa pulou da cama, agarrou a pistola. Mas, quando abriu a porta,
começou a rir. Lá estava Pastor Amém, o louco.

#370

Ele estava xingando como um cule de quinta geração, com o osso do jantar da
noite anterior pendurado no ombro. A Srta. Bandeira pensou, que estranho que
Pastor Amém
consiga falar tão bem esta língua nativa. Então ela correu para a porta para
avisar ao louco para ir embora. Quando Capa se virou para empurrá-la para
trás, Pastor
partiu o crânio de Capa com o osso. Ele o atingiu diversas vezes, com golpes
tão violentos que um deles bateu na canela da Srta. Bandeira. Finalmente
Pastor atirou
o osso no chão e gritou para o inimigo, já morto há muito tempo:
- Vou chutá-lo com minha perna boa quando nos encontrarmos no outro
mundo.
Foi quando a Srta. Bandeira suspeitou de que o fantasma de Lao Lu
tivesse pulado para dentro da mente vazia de Pastor. Ela observou aquele homem
que estava
ao mesmo tempo vivo e morto. Ele apanhou a pistola de Capa e atravessou o
pátio correndo, e chamou os soldados que guardavam o portão. De onde a Srta.
Bandeira estava
caída, ela ouviu uma explosão. Logo depois outra. E então ouviu Pastor gritar
na sua língua de estrangeiro:
- Meu Deus! O que foi que eu fiz? - Todo aquele barulho o havia
acordado de seus sonhos nebulosos.
A Srta. Bandeira disse que, quando tornou a ver Pastor, ele tinha a
cara de um fantasma vivo. Ele cambaleou até o quarto dele; mas deu com o
cadáver de Capa,
depois com a Srta. Bandeira com a perna quebrada. Ela se encolheu como se ele
fosse atingi-la outra vez.
Durante muitas horas, Pastor e os outros Adoradores de Jesus
discutiram o que tinha acontecido, o que deviam fazer. A Srta. Bandeira ouviu
aquela conversa
de juízo final. Se os manchus vissem o que Pastor tinha feito, a Srta.
Camundongo observou, eles todos seriam torturados vivos. Qual deles tinha a
força necessária
para erguer os corpos e os enterrar? Nenhum. Será que deviam fugir? Para onde?
Não conheciam nenhum lugar onde pudessem se esconder. Então o Dr. Tarde Demais
sugeriu
que pusessem fim ao sofrimento deles cometendo suicídio. Mas a Sra. Amém
argumentou:

#371

- Tirar nossas próprias vidas seria um terrível pecado, o mesmo que


assassinar outra pessoa.
- Eu darei descanso a todos nós - Pastor disse. - Já estou condenado
ao inferno por matar aqueles três. Pelo menos permitam que seja eu a lhes
conceder a
paz.
Só a Srta. Bandeira tentou persuadi-lo a desistir desta idéia.
- Sempre há esperança - ela disse.
E eles responderam que toda esperança agora estava debaixo da
sepultura. Então ela ficou olhando enquanto eles rezavam na Casa de Deus,
enquanto comiam o
pão azedo da Comunhão feito pela Sra. Amém, enquanto bebiam água fingindo que
era vinho. E então eles engoliram as pílulas do Dr. Tarde Demais para
esquecerem todos
os seus sofrimentos.
O que aconteceu depois disto você já sabe.
A Srta. Bandeira e eu não tínhamos força para enterrar os Adoradores
de Jesus. No entanto, não podíamos deixar que servissem de comida para as
moscas famintas.
Fui até o jardim. Tirei da corda as roupas brancas que tinha lavado na
véspera. Pensei sobre todas as coisas horríveis que tinham acontecido durante
o tempo em que
a roupa passou de molhada para seca. Enquanto enrolava os nossos amigos nessas
mortalhas improvisadas, a Srta. Bandeira foi até os quartos deles para
encontrar uma
lembrança de cada um para guardar na sua caixa de música. Como Capa já tinha
roubado todos os tesouros deles, só o que restava eram coisas de dar pena. Do
Dr. Tarde
Demais era uma garrafinha onde ele costumava guardar suas pílulas de ópio. Da
Srta. Camundongo, uma luva de couro que ela sempre apertava quando estava com
medo.
Da Sra. Amém, os botões que saltavam de suas blusas quando ela cantava alto.
Do Pastor Amém, um livro de viagens. E de Lao Lu, a lata com folhas da árvore
sagrada.
Ela guardou estas coisas na caixa, junto com o álbum onde escrevia seus
pensamentos. Depois nós acendemos as velas do altar que estavam tão derretidas
que só restavam
uns tocos. Tirei do bolso a chave que a Srta. Bandeira tinha me dado na noite
anterior. Dei corda na caixa, ouvimos a canção.

#372

E a Srta. Bandeira cantou as palavras que os estrangeiros tanto gostavam.


Quando a música terminou, nós rezamos para o Deus deles. Desta vez eu
fui sincera. Inclinei a cabeça. Fechei os olhos. Disse alto:
- Eu vivi com eles durante seis anos. Eles eram como a minha família,
embora não os conhecesse muito bem. Mas posso dizer honestamente que eram
amigos leais
do seu filho, e também de nós. Por favor, receba-os na sua casa. Pastor
também.

Quanto tempo teríamos antes de os manchus chegarem? Eu não sabia então, mas
posso lhe dizer agora. Não o suficiente.
Antes de fugirmos, rasguei a saia do vestido que a Srta. Bandeira
usava para andar em casa e fiz uma alça para carregar a caixa de música.
Prendi-a no meu
ombro esquerdo, a Srta. Bandeira se apoiou no meu ombro direito e nós fomos
mancando como se fôssemos uma só. Mas, quando chegamos na porta para sair da
Casa de
Deus, um vento súbito nos atingiu. Eu me virei e vi as roupas dos Adoradores
de Jesus infladas como se seus corpos estivessem respirando novamente. Os
pacotes de
As Boas Novas se espalharam e os papéis que voaram para cima das velas acesas
pegaram fogo. Logo eu senti o cheiro do Mercador Fantasma, de pimenta e alho,
muito
forte, como se um banquete de boas-vindas estivesse sendo preparado. Talvez
fosse só a imaginação decorrente de um medo muito grande. Mas eu o vi - a
Srta. Bandeira
não -, sua roupa comprida, e por baixo seus dois pés novos calçando sapatos de
solas grossas. Ele estava andando e balançando a cabeça, finalmente de volta à
sua
casa azarada.
Mancando, eu e a Srta. Bandeira subimos aquelas montanhas. Às vezes
ela tropeçava e caía em cima da perna machucada, e então gritava:
- Deixe-me aqui. Não posso continuar.
- Pare com essa bobagem - eu dizia todas as vezes. - Yiban está
esperando e você já nos atrasou. - Era sempre o suficiente para fazer a Srta.
Bandeira tentar
de novo.

#373

Do alto da primeira arcada, olhei para a aldeia vazia. Metade da Casa


do Mercador Fantasma estava em chamas. Uma grande nuvem negra estava subindo
sobre
ela, como uma mensagem para os manchus se apressarem a chegar a Changmian.
Quando alcançamos a segunda arcada, ouvimos as explosões. Não havia
como nos apressarmos, a não ser no lugar em que nossos estômagos se agitavam.
Estava
ficando escuro, o vento tinha parado. Nossas roupas estavam empapadas de suor
do nosso esforço para chegar até ali. Agora tínhamos de escalar a parte
rochosa da
montanha, onde um passo em falso nos faria despencar na garganta.
- Venha, Srta. Bandeira - eu disse. - Estamos quase lá. - Ela estava
olhando para a sua perna quebrada, agora tão inchada que parecia duas.
Tive uma idéia.
- Espere aqui - eu disse a ela. - Vou correndo até a caverna onde
Yiban está. Então nós dois poderemos carregá-la até lá. - Ela agarrou minhas
mãos e eu
pude ver nos seus olhos que estava com medo de ficar sozinha.
- Leve a caixa de música - ela disse. - Guarde-a num lugar seguro.
- Eu vou voltar - eu respondi. - Você sabe disto, não sabe?
- Sim, sim, é claro. Eu só quis dizer que é melhor você levá-la agora
para ter menos coisas para carregar depois. - Peguei sua caixa de lembranças e
fui
andando.
Dentro de cada caverna ou fenda por que eu passava, uma voz dizia:
- Esta aqui já está tomada! Não tem lugar!
Era para lá que as pessoas da aldeia tinham ido. As cavernas estavam
eletrificadas de medo, uma centena de bocas prendendo a respiração. Eu subi,
depois
desci, procurando a caverna oculta por uma rocha. Mais explosões! Comecei a
praguejar como Lao Lu, lamentando cada movimento perdido. E então -
finalmente! - achei
a rocha, depois a abertura, e entrei. O lampião ainda estava lá, um bom sinal
de que ninguém tinha entrado e de que Yiban não tinha saído.

#374

Larguei a caixa de música e acendi o lampião, e caminhei vagarosamente pelas


entranhas da caverna, desejando a cada passo que minha mente exausta não me
conduzisse
pelo caminho errado. E então eu vi o clarão à frente, como a luz do amanhecer
num mundo sem problemas. Entrei no salão do lago cintilante, gritando:
- Yiban! Yiban! Estou de volta. Depressa, venha ajudar a Srta.
Bandeira! Ela está lá fora, pendendo entre a salvação e a morte.
Nenhuma resposta. Então eu tornei a chamar, desta vez mais alto. Andei
ao redor do lago. Uma dúzia de temores espetavam o meu coração. Será que Yiban
tinha
tentado sair e se perdido? Será que tinha caído no lago e se afogado? Procurei
perto da aldeia de pedra. O que era isso? Uma
parede tinha sido derrubada. E ao longo de outra parte da saliência, blocos de
pedra haviam sido empilhados. Meu olho foi subindo, e eu pude ver onde uma
pessoa
podia agarrar aqui, pisar ali, até chegar a uma fenda no teto, uma abertura
suficiente para um homem passar. E pude ver que todas as nossas esperanças
tinham saído
por aquele buraco.
Quando voltei, a Srta. Bandeira estava com a cabeça esticada para fora
da arcada, chamando:
- Yiban, você está aí? - Quando viu que eu estava sozinha, ela gritou:
- Ai-ya! Ele foi morto?
Sacudi a cabeça, depois contei a ela que tinha quebrado minha
promessa.
- Ele foi procurar por você - eu disse numa voz triste. - A culpa foi
minha.
Ela não disse o que eu estava pensando: que, se Yiban ainda estivesse
na caverna, nós três poderíamos nos salvar. Em vez disso, virou-se, foi
mancando
até o outro lado da arcada e procurou por ele na noite. Fiquei atrás dela, o
meu coração em pedaços. O céu estava laranja, o vento tinha gosto de cinzas. E
agora
podíamos ver pontinhos de luz se movendo lá embaixo no vale, as lanternas dos
soldados, piscando como vaga-lumes. A morte estava chegando, nós sabíamos
disto, e
era terrível esperar. Mas a Srta. Bandeira não chorou. Ela disse:

#375

- Srta. Moo, para onde você vai? Para que lugar depois da morte? Para
o seu céu ou para o meu?
Que pergunta esquisita. Como se eu pudesse decidir. Não eram os deuses
que escolhiam por nós? Mas eu não queria discutir, não no nosso último dia.
Então
eu simplesmente disse:
- Para onde quer que Zeng e Lao Lu tenham ido, é para lá que vou
também.
- Então será para o seu céu. - Ficamos caladas por alguns instantes.
- Para onde você vai, Srta. Moo, tem de ser chinês para ir? Será que eles me
deixariam
entrar?
A pergunta era ainda mais estranha que a anterior!
- Eu não sei. Nunca falei com ninguém que tenha estado lá e voltado.
Mas acho que, se você falar chinês, talvez seja o suficiente. Sim, tenho
certeza disto.
- E Yiban, já que ele é meio a meio, para onde ele iria? Se
escolhermos o contrário...
Ah, agora eu compreendia todas as perguntas. Eu quis confortá-la.
Então contei a última mentira:
- Venha, Srta. Bandeira. Venha comigo. Yiban já me disse. Se ele
morrer, vai encontrá-la de novo, no Mundo de Yin.
Ela acreditou em mim, porque eu era sua leal amiga.
- Por favor, segure minha mão, Srta. Moo - ela disse. - Não a solte
até chegarmos lá.
E, juntas, nós esperamos, ambas alegres e tristes, mortas de medo até
morrermos.

#376

22
QUANDO LUZ E ESCURIDÃO
SE EQUILIBRAM

Quando Kwan termina a história, as estrelas estão pálidas de encontro ao céu


que clareia. Fico em pé na plataforma de pedra, tentando enxergar algum
movimento no
meio das sombras dos arbustos.
- Você se lembra de como nós morremos? - Kwan pergunta atrás de mim.
Sacudo a cabeça, mas então recordo o que sempre achei que fosse um
sonho: lanças brilhando à luz do fogo, os grãos da muralha de pedra. Mais uma
vez posso
vê-lo, posso senti-lo, o terror que aperta o peito. Posso ouvir o relinchar
dos cavalos, seus cascos batendo impacientemente no chão enquanto uma corda
áspera cai
sobre meus ombros, depois arranha o meu pescoço. Estou lutando para respirar,
a veia do meu pescoço pulsando com força. Alguém está apertando minha mão -
Kwan, mas
fico surpresa de ver que ela é mais jovem e que tem um dos olhos coberto por
um tapa-olho. Estou abrindo a boca para dizer não, largue, quando as palavras
são arrancadas
da minha boca e eu flutuo na direção do céu. Sinto um estalo e meus temores
caem na terra e eu continuo a voar pelo ar. Nenhuma dor! Que maravilha ser
libertada!
E, no entanto, eu ainda não estou totalmente livre. Pois lá está Kwan, ainda
apertando a minha mão.
Ela torna a apertá-la.

#377
- Você se lembra, ah?
- Acho que fomos enforcadas. - Meus lábios estão dormentes da friagem
da manhã.
Kwan franze a testa.
- Enforcadas? Hum. Acho que não. Naquela época, soldado manchu não
enforcava pessoas. Muito trabalho. Também não tinha árvore.
Fico estranhamente desapontada em saber que estou errada.
- Ok, então como foi que aconteceu?
Ela sacode os ombros.
- Não sei. Por isto é que eu perguntei para você.
- O quê! Você não lembra como nós morremos?
- Aconteceu tão depressa! Um minuto estava aqui, no minuto seguinte
acordei lá. Muito tempo já tinha passado. Pelo tempo, eu vi que já tinha
morrido. Mesma
coisa quando fui para o hospital receber eletrochoque. Acordei, ei, onde
estou? Quem sabe, última vida talvez raio caiu e mandou você e eu rápido para
outro mundo.
Mercador Fantasma acha que morreu do mesmo jeito. Pao! Sumiu! Só deixou para
trás dois pés.
Eu rio.
- Merda! Não posso acreditar que você tenha me contado esta história
toda e não conheça o final.
Kwan se espanta.
- O final? Você morre, este não é o final da história. Isso significa
apenas que a história não acaba... Ei, veja! O sol está saindo. - Ela estica
os braços
e as pernas. - Vamos procurar Simon agora. Traga lanterna, cobertor também.
- Ela começa a andar, segura do caminho de volta: Sei para onde
estamos indo: para a caverna, onde Yiban prometeu que ficaria, onde espero que
Simon esteja.
Caminhamos ao longo da plataforma de pedra, testando cada passo antes
de colocarmos o peso do corpo sobre o pé. Meu rosto coça à medida que o calor
vai subindo
nele. Finalmente vou ver esta maldita caverna que é ao mesmo tempo maldição e
esperança. E o que iremos encontrar? Simon, tremendo de frio mas vivo? Ou
Yiban, esperando
eternamente pela Srta. Bandeira?

#378

Enquanto penso nisso, tropeço num monte de entulho de terra às minhas costas.
- Cuidado! - Kwan grita.
- Por que as pessoas só gritam cuidado quando já é tarde demais?
- Eu me levanto.
- Não foi tarde demais. Da próxima vez talvez você não caia. Aqui,
pegue a minha mão.
- Eu estou bem. - Flexiono a minha perna. - Está vendo? Nenhum osso
quebrado. - Continuamos subindo, Kwan olhando para trás para me vigiar a cada
segundo.
Logo eu chego numa caverna. Espio para dentro, procurando algum sinal de vida
anterior, pré-histórica ou morta mais recentemente. - Kwan, me diz uma coisa,
que fim
levaram Yiban e o povo de Changmian?
- Eu já estava morta - ela responde em chinês -, portanto não sei ao
certo. O que sei foi de ouvir falar durante esta vida. Então quem sabe o que é
verdade?
As pessoas de outras aldeias sempre exageraram um pouco e deixaram os boatos
escorrerem pela montanha como de um vazamento no telhado. Chegando no fundo, o
falatório
das pessoas se transformou numa história de fantasma e de lá se espalhou pela
província o boato de que Changmian era amaldiçoada.
- Qual é a história:
- Ah, espere um pouco, deixe-me recuperar o fôlego! - Ela se senta numa pedra,
ofegante. - A história é a seguinte: As pessoas dizem que quando os soldados
manchus
chegaram, ouviram pessoas chorando nas cavernas. "Saiam!", eles ordenaram.
Ninguém saiu - você sairia? Então os
soldados juntaram galhos secos, colocaram-nos perto da entrada das cavernas.
Quando o fogo começou, as vozes nas cavernas começaram a gritar. De repente,
as cavernas
soltaram um gemido colossal e depois vomitaram um rio negro de morcegos. O céu
ficou cheio dessas criaturas voadoras, e elas eram tantas que parecia que a
garganta
tivesse sido coberta por um guarda - chuva. Elas alimentaram o fogo com o
bater de suas asas e então o vale todo ficou em chamas. A arcada, a plataforma
de pedra
- tudo foi cercado por uma muralha de fogo. Dois ou três soldados a cavalo
conseguiram fugir , mas o resto não.

#379

Uma semana depois, quando outra tropa chegou a Changmian, não encontrou
ninguém, nem vivo nem morto. A aldeia estava vazia, bem como a Casa do
Mercador Fantasma,
não havia nenhum corpo. E na garganta, para onde os soldados tinham ido, só
havia cinzas e as pedras empilhadas de centenas de sepulturas. - Kwan se
levanta. - Vamos
andando. - E vai embora.
Corro atrás dela.
- O povo da aldeia morreu?
- Talvez sim, talvez não. Um mês depois, quando um viajante de Jintian
passou por Changmian, encontrou a aldeia cheia de vida num dia movimentado de
feira.
Havia cães deitados na sarjeta, pessoas discutindo, crianças andando atrás de
suas mães, como se não tivesse havido qualquer interrupção no ritmo de vida.
"Ei",
o viajante disse para o chefe da aldeia "o que aconteceu quando os soldados
invadiram Changmian?" E o velho franziu o rosto e disse: "Soldados? Não me
lembro de
nenhum soldado por aqui."! Então o viajante disse: "E quanto àquela casa ali?
Ela foi destruída pelo fogo." E os aldeões disseram: "Oh, aquilo. No mês
passado o
Mercador Fantasma voltou e nos ofereceu um banquete. Uma das galinhas
fantasmas que estava assando no forno voou para o telhado e incendiou as
vigas." Quando o viajante
voltou para Jintian. havia uma corrente humana, de alto a baixo da montanha,
dizendo que Changmian era uma aldeia de fantasmas;.. O quê? Porque você está
rindo?
- Acho que Changmian se transformou numa aldeia de mentirosos. Eles
deixavam as pessoas pensarem que eram fantasmas. Porque dá menos trabalho do
que ir para
as cavernas durante guerras futuras.
- Kwan bate palmas.
- Que garota esperta. Você tem razão. A Grande Ma uma vez me contou uma
história sobre um forasteiro que perguntou a um rapaz da nossa aldeia: "Ei,
você é
um fantasma?" O homem franziu a testa e fez um gesto na direção de um campo
não cultivado, cheio de pedras.

#380

"Diga-me, um fantasma teria sido capaz de cultivar uma plantação assim tão
bonita de arroz?" O forasteiro deve Ter percebido que o homem o estava
enganando. Um fantasma
de verdade não se gabaria do arroz. Teria mentido e dito pêssegos em vez de
arroz! Ah?
Kwan faz uma pausa para que eu compreenda a lógica da história.
- Faz sentido para mim - eu minto de acordo com a melhor tradição de
Changmian.
Ela prossegue:
- Após algum tempo, acho que a aldeia ficou cansada da fama de
fantasma dos seus habitantes. Ninguém queria fazer negócios em Changmian.
Ninguém queria que
seus filhos e filhas se casassem com famílias de Changmian. Então mais tarde
eles disseram para as pessoas: "Não, não somos fantasmas, é claro que não. Mas
existe
um ermitão que mora numa caverna a duas montanhas daqui. Ele pode ser um
fantasma, ou talvez um imortal. Tem cabelos longos e uma barba comprida. Eu
mesmo nunca
o vi. Mas ouvi dizer que ele só aparece ao amanhecer e ao anoitecer, quando
luz e escuridão se equilibram. Caminha entre os túmulos, procurando por uma
mulher que
morreu. E, como não sabe qual dos túmulos é o dela, cuida de todos eles."
- Eles estavam se referindo a... Yiban? - prendo a respiração.
Kwan balança afirmativamente a cabeça.
- Talvez esta história tenha começado quando Yiban ainda estava vivo,
esperando pela Srta. Bandeira. Mas, quando eu tinha seis anos de idade - logo
depois
que me afoguei -, eu o vi com meus olhos yin, entre os túmulos. Nessa época,
ele já era um fantasma de verdade. Eu estava na mesma garganta, juntando
galhos secos.
Na meia hora em que o sol se põe, ouvi dois homens discutindo. Fui andando no
meio dos túmulos e os encontrei empilhando pedras. "Velhos tios", eu disse
para ser
educada, "o que estão fazendo?" O careca era muito mal-humorado. "Merda!", ele
disse. "Use os seus olhos, agora que você tem dois. O que acha que estamos
fazendo?"
O homem de cabelos compridos era mais educado.

#381

"Olhe aqui, menininha", ele disse. E ergueu uma pedra que tinha a forma da
cabeça de um machado. "Entre a vida e a morte, há um lugar em que se pode
equilibrar o
impossível. Estamos procurando este ponto." Ele colocou cuidadosamente a pedra
em cima de outra. Mas ambas caíram no pé do homem careca. "Maldição!",
exclamou o
homem careca. "Você quase arrancou minha perna. Não tenha pressa. O lugar
certo não está nas suas mãos, seu idiota. Use o corpo todo e a mente para
encontrá-lo."
- Esse era Lao Lu?
Ela sorri.
- Morto há mais de cem anos e ainda praguejando! Descobri que Lao Lu e
Yiban estavam presos, sem conseguir ir para o outro mundo, porque tinham
muitos arrependimentos
futuros.
- Como se pode ter um arrependimento futuro? Isto não faz qualquer
sentido.
- Não? Você diz para si mesma: se eu fizer isto, então vai acontecer
aquilo, e eu vou me sentir assim, então não devo fazer isto. Você está presa.
Como Lao
Lu. Ele se arrependia de ter feito Pastor Amém acreditar que tinha matado Capa
e os soldados. Para dar uma lição a si mesmo, decidiu que na próxima vida
seria a
esposa de Pastor. Mas, sempre que pensava em seu futuro - que teria que ouvir
amém isto, amém aquilo, todo domingo -, ele recomeçava a praguejar. Como podia
se tornar
esposa de um pastor com aquele gênio? Por isto é que estava preso.
- E Yiban?
- Como ele não conseguiu encontrar a Srta. Bandeira, achou que ela
tinha morrido. Ficou triste. Então começou a imaginar se ela teria voltado
para Capa.
E ficou mais triste ainda. Quando Yiban morreu, ele voou até o céu para
encontrar a Srta. Bandeira, e, como ela não estava lá, acreditou que ela
estivesse no inferno
de Capa.
- Ele nunca imaginou que ela tivesse ido para o Mundo de Yin?

#382

- Veja! É isto que acontece quando você fica preso. Entram coisas boas
na sua cabeça? Mm-mm. Coisas más? Muitas.
- Então ele ainda está preso?
- Oh, não-não-não-não. Eu falei para ele sobre você.
- Falou o quê?
- Contei onde você estava. Quando você ia nascer. E agora ele está
esperando por você de novo. Em algum lugar por aqui.
- Simon?
Kwan abre um amplo sorriso e faz um gesto na direção de uma grande
pedra. Atrás dela, quase invisível, há uma pequena abertura.
- Esta é a caverna do lago?
- A mesma.
Enfio a cabeça na abertura e grito:
- Simon! Simon! Você está aí? Você está bem?
Kwan me agarra pelo ombro e me puxa delicadamente para trás.
- Vou entrar para buscá-lo - ela diz em inglês. - Onde está lanterna?
Tiro a lanterna de dentro da mochila e tento acendê-la.
- Merda, ela deve ter ficado acesa a noite inteira. A bateria acabou.
- Deixe eu ver. - Ela pega a lanterna e esta acende imediatamente.
- Está vendo? Não acabou. Ok! - ela entra na caverna e eu vou atrás.
- Não-não, Libby-ah! Você fica aqui fora.
- Por quê?
- Para o caso...
- Que caso?
- Só por precaução! Não discuta. - Ela agarra minha mão com tanta
força que dói. - Promete, ah?
- Está bem. Prometo.
Ela sorri. Em seguida seu rosto se crispa numa expressão de dor e
lágrimas rolam pelo seu rosto redondo.
- Kwan? O que foi?
Ela torna a apertar minha mão e balbucia em inglês:

#383

- Oh, Libby-ah, estou tão feliz de poder finalmente recompensá-la.


Agora você conhece todo o meu segredo. Dê-me paz. -Ela atira os braços em
volta de mim.
- Fico desconcertada. As descargas emocionais de Kwan sempre me
deixaram sem graça.
- Recompensar-me -porquê? Vamos, Kwan, você não me deve nada.
- Sim-sim! Você minha leal amiga. - Ela está fungando. - Por mim, você
vai para Mundo Yin, porque eu digo para você, claro-claro, Yiban vai lá atrás
de você.
Mas não, ele vai para o céu, você não está lá... Então, compreende, por minha
a causa vocês perderam um ao outro. Por isso fiquei tão feliz quando conheci
Simon.
Então eu soube, finalmente!...
Recuo. Minha cabeça está girando.
- Kwan, na noite em que você conheceu Simon, você .a se lembra de ter
falado com a amiga dele, Elza?
Ela enxuga os olhos na manga.
- Elza? ...Ah! Sim-sim! Elsie. Eu lembro. Moça simpática. Judia
polonesa. Afogada após o lanche.
O que ela disse, que Simon devia esquecê-la - você inventou aquilo?
Ela não disse outra coisa?
Kwan franze a testa.
- Esquecer? Ela disse isto?
- Você disse que sim.
- Ah! Eu me lembro agora. Não esquecer. Perdoar. Ela quer que ele a
perdoe. Ela fez alguma coisa que o fez se sentir culpado. Ele acha que ela
morreu por
culpa dele. Ela diz não, culpa dela, sem problemas, não se preocupe. Algo
assim.
- Mas ela não disse para ele esperar por ela? Que ela ia voltar?
- Por que você acha isto?
- Porque eu a vi! Eu a vi com esses sentidos secretos que você sempre
menciona. Ela estava implorando a Simon para vê-la, para saber o que ela
estava sentindo.
Eu vi...
- Tst! Tst! - Kwan põe a mão no meu ombro. - Libby-ah, Libby-ah! Isto
não é sentido secreto. Isto é sua insegurança. Sua preocupação. Bobagem!

#384

Você vê seu próprio fantasma implorando a Simon, por favor, me escute, me


veja, me ame... Elsie não estava dizendo isto. Duas vidas atrás, você filha
dela. Por que
vai querer você infeliz? Não! Ela ajuda você...
Ouço estarrecida. Elza foi minha mãe? Verdade ou não, sinto-me leve,
como se um peso tivesse sido retirado dos meus ombros, e junto com ele uma
pilha de
medos e dúvidas.
- Todo esse tempo você pensa ela perseguindo você?
Mm-mm.Você persegue a si mesma! Simon sabe disto. - Ela beija o meu rosto. -
Agora vou
procurá-lo, para você mesma contar a ele. - Eu a vejo entrar na caverna.
-Kwan?
Ela se vira.
- Ah!
- Prometa que não vai se perder. Que vai voltar.
- Sim; prometo-prometo! E claro. - Ela está descendo para o outro
patamar. - Não se preocupe. - A voz dela retorna, profunda e ressonante. -
Eu acho Simon,
volto logo. Espere por nós... - Ela desaparece.
Eu me enrolo no cobertor e me sento, encostada na pedra que esconde a
entrada da caverna. Esperança, não há nada de errado com isto. Examino o céu.
Ainda
cinzento. Será que vai chover de novo? E, com esta simples possibilidade
infeliz, sou outra vez tomada de tristeza e bom senso. Será que fiquei
hipnotizada enquanto
ouvia a história de Kwan? Será que sou tão desvairada quanto ela? Como pude
deixar minha irmã entrar sozinha na caverna? Levanto-me depressa e enfio a
cabeça na
abertura.
- Kwan! Volte! - Engatinho para dentro da boca escura da caverna. -
Kwan! Kwan! Que diabo, Kwan, responda!
Aventuro-me mais um pouco, bato com a cabeça no teto baixo, digo um
palavrão, e torno a me abaixar. Dou mais alguns passos, a luz fica fraca e
desaparece
na curva seguinte. É como se um cobertor grosso tivesse sido atirado sobre
meus olhos. Não entro em pânico. Tenho passado metade da vida trabalhando em
quartos escuros.
Mas, aqui, não conheço os limites do escuro.

#345

A escuridão é como um ímã me atraindo. Recuo na direção da entrada da caverna,


mas estou desorientada, sem nenhum senso de direção, de entrada ou saída,
subida ou
descida. Grito por Kwan. Minha voz está ficando rouca e eu estou ficando sem
fôlego. Será que todo o ar foi chupado para fora da caverna?
- Olivia?
Eu abafo um grito.
- Você está bem?
- Oh, Deus! Simon! E você mesmo?... - Eu começo a soluçar. - Você está
vivo?
- Eu estaria falando com você se não estivesse?
Eu rio e choro ao mesmo tempo.
- Nunca se sabe.
- Estenda a mão.
Tateio no ar até encontrar suas mãos, tão familiares. Ele me puxa para
ele e eu me agarro no seu pescoço, descansando em seu peito, esfregando suas
Costas,
assegurando-me de que ele é real.
- Meu Deus, Simon, o que aconteceu ontem - eu estava louca. E mais
tarde, quando você não voltou - Kwan contou o que eu passei?
- Não, eu ainda não estive em casa.
Fico gelada.
- Oh Deus!
- O que foi?
- Onde está Kwan? Ela não está atrás de você?
- Não sei onde ela está.
- Mas... Ela entrou para procurar você. Ela entrou na caverna! E eu
estava chamando por ela! Oh Deus! Isto não pode estar acontecendo. Ela
prometeu que não
ia se perder. Ela prometeu que ia voltar... - continuo balbuciando enquanto
Simon me leva para fora.
Nós saímos tropeçando, e a luz é tão forte que eu não consigo
enxergar. Passo a mão como uma cega no rosto de Simon, com a sensação de que
quando eu conseguir
enxergar o mundo de novo ele vai ser Yiban e eu estarei usando um vestido
amarelo manchado de sangue.

IV

#389

23
O FUNERAL

Kwan desapareceu há dois meses. Eu não digo "morreu", porque ainda não permiti
a mim mesma pensar que foi isto que aconteceu.
Eu me sento em minha cozinha, comendo granola, olhando para os
retratos de crianças desaparecidas nas caixas de leite. "Paga-se uma
recompensa por qualquer
informação", está escrito. Sei o que as mães dessas crianças sentem. Até prova
em contrário, você tem de acreditar que
elas estejam em algum lugar. Você precisa vê-las mais uma vez antes que seja
hora de dizer adeus. Você não pode permitir que aqueles que você ama a deixem
para trás
neste mundo sem fazê-los prometer que vão esperar. E eu preciso acreditar que
não é tarde demais para dizer a Kwan: eu era a Srta. Bandeira e você era
Nunumu, e
para sempre você vai ser leal e eu também.
Há dois meses, a última vez que a vi, esperei ao lado da caverna,
certa de que, se acreditasse em sua história, ela voltaria. Fiquei sentada na
caixa de
música, com Simon ao meu lado. Ele tentou parecer otimista, mas não fez
qualquer brincadeira, e foi assim que eu soube que estava preocupado.
- Ela vai aparecer - ele me disse. - Eu só queria que você não tivesse
de passar por esta agonia, primeiro comigo e agora com Kwan.

#390

Como fiquei sabendo, ele nunca esteve em perigo. Depois da nossa


briga, ele também deixou a arcada. Estava voltando para a casa da Grande Ma
quando deu de
cara com o condutor de vacas que nos tinha chamado de idiotas. Só que o cara
não era um condutor de vacas, e sim um rapaz chamado Andy, formado em Boston,
o sobrinho
americano de uma mulher que morava numa aldeia mais adiante. Os dois foram
para a casa desta tia, onde chuparam maotai até suas línguas e seus cérebros
ficarem dormentes.
Mesmo que não tivesse ficado desacordado, Simon estaria bem, e foi com
tristeza que admitiu isto. Na sua mochila, ele tinha um gorro de lã, que pôs
na cabeça depois
que eu saí correndo. E então ele tinha ficado curtindo a raiva, atirando
pedras para dentro da garganta, até sentir calor.
- Você se preocupou à toa - ele disse, arrasado.
E eu disse:
- Melhor do que se tivesse me preocupado com razão.
Eu raciocinei que, se estava feliz por Simon nunca ter corrido
qualquer perigo, teria a mesma sorte com relação a Kwan. "Desculpe-
desculpe, Libby-ah",
eu a imaginei dizendo. "Errei o caminho na caverna, me perdi. Levei a manhã
inteira para voltar! Você se preocupou à toa." E, mais tarde, ajustei minhas
esperanças
para dar conta da passagem do tempo. "Libby-ah, onde eu estava com a cabeça?
Vejo lago, não consigo parar de sonhar. Penso que só passou uma hora. Ah!
- não
percebo que são dez."
Simon e eu ficamos a noite inteira ao lado da caverna. Du Lili nos
trouxe comida, cobertores e um oleado. Afastamos a pedra que bloqueava a
entrada da caverna,
depois entramos e nos encolhemos no buraco raso. Fiquei olhando para o céu,
uma peneira pontilhada de estrelas, e pensei em
contar a ele a história de Kwan sobre a Srta. Bandeira, Nunumu e Yiban. Mas
fiquei com medo. Eu via a história como um talismã de esperança. E, se Simon
ou alguma
outra pessoa não acreditasse mesmo em alguma parte dela, então alguma
possibilidade que havia no universo, aquela de que eu precisava, poderia
desaparecer.

#391

Na segunda manhã após o desaparecimento de Kwan, Du Lili e Andy


organizaram um grupo de resgate. As pessoas mais velhas tinham medo de entrar
na caverna.
Então quase que só jovens apareceram. Eles trouxeram lampiões e cordas. Tentei
me lembrar das indicações para se chegar na caverna do lago. O que Zeng tinha
dito
mesmo? Siga a água, fique na parte de baixo, escolha o caminho raso em vez do
largo. Ou seria estreito em vez de profundo? Eu não tive de pedir a Simon para
não
entrar na caverna. Ele ficou do meu lado e, juntos, ficamos olhando com
apreensão um dos homens amarrar uma corda na cintura e entrar na caverna,
enquanto outro
homem ficava do lado de fora, segurando com firmeza a outra ponta da corda.
No terceiro dia, os homens tinham navegado por um labirinto que os
levou a dezenas de cavernas. Mas ainda não haviam encontrado nenhum traço de
Kwan. Du
Lili foi a Guilin para notificar as autoridades. Ela também enviou um
telegrama que eu tinha redigido cuidadosamente para George. De tarde, chegaram
quatro caminhonetes
com soldados de uniformes verdes e funcionários de ternos pretos. Na manhã
seguinte, um carro conhecido apareceu e saltaram Rocky e um velho de ar
tristonho. Rocky
me disse que o Professor Po era o principal assistente do paleontólogo que
havia descoberto o Homem de Pequim. O professor entrou no labirinto de
cavernas, agora
mais fácil de explorar por conta das lanternas e cordas. Quando ele emergiu,
muitas horas depois, anunciou que, há muitas dinastias, os habitantes daquela
área haviam
cavado dezenas de cavernas, criando de propósito becos sem saída, bem como um
sistema complicado de túneis interligados. Era provável, ele teorizou, que o
povo de Changmian tivesse criado aquele labirinto para escapar dos mongóis e
de outras
tribos guerreiras. Os invasores que entravam no labirinto se perdiam e corriam
de um lado para o outro como ratos numa armadilha mortal.
Um grupo de geólogos foi trazido. Na excitação que se seguiu, quase
todo mundo se esqueceu de Kwan. Os geólogos encontraram potes para cereais e
jarras para
água.

#392

Eles invadiram tocas de morcegos e milhares dessas criaturas assustadas saíram


guinchando para a luz ofuscante do sol. Eles fizeram uma importante descoberta
científica:
dejetos humanos que tinham pelo menos três mil anos!
No quinto dia, George e Virgie chegaram de San Francisco. Eles tinham
recebido meus diversos telegramas com mensagens cada vez mais desanimadoras.
George
estava confiante de que Kwan não estivesse realmente desaparecida; era só o
meu mandarim deficiente que nos deixara temporariamente separadas. De noite,
entretanto,
George estava um caco. Pegou um suéter que pertencia a Kwan, enterrou o rosto
nele, sem se importar que o vissem chorar. No sétimo dia, os grupos de resgate
localizaram
o lago cintilante e a velha aldeia em sua margem. Ainda nenhum sinal de Kwan.
Mas agora a aldeia estava cheia de funcionários de todas as patentes, além de
mais
uma dúzia de grupos científicos, todos tentando determinar o que fazia a água
da caverna brilhar.
Em cada um desses sete dias, tive de fazer um relatório para um
burocrata diferente, Contando em detalhes o que acontecera com Kwan. Qual era
a data do aniversário
dela? Quando foi que ela se tornou uma chinesa de além-mar? Por que ela tinha
voltado para lá? Ela estava doente? Vocês tinham brigado? Não com ela e sim
com o seu
marido? O seu marido estava Zangado com ela também? Foi por isso que ela
fugiu? Você tem um retrato dela? Você tirou esta foto? Que tipo de câmera você
usa? Você
é uma fotógrafa profissional? É mesmo? Quanto dinheiro uma pessoa consegue
ganhar tirando uma foto como esta? É mesmo? Tanto assim? Você pode tirar um
retrato meu?
De noite, Simon e eu nos abraçávamos bem apertado na nossa cama de
casal. Fazíamos amor, mas não por puro desejo. Quando estávamos assim juntos,
podíamos
ter esperança, Podíamos acreditar que o amor não permitiria que tornássemos a
nos separar. Os dias passavam mas eu não perdia a esperança. Lutava para ter
mais esperança.
Recordava as histórias de Kwan.

#393

Recordava a época em que ela tratava dos meus machucados, me ensinava a andar
de bicicleta, colocava as mãos na minha testa febril e murmurava:
- Durma, Libby-ah, durma. - E eu dormia.
Enquanto isto, Changmian tinha se tornado um circo. O cara que havia
tentado vender moedas ditas antigas para nós estava cobrando dez ienes aos
curiosos
para entrarem na primeira arcada. O irmão dele cobrava vinte para entrar na
segunda. Muitos turistas percorriam a garganta, e os moradores de Changmian
arrancavam
pedras dos túmulos para guardar de lembrança. Começou uma discussão entre os
líderes da aldeia e os funcionários do governo sobre os direitos de
propriedade das
cavernas e sobre quem podia levar o que elas continham. Nessa altura, já tinha
passado duas semanas, e Simon e eu não conseguíamos mais agüentar. Decidimos
tomar
o avião para casa no dia marcado.

Antes de partirmos, a Grande Ma teve finalmente o seu funeral. Só havia onze


pessoas presentes naquela manhã chuvosa - dois homens contratados para
transportar o
caixão até o túmulo, alguns dos aldeões mais idosos, e George, Virgie, Du
Lili, Simon e eu. Imaginei se a Grande Ma estaria zangada por ter sido
suplantada por Kwan.
Os homens contratados colocaram o caixão numa carroça puxada a mula. Du Lili
amarrou o galo exigido na tampa do caixão. Quando chegamos na ponte que
cruzava o primeiro
poço de irrigação, encontramos uma equipe de televisão bloqueando o caminho.
- Dêem o fora daí! - Du Lili gritou. - Não estão vendo? Isto aqui é um
funeral! - A equipe se aproximou e pediu a ela para respeitar o direito dos
cidadãos de tomarem conhecimento da incrível descoberta de Changmian.
- Incrível uma ova - disse Du Lili. - Vocês estão arruinando a nossa
aldeia. Agora saiam do caminho. - Uma mulher elegante, com um jeans moderno,
chamou
Du Lili de lado. Eu a vi oferecer-lhe dinheiro, que Du Lili recusou zangada.
Meu coração se encheu de admiração. A mulher mostrou mais dinheiro. Du Lili
apontou
para a equipe, depois para o caixão, reclamando alto. Um maço maior de notas
apareceu.

#394

E Du Lili fez um muxoxo. - Está bem - eu a ouvi responder enquanto guardava o


dinheiro. - Pelo menos a falecida pode usar isto para comprar uma vida melhor
no outro
mundo. - Meu ânimo despencou. Simon fez um ar severo. Nós demos uma volta
enorme, nos espremendo por passagens estreitas até chegarmos ao cemitério
comunitário,
na encosta da montanha, dando para oeste.
Na beira do túmulo, Du Lili chorou enquanto acariciava o rosto
ressequido da Grande Ma. Achei que o corpo estava incrivelmente bem conservado
após duas semanas
de intervalo entre morrer e ser enterrada.
- Ai, Li Bin-bin - Du Lili gemeu -, você é jovem demais para morrer.
Eu devia ter ido antes de você. - Traduzi isto para Simon.
Ele olhou para Du Lili.
- Ela está dizendo que é mais velha que a Grande Ma?
- Não sei. Não quero mais saber de nada.
Enquanto os homens fechavam a tampa do caixão, senti que as respostas
para tantas perguntas estavam sendo seladas para sempre: onde Kwan estava,
qual era
o nome verdadeiro do meu pai, se Kwan e uma menina chamada Bolinho tinham
realmente se afogado.
- Esperem! - ouvi Du Lili gritar para os homens. - Eu quase esqueci. -
Ela enfiou a mão no bolso e tirou o maço de notas. Enquanto ela fechava a mão
rígida
da Grande Ma em volta do dinheiro do suborno da equipe de televisão, eu
chorei, minha fé restaurada. E então Du Lili enfiou a mão na parte da frente
do casaco e
tirou uma outra coisa. Era um ovo de pata preservado. Ela o colocou na outra
mão da Grande Ma. - O seu favorito - ela disse. - Caso você sinta fome no
caminho.
Ovos de pata! "Eu preparei tantos", eu podia ouvir Kwan dizendo.
"Talvez tenham sobrado alguns."
Virei-me para Simon.
- Preciso ir .- Apertei o estômago e fiz uma careta, fingindo que
estava passando mal.
- Quer a minha ajuda?

#395

Sacudi a cabeça e fui até Du Lili.


- Estômago ruim - eu disse.
Ela me lançou um olhar compreensivo. Assim que tive certeza de que
estava fora do alcance da vista deles, comecei a correr. Não me preocupei em
refrear as
minhas expectativas. Entreguei-me inteiramente a elas. Sentia-me exaltada.
Sabia que o que eu acreditava era o que iria encontrar.
Parei na casa da Grande Ma e peguei uma enxada enferrujada. E então
fui correndo até o salão comunitário. Quando cheguei no portão, entrei
devagar, procurando
sinais familiares. Lá! - os tijolos de baixo - eles estavam manchados de
preto, e tive certeza de que aquelas eram as ruínas queimadas da Casa do
Mercador Fantasma.
Atravessei depressa o prédio vazio, contente pelo fato de todo mundo estar na
garganta contemplando de boca aberta um pedaço de merda de três mil anos. Nos
fundos,
eu não vi qualquer jardim, nem desníveis nem pavilhão. Tudo tinha sido
nivelado para fazer o pátio de exercícios. Mas, como eu esperava, as pedras
dos muros também
estavam escurecidas e arranhadas. Fui até o canto noroeste e calculei: dez
metros na diagonal, dez passos de comprimento. Comecei a cavar a lama com a
enxada. Ri
alto. Se alguém me visse, pensaria que eu estava tão louca quanto Kwan.
Cavei um buraco de um metro e meio de comprimento e sessenta
centímetros de profundidade, quase o suficiente para enterrar um cadáver. E
então senti a enxada
bater em algo que não era nem rocha nem terra. Caí de joelhos e comecei a
cavar freneticamente com as mãos. E então eu vi, a argila mais clara, firme e
lisa como
um ombro. Na minha impaciência, usei o cabo da enxada para quebrar a jarra.
Tirei de dentro um ovo enegrecido, depois outro e mais outro. Apertei-
os de encontro ao peito, onde eles se desmancharam, todas essas relíquias do
nosso
passado se desintegrando num pó cinzento. Mas eu já não estava mais ligando.
Já tinha provado o gosto do que restara.

#396

24
CANÇÕES SEM FIM
George e Virgie acabaram de chegar de sua lua-de-mel em Changmian. Eles dizem
que não teriam reconhecido o lugar.
- Armadilha para turista em toda parte! - George diz. - A aldeia toda
está rica agora, vendendo criaturas marinhas de plástico, daquele tipo que
brilha no
escuro. Por isto é que o lago era tão brilhante. Peixes e plantas antigos
vivendo no fundo. Mas agora não tem mais. Pessoas demais fizeram desejos,
atiraram moedas
na água. E todas as criaturas marinhas? Envenenadas, boiando mortas na
superfície. Então os chefes da aldeia instalaram luzes submarinas, verdes e
amarelas, muito
bonitas, eu vi. Bonito espetáculo.
Acho que George e Virgie escolheram ir para Changmian para se
desculpar com Kwan. Para se casar, George teve de conseguir que Kwan fosse
declarada legalmente
morta. Eu ainda me sinto confusa quanto a isto. O casamento, na minha opinião,
é o que Kwan tinha tramado o tempo todo. Em algum nível, ela deve ter sabido
que não
ia voltar para casa. Ela nunca teria deixado George passar o resto da vida sem
ter o suficiente para comer. Acho que ela também teria rido e dito: "Que pena
Virgie
não ser melhor cozinheira."
Eu tive quase dois anos para pensar em Kwan, por que ela entrou na
minha vida, por que saiu. O que ela disse sobre o destino esperando para ser
cumprido,
o que poderia ter querido dizer com isto.

#397

Dois anos é tempo suficiente, eu sei, para articular lembranças do que foi com
o que poderia ter sido. E isto é bom, porque agora acredito que a verdade está
não
na lógica e sim na esperança, tanto passada quanto futura. Acho que a
esperança pode nos surpreender. Ela pode sobreviver a toda sorte de
dificuldades e contradições,
e certamente a qualquer tipo de racionalidade cética que só se fia em fatos.
De que outro modo posso explicar o fato de ter uma filhinha de catorze
meses? Como todo mundo, fiquei estarrecida quando fui ao médico e ele disse
que eu
estava grávida de três meses. Dei à luz nove meses depois de Simon e eu termos
feito amor na cama de casal, nove meses depois do desaparecimento de Kwan.
Tenho certeza
de que houve quem suspeitasse de que o pai era algum namorado eventual, que eu
fui relaxada, que fiquei grávida por acaso. Mas Simon e eu sabemos: este bebê
é nosso.
Claro, houve uma explicação racional. Nós voltamos ao especialista em
fertilidade e ele fez mais testes. Ora, vejam só. Os primeiros testes estavam
errados. O laboratório
deve ter cometido um engano, trocado os resultados, porque a esterilidade,
segundo o médico, não é um estado reversível. Simon, ele anunciou, não era de
fato estéril.
Eu perguntei ao médico:
- Então como o senhor explica o fato de eu nunca ter engravidado
antes? - Você provavelmente estava se esforçando demais - ele disse. - Veja
quantas mulheres
engravidam depois que adotam bebês.
Tudo o que sei é o que quero acreditar. Ganhei um presente de Kwan,
uma menininha com covinhas em suas bochechas gordas. E não, eu não a chamei
nem de Kwan
nem de Nelly. Não sou assim tão morbidamente sentimental. Eu a chamo de
Samantha, às vezes de Sammy. Samantha Li. Ela e eu adotamos o sobrenome de
Kwan. Por que
não? O que é um sobrenome senão uma afirmação do fato de estar relacionado no
futuro a alguém do passado?
Sammy me chama de "Mama". O brinquedo favorito dela é "ba", a caixa de
música que Kwan me deu de presente de casamento.

#398

A outra palavra que Sammy diz é "Pa", que é como chama Simon, "Pa" de papai,
embora ele não more conosco o tempo todo. Ainda estamos resolvendo nossa vida,
decidindo
o que é importante, o que pesa, como ficar juntos por mais de oito horas sem
divergir sobre a estação de rádio que vamos ouvir. Nas sextas-feiras, ele vem
para cá
e passa todo o fim de semana. Nós nos aconchegamos na cama, Simon e eu, Sammy
e Bubba. Estamos treinando como ser uma família, e nos sentimos gratos por
cada momento
que passamos juntos. As briguinhas, as implicâncias, elas ainda surgem de vez
em quando. Mas é mais fácil agora lembrar o quanto elas são sem importância, o
quanto
elas encolhem o coração e tornam a vida pequena.
Acho que Kwan quis me mostrar que o mundo não é um lugar e sim a
vastidão da alma. E a alma é simplesmente amor, sem limites, sem fim, aquilo
que nos leva
na direção da verdade. Uma vez eu pensei que o amor devia ser apenas
felicidade. Sei agora que é também preocupação e sofrimento, esperança e
confiança. E acreditar
em fantasmas - é acreditar que o amor nunca morre. Quando as pessoas que
amamos morrem, elas só estão perdidas para os nossos sentidos comuns. Se nos
lembrarmos,
podemos encontrá-las a qualquer momento com nossos cem sentidos secretos.
- Isto é um segredo - ainda posso ouvir Kwan murmurando. - Não conte a
ninguém. Prometa, Libby-ah.
Ouço meu bebê me chamando. Ela balbucia e estende a mão para a
lareira, mostrando não sei o quê. Ela insiste.
- O que é, Sammy? O que você está vendo? - Meu coração dispara e eu
sinto que pode ser Kwan.
- Ba - Sammy diz, ainda apontando para cima. Agora vejo o que ela
quer. Vou até a lareira e pego a caixa de música. Dou corda nela. Ergo meu
bebê no colo.
E dançamos, com a alegria que transborda da dor.

Este livro foi composto pela


MG Textos Editoriais Ltda
Av. Venezuela, n° 131/813
e impresso na Editora JP A Ltda
Av. Brasil, 10.600 - Rio de Janeiro - RJ
em dezembro de 1996
para a Editora Rocco Ltda

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