Amy Tan - Cem Sentidos Secretos
Amy Tan - Cem Sentidos Secretos
Amy Tan - Cem Sentidos Secretos
AMY TAN
Rocco
AMY TAN
Tradução de
LÉA MARIA VIVEIROS DE CASTRO
Rocco
Título original
THE HUNDRED SECRET SENSES
preparação de originais
LENY CORDEIRO
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
96-0961
CDD -813
CDU- 820(73)-3
Para Faith
Aos seis anos de idade, a americana Olivia conhece a meia-irmã chinesa Kwan.
Com a morte do pai das duas, um chinês que emigrara para os Estados Unidos,
e de sua própria mãe, Kwan chega para morar com a família de Olivia.
Imediatamente Kwan assume o papel de mãe superprotetora da irmã, mesmo sob os
constantes protestos
de Olivia. No quarto que dividem, Kwan murmura segredos sobre fantasmas e pede
a Olivia que jamais os revele.
Trinta anos depois, Olivia está se divorciando de Simon, após um longo
casamento. Por motivos profissionais, no entanto, fazem uma viagem à China, e
Kwan
os acompanha. Na cidadezinha onde Kwan cresceu, Olivia busca entender o que a
lógica ignora e que só pode conhecer por meio de seus sentidos secretos.
Ambientada em San Francisco e numa remota cidade ao sul da China, Os
cem sentidos secretos aborda as diferenças culturais entre a América e a
China. Na figura
das duas irmãs, unem-se os dois universos. Olivia é uma pessoa racional e
cética sobre os aspectos místicos de sua, ascendência chinesa; Kwan tem visões
e acredita
que uma pessoa pode ter vidas múltiplas.
Para Amy Tan, o sucesso inquestionável de seus livros se deve as
emoções e sentimentos
universais que são seu motivo condutor. Em seus livros, assim, não
existe uma confusão de identidades culturais, mas a aceitação de uma dualidade
cultural orgânica.
Os personagens de Os cem sentidos secretos habitam um espaço entre a
realidade e o mundo da fábula. Com habilidade, a autora nos conduz ao cerne
dessas vidas
e aos pormenores das relações humanas em toda a sua complexidade.
I
1
A MOÇA DE OLHOS YIN
Minha irmã Kwan acredita que tem olhos yin. Ela enxerga aqueles que já
morreram e que agora habitam o Mundo de Yin, fantasmas que saem das brumas
apenas para visitá-la
em sua cozinha na rua Balboa, em San Francisco.
- Libby-ah - ela costuma me dizer. - Adivinha quem eu vejo ontem, você
adivinha. - E eu não preciso adivinhar que ela está se referindo a alguém
morto.
Na verdade, Kwan é minha irmã: meia-irmã, embora eu não deva mencionar
isto em público. Seria um insulto, como se ela merecesse apenas cinqüenta por
cento
do amor da nossa família. Mas, apenas para esclarecer o aspecto genético, Kwan
e eu temos o mesmo pai, só isso. Ela nasceu na China.
Meus irmãos, Kevin e Tornmy, e eu nascemos em San Francisco depois que
meu pai, ] ack Yee , imigrou para cá e se casou com nossa mãe, Louise
Kenfield.
Mamãe se refere a si mesma como "churrasco misto americano, um pouco
de tudo que é branco, gorduroso e frito". Ela nasceu em Moscow, Idaho, onde
foi campeã
de manejo de bastão e uma vez recebeu um prêmio numa feira por ter cultivado
uma batata deformada que tinha o perfil de Jimmy Durante. Ela me contou que
sonhava
que um dia ia ser diferente - magra, exótica e aristocrática como Luise
Rainer, que ganhou um Oscar pelo papel de O-lan em Terra dos deuses. Quando
mamãe se mudou
para San Francisco e se tornou, em vez disso, uma secretária, ela
#12
fez a segunda melhor coisa. Casou com nosso pai. Mamãe acha que o fato de ter
casado fora da raça anglo-saxônica faz dela uma liberal.
- Quando Jack e eu nos conhecemos - ela ainda diz às pessoas -, havia
leis contra casamentos mistos. Nós desobedecemos à lei por amor. - Ela não
menciona
que aquelas leis não valiam na Califórnia.
Nenhum de nós, incluindo mamãe, conheceu Kwan até ela ter dezoito anos.
De fato, mamãe nem mesmo sabia que Kwan existia até pouco antes de meu pai
morrer por
insuficiência renal. Eu ainda não tinha quatro anos quando ele faleceu. Mas
ainda me lembro de alguns momentos com ele. Deslizando em um escorrega e
caindo nos braços
dele. Pescando no laguinho as moedas que ele tinha atirado lá dentro. E a
última vez que o vi no hospital, quando o que o ouvi dizer me deixou
amedrontada durante
anos.
Kevin, que tinha cinco anos, estava lá. Tommy era apenas um bebê, então
tinha ficado na sala de espera com a prima de mamãe, Betty Dupree - nós
tínhamos de
chamá-la de tia Betty -, que também tinha vindo de Idaho. Eu estava sentada
numa cadeira grudenta de vinil, comendo uma tigela de cubos de gelatina de
morango que
meu pai tinha me dado da bandeja dele de almoço. Ele estava recostado na cama,
respirando ruidosamente. Mamãe uma hora chorava, outra hora parecia animada.
Eu tentava
entender o que havia de errado. A próxima coisa que me lembro é que meu pai
estava sussurrando e mamãe inclinou-se mais para perto para ouvir .Ela foi
abrindo uma
boca cada vez maior. Depois virou a cabeça na minha direção, com as feições
contorcidas de horror. E eu fiquei aterrorizada. Como é que ele sabia? Como
papai descobrira
que eu havia colocado minhas tartaruguinhas, Slowpoke e Fastpoke, no vaso
sanitário aquela manhã e puxado a válvula? Queria ver como elas ficavam sem o
casco e acabei
arrancando suas cabeças.
- Sua filha? - Ouvi minha mãe dizer. - Trazê-la de volta? - E tive
certeza de que ele tinha dito a ela para me levar para o canil, que
#13
era o que tinha feito com nossa cadela Buttons depois que ela comeu o sofá,
que eu me lembro depois de uma grande confusão: a tigela de gelatina se
espatifando no
chão, mamãe olhando fixamente para um
retrato, Kevin agarrando-o e rindo, depois eu estava olhando para aquele
instantâneo preto e branco de um bebê magrinho de cabelos espetados. Numa
certa altura,
ouvi minha mãe gritando:
- Olivia, não discuta, você tem de sair agora. - E eu estava chorando.
- Mas eu vou ser boazinha.
Logo depois disso, minha mãe anunciou:
- Papai nos deixou. - Ela também nos disse que ia trazer a outra
filhinha do papai da China para morar na nossa casa. Ela não disse que ia me
mandar para o
canil, mas eu ainda chorei, achando que estava tudo vagamente relacionado - as
tartarugas sem cabeça descendo pelo vaso, meu pai nos abandonando, a outra
menina
que vinha tomar o meu lugar. Tive medo de Kwan antes mesmo de conhecê-la.
Quando eu estava com dez anos, soube que os rins de meu pai o haviam
matado. Mamãe disse que ele tinha nascido com quatro em vez de dois, e todos
defeituosos.
Tia Betty tinha uma teoria sobre o motivo de isso ter acontecido. Ela sempre
tinha uma teoria, geralmente obtida de uma fonte como o Weekly World News. Ela
disse
que ele devia ser um gêmeo siamês. Mas no útero, meu pai, o gêmeo mais forte,
engoliu o mais fraco e ficou com dois rins extras.
- Talvez ele também tivesse dois corações, dois estômagos, quem sabe?
Tia Betty pintou este cenário mais ou menos na época em que a revista
Life publicou uma reportagem sobre gêmeas siamesas da Rússia. Eu vi a mesma
história:
duas meninas, Tasha e Sasha, ligadas pelo quadril, lindas demais para serem
aberrações da natureza. Isto deve ter sido no meio dos anos sessenta, mais ou
menos na
época em que eu estava aprendendo frações. Lembro-me de ter desejado que
pudéssemos trocar Kwan por essas gêmeas siamesas. Então eu teria duas meias-
irmãs, o que
dava uma inteira, e imaginei que todas as crianças do quarteirão iam
querer ser nossas
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todo mundo. E morávamos numa casa tipo rancho em Daly City. Meu pai trabalhava
na Secretaria de Finanças. Minha mãe freqüentava reuniões da associação de
pais e
professores. Ela nunca tinha ouvido meu pai falar sobre superstições chinesas
antes; em vez
disso, eles freqüentavam a igreja e tinham seguro de vida.
Depois que meu pai morreu, minha mãe vivia dizendo a todo mundo que ele
a tratava como a "uma imperatriz chinesa". Fez todo tipo de promessas a Deus e
ao túmulo
de meu pai. De acordo com tia Betty , no enterro minha mãe jurou jamais tornar
a se casar. Jurou que ia nos ensinar a honrar o nome Yee. Jurou encontrar a
filha
mais velha de meu pai, Kwan, e trazê-la para os Estados Unidos.
A última promessa foi a única que cumpriu.
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Eu era a única que saltava como um boneco de molas, em parte porque estava
extasiada em saber que Kwan seria além de mim e não em vez de mim.
Embora eu fosse uma criança solitária, teria preferido uma nova
tartaruga ou mesmo uma boneca, não alguém que iria competir comigo pela
atenção já dividida
da minha mãe e me forçar a dividir os parcos suvenires do seu amor. Ao
recordar isto, eu sei que minha mãe me amava - mas não de forma absoluta.
Quando comparava
a quantidade de tempo que ela passava com os outros - mesmo com completos
estranhos -, eu me sentia descambando na lista dos favoritos, ficando cheia de
contusões
e machucados.
Ela sempre tinha tempo de sobra na sua vida para encontros com homens ou
almoços com suas amigas. Comigo, ela não era confiável. Promessas de me levar
ao cinema
ou à piscina pública eram quebradas com desculpas ou esquecimentos, ou pior,
com covardes variações do que era dito e do que se queria dizer:
- Detesto quando você faz bico, Olivia - disse-me um dia. - Eu não
garanti que ia ao clube de natação com você. Disse que gostaria de ir: - Como
eu poderia
discutir minhas necessidades frente às suas intenções?
Aprendi a não dar importância às coisas, a colar um lacre nas minhas
expectativas e colocá-las numa prateleira alta, fora do alcance. E, ao dizer a
mim mesma
que afinal de contas essas expectativas não continham nada, eu evitava as
feridas causadas pela decepção profunda. A dor não era pior do que a rápida
picada de uma
agulha de injeção. E, no entanto, só de pensar nisso torno a sentir a dor.
Como é que eu podia saber, em criança, que deveria ter sido mais amada? - Será
que todo
mundo nasce com um reservatório
emocional sem fundo?
Então, é claro, eu não queria ter Kwan como irmã. Justamente o
contrário. E era por isto que eu fazia um enorme esforço na frente da minha
mãe para parecer
entusiasmada. Era uma forma distorcida de lógica inversa: se a expectativa
nunca se realiza, então crie expectativa pelo que você não quer.
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Mamãe tinha dito que uma irmã mais velha era uma versão mais velha de
mim mesma, doce e linda, só que mais chinesa, e capaz de me ajudar a fazer
todo tipo
de coisas divertidas. Então imaginei não uma irmã, mas eu outra vez, eu mesma
mais velha, que dançava e usava roupas provocantes, que tinha uma vida triste
mas fascinante,
como uma versão oriental de Natalie Wood em West Side Story, que havia visto
quando tinha cinco anos. Só agora me ocorre que tanto eu quanto minha mãe
tomamos como
modelo, de nossas esperanças atrizes que falavam com sotaques que não eram os
seus.
Uma noite, antes de minha mãe me pôr na cama, ela me perguntou se eu
queria rezar. Eu sabia que rezar significava dizer coisas boas que outras
pessoas queriam
ouvir ,que era o que minha mãe fazia. Então pedi a Deus e a Jesus para me
ajudarem a ser boa. E então acrescentei que esperava que minha irmã mais velha
chegasse
logo, já que minha mãe tinha acabado de falar nisso. Quando eu disse "amém",
vi que ela estava chorando e sorrindo orgulhosamente. Sob a orientação de
minha mãe,
comecei a juntar presentes de boas-vindas para Kwan. A echarpe que tia Betty
me dera de presente de aniversário, a colônia de flor de laranjeira que ganhei
de Natal,
o doce melado do Halloween - guardei amorosamente todos esses artigos
variados, fedorentos e velhos numa caixa que minha mãe tinha marcado "Para a
irmã mais velha
de Olivia". Convenci a mim mesma de que me tornara tão boa que em breve mamãe
iria perceber que nós não precisávamos de outra irmã.
Minha mãe mais tarde contou a mim e a meus irmãos como foi difícil
encontrar Kwan.
- Naquela época - disse ela - não bastava escrever uma carta, colar um
selo nela e mandá-la para Changmian. Tive de enfrentar uma enorme burocracia e
preencher
dúzias de formulários. E não havia muita gente que se dispusesse a ajudar
alguém de um país comunista. Tia Betty achou que eu estava maluca! Ela me
disse: "Como
você pode ficar com uma garota quase adulta que não sabe falar uma palavra de
inglês? Ela não vai saber distinguir o certo do errado nem a direita da
esquerda. "
#18
A papelada não foi o único obstáculo que Kwan teve de vencer sem saber.
Dois anos depois da morte do meu pai, mamãe se casou com Bob Laguni, que Kevin
chama
hoje de "o golpe do acaso na história de namorados estrangeiros de mamãe - e
isso só porque ela pensou que Laguni fosse mexicano em vez de italiano". Mamãe
adotou
o nome de Bob, e foi por isso que eu e meus irmãos também acabamos nos
chamando Laguni; que troquei satisfeita por Bishop quando me casei com Simon.
A questão é
que Bob nunca quis que Kwan viesse. E normalmente mamãe colocava os desejos
dele acima de tudo. Depois que eles se divorciaram - eu estava na faculdade na
época
-, mamãe me contou o quanto Bob a havia pressionado, pouco antes de se
casarem, para cancelar a papelada de Kwan. Acho que ela pretendeu fazê-lo mas
esqueceu. Mas
foi isto o que ela me disse:
- Eu vi você rezar. Parecia tão doce e triste pedindo a Deus: "Por
favor, traga a minha irmã mais velha da China. "
Eu já tinha quase seis anos quando Kwan chegou a este país. Estávamos
esperando por ela na área da alfândega do aeroporto de San Francisco. Tia
Betty também
estava lá. Minha mãe estava nervosa e excitada, falando sem parar:
- Agora ouçam, crianças, ela provavelmente é tímida, então não pulem em
cima dela... E ela deve ser magra como um varapau, então eu não quero ver
nenhum de
vocês rindo dela...
Quando o funcionário da alfândega finalmente trouxe Kwan até o saguão
onde estávamos esperando, tia Betty apontou e disse:
- É ela. Estou dizendo a vocês que é ela. - Mamãe estava sacudindo
negativamente a cabeça. Esta pessoa parecia uma velha senhora esquisita, baixa
e gorducha,
não exatamente a criança abandonada e faminta que mamãe tinha imaginado ou a
glamourosa adolescente que eu tinha em mente. Vestia um conjunto tipo pijama
cinza pardo
e seu rosto largo e moreno era emoldurado por duas grossas tranças.
#19
Kwan era tudo menos tímida. Largou a bolsa, agitou os braços e gritou:
- O-lá!O-lá!"
Ainda agitando os braços e rindo, ela pulou e guinchou como o nosso
cachorro fazia sempre que alguém o deixava sair da garagem. Esta completa
estranha se
atirou nos braços de mamãe, depois nos de papai Bob. Agarrou Kevin e Tommy
pelos ombros e os sacudiu. Quando me viu, ficou calada, agachou-se no saguão e
estendeu
os braços; Eu me agarrei na saia de mamãe.
- É essa a minha irmã mais velha?
Mamãe disse:
- Veja, ela tem os mesmos cabelos negros e grossos do seu pai.
Ainda tenho a fotografia que tia Betty tirou: mamãe com seus cabelos
crespos, usando um conjunto de mohair, ostentando um sorriso evasivo; nosso
padrasto
ítalo-americano, Bob, com um ar perplexo; Kevm e Tommy usando chapéus de
caubói e fazendo caretas; uma Kwan sorridente com a mão no meu ombro; e eu com
um vestido
de festa e o dedo enfiado na boca escancarada.
Eu estava chorando porque momentos antes de a foto ser tirada Kwan me
dera um presente. Era uma pequena gaiola de palha que ela tinha tirado de
dentro da ampla
manga do seu casaco e me entregado orgulhosamente. Quando a ergui e espiei
para dentro, vi um monstro de seis pernas, verde-claro, com uma mandíbula que
parecia
um serrote, olhos saltados e chicotes no lugar de sobrancelhas. Dei um berro e
atirei a gaiola longe.
Em casa, no quarto que dividimos desde então, Kwan pendurou a gaiola com
o gafanhoto, agora sem uma das pernas. Assim que a noite caiu, o gafanhoto
começou
a cricrilar tão alto quanto uma campainha de bicicleta avisando às pessoas
para sair da estrada.
A partir desse dia, minha vida nunca mais foi a mesma. Para mamãe, Kwan
era uma cômoda baby-sitter, disposta, competente e disponível. Antes de minha
mãe sair
para passar a tarde no salão de
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beleza ou fazer compras com suas amigas, ela me dizia para não desgrudar de
Kwan.
- Seja uma boa irmãzinha e explique a ela tudo o que ela não entender,
Promete?
Então, todos os dias depois da escola, Kwan se grudava em mim e me seguia
aonde quer que eu fosse. Já no primeiro ano eu me tornei uma especialista em
humilhação
e vergonha públicas. Kwan fazia tantas perguntas idiotas que todas as crianças
da vizinhança achavam que ela tinha vindo de Marte. Ela dizia:
- O que M&M? O que chin-clete? Quem esse marinheiro
Popeye? Por que não tem um olho? Ele bandido? - Até Kevin e Tommy riam.
Com Kwan por perto, minha mãe podia navegar sem culpas pela sua fase de
lua-de-mel com Bobo Quando minha professora ligou para mamãe para dizer que eu
estava
com febre, foi Kwan quem apareceu no serviço médico da escola para me apanhar.
Quando eu levei um tombo andando de patins, foi Kwan quem enfaixou os meus
cotovelos.
Ela trançava os meus cabelos. Preparava a merenda para Kevin, Tommye eu.
Tentava me ensinar a cantar canções chinesas de ninar. Consolou-me quando eu
perdi um dente.
Esfregava o meu pescoço quando eu tomava banho.
Eu devia ser grata a Kwan. Podia sempre confiar nela. A coisa que ela
mais gostava era ficar do meu lado. Mas, em vez disso, a maior parte do tempo
eu me ressentia
por ela ter tomado o lugar de minha mãe.
Lembro-me do dia em que tive pela primeira vez a idéia de me livrar de
Kwan. Foi no verão, poucos meses depois de ela ter chegado. Kwan, Kevin,
Tommye eu estávamos
sentados na varanda da frente, esperando que algo acontecesse. Uns dois amigos
de Kevin se esgueiraram até a lateral da nossa casa e ligaram o sistema de
irrigação.
Meus irmãos e eu ouvimos o ruído revelador da água correndo nos canos e
fugimos antes que uma dúzia de irrigadores começassem a funcionar. Kwan, no
entanto, simplesmente
ficou parada, molhando-se toda, maravilhada pelo fato de tantas fontes terem
brotado da terra ao mesmo tempo. Kevin e seus amigos rolaram de rir. Eu
gritei:
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#22
- Barf - eu disse e depois cobri a boca para ela não ouvir minhas
risadinhas.
Ela tropeçou neste novo som - "bar-a-fa, bar-a-fa". - antes de dizer:
- Wah! Que palavra desajeitada para um gosto tão delicado. Eu nunca
provei uma fruta tão boa. Libby-ah, você é uma menina de sorte. Se ao menos
minha mãe não
tivesse morrido. - Ela podia usar qualquer assunto como gancho para as
tragédias de sua vida passada, tendo me revelado todas elas em nossa língua
secreta, o chinês.
De outra vez, ela me viu examinando todos os meus cartões de Valentine's
Day que tinha espalhado em cima da cama. Aproximou-se e apanhou um cartão.
- Que forma é esta?
- É um coração. Significa amor. Veja, todos os cartões têm esta forma.
Tenho de dar um para cada garoto da minha classe. Mas isto não quer dizer que
eu ame
todos eles. Ela voltou para a cama dela e se deitou.
- Libby-ah - ela disse. - Se ao menos minha mãe não tivesse morrido de
mal do coração. - Suspirei, mas não olhei para ela. Isso de novo. Ela ficou
calada por
alguns momentos, depois continuou. - Você sabe o que significa mal do coração?
- O quê?
- É aquecer o seu corpo ao lado da sua família e depois ver o teto de
palha ser arrancado pelo vento e carregar você embora.
- Oh.
- Sabe, ela não morreu de doença do pulmão, nada disso. E então Kwan me
contou que o nosso pai pegou uma doença de sonhar demais com coisas boas. Ele
não podia
parar de pensar em riquezas e numa vida mais fácil, então ficou perdido, saiu
de suas vidas e apagou as lembranças da mulher e do bebê que deixou para trás.
- Não estou dizendo que o nosso pai fosse um homem mau - Kwan murmurou
com voz rouca. - Não é isso. Mas sua lealdade não era forte. Libby-ah, você
sabe o que
é lealdade?
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- O quê?
- É assim. Se você pede a alguém que corte fora a mão para salvá-la de
sair voando junto com o telhado, ele imediatamente corta fora as duas mãos
para mostrar
que está mais do que feliz em fazer isso.
- Oh.
- Mas nosso pai não fez isso. Ele nos abandonou quando minha mãe estava
para ter outro bebê. Não estou mentindo para você, Libby-ah, isto é verdade.
Quando
isto aconteceu, eu tinha quatro anos pelo calendário chinês. Nunca vou me
esquecer de estar deitada ao lado de minha mãe, acariciando sua barriga
inchada. Como uma
melancia, de tão grande.
Ela esticou bem os braços.
- Então toda a água da sua barriga se derramou pelos seus olhos, em
forma de lágrimas. Ela estava tão triste. - Os braços de Kwan baixaram
subitamente. - Aquele
pobre bebê faminto em sua barriga comeu um pedaço do coração de minha mãe, e
ambos morreram.
Tenho certeza de que Kwan falava dessas coisas de modo figurado. Mas,
sendo uma criança, eu considerava tudo o que Kwan dizia como se fosse uma
verdade literal;
mãos arrancadas voando para fora de uma casa sem telhado, meu pai flutuando no
mar da China, o bebezinho sugando o coração de sua mãe. As imagens se
transformaram
em fantasmas. Eu era como uma criança assistindo a um filme de terror, com as
mãos tapando os olhos, espiando nervosamente por entre os dedos. Eu era a
prisioneira
voluntária de Kwan e ela era a minha protetora.
No final de suas histórias, Kwan sempre dizia:
- Você é a única a saber. Não conte a ninguém. Nunca. Promete, Libby-ah?
E eu sempre sacudia negativamente a cabeça, depois concordava, atraída a
esta aliança tanto pelo privilégio quanto pelo medo.
Uma noite, quando minhas pálpebras já estavam pesadas de sono, ela
começou a matraquear de novo em chinês:
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Agora que sou aldulta, compreendo que não foi por minha culpa que Kwan foi
para o hospital psiquiátrico. De certa forma, foi ela mesma
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#26
outro lado cabeludo como um coco. Os fantasmas me acusaram de ter duas faces:
uma leal, uma traidora. Mas eu não sou uma traidora! Olhe para mim, Libby-ah.
O meu
rosto é leal? O que você, está vendo?
O que vi me deixou paralisada de medo. A cabeça dela parecia ter sido
raspada com um cortador de grama. Era tão horrível quanto ver um animal
correndo na rua
e imaginar o que ele tinha sido antes. Só que eu sabia como o cabelo de Kwan
costumava ser. Antes, ele ia até abaixo de sua cintura. Antes, os meus dedos
corriam
por ele como se fossem ondas de cetim preto. Antes, eu agarrava sua cabeleira
e a sacudia como se fossem rédeas de uma mula, gritando:
- Giddyap, Kwan, diga hee-haw!
Ela pegou minha mão e a esfregou em seu crânio, que parecia uma lixa,
murmurando coisas acerca de amigos e inimigos na China. Ficou falando sem
parar, como
se o tratamento de choque houvesse destruído as engrenagens do seu queixo e
ela não pudesse mais parar. Fiquei apavorada de pegar aquela doença de falar
loucamente.
Até hoje não sei por que Kwan não me culpou pelo que aconteceu. Tenho certeza
de que ela sabia que eu é que a tinha colocado naquela situação. Depois que
voltou
do Mary's Help, deu-me seus braceletes de identificação para eu guardar de
lembrança. Falou sobre as crianças da escola dominical que foram ao hospital
cantar "Noite
feliz", como elas tinham gritado quando um velho berrou "Calem a boca!" Contou
que alguns pacientes de lá eram possuídos por fantasmas, que não eram como as
bondosas
pessoas yin que ela conhecia, e que isto era uma pena. Nem uma vez ela disse:
"Libby-ah, por que contou o meu segredo?"
No entanto, o modo como me lembro disso é o modo como sempre me senti -
que a havia traído e que isto é que a deixara louca. Achava que era culpada
também
pelos tratamentos de choque. Eles libertaram todos os seus fantasmas.
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Você não fica curado, mas, se sente aliviado, sem preocupações, flutuando em
um mar de tranqüilidade.
Kwan me disse uma vez:
- Depois que eles morrem, os yin solteiros ainda vêm me visitar. Eles me
chamam de doutora Kwan. Brincando, é claro. - E então ela acrescentou
timidamente
em inglês: - Talvez também por respeito. O que você acha, Libby-ah? - Ela
sempre me pergunta isto: - O que você acha?
Ninguém na nossa família fala sobre as estranhas habilidades de Kwan.
Isto chamaria atenção para o que nós já sabemos, que Kwan é doida, mesmo pelos
padrões
chineses - mesmo pelos padrões de San Francisco. Um bocado do que ela diz e
faz despertaria a incredulidade da maioria das pessoas que não tomam drogas
antipsicóticas
nem moram em fazendas pertencentes a seitas religiosas.
Mas eu não acho mais que minha irmã seja louca. Ou, se é, é inteiramente
inofensiva, isto é, se as pessoas não a levarem a sério. Ela não fica
recitando na
calçada como aquele cara em Market Street que berra que a Califórnia está
fadada a mergulhar no oceano como uma placa de mariscos. E ela não ganha
dinheiro com a
Nova Era; você não precisa lhe pagar cento e cinqüenta dólares a hora só para
Ninguém ela revelar o que há de errado com sua vida passada. Ela diz isso de
graça,
mesmo que você não pergunte.
A maior parte do tempo, Kwan é como todo mundo, fazendo fila, comprando
coisas em liquidação, cantando vitória com cada economia:
- Libby-ah - ela disse esta manhã pelo telefone -, ontem comprei dois
sapatos pelo preço de um na liquidação, no Emporium Capwell. Adivinha quanto
eu deixei
de pagar. Adivinha.
Mas Kwan é estranha, não há como negar. Às vezes isso me diverte. Às
vezes me irrita. Na maioria das vezes fico aborrecida, até zangada - não com
Kwan, mas
pelo fato de as coisas nunca saírem como você esperava. Por que eu tive de ter
Kwan como irmã? Por que ela teve de ter a mim?
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De vez em quando, imagino como seriam as coisas entre mim e Kwan se ela
fosse mais normal. Mas quem pode dizer o que é ser normal? Talvez em outro
país Kwan
fosse considerada normal. Talvez em algumas partes da China, de Hong-Kong ou
de Taiwan ela fosse reverenciada. Talvez exista algum lugar no mundo onde
todos tenham
uma irmã de olhos yin.
Kwan agora está com quase cinqüenta anos, enquanto eu sou doze anos mais moça,
um fato que ela menciona orgulhosamente sempre que alguém pergunta
educadamente qual
de nós duas é a mais velha. Na frente de outras pessoas, ela gosta de beliscar
a minha bochecha e dizer que minha pele está ficando "franzida" porque eu fumo
cigarros
e bebo vinho e café demais - maus hábitos que ela não possui.
- Não entre nisso, não vai precisar parar - gosta de dizer. Kwan não é
profunda nem sutil; tudo está bem ali na superfície, para quem quiser ver. A
questão
é que ninguém jamais adivinharia que somos irmãs.
Kevin uma vez disse brincando que talvez os comunistas tivessem nos
mandado a garota errada, imaginando que nós, americanos, achávamos mesmo todos
os chineses
iguais. Depois de ouvir isto, fantasiei que um dia receberíamos uma carta da
China dizendo: " Sentimos muito, camaradas. Cometemos um engano." Em diversos
aspectos,
Kwan nunca se enquadrou em nossa família. A nossa fotografia anual de Natal
parecia um daqueles quebra-cabeças infantis tipo "O que está errado nesta
foto?" Todos
os anos, na frente e no meio, lá está Kwan - usando roupas bem coloridas
deverão, presilhas de plástico em forma de gravata-borboleta de cada lado da
cabeça, e um
sorriso aparvalhado de orelha a orelha. Mamãe acabou arranjando um emprego
para ela como ajudante de garçom em um restaurante sino-americano. Kwan levou
um mês para
descobrir que a comida que eles serviam era supostamente chinesa. O tempo não
contribuiu em nada seja para americanizá-la ou para mostrar qualquer
semelhança entre
ela e nosso pai.
#31
Por outro lado, todo mundo diz que eu sou a que mais me pareço com ele, tanto
fisicamente quanto em temperamento.
- Vejam quanto a alivia consegue comer sem engordar um só quilo - tia
Betty está sempre dizendo. - Exatamente! como Jack.
Minha mãe disse uma vez:
- Olivia analisa cada detalhe exaustivamente. Ela tem a mentalidade de
contador do pai. Não é surpresa que tenha se tornado fotógrafa. - Esses tipos
de comentários
me fazem pensar o que mais foi transmitido para mim pelos genes de meu pai.
Será que herdei dele o meu mau humor, a mania de pôr sal nas frutas, minha
fobia de germes?
Kwan, ao contrário, é um pequeno dínamo, mal chega a li um metro e meio
de altura, um touro em miniatura numa loja de porcelana. Tudo nela é
exagerado. Ela
usa um casaco de xadrez roxo por cima de uma calça turquesa. Sussurra alto com
uma voz rouca, parecendo que sofre de laringite crônica, quando de fato nunca
fica
doente. Fornece conselhos sobre saúde, recomenda ervas medicinais, e ensina
como consertar qualquer coisa, desde xícaras quebradas até casamentos
desfeitos. Ela
pula de um assunto para outro, entremeando dicas sobre onde achar pechinchas
para comprar. Tommy disse uma vez que Kwan acredita em discurso livre, livre
associação,
lavagem de carros livre para quem encher o tanque. A única mudança no inglês
de Kwan nos últimos trinta anos é a velocidade com que fala. No entanto, ela
acha o
seu inglês fantástico. Freqüentemente ela corrige o marido.
- Não é stealed - ela diz a George. - É stolened.
Apesar das nossas diferenças óbvias, Kwan acha que ela e eu somos
exatamente iguais. Considera que estamos ligadas por um cordão umbilical
cósmico chinês que
nos deu os mesmos traços inatos, motivações pessoais, destino e sorte.
- Eu e Libby-ah - diz às pessoas que acaba de conhecer -
somos iguais aqui. - E ela dá um tapinha na minha cabeça.
#32
- Nós duas nascemos no Ano do Macaco. Qual é a mais velha? Adivinha. Qual? -
E então ela espreme a bochecha dela contra a minha.
Kwan nunca foi capaz de pronunciar corretamente o meu nome, Olivia. Para
ela, serei sempre Libby-ah, não simplesmente Libby, como o suco de tomate, mas
Libby-ah,
como o país de Muhammar al-Kadhafi. Em conseqüência disto, o marido dela,
George Lew, os dois filhos do primeiro casamento dele, e todo esse lado da
família me chamam
também de Libby-ah. O "ah" é o que mais me aborrece. É o equivalente chinês de
"ei", como em "Ei, Libby, venha cá". Uma vez eu perguntei a Kwan se ela
gostaria que
eu a apresentasse a todo mundo como "Ei, Kwan". Ela me deu um tapa no braço,
ficou sem fôlego de tanto rir, depois disse roucamente:
- Gostei, gostei. - Chega de paralelos culturais, vai ser Libby-ah
para todo o sempre.
Não estou dizendo que não amo Kwan. Como posso deixar de amar a minha
irmã? Em muitos aspectos, ela foi mais minha mãe do que minha própria mãe. Mas
me
sinto mal por não querer ser íntima dela. O que eu quero dizer é que somos
íntimas de certo modo. Sabemos de coisas uma sobre a outra, principalmente
pela nossa
história, pelo fato de termos partilhado o mesmo armário, a mesma pasta de
dentes, o mesmo cereal todas as manhãs durante doze anos,
por todas as rotinas e hábitos decorrentes de fazermos parte da mesma família.
Acho realmente que Kwan é doce, e também leal, extremamente leal. Ela
arrancaria fora
a orelha de qualquer pessoa que dissesse uma palavra depreciativa a meu
respeito. Isto conta um bocado. Apenas não gostaria de ser mais íntima dela,
não como algumas
irmãs que se consideram a melhor amiga uma da outra. Não compartilho tudo com
ela como ela faz comigo, contando-me os detalhes mais íntimos de sua vida -
como o
que ela me contou na semana passada sobre o marido:
- Libby-ah - disse ela. - Descobri uma verruga, do tamanho da minha
narina, no - como é que se chamam essas coisas entre as pernas do homem, em
chinês nós
dizemos yinnang, redondas e enruga das como duas nozes?
#33
- Escroto.
- Sim-sim, encontrei verruga grande no escroto! Agora todo dia - todo
dia, tenho de examinar Georgie-ah, escroto dele, para ter certeza de que a
verruga não
cresceu.
Para Kwan, não há fronteiras na família. Tudo está aberto a uma terrível
e exaustiva dissecação - quanto você gastou nas suas férias, o que há de
errado com
a sua pele, por que você está tão abatida quanto um peixe num tanque de
restaurante. E ela ainda pergunta por que não faz parte da minha vida social.
Ela, entretanto,
me convida para jantar uma vez por semana, além de me convidar para qualquer
cansativa reunião familiar - na semana passada foi para uma festa em homenagem
à tia
de George, comemorando o fato de ela ter recebido a cidadania americana depois
de cinqüenta anos, coisas deste tipo. Kwan acha que só uma catástrofe de
grandes proporções
é que pode evitar que eu vá. Ela pergunta preocupada:
- Por que você não vem ontem à noite? Alguma coisa errada?
- Não.
- Está doente?
- Não.
- Quer que eu vá aí, levar uma laranja? Eu tenho extra, bom preço, seis
por um dólar.
- Eu estou muito bem, de verdade.
Ela é como um gato órfão, tentando ganhar o meu coração. Foi assim a
vida inteira, descascando minhas laranjas, comprando balas para mim, admirando
os meus
boletins escolares e dizendo como eu era inteligente, mais inteligente do que
ela jamais poderia ser. No entanto, nunca fiz nada para que ela gostasse de
mim. Em
criança, freqüentemente me recusava a brincar com ela. Ao longo dos anos,
gritei com ela, disse que ela me envergonhava. Nem me lembro de quantas vezes
menti para
evitar vê-la.
Mas ela sempre interpretou os meus rompantes como, conselhos úteis, as
minhas fracas desculpas como boas intenções, meus pálidos gestos de afeição
como lealdade
fraternal. E, quando não consigo mais suportar isto, me descontrolo e digo que
ela e louca. Antes que eu possa me desculpar, ela dá um tapinha no meu
#34
braço, sorri e depois ri. E a ferida que ela recebe cicatriza imediatamente.
Enquanto eu me sinto culpada para sempre.
Nos últimos meses Kwan se tornou mais difícil. Geralmente, depois que eu digo
não três vezes para alguma coisa, ela desiste. Agora é como se a mente dela
estivesse
enguiçada numa tecla automática de rebobinar. Quando não estou irritada com
ela, estou preocupada, achando que ela está a ponto de sofrer outro colapso
nervoso.
Kevin disse que ela deve estar na menopausa. Mas eu sei que é mais do que
isso. Ela está mais obsessiva do que o normal. A conversa de fantasmas está se
tornando
mais freqüente. Menciona a China cada vez que fala comigo, que precisa voltar
lá antes que tudo mude e que
seja tarde demais. Tarde demais para quê? Ela não sabe.
E tem o meu casamento. Ela simplesmente não aceita o fato de que eu e
Simon tenhamos nos separado. De fato, ela está tentando sabotar o divórcio. Na
semana
passada, dei uma festa de aniversário para Kevin e convidei o cara com quem
estou saindo, Ben Apfelbaum. Quando ele disse a Kwan que trabalhava como
descobridor
de talentos para locução em comerciais de rádio, ela disse:
- Ah, Libby-ah e eu também, nós duas temos talento para sair de
situações difíceis, também temos talento para fazer as coisas do nosso jeito.
Não é verdade,
Libby-ah? - Ela sacudiu as sobrancelhas. - Seu marido, Simon, acho que ele
concorda comigo, ah?
- Meu muito em breve ex-marido. - Então fui obrigada a explicar para
Ben: - Nosso divórcio será homologado daqui a cinco meses, no dia quinze de
dezembro.
- Talvez não, talvez não - Kwan disse, depois riu e beliscou o meu
braço. Ela se virou para Ben: - Você conhece Simon?
Ben sacudiu a cabeça e começou a dizer:
- Olivia e eu nos conhecemos no...
- Oh, muito bem - Kwan cricrilou. Ela pôs a mão em concha no canto da
boca e confidenciou: - Simon parece irmão gêmeo de Olivia, metade chinês.
#35
- Metade havaiano - disse eu. - E não somos nada parecidos.
- O que sua mãe e seu pai fazem? - Kwan examinou o casaco de cashmere de
Ben.
- Ambos estão aposentados e moram no Missouri - Ben disse. - Que
tristeza! Tst! Tst! - Ela olhou para mim. - Isto é muito triste .
Toda vez que Kwan menciona Simon, acho que o meu cérebro vai implodir de
tanto que eu me esforço para não gritar de raiva. Ela acha que, como fui eu
que dei
início ao divórcio, posso voltar atrás.
- Por que não perdoar? - Ela disse depois da festa. Ela estava
arrancando as folhas mortas de uma orquídea. - Teimosia e raiva juntas, muito
ruim para você.
- Como não respondi, ela tentou outra tática: - Acho que você ainda tem
sentimentos fortes por ele - mm-hm! Muito, muito fortes. Ah -
veja! -, olhe
para o seu rosto. Tão vermelho! É o amor saindo com força do seu coração.
Estou certa? Responda. Estou certa?
E eu continuei examinando a correspondência, rabiscando MUDOU-SE nos
envelopes endereçados a Simon Bishop. Nunca discuti com Kwan os motivos da
nossa separação.
Ela não entenderia. É complexo demais. Não há qualquer fato ou briga para que
eu possa apontar e dizer: "Este foi o motivo." Nossa separação resultou de
muitas coisas:
um começo errado, uma adaptação errada, anos e anos achando que hábito e
silêncio eram o mesmo que intimidade. Depois de dezessete anos juntos, quando
finalmente
percebi que precisava de mais alguma coisa na minha vida, Simon pareceu
desejar menos. É claro que eu o amava, demais. E ele me amava, só que não o
suficiente. Só
o que eu quero é alguém que me coloque em primeiro lugar em sua vida. Não
estou mais disposta a aceitar migalhas emocionais.
Mas Kwan não entenderia isto. Ela não sabe que as pessoas podem ferir
você irremediavelmente. Ela acredita nas pessoas que pedem desculpas. É do
tipo ingênuo,
crédulo, que acredita em tudo
#36
que é dito nos comerciais de televisão. Veja a casa dela: está entulhada de
acessórios - facas Ginsu, fatiadores e trituradores, processadores de suco e
máquinas
de fazer batatas fritas, tudo o que você imaginar ela comprou por "apenas
dezenove e noventa e cinco, peça agora, oferta válida até meia-noite".
- Libby-ah - Kwan me disse hoje no telefone. - Tem uma coisa que eu
preciso contar, notícia muito importante. Esta manhã falei com Lao Lu. Nós
decidimos: você
e Simon não devem se divorciar.
- Que bom - eu disse. - Vocês decidiram. - Eu estava pondo em dia o meu
talão de cheques, somando e subtraindo enquanto fingia restar atenção.
- Eu e Lao Lu. Você se lembra dele.
- O primo de George. - O marido de Kwan parecia ter parentesco com todos
os chineses de San Francisco.
- Não-não! Lao Lu não é primo. Como pôde esquecer? Já falei nele uma
porção de vezes para você. Velho, careca. Braço forte, perna forte, gênio
forte. Quando
perde a paciência, perde a cabeça também! Decepada. Lao Lu diz...
- Espere um minuto. Alguém sem cabeça está agora me dizendo o que fazer
com o meu casamento?
- Tst! Cabeça decepada mais de cem anos atrás. Agora está bem, sem
problema. Lao Lu acha que, se você, eu e Simon, nós três formos para a China,
tudo vai ficar
bem. OK, Libby-ah?
Suspirei:
- Kwan, não tenho tempo para falar sobre isto agora. Estou no meio de
uma coisa.
- Lao Lu diz que não basta pôr em dia talão de cheques, ver quanto
restou. Precisa pôr em dia vida também.
Como é que Kwan soube que eu estava pondo em dia o meu talão de cheques?
Sempre foi assim comigo e Kwan. Assim que eu me descarto dela, ela faz
um truque que me deixa assustada, que me torna de novo prisioneira dela. Com
ela por
perto, jamais terei uma vida independente. Ela irá sempre reivindicar juros
mais altos.
#37
Por que eu permaneço sendo a sua querida irmãzinha? Por que ela acha que
eu sou a pessoa mais importante da vida dela? - a mais importante! Por que ela
repete
sem parar que mesmo que não fôssemos irmãs ela sentiria a mesma coisa?
- Libby-ah - ela me diz -, eu nunca vou abandonar você.
Não! Tenho vontade de gritar, eu não fiz nada, não diga mais isto.
Porque, toda vez que ela diz isso, transforma todas as minhas traições em amor
que precisa
ser recompensado. Saberemos para sempre: ela foi leal, um dia eu vou ter de
ser.
Mas, mesmo que eu cortasse fora as minhas duas mãos, não adiantaria.
Como Kwan já disse, ela jamais me deixará ir. Um dia o vento vai soprar e ela
estará agarrada
a um tufo do telhado de palha, pronta para voar para o Mundo deYin.
"Vamos! Venha depressa!", ela estará murmurando por sobre o
barulho da tempestade. "Mas não conte a ninguém. Prometa; Libby-ah."
#38
2
PESCADOR DE HOMENS
Antes das sete da manhã, O telefone toca. Kwan é a única pessoa que ligaria
numa hora tão inconveniente. Deixo a secretária eletrônica atender.
- Libby-ah? - ela murmura. - Libby-ah, você está aí? Aqui é sua irmã
mais velha... Kwan. Tenho uma coisa importante para contar para você... Você
quer ouvir?...
A noite passada eu sonhei com você e Simon. Sonho estranho. Você vai ao banco,
retira suas economias. De repente, assaltante de banco entra. Rápido! Você
esconde
a bolsa. Então assaltante rouba o dinheiro de todo mundo menos o seu. Mais
tarde, você vai para casa, enfia a mão na bolsa - ah! - onde está? -
Sumiu! Não o
dinheiro, mas o seu coração. Roubado! Agora você não tem mais coração, como
pode viver? Não tem energia, não tem cor no rosto, pálida, triste, cansada.
Presidente
do banco onde você tinha suas economias, ele diz: "Eu empresto meu coração.
Sem juros. Você paga quando quiser." Você ergue os olhos, vê o rosto dele -
sabe quem,
Libby-ah? Adivinha... Simon! Sim-sim, dá o coração dele para você. Está vendo!
Ainda ama você. Libby-ah, você acredita? Não é só sonho... Libby-ah, você está
ouvindo?
Por causa de Kwan, tenho capacidade de me lembrar de sonhos. Até hoje, consigo
me lembrar de oito, dez, até doze sonhos. Aprendi isso
#39
quando Kwan voltou do Mary's Help. Assim que eu acordava, ela perguntava:
- Na noite passada, Libby-ah, quem você encontrou? O que você viu?
Com a mente ainda meio desperta, eu me agarrava aos fragmentos de um
mundo que estava desaparecendo e me puxava de volta para ele. De lá eu
conseguia descrever
para ela os detalhes da vida que tinha acabado de deixar - os arranhões no meu
sapato, a pedra que eu tinha deslocado, o rosto da minha verdadeira mãe me
chamando
lá de baixo. Quando eu parava, Kwan perguntava:
- Onde você esteve antes disto? - Estimulada, eurefazia o caminho até o
sonho anterior, depois para o que vinha antes deste, uma dúzia de vidas, e às
vezes
suas mortes. Esses são os momentos que eu nunca esqueci, os últimos momentos
antes de morrer.
Ao longo de anos de vida sonhada, provei cinzas que caíam na neblina da
noite. Vi mil lanças faiscando no alto de uma colina. Toquei minúsculos grãos
de um
muro de pedra enquanto esperava ser morta. Senti o cheiro almiscarado dó meu
próprio medo enquanto a corda era apertada ao redor do meu pescoço. Senti o
peso de
voar no ar sem gravidade. Ouvi o chiado da minha voz no momento em que minha
vida chegava ao fim.
- O que você vê depois que morre? - Kwan sempre perguntava.
Eu sacudia a cabeça.
- Não sei. Meus olhos estavam fechados.
- Da próxima vez, abra os olhos.
Durante a maior parte da minha infância, achei que todo mundo se
lembrava dos sonhos como sendo outras vidas, outros eus. Como Kwan. Depois que
ela voltou
do hospital psiquiátrico, ela me contava histórias sobre eles, sobre o povo
yin, na hora de dormir: uma mulher chamada Bandeira, um homem chamado Capa,
uma bandoleira
de um olho só, um homem meio a meio. Ela fazia parecer que todos esses
fantasmas eram nossos amigos. Não contei nem para
#40
minha mãe nem para papai Bob o que Kwan dizia. Vejam o que aconteceu da última
vez que fiz isso.
Quando fui para a faculdade e pude finalmente escapar do mundo de Kwan,
já era tarde demais. Ela tinha plantado a imaginação dela na minha. Seus
fantasmas
se recusavam a sair dos meus sonhos.
- Libby-ah - ainda posso ouvir Kwan dizendo em chinês -, já lhe contei o
que a Srta. Bandeira prometeu antes de nós morrermos?
Ainda me vejo fingindo que estava dormindo.
E ela continuava:
- É claro que não sei exatamente há quanto tempo isto aconteceu. O tempo
não é o mesmo entre uma vida e a outra. Mas acho que foi durante o ano de
1864. Não
tenho certeza se era o ano lunar chinês ou o ano do calendário ocidental...
No fim eu acabava dormindo, em que ponto da história dela eu sempre
esquecia. Então que parte do sonho era dela e que parte era minha? Qual era o
ponto de
interseção entre eles? Toda noite ela me contava estas histórias. E eu ficava
lá deitada, em silêncio, indefesa, desejando que ela calasse a boca.
Sim, sim, tenho certeza de que era 1864. Lembro agora, porque o ano soou muito
estranho. Libby-ah, ouça só: Yi-ba-liu-si. A Srta. Bandeira disse que era como
dizer:
Perca a esperança, deslize para a morte. E eu disse, não, isto quer dizer:
Leve a esperança, os mortos permanecem. As palavras chinesas são boas e más,
tantos significados,
dependendo do que você tem no coração.
De todo modo, esse foi o ano em que eu dei o chá à Srta. Bandeira. E ela
me deu a caixa de música, a que eu roubei dela uma vez e depois devolvi.
Lembro-me
da noite em que pusemos a caixa de música entre nós com todas as coisas que
não queríamos esquecer lá dentro. Éramos só nós duas, estávamos sozinhas na
Casa do Mercador
Fantasma, onde moramos durante seis anos junto com os
#41
#42
Uma noiva hakka das nossas montanhas tinha calos nos pés e um rosto
bonito, de ossos largos. Havia outras famílias hakka vivendo perto das cidades
grandes
de Yongan, nas montanhas, e Intian, à beira do rio. E as mães das famílias
mais pobres gostavam de casar os seus filhos com moças bonitas e trabalhadoras
da Montanha
do Cardo. Durante os festivais de contratação de casamento, esses rapazes
subiam até as aldeias elevadas e nossas moças cantavam as velhas canções da
montanha que
tínhamos trazido do norte mil anos antes. Um rapaz tinha de cantar de volta
para a moça com quem queria casar, encontrando palavras que combinassem com a
canção
dela. Se a voz dele fosse macia, ou suas palavras desajeitadas, que pena, nada
de casamento. É por isso que o povo hakka, além de ser muito forte, tem uma
boa voz,
e uma mente esperta para conseguir o que quer.
Nós tínhamos um ditado: quando você se casa com uma moça da Montanha do
Cardo, recebe como esposa três bois: um que dá cria, um que ara, um que
carrega a sua
velha mãe. Assim é que era uma moça hakka. Nunca se queixava, mesmo que uma
rocha rolasse pela encosta da montanha e esmagasse um de seus olhos.
Isso aconteceu a mim quando eu tinha sete anos. Fiquei muito orgulhosa
da minha ferida, chorei só um pouco. Quando minha mãe costurou o buraco que
tinha antes
sido o meu olho, eu disse que a pedra tinha sido afrouxada por um cavalo
fantasma. E o cavalo era cavalgado pela famosa donzela fantasma Nunumu - o nu
que significa
"moça", o numu que significa "um olhar tão feroz quanto um punhal". Nunumu, a
Moça do Olho de Punhal. Ela também perdera o olho quando jovem. Ela tinha
visto um
homem punti roubando o sal de outro homem, e, antes que pudesse fugir, ele
enfiou o punhal no rosto dela. Depois disso, ela cobriu o olho cego com uma
ponta do pano
que usava na cabeça. E o outro olho ficou maior, mais escuro, penetrante como
o de uma águia. Ela só roubava dos punti, e quando eles viam o seu olho de
punhal,
oh, como tremiam.
Todos os hakkas da Montanha do Cardo a admiravam, e não apenas porque
ela roubava os punti. Ela foi a primeira bandoleira
#43
hakka a se unir à luta pela Grande Paz quando o Rei Celestial voltou para nos
ajudar. Na primavera, levou um exército de donzelas hakka para Guilin, e os
manchus
a capturaram. Depois que cortaram a cabeça dela, seus lábios ainda se moveram
e lançaram a maldição de que ela iria voltar e arruinar suas famílias por cem
gerações.
Esse foi
o verão em que eu perdi o meu olho. E, quando contei a todo mundo sobre Nunumu
galopando no seu cavalo-fantasma, as pessoas disseram que este era um sinal de
que
Nunumu me havia escolhido para ser sua mensageira, assim como o Deus Cristão
havia escolhido um homem hakka para ser o Rei Celestial. Começaram a me chamar
de Nunumu.
E às vezes, tarde da noite, eu pensava que podia mesmo ver a Donzela
Bandoleira, não com muita clareza, é claro, porque naquela época eu só tinha
um olho yin.
Logo depois disso eu conheci o meu primeiro estrangeiro. Sempre que
chegavam estrangeiros na nossa província, todo mundo que vivia no campo - de
Nanning a
Guilin falava sobre eles. Muitos ocidentais vinham negociar lama
estrangeira, o ópio que provocava nos estrangeiros sonhos
loucos sobre a China. E alguns vinham vender armas -
canhões, pólvora, rifles, não os modernos, rápidos, mas os
lentos, do tipo antigo que se acende com um fósforo,
remanescentes de velhas batalhas já perdidas. Os missionários vinham à nossa
província porque tinham ouvido dizer
que os hakkas eram Adoradores de Deus. Eles queriam
ajudar mais gente a ir para o céu deles. Não sabiam que um
Adorador de Deus não é o mesmo que um Adorador de Desus. Mais tarde entendemos
que os nossos céus não eram os mesmos.
Mas o estrangeiro que eu conheci não era um missionário. Era um general
americano. O povo hakka o chamava de Capa porque era o que ele sempre usava,
uma capa
grande, e também luvas pretas, botas pretas, nenhum chapéu, e um casaco curto
cinzento com botões - como moedas brilhantes! - indo da cintura até o queixo.
Na mão
ele carregava uma longa bengala de junco com ponteira de prata e cabo de
marfim na forma de uma mulher nua.
#44
#45
por Deus para ser o seu amado filho mais moço, irmãozinho de Jesus. Ouvimos
atentamente.
Capa, Yiban disse, era um líder militar americano, um supremo general, o
posto mais elevado. As pessoas murmuraram, cheias de admiração. Tinha
atravessado
o mar até a China para ajudar os Adoradores de Deus, os seguidores da Grande
Paz. As pessoas gritaram:
- Bom! Bom!
Ele mesmo era um Adorador de Deus, e nos admirava, às nossas leis contra
o ópio, contra o roubo, contra os prazeres das partes secretas do corpo das
mulheres.
As pessoas concordaram, e eu fiquei olhando com o meu único olho para a dama
nua no cabo da bengala de Capa. Ele disse que tinha vindo para nos ajudar a
vencer a
batalha contra os manchus, que este era o plano de Deus, escrito mais de mil
anos antes na Bíblia que estava segurando. As pessoas chegaram mais perto para
ver.
Conhecíamos este plano. O Rei Celestial já tinha nos contado que o povo hakka
herdaria a terra e governaria o reino chinês de Deus. Capa contou que os
soldados da
Grande Paz já tinham capturado muitas cidades, tinham reunido muito dinheiro e
muita terra. E agora a luta estava pronta para avançar para o norte - se o
resto dos
Adoradores de Deus da Montanha do Cardo se juntassem a eles como soldados.
Aqueles que lutassem, ele acrescentou, iriam compartilhar a recompensa -
roupas
quentes, comida à vontade, armas e, mais tarde, terras, novo status e novo
posto, escolas e casas, homens e mulheres separados. O Rei Celestial enviaria
comida para
suas famílias. Nessa altura todo mundo já estava gritando:
- Grande Paz! Grande Paz!
Então o General Capa bateu com a bengala no chão. Todo mundo ficou
calado de novo. Ele chamou Yiban para nos mostrar os presentes que o Rei
Celestial tinha
pedido a ele para trazer. Barris de pólvora! Montes de rifles! Cestas cheias
de uniformes franco-africanos, alguns rasgados e já manchados de
sangue.
Mas todo mundo concordou que eles ainda estavam ótimos. Todo mundo estava
dizendo:
- Ei, olhem estes botões, sintam este pano.
#46
#48
Minha avó tinha morrido no ano anterior, mas o fantasma dela não me deteve.
Era o nono dia do nono mês, eu me lembro disto, um dia em que o povo chinês
deve subir
montanhas e não descer, um dia para se honrar os ancestrais, um dia que os
Adoradores de Deus ignoravam para provar que se orientavam por um calendário
ocidental
de cinqüenta e dois domingos e não pelos dias sagrados do
almanaque chinês. Então desci a montanha, depois atravessei o vale que ficava
entre as montanhas. Não sabia mais em que acreditar, em quem confiar. Decidi
esperar
por um sinal, ver o que ia acontecer.
Cheguei na cidade à margem do rio, a que se chamava Jintian. Àqueles
hakkas que encontrei disse que era Nunumu. Mas eles não sabiam quem era a
Donzela Bandoleira.
Ela não era famosa em Jintian. Os hakkas não admiraram o meu olho que um
cavalo fantasma tinha arrancado. Tiveram pena de mim. Puseram uma velha bola
de arroz na
minha mão e tentaram fazer de mim uma mendiga meio cega. Mas eu me recusei a
me tornar o que as pessoas acharam que eu devia ser.
Então eu tornei a perambular ao redor da cidade, pensando que trabalho
poderia fazer para ganhar o meu pão. Vi cantonenses que tiravam esporões de
dedos, yaos
que arrancavam dentes, puntis que espetavam agulhas em pernas inchadas. Não
sabia nada sobre tirar dinheiro de partes podres do corpo de outras pessoas.
Continuei
a andar até estar na margem de um rio largo. Vi pescadores hakkas em pequenos
barcos, atirando redes na água. Mas eu não tinha nem rede nem barco. Não sabia
pensar
como um peixe rápido e esperto.
Antes que eu pudesse decidir o que fazer, ouvi pessoas gritando ao longo
da margem do rio. Estrangeiros tinham chegado! Corri para o cais e vi dois
barqueiros
cule chineses, um jovem e um velho, caminhando sobre uma tábua de madeira
estreita, descarregando caixas e caixotes e baús de um barco grande. E então
eu vi os estrangeiros,
em pé na proa - três, quatro, cinco deles, todos vestidos de preto, exceto o
menor deles, cuja roupa e cabelo eram de
#49
um marrom lustroso como um besouro. Aquela era a Srta. Bandeira, mas é claro
que eu não sabia disto na época. Meu único olho analisou a todos. Seus cinco
pares de
olhos estrangeiros estavam pousados no barqueiro jovem e no barqueiro velho
que desciam pela prancha estreita. Nos ombros dos dois barqueiros havia duas
varas compridas
e no meio um baú grande pendurado em cordas. De repente, a estrangeira
bronzeada correu pela prancha de madeira - quem ia saber por quê? - para
alertar os homens,
para lhe pedir que tivessem mais cuidado. E subitamente a prancha começou a
sacudir, o baú começou a balançar, os homens começaram a perder o equilíbrio e
os cinco
estrangeiros no barco começaram a gritar. Para trás e para a frente, para cima
e para baixo - nossos olhos saltavam enquanto observávamos os barqueiros
retesando
os músculos e a estrangeira lustrosa sacudindo os braços como um filhote de
passarinho. No instante seguinte, o homem mais velho, na parte mais baixa da
prancha,
deu um grito agudo - eu ouvi o barulho, vi sua clavícula espetada para fora.
Então dois cules, um baú e uma estrangeira de roupa lustrosa caíram
ruidosamente na
água.
Corri para a beira do rio. O cule mais moço já tinha nadado até a praia. Dois
pescadores em um pequeno barco estavam tentando pegar o conteúdo do baú que
tinha caído
na água, roupas coloridas infladas como velas, chapéus emplumados que
flutuavam como patos, longas luvas que revolviam a água como os dedos de um
fantasma. Mas ninguém
estava tentando ajudar o barqueiro ferido ou a estrangeira lustrosa. Os outros
estrangeiros não iam ajudar; estavam com medo de descer pela prancha. O povo
punti
na praia não ia ajudar; se eles interferissem com o destino, seriam
responsáveis pela vida daquelas duas pessoas que não se afogaram. Mas eu não
pensava assim. Eu
era uma hakka. Os hakkas eram Adoradores de Deus. E os Adoradores de Deus eram
pescadores de homens. Agarrei então uma das varas de bambu que tinham caído na
água.
Corri ao longo da margem e estiquei a vara, deixando as cordas penduradas
sobre a correnteza. O cule e a estrangeira se agarraram a elas com toda a
força. E, com
toda a minha força, os recolhi.
#50
#51
Atrás da aldeia, bem mais alto nas montanhas, havia muitas cavernas, centenas.
E, quando o vento soprava, as bocas das cavernas cantavam wu! wu! - exatamente
como
as vozes de damas tristes que perderam seus filhos.
Foi lá que fiquei nos últimos seis anos da minha vida - naquela casa.
Morava com a Srta. Bandeira, Lao Lu e os missionários - duas senhoras, dois
cavalheiros,
Adoradores de Jesus da Inglaterra. Eu não sabia disto na época. A Srta.
Bandeira me contou muitos meses depois, quando conseguimos nos comunicar em
uma mesma língua.
Ela disse que os missionários tinham viajado de navio para Macau, pregado lá
por algum tempo e depois viajado para Cantão, pregando lá por mais algum
tempo. Foi
lá que conheceram a Srta. Bandeira. Por volta desta época, foi assinado um
novo tratado dizendo que os estrangeiros podiam morar em qualquer lugar da
China. Então
os missionários partiram para Jintian, usando o rio Oeste. E a Srta. Bandeira
foi com eles.
A missão era um amplo complexo, com um grande pátio no meio, depois mais
quatro menores, uma elegante casa principal e mais três menores. No meio havia
corredores
cobertos ligando tudo entre si. E em volta havia um muro alto, separando o
lado de dentro do lado de fora. Ninguém tinha morado ali por mais de cem anos.
Só estrangeiros
morariam numa casa amaldiçoada. Eles diziam que não
acreditavam em fantasmas chineses.
O pessoal local disse a Lao Lu:
- Não more lá. A casa é assombrada por espíritos astutos. - Mas
Lao Lu disse que não tinha medo de nada. Ele era um cule cantonense que
descendia de
dez gerações de cules! Era forte o bastante para se matar de trabalhar,
esperto o bastante para encontrar resposta para o que quisesse saber. Por
exemplo, se você
lhe perguntasse quantas peças de roupa as senhoras estrangeiras possuíam, ele
não iria adivinhar e dizer que talvez uma dúzia cada. Entraria no quarto das
damas
quando elas estivessem comendo e contaria cada peça, sem roubar nenhuma, é
claro. A Srta. Bandeira, ele me contou, tinha dois pares de sapatos, seis
pares de luvas,
cinco
#52
chapéus, três costumes compridos, dois pares de meias pretas, dois pares de
meias brancas, dois pares de calções brancos, um guarda-chuva e sete
outras coisas
que poderiam ser roupa mas que ele não sabia determinar que partes do corpo
poderiam cobrir.
Por meio de Lao Lu, aprendi rapidamente muitas coisas sobre os
estrangeiros. Só mais tarde ele me contou por que o pessoal local achava que a
casa era amaldiçoada.
Muitos anos antes, ela tinha sido uma casa de veraneio, e pertencia a um
mercador que morreu de uma forma terrível e misteriosa. Então as esposas dele
morreram,
quatro delas, uma por uma, também de formas terríveis e misteriosas, primeiro
a mais moça e por último a mais velha, tendo tudo isto acontecido entre uma
lua cheia
e a seguinte.
Como Lao Lu, eu não me assustava facilmente. Mas devo confessar a você,
Libby-ah, que o que aconteceu lá cinco anos depois me fez acreditar que o
Mercador
Fantasma estava de volta.
#53
3
O CACHORRO E O BOÁ
Desde que nos separamos, Simon e eu temos disputado a custódia de Bubba, o meu
cachorro. Simon quer o direito de visitas, passeios nos fins de semana. Não
quero
lhe negar o privilégio de recolher o cocô de Bubba. Mas detesto sua atitude
cavalheiresca com relação a cachorros. Simon gosta de passear com Bubba sem
coleira.
Ele o deixa correr pelas trilhas de Presidio, pela pista de areia para
cachorros ao longo de Cressy Field, onde as mandíbulas de um pit bull, de um
rottweiler, até
mesmo de um cocker spaniel maluco poderiam partir em dois um Yorkie-chihuahua
de dois quilos.
Esta noite, estávamos no apartamento de Simon, examinando um ano de
recibos relativos ao trabalho free-lance que ainda não dividimos. Considerando
a dedução
de impostos, decidimos optar ainda por uma "declaração conjunta".
- Bubba é um cachorro - Simon disse. - Tem o direito de correr livre
de vez em quando.
- É, e ser assassinado. Você se lembra do que aconteceu com Sarge?
Simon revirou os olhos, seu olhar de "isso de novo não". Sarge era o
cachorro de Kwan, um pequinês-maltês briguento que desafiava qualquer cachorro
macho
na rua. Há cerca de cinco anos, Simon o levou para passear - sem coleira - e
Sarge feriu o nariz de um boxer. O dono do boxer
#54
O que Simon disse me aborreceu a noite inteira. Será que eu sou mesmo o tipo
de pessoa que guarda rancor? Não, Simon estava sendo defensivo, devolvendo
farpas. O
que posso fazer se nasci com a tendência de me lembrar de todo o tipo de
coisas?
Tia Betty foi a primeira pessoa a me dizer que eu tinha uma memória
fotográfica; o comentário dela me fez acreditar que eu ia ser fotógrafa
#55
quando crescesse. Ela disse isso porque uma vez a corrigi na frente de um
monte de gente por causa de um filme que tínhamos visto juntas. Agora que
estou ganhando
a vida há mais de quinze anos atrás das lentes de uma câmera, não sei o que as
pessoas querem dizer com memória fotográfica. O que eu me lembro do passado
não é
como folhear uma pilha de instantâneos. É mais seletivo do que isto.
Se alguém me perguntasse qual era o meu endereço quando eu tinha sete
anos de idade, os números não surgiriam diante dos meus olhos. Teria de
reviver um
momento específico: o calor do dia, o cheiro do gramado cortado, o slap-slap-
slap de tiras de borracha no meu calcanhar. Então eu estaria subindo de novo
os dois
degraus da varanda de concreto, enfiando a mão na caixa preta de
correspondência, com o coração batendo, procurando com os dedos - onde está?
Onde está aquela estúpida
carta de
Art Linkletter me convidando para participar do seu show? Mas eu não perdia as
esperanças. Pensava comigo, talvez eu esteja no endereço errado. Mas não, lá
estão
eles, os números em metal, 3-6-2-4, precisando ser lustrados e cheios de
ferrugem em volta dos parafusos.
É disto que eu me lembro mais, não de endereços, mas da dor
- daquela velha convicção que dá um nó na garganta de que o mundo me escolhera
para
ser maltratada e negligenciada. Isso é o mesmo que rancor? Queria tanto ser
convidada para o Kids Say the Darndest Things. Era o caminho infantil para a
fama, e
eu queria mais uma vez provar à minha mãe que eu era especial, apesar de Kwan.
Queria esnobar as crianças da vizinhança, deixá-las furiosas por eu estar me
divertindo
mais do que elas jamais se divertiriam. Enquanto dava voltas e mais voltas de
bicicleta pelo quarteirão, planejava o que iria dizer quando fosse finalmente
convidada
para o show. Contaria ao Sr. Linkletter sobre Kwan, só a parte engraçada -
como a vez que ela disse que adorava o filme Southern Pacific. O Sr.
Linkletter iria
erguer as sobrancelhas e fazer um bico. "Olivia", ele diria, "sua irmã não
está querendo dizer South Pacific?"
#56
Então as pessoas da platéia iriam dar tapas nos joelhos e cair na gargalhada,
e eu faria uma expressão de inocência infantil.
O velho Art achava que as crianças eram tão doces e ingênuas que não
sabiam que estavam dizendo coisas embaraçosas. Mas todas aquelas crianças do
show sabiam
exatamente o que estavam fazendo. Senão, por que nunca mencionavam os
verdadeiros segredos - que brincavam de médico e roubavam chicletes, cápsulas
de pólvora e
revistas de musculação na loja mexicana da esquina. Eu conhecia crianças que
faziam estas coisas. Eram as mesmas que uma vez me agarraram pelos braços e
mijaram
em cima de mim, rindo e gritando:
- A irmã de Olivia é retardada. - Elas sentaram em cima de mim até eu
começar a chorar, odiando Kwan, odiando a mim mesma.
Para me consolar, Kwan me levou à Sweet Dreams Shoppe. Estávamos
sentadas do lado de fora, lambendo casquinhas de sorvete. Capitão, o vira-lata
mais recente
que minha mãe tinha livrado da carrocinha e que Kwan tinha batizado, estava
deitado aos nossos pés, esperando atento pelos pingos de sorvete.
- Libby-ah - Kwan disse - que palavra é essa, letadada?
- Re-tar-dada - corrigi, esticando bem a palavra. Ainda estava zangada
com Kwan e com os garotos da vizinhança. Dei outra lambida no sorvete,
pensando nas
coisas idiotas que Kwan havia feito. - Retardada significa Jantou - eu disse.
- Você sabe, uma pessoa estúpida que não entende nada. - Ela balançou a
cabeça. - Que
diz as coisas erradas na hora errada - acrescentei. Ela tornou a balançar a
cabeça. - Quando as crianças riem de você e você não sabe por quê.
Kwan ficou calada por tanto tempo que o meu peito começou a ficar
apertado. Finalmente ela disse em chinês:
- Libby-ah, você acha que esta palavra sou eu, retardada? Seja honesta.
Continuei a lamber as gotas que escorriam pela minha casquinha,
evitando o olhar dela. Notei que Capitão também me olhava atentamente.
#57
- Libby-ah, você está dormindo? Ok, desculpe, desculpe, torne a dormir, não é
nada importante... Só queria perguntar mais uma vez sobre essa palavra,
retardada.
Ah, mas você está dormindo agora, talvez amanhã, depois que você chegar do
colégio...
Engraçado, eu estava pensando que um dia achei que a Srta. Bandeira
fosse assim, retardada. Ela não entendia nada... Libby-ah, você sabia que eu
ensinei a
Srta. Bandeira a falar? Libby-ah? Desculpe, desculpe, pode voltar a dormir.
Mas é verdade. Fui professora dela. Quando a conheci, ela falava como um
bebê! Às vezes eu ria. Não conseguia evitar. Mas ela não se importava. Nós
duas nos
divertimos muito falando coisas erradas o tempo todo. Éramos como dois atores
de circo, usando nossas mãos, nossas sobrancelhas, o movimento rápido dos
nossos pés
para mostrar uma à
#58
outra o que queríamos dizer. Foi assim que ela me contou sobre sua vida antes
de vir para a China. Foi isso que eu achei que ela disse:
Ela nasceu em uma família que morava numa aldeia bem distante, a
oeste da Montanha do Cardo, do outro lado de um mar revolto. Era depois do
país onde
moram os negros, além da terra dos soldados ingleses e dos marinheiros
portugueses. A aldeia dela era maior do que todas essas terras juntas. O pai
dela tinha muitos
navios que cruzavam o mar e iam para outras terras. Nessas terras, ele colhia
o dinheiro que crescia como flores e o cheiro deste dinheiro fez a felicidade
de muita
gente .
Quando a Srta. Bandeira tinha cinco anos, seus dois irmãozinhos entraram
num buraco escuro atrás de um frango. Eles caíram até o outro lado do mundo.
Naturalmente,
sua mãe queria encontrá-los. Antes de o sol nascer e depois de o sol se pôr,
ela inchava o pescoço como um galo e chamava pelos filhos perdidos. Depois de
muitos
anos, a mãe encontrou o mesmo buraco ria terra, entrou nele, e então caiu
também do outro lado do mundo.
O pai disse à Srta. Bandeira, precisamos procurar nossa família. Então
eles saíram navegando pelo mar revolto. Primeiro pararam numa ilha barulhenta.
Seu pai
a levou para morar em um grande palácio governado por pessoas pequeninas que
se pareciam com Jesus. Enquanto seu pai estava nos campos colhendo mais
dinheiro-flor,
os pequenos Jesuses atiraram pedras nela e cortaram o seu longo cabelo. Dois
anos depois, quando seu pai voltou, ele e a Srta. Bandeira navegaram para
outra ilha,
esta governada por cachorros loucos. Mais uma vez ele pôs a Srta. Bandeira num
grande palácio e foi colher mais dinheiro-flor. Enquanto ele estava fora, os
cachorros
perseguiram a Srta. Bandeira e rasgaram seu vestido. Ela correu ao redor da
ilha, procurando pelo pai. Em vez disso encontrou um tio. Ela e o tio
navegaram para
um lugar na China onde viviam muitos estrangeiros. Ela não encontrou sua
família lá. Um dia, enquanto ela e o tio estavam deitados na cama, o tio ficou
quente e
frio ao mesmo tempo, ergueu-se no ar e depois caiu no mar.
#59
Por sorte dela, a Srta. Bandeira encontrou outro tio, um homem que tinha
muitas armas. Ele a levou para Cantão, onde também viviam estrangeiros. Toda
noite, o tio
colocava as armas em cima da cama e a obrigava a poli-las antes de dormir. Um
dia, este homem arrancou um pedaço da China, onde havia muitos templos
bonitos. Ele
navegou para casa sobre esta ilha flutuante, deu os templos para a mulher e a
ilha para o seu rei. A Srta. Bandeira encontrou um terceiro tio, um ianque,
que também
tinha muitas armas. Mas este penteava o cabelo dela. Ele lhe dava pêssegos
para comer. Ela amava muito este tio. Uma noite, muitos homens hakka invadiram
o quarto
deles e levaram o tio embora. A Srta. Bandeira foi correndo pedir ajuda aos
Adoradores de Jesus. Eles disseram, ajoelhe-se. Então ela se ajoelhou. Eles
disseram,
reze. Então ela rezou. Depois eles a levaram para o interior, para Jintian,
onde ela caiu na água e rezou para ser salva. Foi quando eu a salvei.
Mais tarde, depois que a Srta. Bandeira aprendeu mais palavras em
chinês, ela tornou a me contar sua vida, e, como o que ouvi então foi
diferente, o que vi
na minha mente também foi diferente. Ela nasceu na América, um país que fica
além da África, além da Inglaterra e de Portugal. A aldeia da sua família
ficava perto
de uma cidade grande chamada Nu Ye, soa como Lua Vaca. Talvez fosse Nova York.
Uma companhia chamada Rússia ou Russo era dona daqueles navios, não o pai
dela. Ele
era escriturário. A companhia navegadora comprava ópio na Índia - essas eram
as flores e o vendia na China, espalhando uma doença de sonhos entre o povo
chinês.
Quando a Srta. Bandeira tinha cinco anos, seus irmãozinhos não entraram
em um buraco atrás de um frango, eles morreram de varíola e foram enterrados
no quintal.
E sua mãe não inchava o pescoço como um galo. Sua garganta inchou e ela morreu
de bócio e foi enterrada ao lado dos filhos. Depois desta tragédia, o pai da
Srta.
Bandeira a levou para a Índia, que não era governada por pequenos Jesuses. Ela
freqüentou uma escola para crianças Adoradoras de Jesus da Inglaterra, e eles
não
eram santos e sim levados e selvagens. Mais tarde, seu pai a levou para
Málaca, que não era governada por cachorros.
#60
Ela estava se referindo a outra escola, onde as crianças também eram inglesas
e ainda mais desobedientes do que as da Índia. Seu pai partiu de navio para
comprar
mais ópio na Índia e jamais regressou - ela não sabia por quê, então cultivou
muita tristeza no seu coração. Agora ela não tinha nem pai, nem dinheiro, nem
casa.
Quando ainda era muito jovem, conheceu um homem que a levou para Macau. Havia
muitos mosquitos em Macau, ele morreu de malária lá e foi enterrado no mar.
Depois
ela viveu com outro homem, um capitão inglês. Ele ajudou os manchus, lutou
contra os Adoradores de Deus, ganhou muito dinheiro por cada cidade que
capturou. Mais
tarde, ele foi embora para casa, levando muitos tesouros roubados de templos
para a Inglaterra e para sua esposa. Então a Srta. Bandeira foi viver com
outro soldado,
um ianque. Este, ela disse, ajudou os Adoradores de Deus, lutou contra os
manchus, também ganhou dinheiro saqueando cidades que ele e os Adoradores de
Deus queimaram.
Esses três homens, a Srta. Bandeira me disse, não eram seus tios.
Eu disse a ela:
- Srta. Bandeira - ah, esta é uma boa notícia. Dormir na mesma cama
com seus tios não é bom para suas tias. - Ela riu. Como você está vendo, nessa
altura
nós podíamos rir juntas porque nos entendíamos muito bem. Nessa altura, os
calos dos meus pés tinham sido trocados por um velho par
dos sapatos de couro apertados da Srta. Bandeira. Mas, antes que isto
acontecesse, eu tive de ensiná-la a falar.
Para começar, disse a ela que o meu nome era Nunumu. Ela me chamava de
Srta. Moo. Costumávamos sentar no pátio e eu ensinava a ela o nome das coisas,
como
se ela fosse uma criancinha. E, como uma criancinha, ela aprendia com
entusiasmo, rapidamente. A mente dela não estava fechada a novas idéias. Ela
não era como os
Adoradores de Jesus, cujas línguas eram rodas velhas e emperradas seguindo os
mesmos sulcos. Ela tinha uma memória extraordinária, fantástica. O que quer
que eu
dissesse, entrava por seu ouvido e saía por sua boca.
#61
#62
Durante a maior parte da minha infância, tive de lutar para não ver o mundo do
modo como Kwan o descrevia. Como a conversa dela sobre fantasmas. Depois que
ela recebeu
o tratamento de choque, eu disse que ela tinha de fingir que não via
fantasmas, senão os médicos não a deixariam sair do hospital.
- Ah, guardar segredo - ela disse, balançando a cabeça. - Só você e eu
sabemos.
Quando ela voltou para casa, eu tive de fingir que os fantasmas
estavam lá, como parte do nosso segredo de fingir que não estavam. Esforcei-me
tanto para
manter essas duas visões contraditórias que logo comecei a ver o que não
devia. Como podia deixar de fazê-lo? A maioria das crianças, sem irmãs como
Kwan, imagina
que há fantasmas espreitando debaixo de suas camas, prontos para agarrar seus
pés. Os fantasmas de Kwan, por outro lado, sentavam-se sobre a cama,
encostados na
cabeceira. Eu os via.
Não estou falando de lençóis brancos transparentes que dizem
"Ooooohh". Os fantasmas dela não eram invisíveis como as gentis aparições de
tevê em Topper
que moviam canetas e xícaras pelo ar. Os fantasmas dela pareciam vivos.
Conversavam sobre os velhos tempos. Preocupavam-se e reclamavam. Cheguei
até a ver
um deles coçando o pescoço do nosso cachorro, e Capitão batia com a perna no
chão e abanava o rabo.
#63
Fora Kwan, jamais contei a ninguém o que via. Achei que seria mandada para o
hospital para ser tratada com choques elétricos. O que eu via parecia tão
real, nem
um pouco como um sonho. Era como se os sentimentos de outra pessoa tivessem
fugido, e meus olhos se tivessem tornado o projetor de cinema que dava vida a
eles.
Lembro-me especialmente de um dia - eu devia ter oito anos - em que
estava sentada sozinha na minha cama, vestindo minha boneca Barbie com suas
melhores
roupas. Ouvi uma voz de menina dizendo:
- Gei wo kan. - Ergui os olhos e na cama de Kwan estava uma menina
chinesa mais ou menos da minha idade, com um ar melancólico, pedindo para ver
minha boneca.
Não fiquei com medo. Esta era outra característica de ver fantasmas: eu sempre
ficava perfeitamente calma, como se o meu corpo inteiro tivesse sido
mergulhado em
um tranqüilizante. Educadamente, perguntei à menina, em chinês, quem ela era.
E ela disse: - Lili-lili, lili-lili - num guincho estridente.
Quando atirei a minha Barbie na cama de Kwan, esta menina lili-lili
apanhou-a. Tirou o boá de plumas cor-de-rosa da Barbie, espiou por baixo do
vestido de
cetim da mesma cor. Ela torceu violentamente os braços e pernas da boneca.
- Não quebre ela - eu avisei. Eu podia perceber a curiosidade da
menina, sua admiração, seu medo de que a boneca estivesse morta. No entanto,
nunca questionei
por que tivemos esta simbiose emocional. Eu estava preocupada demais, temendo
que ela levasse a Barbie com ela para casa. Eu disse: - Já chega. Me dá ela de
volta.
- E a menininha fingiu que não tinha ouvido. Então fui até lá e arranquei a
boneca da mão dela, e então voltei para a minha cama.
Percebi imediatamente que o boá de plumas estava faltando.
- Me dá ele de volta! - gritei. Mas a menina tinha desaparecido, o que
me assustou, porque só então os meus sentidos normais voltaram, e eu soube que
se
tratava de um fantasma. Procurei o boá de plumas - debaixo das cobertas,
entre o colchão e a parede, debaixo das duas camas.
#64
Não podia acreditar que um fantasma pudesse apanhar algo real e fazer
desaparecer. Procurei aquele boá de plumas a semana inteira, em todas as
gavetas, bolsos e
cantos. Nunca o encontrei. Decidi então que a menina fantasma realmente o
havia roubado.
Agora eu consigo pensar em explicações mais racionais. Talvez Capitão
o tenha apanhado e enterrado no quintal. Ou minha mãe o tenha sugado com o
aspirador.
Provavelmente foi algo assim que aconteceu. Mas, quando eu era criança, não
tinha fronteiras rígidas entre imaginação e realidade. Kwan via o que
acreditava. Eu
via o que não queria acreditar.
Quando fiquei um pouco mais velha, os fantasmas de Kwan seguiram o
mesmo caminho das outras coisas em que as crianças acreditam, como Papai Noel,
a Fada
do Dente, o Coelho da Páscoa. Não contei isto para Kwan. E se ela ficasse
doida de novo? Em segredo, substituí as idéias dela de fantasmas e do Mundo de
Yin pelos
santos endossados pelo Vaticano e por uma vida futura condicionada ao sistema
de mérito. Adotei de bom grado o conceito de colecionar pontos por boas ações,
como
aqueles selos verdes do S&H que podiam ser colados em álbuns e trocados por
torradeiras e balanças. Só que, em vez de ganhar utensílios, você ganhava uma
passagem
só de ida para o céu, inferno ou purgatório, dependendo de quantas boas e más
ações você tinha cometido e do que os outros diziam a seu respeito. Mas, se
você conseguisse
ir para o céu, não voltava à terra como fantasma, a menos que fosse um santo.
Este provavelmente não seria o meu caso.
Uma vez perguntei a minha mãe o que era o paraíso, e ela disse que era
um lugar de férias permanentes, onde todos os seres humanos eram iguais -
reis, rainhas,
vagabundos, professores, crianças.
- Estrelas de cinema? - perguntei.
Mamãe disse que eu poderia encontrar todo tipo de pessoas, desde que
elas tivessem sido boas o bastante para entrar no paraíso. De noite,
#65
#66
#67
um amigo, Eric, cujo número apareceu na lista de recrutamento e que foi morto
no Vietnã.
- Mesmo que eles não fossem do jeito que são lembrados agora? -
Simon perguntou.
Dave fez uma pausa, depois disse:
- Sim.
- E quanto a Eric? - perguntei. - Se as pessoas se lembrarem mais
tempo de Hitler do que de Eric, isto significa que Hitler é imortal e Eric
não?
Dave fez outra pausa. Mas, antes que ele pudesse responder, Simon
disse com firmeza:
- Eric era um grande sujeito. Ninguém jamais se esquecerá de Eric.
E, se houver um paraíso, é lá que ele está agora. - Lembro que amei Simon por
ter dito
isso. Porque era o que eu também sentia.
Como é que esses sentimentos desapareceram? Será que sumiram como o
boá de plumas, quando eu não estava olhando? Será que eu devia ter tentado com
mais
afinco reencontrá-los?
Não me agarro só a rancores. Lembro-me de uma menina na minha
cama. Lembro-me de Eric. Lembro-me do poder do amor invencível. Na minha
memória, ainda
existe um lugar onde guardo todos esses fantasmas.
#68
4
A CASA DO MERCADOR FANTASMA
Minha mãe tem outro namorado, Jaime Jofré. Não preciso conhecê-lo para saber
que ele tem charme, cabelo escuro, e um green card. Fala com sotaque e minha
mãe mais
tarde vai me perguntar: "Ele não está apaixonado?" Para ela, as palavras são
mais ardentes quando um homem tem dificuldade para encontrá-las, quando ele
diz amor
com um suspiro em vez de dizer simplesmente love.
Embora seja romântica, minha mãe é uma mulher prática. Quer provas de
amor: é dando que se recebe. Um buquê, aulas de dança de salão, uma promessa
de fidelidade
eterna - isto é o homem quem decide. E há sempre o corolário de Louise do amor
que exige sacrifícios: deixe de fumar por ele e ganhe uma semana em um spa.
Ela prefere
o Calistoga Mud Baths ou o Sonoma Mission Inn. Acha que os homens que
compreendem este tipo de troca são de nações emergentes - ela jamais diria
"Terceiro Mundo".
Uma colônia dominada por um ditador estrangeiro é excelente. Quando não dispõe
de uma nação emergente, decide pela Irlanda, Índia, Irã. Acredita firmemente
que homens
que sofreram opressão e viveram em economias dominadas pelo mercado negro
sabem que há mais coisas em jogo. Esforçam-se mais para conquistar você.
Concordam em negociar.
Com base nessas premissas, minha mãe encontrou amores verdadeiros tantas vezes
quantas deixou de fumar.
#69
Que diabo, é verdade, eu estou furiosa com a minha mãe. Esta manhã ela
perguntou se podia me visitar para me animar um pouco. E então passou duas
horas comparando
o meu casamento fracassado com o dela com Bob. A recusa em se comprometer, em
fazer sacrifícios, não querer dar e só receber - esses são os defeitos que ela
notou
em Simon e Bob. E ela e eu "demos, demos, demos do fundo do coração". Ela me
filou um cigarro, depois um maço.
- Percebi o que estava para acontecer - ela disse, e tragou
profundamente. - Há dez anos. Lembra aquela vez que Simon foi para o Havaí e
deixou você em casa
com gripe?
- Eu disse a ele para ir. Tínhamos passagens de avião que não podiam
ser reembolsadas e ele só podia vender uma. - Por que eu o estava defendendo?
- Você estava doente. Ele devia ficar dando canja para você em vez de
saracotear na praia.
- Ele estava saracoteando com a avó dele. Ela tinha tido um derrame. -
Eu estava começando a parecer tão queixosa como uma criança. Ela me deu um
sorriso
cheio de compaixão.
- Queridinha, você não precisa mais negar. Sei o que você está
sentindo. Sou sua mãe, lembra? - Ela apagou o cigarro antes de assumir seu
jeito prático,
de assistente Social:
- Simon não a amava o bastante por um problema dele e não seu. Você é
capaz de despertar muito amor. Não há nada de errado com você.
Balancei a cabeça rigidamente .
- Mamãe, preciso mesmo trabalhar agora.
- Pode trabalhar. Só vou tomar mais uma xícara de café. - Olhou para o
relógio e disse: - O meu apartamento foi dedetizado contra pulgas às dez
horas. Só
para não arriscar, vou esperar mais uma hora antes de voltar.
E agora eu estou sentada na minha mesa, incapaz de trabalhar,
completamente esgotada. O que ela pensa que sabe sobre a minha capacidade de
amar? Será
que ela faz idéia de quantas vezes me magoou
#70
sem saber? Ela se queixa de que todo o tempo que passou com Bob foi um
desperdício. E quanto a mim? E quanto ao tempo que não passou comigo? Será que
isto também
não foi um desperdício? E por que estou agora dedicando minha energia a pensar
nisto? Fui outra vez reduzida a uma garota chorona. Lá estou eu, aos doze
anos, de
bruços na cama, com uma ponta do travesseiro enfiada na boca para Kwan não
escutar os meus soluços abafados.
- Libby-ah - Kwan murmura -, aconteceu alguma coisa? Você está doente?
Comeu biscoitos de Natal demais? Da próxima vez não vou fazer tantos... Libby-
ah,
você gostou do meu presente? Se não gostou pode dizer, Ok? Faço outro suéter
para você. Você pode escolher a cor. Só levo uma semana para fazer. Eu
termino, embrulho,
como se fosse outra surpresa... Libby-ah? Acho que papai e mamãe vão voltar de
Yosemite Park com um presente bonito para você, e retratos também. Neve bonita
na
montanha... Não chore! Não! Não! Você não está falando sério. Como você pode
odiar sua própria mãe? ... Oh?' Papai Bob também? Ah, zemma zaogao...
Libby-ah, Libby-ah? Posso acender a luz? Quero lhe mostrar uma coisa...
Ok, Ok! Não fique zangada! Sinto muito, vou apagar a luz. Está vendo?
Está escuro outra vez. Volte a dormir... Eu ia lhe mostrar a caneta que caiu
do bolso
do paletó do papai Bob... Você inclina para um lado e vê uma dama vestida de
azul. Inclina para o outro, wah! - o vestido cai. Eu não estou mentindo. Veja
você mesma.
Vou acender a luz. Você está preparada?.. Oh, Libby-ah, seus olhos estão tão
inchados que parecem duas ameixas! Torne a colocar a toalha molhada sobre
eles. Amanhã
não vão estar coçando tanto... A caneta? Eu a vi saltando para fora do bolso
dele quando estávamos na missa de domingo. Ele não notou porque fingia rezar.
Sei que
ele estava só fingindo, mm-hmm, porque a cabeça dele caiu de lado - booomp! -
e ele começou a roncar. Nnnnnnhhh! é verdade! Dei um empurrão nele.
#71
Ele não acordou, mas seu nariz parou de fazer aqueles ruídos. Ah, você
acha isso engraçado? Então por que está rindo?
De qualquer maneira, depois de algum tempo eu olhei para as flores de
Natal, as velas, o vidro colorido. Vi o padre sacudindo a lanterna de fumaça.
De repente
vi Jesus andando no meio da fumaça! Sim, Jesus! Achei que ele tinha vindo para
apagar suas velinhas de aniversário. Disse a mim mesma, finalmente posso vê-lo
- agora
sou uma católica! Oh, fiquei tão excitada. Foi por isso que Papai Bob acordou
e me empurrou para baixo.
Fiquei sorrindo para Jesus, mas então percebi - ah? -, aquele homem
não era Jesus e sim o meu velho amigo Lao Lu! Ele estava apontando para mim e
rindo.
- Enganei você - ele disse. - Não sou Jesus! Ei, você acha que ele é
careca feito eu? - Lao Lu se aproximou de mim. Sacudiu a mão diante do papai
Bob. Nada
aconteceu. Pôs o dedinho de leve como uma mosca na testa do papai Bob. Papai
Bob deu um tapa em si mesmo. Tirou devagarinho a caneta do bolso do papai Bob
e a fez
rolar para uma dobra da minha saia.
- Ei - Lao Lu disse. - Por que você ainda está indo a uma igreja de
estrangeiros? Você acha que um calo na bunda vai ajudá-la a ver Jesus?
Não ria, Libby-ah. O que Lao Lu disse não foi educado. Acho que ele
estava se lembrando da nossa última vida juntos, quando ele e eu tínhamos de
ficar sentados
no banco duro todos os domingos durante duas horas. Todos os domingos! A Srta.
Bandeira também. Fomos à igreja por tantos anos e nunca vimos nem Deus nem
Jesus,
nem Maria também, embora naquela época não fosse tão importante vê-la. Naquela
época, ela também era mãe do bebê Jesus, mas apenas concubina do pai dele.
Agora é
Maria isso, Maria aquilo! - Old St. Mary's, Mary's Help, Maria mãe de Deus,
perdoando os meus pecados. Fico contente por ela ter ganho uma promoção. Mas,
como eu
disse, naquela época, os Adoradores de Jesus não falavam tanto nela. Então eu
só precisava me preocupar em ver Deus e Jesus. Todo domingo, os Adoradores de
Jesus
me perguntavam:
#72
- Você acredita? - Eu tinha de dizer que ainda não. Queria dizer que
sim para ser gentil. Mas aí eu estaria mentindo, e quando eu morresse talvez
eles viessem
atrás de mim e me obrigassem a pagar dois tipos de multa para o diabo
estrangeiro, uma por não acreditar, outra por fingir que acreditava. Eu achava
que não podia
ver Jesus porque tinha olhos chineses. Mais tarde descobri que a Srta.
Bandeira também nunca viu nem Jesus nem Deus. Ela me disse que não era uma
pessoa religiosa.
Eu disse:
- E por quê, Srta. Bandeira?
E ela disse:
- Rezei para Deus salvar os meus irmãos. Rezei para ele poupar a minha
mãe. Rezei, pedindo para o meu pai voltar para mim. A religião ensina que a fé
se
encarrega da esperança. Todas as minhas esperanças se foram, então por que eu
preciso da fé?
- Ai! - disse eu. - Isto é muito triste! Você não tem qualquer
esperança?
- Muito poucas - ela disse. - E nenhuma que valha uma reza.
- E quanto ao seu namorado?
Ela suspirou.
- Decidi que ele também não vale uma reza. Ele me abandonou, você
sabe. Escrevi cartas para um oficial da marinha em Shangai. Meu namorado
esteve lá. Esteve
em Cantão. Esteve até em Guilin. Ele sabe onde estou. Então por que não veio?
Fiquei triste ao ouvir isso. Na época, eu não sabia que o namorado
dela era o General Capa.
- Ainda tenho muita esperança de encontrar a minha família - eu disse.
- Talvez eu devesse me tornar uma Adoradora de Jesus.
- Para ser uma adoradora de verdade - ela disse -, você tem de dar
todo o seu corpo para Jesus.
- Quanto você dá?
Ela ergueu o polegar. Fiquei perplexa, porque todo domingo ela pregava o
sermão. Achei que isto devia valer pelo menos duas pernas. É claro que
#73
ela não tinha escolha a não ser pregar. Ninguém compreendia os outros
estrangeiros, e eles não conseguiam nos entender. O chinês deles era tão ruim
que parecia com
o inglês. A Srta. Bandeira tinha de servir de intermediária para Pastor Amém.
Pastor Amém não pediu. Ele disse que ela tinha de fazer isso, senão não
haveria lugar
para ela na Casa do Mercador Fantasma.
Então, todo domingo de manhã, ela e Pastor ficavam na porta da igreja.
Ele gritava em inglês:
- Bem-vindos, bem-vindos!
A Srta. Bandeira traduzia para o chinês:
- Venham depressa para a Casa de Deus! Comam arroz depois da reunião!
A Casa de Deus era na verdade o templo familiar do Mercador Fantasma.
Ele pertencia aos seus ancestrais mortos e seus deuses. Lao Lu achava muito
mal-educado
da parte dos estrangeiros escolher aquele lugar para ser a Casa de Deus.
- Como uma bofetada na cara - ele dizia. - O Deus da Guerra vai fazer
cair bosta de cavalo do céu, espere só. - Lao Lu era assim - você o deixava
zangado,
ele dava o troco.
Os missionários sempre entravam primeiro, a Srta. Bandeira em
segundo, depois Lao Lu e eu, bem como os outros chineses que trabalhavam na
Casa do Mercador
Fantasma - o cozinheiro, as duas criadas, o cocheiro, o carpinteiro e não me
lembro quem mais. Os visitantes entravam na Casa de Deus por último. Eram na
maioria
mendigos, uns poucos Adoradores de Deus hakkas, e também uma velha que juntava
as mãos e se inclinava três vezes diante do altar, embora já tivessem dito a
ela inúmeras
vezes para não fazer mais isso. Os recém-chegados se sentavam nos
últimos bancos - acho que era para o caso de o Mercador Fantasma voltar e eles
terem de
fugir. Lao Lu e eu tínhamos de nos sentar na frente com os missionários,
gritando "Amém!" sempre que o pastor erguia as sobrancelhas. Era por isso que
o chamávamos
de Pastor Amém - também porque o nome dele soava como Amém, Hammond ou
Halliman, algo assim.
#74
#75
brigando. Muito chato! Por duas horas tivemos de ficar sentados, imóveis, com
nossas bundas e nossos cérebros ficando dormentes.
No fim do sermão, havia um pequeno show, usando a caixa de música que
pertencia à Srta. Bandeira. Todo mundo gostava muito desta parte. O canto não
era tão
bom, mas, quando a música começava, sabíamos que nosso sofrimento estava quase
chegando ao fim. Pastor Amém erguia as duas mãos e nos mandava levantar. A
Sra. Amém
ia até a
frente da sala. Assim como a missionária nervosa chamada Lasher, como laoshu,
"camundongo", então era assim que nós a chamávamos, Srta. Camundongo. Havia
também
um médico estrangeiro chamado Swan, que soava como suanale, "tarde demais" -
não era de espantar que as pessoas doentes ficassem amedrontadas ao vê-lo. O
Dr. Tarde
Demais era encarregado de abrir a caixa de música da Srta. Bandeira e lhe dar
corda com uma chave. Quando a música começava, os três cantavam. A Sra. Amém
derramava
lágrimas. Algumas das pessoas mais idosas perguntavam alto se a caixa continha
estrangeiros pequeninos.
A Srta. Bandeira me disse um dia que a caixa de música era um presente
do pai dela, a única lembrança da família que ela tinha. Lá dentro, ela
guardava um
pequeno álbum para anotar seus pensamentos. A música, ela disse, era na
verdade uma canção alemã que falava em beber cerveja, dançar e beijar lindas
garotas. Mas
a Sra. Amém tinha escrito outra letra, que eu ouvi centenas de vezes, mas
apenas como um conjunto de sons: "Nós estamos marchando felizes com Jesus,
quando a Morte
dobrar a esquina, encontraremos Nosso Senhor. " Algo assim. Sabe, eu me lembro
da velha canção, mas agora as palavras têm outro sentido. Bem, esta era a
canção que
ouvíamos toda semana, dizendo a todo mundo para sair e comer uma tigela de
arroz, um presente de Jesus, para muitos mendigos que achavam que Jesus era um
proprietário
de terras com muitas plantações de arroz.
No segundo domingo, Pastor Amém falou por cinco minutos, a Srta.
Bandeira três. Então o pastor falou mais cinco minutos, a Srta. Bandeira
#76
um. Tudo se tornou cada vez mais curto do lado chinês, e as moscas só beberam
o nosso suor durante uma hora e meia naquele domingo. Na semana seguinte, foi
só por
uma hora. Mais tarde, Pastor Amém teve uma longa conversa com a Srta.
Bandeira. Na semana seguinte, Pastor Amém falou durante cinco minutos, a Srta.
Bandeira também.
Mais uma vez Pastor Amém falou por cinco minutos, a Srta. Bandeira também. Mas
agora ela não falava sobre as regras para se ir para o céu. Ela dizia:
- Era uma vez, num reino muito distante, um gigante e uma filha
dedicada de um pobre carpinteiro que era na verdade um rei... - E, no fim dos
cinco minutos,
ela parava numa parte bem excitante e dizia algo como: - Agora eu tenho de
deixar pastor falar durante cinco minutos. Mas,
enquanto vocês esperam, perguntem a si mesmos: será que a princesinha morreu
ou ela salvou o gigante? - Depois que o sermão e a história terminavam, ela
mandava
as pessoas gritarem "Amém" se estivessem prontas para comer sua tigela de
arroz. Ah, os gritos eram animados!
Aqueles sermões de domingo se tornaram muito populares. Muitos
mendigos vinham ouvir a Srta. Bandeira contar as histórias da sua infância. Os
Adoradores
de Jesus estavam contentes. Os comedores de arroz estavam contentes. A Srta.
Bandeira estava contente. Eu era a única que estava preocupada. E se Pastor
Amém descobrisse
o que ela estava fazendo? Será que ele ia bater nela? Será que os Adoradores
de Deus iam derramar brasas sobre o meu corpo por ensinar uma estrangeira a
ter uma
língua chinesa desobediente? Será que Pastor Amém ficaria desacreditado e
teria de se enforcar? Será que as pessoas que vinham para comer arroz e ouvir
histórias
e não por causa de Jesus iriam para um inferno estrangeiro?
Quando contei minhas preocupações à Srta. Bandeira, ela riu e disse
que nada disso aconteceria. Perguntei como ela podia saber. Ela disse:
- Se todo mundo está feliz, o que pode acontecer de ruim? Recordei o
que o homem que voltou para a Montanha do Cardo tinha dito:
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- Felicidade demais sempre transborda em lágrimas de dor.
#78
#79
5
DIA DE LAVAR ROUPA
O telefone toca às oito em ponto. Esta é a terceira manhã seguida que Kwan
liga exatamente no momento em que estou passando manteiga na torrada. Antes
que eu possa
dizer alô, ela dispara:
- Libby-ah, pergunte a Simon - nome da loja de consertar estéreo, qual
é?
- O que há de errado com o seu estéreo?
- Errado? Ahhhh... barulho demais. Sim-sim, eu ligo o rádio, ele faz
cccchhhhhsssss.
- Você tentou ajustar a freqüência?
- Sim-sim! Ajusto sempre.
- Que tal ficar longe do estéreo? Talvez você esteja conduzindo muita
estática hoje. Estão anunciando chuva.
- Ok-Ok, talvez tente isto primeiro. Mas, só por precaução, ligue para
Simon, pergunte o nome da loja.
Estou de bom humor. Quero ver até onde ela vai com a desculpa.
- Conheço a loja - digo, e tento encontrar um nome plausível. - Sim, é
Bogus Boomboxes. Na Market Street. - Praticamente posso ouvir a mente de Kwan
zumbindo
e estalando alternadamente.
Finalmente ela ri e diz:
- Ei, garota malvada - mentira! Não é esse nome.
- E não há qualquer problema com o estéreo - digo.
#80
- Ok-Ok. Você liga para Simon, diz a ele que Kwan deseja feliz
aniversário.
- Na verdade, eu ia ligar para ele pelo mesmo motivo.
- Oh, você tão má! Por que me tortura, me envergonha desse jeito! -
Ela dá uma risada estridente, depois engasga e diz: - Oh, Libby-ah, e depois
de Simon
liga para mamãe.
- Por quê? O estéreo dela também quebrou?
- Não brinque. O coração dela está mal.
Fico alarmada.
- O que foi que houve? É alguma coisa grave?
- Mm-hrnrn. Tão triste. Você se lembra do novo namorado dela, Ai Mei
Rofri?
- Rai-mei ro-frei - pronuncio devagar. - Jaime Jofré.
- Eu sempre me lembro, Ai Mei Rofri. E foi isso que ele fez! Acontece
que já era casado. Dama chilena. Ela aparece, belisca a orelha dele, leva para
casa.
- Não! - Uma onda de alegria invade o meu rosto e mentalmente dou um
tapa em mim mesma.
- Sim-sim, mamãe está tão zangada! Semana passada ela comprou duas
passagens para um cruzeiro no barco do amor. Rofri diz use seu Visa, eu pago
de volta.
Agora nem dinheiro, nem cruzeiro. Ah! Pobre mamãe, sempre acha homem errado...
Ei, talvez eu banque a casamenteira para ela. Escolho melhor para ela do que
ela mesma.
Se fizer bom casamento, vai me trazer sorte.
- E se não for tão bom?
- Então tenho de consertar, fazer melhor. Meu dever.
Depois que desligamos, penso no dever de Kwan. Não é de espantar que
ela considere o meu divórcio um fracasso pessoal e profissional da parte dela.
Ela ainda
acredita que foi nossa mei-po espiritual, nossa casamenteira cósmica. E eu não
posso dizer a ela que não foi. Fui eu que pedi a ela para convencer Simon de
que estávamos
destinados um ao outro, unidos pelo destino.
#81
#82
#83
Nós dois tínhamos tido tartarugas de estimação; as dele morreram depois que
ele as deixou cair acidentalmente dentro de uma piscina tratada com cloro. Nós
dois tínhamos
sido crianças solitárias, abandonadas a responsáveis - ele a duas irmãs
solteiras de sua mãe, eu a Kwan.
- Minha mãe me deixou aos cuidados de uma pessoa que conversava com
fantasmas! - disse a ele uma vez. - Meu Deus! Não sei como você não é mais
doida do
que já é. - Rimos e eu fiquei atordoada por estarmos rindo
do que um dia tinha me causado tanto sofrimento.
Grande mamãe - acrescentei. - Ela é a típica assistente social,
totalmente obcecada em ajudar estranhos e ignorando a própria família. Não
faltaria à hora
marcada com a manicure para erguer um dedo para ajudar os filhos. Isso é que é
fingimento! Não que fosse algo patológico, mas, você sabe...
E Simon completou:
- É, até mesmo uma negligência benigna pode doer a vida inteira.
- Isto era exatamente o que eu sentia e não conseguia expressar em palavras. E
então
ele capturou meu coração: - Talvez a falta de atenção dela seja o que a tenha
tornado forte como você é hoje. - Concordei enfaticamente e ele continuou: -
Estava
pensando nisso porque a minha namorada, você sabe, Elza, bem, ela perdeu os
pais quando era bebê. E que pessoa decidida - opa!
Era assim quando estávamos juntos, íntimos em todos os aspectos -
até certo ponto. Eu percebia que nos sentíamos atraídos um pelo outro. Do meu
lado,
havia uma forte carga sexual. Do dele era mais como uma onda de estática - da
qual ele se desvencilhava facilmente:
- Ei, Laguni - ele dizia, e punha a mão com firmeza no meu ombro. -
Estou exausto, tenho de correr. Mas, se você quiser repassar a matéria este
fim de
semana, ligue para mim. - Com esta dispensa jovial, eu voltava para o meu
apartamento, sem nada para fazer numa noite de sexta-feira, porque tinha
recusado um encontro
na esperança de que Simon me convidasse para sair. Nessa época eu estava
idiotamente apaixonada por
#84
Simon - olhares doces, voz melosa, cabeça nas nuvens, totalmente caída. Muitas
vezes eu ficava deitada na cama, aborrecida por sentir tanto desejo. Pensava:
será
que estou maluca? Será que só eu me sinto assim? Claro, ele tem uma namorada.
E daí? Como todo mundo sabe, quando se está na faculdade e mudando a cabeça a
respeito
de milhões de coisas, uma namorada pode se transformar em ex-namorada da noite
para o dia.
Mas Simon não parecia saber que eu estava flertando com ele.
- Sabe o que eu gosto em você? - ele me perguntou. - Você me trata como
um bom camarada. Podemos conversar sobre qualquer coisa sem deixar que aquela
outra
coisa atrapalhe.
- Que outra coisa?
- O fato de sermos... Bem, você sabe, de sexos opostos.
- É mesmo? - eu disse, fingindo espanto. - Você quer dizer que eu sou
uma garota mas você é - eu não fazia a menor idéia! - E então caímos na
gargalhada.
De noite eu chorei amargamente, dizendo a mim mesma que eu era uma
idiota. Jurei muitas vezes desistir da esperança de ter um romance com Simon -
como se fosse
possível me obrigar a não estar apaixonada! Mas pelo menos eu sabia como me
comportar. Continuei a bancar a companheira jovial, ouvindo com um sorriso nos
lábios
e um aperto no coração. Esperava pelo pior. E sem dúvida, mais cedo ou mais
tarde, ele ia falar sobre Elza, como se soubesse que ela estava também na
minha mente.
Durante três meses de atenção masoquista, vim a conhecer os detalhes da
vida dela: que ela morava em Salt Lake City , onde ela e Simon tinham sido
criados,
brigando um com o outro desde a quinta série. Que ela tinha uma cicatriz de
seis centímetros atrás do joelho esquerdo, com forma e cor de minhoca, um
legado misterioso
da infância. Que era atlética; andava de caiaque, fazia caminhadas e era uma
ótima esquiadora cross-country. Que tinha dotes musicais, tinha talento para
compor,
e tinha estudado com Artur Balsam em um famoso acampamento musical de verão
em Blue Hill, Maine. Tinha até escrito a sua própria variação
#85
- Eu detesto discutir.
- Não quero dizer discutir no sentido de brigar. Mais de debater, como
nós dois fazemos.
Detestava ser comparada e ficar em desvantagem. Tentei parecer
brincalhona.
- Oh? E o que é que vocês dois debatem?
- Coisas como será que as celebridades têm uma responsabilidade como
símbolos e não só como pessoas. Você se lembra quando Muhammad Ali se recusou
a ser
recrutado?
- Claro - menti.
- Elza e eu achamos que ele foi o máximo, tomando um partido assim
pessoal contra a guerra. Mas depois ele recuperou o título dos pesos pesados e
o falecido
presidente Ford convidou-o a ir à Casa Branca. Elza disse: "Você pode
acreditar nisso?" Eu disse: "Que diabo, se eu fosse convidado, também iria à
Casa Branca. "
E ela disse: "Convidado por um presidente republicano? Durante um ano
eleitoral?" Ela escreveu uma carta para ele.
- Para o presidente?
- Não, para Muhammad Ali.
- Oh, certo. É claro.
- Elza diz que você não pode apenas conversar sobre política ou
assistir ao que acontece pela televisão. Você tem de fazer alguma coisa, senão
se torna parte
daquilo.
- Parte de quê?
- Você sabe, da hipocrisia. É o mesmo que corrupção.
Imaginei Elza parecida com Patty Hearst, usando uma boina e uniforme
de combate, com um rifle automático pousado nos quadris.
- Ela acredita que todas as pessoas devem assumir uma posição moral
ativa na vida. Senão, o mundo vai acabar dentro de trinta anos ou menos.
Muitos amigos
nossos dizem que ela é pessimista. Mas ela acha que é a verdadeira otimista,
porque quer fazer alguma coisa para mudar o mundo de uma forma positiva. Se
você pensar
bem, ela tem razão.
Enquanto Simon ia ficando mais expansivo acerca das opiniões ridículas
de Elza, eu analisava sonhadoramente as feições dele, o quanto
#87
#88
- Os pais dela eram mórmons, mas eles a adotaram quando ela tinha um
ano de idade e a chamaram de Elsie, Elsie Marie Vandervort. Ela não sabe quem
foram
seus pais biológicos. Mas, desde os seis anos, antes de saber ler música, ela
ouvia uma canção uma única vez e depois conseguia tocá-la, nota por nota, sem
erro.
E gostava especialmente da música de Chopin, Paderewski, Mendelssohn,
Gershwin, Copland - me esqueci dos outros. Mais tarde descobriu que todos
eles eram ou poloneses
ou judeus. Issonão é estranho? Então isso a fez pensar que ela era
provavelmente judia polonesa. E começou a chamar a si mesma de Elza em vez de
Elsie.
- Gosto de Bach, Beethoven e Schumann - eu disse -, mas isto não faz
de mim uma alemã.
- Não era só isso. Quando ela tinha dez anos, aconteceu uma coisa que
vai parecer esquisita, mas que eu juro que foi verdade, porque eu assisti a
uma parte
dela. Ela estava na biblioteca da escola, folheando uma enciclopédia, e viu
uma foto de uma criança chorando e sua família, cercados por soldados. A
legenda dizia
que eram judeus sendo levados para Auschwitz. Ela não sabia onde ficava
Auschwitz e nem que se tratava de um campo de concentração. Mas sentiu
literalmente um cheiro
horrível que a fez tremer e sentir náuseas. E então ela caiu de joelhos e
começou a entoar: "Osh-vee-en-shim, osh-vee-en-shim", ou algo parecido. A
bibliotecária
sacudiu-a, mas Elza não parou - ela não conseguia. Então a bibliotecária
arrastou-a até a enfermeira da escola, Sra. Schneebaum. E a Sra. Schneebaum,
que era polonesa,
ouviu Elza dizendo "Osh-vee-en-shim" e ficou histérica. Achou que Elza estava
dizendo aquilo para zombar dela. Bem, veja só: "Oswiecim " é como se diz
Auschwitz
em polonês. Depois que Elza saiu do transe, ela soube que seus pais eram
judeus poloneses que tinham sobrevivido a Auschwitz.
- O que você quer dizer com ela soube?
- Ela simplesmente soube - como falcões sabem flutuar em correntes de
ar, como coelhos ficam paralisados de medo. É um conhecimento que
#89
não pode ser ensinado. Ela disse que as lembranças de sua mãe passaram do
coração para o útero, e que estão agora indelevelmente impressas nas paredes
do cérebro
dela.
- O que é isso! - eu disse incredulamente. - Ela parece a minha irmã
Kwan.
- Como assim?
- Oh, ela simplesmente recupera qualquer teoria velha para dar conta do
que acredita. De qualquer modo, instinto biológico e lembranças emocionais não
são
a mesma coisa. Talvez Elza tivesse lido ou ouvido falar de Auschwitz antes e
não se lembrasse. Você sabe como as pessoas costumam ver velhas fotos ou
filmes e mais
tarde pensam que são lembranças pessoais. Ou têm uma experiência de déjà vu -
e se trata apenas de uma má sinapse introduzindo uma percepção sensorial
imediata na
memória de longo prazo. Quer dizer, ela ao menos parece polonesa ou judia? -
E, assim que eu disse isso, tive um pensamento perigoso. Você tem um retrato
dela? -
perguntei o mais naturalmente que pude.
Enquanto Simon pegava a carteira, podia sentir meu coração acelerando
como um carro de corrida, pronto para dar a largada. Temia que ela fosse
incrivelmente
linda - uma mistura de Ingrid Bergman, iluminada pelas luzes da pista do
aeroporto, com Lauren Bacall, entediada dentro de um bar cheio de fumaça.
O retrato mostrava uma garota acostumada a viver ao ar livre, recortada
contra a luz do entardecer, cabelos crespos emoldurando um rosto mal-humorado.
O nariz
era longo, o queixo pequeno demais, o lábio inferior para fora no meio de uma
frase, de modo que ela parecia um buldogue. Estava em pé ao lado de uma
barraca de
camping, com as mãos nos quadris avantajados. O short jeans era apertado
demais, formando pregas nas virilhas. Havia também uma ridícula camiseta, com
"Questione
a Autoridade" estampado sobre os seios grandes.
Pensei comigo mesma, ora, ela não é uma beleza. Não é nem bonitinha. É
tão sem graça quanto um cachorro polonês sem mostarda.
#90
Estava tentando evitar um sorriso, mas podia ter dançado a polca de tão feliz.
Sabia que me comparar com ela daquele jeito era superficial e irrelevante. Mas
não
pude deixar de me sentir alegremente superior, achando que eu era mais bonita,
mais alta, mais magra, mais alinhada. Você não tinha de gostar de Chopin ou de
Paderewski
para saber que Elza descendia de camponeses eslavos. Quanto mais eu olhava,
mais me alegrava. Até ver finalmente os demônios da minha insegurança, e eles
não eram
mais ameaçadores do que seus joelhos de querubim.
Que diabo Simon viu nela? Tentei ser objetiva, olhar para ela do ponto
de vista masculino. Ela era atlética, era isso. E certamente dava a impressão
de ser
inteligente, mas de uma forma intimidante, antipática. Seus seios eram muito
maiores do que os meus; eles poderiam agir a seu favor se Simon fosse estúpido
o bastante
para gostar de globos carnudos que um dia iriam ficar pendurados até a
cintura. Podia-se dizer que seus olhos eram interessantes, oblíquos e felinos.
Embora, ao
se olhar com mais atenção, eles fossem perturbadores, marcados por profundas
olheiras. Ela estava olhando diretamente para a câmera e seu olhar era ao
mesmo tempo
penetrante e vazio. Sua expressão sugeria que ela conhecia os segredos do
passado e do futuro e que eram todos tristes.
Concluí que Simon havia confundido lealdade com amor. Afinal de contas,
ele conhecia Elza desde a infância. De certa forma, você tinha de admirá-lo
por isso.
Devolvi-lhe o retrato, tentando não mostrar meu contentamento.
- Ela parece terrivelmente séria. Isso é algo que se herda por ser um
judeu polonês?
Simon estudou a foto.
- Ela pode ser engraçada quando quer. Consegue imitar qualquer
pessoa - gestos, maneiras de falar, sotaques estrangeiros. Ela é cômica. Pode
ser. Às
vezes. Mas - Ele parou, indeciso. - Mas você tem razão. Ela fica remoendo um
bocado, imaginando que as coisas deviam ser melhores, por que deveriam, até
entrar em
fossa. Sempre foi assim, pensativa, séria, acho que se poderia até dizer
deprimida.
#91
Não sei de onde vem isso. Às vezes ela pode ser tão, você sabe, irracional - e
ele ficou calado, aparentemente perturbado, como se a estivesse enxergando sob
uma
nova luz e suas feições se tornassem desinteressantes.
Guardei essas deliciosas observações como armas para usar no
futuro. Ao contrário de Elza, eu me tornaria uma otimista de verdade. Eu
agiria. Em contraste
com a soturnidade dela, eu seria animada. Em vez de ser crítica, admiraria os
insights de Simon. Também me posicionaria politicamente. Mas riria com
freqüência e
mostraria a Simon que a vida com uma alma gêmea espiritual não precisava ser
triste e sombria. Estava determinada a fazer tudo o que fosse necessário para
arrancá-la
do coração de Simon.
Depois de ver o retrato de Elza, achei que ela seria fácil de desbancar.
Tolice minha, eu não sabia que ia ter de arrancar Simon das garras de um
fantasma.
Mas aquele dia eu fiquei tão feliz que até aceitei um convite de Kwan para
jantar. Levei minha roupa suja e só para ser agradável fingi prestar atenção
aos conselhos
dela.
Libby-ah, deixe-me fazer isso. Você não sabe usar a minha máquina de lavar.
Nem muito sabão nem tão quente, sempre vire os bolsos para fora...
Libby-ah, ai-ya, por que você tem tantas roupas pretas? Você devia usar
cores bonitas! Florzinhas, bolinhas, roxo é uma boa cor para você. Branco, eu
não gosto.
Não por superstição. Algumas pessoas acham que branco significa morte. Nada
disso. No Mundo de Yin, existem muitas, muitas cores que você nem imagina,
porque você
não as pode ver com os olhos. Você tem de usar os seus sentidos secretos,
imaginá-las quando está cheia de sentimentos e lembranças verdadeiras, tanto
alegres quanto
tristes. O alegre e o triste às vezes vêm da mesma coisa, sabia disto?
Bom, eu não gosto de branco porque suja demais, é muito difícil de
limpar. Não é prático. Eu sei, porque na minha última vida, tive de lavar
muita roupa branca
- montes e montes. Era uma das maneiras de pagar pelo meu quarto na Casa do
Mercador Fantasma.
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#94
cestas até a área dos fundos, onde havia dois abrigos ao longo do muro, um
para uma mula, outro para uma búfala. Entre os dois abrigos havia uma corda
bem esticada.
E era ali que eu pendurava as roupas para secar. À minha esquerda
havia outro muro e um corredor que ia dar num amplo jardim, cercado de altos
muros de pedra.
Era um lindo lugar, antigamente cuidado por vários jardineiros, agora
abandonado e selvagem. As pontes de pedra e as rochas ornamentais ainda
estavam lá, mas os
laguinhos estavam secos, não havia peixes, só mato. Tudo estava emaranhado -
os arbustos floridos, os galhos das árvores, mato e vinhas. Os caminhos
estavam cheios
de folhas e botões de vinte estações, macios e frescos sob meus pés. Os
caminhos subiam e desciam de forma surpreendente, fazendo-me sonhar que estava
subindo a
Montanha do Cardo. O topo de uma dessas colinas dava apenas para conter um
pequeno pavilhão. Dentro do pavilhão havia bancos de pedra cobertos de limo.
No meio do
chão de pedra havia um lugar queimado. Deste pavilhão, eu podia olhar por cima
do muro, ver a aldeia, os picos de calcário, o arco que dava no próximo vale.
Toda
semana, depois de lavar a roupa, eu molhava ovos de pata no resto da cal e os
enterrava no jardim para defumar. E quando terminava, ficava no pavilhão,
fingindo
que o mundo que avistava além do muro era meu. Fiz isso por muitos anos, até
que um dia Lao Lu me viu parada ali. Ele disse:
- Ai, Nunumu, não vá mais lá em cima, foi lá que o mercador Punti
morreu, no pavilhão.
Lao Lu disse que o mercador estava lá em pé uma noite, com suas quatro
esposas lá embaixo. Ele olhou para o céu e viu uma nuvem de pássaros negros. O
mercador
amaldiçoou-os e então ardeu em chamas. Wah! O fogo rugiu, a gordura do
mercador chiou e respingou. Lá embaixo, suas esposas aterrorizadas gritaram,
sentindo o cheiro
picante de
chili frito e alho. De repente, o fogo apagou e uma fumaça com a forma do
mercador subiu e se dissolveu no ar. Quando as esposas chegaram no pavilhão,
não encontraram
cinzas, só restavam os pés e os sapatos dele.
#95
#96
#97
um traidor do povo hakka, e que também a iria trair. Ela ficou muito zangada
comigo, como se eu tivesse dizendo aquilo como uma maldição. Disse que o
General Capa
era um herói, que ele só a tinha deixado em Cantão para ajudar os Adoradores
de Deus. Então eu contei a ela o que o homem que voltou para a Montanha do
Cardo tinha
dito: que o General Capa tinha se casado com a filha de um banqueiro chinês
por dinheiro. Ela disse que o meu coração era carne podre e que minhas
palavras eram
larvas se alimentando de boatos. Disse que, se eu acreditava naquelas coisas
sobre o General Capa, então não era mais sua leal amiga.
Eu disse a ela:
- Quando você acredita em alguma coisa, como pode parar de acreditar
de repente? Quando você é uma amiga leal, como pode deixar de ser? - Ela não
respondeu.
Tarde da noite, eu ouvi a caixa de música tocando, a que o pai tinha
dado a ela quando ela era menina. Ouvi a música que fez lágrimas saltarem dos
olhos
da Sra. Amém, mas agora a música estava fazendo um homem beijar uma moça. Ouvi
a Srta. Bandeira suspirar, e tornar a suspirar. E sua felicidade foi tão
grande que
se derramou, se infiltrou no meu quarto e se transformou em lágrimas de
tristeza.
Eu tinha voltado a lavar minha roupa na casa de Kwan. Simon costumava se
encarregar da lavagem - esta era uma das coisas boas de estar casada com ele.
Ele gostava
de arrumar a casa, colocar lençóis limpos e esticá-los na cama. Desde que ele
foi embora, tive de lavar minhas roupas. As máquinas que funcionam com moedas
ficam
no porão do meu prédio, e a umidade e a luz fraca me causam arrepios. A
atmosfera mexe com a minha imaginação. Mas, na verdade, Kwan também.
Sempre espero até não ter mais roupa de baixo limpa. E então atiro
três sacos cheios de roupa suja no carro e me dirijo a Balboa Street. Mesmo
agora, enquanto
enfio minhas roupas na máquina de secar de
#98
Kwan, penso na história que ela me contou no dia em que estava cheia de
esperanças amorosas. Quando ela chegou na parte que falava na alegria se
transformando em
tristeza, eu disse:
- Kwan, não quero mais ouvir isso.
- Ah? Por quê?
- Isso me aborrece. E neste momento eu quero ficar de bom humor.
- Talvez se eu contar mais, você não fique aborrecida. Você veja o
erro que a Srta. Bandeira cometeu...
- Kwan - eu disse. - Não quero ouvir falar na Srta. Bandeira. Nunca
mais.
Que poder! Que alívio! Fiquei espantada com a força que Simon me fez
sentir. Eu podia enfrentar Kwan. Podia decidir a quem devia escutar e por quê.
Podia
estar com alguém como Simon, que era racional, lógico e são.
Nunca pensei que também fosse encher a minha vida de fantasmas.
II
#101
VAGA-LUMES
Foi na noite que Simon me beijou pela primeira vez que eu finalmente soube a
verdade a respeito de Elza. O período escolar da primavera tinha terminado e
caminhávamos
pelas colinas atrás do campus de Berkeley, fumando um baseado. Era uma noite
quente de junho e nós chegamos numa área em que luzinhas brancas faiscavam nos
carvalhos
como se fosse Natal.
- Será que estou tendo alucinações? - perguntei.
- Vaga-lumes - Simon respondeu. - Eles não são incríveis?
- Você tem certeza? Não achava que eles existissem na Califórnia.
Nunca os vi antes.
- Talvez algum estudante os tenha criado para uma experiência e depois
os tenha soltado.
Sentamo-nos no tronco de uma árvore caída. Dois insetos faiscantes
ziguezagueavam um na direção do outro, dando a impressão de uma atração casual
e ao mesmo
tempo predestinada. Eles acendiam e apagavam como aviões se dirigindo para a
mesma pista, cada vez mais próximos, até brilharem por um instante como se
fossem um
só, logo depois se apagando e se separando.
- Isto é romance para você - eu disse.
Simon sorriu e olhou para mim. Colocou desajeitadamente o braço o
redor da minha cintura. Passaram-se dez segundos, vinte, e nós não
#102
tínhamos nos movido. Meu rosto ficou quente, meu coração batia depressa,
enquanto compreendia que estávamos cruzando os limites da amizade, prontos
para saltar a
cerca e correr para a floresta. E foi assim mesmo, nossas bocas, como aqueles
vaga-lumes, se moveram hesitantes na direção uma da outra. Fechei os olhos
quando os
lábios dele alcançaram os meus, ambos trêmulos e inseguros. Quando me
aproximei mais para que ele pudesse me abraçar com mais paixão, ele me soltou,
praticamente
me empurrou. E começou a se desculpar.
- Oh, Deus, sinto muito. Gosto realmente de você, Olivia. Um bocado.
Mas é complicado, porque - bem, você sabe.
Afastei um inseto do tronco com um peteleco, fiquei olhando tolamente
enquanto ele se debatia de costas.
- Sabe, a última vez que a vi, tivemos uma briga horrível. Ela ficou
muito zangada comigo, e eu não a vi mais desde então. Isto foi há seis meses.
A questão
é que ainda a amo. Mas...
- Simon, você não precisa dar explicações. - Fiquei em pé, com as pernas
bambas. - Vamos simplesmente esquecer, Ok?
- Olivia, sente-se. Por favor. Tenho de contar para você. Quero que
você compreenda. É importante.
- Me solte. Esqueça, OK? Que merda! Finja que nunca aconteceu!
- Espere. Volte. Sente-se, por favor, Olivia. Preciso contar isso para
você.
- Mas para quê, droga?
- Porque eu acho que também amo você.
Prendi a respiração. É claro que eu preferia que ele não tivesse
qualificado sua declaração com "eu acho" e "também", como se eu pudesse fazer
parte de um
harém emocional. Mas, apaixonada como eu estava, "amor" já era o bastante para
funcionar como bálsamo e isca. Sentei.
- Se você ouvir o que aconteceu - ele disse -, talvez possa entender
por que levei tanto tempo para dizer o que sinto por você.
#103
#104
#105
Logo adiante, ela estava sentada no alto de uma saliência, chorando. Chamei
por ela e ela olhou para cima, realmente zangada. Ela se levantou e começou a
descer
pela encosta íngreme. Ainda consigo ver: a neve, era incrível, pura e
insondável. E ela deslizava pela linha de desnível. Mas, na
metade do caminho, ela alcançou uma neve mais pesada, seus esquis afundaram e
ela parou.
Olhei para os olhos de Simon. Eles estavam fixos em algo muito distante
e perdido, e eu fiquei assustada.
- Gritei o nome dela o mais alto que pude. Ela estava revolvendo a neve
com os bastões, tentando soltar a ponta dos esquis. Tornei a gritar: "Pelo
amor de
Deus, Elza!", e ouvi aquele barulho, como um tiro abafado, e então ficou tudo
quieto de novo. Ela se virou. Estava apertando os olhos - devia estar ofuscada
pelo
sol. Acho que ela não chegou a ver a encosta, duzentos metros acima dela.
Estava se rompendo vagarosamente, sem ruído, como um zíper gigantesco se
abrindo. A costura
se transformou numa fenda, uma sombra azul gelada. E então começou a se
alastrar rapidamente. A fenda desceu um pouco, e era enorme, transparente como
um rinque
de gelo. Então tudo começou a ribombar, o chão, meus pés, meu peito, minha
cabeça. E Elza, eu posso dizer que ela sabia. Ela estava lutando para se
livrar dos esquis.
Como Elza, eu sabia o que estava por vir.
- Simon, acho que não quero ouvir mais nada...
- Ela se livrou dos esquis e da mochila. Começou a saltar pela neve,
enterrada até os quadris. Comecei a berrar: "Vá para o lado!" E então a
montanha despencou
e só o que pude ouvir foi aquele rugido de trem, árvores se partindo, fileiras
inteiras, quebrando como palitos.
- Oh, Deus - murmurei.
- Ela estava deslizando no topo da avalanche - é isso que se tem de
fazer, deslizar, deslizar, deslizar sem parar. E então... ela foi engolida...
sumiu. Tudo
rangeu e se ajeitou, e ficou perfeitamente imóvel. Eu sentia o cheiro de
pinho das árvores quebradas. Minha cabeça corria a um milhão de milhas por
minuto. Não
entre em pânico, disse a mim mesmo, se você entrarem pânico está tudo acabado.
Desci pelo lado, entre as árvores onde
#106
a neve estava intacta. Fiquei repetindo para mim mesmo, lembre onde foi que
ela afundou. Procure pelos esquis apontando na neve. Use um dos seus esquis
como marcador.
Cave com o seu bastão. Vá fazendo um círculo cada vez maior.
"Mas, quando eu cheguei no fundo, nada parecia igual ao que eu tinha
visto do alto. O ponto que eu tinha marcado na minha cabeça, merda, não estava
lá, só
aquela enorme extensão de entulho de neve, pesada como cimento molhado. Fiquei
tropeçando ali em volta, sentindo como se estivesse num desses pesadelos em
que suas
pernas ficam paralisadas.
- Simon - eu disse -, você não tem de...
Mas ele continuou falando:
- De repente, uma estranha calma me atingiu, o olho do furacão. Pude ver
Elza na minha mente, o lugar onde ela estava. Éramos tão ligados. Ela estava
me guiando
com seus pensamentos. Fui abrindo caminho até onde achava que ela estava.
Comecei a cavar com um dos meus esquis, dizendo a ela que já a tiraria de lá.
E então ouvi
um helicóptero. Graças a Deus! Acenei como louco, e então dois patrulheiros
saltaram com um cão de resgate e equipamento de avalanche. Eu estava tão doido
que fiquei
repetindo o quanto ela era aerobicamente bem preparada, qual o seu índice de
batimentos cardíacos, quantos quilômetros ela corria por semana, onde eles
deviam cavar.
Mas os patrulheiros e o cachorro começaram a descer a encosta em ziguezague.
Então eu continuei a cavar na mesma área em que tinha certeza de que ela
estava. Logo
depois eu ouvi o cachorro ganindo e os caras gritando lá embaixo que a haviam
encontrado. Isto me surpreendeu, porque ela não estava onde eu pensava. Quando
cheguei
onde os caras da patrulha estavam, vi que eles já tinham desencavado a parte
de cima do corpo dela. Fui me aproximando com dificuldade, suado e sem fôlego,
agradecendo
a eles, dizendo o quanto eles eram fantásticos, porque eu podia ver que ela
estava bem. Ela estava ali, bem ali, o tempo todo estava só a meio
metro da
superfície.
#107
#108
#109
Você pode fugir dele, mas nunca pode dizer não. Isto inclui todo mundo." -
Simon tomou a dobrar a carta. - Eu ainda acredito nisto - ele disse.
Eu estava tentando desesperadamente entender aquelas palavras. Mas minha
mente transformava tudo o que tinha ouvido em um palavrório sem sentido. Será
que
ele tinha lido a carta para dizer que era isso que queria de mim?
- Isso foi lindo. - Fiquei com vergonha de não conseguir pensar em mais
nada para dizer.
- Meu Deus! Você não sabe o quanto eu estou aliviado, quer dizer, por
ter conseguido falar sobre ela com você. - Os olhos dele estavam brilhantes,
ágeis, suas
palavras derramaram-se com naturalidade. - É como se ela fosse a única pessoa
que me conhecesse, que me conhecesse de verdade. Sinto isso o tempo todo, e
sei que
tenho de deixá-la ir .Mas fico caminhando pelo campus, pensando, não, ela não
pode ter partido. E então eu a vejo, o mesmo cabelo ondulado, só que, quando
ela se
vira, é outra pessoa. Mas, não importa quantas vezes eu me engane, não consigo
parar de procurá-la. É como ser viciado e sofrer o pior tipo de síndrome de
abstinência.
Eu a vejo em tudo, em todos. - Os olhos dele fixaram-se enlouquecidos nos
meus. - Como a sua voz. Quando eu a conheci, achei um bocado parecida com a
dela.
Devo ter dado um pulo, porque Simon acrescentou rapidamente:
- Você tem de compreender que eu estava um tanto fora do ar quando a
conheci. Fazia só três meses que ela, você sabe, tinha sofrido o acidente.
Queria acreditar
que ela ainda estava viva, morando em Utah, e por isso é que eu estava há
algum tempo sem vê-la... Na verdade, pensando nisso agora, vocês duas não têm
a voz muito
parecida não. - Ele passou o dedo pelos nós dos meus dedos. - Eu não queria
amar mais ninguém. Achei que era o suficiente o que eu e Elza tivemos. Quer
dizer, calculei
que a maioria das pessoas não experimenta este tipo de amor a vida inteira -
entende o que quero dizer?
- Você teve sorte.
#110
#111
Olhando para trás, vejo como fui idiota em continuar com Simon. Mas eu era
jovem, estava perdidamente apaixonada. Confundi uma situação patética com uma
situação
romântica, simpatia com um mandato para salvar Simon da dor. E eu sempre fui
um ímã para culpa. Meu pai, depois Kwan, agora Elza. Sentia-me culpada por
todos os
maus pensamentos que já tivera a respeito de Elza. Como penitência, busquei a
aprovação dela. Tornei-me sua cúmplice. Ajudei a ressuscitá-la.
Eu me lembro da vez que sugeri a Simon que fôssemos fazer uma caminhada
em Yosemite.
- Você me contou o quanto Elza amava a natureza - eu disse. - Eu estava
pensando, se fôssemos, bem, ela estaria lá também. - Simon pareceu grato pela
minha
compreensão, e para mim isto era o suficiente, achava que era assim que o
nosso amor ia crescer. Só tinha de esperar um pouco. Foi isso que eu disse a
mim mesma
mais tarde, quando estávamos acampados num lugar chamado Rancheria Falls.
Acima de nós havia um maravilhoso dossel de estrelas. Era tão vasto, tão
vívido, e minhas
esperanças também. Lutei no meu coração, depois no meu cérebro, para dizer
isso a Simon, mas tudo saiu como uma coisa banal.
- Simon, olhe - eu disse. - Você compreende que são as mesmas estrelas
que os primeiros amantes da terra contemplaram?
E Simon respirou fundo. Percebi que ele o fez não com admiração e sim
com tristeza. Então eu fiquei calada, compreendi, como disse que o faria.
Sabia que ele
estava pensando de novo em Elza. Talvez estivesse pensando que ela costumava
contemplar essas mesmas estrelas. Ou que ela havia um dia expressado este
mesmo pensamento,
só que de modo mais elegante. Ou que no escuro a minha voz fosse a dela, com o
mesmo tom apaixonado, o tom que eu usava para expressar pensamentos banais, o
que
ela usaria para salvar o maldito mundo.
#113
7
A forma como eu adotei o modo de vida de Elza, dava para pensar que ela tinha
sido a minha melhor amiga. Quando Simon e eu tivemos de escolher receitas para
o Dia
de Ação de Graças, escolhemos o recheio de ostras e castanhas em vez da minha
receita chinesa de arroz papa e lingüiça. Tomávamos café em duas canecas de
cerâmica
de duas alças que Elza tinha feito em um acampamento de verão para crianças
bem-dotadas musicalmente. Às noites e nos fins de semana, ouvíamos as fitas
favoritas
de Elza: gravações de Blues Project, Randy Newman, Carole King, além de uma
sinfonia um tanto forçadamente patética que a própria Elza havia composto, que
a orquestra
da faculdade tinha recentemente tocado e gravado em homenagem a ela. Para
Simon, eu disse que a música era uma prova viva das convicções dela. Mas
secretamente achava
que soava como
um bando de gatos de rua miando no meio do lixo, com um finale de latas
despencando no chão quando um sapato certeiro era atirado pela janela.
Então dezembro chegou e Simon perguntou qual o presente especial que
eu queria ganhar de Natal. O rádio estava tocando canções festivas e eu
tentava pensar
o que Simon iria querer dar a Elza - uma doação no nome dela para o Sierra
Clube? Uma coleção de discos de Gershwin? Foi quando ouvi Yogi Yorgesson
cantando "Yingle
Bells".
#114
A última vez que ouvira aquela música eu tinha doze anos e achava que
o sarcasmo era o máximo da ousadia. Naquele ano, dei um tabuleiro Ouija de
Natal para
Kwan*. Enquanto ela contemplava desconcertada as velhas letras e números, eu
disse que ela poderia usar o Ouija para perguntar aos fantasmas americanos
como se soletravam
palavras em inglês. Ela deu um tapinha no tabuleiro e disse:
- Maravilhoso, tão útil.
Meu padrasto teve um ataque.
- Por que você acha que tem de debochar dela? - Papai Bob disse
severamente. Kwan examinou o tabuleiro Ouija, mais intrigada do que antes.
- Foi só uma brincadeira, Ok?
- Então é uma brincadeira malvada e você tem um coração mau. -
Ele agarrou minha mão e me levantou, dizendo: - Senhorita, o Natal acabou para
você.
Sozinha, no quarto, liguei o rádio. Foi quando ouvi "Yingle Bells"
tocando. A canção era para ser uma "yoke", como o presente de Kwan. Eu estava
chorando
amargamente: como poderia estar sendo má com Kwan se ela nem ao menos sabia?
Além disso, raciocinei, se eu estava sendo má, o que não era verdade, ela bem
que merecia
por ser tão abobada. Ela convidava as pessoas a pregar peças nela. E o que
havia de tão errado em se divertir no Natal? As pessoas metidas a santas é que
eram más.
Bem, já que todo mundo achava que eu era má, mostraria a elas o que era ser
má. Aumentei o volume do rádio. Imaginei que o botão do volume era o
grande nariz
italiano do papai Bob e o torci com tanta força que ele quebrou, e agora Yogi
Yorgesson estava cantando "laughing all the way - ha-ha-ha!" a plenos
pulmões enquanto
papai Bob berrava:
- Olivia, desligue esse maldito rádio - o que não era exatamente uma
expressão cristã e que ele não devia dizer, especialmente no Natal. Arranquei
a tomada
da parede violentamente. Mais tarde Kwan entrou no quarto e me
____________
* Espécie de tabuleiro para se receber mensagens mediúnicas. (N. da E.)
#115
disse que tinha gostado do meu presente de soletrar, "oh, muito mesmo".
- Pare de agir como uma retardada - resmunguei. E tentei fazer uma
cara bem má, mas fiquei assustada de ver o quanto a tinha magoado.
Agora aqui estava Simon perguntando o que eu queria de Natal. Mais uma
vez me vi escutando "Yingle Bells" no rádio. E tive vontade de gritar que ser
compreensiva
não leva você a lugar algum. Naquele momento, eu soube o que queria realmente
de presente de Natal. Queria arrancar a tomada da parede. Queria Elza morta.
Mas, depois de seis meses agindo como a nobre segunda colocada, como
podia dizer subitamente a Simon que queria chutar o traseiro do fantasma de
Elza para
fora da nossa cama? Imaginei-me empacotando os retratos dela, os discos, os
irritantes objetos kitsch. "Para protegê-los", diria a Simon, "enquanto faço
uma boa
faxina." Depois colocaria o caixote na mala do meu carro e, tarde da noite,
iria até o lago Temescal. Usaria algumas garrafas cheias de areia para tornar
o caixote
mais pesado, atiraria aquela porcaria toda na água escura e ficaria olhando as
bolhas subirem à superfície enquanto minha nêmesis afundava em líquido
esquecimento.
E, mais tarde, o que eu diria a Simon, que explicação daria a ele?
"Meu Deus, que coisa horrível, sabe o caixote com todas as coisas de Elza? Foi
roubado.
Também não consigo acreditar. Os ladrões devem ter pensado que era valioso.
Quer dizer, era, mas só para nós dois. Meu Deus, você tem razão, não sei por
que eles
não levaram o estéreo."
Ele notaria os meus olhos evasivos, os cantos da minha boca virados
para cima num sorriso irreprimível. Eu teria de confessar o que tinha feito, o
que realmente
sentia sobre Elza e suas canecas de café de duas alças. Ele ficaria danado e
este seria o fim de mim e Simon. Se isto ocorresse, ele podia ir para o
inferno. Mas,
depois de exaurir a minha imaginação com variações desta vitória de Pirro, eu
ficava perdida. Não podia largar Simon, do mesmo modo que ele não podia largar
Elza.
#116
Descrevi discretamente a situação para minha irmã. Não disse que estava
apaixonada por Simon. Para Kwan? E agüentar suas risadinhas fraternas, suas
provocações,
seus conselhos malucos? Disse que Simon era um amigo.
- Ah! Namorado - ela adivinhou, toda excitada.
- Não. Só um amigo.
- Amigo íntimo.
- Só um amigo.
- Ok-Ok, agora eu entendi.
Contei a ela que uma amiga de Simon tinha morrido num acidente de
carro. Disse que Simon estava triste, que não conseguia se desligar dessa
amiga que estava
morta. Ele estava obcecado, isso não era saudável. Disse que talvez ajudasse
se ele tivesse notícias da amiga como uma pessoa yin. Sabendo o quanto Kwan
era sugestionável,
e também o quanto ela estava sempre ansiosa por me ajudar, explicitei ao
máximo o pedido.
- Talvez - sugeri - a amiga de Simon possa dizer a ele que ambos devem
começar uma nova vida. Ele deve se esquecer dela, jamais mencionar o seu nome.
- Ah! Ela era namorada.
- Não, só amiga.
- Ah, como você, só amiga. - Ela sorriu, depois perguntou: - Chinesa
também?
- Polonesa, acho. Talvez também judia.
- Tst! Tst! - Kwan sacudiu a cabeça. - Judia polonesa, muito difícil
de achar, tantas judias polonesas mortas. Muitos chineses mortos também, mas
eu tenho
muitas conexões para chineses - esta pessoa yin conhece aquela pessoa yin,
mais fácil de achar se fosse chinesa. Mas judia polonesa - ah! - talvez ela
não tenha
ido para Mundo Yin, talvez tenha ido para outro lugar.
- O outro mundo é segregado? Só chinês pode ir para o Mundo de Yin?
#117
- Não-não! Srta. Bandeira, ela não é chinesa, ela vai para Mundo Yin.
Tudo depende do que você ama, em que acredita. Você ama Jesus, vai para a Casa
de Jesus
.Você ama Alá, vai para Terra de Alá. Você ama dormir, vai dormir.
- E se você não acreditar muito em nada antes de morrer?
- Então vai para lugar grande, como Disneylândia, muitos lugares para
experimentar - você gosta, você decide. Sem custos, é claro.
Enquanto Kwan continuava a tagarelar, imaginei um parque de diversões
cheio de ex-agentes de seguros vestidos de anjos, sacudindo raios de mentira,
exortando
os passantes a fazer um passeio introdutório ao Limbo, ao Purgatório, ao
Pequeno Mundo das Crianças Não- Batizadas. Enquanto isso, hordas de antigos
seguidores de
Moon e da igreja oficial se inscreviam para andar em brinquedos chamados
Pandemônio, Fogo e Enxofre, Roda da Tortura Eterna.
- Então quem vai para o Mundo de Yin?
- Montes de pessoas. Não apenas chineses, também pessoas que têm
muitos arrependimentos. Ou pessoas que acham que perderam grande chance, ou
sentem falta
de esposa, marido, filhos, irmã. - Kwan parou e sorriu para mim. - Também,
pessoas que sentem falta de comida chinesa, vão para Mundo Yin, esperam lá.
Mais tarde,
podem nascer como outras pessoas.
- Ah, você quer dizer que as pessoas yin são aquelas que acreditam em
reencarnação?
- Que quer dizer reencarnação?
- Reencarnação. Você sabe, depois que você morre, seu espírito ou alma
ou seja lá o que for pode renascer como outro ser humano.
- Sim, talvez essa mesma coisa, algo assim. Se você não for muito
exigente, pode voltar logo, quarenta e nove dias. Se quiser algo especial -
nascer desta
pessoa, casar com aquela pessoa - às vezes tem de esperar muito tempo. Como
grande aeroporto, pode ir para muitos lugares. Mas, se quiser primeira
classe, janela,
vôo direto, ou desconto, talvez demora
#118
grande. Cem anos pelo menos. Agora eu vou dizer uma coisa, um segredo, não
pode dizer para ninguém, ah. Muitas pessoas yin, na próxima vida, adivinhe
quem querem
ser? Adivinhe.
- Presidente dos Estados Unidos.
- Não.
- O Quem.
- Quem?
- Não importa. Quem elas querem ser?
- Chinesas! Estou dizendo verdade! Nem francesas, nem japonesas, nem
suecas. Por quê? Acho porque comida chinesa melhor, fresca e barata, muitos,
muitos
sabores, cada dia gosto diferente. Também, família chinesa muito unida, amigos
muito leais. Você tem amigo chinês ou família a vida inteira, ficam com você
dez mil
vidas, bom negócio. É por isso que tantas pessoas chinesas vivem no mundo
agora. Mesma coisa com pessoas da Índia. Muito cheio lá. Povo da Índia
acredita também
em muitas vidas. Também, ouvi dizer que comida indiana não é muito ruim,
muitos pratos picantes, tempero de curry também. É claro, curry chinês melhor
ainda. O que
você acha, Libby-ah? Gosta do meu prato de curry? Se gosta, posso fazer para
você hoje à noite, Ok? Trouxe Kwan de volta para a questão de Elza.
- Então qual é a melhor maneira de encontrar a amiga de Simon? Para
onde vão geralmente os judeus poloneses? Kwan começou a resmungar:
- Judeus poloneses, judeus poloneses. Podem ir para tantos lugares.
Alguns não acreditam em nada depois da morte. Alguns dizem que vão para
lugares intermediários,
como um consultório médico. Outros vão para Sião, como uma estação de águas
elegante, ninguém reclama, não precisa dar gorjeta, o serviço é bom de
qualquer maneira.
- Sacudiu a cabeça, depois perguntou: - Como essa pessoa morreu?
- Num acidente de esqui em Utah. Avalanche. É como afogamento. -
Ah! - esqui aquático após o lanche! Estômago cheio demais, não é surpresa que
tenha
se afogado.
#119
#120
#121
Foi tão fácil enganar Simon que eu ainda me sinto culpada. Aconteceu assim.
Disse a ele que tínhamos sido convidados para jantar na casa de Kwan.
Ele aceitou. Assim que entramos na casa de Kwan, ela disse:
- Ohhh, tão bonito. - Como se tivesse ensaiado, ele respondeu:
- Você está brincando. Não parece ter doze anos mais que Olivia.
- Então Kwan riu satisfeita e disse:
- Ohhh, e é educado também.
O curry não estava ruim, a conversa não foi muito difícil. O marido e
os enteados de Kwan conversaram animadamente sobre uma briga a que tinham
assistido
no estacionamento do Safeway. Durante o jantar, Kwan não pareceu tão
esquisita, embora tenha feito perguntas intrometidas a Simon sobre os pais
dele.
- Qual deles chinês? Lado da mãe. Mas não chinesa?.. Ah, havaiana, eu
sei, chinesa pré-misturada. Ela dança hula-hula?.. Ah. Morta? Tão jovem? Ai,
tão triste.
Vi hula-hula na tevê uma vez, quadril gira como máquina de lavar, mãos sacodem
como asas de passarinho...
#122
Quando Simon foi ao banheiro, ela piscou o olho para mim e murmurou
alto:
- Ei! Por que você disse que ele era só amigo? Esse ar no seu rosto,
no rosto dele, hah, não é só amigo! Estou certa? - E deu boas risadas.
Depois do jantar, mediante uma indireta, George e os meninos foram
para a sala íntima ver Jornada nas estrelas. Kwan pediu a Simon e a mim que
fôssemos para
a sala de estar; ela tinha algo importante para nos dizer. Sentamos no sofá,
Kwan em sua espreguiçadeira. Ela apontou para a lareira falsa com aquecedor a
gás embutido.
- Está muito frio? - ela perguntou.
Sacudimos negativamente a cabeça.
Kwan cruzou as mãos no colo.
- Simon - ela disse, sorrindo como um gênio -, diga-me, você gosta da
minha irmãzinha, ah?
- Kwan -eu avisei, mas Simon já estava respondendo:
- Muito.
- Hmm-mm. - Ela parecia satisfeita como um gato depois de se lamber. -
Mesmo que você não me contasse, eu já tinha percebido. Mm-hmm... Sabe por
quê?
- Acho que é aparente - Simon disse com um sorriso acanhado.
- Não-não, seu parente não me contou. Eu sei - aqui - e ela deu um
tapinha na testa; - Eu tenho olhos yin, mm-hm, olhos yin.
Simon me lançou um olhar inquiridor, como que pedindo, ajude-me a sair
dessa, Olivia - o que está acontecendo? Sacudi os ombros.
- Olhe ali. - Kwan estava apontando para a lareira. - Simon, o que
você está vendo?
Ele se inclinou para a frente, depois arriscou, pensando provavelmente
que se tratava de algum jogo chinês.
- Você se refere àquelas velas vermelhas?
- Não-não, você vê lareira. Estou certa?
- Oh, sim. Ali, uma lareira.
- Você vê lareira. Eu vejo outra coisa. Uma pessoa yin ali parada,
alguém que já morreu.
#123
Simon riu.
- Morreu? Você quer dizer, um fantasma?
- Mm-hm. Ela diz o nome dela - Elsie. - Grande Kwan, acidentalmente
ela disse errado o nome de Elza exatamente da forma certa. - Simon-ah, talvez
você conheça
essa moça Elsie? Ela diz que conhece você, mm-hm.
Não mais sorrindo, Simon chegou para a frente.
- Elza?
- Oh, ela agora tão feliz você se lembra dela. - Kwan esticou o ouvido
na direção da imaginária Elza, ouvindo atentamente. - Ah?.. Ah. Ok-Ok. - Ela
tornou
a se virar para nós. - Ela diz que você não vai acreditar, ela já conheceu
muitos músicos famosos, todos mortos também. - Ela consultou a lareira. -
Oh?.. Oh...
Oh!... Ah, ah. Não-não, pare, Elsie, nomes demais! Você diz tantos nomes
famosos que eu não consigo repetir! Ok, um só. ..Showman? Não? Eu não estou
pronunciando
direito?
- Chopin? - arrisquei.
- Sim-sim. Chopin também. Mas este que ela está dizendo parece
Showman. ..Oh! Agora entendi - Schumann!
Simon estava hipnotizado. Eu estava impressionada. Não sabia que Kwan
tinha algum conhecimento de música clássica. Suas canções favoritas eram
baladas country
sobre mulheres sofridas.
- Ela está dizendo também tão feliz de ter encontrado o pai, a mãe e o
irmão mais velho. Ela se refere a outra família, não a adotiva. O nome
verdadeiro
dela soa como Wawaski, Wakowski, acho que nome japonês... Oh? Não japonês?..
Mm. Ela diz polonês. Judeu polonês. O quê?.. Oh, Ok. Ela diz que família
morreu muito
tempo atrás, porque Autowitz virou.
- Auschwitz - eu disse.
- Não-não. Autowitz virou. Sim-sim, eu estou certa, automóvel alemão
Autowitz virou, capotou, bateu! - Kwan pôs a mão em concha na orelha direita.
- Muito
tempo, está ficando difícil compreender o que pessoa yin está dizendo.
Excitada demais, fala muito depressa. Ah? Ela inclinou ligeiramente a cabeça.
- Agora ela
está dizendo que avós morreram nesse lugar, Auschwitz, Polônia, tempo da
guerra.
#124
- Kwan olhou para mim e piscou o olho, depois olhou de volta para a lareira
com uma expressão surpresa e preocuada - Ai-ya! Tst! Tst! Elsie, você sofreu
muito. Triste
demais. Oh. - Kwan tocou o próprio joelho. - Ela diz, acidente de carro, foi
assim que conseguiu a cicatriz em sua perna de bebê.
Não me lembrava de ter escrito esse detalhe sobre a cicatriz de Elza.
Mas devo ter escrito, e fiquei contente por isso. Dava um toque de
autenticidade.
Simon fez uma pergunta:
- Elza, o bebê. E quanto ao bebê que você estava esperando? Ele está
com você?
Kwan olhou para a lareira, intrigada, e eu prendi a respiração. Merda!
Tinha esquecido de mencionar o maldito bebê. Kwan concentrou-se na lareira.
- Ok-Ok. - Ela se virou para nós e sacudiu a mão com naturalidade. -
Elsie diz sem problemas, não se preocupe. Ela conheceu essa pessoa, uma pessoa
muito
simpática que ia ser o bebê dela. Ele ainda não tinha nascido, então não
morreu. Só teve de esperar mais um pouco, agora já nasceu outra pessoa.
Soltei o ar aliviada. Mas então vi que Kwan estava olhando para a
lareira com um ar preocupado. Estava franzindo a testa, sacudindo a cabeça. E,
assim que
ela fez isso, o alto da minha cabeça começou a formigar e eu vi centelhas
voarem em volta da lareira.
- Ah - Kwan disse em voz baixa, mais hesitante. - Agora Elsie e está
dizendo que você, Simon, você não deve mais pensar nela. .. Ah? Mm-hm. Isto
errado,
sim-sim - você está desperdiçando sua vida pensando nela... Ah? Hm. Você
precisa esquecê-la, ela diz, sim, esquecer - nunca dizer o nome dela. Ela tem
nova vida
agora. Chopin, Schumann, sua mãe, seu pai. Você tem nova vida também...
E então Kwan disse a Simon que ele devia me agarrar antes que fosse
tarde demais, que eu era seu verdadeiro amor, que ele se arrependeria para
sempre se
deixasse escapar esta oportunidade. Ela ficou falando sem parar no quanto eu
era sincera, boa, leal, inteligente.
#125
- Oh, talvez não seja boa cozinheira, ainda não, mas tenha paciência,
espere e verá. Senão eu ensino a ela.
Simon estava balançando a cabeça, ouvindo tudo, parecendo triste e
agradecido ao mesmo tempo. Eu devia ter entrado em êxtase, mas estava
nauseada. Porque
eu também tinha visto Elza. Eu a tinha escutado.
Ela não era como os fantasmas que eu via na minha infância. Era um
bilhão de centelhas contendo cada pensamento e cada emoção que já tivera. Era
um ciclone
de estática, dançando ao redor da sala, suplicando a Simon para escutá-la. Eu
soube disso tudo com os meus cem sentidos secretos. Com a língua da cobra,
senti o
calor do desejo de ser vista. Com a asa de um morcego, soube onde ela
esvoaçava, batendo as asas ao lado de Simon, me evitando. Com minha pele
formigando, senti
cada lágrima que ela derramou como um raio batendo no meu coração. Com o único
pêlo de uma flor, eu a senti tremer, enquanto esperava que Simon a ouvisse.
Exceto
que era eu que a ouvia - não com meus ouvidos, mas com o local que formigava
no alto do meu cérebro, onde você sabe que uma coisa é verdade ainda que não
queira
acreditar. E os sentimentos dela não eram os que saíam da boca bem
intencionada de Kwan. Ela estava implorando, chorando, repetindo sem parar:
- Simon, não se esqueça de mim. Espere por mim. Eu vou voltar.
#126
Será que ela mentiu por minha causa? Se Simon descobrisse que o tínhamos
enganado, o que faria? Será que compreenderia que não me amava?
As perguntas vinham sem parar, e eu as deixava acumular-se, até ter
certeza de que o nosso casamento estava fadado ao fracasso, que Elza o
destruiria. Era
uma avalanche esperando para acontecer, equilibrando-se em uma única e
escorregadia pergunta: por que estamos juntos?
E então o sol subia no batente da janela. A luz da manhã me fazia
apertar os olhos. Olhava para o relógio. Erguia-me e mexia nas torneiras do
chuveiro. Ajustava
a quente e a fria, depois despertava a minha mente com a água que caía com
força em minha pele. E ficava grata de voltar ao que era real e rotineiro,
confinada aos
sentidos comuns em que podia confiar.
E então senti que estava me tornando menor mas mais densa, prestes a ser
esmagada pelo peso do meu próprio coração, como se as leis da gravidade e do
equilíbrio
tivessem mudado e eu as estivesse violando. Tornei a olhar para as estrelas
pequeninas, faiscando como vaga-lumes. Só que agora elas estavam borradas e se
dissolvendo,
e o céu noturno estava inclinando e rodopiando, imenso demais para continuar a
se sustentar.
#127
8
O APANHADOR DE FANTASMAS
#128
#129
#130
#131
Por isso, a procura por uma casa demorou mais de um ano. Simon tinha
sugerido uma casa dos anos 50, precisando de reformas, no bairro coberto de
neblina de
Sunset, que ele achava que poderíamos vender dentro de poucos anos pelo dobro
do nosso investimento. O que eu tinha em mente era mais uma maltratada casa
vitoriana
no promissor bairro de Bernal Heights, um lugar que pudéssemos reformar e
transformar em lar doce lar e não em investimento:
- Você quer dizer choupana doce choupana - Simon disse, depois de
visitar uma propriedade. Nosso ponto de vista não coincidia quanto ao que
chamávamos de "potencial
futuro". O potencial, evidentemente, tinha mais a ver conosco. Nós dois
sabíamos que morar numa espelunca apertada exigia o tipo de amor fresco e
exuberante em que
nada importava a não ser dormir abraçados para esquentar na mesma cama dura e
estreita. Simon e eu já tínhamos progredido há muito tempo para uma cama king
size
e um cobertor elétrico com duplo controle.
Num domingo nublado de verão, descobrimos um anúncio de um apartamento
em um prédio de seis unidades nos limites de Pacific Heights. Por limites
quero dizer
que ele estava preso por um fio à vizinhança chique. Os fundos do prédio
ficavam na Western Addition, onde janelas e portas eram cobertas por grades de
ferro à prova
de serrote. E ele ficava a três quarteirões e a duas categorias de impostos
das melhores ruas de Pacific Heights, povoadas por famílias que podiam pagar
babás de
cachorros, arrumadeiras e duas segundas casas.
No saguão, Simon apanhou um folheto crivado de defeitos hifenizados.
- Um apartamento semiluxuoso, em dois níveis, na cooperativa do baixo
Pacific Heights - ele leu alto -, localizado em prestigiada, outrora grandiosa
mansão
vitoriana, construída em 1893 pelo renomado arquiteto Archibald Meyhew. -
Surpreendentemente, o folheto também anunciava orgulhosamente dez cômodos e
vaga para
estacionar, tudo por um preço só um tiquinho além da nossa verba.
#132
Todo o resto que tínhamos visto dentro do nosso orçamento não tinha mais de
cinco cômodos, seis se não tivesse garagem.
Toquei a campainha da unidade cinco.
- É um bom preço para este bairro - eu disse.
- Não é nem um condomínio - disse Simon. - Com cooperativas, eu ouvi
dizer que você tem de seguir regras malucas até mesmo para trocar a voltagem
das suas
lâmpadas.
- Olhe este corrimão. Será que é a madeira original? Não seria o máximo?
- É falso. Você pode ver pelas espirais mais claras. São regulares
demais.
Já que Simon parecia estar negando qualquer interesse pelo lugar, ia
sugerir que fôssemos embora. Mas aí ouvimos passos rápidos na escada e um
homem dizendo:
- Estarei com vocês em um segundo.
Simon me deu a mão. Não conseguia lembrar a última vez que ele tinha
feito isso. Apesar das críticas, ele deve ter gostado das possibilidades do
prédio, o
suficiente pelo menos para querer que déssemos a impressão de um casal feliz,
financeiramente sólido, suficientemente estável para durar durante todo o
período da
tramitação dos documentos.
O corretor e, como viemos a saber, criador do folheto de propaganda era
um cara jovem, elegantemente vestido e quase careca, chamado Lester Roland ou
Roland
Lester. Tinha o hábito irritante de pigarrear a todo momento, dando a
impressão de que ou estava mentindo ou estava prestes a fazer uma confissão
embaraçosa.
Entregou-nos um cartão de visita.
- Os senhores já compraram algum imóvel antes nesta vizinhança, Sr. e
Sra. hum...?
- Bishop. Simon e Olivia - Simon respondeu. - Moramos atualmente no
bairro da Marina.
- Então sabem que esta é uma das melhores zonas residenciais da cidade.
Simon fez um ar blasé.
#133
#134
No início do nosso casamento, ter filhos era um dos nossos grandes sonhos.
Simon e eu estávamos apaixonados pelas possibilidades de nossa mistura
genética. Ele queria
uma menina parecida comigo. Eu queria um menino parecido Com ele. Depois de
passar seis anos medindo a minha temperatura diariamente, abstendo-me de
álcool entre
um período menstrual e outro, fazendo sexo com hora marcada, fomos a um
especialista em fertilidade, Dr. Brady, que nos disse que Simon era estéril.
- O senhor quer dizer que Olivia é estéril - Simon disse.
- Não, os testes indicam que você é que é - Dr. Brady respondeu. - Os
seus relatórios médicos dizem também que seus testículos só desceram quando
você tinha
três anos.
#135
- O quê? Não me lembro disto. Além do que eles agora estão no lugar
certo. O que uma coisa tem a ver com a outra?
Aquele dia nós aprendemos um bocado sobre a fragilidade do
espermatozóide, que o espermatozóide tem de ser mantido abaixo da temperatura
do corpo; por isso
é que os testículos ficam pendurados, um ar condicionado natural. Dr. Brady
disse que a esterilidade de Simon não era simplesmente uma questão de baixa
contagem
ou pouca motilidade dos espermatozóides, que provavelmente ele era estéril
desde a puberdade, isto é, desde a sua primeira ejaculação.
- Mas isso é impossível - Simon disse. - Já sei que posso - bem, não
pode ser. Os testes estão errados. Dr. Brady disse, com a prática de já ter
consolado
uns mil homens incrédulos:
- Eu lhe asseguro que esterilidade não tem nada a ver com masculinidade,
virilidade, desejo sexual, ereção, ejaculação, nem com a sua capacidade de
satisfazer
uma parceira. - Percebi que o médico disse "uma parceira" e não "sua esposa",
como que para incluir várias possibilidades, passadas, presentes e futuras.
Passou
então a discutir os conteúdos da ejaculação, a mecânica da ereção e outras
trivialidades que não tinham nada a ver com as botinhas de borracha que
estavam em cima
da nossa cômoda, com os livros de Beatrix Potter que minha mãe já tinha
juntado para o futuro neto, com a lembrança de Elza, grávida, gritando com
Simon do alto
de uma encosta prestes a sofrer uma avalanche.
Sabia que Simon estava pensando em Elza, imaginando se ela estaria
enganada a respeito da gravidez. Se fosse assim, sua morte tinha sido ainda
mais trágica,
com base em um erro estúpido atrás do outro. Também sabia que Simon tinha de
estar considerando a possibilidade de Elza ter mentido, de não estar grávida
coisa nenhuma.
Mas por quê? E, se ela estivesse grávida, quem seria o seu outro amante? Por
que, então, ela agrediu Simon? Nenhuma das respostas possíveis fazia sentido.
Desde nossa sessão yin com Kwan anos antes, Simon e eu tínhamos evitado
tocar no nome de Elza. Agora nos víamos com os
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#137
#138
No dia em que nos mudamos, comecei a retirar camadas das paredes do antigo
aposento infantil, logo apelidado de meu "santuário". Lester tinha dito que as
paredes
originais eram de mogno trabalhado e eu estava ansiosa para revelar este
tesouro arquitetônico. Auxiliada pelos vapores inebriantes do removedor de
tinta, imaginei-me
uma arqueóloga cavando através de camadas de vidas anteriores cujas histórias
poderiam ser reconstruídas por meio de suas escolhas de revestimentos de
parede. A
primeira camada a sair era uma crosta yuppie de látex cor de uva Chardonnay,
pontilhada para se parecer com as paredes de um monastério florentino.
Seguiam-se crostas
das décadas anteriores - verde anos oitenta, laranja psicodélico anos setenta,
preto hippie anos sessenta, tons pastéis anos cinqüenta. E por baixo havia
rolos de
papel de parede em padrões de borboletas douradas, cupidos carregando cestas
de flores, a flora e fauna monótona de gerações passadas que contemplaram
estas mesmas
paredes no decorrer de noites insones, acalmando um bebê com cólicas, uma
criança febril ou uma tia tuberculosa.
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Uma semana depois, com os dedos em carne viva, cheguei a uma última
camada de reboco e depois à madeira, que não era mogno, como Lester havia
dito, mas pinho
ordinário. Onde ele não estava chamuscado, estava escurecido pelo mofo,
provavelmente o resultado de uma mangueira de incêndio diligente do início do
século. Apesar
de eu não ser dada a violências, desta vez chutei a parede com tanta força que
uma das tábuas cedeu e expôs massas de cabelo grisalho grosso. Dei um tremendo
berro,
do tipo filme de horror classe B, e Simon pulou para dentro do quarto,
brandindo uma colher de pedreiro - como se isso pudesse ser uma arma eficaz
contra um assassino.
Apontei um dedo acusador para os restos cabeludos do que acreditava ser um
velho crime não solucionado.
Depois de uma hora, Simon e eu tínhamos arrancado quase toda a madeira
velha e podre. No chão havia pilhas de cabelo parecendo ninhos de ratos
gigantescos.
Foi só quando chamamos um empreiteiro para construir a parede que descobrimos
que tínhamos removido quilômetros de crina de cavalo, um material isolante da
época
vitoriana. O empreiteiro disse também que crina de cavalo era um poderoso
isolante acústico. Vitorianos ricos, conforme aprendemos, construíam suas
casas de modo
a que ninguém fosse obrigado a ouvir algo tão indelicado quanto o êxtase
sexual ou explosões de indigestão vindas dos quartos próximos.
Menciono isto porque Simon e eu não nos demos o trabalho de pôr de volta
a crina, e a princípio acreditei que isto tivesse algo a ver com a estranha
acústica
que começamos a perceber no primeiro mês. O espaço entre nossa parede e o
apartamento vizinho tinha se tornado um poço oco de cerca de trinta
centímetros de largura.
E este poço, pensei, funcionava como uma mesa de som, capaz de transmitir
ruídos do prédio inteiro, convertendo-os em pancadas, chiados, e o que às
vezes parecia
aulas de lambada sendo dadas no nosso quarto, no andar de cima.
Sempre que tentava descrever o nosso problema de barulho, eu imitava o
que tinha ouvido: Tink-tink-tink, whumpa-whumpa-whumpa, chh-chh-chh. Simon
comparava
o barulho a uma possível
#140
fonte: o som de uma tecla de piano desarmada, o bater das asas dos pombos,
gelo sendo raspado. Nós percebíamos o mundo de forma tão diferente isto
mostrava o quanto
nos havíamos distanciado um do outro.
Havia um outro aspecto estranho em tudo isto: Simon nunca estava em casa
quando os ruídos mais sinistros ocorriam - como a vez em que eu estava no
chuveiro
e ouvi o tema de Jeopardy sendo assobiado, uma melodia que achei especialmente
mal-assombrada já que não consegui tirá-la da cabeça o dia inteiro. Tive a
sensação
de que estava sendo perseguida.
Um engenheiro de estruturas sugeriu que o barulho poderia estar vindo
dos canos inúteis do radiador. Um consultor sísmico me disse que o problema
poderia ser
simplesmente a acomodação natural da estrutura de madeira. Com um pouco de
imaginação, ele explicou, dá para pensar que os rangidos e estalos são todo
tipo de coisas,
portas batendo, pessoas correndo para cima e para baixo nas escadas - embora
ele não conhecesse qualquer outra pessoa que tivesse reclamado do som de vidro
quebrando
seguido por frouxos de riso. Minha mãe disse que eram ratos, possivelmente até
gambás. Ela tinha tido este problema uma vez. Um limpador de chaminés
diagnosticou
pombos fazendo ninhos na nossa chaminé sem uso. Kevin disse que obturações
dentárias podem às vezes transmitir ondas de rádio e que eu devia procurar
Tommy, que
era meu dentista. O problema persistiu.
Estranhamente, nossos vizinhos disseram que não eram incomodados por
qualquer ruído estranho, embora o homem cego que morava no apartamento de
baixo tenha
mencionado azedamente que ouvia o nosso som bem alto, especialmente de manhã.
Exatamente quando ele fazia sua meditação Zen diária, ele disse.
Quando minha irmã ouviu as pancadas e chiados, deu o seu diagnóstico:
- O problema não é alguma coisa, é alguém. Mm-hm. -
Enquanto eu continuava desempacotando os livros, Kwan caminhava pelo meu
escritório, o nariz
erguido, farejando como um
#141
#143
para a noite, todo mundo ficou louco por tudo o que tinha a ver com anjos. A
série teve altos índices de audiência, um CD da trilha sonora vendeu
razoavelmente bem,
e Simon começou a se autopromover com a pequena fama de Elza. Eu nunca pensei
que odiaria tanto os anjos. E Simon, que antes detestava música New Age,
tocava o álbum
dela toda vez que recebíamos amigos. Observava casualmente que a compositora
havia dedicado a música a ele. Mas por quê, as pessoas perguntavam. Bem, eles
tinham
sido amantes, grandes amigos. Naturalmente, isto fazia alguns amigos sorrirem
para mim de um jeito consolador que me deixava doida. Então eu explicava que
Elza tinha
morrido antes de eu conhecer Simon. No entanto, de alguma forma aquilo parecia
mais uma confissão, como se eu tivesse dito que eu mesma a tinha matado. E
então o
silêncio invadia a sala.
Portanto, além de todos os efeitos sonoros de nossa casa, eu ainda
tentei fingir que a música de Elza não me incomodava. Tentei ignorar a
distância cada vez
maior entre mim e Simon. Tentei acreditar que em questões de casamento, como
acontecia com terremotos, câncer e atos de guerra, pessoas como eu estavam
imunes a
desastres inesperados. Mas, para poder fingir que estava tudo bem com o mundo,
eu primeiro tinha de saber o que estava errado.
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9
OS CINQÜENTA ANOS DE KWAN
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Por isso é que ele não tinha uma grande paixão por mim. Por isso é que um
lustre barato se encaixava em nossa vida.
Quando chegamos em casa, Simon atirou-se na cama.
- Você está um bocado silenciosa - ele disse. - Algum problema?
- Não - menti. E em seguida: - Bem, não sei exatamente. - Sentei-me do
meu lado da cama e comecei a folhear um catálogo de compras, esperando que ele
tornasse
a perguntar. Simon estava usando o controle remoto da televisão para trocar de
canal a cada cinco segundos: um flash jornalístico sobre uma menininha que
havia sido
raptada, uma telenovela em espanhol, um homem parrudo vendendo equipamentos de
ginástica. Enquanto pedaços de vida televisada passavam diante de mim, tentei
transformar
minhas emoções em algo coerente, que Simon pudesse entender. Mas, seja lá o
que fosse que eu estivesse sufocando, me atingiu de forma confusa, fazendo
minha garganta
doer. Havia o fato de não podermos conversar sobre a esterilidade de Simon -
não que eu quisesse ter filhos nessa altura de nossas vidas. E os sons
fantasmagóricos
da casa, que fingíamos ser normais. E Elza, apesar de não podermos conversar
sobre ela, estava em toda parte, na lembrança das mentiras que Kwan havia dito
durante
sua sessão de conversa yin, na maldita música que Simon tocava. Eu ia sufocar
se não promovesse mudanças drásticas em minha vida. Enquanto isso, Simon
continuava
pulando de um canal para outro.
- Você sabe como isso é irritante? - perguntei, tensa.
Simon desligou a tevê. Virou-se para olhar para mim, apoiado no
cotovelo.
- Qual é o problema? - Ele parecia ternamente preocupado.
Meu estômago apertou.
- Eu só fico pensando às vezes se isto é tudo. É assim que vamos ser
daqui a dez, vinte anos?
- O que você quer dizer com isto?
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- Não sei, não sei - repeti soluçando. Ele enxugou meus olhos com um
lenço de papel, limpou o meu nariz, depois me fez deitar na cama.
- Está tudo bem - ele me consolou. - Você vai ver, amanhã vai estar
tudo bem.
Mas sua bondade me deixou ainda mais desesperada. Ele se enroscou em
mim e eu tentei sufocar os soluços, fingindo estar mais calma, porque não
sabia que
outra coisa podia fazer. E então Simon fez o que sempre fazia quando não
sabíamos que outra coisa fazer - começou a fazer amor. Acariciei seus cabelos,
para que
ele pensasse que era isto que eu queria também. Mas estava pensando: ele não
se preocupa com o que vai acontecer conosco? Por que não se preocupa? Estamos
condenados.
É só uma questão de tempo.
Na manhã seguinte, Simon me surpreendeu. Trouxe-me o café na cama e
anunciou alegremente:
- Estive pensando no que você disse ontem à noite - sobre sonharmos
juntos. Bem, tenho um plano.
A idéia de Simon era fazer uma lista de desejos: algo que poderíamos
fazer juntos, que nos permitiria definir o que ele chamou de parâmetros
criativos da
nossa vida. Conversamos abertamente, animadamente. Concordamos que o sonho
deveria ser arriscado mas divertido, deveria incluir viagens exóticas, boa
comida, e,
mais importante, uma chance de criar algo que fosse emocionalmente
satisfatório. Não mencionamos romance.
- Isso dá conta do sonho - ele disse. - Agora temos de pensar como o
faremos acontecer.
No fim de uma discussão de três horas, tínhamos elaborado uma proposta
que iríamos enviar para meia dúzia de revistas de viagem e culinária. Íamos
nos oferecer
para escrever uma reportagem com fotos sobre a cozinha do interior da China;
esta excursão serviria de modelo para futuros artigos sobre culinária e
cultura popular,
possivelmente um livro, uma série de conferências e talvez até uma série de
tevê a cabo.
Foi a melhor conversa que eu e Simon tivemos em muitos anos. Eu ainda
achava que ele não tinha entendido totalmente os meus medos e o
#151
meu desespero, mas tinha respondido da melhor maneira que podia. Eu queria um
sonho. Ele fez um projeto. E, pensando bem, não era o bastante para nos dar
esperanças?
Percebi que tínhamos um zilionésimo por cento de chance de conseguir
um pedacinho do que tínhamos proposto. Mas, assim que as cartas foram soltas
no universo,
eu me senti melhor, como se tivesse entregue a minha velha vida à Providência.
O que quer que viesse em seguida teria de ser melhor.
Alguns dias depois do nosso tête-à-tête, minha mãe telefonou para me lembrar
de levar minha câmera fotográfica para a casa de Kwan aquela noite. Olhei para
o calendário.
Merda, tinha esquecido completamente que tínhamos de ir ao aniversário de
Kwan. Subi correndo para o quarto, onde Simon estava assistindo ao campeonato
de futebol
americano, com o corpo esbelto esticado no tapete defronte da tevê. Bubba
estava deitado ao lado dele, mastigando um brinquedo de borracha.
- Temos de estar na casa de Kwan dentro de uma hora. É aniversário
dela.
Simon gemeu. Bubba sentou imediatamente nas patas traseiras, sacudindo
as patas da frente, uivando para pedir sua coleira.
- Não, Bubba, você tem de ficar. - Ele se atirou de volta no chão, com
a cabeça sobre as patas, olhando-me com olhos tristes.
- Vamos ficar o suficiente para não sermos indelicados - sugeri - e
sair cedo.
- Oh, claro - Simon disse, com os olhos grudados na tela. - Você
conhece Kwan. Jamais nos deixará sair cedo.
- Bem, temos de ir. Ela está fazendo cinqüenta anos.
Examinei a estante atrás de alguma coisa que pudesse servir de
presente de aniversário. Um livro de arte? Não, Kwan não iria apreciar, ela
não tinha qualquer
senso estético. Procurei na minha caixa de jóias. Que tal este colar de prata
e turquesa que eu nunca usava? Não, foi presente da
#152
minha cunhada e ela ia estar na festa. Desci até o escritório e foi lá que eu
a descobri: uma caixinha imitando tartaruga, pouco maior que um baralho, o
acompanhamento
perfeito para a parafernália kitsch de Kwan. Tinha comprado a caixa ao fazer
compras de Natal dois meses antes. Na época, pareceu-me um desses presentes
que servem
para tudo, compacto o suficiente para guardar na bolsa, no caso de alguém, por
exemplo um cliente, me surpreender com um presente de Natal. Mas este ano
ninguém
o fez.
Fui até o escritório de Simon e vasculhei sua mesa atrás de papel de
embrulho e barbante. Na última gaveta do lado esquerdo, enfiado lá atrás,
encontrei
um disquete. Já ia guardá-lo na caixa de disquetes de Simon quando notei o
título que ele havia escrito na etiqueta: "Romance. Iniciado: 20/2/90." Então
estava mesmo
tentando escrever algo importante para ele. Estava trabalhando nisso há muito
tempo. Fiquei magoada por ele não ter compartilhado isso comigo.
Nessa altura, deveria ter respeitado a privacidade de Simon e guardado
o disquete. Mas como podia deixar de olhar? Ali estava seu coração, sua alma,
o que
importava realmente para ele. Liguei o computador com as mãos trêmulas, enfiei
o disquete. Abri o arquivo chamado "Cap. I. " Uma tela cheia de palavras
brilhou no
fundo azul e então veio a primeira frase: Desde os seis anos, Elise ouvia uma
música uma única vez e depois a tocava de memória, uma memória herdada dos
seus avós
já falecidos.
Li a primeira página, depois a segunda. Isto é baboseira, é conversa
fiada, repetia para mim mesma. Fui lendo uma página atrás da outra,
envenenando minha
alma. E a imaginei, Elza, acariciada pelos dedos dele, olhando para ele da
tela. Eu a podia ver debochando de mim: "Eu voltei. Por isso é que você nunca
foi feliz.
Eu estava aqui o tempo todo."
Calendários não medem mais o tempo para mim. O aniversário de Kwan foi há seis
meses, uma vida atrás. Depois que voltei da festa, Simon e eu brigamos
ferozmente
por mais um mês. A dor pareceu durar para sempre, mas o amor se
desintegrou em um segundo. Ele acampou no escritório,
#153
depois saiu de casa no final de fevereiro, e parece que foi há tanto tempo que
nem consigo me lembrar do que fiz nas primeiras semanas que passei sozinha.
Mas estou me acostumando com as mudanças. Nada de rotinas, nada de
padrões, nada de velhos hábitos, esta é a minha regra agora. Combina comigo.
Como Kevin
me disse semana passada na sua festa de aniversário:
- Você está com boa aparência, Olivia, muito boa mesmo.
- É o novo eu - eu disse num tom de desafio. - Estou usando um novo
creme facial, frutas ácidas.
Surpreendi todo mundo por estar tão bem - não estou apenas enfrentando
a situação, estou moldando uma nova vida. Kwan é a única que pensa o
contrário. A
noite passada, no telefone, ela disse o seguinte:
- Sua voz parece tão cansada! Cansada de viver sozinha, eu acho. Simon
também. Esta noite vocês dois vêm na minha casa jantar, como nos velhos
tempos, só
amigos...
- Kwan, não tenho tempo para isso.
- Ah, tão ocupada! OK, não esta noite. Amanhã também muito ocupada?
Vem amanhã, ah?
- Não se Simon for.
- Ok-Ok. Só você esta noite. Vou fazer ensopado, seu favorito. Também
vou dar wonton para você levar para casa e congelar.
- Nada de conversas sobre Simon, certo?
- Nada de conversa, só comer. Prometo.
Já estou no meu segundo prato de ensopado. Esperando que Kwan faça alguma
menção ao meu casamento. Ela e George estão conversando animadamente sobre
Virginia, uma
prima da falecida esposa de George, de Vancouver, cujo sobrinho na China quer
imigrar para o Canadá.
George está com a boca cheia.
- A namorada dele queria ir de carona para o Canadá também. Forçou-o a
se casar com ela. Minha prima, ela teve de refazer toda a papelada.
#154
Tudo estava quase aprovado, agora - Ei! Volte para o final da fila. Espere
mais dezoito meses.
- Duzentos dólares, mais papelada. - Kwan serviu-se de vagem com seus
pauzinhos. - Muitas horas desperdiçadas, indo para este escritório, aquele
escritório,
E depois? Surpresa - surge bebê.
George balança a cabeça.
- Minha prima disse: "Ei, por que não esperaram? Agora temos de
acrescentar o bebê, começar o processo todo de novo." O sobrinho disse: "Não
conte aos funcionários
que temos um bebê. Nós dois vamos primeiro, entramos na faculdade, conseguimos
bons empregos, compramos casa, carro. Depois encontramos um jeito de levar o
bebê,
daqui a um ou dois anos."
Kwan largou sua tigela de arroz.
- Deixar o bebê para trás! Que idéia é essa? - Ela olha para mim, como
se a idéia de abandonar o bebê fosse minha. - Faculdade, dinheiro, casa,
emprego -
onde se encontram essas coisas? Quem paga a faculdade, enorme depósito?
Sacudo a cabeça. George resmunga, e Kwan faz um cara de nojo.
- Vagem não macia, velha demais, sem gosto.
- E aí? O que aconteceu? - Eu perguntei. - Eles vão trazer o bebê?
- Não. - Kwan largou os pauzinhos. - Nem bebê, nem sobrinho, nem
esposa. Virgie vai se mudar em breve para San Francisco. América não tem
imigração para
sobrinho, tia Virgie não pode patrocinar. Agora a mãe do sobrinho na China,
irmã de Virgie, nos acusa de fazer o filho perder boa chance!
Aguardo mais explicações. Kwan agita os pauzinhos no ar.
- Wah! Por que pensa seu filho tão importante? Própria irmã não avalia
quanto problema! Seu filho estragado. Posso cheirar daqui. Hwai dan. Ovo
podre.
- Você disse isso a ela?
- Nunca a vi.
- Então por que ela está acusando você?
#155
- Acusou na carta porque Virgie disse a ela que nós a convidamos para
ficar conosco.
- Vocês convidaram?
- Antes não. Agora que a carta disse isso, nós convidamos. Senão ela
ia passar vergonha. Semana que vem ela chega.
Mesmo constantemente exposta a Kwan, acho que jamais compreenderei a
dinâmica de uma família chinesa, toda a complexidade dos parentescos, quem é
responsável,
quem é culpado, toda aquela besteirada de passar vergonha. Fico contente por
minha vida não ser tão complicada.
No final da noite, Kwan me entrega um vídeo. É da festa de aniversário
dela, o dia em que Simon e eu tivemos nossa pior briga, a que nos levou à
separação.
Lembro-me de ir correndo para cima, onde Simon estava se vestindo.
Abri uma janela do quarto, segurei o disquete do lado de fora e gritei:
- Olha o que eu vou fazer com o seu maldito romance! Com o que é
importante para você! - E larguei o disquete.
Berramos um com o outro durante uma hora e então eu disse com uma voz
calma e neutra as palavras mais terríveis que qualquer xingamento.
- Quero o divórcio.
Simon me deixou chocada ao responder:
- Ótimo - e então desceu as escadas, bateu com a porta e desapareceu.
Nem cinco minutos depois, o telefone tocou. Procurei me controlar ao máximo.
Nada de
mágoa, nada de raiva, nada de perdão. Ele que suplicasse. No quinto toque, eu
atendi.
- Libby-ah? - Era Kwan, com uma voz tímida e infantil. - Mamãe ligou
para você? Você vem? Já está todo mundo aqui. Um monte de comida...
Resmunguei uma desculpa.
- Simon doente? De repente?.. Ah, intoxicação. Ok, tome conta dele.
Ele é mais importante que aniversário. - E, quando ela disse isso, resolvi que
Simon
não seria mais importante do que nada na minha vida, nem mesmo Kwan. Fui para
a festa sozinha.
- Vídeo muito engraçado - Kwan está dizendo, enquanto me leva até a
porta. - Talvez não tenha tempo de ver.
#156
Leve assim mesmo. - E assim termina a noite, sem nenhuma menção a Simon.
Em casa, sinto-me desconsolada. Tento ver televisão. Tento ler. Vejo
as horas. Muito tarde para ligar para alguém. Pela primeira vez em seis meses,
minha
vida parece vazia e eu me sinto desesperadamente só. Vejo o vídeo de Kwan em
cima da cômoda. Por que não? Vamos a uma festa.
Sempre achei que vídeos domésticos eram chatos, porque nunca são
editados. Você vê momentos de sua vida que jamais deveriam ser revistos. Você
vê o passado
acontecendo no presente e no entanto você sabe o que vem depois.
Este começa com luzes piscando, depois uma panorâmica da casa em estilo
mediterrâneo de Kwan e George na rua Balboa. Com um movimento desfocado de
câmera,
entramos. Embora seja final de janeiro, Kwan sempre conserva a decoração de
Natal até depois do aniversário. O vídeo mostra tudo: guirlandas de plástico
penduradas
em janelas com esquadrias de alumínio, o carpete verde e azul, os painéis
imitando madeira e uma miscelânea de móveis comprados em depósitos e
liquidações.
A parte de trás do permanente do cabelo de Kwan entra em foco. Ela
exclama com sua voz alta demais:
- Mamãe! Sr. Shirazi! Sejam bem-vindos, entrem.
Minha mãe e o namorado da ocasião surgem no vídeo. Ela está usando uma
blusa de leopardo, leggings e uma jaqueta de veludo preto enfeitada de
dourado. Seus
óculos bifocais têm um sombreado roxo. Desde sua plástica, mamãe vem usando
roupas cada vez mais horrorosas. Ela conheceu Sharam Shirazi numa aula de
dança de salão.
Ela me disse que gostava mais dele do que do último namorado, um nativo de
Samoa, porque ele sabia como segurar a mão de uma dama, "não como se fosse uma
batuta
de tambor". Além disso, na avaliação de minha mãe, o Sr. Shirazi era
um amante e tanto. Ela uma vez cochichou no meu ouvido:
- Ele faz coisas que talvez nem vocês, jovens, façam. - Não perguntei
que coisas eram essas.
Kwan olha para a câmera para se certificar de que George registrou
adequadamente a chegada de mamãe.
#157
E então chega mais gente. O vídeo se aproxima delas: os dois enteados de Kwan,
meus irmãos, suas mulheres, seus quatro filhos. Kwan cumprimenta todo mundo,
gritando
o nome de cada criança:
- Melissa! Patty! Eric! Jena! - depois faz sinal para George filmar as
crianças todas juntas.
Finalmente, a minha chegada.
- Por que tão tarde? - Kwan reclama alegremente. Agarra o meu braço e
me leva na direção da câmera, de modo que nossos rostos enchem a tela. Tenho
um ar
cansado, embaraçado, os olhos vermelhos. É óbvio que quero fugir.
- Esta é minha irmã, Libby-ah - Kwan está dizendo para a câmera. -
Minha irmã favorita. Qual de nós mais velha? Adivinha. Qual?
Nas cenas seguintes, Kwan age como se tivesse tomado anfetaminas,
saltando das paredes. Lá está ela, ao lado da árvore de Natal artificial.
Aponta para os
enfeites, gesticulando como se fosse a apresentadora de um programa de
variedades. Lá está ela, pegando seus presentes. Exagera o peso deles, depois
sacode, apalpa,
cheira cada um antes de ler o nome do feliz destinatário. Finge surpresa:
- Para mim? - E então ri grosseiramente e ergue os dez dedos, abrindo-
os e fechando-os como um sinal: - Cinqüenta anos! - ela grita. - Podem
acreditar? Não?
Que tal quarenta? - Ela se aproxima da câmera e balança a cabeça. - Ok-Ok,
quarenta.
A câmera ricocheteia de uma cena de dez segundos para outra. Lá estão
eles, minha mãe sentada no colo do Sr. Shirazi: alguém grita para eles se
beijarem
e eles obedecem de boa vontade. Depois meus irmãos no quarto, assistindo ao
canal de esportes; eles acenam para a câmera com latas de cerveja. Agora
minhas cunhadas,
Tabby e Barbara, estão ajudando Kwan na cozinha; Kwan ergue uma fatia de
lombinho redonda como uma moeda e grita:
- Prove só! Chegue mais perto e prove!
Em outro quarto, as crianças estão amontoadas em volta de um
computador; dão vivas cada vez que um monstro é morto. E agora a família
inteira e eu estamos
em pé na fila do bufê, a caminho de uma mesa de jantar acrescida de uma mesa
de mah jong de um lado e de uma mesa de jogo de cartas do outro.
#158
Vejo uma tomada de mim mesma: aceno, faço um brinde a Kwan, depois
volto a espetar meu prato com um garfo de plástico, o comportamento normal de
festa. Mas
a câmera é impiedosamente objetiva. Qualquer um pode ver no meu rosto: minhas
expressões são sem vida, minhas palavras são indiferentes. É óbvio que estou
deprimida,
inteiramente resistente ao que a vida tem a oferecer. Minha cunhada Tabby esta
conversando comigo, mas eu contemplo o meu prato com um ar vago. O bolo chega
e todo
mundo começa a cantar "Parabéns pra você". A câmera dá uma panorâmica da sala
e me encontra no sofá, movimentando um enfeite de mesa feito de bolas de aço
que fazem
um perpétuo e aborrecido claque-claque. Pareço um zumbi.
Kwan abre,seus presentes. O bibelõ Hummel de crianças patinando e um
presente dos seus colegas da drogaria.
- Oh, que lindo - ela diz, colocando-o ao lado dos outros bibelôs. A
cafeteira é da minha mãe. - Ah, mamãe! Como você sabe que minha outra
cafeteira está quebrada?
- A blusa de seda em sua cor favorita, vermelho, é do enteado, mais moço,
Teddy. - Boa demais para usar - Kwan lamenta com alegria. Os castiçais de
prata são do
outro enteado, Timmy; ela põe velas neles, depois os coloca sobre a mesa que
ele a ajudou a restaurar no ano passado. - Exatamente como a primeira dama na
Casa Branca!
- ela se gaba. A escultura de barro de um unicórnio adormecido é de nossa
sobrinha Patty; Kwan a deposita cuidadosamente sobre a lareira, prometendo: -
Nunca vou
vender isso, nem mesmo quando Patty se tomar uma artista famosa e esta peça
valer um milhão de dólares. - O robe estampado de margaridas é presente do
marido. Ela
examina a etiqueta: Ohhh. Giorgio Laurentis. Caro demais. Por que foi gastar
tanto? - Sacode o dedo para o marido, que sorri, timidamente orgulhoso.
Outra pilha é colocada diante de Kwan. Faço o vídeo rodar rapidamente
para a frente, desvendando jogos americanos, um ferro de passar a vapor, uma
maleta com
monograma.
#159
III
#163
10
A COZINHA DE KWAN
Kwan diz para eu chegar às seis e meia, que é a hora que ela sempre me manda
chegar, só que normalmente não começamos a comer antes das oito. Então eu
pergunto se
o jantar vai ser mesmo às seis e meia, senão eu vou mais tarde, porque estou
mesmo ocupada. Seis e meia com certeza, ela diz.
Às seis e meia, George atende a porta, com os olhos turvos. Ele não
está usando os óculos, e seu chumaço ralo de cabelo parece um anúncio de
produtos adesivos
à prova de estática. Ele acabou de ser promovido a gerente de uma loja Food-4-
Less em East Bay. Quando foi trabalhar lá, Kwan não notou o 4 no nome da loja,
e até
hoje a chama de Foodless.
Encontro-a na cozinha, tirando as hastes de cogumelos pretos. O arroz
ainda não foi lavado, os camarões não foram limpos. O jantar está a duas horas
de distância.
Atiro a bolsa em cima da mesa, mas Kwan não liga para a minha irritação. Dá um
tapinha na cadeira.
- Libby-ah, sente-se, preciso dizer-lhe uma coisa. - Ela fatia
cogumelos durante meio minuto antes de atirar sua bomba. - Estive falando com
uma pessoa yin.
- Ela agora está falando em chinês.
Suspiro profundamente, para mostrar a ela que não estou com disposição
para esse tipo de conversa.
#164
- Lao Lu, você também o conhece, mas não em vida. Lao Lu disse que
você precisa ficar junto com Simon. É o seu yinyuan, o destino que une os
amantes.
- E por que esse é o meu destino? - pergunto impaciente.
- Porque, na última vida que tiveram juntos, você amou outra pessoa
antes de Simon. Mais tarde, Simon confiou a vida a você, acreditando que você
também
o amava.
Quase caí da cadeira. Nunca contei a Kwan nem a ninguém a verdadeira
razão do meu divórcio. Disse simplesmente que tínhamos nos distanciado um do
outro.
E agora Kwan estava falando sobre isso - como se o mundo inteiro, morto e
vivo, soubesse.
- Libby-ah, você tem de acreditar - diz em inglês. - Este amigo yin,
ele diz que Simon está dizendo a verdade. Você pensa que ele ama você menos e
ela mais
- não! -, por que você pensa assim, sempre compara amor? Amor não é como
dinheiro...
Fico lívida de ouvi-la defendendo-o.
- Que é isso, Kwan? Percebe o quanto isso que você está dizendo parece
maluquice? Se alguém a ouvisse falar assim, pensaria que você está doida. Se
existem
mesmo fantasmas, por que eu nunca os vejo? Me diga, hem.
Ela agora está limpando os camarões, retirando seus intestinos pretos,
deixando as cascas.
- Uma vez você conseguiu ver - diz calmamente. - A vez da menininha.
- Eu estava fingindo. Os fantasmas vêm da imaginação, não do Mundo de
Yin.
- Não diga "fantasma ". Para eles esta é uma palavra racista. Você só
chama de fantasma pessoa yin má.
- Oh, está bem. Esqueci. Até mesmo os mortos se tornaram politicamente
corretos. OK, então como são essas pessoas yin? Me diga. Quantos estão aqui
esta noite?
Quem está sentado nesta cadeira? Mao Tsé-tung? Chu En-lai? Que tal a
Imperatriz Viúva?
- Não-não, eles não estão aqui.
- Bem, diga-lhes que apareçam! Diga-lhes que eu quero vê-los. Quero
perguntar a eles se são formados em aconselhamento matrimonial.
#165
#166
#167
#168
General Capa, ele também era podre. Jogou fora outras pessoas. Nunumu, disse a
mim mesma, finge que o General Capa não está aqui. Tive de fingir por muito
tempo.
Durante dois meses, o General Capa morou na Casa do Mercador Fantasma. Durante
dois meses, a Srta. Bandeira abriu a porta do quarto dela todas as noites para
ele
entrar. Durante esses mesmos dois meses, ela não falou comigo, não como sua
amiga sincera. Ela me tratou como se eu fosse uma empregada. Apontava para
manchas nos
fundilhos da sua roupa branca, manchas que ela dizia que eu não tinha lavado,
manchas que eu sabia serem as impressões dos dedos sujos do General Capa. Aos
domingos,
ela repetia exatamente o que Pastor Amém dizia, nada mais de boas histórias. E
houve outras grandes mudanças durante este período.
Nas refeições, os missionários, a Srta. Bandeira e o General Capa
sentavam-se na mesa de estrangeiros. E onde o Pastor Amém costumava sentar,
foi onde o
General se instalou. Ele falava com sua voz alta, como um latido de cachorro.
Os outros apenas balançavam a cabeça e escutavam. Se ele erguesse a colher de
sopa
até a boca, os outros faziam o mesmo. Se ele largasse a colher para contar
mais vantagens, os outros também largavam suas colheres para escutar .
Lao Lu, os outros empregados e eu nos sentávamos na mesa dos chineses.
O homem que traduzia para Capa, o nome dele, conforme ele disse, era Yiban
Johnson,
Metade Johnson.
#169
Embora ele fosse meio a meio, os estrangeiros decidiram que ele era mais
chinês do que Johnson. Por isso ele também tinha de sentar na nossa mesa. A
princípio, eu
não gostava desse Yiban Johnson, do que ele dizia - como Capa era importante,
que era um herói tanto para americanos quanto para chineses. Mas então eu
compreendi:
o que ele falava era o que o General Capa punha em sua boca. Quando ele se
sentava na mesa conosco, usava suas próprias palavras. Conversava abertamente
conosco,
de gente comum para gente comum. Era realmente educado, não estava fingindo.
Brincava e ria. Elogiava a comida, não comia além da sua cota.
Com o tempo, passei a achar que ele era mesmo mais chinês do que
Johnson. Com o tempo, nem o achava mais estranho. O pai dele, ele nos contou,
era americano,
amigo do General Capa desde que eram crianças. Freqüentaram a mesma escola
militar. Foram expulsos juntos. Johnson navegou para a China com uma companhia
americana
que negociava com tecidos, seda de Nanquim. Em Shangai, ele comprou a filha de
um empregado pobre para ser sua amante. Quando ela estava para ter o filho
dele, Johnson
disse a ela:
- Estou voltando para a América, sinto muito, você não pode ir comigo.
- Ela aceitou seu destino. Agora ela era a amante abandonada de um demônio
estrangeiro.
Na manhã seguinte, quando Johnson acordou, adivinha quem estava enforcada na
árvore bem defronte da janela do quarto dele? Os outros empregados a tiraram
de lá,
amarraram um pano em volta da ferida do pescoço onde a corda tinha arrancado a
vida do seu corpo. Como ela tinha se matado, não celebraram qualquer
cerimônia. Colocaram-na
em um caixão de madeira e o fecharam. Aquela noite, Johnson escutou um choro.
Levantou-se e foi até o quarto onde estava o caixão. O choro ficou mais forte.
Abriu
o caixão e lá dentro encontrou um bebê, deitado entre as pernas da amante
morta. Em volta do pescoço do bebê, bem debaixo do seu queixinho, havia uma
marca vermelha,
da grossura de um dedo, com o mesmo formato de meia lua que a queimadura da
corda tinha deixado no pescoço da mãe dele.
#170
Johnson levou o bebê que tinha metade do seu sangue para a América.
Pôs o bebê no circo, contava às pessoas a história do enforcamento, mostrava-
lhes a cicatriz
misteriosa. Quando o menino estava com cinco anos, o pescoço dele cresceu e a
cicatriz diminuiu, e ninguém pagava mais para ver se ela era misteriosa. Então
Johnson
voltou para a China com o dinheiro do circo e seu filho mestiço. Desta vez,
Johnson se dedicou ao comércio de ópio. Ia de uma cidade portuária para outra.
Fazia
uma fortuna em cada cidade, depois perdia toda a fortuna no jogo. Encontrava
uma amante em cada cidade, depois deixava cada amante para trás. Só o pequeno
Yiban
chorava por perder tantas mães. Foram elas que o ensinaram a falar tantos
dialetos chineses - cantonense, shangainense, hakka, fukien, mandarim -,
aquelas amantes-mães.
Inglês ele aprendeu com Johnson.
Um dia, Johnson encontrou seu velho colega de escola, Capa, que agora
trabalhava para qualquer exército - britânico, manchu, hakka, não importava
qual -
contanto que lhe pagassem. Johnson disse a Capa:
- Ei, tenho uma enorme dívida, um bocado de problemas, você pode
emprestar algum dinheiro ao seu velho amigo? - Como prova de que iria saldar a
dívida, Johnson
disse: - Fique com o meu filho. Tem quinze anos e fala várias línguas. Pode
ajudá-lo a trabalhar para qualquer exército que você escolher.
Desde aquele dia, pelos próximos quinze anos, o jovem Yiban Johnson
pertenceu ao General Capa. Ele era a dívida nunca paga por seu pai.
Perguntei a Yiban: para quem o General Capa luta agora - para os
britânicos, os manchus, os hakkas? Yiban disse que o General Capa tinha lutado
por todos
os três, tinha ganho dinheiro de todos os três, tinha feito inimigos em todos
os três. Agora estava se escondendo de todos os três. Perguntei a Yiban se era
verdade
que o General Capa tinha se casado com a filha de um banqueiro chinês por
dinheiro. Yiban disse que Capa tinha se casado com a filha do banqueiro não só
por dinheiro,
mas também pelas jovens esposas do banqueiro.
#171
Agora o banqueiro também estava atrás dele. Capa, ele disse, sonhava com
espigas de ouro, riquezas que pudessem ser colhidas em uma estação, e depois
esmagadas pelo
arado, transformadas em pó.
Fiquei feliz em saber que tinha razão acerca do General Capa, que a
Srta. Bandeira estava errada. Mas logo depois fiquei doente de tristeza. Eu
era sua leal
amiga. como podia ficar contente vendo esse homem terrível devorar seu
coração?
Então Lao Lu disse:
- Yiban, como você pode trabalhar para um homem destes? Sem lealdade,
nem para com o país nem para com a família!
Yiban disse:
- Olhe para mim. Nasci de uma mãe morta, então não nasci de ninguém.
Tenho sido ao mesmo tempo chinês e estrangeiro, o que me torna nenhum dos
dois. Pertenci
a todo mundo, então não pertenço a ninguém. Tive um pai que não me considera
nem metade seu filho. Agora tenho um senhor que me considera uma dívida. Diga-
me, a
quem eu pertenço? A que país? A que povo? A que família?
Olhamos para ele. Em toda a minha vida, nunca tinha visto uma pessoa
tão inteligente, tão séria, tão merecedora. Não tivemos resposta para ele.
Aquela noite, fiquei deitada no meu tapete, pensando nessas perguntas.
Que país? Que povo? Que família? Para as duas primeiras perguntas, encontrei
logo
as respostas. Eu pertencia à China. Pertencia aos hakkas. Mas, quanto à última
pergunta, eu era como Yiban. Não pertencia a ninguém, só a mim mesma.
Olhe para mim, Libby-ah. Agora eu pertenço a muitas pessoas. Tenho
família, tenho você... Ah! Lao Lu diz que chega de conversa! Coma, coma antes
que esfrie.
#172
11
MUDANÇA DE NOME
Acontece que Kwan tinha razão a respeito dos ruídos da casa. Havia mesmo
alguém nas paredes, sob o assoalho, e estava cheio de raiva e eletricidade.
Descobri depois que o nosso vizinho de baixo, Paul Dawson, foi preso
depois de dar telefonemas ofensivos para milhares de mulheres na Bay Area.
Minha reação
automática foi de simpatia; afinal de contas, o pobre homem era cego e
solitário. Mas então fui informada da natureza dos seus telefonemas: ele dizia
ser membro
de um culto que raptava mulheres "moralmente repreensíveis" e as transformava
em "bonecas sacrificatórias" destinadas a serem penetradas por membros do sexo
masculino
do culto durante um rito de iniciação e depois estripadas vivas pelas abelhas
operárias do culto. Quando as mulheres riam das ameaças, ele perguntava:
- Você quer ouvir a voz de uma mulher que também pensou que isto fosse
uma brincadeira? - E então punha para tocar uma gravação de uma mulher
gritando aterrorizada.
Quando a polícia revistou o apartamento de Dawson, encontrou uma
parafernália de equipamentos eletrônicos: gravadores conectados ao seu
telefone, rediscagem
automática, fitas com efeitos sonoros, e mais. Ele não tinha limitado suas
atividades terroristas ao telefone. Aparentemente, achava que os antigos donos
do nosso
apartamento também tinham sido barulhentos demais, sem consideração pelas suas
meditações matinais Zen.
#173
#174
#175
#176
#177
Mal posso esperar para ouvir o que vai dizer. Ela não vai acreditar.
Mas, quando Kwan atende o telefone, não espera que eu explique por que
estou ligando.
- Libby-ah, esta tarde conversei com meu amigo Lao Lu. Ele concorda,
você tem de ir para China - você, Simon e eu, juntos. Este ano é o Ano do
Cachorro,
ano que vem do Porco, tarde demais. Como você pode deixar de ir? É o seu
destino esperando para acontecer!
Ela continua a falar, contrabalançando o meu silêncio com sua lógica
irrefutável.
- Você meio-chinesa, precisa ver China algum dia. O que você pensa? Se
não formos agora, talvez não haja outra chance! Alguns erros você pode
consertar,
este não pode. Então o que vai fazer? O que acha, Libby-ah?
Na esperança de que ela acabasse desistindo, digo:
- Está bem. Vou pensar no assunto.
- Oh, eu sabia que você ia mudar de idéia!
- Espere um instante. Não disse que ia. Disse que ia pensar.
Ela dispara:
- Você e Simon vão amar China, cem por cento garantido, principalmente
a minha aldeia. Changmian é tão lindo que você nem acredita. Montanha, água,
céu,
como paraíso e terra juntos. Tem coisas que deixei lá, sempre quis dar para
você... - Ela continua falando por mais cinco minutos, entoando as virtudes da
sua aldeia
antes de anunciar: - Oh-oh, a campainha está tocando. Ligo para você
mais tarde, Ok?
- Na verdade, fui eu que liguei para você.
- Oh? - A campainha torna a tocar. - Georgie! - Ela grita: - Georgie,
atende a porta! - Então ela grita - Virgie! Virgei - Será que a prima de
George, de
Vancouver, já está morando lá? Kwan volta ao telefone. - Espere um instante,
vou atender a porta. - Eu a ouço recebendo alguém e depois ela volta a falar
um tanto
sem fôlego. - Ok. Por que você ligou?
-Bem, queria perguntar uma coisa a você. - Arrependo-me imediatamente
do que ainda não disse. Em que estou me metendo?
#178
Penso no lago Tahoe, em me enfiar com Kwan num quarto de motel. - É um tanto
em cima da hora, então, se você estiver muito ocupada eu vou entender...
- Não-não, nunca muito ocupada. Se precisar de alguma coisa, peça.
Minha resposta sempre sim.
- Bem, estava imaginando, bem - e então digo depressa -, o que você
vai fazer amanhã na hora do almoço? Tenho de tratar de alguns assuntos perto
do seu trabalho.
Mas, se você estiver ocupada, podemos deixar para outro dia, não tem
importância.
- Almoço? - Kwan diz toda contente. - Oh! Almoço! - A voz dela soa
feliz de cortar o coração. Xingo a mim mesma por ter sido tão mesquinha com
meu presente.
E então escuto, perplexa, ela anunciar:
- Simon, Simon - Libby-ah me convidou para almoçar amanhã! -
Ouço Simon dizer:
- Certifique-se de que ela a leve a um lugar bem caro.
- Kwan? Kwan, o que Simon está fazendo aí?
- Veio jantar. Ontem eu convidei você. Você disse que estava ocupada.
Não é tarde demais, se quiser vir, tenho comida extra.
Olho para o relógio. Sete horas. Então este era o compromisso dele.
Quase pulo de alegria.
- Obrigada - digo a ela. - Mas estou ocupada esta noite. - A mesma
desculpa de sempre.
- Sempre ocupada demais - ela responde. O mesmo lamento de sempre.
Esta noite, cuido para que minha desculpa não seja uma mentira. Como
penitência, ocupo-me fazendo uma lista de tarefas desagradáveis que tenho
adiado, uma
das quais é mudar o meu nome. Isto exige mudar minha carteira de motorista,
cartões de crédito, título de eleitor, conta bancária, passaporte, assinaturas
de revistas,
sem mencionar informar aos meus amigos e aos meus clientes. Também significa
decidir que sobrenome vou usar. Laguni? Yee?
Mamãe sugeriu que eu mantivesse o nome Bishop.
- Por que voltar para Yee? - ponderou. - Não tem nenhum outro Yee de
suas relações neste país. Então quem vai se importar? - Não lembrei a mamãe
sua promessa
de honrar o nome Yee.
#179
À medida que penso mais sobre o meu nome, percebo que nunca tive
nenhum tipo de identidade que combinasse comigo, pelo menos desde os cinco
anos, quando
minha mãe mudou o nosso nome para Laguni. Ela não se deu o trabalho de mudar o
nome de Kwan. O nome de Kwan permaneceu sendo Li. Quando Kwan veio para a
América,
mamãe disse que era tradição chinesa as meninas conservarem o sobrenome das
mães. Mais tarde, admitiu que nosso padrasto não quis adotar Kwan porque ela
era quase
adulta. Além disso, ele não quis ser legalmente responsável por qualquer
problema que ela pudesse causar como comunista.
Olivia Yee. Repito várias vezes este nome em voz alta. Parece
estranho, como se eu tivesse me tornado totalmente chinesa, como Kwan. Isto me
incomoda um
pouco. O fato de ter sido obrigada a crescer junto de Kwan era provavelmente
um dos motivos pelos quais nunca soube quem era ou quem queria me tornar. Ela
era um
modelo para múltiplas personalidades.
Ligo para Kevin para saber a opinião dele acerca do meu novo nome.
- Nunca gostei do nome Yee - ele confessa. - As crianças costumavam
gritar "Ei, Yee! Ia, lu, iee-ai-iee-ai-oh."
- O mundo mudou - digo. - Está na moda ser étnico.
- Mas usar um distintivo chinês não vai garantir pontos extras para
você - Kevin diz. - Cara, eles estão cortando os asiáticos, não abrindo mais
espaço para
eles. Acho que você estará melhor com Laguni. - Ele ri. - Que diabo, algumas
pessoas pensam que Laguni é mexicano. Mamãe pensou.
- Laguni não me parece certo. Não pertencemos realmente à linhagem
Laguni.
- Ninguém pertence. - Kevin responde. - É o sobrenome de um órfão.
- Do que é que você está falando?
- Quando estive na Itália há dois anos, tentei encontrar algum Laguni.
Descobri que não passava de um nome inventado que as freiras davam aos órfãos.
Laguni
- como lagoa, isolado do resto do mundo. O avô de Bob era órfão. Somos
parentes de um bando de órfãos na Itália.
- Por que você nunca nos contou isto antes?
#180
Ao meio-dia, vou até a drogaria apanhar Kwan. Ela leva vinte minutos me
apresentando a todo mundo da loja - o farmacêutico, o outro balconista, seus
fregueses, todos
são "seus favoritos". Escolho um restaurante tailandês na Castro, de onde
posso vigiar O tráfego de uma mesa na janela enquanto Kwan mantém uma conversa
unilateral.
Hoje eu vou levar tudo na esportiva; ela pode falar sobre a China, o divórcio,
o fato de eu fumar demais, o que quiser. Hoje é o meu presente para Kwan.
Ponho os óculos e estudo o cardápio. Kwan analisa o restaurante, os
cartazes de Bangcoc, os leques roxos e dourados pendurados nas paredes.
- Simpático. Bonito - ela diz, como se a tivesse levado ao lugar mais
elegante da cidade. Ela nos serve de chá. - Então! - proclama. - Hoje você não
está
ocupada demais.
- Só estou tratando de coisas pessoais.
- Que coisas pessoais?
- Você sabe, renovando meu cartão de estacionamento, mudando meu nome,
este tipo de coisa.
- Mudando de nome? O que é mudar de nome? - Ela estende o guardanapo
no colo.
- Tenho de fazer tudo isso para trocar o meu sobrenome para Yee. É uma
confusão, ir à DMV, ao banco, à prefeitura... O que foi?
Kwan está sacudindo vigorosamente a cabeça. O rosto dela está
congestionado. Será que ela está engasgada?
#181
#182
Estou dizendo a verdade, Libby-ah. Ba tomou o nome de outra pessoa. Ele roubou
o destino de um homem de sorte.
Durante a guerra, foi quando isto aconteceu, quando Ba estava na
Universidade Nacional de Guangxi, estudando física. Isto foi em Liangfeng,
perto de Guilin.
Ba era de uma família pobre, mas o pai dele o mandou para um Internato de
missionários quando era menino. Não precisava pagar nada, só prometer amar
Jesus. Por isso
é que o inglês de Ba era tão bom.
Não me lembro de nada disto. Só estou contando a você o que Li Bin-bin,
minha tia, disse. Nessa ocasião, minha mãe, Ba e eu morávamos num quartinho em
Liangfeng,
perto da universidade. De manhã, Ba assistia às aulas. De tarde, trabalhava
numa fábrica, montando componentes de rádio. A fábrica pagava a ele pelas
peças prontas,
então ele não fazia muito dinheiro. Minha tia disse que Ba era mais ágil com a
cabeça do que com os dedos. À noite, Ba e seus colegas dividiam o dinheiro
para comprar
querosene para um lampião. Nas noites de lua cheia, eles não precisavam de
lampião. Podiam sentar do lado de fora e estudar até de manhã. Era isso que eu
fazia também
quando estava crescendo. Você sabia disto? Pode perceber como na China a lua
cheia além de linda é barata?
Uma noite, quando Ba estava voltando para casa depois de estudar, um
bêbado saiu de um beco e o fez parar. Ele sacudiu um paletó.
- Este paletó - ele disse - está na minha família há muitas gerações.
Mas agora preciso vendê-lo. Olhe para mim, sou apenas um homem comum de uma
centena de
sobrenomes. De que me servem roupas elegantes?
Ba olhou para o paletó. Era feito de uma fazenda excelente, cortado e
costurado em estilo moderno. Você tem de lembrar, Libby-ah, que isto foi em
1948, quando
os nacionalistas e os comunistas estavam brigando na China.
#183
#184
#185
Você tem sorte de que nenhuma tragédia semelhante tenha ocorrido com você.
Mais tarde, minha tia se recusou a me contar o nome verdadeiro de Ba porque
ele tinha
abandonado a irmã: dela. Esta foi a vingança de minha tia. E minha mãe também,
não quis me contar, nem depois de morta. Mas eu muitas vezes imaginei qual
seria o
nome dele. Convidei Ba algumas vezes para vir do Mundo de Yin me visitar. Mas
outros amigos Yin disseram que ele está preso em outro lugar, um lugar cheio
de neblina
onde as pessoas acreditam que suas mentiras são verdades. Isto não é triste,
Libby-ah? Se eu pudesse descobrir seu nome verdadeiro, contaria para ele.
Então ele
poderia ir para o Mundo de Yin, pedir desculpas à minha mãe, muitas desculpas,
e viver em paz com nossos antepassados.
É por isso que você tem de ir para a China, Libby-ah. Quando vi aquela
carta ontem, disse para mim mesma: este é o seu destino esperando para
acontecer!
As pessoas em Changmian podem se lembrar ainda do nome dele, minha tia, por
exemplo, tenho certeza. O homem que se tornou
Yee, era assim que a Grande Ma, minha tia, sempre o chamava. Pergunte à Grande
Ma quando chegar lá. Pergunte a ela qual era o nome verdadeiro de Ba.
Ah! O que estou dizendo! Você não vai poder perguntar. Ela não fala
mandarim. Ela é tão velha que nunca foi à escola aprender a língua comum do
povo. Fala
o dialeto de Changmian, não hakka, nem mandarim, algo entre os dois, e só
gente da aldeia sabe falar esse dialeto. Além disso, você tem de ser muito
esperta com
as perguntas sobre o passado, senão ela vai correr com você como um pato doido
bicando os seus pés. Conheço o jeito dela. Que gênio ela tem! Não se preocupe,
entretanto,
eu vou com você. Já prometi. Nunca esqueço minhas promessas. Você e eu, nós
duas, podemos trocar de volta o nome do nosso pai. Juntas nós podemos mandá-
lo finalmente
para o Mundo de Yin.
E Simon! Ele tem de ir também. Assim, vocês ainda podem fazer o artigo
para a revista, conseguir algum dinheiro. Além disso, precisamos dele para
carregar
as malas. Tenho de levar um monte de presentes. Não posso ir para casa de mãos
vazias.
#186
Virgie pode cozinhar para Georgie, a comida dela não é muito ruim. E Georgie
pode tomar conta do nosso cachorro, não precisa pagar a ninguém.
Sim, sim, nós três juntos, Simon, você e eu. Acho que este é o modo
mais prático, o melhor modo de você mudar o seu nome.
Ei, Libby-ah, o que você acha?
#187
12
A MELHOR ÉPOCA PARA SE
COMER OVOS DE PATA
Kwan não discute para conseguir o que quer. Ela usa métodos mais
eficazes, uma combinação da velha tortura chinesa da água e da isca e anzol
americanos.
- Libby-ah -diz. - Que mês vamos China, ver minha aldeia?
- Eu não vou, lembra?
- Oh, certo-certo. OK, que mês você acha que eu devo ir? Setembro,
provavelmente quente demais. Outubro, muitos turistas. Novembro, nem muito
quente nem
muito frio, talvez seja a melhor época.
- Você é quem sabe.
No dia seguinte, Kwan diz:
- Libby-ah, Georgie não pode ir, não tem direito ainda a tempo de
férias. Você acha que Virgie e Ma vão querer ir comigo?
- Claro, por que não? Pergunte a elas.
Uma semana depois, Kwan diz:
- Ai-ya! Libby-ah! Já comprei três passagens. Agora Virgie tem emprego
novo, Ma tem namorado novo. Ambas dizem, desculpe, não posso ir. E agente de
viagem,
ela também diz sinto muito, não posso devolver dinheiro. - Ela me lança um
olhar de agonia. - Ai-ya, Libby-ah, o que eu faço?
Penso a respeito. Podia fingir que tinha caído no jogo dela. Mas não
consigo fazer isso.
#188
#189
As aeromoças chinesas nos receberam usando boinas e saias escocesas, uma moda
inexplicável que me faz questionar a habilidade de nossos responsáveis em
lidar com
seqüestradores, perda de peças do motor e pousos de emergência no oceano.
Enquanto Kwan, Simon e eu nos esprememos para passar pelo corredor
estreito, noto que não há uma única pessoa branca a bordo, a não ser que se
incluíssem
Simon e eu. Será que isto quer dizer alguma coisa?
Como muitos dos chineses a bordo, Kwan leva uma sacola de presentes em
cada mão. Além da mala cheia de presentes que foi despachada junto com o resto
da
bagagem. Imagino o noticiário de televisão do dia seguinte: "Uma garrafa
térmica, potinhos de plástico para guardar comida, pacotes de ginseng de
Wisconsin - tudo
isto estava no meio dos detritos que cobriram a pista depois do trágico
acidente aéreo que matou Horatio Tewksbury III de Atherton, que estava sentado
na primeira
classe, e quatrocentos chineses que sonhavam em voltar, depois de uma
trajetória de sucessos, à terra natal."
Quando vemos os nossos assentos, dou um gemido. Fileira do centro,
espremidos no meio, com gente dos dois, lados. Uma velha, sentada na outra
ponta do corredor,
olha zangada para nós e depois tosse. Ela reza alto para uma divindade
qualquer para que ninguém tome os três lugares ao lado dela, diz que tem uma
doença muito
ruim e que precisa de espaço para deitar e dormir. A tosse dela fica mais
violenta. Infelizmente para ela, a divindade devia ter saído para o almoço,
porque nós
nos sentamos.
Quando o carrinho de bebidas finalmente aparece, peço alívio na forma
de um gim-tônica. A aeromoça não entende.
- Gim-tônica - repito, e depois digo em chinês: - Com uma rodela de
limão, se você tiver.
Ela consulta sua colega, que também dá de ombros, sem entender.
- Non tem scotch, non? - eu tento. - Você tem scotch?
Elas riem da piada.
#190
É claro que têm scotch, tenho vontade de gritar. Olhem para essas
roupas ridículas que vocês estão usando!
Mas "scotch" não é uma palavra que eu tenha aprendido a dizer em
chinês, e Kwan não está disposta a me ajudar. De fato, ela parece bem
satisfeita com a minha
frustração e com a confusão da aeromoça. Escolho uma Diet Coke.
Enquanto isso, Simon está sentado ao meu lado, brincando de Simulador
de Vôo no seu laptop.
- Ô-ô-ô! Merda. - Isto é acompanhado pelos ruídos de um desastre
seguido de incêndio. Ele se vira para mim. - Capitão Bishop diz que as bebidas
são por conta
da casa.
Durante toda a viagem, Kwan parece tonta de felicidade. Aperta o meu
braço a toda hora e sorri. Pela primeira vez em mais de trinta anos ela vai
estar em
solo chinês, em Changmian, a aldeia onde viveu até os dezoito anos. Vai ver
sua tia, a mulher que ela chama de Grande Ma, que a criou e que, segundo Kwan,
a maltratou
horrivelmente, beliscando suas bochechas com tanta força que as deixou com
cicatrizes em forma de lua crescente.
Ela também vai reencontrar velhos colegas de escola, pelo menos os que
sobreviveram à Revolução Cultural, que começou depois que ela partiu. Está
louca para
impressionar os amigos com seu inglês, sua carteira de motorista, os retratos
do seu gato sentado no sofá estampado de flores que ela comprou recentemente
numa liquidação
- "cinqüenta por cento mais barato por causa de buraquinho, talvez nem dê para
ver".
Fala em visitar o túmulo da mãe, para se certificar de que está limpo.
Vai me levar a um pequeno vale onde um dia enterrou uma caixa cheia de
tesouros. E,
como sou sua irmã querida, quer me mostrar o esconderijo de sua infância, uma
caverna que contém uma fonte mágica.
A viagem também me traz uma porção de novidades. É a primeira vez que
vou à China. A primeira vez, desde que eu era pequena, que Kwan será minha
companhia
constante por duas semanas. A primeira vez que Simon e eu viajamos juntos e
dormimos em quartos separados.
Agora, espremida no meu assento entre Simon e Kwan, percebo a loucura
que é a minha vinda - a tortura física de estar em aviões e aeroportos a quase
vinte
e quatro horas, o estresse emocional de viajar com as pessoas que são a fonte
de minhas maiores dores de cabeça e temores.
#191
Estamos a dez horas da China. Meu corpo já está confuso, sem saber se é dia ou
noite. Simon está ressonando, eu não preguei olhos e Kwan está acordando.
Ela boceja. Em um segundo, está alerta e inquieta. Ajeita o
travesseiro.
- Libby-ah, no que você está pensando?
- Oh, você sabe, trabalho.
Antes da viagem, preparei um itinerário e uma checklist. Levei em
conta diferença de fuso horário, orientação, escolha de locação, a
possibilidade de que
a única iluminação disponível fosse azul fluorescente. Escrevi lembretes para
fotografar pequenos armazéns e grandes supermercados, barracas de frutas e
hortas,
fogões e utensílios de cozinha,
temperos e óleos. Também passei muitas noites em claro, preocupada com
logística e orçamento. A distância até Changmian é um grande problema, três a
quatro horas
de Guilin, segundo Kwan. O agente de viagem nem conseguiu localizar Changmian
no mapa. Ele reservou um hotel para nós em Guilin, dois quartos, com diária de
sessenta
dólares cada. Pode ser que haja lugares mais perto e mais baratos, mas teremos
de procurar depois que chegarmos.
- Libby-ah - Kwan diz. - Em Changmian, as coisas podem não ser muito
rebuscadas.
#192
Ovos de pata, eu gostava tanto deles que me tornei uma ladra. Antes do café,
todo dia menos domingo, eu os roubava. Eu não era uma ladra horrível, como o
General
Capa. Só tirava o que não ia fazer falta a ninguém, um ou dois ovos,
algo assim. De qualquer modo, os Adoradores de Jesus não os queriam. Eles
gostavam mais
de ovo de galinha. Não sabiam que ovos de pata eram uma grande iguaria - muito
caros se você os comprasse em Jintian. Se eles soubessem quanto custava um ovo
de
pata, iam querer comê-los o tempo todo. E aí? Pior para mim.
Para fazer ovos de pata de mil anos, você tem de começar com ovos
muito frescos, senão, deixe-me pensar... senão... Não sei, já que só usava
ovos frescos.
Talvez os velhos tenham ossos e bicos crescendo lá dentro. Bem, eu punha esses
ovos bem fresquinhos dentro de uma jarra de água de cal e sal. O pó de cal eu
economizava
ao lavar roupa. O sal era outra questão, não era barato como hoje em dia. Para
minha sorte, os estrangeiros tinham aos montes. Queriam que a comida deles
desse a
impressão de ter sido mergulhada no mar. Eu também gosto de coisas salgadas,
mas não tudo. Quando eles se sentam para comer, revezam-se dizendo: "Passe o
sal, por
favor" e colocam mais sal ainda.
Eu roubava o sal da cozinheira. O nome dela era Ermei, Segunda Irmã, uma
filha a mais numa família de nenhum filho. A família a deu de presente para os
missionários
para não ter de casá-la e pagar um dote. Ermei e eu tínhamos um pequeno
negócio clandestino. Na primeira semana dei um ovo para ela. Ela então
despejou um punhado
de sal na palma da minha mão. Na semana seguinte ela quis dois ovos em troca
da mesma quantidade de sal! Aquela garota sabia pechinchar.
Um dia, o Dr. Tarde Demais viu a nossa troca. Fui até a passagem onde
lavava roupa. Quando me virei, ele estava lá, apontando para o montinho branco
na palma
da minha mão. Tive de pensar depressa:
- Ah, isto - eu disse. - Para manchas. - Não estava mentindo. Precisava
tirar as manchas das cascas dos ovos. O Dr. Tarde Demais franziu a testa, sem
entender
o meu chinês. o que eu podia fazer?
#194
Joguei todo aquele precioso sal num balde de água fria. Ele ainda estava
olhando. Então tirei algo da cesta de roupa de baixo das mulheres, atirei no
balde e comecei
a esfregar. - Está vendo? - eu disse, e ergui uma peça de roupa salgada. Wah!
Eu estava segurando a calcinha da Srta. Camundongo, manchada no fundilho do
sangue
da sua menstruação. O Dr. Tarde Demais - ha, você precisava ver a cara dele!
Mais vermelha do que aquelas manchas. Depois que ele foi embora, tive vontade
de chorar
por ter estragado o meu sal. Mas, quando pesquei a calcinha da Srta.
Camundongo - ah? -, vi que tinha dito a verdade! A mancha de sangue tinha
sumido! Era um milagre
de Jesus! Porque, daquele dia em diante, eu podia pegar todo o sal que
quisesse, um punhado para as manchas, outro para os ovos. Não precisava pedir
a Ermei escondido.
Mas de vez em quando eu dava um ovo para ela.
Eu punha a cal, o sal e os ovos em jarras de barro. As jarras eu
conseguia de um mascate que só tinha uma orelha, chamado Zeng, na via pública
que ficava ao
lado da passagem. Um ovo trocado por uma jarra que não servia para guardar
óleo. Ele sempre tinha um bocado de jarras rachadas. Isto me fazia pensar que
o homem
era ou muito desastrado ou louco por ovos de pata. Mais tarde vim a saber que
ele era louco por mim! É verdade! Sua única orelha, meu único olho, suas
jarras rachadas,
meus ovos saborosos - talvez por isso ele achasse que formávamos um bom par.
Ele não disse que queria se casar comigo, não tão abertamente. Mas eu sabia
que ele
pensava nisso, porque uma vez me deu uma jarra que nem estava rachada. E,
quando chamei a atenção dele para o fato, ele pegou uma pedra, quebrou um
pedacinho da
boca da jarra e a devolveu para mim. De todo modo, foi assim que consegui
jarras e um namoro.
Depois de várias semanas, a cal e o sal penetravam nas cascas. As claras
dos ovos ficavam firmes e verdes, as gemas duras e pretas. Eu sabia disso
porque às
vezes comia um para ter certeza de que os outros estavam prontos para serem
cobertos de lama. A lama eu não precisava roubar. No jardim do Mercador
Fantasma conseguia
bastante.
#195
#196
Depois ele se levantou da mesa, fez uma cara feia e anunciou que estava com
dor de estômago, era uma pena, mas não ia poder visitar a Casa de Deus naquela
manhã.
Foi isso que Yiban nos disse.
Então fomos para a reunião de Jesus, e, enquanto eu estava sentada
no banco, notei que a Srta. Bandeira não conseguia parar de bater com o pé no
chão.
Parecia ansiosa e feliz. Assim que a cerimônia terminou, ela pegou sua caixa
de música e foi para o quarto.
Durante a refeição do meio-dia, composta de sobras frias, o General Capa
não apareceu na sala. Nem a Srta. Bandeira. Os estrangeiros olharam para a
cadeira
dele vazia, depois para a dela. Não disseram nada, mas eu sabia o que estavam
pensando, mm-hmm. Depois os estrangeiros foram para os seus quartos para
dormir a sesta.
Deitada no meu colchão de palha, ouvi a caixa de música tocando aquela canção
que eu tinha passado a detestar tanto. Ouvi a porta do quarto da Srta.
Bandeira abrir
e depois fechar. Tapei meus ouvidos com as mãos. Mas na minha mente podia
vê-la esfregando o estômago doente de Capa. Finalmente, a música parou.
Acordei ouvindo o cavalariço gritar enquanto corria pela passagem do
quintal:
- A mula, o búfalo, a charrete! Sumiram. - Saímos todos dos quartos.
Então Ermei veio correndo da cozinha, gritando:
- Um pernil de porco e um saco de arroz. - Os Adoradores de Jesus
estavam confusos, gritando para a Srta. Bandeira vir traduzir para o inglês as
palavras em
chinês. Mas a porta do quarto dela continuou fechada. Então Yiban contou aos
estrangeiros o que o cavalariço e a cozinheira tinham dito. Então todos os
Adoradores
de Jesus saíram correndo para os seus quartos. A Srta. Camundongo saiu,
chorando e beliscando o pescoço; ela tinha ficado sem o medalhão com o cabelo
do seu amado
morto. O Dr. Tarde Demais não conseguiu achar sua maleta de remédios. O pastor
e a Sra. Amém ficaram sem um pente de prata, uma cruz de ouro e todo o
dinheiro da
missão para os próximos seis meses.
#197
Quem tinha feito uma coisa dessas? Os estrangeiros ficaram parados como
estátuas, incapazes de falar ou de se mexer. Talvez eles estivessem pensando
por que Deus
tinha deixado aquilo acontecer no dia em que eles o adoravam.
Nessa altura, Lao Lu estava batendo na porta do General Capa. Nenhuma
resposta. Ele abriu a porta, olhou para dentro e disse uma única palavra:
sumiu! Bateu
na porta da Srta. Bandeira. Mesma coisa. Sumiu.
Todo mundo começou a falar ao mesmo tempo. Acho que os estrangeiros
estavam tentando decidir o que fazer, onde procurar pelos dois ladrões. Mas
agora eles
não tinham nem mula, nem búfalo, nem charrete. E, mesmo que tivessem, como
poderiam saber onde procurar? Para que lado Capa e a Srta. Bandeira foram?
Para Annam,
no sul? Para o leste, ao longo do rio, até Cantão? Para a Província Guizhou,
onde viviam os povos selvagens? O yamen mais próximo para se dar queixa de
grandes crimes
era em Jintian, a muitas horas a pé de Changmian. E o que o funcionário yamen
ia fazer quando soubesse que os estrangeiros tinham sido roubados por gente
deles?
Ia rir ha-ha-ha.
Aquela tarde, na hora dos insetos, eu fiquei sentada no pátio, vendo os
morcegos caçarem os mosquitos. Eu me recusei a deixar que a Srta. Bandeira
entrasse
nos meus pensamentos. Eu estava dizendo para mim mesma: "Nunumu, por que
perder tempo pensando na Srta. Bandeira, uma mulher que prefere um traidor a
uma amiga leal?
Nunumu, lembre-se, a partir de agora, de que não se pode confiar em
estrangeiros. " Mais tarde, fiquei deitada no meu quarto, ainda sem pensar na
Srta. Bandeira,
recusando-me a lhe dar um único pedacinho da minha preocupação ou raiva ou
tristeza. No entanto, alguma coisa vazou, não sei como. Senti um aperto no
estômago, um
fogo no meu peito, uma dor nos meus ossos, sensações que percorreram o meu
corpo, tentando escapar.
A manhã seguinte era o primeiro dia da semana, dia de lavar roupa.
Enquanto os Adoradores de Jesus estavam tendo uma reunião especial na Casa de
Deus, fui
até o quarto deles juntar a roupa suja. É claro que não me preocupei com o
quarto da Srta. Bandeira. Passei direto por ele.
#198
Mas então meus pés começaram a andar para trás e eu abri a porta. A primeira
coisa que vi foi a caixa de música. Fiquei surpresa. Talvez ela tenha achado
que era
pesada demais para carregar. Garota preguiçosa. Vi a roupa suja dela na cesta.
Olhei no armário. Seu vestido de domingo e os seus sapatos tinham sumido,
também seu
chapéu mais bonito, dois pares de luvas, o colar com o rosto de mulher
esculpido na pedra cor de laranja. Suas meias com um buraco no calcanhar ainda
estavam lá.
E então eu tive um mau pensamento e um bom plano. Enrolei a caixa de
música numa blusa suja e a coloquei na cesta de roupas. Carreguei a cesta pelo
corredor,
pela cozinha, depois pelo hall, até a área descoberta. Atravessei o portão que
ia dar no jardim do Mercador Fantasma. Caminhei ao longo do muro noroeste,
onde guardava
meus ovos de pata, e foi lá que cavei outro buraco e enterrei a caixa e todas
as lembranças da Srta. Bandeira.
Enquanto alisava a terra sobre aquele túmulo musical, ouvi um som alto,
como um sapo:
- Wa-ren! Wa-ren!
Fui andando, e, por sobre o crunch-crunch das folhas, tornei a ouvir
aquele som, só que agora eu sabia que era a voz da Srta. Bandeira. Escondi-me
atrás
de um arbusto e olhei para o pavilhão. Wah! Lá estava o fantasma da Srta.
Bandeira! O cabelo dela, foi isto que me deu essa idéia, estava despenteado,
caindo até
a cintura. Fiquei tão assustada que caí em cima do arbusto, e ela ouviu o
barulho.
- Wa-ren, Wa-ren? - ela chamou, enquanto descia correndo, com um ar
selvagem, desamparado. Fui me arrastando o mais rápido que podia. Mas então vi
seus sapatos
de domingo diante de mim. Ergui os olhos. Soube imediatamente que ela não era
um fantasma. Tinha muitas picadas de mosquito no rosto, no pescoço, nas mãos.
Se também
houvesse mosquitos fantasmas lá, eles poderiam ter feito aquilo. Mas só agora
é que pensei nisso.
#199
Mas isso não vem ao caso, ela estava carregando sua maleta de couro
para fugir. Coçou o rosto, e me perguntou, com uma voz cheia de esperança:
- O general, ele voltou para me buscar?
Foi então que eu soube o que tinha acontecido. Ela tinha ficado
esperando no pavilhão desde a véspera, prestando atenção a qualquer ruído.
Sacudi a cabeça.
E me senti ao mesmo tempo contente e culpada ao ver a tristeza invadir o rosto
dela. Ela se jogou no chão, depois riu e chorou. Fiquei olhando para a parte
de trás
do seu pescoço, as marcas inchadas do banquete dos mosquitos, a prova de que
suas esperanças tinham durado a noite inteira. Tive pena dela, mas também
fiquei com
raiva.
- Para onde ele foi? - perguntei. - Ele disse a você?
- Ele falou em Cantão... Não sei. Talvez tenha mentido sobre isso
também. - A voz dela estava apática, como um sino que a gente toca mas não
soa.
- Você sabe que ele roubou comida, dinheiro, uma porção de coisas
valiosas?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- E ainda assim você queria ir com ele?
Ela gemeu em inglês. Não sabia o que ela estava dizendo, mas soava como
lamento por não estar com aquele homem terrível. Ela olhou para mim.
- Srta. Moo, o que devo fazer?
- Você não respeitou a minha opinião antes. Por que me consultar agora?
- Os outros, eles devem achar que sou uma tola.
Concordei.
- E também uma ladra.
Ficou calada por muito tempo. Depois disse:
- Talvez eu devesse me enforcar. Srta. Moo, o que acha? - Ela começou
a rir como uma louca. Depois pegou uma pedra e pôs no meu colo. - Srta. Moo,
por favor,
arrebente a minha cabeça. Diga aos Adoradores de Jesus que o demônio Capa me
matou. Deixe-me ser lamentada em vez de desprezada. - Atirou-se ao chão,
chorando.
- Mate-me, por favor, mate-me. Eles querem mesmo que eu morra.
#200
#201
#202
Atirou uma maleta de couro no chão. A Srta. Bandeira ficou sem fala. Era a
maleta de roupas que ela tinha preparado para ir. Agora o segredo dela tinha
sido descoberto.
Toda a minha maldade e a minha bondade tinham sido para nada.
- Encontrei isto no pavilhão - ele disse. - Acho que pertence a você.
Contém seu chapéu, dois pares de luvas, um colar, uma escova de cabelo. -
Yiban e a
Srta. Bandeira se encararam por muito tempo. Finalmente ele disse:
- Você teve sorte, o general esqueceu de levar com ele. - Foi assim
que ele deu a entender que também guardaria o triste segredo dela.
Aquela semana inteira, enquanto fazia o meu trabalho, eu me
perguntava: por que será que Yiban salvou a Srta. Bandeira da desgraça? Ela
nunca foi amiga dele,
não como eu. Lembrei-me de quando tirei a Srta. Bandeira do rio. Quando a
gente salva a vida de uma pessoa, essa pessoa se torna uma parte de você. Por
que será?
E então me lembrei de que Yiban e eu tínhamos os mesmos corações solitários.
Nós dois queríamos alguém que pertencesse a nós.
Logo Yiban e a Srta. Bandeira estavam passando muitas horas juntos. A
maior parte do tempo eles conversavam em inglês, então eu tinha de perguntar à
Srta.
Bandeira o que estavam dizendo. Oh, ela me dizia, nada de importante: a vida
dos dois na América, na China, o que era diferente, o hoje era melhor. Eu
sentia ciúmes,
porque sabia que eu e ela nunca tínhamos conversado sobre essas coisas nada
importantes.
- O que é melhor? - perguntei.
Ela franziu a testa e refletiu. Acho que estava tentando decidir qual
das muitas coisas chinesas de que gostava devia mencionar primeiro.
- Os chineses são muito educados - disse, depois refletiu mais um
pouco. - Não são tão gananciosos.
Esperei que ela continuasse. Tinha certeza de que ia dizer que a China
era mais bonita, que nossas idéias eram melhores, o nosso povo mais refinado.
Mas
ela não disse nada disto.
- Tem alguma coisa melhor na América? - perguntei.
#203
#204
Vou lhe dizer uma coisa, Libby-ah. O que a Srta. Bandeira e Yiban
estavam sentindo era um amor tão grande e constante quanto o céu. Ela me
contou. Ela disse:
- Conheci muitos tipos de amor antes, nenhum como este. Com minha mãe
e meus irmãos, foi um amor trágico, do tipo que deixa você sofrendo ao
imaginar o
que poderia ter recebido mas não recebeu. Com meu pai, tive um amor incerto.
Eu o amava, mas não sei se ele me amava. Com meus outros namorados, foi um
amor egoísta.
O que me deram foi em troca do que queriam receber de mim.
"Agora estou satisfeita", a Srta. Bandeira disse. "Com Yiban, eu amo e
sou amada, de forma plena e desprendida, sem esperar nada e recebendo mais do
que
o suficiente. Sou como uma estrela cadente que finalmente encontrou o seu
lugar ao lado de outra numa linda constelação, onde iremos brilhar no céu para
sempre."
Fiquei feliz pela Srta. Bandeira e triste por mim mesma. Lá estava
ela, falando de sua grande felicidade, e eu não compreendia o significado de
suas palavras.
Imaginei se esse tipo de amor viria do seu senso de importância americano e
tinha levado a conclusões diferentes das minhas. Ou talvez esse amor fosse
como uma doença
- muitos estrangeiros ficam doentes ao menor sinal de calor ou de frio. A pele
dela andava sempre ruborizada, seus olhos grandes e brilhantes. Ela não se
dava conta
da passagem do tempo.
- Oh, já é assim tão tarde? - vivia dizendo. Ela também andava muito
desastrada e precisava que Yiban a apoiasse quando andava. Sua voz também
mudou, ficou
aguda e infantil. E à noite ela gemia. Gemia por muitas horas. Fiquei com medo
de que tivesse contraído malária. Mas de manhã ela estava sempre bem.
Não ria, Libby-ah. Nunca tinha visto este tipo de amor às claras
antes. Pastor e Sra. Amém não eram assim. Os rapazes e as moças da minha
aldeia nunca agiram
assim, não diante de outras pessoas, pelo menos. Teria sido vergonhoso -
mostrar que você gostava mais do namorado do que de toda a sua família, viva e
morta.
#205
Achei que o amor dela era outro dos seus luxos americanos, algo que o
povo chinês não podia sustentar. Ela e Yiban conversavam durante horas, todos
os dias,
as cabeças juntas, inclinadas, como duas flores buscando o mesmo sol. Embora
falassem em inglês, eu podia perceber que ela iniciava um pensamento e ele
terminava.
Depois ele falava, olhava para ela, se esquecia do que estava dizendo e ela
encontrava as palavras que ele tinha perdido. Às vezes, falavam baixinho,
docemente,
e suas mãos se tocavam. Eles precisavam de que o calor de suas peles igualasse
o calor de seus corações. Olhavam para o mundo no pátio - o arbusto sagrado,
uma folha
no arbusto, uma mariposa na folha, a mariposa ele punha na palma da mão dela.
Contemplavam a mariposa como se ela fosse uma criatura nova na terra, um sábio
imortal
disfarçado. E eu podia ver que essa vida que ela segurava com tanto cuidado
era como o amor que ela iria sempre proteger, não deixando nunca que algum mal
o atingisse.
Mas, ao ver tudo isso, eu aprendi o que era romance. E logo eu também
fui cortejada - você se lembra de Zeng, o mascate de uma orelha só? Era um
homem simpático,
não era feio, mesmo com uma orelha só. Não era muito velho. Mas eu pergunto a
você: que romance pode haver numa conversa sobre jarras rachadas e ovos de
pata?
Bem, um dia Zeng me procurou como sempre com outra jarra. Disse a ele:
- Chega de jarras. Não tenho mais ovos para curtir, nenhum para lhe
dar.
- Fique com a jarra assim mesmo - ele disse. - Dê-me um ovo na semana
que vem.
- Na semana que vem eu também não vou ter nenhum para dar. Aquele
falso general americano roubou o dinheiro dos Adoradores de Deus. Só temos
comida suficiente
para esperar o dinheiro do Ocidente que vem no próximo barco de Cantão.
Na semana seguinte Zeng voltou e me trouxe a mesma jarra. Só que desta
vez estava cheia de arroz. Tão pesada de sentimentos!
#206
Será que isso era amor? Será que amor é uma jarra cheia de arroz, é não
precisar devolver um ovo?
Aceitei a jarra. Eu não disse, obrigada, como você é bondoso, um dia
pago de volta. Fui - como você costuma dizer? - uma diplomata.
- Zeng-ah - chamei quando ele estava indo embora. - Por que suas
roupas estão sempre tão sujas? Veja essas manchas de gordura nos seus
cotovelos! Amanhã
traga suas roupas para cá, eu lavo para você. Se você vai me cortejar, pelo
menos tem de estar limpo.
Está vendo? Eu também sabia fazer romance.
Quando o inverno chegou, Ermei ainda estava xingando o General Capa por ter
roubado o pernil de porco. Isto porque toda a carne defumada tinha acabado, e
a fresca
também. Um a um, ela tinha matado os porcos, as galinhas, os patos. Toda
semana, o Dr. Tarde Demais, Pastor Amém e Yiban caminhavam muitas horas até
Jintian para
ver se o barco de Cantão tinha chegado com o dinheiro. E toda semana eles
voltavam para casa com os mesmos rostos compridos.
Uma vez, eles voltaram com sangue escorrendo pelo rosto. As senhoras
correram para eles, gritando e chorando: Sra. Amém para o Pastor Amém, Srta.
Camundongo
para o Dr. Tarde Demais, Srta. Bandeira para Yiban. Lao Lu e eu corremos para
o poço. Enquanto as damas se agitavam e limpavam o sangue, Pastor Amém
explicava o
que tinha acontecido e Yiban traduzia para nós.
- Eles nos chamaram de demônios, inimigos da China!
- Quem? Quem? - As damas gritaram.
- Os taiping! Não vou mais chamá-los de Adoradores de Deus. Eles são
uns loucos, esses taiping. Quando eu disse "nós somos seus amigos", eles
atiraram pedras
em cima de mim, tentaram me matar!
- Por quê? Por quê?
- Por causa dos olhos deles, dos olhos! - Pastor gritou mais algumas
coisas, depois caiu de joelhos e rezou. olhamos para Yiban e ele sacudiu a
cabeça. Pastor
começou a dar socos no ar, depois tornou a rezar. Apontou para a missão e
gemeu, rezou mais.
#207
Apontou para a Srta. Camundongo, que começou a chorar, dando tapinhas no rosto
do Dr. Tarde Demais, embora não houvesse mais sangue para limpar. Ele apontou
para
a Sra. Amém, cuspiu mais palavras. Ela ficou em pé, depois se afastou. Lao Lu
e eu éramos como surdos-mudos, ainda inocentes do que ele havia dito.
À noite, fomos ao jardim do Mercador Fantasma para nos encontrar com
Yiban e a Srta. Bandeira. Vi a sombra deles no pavilhão no alto da colina, a
cabeça
dela no ombro dele. Lao Lu não quis ir até lá por causa do fantasma. Então eu
assobiei até eles me ouvirem. Eles desceram, de mãos dadas, soltando as mãos
ao me
verem. À luz de uma lua igual a uma fatia de melão, Yiban nos contou as
notícias.
Ele tinha conversado com um pescador quando foi com o Pastor e o Dr.
Tarde Demais até o rio para saber sobre a chegada de barcos. O pescador disse
a ele:
- Nada de barcos, nem agora, nem tão cedo, talvez nunca. Os barcos
ingleses bloquearam os rios. Ninguém entra nem sai. Ontem os estrangeiros
lutavam por
Deus, hoje pelos manchus. Talvez amanhã a China se parta em pedacinhos e os
estrangeiros os recolham e vendam junto com o ópio.
Yiban disse que havia luta desde Suzhou até Cantão. Os manchus e os
estrangeiros estavam atacando todas as cidades governadas pelo Rei Celestial.
Dez-dez
mil taiping mortos, bebês e crianças também. Em alguns lugares, só se viam
corpos de taipings apodrecendo em outras cidades, só ossos brancos. Logo os
manchus chegariam
a Jintian.
Yiban nos deixou refletir sobre essas notícias.
- Quando contei a Pastor o que o pescador tinha dito, ele caiu de joelhos e
rezou, como vocês o viram fazer esta tarde. os Adoradores de Deus atiraram
pedras em
nós. O Dr. Tarde Demais e eu começamos a correr, chamando Pastor, mas ele não
vinha. As pedras atingiram suas costas, seu braço, uma perna, depois sua
testa. Quando
ele caiu no chão, sangue e paciência escorreram de sua cabeça. Foi quando ele
perdeu a fé. Ele gritou: "Deus, por que o senhor me traiu? Por quê? Por que
mandou
aquele falso general, deixou que ele roubasse as nossas esperanças?"
#208
Yiban parou de falar. A Srta. Bandeira disse alguma coisa para ele em
inglês. Ele sacudiu a cabeça. Então a Srta. Bandeira continuou.
- Esta tarde, quando vocês o viram cair de joelhos, ele tornou a
deixar os maus pensamentos escorrerem do seu cérebro. Só que agora ele não
perdeu só a fé,
perdeu também a razão. Ele estava gritando: "Odeio a China! Odeio os chineses!
Odeio esses olhos tortos, esses corações tortos.
Eles não têm uma alma para ser salva." Ele disse: "Matem os chineses, matem
todos eles, só não deixem que eu morra junto com eles. " Apontou para os
outros missionários
e gritou: "Leve-a, leve-o, leve-a."
Depois desse dia, muitas coisas mudaram, igual aos meus ovos. Pastor
Amém agia como um garotinho, reclamando e chorando a toda hora, teimando,
esquecendo
quem era. Mas a Sra. Amém não ficava zangada com ele. Às vezes ela ralhava com
ele, mas quase sempre tentava consolá-lo. Lao Lu disse que de noite ela
deixava Pastor
se enroscar nela. Agora eles eram como marido e mulher. O Dr. Tarde Demais
deixou a Srta. Camundongo cuidar dos ferimentos dele muito tempo depois de não
ter mais
nada para cuidar. E tarde da noite, quando todo mundo devia estar dormindo mas
não estava, uma porta se abria, depois se fechava. Eu ouvia passos, depois os
cochichos
de Yiban, depois os suspiros da Srta. Bandeira. Fiquei tão envergonhada de
ouvi-los que logo depois desenterrei a caixa de música da Srta. Bandeira e a
devolvi para
ela. Eu disse a ela:
- Olhe o que mais o General Capa se esqueceu de levar. Um por um,
todos os empregados foram embora. Quando o ar se tornou frio demais para os
mosquitos aparecerem
à noite, os únicos chineses que restavam na Casa do Mercador Fantasma eram Lao
Lu e eu. Não estou contando Yiban, porque já não achava que ele fosse mais
chinês
do que Johnson. Yiban ficou por causa da Srta. Bandeira. Lao Lu e eu ficamos
porque ainda tínhamos nossa fortuna em ovos de pata enterrada no jardim do
Mercador
Fantasma. Mas nós também sabíamos que se partíssemos nenhum daqueles
estrangeiros saberia como se manter vivo.
#209
#210
Discutimos um pouco sobre quantos ovos dar a cada pessoa. Isto dependia de
quanto tempo Lao Lu e eu achávamos que aquela situação ia durar e de quantos
ovos dispúnhamos
para melhorar as coisas. Depois tivemos de decidir se daríamos os ovos às
pessoas de manhã ou à noite. Lao Lu disse que de manhã era melhor, porque
podíamos sonhar
que estávamos comendo ovos e o sonho se tornava realidade. Isto nos alegraria,
ele disse, acordar e descobrir que ainda estávamos vivos. Então, todas as
manhãs dávamos
um ovo para cada pessoa. A Srta. Bandeira, oh, ela adorava aqueles ovos de
casca verde - salgados, cremosos, melhor que coelhos, ela dizia.
Ajude-me a contar, Libby-ah. Oito ovos, todos os dias, por quase um
mês, quanto dá isso? - duzentos e quarenta ovos de pata. Wah! Eu tive tudo
isso! Se vendesse
esses ovos hoje em San Francisco, ah, que fortuna! Na verdade, juntei mais do
que isso. No meio do verão, o fim da minha vida, eu tinha pelo menos duas
jarras ainda
guardadas. No dia em que nós morremos, Srta. Bandeira e eu estávamos rindo e
chorando, dizendo que devíamos ter comido mais ovos.
Mas como uma pessoa pode saber quando vai morrer? Se soubesse, o que
mudaria? Será que se pode quebrar mais ovos e evitar arrependimentos? Talvez a
pessoa
morresse de dor de estômago.
De qualquer modo, Libby-ah, agora que estou pensando nisso, não me
arrependo. Estou contente de não ter comido aqueles ovos. Agora tenho alguma
coisa para
mostrar para você. Em breve vamos poder desenterrá-los. Você e eu vamos poder
saborear os que sobraram.
#211
13
DESEJO DE MOÇA
Na minha primeira manhã na China, acordei num quarto escuro de hotel em Guilin
e vi uma figura debruçada sobre a minha cama, olhando-me com o olhar
concentrado de
um assassino. Já ia gritar quando ouvi Kwan dizendo em chinês:
- Dormindo de lado - então é por isso que sua postura é tão ruim. De
agora em diante, você deve dormir de barriga para cima. E também fazer
exercícios.
Ela acende a luz e começa a demonstrar, com as mãos nos quadris,
curvando-se na cintura como uma professora de educação física dos anos
sessenta. Fico imaginando
quanto tempo ela ficou parada ao lado da minha cama, esperando que eu
acordasse para poder me apresentar seu mais recente conselho não pedido. A
cama dela já está
feita.
Olho para o relógio e digo irritada:
- Kwan, são só cinco horas da manhã.
- Estamos na China. Está todo mundo acordado. Só você é que ainda está
dormindo.
- Não estou mais.
Estamos na China há menos de oito horas, e ela já está controlando a
minha vida. Estamos pisando no terreno dela, temos de agir de acordo com suas
regras,
falar sua língua. Ela está no paraíso chinês.
Arrancando minhas cobertas, ela ri.
#212
#213
Kwan tem razão. Quem sou eu para me queixar por levar para casa uns
poucos parasitas? Visto roupas quentes e vou bater na porta do quarto de
Simon. Ele abre
imediatamente a porta, pronto para sair.
- Não consegui dormir - confessa.
Cinco minutos depois, nós três estamos na calçada. Passamos por
dezenas de barraquinhas de comida, algumas equipadas com fogareiros portáteis,
outras com
grelhas. Defronte das barraquinhas, os fregueses ficam agachados, formando um
semicírculo, comendo talharim e bolinhos de massa. Meu corpo está agitado de
cansaço
e excitação. Kwan escolhe um vendedor que frita algo parecido com panquecas
num tambor de óleo bem quente.
Me dá três - diz em chinês.
O vendedor pega as panquecas com os dedos escurecidos e Simon e eu
gritamos enquanto fazemos malabarismos com as panquecas como se fôssemos
artistas de circo.
- Quanto? - Kwan abre a carteira.
- Seis yuan - o vendedor de panquecas diz.
Faço o cálculo e vejo que dá um pouco mais de um dólar, baratíssimo.
Mas para Kwan é uma extorsão.
- Wah! - Ela aponta para outro freguês. - Você cobrou dele apenas
cinqüenta fen cada panqueca.
- É claro! Ele é um trabalhador do local. Vocês três são turistas.
- O que você está dizendo! Eu também sou do local. - Você? - O
vendedor olha para ela com ar de deboche . - De onde, então?
- Changmian.
Ele ergue as sobrancelhas, desconfiado.
- É mesmo? Quem você conhece lá em Changmian? - Kwan cita alguns
nomes.
O vendedor dá um tapa na coxa.
- Wu Ze-min? Você conhece Wu Ze-min?
- É claro. Quando éramos crianças, morávamos um defronte do outro.
Como vai ele? Não o vejo há mais de trinta anos.
- A filha dele se casou com meu filho.
#214
- Não diga!
O homem ri.
- É verdade. Há dois anos. Minha mulher e minha mãe foram contra o
casamento - só porque a moça era de Changmian. Elas são antiquadas, ainda
acham que Changmian
é amaldiçoada. Eu não, não sou mais supersticioso. E agora eles tiveram um
bebê, na última primavera, uma menina, mas eu não me importo.
- É difícil acreditar que Wu Ze-min já seja avô. Como vai ele?
- Perdeu a mulher, há uns vinte anos, quando foram mandados para os
estábulos por terem idéias contra-revolucionárias. Eles esmagaram as mãos
dele, mas não
a mente. Mais tarde ele se casou com outra mulher, Yang Ling-fang.
- Não é possível! Ela era a irmã mais moça de uma antiga colega minha.
Não posso acreditar! Ainda posso vê-la, uma tenra garotinha.
- Não tão tenra agora. Ela tem pele de jiaoban, dura como couro,
passou por muitas dificuldades, fique sabendo.
Kwan e o vendedor continuam a fofocar enquanto Simon e eu comemos
nossas panquecas, soltando fumaça na manhã fria. Elas têm um gosto que é uma
mistura de
focaccia e omelete de cebola. No final da refeição, Kwan e o vendedor agem
como velhos amigos, ela prometendo levar suas lembranças para a família e os
amigos, ele
ensinando como contratar um motorista por um bom preço.
- Está bem, irmão mais velho - Kwan diz -, quanto lhe devo?
- Seis yuan.
- Wah! Ainda seis yuan? Muito caro. Vou pagar dois, não mais do que
isso.
- Pague três, então.
Kwan resmunga, paga, e nós vamos embora. Quando estamos a meio
quarteirão de distância, cochicho para Simon:
- Aquele homem disse que Changmian é amaldiçoada. Kwan escuta.
#215
#216
É como se a China tivesse trocado sua cultura e suas tradições pelos piores
atributos do capitalismo: mercadorias vagabundas, descartáveis, e o frenesi do
mercado
de massa de comprar o que todo mundo tem e não precisa.
Simon concorda comigo:
- É fascinante e deprimente ao mesmo tempo. - E então acrescenta: -
Mas estou feliz por estar aqui. - Imagino se ele se refere também ao fato de
estar comigo.
Olhando para cima, na altura das nuvens, ainda podemos ver os picos
fantásticos, que se parecem com dentes de tubarões pré-históricos, o tema
batido de todo
calendário chinês e pintura de pergaminho. Mas, enfiada nas gengivas dessas
velhas formações de pedra, está a praga dos arranha-céus, sua pintura
engordurada pela
poluição industrial, suas tabuletas cobertas de caracteres vermelhos e
dourados. No meio deles há prédios mais baixos de um período anterior, todos
pintados de um
verde proletário. E aqui e ali vê-se o entulho de casas de antes da guerra e
depósitos de lixo improvisados. Esta paisagem dá a Guilin a aparência e o
cheiro de
um rosto bonito manchado de batom de cor berrante, dentes faltando e um caso
avançado de doença periodontal.
- Puxa vida - Simon murmura. - Se Guilin é a cidade mais linda da China,
mal posso esperar para ver a cara da aldeia amaldiçoada de Changmian.
Alcançamos Kwan.
- Está tudo completamente diferente, nada é como antes. - A voz dela
parece um tanto nostálgica. Deve estar triste de ver o quanto Guilin mudou
para pior nos
últimos trinta anos. Mas então Kwan diz com orgulho e encantamento: - Tanto
progresso, tudo tão melhor.
Dois quarteirões adiante, chegamos numa parte da cidade ideal para
fotografar: o mercado de aves. Penduradas nos troncos das árvores há centenas
de gaiolas
decorativas, contendo tentilhões cantantes e pássaros exóticos com belas
plumagens, cristas eriçadas e caudas em leque. No chão estão as gaiolas dos
pássaros grandes,
águias ou gaviões, magníficos, com garras e bicos ameaçadores.
#217
#218
- Diga você!
- Não sei falar chinês.
O homem deve estar pensando que eu estou pedindo ao meu marido para
comprar a coruja para o meu jantar. Concentra-se em mim para fazer a venda.
- A senhora tem muita sorte por eu ainda ter uma. A coruja é rara,
muito rara - ele diz. - Levei três semanas para agarrá-la.
- Eu não acredito - digo a Simon. - Acho que vou vomitar .
Então ouço Kwan dizendo:
- Uma coruja não é assim tão rara, só é difícil de pegar. Além disso,
ouvi dizer que o gosto é comum.
- Para ser honesto -diz o homem -, não é tão picante quanto, por
exemplo, um pangolim. Mas se come coruja para ter força e ambição, não por
causa do gosto.
Também é boa para os olhos. Um dos meus fregueses estava quase cego. Depois
que comeu coruja, conseguiu enxergar a mulher pela primeira vez em quase vinte
anos.
O freguês voltou e me xingou: "Merda! Ela é feia a ponto de assustar um
macaco. Por que você me deixou comer a coruja, seu filho da mãe?"
Kwan riu animadamente.
- Sim, sim, já ouvi falar nisso. É uma boa história. - Ela abre a
carteira e tira uma nota de cem yuan.
- Kwan, o que você está fazendo? - grito. - Nós não vamos comer esta
coruja.
O homem não aceita os cem yuan.
- Só dinheiro americano - diz com firmeza. - Cem dólares americanos.
Kwan puxa uma nota de dez dólares.
- Kwan! - eu grito.
O homem sacode a cabeça, recusando os dez dólares. Kwan sacode os
ombros, e começa a se afastar. O homem grita para ela pagar cinqüenta, então.
Ela volta
e oferece uma nota de dez e uma de cinco, e diz:
- Esta é a minha última oferta.
- Isto é insano! - Simon resmunga.
#219
#220
#221
Disse a mim mesma: se estes três desejos se realizarem, minha vida está
completa, posso morrer feliz. Meu primeiro desejo: ter uma irmã que eu pudesse
amar de todo
o coração, só isso, eu não pediria mais nada dela. Meu segundo desejo: voltar
à China com minha irmã. Meu terceiro desejo - a voz de Kwan tremeu - era que a
Grande
Ma visse isso e dissesse que sentia muito por me ter mandado embora.
- Esta é a primeira vez que Kwan demonstra quanto rancor é capaz de
sentir por alguém que a maltratou.
- Abri a gaiola - ela continuou e libertei os meus três pássaros. -
Ela demonstra com um gesto. - Mas um deles bateu as asas inutilmente, e foi
descendo
em círculos, até cair como uma pedra no fundo do abismo. Agora, veja, dois dos
meus desejos já se realizaram: eu tenho você e estamos juntas na China. A
noite passada
compreendi que o meu terceiro desejo jamais se tornaria realidade. A Grande Ma
jamais me dirá que sente muito.
Ela ergue a gaiola da coruja.
- Mas agora tenho uma linda coruja que pode levar o meu novo desejo.
Quando ela voar, toda a minha velha tristeza irá embora com ela. Então nós
duas estaremos
livres.
Simon apareceu de volta.
- Olivia, você não vai acreditar nas coisas que o povo daqui
considera como comida.
Fomos para o hotel, atrás de um carro que levasse uma nativa, dois turistas e
uma coruja para a aldeia de Changmian.
#222
14
ALÔ ADEUS
#223
Será que os japoneses acham que a vida dos chineses não vale a pena ser
protegida?
- Ou a China tem motoristas melhores ou não tem advogados criminais -
Simon conclui.
Ao ser informado de que somos americanos, Rocky presume satisfeito que
gostamos de música alta. Ele coloca uma fita animada, que foi presente de um
dos seus
"excelentes clientes americanos". E assim, com Kwan no banco da frente, Simon,
a coruja e eu no banco de trás, iniciamos nossa viagem para Changmian,
ensurdecidos
pelo ritmo de "Sisters Are Doing It for Themselves".
Os excelentes clientes de Rocky também o ensinaram a selecionar frases
para pôr turistas à vontade. Enquanto percorremos as ruas apinhadas de Guilin,
ele
as recita como um mantra: "Para onde vai? Eu conheço. Entre, vamos." "Ir mais
depressa? Depressa demais? De jeito nenhum, José." "Onde fica? Não muito
longe. Longe
demais." "Estacionar carro? Espere um instante. Volto logo." "Não perdido. Sem
problemas. Fica frio. " Rocky explica que está ensinando inglês a si mesmo
para um
dia realizar o seu sonho de ir para a América.
- Minha idéia - diz em chinês - é me tornar um famoso ator de cinema,
especializado em artes marciais. Pratiquei tai-chi-chuan por dois anos. É
claro que
não espero fazer sucesso logo de início. Talvez quando chegar eu me empregue
como motorista de táxi. Mas sou trabalhador. Na América, as pessoas não sabem
o que
é trabalhar duro como na China. Nós também sabemos suportar qualquer situação.
O que é insuportável para os americanos é o normal para mim. A senhora não
acha que
é verdade, irmã mais velha?
Kwan responde com um ambíguo "hum". Imagino se ela estará pensando no
seu cunhado, um químico que imigrou para os Estados Unidos e agora trabalha
como lavador
de pratos porque tem medo de falar inglês e as pessoas o acharem burro. Neste
instante Simon arregala os olhos e eu grito "puta merda " quando o carro quase
atropela
duas estudantes de mãos dadas.
#224
#225
Estamos quase atropelando uma moça numa bicicleta com seu bebê sentado no
guidom. No último instante, a moça desvia a bicicleta para a direita.
Rocky ri.
- Fica frio - diz ele em inglês. E então explica em chinês por que não
precisamos nos preocupar. Kwan se vira e traduz para Simon:
- Ele disse que, na China, se motorista atropelar uma pessoa a culpa é
sempre dele, não importa que a outra pessoa tenha sido imprudente.
Simon olha para mim.
- Isto é para nos tranqüilizar? Será que alguém se perdeu na tradução?
- Isso não faz sentido algum - digo a Kwan, enquanto Rocky costura no
meio do tráfego. - Um pedestre morto é um pedestre morto, não importa de quem
é a culpa.
- Tst! Isto é raciocínio americano. - Kwan responde. A coruja inclina
a cabeça e olha para mim, como se estivesse dizendo: preste atenção, gringa,
isto aqui
é a China, suas idéias americanas não funcionam aqui. - Na China - Kwan
continua - você é sempre responsável por outro, não importam as
circunstâncias. Se você
for atropelada, a culpa é minha, você é minha irmãzinha. Entende agora?
- Sim - Simon diz baixinho. - Não faça perguntas. - A coruja pia na
gaiola.
Passamos por uma fileira de lojas que vendem móveis de vime e chapéus
de palha. E então chegamos nos arredores da cidade, com quilômetros e
quilômetros de
restaurantes idênticos dos dois lados da estrada. Alguns estão sendo
construídos, suas paredes com camadas de tijolos, reboco e caiação. Julgando
pela pintura espalhafatosa
das placas na parte da frente, chego à conclusão de que todas as lojas
empregam o mesmo artista. Elas, anunciam as mesmas especialidades: soda
laranja e sopa de
talharim bem quente. Este é o capitalismo competitivo levado a um deprimente
extremo. Garçonetes desocupadas ficam agachadas do lado de fora, vendo o nosso
carro
passar. Que vida. Os cérebros delas devem estar atrofiados de tédio. Será que
elas algum dia se revoltam contra a falta de propósito de suas vidas?
#226
É como conseguir o espaço livre no cartão de bingo e mais nada. Simon está
tomando notas furiosamente. Será que ele observou a mesma desesperança?
- O que você está escrevendo?
- Bilhões e bilhões não atendidos - responde.
Alguns quilômetros à frente, os restaurantes dão lugar a simples
barraquinhas de madeira com telhado de sapê e, mais à frente, a mascates sem
nenhum abrigo
contra o frio. Eles ficam parados do lado da estrada, gritando a plenos
pulmões, sacudindo suas sacas de laranjas, suas garrafas de molho de pimenta
feito em casa.
Estamos andando para trás na evolução da propaganda e marketing.
Quando atravessamos uma das aldeias, vemos cerca de uma dúzia de
homens e mulheres usando jalecos idênticos de algodão branco. Ao lado deles há
banquinhos,
baldes de água, baús de madeira e placas pintadas a mão. Como não sei ler em
chinês, sou obrigada a perguntar a Kwan o que está escrito nas placas.
- Corte de cabelo - ela lê. - Cada um deles também sabe drenar
furúnculos, tirar calos, remover cera do ouvido. Dois ouvidos pelo preço de
um.
Simon está tomando mais notas.
- Ufa! O que você acharia de ser a décima pessoa se oferecendo para
remover cera de ouvido, quando ninguém parou para a primeira? Esta é a minha
definição
de inutilidade. Lembro-me de uma discussão que tive uma vez, quando disse que
uma pessoa não podia comparar a sua infelicidade com a de outra e Simon
perguntou por
que não. Talvez estivéssemos ambos errados. Agora, ao ver essas pessoas
fazendo sinal para pararmos, eu me sinto uma pessoa de sorte por não estar no
negócio de
remoção de cera. No entanto, temo também que lá no fundo, despojada de todos
os acessórios, eu não seja diferente dessa décima pessoa parada na estrada
desejando
que alguém pare e a escolha. Cutuco Simon.
- Eu me pergunto o que esperam, se é que esperam alguma coisa.
Ele responde entre debochado e animador:
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Peço para ele parar para eu poder vomitar. Enquanto me debruço para fora do
carro, Simon dá tapinhas em minhas costas.
- Você está bem, está tudo bem. Eu também estou meio enjoado.
Quando retomamos à estrada, Kwan dá alguns conselhos a Rocky. Ele
balança solenemente a cabeça e diminui a velocidade.
- O que foi que ela disse? - Simon pergunta.
- Lógica chinesa. Se nós morrermos, ele não recebe nada. E, na próxima
existência, vai ficar nos devendo um bocado.
Passam-se mais três horas. Eu sei que devemos estar perto de Changmian. Kwan
está apontando para a paisagem.
- Lá! Lá! - ela grita, pulando como uma criança. - Aqueles dois picos.
A aldeia que eles cercam se chama Esposa Aguardando Retorno de Marido. Mas
onde está
a árvore? O que aconteceu com a árvore? Bem ali, perto da casa, havia uma
árvore enorme, que devia ter uns mil anos.
Ela examina a paisagem.
- Aquele lugar ali! Costumávamos ter uma grande feira ali. Mas agora,
vejam, é só um descampado. E lá aquela montanha lá na frente! A que chamamos
de Desejo
de Moça. Uma vez fui até o topo.
Kwan ri, mas em seguida parece intrigada.
- Engraçado como a montanha parece pequena agora. Por que será? Será
que encolheu por causa da chuva? Ou talvez o pico tenha ficado gasto com
tantas moças
correndo até lá para formular um desejo. Ou talvez seja porque eu fiquei
americana demais e agora vejo as coisas com outros olhos, tudo parece menor,
mais pobre,
não tão bom.
De repente, Kwan grita para Rocky virar numa estradinha de terra que
acabamos de ultrapassar. Ele faz uma curva fechada em U, fazendo Simon e eu
darmos um
encontrão um no outro e a coruja reclamar indignada. Agora estamos sacolejando
por uma estrada esburacada, passando por campos cobertos de terra vermelha
úmida.
#231
#232
Deve haver alguma coisa errada, fico repetindo para mim mesma. Ao dobrarmos a
esquina, vamos dar de cara com a realidade: a loja de fast-food, o depósito de
pneus,
as placas indicando que esta aldeia é na verdade uma terra da fantasia chinesa
para turistas: Comprem suas entradas aqui! Vejam a China dos seus sonhos!
Intocada
pelo progresso, afundada no passado!
- Tenho a sensação de já ter visto este lugar - cochicho para Simon,
com medo de quebrar o encanto.
- Eu também. É tão perfeito. Talvez tenha sido num documentário -
ele ri. - Ou num comercial de carros.
Contemplo as montanhas e compreendo por que Changmian parece tão
familiar. É o cenário das histórias de Kwan, as que penetraram nos meus
sonhos. Lá estão:
os arcos, as cássias, os muros altos da Casa do Mercador Fantasma, as colinas
que levam à Montanha do Cardo. E ali eu sinto como se a membrana que separava
as duas
metades da minha vida tivesse finalmente se rompido.
De repente ouvimos gritos e vivas. Cinqüenta pequenos estudantes
correm para .um pátio cercado, dando boas-vindas. Quando nos aproximamos, as
crianças gritam,
dão meia-volta e correm de volta para o prédio da escola, rindo. Segundos
depois, elas voltam correndo e gritando na nossa direção, como um bando de
passarinhos,
acompanhadas pela professora. Perfilam-se e então, como a um sinal invisível,
gritam juntas em inglês:
- A-B-C! Um-dois-três! Como vão vocês? Alô adeus! - Será que alguém
avisou a elas que estavam chegando visitantes americanos? Será que as crianças
ensaiaram
isso para nós?
As crianças acenam e nós acenamos de volta.
- Alô adeus! Alô adeus! - Seguimos pelo caminho que passa pela escola.
Dois rapazes de bicicleta diminuem a velocidade e param para olhar para nós.
Continuamos
andando e viramos uma esquina. Kwan fica sem fala. Mais adiante, defronte de
um portão, estão paradas umas doze pessoas, sorrindo. Kwan cobre a boca com a
mão, depois
corre para elas.
#233
Quando alcança o grupo, agarra a mão de cada pessoa, depois puxa uma mulher
gorda e dá tapas em suas costas. Simon e eu nos aproximamos de Kwan e seus
amigos. Eles
estão trocando insultos amigáveis.
- Gorda! Você está incrivelmente gorda!
- Ei, olhe para você - o que houve com o seu cabelo? Você o estragou
de propósito?
- A moda é assim! Será que você ficou tanto tempo no campo que não
reconhece o que é moda?
- Oh, ouçam só o que ela diz, mandona como sempre.
- Você é que sempre foi mandona, não...
Kwan interrompe a frase pelo meio, olhando hipnotizada para um muro de
pedra. Dava a impressão de ser a coisa mais fascinante que ela já tinha visto.
- Grande Ma - ela murmura. - O que aconteceu? Como pode ser?
Um homem na multidão diz:
- Ah! Ela estava tão ansiosa para vê-la que acordou bem cedinho e
pulou num ônibus para encontrá-la em Guilin. E agora veja - você está aqui,
ela está lá.
Como vai ficar furiosa!
Todo mundo ri, exceto Kwan. Aproxima-se do muro, chamando com voz
rouca:
- Grande Ma, Grande Ma. - Várias pessoas cochicham e todo mundo recua,
assustado.
- Uh-oh - eu digo.
- Por que Kwan está chorando? - Simon murmura.
- Grande Ma, oh, Grande Ma. - As lágrimas escorrem pelo rosto de Kwan.
- Você precisa acreditar em mim, não era isto que eu queria. Que azar você ter
morrido
no dia em que voltei para casa. - Algumas mulheres cobrem a boca, espantadas.
Aproximo-me de Kwan.
- O que você está dizendo? Por que acha que ela está morta?
- Por que está todo mundo tão agitado? - Simon olha em volta.
Eu ergo a mão.
- Não tenho certeza. - Torno a me virar para ela. - Kwan? - Digo
docemente. - Kwan? - Mas ela não parece me ouvir.
#234
Está olhando ternamente para o muro, rindo e chorando.
- Sim, eu sabia disto - ela está dizendo. - É claro. Eu sabia. No
fundo do meu coração eu sempre soube.
#235
#236
Kwan fica olhando até ela desaparecer. - Chega de remorsos - ela diz. E então
entra no carro.
Enquanto Rocky esquenta o motor, pergunto a Kwan:
- Quando passamos pelo ônibus acidentado esta manhã, você viu alguém
parecido com a Grande Ma? Foi assim que soube que ela tinha morrido?
- O que está dizendo? Eu só soube que ela tinha morrido quando vi seu
eu yin parado perto do muro.
- Então por que você disse a ela que sabia?
Kwan franze a testa, intrigada.
- Sabia o quê?
- Você estava dizendo a ela que sabia, que no fundo do coração sabia
que era verdade. Você não estava se referindo ao acidente?
- Ah -ela diz, compreendendo finalmente. - Não, não ao acidente -
suspira. - Eu disse à Grande Ma que o que ela estava dizendo era verdade.
- O que foi que ela disse?
Kwan se vira para a janela, e eu vejo o reflexo de seu rosto cheio de
dor.
- Ela disse que estava errada sobre a história do Desejo de Moça. Disse
que todos os meus desejos já foram realizados. Ela sempre se arrependeu de ter
me mandado
embora. Mas nunca pôde me dizer isso. Senão eu não a teria deixado em troca da
chance de uma vida melhor.
Procuro alguma forma de consolar Kwan.
- Pelo menos você ainda pode vê-la - digo.
- Ah?
- Quer dizer, como uma pessoa yin. Ela pode visitar você.
Kwan olha para fora pela janela do carro.
- Mas não é a mesma coisa. Nós não podemos mais criar novas
lembranças juntas. Não podemos mudar o passado. Não até a próxima existência.
- Ela suspira
profundamente, liberando todas as palavras não ditas.
Enquanto o nosso carro sacoleja pela estrada, as crianças no pátio
correm na nossa direção e espremem os rostos na cerca.
- Alô adeus! - elas gritam. - Alô adeus!
#237
15
O SÉTIMO DIA
Kwan está devastada, eu posso ver. Ela não está chorando, mas quando sugeri
mais cedo que nós simplesmente usássemos o serviço de quarto do hotel em vez
de sair
para comer mais barato, ela concordou prontamente.
Simon oferece mais condolências a ela. Dá-lhe um beijo no rosto,
depois nos deixa a sós. Estamos comendo lasanha, doze dólares o prato,
extremamente extravagante
pelos padrões chineses. Kwan fica olhando para o seu jantar, o rosto
impassível, uma planície varrida pelo vento antes da tempestade. Para mim,
lasanha é uma comida
consoladora. Estou esperando que ela me dê forças para consolar Kwan.
O que devo dizer? " A Grande Ma foi uma grande dama. Todos nós vamos
sentir falta dela?" Isto não seria sincero, Simon e eu jamais a vimos. E as
histórias
de Kwan sobre os maus-tratos de Grande Ma com relação a ela sempre me
pareceram assunto para uma biografia do tipo Auntie Dearest. No entanto, aqui
está Kwan, sofrendo
com a perda desta mulher malvada que literalmente a deixou cheia de
cicatrizes. Por que será que amamos as mães de nossas vidas mesmo que elas
tenham sido péssimas?
Será que nascemos com os corações em branco, esperando ser impressos com
qualquer imitação de amor?
Penso na minha própria mãe. Será que eu ficaria desolada se ela
morresse? Só de pensar nisso eu me sinto aterrorizada e culpada.
#238
Mas penso a respeito: será que eu revisitaria a minha infância para colher
lembranças felizes e veria que elas são tão raras quanto amoras maduras num
galho já colhido?
Será que tropeçaria em espinhos, incomodando a abelha rainha cercada por seus
zangões apaixonados? Será que quando minha mãe morresse eu a perdoaria e em
seguida
daria um suspiro de alívio? Ou iria para um pequeno vale imaginário onde minha
mãe agora é perfeita, atenciosa e amorosa, onde ela me abraça e diz: "Sinto
muito,
Olivia. Fui uma mãe horrível, uma verdadeira merda. Não a culparia se você
jamais me perdoasse." É isso que eu quero ouvir. Imagino o que me diria de
fato.
- Lasanha - Kwan diz de repente.
- O quê?
- A Grande Ma pergunta o que nós estamos comendo, Agora ela diz que
tem muita pena de não ter tido tempo para provar comida americana.
- Lasanha é italiana.
- Shh! Shh! Eu sei, mas, se disser isso a ela, ela vai se arrepender
de não ter tido tempo de ver a Itália. Já se arrepende de muita coisa.
Inclino-me para Kwan e digo baixinho:
- A Grande Ma não entende inglês?
- Só dialeto de Changmian e um pouco de conversa do coração. Depois
que estiver morta há mais tempo, vai aprender mais conversa do coração, talvez
até um
pouco de inglês...
Kwan continua falando, e eu fico contente por ela não estar se
afogando na tristeza, porque eu não saberia como salvá-la.
- ...Pessoas yin, depois de algum tempo, só falam conversa do coração.
Mais fácil, mais rápido assim. Sem palavras mal interpretadas.
- Como é a conversa do coração?
- Já disse a você.
- Disse?
- Muitas vezes. Não usa só língua, lábios, dentes para falar. Usa cem
sentidos secretos.
#239
#240
A última vez que vi Zeng antes de ele se tornar Georgie foi... ah, sim, na
véspera da minha morte.
Zeng me levou um saquinho de cevada seca e, más notícias. Quando lhe
entreguei suas roupas lavadas, ele não me entregou nada para lavar. Eu estava
parada
ao lado dos meus caldeirões, fervendo as roupas.
- Não precisa mais se preocupar com o que está limpo ou sujo - ele me
disse. Ele estava olhando para as montanhas, não para mim. Ah, eu pensei, ele
está
dizendo que nosso namoro terminou. Mas então ele anunciou: - O Rei Celestial
está morto.
Wah! Foi como ouvir um trovão quando o céu está azul.
- Como isto pôde acontecer? O Rei Celestial não pode morrer, ele é
imortal!
- Não é mais - Zeng disse.
- Quem o matou?
- Morreu por suas próprias mãos, é o que o povo está dizendo.
Esta notícia foi ainda mais chocante que a primeira. O Rei Celestial
não permitia o suicídio. E agora tinha se matado? Agora estava admitindo que
não era
o irmãozinho de Jesus? Como um hakka podia desgraçar o seu próprio povo desta
maneira? Olhei para Zeng, seu rosto sombrio. Percebi que ele estava sentindo a
mesma
coisa. Ele também era hakka.
Pensei sobre isto enquanto tirava as roupas pesadas da água.
#241
#242
Se a minha situação fosse diferente, era isto que diria: sim, quero. Mas eu
não tinha espaço em minha mente para pensar em casamento. Estava pensando no
que aconteceria
com a Srta. Bandeira, Lao Lu, Yiban - sim, até com os Adoradores de Jesus,
aqueles rostos brancos do Pastor e da Sra. Amém, da Srta. Camundongo e do Dr.
Tarde Demais.
Que estranho, pensei. Por que deveria me preocupar com o que vai acontecer com
eles? Não temos nada em comum - nem a língua, nem as idéias, nem os mesmos
sentimentos
acerca do céu e da terra. No entanto, uma coisa eu podia dizer: as intenções
deles são sinceras. Talvez algumas das intenções não sejam muito boas, porque
conduzem
a maus resultados. Ainda assim, eles se empenham muito. Quando se tem certeza
disto com relação a uma pessoa, como é possível não ter nada em comum com ela?
Zeng interrompeu meus pensamentos:
- Você vem ou não vem?
- Deixe-me pensar um pouco - respondi. - Minha mente não é tão rápida
quanto a sua.
- O que há para pensar? - Zeng disse. - Você quer viver ou quer
morrer? Não pense muito. Isto a faz acreditar que tem mais chances do que
realmente tem.
E aí a sua mente fica confusa. - Ele foi até o banco que ficava encostado no
muro, pôs as mãos atrás da cabeça e se deitou.
Pus as roupas para torcer. Rolei a pedra para tirar a água. Zeng tinha
razão; eu estava confusa. Num canto da minha mente, pensava, Zeng é um bom
homem.
Pelo resto da minha vida, eu posso não ter outra chance igual a esta,
especialmente se morrer cedo.
Então fui para o outro canto da minha mente: se eu for com ele, então
não terei mais qualquer pergunta nem resposta só minhas. Não vou poder mais
perguntar
a mim mesma: "Sou uma amiga leal? Devo ajudar a Srta. Bandeira? E quanto aos
Adoradores de Jesus?" Essas perguntas não existiriam mais. Zeng decidiria com
que eu
deveria me preocupar, e com que não deveria. É assim que as coisas são entre
homem e mulher.
#243
Minha mente estava andando para a frente e para trás, de um lado para
o outro. Uma vida nova com Zeng? A velha lealdade aos amigos? Se eu me
escondesse nas
montanhas, sentiria medo e depois morreria do mesmo jeito? Se ficasse, minha
morte seria rápida? Que vida, que morte, que caminho? Era como caçar uma
galinha e depois
se tornar a galinha que está sendo caçada. Eu só tinha um minuto para decidir
que sentimento era mais forte. E foi este que eu segui.
Olhei para Zeng deitado no banco. Os olhos dele estavam fechados Ele
era uma pessoa gentil, não muito inteligente, mas sempre honesta. Decidi
terminar o
nosso amoro do mesmo modo que o tinha começado. Agiria com diplomacia e o
faria acreditar que a idéia de terminar tinha sido dele.
- Zeng - ah - chamei.
Ele abriu os olhos e sentou no banco.
Comecei a pendurar a roupa lavada.
- Por que deveríamos fugir? - eu disse. - Não somos seguidores dos
taiping.
Ele pôs as mãos nos joelhos.
- Preste atenção ao seu amigo, ah - ele disse, com toda a paciência.
- Os manchus só precisam de uma pista de que você é amiga dos Adoradores de
Deus.
Veja só onde você mora. É o suficiente para uma sentença de morte.
Eu sabia disto, mas, em vez de concordar, argumentei:
- O que está dizendo? Os estrangeiros não adoram o Rei Celestial. Eu
os ouvi dizer muitas vezes:" Jesus não tem nenhum irmãozinho chinês."
Zeng ficou irritado comigo, como se nunca tivesse percebido o quanto
eu era burra.
- Diga isto para um soldado manchu e sua cabeça rola imediatamente. -
Ele se levantou. - Não perca mais tempo falando. Vou partir esta noite. Você
vem comigo?
Continuei com a minha conversa boba:
- Por que não esperar mais um pouco? Vamos ver o que vai acontecer. A
situação não pode ser tão ruim quanto você está dizendo. Os manchus vão matar
algumas
pessoas aqui e ali, mas só algumas, para servir de exemplo.
#244
Quanto aos estrangeiros, os manchus não vão mexer com eles. Eles têm
um tratado. Agora que estou pensando nisso, talvez seja mais seguro ficar
aqui. Zeng-ah, venha morar conosco. Temos espaço.
- Morar aqui? - ele gritou. - Wah! É melhor eu cortar minha garganta
agora mesmo! - Zeng se agachou e eu pude ver que sua mente borbulhava como o
meu caldeirão
de roupa. Ele estava dizendo uma porção de coisas grosseiras, alto o bastante
para eu escutar: - Ela é uma idiota. Só um olho - não surpreende que não
possa ver
qual é a coisa certa a fazer!
- Ei! Quem é você para me criticar? - eu disse. - Talvez uma mosca
tenha voado para dentro do seu ouvido e enchido a sua cabeça com febre de
gafanhoto. -
Ergui a ponta do meu dedinho e fiz ziguezagues no ar. - Você ouve zzz-
zzz e acha que nuvens de tempestade estão chegando por trás. Assustado à toa.
- À toa! - Zeng gritou. - O que houve com a sua cabeça? Será que você
está morando há tanto tempo nas nuvens sagradas dos estrangeiros que pensa que
é imortal?
- Ele se levantou, me olhou zangado por alguns instantes, depois disse - Bah!
- Virou-se e foi embora. Meu coração começou a doer na mesma hora. Enquanto
ele se
afastava, eu o ouvi dizer: - Que garota maluca! Perdeu o juízo e agora vai
perder a cabeça...
Continuei a estender a roupa, mas agora meus dedos estavam tremendo.
Com que rapidez bons sentimentos se transformam em maus. Com que rapidez ele
foi enganado.
Uma lágrima queimava no meu olho. Eu a reprimi. Nada de autopiedade. Chorar
era um luxo de gente fraca. Comecei cantar uma das velhas canções da
montanha, não me
lembro qual. Mas minha voz era forte e clara, jovem e triste.
- Tudo bem, tudo bem. Chega de discussão. - Quando eu me virei, lá
estava Zeng, com um ar cansado. - Podemos levar os estrangeiros para as
montanhas também
- ele disse.
Levá-los conosco! Concordei. Enquanto se afastava, ele começou a
cantar a resposta masculina à minha canção. Este homem era mais esperto do que
eu tinha
pensado.
#245
Que marido esperto ele daria! E com uma boa voz também. Ele parou e chamou:
- Nunumu?
- Ah!
- Duas horas depois do pôr-do-sol, eu venho. Diga a todo mundo para
estar pronto no pátio principal. Entendido?
- Entendido! - gritei.
Ele deu mais alguns passos e tornou a parar.
- Nunumu?
- Ah!
- Não lave mais roupas. Só vão restar cadáveres para usá-las.
Está vendo? Ele já estava sendo mandão, tomando decisões por mim. Foi
assim que eu soube que estávamos casados. Foi assim que ele me disse sim.
Depois que zeng saiu, fui para o jardim e subi até o pavilhão onde o Mercador
Fantasma morreu. Olhei por cima do muro e vi os telhados de muitas casas, o
pequeno
atalho que levava às montanhas. Quem estivesse vendo Changmian pela primeira
vez, poderia pensar: "Ah, que lugar lindo. Tão silencioso. Tão tranqüilo. Eu
devia passar
minha lua-de-mel aqui."
Mas eu sabia que aquela tranqüilidade significava que a etapa de
perigo estava terminando e que a de desgraça ia começar logo. O ar estava
pesado e úmido,
difícil de respirar. Não vi nem pássaros nem nuvens. O céu estava manchado de
cor de laranja e vermelho, como se o derrama mento de sangue já tivesse
atingido o
céu. Eu estava nervosa. Tinha a sensação de que algo estava se arrastando
sobre a minha pele. E, quando olhei, subindo pelo meu braço estava um dos
cinco demônios,
uma lacraia, suas pernas marchando a um só tempo! Wah! Eu a tirei do meu braço
com
um piparote e depois pisei nela até achatá-la completamente. Embora ela já
estivesse morta, meu pé continuou a pisar nela, até ela não passar de uma
mancha escura
no chão de pedra. E mesmo assim eu não consegui me livrar da sensação de que
algo estava se arrastando sobre a minha pele.
#246
Após algum tempo, ouvi Lao Lu tocando a sineta do jantar. Só então me acalmei.
Na sala de jantar, sentei-me ao lado da Srta. Bandeira. Não tínhamos mais
mesas separadas
para chineses e estrangeiros desde que eu começara a dividir com eles os meus
ovos de pata. Como sempre, a Sra. Amém fez uma oração. Como sempre, Lao Lu
trouxe um
prato de gafanhotos fritos, que disse ser coelho. Eu ia esperar até acabarmos
de jantar, mas meus pensamentos escaparam por minha boca:
- Como posso comer sabendo que amanhã poderemos estar mortos?
Quando a Srta. Bandeira terminou de traduzir minhas más notícias, todo
mundo ficou calado por um momento. Pastor Amém saltou da cadeira, ergueu os
braços
e gritou por Deus numa voz feliz. A Sra. Amém conduziu o marido de volta para
a cadeira e o fez sentar-se. Depois ela falou e a Srta. Bandeira traduziu suas
palavras:
- Pastor não pode ir.Vocês estão vendo como ele está, ainda agitado.
Lá ele poderia atrair atenção sobre si mesmo, pondo em risco a vida dos
outros. Nós
vamos ficar aqui. Tenho certeza de que os manchus não nos farão mal, já que
somos estrangeiros.
Seria coragem ou estupidez? Talvez ela tivesse razão e os manchus não
matassem os estrangeiros. Mas quem podia ter certeza?
A Srta. Camundongo falou em seguida.
- Onde é essa caverna? Você sabe como encontrá-la? Nós podemos nos
perder! Quem é esse homem Zeng? Por que deveríamos confiar nele? - Ela não
conseguia parar
de se preocupar. - Está tão escuro! Devíamos ficar aqui. Os manchus não podem
nos matar. Não é permitido. Somos súditos da Rainha...
O Dr. Tarde Demais correu para a Srta. Camundongo e tomou-lhe o pulso.
A Srta. Bandeira foi traduzindo baixinho para mim o que ele dizia:
- O coração dela está batendo depressa demais... Uma viagem para as
montanhas iria matá-la... Pastor e a Srta. Camundongo são seus pacientes...
Ele vai ficar
com eles...
#247
Agora a Srta. Camundongo está chorando e o Dr. Tarde Demais está segurando a
mão dela... - A Srta. Bandeira estava traduzindo coisas que eu podia ver por
mim mesma.
Isto mostrava o quanto ela estava desorientada.
Então Lao Lu falou:
- Eu não vou ficar. Olhem para mim. Onde está o meu nariz comprido,
meus olhos claros? Não posso me esconder atrás deste velho rosto. Pelo menos
nas montanhas
existem mil cavernas, mil chances. Aqui eu não tenho nenhuma.
A Srta. Bandeira olhou para Yiban, com muito medo nos olhos. Eu sabia
o que ela estava pensando: que aquele homem que ela amava parecia ser mais
chinês do
que Johnson. Agora que penso nisso, o rosto de Yiban era parecido com o de
Simon, às vezes chinês, às vezes estrangeiro, às vezes misturado. Mas naquela
noite, para
a Srta. Bandeira, ele parecia muito chinês. Eu sei disto porque ela se virou
para mim e disse:
- A que horas Zeng vem nos buscar?
Não tínhamos relógios de pulso naquela época, então eu disse algo do
tipo: "Quando a lua tiver ido até o meio do céu", o que significava por volta
das dez
horas. A Srta. Bandeira balançou a cabeça e foi para o seu quarto. Quando
saiu, estava usando suas melhores coisas: seu vestido de domingo com a bainha
rasgada,
o colar com o rosto de mulher gravado na pedra laranja, luvas do mais puro
couro, seus prendedores de cabelo favoritos. Eles eram de tartaruga, como a
saboneteira
que você me deu de aniversário. Agora você sabe por que gostei tanto dela.
Essas foram as coisas que ela resolveu usar caso morresse. Eu, eu não me
importei com
roupas, embora aquela fosse ser a minha noite de núpcias. Além disso, minha
outra calça e minha outra blusa ainda estavam molhadas, penduradas no jardim.
E não eram
melhores do que as que eu estava usando.
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16
O RETRATO DA GRANDE MA
Ouvi Kwan conversar com a Grande Ma durante metade da noite. Agora estou com
os olhos pesados. Ela está mais esperta do que nunca. Rocky está nos levando
para Changmian
numa caminhonete que promete dar problemas. O corpo embalsamado da Grande Ma
está estendido no banco de trás. Em cada cruzamento, a caminhonete engasga e
morre.
Rocky então salta, abre o capô e dá socos em várias partes metálicas, gritando
em chinês:
- Fodam-se os seus antepassados, seu verme preguiçoso.
Milagrosamente, estas palavras mágicas funcionam, para alívio nosso e
dos motoristas que buzinam atrás de nós. Dentro, a caminhonete parece um
congelador;
por consideração à Grande Ma e seu triste estado, Rocky manteve o aquecimento
desligado. Olhando pelas janelas, vejo a névoa que sobe das valas de
irrigação. Os
picos das montanhas estão cobertos de neblina. O dia não promete ser dos
melhores.
Kwan está sentada atrás, conversando em voz alta com o corpo da Grande
Ma, como se fossem duas garotas a caminho da escola. Estou um banco à frente e
Simon
está sentado bem atrás de Rocky, entabulando uma camaradagem proletária e,
desconfio, atento a qualquer manobra perigosa.
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Mais cedo nesta manhã, depois de fechar nossa conta no Sheraton e de levar a
bagagem para a caminhonete, eu disse a Simon:
- Graças a Deus esta vai ser a última viagem que vamos ser obrigados a
fazer com Rocky.
Kwan lançou-me um olhar horrorizado:
- Wah! Não diga "última". Dá azar dizer uma coisa dessas.
Azar ou não, pelo menos não vamos ter de ir e vir diariamente de
Changmian. Vamos ficar na aldeia por duas semanas, de graça, uma cortesia da
Grande Ma,
que, segundo Kwan, "mesmo antes de morrer nos convidou para ficar na casa
dela".
Por sobre os ruídos metálicos da caminhonete, posso ouvir Kwan
contando vantagens para a morta:
- Este suéter, está vendo, parece de lã, não parece? Mas é de
crílic-ah, mm-hmm, lava máquina. - Ela diz "acrílico" e "lavável a máquina" na
sua versão
de inglês, depois explica como máquinas de lavar e de secar se enquadram no
sistema judiciário americano: - Na Califórnia, não se pode pendurar a roupa na
janela
ou na varanda, oh, não. Os vizinhos chamam a polícia porque você os
envergonhou. Na América não há tanta liberdade como você pensa. Tantas coisas
são proibidas,
você não iria acreditar. Mas acho que algumas regras são boas. Você não pode
fumar, exceto na cadeia. Não pode atirar casca de laranja na rua. Não pode
deixar seu bebê fazer cocô na calçada. Mas algumas regras são ridículas. Você
não pode conversar no cinema. Não pode comer alimentos gordurosos...
Rocky força o motor e acelera na estrada esburacada. Agora eu me
preocupo não só com o estado de espírito de Kwan, mas também com a
possibilidade do corpo
da Grande Ma rolar para o chão.
- Também não se pode obrigar os filhos a trabalhar - Kwan está dizendo
com absoluta autoridade. - Estou dizendo a verdade! Você se lembra como me
obrigava
a juntar pauzinhos e galhos para servir de combustível? Oh, sim, eu me lembro.
Eu tinha de sair andando para baixo e para cima, para lá e para cá no inverno!
Meus
pobres dedos inchados e duros de frio.
#258
E então você vendia o que eu juntava e ficava com o dinheiro. Não, não a estou
acusando, não agora. Eu sei, é claro, naquela época todo mundo tinha de
trabalhar
duro. Mas, na América, você teria ido para a cadeia por me tratar daquele
jeito. Sim, e por bater tanto no meu rosto e beliscar minhas bochechas com
suas unhas afiadas.
Você não se lembra? Veja as cicatrizes, aqui no meu rosto, duas, como mordidas
de rato. E, agora que estou me lembrando disto, vou dizer de novo, eu não dei
aqueles
bolos de arroz mofados para os porcos. Por que mentiria agora? Como eu disse
na ocasião, quem os roubou foi a Terceira Prima Wu. Eu sei porque a vi tirando
o mofo
deles, um bolinho de cada vez. Pergunte a ela. Ela já deve estar morta nesta
altura. Pergunte por que ela mentiu e disse que eu os tinha jogado fora!
Kwan fica estranhamente calada durante os dez minutos seguintes, e
calculo que ela e a Grande Ma estão dando uma à outra o castigo chinês do
silêncio. Mas
então ouço Kwan gritar para mim em inglês:
- Libby-ah! A Grande Ma está me pedindo para você tirar um retrato dela.
Diz que não tem nenhum retrato bom de quando era viva. - Antes que eu possa
responder,
Kwan traduz mais conversa yin: - Ela diz que esta tarde é a melhor hora para
tirar retrato. Depois que eu a vestir com suas melhores roupas, melhores
sapatos. -
Kwan sorri satisfeita para a Grande Ma, depois se vira para mim. - A Grande Ma
diz que está muito orgulhosa de ter uma fotógrafa tão famosa na família.
- Não sou famosa.
- Não discuta com a Grande Ma. Para ela, você é famosa. Isto é o que
importa.
Simon vem cambaleando e se senta ao meu lado, cochichando:
- Você não vai tirar retrato de um cadáver, vai?
- O que eu posso dizer: "Sinto muito, não fotografo gente morta, mas
posso indicar outra pessoa?"
- Talvez ela não seja muito fotogênica.
- Não brinque.
#259
- Você compreende que é Kwan quem quer a foto, não a Grande Ma?
- Por que você está dizendo coisas totalmente desnecessárias?
- Só estou conferindo, agora que estamos na China. Um bocado de coisas
estranhas já aconteceram, e este é só o segundo dia.
#260
- Há muito tempo, moramos juntas, nesta mesma casa. Pode falar mandarim
com ela. Ela entende. - Kwan se vira para a amiga e explica: - Minha
irmãzinha,
Libby-ah, fala um tipo estranho de mandarim, estilo americano, seus
pensamentos e frases correndo de trás para a frente. Você
vai ver. E este aqui, o marido dela, Simon, ele é como se fosse
surdo-mudo. Só fala inglês. É claro que eles são só metade chineses.
- Ahhhh! - O tom de voz de Du Lili sugere ou choque ou repugnância. - Só
metade! O que falam um com o outro?
- Língua americana - Kwan responde.
- Ahhhh! - Outra nota de aparente repulsa. Du Lili me examina como se a
parte chinesa do meu rosto fosse se soltar a qualquer momento.
- Consegue compreender um pouco? - ela me pergunta vagarosamente em
mandarim. E, quando balanço a cabeça afirmativamente, ela reclama falando mais
depressa:
- Tão magrinha! Por que você é tão magrinha? Tst! Tst! Pensei que as pessoas
na América comessem muito. Você tem a saúde fraca? Kwan! Por que você não
alimenta a
sua irmãzinha?
- Eu tento - Kwan protesta. - Mas ela se recusa a comer! As moças
americanas, todas querem ser magras.
Em seguida, Du Lili examina Simon:
- Oh, como um artista de cinema, este aqui. - Ela fica na ponta dos pés
para ver melhor.
Simon olha para mim erguendo as sobrancelhas.
- Tradução, por favor.
- Ela diz que você daria um bom marido para a filha dela. - Pisco o
olho para Kwan e tento ficar séria.
Simon arregala os olhos. Este é um jogo que costumávamos fazer quando
fomos morar juntos. Eu fazia traduções erradas e nós dois mantínhamos a
mentira até um
dos dois entregar os pontos.
Du Lili pega a mão de Simon e o leva para dentro, dizendo:
- Venha, quero lhe mostrar uma coisa.
Kwan e eu vamos atrás.
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Enquanto caminhamos até o salão, Du Lili pega a minha mão e fala comigo em
mandarim:
- Sua irmã mais velha e eu já brincamos juntas naquela plantação de
arroz. Veja, lá adiante.
Imagino Du Lili jovem, cuidando de uma versão infantil de Kwan.
- Às vezes apanhávamos girinos - ela diz, com um ar travesso
- usando nossos panos de cabeça como rede, assim. - Faz movimentos giratórios
e depois
finge que está patinando na lama. - Naquela época, os líderes da aldeia diziam
às mulheres casadas que engolir alguns girinos era
bom para controle da natalidade. Controle da natalidade! Nós nem mesmo
sabíamos o que era isto. Mas sua irmã disse: "Ou Lili, temos de ser boas
comunistas. " Ela
me mandou comer aquelas criaturas pretas.
- Você não comeu!
- Como podia desobedecer? Ela era dois meses mais velha do que eu!
Mais velha ?Meu queixo cai. Como Kwan podia ser mais velha que Du Lili?
Du Lili parece uma velhinha de cem anos. Suas mãos são ásperas e nodosas. Seu
rosto
é todo enrugado e faltam diversos dentes em sua boca. Acho que é isso que
acontece quando você não usa Óleo de Olay depois de trabalhar um dia inteiro
nos canteiros
de arroz.
Du Lili estala os beiços.
- Engoli uma dúzia, talvez mais. Podia senti-los descendo pela minha
garganta, nadando no meu estômago, depois escorregando para cima e para baixo
nas minhas
veias. Eles se infiltraram por todo o meu corpo, até que um dia caí com febre
e um médico da cidade grande disse: "Ei, camarada Du Lili, você andou comendo
girinos?
Você está com vermes no
sangue!"
Ela ri, e em seguida faz um ar sombrio.
- Às vezes eu me pergunto se foi por isso que ninguém quis se casar
comigo. Sim, acho que o motivo foi este. Todo mundo soube que eu tinha comido
girinos e
que jamais poderia ter um filho.
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Quando olho para dentro do caixão, fico aliviada ao ver que o rosto da
Grande Ma está coberto com um papel branco. Tento manter minha voz respeitosa.
- Acho que o acidente desfigurou o rosto dela.
Kwan parece surpresa.
- Oh, você se refere a este papel? - ela diz em chinês. - Não, não, é
costume cobrir o rosto.
- Por quê?
- Ah? - Ela entorta a cabeça, como se a resposta fosse descer do céu e
cair dentro de seu ouvido. - Se o papel se mexer - ela diz -, então a pessoa
ainda está
respirando, e é cedo demais para enterrar o corpo. Mas a Grande Ma está mesmo
morta, ela acabou de me dizer. - Antes que eu possa me preparar, Kwan remove o
papel.
Não há dúvida de que a Grande Ma parece morta, embora não horrivelmente
morta. Sua testa está franzida numa expressão preocupada e sua boca está
torcida numa
careta eterna. Sempre pensei que quando uma pessoa morre seus músculos faciais
relaxam, dando-lhe uma expressão de tranqüilidade.
- Sua boca - digo num chinês penoso. - Do jeito que está torta, parece
que sua morte foi muito dolorosa.
Kwan e Du Lili se inclinam ao mesmo tempo para olhar para a Grande Ma.
- Pode ser - Du Lili diz -, mas ela agora está muito parecida com o que
era quando estava viva. Ela sempre entortava a boca desse jeito.
Kwan concorda.
- Mesmo antes de eu partir da China, o rosto dela era assim, ao mesmo
tempo preocupado e descontente.
- Ela era muito pesada - observo.
- Não, não - Kwan diz. - Você só está achando isto porque agora ela está
vestida para a sua viagem para o outro mundo. Sete camadas de roupa na parte
de cima,
cinco na parte de baixo.
Aponto para a jaqueta de esqui que Kwan escolheu como a sétima camada. É
roxo fosforescente com detalhes ocidentais, um dos presentes que ela comprou
na liqüidação
do Macy's, querendo impressionar a Grande Ma.
#270
A etiqueta com o preço ainda está presa, para provar que a jaqueta não é de
segunda mão.
- Muito bonita - digo, desejando estar vestida com ela.
Kwan faz um ar orgulhoso.
- Prática também. À prova d'água.
- Quer dizer que chove no outro mundo?
- Tst! É claro que não. O tempo é sempre igual. Nem muito quente, nem
muito frio.
- Então por que você disse que a jaqueta era à prova d'água?
Ela me olha sem entender.
- Porque é.
Sopro meus dedos dormentes.
- Se o tempo é tão agradável no outro mundo, por que tantas roupas, sete
e cinco camadas?
Kwan se vira para a Grande Ma e repete a minha pergunta em chinês.
Balança a cabeça como se estivesse falando no telefone.
- Ah. Ah. Ah. Ah-ha-ha-ha! - Depois traduz a resposta para os meus
ouvidos mortais: - A Grande Ma diz que não sabe. Fantasmas e pessoas yin
ficaram tanto tempo
proibidos pelo governo que agora até ela esqueceu todos os costumes e seus
significados.
- E agora o governo permite fantasmas?
- Não, não, eles apenas não multam mais as pessoas por permitirem que
eles voltem. Mas este é o costume correto, sete e cinco, sempre mais duas em
cima do
que embaixo. A Grande Ma acha que sete está ligado aos sete dias da semana,
uma camada para cada dia. Antigamente, as pessoas deviam guardar luto por seus
parentes
por sete semanas, sete vezes sete, quarenta e nove dias. Mas, hoje em dia, nós
somos tão ruins quanto os estrangeiros, bastam uns poucos dias.
- Mas por que só cinco camadas na parte de baixo?
Du Lili abre um sorriso.
- Isto quer dizer que dois dias por semana a Grande Ma vai andar com o
fundilho nu no outro mundo.
#271
Ela e Kwan riem tanto que as pessoas que estão na sala se viram para
olhar.
- Pare! Pare! - Kwan grita, tentando reprimir o riso. - A Grande Ma está
ralhando conosco. Diz que não está morta há tanto tempo assim para fazermos
estas
brincadeiras. - Quando recupera a compostura, Kwan continua: - A Grande Ma não
tem certeza, mas acha que cinco é por todas as coisas comuns que ligam os
mortais
ao mundo dos vivos - as cinco cores, os cinco sabores, os cinco sentidos, os
cinco elementos, as cinco emoções...
E então Kwan pára.
- Grande Ma, há sete emoções, ah, não apenas cinco. - Ela as conta nos
dedos, começando pelo polegar: - Alegria, raiva, medo, amor, ódio, desejo...
Mais uma
- qual é mesmo? Ah, sim, sim! Tristeza. Não, não, Grande Ma, eu não esqueci.
Como poderia esquecer? É claro que estou triste agora que você está deixando
este mundo.
Como você pode dizer uma coisa dessas? Na noite passada eu chorei, e não foi
só para me mostrar. Você viu. Minha tristeza era genuína, não falsa. Por que
você sempre
pensa o pior a meu respeito?
- Ai-ya! - Du Lili grita para o corpo da Grande Ma. - Pare de brigar
agora que você está morta. - Ela olha para mim e pisca o olho.
- Não, eu não esqueço - Kwan está dizendo para Grande Ma. - Um galo, um
galo dançante, não uma galinha ou um pato. Já sei.
- O que ela está dizendo? - pergunto.
- Ela quer um galo amarrado na tampa do seu caixão.
- Por quê?
- Libby-ah quer saber por quê. - Kwan escuta por um minuto, depois
explica. - A Grande Ma não se lembra exatamente, mas acha que seu fantasma
deve entrar no
galo e sair voando.
- E você acredita nisto?
Kwan dá um sorriso malicioso.
- É claro que não! Nem a Grande Ma acredita nisto. É só superstição.
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#273
E por que estou tão preocupada com o retrato de uma mulher morta? Não vou
poder usá-lo no artigo, Mas na verdade tudo importa, ou deveria importar. Toda
foto deve
ser a melhor que posso tirar. Ou será este mais um dos mitos da vida, passado
adiante por pessoas de sucesso para que todas as outras se sintam fracassadas?
Antes que possa pensar mais sobre isto, uma dúzia de pessoas se junta em
volta de mim, querendo ver o que sai da câmera. Sem dúvida muitas delas já
viram bancas
de fotos para turistas, oferecendo instantâneos por preços exorbitantes.
- Parem, parem - digo, quando eles se aproximam.
Coloco a foto de encontro ao peito para apressar a revelação. Os aldeões
ficam calados; eles devem achar que barulho perturba o processo. Tiro a folha
da frente
e examino o teste. O contraste está forte demais para o meu gosto, mas mostro
a eles a foto assim mesmo.
- Muito realista! - uma pessoa exclama.
- Ótima qualidade! - outra diz. - Veja a aparência da Grande Ma - como
se ela fosse acordar e dar comida aos porcos.
Alguém brinca:
- "Wah!"Ela vai dizer. "Porque tem tanta gente em volta da minha cama?"
Du Lili se manifesta.
- Libby-ah, agora tire o meu retrato.
Ela está alisando uma mecha eriçada de cabelo com a palma da mão,
puxando a manga do casaco para disfarçar os vincos. Olho pelo visor. Ela
assumiu a postura
dura de um soldado em posição de sentido, o rosto virado para mim, o olho
enviesado apontando para cima. A câmera assobia. Assim que puxo o teste da
Polaroid, ela
o arranca da minha mão e o aperta de encontro ao peito, batendo com o pé no
chão e rindo loucamente.
- A última vez que vi um retrato meu foi há muitos anos - ela diz
excitada. - Eu era muito jovem. - Quando dou o Ok a ela, ela arranca a folha
da frente e
olha ansiosa para a fotografia. Aperta o olho torto e pisca várias vezes. -
Então é assim que eu sou. - A expressão dela demonstra a reverência pelo
milagre da fotografia.
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17
O ANO EM QUE NÃO
HOUVE INUNDAÇÕES
Por que questionar o mundo? Porque não sou chinesa como Kwan. Para mim, yin
não é yang, e yang não é yin. Não posso aceitar duas histórias contraditórias
como sendo
toda a verdade. Quando Kwan e eu estamos voltando para a casa da Grande Ma,
pergunto baixinho:
- Como foi que a filha de Du Lili morreu?
- Oh, é uma história muito triste - Kwan responde em chinês.
- Talvez você não vá gostar de saber.
Prosseguimos em silêncio. Sei que ela está esperando que eu torne a
perguntar, então finalmente digo:
- Vá em frente.
Kwan pára e olha para mim.
- Você não vai ficar com medo?
Sacudo a cabeça, pensando: "Como posso saber se vou ficar com medo ou
não?" Quando Kwan começa a falar, eu estremeço e não é de frio.
O nome dela era Bolinho e tínhamos cinco anos quando ela se afogou. Ela era da
mesma altura que eu, olho no olho, sua boca calada na altura da minha boca
tagarela.
Era disto que minha tia se queixava, de que eu falava muito.
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Du Yun devia bater nela com freqüência, pelo menos três vezes por dia.
- Ela está possuída - outro disse. - Um piloto japonês caiu do céu e
se alojou em seu corpo. Por isso é que ela não sabe falar chinês, só sabe
grunhir e
torcer as mãos como um avião suicida.
- Ela é estúpida - outro vizinho disse. - A cabeça dela é tão oca
quanto uma cabaça.
Mas, segundo Du Yun, Bolinho não falava porque Du Yun podia falar por
ela. Uma mãe sempre sabe o que é melhor para a filha, ela dizia, não é
verdade? - o
que ela deve comer, o que ela deve sentir e pensar. Quanto às mãos dançantes
de Bolinho, Du Yun disse uma vez que elas eram a prova - a prova genuína - de
que suas
antepassadas tinham sido damas da corte. E a Grande Ma respondeu:
- Wah! Então ela tem mãos contra-revolucionárias, mãos que um dia vão
ser decepadas. É melhor ela aprender a apertar uma das narinas com o dedo e
soprar
o catarro na palma da mão.
Só uma coisa deixava Du Yun triste com relação a Bolinho. Rãs. Bolinho
não gostava das rãs da primavera, rãzinhas verdes, pequeninas como o seu
punho. Ao
cair da tarde você podia ouvi-las, rangendo como portões fantasmas: Ahh-wah,
ahh-wah, ahh-wah. A Grande Ma e Du Yun
agarravam baldes e redes e depois iam para os campos alagados. E todas aquelas
rãs prendiam a respiração, tentando desaparecer com seu silêncio. Mas em pouco
tempo
não podiam mais abafar os seus desejos: Ahh-wah, ahh-wah, ahh-wah, mais alto
ainda que antes, implorando para que alguém as amasse.
- Quem poderia amar tal criatura? - Du Yun costumava dizer brincando.
E a Grande Ma sempre respondia:
- Eu posso - depois de cozida.
Com que facilidade elas apanhavam aquelas criaturas doentes de amor.
Elas as colocavam em baldes, brilhantes como óleo ao luar. De manhã, a Grande
Ma e Du
Yun iam para a beira da estrada, gritando:
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Que ela tinha visto isto acontecer do alto de uma árvore onde seu pai a havia
escondido. Que na árvore um papa-figo piou, avisando para Bolinho se afastar
do seu
ninho. Mas Bolinho não podia emitir nenhum som, nem mesmo um soluço, porque
tinha prometido à mãe que ficaria calada. Era por isso que Bolinho não falava.
Ela tinha
prometido à mãe. Em doze minutos, doze rãs e peles de rãs voavam para dentro
da panela e chiavam no óleo, tão frescas que algumas pernas saltavam da panela
- wah!
- e Du Yun as agarrava com uma das mãos, enquanto com a outra continuava a
mexer. Esta era a competência que Du Yun tinha para cozinhar rãs.
Mas Bolinho não tinha estômago para apreciar isto. Sob a luz fraca do
lampião, ela nos observava, gulosas, devorar aquelas criaturas deliciosas,
nossos dentes
procurando nacos de carne em ossos tão pequeninos quanto agulhas de bordado. A
pele era a melhor parte, macia e saborosa. Em segundo lugar eu gostava dos
ossinhos,
os que ficavam logo
acima dos pés.
Freqüentemente Du Yun erguia os olhos e incentivava a filha:
- Não brinque agora, coma, meu tesouro, coma.
Mas as mãos de Bolinho continuavam a agitar-se e voar, planando junto
com suas sombras. Então Du Yun ficava triste porque sua filha se recusava a
comer o
prato que ela fazia melhor. Você devia ter visto o rosto de Du Yun - tanto
amor por uma menina abandonada que ela encontrou na
estrada. E eu sei que Bolinho tentou amar Du Yun com os farrapos remanescentes
do seu coração. Ela seguia Du Yun pela aldeia, erguia um dos braços para que
sua nova
mãe pudesse lhe dar a mão. Mas nas noites em que as rãs cantavam, quando Du
Yun pegava os seus baldes, Bolinho corria para um canto, se encolhia e
começava a cantar:
Lili-lili-lili.
É assim que eu me lembro de Bolinho. Eu e ela éramos boas amiguinhas.
Morávamos na mesma casa. Dormíamos na mesma cama. Éramos como irmãs.
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Mesmo sem falar , uma sabia o que a outra estava sentindo. Ainda tão pequenas,
conhecíamos a tristeza, e não só a nossa. Conhecíamos a tristeza do mundo. Eu
perdi
a minha família. Ela perdeu a dela.
O ano em que Du Yun encontrou Bolinho na estrada, foi um ano estranho,
um ano sem inundações. No passado, sempre chovia demais na nossa aldeia, e
tinha pelo
menos uma inundação na primavera. Os rios invadiam as nossas casas, varrendo
insetos e ratos, chinelos e bancos, e arrastando tudo isso para os campos. Mas
no ano
em que Bolinho chegou - nenhuma inundação, só chuva, o suficiente para as
plantações e as rãs, o suficiente para o pessoal da aldeia dizer:
- Nada de inundação, por que estamos com tanta sorte? Talvez seja a
menina que Du Yun encontrou na estrada. Sim, deve ser por causa dela.
No ano seguinte, não houve chuva. Em todas as aldeias ao redor da
nossa, a chuva caiu como sempre, chuva forte, chuva fraca, chuva longa, chuva
curta. Mas
na nossa aldeia, nada. Nenhuma chuva para a brotação da primavera. Nenhuma
chuva para a colheita do verão. Nenhuma chuva para o plantio do outono. Nada
de chuva,
nada de brotos. Nada de água para cozinhar o arroz que não florescia mais, nem
restos para alimentar os porcos. Os arrozais ficaram secos, como crosta de
mingau,
e as rãs mortas, como pauzinhos secos. Os insetos saíam das fendas do chão,
sacudindo as antenas na direção do céu. Os patos emagreceram e nós os comemos,
pele e
ossos. Quando olhávamos por muito tempo para os picos das montanhas, nossos
olhos famintos viam batatas-doces assadas, com as cascas estalando. Um ano
terrível,
tão terrível que as pessoas da aldeia disseram que Bolinho, aquela menina
maluca, devia ser a culpada.
Num dia quente, Bolinho e eu estávamos sentadas na beirada de uma vala
que corria ao lado da nossa casa, Estávamos esperando por um barco imaginário
que
nos levaria à terra das fadas. De repente, ouvimos um ronco vindo do céu,
depois outro ronco, depois um estrondo kwahhh! - e começou a cair uma chuva
grossa como
bolas de arroz.
#283
Eu fiquei tão feliz e assustada! Houve mais relâmpagos e mais trovões. Nosso
barco está finalmente partindo, gritei. E Bolinho riu. Pela primeira vez, ouvi
a risada
dela. Eu a vi estender as mãos para os relâmpagos no céu.
A chuva continuou a gorgolejar - gugu-gugu-gugu -, rolando montanha
abaixo, enchendo suas rugas e veias. E os espaços vazios não conseguiam
engolir com a
rapidez necessária, tanta era a água. Logo, muito depressa, aquela vala
simpática se transformou num rio marrom, batendo de encontro às nossas pernas.
Rabos brancos
de água agarraram nossos punhos e tornozelos. Fomos rolando cada vez mais
depressa, primeiro de frente, depois de costas, até a água nos cuspir num
campo.
Por conversas murmuradas, mais tarde eu soube o que aconteceu. Quando
a Grande Ma e Du Yun nos tiraram da água, estávamos pálidas e imóveis,
envoltas em
ervas daninhas, dois casulos encharcados sem nenhum sinal de respiração. Elas
tiraram a lama de nossas narinas e bocas,
arrancaram as ervas de nossos cabelos. Meu corpo magro estava em pedaços, o
corpo gorducho dela não. Elas nos vestiram com roupas de despedida. Depois
foram até
o pátio, lavaram dois bebedouros de porcos que não eram mais necessários,
quebraram dois assentos de bancos para servirem de tampa. Colocaram-nos nesses
dois caixõezinhos
modestos, depois se sentaram e choraram.
Durante dois dias, ficamos deitadas nesses caixões. Grande Ma e Du Yun
estavam esperando que a chuva passasse para poderem nos enterrar no solo
rochoso onde
nada crescia. Na terceira manhã, soprou uma forte ventania, que afastou as
nuvens. O sol apareceu e Du Yun e a Grande Ma abriram os caixões para ver
nossos rostos
pela última vez.
Senti dedos acariciando o meu rosto. Abri os olhos e vi wo rosto de Du
Yun, sua boca aberta num sorriso de alegria.
- Viva! - ela gritou. - Ela está viva! - Agarrou minha mão e
esfregou-a de encontro ao rosto. E então lá estava também a Grande Ma, olhando
para mim, me
examinando.
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#285
E, depois disto, não era mais suficiente dar a sua mente, o seu corpo e o seu
sangue para o bem comum - você tinha de dar também a sua merda, exatamente
como os
impostos americanos!
Mas a Grande Ma não disse que eu podia ir visitar os porcos.
Aproximou-se e cuspiu no meu rosto. Esta era outra superstição a respeito de
fantasmas: cuspa
neles e eles desaparecerão. Mas eu não desapareci Molhei minhas calças, um
córrego quente descendo pelas minhas pernas, uma poça escurecendo o chão. Tive
certeza
de que a Grande Ma ia me bater, mas em vez disso, ela disse:
- Veja, ela está urinando.
E Du Yun disse:
- Como pode ser? Fantasmas não urinam.
- Bem, use os seus próprios olhos, sua tola. Ela está urinando.
- Ela é um fantasma ou não?
E assim elas continuaram, discutindo sobre a cor, o cheiro e o tamanho
da minha mijada. Finalmente decidiram me oferecer algo para comer. Este foi o
raciocínio
delas: se eu fosse um fantasma, aceitaria esse suborno e iria embora. Se fosse
uma garotinha, pararia de reclamar e voltaria a dormir, que foi o que fiz
depois de
dar uma dentada num bolinho de arroz azedo. Dormi e sonhei que tudo que tinha
acontecido era parte do mesmo longo sonho.
Quando acordei na manhã seguinte, tornei a dizer à Grande Ma que tinha
tido um pesadelo.
- Você ainda está dormindo - ela disse. - Agora .levante-se. Vamos
levá-la para ver uma pessoa que vai despertá-la deste sonho.
Caminhamos até uma aldeia chamada Retorno do Pato, seis li ao sul de
Changmian. Nesta aldeia morava uma cega chamada Terceira Tia. Ela não era
minha tia
de verdade. Não era tia de ninguém. Era só um nome, Terceira Tia, o nome que
se dá a uma mulher quando não se deve dizer "a que conversa com fantasmas". Na
juventude,
ela ficou famosa em toda a região por conversar com fantasmas. Na meia-idade,
um missionário cristão a redimiu e ela desistiu de conversar com espíritos,
todos exceto
o Espírito Santo.
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#288
Com o tempo, as chuvas voltaram, depois as inundações, depois os novos
líderes que disseram que tínhamos de trabalhar mais duro para apagar os Quatro
Velhos
e construir os Quatro Novos. Os grãos cresceram, as rãs coaxaram, as estações
passaram, um dia comum depois do outro, até que tudo mudou e ficou igual outra
vez.
Um dia, uma mulher de outra aldeia perguntou à Grande Ma:
- Ei, por que você chama essa menina gorda de Panqueca?
- A Grande Ma olhou para mim, tentando lembrar-se.
- Antes ela era magrinha - ela disse - porque não comia rãs. Agora não
consegue parar de comê-las.
Está vendo, todo mundo resolveu esquecer. E, mais tarde, esqueceram
realmente. Esqueceram que houve um ano sem inundações. Esqueceram que Du Lili
um dia
se chamou Du Yun. Esqueceram qual a menina que tinha se afogado. Grande Ma
ainda me batia, só que agora eu tinha um corpo mais gordo, então os seus
punhos não me
machucavam tanto quanto antes.
Olhe para estes dedos e para estas mãos. Às vezes até eu acredito que
sempre foram meus. O corpo que acreditei ter tido um dia talvez fosse um sonho
que
eu confundi com a realidade. Mas então me lembro de outro sonho.
Neste sonho, eu fui para o Mundo de Yin. Vi tantas coisas. Bandos de
pássaros, alguns chegando, outros partindo. Bolinho voando com sua mãe e seu
pai. Todas
as rãs cantoras que eu comi, agora com suas peles de volta. Eu sabia que
estava morta, e estava ansiosa para ver minha mãe. Mas, antes que pudesse
encontrá-la, vi
alguém correndo na minha direção, com uma expressão de raiva e preocupação.
- Você tem de voltar - ela gritou. - Dentro de sete anos eu vou
nascer. Está tudo combinado. Você prometeu esperar. Já esqueceu? - E ela me
sacudiu, sacudiu,
até eu me lembrar.
Voei de volta para o mundo mortal. Tentei voltar para o meu corpo. Fiz
força para entrar. Mas ele estava quebrado, meu pobre corpo magrinho.
#289
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18
FRANGO PRIMAVERIL
DE SEIS ROLOS
#291
Kwan sorri, apertando minha mão. Aponta para os pássaros que voam no
alto. Se ao menos ela dissesse que são elefantes... Então, pelo menos, sua
loucura seria
consistente. Quem pode me contar a verdade? Du Lili? Ela não é mais confiável
que Kwan. Grande Ma está morta. E mais ninguém na aldeia, com idade suficiente
para
lembrar, fala outra coisa que não seja o dialeto de Changmian. Mesmo que
falassem mandarim, como eu poderia perguntar? "Ei, digam-me, minha irmã é
mesmo minha irmã?"
Ela é um fantasma ou só é louca?" Mas eu não tenho tempo para decidir o que
fazer. Kwan e eu estamos entrando no portão da casa da Grande Ma.
No aposento central, encontramos Simon e Du Lili conversando
animadamente na linguagem universal das charadas. Simon abre o vidro
imaginário de um carro
e grita:
- Então eu enfio a cabeça para fora e grito: "Vamos, sacode esse
traseiro!" Ele aperta uma buzina imaginária e - então - Bbbbrr-ta-ta! Bbbbrrr-
ta-ta! - imita um tiro de Uzi - estourando os pneus.
Du Lili diz em Changmian o que soa como o equivalente a:
- Hnh! Isso não é nada.
Ela imita um pedestre carregando sacos de compras - sacos pesados,
somos convidados a observar, que esticam seus braços como se fossem fios de
macarrão.
De repente, ergue os olhos, salta para trás quase no pé de Simon, e atira para
cima os sacos pesados justo quando um carro ziguezagueando como uma cobra
passa voando
pelo seu nariz e atropela uma multidão de pessoas. Ou talvez ela esteja
querendo dizer um grupo de árvores. De qualquer maneira, galhos ou membros
voam para todo
lado. Para terminar seu pequeno drama, ela vai até o motorista e cospe na cara
dele, o que nesta encenação é o balde perto dos sapatos de Simon.
Kwan rompe em aplausos, eu bato palmas. Simon faz bico como se fosse o
segundo colocado do programa Rainha por um dia. Ele acusa Du Lili de exagero -
talvez
o carro não estivesse andando tão rápido quanto uma cobra, e sim devagar como
uma vaca aleijada.
#292
- Bu-bu-bu! - ela grita, rindo e batendo com os pés. Sim, e talvez ela
estivesse andando com a cabeça nas nuvens e ela tenha causado o acidente. -
Bu-bu-bu!
- Quando ela soca as costas dele, Simon se acovarda:
- Está bem, você ganhou! Seus motoristas são piores. A não ser pela
diferença de idade, eles parecem amantes novos que flertam um com o outro,
implicando,
provocando, encontrando desculpas para se tocarem. Sinto um aperto no coração,
embora não possa ser ciúme, pois quem iria pensar que aqueles dois - bem, seja
ou
não verdadeira a história de Kwan sobre Du Lili e sua filha, uma coisa é
certa: Du Lili é muito velha.
Terminadas as charadas, ela e Kwan vão para o pátio, discutindo o que
vão preparar para o jantar. Quando não podem mais ouvir, chamo Simon de lado.
- Como foi que você e Du Lili chegaram ao tema de maus motoristas,
pelo amor de Deus?
- Tentei contar a ela sobre a viagem de ontem para cá, com Rocky
dirigindo, sobre o acidente.
Faz sentido. Então eu conto a ele o que Kwan me contou.
- O que você acha?
- Bem, em primeiro lugar, Du Lili não me parece louca, e nem Kwan. Em
segundo lugar, são as mesmas velhas histórias que você tem ouvido a vida
inteira.
- Mas esta é diferente. Não está vendo? Talvez Kwan não seja realmente
minha irmã.
Ele franze a testa.
- Como ela pode não ser sua irmã? Mesmo que não seja irmã de sangue,
ainda é sua irmã.
- É, mas isto quer dizer que havia outra menina que também era minha
irmã.
- Mesmo assim, o que você faria? Rejeitaria Kwan?
- É claro que não! É só que - bem, preciso saber com certeza o que
aconteceu.
Ele sacode os ombros.
- Por quê? Que diferença faria? Tudo que sei é o que vejo. Para mim,
Du Lili parece ser uma senhora simpática.
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Será que o sabor vem do que elas comem? Ou será o sangue no caldo?
- Quantos rolos de filme você bateu?
- Seis - eu digo.
- Então vamos chamar este prato de frango primaveril de seis rolos.
- Mas estamos no outono.
- Estou dando este nome em homenagem a Du Lili, que não é nenhuma
franguinha primaveril como você observou. - Simon treme e implora, à maneira
de Quasímodo:
- Por favor, Senhora, não me bata.
Faço o sinal-da-cruz sobre sua cabeça.
- Está bem, você está perdoado, seu debilóide.
Du Lili ergue uma garrafa de uma bebida incolor.
- Quando a Revolução Cultural terminou, eu comprei este vinho - ela
anuncia. - Mas não tive nada para comemorar nos últimos vinte anos. Esta
noite, tenho
três. - Inclina a garrafa na direção da minha xícara, suspira como se
estivesse aliviando a bexiga e não servindo vinho. Depois que todas as xícaras
estão cheias,
ela ergue a dela: - Ganhei! - e bebe ruidosamente, inclinando lentamente a
cabeça para trás enquanto esvazia a xícara.
- Estão vendo? - Kwan diz em inglês. - Tem de ir inclinando a xícara
até beber tudo. - Ela demonstra esvaziando a dela. - Ahhhh! - Du Lili torna a
encher
sua xícara e a de Kwan.
Bem, se Kwan, a rainha dos abstêmios, pode beber isto, não deve ser
muito forte. Simon e eu clicamos as xícaras e depois despejamos a bebida em
nossas gargantas,
e engasgamos imediatamente, como almofadinhas num saloon do faroeste. Kwan e
Du Lili dão tapas nos joelhos e riem. Apontam para as nossas xícaras, ainda
cheias pela
metade.
- O que é isto? - Simon pergunta, engasgado. - Acho que arrancou
minhas amígdalas.
- Bom, ah? - Kwan enche a xícara dele antes que possa recusar.
- Tem gosto de meia suada - ele diz.
- A gente fica meia suada? - Kwan dá outro gole, estala os beiços e
concorda.
#301
Três rodadas e vinte minutos depois, minha cabeça está clara, mas meus
pés estão dormentes. Eu me levanto e sacudo as pernas, sentindo-as formigar.
Simon
faz o mesmo.
- O gosto é horrível. - Ele espreguiça os braços. - Mas quer saber de
uma coisa, eu me sinto ótimo.
Kwan traduz isto para Du Lili.
- Ele diz que não é mau.
- Mas que nome tem esta bebida? - Simon pergunta. - Talvez a gente
possa levar um pouco quando voltar para os Estados Unidos.
- Esta bebida - diz Kwan, e faz uma pausa para contemplar sua xícara
com grande respeito -, esta bebida nós chamamos de vinho de camundongo em
conserva,
ou algo parecido. Muito famosa em Guilin. Tem gosto bom, também faz bem à
saúde. Leva muito tempo para preparar. Dez, talvez vinte anos. - Ela faz um
sinal para
Du Lili, pedindo para ela mostrar a garrafa. Du Lili ergue a garrafa e dá um
tapinha no rótulo vermelho e branco. Passa a garrafa para mim e Simon. Está
quase vazia.
- O que é isto no fundo? - Simon pergunta.
- Camundongo - diz Kwan. - Por isso é que nós chamamos de vinho de
camundongo em conserva.
- O que é de verdade?
- Veja você mesmo. - Kwan aponta para o fundo da garrafa.
- Camundongo.
Nós olhamos. Vemos uma coisa cinzenta. Com um rabo. Em algum lugar do
meu cérebro sei que devo vomitar. Mas, em vez disso, Simon e eu olhamos um
para o outro
e começamos a rir. E não conseguimos parar. Rimos até ficarmos sufocados,
apertando o estômago dolorido.
- Por que estamos rindo? - Simon está ofegante.
- Devemos estar bêbados.
- Sabe de uma coisa, não me sinto bêbado. Eu me sinto, bem, feliz por
estar vivo.
- Eu também. Ei, veja aquelas estrelas. Não parecem maiores? Não
apenas mais brilhantes, mas maiores? Sinto que estou encolhendo e que tudo
está ficando
maior.
- Você está vendo como se fosse um camundongo bem pequeno Kwan diz.
#302
#303
Toda primavera, acordam, erguem-se da terra como montanha. Por fora, esses
dois dragões parecem seres humanos, só pele preta, também muito fortes. Em um
só dia,
os dois juntos podem cavar fosso em volta da aldeia. Água desce da montanha,
fica presa no fosso. Assim, nenhuma chuva vem, não tem importância, tem
bastante para
plantas crescerem. Libby-ah, como se chama este tipo de regar , por si mesmo?
- Irrigação.
- Sim-sim. O que Libby-ah diz, irritação.
- Irrigação.
- Sim-sim, irrigamento, eles fazem isso para toda a aldeia. Então todo
mundo ama essas duas pessoas-dragões pretos. Todo ano dão grande festa em
homenagem
a eles. Mas um dia, Deus da Água, de nível realmente muito baixo, ele fica
zangado: "Ei, alguém tirou água do meu rio sem pedir licença."
- Maldição. - Simon estala os dedos. - Direito à água. É sempre isso.
- Sim-sim. Então grande briga, de um lado para o outro. Mais tarde
Deus da Água contrata gente selvagem de outra tribo, não nossa aldeia, outro
lugar, muito
longe. Talvez Havaí. - Ela dá uma cotovelada em Simon. - Ei, brincadeira, eu
só estava brincando! Não Havaí. Não sei de onde. Ok, então pessoas usam
flecha, matam
dragão homem e mulher, exibem corpo deles por toda parte. Antes de morrer,
eles voltam para baixo da terra e viram dragões. Vejam! Aquelas duas costas
agora parecem
seis picos. E onde flechas entraram, surgem dez mil cavernas, todas
entrelaçadas, levando a um só coração. Agora, quando chuva chega, água desce
pela montanha, escorre
pelos buracos, como lágrimas, não pode parar de correr. Chega no fundo -
inundação! Todo ano faz isso.
Simon franze a testa.
- Eu não entendo. Se tem inundação todo ano, qual é o bom chi?
- Tst! Inundação não muito grande. Só inundação pequena. O bastante
para limpar o chão. Durante a minha vida, só uma inundação má, uma seca longa.
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- Você estava falando da senhora protestante com o lápis.
- Ah, sim. Na nossa pobre aldeia, ninguém tinha visto lápis. Senhora
protestante, ela mostra que pode fazer marca sem precisar misturar tinta. Um
rapaz,
sobrenome Hong - sempre sonhava ser melhor que os outros -, ele pegou o
lápis. Hoje, a família dele ainda tem, sobre o altar, mesmo lápis que lhe
custou a vida.
- Kwan cruza os braços, como que sugerindo que a ganância pelo lápis mereceu a
morte.
Simon apanha um galhinho.
- Espere um instante. Está faltando alguma coisa aí. O que aconteceu
com os missionários?
- Nunca voltaram.
- Talvez tenham ido para casa - argumento. - Ninguém os viu partir.
- Aquele rapaz também não voltou.
- Talvez tenha se tornado cristão e seguido os missionários.
Kwan me lança um olhar de dúvida.
- Por que alguém faz isso? Também, por que aqueles missionários não
levam carroças, mulas? Por que igreja protestante depois manda tantos soldados
estrangeiros
para procurá-los? Causando tantos problemas, batendo numa porta, em outra: "O
que aconteceu? Se você não contar, vamos queimar sua casa." Em pouco tempo,
todo mundo
teve a mesma idéia, eles dizem: "Oh, tão triste, bandidos, foi isto. " E
agora, hoje, todo mundo ainda conhece esta história. Se alguém quiser ser
melhor que você,
você diz: "Huh! Tome cuidado para não acabar como o homem do lápis."
- Ouviu isto? - cutuco Simon.
Kwan endireita o corpo e inclina o ouvido na direção das montanhas.
- Ah, estão ouvindo?
- O quê? - Simon e eu perguntamos ao mesmo tempo.
- O canto. Pessoas yin cantando.
Ficamos calados. Passados alguns instantes, ouço um ruído sibilante.
- Parece o vento.
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#311
Kwan está olhando para mim e eu tenho vontade de gritar para ela também: a
culpa é sua! Você e suas malditas histórias! Ela me lança um daqueles
incômodos olhares
fraternais, dá um tapinha no meu braço, tentando me acalmar. Eu puxo o braço.
Ela se vira para Simon.
- Não, Simon. Não pode ir sozinho.
Ele se vira para ela.
- O que você quer dizer?
- Você não sabe onde fica a caverna.
- É, mas você vai me mostrar. - Ele diz isso como se fosse um fato
consumado.
- Não-não. Libby-ah tem razão, muito perigoso.
Simon coça o pescoço. Imagino que ele está reunindo argumentos para
nos derrubar, mas em vez disso ele sacode os ombros.
- Bem, talvez. Mas por que não deixamos isto para amanhã?
#312
#313
#314
19
A ARCADA
#316
#317
#318
- Cale a boca. - Meu rosto está pegando fogo. Enfio a mão na mala e
agarro umas meias de lã. - Vire de costas. Eu quero me vestir.
- Eu já vi você nua mais de mil vezes.
- Bem, esta não vai ser a milésima primeira. Vire-se.
De costas para ele, tiro o casaco e a camisola, ainda irada por ter
sido enganada por ele. Ele lançou a isca e eu fui idiota a ponto de agarrá-la.
Eu devia
saber que ele ia me enrolar. E então sinto outra coisa. Me viro.
- Você não precisa encolher a barriga. - Ele levantou o mosquiteiro.
- Você está ótima. Como sempre. Nunca me canso de olhar para você.
- Seu cabeça de merda!
- O quê! Nós ainda somos casados!
Enrolo uma meia e atiro em cima dele. Ele se abaixa, soltando o
mosquiteiro, que deve ter uns cem anos, porque, quando a meia bate, o
cortinado rasga, soltando
fiapos que voam pelo ar.
Nós examinamos o estrago. Eu me sinto como uma criança que quebrou o
vidro da janela do vizinho com uma bola, maldosamente excitada.
- Uh-oh - cubro a boca e dou uma risadinha.
Simon sacode a cabeça.
- Garota má.
- A culpa é sua.
- Não vem com essa! Foi você quem atirou a meia.
- Você estava olhando!
- Ainda estou.
E lá estou eu, nua em pêlo, com a bunda congelada.
Atiro a outra meia em cima dele, depois meus leggings, a blusa de
veludo, a camisola. Agarrando um chinelo, vôo para cima de Simon e o atinjo
nas costas.
Ele agarra a minha mão e nós dois caímos sobre a cama, onde rolamos e lutamos,
aos tapas e empurrões, contentes por termos finalmente uma desculpa para tocar
um
no outro. E, quando nos cansamos da briga, olhamos um para o outro,
silenciosamente, olho no olho, sem precisar dizer mais nada. De repente, nós
damos um pulo, como
um casal de lobos que se reencontra, buscando aquilo que prova que pertencemos
um ao outro: o cheiro de nossas peles, o gosto de nossas línguas, a maciez de
nosso
cabelo, o gosto salgado de nossos pescoços, o contorno de nossas espinhas, as
elevações e depressões que conhecemos tão bem e que no entanto parecem tão
novas.
#319
Ele é temo e eu sou selvagem, fuçando e mordendo, ambos rolando até esquecer
completamente quem éramos até este momento, porque neste momento nós somos um
só.
Quando saio para o pátio, Kwan me lança um dos seus sorrisos inocentes mas
perspicazes.
- Libby-ah, por que você está sorrindo?
Olho para Simon.
- Não está chovendo - eu respondo. Não importa quem Kwan seja
realmente, irmã ou não, estou feliz que ela tenha sugerido que viéssemos para
a China.
Diante dela, no chão, está uma mala aberta, cheia de uma miscelânea de
artigos. Segundo Kwan, Grande Ma deixou tudo isto para Du Lili, exceto uma
caixa de
música que toca uma versão animada de "Home on the Range". Preparo a câmera e
começo a fotografar.
Kwan ergue o primeiro item. Simon e eu nos inclinamos para ver. É um
Motel de Baratas.
- Na América - ela explica para Du Lili com um ar sério - chamam isto
de hospedaria para baratas. - Ela aponta para o rótulo.
- Wah! - Du Lili grita. - Os americanos são tão ricos que constroem
casinhas para insetos! Tst! Tst! - Sacode a cabeça, os cantos da boca virados
para baixo,
externando uma indignação proletária. Conto a Simon o que ela disse.
- Sim, e os americanos dão comidas deliciosas para elas. - Kwan espia
pela porta do motel. - E a comida é tão boa que as baratas nunca querem
sair .Ficam
aqui para sempre.
Du Lili dá um tapa no braço de Kwan e finge estar zangada.
#320
- Você é tão má! Pensa que eu não sei o que é isto? - Ela então me diz
numa voz excitada: - Os chineses têm uma coisa igual. Usamos pedaços de bambu,
abertos
e cheios de uma seiva doce. Sua irmã e eu costumávamos prepará-los juntas.
Nossa aldeia fazia concursos para ver quem agarrava mais animais nocivos -
moscas, ratos,
baratas. Sua irmã muitas vezes ganhou o concurso por pegar mais baratas. Agora
ela está tentando me pregar uma peça.
Kwan revela mais tesouros, e é óbvio que muitos deles vieram de lojas
de material esportivo. Primeiro, há uma mochila.
- Forte o suficiente para carregar tijolos, com muitos bolsos, dos
lados, embaixo, aqui, ali, veja. O zíper abre assim - wah, o que temos aqui? -
Ela tira
um purificador de água portátil, um fogãozinho, um kit de primeiros socorros,
uma almofada inflável, sacos de lixo, um cobertor, e - wah! Inacreditável! -
mais
coisas ainda: uma caixa de fósforos à prova d'água, uma lanterna e um canivete
suíço com palito embutido, muito prático. - Como uma vendedora da Avon, Kwan
explica
a utilidade de cada item.
Simon examina os artigos.
- Incrível. Como você pensou em tudo isto?
- Jornal - Kwan responde. - Artigo sobre terremoto, se houver um
grande, o que você precisa para sobreviver. Em Changmian, sabe, não precisa
esperar terremoto.
Não tem eletricidade, nem água corrente, nem aquecimento. Depois Kwan tira da
mala um caixote de plástico, do tipo que se usa debaixo da cama para guardar
porcaria,
e lá de dentro saem luvas de jardinagem, palmilhas recheadas de gel, leggings,
toalhas, camisetas. Du Lili suspira e lamenta o fato da Grande Ma não ter
vivido o
bastante para gozar de tais luxos. Tiro um retrato de Du Lili cercada por sua
herança. Ela está usando óculos escuros e um boné do Super Bowl, com a palavra
"Campeão"
enfeitada de brilhantinhos.
Depois de um café da manhã simples de mingau de arroz e legumes em
conserva, Kwan traz um pacote de fotos que documentam seus trinta e dois anos
de vida
americana. Ela e Du Lili sentam-se num banco, debruçando-se sobre elas.
#321
- Olhe aqui - Kwan diz. - Esta é Libby-ah com seis anos. Não é uma
gracinha? Está vendo o suéter que ela está usando? Eu o tricotei antes de sair
da China.
- As garotinhas estrangeiras - Du Lili aponta -, quem são e as elas?
- Coleguinhas dela de colégio.
- Por que elas estão sendo castigadas?
- Castigadas? Elas não estão sendo castigadas.
- Então por que estão usando esses chapéus de burro?
- Ah-ha-ha-ha! Sim, sim, chapéus altos para punir
contra-revolucionários, são mesmo parecidos! Na América, os estrangeiros usam
chapéus
altos para comemorar aniversário, e também Ano-Novo. Esta é a festa de
aniversário de Libby-ah. É um costume americano. Os coleguinhas levam
presentes, nada útil,
só coisas bonitas. E a mãe faz um bolo e acende velinhas em cima. A criança
pensa num desejo e, se conseguir soprar todas as velinhas ao mesmo tempo, o
desejo se
realiza. Então as crianças comem bolo, tomam refrigerantes, comem doces, tanto
doce que suas línguas rolam para trás e elas não conseguem mais engolir.
Du Lili faz um ar de incredulidade.
- Tst! Tst! Uma festa em cada aniversário. Um encantamento simples
para um desejo de aniversário. Por que os americanos têm de desejar tanto
quando já têm
demais? Por mim, eu nem queria uma festa. Bastava realizar um desejo a cada
vinte anos...
Simon me puxa de lado.
- Vamos dar uma volta.
- Aonde?
Ele me leva para fora do pátio, depois aponta para a arcada entre as
montanhas, a entrada do próximo vale. Eu balanço o dedo para ele como uma
professora
de jardim de infância.
- Simon, você não está pensando ainda naquela caverna, está?
Ele finge que está ofendido.
- Moi? É claro que não. Eu só pensei que seria agradável dar um
passeio. Temos coisas para conversar.
#322
#323
No entanto, o que vemos também é diferente, porque fico penalizada com tanta
dureza, com a vida que Kwan teve um dia, que eu poderia ter tido. E Simon
observa:
- Sabe de uma coisa, de certa forma eles têm sorte .
- Como assim?
- Sabe como é, uma comunidade pequena, histórias familiares unidas há
gerações, o foco nas necessidades básicas. Quando você precisa de uma casa,
reúne os
amigos, põe um tijolo em cima do outro, nada da porcaria de empréstimo.
Nascimento e morte, amor e filhos, comer e dormir, uma casa com uma vista -
quer dizer, de
que mais você precisa?
- De aquecimento central.
- Estou falando sério, Olivia. Isto é... bem, isto é vida. - Você está
sendo sentimental. Isto é um buraco, é sobrevivência básica.
- Ainda acho que eles têm sorte.
- Mesmo que eles não pensem assim?
Ele faz uma pausa, depois ergue o lábio superior como um buldogue.
- Sim. - Seu tom de sabichão está pedindo uma discussão. E então eu
penso, o que há comigo? Por que tenho de transformar tudo numa batalha moral
entre certo
e errado? As pessoas aqui não ligam para o que nós pensamos. Deixa pra lá,
digo a mim mesma.
- Acho que entendo o seu ponto de vista - digo. E, quando Simon sorri,
as fagulhas da minha irritação são mais uma vez apagadas.
O caminho leva ao alto de uma colina. Enquanto rodeamos o topo, vemos
duas meninas e um menino, com cerca de cinco ou seis anos, brincando na terra.
Uns
dez metros além de onde eles estão fica o muro alto de pedra e a arcada,
bloqueando a nossa visão do que vem depois. As crianças erguem os olhos,
cautelosas e alertas,
seus rostos e roupas cobertos de lama.
- Ni hau? - Simon diz com sotaque americano, "Como vai?" - uma das
poucas coisas que sabe dizer em chinês.
Antes que as crianças notem, pego a Leica e tiro cinco fotos. As
crianças riem, depois voltam a brincar. O menino está dando os retoques finais
numa fortaleza
de lama, as impressões dos seus polegares ainda visíveis nos muros e portão.
#324
Uma das meninas está usando os dedos para arrancar pequenos fios de grama. A
outra menina transfere delicadamente os fios verdes para o telhado de sapê de
uma cabana
em miniatura. E andando perto da cabana estão diversos gafanhotos marrons, os
habitantes deste conjunto.
- Aqueles garotos não são espertos? - eu digo. - Criam brinquedos do
nada.
- Espertos e sujos - Simon responde. - Estou brincando. São umas
gracinhas. - Ele aponta para a menina menor.
- Aquela ali parece um pouco com você aos seis anos, você sabe, no
retrato da festa de aniversário.
Quando nos encaminhamos para a arcada, as crianças ficam em pé de um
pulo.
- Aonde vocês vão? - O menino pergunta rudemente no seu mandarim
infantil.
- Vamos ver o que tem do outro lado. - Aponto para o túnel. - Vocês
querem vir? - Eles correm na nossa frente. Mas, quando chegam na entrada,
viram-se e
olham para nós. - Podem ir - eu digo a eles. - Vocês vão na frente. - Eles não
se mexem, apenas sacodem as cabeças solenemente. - Vamos juntos. - Estendo a
mão para
a menina menor. Ela recua e se esconde atrás do menino, que diz:
- Nós não podemos.
A menina maior acrescenta:
- Temos medo. - Os três ficam bem juntinhos, olhando para a arcada com
os olhos arregalados.
Depois que traduzo isto para Simon, ele diz:
- Bem, eu vou passar agora. Se eles não quiserem vir, tudo bem.
- Assim que ele põe o pé na arcada, as crianças gritam, dão meia-volta e saem
correndo.
- Por que essa gritaria? - A voz de Simon ecoa na abertura arredondada.
- Não sei. - Eu sigo as crianças com os olhos até elas desaparecerem
atrás da colina. - Talvez eles tenham sido alertados para não falar com
estranhos.
- Vamos - ele diz. - O que você está esperando?
Examino as paredes do túnel. Ao contrário das paredes de tijolos das
casas da aldeia, estas são feitas de enormes blocos de pedra.
#325
#326
Por que tudo está tão mortalmente quieto? Nenhum sinal de vida, nenhum pássaro
piando.
- Simon - eu digo -, não está parecendo, bem...
- Eu sei, é incrível, parece mais com os campos de uma propriedade
inglesa, uma cena tirada de Retorno a Howards End.
Em uma hora atravessamos o vale. Começamos a subir outra colina, esta
mais íngreme e cheia de pedras do que a outra. O atalho se transforma numa
trilha estreita.
Eu posso ver a muralha e a segunda arcada acima, os picos das montanhas
parecendo recifes de coral erguendo-se do Oceano. Nuvens escuras giram diante
do sol e o
ar fica gelado.
- Acho melhor voltarmos - eu digo. - Parece que vai chover.
- Vamos ver primeiro o que tem no topo.
Sem esperar pela minha resposta, Simon começa a escalada. Enquanto
subimos, penso na história que Kwan contou sobre os missionários, que os
aldeões tinham
dito que haviam sido mortos por bandidos. Talvez haja alguma verdade na
mentira. Pouco antes de deixarmos o hotel em Guilin - quando foi isto? Apenas
ontem?
- peguei The China Daily, o jornal de língua inglesa. Na primeira página
havia uma reportagem mostrando que o crime violento, antigamente inexistente
na China,
estava aumentando, principalmente em locais turísticos como Guilin. Em uma
aldeia de apenas duzentas e setenta e três pessoas, cinco homens foram
executados há poucos
dias, um por estupro, dois por assalto, dois por assassinato, todos os crimes
Cometidos no ano passado. Cinco crimes violentos, cinco execuções - e numa
pequena
aldeia! Isto é que é rapidez de justiça: acusado, condenado, pumba. O jornal
dizia também que a onda de crimes vinha da "poluição e das idéias degeneradas
do Ocidente".
Antes de ser executado, um dos bandidos confessou que sua mente tinha
deteriorado depois que assistiu a um filme americano chamado Naked Gun 33 1/3.
Ele jurou, entretanto,
que era inocente do assassinato, que bandidos da montanha haviam matado a
turista japonesa e que seu crime fora apenas comprar o relógio Seiko roubado
da mulher
morta.
#327
Lembrando-me deste relato, faço uma avaliação do nosso potencial como vítimas
de assalto. Meu relógio é um Casio barato de plástico. Embora, quem sabe,
talvez os
bandidos das montanhas adorem relógios digitais com calculadoras do tamanho de
uma unha. Deixei meu passaporte na casa da Grande Ma, graças a Deus. Ouvi
dizer que
passaportes valem cinco mil dólares no mercado negro. Um ladrão mataria por
eles.
- Onde está o seu passaporte? - pergunto a Simon.
- Bem aqui. - Ele dá um tapinha na mochila. - Porquê, você acha que
vamos dar de cara com uma patrulha da fronteira ou algo assim?
- Que merda, Simon! Você não devia carregar seu passaporte com você!
- Por que não?
Antes que eu possa responder, ouvimos um barulho no mato, seguido por
ruídos de cascos. Imagino bandidos a cavalo. Simon continua andando.
- Simon! Volte aqui!
- Num segundo. - Ele vira uma curva e desaparece.
E então eu o ouço gritar:
- Ei, ô! Espere... ei, espere! - Ele desce escorregando, berrando
- Olivia, sai... - e então voa para cima de mim com tanta força que me deixa
sem
ar. Enquanto estou deitada no chão, minha mente se afasta do meu corpo. Que
estranho, estou tão lúcida e calma. Meus sentidos parecem mais aguçados.
Examino o calombo
na minha canela, a veia saltada no meu joelho. Nenhuma dor. Nenhuma dor! Eu
sei sem nenhuma dúvida ou temor que isto é sinal de que a morte está na virada
da curva.
Eu li isto em livros sobre como morrer, que de alguma forma você sabe, embora
não consiga explicar por quê. Os momentos passam devagar. Este é aquele flash
de um
segundo que os moribundos têm, e eu fico surpresa com a demora desse segundo
em passar. Pareço ter um tempo enorme para avaliar tudo o que foi importante
na minha
vida - risos, alegria antecipada, Simon... até Simon. E, sim, amor,
compaixão, uma paz interior sabendo que não estou deixando para trás nem
grandes pendências
nem grandes tristezas.
#328
Eu rio: graças a Deus que estou usando roupa de baixo limpa, embora quem iria
se importar com isto na China? Graças a Deus Simon está comigo, e eu não estou
sozinha
neste momento terrível e ao mesmo tempo maravilhoso. Graças a Deus ele vai
estar ao meu lado mais tarde - isto é, se houver um paraíso ou Mundo de Yin,
ou algo semelhante.
E, se houver mesmo algo semelhante, e se... e se Elza estiver lá? Para quais
braços angélicos Simon voará? Meus pensamentos não estão mais tão lúcidos ou
confortadores,
os segundos passam na sua velocidade normal, e eu fico em pé, dizendo para mim
mesma chega desta merda.
É então que eles aparecem, nossos pretensos assassinos, uma vaca e seu
bezerro, tão espantados com meu grito que param abruptamente.
- O que foi? - Simon pergunta.
A vaca dá um longo mugido. Se humilhação fosse fatal, era disso que eu
teria morrido. Minha grande epifania espiritual é uma piada. E eu nem posso
rir dela.
Como me sinto idiota. Não posso mais confiar nas minhas percepções, nos meus
julgamentos. Eu sei como os esquizofrênicos devem se sentir, tentando
encontrar ordem
no caos, inventando uma lógica própria que segure o que de outro modo poderia
desintegrar-se.
A vaca e seu bezerro saem correndo. Mas, quando tornamos a pisar na
trilha, um rapaz aparece, carregando um cajado. Ele está usando um suéter
cinza sobre uma
camisa branca, calça jeans nova, e tênis branco limpo.
- Deve ser o condutor do rebanho - Simon diz.
Estou cansada de fazer suposições.
- Pelo que sabemos, pode muito bem ser um bandido.
Nós nos afastamos para ele passar. Mas, quando o rapaz chega bem
diante de nós, ele pára. Fico esperando que nos pergunte alguma coisa, mas ele
não diz nada.
Sua expressão é suave, seu olhar intenso, observador, quase crítico.
- Ni hau? - Simon acena, embora o cara esteja bem diante de nós.
#329
#330
Eu insisto.
- Está tudo bem? - Eu digo para o condutor de vacas. - Precisamos
pedir permissão a alguém? É seguro? Você pode nos aconselhar? -
Imagino o
que é ser inteligente e não ter qualquer perspectiva além de uma pastagem em
Changmian. Talvez ele nos inveje.
Como se tivesse lido meus pensamentos, ele dá um sorriso irônico.
- Imbecis - ele diz num inglês perfeito, depois dá as costas e desce
pela trilha. Por alguns segundos, ficamos perplexos demais para dizer alguma
coisa.
Simon começa a andar.
- Que coisa estranha. O que foi que você disse para ele?
- Eu não disse nada!
- Não estou acusando você de ter dito algo errado. Mas o que foi que
você disse?
- Disse que estávamos dando um passeio. OK? Perguntei se precisávamos
de permissão para estar aqui.
Começamos a subir a colina de novo, não mais de mãos dadas. Os dois
estranhos encontros, primeiro com as crianças e agora com o condutor de vacas,
estragaram
qualquer tipo de conversa romântica. Eu tento me esquecer deles, mas como não
consigo entender sua atitude, fico preocupada. Isto é um aviso. É tão claro
quanto
sentir um mau cheiro, sabendo que conduz a algo podre, morto, estragado.
Simon põe a mão nas minhas costas.
- O que é?
- Nada. - No entanto eu estou louca para confiar nele, para que os
nossos temores, se não nossas esperanças, entrem em sintonia. Paro de andar. -
Você vai
achar uma bobagem, mas eu estava pensando - talvez essas coisas sejam como
presságios.
- Que coisas?
- As crianças dizendo para não virmos aqui...
- Elas disseram que elas não podiam vir. Há uma diferença.
- E esse cara. Seu riso mau, como se soubesse que não deveríamos
entrar no próximo vale, e não quisesse contar.
#331
- A risada dele não era má. Era apenas uma risada. Você está agindo
como Kwan, juntando duas coincidências e encontrando uma superstição.
Eu tenho uma explosão:
- Você perguntou o que eu estava pensando, e eu disse! Você não
precisa me contradizer o tempo todo e debochar de mim.
- Ei, ei, calma. Desculpe... Só estava tentando acalmar você. Quer
voltar agora? Você está mesmo tão nervosa assim?
- Meu Deus, eu odeio quando você diz isso!
- O quê? O que foi que eu fiz agora?
- Tão nervosa assim - digo. - Você só diz isso em relação a mulheres e
cachorrinhos. É condescendente.
- Não foi esta a minha intenção.
- Você nunca descreve homens como nervosos.
- Está bem, está bem! Declaro-me culpado. Você não está nervosa, está...
está histérica! Que tal isto? - Ele ri. - Vamos Olivia, anime-se. O que há?
- É só ... bem, eu estou preocupada. Estou com medo de que estejamos
invadindo propriedade alheia e não quero que pensem que somos uns americanos
folgados,
achando que temos o direito de fazer o que quisermos.
Ele me rodeia com o braço.
- Então ouça. Nós já estamos quase no topo. Vamos dar uma olhada rápida
e depois voltar. Se virmos alguém, pediremos desculpas e partiremos. É claro
que, se
você estiver realmente nervosa, quer dizer preocupada...
- Quer parar! - Dou um empurrão nele. - Vá andando. Eu vou atrás.
Ele sacode os ombros, depois começa a subir com grandes passadas. Fico
parada um instante, recriminando-me mentalmente por não ter dito o que estou
sentindo.
Mas me irrita o fato de Simon não conseguir perceber o que eu realmente quero.
Eu não devia ser obrigada a falar com todas as letras, como se estivesse
exigindo,
fazendo o papel de carrasco e ele o de um cara bonzinho e sofredor. Quando
chego no topo, ele está na segunda arcada, que é quase idêntica à primeira,
exceto por
parecer mais velha, ou talvez mais gasta.
#332
Parte da parede desmoronou, e dá impressão de que não foi uma coisa gradual,
mas sim o resultado de uma bala de canhão ou de tiros de espingarda.
- Olivia! - Simon grita do outro lado. - Venha aqui. Você não vai
acreditar!
Ando mais depressa, e, quando saio do outro lado e olho para baixo,
vejo uma paisagem que me deixa ao mesmo tempo gelada e encantada, um lugar de
contos
de fada que já vi em pesadelos. É completamente diferente do vale liso e
ensolarado que acabamos de atravessar. Trata-se de uma garganta estreita e
profunda, formada
por desníveis violentos, tão cheia de protuberâncias quanto uma cama desfeita,
um cobertor de musgo com trechos de luz e bolsões de sombra, a luminosidade
suave
de um perpétuo entardecer.
Os olhos de Simon estão vidrados de entusiasmo.
- Não é demais?
Aqui e ali há rochas amontoadas, da altura de um homem. Parecem
monumentos, sepulturas ou um exército de soldados petrificados. Ou talvez
sejam a versão
chinesa da estátua de sal da mulher de Lot, pilares da fraqueza humana, Os
restos fossilizados daqueles que entraram neste lugar proibido e ousaram olhar
para trás.
Simon aponta.
- Veja aquelas cavernas! Deve haver centenas delas!
Ao longo das muralhas, do fundo da garganta ao topo dos picos, há
fendas e rachaduras, buracos e cavernas. Parecem as prateleiras e depósitos de
um gigantesco
necrotério pré-histórico.
- É incrível! - Simon exclama. Eu sei que ele está pensando nas
cavernas de Kwan. Ele desce uma espécie de trilha, mais uma fossa do que um
caminho, com
degraus de pedra que cedem sob seu peso.
- Simon, eu estou cansada. Meus pés estão começando a doer.
Ele se vira.
- Espere aí. Vou ficar uns cinco minutos andando por aqui e depois
voltamos juntos. Ok?
#333
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- Uma delas foi Verona? - cruzo os braços com força, num esforço para
parar de tremer. Ele entreabre a boca, depois torna a fechá-la, resignado. -
Você transou
com aquela vagabunda, não foi?
- É você que está dizendo isto, não eu.
Eu fico louca de raiva.
- Então me conta, eles são de verdade? Ela tem seios macios?
- Vamos, Olivia. Pare com isto. Por que isto é tão importante para
você? Não significa nada.
- Significa que você nunca teve a intenção de voltar para mim!
Significa que eu não posso confiar em você. - Estou furiosa, me afogando,
precisando arrastar
Simon comigo. - Nunca fui importante para você! Eu só enganei a mim mesma
pensando que era. E Kwan enganou você com aquela estúpida sessão, com seu
truque de fantasmas.
Está lembrando? O que foi que Elza disse? Que você devia esquecê-la, tocar a
sua vida. E sabe de uma coisa? Kwan inventou aquilo. Ela mentiu! Fui eu que
mandei.
Simon dá uma risada.
- Olivia, você está parecendo maluca. Você acha mesmo que eu
acreditei? Achei que estávamos apenas distraindo Kwan.
Eu estou soluçando:
- Está certo, pode rir... Só que não foi uma piada, Simon, ela estava
lá! Eu juro, ela estava, eu a vi. E sabe o que ela estava dizendo? Para você
esquecê-la?
Nada disto! Ela estava implorando para você me esquecer. Ela disse para você
esperar...
Simon põe a mão na testa.
- Você não desiste nunca, não é?
- Eu não desisto? Você é que nunca desistiu dela.
Simon aperta os olhos.
- Quer saber qual é o verdadeiro problema? Você usa Elza como bode
expiatório para as suas inseguranças. Você fez com que ela tivesse um papel
muito mais
importante na sua vida do que ela jamais teve na minha. Você nem a conheceu,
mas projeta todas as suas dúvidas nela...
#338
#339
20
O VALE DE ESTÁTUAS
Simon ainda não voltou. Olho para O relógio. Já se passou uma hora. Imagino
que ele esteja curtindo a raiva sozinho. Ótimo, ele que congele o traseiro lá
fora. Ainda
não é meio-dia. Eu pego um livro e subo na cama. A viagem para a China se
transformou num fiasco. Simon vai ter de partir. Isto faz mais sentido. Afinal
de contas,
ele não fala chinês. E esta é a aldeia de Kwan, e ela é minha irmã. Quanto ao
artigo da revista, é só eu fazer algumas anotações e pedir a alguém para
transformá-las
em um artigo quando voltar para casa.
Kwan grita que está na hora do almoço. Faço um ar de serenidade,
pronta para enfrentar a inquisição chinesa. "Onde está Simon", ela vai
perguntar. "Ai-ya,
por que vocês brigam tanto?" Kwan está na sala central, colocando uma travessa
fervendo na mesa.
- Está vendo? Tofu, cogumelo, verdura em conserva.
Quer tirar foto?
Eu não estou com vontade de comer nem de tirar fotos. Du Lili entra na
sala com uma panela de arroz e três tigelas. Nós começamos a comer, ou melhor,
elas
começam, ansiosamente, criticamente.
- Primeiro não tem bastante sal - Kwan reclama. - Agora salgado
demais. - Será esta uma espécie de mensagem velada sobre Simon e mim?
#340
Alguns minutos depois, ela diz para mim: - Hoje cedo muito sol, agora olhe, a
chuva voltou.
Será que ela está fazendo uma analogia com a minha briga com Simon?
Mas, durante o resto do almoço, ela e Du Lili nem mesmo mencionam o nome dele.
Em vez
disso, fofocam animadamente sobre as pessoas da aldeia, trinta anos de
casamentos e doenças, tragédias inesperadas e fatos engraçados, coisas que não
me interessam
a mínima. Meu ouvido está sintonizado com o portão, esperando pelo rangido
indicando a volta de Simon. Ouço apenas o barulho da chuva.
Depois do almoço, Kwan diz que ela e Du Lili vão até o salão
comunitário visitar a Grande Ma. Eu quero ir? Imagino Simon voltando para
casa, procurando por
mim, ficando inquieto, preocupado, talvez até histérico. Merda, ele não ia se
preocupar, eu é que faço isso.
- Acho que vou ficar aqui - digo a Kwan. - Preciso organizar o meu
equipamento e fazer algumas anotações do que já fotografei até agora.
- Ok. Vá mais tarde visitar a Grande Ma. Última chance. Amanhã vai ser
o enterro.
Quando fico finalmente sozinha, examino meu estoque de filmes para ver
se algum está molhado. Maldito tempo! Está tão frio e úmido que mesmo com
quatro camadas
de roupas minha pele está gelada, meus dedos dos pés praticamente dormentes.
Por que deixei que o orgulho tivesse precedência sobre roupas quentes?
Antes de partirmos para a China, Simon e eu discutimos o que
deveríamos trazer. Eu separei uma mala grande, uma mochila e meu equipamento
fotográfico. Simon
disse que tinha dois sacos com rodinhas e então me gozou:
- Não conte comigo para carregar sua tralha extra.
Eu respondi:
- Quem foi que pediu para você fazer isso?
E ele tornou a atacar:
- Você nunca pede, você espera.
Depois desta observação, decidi que não deixaria Simon me ajudar -
mesmo que ele insistisse. Como um pioneiro diante de uma junta de bois mortos
e um deserto
para atravessar, examinei criteriosamente a minha lista de bagagem.
#341
#342
Achei que ela estivesse bêbada ou drogada. E então ela começou a ter
convulsões.
- Desfibrilador! - alguém gritou.
Mais tarde eu perguntei a uma das enfermeiras o que deveria colocar na
legenda - ataque cardíaco? alcoolismo?
- Escreva que ela morreu de janeiro - a enfermeira disse, zangada. E,
como eu não compreendesse, ela disse: - Estamos em janeiro. Está frio. Ela
morreu de
hipotermia, assim como seis outras pessoas sem teto este mês.
Isto não vai acontecer com Simon. Ele é saudável. Está sempre com
calor. Ele abre o vidro do carro quando outras pessoas estão morrendo de frio,
e nem mesmo
pede licença. Ele é assim mesmo, sem consideração, Deixa as pessoas esperando.
Nem imagina que elas podem estar preocupadas. Ele vai chegar a qualquer
momento. Vai
chegar com aquele sorriso irritante dele, e eu vou ficar chateada por ter me
preocupado sem motivo.
Depois de passar cinco minutos tentando me convencer destas coisas,
vou correndo até o salão comunitário atrás de Kwan.
#343
E então outros finais me vêm à mente: o corredor de trenó que caiu num buraco
e foi encontrado morto na manhã seguinte. O caçador que se sentou para
descansar um
dia na fronteira entre a Itália e a Áustria e só foi
descoberto no degelo da primavera milhares de anos depois.
Tento meditar para bloquear esses pensamentos negativos: palmas das
mãos abertas, mente aberta. Mas só consigo pensar no quanto meus dedos estão
gelados.
Será que Simon está sentindo este mesmo frio?
Eu imagino a mim mesma como sendo Simon, parada na mesma arcada,
encalorada por causa da nossa discussão, os músculos retesados, querendo me
atirar na direção
do perigo. Eu já vi isto acontecer antes. Quando ele soube que o nosso amigo
Eric tinha morrido no Vietnã, foi caminhar sozinho e acabou perdido nos
bosques de eucalipto
do Presidio. A mesma coisa aconteceu quando estávamos visitando uns amigos de
amigos no campo e um homem começou a contar piadas racistas. Simon se levantou
e anunciou
que o cara. tinha uma telha de menos. Na época, fiquei zangada por ele ter
feito uma cena e me deixado para agüentar as conseqüências. Mas agora,
recordando aquele
momento, eu sinto uma tristonha admiração por ele.
A chuva parou. É isto que ele também deve estar vendo. "Ei", eu o
imagino dizendo, "vamos tornar a verificar aquelas pedras." Eu caminho pela
beira do precipício,
olho para baixo. Ele não veria aquele precipício de dar nó no estômago do
mesmo jeito que eu. Ele não veria uma centena de maneiras de se quebrar o
crânio. Ele simplesmente
desceria pela trilha. É o que eu faço. Será que Simon foi por aqui? Ao chegar
na metade do caminho, olho para trás, depois em volta. Não existe outro
caminho até
este lugar, a menos que ele tenha se atirado no precipício e caído uns vinte
metros até o fundo. Simon não é um suicida, digo a mim mesma. Além disso,
suicidas falam
em se matar antes de fazê-lo. E então eu me lembro de ter lido uma história no
Chronicle sobre um homem que estacionou o seu Range Rover novo na Ponte Golden
Gate
durante a hora do rush, e depois se atirou da mureta.
#345
#346
#347
Quando foram feitas? Por quem e porquê? Não é de estranhar que Simon tenha
querido descer até aqui. Ele voltou para investigar mais. Enquanto continuo a
andar, este
estranho conjunto de pedras se parece cada vez mais com as vítimas queimadas
de Pompéia, de Hiroxima, do apocalipse. Estou cercada por um exército de
estátuas de
pedra, corpos erguidos dos restos calcificados de antigas criaturas marinhas.
Um cheiro desagradável, de mofo, atinge o meu nariz e o pânico sobe em
minha garganta. Olho em volta à procura de sinais de putrefação. Já senti este
mesmo
cheiro antes. Mas onde? Quando? Parece muito familiar, uma versão olfativa do
déjà vu - déjà senti. Ou talvez seja instintivo, como os animais sabem que a
fumaça
vem do fogo e que o fogo leva ao perigo. O cheiro está preso no meu cérebro
como uma lembrança visceral, o resíduo emocional de um medo e de uma tristeza
de dar
cãibras no estômago, mas sem o motivo que o ocasionou.
Passo rapidamente por outro monte de pedras. Mas meu ombro bate numa
ponta afiada e eu grito enquanto o monte inteiro cai. Fico olhando para os
destroços.
A mágica de quem eu acabei de destruir? Tenho a sensação desconfortável de ter
quebrado um encanto e que esses metamorfismos logo irão começar a oscilar e
marchar.
Onde está a arcada? Agora parece haver mais montes de pedras - será que eles
se multiplicaram? - e eu preciso encontrar o caminho no meio deste labirinto,
minhas
pernas indo numa direção, minha mente dizendo que eu deveria ir na outra. O
que Simon faria? Sempre que eu ficava insegura na hora de realizar uma proeza
física,
ele era a voz da razão, assegurando-me de que eu era capaz de correr mais um
quilômetro, ou caminhar até a próxima colina, ou nadar até o cais. E houve
momentos
no passado em que acreditei nele, e em que fiquei feliz por ele acreditar em
mim.
Imagino Simon me incentivando agora. "Vamos, escoteira, sacode esse
traseiro." Procuro a muralha de pedra e a arcada para me orientar. Mas nada é
distinto.
Só vejo gradações de sombras. Então me lembro das vezes em que fiquei zangada
com Simon porque dei ouvidos a ele e falhei.
#348
Quando gritei com ele depois de tentar patinar e cair de bunda. Quando chorei
porque minha mochila estava pesada demais.
Sento-me no chão, exasperada, choramingando. Foda-se, eu vou chamar um
táxi. Veja como eu estou abobalhada. Será que estou mesmo pensando que posso
erguer
a mão, chamar um táxi e me livrar desta trapalhada? Será que foi só isto que
eu consegui, armazenar na seção de emergência dos meus recursos internos -
minha vontade
de pagar uma corrida de táxi? Por que não uma limusine? Devo estar perdendo a
razão!
- Simon! Kwan!
Ao ouvir o pânico em minha voz, fico ainda mais assustada. Tento
mover-me rapidamente mas meu corpo parece pesado, puxado para o centro da
terra. Dou um
encontrão numa das estátuas. Uma pedra cai, arranha meu ombro. E de repente
todo o terror que sinto escapa pela minha boca e eu começo a chorar como um
bebê. Não
consigo andar. Não consigo pensar. Despenco no chão e me encolho. Estou
perdida! Eles estão perdidos! Nós três presos nesta terra terrível. Vamos
morrer aqui, apodrecer,
depois petrificar e nos tornar outras estátuas sem rosto! Vozes agudas
acompanham os meus gritos. As cavernas estão cantando, canções de dor, canções
de tristeza.
Tapo os ouvidos, fecho os olhos, para me isolar da loucura do mundo,
da minha mente, de ambos. Você pode fazer isto parar, digo a mim mesma. Faço
força para
acreditar nisto. Sinto uma corda no meu cérebro sendo esticada até arrebentar
e então estou pairando, livre do meu corpo e de seus medos mortais, ficando
leve e
tonta. Então é assim que as pessoas se tornam psicóticas, elas simplesmente se
soltam. Posso ver a mim mesma num filme chato sueco, reagindo devagar a
ironias cansativamente
óbvias. Berro como uma doida pelo papel ridículo que estou fazendo, pela
estupidez que é morrer num lugar como este. E Simon jamais saberá o quanto eu
fiquei nervosa.
Ele tem razão, eu estou histérica!
#349
#350
Eu não passei por nada mais perigoso que um ataque de pânico. Pedras, eu tinha
medo de pedras.
- Kwan, o que são estas coisas?
Ela pára e se vira.
- Que coisa?
Mostro uma das pilhas.
- Pedras. - Ela recomeça a andar.
- Eu sei que são pedras. O que quero saber é como elas vieram parar
aqui, o que representam? Significam alguma coisa?
Ela torna a parar, baixa os olhos para a vala.
- Isto segredo.
Meu cabelo fica em pé na nuca. Tento fazer minha voz soar despreocupada.
- Deixa disso, Kwan. São sepulturas? Estamos andando em um cemitério ou
algo assim? Pode me contar.
Ela abre a boca, quase respondendo. Mas então faz um ar teimoso.
- Eu conto depois. Agora não.
- Kwan!
- Depois que voltarmos. - Ela aponta para o céu. - Escuro logo. Vê? Não
perca tempo falando. - E então acrescenta carinhosamente. - Talvez Simon já de
volta.
Meu peito se enche de esperança. Ela sabe alguma coisa que eu não sei,
tenho certeza. Concentro-me nisto enquanto subimos e rodeamos várias rochas,
descemos
por um fosso, depois passamos por uma fenda profunda. Logo estamos na pequena
trilha que leva ao topo. Posso ver a muralha e a arcada.
Subo com dificuldade na frente de Kwan, o coração batendo. Estou
convencida de que Simon está lá. Acredito que as forças do caos e da incerteza
me darão outra
chance de me redimir. Quando chego no topo, meus pulmões estão quase
explodindo. Estou tonta de alegria, chorando de
alívio, porque sinto a claridade da paz, a simplicidade da confiança, a pureza
do amor.
#351
#352
Sempre procurando, perguntando: "Onde foi que me perdi? Para onde vou?"
Fico contente por Kwan não poder ver o quanto estou deprimida. O fogão
só ilumina o suficiente para delinear nossas silhuetas.
- Se você quiser - ela diz baixinho -, eu peço à Grande Ma para nos
ajudar a procurar. Vamos fazer como grupo de busca do FBI. Ok, Libby-ah?
Fico comovida com sua ansiedade em me ajudar. É a única Coisa que faz
sentido por aqui.
- De qualquer maneira, nada de funeral amanhã. Grande Ma não pode
fazer mais nada. - Kwan derrama chá frio na caneca de metal e coloca no fogo.
- É claro,
não posso pedir a ela esta noite - ela diz em chinês. - Já está escuro -
fantasmas, ela morre de medo deles, embora ela mesma seja um fantasma...
Fico olhando distraída para as chamas azuis e alaranjadas lambendo o
fundo da caneca.
Kwan estende as mãos para o fogo.
- Quando uma pessoa tem o mau hábito de ter medo de fantasmas, é
difícil deixar de ter. Eu tenho sorte, nunca adquiri este hábito. Quando os
vejo, simplesmente
conversamos como amigos...
Nesse momento, uma terrível possibilidade me ocorre.
- Kwan, se você visse Simon, quer dizer, como uma pessoa yin, você me
diria, não é? Você não fingiria...
- Eu não o vi - ela responde logo. Ela faz festa no meu braço. - Pode
acreditar, estou dizendo a verdade.
Eu me permito acreditar nela, acreditar que ela não mentiria e que ele
não está morto. Enterro a cabeça entre os braços. O que devemos fazer em
seguida,
que plano racional, eficiente, devemos adotar de manhã? E mais tarde, digamos
ao meio-dia, se ainda não o tivermos encontrado, o que vamos fazer? Uma de nós
deve
ir chamar a polícia? Mas então eu me lembro de que não há telefones, nem
carro. Talvez eu possa pedir carona e ir diretamente para o consulado
americano. Será que
há um posto em Guilin? Que tal um escritório do American Express? Se houver
um, eu vou mentir e dizer a eles que tenho um Platinum Card, que podem me
cobrar seja
o que for, busca e resgate, transporte aéreo de emergência.
#353
Ouço ruídos e ergo a cabeça. Kwan está enfiando o canivete suíço na fechadura
da caixa. - O que você está fazendo?
- Perdi chave. - Ela ergue o canivete, procurando qual o melhor
instrumento. Escolhe o palito de plástico. - Há muito tempo, guardei muitas
coisas aqui dentro
- Ela enfia o palito no buraco. - Libby-ah, a lanterna está na mochila, -
procura para mim, Ok?
- Com a luz, eu posso ver que a caixa é feita de uma madeira escura,
avermelhada, e enfeitada de latão. Na tampa há um trabalho em baixo-
relevo representando
árvores, um caçador de aparência bávara, com um pequeno veado morto pendurado
no ombro e um cachorro pulando na frente dele.
- O que tem aí dentro?
Ouve-se um clique e Kwan endireita o corpo. Ela sorri, aponta para a
caixa.
- Você abre, veja por si mesma.
Seguro na alça de latão e vagarosamente ergo a tampa. Sons tilintantes
saem lá de dentro. Espantada, deixo a tampa cair. Silêncio. É uma caixa de
música.
Kwan dá uma risadinha.
- Hnh, o que você pensa - fantasma aí dentro?
Torno a erguer a tampa, e os sons de uma música alegre enchem o
pequeno túnel, desafinadamente animada, uma marcha militar apropriada para um
desfile de
cavalos e pessoas com roupas alegres. Kwan cantarola junto, obviamente a
melodia lhe é familiar. Ilumino o interior da caixa. Num canto, sob um painel
de vidro,
está o aparato que faz a música, um pente de metal roçando nos pinos de um
cilindro que rola.
- Isto não soa muito chinês - digo a Kwan.
- Não chinês. Feito na Alemanha. Você gosta da música?
- Muito agradável. - Então esta é a fonte da história da caixa de
música. Fico aliviada em saber que existe ao menos uma base para os seus
delírios. Eu também
cantarolo junto.
#354
- Ah, você conhece Canção?
Balanço negativamente a cabeça.
- Uma vez eu dei caixa de música para você, presente de casamento.
Lembra?
Abruptamente, a musica pára; a melodia ainda permanece suspensa no ar
por alguns segundos antes de desaparecer. Resta apenas o terrível chiado do
fogão,
um lembrete do frio e da chuva, do fato de Simon estar em perigo. Kwan abre um
painel de madeira dentro da caixa. Ela tira uma chave, enfia num buraco e
começa a
dar corda. A música recomeça, e eu fico grata por esse consolo artificial.
Olho para a parte da caixa que está exposta agora. É uma gaveta de bugigangas,
um lugar
para se guardar botões, fitas, um vidrinho vazio - coisas um dia apreciadas
mas finalmente esquecidas, coisas que se tinha a intenção de consertar, mas
que foram
Postas de lado por tempo demais.
Quando a música torna a parar, eu mesma dou corda na caixa. Kwan está
examinando uma luva de pelica, Os dedos permanentemente apertados. Ela a leva
ao nariz
e cheira.
Eu apanho um livrinho Com as beiradas salientes. Uma visita a Índia,
China e Japão, por Bayard Taylor. Entre duas páginas há um marcador, a ponta
rasgada
de um envelope. Uma frase numa das páginas está sublinhada: "Seus olhos tortos
são típicos de sua visão moral torta." Quem era o fanático que tinha este
livro? Viro
o envelope. Escrito em tinta marrom há o endereço do remetente: Russell and
Company, Acropolis Road, Route 2, Cold Spring, New York.
- Esta caixa pertencia a alguém chamado RUssell? - pergunto.
- Ah! - Kwan arregala os olhos. - Russo. Você se lembra.
- Não - ilumino o envelope. - Diz aqui "Russell and Company", está
vendo?
Kwan parece desapontada.
- Naquela época, eu não sabia inglês - ela diz em chinês. Não podia
ler isto.
- Então esta caixa pertencia ao Sr. Russell?
#355
#356
#357
Ergo os olhos.
- Holotúria quer dizer Nelly?
Ela ri, e bate de leve na minha mão.
- Não-não-não! Srta. Bandeira, o primeiro nome dela Nelly. Mas eu
sempre a chamo de Srta. Bandeira. Por isto é que quase não consigo lembrar
nome todo. Ah.
Que memória ruim! Nelly Bandeira. - Ela dá uma risadinha.
Agarro o diário. Meus ouvidos estão apitando.
- Quando foi que você conheceu a Srta. Bandeira?
Kwan sacode a cabeça.
- Data exata, deixe-me ver...
- Yi ba liu si. - Recordo as palavras de uma das histórias que Kwan me
Contava na hora de dormir. - Perde esperança, desliza para a morte. Um oito
seis quatro.
- Sim-sim. Você boa memória. Mesma época que Rei Celestial perdeu
Revolução da Grande Paz.
O Rei Celestial. Eu também me lembro desta parte. Havia realmente
alguém chamado Rei Celestial? Gostaria de saber mais sobre história chinesa.
Esfrego a
palma da mão na capa macia do diário. Por que não podem fazer livros assim
hoje em dia? - livros que parecem afetuosos e amistosos quando você toca
neles. Viro outra
página e leio: "Arrancar com os dentes as cabeças de fósforos (agonizante).
Engolir Ouro em folha (extravagante). Engolir cloreto de magnésio (infame).
Comer ópio
(indolor). Beber água não fervida (minha sugestão). Ainda com relação ao
suicídio, a Srta. Moo me informou que ele é estritamente proibido entre os
seguidores de
Taiping, a não ser que estejam se sacrificando na guerra em honra a Deus.
Taiping. Tai significa grande. Ping significa paz. Taiping, Grande
Paz. Isto aconteceu - quando? - em meados do século dezenove. Minha mente está
sendo puxada
e eu estou resistindo, mas a muito custo. No passado, sempre mantive
suficiente ceticismo para usar como antídoto para as histórias de Kwan quando
necessário. Mas
agora estou olhando para a tinta cor de sépia sobre papel amarelado, uma
fechadura azinhavrada, a luva amassada, as letras de imprensa: NOSSO ALIMENTO.
Estou ouvindo
a música, sua melodia alegre e antiquada.
#358
#359
Ela se aproxima até estarmos sentadas lado a lado. Massageia meus dedos
gelados, e na mesma hora o calor flui por minhas veias.
- Que tal conversar? Nada para dizer, é sobre isso que vamos conversar.
Ok? Falar sobre filme que vimos. Sobre livro que você está lendo. Ou falar
sobre o
tempo - não-não, isso não, senão você preocupada de novo. Ok, falar de
política, o que eu voto, o que você vota, talvez discutir. Então você não
pensa demais.
Eu estou confusa. Retribuo o sorriso dela.
- Ah! Ok. Não fale. Eu falo. Sim, você só ouve. Vamos ver, sobre o que
eu falo? ...Ah! Eu sei. Conto para você a história da Srta. Bandeira, como ela
decidiu
me dar a caixa de música.
Eu prendo a respiração.
- Ok. Claro.
Kwan passa a falar em chinês:
- Tenho de contar esta história em mandarim. É mais fácil para eu
lembrar. Porque, quando isto aconteceu, eu não sabia falar inglês. É claro que
eu não falava
mandarim na época, só hakka, e um pouquinho de cantonense. Mas mandarim me
permite pensar como pessoa chinesa. É claro, se você não entender uma palavra
aqui e ali,
você pergunta, e eu vou tentar lembrar da palavra inglesa. Deixa eu ver, por
onde devo começar?
"Ah, bem, você já sabe isto sobre a Srta. Bandeira, que ela não era como
os outros estrangeiros que eu conhecia. Ela abria sua mente a diferentes
opiniões.
Mas eu acho que às vezes isto a deixava confusa. Talvez você saiba como é.
Você acredita uma coisa. No dia seguinte, você acredita o contrário. Você
discute com
outras pessoas, depois discute consigo mesma. Libby-ah, você costuma fazer
isto?"
Kwan pára e busca uma resposta em meus olhos. Sacudo os ombros e isto a
satisfaz.
- Talvez seja um hábito americano opiniões demais. Eu acho que povo
chinês não gosta de ter diferentes opiniões ao mesmo tempo. Acreditamos numa
coisa, nos
mantemos fiéis por cem anos, quinhentos anos. Menos confusão assim.
#360
É claro, eu não estou dizendo que povo chinês nunca muda de opinião, nada
disso. Podemos mudar se houver uma boa razão. Eu só estou dizendo que não
mudamos de opinião
a torto e a direito, sempre que temos vontade, só para sermos interessantes.
Na verdade, talvez hoje o povo chinês esteja mudando demais, se inclinando
para onde
o dinheiro está soprando.
Ela me cutuca.
- Libby-ah, você não acha que isto é verdade? Na China, hoje, as pessoas
criam mais idéias capitalistas que porcos. Elas não se lembram de quando o
capitalismo
era o inimigo número um. Memória curta, grandes lucros.
Respondo com uma risada educada.
- Americanos também têm memória curta, eu acho. Nenhum respeito pela
história, só pelo que é popular. Mas a Srta. Bandeira tinha uma boa memória,
muito incomum.
Foi por isso que ela aprendeu tão depressa a nossa língua. Ela ouvia uma coisa
uma única vez, e no dia seguinte repetia. Libby-ah, você tem uma memória
assim, não
tem? Só que é com os olhos, não com os ouvidos. Como se chama esta espécie de
memória em inglês?.. Libby-ah, você está dormindo? Você ouviu o que eu
perguntei?
- Memória fotográfica - eu respondo. Ela está apertando todos os botões
agora. Não vai deixar que eu me esconda desta vez.
- Fotográfica, sim. A Srta. Bandeira não tinha uma câmera, mas tinha a
parte da memória. Ela sempre podia lembrar o que as pessoas diziam, como um
gravador.
Às vezes isto era bom, às vezes ruim. Ela podia lembrar o que as pessoas
disseram na hora do jantar, como diziam algo completamente diferente na semana
seguinte.
Ela lembrava coisas que a aborreceram, não as conseguia esquecer. Ela lembrava
o que as pessoas pediam em orações e o que conseguiam. Também, ela era muito
boa para
se lembrar de promessas. Se você prometesse uma coisa a ela, oh, ela jamais a
deixaria esquecer. Esta era uma especialidade da memória dela. E ela também
lembrava
das promessas que tinha feito a outras pessoas. Para algumas pessoas, fazer
uma promessa não é o mesmo que cumprir uma promessa.
#361
Não para a Srta. Bandeira. Para ela uma promessa era para sempre, não só
durante a vida. Como o que ela me prometeu, depois de me dar a caixa de
música, quando a
morte marchou em nossa direção... Libby-ah, aonde você vai?
- Ar fresco.
Vou até a arcada, tentando tirar da cabeça o que Kwan estava me
contando. Minhas mãos estão tremendo e eu sei que não é por causa do frio.
Esta é a promessa
sobre a qual Kwan estava sempre falando, a promessa que eu nunca quis ouvir,
porque tinha medo. Por que ela tem de me contar isto logo agora?...
E então eu penso: do que é que eu tenho medo? De acabar acreditando
que sua história é verdadeira - que eu fiz uma promessa e a cumpri, que a vida
se repete,
que nossas esperanças resistem, que temos uma outra chance? O que há de tão
terrível nisto?
Examino o céu, agora limpo de nuvens. Recordo outra noite há muito
tempo, com Simon, quando eu disse algo idiota sobre o céu noturno, como as
estrelas eram
as mesmas que os primeiros amantes da terra tinham visto. Eu esperava de todo
coração que um dia ele viesse a me amar acima de tudo e de todos. Mas foi só
por um
breve momento, porque minha esperança parecia grande demais, como o céu, e foi
mais fácil ficar com medo e me abster de voar até lá. Agora eu estou de novo
contemplando
o céu. É o mesmo céu que Simon está contemplando agora, que contemplamos a
vida inteira, juntos e separados. O mesmo céu que Kwan vê, que todos os seus
fantasmas
viram, inclusive a Srta. Bandeira. Só que agora eu não o sinto como um vácuo
para as esperanças ou como um pano de fundo para medos. Vejo o que é tão
simples, tão
óbvio. Ele sustenta as estrelas, os planetas, as luas, toda a vida, por toda a
eternidade. Eu sempre posso achá-lo, ele sempre me achará. Ele é eterno, luz
na escuridão,
escuridão na luz. Ele não promete nada além de ser constante e misterioso,
assustador e milagroso. E, se eu puder me lembrar de olhar para o céu e pensar
sobre isto,
posso usar isto como minha bússola. Posso achar o caminho no meio do caos não
importa o que aconteça.
#362
Posso esperar de todo coração, e o céu estará sempre lá, para me puxar para
cima...
- Libby-ah, você pensando demais outra vez? Quer que eu fale mais?
- Eu só estava imaginando.
- Imaginando o quê?
Fico de costas para ela, ainda examinando o céu, procurando o meu
caminho de uma estrela para outra. O brilho delas viajou um milhão de anos-
luz. E o que
vejo agora é uma lembrança distante, no entanto tão vibrante quanto a vida
jamais poderá ser.
- Você e a Srta. Bandeira. Alguma vez vocês ficaram juntas olhando
para o céu numa noite como esta?
- Oh, sim, muitas vezes. - Kwan se levanta e se aproxima de mim. -
Naquela época, é claro que não tinha televisão, então à noite a única coisa
que tinha
para fazer era contemplar as estrelas.
- O que eu quero dizer é: alguma vez você e a Srta. Bandeira passaram
uma noite como esta, em que estavam ambas assustadas e não tinham idéia do que
iria
acontecer?
- Ah... sim, é verdade. Ela estava com medo de morrer, também com medo
porque tinha perdido alguém, um homem que ela amava.
- Yiban.
Kwan balança a cabeça.
- Eu também estava assustada... - Ela faz uma pausa antes de dizer num
sussurro rouco: - Eu era o motivo de ele não estar lá.
- O que você quer dizer? O que aconteceu?
- O que aconteceu foi - ah, talvez você não queira saber.
- É... é triste.
- Triste, sim, alegre também. Depende de como você lembre.
- Então eu quero lembrar.
Os olhos de Kwan estão úmidos.
- Oh, Libby-ah, eu sabia que um dia você lembraria comigo. Eu sempre
quis mostrar que era realmente sua leal amiga.
#363
- Ela se vira, se controla, depois aperta minha mão e sorri. - Ok, Ok. Mas
isto é um segredo. Não conte para ninguém. Prometa, Libby-ah... Ah, sim, eu me
lembro
de que o céu estava escuro, nos escondendo. Entre aquelas duas montanhas ali,
estava ficando cada vez mais claro. Um grande fogo laranja estava ardendo...
E eu escuto, sem temer mais os segredos de Kwan. Ela me ofereceu sua
mão. Eu a estou tomando livremente. Juntas nós estamos voando para o Mundo de
Yin.
#364
21
QUANDO O CÉU PEGOU FOGO
Mais cedo eu estava com Yiban, na caverna - aquela que tem o lago que brilha e
uma aldeia de pedra na margem. E quando eu estava lá, Libby-ah, fiz uma coisa
terrível,
que levou a outra. Fiz do meu último dia na terra um dia de mentiras.
Primeiro, quebrei a promessa que tinha feito à Srta. Bandeira. Fiz
isto para ser gentil. Contei a verdade a Yiban: a Srta. Bandeira estava
fingindo com Capa.
Ela queria protegê-lo, certificar-se de que você estaria a salvo. E veja,
agora você está aqui.
Você devia ter visto o rosto dele! Alívio, alegria, raiva, depois
susto - como a mudança das folhas, todas as estações acontecendo ao mesmo
tempo.
- De que adianta ficar vivo se ela não está comigo? - ele gritou. - Eu
vou matar o filho da mãe do Capa. - Ele se ergueu de um salto.
- Wah! Aonde você vai?
- Encontrá-la, trazê-la para cá.
- Não, não, você não pode. - E então eu contei a primeira mentira do
dia: - Ela sabe como chegar aqui. Eu e ela estivemos aqui muitas vezes. Por
dentro,
eu estava preocupada com a Srta. Bandeira, porque é claro que isto não era
verdade. Então contei minha segunda mentira. Pedi desculpas, dizendo que
precisava de
privacidade feminina, querendo dizer que precisava encontrar um lugar escuro
para urinar.
#365
#366
#367
#368
Quando eu disse que ele estava a salvo numa caverna, o rosto dela
refletiu o seu alívio. Ela soluçou, sem conseguir parar. Eu tentei acalmá-la.
- Logo você estará com ele. A caverna não é assim tão longe.
- Eu não posso dar nem um passo. Minha perna.
Ela ergueu a saia e eu vi que a perna direita dela estava inchada, com
uma ponta de osso espetada para fora. Então eu contei minha terceira mentira:
- Não está assim tão ruim. Onde eu me criei, uma pessoa com a perna
deste jeito ainda podia caminhar pelas montanhas sem problemas. É claro que,
sendo estrangeira,
você não é tão forte. Mas, assim que eu der um jeito de enfaixar sua perna,
nós vamos fugir daqui.
Ela sorriu, e eu fiquei contente em saber que uma pessoa apaixonada
acredita em tudo, desde que possa ter esperanças.
- Espere aqui - eu disse.
Corri até o quarto dela e procurei na gaveta que guardava suas roupas
íntimas. Encontrei a peça dura que ela usava para afinar a cintura e empinar o
peito,
também a meia com buracos nos tornozelos. Voltei correndo e usei estas roupas
para amarrar sua perna. E, quando terminei, ajudei-a a se levantar e a ir
mancando
até o banco que ficava nos fundos da Casa de Deus. Só então, longe dos outros
que estavam vivos até pouco antes, é que ela foi capaz de dizer como e por que
cada
pessoa foi morta.
Ela começou me contando o que aconteceu depois que Lao Lu perdeu sua
cabeça e eu caí desmaiada no chão. Os Adoradores de Jesus, ela disse, deram-se
as mãos
e cantaram a música da caixa de música: "Quando a morte dobrar a esquina,
encontraremos Nosso Senhor."
- Parem de cantar! - Capa ordenou então. E a Srta. Camundongo -
você sabe como ela era sempre tão nervosa -, ela gritou com Capa:
- Eu não temo nem você nem sua morte, só Deus. Porque, quando eu
morrer, vou para o céu como aquele pobre homem que você matou. E você, filho
bastardo do
demônio, você vai assar no inferno.
#369
#370
Ele estava xingando como um cule de quinta geração, com o osso do jantar da
noite anterior pendurado no ombro. A Srta. Bandeira pensou, que estranho que
Pastor Amém
consiga falar tão bem esta língua nativa. Então ela correu para a porta para
avisar ao louco para ir embora. Quando Capa se virou para empurrá-la para
trás, Pastor
partiu o crânio de Capa com o osso. Ele o atingiu diversas vezes, com golpes
tão violentos que um deles bateu na canela da Srta. Bandeira. Finalmente
Pastor atirou
o osso no chão e gritou para o inimigo, já morto há muito tempo:
- Vou chutá-lo com minha perna boa quando nos encontrarmos no outro
mundo.
Foi quando a Srta. Bandeira suspeitou de que o fantasma de Lao Lu
tivesse pulado para dentro da mente vazia de Pastor. Ela observou aquele homem
que estava
ao mesmo tempo vivo e morto. Ele apanhou a pistola de Capa e atravessou o
pátio correndo, e chamou os soldados que guardavam o portão. De onde a Srta.
Bandeira estava
caída, ela ouviu uma explosão. Logo depois outra. E então ouviu Pastor gritar
na sua língua de estrangeiro:
- Meu Deus! O que foi que eu fiz? - Todo aquele barulho o havia
acordado de seus sonhos nebulosos.
A Srta. Bandeira disse que, quando tornou a ver Pastor, ele tinha a
cara de um fantasma vivo. Ele cambaleou até o quarto dele; mas deu com o
cadáver de Capa,
depois com a Srta. Bandeira com a perna quebrada. Ela se encolheu como se ele
fosse atingi-la outra vez.
Durante muitas horas, Pastor e os outros Adoradores de Jesus
discutiram o que tinha acontecido, o que deviam fazer. A Srta. Bandeira ouviu
aquela conversa
de juízo final. Se os manchus vissem o que Pastor tinha feito, a Srta.
Camundongo observou, eles todos seriam torturados vivos. Qual deles tinha a
força necessária
para erguer os corpos e os enterrar? Nenhum. Será que deviam fugir? Para onde?
Não conheciam nenhum lugar onde pudessem se esconder. Então o Dr. Tarde Demais
sugeriu
que pusessem fim ao sofrimento deles cometendo suicídio. Mas a Sra. Amém
argumentou:
#371
#372
Quanto tempo teríamos antes de os manchus chegarem? Eu não sabia então, mas
posso lhe dizer agora. Não o suficiente.
Antes de fugirmos, rasguei a saia do vestido que a Srta. Bandeira
usava para andar em casa e fiz uma alça para carregar a caixa de música.
Prendi-a no meu
ombro esquerdo, a Srta. Bandeira se apoiou no meu ombro direito e nós fomos
mancando como se fôssemos uma só. Mas, quando chegamos na porta para sair da
Casa de
Deus, um vento súbito nos atingiu. Eu me virei e vi as roupas dos Adoradores
de Jesus infladas como se seus corpos estivessem respirando novamente. Os
pacotes de
As Boas Novas se espalharam e os papéis que voaram para cima das velas acesas
pegaram fogo. Logo eu senti o cheiro do Mercador Fantasma, de pimenta e alho,
muito
forte, como se um banquete de boas-vindas estivesse sendo preparado. Talvez
fosse só a imaginação decorrente de um medo muito grande. Mas eu o vi - a
Srta. Bandeira
não -, sua roupa comprida, e por baixo seus dois pés novos calçando sapatos de
solas grossas. Ele estava andando e balançando a cabeça, finalmente de volta à
sua
casa azarada.
Mancando, eu e a Srta. Bandeira subimos aquelas montanhas. Às vezes
ela tropeçava e caía em cima da perna machucada, e então gritava:
- Deixe-me aqui. Não posso continuar.
- Pare com essa bobagem - eu dizia todas as vezes. - Yiban está
esperando e você já nos atrasou. - Era sempre o suficiente para fazer a Srta.
Bandeira tentar
de novo.
#373
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#375
- Srta. Moo, para onde você vai? Para que lugar depois da morte? Para
o seu céu ou para o meu?
Que pergunta esquisita. Como se eu pudesse decidir. Não eram os deuses
que escolhiam por nós? Mas eu não queria discutir, não no nosso último dia.
Então
eu simplesmente disse:
- Para onde quer que Zeng e Lao Lu tenham ido, é para lá que vou
também.
- Então será para o seu céu. - Ficamos caladas por alguns instantes.
- Para onde você vai, Srta. Moo, tem de ser chinês para ir? Será que eles me
deixariam
entrar?
A pergunta era ainda mais estranha que a anterior!
- Eu não sei. Nunca falei com ninguém que tenha estado lá e voltado.
Mas acho que, se você falar chinês, talvez seja o suficiente. Sim, tenho
certeza disto.
- E Yiban, já que ele é meio a meio, para onde ele iria? Se
escolhermos o contrário...
Ah, agora eu compreendia todas as perguntas. Eu quis confortá-la.
Então contei a última mentira:
- Venha, Srta. Bandeira. Venha comigo. Yiban já me disse. Se ele
morrer, vai encontrá-la de novo, no Mundo de Yin.
Ela acreditou em mim, porque eu era sua leal amiga.
- Por favor, segure minha mão, Srta. Moo - ela disse. - Não a solte
até chegarmos lá.
E, juntas, nós esperamos, ambas alegres e tristes, mortas de medo até
morrermos.
#376
22
QUANDO LUZ E ESCURIDÃO
SE EQUILIBRAM
#377
- Você se lembra, ah?
- Acho que fomos enforcadas. - Meus lábios estão dormentes da friagem
da manhã.
Kwan franze a testa.
- Enforcadas? Hum. Acho que não. Naquela época, soldado manchu não
enforcava pessoas. Muito trabalho. Também não tinha árvore.
Fico estranhamente desapontada em saber que estou errada.
- Ok, então como foi que aconteceu?
Ela sacode os ombros.
- Não sei. Por isto é que eu perguntei para você.
- O quê! Você não lembra como nós morremos?
- Aconteceu tão depressa! Um minuto estava aqui, no minuto seguinte
acordei lá. Muito tempo já tinha passado. Pelo tempo, eu vi que já tinha
morrido. Mesma
coisa quando fui para o hospital receber eletrochoque. Acordei, ei, onde
estou? Quem sabe, última vida talvez raio caiu e mandou você e eu rápido para
outro mundo.
Mercador Fantasma acha que morreu do mesmo jeito. Pao! Sumiu! Só deixou para
trás dois pés.
Eu rio.
- Merda! Não posso acreditar que você tenha me contado esta história
toda e não conheça o final.
Kwan se espanta.
- O final? Você morre, este não é o final da história. Isso significa
apenas que a história não acaba... Ei, veja! O sol está saindo. - Ela estica
os braços
e as pernas. - Vamos procurar Simon agora. Traga lanterna, cobertor também.
- Ela começa a andar, segura do caminho de volta: Sei para onde
estamos indo: para a caverna, onde Yiban prometeu que ficaria, onde espero que
Simon esteja.
Caminhamos ao longo da plataforma de pedra, testando cada passo antes
de colocarmos o peso do corpo sobre o pé. Meu rosto coça à medida que o calor
vai subindo
nele. Finalmente vou ver esta maldita caverna que é ao mesmo tempo maldição e
esperança. E o que iremos encontrar? Simon, tremendo de frio mas vivo? Ou
Yiban, esperando
eternamente pela Srta. Bandeira?
#378
Enquanto penso nisso, tropeço num monte de entulho de terra às minhas costas.
- Cuidado! - Kwan grita.
- Por que as pessoas só gritam cuidado quando já é tarde demais?
- Eu me levanto.
- Não foi tarde demais. Da próxima vez talvez você não caia. Aqui,
pegue a minha mão.
- Eu estou bem. - Flexiono a minha perna. - Está vendo? Nenhum osso
quebrado. - Continuamos subindo, Kwan olhando para trás para me vigiar a cada
segundo.
Logo eu chego numa caverna. Espio para dentro, procurando algum sinal de vida
anterior, pré-histórica ou morta mais recentemente. - Kwan, me diz uma coisa,
que fim
levaram Yiban e o povo de Changmian?
- Eu já estava morta - ela responde em chinês -, portanto não sei ao
certo. O que sei foi de ouvir falar durante esta vida. Então quem sabe o que é
verdade?
As pessoas de outras aldeias sempre exageraram um pouco e deixaram os boatos
escorrerem pela montanha como de um vazamento no telhado. Chegando no fundo, o
falatório
das pessoas se transformou numa história de fantasma e de lá se espalhou pela
província o boato de que Changmian era amaldiçoada.
- Qual é a história:
- Ah, espere um pouco, deixe-me recuperar o fôlego! - Ela se senta numa pedra,
ofegante. - A história é a seguinte: As pessoas dizem que quando os soldados
manchus
chegaram, ouviram pessoas chorando nas cavernas. "Saiam!", eles ordenaram.
Ninguém saiu - você sairia? Então os
soldados juntaram galhos secos, colocaram-nos perto da entrada das cavernas.
Quando o fogo começou, as vozes nas cavernas começaram a gritar. De repente,
as cavernas
soltaram um gemido colossal e depois vomitaram um rio negro de morcegos. O céu
ficou cheio dessas criaturas voadoras, e elas eram tantas que parecia que a
garganta
tivesse sido coberta por um guarda - chuva. Elas alimentaram o fogo com o
bater de suas asas e então o vale todo ficou em chamas. A arcada, a plataforma
de pedra
- tudo foi cercado por uma muralha de fogo. Dois ou três soldados a cavalo
conseguiram fugir , mas o resto não.
#379
Uma semana depois, quando outra tropa chegou a Changmian, não encontrou
ninguém, nem vivo nem morto. A aldeia estava vazia, bem como a Casa do
Mercador Fantasma,
não havia nenhum corpo. E na garganta, para onde os soldados tinham ido, só
havia cinzas e as pedras empilhadas de centenas de sepulturas. - Kwan se
levanta. - Vamos
andando. - E vai embora.
Corro atrás dela.
- O povo da aldeia morreu?
- Talvez sim, talvez não. Um mês depois, quando um viajante de Jintian
passou por Changmian, encontrou a aldeia cheia de vida num dia movimentado de
feira.
Havia cães deitados na sarjeta, pessoas discutindo, crianças andando atrás de
suas mães, como se não tivesse havido qualquer interrupção no ritmo de vida.
"Ei",
o viajante disse para o chefe da aldeia "o que aconteceu quando os soldados
invadiram Changmian?" E o velho franziu o rosto e disse: "Soldados? Não me
lembro de
nenhum soldado por aqui."! Então o viajante disse: "E quanto àquela casa ali?
Ela foi destruída pelo fogo." E os aldeões disseram: "Oh, aquilo. No mês
passado o
Mercador Fantasma voltou e nos ofereceu um banquete. Uma das galinhas
fantasmas que estava assando no forno voou para o telhado e incendiou as
vigas." Quando o viajante
voltou para Jintian. havia uma corrente humana, de alto a baixo da montanha,
dizendo que Changmian era uma aldeia de fantasmas;.. O quê? Porque você está
rindo?
- Acho que Changmian se transformou numa aldeia de mentirosos. Eles
deixavam as pessoas pensarem que eram fantasmas. Porque dá menos trabalho do
que ir para
as cavernas durante guerras futuras.
- Kwan bate palmas.
- Que garota esperta. Você tem razão. A Grande Ma uma vez me contou uma
história sobre um forasteiro que perguntou a um rapaz da nossa aldeia: "Ei,
você é
um fantasma?" O homem franziu a testa e fez um gesto na direção de um campo
não cultivado, cheio de pedras.
#380
"Diga-me, um fantasma teria sido capaz de cultivar uma plantação assim tão
bonita de arroz?" O forasteiro deve Ter percebido que o homem o estava
enganando. Um fantasma
de verdade não se gabaria do arroz. Teria mentido e dito pêssegos em vez de
arroz! Ah?
Kwan faz uma pausa para que eu compreenda a lógica da história.
- Faz sentido para mim - eu minto de acordo com a melhor tradição de
Changmian.
Ela prossegue:
- Após algum tempo, acho que a aldeia ficou cansada da fama de
fantasma dos seus habitantes. Ninguém queria fazer negócios em Changmian.
Ninguém queria que
seus filhos e filhas se casassem com famílias de Changmian. Então mais tarde
eles disseram para as pessoas: "Não, não somos fantasmas, é claro que não. Mas
existe
um ermitão que mora numa caverna a duas montanhas daqui. Ele pode ser um
fantasma, ou talvez um imortal. Tem cabelos longos e uma barba comprida. Eu
mesmo nunca
o vi. Mas ouvi dizer que ele só aparece ao amanhecer e ao anoitecer, quando
luz e escuridão se equilibram. Caminha entre os túmulos, procurando por uma
mulher que
morreu. E, como não sabe qual dos túmulos é o dela, cuida de todos eles."
- Eles estavam se referindo a... Yiban? - prendo a respiração.
Kwan balança afirmativamente a cabeça.
- Talvez esta história tenha começado quando Yiban ainda estava vivo,
esperando pela Srta. Bandeira. Mas, quando eu tinha seis anos de idade - logo
depois
que me afoguei -, eu o vi com meus olhos yin, entre os túmulos. Nessa época,
ele já era um fantasma de verdade. Eu estava na mesma garganta, juntando
galhos secos.
Na meia hora em que o sol se põe, ouvi dois homens discutindo. Fui andando no
meio dos túmulos e os encontrei empilhando pedras. "Velhos tios", eu disse
para ser
educada, "o que estão fazendo?" O careca era muito mal-humorado. "Merda!", ele
disse. "Use os seus olhos, agora que você tem dois. O que acha que estamos
fazendo?"
O homem de cabelos compridos era mais educado.
#381
"Olhe aqui, menininha", ele disse. E ergueu uma pedra que tinha a forma da
cabeça de um machado. "Entre a vida e a morte, há um lugar em que se pode
equilibrar o
impossível. Estamos procurando este ponto." Ele colocou cuidadosamente a pedra
em cima de outra. Mas ambas caíram no pé do homem careca. "Maldição!",
exclamou o
homem careca. "Você quase arrancou minha perna. Não tenha pressa. O lugar
certo não está nas suas mãos, seu idiota. Use o corpo todo e a mente para
encontrá-lo."
- Esse era Lao Lu?
Ela sorri.
- Morto há mais de cem anos e ainda praguejando! Descobri que Lao Lu e
Yiban estavam presos, sem conseguir ir para o outro mundo, porque tinham
muitos arrependimentos
futuros.
- Como se pode ter um arrependimento futuro? Isto não faz qualquer
sentido.
- Não? Você diz para si mesma: se eu fizer isto, então vai acontecer
aquilo, e eu vou me sentir assim, então não devo fazer isto. Você está presa.
Como Lao
Lu. Ele se arrependia de ter feito Pastor Amém acreditar que tinha matado Capa
e os soldados. Para dar uma lição a si mesmo, decidiu que na próxima vida
seria a
esposa de Pastor. Mas, sempre que pensava em seu futuro - que teria que ouvir
amém isto, amém aquilo, todo domingo -, ele recomeçava a praguejar. Como podia
se tornar
esposa de um pastor com aquele gênio? Por isto é que estava preso.
- E Yiban?
- Como ele não conseguiu encontrar a Srta. Bandeira, achou que ela
tinha morrido. Ficou triste. Então começou a imaginar se ela teria voltado
para Capa.
E ficou mais triste ainda. Quando Yiban morreu, ele voou até o céu para
encontrar a Srta. Bandeira, e, como ela não estava lá, acreditou que ela
estivesse no inferno
de Capa.
- Ele nunca imaginou que ela tivesse ido para o Mundo de Yin?
#382
- Veja! É isto que acontece quando você fica preso. Entram coisas boas
na sua cabeça? Mm-mm. Coisas más? Muitas.
- Então ele ainda está preso?
- Oh, não-não-não-não. Eu falei para ele sobre você.
- Falou o quê?
- Contei onde você estava. Quando você ia nascer. E agora ele está
esperando por você de novo. Em algum lugar por aqui.
- Simon?
Kwan abre um amplo sorriso e faz um gesto na direção de uma grande
pedra. Atrás dela, quase invisível, há uma pequena abertura.
- Esta é a caverna do lago?
- A mesma.
Enfio a cabeça na abertura e grito:
- Simon! Simon! Você está aí? Você está bem?
Kwan me agarra pelo ombro e me puxa delicadamente para trás.
- Vou entrar para buscá-lo - ela diz em inglês. - Onde está lanterna?
Tiro a lanterna de dentro da mochila e tento acendê-la.
- Merda, ela deve ter ficado acesa a noite inteira. A bateria acabou.
- Deixe eu ver. - Ela pega a lanterna e esta acende imediatamente.
- Está vendo? Não acabou. Ok! - ela entra na caverna e eu vou atrás.
- Não-não, Libby-ah! Você fica aqui fora.
- Por quê?
- Para o caso...
- Que caso?
- Só por precaução! Não discuta. - Ela agarra minha mão com tanta
força que dói. - Promete, ah?
- Está bem. Prometo.
Ela sorri. Em seguida seu rosto se crispa numa expressão de dor e
lágrimas rolam pelo seu rosto redondo.
- Kwan? O que foi?
Ela torna a apertar minha mão e balbucia em inglês:
#383
#384
#345
IV
#389
23
O FUNERAL
Kwan desapareceu há dois meses. Eu não digo "morreu", porque ainda não permiti
a mim mesma pensar que foi isto que aconteceu.
Eu me sento em minha cozinha, comendo granola, olhando para os
retratos de crianças desaparecidas nas caixas de leite. "Paga-se uma
recompensa por qualquer
informação", está escrito. Sei o que as mães dessas crianças sentem. Até prova
em contrário, você tem de acreditar que
elas estejam em algum lugar. Você precisa vê-las mais uma vez antes que seja
hora de dizer adeus. Você não pode permitir que aqueles que você ama a deixem
para trás
neste mundo sem fazê-los prometer que vão esperar. E eu preciso acreditar que
não é tarde demais para dizer a Kwan: eu era a Srta. Bandeira e você era
Nunumu, e
para sempre você vai ser leal e eu também.
Há dois meses, a última vez que a vi, esperei ao lado da caverna,
certa de que, se acreditasse em sua história, ela voltaria. Fiquei sentada na
caixa de
música, com Simon ao meu lado. Ele tentou parecer otimista, mas não fez
qualquer brincadeira, e foi assim que eu soube que estava preocupado.
- Ela vai aparecer - ele me disse. - Eu só queria que você não tivesse
de passar por esta agonia, primeiro comigo e agora com Kwan.
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Recordava a época em que ela tratava dos meus machucados, me ensinava a andar
de bicicleta, colocava as mãos na minha testa febril e murmurava:
- Durma, Libby-ah, durma. - E eu dormia.
Enquanto isto, Changmian tinha se tornado um circo. O cara que havia
tentado vender moedas ditas antigas para nós estava cobrando dez ienes aos
curiosos
para entrarem na primeira arcada. O irmão dele cobrava vinte para entrar na
segunda. Muitos turistas percorriam a garganta, e os moradores de Changmian
arrancavam
pedras dos túmulos para guardar de lembrança. Começou uma discussão entre os
líderes da aldeia e os funcionários do governo sobre os direitos de
propriedade das
cavernas e sobre quem podia levar o que elas continham. Nessa altura, já tinha
passado duas semanas, e Simon e eu não conseguíamos mais agüentar. Decidimos
tomar
o avião para casa no dia marcado.
#394
#395
#396
24
CANÇÕES SEM FIM
George e Virgie acabaram de chegar de sua lua-de-mel em Changmian. Eles dizem
que não teriam reconhecido o lugar.
- Armadilha para turista em toda parte! - George diz. - A aldeia toda
está rica agora, vendendo criaturas marinhas de plástico, daquele tipo que
brilha no
escuro. Por isto é que o lago era tão brilhante. Peixes e plantas antigos
vivendo no fundo. Mas agora não tem mais. Pessoas demais fizeram desejos,
atiraram moedas
na água. E todas as criaturas marinhas? Envenenadas, boiando mortas na
superfície. Então os chefes da aldeia instalaram luzes submarinas, verdes e
amarelas, muito
bonitas, eu vi. Bonito espetáculo.
Acho que George e Virgie escolheram ir para Changmian para se
desculpar com Kwan. Para se casar, George teve de conseguir que Kwan fosse
declarada legalmente
morta. Eu ainda me sinto confusa quanto a isto. O casamento, na minha opinião,
é o que Kwan tinha tramado o tempo todo. Em algum nível, ela deve ter sabido
que não
ia voltar para casa. Ela nunca teria deixado George passar o resto da vida sem
ter o suficiente para comer. Acho que ela também teria rido e dito: "Que pena
Virgie
não ser melhor cozinheira."
Eu tive quase dois anos para pensar em Kwan, por que ela entrou na
minha vida, por que saiu. O que ela disse sobre o destino esperando para ser
cumprido,
o que poderia ter querido dizer com isto.
#397
Dois anos é tempo suficiente, eu sei, para articular lembranças do que foi com
o que poderia ter sido. E isto é bom, porque agora acredito que a verdade está
não
na lógica e sim na esperança, tanto passada quanto futura. Acho que a
esperança pode nos surpreender. Ela pode sobreviver a toda sorte de
dificuldades e contradições,
e certamente a qualquer tipo de racionalidade cética que só se fia em fatos.
De que outro modo posso explicar o fato de ter uma filhinha de catorze
meses? Como todo mundo, fiquei estarrecida quando fui ao médico e ele disse
que eu
estava grávida de três meses. Dei à luz nove meses depois de Simon e eu termos
feito amor na cama de casal, nove meses depois do desaparecimento de Kwan.
Tenho certeza
de que houve quem suspeitasse de que o pai era algum namorado eventual, que eu
fui relaxada, que fiquei grávida por acaso. Mas Simon e eu sabemos: este bebê
é nosso.
Claro, houve uma explicação racional. Nós voltamos ao especialista em
fertilidade e ele fez mais testes. Ora, vejam só. Os primeiros testes estavam
errados. O laboratório
deve ter cometido um engano, trocado os resultados, porque a esterilidade,
segundo o médico, não é um estado reversível. Simon, ele anunciou, não era de
fato estéril.
Eu perguntei ao médico:
- Então como o senhor explica o fato de eu nunca ter engravidado
antes? - Você provavelmente estava se esforçando demais - ele disse. - Veja
quantas mulheres
engravidam depois que adotam bebês.
Tudo o que sei é o que quero acreditar. Ganhei um presente de Kwan,
uma menininha com covinhas em suas bochechas gordas. E não, eu não a chamei
nem de Kwan
nem de Nelly. Não sou assim tão morbidamente sentimental. Eu a chamo de
Samantha, às vezes de Sammy. Samantha Li. Ela e eu adotamos o sobrenome de
Kwan. Por que
não? O que é um sobrenome senão uma afirmação do fato de estar relacionado no
futuro a alguém do passado?
Sammy me chama de "Mama". O brinquedo favorito dela é "ba", a caixa de
música que Kwan me deu de presente de casamento.
#398
A outra palavra que Sammy diz é "Pa", que é como chama Simon, "Pa" de papai,
embora ele não more conosco o tempo todo. Ainda estamos resolvendo nossa vida,
decidindo
o que é importante, o que pesa, como ficar juntos por mais de oito horas sem
divergir sobre a estação de rádio que vamos ouvir. Nas sextas-feiras, ele vem
para cá
e passa todo o fim de semana. Nós nos aconchegamos na cama, Simon e eu, Sammy
e Bubba. Estamos treinando como ser uma família, e nos sentimos gratos por
cada momento
que passamos juntos. As briguinhas, as implicâncias, elas ainda surgem de vez
em quando. Mas é mais fácil agora lembrar o quanto elas são sem importância, o
quanto
elas encolhem o coração e tornam a vida pequena.
Acho que Kwan quis me mostrar que o mundo não é um lugar e sim a
vastidão da alma. E a alma é simplesmente amor, sem limites, sem fim, aquilo
que nos leva
na direção da verdade. Uma vez eu pensei que o amor devia ser apenas
felicidade. Sei agora que é também preocupação e sofrimento, esperança e
confiança. E acreditar
em fantasmas - é acreditar que o amor nunca morre. Quando as pessoas que
amamos morrem, elas só estão perdidas para os nossos sentidos comuns. Se nos
lembrarmos,
podemos encontrá-las a qualquer momento com nossos cem sentidos secretos.
- Isto é um segredo - ainda posso ouvir Kwan murmurando. - Não conte a
ninguém. Prometa, Libby-ah.
Ouço meu bebê me chamando. Ela balbucia e estende a mão para a
lareira, mostrando não sei o quê. Ela insiste.
- O que é, Sammy? O que você está vendo? - Meu coração dispara e eu
sinto que pode ser Kwan.
- Ba - Sammy diz, ainda apontando para cima. Agora vejo o que ela
quer. Vou até a lareira e pego a caixa de música. Dou corda nela. Ergo meu
bebê no colo.
E dançamos, com a alegria que transborda da dor.