Homem de Ferro - A Manopla - Eoin Colfer
Homem de Ferro - A Manopla - Eoin Colfer
Homem de Ferro - A Manopla - Eoin Colfer
— Rush
B T S C E
Ou talvez:
H F A P
Spin Zhuk virou a cama e viu Saoirse Tory deitada no chão, bem
como suspeitara.
“A-rá!”, Spin planejara dizer. “Não pode ir me enganando com
brincadeiras bobas de criança”.
Esse fora o plano, mas na verdade ela disse:
– A... oooorgh – com uma pequena cuspida no final, porque o
plano das molas da cama funcionou ainda melhor do que Saoirse
imaginara, a despeito da sua estupidez aparente. Quando as pernas
saíram da junção entre as pedras, a tensão das molas levou o metal
a se contrair violentamente, fazendo a armação dar um salto de
coelho com uma infeliz taxa de aceleração que teria provocado
desconforto zero em Spin Zhuk, a não ser por uma coisa: ela foi
atingida bem no pescoço, a traqueia quase esmagada. E não há
uma criatura no planeta capaz de desconsiderar uma barra de metal
na traqueia, motivo pelo qual se ouviu o “A... oooorgh”.
– Desculpe – disse Saoirse. Mas logo se levantou e caminhou até
a porta, aproveitando qualquer mínima vantagem proporcionada
pela armadilha de molas.
Eu deveria ter trancado a porta da cela, pensou na metade da
rampa, com um quadrado de luz do sol pairando tentadoramente
sobre ela. Mas, em seguida, uma bala despedaçou um pedaço de
rocha do arco quase atingindo a cabeça de Saoirse, e todos os
pensamentos dela se resumiram a uma única ordem: Corra!
Evidentemente, o golpe em Spin Zhuk não gerara tanto
inconveniente quanto Saoirse imaginara.
A garota correu pela rampa até alcançar a luz da manhã, aliviada
em ver que não havia mais terroristas para despistar naquele
momento.
Se a gangue toda do Mandarim estivesse no pátio, seria o fim da
minha pequena tentativa de fuga.
Saoirse temera a recepção de um terrorista, mas, sendo bem
honesta, temia mais ainda encontrar o corpo de Tony Stark
pendurado nas ameias, os olhos mortos encarando-a
acusadoramente.
“Culpa sua, idiota”, o corvo no ombro dele provavelmente diria.
“Você fez isso”.
Saoirse baniu esses pensamentos, concentrada em correr. Spin
Zhuk estava poucos passos atrás dela, e as balas da pistola
conseguiam atravessar mil metros por segundo, muito diferente da
sua velocidade de corrida, que deveria ser de patéticos dez
quilômetros por hora, mais ou menos.
Sim, mas balas só andam em linha reta, Saoirse pensou,
passando por baixo do arco caído e virando à direita, para então se
abraçar à muralha externa da prisão. Spin precisaria chegar
literalmente perto antes de conseguir um tiro certeiro.
E esta é a minha ilha, ela pensou. Conheço cada pedaço do
terreno e cada piscina rochosa.
Mais importante para o plano improvisado de Saoirse Tory, ela
conhecia a sequência de espiráculos.
Mas o que era um espiráculo?
Ela tinha esperanças de que Spin Zhuk não soubesse.
Aqui, a personagem faz um trocadilho com seu nome. Spin, em
português, significa girar, e pull, puxar. (N.T.)
8
CORRENDO PELOS ESPIRÁCULOS
Little Saltee
Saoirse Tory passara todas as horas livres em Little Saltee com o
avô, que lhe ensinara a dar nós em cordas, atrair lagosta para uma
armadilha e correr pelos espiráculos.
– Correr pelos espiráculos. Na minha época, esse era nosso
esporte – Francis Tory lhe dissera. – Foram anos dourados, se quer
saber a minha opinião, antes que a televisão tivesse tantos canais, e
as crianças parassem de comer banha de porco. Ninguém nunca
morreu por causa disso, e ossos quebrados acabam se juntando de
novo, não?
A maioria das crianças teria tapado os ouvidos assim que
desrespeitassem a televisão, mas Saoirse amara tanto o avô que o
ouviria atentamente mesmo que ele lesse os ingredientes de uma
sopa enlatada.
– Existe uma fileira de espiráculos ao longo das rochas, entre o
cais e White Rock. A ideia era que um grupo de nós, os jovens,
disparasse por ela durante a maré alta, evitando os gêiseres. O
segredo estava na cronometragem.
– Você chegou a ganhar, vovô? – Saoirse muitas vezes
perguntara, e o homem sempre fingira sentir-se ofendido.
– Se cheguei a ganhar? Se este camarada aqui já ganhou?
Simplesmente detenho o recorde. Trinta segundos cravados, e as
roupas sempre secas. Pra que Olimpíadas? Eu adoraria ver aquele
amiguinho da Quicksilver correr pelos espiráculos. Isso daria jeito
nele.
E naquele momento Saoirse Tory correria pelos espiráculos, ainda
que não só para bater o recorde do avô. Defenderia sua vida, e
possivelmente outras também.
Saoirse cerrou os punhos, agarrou-se à sua determinação e
abandonou a proteção da muralha externa da prisão, indo para uma
prancha achatada de granito. Retumbava com a passagem do Mar
Celta e estava esburacada com milhares de traiçoeiras piscinas
rochosas.
Trinta segundos, ela pensou. O meio minuto mais longo da minha
vida. Ou talvez o último.
Tony gemeu.
– Pare, pai. Isso é coisa sem sentido dos biscoitos da sorte.
Somos Stark. Não lidamos com o abstrato. Tenho coisas a fazer.
Assuntos de vida ou morte. Você não poderia simplesmente
esclarecer tudo para mim?
Howard Stark suspirou.
– Tony, você precisa de um pouco de cultura na vida.
– Pai, uma pista, por favor. Que hiato? Existe um buraco de
verdade em algum lugar? Ou seria um buraco no sentido
metafórico?
– Pois bem, meu filho. Eu lhe darei uma pista. Preste atenção.
– Agora é pra valer.
– O hiato ao qual me refiro na verdade é... um sinal. Temos um
sinal.
A explicação não ajudou Tony em nada.
– Agora ficou pior do que um enigma. O que quer dizer com
“temos um sinal”?
Howard abriu os olhos e a luz ofuscante preencheu o sonho de
Tony.
– Quero dizer que temos um sinal. Alguém está tentando entrar
em contato.
Tony pressentiu que o sonho ou a visão, ou sabe-se lá o que
fosse, estava chegando ao fim. Nunca antes vira o pai daquele jeito
e, de alguma forma, soube que não o veria novamente.
– Pai, espere, por favor.
Mas Howard Stark estava perdido na luz, e só a débil voz
persistia:
– Sua mãe falou para você comer um sanduíche, pelo amor de
Deus; está magro demais. E eu o aconselho a deixar crescer uma
barba de verdade. Você mais parece um agiota.
Em seguida, Howard Stark sumiu de vez, deixando Tony Stark
sozinho, como vinha ocorrendo havia muito tempo.
Aconteceu assim:
A cabeça de Saoirse estivera enfiada no capacete por mais de
três horas enquanto a jovem esperava algum sinal de vida do
sistema. Até então, não surgira nem ao menos um comitê de boas-
vindas, por isso, apesar da tensão inerente da situação, Saoirse,
estressada, desidratada e exausta, acabou adormecendo. Portanto,
quando o capacete sugou energia do barco a ponto de reinicializar,
Saoirse, assustada e deliciada com a súbita aparição do mostrador,
emitiu um som similar a uma mistura de risada com grito. Na
Austrália, país com uma natureza tão peculiar e tão maravilhosa, as
pessoas estão sempre tão surpresas e encantadas que chegaram a
criar um nome para essa sensação: “down under”, que seria algo
como grisada.
Por isso, Saoirse grisou e, infelizmente, bem naqueles dois
segundos entre uma canção de hard rock e outra, quando os
ouvidos de Spin de fato se conectavam com o mundo além dos
fones de ouvido. E o mais desafortunado foi que o capacete que
Saoirse acreditara ser à prova de som estava calibrado para o
pescoço bem mais grosso de Tony, então alguns decibéis da
exclamação aguda escaparam do espaço fechado e chegaram aos
ouvidos de Spin Zhuk. Agravando ainda mais o efeito do grito, uma
das botas da jovem resvalou na madeira da porta do painel.
Spin arrancou os fones e girou o banquinho.
– O que foi isso? – perguntou a si mesma. – Que som estranho!
Primeiro pensou em ratos. Embora mantivessem a embarcação
do Mandarim imaculadamente limpa, Spin descobrira que os ratos
irlandeses formavam um bando bem teimoso e um tanto arrogante,
com frequência querendo defender seu território quando ela se
aproximava, momento em que agitavam os bigodes como se
estivessem dizendo: Sou um rato, estou aqui. O que vai fazer
agora?
Normalmente, Spin deixaria que as botas dessem conta do
recado, mas, nesse caso, se havia um rato no armário suspenso,
seria bem difícil pisoteá-lo, e o Mandarim não aprovaria um tiro
disparado no armário. Então, Spin decidiu começar a falar, na
esperança de que o rato a ouvisse e fugisse para algum lugar onde
não precisasse atacá-lo. Ela não gostava de ratos.
– Estou me aproximando, senhor Rato Nojento. Por isso, se eu
fosse você, fugiria rapidinho antes que eu alcance a porta.
Dentro do armário, os sensores de movimento do capacete do
Homem de Ferro haviam ligado automaticamente, captando o
movimento repentino de Spin através da placa de madeira
compensada, e Saoirse percebeu que via e ouvia com mais
acuidade do que nunca. E via e ouvia a motorista ucraniana bem
próxima do esconderijo, aparentemente chamando-a de senhor
Rato Nojento.
Apesar do intelecto prodigioso de Saoirse Tory, ela duvidava que
até mesmo Albert Einstein bolasse um plano nos poucos segundos
de que dispunha. E o capacete tinha energia apenas para enviar um
sinal e operar os sensores básicos.
Estou frita, pensou. Me ajude, vovô.
No entanto, o normalmente espírito tagarela do avô não a
aconselhou, e Saoirse percebeu que só contaria consigo mesma.
– Fuja, senhor Rato Atrevido – disse Spin Zhuk. – Não me obrigue
a torcer o seu pescoço peludo. E vou torcer sem medo de infecção,
porque temos gel bactericida no banheiro.
Spin não gosta de ratos, Saoirse pensou, apesar de não ser uma
constatação muito inesperada. Afinal, poucas pessoas gostavam.
Saoirse não ligava muito para eles, mas odiava cavalas, com
aquelas escamas azuis malignas e membranas finas nos olhos.
Saoirse não elaborou uma estratégia conscientemente, mas
vislumbrou os dedos da mão esquerda se esticarem e arranharem a
parte interna da porta.
Dedos!, ela pensou. O que estão fazendo?
No entanto, Saoirse não repreendeu prematuramente os dedos,
pois Spin Zhuk parou de pronto.
– Estou te ouvindo, senhor Rato Nojento. Logo pego você.
Mas não estava. Spin Zhuk pisava no mesmo lugar para que o
rato acreditasse que ela estava se aproximando, uma atitude a que
alguém provavelmente não recorreria, caso soubesse da existência
de outro ser humano observando.
Isso é tão estranho, pensou a garota que fingia ser um rato, e em
seguida continuou arranhando.
Spin Zhuk fechou a cara na direção do armário suspenso,
visualizando o rato arrogante numa dança irlandesa ali dentro.
Zombando dela. Provocando-a. Depreciando a sua herança.
– Não tenho medo de você, rato!
Nada mais de “senhor”, pensou Saoirse. A hora das formalidades
acabara.
– Sou Spin Zhuk e já briguei com ursos famintos, e daí pouco me
importa um rato! – exclamou, e sacou a Sig Sauer do coldre do
ombro.
Por um momento, Saoirse sentiu tanto medo que se esqueceu de
arranhar, mas logo voltou à tarefa, usando ambas as mãos para
imitar um par de ratos.
Mas Spin, firme num curso de ação, a mão livre da arma quase
não tremendo, esticou-a e abriu a porta do armário. Saoirse quase
não conseguiu afastar as mãos do local, como se isso fosse
adiantar alguma coisa.
– A-rá! – disse Spin, suspirando de alívio.
Evidentemente não sou tão assustadora quanto um rato ou dois,
Saoirse pensou.
– Nada. Nadinha aí. Apenas um capacete estúpido rolando de um
lado a outro.
Nada?, Saoirse pensou. Não sou um rato, mas sou alguma coisa.
Saoirse demorou muito pouco para perceber o que estava
acontecendo.
Ela enxerga apenas alguns coletes salva-vidas e um capacete
vazio. Spin acha que o capacete rolou para fora do saco.
E essa constatação bastou para que uma pessoa quase histérica
risse.
E por que não? O capacete é à prova de som, e Spin só ouviu a
minha bota resvalando no armário.
Então, bem quando Spin Zhuk estava para fechar a porta do
compartimento, Saoirse gargalhou e disse:
– “Nada. Nadinha aí. Apenas um capacete estúpido rolando de
um lado a outro.” Você é um capacete estúpido, Spin.
Isso não fazia sentido algum, mas, sendo justo com Saoirse, ela
passava por um momento consideravelmente estressante.
Spin congelou.
– Estou conhecendo essa voz – disse.
– Que voz? – Saoirse perguntou automaticamente.
– Essa voz!
Dentro do capacete, Saoirse empalideceu.
– Consegue me ouvir?
– Sim, mas era para você estar morta.
– Estou morta – retrucou Saoirse, mal acreditando que tais
palavras saíssem da sua boca. – É a sua consciência falando. Você
receberá a visita de três espíritos.
Essa bobagem fez Spin Zhuk sair de qualquer que fosse o estado
de fuga de murofobia em que estivera, e ela arrastou uma Saoirse
debatendo-se e gritando ao ser arrancada do esconderijo.
– Silêncio, fedelha – disse Spin –, porque preciso matá-la
silenciosamente. Vou jogá-la do barco. E seria melhor se não
causasse problemas.
As palavras soaram ainda mais ridículas para Saoirse do que o
anúncio dos “três espíritos”.
– Seria melhor para você! – ela exclamou, e tentou desferir alguns
golpes enérgicos na barriga da mulher, conforme o avô lhe ensinara.
– Nunca conheci ninguém tão resistente a ponto de aguentar uns
socos nas entranhas e continuar sorrindo – Francis Tory lhe dissera,
mas evidentemente nunca conhecera Spin Zhuk, porque a mulher
recebera os golpes parecendo absorvê-los sem nenhum efeito
colateral.
– Para fora do barco e sem mais reclamações – disse Spin, como
se tentasse persuadir uma criança teimosa a tomar um remédio. –
Tenho muito trabalho ainda a fazer.
Saoirse tentou se soltar, mas Spin Zhuk já segurara pessoas
muito maiores, como na terça-feira anterior, quando discutira com
um campeão de kettlebell russo que fora contra Spin tentar roubar o
Humvee dele. Portanto, para a motorista ucraniana, uma
irlandezinha magricela de quinze anos não significava desafio
algum. Spin virou Saoirse de cabeça para baixo, prendendo-lhe as
mãos atrás das costas e ainda por cima as pernas com o queixo.
Infelizmente, não prendera a segunda arma mais letal de Saoirse,
a boca, que trabalhava em linha direta com a arma máxima, o
cérebro.
Saoirse percebeu que a agitação de Spin se justificava porque a
jovem, supostamente, deveria estar morta. Spin jurara ao amado
chef que executara a odienta tarefa. Se vazasse a notícia de que
Saoirse ainda vivia, e vazaria, então a facção estaria em apuros.
Por isso, Saoirse gritou:
– Estou viva! Saoirse Tory está viva!
Spin de imediato percebeu que errara e bloqueou a boca de
Saoirse com a tampa mais à mão, ou seja, o próprio punho, o que
surtiu bem pouco efeito contra o capacete do Homem de Ferro. E
nessa situação o Mandarim as encontrou ao entrar na ponte de
comando.
Uma cena tão bizarra que o Mandarim não controlou o riso.
– Que curioso – ele disse, enxugando uma lágrima imaginária. –
Duas garotas vivas quando só uma deveria estar. Senhorita Zhuk,
eu gostaria que tivesse a gentileza de me explicar, sem rodeios nem
evasões, o que exatamente acontece aqui.
– Sim, chef – disse Spin, obviamente nervosa. – Certas
circunstâncias...
E nada mais disse, porque o Mandarim avançou com
extraordinária velocidade pelo ambiente, forçando o combo
Zhuk/Tory contra a antepara. Mas a coisa piorou quando quatro dos
temidos anéis do Mandarim prensaram dolorosamente o lado
esquerdo do rosto de Spin.
– Escolha – ele disse para Spin Zhuk.
– Por favor, chef – a mulher suplicou, tentando afastar o rosto
preso contra a foto de um jovial pescador bebendo cerveja, uma
imagem que sempre pareceu deslocada naquela embarcação
construída para a guerra.
– Senhorita Zhuk, mentiu para mim, e pior, fracassou. Escolha um
anel e deixe o destino decidir se viverá ou morrerá.
Os globos oculares de Spin oscilaram enquanto ela tentava ver os
anéis que lhe pressionavam a bochecha. Impossível, e a mulher não
conseguiu escapar do gancho do chef, mestre em muitas artes
marciais. Spin certa vez o vira inutilizar uma unidade inteira de
forças especiais sem derrubar o chá de jasmim que estivera
bebendo. Tudo bem que a xícara estava coberta, mas, ainda assim,
fora um feito impressionante. Spin presenciara os dez anéis em
ação naquele dia e sabia que muitos deles tinham um efeito letal.
Um lançava uma explosão de gelo.
Outro era um mento-intensificador, algo que permitia o controle da
mente.
Tinha o da explosão de chamas.
Um manipulador de energia eletromagnética de luz branca.
Uma explosão de choque elétrico.
Dos demais ela não se lembrava naquele momento.
– Qual dedo, Spin? – o Mandarim exigiu saber. – Ou talvez
escolha por você?
– Indicador – Spin respondeu de repente, a voz normalmente
neutra com um toque de desespero animal. – Indicador, chef.
– Só quero que você saiba – começou a explicar o Mandarim com
suavidade – que pouco importa o que acontecerá; o nosso placar
agora está zerado.
Spin Zhuk inspirou talvez pela última vez e prendeu o ar. O
Mandarim levou o polegar ao escâner do anel do dedo indicador,
enfiando duas pontas na bochecha de Spin Zhuk. A moça as sentiu
e entendeu o que aconteceria.
– Ah... – disse ela, e provavelmente queria emitir alguns palavrões
bem escolhidos, mas a descarga de cinco mil volts do anel do
Mandarim anulou a capacidade de fala da mulher.
Todos os músculos do corpo de Spin Zhuk tensionaram com tanta
violência que ela machucou o queixo e quebrou dois dentes antes
mesmo de desmaiar. O Mandarim, para se proteger do choque pelo
anel, recuou rápido a fim de se afastar do circuito da corrente, mas
Saoirse recebeu um choque tão intenso que a lançou para o lado
oposto da ponte de comando, como se fosse empurrada por um
gigante.
Leveque entrou ali a tempo de ver o castigo ser desferido.
– Mon dieu – disse ele. – O choque elétrrrico. Odeio esse aí.
Deixa marrcas.
O Mandarim sacudiu a mão para esfriar o anel meio
superaquecido.
– Freddie, acho que você está tentando mesmo me provocar. Seja
um bom camarada e se certifique de que a senhorita Zhuk não
esteja engolindo a língua enquanto alimento os peixes com a nossa
passageira clandestina.
Leveque, ainda que desapontado por não receber permissão para
se livrar da carga extra, teve o bom senso de guardar esse
sentimento para si.
– Oui, chef. Immédiatement – retrucou, sentindo-se mais seguro
na língua nativa para o caso de mais um erro de pronúncia escapar.
O Mandarim atravessou a ponte de comando e, prestes a agarrar
a perna de Saoirse para arrastá-la, ouviu uma voz que não pertencia
a Saoirse saindo de algum lugar da cabeça dela.
O capacete estava recebendo uma transmissão.
– Aguente firme, garota – disse a voz, vazando pelo espaço do
pescoço do capacete já completamente carregado. – Vou buscar
você. Esconda-se num lugar seguro.
Longe de se irritar por Tony Stark insistir em continuar respirando
e se inserir na operação, o Mandarim na verdade se sentiu satisfeito
por mais aquela chance com o bilionário. Odiara ver sua presa
escapar, embora não entendesse ainda como isso acontecera, pois
costumava esmagar até a alma dos adversários momentos antes de
destroçar os corpos. E tinha uma mensagem especialmente
dilaceradora de almas para Tony Stark. Pensar que poderia passar
essa mensagem o animava consideravelmente, a ponto de se sentir
contente por Spin ter sobrevivido aos anéis.
O Mandarim se agachou junto a Saoirse e esperou a mensagem
seguinte de Stark, que chegou poucos minutos depois.
– Use seu cérebro, menina – disse a voz baixa. – Fique abaixada
e mantenha essa boca grande fechada.
O Mandarim sorriu mais uma vez. A menina sem dúvida estava
abaixada.
– E, sim, Stark – ele falou em voz alta, apesar de o bilionário não
conseguir ouvi-lo –, ela tem uma boca bem grande, mas que ficará
fechada por enquanto. Talvez para sempre.
Então, ocorreu ao Mandarim que nos filmes norte-americanos o
bandido daria uma gargalhada maníaca bem nesse momento. E,
divertido com a ideia, permitiu-se uma breve gargalhada.
– Rá-rá-rrrráááá! – exclamou, sacudindo o punho para garantir um
efeito melhor.
O mais arrepiante não foi a gargalhada em si, mas como a
encerrou já entediado com a brincadeira, similar a uma torneira
sendo fechada.
– Venha, Tony Stark – ele disse para o capacete. – Venha e me
ouça antes que acabe com a sua vida. Talvez só a escuta já pare
seu coração.
Saoirse despertara bem a tempo de ouvir a gargalhada
cinematográfica, e soube que, se aquilo fosse mesmo um filme, ela
imediatamente o desligaria. Ali não havia um filme, mas a vida. E, às
vezes, a verdade soava mais estranha que a ficção. Como
acontecia naquele instante.
12
UM PÃO SÍRIO NAPOLITANO
O Tanngrisnir
A destruição do Tanngrisnir
Diavolo Conroy ainda continuava deitado na ponte de comando
do Tanngrisnir quando o Homem de Ferro desceu lentamente pelo
buraco criado por Freddie Leveque.
Tony Stark ergueu a placa facial e não conseguiu esconder a
surpresa ao compreender o nível de devastação.
– Nem um arranhão, Conroy. Eu disse isso, não é?
Conroy não se deu ao trabalho de se levantar. Na verdade, nem
sequer tinha forças para abrir os olhos.
– Hum, eu me lembro de algo parecido com isso, mas a situação
saiu do controle.
Tony notou Leveque.
– Você acabou com o Leveque. Como diabos conseguiu?
– Eu tinha um bastão – respondeu Diavolo.
– Um bastão?
– E também uma bola. Não só o bastão.
– Bem, agora está explicado.
– Aposto que eram de hurley – disse uma garota com um leve
ceceio.
Conroy abriu os olhos e ficou de pé para ver uma adolescente nas
costas do Homem de Ferro. O rosto da menina estava sujo de
fuligem, e os cabelos pareciam ter passado por uma descarga
elétrica. Ainda havia hematomas bem feios ao redor dos olhos, e
parecia que lhe faltava um dente da frente.
– Imagino que você seja Saoirse. Que bom vê-la sã e salva.
– Graças a mim – disse Tony. – Os devidos créditos a quem os
merece.
– Créditos? – repetiu Diavolo. – A pobre criança está em pior
estado que este barco. E ainda a fez voar grudada em você?
– Em minha defesa, há duas alças ali atrás – explicou Tony.
– Eu ficaria surpreso se os pais dela não o processarem, Stark.
Assim que a terminar o assunto deles com você.
– Felizmente para mim, Saoirse não tem pais – disse Tony. – Ah,
espera... Que coisa mais insensível da minha parte, não é?
Saoirse deu um tapa na placa do ombro.
– Sim, chefe. Muito.
Conroy pegou o celular para chamar um médico, mas percebeu
que estava queimado, assim como todo o resto dos instrumentos da
embarcação.
– Imagino que precisaremos encontrar um médico pelo método
antigo – disse ele, atirando o aparelho sobre uma pilha de
eletrônicos dos quais saía fumaça. Conroy ajudou Saoirse a descer
do traje do Homem de Ferro e apontou para a boca dela. – Você
ainda tem o dente?
Saoirse fez uma careta.
– Acabei engolindo.
– Imagino que você tenha uma máquina que fixe um dente, não é,
Tony boy?
– Se eu tinha, é lixo agora, junto com o restante do meu
equipamento.
– Shiv, a minha esposa, vai pensar em alguma solução – Conroy
garantiu a Saoirse.
Stark fez uma careta.
– Shiv. Você sabe que o nome da sua esposa é gíria para...
– Sei. Uma faca escondida.
– Espere um minuto – disse Saoirse. – Por que a sua esposa se
envolveria nessa questão?
– Porque, até onde sei, você é uma menor sem tutores. Por isso
vai ficar no nosso quarto de hóspedes hoje à noite. E você – virou-
se para Tony – vai dormir no sofá. Tenho perguntas para os dois.
– Ah, pare com isso, Diavolo – disse Tony. – Tive uma noite difícil
salvando o meio ambiente e coisa e tal. Preciso de acomodações
cinco estrelas.
– Para você eu sou o inspetor Conroy – afirmou Diavolo. – E o
nosso sofá é cinco estrelas. Servirei chá e torradas para você se
gostar das respostas às minhas perguntas.
Stark fez sinal de positivo.
– Eu poderia simplesmente sair voando. Estaria fora dos limites
da cidade antes mesmo de você dar o alerta.
Conroy o encarou direto nos olhos.
– Com certeza poderia,Tony, mas eu o desprezaria por isso.
Saoirse gargalhou.
– Gostei desse cara, chefe. Ele conhece os seus pontos fracos.
– Muita coisa tem acontecido por aqui – disse Tony. – Apesar de
estar em uma armadura, me sinto um tanto desprotegido.
Não basta
Preencher o hiato.
Mas suba o monte
Para ganhar seu espírito.