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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR:


POSSIBILIDADES DE ENCONTRO

Rogério Cruz Oliveira


Universidade Federal de São Paulo, Santos, São Paulo, Brasil

Jocimar Daolio
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

Resumo: O objetivo deste texto é discutir a diversidade cultural na prática escolar da


educação física à luz dos pressupostos da educação intercultural. Para tanto, é feita uma
discussão teórica a partir de alguns autores que enunciam tal perspectiva (educação
intercultural) e, posteriormente, alguns desdobramentos para a educação física escolar.
O eixo argumentativo compreende a escola como espaço sócio-cultural que, para além
de respeitar e valorizar as diferenças, deve alinhar-se na direção da comunicação, do
diálogo e do compartilhar entre os diferentes atores que compõem o cotidiano escolar.
Do contrário, há o risco da banalização ou deformação do Outro, pendendo a
relativismos extremos ou novos etnocentrismos.
Palavras-chave: Educação Intercultural. Educação Física. Escola. Diversidade
Cultural.

Introdução

“As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais


quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes
quando a igualdade os descaracteriza”.
Boaventura de Souza Santos1

Há muito o tema da diversidade cultural tem sido discutido em vários fóruns


acadêmicos e sociais, sempre permeado por inúmeras tensões e conflitos. No âmbito
educacional, não obstante a diversidade de discursos, parece não haver mais dúvida que
a educação escolar deve incorporar em suas práticas o respeito e a valorização das
diferenças.
No entanto, no bojo desse consenso, figuram armadilhas que, ao contrapor a
tradicional homogeneização da escola, pendem para um relativismo extremo,
incorrendo no risco da banalização do outro.
Dessa forma, nos propomos a discorrer sobre a perspectiva intercultural de
educação e suas possibilidades de contribuição para a prática escolar da educação física
(EF) no que diz respeito às tensões produzidas pela diversidade cultural2.
Para tanto, contextualizaremos o discurso sobre cultura e educação,
fundamental para o intento do texto, posteriormente abordaremos os pressupostos da
educação intercultural e, por fim, evidenciaremos as contribuições desta para a prática
escolar da EF.
1
Cf. Malerba (1995).
2
Segundo Ortiz (2000), a diversidade cultural não pode ser vista como diferença, pois toda diferença é
produzida socialmente, é portadora de sentido simbólico e histórico. Se considerado somente o sentido
simbólico, corre o risco de isolar-se num relativismo pouco conseqüente. Afirmar o sentido histórico da
diversidade cultural é submergi-la na materialidade dos interesses e dos conflitos sociais (ORTIZ, 2000).
A diversidade manifesta-se, pois, em situações concretas.

Pensar a Prática, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 1-11, maio/ago. 2011


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Cultura e educação

Pode-se afirmar que a gênese do debate que envolve a diversidade cultural


deu-se com as primeiras grandes navegações, as quais, “descobrindo” novos espaços e
terras, “descobriram”, também, outros povos.
A busca do conhecimento sobre esses outros (diferentes) fez com que
surgisse uma gama de explicações, no entanto, todas elas valendo-se de perspectivas
etnocêntricas, que impunham o próprio ponto de vista - leia-se, modos de vida - como
único válido. Desse modo, a cultura européia, erigindo-se como modelo de cultura
universal, subjugou ao plano inferior e menos evoluído todas as outras culturas
existentes, justificando, dentre outras práticas, a colonização. Era necessário fazer com
que os outros povos ascendessem na escala evolutiva3 da humanidade.
De lá para cá o debate ganhou outros contornos e passou a enfocar o tema a
partir do conceito de cultura. Esse esforço culminou numa gama de definições, das
quais entendemos a de Geertz (1989) como a mais concisa.
Geertz (1989), referindo-se ao fato da existência de inúmeros conceitos de
cultura, defende uma redução do mesmo a uma dimensão mais justa, argumentando que
é necessário escolher uma direção, não que haja somente um caminho, mas porque
existem muitos. Assim, valendo-se de uma assertiva de Max Weber, que entende o ser
humano como um animal amarrado a teias de significados, Geertz (1989, p.15) concebe
cultura “[...] como sendo essas teias e a sua análise [...]”.
Esse conceito avança “[...] no sentido de fazer com que ao pensar na
diversidade, não pensemos na humanidade de forma unitária, única, mas também, se
pense nessa diversidade como produto da ação humana, como produto das relações
entre os homens [...]” (GUSMÃO, 2000, p. 2). Atualmente, parece não haver mais
dúvida de que, no seio das sociedades, coexistem diversas culturas.
Tal debate encontrou eco, também, na educação. Historicamente, a escola
prima por um ensino pautado em pressupostos monoculturais, ou seja, aquilo que é
tratado no locus escolar refere-se a uma única cultura (branca, cristã, européia,
masculina).

A própria educação, em particular a escola, tem desempenhado o papel de


agenciar a relação entre culturas com poder desigual (colonizadores x
colonizados; mundo ocidental x mundo oriental; saber formal escolar x saber
informal cotidiano; cultura nacional oficial x culturas locais etc.),
contribuindo para a manutenção e difusão dos saberes mais fortes contra as
formas culturais que eram consideradas como limitadas, infantis, erradas,
supersticiosas (FLEURI, 2003, p. 18).
3
O evolucionismo encontrou sua forma mais elaborada na obra de Morgan que distinguiu três estágios de
evolução da humanidade: selvageria, barbárie e civilização. Segundo esta abordagem, todas as culturas
deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução, o que tornava possível classificar as sociedades
humanas em uma escala que ia da menos à mais desenvolvida (LARAIA, 1986). Existiram também outras
explicações sobre a diversidade humana, as quais destaco os determinismos geográfico e biológico. O
primeiro considerava que as diferenças do ambiente físico é que condicionavam a diversidade, explicação
esta desenvolvida, principalmente, por geógrafos no final do século XIX. No entanto, esta foi refutada
pelo exemplo dos lapões e esquimós, ambos habitantes da calota polar, mas com modos de vida distintos.
Em relação ao determinismo biológico, este compreendia que as diferenças advinham da herança genética
(LARAIA, 1986). Entretanto, esta hipótese também foi refutada pelo argumento de que “[...] não existe
qualquer correlação significativa entre a distribuição dos caracteres genéticos e a distribuição dos
comportamentos culturais” (LARAIA, 1986, p. 17). Se transportássemos para o Brasil, logo após o
nascimento, uma criança sueca e a colocássemos sob os cuidados de uma família sertaneja, ela cresceria
como tal e não se diferenciaria dos seus irmãos de criação em termos culturais.

Pensar a Prática, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 1-11, maio/ago. 2011


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Tais pressupostos acabam por abafar a singularidade do outro, visto nesta


ótica como um outro que necessita ser educado numa cultura particular, a fim de
ascender ao status de cidadão. As políticas educacionais, a seleção de conhecimentos, as
práticas pedagógicas e a escolarização, orientam-se por esses pressupostos (CAPELO,
2003).
Alguns estudos, como os de Sacristán e Peréz Gómez (2000) e Sacristán
(1998), afirmam que os conhecimentos das culturas hegemônicas são enfatizados nas
propostas curriculares, o que silencia e/ou oculta outras vozes e outras culturas
presentes na sociedade. Para Santomé (1998), as culturas silenciadas e/ou negadas são
aquelas dos grupos minoritários que, não dispondo de estruturas importantes de poder
acabam não sendo contempladas, quando não, estereotipadas.
Diante desse quadro de denúncias e críticas contundentes à escola, é que o
debate educacional incorporou em seu discurso a valorização das diferenças. Tal fato
implicou ressignificação de ações e concepções pedagógicas, a fim de flexibilizar e/ou
solucionar os problemas do tradicional modelo escolar que, eminentemente excludente,
apresentou-se incapaz, ao longo da história, de lidar com as diferenças. Os processos
educativos, ao ocorrerem num sentido de mão única, implicam uma pedagogia da
homogeneização que, pautada num discurso ingênuo de que “aos olhos do educador
todos são iguais”, acaba por cindir e ignorar as diversas formas de estar no mundo,
expressadas pelas diferentes culturas e contextos dos educandos.
Na tentativa de superação desse modelo surge a narrativa da educação
intercultural, a qual busca respostas para o tenso embate da diversidade cultural no
campo da educação. De acordo com Gusmão (2004, p. 63), o interculturalismo 4,
juntamente com o multiculturalismo5, “[...] tornam-se referências comuns cada vez mais
presentes nos discursos oficiais e acadêmicos que orientam as possibilidades de
intervenção social”. No entanto, para Souza e Fleuri (2003), a educação intercultural
supera a perspectiva multicultural, à medida que não só reconhece e respeita as
diferenças, mas também propõe a construção de relações recíprocas entre os diferentes,
por isso nossa identificação teórica com tal perspectiva, que passamos a discorrer
abaixo.

Os pressupostos da educação intercultural

“[...] existem igualdades e diferenças e nem tudo deve ser igual


e nem tudo deve ser diferente”.

Boaventura de Souza Santos6.

A perspectiva intercultural de educação lança mão de argumentos que


caminham no sentido da compreensão de que, para além da simples constatação de
diversas culturas, estas precisam dialogar em pé de igualdade.
Assim, a escola deve ser um espaço de diálogo, de comunicação, no qual as
possibilidades de acesso ao conhecimento e o compartilhar de valores e atitudes levem
em consideração a premissa dessa inter-relação. Entretanto, concordando com Gusmão
(2003), entendemos que nem a igualdade absoluta nem a diferença relativa são
mecanismos efetivos para compreender e possibilitar o diálogo entre os diferentes atores

4
Interculturalismo e/ou interculturalidade refere-se à narrativa mais ampla, já o termo educação
intercultural diz respeito aos pressupostos do interculturalismo no terreno educacional.
5
Sobre multiculturalismo ver Semprini (1999) e Gonçalves e Silva (2002).
6
Cf. Malerba (1995).

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presentes na escola. Para além disso, a alteridade 7 apresenta-se como caminho possível,
fomentando a valorização desse diálogo e dessa comunicação.
Nessa esteira, a educação intercultural calca seus pressupostos, os quais
apontam, não somente, para existência das diferenças, mas também para seu enlace com
a aprendizagem, fazendo com que o educando apreenda o conhecimento do outro, do
diferente e com ele estabeleça um diálogo profícuo e mútuo, no qual as possibilidades
não se encerram a partir de uma única visão.
Lluch (1998), ao referir-se à educação intercultural, aponta para a promoção
de processos educativos que possibilitem interação entre as culturas em pé de igualdade
e que partam do conhecimento, respeito e valorização mútuos. Segundo Lluch (1998), a
escola deve perceber na diversidade cultural um elemento enriquecedor. Uma educação
que se recusa à “colonização” do outro, que aprende com esse outro, que se compromete
com a heterogeneidade sem, no entanto, usá-la para produzir novos submetimentos
(CAPELO, 2003). Ou seja, uma educação aberta e democrática, comprometida com as
múltiplas visões que a diversidade encerra.
Pensar num pressuposto intercultural para a educação implica não somente
reconhecer as diferenças e/ou aceitá-las, mas fazer com que elas sejam “[...] a origem de
uma dinâmica de criações novas, de inovação, de enriquecimentos recíprocos e não de
fechamentos e de obstáculos ao enriquecimento pela troca” (VIEIRA, 1999, p. 68).
Pois, se a cultura é dinâmica, não faz sentido que a escola ignore diferentes saberes,
valores e interpretações da realidade presentes nestes espaços.
A perspectiva intercultural de educação rompe com uma idéia estática de
cultura, a qual não é um dado objetivo, autônomo e relativamente estável, mas dotada
de uma dinâmica que permite tanto o contato entre os diferentes quanto o aprendizado
daquilo que é diferente. A pedagogia intercultural situa-se numa perspectiva de
interação, enriquecimento e aprendizagem pela troca de saberes e pelo diálogo de
culturas, bem como pela valorização das diferenças (VIEIRA, 1999).
A educação intercultural resulta no facto de se crer que nos espaços
educativos se está de alguma forma sempre entre culturas: diferentes saberes,
sistemas de valores, sistemas de representações e de interpretações da
realidade, hábitos, formas de agir, etc. E se diferentes culturas produzem
diferentes estilos cognitivos, diferentes formas de percepção e diferentes
estilos de aprendizagem, a escola, se quiser ser mais democrática, terá de
optar por uma pedagogia intercultural, uma pedagogia de troca e partilha de
experiências. Uma partilha entre as crianças e os adultos, os alunos e os
professores, os pais e a escola, o lar e a escola, a comunidade e a escola, as
várias crianças, os vários alunos e os vários professores (p. 68).

E, acrescentando, uma partilha que não aconteça em mão única, mas


que também permita o compartilhar igualitário de outras vozes que compõem o cenário
escolar. Isso porque, de acordo com Dayrell (1996), os alunos que chegam à escola são
sujeitos portadores de saberes, e também com um projeto, mais amplo ou mais restrito,
mais ou menos consciente, mas sempre existente, fruto das experiências vivenciadas no
campo de possibilidades de cada um.
7
A alteridade revela-se no fato de que o que eu sou e o outro é não se faz de modo linear e único, porém
constitui um jogo de imagens múltiplo e diverso. Saber o que eu sou e o que o outro é depende de quem
eu sou, do que acredito que sou, com quem vivo e por quê. Depende também das considerações que o
outro tem sobre isso, a respeito de si mesmo, pois é nesse processo que cada um se faz pessoa e sujeito,
membro de um grupo, de uma cultura e uma sociedade. Depende também do lugar a partir do qual nós
nos olhamos. Trata-se de processos decorrentes de contextos culturais que nos formam e informam, deles
resultando nossa compreensão de mundo e nossas práticas frente ao igual e ao diferente (GUSMÃO,
2003, p. 87, grifos da autora).

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Partindo desse entendimento, calcado na perspectiva intercultural de


educação, é que compreendemos toda prática escolar como uma prática cultural,
devendo constituir-se, portanto, em espaço de diálogo.
No entanto, Lluch (1998) nos alerta que a educação intercultural não deve se
transformar em um discurso educativo técnico de soluções aplicáveis - de preferência
que venham “instrucionalmente” informados em cartilhas ou livros didáticos para o
professor - ao problema da consideração das diferenças, nem tampouco como um
discurso em nível de retórica, circundante no meio acadêmico e não diluído no cotidiano
escolar, mas, sim, de um pressuposto pedagógico que deve ser pensado, almejado e
buscado a fim de que se concretize, efetivamente, uma educação inclusiva e
democrática. E é a partir desse escopo que nos direcionamos à prática escolar da EF no
que tange às tensões produzidas pela diversidade cultural.

Diversidade cultural e educação física escolar

Na EF, o debate sobre a diversidade cultural é recente, especificamente


gestado na década de 19808. Neste período, marcado pela inserção das ciências humanas
no cenário acadêmico, a EF experimentou uma “crise” epistemológica que culminou
com a ampliação da visão de área e de sua ação pedagógica na escola.
Até então, as justificativas e argumentos que legitimavam a EF e sua
inserção na escola eram inquestionáveis. Tratava-se de uma prática que não considerava
o contexto dos sujeitos e que tinha como preocupação a “educação do físico”, pautada
numa concepção “natural” de ser humano. Aqui, a compreensão das diferenças dava-se
por argumentos do tipo “meninos são naturalmente mais fortes que as meninas”,
explicadas, por exemplo, pela ação de alguns hormônios. Além disso, a ênfase recaía na
repetição de exercícios físicos, de maneira que as técnicas corporais, tratadas de forma
instrumental, pudessem ser executadas corretamente pelos alunos e se aproximassem do
gesto técnico dos esportes de competição.
A justificativa dessa prática de EF pautava-se no argumento de que, sendo o
corpo um conjunto biológico, responderia sempre da mesma forma, porque os seres
humanos possuem corpos semelhantes (DAOLIO, 2003). Ou seja, se todos possuíam os
mesmos órgãos, nos mesmos lugares e exercendo as mesmas funções, as práticas
corporais abordadas na escola, por meio da EF, deveriam ser iguais para todos, ao
mesmo tempo e da mesma forma (DAOLIO, 2003).
E foi durante a década de 1980, conforme já enunciado, que a
“naturalização” da EF, até então predominante, passou a ser questionada a partir do
gestar de um novo pensamento da área. Esse novo entendimento era de que os seres
humanos não constituíam somente um corpo biológico, mas, também, social e cultural.
A compreensão das diferenças começava a delinear-se por pressupostos sócio-culturais.
Ao entrar em cena na EF a discussão da cultura, melhor aprofundada no
decorrer da década de 19909, não houve mais como negar a existência das diferenças.
Para Daolio (2004, p.2), “[...] cultura é o principal conceito para a EF,
porque todas as manifestações corporais humanas são geradas na dinâmica cultural [...]
expressando-se diversificadamente e com significados próprios no contexto de grupos
específicos”. Assim, a EF parte da cultura, constituindo-se numa área de conhecimento
que estuda e atua sobre um conjunto de práticas ligadas ao corpo e ao movimento
criadas pelo ser humano ao longo de sua história - os jogos, as ginásticas, as lutas, as
danças e os esportes (DAOLIO, 2003). Tal ação deve considerar, num sentido mais

8
Sobre o movimento acadêmico da EF na década de 1980, ver mais em Caparroz (2007) e Daolio (1998).
9
Ver Daolio (2004).

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amplo, o contexto sócio-cultural onde ela se dá, e, num sentido mais específico, as
diferenças existentes entre os alunos e os grupos de alunos (DAOLIO, 2003).
A preocupação reside em desfocar a ênfase do desenvolvimento motor dos
alunos e centrá-la no conhecimento da cultura corporal. Para isso, é desejável que as
aulas sejam acessadas por todos, indistintamente. “Essa educação física plural parte do
pressuposto de que os alunos são diferentes, recusando o binômio
igualdade/desigualdade para compará-los” (DAOLIO, 2003, p. 126). Ainda, segundo
Daolio (2003), uma prática escolar de EF deve fazer da diferença entre os alunos
condição de sua igualdade, em vez de ser critério para legitimar a subjugação de uns
sobre os outros.
Entretanto, toda essa retórica em torno da prática escolar da EF no que
concerne as diferenças e a diversidade cultural pode reverter-se em concepções e
intervenções reducionistas com riscos ao relativismo.
Oliveira (2007, p.28), a partir de um exemplo, ilustra essa questão.
um professor de EF [...] ao chegar numa escola e detectar que os alunos
gostam e valorizam a prática do futebol pode, pautado no discurso da
consideração da realidade dos alunos, acabar “moldando” toda sua ação em
torno dessa única prática corporal, tolhendo assim, inúmeras outras
possibilidades de acesso ao conhecimento.

Em outro estudo, Oliveira (2004) elucidou alguns critérios instigantes sobre


a seleção de conteúdos feita por professores de educação física em sua prática
pedagógica em escolas públicas municipais de Goiânia. Dentre outros, a
“aceitação/receptividade dos alunos ao conteúdo” foi um critério citado. Tal justificativa
remete a um possível entendimento de que somente o imediato ao aluno traduz um
conhecimento significativo a ser abordado. Os professores, ao considerarem este
critério, impedem os alunos de acessar um universo mais amplo de possibilidades
relacionadas às práticas corporais. Com que direito pode-se impor aos alunos tal
discriminação de acesso ao saber? (FORQUIN, 1993).
Outro reducionismo comum diz respeito à visão engessada de cultura e seus
equivocados desdobramentos. Um exemplo está no estudo de Garcia (1995), que, ao
discutir formas de superação do preconceito na escola e valorização da diversidade
cultural, propõe que se ensine às crianças negras a tocar tambor, a fim de se
valorizar/contemplar uma suposta “cultura negra”.
Outro exemplo, nessa mesma direção, está em Rangel (2006). O estudo, ao
abordar o tema do racismo e exclusão, sugere abordar a capoeira como conteúdo da EF
entendendo essa manifestação como patrimônio cultural peculiar aos negros, estando
assim contemplada a diversidade cultural na prática escolar. Acreditamos que Rangel
(2006) não faça apologia ao estereótipo criado em relação aos negros na sociedade e nas
práticas escolares, aliás, a mesma se coloca contra tal pressuposto quando afirma que
“[...] todo o cuidado é pouco, no sentido de se evitar a criação do estereótipo de que os
negros ou são sambistas ou esportistas [...]” (p. 75). Entretanto, é preocupante a relação
feita entre a prática da capoeira como possibilidade da EF valorizar a cultura negra.
Em Rangel et al. (2008), são evidenciadas as possibilidades de conteúdos a
serem abordados na EF tendo como horizonte a valorização das diversas culturas. Numa
passagem do texto, há a seguinte afirmação:
Um exemplo seria a experimentação de danças típicas dos diversos grupos
étnicos que compõem o Brasil, demonstrando assim a riqueza e a
diversidade de expressões existentes. O mesmo se aplicaria às ginásticas e às
lutas, que ainda conseguem manter suas raízes ligadas às regiões de origem,
o que também possibilitaria o conhecimento por parte dos alunos da

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diversidade cultural, ex.: Capoeira - Brasil/África, Judô, Karatê – Ásia


(RANGEL ET AL., 2008, p.164, grifos nossos).

Mais uma vez, têm-se práticas corporais associadas às características


essencialmente brasileiras e africanas, no caso da capoeira, e asiáticas, no caso do judô e
karatê. Na mesma esteira de Valente (2003), entendemos que proposições como essas
não contribuem para o combate ao racismo ou para o adequado tratamento da
diversidade cultural, pelo contrário, incorporam, quando não reforçam, os mesmos
problemas que se pretende superar, como a crítica ao estereótipo e ao preconceito.
Mas o fato é que essa é uma realidade muito presente no imaginário dos
educadores e da sociedade em geral, que tendem a classificar as pessoas segundo
atributos considerados específicos de determinados grupos sociais (CANDAU, 2002).
Dessa forma, percebemos uma rigidez na concepção de cultura, a qual é vista a partir de
traços fixos dos seres humanos, o que, consequentemente, faz com que se consolide
uma fronteira que separa os grupos sociais por suas características visíveis, encobrindo
todo o processo dinâmico da cultura, além de relativizar, ao extremo, toda uma ação
pedagógica.
Recorrendo novamente à Oliveira (2007, p.29):
[...] outra situação acontece em datas comemorativas, como o Dia do Índio,
por exemplo, no qual as ações pedagógicas a serem desenvolvidas nas aulas
de EF - pelo menos nas escolas em que tive contato até hoje como aluno e
como professor - contemplam práticas corporais que fazem alusão a um ser
humano primitivo, habitante das selvas etc. É comum, nessa data, a EF
encarregar-se da apresentação de algum tipo de dança ou ritual indígena para
a escola. As sugestões para os mesmos estão presentes em livros didáticos
especialmente elaborados para essas datas comemorativas que, no caso do
Dia do Índio, também incluem algumas lutas e jogos sugeridos para as aulas
de EF. A visão contida nesses manuais é aquela romântica, do índio como
habitante da selva, em constante contato com a natureza, longe do meio
urbano e, por isso mesmo, distante dos problemas sociais (fome, miséria,
prostituição, violência etc.) existentes nas cidades.

Acreditamos que essa é uma prática comum na maioria das escolas, a qual
molda uma visão particularizada e banalizada do outro, reduzindo as diferenças “[...] a
conhecimentos triviais que representam as culturas negadas por meio de imagens
estereotipadas, turísticas, folclóricas ou comemorativas” (CAPELO, 2003, p. 124).
Em Oliveira (2006), as diferenças - entre os sexos, físicas, de
comportamento, de habilidade, cor de pele e maneiras de se vestir - apresentadas pelos
alunos nas aulas de EF serviram de parâmetros definidores de desigualdade de
oportunidades, preconceitos e sectarismos pautados por estereótipos. Segundo Oliveira
(2006), o entendimento das diferenças pelos “atores sociais” esteve permeado por certo
reducionismo, que tende a enxergar o outro somente por suas características mais
visíveis, obscurecendo a complexidade da dinâmica cultural.
Diante de tais reducionismos/relativismos, entendemos a pertinência de se
considerar os pressupostos da educação intercultural nas práticas escolares, não só de
EF, no que se refere às tensões produzidas pela diversidade cultural. Poderíamos citar
inúmeros exemplos, mas acreditamos que o elucidado já nos permite tecer os
desdobramentos pretendidos.

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Considerações finais

É sabido que as tensões produzidas pela diversidade cultural na sociedade


estão presentes também nos cotidianos escolares, muitas vezes convergindo em
desigualdades.
Dessa forma, é desejável que se pense em pressupostos pedagógicos que
vislumbrem a superação de tal concretude e das armadilhas do relativismo, que,
frequentemente, desenha o outro a partir de uma visão estereotipada, essencializando a
cultura.
Frente a isso, nos posicionamos a favor da educação intercultural como
ponto de partida para ressignificação das práticas escolares de EF no que tange às
tensões produzidas pela diversidade cultural. Tal perspectiva nos coloca
[...] face a face com o estranho, com a diferença, com o desconhecido, que
não pode ser reconhecido nem apropriado, mas apenas conhecido na sua
especificidade diferenciadora. Não se trata de reduzir o outro ao que
pensamos dele. Não se trata de assimilá-lo a nós mesmos, excluindo suas
diferenças. Trata-se de abrir o olhar ao estranhamento, ao deslocamento do
conhecido para o desconhecido, que não é só o outro sujeito com quem
interagimos socialmente, mas também o outro que habita em nós mesmos
(SOUZA; FLEURI, 2003, p. 69).

Trata-se, assim, de um movimento em prol do aprender com o diferente e,


com ele, produzir coletivamente. Não para ser o outro, descartando-nos, nem para
supervalorizar o outro, inferiorizando-nos, muito menos para subjugar o outro,
superiorizando-nos, mas para um diálogo democrático com o outro, no qual os
diferentes pontos de vista sejam conhecidos e colocados como matéria-prima da
aprendizagem.
Assim, entendemos que tudo aquilo que somos é, na verdade, apenas uma
dentre diferentes formas de ser(mos) humanos e estar(mos) no mundo, e que o outro não
é mais ou menos igual, mas, sim, diferente. E, como tal, também têm algo a contribuir.
Dessa forma, a possibilidade de enfrentamento das desigualdades de
oportunidades, estereótipos, preconceitos e sectarismos, ainda diluídos nos cotidianos
escolares, dado pela perspectiva intercultural de educação, aponta para outro tipo de
relação social escolar: o compartilhar democrático, pautado pelo diálogo mútuo entre
diferentes perspectivas.
Por fim, entendemos que pelos limites impostos a um texto como esse,
há necessidade de outros trabalhos que possam mergulhar na direção das possíveis
relações da EF escolar e educação intercultural. Entretanto, acreditamos que os
argumentos aqui elucidados possam contribuir para o alargamento da compreensão da
educação intercultural na comunidade acadêmica que discute a EF escolar, entendendo
tal perspectiva como pertinente para o debate da diversidade cultural nas práticas
escolares.

Referências

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INTERCULTURAL EDUCATION AND PHYSICAL EDUCATION AT


SCHOOL: POSSIBILITIES FOR A MEETING

Abstract: This paper's objective is to discuss cultural diversity in the school practice of
Physical Education, in the light of the principles of intercultural education. To that end,
a theoretical discussion based on the authors who enunciate this perspective
(intercultural education) is made, and, subsequently, some unfoldments for Physical
Education in the school space. The argumentative axis understands school as a social-
cultural space that, besides respecting and valuing differences, must align itself towards
communication, dialogue and the sharing of the different actors composing the school
routine. Otherwise, there is the risk of trivialising or deforming the Other, tending to
extreme relativism or new forms of ethnocentrism.
Keywords: Intercultural Education. Physical Education. School. Cultural Diversity.

EDUCACIÓN INTERCULTURAL Y EDUCACIÓN FÍSICA ESCOLAR:


POSIBILIDADES DE ENCUENTRO

Resumen: El objetivo de este texto es tratar la diversidad cultural en la práctica escolar


de la educación física a la luz de los principios de la educación intercultural. Para tal fin,
se hace una discusión teórica de algunos autores que enuncian esta perspectiva (la
educación intercultural) y, posteriormente, algunas de las consecuencias para la
educación física escolar. El eje argumentativo comprende la escuela como un espacio
sociocultural que, más allá de respetar y valorar las diferencias, deben ser alineado en la
dirección de la comunicación, del diálogo y del compartir entre los diferentes actores
que componen la rutina escolar. De lo contrario, se corre el riesgo de trivializar o
deformar al Otro, tendiendo a relativismos extremos o nuevos etnocentrismos.
Palabras clave: Educación Intercultural. Educación Física. Escuela. Diversidad
Cultural.

Endereço para correspondência:


[email protected]
Rogerio Cruz Oliveira
Universidade Federal de São Paulo.
Av. Alm. Saldanha da Gama 89
Ponta da Praia
11030-400 - Santos, SP - Brasil

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