A Nhanva

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A

NHANVA
David José T. Ramos
RAMOS, David José Gonçalves T. Ramos. A Nhanva.
Belo Horizonte: Editora Tremeluzir, Movimento do
Tabuleiro, 2010.
A Nhanva
David J. Tierro Ramos

Sumário
Diário de uma Anatomia Inanestésica ................................................................................................... 01
Ajharmas se sentou naquele café ......................................................................................................... 50
Sobre as Emoções Circulares e os Pensamentos Repetitivos ............................................................. 54
Les Tan-pis ……………………………………………………………………………………………………... 58
O Cristianismo como uma Proposição Praxiológica, Fisiológica e Ética ............................................... 68
Poema Erótico ....................................................................................................................................... 72
Estudantes Brasileiros em París ……………………………………………………………………………... 79
As cartas da Irmã Anedita ..................................................................................................................... 91
A Japonesiinha linda de Dunas de Itaúnas ........................................................................................... 101
Entre Pai e Filha .................................................................................................................................... 121
Eu e meu passado podre ...................................................................................................................... 127
O bruto e o brutal.................................................................................................................................... 128
A Nhanva ............................................................................................................................................... 132
O movimento do Tabuleiro..................................................................................................................... 142
O Cristo ................................................................................................................................................. 144
As mulheres Guaikurus ..................................................................................................................... 149
Aforismas geradores.............................................................................................................................. 156

2010
Belo Horizonte
O Diário de uma Anatomia
Inanestésica

Parte I

O dia amanheceu chuvoso, mas a chuva daquela manhã em nada se assemelhava à


chuva da madrugada. Era uma chuvinha nova, demanhãzinha. Pareciam outras nuvens,
outras águas, de outros ventos e outros mares, essas modificações que acontecem
imperceptivelmente na natureza do mundo e que a mecânica da vida tecnológica
motorizada impede a gente, a grande maioria das pessoas de perceber. Era uma nova
chuva, de um novo tempo, nunca antes visto ou vivido, pois é o próprio presente, o tempo
de todas as coisas possíveis, como diria Leibniz (1657). As coisas possíveis só são
possíveis no presente. E as coisas possíveis começam no pensamento. Mas eu não tinha
ilusão naquela manhã de chuva nova. Eu tinha vontade de acordar e de andar um pouco
pela casa. Mas fiquei na cama, escornado, ledo, como fermento sem vontade. Pensava
longe, pensamento sobre o passado. Via taças de vinho se quebrando no piso do
banheiro. Sangue de vinho. Devo ler o que eu escrevo?

Eu só tinha a minha utopia naquela manhã. Nem comida, nem leite ou fruta. Estava pobre
e uma fome de comer me trazia a infelicidade pequenina de um desejo não realizado.
Mas e as outras fomes? Tomar um banho. Esquentei duas panelas de água e me sentei

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na bacia grande, fiquei lá jogando água quente nas costas e passando sabão no rosto.
Rosto que cabia um sorriso. Eu pensei: e a multidão de seres humanos se acotovelando
furiosamente lá fora em troca de dinheiro, poder, sexo, e outras coisas. Como vence-los?
Como enfrentá-los?

Mas não havia pressa naquela manhã nova, de água nova, de banho novo. Me assentei
na cama. Vontade de dormir de novo. Pra voltar ao ontem e percorrer do avesso a minha
vida até então, até chegar no momento do nascimento do velho eu. Lá no início. Lá
quando todas as minhas idéias eram pequenas. O que deixar vivo, o que retirar? Que
semente eu deixaria? Que semente eu arrancaria? Todas brotaram, e o fruto do passado
é o presente. Não. Nada disso. Novos pensamentos. Novo dia, novas possibilidades. É
preciso sair da caverna e ir para o deserto, sair da caverna, debaixo da chuvinha nova, e
ir para o deserto, passando pelo meio da civilização, pra dizer que é o fracasso humano o
que eles estão vendendo cada vez mais barato. Você vai comprar? Desliguei o telefone e
fiquei com vontade de fumar. Não fui até a esquina. Parei o vício. Fiquei lembrando
daquela mulher, sempre Eremita, uma das frutas mais lindas que essa terra já gerou. O
que é um beijo? Mistério.

Me assentei na cama. Procurei cigarros na gaveta com grande má vontade, atendendo


apenas ao corpo que queria fumar, que nem mesmo havia dormido, tão tenso estava com
o mundo humano, com dívidas, processos, pessoas loucas por riqueza e poder, pelos
automóveis, e acima de tudo, pelos derrotados que insistem em destruir as vidas, todas
as vidas ao redor. E eu, é claro, minha principal dúvida filosófica.

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Parte II

Chegou esse dia tão esperado. Era isso aquela chuvinha, eu soube às 7:45 da manhã. O
número de automóveis no Brasil acabava de superar o número de habitantes. Para cada
brasileiro, nessa manhã de hoje, existe um automóvel circulando nas ruas e estradas.
Uma massa de quase 200 milhões de carros, motos, caminhões, ônibus, tratores e tantos
variantes dessa espécie tecno-animal. O pior, a concentração de rendas se expressa ai
também.

Enquanto há cidadãos que não possuem nenhum carro, há homens e mulheres que têm
quinze, vinte carros cada um, um carro diferente para cada dia do mês. O pior era a
malha rodoviária e urbana de asfalto, energia elétrica, esgotos, lixo e poluição que essa
conquista da civilização estava deixando atrás de si.

Milhares de cidades brotando como feridas nas terras brasileiras, milhares de cidades
inchadas de gente, seres humanos que não eram brasileiros, pois amam mais a
civilização do que a natureza, ao contrário dos habitantes ancestrais, seres humanos com
péssimos hábitos ecológicos. Logo as crianças se esqueceriam de que havia uma raça de
seres humanos que amava a terra e os seres vivos que aqui vivem em quantidade. Isso
estava me deixando puto.

Mas o pior não era isso, o pior era a quantidade de calor gerada pelo funcionamento
desses 200 milhões de automóveis em circulação por todo Brasil superindustrializado que
os governos de esquerda e direita implementaram no país ao longo desses 20 anos.
Calor que aumentou em 4 graus médios a temperatura do ar. Toda a natureza
maravilhosa do Brasil foi devastada completamente.

O estado federativo do Brasil, o governo se apossou de todas as fontes de água, que


antes era da população, o que é público e o que é estatal tem diferenças?

Sim. O que é público o estado não pode vender, mas o que é estatal o governo pode
vender. Como fez com a vale do rio doce. Que era estatal e não pública, e foi vendida. O

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que é isso a empresa explorava terras públicas, água pública, ou seja, de todos os seres
humanos que vivem aqui no Brasil. E ela era estatal. O governo vendeu, distribuiu entre
os membros dos três poderes todos os recursos da venda, ou seja, enriqueceu muitos
sujeitos históricos. A empresa, que era estatal e não pública, mas que utiliza recursos
públicos para produzir o material que vende, agora é particular, ou seja, pertence a um
grupo de no máximo cinco indivíduos, que inclusive não moram no Brasil, utilizam todo o
dinheiro que conseguem aqui para gasta-lo na Europa ou nos estados unidos, ou seja, o
dinheiro conseguido com a extração de matéria prima que é pública, ou seja terras,
natureza, água, e ar do Brasil, que é de todos, pelo menos teoricamente... Essa
chateação estava ameaçando acabar com meu dia, e eu fiquei puto com tudo isso, pois
parecia haver uma força muito grande controlando tudo isso, que estava envolta em
corrupção e assassinatos. A terra no Brasil sempre tinha sido mal repartida, e era isso
que eu via agora. Uma massa de imbecis, de todas as idades, acreditando que estava
tudo bem, comprando seus automóveis, abarrotando as ruas de carros fedorentos;

Um pequeno grupo de pessoas se divertindo usando dinheiro oriundo da exploração das


riquezas públicas do Brasil, ou seja, sua maravilhosa natureza. Mas isso estava me
chateando demais, entrando dentro de mim, até o ponto em que eu senti uma angustia
muito grande, um sentimento de desamparo e de debilidade existencial, que me fazia
sofrer a cada instante que meus pensamentos investigavam tão estrondoso fenômeno
que era esse da concentração de renda.

Fiquei totalmente puto naquela manhã de chuvinha, ...

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Parte III

Sábado pela noite. Primeiro dia depois daquela chuvinha fina que tinha anunciado uma
nova era para os seres humanos, ou seja, o inédito feito da industria automobilística,
coroando todos os esforços históricos da civilização brasileira, que tinha produzido seu
200.000.000 veículo automobilístico nessas terras brasileiras, sendo dessa forma a
responsável direta pela destruição ambiental completa do brasil, particularmente de Minas
Gerais. Que tinha tantas minas gerais que ficou toda esburacada. Mas era o sábado pela
noite, o segundo dia da nova vida. Minha ex-namorada me ligou, dizendo que me
perdoava, por que eu era um cara legal e ela confiava em mim, e tudo mais. Um discurso
para acalmar sua própria culpa, por tentar ser a melhor possível para si mesma, e para
seus conceitos de amor e amizade, e sexo, e felicidade. Conceitos que vão mudando?
Nunca se sabe. Desligou me desejando paz. Fiquei calado.e depois fiquei dentro do
quarto enorme, era noite, e eu nada tinha para fazer dentro desses meus 40 anos de
idade. Um homem divorciado, um brasileiro vivendo em Minas Gerais, que parecia um
outro país, desses arruinados ecologicamente, principalmente em sua capital, Belo
Horizonte, que nada tinha de bela e nada tinha de horizonte, um desses nomes falsos de
cidade que a gente vê por ai, como “Boa Esperança” ou “Santa felicidade”.

Então, o maior dos milagres acontece. O céu se abre para mim, de repente, coincide o
meu pensamento e a forma do universo, matéria e mente se tornam uma só, num
encontro entusiasmado de espanto, de um segundo para o outro, uma coisa acontece.
Uma bozina. E eu acabava de terminar uma oração, que estava fazendo em pensamento,
pois não tinha mais o hábito de rezar o terço, como minha avó tinha me ensinado e que
era a forma de trabalhar minha espiritualidade, que eu havia encontrado. Então bozinou
de novo. E mais uma vez. Fiquei calado, não era vontade minha ir lá fora. Belorizonte,
23:45 de um sábado, com mudança de horário de verão para horário de inverno..

O silêncio voltou. Fiquei com o computador, digitando algumas coisas que me vinham à
cabeça, aleatória. Depois de uma longa pausa, bozinou novamente do lado de fora da
minha residência. E mais uma vez. E outra. Era uma chateação.

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Abri a janela do meu quarto. Existiam algumas estrelas, e era possível vê-las ainda, pois
aqueles edifícios altos não tinham se mudado para meu bairro Pompéia ainda. Algumas
estrelas. Eu fui até a porta e atravessei o jardim até o portão. Olhei e vi um carro parado,
com a luz de seta piscando como uma respiração aphlita. Um carro preto, meu deus. O
que era isso?

Me aproximei e a janela do passageiro se abriu e também a porta, o que fez a luz interna
se ascender e eu pude ver que era Gláuciajorge, que sorria. Olhei para o banco do
passageiro e não reconheci a figura, a pessoa, uma mulher, olhos vagos, me olhou, ---
simone. --- disse, e eu cumprimentei desconhecendo o motivo de estarem ali, e porquê
também. Precisava falar concê, ---, me disse. Eu disse --- ah, é?.

Parte IV

Entrei no carro. Arrancamos. Fui antes fechar o portão e ver se tinha qualquer coisa
acesa como velas ou o fogão. E fomos devagar. O carro era pequeno e logo ficamos
abafados agradavelmente pelo calor de nossas respirações. Simone não parava de falar.
E falava, falava, falava, sobre vários assuntos. E eu aguardava saber o motivo de tudo
aquilo então Glauciajorge me disse, olhando pelo espelho de bordo, revezano sua
atenção da pista, pois circulávamos taxeando pelo bairro, passando no quarteirão da
Igreja da Pompéia, que ficava linda sob as luzes de mercúrio e suas enormes árvores
centenárias. Simone Weil era uma filósofa que estava no Brasil para fazer uma disciplina
eletiva na UFMG na sua pesquisa sobre a filosofia do Brasil. Tinha ficado impressionada
com o livro de Lévi-Strauss, Os tristes trópicos, que ele escreveu em 1938. Simone ficou
impressionada com o relato que o antropólogo tinha feito sobre Minas Gerais. E veio

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conhecer. Ela fala poco, mui poco de português --- me disse Glauciajorge com seu
sotaque caribenho --- eu tou traduzino as cousas pra ela, ... ---

Eu estava sem entender. O carro já estava lá nos lados do Padre Eustáquio. Nas ruas,
uma fileira de automóvel ao lado de uma casa. Alguma festa de família reunia parentada.
Olhei pela janela, foi quando recebi a garrafa das mãos de Simone, que bebia. Bares
abertos ainda, e homens de todas as idades tomando suas bebidas, eles falam baixo,
deixando que se ouça o som dos grilos, que se calam quando o carro passa. A motorista
não bebia. Disse que tinha que passar na casa de uma amiga dela no Padre Eustáquio,
pra pegar uns livros do doutorado, e que era só um minuto, que depois a gene tinha que
conversar e coisa e tal, e tal e coisa, .... E estacionou o carro. Parou em frente a uma
casa. Havia uma festa, podia-se ver. --- ya me volto mêzamis, disse Glauciajorge abrindo
a porta, descendo do carro, dando um sorriso, fechando a porta do carro e atravessando
a rua deserta e entrando na casa da festa, que tinha em sua entrada um monte de carros
estacionados. Talvez uma festa de casamento acontecesse ali onde Glauciajorge tinha
acabado de entrar, que reunisse toda a família, ou uma festa de aniversário, talvez.
Ficamos eu e Simone Weil dentro do carro. Ela no banco da frente, e eu no banco de trás.
Um silêncio. Ela tomava um gole na garrafa, eu ouvia o som do líquido. Depois de um
tempo tomava outro golo e me oferecia, sem se voltar para mim. Eu ficava calado.
Pegava a garrafa e dava um gole grande, e acabei por esvaziá-la depois. A motorista
começou a demorar demais. Uma meia-hora tinha se passado já! Eu estava pensando
nisso quando vi que, calmamente, Simone passava do banco do passageiro à minha
direita para o banco do motorista de nosso carrinho apertado. Ela calmamente rodou a
chave da ignição, que tinha ficado o tempo todo conosco, ligou o motor e ficou com ele
ligado. Do lado de dentro da casa a festa continuava e nada da Gláuciajorge voltar.
Simone bozinou. Ninguém nem apareceu na janela ou na porta. Teriam sido abduzidos
pela alegria? E já eram umas meia-noiteequarentaecinco da manhã. Eu me lembrei do
horário de verão e voltei o ponteiro de meo relógio, foi quando eu me dei conta que
Simone Weil tinha dado a partida no carro e dirigia tranquilamente, dando a curva no
quarteirão e descendo para a Avenida Pedro II.

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Parte V

Simone Weil me deu a garrafa, depois de tomar um longo gólo dela. com as mãos no
volante. o grande mau exemplo? Engoliu, arranhou a garganta em sinal de coisa boa,
tossiu em respeito à boa pinga mineira. Trocou de mão no volante, me passou a garrafa e
trocou de mão outra vez, agora passando a marcha, foi quando percebi que tinha as
unhas pintadas de vermelho. Ela olhou pelo retro-visor interno e me falou alguma coisa
em francês. Eu fiz que entindia, imaginei que se tratasse do que Glauciajorge tinha pra
me falar, que tinha sido uma combinação das duas. E deixei o corpo, já amaciado pelo
álcool me relaxar. Simone parou o carro no anel rodoviário do Shopping del rey.

Simone se voltou pra mim e pediu que eu viesse para o banco da frente, disse isso num
quase-português e eu entendi, me desculpando pela situação de taxista que tinha ficado
entre nós. parou o carro. eu desci. Falou o tempo todo em Francês, coisas que eu não
entendi. E ela sabia que eu não estava entendendo, mas continuava a falar, e a falar, e eu
fui prestando atenção no som da voz dela e percebi que ela dizia algo sério. Então resolvi
falar coisas sérias sobre mim em português, mesmo sabendo que ela não entenderia.
Isso se tornou para mim a metáfora do relacionamento amoroso, onde as duas pessoas
começam a relação sempre falando línguas diferentes, sua linguagem e simbologia
pessoal. O que ocorre com os amantes é que o amor, a emoção, ajuda a traduzir e a
compreender a linguagem do outro. O ódio é a ruptura disso, a impossibilidade de
tradução absoluta, que o ser humano desenvolve com requintes. Me lembre que eu
estava sendo processado por uma ex-aluna minha por causa de algo que eu disse e
imaginei a maturidade existir. Que coisa!

Entrei mo carro novamente e me assentei no banco da frente. Coloquei o cinto, não


perguntei pra onde íamos, e nem perguntei nada. E Glauciajorge, meu deus! Estaria ainda
na festa? E se a polícia nos parasse, Simone ia falar em Francês, ela que detestava
polícia, nazistas, advogados, juizes, todo o aparato legislativo do sistema capitalista,
voltado sempre para destruição do indivíduo, com mentiras sobre justiça e igualdade?
Simone sorriu e arrancou o carro. A auto-estrada cheia de velozes carretas e miúdos
automóveis. Ao redor? Toda aquela natureza do Brasil devastada pela civilização. Meu

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coração disparou, fiquei entusiasmado com aquela repentina reviravolta do destino. Que
situação excitante. Uma francesa bêbada no volante e já era uma hora da manhã do
horário novo! --- daqui a seis horas o dia amanhece --- eu disse a ela tentando parecer
agradável, tentando ser gentil, puxar assunto, sabe?

Acho que ela gostou do meu papo, deu uma risada pequenina, passou a marcha no carro,
aos moldes de um homem, olhou para fora do veículo, esperou a carreta passar, e tudo
ficar em silêncio, então arrancou lentamente o carro, e logo tomamos a estrada,
circulamos o anel rodoviário e entramos sem problemas na Br 262 no sentido de Vitória,
uma rodovia vazia nessa hora, --- que bom que a rodovia está vazia ---, eu continuei a
falar. Simone tinha falado tanto, e em francês o tempo todo, que Glauciajorge
compreendia perfeitamente, mas eu nada e muito pouco sabia. Então achei oportuno
falar. Mas depois de umas três frases me calei. Sem ver necessidade nisso.

Abri a janela, havia um luar, e um ventinho gostoso. Simone dirigia tranqüila, não passava
dos 80 km, era um princípio filosófico seu. Nunca ultrapassar o limite dos 80 km. Não
entendi isso, mas pude observar empiricamente que era assim que ela procedia. Me disse
que tinha sido operária em uma fábrica da Renault, na França, por ocasião de sua tese.
na experiência operária ela tinha tirado suas conclusões sobre a perversidade do
capitalismo, principalmente com as mulheres, que são mão de obra barata e
consumidoras vorazes de objetos manufaturados. a mulher é a principal mentora do
capitalismo e sua principal vítima.

Para onde íamos? há algum deserto por aqui? só dentro de mim, ... e talvez dentro dela!

Ficamos viajando até que me dei conta que estávamos muito, muito distantes do Padre
Eustáquio e da casa em que Glauciajorge tinha entrado, casa de uma tal de Nádia, uma
amiga sua, e ela disse que não demoraria. Estavamos na verdade muito distantes de
Belorizonte, a cidade enfumaçada e triste. Já estávamos em alta estrada, e eu senti o
arrepio de ser ultrapassado por uma carreta enorme. A Br 262 era a mais violenta das
estradas federais do Brasil inteiro. A cada ano eram 400 mortes em acidentes. Uma
média incrível para aqueles dias. Eu não sabia pra onde a gente estava indo, e pra onde a
gente tava indo???

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Parte VI

Já era quase duas horas da manhã do horário novo, eu consultei o relógio. Estávamos os
dois a quarenta minutos inteiros sem trocar um diálogo sequer. Em um time de futebol
isso não funcionaria. Simone dirigia calmamente o carro, olhava pra estrada. Vez ou outra
um grande veículo passava por nós, e os carros menores sempre nos ultrapassavam, e
estava bom.

Meu corpo estava relaxado e eu estava bem, uma satisfação enorme me tomou o corpo
quando passamos pela Serra da Piedade, em Caetés, estávamos a 1000 metros acima
do nível do mar e um friozinho entrou, e eu me senti muito bem, olhando da estrada para
o topo da serra, onde podia-se ver as luzes da igreja de 1845, lá em cima, se afastando e
a gente entrando nas curvas. Tudo tão gostoso, tão maravilhoso, tão suave. Olhei pra
Simone, olhei para ver como era ela, eu até aquele momento não tinha tido a
oportunidade de olhar bem pra amiga da Glauciajorge, que tinha acabado de conhecer.
Parei e pensei que a poucas horas eu estava em casa digitando coisas sem sentido no
computador, e agora estava em alta estrada em um carro dirigido por uma filósofa. Isso
era demais da conta. Bom pra caralho!

De noite, da estrada, podia se ver as enormes Imbaúbas brancas, no meio das matas,
que tinham sobrado em minas gerais. Quase três horas da nova manhã do segundo dia
da chuvinha.

--- estamos indo para Praia do Aeroclube, em cidade de Salvador, na Bahia, no Brasil.
Que fica uns 1500 km daqui exatamente. --- disse Simone olhando para mim, dirigindo
calmanente.
--- Chegaremos pelo meio dia, se deus quiser. --- Simone disse naquele idioma mixto de
francês e português. Eu entendi, principalmente as palavras AEROCLUBE, SALVADOR e
1345 quilômetros. Aquilo estava ficando surpreendente.
--- meio-dia é claro de não! Chegaremos na Bahia, ... , se formos pra Bahia! --- eu disse
botando os bofes.

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--- por que essa idéia? --- perguntei. Tentei colocar a mão na cintura para fazer aquele
trejeito de quem pergunta com aquela ansiedade. Mas eu estava assentado. Olhei para a
pista, os faróis ia clareando a imagem á nossa frente, que ia se abrindo a cada reta e
curva, como se estivéssemos entrando dentro de um objeto fluido, que era o próprio
mundo. O real.
--- mas por que viajar e por que tão longe, e porque isso está acontecendo? --- perguntei
baixinho, pra mim mesmo, fechei os olhos, fiquei sentindo o carro tremular levemente, e
Simone ajeitando os óculos, vez ou outra, e sorrindo pra mim. Ficamos em silêncio.

Parte VII

Acordei, era o amanhã, pois havia luz do sol, os primeiros raios. A francesa continuava a
dirigir. Calmamente, fazia as curvas com graciosidade, e nas retas nunca passava dos 80,
como uma capacidade incrível de manter essa velocidade. As imagens eram magníficas,
aquela natureza despertando, as montanhas, muitas montanhas, serras, e algumas
poucas florestas, infelizmente não podia falar das belezas naturais pois as mineradoras
tinham destruído todas, tudo, todos os animais e plantas, das mais variadas espécies,
com tanto valor e com tanto lucro possível na produção industrial feita a partir da
biodiversidade que podíamos fazer em benefício dos brasileiros que vivem em minas
Gerais, essa terra abençoada por deus!!!

--- paramos para dormir e estamos na estrada novamente. --- ela me disse, com um
sorriso novo no repertório.
--- bom dia, --- ela disse em seguida.
--- bom dia. --- eu respondi.
--- está com fome? --- ela perguntou.
--- um pouco. --- respondi

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--- eu acho que capotei. --- eu disse em seguida
--- você fez o quê? --- perguntou sem entender o que eu disse
--- cochilei.--- disse explicando
--- ah! Entendi. --- ela respondeu sorrindo

E ficamos nisso, mas estava tudo muito suave. Vi uma placa. “João Monlevade”, e
Simone entrou com o carro na rodovia à esquerda, e passamos por dentro da cidade
ribeirinha, onde a seta indicava. O enorme rio doce. As siderúrgicas e as florestas de
eucalipto. Um escândalo tudo aquilo. Comecei a me chatear novamente, a ficar puto com
essa sociedade capitalista mineradora filha da puta! Pus a mão na cara envergonhado de
ser passivo e omisso a ponto de permitir que o Brasil fosse todo queimado para virar
carvão e pasto, para o lucro de umas poucas famílias hegemônicas, que engordavam e
educavam seus filhos na sistemática da falta de amor á natureza e à terra do Brasil, todos
uns estrangeiros mesmo, europeus sempre, que desconheciam a história dos ancestrais
brasileiros! Simone parou o carro diante de uma padaria, ao lado de uma igreja católica,
onde pessoas entravam para a missa das seis horas da manhã. E na padaria algumas
pessoas entravam, e crianças com uniforme da escola que levavam para casa o café da
manhã simples do dia? Isso poderia haver, mas era domingo, e a missa era a das sete e
era o dia da preguiça e na padaria apenas umas pessoas poucas, que passaram a noite
bebendo e festejando, e amanheciam tomando café sem açúcar para rebater a ressaca.

--- rebater o quê? “rebater”?


--- contornar. --- respondi
--- ah! Bão. --- ela disse.

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Parte VIII

Simone parou o carro, se reclinou para mim e abriu o porta-luvas, lá tinha os documentos
do carro. Que era da Glauciajorge, que tinha ficado lá no Padre Eu-stáqui, meu deus do
céu!

--- ligue pra nossa amiga e avise que vamos viajar, ligue pra Glauciajorge, ... , liga agora
pra ela --- a Simone me disse em francês, apressada.
--- Glup! --- eu disse.
--- diga praia do aeroclube, diga isso a ela, ..., diga Salvador, diga Vitória, BR 101 --- me
pediu a francesa. As palavras em português ela dizia com aquele sotaque pesado.

Pensei bem, era o momento das mulheres dominarem os homens? Aceitar acatar uma
ordem de uma mulher é o primeiro passo, eu pensei. E decidi fazer a coisa mais natural
do mundo para alguém da minha idade:

--- liga ocê! --- eu disse.

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Parte IX

Ficamos calados. O dia amanhecia.


Um impasse.
Aquela loucura de Simone
De sair com o carro desembestadamente! (bom, desembestadamente não, calmamente. minha
alma sorriria novamente?)

E a minha loucura de aceitar? Mas agora estávamos ali, a uns 80 km de BH, o dia
amanhecendo e parecia que a fantasia daquela fuga terminava. eu estava chateado com
a situação. e até com um pouco de saudade de minha monótona e tediosa existência
dentro daquele quarto da minha casa, onde passei mais de vinte anos trancafiado fugindo
da vida, das pessoas, das obrigações sociais. Era sempre assim em minha vida. Os
momentos bons surgiam como a promessa de algo novo, mas se revelavam apenas
momentos fugazes e sem produtividade. Todas as minhas relações amorosas me
pareciam tristes naquele momento. Todas as minhas mulheres, foram mulheres tristes.
Quem era aquela maluca, Simone Weil?

--- escute, eu topo viajar, eu aceito viajar, tudo bem! Mas já que isso é o universo súbito,
que está acontecendo loucamente, de uma forma que eu tinha desejado tanto a tanto
tempo, e isso está acontecendo em grande velocidade, e isso foi idéia sua, ... é isso
mesmo! Idéia sua!, --- eu disse chateado. --- mas tudo bem, tudo bem! Só que tem uma
condição. Vamos sai pelo Brasil a fora, vamos até onde você quer, lá nessa tal praia do
aeroclube para eu saber uma coisa que você diz que só saberei quando chegarmos lá.
tudo bem! Mas há uma condição! Uma só, só uma. Eu indicarei como a gente chega lá! ---
eu disse. Olhei para os olhos da francesa. Que olhar! Era um outro tipo de ser humano
que eu nem conhecia, ...

--- ah não, não, não senhor, isso não! --- a francesa catimbou.
--- catimbou?
--- usou malandragem futebolística para conseguir a falta mais próxima da área possível.

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--- ah! Bom. --- disse a francesa.

--- E tem mais: vamos abandonar o carro da Glauciajorge, pois ela ficará muito chateada
se fomos achatados por uma carreta dessas na BR 262. Vamos de trem, que passa daqui
a pouquinho na estação de João Monlevade, às oito e trinta, mais ou menos, ainda temos
tempo de chegar à estação e pegarmos o trem. Vamos de trem pra Bahia, o que ocê
acha?

A francesa ficou parada me olhando. Mas o que eu posso fazer? --- eu pensei com meus
botões.

Parte X

--- o que faremos em praia do aeroclube, em Salvador? --- eu perguntei.


--- você saberá. --- ela disse.
--- Phrônesis . --- ela disse.
--- ?
--- e porquê ir de trem? --- ela me perguntou.
--- por que podemos fazer um curso de antropologia brasileira. --- eu respondi. Rindo,
meio como aqueles neuróticos dos filmes, com o olho esquerdo piscando
involuntariamente em sinal de perturbação psíquica, ...
--- mas o que é aquilo que você falou de frônesis? Que é isso?. --- eu continuei a pergunta
anterior.
--- é uma conseqüência imediata da sensação de resposta à uma pergunta. É uma
sensação, uma emoção, um insight. E precisamos ir nós dois juntos até a praia do
aeroclube e ficar uma noite lá, e ver o mar de lá, precisamos falar de algo muito sério ali,
e depois, depois eu voltarei para a França, pois a minha viagem de pesquisa acabou, e

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então: temos pouco, ... tempo. Nosso assunto é urgente. --- Simone me respondeu em
francês, séria, mas sem ficar tensa.
--- mas eu nem te conheço, mulher! --- eu disse, exibindo espanto acima do normal, para
um belorizontino que já tinha vivido as maiores gandaias do planeta, aquela aventura até
que era bem normal e natural, algo muito possível de acontecer na minha vida.
Concordei com a explicação superficial de Simone. Eu achei que Simone me criticava m
francês. Mas olhei para os peitos dela, ocasionalmente, uma olhada daquelas rápidas.
Eram peritos pequeninos. Mas eram belos. Que interessante. Coloquei as mãos nos
bolsos. Tinha que rezar o terço essa noite, pra poder ter força A minha direita tateou meu
rozário, e então, comecei a rezar ali mesmo o santo-terço do dia. Sim.

Todos os dias eu rezava o terço pra nossa Senhora da Piedade. Eu era um devoto fiel. E
nos momentos de tentação, eu apelava à virgem Maria. Para que minha fé nas minhas
promessas ficasse fortalecida. Eu tinha renunciado a que meus olhos ficassem vendo
coisas inúteis. As coisas inúteis do mundo. Fiquei sério e caminhei em direção ao carro.
Levando uma martarocha que tinha comprado na padaria por 85 centavos de real. Abri a
porta do carro, entrei, me assentei, coloquei o cinto. A francesa entrou em seguida, me
olhou curiosa.
--- vamos até a estação de trem. Deixamos o carro lá, estacionado, e damos um jeito de
colocar a chaves dentro dói guarda volumes da estação. E mandamos a chave do armário
por sedex até a Glauciajorge. Quê qui cê acha? --- perguntei.
--- parece complicado. Não entender muito bem. --- me respondeu simone de uma
maneira amigável.
--- você liga pra ela e explica tudo isso que eu te falei, e ela vai te entender. Fala isso em
Francês pra ela, oras!... --- eu disse animadamente em português, olhando aqueles
campos sendo semeados, os campos de algodão dos livros didáticos da minha infância.
--- sim, moncherr. --- ela disse. Ligou o carro, e saímos em direção à estação, que ficava
na parte alta da cidade, fomos perguntando aos moradores que amanheciam satisfeitos
aquela manhã de domingo, que tinha uma feira boa na praça da Igreja de Nossa Senhora
da Misericórdia.
--- isso é minas gerais: essa vontade de ir à feira de verduras, plantas, comida mineira e
artesanato domingo pela manhã! em muitas cidades de minas é assim. uma tradição.
malditos empresários do ramo automobilístico!!! --- eu gritei ficando repentinamente
furioso.

16
Parte XI

“”Minha opinião não é formada apenas pelo resultado do time no primeiro tempo, não
Não, ... Eu estou acompanhando o time a muito tempo, muito. E o time está mal. Não
vamos vencer desse jeito.”
Técnico Aimoré, Bambuí, 1952.

Meu Avô era técnico de futebol. Treinou o “Meninos do Angú Duro Futebol Clube” , da
cidade mineira de Bambuí. Vencer um jogo começa quando a gente acorda. Era assim
que meu avô, o índio Aimoré, falava. Quando seu time começava em desvantagem, ele
era mestre em animar os jogadores, incentiva-los.

E ele então descia com seus jogadores para o vestiário. E lá ele dava um sermão
pedagógico. O time voltava mudado para o jogo. Aimorés era um recordista mundial,
inscrito no Guiness´s Recordes, na edição de 1963, como o Técnico de futebol no mundo
que em partidas oficiais tinha conseguido virar um resultado desfavorável. Recordista de
vira-vira. E sua especialidade era o segundo tempo. Os times adversários evitavam de
descer pro segundo tempo em vantagem contra os meninos do angu duro! Eles sabiam
que os meninos voltavam com tudo. Pelo simples prazer de virar uma partida ...

Até mesmo naquela memorável partida, no ano de 1960, em que os meninos, o nosso
time jogou contra o Internacional Carapuça F.C.

O Carapuça era uma outra força futebolística de Bambuí naqueles tempos, e era
financiado pelo fazendeiro mais rico de Bambuí e do sul de Minas na década de 60. O
Carapuça era um time forte, era uma equipe com ex-craques, e jovens talentos. Estava
invicto a 20 jogos, e o Aimoré sabia disso. É claro que eu e você sabemos muito bem o
que aconteceu, não é?

--- sabemos? --- perguntou Simone.

17
--- sim, sabemos. Meu avô ganhou a partida contra o Internacional Carapuça, com o
placar de 5 x 4. Foi a partida final do Bambuiense de 1960. Meu avô foi campeão!
--- que interessante, ...

O time do Internacional tinha feito 4 x 0 ainda no primeiro tempo. O time do meu avô
desceu para o vestiário destruído. Perder de quatro é difícil demais da conta de virar no
segundo tempo. E a torcida era toda do Internacional em Bambuí naquele dia. Pra
compensar, meu Avô tinha trazido os parentes dos jogadores de caminhão até o estádio.
Com aquela goleada, todo mundo se refugiou no vestiário, feito os cristãos nas
catacumbas romanas. Até as famílias dos jogadores entraram no vestiário pra saber o
que estava acontecendo, e aquele lugar ficou profundamente, profundamente, abafado.
Todos falando ao mesmo tempo. Aimoré meu avô ficou puto e botou todo mundo pra fora
do vestiário, só deixando é claro as senhoras maiores de 60 anos, que, segundo ele,
tinham opiniões muito esclarecidas sobre o futebol. Mas naquele dia ele não disse nada, o
time perdia por 4 x 0, e era o momento de fazer aquela maravilhosa preleção de sempre,
afinal tinham sido tantos anos ao lado daqueles jogadores, tantas partidas pelo Brasil a
fora, disputando a serie D do campeonato Brasileiro de 1960.

Mas naquel dia, o céu mudou seu tempero, sua aparência, seu humor. E começou a
chover fortemente . o Aimoré continuava calado. Os jogadores ficaram com medo, pois,
desceram ao vestiário e ainda estava dia quente de sol, muito sol. Foi só sentar e o dia
ficou escuro e triste. O Aimoré continuava calado. Até que o Jão pulou para o meio do
vestiário com as mãos na cabeça em desespero:

--- fala alguma coisa pelo amor de Deus, criatura!!! --- o Jão disse. O Jão era o atacante
artilheiro do time, um camisa 11 original do Brasil, feito o Romário, matador, um excelente
jogador, que teria futuro melhor se não tivesse conhecido o Davi e o Délio, dois irmãos
roqueiros que vieram de Belorizonte pro interior, e que montaram uma banda de rock e
puseram o Jão na bateria. Ai! ... ! O Jão ficou perturbando mentalmente por causa do
rock inglês. Pro resto da vida. --- me explica o que está acontecendo, me explica o mundo
Aimoré! Por que nós tamos perdeno? --- perguntou o Jão chorando feito um menino...

18
Parte XII

--- chegamos à estação de trem? --- Simone perguntou me interrompendo.


--- quase. --- eu disse.
--- J´ai l´impression de lês connaître depuis toujours, Jaãoul, Davídi, Déliô...? --- disse a
francesa perguntando? Eu nem sei se ela estava perguntando ou não, mas entendi um
pouco.
--- sim, Jão, Davi e Délio. Mas eles são figurinhas conhecidas, são brasileiros típicos,
gostam de música e futebol, e o Jão era um atacante matador que deixou o futebol pra
montar uma banda de Rock, que não fez muito sucesso, é claro, mas as pessoas não
entenderam a mensagem vanguardista da banda, você me entende?
--- ne vous inquiétez pás. --- disse a Simone e então eu fiquei calado. Ela viu a estação
pois havia um monte de gente com sacolas e coisas, então Simone sorriu, e eu percebi
que ela tinha ficado feliz. Era gente popular, pessoas sem preocupações estéticas
exageradas, como os burgueses de tendências paulistanas e cariocas. Era um povo
deveras simples e vestido tradicionalmente, e com muita gritaria de menino correndo e
mãe reclamando. Uns homens, padres, policias. Era o povo. E estavam calmo, como uma
manada alegre descansando no pasto num dia de fartura. Simone parou o carro. Desceu,
estava ofegante. E eu logo percebi que ela era maluca e que aprontaria alguma coisa,
seus olhos estavam esbugalhados olhando fixamente aquele povo esperando o tem. O
dia amanhecia, era umas cinco horas, ou quase? Sei lá, só sei que amanhecia. Eu
coloquei as mãos na cintura e pensei em fumar um cigarro. Ai, me lembrei que tinha
deixado o maço na gavetinha da cômoda do lado de minha cama, onde eu estaria a esta
hora exatamente nesse instante se não fosse, ... o universo. Dei um sorriso, pois estava
com a cara tensa.

Olhei para os lados como faria Celton Melo, cocei a barriga e fui andando. Fechei a porta
do carro com o pino abaixado, fez barulhinho. Fui em direção ao povo na fila da estação
de trem de João Monlevade aparentando familiaridade, arrastano-a-chinela. Fui como
quem anda preguiçosamente, passei por algumas pessoas e então olhei para trás. E vi o
que Simone estava fazendo. Que coisa!

19
Parte XIII

Simone brincava com umas meninas, muito pequeninas, agindo como uma avozinha,
agachada, falando coisas em diminutivo .., com aquela voz, uma vozinha carionhosa,
aquele som dos amantes, e dizia repetidamente Hm-hmm, C´est ça, c´est ça, Je vois, je
vois, mon petit., ... três, belle, beaucoup, ..

--- putamadre! Eu resmunguei pra mim mesmo, pois estávamos atrasados e nem bilhetes
poderia haver, e aquela francesa perdia nosso tempo brincando com uns pivetinhos. Mas
o que me irritava tanto naquela imagem? A capacidade de dar carinho para as crianças?
Ou Simone estar fazendo isso com um povo estranho (poderiam achar que ela era uma
dessas estrangeiras pedófilas, agente de turismo sexual)?, ou seria o fato de eu não ter
tido filhos até aquel momento? Ou as três coisas ao mesmo tempo? Ou haveria um quarto
motivo: meus ciúmes? --- então eu mesmo me desanimei de mim.

Pus as mãos na cintura feito gente velha, e fiquei vendo aquilo, depois fiquei vendo outra
coisa e depois voltei pra comprar os bilhetes. E se meu cartão estivesse estourado?
Fiquei alisando minha barbicha de Toledo. Meu bodismo. Só então reparei com que roupa
eu estava ali pra não perder o trem. E reparei que eu estava sem dinheiro. Deu só pras
passagens.

--- Glup!

20
Parte XIV

--- você já viu o que acontece com um carro em um acidente a oitenta quilômetros por
hora?, já viu? O carro fica em pedaços. Parece que 80 km por hora é pouco, é devagar.
Mas você já viu um atropelamento por um carro a essa velocidade? Já viu como fica o
cadáver da vítima? As chances de sobrevida são poucas. E imaginou um impacto de um
carro a essa velocidade sobre o corpo de um ser humano? Tomar uma batida de um carro
com uma velocidade de oitenta quilômetros por hora? O corpo fica muito mutilado, muito
mutilado, cheio de traumatismos cranianos pelo corpo inteiro. --- Simone disse. Eu ia
traduzino o que ela ia falano. Eu ia traduzino e ela ia falano e fui entendendo. O trem já
estava saindo, e mesmo sem querer querendo eu ele não ia perder.

Entramos no trem. Tínhamos deixado João Monlevade. Nos despedimos do carro de


Glauciajorge e agora estávamos dentro do trem. Simone assentadinha do meu lado, toda
francesinha. E ela surpreendentemente começou a ficar muito bonita. Eu fiquei
espantado. Era como se toda a beleza dela ficase recolhida e então, em um instante ela
se expandia, feito um Supersayadim. Ficou muito linda, riu, olhava para a natureza, soltou
os cabelos, ficou muito maravilhosa. E eu fiquei com tesão. Mas então ela falou em algo
que eu não entendi, e ficou triste e se assentou no banco e ficou quieta e ficou feia de
novo. Eu olhei e vi que ela estava normal, parecia a mesma de sempre, sem a grande
beleza de instantes atrás, como se ela mesma controlasse isso, uma hora ficava bonita,
outra hora ficava feia (ou era eu? Uma hora ficava com tesão, outra hora ficava sem
tesão?). Ou era eu o doente? 40 anos, meu amigo, ...

...

O trem foi nos sacudino. Já era lá umas dez horas da manhã daquele domingo. --- Pra
que seres humanos precisam de carros que trafeguem a 200 km/h? Eu não entendo o
desperdício de inteligência empregada nesse tipo de coisa --- Simone disse

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Parte XV

O trem sacudia. Partimos de Monlevade, naquela aventura loka que tinha começado na
noite de ontem, quando Glauciajorge buzinou seu carro em frente minha casa e eu
conheci essa Simone francesa. Desde então, pela madrugada afora e até agora, estou na
companhia dela. Que olha pela janela do trem completamente encantada com a beleza do
Brasil das gerais. Minas Gerais. As florestas imensas que haviam aqui. Tão vastas quanto
a amazônia. Tão exuberantes. Hoje devastadas. É claro que o trem não passa pelos
caminhos onde as mineiradoras e siderúrgicas esburacaram. Não! O trem passa
estrategicamente sobre um resto de floresta e sobre uma selva de Eucalipto. Quem vê
acha que é natureza brasileira, mas não é mais! É mato trazido da Austrália! Mato de
alimentar ursinhos Coalas!!! Eucalipto. E eles vêm plantar essas coisas aqui! Pra
alimentar os fornos das siderúrgicas! Pra fazer muito papel para a sociedade capitalista
imprimir os cheques!!! --- quando percebi eu já estava desabafando em voz alta. Algumas
pessoas me olharam. Simone continuava calada e absorta, olhando pela janela. Eu me
recostei a afundei na poltrona. Que coisa ruim era isso. Eu estava angustiado de novo.
Uma sensação de peso do mundo inteiro sobre mim. A sociedade tinha me descoberto e
agora queria me foder!!! Por isso eu estava tentado a começar uma automedicação de
Alprazolam 5 mg com Rum. Ou isso ou o suicídio. Eu já tinha aquela idade dos 40 anos, e
ainda era completamente dependente emocionalmente de minha mãe, uma cubana
miserável que me deixou com meus avós e saiu pelo mundo, e depois voltou pobre e
neurótica pra cuidar de mim. E eu estava pensando naquela dose derradeira de remédio e
alguns copos da alma da cana-de-açúcar, quando Simone se voltou. Eu vi que ela
chorava.

--- está tudo errado, meu senhor, rapaz, você brasileiro. --- ela disse tentando falar minha
língua comigo. --- Jesus não devia ter morrido! --- ela disse. Se lamentando
--- mas ele morreu pelos nossos pecados! --- eu respondi, apresentando meu catecismo.
--- você é como os outros. Não entendeu nada. Jesus não devia ter morrido. A
humanidade tinha que ter voltado na decisão de destruir um inocente. A sociedade
humana tinha que ter provado para si mesma e para seu Criador que a gente dava conta!
E a gente dava conta! Eu sei que a gente dava conta, de não ter esmagado o cara. Não

22
devíamos tê-lo matado, meu deus do céu! Não devíamos ter matado Jesus! Devíamos ter
tentado. Eu sei que era difícil, e ainda hoje seria. Mas a gente ti-nha-que-ter-ten-ta-do! ---
soletrou nervosamente a mulher, gesticulando exagerada, como se houvessem castelos
imaginários no ar para serem arrasados, os cabelos perdidamente atrapalhados,
sacudidos pelo vento de minério que entrava no trem. Um vento tão rico do nosso
precioso minério que é arrancado debaixo dos narizes da tradicional família mineira. A
francesa chorava leve, feito uma pomba algarraviando donosamente, soluçava por fim.
--- jesus é nosso maior presente ao criador. Se de um lado ele veio de deus, entre os
homens ele aprendeu a amar. As pessoas não sabem amar por natureza. Por natureza
somos frágeis. É o amor que nos faz fortes. E devemos aprender a amar, ... --- ela disse
limpando as lágrimas do rosto com um lenço, enquanto falava. --- jesus aprendeu a amar
com os seres humanos com os quais ele conviveu. Ele viu as pessoas se amando ao
redor dele, e isso o incentivava a gostar. As crianças são semióticas, miméticas,
arcabouços, e lá fica guardada toda exemplificação. E jesus viu pessoas bondosas, que
resolviam seus problemas no diálogo, ... --- Simone continuou a soluçar. O trem nos
sacudia.
--- quantos anos você tem, Simone?
--- J´ai 34 ans. --- ela disse.
--- (até que é gostosinha, ...) --- eu pensei. Logo fui e puxei o terço dentro do bolso pra
não pensar em coisa inútila e comecei a reza; uma Ave Maria na-tóra!!!

23
Parte XVI

Já deu a hora do almoço. Simone cochilava recostada em mim. Senti que ela pesava
pouco. Magricela. Dentro do trem, funcionários passavam entre as cadeiras, com seus
carrinhos de metal, repletos de marmitex. Por cinco reau!

Pedi um. Era praticamente o fim da finança ...


Fiquei segurando a marmitex e observando Simone dormir. Tinha chorado tanto.
E agora era só ir,
Só ir, ...

Quando chegar, saberei ...

Queria na verdade saber outras coisas,


Qual a quantidade máxima de automóveis que uma cidade pode ter? Será que haverá
aqui no Brasil os intermináveis cemitérios de automóveis, como na América? Onde a fúria
e a agressividade de consumo, pessoas trocando de carro a cada seis meses como um
índice de status social? Qual a quantidade máxima de dinheiro que uma pessoa pode ter?
será que não percebemos que quanto mais dinheiro concentrado pra uma pessoa, um
monte de outras ficam sem nada?

Qual a quantidade suportável de habitantes em um só lugar?


Qual a quantidade máxima de bens materiais uma pessoa pode possuir ao mesmo
tempo?
Porque tanta propaganda?
Porque tantos produtos novos?
Por que diariamente desembarcam no Brasil novas idéias para novas destruições
ambientais?
Por que meu vizinho japonês me acha ridículo e fica gritando isso pela janela?
Por que uma árvore de 400 anos é derrubada em cinco segundos por um real a hora?
Queria de fato saber, ...
Essas respostas, ...

24
Mas a sociedade industrial
Não sai da fantasia da superprodução,
Povoando a vida dos imbecis
Com objetos de consumo multicoloridos e multifuncionais,
A cada dia,
Só o crescimento industrial
O que temos de pior em termos de seres humanos
Controlando fábricas e lojas
Até o planeta inteiro
Se transformar em uma única placa de metal
Com bilhões e bilhões de automóveis
Parados em um infinito engarrafamento mundial
Só na cidade de São Paulo são sete milhões de veículos motorizados!
Sem um único ser vivo realmente livre
Sem um único ser humano realmente vivo

Tudo, tudo isso, ... todos os dias


Não é em benefício de ninguém mais,
Apenas de um pequeno grupo de gente
No topo da cadeia alimentar
Gente branca de olhos azuis
Gente preta cheia de petróleo e diamantes
Falando sempre uma língua incompreensível
Rodeados de prostitutas e prostitutos
A espera do digno fim
Eternizados nos prazeres, vestidos novos sempre e coroa nas cabeças

--- malditos adoradores de automóveis! --- eu pensei alto.


--- hein? --- disse Simone acordando
--- vamos almoçar? --- disse a ela oferecendo a marmitex.

Passávamos por Acesita. Aquele enorme e fabuloso forno. Tinha aumentado a


temperatura da terra em 10 graus. Todos os dias.

25
--- todos os dias?
--- todos.

Chegamos a Governador Valadares. Altíssimas temperaturas. Natureza absolutamente


arruinada. Gente que topa a escravidão, pra lamber os sapatos estrangeiros. Mas há os
que lutam pela vida partilhada?

--- precisamos falar com os revolucionários desse lugar! --- disse Simone se levantando,
pulando por cima de mim e correndo como uma louca pelo corredor do trem. Estalei as
mãos na cara em sinal de lamentação. --- putamadre!

Parte XVII

Anoitecia. Eu desci para fora do pátio do prédio do hospital municipal da cidade de


Aimorés, no nordeste de Minas. Uma cidadezinha pacata. O trem partiu dali com o atraso
causado por todo nosso incidente. Eu desci as escadas e me assentei na esquina de uma
rua, rua ainda de terra, que me deu saudades de minha vida no interior de Minas.

Ascendi um cigarro e fiquei calmo. Olhei pro outro lado da rua. Bem que eu podia tomar
uma pinga. Mas estava completamente sem dinheiro. As luzes dos postes das ruas
começavam a piscar e então definitivamente se ascendiam. As estrelas surgiam e dos
córregos os grilos, sapos, e muitos outros seres entre aves e insetos, mamíferos e répteis,
todos os seres noturnos festejavam lá beira do riachinho de Aimoré. Um ou outro veículo

26
se podia ver, mas aquela solidão de automóveis me fazia muito bem. E fiquei ali tragando
meu cigarro, tentando entender qual a razão do destino em me levar até aquele local.
Decidi falar com ela.

Entrei no quarto. Ela ainda estava acordada. Sedada ela não falava nada. Só olhava.
Olhou pra mim quando entrei. Me assentei ao lado da cama. Olhei para o corpo frágil
daquela mulher. Era bonita a Eremita, linda, na verdade linda. Estava cheia de tubo.
Entubada. Dei uma risadinha. Os pulsos. Quando olhei para os pulsos, fiquei sóbrio.

--- tô precisando de uma pinga, Simoninha. Tou sem dinheiro. Cê não tem qualquer
trocado pra me dar não? --- perguntei para Simone.

--- ...

--- não vai dizer nada? --- perguntei. Era essa a atitude dela desde que a tiramos de
dentro do banheiro do trem. --- não se preocupa comigo? --- perguntei quase indo às
lágrimas. --- você não tem coração? Me arrasta pra essa aventura loka e tenta se suicidar
no banheiro de um trem? Para ser uma mártir do movimento? É isso que você diz?
Depois de sua morte ensangüentada ao lado de uma latrina de metal de vagão? É essa
sua causa? --- perguntei.

--- pega minha bolsa. Na bolsinha da direita tem alguns reais. --- ela me disse num
português diminutivo, vago e distante. Abri um sorriso. Fui lá e peguei uns trocadinhos. ---
depois eu te pago. --- eu disse.

--- trás também uma pinga pra mim... --- Simone pediu quando eu ia transpor a porta.

--- agora estamos nos entendendo! --- respondi piscando para ela o olho. Fechei a porta.
Coitada. Lunática. Saiu correndo pelo trem a fora. Entrou no banheiro da última classe e
cortou os pulsos com uma gilete. Ficou lá borbulhando de sangue até a gente entrar e
retirá-la. Por isso tivemos de descer em Aimorés e ela está nessa cama do hospital
municipal. Estamos longe de Salvador. Talvez o consulado francês venha buscá-la e levá-
la. Bom, antes, vamos à pinga!

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Parte XVIII

Simone brincava com umas meninas, muito pequeninas, agindo como uma avozinha,
agachada, falando coisas em diminutivo .., com aquela voz, uma vozinha carionhosa,
aquele som dos amantes, e dizia repetidamente Hm-hmm, C´est ça, c´est ça, Je vois, je
vois, mon petit., ... três, belle, beaucoup, ..

--- putamadre! Eu resmunguei pra mim mesmo, pois estávamos atrasados e nem bilhetes
poderia haver, e aquela francesa perdia nosso tempo brincando com uns pivetinhos. Mas
o que me irritava tanto naquela imagem? A capacidade de dar carinho para as crianças?
Ou Simone estar fazendo isso com um povo estranho (poderiam achar que ela era uma
dessas estrangeiras pedófilas, agente de turismo sexual)?, ou seria o fato de eu não ter
tido filhos até aquel momento? Ou as três coisas ao mesmo tempo? Ou haveria um quarto
motivo: meus ciúmes? --- então eu mesmo me desanimei de mim.

Pus as mãos na cintura feito gente velha, e fiquei vendo aquilo, depois fiquei vendo outra
coisa e depois voltei pra comprar os bilhetes. E se meu cartão estivesse estourado?
Fiquei alisando minha barbicha de Toledo. Meu bodismo. Só então reparei com que roupa
eu estava ali pra não perder o trem. E reparei que eu estava sem dinheiro. Deu só pras
passagens.

--- Glup!

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Parte XIX

Desci até a beira do rio doce, lá embaixo, perto da linha do trem, cruzei a linha. Eram
quatro horas da madrugada. Fui caminhando, guiado pelo barulho do rio. A cidade
dormia, toda ela, os trabalhadores rurais e outros estavam cansados naquela madrugada
de domingo-para-segunda. E segunda é sempre o pior dia. Então, aquele silêncio de
pessoa humana deixava os outros animais à vontade. Nada tão horrível para o ouvido dos
pássaros como o som o automóvel. Nós humanos nos acostumamos por que somos
monstros mesmo.

Fiquei olhando aquele rião. Enorme. A ponte que liga um lado a outro da cidade de
Aimorés, dividida ao meio pelo rio, enorme ponte. Fiquei olhando aquela fumacinha de
água densificada pelo pouco calor, vapor quase líquido, cobrindo parte do rio. Uma
nevoazinha. Então vi surgir daquela névoa uma embarcação. Ao longe, lentamente. Ouvi
um barulho de porta metálica. Olhei, era uma venda de peixe que se abria. Então entendi.
O barqueiro vinha com o pescado noturno: Jaú, Surubin, Piracanjuba, Caracídios e outros
peixes de fundo de rio que se caça pela noite pois ficam mais vulneráveis. Constumava-
se ter alguma coisa na rede todas as madrugadas, visto que o dono do pequeno armazém
olhava fixo para a embarcação que se aproximava. (?)

O homem parou a embarcação no pequenino cais, desceu e veio andando, estava


descalço. O peixeiro saiu de dentro da lojinha e foi ao seu encontro, todo gordito. Eu fiquei
parado olhando a cena, uma imagem de cinema, e me aproximei. O encontro de don
quixote e sancho pança. Fui andano em direção aos dois. Com uma única intenção, ...
Para entra na conversa, uai! É claro. Fui chegando e vi que o barqueiro falava alguma
coisa para o outro, que lamentava visivelmente abatido. Quando me aproximei na
distância de um olhar, eles pararam o papo e olharam, ...

--- continuem, continuem, --- eu disse. --- sou apenas um antropólogo brasileiro. Estou
estudando a vida das pessoas da cidade, seus comportamentos. Me parece que vocês
dois estão em uma negociação de pesca, não é mesmo? – perguntei.

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--- não. Não há pesca. --- me respondeu o barqueiro surpreendentemente. Agiu como se
eu fosse apenas mais uma manifestação estranha do universo. Como estranha era para
ele o que havia ocorrido. --- eu sou barqueiro desde menino, meu pai era barqueiro e
pescador também, e meu avô e o avô de meu avô. Mas nunca aconteceu isso e eu nunca
soube antes de tal coisa! --- disse o homem.
--- não há um só peixe nesse rio! --- ele disse.

Parte XX

Segundo o evangelho de Mateus, Jesus chamou para segui-lo, em primeiro lugar a Pedro
e André, dois irmãos. Um mais velho, Pedro, casado. O outro o caçula, André. --- eu
disse. O dia amanhecia e eu tinha convidado o barqueiro e o vendedor de peixe para
tomar uma pinga comigo, usando o restinho do dinheiro que a francesa me emprestou.
Mas eu fiquei comovido com a história. Não tinha mais peixe no rio doce, não tinha mais
Jaú, e nem Pirancanjuba, e nem Surubin. Os peixes agora eram criados em lagoas que
os fazendeiros da região tinham criado para o negócio. Dessa forma, a destruição dos
peixes nos rios foi admitida como inevitável. E as siderúrgicas mineiras, desde a cidade
de Nova Era, a mais ou menos uns 200 km de rio pra trás, desde lá, passando por
Acesita, por Valadares, a cada volta do rio mais e mais dejetos humanos, domésticos e
industriais, era lançado no rio. Peixes de grande oxigenação, que tinham grande
necessidade de ar dissolvido na água, pois viviam no meio do lodo e da putrefação, como
ponto mais alto da cadeia alimentar do rio, esses peixes tinham desaparecido por
completo no trecho da cidade de Aimorés pra frente. --- disse o pescador. O vendeiro, que
era um irmão por parte de pai dele, lamentava e dizia que teria de fechar a vendinha pois
não podia comercializar os peixes das fazendas dos ricaços da região. Por que eles

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tinham pensado em tudo, até na manufatura, entregue às empresas terceirizadas. Pois
não havia mais lugar cultural para aqueles tipos, pescador e vendedor de peixe, na
sociedade de Aimorés. Atividade alimentar mais antiga das terras brasileiras, de Minas
Gerais, estado farto em Rios, a atividade da pesca, era finalmente finalizada. Até o lixo de
Belo Horizonte chegava dentro do rio Doce. Até a bosta do meu cú, ... --- eu pensei. Deu
vontade de rir. Mas a situação era séria. Mas eu já estava bêbado. Foi quando eu decidi
tudo com um único pensamento brilhante. Um pensamento iluminado, uma genial idéia. E
dessa forma eu poderia chegar a um objetivo. Afinal, o que Simone Weil e aqueles dois
pescadores sabiam de geografia brasileira. O que eles podiam saber sobre rios e deltas?

Parte XXI

Entrei no quarto de Simone. Ela dormia. Finalmente. O dia amanhecia e eu estava


bêbado de doer. Me assentei na cadeira do quarto pago pela mineradora-siderúrgica que
era dona dos trens. No pequeno hospital. A cadeira era do lado da cama. Apaguei as
luzes do quarto. Aquelas portas altas, o teto alto, um quarto grande, com uma grande
janela, mas pobre de móveis. Era isso que eu queria dizer em minha primeira descrição.
Pois eu acabei cochilando. Quando acordei, vi a enfermeira servindo uma bandeja para
Simone, que comia calada. Sentada. Agradeceu a enfermeira que saiu do quarto. Simone
apontou a mesa que ficava no fundo do quarto. Seus pulsos estavam enfaixados, e havia
uma pulseira de paciente do hospital, e no tornozelo esquerdo, uma pequena cicatriz.. Ela
apontava a outra bandeja, com pão, café, leite banana e suco de laranja. --- para mim? ---
perguntei distraído e agradecido. Simone sacudiu a cabeça afirmativamente. Sorria.
Naquele momento eu me apaixonei por ela.

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Parte XXII

No princípio ela não aceitou bem a idéia. Ela queria voltar imediatamente pra França, por
que achou horroroso o comportamento do povo mineiro com relação ao meio ambiente e
aos direitos e deveres dos indivíduos. Ela tinha levado um choque ao ver a grande cratera
que uma mineradora fez e que é possível de se ver do trem. A rota do trem em que
estávamos, passava pela tal cratera. Realmente um buraco infinito, como uma cárie
megantesca, quilômetros e quilômetros de diâmetro e profundidade. A imagem daquele
lugar, rodeado por uma floresta de eucaliptos, enorme, plantada no lugar da mata natural
de embaúbas, jacarandás, peróbas e pterigotas. Tudo que ela tinha lido e estudado sobre
isso estava errado. O choque deve ter se somado às suas loucuras internas, o que levou
Simone a entrar no banheiro e retalhar os pulsos com gilete.

Mas a idéia que ela não aceitou não foi sobre meu apaixonamento. Na hora eu não
percebi que era isso. Senti um afeto grande por ela, misturada com um pequeno tesão.
Mas ela era feia demais, e eu nem tinha analisado bem sua bunda para meus padrões
brasileiros. E além do mais, eu é quem devia ter me suicidado naquele banheiro, e não
ela. Minha vida é que estava horrível até que o carro de Glauciajorge bozinou em minha
porta, ou seja: a um dia e meio atrás, ou mais do que isso, ou menos do que isso. Mas
agora eu estava ali, com idéias totalmente conturbadas por que eu estava bêbado, de
saco cheio da vida, por isso me deu vontade de beber, de ficar bebendo, e cada vez mais.
Mas a grana realmente estava nos últimos dez reais. E dez reais é o mínimo que um ser
humano em minas deve ter em caso de desespero, essa era uma regrinha cultural que eu
tinha aprendido com minha avó: nunca deixe suas economias ficarem abaixo desse valo,
filho --- ela disse. E agora eu estava com uma francesa hospitalizada e a qualquer
momento a embaixada francesa baixava ali com um daqueles brasileiros chatos de olhos
azuis para me aborrecer com perguntas! --- putamadre!

--- Simone, eu tenho uma proposta para você --- eu falei.


--- J´aime essayer --- ela respondeu assoprando o café quente, sentindo aquele odor
maravilhoso. Fechou os olhos. Que ternura do criador, que maravilha, que bondade
guardar dentro dessa sementinha tanto aroma, tanta energia tanto benefício ao ser

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humano. Mesmo com as jogadas de marketing, mesmo assim, a vida em si é saborosa,
pensou Simone. --- qual é plano --- ela perguntou me olhando
--- precisamos defender o rio Doce. Um patrimônio do estado de Minas Gerais.
Precisamos navegar por ele em protesto até seu desembocar, que é num lugar que nós
dois conhecemos. A praia do Aeroclube em Salvador! Você imagina a coincidência? Pois
olhe meu plano, a gente vai até a praia do Aeroclube através do rio Doce! O que você
acha? --- eu perguntei. Eu mentia. Nem sabia ao certo onde terminava o rio doce. Mas eu
queria continuar.
--- eu quero voltar pra França. --- ela respondeu nervosa, assoprando com aflição o café,
se esquecendo do odor maravilhoso, se recordando de que para o Brasil foram mandados
os piores seres da Europa naquele contexto: presidiários, prostitutas, escravos, corruptos,
famílias ricas fugindo de guerras, e por fim, o capitalista. --- ça ne marche pás três bien,
... peut-être que j´ai changé, ... --- ela disse.
--- escute bem, olhe, a gente pode fazer alguma coisa pela natureza, entendeu? A gente
vai de navio. --- eu insisti. Minha cabeça doía e eu já me desanimava. Mas algo dentro de
mim insistia que eu levasse aquilo adiante, ao extremo, ao ridículo, pra aquela francesa
ver a natureza do meu ethos. Mas era isso? Onde eu queria ir? Será que eu conseguiria
voltar um dia para Belorizonte? Eu fiquei perdido, meu corpo descaiu na cadeira, mas
minha voz continuou.

33
Parte XXIII

Eu estava um pouco desnorteado, e aquela pequena ressaca deixava meu corpo pesado.
Como aquelas musiquetas de propaganda de televisão que nunca saem da cabeça, foram
cuidadosamente criadas para serem reproduzidas por organismos mais frágeis e menos
críticos. Mas o que isso tem a ver? Nada. Era um peso. Entretanto eu estava indo bem
com meu plano. Simone começou a ficar sensibilizada com o que ia falando.

A idéia também tinha feito sentido nos primos que eu tinha encontrado de madrugada, os
tais; pescador e vendedor de peixe. Tinha falado a eles sobre uma embaixadora da
França que estava no Brasil para lutar pelo direito dos peixes. E fui me comovendo com
minha própria estória, veja você. A história de quem sempre sonhou em mudar o rumo
das coisas, aparecer na mídia e proclamar a revolução! Mas agora, não era esse meu
objetivo. Era apenas usar a ingenuidade das pessoas para atingir meus objetivos
mesquinhos, ou seja, chegar até a praia do Aeroclube de Salvador. O mais interessante é
que até dois dias atrás eu nem sabia que existia esse lugar, nunca tinha ouvido falar. E
agora estou simplesmente obcecado por essas palavras! Minha loucura surgia para mim,
e eu me levantei, pedi licença para Simone, com formalidade, fechei atrás de mim a porta.
Segundo os médicos ela ganharia alta ainda esta tarde. Já era segunda feira e ao nosso
redor as pessoas trabalhavam. Eu atravessei o pátio do hospital e na portaria me
informaram que conseguiram entrar em contato com o consulado da França de Belo
Horizonte!, voltei apressado para o quarto de Simone, não era hora de sucumbir ao temor,
não era hora!!!

--- Simone! Precisamos decidir logo, pois os manifestantes não podem esperar! --- eu
disse me assentando ao lado da cama, ansioso.
--- O que temos que fazer? --- ela perguntou.
--- Falar com a imprensa, escrever manifestos e posta-los pela Internet, essas coisas!
Tudo pelo rio Doce, que está sem um peixe vivo nesse trecho. Segundo reportagem de
27/03/08 do jornal Hoje em Dia: duplicou a quantidade de substâncias tóxicas no rio
arrudas e no rio das velhas, que acabam chegando aqui, no Rio Doce. O nível de
contaminação subiu de 17,4% para 37,6%, ou seja, em cada litro de água do rio, 30

34
gramas de lixo tóxico. Imagine ao total, a quantidade de toneladas de material inclusive
radioativo, oriundo das atividades mineradoras, industriais, agrícolas e urbanas que está
nessas águas fedorentas! Mais de vinte bilhões de reais foram desviados de projetos de
limpeza e preservação dos rios, por deputados federais das bancadas representantes das
classes mais ricas!!!. Precisamos ajudar essa gente pobre de Aimorés. E ao mesmo
tempo realizamos a proposta inicial de chegar ao Aeroclube, onde acontecerá sei lá u
quê, que você mesma disse!!!
--- ... --- respondeu Simone.
--- heim? --- eu perguntei insistente.

Desci para o cais apressado, e conversei novamente com os dois homens. Tinha que
trazer novos dados, e como eu tinha aprendido a mentir com ética ao conviver com
algumas pessoas, decidi mentir o menos possível omitindo parcialmente minhas
intenções. Soube da boca dos dois que o barco estava pronto. Eles tinham reunido alguns
jovens estudantes de pedagogia, história e filosofia, parentes deles que estudavam na
única faculdade da cidade, acordaram cedo, estavam esperando mesmo, talvez, algum
sinal do céu para suas mudanças sociais, era isso?. Tinha lá umas nove pessoas. Há, há,
há ... he, hé, hi, hihihi, ... (vocês sabem como a televisão nunca mostra as manifestações
verdadeiras do povo). Os estudantes se aproximara e me cumprimentaram!

35
Parte XXIV

Com uma despedida simples, mas acolhedora, deixamos o cais de Aimorés em direção a
um lugar que eu não sabia onde. Estávamos próximos à divisa de Minas com o Espírito
Santo. Dei uma rota imaginária ao barqueiro enquanto o vendedor de peixe acomodava
Simone, que estava ainda fraca, mas tinha se animado, voltou a exibir aquele olhar de
maluca-superativa, que examina tudo ao redor e fala de tudo. Desatou a falar francês, o
que deixou os dois homens admirados, juntamente com os nove estudantes que
superlotaram o barquinho. Foi nesse momento que percebi que estava cheio demais
aquele lugar! Quando saíamos de Aimorés, fomo entrevistado pela rádio da cidade, e mal
o barco avançou pelas águas, pude ver pessoas de terno e gravata conversando com
moradores, familiares que vieram se despedir de seus revolucionários. Ficaram lá,
olhando pra gente. Eu pude ver. Por que não fizeram nada? --- talvez Simone Weil não
seja importante para esses compatriotas. Deve ser apenas mais uma maluca ativista
ambiental que sai por ai impedindo navios japoneses de caçar baleias, ou se
acorrentando à árvores milenares nos E.U.A. para impedir desmatamentos. Mas Simone
era santa nessa história, coitada, tinha acabado de ter uma crise e tentado suicídio, meu
deus! Ela ainda estava com a pulseirinha do hospital nos pulsos, cobertos de
esparadrapos para secar os fundos cortes da gilete! Senti uma angustia enorme. Olhei e
não vi mais a margem do rio, já estávamos em alto rio doce, navegando, a espera dos
helicópteros da imprensa. Foi quando eu decidi explodir:

--- gente, gente, gente!!! Não posso mais acobertar meu próprio erro! Eu menti! Não existe
nenhuma manifestação a favor do rio. Eu inventei tudo isso! Essa mulher, Simone, --- eu
me levantei apontando freneticamente para a francesa, --- não é uma ativista! É apenas
uma maluca que acabou de tentar o suicídio. Eu estou fugindo com ela, a despeito da
embaixada da França e provavelmente da polícia federal estarem atrás de nós dois agora!
--- eu disse. Aquilo saiu de mim como um jato de caganeira. Sentei no chão e esperei a
pancadaria e a reclamação.

Ficaram quietos todos. Simone se levantou e começou a bater palmas pra mim, sorrindo!

36
Parte XXV

Eu não entro no teu jogo mais. Não faço parte da tua neurose mais. Você é do tipo de
pessoas que faz as coisas ruins e depois as contempla como se fossem feitas por uma
outra pessoa, não tem a mínima responsabilidade pelos atos que faz e sempre coloca a
culpa num sujeito imaginário que no fundo é você mesma. Dupla personalidade? Até teus
amantes dizem sobre seu problema de cabeça, pergunte pra eles. Você não consegue
fazer a leitura de seus próprios atos e fica se queixando pelos deslizes e burradas que
você faz. Nossa, eu fodi tudo mais uma vez, ... --- é o que você diz espantada. O mais
surpreendente é que você não evolui desse estágio infantil, não é uma pessoa adulta
ainda, não assume o que fala e o que faz como coisas que você quer falar e quer fazer.
Acha que as pessoas vão receber tuas merdas (no sentido psicanalítico, que você
infelizmente não teve estudos sobre), e tudo ficará bem. Não imagina que as pessoas
tenham sensibilidade ou amor próprio.

Tudo que sai de nós é o que queremos, somos livre e independentes. Apenas as crianças
não podem ser responsabilizadas pelo que fazem pois ainda não desenvolveram suas
perspectivas lingüísticas. Mas é claro, você não entende nada do que eu digo. Seu grau
de imaturidade faz você ver um mundo colorido e/ou cor de rosa onde você é a
injustiçada, onde as coisas que você fala e diz são independentes do que você é. Muitas
pessoas se surpreendem com o que eu digo, pois tomam você como uma alma muito
boa. Eu sugiro a essas pessoas conviverem mais com você. No fundo você se acha uma
pessoa boa e honesta, temente a deus. Mas isso só prova o desconhecimento que você
tem de você mesma. É só ter um pouquinho de maturidade e reparar que você é muito
pequena emocionalmente, muito tola. Realmente tenho desejo que você amadureça e
que o próximo ser que você ame não seja tão humilhado, agredido, traído e violentado em
nome do que você hoje chama de amor, mas que é amor só dentro de sua cabeça! Só lá
dentro da tua mente é que a palavra amor pode se aplicar ao que você faz. Apenas isso.
Mas você não faz amor, não é capaz. Espero que consiga um dia, e nesse dia eu nem
mais me lembrarei de você, e espero que você também se esqueça de mim. E a tua
promiscuidade então? Incrível.

37
--- como assim? --- perguntou Simone, --- porquoi você me diz isso? --- perguntou a
filósofa. Já era o meio da tarde.

Paramos o barco no meio daquele rio todo fedorento e poluído, enorme, cheio de esgotos
das megacidades mineiras crescidas em nome do progresso industrial, ou em nome de
Jesus. O barqueiro e o vendedor de peixe estavam desolados, choravam e se
consolavam. Sem a mínima capacidade de reação. Parados, fumavam enquanto o
barquinho se sacudia preguiçoso, movido pelas ondas de cocô, cadáveres e entulho
químico.

Os estudantes estavam reunidos no único quarto da embarcação. Depois da minha


revelação bombástica de que estávamos em fuga clandestina, e que nada daquilo era
uma causa ecológica, eles resolveram tomar conta de situação e montaram um comitê de
decisão popular. O líder era o menino Kelsen, um daqueles filósofos inflamados e
revolucionários, que a cada duas palavras que dizia, uma era “guerra-contra-os-facistas-
capitalistas-selvagens-norteamericanos-filhosdaputa”. Eu sei, eu sei, isso não é uma
palavra, é uma expressão inteira. Mas vai falar isso pro cara. Ele não me escuta. Ele quer
apenas a revolução. Queria saber o que estão tramando dentro daquele quarto do barco -
-- eu disse.

--- porque você está falando essas coisas pra mim, mon cher? --- perguntou Simone, que
era a figura mais serena da embarcação. Provavelmente sem entender nada.
--- eu não sei, acho que é por que estou sofrendo ainda, só isso, ... --- eu disse sem olhar
pra ela.

38
Parte XXVI

(Dentro do quartinho, dentro do barco, no meio do rio Doce totalmente poluído cheirando
a peixe morto, gordura, sabonete de lavanda e desinfetante pinho)

Kelsen: a gente foi enganados, companheiros, mas há males que vêm pra bem?! Essa
estrangeira vai atrair a mídia e as autoridades para nós, e então teremos a oportunidade
para discutir com a sociedade o problema do rio Doce destruído pelas intervenções
industriais-urbanas. Eu acho que deveríamos amarra-la na proa do barco e chamar a
imprensa! --- disse o filósofo raivoso.

Clarisse: eu acho que a gente deve desistir completamente dessa idéia e voltar pra
Aimorés. Não tem jeito, a gente já perdeu. O rio já acabou, os peixes já morreram e a
sociedade está muito satisfeita vendo a televisão e desejando comprar o carro mais novo
e mais luxuoso. A natureza de minas gerais já está acabada. Desistamos, companheiros,
desistamos, ... --- fala Clarisse se lamentando profundamente.

Kelsen: mas o que é isso companheira? --- pergunta indignado

Andersão: eu não sei, mas acho que há uma saída. Temos que transformar isso, que foi
uma fraude desses dois porcos estrangeiros capitalistas em vantagem para a nossa
causa. Vamos encher o barco de faixas e navegar até Belo Horizonte, fazer o caminho
contrário, e em todas as cidades que a gente for parando pelo rio adentro, a gente faz um
showmício e agrega mais companheiros. Podemos chegar com uma multidão de barcos
até a entrada fluvial de BH e exigir do prefeito pimentão uma ação, uma vez que 50% da
poluição do rio Doce vem do cú dos moradores de BH e de seus hábitos perversos de
consumo! --- fala o cara se exaltando. Do lado de fora Simone e o quarentão aguçam os
ouvidos para escutar os gritos e palmas que saem do quartinho, de portas fechadas.

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Adalci: gente, gente, temos que conectar com o mundo, via internet, apresentar nossa
causa às entidades de defesa do meio ambiente espalhadas pelo mundo. A situação do
rio Doce interessa apenas aos empresários. Se a população mineira tomasse real
conhecimento do que está acontecendo todos nós nos uniríamos contra a ganância das
mineradoras, pô!

Kelsen: questão de ordem, questão de ordem, ... --- diz o líder gesticulando com as
pontas dos dedos contra a palma da mão.

Ivone: eu concordo com a Adalci e com o Andersão!

Ivonete: eu concordo com minha irmã Ivone! --- diz a mais nova do grupo, estudante de
pedagogia social em Aimorés.

Ivana: eu concordo com minhas duas irmãs e com os outros!

Pedrinho Taquaraçu: e eu tou muito afins de fumar uma maconha. Alguém tem um fininho
ai? --- diz o jovem cabeludo revirando sua mochila procurando uma pontinha que ele tinha
guardado para ocasiões tensas como aquela!

Genílson: vamos agir, galera!

40
Parte XXVII

Ivone: sutilezas das imagens que a sociedade nos ensina a ver com a realidade
indubitável. as máscaras que cobrem a mentalidade das pessoas, a linguagem vadia das
palavras e das mentiras, os oráculos falsos da felicidade momentânea, as perpectivas
insones e levianas do consumo desenfreado, as mazelas consequentes da fome sem
limites, a fome sem limites, desde a maçã de Eva...

Ivonete: desde a maçã de Eva, ...

Ivana: desde aquela droga de maçã e daquela droga de Eva, ...

41
Parte XXVIII

Expectativas? Palavras boas que você espera, notícias glamurosas, como aquelas que as
pessoas que se julgam famosas esperam? Uma rede de TV interessada em você? Um
público fiel a te implorar mais uma foto? Mulheres e homens bonitos de assediando? E os
objetos de consumo?

E os objetos de consumo, e as coisas que você quer comprar para adiar sua morte? Não
sabe que nada tiramos da terra? Não sabe que nada levamos daqui? Não sabe que
temos que ensinar nossos filhos a serem valentes?

Você não sabe como existem seres humanos monstruosos, ... existem seres humanos
monstruosos. Existem seres humanos que vestem vestido, ternos, gravata, fardas,
batinas, e outras roupas, mas são monstros. São animais completamente violentos e
destruidores de alma. São aqueles monstros que Jesus nos advertiu que poderiam comer
nossas almas. E eles estão em grande quantidade nas televisões, nos senados, em toda
parte, na faculdade de educação. Mas nós nunca saberemos quem são. O pior de tudo é
se nós mesmos formos um desses. Que desastre. Nem nós mesmos poderíamos mais
resolver. Estaríamos perdidos, perdidos, perdidos. Matando e destruindo sem saber que
somos nós mesmos quem fazemos isso. E então? E então? Vai esperar o convite para o
big Brother? Vai publicar no orkut tuas fotos de roupas íntimas? Vai reconstruir teu perfil
para que outras pessoas se interessem por você? Ou vai simplesmente observar as flores
de teu jardim, as flores e as plantas e as borboletas, que estão lá precisando de sua
atenção. Abandone os monstros. Abandone os fanáticos por automóveis, abandone os
consumistas, deixe eles se rodearem e roerem toda a riqueza. Pense na tua alma. Pense
na tua vida. Não fique esperando que alguém te ensine que amar é o melhor. faça o
simples, ame, ame tudo ao seu redor, tudo que está vivo, pense na vida, proteja a vida,
proteja a vida dos pequeninos seres do Brasil, das Gerais, das Alterosas, das Minas, ...

Kelsen: mas e daí, o que faremos concretamente? O que faremos daqui a uma hora? O
que diremos daqui a dois minutos. Você se esquece do tempo? Do tempo que nunca
para. Das necessidades humanas que a sociedade industrial inventou? Eu voto pela

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revolução agora, imediatamente, em todos os aspectos da vida, em todas as partes.
Temos que agir. Temos que agir agora. O mundo precisa de nós. O rio doce está atolado
de destruição, ao nosso redor, na nossa rua, árvores sendo derrubadas, animais sendo
extintos. E para quê? Para que uma vagabunda qualquer tenha direito a pilotar seu carro
importado? Putamerda! Não dá pra vender o Brasil em nome do conforto de algumas
piruás de classe alta e seus maridos empresários. Não podemos aceitar, porra! --- diz o
jovenzinho gesticulando. De repente ele começa a chorar. Pensa na infância, pensa em
como era bom nadar o rio Doce, nas margens de Aimorés. Pensa nas vagabundas de
luxo que estão infestando BH, São Paulo, Rio de Janeiro. Em nome do luxo e do bem
estar, tudo aquilo viraria lixo e pó de minério. Em nome de poucas pessoas, em nome do
desejo de ter um automóvel como demonstração de sucesso pessoal, em nome da
civilização industrial norte americana e européia, o brasil continua a ser colônia de
exploração. --- não queremos o desenvolvimento deles! Não queremos celulares cada vez
menores e mais cheios de coizinhas, se o preço for a nossa natureza, caramba! Não
podemos aceitar as evoluções industriais. Não pdoemos aceitar isso, não podemos, ... ---
o rapaz explode em prantos. --- queremos olhar os Jacarandás, os Ipês, e ouvir o canto
dos pássaros, e ver os peixes e aprender com a natureza que Deus nos deu, aprender o
que é ser humano, aprender o sentido da vida humana, e nãoa cumular riquezas para os
filhos da puta capitalistas, empresários microemrpesários, pequenos empresários,
qualquer tipod e empresário que odeie o brasil e suas vidas. o brasil é o maior país em
biodiversidade, pelamordeddeus, pelamordedeus, temos que fazer algo, temos que surtar,
todo mundo, cuidando de suas ruas, de seus bairros, lutando pela vida, e não fazendo
festa em torno dos objetos de consumo, como nas propagandas de TV, prostitutas,
prostitutos, desde criança, rindo e vendendo, vendendo, vendendo, mentindo que estão
do lado das alterosas. Minas Gerais? As Gerais? nossa terra? Alterosas? Alterosas que
nada, estão querendo mais lucro, lucro, lucro e desenvolvimento, lucro e dinheiro. não
estão do lado do povo coisa nenhuma. querem vender jornal com a violência e sangue
das pessoas, porra!!!!, e o rio doce, e os pescadores, e a natureza? eu não aguento mais
isso, gente, não aguento. vou trancar minha matrícula, vou desistir da faculdade e de
tudo, ...

Andersão: depois disso tudo. eu voto por fumarmos um beck.

Ivone: eu lhe enxugarei as lágrimas Kelsinho,

43
Ivonete: eu cuidarei de você, Kelsinho, calma, ...

Ivana: e eu acendo o bagulho pra nóis, ...

Genílson: e eu comunico a todos lá fora nossa decisão!!!

(Quando finalmente minha vida foi entregue pra mim mesmo, quando minha mãe me deu
minha própria vida e minha própria morte, eu imaginei que seria mais fácil, afinal sempre
me achei uma boa pessoa. Mas agora vejo que eu estava errado. Dos meus quarenta
anos, vinte e tantos foram só meus, só meus, eu vivi por minha própria conta, com meus
próprios ideais e desejos a serem experimentados, sem nenhum outro superego para me
oprimir além do meu próprio, e veja o que eu fiz. E o que eu fiz? Nada. Nem mulher, nem
casa, nem carro, nem amigos, nem filhos, nem parentes, nem prestígio, nem fãs, nem
minha foto no jornal, nem plano de saúde ou emprego estável, nem planos de nada.
Apenas meu lamento enorme do que eu não sou capaz de viver agora.

Pois é, o que fazer com esse frio na espinha, Simone?)

...

--- escrevi sete livros. --- respondeu Simone.


--- que bom. --- disse eu, sem muito ânimo na voz. Só de pensar em escrever uma
página, eu já me canso. Sou da cultura oral, gosto de falar. Mas d´escrever, não gosto
muito.
--- e porque você escreveu tanta coisa? E se ninguém ler isso que você escreveu? ---
perguntei com aquela ironia brasileira na cara.
--- m´emport pás! --- disse a francesa. Ela estava tentando misturar as coisas? --- eu
pensei? Não dá pra saber...

Anoiteceu e paramos a embarcação em um pequeno porto de pesqueiros do velho rio


doce, a uns 150 km de Aimorés, de onde havíamos partido pela manhã. Taquaceri-ka era
o nome da vila. Mas as pessoas naquela vila não viviam mais da pesca e nem da
agricultura, como seus ancestrais. Além do rio Doce estar completamente poluído, os

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grande fazendeiros compraram as terras dos pais daquelas pessoas, na base da coação
e da violência.

Paragam preços irrisórios, desviaram água de açudes e riachos para as terras e lucram
milhões com o agronegócio, despejando toda quantidade de detritos no rio morto, os
filhos são deputados e as filhas advogadas, os netos cravam suas garras nas tetas da
mãe Minas, e sugam com a boca cheia de dentes afiados, toda riqueza popular e
brasileira dessas terras para si mesmos.

Os nossos dois barqueiros primos desceram e foram ao vilarejo Taquaceri-ka. Os


estudantes também desceram e se reúnem nesse exato momento com as lideranças
estudantis da cidade. Esses comunistas encontram simpatizantes por todas as partes, é
incrível! Mas o que estudantes podem fazer por um rio morto e contra rotas infreáveis da
civilização européia devastadora de biodiversidades?

Ficaram aqueles dois dentro do barco, Simone e o outro, dentro do quartinho que estava
com todos os pertences dos estudantes e com o restante das coisas dos dois barqueiros.
Estavam assentados nos beliches arcaicos. Na penumbra e num silêncio de minutos. Do
lado de fora um ou outro pássaro cantava. As aves pareciam se lamentar da desgraça do
grande rio Doce.

Simone olha para aquele homem arruinado à sua frente, cheio de rugas e cabelos
brancos, sem vontade de nada, nem de peidar.

Ela olha, um olhar macio. Que resta a ela se não encontra satisfação na vida ordinária
das pessoas? Que culpa tem ela por não se sentir igual aos demais, nos hábitos mais
simples, nas formas mais cotidianas de existir. Como seria gostar de alguém, gostar de
alguém de verdade? O que é ter a buceta chupada por alguém? Isso aquela filósofa não
sabia, e nem iria saber, mesmo que ela soubesse que não iria saber, mesmo assim ela
não saberia!

Que complexo. Simone dá uma risada para si. Olha para seus pés, seu sapato velho,
maior do que o seu número. Uma herança dos tempos em que ela trabalhou numa
fábrica, pesquisando para sua pesquisa de mestrado.

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--- sete livros. E você tem razão, talvez ninguém os leia nunca, ... --- lamentou Simone.
--- pois é, que inutilidade você fez, heim? --- o homem falou em resposta. Queria fumar.
Estava sem cigarros. Queria se embriagar de novo. Aquela situação estava ficando chata.
Cadê a embaixada e a polícia federal, cadê a perseguição e a imprensa? Simone ainda
tinha nos pulsos as fitas de gaze. Se sentia fraca, estava pálida e sonolenta. Coitada
dessa biruta --- pensou o homem de quarenta anos de idade olhando para a franzina
filósofa pobre.
--- você não quer dormir um pouco? --- o homem perguntou gentilmente, tirando de dentro
do que restou de sua mineiridade, alguma amabilidade.
--- não sei. Quero ir até a reunião dos revolucionários. --- disse Simone.

--- ah, putamadre! Ce quer ir lá ficar escutando essas pessoas? --- disse o homem se
desistindo. --- Não é melhor ligar para Glauciajorge? Não é melhor dormir? Ou ficar
calados um tempo?
--- não. É melhor a gente ir ver. E quem sabe participar. --- disse Simone se levantando e
saindo do quartinho.

--- ...

46
Final

--- quero fazer uma última pergunta. --- Simone me disse.


--- faça. --- respondi secamente.
--- se o combate contra a dengue no Brasil, em minas Gerais, tiver sucesso, então todos
locais onde tiver água parada não haverá mais, e então, onde os pássaros irão beber
água. Não estou falando de pardais e pombos europeus, que viram com a corja da
Europa para infestar as cidades mineiras. Estou falando de aves que vivem no Brasil.
Onde elas beberão água se não houver água parada? Estamos falando em deslocar as
pouquíssimas aves para parques nojentos como o parque municipal de BH? --- me diz
Simone.
--- mas que pássaros? Não existem aves nativas em BH. Todas desapareceram em 1988,
não se lembra? Quando a lista de extinção do Ibama decretou a extinção de 450 tipos de
aves, por que estavam sujando os automóveis de Belorizonte? Não lembra do decreto do
prefeito? Que acabava com as aves poluidoras? --- perguntei. Esperava o óbvio. Simone
pegou minha mão e aproximou de suas pernas. Puxou suavemente minhas mãos,
pressionando a região de sua vagina, fazendo círculos em torno dela, primeiro por cima
da calça, depois, enfiando minha mão para dentro da sua calça, com suas mãos sobre a
minha, apertava levemente e eu pude sentir os crespos. Eu olhei para ela e então ela
trouxe as mãos e as minhas mãos para sua boca e beijou minhas mãos suavemente, e
apertou contra o seu rosto, pedindo carinho. Eu fiquei olhando para a pequenina mulher
segurando minhas mãos com os olhos fechados, como se pudesse sentir muito mais, pelo
simples fato de estar segurando minhas mãos. Como se fosse uma aspiração infinita
encontrar um amor qualquer, verdadeiro.
--- sai de mim! --- puxei minhas mãos de volta, empurrando a mulherzinha para o lado. ---
como assim? “amor verdadeiro” --- perguntei aos gritos. Lá no longe um cachorro latiu.
Caminhávamos de noite, na estradinha que ligava o cais ao local de reunião dos
estudantes e pescadores. Que estavam se organizando para alguma manifestação contra
as mineradoras e o governo para acabar com a poluição do rio Doce. Descemos do
barquinho e nos apontaram um matagal falando que a casa da reunião era lá. E
caminhávamos até que Simone veio com a conversa sobre a dengue e sobre a com-versa
fiada de acabar com a água parada sem ao menos um planejamento de áreas de reserva

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ambiental. A destruição ambiental era um dos motivos da epidemia de dengue, mas era a
última coisa que era repensada. Que bosta era isso!
--- sai de mim com essa conversa sobre amor! --- repeti. --- você quer me dar essa sua
bundinha, pegar um sexozinho degrátis e ficar numa boa. Mas ontem você estava se
suicidando vergonhosamente, como você pode explicar o amor? Ocê estava querendo
voltar para a França, não éh? Estão nos procurando, as pessoas da embaixada, não éh? -
-- eu perguntava, com o dedo na cara dela. --- ocê não acha que eu poderia sofrer, não
éh? Não pensa que eu posso gostar e ficar fodido por ai, pensa? Pois eu posso gostar pra
carái, ocê saiba disso!!! --- eu respondi puto.
--- mas é exatamente isso que eu quero! Há, há, há, há, há, há, há, ... --- pela primeira vez
na vida, Simone Weil dava uma gargalhada brasileira. Aquilo foi incrível! Fiquei bobo. ---
he, he, he, he, hi, hi, hi, há, há, há, …. --- gargalhava de alegria, Simone.
--- é exatamente o que eu quero. Que você se apaixone por mim. Eu me apaixonei por
você, e quero ficar com você. Vamos lutar aqui em Aimorés, vamos ficar aqui com os
estudantes e começar uma vida diferente, o que acha? --- me perguntou. E nesse
momento eu percebi que eu falava fluentemente o francês.
--- no seré yo el último hombre de la tierra! --- respondi. Continuamos a caminhar, eu fui
ignorando as propostas. Os médicos me disseram que os suicidas que recebem
transfusão passam por momentos de delírio, falta de glicose e tudo mais. Mas para
agüentar aquelas besteiras, uma vez que eu estava disposto a ficar do lado de Simone,
eu teria que beber um pouco mais. Avistamos uma casa. Com as luzes acesas, um
enorme quintal sem cercas, com muitas árvores ao redor. Umas bicicletas paradas. De
alguma forma um bando de pessoas importantes para uma reunião. Um cavalo arriado
perto da porta dizia que vinham pessoas da roça para participar. E com certeza os
jagunços. Vocês sabem que no Brasil, os líderes revolucionários sempre são
assassinados? Principalmente os indígenas, principalmente os pescadores,
principalmente os estudantes, e principalmente os filósofos? Pois então é em nome deles
que a gente deve repensar a natureza.

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Tira o chapéu e tira de dentro do chapéu algumas rosas
Numa mágica
Se aproxima e me entrega, o primeiro da fila
............ recebo
Olho para os olhos do palhaço
Estão cheios de fogo
Compreendo.

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Ajharmas se sentou naquele café
parte 1

Ajharmas se sentou naquele café, na rua da igreja de Saint Pierre. Havia muitos cafés ali,
mas aquele era especial, era um café armênio; um pai e um filho, refugiados da Armênia,
vendiam seus sandwichs. Ajharmas se apresentou como brasileiro. O armênio ficou
satisfeito, mas nada sabia do Brasil além do fato de que havia algo no mundo chamado
Brasil, era um país, tanto que um exemplar, falando um péssimo francês, se apresentava.
Falaram sobre literatura, Ajharmas se apresentou como um filósofo, que pesquisava, e
isso acertadamente, o francês Gaston Bachelard. Aquelas tardes de fria filosofia. De
repente, uma japonesinha francesa entra na loja do armênio. Ela tira as luvinhas cor de
rosa que cobrem suas delicadas mãos. Ajharmas repara na doçura daquelas mãos
moinhas e ele desesperadamente pensa logo na boceta daquela mulher. Ajharmas fica de
pau duro imediatamente, e decide: com ou sem o francês vagabundo, ele irá investir
emocionalmente nos próximos cinco minutos.

Foi o que Ajharmas fez. A japonesinha francesa, num perfeitíssimo francês, claro,
musical, cristalino, algo como um dom de falar outra língua. Ela devia dominar
perfeitamente o inglês, e talvez o alemão, e, é claro, devia falar coisas bonitas em
japonês. Ajharmas pensou, que se aquela mulher o amasse, ela podia dizer coisas
secretas em japonês, só para ele, do fundo da boceta dela, do fundo da alma. Era isso
que aquele rapaz tradicional da Turquia podia saber fazer. Seu português era também
limitado, tinha tido contato com essa língua através de seu avô. E se a japonesinha
francesa não falasse o português entendível? Ajharmas decidiu que já era tempo da
viagem sem volta. Então ele se aproximou, esperou a japonesinha francesa fazer o
pedido, naquele francês cristalino. O armênio se afastou, e o silêncio caiu sobre os dois.
Duas tempestades. Quando o constrangimento breve ia se instalar, Ajharmas falou
olhando para a mulher. Como você é linda, como você é gostosa, como você é
princesinha do meu coração, linda, gostosa. E bunduda!

A japonesinha olhou para ele por um instante apenas. E se voltou para o balcão.
Ajharmas nem mesmo podia ver mais seu rosto, mergulhado debaixo daqueles cabelos
puríssimos de uma antiguidade clássica e grega. Mas ajharmas continuou falando.

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Melodiosamente, no melhor português carioca que ele podia produzir. Depois que falou a
palavra bunduda, ajharmas percebeu que a japonesinha francesa tinha entendido, pois
ela fez um certo movimento, e não era o movimento pela comida, pois o armênio estava
ocupado fazendo aquela gororoba árabe.

A japonesinha se virou para o Ajharmas. E ele viu um olhar castanho. Os olhos finos. Um
olhar do outro mundo. Como o olhar daqueles guitarristas furiosos que vivem entre duas
dimensões: o céu e o inferno. Como Tierro. Ajharmas esperou. A japonesinha apenas
olhou para ele. A palavra bunduda deve tê-la excitado. Excitaria uma mulher
mineira?Teria sido apenas uma frase agradável? Por que aquela frieza? Que mulher fria,
pensou Ajharmas. Nem ficou puta de raiva nem nada, ele pensou, ...

...

...

(... o atual estágio das estruturas sociais de Minas Gerais é diferente dos demais estados
brasileiros? Se olharmos para o desenvolvimento urbano de Rio de Janeiro e São Paulo,
e a contrapartida que são as tragédias que a violência e corrupção generalizada nas
estruturas de poder desses dois estados e o reflexo disso com o aumento da violência e
marginalização, se olharmos para esse quadro podemos inserir Minas Gerais em um
momento anterior, a violência urbana não é tão grande assim, e a destruição ambiental
também não. Mas, se a prefeitura de Belorizonte continuar com a lógica de
desenvolvimento urbano que pretende transformar Belorizonte em uma capital populosa
e industrialmente desenvolvida como Rio de Janeiro e São Paulo, teremos também
problemas semelhantes, como são aqueles de áreas com mais de cinco milhões de
habitantes, que São Paulo chegou a Possuir ainda na década de 60 do século XX. Cinco
milhões de habitantes são uma massa de seres humanos prejudicial a um território. As
obras da famosa linha verde, da prefeitura de Belorizonte, que pretendem ser um marco
no processo de crescimento da cidade, como as propagandas políticas da prefeitura estão
expondo em todos os cantos, estão realizando obras para aumentar a velocidade do
trânsito e a densidade de mercadorias e de estruturas para abrigar mais produção
industrial, mais povoamento das regiões ao redor de Belorizonte, e principalmente; a
urbanização.)

...

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Ajharmas se sentou naquele café
parte 2

Era a hora, pensou Ajharmas, a hora mais sublime, a hora do sexo, ou pelo menos a
tentativa do sexo. Ajharmas disse pra mulher: eu quero comer tua boceta esta noite. A
mulher abriu os olhos o máximo que pode, para ver a luminosidade que emanava de
Ajharmas, e o desejo. Comer? A mulher perguntou. Uma palavra em português que ela
não tinha entendido. O que significa comer a boceta? – a mulher perguntou naquele
phrânce-ês maravilhoso. Então ela sabia português!!! Talvez fosse capaz de fazer
poemas sublimes sobre o amor! Tudo tão maravilhoso que Ajharmas não entendeu nada,
mas percebeu que ela fazia uma pergunta sobre comer e sobre boceta. Era o que ele
queria. Então Ajharmas falou: Os tupinambás que viviam na região de Canavieiras, no
convexo baiano, perto de Ilhéus, admiravam as araras azuis, e outros deuses do
casamento. Entre esses índios era comum a fidelidade e o amor, a confiança e o perdão.
Por isso eles não tiveram nenhuma estranheza com relação às proposições cristológicas
da igreja de Portugal. Entretanto, os tupinambás adoravam o sexo. Então, eles falavam
para suas mulheres sobre seus desejos secretos de devorá-las. Isso as excitava, pois era
uma coisa nobre entre os Tupimambás: comer as pessoas vivamente, ...

O armênio entregou embrulhado o pedido da japonesinha. Ela pegou o embrulho, pagou o


armênio. O armênio ficou olhando para Ajharmas, que também tirou dinheiro do bolso,
rapidamente, num movimento brusco, uma nota de dez euros, o resto de suas economias
para aquele dia. Ficaria sem o jantar por causa disso? E sem o cinema? Ajharmas
ofereceu o dinheiro ao Armênio, pagando também a conta da moça e o refrigerante que
tinha acabado de consumir com um sandwuich de carne de porco.

A japonesinha não fez nenhuma expressão. Trouxe para o peito o embrulho, guardou o
dinheiro num bolso daquele impecável casaco de couro, vestiu as luvinhas rosas de seda
francesa e se virou para sair. Ajharmas olhou para o armênio e ergueu o livro do
Bachelard como um troféu, em silêncio eufórico, saltando, fazendo o homem rir e revelar
que não tinha todos os dentes, depois, correu atrás da japonesinha que já dobrava a
esquina. Ele a encontrou caminhando lentamente e se perdendo nas ruelas que
circundam a biblioteca municipal de Dijon. Quando a viu, seu pinto e seu coração se
tranqüilizaram. O mínimo que podia acontecer era ele voltar caminhando com ela para

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casa e ficar no portão. Ajharmas correu até ela e ficou caminhando em silêncio ao lado
dela. E se ela tivesse algum namorado samurai filho da puta que surgisse derrepente
falando um, um japonês irado blasfemando e bravejando contra aquela investida?
Ajharmas pensou que os cinco minutos que ele estava dando para aquela emoção
repentina estavam se delongando. Mas era a boceta que ele queria naquele instante. E
Ajharmas era um sujeito bem sexual.

( O que ele odiava na televisão era a forma com que tudo que era original
se tornava repetitivo até perder o sentido. O consumo era errado. Os
rumos da sociedade estavam errados. Quando comemos alguma coisa não
estamos consumindo, estamos nos possibilitando. Consumir era para ele
ter tudo o que era desnecessário para se respirar e para escrever um
poema, olhar uma paisagem. Sorrir de alguma coisa simples, amar.
Entretanto nem sendo simples, aquele poeta tinha obtido o fruto desse
amor. Seis anos. O que significam isso, dessa forma posto? Sobre a mesa
seriam seis cartas de um baralho, uma quantidade certa aos olhos
aristotélicos que possuía. Mas ainda sim, ele amava. Disso não podia
duvidar, era como uma outra espécie de cógito, uma outra maneira de
significar o eu. A quantidade de amor que podemos sentir.)

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Sobre as Emoções Circulares
e os Pensamentos Repetitivos

As emoções circulares são aquelas dinâmicas fisiológicas, as pulsões, que se


aquitetam em procedimentos que não transcendem ao epifenômeno inicial. Uma vez
localizadas, uma vez manifestas, se movimentam no corpo e retornam ao estágio inicial,
esperando a próxima vez para outra manifestação. Na verdade elas funcionam como
conectivos funcionais de memória e de verdade. As emoções circulares são dinâmicas de
nossas fisiologias, necessárias para que o organismo funcione como elemento do
sistema. Essas emoções organizam as tensões e a liberação das tensões. O prazer, por
exemplo, é uma experiência de geração de tensão emocional e de libertação. Na
libertação temos a sensação prazerosa. Esses procedimentos guiam nossas ações, que
na verdade são ações de sobreviver. Sem esses mecanismo de geração e de libertação
de tensões orgânicas, nossos atos seriam desconexos e sem sentido, pois teríamos que
contar com um pensamento consciente durante todos os instantes para realizar as tarefas
mais simples. Não abandonemos esse problema, mas avancemos. Tratamos aqui das
emoções circulares. Essas emoções são procedimentos de geração e de liberação de
tensões fisiológicas que, ao serem executadas, guiem nossas ações para determinados
fins, conscientes ou não, que estão relacionados com a sobrevivência. As emoções
circulares promovem um círculo de procedimentos gerativos, e nesse círculo nós
organizamos o que chamamos de realidade. A realidade não é apenas um dado racional,
não é apenas um dado cognitivo. A realidade é um dado emocional, sobretudo. Por esse
motivo, quando estamos bem, as coisas estão bem, e quando estamos mal, o mundo
t]inteiro à nossa volta está mal. Podemos dizer que as emoções circulares são parte da
arquitetura do que consideramos realidade, pois estabelecem as disposições de nossos
corpos para lidar com as outras pessoas e objetos ao nosso redor. As emoções
circulares, que se iniciam em um epicentro e retornam a ele depois de gerar a tensão e as
formas de liberação dessa tensão, são procedimentos de baixa energia e são utilizadas
em muita freqüência. Através delas organizamos nossos mundos conscientes, surgimos
para os outros. Há uma série de emoções circulares. Essa variedade de emoções
circulares têm uma relação com as possibilidades culturais. tomemos duas emoções
circulares interessantes, o rancor e o ódio. Não podemos nos esquecer que nosso corpo é
movido a emoção. Saltamos de uma emoção a outra, e é isso que nos faz andar, comer,

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transar, caminhar, sempre estamos emocionados para todas as coisas da vida. Viver é
uma soma de inúmeras emoções. algumas se renovam, outras jamais sentiremos. Há
emoções que não se repetem pois dependem de uma série de fatores. As emoções
circulares se renovam constantemente, pois é através delas que temos um ganho de
energia cotidiano. tendo rancor, ou ódio, nos alimentamos. Quando fazemos com que
nossos alimentos fisiológicos provenham repetidamente das mesmas fontes, nos
tornamos circulares. Por exemplo os Advogados, que circularmente se alimentam de
rancor e de ódio (ou mesmo os poetas, ressentidos que são).

O rancor é uma emoção circular fundamental para o sistema capitalista. Para que
sejamos consumidores, devemos estar plenamente imbuídos de rancor. Rancor pelo que
nos falta, rancor pelo que não podemos ter. esses condicionantes estabelecem em
nossos corpos a circularidade, o círculo vicioso do rancor. Uma vez iniciado ele só será
resolvido, e temporalmente, com a ação de liberação da tensão gerada, o ato de
consumir. Não trataremos aqui de uma anatomia do rancor e nem de uma análise da
política dessa emoção. Primeiramente observaremos os efeitos fisiológicos dessa
emoção. É uma emoção circular pois o rancor é uma disposição do corpo que não se
resolve. O objeto imediato do rancoroso não pode ser precisado, é um estado do corpo.
Está associado às mãos e ao coração. São os órgãos mais afetados por essa dinâmica
(me permita uma apropriação de Willian Reich). Mas não é possível uma corpometria para
imaginar esses afetamentos. O rancoroso sofre do adiamento da realização de suas
intenções. A tensão gerada no organismo é uma tensão que antecipa a sua não
realização. A liberação da tensão acontece num tempo posterior ao desejado. O rancor
então se manifesta num círculo que se inicia com o impedimento e termina com outro
impedimento. O impedimento inicial do consumidor rancoroso é o fato de não possuir o
objeto que lhe é apresentado como significante de sua tensão. O impedimento final é a
própria posse do objeto, que não pode realizar o que o objeto lhe promete. Ser belo nunca
é ter beleza. A beleza está sempre a um passo além de qualquer esforço para tê-la. Ela
precisa ser assim para que sejamos rancorosos conosco mesmos e com nossos esforços.
O rancor é a base da traição, outra emoção circular.

Conectivos funcionais são associações, em princípio livres e depois normatizadas,


que ligam as emoções circulares, pensamentos repetitivos e consequências desejadas. O
alívio do consumidor quando aperta em seu peito a mercadoria desejada, aqueles

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segundos de satisfação, mostram para ele que o mundo tem sentido, que seus esforços
rancorosos podem ter sucesso, são a realidade. Esse minuto de satisfação é o minuto
onde a realidade se justifica, existe, é real. Isso nos leva a criar uma grande associação
entre as emoções circulares, os pensamentos repetitivos e as consequências de nossas
ações. Essas três coisas surgem de uma vez só, em um único bloco de coisas, um
fenômeno. E a cada vez que repetimos o ato rancoroso a realidade se torna mais
realidade, a Matrix se torma menos Matrix, e mais realidade. Até que nem suspeitamos
que o que fazemos é o contrário do que fazemos. Essa é a função de um conectivo
funcional, fazer com que um ato, muitas vezes repetido, perca o sentido nele mesmo,
perca a crise, e seja incorporado entre os elementos que consideramos como “reais”,
“objetivos”, “confiáveis”. O rancor, a dinâmica do ressentimento, emoção circular contra o
mundo, contra os outros, contra os objetos,é o que nos move.

Não desejar nada. Não querer nada. Não sentir necessidade de nada além da
própria vontade de viver. Eis a quebra dessa emoção circular. Sentir que não se deseja
nada, sentir que não se quer nada, sentir que não se tem necessidade de nada além da
vontade de viver.

As emoções circulares estão associadas a um valor cultural, que surge na


descrição que fazemos ao observar o comportamento do sujeito e ao mesmo tempo na
auto-identificação desse mesmo comportamento em nós. Sabemos quando estamos
sentindo um rancor. Sabemos quando um comportamento é repetitivo. Um pensamento
repetitivo está associado a uma emoção circular quando o procedimento de geração da
tensão e da libertação é acompanhado por uma minuciosa auto-descrição desse
comportamento. Entretanto as correções sociais podem nos fazer não perceber a relação
entre o que pensamos e o que sentimos. As “Terapias” são procediemntos culturais
contemporâneos para ajustar as emoções circualres e os pensamentos repetitivos. O
amor não é uma emoção circular, e nem gera um pensamento repetitivo. Depois
trataremos do ódio.

A MATRIX rastereou a presente mensagem.

Esqueçam tudo o que eu disse acima.

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A MATRIX decompõe já o sentido.

O mundo volta a ser o mundo, sem as minhas palavras.

Você de novo está sem o entendimento.

O que ficou?

Pense.

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Les Tan-pis
Tan pis; crônicas dos tripulantes do navio pirata "Nova Esperança". A partir de agora apresento comentários
de meus marujos, trabalhadores do navio “Nova Esperança”, que muito batalhou por esses oceanos,
saqueando navios, queimando cidades e ervas, roubando mulheres para vender nos comércios clandestinos
da Ásia, tocando em bares e teatros vagabundos (temos uma banda de música pirata) e bebendo o néctar dos
deuses: O Run!

Elias
vulgo "o gordo"

“... era aquela comida porca que eu tinha que comer. Aquela mulher era dada a não ter
nenhuma habilidade doméstica, desleixada. Com o tempo eu me associei a ela, para
sofrer, com certeza, era minha sina, meu carma, permanecer com ela pelo sofrimento que
isso me gerava dentro do mais íntimo: quando um homem é atingido no seu profundo, ou
seja: na sua capacidade de acreditar no amor das fêmeas da espécie, para fins de
procriação, ou de outras coisas. O certo é que eu tinha carregado aquela cruz até aquele
ponto. De súbito eu fiquei prateado por dentro, como aquelas peças finas e cortantes de
prata, o melhor metal para se matar, o mais frio, o mais enrijecido, o mais peniano dos
metais, uma espada de prata, forjada com tantas dobras de metal a temperaturas
altíssimas, que tinha se tornado incriável: eu seria capaz de ver novamente a mulher que
eu amaria, que eu amava, qualquer mulher que eu tenha amado profundamente, seria
capaz de vê-las, todas ao mesmo tempo, sendo violadas noite após noite por uma
população carcerária masculina, que eu nada sentiria. Tinha morrido em mim um certo
apreço que eu ainda tinha pelo corpo da mulher. Depois de ver o que se pode fazer com
um corpo de uma mulher, e o que as próprias mulheres fazem com seus corpos: eu tinha
33, e ela 41, de voltas solares anuais, e já eram sete anos de casamento, na igreja e tudo
mais. Nenhum filho, e dois abortos. Mas agora eu estava já sem alma, meus adultérios
forçados. Tudo isso de tanto me deitar com as putas, que me ensinaram que por dinheiro,
por safadeza, ou por inteligência demais era possível fazer qualquer sexo sem culpa em
qualquer situação com qualquer pessoa por qualquer motivo. Um ensinamento que eu
não queria para mim. Eu era prateado até aquele momento. Minha coisa mais íntima
dentro daquela coisa mais íntima ainda era isso: aquela castidade que tinha surgido
dentro de meu corpo, como se todo metal frio de prata que tivesse revestido meu coração

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fosse feito de nuvem, de um instante para o outro, depois de um simples pensamento
sobre as coisas boas do universo.

Eu tinha percebido isso, que não era de amor aquela situação, e que eu não veria
realizado com aquela mulher meu sonho de ter quatro filhos completamente mestiços,
que eu tanto queria, com todas as ascendências orientais e indígenas de nossas famílias,
assim como os italianos e africanos que também fizeram sexo com nossas avózes, a-
vozes, avó-zes, as formas de falar essas palavras portuguesas. Eu então levei aquela
mulher no mais alto da montanha, para que ela contemplasse o que seus próprios atos
significavam. Eu queria me livrar, fugir, mas ao mesmo tempo meu corpo queria se
comportar como o corpo de uma criança; cheio de choro, e de manhas, e de gestos
violentos repentinos, e de gestos apaixonados instantâneos, meu corpo queria chupar
meus próprios dedos, chupar teus peitos, chupar tua boceta, chupar tua boca, chupar teus
olhos, numa fixação oral desesperada, triste, solitária, mas eu não precisava pensar mais
nisso, isso era lembrança do passado para um coração alegre. Entretanto havia ainda a
pedagogia, era ela, a pedagogia, o compromisso filho da puta que acaba surgindo dentro
daquelas almas que nada mais pretendiam senão reajustar o equilíbrio desequilibrado das
forças do bem e do mal, que atualmente pendiam, desenfreada mente para o fracasso da
experiência humana na natureza do planeta terra. Então, eu levei a vagabunda da minha
mulher para um lugar que ela não conhecia, e fiquei calmo e bom, e a tratei com presteza,
eu sabia que ala ia ficar mais relaxada, ela queria aproveitar aquela companhia minha,
que de um jeito ou de outro a provinha com alimentação, abrigo, algum dinheiro e
possibilidade de conhecer pessoas interessantes, como eram meus amigos e conhecidos
naquele tempo de coisas boas. Ela ficou tranquilinha e começou os seus delizes, em
nossos assuntos começaram a aflorar o nome de seus amantes, começaram a surgir
situações que ela não explicava, começaram a surgir telefonemas e mensagens no
celular que ela atendia ocultamente, rapidamente, para dar a impressão de que nada
acontecia a não ser aquele amor que ela dizia sentir por mim. Mais isso não me causava
mais dor alguma. Eu já estava sapiente de suas traições e escândalos, era apenas a
necessidade de um sofrimento qualquer que eu precisava para amadurecer que me fazia
permanecer ao lado dela. E naquele instante eu estava apenas testando, apenas
observando, para não precisar usar nenhuma palavra quando me afastasse eternamente
daquela mulher, para nunca mais trocar nenhuma palavra humana de meu corpo, nunca
mais usar aquela língua portuguesa para um diálogo sequer com aquele ser humano. Mas

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eu não podia dizer mais, já tinha insistentemente solicitado um pouco mais de
sensibilidade da parte dela. E ela sempre negava, aquela vontade de me abandonar por
outro homem, negava, mas era o que ela sentia. Ela estava comigo para viver. A vida que
seus amantes lhe ofereciam era menos, do ponto de vista material, do que a vida que eu
lhe dava, e como ela nenhum amor sentia por qualquer ser humano, ficava comigo
economicamente: com quatro amante-amigos outros sexualmente, com dois terceiros
erofilosoficamente, com mais dois outros genitalmente, com um ex-namorado
nipoespiritualmente; e com uma dezena de canalhas cervejosexualmente.

Era seu círculo do prazer escondido e negado. Eu ficava com a carga mais pesada que
era a desgraça emocional daquele ser, ficava tomando conta da ressaca, comprando
remedinho, suportando suas histerias, agressividades, mal humor, deixando ela entrar em
casa de madrugada, usando camisinha, pagando as contas. Nenhum dos amantes
partilhava comigo daquele fardo, nenhum de seus amantes suportaria o que eu suportei
por você, para ficar ao teu lado. O quinhão deles, daqueles seus homens outros parecia
ser bíblico: suave. Por isso eu virei um pirata”

Jão
O destruidor

“... meu irmão mais velho me violentava. Do jeito que você pode imaginar, e do pior jeito,
me proibindo de falar com meus pais. Desde os seis anos de idade. Meu irmão era muito
mais forte do que eu, muito mais sábio, muito mais terrível. Isto é, até aquele dia.

Eu chorava escondido, e doía muito aquele pau no meu cú, praticamente todos os dias.
Eu tinha dificuldade de defecar, saia sangue, era horrível, mas a força de meu irmão era
insuperável. Meus pais e meus outros irmãos sempre foram canalhas, sempre foram
gente egoísta, preocupados apenas com seus universos particulares, muito filhos da puta
para entender o que se passava comigo e a violência a que eu era submetido.
Provavelmente se eu falasse para minha mãe o que meu irmão fazia comigo, ela me
colocaria de castigo, por que era estúpida para qualquer assunto que se referisse à
sexualidade. Meu pai era apenas um apêndice de minha mãe, meu pai era um órgão
externo do corpo de minha mãe. Isso era todos os dias, a indiferença da minha mãe, da
família. Isto é, até aquela manhã.

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Quatorze anos eu tinha? Não sei ao certo, mas nesse momento, meu corpo estava
parecendo uma ferida aberta. Nossa família era pobre. Vivíamos em uma periferia. Vendo
aquelas vagabundas loiras dentro de seus carros de luxo passando, vendo políticos
belorizontinos, vendo o céu ficar escuro de tanta poluição, de tantas queimadas, aquela
sociedade infernal de BH, aquele povo mesquinho, ordinário, egoísta, aquele povo sem
história, vira-lata, capaz de trocar de utopia a cada onda de novidade da televisão, capaz
de trocar a natureza real de sua rua pela imagem do cinema. A sociedade belorizontina
buscava a harmonia econômica, acumulando riquezas nas famílias mineiras tradicionais,
excluindo o resto, neurotizando, mentindo, silenciando. Gente como eu, pobre, era
simplesmente silenciada. Quantas ditaduras a classe alta do brasil já tinha inventado para
matar o povo pobre? Você sabe. Só no século XX o brasil teve cinco ditaduras
sangrentas. Os nazistas pit bull, homens e mulheres que adoram fardas e porrada. Aquela
desilusão, aquele massacre, aquela destruição ambiental. Isso tinha sido na minha vida
uma sina. Porém, naquele dia, eu resolvi rasgar o útero.

Naquela manhã, ainda de madrugada, meu irmão saiu da minha cama, tinha me ferido
muito a noite inteira, tapando minha boca com suas grossas mãos. Eu me virei para ele e
disse:
-- antes do dia terminar, eu vou comer teu fígado! – eu disse.
-- há, há, há, há, ... – disse meu irmão se limpando, ficando de pé, caminhando em
direção ao nada. Dentro de um instante infotografável eu já estava diante dele, beijando
sua boca como uma mulher, mas seus lábios não se moviam, que estranho. Acho que era
por que eu estava rasgando sua barriga com uma afiadíssima faca. Me afastei e vi suas
tripas caindo no chão, e meu irmão tentando colocar seu estômago para dentro de novo,
sem dizer um som, gemendo loucamente, em desespero, sem voz, aquele corpo
musculoso, então ele se ajoelhou, olhou para mim, seus olhos ficaram amarelo,
subitamente, enquanto ele continuava puxando seus intestinos, que estavam espalhados
pelo chão. Eu fiquei vendo aquilo, o dia amanhecia, e então ele morreu lameado de fezes,
água intestinal, sua janta da noite anterior e sangue: seus pedaços. Não quis esperdiçar o
fígado, como vocês sabem, um fígado humano funcionando bem vale 150 mil reais nos
mercados médicos e clínicas de transplantes no Rio de Janeiro e em Belorizonte. Mas
logo me lembrei que eu tinha prometido come-lo. E assim fiz. Muito saboroso.

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O sol ainda não tinha subido e fui ao quarto de meus pais. Fui para debaixo da cama
deles. Eles dormiam. Levei cordas grossas. Amarrei os dois. Eles ainda dormiam. Não
apertei os laços, sem dor. Ainda. Era simplesmente para imobiliza-los. Então, bem
amarrados e amordaçados, acordaram, os olhos esbugalhados. Assim que passei a corda
grossa no pescoço e na boca de minha mãe, ela me despertou. Sentiu o líquido gelado
escorrer de sua cabeça, um álcool 98 volume. Encharquei também meu papai. Era uma
imagem. Fiz um gesto para um silêncio, com o dedo indicador na boca. Era para que eles
ficassem quietinhos. Então me levantei e fui até os outros quartos onde meus irmãos
dormiam. Para com eles nenhuma poesia. Pequei o facão da família e dei uma facãozada
na testa de cada um. Permaneceram em seus sonhos eternamente. Saí do quarto deles e
fui até a cozinha, fazer aquele fígado com arroz e cebola. Uma comida leve e rápida de
preparar. Me alimentei. Voltei ao quarto de meus pais, eles choravam, com aquelas
cordas grossas amarradas na boca. Se debatiam, mas não podiam sair do laço. O resto
vocês já sabem. A casa toda ardeu em chamas por horas e horas, o incêndio se espalhou
pela favela, e mais algumas pessoas morreram. Eu fiquei do outro lado da lagoa, vendo
as chamas e a fumaça preta, e os carros de bombeiro, e a multidão se ajuntando. Gente
correndo. Para todos, eu também estava morto ali, era uma libertação. No mesmo
instante eu me esqueci completamente do passado, e até de meu nome, acreditem só! Eu
fiquei sem saber como eu mesmo me chamava! Incrível! Então, olhei para o cais, um
navio, e vi tremulando aquela bandeira com uma caveira. Naquele instante, eu com
quinze anos (eu acho) sem nome, sem passado, sem sexo, me tornei um pirata”.

Alberta
A cozinheira

Uma mulher velha e gorda, encontrada em um porto, toda suja de lama e cinzas, tinha
perdido a memória, e iria morrer ma mãos de cães sanguinários que se nutrem das
sobras da violência humana, a barbárie naqueles países que foram colonizados por
europeus. Os europeus só trouxeram a discórdia entre os povos que mantiveram sob
seus domínios, como em tantos lugares que nós, como piratas, ajudamos a destruir e
saquear. Quanta riqueza acumulada com amor e justiça, em nações culturalmente mais
desenvolvidas, forar transformadas em pó, invenções nunca mais repetidas, e palavras,
livros lindos, e músicas originais. Tudo isso, um patrimônio de todos os seres humanos, e

62
então, vimos aquele trapo de ser humano perambulando pela praia, perdida. O capitão
começou a rir e nos ordenou que fossemos lá e trouxéssemos aquela mulher para o
navio. Nós os marujos não entendemos nada, então o capitão não explicou, apenas
gruniu. E quando o capitão grunia, significava que ele já estava furioso. Para se ter um
navio pirata é necessário uma ditadura rígida, apoiada em princípios filosóficos ortoxodos:
quem paga o rum manda em todo mundo no navio. Esse era o nosso maior código de
honra. E depois do rum vinha o rango. Pagando rum e rango, a gente ficava como pirata,
pois tinha a companhia uns dos outros, os miseráveis, os desgraçados, ou derrotados, ou
mesmo destruídos, que viviam para tentar a sorte em invasões malditas e violentas nos
portos do mundo inteiro. Fugindo da polícia internacional, de polícias federais espalhadas
por todos os mares, éramos incompatíveis, pois sabíamos dar o golpe e fugir. Éramos
covardes tanto quando as putas cubanas, que sempre encontrávamos por esses lugares
perigosos e cruéis, mal iluminados, baia de Guanabara, e san francisco no Haiti, porto
tubarão em Vitória, e águas limpas em Pirapora. Todos esses lugares nós íamos fazer
sacanagem. Pois recolhemos aquela mulher maluca que falava palavras sem sentido e a
trouxemos para o navio. O capitão deixou a velha insana fica no meio de todos nós.
Segurou a mulher pelo cabelo, ela não reagiu. E gritou para todos nós:
--- estão vendo esse trapo humano? --- o capitão berrou. --- pois esse resto velho de ser
humano está em estado de choque agora, por isso não sabe nada do que está
acontecendo em sua volta, sua consciência deu uma pane. --- e sabem por que? ---
perguntou o capitão, que era formado em psicologia social pela universidade do Algrave, -
-- é por que essa mulher deve ter visto muito horror, muito sangue, muita injustiça, muita
morte, muita violência, a falta absoluta de deus, de jesus, de piedade e compaixão.
Homens dando facadas em crianças, assassinos do estado, ou de milícias, ou de grupos
paramilitares traficantes, ou guerrilhas revolucionárias, ou grupos separatistas, ou
instituições fundamentalistas orientais, ou canibais indígenas, ou tantas outras estruturas
nazistas inventadas pelo ser humano em todas as partes do planeta terra. --- essa mulher
agora é um farrapo, não tem mais lágrimas, por isso o corpo recompensa o pesar com a
tremedeira, e ela está tremendo, desesperada, completamente deprimida. --- sabem o
que faremos, idiotas? --- nós vamos torná-la a cozinheira do barco. Sim, vamos dar uma
nova identidade para ela, senhoras e senhores. E isso é uma ordem de pirata cruel! --- o
capitão berrou. Seus oficiais imediatos logo começaram a tratar do problema, já que o
capitão tinha outras ocupações, desceram com a velha Alberta para a cozinha, que ficava
naquele porão fétido, cheio delatas, sujo, tendo um fugareiro e panelas velhas, insetos e

63
coisas apodrecendo. O capitão tinha sua lógica. Era preciso alimentar bem os marujos.
Por isso ele tinha matriculado Alberta naquele curso de nutrição à distância, que ela
estava fazendo usando a internet do navio. Internet sem fio.

Juliana
O travecão

“...aquela tosse repetida, seca, dura, que ardia a garganta, que fazia a garganta doer. Era
a doença que surgia, a doença que iria acabar definitivamente com a minha vida. Quem
era eu? Uma dona de casa exemplar. Casada virgem com um engenheiro bem sucedido.
Tivemos três lindos filhos, vivíamos felizes. Nossas famílias eram muito unidas, e todos os
domingos, todos os domingos, fazíamos aquela reunião familiar na hora do almoço, com
nossos pais e irmãos. Nossos filhos começaram a crescer, meu marido sempre foi muito
honesto comigo. Tivemos aquelas crises de relacionamento, que todos os casais têm,
mas nós dois decidimos ficar juntos, apesar de tudo, em nome de tudo, com felicidade e
paz dentro de nossos corações. Era isso, era uma vida linda, e eu comecei a temer, pois
era tão bonito, tão bom, tão bom, que eu comecei a ter medo de tudo aquilo acabar de
repente, sabe como é? Aquela coisa de vida urbana? Sempre acontece um assassinato,
ou um acidente de trânsito, ou uma bala perdida, essas sociedades humanas populosas,
cria jeitos de se morrer instantaneamente. Mas eu comecei a ficar tensa demais com
aquela perfeição da minha vida. Eu nunca tive vontade de ter prazer com outro homem
qualquer, apenas com meu marido, eu amava o sexo dele, era tudo o que eu queria. Com
ele eu me entregava de uma maneira que nunca poderia acontecer mais, eu não queria,
estava feliz com aquela situação, com aquele prazer. E todas as noites e a gente ficava
nus, se beijava muito antes de dormir, mesmo que não rolasse nada, por uma série de
motivos. Era perfeito, meu homem era perfeito, tudo era bom, e eu agradecia a deus por
isso. Éramos muito religiosos, muito ligados a religião. Mas naquela manhã, eu acordei
ainda muito cedo. Nossos filhos já estavam na faculdade, minha ligação com meu marido
era, ... tão, ... mas naquela manhã eu fui ao banheiro e meu catarro estava vermelho, era
feito de sangue e postulas. Me tranquei no banheiro, cospi sangue por vinte minutos,
liguei o chuveiro, para todos na casa seria apenas um banho longo, mais um banho longo
da mãe de todos, aquela que amava a família, que era a sentinela da vida familiar, a
esposa e mãe. Então, depois que tirei aquele sangue todo de meu intestino e pulmão, me

64
sentei debaixo d´agua. Era o último banho naquela cvasa, eu sabia. Sabia que agora a
doença tinha chegado. A força tinha pendido para meu lado até aquela manhã. Apartir
daquele catarro, só haveria dor e rancor dentro da família. E mais do que isso, eu
morreria doente, fraca, acolhida por todos, e era isso tudo que eu tinha sempre sonhado
para a vida e morte. Eu com certeza começaria a apresentar os sintomas daquela
doença, emagreceria muito, abandonaria o zelo pelo lar, a vontade de trepar com meu
marido, e a vontade de falar bem da vida. Não, era impossível para meu espírito aceitar
isso. Eu fiquei no banheiro e chorei baixinho pra ninguém ouvir. Ainda era muito cedo.
Então me olhei no espelho. Tive novamente vontade de cospir, aquele líquido amargo
estava se acumulando em minha boca e gargtanta em grande velocidade. Eu sabia o que
viria a seguir: a dor tremenda do câncer. A dor horrível daquele desvido genético dentro
de mim. Tão súbito. Eu não freqüentava médicos e nem fazia exames de rotina, eu não
rpecisdava, eu era feliz, estonteantemente feliz. Um simples espirro já trazia meus filhos e
maridos para perto de mim, me protegendo e enchendo de amor. Eu não suportaria vê-los
sofrendo com minha doença. Então a solução de minha vida surgiu. Da janela do
banheiro de nossa casa podia se ver o mar. E lá ao longe uma embarcação, ainda de
madrugada, o sol sem surgir, e o mar tranqüilo e dorminhoco, mas as tochas daquela
embarcação auxiliava a visão de longe, era aquela bandeira com uma caveira. Era isso.
Me voltei para o espelho e cortei curto o cabelo, fui ao guarda roupas de meu marido e
tirei peças de roupa, botas e armas que ele tinha, voltei ao banheiro, me vesti como
homem e sai definitivamente de minha casa, levando um saco nas costas e uma pistola
na cintura. Era agora uma guerra, até o final do restinho da minha vida. Sem notícia, sem
passado, apenas pronta para matar e morrer por cada segundo de vida, cada respiração
seria maravilhosa. Ainda faltava uma coisa fundamental. De todos os romances e
literaturas que eu nesse tempo de mãe e educadora de meus filhos tinha lido, o néctar
dos deuses, aquilo que impulsionava em noites de tempestade: o rum. Foi nesse dia que
eu me tornei uma pirata. Nunca mais dei minha boceta pra ninguém. Vivo agora dentro de
um navio, de porto em porto, de saque em saque, de derramamento de sangue a
derramamento de sangue. Tenho cada vez mais cicatrizes de taças de vinho e do fio da
navalha inimiga, cicatriz de bala perdida e de bala encontrada. Compro pênis de plásticos
macios e os deixo dentro de minha boceta o dia inteiro. Vou tendo prazer enquanto
batalho. Preciso apenas do mar e de duas refeições diárias, para ser capaz de tirar as
tripas de qualquer homem ou mulher.”

65
Judas
a bichinha

"...! Eu te amava, dentro de mim essa é a palavra para falar de você, meu amado, meu
menino, minha ternura, você também me amava? Você também me queria? Acho que
sim. Mas eu te amava tanto, e te falava tanto sobre o amor que eu sentia por você, e esse
amor era tão forte e verdadeiro dentro de mim, que, ... que eu tive de trair você. Tive de
destruir alguma coisa, alguma coisa em você eu tinha que arrebentar. Para te invadir
mais, meu amor, para ficar mais dentro de você. Eu tinha que tirar algo que ocupava seu
interior, para entrar com as minhas coisas, para habitar mais teu coração. Eu te amava
tanto, te queria tanto ao meu lado, me fazendo feliz 24 horas por dia, queria tanto que
você me aceitasse dentro de tua casa, vivesse comigo, partilhasse tua atenção comigo.
Por todos esses motivos, e porque eu te amava tanto, tanto, meu amor, eu tive de
explodir tuas portas e paredes laterais, arrombar teus pensamentos, entrar com tudo. E a
maneira mais maravilhosa de fazer isso, de causar esse estrago na tua vida, para que
você me amasse mais, me aceitasse mais, ficasse culpado por dentro por não me amar
tanto assim, a maneira melhor, era a traição. E então passei a usar tudo que
conversávamos na nossa intimidade de casal para meu proveito pessoal. Tudo que se
referia o nosso cantinho de amor, eu passei a partilhar com meus amantes, que eram teus
conhecidos, meu bem. Mas é por que eu te amo, te amo muito, então era necessário
aquilo. Quanto destruí tua imagem diante de todos os teus amigos, quando eu criei aquela
teia de intrigas pessoais e íntimas com todos os teus conhecidos que quiseram dormir
comigo, então eu dei o primeiro passo. Você ficou completamente transtornada, minha
querida, meu amor. Você ficou branca, sem circulação, triste, abatida, quando eu mesmo
revelei tudo que tinha feito a você. Como me deu prazer, minha flor, vendo teu rosto se
alterando enquanto eu ia te contando todas as sacanagens, posições sexuais, tudo, tudo,
tudo, que eu tinha feito, com suas amigas, suas irmãs, sua avó, todos, todos os objetos
seus, em todos eles eu gozei, por dentro e por fora, para te ferir. E consegui entrar dentro
de você desse jeito. E você ficou doente, teu corpo adoeceu realmente por causa de tudo
aquilo. E você ficou obrigada a pensar em mim. Mas não era tudo. Eu queria mais e mais.
Já que eu te amava tanto, mas tanto assim, meu bem, já que você tinha que ser minha,
de qualquer jeito, por que eu te amava muito, mas muito mesmo, e era tanto amor que me
sufocava. Eu passava mal com aquele asmor. Por isso me tornei um pirata.”

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Dentro dos olhos das crianças. Há a esperança. Mas o que as crianças da periferia de Belo
Horizonte estão vendo? Adultos, esmagando sistematicamente as possibilidades. A cada traição,
a cada mentira, a cada espera sem resposta. Um sistema que não oferta as mesmas
possibilidades. Quem tem poder se acha privilegiado, e reza a Deus com confiança, solidifica as
trancas. A porta já estava fechada para nós, antes.

67
O Cristianismo como uma Proposição Praxiológica,
Fisiológica e Ética

Jesus esta vivo não por que, em princípio, ou principalmente, é ou faz parte de alguma
possibilidade metafísica surgida e explicitada nas descrições do homem feitas pelas
fisiologias que caracterizam o estado descrito como sendo a fé. Jesus está vivo e se
repete em cada ser humano, pois Jesus é um estado fisiológico. Não estou aqui dizendo
nada sobre imitação de comportamento. Não estou querendo dizer que é apenas repetir
mecanicamente os comportamentos descritos na bíblia como o sendo os de Jesus para
se considerar de alguma forma um adepto de sua proposta religiosa-missionária. Na
verdade pouco importa para uma conclusão como a que pretendo apresentar nesse texto.
A proposição cristã deve estar de alguma forma comprometida com um apreço à vida, em
sua possibilidade, manutenção e condição. A proposta cristã é uma proposta
absolutamente relacionada à vida. Essa afirmação porém, não se relaciona com um
conjunto contemporâneo de teologias da ecologia e da democracia. Muito menos com a
teologia do pensamento holístico ou eticamente comprometido com ideários de justiça e
fraternidade. Se o cristo foi possível de ser, se ele realmente existiu, e se sua existência
tem toda a significância que a fé diz que tem, então ele precisa ser possível de ser
experimentado. A ceia parece ser algo importante para Jesus, mas não é as simbologia
do que seja uma ceia. Jesus não parece ter sido, na descrição dos evangelhos, um
pensador e um homem que não se preocupava com a epistemologia. Se possuía alguma
perspectiva pedagógica, essa perspectiva era oriunda de uma concepção, mesmo que
arcaica, do que significa o ato de aprender, de alguma teoria do conhecimento. Não creio
que era um ser que descobria o que tinha que fazer apenas por inspiração divina. Havia o
campo de decisões exclusivo da experiência humana. E se essa experiência humana foi
de fato uma experiência real, concreta, na história das sociedades humanas e da vida de
uma forma absoluta, não foi meramente uma experiência moral ou transcendente. Muito
menos comportamental. Foi uma experiência fisiológica.

É importante lembrar mais uma vez que o conceito de fisiologia apresentado na descrição
da condição humana no presente texto se relaciona com a fenomenologia biológica
fundamentada no tópico anterior. Portanto não se pode pensar que a mera imitação
comportamental, estipulada pelo organismo para si com sendo a melhor opção moral para

68
a contemporalização da proposição cristológica seja de fato o que pretende por ser
apresentada por uma instituição ou um acordo ontológico entre os diversos seguimentos
da sociedade. O cristianismo é uma proposição de uma experiência emocional, mesmo
que não necessariamente emotiva ou sentimental. A emoção da aceitação. A emoção de
acolhimento do outro em meu espaço de convivência. Como pressuposto disso, e não
como conseqüência, está a afirmação primeira da vida e das condições de manutenção
da vida, na forma de um imperativo categórico. O que um homem pode comunicar ao
outro sobre a realidade? Há uma transmissão fisiológica; um homem liga seu antecessor
a seu sucessor. O conceito de espécie precisa ser pensado temporalmente. Por isso a
genealogia, das palavras, das ações e dos pensamentos humanos é tão importante. Essa
transmissão acontece estendida em um longo e carnal tecido de pessoas vivas que vão
se sucedendo geofisicamente na extensão da realidade. O cristianismo de Jesus é uma
proposição antes fisiológica do que moral. Que tipo de homem Jesus foi? Essa pergunta
teológica vêm sendo abordada ao longo da história do pensamento cristológico por muitos
anos e atravessado muitos movimentos eclesiais, sendo respondida a partir de óticas das
mais diversas. Mas a proposição que quero apresentar no presente texto é a de que é
possível uma resposta que possa se colocar no atual contexto socioeconômico e cultural
que vivemos. Uma resposta que possa pelo menos colocar em discussão a relação entre
a teologia e a fenomenologia biológica, uma vez que politicamente estamos diante de
reflexões cada vez mais constantes entre genéticos, filósofos, teólogos, governos e
religiões.

Humberto Maturana no texto Emoção e linguagem na educação e na política, ele faz


referência ao amor cristão com sendo um conceito muito apropriado para representar a
fisiologia da emoção da aceitação na espécie humana. Essa abordagem parece muito útil
à teologia, não fosse o fato de ser um neurobiólogo quem está afirmando isso, um
pensador que se denomina materialista. A tensão gerada não pode ser resolvida pela
expressão quem não está contra nós, está conosco. Entre outras coisas por que a
biologia poderia ser interpretada ai como sendo uma proposição totalmente pragmática, o
que redundaria em um cristianismo totalmente mecânico, onde o comportamento do
cristão seria a própria cristandade. Se isso for aceito, teremos que repensar nossa
concordância com os fenômenos de fé em massa, muito comuns nesse início de século.
A proposição da fenomenologia biológica de que fisiologicamente a espécie humana
possui como emoção fundante das relações lingüísticas e sociais a emoção do amor, não
pode acabar em uma concepção positivista de que transformando as descobertas

69
neurobiológicas sobre o comportamento humano em cartilha seria uma forma interessante
de multiplicar multiplicadores de fisiologias social e economicamente adequadas, como
pensam em fazer os defensores das programações neurolinguísticas.

A moral como normatividade de um universo de valores éticos pode estar relacionada a


condutas assumidas como racionais. Mas não seria possível que essa normatividade
determinasse as disposições corporais dos sistemas vivos pela simples imposição do que
é certo ou errado. Essa concepção nos impede de traçar uma relação entre a aceitação
do outro em nosso espaço de convivência e o que Habermas chama de poder inclusivo e
exclusivo da razão. A ética como a conduta racional privilegiada não pode fornecer
elementos para ir adiante nessa reflexão. Três reflexões sobre a ética podem ser feitas se
não assumirmos a normatividade como pressuposição da determinação das condutas
éticas no ethnos de nossa cultura brasileira;
a. A ética não é estabelecida racionalmente por que não tem um fundamento racional,
mas sim emocional. Maturana prossegue dizendo que a argumentação racional não
serve, e é exatamente por isso que é preciso criar sistemas legais que definam as
relações entre sistemas humanos, mesmo que esses sistemas legais não possam
determinar a aceitação do outro que é necessária para a iteração lingüística.
b. A ética é um ethnos cultural, que no caso de nossa cultura, se orgulha de si mesmo
por estar abertos aos espaços de encontro. As discussões sobre a cotas para negros
na universidade é um exemplo de um comportamento ético exigido por uma minoria
de sujeitos esclarecidos para o conjunto da sociedade. Da mesma forma que o
respeito ao nível de desenvolvimento do aluno no processo de ensino aprendizado é
um comportamento ético. Maturana nos diz que é por isso que os discursos sobre os
direitos humanos, os discursos éticos fundados na razão, nunca vão além daqueles
que os aceitam desde o início, e não podem convencer ninguém que não esteja
convencido de antemão.
c. A ética como conseqüência da intenção da convivência que é estabelecida em
nossas interações lingüísticas. O fenômeno dionisíaco pode ser tão ético quanto o
apolíneo se não situarmos fora do mundo da emoção os determinantes fisiológicos
das condutas éticas. Numa estrutura cultural como a brasileira, onde barrocamente
ainda nos dividimos entre o dever e o querer, entre o que temos de apolíneo e o que
temos de dionisíaco, a ética em geral é pensada em termos de correção de conduta,
uma ética profilática, que propõem o julgamento antes da compreensão.

Eu também quero a ressurreição. E todos nós podemos ser como Jesus Cristo. Na
verdade é fundamental que façamos isso para que não envelheçamos e arruinemos

70
nossas vidas. Há pessoas que descobrem que tiveram uma merda de vida fodida tarde
demais para fazer alguma coisa. A causa. É quando fazemos o ridículo que estamos
certos. Alguns seres humanos fisiologicamente se tornaram verdadeiros monstros,
animais sem o mínimo respeito à vida, à dignidade humana, principalmente a dignidade
de ser o que se precisa ser. Precisamos da vida. Mais do que precisamos da lei. Mais do
que precisamos da regra. Já não basta ser livre. Viver em uma sociedade livre. A
televisão diz o que quer, fala o que quer. Não podemos fazer nada. Padres e pastores
podem falar o que quiserem, dizer o que quiserem. E nós não podemos nos opor. Dizer
que estão equivocados. A verdade parece ter se estabelecido de fato no mundo. O que é
de fato a boa notícia? A novidade? É a formalidade de uma religião? Não percebe que
abrir a opção pela vida é algo sem volta? Todas as vidas. As vidas de todas as crianças.
Substituímos o sorriso que tínhamos na infância pela cara de sérios e devotos da
juventude. Você faz isso. Eu faço isso. Todos fazemos. Mas temos a opção de não fazer.
Podemos não fazer. Podemos continuar a reflexão. Nunca é sim ou não. Certo e errado.
Deus e nada. Sartre se equivocou profundamente. Na verdade os cristãos não
conseguiram sair de dois paradigmas. Os cristãos menos inteligentes, os mais humildes,
nunca conseguiram sair do que Paulo disse. E Paulo era bem medíocre. Inferior em muito
a Platão, Sócrates e Aristóteles. Não foi possível que aqueles fariseu tivesse fugido de
sua formação hebraica prostituída por suas referências ao Gregos. São Paulo é
importante no pensamento cristão pela forma com foi acolhido pelos medievais. Gregório,
Agostinho, Abelardo, Tomás de Aquino. Esses cristãos simplórios, que não possuem
dúvidas sobre a ressurreição de Jesus, e conseguem conciliar os interesses cretinos e
capitalistas de sua individualidade de consumidor e sobrevivente de uma realidade brutal
como é a brasileira de nossos dias. Conseguem conciliar com o discurso da fé, das
promessas de salvação. Das fantasias, e até mesmo de um desejo sincero de que as
coisas mudem, de que todos nós sejamos felizes. Esses cristãos simples não conseguem
mais desligar a televisão. Não conseguem mais.

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Poema Erótico

1. Depois da Perdição

..

e eu te como com carinho, te penetro, entro em ti,


como tua bunda,
uso metáforas alimentares, elementares
falo dentro do teu ouvido que te quero para sempre
e escuto teus gemidos desconfiando que não me entendes, ...
a existência
então coloco meu pau com carinho, e tiro, e recoloco
e me seguro em tua cintura com energia
e vou me movendo lentamente,
crescendo o movimento
sentido que tu me molhas com a umidade de tua bunda
com o suor de tuas coxas
então me deito sobre ti
deixo meu peso sobre teu corpo
e te aperto até que gemes
e entro ainda mais fundo em teus lábios
molhados
deliciosos
quentes
então,
gozo dentro de ti
e retiro toda a energia do corpo para o espaço
para que uma nova estrela se ascenda em algum lugar do universo,
é exatamente isso que fazemos quando gozamos com amor junto a um amor, apaixonadamente:
ascendemos estrelas.

72
2. Depois da Secura

...

tuas pernas enroladas nas minhas,


nossos braços em abraços intensos,
e você geme com a voz mais doce
eu te aperto
e não posso deixar de te amar por toda eternidade,
então nossas mãos se encontram
e estão abrindo tua boceta
e estão colocando lentamente meu pau dentro dela,
e então estou dentro de ti,
quente, plena, a mulher de minha vida
como na primeira experiência que tive, e é o presente
eu beijo tua boca com avidez
mordo teus lábios com ferocidade
você está diante de um animal intenso
e eu estou diante de uma fêmea intensa
...
aperto com força tua bunda, para que te penetre mais fundo
e te coloco sobre mim, para que tua bunda fique mais aberta,
tua buceta fique mais aberta,
quero teu gozo antes do meu, para que pernameça,
se um dia fizermos um filho,
será num momento tão apaixonado quanto,
para que olhando para ele, não nos esqueçamos do dia em que o construímos,
...
quero te comer em todas as posições, e quando você goza pela primeira vez,
te coloco de quatro,
abro bem tua bunda
chupo ainda um pouco tua buceta,
vejo você olhando para trás, curiosa, cheia de desejo, a mulher
tua bunda empinada, ...

73
3. Depois do Mormaço

...

passo a calcinha pelas pernas tuas, me agacho, fico diante de tua boceta,
diante do perfume que tens entre as pernas,
a imagem que está impressa em meus neurônios para sempre
molhadinha,
gostosa,
perfumada,
e deixo meus dedos brincarem com teus lábios,
e eles voltam para minha boca cobertos de teu desejo,
úmidos, quentes,
pensar nisso faz com que meu pau fique duro,
e uma força ancestral retorna à fisiologia
eu o tiro para fora, e tiro também o que me veste, tiro as idéias, os pensamentos
e então me coloco com sede a chupar você, a beijar tua boceta,
a procurar com a língua aquela região que gosto de intuir
Você me guia com as mãos em minha cabeça, me diz que ainda não está exato com uma voz de
menina,
eu finjo que ouço, mas a pesquisa é melhor do que o resultado,
é hoje que vou possuí-la com toda virulência, vou fazer teu sono,
e abro tua bunda com ternas mãos, com o carinho de um esposo,
sem limites toco todo teu corpo até que percebo que estremeces
até que percebo que estás enfeitiçada,
que teu corpo tem febre
que você já quer ficar de quatro
já quer me dar,
já quer que eu te coma,
levo teu corpo para o quarto, caminhamos nus pela casa, nossa casa, em outro lugar, talvez em
Londres, talvez em Montreal, talvez no Rio, Talvez em Belorizonte, talvez na China. ou no coração
de Deus.
e você para na entrada da porta, eu levo tua cabeça até meu pênis,
que já me dói de tão duro e intenso que está,
então você o chupa, e meu desejo se amplia,
passa a língua sobre a cabeça do pau
e beijas toda a extensão,
com os olhos fechados eu vejo as lições de Aristóteles,
e abraço meu eu transcendental kantiano,

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já estamos entregues, rimos sem forças quase,
ouço em minhas lembranças; deseo hacer el amor contigo toda mi vida
e já então estamos na cama,

enroscados,

...

A possibilidade de se encontrar a fisiologia certa,


Para as palavras certas,
E coincidindo uma série de possibilidades
E ao mesmo tempo tendo ao redor os sóis das gerais,
Ainda mais, ...
Nessas montanhas, e nessas cidades
Onde todas as coisas falam de amor,
As borboletas,
As avenidas,
As mangabeiras,
E a chuvinha leve e doce
Caindo em nós falando de amor
E o sol que passava logo depois pelas copas das árvores
E fazia as gotas no chão brilharem
Como os teus olhos estavam brilhando
Ainda mais, ...
Essa possibilidade corporal
É uma grande experiência
Eu não suspeitava,
Estava nas coisas e nas pessoas o tempo todo
Eu não conseguia ver
Não tinha aprendido a ver essas coisas
Desde criança tenho observado a falta de esperança em todos
Tenho observado o limite preciso das coisas que nunca acontecem
Fico vendo os ensaios de felicidade
E fico vendo as poesias românticas, ou poéticas demais, vinicianas demais
Mas isso não me comove
Não me emociono com essas coisas
Com a música popular brasileira
Não me emociono com algumas sonoridades regionais

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4. Depois da Ventania

Você me aparece,
fica na porta, está molhada da chuva, os cabelos estão molhados, a roupa molhada. o bico de teus
peitos está rijo, e salta para fora da blusa, me faz querer comer você,
eu te tomo pela mão, e lhe digo: hoje você me pertence! és minha! não tens vontade própria! vou
dialogar com teu corpo! sinta! Isso é entre minhas palavras e tua pele! observe!
então me ponho a despi-la,
e me demoro em teus ombros, com mordidas, com beijos,
chupo teu pescoço, faço-lhe cócegas, mordo tua nuca,
tomo tua boca com as mãos, beijo tua boca, e quero toda tua saliva, e tua língua e teus dentes e
então, me vejo beijando toda tua face,
desabotôo tua calça, ela cai e revela tua carne, tuas coxas roliças, tua calcinha
..., fico segurando as laterais de tua calcinha atrevida,
cavada,
pequenina,
vendo com olhos loucos o volume de teu púbis,
teu vênus,
seguro tua cintura e desço minhas mãos mesmo sem tua ordem,
agarro tuas coxas e tua bunda,
apertando tuas coxas, e tua bunda, e deixando o pudor para poemas mais castos, que lhe
escreverei, inclusive, quando toda a idade do fogo se abrandar, pois quero viver contigo até a
velhice, e muitos anos mais, abro minhas mãos e ainda assim estou te apertando,
tiro tua calcinha, ....

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5. Depois da Chuva

Chovia,
uma dessas chuvas de primavera, ao fim da tarde
o que eu queria era ter um seio teu em minha boca
para que não fossem necessárias as palavras ou o poema,
...
O desejo de subir em tua pele, em vestir teu corpo com o meu,
de beijar-lhe a buceta com a sede infinita de vidas passadas,
e colocar meu pau em tua sacralidade,
uma existência, um gemido,
mover-me com teu corpo
unidos, um corpo inteiro apenas, se acariciando
despidos finalmente, amantes, exclusivos.
...
então, a chuva acabou
e voltei para casa, para a cama solteira
extensa,
todos os dias me masturbo
e tenho todas as imagens de teu corpo lindo
de como colocas em tua boca meu pênis
de como coloco meu pênis na tua boceta
de como te assentaste em meu pau duro no parque das mangabeiras,
e dançaste sobre ele uma dança sagrada dança, até que gozaste e eu gozei em tua boca,
de como uma vez adormecemos abraçados e exaustos depois de um amor,
e de como não precisamos mais da memória,
...
então, ...
mais uma noite sem ti, ...
...
e mais outra noite sem ti, ...
...
e essa noite? hoje, que já é 28 de outubro?,
que imagem evocarei para meu momento, para minhas necessidade de homem adulto e
apaixonado, homem de uma mulher só?, homem de uma só mulher?
homem que sou e que não deseja outra fêmea além de ti, por fisiologia?
homem que não sai a procura de outra fêmea, pois não há outra fêmea para meu olhar,

77
veja como estou ereto! veja como está pulsante e quente meu desejo de tua carne!
veja como estou desejando você, estou querendo arrancar-lhe a roupa e te possuir de pé,
por descuido deixo minhas mãos apertarem meu pau, e ele está revolto, grosso, imperioso, quer se
afundar em ti, quer sua dona! busca sua dona!
...
não, não irei atrás de imagens!
criarei uma cena:
...

78
Estudantes Brasileiros em París

1º Ato:
Caminhada de Marianne e Pierre até o Hotel Paris

Descemos na estação: Marianne (eu), e Pierre. Uma tarde muito bonita com uma
luminosidade muito forte, ainda há bastante luz do dia, mas já começam as nuvens a ficar
avermelhadas, na despedida do sol, faz um frio que lembra a brisa de um mar batendo
em meus cabelos, estou de botas, com uma saia escocesa, com uma blusa verde e uma
jaqueta de couro. Sou japonesa. Marianne. Nasci no Brasil, em Belo Horizonte. Eu e
Pierre nos conhecemos na aliança Francesa num curso de Francês. E nos amamos.
Viemos estudar na França. Não concordo com o peso da minha angústia interna infernal,
pois minha visão diz que sou eu e o Segô.

As pessoas passam por nós, se apressam, vão chegar em casa, e agir como franceses,
tomar vinho, ver tv (não tem comercial durante os filmes), comer, chorar seus mortos,
suas dores, e esquecer o resto do mundo caótico de tantas culturas. Esse lugar é para
onde se dirigem todas as raças do mundo inteiro, todos os humanóides.

Pierre: Eu vou fazer uma prova para o curso de filosofia, em Dijon. Eu vou ser um
professor de filosofia, eu vou falar filosofia... eu vou te amar Marianne ... mas eu vou ser
seu filósofo e você vai ter que me amar... mas vai ser bom, eu vou cuidar de você, você
vai ser minha esposinha japonesa, vai cuidar da casa, nós vamos viver a cultura
japonesa e vamos morar com pessoas que vem de lá.

Marianne: Eu tenho antes dizer-lhe o que se passa em minha mente... eu não algo
concreto sobre a vida..te ouvir... e, e não sentir é algo que me distancia de você..e eu não
tenho certeza dos meus sentimentos por você...

Pierre: Eu quero ter filhos com você Marianne , eu e o Himyet, sabe a gente se ama e nós
queremos fazer um filho com você, a gente cuida de você, nós seremos uma família feliz,
você é japonesa e nós temos raízes italianas...

79
Marianne: eu não sei como lhe dizer, pois não estou conseguindo pensar....

Pierre: Eu e Himyet vamos dar aula de filosofia e fazer doutorado na Universidade de


Dijon, você vai ter nosso amor eterno e nós dois cuidaremos de você muito bem e você
não precisará de outro homem pois nós dois seremos exclusivamente seus. Você será a
mais baixinha e irá fazer comidinha para nós dois, vai virar uma bolotinha quando
engravidar, e nós três faremos uma família contemporânea humana. E eu te amo, mas eu
amo o HIMYET também, eu sou promíscuo e eu sou assim...

Marianne: Pierre. Eu não sei exatamente o que está acontecendo aqui. Se eu te conheço
eu não me reconheço... não me vejo mais. Então penso que eu não sei é quem é você...
Se te prometi algo não leve a mal... mas já não sei o que é..eu vou embora, pois não
identifico suas palavras, elas não são para mim... Eu não ficaria com dois homens... Eu
quero apenas um amor... a simplicidade. Um homem só, só um homem de cada vez,
cara, eu não consigo amar duas pessoas ao mesmo tempo.

Pierre: Fodas, fodas, fodas, vai tomar no cú, vai tomar no cú. Você não admite o amor
que eu sinto, eu te quero pra minha vida, eu sou complexo e é isso que eu quero pra mim.
Eu e o Himyet já conversamos sobre isso e você continua me ligando e me agredindo...

Marianne: Suas palavras não se dirigem a mim...

Pierre: fodas, é o único modo de resistir, é o único jeito de ouvir Pink Floyd... é o único
jeito de gerar alguma coisa, o único jeito de ser Brasileiro..é sugando... mas o corpo o que
ele é afinal... Platão tem razão, você deve escravizar seu corpo de alguma maneira até
ele se libertar... a mente pode fazer o corpo ficar pesado..mas você não ouve o que eu
disse e nós queremos envelhecer em Minas, pode escrever isso quando formos Doutor na
Universidade em Paris, nós iremos falar do futebol brasileiro e seus peixes, e eu e Himyet
sabemos disso...

Marianne: interessante o que diz sobre falar sobre a fauna e flora e cultura brasileira. Mas
o que você entende com ser brasileiro morando e vivendo na França?

80
2º Ato:
Entrada no Hotel Paris e chegada de Himyet

Um casal caminha até a porta de um hotel. Olham pra acima. Enxergam o letreiro do
hotel. Entram no hotel. Caminham para a portaria do hotel. Conversam com o
recepcionista do hotel.

(Marianne pega a chave. Sorri para o Pierre. E sobem as escadas. Rindo. Vão subindo as
escadas..uma luz amarelada, alaranjada, sobem lentamente as escadas. Respirando
como budistas. Um ar pesado.)

Pierre: Eu te amo porque o amor é algumas cousa que se instala, é uma coisa que
acontece e o outro não é culpado por isso..o problema é a carência de carinho, atenção e
isso tudo faz a gente querer mais do outro, muito mais, e a gente tem que se policiar.

Pierre: Himyet fala algo interessante. Alegria surge do fato do homem perceber que ele é
capaz de mudar o curso das coisas...

Marianne: Algumas coisas são difíceis de serem mudadas. E não acho que o homem tem
forças para mudar todos os cursos de sua mente.

Pierre: Himyet sempre diz que o melhor de tudo e fumar semente de maconha, tomando
saquê..e é a melhor coisa francesa. Aquilo que os jovens franceses gostam de fazer,
gostam de investir cultura. Fumar semente de maconha tomando saquê japonês.

Os dois caminham até o quarto, no quinto andar. Sobem até o quinto andar. Falam.
Câmera observa caminhada pelos corredores, cheios de carpete. Abrem a porta do
quarto, entram. O quarto é todo forrado de vermelho. É um quarto para sexo grupal. Eles
não moram no quarto, semanalmente todos os seis, que vivem em uma república de
estudantes brasileiros em Paris, alugam o quarto para praticarem a “orgia”. Dificuldade
financeira. Todos os seis. Morando na França para estudar e ter uma vida melhor, viver
melhor, ganhar um pouco mais de cultura e dinheiro, e formação filosófica. E, entretanto,

81
todas as quintas feiras, o grupo dos seis brasileiros, estudantes e trabalhadores na
França, se reuniam no quarto de hotel para realizarem a orgia. O sexo grupal, o momento
de todos beijarem todos, juntos ao mesmo tempo. Um momento que foi ficando
historicamente importante na vida daquelas seis pessoas vivendo no estrangeiro. Mas é
claro que isso não era fácil para nenhum dos seis. Apenas se viram experimentando isso
muitas vezes. Até o momento do conflito. Antes, tinham ficado glamuroso, no hotel paris,
seis brasileiros e brasileiras, realizando uma orgia íntima todas as quintas feiras? Era
importante para todos eles, todos os presentes, aquela interação, aquele momento de
afirmar uma tribalidade brasileira, aquele momento de surgir como algo no mundo. Pierre
puxa Marianne , abaixa a calça dela, abaixa a calcinha dela, e coloca e pistola na buceta
da mulher. Fica comendo ela devagar, devagar, com precisão, e com amor, eles se
beijam. Pierre é negro, ele é um negro brasileiro, nascido no bairro Pompéia, em Belo
Horizonte, capital de Minas Gerais. Eles ficam fazendo aquele amor safado, ele colocando
a pistola na buceta dela, e ela se comportando como uma japonesa. O amor entre os
dois, acontecia nesses atos. Ficaram fazendo amor por um longo instante, ele comendo
ela, ainda de pé, sua pele negra exuberante diante da pela clara, macia, branca daquela
pequena fêmea delicada. Ao mesmo tempo a brutalidade do homem negro, e a
singularidade da cerejeira que tem a mulher que sai do Japão. Era isso, ali no quarto do
hotel paris, até que a porta recebeu a mão, no toque, alguém batia. Depois ela beija,
agora é a hora do reencontro, todas as semanas, já há algum tempo. O coração de
Marianne bate mais forte. Ela também sentia algo por Himyet. Algo que ela não sabia
Himyet bate a porta. No início, Marianne nada sente pelo Himyet, ele é apenas o
namorado do namorado dela. Algo imprevisível em sua vida, algo inesperado, algo
mórbido. Marianne não sabia que Pierre era bi-sexual quando encontraram-se, que Pierre
estava dividido internamente. O que ocorre é que Pierre apresentou, a alguns meses
atrás, Himyet, outro brasileiro, de Minas Gerais, que também estudava na França.
Marianne ficou confusa, como assim? O namorado dela tinha um namorado? No início foi
difícil, mas depois, os três formaram uma família, passaram a morar juntos e a partilhas
as coisas, Marianne amava Pierre, e Pierre era apaixonado por Himyet. E os três se
amavam. Passaram a fazer amor sempre em três. Aquelas orgias semanais, com Aba,
Simone e Sego, se unindo ao nosso trio foi conseqüência dessa loucura inicial.

Marianne: O sabor da pele de quem você ama é único, e saboroso como um morango frio
pela manhã, sentado junto a um rio cristalino. Não acredito que o sentimento do amor

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possa não surgir entre duas pessoas que se atraem pelos ouvidos e outros sentidos do
corpo, tudo aprendendo, tudo gerando. Luz, na avenida 34, logo ali na rua de baixo.
Heim?

Pierre: vamos deixar Himyet entrar.

Pierre e Marianne param de fazer sexo. Marianne sobe a calcinha e ajeita a saia. Pierre
vai até a porta, abre a porta. De pé, parado, fica Himyet, vestido de preto, cabelo rastafari,
casaco, livro, os dois se olham. Por trás de Himyet se vê o corredor do hotel, um longo
corredor, do edifício antido daquela rua tradicional da parte velha da cidade. Quartos com
teto alto, janelas compridas, carpetes na parede, veludo, algum tipo de veludo, e
lamparinas no teto, com luz avermelhada. Himyet sorri, e Pierre deixa Himyet entrar. E ele
entra. Marianne sorri, e Pierre e Himyet se beijam longamente na boca, depois se olhar
com uma testa próxima a outra. Himyet vai até Marianne.

Marianne: e o que vai crescendo dentro de você pode ser algo que você não esperava
que pudesse sentir. As coisas girando como um parque de diversões.

Pierre: Himyet, estou convencendo a Marianne a ter filhos conosco.

Himyet: que boa a idéia!!!

Marianne: não (Marianne vai até a janela, fica nervosa, triste, com a insistência de Pierre
sobre o assunto, ascende um cigarro e fuma.)!

Marianne: é preciso chegar à etapa de sentir apenas uma coisa, coisa. Ter apenas um
sentimento. Alors! Alors! Não sinto nada. Nada. Rien de chose. Pás mal! Tan pis!

Pierre: (nervoso, falando pra moça) Ce ta pirando, cara!, putz! A gente tinha combinado
que ia ter o filho, pó!, Brincadeira!?!

Himyet: Querida Marianne, quando a gente imagina um futuro não conseguimos detectar
qualquer erro. Já planejamos tudo, Marianne. É cada vez mais comum aqui um triângulo
de amor ter crianças. A alma quando imagina coisas que não existem exerce sua

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liberdade. A alma imagina outros corpos e quanto mais imaginamos mais criamos uma
memória e no final das contas temos um tanto de memórias que ainda não existiram.

Pierre: Fodas se ela não quer, fodas!

Himyet: calma Pierre

Marianne: eu preciso descansar (Marianne se deita na cama, cai como uma adolescente
num edredom vermelho, estufando a cama. Himyet se joga sobre ela, fazendo carinho
beijinho, beijando na testa, no rosto, na boca. Marianne se afasta rindo deixando a
brinquedeira, querendo o tesão. Ela olha nos olhos de Himyet e dos dois se beijam. Pierre
vai até a janela e abre a janela um pouco mais e olha para as ruas de Paris. Marianne e
Himyet conversam.)

Himyet: você não tem nada a dizer? Nada? --- ele pergunta suavemente para Marianne
beijando-lhe os olhos. Ela continua calada, deixando-se beijar, logo ela corresponde aos
beijos dele, e eles se passam a beijos maiores, mais longos, mais apaixonados.

Marianne: você acha que eu não posso amar, né? Você acha que eu não dou conta de
amar um cara apenas..e amá-lo com minha forças e ficar feliz por cima e por também me
sentir amada. E você pensa que o amor não é eterno....não é isso? Porque as pessoas
para você não são capaz de exercer o amor em suas vidas, que as pessoas não são
capazes de amar, que eu sou capaz de amar..outras pessoas são capazes de amar e não
só você. Não é só você que ama e que quer viver o amor.

Himyet: então você vai trepar comigo de maneira triste hoje, agora, não é?

Pierre: (falando pra todos) eu tou carente hoje. Ta sabeno? Tou. Muito carente, muito (se
afemina). Hoje é dezembro, hoje está muito frio na França. Hoje tem teste nuclear
acontecendo em várias partes do país, e várias bombas nucleares acontecendo em várias
outras partes do mundo. Os testes armamentícios, explosões, animais sendo
esturricados, assados vivos, no calor da inconnsequência. Heim? .... Estou a fim de ficar
num ninho hoje. Hoje eu quero fuder até o amanhecer. Eu quero um ninho, quero dar o
cú, quero chupar, quero cheirar cocô, quero isso de hormônio, quero fugir. Fugir! Quero

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alguém me fodendo até o amanhecer. Eu quero solidariedade. (ri para todos), alguém se
habilita?

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3º Ato:
Da chegada de Sego ao Hotel Paris

Himyet e Marianne ficaram se beijando. Já estão nus. E alguém pensa: “--- ...! Enquanto
muitos e muitos adolescentes brasileiros sofriam a impossibilidade de adequação aos
padrões estéticos europeus, norte-americanos, orientais, o caralho!). Ela pode até
pressentir: “barulhos na escada do corredor do quinto andar. Sobem escadas, barulho.
Batem na porta. Não é Piere. É Sêgo. Himyet abre a porta. Marianne permanece deitada
na cama, agora se encolhe, olha com tristeza para o canto”. A presença de Sego muda
completamente a fisionomia de Marianne, e seu humor. Uma presença desagradável, de
alguma forma, um ar seco. Marianne se movimento embaixo de Himyet, mas seu rosto
descompassa do corpo, dando e recebendo o prazer do hábito habitual bom. O rosto tem
o olhar perdido, encostado no pescoço de Himyet. Ele vai comendo Marianne devagar.
Era preciso ir até a janela, e ela faz isso, beija o pescoço de Himyet, e o afasta, e se
levanta, e vai, para olhar as ruas de Paris, a essa hora, luzes de mercúrio mal iluminam
prédios sérios, tenebrosos, antigos, graves. Pessoas com casacos grossos, para o frio da
madrugada. Poucas luzes, faróis azuis, carros franceses. Himyet se assenta na cama,
olha para a mulher nua na janela do quinto andar. Por sobre os ombros e cabeças
daquela mulher, ele vê as luzes da cidade baixa. Pierre deve estar voltando, ela pensa,
ele chegará, com uma garrafa de alguma bebida cubana, e então deixará o ar divertido, o
clima do grupo.

Nada contra as mulheres de Sego --- Marianne pensa, divaga. Nada contra nada. Alguém
bate na porta. É ele. Cochichos. Risos femininos.

Abre-se a porta. Um homem, magro, cabelos lisos, quase cobrindo os olhos, num
penteado desleixado, vestindo um terno branco amarrotado, um sapato branco. Duas
mulheres, todos da mesma altura. Vestidas de jeans, e camisas com palavras em Inglês
estampadas, roupas cotidianas, cadernos e livros, cigarro na mão de uma delas. Ficam
parados olhando. Uma câmera pode fazer uma panorâmica mostrando o corredor do
hotel, exageradamente encarpetado com motivos em vermelho, apontando o clima de
luxúria, sedução, e prazer. Muitas portas pelo corredor, mas todas fechadas, corredor mal

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iluminado, uma luz avermelhada no centro do corredor faz lembrar as lendárias luzes
vermelhas da zona de prostituição pública indígena Guaikurus, em Belo Horizonte.

Sego entra com duas mulheres, abraçado às duas. São suas amantes. Aba, Abannah, e
Simone. (fecham a porta)

Sego: boa noite, pessoas, brasileiros e brasileiras, e japonesinhas francesas.

Aba: boa noite, boa noite. A gente podia jogar um truco hoje, né galera, né?? Heim?

Simone: tem bebida nesse quarto hoje? Tou maus, triste, deprimida e chateada, só
transo com álcool hoje. (Simone vai entrando e se assentando na cama, ao lado de
Marianne, elas se cumprimentam)

Himyet: todos estamos estressados hoje. Como vocês estão nessa quinta feira francesa
maravilhosamente difícil?

Eles praticam sexo grupal todas as quintas, às vezes quando há provas na faculdade,
passam para a quarta. Todas as semanas. O grupo totalmente brasileiro, se enfurna o
hotel paris, na garre de Lion, no quinto andar, entapetado e carpetado estrategicamente
de vermelho cor de sangue arterial.

Sego... (olha sem palavras, encurtando os lábios no canto da boca num gesto de humor
relaxado, calmo, feliz (?)).

Aba Glória: então vamos logo para a prática do ato sexual! Está frio, e se ficarmos todos
debaixo das cobertas, vamos viver o melhor do melhor, do melhor. E tudo isso em Paris.
Sexo, academicismo e aconchego caro. He, he, he, ho, ho, ho, ho.

Simone: vamos, ta esfriando.

Himyet: esperem... temos que conversar sobre nossa banda de rock. Já temos um show
agendado. E eu gastei parte do adiantamento do dinheiro do pagamento do show com
inutilidades cosméticas. Pronto, eu disse! --- ele fala, se aliviando de um peso, olhando

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para o chão, com timidez. --- E também, Pierre precisa chegar. (todos olham pra Himyet
com espanto, depois furiosos). Vamos esperar o Pierre chegar e Marianne se lubrificar.
Ok?

Marianne: eu vou dormir.

Pierre: fodas, fodas vocês dois! Eu sou estudante brasileiro, ta sabendo, de minas gerais,
ta sabendo, do edifício maleta .... Estou longe da minha pátria. Estou numa porra de
quaro de hotel do caraí. Amo vocês dois, e só tem uma coisa que eu vou fazer aqui
agora. (... , silêncio curto), Vou comprar bebida.

Himyet:(risos, gargalhada)

Marianne: Boa noite (Pierre se levanta. Vai até a porta. Saí. Fecha a porta atrás de si.), ---
ela sacode a mão, com se no all-tomático. Tem horas que ela quer, tem horas que ela não
quer mais.

Himyet: Você vai viajar pelas estrelas hoje comigo e com o Pierre?

Marianne: não vai dar

Himyet: você tem preconceito porque nós dois somos homens negros que gostamos de
trepar com você ao mesmo tempo em cima da tua pele branca japonesa, com tua pele de
porcelana? É um pequeno preconceito irônico.

Marianne: É apenas uma questão de escolha. Por um momento você escolhe quem você
quer ser. E todos os seus sonhos passam num segundo em sua mente. E te perturbam,
pois você decidiu seguir o caminho da esperança.

Himyet: então, procure se divertir, procure melhores afazeres, como ter um filho, como me
assumir, e assumir essa família. Nós te queremos, uai.

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4º Ato:
confidências

Jão. Imagine comigo a seguinte cena: eu e você em Londres. Cada um com uma garrafa
de rum na mão. Ou a bebida que você escolher. Lembra daquela vez que a gente tava
numa reunião com os músicos de nossa grande banda? A maravilhosa “Cicatriz
Social”??? Mas tudo bem, antes de falar de Londres, quero que você se lembre daquela
gandaia, quando quase que a banda inteira foi levada por uma correnteza de um rio, num
dia de tempestade, em que nadávamos, no rio grande. E no mesmo dia, atravessamos
invisivelmente um material sólido, saindo ilesos do outro lado, através de uma carreta,
naquela rodovia, quando nosso baixista, o Délio, dirigia embreagado e ressuscitamos
todos os cinco membros da banda de uma só vez, pela graça de Javé do amor. Pois para
quem não conhece, a banda é o Jão na batera, o Délio no baixo, o Elinho na voz, o Elias,
o gordo (davéia) na percurssão, voz e efeitos eróticos, e o Tierro na guitarra, craviola
francesa-ipatinguense e violão. Mas isso foi antes, voltemos a Londes. Eu, tierro, e você,
Jão, voltando de um show de Strep Tese de garotas japonesas do Japão viciadas em
sexo e em brasileiros músicos-poetas, nos botecos dos bairros populares da cidade,
como aqueles bordéis que costumávamos freqüentar em Passos, caminhamos pelas ruas
lentas e nebulosas de Londres, pensando aonde ir, e então, uma limosine para para nós.
O carro acompanha nossos passos até pararmos també, e então? A porta de abre. Nós
não acreditamos. Olhamos pára dentro da limosine. Há um homem e uma mulher. O
interior da limosine é todo amarelo, de veludo amarelo, iluminado com luz de mercúrio,
dando aquele clima surreal. Um interior enorme, um carro enorme por dentro, cheio de
instrumentos, e livros, e garrafas de vinho francês, e espelhinho para o pó, e um pôster do
Jimi Hendrix e do Bob Marley juntos, em um show que fizeram. E quem está lá dentro da
limusine? Ce nâo acredita Jão? Reconhecemos imediatamente: Morrissey e Helquemara!
Sim, aqueles dois grandes ícones da cultura mineira da década de 90. Morrissey, saído
dos “The Smiths”, e Helquemara saída das nossas imaginações colegiais. Não
acreditamos. O Jão, com certeza começaria a passar mal, mas eu, vendo aquela garrafa
de champagne nas mãos do Morrisey, já ia entrando dentro da limosine. E então,
passeiaríamos por toda Londres, e badalaríamos por aqueles pubs, entrando, bebendo,
dando umas “canjas”, saindo de limusine para outro pub, e assim a noite inteira, vendo
mulheres, homens, ETs, Vampiros vivos, galera do funk, dançando e chapando, o

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Morrissey falando com a gente e a Helquemara traduzindo do inglês para o Português. E
a gente fazendo perguntas sobre o The Smiths, pedindo pra ele cantar, e então a gente
passava a ser a banda do Morrissey, voltando os Smiths de novo, com nova formação, e
o Morrissey fazia o convite pra nós dois. A Helquemara já tinha aceitado, na verdade ela
tinha sugerido nossos nomes. Ai o Morrissey perguntava para mim e pra você se a gente
queria entrar na banda, fazer shows pelo mundo inteiro, tocando novas e velhas canções
dos The Smiths. O Morrissey no vocal, eu na guitarra, você na batera, Jão, e a
Helquemara no baixo. Putz. Acho que eu me ajoelharia como um bom budista, pois essas
eram as preces de toda minha juventude perdida entre os canaviais de Passos, aquela
fábrica de calor e de genética caótica doida. Pois o Morrissey, como um típico rei Artur,
me pediria para ficar de pé, e fazer o juramento nobre de todo membro dos The Smiths,
que de geração a geração é passado na Inglaterra. E eu prometeria aos deuses do rock e
do futebol, ser fiel até a eternidade para com os valores do bom rock poderoso
rageagainstmachiniano! Amém!!! E então, o novo The Smiths, sairia pelas ruas de
Londres, de madrugada, acordando pessoas, tocando nas praças, uma música duas, e
então, entrando na limusine e indo para outra cidade, outro lugar. Tocar nos bares e
restaurantes, e em grande shows. O The Smiths, como você sabe, tem fâs no mundo
inteiro. Até em Passos, se fizermos um Show lá, não cabe num estádio os fãs dos Smiths
que iriam ver o Morrissey cantar, já pensou como seria um show, tocando as músicas do
Morrissey? Putz!!!. Até o Leon iria!!! Até minha mãe iria. Até a vida confusa de todos os
livros de Guimarães rosa que eu já li, iria. E então, até o dia amanhecer tocando, fumando
o chá, tomando rum, e então, e então, e então, amanheceríamos numa praia, talvez, ou
dentro de um lago, em algum parque do centro da cidade, rodeados de japonesas
ninfetas acadêmicas dependentes de ópio, lendo poemas de Bretch, completamente
exaustos da big-gandaia, transformados para sempre em nossas fisiologias cerebrais
mais básicas. Lá no fundo da alma brasileira, aquela alma pertencente a essa terra das
minas gerais, até isso seria abalado para sempre, até o triângulo da bandeira seria
reconstruído se isso se realizasse, mesmo num sonho real, então. Acho que eu me
levantaria, olharia o mar pela primeira vez, e sairia andando até desaparecer em alguma
velha esquina da Inglaterra, talvez eu procurasse minha puta cubana por lá, sei lá, só sei
que, no melhor estilo “Elias”, desmaterializaria!

...

90
As cartas da Irmã Anedita
do Sagrado Coração de Jesus

Carta VIII

“Mas o sol veio, a manhã surgiu, a madrugada e aquela tentação horrível, e aqueles
absurdos pensamentos, se esvaíram de minha cabeça, frei Eugênio. Eu não queria que
minha vida fosse representada em uma peça teatral de qualidade duvidosa. Eu não
sonhava mais com nenhuma qualidade, ou sucesso, ou bem estar. Queria só estar
externa a mim para viver a manhã sem sujeitos, sem identidade, sem palavras e memória,
sem a língua portuguesa, viver a essência platônica do tempo, da presença do sol, aquela
gigantesca concentração de explosões de núcleos de hélio e hidrogênio superaquecidos.
Era meu último dia, antes da tentação da noite novamente. Como viver um dia bom?”

Carta VII

“Há um segredo para você ser amada pela pessoa que você gosta, desejo da maioria das
pessoas humanas: ser amada pelo sujeito que se ama. Pois o segredo é se tornar
importante para essa pessoa. As pessoas humanas amam aquilo que é importante, aquilo
que causa um desequilíbrio gostoso, uma vertigem, uma sensação de continuidade. Pois
sendo importante para alguém, você terá mais chances de ser amada por esse alguém.
Mas como investigar isso, se temos péssimos filósofos e filósofas? Atém-se ao discurso,
às formas de revolucionar, de inovar da filosofia. São os derrotados espíritos livres, que
saem por ai fodendo a vida das pessoas com as palavras e as atitudes covardes. Isso faz
com que os filósofos sejam sujeitos fracassados emocionalmente, e as filósofas também,
um fracasso biológico-evolutivo. E as filósofas? Essas são piores, por que ficam
submissas intelectualmente e precisam fazer sexo com o filósofo-mor para obter alguma
autonomia intelectual, como num ritual antropofágico ruim. Mas o segredo não é mais
segredo, a milhares de anos outro tipo de filósofo e filósofa, diferente dos egocêntricos
orientais e norte-americanos, paulistas e cariocas, que vasculham o submundo da
felicidade existencial, surgiram, em geral fumando a boa maconha, aquela da paz, aquela
do bom-senso, da alegria brasileira, da acolhida do povo mineiro, a mineiridade, O grande
mentecapto! Esses bons nos disseram: assim como a vida, que agrega moléculas e se
reproduz, a sociedade humana precisa acolher seus membros. E isso só é possível com a
diminuição do auto-valor. A superpopulação de células no corpo é o câncer. A
superpopulação humana concentrada em células de produção e consumo industrial

91
chamada cidades, metrópoles, é como um grande e poderoso câncer sobre as terras
brasileiras. A superpopulação de carros, a superpopulação de pequenos empresários
mineiros, a superpopulação de pastores, de celulares, de desmatamentos, de áreas
degradadas, de animais e plantas ameaçados de extinção para sempre, a
superpopulação de putas universitárias, a superpopulação de vagabundas e cínicas
figuras, a superpopulação de pitbulls da violência, policial e marginal, a superpopulação
de intelectuais cariocas, a superpopulação de donas de casa consumistas, fracas,
esteticamente dependentes, e estúpidas. Acima de tudo estúpidas. Gordas e estúpidas.
Como eu. “

Carta VI

“Mas não sou apenas eu quem sofre de tentações demoníacas todas as noites, frei
Eugênio. Olhe belorizonte. Essa cidade que foi construída em uma antiga área indígena.
Hoje ela tem 3 milhões de pessoas. Já está superpovoada. Começa a ficar parecida com
o inferno: Rio de Janeiro e São Paulo: as duas imagens do inferno que temos no Brasil:
lugares superpopulosos, com graus de destruição ambiental infinitos e graus extremos de
individualismo, consumismo, prostituição e violência. O câncer do Brasil é o Rio de
Janeiro e São Paulo, que vai adoecendo todo território nacional com sua lógica anti-
biodiversidade e suas crianças gordas e capitalistas, que olham pra natureza do país
como se fosse mero recurso natural sem alma a ser explorado pelo desenvolvimento e
pelo crescimento econômico. Eles sofrem as tentações do demônio todas as noites,
individualmente, por poder, por sexo, por dinheiro. E os governantes de BH estão
cedendo às tentações do demônio, estão privilegiando os motoristas ao invés dos
pedestres. Já reparou como se demora nos sinais de trânsito em BH? Como podemos
andar e chegar aos nossos objetivos? Como podemos ser Bípedes em BH com esses
sinais de trânsito que favorecem os automóveis? Porra! Pois o prefeito e os vereadores
são arrastados todas as noites para a última porta de suas catacumbas interiores, e lá
acontece a traição ao povo, por que eles não possuem utopias mais. Todas as utopias
dos anos 80 acabaram mortas e enterradas numa dessas catacumbas. E atrás da última
porta há sexo gostoso e fácil, anti-ético, dinheiro fácil pela corrupção, poder e influência
fácil na TV e jornais comprados de BH, e tudo que a riqueza reúne ao redor de si,
principalmente, os escravos, os derrotados servis, as putas e os putos, e principalmente,
os piores: os filósofos.”

Carta V

“Talvez, frei Eugênio, Jesus fosse inteligente o bastante para saber que é uma esperança
vaga a tal ressurreição. Talvez Jesus devesse freqüentar mais, as UTIs para ver como um
ser humano, por mais belíssimo que seja em vida, se reduz a um estado inanimado
degradante. A carne depois da morte vai se repartindo, se separando, deixando de querer
ficar unida. A vida une todas as moléculas, sem a vida há a divisão. A fragmentação. Por

92
isso a fragmentação é o pecado, a dissolução, frei Eugênio. Lembra-se daquela mulher,
que teve um caso com dois amigos ao mesmo tempo, uma daquelas traições e putarias
clássicas? Pois o que ela fez no fundo? Separar as pessoas em nome de seu próprio
prazer. No fundo as pessoas estão tão envolvidas emocionalmente com seus discursos e
seus atos que não conseguem observá-los de outro ponto de vista. Em nenhum momento
aquela mulher fez essa reflexão. Para ela não importava nada, a não ser ela mesma. Mas
isso é comum. Talvez se eu pensasse só em mim, fizesse o tal filme da curuja. --- eu
estava pensando essas coisas enquanto subia as escadas que levam dos treze andares
de catacumbas, embaixo do convento, até a terra, a superfície. Nas catacumbas as freiras
colocam livros mortos, palavras, mortas, memórias mortas, tudo que morreu, não é
desfeito, é colocado nas catacumbas do convento. E são muitas portas que tenho que
abrir e fechar naquela escuridão. Mas faço isso tão bem por já ter feito tantas vezes. O
cheiro é insuportável, em compensação há muitos cadáveres preservados. Bom, era mais
essa tentação, frei. E todas as noites a coruja ia em meu quarto, me arrastar para algum
ato ilícito, me colocar diante do abismo. Sempre com suas questões pornográficas,
sempre com seu não entendimento da alma feminina. Todas as noites ele me arrasta para
alguma tentação, exercendo aquela força imensa no início, e desistindo covardemente
depois. Eu quase chego a acreditar que ele vai até o fim, que eu me uniria a ele, o
demônio. Mas na última hora ele é falso e derrotado, como a língua portuguesa, nossa
madrasta. Pois era sempre assim, todas as noites, frei Eugênio. E eu tinha decidido que
aquela seria a última noite do demônio em minha vida, daquelas tentações. Ou era isso,
ou era o suicídio. “

Carta IV

“Toda a infra-estrutura de um filme pornô. Tudo que está por trás das câmeras. O excesso
de sentimentos contidos. Um espetáculo fisiológico. Sexo diante das câmeras, com
fantasias, atores profissionais, pessoas que sempre procuraram a fama através da
imagem, ou mesmo alguém que tenha caído nesse tipo de atividade sem querer. Sem
provocação qualquer. Mas uma superprodução como aquela envolvia muita gente. Veio
um pessoal de fora do Brasil pra registrar para o livro dos recordes. “Anedita e ...” poderia
mesmo ser um sucesso. Cada ator teria 40 segundos dentro da vagina, e haveria um
rodízio nas outras partes do corpo, isso para dar tempo de todos os 400 atores
penetrarem, seria um sucesso. Anedita ficaria feito uma aranha, toda aberta, recebendo
aquela quantidade de pênis, de todas as formas e tamanhos. Parecia ser um daqueles
pornozões de causar impacto em toda uma geração de adolescentes masturbadores de
televisão. Toda uma geração de brasileiros poderia ficar marcada. Mas Anedita ficou
pensando se já não era hora de enfrentar a tortura. Ela não aceitaria isso. Mal tinha
transado com um homem em toda sua vida, e agora de uma hora pra outra com
quatrocentos, fora os maquiadores, contra-regras e todo pessoal da técnica, que
provavelmente ia tirar sua lasquinha de prazer? Não. Anedita preferia outra coisa. Se
encheu de tudo aquilo e começou a caminhar para a saída do ginásio, o demônio coruja
apenas a seguiu com os olhos. Nada fez. Anedita caminhou até a porta de ferro.
Empurrou a porta, e entrou nas catacumbas. Começou a subir as escadas. Naquela
escuridão, chorava.

...

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A fera me arrastou pelos pés, e foi descendo comigo até o porão do convento. E eu tentei
gritar, mas a voz não saia.
--- você estava falando sério quando disse sobre ficar nua? --- o diabo-coruja falou com
grossa voz, perguntou.
--- si-si-não-sim, não, não sei, ... --- tentei responder.
--- ótimo. Preciso que você faça um filme pornô! --- disse o demônio.
--- o que é um filme? --- perguntei já imaginando a terrível tortura.
--- um filme é uma representação diante de aparelhos que sugam a imagem e fazem
cópias daquela imagem e trocam essas imagens por dinheiro. Dinheiro não significa nada
para mim, o que me importa é o mecanismo. Sou um estruturalista.
--- isso é uma espécie de diálogo entre o torturador e o torturado? --- perguntei com voz
firme, enfrentando pela primeira vez a besta. Me deu vontade de gritar o nome de Jesus,
nome que tem poder sobre a fera. Mas a minha língua portuguesa tinha me traído
naquele momento.
--- nem pense em gritar o nome de Jesus. Se fizer isso eu desaparecerei e você ficará
aqui perdida, pois estamos descendo para o ponto mais fundo desse convento, já
estamos nas catacumbas. --- disse o mal. Eu percebi que ele me carregava nos braços e
corria para cada vez mais fundo. Era o lugar onde as freiras enteravam-se umas as outras
desde 1674. milhares de cadáveres sem nome e memória. Uma dor existencial enorme. E
chegamos no ponto mais fundo das catacumbas. E havia uma porta. Uma porta cinza e
velha, de metal. Ele abriu a porta e havia um túnel.
--- posso ao menos saber de que filme se trata? --- perguntei trêmula.
--- “Anedita e os 400 tarados”. --- ele me respondeu.
--- comassim? --- perguntei trêmula.
--- é que minha última grande produção, “Jade e os trezentos soldados” já é um título
ultrapassado. E cada homem tinha apenas 21 segundos de boceta. Entramos para o livro
de recordes. Jade foi a mulher que transou com mais homens em uma hora e pouca de
filmagem, 330 homens ao todo. Mas com você faremos algo ainda mais grandioso. --- me
disse.
--- e o que seria? --- perguntei.
--- incluiremos travestis e palhaços de circo no filme, todos comendo você. --- respondeu
animadamente o diabo-diretor, fechando a porta ao entrar comigo pelo túnel sinistro.”

...

Carta III

“Caro frei Eugênio,

Essa noite o demônio entrou em minha cela. Ele era uma coruja imensa, com um rosto
imenso. Entrou lentamente, suavemente, como se fosse feito de líquido espesso, de
sêmen negro, de petróleo. Entrou e me olhou com aqueles olhos imensos. Quando ele
entrou na cela, imediatamente um som terrível se fez ouvir, tão alto que imaginei, e fiquei
aliviada, que o convento inteiro iria ouvir e me ajudar, pois meu corpo tremia todo. Mas
nada se ouviu fora de meu quarto. E pela manhã eu soube que apenas em minha cela o
som tremendo tinha sido apresentado.

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Uma coruja imensa, que tinha que ficar curvada para permanecer dentro do quarto. Toda
negra, com o enorme rosto branco. E enormes olhos vermelhos, grandes olhos vermelho,
que me congelaram totalmente. Um rosto imenso que não parava de me fitar. Um rosto
todo branco, com um bico pequeno. Assustador. As suas asas são enormes, e suas
garras monstruosas. Eu fiquei encolhida na cama, e desmaiei várias vezes. Mas ao
recobrar a consciência, ele estava lá. Um monstro assustador.

--- “eu sei todas as coisas. Tudo que há pra saber eu sei. Todas as perguntas eu posso
responder. A única coisa que não possuo é o verdadeiro poder. O poder da vida e da
morte. Mas eu sou um ser eterno. Enquanto houver um ser humano, eu existirei. E posso
matar você nesse minuto”. --- A ave me disse.

--- “o que eu devo fazer?” --- perguntei. E como uma adolescente, acrescentei: --- “devo
ficar nua pra você?”

--- “ora, ora, ora! Temos aqui uma freirinha cheia de desejos, há, há, há, há!” --- disse
a fera. Fiquei envergonhada de mim. De meu corpo, mas aquela coruja enorme me
impunha tanto violência simbólica que eu não resistia em me oferecer. Me envergonhei da
minha falta de fé, nenhuma oração saia de minha boca trêmula. Nenhuma reação.
Naquele momento Deus não exista par mim. Tantos anos devotada ao serviço de Deus,
ao serviço da igreja e do amor, e eu não consegui nenhuma força em meu corpo para
resistir ao demônio, me entreguei desavergonhadamente diante do horror e do medo. Frei
Eugênio, preciso lhe contar tudo que aconteceu naquela noite. Meu corpo ficou paralisado
e a única coisa que pude fazer foi ficar nua.”

Carta II

“Rio Vermelho, 30 de julho,

Caro Frei Eugênio,

Escrevo-lhe. Desculpe a impertinência de escrever essas cartas, espero que o Sr. não me
censure, ou me negue. Mas acima de tudo peço que o senhor não faça referência ao
conteúdo dessa carta com nenhuma de minhas irmãs de congregação. É um assunto
íntimo. É uma carta secreta. O Sr. como um ministro de Deus, um padre, poderá me
entender. Vivo nesse silêncio, nessa solidão, nessa entrega surda para com a Igreja, a
santa igreja católica, que eu aprendi a gostar. Mas a tarefa que eu mesma me apresentei
com a finalidade de minha vida está pesada em demasiado, em grande quantidade de
sofrimento, nesses dias. Tento mortificar meu corpo; reduzir minhas ânsias, aceitar meu
envelhecimento, pela causa nobre do sacrifício de minha libido e de minha voz, em
serviço dos outros, eu rezo o dia inteiro pela humanidade, o dia todo eu coloco diante de
minhas orações as pessoas que estão no mundo. Me esgotei nessas orações sobre o mal
no mundo. Mas o mal está dentro de mim. E eu tenho rezado por mim também, e o tempo
das orações que faço por mim, está grande demais, frei Eugênio. Minha vida é lutar
silenciosamente contra o mal, dentro da minha cela, diante do crucifixo, diante da bíblia.

95
Tenho já uma idade que os homens não me olham mais como uma mulher possível de
ser esposa. Tenho 33. Não poderia ser uma bela esposa de ninguém. Além de não ter
virtudes nenhuma de casa, e só ser boa para trabalhos serviçais de limpeza e cuidados
com o lar que é o convento. Minhas carnes envelhecem e começam a cheirar de forma
diferente. Eu toco meu corpo na escuridão de minha cela, eu me procuro, eu me abraço
debaixo da água fria, eu deixo o frio entrar, não me apego aos deleites do corpo, não me
alimento de coisas gostosas, não faço as vontades da matéria, durmo pouco e não uso
cosméticos de maneira alguma. Meu corpo vive na simplicidade da vida, leve e triste
pelas dores do mundo e pela sua própria dor de existir temporariamente. Meu corpo não é
como as montanhas que existem por milhares de anos, ou as estrelas, que existem por
milhões de anos. Tenho dúvidas sobre a eternidade da alma, não sei se seria uma boa
coisa uma alma consciente existir por muito tempo. Ou seja, tenho consciência de minha
finitude, frei Eugênio. Mas eu tenho alegria em viver. Gosto de escutar os pássaros, e ver
as flores, as maravilhas do trabalho do Arquiteto divino, que fez com preciosidade as
pequenas vidas que vivem contentes a vida. O corpinho das aves, dos peixes, que se
transformam em alimento pra nós. Não gosto de supermercados onde a carne de outros
seres vivos é vendida como uma mera mercadoria, sem nenhum ritual de purificação da
morte. Quanto sofrimento existe na carne daqueles seres vivos que se compra em
supermercados. Mas eu amo meu corpo, que é pequeno. Amo meus seios, ainda firmes,
duros, que não nasceram para amamentar uma criança, ou dar prazer a um outro ser, eu
acho.

Eu não tenho medo de morrer, frei Eugênio. Só tenho medo de não estar vivendo a ida
mais digna, a vida mais digna, a volta mais digna. Tenho receio de que minha opção seja
nefasta e pobre, de estar desagradando Deus. As outras irmãs do convento falam que
conversam com Deus. Mas eu não consigo, frei Eugênio, não consigo ouvir a voz de
Deus. Quando estudei filosofia eu sentia grande interesse pelos céticos, como David
Hume. E acho que nem meu silêncio chega até Deus. Mas eu tento. Falo com ele o dia
inteiro. Rezo pelo fim das guerras, pelo fim da ganância das pessoas, pelo fim da
barbárie, pelo amor dos seres humanos. Rezo, rezo, rezo. No meu silêncio, na minha
meditação. Não fico feito besta diferenciando o ato de “orar” do ato de “rezar”. São
apenas palavras, que as pessoas inventam para criarem diferenças culturais. Os que
oram e os que rezam são de tais e tais religiões. Tudo é besteira temporal. Estou com frio
na alma, frei Eugênio.

Tenho muita vontade de sexo.”

----

(uma mulher, vestida com grossa casaca, por sobre outra peça, a camisola, carrega uma
vela para dentro do quarto e fecha atrás de si a porta. Apesar de todas as inovações da
tecnologia, a congregação religiosa daquela freira ainda utilizava métodos tradicionais
para conduzir suas existências, que tinham uma só finalidade, Deus. A irmã Anedita deixa
alguns livros sobre a estreita cama e coloca a vela em cima da mesinha. Há um frio
enorme nessa semana, no vale do rio Cipó, que corta Conceição-do-Mato-dentro,
cidadezinha entre Belorizonte e Rio Vermelho. Era para o ria Cipó que Anedita tinha
voltado os pensamentos. Dois dias de viagem a cavalo, seis horas de ônibus, quatro
horas de carro, dois segundos em pensamentos)

96
Primeira carta

“Rio Vermelho, 15 de maio

Caro Professor Frei Eugênio,

Permita o senhor que eu abuse de sua correta boa vontade em me oferecer o endereço
da Cúria Episcopal da Diocese de Conceipção do Mato- Dentro. Mas o endereço foi-nos
dadas a todas para possíveis correspondências de assuntos de fé, de catequese e de
liturgia, como um esforço do Senhor João, o bispo, de levar a todos os cléricos e cléricas
as mudanças internas da igreja, decididas pelo Colegiado Internacional.

É por esse motivo que escrevo, para falar ao Senhor sobre algumas dúvidas que me
acometeram, e, também, se for possível, abrir meu coração ao Senhor, como irmãos que
somos em Jesus Cristo, e como autoridade evangélica que o Senhor é .

Nossa humanidade convertida ao amor de Jesus nos deixa frágeis às questões que a
sociedade moderna nos apresenta.

Eu sempre quis ter um filho, uma criança. Mas o chamado de Deus me tocou no coração
ainda na juventude, logo após a faculdade, eu me senti chamada ao serviço da Igreja. E
naquele momento eu não tinha conhecido amor. Tinha vivido alguns romances platônicos
e aristotélicos, mas nunca concluí a aflição da carne, o ato sexual. E até hoje não
conheço o homem e sua face solitária.

Não conheço até hoje a diferença entre sexo e amor. Eu não quis nem conhecer a
diferença entre essas duas coisas por que temi não ser forte o suficiente para cair nas
desgraças anunciadas pela Bíblia para aqueles que brincam com o amor. Sexo é o
mesmo que amor, para mim, e amor é o mesmo que sexo! Era por isso que algumas
coisas nunca serão perdoadas? Mas Jesus é o santo que tudo perdoa. Quando
transformamos o sexo em outra coisa que não o amor, então verá sobre nós toda dor e
todo terror. Então pergunto ao Senhor frei Eugênio por que a Igreja retirou a expressão
Felicidade sexual dos manuais?

Eu estava certa de que o olhar compreensivo de Deus me observa, mas sabia também
que aquele olhar era furioso e determinante. Javé tudo de nossas vidas observa, sabe
cada segundo de nossas respirações, e ama nossos instantes, principalmente se forem
instantes de amor e justiça. Sem mentiras e cruelmaldades. Como eu gostaria de ter um
filho e ver nos olhos dele o mesmo olhar corajoso e bondoso de Deus.

Acho que a grande aspiração de uma mãe é ver espelhado a fonte inicial de qualquer
espelho, a própria existência de Jesus Cristo. Talvez por isso Maria de Nazaré tenha se
aplicado tanto em educar o menino da maneira pedagógico-crítica, pois já imaginava que
a missão daquela criança seria dura, e ao mesmo tempo ela queria ver iluminado o rosto
daquele menino, iluminado de alegria e vontade de viver, ao extremo.

Pois bem, Professor, lhe escrevo para dizer que as missas rezadas em Latin, que estão
retornando à liturgia com a decisão do Papa Bento XVI podem não significar o avanço
cultural que todos nós estávamos esperando na missão da igreja, o Senhor não acha?
Para onde iremos? Devemos apresentar o filme Matrix em todas as missas da quaresma

97
para fazer um debate transdisciplinar sobre nossa fé, ou a transdisciplinaridade só
chegará à igreja daqui a mil anos, como prevê o Senhor Arcebispo?

Sem mais, a não ser agradecimentos pela excelente palestra que o Senhor nos
presenteou na semana de formação no Natal. Guardo ainda vivas no coração tuas
palavras de coragem e ânimo. Um fraterno abraço.”

Carta XII

“Quando a tarde foi ficando mais fria, quando o sol foi desaparecendo, eu comecei a
sentir medo. Comecei a sentir medo mesmo. Tinha ficado o dia inteiro dentro do quarto.
As senhoras bateram na porta me oferecendo comida, almoço e tudo mais. Mas tudo
recusei. Fiquei dentro de mim, repetindo na mente minha história. Desde que tinha
pequena idade, menina sonhadora e triste, até que entrei no convento. Tudo aquilo. E
depois as questões sobre a vida e a morte. As questões sobre o sexo e a amizade. As
pessoas duras que encontrei no convento e as pessoas bondosas que encontrei. Pensei
repetidamente nisso e me esgotei de pensar. Resolvi me deitar e cochilar. Isso foi breve.
De súbito eu acordava suando e angustiada. Era a noite do mais longo sofrer, da mais
longa transformação. Tinha eu aceitado que dependia de mim uma mudança maior,
maior, e eu estaria diante dela enfrentando aquele monstro, o grande animal, a alma do
pecado, os olhos da danação, as garras da perdição, o pênis da guerra. E eis, ao pensar
sobre isso, já na noitinha chegando, entra pelo quartinho adentro a majestosa figura, a
enorme coruja, junto com a legião de almas mortas derrotadas sofredoras, que o
acompanham como um fã acompanha seu ídolo.

--- estava ansiosa? --- perguntou a besta-fera.


--- não tenho medo. Javé me disse pra não ter medo nunca, nem no mais baixo valor que
eu puder dar à minha própria vida. --- respondi com coragem. Com os punhos fechados.

--- pois eu ... há, há, há, há, ... eu ... --- o monstro não se continha. Era como se eu
tivesse dito algo tão tosco, mas tão tosco, que ele ficou feliz, se divertia comigo. --- há, há,
há, ho, ho, ho, eu pago pra ver se você não ficará com medo, se não tremerá!

...

até o amor cansa de ser forte?”

Carta XIII

”Dinheiro? Pouco. Pouco mesmo, quase nenhum. Fui até um asilo, o asilo São Luiz, que
ficava na saída da cidade. Lá havia algumas velhas senhoras que talvez me deixassem
ficar uns dias até eu decidir o que fazer. Caminhei, naquela manhã muito fria, entrei na
estrada de terra e fui seguindo. No sol das oito horas da manhã eu cheguei ao portão do

98
asilo. Portão enorme. E lá bati. Fiquei no meio do silêncio. Depois bati de novo. Ai os
cacho-rhors latiram. Depois de um instante, falei a uma velhinha, e ela me olhou com
seriedade, e me viu, e viu minha questão. Talvez. Talvez apenas tivesse entendido
errado, mas aceitava que eu entrasse. E eu entrei e falei do quarto, de um quarto não
usado por uns dias. Eu faria a faxina, se fosse necessário, ou daria banhos nos doentes,
eu tinha estudos de enfermagem. A velha sacudiu a cabeça e me indicou os fundos do
asilo, e foi até lá. Abriu a porta.

...

--- cuidado com os escorpiões. --- a velha disse com uma naturalidade nervosa.
--- obrigada. --- eu disse e entrei. Uma cama e uma mesa. Como em minha cela. Nenhum
objeto a mais, nenhum objeto a menos. Entretanto eu não tinha ao meu redor a proteção
de pessoas boas e abençoadas de deus, ali naquele quartinho do asilo eu teria que
enfrentar sozinha o mal. Agora ele podia me matar. Se quicé, não havia áurea de amor,
apenas de loucura. O asilo estava cheio de leprosos e doentes mentais, pessoas com
transtornos emocionais, sofrimento emocional, retardados, e outros não possíveis de
serem diagnosticados naquele momento teórico que vivíamos. Estava cheio de rancor o
ar, eram os não-aceitos, os impossíveis, os desterrados. E o mal se nutria da situação,
sugava como mosca as coisas vivas possíveis, para que o inferno fosse cada vez maior.
Eu precisava tomar cuidado com os escorpiões, principalmente em épocas de frio.”

Carta IX

”Resolvi acordar cinco horas da manhã. O convento estava frio, muito frio. Era o fim do
mês de maio, e eu tinha estudado o segundo Isaías (40-56). Eram aquelas decisões
inquebráveis, e eu era muito fraca de saúde, apesar de ser firme de espírito, quando
estava bem de saúde, ... bom, essas coisas de alma feminina, de círculos e retornos, mas
eu já sofria a tanto tempo com a falta de Jesus em meu coração, aquela falta de
conquistas interiores. Então acordei às cinco da manhã. A secretaria do convento abria
antes da missa, abria as seis da manhã. Desci com uma carta preciosa, e fui para diante
da secretaria, esperar que ela abrisse. Era uma carta para a madre superiora do
convento. E deixei outra carta para o bispo também. A carta outra era para o senhor, Frei
Eugênio, para que você lesse com sua alma feminina, se você tiver uma. Se não tiver
uma, pelo menos tenha saudades. Mas o conteúdo da carta você já sabe, frei. Você sabe.
Era a minha retirada, minha demissão, minha saída do convento. Eu estava saindo
daquele lugar, minha dispensa, reuni apenas as minhas roupas e livros de anotações.
Fiquei esperando. A velha madre secretária veio devagar, arrastando a chinela, fazendo
literatura-cinematográfica. E me cumprimentou com aquele sorriso idoso. Entrou,
ascendeu a luz da lamparina, e o corredor ficou mais claro. Estava frio. Eram exatamente
seis horas da manhã. Entreguei a carta, pedi que ela entregasse pessoal-mente. Abracei
a irmã Diolina, e sai andando pelo corredor. Algumas pessoas chegavam para a missa.
Cumprimentei a todas e desci para o centro da cidade. A cidade estava completamente
coberta pela neblina densa. As lamparinas dos postes estavam acesas, avermelhadas. Eu
fui andando. Hoje eu não era mais freira, nem tentativa de santa. Hoje eu era uma mulher,
enfrentando meus demônios pessoalmente.”

99
Carta Final

“Eu senti um frio muito grande, um frio enorme, que foi ficando maior e maior, mas eu não
morria, eu não morria, eu era carregado para o mais fundo do frio e não morria! Era
surpreendente. Minha consciência operava agora à temperatura ambiente. Algo
surpreendente. Você não pode imaginar isso, por que a consciência normalmente está
operando a 36 graus. Sempre fica dentro dos 36 graus, banhada no líquido quente do
cérebro. Mas eu estava consciente, e eram 12 graus, aquele frio de minas gerais, e eu
ainda estava consciente. Olhei para o lado e estava de mãos dadas com aquele monstro
enorme. Ele nem mesmo pensava nada sobre a dança. Como dançar dentro de tanto frio.
E eu estava na verdade cada vez mais surpresa por conseguir pensar, deixar fluir, mesmo
fora do corpo, mesmo sem o corpo. A consciência depende do cérebro humano, depende
das reações minúsculas e instantâneas que acontecem dentro de um pouco de água
quente, que enche uma mão, que é o próprio cérebro, 40 por cento líquido (?), ... ---
pensei duvidando de minhas estatísticas, mas surpresa. Era eu dentro de mim, naquele
frio. Fui caminhando, pois não tinha movimentos próprios. --- andava de mãos dadas com
aquele enorme senhor, eu o amava, sentia grande amor. Mas na verdade aquele amor
era um medo um medo que eu tinha o medo de ficar sozinha. Eu não o amava. Se eu
pudesse eu o feriria, e cada vez mais faria feridas em seu coração, e sempre que eu
pudesse fazer uma ferida, para seu coração bater diferente, para seu coração funcionar
com deficiência e você ficar sofrendo, e tendo constantemente vontade de chorar, e
chorar, e chorar pelos erros milenares que esse indivíduo vem cometendo ao longo da
história da humanidade, os pecados que se repetem infinitamente. --- Foi pra me chamar
e chamou um outro nome, mas depois nós dois deixamos isso na conversa, pra esquecer,
como novas feridas abertas com palavras que saem da boca. --- aquela ostra, a coruja
era como um médico recém formado, que usa as pessoas, que faz as pessoas de
cobaias, pois não têm conhecimento, e nem têm compaixão. --- e ele me levou para fora
do quartinho, e eu fui caminhando. Enquanto eu caminhava, olhei e vi meu corpo se
queimando. Se queimava, e o quarto inteiro se queimou. Eu sai chorando por dentro, pois
como eu voltaria? E se minha consciência ficasse solta no mundo, experimentando a
temperatura ambiente? Para sempre? Isso seria ruim. Como seria pensar dentro de uma
temperatura de 500 graus negativos? Ou como seria pensar dentro de uma temperatura
de 30.000 graus? A consciência conseguiria existir dentro de uma temperatura dessa?
Com certeza? E o amor? Ele é um atributo da consciência? Mesmo para uma consciência
dentro de 30.000 graus há o amor?”

100
A linda japonesinha de Itaúnas

I
Aquela mulher abusada

Naquele momento em que ela saiu do mar e se assentou a mais ou menos uns desesseis
metros de nós, imediatamente à nossa frente, naquela ousadia de mulher brasileira,
imediatamente associada por minha mente às prostitutas. Aquela pose de prostituta,
aquela sensualidade quente, aquecendo o mundo. Absolutamente domesticada, nada de
seolvagem. Era uma pele branca, muito branca, uma carne branca, talvez até mesmo
debaixo da pele era, talvez era, branco. Mas ela era e estava feia de rosto. Era uma
mulher muito feia. Um corpo de japonesa deliciosa, mas o rosto feito. Uma japonesinha
superdeliciosa, e redondinha, com uma cintura muito fina, sardas discretas nos peitos, e
aquela bunda desproporcionalmente grandes para um corpo oriental. Ela era muito feia.
E precisava de meus olhos para se tornar linda, era meu olhar que faltava para compor a
cena. Se eu não tivesse visto aquele rosto, provavelmente ele ainda continuaria feio. E
talvez ela nem tivesse conseguido encontrar um namorado rico se não fosse meu olhar
milagroso.

Escrevo sem pensar. Mas é necessária toda filosofia. E aquela japonesa ganhou até
mesmo olhos verdes, para que tudo ficasse impecável. Imediatamente vista por mim, e
tornando-se bela pela força criadora de meu olhar, ela se tornou bela para as pessoas que
estavam à minha volta, na nossa mesa. “olhem que mulher linda”, alguém disse pra mim,
apontando com um olhar parecido ao meu, a mulher. Mas eu apenas ri, pois aquilo era
obra minha. Deus tinha feito para ela um corpo perfeito. Mas seu rosto estava sem a luz
dos olhos. Essa capacidade de criar um novo rosto para ela no momento em que olhei
seu rosto foi providencial. A quantidade de homens que passou a se atrair foi incrível. E
logo um deles a conquistou, como o moscas famintas sobre o bolo, até que não reste nem
uma migalha.

...

101
II
Aquela mulher absurda

Sentada, vestida com um biquíni rosa, em que a parte de baixo, muito pequena, deixava
ver suas ancas, num ousado semi-fio-dental, aquela pele, como uma encarnação de
alguma deusa, para ficar no carnaval com os seres humanos. E um ser humano tinha
conseguido ser par daquela mulher, e talvez tenha feito sexo com ela. E a vida humana é
cheia de dificuldades, a vida é cheia de desencontros, vemos pessoas agora, dentro de
toda essa ansiedade em ser, pessoas doentes emocionalmente, angustiadas e tristes, e
outras ávidas de experiências, e que tinha nascido com oportunidades estéticas e
econômicas e formavam uma classe de pessoas, a maioria? Não, a maioria, algumas
apenas, que às vezes se reuniam em festivais da classe burguesa como os carnavais em
balneários de luxo, ou em praias paradisíacas. Nessas ocasiões todos estavam belos e
perfumados. Mas eu não sou belo e nem perfumado. Tenho apenas o poder de delegar
beleza às coisas, e não a mim mesmo. Eu apenas deixo as coisas belas quando olho para
elas. Infelizmente isso não funciona comigo. Eu não posso deixar isso em mim, essa luz
de ver e pensar aliterante. Minha forma é essa forma feia, ogra, muda e burra, a forma
grossa do mundo.

A única coisa sobre a qual eu queria falar era sobre aquela mulher, ali, subindo do mar,
seminua, linda, exata na forma e no olhar. Vê-la me causou uma emoção como uma
pressão sobre uma parede de metal. Uma força ferveu dentro de mim. E no instante
seguinte, eu já estava apaixonado. A reação bio-química se tornou um pensamento. Eu
quis me aproximar. Mas não tinha palavras. E então fiquei vergonhosamente. Era como
se todas as batalhas da minha vida terminassem com minha derrota. Mais uma vez eu
estava completamente nu diante do universo de coisas e eletricidades. Os meus inimigos
gostavam de me ver na pior, pois eu era na verdade não um inimigo para eles, mas um
resto humano que já nasceu deformado e detalhadamente composto de razões
fracassadas e impuras. Mas mesmo assim, eu busquei ficar calmo. Meu inimigo naquele
instante em que aquela mulher subiu do mar para a areia, nascida da força mais poderosa
dos oceanos, trazida do Japão feudal, abusada feito uma carioca, com aquela linda bunda
exposta e farta e aquela feminilidade. Então, naquele instante, tão bela, e tão poderosa,
ela se tornou o maior inimigo, e me lançou no chão, na lama, um recado para eu voltar
para o pântano. Que era o meu lugar. E ela, com a bunda arrebitara, atolada em um
pequeno fio dental rosa.

102
III
Aquele deus grego

Ela saiu do mar, era uma japonesinha, usava um biquíni fio dental rosa, era uma mulher
ousada e bela, uma verdadeira encarnação do deus grego Dionísio, que durante as festas
da carne, desde o tempo da Grécia antiga, vem para o meio dos homens para se divertir e
engravidar, gerar paixões e naufrágios. Como eu gostaria de vê-la novamente, aquela
japonesinha que dançou nas praias de dunas de Itaúnas no carnaval de 2010. eita!!!

Dionísio era e é um ser antigo. Uma entidade cósmica, mística, espiritualizada em seus
átomos, feito de outros materiais, de outras fontes de vida, de outras conjugações
fisiológicas. Um deus, antromorfológico, polimorfológico, detentor do domínio das
formas humanas, conhecedor das culturas humanas, pois é amante da vida humana. Um
deus que viaja pelo universo, mas que tem como lugar preferido de pouso e passagem, a
terra, e particularmente nesses tempos, o Brasil. Dionísio é um fanático pelo carnaval,
pela festa da carne humana. Desde quando o carnaval, em tempos antigos consistia de
rituais de canibalismo, sexo grupa, e cerimônias musicais alucinadas. Hoje ele visita as
praias e cidades históricas do Brasil em fevereiro, para ficar entre os homens e mulheres.
Ele não descansa, não dorme, não precisa comer, pois é um deus. Seu alimento é a seiva
divina que transborda das aventuras existenciais. Pois ali, em dunas de Itaúnas, ele veio
de novo ao carnaval humano, em 2010. Entrou no mar feito um jato de luz, ainda de
madrugada, e ficou no carinhoso mar de Itaúnas até o amanhecer, quando saiu das águas,
travestido de mulher. Uma mulher maravilhosa, divina em todos os detalhes físicos e
espirituais, a forma perfeita do corpo humano, a-histórica, uma japonesinha com um fio
dental rosa atoladinho. E veio até onde eu estava com meus amigos, veio caminhando
pelas areias macias, veio devagar, ao foi formando amizades pelo percurso, logo já
estava rodeada de mulheres e homens, felizes diante de sua imagem linda, a praia se
renovou, a música ficou mais alucinante e eu apenas observava. Já tinha lido sobre esse
deus antes, nas páginas de Nietzsche, e o conhecia, sabia das suas manifestações. Mais
do que isso, eu tinha sido iniciado nas artes secretas do cristianismo, e pressenti a
presença desse deus, que muitos dizem ser a encarnação passada de Jesus. De qualquer
forma, fora as polêmicas religiosas sobre o fato, eu sabia que era ele. E aquela
japonesinha veio se assentar na minha frente, imediatamente linda, imediatamente
potente, todas as mesas ao redor levemente tremeram com sua força. E então, ela olhou
pra mim, com um olhar demorado, verde, olhos verdes como o fundo do mar. E eu
decidi me apaixonar por Dionísio em sua forma humana, ali, naquele instante. O que é a
paixão? O que é a paixão? Porque o ser humano se apaixona. Aquele corpo que Dionísio
tinha escolhido era como um prato de comida diante de uma grande fome, mais do que
isso, era o prato que causa a fome, mesmo em quem já está saciado.

103
...

IV
As mulheres belas também se suicidam

Era um fogo. Realmente um fogo, e me subia o pescoço, e eu tentava me desenforcar. A


idade, o envelhecimento, o tempo, o constante adolescer das coisas, os constantes
apodrecimentos das coisas, os novíssimos seres humanos, um temporal de fenômenos
sócio-cuturais acontecendo repentinamente, mortes, nascimentos, acidentes, incidentes,
beijos e coisas assim. Pessoas se conheciam, pessoas se esqueciam. E eu observando
essas coisas, com minha mente libertada pela filosofia, pelos estudos filosóficos que fiz.
Eu sei que neles fracassei redondamente, fracassei em ser filósofo. Mas as leituras e
coisas assim tinham aberto meus olhos e eu vi, vi que era Dionísio encarnado. E agora a
memória daquela imagem de mulher começa a me escapar, mas a essência do que era e
foi, aquela fêmea forma de um deus, permanece. E preciso tratar disso, rápido,
impreterivelmente, para saber que um dia eu estive realmente apaixonado por ele, aquele
deus, e fui um de seus súditos, um de seus adoradores, inglório, abandonado e repudiado
pela forma viva da divindade da embriaguês, porém devoto, e fiel, eis me aqui, senhor.
Aqui escrevo, ò deus Dionísio. E espero merecer uma migalha de tua presença.

Aquela mulher saiu do mar. Veio cainhando até a praia, e depois, se dirigiu às mesas do
quiosque “vida é pra levar”, uma concentração de mineiros na orla do Espírito Santo,
praia da cidade de Itaúnas. E vou contar o que aconteceu. Ela ficou conversando com
uma amiga que fez imediatamente, aquela mulher, Dionísio encarnado, a japonesinha de
fio dental rosa. E ficaram as duas conversando. Então se levantaram para ir embora. E eu
me levantei e fui atrás dela. Juro por minha vida que foi isso que fiz naquele momento.
Levantei-me e segui aquela bunda maravilhosa. Aproximei-me até que ela sentisse que
havia alguém bem perto, então ela se virou, e me olhou.

--- “o quê-qui-há, velhinho?” me perguntou a japonesinha olhando calmamente nos


meus olhos.

104
V
A ódio a Apolo

--- “mas você é muito velho, muito idoso para meu gosto, você é calvo, barrigudo,
desleixado, obtuso, e me parece ser um ser humano muito irresponsável e fluido” ---
disse a japonesinha olhando para mim.

--- “você é a personificação mais linda que eu já vi, de uma mulher, você é uma mulher
esteticamente perfeita, todas as formas do teu corpo são perfeitas, tua pele é a perfeição,
teu rosto de japonesa é lindíssimo, tua bunda, tuas coxas, teus braços, você é
simplesmente linda, e não gasta um centavo com cosmética, é tudo natural, tudo gratuito,
tudo isso lhe foi dado como um presente cósmico. Você tem cabelos longos
simplesmente negros, perfeitos, adequados, todas as tuas formas são simétricas, você é
excepcional” --- eu disse

--- “eu sou Dionísio” --- disse a japonesinha. --- não sou a forma perfeita. Sou a força
perfeita, a exuberância, o excesso, o delírio dos homens, a mais gostosa forma de mulher
possível. Você usa palavras erradas para me descrever, seu idiota. Eu sou o que você
mais deseja. Teus adjetivos são matemáticos, e não tem nada a ver comigo. Eu sou sex,
sou erótica, sou o erotismo, sou o prazer. Nenhum homem me olha sem querer me comer
até os ossos, nenhum ser me olha sem me desejar, homens e mulheres, eu sou cruel, sou
a força que não tem piedade do que é fraco, do que é feio e doentio, como você. Deixo
que se apaixonem por mim e morram de desejo, pois eu escolho apenas o que me
convém, não o que me procura. Eu sou o deus da festa, da liberdade, da livre escolha, do
livre sexo, da livre embriaguez. Vim a terra para me divertir, e divertir a quem eu
escolho. Os demais devem sofrer me desejando, me querendo, e a partir disso tomar
consciência de seu limite e fragilidade. Eu não quero ser perfeita, quero ser erótica. E
você, homem, você é feio em demasia, não me atrai nem um pouco, não lhe desejo, não
lhe quero, não preciso de ti, para nenhuma emoção que realmente me importa, nem
piedade, nem dó, nem simpatia, nem tédio. Você é desprezível realmente.” --- disse a
japonesinha pra mim com aquela franqueza que apenas os deuses sabem ter. falou tudo
isso sem demonstrar emoção nenhuma, como os deuses fazem sempre. Enquanto falava
comigo essas coisas e me destruía internamente, com todo aquele peso e realidade, a
linda mulher olhou para o lado e gritou:

--- “Apolo”.

E imediatamente me deixou ali sozinho, falando sozinho, balbuciando sozinho, e correu


em direção a um homem que estava parado diante do mar. Vi aquelas maravilhosas
nádegas partindo de perto, aquele perfume delicioso, aquele corpo que me deixou louco
de desejo e ânsias, sair de perto de mim e ir em direção a um outro ser humano, que
105
estava próximo ao mar. Um homem atlético, um cara lindo, olhos azuis, corpo forte,
musculoso, e harmônico, um nariz perfeito, um rosto iluminado, uma forma encantadora.
A japonesinha se chegou a ele e começaram a conversar. Eu fiquei ardendo de tesão,
ardendo de vontade de possuir aquela mulher, de fazer sexo com ela, fazer amor, fazer
qualquer coisa, de ficar dentro dela para sempre, de chupá-la, de qualquer coisa. Meu
corpo começou a doer de tanto desejo e tesão, de tanta vontade, comecei a me sentir mal
ali naquela praia. E a japonesinha já tinha me ignorado completamente e estava ela agora
de mãos dadas com aquele homem lindo. Eu já sabia, era Apolo. Um outro deus grego.
O deus da perfeição, o deus da beleza absoluta.

Então estava ali aquele par. Dionísio deliciosa e Apolo másculo. Eu fiquei ali, olhando
os dois sumirem no horizonte, caminhando os dois demãos dadas, rindo e se deliciando
com a mútua presença. Eu comecei a sofrer. Cheio de ira e fúria, e desejos de vingança.

VI
A mulher de Asmodeu

Eu soube que eles tinham escondido o corpo. Era obvio, obvio. Eles eram seguidores do
profeta. O profeta tinha dito em vida que ressuscitaria. E então seus discípulos foram lá e
roubaram o corpo. Para que realmente a tradição tivesse pensado que o profeta cumpriu
o que disse. Fugiram e enterraram o corpo no deserto. Então agora todos crêem que ele
está vivo, que o profeta ainda vive entre nós. Eu me recolhi com essa idéia fixa. Depois
de ver Apolo sumir no horizonte com Dionísio para sempre. Idéias sombrias vieram à
minha mente, e eu decidi correr e sumir. Mas depois de alguns momentos, de alguns
dias, eu tive essa súbita idéia, a idéia de que o profeta de que todos diziam na verdade
tinha morrido de verdade. Eu fiquei triste ao perceber que eu também tinha acreditado
por tantos anos na ressurreição do profeta, mas era uma mentira. Na verdade ele era
mortal como eu sou. Mas entre os homens vivem deuses e demônios. E eu comecei a
perceber que eu podia ver isso. Deixei minhas crenças obscuras de lado para contemplar
algo para além do que eu sabia. Os discípulos do profeta fizeram de tudo para que as
pessoas acreditassem que ele seria alguém especial, que ele seria um caso raro de
ressurreição e de forças cósmicas, mas era apenas um ser de carne e ossos. Isso me doía,
por que eu queria que fosse verdade. Mas a verdade para mim era Dionísio, era aquela
bunda japonesa perfeitamente desenhada, linda, perfeita, milimetricamente medida,
como se um artista genial tivesse esculpido aquela bunda em um mármore branco,
atingido a perfeição. De onde os deuses encontram matéria para isso? Eu fiquei sofrendo
muito. Depois que pensei sobre o que tinha acontecido ao profeta, sofri mais ainda e
resolvi ir para as cavernas, para lugares absurdos.

106
Era uma doença mental, eram idéias loucas, o mundo girava, os pedaços de coisas e
matérias e pensamentos se amalgamavam e formavam outras coisas. E então eu me vi
vestido de samurai. Com duas espadas, uma longa e outra curta. E eu sabia que era uma
alucinação, eu estava alucinado, mas era a realidade, como um sonho perfeito
fisicamente, mas na verdade eu nem sabia mais o que era o real. Depois que o profeta
não voltou a vida, e Dionísio me abandonou. Eu estava num salão. Não estava mais na
praia. Não estava mais diante do mar. Era um salão fechado, e com pouca iluminação.
Era um grande salão velho de madeira, com cheiro de coisas velhas. Eu estava vestido
com roupas da cultura japonesa, e me senti bem. Me senti integrado de novo. E então eu
olhei e vi que havia uma outra pessoa dentro da sala.era aquela mulher do meu passado,
aquela prostituta cubana, aquele ser desprezível, aquele ser maligno, esposa de
Asmodeu, o demônio que tudo mata. Era Ana Lemes. Estávamos nós dois dentro do
salão mal iluminado. Todas as saídas fechadas estranhamente. Não havia como sair. Só
eu e ela agora. Sem Asmodeu, sem profetas, sem Dionísio e sem Apolo. Dois seres
humanos. E a força de alguma coisa forte e presente, individual e sem solidariedade.

...

VII
A explicação do samurai

Um silêncio aconteceu. A mulher de Asmodeu permanecia em um canto do grande


salão. E eu fiquei cá do meu lado, olhando para ela, iluminada pela luz pálida e
avermelhada das lamparinas. Todas as coisas começam com o pensamento.

Ana Lemes tinha se casado com cem homens. De cada um deles ela tinha roubado um
pouco da alma. Asmodeu, o demônio que tudo destrói, tudo mata, tudo aniquila, se
encantou com tal mulher e a trouxe para si. Ele, um demônio, e a encheu de luxo e poder
sobre os homens da terra. E ela se tornou uma escrava dele para sempre, para servi-lo no
inferno. Mas eu, eu fui seu último marido. Antes de mim 99 outros homens tinha sido
roubado e sua ingenuidade. Todas as coisas começam com o pensamento.

Depois de ver Dionísio, e de ter sido desprezado por ela, eu sofri e fugi, e me encontrei
aqui, nesse templo abandonado, a deus nenhum, um templo velho que não tem fieis, nem
ritos, nem deus, nem nada santo. E estou armado. Diante de mim uma antiga mulher que
há muito tempo atrás tinha me feito mal, Ana Lemes, a mulher do demônio. De um salto

107
fui pra cima dela, tirei a espada longa da bainha e fui para cortá-la, com ódio, queria ver
seus pedaços pelo chão. Mas me detive. Todas as coisas começam com o pensamento.

Parei no meio do caminho. voltei a espada para o lugar do silêncio, dei alguns passos
para trás e me assentei longe da mulher. ela estava me olhando, olhando para mim. e
então ela disse:

--- seu covarde. hijo de puta covarde. há, há, há, há, há, há. não consegue nem se vingar.
é patético, você é um pateta fracassado! --- ela disse friamente

eu permanesci calado. estava sufocado, emocionado, perdido. estava alegre e triste, com
frio e calor, dividido, temeroso, tremia, suava, mordi os lábios. sofria. decidi. eu estava
com duas espadas. retirei a maior da cintura. joguei a espada para a mulher. a espada
caiu aos seus pés. ela olhou sem entender. me levantei. tirei a espada menor da bainha.
me posicionei pra o combate. era isso. um duelo. todas as coisas começam com o
pensamento.

...

VIII
A força da mulher do demônio

Ela estava então diante de mim. Olhava para a espada japonesa aos seus pés, aquela
arma perigosa. Nenhuma expressão em seu rosto, nada, nada. Era apenas aquilo, uma
forma humana, uma mulher, a esposa do demônio. Fiquei sentado, preparado para a luta,
o combate, era só aguardar. Aguardar e atacar com fúria, ver o corpo daquela mulher se
partir em muitos pedaços, com fúria é rancor. Eu estava preparado para a vingança
contra Ana Lemes, a mulher do demônio.

Mas o súbito aconteceu. O que é súbito sempre acontece. A mulher se transformou


repentinamente em uma tempestade. Ventos, trovões, raios, neve, urros, chuva, tudo saía
dela, saía de seu corpo. O salão se tornou um lugar povoado de ventos, chuva, neve,
tornados e violência das vibrações. Ela virou uma grande tempestade confinada em um
lugar pequeno. Meu corpo todo tremeu, segurei firme a pequena espada, e vi a grande
espada ser atirada longe. Tive que me segurar para não voar pelas paredes. Um frio
intenso tomou toda a sala, e a chuva fria e fina cortava como milhões de pequeninas
navalhas. Essa era a verdadeira forma da mulher-mulher-do-demônio, uma imensa
tempestade confinada em um corpo humano, era a sua alma aquilo, a natureza que seu
corpo abrigava, uma grande nevasca, cheia de morte e dor. Era aquilo que ela tinha ido
buscar em Asmodeu, uma forma interior de gerar desgraças e destruição. O vendaval

108
tomava a sala do velho templo, e me lançou contra as paredes. Senti meu corpo se
quebrar com a força do golpe de vento, e comecei a perder os sentidos, o barulho era
assustador, como um urro, um grito estrondoso de dentro da tempestade. A força do
vento e da chuva despedaçou as portas, janelas e telhados do velho templo, libertando a
mulher. A força do vento quebrou minhas espadas. Fiquei sem armas, sem saúde.

E então, subitamente como começou. A tempestade acabou, e a mulher-do-demônio


voltou a sua forma humana. Eu fiquei no chão, todo ferido. O corpo doia, as esperanças
de realização e de justiça de obter justiça, e de dar sentido lógico a tudo que acontecia
acabavam. Primeiro a japonesinha deliciosa que fugia de minhas possibilidades, depois a
possibilidade de me vingar que era irrealizável. Tudo isso era o que? Que viagem ao
inconsciente eram essas coisas, esses fatos. E então Ana Lemes simplesmente saiu, foi
para o mundo. Eu me senti perdido mais uma vez, incapaz de vingar minhas dores, e
incapaz de parar de pensar na vida e na morte, na experiência humana, na minha
experiência humana que se resumia em “nada consegui”.

...

X
A louca mulher

Eu me assentei na cama. Lá fora o deserto anoitecia. Dentro daquela gruta, iluminada


com velas e tochas, um calor agradável. Mas o deserto é gelado de noite. Temperaturas
frias e vento. Andar pelas pedras e areias do deserto de noite é só para os monstros. Me
assentei na cama. Procurei com os olhos aquela mulher que havia me recolhido e dado
abrigo. Ela estava escrevendo, em uma mesa, repleta de livros papeis. Então notei que
havia ali uma verdadeira biblioteca. Na verdade era uma biblioteca, com muitos livros.
Miranda lia e depois escrevia. Fiquei olhando para ela. Os longos cabelos, parecendo
seda negra, até as costas, e o rigor do trabalho. Entretanto ela sorria. Quis me levantar da
cama, e gemi quando percebi que minhas costas doíam muito. Todo o sofrimento
daqueles momentos. Miranda escutou e se voltou para mim. “fique deitado”, ela disse,
“falta pouco para você se recuperar”, “tenha paciência”, ela falou. Concordei cm um
sorriso. Fiquei assentado na cama. Ela voltou ao trabalho. Fez algumas anotações,
fechou o livro, e veio para conversar comigo. A gruta era um quarto grande, limpa e
tranqüila.

Olhou para mim, sempre sorrindo, com aqueles longos cabelos pretos. Eu procurava
entender porque minha vida tinha sido salva, e se por causa disso, por causa desse dia a
mais de existência, alguma coisa eu deveria dizer, ou fazer. Miranda começou a falar;
109
“Você veio do mundo, das sociedades humanas organizadas. Mas parece que os outros
humanos rejeitaram você, e feriram você. A morte já beijava tua boca, mas o deus me
levou até você, para salvar tua vida. E eu fui. Eu sou serva do deus, e estou morando
aqui nessa caverna, no deserto, para escrever as palavras do deus. Ele me inspira, me fala
o que eu devo escrever. Um dia isso estará pronto e eu levarei à cidade dos homens para
entregar aos outros servos do deus essas palavras” --- ela disse loucamente.

Olhei para ela e pensei “que pena, tão jovem e já maluca”. Meu pensamento não era para
o riso, mas para uma tristeza fina e silenciosa. Eu abracei minhas costas doloridas e quis
entender melhor o que aquela jovem estava falando. “Deixa eu te entender” --- eu
comecei falando. “De que deus você fala? A terra está cheia de deuses, de deuses e
demônios. Todos vivem entre os homens, a terra é um lugar de passagem e de
divertimento para essas criaturas. Os seres humanos são os fantoches das brincadeiras
dessas entidades. Porque você serve a um deus, pra que isso? Que deus é esse?” --- eu
perguntei com a boca amarga, não queria abusar e ser ingrato à mulher que tinha me
dado luz, mas não suportava ver um ser humano delirando!

“Você tem razão. Tem razão” --- disse sorrindo aquela Miranda Cosgrove. “Há muitas
existências ocultas entre os seres humanos. Por isso o deus me mandou vir aqui para o
deserto. Você já ouviu falar em Gerônimo Jerôme?” --- ela subitamente me perguntou.

“Não” --- eu respondi curioso

“Jerôme foi um homem convidado pelo deus. G. Jerôme nasceu na Croácia, em 347. Ele
viveu nos anos trezentos depois que o Mestre veio a nós (pessoalmente entendo que
Miranda Cosgrove falava de Jesus quando falou do “mestre”), e vivia a expectativa da
ressurreição. O deus entrou na vida de Jerôme e este se apaixonou pelo deus. E então
aceitou fazer o que o deus lhe pediu. Reuniu todos os manuscritos que pode. Viajou pelo
oriente, por Jerusalém, por Roma, fez entrevistas, obteve dados, e embarcou para o
deserto de Karakun com vinte camelos repletos de livros, papirus e todas as peças
escritas que pudessem conter a história da presença do deus entre os homens. E então
Gerônimo Jerôme foi para um deserto, para um tenebroso deserto. E passou doze anos
escrevendo, lendo, orando, rezando, meditando, conversando com o deus, chorando. Sua
missão era redigir a Bíblia, que hoje muitas religiões adotam como livro sagrado. Esse
homem organizou os textos, fez as traduções. E depois levou o livro para a cidade, onde
outros seguidores do deus já estavam aguardando. E então se cumpriu a promessa do
deus de estar entre os homens da maneira mais apaixonada e efetiva. Mais do que a
presença física: o texto escrito.” --- Miranda disse.

...

110
XII
Sexo e Vingança

“Eu fui uma mulher admirável no mundo humano, nas sociedades de consumo. Eu
sempre fui muito bonita e desde criança fiz comerciais de TV e cinema. Sempre fui
muito popular pela minha beleza. E tinha uma carreira promissora, muito sucesso e
dinheiro, e tudo para brilhar infinitamente entre os homens e mulheres da terra. Mas o
deus veio me falar de seus planos e de como ele queria continuar sua presença entre os
homens, e então me convidou para a missão. E eu aceitei. E desisti de minha fama e
riqueza, de meu talento comercial e vim para essa gruta nesse deserto abandonado e
esquecido, vim para trabalhar em silêncio e envelhecer lentamente, e perder a beleza
lentamente, como uma flor que se abre em um campo e nunca é vista por olhos
humanos, mas fica lá, linda e bela, até que se torne seca e de seu estame surja um fruto
com sementes. E eu sou essa flor que perfuma e se abre e logo serei semente para novas
flores, milhares de flores. Você ainda não percebeu que na história do ser humano, que
deve ter em torno de 300 mil anos, uma bíblia é pouco? Jerôme fez o que pode, e agora é
minha vez” --- disse Miranda Cosgrove.um pouco emocionada.

“Entendo” --- eu disse. Realmente ela era muito bonita, e deveria ter sido muito mais
quando de seu tempo na sociedade humana. Uma verdadeira mina de dinheiro.

“Mas quando eu vinha para o deserto, quando eu caminhava para cá, com meus livros e
materiais de trabalho, segundo as informações do deus. Eu encontrei uma divindade
outra, na porta do deserto. Era Dionísio.” --- ela disse.

“Dionísio?” --- eu perguntei.

“Ele estava parado, tinha a forma de um homem gordo, luminoso. E tinha o rosto
severo” --- disse Miranda. “Ele impedia meu caminho com toda sua gordura e força. Eu
disse a ele que estava cumprindo uma missão para o deus Dionísio ficou mais irado
ainda, pois o deus não o havia convidado em nenhum momento da história para
participar da criação das coisas. Na verdade o deus preferia a companhia dos homens
que a companhia dos outros deuses, e todos eram ressentidos com ele por causa disso. O
deus tinha uma predileção pela raça humana, pela natureza viva, e desprezava a
companhia das outras divindades, ou seres de outros planetas.seu amor na terra era o ser
humano. Sua criação mais delicada. Os outros deuses viviam na terra ou em outros
mundos, mas o deus ficava com os olhos voltados para a terra e para os seres humanos.
Ele chama os humanos de suas sementes, por isso o deus é ridicularizado por todos os
outros deuses e demônios. Mais ainda depois do Messias, quando o deus passou a
prometer a imortalidade para alguns seres humanos, para os seres humanos que
acreditassem no Messias. Isso foi o grande absurdo. Os outros deuses não admitiam que
os seres humanos se comparassem a eles. Na verdade o deus tinha se tornado um

111
distúrbio para os demais deuses e monstros cósmicos. O universo é imenso demais,
abriga seres demais. O que é o ser humano diante disso? O ser humano é um nada –
dizem os deuses e demônios. Mas o deus ama o ser humano e acredita muito nele. Por
isso envia seus messias sempre para a terra” --- Miranda falava. Eu sempre odiei a
profissão de fé dos crentes, quando eles começam a falar e a tagarelar sobre as escrituras
e sobre Deus, quando começam com a verborragia insana. Isso sempre foi idiota pra
mim. E Miranda estava se aproximando disso com aquele papo. Virei o rosto para fora,
olhei pela janela, ainda era noite no deserto. Miranda se calou.

“Dionísio me disse: < Você me traiu Miranda! Eu lhe dei beleza hipnótica, eu lhe enchi
de virtudes estéticas, lhe enchi de talento teatral, eu a queria ver florescer. E você traiu a
mim, traiu a luxúria e o prazer, a grande capacidade de prazer e alegria que eu lhe dei!
Você será maldita pra mim!!!> a voz de Dionísio fez o chão tremer. E eu tive muito
medo. Mas ele apenas apontou o dedo para meu rosto; < de hoje em diante, até o
segundo da tua morte, você sempre sorrirá. Viverá com um sorriso nos lábios e não
poderá tirá-lo. Para sempre. Será teu presente irônico, um sorriso que mostrará a grande
ironia de tua vida: uma mulher que nasceu para a glória e beleza entre os seres humanos,
para exercer todo o poder e controle possíveis, e que abriu mão disso por um deus idiota
e sentimental, um tolo entre os deuses, o bufão entre os deuses, o fabricador de messias.
Isso será teu castigo. E nenhum outro deus poderá tirar isso. Você era minha Miranda. E
agora não é nada para mim. Assim fala Dionísio!> e ao dizer isso ele sumiu. Numa forte
fumaça, ele desapareceu de minha vista. Mas meu rosto ficou atrofiado com esse sorriso
eterno. Eu nada disse ao deus, caminhei até aqui e tenho vivido assim, trabalhando pelo
amor. Eu lhe digo Davi” --- Miranda falou. “foi uma sorte tua não ter falado a Dionísio
travestido de mulher japonesa. Ele é terrível com os humanos, ele é a busca perpétua
pelo prazer. E nós, humanos, queremos algo mais do que o prazer. O próprio Dionísio se
sente incompleto, por isso ele procura incansavelmente Apolo, em todas as suas
manifestações” --- Disse Miranda por fim.

Eu fiquei no silêncio a remoer aquelas palavras. Sempre estive distante dos palcos onde
os deuses se enfrentavam. Tive uma formação cristã na minha infância que me fez ter
pensamentos monoteístas, e por fim desconsiderei os outros lados. Para mim havia deus
e o diabo, duas forças. E agora Miranda me falava de uma turba de divindades, e de
outros seres. Quem é o ser humano? O que é o ser humano afinal? Será sempre uma
formiguinha numa batalha de titãs celestiais. Isso me confundia. E então o que me veio
na mente, a única coisa que me vinha na mente era aquela bunda maravilhosa. Aquela
bunda perfeita, aquela bunda de garota de programa carioca, aquela perfeição de
nádegas, aquele corpo. Sim. Eu tinha caído no encanto de Dionísio. E queria ir até o
final disso. E também ir atrás daquela filha da puta mulher do diabo Ana Lemes. Me
vingar. Sim, duas vontades totalmente humanas, encontrar aquela japonesinha
deliciosamente maravilhosamente linda e me vingar de Ana Lemes.

“Você é apenas um idiota com uma vida breve e sem sentido. Tem a oportunidade de
estar com o deus, e abidica disso para coisas vãs e tolas. Dionísio vai destruir você, e a
mulher de Asmodeu vai derretê-lo dessa vez. Duas mortes certas para uma vida estúpida.

112
Mas você é livre, o deus te quer livre. E eu não posso te impedir” --- disse Miranda
entristecida.

Eu pesei as palavras de Miranda. Fiquei assentado na cama, calculando a vida. Ela


voltou ao trabalho, e o único som que se ouvia era o de sua caneta e das folhas de seus
livros. Ficamos assim. E então eu cochilei.

...

IX
A caravana de mulheres secas

Fiquei com a chave nas mãos, olhando, segurando, aquecendo o metal. Logo a chave
estava quentinha, 36 graus. Inútil? Era um objeto, uma coisa. Mas eu vim andando, e
andando, e cheguei aqui. Mas daqui eu não consigo sair, dessa terra de corpos mortos, de
gente morta, de ossos e desesperança. E não há ninguém. Mas o devorador pode vir a
qualquer momento. A vida não é breve e incerta? Mas eu estava ali. Trancado para mim
mesmo, inacessível, imutável necessitado de mim, mas distante de uma luz, de uma
certeza sobre o que fazer para atingir meus objetivos. E com a obsessão por vingança e
por sexo. Mas não era qualquer vingança, e nem qualquer sexo. Era minha própria vida,
uma coisa intolerável.

Não fosse aquela porta no chão, eu julgaria estar saudável, e tudo normal, era assim
sempre, essa sensação de irrealização, de provisoriedade e de imutabilidade. Mas aquela
porta no chão era uma surrealidade, ora! Era uma coisa estúpida, uma coisa louca. Não
se toma providência? Não se resolve? Como? Eu não me destrancava? Eu não me
acessava? Eu não me profetizava? Eu não me convertia, eu nada! Eu nada, mas só
desejava, e desejava e queria! --- eu fiquei pensando nessas coisas, olhando aquela porta
no chão. Antiga. Talvez pesada, talvez de metal. Empoeirada, e eu fiquei tirando a poeira
com as mãos, e então entendi qual era o primeiro passo.

"O primeiro passo para eu realizar algo em mim que me movesse para que eu realizasse
o que eu queria, encontra aquela Ana Lemes e conquistar a Japonesinha, era me
destrancar". Isso era certo! --- pensei --- Continuei assentado na pedra, olhava para a
porta aos meus pés, e para a chave na minha mão. O deserto anoitecia! --- mesmo que
meu desejo fosse insano, eu queria atingir ele. ele era eu. Queria lutar de novo contra
aquela mulher demônio, e também queria estar diante de Dionísio e me declarar. Era
isso. Só isso. (E mesmo isso, era muito). O que é o sentido da vida?

113
Ah! O primeiro passo era arrancar aquela pele. Comecei a me coçar furiosamente, a
arancar nacos de pele com as unhas, na sofreguidão, nas ânsias. Aquela pele branca. Eu
tinha que me reduzir ao mínimo de humanidade possível, era muito peso ser branco. A
fronteira entre o inumano e o humano. Eu queria estar ali, eu achava que era ali, começar
do início, tirar a cultura. E era isso? Eu quis, e então comecei a arrancar minha pele com
as mãos, a pele branca. Era a mentira inicial. A pele branca. Quem suporta viver assim?
Ei! Jesus era um homem negro! Era um homem negro e pobre, e ele está nas ruas de
todas as cidades brasileiras, em todas as cidades do mundo há homens negros miseráveis
com as mãos nas cabeças, desesperados de fome, sede, falta de identidade, ignorados por
todos e por tudo, todas as máquinas governametais, empresariais, radiotelevisivas, e
também as forças cósmicas! Ei! Ele é o mínimo de ser humano, Jesús é o mínimo que
um ser humano pode chegar! Eis, e ele está ali, na esquina, miserável e faminto. Ansioso
pela obra do deus. A verdade dói? Ele não anda de limosine em Roma. Ele não fica
gritando no teu ouvido como você deve se vestir! --- mas o que eu estou dizendo!!!

Eu nem sou cristão. Jesus não é o parâmetro para mim. --- fui pensando essas coisas e
chorando de nervoso, arrancava a pele branca do corpo, e essa pele saiu feito um
plástico! Pronto! Eu sou meu ancestral! Sou um homem negro! Embaixo de toda a pele
branca e dos pelos de ser humano branco, estava minha pele negra! Eu sou Jesus! (se
aquelas mulheres européias lindas e loiras pudessem entender que suas avós eram
negras!) --- mas tudo é cruel demais na vida humana! --- eu pensei. Todas as coisas, o
próprio fato das alegrias e felicidades serem breves, e tanto esforço se faz para obtê-
las..., tanto esforço para obter algo que acaba alguns segundos depois! Pois
imediatamente, quando tirei a pele branca que me cobria e vi de fato como eu era, um
homem negro, isso me pareceu demais, isso me pareceu corrompível. Inútil era mais, ser
negro era pouco ainda, era muito ainda, ea coisa demais ainda, o que eu precisava era ir
além. E o que está além disso? Da condição miserável de ser negro e pobre no mundo?
Aqui no cemitério!

Sim, havia mais, havia um nível inferior a esse dentro da raça humana, um nível
maior de desprezibilidade. Ser um índio! ser um índio é quase como ser um cão. um
bicho. feito para ser queimado, estuprado, vilipendiado, enganado, destruído sem a
mínima piedade, acabar com um índio parece ser fazer um favor à humanidade, limpar o
lixo. O índio é monstruosamente destruído, em todas as partes do mundo os primitivos
são menos que cães, são esmagados sem piedade. Em todas as partes. E então eu
comecei a arrancar a pele negra, e arranquei com fúria aquela pele negra, e tirei toda...,
os grande nacos de pele negra caiam no chão. Os restos da pele negra ficaram sobre os
farrapos da pele branca, e eu então me vi, vi o que eu tinha que destrancar, se eu ainda
queria me destrancar, eu teria que me destrancar em meu mínimo detalhe. e eu agora era
o mínimo, eu era um pequeno índio, fracote, magrelo, faminto, esmagado, emprestiado
de tudoquanto é peste, e era essa a condição zero dentro de mim, aquele. E eu então ri,
eu dei uma gargalhada no vento, no nada do deserto, e comecei a grita, e pedir! agora eu
estava puro! puro! sou puro, sou o mínimo! sem mentiras, sem maquiagem, sem
nada! Duas preces apenas. E eu gritava:

114
“Agora que estou nu, venha até aqui Ana Lemes, venha para eu lutar com você mais
uma vez! Para eu te destruir definitivamente, vencer esse monstro que é você, venha,
venha, vou acabar com você usando essas mãos esqueléticas e feridas, venha monstro
capitalista, enfrente-me!!!” --- e gritava com força! Berrava a todos os lados!

Então eu mudava meus gritos:

“Venha Dionísio, venha, venha Dionísio na forma de uma japonesa carnuda e linda,
deliciosamente carioca, venha com o corpo mais delicioso, com a bunda mais deliciosa,
com o biquíni mais atolado, com os seios mais pontudos e lascivos! Venha, eu vou te
conquistar! Vou conquistar teu coração! Venha! Não é Apolo quem vai te ganhar, sou
eu! Venha!!!” --- eu gritava! loucamente gritava, como um índio bêbado e estúpido
pedindo sua terra de volta! Fiquei gritando e clamando isso, clamando isso, gritando isso
no deserto.

E depois do eco, era o silêncio. Me cansei. Ahê, foi mal. Voltei a me assentar na pedra,
diante da porta no chão. Um pouco mais leve, sem aquelas camadas de pele todas sobre
mim, sem o peso cultural. Reduzido. o ser humano mínimo. menos ainda que Jesus, o
messias. Fiquei ali. O que viria depois? O fim do pensamento? Mais outro nada? Resolvi
me acalmar. Qual seria o próximo passo?

Foi nesse segundo de pensamento, nesse instante que eu ouvi um barulho. Vindo de
longe. Uma nuvem de fumaça podia se ver. Era uma hora da noite, e estava o espaço
médio-iluminado, e então percebi a causa daquele estrondo! Vi que era um grupo de
mulheres que corria em minha direção; uma caravana?

Que triste cena. Elas se aproximavam velozmente, corriam desesperadamente. Não sei
de onde vinham. Eram mulheres. Desamparadas, abandonadas, rejeitadas, entristecidas,
castradas, esquecidas, maltratadas, enfeiadas, separadas, perdidas, obsessivas,
intimidadas, sofridas, vazias, angustiadas, amalucadas, neuróticas, fabricadas aos
milhares todos os dias em lares e sociedades machistas e patriarcais. uma turba
descontrolada de mulheres enfraquecidas correndo pelo deserto, atrás de seus falidos e
fálicos desejos imaginários, de afeto e casamento, era isso? Elas vinham em minha
direção, correndo desenfreadamente, se lançando, freneticamente, e elas se aproximavam
de mim, eram dezenas, centenas, faziam o deserto tremer, e ele tremia, como uma
manada, um rebanho desconrolado, um grupo de pessoas sem a seiva da vida, sem o
encontro erótico, só uma raiva frígida contra o mundo masculino, masculinizado,
enfeiante, capitalista! E eu vi que elas se lançariam sobre mim, e eu nada podia dar-lhes,
a não ser minhas negativas, e minha morte, e meus nadas. Elas me esquartejariam e não
me pouparia com seus lamentos de amor perdido e desilusões amorosas, fracassos
eternos. Mudar meu caminho e meus sonhos, para dar a elas o que comer, aliviar as suas
dores do mundo!? Não!..., nem era isso! Era isso?

Desesperadamente enfiei a chave que trazia nas mãos na pequena fechadura arredondada
da porta no chão, destranquei com muita volúpia aquela porta, e antes que aquele grupo
faminto de mulheres me tocasse, puxei a porta de metal, pulei dentro do espaço e fechei
sobre minha cabeça aquela porta de metal. E me tranquei. Pude sentir a pressão dos pés

115
daquela turba sapateando sobre a porta, histéricas, aquela centena. E pulavam sobre a
porta, e uivavam. Seus gritos noturnos eram terríveis, uma fome de anos, uma fome do
outro, furiosa e destrutiva, vaginas tristes, corações apertados, mentes masculinas.

Era aquilo. E eu tremi. Me vi num escuro infinito. Do outro lado daquela porta. Senti que meus pés
estavam sobre degraus de uma escada. Uma escada? Aquela porta no chão era a passagem para uma
escada. E no escuro, resolvi descer a escada. E a cada passo eu me afastava da superfície, tudo eu
fiquei tateando, tocando o chão soube que eram degraus e não degrais. Meu coração de índio
disparava. Que terror na alma, que frio, que insegurança. Era isso? A cada passo, a cada degrau, o
som das violentas mulheres agredidas pela vida diminuía, ficava lá em cima, e eu descia, para o
mais íntimo da terra. morada dos mortos? profundidade da alma? E eu entrava no silêncio material
da existência.

...

X
O fim das palavras certas

Há, há, há, há, há, sabe o que me ocorreu, sabe? A palavra “iteração”, isso mess,
“iteração”, sem o “n”. Há, há, há, há, isso não é um erro, não, é uma palavra, uma
palavra, e significa a recorrência, o retorno, a repetição. Um “n”, e que símbolo é esse?
Quanto sentido mediado. E se eu colocar o “n”, a palavra fica “interação”. Uma outra
palavra, um outro mundo. É isso? É isso? São mundos diferentes as palavras, elas são
códigos, chaves para se entrar em outros mundos orgânicos, diferentes a cada vez. As
palavras trancam e destrancam emoções, e o cérebro humano aprendeu a reger os
músculos do corpo usando as palavras, mentalizando essas chaves, incorporando no
pensamento essas chaves. É isso, há, há, há, há, há, há! É isso, é isso. Então eu tenho que
achar as chaves certas, as palavras certas!

Não. Não.

Se eu fizer isso serei um mentiroso. Estarei mentindo, estarei me contentando com uma
mentira. Uma racionalização. Não, não, não. Não há nenhum outro ente dentro de mim.
Estou nu de intermediários. Agora eu sou a totalidade do corpo. Sem palavras, sem
palavras, sem elas. Só isso, nada mais. --- com muito desânimo eu subi as escadas e fui
até a porta que me fechava no chão.

...

116
Lá em cima ainda estavam as mulheres do deserto, que sapateavam e pulavam por cima
do terreno. A cada passo eu ouvia os gritos e uivos, forte, e quando toquei a porta, senti a
urdidura, de todo ácido amônico retido nas bexigas daqueles animais, gerados pelo ódio
ao mundo e pela dor, a solidão e principalmente a rejeição, e o veneno das idéias velhas
daquelas mulheres secas. Mas eu já não sou um homem. Sou apenas palavras, que não
tocam nada, e não são nada mais que palavras. Coloquei a chave na fechadura, e elas
ouviram, e ficaram atentas, e se prepararam para saltar sobre qualquer coisa que saísse
dali. Mas eu apenas dei um giro com a chave, trancando triplamente a entrada. Depois,
joguei a chave naquele abismo, com toda a força do braço. Escutei a chave cair, se
chocando contra as paredes que limitavam aquela descida, e as escadas, e a chave bateu,
e o último som que ouvi dela parecia vir de muito longe. As mulheres secas da superfície
estouraram em desespero, e a terra tremeu sobre minha cabeça. Mas subitamente elas
foram embora, e escutei o distanciamento, pois eram uma manada, e então o som de sua
retirada foi engolido e desapareceu. Tudo se afastava. Eu fiquei ali, e era uma escuridão,
profunda. E terrível, inconsolável. E eu me sentei naquele primeiro degrau, e chorei.
Chorei, chorei, chorei, chorei, chorei, e me sacudi solidariamente, meus rins ficaram
tristes, e todo meu corpo ficou triste, e me sobreveio uma dor na virilha e depois no
peito. E eu era a dor. Estava vivo? Que situação monstruosa. E eu quis dormir, quis
acabar, quis ser a tela preta do computador, e piscar, piscar e desligar.

Era isso,
....

XI
Aquela bunda japonesa sempre perfumada

Era simples. Era algo muito simples. Inicialmente, é claro. No início. Com certeza era
mais simples. Aos doze anos de idade. Um menino de doze anos de idade. Mas o que.
Você não soube? É claro que não. Não passou em nenhum jornal da TV, em nenhum
horário. O Governador de Minas não deixa esse tipo de notícia circular, e nem o Prefeito
permite que os órgãos de imprensa falem sobre isso, analisem sociologicamente. Não se
pode falar. Não. Há, há, há, há, há. Um menino de doze anos. É, uma criança. Doze anos
é uma idade tão linda, tão linda, tão, ... é uma bela idade. Uma dúzia de anos. Pois sim!
Ninguém soube. E a família? Soube? Não. E é ai que começa a dor. É a ponta da dor. É
onde ela realmente começa. Não há família. E ninguém soube do que aconteceu no
abrigo de menores infratores do Estado. Não. É proibido. No jornal da Televisão a
apresentadora sorria e falava de outras coisas, da passeata dos personagens Disney na
orla da lagoa da Pampulha. E o outro apresentador de outra rede de televisão, aquele que
fica de terno, feito um pastor cristão, sabe? É, ele mesmo, o pitbull do jornalismo,
agressivão, que fica indignado com os pedófilos e maconheiros. Ele mess. Ele não disse

117
nada. Nada. Nem um pio. Sobre o menino de doze anos que se suicidou nas
dependências de uma instituição prisional para menores do Estado, essa semana, essa
semana mess. É. Esses dias. É. Ninguém falou nada. Mas eu soube. Eu soube. Você
sabia que as informações escapam às vezes? Pois é. E me contaram. Que retiraram o
corpinho dele da cela. É, um corpo de doze anos de idade? Que se matou. É. Se matou.
Mas o Governador não quer que falemos sobre isso. E o Prefeito, aquele diabo, muito
menos. Muito menos ele. Não quis mess. Mandou calar todo mundo sobre isso. Para que
a sociedade não se preocupasse, ele disse. Com aquela boca de diabo, foi o que ele falou.
Que não queria que ninguém soubesse. Pois é!

O que um menino de doze anos tem como motivo para tirar a vida, meu deus do céu? O
que é isso, meu deus do céu? O que é isso, pelamordedeus! Um menino de doze anos.
Que é igual a outros meninos, de doze anos. E quando se tem doze anos, há tanto pra se
brincar! De bola, de videogame, de queimada, de vôlei, de correr, de andar de bicicleta,
de pegador, de polícia-ladrão, de amarelinha, de pêra-uva-maçã, de tocar violão. Tanta
coisa, meu deus. Mas porque aquele menino foi se matar? Ele nem sabia o que é a morte,
nem sabia, meu deus, nem sabia. Ele era um menino de doze anos. Preso pelo estado,
preso, retirado da sociedade, e preso. Desde que nasceu a vida era o quê para ele? Meu
deus do céu! Gente! Gente! Acudam esse menino! Ele está dentro de uma cela e está se
cortando todo com uma faca afiada, e deve estar doendo, meu deus! Ninguém acode?
Ninguém consegue? É inevitável? Cadê a família desse menino, gente? Cadê? Cadê esse
povo desnaturado? Cadê o Governador? E o prefeito (aquele diabo branco)? Cadê? Eles
encontraram o corpinho dele de manhã. Estava frio, arroxeado, durinho, e seco, uma
poça de sangue, meu deus. Os olhinhos de doze anos estavam abertinhos, e a boca torta,
tortinha, e muitos cortes pelo corpo. Que ódio por si mesmo, meu deus. Que ódio é esse?
De onde vem esse ódio, de onde vem? Como esse ódio entrou dentro do corpo de um
menino de doze anos? Como foi, meu deus? Como foi? Há, há, há, há, há! Entrou!
Entrou, e rasgou ele por dentro! Doze anos? E os pensamentos desse menino, uai? E os
pensamentos? O que ele pensou meu deus do céu? O quê?

(Você não sabe como existem seres humanos monstruosos, ... existem seres humanos
monstruosos. Existem seres humanos que vestem vestido, ternos, gravata, fardas,
batinas, e outras roupas, mas são monstros. São animais completamente violentos e
destruidores de alma. São aqueles monstros que Jesus nos advertiu que poderiam comer
nossas almas. E eles estão em grande quantidade nas televisões, nos senados, em toda
parte, na faculdade de educação. Mas nós nunca saberemos quem são. O pior de tudo é
se nós mesmos formos um desses. Que desastre. Nem nós mesmos poderíamos mais
resolver. Estaríamos perdidos, perdidos, perdidos. Matando e destruindo sem saber que
somos nós mesmos quem fazemos isso. E então? E então? Vai esperar o convite para o
big Brother? Vai publicar no orkut tuas fotos de roupas íntimas? Vai reconstruir teu
perfil para que outras pessoas se interessem por você? Ou vai simplesmente observar as
flores de teu jardim, as flores e as plantas e as borboletas, que estão lá precisando de sua
atenção. Abandone os monstros. Abandone os fanáticos por automóveis, abandone os
consumistas, deixe eles se rodearem e roerem toda a riqueza. Pense na tua alma. Pense
na tua vida.)

118
Não tem amigos? Não tem? Como pode um menino de doze anos? Como pode? E com
uma faca? Querer sair da vida? Assim? Esperar o que? O que? Falar que não está bem?
Ou apenas desabafar? Quem tem culpa pelo seu sofrimento? Pensei, quem poderia
evitar? Quem? aos doze anos! e como ficou feio, coitado, seco, sem vida, sem sangue? e
era pra ele estar brincando, meu deus do céu! mas ele não está mais brincando! --- o
homem continuava a falar, dentro daquela escuridão. assentado. Intercalando, temendo,
chorando, balbuciando. gastando sua vida alí. alí!

Era simples,
Algo muito simples,
Não era necessário força, ou esforço, ou sofrimento
Não te disseram?
Não falaram?
Putz! Deviam!
Era uma obrigação, ô se era!
Alguém tinha que ter dito, há muitos anos atrás, que era simples
Não quiseram sobrecarregar você? Com essa notícia, não quiseram?
É,
No início era mais fácil
Sim, lá naqueles primórdios era,
Muito mais simples, muito mais fácil, se tivessem dito antes,
Meu amor, era muito simples, simplesin, ...
Aquilo,
Talvez em poucas palavras o conteúdo se abrisse!
Algumas frases apenas, era o suficiente
Lá no início.
Mas então ninguém falou nada?
Hum!
Entendo, entendo, entendo!
Tão simples era,
Tão suave era isso,
Tão novo, tão cheio de frescor, e ar puro era isso,
Tão brilhante,
E tão real era,
Mas ao menos alguém, tinha, devia, podia, ter falado!
Gente! Onde vamos parar?
Não veio ninguém te dizer?
Nem um?
Não?
Era tão simples...

...

119
quando sibi a serra, naquela manhã, era o nada
e estava ali, todas as coisas imóveis
descansando de meus pensamentos
o nada, ...
o mundo abstraído do que dele sabemos é o nada

esta noite me provoquei!


Me dei uma régua e exigi:
- meça-te!!! -
era o nada, ...
do tamanho disso
o mundo é!
o mundo

120
Entre Pai e Filha

1. Um pedido daqueles irrecusáveis

Uma jovem estava parada diante de uma caverna. Sorria, era manhã. O amor a tinha
salvo, dessa vez, mais do que na primeira vez. Era um dia após o outro, e seu amor era
um pássaro, um tipo humano de sabiá, naquelas horas que só você sabe como é caminhar
de madrugada com uma espada samurai nas mãos completamente insano e triste ao
extremo da loucura mais simples da filosofia mais barata. Infelizmente era assim a vida
daquelas pessoas que se amavam com tragédia. Esses jovens, que guardam para sempre
o celular por onde conversou com seu grande amor, comprando outro pra que aquele,
seja o exclusivo elo entre os dois, por muitos tempos da tecnologia em diante amém,
pois essa jovem sorria uma vez mais, e olhava pra dentro da caverna, suspirando. Então
decidiu não dizer nada. Era um silêncio feito uma sepultura cheia de ossos velhos. Algo
já branco demais. Então uma voz saiu de dentro da caverna:

--- Filha! Eu ainda quero te comer, ...

2. Uma canção daquele amor maravilhoso que fizemos

Uma jovem estava parada diante de uma caverna. Olhava para uma imensidão de
campina verde oliva, feito as que haviam na Serra do Cipó, antes da mídia e dos
pequenos empresários da inteligência empresarial entrarem com seus jetskis, como se a
sala dos professores fosse também uma balneário para se desfilar com suas mulheres
gostosas e infantis filosoficamente, sem a capacidade de suportar a fome. Aquela fome
que todos não queremos confessar. A fome de novos apetites. Uma jovem estava
assentada olhando a planice, e o fim da tarde ia chegando, com aquela luz maravilhosa
de Acesita, que poucas pessoas conhecem. Num dia daqueles muito bonitos, como na
música do Keane. Uma jovem olhava até que se entediou. Se levantou toda desanimada,
e caminhou lentamente até a entrada de uma grande caverna, feita aquela entrada da

121
Catedral de Pedra, que fica perto de Santa Luzia. E a jovem, ainda tão jovem, deu um
suspiro japonês, e gritou para dentro da caverna:

--- Pai! Porra pai, carái, ta demorando pracas!!!

Um silêncio frio, de uma brisinha fria, daquelas dos fins de tarde de Acesita e Timóteo,
quando o céu começa a ficar azulado em derredor do sol. Nesse lugares. Pois uma dessas
brisas passou pela jovem. E então, do fundo da caverna um som se fez.

--- não vai. Não demorará muito, meu bem, não demora nada mesmo, nem um instante
mais, será agora, espere, será nesse instante, aquele parto difícil, eu sei, será agora eu lhe
garanto, eu lhe anuncio, como um anjo anuncia alguma coisa boa. Será agora aquele
nascimento do silêncio.

...

3. Os outros são o inferno

Uma jovem, atribulada com suas questões e ansiedades, se assentou na entrada de uma
grande caverna. Grande era sua suposição, pois no fundo nada sabia de fato sobre a
profundidade. Suspirou ao observar sua própria ignorância. Mas isso era filosófico,
pensou, sorriu para si. Depois de muito esperar, chegou diante da entrada da caverna e
gritou para dentro da caverna:

--- Pai! O que eu devo fazer? As pessoas são animais irracionais em busca de suas
satisfações pessoais, e em nome disso destroem tudo e todos ao seu redor sem a mínima
percepção uns dos outros, como cegos dentro de um quarto escuro a se puxar e se usar
desenfreadamente, em busca da saciedade de suas fomes individuais, enchendo o mundo
de lixo e merdas e...

Então a jovem, tomada de dor, se calou, se deixou no chão. De dentro da caverna, depois
de alguns minutos, veio uma voz adocicada

--- vai demorar, ...

...

122
4. A fala do Pai

Uma jovem estava assentada na entrada de uma caverna. Mastigava um graveto verde e
olhava para as montanhas distantes. vez ou outra ela se voltava para a caverna e
suspirava. depois de muito esperar, se levantou, se aproximou, e gritou para dentro do
buraco:
--- Pai! o Senhor vai demorar?
então, depois de um silêncio sensual uma resposta veio lá do fundo:
--- vai demorar ...
a jovem voltou para o lugar de sempre, se assentou e retirou da grama outro graveto, que
mastigou lentamente enquanto olhava para as distantes montanhas azuis.

...

5. A resposta inevitável

Uma jovem, bonita e inteligente, estava assentada diante de uma caverna enorme, como
uma flor diante do sol, radiante, mas na expectativa, então seu rosto, que antes era luz,
ficou sombrio. Ela se aproximou da entrada da caverna e gritou para dentro do buraco
escuro e úmido, como se houvesse alguém lá dentro que estivesse segurando com as
mãos sua própria alma e seus sonhos:

--- Pai! Eu quero que abras as mãos e deixe minha alma voar para fora da caverna e ser
livre! Faça isso agora!!!

Um longo silêncio se fez,o céu ficou nublado e o sol que estava radiante se escondeu
solitário atrás de pesadas e pretas nuvens pesadas com toneladas de água gelada. Então
um risinho safado se fez ouvir dentro da caverna, e uma voz saiu de lá dizendo assim:

--- Então faz um bundalelê pra eu ver!

...

123
6. Sobre às vezes em que eu tive aquela sensação desagradável

Uma jovem, assentada sobre uma pedra, no alto de uma colina, observa suas filhas,
ruivas, dançando em roda em um lindo canteiro de flores silvestres. Num lindo dia de
filosofar, de sol. De repente sente um frio na espinha, olha para trás de si e vê uma
caverna, incrustada nas rochas da colina. De dentro da caverna o hálito de um animal
monstruosamente feroz. A jovem se levanta, tira dos olhos a imagem de suas filhas e
caminha para a entrada da caverna. Senta-se diante do monumento escuro e úmido.
Fecha os olhos. Depois de um silêncio longo se dirige para a entrada da caverna com as
seguintes palavras:

--- a felicidade precisa terminar, pai?

De dentro da caverna, arruinada por causa da pergunta, uma voz lança um urro
tenebroso:

--- nenhum ser humano pode ser feliz se não tiver o desejo de terminar !!!

...

7. Pequena conversa na hora do café

...

--- As famílias burguesas estão reclamando que cada vez mais seus filhinhos loiros e
vindouros, lindos, estão com problemas respiratórios, pai.

--- é o aquecimento global, filha.

--- não, pai. O aquecimento não é global. Ele está acontecendo em Belo Horizonte. Falar
em aquecimento global faz a gente pensar que o problema está nas mãos de governos de
outros países, os poderosos. Mas o aquecimento não é global. O aquecimento é
belorizontino mesmo. Está aqui em Belo Horizonte. É bem aqui, embaixo de nossos
narizes e cús. Desmatamento, destruição ambiental, poluição, geração de gente escrota e
burguesa e principalmente o aumento da frota de carros e os asfaltamentos. Isso é
aquecimento global, pai. E está acontecendo na esquina de minha casa, pai.

124
8. The end of everything

Uma jovem, universitária, estava diante de uma caverna, que parecia ser muito funda e
muito úmida. A jovem já estava cansada de exercer o poder sobre as outras pessoas.
Tinha lido Foucault pracarái e já estava cansada da cultura. Ela ficou ali a tarde toda e a
noite se aproximava. Era a noite de sua vida, decepcionada com o rock inglês, que
poderia ser revolucionário, mas os roqueiros ingleses nunca morriam de overdose. Que
tipo de vida ela queria ter para se lembrar se realmente fôssemos eternos?

Cansada dos sinais de trânsito de Belo Horizonte, que estavam cada vez mais
desfavoráveis aos pedestres. O prefeito acabava de sancionar uma redução de dez
segundos em todos os sinais para pedestres para dar mais velocidade ao trânsito, além de
derrubar árvores para alargar ruas. Enfim, estava cheia de Foucault também. Mas a noite
de sua vida de sua vida se aproximava e ela olhava o diabo dentro de si mesmo se
movendo. Então a noite chegou e não havia ninguém para auxilia-la e ela estava já
diante da caverna mais extensa e profunda que jamais vira. Uma verdade aberta e funda.
Uma forma de solidão absoluta. Uma palavra solta em uma carta. Uma saudade? Uma
esperança. Não. Era algo sem palavras. Que tipo de vida ela queria ter para se lembrar se
realmente fôssemos eternos? E uma vontade de sofrer tomou conta dela, um sofrimento
medido, que desse conta de todas as coisas que seus pensamentos tortos lhe afirmavam
ser a verdade. A jovem estava sentada diante da caverna e estava cansada de seus
pensamentos repetitivos. Sem chances? Ela já não dizia isso pra ninguém, ...

Então de madrugada ele teve uma dor daquelas sem cura. E se encolheu em um abraço a
si mesma. Ouvir músicas que as pessoas diziam ser boas. Só por que as pessoas que ela
achava inteligentes ouviam? Fazer coisas só porque as pessoas ao seu redor faziam, e o
pior, ouvir a voz de sua mãe em sua cabeça lhe dizendo sempre o que é certo e o que não
é. Pássaro livre? Não, asas quebradas e vôos curtos. Mas o que era ser outra? The other
or the outer? O que era crescer? O que era ser feliz? Quem era feliz? As mulheres
sorridentes das propagandas? Ou os homens dentro de carros importados? Todos vamos
morrer mesmo, não é? Que tipo de vida ela queria ter para se lembrar se realmente
fôssemos eternos?

Que tipo de filosofia de não-filósofos ela queria fazer? Do tipo que nunca se pode
praticar? A filosofia que é só discurso? Não queria ser como seus professores mais, não
queria ser identificada e elogiada por ninguém. Só queria essa madrugada nua,
totalmente dolorosa, no melhor de sua resistência e passividade. Sua coragem em resistir
à dor? Em permanescer inteira? Seu coração nervoso palpitava, urrava pensamento
desconexos? Matar? Matar? O que? O que temer? Ter medo de homens musculosos? Ter
medo de pitbulls? Não, minha filha! Nunca ter medo de nenhum ser humano, por mais
forte, por mais afeto, por mais covardia, nunca se encolher para nenhum sofrimento
eternamente e nunca, nunca deixar que as pessoas coloquem uma coleira em seu pescoço
e lhe digam o que ela deve fazer de sua vida!!! Chega dos acordos e das leis de
relacionamento, chega das regrinhas, há uma só regra que eu vou ter que seguir – pensou
ela. O princípio de minha própria alegria de viver! Viver! – então, a jovem começou a
puxar os próprios cabelos.
125
9. Por que fiquei idiota depois de ouvir você dizer a verdade?

Uma pequenina jovem, pequenia, raquítica, feia, triste e envergonhada jovem, depois de
ficar algum tempo tentando dar sentido à sua miserável vida de indivíduo comum, sem
nenhuma manifestação ou capacidade artística, ou senso crítico, entregue ao movimento
leviano das relações de prazer, ansiosa e angustiada emocionalmente pela educação que
recebeu de sua família de fachada. Sua bosta de família.

Então ela afastou o rosto do microfone, e saiu do palco, desceu as escadas, e saiu do
auditório onde sua medíocre banda tocava para uma platéia vazia e cheia de moscas em
um espetáculo idiota e pobre de conteúdo artístico. Todos já cansados de seu show, que
no início era uma novidade, era divertido, era até excitante, mas com o tempo ficou sem
sentido e sem atração, caindo nas paradas até parar no boteco mais miserável e
arregaçado.

Ela caminhou pelas avenidas vazias de sua cidade vazia e pobre, com seus habitantes
traidores e traiçoeiros, todos filósofos de primeira linha, mas medíocres até a raiz da
alma, esses intelectuaizinhos maconheiros que ganham a vida ensinando mentiras
bonitas. Então ela saiu da cidade, andando sem pressa, numa vida estúpida e pobre de
alegria e de valores. E andou, andou, andou, até uma caverna. Ai ela parou diante da
caverna. E numa atitude nobre, de dizer a verdade, doa a quem doer, suas verdades
mortas, sem força pedagógica, nessa atitude de dizer a verdade, ela fez uma pergunta
para a caverna:

--- Eu fiz algo tão ruim, que se eu contar a mim mesma, nunca mais converso comigo. O
que devo fazer?

E da caverna, subitamente, uma voz tenebrosa se fez ouvir:

--- Sai da minha vida, sua baranga!!! Tô doido, Tô doido, Tô doido …

...

126
Eu e meu passado podre

Uma vez saímos Eu, Laurici, Alex Castanheiras, o Du e a Evangely. Fomos a praça do
preto veio, no bairro Sagrada Familia, ver o encontro municipal dos pretos veios de Belo
horizonte, que ocorre anualmente. Depois, fomos beber em Santa Tereza, fazer musicas,
fumar um, rir e conversar pela noite inteira. Mas isso acabou.

Uma vez saímos Eu, Alex capuchinho, Alex Jordanne, Simara, Frei Fritz, Fabricio,
Sandra, Zé Carlos, Juninho, Bia sindicalista, Cal da igreja, Serginho da filosofia, Eliomar,
Wanderlei e Henrique. Fizemos uma reuniao da pastoral da juventude da igreja catolica,
depois fomos todos pro Maleta, beber, conversar, rir, pela noite inteira. Mais isso acabou.

Uma vez, saímos Eu, André Felipe, Fabricio Andrade, Cristiane, Glaucia Jorge, Haroldo
Bertoldo, Mill, Andreia Gino, e fomos fazer poesias, beber, conversar, pela madrugada
inteira. E isso acabou.

Uma vez, saímos Eu, o Léo do mantra, Vinicius Moseli, Tatai Gustavo, Fininho, Renato,
Tathi e Jack. Fomos tocar e cantar e beber e fumar dois e conversar a madrugada inteira.
Mas isso acabou.

Uma vez saímos Eu, Theophilo, Délio dedé, Jao batera, Elias paulista, Leon doido e Helin,
e fomos tocando violao pela cidade, bebendo, chorando as muiéres perdidas,
conversando e rindo, a noite inteira, até o sol raiar. E isso acabou também.

Uma vez, saímos Eu, Kelsen, Adriana e Ana Elisa. Fomos ver cinema. Falamos do Warlin
e da Ivone e de toda turma do barranco de 2005, depois bebemos e conversamos. Mas
isso acabou.

Uma vez saímos Eu, o Bira poeta, o Ricardo calmetal e o Alexandre, fomos ao Maleta
falar de Nietzsche, de Weber de Rosa e das muiéres ganhadas. Bebemos, rimos e
filosofamos pela noite. Mas isso acabou.

Para maiores informaçoes sobre o que acabou, e sobre o que acaba na vida; ver o mar.

(tudo acaba ?)

....

Aquela dor,
De ansiar o que é impossível,
Ela,
é senhora do deserto

127
O Bruto e o Brutal

Parte I

Naquela manhã de domingo, ele decidiu quebrar o recorde mundial,


que era de um japonês. Aquela mania de tentar ser mais do que
antes, era isso que estava dentro do brutal. Mas o brutal queria
bater o recorde, e já tinha escolhido a canção. “aquarela” do
Toquinho. Sim. Aquela música de sua infância. O recorde era de7539
vezes. O japonês tinha cantado e tocado a aquarela em 12 horas de
tocar e cantar. Um recorde reconhecido pelas empresas de medição
do limite humano. O brutal queria tocar e cantar a música 12000
vezes. E naquela manhã de domingo, em um estúdio, diante de um
técnico vindo da Inglaterra para registrar o recorde, o brutal
começou a cantar. No final do dia, já estava em 8631. o recorde já
tinha sido batido, mas, naquela voracidade, o brutal continuou.
Era insano continuar. Já imaginou cantar e tocar tantas vezes sem
parar a mesma música. Foi quando isso lhe causou um sério
distúrbio mental. A quebra do recorde deixou o sujeito
completamente louco. Ele saiu do estúdio, no bairro santa Tereza
em BH, para o hospital psiquiátrico Galba Veloso. Os seus
neurônios tinham se ferrado!

Na mesma manhã de domingo, em lugar distante do ocorrido como


brutal, o bruto também começava a manhã que iria marcar sua vida.
O bruto morava com seu pai e sua mãe, já velhinhos. Ele mesmo
tinha incentivado seus pais a procurar mais as atividades físicas,
a yoga, o aikido, o tai chi, os florais, e a jardinagem.
Superocupou os velhotes. O que um cara solteirão e prostrado
dentro da casa paterna queria? O bruto foi até a padaria comprar
pão. E voltava assoviando para casa. Quando entrou, chamou pelos
pais, mas não foi respondido. Subiu até o segundo andar, para
falar com eles no quarto do casal. Quando entrou, pegou aquele
cena dantesca! O pai comia a mãe. A velhinha estava de quatro
dando a bunda muito satisfeita para o velhinho, que, suava, e ria
de alegria. Aos oitenta anos. Pois o bruto ficou traumatizado.
Voltou para o corredor e se agachou como um menino, chupando os
dedos. Que cena horrível! Ele nunca tinha visto a buceta da mãe! E
o pinto do pai era bem maior do que o dele! Putz! Seus pensamentos
entraram em turbilhão e ele entrou em catatonismo, ficou
emocionalmente catótico. Começou a gritar, depois parou. O bruto.
Os pais não conseguiram reanima-lo. E o bruto foi encaminhado a
uma clínica, pois começou uma crise histérica herbefrênica. E lá
no Galba foi encaminhado a uma tranqüila cela, após a medicação.

128
Nessa cela o bruto conheceu o brutal, que tinha sido internado
naquele instante.

Parte II

O bruto ainda via a imagem nefasta de sua origem se repetindo em


sua cabeça, de dentro dos teus olhos.

O brutal, amarrado numa camisa de força, cantarolava o hino


naicional. Sofria por ter repetido por tantas vezes palavras como
“sol”, “arco-iris”. Só a palavra surgindo ele tinha repetido mais
de 8000 vezes em 12 horas. Era algo para enlouquecer. Muito mais
de ter batido um recorde mundial, ele tinha adoecido mentalmente
por repetir o vazio da linguagem. A palavra Esmorecer surgiu na
mente daquele homem brutal de repente, e essa palavra nem havia na
canção. Ele não entendia de onde ela tinha surgido. De repente
também ele decidiu sair do catatonismo por alguns instantes para
perguntar às pessoas ao seu redor o significado dessa palavra.
Mesmo o pai ou a mãe tendo transado na frente dele daquele jeito,
ele perdoava. Mas quando ele saiu do catatonismo, o que viu foi
uma cela de hospital. E ele perguntou:

--- por que estou aqui? Onde estou? --- perguntou com brutalidade
aquele brutal

--- está longe da sociedade, irmão. --- respondeu o bruto. ---


você se tornou um perigo para si mesmo e para a sociedade e bum!
Te pegaram e te colocaram aqui.

O bruto não estava amarrado. Estava sentado na cama sem quina.


Sedado com um remédio diário, desde duas semanas, o tempo em que o
brutal esteve congelado em seu estado mental corrosivo.

--- você é o novo estensionista que esta instituição admitiu, para


experiências sobre a humanidade e a humanização.

--- cala a porra dessa tua boca seu pedaço de feto mal formado
filho de uma puta baiana! --- disse o brutal com uma tranqüilidade
mórbida, agressivo, lento, furioso, tenso, respirou, desfez,
retornou: --- eu quero saber o que significa Esmorecer. --- disse
olhando para o outro.

--- foda-se! --- respondeu o bruto. E de repente ele já estava no


meio do cerrado, ao meio dia de sol quente, espreitando a cidade
de Belo Horizonte, a megalópode do mal industrial ambiental
perpétuo. Era a missão, aquele coisa. De entrar em um beco e
assassinar um polícia. Como qualquer jagunço contratado faria, por

129
honra a Joca Ramiro. Vinha armado de um trinta e oito faceiro. Ia
lá, lá dentro da casa do sargento, ia tirar ele da cama, colocar
no corredor, avisar pra ele o motivo daquela violência e dar-lhe 3
tiros na nuca com uma arma ágil e fria, era irso, e também retirar
o olho direito do sujeito, para Joca Ramiro saber que uma morte
foi feita. Era aquele

Rei do Sertão.

...

--- sei não. Sei não o que significa o que você pergunta. Sei não.
Fodas. --- retribuiu o bruto. Levantou-se. Foi até o outro, que
estava amarrado em uma camisa de força, e ainda tinha o rosto
avermelhado de cólera e cansaço. Você tem sorte de ter havido um
milagre dentro de mi9m. senão, eu te mataria agora por falar dessa
maneira com um homem de minas gerais. --- o bruto lembrou da
vagina de sua mãe de oitenta anos sendo penetrada por aquele pênis
do seu pai, também de oitenta anos.

Parte III

Os dois já estavam juntos há seis meses. Seis meses depois da fuga


em que deixaram para sempre aquele sanatório. Um invisível DJ
fazia a trilha sonora de suas vidas. Criaram um laço complexo e
inexplicável. E foi desses assuntos que surgiu aquele plano. Nessa
trilha sonora, o invisível, o impossível DJ, e sua música
inaudível, aquele criador de todas as coisas que ficava ouvindo a
música da vida humana. O infinito DJ, com sua variedade de ritmos
e de instrumentos orgânicos e instrumentos musicais. Mas os homens
e mulheres? Do século XXI? Barulhentos, desde a infância. Nasciam
aos gritos e berros uns com os outros. A vida inteira era assim.
Um gritando com o outro. Um exigindo prazer do outro, um exigindo
fidelidade do um, o outro exigindo dinheiro do outro, e o outro
exigindo compaixão do um. Tudo isso aos berros. E então, era
impossível escutar a música do DJ eterno. Existencial. Que no
fundo tinha criado os ouvidos humanos e o cérebro apenas para
decodificar o som. O som. Mas era ao menos isso que o bruto tinha
conseguido lhe explicar sobre todos os acontecimentos. Mas os dois
não estavam em busca de paz. Eles não estavam em busca das pessoas
puras. Não senhor. Eles estavam atrás dos espíritos mais
ordinários de todo o universo. Aqueles que conspiravam contra a
majestosa música do céu, oh sim! Do infinito DJ. Aquelas almas
torpes. Era em direção a elas que o brutal estava. Para brutalizá-
las por toda dissonância incabível. Oh sim!

130
...

Parte IV

...

O brutal olhou para o bruto.


Era hora de agir, pensou.
O outro, com brutalidade captou as ondas cerebrais do companheiro
Vagando pelo espaço tempo do espaço e concordou!!!

...

Estava tudo indo como um dia normal de coisas normais e de


palavras normais, mas o incidente, isso, ele, aquilo que devia
explodir, o artefato, o artefato. Era só sobre isso que o brutal
conseguia falar,... E falava horas e horas sobre o artefato, sobre
os arquétipos, sobre os policiais disfarçados que ficavam vigiando
o mêtro, o alvo daquele ataque revolucionário que o brutal e o
bruto estavam organizando para começar o reinado da glória dos
seres humanos completamente independentes de amarras sociais, e
culturais, livres, e talvez pelados, sim, a nudez sendo
restabelecida na espécie humana como um patrimônio existencial,
para além da indústria da moda e dos cosméticos, livre, lindos,
admitidos, todos os seres humanos pensados em sua natureza fétida,
sim, as fezes, as fezes, os arquétipos, ...

Carregaram as bolsas com explosivos que eles, nos três anos em que
estavam do outro lado dos murros do manicômio havia ajuntado, e
todo o exército de descontentes que haviam arregimentado pelas
ruas das cidades grandes miseráveis do Brasil. Sim, milhões de
soldados sem fardas prontos a invadir toda propriedade fruto de
concentração desonesta de vida e capital. Sim, sim, sim, oh sim!!!

131
A Nhanva

1. Ana Glória

a presença de teu nome na minha canção


deixa tudo mais denso,
como aquela criança
que um dia vimos acenar para nós
da janela,
talvez por se sentir
subitamente feliz
ao ver dois amantes tão realizados.

2. Leca

não não há outro jeitode espantar a dor


a não ser pelo mesmo orifício
você dirá que eu deliro
mas não se esqueça
dos comentários de zaratustra a paulo coelho
não há de passar a dor dos olhos
que enxergam os princípios
a televisãolçesou meu coração
desde o início
e eu deitei lágrimas
por desconhecidos
e continuo no mesmo ponto do salão
como fábrica de sentidos
mas tudo que eu busquei
em você achei
tudo isso

132
3. Leca III

nos lençois da cama


hoje é o tempode esquecer
vamos lá pro centro,
lá tem fantasmas e pressa
toda a beleza que você tem no teu rosto
é uma convenção,
uma jogada de marketing
mas eu nem tive tempo de te perceber,
foi tudo tão rápido.
seja franca comigo,
não desapareça
mas e daí?
vamos a uma festa!
nóstemos livros pra ler
vamos fazer um sexo
e descançar
nós temos livros pra ler

4. Luciana

hoje vou sair com você, vamos de carro.


para algum lugar nessa noite
nós dois passaremos por florestas de eucalipto
inutilmente belas,
ao som de pássaros,
mas é o que eu desejo.
vamos parar o carro na floresta, i
luminados pela luz da lua,
pra cantar essa canção e transar muito,
meter muito, muito,
e escutar o tempo de perceber o tempo de perceber.
eita!
vamos amanhecer em Diamantina,
naquele céu estreito e aquela brisa,
pois estaremos tão modestos e calmos outra vez,
pra cantar essa canção e não sentir medo nenhum,
e escutar o tempo de perceber o tempo de perceber.
eita!

133
5. Compreendendo o silêncio

de onde vem
essa atitude descuidada?
de onde vem essa frágil
emoção
de onde vem a saudade?
(essa irmã de verdade)
de onde vem a ilusão,
as escolhas ridículas da ilusão
o temperamento ruim
de algumas pessoas?

6. Afghan Wighs

pode ser na feira


pode ser no campo
da batalha
pode ser no pescoço
pode ser no amigo
pode ser de madrugada
que eu vou
na porta da tua casa
te dizer coisas bonitas
como meu avô dizia...

7. Paul Milller Rodrigues

saia das dores,


nada é de novo
uma vez vivido o respiro eis um novo ar dessa vez
saber fazer amizades
e tentar amar os vegetais,
as flores
saber viver os ritos naturais
saia de novo!
e dessa vez sobreviva!

134
8. Ana Glória II

uma parte da batalha é o recomeço


outro dia
outra manhã
outra vez
e ainda havia o risco
de que os dois nunca se vissem
e nenhum abraço houvesse
mas o que ela queria
era o recomeço

9. livre, meu irmão

livre para ser


aquele que considera e opina
sobre o sentido e sobre o valor
de tudo isso
sobre o prazer e dor!
era só um dia de sábado
todos estavam com tanta fome
mas só havia o céu
sobre as cabeças...
foi então que veio um novo dia
e jesus partiu pra um lugar
deserto, e todos foram
em busca dele, para passar
mais tempo juntos!

10. A Nhanva

eu posso te propor meu amor e uma canção


como esta, uma merda, mas é o que eu sinto agora. no deserto seco da despedida eu
tenho sede. that´s hangry of space with you now, that´s way
i wont back this night, that´s day beautiful in y head, maybe i since, maybe over…

11. Peixe cascudo

desta vez eu queria ser um pintor, do tipo que sonha.


e esperar meu amor fazendo a manhã, fazendo o sabor
fazedo a manhã, fazendo o mundo mudar de cor, e tendo a manha.
outrodia eu queria ser o
fogo, um fogo que pensa. e queria levar a todos o calor,
da chama que reza
fazendo amor, fazendo o mundo perder a cor, e tendo a manha...
135
12. Corte da espada

o peito do pé
o chico science
aquele golpe derradeiro
com alicate e com esmero
brutalidade e gozo bom
e lenda
gilete dentro da boca pra beijar
policia
dar o cú gemendo de dor
e vamos rir disso
se você liga mesmo pra mim
antes que um de nós adoeça

13. A nhanva II

a importância de um dia alegre e de pessoas que sobrevivem à tempestade


é tão grande quanto a presença das flores. esperar ou respira? (tantas dúvidas s duvidar).
a nobreza das mulheres que lutam pela paz!
é o espetáculo de um novo dia, cada

14. O que existe só

a respiração ofegante, aquilo que existe só


repete as outras existências?
mas caminhar pra onde?
pra dentro das palavras
é onde eu quero estar ali na mata escura

15. Marta action

entre no meu carro agora


ele tem um tanque cheio
vamos viajar por outras ruas das gerais
eu tenho um sonho em mente, mas não sei se é um devaneio: eu quero me afastar de bh
me afastar de bh
minhas esperanças escorrem
nos rios e córregos mortos
a ganância por dinheiro
está acabando com a vida em bh
me afastar de bh, ....

136
16. Elias

não estou te testando, eu não me acostumei ao sofrer, tenho tantos amigos


e de repente eu passo a madrugada inteira com uma boa companhia! (porque
violentamente teu sol virá pra mim,
claro e pleno como a flor, o teu céu, ele virá pra mim. acordei no banco direito de um
automóvel veloz em plena rodovia! decidi viajar no capô, de braços abertos! era só um
aglomerado urbano como sempre. todo aquele caos de metal e vidros
corpos retorcidos, faróis e lágrimas
um acidente deixa tantos feridos!

17. Diadorim

todo meu amor por você, acabou na guerra


o infinito de uma vida foi perdido na batalha
e uma parte de mim deixou de ter luz na alma
e mais do que isso é o aço vávavá
o que eu perdi me fez mais sólido
e mais do que isso, é o tempo!
e mais do que o tempo é o pensamento

18. Itabira com moinhos

a essência do amor é a doação


esse amor já estava aqui e era só você praticar
na arte, na comunidade, na dignidade celebrar
a esperança viva
ver a natureza florescer
esse amor estava aqui e era só você procurar
hoje o céu está tão lindo

19. Cicatriz social

tudo que eu quero ver, tudo que eu vou fazer, e tudo que não interessa mais! tudo que
você vai ser e tudo que cê vai dizer, e tudo que não interessa mais!
cicatriz social, um medo e um sonho, abrir o jornal não faz mais sentido. cicatriz social,
um muro e um medo: a cidade está se drogando de tédio!

137
20. Riobaldo

sempre em busca das verdades profundas, em busca do peixe mais pesado, que vive no
fundo do rio, entre a lama e a fé. ao assumir sua sorte frágil
ao fingir que ainda doía, quando já estava curado
pode agora nos dizer:
se isso é mágico, ou mistério,
se isso é fábrica ou mosteiro
se isso é arma ou brinquedo

sempre que chovia inundava, sempre que sorria chorava. e seus questionamentos
bastavam
pra ele penetrar no absurdo! perdeu o seu amor pro demônio, viu a mulher que amava ser
vítima
e mesmo assim fingia já estar curado quando doía
pelo menos pode me dizer
se isso é mágico ou mistério
se isso é santo ou se é só um remédio

longe foi enterrar sua mulher, morta na faca


lá no meio da mata foi falar com deus

21. Rio vermelho

precisa mais de nada, o dia nos trás a estrada e a estrada nos leva ao amor. com os
olhos rasos d´água ele volta pros braços da amada, volta trazendo uma flor. pra quem
não disse nada, ainda sobram palavras, o tempo é de quem faz com que o tempo tenha
valor. a gente não tem nada, só mesmo a canção da chegada e a casa repleta de sol. i
wanna disk soul, disque estamos sós. a liberdade é o que você dela fizer.

22. Velocidade da luz

a intensidade de uma solidão


aquela força simples e desprezada
talvez um grande tesouro perdido em lágrimas de pessoas boas e honestas
num mundo podre que você concorda!
e você concorda com tantas coisas!
concorda com as guerras e com os negócios, com a segurança bruta e com a pureza
racial, e você concorda com si mesmo, e isso é tão, mas tão mal!

138
23. Ana glória III

a dor, o alimento aberto, sempre renovado


com os mais antigos pensamentos eu sempre me refaço. em toda traição há o casal
perfeito, um feito para o outro, um pedaço falso, e pessoas de honra. mas tudo isso é tão
vermelho, tão feito de plástico. a noite no campo de extermínio, e nenhum pensador foi
poupado.

24. Leca 5

a festa da verdade, o compromisso certo, você toda enfeitada para o amor e para o meu
sexo
hoje já é sexta, e não vamos terminar como eles
seria melhor costurarmos nossos sorrisos
puxar para nossos pés todos os caminhos
nós temos muito que aprender
a festa da vontade, o coração moderno, e eu
todo perfumado para o amor e para o teu sexo.

25. Toda força

o que me parece bom, o que tem um preço bom, hoje não me interessa. quero me
esvaziar, escutar o som dos aviões, mais pesados que meu pensamento. só que eu não
posso voar. não posso voar pra você agora
o que me parece triste, o que tem um som bem triste, hoje não me fere mais. é a
indiferença, ou apenas falta de tempo de seus pais, tudo é breve. como aquela pressa,
em sentir-se completo. faltando tantas peças, tão cheios de preconceitos. faltando alegria,
ou solidariedade. com todos os formatos do povo brasileiro. e é com toda força que eu me
planto. a esperança imensa de uma nova palavra

26. Havana II

tantas aventuras, nas ruas e esquinas, não vale mais que um beijo, não poderemos ser
aquele casal apaixonado que sonhamos, tanto tempo, e depois de tanta espera! aquelas
aventuras, aquele falso senso de humor, aquelas vontades interrompidas.
aquela vontade de apenas ficar quieto sem poder!

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27. A velocidade da Luz do sol

nessa noite banirei de meus pensamentos a figura e as palavras


das terríveis pessoas que por dinheiro são capazes de matar o amor
nessa noite assumirei minha derrota estética
e farei o drama maior dessa tragédia
não ouvirei conselhos de homossexuais
e nem cederei ao apelos pela saúde, higiene e boas maneiras
não comerei de garfo ou colher
o que tenho para comer é puro aço
nessa noite tentarei fazer uma cirurgia interna
seccionar os nervos que transmitem impulsos dolorosos
deixar o cérebro nadar em fluidos de esperança
e os músculos delirarem movimentos inacabados e imediatamente necessários
essa noite as portas de minha casa estarão fechadas para sempre até amanhã
e meus cabelos ficarão soltos enquanto caminho de um lado a outro
e meus desejos agora poderão brincar comigo
e falar coisas sérias sobre a minha vida
que acaba
nesses dias
nessa noite não tenho mais pai ou mãe
não tenho mais esposa ou esposo
tenho um universo indistinto
de coisas ligadas pelo pensamento mais sagaz
e dentro dos olhos aquela chama violenta
me tranco pois se saio matarei o que me acossa
eu acordei para não ser humano.
o mundo das coisas humanas é confuso e completivo,
uma adequação histórica ao contexto maior, a natureza.
então eu resolvi ver apenas a natureza do mundo, e a sociedade como uma paisagem,
tenho silêncios para pessoas com quem eu conversava
tenho palavras para alguns que nem existiam para mim
não é isso o resultado do café?
e da maconha no café?
e da cocaína e maconha no café?
e Nietzsche, e cocaína e maconha no café?
e programas policiais às sete da manhã, com Nietzsche, cocaína e café?
e interurbanos aflitos com violência policial na TV e filosofia barata e pasta de coca e
cigarros do diabo com café?
notei que ninguém me ouvia
eu estava no alto do mundo
e todas as coisas tem um tamanho exato
menos o nada
menos o mundo
e você
percorrendo o imaginário e o devir
vai de um lado a outro de mim, ...
não, ... do pensamento sobre o mundo, ...

140
28. Sobre as mães e os filhos

mientras acariciaba, en plena calle,


un bulto extraño envuelto en un trapo,
la cabeza de su madre,
la he matado...
y ahora que estás callada, cabeza,
la quiero mucho,
como un fardo en sus manos,
ocasionales que se le cruzaban,
por la céntrica plaza del infierno,
mas é como se o desejo pela paz nunca valesse nada!
o mundo é organizado sobre tapetes e estofados de carros de luxo
o mundo organizado em coitos apressados de advogados
em escritórios espúrios e corruptos
o mundo organizado em condomínios de milhonários
o mundo organizado dentro de encéfalos que apenas maquinam os lucros
o mundo organizado pela garganta e dentro das bocas da mentira
o mundo que tentamos reconstruir em nossas lutas por liberdades
aqueles que o sistema massacrou mas que ainda insistem
aqueles que não tem beleza, nem inteligência, nem poder, ...
os que estão à margem do mundo
os que verão a luz
os que estão com fome
mas atrás do muro um olho observa e uma raça sangra
e todos os dias fazemos mais crianças
para olhar de longe teu prazer
engraxar sapatos e inchar estatísticas
fechar as mãos, suspirar e morrer

141
Movimento Tabuleiro

Não podem ser um arquétipo da espécie humana aqueles homens e mulheres bem nutridos,
inteligentes, clássicos e refinados, que arrotam comidas caras e andam em carros de luxo. Eles não
são humanos. Eles não são seres humanos. Não podem ser arquétipos de ser humano aquelas atrizes
e atores europeus e norte americanos, que desfilam sua beleza e perfeição estética, e fazem qualquer
coisa por dinheiro, vendem qualquer produto e dizem quaisquer palavras que lhes mandem. Eles
não são seres humanos. Não pode ser exemplo de ser humano aqueles advogados que fazem
qualquer coisa por dinheiro. Aqueles médicos que deixam de fazer coisas por vaidade, aqueles
pedagogos que fazem coisas mal feitas por ignorância. Estes também não são seres humanos.

...

A negação do corpo, me deu medo de viver. Fiquei com medo de viver pois viver parecia ser a
constante rejeição. Havia duas saídas, rejeitar também, ou aceitar a rejeição, admitir que os outros
estavam certos. De uma forma ou de outra as duas saídas eram a admissão de que os outros estavam
certos. Rejeitar era entrar na dinâmica da rejeição. Uma vez aconteceu-me algo interessante, quando
eu tinha dezesseis. Tinha uma namoradinha, e saíamos eu, ela, e um casal de amigos nossos. Eu me
sentia extremamente inseguro com relação a ela, pois era muito bela, e eu me julgava não
merecedor. Coisas de adolescentes. Mas minha autoidentificação era profundamente negativa.
Ainda que eu acreditasse no reino, acreditasse em uma sociedade onde aboliríamos as barreiras
estéticas, na prática isso era difícil de ser aceito até mesmo por mim. O fato ocorrido foi algo
cômico, digno de uma cinematografia. Eu e esse amigo fomos nos encontrar com as namoradas,
mas antes passamos na casa de uma das tias dele. Ele era um rapaz burguesinho. Nunca fiz
distinção sobre isso. É claro que haviam os burgueses filhodaputas, impossíveis de se estabelecer
convivência. Pois bem , chegando na casa dessa tia do cara, eu permaneci no portão. A porta da sala
se abre imediatamente diante do portão, mas uma vez aberta, ela oculta quem fica de pé diante do
portão. O cara entrou, abriu a porta, e eu fiquei no portão, que ele deixou aberto (a idéia de falar de
portões me parece maravilhosamente metafórica). A tia do cara veio conversando com ele e quando
ele mencionou o fato de que ia comigo para encontras as namoradas, sem dizer que eu estava ali,
atrás da porta, a tia dele soltou uma pérola: mas o davi é um sujeito tão feio!, como alguém
conseguiria namorar um sujeito feio desse, gente!. Foi incrível. Empalideci. Fiquei catatônico. Meu
amigo (que hoje é um escritor), tentou se desculpar, disse a tia que eu estava bem ali, empurrou a
porta e eu apareci. A mulher ficou mais pálida do que eu, e começou a se desdizer. Minha noite
simplesmente acabou. Era a voz da sociedade me dizendo aquilo que parecia velado, subentendido.
Mas o que isso significa. Apenas uma pessoa frágil se deixaria abater por tais afirmativas. Sabemos
bem como a burguesia é cruel em termos de estética. Mas eu, ...

142
...

Eu não adiquiri a confiança em mim para viver as emoções que surgiam em mim. A emoção da
sexualidade e a emoção da busca pelo outro. Até os vinte e quatro anos não tinha feito amor. Tinha
tido uma série de relações fodidas emocionalmente e sexualmente. Eu busquei manter a coerência,
queria me entregar a alguém por inteiro, amando, e sendo amado. Nunca encontrei até então alguém
que me correspondesse, ou que eu correspondesse para tanto. Uma vez, quando estava na pedagogia
ainda, arrumei uma burguesinha para comer. Lindinha, filhadaputinha também. Ela queria transar e
eu também. Mas eu nunca tinha feito. Devia ter uns vinte e dois. Pois fomos a um apê de um amigo
meu e ficamos naquele rala e rola a noite inteira. Mas eu não consegui penetrá-la. Não consegui!
Foi incrível, ela escancarada, desinibida, na minha frente, eu de pau duro, ali, naquela cena estática.
Uma mulher muito bonita. Mas eu sabia que ela não gostava de mim. Tanto que na manhã seguinte
ela terminou comigo. Gozei precocemente. Sem conseguir estar nela. Foi horrível. Uma grande dor
existencial. Me calei. Voltei para casa, chorei bastante. E deixei aflorar toda minha agressividade,
que eu sublimava para outras coisas, para a música. Tinha cansado de ser assim. Não podia mais,
não tinha forças. A negação tinha atingido tal ponto que eu mesmo me negava. Deus era deus do
corpo também. Obra sua. Magnífica obra sua. Me sentia como fechado, amarrado, doente. Ser feliz,
ser amado, amar, ter uma relação, era algo sempre para os outros. Sempre para os mais belos.
Sempre. Para os desinibidos, para os homens que tratavam as mulheres feito cadelas, para as
mulheres que tratavam os homens feito idiotas. Ou não! Ou não, pessoas comuns, normais, boas
pessoas, e elas eram felizes. Mas parecia que nessa dimensão eu estava arruinado para sempre. Para
sempre desde o início. Um paradigma denso, duro, encobria minha afetividade. Tinha tido
namoradinhas, tinha tido uma namorada que me amou profundamente, e outros casos obscuros. Me
senti tentado a investigar minha homossexualidade. Só podia ser isso! Na verdade talvez eu fosse
uma bichinha enrustida. Pensei em ter experiências homossexuais, pelo menos sexuais, para saber.
Mas nunca tive uma intuição muito forte sobre isso. Eram devaneios que passavam. Sempre quis
viver como uma mulher, e não como uma mulher. Percebi que eu estava doente. Estava louco,
minhas leituras de Freud na FAE estavam me pirando, sofria densamente, densamente. Então
resolvi me matar.

143
O Cristo

O caminho das oito virtudes entre os dois rios

Há um caminho entre dois rios. Um caminho estreito e cheio de desafios. Este caminho atravessa
com a duração de uma vida dois rios, que correm numa mesma direção e desaparecem ao final dos
dias, do tempo. Um desses rios é o rio de fogo, o outro é o rio de gelo. O rio de fogo é o leito da
violência. Os que decidem entrar em suas águas percorrem a mesma distância do caminho entre os
dois rios, pois todos os caminhos seguem a mesma direção, a morte.O outro rio é o rio de gelo, o rio
da ambição. Os que decidem navegar em suas águas, na esperança de chegar mais rápido ao fim são
os que perseguem o caminho da ambição. O rio de gelo é o rio da ambição. Apenas quem decide
seguir o caminho entre os dois rios pode carregar consigo as oito virtudes. Dentro de um desses
rios, de fogo, da violência, de gelo, da ambição, as oito virtudes são impossíveis de serem
esperimentadas. A violência e a ambição devoram-nas. As oito virtudes são: a FIDELIDADE, o
RESPEITO, a DIGNIDADE, a CONFIANÇA, a JUSTIÇA, a COMPREENSÃO, a MORAL e a
VERGONHA.

,...,

mas você já sabia de tudo isso, não é mesmo?

...

O primeiro Mantra

Destruir a Bonequinha do Sistema. O que eu vou dizer todos sabem, o que vou falar não é novidade.
Mas algumas reflexões devem ser como "mantras", que silenciosamente precisam percorrer nossos
espíritos. Para nos fortalecer na luta histórica contra o grupo de seres humanos que insistem em
institucionalizar a traição, a morte e a mentira. Por séculos, organizações, famílias, grupos políticos,
inflamados de ódio, de corrupção, destruíndo as vidas de milhares de pessoas em nome de seus
interesses particulares de classes. , ei, ... o que digo, me desculpem, ... me escapole esse
pensamento.... quero dizer algo, ...

Odeio Advogados!!!, Principalmente as bonequinhas do sistema, higiênicas, dóceis, com suas vozes
mansas e seus corações de serpente! Mestres do direito, víboras monstruosas dentro de terninhos de
seda, em tribunais, lindas mulheres por fora, na pela, na estética, e verdadeiros demônios por
dentro. Elas não conseguem envelhecer.

Odeio Advogados!!!, Principalmente aqueles rapazes bonitos e grandes, saudáveis, se multiplicando


como coelhos com suas bonequinhas do sistema, fazendo filhos sistemáticos, bonitos e indomáveis.
Eu os odeio com o único ódio que me permito ter, o ódio ao que é falso, ao que é poluição, ao

144
estético eleito. As bonequinhas do sistema e os rapazes bonitos, os advogados, são os monstros do
sistema!

Mantra da luta pelas oito virtudes no caminho entre os dois rios

Repita sempre, várias vezes ao dia o seguinte mantra:


Meu ódio aos advogados é meu ódio não aos seres humanos, mas a uma prática institucionalizada;
a prática sistemática da mentira, do terror, da ambição.

...

O Cristo Morto

Repita comigo a minha fisiologia. Repita. Venha. Encarne-me. Encontre-me no teu fígado, em tua
bilis, nos teus membros. Seja-me. Morra-me. Viva-me. Seja potencialmente a vida. Seja. Reine.
Serenojovialize-se. Eternamentemente. Incondicionalmente beba-me, mastigue-me. Erre o teu
português. Deixe de usar a palavra amor. Vista a palavra amor, vista-se de palavras. Arme-se, torne-
se tua escultura, teu quadro preferido. Cale-se. Fale. Ande. Ama-me. Tome meu corpo, leve para
tuas madrugadas. Beije. Beije a boca do outro e a minha. Olhe meus olhos. Veja a possibilidade de
ser o outro. De ser o que você acredita o melhor. Morra. Mate o que não está vivo. Esqueça a
eternidade. Esqueça. Lembre-se de ti. Lembre-se da redução ontológica dos mandamantos. São
dois. Andar e parar. São dois o 1 e o 0. O um e o zero. A metafísica. Feche o livro. Abra a janela.
Não me siga. Seja-me. Não me acompanhe. Trilhe-se. Cale-se. Se afaste. Deixe-me. Seja seu
deserto. Ouça. Pássaros. Abra a porta. Escute. Riachos. Pedras e água. Verde. Pessoas andando. As
paredes. Veja através delas. Morra comigo. Venha. Beba. Negue, rejeite, submeta. Vença. Abraçe.
Quantos outros corpos você já tocou? Quantas outras bocas? Quantos outras pedras. As horas da
madrugada são as melhores. Não crês? Não leu você o livro. Eu nada escrevi. Nada escrevi.
Palavras. Vista as palavras. Pare de repetí-las. Pare. Cale-se. Mande calar a minha boca. Me mande
calar. Ouça-me. Veja o que eu fiz. O que eu faço. Estou morto. Morra. Viva. A terra. A terra acolhe.
Saímos dela. Rejubilados como Dionínio. O nome de deus? Não importa. Palavras. Não tema as
palavras. Algumas são sagradas para alguns. Dinheiro, poder, beleza, sucesso, educação. Palavras.
Amor, ódio, paz. Palavras. Vista palavras. Saia de casa vestido com elas. Ande. Não troque suas
emoções. Troque suas emoções. Pense. Beba. Aceite minhas mãos. Incompletas. Incompletas.
Seguro-te. Amo-te. Amo-te. Você sabe. Você saberia se não. Você veste palavras. Tem a boca cheia
de palavras. Estamos mortos. Estamos matados. Erga-se. Olho o sol de uma distância mais próxima.
Sobrevoe as ervas, e as flores do campo. Pise o chão. Pise. Consuma o ar. Ele é teu. Ele é todo teu,
todo o ar do mundo é teu. É meu. Os pulmões se encontram. Fale. Diga aos outros. Vá até lá.
Esmere-se. Morra. Viva. Não pode nascer mais você. Não pode nascer mais você, coma as palavras.
Acredite. Esteja alí. Vá até o muro. Cuspa. Corra. Acreditar é uma fisiolgia. Suspeite do que é fácil
demais. Difícil demais. Sagrado demais. Impuro demais. Suspeite. Seja fisiologicamente o amor.
Amorosidade. Ataraxia. Coragem. Vista-se de coragem. Proteja quem não tem pele. Seja carnívoro.
Mostre os dentes. Reproduza-se. Crie comunidades. Conviva. Conviva. A arte. A fisiologia da arte.
Amar é uma. Desacredite. Feche a porta, apague a luz, assopre a vela. Durma. Descanse. Se
prepare. Amanhã virão os violentos. Para te encontrar. Sem palavras. Estão nus. Sem razão. Sem
argumentos. Fortalecidos. Advogados. Pretenciosos. Estudantes de pedagogia. Arrogantes.
Esfregarão em tua cara palavras. Palavras. Notas. Poder, desprezo. Ridicularizarão teus esforços

145
pequenos. Tua insistência. Rasgarão as vestes. Apresentarão o caminho. Não há caminho, não há
verdade, não há vida. Vista o caminho, encarne a vida, mastigue a verdade. Seja. Não respeite a
ordem de pare. Não respeite a ordem de mate. A ordem de omita-se. Minta. Minta. Desacretide. Se
aproxime. Veja a luz. Veja. Ela pode ser tocada. Veja. E simples. E simples. O som. Palavras. Seja-
me. Seja-me. Não aguarde mais. Seja-me. Hoje, agora. Seja. Entre. Entre. Deite-se. Ame. Receba
meu corpo. Receba. Acorde. Suma. Saia. Vá até a outra ponta. Encontre. O pensamento. Cale-se.
Pise. Deixe pegadas, pistas, anuncie-me. Seja-me. A arte.

O Cristo de Bronze

Todas as noites eu peço, em um pensamento que julgo estar sendo percebido por alguma coisa
maior do que eu. Eu penso. É uma rotina. A ação e o conteúdo. O reino. Aquele combate. Aquele
encontro. De uma força com o nada. Eu peço. Que o reino aconteça agora, que ele se inicie hoje,
que todos ao mesmo tempo queiram a vida de todos. Eu penso. Eu desejo. Mas não sou fraco. Não.
Não. Não poderia desejar tais coisas se assim fosse. Não poderia. Tenho algum tempo ainda. Para
afiar as espadas. Para ascender as velas. Para perfumar com as ervas meu leito, para colher flores
para meu amor. E esse tempo, curto, eu gasto com pensamentos. Sobre o reino. Sobre o reino. O
tempo que me gera, gera os violentos também. Todos estamos nos preparando. Queria saber a
vontade do grande espírito. Queria saber o que ele pensa. Mas estamos incomunicáveis agora.
Nessas horas que antecedem o momento. Deus é feito por nós. fazemos deus quando fazemos as
coisas. O reino. Um espaço de comunicação aberta entre as razões da existência de todas as vidas.
Um dia. Um dia. Ele acontecerá ao mesmo tempo em todas as partes. Quando acordarmos. Todos
ao mesmo tempo. Só assim. Só quando a mão soltar a arma. Deixar a arma deixar de ser arma.
Deixar sobre a mesa, deixar que os insetos e a poeira faça da arma um objeto desconhecido. Deixar
isso. E então, em meus pensamentos, eu posso ver os rostos. Nesse dia não haverão rostos humanos.
Nem palavras humanas. Serão outros sons e outras expressões. Próprias para a convivência sem
limites. Possível. Armazenada nas melhoras intenções. Realizáveis. Faço essas preces a outras
inteligências. O reino. O acontecimento inédito. Só conhecemos a dor. Anatomias da mesquinharia,
alma de empresários, espírito de agiotas, comportamento de assassinos, postura de covardes. Mas
eu não sou fraco. Resido. Para além do que se pensa ser a masculinidade. Ou o contrário. Para além
do que seja a feminilidade, e o contrário. A correção. A gramática, o verbo. Para além da grafia do
verbo. A palavra pura, acontecida sem tempo entre a palavra e a palavra. Compacta. Imersa em si.
Forma e conteúdo. Tudo ao mesmo tempo em instantes. E quando assim for. Um dia será. Um dia
de ser assim. Esse dia. Amanhã. Agora. Um dia. Um dia. Permaneço o metal. Resito. Incompatível.
Inadiministrável. Absorto e externo. Reprovado em testes de RH.

Wake Up

Avio a receita!, ...


Desembaraço um papel de pão, envelhecido
Nele está escrito com letra de criança um mantra.
Recito-o,
Primeiro sem paciência,
Com o humor dos nossos tempos de pressa
Depois, me acalmo
Recito-o mais pausadamente

146
Avio a receita.

...

Empurar o mundo conhecido um pouco mais para frente. Fazer um esforço. Um pequeno esforço
para alargar a capacidade de contruir a realidade. Mas ao contrário, abandonar absolutamente a
capacidade de construir a realidade. Deixar o desejo de se proteger dentro de sua imaginação
criadora. Parar de imaginar o mundo para vivê-lo. Deixar o tempo e o espaço recontados pela ânsia
de ter a realidade estruturada. A organização da emoção, o temor do medo de perder infintamente o
sentido da existência. Infinitamente. Perder para sempre. Soltar as mãos e se deixar cair no
precipício, e aguardar o impacto contra as pedras. Fechar os olhos e sentir a vertigem de não ter
nenhuma certeza, absolutamente nenhuma. Nem mesmo a de que se está dentro de um pensamento.
Isso, isso é, isso é, ... uma possibilidade? – perguntou o pequeno homem. Continuava ajoelhado. O
silêncio ao seu redor. Onde estariam as divindades responsáveis por aquela reposta? Todas tinham
se retirado da terra a milhares de anos. Não tinha sobrado nenhuma divindade que quisesse viver
entre os homens. Mas eis, aqauela divindade que tinha ficado estava sendo a mais rejeitada. O que
seria interessante para um deus? Ter súditos sedentros de milagres e soluções rápidas para questões
realmente insolúveis? E aquela divindade que prometia tão pouco, e que tinha sido abandonada? O
que estaria fazendo? – que devo fazer? – gritou quase niuma irritação o pequeno monge. Tinha se
retirado para as montanhas para rezar e orar aos deuses. Mas já a tantos meses em retiro, não tinha
ouvido sequer um sussuro. Estava enlouquecendo, sentia a razão se desbotar. Sentia perder o
conhecimento. E era isso? Ter fé era isso? E o que faria? Um suicídio? Como tantos? Desistir
absolutamente? O que era o outro, o que era o outro, o que? - .... Abandonar a necessidade de saber
o que é o outro. Abandonar a necessidade de ter uma vontade de devorar toda a realidade, de engolir
os sentidos de tudo. Não é possível sair de dentro de sua mente para conhecer o mundo por um
movimento de julgar o mundo. Silêncio não se pode mais fazer..., não se pode mais fazer, ... não se
pode, ... o que é possível então? Para onde a alma deve seguir? Para onde? Quem seguir? Aqueles
pastores com suas garras afiadas? Aqueles grandes demônios católicos, que finalmente tinham
conquistado o mundo? Aqueles grandes monstros sentados atrás de suas mesas dirigindo a
economia e a política mundial, bufando feito monstros, realmente, ..., realmente? Aqueles homens e
mulheres de fala fácil, de intensões enganosas, e de arames dentro dos olhos. ... Meu espírito está se
controlando. Está se observando, e não tem pressa. Olha para si, se observa, se pergunta. Faz algum
carinho sobre sua própria superfície. Não deixa que os demônios ou os anjos botem ovos, inoculem
larvas, plantem qualquer semente. Nesse momento meu espírito se protege, sem ganância e sem
egoísmo. Zela por si como uma mãe, uma fêmea de mamífero zela por sua cria recém parida.
Lambe-se para tirar os restos da placenta. E se permite. Dá a si calor. Deixa o corpo, seu próprio
corpo, viver o dia. Sentir o sol, sem prejuízos, comer alguma coisa, ter algum pensamento leve
sobre o dia, conversar distraidamente sobre alguma coisa. O amor. Isso. O amor. Despertei. Não
tinha conseguido dormir. Estava atormentado. Senti que no alto da montanha um monge estava
suplicando aos deuses para que conversassem com ele. Exigindo um diálogo. Isso me fez a-cordar.
E eu estava a milhares de quilômetros daquele monge. Mas isso despertou minha ira. Me levantei.
Retirei de meu altar minha espada. Me vesti. Iria agora mesmo atrás desse monge. E o mataria sem
piedade.

Me responderão? Me responderão? ...

Avio a receita!

147
Ter poder! Olhares de traidores, cheios de infâmia e ódio pela vida. Dentro dos olhos, arames!
Dentro dos corações, arames! Nas mãos, na pele, arames!

Quem determinou que fôssemos assim? Que força sarcástica dividu entre os homens as posses?
A beleza, e todas as coisas? – tudo isso não há, meu irmão.
Minha irmã.
Não há beleza, poder, riquezas, todas as coisas são ilusórias, todas as coisas são ilusões.
Mas há algo a segurar, há uma construção definitiva.
O amor.
A única realidade concreta, infalível, fiel.
Os amantes do amor são os mais fincáveis.
Os amantes do amor do deus do amor.
Os impossíveis e alegres amantes do amor do deus de amor.

Avio a receita!

148
As mulheres Guaikurus

“Eles reclamam que eu sumi,...”1

1
A migração de um povo para outras terras pode ter um caráter negativo, como acontece nos
casos em que uma população é simplesmente arrancada de uma região por motivos de guerra. Um
exemplo é a guerra interminável que as nações euroamericanas impuseram a uma série de povos
africanos, mantendo uma tradição de interferências sistemáticas. Essas colonizações se iniciam com
o Império Romano, cinco séculos antes de Jesus cristo. Depois, Jesus cristo se tornou o primeiro
homem-europeu, arquétipo moral que ainda hoje é. Na bíblia cristã há uma série de outros
arquétipos, de homens e mulheres, que foram globalizados para as várias culturas que o europeu
visitou. A religião cristã impôs uma série de elementos ao imaginário dos povos colonizados.
Nessa religião, a prostituição é algo condenável. Talvez por isso os belorizontinos tenham dado o
nome de Guaikurus à região dos hotéis próximos à rodoviária velha. Os índios guaikuru sempre
tiveram dificuldades com a colonização2. Uma citação de Fernando Sabino fala de um mercado da
zona boêmia, um local que recebia prostitutas de todo estado de Minas Gerais, um local de
efervescência erótica, numerosas pensões e puteiros, desde o início do século XX. Um outro
escritor dos assuntos belorizontinos, Roberto Drumonnd, com o hipertexto Hilda Furacão descreve
nossos típicos conflitos erótico-teológicos. Dentro da religião cristã, há a figura de uma famosa
prostituta, Madalena. Ela é apontada por Nikos Kazantzakis e Martin Scorcese na obra A última
tentação de Cristo (E.U.A. 1988) como a paixão de Jesus cristo. No Brasil as putas são como as
índias, resistem à catequização. As índias barrocas dessa Guaikuru3 andam nuas pelos corredores,

1 Fala de um homem negro a respeito de sua importância para seus amigos brancos. Citado por Diva Moreira, uma pesquisadora de
Belo Horizonte, no texto Casamentos inter-raciais: o homem negro e a rejeição da mulher negra. In: COSTA, Albertina de Oliveira
e AMADO, Tina. Alternativas Escassas: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. Rio de Janeiro; Ed.34, 1994.
2 A prostituição não parece ser uma prática indígena. Mas a prostituição forçada de índias se tornou comum no
exercício de poder do colonizador.
3 Vamos chamar essa estrutura de guaikuru, para gera um fenômeno, pelo menos lingüístico e semântico. No livro perspectiva
sociológica Peter Berger analisa a sociedade norte-americana oferecendo a metáfora do teatro social, para descrever a importância de
instituições culturais contemporâneas como escola, prostíbulos, quartéis na dinâmica das atuações individuais. Essas instituições,
principalmente as instituições não oficialmente públicas como a Guaicurus, tem ima identidade identificada pelo seu papel dentro da
dinâmica maior, a dinâmica da produção econômica. A ‘guaicurus’ é um lugar de trabalho, um nicho de relacionamentos onde

149
cativam o imaginário dos homens de Belorizonte, reproduzem as históricas relações sexuais entre
índias e colonos. (...), onde a mulher indígena somente era útil como objeto sexual. As mulheres
decaídas sempre foram necessárias na Europa. Há vários textos historiográficos que descrevem o
papel da prostituição nas sociedades medievais européias. Aqui no Brasil há quem diga que havia
um acordo ético para o poder teocrático do estado colonial brasileiro: permitir as várias formas
de prostituição instituídas. Clóvis Moura comenta que os novos colonos ainda tinham apetites da
Europa, como um sacerdote católico que escreve para a metrópole solicitando mulheres decaídas
(prostitutas), contanto que fossem brancas. Depois dos movimentos iniciais de colonização, descritos
sempre como violentos pelos relatos históricos da comunidade negra brasileira, as antigas
comunidades étnicas se apropriaram da nova crença, que incidiu diretamente no comportamento
sexual dessas comunidades. O Filme A missão (the mision – E.U.A. 1987) apresentam a imagem que
pode ser tomada como uma função cinemática disso. A escravidão foi na verdade uma escravização,
a manutenção de um discurso e de propostas pastorais (cristão) calcadas na família. Até hoje, no
imaginário coletivo da sociedade brasileira há uma relação conflituosa entre a sexualidade e a
religiosidade. Igreja = esposa, cristo = esposo; Maria, virgem-mãe e esposa, modelo de mulher – na qual
a figura familiar ocupa lugar central. Esse é um modelo de família entre tantos. A prostituição não é
tolerada pelo cristianismo, pois isso afetaria a própria relação simbólica entre as divindades. Esses
conflitos são resolvidos na subjetividade das pessoas. Desde sua formação inicial, (...) a mulher negra
foi levada a internalizar imagens que lhe conferem sentimentos de baixa estima e inferioridade,
interferindo em sua vida emocional. A escrava, a prostituta, a feiticeira.. Enquanto trabalhadora braçal, no
eito ou na casa-grande, a imagem da escrava é certamente conformada em boa parte pela igreja católica,
que desempenha um papel de relevo na formação das mentalidades e na produção de ideologia4.
Pensamos sobre a identidade da prostituta negra na Guaikurus de Belorizonte duplamente num
primeiro olhar. Na idéia cristã de prostituição, e depois nas questões que ainda são debatidas pela
sociedade brasileira sobre a legitimação das profissionais do sexo. Para os povos africanos que
migraram forçosamente para o Brasil, a prostituição forçada da escrava insere-se num pano de fundo
que projeta a sexualidade da mulher negra como desregrada, indomável, animalizada5.

serviços particulares são oferecidos ao publico, como num grande mercado histórico, construído ao longo de várias gerações de
mineiros e mineiras. Se as prostitutas da Guaicurus fossem todas filósofas profissionais, muita poesia seria produzida com certeza.
Para a vida delas mesmas. As campanhas de higienização moral da Guaicurus de belorizonte sempre aconteceram ao longo da
história de belo horizonte. Fernando Sabino e Roberto Drumonnd podem ser alguns poetas conhecidos que escreveram sobre isso.
Entretanto ainda não se fala de uma campanha pela escolarização daquelas profissionais. A informação sobre as doenças sexualmente
transmissíveis são sempre acompanhadas por campanhas de saúde pública. Entretanto há outros caminhos possíveis e necessários em
uma campanha de conscientização. Entre esses caminhos está o investimento na formação cultural dessas camadas da sociedade, as
guaikuru de belorizonte. Um outro sentido para a dimensão descritiva a que se aplica, tomemos a idéia de prostituição
institucionalizada pela de ambientes de prostituição. (MEDEIROS, 1998).
4 Casamentos inter-raciais: o homem negro e a rejeição da mulher negra. In: COSTA, Albertina de Oliveira e AMADO, Tina.
Alternativas Escassas: saúde, sexualidade e reprodução na América Latina. Rio de Janeiro; Ed.34, 1994. p. 90.
5 Idem. p.91.

150
2
O erotismo de um povo. Podemos usar essa expressão para nos referirmos às formas culturais em
que se manifestam os impulsos reprodutivos de uma espécie como a humana. A prática da
prostituição é entendida por todos os povos da mesma maneira? A atualidade histórica de um
fenômeno pode nos auxiliar na comparação entre duas culturas que procedem de maneiras
diferentes em relação a um mesmo fenômeno cíclico da comunidade. Em Belo Horizonte existe
uma região da cidade onde a cultura institucionalizou um espaço público da prostituição. A miopia
das reflexões que estão sendo produzidas pela sociedade de Belo Horizonte para tratar de suas
mazelas educacionais nos faz formular algumas indagações sobre o erotismo do povo de Belo
Horizonte. Como a amplitude de possibilidades de pesquisa é alta, uma série de outras
preocupações, investigações interessantes, começa a borbulhar. Ao passar pelo quarto de Bianca,
23 anos, a imagem é a de uma mulher deitada em uma cama, ouvindo música, assistindo televisão ou
mesmo observando de olhos atentos e cansados o vai e vem dos homens brancos, negros, pardos, gordos,
jovens e velhos que andam pelo local. Bianca está em um quarto pouco iluminado, o 216, situado em
um corredor, do segundo andar, o corredor é futurístico, irradiado por intensas luzes de néon
vermelhas; isso às quatro horas da tarde de um dia sereno, em belorizonte. Mas o dia fica lá fora.
A primeira pergunta que faço a ela é sobre o que pensa sobre a profissionalização da prostituição
no Brasil. A segunda pergunta é sobre os lençóis. A terceira pergunta é sobre o chuveiro. Os
quartos não possuem chuveiro. Na investigação, elegemos 13 hotéis para uma visita regular em
busca de elementos estéticos que pudesses representar a trajetória de prevenção das mulheres
negras. O elemento mais observado foi o grau de escolarização dessas mulheres. A desinformação
foi apontada como um dos causadores da disseminação da AIDS. Porém, atualmente não há na
guaicurus, um ambiente desinformado. As profissionais do sexo evitam a Aids e outras doenças
através do uso de camisinha. Por outro lado, as condições de higiene no geral não são tão boas.
Tirando o problema estético com o odor e a imagem geradas na guaicurus, há uma materialidade
preocupante. Sem a menor intenção de propor nenhuma medida governamental, digo que um dos
problemas para o controle de uma série de outras enfermidades sexualmente transmissíveis é o
fato da profissional não ter um acesso maior ao chuveiro ou a um serviço de hotelaria que
cuidasse de maneira anti-séptica dos lençóis. Principalmente nos hotéis de mais baixo meretrício,
onde as prostitutas decadentes, com idade avançada. Dois pontos de reflexão merecem atenção: a
delimitação do objeto de análise (as prostitutas negras), e o problema (a relação entre a formação
da mulher e seus hábitos de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis). Segundo os dados
de BARROS (2000), em uma pesquisa onde 171 mulheres que trabalham como profissionais do
sexo na Guaicurus, se somarmos as mulheres que responderam possuir a cor negra, parda e morena,

151
alcançaremos uma porcentagem bastante significativa (aproximadamente 70%). Uma curiosidade inicial:
não há mulheres orientais trabalhando na guaicurus, falta a representação desse grupo estético no
local, talvez pela própria forma cultural de prostituição desses povos. Essa falta nos leva a ter
critérios mais rígidos na análise de um grupo social. Porque alguns grupos culturais estão na
Guaicurus e outros não? Diante dessa pergunta, reduzimos a população instigada aos 8% de
prostitutas negras (esteticamente africanas) que constam da pesquisa. Entre 171 mulheres
investigadas, temos 14 com essa estética. Essas mulheres trazem para seu local de trabalho suas
questões raciais? Segundo Bianca não é necessária. A guaikuru é um dos locais mais públicos de
Belo Horizonte. Bianca pertence ao universo estético investigado. Uma outra pesquisa, essa da
Fundação Mineira de Educação e Cultura6, revelou que há cerca de 2700 prostitutas na Guaicurus.
Com relação ao problema da pesquisa, iniciamos nossas reflexões pensando que são escassos, ou
quase inexistentes os lugares para as mulheres negras no mercado de trabalho. São poucas nas
universidades, nos órgãos públicos, nas empresas privadas, nos hospitais e nas escolas. A estética negra é
excluída há anos do campo midiático e, por conseguinte, do saber e da construção estética do brasileiro7.
A maior parte das prostitutas na guaikuru não tem o segundo grau. Se a hipótese de que a
escolaridade da mulher esteticamente negra é inferior à das demais, temos um grupo de mulheres
que trabalham com condições constantes de infecção, mas que possuem um nível inferior de
captação da informação. Os níveis de compreensão das campanhas e da prevenção são
hierarquizados de acordo com a complexidade e acessibilidade midiática do tema. Isso contribui
para o uso de estratégias místicas e míticas de prevenção? A resistência cultural das populações
negras em termos de sua legitimidade cultural têm se dado absolutamente através do senso-
comum. Bianca diz que algumas coisas ela não compreende, quando das reuniões periódicas entre
as prostitutas para disseminação de informações. Bianca é uma mulher muito linda, entretanto
envelhecida para a idade, já é mãe, e culpa a baixa escolaridade pela falta de oportunidades sociais.
Não tem pretensões claras de cursar uma universidade. Uma experiência citada por MEDEIROS
(1998) poderia ser útil para o tráfico de informações nos prostíbulos, a educação sanitária, na
forma de cursos técnicos para profissionais do sexo, que na Espanha tem o nome de programa de
educación sanitária para mujeres que ejercen lá prostituición. Programa chamado Mujer, dedicado a ti.
Bianca traz seus próprios lençóis, pois talvez ela saiba que eles são veículos de uma série de
enfermidades sexualmente transmissíveis. A idéia de que algo sexualmente transmissível não tem um
contexto de transmissão, faz com que uma série de enfermidades não sejam veiculadas pela
prostituição em condições como as da Guaicurus.

6 BARROS, Lúcio Alves de. Mariposas que trabalham. Uma etnografia da prostituição feminina na região central de Belo
Horizonte. Belo Horizonte: _____, 2000. p.14.
7 Idem. p.13.

152
3
A racionalidade de um povo tem uma descrição preciosa em Schopenhauer. Para ele a razão com
que tentamos falar da causa dos fenômenos naturais é uma prova da racionalidade presente na
estrutura desse fenômeno. A colonização européia dos povos nativos, e a imposição de escravidão
a um terceiro povo, trazido de outras terras gerou um conflito cultural de enorme potência. Esse
conflito ainda hoje se manifesta, fazendo do Brasil um país onde dissimulamos o rancor pela forma
histórica com que o europeu nos tratou. Essa dissimulação pode ser diferente das demais, uma
relação específica sem repetição em outra forma de dominação? A configuração única do erotismo
de um povo pode ser um exemplo disso. A Guaicurus é um lugar culturalmente importante para
Belo Horizonte, mas ainda não foi apropriada pelo sistema econômico em seus planos mais densos
de exercício de poder. Que tipo de mercadoria se poderia vender na Guaicurus, além do tempo
de vida das mulheres e da rede de homens que fazem trabalhos secundários para que a instituição
funcione. (completa com descrição da observação sobre Paula (vontade de morrer), Júlia
(vontade de ser negra) e Michela (a tradição da família). Os quartos são limpos no geral, tirando
o problema dos lençóis e do chuveiro. As mulheres pagam de 30 a 50 reais por turno de trabalho
nos quartos, que equivale a um aluguelde um quarto por seis horas. Nessas seis horas elas transam
com quarentas homens em cerca.

4
A população negra após o reconhecimento de sua legalidade política em 1888, teve um acesso
gradual à rede pública de formação escolar. Esse acesso se intensificou nos últimos cinqüenta anos.
As famílias negras vivem dentro de uma tradição, que remonta sua origem apolítica8. O acesso
mais amplo dessa população refletiu na forma como o registro do mundo tem acontecido para
eles? (prevenção, sexualidade, erotismos). Uma série de fatores leva um ser humano a sair do coro
e passar para o centro do palco, para representar a tragédia. Tomada como uma forma artística de
exercício da vida, a tragédia grega representa para Nietzsche um arquétipo para conversas sobre o
sentido da vida. As mulheres da Guaicurus experimentam a representação trágica de suas
existências heróicas. A primeira lei a ser vencida é aquela que manda cobrir o corpo. Lei que os
indígenas que viviam em Minas Gerais desrespeitavam regularmente. As populações negras
também eram nudistas? Pelo menos parcialmente parece que sim. As mulheres da Guaicurus
devem incorporar as divindades tupinambás, que fazem um homem braço se tornar um índio. Ou

8 Pesquisa sobre a relação do povo negro com a escolarização no Brasil. As escolas brasileiras sem conteúdo brasiliano, apenas com
conteúdo europeu português.

153
um homem negro se tornar um índio. Apresentar a nudez. Andar nu. Diante de outros. A
experiência indígena das mulheres da Guaicurus é indígena até mesmo no nome9. É indígena na
forma de acesso dos homens. O olhar de desejo do homem negro. O olhar de desejo do homem
branco. O olhar de desejo do homem índio. E também do homem asiático. Enquanto posturas
fisiológica, o olhar é também a forma de ver, a forma de reconhecer o sentido da experiência.
Índias no nome, índias no despojamento das roupas e índias no enfrentamento do olhar masculino.
O pior de todos parece ser o olhar do europeu. O olhar do homem que quer a posse, que já
possui dentro de si a posse do corpo e da vida do outro. A posse pela fantasia que depois pode se
tornar exercício de poder sobre o corpo do outro10. A índia trágica deve ficar na porta do quarto
a espera de seu cliente, suportando um triplo combate. Ao mesmo tempo ser um prometeu.
Trazer o fogo, mesmo que imaginário, para os homens poderem inventar as máquinas. Os clientes
dessas índias devem pagar minimamente dez reais para serem introduzidos no palco desse teatro,
que na verdade são quartos que variam de três a cinco metros quadrados, iluminados o dia todo
por displicentes luzes de calor de tonalidade avermelhadas. Esse palco proporciona preciosas
imagens humanas. A contemplação das índias da Guaicurus em seus palcos trágicos se desenvolve
em três outros atos cênicos, além dos já citados sobre a vida humana nesse texto. Sônia (a
prevenção com o marido), Cibele (moral e prevenção) e Nívea (trajetória de prostituição na
família de mulheres negras). Quem são essas mulheres? Saber o que são as mulheres: as mulheres
mais remotas, aquelas escondidas nos quartos da prostituição, as mães do prazer do mundo, as
mulheres cruéis!

5
A experiência erótica da população de Belo Horizonte e Sabará tem como revelação da vontade o
território indígena chamado por que fala português de Guaicurus. Em uma língua onde essa palavra
tivesse uma outra experiência epistêmica, causaria perplexidade? Havia prostíbulos nas tradições
indígenas brasileiras? Talvez a experiência de eros daquelas comunidades antes do contato violento
com os europeus, árabes, africanos pudesse ter resolvido o sacrifício de prometeus de outra forma.
A literatura de Belo horizonte apresenta, em dois autores muito importantes uma chave de
entendimento para o discurso sobre a Guaicurus de Belo Horizonte. Fernando Sabino, com o
grande mentecapto, e Roberto Drumonnd com Hilda furacão apresentam duas falas sobre a

9 Pesquisa sobre a história da Guaicurus. (pensar nas vaginas indígenas destruídas pelos portugueses)
10 Pesquisa sobre sexualidade, prostituição, ...

154
Guaicurus que ainda hoje é inspiradora, para quem freqüenta os serviços sexuais das índias. As
mulheres são, dentro de um povo, as mais sabidas sobre a vida sexual desse povo? O saber da
mulher sobre o homem ainda não foi especializado de maneira a gerar ciência. Entretanto na
Guaicurus acontece uma ciência. Vejamos um trecho de cada autor onde as palavras nos levam a
experimentar uma razão para aquele território ainda existir11: Artemisa, Clio e Roberta
(cultura e guaicurus). As mulheres indígenas serviram de prostitutas durante muitos anos

6
A linha de raciocínio usada para costurar nesse tecido essas palavras pode ser resumida da
seguinte forma; em primeiro lugar devemos começar um pensamento com a emoção de um
conflito ainda não resolvido, que foi instaurado a muitos séculos atrás, e que tem uma extensão
muito grande. Emocionalmente, juridicamente, historicamente, e também eroticamente. O estudo
dos hábitos de prevenção de prostitutas negras em belo horizonte pode ser direcionado para uma
série de vetores. O que genuinamente um pedagogo investigaria nesse caso? Essa pergunta é
necessária? Pelo menos por causa do período de formação dos estudantes de pedagogia que estão
fazendo parte das investigações. O exercício da profissão de pedagogo faz com que todos os seres
humanos tornem-se sistemas fisiológicos interativos, isso dentro do olho do pedagogo, dentro de
suas pupilas. Depois de dizer isso, a linha de raciocínio deve se costurar a todas as preocupações
da constituição de identidades. Mulher, prostituta, negros, escolarmente inferiores, esteticamente
questionáveis, economicamente impotentes. Esses são os seres que compartilham o espaço onde a
investigação será feita. Ana (auto-estima da mulher negra). Ana Glória Lemes, aquela puta cubana
que viveu anos e anos nos corredores dos hotéis mais famosos da Gaukurus. Ela, aquela mulher
que adoeceu e enlouqueceu de tanto se prostituir. Dizem que seu fantasma ainda passeia aos
prantos naqueles hotéis.

11 Leitura e conversa entre o grupo sobre qualquer livro de David Tierro em que sua relação com as putas cubanas é mencionada.

155
Aforismas Geradores

156

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