Alexander Soljenítsin - O Erro Do Ocidente

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44-Vietna.me-Na:s Duas Ma.rgens do Inferno, Michêle Ray.

45- Situa.ção da. Arte (organização de Eduarda Dionisio, Almeida


Faria. e Luis Salgado de Matos).
46 - Ma.o Tsé-tung, Stuart Schram.
47 - Sttua.ç5es I, Jean-Paul Sartre.
48-Situa.ções II, Jean-Paul Sartre.
49 -Ho Chi Minh, Jean Le.couture.
50- O Maca.co Nu, Desmond Morrls.
51-A Vida. e os Homens, Ilya Ehrenbourg.
52 -História. da. Bomba. Atómica., Leandro Castella.ni e Luciano Gigante.
53-América. em Fogo, James Hepburn.
54-A Conquista. d.a. Lua., Peter Ryan.
55-Lisboa., Uma. Cida.ãe em Tra.nforma.çflo, Keil Amaral.
56- O Zoo Ruma.no, Desmond Morr!s.
57- O Livro Negro da. Dita.dura. Grega..
58-A Revolução Cultura.l Chinesa, Alberto Mora.via.
59-A Ba.ta.lha. d.o Silêncio, Vercors.
60- Os «Hippies».
61-Anatomia. d.a. Nova. Europa., Anthony Sampson.
62 - O Ca.lvário, Péricles Korovessis.
63- O Ma.ca.co Louco, Albert Szenti-Gyõrgyi.
64-Socia.lismo Africano, Eduardo dos Santos.
65-A Biologia. d.a. Arte, Desmond Morris.
66- Coordena.das d.a. Educação Perma.nente, Pedro Morais Barbosa.
67 -Situações III, Jean-Paul Sartre.
68-Do Livro cl Leitura., José Palla e Carmo.
69- Situa.ções IV, Jean-Paul Sartre.
70 - O Mila.gre Económico Ja.ponês-1950-197 0, Hubert Brochier.
71 - O Acaso e a. Necessida.ãe, Jacques Monod.
72 -O Hipnotismo, Karl Weissmann.
73-Homens e Ma.ca.cos, Ramon& e Desmond Morris.
74-Brasil-Mundo em Construção, A. Sebastião Gonçalves.
75- Os Cinco Comunismos, Gilles Martinet.
76-Pa.nfa.mon - Os Ca.ça.ãores de Cabeças, Jean-Yves Domalain.
77-A República. Espa.nhola. e a. Guerra. Civil-1931-1939 Cvol. I),
Gabriel Jackson.
78-A República Espa.nhola. e a Guerra. Civil-1931-1939 (vol. II),
Gabriel Jackson.
79-Reprodução d.as Espécies, Desmond Morris.
80 - O Perigo America.no, Christian Goux e Jean-François Landeau.
81 - O Surrea.lismo na. Poesia. Portuguesa., Natália Correia.
82 -A Unida.de da. Oposição à Dita.dura. (1928-1931), coordenação de
A. H. de Oliveira Marques.
83-A Primeira Legisla.tura. d.o Esta.do Novo (1935-1938), coordenação
de A. H. de Oliveira Marques.
84-o Novo Jogo do Petróleo, Jean-Marie Chevalier.
85- o Poder ela. Informa.ção, Jean-Louis Servan-Schreiber.
86- Sobreviver, Dougal Robertson.
87-Júlio Dinis, organização de Liberto Cruz.
88-0 Segundo Governo de Afonso Costa. (1915-1916), coordenação
de A. H. de Oliveira Marques.
89-Antologia. da Historiogra.Jia. Portuguesa. (vol. I), organização de
A. H. de Oliveira Marques.
90-A Intervenção America.na. no Chile, Armando Uribe.
91- Crescimento Zero?, Alfred Sauvy.
92 -Antologia. da Historiografia. Portuguesa. Cvol. II), organização de
A. H. de Oliveira Marques.
93-O Que Eu Sei de Solfenitsine, Pierre Daix.
94- Diário de Um Resistente, Mik.is Theodorakis.
95-Mais além com ... (entrevistas de L'Er:press com várias personali­
dades).
96 -As Democracias Populares (vol. I-A Era de Estaline), François
Fejtõ.
97 - As Democracias Populares ( vol. II - Depois de Estaline), François
Fejtõ.
98 -A Empresa na União Soviética, Erik Egnell e Michel Peissik.
99-Amanhã, a Espanha, Santiago Carrillo.
100-Liberdade e Ordem Social (conferências e debates dos XXI En-
contros Internacionais de Genebra).
101-1. T. T.-O Estado Soberano, Anthony Sa.mpson.
102- Confesso Que Vivi, Pablo Neruda.
103- Relatório Simon - O Comportamento Sexual dos Franceses, Pierre
Simon.
104- A China, Outro Modo de Viver, Wilfred Burchett.
105 -Depoimento Inacabado - Memórias, Vasco da Ga.ma Fernandes.
106- Cultura e Dimensões Políticas, Mikis Theodorak.is.
107- Uri Geller-Crónica de Um Enigma, Andrija Puharich.
108- Operação «Ogro» - Como e Porquê Matámos Ca"ero Blanco,
Julen Agirre.
109- História da Repressão Sexual, Jos van Ussel.
110- Situações VI-Problemas do Marxismo, 1, Jean-Paul Sartre.
111-0 Berço da Europa-História dos Etruscos, Wemer Keller.
112 - Os Charlatães da Nova Pedagogia, Lucien Morin.
113-Situações VII-Problemas do Marxismo, 2, Jean-Paul Sartre.
114-0 Conflito China- U. R. S. S. (vol. I-Da Aliança ao Confltto),
François FeJtõ.
115- O Conflito China - U. R. S. s. (vol. II-A China perante Dois
Inimigos), François Fejtõ.
116- A Convivencialidade, Ivan Illich.
117 - Sexualidade e Feminilidade - Novas Perspectivas, B. Muldworf.
118-A Liga de Paris e a Ditadura Milttar (1927-1928), organização de
A. H. de Oliveira Marques.
119- Cristãos e Comunistas, vários.
120-A Energia Sexual, Robert S. de Roop.
121- Economia do Bem-Estar e Economia Socialista, Maurice Dobb.
122-As Lutas de Classes na U. R. S. S., Charles Bettelheim.
123-A Longa Marcha, Claude Hudelot.
124-A Escola e a Repressão dos Nossos Filhos, vários.
125 -o Estalinismo - História do Fenómeno Estaliniano, Jean
Elleinstein.
126- Os Partidos Comunistas da Europa Ocidental, Neil Mcinnes.
127 - Os Poderes do Sobrenatural, Robert Tocquet.
128-A Democracia Socialista, Roy Medvdev.
129-A Economia do Diabo, Alfred Sauvy.
130-O Socialismo do Silêncio, Pierre Daix.
131-A Doença Conjugal, Dr. Gilbert Tordjman.
132- Pedagogia e Educadores Socialistas, Émile Chanel.
133-Fui Traficante de Feras, Jean-Yves Domalain.
134-Diário- Vol. II (1972-1976), João Palma-Ferreira.
135-Suécia - O Rosto da Social-Democracia, Guy de Faramond.
136- A Neurose Cristã, Dr. Pierre Solignac.
137- Documentos - Discursos - Mensagens, Josip Broz Tito.
138- Nas Trevas da Longa Noite, Manuel Firmo.
139-A Economia Obediente, Georges Sokoloff.
140- Os Ru,sos, Hedrick Smith.
141 - Vtda Ignorada de Camões, José Hermano Saraiva.
142 -As Lutas de Classes na U. R. S. S. -2 . 0 Período: 192 3-1930, Charles
Bettelhelm.
143-A Mulher Homossexual, Maria Lago - Dr.• France Paramelle.
144-Medicina Liberal ou Nacionalizada?, Guy-Plerre Cabanel.
145-O Que t; o Mercado Comum, João Ribeiro Ferraz.
146-As Vias da Democracia na Socieda,d,e Socialista, Edvard KardelJ.
147 - A GTaJologia - Método de Exploração Pstcológica, Suzanne Bresard.
148-Acreditei na Manhã, Pierre Da!x.
149-As Forças Armadas e as Crises Nacionais -A Abrilada de 1961,
Fernando Valença.
150-Freud-Introdução à Psicanálise, Octave Mannoni.
151-Os Sindicatos Americanos - Conflito ou Cumplicidade?, Jean Pierre
Cot e Jean-Pierre Mounier.
152 - Trabalhos Parlamentares, Vasco da Gama Fernandes.
153- Um Profecto para Portugal, Vitorino Magalhães Godinho.
154-História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Por-
tugal - I. Cronologia, Carlos da Fonseca.
155 - A U. R. S. S. e Nós, vários.
156-Raul Proença e a «Alma Nacional», Fernando Piteira Santos.
157- História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Por­
tugal - II. Os Primeiros Congressos Operários (1885-1894), Carlos
da Fonseca.
158 -Tudo ou quase sobre Economia, J. K. Galbraith e Nicole Salinger.
159- Nasci para Nascer, Pablo Neruda.
160-Quando Falar e Escrever Era Perigoso (Antes do 25 de Abril), José
Magalhães Godinho.
161-Dois Comunistas na União Soviética ou a U. R. S. S. do Outro Lado
do Espelho, Nina e Jean Kéhayan.
162 - Portugal e a G-uerra Civil de Espanha, Iva Delgado.
163-A Sua Imagem - O Primeiro Clone Humano?, David M. Rorvik.
164- Vodlca,.Cola, Charles Levison.
165-Viver sem Petróleo, J. A. Grégoire.
166 - Sete Sindicalismos, Gilles Mart!net.
167-História do Movimento Operário e das Ideias Socialistas em Por­
tugal-III. O Operariado e a Igreja Milttante, Carlos da Fon­
seca.
168-Htstória do Movimento Operário- IV. Greves e Agitação Operária,
Carlos da Fonseca.
169-Amanhã, o Capitalismo, Henr.1 Lepage.
170-O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto, John M. Allegro.
171- O Segredo do 25 de Novembro, José Freire Antunes.
172 - A Informatização da Sociedade, Simon Nora e Alain Mine.
173-Os Gestos - Suas Origens e Significado, vários.
174 - O Erro do Ocidente, Alexandre Soljenitsine.
Do mesmo autor:
Na Col. «Livros de Bolso Europa-América.:
N. 0 33 - Um Dia na Vida de Ivan Denisovich

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O erro do Ocidente
Título original: L'erreur de l'Occident
Tradução de Maria da. GTa.ça F. Oltveira
Capa: estúdios P. E. A.
© 1980, by Alexander Solschenizyn
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lha.s antolôgica.s ou similares donde resulte pre­
tuiso para o tnteresse pela obra. Os transgres­
sores sã,o pa.ssíveis de procedimento iudtctal

Editor: Francisco Lyon de Ca.stro


Edição n.• 4l74/3045
Execuçã,o técnica:
Tipografia. Camões,
Póvoa de Varzim
ALEXANDRE SOLJENITSINE

O ERRO DO OCIDENTE

PUBLICAÇõES EUROPA-AM1l:RICA
tNDICE
Pig.
I - O comunismo: quando é que se compreenderá
o que salta aos olhos? ........ . . . . ............ 13
II - O perigo que o Ocidente corre pela sua igno-
rância acerca da Rússia ........... ............ 25
Dois erros acerca do comunismo ......... 27
A Rússia e a U. R. S. S. .................... 28
A incompreensão dos especialistas ..... .. 30
A incompreensão dos informadores ....... 39
A Rússia derrubada ... .... ................. 47
Quando o comunismo utiliza o naciona-
lismo como montada ................... 52
Um rosário de erros ........................ 57
A minha tentativa de endereçar uma
«Carta aos Dirigentes> ............... 65
Esclarecer ideias ............................. 71
A penúltima linha ......... . ................. 76
Apindice
Comentários e correspondincia .................. 81
O comunismo e a Rússia . .. ........ .. .. ... 81
O Sr. Soljenitsine e os seus críticos ............ 94
A coragem de ver ........................... J 10
I

O COMUNISMO:
QUANDO É QUE SE COMPREENDERÁ
O QUE SALTA AOS OLHOS?
Os erros fatais que o Ocidente tem cometido no seu
comportamento em relação ao comunismo começaram em
1918, quando os governos ocidentais não foram capazes
de ver o perigo mortal que para eles o mesmo representava.
Na Rússia, todas as forças que até aí se haviam · defron­
tado - os apoios do Estado iam até aos cadetes e aos
socialistas da direita - se uniram então, a fim de faze­
rem frente ao comunismo. Sem se alistar nas suas fileiras,
nem na sua acção, foi através de milhares de revoltas de
camponeses e de dezenas de motins de operários que todo o
povo manifestou a sua oposição. Para formar o Exército
Vermelho foi necessário fuzilar milhares de refractários.
Mas esta resistência nacional ao comunismo não encontrou
o apoio dos governos ocidentais. Nessa época circulavam
pelo Ocidente inteiro maravilhosos contos cor-de,.rosa e a
opinião pública «progressista» saudou calorosamente o des­
pontar do regime comunista, apesar do genocídio cam­
bojano, que já desde 1921 se perpetrava em trinta provín­
cias da Rússia. (Durante a vida do próprio Lenine não
foram massacrados menos inocentes entre a população civil
do que durante a de Hitler, e, no entanto, os intelectuais
ocidentais, que actualmente dão a Hitler o título de o maior
facínora da história, consideram Lenine benfeitor da huma­
nidade.) As potências ocidentais acotovelaram-se a fim de
darem ajuda económica e apoio diplomático ao regime
soviético, que, sem esse auxílio, não teria conseguido sobre­
viver. Enquanto seis milhões de pessoas morriam de fome
na Ucrânia e no Cubão, a Europa dançava.

15
ALEXANDRE SOLJENITSINE

O que este regime tão elogiado realmente vale viu-o o


mundo inteiro em 194 1 : do Báltico até ao mar Negro, o
Exército Vermelho, mais numeroso e equipado de uma boa
artilharia, deixou-se arrastar como uma simples palha. Nem
a Rússia, durante os mil anos da sua existência, nem a
história militar da humanidade haviam alguma vez presen­
ciado tal retirada. No espaço de alguns meses, cerca de
três milhões de combatentes renderam-se ao inimigo! Isso
demonstrava à evidência que o nosso povo exigia a queda
do comunismo - e o Ocidente não poderia ter deixado de
compreender esse facto se, ao menos, tivesse consentido
em vê-lo. Mas, na sua miopia, pensou que todas as ameaças
se concentravam em Hitler e que bastaria derrubá-lo para
que nenhum outro perigo ficasse à face da Terra. E, com
todas as suas forças, ajudou Estaline a selar o cavalo do
espírito nacional, imediatamente montado pelo poder comu­
nista. Assim, não foi a liberdade de todos que o Ocidente
defendeu durante a segunda guerra mundial, mas unica­
mente a sua. E, no fim da guerra, entregou à vingança
de Estaline divisões russas, batalhões de tártaros e cauca­
sianos e centenas de milhares de prisioneiros de guerra e
de trabalhadores deportados, de velhos, mulheres e crianças
que não queriam voltar a ficar sob o seu jugo - entrega
essa que foi levada a cabo através de métodos fascisto­
-comunistas: viram-se soldados britânicos atravessar com
as suas baionetas e com as suas balas os cossacos, seus
antigos aliados da primeira guerra mundial, com o único
objectivo de comprar a amizade de Estaline. E Estaline,
que manipulava Roosevelt como um fantoche, não teve
nenhuma dificuldade em alcançar o domínio da Europa
oriental: Ialta inaugurou a série das cedências americanas
ao longo destes últimos trinta e cinco anos, no decorrer
dos quais Berlim Ocidental e a Coreia não foram senão
breves interrupções (a resistência ia alastrando e ganhando
força). Como já tenho dito, o período que vai de 1 945 a

16
O ERRO DO OCIDENTE

1975 é como uma nova guerra mundial que o Ocidente


desta vez perdeu, visto que, sem lutar e sem tentar defen­
der-se, abandonou nas mãos do comunismo cerca de vinte
países.
Essas capitulações tiveram uma causa dupla. Em pri­
meiro lugar, a debilidade espiritual inerente a todo o bem­
-estar que receia ser perturbado. Mas também, e do mesmo
modo, uma total incompreensão do carácter irredutível e
mortalmente pernicioso do comunismo, que constitui um
perigo idêntico para todos os países. Explica-se esse fenó­
meno, o comunismo do século xx, através de tendências
incorrigíveis e próprias da nação russa: com efeito, esse
ponto de vista é racista. (E a China? E o Vietname? E Cuba?
E a Etiópia? Ou pura e simplesmente Georges Marchais?)
Procura-se a raiz do mal em todo o lado, excepto no pró­
prio comunismo. A sua agressividade é atribuída (por Har­
riman) ao medo de se ser atacado - como se isso justi­
ficasse uma acumulação tão grande de armamento e o
domínio sobre outros países! Os diplomatas ocidentais fazem
débeis cálculos sobre imaginárias alas de «direita» ou de
«esquerda» existentes no seio do Politburo, cujos membros,
afinal, estão todos de acordo quanto à estratégia da con­
quista mundial e todos, também, são pouco delicados na
escolha dos seus métodos. Se há lutas no seio do Politburo,
não passam do nível pessoal, e em caso algum saberiam
ser exploradas pela diplomacia. O cidadão soviético médio,
privado da nossa informação à escala mundial e dos nossos
trabalhos de sovietologia, sabe-o perfeitamente. E os pas­
tores analfabetos afegãos também já não se deixam enganar:
de facto, queimam retratos de Marx e de Lenine e não
aceitam a explicação de terem sido invadidos unicamente
por causa da doença de Brejnev. (Os cidadãos ocidentais
médios que não perderam a razão também compreendem a
natureza do comunismo, melhor do que os jornalistas e os
especialistas neste assunto.)

17
Est. Doe. - 174-2
A LEXANDRE SOLJENITSINE

Pergunte-se a um tumor canceroso porque é que ele


cresce. É muito simples: não pode proceder de outro modo.
O mesmo se passa com o comunismo: não pode deixar de
se apoderar de novos países, dominado como está pelo seu
instinto pernicioso - não pela razão - de conquistar o
mundo inteiro. O comunismo é o aparecimento de uma
qualidade nova, até aqui desconhecida na história do mundo,
de maneira que de nada serve procurar analogias. Mas
todos os avisos dirigidos ao Ocidente acerca do carácter
cruel e insaciável do poder comunista continuam a ser letra
morta: não se quer acreditar, porque é demasiado aterra­
dor. (Tomemos o Afeganistão em consideração: não é ver­
dade que a tragédia já ocorreu há dois anos? Mas o Oci­
dente fechou os olhos e contemporizou tanto quanto pôde -
em nome de um fantasma chamado détente). Há dezenas
de anos que nos entrincheiramos atrás da «coexistência
pacífica> , da détente, das «intenções pacíficas dos diri­
gentes do Kremlin> - enquanto o comunismo engole países
uns atrás dos outros e aperfeiçoa os seus foguetões. E o
mais espantoso de tudo isto é que, durante dezenas de
anos (até ao dia em que começaram a agir de um modo
mais inteligente), os comunistas proclamaram alto e bom
som, sem o esconderem, que o seu objectivo era aniquilar
o mundo burguês - a que o Ocidente se contentou em res­
ponder, sorrindo: «Piada de extremistas!>
Porém, a história da U. R. S. S. já demonstrou o que
significa aniquilar uma classe: é o mesmo que dizer exter­
minar os dez ou quinze milhões de pessoas que constituem
essa classe. E a mão dos comunistas nunca vacilou. Tam­
bém é o mesmo que dizer mandar um povo inteiro para o
deserto em vinte e quatro horas. Só aniquilando a própria
base da vida de um país é que o comunismo consegue pôr
em prática os seus «ideais> . E quem compreende isso não
acredita que o comunismo chinês seja mais pacífico do que
o soviético (os dentes é que ainda não lhe nasceram), nem

18
O ERRO DO OCIDENTE

que o comunismo de Tito seja bom: também este foi cons­


truído sobre um magma sangrento, sobre massacres - só
que o Ocidente, por ser de nervos fracos, preferiu não
tomar conhecimento de nada durante 1943- 1 945. E quem
compreende isso também não pergunta se as ajudas inter­
nacionais chegam ou não aos Cambojanos, que agonizam.
sob o domínio dos homens de Samrin: está claro que não,
que não chegam até eles, que tudo é confiscado pelo exér­
cito e pelo Estado, e que a população bem pode morrer.
Toda esta farsa que é a détente serve ao comunismo
num ponto: reforçar-se graças ao dinheiro do Ocidente
(os empréstimos nunca serão reembolsados) e à sua técnica,
antes de se lançar na grande ofensiva seguinte. O comunismo
demonstra uma solidez e longevidade maiores do que o
nazismo; é mais subtil e mais inteligente na sua propaganda
e sabe desempenhar comédias como esta.
O comunismo jamais mudará de género e jamais tam­
bém deixará de colocar a humanidade perante uma ameaça
de morte. É como uma infecção no organismo do mundo:
por muito que se esconda, a doença acabará fatalmente por
aparecer. E de nada servirá agarrar-se à ilusão de que pos­
sam existir países imunizados contra o comunismo: qualquer
país livre, seja ele qual for, pode ver-se condenado a perder
a sua consciência e a submeter-se-lhe por completo.
E, no entanto, a todo o momento aparecem médicos
que, acerca desta doença tão contagiosa que é o comu­
nismo, fazem o seguinte diagnóstico tranquilizador: «Não é
doença que se pegue, é um mal hereditário dos Russos e
nunca se nos há-de transmitir. » E eis o tratamento pre­
conizado: acima de tudo, nunca irritar o regime de Brejnev!
Pelo contrário, o que é preciso é sustentá-lo e abastecê-lo.
Em contrapartida, merece ódio e resistência todo e qualquer
ressurgimento da consciência nacional russa, isto é, da única
coisa que, de facto, enfraquece o comunismo tusso no seu
interior! É toda uma campanha, metódica, levada a cabo por

19
ALEXANDRE SOUENITSINE

universitários e jornalistas ocidentais conhecidos e por um


grupo ·de pessoas recentemente emigradas da União Sovié­
tica, fornecendo informações parciais e irresponsáveis. Pro­
paganda insensata para o Ocidente, que por ela é desarmado.
·Depois de as forças nacionais do nosso país terem sido
traídas pela primeira vez pelo Ocidente durante a guerra civil
e, pela segunda, na segunda guerra mundial, eis que se incita
abertamente a cometer a mesma traição pela terceira vez! Tal
conselho, pernicioso como é para o povo russo e para os
outros povos da U. R. S. S., não o é menos para o Ocidente:
motivará a nossa perdição, mas também a vossa! Hoje em
dia, a corja dirigente comunista, com a sua ideologia deca­
dente, tem de novo o sonho de utilizar o nacionalismo russo
como montada para alcançar os seus objectivos imperialistas;
e eis que mãos ocidentais põem o cavalo debaixo do cava­
leiro, sem sequer darem ao primeiro a mínima hipótese de
escolha, nem a mais pequena esperança.
O comunismo é inimigo de todas as nacionalidades e a
todas aniquila. Durante muito tempo, o movimento antimi­
litarista americano acalentou a esperança de que no Vietname
do Norte o nacionalismo e o comunismo viviam em har­
monia e que o comunismo se preocupava com a autodeter­
minação nacional do seu povo querido. Porém, a flotilha
da morte das embarcações vietnamesas no oceano, mesmo
descontando a parte que não se afundou, acabou por mos­
trar, se não aos militantes mais ardentes desse movimento,
pelo menos a alguns deles, de que lado está (e nunca deixou
de estar) a consciência nacional. E o pungente sofrimento
de milhões de cambojanos agonizantes (aos quais o mundo
já se habituou) demonstram a mesma coisa de forma ainda
mais gritante. Do mesmo modo na Polónia: uns dias de
oração com o papa, e só os cegos não conseguiram ver
onde estava o povo e onde estava o comunismo. E os revol­
tosos de Budapeste. E os Alemães de Leste, que têm razões
para ir morrer junto do Muro de Berlim. E os Chineses,

20
O ERRO DO OCIDENTE

para, em frente a Hong-Kong, atravessarem o mar infestado


de tubarões. A China: o país que mais esconde os seus
segredos - e eis que o Ocidente se apressa a acreditar, pelo
menos, nesse comunismo «bom> e «pacífico> . Só que é sem­
pre o mesmo abismo que separa o Governo chinês do seu
povo.
Esta relação é a mesma que a consciência nacional russa
tem com o comunismo. O Ocidente - com indüerença,
mas para nossa grande amargura - confunde os termos
«russo> e «soviético> , «Rússia> e «U. R. S. s.,, , muito em­
bora aplicar os primeiros aos segundos seja o mesmo que
conceder ao assassino o direito de usar a roupa e a identi­
dade da sua vítima. É um erro irreflectido considerar os
Russos da U. R. S. S. como «nação dominante> . Não o são,
certamente. Os Russos sofreram o primeiro golpe devastador
no tempo de Lenine; desde então, fizeram-se milhões de
mortos (e o que é pior ainda: assassinados de modo selectivo,
devido à sua elevada qualidade, em relação aos outros),
mesmo antes desse genocídio que foi a colectivização. Foi
a partir de então que toda a história russa começou a ficar
conspurcada, que a Igreja e a cultura foram esmagadas e
que religiosos, nobres, negociantes, e, dentro de pouco
tempo também, o campesinato, foram aniquilados. Seguida­
mente, outros povos sofreram também golpes desses; mas
ainda hoje são as regiões rurais da Rússia que têm o nível
de vida mais baixo em toda a U. R. S. S., sendo as cidades
de província as que possuem os mais baixos índices de
abastecimento. Em vastas regiões do nosso país não há nada
para comer e as importações de cereais americanos em nada
beneficiaram o povo em geral (os cereais são guardados em
silos de reserva para serem usados em caso de mobilização).
Os Russos constituem a massa principal dos escravos deste
Estado. O povo russo está extenuado, em via de degenera­
ção biológica, e a sua consciência nacional aviltada e esma­
gada. Hoje em dia, a alma do povo russo não pode estar

21
A LEXANDRE SOLJENITSINE

mais longe do nacionalismo militante e o imperialismo re­


pugna-lhe. Mas o Governo comunista vigia atentamente o
seu escravo e, acima de tudo, reprime nele as tomadas de
consciência não comunista: essa a razão por que envia para
apodrecer nos campos os militantes pensadores-livres (Ogurtsov
por vinte anos, Ossipov por dezasseis, Orlov por sete), por
que são novamente presos os padres educadores do povo
(o P.• Gleb Iakunine, o P.ª Dimitri Dudko), por que são
dissolvidas todas as inofensivas comissões para a defesa
dos crentes e comunidades de jovens cristãos e, finalmente,
por que se enviou para o exílio o académico Sakharov.
Na expectativa da terceira guerra mundial, o Ocidente,
procurando encontrar um novo abrigo, achou um aliado: a
China comunista! Novamente a traição: não só a Taiwan,
mas a todo o povo chinês oprimido, pois é ele que é
oferecido como montada ao cavaleiro comunista. Política
louca e suicida: uma vez armada a China e o seu bilião de
homens, a U. R. S. S. será vencida; porém, nada mais à
face da Terra terá poder para fazer parar a China comunista
na sua marcha para dominar o mundo.
O comunismo só se detém quando encontra uma muralha
feita de uma vontade inquebrantável. E o Ocidente não pode
deixar de construir esse muralha no extremo que ainda lhe
pertence. Entretanto, desde a segunda guerra mundial, vinte
aliados possíveis foram entregues ao poder comunista. Entre­
tanto, foi a vossa tecnologia que fez desenvolver o aterrador
poderio militar do comunismo. A muralha apenas pode ser
edificada a partir das forças que restam. É às gerações
actuais do Ocidente que competirá formar essa barreira na
estrada onde os seus antepassados tão depressa recuaram
durante sessenta anos.
Mas chamem para o vosso lado todos os povos domina­
dos! O povo russo, todos os povos da U. R. S. S., o povo
chinês, o povo de Cuba. Só pensando nessa aliança e nessa
ajuda é que a estratégia do Ocidente tem hipóteses de ser

22
O ERRO DO OCIDENTE

bem sucedida. Só a seu lado é que sereis a força decisiva do


mundo. Também é uma questão de princípio: para quem
não se contenta em defender a sua própria liberdade, mas
também se preocupa com a do mundo inteiro, não há outra
via.
É evidente que isso vai exigir dos vossos políticos, dos
vossos diplomatas e dos vossos militares uma reconversão
radical: dos seus conceitos, dos seus métodos e das suas
tãcticas actuais.
Hã cinco anos, os meios governamentais do Ocidente
não fizeram caso dos meus avisos. Os vossos dirigentes são
livres de fazer o mesmo com os que hoje aqui lanço. Mas
também isto se há-de concretizar.

Vermont, Janeiro de 1980 1 •

(Traduzido do russo
por Genevieve e José Johannet.)

1 Este artigo, publicado nos E. U. A pela revista Time, em


Fevereiro de 1980, foi parcialmente reproduzido em França por
L'Express. (N. da ed. fr.)

23
II

O PERIGO QUE O OCIDENTE CORRE


PELA SUA IGNORÂNCIA
ACERCA DA RúSSIA
II

O PERIGO QUE O OCIDENTE CORRE


PELA SUA IGNORÂNCIA
ACERCA DA RúSSIA
Dois erros acerca do comunismo

Aqueles cujas ilusões não os tomaram irremediavel­


mente cegos hão-de reconhecer que, hoje em dia, o Ocidente
se encontra numa situação crítica, até mesmo sob a ameaça
de um perigo de morte. Podem-se dar inúmeras explicações
parciais, enumerar as etapas sucessivas que, ao longo de
sessenta anos, levaram a sua situação dessas, mas a verda­
deira razão é esta: a recusa obstinada em tomar em consi­
deração a autêntica natureza do comunismo.
Não falo dos que ainda hoje amam, glorificam e apoiam
o comunismo. O meu artigo não lhes é dirigido, como é
evidente. Mas, entre os que sabem que o comunismo é um
perigo para o mundo, muita gente há que continua a não
ver o seu carácter irredutível. E entre esses há os que
ocupam lugares influentes como conselheiros ou dirigentes
políticos e, novamente, como se tal não tivesse qualquer
importância, cometem erros de avaliação, que, inevitavel­
mente, acabarão por se reflectir no futuro, e de maneira
mortal.
Dois desses erros estão especialmente difundidos. O pri­
meiro consiste em não compreender que, na sua globalidade,
o comunismo é hostil a tudo o que é humano; que é incurá­
vel, que dele não há formas benignas e que não pode
melhorar. Que a sua ideologia apenas pode subsistir quando
apoiada no terror. Que, em consequência, neste planeta, é
impossível conviver com ele e que, minando a humanidade
como o cancro, acabará por a matar; ou, então, que esta

27
ALEXANDRE SOLJENITSINE

terá de se livrar dele, apenas com o inconveniente de, em


seguida, fazer um longo tratamento para curar as metástases.
O segundo erro não é menos vulgar: confundir este mal
universal que é o comunismo com o primeiro país por ele
conquistado: a Rússia. Este erro confere outro significado à
ameaça, impede o prosseguimento de uma linha de acção
justa e, assim, desarma o Ocidente. Esta falta de compreen­
são torna-se dramática e constitui uma ameaça para todos
os povos, ameaça essa que não é nem mais nem menos
remota para os Americanos do que para os Russos. Mas
nem é preciso esperar pelas novas gerações, nem que se
erga um número suficiente de vozes que o «reconheçam»,
para «amaldiçoar» os que incutiram esse erro nas pessoas.
Nos meus artigos e nos meus discursos falei sobretudo
do primeiro erro, o que me valeu a desconfiança do Oci­
dente; no entanto, parece que, com o tempo, e com a ajuda
da experiência, as minhas opiniões têm vindo a conquistar
uma adesão maior.
Este texto foca, sobretudo, o segundo erro.

A Rússia e a U. R. S. S.

Em primeiro lugar, usa-se a palavra «Rússia» a torto e


a direito: diz-se «Rússia» por «U. R. S. S.» e «russos» por
«soviéticos» , conferindo sempre uma certa superioridade
emocional aos segundos ( «os blindados russos entraram em
Praga», «o imperialismo russo» , mas: «as explorações sovié­
ticas no cosmo» , «os êxitos do ballet soviético»). Ora, im­
porta estabelecer uma distinção muito nítida entre estes
dois conceitos, não apenas opostos, mas inimigos um do
outro. A relação existente entre eles assemelha-se àquela
que liga um homem à sua doença. Não confundimos o

28
O ERRO DO OCIDENTE

homem com o seu mal, não lhe damos o nome da sua


doença, nem o culpamos de a ter! Ao Estado, como enti­
dade actuante, ao país, com o seu governo, a sua política
e o seu exército, não se pode chamar Rússia desde 19 17.
É ilegítimo aplicar a palavra «russo» ao actual governo da
U. R. S. S., aos seus próximos êxitos militares e ao poder
que virá a implantar nos quatro cantos do mundo, mesmo
que o russo continue a ser a sua língua oficial. É, aliâs, o
que também se passa em relação à China e ao Vietname,
com a única excepção de que estes países não forjaram a
palavra «soviético» . Recentemente, um diplomata americano
exclamou: «Que o coração russo de Brejnev consiga bater
ajudado por um estimulador americano. » Mas, em vez disso,
deveria dizer «o coração soviético» . Não é só a origem que
determina a que pâtria se pertence, mas também o entu­
siasmo e a dedicação demonstrados. O coração de Brejnev,
que sacrifica o seu povo a aventuras internacionais, não é
o coração de um russo. Toda a actividade dos dirigentes
comunistas, que de hâ sessenta anos a esta parte consiste
em aniquilar a vida nacional, destruir a sua natureza, demo­
lir os santuârios e os monumentos nacionais, conservar o
povo na fome e na miséria, mostra que são estrangeiros em
relação ao seu povo e indiferentes ao seu sofrimento. (Quer
se trate do feroz khmer vermelho, do burocrata polaco edu­
cado por uma mãe católica, do jovem comunista chinês
vigilante de coolies 1 esfomeados, ou ainda deste Marchais
marcescente, de tendência pró-moscovita, todos eles, tor­
nando-se alheios ao que é humano, viram as costas à sua
própria nação.)
A palavra «Rússia» apenas pode ser hoje utilizada para
designar um povo subjugado e completamente privado da
possibilidade de agir; uma cultura, uma religião, uma cons-

1 Trabalhadores hindus ou chineses assalariados. (N. da T.)

29
ALEXANDRE SOLJENITSINE

ciência nacional reprimidas; ou, então, o seu futuro, o dia


em que for libertado do comunismo.
Quando, nos anos 20, a sociedade ocidental se extasiava
perante o comunismo, não fazia nenhuma confusão: ao que
ela admirava chamava, e bem, «soviético> . Nos anos trá­
gicos da segunda guerra mundial, os dois conceitos confun­
diram-se aos olhos do mundo (erro cruel esse, do qual
falarei mais adiante). Desde a época da guerra fria, a
palavra «russo> ficou manchada pela desconfiança, e esse
efeito ainda se faz sentir actualmente: durante estes últimos
anos, novas e violentas acusações têm sido lançadas contra
o que é «russo> .

A incompreensão dos especialistas

Para compreender a história da Rússia e da U. R. S. S.


contemporânea, o leitor ocidental colhe as suas informa­
ções, essencialmente, nas seguintes fontes: intelectuais oci­
dentais, historiadores e eslavistas; diplomatas e correspon­
dentes ocidentais em Moscovo; emigrantes recentes, vindos
da U. R. S. S. (Não cito as publicações soviéticas utilizadas
na propaganda, pouco dignas de confiança, nem as impres­
sões dos turistas, ainda mais superficiais, visto serem o
resultado dos métodos aperfeiçoados da Intourist.)
A ciência histórica ocidental deveria ter podido desen­
volver-se sem entraves e livre de todo o preconceito. Ora,
perante a insuficiência e as deformações das fontes sovié­
ticas, ela acaba, muitas vezes, por se encontrar, sem o
saber, colocada em carris que a obrigam a seguir a ciência
soviética oficial. Está convicta de utilizar uma via indepen­
dente, mas, involuntariamente, retoma a problemática, até
por vezes a metodologia, da ciência soviética e, seguindo-lhe

30
O ERRO DO OCIDENTE

o exemplo, põe completamente de lado as zonas sombrias


ou os domínios ocultos. Basta citar um exemplo: a pró­
pria existência do arquipélago de Gulag, a sua crueldade
desumana, a sua extensão, a sua duração, o seu índice de
mortalidade, não eram, até muito recentemente, admitidos
pelos especialistas ocidentais. Ainda outro exemplo: a força
da resistência espontânea ao comunismo manifestada pelo
nosso povo no período compreendido entre 1 9 1 8 e 1 922
não foi considerada digna de referência pelos historiadores
ocidentais; e, se o foi, apenas para ser apelidada (de acordo
com os comunistas) de «banditismo> (por M. Levine, entre
outros). A apreciação global da história soviética ressente-se
sempre da admiração entusiasta que a «aurora da vida
nova� suscitou na época em que o terror de 1 9 17- 192 1 dizi­
mava populações inteiras. Ainda hoje, nos trabalhos de
professores ocidentais, se encontram, utilizadas com a maior
seriedade, expressões como «ideais da Revolução> , muito
embora esses mesmos «ideais> tenham custado milhões de
mortes, logo desde os seus primeiros passos. Também a
história profunda da Rússia foi deformada no Ocidente
pelo radicalismo de uma mentalidade partidária. Nestes últi­
mos anos, a historiografia americana, por exemplo, continua
dominada pela interpretação mais fácil e mais simplista: os
acontecimentos únicos, sucedidos no século xx na Rúsisa,
e depois noutros países, não são explicados pela especifici­
dade do fenómeno comunista, inédito na história da huma­
nidade, mas reduzido às características específicas da nação
russa, no período compreendido entre os séculos x e XVI
(interpretação marcadamente racista) . Os acontecimentos do
século xx são explicados por analogias superficiais e des­
providas de fundamento, colhidas nos séculos passados.
Quando o comunismo fazia a admiração de todo o Ocidente,
era celebrado como a aurora insofismável de uma nova
era; mas, quando é condenado, apressam-se a explicá-lo
pelo tradicional servilismo dos Russos.

31
A LEXANDRE SOLJENITSINE

No mundo actual, esta interpretação tem muitos adeptos,


pois muitos lucram com ela: se o comunismo não é, real­
mente, perverso, nem criminoso, se toda a culpa cabe às
tradições da antiga Rússia, então nenhuma ameaça pende
sobre o mundo ocidental; as perspectivas da détente, do
comércio, e até de amizade com os países comunistas, con­
tinuam a ser promissoras e todos os ocidentais têm a
garantia de poder continuar a viver confortavelmente; os
comunistas dos países ocidentais estão acima de qualquer
suspeita e acusação ( «vão criar um comunismo melhor,
excelente�); e assim ficam tranquilizadas as consciências
destes liberais e destes radicais, que, na sua época, tanto
admiraram e tão eficazmente ajudaram este regime san­
guinârio.
Paralelamente, ao interpretarem o passado da Rússia,
os especialistas pertencentes a esta tendência revelam uma
grande desenvoltura. Tomam a liberdade de, arbitraria­
mente, seleccionar fenómenos, acontecimentos e persona­
gens, deixam-se guiar por versões pouco certas, ou até
mesmo falsas, dos factos. Ainda mais impressionante: prati­
camente passam por cima da história espiritual de um país
milenârio, como se ela não tivesse tido nenhuma influência
no curso da história material (método marxista). Quando
se estuda a história e a cultura da China, da Tailândia e de
qualquer país africano, acha-se que, pelo menos, é necessâ­
rio tomar em consideração as suas particularidades. Porém,
no tocante ao cristianismo oriental que a Rússia conheceu
durante mil anos, a maior parte dos investigadores não mos­
tram senão surpresa e desprezo: pois como é que este mundo
estranho, um continente inteiro, nunca se quis vergar perante
as concepções filosóficas do Ocidente, nem seguir-lhe os
passos no seu desenvolvimento social, manifestamente tão
superior? Sem sombra de dúvida, a Rússia estâ condeµada a
tudo o que a diferencia do Ocidente.

32
O ERRO DO OCIDENTE

Na longa série de publicações que desfiguram a face da


Rússia, basta mencionar, como particularmente caracterís­
tico, o livro de Richard Pipes, A Rússia no Antigo Regime 1 •
Pipes não toma em consideração a vida espiritual do povo
russo, a sua visão cristã do mundo, e analisa a história
russa sem se referir nem à ortodoxia, nem aos seus represen­
tantes (no entanto, meditem neste facto: Sérgio de Ra­
donege 2, cuja influência sem par se fez sentir na vida nacio­
nal e espiritual da Rússia durante vários séculos, não é
citado nesse livro uma única vez, ao passo que Nil de la
Sora 3 é descrito de modo ridículo) . Em vez de mostrar o
povo como um organismo vivo, procede como se estivesse
a fazer a autópsia de um cadáver. Pipes dedica apenas um
capítulo à Igreja, que, de resto, considera uma instituição
civil e que interpreta no espírito da propaganda soviética
ateísta. Para ele, este país e este povo não estão suficien­
temente maduros para possuírem uma vida espiritual: desde
o czar até ao camponês, todos são apenas movidos por
cálculos vulgares e materiais. A estrutura temática do livro
impede a exposição sequencial e convincente do curso da
história: as épocas entremeiam-se caoticamente, assim como
os acontecimentos, a que, muitas vezes, não são atribuídas

1 Richard Pipes, Russia under the Old Regime, Charles


Scribner's Sons, Nova Iorque, 1974, 361 pãgs.
2 Sérgio de Radonege ( 1 3 14- 1392), monge e figura central da
Igreja e da cultura russas. Retirou-se para um eremitério, tendo­
-se-lhe reunido inúmeros discípulos: o Mosteiro da Trindade (actual­
mente Laur� da Trindade - S. Sérgio) tomou-se centro de oração
e de civilização, permitindo à Rússia restaurar a sua vida espiritual,
livrar-se do jugo tãrtaro e resistir aos assaltos do Ocidente. (N. da
trad. fr.)
3 S. Nil de la Sora (falecido em 1508), monge do Alto Volga,
adepto da pobreza absoluta (renúncia não só aos bens pessoais, mas
também aos eclesiãsticos), da independência perante o Estado e da
tolerância pelos hereges. (N. da trad. fr.)

33
Est. Doe. - 1 74-3
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

datas. O autor deliberadamente ignora os factos, os perso­


nagens e os aspectos da vida russa que poderiam levantar obs­
tâculos à sua ideia-mestra: segundo ele, toda a história da
Rússia não devia ter qualquer outra finalidade senão a de
conduzir à criação de um regime policial. Apenas regista o
que lhe permite fazer urna descrição desprezível, trocista e,
nitidamente, mal-intencionada da história e do povo russos.
O seu livro permite tirar uma única conclusão: a nação
russa é, essencialmente, anti-humana, durante mil anos não
serviu para nada e, como é evidente, não dâ esperanças
para o futuro. Pipes chega ao cúmulo de atribuir ao impera­
dor Nicolau I a primazia na descoberta mundial do totali­
tarismo. Sem referir o facto de, na realidade, o fenómeno
totalitârio nunca ter existido antes de Lenine, Pipes tem a
erudição suficiente para saber que foi Hobbes quem, pela
primeira vez, propôs no Leviatão, a ideia do totalitarismo
(o chefe do Estado é dono não só dos bens e da vida dos
seus súbditos, mas também da sua consciência). E também
que Rousseau deu o seu contributo ao declarar que o
governo democrâtico exerce soberania absoluta não apenas
sobre os bens, mas também sobre a própria pessoa dos
cidadãos.
Na minha qualidade de escritor, tendo crescido e pas­
sado toda a minha vida mergulhado no oceano da língua
e do folclore russos, fico pai1icularmente surpreendido pelo
método «científico> de um Pipes: dos quarenta mil provér­
bios russos, que, na sua unidade e contradição, são uma
fascinante criação filosófica e literâria, Pipes escolhe apenas
uma meia dúzia que lhe convém (arbitrariamente selecciona­
dos por Gorki) e utiliza-os para «demonstrar» a natureza
cruel e cínica do campesinato russo. O efeito que tal proce­
dimento provocou em mim é, sem dúvida, anâlogo ao que
Rostropovich experimentaria se um lobo se pusesse a arra­
nhar num violoncelo.

34
O ERRO DO OCIDENTE

Os especialistas e jornalistas que pertencem a esta ten­


dência teimam em salientar, nos seus livros e artigos, estes
dois nomes: Ivã, o Terrível, e Pedro, o Grande, a fim de
a eles reduzir, explícita ou implicitamente, todo o signi­
ficado da história russa. Porém, é muito fácil encontrar
dois ou três monarcas não menos cruéis na história inglesa,
na francesa, na espanhola ou na de qualquer outro país,
e, no entanto, ninguém terá a pretensão de reduzir a inter­
pretação global da história de um país a alguns nomes. Dois
monarcas, sejam eles quais forem, jamais poderiam determi­
nar uma história milenar. Mas o refrão continua. Alguns
especialistas recorrem a este processo a fim de demons­
trarem que o comunismo é apenas possível nos países cuja
história tenha sido «viciada» ; e outros para tirar as culpas
ao comunismo e imputarem os erros da sua instauração às
características peculiares da nação russa. Encont-ramos esta
concepção numa série recente de artigos dedicados ao centená­
rio de Estaline (em especial do Prof. Robert Tucker no
New York Times de 21 de Dezembro de 1979).
Sucinto, mas enérgico, o artigo de Tucker causa espanto:
não teria sido escrito há vinte e cinco anos? Como é que
um especialista em ciências políticas ainda pode, actual­
mente, ter ideias tão erradas sobre o fenómeno comunista?
Nele voltamos a encontrar os infalíveis «ideais revolucio­
nários» , que o infame Estaline teria arruinado, visto não
ter ido beber a sua ciência a Marx, mas sim à infame
história russa. O Prof. Tucker apressa-se a salvar o cré­
dito do socialismo ao declarar que Estaline nunca foi um
verdadeiro socialista! A sua acção não foi inspirada pela
teoria de Marx, mas pelo exemplo dos eternos Ivã, o Ter­
rível, e Pedro, o Grande. Toda a época estalinista não
passaria do regresso radical ao tempo dos czares e não seria
a aplicação metódica do marxismo às realidades do mundo
contemporâneo. Estaline teria arruinado o bolchevismo (em
vez de o ter perpetuado). A minha modéstia não me permite

35
ALEXANDRE SOLJENITSINE

pedir, nem esperar, que o Prof. Tucker leia, pelo menos,


o primeiro volume d'O Arquipélago de Gulag (de facto,
seria preferível que ele lesse os três). A sua leitura refres­
car-lhe-ia a memória: lembrar-se-ia de que o aparelho poli­
cial comunista, que viria a fazer sessenta milhões de vítimas,
foi criado por Lenine, Trotski e Dzerjinski. A Tcheka,
sua primeira manüestação, tinha poderes ilimitados para,
sem instauração de processo, fuzilar grande número de pes­
soas. Foi Lenine quem, com o seu próprio punho, redigiu o
artigo 58 do Código Penal, fundamento de todo o Gulag
estaliniano. Todo o terror vermelho e a repressão de milhões
de camponeses foram obra de Lenine e de Trotski. Foram
as suas instruções que Estaline aplicou escrupulosamente,
se bem que estupidamente, à medida da sua capacidade
intelectual. Apenas num ponto se afastou de Lenine: foi
quando, a fim de reforçar o seu poder, decidiu eliminar os
dirigentes do Partido Comunista. Mas também nesse ponto
ele se contentou em seguir a lei de todas as revoluções
saugrentas: elas acabam, infalivelmente, por devorar os seus
próprios autores. Na U. R. S. S. dizia-se com razão: «Esta­
line é o Lenine de hoje.> É verdade: toda a é1_>oca estali­
niana é apenas a continuação directa do leninismo, mas com
mais maturidade nos resultados e um desenvolvimento mais
vasto e mais igual. O estalinismo nunca existiu, nem na
teoria, nem na prática: não se pode falar nem de fenómeno
estaliniano, nem de época estaliniana; estes conceitos foram
inventados pela ideologia ocidental de esquerda, após 1956,
apenas para defender os ideais comunistas. Nem um fan­
tasma perverso conseguiria fazer de Estaline um naciona­
lista russo, muito embora tenha liquidado quinze milhões
de camponeses, e dos melhores, quebrado a espinha ao
campesinato russo, isto é, à própria Rússia, sacrüicado mais
de trinta milhões de homens durante a segunda guerra
mundial em que participou, sem se preocupar minimamente

36
O ERRO DO OCIDENTE

em economizar o potencial humano e sem a mais pequena


consideração pelo seu povo.
Ora, segundo Tucker, que modelo é que a Rússia czarista
podia oferecer a Estaline? Nela não existiam campos, nem
sequer a noção do que poderiam ser. Havia poucas prisões
do Estado, porque os prisioneiros políticos (à excepção
dos terroristas), inclusive os bolchevistas, eram mandados
para um exílio confortável, onde, a expensas do Governo,
eram bem alimentados, onde ninguém os obrigava a traba­
lhar e donde todos os que quisessem conseguiam escapar
para o estrangeiro, sem obstáculos. Do mesmo modo, a
prisão para os detidos de delito comum não era senão
uma décima milésima parte do que era Gulag. A instrução
judicial obedecia rigorosamente às leis em vigor, todos os
julgamentos eram públicos e a presença de advogados neces­
sária; no país inteiro, a polícia secreta dispunha de menos
efectivos do que a K. G. B. somente na província de Riazan
e os departamentos da Segurança· apenas existiam nas três
capitais, exercendo uma vigilância muito fraca: qualquer
pessoa que saísse dos limites dessas capitais escapava-se-lhes
de imediato. No exército não existia nenhum sistema de
informação e de vigilância (o que muito facilitou a revo­
lução de Fevereiro), porque Nicolau II considerava isso
insultuoso para o seu exército. Ainda se pode acrescentar a
falta de tropas fronteiriças especiais, de fortificações ao
longo das fronteiras e a total liberdade de emigração.
Influenciados por uma falsa tradição antiga, ao apre­
sentarem a Rússia antes da Revolução, muitos escritores
ocidentais reproduzem alguns argumentos da propaganda
soviética. Ora, nas vésperas da guerra de 19 14, a Rússia
atravessava uma fase de produção florescente, de cresci­
mento rápido, possuía uma economia maleável e descentra­
lizada, ninguém se achava limitado na escolha da sua pro­
fissão e pouca legislação laboral existia; a situação material
dos camponeses era próspera, como nunca mais voltou a

37
A LEXANDRE SOLJENITSlNE

ser sob o regime soviético. Os jornais não estavam sujeitos


à censura prévia de carácter político (nem mesmo durante
a guerra) e existia uma completa liberdade cultural. Não
eram levantados os mais pequenos obstáculos às actividades
dos intelectuais, todas as opiniões podiam ser expressas,
todas as religiões podiam ser professadas e os estabeleci­
mentos de ensino superior gozavam de uma autonomia invio­
lável. A Rússia multinacional não conhecia nem a deporta­
ção dos povos, nem movimentos separatistas armados. Este
quadro em nada se assemelha ao da época comunista, é
exactamente o contrário. Alexandre I entrou com o seu
exército em Paris 1, mas não anexou à Rússia a mais
pequena parcela de território europeu. Os invasores sovié­
ticos nunca mais saem de um país em que tenham podido
meter o pé, e estes dois fenómenos são apresentados como
idênticos! A outra Rússia, a «má» , não ameaçava invadir
a Europa e, ainda menos, a América ou a África. Expor­
tava trigo e manteiga, não armas, nem instrutores para a
formação de terroristas. Se a Rússia se desmantelou, foi
devido à sua fidelidade aos aliados ocidentais, por Nicolau
ter teimado em continuar uma guerra absurda contra Gui­
lherme, em vez de tomar a decisão de aceitar a paz sepa­
radamente (como Sadat fez agora), o que lhe teria permitido
proteger o seu país. A hostilidade à antiga Rússia não parou
de ser atiçada no Ocidente pelos esforços dos revolucioná­
rios russos emigrados. Movidos pela paixão política, apre­
sentaram um esquema de explicação simplista que não foi
contrabalançado nem por nenhuma resposta, nem por ne­
nhum esclarecimento por parte dos Russos, porque, na antiga
Rússia, não se fazia ideia do papel da propaganda e da
doutrinação. Eis um exemplo: o dia 9 de Janeiro de 1905,
em Sampetersburgo, no qual, por desgraça, foram mortas

1 Em 1 8 14, as tropas russas acamparam no Bosque de Bolonha


e desfilaram nos Campos Elísios. (N. da trad. fr.)

38
O ERRO DO OCIDENTE

cem pessoas durante uma manifestação, mas onde não foi


preso um único manifestante, ficou para sempre lembrado
como sinal de infâmia, como o distintivo da antiga Rússia,
ao passo que o 17 de Junho de 1953 em Berlim, em que
aos seiscentos manifestantes assassinados a sangue-frio se
juntaram cinquenta mil prisioneiros, nunca é citado contra
a Rússia, mas, em vez disso, atribuído ao apreço devido à
sua força: «Que se procure, a todo o custo, encontrar uma
linguagem comum com ela.»
Parece que se esqueceu completamente a amizade esta­
belecida no século xvm entre a Rússia e os então recém­
-formados Estados Unidos. Desde o princípio do século xx
que se espalhou na sociedade americana a inimizade em
relação à Rússia. Hoje vemos as consequências desse facto,
mas essa inimizade sai agora do quadro desses sentimentos
remotos e ameaça levar o Ocidente a cometer um erro fatal.

A incompreensão dos informadores

Após as abe1Tações que acabámos de criticar nos espe­


cialistas ocidentais, devido às análises por eles feitas da
Rússia e da U. R. S. S., menos admirados ficaremos com os
erros dos políticos: parecem ser pessoas práticas, mas as
suas cabeças estão sempre imersas nas teorias gerais cir­
cundantes e as suas mãos atadas pela conjuntura do mo­
mento.
Apenas a conjugação destas causas pode explicar a
monstruosa resolução do Congresso dos Estados Unidos de
6-8 de Julho de 1959, intitulada Acerca das Nações Subju­
gadas (pp. 86-90), e reactualizada logo a seguir. A grande
culpada, a U. R. S. S., não é aí mencionada e ao comunismo
mundial dá-se o nome de «russo» . Atribui-se à Rússia o

39
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

domínio da China continental e do Tibete, mas recusa-se


aos Russos o direito de serem incluídos no número das
nações reduzidas à escravatura (entre as quais figuram
países que nunca existiram, tais como o Idel-Ural e a
Cazaquia).
Mas é evidente que a grande sombra da incompreensão
e da ignorância vai muito além desta resolução.
Numerosos diplomatas americanos, uns no activo e
outros já aposentados, têm utilizado as suas funções e a
sua autoridade para, com base em ilusões, criarem uma
nuvem perigosa e explosiva em tomo do comunismo sovié­
tico. Pesada herança, a legada pelos diplomatas da escola
de Roosevelt; um Harriman, que continua a afiançar aos
Americanos que os senhores do Kremlin possuem senti­
mentos pacíficos, porque o seu coração sangra só de pen­
sar no povo russo sujeito à guerra. Basta recordar o caso
dos infelizes tártaros da Crimeia, sempre impedidos de
permanecerem no seu próprio país pela única razão de
poderem invadir os terrenos de caça de Brejnev. Na reali­
dade, os dirigentes do Kremlin são perfeitamente estranhos
ao seu povo; por ele apenas sentem indiferença, explo­
rando-o até ao limite máximo das suas forças, até à com­
pleta exaustão, e, se preciso fosse, até os mandariam aos
milhares para o açougue, sem sequer pestanejarem.
Atr:avés dos seus artigos, declarações e conselhos, basea­
dos num pseudo profundo conhecimento da experiência
soviética, George Kennan exerceu durante bastantes anos
uma das mais nocivas influências na elaboração e na
orientação da política externa americana. É um dos que
insistiram em forjar o mito segundo o qual o Politburo
teria no seu seio «membros moderados> (que, aliás, nunca
deram sinal de vida) . Por isso, aconselha constantemente
a escutar com atenção as declarações dos dirigentes sovié­
ticos. Ainda hoje exclama: «Como não se há-de confiar em
Brejnev, que tão energicamente se defende quando o acusam

40
O ERRO DO OCIDENTE

de ter intenções bélicas?» Kennan prefere atribuir a ocupa­


ção do Afeganistão «aos impulsos defensivos dos dirigentes
soviéticos> . Em vez da análise reflectida, numerosos diplo­
matas ocidentais preferem seguir as suas incuráveis ilusões;
encontra-se isso nos veteranos da política, como Brandt,
com a sua Ostpolitik, suicida para a Alemanha; e são estes
actos ruinosos que vão coroar um Prémio Nobel da Paz.
Também não é menos importante assinalar aqui um
fenómeno, ao qual daria o nome de «efeito Kissinger> ,
muito embora não seja ele o único a ilustrá-lo. Enquanto
ocupam cargos importantes, seguem uma política baseada
em concessões e capitulações, que custará ao Ocidente lon­
gos anos de esforços e numerosas vidas humanas; mas,
assim que abandonam esses cargos, eis que, subitamente
lúcidos, aconselham firmeza. De que é que isso resulta?
Como se explica? Não é por encanto que se fica perspicaz!
Não será caso para admitir que sempre tiveram a noção
exacta da situação, mas que, pura e simplesmente, se deixa­
ram arrastar pela rotina política, por estarem muito agar­
rados aos seus cargos
Durante muitos anos, a política de apaziguamento con­
sistiu na cedência das suas próprias posições e na conso­
lidação das do adversário. Hoje estamos em condições de
ver, na sua globalidade, o resultado de trinta e cinco anos
de esforços conjuntos dos principais diplomatas ocidentais:
apoiaram tanto a U. R. S. S. e a China comunista, que uni­
camente a divergência ideológica entre estes dois Governos
(e que surgiu sem nada dever aos esforços do Ocidente)
pode ainda salvar o mundo livre. O que é o mesmo que
dizer que a sobrevivência do Ocidente já não depende de
si próprio.
Estes diplomatas ainda depositam frágeis esperanças
numa ilusória cisão entre as pretensas «alas conservadora
e liberal> , entre «os falcões e as pombas> , «a direita e a
esquerda» , os velhos e os novos, os maus e os bons -

41
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

último refúgio dos falidos: ora, o Politburo jamais teve mem­


bros que fossem um pouco humanos ou pacíficos; as con­
dições da burocracia não permitem que tais seres tenham
acesso às cúpulas, e, mesmo que lá chegassem, seriam asfi­
xiados.
Contudo, ainda hoje se ilude e se embala o Ocidente
com ilusões e falsas esperanças. Ora se lhe mostra, para o
seduzir, um diferendo no seio do Politburo: «Brejnev em
nada foi achado na invasão do Afeganistão ! > , ora se lhe
apresentam as fantasias dos melhores especialistas, persua­
didos de que «a U. R. S. S. encontrará o seu Vietname>
em Angola, ou na Etiópia, ou, ainda, no Afeganistão.
(Posso tranquilizar estes peritos e os seus leitores: actual­
mente, a U. R. S. S. ainda tem capacidade para engolir meia
dúzia de países deste calibre, sem se engasgar). Todavia, ape­
sar da dominação de mais um país, renasce a esperança de uma
nova détente. (Quanto a isso, pode o Ocidente estar completa­
mente descansado: mesmo depois do caso do Afeganistão,
os dirigentes soviéticos voltarão, de bom grado, à détente,
que, tal como tem sido, oferece à U. R. S. S. a possibilidade
de, entre duas invasões, adquirir tudo aquilo de que neces­
sita.
Escusado será dizer que a informação fornecida por
diplomatas desta natureza não permite ao Ocidente com­
preender a U. R. S. S., nem tomar plena consciência do
perigo que corre.
Ultimamente, porém, os políticos desta tendência têm
recebido reforços: um activo grupo de emigrantes recentes
esforça-se por dar falsas «explicações> sobre a Rússia e a
U. R. S. S.: depressa sentem de que lado está o vento e que
tipo de testemunho se espera deles. Nos seus artigos, livros
e entrevistas, todos ditam insistente, ruidosa e repetitiva­
mente uma linha de conduta que se pode resumir no
seguinte: «Colaboração com o Governo comunista da
U. R. S. S., guerra à consciência nacional russa. > De uma

42
O ERRO DO OCIDENTE

maneira geral, quando estavam na Rússia, trabalhavam a


favor do comunismo em institutos soviéticos, colaboravam
regular e activamente com a imprensa mentirosa, nunca
fazendo declarações contra o regime. Depois saíram da
U. R. S. S. com um visto para Israel, para onde não foram
(segundo a terminologia israelita, são drop-out) . Uma vez
no Ocidente, arvoraram-se de súbito em intérpretes da
Rússia, do espírito do seu passado e da vida actual do povo
russo (que, aliás, nunca tiveram ocasião de observar, visto
terem usufruído de privilegiadas situações em Moscovo) .
Os mais activos destes informadores não responsabilizam
o sistema soviético pelo aniquilamento de sessenta milhões
de vítimas, nem o seu ateísmo militante, com o objectivo
da destruição total da Igreja. Pelo contrário, fazem de
Brejnev «um construtor da paz» e dizem que convém dar
abertamente um apoio maciço ao regime soviético, conside­
rado como um mal menor e como a melhor solução de
mudança para o Ocidente. E, ao mesmo tempo, acusam a
tendência nacional russa de colaborar com o regime. O signi­
ficado das correntes espirituais na nossa pátria é por eles
apresentado ao Ocidente sob um aspecto enganador. Pro­
curam suscitar na opinião pública ocidental um sentimento
de medo, até mesmo de ódio, em relação ao renascimento
desta consciência nacional na Rússia, que, no entanto, tem
sido martirizada durante sessenta anos. Artificial e deso­
nestamente, relacionam-na com os ardis anti-semitas do
Governo. Com este objectivo, descrevem o povo russo como
um rebanho incapaz de descobrir o seu destino, de discernir
as causas da sua miséria e do seu sofrimento e que se
contenta em esperar a explicação oficial dos dirigentes
comunistas: que estes lhe inoculam o anti-semitismo e que
isso lhe basta. (Na realidade, o soviético médio vê melhor
a natureza desumana do comunismo do que muitos publi­
cistas e políticos do Ocidente.)

43
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

Alguns emigrantes fazem incompetentes incursões na his­


tória dos séculos passados, de acordo com a escola ame­
ricana, cuja miopia acabámos de denunciar. Basta men­
cionar aqui os nomes de D. Simes e de A. Ianov. Este
último trabalhou lealmente na imprensa soviética durante
dezassete anos, sem proferir a mais pequena declaração con­
tra o regime, e hoje empenha-se em propor ao leitor ame­
ricano - voluntariamente crédulo - descrições falaciosas
acerca da realidade soviética, ou então, saltando de umas
épocas para as outras, faz análises superficiais e arbitrárias
do passado russo: desprezando os seus fundamentos, limita-se
a desfazer bolas de sabão. Ao mesmo tempo, e quase na
mesma página, A. Ianov atribui à consciência nacional
russa o messianismo (que confina com a exaltação) e o
seu antónimo, o isolacionismo, no qual vê - gostaríamos de
saber porquê - uma ameaça para a paz.
Na medida em que a tradição histórica americana já
tinha a tendência para denegrir e deformar a antiga Rússia,
estas sementes provocam o perigo de fazer multiplicar as
fontes envenenadoras.
Os esforços destes informadores tendenciosos têm sido
ultimamente completados e fortalecidos por uma grande
quantidade de artigos da autoria de jornalistas ocidentais
colocados, na sua maioria, em Moscovo. O conteúdo desses
artigos bate na mesma tecla: o renascimento da consciência
nacional russa constitui uma grave ameaça para o Ocidente;
neles se confunde, despudoradamente, ortodoxia e anti-semi­
tismo (não se chega ao ponto de afirmar que sejam sinó­
nimos, mas, sistematicamente, são colcicados a par em fra­
ses ou em parágrafos vizinhos), e, por fim, esboça-se uma
nova teoria, segundo a qual dirigentes soviéticos sem escrú­
pulos, mas condescendentes, desejariam juntar-se à cons­
ciência nacional e religiosa renovadas, para formar uma
«nova direita» , sem que, de resto, se possa compreender o
que, afinal, os impede de o fazer e onde está a proibição.

44
O ERRO DO OCIDENTE

Mas, entretanto, e na realidade, nada que vise a repressão


dos círculos religiosos e nacionais é negligenciado.
Em primeiro lugar, esta coincidência de descrições entre
os informadores da emigração e os livres correspondentes
ocidentais não deixa de surpreender: se duas fontes inde­
pendentes uma da outra fornecem uma informação con­
vergente, então é porque é verdade. Mas é preciso saber
que a situação de todos os correspondentes da U. R. S. S.
é tal que a vida soviética autêntica lhes é ocultada, por
assim dizer, por uma parede, e muito especialmente a da
província e das regiões rurais (as viagens à província e ao
campo são uma encenação cuidadosamente organizada pela
K. G. B. e para o cidadão soviético vulgar qualquer conversa
com um estrangeiro representa um risco enorme, a não
ser que tenha sido a própria K. G. B. a suscitá-la) . Quanto
a isto, o testemunho de R. Kaiser, correspondente do
Washington Post, é bem significativo: tendo vivido quatro
anos em Moscovo, nunca ouviu falar da importante revolta
de Novotcherkassk em 19 6 2 ! E onde é que os correspon­
dentes ocidentais vão beber as suas informações? Examinam
cuidadosamente uma imprensa soviética, tão vazia quão
vaidosa; aproveitam as últimas reflexões dos diplomatas oci­
dentais nos corredores das embaixadas (aí, as fontes coinci­
dem!); depois, há os encontros fortuitos com obscuros repre­
sentantes da alta sociedade soviética (categoria demasiado
baixa e hipócrita para ser tomada a sério). Mas a sua fonte
principal é constituída pelo pequeno grupo de moscovitas
que sempre transgridem a proibição de fazer sociedade com
estrangeiros (muitas vezes, pertencentes àqueles círculos da
capital dos quais também provêm os informadores que já
mencionei) . Eis, pois, onde reside a principal fonte de infor­
mações que vai alimentar artigos espalhafatosos que, ruido­
samente, anunciam a ameaça que o nacionalismo russo faz
pairar sobre o mundo. Um só panfleto anónimo anti-semita,
apanhado à entrada de qualquer casa moscovita, é apresen-

45
A LEXANDRE SOLJENITSINE

tado na imprensa ocidental como um acontecimento de


importância primordial. Assim se desenha a confluência das
fontes: o quadro do mundo é construído a partir do seu
reflexo num único e pequeno fragmento de espelho. Na
física chama-se a isso «erro sistemático do instrumento
de medida, .
Se, por acaso, a informação revela outra tendência, se
não se ajusta ao que a imprensa ocidental quer, a todo o
custo, encontrar em Moscovo, ela é, pura e simplesmente,
rejeitada. Um exemplo: Wren, correspondente do New York
Times, fez uma entrevista muito importante ao académico
Chafarevich 1, mas não a publicou. Nem os especialistas,
nem os órgãos da imprensa ocidental, ligam a menor impor­
tância ao Mensageiro da Acção Cristã Russa, que existe em
Paris há mais de cinquenta anos e que goza de grande popu­
laridade na U. R. S. S., nos seus meios mais cultivados (a
revista é feita com a sua colaboração). Nele, os especialistas
teriam encontrado uma imagem completamente diferente da
realidade e do espantalho que costuma ser agitado.
Uma informação tão parcelar não pode deixar de pro­
vocar exageros: actualmente, faz-se da emigração a questão­
-chave da U. R. S. S. Mas como é que se podem reduzir
os problemas de um país tão grande à partida seja de quem
for? Aqui e ali, nas províncias russas, a pobreza provoca
greves maciças de trabalhadores (como, recentemente, em
Perm), que são reprimidas pelas armas, com largadas de
pára-quedistas sobre os telhados das oficinas. Mas estará o
Ocidente suficientemente atento, de modo a reparar nestes
acontecimentos e a divulgá-los?
Leva-se agora a cabo uma gigantesca acção, mortal para
a existência do povo russo. Com uma duração inicialmente
prevista para quinze anos, visa aniquilar por completo o

1 Matemático de reputação mundial, autor, nomeadamente, de


O Fenómeno Socialista. (N. da trad. fr. )

46
O ERRO DO OCIDENTE

campesinato russo, através da destruição das isbas e das


aldeias, do reagrupamento compulsivo de todos os campo­
neses nas cidades industriais, em prédios de andar, o que
representa o fim de todos os laços com a terra, a ruína dos
costumes e das tradições nacionais e, sem dúvida, a da
paisagem e do carácter russo. Os pobres informadores oci­
dentais nem sequer se deram ao trabalho de reparar nesta
ofensiva conduzida pelos assassinos da alma popular! A pri­
meira revolução ( 1 9 17- 1 920) teve o objectivo de matar
a Rússia com o punhal de Lenine. Porém, a Rússia
sobreviveu. A segunda ( 1 929- 193 1), o de esmagar a Rússia
com o martelo-pilão de Estaline. Mas a Rússia sobreviveu
ainda. Contudo, eis que surge agora, irrevogavelmente, uma
terceira revolução: arrasar a Rússia da face da Terra com o
bulldozer de Brejnev. E, no momento em que tudo se apressa
a aniquilar, para sempre, a própria existência da Rússia, os
informadores ocidentais anunciam bem alto esta terrível
ameaça para o resto do mundo: a que emanaria da cons­
ciência nacional russa !

A Rússia derrubada

Moscovo não é a União Soviética. Desde o começo dos


anos 30, eleva-se artificialmente o nível médio de vida em
Moscovo, em detrimento das outras camadas populacionais
e, sobretudo, das do campo. (Dentro de certa medida,
passa-se o mesmo em relação a Leninegrado e a outras
localidades reservadas aos cientistas e interditas ao comum
dos mortais.) Assim, de há cinquenta anos para cá, os Mos­
covitas têm uma alimentação melhor e gozam de um clima
psicológico privilegiado, mas artificial, em relação ao resto
do país (os bolchevistas aprenderam bem a lição da revo-

47
A LEXANDRE SOUENITSINE

lução de Fevereiro em Sampetersburgo). Moscovo é como


uma ilha protegida, traço de união entre a U. R. S. S. e o
Ocidente: mais confortável do que o resto da União Sovié­
tica, do mesmo modo que o Ocidente é mais confortável do
que Moscovo. Desta maneira, todas as apreciações feitas
com base na experiência moscovita têm de ser corrigidas,
antes de extrapoladas ao país em geral, com a ajuda de um
elevado coeficiente de correcção. Encontra-se a verdadeira
vida, comum a toda a União Soviética, na província, nas
zonas rurais, nos campos ou no exército, cruel, mesmo em
tempo de paz.
Os cinquenta e cinco anos da minha vida soviética foram
passados exclusivamente na U. R. S. S. do interior; nunca
tive o privilégio de residir na capital, e, assim, posso recorrer
à minha experiência, sem precisar de ajuda do tal coeficiente
de correcção. Portanto, não vou falar de Moscovo, mas do
país.
Em primeiro lugar: os olhos dos Ocidentais andam ofus­
cados pelas falsas descrições dos jornais, que fazem dos
Russos a «nação dominante� da U. R. S. S. Porém, desde
1 9 1 7 até hoje, nunca o foram. Durante os quinze primeiros
anos do regime soviético, abateu-se o golpe mais duro e
mais mortífero sobre os Russos, os Ucranianos e os Bielo­
-Russos (o actual decréscimo da natalidade remonta a essa
época), o qual arrastou consigo a quase total destruição de
todas as classes superiores, do clero, das tradições culturais,
dos intelectuais e do campesinato, responsável pela produção
alimentar. As maiores glórias do passado russo foram proi­
bidas ou votadas às gemónias e toda a história passada
banhada de insultos; em toda a parte, as igrejas foram des­
truídas e dezenas de milhares de cidades e de ruas desbaptiza­
das, a fim de receberem os nomes dos seus carrascos: só tro­
pas de ocupação é que se podem comportar deste modo.
A medida que os comunistas verificaram que o seu poder
estava mais firme, deram golpes análogos nas outras repú-

48
O ERRO DO OCIDENTE

blicas nacionais, obedecendo ao célebre princípio amado por


Lenine, Hitler e por todos os bandidos: abater os adversârios
um a um. Não se encontra na Rússia a «nação dominante» ; o
internacionalismo dos comunistas não necessitava dele. O russo
foi mantido como língua oficial, de forma puramente mecânica:
era precisa uma e a sua utilização apenas serviu para a poluir.
Não é por isso que os Russos se poderão sentir superiores:
quando uma mulher é violentada por alguém que lhe fale na
sua língua materna, tal não quer dizer que esse acto de viola­
ção não tenha sido cometido. No final dos anos 30, russos
e ucranianos constituíam a maioria dentro do aparelho comu­
nista, mas nem por isso eram a nação dominante. No mundo
inteiro, tanto na China como na Coreia, a lei é a mesma:
quem quiser fazer parte das classes dirigentes comunistas
perde toda a ligação com o seu país, até mesmo com o
género humano. Quanto maior a ovelha for, mais abundante
serâ a tosquia: assim, o jugo económico foi mais forte sobre
a R. S. F. S. R. 1 No tocante às outras repúblicas nacionais, a
política económica foi mais cautelosa: receava-se uma explo­
são nacional. O sistema desumano dos kolkhozes foi intro­
duzido em toda a parte, mas na Geórgia, e embora dando
menos trabalho, um quintal de laranjas era incomparavel­
mente mais caro do que um de batatas russas. Todos foram
explorados sem piedade, mas a exploração mais feroz foi feita
na R. S. F. S. R.: actualmente, as regiões rurais da Rússia são
as mais pobres de todas. De igual modo, nas cidades da
província não se sabe hâ muitos anos o que sej a carne, man­
teiga ou ovos, e, quanto mais não seja, deseja-se arranjar
simples pastas ou margarinas.
Hâ meio século que esse abismo de miséria leva à dege­
neração biológica da nação, ao declínio material e espiritual,
ainda mais acentuados por uma propaganda política embrute-

I Designação oficial dada à parte do pais não incluída nas


catorze repúblicas nacionais limitrofes.

49
Est. Doe. - 1 74 - 4
ALEXANDRE SOLJENITSINE

cedora, pela erradicação da religião, pela eliminação de todas


as fontes de cultura, pela liberdade concedida à embriaguez,
pelo trabalho duplamente fatigante das mulheres, iguais aos
homens nos empregos públicos, mas sem a ajuda de aparelhos
electrodomésticos, ao empobrecimento intencional da men­
talidade infantil. A decadência dos costumes estâ a levar à
derrocada, não devido à perversidade do povo, mas porque
os comunistas o privaram do alimento físico e espiritual e
porque dele afastaram todos os que lhe podiam dar
ajuda espiritual, nomeadamente e em primeiro lugar, o
clero.
Os acontecimentos passados e presentes esmagaram e
humilharam a consciência nacional russa. É a consciência de
alguém que estâ doente hâ muito tempo e que, à hora da
morte, apenas deseja que lhe seja concedido um curto período
de tréguas e misericórdia. As preocupações de uma família
russa que resida no interior do país são bem mais simples
e modestas do que um correspondente ocidental pode ouvir
em Moscovo! Com que é que ela sonha? Gostaria que cessas­
sem as arbitrariedades de tipo absolutista do pequeno sâtrapa
comunista local; de poder saciar a sua fome, calçar os filhos,
encontrar com que se aquecer no Inverno; arranjar, ao menos,
um quarto para dois; que houvesse uma igreja perto da sua
casa (a fim de não ter de percorrer duzentos quilómetros
para lâ ir); que não a impedissem de baptizar os seus filhos
e de os educar no bem; que o chefe da família renunciasse à
embriaguez.
E é a essa aspiração da verdadeira Rússia, de se erguer,
de passar de uma existência bestial a uma vida mais humana,
de reencontrar alguns elementos de religião e de sentimentos
nacionais, que as pressurosas e frívolas canetas dos actuais
informadores do Ocidente chamam o «chauvinismo russo� e
que apresentam como um perigo extremo para os homens de
hoje; perigo que nada é, quando comparado com o dragão
comunista, que jâ levanta a sua pata armada de blindados e

50
O ERRO DO OCIDENTE

foguetões sobre o que ainda resta do nosso planeta! E é a


estes infelizes, a este povo mortalmente doente, incapaz de
se libertar, que se atribui a ideia fanática do messianismo e
do nacionalismo militante!
Procura-se assustar agitando fantasmas. Este «naciona­
lismo russo:. apenas serve para condenar o sentimento ele­
mentar do amor à pátria, o patriotismo mais natural. Um
país que não mata a fome há cinquenta anos não pode deixar
de estar surdo à sedução de um nacionalismo militante. Man­
ter cativas nações inteiras, conservar a Europa oriental como
que dentro de um alçapão, ocupar e armar países distantes,
além-mar, eis o que, por certo, corresponde às necessidades
do Politburo e não às do russo vulgar. Quanto ao «messia­
nismo histórico russo> , ele foi inventado de todas as maneiras:
nestes últimos séculos, nem entre os chefes espirituais, nem
dentro do aparelho do Estado, nem nos círculos intelectuais,
nunca ninguém sofreu dessa doença chamada «messianismo> .
Atendendo às difíceis circunstâncias em que nos encontramos
actualmente, não posso acreditar que haja um único povo
na Terra que se possa considerar como povo «eleito> .
Corroídos pelo comunismo, todos os povos da U. R. S . S.
vão ter necessidade de uma longa convalescença. Para curar
o povo russo, que sofreu repetidamente os golpes mais mor­
tíferos, vão ser precisos entre cento e cinquenta a duzentos
anos de vida nacional pacífica. Mas uma Rússia a caminho
da cura faria recuar a loucura comunista. O renascimento e a
libertação nacional russos significam a morte do comunismo
russo e, seguidamente, a do comunismo mundial. O comu­
nismo sabe muito bem que a consciência nacional russa o
rejeita. Para quem ama a Rússia de verdade, a reconciliação
com o comunismo nunca foi, nem nunca será, possível. :8 por
isso que o comunismo se tem sempre revelado especialmente
implacável para os cristãos activos e para os nacionalistas.
Logo desde os primeiros anos, foram entregues aos pelotões
de execução e, mais tarde, mandados para os campos. Ainda

51
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

hoje são feitas perseguições impiedosas: Vladimir Chelkov


morreu depois de ter passado vinte e cinco anos em campos;
Ogurtsov cumpriu treze e Ossipov doze; neste Inverno, a
repressão abateu-se sobre a Comissão para a Defesa dos
Direitos dos Crentes, absolutamente apolítica; os padres inde­
pendentes (Gleb Iakunine e Dimitri Dudko) foram presos;
todos os elementos do Seminário de Ogorodnikov foram
metidos na prisão. As autoridades não escondem que pro­
curam esmagar a fé cristã com toda a força do seu aparelho
repressivo. Como é elegante e como é lindo ver jornais ame­
ricanos insultarem a ortodoxia, enquanto os círculos religio­
sos da U. R. S. S. são expostos a tão dura repressão!
A campanha anti�russa dos informadores ocidentais, que
até na grande imprensa americana se infiltrou, representa uma
inesperada tábua de salvação para o comunismo soviético;
no entanto, não vou ao ponto de dizer que a inspira inteira­
mente.
Mas, como reverso da medalha, esta campanha revolu­
ciona todos os factores: obriga o Ocidente a temer o seu
aliado natural, o povo russo oprimido, a confiar no seu ini­
migo mortal, o regime comunista, e, portanto, a dar-lhe o
apoio maciço de que tanto necessita após o seu falhanço
económico de meio século.

Quand.o o comunismo
utiliza o nacionalismo como montada

Arruinado, dizimado, abatido, o povo apenas continua a


existir fisicamente. O poder comunista, quer na Rússia, quer
na China, quer em Cuba, tem como objectivo obrigar a
trabalhar para o Estado sem enfraquecimento e, de igual
modo, a fazer a guerra, se tal for necessário. Contudo, se for

52
O ERRO DO OCIDENTE

esse o caso, a ideologia comunista não é operante, nem galva­


nizará ninguém. As intenções do poder são claras: mais uma
vez aproveitar-se desse nacionalismo russo para a sua nova
guerra, para os seus terríveis fins imperialistas, aproveitar-se
dele com um furor que será tanto mais convulsivo e deses­
perado quanto mais a ideologia comunista se afundar: é dos
sentimentos nacionais que o comunismo tenciona receber as
forças físicas e espirituais de que necessita. É verdade: esse
perigo existe.
Os informadores atrás mencionados apercebem-se desse
perigo, mas só o vêem a ele (escapam-lhes as autênticas
aspirações do espírito nacional). Em primeiro lugar, e grossei­
ramente, chamam-nos chauvinistas e fascistas; depois, avi­
sam-nos, atenciosos: ao verdes que o renascimento religioso
e espiritual do povo russo pode ser utilizado pelo poder sovié­
tico, renunciai, pois, a esse mesmo renascimento e às espe­
ranças que depositais numa renovação nacional!
O poder soviético usa, igualmente, a emigração judia para
fomentar, com êxito, o anti-semitismo ( ((Reparai que só eles
é que conseguiram escapar ao Inferno e que o Ocidente nos
paga em mercadoria» ) : que daqui não se conclua que seja
necessário aconselhar os Judeus a renunciarem ao regresso
às suas origens nacionais e religiosas, é evidente que não!
É lícito que cada um de nós viva segundo as suas inclina­
ções e queira atingir aquilo que deseja, sem ter de perguntar
a si próprio: que é que irão pensar, que é que os jornais
irão dizer, que forças malignas irão procurar aproveitar-se
disso?
Mas para quê falar de um futuro hipotético? Voltemo-nos
para a história recente. Em 1 9 1 8- 1922, em muitas regiões
da Rússia, milhares de camponeses, armados de forquilhas,
ou apenas transportando ícones (há livros que o descrevem),
fizeram frente às metralhadoras dos vermelhos, que consi­
deravam ser força hostil à sua existência nacional, sendo
massacrados aos milhares.

53
A LEXANDRE SOLJENITSINE

E em 194 1 - 1945? Foi então que, pela primeira vez, com


o conhecimento de todos, arrastando milhões de pessoas, o
comunismo montou sobre o nacionalismo russo, sim, o assas­
sino montou sobre a sua vítima quase morta, sem que isso
tenha horrorizado fosse quem fosse, nem nos Estados Unidos,
nem na Inglaterra; nessa altura, o entusiasmo do Ocidente
foi unânime, perdoou à «Rússia» o seu nome malsoante,
esqueceu todas as más recordações do passado e, pela pri­
meira vez, apaixonou-se loucamente por ela (paradoxalmente,
a partir do dia em que tinha deixado de ser ela própria);
rejubilou e aplaudiu, porque o cavaleiro e a sua montada
iam salvar o Ocidente do perigo hitleriano. Não, ninguém
teve nada a opor, ninguém conseguiu ver «perigo de maior» ,
quando, na realidade, o perigo era enorme. A ideia de que
os Russos pudessem ter outros sentimentos - a não ser de
natureza comunista - nem sequer aflorou ao Ocidente.
Mas que é que os povos que então se encontravam sob o
jugo soviético realmente suportavam? Ora bem, era o seguinte:
1
após a catástrofe do 22 de Junho de 194 1, após o discurso
choroso e perturbado do paizinho Estaline pela rádio, toda
a população laboriosa (à excepção dos jovens imbecilizados
pelo marxismo), pertencente a todas as nações da União Sovié­
tica, voltou a respirar numa expectativa ansiosa: eis que
chegou o fim dos nossos parasitas! Em breve seremos livres!
Acabou o comunismo maldito! A Bielo-Rússia, a Ucrânia
ocidental e, em seguida, as primeiras províncias russas rece­
beram os Alemães com alegria. Mas foi o Exército Vermelho
que, mais ostensivamente, revelou os sentimentos do povo:
aos olhos do mundo inteiro, ao longo de uma frente de dois
mil quilómetros, ele recuava a pé, mas a velocidade apreciá­
vel. Nada pode haver de mais convincente do que esta decla­
ração feita pela marcha, por homens na flor da idade e aptos
para a guerra. O Exército Vermelho era superior em número,
possuía uma artilharia excelente e uma quantidade apreciável
de blindados, mas as tropas recuaram como nunca se tinha

54
O ERRO DO OCIDENTE

visto nem na história russa, nem na mundial. Ao fim dos pri­


meiros meses, cerca de três milhões de soldados e de oficiais
já se tinham rendido.
Eram esses os sentimentos do povo (dos povos) com
experiência do comunismo, uns durante vinte e quatro anos,
outros durante um só 1 • Para todos eles, a guerra significava
a oportunidade para se livrarem da peste comunista. Era
natural que o povo procurasse uma solução não para o pro­
blema da Europa, mas para o seu próprio problema: livrar-se
do comunismo.
Terá o Ocidente reparado nessa derrota? Com certeza
que sim. Mas tirou conclusões? Nenhuma. Cego pelas suas
preocupações e pelo seu próprio sofrimento, não tirou con­
clusão nenhuma. No entanto, se tivesse estado firmemente
ligado ao princípio da liberdade geral e universal, não deveria
ter concedido o seu apoio ao sanguinário Estaline, em troca
da sua ajuda, nem reforçado o domínio estaliniano sobre
povos que queriam ser livres. O Ocidente deveria ter lançado
uma segunda frente contra Hitler e derrubado Hitler apenas
com as suas próprias forças; os países democráticos possuíam
essas forças, mas pouparam-nas, preferiram proteger-se, re­
correndo aos infelizes povos da U. R. S. S.
Ao cabo de vinte e quatro anos de terror, nem pela força,
nem pela persuasão, teria o comunismo alguma vez conse­
guido montar o nacionalismo russo para se salvar, se do
Ocidente não tivesse surgido (disso não fomos avisados:
nenhuma informação consegue passar através dos filtros comu­
nistas) outra doença portadora dos seus próprios objectivos
antinacionais: exterminar uma parte do povo russo e reduzir
a outra à escravatura. Uma das primeiras medidas adaptadas
pelos Alemães foi a reconstituição dos kolkhozes, que se ti­
nham dissolvido por si mesmos, a fim de melhor explorarem o

1 Países bâlticos, Ucrânia e Bielo-Rússia ocidentais, Bessarâbia.

55
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

campesinato. Assim, o nosso povo viu-se metido entre o


martelo e a bigorna. De dois inimigos ferozes, acabou por
escolher o que falava a sua língua. O comunismo conseguiu
montar no nosso nacionalismo. Durante vários anos, fingiu
ser surdo aos seus próprios estribilhos e às suas teorias,
esquecê-las, esquecer o marxismo, e pôs-se a enaltecer as
qualidades da «gloriosa Rússia» , chegando mesmo a recons­
truir a Igreja (mas somente até ao fim dos combates). Nesta
guerra desgraçada, a nossa vitória apenas serviu para reforçar
o jugo que pesava sobre nós.
Os Russos tentaram encontrar uma terceira via: aprovei­
tar esta guerra para se livrarem do comunismo. Não tomaram
o partido de Hitler, mas, mau grado seu, acharam-se impli­
cados no seu sistema imperial; em consciência, considera­
vam-se aliados do Ocidente (sinceros, ao contrário dos comu­
nistas, que apenas fingiam sê-lo). Porém, aos olhos do
Ocidente, quem tentasse nesta guerra libertar-se do comunismo
era traidor à causa. Que importava que perecessem todos os
povos da U. R. S. S., que morressem milhões de prisioneiros
nos campos soviéticos, contanto que o Ocidente terminasse
esta guerra o mais rápido e o menos custosamente possível? !
Centenas de milhares de russos, cossacos, tártaros e caucasia­
nos foram, assim, sacrificados: não lhes foi permitido ren­
derem-se aos Americanos, foram entregues à repressão e ao
poste de execução da U. R. S. S.
Mais surpreendente ainda: os exércitos inglês e americano
entregaram à repressão comunista centenas de milhares de
pacíficos habitantes, comboios inteiros de velhos, mulheres e
crianças e até, pura e simplesmente, antigos prisioneiros de
guerra ou deportados. Entregaram-nos à força, apesar dos
suicídios cometidos diante dos seus próprios olhos. Os des­
tacamentos militares ingleses chegaram a utilizar as suas
armas para acutilar e cortar em bocados estes homens que
se recusavam - pergunte-se porquê - a regressar ao seu
país. Mas há algo ainda mais surpreendente: não só os ofi-

56
O ERRO DO OCIDENTE

ciais americanos e ingleses não foram culpabilizados nem


castigados, mas a imprensa anglo-saxónica, livre, orgulhosa
e independente, durante trinta anos, ingenuamente, calou
esta traição dos seus governantes; durante trinta anos não
apareceu uma única pena honesta! Não será isso o mais
espantoso? No Ocidente, onde o motor da informação traba­
lha sem ratés, ei-lo que, subitamente, fica gripado.
Tudo leva a crer que, nessa época, havia toda a vantagem
em firmar uma paz eterna com o comunismo, apenas com o
inconveniente de por ela pagar um ou dois milhões de estú­
pidas vítimas.
Do mesmo modo, se sacrificou a Estaline, e sem necessi­
dade, toda a Europa oriental.
Trinta e cinco anos depois, façamos o balanço desta
decisão inteligente: os países ocidentais apenas se conse­
guem aguentar graças a desavenças imprevistas entre a
U. R. S. S. e a China.

Um rosário de erros

O Ocidente ainda não deixou de repetir, desde a segunda


guerra mundial, o erro fatal e egoísta durante ela cometido.
Um só desejo havia: evitar atacar o comunismo. Por toda a
parte se fingia não reparar nem nos morticínios, nem nas
agressões comunistas. Rapidamente, o Ocidente passou uma
esponja sobre Berlim Oriental ( 1 953), Budapeste e Praga,
apressou-se a acreditar nas intenções pacíficas dos chefes
da Coreia do Norte (esses ainda vos hão-de fazer ver !), na
nobreza de alma dos governantes do Vietname do Norte,
deixou-se (e deixa-se sempre) ridicularizar lamentavelmente
nos acordos de Helsínquia (para os fazer, reconheceu as ane­
xações comunistas na Europa para sempre), agarrou-se ao

57
ALEXANDRE SOLJENITSINE

mito de Cuba progressista (nem Angola, nem a Etiópia, nem


o lémen do Sul conseguiram desenganar o senador Mac
Govem), seguidamente à tábua de salvação que o eurocomu­
nismo lhe estendia, e até não poder mais, conservou-se dois
anos na insultuosa conferência de Viena sobre o desarma­
mento europeu, durante os quais preferiu ignorar a ocupação
do Âfeganistão. Os historiadores vindouros e os nossos des­
cendentes ficarão surpreendidos e não conseguirão encontrar
explicação para tanta cegueira e cobardia. Só o atroz geno­
cídio cambojano permitiu ver ao Ocidente a profundidade
mortal do abismo que já se tornou familiar a quem nele vive
há sessenta anos. No entanto, a consciência ocidental já
começa a habituar-se a ele e a fechar os olhos.
Oh!, se todos os que gostam de sonhos cor-de-rosa pudes­
sem compreender, de uma vez para sempre, que a natureza
do comunismo é idêntica em todo o mundo e em todos os
países; que é sempre antinacional; que a sua função é matar
o corpo da nação no seio da qual se desenvolve, para, segui­
damente, levar a morte às nações vizinhas ! Sejam quais
forem as ilusões que se possa ter acerca da détente, nunca
poderá haver paz duradoura com o comunismo: ele tentará
sempre propagar-se. Bem podeis jogar à détente, o comu­
nismo nunca há�de abrandar a sua guerra ideológica e nunca
haveis de por ele ser tratados senão como inimigos. O comu­
nismo não pára na sua ânsia de conquistar o mundo, quer
em guerra aberta, quer pela acção subversiva e terrorista,
quer ainda pela desestabilização das estruturas sociais. A Itália
e a França ainda são livres, mas já estão minadas por fortes
partidos comunistas. Todos os indivíduos e todas as socie­
dades - e a sociedade democrática mais ainda do que qual­
quer outra - têm, naturalmente, tendência para alimentar a
esperança. Mas do comunismo nada se pode esperar: nenhum
compromisso é possível com a doutrina comunista e apenas
há duas hipóteses a considerar: ou o seu triunfo total no
mundo inteiro ou o seu completo desaparecimento. A única

58
O ERRO DO OCIDENTE

salvação da Rússia, da China e do mundo inteiro está no


facto de o rejeitar. De outro modo, o mundo está sujeito a
ser destruído e aniquilado. A ocupação da Europa de Leste
e da Ásia oriental pelos comunistas nunca acabará por si só
e, de um momento para o outro, a Europa ocidental e muitos
outros países correm o risco de vir a ser também ocupados.
O comunismo já mostrou, retumbantemente, na África e na
América Latina, aquilo de que é capaz: por muito pouco
que um país se deixe influenciar, está em condições de ser
dominado.
Claro está que se pode encarar um resultado diferente:
os invasores comunistas acabarão por cair, tal como tem
acontecido a todos os invasores da história universal. Quando
pensam que soou a hora do triunfo, voam para a vitória,
mas acabam por encontrar a derrota. No entanto, na próxima
guerra, essa derrota custará à humanidade centenas de mi­
lhões de vítimas.
Perante esta ameaça mortal, quais deveriam ser os esfor­
ços da diplomacia ocidental? Tornar estes «cavaleiros> expan­
sionistas menos aterradores e menos poderosos, proceder de
modo que, em nenhum país, eles pudessem montar nova­
mente sobre os sentimentos nacionais, para aí encontrar a
força do apoio popular. No entanto, foi escolhido, precisa­
mente, o caminho oposto.
Ao longo dos últimos trinta e cinco anos, a diplomacia
americana tem sido desajeitada e deplorável. Ainda há pouco
tempo, os Estados Unidos eram, incontestavelmente, a pri­
meira nação do mundo, a grande vencedora da segunda
guerra mundial, líder da O. N. U. Hoje, rápida e inexoravel­
mente, perderam o seu papel dominante na O. N. U. (após
aí terem sofrido inúmeras humilhações) e também, de modo
lamentável, a sua influência decisiva em todos os continentes;
perderam o prestígio junto dos seus aliados ocidentais e não
param de decair em relação à U. R. S. S. (os senadores diri­
gem-se a Moscovo para pedirem desculpas e apresentarem

59
ALEXANDRE SOLJENITSINE

justificações, a fim de não lhes quererem mal pelos seus


debates no Senado). Todos os esforços da diplomacia dos
Estados Unidos se têm limitado a procurar adiar a confronta­
ção, mesmo que o preço a pagar seja a constante diminuição
do seu poderio.
A segunda guerra mundial mostrou que só uma situação
desesperada, sem precedentes, é que podia levar os comunis­
tas e as nações dominadas a tomarem acções em comum,
mas os Estados Unidos não quiseram entender: consideraram
os governos da U. R. S. S. e da Europa oriental como a ex­
pressão autêntica das aspirações nacionais desses povos e
mostraram grande consideração pelos seus falsos represen­
tantes. Tal foi sinónimo de, antecipadamente e em condições
desastrosas, recusar todas as futuras alianças com os povos
subjugados, mergulhá-los ainda mais debaixo da alçada comu­
nista, abandonar o povo russo e chinês e essa solidão impla­
cável que foi também a nossa em 194 1 .
Nos anos 50, um ilustre vulto saído da emigração russa
provocada pela guerra apresentou à Administração americana
um plano para a organização das forças russas anticomunis­
tas; foi esta a resposta de um alto funcionário: «Não temos
nada a ver com a Rússia, nem com a de ontem, nem com a de
amanhã.> Resposta altiva, estúpida e suicida para a América.
Actualmente, a situação chegou a um ponto tal que a existência
da América depende do ressurgimento de uma Rússia nacional
e sã porque, em caso de confrontação sangrenta, o combate
será de morte. No decurso dessa confrontação, a América
estará perdida se confundir - quer em pensamento, quer em
actos - os agressores comunistas com os povos da U. R. S. S.,
arrastados para o conflito contra a sua vontade, e se lutar,
não contra o comunismo, mas contra os «Russos» , que vai,
outra vez, empurrar para uma situação igual à de 194 1 ,
quando, novamente, tentarem libertar-se e não encontrarem
qualquer apoio.

60
O ERRO DO OCIDENTE

Mau grado seu, e para sua desgraça, o sentimento nacio­


nal acaba por se submeter ao comunismo dominador; hoje em
dia, a acção da diplomacia americana beneficia este processo
de todas as maneiras. A fim de compensar estes trinta e
cinco anos de reveses, e na sua miopia, a diplomacia ame­
ricana joga, daqui em diante, uma nova cartada, ainda mais
despropositada e insensata: utilizar a China como escudo, ou,
por outras palavras, empurrar as forças nacionais chinesas
para as mãos do comunismo e, para isso, não hesita em,
antecipadamente, sacrificar Taiwan.
Esta acção (esta traição) opõe-se aos sentimentos nacio­
nais, tanto de Russos, como de Chineses: ao apoiar aberta­
mente os seus opressores totalitários, a América vira-os con­
tra nós.
Nem sequer pergunto para que servem os princípios
democráticos ou o que deles resta, nem o que aconteceu ao
respeito devido à liberdade dos povos. Do ponto de vista
puramente estratégico, esse cálculo é a muito curto prazo.
E se, de repente, os dois comunismos se reconciliassem e
ambos se virassem contra o Ocidente? E, mesmo que a
reconciliação não se dê, a China, armada pela América,
acabará por vos vencer.
É por não compreenderem que os povos dominados são,
do ponto de vista estratégico, aliados do Ocidente, que os
governos têm sido levados a cometer erros irreparáveis.
A rádio, ponte de ligação directa com os povos dominados,
ou não foi utilizada, ou, a ter sido, foi-o de maneira lamen­
tável. A América facilmente teria podido organizar emissões
televisivas via satélite, mas, ainda mais facilmente, renunciou
a esse projecto, em consequência dos protestos do Governo
soviético (que sabe os riscos que corre). É evidente que esse
meio obriga à compreensão da elevada exigência e dos anseios
do povo subjugado ao qual se dirige. Também é evidente que
não são as ignóbeis emissões comerciais que são necessárias;

61
ALEXANDRE SOLJENITSINE

elas apenas serviriam para ferir a alma destes povos famintos


e seriam pior do que nada.
A má qualidade da informação radiodifundida destinada
à U. R. S. S. provoca um errado conhecimento de parte a
parte: os Americanos têm cada vez mais dificuldade em se
reconhecerem no que deles se diz. Na maior parte das suas
emissões, a secção russa de A Voz da América faz os possí­
veis por não ganhar a simpatia do ouvinte russo reflectido,
muito pelo contrário, procura confundi-lo, feri-lo e dissuadi-lo
de querer conhecer os Estados Unidos.
Na medida em que as informações recebidas pelo Oci­
dente acerca da U. R. S. S. são exageradas e deformadas, ela
também não é capaz de produzir programas equilibrados e
sensatos destinados à Rússia. A secção russa de A Voz da
América é constituída por uma pesada e numerosa equipa,
que, todavia, não serve os interesses da América, chegando
mesmo ao ponto de os prejudicar. À excepção das últimas
notícias e dos comentários do dia, horas e horas de emissão
quotidianas estão repletas de gracejos vulgares que provocam
a irritação de milhões de ouvintes famintos, principalmente
privados da possibilidade de conhecerem a verdade acerca da
história do seu próprio país. Em vez de se lhes falar da sua
história e dos livros proibidos na Rússia, sob pena de prisão
(repetindo várias vezes as informações, devido às más con­
dições de recepção), em vez de apoiar os sentimentos anti­
comunistas, de incutir ânimo aos futuros aliados do Oci­
dente, passam-se horas e horas a contar ridículas futilidades
acerca de coleccionadores de garrafas de cerveja, a descre­
ver os encantos dos cruzeiros por mar (realçando a alimen­
tação, o casino, a discoteca) e os mais insignificantes porme­
nores da vida dos cançonetistas, a falar infatigavelmente de
desporto (sobre o qual os habitantes da Rússia não têm
nenhuma dificuldade em se informarem) e a transmitir música
de jazz que se pode ouvir em todas as estações estrangeiras !
Os relatos pormenorizados e satisfeitos que judeus recente-

62
O ERRO DO OCIDENTE

mente emigrados fazem sobre a sua nova vida não são menos
inoportunos: toda a gente sabe que na U. R. S. S. apenas os
judeus têm direito a emigrar e que essa autorização apenas
pode contribuir para fazer nascer o anti-semitismo. Os res­
ponsáveis por A Voz da América nunca se esquecem de que
o que é preciso é não irritar o Governo soviético. Salvaguar­
dando a détente, retiram das emissões tudo o que poderia
irritar os dirigentes da U. R. S. S. Abundam exemplos deste
servilismo de A Voz da América em relação ao comité
central do P. C. U. S. Vou apenas referir-me à minha expe­
riência pessoal, porque tenho documentos em meu poder. Na
minha declaração relativa à prisão de Guinzburg, datada de
4 de Fevereiro de 1978, em três frases, a censura de A Voz
da América cortou duas:

Este acto de repressão diz mais respeito aos Oci­


dentais do que poderá parecer à primeira vista. Trata-se
de um passo importante no esforço permanente de,
definitivamente, consolidar a retaguarda, a fim de que
nada possa levantar obstáculos à expansão exterior
- com tanto êxito levada a cabo nestes últimos anos -
e que não deixará de crescer, até chegar a ameaçar
as forças, a coragem e a própria existência do Oci­
dente.

A minha mensagem às «Audições Sakharov» , realizadas


em Roma na mesma altura, não passou devido às seguintes
frases:

[ .. . ] Faço votos para que os relatos aterradores


saídos destas tribunas sacudam a civilização do con­
forto, a tudo indiferente, e que só as trombetas do
Apocalipse poderão despertar, visto não conseguir
ouvir os apelos menos fortes. Oxalá eles consigam
vencer estas consciências míopes, que tão felizes se

63
ALEXANDRE SOLJENITSINE

sentem por terem encontrado motivos de distracção


e de tranquilidade na canção venenosa do eurocomu­
nismo.

A Voz da América, que tão pudica finge ser em questões


de política, não podia permitir que tais palavras pudessem
ser ouvidas nem no Leste, nem no Ocidente. Mas ainda há
pior: à semelhança da Rádio Moscovo, A Voz da América
utiliza, muitas vezes, entoações de voz francamente comu­
nistas, próximas do poder soviético. Recentemente, quando
da doença de Tito, anunciou:

Boas notícias chegam da Jugoslávia; durante a


doença do marechal, milhares de cidadãos alistaram-se
espontaneamente nas fileiras da Liga dos Comunistas!

São exactamente as mesmas frases insultuosas, lenino­


-estalinistas, que os altifalantes derramam todos os dias sobre
os ouvintes soviéticos. Uma emissão deste género apenas
pode dar azo a duvidar da capacidade intelectual dos seus
autores.
Na transmissão de programas religiosos, pouco espaço é
deixado aos ofícios ortodoxos, dos quais os seus ouvintes
necessitariam de modo muito especial, privados de igrejas,
como estão; até neste terreno modesto, tal como na U. R. S. S.,
a ortodoxia é reduzida à sua dimensão conveniente, sob o
pretexto de não ser a religião principal dos Estados Unidos.
Isso pode estar muito certo - mas é a da Rússia e, além
disso, as emissões são feitas em russo! Acrescentemos, aliás,
que estas emissões empregam uma língua que só dificilmente
pode ser baptizada de «russo» , cheia de graves erros gra­
maticais, com uma sintaxe confusa, erros de pronúncia e
fonética defeituosa. A conclusão impõe-se por si mesma:
tem-se trabalhado muito a fim de desviar os ouvintes russos
desta estação de rádio.

64
O ERRO DO OCIDENTE

Má utilização, a dada ao mais poderoso meio de que o


Ocidente dispõe para criar um entendimento mútuo, se não
até uma aliança, com o povo russo subjugado !
De resto, as outras estações ocidentais também não são
isentas de defeitos. A B. B. C. não tem menor preocupação
em não ofender as susceptibilidades comunistas, nem ignora
menos a situação actual do povo russo, de que resulta a inca­
pacidade de se limitar ao essencial, tão necessário como o
pão: tanta hora preciosa desperdiçada em conversas fúteis,
sem qualquer interesse para nós !

A minha tenfativa
de endereçar uma «Carta aos Dirigentes»

A massa multinacional contida dentro dos limites da


U. R. S. S. debate-se com o seguinte dilema: ou a expansão
imperialista e sanguinária do comunismo, com a ocupação
de inúmeros países nos quatro cantos do mundo, ou a rejeição
da ideologia comunista, que lhe permitirá enveredar pelo
caminho da paz, da cura, do amor à pátria e do interesse
pelos outros povos.
Como russo, não encontro na primeira hipótese nenhum
motivo de consolação, a não ser que o comunismo acabe um
dia por encalhar e que os dirigentes comunistas que não
tiverem tido tempo para fugir se hão-de sentar nos bancos
de um novo tribunal de Nuremberga. E aí não encontro con­
solação nenhuma, porque a conta terá sido paga por um
povo enganado e martirizado.
Mas como é que se hâ-de abrir a segunda via? Debaixo
da bota comunista e com os meios disponíveis, é uma tarefa

65
Est. Doe. - 1 74 - 5
ALEXANDRE SOLJENITSINE

extremamente difícil, tanto mais que o Ocidente, com a sua


razão obscurecida, adopta uma atitude hostil em relação aos
esforços empreendidos para nos libertar: daí lava as mãos o
melhor possível.
Quando tomei consciência deste dilema, e dentro dos meus
limitados meios, tive a ideia de fazer o que estava ao meu
alcance: escrever uma Carta aos Dirigentes da União Sovié­
tica 1 , a fim de os exortar a Iibertarem�se do delírio comu­
nista e a preocuparem-se com o seu país arruinado. Claro
está que esta tentativa foi quase desesperada, mas o meu
objectivo era pôr claramente o problema: se os actuais diri­
gentes não lhe prestassem atenção, talvez os seus sucessores
o fizessem. Nessa Carta tentei equacionar os princípios bá­
sicos de uma política nacional razoável e que podia ser
realizada sem que, para tal, fosse necessário arrancar o poder
das mãos dos actuais dirigentes comunistas (pois é utópico
pensar que eles, por sua própria iniciativa, a ele possam
renunciar). Propus-lhes rejeitarem a ideologia comunista,
quanto mais não fosse, por enquanto. (Mas acaso sereis capa­
zes de os ver porem de parte uma arma dessas, quando o
Ocidente se mostra tão sensível aos encantos das ideias comu­
nistas?)
Em matéria de política externa, tirei as seguintes conclu­
sões: não se ingerir no destino de todos os continentes, renun­
ciar ao inútil e irrealizável domínio sobre o mundo, renun­
ciar ao Mediterrâneo, não mais ajudar as revoluções da
América do Sul, deixar a África em paz, retirar as tropas da
Europa de Leste (ou, por outras palavras, deixar esses regi­
mes fantoches perante seus povos, sem o apoio das divisões
soviéticas), não manter pela força no interior das nossas fron-

1 Traduzida para francês nas f:ditions du Seuil, Paris, 1 974.


(N. da trad. fr.)

66
O ERRO DO OCIDENTE

teiras nenhuma nação limítrofe, libertar a nossa juventude


da obrigatoriedade universal do serviço militar. Então, escrevi:

Os imperativos do nosso desenvolvimento interno


são muito mais importantes para nós como povo do
que os da nossa expansão externa como potência.

E como é que este programa foi aceite pelos dirigentes


da U. R. S. S.? Ficaram indiferentes, claro. E como é que a
imprensa americana e ocidental o receberam? Aí é que fiquei
confuso! Pois como assim? Afirmaram que a reacção e o
isolacionismo é que fazem pesar as maiores ameaças sobre
o mundo ! ! !
É preciso que o espírito do Ocidente esteja verdadeira­
mente paralisado por sucessivas capitulações, ao longo de
vários decénios: quando, após ter engolido metade da Europa,
a U. R. S. S. penetra na África e na Ásia, o Ocidente fica to­
lhido de respeito: o que é preciso é não provocar a sua ira e
encontrar uma linguagem comum às forças do progresso (não,
aqui há confusão: da agressão) . Quando propus que se pusesse
imediatamente cobro a toda a agressão, que se deixasse mesmo
de pensar em tal, que fossem libertados todos os povos que
o desejassem, que se dedicassem a trabalhar em assuntos
internos, tudo isso foi interpretado e ruidosamente apresen­
tado como a pior reacção e isolacionismo em relação ao
mundo !
Saibamos, ao menos, estabelecer a diferença entre o iso­
lacionismo do protector universal (os Estados Unidos) e o do
agressor universal (a União Soviética) . Os primeiros repre­
sentariam, de facto, um risco mortal para o mundo e para
a paz em geral, mas quão salutar seria o segundo ! Se as
tropas soviéticas (daqui em diante, tanto as cubanas, como
as vietnamesas, ou, em breve, as chinesas) deixassem de agre­
dir o mundo e se retirassem, que perigo resultaria daí? Espero
que me expliquem, porque nem sempre consigo compreender.

67
ALEXANDRE SOUENITSINE

Porém, eu não tinha proposto nem o isolamento sistemá­


tico (cultural ou económico), nem o retirarmo-nos, como se
só nós existíssemos neste planeta. Após sessenta anos de
comunismo, após ter perdido sessenta milhões de homens, não
contando com as vítimas da guerra, a nossa nação está gra­
vemente doente. Propus o único remédio que se pode propor
a um enfermo: em vez de gastar forças preciosas a lutar con­
tra homens que se encontram de perfeita saúde, melhor será
dedicar-se à sua própria cura e poupar todas as forças da
nação para esse fim:

Quase não temos força, inteligência ou coragem


para pôr a nossa própria casa em ordem e ainda nos
vamos ocupar do planeta inteiro [ . . . ] A saúde física
e espiritual do nosso povo deverá constituir o nosso
objectivo.

Exortei a sair do abismo moral no qual o nosso povo é


diariamente lançado, a salvar as crianças da doutrinação
embrutecedora, as mulheres do trabalho físico superior às
suas forças, os homens da embriaguez, a natureza da polui­
ção, a restaurar a educação familiar completamente destruída,
a salvar a língua russa, também ela adulterada pelo sistema
comunista. Para tal, seriam necessários entre cento e cin­
quenta a duzentos anos de paz externa e de persistente tra­
balho interno. Onde está e contra quem é dirigida a ameaça?
Porém, eu tinha realmente dirigido esta carta a dirigentes
autênticos, ao poder ilimitado. Na melhor das hipóteses,
poder-se-ia esperar que fizessem algumas concessões, não
uma capitulação; nem eleições gerais verdadeiramente livres,
nem uma modificação total ou parcial do Governo. O má­
ximo que eu lhes podia propor era renunciarem à ideologia
comunista e às suas consequências mais funestas, permitirem
que o espírito nacional se reerguesse um pouco, porque só os
temperamentos nacionais - a história tem-no demonstrado -
é que são capazes de moldar as sociedades. A partir deste

68
O ERRO DO OCIDENTE

pico gelado que o totalitarismo representa, apenas podia pro­


por uma descida suave e lenta, através de um sistema de
autoridade (um povo que, de repente, quisesse saltar desse
pico para a democracia esmagar-se-ia numa massa informe e
anárquica). E a incompreensão ocidental censurou imediata­
mente esta minha proposta de regime de autoridade!
No entanto, na Carta aos Dirigentes, eu sublinhara: «um
regime autoritário . . . baseado no amor dos homens» , com
«leis firmes que sejam o reflexo da vontade do povo» , «um
regime estável e pacífico que exclua a arbitrariedade e a
tirania> , a renúncia «aos julgamentos à porta fechada, aos
internamentos psiquiátricos, às cruéis masmorras dos campos> ,
concedendo «liberdade para todas as religiões> , «liberdade
de publicação para a literatura e para a arte> . No meu enten­
der, para nos tirar da prisão, ninguém seria capaz de, a título
transitório, propor solução mais rápida e mais saudável.
Acerca da adopção ou rejeição, por parte da Rússia, do
autoritarismo no futuro, nada disse, nem tenho opinião bem
formada a esse respeito. É conhecida a minha crítica a certos
aspectos da democracia. Não acredito que o Governo tra­
balhista, eleito por uma margem de 40 % da população,
pudesse exprimir a vontade de todo o povo britânico quando,
ano após ano, destruía a Inglaterra. Nem que a «pequena
aliança> 1 reflectisse a do povo alemão quando tinha a
maioria no Parlamento. É o que acontece a toda a vontade
popular quando metade dos eleitores, desiludidos, se negam
a ir às urnas.
Não posso ter na conta das virtudes da democracia a sua
impotência perante os pequenos grupos de terroristas, ou o
aumento do banditismo, ou os lucros desenfreados que os capi­
talistas acumulam sem se preocuparem, minimamente, com
a saúde moral da população. Relembrarei que o terrível tota­
litarismo que se manifestou por quatro vezes na Terra nunca

1 Entre liberais e sociais-democratas. (N. da trad. fr.)

69
ALEXANDRE SOLJENITSINE

foi segregado por regimes autoritários, mas sempre por demo­


cracias impotentes: as de Fevereiro, de Veimar, da Itália e de
Chang Kai-chek. Ao longo da história universal, muitos Esta­
dos têm tido regimes de autoridade e nenhum deles deu,
alguma vez, origem ao totalitarismo.
Nunca me atrevi, nem me atrevo, a examinar este pro­
blema do ponto de vista teórico, porque nem sou especialista
em mecanismos do poder, nem político. Sou apenas um
escritor que sente dolorosamente os acontecimentos mais gri­
tantes da actualidade e as suas grandes crises. Na minha
opinião, um problema destes não pode ser solucionado nem
em discussões, nem em recomendações apressadas, se bem que
científicas. A solução apenas pode sair do desenvolvimento
orgânico da experiência secular de um povo liberto de todas
as pressões externas.
Recordo, uma vez mais, o grande respeito que a ciência
universal manifesta pelas particularidades do desenvolvimento
cultural, até mesmo em relação às mais pequenas tribos da
África ou da Ásia, a fim de instituir o seu «complexo locab .
Pela minha parte, também exorto: não negueis esse com­
plexo local ao povo russo, deixai de nos ditar as vossas
soluções, do mesmo modo que não o fazeis em relação à
África. O povo russo existe há mil e cem anos, ou seja, há
muito mais tempo do que estes países que, impacientemente,
lhe ditam a lição. Durante estes mil e cem anos criou e reuniu
conceitos sociais que lhe são próprios e que ninguém deverá
ridicularizar. Eis um exemplo: a concepção tradicional - le­
gada pela antiga Rússia - da verdade (pravda) como justiça
suprema, não jurídica, mas ontológica, provém de Deus; o
ideal social (não quer dizer que cada um viva segundo esse
ideal, mas que cada um o tenha como exemplo) consistia
em viver segundo a justiça, a um nível ético superior às exi­
gências da lei. É o que os seguintes provérbios exprimiam:
« Uma palavra verdadeira pesa mais do que o mundo inteiro, ;
«Deus não é força, mas sim verdade, ; «Se cada um vivesse

70
O ERRO DO OCIDENTE

segundo a verdade, as leis não seriam precisas.» Ou ainda,


segundo as concepções russas tradicionais, a verdade não
pode sair de um escrutínio: a maioria não está, necessa­
riamente, melhor colocada para a descobrir (as característi­
cas da psicologia de massas permitem-nos afirmar que, muitas
vezes, até a vêem pior). Quando os delegados da terra russa
se reuniam para tomar decisões importantes (Estados Gerais),
não havia votações. Tentava-se encontrar a verdade paciente­
mente, através da persuasão, e, no final, ela era determinada
por consenso geral. As decisões destas assembleias não tinham
força de lei aos olhos do czar, mas constituíam obrigação
moral. Deste ponto de vista, a constituição de partidos, isto
é, de facções que lutam para defenderem os seus interesses
particulares, em detrimento dos outros sectores da população,
parece absurda (e, de resto, indigna daquilo a que a huma­
nidade deveria aspirar).
Assim, foi o espírito do país dominado, o seu cristianismo,
aquilo que a tirania omnipotente - que faz hoje tremer tudo
quanto é livre neste planeta (publicistas, parlamentares e diri­
gentes do Ocidente) - procurou aniquilar da maneira mais
sistemática. Mas não conseguiu destruí-lo !
No entanto, as informações mais recentes do Ocidente
apressam-se a fazer crer que a ameaça principal reside agora
neste cristianismo imperecível . . .

Esclarecer ideias

A intervenção de um publicista suscita sempre uma quan­


tidade enorme de reacções, sensatas e honestas, na maioria
das vezes. Mas as que têm o objectiyo de deturpar as suas
intenções são sempre gritadas, expandem-se em títulos his­
téricos, procuram fixar-se na memória dos homens, e, por
vezes, acabam por prevalecer. Os meus princípios, o meu

71
ALEXANDRE SOLJENITSINE

género de vida e de trabalho, levam-me, geralmente, a não


responder a todo este espalhafato. No entanto, visto ter dado
a minha opinião sobre os assuntos mais importantes, vou,
muito rapidamente, destacar algumas dessas deturpações.
A propósito da Carta aos Dirigentes, como a propósito de
outras coisas, fui muitas vezes acusado de ser partidário de
um Estado teocrático, de uma administração do Estado pelas
autoridades religiosas. Mentira: nunca disse nem escrevi nada
disso. As tarefas práticas da gestão do Estado não perten­
cem ao domínio da religião. Não obstante, acho que o Estado
não só se deve abster de perseguir a religião, mas também
lhe deverá conceder, dentro do seu seio, um lugar justo, uma
influência espiritual, como a que ela exerce, por exemplo,
na Polónia, ou em Israel, sem que ninguém tenha nada a cen­
surar. Não vejo por que razão ela foi proibida na Rússia,
onde, ao longo destes últimos sessenta anos, a Fé tem sido
irrigada por uma tradição milenária e pelo sangue de milhões
de mártires, tanto eclesiásticos como leigos .
Ao mesmo tempo, fui acusado de preconizar o retrocesso
em geral - mas não será isto tomar um homem por imbecil,
atribuir-lhe o desejo de se opor à marcha do tempo? Como
se eu exigisse que a Rússia «renunciasse à tecnologia mo­
derna» ! Aí está mais uma dessas pequenas mentiras, quando
o que eu apresentava era a ideia de uma tecnologia «moderna,
mas diversificada, sem gigantismo» .
Então que solução preconizo? Disse-o no fim do meu dis­
curso de Harvard e posso repeti-lo : é o caminho em direcção
ao alto. Acho que este século xx, opulento e materialista, nos
tem mantido a todos - a uns pela fome, a outros pela far­
tura, e há já demasiado tempo - num estado de semianima­
lidade.
O discurso de Harvard valeu-me, por parte de simples
americanos, uma torrente de reacções favoráveis (algumas das
quais chegaram a vir publicadas na imprensa) . Conservei-me
calmo em face da torrente de censuras que a imprensa, exci-

72
O ERRO DO OCIDENTE

tada, sobre mim lançou (julgava-a mais aberta à crítica). Que


eu era um fanãtico, um possesso, um louco, um cínico, um
rancoroso «fautor de guerra» .
Pura e simplesmente, queriam dizer: «Vai-te embora! »
(elegante aplicação d o princípio d a liberdade d e expressão:
serã que os Soviéticos se exprimem de maneira diferente?).
Indignaram-se ao ouvir-me dizer «o nosso país» , para
designar quem me tinha exilado - na realidade, quem me
exilou foi o Governo comunista, não a minha pãtria.
R. Pipes escreveu: «Esta liberdade de expressão que tanto
incomoda Soljenitsine . . . » Penso que ele sabe inglês sufi­
ciente para ler o que então foi pronunciado, isto é, que não
ponho em causa a liberdade de expressão, mas sim o abuso
moral e irresponsãvel da mesma.
A acusação mais frequente foi, no entanto, esta: que eu
incitava o «Ocidente a ir libertar o nosso povo dos comunis­
tas» ! Nesse ponto, trata�se, pura e simplesmente, da recusa
em ler e compreender um texto de forma honesta. Nem no
discurso de Harvard, nem antes dele, incitei alguém a fazer
algo desse género. Ao longo de todos os meus anos de activi­
dade pública, jamais solicitei a ajuda de qualquer governo,
de qualquer parlamento ocidental. Sempre disse: libertar-nos­
-emos sozinhos, essa tarefa compete-nos, custe o que custar.
Ao Ocidente, apenas dirigimos um pedido e um conselho. Eis
o pedido: por favor, não nos afundeis na ditadura, não apoieis
os nossos opressores com os vossos recursos tecnológicos. Eis
agora o conselho: na vossa constante retirada, protegei-vos,
não vos fecheis no último reduto, do qual não podereis mais
sair.
Mas aqui estã mais um desses fingimentos da imprensa, após
o meu discurso de Harvard: mostra-se indignada - como é
que eu posso defender o «direito de não saber> ? (Geralmente,
a citação acaba aí, omitindo o que vem a seguir: não deixar
«abafar a centelha divina da nossa alma à força da verbor­
reia, do palavreado e de disparates vãos» .) Indicar esta

73
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

omissão é já responder. Mas as censuras prosseguem: será


este o mesmo Soljenitsine que na U. R. S. S. reivindicava o
direito de saber? Sim, eu reivindicava que o mundo inteiro
tivesse o direito de saber, de ser informado acerca do arqui­
pélago de Gulag, da resistência popular, dos milhões de
mortes, da fome de 193 3 e da traição de 1945 . Mas nós,
que vivemos tempos tão difíceis, achamos degradantes as infor­
mações que a imprensa nos dá sobre inúmeros pormenores
da operação - não importa qual: aos testículos! - a que
foi submetido um ex-primeiro-ministro inglês, que nos des­
creve o género de colcha que Jacqueline Kennedy possui,
ou nos diz qual a bebida preferida por uma medíocre
cançonetista.
Também houve um grave mal-entendido quando defendi
a ideia de que personalidades mais fortes haviam surgido em
países de Leste, onde a vida é mais difícil e arrasante, do que
no Ocidente, com todas as suas facilidades. Admiraram-se:
que é que isso queria dizer? Que o comunismo era bom?
Que o valor espiritual do comunismo era superior? Está claro
que não. Apenas se tratava da expressão daquela verdade tão
antiga que diz que a personalidade sai reforçada da adversi­
dade e do sofrimento. É evidente que muitos foram aqueles
a quem o cansaço da miséria e da opressão permanentes des­
truiu, esmagou, perverteu e despojou da sua aparência humana.
Mas a opressão provocada pelo mal corrompe de uma forma
menos perniciosa do que a sedução insidiosa. A opressão
declarada provoca uma reacção - o despertar das consciên­
cias e, por vezes, um verdadeiro sobressalto. Os nossos ros­
tos quase nunca se enfeitam com sorrisos delicados, mas, em
contrapartida, a entreajuda que não está regulamentada,
aquela cuja contribuição não é deduzida dos impostos (não
conhecemos esse sistema), é muito mais frequente entre nós.
Lá, o nosso estado de espírito é o risco que se corre pelos
outros, e tive ocasião de observar que uma atitude semelhante
transformou alguns ocidentais que trabalharam muito tempo

74
O ERRO DO OCIDENTE

nas mesmas condições que nós. Um leitor americano decla­


rou na imprensa que havia oferecido cem dólares a cada
uma das suas filhas para lerem o segundo volume d'O Arqui­
pélago de Gulag, mas que elas tinham recusado. Mas reparem,
comparem estes dois tipos de jovens: o cobarde terrorista da
Europa ocidental que ataca à bomba pessoas pacíficas e
governos democráticos e o dissidente da Europa de Leste
que se vai bater, sem armas, contra o Dragão; ou os jovens
americanos refractários ao serviço militar e os jovens solda­
dos soviéticos que, sabendo que iriam ser - como real­
mente foram - fuzilados, mesmo assim se recusaram a dis­
parar sobre os revoltosos (de Berlim, de Budapeste, do
Afeganistão).
Apenas no autodomínio de cada indivíduo e de cada povo
consigo vislumbrar salvação para a humanidade. E é o espí­
rito do renascimento nacional e religioso que se pode hoje
observar na Rússia. Também é esse o ponto essencial do
programa que expus no meu artigo «Acerca do arrependi­
mento e da moderação como qualidades da vida das nações» 1 •
Não sei porque é que este artigo nunca foi mencionado nem
citado pelos meus adversários.
Há pouco tempo, o New York Review of Books utilizava
este título inquietante: «Sobre o perigo do nacionalismo de
Soljenitsine.» Porém, nem essa revista, nem os seus informa­
dores, foram suficientemente perspicazes para indicarem no
artigo a que esse título correspondia onde é que esse perigo
residia. Ora bem, para vos ajudar, aqui estão citações de
artigos que publiquei:
Na Carta aos Dirigentes:
Desejo o bem de todos os povos; quanto mais
perto de nós viverem, mais ligados a nós _ estarão, e
isso é o que mais ardentemente desejo.
1 ln Des voix sous les décombres, Seuil, 1974, pp. 1 10- 148.
(N. da trad. fr.)

75
A LEXANDRE SOLJENITSINE

Também a sorte dos Chineses · me causa uma pro­


funda compaixão, visto que também eles serão vítimas
impotentes desta guerra.

Em «Acerca do arrependimento e da moderação [ . . . ] » :

Teremos de encontrar dentro de nós coragem para


reconhecer os erros que cometemos em relação a
outros povos.
A todos os povos da nossa situação, e não só,
a todos os que estão metidos à força dentro da nossa
órbita, só mostraremos estar verdadeiramente arre­
pendidos quando lhes dermos a autêntica liberdade
para decidirem sobre o seu próprio destino.
Não se pode construir uma sociedade boa sobre
más relações humanas, nem uma humanidade boa
sobre graves ressentimentos entre os países . . . Trata-se
de introduzir a moral individual nas relações entre
os Estados: não faças aos outros o que não queres
que te façam.

Eis aquilo em que consiste o perigo do «nacionalismo


de Soljenitsine> . Eis a ameaça mundial traduzida pelo renasci­
mento nacional e religioso da Rússia.

A penúltima Unha

E, no entanto, mesmo depois do Afeganistão, assim como


depois da Checoslováquia, de Angola ou de qualquer outro
golpe violento que ainda venha a ser dado pelos Soviéticos,

76
O ERRO DO OCIDENTE

como é sedutor continuar, apesar de tudo, a acreditar na


détente! Aliâs, jâ terâ acabado? «Os dirigentes soviéticos ainda
não renunciaram a ela! Brejnev declarou-o expressamente e a
Pravda consagrou-lhe um artigo! » (Eis o que dizem Marshall
Schulman, cujo optimismo acerca da direcção soviética nunca
é desmentido, e muitos outros especialistas de inspiração anâ­
loga.)
É evidente que os Soviéticos estão prontos a continuar
a détente! Porque não haviam de estar? Porque haviam
de renunciar a essa détente, que fazia a felicidade do
Ocidente, quando milhões de cambojanos eram extermi­
nados na selva, pela fome? Essa mesma détente com que
o Ocidente continuava a congratular-se quando, numa
aldeia afegã (não a única, infelizmente), um milhar de
homens e de rapazes de doze anos eram passados pelas
armas! (Nós, os Russos, reconhecemos logo as circunstân­
cias: eis o que é ser soviético! No nosso país também se
massacrou assim, a partir de 1918.) O comunismo soviético
ainda tem muito a lucrar com a détente: abafar os restos
de dissidência no país e arranjar todos os equipamentos
electrónicos de que precisa.
O Ocidente recusa-se, pura e simplesmente, a acreditar
que chegou a hora do sacrifício e não estâ disposto a
fazê-lo. Até mesmo a renúncia aos lucros comerciais é
insuportâvel para esses negociantes, que tencionam conti­
nuar as suas transacções até aos primeiros tiros de canhão.
Não conseguem compreender que os seus filhos não irão
beneficiar com elas e que os ilusórios lucros de hoje se vão
transformar, amanhã, em ruína total. Daqui para diante, os
aliados ocidentais entregam-se a manobras astuciosas: ver,
de entre eles, qual farâ menos sacrifícios. Tudo isto é o resul­
tado de uma prosperidade construída no fim da existência,
em vez da nobreza de espírito e dos nobres ideais dos
quais o Ocidente se separou.

77
A LEXANDRE SOLJENITSINE

O comunismo não poderia ser travado por nenhum arti­


fício da détente, nem por nenhuma negociação: apenas pela
força exterior ou por uma desagregação interna. :E: necessá­
ria acabar com a retirada regular e sistemática do Oci­
dente - e o momento de o fazer já chegou. O Ocidente
encontra-se na penúltima linha, se não mesmo na última.
Por não ter defendido as fronteiras distantes, terá de defen­
der as próximas. Mas hoje pesa já sobre o Ocidente uma
ameaça mais grave do que a de 1939.
Neste momento, seria fatal para o mundo inteiro que a
América pensasse ter encontrado aliados nos dirigentes chi­
neses e um inimigo no povo russo, confundindo este com o
comunismo. Não hâ dúvida de que enfiaria esses dois povos
na boca deste último, para acabar, ela própria, por também
lâ ir parar. Privaria esses dois grandes povos da derradeira
esperança de libertação. Os incansáveis detractores da Rús­
sia e de tudo o que é russo esquecem-se de olhar para os
mostradores dos seus relógios. Os erros cometidos pelo
Ocidente nas suas tentativas para compreender a Rússia
puderam, outrora, ser considerados erros académicos, mas
agora, nestas horas dramáticas que vivemos, já não.
Que na véspera de uma batalha planetária entre o comu­
nismo mundial e o princípio da humanidade o Ocidente
saiba, ao menos, distinguir os inimigos da humanidade dos
seus amigos e procurar aliar-se a estes e não àqueles.
Cedeu-se tanto, renunciou-se a tudo, desperdiçou-se tanta
coisa, que hoje nem a união de todos os Estados ociden­
tais permitiria resistir: a não ser que o Ocidente se alie aos
povos dominados dos países comunistas.
Vermont, Fevereiro de 1980 1 •

(Traduzido do russo por Nikita Struve.)

1 Este artigo foi reproduzido nos E. U. A. em Foreign Aflairs,


no seu mímero de Abril de 1980. (N. da ed. fr.)

78
AP:tNDICE
COMENTARIOS E CORRESPONDtNCIA

O comunismo e a Rússia

Ao EDITOR:

O artigo de Alexandre Soljenitsine intitulado «Ideias


erradas acerca da Rússia constituem uma ameaça para a
América» , publicado em Foreign Affairs (na Primavera de
1980), está escrito no tom cáustico e desdenhoso de quem
pretende lançar no descrédito os que, como eu, pensam de
maneira diferente, em vez de entrar em diálogo com eles.
Não tenciono responder na mesma moeda. A minha inten­
ção é mostrar porque é que acho que a opinião fundamental
do Sr. Soljenitsine acerca do comunismo é mórbida, dar aos
leitores de Foreign Affairs um.a imagem mais nítida do que
a que ele deu sobre um artigo meu, e que ele criticou, bem
como da importante problemática em causa, e, evidente­
mente, responder às críticas por ele feitas.
O movimento marxista que veio a chamar-se «comu­
nismo» surgiu na Rússia no princípio do século sob a che­
fia de Lenine e recebeu, então, o nome de «bolchevismo» .
A opinião fundamental do Sr. Soljenitsine é que não
existe, nem nunca existiu, nada de especificamente russo
no comunismo; que o comunismo e a Rússia não ligam
bem um com o outro, a não ser da mesma maneira que um
tumor canceroso se liga ao corpo do qual se alimenta; e que
o mesmo pode ser dito a respeito de qualquer outra nação
à qual se tenha estendido ou venha ainda a estender. Que
o comunismo é não-nacional e antinacional. Que é funda­
mentalmente uniforme e imutável; que não sofre quaisquer

81
Est. Doe. - 1 74-6
A LEXANDRE SOLJENITSINE

alterações significativas nem no espaço, nem no tempo,


como, por exemplo, a Rússia comunista na época de Lenine
e na de Estaline.
Dado ser essa a opinião fundamental do Sr. Soljenitsine,
é muito fácil ver a razão pela qual ficou tão irritado com o
meu artigo «Estaline, o último bolchevista» . Publicado no
New York Times de 2 1 de Dezembro de 1979, no centená­
rio do nascimento de Estaline, afirmava eu nesse trabaJho
que, no fundo, o bolchevismo era um movimento diferente
no tempo de Lenine e que Estaline apenas representou uma
corrente dentro dele, muito embora a corrente dominante.
O artigo caracterizava a corrente estalinista como «bolche­
vismo nacional russo: uma mistura do marxismo leninista e
do nacionalismo russo» . Devido à sua posição básica de que
o comunismo e a Rússia não ligam um com o outro, que o
comunismo e o nacionalismo são fenómenos antitéticos, o
Sr. Soljenitsine não consegue imaginar a possibilidade da
existência de um fenómeno (tão misto) como é o «bolche­
vismo nacional russo» . Tal seria uma contradição termino­
lógica. É por isso que ele acha «espantoso» que um erudito
e um estudioso da política, como eu, continue ainda hoje a
«cometer um erro básico na interpretação do fenómeno
comunista» . Sendo as divergências do seu ponto de vista
assim tão profundas, vou explicar a razão pela qual me
afasto dele.
O Sr. Soljenitsine engana-se ao pensar que o comunismo
e as culturas nacionais são, necessariamente, antitéticas em
todos os aspectos e que o comunismo é, por natureza,
uniforme e imutável. Existem muitas provas de natureza
histórica a demonstrar: ( 1) que o comunismo, como ideolo­
gia, ordem social e forma de governo, embora sempre auto­
ritário dentro do esquema do Estado do partido único,
muitas vezes assimila ou mistura-se, de maneira subtil, com
vários elementos da tradição cultural nacional - observa-se
uma amálgama de comunismo e cultura nacional em países
nos quais partidos comunistas subiram ao poder; (2) que,
por conseguinte, o comunismo tende a variar de género de
país para país, como, por exemplo, entre a Rússia e a Jugos­
lávia, ou entre a Rússia e a China, porque os seus passados
nacionais diferem; e (3) que o comunismo, especialmente
no primeiro país a ser por ele governado, tem sofrido mudan­
ças muito significativas de período para período: do tempo

82
O ERRO DO OCIDENTE

de Lenine para o de Estaline, do de Estaline para o de


Kruchtchev e do de Kruchtchev para o de Brejnev.
Por exemplo, a história escrita pelo Sr. Soljenitsine
acerca da vida num campo de concentração estalinista, Um
Dia na Vida de Ivan Denisovich, não teria sido publicada
(nem o seu autor teria escapado ao exílio) na Rússia de
Estaline, assim como também não seria publicável na actual
Rússia de Brejnev, mas foi publicada no tempo de
Kruchtchev, no jornal literário soviético Novy Mir; e o autor
dessa excelente obra terá consciência do grande significado,
não só para ele, dessa mudança operada no comunismo
russo ao longo dos tempos. Muitos outros exemplos podiam
ser apresentados. No Ocidente surgiu, num passado muito
recente, um assunto completamente novo, o «estudo com­
parativo do comunismo� , visto os intelectuais terem com­
preendido a necessidade de se tomarem essas diferenças em
consideração e de se analisarem a sua natureza e as suas
causas. A opinião do Sr. Soljenitsine acerca de um comu­
nismo internacionalista e imutável, que não se liga (nem
pode ligar) aos elementos das culturas nacionais, é, pura e
simplesmente, a versão extremista da posição que, inicial­
mente, prevalecia nos estudos ocidentais sobre o comunismo
e que, lentamente, tem vindo a ser vencida, à medida que
intelectuais de mentalidades mais abertas têm reflectido sobre
as provas factuais e o seu significado.
Porém, não é à volta de uma maneira russa de encarar
o comunismo (a de Soljenitsine) e uma outra, ocidental
(abordagem histórica, cultural e comparativa - mais recente),
que o problema se põe. A ideia, tão inaceitável para o
Sr. Soljenitsine, de que a Rússia e o comunismo não se
podem ligar, nem se ligaram de modo a constituírem uma
amálgama no movimento bolchevista de Lenine, jamais foi
melhor explicada do que por Nicolas Berdyaev, pensador
de credenciais como nacionalidade russa, prática religiosa
ortodoxa russa e ideologia não comunista, pelo menos, tão
fortes como as suas. Esse emigrante russo - tão conhecido -
começou o seu livro The Origin of Russian Comunism 1

1 A Origem do Comunismo Russo.

83
ALEXANDRE SOLJENITSINE

(Londres, Saunders, 1973) com estas palavras sinceras e


memoráveis:
É difícil compreender o comunismo russo devido
à sua dupla natureza. Por um lado, é um fenómeno
internacional e mundial; por outro, é nacional e
russo. É particularmente importante que as menta­
lidades ocidentais compreendam as raízes nacionais
do comunismo russo e que foi a história mssa a
estabelecer os seus limites e a moldar o seu carácter.
Berdyaev viu que havia traços subtis, nitidamente russos,
no bolchevismo, mesmo antes de ele ter subido ao poder
em 1 9 17, tais como a insistência feroz e profundamente
intolerante na ortodoxia (versão de Lenine acerca do mar­
xismo), o discurso de tipo cáustico que muitíssimas vezes
procurava desacreditar aqueles que pensavam de maneira
diferente e o espírito messiânico, com antecedentes nacio­
nais no antigo conceito ideológico de Muscovy, como o
único czarismo ortodoxo, a «terceira Roma» .
Em The Russian Idea 1 (Londres, Macmillan, 1947,
p. 250), Berdyaev dizia mais adiante que «se deu uma pro­
funda nacionalização na Rússia Soviética e o regresso a
muitas tradições do passado russo. O leninismo e o esta­
linismo não são o marxismo clássico [ . . . ] . O comunismo é
um fenómeno russo, apesar da sua ideologia marxista» .
Se ainda fosse vivo e pudesse escrever, Berdyaev corrigiria,
muito provavelmente, essa afirmação, dizendo que, ao ser
transplantado para a China, Jugoslávia, Hungria, etc., o
comunismo mostrou tendência para, nesses países, e apesar
da sua origem soviética e russa, se transformar num fenó­
meno comunista chinês, jugoslavo, húngaro, etc., embora
conservando ainda algumas características gerais comuns
aos diferentes comunismos (a estrutura do partido-Estado,
por exemplo, e a fidelidade à ideia do «marxismo-leni­
nismo» , como crença orientadora, bem como diferenças
significativas nas maneiras de interpretar o significado de
«crença» ) . E ele teria razão em ser dessa opinião. Entre o
seu pensamento e o do Sr. Soljenitsine o abismo não é
menor do que entre o de um intelectual ocidental, como eu,
e o do Sr. Soljenitsine. Consequentemente, não estamos
1 Ideia Russa.

84
O ERRO DO OCIDENTE

a tratar de um problema que oponha um russo a um


estrangeiro: o Sr. Soljenitsine não tem o direito de dar lições
nem ao público americano, nem ao mundo, acerca da opi­
nião russa a respeito das coisas. A sua opinião é a de um
russo influenciado, partilhada na sua pátria e no estrangeiro
por algumas pessoas, mas não por outras.
O meu artigo sobre Estaline defendia a tese segundo a
qual ele combinaria o bolchevismo com o nacionalismo
russo de uma maneira muito especial. O elemento especial
do passado nacional russo que ele achou altamente relevante
para os actuais problemas soviético-russos foi a antiga tra­
dição czarista e imperial. Na herança czarista dos primeiros
séculos - do século xv ao século XVIII - descobriu um
modelo de desenvolvimento nacional forçado, para criar
um Estado forte e militarizado num enquadramento inter­
nacional hostil. Muito especialmente, encontrou na polí­
tica do czar Pedro I (governante russo, a quem Alexandre
Herzen, pensador russo do século x1x, chamou «revolucio­
nário, embora coroado» ) o exemplo e o modelo da «revo­
lução de cima» , por ele introduzidos no início dos anos 30
na Rússia Soviética, então isolada internacionalmente. Assim,
ele deu nova forma ao comunismo soviético, na via para
um comunismo soviético-russo imperial, no qual a revo­
lução comunista internacional foi comparada ao engrandeci­
mento do Estado soviético-russo.
Ao depararem-se-lhe as críticas de muitos antigos bol­
chevistas no início dos anos 30, em especial por causa da
fome catastrófica resultante dos seus esforços mal orien­
tados, no sentido de, pelo terror, meter os camponeses em
herdades colectivas, de modo que o Estado se pudesse
apoderar de grandes quantidades de cereais para exportar
e, assim, financiar o programa de industrialização forçada,
Estaline reagiu com fúria e, entre 1934 e 1939, levou a
cabo uma gigantesca depuração terrorista dentro do Partido
Comunista Soviético. Nisto seguiu o modelo de outro gover­
nante russo, ainda mais antigo, o czar Ivã IV, cuja depura­
ção terrorista da sua alta aristocracia no século XVI o fez
ficar na história com o nome de «Ivã, o Terrível-,, .
O Sr. Soljenitsine fica desesperado e afirma:
O Prof. Tucker corre a salvar o socialismo, suge­
rindo que, afinal, Estaline não era um socialista

85
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

autêntico! Não actuou segundo as teorias marxistas,


antes seguiu as pisadas daquele desagradável par,
lvã, o Terrível, do século xv1, e Pedro, o Grande,
do século xvm.
Tal afirmação altera e distorce a clara mensagem do
meu artigo, que dizia que, no estrangeiro, muitas pessoas
passavam por cima dos elementos bolchevistas que
persistiam na amálgama de bolchevismo e naciona­
lismo russo feita por Estaline e o consideravam líder
nacional, cuja obediência ao socialismo e ao mar­
xismo eram a mesma coisa. Estaline nunca aban­
donou nem o socialismo, nem o marxismo, na inter­
pretação que deles fez: o socialismo era o sistema
da sociedade dominada pelo Estado, formada pela
sua revolução de cima, e o marxismo a doutrina que
santificava esse regime, ao considerá-lo socialista.
Quanto ao tal «desagradável par» , o Sr. Soljenitsine
pode odiar o que quiser, mas o que importa é saber se
Estaline, efectivamente, quis emular os modelos desses dois
governantes russos (na interpretação que deles faz). Se
for - e tentei prová-lo em vários artigos já publicados e
num livro que está para sair -, então ninguém tem o direito
de negar o significado histórico da atitude de Estaline em
relação a esses czares, pelo simples facto de o assunto ser
desagradável.
Como se reconhecesse tal, o Sr. Soljenitsine recua e
pergunta:
Mas que <<modelo» podia Estaline ter encontrado
na Rússia czarista, como diz Tucker? Não havia
campos, nem sequer a noção do que poderiam ser.
Antes de comentar esta inexactidão, devo salientar que
a questão da restauração dos modelos e práticas czaristas
levada a cabo por Estaline não pode ser restringida ao caso
dos campos, nem a tradição política czarista pode ser com­
parada - como o Sr. Soljenitsine faz no seu artigo - ao
sistema estatal czarista relativamente liberal da fase final
do antigo regime. Os modelos czaristas que Estaline achou
dignos de serem seguidos na sua política pertenciam ao pas-

86
O ERRO DO OCIDENTE

sado distante da Rússia. Um desses padrões foi a escrava­


tura, a ligação dos camponeses à terra e, a ela associada, a
barschina (a corveia); estes conceitos foram ressuscitados (só
o nome é que não) na «herdade colectiva> estalinista e a
legislação promulgada no final dos anos 30 regulou a sua
aplicação. Outro padrão seguido foi o sistema de gradua­
ções, uniformes e insígnias para os oficiais do Estado, que
Estaline recriou, com base no modelo estabelecido pelo
czar Pedro, na sua «Tabela de Graduações> .
Apesar da sua preferência pelos antecedentes de czares
«progressistas> (era essa a sua designação oficial na Rússia
no tempo de Estaline), tais como Ivã III, que, no século XV,
forjou o grande sistema estatal russo centralizado, Ivã IV,
no século XVI, e Pedro I, no século XVIII, Estaline seguiu
alguns exemplos dos últimos czares. Em 1932, a fim de
controlar os lugares de residência e as deslocações das pes­
soas na Rússia Soviética, ressuscitou o sistema do passa­
porte interno, que havia existido na Rússia czarista até
1917 e que fora abolido pela Revolução. Em 1934 criou
no seu Comissariado para os Assuntos Internos uma «comis­
são especial>, cuja composição e poderes (que permitiam a
aplicação da pena de exílio administrativo até cinco anos
para aqueles que as autoridades achassem perigosos) repro­
duziam os da «comissão especial> criada no Ministério
do Interior czarista a seguir ao assassinato do czar Ale­
xandre II, em 188 1 . Estaline experimentou, pessoalmente,
os poderes da primeira «comissão especiab , tendo sido
várias vezes exilado por sua ordem, visto ser revolucionário.
A facilidade com que também sempre conseguiu escapar
deve-lhe ter servido de inspiração para as medidas que
adaptou, no endurecimento do sistema penal, ao mesmo
tempo que o expandiu em larga escala.
Falemos agora dos campos. Os campos de trabalhos
forçados, do género dos que pulularam na Rússia Soviética
de 1929 em diante, não tinham comparação possível na
Rússia czarista. Mas o Sr. Soljenitsine, que encontrou o seu
começo nos campos de concentração criados pela autori­
dade de Lenine em 1918, quando a Guerra Civil principiou,
precisará de levar mais longe a sua investigação his­
tórica. Quando o fizer, descobrirá que a utilização gover­
namental dos trabalhos forçados existiu na Rússia czarista,
nomeadamente sob o domínio do cruel czar Pedro, que

87
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

não só escravizou os camponeses de aldeias inteiras, obri­


gando-os a trabalhar nas recém-construídas fábricas de
guerra russas, mas também reuniu prisioneiros de guerra,
civis, oriundos dos territórios ocupados, e servos - pro­
priedade do Estado -, naquilo a que um notável espe­
cialista em história da economia, de formação anglo-russa
e vasta experiência em assuntos relacionados com a Rússia,
Leonard Hubbard, chamou «os campos de trabalhos for­
çados de Pedro> , para a construção de canais e outras
coisas semelhantes 1 • Os trabalhos forçados foram também
utilizados na edificação da nova capital de Pedro, o Grande,
nos pântanos do Norte, e a palavra «campo> podia ser,
possivelmente, a descrição exacta das condições em que os
forçados estavam alojados - se é que estavam.
Mas o Sr. Soljenitsine não precisa de recuar tanto no
passado para encontrar linhagem czarista para os campos
soviéticos de trabalhos forçados. Bastar-lhe-á consultar o
relato de uma viagem de ida e volta feita em 1 885- 1 886
para leste dos montes Urales, por George Kennan, tio do
nosso contemporâneo, George Frost Kennan, cuja notável
carreira como intérprete americano da Rússia Soviética o
Sr. Soljenitsine caluniou nesse mesmo artigo publicado em
Foreign Affairs. Somos obrigados a reconhecer que o sim­
ples facto de Kennan ter -sido autorizado a fazer essa viagem
e a observar os presos a trabalhar marca um ponto a favor
do sistema estatal dos últimos tempos da Rússia czarista,
comparada com o da Rússia Soviética. Dedicou um longo
capítulo do seu pormenorizado registo às condições em que
os condenados trabalhavam nas minas de ouro da Sibéria
oriental. Pertenciam ao czar, rendiam-lhe 3600 libras de
ouro puro por ano, gastando ele 500 000 rublos, ou seja,
cerca de 250 000 dólares, na manutenção desse estabeleci­
mento mineiro penal. Vale a pena citar um passo significa­
tivo do relato que Kennan publicou após a sua viagem:
De um dos lados de um recinto aberto, à volta
do qual se erguiam a prisão e os barracões, traba­
lhavam uns quarenta ou cinquenta presos na cons-

1 Leonard Hubbard, The Economics of Soviet Agriculture, Lon­


dres, Macmillan, 1939, p. 19.

88
O ERRO DO OCIDENTE

trução de um novo edifício de madeira, envergando


uns capotes compridos, cinzentos e com losangos
amarelos nas costas; rodeavam-nos um cordão de
cossacos vestidos com shubas de pele de carneiro,
botas de camurça e gorros de pele, que, imóveis nos
seus postos e encostados às suas espingardas Berdan,
observavam os prisioneiros 1 •

Esse negócio, tal como todas as operaçõe� na Sibéria


oriental ligadas à extracção do ouro pelos prisioneiros, era
em escala bem pequena, se o compararmos com o império
construído à custa dos trabalhos forçados na época de
Estaline; e não há dúvida de que esses capotes cinzentos
davam uma protecção muito mais eficaz contra o frio do
que o vestuário miserável distribuído aos prisioneiros na
Rússia Soviética. Por outro lado, porém, essa cena asse­
melha-se em parte a outras descritas pelo Sr. Soljenitsine no
no seu livro O A rquipélago de Gulag. Além disso, o pro­
blema principal é que o regime de trabalhos forçados já
tinha antecedentes na Rússia Soviética e, portanto, prece­
dentes na Rússia dos czares.
O Sr. Soljenitsine diz que a modéstia o impede de me
pedir que leia, pelo menos, o primeiro volume de O Arqui­
pélago de Gulag e, o que seria ainda melhor, os três.
A modéstia não me impede de revelar que já os li todos.
Neles aprendi muito sobre as vivências nos campos sovié­
ticos, o que se somou a tudo quanto eu já aprendera ante­
riormente noutras obras importantes sobre este assunto.
O que me surpreende é o facto de o Sr. Soljenitsine parecer
pensar que a sabedoria ocidental tivesse desprezado, ou até
abafado, este caso até ao aparecimento da sua obra. Isso é,
pura e simplesmente, inexacto. Eis os títulos de dois livros re­
sultantes de mui cuidadosas pesquisas, que oferecem valiosas
informações e são conhecidos por todos os honestos inves­
tigadores de estudos soviéticos: Trabalhos Forçados na
Rússia Soviética, de David J. Dallin e Boris I. Nicolaevsky 2,

1 George Kennan, Siberia and Exile System (resumido),


Chicago, University of Chicago Press, 1958, p. 171.
2 Forced Labor in Soviet Russia, New Haven, Yale University
Press, 1947.

89
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

e Trabalhos Forçados e Desenvolvimento Económico: ln•


quérito à Experiência da Industrialização Soviética, de S.
Swaniewicz 1 • A estes dois livros podem acrescentar-se inú­
meros relatórios de primeira mão altamente informativos,
tais como: Onze Anos nos Campos de Trabalhos Soviéticos,
da autoria de Elinor Lipper 2, e Contai ao Ocidente: Relato
da Sua Experiência como Forçado na U. R. S. S., de Jerzy
Gliksman 3, para apenas referir dois exemplos importantes
de entre um muito maior número que podia ser fornecido.
Há mais um problema. Devido a toda a quantidade de
testemunhos importantes nele contidos, O Arquipélago de
Gulag presta um mau serviço à compreensão histórica,
metendo o conteúdo factual dentro de um esquema simplista
e linear do desenvolvimento soviético, esquema esse que
trata todos os horrores da época estalinista como o desen­
volvimento lógico e necessário do que já se encontrava em
fase embrionária no início do comunismo de Lenine. Se­
gundo este ponto de vista, não existiu uma época estalinista
propriamente dita e até a palavra «estalinismo> é tabu. No
seu ensaio publicado em Foreign Affairs, mais precisamente
na parte dedicada ao meu artigo, o Sr. Soljenitsine mostra,
de maneira muito clara, essa conclusão:
O «estalinismo> nunca existiu, nem na teoria, nem
na prática; nunca existiram nem tal fenómeno, nem
tal época. Esses conceitos foram inventados após
1956 por intelectuais europeus de esquerda, como
maneira de salvar os «ideais> do comunismo.
E mais adiante:
Na União Soviética costuma dizer-se, e com;
razão, que «Estaline é o Lenine de hoje> .

1 Forced Labour and Economic Development: An Enquiry into


the Experience of Soviet lndustrialir.ation, Londres, Oxford Uni­
versity Press, 1965.
2 Eleven Years in Soviet Prison Camps, Chicago, Henry
Regnery Co., 195 1.
3 Tell the West: An Account o/ His Experiences as a Slave ,
Laborer in the Union of Soviet Socialist Republics, Nova Iorque, .
Gresham Press, 1948.

90
O ERRO DO OCIDENTB

Era o próprio Estaline a querer que o povo o dissesse,


acreditando, nisso, tal como ele mesmo, nunca deixando que
o termo «estalinismo, fosse utilizado oficialmente. É irónico,
e, em última análise, triste, que o ex-oficial do exército
soviético-russo que em 1945 partiu para a sua longa viagem
através de Gulag, devido a uma incauta referência crítica
a Estaline numa carta dirigida a um amigo (e que ficou
então a saber que Estaline estava longe de ser o «Lenine
de hoje,), apareça agora, trinta e cinco anos mais tarde,
e em liberdade, a repetir solenemente - e como se de
uma verdade se tratasse - o que o arrogante e narcisista
Estaline pensava de si mesmo.
Por ter crescido na ignorância de muitos factos impor­
tantes, devido à censura soviética, o Sr. Soljenitsine pode
ser desculpado pelo facto de desconhecer que o conceito
de «estalinismo> não foi criado por intelectuais europeus
por volta de 1956, mas por bolchevistas oposicionistas no
final dos anos 20, princípio dos anos 30. Mas esta questão
é secundária, assim como a de saber se, efectivamente, que­
remos usar o termo «estalinismo, para designar a época
da história soviética dominada por Estaline e a formação
sociopolítica por ele criada - ou, tal como prefiro chamar,
o «bolchevismo nacional russo> . A questão fulcral é saber
se - tal como eu acho e a história comprova - essa época
e essa formação existiram, ou não, segundo a opinião do
Sr. Soljenitsine.
Este problema não é de índole puramente histórica,
como poderá parecer. Ele afecta a nossa interpretação das
correntes e dos acontecimentos na Rússia Soviética actual.
Se a tendência estalinista existente no movimento comu­
nista soviético misturou o bolchevismo com o nacionalismo
russo, então - e como aconteceu com o Sr. Soljenitsine -
não vamos ficar cegos quanto à possibilidade de que uma
forma extremamente maligna de nacionalismo russo extre­
mista possa estar a germinar, ou tenha até já germinado
completamente, em certos círculos soviéticos da nossa era.
Tal seria de esperar como parte da herança de Estaline,
uma forma de chauvinismo russo, apenas com uns leves
traços de bolchevismo (ainda que só com alguns). Consi­
deraríamos a invasão e a brutal ocupação militar do Afe­
ganistão como o resultado do imperialismo russo-soviético,
tal como, efectivamente, parece ser - seguindo novamente

91
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

a herança que Estaline legou à Rússia Soviética, herança


de um chefe que ligou o bolchevismo à tradição imperial
russa e, a partir daí, criou um sistema e uma política externa
composta das piores características de ambos.
O Sr. Soljenitsine e eu estamos plenamente de acordo
num ponto: as ideias erradas acerca da Rússia são perigo­
sas. Mas, infelizmente, o seu pensamento, tal como expresso
no seu artigo publicado em Foreign Affairs, está muito longe
de delas estar isento.
ROBERT C. TUCKER
Universidade de Princeton
Princeton, N. J.

*
Ao EDITOR:

Sou um cidadão demasiado insignificante para me atre­


ver a escrever solicitando a publicação. Contudo, ouso pen­
sar que, na minha qualidade de assinante e de ardente
admirador de Foreign Affairs, posso exprimir ao seu editor
a minha surpresa ao ver que nada mais nada menos do que
trinta e sete páginas são concedidas ao Sr. Soljenitsine para o
que, essencialmente, é uma tirada injuriosa e abusiva contra o
povo americano. Somos por ele tratados como ignorantes,
estúpidos e idiotas, como mal informados por diplomatas
incompetentes e desatentos correspondentes no estrangeiro
e - para cúmulo - como portadores de tendências pró­
-comunistas. E, além disso, tenta, muito nitidamente, semear
a discórdia entre vários grupos do nosso povo.
Na sua qualidade de hóspede não muito bem acolhido
por todos esses americanos mal informados, prega-nos ser­
mões como a um bando de crianças enganadas (ou ainda
pior) e é de uma severidade insultuosa em relação à nossa
própria acção e pensamento políticos. Contudo, ele pró­
prio é de uma parcialidade tão arrogante que chega ao ponto
de absolver a Rússia do século XIX de qualquer crime de
violência, repressão ou perseguição. Será que nunca ouviu
falar de massacres organizados ou, pura e simplesmente,
não se importa?
Sobretudo, e como é evidente, ele não se importaria
de ver elevado número desses ingénuos americanos e seus

92
O ERRO DO OCIDENTE

aliados derramarem o seu sangue para libertarem a Rússia


do comunismo, de modo que ele e os partidários da mesma
crença política pudessem substituir o imperialismo soviético
pelo expansionismo benigno ( e tão pacífico . . . ) da Rússia
czarista do século XIX!
É justo que Foreign Affairs ofereça a hospitalidade das
suas páginas a todas as opiniões, mas quando um hóspede
estrangeiro escreve de modo tão superior e faccioso como o
Sr. Soljenitsine, algumas palavras de réplica imediata são
a resposta bem necessária à sua má-educação. Tal é parti­
cularmente verdadeiro quando um homem de reconhecido
valor literário, e, ainda por cima, um Prémio Nobel, desce
do seu pedestal para repreender os seus anfitriões.
Esta minha carta não é uma censura, na verdadeira
acepção da palavra. É simplesmente a reacção irada e
espontânea de um leitor esperançado, sinceramente, em que
o discurso de Harvard, que esta visita indesejável nos fez
engolir, tivesse sido ultraje suficiente.
SILVIO J. TREVES
Nova Iorque, N. Y.

ERRATA
PRIMAVERA DE 1980
Na p. 830 do artigo do Sr. Soljenitsine «Ideias erradas
acerca da Rússia constituem uma ameaça para a América> ,
quis o autor citar os casos da Polónia e de Israel como
países nos quais a religião contribui para a vida espiritual
da nação (embora não como nações onde o Estado não
persiga a religião). Assim, nessa página, linhas 3-7, dever­
-se-á ler o seguinte:
O que acho é que o Estado não deverá perse­
guir a religião. Mais, a religião devia dar um con­
tributo adequado à vida espiritual da nação; tal
situação existe em Israel e na Polónia, por exemplo,
e ninguém a condena. Não consigo perceber porque
é que a mesma coisa é proibida na Rússia.

93
o SR. SOLJENITSINE E os SEUS camcos
Ao EDITOR:

O artigo de Alexandre Soljenitsine «Ideias erradas acerca


da Rússia constituem uma ameaça para a América» , publi­
cado no vosso número da Primavera de 1 980, contém uma
série de erros factuais que, aliados às fortes tendências do
autor, retiram toda e qualquer validade à sua argumenta­
ção. Uma parte do que diz é importante, como, por exemplo,
acerca da necessidade de estabelecer a diferença entre
U. R. S. S. e Rússia. Contudo, se os conselhos do Sr. Solje­
nitsine fossem seguidos nos Estados Unidos, tal significaria
acabar com uma política coerente em relação à União
Soviética.
O Sr. Soljenitsine comete erros, praticamente, em todos
os aspectos da história imperial da Rússia que menciona. Diz
que «todas as investigações criminais eram feitas em rigo­
rosa conformidade com a lei estabelecida, os julgamentos
eram públicos e os réus tinham representação legab . Pelo
contrârio: em vez disso, as «medidas extraordinârias» de
1 8 8 1 davam aos governadores das províncias e a outras
autoridades locais poderes para fazerem julgamentos à porta
fechada, ou para transferirem casos para tribunais militares
sempre que necessârio, «a fim de proteger a ordem e a
tranquilidade públicas» . A imprecisão é característica da
lei czarista, também - e com razão - famosa pela sua
arbitrariedade. Especialmente depois da revolução de 1 905,
milhares de camponeses e trabalhadores foram julgados por
tribunais marciais e condenados à morte. Quanto às inves­
tigações criminais, eram muitas vezes preteridas em relação
à râpida acção administrativa, especialmente em casos polí­
ticos. Por volta de 19 12, apenas cinco milhões de russos
não viviam sob uma das «medidas extraordinârias» ; elas

94
O ERRO DO OCIDENTE

eram uma verdadeira constituição do país, como Richard


Pipes sublinhou.
«Os intelectuais não estavam limitados no exercício da
sua actividade.» Mas, na realidade, as organizações dos
intelectuais, grupos de médicos e de professores, por exem­
plo, eram permanentemente vigiados pela polícia czarista,
conferências públicas eram muitas vezes suprimidas devido
ao tema político, jornais eram encerrados e todos os níveis
de ensino cuidadosamente controlados e regulamentados
pelo Estado. Por volta de 1 9 1 4 havia entre os intelectuais
russos muitos sintomas de grande descontentamento com o
czarismo.
«As instituições de ensino superior gozavam de uma
autonomia inviolável.» Pelo contrário, foi apenas por o
regime ter sido encostado à parede pelos acontecimentos de
1905 que concedeu (mais exactamente, voltou a conceder)
autonomia às universidades; no entanto, alguns anos vol­
vidos, os ministros czaristas da Educação começaram a
interferir profundamente nos assuntos da Universidade.
O caso mais flagrante passou-se em relação à Univer­
sidade de Moscovo, em 19 1 1, quando o ministro de então
enviou a polícia para os terrenos pertencentes à Universi­
dade e mandou fuzilar o reitor. Em consequência, mais
de cem membros da Universidade apresentaram o seu pedido
de demissão, em sinal de protesto. Noutras instituições de
ensino superior, por exemplo, na Universidade Municipal
de Moscovo, a ingerência estatal foi menos espectacular, mas
nem por isso menos completa e eficaz.
«Eram toleradas opiniões religiosas e filosóficas de todas
as tendências.» O caso dos judeus é suficiente para refutar
esta opinião, embora se pudessem citar outros exemplos:
talvez as suas ideias religiosas fossem «toleradas» , mas os
judeus estavam limitados a uma determinada área geográ­
fica, sujeitos a admissão muito restrita às universidades e,
por vezes, vítimas de perseguições consentidas ou até orga­
nizadas oficialmente. A isto não se pode chamar política
religiosa progressista.
Quando se vira para a União Soviética, a exactidão do
Sr. Soljenitsine não melhora. Afirma ele que «os conquista­
dores soviéticos nunca se retiram de países onde tenham
metido o pé» . PeJo contrário, há pelo menos quatro exem-

95
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

plos de retiradas soviéticas: após a segunda guerra mundbC


de parte da Finlândia, do Norte do Irão e da Manchúriil
e, em 1 956, do sector russo da Áustria.
A intenção desta listagem dos seus erros não é demoru1
trar que a Rússia czarista era «má» e que a União Sovii1
tica é «boa» , porquanto isso seria uma deturpação trágic1
da história. Claro está que, em muitos aspectos, se justi!
fica a opinião do Sr. Soljenitsine de que o antigo regime er.:
melhor do que o Estado bolchevista. O Governo comunist,
concedeu menor liberdade de expressão e de religião, uso1:
de maior repressão e matou mais pessoas, numa escal:
muito superior à alguma vez sonhada pelos czares. Ma
estas apreciações praticamente não ajudam a entender ,
Império Russo e o seu destino, nem a compreender ,
União Soviética de hoje.
Há muito que os estudiosos americanos mantêm aces1
debate acerca da questão «Para onde vai a Rússia?» : nai
vésperas da primeira guerra mundial interrogavam-se, sen
saber o que estaria para acontecer - se uma evoluçãc
democrática, se uma revolução. Terão sido, sobretudo, 01
efeitos destruidores da guerra que conduziram à queda d1
regime dos czares, ou terá ela sido mais o resultado das forçai
há muito existentes e firmemente implantadas?
Para o Sr. Soljenitsine não há debate, nem dúvida po&
sível, relativamente às razões da queda da Rússia. «Ela caiu
por ter sido fiel aos seus aliados ocidentais, quando Ni,
colau II prolongou a guerra louca com Guilherme, em vet
de salvar o seu país.» Mas é caso para perguntar como !
que dois anos e meio de luta conseguiram, tão depressa,
destruir fidelidades, de tal modo que, em Fevereiro dê
19 17, durante as revoltas na capital, todos os comandan•
tes operacionais do Exército se recusaram a apoiar o impe•
rador? Nem sequer os políticos conservadores se uniram
para ajudar Nicolau. A deslealdade ao país estendeu-se àa
instituições do czarismo: praticamente não houve resposta
positiva às propostas feitas por Nicolau, segundo as quais
seu filho, e mais tarde seu irmão, viriam a subir ao trono;
Os Russos queriam acabar com o regime sob o qual haviam
vivido durante séculos.
No seu livro From Under the Rubbe, o Sr. Soljenitsine
admite que os oito meses de 19 17, desde a queda da monar.:
guia até à ascensão do bolchevismo ao poder, constituíram

96
O ERRO DO OCIDENTE

l umco período de democracia que a Rússia conheceu.


Mas fica-se por aqui, sem dizer que a tendência para o
!fastamento do czarismo era tão forte que, no final desse
período, a questão dominante na política, e que ocupava
o pensamento da grande maioria dos russos, era a forma
de socialismo que o país deveria adoptar. Nas eleições rea­
lizadas no Outono de 1 9 1 7 para a escolha de delegados para
a Assembleia Constituinte, socialistas de vários partidos
ganharam com mais de 87 % dos votos. E, assim, os Rus­
sos, na opinião do Sr. Soljenitsine, no momento de maior
liberdade, seguiram o caminho que, para ele, é um anátema.
Parece-me não estar o Sr. Soljenitsine melhor documen­
tado sobre o presente soviético do que sobre o passado
russo. Recentemente passei dez meses a fazer investigações
na U. R. S. S., onde tive muitas oportunidades de falar com
pessoas pertencentes a vários estratos sociais. Na medida
em que fazia parte de um grupo de intercâmbio, não estava
sujeito a muitas das limitações que o Sr. Soljenitsine sagaz­
mente descreve como criadoras de dificuldades à maior parte
dos ocidentais que procuram conhecer o país em pro­
fundidade. Encontrei cidadãos leais e desleais; no entanto,
e de uma maneira geral, fiquei com uma forte impressão
de patriotismo, tanto de natureza russa como soviética.
Os outros participantes deste programa de intercâmbio, pos­
suidores de um vasto leque de opinião, concordaram comigo
na generalidade. Entre as razões deste patriotismo estão o
culto da segunda guerra mundial (alimentado pelo Governo,
mas genuinamente popular), o medo oficial e popular em
relação aos Estados Unidos e, ainda mais, à China e a
consciência das muitas invasões sofridas no passado. Tam­
bém observei o orgulho generalizado pelo progresso mate­
rial que a União Soviética tem realizado; a base de compa­
ração que o povo tem para assim pensar é, claro está, a
Rússia czarista. Creio que, para muitos soviéticos, estes
factores constituem um equilíbrio bastante importante rela­
tivamente aos muitos aspectos negativos da sua vida.
Da minha experiência na U. R. S. S. e do estudo que fiz
da história russa e soviética tenho de concluir que um apelo
dos Estados Unidos ao sentimento nacional russo poderia
encontrar na União Soviética algum apoio secreto, mas seria
furiosamente contestado pela maior parte dos cidadãos

97
Est. Doe. - 1 74 - 7
A LEXANDRE SOUENITSINE

- tanto russos como não-russos - como grave ingerência


nos seus assuntos. A necessidade de um Estado forte, sen•
tida por muitos soviéticos, é sinónimo de unidade.
ROBERT W. THURSTO�
Professor assistente de História
Universidade de Vermonl
Burlington, Vermonf


Ao EDITOR:

Receio bem que a ideia verdadeiramente errada acerca


da Rússia e que creio constituir ameaça para a América
reside em Alexandre Soljenitsine. Se aceitássemos as suas
opiniões acerca da Rússia e delas tentássemos extrair uma
política externa adequada, estaríamos a prestar o maior
serviço à União Soviética, mas o pior aos Estados Unidos,
No tocante a esse perigo, isto é, ao imperialismo russo,
não tem qualquer importância política saber como é que se.
interpreta a Rússia ou a história da Rússia e essa discussão
poderia ser deixada para os historiadores.
Não há dúvida de que qualquer pessoa deve sentir
respeito e admiração pela «vida espiritual do povo russa
e pela sua concepção do mundo - o cristianismo> . Contudo1
estas (e outras) características do povo russo não provam
a não existência de um verdadeiro imperialismo russo, qu�
é hoje o grande perigo para a nossa civilização. Com efeito�
este imperialismo russo entrou na cena política mundi�
após a Segunda Grande Guerra, em substituição do impe•\
rialismo nazi alemão.
Estamos autorizados a falar do nazismo e do imperia
lismo alemães, embora não tenhamos o direito de despreza
a «vida espiritual do povo alemão e a sua concepção d
mundo - o cristianismo> . Durante muitos anos, a naçã
alemã foi considerada berço de poetas e pensadores e aguei
que deu ao mundo ainda mais e melhores pensadores, cien
tistas, poetas e músicos do que a Rússia. No entanto, o
nazismo era nitidamente alemão. Felizmente, após a der
rota de Hitler na Alemanha, muitos pensadores, políticos,
escritores e poetas alemães reconheceram o papel desem-

98
O ERRO DO OCIDENTE

penhado pelo seu país no nazismo e, juntando as suas


forças às do cidadão comum e, em especial, às das novas
gerações, tentaram criar uma nova Alemanha. Embora con­
denando não só o nazismo, mas também as suas raízes
históricas na nação alemã, não devemos aceitar o conceito
da culpa colectiva, do mesmo modo que não devemos apoiar
claramente nem acreditar em todos os movimentos antinazis
e humanitários que apelam para as melhores tradições da
Alemanha - os hitlerianos apelavam para as piores. E, no
entanto, essas tradições piores existiam e eram alemãs.
O mesmo se passa com a Rússia. Não há dúvida de que
havia um imperialismo russo e de que a Rússia era consi­
derada e chamada o «polícia da Europa> ; na viragem do
século, era o governo mais reaccionário e aliado de todos
os governos repressivos. O imperialismo russo tinha as suas
características próprias ao emergir de uma Rússia czarista
de tipo feudal asiático. O sonho czarista de dominar o
mundo apoderou-se da alma da nação russa e, infelizmente,
conseguiu sobreviver, tornando-se ainda mais forte sob o
regime comunista, que também tem as suas características
tipicamente russas, do mesmo modo que o comunismo chi­
nês tem características chinesas e o jugoslavo as tem jugos­
lavas.
O que é estranho é ser o próprio Sr. Soljenitsine a
mostrar a Rússia como culpada daquilo que a União Sovié­
tica representa, ao citar o facto - comprovado pela histó­
ria - de os Ucranianos e as nações do Báltico terem sau­
dado os invasores nazis e de aqueles estarem dispostos a
unirem-se aos nazis alemães na sua luta contra os Soviéticos.
Contudo, graças à arrogância dos nazis e à sua convicção de
serem uma nação superior, Hitler não aceitou os Ucranianos
por aliados e tratou-os como sub-humanos. É provável que
tenha sido devido a esse erro que Hitler perdeu a guerra
contra a União Soviética; muitos peritos militares estão de
acordo ao afirmarem que ele poderia ter entrado em Mos­
covo e vencido os Soviéticos.
Por outro lado, quando os exércitos alemães entraram
na Rússia propriamente dita, o povo russo não se compor­
tou como os Ucranianos. Em 1946, ao fazer o balanço da
situação, Estaline tinha toda a razão em declarar que
nenhuma outra nação, a não ser a Rússia, estivera na dis­
posição de fazer sacrifícios tão grandes e de mostrar von-

99
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

tade de combater e derrotar o invasor alemão. Desse modo,


ele admitia que só a nação russa identificava o seu interesse
nacional com a União Soviética. Esta manifestação de nacio­
nalismo russo fazia parte da antiga tradição imperialista
russa.
Se quisermos lutar contra o imperialismo soviético, tere­
mos de ter consciência de que a maioria dos estados da
União Soviética são nações oprimidas, mais do que, sim­
plesmente, indivíduos oprimidos. Existem como nações
diferenciadas: a economia é conduzida por Moscovo, de
acordo com os interesses que, sobretudo, servem os da
Rússia. A cultura e a língua russas são adoptadas em toda
a União Soviética. Entre estas nações e os Russos existe
uma tensão explosiva.
Como sabemos, o problema das nações subjugadas ou
discriminadas é a presença de uma força política explosiva,
até mesmo em países democráticos. Encontramos esse pro­
blema no Canadá, na Inglaterra, na Espanha, etc., e,
claro está, na União Soviética. É, portanto, necessário com­
bater a União Soviética, especialmente no tocante ao pro­
blema da autodeterminação das nações, arranjar maneiras
e meios para apoiar o desejo humano e humanitário da
autodeterminação, a fim de enfraquecer a retaguarda sovié­
tica e fazer o Kremlin tomar consciência da existência de
uma posição que está activa, muito embora não assuma
formas dramáticas. Qualquer aumento da resistência das
nações oprimidas enfraquecerá o potencial bélico dos Sovié­
ticos e será um contributo para a paz.
Estou plenamente de acordo com o Sr. Soljenitsine
quando afirma que a política da détente se pode vir a trans­
formar numa grande catástrofe para os Estados Unidos
e que o comunismo, ou, de modo mais específico, qualquer
regime baseado na filosofia marxista, conduz, inevitavel­
mente, a um mundo desumanizado. As nações oprimidas
do Império Soviético são aliados potenciais do Ocidente e
dos Estados Unidos, em especial; para a paz e para a sobre­
vivência da nossa civilização, é necessário que os Estados
Unidos e o Ocidente não apoiem os opressores do Kremlin,
nem os seus agentes da Europa de Leste. A União Soviética
comprometeu-se, na Carta do Atlântico, na Carta das
Nações Unidas e em Helsínquia, a respeitar o direito à
autodeterminação das nações e o fulcro da política externa

100
O ERRO DO OCIDENTE

dos Estados Unidos deveria ser essa mesma autodetermi­


nação.
EUGEN LOEBL
Nova Iorque, N. Y.
co Sr. Loebl foi o primeiro delegado ministerial
do Comércio Externo da Checoslovãquia. )

*
Ao EDITOR:
No número de Verão de 1 980 de Foreign A ffairs foram
publicadas duas respostas ao artigo de Alexandre Soljenitsine
incluído no número da Primavera: uma do Prof. Robert
C. Tucker, de Princeton, e outra do Sr. Silvio J. Treves,
da cidade de Nova Iorque. De ambas as respostas transpa­
recia uma hostilidade tão grande que fui de novo consultar
o artigo do Sr. Soljenitsine, tendo-o lido cuidadosamente
pela segunda vez. Acho que agora compreendo a utilização
então dada pelo Sr. Soljenitsine ao termo «espanto» quando
se refere às reacções do Ocidente. Não hã palavra mais
adequada: depois de ter relido o artigo do Sr. Soljenitsine,
fiquei espantado com as respostas do Prof. Tucker e do
Sr. Treves.
Nenhuma delas revela uma leitura cuidadosa do artigo
do Sr. Soljenitsine. O Prof. Tucker censura ao autor «o tom
câustico e desdenhoso de quem pretende lançar no des­
crédito os que pensam de maneira düerente» ; no entanto, o
Prof. Tucker dedica seis pâginas inteiras, impressas em tipo
miudinho, à refutação incoerente de apenas duas pâginas
do artigo do Sr. Soljenitsine, que ocupa trinta e sete.
O Prof. Tucker cita a observação do Sr. Soljenitsine de que
na Rússia czarista «não havia campos» e depois dâ uma
lição ao Sr. Soljenitsine acerca do facto de que «na Rússia
czarista o Governo utilizava os trabalhos forçados» - ponto
que o Sr. Soljenitsine admite claramente na mesma pâgina
quando, após ter dito «não haver campos» , se refere a
«prisioneiros não políticos condenados a trabalhos forçados
nessa época» .
Em nenhum ponto da sua resposta trata o Prof. Tucker,
por exemplo, o problema principal focado no artigo do

101
ALEXANDRE SOLJENITSINE

Sr. Soljenitsine: saber se o Ocidente, especialmente ao longo


dos últimos trinta e cinco anos, tem vindo, efectivamente,
a seguir um esquema de cumplicidade inadvertida em rela­
ção à tirania comunista. O Prof. Tucker responde como se
ele próprio e a sua sabedoria fossem os únicos tópicos do
artigo.
Quanto ao Sr. Treves, este diz ser o Sr. Soljenitsine «de
uma parcialidade tão arrogante, que chega ao ponto de
absolver a Rússia do século XIX de qualquer crime de vio­
lência, repressão ou perseguição» . Contudo, o Sr. Soljenitsine
não faz nada disso; apenas salienta - correcta, se bem que
amargamente - que a repressão czarista não era, nem de
longe, tão profunda, inflexível ou feroz como a brutalidade
soviética do século xx foi e ainda continua a ser. Com
efeito, a tirada do Sr. Treves contra o mais recente ataque
do Sr. Soljenitsine soa-me a falso. Tenho até as minhas
dúvidas acerca de se o Sr. Treves terá lido o artigo.
E, por falar nisso, quantas pessoas haverá no Ocidente
que já tenham lido Soljenitsine? Nas minhas turmas de
Inglês da Universidade tive alunos, cujas cadeiras nucleares
eram História e Ciências Políticas, que nunca tinham ouvido
falar do Gulag soviético. Tenho falado com pessoas cultas
que reconhecem não lerem Soljenitsine «por princípio> -
o que me leva a concluir que exprimem a sua ideologia
preferida nos artigos e resenhas hostis dirigidas contra o
Sr. Soljenitsine, como é o caso de tantos intelectuais do
Ocidente. Que explicação pode haver para a violenta reac­
ção ocidental contra o Sr. Soljenitsine, exemplificada na
carta do Sr. Treves, reveladora de informações erradas, na
qual acusa o desanimado exilado russo de «má-educação> ?
É verdade que nem o Ocidente, nem a América, de um
modo muito especial, desconhecem a crítica demolidora;
mas não me consigo lembrar de um marxista que tenha
incorrido em desprezo e perseguição tão grandes por parte
da comunidade intelectual como os que o Sr. Soljenitsine
encontrou no Ocidente.
JOHN R. DUNLAP
São José, Califórnia

102
O ERRO DO OCIDENTE

Ao EDITOR:

O artigo de Alexandre Soljenitsine diz-nos mais acerca


do seu autor do que da Rússia ou da América. Está
recheado das suas opiniões erradas sobre ambos os países.
Admirei Alexandre Soljenitsine pelo seu comportamento
na União Soviética, pela sua coragem, integridade e obras­
-primas literárias. É-me doloroso contrariar as suas opiniões
e se o faço é por achar que deixá-las passar sem qualquer
comentário seria muito pior.
O artigo tem a sua quota-parte de inexactidões e exa­
geros. O autor refere, mais de uma vez, «sessenta milhões
de vítimas> do regime soviético ( «sem contar com as baixas
de guerra»): merecemos ser enganados pela aritmética espe­
cial que fornece estes números. Mas se o verdadeiro número
for treze (ou trinta) milhões, o preço do estalinismo em vidas
humanas é, já de si, suficientemente alto para não precisar
da inflação.
Não é preciso simpatizar com o regime soviético para
desmentir a sua afirmação de que « [ . . . ] a subsistência atin­
giu um nível tão baixo - de há um século a esta parte -
que está a conduzir à degeneração biológica do povo, o que
ainda é intensificado [ . . . ] pela supressão de todas as formas
de cultura [ . . . ] , sendo a mentalidade das crianças atacada
sistematicamente.» A minha oposição a esse regime não é
minimamente afectada pelo facto de verificar que, após a
guerra, o nível de vida soviético tem subido a um ritmo
impressionante; que os indícios da «degeneração biológica»
são duvidosos, para não ser mais severo; que, pelo menos,
as formas de cultura politicamente «seguras> são, pelo
menos, tão importantes como nos Estados Unidos; e que a
educação pública tem registado avanços significativos.
O que está em jogo não é só a exactidão factual. Como
o próprio Alexandre Soljenitsine afirma, passou «os trinta
e cinco anos da [sua] vida soviética nas zonas mais remotas
da U. R. S. S.> . A sua própria experiência, tanto dentro
como fora do exército, e o arquipélago de Gulag pouca
oportunidade lhe deram para ter uma visão bem segura dos
motivos e do funcionamento dos políticos soviéticos. O seu
ângulo de visão é muito especial: a sua verdade é a da
vítima, verdade ardente que influencia a sua perspectiva e
os seus valores, verdade que traduz apaixonadamente na

103
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

sua visão apocalíptica. As qualidades que o transformaram


em profeta e herói não são as necessárias à análise polí­
tica ou à diplomacia.
O Sr. Soljenitsine é um ardente patriota russo. Podemos
admirá-lo por isso. Mas porque é que esse patriotismo há-de
exigir a defesa intransigente da «antiga Rússia» , da época
czarista, ou, ainda melhor - e de acordo com a sua opi­
nião -, da época moscovita anterior a Pedro, o Grande,
antes de a Rússia ter sido contaminada pela corrupção «oci­
dental» ? Porque não há-de ele reconhecer que, em muitos
aspectos, a antiga Rússia tinha deficiências de carácter social,
político e moral? Está claro que antes da Revolução de
1 9 1 7 houve realizações notáveis, como, por exemplo, no
campo do desenvolvimento económico; mas é evidente que
esta não é a medida segundo a qual ele gostaria de avaliar
as realizações soviéticas. Quer ele queira, quer não, havia
boas razões para, em 1 9 1 7 , altura em que o Governo Pro­
visório (não os bolchevistas) substituiu o Governo do czar,
o ancien régime ter perdido praticamente o apoio em todas
as camadas sociais. Os próprios precursores intelectuais do
Sr. Soljenitsine foram notáveis emigrantes intelectuais rus­
sos do século XIX, acerca dos quais mantém o maior silên­
cio - os Herzens, os Turguenieves e os Plekhanovs, que
também não podiam escrever nem trabalhar livremente na
Rússia do seu tempo.
Alexandre Soljenitsine faz um apelo apaixonado e com­
plexo à diferença existente entre a Rússia e a União Sovié­
tica, entre o povo e o comunismo, que (como afirmou
noutro lugar) foi, no fim de contas, «um lúgubre furacão
não-russo que, vindo do Ocidente, se abateu sobre nós» .
Condenando o Ocidente tanto pela sua feição burguesa
como pela marxista, pela sua falta de valores éticos, como
os eslavófilos russos de há um século, ele seria capaz
de lhe voltar as costas para conservar pura (ou purificar)
a sua Rússia mítica.
Tal como Robert C. Tucker explicou no seu contributo
para esta polémica (Foreign Affairs, Verão de 1980), é ridí­
culo negar que havia algumas coisas no território russo
- sejam elas o resultado da hereditariedade ou do am­
biente - que se revelaram receptivas àquela adaptação espe­
cial do marxismo, à qual chamamos «Ieninismo» . Entre os
americanos que se ocupam das questões soviéticas, sou dos

104
O ERRO DO OCIDENTE

que menos peso dão aos elementos tradicionais russos no


bolchevismo e na conduta soviética, mas não posso dá-los
como perdidos e ignorá-los. Quer se aceitem, quer se rejei­
tem todos os elementos da análise feita pelo Prof. Tucker,
será ingenuidade ou maldade negar que também a política
soviética tem sido, em proporções variadas, uma mistura de
elementos claramente comunistas com objectivos e anseios
nacionais russos. Claro está que muitos americanos se esque­
cem de que «russo» não é o mesmo que «soviético» (dis­
tinção que também nem todos os cidadãos notam), mas essa
distinção não deve ser rígida. Nem o Sr. Soljenitsine pode
voltar a escrever a história para desfazer as raízes russas do
leninismo, nem pode negar o recente crescimento da cons­
ciência nacional russa.
Não menos incómodas são as suas tentativas para de­
monstrar que em toda a parte, ao tomarem-se comunistas,
as pessoas «voltam as costas à [sua] própria nacionalidade»
e «abraçam a desumanidade» . Um terço do eleitorado ita­
liano votou, livremente, no comunismo; estará ele a sugerir
que, por tal facto, essas pessoas deixaram de ser italianas?
Milhões de pessoas acompanharam os chineses comunistas
na sua ascensão ao poder; tencionará ele demonstrar que
deixaram de -ser chineses? Actualmente, os dezasseis milhões
de membros do partido da U. R. S. S. totalizam mais de
metade de todos os indivíduos do sexo masculino de idades
compreendidas entre os vinte e cinco e os cinquenta anos
e são possuidores de educação de nível superior; acaso terão
deixado de ser russos, ubeques, ucranianos, georgianos, ou
seja qual for a sua nacionalidade?
Claro está que é preocupante observar o «apelo do
comunismo» por todo o mundo. Pelo menos durante breves
épocas, os movimentos comunistas têm incluído tanto os
melhores como os piores géneros de homens em muitos
países. Mas quando as pessoas se filiam ou apoiam parti­
dos comunistas não por motivos ideológicos, mas por razões
pessoais ou objectivos de natureza política, não podemos
alegremente negar-lhes a sua humanidade, nem a sua naciona­
lidade. O Sr. Soljenitsine conheceu muitos e honestos comu­
nistas dos primeiros tempos para se poder permitir afirmar tal.
Com efeito, em bastantes casos, o comunismo tem servido
de instrumento ao avanço de movimentos ou interesses
nacionais.

105
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

Para finalizar, também não se pode, com seriedade,


levantar a questão de saber se a nacionalidade russa é a
dominante na União Soviética. Não pertenço ao grupo dos
que fazem do problema da nacionalidade o calcanhar-de­
-aquiles do regime soviético (como fizeram alguns nazis
eminentes e como alguns analistas americanos fazem hoje).
O Sr. Soljenitsine tem razão em denunciar disparates como
a defesa quixotesca de entidades étnicas inexistentes, tais
como o ldel-Ural e a Cazaquia. E não há dúvida de que
algumas das repúblicas não russas da União Soviética têm
sentido as vantagens de um desenvolvimento económico
mais rápido, precisamente porque começaram há muito
tempo. Mas ó poder político e militar da União Soviética
permanece, indubitavelmente, em todos os campos de acção,
em mãos russas; a língua e a cultura russas têm de ser
conhecidas pelos membros de outras nacionalidades, caso
pretendam evoluir; os Não-Russos têm os mesmos proble­
mas dos Russos, além de não o serem - o que também
constitui problema específico.
O Sr. Soljenitsine tem afirmado repetidas vezes que o
regime soviético tem sido, essencialmente, monolítico e imu­
tável; que não há comunistas «bons> e «maus> , mas que todos
são iguais; que não há diferenças entre o leninismo e o
estalinismo, mas apenas um comunismo. Esta questão é
muito importante para a política americana. É impossível
expor aqui, de modo sistemático, o que aprende qualquer
aluno universitário que se dedique ao estudo da União
Soviética: por exemplo, como a época de Estaline foi dife­
rente da de Lenine; os muitos aspectos em que a era de
Kruchtchev diferiu da de Estaline, que a precedeu - as
diferenças mais evidentes são a ausência de um ditador
à maneira de Estaline e o fim do terror poütico maciço,
o que levou à libertação do Sr. Soljenitsine (e de milhões de
outros) de Gulag.
Lamentavelmente, o Sr. Soljenitsine aceita o argumento
soviético, concebido na época de Estaline, de que Estaline
era «o Lenine de hoje> . Estaline foi um de entre o grupo
de possíveis sucessores de Lenine - do ponto de vista polí­
tico e ideológico, talvez tão legítimo como os outros, mas,
por certo, nada mais do que isso. Ora, o caso é que fez
diferença (aliás, bem significativa) o facto de quem subiu
ao poder. Comparado com Trotski e Bucarine ou todos

106
O ERRO DO OCIDENTE

os seus competidores, Estaline era, sem dúvida, o pior. Da


mesma maneira, também fez diferença o facto de Nikita
Kruchtchev ter emergido como chefe no final dos anos
50: excêntrico e impulsivo, constituiu, apesar disso, uma
força, assim contribuindo para a mudança e para uma socie­
dade soviética mais aberta, contributo esse muito maior do
que o que os seus rivais e opositores, desde Molotov até
Suslov, teriam dado.
Como os estudos sobre a política soviética têm demons­
trado, . o regime soviético não está imunizado contra conten­
das internas - sejam lutas entre membros do Politburo e o
secretariado do Partido acerca de questões de poder, perso­
nalidades e política; ou entre grupos interessados em pro­
curar vantagens especiais e conseguir decisões de carácter
político, de acordo com as suas preferências; ou rivalidades
entre diferentes círculos geográficos e funcionais; ou, final­
mente, discussões sobre a détente, distribuição de recursos,
necessidade de tecnologia estrangeira, política energética,
controlo de armamento ou <clegalidade socialista�. Embora
as discussões desse tipo fossem mais do domínio público
no tempo de Kruchtchev do que antes ou depois dele, ainda
existem, sendo, provavelmente, doenças endémicas de qual­
quer sistema complexo do mundo contemporâneo. Claro
está que estes homens não são democratas (nem o Sr. Sol­
jenitsine o é). O que importa é o facto de, em muitos casos,
fazer muita diferença estar no governo uma determinada
pessoa, facção ou orientação - tanto para a paz do mundo
como para o bem-estar da população soviética. Em vez de
pôr todas estas coisas de lado e de as considerar insignifi­
cantes, como o Sr. Soljenitsine faz, precisamos de fazer o
estudo sistemático e cuidadoso dessas diferenças, tomando
em consideração a sua perspectiva e valor dentro da insti­
tuição soviética, entre os peritos e conselheiros soviéticos e
no público soviético em geral e a maneira como, nas condições
soviéticas, tais atitudes são formadas, agrupadas e expressas.
Seria ingenuidade afirmar que todos os cidadãos da
U. R. S. S. são de uma dedicação a toda a prova ao regime
soviético. Porém, não é atitude menos simplista afirmar que
«os povos oprimidos são aliados do Ocidente:>. Se, por um
lado, os chefes soviéticos já não se podem limitar a ficar
«completamente indiferentes [ .. . ] ao povo russo que explo­
raram até ao esgotamento total e quase até à extinção:>

107
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

(como o nosso autor afirma, utilizando uma hipérbole


característica), por outro lado, também garantiram a sub­
missão básica e o apoio de, pelo menos, partes significativas
da população, que se orgulha das realizações do seu país,
quer feitas no espaço por cosmonautas, quer no xadrez;
outros tiveram a possibilidade de fazer estágios e de tirar
especializações, pelo que estão gratos ao regime.
O nosso autor está redondamente enganado ao consi­
derar a União Soviética, a China ou Cuba a concretização
do «comunismo» . Se alguma ameaça, proveniente do mundo
comunista, paira sobre os Estados Unidos, é a da força
militar soviética (e este lugar não é próprio para se avaliar
a sua gravidade), e não a das ideias ou crenças comunistas.
De qualquer modo, a atracção do comunismo como ideolo­
gia inspiradora e motivadora de homens e mulheres tem
vindo a diminuir; o que tem vindo a aumentar é o poder
soviético. A questão sino-soviética, surgida há uma geração
atrás, em torno de uma discussão de natureza ideológica,
agora transformada num conflito de estados rivais, é disso
um bom exemplo.
O que também não é menos importante é o facto de,
aos olhos do mundo, o papel dos elementos comunistas e a
motivação dos chefes comunistas (e não apenas soviéticos)
terem vindo a mudar significativamente com o tempo.
É muito difícil analisar estes assuntos, quanto mais não seja
devido à firme insistência dos porta-vozes soviéticos, em
nunca se afastarem dos cânones da ortodoxia. Além disso,
e é com embaraço que faço estas observações tão evidentes,
a submissão formal a uma linha doutrinária nada diz sobre
o seu papel na motivação (e não justificação) do comporta­
mento e na formação dos conceitos. Marx e Lenine tinham
pouquíssimo a dizer acerca de assuntos sobre os quais os
quais os homens do Kremlin têm hoje de .tomar decisões
todos os dias - ICBMS, tratamento de resíduos, «cloning»
ou material para computadores. Esses homens estão cada
vez mais dependentes dos conselhos de especialistas, cuja
competência científica, tecnológica ou no âmbito das ciên­
cias parece aumentar. (Alguns oficiais soviéticos de alta
patente consideram perigosa essa confiança, mas isso apenas
acrescenta uma nova dimensão ao diálogo interno que o
Sr. Soljenitsine não deseja reconhecer.)

1 08
O ERRO DO OCIDENTE

O conhecimento que o Sr. Soljenitsine tem da cena


americana é, na melhor das hipóteses, limitado, como ficou
demonstrado em alguns dos seus primeiro,<; discursos e
obras. Portanto, compreende-se que ele não seja capaz de
fazer um juízo acertado nem quanto ao conhecimento que
a América tem acerca da União Soviética, nem quanto à
política externa relativa à U. R. S. S. A sua selecção arbi­
trária de exemplos pouco mais valor tem do que o de uma
caricatura da literatura americana. Ignora não só o valioso
trabalho que tem sido feito, mas também o grande plura­
lismo de opiniões, muitas das quais acaba por amalgamar
na sua polémica.
Mas talvez ainda mais deploráveis sejam as mentiras
que, desdenhosamente, lança sobre todo o panorama da
vida pública e académica americanas. Custa-me dizê-lo, mas
a verdade é que ele tem muito para aprender acerca da
ética da acusação pública na nossa sociedade. Ninguém
conseguirá fazer mudar a minha discordância em relação
às ideias políticas de Richard Pipes. No entanto, defendo-o
na sua qualidade de intelectual honesto e dedicado, bem
informado sobre os assuntos da sua competência. Talvez
o Sr. Soljenitsine tenha, involuntariamente, absorvido mais
da cultura política do seu país de origem do que pensa,
caso persista em lançar sobre aqueles de quem discorda uma
tão conhecida «amálgama» de acusações.
No seu artigo (e noutros anteriores) afirma estarmos na
véspera de uma batalha total entre o bem e o mal, entre a
«humanidade mundial» e o «comunismo mundial» (não
importa que este se tenha desmoronado e de forma irre­
versível). «Coexistir com o comunismo no mesmo planeta
é impossível» , declara.
Uma perspectiva ideológica desta veemência é má con­
selheira para a política externa americana, que se quer seja
inteligente. De Woodrow Wilson a Jimmy Carter, a nossa
experiência na prossecução de objectivos ideológicos não
tem andado longe de ser desastrosa. A fé absoluta que o
Sr. Soljenitsine deposita na eficácia da força armada na
luta contra a União Soviética reforça a infeliz tendência
da política americana para confiar na força militar bruta,
considerando-a substituto de negociações políticas e da utili­
zação da diplomacia e do intercâmbio cultural e comercial,
no cultivo das relações sovieto-americanas.

109
ALEXANDRE SOLJENITSINE

Henry Adams escreveu uma vez que «a simplicidade é


a amante mais enganadora que alguma vez traiu o homem> .
A realidade soviética é muito mais complexa, as tendências
da política e da sociedade soviéticas são muito mais varia­
das, ambíguas e imprevisíveis do que a sua dialéctica deixa
perceber, de tal modo que a abordagem por ele feita tanto
aos problemas soviéticos como aos americanos deve ser con­
siderada enganadora.
Este lugar não é adequado ao exame da profundidade
dos valores políticos do Sr. Soljenitsine. Ninguém quererá
pôr em causa o seu direito em os apresentar e explicar.
Pertence a uma grande tradição de escritores russos, tais
como Leão Tolstoi e Feodor Dostoievski, que também gos­
tavam de desenvolver ideias políticas e filosóficas idiossin­
cráticas. Resta esperar que, como esses outros grandes escri­
tores russos, Alexandre Soljenitsine venha a ser recordado
em primeiro lugar - e principalmente - pelas suas mara­
vilhosas obras de ficção, assim como pelos livros que assen­
tam na sua experiência pessoal.
ALEXANDER DALLIN
Professor de História e de Ciências Políticas
Universidade de Stanford
*
O Sr. Soljenitsine respondeu da seguinte maneira:

A coragem de ver

Qualquer pessoa que se envolva na polémica política


fica exposta a um coro de acusações vulgares; dizem que o
meu ideal é o passado russo, que ignoro a história do meu
país e, claro está, que não compreendo nem a América,
nem o mundo moderno (sem dúvida, porque passo muito
pouco tempo a conversar nos postos de gasolina). No meu
artigo alertei para as distorções tendenciosas da história
russa; tal facto é agora apresentado como o meu sistema
completo de opiniões. A história da Revolução Russa vem
sendo objecto das minhas investigações há mais de quarenta
anos, e neste momento estou a preparar um relatório em

1 10
O ERRO DO OCIDENTE

oito volumes, que começará a ser publicado em russo em


1982 e em inglês talvez três anos depois. Uma análise literá­
ria deste tipo, feita em tão larga escala, revela que, ao
longo dos tempos, houve, na Revolução Russa, falhas e
erros muito mais importantes do que qualquer outra coisa
que os meus zelosos opositores me possam apontar em
superficiais comentários jornalísticos, de acordo com as últi­
mas modas e manias. Embora a polémica política, que,
inevitavelmente, acaba por endurecer os problemas, não seja
do foro do escritor, custa muito ouvir proferir - e ainda
por cima com ar doutoral - críticas tão inconsistentes
quanto irresponsáveis e, ao mesmo tempo, observar a deso­
rientação espantosa do Ocidente e o seu embaraço perante
a situação do mundo actual, muito particularmente no domí­
nio das ideias e na capacidade dos responsáveis pela exe­
cução das mesmas. Em tais circunstâncias, é difícil esperar
mais cinco anos para falar.

I
Um bom indicador da viabilidade de qualquer sistema
é a sua receptividade à crítica. Sempre pensei que o regime
político americano desejava ouvir críticas e que até as apre­
ciava. Esta minha convicção foi abalada após a comunica­
ção que apresentei em Harvard, onde, por entre as cata­
dupas de jornalistas irados, não tenho dúvidas de ter ouvido
gritar: «Mete-te na tua vida» , «Cala a boca» e, até mesmo,
«Vai-te embora» . Sou franco, foi para mim uma surpresa
encontrar o eco dessas palavras nas páginas de Foreign
Affairs (Sílvio J. Treves). Não foi minha intenção <<pregar
sermões» a ninguém; apenas desejei relatar o que é viver
com um governo comunista. Para mim nada seria mais
fácil do que calar-me e deixar as preocupações relativas
ao futuro da América para o Sr. Treves e aqueles que têm
a mesma opinião. No dia em que as sentirem na pele, enten­
der�nos-emos perfeitamente. Porém, continua a ser verdade
que o medo à crítica e às novas ideias são sintomas de
regimes condenados.
A resposta de Robert W. Thurston parece ter sido
escrita com a intenção expressa de ilustrar a minha afir­
mação de que é facílimo ludibriar um visitante ocidental

111
ALEXANDRE SOLJENITSINE

em visita à U. R. S. S. Sem se aperceber, faz nitidamente


humor ao apresentar os seus dez meses de experiência pes­
soal (um estrangeiro a viver dez meses na capital soviética,
vigiado e em condições artificiais, modelarmente encenadas).
Ora, ele tem a coragem de contrapor essa experiência à que
foi vivida durante cinquenta anos por um soviético de nas­
cimento, nas profundezas proibidas do próprio país. E o
resultado é este: num momento em que não há comida
suficiente, a descoberta que o Sr. Thurston faz do «patrio­
tismo soviético» e do <<orgulho generalizado pelo progresso
material que a União Soviética tem realizado» (na meta­
lurgia?, na produção militar?) parece uma citação insul­
tuosa do Pravda ou do Diário do Povo. Um debate sobre
os diferentes pormenores de carácter jurídico existente na
Rússia antes da Revolução (que, por acaso, o Sr. Thurston
deturpa) estaria qeslocado nas páginas de Foreign Affairs
ou na presente discussão. Mas fica-se surpreendido com a
sua temeridade ao vê-lo basear as suas conclusões acerca
da «simpatia pelo socialismo» na Rússia nas «eleições»
para a Assembleia Constituinte, eleições essas realizadas
após o golpe bolchevista, quando os partidos não socialistas
viam a sua actividade duramente cercada. A noção ameri­
cana do significado de uma eleição foi aqui automatica­
mente transferida para a Rússia rural de 1 9 17, que não
compreendia os processos envolvidos e ainda era incapaz
de utilizar o seu voto consciente e deliberadamente. (Em
1945, americanos perguntaram a cidadãos soviéticos: «Se
detestais tanto Estaline, porque é que não votais contra
ele?» )
Uma pessoa ainda se sente mais embaraçada quando um
sovietólogo da craveira do Prof. Dallin afirma que meio
século de observações de primeira mão em zonas da União
Soviética inacessíveis a estrangeiros é menos importante do
que «opiniões bem fundamentadas acerca dos motivos e do
funcionamento dos políticos soviéticos» . Ao que parece,
para formar essas opiniões, bastariam encontros com essas
pessoas e a leitura atenta do Pravda. Contudo, noutro ponto
do seu artigo, o Sr. Dallin reconhece que os funcionários
soviéticos ocultam os seus motivos. Na longa sucessão dos
fracassos do Ocidente é por de mais evidente o resultado
desses encontros. O Prof. Dallin alguma vez viu, com os seus
próprios olhos, o tema das suas investigações - a vastidão

1 12
O ERRO DO OCIDENTE

deste país escravizado e os habitantes da província e das


regiões rurais? De que dados se serve para afirmar, convic­
tamente, que as aldeias russas não estão a empobrecer e
que o «nível de vida soviético tem subido» ? Afirmações
suas acerca da Lua teriam sido mais exactas, porque, pelo
menos, os relatórios dos astronautas são mais dignos de
confiança. Ao referir-se às províncias soviéticas, onde as
batatas se esgotam antes da Primavera e outros víveres são
completamente impossíveis de arranjar (o simples facto de
o Sr. Dallin achar isso difícil de imaginar não o transforma
numa «hipérbole»), o meu opositor escreve com toda a
seriedade acerca do orgulho generalizado pelas façanhas de
cosmonautas e jogadores de xadrez. Ou, então, consola-nos
com as supostamente florescentes «formas de cultura poli­
ticamente 'seguras'» . Que quererá isso dizer? Dado que as
ciências humanas estão impregnadas de mentiras e as exac­
tas são postas ao serviço das militares, que espaço «cultural»
resta? (E a província nem isso tem.)
O Sr. Dallin tem todo o direito de perguntar como é que
se sabe o número das vítimas do regime, dado o sigilo da
estatística soviética. Ora, acontece que os cálculos de Ivan
Kurganov, professor de Estatística, foram publicados nos
Estados Unidos, há dezasseis anos (Novoye Russkoye Slovo,
12 de Abril de 1964), numa língua conhecida pelo Prof. Dal­
lin, é estranho que delas não tenha tido conhecimento. Em
The Wali Street Journal de 23 de Julho de 1980 foi citada
outra tentativa feita no sentido de calcular as nossas perdas,
por Iosif Dyadkin, recentemente preso. Igualmente se pode­
riam referir os números compilados por Maksudov nos
Cahiers du Monde Russe et Soviétique, vol. 18, n.º 3, Julho­
-Setembro de 1977. Os totais a que todos estes cálculos
chegam são da mesma ordem de grandeza - dezenas de
milhões de vítimas. É evidente que ainda falta muito para
conseguirmos obter dados exactos: a boca soviética não se
abre para revelar os seus segredos, nem mesmo nas reu­
niões secretas com os seus políticos.
Eugen Loebl aconselha-nos a deixar de fazer incursões
na história do comunismo na U. R. S. S. e a concentrar a
nossa atenção na ameaça que se nos depara. No entanto,
e em todas as áreas do conhecimento, o certo é que um
fenómeno só pode ser convenientemente estudado se se
conhecer a fundo a história da sua génese. Muito depende

1 13
Est. Doe. - 1 74 - B
ALEXANDRE SOLJENITSINE

do facto de se considerar o comunismo actual (inclusive


as variedades cubana, vietnamesa e chinesa) como fenó­
meno com pedigree fundamentalmente russo ou, por outro
lado, como entidade internacional, até mesmo metafísica:
cada uma destas opiniões exige uma resposta diferente, seja
a capitulação desastrosa (familiar desde a época de Franklin
Roosevelt), seja a tentativa de resistir. A afirmação do
Sr. Loebl de que o comunismo, bem corno o nacional-socia­
lismo, é essencialmente nacional não convence ninguém; o
nazismo sempre revestiu formas nacionais e nunca se apoiou
no internacionalismo; forjou o conceito de Herrenvolk e não
pôs a sua «própria» nação a ferro e fogo, como o comu­
nismo se apressa a fazer, sempre que conquista o poder.
E foi exactamente essa característica que levou o nazismo
a anunciar abertamente (e de uma maneira que o comu­
nismo é demasiado dissimulado para fazer) a sua intenção
de escravizar os habitantes da U. R. S. S. - facto que levou
à sua queda, como o Sr. Loebl diz, e com razão. Porém, o
autor está a querer sobrepor a sua própria opinião no meu
artigo, quando diz ter eu afirmado que só os Ucranianos
e os habitantes das regiões do Báltico estariam prontos a
apoiar Hitler. Com efeito, fui testemunha de que todas
as regiões russas ocupadas também esperavam que a guerra
lhes trouxesse a libertação, tendo sido essa a razão pela
qual o Exército Vermelho fugiu tão rapidamente. Mas Hitler
havia declarado guerra ao povo russo, em geral, não lhe
deixando qualquer alternativa. E é exactamente esse o con­
selho repetidamente dado ao Ocidente por aqueles que
acham ser russa e não comunista a ameaça que agora paira
sobre o mundo. Tal conselho apenas pode dar o mesmo
resultado desastroso.
Nos Estados totalitários, a reposição da veracidade his­
tórica é considerada a actividade subversiva mais mere­
cedora de rigorosa repressão. Contudo, nem sequer no Oci­
dente se poderá descobrir essa veracidade, enquanto se der
aceitação a declarações levianas mal informadas. Citando
o Sr. Loebl, a Rússia era «o governo mais reaccionário no
final do século e aliado de todos os governos repressivos» .
É caso para perguntar: em que governos estaria o Sr. Loebl
a pensar? Com efeito, no fim do século XIX (de 1 892 em
diante), a Rússia apenas tinha um aliado - a França repu­
blicana. Além disso, em 1907, formalizara a sua aliança com

1 14
O ERRO DO OCIDENTE

a Inglaterra. O Sr. Loebl escreveu: «o sonho czarista do


domínio sobre o mundo apoderou-se da alma da nação
russa.> Porém, no século XIX, o único <<czar> que alimen­
tava o sonho de conquistar o mundo era Napoleão. Em
nenhum outro lado se encontravam tais desejos, a não ser,
talvez, no vasto Império Britânico, estendido pelos cinco
continentes. Poderá o Sr. Loebl indicar algo na literatura,
na arte ou no folclore russos passível de sugerir a ânsia
do domínio sobre o mundo? Ou terá utilizado qualquer
outro método para detectar este desejo na «alma da nação
russa> ? «A cultura preferida em toda a União Soviética [ . . . ]
é russa> , escreve o Sr. Loebl. Poder-lhe-á ser perdoado o
facto de não saber em que consiste a cultura russa; contudo,
não devia formular juízos, baseando-se apenas em boatos
jornalísticos. Posso garantir que a cultura russa foi esma­
gada e destruída logo na primeira década de domínio sovié­
tico. O que hoje vemos é uma cultura soviética ateísta e
antinacional, mascarada de «cultura russa> - expressa numa
forma adulterada da língua russa. «Entre os primeiros inte­
resses russos> encontram-se os de Moscovo, diz o Sr. Loebl,
que, evidentemente, passou à frente aqueles passos do meu
artigo nos quais afirmo que nenhuma outra nacionalidade
submetida ao regime soviético foi tão devastada como a
russa.
O Sr. Loebl não é excepção e podemos encontrar outros
exemplos de afirmações igualmente irresponsáveis feitas por
americanos ainda mais notáveis. Assim, o Prof. Stephen F.
Cohen, director dos Estudos Russos na Universidade de
Princeton, escreveu em The New Republic de 29 de Dezem­
bro de 1979:
Durante o primeiro e o segundo planos quinque-
nais [isto é, 1928-1937] [ . . . ] uma sociedade [ . . . ]
atrasada, na sua maioria [ . . . ] transformou-se noutra
de tipo predominantemente industrial [ . . . ] com mui­
tos dos benefícios de um moderno Estado social.
Afirmação fantástica, que, se fosse conhecida no meu
país, seria interpretada como pura ironia: tais palavras são
aplicadas a uma década que conheceu a pobreza colectiva,
a fome, o racionamento de pão em tempo de paz, seis
milhões de mortes pela fome só na Ucrânia, o extermínio

115
ALEXANDRE SOLJENITSINE

de quinze milhões de vigorosos camponeses, o fim da far­


tura agrícola, uma súbita paragem na produção de artigos
de consumo, grande falta de vestuário, calçado e equipa­
mento doméstico em todo o país - tudo isso em nome da
indústria pesada e de armazéns em Moscovo para estran­
geiro ver. Durante esta época de privações e brutalidade
atávicas, que o Prof. Cohen compara a um «moderno Estado
social» , o ano de 19 14, imediatamente anterior à guerra,
parecia à população do meu país um milagre distante. E, nos
últimos setenta anos, o nosso país nunca mais se aproximou
sequer da abundância desse ano «czarista> .
Quando o director dos Estudos Russos de uma grande
universidade comete um erro desses, não podemos ficar
admirados ao ouvir um dos candidatos americanos à presi­
dência, Edward Kennedy, declarar que os cortes ao forne­
cimento de carne não constituem qualquer ameaça ao poder
soviético; em vez de carne desse género, passariam «sim­
plesmente> a dar frango à população. Aqui está um homem
que pretende dirigir a política e a economia do mundo e
que, no entanto, não faz a mais pequena ideia do facto
- simples, mas revelador - de na U. R. S, S. o frango
valer o seu peso em ouro e que nem os doentes necessitados
de dieta especial o conseguem arranjar.
Este doce leito de ilusões, este auto-engano - aparente­
mente intencional -, é característica comum da imprensa
e de muitos políticos ocidentais; ideias e· sonhos são apoia­
dos por «encantamentos> verbais. Por exemplo, em Junho
de 1 945, The New York Times emprestou a sua autoridade
à afirmação de que os crimes Katyn foram cometidos pelos
nazis e não pelos comunistas. De então para cá tem-se tor­
nado quase universal esta necessidade de se ocupar com
ilusões e não com factos, o que, juntamente com a pronta
aceitação de versões fantasiosas acerca da história russa e
soviética, apenas serve para cegar o Ocidente nesta época
de perigo, impedindo-o de se aperceber da sua verdadeira
situação e de encontrar uma saída. É como se o Ocidente
realmente não queira conhecer a verdade até ao momento
em que ela já lhe tenha deixado de servir para alguma coisa.

116
O ERRO DO OCIDENTE

II
Claro está que o artigo de Robert C. Tucker reflecte não
só a sua opinião pessoal, mas também a de um meio que
exerce uma influência formativa na política dos Estados
Unidos: quer sejam os Democratas quer sejam os Repu­
blicanos que se encontrem no poder, e independentemente
de quem possa estar na Casa Branca, os principais peritos
e conselheiros provêm desses mesmos círculos. (Sintomático
é o facto de o Prof. Dallin concordar com os argumentos
principais do Prof. Tucker.)
O fundo do problema está na interpretação errada da
natureza do comunismo: por um lado, o seu não reconheci­
mento como o mal mais dinâmico e implacável (está claro
que, actualmente, «mal» não é considerado conceito cientí­
fico, quase não passando de uma simples palavra de três
letras, porque em vez de «bem» e «mal» existe uma multi­
plicidade de opiniões, cada uma delas tão válida como as
outras) e, por outro lado, o seu não reconhecimento como
fenómeno histórico internacional e universal (manifestação
extrema do socialismo) - não apenas um episódio localizado
na Rússia - conduzem a uma interpretação errada da reali­
dade soviética contemporânea.
Quem tiver tempo para ler cuidadosamente a carta do
Sr. Tucker, descobrirá a simpatia do autor por um comu­
nismo «puro>> , pelo seu primeiro período leninista, assim
como pela ausência de toda e qualquer condenação da dou­
trina marxista. Bem podia o Sr. Tucker esquivar-se a expri­
mir hoje essa opinião em tantas palavras, mas ela nota-se
na própria estrutura do seu pensamento. Isso obriga-o a
atribuir todos os males do comunismo à época estaliniana e
a mergulhar em seguida na Rússia dos séculos xv e XVI, à
procura das origens. O Sr. Tucker duvida que o período
leninista tivesse o sistema de Gulag, nega a existência do
regime de trabalhos forçados nos campos de concentração
de Lenine e até parece querer justificar a existência desses
campos, criados, aparentemente, só «para deter os oposi­
tores ao regime bolchevista» ; porém, na realidade, qualquer
pessoa que se salientasse acabava por ir parar aos campos,
juntamente com todos os que, devido ao seu comportamento
ou à origem social, pudessem desagradar aos bolchevistas.
(Tudo isto está suficientemente bem desenvolvido n'O Ar-

117
A LEXANDRE SOUENITSINE

quipélago de Gulag e convido o Prof. Tucker a meter


ombros à tarefa que o regime soviético até agora não se
atreveu a realizar: desmentir o meu livro ponto por ponto.)
É tempo de dar às coisas os seus verdadeiros nomes: é
tempo de reconhecer que o golpe de Outubro, planeado por
Lenine e Trotski contra a fraca democracia russa, foi um
acto de vilania: que foi conseguido com a significativa ajuda
financeira da Alemanha de Guilherme; que o comunismo
dos primeiros anos foi um regime tão sórdido, traiçoeiro,
cruel e desumano como o de Estaline; que o mérito da
invenção do regime de trabalhos forçados de Gulag, com
a sua população de milhões de presos, pertence a Trotski
(os seus «exércitos de trabalho> forçados); que Trotski é
igualmente o imortal inventor da primeira versão das «câma­
ras de gás> - barcas lançadas ao mar com centenas de pri­
sioneiros a bordo; que é também responsável pela execução
em massa dos que, tendo sido mobilizados, se recusaram a
lutar ao lado dos bolchevistas; que o genocídio do Dom
- o assassinato de 1,2 milhões de cossacos civis - foi feito
por esses mesmos especialistas. A ideia de - em atitude de
propaganda - entregar terra aos camponeses, para depois
exigir a sua devolução, bem como a entrega das colheitas,
pertence a Lenine. Foi ele quem declarou guerra aos cam­
poneses abastados (cuja prosperidade era, realmente, infe­
rior à de um lavrador médio americano), com os milhares
de execuções que isso exigiu. Foi Lenine quem levou
os camponeses para comunidades e cooperativas operá­
rias fortemente controladas, quem suprimiu todas as . publi­
cações não comunistas e quem, juntamente com Trotski,
esmagou os sindicatos e o movimento dos trabalhadores
independentes (os chamados «congressos de representantes
das fábricas>). Chamar a este regime «autoritário> , como o
Sr. Tucker, é um eufemismo extraordinário - contudo, pa­
rece ser incapaz de pronunciar a palavra «totalitário> para
se lhe referir.
Ao ler a correspondência de Marx e Engels, cuja edição
mais completa foi publicada em russo (consequentemente,
acessível ao Prof. Tucker), poderíamos ficar admirados pela
total falta de princípios e de escrúpulos dos dois conspira­
dores e pela sua «feroz insistência na ortodoxia> (caracte­
rística russa, assegura-nos o Sr. Tucker), se não estivéssemos
já familiarizados com inúmeros exemplos mais recente-

118
O ERRO DO OCIDENTE

mente dados por Estados comunistas em todo o mundo.


Nas afirmações de Marx e Engels podemos prontamente
identificar tanto o seu profundo ateísmo (núcleo filosófico
do seu sistema) como a intolerância e o ódio igualmente
profundos em relação a toda e qualquer facção rival dentro
do partido. Este ódio veemente foi mesmo, de vez em
quando, dirigido contra povos eslavos inteiros. Eis alguns
exemplos das suas afirmações mais famosas:
Há um único meio para abreviar, simplificar e
acelerar as angústias da morte da antiga sociedade
e as dores do nascimento da nova - o terror revo­
lucionário.
(Marx e Engels, Sochineniia [Works] 1, 2.ª edição, Moscovo,
Gospolitizdat, 1955-77, vol. 5, p. 494.)

Nem temos nem vos pedimos piedade. Quando


chegar a nossa hora, não ocultaremos o terrorismo
com frases hipócritas.
(lbid., vol. 6, p. S48.)

A vingança do povo irromperá com tal feroci­


dade que nem sequer o ano de 1793 nos permitirá
encará-la.
(lbid., vol. 2, p. 5 15.)

[Os trabalhadores devem] contrariar os esforços


da burguesia para restabelecer a calma e forçar os
democratas a aumentar as suas declarações terroris­
tas [ . . . ] [Devem] não só opor-se aos chamados
excessos, aos actos de vingança popular dirigida
contra indivíduos ou edifícios públicos, [ . . . ] mas
também assumir a chefia dessas acções.
(lbid., vol. 7, p. 263.)

A repressão (isto é, o poder do Estado) também


é uma força económica.
(lbid., vol. 37, p. 420.)

1 Obras. (N. da T.)

119
A LEXA NDRE SOLJENITSINE

A liberdade política [ . . . ] é pior do que a escra­


vatura mais abjecta.
(Sochineniia,1 .ª edição, Moscovo - Leninegrado: Instituto
Marx-Engels-Lenine, 1 928-48, vol. 2, p. 394.)

Ao olhar para o futuro, avisto algo que irá ter


o sabor da alta traição: isso parece ser tão inevitável
como o próprio destino.
(lbid., vol. 22, p. 138.)

[ . . . ] graças à perplexidade e moleza de todos os


outros, um belo dia o nosso partido será empurrado
para o governo [ . . . ] , seremos obrigados a fazer
experiências comunistas e a tomar medidas extraor­
dinárias, cuja precocidade conhececemos melhor do
que ninguém [ . . . ] até ao momento de o mundo con­
seguir formar um juízo acerca desses acontecimentos,
seremos considerados [ . . . ] «feras» , mas isso também
não importa!
(lbid., vol. 25, p. 187.)

Marx e Engels afirmaram em várias ocasiões: «Uma vez


ao leme, seremos obrigados a fazer a reconstituição do ano
de 1793.>
Lenine também não escondeu as suas origens históricas,
nem as atribui a tradições russas. Citava constantemente
Marx e Engels, jurava pelos seus nomes e aplicava as suas
teorias na prática (o que não faz que o comunismo possa
ser considerado um fenómeno alemão). Também os seguiu,
ao exprimir a sua declarada admiração pelo terror ja­
cobino - nas execuções colectivas e afogamentos em massa
dos primeiros condenados. Costumava dizer que .« o terror
renova um país» e não fazia segredo do facto de seguir
a determinação de Babeuf, de que as classes conquistadas
devem ser completamente destruídas. (Todavia, também não
é este facto que torna o comunismo francês.) Foi durante a
época da Revolução Francesa que a violência passou a ser
aplicada de acordo com a obediência à classe. Tanto no
nome como na estrutura, os «tribunais revolucionários» e
até mesmo as «comissões extraordinárias» (conhecidas na
época soviética como «Cheka» , devido à abreviatura desta

1 20
O ERRO DO OCIDENTE

frase em russo) são baseados em modelos jacobinos e nada


têm a ver com lvã, o Terrível, nem com o século XVI. As
semelhanças entre bolchevistas e jacobinos, tanto na teoria
como na táctica, são perfeitamente evidentes . para quem
se der ao trabalho de estudar provas históricas. (Até nos
mais ínfimos pormenores isso é verdade: proibição de uma
imprensa livre; desmantelamento de facções rivais; procla­
mação da ditadura como «a forma mais elevada de liber­
dade» ; unidade monolítica de toda a população; fusão do
Estado com o Partido, sendo este comandado ditatorial­
mente por um só indivíduo; até mesmo destacamentos des­
tinados à requisição de alimentos enviados para saquearem
os camponeses, destruição material de igrejas - os sinos
foram derretidos e os bens da Igreja confiscados.)
Curiosamente, o Prof. Tucker parece nunca ter ouvido
falar destas coisas, ou então nunca prestou atenção a estas
sequências directas e óbvias. Naquilo que pretende passar
por exposição erudita, apresenta um argumento extraordi­
nariamente frívolo para defender as origens «profundamente
russas» do bolchevismo - nomeadamente que Berdyaev
assim achava!
Não é verdade que, em qualquer domínio científico, a
simples invocação de outras autoridades já há muito deixou
de servir de substituto da argumentação? Além disso, tomo
a liberdade de fazer notar que havia algo de nitidamente
extravagante nas ideias filosóficas de Berdyaev. Ao longo da
sua carreira, duas vezes, pelo menos, e possivelmente três,
Berdyaev fez uma rotação de 1 80º na sua posição, ata­
cando sempre as suas opiniões anteriores, como se lhe fossem
completamente alheias 1 • O seu livro acerca do comunismo
na Rússia não chega a ser um estudo histórico objectivo ou
uma análise de dados históricos; em vez disso, é uma mani­
festação das suas tendências filosóficas, pessoais e incons­
tantes, que culminaram na decisão de hastear a bandeira
vermelha soviética em sua própria casa. Muitos processos,
vulgares no mundo inteiro, tal como a substituição de formas

1 Vide, por exemplo, N. Poltoratzky, Berdiaev i Rossia: Filo­


sofiia istorii Rossii u N. A. Berdiaeva [Berdyaev and Russia: N. A.
Berdyaev's Philosophy o f the History of Russia], Nova Iorque, 1967,
em russo.

121
A LEXANDRE SOLJENITSINE

de actividade social por ritos religiosos, são por ele atri­


buídos à Rússia em exclusivo. Chega até a chamar «dou­
trina ética» aos ensinamentos desumanos do marxismo e a
declarar que Marx e Lenine «desejavam fazer o bem» -
quando se pensa nos milhões de pessoas que sofreram e
morreram e quando se observa o aspecto brutal do poder
que quer conquistar o mundo, essas palavras parecem uma
blasfémia. Berdyaev admite o facto de a história russa
ter sofrido «interrupções na sua evolução orgânica» - con­
tudo, ao mesmo tempo, e em completa contradição, baseia
todos os seus argumentos numa «tradição orgânica» que,
a seu bel-prazer, vai buscar à Rússia moscovita ou à sua
antítese virtual, a Rússia de Sampetersburgo, conforme for
mais conveniente.
Porém - note-se -, Berdyaev escrevia em 1937, quando
o fenómeno comunista ainda não emergira na sua plena
dimensão histórica. Mas, em 1980 - quando regimes comu­
nistas ocupam o poder em vinte e cinco países, se estendem
por quatro continentes e representam todas as raças da
Terra -, como é que pode ainda haver alguém a defender
a ideia de que o comunismo, incluindo a sua vasta orga­
nização terrorista internacional, existente em mais vinte paí­
ses, possa ser formado por características essencialmente
russas?
A opinião do Sr. Tucker de que a época estalinista do
leviatão comunista foi criada com base nos séculos XVI e
XVIII da história da Rússia é não só indigna de um erudito,
mas também possui auréola impressionista e fantâstica à sua
volta. Como é que se pode afirmar, com seriedade, que
Estaline precisou de ir buscar o exemplo de Ivã, o Terrível,
para poder cortar as cabeças aos seus inimigos e encher de
terror os corações dos seus súbditos? Quererâ isso dizer
que se Ivã, o Terrível, não tivesse existido, ele nunca teria
descoberto essa ideia? Serâ que as tiranias existentes na
história do mundo são assim tão poucas e estão tão longe
de nós? Estaline podia ter ido buscar a verdade profunda
de que um tirano deve manter o seu povo sob o medo
a qualquer compêndio de história universal, ou à história
da Geórgia feudal, ou, até mesmo, ao fundo do seu cora­
ção manhoso e malévolo. Pelo menos, isto pôde aprender
logo à partida, sem precisar de recorrer a livros. O Sr. Tucker
vai novamente procurar ao regime de trabalhos forçados

1 22
O ERRO DO OCIDENTE

do tempo de Pedro, o Grande, as origens do sistema de


Gulag, e, desse modo, os trabalhos forçados pareciam ser
invenção russa! Mas porque não citar os faraós do Egipto,
ou, em tempos mais recentes, as democracias da Inglaterra,
da França e da Holanda, que utilizaram trabalhos forçados
nas suas colónias, enquanto os Estados Unidos os usaram
no seu próprio território - em qualquer dos casos, após a
época de Pedro? E haverá algum miúdo de escola que nunca
tenha lido nada sobre os condenados às galés? (O objectivo
com que o Prof. Tucker cita George Kennan é muito inde­
finido, a não ser que, com isso, pretenda demonstrar que os
observadores estrangeiros tinham autorização para presen­
ciar a prática de trabalhos forçados [katorga] na Rússia,
antes da Revolução, assim como para irem aos tribunais.
Na literatura francesa não é difícil encontrar descrições mais
pormenorizadas de trabalhos forçados na Nova Caledónia,
mas que é que isso prova a respeito da Quinta República?) 1
A expansão territorial é igualmente apontada como carac­
terística fundamentalmente russa, muito embora a Inglaterra
se tivesse apoderado de muitos territórios e a França não
lhe ficasse muito atrás. Seremos por este facto levados a
concluir que os Ingleses e os Franceses são povos preda­
dores por natureza? E, em último lugar, se bem que não
seja o aspecto menos importante, há a herdade colectiva,
a concretização do princípio socialista e universal da comuna,
que o Sr. Tucker interpreta como sendo manifestação da
servidão russa.
Será comportamento digno de um erudito afirmar ser
um facto que, apesar de um intervalo de quatro séculos,
várias características governamentais e institucionais foram
transmitidas, mas omitir, entretanto, todos e quaisquer agen­
tes transmissores ou propagadores, sejam eles partidos, elas-

1 Quando a tradução do livro Notas da Casa dos Mortos,


de Dostoievski, foi publicada em Inglaterra pela primeira vez (em
188 1), um comentário saído num dos principais jornais ingleses cha­
mava a atenção para o facto de a descrição do Dostoievski revelar
a existência de frouxidão e clemência no tratamento dado aos presos
na Rússia, que cs6 nelas pensar, um guarda prisional inglês ficaria
horrorizado> . (The A thenaeum, n. 0 2788, 2 de Abril de 1881, p. 45S.)
Em The Academy foram também salientadas as privações bastante
mais duras sofridas pelos presos ingleses (vol. 19, n.0 467, 16 de
Abril de 1881, p. 273).

1 23
ALEXA NDRE SOLJENITSINE

ses ou indivíduos, e não tomar em consideração a oblite­


ração de todas as instituições sociais em 1917? Tal só
poderia ter sido conseguido através de qualquer transferência
de tipo místico, por via genética, claro está. (Ou então, se
quisermos optar pela expressão mais elegante do Prof. Dallin,
diremos: havia «algumas coisas no solo russo - produto da
hereditariedade ou do meio ambiente» - que devem ter
sido receptivas ao marxismo.) E que género estranho de
erudição levará, simultaneamente, o Sr. Tucker a «não
reparar> na linha de sucessão óbvia e directa pela qual todas
as tradições e instituições da época estalinista foram herda­
das (prontas a aplicar) de Lenine e Trotski, separadas por
um curto intervalo de cinco ou dez anos: a mesma Cheka­
-GPU-NKVD, as mesmas tróicas (ou «comissões especiais> ),
em vez de julgamentos (para que é que se há-de ir buscar
Alexandre III?), o mesmo Gulag (já existente), o mesmo
artigo 58, o mesmo terror em massa, o mesmo partido, a
mesma ideologia - tudo na mesma geração e por acção dos
mesmos indivíduos (que em ambos períodos tiveram opor­
tunidade de matar) e o mesmo princípio da industrialização
intensiva proposto por Trotski, segundo o qual se suprimem
as necessidades do povo e tudo é lançado nas mandíbulas
vorazes da indústria pesada? (Por mais que se procure, não
se conseguem encontrar na herança de Lenine e Trotski as
«ambiguidades> de que o Sr. Dallin fala.)
Recuso-me a acreditar que o Prof. Tucker não veja
isto. Apenas posso considerar esse facto como um esforço
consciente no sentido de encobrir os erros do primeiro
regime comunista, passando por cima dos seus perversos
crimes e instituições, como se nunca tivessem existido e só
mais tarde tivessem sido inventados por Estaline (suposto
«destruidor» do bolchevismo), emulador da tradição russa.
Que «revolução do alto» (termo marxista, já tão gasto, adop­
tado pelo Sr. Tucker) é que se imagina ter sido realizada
por Estaline? Obedientemente, limitou-se a consolidar com
firmeza a herança Ieninista, dentro do esquema em que a
recebera. Contudo, mesmo que o Sr. Tucker (e os muitos
que são da mesma opinião) conseguisse fazer o impossível
e provar que a Cheka, os tribunais revolucionários, a utili­
zação sistemática de reféns, os roubos feitos ao povo, a uni­
formização forçada de opiniões, a ideologia e ditadura parti­
dárias, não foram inspirados nem por comunistas nem por

1 24
O ERRO DO OCIDENTE

jacobinos, mas sim por lvã, o Terrível, e Pedro, o Grande -


mesmo assim, a teoria do Sr. Tucker acerca de uma «tra­
dição russa» estaria errada. Com efeito, os pensadores rus­
sos possuidores de uma consciência nacional consideram há
muito estes czares dignos de censura e não de louvor, en­
quanto na sabedoria popular e no folclore o primeiro foi
condenado como vilão e o segundo como «Anticristo» .
O facto de Pedro, o Grande, ter feito os possíveis por
destruir a maneira russa de viver, os seus costumes, a sua
mentalidade e o seu carácter nacional e por suprimir a reli­
gião (apesar da revolta popular) é assunto suficientemente
óbvio e bem conhecido para que valha a pena debruçarmo­
-nos sobre ele.
A subversão comunista que se verifica em todo o
mundo, a prática da sabotagem económica, o terrorismo,
a insurreição e a luta ideológica poderão, por acaso, repre­
sentar uma tradição russa fundamental? A situação explo­
siva que actualmente se vive na Ásia central mostra a dife­
rença de uma maneira clara. É verdade que a Rússia se
apoderou do emirado de Bucara (não do Afeganistão)
durante o século x1x, numa altura em que os Estados demo­
cráticos da Europa não sentiam quaisquer escrúpulos de
tipo moral ao fazerem guerras, com intuitos de conquista.
(A Inglaterra também tentou conquistar o Afeganistão, mas
falhou.) É com desgosto e vergonha que reconheço ter o
meu país participado - juntamente com o resto da Eu­
ropa - na subjugação de nações mais fracas, mas os cin­
quenta anos de protectorado russo na Asia central foram
tempos de paz: nem a religião, nem a liberdade individual,
nem os costumes, foram eliminados e não existiam movi­
mentos de revolta. Em contrapartida, em 1 92 1 , ainda Lenine
mal subira ao poder, já se preparava para lançar a mão
sobre a Turquia, Pérsia e Afeganistão, servindo-se do pre­
texto da criação de uma «federação revolucionária» . Em
1 922, os métodos usados pelos comunistas nas regiões de
Quiva e de Bucará provocaram uma revolta semelhante à
actualmente existente no Afeganistão. Manteve-se activa
durante dez anos, já dentro do período do domínio esta­
Iinista, quando foi, por fim, esmagada por retaliações sem
precedentes lançadas contra a população. É a essa «tradi­
ção» que pertence a invasão do Afeganistão.

125
ALEXANDRE SOLJENITSINE

Sei bem que o termo «estalinismo» (como tanto o


Sr. Tucker e o Sr. Dallin referem) foi forjado nos anos 20
pela facção trotskista na sua luta contra Estaline. Mas a
sua utilização actual - para descrever um período de vinte
e cinco anos dentro da evolução de um vasto Estado comu­
nista - é táctica de diversão, cujo objectivo é disfarçar a
natureza irreconciliavelmente anti-humana do comunismo,
principal ameaça do mundo de hoje.
Excluirá o facto de o comunismo ser um fenómeno inter­
nacional a possibilidade de aparecimento de particularidades
nacionais ou variantes locais? De modo nenhum, visto que
o comunismo tem de agir num mundo real, actuar sobre
pessoas de carne e osso, e, quer queira quer não, tem de se
servir da língua dessa nação (embora a mutile para servir
os seus próprios objectivos). Assim, os jornais de parede são
suprimidos na China e na U. R. S. S. - samizdat. Habitan­
tes de cidades russas são levados aos magotes para apa­
nharem batatas e os cubanos para colherem cana-de�açúcar.
Exterminaram-se pessoas na União Soviética, exilando-as na
tundra, e no Camboja, levando-as para a floresta. A Jugos­
lávia adaptou uma táctica própria: depois de abandonar a
via de assassinatos em massa de 1945, Tito ficou manso
como um cordeiro, a fim de obter a ajuda do Ocidente.
E Ceausescu, astutamente, conservou-se independente no
domínio dos negócios estrangeiros, embora só à custa da
intensificação do clima totalitário dentro do país. O comu­
nismo da Europa de Leste defende a ideia da não necessi­
dade de reunificação nacional. O comunismo da Coreia do
Norte tem, precisamente, uma opinião contrária. (Não sei
quem terá metido na cabeça do Sr. Dallin a ideia de que
considero que o votante comunista italiano ou o usbeque
coagido a filiar-se no Partido abdicaram da sua naciona­
lidade. O que eu disse é que a nacionalidade é suprimida
pelo regime comunista e que os seus dirigentes e fanáticos
apoiantes a ela perderam direito. O Sr. Dallin não precisava
de dar esse erro de lógica. «Em bastantes casos» , afirma,
«o comunismo tem servido de instrumento para o avanço
de movimentos ou interesses nacionais», e, com efeito, esta
opinião foi antigamente defendida nos Estados Unidos em
relação ao Vietname do Norte. Ultimamente, contudo, essa
conv1cçao parece ter desaparecido. Não é evidente para
todos que nem na Estónia, nem na Polónia, nem na Mon-

1 26
O ERRO DO OCIDENTE

gólia, nem em nenhuma outra parte do mundo, o comu­


nismo alguma vez serviu os interesses nacionais?)
Porque não se há-de apoiar a propaganda comunista com
apelo inteligente aos sentimentos nacionais? Os governos
comunistas fazem-no sem quaisquer pruridos. Mas quererá
isso de facto dizer que «o comunismo varia de país para
país» ? Pelo contrário, é igual em toda a parte: totalitário,
decidido a esmagar a individualidade, a consciência e até
a própria vida, apoiado no terror ideológico e agressivo.
O objectivo final do comunismo mundial em todas as suas
variantes é o domínio do mundo e da América, inclusive.
É compreensível que o Prof. Dallin fique ofendido, do ponto
de vista profissional, perante uma simplificação tão insípida
do problema. Os estudiosos dos assuntos relacionados com
o Kremlin preferem vê-lo discutido, em função dos leves
cambiantes de adesão ideológica, por parte dos dirigentes
comunistas. Porém, a ideologia prende esses mesmos diri­
gentes aos actos, independentemente das suas convicções
pessoais, manietando-os à interminável série de conquistas
do poder por este mundo fora e que nada significam para
os seus interesses pessoais: freneticamente, apoderam-se de
Angola, depois da Etiópia e, em seguida, do Afeganistão.
A proposta do jogo com as «subtis variações» das diferentes
formas do comunismo é prejudicial aos interesses da política
externa americana.
Quando se tenta demonstrar que estou enganado, a
minha experiência pessoal é exibida como prova da visível
evolução operada no comunismo: afinal, Soljenitsine esteve
preso durante a época estalinista, no tempo de Kruchtchev
viu publicada a sua obra Ivan Denisovich e, no de Brejnev,
foi deportado. Este tema tão conveniente, q�e tem passado
de uns artigos para os outros, também aparece, como con­
vém, na resposta do Sr. Tucker! Será que isso acontece
porque, além de Ivan Denisovich não se consegue encon­
trar outro exemplo positivo nos últimos sessenta e três anos?
(E se Ivan Denisovich nunca tivesse existido, não há dúvida
de que teria sido ainda mais conveniente para os meus
críticos, porque então poderiam dizer que o comunismo
nunca usara o sistema dos campos ou até que os Russos são
incapazes de dizer seja o que for sobre si próprios.) Porém,
Kruchtchev é exactamente a excepção que confirma a regra:
de todos os dirigentes comunistas, só ele foi derrubado

127
ALEXANDRE SOUENITSINE

pelas contendas no seio do Partido, devido aos seus ocasio­


nais desvios do dogma comunista e à sua tentativa de
aproximação de uma linha mais humana: na sucessão Lenine­
-Trotski-Sverdlov-Estaline-Molotov-Brejnev, nenhum se afas­
tou um milímetro sequer dessa direcção. E até mesmo
Kruchtchev permaneceu fiel ao princípio fundamental e
diabólico do marxismo: ódio de morte à religião.
Em devido tempo, o comunismo utilizou manobras tác­
ticas um pouco mais ambiciosas do que Ivan Denisovich,
tais como a Nova Política Económica, a hipócrita «restau­
ração» do conceito de Igreja e pátria feita por Estaline, a
«luta pela paz» durante os anos em que a América possuía
o monopólio das armas nucleares, «o deixai desabrochar as
flores» , a «coexistência pacífica» , até mesmo a retirada sovié­
tica da Áustria e agora a détente. O que tudo isto prova
não é o carácter mutável do comunismo, mas a sua flexi­
bilidade e solidez.
É lamentável que, ao discordar de mim, o Sr. Tucker
(e o Sr. Dallin também) fuja à pergunta crucial: se o comu­
nismo (na sua forma marxista «pura») é mau ou não. Será
capaz de ficar «bom» e de se curar por si mesmo? Ameaça
ou não esmagar o resto do mundo, como a serpente que se
enrola em volta da sua presa?
Ao evitar, cuidadosamente, esta pergunta, o Sr. Tucker
apressa-se a alertar o mundo para um perigo incomparavel­
mente maior, «uma forma maligna de nacionalismo russo
levado ao extremo» , que «germina» entre o povo russo
vencido, sem chefe, devastado e que só a custo consegue
sobreviver.
III
Pode-se avaliar a fecundidade de qualquer teoria política
pelos seus resultados práticos. A teoria de que o comunismo
é, na sua essência, um fenómeno russo, de que o comunismo
e o povo russos são indivisíveis e que devem ser combatidos
como se de um inimigo único se trate, repete a teoria louca
e autodestruidora de Hitler. Porém, essa não é a única ma­
neira como esta teoria cria ilusões à custa da realidade, pois
nos obriga a consid�rar a União Soviética comunista de
hoje herdeira da antiga Rússia, ergo um Estado «normal» ,
que procura ir ao encontro dos seus próprios interesses e

128
O ERRO DO OCIDENTE

dos seus cidadãos, com o qual se pode estabelecer relações


em moldes tradicionais, entrar em diálogo, fazer negocia­
ções, estabelecer compromissos razoáveis e repartir esferas
de influência. Contudo, isso não pode estar mais longe da
verdade: nenhum governo comunista se importa com os
interesses dos cidadãos ou confia na opinião pública; com
efeito, eles até estão dispostos a sacrificar as suas popula­
ções aos interesses de vitórias internacionais. (Talvez o
exemplo de Cuba, aqui tão perto de nós, seja mais fácil
de reconhecer.) Em consequência, não é possível chegar
a um compromisso real com o comunismo; não há maneira
de o aplacar, subornar ou acalmar e a série de concessões
que o Ocidente tem feito apenas serve para enfraquecer a
sua própria posição. 1l: um engano pensar que o regime
soviético está a lutar pelos seus próprios interesses, como
Estado: as intermináveis agressões por todo o mundo e os
gastos de capital e vidas humanas em vários continentes uni­
camente servem para trazer dificuldades aos povos da União
Soviética. Porém, nada - nem mesmo os governantes na
sua qualidade de pessoas - consegue travar o impulso ex­
pansionista do comunismo. A própria existência no mundo
de outros países que gozam de vantagens económicas ou de
liberdades mais amplas é intolerável para os Estados comu­
nistas, porquanto representa um termo de comparação
- invejável - para as suas populações. Como tal, é for­
çoso conquistá-los e esmagá-los. Não se pode explicar o
comunismo em termos diplomáticos, jurídicos ou econó­
micos.
Porém, o maior êxito do comunismo não reside nas con­
quistas militares, mas sim na vitória propagandística; o resto
do mundo aceita que ele tenha «amolecido> e acredita em
variedades «boas> do comunismo. O mundo ocidental, ama­
velmente, adapta a própria linguagem do comunismo, cha­
mando «democracias populares» ao regimes tiranos da Eu­
ropa oriental e détente à campanha subversiva que visa
minar o Ocidente por dentro. Nos primeiros meses do regime
comunista no Camboja, alguns jornais ocidentais, papa­
gueando a versão oficial de Phnom Penh, referiam-se ao
genocídio que então se passava, como sendo uma «revolução
de camponeses» . Ao mesmo tempo, as páginas de impor­
tantes jornais americanos estão abertas aos agentes sovié­
ticos, que metem a ridículo as notícias que referem agressões

129
Est. Doe. - 1 74 - 9
ALEXANDRE SOUENITSINE

soviéticas, e assim vão enganosamente embalando os Ame­


ricanos na crença de que o comunismo não é um movimento
internacional, não constituindo, portanto, ameaça para nin­
guém. Por outro lado, parece inconcebível aos leitores oci­
dentais que a malnutrição possa reinar actualmente na União
Soviética e na China, que a população careça de comodi­
dades básicas e que o racionamento de alimentos seja vulgar.
Com efeito, tal é considerado «propaganda anticomunista>
e, consequentemente, posto de lado. Está-se em guerra há
trinta e cinco anos, tem-se assistido a uma longa série de
recuos por parte do Ocidente e à perda de mais de vinte países;
apesar disso, o Ocidente insiste em se referir a esta terceira
guerra mundial como (<Coexistência pacífica> . Os presidentes
vêm e vão e, com eles, os seus secretários de Estado e con­
selheiros da Casa Branca e Departamentos de Estado; no
entanto, não aparecem ideias novas, mantendo-se apenas a
antiga. É como se estivéssemos sempre a assistir a um difícil
número de equilibrismo, baseado em ((diferenças> cada vez
mais «subtis> entre vários tipos de comunismo, facções e
dirigentes, cujo verdadeiro significado é: concessões e capi­
tulações que arrastam o Ocidente cada vez mais para o fundo
do abismo. (O próximo lote de concessões pode estar a
amadurecer no Departamento de Estado neste preciso mo­
mento.) E agora ouvimos anunciar uma ideia que teima
parecer nova: em vez de nos alertar para o poderoso jaganata
que já esmagou metade da humanidade e se prepara para
destruir o resto, dizem-nos que temamos o renascimento de
uma Rússia consciente da sua nacionalidade, renascença essa
que só pode ser salutar.
Não há ideias novas, e estranho seria ver aparecer
algumas neste secularismo convencido que não consegue
ver para além de si próprio.
Em assuntos mais importantes do que a venda de uma
determinada mercadoria, a teoria das «distinções subtis>
entre vários tipos de comunismo ( ou, no dizer do Sr. Dallin,
((Variações, gradações e mudanças> , «uma interpretação mais
diferenciada e equilibrada> e uma «abordagem sofisticada> )
não s ó é inútil, mas também pode acabar por s e revelar
fatal para o Ocidente. Numa altura em que a própria
América é ameaçada por esta perniciosa força supranacio­
nal, aconselham-nos não só a confiar num súbito assomo
de boa vontade, que levará o comunismo a renunciar à sua

1 30
O ERRO DO OCIDENTE

atitude agressiva, mas também a acreditarmos na existência


de «dirigentes soviéticos amantes da paz> (nomeadamente
Brejnev) e no advento de uma nova geração, mais branda
e bondosa. Surge a esperança de que os governos comu­
nistas da Europa oriental e da Ásia possam, de repente,
retirar a sua fidelidade a Moscovo (o Ocidente não ficou
mais forte com a deserção da Albânia e da Coreia do Norte,
enquanto a da Roménia apenas trouxe dificuldades ao seu
povo); com esse objectivo, são utilizadas facilidades comer­
ciais, numa tentativa de recuperar esses países (assim ali­
viando o fardo económico da U. R. S. S.). Encorajam-nos
a esperar uma cisão no movimento comunista europeu (a
tentativa feita pelo Partido Comunista Francês no sentido
de se emancipar foi de curta duração e todos os partidos
comunistas ofereceriam, de bom grado, os serviços do seu
pessoal e da sua organização para governarem o país no
momento em que fosse ocupado). Dizem-nos que os comu­
nistas vietnameses, cubanos, angolanos e etíopes e outros
ramos malignos espalhados pelo mundo vão lutar pelos seus
interesses nacionais próprios e que, de livre vontade, se vão
reconciliar com os Estados Unidos. Até se põe a hipótese
de o Islão vir a ser o fim do movimento comunista.
Nenhuma destas esperanças fantasiosas deu fruto, excepto
a cisão sino-soviética, e este facto tomou-se agora a base
dos planos e anseios americanos. A China é já considerada
país não comunista, como se não perseguisse a sua popu­
lação de biliões de habitantes. Mas, tal como a União
Soviética dos anos 30, a China necessita muito da ajuda
tecnológica do Ocidente e, para alcançar esse objectivo, está
pronta a usar a máscara da respeitabilidade. Mas pode ter-se
a certeza de que nos lugares recônditos do país, e tal como
antes, continuam a ser incutidos no povo chinês a hostili­
dade contra a América e o ódio pelo estilo de vida ame­
ricana; as autoridades podem virar a nação contra os
Estados Unidos de um dia para o outro. E até mesmo esta
China «moderada» de hoje, tão firme na conduta da sua
política externa, como qualquer outro Estado comunista,
vai convencendo os Americanos a abandonarem a defesa
de Taiwan, e agora sugere-lhes a retirada da Coreia do
Sul. No devido momento, a China há-de começar a pesar as
vantagens relativas da luta ou do acordo com a União
Soviética. (O desmantelamento do culto de Mao é já um

131
A LEXANDRE SOLJENITSINE

passo nesse sentido.) O erro da diplomacia americana em


relação à China é bem conhecido: consiste em considerar
«Estado normal> o que, de facto, é um potencial agressor
comunista que ainda está a ganhar força.
Nos últimos trinta e cinco anos - a terça parte de um
século ! -, os Estados Unidos e o Ocidente têm escolhido
a via da derrota auto-induzida. Nesta altura, a situação já
atingiu dimensões históricas e as suas consequências não
podem ser evitadas. Quando os Estados Unidos começaram
a sua retirada, ainda se podiam gabar de possuir uma esma­
gadora superioridade militar; hoje, porém, Washington fica
sobressaltado ao descobrir que o fiel da balança do poder
no mundo já não se inclina para o lado do Ocidente: a via da
complacência fê-lo pender para o outro lado. Por ter cedido
no passado, o Ocidente acha agora düicílimo conservar
a sua posição e ainda mais recuperar o perdido. Contudo,
a maior fraqueza não é militar, mas sim psicológica. Todos,
desde os jovens até aos governantes, esperam que, no fim
de contas, tudo acabe por correr bem e todos têm medo
de tomar decisões ousadas e abnegadas antes que seja
demasiado tarde e esses mesmos indivíduos sejam obrigados
a lutar para defenderem o seu próprio território. O Ocidente
não está moralmente preparado para o combate e não quer
tomar consciência do perigo que, nesta altura, até talvez
já seja irreversível. O Ocidente continua a depositar as
suas esperanças numa détente enganadora, que para a Rússia
constitui a forma mais cómoda de guerra adiada e que
mais probabilidades lhe dá de alcançar a vitória. Os diri­
gentes soviéticos prefeririam, por certo, alcançar os seus
objectivos internacionais através da détente, terrorismo e
golpes de Estado: porque haviam de desejar a guerra total,
muito especialmente, a guerra nuclear? (Não parece que, de
facto, a guerra nuclear esteja incluída nas estratégias de
ambos os lados - felizmente: os dirigentes soviéticos têm
toda a razão para crer que poderão dominar o mundo sem
recorrer a ela, enquanto, por seu lado, o Ocidente se sente
moralmente inibido face ao lançamento de um ataque
nuclear, a não ser retaliação. De qualquer modo, o «êxito>
que o Ocidente poderia esperar alcançar com a utilização
das armas nucleares seria falso, porquanto estaria a aniqui­
lar tanto os seus actuais inimigos como os seus potenciais
aliados, as nações dominadas.) Embora com esta ilusória

132
O ERRO DO OCIDENTE

détente o Ocidente consiga adiar por mais tempo o momento


da confrontação directa, tal facto significa que esse even­
tual conflito ocorrerá em circunstâncias muito menos vanta­
josas. Os Estados Unidos irão sentir, muito em breve, a
temperatura subir ao longo da sua fronteira meridional; com
efeito, a pistola cubana está apontada ao frágil baixo-ventre
do continente americano há vinte anos. Basta que os Estados
Unidos aumentem ainda mais o apoio que actualmente dão
aos comunistas da Nicarágua e aos revolucionários pana­
mianos - política já elogiada por Castro, talentoso carni­
ceiro - para a frente sul contra os Estados Unidos ficar
pronta. Esta pistola, impunemente apontada há vinte anos
aos Estados Unidos, tem servido para todos os dias recordar
ao mundo a humilhação dos princípios americanos e o pro­
gressivo enfraquecimento americano. A actual política ex­
terna americana limita-se a uma série de manobras hesitan­
tes e receosas que visam acalmar e procurar lisonjear
potenciais inimigos. (Mas de nada servirá no Zimbabwe,
em Angola ou na Nicarágua; o fornecimento de tecnologia
nuclear à índia, com a intenção de a afastar da U. R. S. S.,
acabará por ser outra falsa esperança.) Mesmo aqueles
que insistem em tomar posições firmes perante o comu­
nismo, estão ainda agarrados à ilusão de que o comunismo
pode ser objecto de reformas democráticas internas. Mas
não há hipótese! Só se tomarmos consciência da ameaça
que o comunismo representa para o mundo e da natureza
essencialmente internacional da estratégia comunista, só se
compreendermos que o Ocidente não pode evitar o con­
flito com o comunismo - e que nem sequer o poderá evitar
por muito mais tempo -, é que o Ocidente poderá abandonar
a sua atitude de humilhante conciliação com os regimes repres­
sivos e, orgulhosamente, meter ombros à tarefa da declarada
defesa da liberdade pelo mundo fora - de Cuba ao Tibete e
do Volga a Berlim. Só a constatação da natureza implacâvel
do comunismo é que poderá fornecer a orientação para um
rumo realista de acção que ainda consiga salvar a huma­
nidade, apesar de todas as rendições e oportunidades des­
perdiçadas no passado. A questão fundamental é que todas
as nações dominadas pelo comunismo, desde os Cubanos
- mesmo junto às vossas praias - até aos Russos - pre­
sos na fortaleza do vosso adversário -, são vítimas e ini­
migos do comunismo e, portanto, vossos aliados naturais.
133
ALEXANDRE SOLJENITSINE

O Ocidente, que tão sensível é aos desejos das nações do


terceiro mundo, mantém-se, no entanto, surdo às aspirações
dos que vivem em terras comunistas. A única política sau­
dável que os Estados Unidos podem adoptar é acabar o
namoro com todas as insurreições que ocorram em terras cuja
neutralidade seja precária, deixar de tentar agradar a todos
os emissários soviéticos (representantes de uma classe domi­
nante e não do seu povo), pôr de parte as suas tentativas no
sentido de tirar conclusões quanto à existência de imaginá­
rias facções rivais dentro das fileiras comunistas. Em vez
disso, deverão colocar-se abertamente ao lado de todas as
nações dominadas, contra o guarda de escravos universal -
o comunismo. Chegou a hora de começar a fazer propa­
ganda ofensiva, tão forte e actuante como a que, há ses­
senta anos, tem vindo a ser lançada pelos comunistas contra
o vosso país, sem ter medo dos insultos que o Pravda,
mentiroso, vai lançar em resposta. No artigo que escrevi
manifestei a minha surpresa perante o modo inconsciente
como o Ocidente tem renunciado à poderosa força não
militar que reside nas transmissões radiofónicas e cujo poder
iluminante no meio das trevas comunistas não cabe na ima­
ginação ocidental. Poderia ser essa a maneira de estabele­
cer contacto directo com os povos subjugados e de favore­
cer o crescimento da sua autoconsciencialização e desejo
de emancipação. (Na sua forma actual, as estações de rádio
e de televisão do Ocidente não estão preparadas para assu­
mir tal papel. A «secção russa> de Rádio Liberdade, por
exemplo, apesar da sua larga experiência, perdeu, infeliz­
mente, todo o contacto com a população e interesses russos,
em consequência da sua sistemática distanciação e hostili­
dade em relação à consciência nacional russa.) Tudo isto
exigirá o rompimento total com as tradições da «etiqueta>
internacional, que, de qualquer modo, já há muito foram
espezinhadas pelos comunistas e que em Teerão mostraram
quanto valem.
A salvação do Ocidente - dada a situação em que se
encontra - exige decisões ousadas, dirigentes notáveis e a
rejeição do pensamento rotineiro.
Eu escusava de ter pressa em apresentar todos estes
argumentos. É cada vez mais claro que nenhum artigo meu,
nem dez artigos destes, nem dez indivíduos como eu, são

134
O ERRO DO OCIDENTE

capazes de transmitir ao Ocidente a experiência adquirida


pelo sangue e pelo sofrimento ou, sequer, de perturbar a
euforia e a complacência que predominam na ciência polí­
tica americana. Escusava de ter pressa porque estamos no
limiar de acontecimentos que, só por si, hão-de irrefutavel­
mente convencer o Ocidente dos seus erros de cálculo.

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