Os Mangás e A Educação
Os Mangás e A Educação
Os Mangás e A Educação
Dissertação de Mestrado
Julho - 2007
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Agradecimentos
Este trabalho não poderia ser realizado se não fosse a presença de pessoas muito
especiais que direta ou indiretamente, nos mais distintos momentos, contribuíram para
meu equilíbrio ao longo de mais essa jornada.
Ao CNPq e à UERJ-Rio, pelo auxílio concedido, sem o qual este trabalho não
poderia ser realizado.
Agradeço a Professora Rita Ribes. “Penso que” seu jeito único e sua genialidade
me permitiram lançar novos e enriquecedores olhares sobre meu objeto de pesquisa.
Agradeço aos amigos de minha turma de mestrado (2005) que foram parte
importante de todo esse processo - e me aturaram debatendo incansavelmente em quase
todas as aulas.
Agradeço com todo afeto a Roberta Dias, a quem conheci através da prática
docente e, curiosamente, acabou me conduzindo até esse curso.
Agradeço a Pedro Rafael Soares, meu grande Amigo e desenhista, pela paciência e
confiança depositadas. Chegou a hora “meu rei”!
Agradeço a Thiago Bianco e Tarcísio Pelissari, amigos especiais por tudo que
fazem e representam em minha vida.
Agradeço a Raquel Porto, pelo carinho, Amizade, respeito e por tudo aquilo que é
tão vital para minha felicidade e ainda assim invisível aos olhos.
Agradeço aos lendários Wagner Simão, Marcelo “7ing” e Márcio “Bobby”, que
amam quadrinhos, RPG, games e são, sem sombra de dúvida, os melhores amigos que
um cara como eu poderia ter.
Agradeço a todos os meus aprendizes, ao longo de todos esses anos, que sempre
me ensinaram muito, todos os dias, em cada encontro. Sem vocês nada disso faria
sentido.
Agradeço a todos da minha família, aos irmãos de luz que sempre me ampararam
e especialmente meus avós, Antônia Augusta e José da Costa Azevedo. Suas vidas me
dão o exemplo de amor e afeto com que ladrilho o caminho em que sigo.
- “Yatá!”
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RESUMO
ABSTRACT
The present work investigated some young people behavior revealed in the
senses produced by manga readers just about that kind of “comic books”. Mangas,
animes and videogames are the three pillars of Japanese entertainment industry. The
starting point of the study I present here was the growing interest that specific artifact
starts in young people. The goal of such a study was to bring contributions to the midia
& education research field. In a more strict sense, I have tried to promote a
comprehension to the cultural experiences shared by the young people that, despite their
own way to construct the Youth have been illegitimated by the School. The Latin-
American Cultural Studies (especially Martín-Barbero and Néstor Canclini) served as
theoretical fundament to construct the subject and to choose the methodological
procedures. Following the guidance of those studies, my interpretation – to both
consume and reception of the mangas – is made on the light of the senses that the
audiences produce about the Medias. That led me to recognize the young people –
subjects of that research – as active producers of senses and not as “passive audiences”.
Regarding the identity of that sense of youth, I face it as a permanent interaction
exercise, with reciprocal knowledge between the one self and the other. The study was
made in an ethnographic perspective, using: interviews – solo or collective – with
young manga readers; making observations in the so-called anime meetings, i. e., spaces
where fans of Japanese entertainment industry are gathered; and photographic records.
With the present Dissertation I hope to contribute to the reckoning of historical, social,
and cultural specificities of the Youth, motivating the School to attribute to those young
students the social role of protagonist.
Keywords: mangas, cultural practices of the youth, juvenile identities, midia and
education.
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Sumário
Introdução 11
1. Conhecendo os mangás 20
Lista de Figuras
INTRODUÇÃO
corrida de ninguém! Isso é uma ilusão. A escola parece viver de ilusão: ela finge que
ensina, o aluno finge que aprende e bola para frente! Tem sido assim já há um bom
tempo. A escola é anacrônica. Ela acha que atua na preservação da cultura sendo
eternamente a mesma, mas, de uma maneira geral, só tem conseguido com isso afastar
os jovens dos livros, do aprender, da diversidade cultural existente no mundo.
Eu estudo a relação dos jovens com mangá porque aprendi muito com
quadrinhos. Cresci e pude vivenciar naquelas leituras saberes e valores que até então
eram bastante teóricos para mim. Tudo indica que precisamos ouvir os jovens para que
possamos ser ouvidos por eles. Para que possamos lhes dizer coisas que façam sentido
para eles. Coisas que permaneçam como aquelas histórias que ouvimos quando somos
pequenos e que depois somos capazes de recontar para nossos filhos.
O presente trabalho está integrado à Linha de Pesquisa “Infância, Juventude e
Educação” do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ e articulado ao
projeto: Infância, Juventude e Indústria Cultural: sociedade, cultura e mediações
coordenadas pela Profª. Maria Luiza Oswald, compartilhando com este não só o
compromisso de reconhecer o papel dos jovens em suas especificidades históricas,
sociais e culturais, contribuindo para conferir a esses sujeitos o papel social de
protagonistas, mas também o interesse em investigar o consumo e a recepção do mangá
– Histórias em Quadrinhos japonesas que vem se constituindo como fenômeno mundial
de comunicação em massa – buscando entender o êxito mercadológico desse produto na
perspectiva teórico-metodológica dos Estudos Culturais latino-americanos que permite
conceber a recepção e o consumo cultural como modo de legitimação ou expressão de
identidades.
CAPÍTULO I
Conhecendo os mangás
“Não são poucos os japoneses que interpretam o mangá (...) como o terceiro
sistema hieróglifo entre os dois que constituem a escrita textual japonesa”
BERNDT, J.
Ainda que demorasse até a segunda metade do século XX para que o termo
mangá fosse consolidado, Hokusai não imaginava que a palavra por ele inventada
abriria caminho para uma das mais poderosas e prósperas indústrias do país.
Entretanto é Rakuten Kitazawa o primeiro verdadeiro autor japonês de
quadrinhos, que publicou em 1901 a primeira história japonesa com personagens fixos:
“Tagosaku to Mokubê no Tokyo Kenbutsu” (“A Viagem a Tokyo de Tagosaku e
Mokubê”), na qual era recuperada a expressão mangá. A partir daí temos, nas duas
primeiras décadas do século XX, a consolidação e a expansão da narrativa ilustrada no
Japão, que se apoiaram também na difusão das primeiras “tiras” de quadrinhos vindos
dos Estados Unidos.
Com a segunda guerra mundial, a produção foi interrompida, mas voltou após
45, graças em parte ao Plano Marshall, que destinou verbas para os livros japoneses.
Com uma população estimulada a ler e poucas atrações culturais - a guerra havia
destruído a maioria dos lugares destinados à cultura e ao ensino de artes - as editoras de
mangá viveram então nesse momento um de seus maiores booms. Na verdade o Japão,
no pós-guerra, necessitava, mais que nunca, de meios de entretenimento e distração para
superar os acontecimentos recentes. Nesse sentido, dois elementos contribuíram para a
difusão dos mangás: os kamishibai, ou “teatro de papel” (relatos em quadrinhos, feitos
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garotas não devam lê-los — são chamados de shonen (garoto jovem, adolescente, em
japonês) e tratam normalmente de histórias de ação, amizade e aventura. Histórias para
meninas são chamadas de shoujo (garota jovem em japonês) e têm como tema comum
as histórias de amor (também existem garotos que lêem shoujo pois alguns contam com
bastante ação e luta). Além desses existe o gekigá, que é uma corrente mais realista
voltada ao público adulto (não necessariamente são pornográficos ou eróticos) e ainda
os gêneros seinen para homens jovens e josei para mulheres. Existem também os
pornográficos apelidados hentai. As histórias yuri abordam a relação homossexual
feminina e o yaoi (atualmente chamado de BL – Boys Love) trata da relação amorosa
entre dois homens, mas ambos não possuem necessariamente cenas de sexo explícito.
Há também os fanzines e dōjinshis, que são revistas feitas por autores
independentes sem nenhum vínculo com grandes empresas. Algumas dessas revistas
criam histórias inéditas e originais utilizando os personagens de outra ou podem dar
continuidade a alguma série famosa. Esse tipo de produto pode ser encontrado
normalmente em eventos de cultura japonesa e na internet.
Atualmente o mangá vive no Japão um momento de relativa crise. Se ele soube
interagir bem com a televisão em tempos passados, o mesmo não está ocorrendo na sua
relação com os videogames e com o avanço da internet – ainda que muitas personagens
de populares mangás se tornem estrelas de jogos eletrônicos de sucesso. Desde o fim da
década de 1990 as vendas têm caído e as editoras têm buscado por novos autores e por
sua renovação.
Já no Brasil, a entrada dos mangá data do início da década de 1990, através de
títulos esporádicos, de poucos números (pois quase nunca eram publicados até o final)
em edições que hoje são consideradas raras. Séries como “Akira”, do mestre Katsuhiro
Otomo, e “Kozure Ookami” (“Lobo Solitário”), de Kazuo Koike, foram desbravadoras
no sentido de apresentar o público brasileiro ao estilo. Ainda que as edições fossem
ocidentalizadas (isto é, as páginas foram “espelhadas” para manter a estrutura de leitura
tradicional) este primeiro contato fez com que o interesse pelos quadrinhos japoneses
apenas crescesse.
Mas foi no final da década de 1990 que ocorreu o grande boom dos mangás,
quando a Editora Conrad, e pouco depois a JBC, trouxeram para o país títulos de grande
popularidade entre os jovens, com heróis que já eram conhecidos pelos animes que eram
transmitidos periodicamente na televisão. Esse é outro aspecto curioso de nossa relação
com a cultura japonesa: desde o fim da década de 1960 o público brasileiro tem contato
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Fig. 7 – Samurai X, Dragon Ball, Yu Yu Hakusho, Naruto e Dragon Ball Z: exemplos de Shonen
mangás já lançados no Brasil.
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Fig. 8 – Samurai Girl, Sakura Card Captors, Vampire Knights e Chobits: exemplos de Shoujo mangás
já lançados no Brasil.
Fig. 9 – Gravitation e Love Junkies são respectivamente Yaoi e Hentai mangás, enquanto Blade e
Vagabond são tidos como Gekigá mangás.
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CAPÍTULO II
“Ao perguntar o que significa, hoje, ser jovem, verificamos que a sociedade
que responde ser o futuro incerto ou não saber como construí-lo está
dizendo aos jovens não apenas que há pouco lugar para eles. Está
respondendo a si mesma que tem pouca capacidade, por assim dizer, de
rejuvenescer-se, de escutar os que poderiam mudá-la.” - Nestor Garcia
Canclini·.
Essa situação de desvalorização dos modos de ser e conhecer dos jovens afeta
particularmente minha condição de professor de História e Geografia no Ensino Médio,
até porque resgatando minha situação não tão remota de aluno do então denominado 2º
grau eu me coloco na posição de meus alunos – ou do Outro – conseguindo entender, e
mesmo compartilhar, seu mal-estar em relação ao que a escola ensina e aos modos de
ensinar. Essa troca de lugar, que me familiariza – enquanto jovem que sou – com a
condição de meus alunos de “peixes fora d’água”, me permite ser cúmplice deles quanto
ao ceticismo com que olham para a escola. Admitindo, entretanto, que essa
cumplicidade é insuficiente para promover mudanças na minha prática, dispus-me nesse
estudo a desvelar esse mal-estar, buscando não apenas me beneficiar, mas tentar
contribuir para o “rejuvenescimento” da escola.
Com relação à escolha do mangá como produto capaz de viabilizar a
investigação, são os seguintes os motivos que me levaram a ela: por uma feliz
coincidência, além de ser um dos focos do estudo coordenado por minha orientadora,
conforme referenciado na Introdução, o mangá vem sendo objeto de meu próprio desejo
há mais de seis anos, incitando-me não só à leitura, mas também à produção de histórias
em quadrinhos. Além disso, não dá para ignorar a significativa incidência do seu
consumo entre crianças e jovens. Embora somente agora os mangás venham tendo mais
visibilidade na mídia, sua recepção por crianças e jovens no Brasil é significativa, haja
vista a venda pela Conrad – editora que detém 47% do mercado nacional do gênero –
de, em média, 200 mil exemplares mensais que estão disponíveis tanto em bancas de
jornal, como em livrarias, havendo algumas que se dedicam exclusivamente à venda das
HQs japonesas. Cabe ainda esclarecer que a opção por estudar o que poderia ser
considerado no âmbito da sociologia e da antropologia clássicas um reles produto
alienador da consciência, adquire, a partir da diluição das fronteiras entre alta e baixa
cultura, a condição de artefato cultural. Referindo-se a Derrida, Foucault, Deluze e
Guattari, Kellner (1995) diz que “eles atacam o elitismo inscrito no modelo conservador
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“A cultura é menos a paisagem que vemos do que o olhar com que a vemos”
Jesús Martín-Barbero
Canclini (1999) coloca em xeque essa visão, argumentando que o consumo tem
uma lógica que é determinada pelas práticas sócio-culturais dos sujeitos.
Assim, segundo ele, caberia analisar “os processos de consumo como algo mais
complexo do que a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências” (p. 75-76).
Longe de fazer a apologia do consumo, o autor considera que não é possível continuar
entendendo o consumo como lugar de irreflexão e do gasto supérfluo, diante do qual o
sujeito desaparece. A função mercantil, que fortalece a racionalidade do capitalismo
pós-industrial é, segundo ele, apenas uma das funções do consumo que não pode ser
encarado “como a mera possessão individual de objetos isolados” (id, ibid, p.90). Para
ele, o homem atua como consumidor não apenas obedecendo à regulação do mercado,
mas pode também, como cidadão, exercer uma reflexão e uma experimentação mais
ampla do consumo.
Nessa perspectiva, Canclini destaca que o consumo tem também uma função de
interação e que consumir é um modo de distinguir-se dentro do próprio grupo para fazer
parte de uma comunidade e/ou ampliar a interação.
Como é o caso do consumo de artefatos da cultura de massa que acabam
tornando-se símbolos de reconhecimento e aceitação para aqueles que, imersos nessa
cultura, compartilham destes mesmos significados. Desse modo, consumir pode não ser
necessariamente reproduzir, visto que essa prática pode estar diretamente associada às
condições culturais de um dado grupo social que cria processos de construção de
identidade na produção de sentidos que estabelece com os objetos consumidos.
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Ainda que não exista um período específico em que cada identidade começa a
ser constituída, assim como não há um prazo fixo para que ela se consolide, observa-se
que esse processo coincide com o início da adolescência, podendo se prolongar por
diferentes períodos, de acordo com as experiências pessoais e as possibilidades de
escolhas oferecidas em cada grupo social. Assim, se a adolescência é tida como uma
fase de transformações mais bem definidas, a juventude apresenta uma amplitude maior,
de fronteiras móveis e limites imprecisos.
O processo de construção da(s) identidade(s) do jovem passa por um processo
simultâneo de reconhecer-se e ser reconhecido. Trata-se de um processo que não se
constitui isoladamente, mas que refaz os seus sentidos nos diversos relacionamentos que
se estabelecem com os adultos e os conjuntos de ações das redes culturais da juventude.
Contemplamos aqui o conceito de juventude segundo a perspectiva de Carrano
(on-line 2) que evita reducionismos e a apresenta como uma experiência ampla, mutante
e capaz de se resignificar no tempo e no espaço.
As redes possuem uma dimensão física, mas também possuem uma dimensão
social e política que se dão a partir das pessoas, mensagens e valores que as freqüentam,
nos impedindo assim de ignorar o poder da ideologia que circula por elas. As redes
dependem de fluxos e para os poderes hegemônicos interessa que estes ocorram com
rapidez e eficiência.
Nesse sentido Carrano (on-line 1) aponta nossa análise para um sentido ainda
maior:
Milton Santos destacou também o papel desempenhado pelo lugar nas relações
em rede e como este pode oferecer resistência e oposição a movimentos massificadores
e totalitários. Ele apresenta o poder do lugar como o poder dos “homens lentos”, isto é,
dentro das múltiplas temporalidades que coexistem no mesmo lugar, os indivíduos que
não se integram à velocidade do modo de vida capitalista globalizado, seja por
incapacidade participativa ou por resistência ideológica, expressam sua capacidade
como coletividade, se organizando e se associando em redes colaborativas que atendem
à demanda do homem e não do sistema. Tal ação pode ser reconhecida como uma busca
da vivência segundo o ritmo dos interesses de coletividades humanas autodeterminadas
(Santos, 1997).
É possível compreender que as redes sociais não são auto-explicativas e que o
poder de mobilização, reação e, principalmente, ação se faz presente de forma decisiva
na compreensão dos processos local/global de efetivação destas.
As redes sociais são desse modo fatos sociais que só podem ser compreendidos
em seu processo de realização, estando sob contínua redefinição, revelando um forte
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simbólicos o eixo em torno dos quais se caracteriza a chamada sociedade complexa. Por
meio da intensificação da velocidade das informações, os jovens entram em contato e de
alguma forma interagem com as dimensões locais e globais, que se determinam
mutuamente, mesclando singularidades e universalidades, envolvidos numa pluralidade
de pertencimentos: posições sociais, redes associativas, grupos de referência, etc... De
tal forma que participam, no real ou no imaginário, de uma multiplicidade de mundos,
tendo acesso a diferentes modos de ser, a diferentes modos de viver, a diferentes
modelos sociais que terminam interferindo nos processos identitários.
A identidade é vivenciada assim, como uma ação e não tanto como uma
situação: é o indivíduo que constrói a sua consistência e seu reconhecimento, no interior
dos limites postos pelo ambiente e pelas relações sociais.
A construção da identidade é antes de tudo um processo relacional, ou seja, um
indivíduo só toma consciência de si na relação com o Outro. Ninguém pode construir a
sua identidade independentemente da identificação que os outros possuem a seu
respeito, num processo intersubjetivo no qual “eu sou para você o que você é para mim
”.É uma interação social, o que aponta para a importância do pertencimento grupal e das
suas relações solidárias para o reforço e garantia da identidade individual. Não nos
sentimos ligados aos outros apenas pelo fato de existirem interesses comuns mas,
sobretudo, porque esta é a condição para reconhecer o sentido do que fazemos, podendo
nos afirmar como sujeitos das nossas ações.
indivíduos e deles próprios, são sujeito e objeto de suas pesquisas. É objetivo destes
compreender os valores, crenças, motivações e sentimentos humanos que, segundo sua
própria perspectiva, só pode ocorrer se a ação é colocada dentro de um contexto de
significado.
Na década de 1970, surge nos Estados Unidos, inspirada nas idéias de Weber, a
antropologia interpretativa. Um dos principais representantes desta abordagem é
Clifford Geertz, que propõe um modelo de análise cultural plural e diferenciado, onde o
antropólogo realiza uma descrição profunda (“densa”) das culturas, como “teias de
significados” que devem ser interpretados. Para Geertz, os textos antropológicos são
interpretações sobre as interpretações nativas, já que os nativos produzem interpretações
de sua própria experiência. Tal perspectiva conduz o antropólogo a um constante
questionamento a respeito dos limites de sua capacidade de conhecer o grupo que estuda
e na necessidade de expor em seu texto os questionamentos, perplexidades e caminhos
percorridos em sua interpretação, tida sempre como provisória e parcial.
Posteriormente, a contribuição de Geertz influenciou o surgimento da
antropologia reflexiva que propõe uma reflexão acerca do trabalho de campo e as
escolhas epistemológicas onde o resultado da pesquisa não deriva simplesmente da
observação, mas de um diálogo e de uma negociação de pontos de vista, do pesquisador
e pesquisados. (Goldenberg, 2001).
Como a objetividade e a neutralidade absoluta são impossíveis de serem
alcançadas, já que a simples escolha de um objeto significa um julgamento de valor, a
antropologia reflexiva propõe ao pesquisador o esforço de objetivação como forma de
conter a subjetividade. Afinal, ainda que seja impossível atingir uma neutralidade plena,
é essencial manter esta meta para não fazer do objeto construído um objeto inventado.
Nesse sentido Goldenberg (2001) nos aconselha: quanto mais o pesquisador tem
consciência de suas preferências pessoais mais é capaz de evitar o bias, muito mais do
que aquele que trabalha com a ilusão de ser orientado apenas por considerações
científicas. (p.45)
É importante ter em mente que a sociologia interpretativa reflexiva adota uma
abordagem qualitativa que não se preocupa em fixar leis para produzir generalizações.
O que está em jogo aqui é uma compreensão mais profunda dos fenômenos sociais a
partir de aspectos subjetivos da ação social. A abordagem qualitativa vem suprir a
incapacidade da abordagem estatística de dar conta de fenômenos complexos e
singulares através de questionários padronizados.
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1
Coordenado pela Profª. Maria Luiza Oswald no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, o
Projeto tem por interesse investigar os sentidos que crianças e jovens produzem sobre o consumo e a
recepção dos produtos do tripé da indústria de entretenimento japonesa – mangás, animes e videogames –
com base, prioritariamente, nas contribuições de autores filiados aos Estudos Culturais Latino-
americanos.
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(b) Uma entrevista coletiva, por intermédio de gravação de voz, com sete alunos
que até então pertenciam ao Ensino Médio de uma escola da rede particular em que eu
lecionava, à época das entrevistas, as disciplinas de História e Geografia. Situada no
bairro de Bento Ribeiro, a escola afirma adotar uma linha sócio-interacionista,
atendendo a crianças e jovens de diferentes classes sociais devido ao sistema de bolsas
que oferece. Os entrevistados eram meus alunos da segunda série do ensino médio em
ambas as disciplinas e a escolha dos jovens entrevistados foi relativamente simples,
afinal o grupo com quem conversei era constituído por assíduos leitores de mangás que
liam e trocavam revistas durante as aulas das disciplinas que menos lhes interessavam –
isto é, quase todo tempo. Toha tinha 18 anos, Henrique, Ramon e Vitor tinham 17 anos,
enquanto Vanessa, Diogo e Luis tinham 16 anos. Os depoimentos foram colhidos na
própria escola, por intermédio de gravação de voz, tendo a duração de 90 a 120 minutos.
A opção pela realização dessa entrevista coletiva teve por objetivo observar a dimensão
de socialidade que a recepção do mangá supõe, bem como investigar a influência da
grupalidade na constituição das identidades.
(c) Duas entrevistas individuais, com uso do gravador, com dois dos jovens que
participaram da entrevista coletiva, Toha e Henrique, cuja forte relação com os mangás
me permitiu preencher algumas brechas da entrevista coletiva. Cada entrevista teve a
duração média de 40 minutos.
(d) Duas entrevistas individuais com dois jovens da rede pública estadual de
ensino, com quem tive contato nos animencontros de que participei. Daniel de 14 anos e
Fábio de 15 anos, ambos matriculados na primeira série do Ensino Médio. Os
depoimentos foram colhidos em dois animencontros. Um no Centro Cultural da UERJ e
outro no Esporte Clube América, por intermédio de gravação de voz, tendo a duração
média de 30 minutos cada. Minha intenção com essas entrevistas foi confrontar as falas
desses jovens com os depoimentos dos jovens da escola particular.
(e) Duas entrevistas individuais on line com duas alunas do ensino médio: Ana,
então com 17 anos, aluna de um colégio/curso preparatório ao vestibular, e Bya, de 18
anos, aluna do terceiro ano do ensino médio, ambos particulares, situados na zona norte
da cidade. A presença de apenas uma jovem na entrevista com alunos do Ensino Médio
foi uma das motivações dessa opção.
(f) Diários de campo dos seguintes animencontros: 9/10 de 2005, no “Anime
Center de Aniversário”; 18/03 de 2006 no “Anime Center EXTRA!”, também realizado
na UERJ; 27/05 de 2006 no “Anime Center Verão”, ocorrido no Esporte Clube
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Na escola
metido agora para querer saber sobre mangás. Eu era professor-conselheiro dessa turma
e nós já havíamos conversado outras vezes, sobre outros assuntos como música, cinema
e RPG. Essa minha faceta, de compartilhar com eles suas práticas culturais foi o que os
levou – como eles próprios relataram – a dispor-se a dar seus depoimentos como
leitores de um produto que grande parte dos professores considerava pouco benéfico à
sua formação. Saber que a opinião deles seria importante para o trabalho que eu estava
desenvolvendo parecia significativo para eles, que confiavam em mim e se sentiam
felizes em poder retribuir. O fato de eu compartilhar com o grupo o conhecimento e a
admiração pelo artefato que eu estava investigando me proporcionou a vantagem de não
precisar me esforçar para transformar “o exótico em familiar”. Tendo em vista o tempo
restrito para o desenvolvimento dessa dissertação, essa vantagem foi um benefício. Por
outro lado, é necessário dizer que não me eximi do esforço de transformar “o familiar
em exótico”. Até porque, durante a entrevista, e ao longo do estudo, minha relação com
o mangá não esteve protegida pela “ignorância” que nos dá liberdade para ver TV,
assistir a filmes, ler Histórias em Quadrinhos etc, sem a “tutela“ da teoria. O ingresso no
mestrado mudou minha posição de leitor/produtor de mangá para a de pesquisador da
recepção desse fenômeno de comunicação de massa entre jovens. Minha condição atual
de “desprotegido da ignorância” me garantiu a possibilidade de discernir a
complexidade do meu objeto de estudo.
Nos animencontros2
Por ser leitor de histórias em quadrinhos desde que aprendi a ler e conviver em
meu dia-a-dia com amigos também leitores, sempre tive conhecimento da existência de
eventos e encontros relativos ao universo dos personagens dos mangás. Cheguei a
participar de alguns deles, mas nunca com regularidade. Entretanto, em outubro de
2005, meu interesse de pesquisa me levou a voltar aos encontros de anime e mangá
realizados no Rio de Janeiro, desta vez como pesquisador. Minhas entradas em campo
ocorreram no chamado “Anime Center”, evento realizado em média duas vezes por ano,
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Os animencontros são mega eventos presenciais que reunem fãs da indústria de entretenimento
japonesa- crianças, jovens e adultos - em torno de práticas relativas ao consumo e recepção de mangás
animes e videogames, tais como: jogar cards, games; participar de palestras conferidas por editores,
dubladores de animes, especialistas em videogames; participar de desfiles e concursos de cosplay (prática
de caracterizar-se como heróis e heroínas de mangás e animes); encenar em jogos de arena lutas próprias
da cultura japonesa; participar de oficinas de produção de mangás e animes; assistir a competições de
videogames; trocar informações sobre os produtos; adquirir mercadorias; constituir grupos de amizade
referentes às identidades aos produtos.
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por vezes no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e por vezes
no Esporte Clube América (ambos localizados na região da grande Tijuca).
Vale destacar que a experiência de ir a esses eventos não despertou em mim a
curiosidade e a estranheza presentes nos demais membros do grupo de pesquisa. Muitas
vezes, nas reuniões de pesquisa, meus colegas demonstraram um certo espanto com o
cenário dos animencontros. Distantes do universo cultural dos mangás e animes e das
práticas relativas ao consumo/recepção desses artefatos, meus companheiros de
pesquisa demonstravam sentir-se como um antropólogo de visita a uma tribo indígena
de uma terra distante, estranhando o jovem que vivia na mesma cidade que eles,
freqüentava o espaço da mesma universidade, mas transitava por outro circuito cultural.
Para mim, leitor desde sempre de histórias em quadrinhos, o cenário dos animencontros
não gerava estranheza. A pele do pesquisador em nada me pesava. O que não significa
dizer que eu me expus desavisadamente à “ilusão do saber fazer”, que segundo
Brandão (2002) é um dos perigos a que se expõe os pesquisadores principiantes (e não
só eles). Muito pelo contrário, me senti instigado a desvendar os sentidos que os jovens
produziam sobre aquelas práticas, desencavando a cultura das mochilas escolares onde
ela permanecia oculta. Para tanto, tomei algumas precauções para não incorrer no que
Bourdieu, citado por Brandão (idem), chama de “arrogância da ignorância”. Muito
embora eu não tenha ido para o campo coberto pela teoria, minha intimidade com a
temática tornou necessário que eu me apropriasse de algumas categorias teóricas que me
ajudassem a transformar o tema em problema. Canclini, Martín-Barbero e a revisão de
literatura sobre práticas culturais de jovens (Paulo Carrano, Marilia Sposito, Hermano
Vianna, Dayrell, entre outros ) me ajudaram nessa etapa, me auxiliando no trabalho de
construção dos roteiros que me guiariam no que eu iria observar nos animencontros e
perguntar para os sujeitos. Esses cuidados, essenciais diante do prazo exíguo para o
desenvolvimento de dissertações de mestrado, foram importantes na fase da
interpretação do material recolhido, já que me permitiram ir organizando
processualmente os dados, livrando-me de ter que lidar com um volume enorme de
registros e depoimentos não visados pelo estudo.
Nesses animencontros tive contato mais sistemático com três jovens da rede
pública de ensino que compartilharam comigo a relação que tinham com o mangá e os
diferentes significados que constituíam a partir dessa leitura. Eram alunos que
estudavam em escolas dos bairros do Méier e de São Cristóvão e que em seus relatos
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apresentavam suas escolas como “boas” embora que “meio que abandonadas”, enfim, o
lugar em que eles iam para “aprender sobre a vida e sobre o mundo para ser alguém”.
Na rede
Minha intenção é contribuir para que os sentidos que emergem dos depoimentos
dos jovens, façam sentido também para a escola, auxiliando-a na construção de uma
prática educativa intercultural, tal como sugere Orofino (on-line). São esses sentidos
que trago nos capítulos a seguir, entendendo como Dayrell (on-line 2) que se a escola e
seus professores querem estabelecer um diálogo com as novas gerações, é
imprescindível romper com os estereótipos socialmente construídos que impedem que
os jovens sejam vistos como realmente são, buscando descobrir como eles vêm
construindo um determinado modo de ser jovem.
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CAPÍTULO III
Os títulos mais comuns citados no período das entrevistas foram: “Samurai X”,
“Dragon Ball Z”, “Cavaleiros do Zodíaco” e “Shaman King”. “Naruto”, apontado por
todos como um anime empolgante, divertido e de grande repercussão, surgiu também
como o mangá preferido de três alunos do ensino particular que o acompanhavam via
internet - até o dia das entrevistas ele ainda não havia sido publicado no Brasil. Outros
títulos que também foram citados, mas com menor expressão foram “Yu Yu Hakusho”,
“Blade”, “Evangellion”, “Guerreiras Mágicas de Rayearth” e “Sakura Card Captors”,
dois desses (“Rayearth” e “Sakura”) classificados como shoujo mangá.
A pergunta sobre que outras atividades prazerosas faziam parte de seu dia-a-dia,
de uma maneira geral, tanto os jovens da rede pública quanto os da rede particular
referiram-se a “ver TV”, “estar com os amigos”, “jogar videogame”, “escutar música”,
“jogar RPG”, “ir ao shopping”, “namorar”. E, enquanto os da rede pública apontaram a
prática de esportes (especialmente futebol) como um de seus lazeres preferidos, os da
rede privada citaram “navegar na internet” como uma de suas preferências.
O fato de tanto os jovens da rede pública quanto os da rede particular se
envolverem em práticas semelhantes, como “ver TV”, “estar com os amigos”, “jogar
videogame”, “escutar música”, “jogar RPG”, parece estar relacionado à sua
identificação com o universo da indústria de entretenimento japonesa. Com relação à
TV, a maioria deles referiu-se que sua aproximação aos mangás decorreu da assistência
assídua aos animes. No que diz respeito a jogar videogame e RPG, muitas vezes os
personagens do mangá são utilizados nesses jogos. Quanto a estar com os amigos, esta
é uma experiência que eles demonstraram ser fundamental ao consumo e à recepção do
mangá, como será analisado abaixo. O fato de navegar na internet não ter sido citado
pelos jovens da rede pública pode ser um indício da característica ainda excludente
dessa atividade.
Chamou a atenção o fato de nenhum dos jovens ter mencionado a participação
em práticas culturais coletivas em espaços sociais públicos, o que denota a escassez de
políticas públicas voltadas à cidadania cultural, quanto de não terem relacionado escola
e lazer/cultura. Brenner, Dayrell e Carrano (2005), comentando os dados da “Pesquisa
da juventude brasileira”, mostram que tanto as escolas ainda estão longe de se
transformar “em equipamentos culturais que favoreçam a expressividade juvenil e, ao
mesmo tempo, dialoguem com os projetos pedagógicos escolares” (p.182), quanto
chamam a atenção para o escasso envolvimento do Estado na promoção de atividades
culturais em espaços públicos, indispensável para garantir “a apropriação da cidade
65
Fábio: O mangá fica na mochila. Ele vai comigo e sempre que tem chance eu leio...
Hoje por exemplo tô com “Blade”...
- Risos-.
66
Diogo: Pô, o mangá é muito importante pra mim. Sempre que eu tenho tempo eu
leio. Mas nem sempre dá... Porque tem coisas que você tem de deixar de lado, às
vezes, para fazer outras.
Luís: Eu gosto de ler quando não tem ninguém perto. Na paz do meu quarto...
Essas falas parecem remeter a questões relativas aos desencontros entre jovens e
seus professores, à dificuldade que apresentam com a lógica de aprendizagem calcada
no livro e no impresso, à falta de interesse com as atividades escolares, entre outras.
Referindo-se à importância de que esses desencontros sejam superados, Orofino (on-
line) sugere que, para tanto, a escola precisaria colocar em funcionamento uma prática
educativa intercultural que supõe o reconhecimento do papel que as indústrias da mídia,
e os múltiplos e contraditórios conteúdos por elas veiculados, desempenham nos
processos de constituição das identidades dos jovens estudantes.
Esses desencontros também aparecem nas falas dos primeiros jovens
entrevistados na fase exploratória do Projeto ao qual essa dissertação está articulada.
Indagado sobre se achava o mangá menos importante do que o livro, José põe em dúvida o
poder emancipador inquestionável que os intelectuais atribuem ao livro.
José: Não, pra mim, não, mas pra outras pessoas talvez seja.
José: É. Mas pra mim conta. Eu acho que a mesma mensagem que o livro traz pra
pessoa o mangá também pode trazer só que por outro meio de expressão, de
comunicação.
necessidade a ser transmitida e difundida” (Batista e Galvão, 1999, p.18, apud Oswald,
2007).
José também explica qual é o meio de expressão do mangá. Para ele: “Ler
mangá é como ver cinema. [...] É bem cinematográfico, é como se você estivesse lendo
um cinema. Aí é bem legal de ler é bem divertido... É como se você estivesse vendo um
filme só que em papel”.
Interpretados sob a ótica da leitura do livro, tais depoimentos poderiam ser
encarados como alienação provocada pelas imagens midiáticas. No entanto, sob a ótica
das novas competências de recepção, que envolvem as ações do ver, do escutar e do
sentir (Orozco Gomes, on line), eles fazem sentido. Segundo o autor, a tendência de
buscar compreensão para a maneira como os sujeitos interagem com os meios,
colocando a tônica na ritualidade própria à leitura do livro, é equivocada, já que ler não
é o que define essa interação, e sim ver, escutar ou sentir. Para ele, investigar a relação
dos sujeitos com os meios sob a ótica da leitura do livro seria uma herança da
“mentalidade ilustrada”, perniciosa porque “tem impedido afinar e matizar
conceituações mais apropriadas aos fenômenos que inauguram, como por exemplo as
visualidades tecnificadas que inundam as cotidianidades atuais” .
O diálogo a seguir, que ocorreu na entrevista coletiva realizada com jovens do
Ensino Médio, indica empiricamente o que Orozco Gomes (on-line) diz sobre as
competências implícitas à recepção dos meios audiovisuais. À pergunta sobre por que se
interessavam pelo mangá, seguiu-se a seguinte conversa.
Pesquisador: Diferente?
João: No mangá os personagens sofrem, ficam felizes... Eles vivem como nós. Com
sentimento (...) Os desenhos mostram a emoção. Dá pra ver no olhar deles.
Henrique: É como eu já te disse aquela vez, a gente vê e vive aquela emoção junto
com o personagem.
João: No mangá o desenho diz tudo. É pura emoção! Você vive e se emociona com
o personagem. E cresce com ele também...
Hoje é possível perceber que o jovem conta com uma ampla multiplicidade de
instâncias de socialização, que não se limitam apenas à família e à escola, mas
abrangem outros campos do lazer e da cultura, principalmente na constituição da
sociabilidade, da identidade e da formação de valores. A leitura dos mangás, na presente
69
João: Às vezes a gente lê e tem que discutir com o outro para entender melhor. Tem
muito da cultura japonesa. Se for preciso a gente até pesquisa.
Daniel: Cada um tem a sua visão e a gente conversa para entender mais.
70
Ana: Quando acabou Samurai X eu discuti muito com meu namorado sobre o final.
A história marcou muito e na nossa conversa nós entendemos ainda mais o que
aconteceu. E isso foi muito legal!
Henrique: Todo mundo traz uma informação a mais e isso enriquece muito. Você
fica sabendo mais e acaba ficando por dentro de tudo.
A troca com outros e o debate sobre o que foi lido parece para esses leitores algo
extremamente enriquecedor, significando uma experiência que amplia muito o que se
encontra nas páginas da revista. Na verdade, os mangás trazem muitos elementos
desconhecidos do leitores ocidentais – seja a cultura oriental ou simplesmente os
componentes fantástico-mitológicos - e isso os torna ainda mais atraentes como também
instigantes, levando os jovens a pesquisar sobre o que estão lendo. E todos procuram ler
para compartilhar experiências para assim fazer parte do grupo.
Ramon: Eu converso com todo mundo... Não tem essa de falar só com quem lê
mangá.
Toha: Eu lido com os caras daqui e com o pessoal de lá – aponta para onde seria a
outra turma – que curte outras paradas... Aqui eu falo de anime e mangá e lá de
outras coisas...
Henrique: Mas quando a gente tá aqui conversando sobre mangá e anime e vem
alguém de fora...
Toha: Um não-iniciado!
(Risos)
Luis: Diariamente. Coleciono oito. Tipo assim, eu racho com o meu primo, tá
entendendo? Meu primo compra quatro e eu compro quatro.
71
Toha: Ela racha com a sala toda - Todos riem - Se ela [a Vanessa] cooperar, eu
leio todo dia. Se ela esquecer, eu passo um dia sem ler.
Toha: Eu tive que parar, porque não me sobra dinheiro. Eu tava comprando
“Blade”, que são R$5, 20, mas agora com namorada, acabou que eu fico sem
dinheiro mesmo. Aí eu fui buscar assim: pegar Samurai X emprestado, pegar
“Shaman King”, vou começar a pegar “Blade” com ela também, mas se eu puder
ler todo dia, eu vou ler todo dia. Desde que sejam os mangás que eu gosto.
Daniel: Eu leio mangá sempre que dá (...) Eu compro Samurai, Blade e o resto eu
leio dos meus amigos. Eles também lêem os meus e assim todo mundo lê tudo e
ninguém perde nada.
Fábio: Mangá tem ficado muito caro, né? Mas a gente sempre dá um jeito e pega
emprestado ou o cara te conta... Eu leio sempre que posso, principalmente quando
volto do curso (...) Mas eu não leio qualquer coisa, só por ser mangá... Leio o que
eu gosto.
Nesses encontros não é raro ver vários jovens reunidos pelos corredores, lendo
mangás e/ou discutindo os eventos ocorridos em seus títulos preferidos. Também
existem grandes salas onde centenas de jovens se amontoam para assistir episódios das
mais diferentes séries de animes, muitos deles pela terceira ou quarta vez, só pela
experiência de ver em conjunto.
Daniel: Tava.
Daniel: Era.
Daniel: Claro. Aqui a gente vibra junto, zoa, grita... E depois ainda tem os
comentários. Tem sempre alguém hilário.
73
Fig. 13 Cosplayers das personagens Spike, de Cowboy Beebop e Itachi Uchiha e Kiba Inuzuka,
também de Naruto.
74
Fig. 16 Músicos do Anime Daiko em ação enquanto os jovens presentes dançam em uma grande roda
músicas-tema de animes, na UERJ, em outubro de 2005.
Fig. 17 Comunidade no Orkut referente a um título de mangá de grande popularidade: Rurouni Kenshin
(128 membros).
Fig. 19 Comunidade no Orkut de pessoas que lêem mangá na sala de aula (9.364 membros).
CAPÍTULO IV
4. 1 – O Herói no mangá e o herói além das páginas: “O herói é assim mesmo, tão
diferente e ao mesmo tempo tão igual a gente”
Com base nas entrevistas encontrei muitas vezes termos como “personagens
humanos”, “heróis realistas”, “uma história boa” e o fato de “dizer alguma coisa”
como pré-requisitos fundamentais para o consumo regular de um certo título de mangá.
Respaldado em Canclini (1999) que diz que “o consumo serve para pensar”, não sendo
fruto de atitudes irrefletidas de sujeitos que se deixam cooptar irresistivelmente para as
mercadorias, tais alusões me levaram a crer que estes jovens não consomem mangás por
consumir, mas selecionam aquilo que vão ler a partir de uma lógica que tem relação
com o que eles significam como fundamental aos seus modos de ser.
Daniel: Bom, eu leio o que aparece na minha frente... Meio para ver como é. Mas
só continuo acompanhando aqueles que eu acho legal, com mais ação, que tenha
uma história boa...
Fábio: Comigo é igual. Mas tem que dizer alguma coisa para que eu continue
acompanhando.
Ramon: O mangá tem que ter história e isso eles têm muito.
4.2. (Re) conhecendo um herói: “Os mangás tentam focar mais a pessoa normal de
cada dia, o ser humano. Um herói mais humano”.
abundância de alguma virtude crucial aos seus objetivos – fé, coragem, vaidade,
orgulho, força de vontade, determinação, paciência etc.
A análise da figura do “herói” nos mangás exige que investiguemos os dois
principais modelos arquetípicos de heróis que se conhece: o “herói épico”, presente nos
mitos da Antigüidade, e o “herói da cultura de massas”, ou simplesmente “anti-herói”.
grega que designa descida, submersão, o momento em que o herói conhece as trevas:
uma viagem ao deserto, a exploração da caverna do dragão, etc. Todo esse sofrimento,
até mesmo a morte, simbólica, do herói, é reversível e configura-se como o momento de
“queda” do herói.
Todavia a catábasis sempre é sucedida por uma anábasis, subida, emersão, é
quando ocorre a renovação moral e física do mesmo. Aqui o herói conquista o tesouro, a
espada mágica e a princesa perdida, alcança a maturidade interior e renova-se.
O estudioso das religiões Joseph Campbell (1997) elaborou a estrutura básica do
mito heróico que seria seguido por todos os heróis de todos os tempos e culturas.
Segundo Campbell a aventura do herói pode ser dividida em fases elementares, pelas
quais todo herói deveria passar. São estas: 1.“o nascimento complicado”; 2. “a
iniciação”; 3. “o chamado da aventura”; 4. “o auxílio sobrenatural”; 5. “as provas
iniciáticas – catábasis – e a luta contra o monstro”; 6. “o retorno - anábasis – e o
casamento”;
Campbell nos diz que o mito do herói segue sempre um padrão arquetípico,
segundo os moldes da psique humana, onde tal mito corresponde simbolicamente ao
próprio desenvolvimento da consciência do homem, individual e/ou coletiva, e é
exatamente isso que nos permite seu reconhecimento.
Deixando os épicos para trás, vamos observar como a estrutura elaborada por
Campbell para o herói antigo encaixa-se perfeitamente em heróis modernos. Temos
como exemplo Kenshin Himura, personagem-título do mangá “Samurai X”, muito
citado entre os leitores entrevistados. Em seu caminho o “samurai andarilho” segue
rigorosamente a estrutura simbólica apontada por Campbell:
Kenshin tem seus pais mortos quando ainda criança
Seu pai adotivo, Seijuuro Hiko, torna-se seu protetor, guardião e mestre,
oferecendo ao pupilo a sabedoria e as técnicas necessárias para o desenvolvimento das
habilidades do futuro retalhador;
Assim percebemos que Kenshin percorre todas as etapas do herói mítico e revela
ao longo de sua trajetória muitos elementos que são facilmente reconhecidos por todos
nós, pois se comunicam com nosso inconsciente, tornando sua aventura legítima e
satisfatória. Na verdade os heróis nos mangás costumam revelar essas características e
isso faz com que sejam amplamente valorizados
Bya: O herói tem a pretensão de ser um... O Kenshin não. Ele acaba se tornando
[herói] ao longo da história e no final das contas ele não liga se ganhou, se o
importante é fazer o bem.
89
Fábio: O herói nos mangás são movidos por um ideal maior, diferente dos outros.
O Goku tem uma força extraordinária, treinou com todos os mestres que existem...
A história dele começa com ele criança e conta toda a vida dele.
Toha: O Goku é demais, né cara? Eu adoro o Goku! Eu cresci junto com ele. Vi ele
ficando mais forte, aprendendo mais. Teve até o momento em que ele fica doente e
quase morre... Mas depois ele volta ainda melhor e cumpre a missão de ajudar a
todo mundo!
Muitos outros mangás seguem a estrutura elaborada por Campbell, não sendo essa
uma característica exclusiva de “Rurouni Kenshin” ou “Dragon Ball”. E, muito
possivelmente, isso não se dá de forma sempre intencional e planejada, uma vez que tal
estrutura parece existir na psique de todos nós, tanto que, quanto mais próxima a
narrativa está desse modelo, mais gostamos da história (afinal é maior nossa
identificação). Talvez isso explique porque cada vez mais leitores encontram-se atraídos
pelos heróis dos quadrinhos japoneses. Já os heróis presentes nos comics americanos
possuem uma trajetória indeterminada (muitas revistas são publicadas há mais de
quarenta anos...) tornando seus protagonistas apenas figuras emblemáticas de histórias
descartáveis, para consumo rápido, perdendo de vista, muitas vezes, os elementos
fundamentais elaborados por Campbell.
aventura/circunstância acessível, que poderia ocorrer com qualquer um, não somente
com o herói eleito, de atributos notáveis.
Ana: Não... Acho que super-heróis são seres indestrutíveis, sem defeitos...E eles
não... Eles tem alguns defeitos e podem ser destruídos. Acho que é por aí...
Vanessa: (...) É um herói que, por vezes, não tem nada de herói. Por exemplo, eu
tava vendo Naruto outro dia...o garoto parece um idiota... Ele é um idiota total. Ele
só faz besteira, ele só quer chamar a atenção das pessoas, mas ele não é aquele
estereótipo que “eu vou salvar o mundo”.
Na verdade, a fala desses leitores revela um herói nada convencional, que mais se
aproxima do protagonista da contemporaneidade, ou simplesmente o anti-herói. Seus
objetivos não são nada nobres, assim como os meios para que eles sejam atingidos.
Toha: No Dragon Ball o Goku vai ficando cada vez mais forte, ganha várias
habilidades, mas ele não perde a sua essência. Ele continua sendo o mesmo Goku
brincalhão e comilão de sempre – risos –Ele é muito parecido com qualquer
pessoa, só que tem o poder... Ele tem um coração enorme e apesar de tudo que ele
conquistou você sabe que ele ainda é mortal. Esse é o grande barato!
Vanessa: Eu acho que, em parte, ele é sim [o herói], porque é um herói que, por
vezes, não tem nada de herói (...) ele não é aquele estereótipo que “eu vou salvar o
mundo”, ele faz mais aquilo porque ele acha que é certo ou ele acha que é
favorável para ele.
Ana: Não sei... Quem lê tem a impressão que sim porque ele luta pelo bem e não
mata mais... Mas no fundo ele também tem defeitos, já foi uma pessoa que fez muito
mal a outras pessoas e ainda pode fazer escolhas nem tão boas assim. (...) Quando
pensamos num super-herói pensamos no super-homem, no lanterna-verde, caras
que já tem poderes praticamente dados. O Kenshin não. Ele não tem a pretensão de
salvar tudo e todos... Só está do lado certo, fazendo o bem.
Bya: Acho que as coisas que ele faz [Kenshin] as coisas em que acredita meio que
tornam ele um herói (...) tem a honra do samurai, que ele tem de sobra. Ele não
mata nem os inimigos, pois fez um voto pra não matar mais... Acho que isso ensina
as pessoas a não tirarem conclusões sobre outras só olhando para elas.
Ramon: O Goku luta porque quer se tornar o mais forte. E no meio desse caminho,
desse objetivo, ele vai ajudando as pessoas. Ele às vezes tem que fazer escolhas e
lutar mesmo quando não quer. E isso não é fácil... Não é simplesmente lutar e
pronto. A luta tem um motivo. Tem que ter.
Pelas fala desses jovens é possível perceber que a tão discutida “violência
gratuita” parece não existir, pelo menos para eles, nos mangás. Apesar das fortes
imagens, com seqüências de ação e luta bastante intensas, esses jovens acreditam que
existe uma motivação maior que leva às batalhas e estas não podem simplesmente
acontecer por si próprias. Eles destacam um conjunto de valores que parecem estar
93
sempre em jogo: honra, coragem, respeito, boa vontade em socorrer aqueles que
precisam. Tratam-se de valores que eles destacam como importantes e comuns a todas
as pessoas. Valores que humanizam e aproximam os heróis deles próprios.
Bya: Comum? [falando sobre Kenshin] Acho que sim... Acho que qualquer um
poderia ser como ele. De repente não em lutas, mas em atitudes.
Henrique: Acho que a força dele, a determinação que tem para salvar as pessoas...
Eu acho que a força dele é o que menos importa, acho que o que mais importa é a
coragem dele e às vezes vem alguém mais forte que ele e, mesmo assim, ele quer
ajudar aquela pessoa, botando em jogo a vida dele, a espada dele para salvar
aquela pessoa.
Toha: (...) No mangá, o cara sempre se ferra, ele é o último a conseguir, ele só
consegue no último segundo, ele vai descobrindo no meio da luta.
Ana: O Kenshin vai crescendo ao longo das aventuras... Ele só quer ficar em paz...
Mas as coisas vão acontecendo e ele é tirado da vida que queria para recomeçar a
lutar. Ele tem que proteger as pessoas que ama e seus ideais e para isso enfrenta
muitas provações... E é difícil pra caramba para ele preservar o que acredita. (...)
Apesar de toda força que ele tem o caminho dele não é fácil... Chega até a pensar
que perdeu quem mais ama... Mas no final, quando ele retorna para a
tranqüilidade que queria ele não é mais o mesmo. Não só salvou as pessoas, mas
também se transformou. Cresceu mais!
valores até então desconhecidos e assim realizar o bem para o mundo e para aqueles que
ama.
O herói dos mangás sempre começa sua jornada a partir de um evento extra-
ordinário (quando recebe o “chamado para a aventura” – como na primeira fase
apontada por Campbell). Nesse momento ele ainda é apenas o protagonista e encontra-
se perdido e aflito, como se desejasse que nada de diferente tivesse acontecido em sua
vida (assim como o herói da cultura de massa). Com o desenrolar das situações e dos
problemas, ele inicia uma busca para mudar as coisas e acaba que a situação é pior do
que parece e aqueles que lhes são caros correm risco. É a partir desse momento que o
protagonista começa a percorrer os demais passos apontados por Campbell e,
gradativamente, começa a desenvolver um senso de dever que o aproxima da
coletividade e lhe permite, no fim, tornar-se um verdadeiro herói. Entretanto, em
nenhum momento esse herói torna-se onipotente ou perde as características emocionais
e psicológicas que o humanizam e o distanciam do “herói de papel” do ocidente.
4.3. O jovem como herói de mil faces: “Muitas vezes eu vi a minha vida no mangá e
lá encontrei respostas, caminhos...”.
De acordo com o que foi possível perceber, não só os modos de ser dos heróis do
mangá determinam a preferência dos leitores pelas HQs japonesas, como os inspiram a
ser como eles em suas experiências cotidianas. Além disso, os jovens usam os
personagens para entender o que se passa com eles na vida.
José: Sempre que eu leio o Mangá, eu acabo me identificando com alguns dos
personagens (...) aí sempre que eu leio Mangá eu fico meio motivado a fazer as
coisas que ele faz, tipo seguir adiante, é uma coisa que vem ás vezes eu fico feliz
no momento, mas eu nunca procuro porque a coisa não pode ser forçada, eu não
vou atrás, tipo agora eu vou ler este Mangá aqui pra ver se eu me identifico com
tal personagem, você vai e acontece, isso é que é legal. Se eu fosse procurar um
personagem pra eu me sentir identificado, motivado... É tudo meio que
inconsciente: você vai ler o Mangá porque você gosta e você acaba ficando
identificado.
principalmente no que tange às características deste “novo” herói comum. O herói que
pode ser qualquer um, até o próprio leitor, atende a uma demanda de sedução dessa
indústria e estabelece pactos identitários que garantem a ligação entre leitor e
personagem.
Entretanto, como aponta Martin-Barbero (1995), temos de estudar não o que
fazem os meios para as pessoas, mas o que fazem as pessoas com elas mesmas, o que
elas fazem com os meios, com a sua leitura. A recepção não é programável e o receptor
não é uma vítima manipulada dessa recepção. Assim o mangá parece trazer para seus
leitores elementos novos para serem pensados. O herói dos mangás parece trazer
consigo um ensinamento, um princípio que parece um tanto perdido. E como a fala de
alguns jovens parece demonstrar é possível aprender com este herói.
Ramon: É o mangá tem uma coisa que as pessoas não encontram em outros
lugares é por isso que as pessoas que lêem mangá gostam muito e se sentem muito
bem com ele (...)
Vanessa: Quando eu leio o mangá eu procuro ali dentro uma filosofia (...) ele [a
personagem dos mangás] - é um ser humano, ele tem vida, ele tem passado, tem
presente, tem problemas, ele sofreu, ele tá crescendo, ele tá ali se desenvolvendo
junto com você, ele tem uma história pra te contar, ele tá te mostrando a vida dele,
então você lê....
Ana: (...) Kenshin fala sobre váááárias coisas que também são valores e tal...
Bya: O mangá costuma ter muitas lições... Aqui às vezes passa sem as pessoas
perceberem, mas a gente aprende muito com eles.
Bya: Acho que alguns valores perdidos... Amizade, lealdade... Não tratar os outros
diferentes só porque não estão na mesma condição que você...
Ana: Esse lance de você ser o que quer ser e não como o mundo te vê... Os
valores... O “fazer o bem sem olhar a quem”... Muita coisa.
96
No caso dos heróis presentes nos mangás o que desejamos destacar aqui é
justamente a importância da análise dos sentidos produzidos por estes leitores, isto é,
me interessa buscar quais elementos os levam a identificar-se com um ou outro herói.
Bya: Ah, ele dá muito valor as amizades dele, quer o melhor pra eles... E isso é
importante... Ele é honrado... Ele não trata as pessoas com superioridade só
porque é mais forte ou mais velho.
Pesq: Para você, o mangá “Samurai X” é uma história sobre o quê? Seria Kenshin
lutando pelo Japão?
Bya: Não, acho que é mais profundo que isso... Às vezes acho que é sobre amizade,
às vezes sobre... Não sei como dizer isso... Ah, tipo... Às vezes acho que é sobre
uma “viagem interna” de uma pessoa... Ela se descobrindo ou descobrindo coisas
importantes pra ela. (...) Eu tenho algumas coisas que achei importante em
Kenshin, e tento manter isso... Como a amizade, por exemplo...
Os jovens leitores reencontram nas páginas dos mangás valores hoje distantes de
seu cotidiano. A experiência da leitura do mangá parece conduzir justamente a um
resgate de valores que estes jovens reconhecem como importantes tais como amizade,
honra e respeito diante da diferença e que estão escassos e cada vez menos reconhecidos
em nossa sociedade contemporânea. Entretanto, parece também contraditório que esta
mesma sociedade tão marcada pelo apelo ao consumo fácil e rápido e pelo
individualismo consiga gerar artefatos (os mangás) capazes de alimentar e gerar ideais
fundamentais para o ser humano. Pois ao que parece, é através da relação com o
fantástico/fantasioso das páginas dos mangás, através das aventuras de personagens
heróicos como Kenshin, que estes jovens incorporam importantes valores e novas
aprendizagens.
Assim, a indústria cultural não deveria ser pensada como estímulo que impõe
necessariamente as mesmas respostas. O sentido apocalíptico, adorniano, deveria ser
substituído pela idéia da recepção como um espaço de interação e produção de sentidos.
A recepção é um processo de interação (socialidade), negociação de sentidos, onde o
receptor possui sim um poder de seleção sobre aquilo que consome e produz.
Os mangás e seus heróis significam para seus leitores muito mais que um
escapismo baseado em seqüências de ação. Significa sim uma oportunidade de reflexão
acerca da vida e de valores, estabelecendo meios para a interação entre os jovens que
constroem ainda identidades coletivas, incluindo aí até mesmo uma perspectiva de
97
isso se processa parece, segundo muitos autores, ser acompanhada de uma crescente
alienação, decorrente de uma possível incapacidade nossa de selecionar, avaliar e
utilizar plenamente essa gigantesca gama de informações a que estamos expostos todos
os dias. Para o jovem que é um dos principais alvos da chamada indústria cultural isso,
obviamente, não seria diferente. De acordo com Bauman (1999), a lógica da sociedade
de consumo é fazer com que se consuma cada vez mais, gerando assim uma rápida
insatisfação e o surgimento de novos desejos. Dentro dessa perspectiva, nada se edifica
em todo esse processo a não ser o desejo interminável de consumir.
Mas será que realmente nada “fica” daquilo que consumimos? Será que os
jovens consomem apenas por consumir e não adquirem nada nesse processo? Será que
os leitores de mangás não se dão conta de que os quadrinhos que lêem são histórias
pobres, sem conteúdo, que distorcem a realidade e alienam seus pensamentos?
Entendo aqui os processos de consumo como algo muito mais complexo do que
a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências Segundo Nestor Canclini
(1999) “o consumo serve para pensar” e assim acredito que através da fala dos jovens
sobre aquilo que consomem podemos encontrar muito sobre eles e sua relação com o
mundo. O gesto de consumir não se resume a uma mera aquisição de bens, materiais ou
simbólicos, mas sim também, e talvez principalmente, a uma experiência coletiva que
influi na constituição da identidade do jovem e seu pertencimento junto a um grupo.
constituir o que Nestor Canclini definiu como “cidadania cultural”? Para tanto é preciso
que escutemos o que os jovens leitores têm a dizer sobre a sua relação com os mangás.
Luis: Dá pra você ver as expressões nos olhos do personagem O desenho mostra
perfeitamente (...) as várias imagens, a forma com que elas vão passando...
Fig. 27 Seqüência sem falas de um mangá (“Blade”), onde as expressões são suficientes para o
desenvolvimento da narrativa.
Vanessa: É, porque foi feito pra isso mesmo... Os olhos, cada traço que eles fazem
tem essa intenção de passar para o leitor aquela emoção... É a expressão do que o
personagem tá sentindo naquele momento.
Luis: É diferente de um livro. No livro, você não vê a expressão. Você vai ter que
imaginar. E nem sempre bate.
Ramon: Dá para perceber a emoção nos olhos, na expressão... Dá para ver como
aquele sentimento é verdadeiro para o personagem. Não dá para ficar indiferente.
Mexe coma gente
Daniel: O mangá fala com as imagens e depois não dá para você deixar pra lá...
Aquilo que tá acontecendo na revista traz a emoção e toca na gente e muda. Muda
tudo.
O termo “nem sempre bate” usado por Luis, para explicar as vantagens da
imagem do mangá em relação ao livro, remete à curiosa preocupação desse jovem se
aquilo que ele imagina ao ler um livro realmente faz jus à condição vivida pela
personagem. Tal fala demonstra a importância da imagem para esses leitores e, mais
ainda, parece sinalizar para um aspecto importante: esses jovens tendem a encarar as
101
Luis: Você não encontra mais emoções como essa por aí... Pessoas dispostas a se
sacrificar, lutar e morrer por aquilo que acreditam.
Bya: O Kenshin [personagem de um mangá] luta por aquilo que acredita. E isso é a
sua maior força. Ele me faz acreditar também. Acreditar no certo.
José: O mangá tem uma coisa que as pessoas não encontram em outros lugares. E é
por isso que elas lêem mangá, gostam muito e se sentem muito bem com ele. Eles
[os mangás] tentam focar mais a pessoa normal de cada dia, o ser humano em si, e
você encontra a sua vida ali. Eu estou lendo e aquele ali sou eu. Eu já encontrei
muitas vezes personagens que eu me sinto muito identificado.
E complementa
José: [tem um mangá] bem famoso que fala de uns garotos normais, assim de 14
anos, que por terem 14 anos são os únicos aptos a pilotar uns robôs pra salvar o
mundo de ameaças alienígenas... Mas aí mostra também a problemática toda do
garoto. O pai não ama ele...
Pelas falas desses jovens parece que os mangás oferecem muito mais do que
mero entretenimento. Os mangás significam para eles aventura, diversão, mas também o
momento de se encontrar com emoções, sentimentos e valores que “não se encontram
mais por aí”. Através dos mangás e das intensas emoções vividas por suas personagens,
esses jovens repensam seus próprios sentimentos e discutem pensamentos e sensações
vividos por eles próprios. Trata-se de uma oportunidade de reflexão que deriva do
encontro com aquelas imagens e da relação que esses leitores firmam entre si a partir de
então.
102
Em muitas falas pude verificar a distinção que os jovens fazem entre as histórias
dos mangás e aquelas existentes em outros tipos de quadrinhos. Além da continuidade,
da finitude e da forte expressão/emoção presente nas imagens, pude perceber também
como os argumentos desenvolvidos nos mangás constituem-se também como um dos
principais atrativos dessa mídia.
Luis: Claro, mas muda os estilos... Para garotas, jovens, de terror, fantasia (...)
mas todos têm uma história muito boa naquilo que eles querem contar.
Henrique: Eu acho que poderia. Mas não seria a mesma coisa. Mangá tem que ter
imagem maneira, mas tem que ter fala também.
Diogo: Em algumas revistas tem muita ação e altas imagens. Outras têm muita
conversa, muita coisa acontecendo, e a fala é fundamental. Com o desenho então,
aí fica perfeito!
Nesse sentido, Benjamin sinaliza que o romance, forma de narrativa surgida com
a imprensa, apresenta novas características, dentre as quais se destacam sua transmissão
restrita (para aqueles que sabem ler) e individualizada. Passa a inexistir assim nos
romances a dimensão de aconselhamento, uma vez que esta se dá na oralidade, levando
em conta as preocupações do narrador, sua relação com o outro, com as experiências e
visões de cada ouvinte. Assim, a narrativa apontada por Benjamin só existe na
oralidade, pois ali existe a possibilidade de qualquer história ser acrescida de novas
experiências e assim retransmitida de forma diferente.
O surgimento do romance é para Benjamin o primeiro indício da evolução que vai
culminar no desaparecimento da narrativa. E esse processo se dá em paralelo com toda a
evolução secular das relações produtivas.
Como cada vez mais o tempo foi esvaindo-se na vida do homem, sem tempo
ou com pouco tempo, as histórias não são contadas de novo e morrem no
ostracismo já que deixam de ser rememoradas. Para Benjamin, o romance e a
informação não trazem esse caráter vivo da experiência do contador,
expressa principalmente pelo conselho, que dialoga com a experiência do
ouvinte. O narrador é um homem que sabe dar conselhos. (Fernandes, 2006,
p.04)
No mesmo artigo, a autora realiza uma detalhada e rica análise da relação entre o
conceito de experiência apresentado por Walter Benjamin e aquele desenvolvido por
Silviano Santiago. Segundo ela, Santiago (1989) traz à luz um conceito de experiência
que, diversamente da experiência contida na narrativa tradicional, irrompe no contexto
contemporâneo da seguinte maneira: de forma distinta do narrador que transmite a
experiência a partir daquilo que ele próprio viveu, emerge hoje um outro tipo de
narrador que transmite a experiência obtida através da observação da experiência de
outro. O dilema aqui repousa na autenticidade, onde discute-se se só é autêntico aquilo
que narro a partir do que experimento, ou se será autêntico aquilo que narro e conheço
só por ter observado? Para Santiago o narrador de hoje é um espectador que adquire a
experiência pela observação e não por ser o ator da narrativa.
Como Fernandes (2006) analisa, o narrador benjaminiano tem “senso prático”,
pretendendo ensinar algo, enquanto o narrador da contemporaneidade, apontado por
Santiago, se relaciona com o outro no intuito de levá-lo a falar, já que não importa para
ele as ações de sua própria experiência, mas as ações da experiência do outro. É
justamente aqui que podemos identificar o narrador como um observador, condição que
o aproxima muito do leitor de nossos dias.
O leitor de mangás poderia assim ser identificado como esse espectador que se
empolga, se emociona e aprende a partir da experiência vivida pela personagem
presente na revista. Afinal as narrativas hoje não são mais como outrora, elas se
modificaram historicamente, buscando se adaptar aos diferentes meios, adotando
sempre novos recursos, para assim sobreviver. Todo esse conjunto de mudanças trouxe
também uma mudança na natureza da experiência a ser transmitida, que não acontece
mais de geração para geração, como na narrativa tradicional. Como reconhece
Fernandes (idem), a partir de Santiago, e aqui estamos de acordo, “a experiência talvez
seja hoje como (...) ‘um convite a olhar junto’, a viver junto algo para depois poder
dialogar sobre a experiência que, ambos que olharam, viveram” (p.06).
Segundo essa perspectiva parece correto afirmar que o mais experiente não é
aquele com maior vivência, e sim quem é capaz de observar/desfrutar de um conjunto
mais variado de experiências midiáticas. Mas todos podem usufruir disso? De certo não.
As diferentes mídias de hoje oferecem diferentes narrativas e cada uma parece reservar
um conjunto de experiências que lhes são próprias, sendo estas transmitidas quase
simultaneamente e exigindo para sua assimilação um olhar apurado, na verdade
contextualizado, para acompanhá-las de forma que estas sejam realmente significativas.
Por essa razão, só aqueles que se constituíram, e assim constituíram seus olhares, no
contexto da contemporaneidade conseguem reconhecer o valor e as experiências
transmitidas pelos presentes meios.
A partir desse cenário pude começar a refletir sobre o papel dos mangás para os
jovens e os múltiplos significados que estes conferem a essas leituras. Afinal, para esses
leitores, ler mangás parece constituir-se como uma experiência enriquecedora, muito
além dos limites das páginas. Na verdade o que parece haver é uma relação bastante
especial entre os jovens leitores de mangás entre si e com os mangás propriamente.
Uma relação repleta de significados duradouros que podem ser sempre resgatados,
desde que se retorne às páginas da revista.
Henrique: Sim. Porque é aquela sensação: você lê uma vez e quer ler tudo de novo,
aí lê de novo, e quer mais, e lê de novo...
107
Henrique: Não. Você enxerga com outros olhos. A primeira visão do mangá é pra
você ter uma noção do que é aquilo. A segunda já é uma visão mais de... Você tem
um amigo, entendeu? Você vai conhecer ele mais a fundo... Aí você passa mais
tempo com ele e conhece mais
Pesq: Mas você acha que quando você vai lendo a mesma história outras vezes,
você não tá lendo a MESMA história outras vezes?
Luis: Você consegue perceber outras coisas e dá atenção a outras coisas que não
são o principal ali, mas de repente é o principal para você.
Parece evidente a partir da falas destacadas que esses jovens são capazes de
encontrar múltiplos significados em um mesmo mangá à medida que retornam a ele,
como se cada passagem imprimisse uma nova experiência, onde são descobertos “outros
pontos” devido a esse “outro olhar”. Aqui a fala destacada por Fernandes (2006), a
partir de Silviano Santiago, de que o mangá “convida a olhar junto”, ganha força, já que
a cada visita do olhar, a cada reler, o narrador dessa história parece convidar o leitor a
percorrer o caminho das personagens e vivenciar, pela identificação, um novo ganho de
experiências que é orientado por uma nova perspectiva, não facilmente esgotável.
Diante de tudo isso parece evidente que compreender a relação do jovem com o
mangá nos indica caminhos na compreensão da sua própria relação com a sociedade.
Um crítico poderia nos dizer que esse tipo de produto cultural não traz nada para os
jovens, mas o consumo que eles fazem destas revistas nos permite pensar (Canclini,
1999) muitos aspectos da própria cultura jovem.
Luis: Às vezes porque a gente tem ali pessoas que dão asas à imaginação. Você
gostaria de ser o que tá vendo ali...
Ana: Os mangás falam sobre váááárias coisas que também são valores e tal...
Como as coisas nem sempre são como parecem... Tem os vilões, que também nem
sempre são o que parecem... O mal não é só mal e o bom não é perfeito. É como a
vida.
108
Ramon: No mangá a gente encontra a luta por um ideal. A amizade é sempre muito
forte... É uma luta da amizade. É o bem contra o mal, mas sem bobeira... Tem
sentimento, tem paixão, tem ação... Muita luta! Mas nada de graça, sem motivo.
Descobrir o porque de tudo, faz parte da viagem. E a gente sempre aprende alguma
coisa.
Toha: Ah... A história dele é sinistra demais, cara. O jeito que ele aprendeu as
coisas e ele é forte pra caramba
Toha: Ele não é um herói, mas eu seria ele. Ele não é um herói pro “Samurai X”,
mas ele vai ser um herói para ele, papo dele buscar a vida dele... Por isso, na vida
dele, ele é um herói.
Os mangás transmitem, de acordo com seus leitores, uma mensagem que os leva
a pensar sobre a vida, seus valores e sua escolhas. Encontrar o “porque” das coisas
serem como são, valorizar sentimentos humanos e permitir uma livre interpretação das
personagens parece aproximar essa narrativa contemporânea da narrativa benjaminiana
que contém o conselho. Ainda que a princípio a narrativa dos mangás se encontre nas
páginas de uma revista e não se realize no campo da oralidade, a partir da relação com o
outro e a expectativa do ouvinte, a narrativa presente nos mangás parece “dar
conselhos” ao seu leitor, fazendo-o pensar em questões antes talvez irrelevantes.
A fala de Toha, que destaca Soujirou como sua personagem preferida nos
mangás, é algo bastante revelador sobre a liberdade de interpretação e de pensamento
que o mangá oferece. Soujirou é uma personagem secundária do mangá “Samurai X”-
Rurouni Kenshin –, trata-se de um rapaz de pouco mais de quinze anos que se tornou
um exímio espadachim e assassino profissional depois de ser salvo pelo “vilão” da
109
história, Makoto Shishio, anos antes do tempo em que se passa a história. Na revista, o
assassino Soujirou não é apresentado como uma das muitas faces do mal apenas. A
história relata brevemente que ele foi educado assim por Shishio, ensinado a viver pela
espada onde o mais forte deve sobreviver. O confronto do rapaz com o protagonista da
série, o herói Kenshin Himura, termina em um empate e o jovem Soujirou decide então
abandonar tudo e vagar pelo mundo por alguns anos a procura da sua própria verdade,
que não seria nem a de Shishio, nem a de Kenshin.
Soujirou não é morto, nem recompensado, não atinge seu objetivo inicial ou
mesmo é derrotado. Na verdade a história da personagem continua, mesmo que esta não
seja mais relatada na revista. Toha vê na saída de Soujirou a procura por algo maior e
por isso se identifica com as motivações dessa personagem secundária que busca
respostas para sua própria vida.
Tal exemplo nos permite uma aproximação a mais com a narrativa tradicional de
que fala Benjamin, pois aqui, também, a narrativa foge de explicações e permite ao
leitor interpretar a história como quiser, levando o episódio narrado a uma amplitude
que não está contida, nem limitada pelas páginas do mangá.
Fig. 29 Seqüência destacada por um dos entrevistados (Toha) onde a personagem Soujirou se despede
indo em busca de seu próprio destino.
O fato de Toha ter se identificado com Soujirou, por ele ser capaz de se tornar o
“herói de sua própria vida” demonstra, mais uma vez, o quanto essa narrativa está livre
para múltiplas interpretações e assim rica em experiência a ser transmitida. Na verdade
o mangá não dá todas as respostas e sim gera questões que acabam significando uma
oportunidade para que seus leitores pensem e assim olhem para suas próprias vidas.
111
Fábio: O mangá é diferente de tudo que eu já li... Nele não tem essa de super-
homem... Por mais que o cara tenha poderes ele é um cara como eu e você. Ele
sofre, tem medo, pode falhar. Pode falhar como eu! Mostra todo o caminho do cara
no seu dia-a-dia... Seus sentimentos, suas vitórias... Como ele deixa de ser mais
uma pessoa e passa a ser “o cara”. Ele ganha experiência e a gente também.
Diogo: Muitas vezes ele reage como você e não como um personagem. Aí você
aprende sem ter que estar passando diretamente por aquilo.
A personagem que é “um cara como eu” aparece como um elemento bastante
presente na fala dos entrevistados, o que destaca a identificação entre o leitor e a
personagem como uma característica marcante dos mangás. Tal elo não significaria
assim um caminho para a troca de experiências? Afinal, só não nos mobilizamos diante
de relatos com os quais temos identificação?
Ao que parece, à medida que o jovem leitor acompanha o caminho da
personagem e seu crescimento, ele também realiza uma reflexão sobre o seu próprio
caminho, sobre sua vida e escolhas. De acordo com as falas percebemos que estes
jovens parecem aprender com a experiência transmitida pelas personagens.
Vanessa: (...) - o mangá – é uma cultura diferente... É uma coisa diferente. Você
aprende outras coisas e a gente acaba fazendo parte daquilo que a gente lê. A
gente se apega as coisas.
Luis: Porque tem que ler coisas diferentes que te ajudem a te formar. Dá muitas
idéias... Talvez a palavra não seja formar... Tipo assim, eu tenho muitas idéias.
Bya: (...) às vezes acho que é sobre amizade, às vezes sobre uma “viagem interna”
de uma pessoa... Ela se descobrindo ou descobrindo coisas importantes pra ela. E
eu tento manter isso, porque é uma coisa importante para mim. Como amizade, que
é muito forte nos mangás que eu leio.
Fábio: Não! O mangá sempre tem mais coisa, apesar de ter vindo primeiro.
Daniel: São iguais, mas diferentes. Um complementa o outro. Com mangá acontece
muitas vezes isso...
Fábio: Por isso é bom conversar, trocar... A gente passa a conhecer mais.
Fig. 30 O mangá de “Lodoss” e seu primeiro derivado: o sistema de RPG que detalha o universo da
história.
113
Fig. 31 O universo do mangá se expande em outras mídias que fornecem novas e diferentes
informações. Aqui o anime, o game (do sistema SEGA) e um outro mangá contando uma história futura.
Henrique: Quando você tá interagindo com aquilo [o mangá], a coisas estão mais
rápidas... Tem aquela sensação de que quando você gosta da coisa ela passa muito
mais rápido do que quando você não gosta. E aí se você fica assistindo um tempo
de aula de matemática, tudo é mais devagar.
114
Ramon: Você fica num ritmo diferente e passa a ver as coisas com outros olhos.
Henrique: Não sei cara..., Parece um mundo diferente, parece que você está lá
dentro... Quando você tá interagindo com aquilo, a coisas estão mais rápidas... Lá
dentro – da revista – está lento, mas aqui fora passa depressa.
O relato desses jovens sinaliza para o que Guilherme Orozco (2001) e Jésus
Martin-Barbero (2001) chamam de revolução do sensorium individual e coletivo, isto é,
todo um conjunto de novas relações, percepções e usos que a sociedade contemporânea
tem estabelecido como os meios. Tanto Orozco como Martin-Barbero trazem este
conceito para pensar a relação que existe hoje da sociedade com a televisão, pois
entendem a Tv como o maior agente capaz de rearranjar as idéias e os limites do campo
da cultura. Mas será só a Tv? Será que estes jovens também não ampliam, a partir de
sua relação com os mangás, sua relação com a cultura? Afinal em suas falas percebemos
uma nova relação com o tempo, onde o “dia real” é lento e sem graça. Na verdade esses
jovens parecem encontrar nessas leituras uma velocidade que não encontram em outras,
como nos livros tradicionais, ainda que o gesto de desfrutar de um mangá não aconteça
na tela do videogame, da tv ou do computador.
Os mangás são em preto-e-branco, tem intrincadas tramas e edições inteiras (de
em média 90 páginas) só com diálogos. Para olhos não treinados apresentam figuras
estáticas e aparentemente não possuem qualquer atrativo em comum com jogos de
computador - como sons e cores intensos e diversificados - mas ainda assim atraem
jovens de diferentes idades e classes sociais. Por quê?
Daniel: Parado?Nada! O mangá tem movimento. Você vê! Tem emoção ali.
Henrique: Não sei te explicar... Eu acho que é a interação né? Quando você
consegue ler e compreender o que tá sendo dito ali, compreender o personagem, a
história e tudo mais, eu acho que aquilo já entra em você automaticamente... Não
precisa mais de uma explicação.
Toha: Tem algumas coisas que eu li, que eu me emociono, cara... Dava vontade de
chorar e tudo (...) É completamente inexplicável! – risos - Não tem como explicar...
115
Você vai fazer um trabalho, não vai? – perguntando à mim sobre a pesquisa -
Então, talvez lá ninguém entenda o que a gente aqui sente lendo mangá e vendo
anime... Só de você estar ali, lendo cara (...) É uma coisa completamente esquisita.
Inexplicável.(...) tem que ler para saber... Talvez depois que você ler, você entenda.
É a mesma coisa o RPG e o anime. Você tem que parar, sentar e viver.
Toha: Cara, para curtir o mangá você tem que nascer com isso. Você tem que ser o
escolhido – risos – Você tem que ter a centelha mangá dentro de você.
Diante das falas dos entrevistados, a resposta para a pergunta “por que ler
mangá?” parece repousar não no mangá propriamente, mas nos olhos daqueles que o
lêem, pois para seus leitores, isto é, jovens que se constituíram culturalmente na
contemporaneidade, até mesmo na estaticidade das imagens de uma revista é possível
encontrar movimento. Para eles existe movimento no mangá, além de um grande
significado. Entretanto os próprios leitores, como demonstra Toha em sua fala, admitem
que os demais, não adeptos da cultura mangá, não estão “alfabetizados” para essa
linguagem, e eu, pessoalmente, me sinto inclinado a concordar com ele.
Risos
Toha: O que eu quis dizer é que ler mangá exige imaginação. Você tem que gostar
de sonhar. Precisa de ideal.
Henrique: Você precisa curtir essas histórias... Assim como é com o RPG e o
anime. Ali tem aventura e na aventura a gente aprende.
Vanessa: O mangá não tenta te impor nada. Ele está lá e você leva o que
pode levar dele.
Daniel: Desde que eu leio mangá muita coisa mudou. Eu percebo e penso em coisas
que não pensava antes, fiz novos amigos, e muitas coisas que aparecem na escola
eu já vi no mangá. Só que nesse caso eu já tinha aprendido de uma forma mais
divertida.
A fala de Vanessa destaca como pontos positivos do mangá o fato dele acontecer
com “tranqüilidade” e sem que ela seja “controlada”. Será que ela não está fazendo
aqui uma oposição entre sua experiência com o mangá e aquela que ela vive na escola?
Seria o mangá um meio de aprender com liberdade e se divertindo, como destaca
Daniel?
Fábio: Se eu aprendo com o mangá? Claro que sim. Aprendo um monte de coisa
mesmo que ele não queira me ensinar.
Toha: O mangá ensina você a ser uma pessoa melhor... Acreditar mais no seu
sonho. No “Shaman King” mostra muito isso, né? Tem que acreditar no seu sonho.
117
Toha: É claro.
Vanessa: Eu acho que ela – a frase - tem meio que um pouco de impacto, por que...
Eu acho que ele – o mangá - faz, mesmo sem intenção. Ele mostra a vida de
alguém, a história de alguém, mas não é bem com a intenção de te mostrar como
viver, mas você acaba pegando aquilo pra você. Ele meio que faz aquilo, mas sem
intenção de te doutrinar. Então eu acho que esse é um ponto importante no mangá.
Toha: Ah, mas posso falar uma coisa? Todo mundo precisa de emoções para viver,
sabe? Eu preciso de mangá por isso, porque ali tem emoções... Eu mesmo, tipo, o
que eu faço da minha vida vou passando ali, você acaba acreditando.
Henrique: Ah cara! Tipo, o mangá me deu outra cabeça, me dá uma idéia melhor,
me ajudou muito, cara. Me ajudou a ter mais convívio social, em vez de eu ficar
mais retraído em casa... Antigamente eu era assim, ficava igual um maluco e não
saia pra nada.
Ana: Muuuuuito. Esse lance de você ser o que quer ser e não como o mundo te vê...
Os valores... O fazer o bem sem olhar a quem...
Parece claro que os mangás e suas narrativas têm um importante papel para esses
jovens que encontram, na sua leitura, conselhos que comunicam uma experiência. ,
assim como defendia Benjamin. Na verdade estes jovens parecem encontrar nos mangás
um conjunto de valores que parecem perdidos e que os fortalecem, gerando a
possibilidade de agir de forma diferente em seu dia-a-dia. Eles vivem a experiência
como espectadores através das páginas e depois “passam adiante” tentando transformar
aquela experiência que tiveram em algo que pode ser compartilhado e, assim, atingir
outras pessoas.
Através da leitura dos mangás ocorre uma troca de experiência que não se limita
apenas ao leitor, mas este traz isso para o seu dia-a-dia e tais valores reorientam sua
ação cotidiana e, mais do que isso, também o levam a desenvolver, a partir do que
118
aprendeu, a capacidade de transmitir sua experiência para seus amigos, ampliando assim
o alcance daquela narrativa que num primeiro momento encontra-se restrita às páginas
do mangá. Assim esse novo sujeito, da contemporaneidade, que por um novo meio teve
acesso a uma nova narrativa, a transmite oralmente reaproximando-a da sua forma
tradicional, ainda que não mais atrelado aos dois arquétipos fundamentais destacados
por Benjamin, mas capaz de carregar em si um conselho que deriva de uma nova
modalidade de experiência adquirida.
Os leitores de mangás parecem, desse modo, se tornar também narradores,
revelando como hoje tais papéis encontram-se tão misturados e as fronteiras desses dois
campos da experiência encontram-se tão difíceis de distinguir. Eu mesmo tenho uma
experiência sobre esta questão que, sob a luz da elaboração desse trabalho, consegui
evidenciar.
Já há mais de 13 anos sou jogador de RPG (role playing games) e participo de
uma campanha com a mesma personagem por todo esse tempo. O RPG é um jogo de
interpretação em que cada participante desenvolve uma personagem, que podem ser dos
mais diferentes tipos, e a interpreta reagindo a situações propostas por um outro jogador
chamado “Mestre do Jogo” (MJ). O MJ é um narrador que conta uma história, onde os
protagonistas são as personagens dos jogadores e estes devem reagir às situações
apresentadas pelo MJ para que a história prossiga através de uma construção coletiva.
Nos últimos 10 anos eu não só tenho atuado como jogador, mas também como MJ, e
pude perceber como diversos elementos que adquiri em minha vida, fora da escola, e,
mais especificamente, lendo revistas em quadrinhos e mangás surgem nas aventuras que
narro para meus jogadores. Não falo aqui apenas do aspecto fantástico e aventuresco,
mas do conjunto de valores que acabei trazendo para nossas sessões de jogo e que hoje
percebo tiveram origem naquilo que li nas revistas que acompanhei. Meus jogadores
(que atualmente variam entre 17 e 29 anos, mas ainda todos jovens), em sua grande
maioria também leitores de mangás, trouxeram também para suas personagens
características e valores que foram produzidos a partir da experiência que tiveram com
os mangás Em conversas que tive com eles ao longo da elaboração desse trabalho,
muitos me contaram como os mangás foram e são importantes para eles e como ali eles
encontraram mais do que uma extraordinária aventura, mas “valores e exemplos muito
legais e difíceis de encontrar por aí hoje”. Nenhum deles iria se opor se seus filhos um
dia se tornassem leitores de mangás.
119
Trago este depoimento para reafirmar aqui o mangá como um elemento da cultura
jovem e por esta razão, livre dos limites impostos por qualquer faixa etária. Ler mangá
revela-se uma experiência rica para aqueles que se constituíram nesse novo contexto da
comunicação, isto é, onde as narrativas apresentam-se sob outra roupagem, mas nem
por isso mais pobres de significado. Todos nós refletimos e aprendemos a partir de
nossa relação com os diferentes artefatos da cultura, acumulamos as informações que
julgamos importantes e “deletamos” àquilo que não nos tem significado. Assim
procedem todos os sujeitos, e assim é possível perceber que as novas formas de
narrativas hoje existentes, como o mangá, tem aproximado o jovem da leitura e de uma
aprendizagem que até então não é reconhecida pela escola. Não é possível que
continuemos a recorrer ao passado para deslegitimar os processos de aprendizagem hoje
existentes fora do universo da escola e que se revelam tão significativos para os jovens.
Temos hoje a experiência sendo transmitida por novos meios, novas narrativas, em um
novo contexto, constituindo novos modos de ser jovem.
Diante disso me parece acertado concordar com Canclini (1999), uma vez que o
consumo desses jovens nos auxilia a pensar sobre sua condição e relação com o mundo.
A partir de suas falas percebemos que o consumo de mangás significa muito mais do
que a mera aquisição de bens, como acredita Bauman (1999), sem qualquer fim de onde
não ocorre qualquer aprendizado, ou onde nada permanece. Possivelmente o que temos
é justamente o estabelecimento de uma “cidadania cultural”, onde a identidade também
se constitui a partir daquilo que se consome e da experiência que se compartilha.
Um antigo ditado árabe diz que “um homem é mais parecido com seu tempo do
que com seu pai”, e se buscamos entender o jovem hoje, suas dúvidas, anseios, desejos
e objetivos, me parece imprescindível que sejamos capazes de respeitar e compreender
o contexto no qual se constituem suas experiências e assim sua identidade.
Enfim, voltando a Walter Benjamin, o que salta do texto O Narrador...
(Benjamin, 1994), não é a nostalgia da narrativa tradicional, nem a sugestão de que esta
deveria ser buscada pelos homens de hoje como modo de superar a barbárie ocasionada
pelo empobrecimento da linguagem e da experiência. Essa perspectiva em nada
combinaria com a concepção benjaminiana de história para a qual a articulação do
passado com o presente só faz sentido se queremos dar um outro acabamento à história.
O passado para Benjamin seria o ponto de referência da utopia. O ponto de referência da
utopia n’O Narrador... é o conselho, ensinamento que não é imposto, mas que é tecido
alteritariamente. Este é elemento da narrativa tradicional que deveria ser trazido para a
120
A fala de um dos jovens entrevistados que trago aqui como epígrafe aponta a
distância entre as experiências culturais juvenis e a escola. Como o depoimento não se
refere à escola, mas aos leitores da Academia, não parece demais tomá-lo como alerta
sobre a responsabilidade de nossas pesquisas de auxiliarem a escola a se aproximar
dessas experiências, o que poderia garantir a ela tomar a si o seu papel institucional de
educar as gerações mais novas, promovendo que elas, de fato, se apropriem dos
benefícios da escolarização. Como mostram Green e Bigum (1995), a ignorância sobre
as experiências culturais dos alunos é uma constante nos processos de escolarização do
mundo ocidental, sendo urgente que os educadores se dediquem a avaliá-las
alteritariamente, entendendo como elas concorrem para a constituição das identidades-
alteridades sociais dos estudantes. Essa foi a principal motivação desse estudo, que me
possibilitou chegar mais perto, e de forma mais sistemática, de jovens leitores de
mangá, na tentativa de construir argumentos para mostrar à escola que, como eu já
intuía por experiência própria, essa prática pode não ser mecanicamente atribuída à
cooptação de “dóceis audiências” aos desígnios ideológicos da poderosa indústria
cultural. Se, por motivos óbvios, não pude me abstrair do cenário da investigação,
lidando com o objeto como estrangeiro, tomei todas as precauções para que minha
condição de nativo na matéria em estudo não se constituísse como prerrogativa para que
eu colocasse o “carro diante dos bois”. No final e ao cabo, esse foi um bom exercício:
cumprida a tarefa, saio dela fortalecido em minhas convicções e com mais capacidade
teórica para defender com conhecimento de causa o que antes eu já defendia: “ninguém
é idiota por ter dezesseis anos e curtir mangás” (Neves, 2006). Se antes, essa declaração
poderia ser desclassificada como mera opinião, invalidada como senso comum, agora
ela passa a ser uma interpretação avalizada cientificamente. Destaco a dimensão de
interpretação dos meus achados para esclarecer que não tomo o que defendo como uma
verdade absoluta. Isso seria incorrer na mesma arapuca dos estudos da recepção de
acepção apocalíptica que - priorizando a análise da mensagem sem procurar saber o que
as audiências fazem com o que consomem – concluem, não certamente sem
123
3
Ver http://www.aventureirosdopoente.com/
124
Por outro lado, sem deixar de admitir tal limite, minha implicação com esse estudo
mostrou que parece um equívoco pré-julgar a relação dos jovens com esses produtos. O
contato com os sujeitos da pesquisa me mostrou que ler mangá é sim entretenimento,
mas não necessariamente alienante, escapista e apolítico. Além de ensejar o consumo e,
portanto, a solidificação da poderosa indústria de entretenimento japonesa, e a diversão
ruidosa e animada de seus fãs no universo exótico dos animencontros, os mangás levam
seus leitores a sonhar, a pensar a respeito de suas condições e de suas experiências, a
posicionar-se diante da vida e da sociedade e a acreditar em ideais que entendem como
escassos hoje em dia. Essas atitudes e aspirações, determinadas pelas sociabilidades que
o consumo e a recepção dos produtos japoneses supõem, vão afetando seus modos de
ser e é, nesse processo de interação e troca, que eles vão construindo suas identidades,
como procurei mostrar nos capítulos anteriores.
A aproximação do seu universo cultural revela o quanto as identidades podem não
ser estáveis, como sugere a concepção de juventude pautada em critérios
desenvolvimentistas, mas múltiplas e móveis. O mesmo sujeito que é considerado
alienado, incompetente, irresponsável, imaturo, indisciplinado na escola, pode se revelar
crítico, implicado com questões sociais, preocupado com valores como solidariedade,
bondade e justiça, interessado em questões relativas ao conhecimento científico
acumulado pela humanidade, questões que caberia justamente à escola transmitir. Coisa
que ela não vem conseguindo em função de sua tendência a desprestigiar as
experiências dos alunos.
Por essa razão, tudo indica que seria fundamental que a escola tentasse olhar para
os contextos nos quais os jovens vêm constituindo suas identidades. Acredito e defendo
que esse é um passo indispensável para que possamos, nós professores, refletir
adequadamente acerca de estratégias educacionais que legitimem as práticas juvenis,
reconhecendo o jovem como um sujeito em ação hoje, e não como um “adulto em
potencial” que ainda irá desenvolver habilidades e se efetivar, no futuro, como sujeito.
Da mesma forma que não há "a juventude", mas várias, não dá para pressupor que
exista "o aluno". Tal rótulo não pode dar conta da imensa variedade de identidades
presentes em uma sala de aula, onde um único aluno encontra-se filiado,
simultaneamente, às mais diversas experiências juvenis. Se for objetivo da escola
estabelecer um diálogo com os jovens aprendizes que a freqüentam, seria necessário
que, de antemão, ela renegasse seu modelos arquetípicos de juventude, buscando
125
conhecer de fato os jovens com os quais atua, dentro e fora da escola, descobrindo como
eles constituem seus modos de ser jovem.
Pesq: Você acha que a escola podia aprender alguma coisa com os Mangás?
Bya: Não sei. Acho que todos podem aprender coisas... Até minha mãe aprenderia
algo... Pode não ser tão importante quanto é para as pessoas da minha idade, mas
a gente aprende com tudo.
Daniel: A escola poderia aprender com o mangá que somos feitos de mais coisa do
que matemática, física e biologia... Que somos feitos de sentimentos e queremos
viver emoções.
Henrique: A escola podia aprender que a hora de ser feliz é agora e não depois que
eu passar no vestibular. Não que isso não seja importante... Mas a vida é agora
também.
Toha: Eu queria que a escola fizesse a diferença como o mangá. Que ela
dissesse algo que fosse importante para mim. Mas a escola nem sabe quem
eu sou... Eu sou só mais um. O jeito é esperar o tempo passar.
Os depoimentos sugerem que a escola não enxerga o jovem que a freqüenta. Que
ela o observa a partir do estereotipo social, isto é, de uma forma negativa, não
conhecendo assim o jovem real. Mostra também a incapacidade de professores de olhar
além dos muros da escola, transcendendo os limites dos objetivos formais de suas
disciplinas. Essas são algumas das causas das muitas dificuldades existentes para o
diálogo entre os jovens e seus professores. Na verdade, parece que esses últimos não
são capazes sequer de perceber o quanto são limitados na compreensão dos desejos,
anseios e valores que constituem os jovens que os rodeiam. Presa a teorias de
desenvolvimento e de ensino e aprendizagem que não mais correspondem às
experiências juvenis contemporâneas, a escola não tem conseguido se transformar a
ponto de reconhecer e valorizar as múltiplas culturas juvenis e, com isso, acaba
desvalorizando e desprezando modelos formativos outros que ainda não são valorizados
teoricamente.
De acordo com Paulo Freire (1996), a tarefa pedagógica da escola é ampliar nos
jovens aprendizes a sua condição de humanos. Isso demandaria, em primeiro lugar,
ampliar a compreensão sobre os jovens, escutando-os, entrevendo em suas práticas
culturais, e nas formas de sociabilidade que desenvolvem, traços de uma luta pela sua
humanização, diante de uma realidade que insiste em desumanizá-los.
126
A relação dos jovens com os mangás mostra isso: até mesmo seus heróis são
humanizados, sujeitos a falhas, mortais... A todo o momento sentimentos e emoções que
transbordam por olhares e expressões surgem como componentes fundamentais. Assim,
se quisermos contribuir para a formação humana desses jovens, seria bom que os
encarássemos como “heróis” do cotidiano que são.
Levar em conta os jovens como “heróis” do cotidiano implica repensar a escola e
as práticas educativas. Implica em escutá-los para que sejam reconhecidos como
protagonistas do processo educacional, permitindo-lhes seu exercício de direito: a
atuação mais direta nos rumos de sua própria aprendizagem. Para tanto é fundamental
que se estimule o interesse pelo saber, mas dialogando com os interesses e necessidades
dos próprios jovens e não com premissas estabelecidas em tempos pretéritos que
privilegiam ideais e valores anacrônicos.
Enfim, o estudo que apresento pretende ser uma peça do mosaico que, acredito,
precisa ser construído para que a relação entre mídia e educação seja encarada como um
campo de estudos que necessita ser constituído. Se é descabido imaginar que este
campo poderia vir a resolver os sérios problemas do sistema educativo, por outro lado
ele poderia fornecer contribuições consistentes à superação da contradição que vem
sendo imposta aos jovens de viverem num mundo high tech e terem que conviver com o
anacronismo da escola. A aproximação entre mídia e educação poderia ensinar à escola
a investir num olhar mais amplo e dinâmico, capaz de lidar com a velocidade das
mudanças e com a multiplicidade do real. É importante que tal olhar seja crítico e nem
por isso menos carregado de sentimento.
É preciso que olhemos além.
Talvez seja preciso um olhar mais mangá.
Já é tempo de aprender com os aprendizes.
127
ANEXO
Fig. 1 http://www.taharamuseum.gr.jp/lib_image/kazan/kamishibai2.jpg
http://www.aikisky.com/pics.php
Fig. 2 http://du9.org/article.php3?id_article=725
Fig. 3 http://retrotv.uol.com.br/fantomas/fotos.asp
Fig. 4 http://sunblade.iespana.es/Series/Fantasmagorico/
Fig. 5 http://p.espace.free.fr/mangas/mangakas
http://www.sonic.net/~anomaly/japan/manga/tezuka.htm
Fig. 6 http://i.s8.com.br/images/books/cover/img9/190419.jpg
http://www.hanabatake.com/research/tezuka.htm
Fig. 7 http://www.submarino.com.br
Fig. 9 Idem.
Fig. 30 http://www.paninicomics.com.br/img/collanaNews/1304.jpg
http://mindrover.users.50megs.com/Images/rpg_splash.jpg
Fig. 31 http://www.douban.com/lpic/s1637036.jpg
http://www.vgmuseum.com/scans/mcd/record.jpg
http://www.paninicomics.com.br/img/collanaNews/1078.jpg
129
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http://www.uff.br/obsjovem/mambo/index.php?option=com_docman&task=doc_download
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HTTP://WWW.IMJUVENTUD.GOB.MX/PDF/REV_JOVEN_ES/22/JUAREZ%20DAYRELL,%20JUVEN
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