Polícia - Etimologia e Evolução Do Conceito
Polícia - Etimologia e Evolução Do Conceito
Polícia - Etimologia e Evolução Do Conceito
RESUMO
A palavra polícia tem um longo percurso onomasiológico. Nasce na Antiguidade Clás-
sica greco-romana, com o vocábulo ‘politeia’ dos gregos e ‘politia’ dos romanos, com o
significado de governo da Cidade-estado. Na Idade Média, o conceito de polícia evoluiu
para significar a boa ordem da sociedade civil, promovida pelo príncipe. Na Idade Moder-
na, com a emergência das teorias absolutistas do Poder, o conceito de polícia passou
a designar toda a atividade do Estado tendente ao bom governo da nação e à ordem
pública em geral. O direito policial (jus politiae), entendido como a ciência de governar
os homens, constituía o meio através do qual o príncipe atingia o fim eudemonológico
do Estado: a felicidade da nação. Com o fim do Antigo Regime e a introdução dos
valores liberais, o conceito de polícia tomou um novo rumo, reduzindo-se às dimensões
de garantia da segurança pública para o exercício dos demais direitos e liberdades. O
Estado de direito ajustou-o aos seus princípios dogmáticos. Assim nos chega o sentido
atual de polícia.
1. Introdução
1 NORBERTO BOBBIO — O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. Trad. Marco
Aurélio Nogueira. 6.ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 30. Título original: Il Futuro della
democrazia: Una difesa delle regole dei gioco, 1984.
2 JOHN GROVES (rev) — A Greek and English Dictionary. Boston: Hilliard, Gray and Company,
1839, s. v. «Πολιτεία», p. 476.
3 JEAN-CLAUDE MONET — Polícias e Sociedades na Europa. Trad. Mary Amazonas Leite de
Barros, 2.ª edição, 1.ª reimpr., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, p. 20. Título
original: Polices et Sociétés en Europe, 1986.
4 PEDRO JOSÉ DA FONSECA — Parvum lexicum latinum lusitana interpretatione adjecta.
Olisipone: Typ. Reg., 1798, s. v. «politia», p. 568.
5 Cfr. JEAN-CLAUDE MONET — Polícias e Sociedades…, cit., p. 20.
6 PLATÃO — A República. Livro IV. Tradução de J. Guinsburg. Introdução e notas de Robert Baccou.
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1965. Embora seja conhecida por A República, o título
original da obra é Πολιτεία (‘politeia’), com o significado de “Governo ou Constituição da Cidade”.
Vide introdução de Robert Baccou, cit., p. 5.
7 Para um desenvolvimento, ver notas de ROBERT BACCOU em A República, cit., pp. 26 e ss.
8 Cfr. ROGÉRIO SOARES — Interesse Público, Legalidade e Mérito. Coimbra: Atlântida, 1955, p. 54.
9 Cfr. FRANCISCO SOLANO CONSTÂNCIO — Novo Diccionario Critico e Etymologico da
Lingua Portugueza. Paris: Na Officina Typographica de Casimir, ed. Angelo Francisco Carneiro,
1836, s. v. «policia», p. 782.
12 A Maquiavel e Bodin seguiram-se Jaime Stuart, Hugo Grócio, Thomas Hobbes e, com a Reforma,
alguns teóricos protestantes como Espinosa, Pufendorf , Wolff , Robert Filmer, Johannes Althusius.
As doutrinas destes Autores acabaram por sobrepor-se à cultura jurídica e política dos letrados que
continuavam a seguir Aristóteles, São Tomás de Aquino e a plêiade de juristas teólogos da Escola Ibérica
do Direito Natural, como Francisco Suarez, Domingo de Soto e Bento Fragoso. Cfr. ANTÓNIO
MANUEL HESPANHA e JOSÉ MANUEL SUBTIL — Corporativismo e Estado de polícia como
modelos de governo das sociedades euro-americanas do Antigo Regime. In O Brasil Colonial 1443-
1580, Vol. 1, 1.ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, pp. 127-166 (128-129).
13 Cfr. ANTÓNIO MANUEL HESPANHA e JOSÉ MANUEL SUBTIL — Corporativismo…, cit.,
pp. 131-132.
14 Cfr. SPYRIDON FLOGAITIS — The Evolution of Law and the State in Europe: Seven Lessons.
London: Bloomsbury Publishing, 2014, lesson 2, e PAOLO NAPOLI — Naissance de la police
moderne: Pouvoir, normes, société. Paris : Édition La Découverte, 2003, p. 10.
15 « Tous les objets de la Police sont du ressort de l’hommes d’Etat ». Assim começa a obra de
DUCHESNE, Code de la Police ou Analyse des Réglements de Police. 4.è édition, revue, corrigée,
augmentée & mise en deux Parties, Tome I, Paris : Chez Prault père, 1767, p. iii.
16 Em Portugal, esta função pertencia aos polícias rurais, também conhecidos por guardas das
quintas. Eram indivíduos particulares, sem ligação a qualquer corporação, pagos por lavradores
de grandes terras para defender as suas culturas agrícolas, em especial durante a noite. Terão sido
inspirados nos gardes des vignobles (guardas das vinhas), existentes em França. Eram também
particulares, nomeados nessas funções, com pelo menos 18 anos de idade, com poderes para
deter ladrões e malfeitores, entregando-os à Justiça. Pelas piores razões, a eles se refere o deputado
MARIANO DE CARVALHO. Cfr. Diário da Câmara dos Senhores Deputados, Sessão de 6 de
maio de 1879, p. 1565. Sobre os gardes des vignobles, ver DUCHESNE — Code de la Police…,
cit., pp. 172-175.
17 Cfr. índice geral de DUCHESNE — Code de la Police…, cit., e de JEAN PIERRE WILLEBRAND
— Abrégé de la Police des Villes. Première Partie, Hambourg: Estienne et Fils, 1765.
18 Cfr. Cartas Régias de 9 de novembro de 1604 e 22 de junho de 1611, respetivamente. Veja-se também
a Carta Régia de 9 de outubro de 1618. Documentos disponíveis em EDUARDO FREIRE DE
OLIVEIRA — Elementos para a História do Município de Lisboa — Parte I. Tomo II, Lisboa:
Typographia Universal (Imprensa da Casa Real), 1885, pp. 143-144, 268, e 425-426.
19 Ao longo deste ponto, quando apropriado, as transcrições de passagens de toda a documentação
antiga, em língua portuguesa ou estrangeira, fazem-se na escrita original, por ser a única forma de
preservarmos o seu genuíno conteúdo e de retratarmos, fielmente, os relatos da sociedade da época.
20 Ver, por exemplo, o Decreto de 25 de fevereiro de 1643 e o Alvará de 9 de março de 1643. In SILVA,
JOSÉ JUSTINO DE ANDRADE E (compil. e anot.) — Collecção Chronologica da Legislação
Portugueza, II Série (1640-1647). Lisboa: Imprensa de F. X. de Souza, 1856, pp. 199 e 201,
respetivamente.
21 Cfr. RENE CHOPPIN — Trois Livres de la Police Ecclésiastique, en laquelle est amplement traité
des droits royaux selon l’usage des Cours de France, sur les personnes e bien des Ecclésiastiques. Trad.
du latin par Jean Tournet, Paris : Estienne Richer, 1634. Veja-se, também, a noção de polícia das
procissões («police des processions») e dos Comissários do Corpo da Catedral («Commissaires du
Corps de la Cathédrale») encarregados da ordem, da marcha e das cerimónias das procissões, em
EDME DE LA POIX DE FREMINVILLE — Diccionnaire ou Traité de la Police Générale des
Villes, Bourgs, Paroisses et Seigneuries de la Campagne. Paris : Chez Gissey, 1763, pp. 490-491.
lizar a paz e a felicidade dos seus súbditos tem agora, em suas mãos,
as razões justificadoras para a ampliação dos seus poderes. O culto e
idolatria da eudemonologia é o engenho perfeito para justificar o po-
der absoluto. A gradual miscigenação entre os fins do Estado (a pros-
peridade do reino e a felicidade do povo) e os meios para os alcançar
(o poder do príncipe) conduziu a um autoritarismo sem precedentes,
em que os poderes do monarca se furtavam ao controlo judicial e à
própria legalidade. A atividade da polícia, que se identificava com o
conceito de administração pública a partir da segunda metade de oi-
tocentos, passou a mover-se no âmbito da completa discricionariedade
(e, até, arbitrariedade), subtraindo-se à lei e à Justiça. Nasce o “mundo
do não-direito da polícia”22. Nasce o Estado de Polícia, l’État de Police,
der Polizeistaat23.
30 Cfr. JEAN PIERRE WILLEBRAND — Abrégé…, cit., Première Partie, p. 32. Tradução livre.
36 NICOLAS DELAMARE — Traité de la Police. Tome I, Paris: Chez Michel Brunet, Grand’ Salle du
Palais, au Mercure Galant, 1722, p. 2.
bles aux autres; à arrêter, corriger & réprimer les abus & les
désordres; à prévenir les crimes, faire en sorte que les coupables
ne puissent échapper à la punition qu’ils méritent; à séparer
de la Société ceux qui ne peuvent que lui être nuisibles; à ren-
dre à tous les citoyens, sans aucune distinction de rangs, d’état
& de fortunes, la plus exacte & la plus prompte justice; à leur
accorder les secours, la protection & les soulagements dont ils
ont besoin, & qu’il est possible de leur procurer »37.
Paris : Chez Rozet, 1769, pp. 2-3 (tradução livre). Esta obra, que aparece com o nome Jean-Henri
Gottlobs de Justi, é a tradução da original em alemão, intitulada Grundsätze der Polizeywissenschaft
(Princípios da Ciência Policial), de 1756. Na sua obra Discurso Sobre Delictos e Penas…, cit., pp. 22-
23, FRANCISCO FREIRE DE MELLO faz a mesma distinção entre polícia e política, plagiando o
discurso de VON JUSTI. A comparação dos textos não nos deixa qualquer dúvida quanto à fonte de
FREIRE DE MELLO.
53 O conceito é agora escrito com maiúscula, para se referir à ciência policial.
54 Em especial as obras magnas, Princípios de Direito Natural de CHRISTIAN WOLFF, A Riqueza das
Nações de SMITH, O Espírito das Leis de MONTESQUIEU.
56 Veja-se também, entre muitos outros, o Breve Tratado de Hygiene Militar e Naval (1819) de
JOAQUIM XAVIER DA SILVA; Elementos de Hygiene (1814) de FRANCISCO DE MELLO
FRANCO. Estes temas integravam, como se lê nas respetivas obras, o conceito de polícia médica.
Para um desenvolvimento, consultar CARLOS LOUSADA SUBTIL e MARGARIDA VIEIRA —
Os Tratados de Polícia, fundadores da moderna saúde pública (1707-1856). Revista de Enfermagem
Referência, III Série – n.º 7 – jul., Coimbra, 2012, pp. 179-187 (184).
das Bases da Constituição de 9 de março de 1821 anuncia a segurança como princípio basilar da
Constituição Política. A inclusão da palavra “pessoal” na redação da Constituição de 1822 indicia
que o legislador constitucional pretendeu dar um cunho subjetivo à segurança, consagrando-a como
direito subjetivo material dos cidadãos.
62 Cfr. SERGIO BOVA — s. v. «Polícia». Op. cit., p. 944.
63 Cfr. artigos 1.º e 12.º da Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos de 26 de agosto de 1789.
64 ESSARTS — Dictionnaire Universel…, cit. ; ADAM SMITH — Lectures on Justice, Police…, cit. ;
DELAMARE — Traité de la Police…, cit..
65 Tradução livre.
66 JOSÉ FERREIRA BORGES faz essa distinção em meados do século XIX, ao definir o conceito
“polícia”, no Dicionário Jurídico-Comercial. 2.ª edição, Porto: Typographia de Sebastião José Pereira,
1856, pp. 307-308. Mas é apenas com a criação do Corpo de Polícia Civil, em 1867, que a distinção
entre polícia administrativa e polícia judiciária é institucionalizada.
67 M. ALLETZ — Diccionnaire de Police Moderne. Deuxième édition, Tome III, Paris : A la Librairie
de Jurisprudence et d’Administration, 1823, pp. 292-293.
68 M. ALLETZ — Diccionnaire de Police…, cit., pp. 294-295.
69 Cfr. artigos 18.º e 119.º do Regulamento aprovado pelo Decreto de 14 de dezembro de 1867, e artigo
34.º do Regulamento aprovado pelo Decreto de 21 de dezembro de 1876, publicados no Diário de
Lisboa n.º 290, de 21 de dezembro, e Diário do Governo n.º 295, de 30 de dezembro, respetivamente.
70 Decreto de 9 de dezembro de 1892, publicado no Diário do Governo n.º 283, de 14 de dezembro de 1892.
71 Apesar de estar sob o comando de oficiais do exército e da forte disciplina exigida ao Corpo de
Polícia, pretendeu-se sempre manter a sua natureza civil. No documento que antecede e submete para
aprovação a reforma dos serviços policiais de Lisboa pode ler-se que “(…) não é nosso intuito militarisar
a policia de Lisboa. Pretendemos, pelo contrario, conservar-lhe o carácter de um corpo de policia civil, mas
reputâmos indispensavel dar-lhe a disciplina, a consistencia, os elementos de ordem e de regularidade
que só podem alcançar-se com uma instrucção militar e um regime severo. Não cremos que, salvo casos
excepcionaes, funccionarios civis, desconhecedores dos processos por que se dirigem e educam agrupamentos
de homens, a quem o estado dá armas para defenderem os interesses geraes e a segurança publica, possam
facilmente commandar, instruir e disciplinar um corpo policial”. Diário do Governo n.º 194, de 30 de
agosto de 1893, pp. 592-593.
72 Cfr. preâmbulo do Decreto de 28 de agosto de 1893. O Regulamento da Polícia Inspeção
Administrativa de Lisboa viria a ser aprovado mais tarde, por Decreto de 5 de março de 1896 (Diário
do governo n.º 59, de 13 de março).
6. Conclusões
87 Para uma visão aprofundada desta tese, cfr. GUEDES VALENTE — Do Ministério Público e da
Polícia: Prevenção Criminal e Ação Penal como Execução de uma Política Criminal do Ser Humano.
Lisboa: Universidade Católica Editora, 2013, pp. 307-328.
ABSTRACT
The word police has a long onomasiological approach. It appears in Greco-Roman Antiq-
uity, with the Greek word ‘politeia’ and Roman word ‘politia’, meaning the government of
the City-state. In the Middle Ages, the concept of police evolved to signify the good order
of the civil society, promoted by the Prince. In the Modern Era, with the emergence of the
absolutist theories of power, the concept of police passed to designate all the activity of the
State towards the good government of the nation and public order in general. The police
law (jus politiae), understood as the science to rule men, was the means by which the Prince
reached the purpose of the State: the happiness of the nation. With the end of the Old Re-
gime and the introduction of liberal values, the concept of police took a new path, passing
to designate the guarantee of public security for the exercise of other rights and freedoms.
Finally, the legal state set the concept to its principles. So appears the current sense of police.
RESUMEN
La palabra policía tiene un largo recorrido onomasiológico. Nace en la Antigüedad Clá-
sica grecorromana, con el vocablo 'politea' de los griegos y 'politia' de los romanos, con el
significado de gobierno de la Ciudad-estado. En la Edad Media, el concepto de policía
evolucionó para significar el buen orden de la sociedad civil, promovido por el príncipe.
En la Edad Moderna, con la emergencia de las teorías absolutistas del Poder, el concepto
de policía pasó a designar toda la actividad del Estado tendiente al buen gobierno de la
nación y al orden público en general. El derecho policial (jus politiae), entendido como la
ciencia de gobernar a los hombres, constituía el medio a través del cual el príncipe alcan-
zaba el fin eudemonológico del Estado: la felicidad de la nación. Con el fin del Antiguo
Régimen y la introducción de los valores liberales, el concepto de policía tomó un nuevo
rumbo, reduciéndose a las dimensiones de garante de la seguridad pública para el ejer-
cicio de los demás derechos y libertades. El Estado de derecho lo ajustó a sus principios
dogmáticos. Así nos llega el sentido actual de la policía.
Bibliografia
ALLETZ, M. — Diccionnaire de Police Moderne. Deuxième
édition, Tome III, Paris : A la Librairie de Jurisprudence et
d’Administration, 1823.
ALTAFIN, JUAREZ — O Cristianismo e a Constituição. 1.ª
edição, Belo Horizionte: Del Rey Editora, 2007.
BERTRAND, ELIE e FELICE, FORTUNE-BARTHELEMY DE
— Élémens de la Police Générale d’un État. Tome Premier,
Yverdon, 1781.
BLUTEAU, RAPHAEL — Diccionario da Lingua Portugueza
Composto pelo Padre D. Raphael Bluteau, Reformado, e
Accrescentado por António de Moraes Silva. Tomo II, Lisboa:
Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, s. v. «policia».
_________ — Vocabulario Portuguez e Latino. Tomo I. Coimbra: