Resenha: Eu, Tituba (Maryse Condé)

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CONDÉ, Maryse.

 Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,
2019.

Nascida em 1937, no território ultramarino francês de Guadalupe, Maryse Condé é


mestre e doutora em literatura comparada pela Universidade de Sorbonne, professora emérita
de francês na Universidade de Columbia e reconhecida escritora de ficção histórica. Entre
peças e romances, Maryse Condé possui uma extensa bibliografia, a qual, boa parte, explora
questões sobre raça, gênero e a diáspora africana, como a escravidão e o colonialismo. Em
2018, a autora ganhou o prêmio Nobel alternativo de literatura, o New Academy Prize.
Algumas das obras escritas pela autora são: Heremakhonon, Une saison à Rihata, Ségou: Les
murailles de terre e Ségou: La terre em miettes.

No presente trabalho, iremos resenhar a obra Eu, Tituba: Bruxa negra de Salem,
publicada em 2019 pela Rosa dos Tempos, selo da Editora Record, dedicada a obras de
gênero e ótica feminista. Dividido em duas partes, a primeira parte com doze capítulos e a
segunda com 15 capítulos mais o epílogo, o livro conta a história de Tituba, mulher negra
escravizada e uma das acusadas no famoso caso de caça às bruxas de Salem. Desse modo, Eu,
Tituba reconta um fato histórico bastante conhecido, mas colocando como protagonista uma
personagem que até então tinha sido relegada pela história oficial, bem como, pelas narrativas
ficcionais sobre as bruxas de Salem. Nas mãos de Maryse Condé, Tituba ganha voz, passado e
futuro. A edição brasileira foi traduzida pela Natalia Borges Polesso e conta com prefácio da
escritora brasileira, Conceição Evaristo.

A história é narrada em primeira pessoa pela própria Tituba e se inicia com a sua
concepção, advinda de uma violência. A sua mãe Abena, como outras milhares de mulheres
que atravessaram o Atlântico na condição de escravizada, é estuprada por um marinheiro
enquanto era levada para Barbados. Ao contar a história de sua mãe, Tituba expõe o quão
violento era o processo de escravidão, fazendo com que fosse comum os homens e mulheres
recorrerem ao suicídio, mas, além disso, como esse processo podia ser muito mais cruel para
com as mulheres. A narrativa igualmente exprime o legado da violência ao retratar a repulsa
que Abena sente por sua filha, por ser fruto de uma agressão, assim como, o medo de que ela
sofra do mesmo mal. Devido a essas circunstâncias, Tituba só conhece o amor materno após a
morte de sua mãe, que também se dá de maneira brutal. Abena é enforcada após repelir um
ataque sexual do senhor da plantation.

Com a morte de sua mãe, Tituba passa a viver com Man Yaya, uma espécie de
curandeira e feiticeira, que a ensina fazer poções, feitiços e se comunicar com os mortos. É
assim, principalmente após o falecimento de Man Yaya, que a fama de bruxa da personagem
começa a se construir. Ela passa a viver isolada em uma cabana na ilha, ajudando os escravos
doentes quando solicitada, mas tudo muda quando ela conhece John Indien, negro escravizado
da fazenda de Suzanna Endicott, por quem ela se apaixona à primeira vista. Para viver esse
amor, Tituba confronta as recomendações dos espíritos, sai do ostracismo e abandona a sua
liberdade para morar com John Indie.

A experiência de viver na fazenda é aterrorizante para Tituba. Ela passa a ter que
trabalhar na casa de Suzanna Endicott, assim como, ser evangelizada por ela. O modo como a
dona da casa a maltrata, a falta de identificação com as lições de catecismo e o medo de ser
levada ao tribunal como bruxa faz com que Tituba amaldiçoe Suzanna. Como retaliação, a
dona da fazenda vende Tituba e John Indien para o pastor puritano Samuel Parris, que os leva
para os Estados Unidos.

Como escrava de Samuel Parris, Tituba fica próxima de Elizabeth, Betsey e Abigail,
respectivamente, esposa, filha e sobrinha do pastor. A personagem constata que toda a família
vive sufocada sob a fé rígida de Parris, fé em que os sinais do diabo podem ser encontrados
em cada esquina, mas é só em Salem que Tituba entende a “medida da devastação que a
religião de Samuel Parris poderia causar” (CONDÉ, 2019, p. 84). Esse entendimento vem
tarde demais, Tituba que já tinha usado os conhecimentos aprendidos com Man Yaya para
salvar a vida da mulher do pastor e distraído as jovens da vila com histórias sobre espíritos e
pactos com o Diabo, se vê enredada numa trama criada por Betsey e Abigail. As duas jovens
começam a ter ataques ao verem Tituba. Um médico é chamado, contudo nenhuma causa
física é encontrada para explicar o comportamento das meninas. Em seguida, os ataques se
propagam entre outras jovens da vila de Salem e Tituba é acusada de bruxaria por aquelas que
julgava proteger.

Junto de Tituba, outras duas mulheres são acusadas de bruxaria: Sarah Osborne e
Sarah Good. Era só o começo, até o final dos julgamentos de Salem outros seriam presos,
entretanto, a narrativa demonstra como as primeiras acusadas foram vítimas fáceis da
incriminação por serem mulheres que não se encaixavam na norma puritana:

É verdade que eu era apenas uma negrinha escravizada. É verdade que Sarah
Good era uma mendiga. Tão grande era sua miséria que precisou se abrigar
na igreja por não ter onde morar. É verdade que Sarah Osborne tinha má
reputação, tendo recebido cedo demais, em sua cama de viúva, um
trabalhador irlandês que veio para ajudar a explorar o seu bem. (CONDÉ,
2019, p. 127-128)

Na cadeia, Tituba conhece e se torna amiga de Hester, mulher encarcerada por


adultério. Aqui, Maryse Condé reinventa a personagem criada por Nathaniel Hawthorne,
Hester Prynne de A letra escarlate. Se na obra de Hawthorne, Hester é uma figura resiliente
que aceita a sua punição, que se dedica a maternidade e ajuda os membros mais vulneráveis
da vila em que vive como uma forma de redenção; a Hester descrita por Condé é uma figura
rebelde. Ela questiona a sociedade puritana, visualiza uma utopia feminista, renega a
maternidade e, por fim, a sua punição. A Hester de Eu, Tituba escolhe o suicídio em vez de
carregar a letra escarlate bordada no peito. Ao trazer Hester para a narrativa, Maryse Condé
também parodia o discurso feminista branco e liberal. Hester se coloca na mesma posição que
Tituba ao apontar que também foi banida da sociedade, porém interrompe ou ignora Tituba
quando essa fala sobre a sua vivência. Para Hester, o mundo melhoraria somente com o fim
dos homens, sem pensar na questão de raça presente na sociedade e é, provavelmente por esse
motivo, que ela não consegue confortar Tituba quando ela lembra de Barbados onde “os
homens e as mulheres ainda sofrem” e “um negro acaba de ser enforcado no topo de um
flamboaiã” (CONDÉ, 2019, p. 122-123).

Por recomendação de Hester, Tituba confessa as acusações de bruxaria e consegue


escapar da forca, entretanto, o seu martírio não encontra o fim de imediato. Mais tarde, com o
perdão dado aos acusados, Tituba é vendida ao judeu Benjamin Cohen d’Azevedo para pagar
os dezessete meses que esteve na cadeia. Com Benjamin, a personagem testemunha outra
faceta da intolerância e do racismo: o preconceito contra os judeus. No entanto, igualmente
como faz a personagem Hester, Benjamin tenta criar uma falsa equivalência entre a situação
dos judeus e os negros, sem ouvir a experiência de Tituba. Ademais, somente após o
assassinato dos seus filhos, que Benjamin se sente culpado e concede a liberdade para Tituba.
De posse de sua liberdade, Tituba retorna para a sua terra natal em Barbados. É o
começo do fim de parte de sua história. Em Barbados, Tituba vive durante um período num
acampamento maroon1. Lá ela se relaciona com Christopher, líder dos maroons, o qual pede
que Tituba, como bruxa, torne ele invencível. Sem poder ajudá-lo, a personagem retorna para
a sua cabana, onde ela volta ajudar os escravos doentes que a procuram até que, novamente,
tudo muda. Tituba descobre que está grávida e para sua cabana é levado um escravo que foi
brutalmente chicoteado. A personagem ao expressar o desejo de um mundo diferente para sua
filha, onde ela possa ser livre, faz com que uma revolta seja arquitetada. Infelizmente,
consultando os espíritos, Tituba descobre que o sofrimento para os negros não terá tão cedo
um fim. A revolta é denunciada, os envolvidos são pegos e levados para a forca, incluindo
Tituba.

Assim termina a história da vida de Tituba, porém é o início de sua história verdadeira
como a própria personagem destaca no epílogo. A personagem sabe que provavelmente será
esquecida pela “civilização do Livro e do Ódio”, mas que será lembrada pelos seus na
memória e no coração. Tituba se torna um espírito que cuida dos seus, que alenta o coração
dos homens e alimenta seus sonhos de liberdade (CONDÉ, 2019, p. 194).

O livro de Maryse Condé mistura ficção e história para preencher as lacunas da vida
de Tituba, resgatando assim a história de uma personagem que foi praticamente esquecida
pela história oficial. A autora faz isso de uma maneira leve e fluída, apesar do livro tratar de
temas bastante opressivos, e ao optar por uma narrativa autobiográfica, em que a própria
Tituba conta a sua história, faz com o que seu livro seja um ato de represália ao apagamento
de Tituba, empreendido de forma consciente e inconsciente devido ao racismo. Aliás, ao
colocar Tituba como protagonista da história, faz com que sua narrativa se assemelhe com a
perspectiva que nós historiadores chamamos de história vista de baixo

Outra característica relevante dessa obra de Maryse Condé é a sua exposição sobre a
condição das mulheres. Quando narra o processo de escravidão para as mulheres o seu
posicionamento se aproxima de bell hooks (2014, p. 14) que aponta como o sexismo foi uma
“parte integral da ordem social e política que os colonizadores brancos trouxeram das suas
terras da Europa e teve um impacto grave no destino das mulheres negras escravizadas” se
sobrepondo ao racismo como força opressiva. O papel do machismo como elemento
controlador da vida das mulheres aparece também na narrativa nas acusações de bruxaria.
1
Nome dado as comunidades quilombolas no Caribe inglês e no sul dos Estados Unidos. (GOMES, 2018, p.
387)
Bell hooks (2014, p. 23) ressalta que “os julgamentos de Salem foram uma expressão extrema
da perseguição da sociedade patriarcal às mulheres”. Silvia Federici (2017, p.109-205), em
Calibã e a Bruxa, também aponta que a caça às bruxas e a demonização das mulheres era uma
forma de domesticação e redefinição da feminilidade. Federici (2017, p. 331 e 332) expõe que
as acusações de bruxaria não se direcionavam somente a mulher parteira e/ou curandeira,
como era o caso de Tituba, mas também a mulher que evitava a maternidade, a considerada
promíscua, a mendiga e a mulher rebelde. Por isso, muitas das vezes a prova de culpa era a
“má reputação” daquela mulher. Em Eu, Tituba isso não é diferente, as acusações pesam
primeiramente sob as mulheres que não estavam de acordo com a norma puritana.

Por fim, mas não menos importante, Maryse Condé expõe o horror do racismo e da
escravidão. Além do óbvio aspecto da violência, ela apresenta questões mais sutis como o
discurso e a conformação. Por exemplo, em diversos momentos da narrativa, Tituba é
reduzida a sua cor, como se isso fosse suficiente para supor a sua personalidade ou sua culpa.
Em relação a conformação, observamos que John Indien aceita ou finge aceitar a dominação
dos senhores, pois “o dever de um escravizado é sobreviver” (CONDÉ, 2019, p. 39). Com
isso, é possível observar como a escravidão e o racismo não infligem apenas a violência
física, mas também suprime a subjetividade dos indivíduos.

O caráter ficcional de “Eu, Tituba: bruxa negra de Salem” faz com que seja uma
leitura acessível a todos. Aliás, por seu lado histórico, essa obra de Maryse Condé se torna
ainda mais agradável para aqueles que se interessam por história, narrativas da escravidão,
assim como, pelo caso das bruxas de Salem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOOKS, bell. “Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada” In___. E eu não sou
uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Plataforma do Gueto, 2014.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução


Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.

GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos/remanescentes de quilombos. In: SCHWARCZ, Lilia


Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos
críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 387-393.

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