A Função Social Do Ensino de Ciências
A Função Social Do Ensino de Ciências
A Função Social Do Ensino de Ciências
A FUNÇÃO SOCIAL DO ENSINO DE CIÊNCIAS* ciências exatas, dos cientistas e dos mestres das ciências não se-
ria um dos motivos do bloqueio à inovação e à revisão? O próprio pe-
Miguel González Arroyo** so imposto às ciências como mecanismos de seleção e filtragem
para o vestibular não teria aumentado essa auto-suficiência e esse
Duvidar é preciso bloqueio perante qualquer revisão séria dos conteúdos e métodos
de ensino?
Refletir acerca do ensino de ciências sem integrar poucos inicia-
dos nas ciências pode parecer uma ousadia. Este poderia ser um A dúvida como método está na raiz da nova ciência e poderia ser
primeiro ponto para nossa reflexão. O ensino de ciências participa um ponto de partida para se avançar no repensar sério de uma área
de certo mistério, comum às ciências ditas exatas, o mistério de do ensino que ocupa a maior parte do tempo e das energias na edu-
ser um saber tão inacessível quanto nobre, se comparado a outros cação escolar da adolescência e da juventude. Duvidar é preciso,
saberes. Conseqüentemente, um certo ethos de segurança, de in- para avançar.
questionabilidade domina a área. Pela experiência que venho acu-
mulando como pai de estudantes, atrevo-me a dizer que no ensino Por onde avançar no repensar o ensino de ciências? Como já salien-
de ciências e matemática cometem-se mais barbaridades didáti- tado, a prática docente ou o chamado processo de ensino-apren-
cas que no ensino de língua portuguesa, história ou geografia. dizagem precisa ser revisto em cada um de seus componentes: os
sujeitos docentes, os conteúdos, os livros de texto, os processos
As práticas monótonas e repetitivas dos para casa, o caráter de transmissão-avaliação, os sujeitos cognoscentes, os contextos
maçante e massacrante dos livros de texto, a falta de sensibilidade de sala, os laboratórios... Há muito campo para repensar cada um
das questões das provas, os medos em torno das ciências, todo es- desses aspectos. Entretanto, não será suficiente parar por aí. 0
se clímax aproxima-se dos velhos, velhíssimos métodos da pal- que acontece no ensino de qualquer área do conhecimento não se
matória, da obrigação de escrever cem vezes a mesma palavra, ou esgota nem se explica por processos interativos ou de comuni-
fórmula, como castigo. O ensino de ciências, em geral, distancia- cação. Na área do ensino de ciências, isso é ainda mais perceptível.
se dos métodos mais racionais e didáticos de ensino-aprendiza- O que ai acontece é inseparável dos processos sociais e políticos
gem, defendidos pela pedagogia moderna. A auto-suficiência das da produção-reprodução-apropriação-uso da ciência e das técni-
cas, tanto nos processos gerais como nas especificidades de nos-
sa formação social. É verdade que essas relações estão presentes
* Este trabalho retoma as reflexões apresentadas no Encontro Nacional de Ensino
em qualquer área do conhecimento, mas os estreitos vínculos en-
de Fisica, realizado no Rio de Janeiro em janeiro de 1 9 8 9 , e no Encontro Estadual tre ciência-técnica-produção tornam seu conhecimento mais de-
de Ensino de Ciências, ocorrido em Belo Horizonte em março, de 1 989. A totali- terminado e mais polêmico.
dade do trabalho comporá um capitulo de um livro - em preparação por vários
professores - a respeito do ensino de Ciências.
**Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Em outros termos, não se pode refletir acerca do ensino de ciên-
Gerais (UFMG). cias apenas pedagogicamente ou como se fosse um processo me-
Julgo que o ensino de ciências mais do que o de outras áreas con- O pensamento mais comum entre os professores é que o ensino de
templadas nos programas de 1º e 2º graus tem de ampliar sua aná- ciências se relaciona com a preparação para o mundo produtivo.
lise crítica para questões como: Se lhes perguntarmos para que servirá a física, a química, a biolo-
gia e a matemática ensinadas no segundo grau, a resposta será
• por que essa área adquiriu a relevância atual? quase unânime: para capacitar os jovens a um trabalho profissio-
• que papel cumpre no equilíbrio ou desequilíbrio de uma propos- nal competente. Se fizermos a mesma pergunta aos professores
ta coerente de formação do cidadão comum? de humanas (no linguajar escolar a condição de ciências não se
• em que medida o ensino de ciências vem descartando a função aplica a humanas), possivelmente a resposta seja: preparar os jo-
social da escola de 1º e sobretudo de 2º grau? vens para a cidadania.
• qual a concepção de ciência presente no ensino de ciências?
• quais os vínculos entre ciências-produção-trabalho? Faz parte do senso comum pedagógico que o conhecimento das
• quais os vínculos entre ensino de ciências e a indústria do ensi- forças sociais, econômicas, políticas e culturais que levaram, por
no, o assalariamento das camadas médias, a desqualificação do exemplo, à abolição da escravatura, ou à Proclamação da Repúbli-
trabalho moderno, a seletividade do ensino superior e, mais es- ca, permitirá aos jovens aprender a lutar, como futuros cidadãos,
pecificamente, a seletividade do mercado de trabalho dos pro- pela igualdade ou pela democracia republicana. Enfim, as huma-
fissionais da ciência e da técnica?... nas ensinam que a sociedade funciona numa correlação complexa
de forças, o que permitirá aos futuros cidadãos entenderem essa
Se deixarmos de lado um enfrentamento muito sério com essas sociedade e participarem de sua transformação. Nem todos os
questões e nos fecharmos em qualquer reforma dos processos professores terão essa visão tão progressista. O que importa é des-
internos ao ensino ou de seus componentes - conteúdos, livros de tacar como é concebido o papel de cada ramo das ciências na for-
texto, laboratórios, para casa, provas, métodos -, sem situar histó- mação dos jovens no 1° e 2° graus. Por exemplo, o conhecimento
rica e socialmente o ensino de ciências, corremos o risco de cair relativo às linhas de força de um campo elétrico, supõe-se, capaci-
num receituário ou até de levar os mestres das ciências a um certo tará os jovens a entender e manipular a tecnologia moderna usada
complexo de incapazes, uma vez que os determinantes da maioria no mundo da produção e, conseqüentemente, os capacitará para a
dos pontos vulneráveis nesse ensino não são de natureza didática, vida profissional.
nem sequer de incompetência ou despreparo de quem ensina, ou
de quem elabora material de ensino. Qualquer pesquisa rápida constataria essa visão dicotômica de
função do ensino. Basta olhar as introduções dos livros de texto pa-
Minha reflexão tenta abrir novas dimensões - oriundas de outras ra perceber como essa visão dicotômica faz parte do pensamento
ciências -, nem sempre aceitas como ciências, e que podem per- pedagógico dos profissionais da escola. Os livros de geografia do
turbar o campo tão fechado das ciências nobres - as exatas - e segundo grau ressaltam na apresentação: "a formação do cidadão
exige que se dê ao jovem orientação e instrumentos para a filtra- de 1.° e 2.° graus: separando as disciplinas destinadas à formação
gem, a análise, a interpretação do que ocorre no mundo". Por sua geral do cidadão daquelas destinadas à formação especial do pro-
vez, os livros de história insistem na mesma idéia de contribuir pa- fissional-trabalhador.
ra a formação do cidadão. "Através do estudo da história, você,
aluno, será capaz de extrair lições de participação e de espe- O que aconteceu realmente nestes vinte anos? Os conhecimentos
rança." A temática destacada nas humanas relaciona-se à ocu- transmitidos pelas ciências têm cumprido o papel de mediadores,
pação política do espaço, às formas de governo, às datas cívicas, como se esperava, entre a escola e o mundo do trabalho ? Como as
descoladas dos processos produtivos. ciências vêm cumprindo essa função? Ensinando conteúdos
científicos ao futuro profissional-trabalhador ou mediante outros
Entretanto, as introduções dos livros de física, química, biologia e mecanismos mais sutis? Lembremos um pouco de história.
matemática deixam logo claro aos jovens que são ciências vincula-
das a outro departamento de sua formação. Nas primeiras páginas No final da década de sessenta e início da década de setenta fez-se
apresentam aos jovens sua proposta: "capacitá-los para suas f u - uma crítica rígida ao saber transmitido no sistema escolar brasilei-
turas carreiras, sua vida profissional e o exame vestibular". ro. Tratava-se com desprezo o chamado saber tradicional, visto
como livresco, humanista, metafísico, apropriado a uma república
O jovem deve tirar esta conclusão: as humanas tratam do humano, de bacharéis diletantes e improdutivos. Propunha-se um saber
do social, do cívico, enquanto o mundo da produção, do trabalho, moderno, técnico-científico, útil, prático, capaz de formar profis-
da opção profissional pertence a outro departamento - das ciên- sionais e trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva.
cias exatas. Tal conclusão poderá acompanhar o futuro profissio-
nal-cidadão-trabalhador e dificultar uma compreensão unitária O argumento apresentado era que este saber e não aquele prepa-
das diversas dimensões de sua existência e da sociedade em que rava para o mundo moderno da produção, uma vez que estávamos
vive e para cuja construção contribui. sob o impacto de uma revolução científico-técnica. As causas do
subdesenvolvimento relacionavam-se a formas ultrapassadas de
Nossa hipótese é que nas últimas décadas essa separação entre produção, e a arrancada para o desenvolvimento correspondia à
ciência-técnica e cultura-política vem sendo levada ao extremo aplicação de tecnologias avançadas e à formação de profissionais
nas propostas de ensino de 1º e 2º graus. que dominassem essas tecnologias. O discurso da época, em suas
análises sobre o subdesenvolvimento, e em suas propostas para o
Essa visão dicotômica sempre esteve presente na prática pedagó- desenvolvimento, tentava ocultar qualquer variável político-social
gica. Desde as reformas dos anos vinte, o sistema de instrução pú- e cultural. As análises que incluíssem as ciências humanas no
blica era orientado, em sua totalidade, para a formação da cidada- diagnóstico da nossa realidade eram consideradas ideológicas,
nia das elites dirigentes. A formação profissional fazia-se fora da como um conhecimento acientífico, vulgar, preconceituoso, um
escola, no próprio trabalho, na família e um pouco no ensino técni- saber apropriado à revolução inconseqüente, o divertimento de
co e agrícola. As reformas de 68 e 71 tentaram administrar a união profissionais pouco sérios.
dessas duas funções no próprio sistema educacional. As transfor-
mações ocorridas nestas duas últimas décadas têm sido bem mais Tentava-se passar essa interpretação tecnicista, despolitizada à
profundas do que nas oito décadas republicanas anteriores. sociedade brasileira exatamente no momento em que os vínculos
entre ciência-técnica-cultura-política eram fortalecidos como
A concepção dicotômica foi transferida para o interior do ensino nunca antes em nossa história. Igualmente ocorria na educação
O maior perdedor nessa dicotomia entre ciência-técnica-cultu- Nessa experiência social, política e econômica, autoritária e selva-
ra que vem orientando o ensino nas últimas décadas é sem dúvida gem das últimas décadas não deu nem para perceber a pobreza
a própria ciência. A crítica ao ensino livresco e pouco científico, fei- científica e cultural legada por esses colégios, mas para a expe-
ta na década de sessenta, tinha suas bases. Um tratamento mais riência presente, e a que espera aos jovens nas próximas décadas,
científico das ciências da natureza (e das ciências da sociedade deveríamos ser um pouco mais exigentes e retomar com maior se-
também) era urgente. riedade o direito dos profissionais-cidadãos deste país de terem
uma formação científico-cultural séria e consistente.
O que se vê hoje, entretanto, não é exatamente uma formação mais
científica, mas uma simplificação do saber científico, um reducio-
nismo utilitarista que envergonharia os grandes cientistas que nos Uma esperança pode vir do movimento de renovação existente nos
últimos séculos colaboraram em sua construção. Esse reducionis- próprios profissionais do ensino dessas áreas, o qual tenta reagir à
mo utilitarista em nada contribui para o avanço das ciências no país submissão servil a seus patrões, mercadores do ensino privado, e
nem para a formação do homem e seu domínio sobre a natureza. reencontrar os vínculos entre técnica-ciência-cultura-política.