Negros Islâmicos No Brasil

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escravocrata

Lidice Meyer Pinto Ribeiro

Negros
islâmicos
no Brasil
LIDICE MEYER
PINTO RIBEIRO
é professora nos
programas de
pós-graduação em
Ciências da Religião
e da graduação
da Universidade
Presbiteriana
Mackenzie.
A INTRODUÇÃO DO ISLAMISMO
NO BRASIL
De forma semelhante à distinção uti-
lizada pelo sociólogo Mendonça (2002,
p. 25) ao classificar os tipos de inserção
do protestantismo no Brasil, o islamismo
passou por três fases de implantação nas
terras brasileiras:

• islamismo de escravidão – oriundo do


tráfico negreiro de escravos islamizados
desde o século XVIII, instalou-se primei-
ramente na Bahia, progressivamente se
espalhando por outras regiões do país;
• islamismo de imigração – oriundo da
islã está presente em todo o imigração de povos árabes no período pós-
mundo, em parte devido à -Primeira Guerra Mundial, iniciando uma
migração e em parte ao tra- comunidade islâmica reconhecida no país;
balho missionário realizado, • islamismo de conversão – fenômeno
sem muito alarde, através de ações sociais, do final do século XX, que se inicia com
distribuição de literatura e pela Internet, em a crescente conversão de brasileiros ao
diversas webpages. islamismo.
Apesar da divulgação conflitante a seu
respeito na mídia secular, na qual figuram Neste estudo, abordaremos a primeira
conversões como a do músico Cat Stevens, fase, iniciada com a vinda de escravos
hoje, Yusuf Islam, e do boxeador Cassius islamizados.
Clay, renomeado como Muhamad Ali, Essa presença dos primeiros muçul-
juntamente com alusões ao terrorismo e ao manos no Brasil foi documentada por
fundamentalismo, o islã cresce e espanta, diversos historiadores e folcloristas, como
pois apesar de quase um bilhão de adeptos Nina Rodrigues, Etiènne Brasil, Arthur
espalhados pelo mundo, ou cerca de 25% Ramos, Gilberto Freyre, João do Rio,
da população mundial, pouco se sabe real- Abelardo Duarte e Waldemar Valente. A
mente sobre ele. esses registros somam-se os achados his-
Hoje o islã já é considerado a segunda tóricos de fragmentos de escritos árabes
maior comunidade religiosa em países como em porta-amuletos e o relato de Francis de
Estados Unidos (cerca de 6 milhões de mu- Castelnau, do século XIX. A participação
çulmanos), França (5 milhões), Alemanha política e ideológica dos nossos, por assim
(2,5 milhões) e Holanda (500 mil) (Pinto, dizer, primeiros muçulmanos nas diversas
2005, p. 229). revoltas do Recôncavo Baiano também
E entre nós, de acordo com o IBGE, no foi minuciosamente relatada nos últimos
Censo Demográfico de 2000, verificou-se tempos por João José Reis.
a presença de 27.239 brasileiros que se Recentemente, a descoberta de um
declararam seguidores do islã. Desses, a registro em árabe, do século XIX, trou-
maior concentração encontra-se nas regiões xe uma nova visão sobre os fatos, visto
Sudeste (13.953), com destaque para São se tratar de um relato feito por um líder
Paulo, com 12.062 muçulmanos, e Sul muçulmano em visita ao Brasil entre os
(9.590), com destaque para o Paraná, com anos de 1866 e 1869. O relato em questão
6.025 muçulmanos. refere-se ao precioso diário de viagem do

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imã Abdurrahman Al’Baghdadi, ao qual embarcados nos navios negreiros para o
deu o nome de “Deleite do Estrangeiro em Brasil, sendo a grande maioria do sexo
Tudo o que É Espantoso e Maravilhoso”, masculino, pois raramente mulheres eram
guardado pela Biblioteca de Istambul feitas prisioneiras de guerra.
e traduzido para o português por Paulo Esses prisioneiros tinham em comum,
Daniel Farah1. Esse texto constitui uma além da pele negra, a crença islâmica,
importante fonte de informação histórica, apesar de algumas diferenças nas práticas
antropológica e religiosa sobre o islã no e dogmas. Em solo brasileiro, porém, o
Brasil do século XIX. destino trágico compartilhado não tardou 1 Esse texto foi publicado
Através desses materiais faremos uma por unir os antes inimigos em uma forte pela Bibliaspa internamente
e espera por financiamento
análise sobre o tema, dentro de uma pers- identidade comum. para ser publicado em larga
pectiva cronológica, buscando compreen- Os primeiros muçulmanos a chegarem escala, para venda.
der a implantação do islamismo em terras ao Brasil, trazidos à força, eram haussás na 2 Arthur Ramos, ao fazer o
brasileiras, sua influência política, social e sua maioria, seguidos de cativos dos reinos estudo antropológico dos
povos africanos que con-
religiosa, bem como a sobrevivência desse Gurma, Borgu, Borno, Nupe e outros reinos tribuíram para a formação
islamismo de escravidão nos dias atuais. vizinhos dos haussás, localizados no Sudão do povo brasileiro, registra
com precisão essas crenças
Central (Reis, 2003, pp. 159-63). Sendo área diferenciadas por tribos
ricamente influenciada pela cultura árabe, (Ramos, 1951, pp. 316-28.)
esses naturalmente trouxeram consigo a 3 Dentre essas práticas pode-
O PONTO DE PARTIDA DO ISLÃ religião muçulmana e aqui ficaram conheci- mos citar o uso de amuletos
e a participação em batu-
dos pelo nome de malês, que vem do termo ques.
NEGRO NO BRASIL iorubá4 imali, significando “renegado, que 4 Interessante reparar que o
adotou o islamismo” (Ramos, 1951, p. 317). nome “malê” é dado aos
negros muçulmanos por
O islã foi trazido ao Brasil no final do Apesar de esses negros malês possuírem um outro grupo de africanos
século XVIII pelos escravos oriundos das grande desenvolvimento cultural – sabiam trazido em grande número
regiões islamizadas da África. Sua influên- ler e escrever em árabe –, foram obrigados para o Brasil, os iorubás, o
que denota a estranheza
cia na África começou no século VII com a despir suas túnicas brancas e a viajar dos outros grupos africa-
a invasão pelos povos árabes do norte do trajados sumariamente em porões escuros nos para com esse grupo
diferenciado pela religião.
continente. A resistência foi pouca e a região dos navios negreiros. Apoiando essa ideia, Cas-
passou a ser governada por califas, que telnau (1851, p. 12) faz a
seguinte observação: “[…]
introduziram a religião islâmica nas terras “[…] o africano foi muitas vezes obrigado on designe sous le nom de
conquistadas, juntamente com práticas a despir sua camisola de malê para vir de Malais tous lês infideles,
c’est-à-dire tous ceux quin e
culturais árabes. O islamismo é até hoje tanga, nos negreiros imundos, da África para sont pás mahométans”.
a religião dominante nessa área, existindo o Brasil. A escravidão desenraizou o negro
5 As estatísticas divergem,
porém um amálgama com práticas animistas do seu meio social e da família, soltando-o como se pode ver nos
e fetichistas ancestrais em diversas tribos2. entre gente estranha e muitas vezes hostil” números desses três relatos:
“Na cidade de Salvador no
O islamismo de escravidão tem, por- (Freyre, 1980, p. 315). ano de 1775 encontrou
tanto, seu início com a chegada ao Brasil, 3.630 negros livres, 4.207
mulatos livres e 14.696 es-
principalmente na Bahia, de milhares de Mesmo com a hostilidade devida à cravos negros e mulatos. Em
prisioneiros advindos de guerras político- relação entre senhor e escravo, em virtude 1808, um censo realizado
em Salvador e 13 freguesias
-religiosas na região do Sudão Central, que da sua habilidade em ler e escrever, muitos rurais da Bahia constatou a
hoje equivaleria ao norte da Nigéria. O califa malês foram destinados a atividades ligadas presença de 104.285 negros
haussá, do grupo étnico fulâni, Usuman ao comércio, tornando-se negros de ganho e mulatos livres ou alfor-
riados e 93.115 escravos
du Fodio, em 1804 declarou uma guerra (escravos que faziam serviços urbanos e negros e mulatos” (Reis,
santa, jihad, contra outros reinos haussás, recebiam um salário). Devido a essa peculia- 2003, p. 22). Já segundo a
estatística da “População Es-
acusados por não praticarem a religião do ridade, muitos dos malês chegaram, mesmo crava e Libertos Arrolados
Profeta de modo digno, misturando-a com com dificuldade, a comprar a sua alforria5 e do Ministério dos Negócios,
da Agricultura, Comércio e
práticas animistas3 (Reis, 2003, p. 73). Do até alguns desses alforriados conseguiram Obras Públicas”, realizada
longo conflito resultou a tomada de prisio- desenvolver patrimônio financeiro maior em 1888, existiriam na
Bahia 1.001 negros livres
neiros de ambos os lados da batalha, que que certos brancos. Mas essa característica e 76.838 negros escravos
eram vendidos aos traficantes de escravos, não os livrava do domínio do colonizador, (apud Ramos, 1951, p. 249).

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pois, para realizar negócios, esses negros Para manter a crença viva em solo bra-
livres precisavam estabelecer alianças sileiro, esses muçulmanos livres criaram
sociais que exigiam não só subserviência escolas e casas de oração (Freyre, 1980,
social como também religiosa, sob pena de p. 306). O imã Al’Baghdadi, em visita ao
revogação das cartas de alforria. Brasil no século XIX, observou a existência
Sobre a diferenciação intelectual desses de salas de reuniões a que os muçulmanos
primeiros muçulmanos no Brasil, Gilberto davam o nome de majlis. Devido à perse-
Freyre escreveu, comparando sua habilida- guição religiosa, ainda que velada, essas
de com a escrita com a dos colonizadores casas de oração localizavam-se “afastadas
brancos: da população, próximas às planícies”. A falta
de registro da existência de mesquitas nesse
“A verdade é que importaram-se para o período deve-se, provavelmente, à proibição
Brasil, da área mais penetrada pelo Islamis- instituída pelo artigo 276 do Código Penal
mo, negros maometanos de cultura superior de 1830 de “celebrar em casa, ou edifício,
não só à dos indígenas como à de grande que tenha alguma forma exterior de templo,
maioria dos colonos brancos – portugueses ou publicamente em qualquer lugar, o culto
e filhos de portugueses quase sem instrução de outra religião, que não seja a do Estado”.
nenhuma, analfabetos uns, semianalfabetos Assim, os malês, além de se reunirem em
na maior parte” (Freyre, 1980, p. 299). lugares afastados das cidades, evitavam a
aparência de templo mantendo a integridade
Esse diferencial trazido pelos negros do culto. Algumas ruínas dessas casas ainda
malês foi-lhes deveras proveitoso, pois hoje mostram em suas paredes internas
lhes permitiu acesso a ambientes onde os inscrições do Alcorão em árabe, coisa que
demais escravos, iletrados, não podiam é comum hoje ser vista em mesquitas. Na
penetrar. Foram aos poucos conquistando incumbência de preservadores da religião
não só espaços na economia, tornando-se islâmica estavam sacerdotes versados em
pequenos comerciantes, quando livres, árabe e conhecedores do Alcorão, que rece-
mas também espaços para desenvolver biam o nome de “alufás”. Desses sacerdotes
sua crença, embora, perante os brancos, islâmicos, Reis (2003, p. 146) cita o registro
aparentassem ter aceitado a religiosidade de um malê livre de nome Manuel Calafate
católica, assumindo para isso até mesmo em cuja residência eram realizados estudos
um novo nome de batismo. “Semelhantes do Alcorão. Outros líderes livres seriam
escravos não podiam conformar-se ao papel conhecidos por Al’Baghdadi alguns anos
de manés-gostosos dos portugueses; nem mais tarde.
seria a água-benta do batismo cristão que, de Com o estudo do Alcorão, ainda que
repente, neles apagaria o fogo maometano” escondido das autoridades públicas, o
(Freyre, 1980, p. 310). islamismo foi criando um grupo coeso,
Em seu diário de viagem, em 1866, unificado pela crença em comum, mas
corroborando as afirmações acima, o imã também pelas mazelas sofridas longe de
Al’Baghdadi registrou: “Vinte anos atrás, sua pátria natal. Esse grupo de negros
uma parte deles já era livre porque alguns muçulmanos comunicava-se entre si em
compravam a si próprios e livravam o co- árabe, dominando a língua escrita e falada.
ração dos grilhões da escravidão”. A esse Podemos perceber desse modo que o islã foi
relato, o imã árabe acrescenta: “Depois dis- um fator de coesão grupal e de formação de
so, todos os que conseguiam a liberdade por identidade entre os negros. Gilberto Freyre
direito lembravam-se da religião dos seus viria a ressaltar que:
antepassados, à qual eles se voltavam após
a libertação”. Esse registro precioso revela “Os escravos vindos das áreas de cultura
a força da crença islâmica que sobreviveu negra mais adiantada foram um elemento
no coração desses alforriados, apesar do ativo, criador, e quase que se pode acres-
jugo catolicizante a que foram submetidos. centar nobre na colonização do Brasil;

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degradados apenas pela sua condição de na Bahia, nos anos de 1807, 1809, 1814,
escravos. Longe de terem sido apenas 1815 e 1816, seguidas de um intervalo,
animais de tração e operários de enxada, a após o qual se iniciaram diversas rebeliões
serviço da agricultura, desempenharam uma que ficaram conhecidas como nagôs: 1826,
função civilizadora” (Freyre, 1980, p. 307). 1827, 1828, 1830, 1835.
Os registros oficiais dessas rebeliões
O fervor religioso desse grupo islâmico deixam perceber a presença de muçulma-
era tanto que, apesar de o Código Penal de nos com forte influência na liderança dos
1830, art. 277, declarar como crime “abusar levantes. Alguns fatos em comum chamam
ou zombar de qualquer culto estabelecido a atenção: a escolha de datas religiosas para
no Império”, o que ocorreu foi o inverso. os levantes, a presença de negros livres e
Escravos livres, conhecedores do Alcorão, escravos vestidos com roupas tipicamente
eram vistos pregando a religião do Profeta na muçulmanas e utilizando amuletos contendo
cidade de Salvador, em locais como o Beco textos do Alcorão em árabe, além de terem
da Mata-Porcos, na Ladeira da Praça, no sido encontrados bilhetes em árabe com
Cruzeiro de São Francisco, perto de igrejas informações sobre os levantes, servindo
e mosteiros católicos. Nessas pregações, essa língua de código para a passagem de
faziam propaganda contra a missa católica, informações entre quilombos, senzalas e
dizendo que a veneração de santos era o negros livres. A escolha de dias de festa
mesmo que “adorar um pedaço de pau” e para os levantes tem a sua explicação no
opondo seus rosários aos rosários católicos fato de esses dias serem dias faustos, quando
(Freyre, 1980, pp. 310-1). os senhores tinham a sua atenção voltada Amuleto
para os festejos católicos, podendo então
contendo a sura
os levantes acontecer com mais eficácia.
Destaca-se, porém, a revolta de 1835, Qadr, “Noite de
O ISLÃ E AS REVOLTAS DE realizada ao final do Ramadã, mostrando Glória”

NEGROS LIVRES E ESCRAVOS


Nina Rodrigues confere “proeminência
intelectual e social” para os negros trazi-
dos da região do Sudão, atribuindo-lhes
a organização de revoltas de senzala e
movimentos contestatórios de escravos.
Para esse pesquisador, os fulas e haussás
muçulmanos exerceram uma grande in-
fluência sobre os nagôs e sobre os jejes.
Os haussás muçulmanos teriam sido uns
“aristocratas das senzalas”, pois, além de
possuírem “literatura religiosa já definida
– havendo obras indígenas escritas em ca-
racteres arábicos” –, vinham de reinos com
Acervo do Arquivo Público do Estado de Bahia

organização política já adiantada, sendo,


portanto, estrategistas natos (Rodrigues
apud Freyre, 1980, p. 310).
Os negros muçulmanos eram conheci-
dos como “os mais inclinados à aventura
da fuga, ao movimento, à rebeldia contra
os senhores brancos” (Freyre, 1967, pp.
131-2). Comprovando essas palavras, os
haussás comandaram diversas insurreições

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com isso uma forte conotação islâmica ao policial, lutando por quatro horas nas ruas
levante em questão. de Salvador. A maior parte dos envolvidos
As revoltas com participação de malês era nagô8, vindo depois os haussás, tapas
foram bem estudadas por João José Reis e bornos. O dia escolhido para o levante é
(2003). Aqui só ressaltaremos algumas delas simbólico: o fim do Ramadã (mês sagrado
devido a certos aspectos que as ligam ao muçulmano) e das festas de Nossa Senhora
islamismo. A primeira de todas as rebeli- da Guia. Provavelmente esse dia coincidia
ões, em 1807, foi planejada para acontecer com o final da festa de Lailat al-Qadr, que
durante as celebrações do Corpus Christi. A celebra a revelação do Alcorão ao Profeta.
intenção era incendiar a casa da Alfândega Os malês tentariam revogar a sua sorte
e uma igreja do bairro de Nazaré, tomar a nas terras brasileiras enfrentando o poder
cidade e instalar no governo um líder haussá. constituído pelos “infiéis católicos”. Mas,
A revolta seguiria para Pernambuco, liber- devido à superioridade dos armamentos dos
tando os haussás escravos nesse estado e brancos, a revolta foi vencida.
formando um grande reino haussá no Brasil O papel da religião nas revoltas do
(Reis, 2003, pp. 72-6). Recôncavo Baiano e áreas próximas é evi-
Na revolta de 1814, outros grupos ét- denciado pela presença de diversos amuletos
nicos, na maioria nagôs, se uniram sob o muçulmanos confiscados pela polícia. Esses
comando dos haussás. Dos que escaparam amuletos consistiam de pequenas caixas
da derrota dessa revolta, uns teriam fugido ou bolsas que guardavam em seu interior
para Alagoas e outros se escondido nas fragmentos de textos do Alcorão. A esses pe-
matas dos arredores de Salvador. O líder quenos amuletos, os negros davam o nome
dessa revolta aparentemente era um negro de mandingas. Um dos textos encontrados
de nome João a quem era atribuído o título consistia da sura corânica “Noite de Glória”.
de malomi6 (Reis, 2003, pp. 82-3). Abelardo O ataque frequente a locais de culto católico
Duarte (1958) confirma essa hipótese re- e a queima de imagens também demonstram
latando, em seu livro Negros Muçulmanos a conotação religiosa por detrás das revoltas.
nas Alagoas: os Malês, acerca de um grupo O que podemos perceber de tamanhas
de muçulmanos estabelecido em Alagoas, empreitadas é que os levantes não eram sem
que teriam planejado uma revolta em 1815, direção ou propósito. Tinham a intenção de
no dia de Natal. tomar o poder político e religioso. Caso o
6 O termo malomi é uma
corruptela do termo haus- Os demais revoltosos da insurreição de levante de 1835 tivesse alcançado sucesso, a
sá malãm ou malami (de 1814, que haviam se aquilombado nos arre- Bahia se transformaria em um país islâmico,
mu’allim, em árabe), que
significa “mestre religioso”. dores de Salvador, tinham entre eles o malo- com uma pequena tolerância para os cultos
Nos anos seguintes do mi, agora chamado de sacerdote Malamim, afro-brasileiros.
século XIX, o termo malãm
seria o mais utilizado, sendo e realizaram ainda mais uma revolta no ano
substituído posteriormente de 1816, depois da qual os haussás deixam a
pelo termo iorubá alufá.
liderança das rebeliões, até que em 1826 as
7 O historiador João José Reis
estima que em 1835 hou-
mesmas recomeçam, agora sob a liderança O ISLÃ SE DISSEMINA NO PAÍS
vesse em Salvador 17.325 dos nagôs convertidos ao islã. Dessas re-
africanos escravos para voltas, destaca-se o levante de 1835. Com a Após a revolta de 1835, um certo número
4.615 africanos liber tos,
o que representaria 1/3 prisão de dois mestres muçulmanos, o líder de escravos presos foi devolvido a seus
da população de Salvador Ahuma e o alufá Pacifico Licutan, criou-se senhores e posteriormente vendido para o
(Reis, 2003, p. 24). Ressalta-
-se que, dentre os 21.940
um clima de revolta em meio aos grupos Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Co-
negros em Salvador, 21% de negros islâmicos (livres7 e escravos). meçou uma grande perseguição aos malês,
eram livres, o que é uma
Essas prisões foram o estopim necessário com prisão e confisco sucessivo de textos
parcela bem significante.
para que cerca de 600 a 1.500 malês, livres em árabe, o que fez com que um número
8 “O levante parece ter acon-
tecido em meio a um forte e escravos, vestidos de abadás brancos e significativo de malês livres se dirigisse para
movimento de conversão usando amuletos protetores, atacassem a o Rio e ali fixasse residência. Cessa o perío­
ao islamismo sobretudo
entre os nagôs” (Reis apud cadeia municipal onde os líderes islâmi- do de revoltas conduzidas pelos adeptos do
Farah, 2007, p. 28). cos estavam presos, enfrentando a tropa islamismo na Bahia e em Alagoas, mas,

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apesar disso, o islã continuou presente no
Brasil, registrado por Mello Moraes Filho
(1901) através da descrição da “Festa dos
Mortos”, celebrada duas vezes ao ano até
1888, em Alagoas; a cerimônia, que incluía
o sacrifício de animais, foi considerada por
Arthur Ramos como um rito funerário de
origem malê (Ramos, 1951, p. 332).
Alguns anos após, em 1909, o abade
Étienne escreveria a respeito da presença e
do crescimento do islã em terras brasileiras:

“Notou o abade Etienne que o islamismo


ramificou-se no Brasil em seita poderosa,
florescendo no escuro das senzalas. Que
da África vieram mestres e pregadores a
fim de ensinarem a ler no árabe os livros
do Alcorão. Que aqui funcionaram escolas viagem de Istambul a Barsa, mas uma tem- Livro de suras
e casas de oração maometanas” (Freyre, pestade fez com que a embarcação viesse à
encontrado
1980, p. 310). costa brasileira, aportando no cais do Rio de
Janeiro em setembro de 1866, apenas trinta no pescoço de
Quem eram esses “mestres e pregadores” anos após o último levante malê na Bahia. um malê morto
continuaria um mistério não houvesse sido Ao desembarcar, Al’Baghdadi foi abordado na revolta de
descoberto o relato do imã Al’Baghdadi, por diversos negros que o saudaram: “As-
1835
provavelmente um dos mestres africanos -salámu, ’alaykum” , fazendo distinção
referido pelo abade, que encontrou aqui, entre ele e os demais membros da tripulação
em 1866, ummas, ou comunidades mu- devido as suas vestes formais e turbante. É
çulmanas estruturadas no Rio de Janeiro, interessante notar que esses negros, ao entrar
Salvador e Recife, permanecendo entre no navio, fizeram questão de afirmar “eu,
eles para ensiná-los. Esse relato tem a im- muçulmano” e não, “eu, malê”, reforçando
portância de ser o único até o momento de a ideia de que essa nomeação era rejeitada
que temos notícia, escrito da perspectiva de pelos negros islamizados.
um muçulmano. Tendo por base os relatos Ainda confirmando o fato de existir re-
dos quais dispomos, podemos assumir a almente um grupo islâmico organizado no
presença de grupos de negros islâmicos Rio de Janeiro, Al’Baghdadi relata o fato
em Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Bahia de todos, juntamente com ele, praticarem
e Rio de Janeiro. Apesar da indicação de os rituais de oração: “Dessa forma, nós
que alguns malês presos na revolta de 1835 reconhecemos que eles eram muçulmanos
tenham sido vendidos para o Rio Grande e acreditavam na unicidade do Criador da
do Sul, não há evidências bibliográficas existência”. Há também a referência ao fato
de que esse grupo tenha constituído uma de esses muçulmanos terem o cuidado de
comunidade islâmica organizada. manter partes do Alcorão no idioma árabe
Após estas considerações, resta-nos guardados dentro de pequenos cofres. Es-
relatar sinteticamente as informações for- ses fragmentos do Alcorão são, portanto,
necidas pelo imã Al’Baghdadi no texto, do mesmo tipo dos que foram confiscados
ainda inédito ao público geral, “Deleite do pelas autoridades da Bahia após o levante
Estrangeiro”. Abdurrahman al’Baghdadi, de 1835, o que nos leva a afirmar que esses
nascido em Bagdá, era súdito do Império negros do Rio de Janeiro seriam os que
Otomano, que controlava o Oriente Médio. fugiram depois daquela derrota e/ou seus
Embarcou como imã, responsável pelo descendentes. Confirmando os registros
cuidado espiritual da tripulação, em uma dos pesquisadores anteriormente citados,

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Al’Baghdadi percebeu que esses “cofres Voltando ao navio, recebeu de seu co-
com fragmentos do Alcorão” eram consi- mandante a recusa em permitir uma nova
derados mais como amuletos protetores do estadia de Al’Baghdadi, mas posteriormente
que como formas de manutenção do ensino isto lhe é concedido, com a recomendação de
religioso. que não revelasse às autoridades brasileiras
Al’Baghdadi observou que esses mu- a sua real intenção:
çulmanos do Rio de Janeiro praticavam
costumes que diferiam dos pregados pelo “Depois que eu permiti que você fosse com
islã, e atribuiu isso à influência de um tra- eles arrependi-me porque eu temi que o
dutor árabe-português que, por ser judeu, governo constatasse sua presença, tirasse
intencionalmente passava os ensinamentos a minha estabilidade e dissesse ‘As embar-
de forma incorreta. Esse tradutor, por ser cações otomanas chegaram a nosso país e
conhecedor do árabe, foi tido pelos malês corromperam a religião que nós herdamos
como árabe, tendo lhe sido solicitado que de nossos pais e dos nossos avós’”.
lhes ensinasse sobre o Alcorão, tarefa que
aceitou, mas com más intenções, chegando Para acobertar então sua missão no
a cobrar financeiramente daqueles que qui- Brasil, Al’Baghdadi registra em seu diá-
sessem aprender sobre a religião islâmica. rio de viagem, além de suas experiências
Al’Baghdadi foi insistentemente con- com os malês, também aspectos da fauna
vidado pelos muçulmanos do Rio para e flora brasileira e ainda curiosidades so-
permanecer com eles e ensinar-lhes sobre cioculturais. Outra observação realizada
o Alcorão, como se pode ver nesse trecho sobre a existência de certa animosidade
do diário: entre cristãos e muçulmanos no século
XIX é relatada por um dos malês quando
“Ó mestre resoluto, nós não queremos Al’Baghdadi manifesta seu desejo de usar
bens passageiros nem pedimos proteção seus trajes rituais pela cidade: “Se você usar
ou prevenção, apenas queremos aulas nesta seus trajes, nós não poderemos mais ir a
correta religião. Nós acreditávamos que sua casa, e sua utilidade se esvairá, pois se
éramos os únicos muçulmanos no mundo, os cristãos souberem que você é muçulma-
que estávamos na via clara e que todos os no hão de imaginar o mesmo de nós”. Ao
brancos pertenciam às comunidades cristãs questionar a origem desse medo dos cristãos,
até que, por dádiva de Deus, o sublime, lhe é narrada a história da rebelião de 1835,
nós o vimos e soubemos que o reino do com o enfoque de que fora uma guerra entre
Criador é vasto e que o mundo não é uma muçulmanos e cristãos, em que “os negros
terra desolada, mas repleta de muçulmanos. pretendiam tomar conta da região”, mas fo-
Não nos prive da instrução nessa religião”. ram vencidos pelos cristãos. Em decorrência
desse evento, “os muçulmanos renegaram
Inicialmente o comandante do navio o sua religião por temer retaliações”, sendo
abençoa, enviando-o a terra para ensinar aos essa a provável causa não só de a crença ser
muçulmanos, considerando a solicitação praticada às escondidas como também da sua
destes como uma prova de real fé islâmi- aculturação com práticas católicas: “Todos
ca: “Acompanhe-os e rogue boas preces os muçulmanos nestas terras submergem
em prol deles. Em verdade, se o islã não seus filhos na pia batismal”, e enterram seus
estivesse firme no peito deles, não teriam mortos sem lavar o corpo e sem voltá-lo para
pedido que você se encarregasse dessas Meca. Al’Baghdadi chega a dizer que “se os
questões”. Al’Baghdadi permaneceu junto cristãos identificam que alguém é muçulma-
à comunidade muçulmana do Rio por 13 no pode ser que o matem, que o exilem ou
dias, ensinando-os: “Todo dia, quando o sol que o enviem à prisão perpétua”. Ele também
começa a se pôr, a maioria deles comparece afirma que os muçulmanos residentes no Rio
a uma reunião geral de reflexão acerca dos de Janeiro “precisam esconder sua religião
fundamentos do islã e do hadit”. sem opção”.

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Devido a todas essas questões, Al’Bagh­ Na cidade, encontrou em um livreiro
dadi passou a se reunir ocultamente com francês um exemplar do Alcorão, que ad-
um grupo de cerca de quinhentos homens quiriu e ainda encomendou mais exemplares
para o estudo do Alcorão. Para isso, após adquiridos pelos malês. Apenas três anos
aprender o português, redigiu um tratado depois, em 1869, o conde Joseph-Arthur
bilíngue árabe-português com as principais de Gobineau, representante diplomático da
recomendações do islã: França no Brasil, escreveria que os franceses
Fauchon e Dupont vendiam anualmente
“Eu compilei um tratado em escrita árabe a escravos e ex-escravos cerca de cem
e no idioma português no qual recordei exemplares do Alcorão, além de gramáticas
tudo o que eu pude traduzir dos elevados árabes (Gobineau apud Farah, 2007, p. 5).
atributos de Deus, o Altíssimo, dos atributos Ao chegar ao Rio de Janeiro,Al’Baghdadi
de seus nobres profetas… e das obrigações recebeu a informação de que no Brasil ha-
da ablução ritual, da oração, do jejum, da via aproximadamente 5 mil muçulmanos,
peregrinação e da caridade; e listei algumas número que subiria para 19 mil ao final de
tradições proféticas, palavras benfazejas e sua estadia. É verdade que tais números
prédicas recomendáveis”. parecem exagerados, mas o que importa aqui

Negra baiana
retratada por
Jean-Baptiste
Debret com
o que parece
ser um amuleto
malê

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é o relato presencial, que atesta a existência lês baianos dificilmente largariam essas
de grupos muçulmanos organizados no fi- práticas diferenciadas devido ao fato de
nal do século XIX. Essa mesma ênfase no serem aceitos entre os brancos justamente
grande crescimento numérico é observada por praticá-las. É interessante ressaltar o
nas palavras de um dos negros islâmicos, registro da existência de mais muçulmanos
dirigindo-se a Al’Baghdadi após aprender em Salvador que no Rio de Janeiro, embora
que não havia necessidade de pagamento não conste o número desses, o que condiz
em dinheiro para receber o ensino e muito com o que sabemos sobre a história do
menos para assumir a fé: tráfico negreiro de tribos islamizadas para
a Bahia. Há também a observação de que
“Alufá, cujas palavras são ouvidas, se nós muitos filhos de muçulmanos estavam se
soubéssemos que as coisas eram assim como convertendo ao cristianismo atraídos pelas
você mencionou e se tivéssemos caminha- festas, músicas e, sobretudo, pelo fato de
do na mesma senda que você trilhou, nós ser a religião mais aceita socialmente.
seríamos milhares neste país e a cada dia Al’Baghdadi faz então a recomendação
cresceríamos porque muita gente gostaria de que os pais “aprisionem seus filhos
de aderir à nossa religião, mas o pagamento até atingirem a maturidade plena e que os
de dinheiro as impedia”. instrua”, mostrando ênfase na necessidade
da preservação familiar da crença islâmica.
Mas, quando trata das conversões, o Da Bahia, Al’Baghdadi se deslocou para
termo usado é “algumas pessoas” e não Pernambuco9, convidado por outra comu-
milhares: “[…] em seguida me dirigi até nidade islâmica, a qual também passou a
algumas pessoas que queriam integrar ensinar por seis meses. Nessa comunidade,
a religião muçulmana. Ocupei-me delas encontrou dois líderes, fato a que atribui a
generosamente e dediquei-me a instruí-las manutenção do islã nessa cidade. Havia
e ensiná-las”. Quanto ao que motivava as ainda outros diferenciais: uma maior tran-
conversões de outros grupos de negros, quilidade em assumir o credo islâmico e
Al’Baghdadi deixa entender que seria a forte uma forte inclinação a magia, numerologia
identificação entre os membros da comu- e geomancia. Relata-nos Al’Baghdadi que
nidade: “Quando observam a comunidade os cristãos (brancos) buscavam junto aos
muçulmana entre eles e o intenso amor que malês orientações adivinhatórias, pagando-
seus integrantes nutrem uns pelos outros, -lhes por uma consulta. Esse fato traria uma
sentem ciúme intenso desses cidadãos. E relação mais amigável entre as duas culturas.
eles aderem à religião muçulmana com Ao fim de três anos no Brasil, Al’Baghdadi
almas ávidas”. O próprio Al’Baghdadi de- decidiu voltar à Arábia e despediu-se dos
monstra seu interesse missionário quando irmãos muçulmanos prometendo voltar caso
se dispõe a ir evangelizar os indígenas o governante otomano assim permitisse. Na
brasileiros, sendo porém desmotivado pela sua despedida, não há referência ao número
barreira da língua. de muçulmanos, mas apenas a de que “muita
Após uma longa estadia no Rio de Janei- gente” esteve presente.
ro, Al’Baghdadi, a pedido dos grupos malês O relato de Al’Baghdadi tem portanto
que lá se reuniam, dirige-se a Salvador. uma grande importância como prova da
Chegando lá, percebe claramente que esses permanência da crença islâmica até quase
negros possuem ainda mais práticas altera- o fim do século XIX no Brasil dentre os
das que os do Rio. Preocupa-se, portanto, descendentes de escravos malês. Após a
em ensinar o islamismo corretamente para abolição da escravatura em 1888 e a Pro-
resgatá-lo em sua pureza: “Eu permaneci clamação da República em 1889, houve
nesta cidade aproximadamente um ano e uma redução nas limitações às religiões
não tinha outra ocupação além de ensinar não católicas, mas, apesar disso, esse islã,
9 No texto aparece Marn­
pukua, traduzido por Paulo
aos muçulmanos e ratificar sua conduta”. aparentemente tão organizado e forte, não
Farah como Pernambuco. Constata, porém, tristemente, que os ma- deixou registros. Foi apenas após o fim da

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Primeira Guerra Mundial, com a chegada datada de 188711. A foto traz em seu verso
dos imigrantes árabe-sírio-libaneses ao a inscrição “Candomblé – brinquedo dos
Brasil e com a garantia para suas práticas africanos de Penedo” e na frente a imagem
religiosas através da Constituição de 1949, de cinco homens e quinze mulheres. Um dos
que se estabeleceu a comunidade islâmica homens traz na mão um machado. Ao seu
que conhecemos hoje. Fica, portanto, um lado está um carneiro que será sacrificado
vácuo no tempo, sem informações sobre no buraco aberto no chão logo à frente. Os
o destino que esses grupos malês possam trajes dos homens são tipicamente muçul-
ter tido. manos. Entre as mulheres apenas uma cobre
a cabeça com um véu enquanto as demais
usam turbantes. Como o tráfico dos negros
islâmicos foi fortemente influenciado por
O ISLÃ SOBREVIVE – O LEGADO guerras internas, a presença de um número
menor de mulheres pode ser devido ao fato
MALÊ de as prisioneiras serem destinadas para
outros fins na própria África.
Até bem pouco tempo, as referências à João do Rio encontrou em 1904, no
continuidade da crença islâmica em terras Rio de Janeiro, um islã misturado com
brasileiras eram bem escassas, limitando-se o candomblé, onde alufás vestidos com
a poucas citações na literatura apontando abadás, com a cabeça coberta por um gorro
para algumas sobrevivências do culto vermelho, o filá, e sentados sobre tapetes de
islâmico, bem como de certos costumes pele de tigre ou de carneiro liam o Alcorão,
e práticas indicando a dissolução desse faziam suas preces (kissium), rezavam o
primeiro islamismo brasileiro através de rosário (tessubá)12, não comiam carne de
um processo de assimilação para garantir porco e guardavam o Ramadã. João do
a própria sobrevivência. Algumas pistas Rio ainda chegou a observar abluções,
nos foram legadas por João do Rio, Arthur poligamia, o símbolo do crescente lunar,
Ramos, Gilberto Freyre, Pierre Verger, o hábito de escrever orações com tinta de
Abelardo Duarte e Waldemar Valente. Esses arroz queimado em tábuas (atôs) e a sau- 10 Apesar de a data do livro de
Abelardo Duarte ser poste-
autores encontraram um islã aculturado, dação “Al selam aleikum”13 (João do Rio, rior às publicações de João
transformado pelo catolicismo de um lado 2006, pp. 25-6). A comunidade muçulmana do Rio, Gilberto Freyre e
e pelo candomblé de outro. Há inclusive a observada por João do Rio possuía sacer- Arthur Ramos, aqui é citado
primeiro devido à data que
possibilidade traçada por Gilberto Freyre dotes (lemanos), auxiliares dos sacerdotes apresenta na referida foto
de que alguns negros muçulmanos tenham (ladanos), que cuidavam da parte religiosa em sua publicação.

se convertido ao protestantismo como for- e “álcalis, juízes, sagabanos, imediatos de 11 Foto de autoria do Dr.
Car valho Sobrinho, que
ma de reação contra o catolicismo oficial juízes, assivajiú”, que cuidavam da parte chegou às mãos de Abe-
brasileiro (Freyre, 1980, p. 312). jurídica da comunidade (João do Rio, 2006, lardo Duarte através do
Dr. Aloísio Freitas Melro.
Abelardo Duarte10 (1958, p. 41) defende p. 26). Para se tornar um alufá era necessário
Duar te também registra
terem os muçulmanos de Alagoas man- conhecer o árabe, a suma, realizar a circun- ter recebido informações
tido as tradições islâmicas misturadas ao cisão (kola) e passar por um exame. Após o sobre a comunidade islâmica
através de um jornalista,
catolicismo. É o caso do assumy ou jejum exame, os demais muçulmanos dançavam Jurandir Gomes, redator
anual (um dos cinco pilares do islã), que o opa-suma e conduziam o iniciado sobre principal do jornal A Gazeta
de Alagoas, publicada em seu
coincide com a Festa do Espírito Santo. um cavalo pelas ruas vestido de roupas livro (1949). A foto original
Os muçulmanos procuravam, assim, den- brancas e gorro vermelho. O informante encontra-se no Instituto
Histórico e Geográfico de
tro do catolicismo, encontrar brechas para de João do Rio, Antonio, explica que essas Alagoas.
praticar sua religiosidade com todo o rigor cerimônias sempre se realizavam em lugares
12 A mesma roupagem é
que a mesma exige. Abelardo Duarte não afastados, nos subúrbios cariocas. João do descrita por Arthur Ramos
só descreve a revolta de 1815 em Alagoas, Rio registrou que, apesar de os praticantes em 1934 na Bahia.

mas também fala da continuação da comu- do candomblé carioca e os muçulmanos 13 Corruptela da saudação
“As-salámu ‘alaykum”, signi-
nidade islâmica no local, incluindo em seu que encontrou possuírem hábitos exteriores ficando “Que a paz esteja
livro uma foto de um grupo muçulmano, semelhantes e praticarem “feitiçarias” da com você”.

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mesma forma, não havia total absorção de atiravam-na no caminho da pessoa que se
uma religiosidade pela outra, pois observou pretendia enfeitiçar (Freyre, 1980, p. 312).
que a reação entre negros islamizados e os
provenientes das tribos iorubás permanecia: Em outro estudo menos conhecido, Gil-
“Os alufás não gostam da gente de santo a berto Freyre, juntamente com Pierre Verger,
quem chamam de auauadó-chum; a gente procurará analisar as influências brasileiras
de santo despreza os bichos que não comem entre os negros islamizados na África oci-
porco, chamando-os de malês” (João do dental, buscando as sobrevivências deixadas
Rio, 2006, p. 27). pelos que foram deportados após a revolta
Gilberto Freyre, em 1933, encontraria de 1835 (Freyre, 1959, pp. 263-313).
elementos de sobrevivência de práticas mu- Arthur Ramos, em 1934, teria identifica-
çulmanas na Bahia, Rio de Janeiro, Recife e do duas “seitas poderosas que disputavam
Minas Gerais e defenderia a hipótese de que a primazia” religiosa em Alagoas: a de
o islamismo, por um lado, teria impregnado xangô e a de malê. Ramos argumenta que
o catolicismo rural: havia uma “diferença fundamental”no culto
“praticado pelos negros muçulmanos” do
“Forçosamente o Catolicismo no Brasil Penedo (Alagoas) em relação aos da Bahia
haveria de impregnar-se dessa influência e Rio de Janeiro, sendo os primeiros menos
maometana como se impregnou da animista ortodoxos que os demais. Também teria
e fetichista, dos indígenas e dos negros registrado um cântico de “Ogun de male”
menos cultos. Encontramos traços de in- em Maceió no ano de 1934, e presenciado
fluência maometana nos papéis com oração terreiros onde o líder teria o nome de alufá,
para livrar o corpo da morte e a casa dos com rituais mesclados de nagô e elementos
ladrões e dos malfeitores; papéis que ainda malês. Também registrou expressões de
se costumam atar ao pescoço das pessoas origem árabe em jornais de 1906 a 1912 e
ou grudar nas portas e janelas das casas, no o recebimento de um livro manuscrito com
interior do Brasil” (Freyre, 1980, pp. 311-2). orações e partes do Alcorão, em árabe14
(Ramos, 1951, pp. 328-9). Para Arthur
E, por outro lado, havia dados sobre as Ramos, “o islamismo dos negros malês do
suas contribuições para as religiões afro- Brasil sempre esteve eivado das práticas
-brasileiras do Rio de Janeiro e Recife. Nesse religiosas africanas”, fenômeno que havia
ponto, o relato de Freyre apresenta muitas se iniciado na própria África. “Adoravam
semelhanças ao de João do Rio: Alá, Olorun-uluá (sincretismo de Olorum
dos Yorubá e Alá) e Mariana (mãe de
“[…] temos várias vezes notado o fato dos Deus).” Ramos acredita, portanto, que as
devotos tirarem as botinas ou os chinelos sobrevivências malês acham-se diluídas nas
antes de participarem das cerimônias; em práticas e cultos jeje-nagôs ou bantos, das
um terreiro que visitamos no Rio de Janeiro macumbas e candomblés do Rio, Bahia e
notamos a importância atribuída ao fato do outros pontos do Brasil, tendo a cultura malê
indivíduo estar ou não pisando sobre velha se amalgamado às outras culturas africanas,
esteira estendida no meio da sala. No centro criando sincretismos, podendo hoje só ser
da esteira, de pernas muçulmanamente cru- detetadas por meio de alguns termos, roupas
zadas, o negro velho, pai de terreiro. […] Nas e práticas (Ramos, 1951, pp. 332-3).
festas das seitas africanas que conhecemos Segundo Roger Bastide (1971), em
no Recife […] Manuel Querino fala também 1937, o candomblé baiano tinha ainda
de uma tinta azul, importada da África, de conotação malê, demonstrada por algumas
que se serviam os malês para seus feitiços palavras, expressões e orações com seme-
14 Arthur Ramos teria recebi- ou mandingas; escreviam com esta tinta lhança na aplicação dos rituais malês.
do esse livro de Édison Car- sinais cabalísticos sobre uma tábua preta. Pierre Verger (1968, p. 520), bem de-
neiro (1912-72), estudioso
de assuntos afro-brasileiros
Depois lavavam a tábua, e davam a beber pois, estudando as religiões africanas no
da Bahia. a água a quem quisesse fechar o corpo; ou Brasil sugere a possibilidade de existirem

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muçulmanos pertencentes a uma das irman- Pelo contrário, por diversas vezes percebe-
dades negras dedicadas a Nossa Senhora do -se uma intenção clara de inicialmente
Rosário em Salvador, Bahia. formar-se até um reino islâmico nas terras
Waldemar Valente (1976) realizou diver- brasileiras através de uma revolta com
sos estudos, buscando as sobrevivências do subjugo ou mesmo morte dos brancos e
islã negro através das marcas muçulmanas mulatos. Há também, paralelamente, um
nos xangôs de Pernambuco e demais cultos proselitismo ora aberto, ora velado, gerando
afro-brasileiros. diversas conversões entre negros não isla-
Beatriz Dantas (1988, pp. 117-8), em seu mizados. Também se destaca a preocupação
estudo sobre a religiosidade africana, faz constante com a preservação da crença,
uma breve menção à presença de muçulma- constituindo-se para isso escolas, casas de
nos em Laranjeiras, Sergipe, com formas de oração e formas de carregar consigo partes
organização separada dos lá denominados dos textos sagrados, guardados junto ao
“nagôs” e “torés”. coração, em pequenas caixas-amuletos.
Corroborando essa hipótese de que o islã O relato do imã árabe Al’Baghdadi não
dos malês tenha se aculturado, misturando- nos deixa dúvidas de que, por diversos anos
-se ao candomblé, Mariza Soares encontrou após a revolta de 1835, houve comunidades
alguns artefatos da coleção Perseverança, islâmicas organizadas, com liderança pró-
organizada por Theo Brandão e Abelardo pria, casas de estudo e literatura religiosa
Duarte, com objetos dos antigos terreiros e secular em árabe.
xangôs15 de Maceió, hoje extintos, que Mas também é fato que esse islã negro
apresentam o símbolo da meia-lua, e a desapareceu no tempo e no espaço numa
aparência de bolsas de mandinga. fase de grande intolerância religiosa no
país. Ainda há muito o que ser pesquisado
sobre o assunto antes de assumirmos com
firmeza a sua lenta transformação até o total
CONCLUSÃO desaparecimento no candomblé brasileiro.
Por ora, ficam os relatos, os artefatos e as
Podemos perceber, através dessas pes- sobrevivências desse passado de influência
quisas, que houve realmente uma primeira islâmica, tão bem relatados por Gilberto
tentativa de implantação do islã no Brasil Freyre (1951) como as janelas com “rótulas
através dos escravos islamizados aqui tra- ou gelousias” ou “xadrez mourisco”, as
zidos desde o século XVIII. Essa ação não pontas de telhado arrebitadas “em cornos 15 Os xangôs eram “grupos de
cultos fetichistas que vinham
foi passiva como poderia se pensar, e por de luas”, os azulejos de influência árabe, o da segunda metade do
isso poderia ter a tendência de se dissolver, uso de véus pesados durante a missa, o uso século XIX, dirigidos na sua
maioria por africanos puros,
quase se fundindo às crenças animistas e de patuás e amuletos protetivos e os trajes legítimos e descendentes
fetichistas africanas dos demais escravos. das baianas. destes” (Duarte, 1974, p. 15).

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