Quando Juda Torna Se Israel
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Quando Juda Torna Se Israel
DS10
ISSN 2175-1838
Resumo
Judá não foi desde sempre Israel. Os dois reinos surgiram separados um do outro e
somente quando o que convencionamos chamar de Israel Norte (Bit-Humri) chegou ao
seu ocaso, é que Judá passou a ser Israel. Essa fusão cultural e histórica foi um processo
contínuo, mas teve três momentos importantes: com as migrações/fugas de israelitas
para Judá, após a derrocada de 732 a.C. e 722/720; com a reforma do rei Josias, quando
surge a ideologia do Pan Israel; e na convivência entre os deportados israelitas e judaítas
no exílio assírio. No período persa, Judá já será referência para território e Israel para
povo. No período persa-tardio, surge o conflito entre a Jehud Parvak e a Shamrayn
Medinta sobre quem é o verdadeiro Israel, conflito que se acirra com a dinastia
hasmoneia. Por isso, é incorreto o uso do conceito Reino do Norte e Reino do Sul para
ser referir a Israel e Judá.
Abstract
Judah has not always been Israel. The two kingdoms emerged separate from each other
and only when, what we have agreed to call Israel North1 (Bit-Humri), came to its end,
did Judah become Israel. This cultural and historical fusion was an ongoing process, but
it had three important moments: with the Israelites migrations to Judah, after the
overthrow of 732 BC and 722/720; with the reform of King Josiah, when the ideology of
Pan Israel emerges; and during the coexistence between the Israeli and Judaits
deportees in Assyrian exile. In the Persian period, Judah will already be a reference for
territory and Israel for people. In the Persian-late period there arises the conflict between
Jehud Parvak and Shamrayn Medinta abouth who is the real Israel, a conflict that is
1
Not North Israel.
a
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Paulo, SP, Brasil. Doutor em Sagradas
Escrituras, e-mail: [email protected]
Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 12, n. 2, p. 391-409, maio./ago. 2020
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intensified with the Hasmonean dynasty. Therefore, it is incorrect to use the concept
“Northern Kingdom” and the Southern Kindong” to refer to Israel and to Judah.
Keywords: Israel North. Judah. Assyria. Deportees.
Considerações iniciais
Israel Norte2
2
Quando nos referimos a Israel Norte, referimo-nos ao Israel antes de 722/720, cuja
denominação mais exata seria Bit-Humri (Casa de Omri), como é designado pelos assírios até a
sua queda. Depois de 722/720, além de continuar um Israel em Samaria e região, provavelmente
diferente do Israel de antes, também Judá vai se tornar Israel, que é o tema que estamos a
tratar.
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Omri, que segundo a narrativa bíblica, toma o poder em Tersa, após matar
Zimri, um dos comandantes do exército, que também havia usurpado o poder
(1Rs 16,8-22).
Com Omri começa uma dinastia poderosa, que irá governar por cerca de
quarenta e dois anos (884-842). Omri, Acab, Ocozias e Jorão serão os reis desta
dinastia. Os anos de reinado da dinastia omrida irão ser os anos de maior
desenvolvimento de Israel Norte. Pela primeira vez temos informações de fora
do mundo da Bíblia, que confirmam a força de Israel neste período.
A arqueologia tem comprovado a expansão do território israelita
durante esse período através da presença da arquitetura omrida na construção
ou reconstrução de fortalezas, principalmente no estilo das muralhas e dos
portões (FINKELSTEIN, 2013, p. 83-105; MENDONÇA, 2015, p. 73-87).3 São dessa
época os suntuosos palácios escavados em Megiddo e Samaria, com blocos de
cantaria e capitéis de pedras decoradas em estilo proto-eólico, similar ao estilo
greco-eólico, que só será conhecido bem mais tarde.
As evidências da expansão omrida também são confirmadas nos
artefatos produzidos pelos grandes inimigos de Israel, onde Israel Norte é
sempre mencionado como “Casa de Omri” (Bit-Humri). São os casos do
monólito de Kurkh, de Salmanasar III, que se refere a Acab comandando um
exército de duas mil bigas e dez mil soldados a pé (PRITCHARD, 1950, p. 278-
279). E da estela de Mesa, onde o rei de Moab declara que a dinastia omrida se
apoderou das terras de Moab por quarenta anos (GRESSMAN, 1926/1965, p.
440-441) 4 . E, por último, na estela de Dã, descoberta recentemente
(1993/1994), onde Hazael, rei de Aram afirma que Israel havia tomado as terras
de seu pai, o rei Hadadezer II ou Ben-Hadad II (BIRAN; NAVEH, 1995, p. 9-13).5
Enfim, com os omridas, Israel Norte se torna, pela primeira vez, um
Estado independente, capaz de fazer frente aos grandes reinos da época,
como Aram (Síria) e Assíria. Israel Norte amplia as fronteiras do seu território:
no oeste, até o Mar Mediterrâneo; no norte, até Dã; no leste, sobre Gilead; no
3
Muralhas com fosso, como em Jezrael, Jahaz e Atarauz, e portões de seis câmaras, como em
Megiddo, Gezer, Hazor e Jezrael.
4
Cf. 2Rs 3,4-5.
5
Cf. 1Rs 20-22; 2Rs 6-10; 22,29-38.
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sul, sobre Judá, Amon, Moab e Edom, até o porto de Ácaba. É possível que os
escribas de Josias, no final do século VII a.C., tenham se inspirado nesta história
para elaborar a teoria da Grande Monarquia Unida dos reinados de Davi e
Salomão (DE MENDONÇA, 2017).
Hazael e o domínio arameu
Conforme 2Rs 9-10, o último rei da dinastia omrida foi Jorão, que foi
morto por Jeú, comandante do seu exército6. Fato é que, após a subida de Jeú
ao poder, Israel Norte fica reduzido praticamente ao território da Samaria,
sendo os demais territórios dominados por Hazael (2Rs 10,32-33).
Provavelmente Israel Norte e Judá se tornaram vassalos de Aram e lhe
pagavam tributo (2Rs 12,18-19; 13,3). Com Jeú, outra casa assume o poder em
Israel Norte. Jeú é da casa de Nimsi, uma poderosa família conhecida na Bíblia
(2Rs 9,2.14) e que teve sua base na cidade de Rehov7 (MAZAR; PANITZ-COHEN,
2007; KAEFER, 2016, p. 39-48).
Quanto tempo durou o domínio arameu sobre Israel e Judá e com que
intensidade é difícil saber exatamente. O que se sabe é que havia um constante
conflito entre Aram e Assíria, principalmente no tempo do rei Salmanasar III
(858-824), como constata a famosa batalha de Qarqar, em 853 a.C., entre a
Assíria e uma coalizão coordenada por Aram e Israel.
Depois da morte de Jeú (842-814), seu filho Joacaz (814-800) e seu neto
Joás (800-788) reinam em seu lugar. Durante o reinado de Joás acontece um
forte desenvolvimento econômico e político da Assíria, que começa a tomar os
territórios de Aram. Um dos grandes responsáveis pelo crescimento político
assírio é o rei Adad-Nirari III (810-783). Israel, então, torna-se independente do
domínio arameu e passa a ser vassalo assírio. Essa mudança foi positiva para
Israel Norte, pois lhe possibilita retomar o controle sobre antigos territórios
que lhe haviam sido tomados pelos arameus (2Rs 13,3-5). É então que sobe ao
6
Segundo a estela de Dã, com a ajuda de Hazael, rei de Aram.
7
Situada no centro do Vale de Betsã, a três quilômetros do rio Jordão.
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trono Jeroboão II, o mais longo reinado da história de Israel Norte (788-747).
Apesar de o redator deuteronomista tratar o reinado de Jeroboão II muito
negativamente, ele não pode esconder a dimensão das suas conquistas:
“Jeroboão fez restabelecer as fronteiras de Israel desde a entrada de Hamat
até o mar de Arabá” (2Rs 14,25a). Isto é confirmado também pelos escritos
encontrados em Kuntillet ‘Ajrud, como visto acima. Ou seja, Jeroboão II
restabelece, em boa parte, as fronteiras do antigo território omrida, que mais
tarde são atribuídas a Salomão (1Rs 5,1; 8,65).
Prova disso são os 63 ôstracos desse período encontrados nas
escavações de Samaria, em 1910. Estes ôstracos registram a existência de um
sofisticado sistema de cobrança de tributo destinado à Samaria e pago pelos
donos de terras, cujos nomes constam nos referidos ôstracos (REISNER, 1920).
O império assírio
8
Conhecido em documentos babilônios por Pul.
9
O primeiro interesse assírio é a conquista do território arameu, tendo em vista o acesso ao mar
e, consequentemente, ao rico comércio marítimo do oeste.
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15,29). Grandes sítios arqueológicos, como Hazor, revelam que a cidade desse
período foi totalmente queimada. Somente Samaria não foi atacada, mas seu
reino ficou reduzido à região montanhosa da Samaria. Os anais assírios falam
de 13.500 pessoas deportadas (NA’AMAN, 2000). A conquista assíria do
território israelita em 732 irá mudar para sempre a história do reino vizinho
Judá, como veremos mais adiante.
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império assírio, e não haveria razão para se rebelar. A incitação dos refugiados
israelitas, que alimentavam um grande ódio contra os assírios, conduziu o
governo de Ezequias à revolta. Aliás, segundo 2Rs 21,19, a nora do rei Ezequias
e mãe do rei Amon, seu neto, era natural de Jatbah, uma localidade de Israel
Norte, o que poderia ser uma prova da presença em Jerusalém de ricas famílias
provindas de Israel Norte (SCHNIEDEWIND, 2011, p. 105-115).
Se assim, então é possível que a presença de engenheiros israelitas
tivesse contribuído na reforma da muralha de Jerusalém para fazer frente aos
assírios. Sabe-se da fama da alta tecnologia da engenharia de Israel na
construção de fortalezas, muralhas, fossos etc., desde os tempos da dinastia
omrida (DE MENDONÇA, 2017)10. Caso a citar é o impressionante sistema de
águas de Megiddo construído pelos engenheiros israelitas, provavelmente
durante o reinado de Jeroboão II. Sua larga experiência pode ter sido muito
útil na escavação do famoso túnel de Ezequias (2Rs 20,20), que tinha o objetivo
de abastecer a cidade diante de um eminente cerco assírio. Nesse mesmo
sentido, a probabilidade da participação da engenharia israelita na construção
da grande muralha de Laquis, principal cidade judaíta depois de Jerusalém (2Rs
18,13-14.17), que foi edificada nesse período (SCHÜTTE, 2012, p. 58).
Este foi, portanto, o início e o momento mais importante da fusão
histórica e cultural entre Israel Norte e Judá. Alguns fatores certamente foram
determinantes para tornar possível essa integração: a proximidade territorial,
onde, para a população em geral, as fronteiras não eram bem definidas ou nem
existiam; o fator língua, falava-se a mesma língua em Israel e Judá, 11 com
alguma possível diferença no sotaque (Jz 12,5-6; FREVEL, 2018, p. 397-426); o
longo e quase permanente domínio de Israel Norte sobre Judá, o que levava a
uma contínua presença de funcionários de um no reino na capital de outro
reino; e, por fim, a crença nos mesmos Deuses, com a predominância de Javé,
o Deus nacional, com possível diferença na forma de culto de um santuário
(Samaria, Betel) para outro (Jerusalém).
Texto em publicação.
10
Assim como nos reinos vizinhos, como mostra a análise epigráfica da estela moabita do rei de
11
Mesa.
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Agradeço às conversas com Cecília Toseli. Veja seu artigo neste número.
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Não escuteis a Ezequias, eis que assim diz o rei da Assíria: Façam comigo a bênção
e saiam até mim e coma cada homem da sua cepa e cada homem da sua figueira e
beba cada homem água de seu poço. Até que eu chegue e tome vocês até uma terra
como a terra de vocês, terra de cereais e mosto, terra de pão e vinhas, terra de
oliveira e mel, e vivereis e não morrereis.14 E não escuteis a Ezequias, eis que ele
incita vocês dizendo: ‘Javé nos libertará’.
Quanto a Ezequias, o judaíta, que não se submeteu ao meu jugo, sitiei 46 das suas
cidades fortificadas, fortalezas e as inúmeras pequenas aldeias vizinhas, e as
conquistei ... Eu arranquei 200, 150 pessoas, jovens e idosos, homens e mulheres,
mulas, jumentos, camelos, gado grande e pequeno, além da conta, e considerei-os
saque (PRITCHARD, 1950, p. 287).
13
Após a morte de Sargon II, seus sucessores mudaram a residência da realeza novamente para
Nínive e Nimrud.
14
O grifo é nosso.
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15
Há textos nos livros de Isaías e Jeremias que parecem fazer referência a isso (cf. Is 11,11-13;
Jr 3,6-13.18.19-25; 31,1-22; 2,4; 18,11.6; 23,8; 2Rs 17,28).
16
Tema da tese de doutorado de Cecilia Toseli, UMESP, 2020, em elaboração.
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dos livros dos 1 e 2Reis, onde Israel e Judá aparecem como dois reinos distintos,
com seus territórios delimitados.
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Se não houve monarquia unida, também não houve dois reinos, Reino
do Norte e Reino do Sul. Israel e Judá surgiram como dois reinos separados e
nunca formaram uma unidade. Enquanto existiu, Israel Norte sempre foi mais
poderoso econômica e politicamente que Judá. E, em dois períodos, reinou
sobre Judá: durante o reinado da dinastia omrida e durante o reinado Jeroboão
II. Judá só despontou a partir de 732 a.C., quando Israel Norte foi derrocado
pela Assíria e seu território drasticamente reduzido, e, principalmente, a partir
de 722/720, quando Samaria foi conquistada, tornando-se território anexado
da Assíria.
Com a conquista da Samaria, o reino de Israel, que denominamos de
Israel Norte, mais precisamente a Bit-Humri, chega ao seu fim, ainda que parte
de sua população nativa continue vivendo, na agora chamada de Província da
Samaria, com sua cultura e crença. Porém, grande parte da população
migra/foge para Judá. A população camponesa para o interior e a elite para a
capital Jerusalém. Entre estes últimos, escribas e mão de obra especializada,
que trazem consigo a cultura e a história de Israel Norte. Acontece, então, o
primeiro e mais importante momento de fusão cultural entre Israel e Judá.
O segundo momento aconteceu durante o reinado de Josias, que, com
intuito de conquistar os territórios do norte, criou a ideologia do Pan Israel. A
partir de então, Israel passou a ser uma nomenclatura para designar uma
unidade territorial, dividida em dois reinos, de um só povo e de uma só religião.
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