Mario Quintana - FAZ DE CONTO

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Faz de Conto

Literatura em minha Casa


Conto
Volume 2
Mário Quintana; Ignácio de Loyola Brandão; Sylvia Orthof; Luís da Câmara Cascudo; Cora
Coralina; Sidónio Muralha e Marina Colasanti

Impressão braille em volume único, do volume 2, da 1ª edição, 2002, Global Editora

Volume Único

Ministério da Educação
Instituto Benjamin Constant
Divisão de Imprensa Braille
Av. Pasteur, 350/368 - Urca
22290-240 Rio de Janeiro
RJ - Brasil
Tel.: (0xx21) 2543-1119
Fax: (0xx21) 2543-1174
http://www.ibcnet.org.br
- 2003 -

(C) Ignácio de Loyola Brandão e Marina Colasanti


Diretor Editorial:
Jefferson L. Alves
Seleção e Edição:
Cecillia Reggiani Lopes
Revisão:
Rodnei William Eugênio

ISBN 85-260-0773-4

Todos os direitos reservados Global Editora e Distribuidora Ltda.


Rua Pirapitingüi, 111
Liberdade
01508-020 São Paulo SP
Tel.: (0xx11) 3277-7999
Fax: (0xx11) 3277-8141
E-mail: [email protected]

<I>

[Nota da digitalização: destinando-se o presente texto a ser lido por meios electrónicos, foi
retirada do texto a formatação braille e a Nota Oficial da Comissão Brasileira do Braille, bem
como a secção "Seu Livro em Braille".]
<VII>

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro,
SP, Brasil)

Faz de conto - São Paulo :


Global, 2002. - (Coleção
literatura em minha casa ;
v. 2)

Vários autores.
Vários Ilustradores.

1. Contos brasileiros -
Coletâneas - Literatura infanto-juvenil I. Série.

02-2711 CDD-028`.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Contos : Antologia : Literatura infantil
028`.5
2. Contos : Antologia : Literatura infanto-juvenil
028`.5

<IX >

Caro aluno,

Você está recebendo uma coleção composta por cinco livros de


diferentes tipos de texto: poesia, conto, novela, literatura universal e teatro ou literatura popular.
A importância desses livros é muito grande: com eles, você irá descobrir
muitas coisas novas, conhecer pessoas diferentes e mundos diferentes.
Você também irá saber que existem muitas maneiras de se escrever e que
cada uma delas serve para passar ao leitor, isto é: para você, um tipo de
mensagem.
Esta coleção foi feita para que você possa ler quando quiser e o texto que quiser. Eles vão estar
todos ali, aguardando uma oportunidade para
mostrar-lhe novos lugares, novas pessoas e despertar novos - e velhos sentimentos.
Não esqueça, também, que esta é uma pequena coleção. Há muitos outros
livros mundo afora e você poderá descobri-los na biblioteca de sua escola
ou de sua cidade.
Esperamos que esta coleção possa contribuir para aumentar sua vontade
de conhecer o mundo da leitura e aventurar-se no universo das palavras.
Aproveite para contar a seus amigos e parentes sobre essa aventura, que
está apenas começando.
<XI>

[]

Tire o melhor proveito deste livro e procure conservá-lo. Ele é uma fonte permanente de
consulta.

<XV>

Apresentação

"Um conto é uma história curta". Você já deve ter ouvido algo
assim, não é? Mas um conto é mais que isso.
Um bom jeito de descobrir algumas das mil formas de um conto
é ler esta antologia. Umas histórias parecem verdade, outras parecem
mentira! Algumas são curtas e engraçadas, outras são mais longas e
engraçadas, outras são sérias. Elas fazem a gente dizer: "Eu não tinha
pensado nisso!"
Mas daí você já pensou, você já viu alguma coisa nova. Aquela
risadinha de lado que você deu, aquela água meio chata nos olhos, a
cara séria, ou a risada gostosa já marcaram você. E não tem volta.
Pena que tudo que é bom também acaba, mas, neste caso, você
sempre pode voltar ao livro, que é seu, e encontrar mais razões para

rir e, talvez, chorar um pouquinho.

Boa viagem!

Equipe de edição

<XVII>

Sumário

Velha história ............:: 1


Mário Quintana
O homem que espalhou o deserto .................. 4
Ignácio de Loyola Brandão
Vovô general, Vovó vedete ..................... 12
Sylvia Orthof
Adivinha, adivinhão! ......:: 20
Luís da Câmara Cascudo
Os meninos verdes .........:: 24
Cora Coralina
A revolta dos guarda-chuvas ..................:: 37
Sidónio Muralha
Uma idéia toda azul ......... 43
Marina Colasanti

faz de conto>

<7>
Velha história
Mário Quintana

<8>
Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou
um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um
azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E
retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do
coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o
animalzinho sarasse no quente.
E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o
acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos
elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no "17"! - o homem,
grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante café,
com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do
peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava
laranjada por um canudinho especial...
Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam na margem do rio onde o
segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se
encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
"Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te
por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos,
da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva
eu cá na terra sempre triste!..."
<10>
Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho
nágua. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando... até que o peixinho
morreu afogado...

........................

Mário Quintana. Gaúcho de Alegrete, RS, o poeta nasceu em 1906. Traduziu grandes clássicos
da literatura mundial e também foi o grande cronista de Porto Alegre, cidade que amou e curtiu
até sua morte, em 1994.
Sua poesia para crianças é lírica e muito bem-humorada, como em “Pé de pilão”, por exemplo.

••••••••••••

<11>
O homem que espalhou o deserto
Ignácio de Loyola Brandão

<12>
Quando menino, gostava de apanhar a tesoura da mãe e ia para o quintal.
Ficava horas distraído, podando as folhas das árvores, plec-plec-
-plec-plec.
Era um quintal desses antigos, enormes. Havia mangueiras, abacateiros, laranjeiras, ameixeiras,
pés de chuchu e caju e até jabuticabeiras.
E o menino passava o dia cortando folhas, plec-plec-
-plec-plec.
A mãe ficava feliz. Assim, o seu menino estava sempre à vista, não ia
para a rua, ela não precisava se preocupar, com o coração na mão. Pensar
que o filho estaria brincando no rio, ou nas ruas cheias de
<13>
carros, nos trilhos do trem, roubando frutas dos pomares. No quintal,
vantagem: não havia más companhias. Sempre que o menino apanhava um
brinquedo e ia para o portão, ela corria com a tesoura: "Tome, filhinho.
Venha brincar com suas folhas".
Ele ia para o fundo.
E cortava, cortava, plec-plec-
-plec-plec.
As árvores levavam vantagem, porque eram imensas e o menino pequeno.
O trabalho dele rendia pouco. Apesar do dia-a-dia constante, de manhã à
noite, plec-plec-plec-plec.
Mas o menino cresceu.
<14>
Ganhou tesouras maiores, facões, serrotes. Agora, mais do que gostava.
Era uma fúria, determinação. Precisava acabar com todas as folhas. "Meu
quintal fica tão limpo", dizia o pai.
Dominado por estranhos impulsos, ele não queria saber de nada. Não ia
ao cinema, à praça, ao clube, a bailes, não praticava esporte algum. Não
tinha namoradas e amigos.
Vivia para as tesouras. Dos mais diversos tipos.
À noite, com a pedra de amolar, afiava bem os cortes, polia.
Preparando-se para as tarefas do dia seguinte. Em noites de luar, deixava a janela aberta e dormia
olhando as tesouras a brilhar.
A mãe, sempre contente. Apesar de o filho detestar a escola e ir mal nas
letras.
E ele crescia. Quieto, comportado, obediente. Não saía de casa, de modo
que não voltava tarde. Não fumava, não bebia, não dançava, não ficava
trocando figurinhas e fazendo negócios estranhos. Não freqüentava ruas
suspeitas, onde mulheres pintadas com exagero, se mostravam nas portas e
janelas, chamando os incautos.
O único prazer do rapaz continuava a ser as tesouras e o corte das folhas, plec-plec-plec-plec.
Só que ele cresceu e as árvores começaram a perder.
<15>
Ele demorou apenas uma semana para limpar a jabuticabeira.
Quinze dias para a mangueira menor.
Vinte e oito para a maior.
Que trabalho deu o abacateiro. Imenso, copado, tinha mais de noventa
anos.
Quarenta dias de tesouradas.
Seis meses depois, quando ele pensou ter concluído, viu que a jabuticabeira tinha folhas novas.
Era preciso recomeçar.
O desbastamento das árvores tinha afugentado insetos, cigarras, pássaros.
Destruído ninhos. Certa noite, o rapaz regressou pensativo do quintal
silencioso. Percebeu que de nada adiantava ficar podando folhas.
A natureza mostrava sempre capacidade de reviver. Parecia morta, e
brotava.
Alguns meses, e ele encontrou a solução:
UM MACHADO.
<16>
No dia seguinte, bem cedo, que não era de perder tempo, começou a
derrubada pelo abacateiro. Custou dez dias, porque não estava habituado, as mãos calejavam,
sangravam, doíam.
Adquirida a prática, limpou o quintal e descansou aliviado.
Mas, insatisfeito, sentindo-se vazio, não tendo mais o que fazer, senão
olhar aquela desolação, o rapaz saiu pela cidade.
De machado em punho.
E onde encontrava uma árvore, arbusto, capão de mato, bosque, capoeira,
limpava. Deixando os montes de lenha arrumadinhos, para quem quisesse
se servir. Havia muita gente que adorava o rapaz do machado.
<17>
Os donos dos terrenos não se importavam. Incentivavam. Estavam a
ponto de vendê-los para imobiliárias que pretendiam construir edifícios,
conjuntos, fábricas, e queriam tudo "limpo" mesmo.
E o rapaz, quase homem já, descobriu que podia ganhar a vida com seu
instrumento. Onde quer que precisassem derrubar árvores, ele era chamado. Estava sempre
pronto, com alegria.
Não parava. Precisou contratar uma secretária, depois, auxiliares.
Montou um escritório.
Organizou uma companhia derrubadora. Alugou depósitos para guardar
os machados, motosserras,
<18>
correntões, tratores. Construiu alojamentos para os operários devastadores.
Importou maquinário estrangeiro.
Mandou funcionários fazerem cursos nos Estados Unidos e Europa.
Voltaram peritos de primeira linha. E derrubavam.
Foram do sul ao norte. Não deixando nada em pé. Satisfeitos, orgulhosos
de limparem o terreno para fazendas, garimpos, indústrias químicas,
mineradoras, estradas, barragens.
<19>
Nenhuma folha deve restar, para o progresso chegar, anunciavam.
E o rapaz, homem mais que feito, casado, muito rico, se assustou. O país era uma terra calcinada,
seca. Deserto puro. Onde continuar a cortar, para ganhar mais e mais?
Finalmente, o governo, para remediar, mandou buscar em Israel técnicos
especializados: Homens peritos que tinham tornado férteis as terras do
deserto.
<20>
Os homens vieram, estudaram, planejaram, começaram o longo e lento
replantio. Em alguns anos, as árvores estariam de volta.
E enquanto as árvores eram replantadas, o homem do machado ensinava
ao filho a sua profissão.

........................

Ignácio de Loyola Brandão. Paulista de Araraquara, Loyola nasceu em


1936. É jornalista, tendo começado aos 16 anos, como crítico de cinema.
Atualmente é diretor de redação da revista Vogue. Seu primeiro livro de
contos, “Depois do sol”, foi publicado em 1965. De lá pra cá, morou na
Itália, na Alemanha, publicou dezenas de livros, sendo três para jovens:
“O homem que espalhou o deserto”, “Manifesto verde” e “O menino que não
teve medo do medo”.

••••••••••••

<21>
O Vovô General e Vovó Vedete
Sylvia Orthof

<22>
Vovó é diferente do Vovô. Por muitos motivos, é claro. Vovó Fifi tem
cabelos pintados de vermelho. Vovô Reginaldo tem cabelos cortados
curtinhos. Vovô Reginaldo usa bigodes. Vovó Fifi não usa bigodes... mas
a gata Renata, a gata de vovó Fifi, tem um bigodão!
Vovó Fifi é vedete de teatro.
Vovô Reginaldo não é vedete de teatro, é general.
Cada um de um jeito, cada um com sua profissão, ora!
Na verdade, vovó Fifi é uma vedete um pouco velha, mas nem te ligo.
Sempre adorou descer aquelas escadarias de palco, usando meias rendadas
e plumas na cabeça.
Vovô Reginaldo também é um pouco velho, mas general fica bem, sendo
bem velho. Pois é.
Quando Fifi conheceu Reginaldo eles nem eram ainda avós. Isso foi há muito tempo, antes do
antes do antes, do antes.
Foi assim:
Na Praça Tiradentes, que é uma praça, no Rio, onde existiam muitos
teatros de revista, que são teatros onde as pessoas vão para assistir a coisas
engraçadas e bonitas, Fifi era a grande vedete. Usava sapatos de salto
muito alto, cabelos cheios de cachos, lantejoulas faiscavam pelos seus
vestidos.
<24>
Quando Fifi passava na rua, era um acontecimento: carruagens se
chocavam, aviões caíam do céu, tudo isso por causa da beleza de Fifi!
À noite, no teatro, quando as luzes brilhavam, Fifi aparecia. Era um
sucesso! Um dia, um apaixonado de Fifi mandou cobrir todo o teatro com
flores. Tiveram que chamar os bombeiros, pois as flores eram tantas,
tantas, tantas, que só chamando os bombeiros, que são umas pessoas que a
gente chama, em caso de incêndio, ou de outro problema qualquer. Para
aquele problema, tinha que ser os bombeiros.
Mas Fifi não recebia só flores, não! Houve um dia em que ela recebeu, de
um príncipe árabe, duzentos e dezenove camelos, todos com mantas
bordadas, onde se lia:
Fifi, Fifi, Fifi.
Naturalmente, neste dia, Fifi aproveitou: escolheu um camelo bem
alinhado, montou nele, abriu um leque de plumas e desfilou por toda a
cidade, jogando beijos para as borboletas. Naquele tempo o Rio de
Janeiro ainda tinha borboletas, lógico. E foi assim que Fifi passou por um quartel, onde um
jovem tenente estava passeando. Era Reginaldo. Ele era tão tenente, tão tenente, que só gostava
de passear em frente dos quartéis.
Reginaldo olhou para Fifi, Fifi olhou para Reginaldo e... Fifi esborrachou-se no chão. Caiu de
cima do camelo, cercada pelas borboletas, bem em cima da bela plantação de cáctus que
enfeitava o jardim, em frente ao quartel.
<26>
- Ui! - gritou Fifi, de bumbum espetado.
- Ó! - gritou Reginaldo, fazendo continência.
- Por qual razão o senhor está fazendo continência, em vez de me ajudar
a levantar? - berrou Fifi.
Mas o susto de Reginaldo foi tão grande, ao ver que quem falava com ele
era a vedetíssima, maravilhosa Fifi, que ele ficou de braço paralisado, sem conseguir desfazer a
continência.
Fifi puxava o braço de Reginaldo, mas nada conseguia. O tenente Reginaldo, de olhos
arregalados, continuava, sem conseguir desfazer a
continência.
De repente, Fifi teve uma idéia. Amarrou o braço do tenente Reginaldo
no camelo, deu um pontapé no bicho e gritou:
- Isca!
O camelo, que não era cachorro, ficou olhando, pensando, pensando, sem
se mexer.
Aí, Fifi falou:
- Seu tenente, acho que o senhor deu um jeito no braço... Coitado! Tudo
por minha culpa! Um tenente tão bonito, ficar assim, estragado, fazendo
continência pro resto da vida! O que poderemos fazer, ó, ó, que problema
pavoroso!
<28>
- Não sei o que fazer, senhorita Fifi! - disse Reginaldo, suando de
aflição, sempre fazendo continência.
Nesta hora, um camelo veio vindo para perto e falou:
- Se o tenente ficou de braço esticado por causa do tombo da dona Fifi,
pra consertar o braço do tenente, só existe um remédio!
- Qual é? Diga logo, seu Camelo, diga logo! - respondeu Fifi, nervosa.
- É a senhorita pular pra cima de um camelo, ora! Se o tenente ficou
nervoso por causa do motivo de a senhora cair, "descaia", suba num
camelo! Assim, o tenente "descontinenta" o braço, ora!
Fifi pensou, pensou e achou que era uma boa idéia. Deu um pulo pra subir
no camelo... mas errou, caindo em cima de um coronel, que ia passando.
O susto foi tão grande, que o tenente consertou o braço, mas o coronel
achatou a cabeça e ficou de cabeça chata para sempre, tendo sido até
transferido para o Ceará, não sei por quê.
A partir deste dia, Fifi e Reginaldo começaram a namorar.
Todas as noites, o tenente Reginaldo sentava na primeira fila do teatro,
pra ver Fifi, sua vedete.
Todas as manhãs, Fifi ficava na porta do quartel, para espiar, de longe,
seu tenente marchar:
<29>
Um, dois, feijão com arroz!
Até que, numa tarde de primavera, Fifi casou com Reginaldo. Tiveram doze filhos, trinta e dois
netos, sempre felizes. À noite, o ex-tenente, agora
general, vai assistir vovó Fifi descendo escadarias, recoberta de plumas. E, todas as manhãs,
vovó Fifi assiste seu general marchar:
Um, dois, feijão com arroz...
Só que vovó Fifi não desce mais as escadas do teatro. Agora, ela desce
uma escada, no fundo do quintal. E vovô general marcha diariamente do
banheiro para a cozinha. Afinal, o tempo muda um pouco as pessoas e as obrigações.
Esta é a simples e bela história de amor de duas pessoas bem diferentes.
Afinal, o mundo tem lugar para muitas gentes diversas.
E os filhos de Fifi e Reginaldo?
Nasceram todos com um pouquinho de jeito de general e um pouquinho de jeito de vedete.
Ficaram ótimos!
E os camelos?
Os camelos foram para a França e viraram camelôs. Vendem turbantes, lenços, quibes e areia do
deserto. Tem gente que compra. Tem gente que
compra qualquer coisa, ora...

........................

<30>
Sylvia Orthof. Sempre trabalhou com crianças e jovens. No teatro, como
criadora da Casa de Ensaios, escrevendo, atuando e dirigindo. Na
literatura, com textos poéticos e cheios de humor, que é o seu forte.
Essa carioca faceira sabia como estabelecer uma relação inteligente e
gostosa com o público. Ela nos deixou órfãos de sua risada em 1997.

••••••••••••

<31>
Advinha, Advinhão!
Luís da Câmara Cascudo

<32>
Era uma vez um homem muito sabido mas infeliz nos negócios. Já estava
ficando velho e continuava pobre como Jó. Pensou muito em melhorar sua
vida e resolveu sair pelo mundo dizendo-se adivinhão. Dito e feito.
Arrumou uma trouxa com a roupa e largou-se.
Depois de muito andar chegou ao palácio de um rei e pediu licença para
dormir. Quando estava jantando, o rei lhe disse que o palácio estava cheio de ladrões astuciosos.
Vai o homem e se oferece para descobrir tudo, ficando um mês naquela beleza. O rei aceitou.
No outro dia o homem passou do bom e do melhor e não descobriu coisa
nenhuma. Na hora de jantar, quando o criado trazia o café, o adivinho
exclamou, referindo-se ao dia que passara:
- Um está visto!
O criado ficou branco de medo porque era justamente um dos larápios.
No dia seguinte veio outro criado, ao anoitecer, e o adivinhão repetiu:
- O segundo está aqui!
O criado, também gatuno, empalideceu e atirou-se de joelhos, confessando tudo e dando o nome
do terceiro cúmplice. Foram presos e o rei ficou satisfeito com as habilidades do adivinho.
Dias depois roubaram a coroa do rei e este prometeu uma riqueza a quem
adivinhasse o ladrão.
<33>
O adivinho reuniu todos numa sala e cobriu um galo com uma toalha.
Depois explicou que todos deviam passar a mão nas costas da ave. O
ladrão seria denunciado pelo canto do galo.
O adivinho, cada vez que alguém ia meter o braço debaixo da toalha,
fazia umas piruetas e dizia, alto:
“Adivinha, adivinhão”,
“A mão do ladrão”!
Todos acabaram de fazer o serviço e o adivinho mandou que mostrassem
a palma da mão. Dois homens estavam com as mãos limpas e os demais
sujos de fuligem.
<34>
- Prendam estes dois que são os ladrões da coroa!
Os homens foram presos e eram eles mesmos. A coroa foi achada. O adivinho explicou a
manobra. O galo estava coberto de queimado de
panela, emporcalhando a mão de quem lhe tocasse nas costas. Os dois
ladrões não quiseram arriscar a sorte e por isso fingiram apenas fazer o
combinado, ficando com as mãos limpas.
O rei deu muito dinheiro ao adivinhão e este voltou rico para sua terra.

........................

Luís da Câmara Cascudo. Considerado o maior folclorista brasileiro,


viveu sua longa vida no Rio Grande do Norte, onde nasceu, em 1898, e
morreu, em 1986. Lá, e durante suas viagens, resgatou para nós uma
imensa riqueza de histórias tradicionais. Contadas pelas vozes de índios,
negros, brancos, essas histórias embalaram o sono de muitas gerações de
brasileiros. Nelas estão nossas raízes, o que somos e o que podemos com a
força da imaginação.

••••••••••••

<35>
Os meninos verdes
Cora Coralina

<36>
- E a estória dos Meninos Verdes, vovó?
- Então vocês querem saber a estória dos Meninos Verdes? Mas não é
uma estória, é um acontecido. Me pediram para não divulgar o assunto,
esperando para ver o que acontece, porque o caso é muito sério! Vou contar só pra vocês. Foi
assim:
"No quintal da Casa Velha da Ponte sempre tivemos horta com verduras,
legumes. Também pomar com árvores de frutas variadas e jardim com
flores.
<37>
O quintal é o mundo de seu Vicente, um homem que viveu sempre
plantando, cultivando, colhendo. É prestadio e metediço.
Certo dia, entre plantas que nascem lá, boas ou más, apareceram duas
plantas diferentes. Seu Vicente estranhou, queria arrancá-las. Eu disse:
- Não, deixe crescer, vamos ver o que sai daí.
Com o passar dos dias, as plantas se desenvolviam de forma estranha,
não eram conhecidas de ninguém.
<38>
Certo foi que um dia, de manhã cedo ainda, no tempo de frio, vem seu
Vicente com uma cara de espanto e me diz:
- Dona Cora, Dona Cora, vem ver uma coisa!
Eu estava acendendo o fogo para fazer o café e disse:
- Espera um bocado, depois do café eu vou.
- Não, não, a senhora vem já. Venha ver!
Impressionada com aquele chamado urgente fui até o quintal. E lá,
debaixo das tais plantas estranhas, vi umas coisinhas que se mexiam,
buliam. Umas coisas vivas.
Na primeira olhada não pude definir o que seria aquilo. Pareciam bichos,
filhotes de passarinho, qualquer coisa que tivesse caído por ali, que tivesse despencado de um
galho de árvore. E tinham se juntado na sombra daquelas duas plantas.
Depois me abaixei e examinei melhor. Eram seres vivos, com todas as
formas de crianças em miniatura! Tomei um nas mãos, senti que era
gelatinoso, com movimentos muito vivos, como querendo escapar da minha mão.
Assombrada, achei que precisava retirá-los da terra, porque eles estavam
bem sujinhos!
Seu Vicente apanhou o balaio que ele usa para os trabalhos no quintal.
Forrou-o com panos e cobertas velhas e acomodou aqueles seres.
<39>
Eram sete, e, achando que eles estavam com frio, seu Vicente rebuçou.
Examinando de perto, perguntou:
- É bicho, é passarinho ou é gente?
- Velho, isso é uma coisa que nós vamos indagar, e não fale pra ninguém!
- É salta-caminho! - falou assombrado.
- Cubra com mais um cobertor e leve para o outro lado da casa. Depois
do café vou resolver o que se faz.
Voltei para o fogão, fiz o café, e comecei a imaginar o que seria
aquilo. Fui vê-los. Estavam juntinhos e já não tremiam.
<40>
Tomei um nas mãos e vi que tinha a cabeça verde, olhos verdes, boquinha verde, dentinhos
verdes em ponta, orelhas verdes e o cabelinho como de milho, mas verde. Os pés e as mãos
tinham unhas como garras de assarinho. Na barriguinha lisa, o umbigo era apenas uma
manchinha verde mais escura.
Eram dois grupos. Um grupo tinha a cabecinha chata e o cabelo pendendo para baixo. O outro
grupo tinha cabeça pontuda, cabelo em ponta, tendendo para cima. Os sinais sexuais estavam um
tanto indefinidos, mas notava-se a diferença entre um grupo e outro.
Tornei a agasalhá-los e disse:
- Velho, precisamos dar alimento pra eles.
Seu Vicente, sempre pronto a dar comida a todo bicho que aparece, falou:
<41>
- Vou fazer uma papa de farinha!
- Não, não faça de farinha, vou fazer mucilagem.
Seu Vicente alimentou os serezinhos às dedadas - à moda nordestina -
passando na boca e empurrando. Assim, ele e os serezinhos ficaram todos
lambuzados.
Aí, considerando que aquele mistério tinha que ser mantido em segredo,
pensei que era muito pesado para mim só. Fiz um chamadinho para uma
vizinha muito boa, que veio à minha casa. Contei a ela o acontecido.
- Preciso de sua ajuda.
Ela ficou admirada quando viu o conteúdo do balaio, e compreendeu a
necessidade de guardar segredo.
- Dona Cora, vou fazer uns macacõezinhos de flanela, parece que eles
estão com frio.
<42>
Costurou quatro macacões rosas e três azuis, achou que eram meninas e meninos. Eles aceitaram
as roupas.
Mais tarde, quando voltamos lá, eles tinham estraçalhado as flanelas com os dentinhos.
continuavam juntinhos, meio tremendo.
Depois passaram a não querer mais a mucilagem. Vi que em vez de aumentarem de peso e de
tamanho estavam diminuindo.
<43>
Aí eu pensei: "E agora, deixar morrer à míngua não é possível".
Minha vizinha sugeriu falar com seu irmão, um médico conceituado.
Dr. Passos veio mais tarde, olhou, espantou-se, e deu uma orientação
muito inteligente:
- Tudo é verde neles. Como estão rejeitando alimento, vamos colorir a
mucilagem de verde e vamos vesti-los de verde.
Minha vizinha costurou macacõezinhos verdes e passamos a alimentá-los
com sopas e purês de espinafre, repolho, alface, agrião, chicória. Eles
gostaram do verde das comidinhas e das roupas.
Seu Vicente transformou o balaio numa casinha, enfeitada de folhas
verdes, com camas-beliche, cadeirinhas e mesinhas, tudo pintadinho de verde.
<44>
Aí a coisa foi melhorando, começaram a se desenvolver e perderam aquele
aspecto gelatinoso.
Foram se firmando, a gente via que eles tinham mais vitalidade.
Brincavam entre si, e quando um começava a chiar, os outros respondiam
num chiado diferente. Numa hora parecia que aquele chiado era uma risada, noutra, um grito ou
uma conversinha entre eles. Agarrando a beira do balaio, saíam, espalhando-se pela casa.
Batizei-os como Meninos Verdes.
Muito ocupada com meus doces, um dia, mexendo com os tachos, um dos meninos começou a
subir pela minha perna, pela minha roupa e, quando vi, estava no meu pescoço, olhando para
dentro do tacho. Passei uma dedada de açúcar pela boquinha dele. Gostou.
"Oi, que danado!"
<45>
Não podia mantê-los em minha casa, sempre com a porta da rua e a porta
do meio abertas. Passei a manter fechada a porta do meio.
O tempo passando, o problema se agravando, os meninos cada vez mais
vitalizados. Seu Vicente cansado, sentindo-se importunado.
- Dona Cora, olhe o que os danados estão fazendo comigo, minhas mãos
arranhadas, eu sem tempo até para fazer um cigarro de palha. A senhora
vai fazer criação desses salta-caminhos?
- Paciência, isso veio para mim, mas não tenho como resolver.
- Deixe, Dona Cora, num dia de chuva, coloco todos numa caixa de papelão e solto rio abaixo.
- Velho, não fale isso outra vez. É um crime. Os Meninos Verdes vieram para mim. Tenho de
resolver o problema.
<46>
Pedi socorro para minha boa vizinha:
- Converse com a mulher do Presidente da República. É criatura muito
humana, já esteve aqui na cidade, conhece a senhora.
Carteei com a Primeira-Dama. Em resposta dizia-se muito admirada e
pedia fotos. O filho de minha vizinha tirou fotos muito nítidas. Eu as
enviei.
A resposta chegou antes do que eu esperava: ia mandar buscar os
Meninos Verdes.
Eu disse a ela que o carro deveria parar longe de casa para não despertar suspeitas.
Os portadores - um médico, uma enfermeira e uma assistente social -
chegaram como se fossem comprar doces. Ficaram pasmos, absurdos com
o que viam!
Meus Meninos Verdes foram acomodados pela enfermeira em uma caixa
acolchoada e rumaram para o Planalto.
Assim, me achei aliviada, mas não liberta. Espiritualmente estava ligada
a eles e já sentindo sua falta. Acompanhava à distância a nova vida dos Meninos Verdes.
Quando chegaram ao Palácio, foi um espanto geral. O Presidente
mandara construir, na parte do palácio reservada à família, uma casa
especial com auditores e visores. Quando não estava ocupado, gostava
de sentar-se na frente da casa dos Meninos Verdes.
<47>
Uma enfermeira os acompanhava permanentemente. A alimentação estava a cargo da
nutricionista. Pedagogos, psicólogos e antropólogos faziam parte da equipe de estudos. Os
serezinhos cresciam devagar.
O Presidente da época foi substituído, e todos os presidentes depois dele continuaram a cuidar
dos meninos.
Foi quando resolveram criar a Cidade dos Meninos Verdes, um pólo de
turismo que seria mais interessante que a Disneylândia, na América do
Norte. Chamaram um grande arquiteto para projetar a cidade.
<48>
Quando estava para iniciar-se a construção da cidade, cientistas brasileiros convidaram cientistas
estrangeiros para conhecerem aqueles
seres que surpreendiam a todos pelo seu desenvolvimento.
Vieram cientistas de muitos países, e ficaram assombrados, sem saber o
que eram e de onde tinham vindo aqueles serezinhos. Examinaram, fotografaram, radiografaram,
observaram, indagaram.
Mas a idéia de criar uma Cidade dos Meninos Verdes como atração
turística não foi aprovada. Os serezinhos eram um fenômeno científico obscuro, de imprevisível
futuro, assim, decidiram continuar observando suas vidas, o que poderia significar grandes
avanços na Ciência.
Países estrangeiros ofereceram tecnologia científica para acompanhar o
caso e queriam levar os Meninos Verdes para a Europa, Ásia, Estados
Unidos.
Ofereceram até indenização!
O Brasil rejeitou a proposta.
<49>
O governo aceitou apenas a colaboração científica, técnica, cultural
de todos os países do mundo, declarando os Meninos Verdes patrimônio
universal da Ciência.
Acompanho à distância meus Meninos Verdes.
Estão crescendo devagarinho, dão sinais de inteligência e vivacidade, já
estão com 12 centímetros!"

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<50>
Cora Coralina. Em 1889, em Villa-Boa de Goyaz, nasceu Aninha, que
escolheu chamar-se Cora Coralina. Sabem o que Carlos Drummond de
Andrade escreveu, depois de conhecer a poesia dessa mulher trabalhadeira e sábia?
"Cora Coralina é a pessoa mais importante de Goiás. Mais que o governador, as excelências, os
homens ricos e Influentes do Estado..."

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<51>
A Revolta dos Guarda-Chuvas
Sidónio Muralha

<52>
Eu sou um guarda-chuva e o meu nome é Seda Preta. Vou contar a minha
história utilizando a única vareta que conhece a língua portuguesa. As
outras oito falam oito línguas diferentes e é por isso que me chamam um guarda-chuva poliglota.
Poliglota é aquele que fala várias línguas, mesmo que não seja guarda-chuva.
A triste verdade é que as minhas varetas não se compreendem entre elas e falam, berram e
discutem sem mesmo saber o porquê. Tal e qual certas
pessoas. Mas se eu vim de longe, até este livro, foi para contar a minha
história e não para fazer discursos. De resto, quando um guarda-chuva
discursa, começa logo a chover.
Há pessoas que colecionam selos. Outras, caixas de fósforos. Mas o senhor Calvo, que por sinal
possui uma enorme cabeleira, tinha a
desagradável mania de colecionar guarda-chuvas.
Nós éramos 95 escravos que pertencíamos àquele homem cheio de
crueldades e manias. Por vezes abria-nos no jardim, como 95 cogumelos gigantes, e ficava
olhando para nós como se fosse um jardineiro de guarda-chuvas. Eu, que sempre detestei ser
cogumelo, mesmo gigante,
sentia arrepios no meu tecido e eriçava as varetas quando via o senhor
Calvo passar.
<54>
Certa manhã, para se proteger de um chuvisco sem importância, saiu
comigo e foi visitar o consultório de um dentista. Vi o senhor Calvo abrir a boca e o dentista
meter lá dentro um aparelho que fazia um barulhinho de avião. Depois, o senhor Calvo pagou
por ter estado de boca aberta e partiu sem me levar. Lá fiquei pendurado, durante uma semana,
até que o senhor Calvo voltou, abriu a boca, pagou, olhou para mim e disse:
- Olha o meu estúpido guarda-chuva! - e lá me arrastou para casa,
contente de me ter insultado na presença de cinco pessoas, três das quais
tinham a cara inchada e olhavam o dentista com imenso respeito.
Fui tratado a seguir, quase todos os dias, de bengala, bastão, pauzinho, cana rachada, sombrinha.
<55>
Tudo, menos guarda-chuva. Era demais e eu acabei por falar aos meus
colegas e amigos, os outros escravos do senhor Calvo que também sofriam
injúrias e maus tratos, para que se não esquecessem do quando esse homem era tirano e merecia
ser castigado.
E foi assim que, aos poucos e poucos, tomou forma a revolução que os
historiadores chamariam A Revolta dos Guarda-Chuvas.
Domingo à tarde, o senhor Calvo abriu cada um de nós no jardim e olhou
de perto o meu colega Algodão Barato, de quem ele não gostava. Tudo
isso com intenção de lhe dar um pontapé.
- Vou dar cabo de ti, nada vales na coleção.
E o meu amigo, chutado com violência, deu uma volta no ar antes de
descer como um pára-quedas em miniatura.
<56>
Foi nesse momento que todos nós fechamos furiosos e que eu passei uma
rasteira no senhor Calvo, que bateu com a testa no chão e fez um buraco
no jardim. Nunca um homem levou tanta cacetada de 95 guarda-chuvas.
Depois, os meus camaradas abriram o portão de ferro e fugiram para a
rua. Só eu fiquei ao lado do senhor Calvo. Levantei-o da lama e chamei
um táxi, conduzido por um motorista que nunca tinha falado com um guarda-chuva.
O homem ficou de tal maneira nervoso que nos levou de graça, o que só pode acontecer se um
guarda-chuva mandar parar um táxi.
<57>
Descemos em frente ao consultório do dentista do senhor Calvo e eu tive
que bater à porta repetidas vezes, não só por ser domingo, mas também
porque o dentista era meio surdo. Por fim veio abrir, resmungando, e quando me viu puxar pelo
pescoço o meu antigo proprietário, todo sujo e com a testa aos altos e baixos, ficou de boca
aberta.
Julguei que ele ia pagar alguma coisa, como faziam os seus clientes, mas
não. Fugiu pela porta do fundo e até hoje nunca mais o vi. Na verdade
não tem importância, porque eu não preciso de dentista.
Entrei no consultório, deixei o senhor Calvo pendurado como um
guarda-chuva, e voltei para casa, feliz da vida.
<58>
Dias passaram desde então e o senhor Calvo ainda deve estar lá, esperneando, como um guarda-
chuva espernearia, se tivesse pernas, quando fica pendurado, sem poder descer e sair para a rua,
quer faça chuva ou faça sol.
Se alguém que me lê for lá e encontrar o senhor Calvo, que tem, como
disse, uma enorme cabeleira, diga-lhe, da parte do Seda Preta, que foi seu guarda-chuva no
tempo da escravidão, que nenhum de nós tem saudades dele, antes pelo contrário. Os guarda-
chuvas são como os homens, detestam os tiranos.

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Sidónio Muralha. Depois de ter vivido na África, o poeta viajante
português chegou ao Brasil e escolheu Curitiba para morar. Aqui ele
continuou a escrever histórias, poesia e contos de humor, e ganhou muitos prêmios. Foi um
homem que lutou por suas idéias. Com seu trabalho, compartilhou o amor pela natureza e pela
liberdade. Faleceu em 1982.

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<59>
Uma idéia toda azul
Marina Colasanti

<60>
Um dia o Rei teve uma idéia.
Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou com aquela idéia
azul, que não quis saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o
jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos,
encontrando-a sempre com igual alegria, linda idéia dele toda azul.
Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.
Foi acordar tateando a coroa e procurando a idéia, para perceber o perigo.
Sozinha no seu sono, solta e tão bonita, a idéia poderia ter chamado a
atenção de alguém. Bastaria esse alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma idéia: Quem
jamais saberia que já tinha dono?
Com a idéia escondida debaixo do manto, o Rei voltou para o castelo.
Esperou a noite. Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus
aposentos, atravessou salões, desceu escadas, subiu degraus, até
chegar ao Corredor das Salas do Tempo.
Portas fechadas, e o silêncio.
Que sala escolher?
Diante de cada porta o Rei parava, pensava, e seguia adiante. Até chegar
à Sala do Sono.
Abriu. Na sala acolchoada os pés do Rei afundavam até o tornozelo, o
olhar se embaraçava em gazes, cortinas e véus pendurados como teias.
<62>
Sala de quase escuro, sempre igual. O Rei deitou a idéia adormecida na
cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a porta.
A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela.
O tempo correu seus anos. Idéias o Rei não teve mais, nem sentiu falta,
tão ocupado estava em governar. Envelhecia sem perceber, diante dos
educados espelhos reais que mentiam a verdade.
Apenas, sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos
jardins.
Só os ministros viam a velhice do Rei. Quando a cabeça ficou toda branca, disseram-lhe que já
podia descansar, e o libertaram do manto.
Posta a coroa sobre a almofada, o Rei logo levou a mão à corrente.
- Ninguém mais se ocupa de mim - dizia atravessando salões e
descendo escadas a caminho das Salas do Tempo - ninguém mais me
olha. Agora posso buscar minha linda idéia e guardá-la só para mim.
Abriu a porta, levantou o cortinado.
Na cama de marfim, a idéia dormia azul como naquele dia.
Como naquele dia, jovem, tão jovem, uma idéia menina. E linda. Mas o
Rei não era mais o Rei daquele dia.
<63>
Entre ele e a idéia estava todo o tempo passado lá fora, o tempo todo
parado na Sala do Sono. Seus olhos não viam na idéia a mesma graça.
Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela? Nunca mais saberiam estar juntos como naquele
dia.
Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as
que tinha guardado para a maior tristeza.
Depois baixou o cortinado, e deixando a idéia adormecida, fechou para
sempre a porta.

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Marina Colasanti. A Etiópia (hoje chamada Eritréia), onde Marina


nasceu, fica no Norte da África. Ainda bem pequena, foi com a família
para a Itália; depois, por causa da guerra, veio para o Brasil. Aqui, estudou Belas Artes, trabalhou
como jornalista, traduziu textos importantes da literatura italiana. E publicou livros de poesia,
prosa, literatura para crianças e jovens. “Uma idéia toda azul” é um livro de contos que ganhou o
prêmio "O melhor para o jovem", da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

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Bibliografia

Cada um dos contos que compõe esta antologia vem de um outro livro,
veja:

"Velha história", de Mário Quintana. Conto extraído da obra “Lili inventa o mundo”, 13ª edição,
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

"O homem que espalhou o deserto", de Ignácio de Loyola Brandão.


Conto publicado na obra “O homem que espalhou o deserto”, 11ª edição, São Paulo: Global,
2002.

"Vovô general, vovó vedete", de Sylvia Orthof. Conto extraído da obra Histórias curtas e birutas,
6ª edição, São Paulo: Global, 2001.

"Adivinha, adivinhão!", de Luís da Câmara Cascudo. Conto extraído da obra “Contos


tradicionais do Brasil”, 4ª edição, São Paulo: Global, 2002.

"Os meninos verdes", de Cora Coralina. Conto publicado na obra “Os meninos verdes”, 10ª
edição, São Paulo: Global, 2002.

"A revolta dos guarda-chuvas", de Sidónio Muralha. Conto publicado na obra “A revolta dos
guarda-chuvas”, 2ª edição, São Paulo: Global, 1998.

"Uma idéia toda azul", de Marina Colasanti. Conto extraído da obra “Uma idéia toda azul”, 21ª
edição, São Paulo: Global, 2001.

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Fim da Obra

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