Teoria & Sociologia - Antropologias e Antropologias Hoje
Teoria & Sociologia - Antropologias e Antropologias Hoje
Teoria & Sociologia - Antropologias e Antropologias Hoje
Número
Especial
Teoria
E Sociedade
ISSN: 1518-4471
Antropologias e
Arqueologias hoje
U F M G
Teoria E Sociedade, Revista dos das áreas das ciências sociais em suas multiplas
Departamentos de Antropologia e Arqueologia, vertentes intelectuais. Tendo uma abrangencia
Ciência Política e Sociologia da Faculdade de ampla e plural, Teoria E Sociedade publica
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade artigos inéditos e ensaios bibliográficos que tenham
Federal de Minas Gerais, é uma publicação passado pelo crivo de pareceristas anônimos
periódica semestral destinada a veicular trabalhos designados pela Comissão Editorial, assim como
teóricos e empíiricos sobre temas de interesse resenhas e traduções inéditas no Brasil.
Editoração Eletrônica:
Thomás Mota Coelho Nascimento
Teoria E Sociedade
(Revista dos Departamentos de Antropologia e Arqueologia, Ciência Política e Sociologia - UFMG)
ISSN: 1518-4471
Teoria
E Sociedade
ISSN: 1518-4471
Antropologias e
Arqueologias, hoje
U F M G
SUMÁRIO Summary
EDITORIAL 2
APRESENTAÇÃO DO ORGANIZADOR 9
Presentation organizer
RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ
O ANTROPÓLOGO E A VIDA 62
The Anthropologist and the life
ANA MARIA RAMO Y AFFONSO
9
TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje.
Anna Roosevelt (1992, 1993, 1994), Carneiro (1995), Willian Balée (1993), Michael He-
ckenberger (1996) – tiveram sobre a etnologia amazônica. Em especial, a divulgação de
dados que nos revelaram, dentre outros: 1) estimativas para uma população indígena an-
terior a 1492 bem maiores do que aquelas mencionadas pelo “modelo padrão” de Julian
Steward (1946-1950); 2) complexidade das áreas culturais da floresta tropical mesmo se
comparadas à área andina; 3) importância das redes e sistemas regionais de intercâmbio
nos quais se articulavam distintos sistemas socioculturais em zonas ambientais similares
ou distintas (como aquelas das áreas de várzea e terra firme); e por fim, a tese segundo a
qual a Amazônia seria um centro de “difusão cultural” e não uma área periférica que teria
recebido influências do exterior (especialmente dos Andes).2
Portanto, por um lado, pode-se dizer que o diálogo entre Antropologia e Arqueo-
logia não tenha sido totalmente interrompido. Aqui e ali (em uma área etnográfica ou
em uma unidade temática) vê-se o esforço em produzir cruzamento desses dois campos
do saber. Por outro lado, a diversificação das abordagens teóricas e das temáticas dessas
duas disciplinas tem levado a um distanciamento do “ensino e da pesquisa” em comum.
Se tomarmos a definição cunhada por Edward Tylor, em 1871, o campo da An-
tropologia abrange “o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes
e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da
sociedade.” Ainda que tal definição seja hoje, como veremos a seguir, bastante limitada,
podemos dizer que a Etnografia (a descrição pormenorizada de um “grupo social” na
atualidade, isto é, a descrição de uma cultura “viva”) é o primeiro plano de uma etapa
que, se prosseguida pelo mesmo pesquisador ou por terceiros, permite comparar e traçar
princípios gerais da sociedade humana. Por contraste, pode-se dizer, de acordo com Ren-
frew e Bahn (2007:09), que a Arqueologia é o
Não só através de restos materiais, claro, pois cada vez mais a Arqueologia Histórica
tem estabelecido um diálogo com as fontes escritas, mas pode-se dizer que o que dife-
rencia o estudo do passado pelo historiador e pelo arqueólogo é que o primeiro se ocupa
estrategicamente das fontes escritas e o segundo dos vestígios materiais.3
2 Apresentamos mais detalhes sobre essa influência da Arqueologia amazônica sobre a Etnologia amazônica em
um número especial da revista Anuário Antropológico, a ser publicado ainda em 2014, organizado por Alcida
Rita Ramos.
3 Aliás, se tomarmos o ponto de origem da humanidade a mais ou menos três milhões de anos atrás, se qui-
sermos estudar esse passado, para mais de 99% desse lapso de tempo não há qualquer registro escrito deixado
pelos nossos antepassados.
10 Apresentação do Organizador
Apesar disso, um determinado arqueólogo especialista, por exemplo, o etnoar-
queólogo, tal qual o etnógrafo, tem procurado viver em comunidades contemporâneas
com o objetivo de compreender, por meio de informações portadas por pessoas vivas
e reais, como os registros arqueológicos - isto é, os vestígios - foram encontrados e for-
mados. Ou seja, como disse Renfrew e Bahn (2007: 11), o estudo dos “povos vivos e sua
cultura material” tem por finalidade aumentar “nossa compreensão do registro arqueo-
lógico”.4 Ora, como se vê neste tipo de Arqueologia, o estudo de “povos vivos” continua
sendo um meio de acesso à compreensão do “passado” - seja ele próximo ou distante. A
Antropologia, por sua vez, cada vez mais distante de um passado e de um presente objeti-
vo ou da procura de princípios universais - tal qual naquela definição de Tylor -, procura
se consolidar como uma ciência - nas palavras de Lévi-Strauss, uma “ciência social do
observado” - que busca o ponto de vista do nativo ou de um “sistema de referência funda-
do na experiência etnográfica, e que seja independente, ao mesmo tempo, do observador
e de seu objeto” (Lévi-Strauss apud Goldman 2003: 462); ou, ainda, como disse Tim
Ingold, a Antropologia não estuda sociedades ou pessoas, mas estuda com as pessoas5.
Há ainda, a nosso ver, dois pontos de desencontro a respeito dos estudos em An-
tropologia e em Arqueologia que fazemos atualmente. O primeiro deles se refere ao fato
de que a Arqueologia - ao contrário da Antropologia - cada vez mais faz uso e é dependen-
te de métodos e técnicas de análise e observação de outras ciências - como as geociências
e as ciências da vida -, o que a leva a depender de recursos caros e sofisticados6. Ora,
4 O fato da Arqueologia ter se tornado um campo cada vez mais especializado tem como efeito uma crescen-
te subdivisão da disciplina, seja por período (por exemplo, Arqueologia do período pré-histórico e histórico,
paleolítico, civilizações da América, China, Egiptologia, Arqueologia Clássica da Grécia e Roma Antiga), seja
por temas ou métodos específicos como a própria Etnoarqueologia, a Arqueologia ambiental, a Arqueologia
subaquática, a Arqueologia da arquitetura, a Arqueologia colaborativa, as Communities Archaeologies, as Indi-
genous Archaeologies, e assim por diante.
5 Para precisar um pouco mais o ponto no qual Ingold (2008: 82) vê a diferença entre a Antropologia e outras
ciências tais como a História e a Psicologia, podemos citar: “We may think we live in societies, but can anyone
ever tell where their society ends and another begins? Granted that we are not sure what societies are, or even
whether they exist at all, could we not simply say that anthropology is the study of people? There is much to be
said for this, but it still does not help us to distinguish anthropology from all the other disciplines that claim
to study people in one way or another, from history and psychology to the various branches of biology and
bio-medicine. What truly distinguishes anthropology, I believe, is that it is not a study of all, but a study with.
Anthropologists work and study with people. Immersed with them in an environment of joint activity, they
learn to see things (or hear them, or touch them) in the ways their teachers and companions do”.
6 Para corroborar esse dado, talvez seja suficiente consultar o número especial sobre a metodologia da pesquisa ar-
queológica, publicado em 2013, no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, organizado por Denise M. C. Gomes
(2013). Ali, nos diversos artigos, um conjunto de técnicas mais recentes empregadas pela Arqueologia é descrito de
tal forma que uma breve olhada constata a crescente tecno-cientificidade da disciplina, indiciada pelo emprego ne-
cessário da computação, da caracterização físico-química dos vestígios, da aplicação da Geofísica: flotação, recupera-
ção de macrovestígios vegetais, análise de pólen, fitólitos, extração de microvestígios, análises químicas dos pisos de
ocupação e traceologia lítica; uso conjugado de registros tradicionais como fotografia e realização de decalques com
papel vegetal e lápis, ou com uso de tecido branco e carbono, às técnicas de laser scanning terrestre e fotogrametria
de luz estruturada; técnicas de fluorescência de Raix-X, Microscopia Eletrônica de Varredura, Espectroscopia por
Dispersão de Energia; uso de radar de Penetração no Solo (GPR); utilização do Sistema de Informação Geográfica
(SIG), que permite “visualizar por meio de mapas a associação de diferentes variáveis relacionadas à localização, cor
do solo, quantidade de artefatos, profundidade e topografia” (Gomes, 2013: 513-516).
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TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje.
conforme já dissemos em outro texto aqui já citado, a coletânea organizada por Alcida
Rita Ramos, tais recursos de pesquisa do arqueólogo contrastam com o “arcaísmo” do
caderno de campo do antropólogo (no máximo, acompanhado de um gravador e de um
máquina fotográfica), com o uso da observação direta e com o domínio da língua nativa
do grupo no qual se faz a pesquisa.
O segundo ponto de desencontro entre essas duas práticas científicas, consequên-
cia direta do primeiro ponto, trata-se da constituição das equipes de pesquisa: enquanto
o arqueólogo depende da colaboração de uma equipe de campo e de análise dos dados,
geralmente numerosa, o antropólogo ainda tem como modelo a pesquisa solitária (no
máximo, por dupla), seja na fase de campo, seja na de análise e escrita7.
Em resumo, há hoje um conjunto de perspectivas teóricas e metodológicas distin-
tas que atuam no sentido de separar os estudos em Antropologia e Arqueologia. Porém,
se no passado as duas disciplinas andaram juntas, ainda hoje pode-se dizer que há toda
uma perspectiva que as reaproximam, e que se torna um desafio para o trabalho em
conjunto: o rompimento daquelas fronteiras que foram estabelecidas pela ciência padrão
entre o material e o simbólico, entre a natureza e a cultura. O conjunto de textos deste
número especial da revista Teoria & Sociedade, denominado “Antropologias e Arqueolo-
gias, Hoje”, menos do que se propor a enfrentar esse desafio da perspectiva interdiscipli-
nar entre Antropologia e Arqueologia - que é, de certa forma, conforme já dito, o mesmo
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG (PPGAN) -, propõe-se a ofe-
recer uma breve reunião da diversidade do tipo de Antropologia e Arqueologia que se faz
nesta pós-graduação, e, com isso, talvez, indicar que ainda resta um caminho a percorrer
na produção de uma maior integração nessas duas áreas de conhecimento. A miscelânea
de textos é composta por pesquisadores seniores e jovens, na sua maioria professores ou
ex-alunos do PPGAN.
O primeiro bloco de artigos aborda a disciplina antropológica na sua perspectiva
teórica clássica e contemporânea. Para abrir este número especial da Teoria & Sociedade,
apresentamos o único artigo que não foi produzido por professores e estudantes do PP-
GAN: trata-se do artigo de Alcida Rita Ramos, no qual a autora discute a utopia de uma
Antropologia horizontal, que seria cidadã e democrática, representada pela constituição
de uma rede de Antropologias mundiais. Já o texto coletivo de Eduardo Viana Vargas,
Bruno Latour, Bruno Karsenti, Frédérique Aït-Touati, Louise Salmon - o único que não
é inédito, já que se trata de uma tradução - retoma o debate entre Gabriel Tarde e Émile
Durkheim, em 1903, por meio de um roteiro composto de citações dos trabalhos desses
7 Nota-se, os desencontros entre Antropologia e Arqueologia não são aqui destacados a partir da vocação multi-
disciplinar da Arqueologia (em especial no seu diálogo com a ciências da vida e com o geociências) por oposição
à Antropologia, mas do crescente domínio e uso do aparato técnico-cientificista por parte da Arqueologia – o
que, de forma coerente, a afasta do diálogo com o pensamento “nativo” ou daqueles homens que vivem ou vive-
ram num determinado sítio e que são objetos de estudo do arqueólogo.
12 Apresentação do Organizador
dois autores de forma a “inventar” um diálogo. O terceiro texto deste bloco dedicado à
Teoria Antropológica, escrito por Ana Ramo, parte das propostas conceituais e episte-
mológicas de Eduardo Viveiros de Castro em “A propriedade do conceito”, de Marilyn
Strathern em “O gênero da dádiva” e de Roy Wagner em “A invenção da cultura” para
propor uma reflexão acerca da interseção entre metodologia e ética na prática e na polí-
tica antropológica.
O segundo bloco deste número especial é composto de quatro artigos e tratam
da relação entre Antropologia e Imagem. No primeiro deles, “A invenção das artes plás-
ticas em Belo Horizonte”, os autores Leonardo Fígoli, Ronaldo de Noronha e João Ivo
Guimarães analisam a obra do pintor e crítico de arte, literato, teatrólogo, roteirista de
cinema, arqueólogo, paleontólogo, jornalista, antropólogo, educador e fotógrafo Anibal
de Mattos - um intelectual fluminense radicado em Belo Horizonte. Tal análise permite
descortinar o campo intelectual e artístico da época, início do século XX: sua dependên-
cia do poder político, baixa diferenciação no campo cultural, lutas de concorrência pelo
monopólio da legitimidade artística. O segundo artigo, escrito por Marcos H. B. Ferreira,
denominado “Arte e cidade”, é um esforço de compreensão dos graffitis e pixações como
símbolos inscritos na superfície da cidade de Belo Horizonte, e que são interpretados
à luz de uma determinada teoria sobre a arte e sobre a cidade. O terceiro artigo deste
bloco, escrito por Nian Pissolati Lopes, faz uma análise comparativa entre três obras
fotográficas: Antropologia da Face Gloriosa (1997) de Arthur Omar; Marcados (2009)
de Claudia Andujar; e, por fim, o próprio trabalho do autor do artigo sobre carroceiros
na cidade de Belo Horizonte. Tais ensaios fotográficos são abordados à luz dos conceitos
de rosto unívoco e corpo polívoco de Deleuze e Guattari, e retomados por Le Breton. Por
fim, o quarto artigo deste segundo bloco destinado à Antropologia visual, escrito por Ana
Lúcia Modesto, analisa o filme Edifício Máster, de Eduardo Coutinho, com o objetivo de
demonstrar que o método do cineasta de levantamento de narrativas biográficas se revela
como uma contribuição importante para a Antropologia dedicada aos estudos das vidas
nas metrópoles.
Entre o segundo e o terceiro bloco há apenas um artigo, que figura como uma
espécie de transição: trata-se do trabalho de Érica de Souza e Marko Monteiro sobre as
diversas biotecnologias e os seus efeitos sobre as normas de conduta relativas aos corpos
humanos.
O terceiro bloco é composto de três estudos de etnologia brasileira. No primeiro
deles, Deborah Lima faz um uso bastante fecundo da noção de “perspectivismo”, cunha-
da por Eduardo Viveiros de Castro, para compreender as relações entre o homem e o boto
na Amazônia Brasileira. Já o artigo de Karenina Andrade aborda o tema da escola nas so-
ciedades indígenas, a partir do caso etnográfico do povo ye’kwana, um grupo Caribe das
Guianas, para demonstrar o paradoxo entre tradição e modernização, ou seja, a escola,
esse bem e serviço do mundo moderno, que ora é cobiçado pelos indígenas, ora também
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TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje.
é visto como signo da destruição e da morte de sua cultura. O terceiro e último artigo deste
bloco é composto pelo trabalho de Ana Flávia Santos, que faz uma descrição etnográfica
sobre o processo de territorialização do povo Mura (Baixo Madeira, Amazonas), no período
inicial do Serviço de Proteção aos Índios (de 1912 a 1932), no qual o reconhecimento do
território indígena era pautado pelo paradigma colonialista da transitoriedade do índio.
O quarto bloco é composto de três estudos sobre processos de territorialização e
populações tradicionais. No primeiro deles, os autores Ana Beatriz Mendes, Aderval Costa
Filho e Ana Flávia Santos analisam três convenções internacionais relativas à proteção ao
patrimônio cultural, ao meio ambiente e às populações tradicionais, de forma a compreen-
der como se desenhou no Brasil um marco jurídico específico para a proteção ambiental e
para a diversidade cultural. No segundo artigo, Aderval Costa Filho analisa um caso etno-
gráfico no norte de Minas Gerais de forma a demonstrar os processos de formação iden-
titária e territorialização de três comunidades tradicionais: Gurutubanos, Caatingueiros e
Geraizeiros. Por fim, no terceiro artigo desse bloco, Gabrielly Merlo de Souza analisa uma
comunidade rural no norte de Minas Gerais com o objetivo de compreender os processos
de territorialização decorrentes dos artifícios do avanço na região de uma economia de
mercado e da consequente transformação das práticas tradicionais de convivência da po-
pulação local com o bioma da Caatinga.
Por fim, o quinto e último bloco é composto de apenas dois artigos exemplares da
Arqueologia múltipla que se faz hoje na Universidade Federal de Minas Gerais. Um deles
se insere na área da Arqueologia histórica, que, nos últimos anos, tem tido um crescimento
robusto nesta universidade, com pesquisas diversas sobre o período colonial brasileiro ou
sobre as expedições na Antártida. O artigo em questão, escrito por um ex-pós-doutorando
do PPGAN, Diogo Costa, versa sobre um conflito ocorrido no sítio arqueológico histórico
das Lavras do Abade no ano de 1887, localizado na cidade atual de Pirenópolis (GO), com
o intuito de verificar como a memória coletiva, cultural e social se manifesta por meio das
expressões culturais, dos lugares esquecidos e da cultura material da comunidade. O últi-
mo trabalho é um exemplar da Arqueologia clássica e pré-histórica. Mais precisamente, a
partir da noção de “cadeia operatória”, o artigo coletivo encabeçado por Maria Jacqueline
Rodet analisa a indústria lítica na região amazônica, onde há uma grande quantidade de
estudos arqueológicos com foco na cerâmica, mas pouco se investigou o material lítico pro-
veniente daqueles sítios.
Aproveito a oportunidade para agradecer à contribuição fundamental na organiza-
ção desse número especial da revista Teoria & Sociedade dada, em primeiro lugar, pelos
autores dos artigos, e em segundo lugar pelos nossos colegas atuantes no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFMG - Leonardo Fígoli, Karenina Andrade, Edgar Bar-
bosa Neto, Deborah Lima e Debora Breder - que leram atentamente os artigos e nos deram
um primeiro parecer. Last but not least, agradeço muito a Lara Spagnol, nossa cuidadosa e
atenta revisora deste número especial.
14 Apresentação do Organizador
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TEORIAE SOCIEDADE Número Especial: Antropologias e Arqueologias, hoje.
A
16 Apresentação do Organizador
ARTIGOS
Articles
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SONHO DE UMA TARDE DE INVERNO: A UTOPIA
DE UMA ANTROPOLOGIA COSMOPOLITA
RESUMO
Por meio de um exercício de imaginação, de inspi- têm dado ensejo a que se divida a disciplina em dois
ração indígena, propõe-se uma utopia antropológi- blocos claramente opostos: Centro e Periferia. Mas
ca em que distintas tradições dessa profissão não eis que surge no horizonte um vulto ainda nebu-
sofram com limitações linguísticas e desigualdade loso, porém com a remota possibilidade de fazer o
de produção e consumo, gozem de uma intercomu- virtualmente impossível, ou seja, dar vida material
nicabilidade verdadeiramente horizontal e se dedi- àquela utopia que tem sido até agora estritamente
quem ao compromisso de transformar os antropo- imaginada. É a Rede de Antropologias Mundiais
lógos em atores políticos. Essa utopia contrasta com (World Anthropologies Network – WAN), em si um
a situação corrente, em que as antropologias metro- produto de quem sonha com uma antropologia ci-
politanas alcançaram um tal grau de hegemonia que dadã e democrática.
PALAVRAS-CHAVE
Antropologias mundiais, utopia, antropologias metropolitanas, centro e periferia.
UTOPIA
Era uma vez uma utopia chamada Cosmantrópolis2, alcunha talvez tão inusitada
quanto o seu conteúdo, o que não é de surpreender. Para fundar a utopia os pais
fundadores da Cosmantrópolis inspiraram-se nos sábios poliglotas do rio Uaupés, no
1 O formato deste pequeno ensaio, como se fosse uma fábula, uma narrativa mítica ou, mais sobriamente fa-
lando, uma utopia, veio–me de assalto num dia azul e gélido de fevereiro no Meio-Oeste dos Estados Unidos
durante minha estada na Universidade de Wisconsin, Madison, no primeiro semestre de 2005. Talvez por isso
ele pareça um tanto etéreo, irreal, ou mesmo fantasmagórico sem, no entanto, trair seu compromisso com o
empenho analitíco e a seriedade intelectual.
2 Inspiro-me no importante trabalho em que Gustavo Lins Ribeiro (2005), em seu louvável esforço de reno-
vação, advoga a necessidade de se criar um espaço cosmopolítico, que contemple uma antropologia verdadeira-
mente mundial, em que antropologias nacionais tenham oportunidades iguais de expressão e influência.
3 Alguns pensadores, como Ahmad (1992), não escondem seu profundo desconforto com o fenômeno do (ou
da) intelectual que migra para a Metrópole e assume a posição de porta-voz de seu país, estrangulando, assim,
a voz dos que ficaram para viver a realidade que o (a) migrante deixou para trás.
4 Publicar em inglês pode trazer reconhecimento ao autor, mas quase nunca à antropologia nacional de sua
origem. Como um gato preto em campo de neve (na vívida imagem do novelista gaúcho Erico Verissimo),
tenho me visto tomar dimensões inesperadas que não são tanto o resultado aleatório de um esforço solitário,
individual, quanto parte integrante da minha tradição antropológica nacional que, por sua vez, e como a minha
produção, é um amálgama de influências internas e externas, embora com um sabor próprio. Os estudantes da
Metrópole que leem textos meus, ou de outros em situação semelhante, e se impressionam com certas descri-
ções e posições não têm como alcançar o mundo invisível que me sustenta e me dá coerência. No entanto, não
é por não o verem que ele não existe, a exemplo da fábula dos “povos sem história” que só não a exibem porque
os estudiosos ocidentais não têm os meios necessários para alcançá-la. O que passa por ausência de uns é, la-
mentavelmente, produto da ignorância de outros.
5 Quem minimamente educado deixaria de perceber o Brasil na literatura de Machado de Assis, ou a Argen-
tina na obra de Borges (ambos universalistas)? Por que isso não acontece na antropologia? Será uma questão
de se ser ou não minimamente educado? E por que é permitido não se ser minimamente educado?
MORAL DA HISTÓRIA
ABSTRACT
Through an exercise of imagination inspired in as to divide the discipline into two clearly oppo-
indigenous wisdom, this paper evokes an anthro- sed camps: Center and Periphery. However, a still
pological utopia in which the diverse traditions of nebulous figure appears on the horizon. It brings
the field would not suffer linguistic limitations and along the remote possibility of doing what is virtu-
inequality in production and consumption, would ally impossible, that is, give material life to that uto-
enjoy a truly horizontal intercommunicability, and pia that so far has been purely imagined. This figure
would be commited to transform anthropologists is the World Anthropologies Network (WAN), itself
into political actors. This utopia contrasts with the the product of a dream about a democratic and ega-
current situation in which metropolitan anthro- litarian anthropology.
pologies have reached such a degree of hegemony
KEYWORDS
World anthropologies, utopia, metropolitan anthropologies, center and periphery.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
Um debate capital sobre a natureza da sociologia (Tarde 1903; Durkheim 1903). A atual apresentação
e suas relações com outras ciências opondo Ga- do debate é baseada em um roteiro composto de ci-
briel Tarde e Émile Durkheim ocorreu em 1903 tações de trabalhos publicados por Gabriel Tarde e
na École des Hautes Études Sociales. Infelizmente Émile Durkheim, organizados de modo a formar um
o único registro disponível do evento é uma breve diálogo. Todo o texto, salvo o que se encontra entre
apresentação em francês intitulada “La Sociologie colchetes, é composto por citações de trabalhos pu-
et les sciences sociales [confrontation avec Tarde]” blicados por Gabriel Tarde e Émile Durkheim.
PALAVRAS-CHAVE
Gabriel Tarde, Émile Durkheim, sociologia, teoria social, controvérsia.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Um debate capital sobre a natureza da sociologia e suas relações com outras ciências
opondo Gabriel Tarde e Émile Durkheim ocorreu em 1903 na École des Hautes Études
Sociales. Infelizmente o único registro disponível do evento é uma breve apresentação
em francês intitulada “La Sociologie et les sciences sociales [confrontation avec Tarde]”
(Tarde 1903; Durkheim 1903).
A atual apresentação do debate é baseada em um roteiro composto de citações de
trabalhos publicados por Gabriel Tarde e Émile Durkheim, organizados de modo a formar
um diálogo. Todo o texto, salvo o que se encontra entre colchetes, é composto por citações
de trabalhos publicados por Durkheim e Tarde. Uma versão curta do texto foi encenada
por Bruno Latour (Gabriel Tarde) e Bruno Karsenti (Émile Durkheim) por três vezes,
uma primeira em 21 de junho de 2007 em Cerisy la Salle, França, durante o Colóquio
Empirical Metaphysics; uma segunda em 14 de março de 2008 no teatro McCrum do
Corpus Christi College, Cambridge, Reino Unido, no quadro da Conferência Tarde/
Durkheim: trajectoires of the social; e uma terceira enfim em Paris, em 14 de março de
2008, cuja versão filmada por Martin Pavlov encontra-se disponível na página virtual
de Bruno Latour. Frédérique Aït-Touati dirigiu todas as apresentações, Eduardo Vargas
foi responsável pela pesquisa e escolha dos textos e Louise Salmon realizou a pesquisa
complementar. Louise Salmon, Simon Shaffer e Dominique Reynié interpretaram o
Decano respectivamente na primeira, na segunda e na terceira apresentação.
Esta versão do debate foi preparada originalmente em francês. Ela foi publicada
em inglês em 2008 na revista Environment and Planning D: society and space, 26(5),
pp. 761-777, sob o título de “The debate between Tarde and Durkheim”1. A presente
tradução foi realizada a partir dos textos originais em francês listados nas referências
bibliográficas, salvo quando eles já haviam sido traduzidos para o português, caso
em que se optou por usar as traduções existentes também indicadas nas referências
bibliográficas, ainda que estas tenham sido ocasionalmente modificadas. A paginação
indicada nas citações refere-se às edições francesas utilizadas.
1 A Revista Teoria & Sociedade agradece aos editores de Environment and Planning D: society and space
pela autorização para publicação desta tradução. [Nota do Organizador]
[“Senhoras, senhores,
Em nome de seus diretores, Emile Boutroux e Emile Duclaux, e de sua secretária
geral, Dick May, eu estou feliz de vos acolher na École des Hautes Études Sociales, aqui no
número 16 da Rue de la Sorbonne.
Instituto de ensino das ciências sociais fundado há três anos, em novembro de
1900, a École des Hautes Études Sociales pretende estudar, em sua extrema complexidade,
o conjunto de questões mais nítida e diretamente sociais. Sem ser hostil à teoria, ela está
preocupada, antes de tudo, com o concreto e o investimento em questões de atualidade.
Em julho passado, o X Congresso Internacional de Sociologia foi consagrado às
“Relações entre a psicologia e a sociologia”. E é em continuidade com o tema de reflexão
desse Congresso que nós decidimos consagrar uma série de conferências às “Relações
entre a sociologia e as diferentes ciências sociais e as disciplinas auxiliares” no quadro do
curso de Sociologia da École Sociale do ano escolar de 1903-1904.
Jovem disciplina, a sociologia tem um impacto decisivo na apreensão das ques-
tões sociais atuais. Dois eminentes confrades a representam hoje aqui. Eles pretendem
defini-la e demonstrar sua especificidade expondo os métodos que eles estimam serem
próprios a essa disciplina, no quadro de uma discussão contraditória.
É, então, enquanto presidente do conselho de direção e presidente do comitê de ensino
da escola de moral e de pedagogia, que eu tenho a honra de vos apresentar: à minha direita, o Sr.
Gabriel Tarde, professor da cátedra de Filosofia moderna do Collège de France, membro da
Academia de Ciências Morais e Políticas desde 1901, mas também membro do Conselho
de Direção e do Comitê de Ensino da Escola de Moral e Pedagogia de nossa École, autor
das famosas Leis da Imitação e da obra A Psicologia Econômica, recentemente publica-
da.
À minha esquerda, o Sr. Émile Durkheim, suplente da Cátedra de Ciências da Educação
na Faculdade de Letras da Universidade de Paris desde 1902, autor das notáveis Regras
do método sociológico e fundador do Année sociologique, revista que recenseia as pro-
duções sociológicas internacionais do ano.
Senhores, eu vos passo a palavra começando pelo mais jovem. Sr. Durkheim, sua
vez de definir primeiro sua concepção da sociologia em suas relações com as outras ciên-
cias.]
DURKHEIM:
Há algum tempo a sociologia está na moda. A palavra, pouco conhecida e quase re-
DECANO:
[Sr. Tarde, sua vez de precisar o objeto da sociologia em suas relações com as ou-
tras ciências.]
TARDE
É natural que uma ciência nascente se apóie em ciências já constituídas, a sociologia, por
exemplo, na biologia. Também é natural que uma ciência em vias de crescimento busque voar
com suas próprias asas e se constituir como um domínio à parte. A sociologia em desenvolvimento
está atualmente nesta situação, ela busca se constituir por si e para si. Trata-se de uma espé-
DECANO:
DURKHEIM:
O Sr. Tarde pretende que a sociologia chegará a tais ou tais resultados; mas nós
TARDE:
Para formular leis, não é necessário que as ciências estejam definitivamente cons-
tituídas. É preciso uma idéia diretiva nas pesquisas. Ora, as ciências sociais não deveram
seu progresso a certas regras de método objetivas, mas realizaram-no desenvolvendo-se
no sentido [...] desta microscopia social que é a psicologia intermental. (Tarde 1903: 164)
DURKHEIM:
O que quer que valha esta psicologia intermental, é inadmissível que ela exer-
ça uma espécie de ação diretiva sobre as disciplinas especiais das quais ela deve ser o
produto (Durkheim 1903: 164). Uma explicação puramente psicológica dos fatos sociais
deixa escapar o que eles têm de específico, isto é, de social. […] Há entre a psicologia e a
sociologia a mesma solução de continuidade que existe entre a biologia e as ciências físi-
co-químicas. Conseqüentemente, todas as vezes que um fenômeno social é diretamente
explicado por um fenômeno psíquico, podemos estar seguros de que a explicação é falsa.
(Durkheim 1894: 103, 106)
TARDE:
DURKHEIM:
À primeira vista não se compreende; mas quando se é iniciado à doutrina do autor, eis o
que isto significa: não é o montante de generalização ou de propagação imitativa de um fato que
constitui seu caráter mais ou menos social; é o seu montante de coercitividade – Segundo [meu
contraditor], com efeito, pois nós só reconhecemos até aqui uma metade de seu pensa-
mento, a definição do fato social é dupla. Uma de suas características, nós o sabemos, é
que [eu vos cito novamente, ele] “existe independentemente de suas expressões indivi-
duais”. Mas há uma outra característica não menos essencial, é a de serem coercitivos.
(Tarde 1895a: 70)
DECANO:
DURKHEIM:
TARDE:
Deste ponto de vista, não haveria nada mais social do que a relação estabelecida
entre vencedores e vencidos pela tomada de assalto de uma fortaleza ou pela redução à
escravidão de uma nação conquistada, nem menos social do que a conversão espontânea
de todo um povo a uma nova religião ou a uma nova fé política apregoada por apóstolos
entusiastas! Para mim o erro aqui é tão palpável que devemos nos perguntar como ele
pôde nascer e se enraizar em uma inteligência desta força. [O Sr. Durkheim] nos diz:
[...] dado que o fato social é essencialmente exterior ao indivíduo, “ele só pode entrar
no indivíduo impondo-se”. Eu efetivamente não vejo o rigor desta dedução. O alimento
também nos é exterior antes de ser absorvido. Quer dizer que a deglutição e a assimilação
são constrangimentos exercidos pelo alimento sobre a célula que se apropria dele? Isto
não se verifica nem mesmo com as aves que nós engordamos à força nas granjas, e que
certamente preferem ser empanturradas que morrer de fome. (Tarde 1895a: 71)
DURKHEIM:
A [...] proposição [do Sr. Tarde] é totalmente arbitrária. [Ele] pode afirmar que,
segundo sua impressão pessoal, não há nada de real na sociedade além do que vem do
indivíduo, mas faltam provas para apoiar essa afirmação e sua discussão, portanto, é
impossível. Seria tão fácil opor a esse sentimento o sentimento contrário de um grande
número de indivíduos que se representam a sociedade não como a forma que a natureza
individual assume espontaneamente desenvolvendo-se para fora, mas como uma força
antagônica que os limita e contra a qual eles se empenham! (Durkheim 1897b: 351)
TARDE:
Segue-se daí que, de acordo [com o Sr.], não é permitido qualificar como sociais os
atos do indivíduo onde o fato social se manifesta, por exemplo as palavras de um orador,
DURKHEIM:
Sem dúvida, esta dissociação [entre o social e o individual] não se apresenta sem-
pre com a mesma nitidez. Mas basta que ela exista de uma maneira incontestável em
casos importantes e numerosos […] para provar que o fato social é distinto de suas re-
percussões individuais. De resto, mesmo quando ela não é imediatamente dada à ob-
servação, pode-se freqüentemente realizá-la com ajuda de certos artifícios de método;
é mesmo indispensável proceder a esta operação, caso se queira libertar o fato social de
toda mistura para observá-lo no estado de pureza. Assim, há certas correntes de opinião
que nos empurram, com uma intensidade desigual segundo os tempos e os países, uma
ao casamento, por exemplo, outra ao suicídio ou a uma natalidade mais ou menos forte,
etc. Estes são, evidentemente, fatos sociais. À primeira abordagem, parecem inseparáveis
das formas que eles tomam nos casos particulares. Mas a estatística nos fornece o meio
de isolá-los. (Durkheim 1894: 9)
TARDE:
DURKHEIM:
Conclui-se com toda a evidência que a imitação, pelo fato de poder ocorrer entre
indivíduos que não são unidos por nenhum vínculo social, é um fenômeno puramente
DECANO:
[Acredito que nós chegamos a um ponto crucial do debate. Ele concerne à dife-
rença em importância que vocês atribuem à imitação em matéria social. Vocês poderiam
elaborar isto de modo mais preciso?]
TARDE:
DURKHEIM:
TARDE:
Ela sempre tem este poder – e eu digo que apenas ela tem este poder –, ao menos
caso se trate de uma propagação imitativa de fatos psicológicos. Pois eu sempre expli-
quei que, tal como a entendo, a imitação é uma comunicação de alma a alma. (Tarde
DURKHEIM:
TARDE:
DURKHEIM:
Não é necessário que haja entre eles uma comunhão intelectual ou moral, tampou-
co uma troca de serviços, nem mesmo é necessário que falem a mesma língua, e depois da
transferência eles não se encontram mais ligados do que antes. (Durkheim 1897b: 107)
TARDE:
Segue daí que, segundo o autor, o laço social se reconhece pelo fato de que existe
uma comunidade intelectual ou moral entre os homens, ou ao menos que eles falem uma
mesma língua... Ora, Sr. Durkheim, me [diga o Sr.] como, se não por meio da difusão e
do acúmulo de exemplos, esta comunidade intelectual [...] ou esta comunidade moral [...]
poderia ter se estabelecido? E, se não é por transmissão imitativa dos pais aos filhos, e
dos contemporâneos entre si, também me [diga o Sr.] como os indivíduos de uma mesma
nação encontram-se a falar a mesma língua? (Tarde 1897: 225)
[O] procedimento pelo qual imitamos nossos semelhantes é o mesmo que nos ser-
ve para reproduzir os ruídos da natureza, as formas das coisas, os movimentos dos seres.
Como ele não tem nada de social no segundo caso, o mesmo ocorre com o primeiro. Ele
tem origem em certas propriedades de nossa vida representativa que não resultam de
nenhuma influência coletiva. Portanto, se estivesse demonstrado que ele contribui para
determinar taxas de suicídios, resultaria que esta última depende diretamente, seja em
sua totalidade seja em parte, de causas individuais. (Durkheim 1897b: 107-108)
TARDE:
Eu já respondi […] a esta objeção superficial dizendo que a imitação de que eu falo
é uma comunicação interpsíquica. Mas a inanidade da objeção requer que seja apontada
com o dedo. (Tarde 1897: 226)
DURKHEIM:
TARDE:
Quanto à minha teoria (não a que [o Sr.] desfigura e caricatura, mas a que eu
expus em outros lugares), eu a tenho aplicado a todas as ordens de fatos sociais. (Tarde
1897: 232)
DURKHEIM:
TARDE:
[Sr. Durkheim, o Sr. entende] imitação em um sentido tão estreito que nos per-
guntamos como, apesar desta estreiteza, [o Sr. pôde] lhe reconhecer uma papel notável
no suicídio (Tarde 1897: 224). [Certamente,] censuram-me aqui e ali por “ter freqüen-
temente chamado de imitação fatos aos quais este nome absolutamente não convém”.
Reparo que me surpreende sob a pluma de um filósofo. Com efeito, sempre que o filósofo
tem necessidade de uma palavra para exprimir uma nova generalização, só lhe resta a
escolha entre duas alternativas: ou bem o neologismo, se não pode fazer de outra manei-
ra, ou bem, o que indiscutivelmente vale muito mais, a extensão do sentido de um antigo
vocábulo. Toda a questão consiste em saber se eu estendi abusivamente [...] o significado
da palavra imitação. [...] Só se teria o direito de criticar como abusivo o alargamento do
DURKHEIM:
Se, com efeito, a imitação é, como se disse, uma fonte original e particularmente
fecunda de fenômenos sociais, é principalmente quanto ao suicídio que ela deve dar pro-
vas de seu poder, pois não há outro fato sobre o qual ela tenha maior domínio. Assim,
o suicídio irá nos oferecer um meio de verificar por meio de uma experiência decisiva a
realidade da virtude maravilhosa que se atribui à imitação. (Durkheim 1897b: 120)
TARDE:
É isto que eu nego. Por importante que seja o papel da imitação no fenômeno do suicídio (e
[o Sr.] mesmo não [pode] negar que numerosos suicídios se explicam por ela, apesar da
definição manifestamente apertada, extremamente estreita que [o Sr.] lhe dá), a imitação
desempenha um papel infinitamente maior na formação e na propagação das línguas, das
religiões, das artes... Por conseguinte, eu não posso aceitar como “decisiva”, de maneira
alguma, a experiência que [o Sr. pretende] instituir desta maneira. (Tarde 1897: 228)
TARDE:
Ela também não tem nada que a contradiga. Com efeito, a disposição em círcu-
los concentricamente degradados ocorreria, conforme a teoria da imitação, se o suicídio
fosse um fenômeno de origem recente; mas ele é muito antigo; e, do mesmo modo, por
todo lugar onde a ação da imitação se acumulou durante muito tempo, produziu-se um
nivelamento, um amontoado, uma classificação por assim dizer. E partir daí para negar
o caráter imitativo do suicídio é como negar o caráter ondulatório do calor porque a tem-
peratura de um quarto é igual por toda parte ainda que seu aquecimento tenha ocorrido
a partir de um aquecedor ou de uma lareira (talvez extinta há um bom tempo). (Tarde
1897: 230)
[Eu não sei ao certo se estamos ou não diante de um caso de imitação, mas se es-
tivermos, o que esta poderia ser?]
DURKHEIM:
Não há [aqui] nem imitadores nem imitados, mas identidade relativa dos efeitos
devido a uma identidade relativa das causas. E explica-se facilmente que seja assim se,
como tudo que precede o fato já previsto, o suicídio depende essencialmente de certas
condições do meio social. Pois este último geralmente mantém a mesma constituição em
extensões bastante amplas de território. […] A prova de que essa explicação é fundada é
que vemos a taxa de suicídios modificar-se bruscamente e por completo toda vez que o
meio social muda bruscamente. Este nunca estende sua ação para além de seus limites
naturais. (Durkheim 1897b: 129)
TARDE:
DURKHEIM:
Em resumo, embora seja certo que o suicídio é contagioso de indivíduo para indi-
víduo, nunca se vê a imitação propagá-lo de tal maneira que afete a taxa social de suicí-
dios. Ela pode dar origem a casos individuais mais ou menos numerosos, mas não con-
tribui para determinar a desigualdade da propensão que leva ao suicídio as diferentes so-
ciedades e, no interior de cada sociedade, os grupos sociais mais particulares. (Durkheim
1897b: 134)
DURKHEIM:
Mas há uma razão mais geral que explica por que os efeitos da imitação não são
identificáveis através dos números estatísticos. É que, reduzida apenas às suas forças, a
imitação não pode ter nenhuma influência sobre o suicídio. [O capítulo do Suicídio que eu
dediquei à imitação] mostra principalmente o quanto é pouco fundada a teoria que consi-
dera a imitação a fonte iminente de toda vida coletiva. Não há fato tão facilmente transmis-
sível por contágio quanto o suicídio, e no entanto acabamos de ver que essa contagiosidade
não produz efeitos sociais. Se, nesse caso, a imitação é tão desprovida de influência social,
não o poderia ser menos nos outros; as virtudes que lhe são atribuídas são portanto ima-
ginárias. […] Pois nunca se mostrou, a propósito de uma ordem definida de fatos sociais,
que a imitação pudesse explicá-los e, menos ainda, que pudesse explicá-los sozinha. A pro-
posição foi apenas enunciada sob forma de aforismo, apoiada em considerações vagamen-
te metafísicas. No entanto a sociologia só poderá pretender ser considerada uma ciência
quando não for mais permitido que aqueles que a cultivam dogmatizem desse modo, fur-
tando-se tão evidentemente às obrigações regulares da prova. (Durkheim 1897b: 134-137)
TARDE:
DURKHEIM:
[Antes de ser contra você, este livro é a favor da sociologia científica. Nele] nós es-
tabelecemos sucessivamente as proposições seguintes: o suicídio varia em razão inversa
do grau de integração da sociedade religiosa, doméstica, política. [...] Nós chegamos
então a esta conclusão geral: o suicídio varia em razão inversa do grau de integração dos grupos
sociais dos quais o indivíduo faz parte. (Durkheim 1897b: 222-223)
TARDE:
Isto é verdadeiro? Isto depende do sentido que se empresta a esta expressão equí-
voca: o grau de integração de uma sociedade. Caso se entenda por isso a quantidade
maior ou menor de densidade ou de coesão de um grupo social, isto é, o número maior
ou menor de suas unidades e sua maior ou menor proximidade física, é claro que a pro-
posição acima é contradita pelos fatos. [...] Entretanto, não é neste sentido todo físico [...]
que [o Sr. Durkheim] entende a expressão. [...] A integração de que [o Sr. fala] implica
um “constrangimento moral” e não somente material. Mas é necessário ser preciso. [...]
Chamar isto de integração é bastante bizarro vindo da parte de um autor que me censura
o emprego que faço [...] da palavra imitação. (Tarde 1897: 235-236)
DECANO:
[Vemos agora que o que é questão de imitação para um, é questão de integração
para o outro. Mas vocês poderiam nos dizer o que é e o que não é metafórico nesta ma-
téria?]
Não é por metáfora que se diz que cada sociedade humana tem uma disposição
mais pronunciada ou menos pronunciada para o suicídio: a expressão se fundamenta
na natureza das coisas. Cada grupo social tem por esse ato, realmente, uma inclinação
coletiva que lhe é própria e da qual derivam as inclinações individuais, e que não procede
destas últimas. (Durkheim 1897b: 336)
TARDE:
Explique isto quem puder. Se [o Sr. pretende] dizer com isso que a tendência co-
letiva existe à parte e sobre todas as tendências individuais ao suicídio, trata-se de pura
quimera. Se [o Sr. pretende] simplesmente dizer que para cada indivíduo considerado à
parte a tendência que ele experimenta para o suicídio provém das tendências próprias
ao conjunto dos outros indivíduos que querem se matar, trata-se de uma adesão a minha
Teoria da Imitação. Ora, parece que este último sentido é o verdadeiro. Então [o Sr., Sr.
Durkheim,] é meu aluno sem o saber. (Tarde 1897: 246)
DURKHEIM:
TARDE:
As páginas que terminam o capítulo sobre o suicídio egoísta são belas, de uma
poesia metafísica à Schopenhauer, mas não é necessário pressionar. Trata-se de pura
mitologia. Vemos aí a sociedade elevada à posição de pessoa, e de pessoa divina. [...]
Durkheim é um Bonald ateu, e, por conseqüência, inconseqüente. [(...) Ele] nos deixa
apenas a escolha entre a tirania da regra, que mutila nossa natureza, que fere nossa li-
berdade, e o suicídio que suprime nossa existência. Enclausurar-se ou se matar, não há
DURKHEIM:
TARDE:
Em matéria de laços sociais, isto é não reconhecer nada além das relações do se-
nhor ao servo, do professor aos alunos, dos pais aos filhos, sem absolutamente considerar
as livres relações dos iguais entre si. E é fechar os olhos para não ver que, nos próprios
colégios, a educação que as crianças se dão livremente ao se imitarem umas às outras [...]
é bem mais importante que aquela que elas recebem e padecem à força. Só se explica um tal erro
atando-o a este outro segundo o qual um fato social, enquanto social, existe fora de todas as
suas manifestações individuais. Infelizmente, objetivando radicalmente a distinção, ou
melhor, a separação integralmente subjetiva do fenômeno coletivo e dos atos particulares
que o compõem, o Sr. Durkheim nos lança em plena escolástica. Sociologia não quer di-
zer ontologia. Tenho muita dificuldade em compreender, confesso, como é possível que,
“descartados os indivíduos, resta a sociedade”. [...] Iremos voltar ao realismo da Idade
Média? Pergunto-me que vantagem há, sob pretexto de depurar a sociologia, em esvaziá
-la de todo seu conteúdo psicológico e vivo. Parece que se está em busca de um princípio
social onde a psicologia absolutamente não entra, expressamente criado para a ciência
que se fabrica, e que me parece bem mais quimérico ainda que o antigo princípio vital.
(Tarde 1895c: 61-62)
DECANO:
DURKHEIM:
Como a sociedade não é composta senão de indivíduos, o senso comum julga que a
vida social não pode ter outro substrato que a consciência individual; sem isso, ela parece
solta no ar e pairando no vazio. Entretanto, o que se julga tão facilmente inadmissível
quando se trata dos fatos sociais é normalmente admitido nos outros reinos da natureza.
Toda vez que ao se combinarem elementos quaisquer produzem, por sua combinação,
fenômenos novos, cumpre conceber que esses fenômenos estão situados, não nos ele-
mentos, mas no todo formado por sua união. A célula viva nada contém senão partículas
minerais, assim como a sociedade nada mais contém além dos indivíduos; no entanto,
é evidentemente impossível que os fenômenos característicos da vida residam em áto-
mos de hidrogênio, de oxigênio, de carbono e de azoto. […] Ela está no todo, não nas
partes. […] Apliquemos esse princípio à sociologia. Se, como nos concedem, essa síntese
sui generis que constitui toda sociedade produz fenômenos novos, diferentes dos que se
passam nas consciências solitárias, cumpre admitir que esses fatos específicos residem
na sociedade mesma que os produz, e não em suas partes, isto é, em seus membros.
(Durkheim 1901: 21-22)
TARDE:
DURKHEIM:
TARDE:
DURKHEIM:
TARDE
Como [uma coisa social] poderia se refratar antes de existir, e como ela poderia
existir, falemos de modo inteligível, fora de todos os indivíduos? A verdade é que uma
coisa social qualquer [...] se transmite e passa, não do grupo social considerado coleti-
vamente para o indivíduo, mas sim de um indivíduo [...] a um outro indivíduo, e que,
nesta passagem de um espírito para um outro espírito, ela se refrata. O conjunto destas
DURKHEIM
O único meio de contestar essa proposição seria admitir que um todo é qualita-
tivamente idêntico à soma de suas partes, que um efeito é qualitativamente redutível à
soma das causas que o engendraram, o que equivaleria a negar qualquer mudança ou a
torná-la inexplicável. Houve quem chegasse, no entanto, a sustentar essa tese extrema,
mas para defendê-la só foram encontradas duas razões realmente extraordinárias. Foi
dito primeiro que, [eu vos cito, caro colega,] “em sociologia, nós temos, por um privilégio
singular, o conhecimento íntimo do elemento que é nossa consciência individual assim
como do composto que é a reunião das consciências”; segundo que, por essa dupla intros-
pecção, [você acaba de redizê-lo,] “constatamos claramente que, descartado o individual,
o social não é nada”. (Durkheim 1897b: 350-351)
DECANO:
[Creio que compreendemos o que vos separa e que é inútil prosseguir nesta via:
vocês absolutamente não se entendem. Mas parece-me que o Sr. Durkheim deve respon-
der a esta grave acusação de “misticismo”, pois a palavra não vos parece demasiado forte?
Isto se deve ao modo como cada um de vocês compreende o papel da contingência?]
DURKHEIM:
Para [o Sr.] Tarde [...] todos os fatos sociais são o produto de intervenções indi-
viduais, propagadas por imitação. Toda a crença como toda a prática teriam por origem
uma idéia original, saída de qualquer cérebro individual. Produzir-se-iam diariamente
milhares de invenções deste gênero. Somente, enquanto a maior parte aborta, algumas
TARDE:
DURKHEIM:
Certamente, uma vez conhecido o gênio, podem-se procurar quais são as causas
que nele favorecem as combinações mentais de que resultam as idéias novas, e é cer-
tamente a isso que [o Sr.] Tarde chama as leis da invenção. Mas o fator essencial de
qualquer novidade é o próprio gênio, a sua natureza criadora, e ela é produto de causas
fortuitas. Por um lado, visto ser nele que se encontra a fonte misteriosa do “rio social”, o
acidente está portanto na base dos fenômenos sociais. Não há necessidade absoluta que
tal crença ou tal instituição só apareçam em determinado momento da história e em de-
terminado meio social; consoante o acaso faz nascer o inovador mais tarde ou mais cedo,
a mesma idéia leva séculos a germinar ou rebenta de vez. Há assim toda uma categoria de
invenções que se podem suceder numa ordem qualquer, são as que não se contradizem,
mas que, pelo contrário, se entreajudam. [...] Assim, a noção de lei, que Comte tinha fi-
nalmente [laboriosamente] conseguido introduzir na esfera dos fenômenos sociais e que
os seus sucessores se tinham esforçado por precisar e consolidar, aparece aqui como que
obscurecida e velada; e a imaginação, por ser projetada nas coisas, passa a ser admitida
ao pensamento. (Durkheim 1900: 132)
[Eu vos cito mais uma vez:] “a causa determinante de um fato social deve ser bus-
cada entre os fatos sociais antecedentes e não entre os estados da consciência individual”.
Apliquemos: a causa determinante da rede de nossas estradas de ferro deve ser buscada
não nos estados de consciência de Papin, de Watt, de Stephenson e de outros, não na sé-
rie lógica de concepções e de descobertas que estes grandes espíritos possuem, mas antes
na rede de rotas e nos serviços de malas postais que existiam anteriormente. […] Há um
fetiche, um deus ex machina, do qual os novos sociólogos fazem uso como de um abre-te
sésamo toda vez que eles estão embaraçados, e é tempo de assinalar este abuso que real-
mente se torna inquietante. Este talismã explicativo é o meio. [Ah!] Quando esta palavra
é solta, tudo é dito. O meio é a fórmula para todos os fins cuja ilusória profundidade serve
para recobrir o vazio da idéia. Também não deixaram de nos dizer, por exemplo, que a
origem de toda evolução social deve ser exclusivamente solicitada às propriedades “do
meio social interno”. [...] Quanto a este meio-fantasma que nós invocamos a bel prazer,
ao qual emprestamos todo tipo de maravilhosas virtudes para nos dispensar de reconhe-
cer a existência dos gênios reais e realmente benfeitores pelos quais vivemos, nos quais
nos movemos, sem os quais nada seríamos, expulsemo-lo o mais rapidamente de nossa
ciência. O meio é a nebulosa que, de perto, se resolve em estrelas distintas, de grandezas
desiguais. (Tarde 1895a: 78-79)
DECANO:
[Mas então, se eu compreendo bem todos os dois, vocês estão em desacordo não
somente sobre o papel da inovação e do gênio na história, mas também sobre a própria
questão do que deve ser uma ciência?]
DURKHEIM:
A teoria [do Sr.] Tarde aparece como a própria negação da ciência (Durkheim
1895a: 86-87). Com efeito, ela coloca o irracional e o milagre na base da vida e, por con-
seguinte, da ciência social. Se adotamos o ponto de vista [do Sr.] Tarde vê-se que os fatos
sociais são o resultado, na maior parte dos casos, de causas simplesmente mecânicas,
ininteligíveis e estrangeiras a toda finalidade, pois não há nada mais cego do que a imita-
ção. (Durkheim 1895a: 85) Aqui a indeterminação é erigida em princípio. Já não se trata
TARDE:
Isso não é de modo algum apelar ao mistério, mas sim àquela profunda faculdade,
muito pouco apreciada, de afirmar para além do horizonte dos fatos e de não ignorar,
pelo menos, o que não se pode conhecer. Se afirmar o desconhecido é utilizar nossa igno-
rância, negar o desconhecido é ignorar duas vezes. (Tarde 1910: 41) Digamos mesmo que
a idéia-mãe do Sr. Durkheim [...] repousa sobre uma pura concepção de seu espírito que
ele confundiu com uma sugestão dos fatos. Ela só apresenta, em todo caso, uma verda-
de bem parcial, bem relativa, bem insuficiente como fundamento único ou principal de
uma teoria sociológica. [...] Pode-se então se espantar da confiança que ela inspira ao Sr.
Durkheim e da virtude que ele lhe presta de nos conduzir necessariamente a uma Moral
e a uma Justiça mais alta ou mais humana. (Tarde 1893: 189)
DURKHEIM:
Como o diz o Sr. Tarde, [...], a origem de nosso diferendo está em outro lugar.
Antes de tudo ela está no fato de que eu acredito na ciência e o Sr. Tarde não acredita
nela. Pois é não acreditar nela reduzi-la a não ser mais do que uma diversão intelectual,
boa para nos ensinar a respeito do que é possível e impossível, mas incapaz de servir à
regulamentação positiva da conduta. Se ela não tem outra utilidade prática, ela não vale
o que custa. Caso então acredite desarmar assim seus recentes adversários, equivoca-se
estranhamente; na verdade se lhe entrega as armas. Sem dúvida, a ciência assim enten-
dida não mais poderá frustrar a expectativa dos homens; mas é que os homens não mais
esperarão grande coisa dela. Ela não será mais exposta a ser acusada de falência; mas é
que se terá declarado-a perpetuamente menor e incapaz. Não vejo o que ela ganha com
isso e o que aí se ganha. Pois o que se coloca desta maneira acima da razão, é a sensação,
o instinto, a paixão, todas as partes baixas e obscuras de nós mesmos. Que nos sirvamos
disso quando não podemos fazer de outro modo, nada melhor. Mas quando aí vemos ou-
tra coisa que não algo provisório que paulatinamente deve ceder lugar à ciência, quando
lhe atribuímos uma preeminência qualquer, mesmo quando não há franca referência a
uma fé revelada, somos teoricamente místicos mais ou menos conseqüentes. Ora, o mis-
TARDE:
É demandando à ciência mais do que ela pode dar, é em lhe emprestando direitos que
ultrapassam seu alcance, já muito vasto, que é possível acreditar em sua pretensa falha. A ciência
jamais falhou às suas promessas verdadeiras, mas tem circulado sob seu nome uma multidão de
notas promissórias com sua falsa assinatura e que ela é incapaz de pagar. É inútil aumentar seu
número. (Tarde 1895b: 162)
DURKHEIM:
Em presença dos resultados aos quais chegou até o momento a história compa-
rada das instituições, não é possível negar pura e simplesmente a possibilidade de um
estudo científico das sociedades; o Sr. Tarde, além disso, entende fazer ele mesmo uma
sociologia. Só que ele a concebe de uma maneira tal que ela cessa de ser uma ciência
propriamente dita para se tornar uma forma muito particular de especulação onde a
imaginação desempenha um papel preponderante, onde o pensamento não se considera
submetido nem às obrigações regulares da prova nem ao controle dos fatos. (Durkheim
1900: 130-131)
TARDE:
O Sr. Durkheim crê honrar a ciência lhe emprestando o poder de governar sobe-
ranamente a vontade, isto é de não apenas lhe indicar os meios mais adequados para
alcançar seu fim dominante, mas ainda de lhe demandar sua orientação em direção à
estrela polar da conduta. (Tarde 1895b: 161-162) Se eu tivesse que formular uma máxima
a este respeito, ela de algum modo estaria relacionada não só às condições intelectuais
requeridas pela descoberta da verdade, mas também às morais. Um pouco de modéstia
e de simplicidade digna cabe a uma ciência adolescente como a um jovem homem que
entra na vida; ela deve evitar o tom doutrinário e o jargão de escola. É necessário então
lhe fornecer uma disposição de espírito benevolente e familiar e, também e antes de tudo,
o amor vivo e alegre pelo tema. [...] A primeira condição para ser sociólogo é amar a vida
social, simpatizar com os homens de todas as raças e de todos os países reunidos em tor-
DURKHEIM:
O Sr. Tarde confunde […] questões diferentes, e [eu me] recuso a dizer qual-
quer coisa sobre um problema [...] que não tem nada a fazer na discussão. (Durkheim
1903: 165)
DECANO:
[Creio que podemos parar por aqui. Lembro que este debate contraditório entre
nossos dois eminentes colegas serviu de introdução ao curso de sociologia da École des
hautes études sociales durante o qual os alunos terão várias ocasiões para discutir os pres-
supostos. Creio que é chegado o momento de vivamente agradecer a nossos oradores].
DURKHEIM, Émile. 1894. Les Règles de la méthode sociologique. Paris: PUF [2005]. As
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219-255
TARDE, Gabriel. 1898. Les Lois sociales - esquisse d’une sociologie. Paris: Les
Empêcheurs de Penser en Rond [1999].
TARDE, Gabriel. 1902. La Psychologie Économique. Paris: Félix Alcan. Vol. 1
ABSTRACT
A momentous debate concerning the nature of so- tion avec Tarde]” (Tarde 1903, Durkheim 1903).
ciology and its relation to other sciences took place The present recension of the debate, therefore, is
between Gabriel Tarde and Émile Durkheim at the based on a script consisting of quotations from the
École des Hautes Études Sociales in 1903. Unfor- works of Gabriel Tarde and Émile Durkheim, arran-
tunately the only available record of the event is a ged to form a dialogue. All text, save that in squa-
brief overview published in French under the title re brackets, consists of quotations from published
“La Sociologie et les sciences sociales [confronta- works by Émile Durkheim and Gabriel Tarde.
KEYWORDS
SOBRE OS AUTORES
BRUNO LATOUR
Antropólogo, sociólogo e filósofo francês, é professor da Science Po, Paris, e da London Scholl of Eco-
nomics, Londres. Pioneiro dos estudos sociais da ciência e tecnologia, é um dos principais proponentes
da Actor Network Theory (Teoria do Ator-Rede). É autor de inúmeros livros publicados em mais de 20
países, entre os quais se contam Jamais Fomos Modernos (34 Letras), Reagregando o Social (EDU-
FBA), Ciência em Ação (UNESP), A Esperança de Pandora (EDUSC), Pequena Reflexão sobre o culto
moderno dos deuses feitiches (EDUSC), Políticas da Natureza (EDUSC) e, mais recentemente, Enquête
sur les modes d’existence : Une anthropologie des Modernes (La Decouvert). Foi, com Peter Weibel,
curador das exposições Iconoclash, beyond the image wars in science, religion and art, e Making Thin-
gs Public, the atmospheres of democracy.
Contato: www.bruno-latour.fr/contact
BRUNO KARSENTI
Filósofo e sociólogo francês, foi professor da Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne e hoje atua na
École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Entre os vários trabalhos que escreveu desta-
cam-se D´une philosophie à l´autre. Les sciences sociales et la politique des modernes (Gallimard), La
société em personnes. Études durkheimiennes (Economica), Politique de l´esprit: Augste Comte et la
FRÉDÉRIQUE AÏT-TOUATI
Professora de literatura francesa no St. John´s College da University of Oxford e professora associada
da Science Po. Escreveu Fictions of the Cosmos: Science and Literature in the Seventeenth Century
(University of Chicago Press) que lhe rendeu o Scaglione Prize concedido pela Modern Language Asso-
ciation of America. Co-editou com Anne Duprat o livro Histoires et saviors (Peter Lang) e, com Stephen
Goukroger, Le Monde en Images (Garnier). Contato : [email protected]
LOUISE SALMON
Doutoranda do Centre d’histoire du XIXe siècle da Université Paris I Panthéon-Sorbonne, onde prepara
tese sobre Gabriel Tarde. Publicou Le Laboratoire de Gabriel Tarde (CNRS Éditions) e, com Jacqueline
Carroy, a coletânea de textos inéditos de Gabriel Tarde intitulada Sur le sommeil ou plutôt sur les rêves,
et autres écrits, 1870-1873 (Éditions BHMS). Contato: [email protected]
RESUMO
A partir das teorias propostas por Eduardo Vivei- campo para o desenvolvimento de seus argumen-
ros de Castro em A propriedade do Conceito, por tos teóricos. A importância de explicitar os nossos
Marilyn Strathern em O Gênero da Dádiva e por pressupostos e de tentar perceber os problemas co-
Roy Wagner em A Invenção da Cultura, o presente locados por outros povos, assim como os modos de
artigo é uma reflexão sobre a interseção entre me- colocação desses problemas, não é só uma questão
todologia e ética na prática antropológica, princi- teórica ou metodológica, mas ética e política, cujo
palmente no campo da etnologia. Considerando alcance poderá ser, sempre e ao mesmo tempo,
que a Antropologia é ao mesmo tempo um modo de maior e mais profundo. Desse alcance dependem o
conhecimento e uma relação social, o artigo busca papel e o efeito da Antropologia junto às populações
mostrar a importância dos modos em que o antro- que a tornam possível, e em referência às políticas
pólogo estabelece e interpreta as suas relações no públicas e às relações com a sociedade nacional.
PALAVRAS-CHAVE
62 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
INTRODUÇÃO
64 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
A partir da elicitação e explicitação desses pressupostos, premissas e interesses,
podemos perceber como o antropólogo trabalha da mesma forma que o faz o seu conceito
ocidental de cultura: produzindo coisas, que são seus trabalhos, artigos, livros, teses e
dissertações, as quais aparecem como registro de culturas observadas, analisadas,
descobertas. O que aconteceria, porém, se, em uma reviravolta, o desmascaramento das
teorias e problemas antropológicos tivesse como efeito a produção de uma “antropologia
reversa”, ou, em outras palavras, a reversão da antropologia da produção?
Levar a sério a criatividade dos povos com os quais a Antropologia trabalha é a
proposta de Wagner para promover a reviravolta. A “invenção”, o modo da relação entre
convenções (Wagner 2010), pode se tornar o conceito intencionalmente explicitado
para dar conta dessa tarefa que é, ao mesmo tempo, ética e metodológica. O método
da Antropologia não consistiria, no contexto dessa proposta, em um banimento de seus
próprios pressupostos, mas em um deslocamento intencional que permita “deslocamentos
específicos” e na contextualização analítica dos construtos, como proposto por Strathern
(2006: 33). Essa nova ética metodológica parte de uma crítica à confusão entre “os modos
pelos quais estudamos os fenômenos, as teorias através das quais os entendemos, com
os fenômenos em si” (Wagner 1974: 119; minha tradução); crítica possível se aceitarmos
o fato de que, nas palavras de Wagner, “o estudo da cultura é na verdade nossa cultura”
(Wagner 2010: 46). Compreender isso é um primeiro passo para evitar confundir os
povos que estudamos com as construções analíticas que inventamos para estudá-los,
como propõe Strathern (2006: 23).
Uma questão, no entanto, que ainda permanece por ser atendida é a da possibilidade
de inventar e experimentar modos de ação que viabilizem uma antropologia reversa de
produção do antropólogo a partir das suas relações com os “nativos”; antropólogo sendo
assim entendido como uma pessoa que só pode ser atualizada (e produzida) como efeito
de suas relações. E se, como colocamos acima, entendemos que as relações possuem
diversas possíveis naturezas, a questão que se coloca, e que pode até ser uma questão
ética, é a de quais dessas naturezas possíveis serão atualizadas por cada antropólogo.
Assim como é também uma questão pertinente a possibilidade de des-atualização de
certas diferenças como, por exemplo, aquelas que se caracterizam pela existência de
modelos ocultos aos nativos, mas visíveis ao antropólogo. “É necessário”, diz Strathern,
“livrar-se inteiramente do modelo de um ‘modelo’ que assume a representação simbólica
como uma reflexão ordenada”, pois “apreende-se melhor a elaboração de domínios como
uma atividade, a criação/implementação da diferença como um ato social” (2006: 156).
A Antropologia não pode escapar à sua natureza de ato social, à sua imanência relacional.
A distância implícita em suas metodologias pode ser percorrida de modos novos e (quem
sabe?) inusitados. Pode e, de certa forma, deve sê-lo, uma vez que as distâncias explícitas
e não só as implícitas já não são as mesmas, estando em plena e intensa mudança. Se nós,
os atuais pesquisadores de campo, somos os que constituímos um dos polos da distância
66 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
das objetividades, de acordo com o proposto por Wagner: “A menos que sejamos capazes
de fazer isso, a criatividade das culturas que estudamos será sempre derivada da nossa
própria criação da realidade” (Wagner 2010: 220).
O QUE SE FAZ?
Em Are There Social Groups in the New Guinea Highlands, Wagner encontra
uma interessante diferença entre os administradores e o povo da Nova Guiné. Enquanto
os últimos desenham, compelem e elicitam os limites/fronteiras e deixam que as
relações “tomem conta de si mesmas”, os administradores acham que são as fronteiras
que tomam conta de si mesmas (que existem a priori), sendo as relações as que devem
ser manipuladas (1974: 112). Trata-se de dois “estilos de criatividade diferentes”. O que
cada povo entende como resultado da ação (o artificial) e campo para a ação (o inato)
aparece de modo invertido de acordo com cada um desses “estilos de criatividade”.
Essas distinções fazem também toda a diferença na invenção dos valores de cada povo
específico, sendo no distanciamento dos próprios valores (pressupostos, convenções),
provocado pelo contato com valores outros, que a Antropologia inventa a cultura.
Lévi-Strauss (1996 [1950] e 1970 [1958]) já tinha falado da distância como
uma condição da objetividade que permite uma crítica dos próprios valores pelos
valores dos outros. Mas essa distância (lucro e perda ao mesmo tempo), é importante
lembrar, não possui uma única dimensão. Há uma multiplicidade de distâncias a serem
percorridas, e o percurso nunca é o mesmo. Podemos, por exemplo, pensar na distância
como interseção entre as subjetividades, (assim como entre as objetividades), nas duas
formas de permutabilidade e traduzibilidade propostas por Lévi-Strauss para pensar as
oposições. Também há a simetria, a inversão e a simetria invertida. O ponto que interessa
aqui, em qualquer caso, é que esses modos de percorrer a distância podem se figurar,
também, como modos de relação pertinentes para pensar a metodologia antropológica
(e não só as relações imanentes ao pensamento). Se a distância é a própria metodologia
antropológica, é porque ela implica a possibilidade da mediação. É, então, especialmente
interessante esse locus epistêmico, esse espaço da distância ocupado pela “interseção
de vários pontos de vista” e suas possibilidades. Há que se pensar o que é a interseção
e quais são as maneiras em que pode ser imaginada, e para isso é necessário contar,
como propõe Viveiros de Castro, com a “presença virtual de outrem”, que é a “condição
de passagem de um mundo possível a outro” (Viveiros de Castro 2001: 27), “passagem”
que se realiza na experiência da relação com outrem. Experiência cujo efeito será sempre
uma transformação.
Há um “modo ‘nativo’ de fazer sociedade, de criar sociabilidade”, diz Wagner
68 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
Castro e por Lévi-Strauss antes. As relações, diz Viveiros de Castro, “não são uma ordem
transcendente ao pensamento, mas seu elemento imanente” (2001: 07). O trabalho da
antropologia consiste em compreender a atualização destas relações, virtuais e lógicas
ao mesmo tempo, sendo que estruturas podem aparecer na apreensão de relações entre
relações (relações de elementos diferenciais).
A proposta é buscar quais são os modos relacionais próprios às teorias nativas e
constituí-los como métodos de conhecimento antropológico. Isso pode ser uma ficção
controlada, do tipo proposto por Strathern (2006), o que me parece ser melhor que a
ficção descontrolada (por mascarada) própria dos métodos científicos e sociológicos
quando aplicados ao trabalho antropológico. A questão, então, é como compreender a
relação entre as teorias antropológicas e as teorias nativas quando o conceito de relação é
o conceito nativo; ou, no mínimo, quando o conceito de relação antropológico foi de fato
alterado pelos conceitos nativos.
Se partirmos de teorias nativas e as tomarmos como base para as interpretações
antropológicas, então a questão do “eu” e do “outro”, do “sujeito” e do “objeto” adquire
novas dimensões, e pode até deixar de ser uma questão. A distância como método
antropológico se transforma, porque é possível que seja impossível de dimensionar. Sem
“sujeito” e “objeto” como polos da distância, o que nos resta é a transformabilidade, a
permutabilidade e a tradutibilidade; a passagem entre teorias. Ou melhor, a “síntese
disjuntiva ou disjunção inclusiva”, nas palavras de Viveiros de Castro: “modo relacional
que não tem a semelhança ou a identidade como causa (formal ou final), mas a divergência
ou a distância” (2007: 99) – o “devir”.
“Aquilo que precisa ser examinado” diz Strathern, “é a forma da disjunção e não
simplesmente a sua existência” (2006: 145). Nesse sentido, o trabalho de Wagner é
fundamental, pois ele parte da relação e experiência do antropólogo no campo para falar
do fenômeno geral da invenção da cultura. É a experiência do antropólogo, como locus de
experimentação de dois modos de criatividade diferentes, que atualiza a própria invenção
da cultura. Poderíamos, quem sabe, falar do que o nativo faz como “a invenção da vida”,
uma vez que, segundo Wagner, a fonte principal dos equívocos são os modos de fazer
opostos: enquanto o antropólogo “faz cultura” e pensa que os nativos também a fazem, o
que eles fazem é vida, supondo, e percebendo, que o antropólogo esteja fazendo o mesmo.
Se os antropólogos produzem convenções, os nativos experimentam obviações: prática
de transformações de relações umas nas outras, cujo ocultamento posterior (da própria
prática) tem como efeito a objetificação em pessoas. Assim, enquanto o antropólogo
está objetificando os nativos como coisas produtoras de cultura, os nativos estão
objetificando o antropólogo como pessoa. E é essa objetificação nativa do antropólogo
que fica relegada, no melhor dos casos, a esses diários de campo que são a matéria oculta
das etnografias. Mas a antropologia reversa propõe, justamente, uma inversão da ação:
“a carga” diz Wagner, “é de fato um anti-símbolo da ‘cultura’: ela metaforiza as ordens
70 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
deixarmos ou não que sejam as relações ou as fronteiras as que tomem conta de si mesmas,
como víamos acima. Com sorte, e com certa dose de vontade de fazê-lo, conseguiremos
elaborar trabalhos cujo efeito seja o de “desequilibrar o convencional”; o nosso, claro.
Mas temos que estar dispostos a pagar o preço, a experimentar essa “aventura contínua
de ‘imprevisão’ do mundo” (Wagner 2010: 145); o mundo dos outros (dos nativos), no
mínimo, em lugar de chegar ao campo com o nosso acúmulo de questões relevantes à
própria prática antropológica. Imprever inclusive o método da pesquisa, de modo a criar
uma distância com a academia que permita, de fato, o aparecimento de outras éticas
pertinentes com as quais interseccionar as nossas. Assim como as almas nativas, a pessoa
do antropólogo pode ser algo mais que uma pessoa: “uma relação pessoal com o mundo”
(Wagner 2010: 157).
Advogo assim, com Wagner, por uma academia que não seja “o braço direito de
outros interesses comprometidos com a invenção de nossa realidade secular” (Wagner,
2010: 236). Uma academia não acadêmica; que o que perca em acadêmica ganhe em
ética (a mesma questão das distâncias se repetindo). Explicitar a “anatomia da invenção”,
diz Wagner, “é um dever social e político” (Wagner 2010: 236). Há uma escolha entre
aprender a usar a invenção ou ser usado por ela (idem), e nós, antropólogos, temos no
campo a melhor escola possível. Procuremos o confronto, como pede Viveiros de Castro,
aquele que “deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos discursos em
jogo” (2001: 27-28), pois consideramos um problema ao mesmo tempo epistemológico
e político (idem). Problema que ainda pode ter soluções inusitadas, imprevistas para e
pela Antropologia, quando de fato possa se abrir à intersecção com os problemas dos
outros. Se na relação antropólogo/nativo “devemos aceitar suas próprias ‘teorias’ como
uma questão profissional e uma obrigação ética” (Wagner, 1974: 120; tradução minha),
então devemos também aceitar que suas teorias sejam coisas outras que as nossas. “Fazer
cultura” não é o mesmo que “fazer vida”; “fazer vida” pode ter efeitos outros que teorias:
a questão é a de quais distâncias, distâncias de quais lugares, de quais entendimentos,
de quais ações, devemos aplicar como métodos. Do que devemos nos distanciar, enfim,
para poder fazer uma antropologia que reverta os nossos próprios sentidos do humano,
as nossas leis, políticas e relações sociais? No mínimo podemos tentar uma antropologia
que produza uma vida melhor para esses povos que permitem a nossa produção como
antropólogos; não porque eles peçam ou esperem isso, mas porque a nossa Cultura é
inimiga de suas vidas (e, provavelmente, também das nossas). Quais alianças, enfim,
estamos dispostos a atualizar?
LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1950]. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das
Letras.
___________. 1970 [1958]. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
STRATHERN, Marilyn. 2006. O Gênero da Dádiva. São Paulo: Editora Unicamp.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2007. “Filiação Intensiva e Aliança Demoníaca”.
Novos Estudos, (77): 91-126.
___________. 2001. “A propriedade do Conceito”. Texto apresentado no Seminário
Temático Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena).
Caxambu: ANPOCS.
WAGNER, Roy. 2010. A Invenção da Cultura. São Paulo: Cosac e Naify.
___________. 1974. “Are there social groups in New Guinea Highlands?” In: J. M. Leaf
(org). Frontiers of Anthropology.
72 O ANTROPÓLOGO E A VIDA
THE ANTHROPOLOGIST AND THE LIFE
ABSTRACT
Starting from the theories proposed by Eduardo lations in the field for the development of his/her
Viveiros de Castro in “A Propriedade do Conceito”, theoretical arguments. The importance of making
Marylin Strathern in “The Gender of the Gift” and our assumptions explicit and of trying to perceive
Roy Wagner in “The Invention of Culture” this ar- the problems posed by other peoples, is not only a
ticle reflects on the intersection between method theoritical or methodological issue, but an ethical
and ethics in anthropological practice, mainly in and political one too. Its scope can always be enlar-
the field of the anthropology of indigenous peoples. ged and deepened. This enlagered scope is pivotal
Considering that anthropology is at once a form of in defining the role and effect of an anthropology
knowledge and a social relation, the article seeks to inclusive of the peoples that make it possible, in re-
show the importance of methods in which the an- lation to public policy and the more general relation
thropologist establishes and interprets his/her re- with national society.
KEYWORDS
Anthropologist, invention, ethic, aesthetic.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
Belo Horizonte careceu, nas primeiras décadas do educador e fotógrafo. Sua biografia e sua obra per-
século XX, de atividades de arte institucionaliza- mitem compreender aspectos estruturais do campo
das. Em 1917, o pintor fluminense Aníbal Mattos intelectual e artístico da época: a dependência em
foi convidado a radicar-se na cidade para dotá-la de relação ao poder político, a baixa diferenciação de
vida artística organizada. Mattos criou instituições funções no campo cultural, as lutas de concorrência
artísticas fundamentais e implantou o ensino das pelo monopólio da legitimidade artística. A trajetó-
artes nas escolas públicas. Além de pintor e crítico ria de Mattos revela os entendimentos culturais e as
de arte, foi literato, teatrólogo, roteirista de cinema, posições estéticas e morais dos diferentes agentes
arqueólogo, paleontólogo, jornalista, antropólogo, dos campos das artes e do intelecto no período.
PALAVRAS-CHAVE
1 Trabalho apresentado na 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de
2012, em São Paulo, SP, Brasil. O trabalho é resultado de uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da
Cultura Contemporânea – NECC/FAFICH/UFMG, www.necc.fafich.ufmg.br.
“Psaphon, jovem pastor lídio, havia ensinado aos pássaros a repetir: ‘Psa-
phon é um deus’. Ouvindo os pássaros falarem, e compreendendo o que diziam, os
concidadãos de Psaphon o aclamaram como um deus.” (Bourdieu 1968: 126)
2 Na fase de construção da cidade, que coincidiu com o projeto de afirmação de Minas na arena nacional,
as elites dirigentes estavam preocupadas em projetar uma imagem do estado para o resto da Federação,
expressando seu gosto artístico no traçado urbano, na arquitetura pública e privada e na pintura decorativa da
época. Visavam, com a construção de uma nova capital, a expressar tanto sua recusa ao passado colonial como
a aspiração de ingressar na modernidade.
3 Em contraste com essa visão de fragilidade do mundo intelectual e artístico no período, Cristina Ávila
esboça uma atmosfera bem mais otimista. Para ela, apesar do desenraizamento produzido pela transferência
de muitos órgãos públicos de Ouro Preto para Belo Horizonte, ocorreu “uma forma de transplantação da vida
sociocultural da antiga capital, para a manutenção de um estilo de vida na cidade em formação”, um processo
de continuidade cultural que “pode ser observado não apenas na tradição intelectual (...) como também nas
demais manifestações artísticas,” sendo comuns “saraus recitativos, as operetas e as exposições curiosamente
feitas em vitrines comerciais, nos saguões de hotéis ou foyers de teatro” (Ávila 1991: 10). De fato, logo após
a inauguração da nova capital, os cofres públicos estavam praticamente exauridos e as atividades culturais
e artísticas estiveram a cargo das iniciativas de alguns cidadãos. Uma dessas iniciativas coube ao português
Francisco Soucassaux, que construiu em 1899 um teatro e ali encenou peças destinadas ao lazer e à sociabili-
dade das classes letradas. Nesse momento, clubes literários e associações recreativas, geralmente de existência
efêmera, tais como o “Clube das Violetas”, o “Club Rose” e o “Clube das Rosas”, foram criados “para galvanizar
a tremenda crise financeira” que assolava a cidade (Barreto 1950: 274). Esses clubes e associações recreativas
reuniam “os privilegiados nas salas de leitura, de jogos e nos bailes” (Almeida 1997: 79).
4 Dos quinze artistas destacados por Almeida (1997: 84-100) (brasileiros, italianos, alemães, austríacos,
suíços e portugueses), dez tinham formação acadêmica, obtida seja no Brasil (na Academia Imperial de Belas
Artes, no Rio de Janeiro, estudando com Pedro Américo, Victor Meirelles e Georg Grimm), seja no exterior
(Berlim, Florença, Trieste, Berna, Clermont-Ferrand, Bolonha e Veneza). Deve-se também a eles, especial-
mente a Friedrich Steckel, o primeiro estímulo à formação de uma incipiente vida artística na cidade, a partir
de sua loja de tintas e materiais onde expunha telas, constituindo a primeira galeria de arte da nova capital.
Em 1901, Steckel promoveu uma exposição de artes em sua residência, que só não foi a primeira da cidade
porque em 1897 o pintor Correa e Castro realizara no Grande Hotel uma exposição de pinturas (Almeida 1997:
92).
O escritor e crítico de arte Moacyr Andrade resumiu bem a situação dos pintores
que permaneceram em Belo Horizonte nas primeiras décadas de existência da cidade. Ele
comenta que “os pintores faziam suas telas e alguns as mostravam nas vitrines de casas
comerciais. Exposição pública para ser visitada, não. Só de artistas de fora. Estímulo era
o que faltava aos da terra” (Andrade 1982: 269-270). De fato, passado o momento da
inauguração da cidade (1897), as encomendas escassearam e muitos artistas partiram
para outras cidades em busca de novas oportunidades de trabalho. Todos eles “fazendo
quadros nos momentos de lazer. Pintura quase escondida. Estímulo nenhum” (Andrade
1982: 270, grifo nosso)6. Em suma, pode-se dizer que havia artistas antes da chegada de
Aníbal Mattos, sim, mas não havia algo como um campo artístico.
6 Moacyr Andrade prossegue sua crônica dando os nomes dos pintores que atuaram na capital por essa época:
José Quintino, José Jacinto das Neves, Amilcar Agretti, Belmiro Frieiro (irmão do escritor Eduardo Frieiro),
Celso Werneck, Orózio Belém, Francisco Rocha, Honório Esteves, José Peret.
A sua atuação mostra que se voltou decididamente, logo em sua chegada à cidade,
para a institucionalização das atividades intelectuais, artísticas e culturais. Mas não se
limitou a promover a organização do espaço das artes locais, contribuindo com uma
produção numerosa e diversificada. Ao longo do tempo, somou um número relevante
não só de obras de arte como de literatura, teatro, cinema, crítica e história da arte, que o
fazem merecedor da qualificação de verdadeiro “Secretário de Cultura sem nomeação”8.
Mattos foi figura muito ativa, incansável e polivalente, com intensa participação
em várias áreas do conhecimento. Além de pintor foi educador, historiador, jornalista,
crítico de arte, literato, dramaturgo, roteirista de cinema, arqueólogo, paleontólogo,
antropólogo e fotógrafo. Sua atuação em áreas tão diversas das artes, da ciência e da
cultura, mesmo autodidata em muitas delas, não se limitou a ser secundária ou marginal,
tendo desempenhado papel de vivo fomentador em quase todos os espaços da vida
intelectual e cultural da cidade, função que desempenhou sem a formalidade de um cargo
público para tal. Eduardo Frieiro (1926: 540) escreveu o seguinte sobre a atuação de
7 Mattos teve oito filhos. Dentre eles se distingue Haroldo de Mattos, também artista plástico, fundador e
diretor da Escola de Belas Artes da UFMG.
8 Foi o historiador Fernando Pedro, em entrevista à nossa equipe de pesquisa, quem usou essa feliz expressão
para resumir o valor das atividades desenvolvidas por Mattos na cidade.
Prova desse papel de entusiasta, promotor e artífice do espaço social das artes
locais é sua decisiva participação, logo no ano de sua instalação em Belo Horizonte, na
criação da estratégica Escola prática de Belas Artes. A escola, sediada no desaparecido
Palacete Celso Werneck, foi fechada logo em seguida por falta de recursos e recriada mais
tarde, em 1928, com o nome de Escola de Belas Artes, onde Mattos lecionou gratuitamente
desenho e pintura por quatro anos. A escola logo passou a receber subsídio estadual, em
1932, reconhecida pelo governo e denominada Escola de Belas Artes de Minas Gerais
(atual Fundação Mineira de Arte - FUMA) (Ávila 1991: 11 e 38-39).
Fundamental para o projeto criador (Bourdieu 1968) de Mattos foi, desde sua
chegada à capital, a organização de uma série ininterrupta de exposições gerais de artes
plásticas, conferindo às atividades artísticas locais e aos admiradores potenciais uma
inédita e imprescindível rotinização de espaços de exibição e apreciação da produção
artística local, principalmente, mas também de obras de fora do estado, ampliando, desse
modo, a perspectiva estética tanto de produtores quanto de consumidores. De fato, em
1917, organizou nos salões do Conselho Deliberativo a 1ª Exposição geral de Belas Artes
da Capital, em que se expuseram mais de duzentos trabalhos de artistas locais e de outras
regiões do Brasil, evento que viria a se institucionalizar, se repetindo com sucesso nos
anos seguintes. Desse modo, Mattos agregava ao já basilar espaço de reprodução do
campo, constituído pela primeira Escola de Belas Artes, os indispensáveis espaços de
exibição e apreciação, com exposições regulares da produção local e nacional.
Nesse contexto de plena invenção das artes no novo espaço urbano regional –
no sentido de práticas e regras formalmente criadas visando instituir uma tradição no
mundo artístico – Mattos se empenharia ainda na criação de instâncias de consagração
e legitimação das atividades artísticas – o que supõe concursos, júris, premiações,
recompensas, etc. – fundamentais tanto para a estruturação de um campo suficientemente
organizado quanto para prescindir das imprevisíveis iniciativas individuais e da boa
vontade pública para a divulgação e circulação da produção artística, e aspirar à completa
autonomia. Com efeito, em 1918, após os esforços depositados na criação da primeira
Escola de Belas Artes e na organização da primeira exposição de artes plásticas, o vemos
empenhado na estratégica criação da Sociedade Mineira de Bellas Artes, na qual sua
intervenção foi de vital importância (Almeida 1997: 105-7).
Compreende-se que, para os pintores atuantes na cidade àquela época, os
9 O escritor Eduardo Frieiro, contemporâneo de Mattos, fala, no livro Novo Diário, da “visão agigantada” que
Aníbal Mattos tinha de si mesmo e do seu amor à publicidade e à imprensa: “Ninguém melhor do que Aníbal
para se enaltecer a si mesmo e elogiar rasgadamente seus próprios quadros” (Frieiro 1986: 107). Mattos atua-
va nos principais jornais da cidade como crítico de arte sob diversos pseudônimos. Frieiro, na obra supracita-
da, revela que Mattos “passou a redigir, ele próprio, o noticiário das exposições que aqui realizava” (Ibidem).
10 Sobre essas trocas entre os detentores do poder político e os artistas e escritores, ver Bourdieu (2010: 67-
68).
Sabendo como tem sido comum o fenômeno da “invenção das tradições” no período
de 1870 a 1914, nos países europeus, tal como Eric Hobsbawm (1997: 271) tem mostrado,
a extensa agenda de atividades cumpridas por Aníbal Mattos nos primeiros anos de
existência da nova capital, no contexto de uma sociedade em profunda transformação,
para ajustar-se à nova realidade nacional após a Proclamação da Republica, autoriza
interpretar sua trajetória como a de um agente destacado do campo das artes e das
letras belo-horizontinas que desempenhou importante papel político de criador das suas
instituições fundamentais, mas também de inventor de suas tradições e do simbolismo
ritual, esforço equivalente, em menor grau, àquele que tinha se desenvolvido na Europa,
poucos anos antes, por ocasião da emergência das novas sociedades nacionais.
Tal como os “heróis primordiais” dos grandes relatos míticos, personagens
responsáveis pela introdução das novas artes e ofícios num povo, coube a Mattos, em
seu projeto criador, a transformação das práticas artísticas amadoras, “escondidas” e
líricas, em um universo organizado, secular e público de instituições oficiais dedicadas
à produção, reprodução, circulação e consumo da arte local. Coube a ele a primeira
formulação da linguagem simbólica pública e dos cenários e rituais consagradores dessas
novas instituições: as cerimônias, os júris, as premiações, os vernissages e todas as
demais reuniões legitimadoras das atividades artísticas, nas quais há inúmeros registros
de sua participação. Foi também Mattos que, com seus numerosos escritos de crítica e
história da arte em Minas, e até mesmo com seus trabalhos sobre paleontologia e pré-
história, dotou as artes mineiras de um extenso passado – se levamos em conta seus
estudos arqueológicos e de arte rupestre – e de um passado ilustre – considerando
seus ricos estudos da história da arte colonial e das igrejas mineiras –, passado esse
convocado para conferir identidade e legitimidade às aspirações de reconhecimento,
local e nacional, dos produtores artísticos da nova capital. Assim, a conciliação almejada
pelas elites, entre a velha tradição colonial e a modernidade materializada no novo centro
urbano, encontraria no palco da ritualização pública da produção artística um meio eficaz
de expressão simbólica da continuidade e das transformações sociais, econômicas e
políticas em curso.
Como ensina Bourdieu, para além das lentes idiográficas tradicionais dos estetas,
Nesse sentido, diversos autores (Dias 1971; Miceli 2004; Santos 1986) concordam
que, para compreender a história das artes belo-horizontinas nas primeiras décadas
do século XX, é preciso determinar e esclarecer os efeitos do mecenato estatal sobre
as formas que assumiram na cidade a produção e as instâncias de reprodução e de
consagração artísticas. A presença e as iniciativas do Estado durante os primeiros anos de
vida da cidade - tanto na demanda de bens artísticos para ornamentar prédios públicos
e residências de cidadãos que deviam exibir uns aos outros seu refinamento de gosto,
quanto na criação de instituições de ensino das artes e de espaços e eventos próprios
à exibição da produção artística - é contemporânea da própria fundação da cidade e a
acompanhou durante várias décadas.
Por outro lado, nunca houve em Belo Horizonte aquela conjunção de fatores
econômicos, demográficos e institucionais que, no período entre 1885 e 1925, permitiu
o surgimento, em São Paulo, “de um embrião avantajado de mercado de arte, dotado
das principais características de seus congêneres estrangeiros”, materializando-
se em instituições especializadas na formação de artistas, em espaços de exibição e
comercialização da produção artística local e estrangeira, e contando ainda com “um
grupo destacado de colecionadores privados, os mesmos que frequentavam exposições
e atuavam como patronos e incentivadores das principais iniciativas institucionais no
campo das artes plásticas” (Miceli 2003b: 21).
Como vimos, foi desse trabalho de construção institucional que se ocupou Aníbal
Mattos desde sua chegada. Não contava, porém, com os recursos materiais dos paulistas.
Primeiro, porque Minas ainda vivia uma situação econômica estagnada (Dulci 1999);
segundo, porque Minas não dispunha de nada parecido com o conjunto de mecenas das
artes paulistas, conforme o relato de Miceli (2003b); terceiro, porque não houve em BH
aquele fluxo migratório tão decisivo na formação de novos gostos artísticos e de renovação
das perspectivas estéticas dos artistas plásticos em SP (Miceli 2003b).
São especialmente interessantes as ambivalências que a dependência do aparelho
de Estado criava nos intelectuais mineiros: ao mesmo tempo participando das esferas do
poder, seja por laços familiares e de amizade, seja por relações profissionais, políticas e
econômicas, e vendo-se na necessidade (política, moral) de criticar esse poder com o qual
conviviam intimamente na vida diária, os artistas desenvolveram diversas estratégias
para conquistar a autonomia indispensável à constituição de um verdadeiro campo
À luz dessas vívidas descrições de Nava, e à falta de impressões das mesmas relações
com o aparelho do Estado de nosso artífice das artes, não parece forçado imaginar uma
situação equivalente para os artistas, de modo que podemos concluir com Bourdieu,
quando afirma que a relação entre os produtores culturais e as classes dominantes
caracteriza-se pela subordinação estrutural dos primeiros em relação ao comanditário,
“mais frequente entre os pintores, mas também atestada no caso dos escritores”, bem
como pela fidelidade a um mecenas ou a um protetor oficial das artes (Bourdieu 2010:
65).
Nesse ambiente de mútua dependência e de subordinação estrutural, especialmente
de artistas, é conhecido “o conservadorismo estético que leva as frações das classes
dominantes mais distantes do polo artístico a rejeitar todas as formas de arte libertas
dos cânones estéticos do passado” (Bourdieu 1982: 292). É possível supor também que o
pecado que atribuíram a Aníbal Mattos alguns historiadores ─ haver bloqueado, por ação
e omissão, o surgimento de obras modernistas nas artes plásticas belo-horizontinas ─
11 Relato de Nava (2003: 199) sobre o tratamento que receberam: “Ora, aqueles rapazes desrespeitosos, es-
crevendo em revistas do Rio e depois de São Paulo, fazendo versos sem rima e sem metro, descobrindo pedras
no meio do caminho – só podiam ser uns canalhas [...] Os escritores, os vates, os pintores, os escultores que
tinham o viático do Palácio descascavam em cima da súcia. Além de confusamente tratados de futuristas, éra-
mo-lo também de nefelibatas – expressão exumada dos velhos insultos aos simbolistas e servindo agora para
nós que éramos os que andávamos com os pés fora do chão em vez de casqueá-lo solidamente a quatro patas,
da Praça da Liberdade ao Bar do Ponto, dando uma paradinha no Conselho Deliberativo (vindo por Bahia) ou
no Senado e na Câmara (quem descia João Pinheiro)”.
[...] trava-se uma clara luta político-ideológica no campo artístico, que toma
a forma específica do embate entre modelos pedagógicos e estéticos: aos clichês,
aos modelos ideais, às formas rígidas de ensino do academicismo, a nova escola vai
12 É interessante observar, para caracterizar esse campo em formação, que a Semana de Arte Moderna de
1922 de São Paulo não tenha repercutido sobre os artistas plásticos belo-horizontinos. Ao contrário da estreita
relação e mútua influência, nas décadas de 20 e 30, entre os escritores e poetas modernistas paulistas e
mineiros, os pintores mineiros se mantiveram distantes do modernismo, permanecendo fiéis a uma concepção
de arte naturalista, de documentação da realidade. Apegados à ordem antiga, à força da tradição, preferiram
pintar telas com imagens de paisagens e panoramas coloniais. As ideias modernistas em pintura, desenho e
escultura, só se afirmaram em Belo Horizonte duas décadas mais tarde.
Ao contrário dos artistas de vanguarda que são de alguma maneira duas ve-
zes “jovens”, pela idade artística mas também pela recusa (provisória) do dinheiro
e das grandezas temporais por onde chega o envelhecimento artístico, os artistas
fósseis são de alguma maneira duas vezes velhos, pela idade de sua arte e de seus es-
quemas de produção mas também por todo um estilo de vida do qual o estilo de suas
obras é uma dimensão, e que implica a submissão direta e imediata às obrigações e
às gratificações seculares.
Não é improvável que, nessa época, a partir dos conflitos envolvendo Mattos e
Guignard, tenha surgido uma avaliação retrospectiva da atuação de Aníbal – como
alguém que “atravancou” a pintura moderna em Minas. Ficando obscurecido o seu papel
demiúrgico de fundador e inventor do campo artístico da cidade.
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BOURDIEU, Pierre. 1968. “Campo Intelectual e Projeto Criador”. In: POUILLION, Jean
ABSTRACT
Belo Horizonte lacked institutionalized artistic acti- understanding of the structural aspects of the in-
vities in the first decades of the twentieth century. In tellectual and artistic field of this period: its depen-
1917, the painter Aníbal Mattos was invited to settle dence to the political power, the low differentiation
in the city to help giving it an organized artistic life. of functions in the cultural field, the struggles of
Mattos created fundamental art institutions and competition for the monopoly of artistic legitimacy.
implemented the teaching of arts in public schools. His career opens a view of the cultural understan-
Besides being a painter and an art critic, he was also dings and the aesthetic and moral positions of the
a writer, playwright, screenwriter, archaeologist, different agents of the artistic and intellectual field
paleontologist, journalist, anthropologist, educator in the period.
and photographer. The study of his career allows an
KEYWORDS
Anthropology of art, sociology of culture, artistic field, painting, Belo Horizonte.
SOBRE OS AUTORES
RONALDO DE NORONHA
Professor Adjunto do Departamento de Sociologia e Antropologia, FAFICH/UFMG.
Contato: [email protected]
MARCOS H. B. FERREIRA
RESUMO
A partir de uma etnografia sobre graffiti e pixação sas mobilizações coletivas são capazes de produzir.
realizada em Belo Horizonte, o artigo discute a pro- Num esforço de compreender sentidos, os graffi-
dução da paisagem urbana a partir de um ponto de tis e as pixações, tomados como símbolos inscritos
vista duplo, que articula uma abordagem de aspec- na superfície da cidade, são interpretados à luz de
tos sociológicos acerca das relações entre os indi- uma certa teoria sobre a arte e de uma certa teoria
víduos e grupos, das mobilizações que produzem sobre a cidade a fim de se entender o que essas in-
significados coletivos e das contradições entre dife- tervenções visuais na paisagem urbana são capazes
rentes imagens da cidade a uma análise dos aspec- de dizer sobre o próprio “fenômeno urbano” em sua
tos simbólicos ou processos de significação que es- forma atual.
PALAVRAS-CHAVE
Graffiti, pixação, cidade, paisagem.
1 Pixação estará escrito aqui com “x” pelos mesmos motivos apresentados por Alexandre Barbosa Pereira
(2005): é assim que os pixadores escrevem e isso diferencia esta de outras escritas na parede, portanto, de
outras pichações.
2 Os stickers, ou adesivos, feitos manualmente ou por meios digitais, constituem, ao lado do graffiti e da pix-
ação, uma modalidade de intervenção visual urbana, termo que é às vezes substituído por Street Art. Dentro
da mesma categoria incluem-se o stencil feito pela técnica do molde vazado e as tags ou assinaturas feitas com
spray ou caneta hidrográfica.
3 No Hip Hop, o MaC é quem controla o microfone, responsável por soltar as rimas e fazer a comunicação
com o público. Por isso, é considerado o “mestre de cerimônia”.
4 As informações descritivas sobre o Duelo de MCs referem-se à época em que se realizou a pesquisa de cam-
po, encerrada em meados de março de 2009.
5 O termo “rede” foi empregado por Radcliffe-Brown (1952: 90), caracterizando a estrutura social, que deveria
constituir o objeto de investigação antropológica, como “a rede de relações sociais efetivamente existentes”.
Segundo Firth (1954: 4), Radicliffe-Browm usou a noção de “rede” para expressar de modo impressionista
“o que sentia ao descrever metaforicamente o que via”. Foi Barnes quem formulou uma noção mais precisa
do termo, concebendo a “rede” como um campo social formado por relações entre pessoas, relações essas
definidas por critérios subjacentes ao campo social em questão (como vizinhança e amizade, por exemplo). A
“rede” para Barnes é “ilimitada” e não apresenta lideranças ou organizações coordenadoras. Qualquer pessoa
mantém relações com várias outras, que, por sua vez, se ligam ainda a outras. (Mayer 1987: 129)
6 José Guilherme Cantor Magnani refere-se à noção de circuito como algo que: “une estabelecimentos, es-
paços e equipamentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou oferta de determinado serviço,
porém não contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos em sua totalidade apenas pelos usuários”.
(Magnani 2000: 45)
7 O termo “artistas de rua” engloba os atores envolvidos com outras modalidades de intervenção visual urbana
como sticker, stencil e tag. A cena do graffiti pode envolver também alguns pixadores, mas pode-se consider-
ar que os pixadores constituem outra rede social.
8 “Colar” com alguém significa “estar junto”, “andar junto”, frequentar junto os lugares. Também pode se
referir ao ato de colar stickers.
9 Utilizamos, aqui, o termo “ritual” no sentido de uma “ação estereotipada”, portanto, “ritualizada”, ou
seja, um conjunto codificado de palavras proferidas, de gestos executados e de objetos manipulados, e que
acontecem em um encadeamento articulado (com princípio, meio e fim), mas desvinculando esse termo da
noção de “sagrado”, originalmente associada a ele.
10 Turner define ritual como “o comportamento formal prescrito para ocasiões não devotadas à rotina tec-
nológica, tendo como referência a crença em seres ou poderes místicos”. E reforça que “o símbolo é a menor
unidade do ritual (...)” (Turner 2005: 49).
11 Como alguma mensagem de provocação ou um atropelo, ou seja, uma transposição de algum pixo sobre
outro.
12 “O que seria interessante como pesquisa, como investigação para arquitetos e urbanistas seria analisar
concretamente o que são os pontos de passagem arquitetônicas e urbanísticas entre esses espaços lisos e
esses territórios existenciais; como é que a gente consegue, assim mesmo, nessa merda toda, fazer pedaços de
territórios para si” (Guattari 1985: 114).
Sempre tem um lero lero... (...) você pode falar que está desenvolvendo um
trabalho artístico, que o muro tava todo pixado e você tá pintando, que você trabalha
com isso, que já trabalhou pra prefeitura... Você pode falar que faz design gráfico,
artes plásticas, até curso que você nunca fez, você pode falar.
Como signos linguísticos, as intervenções visuais de que tratamos não dizem muita
coisa, ou dizem apenas aos iniciados. Como signos sociais, signos de distinção, elas, na
maioria das vezes, não somente dizem como gritam mesmo, ainda que, ao invés de uma
identidade, reivindiquem uma diferença absoluta. Mas é como elemento simbólico,
inscrito na paisagem da cidade que essas intervenções visuais urbanas podem “revelar”
mais.
Não poderíamos esperar que as intervenções “significassem” apenas se pudéssemos
“ler” as letras, as sílabas e as palavras. Algumas das intervenções nem são exatamente
letras, mas figurações; outras são, de fato, estilizações de nosso alfabeto padrão, e tentam
chamar a atenção - mais uma vez – para o fato de que as letras não dizem apenas o que
elas codificaram e o que será decodificado como mensagem verbal entre os falantes de
uma mesma língua.
O sistema gráfico, como alertara Cardona, é um sistema cognitivo próprio que
guarda, tal como a fala, uma relação direta com os significados conhecidos de uma cultura,
e que não precisa ser recodificado em outro código para que cumpra sua função (Cardona
1994: 49). Não depende, portanto, dessa transposição de um sistema de significação para
outro, do gráfico para o verbal, - da letra à sílaba, à palavra e ao conceito - para que possa
fazer sentido.
Além do mais, essas letras estilizadas de que falamos são, portanto, formas, no
sentido de que representam tentativas de modificação de um modelo, que é o alfabeto
latino. Mas são, ao mesmo tempo, um acontecimento na história. E é isso o que, segundo
Pierre Francastel, marcará a diferença entre “as formas” e “a Forma”, ou seja, entre as
IMAGENS DA CIDADE
Eles produzem cidade porque produzem diferença. Não foi por acaso que, em
um dos melhores textos já escritos sobre graffiti, Baudrillard acabou construindo uma
reflexão extremamente rica sobre a cidade das últimas décadas, esse espaço recortado
por signos de distinção, que “já foi prioritariamente o lugar da produção e da realização
da mercadoria”, mas que é hoje o lugar de execução do signo “como uma sentença de vida
e de morte” (Baudrillard 1976: 2). Para Baudrillard:
Nós não estamos mais nas cidades de cinturões vermelhos das fábricas e
das periferias operárias. (...) Hoje, a fábrica, enquanto modelo de socialização pelo
capital, não desapareceu, mas ela cedeu o lugar, na estratégia geral, à cidade inteira
como espaço do código. A matriz do urbano não é mais aquela da realização de uma
força (a força de trabalho), mas aquela da realização de uma diferença (a operação
do signo). A metalurgia tornou-se “semiurgia” (Id. Ibid.: 3).
Isso significa dizer que a cidade é o império dos signos distintivos. Portanto, “o
reconhecimento da diversidade e a ritualização do constrangimento que ela suscita levam
a um ajustamento específico que, de alguma forma, utiliza o dissenso e a tensão como
fatores de equilíbrio úteis à cidade” (Id. Ibid.: 9).
Segundo Canevacci (1993: 78), a experiência cotidiana dessa diferença, “o excesso
13 O poder simbólico “tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por meio
da imposição mascarada (logo ignorada como tal) de sistemas de classificação e de estruturas mentais ajusta-
das às estruturas sociais” (Bourdieu 1989: 14).
A América foi definida ironicamente como sendo um país que passou da bar-
bárie à decadência, sem conhecer a civilização. Esta fórmula poderia ser aplicada,
com mais propriedade, às cidades do Novo Mundo: sem se deter na maturidade,
passam do novo ao decrépito (Lévi-Strauss 1955: 92).
Essa foi, por exemplo, a ameaça representada pela mercadoria para, nos termos
de Lefebvre, a “cidade política” (a cidade dos sacerdotes, guerreiros, príncipes, chefes
militares, administradores, escribas, ordem e ordenação) antes que ela deixasse de ser
a “cidade política” para se tornar, de fato, a “cidade mercantil”. A troca comercial, a
partir daí, se tornaria função urbana, fazendo surgir “uma nova forma” (novas formas
arquiteturais e urbanísticas) e, em decorrência, “uma nova estrutura” do espaço urbano
(Lefebvre 2008).
Foi essa, também, ainda segundo Lefebvre, a ameaça representada pela indústria
ABSTRACT
Starting from the construction of an ethnography aspects or processes of signification that these col-
of the graffiti and the pixação made in Belo Hori- lective mobilizations are able to create. As an effort
zonte, this article argues about the production of to ‘comprehend meanings’, graffitis and pixações,
the urban landscape made under a double point of as inscribed symbols on the city’s surface, are in-
view. This point of view articulates the approach of terpreted in the light of certain theories about the
sociological aspects in the relations between indivi- art and certain theories about the city, in order to
duals and groups, the mobilizations which produce understand what these visual interventions in the
collective meanings and the contradictions between urban landscape are able to say about the ‘urban
different city images to the analysis of the symbolic phenomenon’ itself in its current form.
KEYWORDS
Graffiti, pixação, city, landscape.
SOBRE O AUTOR
MARCOS H. B. FERREIRA
Mestre em Antropologia pela UFMG, professor do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da
PUC-GO.
Contato: [email protected].
RESUMO
Este artigo está inserido em uma temática geral: a e Marcados (2009), de Claudia Andujar. Para isso,
representação do indivíduo na fotografia. Como o uso como ferramenta analítica os conceitos de rosto
assunto é demasiado extenso, gostaria de retomar unívoco, corpo polívoco e devir-animal trabalhados
sucintamente alguns aspectos da constituição da por Deleuze e Guattari, e estendidos a outros au-
fotografia como linguagem no século XIX e algu- tores, como David Le Breton e José Gil. Ainda que
mas de suas implicações na representação do sujei- os trabalhos analisados partam de pressupostos,
to retratado. A partir daí, meu objetivo é analisar assuntos, objetivos e tratamentos formais bastante
o trabalho fotográfico que venho realizando com diversos, convergem ao entender a fotografia como
os carroceiros da Regional Leste de Belo Horizon- articuladora de um encontro com o outro. Mais que
te, desde 2010, por meio de uma comparação com isso, a fotografia e o ato fotográfico se apresentam
dois trabalhos fotográficos contemporâneos – An- como potência relacional – tanto de ação quanto de
tropologia da Face Gloriosa (1997), de Arthur Omar discurso sobre esse encontro.
PALAVRAS-CHAVE
Antropologia da imagem, fotografia, devir-animal.
1 Essa expansão foi tão rápida que no Brasil, por exemplo, entre 1896 e 1898, já aconteciam as primeiras
exibições cinematográficas e filmagens no Rio de Janeiro, realizadas pelos irmãos italianos Paschoal e Afonso
Segreto.
2 Há de se notar, como aponta Clifford, que exatamente entre as décadas de 1920 e 1930 a etnografia e o sur-
realismo tem um contato singular e profícuo, que parte justamente de uma “orientação ou atitude em relação à
ordem cultural”, baseada na fragmentação e justaposição de valores culturais como problema e circunstâncias
contemporâneos. Esse encontro irá gerar questões fundamentais e que dissolvem fronteiras rígidas entre ci-
ência e arte e os modos de apreensão/representação do real. “Diferentemente do exotismo do século XIX, que
partia de uma ordem cultural mais ou menos confiante em busca de um frisson temporário, de uma experiência
circunscrita do bizarro, o surrealismo moderno e a etnografia partiam de uma realidade profundamente ques-
tionada. Os outros agora apareciam como alternativas humanas sérias; o moderno relativismo cultural tornou-
se possível. (...) As sociedades ‘primitivas’ do planeta estavam cada vez mais disponíveis como fontes estéticas,
cosmológicas (...)” (CLIFFORD 2011: 124)
4 Como aponta Benjamin (Benjamin 1996b: 97), mais que os pintores paisagistas, o advento da fotografia
afetou diretamente os retratistas. Após duas décadas de sua invenção, quase todos os pintores de retratos em
miniaturas transformaram-se em fotógrafos.
5 Como observa Benjamin, esta linguagem simbólica é criada no momento em que a “nova técnica” e a “as-
censão burguesa” travam conhecimento uma da outra: “Essas imagens nasceram num espaço em que cada cli-
ente via no fotógrafo, antes de tudo, um técnico da nova escola, e em que cada fotógrafo via no cliente o membro
de uma classe ascendente, dotado de uma aura que se refugiava até nas dobras da sobrecasaca ou da gravata
lavalliere” (Benjamin 1996b: 99).
6 Seguindo, nesse sentido, a tradição dos pintores e paisagistas à época das empreitadas europeias do além-
mar no século XV, como, por exemplo, Eckhout e Debret (Barbosa e Teodoro da Cunha 2006: 10-11).
7 É notório que muitas das fotografias de E.S. Curtis eram realizadas a partir de interferências do fotógrafo,
que chegava a recriar cenários e vestimentas no processo de documentação das diferentes etnias norte-ameri-
canas, em nome de um resgate de tradição perdida, entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas
do século XX.
8 Nesta seção faço um exercício de aproximação a algumas ideias trabalhadas por Deleuze e Guattari que
podem servir como ferramenta analítica neste trabalho.
9 Para Deleuze e Guattari, o fato de a semiótica significante ser apenas um dentre outros regimes de signos
possíveis relativiza sua importância e ao mesmo tempo destaca o campo das ações. “Se denominamos semiolo-
gia a semiótica significante, a primeira é tão somente um regime de signos dentre outros, e não o mais impor-
tante. Por isso a necessidade de voltar a uma pragmática, na qual a linguagem nunca possui universalidade em
si mesma, nem formalização suficiente, nem semiologia ou metalinguagem gerais” (Deleuze e Guattari 1995:
50).
10 Como destacam Deleuze e Guattari, qualquer formalização de uma expressão – principalmente lingüística - é
um regime de signos. E um regime de signos constitui uma semiótica (Deleuze e Guattari 1995: 61).
11 Le Breton aponta que este é um movimento que se dá primeiramente na aristocracia; as camadas populares
por muito tempo ainda se mantém inseridas nesse contexto coletivo.
1A 3A 4A
2A
1A, 2A, 3A, 4A: Antropologia da Face Gloriosa, de Arthur Omar. São Paulo: Cosac Naify, 1997.
2B 3B 4B
1B
1B, 2B, 3B, 4B: Marcados, de Claudia Andujar. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
3C 4C
1C, 2C, 3C, 4C, Nian Pissolati - Carroceiros. Belo Horizonte, 2012.
VIOLÊNCIA ESTÉTICA
IMAGEM-POLÍTICA
Sim, essa viagens, bem como as fotos, refletiam meu interesse pela diversi-
dade. Eu não tinha trabalhado na imprensa até então, e, assim, em vez de possuir
caráter documental ou fotojornalístico, as imagens registravam sobretudo meu pro-
cesso pessoal no conhecimento de outros povos: o aspecto humano; e também uma
busca de mim mesma (Andujar 2005: 106).
A busca pelo encontro com outrem e consigo mesma irá marcar toda a sua obra,
ganhando força e problemática específica na série de fotos que produz com os Yanomami
nos anos 1970 e 198014. Seu contato com essa etnia – que começa pela fotografia – se
transforma em uma intensa luta política que irá culminar na criação da Comissão pela
Criação do Parque Yanomami – CCPY15, notadamente voltada para a luta pelos direitos
desse povo.
A série fotográfica que mais tarde iria compor o livro Marcados tem origem em
um contexto político específico. Em meados da década de 1970, o Milagre Brasileiro e
13 Nascida na Hungria (1931), Andujar mudou-se para os Estados Unidos aos 15 anos, para viver com um tio,
depois de a família paterna ser assassinada nos campos de concentração nazistas. Em 1955, sua mãe, que havia
emigrado para o Brasil, a convidou para uma visita. Desde então, passou a morar no país, ganhando, nos anos
70, a nacionalidade brasileira (Andujar 2005: 103).
14 Em entrevista concedida em 2010, Andujar estima que tenha produzido, no mínimo, 30 mil fotografias com
os Yanomami (Boni 2010: 265).
15 Andujar foi uma das fundadoras da CCPY e foi sua coordenadora de 1979 a 2000 (Andujar 2005: 120-121).
IMAGEM-IDENTIDADE
Entre 2011 e 2012 desenvolvi uma série de ensaios fotográficos com carroceiros
da região leste de Belo Horizonte, durante minha pesquisa de mestrado no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia, na UFMG. Meu contato com os carroceiros iniciou-
se em 2010, no bairro São Geraldo, em Belo Horizonte, quando coordenei uma oficina
de fotografia e artes gráficas na região. Meu interesse de relacionamento e pesquisa se
deu, a princípio, devido à complexa relação que eu percebia entre o grupo e a cidade –
o ofício, historicamente presente em Belo Horizonte, ainda que inserido numa lógica
urbana18, ocupa um lugar cada vez mais marginalizado. Estima-se que há hoje cerca de
14 mil carroceiros em atividade na cidade. Naturalmente, meu convívio e conversa com o
grupo me conduziu para uma problemática específica, qual seja, a relação entre homem
e animal, que perpassa toda a experiência urbana do carroceiro, bem como suas relações
dentro e fora do grupo.
Minha pesquisa se utiliza da fotografia como método de relacionamento e como
ferramenta de registro e apreensão desse encontro. Assim, desde os primeiros contatos,
minha relação com os carroceiros se deu também a partir da produção de imagens. E não demorou
16 A fotógrafa faz um relato detalhado da situação vivida nesse período (Andujar 2009: 144).
17 Esse livro é composto também por uma análise crítica das fotografias, realizada pela pesquisadora Stella
Senra. Ao longo do artigo retomo algumas de suas proposições.
18 Segundo dados da Escola de Veterinária da UFMG, em 2004, os carroceiros foram responsáveis pelo trans-
porte e destino de 68% das 2 mil toneladas de entulhos gerados diariamente na construção civil (Rezende
2004).
Meu trabalho ainda não encontrou sua forma definitiva, que creio que não
existe. Como os mitos, adapta-se, incorpora novas imagens e toma novas formas,
passa pela transcodificação (das imagens) para se atualizar, em uma bricolagem vir-
tual infinita (Andujar 2005: 169).
19 Refiro-me às exposições e à publicação dos livros, no caso de Omar e Andujar. As obras dos dois fotógrafos
foram concebidas aproximadamente 25 anos após a produção das imagens. As fotografias de Andujar foram
realizadas entre 1981 e 1983, e a exposição Marcados foi exibida pela primeira vez em 2006. A primeira edição
do livro Marcados é de 2009. As fotografias de Omar foram realizadas ao longo de 25 anos, a partir da década
de 70. A primeira exposição de Antropologia da Face Gloriosa data da década de 80, e a segunda de 1994, mas
a exposição na 28ª Bienal de São Paulo e seu posterior desmembramento para reflexões formatadas em livro se
deram entre 1997 e 1998. O livro Antropologia da Face Gloriosa foi impresso em 1997, já O zen e a arte gloriosa
da fotografia, livro em que analisa mais demoradamente esse trabalho, é de 2003.
A dimensão antropológica dos três trabalhos parece residir naquilo que as imagens
deixam transparecer da relação construída com os sujeitos retratados. Os resultados que
chegam até o observador são produto desse encontro de subjetividades que se interferem
e criam algo novo.
Tanto Andujar quanto Omar reconhecem o encontro e a maneira como ele irá
se desenvolver no ato fotográfico enquanto potência em suas imagens. Andujar vê seu
próprio processo de formação enquanto fotógrafa diretamente relacionado àquele povo.
Omar também vê no ato fotográfico a possibilidade de afetar e ser afetado. Ao contrário
do voyerismo muitas vezes associado ao ofício, para Omar, o ato fotográfico está inserido
em um movimento de perspectivas, mais aberto e complexo:
20 Em 1997, a Prefeitura de Belo Horizonte, em parceira com a UFMG, criou o Programa Carroceiros, legiti-
mando o ofício no município. O Programa surgiu com a proposta de atuação em três frentes: social, veterinária
e técnica.
Essa observação pode ser lida à luz de Deleuze e Guattari, para quem os afectos
são devires21. O ato fotográfico apreendido por essa perspectiva se constrói na medida em
que aqueles que dele participam se afetam. O que Omar busca é mesmo uma forma de
ação efêmera advinda desse encontro, lampejos de compartilhamentos entre fotógrafo
e fotografado que irão alterar ambos. Antropologia da transformação. Assim, a imagem
que será formada depende de ambos, e mais do que isso, a imagem é produto de um devir
que se dá a ver na imagem mesma, porque criado no (e pelo) ato fotográfico.
Se a ligação com os sujeitos, no caso de Andujar, é construída ao longo de vinte
anos de convivência e trabalho intenso na região, a de Omar se dá em encontros furtivos,
no calor de uma festa de carnaval. É um apanhado enorme de rostos anônimos na
multidão. Para Omar, essa conexão, essa possibilidade de encontro, não tem a ver com o
tempo de relação, mas com a potência do encontro.
A diferença no modo como cada um se relaciona com o tempo pode ser observada
na própria estrutura das imagens. As fotos de Andujar são sóbrias, nítidas e cruas. Atrás
das pessoas fotografadas, apresenta-se um fundo minimamente detalhado. A floresta, as
casas e outras possibilidades de caracterização e ambientação são deixadas de lado. O que
as fotografias dão a ver são pessoas donas de rostos complexos e ambíguos, que guardam
em si os traços da alteridade22. Muitas vezes, com o olhar diretamente direcionado para
a lente, posam para a objetiva. Mesmo quando não há pose construída, ainda assim há
relacionamento direto entre corpo e câmera, uma presença e um movimento que se
instauram na imagem mesmo quando o corpo não se mostra por inteiro. Ao mesmo tempo,
o olho na altura da lente, devolve e questiona o olhar daquele que observa. A câmera é
fixa e dura, mas os olhares são mais fortes que essa fixidez. A disparidade de posição
inicial entre fotógrafo-fotografado é abalada por esses olhares – às vezes devolvendo
a dureza do olhar mecânico, às vezes tímidos, às vezes amedrontados ou fugidios – e
por esses corpos, mesmo quando invisíveis, presentes. Ao contrário da pretensa fixidez
implícita ao princípio fotográfico, o que se vê é a falha em fixar.
São, por isso, fotografias a princípio silenciosas, que se transformam conforme o
tempo que se dedique a sua observação. Para que sejam encontradas, o observador deve
21 Por esse viés, tanto fotógrafo como fotografado são agenciadores de potências, e compõem esse movimento
de afetação descrito pelos autores: “A cada relação de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, que
agrupa uma infinidade de partes, corresponde um grau de potência. Às relações que compõem um indivíduo,
que o decompõem ou o modificam, correspondem intensidade que o afetam, aumentando ou diminuindo sua
potência de agir, vindo das partes exteriores ou de suas próprias partes. Os afectos são devires.” (Deleuze e
Guattari 1997: 42)
22 Senra (2009) faz uma análise detalhada e instigante de como se constrói a “ausência de rosto” nesses
retratos.
Daí o poder da fotografia, que deixa de ser um simples artifício para se tornar
a única possibilidade de encontro neste trabalho. Como Benjamin (1996b), o autor vê
na fotografia a possibilidade de revelar aspectos da realidade impossíveis de serem
registrados por olhos nus. E tais imagens são marcadas por texturas, borrões, são
desfocadas, granuladas. A maioria dos rostos que figuram em suas imagens estão em
movimento. O real é explicitamente transfigurado pela lente em ângulos e movimentos
diversos, para buscar algo até então invisível.
Já as fotografias que faço com carroceiros e animais parecem ser duplamente
marcadas pelo tempo. Há um tempo que se relaciona à pose, para o homem descer de
seu animal e se arranjar da maneira que considera mais adequada. A câmera revela um
plano aberto, em que os corpos inserem-se no ambiente rotineiro: o chão de terra batida
dos bota-fora ou de um curral urbano. Todas as imagens são construídas a partir de
uma breve interrupção em seu fluxo de trabalho e chamam atenção por sua diferença em
relação à dinâmica urbana. Se os carroceiros estão imersos cotidianamente na corrente
de carros e sinais de trânsito, as imagens parecem respeitar uma outra temporalidade,
que também lhes é própria.
Mas ainda que essa visão panorâmica apresente uma homogeneidade de assunto e
de ambientação, o conjunto homem-animal faz mostrar várias possibilidades de interação
entre os corpos, que remetem a experiências vividas cotidianamente. E, nesse sentido,
as imagens se relacionam com um outro tempo, constituído por diferentes durações
desse bloco-corpo. Na fotografia 1C homem e cavalo fundem-se e quase não há traços de
distinção. A sombra no chão, nítida e marcante, é indício de um único corpo. O último
23 Em What is an Animal?, livro multidisciplinar organizado por Tim Ingold, Richard Tapper aponta que,
diferentemente de uma lógica de antropomorfização do animal característica das sociedades pós-Revolução
Industrial, há um outro tipo de relação que camponeses e pastores mantém com animais e que aqui pode ser
relacionada aos carroceiros. E, é claro, esse tipo de relação tende a uma marginalização cada vez maior de tais
indivíduos: “In a society which offers little experience of what animals are ‘really’ like, they become stylized
or idealized humans: hence the role of pets, zoos, and animal toys, the prevalence of animals in children’s
stories, and the universal success of both animal cartoons and wildlife documentaries. At the same time animal
metaphors of ‘bestiality’ proliferate, focusing particularly on ‘vermin’, but also on factory-farmed livestock,
with special emphasis on the pig (...). The animals of the mind remain with us, while real animals have be-
come marginalized. As Berger (...) points out, “the marginalisation of animals is today being followed by the
marginalisation and disposal of the only class who, throughout history, has remained familiar with animals
and maintained the wisdom which accompanies that familiarity.” He means peasant farmers, but I would add
pastoralists” (Tapper 1994: 55)
24 No mesmo livro organizado por Ingold, o artigo de Thomas Sebeok trata a relação ser humano-animal nas
perspectivas tanto semiótica como biológica e aponta algumas possíveis interações constituídas em variadas
situações culturais e históricas: (a) man as predator; (b) man as prey; (c) man as partner; (d) sport and en-
tertainment; (e) parasitism; (f) conspecificity; (g) insentience; (h) taming; (i) training. (Sebeok 1994: 68 - 71)
25 É significativo que as imagens aqui funcionem como dispositivos que acionam movimento contrário à
catalogação e objetivação efetuada pelo poder, e tomam uma dimensão política, que é própria do devir-animal:
“Há toda uma política dos devires-animais, como uma política das feitiçarias: esta política se elabora em
agenciamentos que não são nem os da família, nem os da religião, nem os do Estado. Eles exprimiriam antes
grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições recon-
hecidas, mais secretos ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos. Se o devir-animal toma a forma da
Tentação, e de monstros suscitados na imaginação pelo demônio, é por acompanhar-se, em suas origens como
em sua empreitada, por uma ruptura com as instituições centrais, estabelecidas ou que buscam se estabelecer.”
(Deleuze e Guattari 1997: 30)
Para Gil, o monstro é a “desfiguração última do Mesmo no outro” (Gil 2000: 174).
É por isso que ao longo da história as diferentes formas com que o outro é retratado
tendem ao monstruoso. É o perigoso limite interno da humanidade – não ser animal,
nem deus.
Omar, em seu trabalho, encontra na monstruosidade do outro o caminho para
a transcendência que é comum aos seres humanos. A monstruosidade guarda aqui a
potencialidade de devir-animal. Se resta aos seres humanos alcançar a inumanidade
para uma transcendência, rumo a polivocalidade, parece que é por esse caminho que
Omar a constrói: do rosto recortado, interferido, amplificado, em um limite tal de
quase perda das feições humanas. Portanto, o monstro não é um perigo latente, mas
uma possibilidade transcendentemente humana. Omar inverte a fórmula constatada por
Deleuze e Guattari e corporaliza o rosto, livrando-o da rostidade. Seus rostos fugazes e
transfigurados fazem pressentir a coletividade, o não particionado do mundo.
Com Andujar o caminho parece ser o oposto. A busca em suas fotografias é pela
humanidade imanente, contra qualquer idealização e anterior à visão do selvagem
enquanto sujeito-ritualístico. Daí a sobriedade, o tempo, o rosto na altura do observador,
26 Foge à proposta deste artigo detalhar tais momentos. Cito apenas dois, a título de exemplo: Em uma sub-
ida, invariavelmente, o homem desce da carroça, e ao lado do animal, grita e corre durante toda a elevação
ao seu lado. A força e o impulso necessários para a empreitada só são possíveis nessa circunstância. Outro
exemplo é a transformação mútua que acontece em dias de festa, cavalgada e provas de montaria: ouvi relatos
e presenciei situações em que a nomeação dos animais era alterada e, junto de seus donos, eles passaram a ter
atitudes bem diversas daquela vivida na rotina, sendo o conjunto animal-homem-trabalho transformado em
animal-homem-festa.
27 O termo como distinção de gênero aqui é proposital: “ (...) não há devir-homem, porque o homem é a enti-
dade molar por excelência, enquanto que os devires são moleculares. A função de rostidade mostrou-nos de que
forma o homem constituía a maioria ou, antes, o padrão que a condicionava: branco, macho, adulto, “razoável”,
etc., em suma o europeu médio qualquer, o sujeito de enunciação.” (Deleuze e Guattari 1997: 89)
ABSTRACT
This paper is part of a larger theme: the represen- and Marcados (2009), by Claudia Andujar. For this,
tation of the individual in the photography. As the I use as an analytical tool the concepts of univocal
subject is too wide, I would like to briefly resume face, polivocal body an becoming-animal discussed
some aspects of the constitution of the photography by Deleuze and Guattari, that extend to other au-
as a language in the 19th century and some of its thors such as David Le Breton and José Gil. Even if
implications on the representation of the subject these works analyzed departs from very differents
pictured. From there my aim is to analyze my own assumptions, issues, aims and formal treatments,
photographic work that I have been doing, since they converge to understand the picture as an ar-
2010, with the horses carters from the East region ticulator of a encounter with the other. More than
of Belo Horizonte, through a comparative analysis that, the photography and de photographic act pre-
with two contemporary photographic works – An- sent itselfs as a relacional potency – not only of ac-
tropologia da Face Gloriosa (1997), by Arthur Omar tion, but also of a discourse about this encounter.
KEYWORDS
Anthropology of Image, photography, becoming-animal.
SOBRE O AUTOR
RESUMO
O presente trabalho toma como objeto de análise co receptor motivou meu estudo em busca da com-
o documentário Edifício Master, de Eduardo Cou- preensão desse efeito. Em segundo lugar, há uma
tinho (Brasil, 2002). Mudando o objetivo inicial, reflexão sobre o uso do documentário no levanta-
que era filmar uma semana na vida de um prédio no mento de histórias de vida. Por último, é o próprio
bairro carioca de Copacabana, o diretor preencheu método de levantamento de narrativas biográficas
o filme com depoimentos dos moradores, que nar- que se transforma no foco do trabalho, através de
ram os fatos que julgam importantes em sua vida. uma pequena reflexão - baseada no estudo do docu-
Primeiramente, a importância que as histórias de mentário - sobre sua importância na Antropologia,
vida de “pessoas comuns” da baixa classe média, principalmente para os que investigam a vida me-
em que não há nada de “heroico” ou “fabuloso” tropolitana.
sendo contado, exerceram sobre o diretor e públi-
PALAVRAS-CHAVE
Edifício Master (o filme), biografia, antropologia urbana.
O título do filme e a apresentação fazem com que o espectador, por causa de sua
experiência profissional, relacione o documentário à obra A Utopia Urbana, do antropó-
logo Gilberto Velho (1973), que realizou uma pesquisa em um edifício de Copacabana, de
apartamentos conjugados, para saber por que as pessoas abriam mão da oportunidade
de “viver numa casa, com jardim e quintal”, para residir em um conjugado de quarenta
metros quadrados, aproximadamente. A impressão é a de que o filme é diretamente ins-
pirado na obra de Velho. No entanto, nos comentários, não há nenhuma referência ao
livro citado.
Em razão de seu objetivo, Velho conduziu as entrevistas para a questão principal,
verificando que há uma estratificação no imaginário do espaço urbano e do grupo de
pessoas que ele classifica como “white collar”, seguindo a terminologia sociológica ame-
ricana, ou estrato médio urbano. As entrevistas são feitas para demonstrar que os valores
que estão presentes nesse estrato social levam os moradores a escolherem a vida em um
bairro considerado então como “o mais moderno”, “aquele em que há mais liberdade”,
diversão, comércio e, principalmente, em um endereço que atestaria por si mesmo o sta-
tus social do indivíduo como pertencente à classe média. Apesar das condições precárias
de moradia, para os habitantes o bairro é um símbolo de superioridade social, o que
compensa qualquer mal-estar físico.
1 Sempre que a palavra espectador for utilizada, ela se refere à autora do texto.
2 Essa palavra é utilizada pelo próprio diretor, nos comentários que acompanham o DVD.
Vera:
“Vim para aqui com um ano (...). Já morei no 803, no 715, no 714, 306, mo-
rei no 117. Vinte e oito apartamentos. (...) A nossa vida era de cigano, mas sempre
dentro do edifício.(...) Vou falar primeiro de uma maneira geral. Aqui já foi um antro
de perdição muito pesado. Houve suicídios, houve morte de porteiros, houve assas-
sinatos, (...). Nos corredores havia pessoas caídas, havia filas de homens e mulheres
esperando a outra pessoa sair para ele entrar, houve muitas cafetinas. Depois vieram
as mortes naturais. Que eu me lembro, a do 608 (onde vocês) estão, morreu uma
amiga minha. (...) Agora não. Agora aqui é um prédio familiar”.
Corte.
A câmera se aproxima da sala de administração do prédio. Há uma mesa onde
quatro pessoas conversam. Seus olhares se voltam para a equipe de câmera que avança
e entra numa salinha, na qual o espectador avista Sérgio, um senhor que fala com muita
desenvoltura, sempre procurando demonstrar sua autoridade.
Ele recebe a equipe com um sorriso.
Nossos cafés e nossas e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alu-
gados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente.
Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite de
seus décimos de segundos, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre
as ruínas arremessadas à distância. O espaço se amplia no grande plano, o movi-
mento se torna mais vagaroso com a câmera lenta. É evidente, pois, que a natureza
que se dirige à câmera não é a mesma que se dirige ao olhar. A diferença está princi-
palmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substitu-
ído por outro em que sua atuação é inconsciente. Se podemos perceber o caminhar
de uma pessoa, por exemplo, ainda que em seus grandes traços, nada sabemos em
compensação, sobre sua atitude na fração de segundo em que se dá um passo. (...)
Aqui intervém a câmera com seus inúmeros recursos auxiliares. Suas imersões e
emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações,
suas ampliações e suas miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiên-
cia do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise a experiência do nosso
inconsciente pulsional. (Benjamin 1994: 189)
Entendo que essa mudança do olhar, que ocorre com as massas e o cinema, é mais
apurada com o desenvolvimento da etnografia, em que o pesquisador também precisa
estar atento às piscadelas e seus sentidos. Mas o filme, quando estudado junto com et-
nografia, também pode aperfeiçoar técnicas etnográficas. No caso da biografia, também
a percepção auditiva é importante. No documentário, o espectador percebe, em vários
momentos, que o tom da voz se altera. Ao contar fatos dolorosos, o entrevistado fala al-
gumas palavras de forma quase inaudível. Com a máquina, podemos aumentar em muito
o volume, mais do que no gravador. Além disso, a leitura dos lábios também nos ajuda.
A postura diante de uma câmera pode fazer também o indivíduo se soltar, ou se
reinventar, como citado acima. O caso de Antônio Carlos é interessante: um senhor de 57
Porque mais uma vez, eu tive a oportunidade de passar a público a minha in-
fância, que apesar de sofrida, às vezes é um pouco amarga, eu nunca precisei de pe-
gar pó, de beber cachaça, mantive a minha dignidade. Não tenho nada que pese nos
meus ombros. Tenho a convicção de que fui um bom filho, minha mãe morreu nos
meus braços. Às vezes, saía daqui, ia até Brasília, às vezes não podia porque eu tinha
voltado de férias. Eu pedi ao gerente: eu preciso ir ver minha mãe, minha mãe está
pior. Fui. E quando eu voltei, e falei com o gerente que nas férias eu compensava es-
ses dias. “Eu te agradeço por você ter me liberado”. Ele disse: “Você não precisa me
agradecer, você foi porque merecia’’. Fiquei muito feliz. Eu não sabia que ele tinha
por mim como funcionário uma consideração tão forte. (...) Eu sou muito frouxo. O
homem não chora no simples fato de chorar. O homem, eu não escondo, eu sou esse.
Os objetos que mais gosto são os meus retratos. Porque eu me amo. A gente
tem que se amar. (...) A gente mora no cartão postal do Rio, que é Copacabana. Mas
é muito violento aqui, muito violento. Eu ia passando na Siqueira Campos, ali na
porta da Telemar e um rapaz me abordou, me abordou com uma mulher, e eu me
assustei. Ele tirou o revólver e disse: “Cala a boca e não olha para lado nenhum”. Ele
queria saber onde eu morava. Olha, quando eu entrei aqui, eu tive tanto medo, tanto
medo do rapaz. Um rapaz bonito, branco, bem vestido, mas muito bem vestido mes-
No depoimento de Vera, o espectador fica esperando para ver as fotos dela. Eduar-
do Coutinho diz que não mostrou por uma questão de ética pessoal. Ela não pegou as
fotos para mostrar, e durante todo o documentário, ele evitou tirar o foco da câmera da
pessoa entrevistada. Se ela não mostra suas fotos, faz questão, por outro lado, de mos-
trar a sacola que o assaltante lhe deu. Diante de todo o mal que a sacola representava, o
espectador se pergunta por que ela conservou um objeto que representa toda a maldade
do criminoso e o sofrimento da personagem. Tal como objetos que mostram momentos
felizes, fotos que registram lugares e pessoas importantes, o símbolo de um aconteci-
mento amargo da vida também tem lugar entre os objetos guardados por uma pessoa.
A sacola é uma dádiva maldita, um artifício usado pelo assaltante para aumentar a dor
da vítima. Mas, como prova de acontecimento que quase causou o fim de sua existência,
Vera guarda a sacola, intacta, como memória material de sua dor. Entendo que a sacola é
marcada por algo que ela não quer esquecer, porque esquecer é uma forma de perdoar. A
sacola, com a imitação do dinheiro, é a alegoria do mal que lhe foi feito. Ela sente nojo do
objeto, mas como conseguiu sobreviver, física e psicologicamente, a sacola também pode
ser um símbolo de superação.
Às vezes, a marca do passado trágico está na expressão facial que surge de repente em
um rosto que quer aparentar felicidade, como no depoimento de Renata. Ela fala do namorado
americano, que seria louco por ela. Quando o entrevistador pergunta por que ela ainda não casou,
Renata responde que quer esperar, porque a pressão dele naquele momento está muito forte. Ele
deposita dinheiro todo mês na conta dela, comprou um apartamento para ela – não fica claro se é o
que ela ocupa no Master –, manda mensagens e faz ligações toda hora. No início da entrevista, ela
disse que o namorado deveria estar irritado, porque o celular estava desligado. Em um momento
em que ela está falando do casamento, diz:
Renata tinha uma mãe liberal, mas que não aceitou a gravidez da filha adolescen-
te, “preocupada com que os outros iam falar”. Ela leva a filha em um centro de umbanda,
onde lhe é dado um preparado para provocar aborto. O feto morreu, mas continuou no
corpo da mãe. Renata passou muito mal, e foi internada. Ao sair do hospital, não aceitou
o convite da mãe para voltar para casa. Ela responde: “Olha mãe, a senhora tem que
lembrar que com filho na sua casa eu não ia ficar, agora sem filho eu não quero ficar”. A
mágoa que Renata demonstra contra a mãe é muito grande. Em um instante, porém, ela
retoma a alegria inicial para dizer que agora ninguém a derruba mais e ela é a Renata, a
“number one do Brasil”.
Para o espectador, fica a dúvida sobre a relação amorosa contada no início da
entrevista. Principalmente porque, apesar da alegria, Renata demonstrava ansiedade,
mexendo sem parar nos cabelos. Levando em conta que ela mesma usou a palavra sonho
relacionada ao casamento com o americano rico e apaixonado, dúvidas ficam no ar. O
diretor também parece ter tido a mesma sensação, quando diz que Renata saiu do prédio
poucos dias depois da entrevista. Não para ir para os EUA, mas para outro prédio seme-
lhante.
CONCLUSÃO
Walter Lima Jr., que comentou o filme com o diretor no DVD, chegou à seguinte
conclusão:
Eduardo Coutinho concorda, mas chama a atenção para o fato de que são pessoas
tentando sobreviver à solidão. Talvez seja isso que, no final, cause um efeito positivo no
espectador: ele acompanhou um pouco de múltiplas trajetórias em que os problemas dos
personagens estão registrados, mas viu pessoas que tentavam demonstrar que sobrevi-
veram mantendo a dignidade, um valor importante para o grupo social a que pertencem.
Embora as histórias relatadas falem de existências prosaicas, não se deve condenar a
Cada cultura possui seus próprios valores; as pessoas têm suas próprias am-
bições, seguem a seus próprios impulsos, desejam diferentes formas de felicidade.
(...) Estudar as instituições, costumes e códigos, ou estudar o comportamento do
homem, sem atingir os desejos e sentimentos subjetivos pelos quais ele vive, e sem
o intuito de compreender o que é, para ele, a essência de sua felicidade, é, minha
opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem (Ma-
linowski 1976: 34).
O Edifício Master não prova que as pessoas são felizes ou tristes em sua solidão – se
admitirmos que os moradores do prédio são solitários, como quer W. Lima Jr. Mas o espectador
sente que recebeu aquela que é a maior recompensa do estudo do homem. Mesmo que o
documentário não seja um trabalho científico, entendo que as narrativas de histórias de vida
representam um objeto fundamental para o trabalho etnográfico nas metrópoles, pois são o melhor
meio de conseguir a resposta à questão de como as pessoas sobrevivem à solidão e outras pressões
da vida urbana.
BENJAMIN, W. 1994. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e histó-
ria da cultura. São Paulo: Brasiliense.
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SIMMEL, G. 2009. “As grandes cidades e a vida do espírito”. In: Psicologia do dinheiro
e outros ensaios. Lisboa: Edições Texto & Grafia, pp.
VELHO, G. 1973. A Utopia Urbana. Rio de janeiro: Zahar.
ABSTRACT
This paper covers the memories of the current city plementation of these three concepts in the under-
of Pirenópolis/GO on the conflict occurred in the standing of the interviews conducted, the study of
historical archaeological site of Lavras do Abade cultural events, the aspects of forgotten places and
in the year of 1887. Theories on collective, cultural use of material culture by the community.
and social memory are discussed, as well as the im-
KEYWORDS
Edifício Master (the movie), biography, urban anthropology.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
Neste artigo pretendemos ampliar as discussões que peram em velocidade a nossa capacidade social de
temos realizado sobre a questão da reconstrução debater as suas consequências, estamos em pleno
dos corpos possibilitada pela tecnociência contem- processo de reorganização das nossas expectativas
porânea, focando especificamente as implicações e normas de conduta com relação aos nossos pró-
teóricas para a condução de análises desse processo prios corpos. Nesse contexto, desenvolveremos nos-
a partir das Ciências Sociais. Primeiramente, colo- sa argumentação sugerindo que a experimentação
caremos em evidência os pressupostos teóricos que com o corpo toma, atualmente, um caráter que é, ao
orientam o uso das categorias “corpo” e “tecnolo- mesmo tempo, estético e ético/político. Além disso,
gia”, tornando-as mais específicas. Em um segundo essas novas possibilidades também estão relacio-
momento, discutiremos exemplos nos quais corpos nadas à produção de corpos que articulam estética,
estão sendo reconstruídos por tecnologias, a fim de saúde e vida social, uma vez que o corpo humano é
pensar as implicações dessas práticas de manipula- performado nas suas relações com outros corpos e
ção na vida cotidiana e na arte. Considerando que os com o meio.
desenvolvimentos das diversas biotecnologias su-
PALAVRAS-CHAVE
Corpo, tecnologia, arte,saúde,vida social.
Pretendemos, neste trabalho, ampliar uma discussão que temos realizado sobre
a questão da reconstrução dos corpos possibilitada pela tecnociência contemporânea
(Monteiro 2006, 2009; Souza 2011), focando especificamente as implicações teóricas
para a condução de análises desse processo a partir das Ciências Sociais. Primeiramente,
gostaríamos de tornar mais claros os pressupostos teóricos que orientam o uso das
categorias “corpo” e “tecnologia”, tornando-as mais específicas. Em um segundo
momento, analisaremos exemplos nos quais corpos estão sendo reconstruídos por
tecnologias, a fim de pensar as implicações dessas práticas de manipulação.
O contexto atual (desde o fim do século XX) de avanço das novas biotecnologias
traz à tona a necessidade de debater ”corpos”: a sua significação, as suas ontologias e
as suas práticas de reconfiguração por tecnologias diversas (Chazan 2003; Kac 2007a;
Ortega 2008; Ramírez-Gálvez 2007; Ribeiro 2003; Sibilia 2002). Para enriquecer esse
debate, gostaria de invocar práticas não somente científicas, mas também artísticas e
médicas de redimensionar e sobrepor corpos, a fim de desenvolver uma reflexão sobre
os perigos e as promessas do corpo, na sua relação com a tecnologia, no presente e no
futuro.
A categoria genérica de “tecnologia” surge aqui a fim de representar as
possibilidades de reconfiguração de corpos através, por exemplo, da reordenação do
código genético (Thacker 2003), e da intervenção no desenvolvimento de organismos
dentro e fora de laboratórios (Kac 2003). As novas biotecnologias servem aqui de mote
para debater a ideia de corpo, com o objetivo de mostrar que nossos pressupostos sobre
aquilo em que consiste o corpo, a biologia e a tecnologia estão sendo reconfigurados, o
que traz grandes consequências para nossas formas de pensar e nossas formas de existir
corporalmente (Brown, Aleksander, & Mackenzie 2001; Santaella 2003; Tomasula
2002).
Invocaremos práticas artísticas para pensar exatamente as formas de
apropriação de biotecnologias que estão em curso nas sociedades contemporâneas, a fim
de mostrar também que a experimentação com o corpo toma, atualmente, um caráter
que é ao mesmo tempo estético e ético/político. Isso quer dizer que, ao subverter técnicas
biotecnológicas, artistas contemporâneos conseguem não somente chamar a atenção para
as novas potencialidades e os perigos a que estão expostos nossos corpos tecnologizados;
mas também sugerir novas formas de experimentação criativa com a nossa materialidade
corpórea, possibilitadas por novas tecnologias, que precisam urgentemente ser debatidas
social, ética e politicamente. A criação de novos corpos é marca da ciência e da tecnologia
contemporâneas, em exemplos como organismos transgênicos e clones (Wilmut,
Campbell, & Tudge 2000). Da mesma forma, tais tecnologias podem ser utilizadas para
O CORPO BIOTECNOLÓGICO
POLÍTICAS DA VIDA
Annemarie Mol e John Law, no artigo “Embodied action, enacted bodies: the
example of hypoglycaemia” (2004), escrevem que “Nós todos sabemos que nós temos e
somos nossos corpos”1, mas a intenção é ir além desse senso comum ao pensar como nós
1 Tradução livre.
3 O verbo utilizado no original é to enact, que aqui será traduzido por “performar”.
6 Entrevista realizada em 2011 na cidade de Belo Horizonte. A entrevista é parte de uma pesquisa mais abrangente, ainda
em andamento, vinculada ao LACS (Laboratório das Controvérsias Sociotécnicas), Departamento de Sociologia e Antro-
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ABSTRACT
In this article, we wish to extend contemporary dis- biotechnologies occurs often surpasses our ability
cussions on the issue of the reconstruction of bodies to aptly discuss their social consequences, we are
made possible by contemporary technoscience, spe- in the process of reorganizing our expectations and
cifically focusing on the implications for conducting standards of conduct with respect to our own bo-
theoretical analysis of this process from the social dies. In this context, we will develop our argument
sciences. Firstly, we made evident the theoretical suggesting that experimentation with the body cur-
assumptions that guide the use of the categories rently takes a character that is at the same time,
“body” and “technology”. Secondly, we discuss aesthetic and ethical/political. Moreover, these new
examples in which bodies are being rebuilt by te- possibilities are also related to the production of
chnologies in order to consider the implications of bodies that articulate aesthetic, health and social
these practices in everyday life and in art. Where- variables, since the human body is enacted in its re-
as the speed at which the development of various lations with other bodies and with the environment.
KEYWORDS
Body, technology, art, health, social life.
SOBRE OS AUTORES
RESUMO
O artigo apresenta as narrativas sobre botos que se sultado da tensão entre modos distintos de definir
transformam em homens, ouvidas principalmente o mundo– o perspectivismo ameríndio e a nossa
na Amazônia, como um registro do encontro co- ontologia naturalista. As narrativas sobre botos são
lonial. A equivalência entre o boto e um homem analisadas como uma expressão do encontro entre
branco que seduz mulheres nativas mostra a pre- essas diferentes formas de simbolização, seguida
sença desse tema nas narrativas. A análise explora de uma discussão a respeito das consequências de
o ponto de vista dos enunciadores, que relatam os uma tradução direta, incluindo a questão posta pe-
acontecimentos como reais. As narrativas tratam de las próprias narrativas sobre a possibilidade de esse
experiências pessoais, mas são tidas popularmente encontro resultar em comunicação.
como “lendas”. Essa equivocação é vista como re-
PALAVRAS-CHAVE
Boto encantado, encontro colonial, perspectivismo, Amazônia.
O BOTO
Conta a lenda que o Boto, peixe (sic) encontrado nos rios da Amazônia, se
transforma em um belo e elegante rapaz durante a noite, quando sai das águas à
1 Agradeço ao IDSM-MCTI pelo apoio para a realização de viagens de campo em 2005 e 2009, a Ray Troll por
permitir a reprodução de suas pinturas, e aos moradores da Vila Alencar, pela amizade e confiança.
Os textos que apresentam o boto como uma lenda do folclore amazônico descre-
vem-no como um animal que se transforma em um belo homem branco que seduz as
mulheres –“um Don Juan das águas”. Raramente reconhecem que esse enredo é uma
síntese, baseada em uma compreensão literal e simplificada, de relatos particulares de
encontros envolvendo o narrador ou pessoas conhecidas e botos encantados. Nesses en-
contros, o boto assume a forma de um homem branco que seduza pessoa para o seu mun-
do. Reproduzimos, como lenda, narrativas de acontecimentos que não podemos consi-
derar verdadeiros porque partem de premissas inaceitáveis do que é possível acontecer
no mundo real. Ao contrário da forma sintética de apreender as histórias, as narrativas
particulares tratam de episódios vividos — acontecimentos, ocorrências e fatos —, e não
de uma crença folclórica. Podem ser escutadas mais facilmente de moradores de áreas ri-
beirinhas, mas também nas cidades e, em geral, mas não necessariamente, são contadas
por pessoas com baixa escolaridade.
O recorte sociológico é um dado importante, porque a distância dos narradores
em relação ao cânone sociocultural estabelecido cria uma barreira contra a possibilidade
de aceitarmos um modo diferente de definir o real. Já a síntese das narrativas em um en-
redo simplificado, como uma estória, permite suspender a descrença e aceitá-la como um
elemento do folclore amazônico. A concessão é feita pelas mesmas razões hierárquicas:
por ser uma expressão cultural de origem sociocultural inferior – de primitivos, ingênuos
ou ignorantes.
A desigualdade de poder cultural caracteriza o contexto em que se confrontam
duas formas de simbolização – a que pode ser chamada “tradicional amazônica” (por
falta de identificação própria) e a “branca”, como a elite educada e ocidental é conhecida
2 Outra forma animal, além do boto, é a cobra grande, que pode se apresentar como um navio encantado,
muitas vezes carregado de mercadorias – um signo importante nas narrativas de contato de povos amerín-
dios (Albert e Ramos 2002). A cobra grande, como o boto, é considerada um animal que pode ou não ser um
encantado. Mas, ao contrário do boto, os biólogos negam a existência da cobra grande. Também discordam
dos ribeirinhos a respeito da existência de uma espécie de onça aquática, a onça d’água.
Alencar apresenta o relato feito pelo Sr. Manuel e a esposa Santina, moradores
de São João, de um conhecido que foi encantado, mas retornou. Como nos outros casos,
seu retorno só foi possível porque não aceitou a oferta de alimentos e depois de voltar, a
intervenção de um pajé forte, um sacaca, o curou.
“Ele morava na cidade que nós morava. Na época que eu vivi lá eu tinha dez
anos e ele tinha uns 25 anos, esse rapaz. Ele foi só uma vez e voltou. Ele disse que
estava na beira tomando banho e quando deu fé, o bicho pegou na perna dele e car-
regou para o fundo. Aí, para liberarem ele do fundo, (...) o pai dele foi atrás de um
sacaqueiro, e foi esse velho que curou. Eu sei que ele fez um trabalho lá, fez umas
orações num barro lá, aí mandou jogar, meia-noite, lá no meio do remanso aquele
barro. Desde essa vez, até hoje, nunca mais boto boiou perto dele. Afastou tudo.
Ficou um sujeito normal (...) Três dias [ele ficou lá](...) Tudo vinha pra ele, aquelas
coisas cheirosas, que via assim e dava aquela vontade. Aquela comida linda, chei-
rosa, aquela carne assada, era bife, era tudo que vinha assim pra ele. Ela [a mulher
do encante], botando assim, naquelas lindas mesas e chamando ele pra comer com
eles (...).Tudo que aparecia lá ele não quis nenhuma vez. Mas ele só não ficou porque
não comeu nada. Mas se ele comesse mesmo, ou bebesse uma coisinha de nada, aí
pronto. Não vem mais nunca!” (Alencar 2002: 209).
Eu acho que eles se viram assim num bicho, mas é como se fosse uma capa
que eles se metem dentro. E quando é assim, para eles se aparecer nas vistas de nós,
eles deixam a capa e vêm em cima da água. Quando eles voltam lá para o fundo, aí
eles tornam a pegar aquela capa e veste. (Alencar 2002: 213)
Perguntei para Dona Nila sobre a capa e ela confirmou, porém com uma explicação
diferente sobre o seu uso no fundo.
“Aquilo que a gente vê, é uma capa. Quando tira, sai uma mulher, sai um homem.
A capa é o bicho. A gente está igual à gente aqui ó. Bonitos e feios, crianças, e velhos e
velhas. Todos.”(Tefé, julho 2005).
O corpo visível do animal é uma capa; a capa-animal veste um corpo humano, com
variações físicas iguais às nossas. Corpos que variam em idade, beleza e sexo.
Esses depoimentos dão mostra da presença viva do mundo do encante na paisagem
do Solimões. Também expõem, por contraste, a dificuldade de enquadrá-los nas nossas
premissas sobre o que é possível acontecer no mundo real.
A transformação de corpos, a capa encobrindo o humano, a produção do corpo
pelo compartilhamento de substâncias, a cura xamânica e vários outros temas presentes
nas narrativas de encantados apontam para as cosmologias ameríndias, certamente a
sua referência de origem (cf. Århem 1993; Lima 1996; Viveiros de Castro 1996, 2002b;
Vilaça 2000; Gow 1993, 2001, 2003, entre outros). Mesmo assim é preciso notar a forma
da mediação dos conceitos ameríndios para o português, a começar pelo próprio termo
“encante”, do latim incantare, ligado a feitiço, recitação de palavras mágicas e sedução. A
floresta encantada, o príncipe encantado em sapo e outros são referências europeias para
a cidade submersa e os seres metamórficos dessa cosmologia amazônida. Tal como na
citação da lenda vista acima, em que o boto é apresentado como “Don Juan”, a transição
de um sistema simbólico a outro faz empréstimos culturais para estabelecer associações
As histórias dos encantados têm como base relatos de episódios vividos, nos
quais o personagem principal é sempre uma pessoa conhecida, ou o próprio narrador. A
estrutura da narrativa combina uma experiência particular e as referências convencionais
desse modo de simbolização – os encantados, a cidade, o navio, o homem branco, a festa,
a sedução e a abdução. Não só as narrativas particulares como também o enredo sintético
da lenda e a análise que proponho se valem dessas convenções.
Depois do trabalho pioneiro de Eduardo Galvão (1955), seguido por Heraldo
Maués (1990; 1999; 2008), a mais extensa apresentação de narrativas de encontros com
encantados na Amazônia é de Candace Slater no livro A Dança dos Botos(1994). Baseado
em trabalho de campo longo e rigoroso realizado nas cidades e arredores de Parintins,
Carauari, Macapá e Porto Velho, resultando em mais de 200 horas de gravações, o livro
destaca 42 narrativas, além de incluir trechos de outras. Para organizar a discussão, as
narrativas são agrupadas com base em três qualidades do boto: o boto como encantado,
o boto como amante e o boto como homem branco. Para meu argumento, no entanto, é
preciso manter os três atributos reunidos. Reproduzo duas narrativas coletadas por Sla-
ter. São relatos de acontecimentos, dirigidos à própria autora, contados por uma senhora
de 75 anos, natural do interior do Pará e residente em Parintins, e por uma mulher de
19 anos, natural de Parintins. Ambas casadas e donas de casa; a primeira sem educação
formal, a segunda com instrução primária (Slater 1994: 187-189).
Aí, apareceu lá na beira um rapaz muito bonito. Era Boto, né? Mas em forma
de homem, aquele homem bonitão. Ai, ele queria que eu fosse para o fundo com ele.
Queria que eu fosse a mulher dele, disse que dava muita riqueza, muita coisa boa
para mim. Que ele morava numa casa muitíssimo bonita, né? Que ele era tipo conde;
a senhora já ouviu falar em conde, Dona Cândida? Pois é, ele era conde e eu queria,
queria sim. Só que eu tinha os meus filhinhos ainda pequeninhos, e não dava para
mim... (Slater 1994: 277).
Esses poucos exemplos não esgotam a amplitude de variações nas histórias de en-
contros com o boto. Mesmo assim, permitem inferir que uma base convencional-coletiva
é o ponto de apoio para uma variada gama de experiências individuais. O núcleo de base
do enredo, formado pela sequência homem branco —boto — sedução — encantamento,
admite diversas interpretações, e concordo com Slater quando diz que as narrativas tra-
tam do risco da perda de si, pois se transformar em encantado significa perder os laços
sociais que definem o indivíduo. O encantamento implica romper com todos os vínculos
sociais para viver uma aventura em outro mundo, correndo-se o risco de não voltar.
Mas para acessar o significado dessa experiência para os ribeirinhos é preciso
ultrapassar nossas convenções interpretativas e considerar as premissas ontológicas
que validam a realidade vivida por eles. O perspectivismo ameríndio –segundo a síntese
teórica desenvolvida por Viveiros de Castro(op.cit.) –oferece uma chave para acessar
realidades e disposições incompreensíveis nos nossos termos. As implicações teóricas do
perspectivismo ameríndio são abrangentes e alcançam a própria prática antropológica,
como mostrou Viveiros de Castro (2004b) quando propôs que a antropologia deixe de ser
um exercício de tradução baseado na comparação direta de linguagens diferentes e passe
a “comparar as comparações”, a dos nativos e as antropológicas. Sugere uma comparação
antropológica que controle “instâncias de equivocação” a fim de garantir a fidelidade
dos conceitos da linguagem de origem e reconstituir a intenção original da antropologia
nativa sobre a qual se escreve. Essas proposições inspiraram meu exercício de tradução
das narrativas de encantamento, ainda que a expressão do perspectivismo entre os
ribeirinhos — centrada nas conexões com o mundo dos encantados — apresente uma
expressão mais restrita e tênue em comparação com a sua abrangência na cosmologia
ameríndia.
No perspectivismo ameríndio, como Viveiros de Castro mostrou, as representações
culturais são atribuições universais; todo corpo que possui capacidade subjetiva
se relaciona com o mundo por meio das mesmas representações. O modo como os
conceitos são relacionados a referenciais concretos varia de acordo com a natureza
de cada de corpo – seus habitus e afetos. Por conseguinte, embora corpos diferentes
vejam o mundo do mesmo modo, o que veem como “a mesma coisa” não é coincidente.
3 As citações são da tradução para o português: A Festa do Boto, publicada pela Funarte em 2001.
Where we see a muddy salt-lick on a river bank, tapirs see their big cere-
monial house, and so on. Such difference of perspective—not a plurality of views of
a single world, but a single view of different worlds—cannot derive from the soul,
since the latter is the common original ground of being. Rather, such difference is
located in the bodily differences between species, for the body and its affections (in
Spinoza’s sense, the body’s capacities to affect and be affected by other bodies) is
the site and instrument of ontological differentiation and referential disjunction.
(Viveiros de Castro 2004b: 4).
4 Ao recusar as abordagens naturalista e culturalista, em que a paisagem é definida ou como sendo o contexto
neutro e externo à atividade humana ou como um ordenamento cognitivo ou simbólico do espaço, Ingold
(1993: 152) propõe o conceito de dwelling parauma abordagem segundo a qual a paisagem, “is constituted as
an enduring record of – and testimony to – the lives and works of past generations who have dwelt within it,
and in so doing, have left there something of themselves.”
Sua interpretação centra em dois aspectos: uma definição de mundo não ocidental
– o caráter fluido e mutável da relação entre a natureza e a cultura –, e a mensagem de
crítica social às transformações sociais.
(...) de forma alguma estou sugerindo que todas as histórias sobre os Botos
5 Harris (2000: 196) segue Slater ao ver as histórias do boto como uma forma de resistência: ... “I argue that
politics from the peasant perspective in the lower Amazon can be understood as an undertaking, by means of
a pragmatic, perhaps even anarchic, sociality oriented towards the present, to avoid control and domination”.
6 Apesar de reconhecer a origem ameríndia das narrativas, Slater menciona vários mitos ameríndios para
mostrar a diferença entre as narrativas de encantamento e as cosmologias a que faz alusão. Enquanto a ausên-
cia de continuidade é apresentada como justificativa para o fato de não ter explorado, com base no referencial
antropológico disponível na época, as origens ameríndias das narrativas, trata-se aqui de tomar como ponto
de partida a qualidade genérica do pensamento ameríndio, adotando como referência o trabalho de Viveiros
de Castro.
Você não vai lá porque você quer, não. Só vai lá, por exemplo, se um se agra-
Que as mulheres são seduzidas em maior número que os homens, e que são
seduzidas por homens brancos vestidos a caráter, isso constitui uma memória explícita
da colonização. Mas é possível ir um pouco à frente. Ao contrário do que diz a lenda, as
crianças geradas pelo boto são descritas como “botinhos” e nunca sobrevivem. Slater
observa que em todo o seu trabalho de campo não conheceu quem fosse “filho de boto”
(1994: 99). Indaguei algumas vezes, mas não ouvi relatos de sobrevivência. Ouvi casos
de aborto espontâneo de fetos com características físicas de um “botinho” ou, como
também menciona Slater, de filhos que morrem pouco depois de nascer. A união entre
um encantado e uma mulher não gera um filho humano; não dá origem a uma nova
condição humana. O híbrido não é fértil — as narrativas são pessimistas quanto a isso.
7 “Mythology is a discourse on the given, the innate. Myths address what must be taken for granted, the
initial conditions with which humanity must cope and against which humanity must define itself by means
of its power ofconvention(…)”(Viveiros de Castro 2004a: 478).
8 Cassirer (2003: 48), diz que a compreensão histórica deriva de um conhecimento a respeito do passado, de
uma origem e uma projeção sobre o futuro, que prenuncie uma direção para os acontecimentos.
9 Em El Aleph, de Borges (1998), o escritor confessa seu desespero ao tentar transmitir, a outros, a sua ex-
periência do infinito: “Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os
interlocutores compartem.” No caso das narrativas de encantamento, o fato de serem comunicáveis evidencia
a existência de um passado compartilhado – o legado das premissas ontológicas ameríndias.
http://www.bv.am.gov.br/portal/conteudo/serie_memoria/fotos/21_boto.jpg
Wikipedia:
IBGE teen:
O Boto Rosa
O Boto Rosa é uma lenda amazônica. Conta-se que os botos do Rio Ama-
zonas transformam-se em homens muito atraentes à noite e saem para conquistar
as moças das cidades ribeirinhas. Eles sempre usam um chapéu para esconder o
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ABSTRACT
The paper discusses narratives of river dolphins legends is interpreted as a result of the tension be-
that transform into men, heard mostly in the Ama- tween different ways of defining the world – Ame-
zon, as a type of historical record of the colonial en- rindian perspectivism and our naturalistic ontolo-
counter. The equivalence between the dolphin and gy. The narratives of the dolphin are analysed as an
a white man who seduces native women expresses expression of the encounter between these different
the presence of this theme in the stories. The analy- forms of symbolization, discussing the equivocation
sis explores the point of view of the speakers, who of a direct translation and the question posed by the
report the events as real. The fact that they are nar- very narratives of whether the encounter can lead to
rated as experience, but apprehended popularly as communication.
KEYWORDS
Boto, perspectivism, colonial encounter, Amazon.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
Este artigo analisa a escola e seus significados en- professores ye’kwana, que tiveram um papel im-
tre os Ye’kwana, povo indígena cuja população está portante na consolidação da escola na aldeia, este
dividida entre o extremo norte do Brasil e sul da trabalho discute a instituição como um lugar privi-
Venezuela. Analisando a trajetória dos primeiros legiado para acessar o mundo não indígena.
PALAVRAS-CHAVE
Ye’kwana, escolarização indígena, educação indígena, povos Caribe, Amazônia.
1 Os Ye’kwana empreendem viagens à Venezuela para visitar parentes que moram em aldeias do outro lado da fronteira,
especialmente no período de férias escolares. Entretanto, o motivo principal dessas viagens não é mais o comércio.
A CRIAÇÃO DA ESCOLA
Os Ye’kwana tiveram contato pela primeira vez com o homem branco e com
sua parafernália cultural no território venezuelano. Com a presença constante dos
missionários em área e a fundação de novas aldeias que abrigavam a missão, os Ye’kwana
começaram a ter contato mais íntimo com a cultura ocidental e o saber dos brancos. Os
missionários trataram de fundar escolas nas aldeias para ensinar espanhol aos índios e
também aprender sua língua. Assim surgem as primeiras cartilhas em ye’kwana e, mais
tarde, uma tradução da Bíblia.
Na Venezuela, em princípios dos anos 1950, a Missão Evangélica Novas Tribos
(MNT) instalou-se no Território Federal Amazonas, incluindo algumas aldeias
ye’kwana. Os missionários católicos, por sua vez, concentraram-se também no sul
da Venezuela, tanto no Território Federal Amazonas quanto no Estado Bolívar. No
território ye’kwana os evangélicos se estabeleceram primeiro no Cunucunuma e depois
no Alto Orenoco. Acanaña, aldeia localizada no rio Cunucunuma, a princípio não recebeu
bem os missionários (mais tarde se converteria) que, em 1958, fundaram missões no
Cunucunuma, em Wedeiña e Mawishiña. No rio Orenoco, estabeleceram missão em
Tamatama; no rio Padamo, em Tokishanamaña e Mudeshijaña – em Tokishanamaña
apenas parte da população se converteu. Os católicos se estabeleceram primeiro em Santa
Maria do Erebato (Jiwitiña), La Esmeralda (Medadänha) e no Cacuri (Lauer 2005)2.
Em Auaris, bem como em todas as demais aldeias ye’kwana, circularam notícias
sobre a presença dos missionários. Essa nova categoria de brancos, que instalavam
residência nas aldeias, logo ficou conhecida dos Ye’kwana e despertou diferentes tipos
de sentimento à medida que a proposta de evangelização foi se tornando conhecida
dos índios. Enquanto aldeias inteiras se convertiam à religião dos brancos, outras
condenavam tal atitude; houve casos de aldeias que ficaram divididas entre convertidos
e não convertidos (Coppens 1981; Frechione 1981). Os missionários logo iniciavam o
estudo da língua ye’kwana e preparavam material para alfabetizar a população. Mais
tarde, aparecem as primeiras traduções da Bíblia para a língua ye’kwana (vi um exemplar
em Auaris, chamado Wanaadi A’deddu, Palavras de Wanaadi, uma edição bilíngue
2 Vários homens me disseram que algumas aldeias na Venezuela que eram convertidas estão mudando de postura e
abandonando a religião dos brancos. Lauer (2005) traz alguns dados sobre essa questão.
quando os crentes chegam dizendo que o mundo vai acabar, vai ter julga-
mento e só quem acredita em Deus vai se salvar e os outros vão queimar, a gente
sabe que não é verdade. Não é assim que o mundo vai acabar, vai ser devagar, aos
poucos, vão acontecer muitas tragédias, como já tem furacão, terremoto. Só depois
que acabar Ye’kwana é que a Terra vai queimar. Os pajés nos ensinaram assim, eles
viram tudo, eles sabiam.
TRABALHANDO NA ESCOLA
O prédio onde hoje funciona a escola é uma construção espaçosa, com quatro
salas de aula, biblioteca e secretaria, onde ficam os dois computadores e impressora.
Foi construído ainda um anexo onde há um refeitório, também usado para reuniões e
eventos (nas formaturas de final de ano, por exemplo), a cozinha, onde é preparada a
merenda escolar, duas salas onde estudam os pequenos que cursam jardim e maternal
e um depósito de material escolar. A construção do prédio seguiu o estilo tradicional
ye’kwana, através do trabalho comunitário, com paredes de adobe e telhado de zinco, em
substituição ao telhado de palha ou cavaco (como são chamados os pequenos pedaços
quadrados de madeira que fazem as vezes de telha).
Toda a comunidade está envolvida, em alguma medida, com a escola. O número
de alunos cresce a cada ano, pois, se no início os pais selecionavam dentre sua prole
aquele que seria enviado à escola, hoje praticamente todas as crianças estudam. Nas
datas comemorativas, todos são convidados a participar dos eventos promovidos pela
escola. Pais dos alunos contribuem de forma ativa, fabricando, por exemplo, bancos e
mesas para as crianças ou ajudando nos reparos e reformas do edifício e anexo.
Os professores estão ativamente envolvidos no trabalho em prol da comunidade. Não
apenas os primeiros professores trabalharam sem remuneração, mas existem atualmente
professores que trabalham voluntariamente, enquanto aguardam futura contratação ou o
4 A primeira fase foi marcada pela malsucedida experiência com os colonizadores espanhóis; a segunda fase iniciou-se
com a paulatina retomada das relações comerciais com criollos e culminou com o drástico boom da borracha e posterior
dispersão da população em fuga do trabalho escravo. A terceira fase, portanto, se inicia sob o signo das relações comer-
ciais pacíficas com a população local, no Brasil e na Venezuela.
Eu não acho que a gente vai perder a nossa língua, nós, professores, lutamos
para isso, ensinamos os alunos, alfabetizamos primeiro em Ye’kwana. A cultura eu
acho que a gente já está perdendo; nós professores, por exemplo, que estudamos em
Boa Vista, nós aprendemos as coisas dos brancos, estudamos em escola dos brancos,
não sabemos wätunnä, não temos o conhecimento tradicional.
Mas é exatamente por reconhecer tal fato, dizem os professores, que eles têm
procurado maneiras de introduzir o conhecimento tradicional na pauta da escola
também, como ressalta um deles:
Esse sentimento sobre a possibilidade de terem uma fonte não só de bens e riqueza,
mas de saber, propiciada pela escola, é resumido nas palavras de outro professor:
AS MORTES ANUNCIADAS
O grande paradoxo que a escola representa – por ser um dos signos da destruição
e morte da cultura – se reflete nas representações que os Ye’kwana fazem dela. A geração
de velhos que lutou pela criação da escola em Auaris hoje lamenta as transformações
sociais recentes, apontadas como fruto da educação à moda ocidental. A sedentarização
da população, o impacto negativo nas atividades tradicionais e o desrespeito pelos velhos
são apontados como os grandes problemas surgidos desse paradoxo, cuja face agonística
aparece nos suicídios de jovens, homens e mulheres, que têm assombrado a comunidade
nos últimos anos.
Antes, um filho aprendia tudo com os pais, os conselhos para o futuro. Com
a escola, os filhos convivem pouco com os pais e a responsabilidade agora é dos
professores. Os jovens não sabem mais nada da cultura. Meu avô já dizia que ia ser
assim.
Esta frase, dita por um Ye’kwana na casa dos quarenta anos, é recorrente no
discurso dos homens de sua geração e dos mais velhos. Embora a escola seja fruto de um
projeto consciente e intencional para preparar os jovens para o futuro ciclo, os velhos não
deixam de se lamentar pelos efeitos desastrosos que creditam ao fato de que os jovens
“querem ser como brancos”. Acredita-se que o projeto de educar os jovens se desvirtuou
em algum momento. Alguns falam de guerra xamânica, outros, do poder na profecia, que
a cada dia se torna mais palpável.
Lá eles querem fazer o que os brancos fazem, beber, fumar, ir a festas. Como
não têm dinheiro, roubam o dinheiro dos que trabalham ou dos homens que vão
fazer compras. Recentemente roubaram até mesmo o tuxaua Néri, quando ele ficou
uns dias lá na casa de apoio. Eles vivem lá sem ninguém para orientar, então vão
imitar os brancos mesmo.
Quando retornam a Auaris, esses jovens trazem consigo a influência dos brancos.
O uso de perfumes, desodorantes e bebida alcoólica enfraquece o corpo, pondo em risco
a vida dos jovens.
Os cuidados com o corpo são uma preocupação cotidiana dos Ye’kwana. O descuido
com esses cuidados põe em risco a integridade da pessoa que, vulnerável, fica à mercê de
influências malignas que podem levá-la à atitude extrema de dar cabo da própria vida. Ao
perder o interesse pelo conhecimento tradicional, os jovens passam a desconhecer certas
regras e prescrições com o corpo, a exemplo dos tabus alimentares, e aumentam os riscos
com o uso indiscriminado dos produtos fabricados pelos brancos.
É o desinteresse pelas tradições, portanto, que é apontado como fator determinante
das mortes. O conhecimento, dos valores morais propriamente ye’kwana, deveria
garantir que o projeto de conquista do saber dos brancos não pusesse em risco o ethos
dos Ye’kwana. Um dos professores mais antigos me disse certa vez:
Eu não acredito que o problema seja a ida dos jovens para estudar em Boa
Vista. Eu e vários outros professores vivemos lá e voltamos para trabalhar na nossa
comunidade, pelo bem dos nossos jovens.
Outro fator apontado como responsável pelos suicídios é a guerra xamânica que
enfrentam. Eles afirmam que há um pajé no Cacuri, comunidade ye’kwana na Venezuela,
que lançou seus poderes maléficos sobre Fuduwaaduinha depois que um homem da
comunidade se envolveu com sua neta, mas não quis casar com a moça. Entretanto,
mais uma vez, retomam aqui o argumento anterior: o feitiço atinge os jovens porque eles
enfraqueceram seus corpos através de sua má conduta.
“Antigamente tinha festa com muito caxiri. Todo mundo ficava bêbado, alegre,
depois ia dormir. Agora os jovens bebem e vão se matar”. A frase, de um dos velhos,
ilustra o fato de que a maioria das tentativas de suicídio ocorre durante as festas, depois
do consumo de bebida, a tal ponto que, durante o festival da roça nova de 2005, grande
parte das espingardas da comunidade foi recolhida e guardada na casa que serve de
alojamento para os funcionários da Funasa. A bebida, segundos os velhos, potencializa
a fragilidade do corpo despreparado. Um dos casos ocorridos durante minha estada em
Auaris deu-se, justamente, durante uma festa. Em maio de 2006, depois de terminada
a construção de uma casa, vários jovens passaram a noite bebendo caxiri e ouvindo
forró e salsa (essa última trazida pelos Ye’kwana do lado venezuelano da fronteira). O
consumo da bebida é padrão durante o trabalho comunal, mas ficara acertado que ao fim
do trabalho todos retornariam a suas casas. Entretanto, parte dos rapazes se reuniu na
casa de um deles e seguiu noite adentro bebendo e dançando ao som do aparelho de CD.
Somente na claridade da manhã seguinte, a cena trágica: o corpo de um jovem de 14 anos
jazia pendurado em uma árvore ao lado da casa onde ocorrera a festa.
Nos dias seguintes, os homens debatiam o que poderia ser feito para impedir novas
tentativas de suicídio. Por fim, decidiu-se proibir o caxiri por um ano. Muitos, no entanto,
duvidavam da eficácia dessa medida por não acreditarem que o caxiri era o responsável
pelas mortes. O pai de uma jovem que já tentara suicidar-se diversas vezes, disse:
Os jovens de hoje não respeitam mais os pais, eles querem mandar nos pais.
Quando a gente fala eles não escutam, só querem fazer o que acham certo, querem
sair, namorar, não querem mais trabalhar, não querem mais aprender as coisas que
os pais ensinam.
ABSTRACT
This article offers a reflection on the school and its the first ye’kwana teachers, who had an important
significance among the Ye’kwana, an amazonian role at the consolidation of school in the village, the
people who lives at the international border among paper discuss the institution as a privilege place to
Brazil and Venezuela. Analyzing the trajectory of access the non-indigenous world.
KEYWORDS
Ye’kwana, indigenous education, indigenous schooling, Karib speaking people, Amazon.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
Territorialização, etnicidade, política indigenista, Mura, Amazonas
A LEI N° 941/1917
1 Foram reservadas: a região compreendida entre os rios Surumú e Cotingo e as serras Mairari e Conopiáepim, no mu-
nicípio de Boa Vista do Rio Branco (etnia Macuxi); as terras situadas entre os rios Seruiní e Sepatini, no município de
Lábrea, limitados montante e jusante, respectivamente, pelos campos superiores do rio Seruiní e pela foz do igarapé Mixiri
(Apurinã); terras situadas em ambas as margens do rio Jauaperi, na extensão de cinquenta (50) quilômetros a jusante das
cachoeiras, no município de Moura (Waimiri-Atroari).
2 Foram analisados, de modo não exaustivo, leis e regulamentos de terra do Estado do Amazonas no período entre 1893 e
1912, além de leis esparsas editadas até o ano de 1931.
3 “Se bem que tal lei não precise perfeitamente todos os pontos garantidores dos direitos dos silvícolas e que tenha algu-
mas falhas, nem por isso deixa ela de ser uma grande conquista, como início para futuras e nobres aquisições…” (Serviço
de Proteção aos Índios - Inspetoria no Estado Amazonas e Território do Acre. 1918. Relatório do Inspetor referente aos
trabalhos realizados no exercício de 1917: 5)
4 Acerca da incorporação do instituto à legislação amazonense, ver Sampaio 1992: 122. Sobre o instituto da concessão,
ver Cirne Lima 1931.
5 O artigo 5º, § 4º, do Decreto 644, de 1903, por exemplo, estabelecia que seriam reservadas as terras “que
estive[ssem] empregadas no serviço da colonização e aldeamento de indígenas e as que forem necessárias para
a fundação de núcleos nacionais ou estrangeiros”. As terras seriam entregues aos indígenas em usufruto, e não
poderiam ser alienadas enquanto o Governo, por ato especial, não concedesse àqueles o pleno gozo delas “por
assim permitir o seu estado de civilização.” (artigo 125 das Disposições Gerais).
6 A associação entre terras de índios e terras devolutas se fundamentava em interpretação de artigo da Lei de Terras
de 1850, que estabelecera que o Governo reservaria, das terras devolutas, aquelas necessárias à colonização dos índios
(Linhares 1998). Entendimentos discordantes foram firmados já à época, como o do jurista João Mendes Pereira, cuja
argumentação foi assim traduzida por Carneiro da Cunha: “Não se trata, na Lei de Terras, como erroneamente se entendeu
às vezes, de declarar as áreas indígenas como devolutas, e sim, inversamente, de reservar terras devolutas do Império para
aldeamento de índios, quando se os queria assentar e deslocar de seus territórios originais.” (Carneiro da Cunha 1992: 21).
7 Quanto ao entendimento da natureza do título de domínio indígena, há diferenças, é preciso ressalvar, entre a posição
de João Mendes Pereira, antes citado, e a de Manuel Francisco Machado, bem como entre o posicionamento daquele e o
princípio da “posse imemorial havida por ocupação primária”, expresso na lei n° 941/1917. Para o primeiro jurista, o título
de domínio indígena é originário e difere da posse adquirida por ocupação, entendimento que acarretaria a necessidade
de sua validação, segundo processo de legitimação também estabelecido na Lei de Terras. Segundo José Maria de Paula,
para João Mendes Pereira não se poderia conceber que “os índios tivessem adquirido, por simples ocupação, aquilo que
lhes é congênito e primário, de sorte que, relativamente aos índios estabelecidos, não há uma simples posse, há um título
originário de domínio; não há, portanto, posse a legitimar, há domínio a reconhecer e direito originário e preliminarmente
reservado.” (Paula 1944: 43-44).
8 O Regulamento elaborado por Machado foi revogado pouco depois de sancionado, em favor do regulamento editado
em 1903. Ver: Amazonas 1912. Regulamento de Terras a que se refere o Decreto n° 993 de 18 de maio de 1912. Inclui
Exposição de Motivos dirigida ao Sr. Governador do Estado do Amazonas, Coronel Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt,
e datada de 21/02/1912.
9 O que também se encontrava em continuidade com a legislação fundiária do período; em muitos dos regulamentos
analisados, as finalidades às quais eram destinadas as glebas regulavam a extensão máxima dos lotes de terras devolutas
que poderiam ser adquiridos por um único comprador. No regulamento baixado com o Decreto n° 4, de 16/03/1892, por
exemplo, se estabelecia que as glebas de terras devolutas a serem vendidas a particulares constituiriam “lotes maiores ou
menores, conforme a indústria a que se destinarem, as distâncias em que estiverem dos povoados, das vias de comunicação
fluviais ou terrestres e as circunstâncias das pessoas que se propuserem a adquiri-las para lavoura, criação de gado ou para
a indústria extrativa de produtos vegetais”.
10 O entendimento, em época logo posterior à Lei de Terras de 1850 e ao Decreto n° 1318/1854, da reserva de terras para
índios como instituto de caráter transitório, foi assinalado por Carneiro da Cunha (1992: 21).
11 Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais – Inspetoria do Estado do Amazonas e Ter-
ritório do Acre. Relatório sem título, de 30/05/12, elaborado por João Augusto Zany, p. 11-12; Relatório sem título, de
09/12/12, elaborado por Domingos Teófilo de Carvalho Leal, p. 03-04.
12 No fundo de documentação do Serviço de Proteção aos Índios, acervo do Museu do Índio (RJ), foram localizadas
as plantas cartográficas de sete lotes, entre os nove demarcados pela Inspetoria nos Autazes, nesse período. Os originais
encontram-se sob a guarda do Centro de Documentação da FUNAI em Manaus.
CONTEXTOS
13 AMAZONAS. 1918. Mensagem lida perante a Assembleia Legislativa na abertura da terceira sessão ordinária da nona
legislatura pelo Exmo. Sr. Dr. Pedro de Alcântara Bacellar, Governador do Estado, a 10 de julho de 1918.
14 Esta foi a posição manifesta pelo Governador Jonatas Pedrosa (1913-1916), para quem a saída era facilitar, “patrocinan-
do mesmo, (...) com auxílios de toda ordem, diretos e indiretos”, a formação de grandes propriedades para o cultivo racio-
nal da seringueira e de outras culturas especiais (Mensagem lida em 1913, perante o Congresso do Amazonas na abertura
da primeira sessão ordinária da oitava legislatura pelo Exmo. Sr. Jonatas de Freitas Pedrosa, Governador do Estado, p. 12).
15 Acerca dos efeitos econômicos, sociais e políticos da quebra da indústria da borracha, ver Weinstein 1993.
16 Medidas tais como a difusão e demonstração de novas técnicas agropastoris; a criação de uma Escola Agrícola Prática;
a incorporação do ensino agrícola elementar e prático nas escolas primárias; a criação de uma Colônia Correcional ou
Patronato Agrícola, para internação dos menores “abandonados” e “não reclamados” (AMAZONAS. 1918. Mensagem
lida perante a Assembleia Legislativa na abertura da terceira sessão ordinária da nona legislatura pelo Governador Pedro
de Alcântara Bacellar, p. 106-107).
17 Esta parceria teve influência, inclusive, na formação do staff do Governo Bacellar. João de Araújo Amora, Inspetor-
Chefe do Serviço entre 1912 e 1916, “hábil profissional em questões de terra”, ocupava, em outubro de 1917, o cargo de
engenheiro auxiliar da Repartição de Terras do Estado. João Augusto Zany, engenheiro agrimensor, ex-ajudante da Inspe-
toria, tornou-se Chefe da recém-criada Seção de Agricultura e Indústria Pastoril; mais tarde, passaria a coordenar uma das
obras consideradas estratégicas pelo governo estadual, a construção da estrada de Caracaraí (Rio Branco). Prestigiados,
ambos acompanharam Bacellar em viagens de inspeção a Amatari, Colônia Pedro Borges e Paricatuba, realizadas naquele
mês de outubro de 1917 (A Capital, Ano I, nº 83, 07 de outubro de 1917).
18 Recursos federais foram disponibilizados ao Governo do Estado para a abertura da estrada Caracaraí – Lago do Rei,
como alternativa ao trecho encachoeirado do Rio Branco, acesso para uma região de tríplice fronteira em pauta na geopo-
lítica republicana, e principal área da indústria pastoril do Amazonas. Entre 1917 e 1918, a Inspetoria repassara, por ordem
do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, parte significativa do patrimônio da extinta Estação Experimental da
Superintendência de Defesa da Borracha, assumido pelo órgão em 1916. No mesmo período, o Governo Federal subven-
cionava, no Amazonas, três escolas de agronomia: a Escola Agronômica (em Manaus), a Escola de Agricultura Prática
(mantida por padres na Vila de S. Gabriel, no Rio Negro), e a Escola Agrícola (dirigida por missionários no Rio Branco).
Em 1920, a Inspetoria, responsável desde 1915 pela administração das Fazendas Nacionais do Rio Branco, foi chamada
pelo governo estadual a inaugurar uma linha de transporte fluvial entre Manaus e o Porto da Fazenda São Marcos, a ser
subsidiada com recursos estaduais (Serviço de Proteção aos Índios – Inspetoria no Estado do Amazonas e Território do
Acre. 1921. Relatório do Inspetor referente aos trabalhos realizados no exercício de 1917 na Inspetoria do SPI no Amazo-
nas e Acre, p. 31).
A LEI Nº 1144/1922
19 A Inspetoria, através da instalação e manutenção dos postos indígenas, colocava em operação um mecanismo não des-
prezível de incremento à infra-estrutura nas áreas de sua atuação, como a abertura, desobstrução e manutenção periódica de
caminhos terrestres ou fluviais. A produção de alimentos, que, após a quebra do mercado da borracha silvestre, tornara-se
condição de possibilidade da própria empresa extrativista, também se encontrava entre as finalidades das unidades admi-
nistrativas do SPI. Os postos também contribuíam para o controle de uma população rural que se descreve como retirante
e faminta, cuja fixação nas unidades era subsidiada por uma verba especial, denominada “flagelados” (Serviço de Proteção
aos Índios. Inspetoria no Estado do Amazonas e Território do Acre. 1923. Relatório do Inspetor referente aos trabalhos
realizados no exercício de 1922, p. 1-12).
20 Não por acaso a disposição geopolítica das terras demarcadas/reservadas sob o regime da lei, associada à progressão
geográfica dos postos indígenas instalados no Amazonas nesse período, ganha inteligibilidade quando sobreposta às medi-
das e às áreas eleitas como prioritárias no Plano de Defesa da Borracha. A localização geográfica e o período de instalação
e funcionamento dos Postos Indígenas no Estado do Amazonas, entre 1910 e 1930, podem acompanhados em Melo 2007.
Sobre o Plano de Defesa da Borracha, ver SANTOS 1980: 249.
21 Serviço de Proteção aos Índios. Inspetoria no Estado do Amazonas e Território do Acre. 1921. Relatório do Inspetor
referente aos trabalhos realizados no exercício de 1920. p. 15-16.
22 Os relatos encontram-se registrados nos relatórios anuais de atividades elaborados pela Inspetoria ao longo da década
de 1920.
23 No Amazonas, a Bertholletia excelsa é dispersa, sendo encontrada em todas as regiões do estado. Certos fatores, en-
tretanto, tornavam alguns castanhais mais atraentes que outros: a disponibilidade de mão de obra (cuja escassez tornou-se
aguda com a coincidência da alta nos preços da castanha e da borracha); a acessibilidade dos castanhais, uma vez que,
sendo a Bertholletia uma planta de terra firme, tanto o transporte de trabalhadores como o escoamento da safra constituíam
pontos sensíveis da produção. As áreas mencionadas como especialmente conflituosas constavam entre as principais áreas
produtoras no Estado do Amazonas, envolvendo castanhais incidentes em territórios Mura no Rio Preto do Igapó-Açu e
Rio Madeira; Mundurucu, ao longo dos Rios Mari-Mari, Abacaxis e Canumã; Pirahã, no Rio Maici e Waimiri-Atroari, no
Rio Jauaperi (BRASIL. Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Serviço de Inspeção e Fomento Agrícola, 1929,
p. 4, 20-40)
24 O Inspetor Lemos adjetivou de “escandalosa” a corrida aos castanhais no da gestão Bacellar (1920), e não hesitou em
denunciar que altos funcionários do Estado, e mesmo as esposas do Governador e do Secretário Geral de Governo reque-
riam, ao Executivo Estadual, extensos lotes em áreas ricas em castanhais, avaliadas por prepostos enviados de Manaus a
várias zonas do interior (Serviço de Proteção aos Índios. Inspetoria no Estado do Amazonas e Território do Acre. 1921.
Relatório do Inspetor referente aos trabalhos realizados no exercício de 1920, p. 15-16.)
25 Investidas de parentes e protegidos pessoais do Governador nos rios Jauaperi e Maici deram origem a algumas das
principais demandas fundiárias da Inspetoria no período. O Governo Rego Monteiro passou à história como um grande
desastre administrativo, marcado por alto grau de corrupção, desequilíbrio de gastos, empréstimos públicos sob condições
inaceitáveis, funcionalismo sem vencimentos, centralismo político, nepotismo exacerbado (Santos 2001).
26 Da iniciativa resultaram vinte e dois requerimentos de terra, abrangendo, em sua maioria, pequenos lotes de ocupação
Mundurucu nos rios Canumã e Mapiá. Apenas cinco requerimentos foram deferidos, em que pese o argumento de que os
lotes seriam não concedidos, e sim comprados ao Estado.
27 A estatística das posses de terras que a Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios no Amazonas e Acre já conseguiu
relacionar, pertencentes a índios de várias tribos domiciliadas em alguns municípios do Amazonas, foi apresentada à
Diretoria do SPI em 1923, como um dos resultados da ação do órgão no exercício anterior. Listava 103 posses indígenas,
distribuídas em cinco municípios, todos com forte presença da indústria extrativa (castanha e guaraná).
28 Um bom exemplo dessa articulação e da dinâmica de produção de informações e documentos em meio a disputas con-
cretas está na troca de correspondência entre o Inspetor Bento Lemos e dois delegados de índios (representantes locais, ho-
noríficos, do SPI), a respeito da invasão e demarcação de um castanhal denominado Piquiá, explorado por indígenas Mura
no município de Manicoré, em 1922. O delegado de índios local, em meio ao trabalho de campo, interpelara o engenheiro,
mas fora por este convencido a assinar um papel declarando que “os índios não tinham no lugar Piquiá, barracas e nem
benfeitorias dentro das terras demarcadas, só tempo da safra da castanha que lá trabalhavam”. Cerca de um mês depois,
o Inspetor recorreu a outro delegado de índios, também em Manicoré, e, explicando o ocorrido, solicitou que o mesmo
elaborasse um abaixo assinado entre os moradores do município, reconhecendo as posses dos Muras, a fim de proceder à
justificação judicial das mesmas. A Inspetoria já havia protestado junto ao governo contra a demarcação, mas a expectativa
de Lemos era a de que os usurpadores promovessem, eles próprios, um abaixo assinado, motivo pelo qual buscava se
adiantar na produção de provas que contribuíssem para a legalização dos direitos possessórios dos Muras. Pedia também
ao delegado que orientasse os índios a levantar, “com presteza, novas barracas e outras benfeitorias nos referidos locais,
conservando-as com moradia habitual no seu domínio”. (Correspondência da Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios
no Amazonas e Acre. Cartas de 26/11/1922 e 18/12/1922. Acervo do Museu do Índio)
29 Serviço de Proteção aos Índios – Inspetoria no Estado do Amazonas e Território do Acre. 1925. Relatório do Inspetor
sobre as atividades desenvolvidas na Inspetoria no exercício de 1924, p. 33-35.
Perímetro Frente
Nome Município Área (ha) Data serviço
(m) (m)
Capivara Itacoatiara 535,2746 11.958 1.970 11/12/1918
Trincheira Itacoatiara 710,5858 14.728 4.980 11/12/1918
Pantaleão Itacoatiara 51,8772 3.131 330 11/12/1918
João Pedro Itacoatiara 462,9780 11.581 4.755 11/12/1918
Paracuúba Itacoatiara 967,1759 13.148 730 07/06/1919
Muratuba Itacoatiara 637,0236 11.185 2.510 11/12/1918
Murutinga Itacoatiara 406,2622 11.077 842 08/02/1919
Guapenú Itacoatiara 1.220,8523 16.781 3.790
Marienê Lábrea 10.793,1025 67.000 20.960 16/12/1919
Jumas Manaus 3.763,0264 33.555 9.450 08/04/1920
30 Comissão nomeada em janeiro de 1931 pelo Interventor Federal no Estado do Amazonas, Álvaro Maia, para proceder
a rigoroso inquérito na Inspetoria de Proteção aos Índios (cf. Ato nº 193, de 21/01/1931), devido a denúncias de malver-
sação de recursos públicos, práticas de crimes e atos de arbitrariedade na demarcação de terras. “Catequizar castanhais
para descobrir índios”: não há frase que melhor resuma o espírito das denúncias que seriam relatadas, na Comissão, contra
a Inspetoria.
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Relação dos Autos de Medição e Demarcação efetuadas pelo SPI. Acervo do Centro de Documentação
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ABSTRACT
From the ethnographic description of a moment zonas State and Acre Territory, that consolidated as
well located in the space time of the territorializa- an active, though fragile, network policy in the lands
tion process of the Mura indigenous people ― Au- and indigenous people administration, privileging
tazes/Baixo Madeira, Amazonas, between the years the Autazes as locus of the interventions focused on
1912 and 1932 ―, it is intended to analyze how the the legal foundation of areas for the indigenous oc-
ethnic differences was associate to legal taxonomies, cupation. Such interventions, its possibility condi-
operating, in the context of a state legislation orien- tions and effects are considered in social, economic
ted to the legal guarantee of lands to the indigenous and political distinct contexts, looking up analyzing
(the state laws number 941/1917 and 1144/1922), how agencies and social players had appropriated of
the recognition of circumscribed right by images these taxonomies, investing them of different mea-
guided for the transitory paradigm of the indian. nings and effectiveness diverse, doing implode the
The period comprises the installation of the Inspec- control that circumscribed the right in recognition.
torate of the Indigenous Protection Service in Ama-
KEYWORDS
Territorialization, ethnicity, indigenous policy, Mura, Amazonas.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
Nossa proposta é apresentar um balanço histórico e das Expressões Culturais (2007). A partir da análi-
analítico do arcabouço jurídico que regula a prote- se desses marcos jurídicos, procuraremos delinear
ção ambiental e a proteção à diversidade cultural no uma trajetória da institucionalização desses temas
Brasil, a partir de uma leitura crítica, fundamenta- em âmbito internacional e, sobretudo, seus refle-
da na legislação brasileira, de algumas convenções xos e repercussões no Brasil. Finalizaremos com a
internacionais ratificadas pelo Brasil que regulam a análise da Política Nacional de Desenvolvimento
matéria, a saber: a Convenção Relativa à Proteção Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (pro- (2007), política pública que consubstancia boa par-
mulgada no Brasil em 1972), a Convenção da Di- te desse arcabouço jurídico-formal e explicita a pre-
versidade Biológica (1998), a Convenção nº 169 da disposição do governo em assumir a diversidade no
Organização Internacional do Trabalho (2004) e a trato da realidade social brasileira.
Convenção que trata da Promoção da Diversidade
PALAVRAS-CHAVE
Convenções internacionais, diversidade sociocultural, populações tradicionais, proteção ambiental.
1 Antes da Eco-92 o movimento seringueiro no Acre propunha esse tipo de concepção, afirmando que os Povos
da Floresta deveriam ser reconhecidos pelo Estado como verdadeiros guardiões desta. Para ver a história do
movimento, que culminou com a proposição de uma categoria de unidade de conservação, ver a excelente tese
de doutoramento de Mary Allegretti (2002), intitulada A Construção Social de Políticas Ambientais: Chico
Mendes e o Movimento dos Seringueiros, defendida em 2002.
2 Conforme Decreto nº 10.408 de 27 de dezembro de 2004, o Decreto de 13 de julho de 2006 altera a deno-
minação, competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades
Tradicionais, agora denominada Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunida-
des Tradicionais, passando a ser paritária, integrando quinze representações da sociedade civil organizada, em
sua maioria, redes sociais, e quinze representações governamentais.
Em abril de 2008 foi elaborada uma minuta de projeto pela Comissão Nacional
visando a fazer “um levantamento preliminar de informações que permita localizar as
comunidades tradicionais segundo seus critérios de autodefinição reconhecidos pelas
próprias comunidades”. Tal pesquisa não pôde ser realizada em âmbito nacional por falta
de verba, mas é possível constatar diversas iniciativas de cartografias sociais que estão
em curso, e que, de certa forma, asseguram a compreensão e a mensuração de quem são,
quantos são e onde estão os povos e comunidades tradicionais do Brasil3.
Dentre os objetivos específicos dessa Política Nacional há: 1) a garantia dos
territórios dos povos e comunidades tradicionais, bem como o acesso aos recursos que
tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica (art. 3º,
parágrafo 1º).
A definição dos territórios tradicionais da Política é a seguinte (art. 3º, § II):
3 Cabe destacar especialmente o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, coordenado pelo professor Al-
fredo Vagner; e o Programa Mapeamento dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais, coordenado
por Aderval Costa Filho.
MÜLLER, Cíntia Beatriz. 2008. A Convenção 169 da OIT e a garantia dos povos
quilombolas ao Direito Humano Fundamental ao território. O caso das comunidades
dos quilombos no Brasil. Porto Alegre: Monografia de Especialização em Direitos
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Tradicionais no Brasil: Declarações, Convenções Internacionais e Dispositivos
Jurídicos Definidores de uma Política Nacional. Manaus: UEA.
DOCUMENTOS JURÍDICOS
ABSTRACT
Our proposal is present a historical and analytical on the Protection and Promotion of the Diversity of
balance of the legal framework which regulates the Cultural Expressions (2007). From the analyse of
environmental protection and the protection of these regulations, we seek to outline a trajectory of
cultural diversity in Brazil from a critical interpre- institutionalization of these themes in international
tation, substantiated on the Brazilian legislation, scope and, mainly, its reflections and repercussions
regarding some international conventions ratify by in Brazil. We will conclude with the analyses of the
Brazil that regulate the matter, namely: the Conven- National Policy for Sustainable Development of the
tion Concerning the Protection of the World Cultu- Traditional Peoples and Communities (2007), pu-
ral and Natural Heritage (promulgated in Brazil on blic policy which substantiates much of this legal
1972), a Convention on Biological Diversity (1998), and formal framework and explains the predispo-
the Convention number 169 of the International sition of the government in take on the diversity in
Labor Organization (2004), and the Convention the relation of the brazilian social reality.
KEYWORDS
International treaties, sociocultural diversity, traditional people, environmental protection.
SOBRE OS AUTORES
RESUMO
O povo Gurutubano é quilombola e ocupa hoje pe- políticas públicas. Os Gurutubanos representam
quenas frações de terra dos seus ancestrais, entre uma modalidade peculiar de Caatingueiro, de pre-
fazendas de pecuária extensiva, na confluência de dominância negra e ascendência ligada à recusa da
sete municípios do norte de Minas Gerais. O con- escravidão. Se Caatingueiros e Geraizeiros se afir-
texto microrregional conjuga pelo menos três cate- mam “etnicamente” por contraposição, os Gurutu-
gorias identitárias - os Gurutubanos, os Caatinguei- banos se constituíam como o membro olvidado da
ros e os Geraizeiros - definidas a partir de unidades tríade, provavelmente porque representavam uma
socioambientais (o vale do Gorutuba, a Caatinga, o mácula na imagem de prosperidade interiorizada e
Gerais e seus habitantes tradicionais). Os Geraizei- reproduzida pelos Caatingueiros, aproximando-se,
ros são reconhecidos como agricultores dos planal- de certa forma, das representações sobre os Gerai-
tos, encostas e vales dominados pelo Cerrado que, zeiros. Não obstante, os Gurutubanos hoje reivin-
comparativamente, apresentam baixa fertilidade dicam a regularização do seu território, bem como
natural e baixa produtividade. Os Caatingueiros, ao os demais direitos que lhes foram historicamente
contrário, ocupam uma região marcada pela maior negados, ganhando predominância política no con-
fertilidade dos solos e facilidade de produção, trans- texto regional.
porte, proximidade dos centros urbanos e acesso a
PALAVRAS-CHAVE
Identidades regionais, Gurutubanos, Caatingueiros, Geraizeiros, territorialização.
1 Trabalho realizado como desdobramento de tese de doutorado (Costa Filho 2008); os dados etnográficos
aqui apresentados foram coletados em trabalho de campo realizado para fins de elaboração da referida tese e
integram acervo do autor.
2 Quando me referir ao povo Gurutubano estarei utilizando a grafia proposta por Neves (1908) em Choro-
graphia do Município de Boa Vista do Tremendal, por ser o primeiro historiador regional que faz menção
explícita aos negros que se aquilombaram no vale do Gorutuba. Já quando me refiro ao rio Gorutuba, utilizo a
grafia convencional, com “o”, como consta em cartas do IBGE.
4 A privatização das águas do rio Gorutuba corresponde à construção da Barragem do Bico da Pedra, na déca-
da de 1970, e à utilização dos recursos hídricos locais predominantemente na fruticultura irrigada para fins de
exportação, deixando as comunidades locais sem acesso à água.
5 A vazante é a unidade de paisagem delimitada pelo regime das cheias, que corresponde à faixa de terra pró-
xima ao leito do rio nas porções mais inferiores do relevo. Pode atingir de 2 a 4 quilômetros de largura, sendo
utilizada para a solta do gado, o plantio de capim e arroz, bem como para reserva de peixe em suas lagoas. Os
capões são os terrenos de maior fertilidade, onde os nativos normalmente constroem suas casas, cuidam dos
quintais e hortas e plantam suas roças de milho e feijão gurutuba; possuem extensão variada, podendo atingir
até 1 quilômetro de largura. No dizer dos Gurutubanos: “Capão é onde a água não alcança” – “Varge é lugar
que enche de água e na seca abaixa” (Rufino, Gado Velhaco, 35 anos).
6 A partir das relações entre os Kachin e os Chan, Leach desenvolve sua teoria a respeito das relações entre
cultura e estrutura. Para ele, a cultura proporciona a “forma”, a “roupagem” da situação social: a forma
da situação é um fator dado, um produto e um acidente da história; a estrutura da situação, entretanto, é
largamente independente da sua forma cultural. “O mesmo tipo de relação estrutural pode existir em muitas
culturas diferentes e ser simbolizado de maneiras correspondentemente diferentes. Também não existem ra-
zões intrínsecas pelas quais as fronteiras significativas dos sistemas sociais devam coincidir com as fronteiras
culturais” (Leach, 1996: 79). Assim, embora as diferenças de cultura sejam estruturalmente significativas,
o fato de dois grupos serem de culturas diferentes não implica necessariamente que pertençam a sistemas
sociais totalmente diferentes.
[...] seu interesse reside não na interpretação estrutural de uma cultura par-
ticular - tendência hegemônica entre os antropólogos - mas no modo como estrutu-
ras particulares podem assumir uma variedade de interpretações culturais, e como
estruturas diferentes podem ser representadas pelo mesmo conjunto de símbolos
(Sigaud 1996: 32).
7 Essa distinção representa uma uma contribuição às categorias acima, que dão excessiva evidência a traços
culturais diacríticos, e à influência da sociedade regional sobre os grupos étnicos.
São pequenas partes que ficam na beira do riacho, alguma terrinha mais ma-
ciça que tem pra trabalhar, ela é pouca, mas em compensação produz mais e, no
gerais, tem outras fontes de renda, tudo que dá no gerais, tem o extrativismo, tem
o pequi, o coquinho que o pessoal explora, traz ali pra feira e aquilo ali retorna em
outro produto. (Adão Custódio, agricultor de Porteirinha).
Eles têm uma técnica pequena, mas em função do clima ser úmido, a pro-
dução ali é satisfatória, enquanto na Caatinga talvez você faz uma roça até grande
e quando dá um veranico9, talvez um veranico que dá assim de quinze dias... No
9 Um veranico é sol, quinze dias de sol de uma vez... então um veranico (Adão Custódio, trabalhador rural em
Porteirinha). Dayrell identifica também esta categoria nativa entre os geraizeiros, tomando Veranico como
designação que é dada para o tempo em que não chove no período de desenvolvimento das culturas, na época
das chuvas. Normalmente ocorre no mês de janeiro, em um período de uma semana, mas pode durar um mês
ou mais. Nesse caso há uma queda grande da produção, quando não chegam a perdê-la (Dayrell 1998: 84).
[...] cês aí tá bom, cês aí ta perto, nós tem que caminhar tantos quilômetros
prá nós chegar até um ponto prá pegar o ônibus e chegar até aqui; eu tenho que vol-
tar rápido porque o ônibus não pode esperar e depois eu ainda tenho que caminhar
tantos quilômetros prá chegar em minha casa a pé [...]
Eles pensam que o caatingueiro tem mais facilidade de ter dinheiro, porque
na Caatinga sempre teve mais serviço; os Caatingueiros eram mais porque eles plan-
tava bastante algodão né, fazia muito dinheiro, muita gente da Caatinga enricou,
comprou fazenda com negócio de algodão... de plantar algodão.
Nós identifica eles de fato mesmo é pela cor, são preto escuro mesmo, lumio-
sos, cabelo duro, o mais é aquela família que parece que não se preocupou muito
em legalizar as partes, é um pessoal muito desassistido em termos de documentos,
não são casados e não respeitam as regra, a gente encontra muito primo com primo,
com sobrinhos e desta forma vai misturando...
11 Considerando-se o caráter pejorativo da afirmação, optei por manter o o anonimato do(a) informante.
[...] as margens dos rios Verde Pequeno, Verde Grande e Gorutuba serviam
de moradia a indivíduos de índole sanguinária, viciosos, brigões, valentes, traiço-
eiros, luxuriosos, vivendo da caça, da pesca, apaixonados mesmo pela música, pela
dansa, pelas mulheres, pelo jogo, pelas armas, dando a vida pelo álcool.
Os Gurutubano é um povo fácil de criar atrito, com pouca coisa criam atrito,
não é aquele pessoal hospitaleiro, de humildade não, é um pessoal meio rústico,
violento... é um povo meio sem cultura, meio xucro, mais fácil de entrar em atrito,
buscar confusão [...].
12 Costa (1999) afirma que, pelo menos desde meados do século XIX, as comunidades negras se espalhavam
pelo rio Verde Grande; no entanto, pelo levantamento da memória e genealogia dos troncos familiares no
Gurutuba, região que integra o referido campo negro da Jaíba, recuamos a meados do século XVIII.
[...] tem uns Gurutubano que é misturado com índio. As índias foi pegada
no mato, com cachorro e monsou e gerou muito Gurutubano (...). Minha vó mesmo
era índia, fia duma índia, ela tinha o cabelo comprido. Eles andava era lá no mato,
andava nu... Mas disse que eles tinha um, que eles trançava um sifon, um caruá e
tompava o corpo também. Agora ficava nu da cintura prá riba.
Tem pessoas aí moço que o bisavô foi pegado no mato com cachorro. A mãe
de cumade Antoninha, de cumade Inácia, de Cristiano, era minha mãe também né...
a vó delas mesmo foi pegada de cachorro latino. A mãe da finada Cecília...
Já vem de... muitos anos que aconteceu isso né, o tempo que aqui era deser-
to. Aqui era deserto, depois foi descobrindo, descobrindo, e foi pegano alguns índios
13 Partindo da análise da “fase liminar” dos ritos de passagem caracterizada por Arnold van Gennep (1960),
Turner (1974: 116-117) analisa o estado de liminaridade. Van Gennep mostrou que todos os ritos de passagem
caracterizam-se por três fases: separação, margem ou limiar, e agregação. A primeira fase abrange o compor-
tamento simbólico que significa o afastamento do indivíduo ou grupo de um ponto fixo anterior na estrutura
social. No período limiar, o sujeito ritual passa por uma fase de ambigüidade, em que o domínio cultural tem
poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase, o sujeito ritual, seja
ele individual ou coletivo, permanece em um estado relativamente estável outra vez, assumindo as normas
costumeiras, os padrões éticos da nova posição.
ABSTRACT
The Gurutubano people are quilombola and occu- of the urban centers and access to public policies.
py today small fractions of land of their ancestors, The Gurutubanos represent a peculiar modality of
among extensive livestock farms, in the confluence Caatingueiro, of black predominance and parentage
of seven municipalities of the north of Minas Ge- related to the refusal of the slavery. If Caatinguei-
rais. The micro regional context combines at least ros and Geraizeiros assert themselves “ethnically”
three identity categories – the Gurutubanos, the Ca- by opposition, the Gurutubanos constitute them-
atingueiros and the Geraizeiros – set from socioen- selves as the forgotten member of the triad, proba-
vironmental units (the Gorutuba vallet, the Caatin- bly because they represented a stain in the image
ga, the Gerais and its traditional inhabitants). The of prosperity internalized and reproduced by the
Geraizeiros are recognized as farmers of the plate- Caatingueiros, approaching, somehow, to the re-
aus, hillsides and valleys restrained for the Cerrado presentations of the Geraizeiros. Notwithstanding,
which, comparatively, have poor natural fertility the Gurutubanos currently claim the regularization
and low productivity. The Caatingueiros, on the of their territory, as well as the other rights which
contrary, occupy a region marked by higher soil fer- they have been historically denied, gaining political
tility and facility of production, transport, closeness predominance in the regional context.
KEYWORDS
Regional identities, Gurutubanos, Caatingueiros, Geraizeiros, territorialization.
SOBRE O AUTOR
RESUMO
Dois processos territoriais fundam a comunidade cesso econômico marca os novos tempos: a entrada
rural Linha da Cruz, situada no bioma da Caatinga, da economia dos biocombustíveis no modo de vida
norte de Minas Gerais, Brasil: as políticas de coloni- catingueiro. Em função do debate internacional que
zação do sertão mineiro promovidas pela Ruralmi- vem sido travado em torno das energias renová-
nas em 1974, deflagrando uma corrida pela regula- veis e do selo “combustível social”, a Petrobrás vem
rização de terras e loteamento de áreas devolutas; avançando sobre as áreas de caatinga, a fim de rea-
e um processo anterior à chegada da Ruralminas, lizar contratos de compra/venda de matéria-prima
sobre o qual não há registros oficiais, mas que se com pequenos agricultores. Portanto, este artigo
mantém vivo na memória dos moradores antigos. aponta para as diversas temporalidades que engen-
Trata-se da chegada de posseiros de terra na década dram a comunidade, tendo em vista seus processos
de 1930, advindos do rastro do gado, mito de ori- de territorialização (Oliveira 2004) e os efeitos do
gem que aponta para a constituição da identidade avanço da economia de mercado sobre as práticas
sertaneja. Na comunidade hodierna, um novo pro- tradicionais de convivência com a caatinga.
PALAVRAS-CHAVE
Sistemas locais, territorialidade, catingueiros do norte de Minas
O norte de Minas Gerais, caracterizado por ser uma zona de transição entre ecos-
sistemas diversos compostos pela interpenetração dos Cerrados, da Caatinga, da Mata
Seca e da Mata Atlântica, foi o local onde se estruturou uma sociedade constituída por
uma grande diversidade de grupos sociais que se fixaram por ali. Populações nativas e
chegantes, vindas de várias regiões do país, se espalharam e estabeleceram-se por entre
os diferentes meios biofísicos que compõem a região, entre os quais os Gerais, a caatinga
e o rio São Francisco são alguns dos biomas.
As populações locais que se estabeleceram no norte de Minas são identificadas pe-
los moradores, gestores públicos e pesquisadores tanto por suas características étnicas,
como é o caso das comunidades quilombolas e das indígenas, mas também em função
dos ambientes em que estão fixadas e pela relação que estabelecem com esses ambien-
tes1. Buscando uma proximidade dessa característica dos povos do norte de Minas Gerais
com o que Parajuli (1996) aponta em seu estudo sobre as populações rurais na Índia,
podemos pensar as populações do norte de Minas como articulando o que ele chama de
“etnicidades ecológicas”, uma vez que a constituição de suas identidades locais, todavia,
está atrelada aos modos de interação socioambientais2.
Partindo de uma perspectiva que compreende o norte de Minas a partir dos
seus processos de territorialização (Oliveira 2004), torna-se possível relacionar esses
processos ao fato de hoje haver na região cerca de 84 comunidades tradicionais, as quais
têm reivindicado junto à Fundação Cultural Palmares o reconhecimento étnico que lhes
é de direito (Costa 2011: 59). Observa-se que, se por um lado, o olhar imperialista tratou
o sertão como fronteira – no sentido territorial e civilizatório – sobre a qual o Estado-
Nação deveria expandir-se, por outro lado, como mostra Costa (1999), essa história
também produziu no norte mineiro um hibridismo cultural, conformando diferentes
matrizes de racionalidade (Filho 2005) que contrapõem a ideologia de uma sociedade
1 Por exemplo, os grupos rurais que vivem em torno do Rio São Francisco se autodefinem como “vazanteiros”,
pois vivem nas e das cheias (vazantes) do rio, e por isso são assim chamados; outro exemplo são os “catinguei-
ros”, que ainda que não se autodefinam como tais, são assim chamados pelos outros grupos, constituindo uma
identidade contrastiva (Merlo 2012).
2 Com o termo “etnicidades ecológicas”, Parajuli (1996) se refere ao fenômeno que surge na Índia, no início do
séc. XX, de “etnização da destruição ecológica”, em que grupos étnicos utilizam-se da rubrica da “ecologia” para
lutar pela sua autonomia, logo, contra a exploração capitalista e o desenvolvimento estatal. Ainda que não se
articulem explicitamente aos objetivos ecológicos, o surgimento desses novos movimentos políticos representa,
na perspectiva do autor, uma mudança de foco dentro dos movimentos ambientalistas. Os grupos étnicos, ao
reivindicarem sua autonomia, estão lutando por questões ecológicas, já que necessitam dos recursos naturais
para existirem. Assim, o novo movimento ecológico lança mão de uma abordagem nacionalista, para enfatizar,
então, as diferenças étnicas e os variados modos dos grupos de interagirem com os recursos naturais. O autor
considera a etnicidade central para o desenvolvimento e a ecologia, uma vez que conflitos por recursos estão
localizados, geralmente, nas áreas onde esses grupos estão situados (Ecological Regions).
3 Geraizeiros são “agricultores que descem dos planaltos, onde estão localizados os Gerais, para venderem
seus produtos nos mercados locais. Os Gerais são os planaltos, encostas e vales das regiões dominadas pelos
Cerrados, com solos normalmente ácidos e de baixa fertilidade natural. Segundo Dayrell (1998: 73), Gerais não
é exatamente a vegetação dos Cerrados, mas o ambiente dos Cerrados e suas diversas formações, incluindo as
formações de transição para a Caatinga e a Mata Seca. Filho (2008: 72) explica que estes termos (geraizeiros,
catingueiros, gorutubanos, etc.) são recorrentes em regiões que fazem contato entre ambientes distintos, onde
são explícitas as diferenças ecossistêmicas.
4 Em meados dos anos 1980, com vista a corrigir problemas causados pelas políticas verticalizadas de reforma
agrária que, todavia, conduziram à expropriação dos territórios tradicionais de centenas de famílias campone-
sas, o governo federal passa a destinar para a região uma série de “programas especiais”, de caráter assisten-
cialista, aplicada de forma homogênea a toda a região, com objetivo de integrar rapidamente a agricultura do
norte de Minas à economia de mercado. Filho (2008) comenta algumas dessas políticas, entre elas o Programa
de Desenvolvimento Rural Integrado do Vale do Gorutuba – PDRI Gorutuba; o Programa de Apoio ao Pequeno
Produtor Rural do Nordeste – PAPP, o Projeto Sertanejo; Projeto de Assistência Técnica e Extensão Rural e
Bem Estar Social; Projeto de Pesquisa e Experimentação; projetos de comercialização e cooperativismo, entre
outros.
5 Como alguns estudos sobre os habitantes da caatinga apontam, o agricultor deste ecossistema, muitas vezes,
planta muito em uma área grande, mas produz pouco (Dayrell 1998).
6 Alguns autores vão tratar os catingueiros como povos mais inseridos economicamente no mercado e, talvez,
por isso, mais assistidos por programas governamentais em comparação a outras populações tradicionais do
norte de Minas.
Ah, antigamente vivia das coisinhas que vinha da terra sequeira, que quan-
do não chovia, guardava, né? Hoje eu acho tudo difícil... Antes chovia bastante, até
março, abril... chovia muito. As coisas durava até chegar as outras águas... Agora
não tem mais, as chuvas agora ficou longe... Tem um bucado de gente aqui na
Linha que tem condições de viver, [pois] planta assim, na terra sequeira. Quando
chove, eu planto, mas não conheço muito... Quando chega água da chuva, faz a
terra primeiro, no lugar que o gado come... mas quem tem gado é mais meu sogro,
nós não temos gado não... ele é mais remediado que nós, né? Ele tem o gadinho
dele... de dois anos pra cá nós está na situação difícil...” (fala de Ana Rita, moradora
da Linha da Cruz)
Em relato da moradora, as dificuldades que ela afirma existirem hoje para se vi-
ver no Sertão são atribuídas a fatores climáticos, externos à agência humana. Por outro
lado, o que se observou na pesquisa através dos relatos dos moradores antigos é que as
dificuldades enfrentadas pelos agricultores nos dias atuais se devem, sobretudo, às rela-
ções assimétricas que essas populações travam com o poder público e com o avanço do
agronegócio na região, o que afeta diretamente seus modos de vida. No entanto, a ideia
de que “as chuva agora ficou longe”, expressa, de forma metafórica, a forma como são
sentidos os efeitos da pressão das políticas de modernização agrícola sobre seus sistemas
locais tradicionais. Essas pressões vão desde as formas como são executados os progra-
mas para o desenvolvimento rural aos discursos dos técnicos agrícolas que incentivam os
agricultores ao “pensamento de mercado”.
A forma como antes viviam os moradores do Sertão Antigo mudou significativa-
mente. Hoje, por exemplo, a economia dos agricultores da Linha da Cruz é considerada
7 Na perspectiva dos programas de desenvolvimento do governo federal, com o advento da política dos biocom-
bustíveis em 2004, a mamona tem sido nacionalmente projetada como principal alternativa para o Sertão-Á-
rido nordestino e mineiro, sendo o estado da Bahia o terceiro maior produtor mundial de mamona (Wilkinson
2008). Como produto que representaria a “salvação” da agricultura familiar daquelas regiões que passam por
dificuldades econômicas em função da seca, o governo federal tem apostado em políticas para fomentar o cul-
tivo da mamona e torná-la o produto que deve assumir o papel de geração de renda para várias famílias rurais.
A comunidade Linha da Cruz é hoje um dos focos desses projetos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
COSTA, João Batista de Almeida. 1999. Do tempo da fartura dos crioulos ao tempo de
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Conflito de Cachoeirinha. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado. FAFICH-UFMG.
ABSTRACT
Two territorial processes founded the rural commu- a brand new process the new economic times, it is
nity Linha da Cruz, situated in the Caatinga biome, the entrance to the economics of biofuels in catin-
north of Minas Gerais / Brazil: the politics of colo- gueiros way of life. Due to the international debate
nization of the interior mining promoted by Rural- that has raged around renewable energy and seal
minas in 1974, triggering a race for the regulariza- “social fuel”, Petrobras has been advancing on ca-
tion of land and allotment of unoccupied areas; and atinga areas in order to perform contracts for the
a process prior to the arrival of Ruralminas, about purchase / sale of raw material with small farmers.
which there is no official record, but remains alive Therefore, this article traces the different tempora-
in the memory of old residents, it is the arrival of lities that engender community in view their pro-
settlers from land in the 1930s, coming from the cesses of territorialization (Oliveira 2004) and the
cattle trail, “origin myth “ that points to the forma- effects of advancing market economy on traditional
tion of sertaneja identity. In the community today, practices of coexistence with the caatinga.
KEYWORDS
Local systems, territoriality, catingueiros from north Minas Gerais.
SOBRE A AUTORA
RESUMO
O texto trata das memórias da atual cidade de Pire- três conceitos na compreensão das entrevistas rea-
nópolis-GO sobre o conflito ocorrido no sítio arque- lizadas, no estudo das manifestações culturais, nos
ológico histórico das Lavras do Abade, no ano de aspectos dos lugares esquecidos e no uso da cultura
1887. As teorias sobre a memória coletiva, cultural e material pela comunidade.
social são discutidas, assim como a aplicação desses
PALAVRAS-CHAVE
Memória coletiva, cultural e social, cultura imaterial e material, arqueologia histórica
A MÁQUINA DO TEMPO
Como Maurice Halbwachs (1992), Paul Ricoeur (2004) também concorda que a
ideia de uma memória individual, totalmente dissociada de uma memória coletiva, é uma
abstração quase sem sentido. Para Halbwachs todos os grupos humanos provém os seus
indivíduos com princípios nos quais as memórias são construídas, que acabam servindo
como mapas tanto na esfera material como imaterial da sociedade. Dessa forma, para
Halbwachs a memória coletiva é uma construção social, com a função de perpetuar
o presente através da valorização de alguns aspectos do passado. Por outro lado, a
memória individual é também como uma engrenagem em uma máquina maior, ou, nas
palavras funcionalistas de seu tutor Émile Durkheim, um instrumento de solidariedade
“orgânica”. Porém, muito antes de Lévi-Strauss, mas em um rompante estruturalista,
Conforme Assmann (2006), a memória tem duas bases: uma neural e outra social.
A base neural é a condição biológica sem a qual é impossível criar memória, enquanto
a base social é a sua organização, que só é possível através da interação entre pessoas.
Porém, diferente de Halbwachs, que estabelece a memória social como coletiva porque
é calcada no presente, Assmann propõe que a memória social também reflete ações
As narrativas sobre as Lavras do Abade estão hoje vivas nas mentes e corpos dos
residentes de Pirenópolis. As entrevistas discutidas aqui são o melhor exemplo disso, e
são o testemunho de eventos passados sobre a vida contemporânea dos seus habitantes.
Os estudos que podem ser realizados sobre este rico acervo de depoimentos são inúmeros,
porém, para esta pesquisa, optou-se por uma análise socioeconômica e pela interpretação
dos testemunhos através dos conceitos de memória coletiva já apresentada. Em resumo,
as narrativas foram inicialmente comparadas entre si a respeito de determinados
assuntos e depois desconstruídas na sua forma de argumentos presentes e passados.
A primeira comparação que pode ser realizada neste estudo diz respeito à idade
geral dos informantes. No total, cinco dos residentes mais idosos de Pirenópolis foram
entrevistados: dois com mais de setenta anos de idade, um com mais de oitenta anos,
e dois com mais de noventa anos. Inicialmente, podemos concluir que a idade média
dos entrevistados foi de 85 anos, aproximadamente mais de três gerações de memórias
acumuladas, sendo que neste estudo utilizo o tempo de 25 anos para definir cada geração
(Schuman & Scott 1989). Portanto, os informantes nasceram em média no início do
século XX, o que os coloca em aproximadamente uma distância de 36 anos (ou uma
geração e meia) do fato ocorrido nas Lavras do Abade. Como resultado, a média dos
informantes teve acesso ao acontecido nas Lavras do Abade através da memória direta de
seus parentes ou similares, e não através de outras fontes ou mídias.
Essa validação de informação é importante quando estamos procurando por
padrões de confiabilidade nos dados. Como exposto no início, as informações tratadas
aqui são consideradas parte de uma tradição oral, ou a história social transmitida de uma
geração a outra. No caso das Lavras do Abade, a tradição oral, ou memória comunicativa
coletada, foi transmitida até os informantes por uma geração apenas, ou seja, pelos
próprios participantes ou testemunhas do ocorrido. Entretanto, é necessário deixar claro
que os próprios entrevistados tiveram também quase três gerações de vida para formular
e reformular suas opiniões sobre o incidente, e construir suas próprias memórias coletivas
sobre o acontecido.
Se em termos de idade os informantes foram quase homogêneos, quanto aos
aspectos socioeconômicos ocorreram algumas variações. Tanto que, a partir de agora, os
entrevistados serão identificados somente por estas classificações. Como representantes
de uma classe trabalhadora, foram ouvidos um mineiro e um artista, sendo classificados
assim por possuírem uma vida de dependência junto aos seus relativos e poucas
aquisições materiais. Como representantes de uma classe de profissionais liberais, foram
entrevistados um dentista e um médico, classificados dessa forma, pois possuem uma
vida estável obtida através da educação e do trabalho independente. Por último, como
Uma prática tão comum em todos esses processos de memória coletiva, cultural ou
social é a ação do esquecimento. Embora existam as condições psicológicas individuais
de supressão para certas lembranças como o trauma (Baddeley 1989, Wilkes 1997), o
esquecimento também pode ser interpretado em um nível social como consequência de
certas seleções na formação da memória do grupo. Burke (1989) propõe que a “amnésia
social” é usada pela sociedade como atos com objetivos de apagar dos registros oficiais
interesses conflituosos para a coesão de um determinado grupo. No caso das Lavras do
Abade, o esquecimento do sítio é parte da formação dessa memória compartilhada sobre
o evento, ou outro instrumento na construção de uma memória social sob a ótica do
grupo vencedor do conflito.
Conforme Holtorf e Williams (2006), paisagens podem ser conceituadas como
ambientes percebidos por comunidades humanas que incorporam elementos tanto
naturais como artificiais. Todavia, essas paisagens são divididas em dois tipos: as
CONSIDERAÇÕES FINAIS
AGRADECIMENTOS
ABSTRACT
This paper covers the memories of the current city plementation of these three concepts in the under-
of Pirenópolis/GO on the conflict occurred in the standing of the interviews conducted, the study of
historical archaeological site of Lavras do Abade cultural events, the aspects of forgotten places and
in the year of 1887. Theories on collective, cultural use of material culture by the community.
and social memory are discussed, as well as the im-
KEYWORDS
Collective, cultural and social memory, immaterial and material culture, historical archaeology.
SOBRE O AUTOR
RESUMO
O sítio arqueológico Boa Vista localiza-se na região depois tentar relacioná-los ao repertório simbólico
de Porto Trombetas, no estado do Pará. Trata-se de amazônico.
um sítio a céu aberto, formado por duas manchas A morfologia final dos objetos, no caso as lâminas e
de Terra Preta Arqueológica que apresenta vestí- o machado, é certamente resultado de um conjunto
gios pertencentes ao que foi denominado Pocó e de elementos, como: as matérias-primas; os gestos
Konduri. Nesse artigo, pretende-se apresentar os aplicados e as técnicas empregadas em sua produ-
resultados obtidos nas análises morfo tecnológicas ção, além de outros elementos incorporados (cabos,
das lâminas de machado polidas de superfície e em amarras, resinas) e, finalmente, o repertório sim-
estratigrafia. Os objetos foram estudados seguindo bólico dessas populações, que pode estar intrínseco
as noções de cadeia operatória, com o objetivo de de forma mais ou menos visível nessa construção.
primeiramente compreendê-los e classificá-los, e
PALAVRAS-CHAVE
Tecnologia lítica, lâminas de machado polidas, Amazônia.
“A técnica é por vezes gesto e utensílio, organizado em cadeia para uma ver-
dadeira sintaxe que dá às séries operatórias por vezes a sua fixação e a sua leveza. A
sintaxe operatória é proposta pela memória e nasce entre o cérebro e o meio natu-
ral”. (Leroi-Gourhan 1964:117)
Para além dos mitos que existem sobre essas sociedades guerreiras, os muiraquitãs
são objetos muito elaborados, com um alto grau de savoir-faire, certamente dotados de
APRESENTAÇÃO DO SÍTIO
O sítio Boa Vista está localizado sob uma pequena vila na margem direita do rio
Trombetas (figura 2), no baixo curso do rio Amazonas, no estado do Pará. Em termos de
pesquisa arqueológica, pode-se considerar que essa área começou a ser cientificamente
explorada na década de 1920 por Curt Nimuendajú (Nimuendajú 2000, 2004), mais
minuciosamente na década de 1950 por Peter Hilbert e, depois, em 1970 por Peter e
Klaus Hilbert (Hilbert 1955; Hilbert & Hilbert 1980). P. e K. Hilbert encontraram diversos
sítios na região, focando seus estudos em dois deles: o sítio Pocó, localizado na margem
esquerda do rio Pocó, afluente do rio Nhamundá e o sítio Boa Vista. A partir desses dois
sítios, definiram uma cronologia fundamentada nas ocorrências de estilos cerâmicos,
que serve de base para toda a região de Trombetas. Assim, as ocupações mais antigas
estariam relacionadas à ocupação Pocó – 65 a.C. ± 95 a 205 ± 115 A.D. - e as ocupações
mais recentes, à ocupação Konduri - 1400 ± 100 A.D. (Hilbert 1955; Hilbert & Hilbert 1980)
Figura 2.
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO
METODOLOGIA
As lâminas de machado polidas são instrumentos formados por pelo menos três
AS MATÉRIAS-PRIMAS
Para a coleção do sítio Boa Vista, não foi realizada análise específica para identificar
quais rochas foram utilizadas como suporte. Assim sendo, as peças foram reunidas em
um único grupo denominado como “rochas verdes”, que pode englobar, entre outras:
anfibólitos, diabásios e gabros. Tais rochas são ricas em olivinas, que lhes confere
coloração esverdeada. São compostas por minerais variados, facilitando a alteração e a
desagregação dos grãos durante os trabalhos de picoteamento e/ou polimento do suporte.
De forma geral, apresentam granulometria grossa e heterogeneidade considerável. Esses
dois elementos colaboram para que este tipo de matéria-prima não responda bem ao
lascamento e seja mais apropriada a outras técnicas, tais como o picoteamento.
Por outro lado, realizar o estudo mineralógico detalhado seria interessante, pois
poderia apontar algumas diretrizes para a pesquisa. A escolha correta da matéria-prima é
fator essencial na produção do instrumento, pois esta influencia diretamente na eficácia e
resistência da lâmina. De acordo com A. Boomert e S. B. Kroonenberg (1977 apud Verteeg
e Rostain 1999), a aptidão da rocha à abrasão regular é um elemento fundamental para a
produção do instrumento, em consequência, as rochas preferidas seriam as homogêneas.
As heterogêneas, de grãos grossos, ou ainda as xistosas, seriam evitadas, pois afetariam o
bom desempenho e a resistência do fio do corte.
No entanto, na Amazônia, de forma geral, parece que esta escolha nem sempre
prevalece. Em alguns sítios foi possível observar vários tipos de rochas empregadas como
suporte, inclusive as xistosas (sítio arqueológico do Pacoval). Na coleção em questão,
a granulometria, a olho nu, variou entre fina a grossa, tendo vários exemplares a grãos
grossos e médios.
De todo modo, seguramente existe alguma especificidade para escolha das
matérias-primas relacionadas à produção de lâminas que se desconhece. Não foram
encontradas fontes de matéria-prima próximas ao sítio, o que leva a pensar na realização
de incursões aos locais das jazidas ou trocas com outros grupos, como relata C. Lévi-
Strauss (1948 apud Verteeg e Rostain 1999) para os Trumai e os Suyá do alto Xingu.
O polimento pode ser a última técnica aplicada sobre as lâminas, sendo comum
que ele apague os estigmas deixados pelas outras técnicas. Na coleção, algumas poucas
peças estão completamente polidas, sendo mais frequente a presença de instrumentos
com polimento restrito a alguns setores. O bisel foi o setor privilegiado para a utilização
do polimento. Trata-se da aplicação de um abrasivo fino – provavelmente areia fina ou
argila – e água, criando um brilho característico na superfície escolhida.
Enfim, outro aspecto técnico que necessita ser investigado é a realização de
chanfraduras, ombros, sulcos, faixas ou áreas de picoteamentos. Esses elementos
certamente não foram criados sobre um polidor fixo; foram provavelmente realizados
por pequenos polidores manuais (de rocha, mineral ou madeira) ou outros instrumentos.
As experimentações realizadas pelos autores já citados indicam que:
De fato, é recorrente observar nos entalhes das lâminas estigmas mais ou menos
profundos, em geral pouco largos e irregulares, dos instrumentos utilizados.
AS OUTRAS PEÇAS:
Figura 7. As outras peças: estas não puderam ser agrupadas por apresentarem caracterís-
ticas tecno-morfológicas bem diferenciadas. A-D, respectivamente, as peças de nº 2, 11,
14 e 15. E: peça com setor distal truncado, com cúpulas resultantes da perda de matéria
-prima (fotos e desenhos de A. Matos).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ABSTRACT
The archeological site Boa Vista is located in the truments, and then, to relate them to the Amazon’s
Porto Trombeta’s region, State of Pará, Brazil. It’s symbolic repertory.
an open archeological site, formed by two concen- The final morphology of an object, in this case po-
trations of Terra Preta Arqueológica (TPA), which lished blades and axes, results certainly from a
one presenting remains of the Pocó and Konduri group of elements, such as: the row materials; the
Traditions. In this paper, we intend to present the movements and the techniques utilized into their
results of the morpho-technological analyses of po- production; among others elements (handles, bin-
lished stone axes blades, founded on surface and on ding materials, resins) and, finally, the symbolic
stratigraphy. These axes were studied according to repertory of these populations, which can be repre-
the chaîne-opératoire concept, in order to, on the sented more or less clear through this construction.
first moment, comprehend and classify these ins-
KEYWORDS
Stone technology, polished stone axes blades, Amazon.
SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO DO ORGANIZADOR
RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ
O ANTROPÓLOGO E A VIDA
ANA MARIA RAMO Y AFFONSO