Filosofiado Direitoe Contemporaneidade II

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.

)
Leno Francisco Danner
O livro que o leitor tem em mãos é fruto de um trabalho coletivo levado a
efeito pelos autores que acolheram o desafio proposto pelos organizadores de
pensar a Filosofia do Direito a partir de diversos contextos e problemas, mas
que tem um, por assim dizer, núcleo comum: a contemporaneidade. É certo que
os conceitos, quando dissociados de seu necessário contexto, são nada mais do
que chavões que não cumprem a função para as quais aqueles existem: orientar
o pensamento e tornar possível a compreensão dos problemas aos quais se
buscou, ao fim e ao cabo, responder. Posto isso, o que devemos entender por
contemporâneo? A seguir, as lições de Roland Barthes no Collège de France, “[…]
contemporâneo é o intempestivo”. Trata-se, como se pode perceber, de um
conceito interessante, quase um paradoxo: se geralmente pensamos o contem-

Filosofia do Direito e Contemporaneidade II


porâneo como aquilo que nos é atual, no tempo e no espaço, para Barthes ele
L e n o Fr a n c i s c o D a n n e r
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)
significa aquilo que é extemporâneo, aquilo que chega atrasado e, por isso, é
imprevisto, mesmo inoportuno. Nesse sentido, todos os trabalhos aqui reuni-
dos se preocupam em dar respostas a problemas contemporâneos-extemporâ-
neos da filosofia jurídica, seja em sentido estrito, seja em uma interpenetração
com os demais ramos do saber humano.
Portanto, queremos agradecer a todos quanto colaboraram para o surgi-
mento desta coletânea e à Fundação Rondônia de Amparo ao Desenvolvimento
das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa do Estado de Rondônia (FAPE-
RO), cujo financiamento permitiu a organização e a publicação deste material.

Os organizadores
Porto Velho (RO), agosto de 2020.
Filosofia do Direito e
Contemporaneidade II
Fundação de Amparo Programa de Jus Gentium –
ao Desenvolvimento Pós-Graduação Grupo de Estudos e
das Ações Científicas em Filosofia. Pesquisas em Direito
e Tecnológicas e a Universidade Federal Internacional
Pesquisa de Rondônia
Leno Fran cis co Da n n er
Marcu s Vin íciu s Xav ier de Ol i vei ra (Orgs . )

Filosofia do Direito e
Contemporaneidade II

1ª Edição

São Carlos / S P

Editora De Cas t ro

2020
Copyright © 2020 dos autores.

Conselho Editorial: Profª Drª Jucelia Linhares Granemann


Universidade Federal de Mato Grosso do
Profª Drª Adriana Garcia Gonçalves Sul – Campus de Três Lagoas – UFMS
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Profª Drª Juliane Aparecida P. P. Campos
Prof. Dr Antenor Antonio Gonçalves Filho Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Universidade Estadual Paulista – Unesp Profª Drª Layanna Giordana Bernardo Lima
Profª Drª Bruna Pinotti Garcia Oliveira Universidade Federal do Tocantins - UFT
Universidade Federal de Goiás – UFG Prof. Dr Lucas Farinelli Pantaleão
Profª Drª Célia Regina Delácio Fernandes Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD Prof. Dr Luis Carlos Paschoarelli
Prof. Dr Felipe Ferreira Vander Velden Universidade Estadual Paulista – Unesp / Faac
Universidade Federal de São Carlos – UFSCar Profª Drª Luzia Sigoli Fernandes Costa
Prof. Dr Fernando de Brito Alves Universidade Federal de São Carlos – UFSCar
Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP Profª Drª Marcia Machado de Lima
Prof. Dr. Flávio Leonel Abreu da Silveira Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Universidade Federal do Pará – UFPA Prof. Dr Marcio Augusto Tamashiro
Profª Drª Heloisa Helena Siqueira Correia Instituto Federal de Educação, Ciência e
Universidade Federal de Rondônia – UNIR Tecnologia do Tocantins – IFTO
Prof Dr Hugo Leonardo Pereira Rufino Prof. Dr Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
Instituto Federal do Triângulo Mineiro, Campus Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Uberaba, Campus Avançado Uberaba Parque Tecnológico Prof. Dr Mauro Machado Vieira
Profª Drª Jáima Pinheiro de Oliveira Universidade Federal de Uberlândia – UFU
Universidade Federal de Minas Gerais, Prof. Dr Osvaldo Copertino Duarte
Faculdade de Educação – UFMG / FAE Universidade Federal de Rondônia – UNIR

Editor da Editora De Castro: Carlos Henrique C. Gonçalves


Projeto gráfico: Carlos Henrique C. Gonçalves
Arte capa: Carlos Henrique C. Gonçalves
Fotos para arte capa e internas: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira
Preparador e revisor de textos/normalizações (ABNT): Frederico Helou Doca de Andrade – [email protected]
www.facebook.com/textualizese

DOI: 10.46383/isbn.978-65-5854-O58-8

Todos os direitos desta edição reservados aos autores. A Editora De Castro


reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em [email protected]
parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610). editoradecastro.com.br
Sumário

Introdução .................... 9

PARTE I. Filosofia e Biopolítica .................... 15

1. Toda filosofia é, em si, política. Entrevista de Edgardo Castro com


Roberto Esposito. Tradução de Marcus Vinícius Xavier de Oliveira .......................................... 17
2. Filosofia e Biopolítica, de Roberto Esposito. Tradução de
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ................................................................................................... 25
3. Algumas considerações sobre o conceito de “Estado de Exceção” em
Giorgio Agamben, de Magnus Dagios ............................................................................................. 37
4. A evolução do poder soberano no contexto europeu – a transição para
o poder moderno no Brasil, de Lucimar Simon ............................................................................. 51

PARTE II. Filosofia do Direito e Direito e Relações Internacionais .................... 85

5. A desobediência civil, de Jordi Balló i Fantova e Xavier Pérez Torío.


Tradução de Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ........................................................................... 87
6. Direito de resistência dos povos tradicionais no Equador: fatores que
levaram aos protestos de 2019, de Ítalo José Marinho de Oliveira e
Paulo Henrique Lora Gomes da Silva ............................................................................................ 105
7. Contractarianism and its legacy in International Relations theories:
a look from Brazil, de Gills Vilar-Lopes, Lucas Maximo e
Theo Antônio R. Sant’Ana ................................................................................................................ 117
8. Genocídio Hereró e Armênio, os genocídios esquecidos, de
Deborah Christina Biet de Oliveira e Geovana Assunção Kerdy do Casal ............................. 145
9. Larry May e a limitação do Leviatã em Thomas Hobbes, de
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ................................................................................................ 153
10. Os refugiados ambientais à luz dos Direitos Humanos, de
Francine de Freitas Fernande ......................................................................................................... 167
PARTE III. Filosofia do Direito em seu locus .................... 177

11. O sentido do Direito, de Helmut Coing. Tradução de


Marcus Vinícius Xavier de Oliveira ................................................................................................ 179
12. Avoir des droits: pourquoi, comment, lesquels?, de Jean-François Kervégan .............. 195
13. A Teoria do Direito de Habermas e o campo do político: o direito
como médium entre sistema e mundo da vida?, de Leno Francisco Danner ........................ 211
14. Os conceitos de vida, de morte, de suicídio, de pena de morte e
de garantias da vida na Filosofia do Direito de Hegel, de Paulo Roberto Konzen ............. 229
15. O ensino domiciliar (homeschooling): um exame do Recurso Extraordinário
nº 888.815 a partir das divergências pontuadas por Ronald Dworkin na
obra Império do Direito, de Adriana Vieira da Costa ................................................................ 267
16. Kelsen e negação da dualidade ideológica entre o Direito e
o Estado: breves delineamentos, de Leonam Liziero ................................................................. 283
17. Constitucionalismo excluyente y su necesaria relectura para la inclusión, de
Dalliana Vilar Lopes ........................................................................................................................... 299
18. A importância do conceito de Estado de Natureza dentro das
teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau, de
Junior Rangel e Paulo Roberto Konzen ........................................................................................ 315
19. Desenvolvimento moral: fim último de todo ser racional,
de Vicente E. R. Marçal ................................................................................................................ 343
20. O que é justiça?, de Christian Iber ........................................................................................ 363
21. Vaza Jato, a modernidade, a correlação de direito e política:
o direito ainda como médium entre sistema e mundo da vida?,
de Leno Francisco Danner ............................................................................................................... 381
22. Da teoria à práxis? Axel Honneth e as lutas por reconhecimento
na teoria política contemporânea, de Rurion Soares Melo ...................................................... 407
23. Reconstrução Normativa e Socialidade da Razão: notas sobre
a discussão contemporânea em torno da noção hegeliana
de reconhecimento, de Erick Lima ................................................................................................. 423

PARTE IV. Filosofia, Direito e Educação .................... 445

24. O cuidado de si em Platão e Foucault: ética, liberdade e sujeito,


de Fernando Danner e Ádna Rosiene de Araújo Parente ......................................................... 447
25. A gestão escolar perante a violência na escola pública de Porto Velho,
de Hélio de Araújo Carneiro, Magnus Dagios e
Rosana Maria Matos Silva ................................................................................................................ 459
26. Suzano: a educação na mira dos massacres lumpenradicais,
de Moysés Pinto Neto ...................................................................................................................... 485

Autores .................... 499


Introdução
A teoria política contemporânea tem, na análise do sistema direito,
seu núcleo paradigmático e dinamizador mais básico, e isso no duplo as-
pecto do termo: o direito como a plataforma institucional e normativa de
uma democracia pluralista constituída, justificada, organizada e orientada
enquanto Estado Democrático de Direito; e o direito enquanto eixo insti-
tucional e princípio de poder ligado a uma perspectiva de administração,
racionalização e, diríamos, controle da coletividade desde um centro geren-
cial em que o poder, nem sempre bem explicado e legitimado, se caracteriza
pela imposição de processos de massificação amplos, implantados desde
um Estado panóptico, com seus sistemas de vigilância digitais e de impo-
sição de um Estado de exceção permanente, já normalizado em nosso dia a
dia e extremamente difícil de fiscalizar. De um lado, portanto, o direito é o
produto mais representativo do desenvolvimento da modernidade ociden-
tal, assumindo um conteúdo normativo universalista cujo cerne consiste
na promoção do pluralismo e da diversidade, dos direitos humanos e da
atribuição irrestrita e incondicional, para todos e para cada um, do status de
sujeito jurídico portador de direitos fundamentais; de outro, é visto como
relação de poder bruto, de controle totalizante e de massificação quase que
fascista de sociedades que, como herdeiras da modernização ocidental,
substituem o fundamentalismo pela técnica em termos de gestão de cole-
tividades. De um lado, ainda, o direito é efetivamente sistema, legalidade e
tecnicalidade, sendo essa a sua única possibilidade em termos de justifica-
ção, de gestão e de implementação de interesses públicos e da proteção de
direitos fundamentais com isonomia, igual consideração e representação
equitativa de todos os sujeitos sociopolíticos; de outro, precisamente por
essa condição sistêmica, legalista e tecnicista perde o contato com a rela-
cionalidade, a mutualidade e a politicidade dos sujeitos cotidianos e entre
eles, tornando-se lógica (aparentemente) não normativa de poder.
Essa duplicidade na análise do direito, longe de criar uma barrei-
ra teórica intransponível, motiva-nos a um trabalho de investigação e de
justificação teórica capaz de dar conta da multidimensionalidade do direi-
to na sua correlação de instituição, princípio de poder e base normativa,
uma multidimensionalidade que precisa ser reconstruída e explicitada a
fim de termos uma ideia mínima do que podemos e do que não podemos
mais fazer como democracia, especialmente no contexto das instituições
públicas e no papel dos operadores públicos do direito. Isso significa que
dinâmicas sistêmicas parecem ser condições inultrapassáveis para a es-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

truturação, a legitimação e o desenvolvimento de democracias pluralistas


constituídas enquanto Estado Democrático de Direito, fundado na uni-
versalidade dos direitos humanos, o qual necessita desse desenvolvimen-
to institucional que envolve o direito e a política (sua mutualidade e sua
sobreposição) e que leva à vasta ramificação do Estado em instituições
públicas subsidiárias capazes de pensar em um modelo de sociedade am-
pla que vai do direito para a política, da política para a educação, para a
economia, para a cultura e para a segurança pública etc., e isso em um
processo dialético permanente, como em um ciclo mutuamente escorado
e retroalimentado que exige mais política, mais direito e mais institucio-
nalização a fim de dar conta da pluralização, da diferenciação, da hetero-
geneidade e da complexidade sociopolíticas.
É desde essa centralidade e protagonismo do sistema direito em ser-
vir como fecho de abóboda regulador e estruturador de toda uma demo-
cracia que as potencialidades e as contradições acima levantadas se fazem
explícitas e exigem, como o dissemos, todo o cuidado, seja das análises teó-
ricas, seja do exercício prático-institucional por seus operadores públicos.
O direito enquanto sistema institucionalizado possui, de fato, em sua es-
truturação interna uma tendência altamente tecnicista, formalista e des-
personalizada e, por isso, é arredio a perspectivas antissistêmicas, anti-ins-
titucionais e antijurídicas e a uma postura infralegal desde dentro para fora
dele, na sociedade civil. Esse é um ponto claro para qualquer teoria política
contemporânea: direito é perspectiva sistêmica, lógico-técnica, formalista-
-despersonalizada e apolítica-despolitizada – fala-se nos autos, pela letra
fria da lei, como instituição, de modo que o voluntarismo, o personalismo e o
missionarismo vocacionado não existem no direito e pelo direito.
Ademais, enquanto instituição, funciona a partir de uma dinâmica
estratificada, sobreposta e hierárquica entre as diferentes instâncias pro-
cessuais – cada uma delas dinamizada por comunidades de pesquisa espe-
cíficas capazes de revisão e de confirmação da objetividade, da justificação
e da vinculação do processo realizado nas instâncias anteriores. Note-se
que tais características, aliadas à sobreposição do direito em relação à po-
lítica, conferem-lhe um poder quase que sobre-humano relativamente ao
controle e à regulação da sociedade como um todo, ao ponto de a única
instância institucional a controlar o direito ser exatamente o direito!
Note-se, entretanto, que essa frase de efeito não é e nem representa
um deficit da democracia pluralista, uma limitação do sistema direito, mas
exatamente sua base constitutiva fundamental: o direito como instituição
é árbitro da política porque tem condições de, (a) por sua constituição emi-
nentemente lógico-técnica, apolítica-despolitizada e formalista-desper-
sonalizada, (b) por sua autorreferencialidade, sua autossubsistência, sua

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

endogenia e sua sobreposição em relação à política (institucionalizada ou


não), (c) por sua estruturação interna em estratos escalonados, sobrepostos
e hierárquicos de comunidades altamente treinadas em termos científico-
-técnicos e, finalmente, (d) por sua fundação na universalidade dos direitos
humanos como núcleo normativo exclusivo, suficiente e necessário da de-
mocracia pluralista constituída enquanto Estado Democrático de Direito,
ramificando-se em constituição política e direito positivo, assumir e rea-
lizar controle de constitucionalidade e responsabilização jurídico-social
desde uma atuação contramajoritária.
Nesse sentido, tendências antissistêmicas e posturas infralegais des-
de dentro do sistema direito para fora dele, na sociedade civil, representam
o grande perigo para a democracia, uma vez que, ao desestabilizarem e
subverterem o sistema direito, fragilizam ou até destroem o centro regula-
dor e legitimador dessa mesma democracia e, nesse sentido, por meio do
lawfare institucional, da política de Estado e do Estado de exceção, fazem
da insegurança jurídica a norma cotidiana das relações sociopolíticas. E,
como todos sabemos, insegurança jurídica é a lógica dinamizadora de so-
ciedades fascistas e totalitárias.
Note-se, assim, que se torna clara e pungente, com essas observa-
ções, a centralidade do direito para sociedades democráticas, seja no sen-
tido de sua gestão e de sua normatização sociais com base nos direitos
humanos e na institucionalização de processos de reconhecimento, de
inclusão, de integração e de participação que, da esfera política, são cons-
truídos e validados exatamente sob a forma de previsão constitucional
e de principialidade jurídica, e cuja fiscalização – às vezes até implan-
tação – envolve e conduz a atividade jurisdicional e seu enquadramen-
to dos legislativos e das administrações públicas, seja, no outro caso, a
subversão do Estado Democrático de Direito em Estado de exceção, uma
subversão que, como estamos argumentando, começa dentro do sistema
direito e se espraia para a política parlamentar e para nichos da sociedade
civil. É desde o sistema direito e em termos de estruturação, justificação
e implantação internas dos direitos fundamentais e dos procedimentos
de participação, de igual consideração e de acesso equitativo ao sistema
da justiça, inclusive o controle de constitucionalidade do poder jurídico
em relação ao poder político, que emergem as potencialidades do univer-
salismo democrático ou o fascismo e sua cruzada personalista de caráter
antissistêmico, anti-institucional e antijurídico, com sua generalização de
posturas infralegais que vão das instituições e dos sujeitos institucionali-
zados para a sociedade civil e seus nichos fascistas.
Esta obra que ora apresentamos ao público, Filosofia do Direito
e Contemporaneidade II, parte dessa centralidade organizativa, geren-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

cial e justificadora da democracia pluralista assumida e dinamizada pelo


sistema direito, reconhecendo que tanto as tendências estabilizadoras
quanto as posturas fragilizadoras dessa mesma democracia pluralista
são detonadas do sistema direito para fora dele relativamente ao sistema
político e à sociedade civil.
Nesse sentido, a permanente crítica teórica e o necessário refor-
mismo institucional precisam andar de mãos dadas no que diz respeito
ao diagnóstico e ao enquadramento dos deficits sistêmicos que, do direito
para a política e da política para o direito, põem em xeque a efetividade do
Estado Democrático de Direito e a universalidade incondicional e irres-
trita dos direitos fundamentais, substituindo as hierarquias processuais, a
sobreposição de poderes e a tecnicalidade e a despersonalização metodo-
lógico-axiológicas pelo messianismo jurídico-político vocacionado, o qual
substitui as mediações institucionais e essa postura imparcial, impessoal e
neutra, inclusive a universalidade dos direitos humanos, pelo lawfare ins-
titucional e pela polícia de Estado, transformando o Estado Democrático
de Direito em Estado de exceção. Essa é a dinâmica político-jurídica que
vivemos hoje no Brasil e da qual não sairemos tão cedo. Por isso mesmo, a
produção de teoria em torno do tema coloca-se como um momento neces-
sário – certamente o mais necessário – para a possibilidade de superação,
de longo prazo, do fascismo instalado nas instituições.
No que diz respeito, doutro giro, às diversas abordagens e escolhas
temáticas, é preciso relembrar dois pontos essenciais daquilo que se pode-
ria denominar de filosofia jurídica: uma feita por filósofos (raposas), outra
feita por juristas (ouriços), conforme a díade muito bem desenvolvida por
Celso Lafer a partir da leitura feita por Isaiah Berlin do poeta grego Arquí-
loco. O que diferencia uma Filosofia do Direito feita por filósofos de uma
Filosofia do Direito feita por juristas não é, pois, a matéria bruta com a
qual trabalham, mas os problemas que tencionam resolver e os paradigmas
que utilizam para buscar respondê-los: aqueles, filósofos que manifestam
interesses em temas jurídicos, estes “[…] juristas com inquietações filo-
sóficas […]” que formulam problemas “[…] suscitados pelas necessidades
práticas da experiência jurídica de ir além dos dados empíricos do Direito
Positivo para poder lidar com o próprio Direito Positivo”.
O livro que o leitor tem em mãos é fruto de um trabalho coletivo
levado a efeito pelos autores que acolheram o desafio proposto pelos orga-
nizadores de pensar a Filosofia do Direito a partir de diversos contextos e
problemas, mas que tem um, por assim dizer, núcleo comum: a contempo-
raneidade. É certo que os conceitos, quando dissociados de seu necessário
contexto, são nada mais do que chavões que não cumprem a função para as
quais aqueles existem: orientar o pensamento e tornar possível a compre-

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ensão dos problemas aos quais se buscou, ao fim e ao cabo, responder. Pos-
to isso, o que devemos entender por contemporâneo? A seguir, as lições de
Roland Barthes no Collège de France, “[…] contemporâneo é o intempesti-
vo”. Trata-se, como se pode perceber, de um conceito interessante, quase
um paradoxo: se geralmente pensamos o contemporâneo como aquilo que
nos é atual, no tempo e no espaço, para Barthes ele significa aquilo que é
extemporâneo, aquilo que chega atrasado e, por isso, é imprevisto, mesmo
inoportuno. Nesse sentido, todos os trabalhos aqui reunidos se preocupam
em dar respostas a problemas contemporâneos-extemporâneos da filoso-
fia jurídica, seja em sentido estrito, seja em uma interpenetração com os
demais ramos do saber humano.
Portanto, queremos agradecer a todos quanto colaboraram para o
surgimento desta coletânea e à Fundação Rondônia de Amparo ao Desen-
volvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa do Estado
de Rondônia (FAPERO), cujo financiamento permitiu a organização e a
publicação deste material.

Os organizadores
Porto Velho (RO), agosto de 2020.

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PARTE I

Filosofia e Biopolítica
1
[Entrevista]: Toda filosofia é, em si, política

Edgardo Castro
Roberto Esposito

O programa filosófico do italiano Roberto Esposito, cuja obra circu-


la agora em espanhol, se define pelas noções de “comunidade”, entendida
como o que nos obriga, nos une na dúvida, e a “imunidade”, intenção de
autoconservação que domina a sociedade atual. Nesta entrevista exclusiva,
Esposito se refere ao legado de Foucault e Heidegger e às suas próprias
diferenças com Giorgio Agamben e Toni Negri.
“Após o fracasso epocal de todos os comunismos e da miséria de
todos os individualismos”, afirma o filósofo Roberto Esposito em seu livro
Communitas, não há nada mais necessário que um pensamento da comuni-
dade. Que têm em comum – pergunta-se em outro de seu livro, Immunitas
– “a batalha contra a aparição de uma nova epidemia, a oposição ao pedido
de extradição de um chefe de Estado estrangeiro acusado de violação dos
direitos humanos, o fortalecimento das barreiras frente à imigração clan-
destina e as estratégias de neutralização do último vírus de computador?”
Nada – responde –, a menos que se vincule cada um desses fenômenos à
categoria da imunidade, que atravessa todas essas linguagens particulares.
Seu recente trabalho, Bíos, começa com a enumeração de alguns fa-
tos politicamente relevantes dos últimos anos: uma corte francesa que
reconhece a uma criança nascida com graves deficiências o direito de de-
nunciar ao médico que, por seu incorreto diagnóstico, impediu que sua
mãe abortasse; a “guerra humanitária” no Afeganistão; os episódios no
teatro Dubrovska de Moscou, nos quais, para resolver a situação, um gru-
po de agentes do governo levou a cabo o massacre com que o ameaçavam
os terroristas; a epidemia de HIV na região de Donghu, na China, origina-
da da venda maciça de sangue estimulada e gerenciada diretamente pelo
governo. Em todos esses fatos, o que está em jogo é a vida biológica e sua
relação com o poder.
Comunidade, imunidade e vida aparecem, assim, como os três grandes
temas que nossa atualidade política estabelece à Filosofia. Para afrontá-los,
Esposito se nutre, com uma leitura inovadora e uma análise perspicaz, dos au-
tores fundamentais da Filosofia Política ocidental, desde os antigos até os mo-

17
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

dernos, de Platão a Foucault, passando, entre outros, por Maquiavel, Hobbes


e Nietzsche. Porém, não se limita somente aos textos filosóficos; seu trabalho
também se nutre de uma vasta cultura clássica, linguística e histórica.
Em Communitas, Esposito se subtrai da dialética que domina o de-
bate atual acerca da comunidade, entre o comum e o próprio, pois nela
– apesar da oposição – o comum é identificado com o seu contrário: é
comum o que une numa única identidade própria (étnica, territorial, es-
piritual); ter em comum é ser proprietário de algo comum. Esposito parte
de outra possibilidade etimológica do termo communitas, que focaliza o
termo munus de cum-munus. É necessário ter presente que munus se diz
tanto do público como do privado; por isso, a oposição comum/próprio
e público/privado fica de fora de sua esfera semântica. Ademais, munus
pode significar onus (obrigação), officium (ofício, função) e donum (dom).
As duas primeiras acepções são formas do dever, mas Esposito sublinha
que também o é o dom. O munus é uma forma particular de dom: o dom
obrigatório, ainda que soe contraditório. Um dom que se dá porque se
deve dar e não se pode não se dar. A comunidade deixa de ser, então,
aquilo que seus membros têm em comum – algo positivo, do qual são pro-
prietários; comunidade é o conjunto de pessoas que estão unidas por um
dever, por uma dívida, por uma obrigação de dar. A comunidade se vincu-
la, assim, com a subtração e com o sacrifício. “Por isso, a comunidade não
pode ser pensada como um corpo, uma corporação, onde os indivíduos se
fundam num indivíduo maior. Mas tampouco pode ser entendida como
um recíproco “reconhecimento” intersubjetivo no qual eles se refletem
confirmando sua identidade inicial”.
A partir daqui, Esposito seguirá a relação comunidade/sacrifício no
discurso político-filosófico moderno por meio de quatro conceitos-chave:
culpa (J. J. Rousseau), lei (I. Kant), abertura estática (M. Heidegger) e expe-
riência soberana (G. Bataille). Em Immunitas, nos encontramos com uma
análise etimológico-conceitual, paralela e complementar à de communitas.
Imune é, num primeiro sentido, o que está privado ou dispensado de uma
obrigação, de um dever, de um munus. Imune resulta, então, em um concei-
to negativo. Mas, na medida em que o munus do qual se está dispensado é
aquele que os outros têm em comum, imune expressa, também, uma com-
paração. Trata-se “da diversidade em relação à condição dos outros”.
Pois bem, deslocando-se do âmbito jurídico para o biomédico, a
imunidade adquire outro sentido. Nesse caso, expressa “a refratariedade
do organismo em relação ao perigo de contrair uma enfermidade”. Ain-
da que esse sentido seja antigo, o conceito sofre uma transformação no
século XIX em relação com a prática de vacinação e com a introdução da
noção de imunidade adquirida. Uma forma atenuada e induzida de infec-
ção pode prevenir, com efeito, uma enfermidade. Trata-se de proteger a

18
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

vida fazendo-a provar a morte. Essa aporia atravessa todas as linguagens


da modernidade. Assim, por exemplo, a violência é um dos componentes
do aparato jurídico-institucional destinado a reprimi-la. O objeto do livro
é precisamente estudar essa aporia, a relação entre proteção e negação da
vida como a forma constitutiva da modernidade política.
O tema de Bíos é a relação entre a Filosofia e a Biopolítica (isto é,
uma política da vida). À luz dessa problemática, os três primeiros capítulos
se ocupam de Foucault, Hobbes e Nietzsche. O quarto é dedicado à tana-
topolítica e o último a uma filosofia da bíos depois do nazismo. A tarefa
de sua filosofia, nos adverte o autor, não é propor ações políticas ou con-
verter a Biopolítica na nova bandeira de um manifesto revolucionário ou
reformista sem negar, com isso, que a Filosofia possa efetivamente atuar
sobre a política. A proposta de Esposito não é “pensar a vida em função da
política, mas sim o de pensar a política na forma mesmo da vida”. Em últi-
ma instância, trata-se de inverter o signo negativo que, com o paradigma
imunitário, acompanhou até agora a Biopolítica.
Communitas: Origen y destino de la comunidad foi publicado na Itália
em 1998 e Amorrortu a traduziu para o espanhol em 2003. A mesma edi-
tora publicará em breve Immunitas: protección y negación de la vida, cuja
edição original é de 2002. Bíos: Biopolítica y filosofia, aparecido na Itália no
ano passado, fecha por ora essa trilogia imprescindível.

Edgardo Castro – Desde há alguns anos assistimos – em seus trabalhos


e nos de Giorgio Agamben – a um renascimento da Filosofia política ita-
liana. A que o atribuiria?
Roberto Esposito – Pode-se dar uma primeira resposta partindo do
caráter específico da Filosofia italiana. Sem querer voltar ao mito das fi-
losofias nacionais, do século XIX, se a vocação geral da Filosofia anglo-
-saxã é analítica, a da Filosofia alemã é metafísico-hermenêutica e a da
francesa, crítico-desconstrutiva, é indubitável que a característica peculiar
da Filosofia italiana é a política. Não é casual que os dois maiores autores
italianos sejam Maquiavel e Vico. Também Croce e Gramsci, ainda que de
maneira diferente, pertencem ao horizonte ético-político. Naturalmente,
há filósofos italianos que trabalham na direção analítica ou hermenêutica,
ou que se ocupem da relação entre a Filosofia e a Teologia. Mas, por isso
mesmo, correm o risco de cair submergidos pelas tradições mais fortes
nesses campos, como a anglo-saxã e a alemã. A essa resposta, que recorre
a uma raiz distante, há que se agregar outra relacionada à dimensão con-
temporânea da Filosofia. Penso no que Foucault chamou de ontologia da
atualidade, retomando de maneira original a fórmula hegeliana do próprio
tempo apreendido com o pensamento. Certamente, são muitos os estilos de
trabalho filosófico, mas uma Filosofia que não parta de uma interrogação

19
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

radical sobre o próprio presente, sobre o que o conota e o transforma de


modo essencial, perde grande parte de seu sentido. E não há dúvida de
que a política, de qualquer modo que se a entenda (como relação ou como
conflito, como comunidade ou como guerra) está cada vez mais no centro
de nossa vida. Inclusive no sentido radical da reflexão biopolítica. O ponto
de vista do qual parte minha reflexão, como a de Agamben, é que hoje não
tem mais sentido uma prática filosófica ensimesmada, dedicada a recorrer
à sua própria história ou absorta em problemas de lógica abstrata. Nes-
se sentido, Georges Canguilhem, autor próximo a Foucault, pôde escrever
que “a filosofia é uma reflexão para a qual toda matéria estranha é boa.
Mais ainda, poderíamos dizer: para a qual toda matéria boa tem que ser
estranha”. E Gilles Deleuze considerava que “O filósofo tem que chegar
a ser não-filósofo, para que a não-filosofia se converta na terra e no povo
da filosofia”. Esse é o sentido específico que há de se dar à ideia, de outro
modo incompreensível, de “fim da filosofia”. O que há acabado é, indu-
bitavelmente, uma concepção endogâmica, autorreferencial da Filosofia
(isto é, toda prática filosófica que assuma a si mesma como objeto pró-
prio). Em sentido contrário, assistimos desde há tempos a um processo,
cada vez mais forte, de exteriorização da Filosofia, de transbordamento
do pensar no espaço em movimento do próprio exterior. No momento em
que todos os acontecimentos (da relação entre a paz e a guerra à relação
entre a técnica e a vida biológica) assumem por si mesmos uma dimensão
sumamente problemática, a Filosofia contemporânea não pode não se fa-
zer política. Não no sentido da disciplina acadêmica da Filosofia Política
como parte da Filosofia, mas sim naquele mais radical, que a Filosofia é,
em si, constitutivamente política.

E.C. – Encontro em seus trabalhos uma decisiva influência de Hei-


degger e de Foucault.
R.E. – É verdade que ambos estão muito presentes em meu trabalho.
Mas, em momentos diferentes e com diferente intensidade. No que diz res-
peito a Heidegger, é difícil imaginar uma investigação filosófica que possa
ignorá-lo ou não estar influenciada por ele, ainda que seja de maneira po-
lêmica como geralmente ocorre. Mas, não me sinto um heideggeriano, su-
pondo que essa expressão tenha sentido. Em meu ensaio sobre a comunida-
de, conectei o catastrófico erro político de Heidegger com alguns aspectos
de seu pensamento. Mas, isso não exclui seu extraordinário peso em toda a
filosofia de nossos dias. Em particular, meu livro Categorias do Impolítico
se vê influenciado pela reflexão heideggeriana. O que quis fazer – não sei
com que resultados – foi submeter os conceitos políticos da modernidade
a uma desconstrução tão intensa como aquela a que Heidegger submeteu
as categorias da tradição filosófica; e Nietzsche, as ideias morais. Parti da

20
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

tese de que as categorias políticas modernas (soberania, poder, liberdade


etc.) tinham entrado numa zona de insignificância ou, melhor ainda, de
contradição consigo mesmas, e que, por isso, era necessário ter um olhar
diferente (precisamente impolítico, mas não apolítico nem antipolítico)
capaz não de reativá-las, mas sim de levá-las a seu esgotamento definitivo;
e isso com a consciência, também de derivação heideggeriana, de que pelo
momento não existe outra linguagem afirmativa, construtiva ou normativa
para pensar a política. Nesse horizonte argumentativo, no qual me movi
até a metade dos anos de 1990, Communitas serve de dobradiça entre as
duas fases de minha reflexão. Num momento me encontrei com a temática
biopolítica de Foucault. Já havia utilizado o dispositivo foucaultiano – em
particular, com relação ao nexo entre saber e poder –, mas o que me deu
uma nova chave de pensamento para abordar a política foi o Foucault da
metade dos anos de 1970, em particular os cursos sobre a Biopolítica, agora
integralmente publicados. Esse novo encontro com Foucault não deve ser
entendido como a negação do percurso anterior, mais permeável a Heide-
gger, mas sim como um necessário complemento. A ideia da crise irrever-
sível do léxico político moderno é comum às duas etapas de meu trabalho.
Os conceitos de soberania, de direitos individuais, de democracia ainda estão
em pé, mas seu efeito de sentido se encontra debilitado e modificado em
relação a seu sentido original. Seguindo a Foucault, entendi que a retirada
ou a debilitação dessa linguagem clássica não esgota o horizonte argu-
mentativo, mas sim abre outra cena, mostra outra lógica, antes escondida
nas velhas categorias: a da Biopolítica, precisamente. Tampouco Foucault
deve ser tomado em bloco. Não só porque seu discurso resta interrompido
e suspenso, como também porque apresenta algumas contradições e des-
locamentos internos, o que tratei de pôr à luz, criticamente, em Bíos.

E.C. – Como se relacionam seus trabalhos e os de Agamben? Qual


seria o vínculo entre “imunidade” e “estado de exceção”?
R.E. – Mais além de algumas analogias externas, como a origem literá-
ria de nossos percursos, que explicam algumas afinidades estilísticas e tam-
bém a comum atenção filológica a textos pouco conhecidos ou desconhe-
cidos. Relativamente à Biopolítica há outra afinidade que distingue nossa
posição de outras leituras. Refiro-me ao distanciamento em relação a uma
interpretação completamente afirmativa, quase eufórica, da Biopolítica.
Distanciamento com relação à ideia de que o biopoder está necessariamen-
te destinado a converter-se em política da vida, sob o impulso irrefreável
da multidão, como pensa o amigo Toni Negri, por exemplo. Agamben e eu
dirigimos nossos olhares para o negativo, até às características terríveis que
tem assumido a Biopolítica, não somente no século passado. Mas, essa pro-
ximidade de método e de tom não pode fazer perder de vista as diferenças

21
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

marcantes entre ambos. Antes que aos paradigmas de imunidade e de estado


de exceção, essas diferenças concernem a uma questão preliminar: precisa-
mente à relação entre Heidegger e Foucault. Digamos que Agamben está
mais próximo de Heidegger, que lê a Biopolítica numa chave ontológica,
enquanto eu a interpreto num sentido genealógico. Para Agamben, dife-
rentemente de Foucault, a Biopolítica não é um fenômeno essencialmen-
te moderno, mas sim que nasce com a política ocidental. Coerentemente,
Agamben não estabelece nenhuma diferença – como o faz Foucault – entre
soberania e Biopolítica. Para ele, a Biopolítica é a expressão mais intensa
da superposição entre direito e violência que constitui a forma excludente
do bando soberano. Uma vez assumida até o final a tese de Carl Schmitt:
que é soberano quem decide sobre o estado de exceção, segue não somente
o caráter mortífero de toda a política ocidental, mas também que o campo
de concentração constitui seu paradigma mais próprio. Em relação a essa
radical desistorização, minha perspectiva resulta mais articulada e menos
distante de Foucault. Embora não sacrifique a teoria no altar da História,
tampouco diluí o método genealógico no plano ontológico. O instrumen-
to que me permite manter juntos esses dois eixos do discurso (não perder
nem a unidade do tema nem suas declinações históricas) é, precisamente, o
paradigma da imunidade. Em relação com a oposição de Agamben, à qual
reconheço toda sua força e sutileza, a categoria de imunidade oferece outra
vantagem: reúne num mesmo horizonte de sentido a dimensão jurídico-po-
lítica e a biológica, os dois sentidos predominantes do conceito de imuni-
dade. Assim, os dois polos da Biopolítica (vida e política) aparecem unidos
num modo que não requer necessariamente uma apropriação violenta de
um por parte do outro. Se isso é verdade, a apropriação da vida por parte
do poder não é um destino ontológico, mas sim uma condição histórica e
reversível. Daí que a vida não é nunca vida nua, como diz Agamben. A vida
está sempre formada, é uma forma de vida. Também a vida nua, quando apa-
rece, ainda que negativamente, é uma forma de vida.

E.C. – A “imunidade” é para você o paradigma interpretativo da mo-


dernidade. Por quê?
R.E. – A categoria de imunidade como proteção da vida mediante um
instrumento negativo é antiga. De forma implícita e inconsciente, nasce
com a modernidade. Antes de ser traduzida dialeticamente por Hegel, Ho-
bbes é, provavelmente, seu primeiro teórico. Desde o momento em que
ele condiciona a sobrevivência dos homens à cessão de todos os seus po-
deres ao Estado-Leviatã, a ideia de imunização negativa já está virtual-
mente atuando. Para poder defini-la melhor teve que esperar a sociologia,
a antropologia e o funcionalismo do século XX. Além de dar visibilidade
e luminosidade a uma categoria obscura, a conectei negativamente com a

22
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ideia de comunidade: seu reverso lógico e semântico. Ambos os termos,


communitas e immunitas, derivam de munus, que, em latim, significa “dom,
ofício, obrigação”. Mas, enquanto a communitas se relaciona com o munus
em sentido afirmativo, a immunitas, negativamente. Por isso, se os mem-
bros da comunidade estão caracterizados por essa obrigação de dom, a
imunidade implica a isenção de tal condição. É imune aquele que está dis-
pensado das obrigações e dos perigos que, pelo contrário, concernem a
todos os outros. A partir dessa perspectiva, o individualismo moderno, que
nasce da ruptura com as anteriores formas comunitárias, expressa por si
mesmo uma forte tendência imunitária. A mesma concepção moderna, en-
fim, pode ser entendida como o conjunto dos relatos que tratam de tradu-
zir essa exigência individual de proteção da vida. Pois bem, essa exigência
de autoconservação, típica da época moderna, se tem feito cada vez mais
acelerada, até converter-se no eixo ao redor do qual se constrói a prática
efetiva ou imaginária da sociedade contemporânea. Basta observar o papel
que assumiu a Imunologia não só em seu aspecto médico, como também
sociocultural. Se se passa do âmbito biomédico para o social (a resistên-
cia contra a imigração) e ao jurídico (onde a imunidade de certos homens
políticos é centro de conflitos nacionais e internacionais), teremos uma
comprovação ulterior. De onde se o olhe, desde o corpo individual ao corpo
social, desde o corpo tecnológico ao corpo político, a imunidade aparece
na encruzilhada de todos os caminhos. O que conta é impedir, prevenir e
combater a difusão do contágio real e simbólico por qualquer meio e onde
seja. Essa preocupação autoprotetiva a encontramos em todas as civili-
zações, mas, hoje, o limiar de alarme com relação a um contágio destru-
tivo e, por conseguinte, a magnitude da resposta está chegando ao ápice.
O problema é que a exigência imunitária, necessária para defender nossa
vida, levada mais além de um limite, acaba tornando-se contra ela mesma.
Como nas enfermidades autoimunitárias, onde o sistema imunológico se
volta contra o mesmo corpo que deveria proteger, destruindo-o. O conflito
atual pode ser lido como o trágico ponto-final de uma terrível crise imu-
nitária. Em sua lógica profunda, esse conflito parece surgir da implicação
perversa de duas obsessões imunitárias contrapostas e espetaculares: a de
um integrismo islâmico decidido a proteger até a morte a pretensão de pu-
reza religiosa da secularização ocidental e a do Ocidente, empenhada em
excluir o resto do planeta de seus bens em excesso.

E.C. – Me parece que a grande aposta de seu último trabalho, Bíos, é


a distinção entre uma Biopolítica entendida como política “sobre” a vida e
outra como política “da” vida. Como seria?
R.E. – É a pergunta mais difícil. Meu livro, mais do que buscar uma
resposta, trata de abrir o caminho, definir uma possível linha de investi-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

gação. A diferença entre uma Biopolítica negativa – biopoder ou biocracia


– e uma Biopolítica afirmativa está implícita em Foucault. Mas, ele nunca
chegou a uma definição precisa. Biopolítica negativa é a que se relaciona
com a vida desde o exterior, de maneira transcendente, tomando possessão
dela, exercendo a violência. Como ocorreu da maneira mais catastrófica
com o nazismo e continua ocorrendo hoje em muitas partes do mundo. Sua
característica fundamental é a de relacionar-se com a vida através da mor-
te, estabelecendo, assim, a prática da decisão soberana de vida e de morte.
Funciona despojando a vida de seu caráter formal, de sua qualificação e
reduzindo-a a simples zoé: matéria vivente. Ainda que esse despojamento
da vida nunca chegue ao extremo, sempre deixa o espaço para alguma for-
ma de bíos (vida qualificada). Mas, precisamente, o bíos é fragmentado em
várias zonas às quais se atribui um valor diferente, segundo uma lógica que
subordina as consideradas de mais baixo valor, ou ainda carentes de valor,
àquelas às quais se outorga maior relevo biológico. O resultado desse pro-
cedimento é uma normalização violenta que exclui o que se define preven-
tivamente como normal e, por fim, a singularidade mesma do ser vivente.
Uma Biopolítica afirmativa, da qual por ora não se entrevem mais que sig-
nos e vestígios, é ou deveria ser o contrário da negativa. Não é casual que
tenha traçado seu contorno a partir da desconstrução e da inversão dos
dispositivos nazistas. Em geral, uma Biopolítica afirmativa é a que estabe-
lece uma relação produtiva entre o poder e os sujeitos. A que, em lugar de
submeter e objetivar o sujeito, busca sua expansão e sua potencialização.
Entre os filósofos modernos, provavelmente Espinosa se moveu nessa di-
reção. Naturalmente, para que o poder possa produzir, em vez de destruir
a subjetividade, tem que lhe ser imanente, não tem que transcendê-la. As-
sim, a norma não tem que governar ou discriminar os sujeitos desde o alto
de sua generalidade, mas sim tem que ser absolutamente singular como
cada vida individual à qual se refere. Poder-se-ia, enfim, falar de política
da vida, e não sobre a vida. Não somente se a vida, cada vida individual, é
sujeito e não objeto da política, mas também se a mesma política é repen-
sada mediante um conceito de vida de acordo com toda a sua extraordiná-
ria complexidade interna, sem reduzi-la à simples matéria biológica. Dou-
-me conta de que, por enquanto, nós caímos no plano dos enunciados; que
exemplos importantes de meu livro, como os de nascimento e da carne,
não bastam para definir o quadro de uma nova Biopolítica afirmativa. Mas,
o trabalho apenas começou e espera por ser continuado.

Tradutor: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Porto Velho/RO, janeiro de 2007.

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2
Filosofia e Biopolítica1

Roberto Esposito

1. Muito mais que o medo ou a esperança, a sensação que suscitam


os acontecimentos políticos mundiais dos últimos anos é provavelmente
o espanto. Antes que positivos, negativos ou mesmo trágicos, eles resul-
tam antes de qualquer coisa inesperados. Mais ainda, se opõem a todo
cálculo razoável de probabilidade. Da queda repentina e incruenta do
sistema soviético em 1989 ao ataque de 11 de setembro de 2001, com
tudo o que lhes há seguido, pelo menos o que se pode dizer é que não
somente nada nos fazia imaginá-los, como, inclusive, que tudo induzia a
considerá-los inverossímeis.
Naturalmente, certo grau de imprevisibilidade acompanha todo
acontecimento coletivo, como a história o demonstra desde sempre. No
entanto, ainda nos casos de maior descontinuidade, como as revoluções
ou as guerras, sempre se pode dizer que foram preparados ou, ao menos,
consentidos por uma série de condições que os fizeram, se não prováveis,
certamente possíveis. A mesma consideração se pode fazer, de forma ainda
mais clara, para as quatro décadas que procederam ao final da Segunda
Guerra Mundial, quando a ordem bipolar do planeta não deixou margens
ao imprevisto, a ponto de que o que ocorreu, em cada um dos dois blocos,
pareceu ser o resultado quase automático de um jogo conhecido e previsí-
vel em todos seus movimentos.
Não obstante, esta ordem política que parecia ter que governar ain-
da por muito mais tempo as relações internacionais, faz-se em pedaços
de repente. Primeiro na forma de implosão, o sistema soviético, e depois,
de explosão, com o terrorismo. Por quê? Como se explica esta inespera-
da mudança de fase? E de onde, exatamente, se origina? A resposta que
geralmente afronta a estas interrogações se faz referindo-se ao final da
guerra fria e à conseguinte chegada da globalização. Contudo, deste modo,
se corre o risco de intercambiar a causa com o efeito, oferecendo como
explicação o que deveria ser explicado.

1 Trata-se da exposição feita pelo autor na Cidade de Buenos Aires, no dia 25 de setembro de 2006, por ocasião de
sua visita à Argentina. O tradutor agradece imensamente ao Professor Esposito por tê-lo autorizado traduzir e publicar
o texto de sua conferência.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Também a tese, mais recente, que faz referência ao chamado cho-


que de civilizações, se bem indica, em termos mais dramatizados, uma
emergência ou pelo menos um risco efetivamente presente, não ajuda a
enfrentar o tema com uma interpretação adequada. Por que as civilizações,
se quisermos utilizar esta palavra complexa, depois de terem convivido
pacificamente por mais de meio milênio, ameaçam hoje se enfrentar com
resultados catastróficos? Por que se estende o terrorismo internacional em
sua forma mais virulenta? E, de maneira simétrica, por que as democracias
ocidentais não parecem capazes de enfrentá-lo, a não ser que utilizem ins-
trumentos e estratégias que ao largo minam os valores sobre os quais se
fundam estas democracias?
Também a resposta que geralmente se dá a esta última pergunta,
acerca da crescente crise das instituições democráticas, acerca da difi-
culdade de conjugar direitos individuais e coletivos, liberdade e seguran-
ça, cai encerrada no círculo interpretativo que deveria abrir. A impressão
é que continuamos nos movendo dentro de uma semântica que já não é
capaz de restituir traços significativos da realidade contemporânea; cai-
-se, de qualquer modo, na superfície ou na margem de um movimento
que é muito mais profundo.
A verdade é que enquanto nos movemos dentro desta linguagem
marcadamente clássica (dos direitos, da democracia, da liberdade) não
avançamos realmente. Não só com relação a uma situação completamente
inédita, mas também com relação a uma situação cuja radical novidade ilu-
mina de outro modo inclusive à interpretação da fase anterior. O que não
funciona nestas respostas, mais que os conceitos tomados separadamente,
é o marco geral no qual estes conceitos estão insertos.
Como entender, através deste marco, a opção suicida dos terroristas
kamikazes? Ou também a antinomia das chamadas guerras humanitárias
que terminam devastando as mesmas populações pelas quais são feitas? E
como conciliar a ideia de guerra preventiva com a opção pela paz compar-
tilhada por todos os Estados democráticos ou, simplesmente, com o prin-
cípio secular da não intervenção nos assuntos internos dos outros Estados
soberanos? Mais que ajudar a solucionar semelhantes problemas, me pa-
rece que o inteiro plexo das categorias políticas modernas, fundadas sobre
a bipolaridade entre direitos individuais e soberania estatal, contribui por
torná-los cada vez mais insolúveis.
Não se trata só de uma inadequação de léxico ou de uma perspectiva
insuficiente, mas sim de um verdadeiro efeito de ocultamento. É como se
este léxico ocultasse detrás da própria cortina semântica outra coisa, outra
cena, outra lógica que leva sobre seus ombros desde há muito tempo, mas
que só recentemente está saindo à luz de maneira irrefreável. De que se tra-

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ta? Qual é essa outra cena, essa outra lógica, esse outro objeto que a filosofia
política moderna não logra expressar e, melhor ainda, tende a obscurecer?

2. Creio que devemos nos referir a esse conjunto de acontecimentos


que, ao menos, a partir dos estudos de Michel Foucault, mas que em ver-
dade já desde alguma década antes, tem assumido o nome de Biopolítica.
Sem poder agora me deter na genealogia do conceito (que reconstruí em
detalhe num livro recente), e tampouco nos muitos sentidos que ao longo
do tempo (e até mesmo dentro da obra do mesmo Foucault) há adquirido,
digamos que em sua formulação mais geral este termo se refere à implica-
ção cada vez mais intensa e direta que se estabelece, a partir de certa fase
que se pode situar na segunda modernidade, entre as dinâmicas políticas
e a vida humana entendida em sua dimensão especificamente biológica.
Naturalmente se poderia observar que desde sempre a política tem
a haver com a vida; que a vida, também em sentido biológico, sempre há
constituído o marco material no qual ela está necessariamente inscrita. A
política agrária dos impérios antigos ou aquela higiênico-sanitária desen-
volvida por Roma não deveriam ser incluídas, a pleno título, na política da
vida? E a relação de dominação sobre o corpo dos escravos por parte dos
regimes antigos ou, mais ainda, o poder de vida ou morte exercido sobre
os prisioneiros de guerra, não implica uma relação direta e imediata entre
poder e bíos? De outra parte, já Platão, em particular na República, n’O
Político e n’As Leis, aconselha práticas eugenistas que chegam ao infanti-
cídio das crianças com saúde débil.
No entanto, isto não basta para situar estes acontecimentos e estes
textos numa órbita efetivamente Biopolítica, ou melhor, nunca, na época
antiga e medieval, a conservação da vida enquanto tal há constituído o
objeto prioritário do atuar político, como precisamente ocorre na Idade
Moderna. Como Hannah Arendt recordou, até certo momento a preocu-
pação pela manutenção e a reprodução da vida pertenceu a uma esfera que
não era em si mesma política e pública, mas sim econômica e privada. A
ponto de a ação especificamente política ter sentido e relevo precisamente
em contraste com ela.
É provável que com Hobbes, vale dizer, na época das guerras reli-
giosas, que a questão da vida se instala no coração mesmo da teoria e da
práxis política. Para sua defesa é instituído o Estado Leviatã e, em troca
de proteção, os súditos lhe entregam aqueles poderes dos quais estão na-
turalmente dotados. Todas as categorias políticas empregadas por Hobbes
e por outros autores, autoritários ou liberais, que lhe seguem (soberania,
representação, indivíduo), em realidade são uma modalidade linguística e
conceitual de nomear ou traduzir em termos filosóficos políticos a ques-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tão Biopolítica da salvaguarda da vida humana em relação aos perigos de


extinção violenta que a ameaçam.
Neste sentido, se poderia chegar a dizer que não foi a modernidade que
pranteou o problema da autopreservação da vida, mas que foi este problema o
que deu realidade ou, para dize-lo de outro modo, que inventou a modernidade
como complexo de categorias capaz de soluciona-lo. Em seu conjunto, o que
chamamos modernidade, afinal de contas, poderia não ser nada mais que a
linguagem que permitiu dar a resposta mais eficaz a uma série de exigências
de autotutela que emanaram do fundo mesmo da sociedade.
A necessidade de relatos salvíficos (podemos pensar, por exemplo,
no do contrato social), teria nascido deste modo, e teria se feito cada vez
mais urgente quando iniciaram a debilitar-se as defesas que constituíam
a carapaça de proteção simbólica da experiência humana até esse mo-
mento, isto é, a partir da perspectiva transcendente de matriz teológica.
Diminuídas estas defesas naturais, arraigadas no senso comum, este tipo
de envoltura imunitária primitiva se fez necessário, definitivamente, um
aparato ulterior, desta vez artificial, destinado a proteger a vida humana
de riscos cada vez mais insustentáveis como os causados pelas guerras
civis ou pelas invasões estrangeiras.
Precisamente enquanto projetado para o exterior numa forma nunca
antes experimentada, o homem moderno necessita de uma série de apara-
tos imunitários destinados a proteger completamente uma vida que, pela
secularização das referências religiosas, está completamente entregue a si
mesma. É então que as categorias políticas tradicionais como a de ordem e
também a de liberdade assumem um sentido que as impele cada vez mais
até às exigências de segurança. A liberdade, por exemplo, deixa de ser en-
tendida como participação na direção política da polis, para converter-se
em termos de segurança pessoal ao largo de uma deriva que chega até nós:
é livre aquele que pode mover-se sem temer por sua vida e por seus bens.
Isso não significa que estamos ainda hoje dentro do campo de pro-
blemas abertos por Hobbes. E muito menos que suas categorias sirvam
para interpretar a situação atual. Se fosse assim, não nos encontraríamos
na necessidade de construir uma nova linguagem jurídica. Em realidade,
entre a fase que podemos definir genericamente moderna e a nossa, trans-
corre uma nítida descontinuidade que podemos situar justo naquelas pri-
meiras décadas do século passado nas quais surge a reflexão, verdadeira e
propriamente, Biopolítica.
Qual é esta diferença? Trata-se do fato de que, embora na primeira
modernidade, a relação entre política e conservação da vida, tal como esta-
belecida por Hobbes, ainda fosse indireta, estava filtrada por um paradig-
ma de ordem que precisamente se articulou através dos conceitos de sobe-
rania, de representação, de direitos individuais que mencionávamos antes;

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

na segunda fase, que chega até nós de maneiras diferentes ao mesmo tem-
po em que descontínuas, a mediação vai progressivamente desaparecendo
em favor de uma superposição muito mais imediata entre política e bíos.
A importância que já no final do século XVIII adquirem, na lógica
do governo, as políticas sanitárias, demográficas e urbanas marca esta
mudança. Mas é só o primeiro passo até uma caracterização Biopolítica
que penetra todas as relações em que está organizada a sociedade. Fou-
cault analisou as diferentes etapas deste processo de governamentalização
da vida, desde o chamado poder pastoral, vinculado à prática católica da
confissão, até a Razão de Estado, até os saberes de polícia (termo com o
qual, então, se referia a todas as práticas alusivas ao bem-estar material).
A partir deste momento, por um lado, a vida (sua manutenção, seu desen-
volvimento, sua expansão) assume uma relevância política estratégica,
se converte na aposta decisiva dos conflitos políticos e, por outro lado, a
mesma política tende a configurar-se seguindo modelos biológicos e, em
particular, médicos.

3. Como sabemos, também esta mistura entre linguagem política


e linguagem biomédica tem uma longa história. Basta pensar na milenar
duração da metáfora do corpo político ou também em termos políticos de
procedência biológica como nação ou constituição. Mas o duplo processo
cruzado de politização da vida e biologização da política, que se despren-
de a partir de inícios do século passado, têm um alcance diferente. Não
só porque põe a vida cada vez mais no centro do jogo político, mas por-
que, em algumas condições, chega a inverter este vetor biopolítico em seu
oposto tanatopolítico, chega a vincular a batalha pela vida como uma prá-
tica de morte. É a questão estabelecida por Foucault em seus termos mais
crus, quando se pergunta, com um questionamento que continua ainda
interpelando-nos hoje, porque uma política da vida ameaça continuamen-
te contradizer-se numa prática de morte.
Este resultado estava de algum modo já implícito no que eu mesmo
tenho definido como o paradigma imunitário da política moderna, enten-
dendo com isso a expressão e também a tendência cada vez mais forte de
proteger a vida dos riscos implícitos na relação entre os homens, em detri-
mento da extinção dos vínculos comunitários (é o que, por exemplo, pres-
creve Hobbes). Assim como para defender-se preventivamente do contágio
se injeta uma porção de mal no corpo que se quer salvaguardar, também
na imunização social a vida é protegida de uma forma que lhe nega seu
sentido mais intensamente comum.
Mas um verdadeiro salto de qualidade, em direção mortífera, se tem
quando esta prega imunitária do percurso biopolítico se entrecruza, pri-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

meiro, com a parábola do nacionalismo e, em seguida, com a do racis-


mo. Então, a questão da conservação da vida passa do plano individual,
típico da fase moderna, ao do Estado nacional e da população enquanto
corpo etnicamente definido numa modalidade que os contrapõe, respec-
tivamente, a outros Estados e a outras populações. No momento em que
a vida de um povo, racialmente caracterizada, é assumida como o valor
supremo que se deve conservar intacto em sua constituição originária ou
mesmo como o que há que se expandir para além de seus confins, é óbvio
que a outra vida, a vida dos outros povos e das outras raças, tendem a ser
consideradas um obstáculo para este projeto e, portanto, sacrificadas a
ele. O bíos é artificialmente recortado, por uma série de umbrais, em zo-
nas dotadas de diferentes valores que submetem uma de suas partes ao
domínio violento e destrutivo da outra.
Nietzsche é o filósofo que aferra com maior radicalidade este passo:
em parte assumindo-o como seu próprio ponto de vista, em parte critican-
do-o em seus resultados niilísticos. Quando ele fala de vontade de poder
como o fundamento mesmo da vida, ou quando não põe no centro das di-
nâmicas inter-humanas a consciência, mas sim o corpo mesmo dos indiví-
duos, então, faz da vida o único sujeito e objeto da política. Que a vida seja
para Nietzsche vontade de poder não quer dizer que a vida queira o poder
ou que o poder determine desde o interior à vida, mas sim que a vida não
conhece modos de ser diferentes de uma contínua potencialização. O que
condena as instituições modernas (o Estado, o parlamento, os partidos) à
ineficácia e a ineficiência é precisamente sua incapacidade de situar-se
neste nível de discurso.
Mas Nietzsche não se limita a isto. A extraordinária relevância, mas
também o risco, de sua perspectiva Biopolítica consiste não somente em
haver posto a vida biológica, o corpo, no centro das dinâmicas políticas,
mas também na lucidez absoluta com que prevê que a definição de vida
humana (a decisão sobre o que é, qual é, uma verdadeira vida humana)
constituirá no mais relevante objeto de conflitos nos séculos por vir. Numa
conhecida passagem dos Fragmentos Póstumos, quando se pergunta
“porque não temos que realizar no homem o que os chineses lograram
fazer com a árvore, de modo que uma parte produz rosas e outra peras”,
nos encontramos frente a um passo extremamente delicado que vai de uma
política da administração da vida biológica para uma política que prevê a
possibilidade de sua transformação artificial.
Desse modo, ao menos potencialmente, a vida humana se converte
num terreno de decisões que concernem não somente a seus umbrais
externos (por exemplo, o que a distingue da vida animal ou vegetal), mas
também a seus umbrais internos. Isto significa que será concedido, ou

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

melhor, exigido a política de decidir qual é a vida biologicamente melhor


e como potencializá-la através do uso, da exploração, ou se faria a morte
da vida menos valiosa biologicamente.

4. O totalitarismo do século XX, sobretudo o nazista, assinala o ápice


dessa deriva tanatopolítica. A vida do povo alemão se converte no ídolo
biopolítico ao qual se sacrifica a existência de qualquer outro povo e em
particular do povo judeu que parece contaminá-la e debilitá-la internamen-
te. Nunca como neste caso, o dispositivo imunitário assinala uma absoluta
coincidência entre proteção e negação da vida. A potencialização suprema
da vida de uma raça, que se pretende pura, é paga com a produção da morte
em grande escala. Em primeiro lugar, a dos outros e, ao final, no momento
da derrota, também da própria, como testemunha a ordem de destruição
transmitida por Hitler assediado no bunker de Berlin. Como nas enfermi-
dades chamadas autoimunes, o sistema imunológico se torna tão forte que
ataca o mesmo corpo que deveria salvar, determinando sua decomposição.
Eu creio que não é conveniente esfumar a absoluta especificidade
do que ocorreu na Alemanha nos anos trinta e quarenta do século passa-
do. A mesma categoria de totalitarismo – que inclusive teve o mérito de
chamar a atenção sobre certas conexões entre os sistemas antidemocrá-
ticos do tempo – ameaçam manchar ou, ao menos, empalidecer o caráter
irredutível do nazismo, não só a todas as categorias políticas modernas,
das quais assinala precisamente a ruína, mas também sua irredutibilidade
ao comunismo-stalinista.
Embora este último ainda possa ser considerado como uma exacer-
bação paroxística da filosofia da história moderna, o nazismo está com-
pletamente fora, não só da modernidade, como também de sua tradição
filosófica. Isso não significa que não tenha uma filosofia; mas se trata de
uma filosofia integralmente traduzida em termos de biologia. O nazismo
não é, como, pelo contrário, quis ser o comunismo, uma filosofia realizada,
porque foi isto sim uma biologia realizada. Se o transcendental do comu-
nismo, isto é, a categoria constitutiva da qual todas as outras descendem,
é a história, a do nazismo é a vida, entendida desde o ponto de vista da
biologia comparada entre raças humanas e raças animais.
Isso não significa que o poder político passou diretamente às mãos
dos biólogos, mas sim que os políticos alemães do tempo assumiram os
parâmetros da biologia comparada como critério intrínseco de sua ação.
Neste sentido, não se tratou tampouco de uma simples instrumentaliza-
ção; não é que os nazistas se limitaram a empregar para seus objetivos as
investigações biológicas da época. Eles chegaram a identificar a mesma
política com a biologia numa forma completamente inédita de biocracia.

31
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Isso explica o papel absolutamente extraordinário que desempenha-


ram no nazismo, de um lado, os antropólogos (em estreita relação de conti-
guidade com os zoólogos) e, de outro lado, os médicos. No primeiro caso, a
centralidade imediatamente política da antropozoologia deve ser referida à
relevância que os nazistas deram a categoria da humanitas (um célebre ma-
nual de política racial teve precisamente este nome), entendida como objeto
de contínua reelaboração através da definição de umbrais biológicos entre
zonas de vidas providas e outras desprovidas de valor, tal como o expressou
um tristemente célebre texto sobre a vida “que não é digna de ser vivida”.
Quanto aos médicos, sua participação direta em todas as etapas do
genocídio (desde a seleção nas plataformas de trens até a incineração final
dos prisioneiros) é conhecida e está abundantemente documentada. Como
se deduz das declarações nos diferentes processos em que foram acusados,
eles interpretaram o próprio trabalho de morte como a missão própria do
médico: curar o corpo da Alemanha afetado por uma grave enfermidade,
eliminando a parte infectada e os germes invasores de forma definitiva.
Sua obra teve a seus olhos o caráter de uma grande desinfecção, neces-
sária num mundo já invadido pelos processos de degeneração biológica,
dos quais a raça hebreia constituía o elemento mais letal. Não por nada,
Hitler, chamado “o grande médico alemão”, considerava “a descoberta do
vírus hebreu como uma das maiores revoluções deste mundo. A batalha na
qual estamos empenhados, continuava, é igual àquela combatida, no sécu-
lo passado, por Pasteur e Koch”.
Deste ponto de vista, o nazismo também constitui um ponto de rup-
tura e, por sua vez, de viragem decisiva dentro da Biopolítica. O nazismo,
com efeito, conduziu a Biopolítica à máxima antinomia que pode conter
o princípio segundo o qual a vida se protege e se desenvolve somente am-
pliando progressivamente o círculo da morte. Também a lógica é radical-
mente transformada. Enquanto, pelo menos em sua formulação clássica,
só o soberano mantém o direito de vida e de morte sobre os súditos, agora,
este direito é concedido a todos os cidadãos do Reich. Se se trata da defesa
racial do povo alemão, qualquer um está legitimado, ou melhor, obrigado a
procurar a morte de qualquer outro, e no final, se a solução o exige, como
no momento da derrota final, também a procurar a sua própria morte.
Aqui, defesa da vida e produção da morte realmente tocam um nível
de absoluta indistinção. A enfermidade que os nazistas quiseram eliminar
foi precisamente a morte da própria raça. Foi isto o que eles quiseram
matar no corpo dos judeus e de todos os que pareciam ameaçá-la desde o
interior e desde o exterior. De outra parte, esta vida infectada era consi-
derada como já morta. Portanto, os nazistas não perceberam sua própria
ação como um verdadeiro assassinato. Eles só restabeleceriam os direi-

32
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

tos da vida, restituindo à morte uma vida já falecida, dando morte a uma
vida habitada e corrompida, desde sempre, pela morte. Assumiram a morte
como objeto e, ao mesmo tempo, instrumento de cura em favor da vida.
Por isto, eles sempre mantiveram o culto de seus próprios antepassados
mortos; porque, numa perspectiva Biopolítica completamente invertida
em tanatopolítica, só a morte pode tocar o papel de defender a vida em si
mesma, submetendo toda a vida ao regime da morte. O cinquenta milhões
de mortes produzidos pela Segunda Guerra Mundial constituem o resulta-
do inevitável a que deveria conduzir esta lógica.

5. Esta catástrofe, no entanto, não pôs fim a Biopolítica, como o


comprova o fato de que ela, em suas diferentes configurações, tem uma
história muito mais ampla e mais larga que o nazismo, que parece levá-la
a seu resultado estremo. A Biopolítica não é um produto do nazismo, mas,
isto sim, o nazismo é o produto paroxístico e degenerado de uma certa
forma de Biopolítica. É um ponto sobre o qual convém insistir com força,
porque pode conduzir, ou melhor, já tem conduzido, a numerosos equí-
vocos. Contrariamente às ilusões dos que têm imaginado passar por alto
o parêntesis nazista para reconstruir as mediações ordenadoras da fase
precedente, vida e política estão atadas num nó que já é impossível desatar.
Esta ilusão tem sido alimentada pelo período de paz aberto ao final
da Segunda Guerra Mundial, ao menos no mundo ocidental. Mas, prescin-
dindo da circunstância de que também esta paz (ou não-guerra, como foi a
guerra fria) se baseou no equilíbrio do terror, determinado pela ameaça atô-
mica e, por isso, completamente inscrita dentro de uma lógica imunitária,
ela só propôs por algumas décadas o que antes ou depois havia ocorrido de
todos os modos. E, com efeito, o desmonte do sistema soviético, interpreta-
do como vitória definitiva da democracia contra seus potenciais inimigos, e
inclusive como fim da história, assinala, pelo contrário, o fim de uma ilusão.
O nó entre política e vida, que o totalitarismo apertou de uma forma
destrutiva para ambas, ainda está perante nós. Melhor ainda, se pode dizer
que se converteu no epicentro de toda dinâmica politicamente significativa.
Desde a relevância cada vez maior assumida pelo elemento étnico nas rela-
ções internacionais ao impacto das biotecnologias sobre o corpo humano,
desde a centralidade da questão sanitária como índice privilegiado do fun-
cionamento do sistema econômico-produtivo à prioridade da exigência de
segurança em todos os programas de governo, a política aparece cada vez
mais esmagada contra a desnuda capa biológica, se não sobre o corpo mesmo
dos cidadãos em todas as partes do mundo. A progressiva indistinção entre
normas e exceção determinada pela extensão indiscriminada das legislações
de emergência, junto ao fluxo crescente de imigrantes privados de toda iden-

33
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tidade jurídica e submetidos ao controle direto da polícia, tudo isto assinala


um ulterior deslizamento da política mundial em direção a Biopolítica.
Também é necessário refletir sobre esta situação mundial mais além
das atuais teorias da globalização. Pode-se dizer que, contrariamente ao
que sustentaram Heidegger e Hannah Arendt, a questão da vida forma
uma unidade com a do mundo. A ideia filosófica, proveniente da fenome-
nologia, de “mundo da vida”, finalmente se inverte naquela, simétrica, de
“vida do mundo”, no sentido de que o mundo inteiro aparece cada vez mais
como um corpo unificado por uma única ameaça global que, ao mesmo
tempo, o mantém unido e o ameaça faze-lo em pedaços. Diferentemente
do que sucedia em um tempo, já não é possível que uma parte do mun-
do (América, Europa) se salve, enquanto o outro se destrói. O mundo, o
mundo inteiro, sua vida, compartilha um mesmo destino: ou encontrará o
modo de sobreviver todo junto ou perecerá todo junto.
Os fatos desencadeados pelo ataque de 11 de setembro de 2001 não
constituem o princípio, como se diz comumente, mas sim que são, sim-
plesmente, o detonador de um processo que já havia começado com o
final do sistema soviético, o último katéchon que freou os empurrões au-
todestrutivos do mundo com a mordaça do medo recíproco. Caído este
último muro que outorgou ao mundo uma forma dual, já não parece que
se possam deter as dinâmicas Biopolíticas que estavam contidas dentro
dos velhos muros de contenção.
A guerra no Iraque assinala provavelmente o ápice dessa deriva, tan-
to pelo modo pelo qual tem sido apresentada como por aquele em que tem
sido e é conduzida atualmente. A ideia de uma guerra preventiva desloca
radicalmente os termos da questão tanto em relação às guerras efetivas
como em relação à chamada guerra fria. Em comparação com esta última,
é como se o negativo do procedimento imunitário se duplicasse até ocupar
todo o espaço. A guerra já não é mais a exceção, o recurso último, o reverso
sempre possível, mas sim a única forma de coexistência global, a catego-
ria constitutiva da existência contemporânea. Daí a consequência, da qual
não se há de se surpreender, de uma multiplicação em excesso dos mesmos
riscos que se quiseram evitar. O resultado mais evidente é o da absoluta
superposição dos opostos: paz e guerra, ataque e defesa, vida e morte se
superpõem cada vez mais.
Se nos detivermos a examinar mais detalhadamente a lógica homi-
cida e suicida das atuais práticas terroristas, não é difícil reconhecer um
passo ulterior em direção a tanatopolítica nazista. Já não se trata de que
a morte tenha sua entrada de um modo contundente numa vida, mas sim
que é essa vida a que se constitui no instrumento da morte. Que é, especi-
ficamente, um kamikaze, se não um fragmento de vida que se lança sobre
outras vidas para produzir a morte? Não se desloca o alvo dos atentados

34
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

terroristas cada vez mais para as mulheres e as crianças, isto é, sobre os


mananciais mesmo da vida?
A barbárie da decapitação dos reféns parece conduzir-nos à época
pré-moderna dos suplícios em praça, com um toque hipermoderno, cons-
tituído pela plateia planetária da Internet a partir da qual se pode assistir
ao espetáculo. O virtual, mais que o oposto ao real, constitui, neste caso, a
mais concreta manifestação no corpo mesmo das vítimas e no sangue que
parece salpicar na tela. Nunca como nestes dias, a política se praticou so-
bre os corpos e sobre os corpos das vítimas inermes e inocentes.
Mas o que é ainda mais significativo da atual deriva Biopolítica é a
circunstância de que a mesma prevenção em relação ao terror de massa
tende a apropriar-se de suas modalidades e a reproduzi-las. Como ler de
outro modo episódios trágicos como a matança no teatro Dubrovska de
Moscou, efetuado pela polícia mediante o emprego de gases letais tanto
para os terroristas como para os reféns? E, noutro plano, não é também
a tortura abundantemente praticada nos cárceres iraquianos um resíduo
exemplar de política sobre a vida, a meio caminho entre a incisão sobre
o corpo dos condenados da Colônia Penal de Kafka e a bestialização do
inimigo de matriz nazista? Que na recente guerra no Afeganistão os mes-
mos aviões tenham lançado bombas e viveres sobre as mesmas popula-
ções é, quiçá, o sinal tangível da superposição mais acabada entre defesa
da vida e produção de morte.

6. Com isso, o discurso pode considerar-se terminado? É este o úni-


co resultado possível ou existe outro modo de praticar ou, ao menos, de
pensar a Biopolítica? É possível uma Biopolítica finalmente afirmativa,
produtiva, que se subtraia ao retorno irreparável da morte? É imaginável,
para dizê-lo com outras palavras, uma política não já sobre a vida, mas sim
da vida? E como deveria o poderia configurar-se?
Pelo momento um primeiro e não inútil esclarecimento. Conceden-
do a legitimidade de todo o delineado, pessoalmente tenho dúvidas sobre
qualquer curto-circuito entre filosofia e política. Sua implicação não pode
solucionar-se com a absoluta superposição; pois não creio que a tarefa da
filosofia seja a de propor modelos de instituições políticas ou que se possa
fazer da Biopolítica um manifesto revolucionário ou, de acordo com o gos-
to de cada um, reformista.
Minha impressão é que se tem de percorrer um caminho muito mais
largo e articulado, que passa por um esforço especificamente filosófico de
nova elaboração conceitual. Se, como Deleuze crê, a filosofia é a prática
de criação de conceitos adequados ao acontecimento que nos toca e nos
transforma, este é o momento de repensar a relação entre política e vida
numa forma que, em vez de submeter a vida em direção da política (o que

35
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

manifestamente ocorreu no curso do último século), introduzir na política


a potência da vida. O que conta não é enfrentar a Biopolítica desde seu
exterior, mas sim desde seu interior mesmo, basta fazer emergir algo que
até agora tem caído afastado por seu oposto.
Naturalmente a referência a este oposto é necessária, ao menos
para fixar um ponto de partida e contraste. Em meu livro, elegi o cami-
nho mais difícil: partir do lugar da mais extrema deriva mortífera da Bio-
política, isto é, o nazismo, de seus dispositivos tanatopolíticos, para bus-
car precisamente neles os paradigmas, as chaves, os signos invertidos de
uma política diferente da vida. Dou-me conta de que isto possa parecer
chocante, enfrentar-se com um sentido comum que tem tratado, durante
muito tempo, consciente ou inconscientemente, de remover a questão do
nazismo, do que o nazismo tem entendido e, desaforadamente, praticado,
como política da bíos, mesmo que utilizando mais corretamente o léxico
aristotélico, deveria dizer zoé.
Os três aparatos mortíferos do nazismo (ainda que, naturalmente,
não só dele, como resta hoje em dia cada vez mais evidente) sobre os
quais tenho trabalhado se referem à normalização absoluta da vida, isto
é, à clausura da bíos dentro da lei de sua destruição, à dupla clausura do
corpo, à imunização homicida e suicida do povo alemão dentro da figu-
ra de um único corpo racialmente purificado. Finalmente, à supressão
antecipada do nascimento como forma de cancelamento da vida desde o
momento de seu surgimento.
A esses dispositivos não lhes tenho contraposto algo estranho, mas
sim, e precisamente, o seu oposto imediato: uma concepção da norma ima-
nente aos corpos, não imposta desde o exterior, uma ruptura da ideia fe-
chada e orgânica do corpo político em favor da multiplicidade da existên-
cia variada e plural e, por último, uma política do nascimento entendida
como produção contínua da diferença em relação a toda prática identitá-
ria. Sem poder retomar aqui em detalhe os argumentos propostos, eles se
orientam no sentido de uma conjugação inédita entre linguagem da vida e
forma política mediante a reflexão filosófica. Ainda não podemos saber o
quanto de isso tudo poderá ir no sentido constitutivo de uma Biopolítica
afirmativa. O que me interessa é assinalar vestígios, enovelar fios capazes
de adiantar algo que ainda não emergiu com claridade no horizonte.

Tradutor: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Porto Velho/RO, dezembro de 2006.

36
3

Algumas considerações sobre o conceito de


“Estado de Exceção” em Giorgio Agamben

Magnus Dagios

Introdução

Neste trabalho apresentarei a noção de “Estado de Exceção” de Gior-


gio Agamben elaborada em sua obra Estado de Exceção (Idem, 2004). A
noção de Estado de Exceção, ou Estado de Sítio é importante para as aná-
lises políticas contemporâneas, pois fazem parte dos modos de conduta
jurídico-políticos dos Estados, ou por já estarem codificados ou estabe-
lecidos de modo implícito. Muitos Estados ou já se utilizaram ou irão se
utilizar desse instituto no futuro. Agamben oportunamente pautou nova-
mente esse problema, contextualizando para os novos cenários jurídicos
e políticos ao indicar as possíveis incongruências do uso do conceito e as
formas em que ele se exibe ao longo do tempo. Começo com um esboço
geral sobre essa noção.
O conceito “Estado de Sítio” “quer geralmente indicar um regime
jurídico excepcional a que uma comunidade territorial é temporariamente
sujeita, em razão de uma situação de perigo para a ordem pública” (BALDI,
2004, p. 413). As situações de perigo que podem originar tal situação são,
em geral, momentos de perigo para a ordem pública, mas estão geralmente
sujeitas a interpretações diversas pelos agentes públicos de determinado
país, seja de acordo ou contra a decretação do instituto. Muitos cenários
que se apresentam podem trazer o perigo indicado: desde questões de or-
dem política, como instabilidades que tendem para a guerra civil ou guerra
externa, até causas naturais, como terremotos, ciclones, epidemias etc.
As medidas variam de acordo com as necessidades concretas, ou o
modo pelos quais essas obrigações são interpretadas pelos agentes pú-
blicos em determinada época e lugar. O impacto das medidas para os
indivíduos pode variar, indo de medidas de polícia como proibição de
deslocamentos, toque de recolher e reuniões, até a supressão total das

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

garantias constitucionais. As questões da guerra externa e do Estado de


Sítio derivam dos condicionantes que as operações bélicas impõem aos
Estados para a proteção da segurança nacional nas tentativas de defesa,
estratégias e táticas. Essas possibilidades muitas vezes não são previstas
nos códigos constitucionais, o que leva a uma constante de confusão e
arbítrio nos momentos de crise.
Essas possibilidades deveriam ser mais bem esclarecidas pelos legis-
ladores, agentes administrativos e pensadores políticos. Uma das origens
históricas do conceito de Estado de Sítio remete à ditadura romana. Nas
últimas décadas, a literatura sobre o assunto se transformou em literatura
sobre o totalitarismo, o que empobreceu o entendimento tanto da ditadura
quanto do totalitarismo (SARTORI, 2012, p. 71). Confunde-se a uma espé-
cie de ditadura, o totalitarismo, com o gênero: as possibilidades de formas
de ditadura. “Las incertidumbres de la doctrina se revelan em las numero-
sas historias de la dictadura, las cuales – al carecer de criterios – mezclan
desordenadamente a tiranos, dictadores, héroes, ‘hombres fuertes’ y mo-
narcas absolutos” (SARTORI, 2012, p. 74).
Além desse problema, comumente se confunde o ditador-pessoa
com a ditadura-instituição: “Por lo tanto, también a este respecto se debe
subrayar que entre el discursos sobre las dictaduras totalitarias, por un
lado, y el discurso sobre el dictador-persona, por otro, falta, o está ausen-
te, el anillo de conjunción: la dictadura como forma de Estado y modo de
gobierno” (Ibidem, p. 72). Dentre as fases e compreensões da noção de di-
tadura, a que nos interessa é a primeira. A ditadura romana dos séculos V-
-III a.C.: uma magistratura extraordinária instituída pelo direito (leis) para
resolver problemas emergenciais e esporádicos:

El dictador era nombrado por los cónsules, o por los tribu-


nos con potestad consular, a requerimiento del Senado y con
frecuencia, de hecho, por designación suya. Aunque dotado
con el imperium máximum no podía abolir la constitución y
como mucho podría suspender las magistraturas ordinarias,
del mismo modo que el ejercicio del mando militar (dictador
rei gerundae causa) no constituía su aspecto más importante y
su sustancia efectiva. El dictador militar no podía ostentar el
cargo más de seis meses. La dictadura romana era, por tanto,
una magistratura extraordinaria, prevista y disciplinada por el
derecho público para casos de emergencia, inderogablemente
limitada en el tiempo y asignada expresamente a una tarea.
El dictador decaía de su cargo apenas realizada la tarea para
la cual había sido nombrado, y también, aunque la tarea no
hubiera sido ultimada si por ventura el período de seis meses
hubiera transcurrido mientras tanto (Ibidem, p. 75).

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Nos termos de Carl Schmitt, essa seria a ditadura comissária (ou de-
legada) para diferenciar da ditadura soberana. Para Schmitt, com o surgi-
mento dos Estados Absolutistas nos séculos XVI e XVII, o termo perdeu
o seu significado originário muito em função de que, naquele tempo, não
havia o interesse de se saber sobre o desenvolvimento que levou da demo-
cracia até o cesarismo. Os reis absolutistas originavam sua legitimidade da
“graça de deus”, e não do consenso popular, o que também contribuiu para
o esquecimento do significado. Mas, entre os estudiosos de teoria política
e constitucional da época encontram-se alguns casos em que o termo é en-
tendido como parte de uma teoria geral de governo, como em Maquiavel:

But in Machiavelli’s work, beside these common wisdoms –


for example his examination of the virtues, popular right up
to the nineteenth century, of Republican Romans who stepped
down from dictatorship before the end of their mandate (The
Prince, I, chs 30, 34) – we also find remarks about the business
of the ordinary office, whose complexity and dual mode of
consulting could become dangerous in urgent cases and could
make a quick decision impossible. This is especially true for
the Republic: dictatorship had to be a matter of survival, be-
cause the dictator was not a tyrant and dictatorship was not
a form of absolute government but rather an instrument to
guarantee freedom, which was in the spirit of the Republican
constitution. Consequently, in the Venetian Republic, which
Machiavelli calls the best modern republic, we can find a si-
milar institution (ch. 34) (SCHMITT, 2014, p. 4).

O ditador, em Maquiavel, é um homem que estava apto para emi-


tir ordens com independência de outras instituições com a capacidade de
deliberar sobre as medidas e executá-las sem precisar de consultores, com
a rapidez de implementação que as circunstâncias emergenciais assim exi-
giam. Contudo, ao ditador não é permitida a mudança das leis ou a suspen-
são da constituição:

But all these powers have to be distinguished from the legisla-


tive activity of government. The dictator cannot change the laws;
neither can he suspend the constitution or the organisation of
office; and he cannot ‘make new laws’ (‘fare nuove leggi’). In a dic-
tatorship, according to Machiavelli, the official administration
subsists as a kind of control (guardia). Therefore, dictatorship
was a constitutional instrument for the Republic. The Decemviri,
on the other hand, endangered the Republic through their unli-
mited legislative powers (ch. 35) (SCHMITT, 2014, p. 4).

A instituição da ditadura, para Carl Schmitt, é como que um ato de


defesa, não apenas uma ação, mas, sobretudo, uma reação. O inimigo a ser
combatido não concorda com as normas vigentes, e, nesse sentido, a relação

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

entre normas legais e normas de implementação da lei torna-se a contradi-


ção entre normas legais e diretrizes específicas para a ação: a ditadura co-
missária suspende a constituição em ordem para protegê-la (Ibidem, p. 118).

In practice [in concreto] the commissary dictatorship sus-


pends the constitution in order to protect it – the very same
one – in its concrete form. The argument has been repeated
ever since – first and foremost by Abraham Lincoln: when
the body of the constitution is under threat, it must be safe-
guarded through a temporary suspension of the constitution.
Dictatorship protects a specific constitution against an atta-
ck that threatens to abolish this constitution. The methodo-
logical autonomy, as a legal problem, of the problem of law
implementation becomes most evident here. The dictator’s
actions should create a condition in which the law can be re-
alised, because every legal norm presupposes a normal con-
dition as a homogeneous medium in which it is valid. The-
refore, dictatorship is a problem of concrete reality without
ceasing to be a legal problem. The constitution can be sus-
pended without ceasing to be valid, because the suspension
only represents a concrete exception.

Como defesa de um ataque ilegal, a ditadura comissária pode e deve


reestabelecer a ordem legal, ou seja, é uma tarefa legal do ditador que jus-
tifica o seu poder de acordo com a situação. As exceções que designam a
ditadura são justamente seu ponto definidor: “they are possible because
dictatorship is a commission of action defined by the concrete situation
[Sachlage].” (SCHMITT, 2014, p. 119).
A ditadura soberana, diferentemente, é uma ordem em que o ditador
resolve por suas próprias ações. O ditador, nesse contexto, dá origem a
uma nova ordem e torna possível uma constituição vindoura: “dictator-
ship does not suspend an existing constitution through a law based on the
constitution – a constitutional law; rather it seeks to create conditions in
which a constitution – a constitution that it regards as the true one – is
made possible (Ibidem, p. 119). Nesse caso, não necessariamente estamos
diante de um puro poder na medida em que essa ditadura soberana, apesar
de não estar inscrita no código constituinte, pode ser associada à consti-
tuição, como é o caso do poder constituinte (Ibidem, p. 119).
A possibilidade em que os momentos de exceção podem se tornar
mais costumeiros também é visível na forma com que Carl Schmitt enten-
de o conceito de político, como intrinsecamente conflituoso:

Para Schmitt, o critério do político, a sua differentia specifica, é


a relação amigo-inimigo, que envolve a criação de um ‘nós’ que
se opõe a um ‘eles’ e que se situa desde a origem no domínio
das identificações coletivas. O político está sempre relaciona-
do com conflitos e antagonismos e não pode senão estar para

40
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

além do racionalismo liberal, uma vez que este indica os limi-


tes de qualquer consenso racional e mostra que qualquer con-
senso se baseia em actos de exclusão. A crença liberal de que o
interesse geral é produto do livre jogo dos interesses privados
e que é possível alcançar um consenso universal racional com
base na livre discussão tem necessariamente de tornar o libera-
lismo cego ao fenómeno político. Na opinião de Schmitt, esse
fenómeno pode ser entendido ‘apenas no contexto da eterna
possibilidade do agrupamento em amigos-inimigos, indepen-
dentemente das implicações que possa ter na moralidade, na
estética e na economia’ (MOUFFE, 1996, p. 164-165).

De acordo com Schmitt, a decisão do jus belli é sempre uma possi-


bilidade: “mas o desempenho de um Estado normal consiste, sobretudo,
em obter dentro do Estado e de seu território uma pacificação completa,
produzindo ‘tranquilidade, segurança e ordem’ e criando, assim, a situ-
ação normal” (Idem, 2009, p. 49). Esse estado de paz interna é condição
para que as normas jurídicas possam ser eficazes: “nenhuma norma pode
ter validade para uma situação que lhe é plenamente anormal.” (Ibidem).
São essas necessidades anormais que “leva a que o Estado como unidade
política, enquanto existir, também determine, por si mesmo, ‘o inimigo
interno’.” (Ibidem). Da mesma forma, isso também é válido no Estado cons-
titucional, pois no modo como é agredida, o combate pode ser decidido
pelo poder das armas fora da constituição (Ibidem, p. 50). É da natureza do
político determinar os “inimigos”, e não do direito ou das normas, sendo
por isso que, quando o oponente é declarado, a norma cessa sua validade
e eficácia: “se realmente houver inimigos no significado ôntico como aqui
considerado, tem sentido, mas tão-somente sentido político repeli-los fi-
sicamente em caso de necessidade e os combater.” (Ibidem, p. 53). Esses
trechos mostram uma relação conturbada entre direito e o político, em
que a estabilidade harmônica nem sempre é uma opção. Agamben tentará
aprofundar essas questões.

Agamben e o Estado de Exceção

Giorgio Agamben começa seu livro, Estado de Exceção, com a defini-


ção estabelecida de “soberano” por Carl Schmitt em seu livro Die Politische
Theologie: “como aquele que decide sobre o estado de exceção”. Segundo
Agamben, o direito público carece de uma definição do Estado de Exceção
por não considerá-lo um problema jurídico, e sim uma questão de fato, de
acordo com o princípio de que no Estado de Necessidade não há leis. A
contradição, no entanto, apontada por Agamben se refere à condição de
implantação do Estado de Exceção, geralmente compreendido na esfera
política, nos momentos de crise, quando o direito inclui em si a sua própria

41
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

suspensão: “as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal


de medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direi-
to, e o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não
pode ter forma legal.” (Idem, 2004, p. 12). Agamben, nesse sentido, apresen-
ta as linhas de sua pesquisa:

É essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato polí-


tico e entre a ordem jurídica e a vida, que a presente pesquisa
se propõe a explorar. Somente erguendo o véu que cobre essa
zona incerta poderemos chegar a compreender o que está em
jogo na diferença – entre o político e o jurídico e entre o direi-
to e o vivente. E só então será possível, talvez, responder à per-
gunta que não pára de ressoar na história da política ocidental:
o que significa agir politicamente (Ibidem, p. 12).

A guerra civil é o ponto alto de decisão ou não sobre a vigência de


um Estado de Exceção. E, segundo Agamben, o século XX foi palco de
um “fenômeno paradoxal”, de uma “guerra civil legal”. Exemplo disso foi
o Estado nazista, com o decreto promulgado por Hitler que suspendia os
artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. A
duração de doze anos do decreto tornou o Terceiro Reich um Estado de
Exceção permanente:

O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido,


como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos
adversários políticos, mas também de categorias inteiras de
cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis
ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente,
não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das práticas
essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chama-
dos democráticos (Ibidem, p. 12).

Desse modo, segundo Agamben estamos diante de uma “guerra civil


mundial” na qual o Estado de Exceção “tende cada vez mais a se apresentar
como o paradigma de governo dominante na política contemporânea.” (Ibi-
dem, p. 12). O Estado de Exceção como algo excepcional apresenta-se como
uma técnica de governar, de tal modo que ameaça inclusive “a estrutura e
o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição”,
uma indeterminação quanto à própria forma de governo.
Exemplo típico, segundo Agamben, de Estado de Exceção legal foi
a promulgação, em 13 de novembro de 2001, da military order nos Estados
Unidos, que autoriza detenções indefinidas e a comissão militar dos sus-
peitos de atividades terroristas. No mesmo sentido, o USA Patriot Act,
promulgado pelo Senado estadunidense no dia 26 de outubro de 2001, per-

42
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

mite a prisão do estrangeiro suspeito de atividades que ponham em perigo


a segurança dos Estados Unidos e anula o estatuto jurídico do indivíduo.
Tais acusados, o que inclui aí, também, os talibãs, estão fora do alcance
judiciário, portanto fora da lei.

À incerteza do conceito corresponde exatamente a incerte-


za terminológica. O presente estudo se servirá do sintagma
“estado de exceção” como termo técnico para o conjunto co-
erente dos fenômenos jurídicos que se propõe a definir. Esse
termo, comum na doutrina alemã (Ausnahmezustand, mas tam-
bém Notstand, estado de necessidade), é estranho às doutrinas
italiana e francesa, que preferem falar de decretos de urgência
e de estado de sítio (político ou fictício, état de siège fictif). Na
doutrina anglo-saxônica, prevalecem, porém, os termos mar-
tial law e emergency powers (Ibidem, p. 15).

As características básicas, por exemplo, do Estado de Sítio são a ex-


tensão para o âmbito civil dos poderes militares em tempo de guerra e
também a suspensão da constituição; ambos convergem para um único
fenômeno jurídico chamado Estado de Exceção (Ibidem, p. 17). Para Agam-
ben, o Estado de Exceção não se confunde com a ideia de um estado origi-
nal “pleromático”, em que ainda não há a distinção dos poderes, derivado
da ideia do Estado de Natureza. Embora o Estado de Exceção inclua a ex-
pressão “plenos poderes”, o que o define é um vazio de direito.
Para Agamben, baseado em Benjamin, o Estado de Exceção torna-se a
regra, assim como em uma técnica de governo constitutiva da ordem jurídica.

Dado que leis dessa natureza – que deveriam ser promulgadas


para fazer face a circunstâncias excepcionais de necessidade e
de emergência – contradizem a hierarquia entre lei e regula-
mento, que é a base das constituições democráticas, e delegam
ao governo um poder legislativo que deveria ser competência
exclusiva do parlamento […] De fato, a progressiva erosão dos
poderes legislativos do Parlamento, que hoje se limita, com
frequência, a ratificar disposições promulgadas pelo executi-
vo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se desde
então uma prática comum (Ibidem, p. 19).

Uma distinção importante que se apresenta é a distinção de Carl Sch-


mitt entre ditadura comissária e ditadura soberana, como oposição entre
uma ditadura constitucional, que se propõe a salvaguardar a constituição,
e uma inconstitucional e consequentemente a derrubada da ordem consti-
tucional. A grande questão, nesse sentido, é como se exerce uma ditadura
constitucional que defenda a constituição democrática e não resulte em um
Estado totalitário, com a completa ausência de dispositivos que garantam o
direito. No entanto, para Agamben, isso é resumido em dois critérios, o da

43
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

absoluta necessidade e o do caráter temporário, o que contradiz a atual situ-


ação “que o Estado de Exceção tornou-se a regra.” (Ibidem, p. 21).
Existem, segundo Agamben, dois grupos distintos conforme a regu-
lamentação ou não do Estado de Exceção no texto da constituição; França e
Alemanha estão entre os países que regulamentam; os que não regulamen-
tam são a Itália, a Suíça, a Inglaterra e os Estados Unidos. Também se divi-
dem em dois grupos aqueles que defendem a previsão do Estado de Exceção
no texto constitucional; e outros como Carl Schmitt, que criticam a inclusão
do Estado de Exceção nas normas constitucionais. Mas, apesar dessas dis-
tinções, Agamben destaca que o Estado de Exceção está presente de forma
material em todos os países mencionados: “e a história do instituto, ao me-
nos a partir da Primeira Guerra Mundial, mostra que seu desenvolvimento
é independente de sua formalização constitucional ou legislativa.” (Ibidem,
p. 23). Esse aspecto de legalização ou não do Estado de Exceção encontra
similitude com a ideia de regulamentação, ou não direito de resistência.
Enquanto a Itália rejeitou a medida no projeto atual de sua Constituição, a
Alemanha regulamenta sem restrições o direito de resistência.

De fato, tanto no direito de resistência quanto no estado de


exceção, o que realmente está em jogo é o problema do signi-
ficado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. Aqui
se opõem duas teses: a que afirma que o direito deve coincidir
com a norma e aquela que, ao contrário, defende que o âmbito
do direito excede a norma. Mas, em última análise, as duas po-
sições são solidárias no excluir a existência de uma esfera da
ação humana que escape totalmente ao direito (Ibidem, p. 24).

O uso dos decretos-lei, as chamadas “medidas provisórias com força


de lei” usadas nos “casos extraordinários de necessidade e urgência”, foi
promulgado, como atesta Agamben, na Constituição republicana na Itália:
“sabe-se que a prática da legislação governamental por meio de decretos-
-lei tornou-se, desde então, a regra na Itália.” (Ibidem, p. 32). Tal prática
hoje é comum em vários países, inclusive no Brasil, onde as faladas medi-
das provisórias “trancam” as discussões da Câmara dos Deputados. Nesse
sentido, Agamben é contundente:

Isso significa que o princípio democrático da divisão dos po-


deres hoje está caduco e que o poder executivo absorveu de
fato, ao menos em parte, o poder legislativo. O Parlamento
não é mais o órgão soberano a quem compete o poder exclu-
sivo de obrigar os cidadãos pela lei: ele se limita a ratificar os
decretos emanados do poder executivo. Em sentido técnico, a
República não é mais parlamentar, e sim governamental. E é
significativo que semelhante transformação da ordem consti-
tucional, que hoje ocorre em graus diversos em todas as demo-
cracias ocidentais, apesar de bem conhecida pelos juristas e

44
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

pelos políticos, permaneça totalmente despercebida por parte


dos cidadãos. Exatamente no momento em que gostaria de dar
lições de democracia a culturas e a tradições diferentes, a cul-
tura política do Ocidente não se dá conta de haver perdido por
inteiro os princípios que a fundam (Ibidem, p. 33).

Com isso, o parlamento perdeu força para os atos do executivo, que


ganhava sempre a preferência de restabelecer a ordem em tempos de guer-
ra ou rebeliões. E isso em praticamente todos os países, incluindo a Ingla-
terra e os Estados Unidos, com destaque para este último, principalmente
em sua Guerra Civil (1861-1865). Desde 15 de abril até 4 de julho de 1861, o
presidente Lincoln agiu como um ditador absoluto, de acordo com Agam-
ben; e, no discurso de 4 de julho expôs o que segue:

As medidas que havia adotado – declarou ele – “tenham ou não


sido legais em sentido estrito”, haviam sido decididas “sob a
pressão de uma exigência popular e de um estado de necessi-
dade pública”, na certeza de que o Congresso as teria ratifica-
do. Ele se baseava na convicção de que a lei fundamental podia
ser violada, se estivesse em jogo a própria existência da união
e da ordem jurídica (Ibidem, p. 36).

Desde Abraham Lincoln, passando por Woodrow Wilson, na Primei-


ra Guerra, e Franklin D. Roosevelt, na Grande Depressão, até os dias atu-
ais, com George Bush (Bush se intitula o Commander in Chief of the Army)
depois dos atos terroristas de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos
usam constantemente a prerrogativa do Estado de Exceção.
A questão do Estado de Exceção ganha contornos mais paradoxais
quando se percebe a defesa ou não da inclusão desse fenômeno dentro
do ordenamento jurídico. Para Agamben, essa problemática espacial do
dentro ou fora do ordenamento é insuficiente para dar conta do fenômeno.
O Estado de Exceção é uma zona de indiferença na qual o dentro e o fora
se indeterminam. Esse problema da localização do Estado de Exceção é
essencial para o entendimento do assunto. Nesse sentido, a questão do
Estado de Necessidade pode contribuir para esse entendimento:

[…] a teoria do Estado de Exceção se resolve integralmente na do


status necessitatis, de modo que o juízo sobre a subsistência deste
esgota o problema da legitimidade daquele. Um estudo da estru-
tura e do significado do Estado de Exceção pressupõe, portanto,
uma análise do conceito jurídico de necessidade (Ibidem, p. 40).

Segundo a velha máxima, que afirma que onde há necessidade a lei


não vigora, a teoria da necessidade é uma teoria da exceção, pois num caso
particular a obrigação de respeitar a lei pode não acontecer. A necessidade

45
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

elimina, naquele caso particular, a observância da lei; no entanto, não a eli-


mina ou a suspende, de acordo com Agamben, seguindo Tomás de Aquino.

Em caso de necessidade, a vis obligandi da lei desaparece por-


que a finalidade da salus hominum vem, no caso, a faltar. É evi-
dente que não se trata aqui de um status, de uma situação da
ordem jurídica enquanto tal (o Estado de Exceção ou de Ne-
cessidade), mas sim, sempre, de um caso particular em que vis
e ratio da lei não se aplicam (Ibidem, p. 42).

Agamben faz uma diferenciação, portanto, entre o período medieval


e o moderno. No medievo, o Estado de Necessidade representava um fato
esporádico, uma abertura da lei a um fato externo. No período moderno,
inclui-se a exceção no próprio texto da lei, “criando uma zona de indiferen-
ciação em que fato e direito coincidem.” (Ibidem, p. 42). No Estado moder-
no, o Estado de Necessidade apresenta-se como o próprio Estado de Lei,
pois “transforma-se naquele em que a necessidade constitui, por assim
dizer, o fundamento último e a própria fonte da lei.” (Ibidem, p. 43). Nesse
caso, a necessidade é o momento de instauração da própria lei, como diz
Santi Romano. O problema, segundo Agamben, é onde a necessidade, um
procedimento extra ou antijurídico, transforma-se em direito e as normas
jurídicas se indeterminam como fato. Assim, segundo Agamben, o direito
acaba sendo eliminado de fato.
O problema da instauração de um Estado de Necessidade é justa-
mente saber em que circunstâncias esse momento chegou. É por isso que
certos autores afirmam que o caráter subjetivo da instauração de um Es-
tado de Necessidade é uma decisão revolucionária, que se usa de valores
políticos e éticos para romper com os velhos princípios.

A tentativa de resolver o Estado de Exceção no Estado de Ne-


cessidade choca-se, assim, com tantas e mais graves aporias
quanto o fenômeno que deveria explicar. Não só a necessidade
se reduz, em última instância, a uma decisão, como também
aquilo sobre o que ela decide é, na verdade, algo indecidível de
fato e de direito (Ibidem, p. 47).

O Estado de Exceção pode ser entendido também como uma lacuna


na lei, como acontece em tempos normais, nos quais o juiz é obrigado a
decidir em caso de lacunas no ordenamento:

A lacuna não é interna à lei, mas diz respeito à sua relação com
a realidade, à possibilidade mesma de sua aplicação. É como
se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabe-
lecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo,
só pudesse ser preenchido pelo Estado de Exceção, ou seja,
criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde
a lei, enquanto tal, permanece em vigor (Ibidem, p. 49).

46
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Carl Schmitt apresenta o Estado de Exceção no contexto da ditadura.


Ele faz uma distinção entre ditadura comissária, que visa restaurar a cons-
tituição vigente, e ditadura soberana, que abandona a ordem para um novo
momento. Segundo Agamben, a ênfase de Schmitt é sempre a de que o
Estado de Exceção mantém uma relação com o âmbito jurídico, algo dife-
rente da anarquia e do caos. O Estado de Exceção é, então, sempre essa re-
lação com a ordem jurídica, mesmo que se seja uma relação exterior a esta.

Diferente é a situação da ditadura soberana que não se limita


a suspender uma constituição vigente “com base num direi-
to nela contemplado e, por isso, ele mesmo constitucional”,
mas visa principalmente a criar um estado de coisas em que
se torne possível impor uma nova constituição. O operador
que permite ancorar o Estado de Exceção na ordem jurídica
é, nesse caso, a distinção entre poder constituinte e poder
constituído (Ibidem, p. 55).

O que Agamben quer demonstrar com a ditadura soberana é que ela


está presente tanto na República de Weimar quanto na ditadura do prole-
tariado, pois essas formas de exceção se encaixam na ditadura comissária.
O fato novo é que a doutrina da soberania não se encontra fora, mas tam-
bém não se encontra dentro da ordem jurídica, na medida em que ela não
pode ser considerada totalmente fora, pois pode decidir pela suspensão
completa da constituição.

Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a estrutura to-


pológica do Estado de Exceção, e apenas porque o soberano
que decide sobre a exceção é, na realidade, logicamente defini-
do por ela em seu ser é que ele pode também ser definido pelo
oximoro êxtase-pertencimento (Ibidem, p. 57).

Em Schmitt, temos que o Estado de Exceção separa a norma e sua


aplicação, para poder tornar esta possível. Uma zona de anomia surge para
poder dar conta da “normatização efetiva do real”. Um caso exemplar é a
questão dos atos do executivo chamados de “força de lei”:

Ele define um “estado de lei” em que, de um lado, a norma está


em vigor, mas não se aplica (não tem “força”) e em que, de ou-
tro lado, atos que não têm valor de lei adquirem sua “força”. No
caso extremo, pois a “força de lei” flutua como um elemento
indeterminado que pode ser reivindicado tanto pela autorida-
de estatal (agindo como ditadura comissária) quanto por uma
organização revolucionária (agindo como ditadura soberana).
O Estado de Exceção é um espaço anômico onde o que está em
jogo é uma força de lei sem lei (Ibidem, p. 61).

47
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Além disso, a dissociação entre norma e realidade, entre linguagem e


mundo, entre o virtual e o concreto separa, também, a norma de sua aplica-
ção. Para aplicar a norma, precisaríamos de uma exceção que suspendesse
a própria norma. O Estado de Exceção, aqui, é uma “força de lei” que rea-
liza uma norma cuja aplicação foi suspensa.

Considerações Finais

A análise de Agamben do Estado de Exceção mostra que este é a


ausência de leis, é um vazio, é uma interrupção do direito, e é por isso que
esse autor argumenta que o Estado de Exceção não pode ser considera-
do uma ditadura aos moldes romanos, que possuía leis e objetivos. O que
Agamben constata é que não tínhamos uma ditadura na Itália de Mussolini
e na Alemanha de Hitler, mas sim um Estado de Exceção com duas consti-
tuições: a escrita (a constituição Albertina e a constituição de Weimar) e a
não escrita, que autorizava o Estado de Exceção.
O problema gerado pelo vazio jurídico é o problema do Estado de
Exceção para Agamben, na medida em que se cria um estado de coisas
no qual público e privado, jurídico e não jurídico coincidem. Nesse Es-
tado, é possível fazer qualquer ato com o objetivo de salvar a res publica,
como era o caso do instituto romano criado para as situações de guerra
civil e tumultos em geral, o iustitium (interrupção do direito construída
como solstitium, “solstício”, “o sol para”), uma suspensão da administra-
ção da justiça e do direito:

Com efeito, a aporia só se esclarece quando se considera que,


à medida que se produzem, num vazio jurídico, os atos come-
tidos durante o iustitium são radicalmente subtraídos a toda
determinação jurídica. Do ponto de vista do direito, é possí-
vel classificar as ações humanas em atos legislativos, execu-
tivos e transgressivos. Mas, evidentemente, o magistrado ou
o simples particular que agem durante o iustitium não execu-
tam nem transgridem nenhuma lei e, sobretudo, também não
criam direitos (AGAMBEN, 2004, p. 78).

O místico do Estado de Exceção analisado por Agamben parece que


consegue descrever de forma satisfatória o problema e suas nuanças. A
questão, contudo, que parece que não está resolvida no texto de Agamben
é o caráter excessivo que ele dá para a presença do Estado de Exceção nas
democracias ocidentais. É de fato verdadeiro que presenciamos um Estado
de Exceção continuado desde as grandes guerras do século XX? O proble-
ma de abarcar o todo num conceito, o Estado de Exceção, é o fato de não
conseguir realmente aprendê-lo. Nossas sociedades complexas de hoje,

48
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

denominadas plurais, nas quais existem vários centros de decisão, e não


apenas um órgão central, dificultam essa análise pela via monocromática.
A decisão do soberano, hoje, sobre o Estado de Exceção como uma
medida para resolver conflitos de urgência, num mundo plural, pode con-
ter abusos que ultrapassam todos os limites do aceitável, mas é sempre
controlável e controlada por outros centros da sociedade, estando esta
cada vez mais informada e atualizada pelas medidas governamentais. A
opinião desses centros impede uma decisão completamente arbitrária do
uso do poder, e uma opinião que conta muito em nossos dias é o fator
econômico, que, pelo seu poder globalizado, impede medidas que colo-
quem em risco seus lucros e, por isso, a implementação de um Estado
de Exceção permanente. Quem realmente vence a batalha nesse conflito
entre poder político e econômico e quem controla este talvez sejam as
próprias nações vencedoras da Segunda Guerra. Portanto, esse é um pro-
blema de que devemos tratar.
Quando se analisa o Estado de Exceção, trata-se do caso interno dos
Estados, e não propriamente do caso de guerra externa. O Estado de Ex-
ceção é uma prerrogativa da ordem interna dos Estados para a resolução
de um conflito civil e que coloca a própria ordem e a constituição em uma
situação de perigo. Contudo, o Estado de Exceção pode ser instituído em
tempos de guerra externa para a manutenção da ordem interna. A guerra
externa é uma resolução que visa a vários fins; dentre eles, defender a so-
berania do Estado; promover uma guerra preventiva contra um agressor; e
ter objetivos econômicos, políticos, territoriais, entre outros. Nesse caso,
fica difícil delimitar uma zona de anomia, pois as próprias circunstâncias
históricas e decisões unilaterais ou ambiciosas facultam, a cada Estado,
em proporção ao seu poder, decidi-la. O Estado de Exceção, como nos diz
Agamben, está em íntima ligação com o ordenamento jurídico, com a nor-
ma e com sua aplicação. Além disso, a suspensão da norma ocorre por
meio de figuras tais como auctoritas, lei viva ou força de lei.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.


BALDI, Carlo. Estado de Sítio. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,
Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Ed.
UNB, 2004. p. 413-15.
MOUFFE, Chantal. O Regresso do Político. Lisboa: Gradiva, 1996.
SARTORI, Giovanni. Elementos de Teoría Política. Madrid, Espanha:
Alianza Editorial, 2012.

49
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

SCHMITT, Carl. Dictatorship: From the Beginnings of the Modern


Conception of Sovereignty to the Proletarian Class Struggle. Cambridge:
Polity Press, 2014.
______. O Conceito do Político – Teoria do Partisan. Belo Horizonte: Del
Rey, 2009.

50
4
A evolução do poder soberano no contexto europeu
- a transição para o poder moderno no Brasil

Lucimar Simon

No momento em que a democracia brasileira está ameaçada e cresce


o autoritarismo neofascista instalado no país desde 2019, examinamos a
instalação, evolução e transição do poder soberano europeu para o biopo-
der no Brasil. Focamos os conceitos de Biopolítica, de Foucault, e de Es-
tado de Exceção, de Agamben, na dimensão política-jurídica por meio da
análise evolutiva do poder soberano. Embora o momento político de tran-
sição tenha adquirido sentidos adversos, evidenciamos como os espaços
do poder soberano e moderno se tornam similares no contexto de transi-
ção para o poder biopolítico. Analisamos as narrativas históricas e relacio-
namos a representação político-jurídica com a forma pela qual a dimensão
do soberano foi substituída pela dimensão do biopolítico moderno.

Introdução

Michel Foucault, filósofo e pensador francês da segunda metade do


século XX, alcançou repercussão ampla por ter proposto abordagens ino-
vadoras para explicar o funcionamento de determinadas instituições, seus
sistemas de manutenção e as correntes de pensamento que as alicerçavam.
Sua obra se tornou referência, com abrangência em diversos campos do
conhecimento. Em seus estudos e investigações históricas, o filósofo tra-
tou diretamente de assuntos rizomáticos, como as relações de poder, as
questões filosóficas, históricas, sociológicas, políticas, biológicas, psiqui-
átricas, pedagógicas, buscando suas raízes referenciais no passado longín-
quo e ancorando-as na Contemporaneidade.
Para Foucault, uma das questões mais representativas na humani-
dade é o poder. Este se estrutura e se constitui como uma relação ou um
jogo de posições estratégicas que se ajustam permanentemente, de modo
a produzir condutas que se atualizam nessa mesma produção. Nesse sen-
tido, a Escola, a Família, a Igreja e a Medicina são consideradas elementos
disciplinares que ajudaram a consolidar os sujeitos em sua multiplicidade

51
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

e o próprio Estado Moderno como detentor ou controlador de dispositi-


vos reguladores das sociedades. Roberto Machado, introduzindo o livro de
Foucault, Microfísica do Poder, afirma que:
A questão do poder não é o mais velho desafio formulado pe-
las análises de Michel Foucault. Surgiu em determinado mo-
mento de suas pesquisas, assinalando uma reformulação de
objetivos teóricos e políticos que, se não estavam ausentes dos
primeiros livros, ao menos não eram explicitamente coloca-
dos, complementando o exercício de uma arqueologia do sa-
ber pelo projeto de uma genealogia do poder (Idem, 2019, p. 7).

Podemos perceber que o filósofo, em seus escritos, não acredita que


o poder e seus mecanismos e dispositivos de controle sejam originários
de uma única fonte, como, por exemplo, o Estado, a Família, a Igreja ou
outras tantas instituições de controle, mas que são oriundos de diversas
fontes que produzem e alimentam mecanismos e dispositivos que exer-
cem, em várias direções, diversos tipos de forças que são centralizadas no
controle do Estado. Esse exercício também não é necessariamente opres-
sor, podendo estar a serviço, por exemplo, da criação, educação, religião,
Política, cultura, Medicina, Psicologia, Psiquiatria, Família, entre outros
eixos. “O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares.” (FOUCAULT, 2019a, p. 101).
Para Foucault, todas as instituições que se apropriam dos mecanismos
e dispositivos de controle são “instituições de sequestro”, como é o caso do
hospital, do quartel, do internato, da escola, do convento e da prisão. E essas
instituições se alternam no exercício e prática do poder. “Sem dúvida, deve-
mos ser nominalistas: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica complexa numa sociedade determinada.” (Ibidem, p. 101).
O texto “História da Sexualidade – vol. 1: a vontade de saber” é um
dos mais interessantes no que diz respeito à história do poder, e nele
acompanhamos Foucault em um recuo ao Estado moderno europeu, pe-
ríodo histórico em que o governo era centralizado na figura do monarca
que detinha o poder sobre a vida e morte de seus súditos, e a desigualdade
social contribuía para a estabilidade dessa forma de governo, concomitan-
temente para o controle e a exploração dos mais pobres para a manutenção
dos privilégios dos estamentos da nobreza e do clero.
Na Europa, durante o processo de transição do período medieval para
a modernidade foram diversos os fatores que contribuíram para a centra-
lização do poder e uma diversificação em seu exercício; dentre eles, o re-
vigoramento das cidades e do comércio e, com ele, o nascimento de uma
nova classe social, a burguesia. “Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz
meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana.” (Ibidem, p. 7).

52
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O poder que era exercido pelo soberano continua existindo e com


complexidades que devem ser consideradas após a retomada do desenvol-
vimento comercial e uma significativa modernização das relações sociais,
econômicas, culturais, políticas e religiosas. As ciências médicas, após
a grande peste e outras doenças, ganham notoriedade e passam a ditar
regras de condutas sociais, associando o ser humano, sobretudo, aos as-
pectos ligados ao corpo e à mente, como objeto que deve ser controlado,
mensurado e vigiado. “O que não é regulado para a geração ou por ela
transfigurado não possui eira nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao
mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio.” (Ibidem, p. 8).
A partir dessas necessidades, foram criadas inúmeras formas e me-
didas de controle sobre a vida cotidiana do indivíduo, com estudo de esta-
tísticas, expectativa de vida, natalidade, mortalidade, saneamento, alimen-
tação. Desse modo, sobre esses pretextos se estabelecem investigações,
estudos e práticas de saberes que são aplicados sobre o sujeito e seu corpo
em vários aspectos, sobretudo em relação à sua sexualidade, impondo-lhe,
quando conveniente, a fala por meio da confissão ou da reclusão, do silên-
cio por meio da punição. Em Foucault:

Isso seria próprio da repressão e é o que a distingue das inter-


dições mantidas pela simples lei penal: a repressão funciona,
decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também
como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, conse-
quentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada
para dizer, nem para ver, nem para saber. Assim marcharia
com sua lógica capenga a hipocrisia de nossas sociedades bur-
guesas. Porém, forçada a algumas concessões (Ibidem, p. 8).

Existem muitas questões que podem vir à tona com as pesquisas a


partir do que nos apresenta Michel Foucault não apenas em sua trilogia
sobre a História da Sexualidade, mas também em outros tantos escritos
que podem ser abordados para uma construção teórica em assuntos que
são pertinentes ao momento histórico em que vivemos. Às tantas questões
que foram colocadas com inquietante insistência, podemos conceber que
forneceram, fornecem e fornecerão perguntas e respostas inigualáveis que
poderão concentrar, em futuro próximo, todas as atenções. Estamos erra-
dos nos inquietando assim? Mesmo com a barriga cheia, devemos chorar?
Devemos nos posicionar? Estamos nos posicionando?
A partir do que é proposto por Foucault sobre o poder e suas relações
com as classes sociais, revisitamos o tempo histórico investigado por ele
com o objetivo de produzir, por meio de suas investigações, uma síntese
linear do surgimento do poder soberano e sua evolução no mundo euro-
peu, consequentemente com sua interligação com outros continentes, es-
pecificamente o americano, com foco nas relações políticas e econômicas

53
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

entre Portugal e Brasil. Nas relações entre o Estado monárquico e o terri-


tório recém-“descoberto”, que foi constituído como colônia, reino unido,
império e convertido em república, abordaremos como se deu a instalação
e atuação do poder soberano e a passagem deste para o poder moderno.

O poder soberano e a Idade Média

Trabalhar com os espectros do passado e, principalmente, com o poder


soberano para uma apreciação reflexiva no presente é trazer de volta um mo-
mento histórico controverso, é resgatar costumes, crenças, dogmas, tradições,
religiosidades; é, também, ressuscitar questões importantes não somente
pelas controvérsias que o Antigo Regime remonta, mas também pelo fascí-
nio que ele ainda exerce sobre os seus defensores mais aguerridos, intensos e
aferrados. Os historiadores que se debruçaram sobre os documentos da Idade
Média e do Antigo Regime de diversos países o fizeram com paixão e, por isso,
esses períodos históricos podem ser revisitados e conhecidos ainda hoje.
Os medievalistas e modernistas que trabalharam o lume medieval e a
modernidade que dele surgiu interpretaram e registraram com mestria esse
período histórico fascinante, como é o caso, por exemplo, de Jacques Le Goff,
Marc Bloch e Philippe Wolff. O poder do soberano ganha visibilidade nas pes-
quisas de grandes historiadores políticos como Eric J. Hobsbawm e o inglês
Perry Anderson, que, em seu clássico livro Linhagens do Estado Absolutista,
revela que: “A história do absolutismo tem múltiplos e sobrepostos pontos de
partida e pontos finais díspares e escalonados. A sua unidade subjacente é real
e profunda, mas não é de um contínuo linear.” (Idem, 1985, p. 11).
No mundo medieval, o sentido de tempo cronológico e linear per-
petua-se entre uma elite culta formada pelos clérigos e totalmente sob
um referencial religioso, impulsionado pelo nascimento de Cristo e, desse
momento em diante, o que norteia a humanidade, agora cristã, é a possi-
bilidade de vislumbrar o Juízo Final. A divisão social logo se torna clara,
e clérigos, nobres e trabalhadores formam essa pirâmide de desigualdades
sociais por aproximadamente dez séculos. Sobre a Idade Média, o historia-
dor medievalista Jacques Le Goff (1989) afirma:

O nascimento dos Estados, no final do período por nós anali-


sado, desenvolvendo a burocracia e a especialização das práti-
cas da justiça e das finanças, fez surgir novos tipos de homens:
os juízes e os homens de justiça, os oficiais senhoriais, reais
e municipais. Mas, nessa altura, já se está no limiar de uma
outra Idade Média a que, habitualmente, se chama Renasci-
mento ou Era Moderna. Um dos aspectos essenciais do grande
progresso do Ocidente após o ano mil é o desenvolvimento ur-
bano, que atinge o seu apogeu no século XIII. A cidade modi-
fica o homem medieval. Restringe o seu círculo familiar, mas

54
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

alarga a rede de comunidades em que ele participa; no centro


das suas preocupações materiais, coloca o dinheiro, alarga os
seus horizontes, propõe-lhe meios de se instruir e de se culti-
var, proporciona-lhe um novo universo lúdico (Ibidem, p. 19).

Foi durante um longo processo histórico, combinando elementos da


cultura romana e germânica, que esses que estavam ligados por um elo co-
mum, o cristianismo, consolidaram o mundo medieval europeu ocidental,
alicerçado em um modo de organização político e econômico conhecido
como feudalismo. “O feudalismo como modo de produção definia-se por
uma unidade orgânica de economia e dominação política, paradoxalmente
distribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda a formação
social.” (ANDERSON, 1985, p. 19).
A Idade Média surge devido a uma série de acontecimentos: dentre
eles, o enfraquecimento político, econômico e militar, além das invasões dos
povos germânicos. A queda do Império Romano é o marco inicial desse perí-
odo histórico. Avançando um pouco mais na História, surge o medievo euro-
peu, período caracterizado por um processo de ruralização e descentraliza-
ção do poder, com enfraquecimento do poder real e fortalecimento do poder
dos nobres, condes, duques e o surgimento da figura do senhor feudal, que
foi uma minimização real em dimensões demográficas em relação ao con-
trole que exercia o rei. O período feudal é uma compartimentação do poder
entre diversos membros da nobreza e o próprio rei. Na periodização linear
da História, a Idade Média está compreendida entre os anos de 476-1453 d.C.

O poder soberano e a Idade Moderna

A passagem do milênio medieval para a Idade Moderna é marcada por


grandes transformações na Europa feudal ainda no início do século XI. A ex-
pansão das áreas cultiváveis e o surgimento de novas técnicas na produção
de alimentos propiciaram excedente na produção e, consequentemente, o
aumento populacional, pois uma vez que as condições alimentícias melho-
raram, a expectativa de vida aumentou. Essas mudanças criaram condições
para que grupos de pessoas migrassem do campo para as pequenas vilas e
cidades. “O poder de classe dos senhores feudais estava, assim, diretamente
em risco com o desaparecimento gradual da servidão.” (Ibidem, p. 19).
Com o aumento da oferta de alimentos, muitos trabalhadores do
campo que dominavam outros ofícios migraram para as cidades em bus-
ca de outros meios de vida, realizando, dentre outros trabalhos, os de ar-
tesão, sapateiro, ferreiro, carpinteiro. Outros se tornaram comerciantes e
comercializavam o que os primeiros produziam, além dos excedentes da
agricultura, que eram trocados por artigos produzidos nas cidades. Isso
estimulou o comércio e a vida urbana, levando a Europa ao revigoramento

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do comércio e das cidades. “O resultado disso foi um deslocamento da


coerção político-legal no sentido ascendente em direção à cúpula centrali-
zada e militarizada – o Estado absolutista”. (Ibidem, p. 19).
Esse deslocamento da força de trabalho do campo para os núcleos
urbanos causou um desequilíbrio no centro de poder, o feudo, ou senhorio,
como é referida a unidade produtiva de propriedade do senhor feudal. Esse
processo impulsiona uma mudança no comportamento político e econô-
mico, porque transfere para outro núcleo de pessoas parte significativa
do poder. “Simultaneamente, porém, a aristocracia tinha que se adaptar a
um segundo antagonista: a burguesia mercantil.” (Ibidem, p. 20). Sobre isso,
Adriano Cerqueira e Marcos Lopes (1995) dizem que:

Em seu cotidiano, as sociedades medievais foram indiferentes


à cronologia; de resto, são incapazes de medir o tempo com
rigor dada a própria falta de instrumentos adequados para este
fim. Mas, tudo irá se transformar muito rapidamente no con-
texto da transição do feudalismo para o capitalismo. A partir
do advento das sociedades mercantis dos séculos XIV e XV,
como algumas cidades-Estados italianas, desenvolve-se o sen-
tido de um tempo concreto e linear. O tempo não é mais regi-
do pelas estações, mas pelos dias das partidas dos comboios
marítimos de Veneza rumo ao Oriente, fixadas de antemão e
de maneira muito precisa. Verifica-se nesse período uma revi-
ravolta não apenas na noção do tempo, mas nas próprias for-
mas de seu controle social (Ibidem, p. 12).

Todo o processo de revigoramento do comércio e das cidades com a


incursão de novas rotas comerciais entre a Europa Ocidental e o Oriente
projetou, no mundo europeu, uma série de transformações importantes
para todos os contextos sociais, econômicos, culturais, políticos e religio-
sos. Os aparecimentos das feiras comerciais e o surgimento dos bancos
e casas de câmbio impulsionaram o contato com o Oriente. Mercadores
circulavam por toda a Europa levando e trazendo mercadorias para todos
os territórios. “A cidade medieval fora capaz de se desenvolver porque a
dispersão hierárquica de soberanias no modo de produção feudal liberta
pela primeira vez as economias urbanas da dominação direta de uma clas-
se dirigente rural.” (ANDERSON, 1985, p. 20).
A burguesia, classe social que surge com a ampliação da atividade
comercial, é composta por grupos como banqueiros, comerciantes, donos
de navios que enriqueciam cada vez mais com o comércio. Em Foucault,
vimos que: “A burguesia começou considerando que o seu próprio sexo era
coisa importante, frágil tesouro, segredo de conhecimento indispensável.”
(Idem, 2019a, p. 131). “Diluída no nível da aldeia, ela tornou-se concentrada
no nível “nacional”. O resultado foi um aparelho reforçado do poder real,
cuja função política permanente era a repressão das massas camponesas e
plebeias na base da hierarquia social.” (ANDERSON, 1985, p. 19).

56
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

As transformações ocorridas a partir do século XI causaram um renas-


cimento cultural em toda a Europa. A cidade era o lugar onde viviam os gran-
des comerciantes, e, ao lado deles, estavam “os juristas e burgueses”, nobres
ou não, que viviam das rendas de suas propriedades territoriais. Philippe Wol-
ff (1998) aponta que: “Entre os mercadores não existia especialização. Acres-
centamos que não havia limite bem definido entre comércio no atacado e no
varejo. Muitos mercadores faziam seus próprios transportes. Os mercadores
eram, portanto, a categoria melhor (sic) representada.” (Ibidem, p. 216).
Foi no processo de formação dos Estados modernos que ocorreu a
intensificação das rotas comerciais e o fortalecimento do poder do Estado
com a centralização na figura do monarca. Com o comércio revigorado,
os reis, até então enfraquecidos pela descentralização do poder, puderam
aumentar a arrecadação de impostos e obter mais recursos para fortalece-
rem seus exércitos e contratar funcionários para melhor administrarem
o reino. Assim, os reis foram recuperando seu prestígio e impondo sua
autoridade sobre seus súditos. Na Europa, esse processo ocorreu entre os
séculos XI e XV e ficou conhecido como processo de formação do Estado
moderno. Para Anderson (1985):

A longa crise da economia e da sociedade europeia durante


os séculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do
modo de produção feudal no último período da Idade Média.
Qual foi o resultado político final das convulsões continen-
tais dessa época? No curso do século XVI, o Estado absolu-
tista emergiu no Ocidente. As monarquias centralizadas da
França, Inglaterra, Portugal e Espanha representavam uma
ruptura decisiva com a soberania piramidal e parcelada das
formações sociais medievais, com seus sistemas de proprie-
dade e de vassalagem (Ibidem, p. 15).

Parte da nobreza, do clero e da burguesia, sendo esta última gran-


de financiadora dos projetos do rei, apoiou a centralização do poder no
monarca soberano. Cada um dos grupos sociais tinha seus interesses
particulares para apoiar o retorno de uma monarquia centralizada e sobera-
na. A nobreza, desprestigiada, via a oportunidade de conservar antigos pri-
vilégios. O clero, por sua vez, também ambicionava manter e aumentar suas
posses e privilégios eclesiásticos e institucionais. A burguesia, por sua vez,
enxergava na monarquia o sucesso para seus empreendimentos comerciais,
e, por meio de empréstimos, doações ou pela troca de cargos importantes na
administração do reino dispensaram todo seu apoio ao rei. O que temos é
um ajuste entre as classes superiores. Aponta Anderson (1985):

A controvérsia sobre a natureza histórica destas monarquias


tem persistido desde que Engels, numa máxima famosa, de-
clarou-as produto de um equilíbrio de classes entre a antiga

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nobreza feudal e a nova burguesia urbana: “Excepcionalmen-


te, contudo, há períodos em que as classes se equilibram, de
tal modo que o poder do Estado, pretenso mediador, adquire
momentaneamente um certo grau de autonomia em relação a
elas. Assim aconteceu com a monarquia absoluta dos séculos
XVII e XVIII, que manteve o equilíbrio entre a nobreza e a
classe dos burgueses.” (Ibidem, p. 15).

Deixamos a Idade Média, deslizamos para a direita na linha do tem-


po, avançamos sobre a cronologia e o espaço demográfico e teremos as
monarquias europeias centralizadas ancoradas na modernidade. Com o
apoio da classe clerical, nobreza e burguesa, entre os séculos XVI e XVIII,
as monarquias europeias centralizadas se tornaram absolutistas. Nesse
regime político que se caracterizava pela concentração de poder no rei,
vemos que eles decidiam na política, interferiam na religião, declaravam
guerras a outros reinos, criavam leis e ditavam sentenças judiciais. “Pare-
ce que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele
nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial figuraria no brasão de
nossa sexualidade contida, muda, hipócrita.” (FOUCAULT, 2019b, p. 7). O
poder do monarca soberano tinha sua limitação apenas pelos costumes e
tradições. Alicerçado em Marx, Anderson (1985) diz:

Marx, por seu lado, afirmou repetidamente que as estruturas


administrativas dos novos Estados absolutistas eram um ins-
trumento tipicamente burguês. “Sob a monarquia absoluta”,
escreveu, “a burocracia era apenas o meio de preparar o do-
mínio de classe da burguesia.” Em outra passagem, Marx de-
clarava, “O poder do Estado centralizado, com os seus órgãos
onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero
e magistratura – órgãos forjados segundo o plano de uma di-
visão do trabalho sistemática e hierárquica – tem sua origem
nos tempos da monarquia absoluta, quando serviu à sociedade
de classe média nascente, como arma poderosa nas suas lutas
contra o feudalismo (Ibidem, p. 16).

A partir do século XVI, monarquias europeias absolutistas, com o


objetivo de aumentar as relações comerciais, seus lucros e domínios ter-
ritoriais, adotaram um conjunto de medidas econômicas chamadas de
mercantilismo. Tendo como principais características o metalismo, o pro-
tecionismo, o exclusivo colonial e a balança comercial favorável, o mer-
cantilismo foi balizador econômico de Estados absolutistas como França,
Inglaterra, Portugal e Espanha, considerados os primeiros Estados moder-
nos europeus. Para Anderson:

As funções econômicas do absolutismo não se esgotavam, entre-


tanto, no seu sistema tributário e de funcionalismo. O mercan-
tilismo foi a doutrina dominante da época e apresenta a mesma

58
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ambiguidade da burocracia destinada a impô-lo, com a mesma


regressão subjacente a um protótipo anterior. O mercantilismo
requeria, indubitavelmente, a supressão de barreiras particulares
no interior da monarquia nacional e empenhava-se em criar um
mercado interno unificado para a produção de mercadorias. Com
o objetivo de aumentar o poder do Estado diante dos outras Es-
tados, encorajava a exportação de mercadorias, ao mesmo tempo
em que que proibia a exportação de ouro e prata e de moeda, na
crença de que existia uma quantidade fixa de comércio e riqueza
no mundo. Com efeito, o mercantilismo representava as concep-
ções de uma classe dominante (Ibidem, p. 35).

Com práticas mercantilistas afinadas, as monarquias absolutistas


no final do século XV e início do XVI começaram as suas incursões para
desbravarem os mares e os oceanos. Nesse momento, desponta o pionei-
rismo do Estado Português, que, financiando juntamente com a burguesia
as Grandes Navegações em busca de uma rota alternativa para chegar às
especiarias orientais e aumentar seus ganhos no lucrativo comércio entre
o Oriente e Ocidente, em 22 de abril do ano de 1500 uniu a sua história à
do Brasil. Onde começa a história do Brasil? A resposta converge com a
ideia que defendemos neste artigo. Para os historiadores Arno Wehling
e Maria J. Wehling: “Atualmente, a tendência majoritária é a de situar o
Descobrimento do Brasil no vasto processo da expansão europeia. Proces-
so que não é dessa ou daquela nacionalidade, deste ou daquele Estado, mas
que envolveu uma complexa trama de relações que se estendia por toda
Europa, ocidental e central.” (Idem, 1999, p. 19-20).

O poder soberano e o Brasil

Para entendermos os princípios relacionais entre o poder soberano e


o Brasil, temos que recuar ao processo de formação do mundo medieval eu-
ropeu, o que já fizemos nos tópicos anteriores. Avançamos para os Estados
modernos constituídos e prontos para se lançar aos oceanos e conquistar
novos territórios, o que apontamos com o início das práticas mercantilis-
tas e as disputas entre os Estado europeus por acúmulo de riquezas (ouro
e prata) e por maior participação no lucrativo comércio entre Ocidente e
Oriente. “O peso específico do capital mercantil manufatureiro no seio da
maioria das formações sociais ocidentais aumentara ao logo desse século,
que presenciou a segunda grande onda de expansão comercial e colonial
ultramarina.” (ANDERSON, 1985, p. 56).
Portugal e Espanha, por serem países situados às costas do ocea-
no Atlântico, já estavam avançados nas técnicas de navegação. Na corrida
por uma rota alternativa para comercializar com as cidades indianas, a
península Ibérica saiu na frente. Portugal e Espanha foram os pioneiros no

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

processo globalizante que foram as Grandes Navegações nos séculos XV e


XVI. Foram os ciclos dessas navegações que uniram o velho continente eu-
ropeu aos novíssimos continentes do mundo e, consequentemente, uniram
Portugal ao Brasil, primeiramente como terras de Portugal, depois como
Colônia Portuguesa e, mais tarde, como Reino Unido. Sobre a colonização,
Caio Prado Júnior (2006) afirma que:

A colonização do Brasil constituiu para Portugal um proble-


ma de difícil solução. Com sua população com pouco mais
de um milhão de habitantes e suas demais conquistas ultra-
marinas da África e Ásia de que cuidar, pouco lhe sobrava,
em gente e cabedais, para dedicar ao ocasional achado de
Cabral (Ibidem, p. 11).

A relação do Brasil com o poder soberano do Estado moderno ini-


ciou-se no contexto das Grandes Navegações, quando a esquadra cabralina
aportou no território brasileiro em 1500. A saída dos Estados para a con-
quista de novas terras é uma etapa do processo que podemos chamar de
“globalização primitiva”. Esta consiste na descoberta e domínio de novos
territórios para a exploração, ocupação e formação de novos mercados de
produção e consumo com objetivos econômicos, políticos, culturais, so-
ciais e religiosos predeterminados. É o processo que em dimensões terri-
toriais, geográficas e demográficas Arno Wehling e Maria José Wehling
(1999) chamam inicialmente de globalidades, em que:

Uma dessas duas globalidades em que os microcosmos refe-


rendam o macrocosmo é de maior amplitude e corresponderia,
grosso modo, às primeiras épocas da estruturação do que Im-
manuel Wallerstein denominou de sistema mundial da Idade
Moderna, inicialmente restrito à Europa centro-ocidental. A
outra das globalidades, articulada sistematicamente e na qual
as visões microscópicas ganham lógica quando integradas à
visão macroscópica, é de menor amplitude. Ela nos remete à
“colônia”, que os autores entendem como uma contínua “for-
mação”, e não como um dado prévio absoluto. Em princípio,
ao admitirem que “as circunstâncias brasileiras, pela própria
condição colonial foram extremamente sensíveis às oscilações
conjunturais portuguesa e internacional.” (Ibidem, p. 2).

A colonização portuguesa na América, no território onde hoje é o


Brasil, trouxe com ela elementos do Estado português que foram prati-
cados pelos colonizadores e impostos aos nativos que habitavam estas
terras. Como foi a colonização brasileira? Não podemos dizer que tenha
havido uma reflexão sobre a formação da colonização brasileira, porque,
até o início do século XVIII prenominava a ideia de que a colônia era um
apêndice da metrópole. “A formação colonial brasileira entre os séculos

60
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

XVI e XIX é uma realidade histórica que chegou até nós por sucessivas
interpretações, de modo que não podemos ter pretensão de conhecê-la
como realmente foi.” (Ibidem, p. 13).
Com o passar dos anos e as transformações que ocorriam no mun-
do, não só a Colônia Portuguesa na América como várias outras colônias
europeias pelo mundo foram criando e esboçando gradativamente uma
identidade nacional. As primeiras produções identitárias relevantes sobre
o período colonial brasileiro surgem já dentro do Segundo Reinado. “A
primeira concepção efetivamente completa da formação colonial apareceu
nas décadas de 1840 e 1850, com o desenvolvimento dos estudos brasileiros
no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a publicação da História
Geral do Brasil, de Varnhagen, em 1854.” (Ibidem, p. 13).
O poder soberano é instalado no Brasil no contexto histórico de pro-
dução de novas mentalidades advindas justamente da passagem do mundo
medieval para o moderno. O próprio pensamento europeu se confundia com
a amplitude e velocidade das transformações. O processo de passagem do
medievo para o moderno permitiu a convivência, nas mesmas épocas, tanto
do pensamento medieval quanto do pensamento moderno. “No Brasil colo-
nial, esse processo não apenas se repetiu; a mentalidade medieval e a men-
talidade moderna mesclando-se nos colonizadores; como se tornou ainda
mais complexo com a mistura de outras culturas, como as indígenas e as
negras, pertencentes a tempos culturais ainda mais diversos.” (Ibidem, p. 22).
O poder soberano que chegou ao Brasil no período colonial veio por
representação. Os primeiros portugueses que chegaram, fincaram a cruz,
hastearam a bandeira para demonstrar que naquelas terras estava presente
o poder do soberano português e da Santa Igreja. Mais tarde, ainda por meio
da representação, instalaram feitorias e enviaram expedições exploradoras.
Para o processo de colonização, o território foi dividido em capitanias he-
reditárias e entregues a homens de confiança do soberano. “As capitanias
foram doadas a donatários que, em geral, pertenciam à nobreza de serviço
já associada aos empreendimentos governamentais na Ásia.” (Ibidem, p. 68).
Esses homens podiam agir em nome do soberano: cobrar impostos
em rios e portos; tirar para si uma porcentagem no negócio do pau-brasil;
julgar os habitantes da capitania, podendo, inclusive, condenar à morte
índios, negros e homens livres pobres; conceder lotes de terras que deve-
riam ser cultivados pelos colonos. Desta forma, vemos o exercício do poder
soberano representado pelo capitão-donatário. Depois, a administração do
território foi entregue à figura do Governador-Geral, homem forte e de ex-
trema confiança do soberano. Foram três, respectivamente: Tomé de Sou-
sa, Duarte da Costa e Mem de Sá.

61
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

No final de 1540, o rei dom João III estabeleceu o Governo-


-Geral, fato que foi interpretado como reconhecimento do fra-
casso das capitanias e até a sua extinção. Não é verdade. Em
1548, quando dom João III criou o Governo-Geral com sede
na Bahia, o objetivo foi coordenar a colonização, dando apoio
aos donatários, mas não extinguindo o sistema. O panorama
do Brasil português em 1549 era modesto. Núcleos dispersos
e colonização, pequena produção açucareira em Pernambu-
co e ainda menor em São Vicente e Espírito Santo, além da
exploração do pau-brasil nas feitorias. Este era o quadro da
Colônia quando da criação do Governo-Geral. Era um começo
precário, em que a ação do Estado propunha-se a consolidar,
ampliar e defender (WEHLING; WEHLING, 1999, p. 68).

Os registros históricos demonstram um incipiente desenvolvimento


da Colônia Portuguesa na América. Havia uma pequena mobilidade so-
cial entre as populações de origem europeia. A estratificação social já era
percebida em algumas cidades do Nordeste. A sociedade era composta
por: proprietários de engenhos, fazendeiros de cana e pecuaristas, altos
funcionários do Estado, comerciantes, funcionários médios. O restante da
população compreendia os homens livres pobres, artesãos, funcionários
públicos remediados, vaqueiros, lavradores e os escravos (negros e indíge-
nas). “Do ponto de vista político e administrativo, em 1600 a estrutura do
governo era a mesma implantada por Tomé de Sousa. Apenas os órgãos
públicos cresceram, e o número de funcionários aumentou.” (Ibidem, p. 98.)
Durante os séculos XVII e XVIII as transformações ocorridas na Eu-
ropa refletiram no Brasil. Antes da União Ibérica, ocorrida entre 1580-1640,
Portugal tinha uma boa relação com os Países Baixos, principalmente com
os holandeses, que financiavam a produção de açúcar nas colônias portugue-
sas. Com o controle espanhol sobre o trono português, as velhas rixas entre
espanhóis e holandeses reacenderam e dificultaram as relações dantes esta-
belecidas para o desenvolvimento da colônia na América. “O controle da eco-
nomia açucareira nordestina não constituiu, entretanto, na causa única das
invasões holandesas”. Juntos, portugueses e espanhóis resistiram aos primei-
ros ataques. “Embora sabendo da iminência de novo ataque, portugueses e
espanhóis não puderam organizar uma defesa eficiente.” (Ibidem, p. 127).
Restaurando-se o trono português europeu, logo se reestabelecem as
relações nas colônias. Mas, o Brasil não era o mesmo, pois a administração ho-
landesa permitiu um desenvolvimento atípico da governabilidade portuguesa.
O século XVIII representou, para o Brasil, a época da consolidação colonial.
“A descoberta do ouro e diamantes no centro do país articulou internamente
a colonização, transformando um arquipélago de colônias isoladas em conti-
nente, ainda que apenas relativamente integrado.” (Ibidem, p. 149).
A partir da segunda metade do século XVIII, a administração pom-
balina veio para a Colônia para preparar o Brasil para o início do século

62
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

XIX. O que aconteceu na administração de Pombal foi a preparação da


Colônia para a implantação do poder soberano português pelo próprio So-
berano. O desenvolvimento da manufatura e a criação de algumas leis que
se alinham ao trono português é o marco inicial do processo que se seguiu
a partir de 1808 com a vinda da Família Real para o Brasil.

No governo de Pombal (1750-1777), foram fomentados os mo-


nopólios comerciais e as manufaturas, tudo em boa técnica
mercantilista. No plano jurídico, foi promulgada, em 1769, a
“lei da boa razão”, que visava desmontar a ordem jurídica exis-
tente, submetendo todas as leis e costumes vigentes no país ao
crivo da “boa razão”, naturalmente interpretada pelos juristas
leais ao regime (Ibidem, p. 155).

O plano nacional estava interligado ao internacional. Nas colô-


nias portuguesas e espanholas, eram constantes os atritos em regiões
de fronteiras, e os tronos, no plano internacional, não se faziam indi-
ferentes aos avanços limítrofes. “No século XVIII, Portugal e Espanha
continuaram seu tradicional conflito. A desconfiança e o temor mútuo
não eram provocados por problemas europeus, mas pelas rivalidades
coloniais, pois tanto portugueses como espanhóis aprofundavam a pe-
netração na América.” (Ibidem, p. 187).
O sistema colonial engendrado no Brasil consistia, sobretudo e
exclusivamente, na exploração direta e indireta da Metrópole (Portugal)
sobre a Colônia (Brasil). Um sistema complexo que ainda hoje suscita
grandes debates entre os especialistas nesse assunto. Acreditamos que
a projeção apresentada pelos historiadores Arno Wehling e Maria José
Wehling (1999) seja um balizador do que era e como funcionava o sistema
colonial entre Portugal e Brasil.

A economia colonial tem alguns condicionamentos que mar-


caram profundamente não só a vida brasileira entre os sécu-
los XVI e XIX, como a história posterior do país, mesmo de-
pois da Independência. Foram traços estruturais e seculares
a drenagem de renda para o exterior, o latifúndio, o trabalho
escravo, a onipresença do Estado mercantilista, a lenta trans-
formação tecnológica e a resistência a inovações. Originados
na Colônia, projetaram-se, em seus efeitos, até o século XX.
As interpretações sobre o sistema colonial e o mercantilismo
podem ser classificadas em dois grandes grupos, o daqueles
que privilegiam seus fundamentos econômicos e os dos que os
veem como uma consequência da política de poder dos Esta-
dos absolutistas. Em qualquer uma das vertentes explicativas
é evidente que a Colônia existiu para atender aos interesses
da Metrópole. A Colônia existiu em função da Metrópole e do
mercado europeu (Ibidem, p. 193).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O Brasil se inseriu no sistema colonial, em uma economia mundial


globalizada, a partir do século XVI, durante as Grandes Navegações. Esse
sistema colonial que foi se aperfeiçoando e se estruturando ao longo de mais
de três séculos. O Brasil viveu desde o descobrimento, em 1500, e o início
do processo colonizador, a partir de 1532, sob o poder soberano represen-
tado por capitães donatários, governadores-gerais, altos funcionários dos
governos e por “homens bons” que governaram e controlaram a população,
preparando-a para a chegada do Soberano Português. Entretanto;

A questão do poder na Colônia não deve ser confundida com a


ação do Estado. Existiam diversas fontes de poder, bem como
diferentes agentes desse poder, tanto na esfera pública, como
na esfera privada, sobretudo num país onde as distâncias e os
obstáculos físicos constituíram barreiras adicionais para as
ações centralizadoras do governo. Para construir, de forma
aproximada, o que foram o poder e o mundo na Colônia é pre-
ciso considerar essas múltiplas fontes e suas respectivas agên-
cias. Não há consenso entre os especialistas sobre a questão do
poder na Colônia (Ibidem, p. 309).

A questão posta pelos historiadores converge com o pensamento de


Michel Foucault. O poder não está em uma única fonte e não emana dela.
No Brasil, essa variação é bem evidente e só começa a ser canalizada para o
exercício total pelo soberano, como já mencionamos com a administração
do Marquês de Pombal. Não queremos dizer que foram minadas ou estran-
guladas as outras fontes de poder, mas foi somente com Pombal, influen-
ciado pelo despotismo esclarecido e por um racionalismo, que se iniciou
um planejamento sistemático de exercício do poder soberano no período
colonial. São perceptíveis as relações de poder, porque:
A administração judiciária ficava concentrada em algumas ci-
dades. No interior, a justiça real era distante ou inexistente.
Isto facilitava, naturalmente, o mandonismo local e as várias
formas de justiça privadas de que as crônicas coloniais estão
repletas.” (Ibidem, p. 193).
Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba for-
mando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as ins-
tituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulve-
rização dos pontos de resistência atravessa as estratificações
sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação
estratégica desses pontos de resistência que torna possível
uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa
sobre a integração institucional das relações de poder (FOU-
CAULT, 2019b, p. 105).

Neste resumo do Brasil Colonial, vemos que após três séculos per-
manecem as características de um país de muitos contrastes e situações
extremas, com mercado incipiente, pluralidade religiosa, distintas classes

64
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

sociais e fontes de poder. O Brasil entra no século XIX e atravessa o século


XX com rupturas e permanências marcadas por datas e fatos que concor-
reram para a construção do país no qual habitamos e pelo qual lutamos
para sobreviver em 2020, no século XXI. E que país é esse?

O poder soberano no Brasil

Em 1808, o principal representante do poder soberano chega ao Brasil.


A Família Real, acompanhada pela corte portuguesa, aportou nas terras bra-
sileiras em 22 de janeiro de 1808. Sua vinda para o Brasil foi uma manobra
inédita do Príncipe Regente, D. João, para garantir que Portugal continuasse
independente quando foi ameaçado de invasão por Napoleão Bonaparte no
contexto da Revolução Francesa. Para Eric Hobsbawm, “Em termos de geo-
grafia política, a Revolução Francesa pôs fim à Idade Média.” (Idem, 1977, p.
106). E, nesse mundo transformado por revoluções sociais nas metrópoles e
processos de independência nas colônias, entramos no século XIX.
Não prolongaremos este tópico, uma vez que não é a História em sua
totalidade o assunto deste artigo, mas é de nossa intenção, sim, deixar aces-
sível a compreensão dos acontecimentos que nos trouxeram da Antiguidade
europeia ao Brasil imperial. Impulsionada pelos ideais iluministas, a Revo-
lução Francesa, iniciada em 1789 com a tomada da Bastilha, leva ao topo
do poder soberano francês Napoleão Bonaparte, outra figura emblemática
do mundo europeu moderno. “A ideologia do mundo moderno atingiu, pela
influência francesa, as antigas civilizações que até então resistiram às ideias
europeias. Esta foi a obra da Revolução Francesa.” (Idem, 1996, p. 10).
Perry Anderson (1985) assinala que: “A nobreza da França na época
do Iluminismo possuía uma completa segurança no interior das estruturas
do Estado absolutista.” (Ibidem, p. 107). O desemprego generalizado e a mi-
séria da população francesa, em 1789, chegavam a estágios absolutamen-
te inaceitáveis. “A reação aristocrática contra o absolutismo passou, com
isso, à revolução burguesa que o derrubaria. A própria rigidez do vínculo
entre Estado e nobreza acabaria por precipitar a sua derrocada comum.”
(Ibidem, p. 111). Para Hobsbawm, “O típico Estado moderno, que estivera
se desenvolvendo por vários séculos, é uma área ininterrupta e territorial-
mente coerente, com fronteiras claramente definidas, governada por uma
só autoridade soberana e de acordo com um só sistema fundamental de
administração e de leis.” (Idem, 1977, p. 106).
Com o processo revolucionário causado pela Revolução Francesa,
surgiu na França e espalhou-se pelo mundo, junto a todos os ideais ilumi-
nistas, o celebre lema: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. A Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão é o símbolo da cultura
sociopolítica ocidental moderna; é a partir dela que surgem as primeiras

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repúblicas e a democracia no Ocidente. A Filosofia e os pensadores gregos


e iluministas fazem escolas e, a razão era a luz que iluminava o mundo mo-
derno. Manoel Bomfim afirma que:

E assim se explica – que o domínio explícito do Homem sobre


a vida e a socialização solidária da espécie sejam concepções
absolutamente modernas. São aspectos mentais derivados di-
retamente dessa plena extensão e intenso poder da consciên-
cia, que permitem ao Homem examinar, em múltiplas possi-
bilidades e desenvolvidos fins, as condições completas da sua
existência. Com isto, assenhorou-se ele dos próprios destinos.
E como a essência da psique humana é ser social, ei-lo que
tenta lucidamente, determinadamente, a plena realização so-
cial – a solidariedade pela justiça (Idem, 1998, p. 38).

O poder absolutista que era executado no Brasil por meio da re-


presentação dos homens de confiança do soberano português agora, em
1808, aporta no Brasil. Saindo às pressas, fugindo por medo da repressão
que seria causada por outra força absolutista expansionista, a francesa, do
império napoleônico, o poder soberano português desembarca em terras
brasileiras, vindo se misturar aos povos que aqui habitavam. Para Manoel
Bomfim, esse poder soberano que chega ao Brasil não é uma representação
do mal, é o próprio mal:
E o mal parece não ter cura. Por toda parte, o regime atual do
Estado é, já o vimos, não só arbitrário e corruptor, mas ego-
ísta, antieconômico, incoerente e injusto. Aqui, estes vícios
essenciais se agravam na universal insuficiência, intelectual
e moral, do mundo político continuador direto dos fugidos de
1808, e que repetem, até hoje, a mentalidade e os intuitos com
que aqueles aqui se acoitaram (Idem, 1998, p. 41).

Napoleão Bonaparte foi diretamente responsável pela transferência


da Família Real e a corte portuguesa para o Brasil. Após o Príncipe Regen-
te “furar” o bloqueio decretado por Bonaparte, proibindo que os Estados
europeus negociassem com sua maior rival, a Inglaterra, o reino português
ficou sob ameaça de invasão pelos exércitos franceses. Sabendo disso e
querendo manter a autonomia e governabilidade de Portugal, Dom João,
o príncipe herdeiro, transferiu para a Colônia portuguesa na América o
trono e a administração do Reino Português. Para Manoel Bomfim:

Da política, venha de onde vier, só se tem para nota o que é


vileza, estupidez, sem-vergonhice, em tal forma que, apesar de
tudo, não pode haver, aqui, maior desgraça, para maior crime,
que um levante de redenção política: toda a turbação de uma
luta facciosa, com a permanência da reconhecida miséria dos
homens. É a política eficaz, somente, para perpetuar o Brasil
nas condições de ser dominado, entorpecido, devorado… pe-

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

los profissionais da governança. Apanhando os antecedentes


históricos da Nação brasileira, seguindo-os até a atualidade,
temos, por eles, a explicação de toda a miséria que nos aca-
brunha, e em que se confirma uma herança onde o péssimo
já ameaça suplantar as grandes virtudes com que o Brasil se
anunciou ao mundo (Ibidem, p. 41-42).

É exatamente nesse contexto que o Brasil se torna Reino Unido a Por-


tugal e Algarves e recebe, em seu seio farto, o poder soberano na real pessoa
do Soberano. A transferência da capital do império português, de Lisboa
para o Rio de Janeiro, marca um novo momento para o Brasil, embora não
tenha agradado em nada as elites portuguesas, que ficaram à própria sorte
na Europa. A passagem de Dom João VI pelas terras brasileiras foi curta; a
Revolta do Porto e as iniciativas das elites que queriam a mudança política
da ordem absolutista para a liberal fez com que o Dom João VI regressasse a
Portugal ainda em 1820 e deixasse, aqui, seu filho herdeiro, Pedro de Alcân-
tara, que foi o primeiro imperador do Brasil. Para Bomfim:

Desde que se manifestou em qualidades próprias, o povo bra-


sileiro demonstrou possuir os dons essenciais para ser uma
nação – espírito de união, solidariedade patriótica, cordiali-
dade nas relações internas; mas, ao mesmo tempo que o seu
valor se afirmava, a pressão do Portugal degradado o anulava
politicamente, da mesma sorte que a sua voracidade lhe ames-
quinhava as energias produtoras. Não houve colônia que tanto
sofresse das condições de governo em que se achava ao torna-
-se soberana e livre. Depois de ter sido, durante dois séculos,
carne viva para a varejeira lusitana, o Brasil acabou incluindo
na sua vida o próprio Estado que, de lá, emigrara, na plenitude
da ignomínia bragantina.(Idem, 1998, p. 45).

A passagem de Dom João VI foi curta, mas foi importante para o


Brasil, que, mesmo com a resistência das elites portuguesas, deixou de ser
colônia e foi elevado à condição de Reino Unido ao Estado Português. Dom
João VI deixou implantadas as bases para que seu filho, com o título de
Dom Pedro I, em 1822, declarasse a Independência do território brasileiro
e consolidasse o poder soberano no Brasil. Mesmo que a Independência
tenha sido fruto do desejo do setor aristocrático agrário, o Estado brasilei-
ro criado em 1822 manteve-se praticamente inalterado no que se confere
às questões sociais, políticas, econômicas, culturais e religiosas durante
todo o período imperial. Para Manoel Bomfim:

O Brasil, feito soberano nas grosseiras tramoias do filho de D.


João VI, teve de consumir o primeiro decênio de vida autôno-
ma em debater-se, no atoleiro a que o atiraram a título de li-
bertá-lo. É por isso que, se rebuscamos os comos e os porquês
da Nação brasileira, devemos insistir ainda nos processos e
atos do príncipe embusteiro a quem nos entregamos, seguindo

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os efeitos até que, 1831, cai, pela gangrena, o que já era esfa-
celo. Esses longos nove anos patenteiam a miséria política do
Brasil inoculado de bragantismo (Ibidem, p. 47).

A sociedade brasileira imperial era composta por três grupos sociais:


os ricos (brancos), os pobres livres (brancos, índios e negros) e os escravi-
zados (negros). No primeiro Império brasileiro, a lei existia, mas era muito
maleável. Em 1824, foi outorgada a primeira Constituição brasileira, mas
tanto o quadro político quanto o jurídico seguiam raciocinando como se as
normas descritas no texto constitucional nada tivessem a ver com a legalida-
de imposta soberanamente pelos grandes proprietários; a lei era de ordem
do Estado, mas a execução seguia o prazer da ordem proprietária, particu-
larizada e influenciada pelos donos do poder econômico, que naturalmente
eram patrocinadores dos donos do poder político e jurídico.
A maioria dos historiadores tecem críticas ferrenhas à atuação de
Dom Pedro I frente à Independência e a todos os seus anos de governo.
Manoel Bonfim e Caio Prado Júnior não poupam palavras para explici-
tarem o descontentamento com as práticas políticas do Imperador. “Em
verdade, D. Pedro não aceitou a Independência, serviu-se dela.” (Idem,
1998, p. 48). “A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que
da nação tomada em conjunto. Quanto ao papel representado por D. Pe-
dro, ele é todo ocasional, como se depreende do que acima ficou dito.”
(PRADO JÚNIOR, 2006, p. 52-53).
O processo de constituição do Estado brasileiro foi muito peculiar, o
que demonstra, por si só, uma dificuldade na elaboração de leis que aten-
dessem a realidade do país. Com a passagem da condição de colônia por-
tuguesa para o status de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve a partir
de 1815, e com a instalação da Corte Portuguesa em 1808, não tardou para
que o Estado brasileiro logo alçasse uma nova designação com o processo
de independência em 7 de setembro de 1822. Contudo, para a historiadora
Lilia Moritz Schwarcz (2019): “A independência política em 1822 não trou-
xe muitas novidades em termos institucionais, mas consolidou um obje-
tivo claro, qual seja: estruturar e justificar uma nova nação, aliás, e como
vimos muito peculiar no contexto americano; uma monarquia cercada de
repúblicas por todos os lados.” (Ibidem, p. 13).
Para a maioria dos historiadores, a monarquia como forma de gover-
no no Brasil após a Independência foi o maior de todos os erros políticos
cometidos pelos políticos e administradores do Brasil naquele período.
Enquanto todos os outros países do continente americano lutaram pela
independência e constituíram repúblicas, o Brasil constituiu-se espelho do
poder soberano absolutista europeu. Durante três séculos, foi colônia de
Portugal e, durante 67 anos, foi governado pelos herdeiros do absolutismo
europeu, o poder monárquico e soberano. Em Caio Prado Júnior, o despre-
zo ao poder soberano monárquico é claro:

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A monarquia é por isso mesmo precária. Não é nela que se as-


senta, ao contrário do que se passou nos modernos estados eu-
ropeus saídos do feudalismo, não é nela que assenta o estado
nacional brasileiro. Por isso, não tivemos, e não poderíamos
ter tido um poder autocrático, que não caberia no quadro da
nossa evolução política (Idem, 2006, p. 53).

A Constituição Política do Império do Brasil foi elaborada por um


Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador Dom Pedro I em 25 de
março de 1824. E assim nasce a primeira Carta de Leis deste imenso ter-
ritório de dimensões continentais. Agora, o país está dividido em provín-
cias ligadas à forma de governo monárquico hereditário, constitucional e
representativo, tendo o Senhor Dom Pedro I como defensor perpétuo do
Brasil. E assim se fez; “Afinal muitas vezes é mais cômodo conviver com
uma falsa verdade do que modificar uma realidade.” (SCHWARCZ, 2019, p.
19). Caio Prado Júnior afirma que:

Vamos encontrar todos estes caracteres do estado brasileiro,


logo que depois da Independência ele se organiza, no projeto
constitucional elaborado pela Assembleia de 1823. Uma cons-
tituição é sempre a tradução do equilíbrio político de uma so-
ciedade em normas jurídicas fundamentais. Ela reflete as con-
dições políticas reinantes, isto é, os interesses da classe que
domina e a forma pela qual exerce o seu domínio. Assim, o
projeto de 1823, que não se chegou a converter em lei devido à
dissolução prematura da Assembleia, sintetiza admiravelmen-
te as nossas condições políticas de então. Daí o interesse em
analisá-la (Idem, 2006, p. 53).

O projeto constitucional de 1823, consolidado em 1284 com a pro-


mulgação do texto constitucional brasileiro, é também a consolidação do
poder soberano no Brasil. No texto, encontramos um projeto classista que
se revela claramente pela discriminação dos direitos políticos, e os gran-
des proprietários de terras reservavam-se ao direito de todas as vantagens
e privilégios por terem sido os principais responsáveis pela Independên-
cia. A restrição eleitoral talvez nem seja a maior de todas as atrocidades,
mas selecionava com crivo muito fino os eleitores. Trava-se de uma dispu-
ta entre os apoiadores e opositores, pois “Com a proclamação da Indepen-
dência e a Assembleia Constituinte, não se encerra o ciclo da revolução
separatista.” (Ibidem, p. 57).
As relações entre o imperador e os homens que o cercavam em torno
do trono ficam ainda mais acirradas com a convocação para que ele retorne
para Portugal para assumir o trono vago pela morte de seu pai, Dom João
VI. As agitações na capital do Império Português e o perigo de golpe no
trono aceleram a partida de Dom Pedro I para Portugal. Com a abdicação
de D. Pedro I, chega a revolução da Independência ao término natural de

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sua evolução: “a consolidação do ‘estado nacional’. O primeiro reinado não


passara de um período de transição em que a reação portuguesa, apoiada no
absolutismo precário do soberano, se conservara no poder.” (Ibidem, p. 64).

O poder soberano do Brasil

A consolidação e legitimação do poder soberano do Brasil acontece


com a subida ao trono por meio do golpe da maioridade do filho herdeiro de
Dom Pedro I. Dom Pedro II era brasileiro, nascido nas terras brasileiras e
esse monarca tornou-se o legítimo representante do poder soberano brasi-
leiro. Para Caio Prado Júnior, “A evolução política progressista do Império
corresponde, assim, no terreno econômico, à integração sucessiva do país
numa forma produtiva superior: a forma capitalista.” (Idem, 2006, p. 99).
Com a abdicação de Dom Pedro I em favor de seu filho em 7 de
abril de 1831, o Brasil entra em outro impasse político. Pedro de Alcânta-
ra era menor de idade e, com apenas 5 anos, herdara o trono brasileiro. A
saída legal existente que constava na Constituição de 1824 era a de fazer
um período de transição, com o país sendo governado por regentes. O
Período Regencial que ocorreu entre o Primeiro e o Segundo Reinado, de
1831 a 1840, foi encerrado com um golpe parlamentar que ficou conheci-
do como “Golpe da Maioridade”.
O golpe parlamentar apoiado por setores da sociedade elitizada e os
grandes proprietários rurais garantiu a coroação de D. Pedro II como im-
perador do Brasil por 49 anos, de 23 de julho de 1840 a 15 de novembro de
1889. “A história do Segundo Reinado nos fornece em toda sua evolução as
mais evidentes provas de que as instituições imperiais representavam um
passado incompatível com o progresso do país, e que, por isso, tinham de
ser, mais dia, menos dia, por ele varridas.” (Ibidem, p. 100).
Sessenta e sete anos mais tarde chegariam ao Brasil os ventos repu-
blicanos que se transformaram em tempestade tropical e, em seguida, em
um tornado militar que varreu das terras do Brasil, em 15 de novembro de
1889, a Corte Portuguesa representada pelo neto de Dom João VI, filho de
Dom Pedro I, o Imperador Dom Pedro II.

A política de D. Pedro não foi, não poderia ter sido outra coisa
que o reflexo de forças que atuavam no seio da sociedade; e pode-
mos até dizer, se tivéssemos de determinar o grau de contribuição
individual do imperador para a evolução do país, ela interveio em
proporções insignificantes, praticamente nulas.” (Ibidem, p. 100).

A instauração da República no Brasil foi a grande novidade no


final do século XIX. Pressionada pelos militares e pelas suas espa-
das embainhadas, mosquetes e canhões desmuniciados, a Monarquia

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

deu lugar ao Novo Regime. “Isso de república é “coisa de estudantes


e liberais”, dizia, em 1873, uma autoridade paulista diante do discurso
inconveniente do rebento de um vivaz ramo de aristocracia paulista.
“Coisa passageira, cócegas da juventude, rapaziada sem consequência.”
(FAORO, 2004, p. 452). O discurso confirma que: “O imperador é, por
isso mesmo, uma figura de segundo plano, que aliás sempre se mostrou
incapaz de compreender o processo social que se desenrolava sob suas
vistas. Um instrumento passivo da política que sempre dominou em
todo o seu longo reinado.” (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 101). Por que o
Império, o poder soberano não resistiu?

O Império se definia francamente pelo passado… Daí por dian-


te é a degringolada. O Império se mostrava incapaz de resol-
ver os problemas nacionais, a começar pela emancipação dos
escravos, cuja solução dependia o progresso do país. Por que
esta imobilidade do Império? Por que essa incapacidade de se
adaptar ao progresso evolutivo do país? O último decênio do
Império é de completa decomposição. A abolição, afinal de-
cretada em 1888, em nada contribuiu para reforçar as institui-
ções vacilantes: confiança perdida dificilmente se recupera, e
por isso serviu a Abolição apenas para alienar do lado do trono
as últimas simpatias com que ainda contava (Ibidem, p. 102).

O que veio em virtude da nova forma de governo? A elaboração e pro-


mulgação da Carta Constitucional Republicana aconteceu em 1891, porém,
segundo Manoel Bomfim, mesmo com a República, na novidade da federação
os dirigentes, “mesmo incluindo tudo que operara na monarquia, não tiveram
a coragem de voltar de pronto, e francamente, à autocracia centralizada do
bragantismo; ou não souberam achar a forma de casar imediatamente a mes-
ma federação com o feitorismo que lhes estava na alma.” (Idem, 1998, p. 583).
Os ares advindos após a queda da monarquia e a instauração da Re-
pública circulam com os aromas das velhas políticas. As Leis brasileiras
foram reformadas por uma Assembleia Constituinte. “Todas as feições
mais marcantes da sociedade brasileira se definiram com nitidez cristalina
nos dois primeiros decênios do período republicano.” (CARVALHO, 1987,
p. 6). A Constituição de 1891, mesmo elaborada, votada e promulgada por
uma Assembleia Constituinte, nasce em “estado de sítio”. Sobre a primeira
Constituição Republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, Manoel
Bomfim (1998) afirma que:

Não tem outra explicação a deslavada reforma da constituição


de 24 de fevereiro, gerada nas mesquinhas circunvoluções de
tiranetes ignorantíssimos, ostensivamente imposta por esse
pândego regime presidencial, e que, por isso arranjada no des-
pacho do presidente, ali foi comunicada aos não menos pân-
degos representantes da nação, que a dessem por discutida,

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e pronta para a votação, a que não se negariam. Alega-se que


se tanto foi possível é porque estávamos em estado de sítio…
Sombras de pejo, na política: sem sítio seria a mesma coisa,
um pouco mais cara à nação, que os representantes pediram
mais ao presidente em reconhecimento da submissão, pois
que, finalmente, tudo foi muito lógico (Idem, 1998, p. 584).

Como revelou Manoel Bomfim, a República nasce com vícios polí-


ticos. Os políticos tradicionais e os aristocratas ruralistas se organizaram
e transformaram a capacidade administrativa do país em uma potenciali-
dade geradora de recursos para poucos senhores oligarcas, transforman-
do o Estado-Nação em uma República das oligarquias rurais. A preciosa
unidade, garantidora do usufruto na camarilha, se mantém intacta. Assim
substituída a casa dos Bragança, “nada mais natural do que voltarmos à
política de sempre, piorada no descoco de feitores sem senhor, dissolvida
na senilidade dos cem anos de vida tórpida, insincera, em flácida mastur-
bação constitucional.” (Ibidem, p. 584). Ainda sobre a Constituição de 1891,
Manoel Bomfim enfatiza:

Na realidade, a fofa constituição republicana, nas suas insigni-


ficantes afirmações democráticas, era cousa morta, desde que
não servisse para mascarar o domínio do país pelos seus oli-
garcas: mas a realidade do destino se impunha, e foi chegado
o momento de mostrar à nação brasileira, bem explicitamente
– que o 15 de Novembro dera em burla, e o Brasil continuava
usufruto… Só mudara o senhorio. De fato, a política republi-
cana destes trinta e sete anos foi a mais própria pra o patente
resultado, de ostensiva renúncia – à liberdade, democracia,
opinião… à própria honestidade. Na prática, ela realiza, des-
proporcionadas todas as misérias da tradição, em descaso, que
se fez licenciosamente (Ibidem, p. 584).

O primeiro período republicano, compreendido entre 1889 e 1930,


teve seu fim impulsionado por movimentos revolucionários do início do
século XX e com o desequilíbrio entre as oligarquias constituídas desde
a proclamação. Em 1930, sobe ao poder Getúlio Dornelles Vargas. Inicia-
-se um novo período republicano, marcado pela Revolução de 1930, com a
instauração de um Governo Provisório e elaboração de três das oito Cartas
Constitucionais brasileiras (1934, 1937, 1946). No entanto, mesmo levando-
-se em conta os problemas gerados nos processos de elaboração dos tex-
tos constitucionais e as recorrentes nuanças a que são a eles implicadas
um momento de constitucionalização, sempre foi e será muito importante
para um país e a sociedade que nele habita. A constituinte é um momento
de abertura e participação política que gera oportunidade de inserção de
cláusulas importantes. É um espaço de politização e possível revisão do
momento histórico-político anterior.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A transição do poder soberano moderno para o biopoder republicano

A transição do poder soberano para o poder republicano de Agam-


ben tem relação com a transição do soberano de Foucault para o biopolí-
tico. A monarquia é o poder soberano, e a república é o poder biopolítico.
E pode-se provar por meio do Estado de Exceção, ou seja, estado de sítio
que existe na constituição republicana e não existe na constituição monár-
quica. E realmente pode-se afirmar que, na transição de um poder para o
outro, tanto no cenário europeu do medievo para o moderno quanto no
brasileiro, do soberano moderno para o republicano biopolítico, ocorre-
ram mudanças e permanências significativas nessa transição.
A transferência do poder soberano para o poder moderno foi um
processo que ocorreu de maneira semelhante ao que se permitiu, na Eu-
ropa ocidental e depois no Brasil, a alteração das mentalidades medievais
para as mentalidades modernas, ocorrendo uma mescla das duas e produ-
zindo uma síntese nesse processo. As modificações de um tempo histórico
para outro não são estanques e nem exatas. O momento de ruptura, muitas
vezes, pode levar anos, décadas, séculos para ser percebido e assimilado.
Ao longo da História do Brasil, o Estado brasileiro praticou sua gover-
nabilidade com diferentes regimes políticos. Temos uma divisão tradicional-
mente conhecida como: Período do Brasil Colônia, Período do Brasil Imperial,
Período do Brasil Republicano. O Estado possuiu inúmeras fases políticas,
com características e especificidades para cada uma delas. A dinamicidade na
administração política nos regimes governamentais gerou modelos e estrutu-
ras diversas na aplicabilidade e na execução das leis, o que gerou distorções
administrativas e políticas na ordem estabelecida no regime político.
Os governos brasileiros, nada diferentes de outros governos, sempre
se utilizaram de dispositivos e mecanismos de controle sobre as popula-
ções. Durante todas as gestões administrativas e políticas presenciamos
práticas totalitárias por parte dos governos instituídos. A privação da li-
berdade, censuras, perseguições aos partidos políticos e sindicatos de tra-
balhadores, supressão de liberdades individuais e coletivas, entre outras
medidas autoritárias e governamentais, sempre fizeram parte, como ainda
hoje fazem, das formas de governo estabelecidos no Brasil. Lilia Moritz
Schwarcz examinou algumas das raízes do autoritarismo brasileiro, inter-
ligando-o a questões sociais seculares:

O Brasil tem uma história muito particular, ao menos quan-


do comparada à de seus vizinhos latino-americanos. Para cá
veio quase a metade dos africanos e africanas escravizados e
obrigados a deixar suas terras de origem na base da força e da
violência; depois da independência, e cercado por repúblicas,
formamos uma monarquia bastante popular por mais de ses-
senta anos e, com ela, conseguimos manter intactas as frontei-

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ras do país, cujo tamanho agigantado mais se assemelha ao de


um continente (Idem, 2019, p. 11).

A questão racial ainda hoje é polêmica e gera deformações gritan-


tes na conduta e aplicação das leis que tecem sobre os crimes raciais e
sociais pautados pelas desigualdades entre classes. O Brasil é um país
racista, é um país classista, é um país violento com as populações menos
favorecidas. “Diante do incessante avanço do que foi definido como uma
“guerra civil mundial”, o Estado de Exceção tende cada vez mais a se
apresentar como paradigma de governo dominante na política contem-
porânea.” (AGAMBEN, 2004, p. 13).
Em termos de sexualidade e em se tratando das mulheres, a moral
burguesa do século XVI ao XXI apresentou um duplo comportamento, bem
próximo do que ainda pode ser percebido em algumas sociedades contem-
porâneas: castidade para as mulheres solteiras e fidelidade para as mulheres
casadas. Entre preconceitos sociais e proibições religiosas estava a sexuali-
dade que existia, mas que não poderia colocar em risco a estabilidade da fa-
mília e da propriedade burguesa. Exemplos de violências generalizadas ain-
da fazem parte do cotidiano brasileiro, e a Constituição brasileira conserva
brechas que possibilitam constantes e diferenciadas interpretações das leis
públicas, que não aplicam uma punição severa aos violentadores.
Sobre o poder soberano e o poder moderno, acreditamos que do mes-
mo modo que o poder soberano se apropria do direito de vida e morte de
seus súditos para se conservar caso o seu poder ou sua existência estejam
ameaçados, o poder moderno, por intermédio da Constituição, exerce o di-
reito de vida e de morte de seus cidadãos. O poder soberano, em prática, é o
mesmo que o Estado de Exceção de Agamben e o estado de sítio na maioria
das Constituições do mundo moderno democrático, inclusive o Estado brasi-
leiro. “O Estado de Exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um pata-
mar de indeterminação entre democracia e absolutismo.” (Idem, 2004, p. 13).
Como esses poderes se diferenciam, se assemelham, se complemen-
tam, se limitam, se anulam? O poder soberano é o “direito de vida e mor-
te” sobre seus súditos em favor de sua defesa ou defesa do Estado. O rei
poderia então ordenar ou solicitar que seus súditos lutassem e morressem
em defesa de sua existência e em defesa do próprio Estado. No Estado mo-
derno constituído por leis escritas, há uma clara separação entre o Estado
e quem exerce o poder de Estado. Os cidadãos são chamados a lutar pelo
Estado, e não pelo representante do Estado.
Em caso de levante interno, o poder soberano e o moderno agem de
maneira semelhante. A Constituição prevê o estado de sítio em casos de
desordens internas. Na transição do poder soberano para o poder moder-
no no Brasil, vimos que a Constituição de 1891, mesmo elaborada, votada

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

e promulgada por uma Assembleia Constituinte, nasce em um estado de


sítio. “Alega-se que se tanto foi possível é porque estávamos em estado de
sítio.” (BOMFIM, 1998, p. 584).
O Artigo 48 da Constituição de 1891 diz que compete privativa-
mente ao Presidente da República, de acordo com o parágrafo décimo
quinto, “declarar por si, ou seus agentes responsáveis, o estado de sítio
em qualquer ponto do território nacional nos casos de agressão estran-
geira, ou grave comoção intestina”. O Artigo 80, dentro das disposições
gerais, diz que: “Poder-se-á declarar em estado de sítio qualquer parte do
território da União, suspendendo-se aí as garantias constitucionais por
tempo determinado quando a segurança da República o exigir em caso
de agressão estrangeira, ou comoção intestina.” (BRASIL, 1891). “Mas se
foi um deles quem se levantou contra ele e infringiu suas leis, então pode
exercer um poder direto sobre sua vida: matá-lo a título de castigo. Enca-
rado nesses termos, o direito de vida e morte já não é um privilégio ab-
soluto: é condicionado à defesa do soberano e à sua sobrevivência como
tal.” (FOUCAULT, 2019a, p. 145).
O poder soberano percebe que precisa do súdito para a defesa de si e
do Estado. As execuções sumárias deixam de ser incentivadas e proporcional-
mente abolidas na sua forma de desproporcionalidade. O rei passa a poupar a
vida do súdito para que ele possa defender a sua vida ou a sua existência. Ao
poder soberano é atribuído o dever de proteger e salvar vidas. “A partir do mo-
mento em que o poder assumiu a função de gerir a vida, já não é o surgimento
de sentimentos humanitários, mas a razão de ser do poder e a lógica de seu
exercício que tornaram cada vez mais difícil a aplicação da pena de morte.”
(Ibidem, p. 148). Se o soberano e o Estado necessitam do súdito,

De que modo um poder viria a exercer suas mais altas prer-


rogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o
de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar a vida e pô-la em
ordem? Para um poder deste tipo, a pena capital é, ao mes-
mo tempo, o limite, o escândalo e a contradição. Daí o fato de
que não se pôde mantê-la a não ser invocando, nem tanto a
enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso,
sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos
legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo
biológico para os outros (Ibidem, p. 148).

Sobre o Estado de Exceção em Agamben, entendemos que a apro-


priação que o soberano faz sobre o “direito de vida e morte” de seus sú-
ditos ocorre em virtude da própria definição de quem é o soberano, que é
exatamente “aquele que decide sobre o Estado de Exceção.” (Idem, 2004, p.
11). A substituição está em ser o soberano quem decide no antigo regime
para que, na modernidade, quem decida seja o próprio Estado por repre-

75
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sentação; no entanto, em Foucault a transição também altera a sentença.


Nessa relação de passagem percebemos claramente “que o velho direito
de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a
vida ou devolver à morte.” (FOUCAULT, 2019a, p. 148).
Dentro das proposições do jurídico sobre o Estado de Exceção ve-
mos que “as medidas excepcionais encontram-se na situação paradoxal de
medidas jurídicas que não podem ser compreendidas no plano do direito,
e o Estado de Exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não
pode ter forma legal.” (AGAMBEN, 2004, p. 12). Na transição do soberano
para o moderno, e aqui podemos nomeá-lo de biopoder ou biopolítico, de
fato o Estado ainda detém o poder de decidir mesmo com a prerrogativa de
defesa da vida. O que mudou?

Se a exceção é o dispositivo graças ao qual o direito se refe-


re à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão,
uma teoria do Estado de Exceção é, então, condição preliminar
para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abando-
na o vivente ao direito.” (Ibidem, p. 12).

Sendo assim, a transição do poder soberano para o poder moderno,


para o biopoder garante a estabilidade da vida, porém em completo aban-
dono. “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano
é, agora, cuidadosamente recoberta pela administração dos corpos e pela
gestão calculista da vida”. “Abre-se, assim, a era de um biopoder” (FOU-
CAULT, 2019a, p. 150-151). O que se propôs e o que de fato mudou foram
as formas de agenciamento que constituíram, nos séculos XIX e XX, as no-
vas tecnologias do poder. Em Foucault, “Esse biopoder, sem a menor dúvi-
da, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só
pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho
de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população
aos processos econômicos (Ibidem, p. 151-152).
A partir do exposto, percebemos que o Estado de Exceção, no Bra-
sil, é uma constante. É biopoder pela prática da Biopolítica. Não é uma
exceção, é uma regra geral. Remontar o processo que levou à instaura-
ção do regime republicano em 1889 e a suas seguidas Constituições,
1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1988, permitiu-nos concordar que todas as
consequências geradas desde o princípio da colonização atravessaram
os tempos e se mantêm ainda na atualidade republicana. Todo o pro-
cesso histórico brasileiro até a República foi configurado por momen-
tos vagos de estabilidade política forçados pelos governos autoritários.
Após a proclamação, levando em conta sua juventude, 131 anos, poucos
foram os momentos democráticos que, na maioria das vezes, foram en-
cerrados bruscamente por golpes e decretos de suspensão do Estado

76
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Democrático de Direito e a instalação de estados de sítio, de emergên-


cia, de guerra, de apreensão, de exceção, culminando vez ou outra em
governos autoritários e ditatoriais.
O Estado de Exceção no Brasil surge quase sempre a partir de ma-
nobras políticas e jurídicas, entre lutas declaradas ou veladas nos campos
dos poderes Legislativo e Executivo, suprimindo ou incorporando o Judi-
ciário. E o que o define? À incerteza do conceito corresponde exatamente
a incerteza terminológica. Utilizaremos o sintagma “Estado de Exceção”
na mesma forma que Agamben (2004) se propõe a usá-lo: “como termo téc-
nico para o conjunto coerente de fenômenos políticos e jurídicos que ele
mesmo se propõe a definir”.
Sabendo como ele surge no caso do Brasil e tendo em vista a de-
finição de Agamben (2004), podemos entender que o Estado de Exceção
é um sintagma ou expressão que, incorporada a fenômenos qualitativos
“políticos e fictícios”, mesmo com ressalvas e equívocos, pode, para sua
compreensão, ser traduzido por “estado de guerra”, estado de sítio, estado
de apreensão, ou estado de emergência. Para Giorgio Agamben: “O Esta-
do de Exceção não é um direito especial (como o direito de guerra), mas,
enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu
conceito limite.” (Idem, 2004, p. 15).
No Brasil, o estado de sítio é o termo comum utilizado para se referir
ao momento de supressão de direitos e garantias constitucionais de quais-
quer ordens. Em todas as Constituições do período republicano, promul-
gadas ou outorgadas, a exceção, no texto constitucional de 1937, é a que se
refere aos sintagmas comparativos “estado de sítio”, “Estado de Exceção”
por alcunhas específicas (“estado de apreensão, estado de emergência, es-
tado de guerra”). Segundo Agamben:

A origem do instituto estado de sítio encontra-se no decreto de


8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte francesa. A his-
tória posterior do estado de sítio é a história de sua progressiva
emancipação em relação à situação de guerra à qual estava liga-
do na origem, para ser usado, em seguida, como medida extra-
ordinária de polícia em caso de desordens e sedições internas,
passando, assim, de efetivo ou militar a fictício ou político. Em
todo caso, é importante não esquecer que o Estado de Exceção
moderno é uma criação da tradição democrático-revolucioná-
ria, e não da tradição absolutista (Idem, 2004, p. 16).

O Estado de Exceção se tornou, em muitos países ocidentais e prin-


cipalmente na América Latina, mais frequente e, em alguns casos, longuís-
simos ou permanentes, com parcial ou total rompimento do Estado De-
mocrático de Direito. Em Giorgio Agamben (2004) vemos que: “Uma das
características essenciais do Estado de Exceção – a abolição provisória da

77
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra, aqui, sua


tendência a transformar-se em prática duradoura de governo.” (Idem, 2004,
p. 19). Desde os processos de independência ocorridos nas Américas, o Esta-
do de Exceção foi parcialmente um dispositivo de governabilidade e, “Na era
atômica em que o mundo agora entra, é provável que o uso dos poderes de
emergência constitucional se torne a regra, e não a exceção.” (Ibidem, p. 21).
Na história política do Brasil, por diversas vezes foram instaladas As-
sembleias Nacionais Constituintes de forma a que se estabelecesse a reor-
ganização constitucional do país. A primeira, a de 1824, ainda no Primeiro
Império Brasileiro, foi resultado de um processo político-jurídico de ou-
torga do Poder Executivo, assim como as republicanas de 1937 e 1967. No
período republicano, as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988 foram ela-
boradas, votadas e promulgadas por assembleias constituintes. Em todos os
textos constitucionais brasileiros podem ser encontrados os artigos e inci-
sos que versam sobre a possibilidade de instalação do Estado de Exceção:

Um exame de situação do Estado de Exceção nas tradições jurídi-


cas dos Estados ocidentais mostra uma divisão – clara quanto ao
princípio, mas de fato muito mais nebulosa – entre ordenamen-
tos que regulamentam o Estado de Exceção no texto da consti-
tuição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não
regulamentar explicitamente o problema (Ibidem, p. 22).

O Estado de Exceção no Brasil não permite contra ele a instituição


de resistência. “O problema do Estado de Exceção apresenta analogias evi-
dentes com o direito de resistência. Discutiu-se muito, em especial nas
assembleias constituintes, sobre a oportunidade de se inserir o direito de
resistência no texto da constituição.” (Ibidem, p. 23). Nas três primeiras
Constituições do período republicano, 1891, 1934 e 1937, os textos que ver-
sam sobre sua construção em relação ao Estado de Exceção apresentam
algumas particularidades em suas atribuições gerais, mas em todos não
se explicita o direito à resistência. “O estado do exceção moderno é uma
tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona
de indiferenciação em que fato e direito coincidem.” (Ibidem, p. 42).
Mesmo previsto o Estado de Exceção em todas as edições dos textos
constitucionais do período republicano brasileiro, os governos, de modo
legal, nem sempre fizeram uso desse mecanismo para sustentar a gover-
nabilidade do país. “Os textos constitucionais, em si, de fato, não trans-
formam a vida política da nação; quase sempre não exprimem o equilíbrio
de forças aí existentes e, mais ainda, não traduzem muitas das questões
cruciais vividas pelas camadas sociais políticas e econômicas menos favo-
recidas.” (GOMES, 1997, p. 11).
O uso dos termos que designam o Estado de Exceção não são os
mesmos em todos os textos constitucionais. Por exemplo, na C.F. de 1988

78
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

podemos encontrar – estado de guerra, estado de defesa, estado de sítio.


Enquanto na C.F. de 1967 temos apenas estado de sítio. No texto da C.F. de
1946 permanece apenas estado de sítio. A maior alteração está na C.F. de
1937, na qual foi suprimido o termo estado de sítio, que foi substituído por:
estado de apreensão, estado de emergência e estado de guerra. No texto
da C.F. de 1934, encontramos estado de sítio, estado de guerra. Na C.F. de
1891, apenas estado de sítio. E, por último, na C.F. de 1824 o termo decla-
ração de guerra. “O Estado de Exceção, enquanto figura de necessidade,
apresenta-se, pois – ao lado da revolução e da instauração de fato de um
ordenamento constitucional – como uma medida ‘ilegal’, mas perfeitamen-
te ‘jurídica e constitucional’, que se concretiza na criação de novas normas
(ou de uma nova ordem jurídica).” (AGAMBEN, 2004, p. 44).
O rompimento do Estado Democrático de Direito previsto em Cons-
tituição ocorreu em todos os momentos Constitucionais. O de 1889 veio
com o golpe dos marechais sobre a monarquia, e a Constituição Imperial
de 1824 deu fim ao Antigo Regime e trouxe, com ele, a Proclamação da
República. Em 1930, 1934, 1937 e 1946, com Getúlio. Em 1967, em consequ-
ência do golpe militar de 1964; e a última, em 1985, com o fim da ditadura
militar, reabertura política e a restauração da democracia com a promul-
gação da Constituição Cidadã de 1988. No Estado brasileiro existe uma
constante violação dos textos constitucionais.
No Estado brasileiro, sobre o estado de sítio, a Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988 apresenta, no Artigo 137, que “O Pre-
sidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho
de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para de-
cretar o estado de sítio.” (BRASIL, 2002, p. 88). Entende-se, dessa maneira,
que o estado de sítio, o estado de guerra e o estado de defesa, em território
brasileiro, podem ser decretados de acordo com o Artigo 137, sublinhado
pelos incisos I e II, sendo referendado em consonância com o parágrafo
único sobrescrito no texto constitucional. Fora da condição exposta, o ato
é considerado uma inconstitucionalidade.
O inciso I trata do motivo de comoção grave de repercussão nacional
ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada du-
rante o estado de defesa; e o inciso II subscreve que o estado de sítio pode
ser decretado por ocasião de declaração de estado de guerra ou resposta à
agressão armada estrangeira. Em parágrafo único é realizada uma ressalva
importantíssima, afirmando que: “O Presidente da República, ao solicitar
autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os
motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir
por maioria absoluta.” (BRASIL, 2002, p. 88).
O problema real é que mesmo nos países que se estruturam em bases
de direitos, poderes e instituições democráticas, os governos com prerro-

79
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

gativas autoritárias e fascistas, como é o caso do Brasil na atualidade, por


meio de seus governantes, tentam, com manobras políticas do Executivo,
enfraquecer as instituições democráticas e os poderes Legislativo e Judi-
ciário com o objetivo de endurecer o regime e instalar uma ditadura. A
Constituição de 1988, por exemplo, não permite como querem o presidente
Jair Messias Bolsonaro e seus aliados, pela interpretação do Art. 142, o uso
das Forças Armadas como mecanismo, dispositivo de intervenção por par-
te do Executivo nos outros dois poderes constituídos no Estado brasileiro.
Embalado por manifestações de grupos apoiadores de seu governo
e defensores de uma ruptura no Estado Democrático de Direito em prol
de um Estado de Exceção com a sua permanência na presidência da Re-
pública, Bolsonaro e governistas tentaram justificar o uso do dispositivo
constitucional para uma intervenção militar contra o Congresso Nacional
e o Supremo Tribunal Federal. A reação de membros da sociedade civil,
autoridades políticas, instituições democráticas e dos poderes Legislativo
e Judiciário foi imediata em rechaçar qualquer iniciativa intervencionista
de cunho antidemocrático em qualquer um dos três poderes.

As Forças Armadas não têm poder moderador e não é permi-


tida intervenção do Exército sobre os poderes Legislativo, Ju-
diciário e Executivo. Este é o entendimento do ministro Luiz
Fux, do Supremo Tribunal Federal, em decisão judicial sobre a
interpretação da Constituição da lei que disciplina o Exército.
“A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pá-
tria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da
lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador
entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”, disse o
ministro (OLIVEIRA, 2020).

No Estado brasileiro, em nenhum momento retirou-se do poder so-


berano o direito de decidir pela vida ou morte de seus súditos ou cidadãos.
A transição do poder soberano monárquico para o poder biopolítico repu-
blicano não limitou a capacidade do Estado de decidir quem vive e quem
morre entre seus cidadãos. E o biopoder, a Biopolítica já estava gestada
no seio do poder soberano, sendo somente perfilada para se adequar ao
republicano. Na História do Brasil, os eventos de aniquilação de grupos po-
pulacionais, assim como as repressões das revoltas desde o início da coloni-
zação até aos dias atuais são práticas eugênicas de limpeza étnica e social.
Desde a proclamação da República o biopoder estabelecido tem se
aperfeiçoado em sua forma de controle social, aumentando seu cinismo
e sua perversidade gradativamente. No início do período republicano,
primeiro com os marechais e depois com os civis, ele foi se aperfeiçoan-
do; com Getúlio ganhou amplitude; e no regime militar se consolidou.
Após a redemocratização, a Biopolítica foi camuflada na Constituição e

80
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

exposta nas práticas de exclusão social por meio da marginalização, ho-


mofobia, encarceramento populacional e extermínio causado, principal-
mente, pela repressão e violência do Estado policial. O direito de deixar
viver ou fazer morrer está matrimoniado com o biopoder e a Biopolítica
do Estado. Esposito afirma:

Creio que, justamente, uma das mais maciças transformações


do direito político no século XIX consistiu, não digo exacta-
mente em substituir, mas em completar, esse velho direito de
soberania – fazer morrer ou deixar viver – por um outro direito
novo, que não vai apagar o primeiro, mas que vai penetrá-lo,
atravessá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou antes um
poder exactamente inverso: poder de “fazer” viver e de “dei-
xar” morrer (Idem, 2010, p. VIII-IX).

A Biopolítica e sua aplicação têm como alvo uma população ou um


conjunto específico de indivíduos de uma população. A Biopolítica é a prá-
tica e aplicabilidade de biopoderes sobre uma população ou grupos que
são tanto o alvo como o instrumento em uma relação de exercício de poder.
Biopoder é uma tecnologia de poder, um modo de exercer várias técnicas
em uma única interface. Ele permite o controle de populações inteiras. Na
atuação do poder biopolítico, estão sobremaneira entrecruzados efeitos de
um fazer viver e deixar morrer e as políticas sistemáticas de controle, es-
tando estas especialmente personificadas na violência.
A passagem do poder soberano para o poder biopolítico não signifi-
cou, para os grupos sociais ou as populações antes dominadas, o acesso aos
mecanismos de poder. O nascimento da Biopolítica significa a emergência
de um saber sobre a população, principalmente a urbana. A Biopolítica
articula-se a esses fenômenos de natureza da população, conduzidos pelos
dispositivos de controle. O contexto da Biopolítica designa uma conjuntu-
ra com sujeitos livres sob o controle de diversas instituições diretamente
influenciadas ou controladas pelo Estado. O que temos hoje são políticas
distintas para populações distintas. Isso é uma atuação clara e evidente
dos mecanismos e dispositivos de controle da Biopolítica.
Considerando que tudo o que é político trata-se da condição da po-
lítica de governabilidade, em que seja possível estabelecer, para diferen-
tes grupos populacionais, aquela que se deve fazer viver e as demais que
se deve deixar morrer, reconhecemos, neste artigo, que tudo passa a ser
norteado por uma análise dos interesses entre os indivíduos e estes com
o Estado. O modus operandi do passado, e mesmo o atual, sustenta-se na
potencialidade de se poder matar, como forma de exclusão absoluta e defi-
nitiva, por um ato do Estado que não se configura em homicídio. O Estado
e a modernidade criam elementos e teorias para justificar sua atuação. Não
obstante, sabemos que:

81
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aris-


tóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência polí-
tica; o homem moderno é um animal em cuja política sua vida
de ser vivo está em questão. Essa transformação teve consequ-
ências consideráveis (FOUCAULT, 2019a, p. 154-155).

Buscamos demonstrar, por meio da teoria foucaultiana sobre o poder


soberano e o poder moderno, como se deu no contexto histórico brasilei-
ro essa transição ocorrida ao final do século XIX e início do século XX.
Também confirmamos que anteriormente os dispositivos disciplinares se
voltavam para o controle do indivíduo; mas; com a Biopolítica, as práticas
disciplinares passaram a se direcionar para o conjunto de indivíduos, isto
é, para toda a população, e, com efeito, tem obtido como resultado aniqui-
lação e extermínio de populações inteiras. É possível lutar contra a aniqui-
lação proposta pela Biopolítica? E “O que é lutar pela vida hoje quando
vivemos sob a égide de um biopoder que se exerce em todos os recantos da
existência?.” (OLIVEIRA, 2007, p. 21).
Hoje, no caso brasileiro, com a pandemia da Covid-19 e as contra-
-ações, as políticas de preservação de vidas realizadas pelo governo fede-
ral, na pessoa de mais alto cargo de gestão, deixam muito clara a inten-
cionalidade de apuração eugênica no país. As transformações resultaram
na implantação do biopoder, sendo que o controle dos corpos não condiz
mais apenas com a ameaça da morte, mas também com o controle do
corpo social. Em Microfísica do poder, Foucault explica que “o corpo é,
assim, uma realidade Biopolítica”. A Biopolítica é a realidade, e, nessa
realidade, ficam uma afirmação e uma pergunta. Na Biopolítica a vida é
inteiramente absorvida pelo poder. Como criar resistências que se esta-
beleçam em relações de antipoder?

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82
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83
PARTE II

Filosofia do Direito e Direito


e Relações Internacionais
5
A desobediência civil1

Jordi Balló [i Fantova]


Xavier Pérez [Torio]

O primeiro gesto histórico de um ser humano que tenha decidido


plantar cara ao poder está inscrito na Antígona, de Sófocles. A obra ofe-
rece à posteridade a representação dramática de um modelo de desobedi-
ência civil no qual o ser humano é capaz de sacrificar a própria vida por
uma ideia ética, por uma convicção inabalável. Como Édipo, seu pai – a
outra grande criação teatral de Sófocles –, Antígona é uma manifestação
diáfana da abnegação, da persistência, da obstinação. Mas, contrariamente
a seu progenitor, ela conhece perfeitamente qual vai ser o seu destino. E
não busca mudá-lo, mas afronta-o com o convencimento de que seja ela
mesma quem o está a construir, com sua assumida rebeldia contra o po-
der do Estado. Não é um ato casual que Antígona tenha se convertido na
mais representada e reescrita das tragédias gregas, pois sai protagonista é
a mensageira de uma atitude cívica que continua representando-se como
modelo de comportamento e contestação nas muitas situações de abuso de
poder que salpicam nas sociedades contemporâneas.
A estrutura despojada da obra permite identificar sua tenção cen-
tral em relação a duas características que não deixam de se enfrentar
ao largo de todo o drama. Trata-se de uma demonstração poucas vezes
igualada, na qual o diálogo dramático é sempre um jogo adversativo, uma
luta entre opostos. A habilidade de Sófocles estriba-se em conceder aos
representantes desse enfretamento um discurso verbal associado a duas
posturas perfeitamente opostas. De um lado, Antígona, a jovem irmã de
Etéocles e Polinices, disposta a enterrar piedosamente o corpo deste úl-
timo, apesar de um decreto governamental que o proíbe. De outro, seu
tio Creonte, o regente de Tebas, disposto a castigar até à morte quem se
atrevesse a transgredir a lei, ainda que seja sua própria sobrinha. Essa
luta de contrários pode ser resumida em pares opostos, como demons-

1 Este ensaio foi inicialmente publicado em GIL, L. Σοφοκλής/Sófocles. Ἀντιγόνη/Antígona, trad. e intr. Luis Gil,
Random House Mondadori, 1981, p. 78-89. O tradutor agradece imensamente a liberalidade dos Professores Jordi
Balló e Xavier Pérez por permitirem a tradução e publicação deste texto fabuloso.

87
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

trou George Steiner em um livro de referência2, constituindo a essência


mesma da arte dramática: um enfrentamento entre um homem e uma
mulher, entre a velhice e a juventude, entre a sociedade e o indivíduo,
entre os humanos e os deuses, entre os vivos e os mortos. Nessa super-
posição de contrários, a posteridade pode encontrar diferentes caminhos
para evocar a Antígona adequada a cada momento histórico, a cada con-
flito civil, a cada poética particular. Sempre, no entanto, prevalece como
tela de fundo o conflito político entre o poder impune de um governante
e o sacrifício ético de uma figura dissidente. E aflora, então, a constitui-
ção dramática de uma dupla escala de calores nunca compatível. Para
Creonte, o poder do Estado como salvaguarda da ordem. Para Antígona,
a justiça íntima, ainda que em troca da desordem. A tragédia é total, por-
que ambas as posturas, levadas a extremos, causam a desgraça dos prota-
gonistas. Para Antígona, a retidão moral não pode acabar a não ser com
seu sacrifício, com a sua condenação à morte. Essa execução, decorrente
do uso de um poder despótico e excessivo por Creonte, também compor-
ta uma catástrofe para ele: seu filho Hémon, apaixonado por Antígona,
se suicida, e sua mulher, Eurídice3, que não pode suportar tanta dor na
família, acaba, também, tirando a vida.
Até chegar a esse ponto de não retorno, a essa irreversibilidade con-
substancial a qualquer tragédia, Sófocles roteiriza uma situação dramáti-
ca que se revela imanente à obra: o interrogatório da acusada, o constante
enfrentamento entre a mulher prisioneira e o governante acusador. Essa
situação na qual uma figura desprovida de qualquer poder físico não cede
ante a pressão de quem possui todo o arsenal do Estado a seu favor para
fazê-la retratar-se se revela um motivo dramático e visual recorrente na
ficção posterior. Nas histórias político-sociais que remetem ao modelo de
Antígona, o drama de forças opostas contém um elemento descompensa-
do, que é o que cria o enigma, mas também a admiração à heroína. Se a
posteridade sempre se identifica com Antígona, é justamente porque, no
final do duelo dialético, somente o exercício do poder por parte de Creon-
te encerra o diálogo. Antígona aceita ser executada apesar de não dispor
da capacidade de Creonte para impor seus motivos pela força e, por isso,
sua razão moral prevalece.

A Paz dos Vencidos

Antígona é o emotivo capítulo final de uma trágica saga familiar


que tem por centro a cidade de Tebas. Versa sobre o círculo de penali-

2 Idem. Antígonas: La travesía de un mito universal por la historia de Occidente. Barcelona: Gedisa, Barcelona, 2000.
3 O nome dessa Eurídice não deve ser confundido com o da esposa de Orfeu, mito com significado muito diferente.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

dades a que foi condenada toda a família de Édipo depois que seu pai,
Laio, cometeu um ato vergonhoso raptando o filho do rei, que o acolheu
no exílio. É característico das tragédias gregas que os heróis paguem
pela culpa dos pais. Laio morre pelas mãos de seu filho, Édipo, que se
casa com sua mãe, Jocasta, sem saber que o é. Muitos anos depois, tem
lugar o terrível reconhecimento dos fatos, que leva Édipo a arrancar seus
olhos, e Jocasta a suicidar-se. Os filhos de seu incesto, Polinices, Etéo-
cles, Antígona e Ismene encontram-se, por isso, condenados à desgra-
ça. Suas desditas dão azo a diversas tragédias. N’Os sete contra Tebas,
Ésquilo recria os acontecimentos imediatamente anteriores à tragédia
de Antígona. Despois da morte de Édipo, os dois irmãos devem compar-
tilhar o trono de Tebas, dividindo o reinado durante anos alternativos.
Etéocles, no entanto, se assenta no trono sem cedê-lo, e Polinices arma
um exército estrangeiro para invadir a cidade. Num combate corpo a
corpo, os dois irmãos morrem aos pés da muralha. Esse clímax dramá-
tico é o final d’Os sete contra Tebas e dá passo ao início de Antígona,
de Sófocles. O fio condutor dessa nova tragédia é a decisão do regente,
Creonte, de ordenar que Etéocles seja enterrado com todas as honras,
enquanto o corpo do irmão fique insepulto, algo que supõe, para a reli-
gião grega, uma tortura eterna para a alma do defunto.
Por que esse ato de violência contra a sobrinho morto? Por que essa
inflexibilidade desapiedada do governante? Há um enigma em Antígona
que cria inquietude no leitor se atende ao desenvolvimento integral da
saga. Etéocles, o defensor da cidade, traiu a ordem [el dictado] de seu pai,
Édipo, ao impedir que Polinices compartilhasse com ele o poder. Entre-
tanto, é o cadáver de Polinices que é castigado, é o irmão quem tinha direi-
to a governar o que é considerado, aos olhos do Estado, como culpado. Por
que essa condenação dos irmãos arbitrariamente desterrados?
Como a história demonstrou tantas vezes, a paz é regrada [legislada]
pelos vencedores. Sófocles não faz nada para explicar que pactos políticos
foram estabelecidos entre Etéocles e seu tio, Creonte, para considerar que
deveriam desatender às ordens de Édipo e fortalecer o reinado de um único
irmão, o que governa Tebas nesse momento. As razões de Polinices não
são ouvidas nunca, e nem mesmo Antígona as contempla em sua defesa.
Ela também aceita que o irmão rebelde tenha invadido a cidade, pois o
objetivo dela não era exculpar a ninguém, mas apelar à piedade: antepor o
irmão fraternal à decisão política.
O que prevalece no debate, então, não é se Polinices tinha ou não
razão para atacar, mas o fato de ter atentado contra a cidade, uma cidade
concebida por Creonte como espaço da ordem, como arquitetura do Es-
tado. Polinices foi contra essa ordem e, para o regente, o castigo devia ser

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

exemplar para explicar a seus contemporâneos que ninguém podia ante-


por um desejo pessoal, por justo que parecesse, ao bem-estar comum dos
cidadãos. Creonte, como governante, prefere, pois, a injustiça à desor-
dem. É contra essa injustiça que Antígona se ergue portadora da defesa
de todos os rebeldes desprotegidos, a quem a razão do Estado aplasta com
a retórica do bem-estar comum.
Esse pano de fundo político permite entender por que Antígona
deve ser vista, em primeira instância, como um discurso ilustrado sobre
dois modelos de ação política, um sustentado na aparência objetiva de uma
lei do Estado, outra na precariedade subjetiva que nunca antepõe a força
aos valores de seu discurso. O argumento não é o do rebelde beligerante,
pois o gesto de Antígona contrasta, em dimensão pacífica, com o de Po-
linices. Se aquele, ante a injustiça, arma um exército e se levanta contra a
cidade, Antígona se limita a desobedecer a uma ordem sem pôr em perigo
ninguém mais a não ser si mesma.

A Ação Individual

O gesto de Antígona é, como o qualificou José Ángel Valente4, um


“ato criador de liberdade”, o passo para uma nova órbita que o Estado de
Creonte não contempla. Essa criação livre é específica da heroína, e, à me-
dida que é intimamente oposta à conduta social, se realiza em solitário e
adquire toda sua transcendência nessa solidão. Da mesma forma que An-
tígona não é uma obra sobre a luta armada e violenta contra o poder, tam-
pouco é uma obra sobre a revolta coletiva. Para Sófocles, o ato de liberdade
parece [ser] uma prerrogativa individual. A irmã da heroína, Ismene, com-
partilha, em seu diálogo inicial com Antígona, o mesmo critério oposto ao
decreto de Creonte e, no entanto, vacila na hora de o desobedecer: “sou
incapaz de agir contra os cidadãos”, se justifica pera a taxativa decisão
rebelde de sua irmã. Essa resignação de Ismene perante uma lei que sabe
injusta, mas que não se atreve a combater, abre um abismo perante sua
irmã, que decidiu, depois desse prólogo absolutamente importante [clave],
atuar por sua conta e risco.
Por essa mesma entrega à rebeldia livremente escolhida, quando An-
tígona é detida e interrogada por Creonte, ela não permite que Ismene a
defenda. Uma má consciência, algo tardia, leva esta a solicitar ser enterra-
da em vida junto com Antígona, mas a heroína a afasta, recordando que o
ato transgressor pertence somente a ela: “Não morras junto comigo nem
te atribuas aquilo no que não pusestes a mão. Bastará com que eu morra”.

4 VALENTE, J. Á. “A resposta de Antígona”. Papeles de Son Armandans, CLV, p. 123-124, 1969.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O conflito dramático surge, pois, entre Antígona e Creonte. O res-


to dos personagens e o próprio coro [espectador], resignado, parecem se
mover e flutuar segundo os acontecimentos, sem que um pensamento
radical os anime jamais a ir mais além de suas preocupações. Se durante
a primeira parte da obra essa figura convencional e volúvel é encarnada
por Ismene – que deixa de aparecer depois que sua irmã a isente de toda
a corresponsabilidade –, na segunda parte o personagem de Hémon,
apaixonado por Antígona, aparece como um novo contraponto huma-
nizado pela dúvida. Também aqui convém perguntar-se por que Hémon
não apareceu antes, por que não foi buscar Antígona previamente, por
que não se solidarizou com sua dor ou com seus atos até que estes te-
nham sido atos públicos?5 Novamente aqui encontramos um persona-
gem convencido da crueldade de seu pai, Creonte, mas cuja atuação final
não se orienta por uma convicção ética e serena, mas sim pela paixão
desesperada ao ver Antígona morta. Se Ismene é a figura convencida,
mas covarde, que deixa de atuar ante o perigo, Hémon é o apaixonado
impulsivo que se move somente se move desde o instinto e, por isso, sua
morte não tem a grandeza nem a transcendência do belíssimo sacrifício
de sua paixão. Ela, do princípio ao fim, está sozinha, atuando no âmbito
de uma ética individual e irredutível.
O poder de Antígona é tão forte quanto unívoco, e é justo que mui-
tos comentaristas do texto acabem considerando Creonte como um per-
sonagem dramaticamente mais rico enquanto assistimos a uma regres-
são de seu discurso: tendo inicialmente negado o diálogo, se dá conta,
ainda que demasiadamente tarde, de seu erro. Nessa estratégia, a dor
acaba se manifestando em Creonte muito mais do que em Antígona, cuja
despedida do mundo dos vivos admite a tristeza, mas não o desespero.
Enquanto ela conhece o valor e o sentido de seus atos e puder assumir,
reconfortada, sua condenação, que só afeta a si mesma, o lamento final de
Creonte é absoluto e sem limites, pois adquire a consciência de que sua
prévia soberba inflexível, levada ao extremo, ou a hybris, é a causa de que
toda sua família tenha acabado morta.

Em Nome dos Mortos

Lutadora abnegada, mas também mulher piedosa, Antígona nun-


ca se move pelo ódio, mas sim pelo amor, como lhe diz literalmente
Creonte em um dos momentos mais célebres do interrogatório. Mas, o

5 Na [peça] posterior de Antígona, de Eurípedes, conservada somente em fragmentos, o gosto pela humanização
sentimental característica desse outro grande trágico faz com que Hémon seja cúmplice de Antígona em todos os atos
e outorga à obra toda maior protagonismo à história amorosa de ambos.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

amor e a piedade não nascem da dimensão ética de tintas humanistas:


o ato político de Antígona não pode ser separado, por mínimo que seja,
no texto de Sófocles, de sua dimensão religiosa. Se há visto nela um
antecedente de figuras messiânicas da talha do próprio Cristo, figuras
sempre adornadas das qualidades de Antígona: uma obstinação displi-
cente, uma conexão íntima com o divino, um espírito de sacrifício e uma
consciência de estar celebrando um ato redentor para futuras gerações.
O que Antígona não pode tolerar de Creonte é que faça desaparecer,
a partir de um decreto, o valor das crenças religiosas que outorgam à
vida um sentido superior, umas crenças que, definitivamente, limitam
o poder do Estado. As frases opostas que Antígona e Creonte proferem
em um dos momentos mais tensos do juízo operam sobre esse conflito
de interesses, esse duelo entre um pragmatismo secular e uma religio-
sidade atávica. À acusação de Creonte de ter-se atrevido a transgredir
suas leis, Antígona replica, em um falar memorável, que não tinha sido
Zeus quem as tinha ditado; as que ela segue, pelo contrário, têm uma
vigência que “não vem de ontem, nem de hoje, mas de sempre”, pois são
leis divinas. O sacrifício mesmo de Antígona tem, por isso mesmo, uma
dimensão sobre-humana inédita em toda a história da tragédia clássica:
não é por submissão aos deuses – como no caso desse outro mito trági-
co grego que é Ifigênia6 –, mas é por solidariedade a eles que a heroína
empreende a cadeia de ações que a condenará.
A religiosidade que impregna todos os gestos de Antígona aproxima-
-a, desde o início da obra, ao imaginário da morte, que nunca sente como
autêntica inimiga. Por isso, a memorável despedida final de Antígona, an-
tes de ser conduzida ao sepulcro, tem a temperatura poética de uma ode à
eternidade, um canto solitário ao mundo sereno dos mortos. “Oh, tumba,
oh subterrânea morada que me guardará sempre, para onde me encaminho
a reunir-me com os meus, cuja maior parte já recebeu a Perséfone entre os
mortos”. Na gravidade dessas palavras há, também, o fundamento de uma
lírica necrófila, cujos vestígios seguirá a tradição poética, desde o último
ato de Romeo e Julieta até as comovedoras elegias de Emily Dickinson.
Entre o desejo inicial de enterrar Polinices e a conclusão final da
obra, com a inumação de Antígona, o argumento discorre como uma inci-
tação ao prazer do sepulcral, como um desejo inconsciente pelo repouso.
Assim, o enterro de Antígona tem algo de happy ending, uma vez que ela
encontra a calma que reclamava para o cadáver de seu irmão, vendo-se en-
volta no repouso mesmo que tinha almejado oferecer a Polinices.

6 Ifigênia, filha de Agamenon, aceitou ser sacrificada por ordem dos deuses para permitir que o vento se levantasse e
os barcos de seu pai pudessem partir para Troia guerrear.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Um gesto universal

A capacidade sobre-humana de Antígona para atuar sempre a fa-


vor da conciliação a converte em estandarte de qualquer utopia (“desejas
o impossível, tu”, lhe recrimina Ismene) e permite que sua história cubra
tanto matizes como criações que dela tenham querido se apoderar, implí-
cita ou explicitamente, de sua fascinante e hermética figura. Ditas criações
podem ser artísticas, mas também filosóficas, religiosas ou diretamente
políticas. O comovedor do personagem é que, em contraste à maioria das
criações literárias da Antiguidade, seu público leitor ou cênico nunca tem
a sensação de estar contemplando uma figura estritamente literária. Uma
espécie de milagrosa contaminação da memória coletiva convida sempre a
suspeitas que Antígona tenha existido, e realmente existe, multiplicada em
centenas de cenários em conflito. Ainda que dissimulado pelos artifícios
da retórica, seu gesto só é aparentemente utópico, porque sua ação exem-
plar e cívica, em suas múltiplas e necessárias encarnações, segue sacudin-
do a consciência humana.
A assombrosa capacidade da heroína para fazer-se interessante à
cidadania dos mais diversos períodos históricos demonstra-se pela quan-
tidade de versões dramáticas que recriaram seu mito7. Algumas vezes, o
fator ético-político perde força perante o estudo psicológico das paixões,
como ocorre de forma bastante notável na Tebaida, de Racine (1664). Este
nos apresenta a um Creonte apaixonado por Antígona, culminando sua
tragédia com o suicídio do tirano após comprovar a morte de sua sobrinha.
E, com uma funcionalidade dramática não muito diferente, Alfieri, em sua
Antigone (1783), faz do regente um velho irritado contra Antígona porque
ela se recusou a se casar com Hémon. Essas variações – tão frequentes
nas aproximadamente 25 obras compostas sobre o personagem – podem
parecer caprichosas em relação ao debate filosófico central, mas jogam luz
sobre a capacidade do material dramático de Sófocles para crescer e evo-
luir em relação aos personagens que põe em jogo sem que isso signifique
trair o gesto radical da heroína. Ainda que matizando psicologicamente as
razões do tirano (e desmitificando, pois, suas razões de Estado), esses au-
tores nunca negam a Antígona sua capacidade substantiva para encarnar
uma ética perene da insubmissão.
Os acidentes melodramáticos e passionais, no entanto, não são os
que a modernidade teatral privilegiou na hora de abordar a história de
Antígona. O século XX, século de conflitos em escala mundial, viu nessa
tragédia um modelo exemplar para expressar, nos cenários, a resistência

7 Steiner (Antígonas, p. 133-134) constata a impossibilidade de estabelecer um catálogo exaustivo de obras em que
Antígona aparece, uma vez que elas se contam às centenas.

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Leno Francisco Danner
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civil frente à intolerância. O argumento perde toda conotação sentimen-


tal e se estabelece com imediatidade política, apelando à urgência de
dar uma resposta intelectual a tantas crises coletivas desencorajadoras.
Em 1917, em plena guerra europeia, Walter Hasenclever escreveu uma
versão expressionista de Antígona, fazendo sentido o eco de uma época
convulsionada pela tragédia dos campos de batalha. Em 1939, Salvador
Espriu concebeu sua Antígona como uma chamada admonitória à re-
conciliação depois da derrota republicana na Guerra Civil espanhola.
Jean Anouilh, geralmente considerado um autor reacionário, propôs
em sua versão de 1942 uma aposta pela recusa a todo colaboracionismo
conformista em tempos de ocupação nazista na França. Bertolt Brecht,
em 1949, moderniza o sentido da tragédia (seguindo fundamental tra-
dução alemã de Hölderlin), para situar seu prólogo na Berlim de 19458,
fazendo de sua protagonista o símbolo de um ativismo pacifista que sabe
desconfiar e se separar das maiorias alienadas. Em 1961, Judith Malina,
cofundadora do Living Theatre, foi presa em Nova Iorque após umas
manifestações pacifistas, e, durante o mês que passa encarcerada, tra-
duz para o inglês a obra de Brecht9. Essa tradução acaba dando pé a um
dos espetáculos mais combativos do Living Theatre, tendo sido repre-
sentado durante duas décadas em diversos cenários em conflito, como a
Praga comunista de 1980, cheia de dissidentes cheios de esperanças, ou
a Espanha de 1977, na incerta maré da Transição.
Ainda que a sucessão de Antígonas ao largo do século nem sem-
pre tenha assumido esse desejo/anelo social, muitas vezes se limitando a
veicular uma aventura esteticista – como ocorreu com o polêmico orató-
rio de Cocteau e de Honegger10 –, o apelo revolucionário de Antígona e
a necessidade de sua presença em momento de crises políticas parecem
erigir-se nos motivos-chave para sua constante reescrita. Tendo em conta
que a história contemporânea pode ser considerada, pela abundância de
conflitos bélicos em escala global, uma autêntica tragédia coletiva e dado
que os períodos de paz e de guerra tendem cada vez mais a se confundi-
rem, não deveria nos estranhar que Antígona acabe sendo, vinte e cinco
séculos depois de sua escritura, uma tragédia essencial para a cultura da
distensão e do desarmamento.

8 Para as representações posteriores à sua estreia, Brecht suprimiu esse prólogo, substituindo-o por um breve
discurso de introdução. Brecht não queria que uma situação histórica concreta dificultasse a atualização objetiva do
público perante o conteúdo da obra. Veja-se; LASSO, J. S. De Sófocles a Brecht. Barcelona: Planeta, 1970, p. 332.
9 ARMEL, A. Antigone. Paris: Autrement, p. 63-67, 1999.
10 Estreado em 18 de setembro de 1927, o espetáculo contava com o trabalho de Picasso na decoração, Coco Chanel
no vestuário e Antonin Artaud no papel de Tirésias. Apesar de seu evidente compromisso com a liberdade e sua
esperança vanguardista, a representação desse dia de estreia foi interrompida por André Breton e o grupo surrealista,
que acusam Cocteau de pretensioso e esteticista.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Antígona, ou o anticine

É paradoxo que a tragédia grega que provavelmente mais versões


teatrais produziu tenha resistido tanto às adaptações literais em filme.
É provável que isso se deva a que o cinema seja uma arte do movimento,
e Antígona uma obra da quietude, sobre um diálogo de surdos sem evo-
lução possível, só finalmente superado na vertigem fatal da clausura. Em
razão disso, a Antígona cinematográfica, por excelência, foi encarnada
num filme estático, uma filmagem despojada e rigorosa de uma recitação
a cargo de uns atores em um teatro grego na Sicília, o antigo Teatro de
Segesta. Trata-se do filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, An-
tigone, que segue o texto de Brecht e cuja estreia berlinense, em 1991,
dedicaram seus autores aos civis iraquianos mortos na primeira guerra
do Golfo. A referência pacifista era especialmente oportuna, já que na
Antígona de Brecht, Polinices e Etéocles jamais se enfrentaram: ambos
tomam parte de um exército tebano que o tirano Creonte armou contra
a cidade de Argos. Quando Etéocles morre em batalha, seu irmão, horro-
rizado, abandona o exército e volta para casa. É o próprio Creonte quem
o mata e quer castigar sua deserção proibindo seu enterro. Antígona, na
obra de Brecht, é defensora dos desertores e alça todo o seu discurso con-
tra o despotismo de qualquer invasão militar.
Como em outros filmes de Straub e Huillet, Antígona é a adaptação
de um espetáculo prévio, filmado desde um respeito rigoroso ao texto e à
enunciação dos atores. O estatismo não é, entretanto, arqueológico. Por
um lado, percebe-se a tensão extraordinária entre a palavra e o vento, a
natureza, o leve movimento dos vestidos clássicos nesse trabalho en plein
air. Finalmente, a contemporaneidade do conjunto se revela em toda sua
extensão com o som final de um helicóptero que acompanha a inscrição de
umas palavras de Brecht a propósito da ameaça da guerra constante que
concerne [se cierne] à humanidade. São as vítimas e o abismo inexorável
entre elas e as decisões do Estado, o que, de forma bastante sutil, vai sen-
do colocado em primeiro plano pelo filme de Straub e Huillet, concebido
como um ato de resistência – dos atores, do público, da criatividade, da
ideologia –, cuja negação ao movimento significa oposição a qualquer re-
trocesso para a liberdade.
A preeminência do debate sobre a ação impregnou outros intentos
cinematográficos de revisar a figura de Antígona. A importância da versão
de Brecht é tão manifesta em toda a paisagem contemporânea, que não é
de se estranhar que seja sempre a Alemanha o país onde o aspecto refle-
xivo, o debate dialético tenha dado mais oportunidades à palavra de An-
tígona. Em 1978, um filme coletivo, Alemanha no outono (Deutschland im

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Herbst) – filme quase testamentário do novo cinema alemão iniciado uma


década antes – incorporava, em um de seus episódios, dirigido por Volker
Schlöndorff, um ensaio sobre uma produção televisiva de Antígona escrita
por Heinrich Böll, que comportava um debate entre os responsáveis por
uma cadeia de televisão e o próprio Böll sobre a necessidade de programar
a obra apesar do cerco incansável do aparato opressor, evocação dos duros
procedimentos da Alemanha Federal dos anos setenta.
Nos anos posteriores ao maio de 1968, com uma Europa ainda sacu-
dida pelos distúrbios estudantis que propuseram, à maneira de Antígona, a
necessidade de “desejar o impossível”, aqueles tiveram uma réplica literal
no filme de 1970 Os Canibais (I cannibali). Sua diretora, Liliana Cavani,
que acabara de fazer um Galileo (1968) de inevitáveis ecos brechtianos,
inicia o filme com as ruas de uma cidade cheia de cadáveres de jovens estu-
dantes abatidos por uma repressão militar, sobre os quais pesa a proibição
de serem enterrados. Duas novas Antígonas e Ismene assumem o risco de
enterrar seu irmão e convertem seu gesto solidário em uma encarnação
contemporânea do desafio juvenil frente à repressão.

O Velho e o Novo

Em Antígona se encontram duas formas de entender a organização


do Estado e as relações entre os cidadãos. Desde a leitura feita por Hegel,
a obra pode ser lida como uma contraposição entre o poder do parentesco
– isto é, os privilégios e servidões hereditárias –, e o princípio universal
do Estado, que trata de forma idêntica todos os cidadãos. Não é a única
tragédia que fala da luta entre duas ordens. Desde a Orestíada de Ésquilo
(que explica a passagem de uma ordem primitiva fundada sob a vingan-
ça de sangue a uma organização democrática baseada no direito), a idade
de ouro do teatro ático tem como pano de fundo crítico o conjunto de
contradições que deve assumir a construção do Estado democrático em
Atenas, ainda que Antígona seja, a todas as luzes, uma heroína positiva,
enfrentar um Estado que alega ser muito mais moderno e avançado que
aquele a quem ela concebe. Tem-se afirmado, com bastante pertinência,
uma crônica trágica que evoca o final de um poder feminino matriarcal,
representado por essa virgem insubmissa ao homem que é Antígona, de
uma apologia do retorno à antiga piedade, dos deuses milenares, contra a
vontade de Creonte de organizar uma forma moderna de Estado.
Segundo essa visão de Antígona, a atitude obstinada e inamovível
de sua protagonista feminista é, de alguma forma, uma atitude retrógrada.
Naturalmente, seu gesto rebelde testemunha uma vontade de justiça no
contexto de um Estado cruel e todo-poderoso, que antepõe a necessidade

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

de modernização à forma de a obter. Mas, o discurso de Antígona tem algo


de atávico, e é sintomático que o único personagem que a defenda seja
Tirésias, o adivinho cego, o mediador entre deuses e homens, o represen-
tante de uma cultura antiga que os decretos pragmáticos de Creonte que-
rem fazer esquecidos. No gesto de render culto ao irmão morto, Antígona
revela seu amor à terra primeva e inscreve sua ética na esfera privada do
amor fraterno, do laço consanguíneo: como suscita Hegel, o culto ao deus
do lar é anterior ao culto ao Estado.
Tudo isso torna possível imaginar que o centro do discurso de An-
tígona pode ser encarnado, contemporaneamente, em todos aqueles gru-
pos sociais submetidos a uma transformação histórica que aposta nos be-
nefícios da modernidade sem levar em consideração a dívida que deixa
para trás. Nessas zonas de conflito entre tradição e modernidade pode
existir o momento paradoxal em que se está, por uma vez, do lado da velha
ordem, ou seja, de tentar frear o exercício pragmático de um progressismo
devorador que deixou de pensar em escola humana. Movimentos de defe-
sa da terra, grupos ecologistas, movimentos identitários nacionalistas que
lutam contra a globalização ou contra o poder dos Superestados mantêm
essa contradição entre oposição a um poder cruel e despótico e o desejo
nostálgico de recuperação do que se perdeu, do que não foi contaminado.
Nesses territórios, a figura de Antígona pode ser reinventada não tanto a
partir de ativismo revolucionário de caráter messiânico ou utópico, mas
como encarnação de um desejo enraizado (logo, radical) de não seguir os
movimentos do progresso.
Começa a se diferençar, aqui, o gesto de Antígona do de outros
representantes modernos da chamada desobediência civil. Quando esse
termo foi cunhado em 1866 por Henry D. Thoreau em seu livro Civil di-
sobedience, o autor citava a Antígona como modelo fundador para an-
tepor a consciência à lei em situações de injustiça social, como as que se
viviam nos Estados Unidos da América por volta dos mediados do século
XIX11. Contudo, a maioria dos ativistas posteriores à desobediência civil,
como Gandhi ou Martin Luther King acabam se tornando propícios a
uma atitude messiânica de líderes de alguma forma de progresso revolu-
cionário, que, na obra de Sófocles, não aparece nunca. A heroína grega
é, isso sim, uma resistente frente a qualquer tipo de movimento, frente a
qualquer tipo de transformação. Ainda que seu gesto seja moderno por
necessidade, por desafiador, por valente, seu universo dramático não é o
do messianismo, mas o de um hermetismo individualista não isento de
conotações autodestrutivas.

11 Consulte-se: DA ROCHA, A. C. A desobediência civil a partir de Thoreau. San Sebastían: Gakoa, 2002.

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As elegias da Terra

O cinema geralmente recriou a passagem do velho para o novo a


partir da significativa captura de gestos de resistência quase numantina12
por parte de personagens anciãs que não aceitam a transformação social.
O Sul dos Estados Unidos é um desses espaços inclinados à recriação de
figuras femininas, vinculadas à terra, que, como a protagonista de O Ven-
tou levou (Gone with the Wind, 1939), resistem a perder o lar de seus ante-
passados. Por vezes, essa atitude resistente entronca com o gesto político e
insubmisso da desobediência de Antígona. No filme de Elia Kazan, O Rio
selvagem (Wild river, 1960), a tensão entre Ella Garth (Jo Van Fleet), a anciã
proprietária de um idílico território insular situado junto ao Rio Tennes-
see, e as autoridades que a querem expropriar evidencia um conflito de
interesses e de sensibilidade que só pode acabar na desaparição da antiga
ordem e a morte da velha proprietária.
O fascinante de um relato como esse é que o motivo dessa expro-
priação que é vista de uma forma tão hostil pela proprietária não é outra
coisa que a de garantir a sua própria segurança e a de outros habitantes
do vale do Tennessee. É a brutalidade do rio e a constante destruição que
causam as suas cheias, o que obriga as autoridades a construir um dique.
No entanto, os desígnios desse rio parecem ser vistos, por parte da indô-
mita anciã, como decretos ocultos de um deus a que se não deve obedecer.
A força da tradição, do que sempre foi, é o que faz a anciã escolher morrer
em sua ilha, ainda que esta seja inundada pelas águas. Ser enterrada ali,
no cemitério que ainda não foi inundado, constitui o último gesto de ade-
são que seus familiares concedem a essa mulher de culto suicida, mas fiel
à ordem natural preexistente.
Outro contexto de exacerbada tensão entre o velho e o novo foi na
Rússia pós-revolucionária, tantas vezes recriada pelos mestres do cine-
ma soviético. O grande cantor da terra e de suas gentes, Alexander Do-
vzhenko, preparava, ao final de sua vida, um extraordinário filme elegíaco
sobre as expropriações que sofreu uma pequena comunidade rural por um
projeto de transposição fluvial que a submergiria para sempre entre as
águas. Esse filme, Poema do mar (Poema o more), que, em razão da mor-
te de Dovzhenko, foi filmado por sua mulher, Yuliya Solntseva, em 1959,
contém emblemáticas imagens de anciãos incapazes de abandonar suas
casas: alguns deles preferem morrer a ver a passagem do progresso, que,

12 (Nota do tradutor): Preferi manter a expressão original a substituir por outra aproximada em língua portuguesa.
Segundo o Diccionario de la Lengua Española – Real Academia Española, a expressão “numantino/na” tem os
seguintes significados: a) natural de Numancia, antiga cidade da Hispânia Citerior. Essa denotação é registrada pelo
Houaiss no vocábulo “numantino”; b) pertencente ou relativo a Numância ou a seus naturais; e c) aquele que resiste
com tenacidade até o limite, geralmente em condições precárias.

98
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

de maneira ambígua, o Dovzhenko revolucionário apresenta, ao mesmo


tempo, como uma porta para a prosperidade e como um atendado contra a
memória da terra e de suas gentes.
O Creonte desse filme sobre a expropriação de terras é anônimo por-
que é todo o aparato político soviético que se impõe a esses seres apegados
à terra. Mas, os seus gestos, com suas abnegações sem limites, recuperam
a parte menos messiânica e, por isso, mais destrutiva do legado de An-
tígona: o compromisso com o antigo até a extenuação, a vontade de não
participar jamais naquilo que, para a melhora aparente da comunidade,
destrói a arcaica memória de suas próprias origens. Uma luta entre o ve-
lho e o novo, que, como geralmente ocorre com esse argumento universal,
evoluiu ao mesmo que a história. É assim que a poética do cineasta Alek-
sandr Sokurov se instala sobre a lição de Dovzhenko e, em parte, na de
Tarkovsky, abordando uma série de elegias à terra russa pós-soviética que
são, também, uma nostalgia, mas já nem tanto por uma ordem arcaica, mas
simplesmente de quanto o Estado, antes de sua desintegração, ainda tinha
um norte. Agora, à deriva do novo capitalismo feroz, só resta a viagem, o
exílio, o apego à terra, a elegia que um filme como Mãe e filho (Mat i syn,
1997) transmite com pesarosa beleza.

Uma negativa suicida

Os personagens resistentes que baseiam sua gestualidade no ato


íntimo, autônomo, individualista levam, como vimos, sua negatividade
a um plano autodestrutivo. A negação a qualquer colaboração gera uma
imagem de inamovibilidade obstinada que os preserva de toda tentação,
de qualquer mudança possível. Galileu – um personagem que também
instigou Brecht – não pertence a essa raça: ele é o paradigma da vaci-
lação humana perante a arbitrariedade do poder e do rigor da tortura,
o intelectual capaz de se retratar de suas afirmações, ao mesmo tempo
que pronuncia a célebre sentença: “desgraçada é a terra que precisa de
heróis”. Em sentido contrário, Antígona não parece temer nada do que
lhe passa, porque suas decisões já estão fora de qualquer dúvida, atua
apaixonadamente, incapaz de reconsiderar sua posição. Essa radicalida-
de da mulher que não colabora com o poder converte-a em precedente
de outras heroínas da tipologia martirológica nascida da desobediência.
O caso de Joana D’Arc, reiteradamente revisitado pelo cine, pode consi-
derar-se uma reencarnação com tintas medievalistas da heroína acusa-
da. As diferentes visões cinematográficas do personagem insistiram no
caráter estático dessa mulher condenada por sua obstinação desafiadora
no marco de um universo dinâmico e beligerante, pleno de convulsas

99
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

intrigas sociais e lutas pelo poder, que não se dobram jamais à inteireza
da protagonista. A imagem do tribunal masculino, autoritário, inquisi-
dor, perante uma acusada que obteria sua libertação somente se se re-
tratasse de suas afirmações é equiparável, em muitos aspectos, ao duelo
de forças entre Antígona e Creonte. Especialmente as versões de Carl
Theodor Dreyer (1928) e Robert Bresson (1962), que concentram toda sua
dramaturgia no juízo da mártir, abundam nessa retórica da confrontação
antitética entre dois poderes que não querem mover-se de suas respecti-
vas posições. Como na obra de Sófocles, faz-se visível o estranho empa-
relhamento entre uma fé santificadora e a divindade primitiva, anterior
a toda lei escrita e a todo tribunal humano que assume Antígona em sua
trajetória suicida em direção à imolação.
A influência da Joana D’Arc cinematográfica – especialmente a
de Dreyer – teve, na história do cinema, o poder de explicar a reutili-
zação dessa figuração resistente e abnegada em outro diretor dinamar-
quês, Lars von Trier. Muitos dos filmes desse autor polêmico, de vocação
transcendental e formalismo distanciador e crítico, seguem a trajetória
de heroínas obcecadas numa ética privada, impossível de ser comparti-
lhada pela comunidade em que vivem e que as leva ao martírio. Em Rom-
pendo as ondas [no Brasil: Ondas do Destino] (Breaking the waves, 1996) e
em Dançando no escuro (Dancer in the dark, 2000), a negatividade suici-
da de referidas heroínas encontra seu ápice dramático em uma bondade
transcendente, eminentemente religiosa, que lhes permite sofrer as in-
justiças e, de certa forma, reafirmar-se com elas. Existe na posta em cena
desses filmes um minimalismo expressivo solene que sabe confrontar,
por meio do emprego do primeiro plano, o intangível código da femini-
lidade incorruptível com a volubilidade de um universo autoritário e pa-
triarcal que usa a violência para compensar o que jamais consegue obter:
o acatamento dócil dessas figuras femininas. Se em Rompendo as ondas
a protagonista, contra toda a moral de uma comunidade protestante in-
transigente, se prostitui até o maltrato e à morte para acabar curando
milagrosamente seu esposo inválido, em Dançando no escuro a tragédia
se evidencia de forma mais nua pelo recurso ao juízo contra a inocente:
uma mulher imigrante que matou seu violador em defesa própria nega-
-se a confessar o que aconteceu, de fato, perante um desalmado tribunal
norte-americano. O desenlace não pode ser outro que sua condenação à
morte e sua execução, mas o que se castiga não é um assassinato, mas a
imersão suicida da heroína no silêncio santo, imóvel e obstinado, carac-
terístico de todas as Antígonas.

100
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A Resistência frente à tirania

À negatividade autodestrutiva é possível supor, na mitologia de An-


tígona, o ativismo revolucionário. Ainda que a ambiguidade da obra de
Sófocles seja grande, parece ser lógico que o uso mais frequente de sua
imagem acaba por ser a de uma visão política na qual prevalecem os gestos
de um resistente. A diferença de gênero não é, aqui, de somenos impor-
tância, já que a confrontação entre totalitarismo patriarcal e alternativa
feminina permite veicular muitas releituras de Antígona. A mulher como
alternativa política, como representante de outra forma de agir remete,
também, às doutrinas do pacifismo, e isso é algo que qualquer nova versão
da obra sói pôr em primeiro plano. Ao fim e ao cabo, todas as ocorrên-
cias da tragédia têm lugar por culpa de uma guerra que foi empreendida
por um conjunto de guerreiros, e o gesto piedoso e fraterno de Antígona,
desnudado de armas, programático precisamente por sua vulnerabilidade,
supõe um dos primeiros vislumbres de uma objeção ética ao militarismo
feita desde a recusa de colaboração.
Em Antígona, faz-se presente pela primeira vez a jornada [viaje]
antagônica de uma mulher, alijada da guerra, mas vítima dela, que aca-
ba combatendo os decretos patriarcais ao sentir a dor pelos parentes
mortos. Esse percurso à tomada de consciência é sublime, sem servidão
de nenhum tipo, porque baseia-se em um amor familiar, em um gesto
de filiação, sem a presença do sexo, nada obstante Jacques Lacan tenha
apontado essa trama oculta (a do amor sexual entre irmãos) em sua abor-
dagem psicanalítica da trama. Mas, a demonstração do poder do amor
de filiação é confirmada em novas representações do gesto de piedade e
rebeldia que encarnam outras figuras femininas, como as mães que têm
em A mãe (1907), de Máximo Gorki – adaptado ao cinema em 1926 por
Vsevolod Pudovkin em um dos mais belos filmes da Revolução Russa –
sua encarnação moderna mais paradigmática. Em muitos conflitos civis
do século XX, a mãe reivindicativa devém uma presença inamovível, fiel,
alternativa, que parece recolher o legado de Antígona. Outras vezes, essa
mulher que resiste a ver como um irmão ou um marido é detido ou fu-
zilado converte-se decididamente em mártir, como a Anna Magnani de
Roma, cidade aberta (Roma città aperta, 1946).
Para além da figura trágica dessa mulher que morre assassinada ao
tentar impedir que seu futuro marido seja detido, essa obra-prima de Ro-
berto Rossellini é um dos filmes que de forma mais diáfana fez um discur-
so moral sobre a resistência contra a tirania. Consequentemente, a ética
que propugna Rossellini não busca o gesto excepcional, único de Antígo-
na, mas atende ao heroísmo coletivo e anônimo que pode crescer e se mul-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tiplicar por meio da solidariedade entre seus representantes. Os diversos


personagens desse filme evocador dos movimentos de resistência italianos
durante a ocupação nazista de Roma mostram formas coletivas de resis-
tência à colaboração. O testemunho de seus comportamentos, baseados
em fatos reais, corrige a solidão das desobediências ao estilo de Antígona
e Joana D’Arc, para ingressar numa linha de conduta compartilhada que
deixa a seus praticantes nenhum motivo de valor. “Não somos heróis, mas
faremos o que é preciso fazer”, diz em um fragmento do filme um desses
resistentes, a ponto de ser torturado e ajustiçado.
Nessa afirmação paradoxal, revela-se toda a inteligência dramática
de Rossellini: não se trata tanto de negar que seus personagens tenham
vivido uma experiência heroica, mas de trasladar dita experiência a uma
ética comum, a uma ética civil na qual todo o coletivo possa reconhecer-
-se. Os interrogatórios e torturas que sofrem um ativista comunista e um
sacerdote católico, capazes de resistir à dor, mas não delatar nenhum de
seus companheiros, têm sobre si o signo de Antígona. Quando o tortura-
dor nazista acusa o sacerdote de que, com sua negativa a responder, está
desacatando a autoridade do país ocupante, este se limita a responder que
ele segue leis superiores, as de Deus, em umas frases idênticas às que An-
tígona usa para não sucumbir às acusações de Creonte.
Como Antígona, os mártires de Roma, cidade aberta têm completa
consciência do que está a ponto de lhes acontecer, sabem que seu destino é
a morte iminente, mas, no entanto, não cedem. Sua obstinação persistente
e emblemática devém, pois, uma perfeita atualização dos postulados da de-
sobediência civil nascida em Sófocles. Mas, em Rossellini, como em toda
tragédia contemporânea de caráter político, esse martírio se faz contra um
fundo de esperança de mudança, de um anelo de transformação.
O cinema de Rossellini, como o de outros neorrealistas italianos, ex-
traiu seus argumentos da realidade. E é justamente no cinema do real onde
pugnam por aparecer as histórias mais atuais de Antígona, histórias verí-
dicas de mulheres que enfrentam o mesmo dispositivo trágico que a mítica
heroína. Vale dizer, Antígona vive e existe no mundo, ainda que seja em
zonas escuras e pouco conhecidas, em territórios em que o poder político
“democrático” quer ocultar porque não pode suportar a interpelação de
seu gesto. E é sobre esses personagens reais que alguns cineastas edifica-
ram crônicas documentais dessa dissidência.
A lista de filmes que reivindicam esses direitos humanos fundamen-
tais é ampla e de muitos variados registros de produção e procedência.
Mas, provavelmente, uma das mais aproximadas a nosso propósito seja
registrada a poucos quilômetros de onde teve lugar o drama fundacional
de Sófocles. É numa Turquia que se pretende sem mácula intolerante onde

102
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

se desenvolve a história da ativista curda Leyla Zana, narradora do docu-


mentário de Javier Corcuera, La espalda del mundo (2000).
A desventura heroica de Leyla se inicia nas praças e ruas ante mi-
lhares de curdos que a aclamam em sua campanha eleitoral para que pos-
sa chegar ao Parlamento, coisa que finalmente consegue. A sequência
seguinte se produz no dia da tomada de posse dos deputados, num ato
transmitido ao vivo pela televisão. A jovem Leyla Zana cruza o plenário
do Parlamento frente à expectativa dos outros deputados. Quando sobe ao
estrado e inicia seu juramento, em curdo, irrompem os gritos e vaias dos
demais parlamentares – em sua grande maioria, homens –, que vociferam
contra ela em razão do idioma usado. O contraste entre uns homens exal-
tados, em atitude violenta, que se amparam numa legalidade constitucio-
nal que proíbe o uso dessa língua, com a obstinada, frágil, serene atitude
de Leyla, representa uma das mais extraordinárias reencarnações do es-
pírito e do texto de Antígona. A terceira sequência é, inevitavelmente, a
do juízo. Rodeada de juízes e militares, Leyla Zana enfrenta um tribunal
de homens que representam o poder do Estado. Aí, no juízo, exatamente
como Antígona, Leyla estende seu discurso: “Não aceito nenhuma des-
tas acusações; se fossem certas, as assumiria, ainda que isso me custasse
a vida. Defendi a democracia, os direitos humanos, a fraternidade entre
os povos e seguirei fazendo enquanto viver…”. Palavras que ressoam des-
de tempos remotos e que antecedem sua condenação cruel a um cárcere
interminável decretado pelas disposições legais, embora injustas, de um
Estado masculino e opressor.

Cadáveres de guerra

Neste episódio de La espalda del mundo, as conhecidas “mães de


sábado” se reúnem semanalmente na Praça Galatasaray, de Istambul, para
exigir notícias, ou os corpos dos filhos, maridos ou irmãos desaparecidos.
Um gesto que remete a tantos outros movimentos femininos de diversas
partes do mundo e que reclamam a restituição desses cadáveres quase
como um símbolo de luta contra o esquecimento que a maioria dos Es-
tados acusados faz sem piedade. Encontramo-nos no mesmo marco dra-
mático de Antígona, o do início de um pós-guerra, com um cenário cheio
de cadáveres mal enterrados. A autoritária decisão de Creonte, ao não dar
sepultura ao corpo de Polinices, expressa de forma clara que, geralmente,
a forma de humilhar os derrotados é escarnicar com seus mortos. A es-
tratégia da ocultação dos cadáveres, o drama dos desaparecidos, as foças
comuns cheias de seres anônimos acompanham a paisagem do pós-guerra
de muito conflitos civis. O documentário, o cinema histórico, o cinema po-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lítico baseado na busca da memória e no respeito à dignidade dos mortos


assumem uma estética que se reconhece no legado cívico de Antígona: o
enterro de Polinices não é somente um ato piedoso perante os deuses, mas
também um ato político de conciliação. Sem ele, sem a solução pacificado-
ra sobre os mortos, não há guerra que possa ser definitivamente encerrada.
Enterrar não é, pois, aqui, silenciar, mas vindicar. O enterro não supõe a
ocultação, mas a resolução pública de um desequilíbrio político. Somente
depois da recuperação da dignidade do cadáver se pode encerrar o ciclo
de ódio. Enquanto o corpo mal enterrado clama, aí estão as Antígonas de
nosso tempo para impedir que seus clamores sejam calados.

Tradução: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Porto Velho/RO, julho de 2019.

104
6
Direito de resistência dos povos tradicionais
no Equador: fatores que levaram
aos protestos de 2019

Ítalo José Marinho de Oliveira


Paulo Henrique Lora Gomes da Silva

Introdução

Apesar do sangrento histórico da colonização e a constante tentativa


de anulação das comunidades tradicionais na América Latina, a população
indígena do Equador exerce um papel determinante nas decisões políti-
cas do País. Como mostra a história, toda a trajetória do País foi marcada
por movimentação constante, o que resultou em diversas deposições de
presidentes e manifestações nas ruas. Atravessaram regimes monárqui-
cos, ditaduras militares e, por fim, democracia presidencialista. O sistema
econômico do Equador conta com grandes reservas de petróleo. Em sua
história recente, a commodity encontra-se no centro da maioria dos con-
flitos econômicos e políticos. Esse cenário foi agravado com a crise em
meados de 2017 e 2018, tendo como pano de fundo a imposição de uma
agenda econômica orientada pelo Fundo Monetário Internacional. Isso le-
vou milhares de pessoas às ruas, sobretudo a população indígena. Não é
por menos: foram os mais afetados pela crise por dependerem de agricul-
tura familiar. A resistência às imposições econômicas governamentais de-
corre do agravamento das desigualdades sociais e penalização das classes
econômicas menos favorecidas. Como resultado, o governo equatoriano
atua com forte repressão. Tornando-se, assim, violador do direito consti-
tucional e humano de resistir. O presente artigo realizará uma abordagem
histórico-política dos protestos que ocorrem no Equador no ano de 2019.
Para tanto, mencionará alguns fatos históricos relevantes e o papel da mo-
bilização indígena na política equatoriana.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Contexto Histórico-Político

A situação dos povos indígenas latino-americanos é resultado de um


processo que se iniciou há mais de cinco séculos. Inicialmente, foram ex-
pulsos dos territórios que originariamente habitavam, onde produziam e
reproduziam sua sociedade e cultura. A ocupação europeia do continente
sul-americano teve como resultado não só o despovoamento, mas a morte
de milhares de indígenas, dizimados por “Guerras Justas”, doenças, além da
imposição de trabalhos escravos. A estimativa é que na época dos primeiros
contatos com europeus existiam cerca de 57,3 milhões de indígenas em todo
o continente e 47 milhões habitavam nos Países andinos (CEPAL, 2019).
Em relação à história do Equador, podemos classificá-la nos seguin-
tes períodos: a) Era Pré-Colombiana; b) Conquista Espanhola; c) Era Co-
lonial, Independência e República. No presente trabalho será abordado a
partir do período republicano.
Em 1972, um golpe militar derrubou o regime de José María Velasco
Ibarra, tendo a ditadura militar se dividido em duas fases: a primeira, de
1972 a 1976, sob o comando do general Guillermo Rodríguez Lara. Seu in-
tento foi modernizar a economia a partir do Estado utilizando o dinheiro
advindo do petróleo. Para tanto, nacionalizou as reservas de petróleo, sua
prospecção, produção e comercialização e ingressou na Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP).
Foi deposto em dezembro de 1975 pelas elites militares, que indi-
caram um tiro representando as Forças Armadas: Alfredo Poveda, repre-
sentando a Marinha; Guillermo Durán, representando o Exército; e Luis
Leoro, representando a Aeronáutica. Inicia-se, então, a segunda fase do
regime militar (1976-1979), que investe na modernização do sistema polí-
tico para adequá-lo à emergente classe média e às novas realidades eco-
nômicas e políticas do País.
Com a baixa do petróleo, as constantes crises internas e o arrefeci-
mento do ciclo petroleiro, o Equador retoma a democracia ainda em 1979
com uma nova Constituição e tendo como Presidente eleito Jaime Roldós
Aguilera, representando uma grande frente partidária de Forças Popula-
res. Roldós falece em um acidente de avião na região da floresta Amazô-
nica; Osvaldo Hurtado Larrea, do Partido Popular, o sucede; entretanto, o
governo enfrenta uma forte crise, em especial por conta do petróleo.
A pressão econômica, principalmente quanto ao petróleo, gerando
inflação, desvalorização da moeda, acúmulo da dívida colocou o governo
Osvaldo Hurtado em cenário de ampla crise. Em 1984, León Febres Corde-
ro Rivadeneira vence as eleições pelo Partido Social Cristão com um forte
discurso de livre mercado e combate às drogas. As disputas políticas inter-
nas e um grande terremoto em março de 1987, que afetou a exportação do

106
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

petróleo, levam o governo a uma nova crise ainda mais profunda. Então,
em 1988 é eleito Rodrigo Borja Cevallos, do Partido da Esquerda Demo-
crática, concorrendo com Abdalá Bucaram, tendo novamente o vencedor
adotado políticas de abertura de mercado.

Movimento Político Indígena

Dentro desse contexto, um dos marcos que possibilitou o reagrupa-


mento dos povos originários certamente ocorreu na década de 1930, com a
criação da Federação Equatoriana de Índios, ligada ao Partido Comunista.
Porém, existia um embate exercido pelos governos militares contra o comu-
nismo. Com a primeira lei de reforma agrária, de 1964, os indígenas passa-
ram a disputar pequenos lotes de terra. Em decorrência disso, a organização
indígena foi se consolidando em pequenas frações. Em 1987 é criada a Con-
federação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE), instituição
com papel central, desde sua criação, organizando indígenas, criando coo-
perativas de produção e estendendo seus papéis sociais e políticos.
Com o discurso de rompimento com a oligarquia nacional e pro-
messa de reformas econômicas profundas, foi eleito em 1996 o presidente
Abdalá Bucaram pelo Partido Roldosista Equatoriano. Mas, os problemas
econômicos e a corrupção interna de seu governo criaram uma instabilida-
de que em poucos meses o tirou do governo sob a alegação de incompetên-
cia, sendo que uma das forças que mais atuou na deposição do Governo foi
a CONAIE, participando na organização indígena.
Em 1997, é nomeado como presidente interino Fabián Alarcón. Du-
rante o governo Alarcón, foi escrita uma nova Constituição. Em 1988 é
eleito, pelo partido Democrata Cristão, Jamil Mahuad. Seu governo foi ca-
racterizado por medidas monetárias como a “dolarização” da economia,
com o objetivo de deter a onda inflacionária. Desvalorizada, a moeda na-
cional passou de 4.000 para 25.000 sucres por dólar. Outra medida impor-
tante foi o projeto de privatização de estatais.
Em seu governo, as mobilizações sociais alcançaram sua maior ex-
pressão, o movimento indígena teve papel de destaque, conseguindo, in-
clusive, articular um movimento de base popular ampla, projeto que ter-
minaria perdendo força. O movimento indígena e a mobilização de setores
do exército foram decisivos para a saída de Mahuad. Essa onda de protes-
tos, que inicialmente foi promovida pelo sindicato de transporte público,
tomou corpo com a adesão dos produtores de banana, um dos principais
produtos exportados pelo País. O movimento fechou estradas, paralisou
transmissões de rádio e TV, provocou o desabastecimento e encurralou
o então presidente Jamil Mahuad. Vencido, Mahuad derruba o aumento
dos combustíveis, entretanto o corpo político segue em protestos – cerca

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de 10.000 indígenas desceram da serra, em marcha, pela cidade de Quito,


buscando direitos básicos, saúde, educação e outras políticas sociais para
suas comunidades. Em outros termos:

E os conflitos sociais recrudesceram, na medida em que a eco-


nomia do Equador, onde também cerca de 70% da população
viviam na pobreza extrema, cada vez mais se deteriorava, ha-
vendo seu PIB, da ordem de US$ 19,2 bilhões, em 1998, caído
cerca de 12%, em 1999, em meio a uma inflação de 60,7%, a
mais alta dos anos 90. Em 6 de janeiro de 2000, o presidente Ja-
mil Mahuad, que pretendia promover a dolarização da econo-
mia, assessorado por economistas argentinos, entre os quais
Domingo Cavallo, decretou outra vez o estado de emergência,
suspendendo os direitos constitucionais, e mobilizou o exér-
cito para controlar a ordem diante de sucessivas manifesta-
ções de protesto, em que os sindicatos, os partidos políticos de
oposição e a Confederación de Nacionalidades Indígenas del
Ecuador (CONAIE), sob a direção de Antônio Vargas, exigiam
sua renúncia (BANDEIRA, 2002).

Em 10 de janeiro, o Banco Central do Equador aprova o plano que do-


larizaria a economia, e Mahuad faz a defesa, no Congresso, de um conjunto
de leis que garantiria a circulação da moeda no País, aprofundando ainda
mais o estado de crise. Sem opções e diante de um estado emergencial, os
indígenas inflamam protestos, que passam a contar com adesão de mais sin-
dicatos, partidos políticos, sociedade civil organizada. A pauta era a renún-
cia de Mahuad, de deputados, juízes e outros membros dos poderes estatais,
mostrando a força dos indígenas nos rumos dos movimentos sociais no País.
No início dos anos 2000, a Assembleia Nacional Constituinte instala
uma junta tripartite com representantes das Forças Armadas equatorianas
para intervir na política nacional. Diante desse cenário, Mahuad renun-
cia, assumindo a chefia do Executivo o vice-presidente Gustavo Noboa,
que permaneceu com o sistema de dolarização da economia; a essa altura,
membros da CONAIE compunham o ministério do Governo.
No ano de 2002, com discurso populista de centro-esquerda e reali-
zando aliança com movimentos indígenas, foi eleito Lucio Gutiérrez pelo
Partido Sociedad Patriótica. Seu mandado durou até abril de 2005, quando
o Congresso, em meio a protestos em Quito, o destitui. Em seu lugar, as-
sumiu o vice-presidente Alfredo Palacio. Em seguida, no ano de 2006 são
realizadas eleições, sendo eleito o candidato Rafael Correa.

Início da crise de 2019

Durante os anos de 2007 a 2017 a presidência do Equador foi exercida


por Rafael Correa, do partido Alianza País, em três mandatos consecutivos.

108
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Em meados de junho de 2015, o então presidente Rafael Correa remete ao


Poder Legislativo, em caráter de urgência, um projeto de lei de heranças
que causaria impacto em cerca de 2% da população. Entretanto, a tentativa
de redistribuir a renda com um imposto sobre heranças foi compreendida
como um atentado à família, e logo a oposição tratou de acusar o governo de
autoritário. O governo equatoriano trata de realizar uma discussão na base
social, deixando claro que as medidas são opostas ao projeto liberal propos-
to pela oposição, o que revela ainda mais assimetrias entre as classes sociais.
Ao deixar o cargo, Correa apoiou Lenín Moreno, que obteve uma vitória
apertada, por apenas 228 mil votos (51,16%), contra Guillermo Lasso (48,84%),
o candidato tido como liberal. Lenín Moreno tinha como vice um aliado em
comum com Rafael Correa, Jorge Glas. Entretanto, diversos casos com sus-
peitas de corrupção, inclusive com a Empreiteira Odebrecht, colocavam Glas
em uma ação judicial que culmina em sua condenação por corrupção, criando
clima de instabilidade no Governo e de rompimento com Correa:

Lenin Moreno não somente não resistiu à nova ofensiva do


imperialismo no continente como se converteu num dos prin-
cipais pontos de apoio da nova geopolítica do imperialismo, a
partir da vitória de Trump-Pence, que tem como um dos eixos
derrotar quaisquer vestígios de soberania nacional dos povos
latino-americanos com vistas à ofensiva neoliberal e espolia-
dora dos grandes capitais para se apropriarem ainda mais dos
recursos naturais, destruindo os resquícios de direitos sociais
e trabalhistas, bem como acabando com os vestígios de seguri-
dade social e de serviços públicos, porventura ainda existentes
na América Latina (CAVALCANTE, 2018).

Em outro momento, Moreno também cedeu à pressão dos EUA no


caso do asilo concedido a Julian Assange na embaixada equatoriana de
Londres. O presidente equatoriano pediu o silêncio de Assange para que
permanecesse na embaixada, visto que as declarações do asilado em apoio
à independência da Catalunha tiveram ampla repercussão. Em outro epi-
sódio, agora em relação à Venezuela, a evidente guinada de Moreno e rup-
tura com sua antiga base se dá na Organização dos Estados Americanos,
onde as posições equatorianas vão de encontro à soberania do povo vene-
zuelano e seu governo.
Uma das políticas equatorianas de redistribuição de renda se dava
nos combustíveis, que contavam com um subsídio do governo, o que bene-
ficiava principalmente os indígenas e populações mais pobres. Este foi in-
troduzido em meados de 1970. Porém, diante da atual crise e das negocia-
ções com o FMI, que para a concessão de um empréstimo de 4,2 bilhões de
dólares estipulava, entre as cláusulas negociadas, o fim dos subsídios aos

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

combustíveis, que custavam cerca de 1,3 bilhão de dólares anualmente ao


governo, a reação ao novo pacote econômico foi notória e imediata, tendo
os combustíveis aumento de até 120%, provocando uma convulsão social.

Protestos em 2019: Resistência e desobediência civil

Na primeira semana de protestos em resposta ao pacote econômico,


o saldo já era de milhares de pessoas nas ruas, principalmente indígenas.
Quinhentas pessoas foram detidas em meio às manifestações e vários po-
liciais foram feitos reféns. Em resposta, o governo prendeu comerciantes
e sindicalistas, a quem acusava de liderar os protestos, sob o comando de
Rafael Correa, ex-aliado político.
Além do movimento urbano, os protestos contaram com a tomada
de instalações de produção de petróleo em meio à Floresta Amazônica,
bloqueio de estradas e distribuição de combustíveis, o que logo levou os
postos à escassez em diversas regiões do Equador.
As lideranças indígenas afirmavam que milhares de indígenas che-
gariam a Quito e que a pressão seria constante sobre o governo. Pouco
tempo depois, fizeram-se presentes mais de vinte mil indígenas, coinci-
dindo com a greve geral programada. Tal situação levou o Governo Lenín
Moreno a mudar a capital política de Quito para Guayaquil numa tentativa
de arrefecer as movimentações.
Mais uma vez a expressividade indígena foi fundamental para que
os movimentos sociais mantivessem, sobretudo, a capacidade de resistir,
semelhante ao que havia acontecido anos antes no processo de derrubada
do presidente Jamil Mahuad em meados dos anos 2000. Entre os indígenas,
a força mais expressiva era a feminina:

O historiador Franklin Cepeda diz que os protestos indígenas


começaram nesta região dos Andes muito antes de o Estado
equatoriano ser estabelecido. “Há revoltas desde o início do
século 19, em 1803, que prenunciam os levantes subsequentes
no Equador como tal.”
No século 20, a mulher indígena se torna mais consciente de
seu papel histórico, afirma Cepeda. “Talvez elas ainda não
tivessem visibilidade suficiente, mas conquistaram espaços
importantes, principalmente na arena política, com cargos de
vereadoras e deputadas.”
Na luta por essa visibilidade, diz o historiador, eles tiveram de
lutar até contra outras mulheres. “Por exemplo, em 1919, em
Riobamba, na fábrica têxtil El Prado, houve um protesto das
trabalhadoras contra a decisão dos proprietários de colocar as
mulheres indígenas para aprenderem junto com as mestiças-
-brancas da cidade.”
Mas Cepeda indica que não é necessário idealizar o papel da
mulher indígena. “Moro em Riobamba e há queixas constan-

110
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

tes de mulheres camponesas que são levadas para as marchas


sob a ameaça, por exemplo, da retirada do serviço de água para
irrigação. Podem ser casos excepcionais, mas há divisões. Não
há entre os indígenas do Equador uma posição única.”
Para Rodríguez, trata-se de analisar as relações de poder. “O
importante é entender nessas relações o papel da mulher e
como ela alcança a liderança política e na prática.”
Essa liderança política remonta, de acordo com a professora
da Universidade Andina, à década de 1930, quando mulheres
como Dolores Cacuango e Tuagua Amaguaña participaram da
fundação da Federação Equatoriana de Índios, bem como das
primeiras uniões agrícolas e as primeiras escolas bilíngues de
espanhol e kichwa.
“Então, nas décadas de 1960 e 1970, Blanca Chancoso assume
a frente. Até hoje, ela está na luta e participou da marcha no
sábado passado, formada apenas por mulheres.” (ZIBELL, 2019)

Após a importante movimentação social, o governo cede e revoga o


Decreto Presidencial 883, que eliminava subsídios dos combustíveis, me-
dida tomada em acordo com o FMI. Foram 12 dias de protestos violentos,
mas o governo fechou acordo com lideranças indígenas e sindicais, con-
tando com a mediação da ONU e da Igreja Católica.

Direito de Resistência

Fica evidente que a oposição dos cidadãos a atos governamentais é


fundamental para denunciar excessos e violações de direitos. Essa oposição
política normalmente não tem previsão legal expressa. No entanto, no caso
equatoriano, o direito de resistência está expressamente previsto no artigo
98 da atual Constituição do Equador. O mencionado dispositivo estabelece:

Art. 98 Los individuos y los colectivos podrán ejercer el de-


recho a la resistencia frente a acciones u omisiones del poder
público o de las personas naturales o jurídicas no estatales que
vulneren o puedan vulnerar sus derechos constitucionales, y
demandar el reconocimiento de nuevos derechos (OAS, 2020).

Consequentemente, trata-se de uma garantia constitucional.


Além disso, percebe-se que a redação permite uma interpretação ampla,
porquanto assegura que a resistência ocorra para o reconhecimento de
novos direitos. Nesse sentido, historicamente o reconhecimento de di-
reitos está associado às convulsões socais. Isto é, o reconhecimento dos
direitos ocorre na medida em que são reivindicados. Por conseguinte,
o direito de resistência normalmente é exercido por meio de protestos
sociais. Sendo que estes, por sua vez, se relacionam com a liberdade de
expressão. Nesse sentido:

111
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Las expresiones protegidas por este derecho, en buena parte


son recogidas por la doctrina de la posición preferente, desar-
rollada en la sentencia del caso New York Times vs. Sullivan, en
donde se señala que la libertad de expresión puede en algunos
momentos sacrificar determinados bienes jurídicos, siempre
que sean expresiones sobre interés público, que a su vez permi-
tan un debate público abierto, robusto y vigoroso (RUIZ, 2019).

Ocorre que no Equador, tal como em boa parte dos países latino-ame-
ricanos, a liberdade de expressão, exercida em forma de protesto contra atos
de governo, não é bem vista. Inclusive, alguns instrumentos do ordenamento
jurídico são utilizados para reprimir o exercício desse direito fundamental,
como ocorre com o crime de desacato e a Lei nº 7.170/831 no Brasil.
Desse modo, os protestos são uma garantia da democracia quando os
mecanismos democráticos não são efetivos (Ibidem). Por isso, constituem
instrumento indispensável para o funcionamento do Estado Democrático
de Direito e não podem ser cerceados. No caso equatoriano, destaca-se a
seguinte constatação:

En el escenario ecuatoriano, se han identificado diferentes en-


foques de protesta, siendo los más relevantes, la protección de
la naturaleza y la afectación de los derechos a las comunida-
des. En el País las protestas sociales han sido la única forma
a través de la cual grupos sociales tradicionalmente excluidos
han conseguido reivindicar sus derechos, o al menos han con-
seguido que sus puntos de vista sean puestos en el debate pú-
blico. En ese contexto, las personas han denunciado pública-
mente su desacuerdo con las políticas públicas llevadas a cabo
y contra leyes que vulneran sus derechos, por ejemplo, la Ley
de Aguas y la Ley de Minería.
En el marco de protesta y oposición de las comunidades a la
ejecución de los proyectos, las empresas, con apoyo de autori-
dades del Estado, han utilizado una serie de mecanismos para
deslegitimar y acallar a las personas, desatando la inestabili-
dad con un alto grado de conflictividad social. En la mayoría
de los casos, los reclamos han sido calificados como actos de-
lictivos castigados por la ley (Ibidem).

Conforme salientando ao longo do artigo, protestos são constantes na


política equatoriana. Assim, para compreender os protestos de 2019 deve-se
levar em consideração o contexto político do ano de 2015. Destaca-se que, ini-
cialmente, os protestos foram contra projetos de lei regulamentando tributos
sobre herança e valorização de capital. Em seguida, organizações indígenas e
trabalhadores realizaram diversas greves. Por fim, houve protestos em oposição
ao pacote de emendas constitucionais, que, entre outras coisas, possibilitaria a
retirada das restrições às reeleições. (ROJAS; LLHANOS-ESCOBAR, 2019)

1 Denominada “Lei de Segurança Nacional”, define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social.

112
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Soma-se a isso algumas recomendações do Fundo Monetário In-


ternacional que agravaram a situação econômica do País, tais como a
supressão de subsídios aos combustíveis, a eliminação de aporte estatal
ao Instituto Ecuatoriano de Seguridad Social, eliminação ao subsídio de
transporte interprovincial, entre outras:

En síntesis, la situación económica del Ecuador fue muy com-


pleja en el año 2015 y se prevé una situación aún más com-
pleja para el 2016. Algunas proyecciones indican que Ecuador
sería golpeado más fuertemente que otros Países petroleros
que sí han podido  diversificar su economía, como Canadá,
Indonesia, o Malasia, o que tienen reservas  monetarias para
aplicar políticas contra-cíclicas, como Noruega, Brunéi, o los
Países del  golfo pérsico (Dabrowski, 2015). El País continúa
siendo moderadamente dependiente del  petróleo, el cual re-
presenta el 57% de las exportaciones y alrededor del 16% del
PIB. A pesar de que la principal fuente de ingresos fiscales es
la recaudación tributaria y no el petróleo, los ingresos tribu-
tarios también serían alterados por la baja de los precios del
petróleo. Sumado a esto, la dolarización de la economía no le
permite al gobierno utilizar la desvalorización de la moneda
nacional como válvula de escape, así como lo vienen haciendo
Colombia y Perú (Ibidem).

Foi justamente o que ocorreu em 2019: pressionado pelo Fundo Mo-


netário Internacional, o governo equatoriano de Lenín Moreno retira o
subsídio aos combustíveis e realiza ajustes econômicos. Sem o subsídio,
gasolina e diesel aumentaram até 123%. Esse acontecimento mobilizou,
inicialmente, taxistas, caminhoneiros e motoristas de ônibus; logo em se-
guida, mobilizou lideranças indígenas. Após 11 dias de intensos protestos,
o governo restabeleceu o subsídio aos combustíveis. As negociações con-
taram principalmente com a participação de lideranças indígenas. (FO-
LHA DE SÃO PAULO, 2020)
A mobilização da comunidade indígena consiste em um importante
instrumento de participação democrática. Não obstante, em sua maioria é
vulnerável economicamente e politicamente. Economicamente porque não
obtém retorno financeiro significativo das atividades que desempenha; po-
liticamente, pois é alvo de repressão por parte do aparato policial do Estado.
Apesar das dificuldades listadas, a mobilização política dos indíge-
nas equatorianos surpreende e serve de exemplo para ser replicada nos
outros países latino-americanos.

113
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Considerações Finais

As diversas violações aos direitos humanos perpetradas pelo Estado


equatoriano legitimaram a organização social naquele momento face ao
avanço de políticas de cunho neoliberal. Tais políticas não só aprofunda-
vam a distância entre classes econômicas, como penalizavam, principal-
mente, a classe baixa, que depende principalmente dos combustíveis, alvo
principal das medidas econômicas.
Essa combinação de fatores foi responsável por levar a população às
ruas de forma ordenada, organizada e legítima em exercício do direito de
resistência, garantido pela via constitucional, pois se encontra na Carta
Equatoriana, ou ainda amparado na rede internacional de proteção e ga-
rantia de direitos humanos. Logo, resistir não seria só um direito, mas um
dever frente às imposições governamentais rechaçadas pelo povo e dura-
mente criticadas pela mídia internacional, o que resultou em um conflito
urbano violento, mas vitorioso para o povo, que teve sua pauta atendida,
ao menos, por ora.

Referências

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se na América do Sul. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.
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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

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ZIBELL, Matías. A história por trás da foto mais emblemática dos
protestos no Equador. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/
internacional-50047879. Acesso em: 20 fev. 2020.

115
7
Contractarianism and its legacy in International
Relations theories: a look from Brazil1

Gills Vilar-Lopes
Lucas Maximo
Theo Antônio R. Sant’Ana

Introduction

Contractarianism is a natural law theory movement within modern2


political theory with bases that go back to Ancient Greece - specifically to
Greek polis -, permeating different fields of knowledge, such as Political
Science (PS) and International Relations (IR)3.
The social contract/pact metaphor has, until today, a significant role
for the understanding of key concepts for political analysis, such as poli-
tical power, legitimacy, government, and society (HARDIN, 2007, p. 241).
At the international level, the notion of the existence of rights, anchored
through a pact, can also be seen in the recitals of treaties and the recom-
mendations of public policies.
Given this theme, we ask: to what extent does contractarianism in-
fluence IR? To provide an answer to this research problem, it is conjectu-
red that such influence - or legacy, as we call it - reverberates, above all,
in the epistemology of IR, to the point of often constituting itself as a ne-
cessary - but not sufficient - condition for the mainstream of IR theories.
In this bias, the general objective of the present work aims to analyze how
this influence occurs.

1 This is a translated version of: Vilar-Lopes, Gills, Lucas Maximo e Theo Antônio Sant’Ana. 2018. “O Contratualismo e
seu Legado nas Teorias de Relações Internacionais: um olhar a partir do Brasil”. Leviathan (São Paulo), nº 12 (Feb.), 89-
119. https://doi.org/10.11606/issn.2237-4485.lev.2016.143407. The authors would like to thank the Leviathan Editorial
Board for their authorization.
2 Although social contract theorists are also included in the sub-area of “classical” political theory, we prefer the
epithet “modern”, as it is precisely in the so-called Modern Age - usually dated from 1453 to 1789 - that, in fact,
such an intellectual tradition flourishes and takes a privileged place in political philosophy (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 272).
3 The homograph term “International Relations” (IR) designates the area of knowledge whose object of study is
“international relations”. The adjective “internationalist” refers to this area; and “international”, therefore, to its object.

117
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Beforehand, it is emphasized that the concept of contractarianism


has two meanings, one broad and the other restricted. The first concerns
the various political theories that attribute to a contract - or pact - the
primary basis of social4 and political power (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 2004, p. 272). The second sense refers to a European school
of thought that “had its maximum exponents in J. Althusius (1557-1638),
T. Hobbes (1588-1679), B. Spinoza (1632-1677), S. Pufendorf (1632-1694), J.
Locke (1632-1704), J.-J. Rousseau (1712-1778), [e] I. Kant (1724-1804)” (BO-
BBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 272, free translation)5. In this
way, we work here with both senses, differentiating them when appropria-
te, with special attention to the legacy that some of the aforementioned
authors left for IR theories.
Because there are only seven exponents, this work is methodologi-
cally based on the qualitative research style, despite the use of bibliogra-
phic research and the comparative method6. The primary sources, there-
fore, are the key works of these authors, which specifically address the
theory of political contractarianism. Thus, it seeks to establish, a priori,
an overview of the main contractarian assumptions and corollaries, clas-
sifying them7 by means of a summary table, and, a posteriori, to confront
them with each other and with IR theory mainstream.
The theoretical framework is anchored in the main authors and
assumptions of what is known as the IR mainstream, that is, the realism
theory of international relations, which arises in contrast with liberalism.
Since these theories have several breakdowns and favorable and contrary
strands, this work focuses on their classic versions, as it is from them that
reformulations, strands, and alternative currents develop. In addition, ra-
tionalist theorists from the so-called English School of IR are also called
upon to complement the debate between the two aforementioned theories.
This paper is divided into three main sections: the first concerns the
methodological aspects behind the proposed research; the second section
deals with the social contract tradition itself, exploring its main concepts
and advancing possible evidence of its legacy; and the third main section
investigates the contractarian influence in the different explanatory at-
tempts at international relations.

4 See Bonavides (2006, p. 61).


5 As noted later, this strong idea is not unanimous, to the point that thinkers like David Hume argue that it is illogical
to think about how a broad consensus can be reached in the state of nature without a previous political regime
already existing (HARDIN, 2007, p. 242).
6 The inferential link between research style and the number of observations comes from King, Keohane and Verba
(1996, passim). The choice of bibliographic research is consistent with Cervo, Bervian and Da Silva (2010, p. 60-62).
Finally, the comparative method is a qualitative approach (BRADY; COLLIER; SEAWRIGHT, 2004, p. 4) that will help
to achieve, inductively, the general objective of this work. See next section.
7 Like any classification, similarities are grouped, and differences are separated, which, in this case, are linked by the
theme “contractarian legacy in IR”.

118
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Methodological Aspects

This section aims to point out what motives and works will be
analyzed based on the main objective of this work. Thus, bibliographic
research seeks to filter thinkers and their contractarian works that have
an impact on IR.
It should be borne in mind that the strict sense of contractarianism
is based on the seven authors already listed in the previous section. Thus,
the following works bring the original theories on the social contract:

1. Politica methodice digesta atque exemplis sacris et profanis illustra-


ta (1603), by Johannes Althusius;
2. Leviathan (1651), by Thomas Hobbes;
3. Theological-political treatise (1677), by Baruch Spinoza8;
4. On the Duty of Man and Citizen According to Natural Law (1682),
by Samuel von Pufendorf;
5. Two Treatises of Government (1689), by John Locke9;
6. The social contract (1762), by Jean-Jacques Rousseau; and
7. Perpetual peace (1795), by Immanuel Kant.

In an attempt to measure the influence or impact the authors and


works listed above have on IR, research is carried out on lesson plans
of theoretical courses offered by the main Brazilian graduate programs
(PPGs) in PS and IR10.
As a selection criterion, only graduate programs of high international
quality are chosen - i.e., the PPGs that reached the score of 6 and 7 (in a scale
from 1 to 7) by the Brazilian Federal Agency for Support and Evaluation of
Graduate Education (CAPES) assessment in the “Political Science and In-
ternational Relations” Evaluation Area. Thus, only six PPGs are accredited,
namely: University of São Paulo (USP), Federal University of Minas Gerais
(UFMG), State University of Rio de Janeiro (UERJ), and Federal University
of Pernambuco (UFPE) ones; and those of IR at the Pontifical Catholic Uni-
versity of Rio de Janeiro (PUC-Rio) and the University of Brasília (UnB)11.

8 Regarding Spinozian work, it is worth noting that his conceptual constructs stem from the adaptation to reasoning,
to the ontological conception of God and to human existence with its existential conditions, expressed mainly in the
first 15 chapters of the Theological-political treatise (1670). An analysis covering all this progression would certainly
deserve a separate work; here, only the fractions appropriate to contractarian thought are exposed, mainly pointed
out in the political part of its treaty.
9 The First Treatise of Government (1681) is a critique of Robert Filmer’s Patriarcha (1680); the Second Treatise of
Government, also dating from 1681, is an essay on the origin, limits and real ends of civil government (LOCKE, 2006, p. 35).
10 The research is carried out in PPGs in PS and IR because, within the scope of the Brazilian Federal Agency for
Support and Evaluation of Graduate Education (CAPES), both fields are part of a single Evaluation Area. The study is
based on the Brazilian case, for logistical reasons to research each lesson plan.
11 This list was prepared taking into account the CAPES 2015 assessment.

119
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Table 1 presents the research findings, taking into account both the strict
sense of contractarianism and the selection criteria for the research sample.

Table 1 – Contractarian theorists featured in the lessons plans of theore-


tical courses offered by Brazilian graduate programs of high international
quality in the area of PS and IR
CONTRACTARIAN THEORIST
PPG a)
Althusius Spinoza Hobbes Kant Locke Pufendorf Rousseau

PS-USP b) X X X X

PS-UFMG c) X X X

PS-UERJ d) X X X X X

PS-UFPE e) X X X

IR-PUC-Rio f)

IR - UnB

Source: own elaboration

Information extracted from:

a) https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/
programa/listaPrograma.jsf.
b) http://www.fflch.usp.br/dcp/assets/docs/Eunice/TeoriaPensamen-
toPolitico.pdf and http://www.fflch.usp.br/dcp/assets/docs/Eunice/
ModalidadesPensamentoPoltico.pdf
c) http://www.cienciapoliticaufmg.com.br/uploads/midia/arqui-
vo/103/Ementa_e_Programa_Prof._Fernando_Teoria_Pol_tica.pdf.
d ) http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2015/05/Teoria-
-Pol%C3%ADtica-I.pdf;
e) http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2015/04/Teoria-
-Pol%C3%ADtica-I3.pdf;
http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2015/05/Teoria-
-Pol%C3%ADtica-I1.pdf; and
http://www.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2015/04/Teoria-
-Pol%C3%ADtica-I-.pdf.

120
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

f) https://www.ufpe.br/politica/images/Ementas/teopol.pdf
g) http://www.iri.puc-rio.br/pos-graduacao; and offline lesson plans
from the master’s level courses of “State, Sovereignty and Moderni-
ty” and “International Relations Theory”*.
h) http://irel.unb.br/ensino-e-pesquisa/pos-graduacao;
https://www.matriculaweb.unb.br/matriculaweb/posgraduacao/cur-
riculo.aspx?cod=8559; and
https://www.matriculaweb.unb.br/matriculaweb/posgraduacao/cur-
riculo.aspx?cod=60232

As seen in Table 1 , both Althusius and Pufendorf12 are the only au-
thors who are not used by any of the sample’s PPGs. This finding is in line
with Boysen and Boucher (2010), who note the need to bridge the gap be-
tween political theory and IR theories, showing how the writings of Gro-
tius, Vattel, and Pudendorf are, for example, little-explored academically.
Another gap that draws attention is the fact that the only two IR
stricto sensu PPGs of the sample - PUC-Rio and UnB - also do not feature
even a contractarian theorist in their theoretical courses. However, it is
noteworthy that PPGs in PS, like those of UERJ and UFPE, have lines of
research in International Policy and IR, respectively, being the UERJ PPG
the only one in the sample to feature Spinoza. In addition, Hobbes, Locke
and Rousseau are, by far, the contractarians who figure most in the studied
lesson plans. At the end of the text, it will be possible to certify whether
these first findings of the research are in fact consistent with the conclu-
sion of the analysis.
As a direct reflection of Table 1 , it is justified that the works to be
analyzed here are those whose authors appear only in the research results,
that is, those of Spinoza, Hobbes, Kant, Locke and Rousseau, thus decrea-
sing from seven to five authors who may have left a contractarian legacy to
IR, as the next section seeks to reveal.

The Contractarian Legacy

Social contract theorists argue that the genesis of society and politi-
cal power stems from a social contract or pact, i.e., from “a tacit or express
agreement between most individuals, an agreement that would signal the
end of the natural state and the beginning of the social and political state”
(BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 272, free translation). When
faced with broad definitions like this, attention should be paid to grouping

12 For a brief comparative analysis between Pufendorf and Hobbes, see Boysen and Boucher (2010).

121
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

political theorists so different and from such different times and places,
as if they had orientations fully converging among themselves. After all,
dealing with the “social contract tradition” it is, in reality, dealing with the
same terminology to denote the rationalization of strength and the support
of power in the consensus, elements that, par excellence, also permeate not
only the internal order of a society but also its foreign relations.
By analyzing contractarian writings, it is possible to notice a matrix
that structures the process of engendering the political state. In other wor-
ds, we see, in the production of the five authors selected here, the defense
of a method that we call pseudo tripartite for the birth of what is currently
known as the Modern State, based on the following states/stages/stages/
phases/moments:

(i) state of nature: generally contrary to what is artificially and socially


created by the (re)union of individuals;
(ii) social contract/pact: whereby individuals grant and transmit political
power to each other13; and
(iii) civil/social/political state: which automatically14 gives rise to a more
organized and hierarchical state of affairs, known as the political state
or, simply, the state.

Figure 1 presents the engineering behind the key idea of ​​the social
contract.

Figure 1 – Pseudo tripartite scheme of the political contract

In any case, the mechanics proposed by social contract theorists are


not as simple as Figure 1 demonstrates. For example, characterizing the
state of nature as a state prior to civil state and from which the individual

13 Castan (1991, p. 27, free translation) ironically calls this “voluntary servitude”, that is, “the most incredible of the
perversions of the social bond […] that instituted the tyranny of one over all”.
14 If the civil state arises automatically with the signing of the social contract, then there are not three states or stages,
but two, being the social contract just a gray area. Hence our concern contained in the word “pseudo tripartite”.

122
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

seeks to get rid of through a social contract constitutes a very complex on-
tological challenge. Nevertheless, each contractarian theorist has his own
idea of such moments, logically generating divergences and convergences
between them. The next two subsections aim to analyze and compare the-
se views, in order to obtain the conceptual substrate that characterizes the
mainstream of IR theories.

On the state of nature

This is the stage prior to the insertion of the individual in a socio-


-political structure and with artificial institutions. Given that, here, the
subjectification of human nature starts from the individual to the collec-
tive level, the following explanatory variables of the state of nature stand
out: freedom, property, human nature, and state of war. As will be seen in
the fourth section, infra, these elements are related to the search for and
the maintenance of power not only in the internal order of nation-states
but also in the international order, which therefore mean a greater rele-
vance for IR theories.
Regarding freedom, Hobbes (2005) understands that the state of natu-
re corresponds to the stage in which individuals live disorganized in true
anarchy, where individual freedom is total, given that everyone does what
they please, thus, there is no security. For Locke (2006, p. 36), the state of
nature allocates groups of people in a kind of evolutionary progression in
which they live free and equal, within the limits of natural law, without this
freedom implying a similar permissiveness, of so that “one man acquires
power over another; but not absolute or arbitrary power” (LOCKE, 2006,
p. 37, free translation). Although Locke alludes to the reasonableness of
individuals in the state of nature, Spinoza (2008) points out that reason can
only maintain order in the civil state, and not in the natural. Resembling
Hobbes here, since everything is lawful for everyone (ESPINOSA, 2008,
p. 13, 238), individuals really cannot do anything, as they are oppressed by
the capacities - conatus - of everyone else15. Rousseau (2002), for his part,
claims that freedom is only possible in the state of nature. IR theories will
focus on these limitations on freedom that nation-states have to act unres-
tricted at the international level, especially with regard to the criticisms
and justifications of the so-called holy and preventive wars.
Regarding property, Hobbes (2005, p. 100, free translation) claims
that the state of nature does not provide for its legitimate establishment,

15 According to Spinoza (ESPINOSA, 2008, p. 241), freedom is the characteristic of allowing oneself to be guided
without reservations and solely by reason; conatus, in turn, is the potency contained in the fact that “that each
individual has a full right to everything that is in his power” (ESPINOSA, 2008, p. 234, free translation). As Chaui (1995,
p. 73) recalls, conatus, in politics, is called natural law and is preserved throughout civil state.

123
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

since, “if a power large enough for our security is not instituted, each
one will trust […] only in your own strength and ability”. Similarly to the
English thinker, Rousseau (2003) points out that, in this aspect, the pro-
perty can only be ensured by force. In turn, Locke understands property
at times as life, goods, and freedom as natural rights (MELLO, 1999, p. 85,
free translation), at times as the possession of the movable or immovable
property. Using the latter concept of property - a more strict one -, Kant
(2008, p. 9) states that certain types of possession are prohibited both in
the state of nature and in the civil state, since in the former there are no
laws external to the individual (KANT, 2008, p. 10, 15) - that is, an indivi-
dual cannot legislate over another.
One of the most notorious elements in IR theories is the discus-
sion on how the human nature of decision-makers influences the external
actions of states. In IR theory mainstream, this debate is usually placed
between defenders and opponents of Hobbes and Machiavelli, that is, of
political realism. According to Hobbes (2005), due to the inherent lack of
transparency, individuals constantly and mutually strive to assume what
will be the most reasonable and plausible attitude of their peers, thus
laying the foundations for the security dilemma, one of the most widely
used thesis in International Security Studies, as seen in the fourth section.
With a different view from Hobbes, Locke (2008, p. 39) states that human
nature is not bellicose. Rousseau (2003, p. 115) - more concerned with de-
monstrating how the state lives, and not how it acts - affirms that the pure
state of nature is foreign to the human condition and that it is only surpas-
sed when the individual recognizes his neighbor as such. Here, the reason
variable is exposed again, causing Rousseau and Spinoza to converge on
its importance in civil state. Spinoza, on the other hand, disagrees with
the other contractarian theorists approached here, stating that man is not
endowed with the interest of survival and self-preservation, but that he
is the very self-preservation force called conatus (AURÉLIO, 2008, p. 363).
Neither as pessimistic as Hobbes nor as optimistic as Locke, Spinoza’s
(ESPINOSA, 2008, p. 6-7) conception of human nature is more similar to
Rousseau’s, exemplifying that the amoral basis of human behavior can be
measured in the fact that, when frightened, man seeks superstition, which
is the great promoter of wars (ESPINOSA, 2008, p. 311).
The state of war is another very popular theme in IR theories. Re-
garding this, Hobbes (2005, p. 102) states that men compete for honor and
dignity and that the mutual similarity between them causes them to attack
even preventively - or to always be prepared to do so. Such an anarchic
pattern, which characterizes the state of war and constrains everyone, le-
ads individuals to present themselves in constant competition, in which

124
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

their primary objective is the maintenance of their own lives. Kant (2008,
p. 10) is another contractarian theorist who agrees that the state of nature
is equivalent to a state of war since there is in it a constant threat from
hostilities. Contrary to Hobbes and Kant, Locke (2006, p. 39-40) distingui-
shes the state of nature from that of war, since the first is, according to
him, a relatively peaceful stage. Pointing man as being able to cooperate
with each other, Rousseau (2003, p. 120) - averse to Hobbes’ ideas, as Lo-
cke does - understands that the state of war between individuals comes
precisely from their passions and addictions, but not the opposite. Again,
the fourth section addresses the caricatural view of the state of nature as a
condition of war for all against all, which, centuries later, led the IR mains-
tream to tie such a state of affairs to the international political context of
the 20th century interwar periods. In turn, the Rousseaunian and Lockean
perspectives will serve as the basis for liberal theory to confront realists
with Hobbesian connotations.
After these key aspects of the state of nature are revealed, the next
attempt is to present the assumptions of the most critical moment in
contractarian theory: the transition from the state of nature to the civil
state, through a pact.

Social contract and civil status

Depending on the author, the terminologies civil/political/legal/collecti-


ve/sovereign state or, simply, the state consign the stage experienced by indi-
viduals in an ordered socio-political structure. The contractarian tradition
generally takes this state as a denial of the state of nature, thanks mainly
to a contract or social pact. In analyzing this passage, some social contract
theorists create real corollaries for both political and internationalist theo-
ries. For example, issues such as conflict resolution, border imbroglio, in-
tervention and self-determination can be analyzed, respectively, in the light
of post-state concepts of nature, such as state of war, property (public x pri-
vate), freedom (submission x consent) and forms of state and government,
which are only possible in civil states. In this sense, this subsection seeks to
identify and understand such concepts common to these theorists.
As seen, Hobbes (2005) states that individuals, in the state of war, ab-
dicate their individual freedoms and renounce their natural rights, seeking
to get out of this decaying anarchy. In addition to the juridical fundaments
centered on the social contract, men agree to submit to one man (HOB-
BES, 2005, p. 103), and there must also be a state with sufficient strength

125
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

to compel subjects16. Thus, the emergence of the state is embodied in the


famous metaphor of Leviathan, a mortal god, defined by Hobbes (2005, p.
103, emphasis added) as a person whose all actions and judgements are
instituted “[…] when a multitude of men do agree and covenant, every one
with every one”. Hobbesian motives for ending the state of war, through
the transition from the state of nature to the civil state, find some similari-
ty in Kant (2008, p. 10), Locke (2006, p. 58) and Rousseau (2003, p 136).
Furthermore, the Lockean social contract uses not only the state of
war but also property, as it would guarantee inalienable rights to life and
property in general (LOCKE, 2006, p. 58). However, the war, with the sig-
ning of the contract, becomes public, and no longer individual or private
(ROUSSEAU, 2003, p. 136), an important legacy for understanding the real
competences of the state – which are placed, for instance, in the Weberian
theory - or the so-called effective institutions of the international order to
which the rationalists Bull (2002) and Wight (2002) refer. Still on proper-
ty, Hobbes affirms that, in the civil state, it can only exist, be guarante-
ed or divided under the power and the foundations of the sovereign. Not
agreeing with this, Locke (2006) founds property as a superior and prior
right to the state, thus showing his individualist philosophy. For Rousseau
(2003), on the other hand, the state fails to ensure its ownership by force,
and, if it is past to the social contract, it must be guaranteed, and, if later,
managed by the sovereign.
Contractarian theorists also seek to find the degree of freedom in whi-
ch a social contract is signed. Later on, it will be seen how the problem of
the lack of a global legislator constrains relations between states or not from
this perspective. For now, it is pointed out that, on the one hand, Hobbes
conceives the contract as a pact of submission in which men completely
give up their natural freedom, transferring it to the sovereign, in order to
guarantee their survival; and, on the other, Locke (2006, p. 39) considers that
the contractual abandonment of the state of nature is a consent pact, a con-
vention, “in which men freely agree to form a civil society to further preser-
ve the rights that they originally had in the state of nature” (MELLO, 1999,
p. 86, free translation). As we can see, the Lockean contract is consent, but,
for Hobbes (2005, chap. XVII), it is more than consent or concord, it is a true
unity of all of them, in one […] person. Contrary to this Hobbesian view, Spi-
noza (ESPINOSA, 2008, p. 239-240) claims that the transition from the state
of nature to the civil one is not achieved by the simple gathering of the na-
tural rights of the pacifiers, but by their union, the so-called political conatus.
In this logic, Rousseau (2003, p. 125) considers that equality is legitimized

16 For Spinoza (ESPINOSA, 2008, p. 241-242), “subject” is one who is part of a society based on reason and which
follows state orders useful to the common good.

126
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

by law, which starts to moralize subjects, making public will an end in itself
and, thus, the act of sovereignty will always be just, since it comes from the
social contract. In this way, the Rousseaunian civil state guarantees the fre-
edom of all individuals through cooperation. It is noteworthy that practically
all the IR theories overflow the issue of cooperation for the international
arena; some of them are more inclined towards the Hobbesian side; others,
for the Rousseaunian, asking whether the gains with it will be absolute or
relative for those who cooperate.
When collective natural law becomes civil, it concomitantly genera-
tes civil state – collective conatus or the sovereign - and transforms the crowd
into the very political subject that affirms the desire to govern and not to
be governed. When a new state appears, it is necessary to define its con-
tours and essence. In this sense, Hobbes (2005, p. 109) prefers the absolu-
tist monarchy - as the cover of his main work already points out -, building
a notion of sovereignty based on moral fundaments. On the other hand,
Locke defends parliamentarism, private property and civil, individual and
political rights. Meanwhile, such predispositions are better understood by
the historical context in which these seventeenth-century authors are in-
serted. For example, Locke’s England is in a conflict between the Crown
and the bourgeois Parliament. Political liberalism will only triumph over
absolutism in the late 1680s, especially with the signing of the Bill of Ri-
ghts in 1689, making England a monarchy limited by the broad powers of
parliament (MELLO, 1999, p. 82-83). In this bias, the transition to civilian
government occurs when it is not reasonable anymore for men to be jud-
ges in their own cause (LOCKE, 2006, p. 38). Faced with this, Spinoza (ES-
PINOSA, 2008, p. 239, 242) affirms that the political regime most capable
of fulfilling this desire that Locke alludes to is a democracy, since all the
others are distortions of the conatus that enable relations of domination;
accordingly, it is in the form of republican government, and not in the mo-
narchical one, that freedom can last (ESPINOSA, 2008, p. 8).
As observed so far, contractarians have their own views on the ne-
cessary and sufficient elements for the rite of passage to civil state. Table
2 presents the nuances of these visions, so that, from them, it will be
possible to find, in the next section, the main nuances surrounding the
internationalist mainstream.

127
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Table 2 - The contractarian legacy


Author State of nature Social contract Civil state
Hobbes - absolute individual - overcomes the act of - materialization of
freedom consent the Leviathan meta-
- state of war of all - submission pact in phor
against all which individuals give - one sovereign to
- anarchy (absence of up their fundamental govern for all subjects
government) freedom and administer their
- individual has the goods
right to punish crime
Kant - state of war - generated by the - state of peace
freedom, equality and - prevalence of law
legal dependence of - need for an “interna-
all subjects through a tional federation”
republican constitution

Locke - absolute freedom - convention that cre- - adequate solution to


and equality ates a community and the inconveniences of
- relative peace and a political body the state of nature
harmony - guarantee of inalien- - containment of
- does not exclude able rights, such as life the bias and of the
the state of war and property violence of men
- individual has the - consensual pact to
right to obtain redress preserve rights

Rousseau - state of perennial - establishment of - securing pre-con-


instability values, punishments tract ownership
- freedom can only and social justice - post-contract prop-
exist here - creation of political erty management
- perfect indepen- institutions, new feel- - guaranteeing
dence ings and sovereignty the freedom of all
- property ensured by - fulfilled pursuit of through cooperation
force happiness
- disorder vs. chaos - generation of social
order
Spinoza - restricts freedom - uniting individuals to - promoting peace
- each individual reaffirm their rights and security
makes their own laws, - there is no transfer of - realization of the
leading to decreased power state of nature
conatus and wide- - collective conatus
spread war - prevalence of reason
over superstition

Source: Own elaboration

128
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

The contractarian legacy in IR theories

After a brief exploration of how the five authors in question approach


social contract thought, we now seek to analyze how some of their ideas
end up contributing to the ontological and epistemological development of
the IR discipline, especially for the formation of its theoretical mainstream.
When it comes to modern political theory, Hobbes (2005) is the biggest re-
ference for the realism approach of IR (BOYSEN; BOUCHER, 2010, p. 82),
which, not by chance, is the main strand among internationalist theories.
Beforehand, to dispel anachronisms, it is emphasized that the ex-
planatory search for current international relations in the light of authors
from such distant times requires a contextualized analysis. Two ways of
interpreting the international order are envisaged from the political (im)
possibilities envisioned by the contractarian theorists, namely: applying
what they explicitly say about the international order of their time, which
is, in fact, a rather diminutive aspect17; or testing the current validity of
what is implied about the international scene of the Modern Age. We op-
ted for the second.
The idea that the state acts in a rational way to survive - anthropo-
morphizing it and giving its raison d’être - can be considered as one of the
main legacies that the IR epistemic community draws from social contract
theorists, either to be validated or to be refuted by other currents. But,
as already pointed out, contractarian theorists are not coincident in their
proposals, giving rise to the most varied theoretical aspects in IR.
Grosso modo, the development of IR theories occurs at the dawn of
the last century, when the first thinkers of liberal internationalism - es-
pecially jurists, politicians, and diplomats such as the Nobel Peace Prize
winners Norman Angell and Woodrow Wilson - bring deontological pro-
posals to the then international order. Dissatisfied with their explanatory
scope, adherents of political realism, such as Edward Carr and Hans Mor-
genthau, respond to the liberal normative attempts, especially concerning
the unpredictability of World War II. The rationalists’ Martin Wight and
Hedley Bull, from the so-called English School of IR, also contribute signi-
ficantly through their studies of power in international politics, using both
liberal and realistic assumptions.
Thus, the height of the first Great Debate in IR theory is configured.
If, on the one hand, with the creation of the United Nations, liberal ide-
als are renewed; on the other, the Cold War configuration provides more
fuel for realists to perfect their strong idea of international anarchy, with
special attention to Kenneth Waltz and his systemic theory of internatio-

17 On this subject applied to the Hobbesian case, see Walker (2010, p. 170).

129
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nal relations. In the meantime, the pluralist current is born from liberal
thought that sees in the complex interdependence between nations a way
to overcome international anarchy, such a concept being perfected and re-
formulated by Joseph Nye and Robert Keohane to be called neoliberalism,
which proclaims coexistence between international organizations and re-
gimes in a still anarchic and state-centered world. Thus, the Neo-Neo De-
bate emerges, putting neorealism and neoliberalism18 side by side. With
the fall of the Berlin Wall, new theoretical debates and currents of thought
- especially constructivism and the Copenhagen School - appear and are
in constant development.
The most interesting aspect about the construction of all this theore-
tical framework - and, therefore, what epistemologically differentiates IR
from other scientific fields, in the Bourdieusian sense - is that its most ba-
sic concepts and assumptions can be traced, in some way, to contractarian
thought. In other words, the most diverse attempts to analyze and explain
how the world really is or should be are often based on one of the aspects
presented in the pseudo tripartite scheme in Figure 1 and the concepts
identified in the third section. It is this relationship between contractarian
thought and IR theories that the next three subsections intend to unravel.

The legacy of the state of nature for IR theories

The theoretical mainstream of IR conceives the state of nature as a uni-


versal model of international dynamics to reveal the existence of the so-called
international anarchy, which seems to be the main corollary of IR theories.
International anarchy is both “a multiplicity of powers without go-
vernment” and a “characteristic that distinguishes international politics
from ordinary politics” (WIGHT, 2002, p. 92-93, free translation). It stems
from the fact that there is no regulating entity above all states - or, in other
words, that there is no Leviathan to manage the international order and
engender binding norms -, as is generally observed in the state of nature, or,
in other words, as seen internally in the civil state.
Under the Hobbesian argument that there is a natural predisposi-
tion of man to conflict – i.e., the state of nature coincides with the state of
war - classical realists claim that war is the main promoter of international
relations, according to re-readings, among others, by Thucydides (2001)
about the Peloponnesian War, 2,500 years ago.

18 Some IR theories suffer from terminological imprecision. For example, Castro (2016, p. 340) claims that, in
internationalist studies, liberalism assumes different facets of nomenclature. Here are some: idealism (CASTRO,
2016, p. 46, 340; SILVA; GONÇALVES, 2010, passim), utopian liberalism (JACKSON; SØRENSEN, 2007, passim)
and liberal idealism (CASTRO, 2016, p. 326). Attention is paid to the pejorative use of liberalism, which is due to
the realist Carr (2001, p. 10-14, 21). Neorealism, on the other hand, can still be called by structural realism, with the
offensive and defensive realism strands. And neoliberalism can be spelled as institutional liberalism, institutional
liberalism or institutional liberalism.

130
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

The international field is therefore characterized by being a pluri-


verse in which political units seek to maintain their legal integrity and to
be acknowledged before other powers (SCHMITT, 1984). Therefore, the
imminence of the war for survival (SAINT-PIERRE, 2011, p. 424) leads to
a similarity with the state of nature proposed by Hobbes. However, one
of the main rejections to realist theory refers precisely to the use of this
skewed concept in international relations. See, for example, Bull (2002, p.
58-59, free translation), for whom the argument that the modern interna-
tional system resembles the Hobbesian state of nature can be considered
weak because “the absence of a universal government is not compatible
with the economic interdependence of nations”, a scenario best seen in
the 20th century. However, on the state of war, Bull (1981, p. 721; 2002, p.
59) also informs that this can be applied to international relations, since
it does not mean that there is a confrontation between the actors, but
rather that they are ready to do so. As can be seen, the notion of realism’s
anarchy is maintained by IR theorists in the sense of conceiving it, at the
same time, as a strategic scenario and a cause for international conflicts
(WIGHT, 2002, p. 93).
As can be seen, Hobbes (2005) mentions war repeatedly, to the point
that Barnabé (2012, p. 55) observes that states, as well as individuals, act
oriented based on self-preservation and precaution/distrust, adding that
individuals naturally seek to accumulate more and more power. This hu-
man propensity to war - as shown in Table 1 , regarding the Hobbesian
state of nature - causes states to be led to constant preparation for the
defense of their sovereignty (MIGUEL, 2010), and thus to decrease general
security – a phenomenon called security dilemma by realists.
International anarchy is, therefore, the result of Hobbes’ most fa-
mous interpretation (2005), which results from the comparison of capa-
cities between states and individuals - in the state of nature - with their
equals. More precisely, this theme concerns monarchs who react to their
similar neighbors in a state of war (BULL, 1981, p. 720-721). Based on Bull
(1981), this state of affairs does not necessarily result in a system of actors
marked by the selfishness of others, so that nation-states can still coope-
rate. It is worth remembering that the state of war among the sovereigns
does not necessarily imply a degrading condition of their subjects - as in
the state of nature - and that men can make ideals of peace reach the hi-
gher law of each state (BULL, 1981, p. 727-729). This last statement finds
more resonance in Kantian contractarian thought.
Kant (2008, p. 15), as seen in the third section, claims that the state of
nature is characterized by the lack of laws external to the state. In this bias,
it can be said that the international system is more prone to an internatio-

131
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nal state of nature than a civil one, given that, even with states having (in a
logical sense) already, left the state of nature, the international system still
has no erga omnes laws. The combination of the ideas proposed by Hobbes
(2005) and Kant (2008) can be seen in the statement that “[the] internatio-
nal system of states is characterized by the absence of a central authority
capable of imposing and enforcing international rules and laws of a global
character” (SILVA; GONÇALVES, 2010, p. 50, free translation). Thus, the
natural law and the law of nations are associated, “because what is the law
of nature between individuals and individuals before the constitution of the
community is the law of nations, subsequently, between sovereign and so-
vereign” (HOBBES, 2005, p. 197, free translation). This relationship highli-
ghts the originality of Hobbesian thinking when observing that internatio-
nal relations operate in a moral vacuum (BOYSEN; BOUCHER, 2010, p. 90),
so feared by Kant (2008) and so denied by Rousseau (WALTZ, 2004, p. 213).
Still regarding human nature, Walker (2010, p. 177) states that the
central concern in the formulation of IR theories should be the distinc-
tion of external and internal orders, and not the search for psychological
understandings. Despite the criticism, it happens that, for him, Hobbes
is successful in transposing characteristics of that nature, from the inter-
nal (his main source of concern) to the external (a marginal concern in his
formulations), becoming, therefore, a rich source for theorists, including
those in the IR field.
For the neorealist Waltz (2004), Spinozian thinking is directed to the
line considered as pessimistic of human nature in IR and finds resonance
mainly with the classic realism in Morgenthau. Although the writings of
Spinoza and Morgenthau converge in the sense that life in society needs
to be regulated, both diverge on what generates political and social evils -
which, at the international level, can cause wars: for the first, it is the clash
between reason and passion; and, for the second, it is the man himself, for
being completely flawed (WALTZ, 2004). Having the psychological factor
as the main guide to explain human behavior, Spinoza (ESPINOSA, 2008)
emphasizes that the human being is governed by the desire for self-preser-
vation. Taking this aspect into account, Waltz (2004) considers that, in the
Spinozian perspective, the principle of self-preservation would find more
space in the idea that “every man really seeks to promote his interests,
but, unfortunately, not according to the dictates of reason” (WALTZ, 2004,
p. 31-32, free translation)19. The important work Theory of International
Politics, by Waltz (1979), emphasizes the constraints caused by the inhe-

19 Spinoza’s (ESPINOSA, 2008) and Rousseau’s (2003) contractual propositions are treated differently in Waltz
(2004), with Spinozian thinking being much more tied to the question of the system of states than to human nature,
and therefore having strong impact on Waltz (1979).

132
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

rent configuration to the international structure that determine the very


conduct of international relations1920. The connection between Waltzian
neorealism and Hobbesian state of nature is explained by the irreversible
absence of a superior international authority (ROSAS, 2009, p. 9).
Establishing a parallel between Lockean contractarian thinking and
that of neoliberal IR theory is also essential to the objective of this work.
From the 1970s onwards, and the emergence of the pluralist paradigm,
neoliberalism ended up emphasizing the role of new actors - above all, of
non-state ones, such as multinational companies and international organi-
zations - in international politics, even in the face of international anarchy,
becoming a counterpoint to realism and its Westphalian view of interna-
tional politics. It is important to note that neoliberals tend to notice a cer-
tain similarity between the international system and the Lockean state of
nature (ROSAS, 2009, p. 12-13).
For Locke, international relations take place in a similar way to tho-
se found in the state of nature, and, in this case, “cooperation would be
the norm [;] and war [,] the exception, because […] war it is not a natural
propensity of the human being, but it is the result of the malfunctioning of
institutions” (MAPA, 2011, free translation). It appears from the Lockean
logic that states are actors driven by reason, as well as individuals. It is
this rationality that allows states to act cooperatively, as they seek to mi-
nimize their losses, creating a harmony of interests in the international sys-
tem. This assumption is similar to the Kantian and Rousseaunian state of
nature, although it is more a common feature of the “liberal strand of IR”
than a topic explicitly addressed in their respective works. Such normati-
ve characters, together with their theoretical developments, are strongly
criticized by the classic realist Carr (2001), who, still in the 1940s, used the
epithet utopians for classical liberals. Finally, the Rousseaunian legacy for
the IRs, in turn, is not tied to the comparison between state actors in the
international system and individuals in the state of nature, but to the inte-
raction between societies and the propensity for cooperation.
To the realist standpoint, the assertion that the international sys-
tem is anarchic is what conditions the behavior of states, just as the ab-
sence of a government in the state of nature is what determines a war of
all against all. For Waltz and Hobbes, an individual or a state that tries to
go against such a situation will end up paying the price alone, as there is
no way to reverse this reality in the absence of a higher authority. For li-

20 An example of this maxim comes from the Cold War, when the US and the Soviet Union imitated each other’s
steps: when one of them created an international organization for defense matters, the other replicated the model;
when one tried to create an anti-missile shield system, the other did the same etc. Finally, in these cases, the structure
of the international system - anarchy and bipolarity - constrained the actions of both powers, which were taken into
account by the other powers.

133
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

berals - especially those on the neo side - this scenario can be minimized
through international cooperation.

The legacy of the social contract in IR

Practically, every sovereign state has a Magna Carta (civil law sys-
tem) or a sparse set of laws and judgments (common law system) that
founds and constitutes it. Let us see this applied to the Brazilian Consti-
tution of 1988, which presents the following passages that can be related
to contractarian thinking:

• the fact that Brazil (1988, art. 1, caput) constitutes a Democratic State
of Law, that sovereignty is a foundation of that state (BRAZIL, 1988,
art. 1, I), that freedom is a substrate fundamental to build Brazilian
society21 (BRAZIL, 1988, art. 3, I) and that property is a right equally
guaranteed to all (1988, art. 5, caput);
• the realization that all power emanates from the people (BRASIL,
1988, art. 1, sole paragraph); and
• the most important for this work: the fact that Brazil (1988, art. 4, I,
III, IV, V, VI, VII, IX) is governed in its international relations by prin-
ciples such as national independence, self-determination of peoples, non-
-intervention, equality among states, defense of peace, peaceful settlement of
conflicts and cooperation among peoples for the progress of humanity.

Accordingly, if each state is, from an international point of view,


sovereign and independent, then its constitutions and fundamental texts
follow the convictions of its society. This raises questions such as: since
states are sovereign entities, is it possible to draw analogies about the so-
cial contract at the international level? How does the theoretical mains-
tream of IR use the contractarian legacy to analyze the inexistence of an
international Leviathan? Let’s take a look on these issues.
For Hobbes (2005, chap. XVII, emphasis added, free translation), the
step automatically following the social contract is the creation of the “sta-
te, [which] in Latin [is] civitas. This is the generation of that great Levia-
than, or rather […] that Mortal God, to whom we owe, under the Immortal
God, our peace and defense”. Contrary to what Spinoza (2008) conceives,
for example, most contractarian theorists claim that, above the states, the-
re is only one divine entity. The reflection of this observation can be seen
when some democratic states continue to proclaim a heavenly authority in

21 It is true that this constitutional passage can be linked to the Bodinian maxim that sovereignty is “the main
foundation of the entire Republic” (BODIN, 2011, p. 197, free translation).

134
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

their motives, such as God save the Queen, God bless America and In God we
trust. In this contractarian point of view, if the state is above its subjects/ci-
tizens and below God, then can no artificial institution order international
relations? For Walker (2010, p. 178), the problem with making analogies
like the one in the previous sentence is that they generally do not consider
the difference between individuals and states, which, under a contracta-
rian bias, are completely different actors, whether in legal status - which,
in the current language, implies the problem of sovereignty - whether on a
micro-macro scale or on the (i)mortality of the state22.
The applicability of Hobbes’ thought to international relations is
also revealed when he deals with state’s survival in an environment devoid
of a supranational Leviathan. In this way, Barnabé (2012, p. 59, free trans-
lation) comments: “actions that, within civil society, could be classified as
illegal, unjust or immoral, can be widely carried out by the government
under the justification of state preservation”.
The re-reading of Hobbes (2005) focuses on the struggle and the in-
cessant search for power, as well as on the will to accumulate it - expressed
at the moment of the signing of the social contract. It is, as already said,
based on human nature, from which realistic thinking is aligned. Accor-
ding to Bull (1981, p. 717), Morgenthau successfully systematizes the pre-
mises of international realism, within what is meant by Hobbesian tradi-
tion, although its argumentative basis, historical context and method of
analysis are different from those of 17th century English. It can be seen
that implications from a Hobbesian perspective resonate in the first two
principles of classical realism proposed by Morgenthau, when he claims
that politics and society in general are “governed by objective laws that
lay their roots in human nature” (MORGENTHAU, 2003, p. 4, free trans-
lation), putting the rationalization of interest in foreign policy in terms of
power (MORGENTHAU, 2003, p. 7).
In building the foundations of liberal individualism, Locke influen-
ces Enlightenment thinkers. Furthermore, his ideas are fundamental to
the achievement of the American Revolution, when the Declaration of In-
dependence - the great social contract, so to speak - “was drafted and the
war of liberation was fought in natural terms and the right of resistance to
support the rupture with the British colonial system” (MELLO, 1999, p. 89,
free translation). This all not to mention the Lockean contribution to the
consolidation of the parliamentary monarchy in his homeland.
Rousseau (2003) sees as disposable the perspective that human ir-
rationality is the cause of all disputes, diverging, therefore, from Spinoza
(ESPINOSA, 2008). According to Waltz (2004, p. 213), although these two

22 On this last aspect, cf. Bodin (2011, p. 197) and Bull (1981, p. 734).

135
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

contractarian thinkers agree that, in the state of nature, the instincts and
physical impulses of men prevail, Spinoza differs from Rousseau in recog-
nizing that, when the social contract is settled, men replace the instinct
for justice in their conduct.
When analyzing the thought of Spinoza, Hobbes, Kant, Locke and
Rousseau, with their respective ontological conceptions centered on re-
ason, peace, state, liberalism and democracy, they end up distinguishing
actor and system, as well as agent and structure, in post-contract framework.
These are important guidelines used even today in the analysis of inter-
national politics. To have an idea of this, Spinoza inserts the natural right
of life and the action of individuals in their natural right, reaffirming it in a
contract, by forming a structure of their own principles. However, asymme-
tric power relations are considered distortions, since the capacity of con-
forming a governmental system resides, ultimately, in the people (CHAUÍ,
1995, p. 77). Here, sovereign power is, by definition, the total communion of
society (ESPINOSA, 2008, p. 239), being the determinant of the government
system, although a tyrannical regime may be in effect, making such a sys-
tem a relevant variable for Comparative International Policy studies, in
the scope of IR, and for democratic quality, in that of PS.

The legacy of the civil state to theorize IR

Perhaps the most complex contractarian analogy to operationalize


in the IR field of study is that of the civil state23 applied to international
relations. Would it be possible to conceive an international civil state fra-
med into the fraternity patterns closer to the Kantian conception? Or, on
the contrary, the lack of an international Leviathan, as the (neo)realists24
argue, is what would eternally shape international politics? Much of what
IR theories seek to explain part of these inquiries.
The Rousseaunian contribution to the understanding of Waltz (1979)
on structure and international anarchy consists exactly in the view of the
state as a unitary actor, an important premise in the formulations of the
realist and neorealist strands. In this sense, Rousseau’s (2003) analysis exa-
cerbates the perception of the neorealist principle that the explanation for
the recurrence of war is not found in the structure of states per se, but in
the international system, which ends up entangling the units in a context
of self-help (WALTZ, 1979), often in a compelling way.

23 And, as a syllogism of the pseudo tripartite scheme, the idea of social contract is also convoluted in its application
to international relations.
24 An example of this assertion can be seen in the fact that the first line of the first chapter of the book by the
neorealists Art and Waltz (1993, p. 1) characterizes international relations as being governed by international anarchy, a
great promoter of the use of force between states.

136
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Here, attention should be paid to the fact that Hobbes (2005) does not
conjecture a system of sovereigns - a closer correspondent than the current
international system would be -, since the mere aggregate of units and their
wills does not necessarily constitute a system (WALKER, 2010, p. 174).
As far as Locke is concerned, his thinking influences contemporary
international politics and political philosophy. For example, Bobbio (1984,
p. 41, free translation) states that, “through the principles of a pre-existing
natural right to the state, a state based on consensus, subordination of the
Executive to the Legislative, a limited power, a right to resistance - Locke
expounded the guidelines of the liberal state”. Another Lockean example
can be seen in the political liberalism that permeates the speeches and
actions of some heads of state in the early twentieth century, especially
by former US President Woodrow Wilson, whose bases are rooted in both
classic liberal thinkers as Norman Angell and contractarians as Kant, Lo-
cke and Rousseau. The latter, in turn, when placing faith in public opi-
nion - as a corollary of freedom of expression (ROUSSEAU, 2003, p. 144),
something that certainly goes against Tocquevillian - ends up synthesizing
liberal maxims that are very present until the beginning of the last cen-
tury, when, for example, the United States entered World War II, after the
national repercussions of the attacks on Pearl Harbor with the intention of
liberating the world from Nazi tyranny, or even in the 21st century, by re-
suming a revamped version of the white man’s burden, by seeking to bring
democracy to the free world.
Another issue that gains prominence in IR theories - and which con-
cerns an international civil state - is the possibility of a society of states
or an international society. But such a conception cannot be confused with
an international system, since it is precisely in this differentiation that IR
theory innovates, by producing one of its greatest corollaries: the concept
of anarchic society.
Guided by a Grotian and Rousseaunian logic, Bull (2002, p. 15-23)
differentiates international society from an international system, in the sense
that the former constitutes a group of states that, aware of certain com-
mon values and interests, are related via common rules and institutions
(BULL, 2002, p. 19). The international system, on the other hand, is “when
two or more States have sufficient contact with each other, with sufficient
reciprocal impact on their decisions, in such a way that they conduct the-
mselves, at least to some extent, as parts of a whole” (BULL, 2002, p. 15,
free translation). Therefore, an international society can also be an inter-
national system, but it is rare to find an example to the contrary. This is
seen, for example, in the purely commercial and war-oriented relationship
that European states had with Asian countries in the 16th and 19th cen-

137
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

turies, in which this situation represented an international system, but the


latter were not part of international society centered on Europe.
The contractarian who, dealing with the civil state, is closer to con-
ceptualize the formation of an international society is Rousseau, whose
words seem to echo in Bull (2002), when he affirms that:
[…] it is possible to frame others [species of formal confedera-
tions], less visible but none the less real, which are silently ce-
mented by community of interests, by conformity of habits and
customs, by the acceptance of common principles, by other, ties
which establish mutual relations between nations politically
divided. Thus, the Powers of Europe constitute a kind of who-
le, united by identity of religion, of moral standard, of interna-
tional law; by letters, by commerce, and finally by a species of
balance which is the inevitable result of all these ties (ROUSSE-
AU, 2003, p. 73, emphasis added, free translation).

The terms “society” and “anarchic” seem to generate, at first sight,


contradictions for two main reasons. First of all, “society” presupposes
a certain degree of affinity and approximation. Second, “anarchic” gives
the impression that there is a situation of chaos or lack of organization.
The anarchy contained in Bull’s definition (2002, p. 57-62) is associated,
as mentioned repeatedly in this section, to the absence of a worldwide
Leviathan. For Bull (2002, p. 62, free translation), the criticism that the
concept of international anarchy (being based on the Hobbesian state of
nature) is a weak argument seems insufficient, because “the analogy of
the international environment with the domestic order is nothing more
than an analogy, and the fact that states form a society without govern-
ment reflects characteristics of their condition that are unique”. This is
also how Gonçalves reaffirms, linking the classic Weberian concept to
that of international anarchy:

It is an anarchic society because, although it does not have a


central power that has a monopoly on legitimate violence, it is
characterized by a consensus among the states that compose
it, around some common interests that they seek to preserve
by respecting certain institutions and norms (GONÇALVES,
2002, p. XXV, free translation).

However, realists tend to disagree on the formation of an interna-


tional society, due to the fact, among others, that the analogy with the
contractarian civil state does not apply to the international reality. This is
what Carr (2001, p. 93) proclaims, when stating that any type of internatio-
nal society is impossible.

138
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

With regard to IR’s own vocabulary, it can be seen that some contrac-
tarians seek to define concepts that are widely used today in international
analysis and international relations studies. For example, Spinoza (ESPI-
NOSA, 2008, p. 243-244) asserts that two nations are allies when, in order
to avoid war, they commit themselves not to harm and to assist each other
when necessary; the enemy, on the other hand, can be both internal and ex-
ternal, being just a matter of recognition of the authority of a state from the
individual or the nation. Similarly, Kant (2008, p. 28) and Rousseau (2003, p.
122) seek to clarify the terms state and power, being the first employee when
dealing with the internal performance of a specific people; and the second,
when dealing with its external performance, especially in the clash betwe-
en two or more states. It should also be noted that, for Kant (2008, p. 5), the
state is not a property, but it is, in truth, the society over which only the state
can rule. Rousseau (2003, p. 53) calls war between powers the result of a clear,
constant and reciprocal disposition to destroy the enemy state.
Finally, according to Bull (2002, p. 34), Martin Wight, one of the ex-
ponents of the English School of IR, seeks in Hobbes and Kant the gene-
sis to explain two of the three traditions of Western thought from which
IR theories originate. In addition to the rationalism tradition, centered on
Hugo Grotius, there is also realism, one of a Hobbesian nature, which pro-
claims the international scene as being marked by the constant competi-
tion and distrust between states, in which cooperation is even possible,
but generates relative gains for the parts. And, on the other hand, there is
the revolutionism tradition, inclined to Kantian meanings of absolute gains
in the case of cooperation, the motivating principle of revolutionaries. Fi-
gure 2 presents these three traditions.
Figure 1 – Martin’s Wight three traditions of Western thought on IR
theories

Source: BUZAN, 2004, p. 9

139
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

As analyzed in this section, the legacy left by contractarian thou-


ght finds a strong positive relationship in the IR field, especially concer-
ning its theories and, more specifically, its mainstream strands, namely,
political realism. In this bias, it can be said, based on the analysis here
performed, that the main hypothesis presented in the introductory sec-
tion cannot be easily refuted. The remaining point is therefore inquired
whether the general objective of this work has been achieved, a task
performed in the next section.

Conclusion

Validating contemporary issues with the help of assumptions that,


although old, remain classic is an analytical methodology widely used in
many social sciences disciplines, including PS and IR. In this sense, the
contractarian legacy in IR can be summarized below.
Specifically, as for Spinoza (2008), the following disruptions are no-
ted when contrasting his work with the ones produced by the other con-
tractarian theorists analyzed: (i) allocating men’s ultimate end in the main-
tenance of their survival force (conatus), and not of their survival itself; and
(ii) framing civil state as a logical continuity of natural coexistence be-
tween human beings. Unlike other contractarian thinkers, the Spinozian
legacy is not very consolidated in IR theories, given that one of his most
important concepts, the conatus, is practically unknown to scholars in the
field, as shown by the last two lines of Table 1 .
Hobbes’ conception of nations does not allow him to envision an
international order such as that which was outlined in the following cen-
turies - unlike, for example, Kant’s normative attempt (WALKER, 2010, p.
170). However, its concepts of anarchy and state of war remain one of the
main corollaries of IR. Besides, Hobbes has forcibly been framed in realis-
tic conceptions - and, in certain cases, Kant (2008) in liberals. However,
as Walker (2010, p. 172) points out, no author should be obliged to such a
position, much less in a category of political realism that encompasses a
privileged branch of IR.
Locke (2006), unlike Hobbes, points to the state of nature with a cer-
tain optimistic character: men, covered by natural laws, have their life,
freedom and property ensured, to prevail cooperation.
Rousseau (2003), on the other hand, brings the notion of cooperation
to international relations, which, together with the search for Kantian pe-
ace through a confederation of fraternal states, are the motives used by
the liberal strand of IR to face Hobbes’ realism reading. In Rousseaunian
terms, it is said that, in the international system, states have not yet signed
a kind of International Social Contract, making them live together, but not

140
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

living among themselves, thus endorsing the legal-international principle


of supportability between states. Assimilating - in very different doses -
Kant, Locke and Rousseau to their theories, the liberal strand of IR seeks
to bring this concept of supportability to international relations (almost as
a synonymous with fraternity) through the coexistence between state and
non-state actors involved by international regimes.
Contractarian theorists, when concerned with the logical systemati-
zation and subjectivation of the classic study of politics, certainly become
fundamental references for current political and international studies, even
though, against their methods and models, they weigh criticism. Thus,
IR is likely to find wide applications, as well as frequent disagreements,
when seeking theoretical answers in Modernity. This is due, among other
reasons, to the very generalist character of social sciences today (KING;
KEOHANE; VERBA, 1996, p. 1-12) and to the fact that contractarians do
not fully agree with each other on “life and death” of the state, especially
at the international level.
This work summarizes the application of the main key concepts of
contractarian thought from modern politics to IR theories, especially to
their mainstream. Finally, as an example, it is emphasized that the lack of
consensus among contractarian theorists - hence the existence of various
strands and theories in IR that, in Bourdieusian terms, struggle in this
scientific field - highlights their diversity of thought. In other words, this
analysis sought to point out how the contractarian legacy remains alive
and resilient in IR theories to this day.

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143
8
Genocídio Hereró e Armênio,
os genocídios esquecidos

Deborah Christina Biet de Oliveira


Geovana Assunção Kerdy do Casal

Contextualização

O presente artigo tem o intuito de compreender os genocídios here-


ró e armênio, analisar a ausência de posicionamento por parte dos Estados
que praticaram esses atos e debater sobre a importância jurídica, socioló-
gica e filosófica do reconhecimento do genocídio e da reparação histórica.
Antes de adentrar no que foi o genocídio armênio e hereró, faz-se
necessário entender o que é genocídio e como surgiu esse conceito.
O termo “genocídio” foi criado na década de 1940 por Raphael Le-
mkin, jurista polonês, a partir de duas palavras: Genos – Tribo/Raça (grego) e
Cide – Matar (latim). Quando questionado em uma entrevista sobre o porquê
de seu interesse sobre o genocídio, Lemkin respondeu que o que chamou sua
atenção sobre genocídio é o fato de ele ter ocorrido muitas vezes.
O genocídio é uma prática constituída por um plano coordenado que
busca a destruição das bases fundamentais da vida dos grupos atacados,
destruição essa que implica usualmente a desintegração das instituições
políticas e sociais, da cultura do povo, de sua linguagem, de sua religião. A
destruição do grupo seria o objetivo principal desse crime, sendo que atos
sempre seriam direcionados aos grupos e aos indivíduos que são selecio-
nados por fazerem parte desses grupos (LEMKIN, 1944 apud LIPPI, 2011).
Em dezembro de 1948, aconteceu em Paris a Conferência Diplomá-
tica que redundou na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime
de Genocídio, na qual “genocídio” foi definido como “qualquer dos se-
guintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte,
um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. O Brasil ratificou a Con-
venção por meio do Decreto 30.822/52, tendo no mesmo ano, com a Lei nº
2.889/56, tipificado o crime internamente da seguinte forma:

145
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte,


grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
a) matar membros do grupo;
b) causar lesão grave à integridade física ou mental de mem-
bros do grupo;
c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência
capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no
seio do grupo;
e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para
outro grupo; (BRASIL, 1956).

O artigo II da referida Convenção traz ainda um rol exemplificativo


de genocídio, qual seja: assassinato de membros do grupo; dano grave à in-
tegridade física ou mental de membros do grupo; submissão intencional do
grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total
ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
transferência forçada de menores do grupo para outro grupo (Ibidem).

Os Armênios

Nos dias atuais, é de amplo conhecimento os horrores cometidos


contra os judeus na Alemanha nazista, havendo inclusive uma política de
reconhecimento e reparação histórica a esse povo, além da indenização
paga em dinheiro aos sobreviventes. Há museus que lembram desse mas-
sacre, como o de Auschwitz.
Em 1939, Adolf Hitler, em um discurso para tranquilizar seus co-
mandantes antes de invadir a Polônia, proferiu a seguinte frase: “quem
afinal fala hoje da aniquilação dos armênios?” (ALMEIDA, 2012, p. 2).
Ao contrário do Genocídio Judeu, pouco se fala do conhecido Geno-
cídio Armênio (1915-1923). Ele não é estudado nas escolas, havendo poucos
livros e filmes sobre ele; é uma história quase esquecida. A frase de Hitler,
por mais cruel que seja, não poderia ser mais atual.
Um dos motivos desse desconhecimento se dá pelo fato de que até
hoje a Turquia nega que tenha praticado o genocídio contra o povo ar-
mênio. Na verdade, eles fazem o contrário – repudiam o uso do termo
“genocídio”, atribuindo a culpa do acontecimento aos próprios armênios,
alegando que foram traídos e que o que aconteceu foram massacres recí-
procos num contexto de guerra civil (Ibidem, p. 3).
A denegação do fato ocorre, inclusive, na própria legislação turca: há
a proibição de se falar sobre o genocídio, processando e punindo escritores
ou qualquer um que se “atreva” a comentar o assunto. Nem o ganhador
do Prêmio Nobel, Orhan Pamuk, escapou dessa acusação, tendo sido pro-
cessado e condenado pela Justiça Turca a pagar uma multa por dizer que
houve genocídio (BBC, 2015).

146
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Mas, essa história é longa e começa bem antes de 1915 e da Primeira


Guerra Mundial. No século XVI, a região que era conhecida como Armê-
nia foi invadida e integrada ao Império Turco-Otomano. Como imperava a
teocracia islâmica, os armênios, que eram cristãos, foram submetidos a um
regime especial, eram denominados de Zhimmis, tinham que pagar impos-
tos mais caros e tinham menos direitos políticos e sociais (ALMEIDA, 2012).
A liberdade e os direitos dos Zhimmis oscilavam de acordo com o tem-
po; contudo, sempre foram legal e socialmente inferiorizados. Entretanto,
no ano de 1939 ocorreu o Tanzimat, uma reforma nacional implantada pelo
sultão que trouxe igualdade para todos, sem discriminação de raça. (Ibidem)
Naquele momento, não sendo mais submetidos a leis que os infe-
riorizavam e tendo igualdade política e social, houve um renascimento
cultural e os armênios começaram a se unir politicamente, buscando in-
dependência (Ibidem).
Contudo, essa liberdade não foi duradoura, pois em 1876 sobe ao po-
der Abdul Hamid II, e os armênios voltam a ser perseguidos. Como forma
de resistência criam a Federação Revolucionária Armênia, que culminou
nos Massacres Hamidianos, de 1894 a 1896, um plano de extermínio para
evitar uma possível revolução. Quanto ao número de vítimas, há divergên-
cias, mas aproximadamente 200 mil armênios foram mortos, dados segun-
do o canal do YouTube “Estação Armênia”.
Em 1908, os Jovens Turcos tomam o poder com o auxílio dos armê-
nios e outras minorias sob a promessa de um ambiente mais seguro e de
melhorias para esses povos. Mas, logo no ano seguinte um confronto entre
armênios e turcos resulta na morte de 15 mil armênios pelas forças militares.
Em 1913, a ala mais radical do partido dos Jovens Turcos, o Comitê
de União e Progresso, assume o poder. Estabelecem uma política de “retor-
no aos tempos de ouro” turco e fortalecem a ideia do Turquismo, que tinha
como objetivo a hegemonia turca no império, ou seja, a eliminação de to-
das as outras etnias, conforme depreende-se do canal “Estação Armênia”.
Essa política de inferiorização continuou até que em 1914 o Comitê
de União e Progresso ordena um boicote ao comércio e à indústria dos
armênios, além da realização da expulsão dos funcionários armênios da
administração pública turco-otomana.
Março de 1915 é o marco do genocídio do povo armênio: enquanto os
olhos do mundo se voltavam para a Primeira Guerra Mundial, o governo tur-
co-otomano começa a desarmar os soldados e a deter em massa os armênios,
com o subterfúgio de que estes iriam trabalhar em construções de estradas,
sendo outra parte “deportada” para os desertos. Em um mês, são deportados
mais de 25.000 armênios, segundo dados do canal “Estação Armênia”.
No dia 24 de abril de 1915 o Império prende e deporta líderes reli-
giosos, políticos e intelectuais, dividindo-os em dois grupos e enviando-os

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

para morrer no deserto. Em novembro do mesmo ano, Talaat Paxá legaliza


o saque dos bens dos armênios. Em 1917, mais da metade da população
armênia já tinha sido exterminada.
No fim da Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano é derrota-
do; portanto, há o que podemos dizer de uma pausa na matança. Em segui-
da, a Armênia declara independência após vencer algumas batalhas contra
os turcos e, no mesmo ano, Talaat Paxá cai e o governo turco autoriza o
retorno dos armênios ao Império.
O parlamento otomano decide submeter a julgamento os responsá-
veis pelo genocídio, ocorrendo a condenação à pena de morte de Talaat
Paxá, que, entretanto, já estava foragido.
Em 1920 é assinado o Tratado de Sèvres, que delimita as fronteiras
da nova Armênia. No mesmo ano, os turcos invalidam o tratado e os jul-
gamentos de Istambul, ordenando novas deportações. Ademais, a Turquia
ataca a república da Armênia e há o seguimento do genocídio em bairros
armênios, com saques e assassinatos.
Até que em 1923 é sancionada a Lei nº 319 da República Turca, que
declara inocentes todos os criminosos de guerra. Em seguida, é assinado
o Tratado de Lausanne, que delimita as fronteiras da Turquia como as
conhecemos hoje.
Os países que reconhecem o genocídio armênio são: Alemanha, Argen-
tina, Armênia, Bélgica, Canadá, Chile, Chipre, Curdistão, Eslováquia, França,
Grécia, Itália, Líbano, Lituânia, Países Baixos, País Basco, Polônia, Rússia, Su-
écia, Suíça, Uruguai, Vaticano, Venezuela e 42 dos 50 estados dos EUA.
A França foi além e aprovou uma lei que torna crime negar o genocí-
dio armênio, o que causou tensão com a Turquia (RATER, 2011).
Os armênios que conseguiram fugir das atrocidades do genocídio
formaram uma diáspora que tem, atualmente, o dobro da população da
república armênia.

Os hererós

Os hererós são um povo bantu, que significa dizer que fazem parte
de um grupo etnolinguístico que abrange cerca de 400 subgrupos étnicos
diferentes. Os bantus habitam a Namíbia, Botsuana e Angola. Os hererós
estão localizados na Namíbia e são originariamente um povo agrícola e
pastoril. A Namíbia tem em torno de 11 a 15 grupos étnicos, e cada um
possui suas próprias tradições culturais e línguas diferentes.
Nos anos de 1884 e 1885, durante a Conferência de Berlim, cujo obje-
tivo era a divisão e delimitação do território africano entre as potências eu-
ropeias, o território que hoje conhecemos como Namíbia ficou conhecido
como Sudeste Africano Alemão. O interesse da Alemanha eram os recur-

148
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

sos naturais, as terras e o gado, os quais estavam confiscando dos nativos.


Mas, os alemães não ficaram apenas nisso, pois, segundo Esther Utjiua
Muinjangue (presidente da Fundação Genocídio Ovaherero, localizada na
Namíbia), assistente social, professora na Universidade da Namíbia no De-
partamento de Assistência Social, tendo sido, em março de 2019, eleita a
primeira mulher presidente de um partido político no referido país, eles
passaram a estuprar mulheres hererós.
Em 1904, os hererós já estavam sob o controle de seus coloniza-
dores alemães havia 20 anos, e, em 12 de janeiro, o chefe hereró, Samuel
Maharero, cansado da situação em que seu povo se encontrava, declarou
guerra contra seus colonizadores alemães e suas tropas, e assim eclodiu
a guerra entre hererós e alemães, tendo durado o ano inteiro. Os alemães
aproveitaram essa ocupação militar para poder “[…] treinar e desenvolver
as cruéis formas que utilizaria alguns anos depois durante a II Guerra
Mundial.” (NETO, 2018).
Para que pudessem pacificar os “Rebeldes”, a Alemanha contata o
General Lothar von Trotha, que comandava as tropas conhecidas como
Schutztruppe. Esther afirma que Trotha possuía muita experiência com os
africanos, pois, quando convocado, ele estava na China, e, antes disso, na
Tanzânia. Trotha ficou conhecido por seus métodos de extermínio.
O genocídio hereró, além de ser o primeiro que ocorre no século XX,
também possui outro aspecto diferente dos outros que haviam ocorrido até
então: em 2 de outubro de 1904, o General Trotha emite uma ordem de ex-
termínio por escrito, uma carta enviada à resistência dos hererós, fazendo
questão de que não fosse escrita somente em inglês e alemão, mas também
em hereró, para que o povo entendesse o significado daquelas palavras.
Esther afirma que de acordo com os livros de História, antes do ge-
nocídio o povo ovaherero chegava a cerca de 100 mil pessoas, tendo sido
reduzido a 15 mil pessoas. Afirma também que a intenção é a coisa mais
importante quando falamos sobre o genocídio, ou seja, a intenção de exter-
minar; e tal intenção se mostra nos números que nos são revelados: houve
uma redução de 100 mil pessoas para 15 mil.
Foram diversas as formas usadas para exterminar os hererós: as tro-
pas tomaram os poços ou estes foram envenenados, além do fato de que
muitos dos hererós foram empurrados para o deserto, ou tentaram fugir
assim que a ordem de extermínio foi emitida. É por isso que é comum en-
contrar hererós vivendo em países vizinhos. Mulheres foram objetificadas
e eram obrigadas a desfilar nuas na frente das tropas alemãs, sendo tam-
bém estupradas: “Os estupros de mulheres… foi algo tão generalizado que
muitos descendentes atualmente têm algum ancestral alemão”; “Sou des-
cendente direto dos hererós. Tanto meus avôs maternos quanto paternos
tinham sangue alemão em suas veias por causa do abuso sexual cometido

149
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

contra meu povo”, disse Ngondi Kamatuka, integrante da Associação He-


reró Contra os Genocídios (MARTINS, 2017).
As crianças que foram poupadas eram escravizadas, sem contar
os experimentos realizados nos campos de concentração, sobre os quais
Edwin Black, jornalista americano, afirma: “estabeleceu um padrão”, e
continua, “A entrada do termo campo de concentração no vocabulário ale-
mão teve início com o estabelecimento de campos para hererós.” (Ibidem).
Em um de seus artigos, Black afirma que as pesquisas sobre diferenças
raciais se iniciaram na Namíbia pelo médico nazista Eugen Fischer, tendo
os fuzilamentos e enforcamentos ocorrido durante 4 anos.
Essas atrocidades não ocorreram apenas com os hererós, mas tam-
bém com os namaquas, que também sofreram genocídio, além de povos
como damara e san, que não sofreram genocídio, mas perderam terras.
“Um relatório produzido pelas Nações Unidas afirma que 65.000 hererós,
ou 80% da população, e 10.000 namaquas (50% da população nama) foram
mortos em apenas três anos, isto é, de 1904 a 1907.” (NETO, 2018).

Reconhecimento

Passados mais de 100 anos, a Alemanha ainda não reconheceu o ocor-


rido como genocídio, tampouco a Turquia reconheceu o genocídio armênio.
No caso hereró, muito pouco foi feito por parte do Governo Alemão,
pois as negociações entre os dois países, Alemanha e Namíbia, têm se con-
figurado como um longo processo que está ocorrendo desde 1990, quando
a Namíbia se tornou independente da África do Sul.
Em 2007 os descendentes do General Trotha foram à Namíbia
para pedir desculpas públicas pelos atos do general. Vinte crânios que
haviam sido levados à Alemanha para estudos foram devolvidos à Na-
míbia em 2011. Ainda em 2011 os representantes da Namíbia foram até
Berlim e visitaram o Memorial do Holocausto. A Namíbia não busca
comparar o que aconteceu com os judeus com aquilo que aconteceu
com o seu povo, ou sequer mensurar isso; eles buscam reconhecimento.
Charles Taylor afirma que:

A exigência de reconhecimento nos últimos casos é dada pela


urgência em razão do suposto vínculo entre reconhecimento e
identidade, onde este último termo designa algo como a com-
preensão das pessoas sobre quem elas são, das suas caracte-
rísticas fundamentais que as definem como seres humanos.
A tese é que nossa identidade é parcialmente moldada pelo
reconhecimento ou por sua ausência, a frequente falta de re-
conhecimento [misrecognition] dos outros, e então a pessoa ou
grupo de pessoas podem sofrer [um] dano real, [uma] real dis-
torção, se a pessoa ou sociedade ao seu redor lhes refletir uma

150
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

imagem confinante, degradante ou desprezível de si mesmos.


Desconhecimento ou falta de reconhecimento pode infligir
danos, pode ser uma forma de opressão, aprisionar alguém em
um enganador, distorcido e reduzido modo de ser (Idem, 2018).

Nesse caso, Charles Taylor não está falando sobre reconhecimento


no caso de um genocídio, mas sim em termos de aspectos raciais, de sexu-
alidade. Mas, ao analisarmos as consequências de um genocídio, ele causa
danos sofridos em aspectos culturais, religiosos, de sentido de perda da
humanidade, de perda de identidade e de sentimento de pertencimento. O
reconhecimento é tão importante, que, se não for eficiente, causa feridas
tão profundas quanto a falta dele:

Dentro dessa perspectiva, [o] falso reconhecimento mostra não


somente falta de respeito. Isso pode infligir uma grave ferida, se-
lando suas vítimas com uma autodepreciação incapacitante. O
reconhecimento devido não é apenas uma cortesia que devemos
às pessoas, é uma necessidade vital do ser humano (Ibidem).

A reparação se dá com a justiça de transição, meio pelo qual se é


realizada a justiça, restauração e manutenção da paz em determinado ter-
ritório onde tenham ocorrido graves violações aos direitos humanos (JA-
PIASSÚ & MIGUENS apud OLIVEIRA, 2016, p. 433).
As reparações podem ocorrer de diversas maneiras: dentre elas, com
a restituição de bens ou terras que foram tomados seja das vítimas ou de
seus descendentes, com a compensação proporcional, de forma monetária,
dos danos sofridos pelas vítimas ou por seus descendentes, bem como com
a reabilitação dos danos sofridos referentes a perdas culturais, religiosas,
dignidade humana, identidade e sentimento de pertencimento.
Uma das principais maneiras de reparação é o reconhecimento ofi-
cial por parte de quem causou o dano, meio pelo qual se garante o direito
à memória e à verdade. Assim, é assegurado que não sejam repetidas e
perpetuadas as violações de direito humanos.

Referências

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de” oficial. Revista Vértice. São Paulo: 2012. Disponível em: http://revis-
tas.fflch.usp.br/vertices/article/view/442/511. Acesso em: 12 de mar. 2020.
BRASIL. Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1958. Promulga a conven-
ção para a prevenção e a repressão do crime de Genocídio, concluída em
Paris, a 11 de dezembro de 1948, por ocasião da III Sessão da Assembleia
Geral das Nações Unidas. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/Atos/decretos/1952/D30822.html. Acesso em: 12 de mar. 2020.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

COOPER, John. Raphael Lemkin and the Struggle for the Genocide
Convention. New York, Palgrave Macmillan, 2008.
ESTAÇÃO ARMÊNIA. EA Explica #10 - Genocídio Armênio. 2018.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=f62Tkpw0e1M. Acesso
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LIPPI, Camila Soares. A importância da obra de Raphael Lemkin para a
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NAMÍBIA: A história de um genocídio e a luta por Reparação. PSTU,
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OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de. Tipificação do desaparecimento
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RS: Editora Fi, 2016.
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Por que gera tanto conflito chamar de ‘genocídio’ o massacre de
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PSTU. PROGRAMA OPINIÃO | Genocídio na Namíbia. 2019. Disponí-
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RATER, Philippe. França aprova lei sobre genocídio armênio e gera forte
reação da Turquia. Veja, 2011. Disponível em: https://veja.abril.com.br/
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-da-turquia/. Acesso em: 12 mar. 2020.
TAYLOR, Charles. Política de reconhecimento. Tradução publicada in:
OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de; DANNER, Leno Francisco; CEI,
Vitor; DORRICO, Julie; DANNER, Fernando. Direitos humanos às bei-
ras do abismo: Interlocuções entre Direito, Filosofia e Arte. Vila Velha:
Praia Editora, 2018. p. 34-82.

152
9
Larry May e a Limitação do Leviatã
em Thomas Hobbes

Marcus Vinícius Xavier de Oliveira

Pequeno excurso sobre Thomas Hobbes e as Relações Internacionais

No âmbito dos estudos da Filosofia Política moderna, em geral, e


das relações internacionais, em especial, o nome de Thomas Hobbes, vezes
nomeado em razão de seu lugar de nascimento Thomas Hobbes de Mal-
mesbury (inicialmente Westport, do condado inglês de Wiltshire), é ime-
diatamente associado ao absolutismo político e à origem do positivismo
jurídico (tese da separação entre direito e moral segundo a qual o comando
normativo goza de imperatividade independentemente de sua conforma-
ção a conteúdos morais e da estatalidade normogenética, segundo a qual a
imperatividade e coercitividade são atributos ínsitos às normas jurídicas
positivadas pelo Estado), bem como ao realismo político nas relações in-
ternacionais, segundo o qual, no âmbito das relações entre Estados, existe
um Estado de natureza e anarquia ante a conhecida característica do Ter-
ceiro Ausente (Bobbio), isto é, tertio supra partes non datur, ou par in parem
non habet imperium vel judicium (BOBBIO, 2009).
As próprias circunstâncias do nascimento de Hobbes, em 5 de abril
de 1588, que segundo ele mesmo expõe em suas autobiografias – Vita Car-
mine Expressa e Vita Actarium – decorreu do fato de sua mãe – cujo nome é
até hoje desconhecido –, tê-lo parido prematuramente, assustada que ficou
com a ameaça que se avizinhava a Westport de uma iminente invasão da
Armada Invencível no contexto da guerra anglo-espanhola, o que levou
Hobbes a afirmar: “my mother gave birth to twins: myself and fear”.
De fato, muitos autores sustentam a relação indissociável entre a te-
oria absolutista hobbesiana e o medo (GARCIA, 2004), sendo este último,
por assim dizer, o leitmotiv de sua teoria política, segundo a qual a summa
potestas – o poder absoluto de que se reveste o Estado – não encontra nem
deve encontrar qualquer limitação em seu exercício, nem mesmo em suas
próprias normas, como condição de assegurar segurança aos súditos, don-
de provém a conhecida característica de que estes não têm qualquer direi-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

to de resistência em relação àquela (HOBBES, 2017, p. 259). Já no tópico


das relações internacionais, estão as conhecidas afirmações inerentes ao
realismo político, em especial duas que nos serão particularmente úteis:
embora os Estados sejam formalmente iguais em soberania, são assimé-
tricos em poder, bem como a ideia central da geopolítica concernente ao
equilíbrio do poder entre os Estados grandes e poderosos, mediante a re-
alização de atos dissuasivos, sejam em termos militares ou diplomáticos,
para se evitar a eclosão de uma guerra entre eles.
Com efeito, parece ser bastante difícil, de um lado, lutar contra a tra-
dição, que vê em Hobbes um prócer da soberania absoluta, e, de outro lado,
não se deixar influenciar por diversas afirmações que o próprio Hobbes fez
em suas obras mais conhecidas.
Vejamos alguns exemplos.
Acerca do estado de natureza, aquela do parágrafo inicial do De
Civi, que é de 1642 – “[…] ostendo primo conditionem hominum extra societa-
tem civilem, quam conditionem appellare liceat statum naturæ, aliam non esse
quam bellum omnium contra omnes; atque in eo bello jus esse omnibus in om-
nia” (Idem, 1983, p. 1) –, e que depois foi retomada e reafirmada no famoso
capítulo XIII do Leviatã (Idem, 2017, p. 116-119), de 1651, isto é, de que ele
é caracterizado como uma guerra de todos contra todos, na qual o homem
é um lobo para o homem [homo homini lupus], uma sentença popularizada
por Hobbes, mas cujo autor originário foi Plauto em sua peça teatral Asi-
naria (HENDERSON, 2006, p. XI).
Uma importante característica, portanto, do pensamento de Ho-
bbes é que ele sempre se orienta por aquilo que poderíamos identificar
como uma metáfora teratológica: o homem é lobo; o soberano é o Leviatã;
e Behemoth, o outro monstro que logrou, no contexto da guerra civil ingle-
sa, destituir o poder do soberano.
No que toca ao seu proto-positivismo, em especial no concernente à
imperatividade das leis civis, isto é, instituídas pelo Estado, estas estão pre-
sentes no famoso capítulo XXVI do Leviatã, uma vez que Hobbes não as sub-
mete, em sua legitimidade, à sua concordância ou submissão à moral ou às
leis da natureza, mas ao simples fato de serem postas em vigência pelo Estado:

Entendo por leis civis aquelas leis que os homens são obriga-
dos a respeitar […] por serem membros de um Estado […], do
que segue que a “[…] lei, em geral, não é um conselho, mas uma
ordem. E também não é uma ordem dada por qualquer um a
qualquer um, pois é dada porque se dirige a alguém já ante-
riormente obrigado a obedecer-lhe. Quanto à lei civil, acres-
centa apenas o nome da pessoa que ordena, que é a persona
civitatis, a pessoa do Estado”. Assim, a “[…] lei civil é, para todo
súdito, constituída por aquelas regras que o Estado lhe impõe,
oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua

154
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o


mal; isto é, do que é contrário ou não é contrário à regra (Idem,
2017, p. 220, tradução nossa).

Por fim, no concernente ao estado de natureza nas relações entre Es-


tados, presente no já citado capítulo XIII do Leviatã, a correlação que Ho-
bbes fez entre a presunção do estado de natureza originário que dá origem
à necessidade do Estado – este, como sabemos, é um pressuposto teórico
de seu trabalho, e não um fato histórico, pois como ele mesmo afirmou:
“Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo – refere-se
ao estado de natureza –, nem uma condição de guerra como esta, e acre-
dito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro […] Seja
como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida quando não havia
poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens que
anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair,
numa guerra civil” (Ibidem, p. 118, tradução nossa) –, com as relações entre
Soberanos. Afirmou ele:

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os in-


divíduos se encontrassem numa condição de guerra de todos
contra todos, de qualquer modo, em todos os tempos, os reis
e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua
independência, vivem em constante rivalidade e na situação e
atitude de gladiadores, com as armas assestadas, cada um de
olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões
guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com
espiões nos territórios de seus vizinhos, o que constitui uma
atitude de guerra […] (Ibidem, p. 118, tradução nossa).

Desses pontos cardeais da obra de Hobbes, poderíamos extrair pelo


menos três consequências importantes, a saber:
A) O estado de natureza em Hobbes não era um fato histórico –
nem, por consequência, o é o contrato social –, mas uma suposição teórica
necessária para que ele construísse os fundamentos de seu pensamento.
Com efeito, a “guerra de todos contra todos” deve ser entendida desde a
distinção aristotélica entre potência e ato, haja vista que é a possibilidade
de dissolução da sociedade civil por guerras civis (Behemoth) que torna
necessária a constituição, mediante o contrato social, do autômato a que
ele denominava de Leviatã, o grande monstro aquático narrado nos ca-
pítulos 3 e 41 do Livro de Jó, o qual deve exercer o poder absoluto sobre
os súditos “without stint” (sem qualquer restrição) como condição neces-
sária para se evitar a civitas dissolutas, na qual, como dito por Agamben,
ocorre a “[…] lupificação do homem e a hominização do lobo […] no Estado
de Exceção.” (Idem, 2002, p. 137).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Ademais, a concepção antropológica de Hobbes, segundo a qual o


homem é, por definição, mal por natureza, pois, da igualdade de todos os
homens no estado de natureza, tanto no que concerne à capacidade (força
e/ou inteligência) como à esperança (capacidade de satisfazer suas neces-
sidades egoísticas, isto é, uma concepção de individualismo metodológico
inerente à origem da modernidade, segundo a qual cada indivíduo é do-
tado de desejos e objetivos e encontra na sociedade os meios necessários
para os satisfazer), segue-se que, como os bens são limitados e somente po-
dem satisfazer os interesses de um em detrimento dos demais, sejam todos
os homens inimigos entre si, e se “[…] esforçam por destruir ou subjugar
um ao outro”; que eles “[…] não tiram prazer algum da companhia uns dos
outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer) […]”, do que também
se segue a ideia de que, sem um poder centralizado e absoluto, “[…] eles se
encontram naquela condição a que se chama de guerra […]”, mas que não
“[…] consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar […]”, isto é, uma guerra
em ato, mas “[…] naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar
batalha é suficientemente conhecida […]”, pois “[…] a natureza da guerra
não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal […]”, isto é,
uma guerra em potência (HOBBES, 2017, p. 117-118, tradução nossa).
B) Segundo ponto importante é que Hobbes não desenvolveu um
pensamento autônomo das relações internacionais, mas, antes, estabele-
ceu, como foi comum a todos os contratualistas – absolutistas ou não –,
ou mesmo no organicismo de Hegel, uma correlação entre o interno – a
sociedade civil/Estado – e o externo – as relações entre Estados –, da qual
se segue, em síntese, dois argumentos importantes, a saber: o da igual-
dade – o estado de natureza é idêntico em ambas as esferas, isto é, uma
potência de guerra de todos contra todos em razão tanto da igualdade
de capacidade e de esperança como da limitação dos bens que possam
satisfazer os interesses entendidos desde uma perspectiva egoística – e o
da diferença, isto é, o princípio fundamental de que aquilo que existe na
sociedade estatal – centralização do poder e capacidade de impor as nor-
mas contra a vontade dos súditos – não existe em âmbito externo, posto
que a sociedade internacional é, por definição, igualitária e descentrali-
zada – tertio supra partes non datur –, regida, nas relações de coexistência
entre Estados, por normas do direito natural – e o Direito das Gentes, em
Hobbes, é, por definição, um exemplo de direito natural –, pois, conforme
ele mesmo afirmou, “[…] aquilo que é a lei da natureza entre indivíduo e
indivíduo antes da constituição da comunidade é a lei das nações, poste-
riormente, entre soberano e soberano”, ou, mais especificamente: “No que
se refere às relações de um soberano para com outro, que estão incluídas
naquele direito que é chamado comumente direito das gentes, não preciso

156
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

aqui dizer nada, porque o direito das gentes e a lei da natureza são uma e
a mesma coisa.” (Ibidem, p. 278, tradução nossa).
Assim, o pensamento hobbesiano se constituirá, duplamente, na
fundamentação tanto do realismo político, que tem seu fundamento nucle-
ar no conceito de anarquia [do grego αναρχία, isto é, sem arché, que tanto
pode significar ausência de fundamento, como também ausência de ordem
(AGAMBEN, 2014)], como, e por consequência disso, das teses negacionis-
tas da juridicidade do Direito Internacional.
Para Pecequilo, com efeito, o realismo político constitui-se na teoria
das relações internacionais, que pressupõe uma dissociação absoluta entre
política e moral, pois as entende a partir dos critérios da: “[…] conquista e
manutenção do poder político” segundo “uma dinâmica própria”, na qual
“não se aplicam critérios valorativos ou morais, mas sim avaliações rela-
tivas à capacidade dos Estados “para controlar suas unidades políticas”.
(Idem, 2004, p. 116-117)
Assim, no foro das relações internacionais, não haverá cooperação,
mas equilíbrio; a conduta não será moral ou imoral, mas amoral, isto é,
eficaz. A um questionamento: por que o Estado “x” agiu de tal forma? A
resposta será: “Porque ele pôde. Porque, na aferição dos ganhos e dos pre-
juízos, os resultados se mostraram mais vantajosos”. Em síntese, o “[…]
conceito-chave do realismo político é o interesse definido em termos de
poder que determina, na prática, as prioridades e o tipo de comportamento
que um certo Estado terá no sistema internacional”.
C) Por fim, o mesmo se dá, por consequência, no plano da infirma-
ção da juridicidade do Direito Internacional. Para um de seus mais desta-
cados autores, John Austin, que foi profundamente influenciado por Ho-
bbes, a ausência de juridicidade do Direito Internacional decorre do fato
de este expressar, quando muito, uma espécie de moralidade ou usos nas
relações entre os Estados sem que essas normas e práticas tenham qual-
quer normatividade, uma vez que não expressam aquilo que o primeiro
indica como condição necessária para tanto, sua positividade, entendida
no mesmo sentido dado por Hobbes no já citado Capítulo XXVI do Le-
viatã. Para este autor, um dos precursores do juspositivismo anglo-saxão,
a positividade do direito se caracterizaria por três atributos: a) o direito
consiste em comandos (ordens, expressões de vontade) direcionados aos
integrantes de uma comunidade política independente; b) os comandos
expressam a vontade de um soberano, o qual não se submete ao direito, e
são apoiados em ameaças (sanção); e c) o soberano é alguém que é habi-
tualmente obedecido (AUSTIN, 1995, p. 13-14).
Não havendo na sociedade internacional soberano algum, o Direito
Internacional não teria o atributo da coercitividade, não podendo, portan-

157
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

to, ser considerado como direito, mas somente como a expressão de uma
moralidade (na acepção hobbesiana, lex naturalis, consideradas como re-
gras de prudência, mas destituídas de cumprimento obrigatório), ou regras
de boas condutas que vigem entre os Estados:

[Existem] Algumas espécies de leis que são estabelecidas pela


opinião geral [e] obtiveram nomes apropriados. – Por exemplo,
existem leis ou regras impostas a senhores de opiniões corren-
tes entre cavalheiros. E estas são geralmente denominadas de
regras de honra, ou a leis ou leis de honra. – Existem leis ou re-
gras que são impostas às pessoas na forma de opiniões corren-
tes no mundo da moda. E estas são geralmente denominadas
de direito estabelecido pela moda. – Tem leis que consideram
a conduta das sociedades políticas independentes em suas
várias relações entre si: ou melhor, há leis que consideram o
comportamento dos soberanos ou governos supremos em suas
várias relações entre si. E leis ou regras destas espécies que
são impostas a nações ou soberanos por opiniões atuais entre
as nações, são denominados geralmente o Direito das Nações
ou Lei Internacional (AUSTIN, 1995, p. 20).

Vê-se que em Austin leis de honra, de moda ou das nações têm ori-
gem idêntica – estabelecimento pela opinião geral, e não por um soberano –,
que se aplicam a determinados indivíduos, mas destituídas de juridicidade,
posto não serem positivas, isto é, emanadas do soberano. Não são normas
jurídicas, mas regras morais ou usuais destituídas de coercitividade.
Pelo que vimos até o momento, a tradição que vislumbra em Hobbes
não um, mas “o” prócer do absolutismo político e da soberania absoluta
do Estado, do início do juspositivismo e, no contexto das relações interna-
cionais, entre as primeiras afirmações modernas do realismo político (na
verdade, precedido por Maquiavel), parece ser um fato incontestável.
Entretanto, como procuraremos demonstrar nas próximas linhas,
Larry May nos propõe uma interpretação bastante interessante desses
pontos e que parece, se não as infirmar, contextualizá-las de forma mais
aproximada à obra hobbesiana, mitigando, em determinados aspectos, as
teses mais radicais do cânon interpretativo.

Larry May as Limitações ao Leviatã

Larry May é, na atualidade, um dos mais destacados professores esta-


dunidenses de Direito Penal Internacional, em especial na interlocução en-
tre filosofia política e esse ramo do Direito Internacional, tendo como foco
central de sua produção intelectual os chamados core crimes, tendo escrito
uma importante tetralogia que abarca os quatro crimes internacionais pró-
prios, a saber, Crimes Against Humanity: A Normative Account (MAY, 2005),

158
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

War Crimes and Just War (Idem, 2007), Aggression and Crimes Against Peace
(Idem, 2008) e Genocide: A Normative Account (Idem, 2010), além de outros
inúmeros livros. May é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da Van-
derbilt University, tendo ocupado, anteriormente, a cadeira W. Alton Jones
de Filosofia, Direito e Relações Internacionais da mesma universidade.
Em 2013, após 35 anos de trabalho, Larry May publicou, pela Oxford
University Press, o texto de sua tese de doutorado versando sobre a filoso-
fia política e jurídica de Hobbes, intitulada Limiting Leviathan: Hobbes on
Law and International Affairs, defendida na New School for Social Resear-
ch, e que teve por primeira orientadora Hannah Arendt; com a morte des-
ta em 1975, quem deu prosseguimento na orientação foi o Prof. Anthony
Quinton. (MAY, 2013)
O ponto central de Larry May, nesse livro, é o de que muito embora
o pensamento de Hobbes seja, por assim dizer, um dos cânones do pensa-
mento político e jurídico modernos, a maior parte dos autores e comenta-
dores focaram, quase que exclusivamente, nas três mais conhecidas, isto
é, De Cive, Leviathan e Behemoth, dando pouca atenção a outra obra fun-
damental, qual seja, Dialogue beetween a Philosopher and a Student of the
Common Laws of England, ocasionando aquilo que ele denominará de um
gap acerca das conexões entre direito, política e moralidade no pensa-
mento de Hobbes (Ibidem, p. 1).
Em síntese, a tese central do livro é a de que Hobbes era “[…] muito
mais restringível a limitações morais, mesmo jurídicas, para a elabora-
ção das leis […] do que ele mesmo retratou […]”, o que permitiria afastar
a ideia de que ele é a “besta negra”, bête noire, do Direito Internacional,
na medida em que ele mesmo reconhecia “[…] solid grounds for the rules
of war in international relations […]” (Ibidem, p. 1). Mas, isso somente
é possível se se considerar que Hobbes também reconhecia um grande
peso tanto à equidade como à justiça em sua filosofia jurídica, uma vez
que a equidade, tal como concebida no contexto do direito anglo-saxão,
estabelece uma série de restrições para aquilo que o soberano pode legi-
timamente fazer (Ibidem, p. 2).
Vejamos, segundo May, duas hipóteses de limitação à soberania ex-
pressamente reconhecidas por Hobbes em suas obras. A primeira versa
sobre aspecto interno; a outra, sobre as relações internacionais.

O que significa “without stint”?

Hobbes afirma no Capítulo XV do Leviatã, no qual ele trata das leis


da natureza, que aquele que exerce a soberania – o Monarca ou Assembleia
–, está autorizado, no que toca ao desfrute das coisas comuns indivisíveis, e

159
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

desde que passíveis de serem desfrutadas por todos ou por alguns, a deter-
minar a forma e o modo de as fazer, observados, entretanto, o princípio da
equidade, que veda a distribuição desigual. O texto original é o seguinte:

E disto segue outra lei, que coisas que não podem ser divi-
didas, sejam desfrutadas em comum, se puderem ser; e se a
quantidade da coisa permitir, sem restrição; de outra forma
proporcionalmente ao número dos que têm direito. Por outro
lado, a distribuição, se desigual, é contrária à equidade (Idem,
2017, p. 138, tradução nossa).

A expressão “without stint” tem sido interpretada pela tradição


como a afirmação de um poder soberano ilimitado. Para May, entretanto,
o texto diz menos que afirma a tradição na medida em que, nada obstante,
de fato, não terem os súditos poder algum de criticar ou limitar a decisão
do Soberano – disso não se segue, entretanto, que ele seja ilimitado, na
medida em que, conforme o próprio Hobbes afirma, uma distribuição de-
sigual é contrária à equidade.
Trata-se, como se pode perceber, de uma distinção importante entre
legalidade – a decisão do soberano – e legitimidade – a adequação dessa
decisão a princípios de justiça –, como Hobbes, de fato, o reconhece no Dia-
logue, no qual ele enfrenta o problema do controle parlamentar no âmbi-
to do direito constitucional inglês. Em síntese, para Hobbes, não era o Rei
quem era soberano, mas o King-in-Parliament. King (ou, se mulher, Queen)-in-
-Parliament é um instituto do direito constitucional inglês pelo qual o poder
legislativo do monarca é exercido com o consentimento do Parlamento ou
sob seu conselho, a quem o monarca delega os poderes para legislar. Não se
trata, portanto, de separação dos poderes, mas de fusão, isto é, do exercício
conjunto das funções legislativas entre o Monarca e o Parlamento.
No entanto, Hobbes é relativamente claro ao dizer que não há li-
mites substantivos para a soberania e que não deveria haver nenhum, já
que o soberano precisa ser o mais forte possível para garantir a paz. Mas,
Hobbes também diz, no Capítulo XXVIII do Leviatã, que há coisas que o
soberano não deveria fazer, como punir os inocentes ou agir com cruel-
dade, também em parte porque essas ações enfraqueceriam o soberano
e tornariam mais difícil que ele exercesse a sua razão de existir, proteger
os súditos, uma vez que, com elas, ele perderia sua legitimidade (Ibidem,
p. 253-254, tradução nossa).
Com efeito, Hobbes é extremamente claro no capítulo XXX do Le-
viatã ao afirmar que o soberano tem deveres para com seus súditos, sendo
o principal deles a asseguração da concórdia interna e da paz externa, sin-
tetizado por ele pelo conceito de salus populi, ou, conforme registrado no
De Legibus, de Cicero, salus populi suprema lex esto – o bem-estar do povo é
a lei suprema do Estado. Di-lo Hobbes:

160
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O ofício do soberano, seja monarca ou assembleia, consiste


no fim, pelo qual lhe foi confiado o poder soberano, a saber, a
busca da segurança do povo; a que ele é obrigado pela lei da
natureza; e prestar contas a Deus, o autor dessa lei, e a nin-
guém além dele.
Mas por segurança, aqui, não significa uma pura preservação
[bare preservation], mas também todos os outros contenta-
mentos da vida… e na elaboração e execução de boas leis (Ibi-
dem, p. 267, tradução nossa).

Esse ponto é totalmente inequívoco no que diz respeito à limitação


da soberania interna, em particular em razão do emprego do termo “obri-
gado”, que deve ser compreendido para além de uma simples obrigação
em termos morais, mas sim como expressa admissão de que o soberano é
limitado, mesmo que ele não seja responsável, em sentido jurídico, perante
o povo. O dever, em outros termos, é aquela espécie de norma jurídica que
explicitamente limita aquilo que se pode fazer, na medida em que proíbe
ou determina aquilo que se deve fazer. E o que o soberano deve fazer? Per-
seguir a salus publica sob pena de perder legitimidade e não lograr mais
governar, uma vez que, com seu comportamento, acordará Behemoth, a
guerra civil, na qual “homo homini lupus”.

As limitações da soberania no contexto das relações internacionais

Um dos pontos iniciais que se buscou afirmar é que Hobbes não de-
senvolveu propriamente um trabalho autônomo sobre as relações interna-
cionais, mas, antes que tendo se utilizado dos critérios da igualdade e da
diferença, ele estabeleceu uma compreensão sobre o tema que é bastante
comum ao pensamento moderno: aquilo que tem em nível interno – um
poder central e soberano – não existe em nível internacional – a relação
entre Soberanos –, donde as duas características fundamentais: a perma-
nência do estado de natureza nas relações entre os Estados e da guerra
em potência, bem como a tese mais forte da igualdade entre os soberanos.
Ora, onde há igualdade absoluta, não há um poder central, e onde não há
poder central, não existem leis civis, mas o direito natural; onde vige o di-
reito natural, não há coercitividade, mas anomina…
Essas teses ficam mais claras quando se lê o Capítulo 29 do Leviatã,
quando Hobbes estabelece aquilo que ele denominará das “coisas que en-
fraquecem ou levam à dissolução de um Estado”. Se o Leviatã é um autôma-
to, uma pessoa, ele é dotado de corpo. Se dotado de corpo, este é passível
de ser dominado por enfermidades. Enfermidades levam ou ao enfraqueci-
mento do poder, ou à morte. Hobbes, portanto, nesse Capítulo 29, descreve
condições internas e/ou externas que poderão levar ao enfraquecimento ou

161
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mesmo à morte do Estado, uma vez que elas coibirão ou tornarão impossí-
vel que ele exerça a sua razão de existir: assegurar a salus publica.
São várias as causas que poderão levar à defunção do Estado, mas
conterei a discussão naquela em que ele expressamente discorre sobre as
relações entre os Estados, presente na sexta causa. Afirma ele:

Existe uma sexta doutrina, aberta e diretamente contrária à


essência do Estado, que é esta: o poder soberano pode ser di-
vidido. Pois em que consiste dividir o poder de um Estado
senão em dissolvê-lo, uma vez que os poderes divididos se
destroem mutuamente uns aos outros? (HOBBES, 2017, p.
260, tradução nossa).

A partir da leitura desse capítulo, a tradição realista tem interpre-


tado que Hobbes afirma que soberano pode fazer o que ele lhe apraz em
relação a outros Estados, pois, com efeito, se um soberano se considerasse
limitado por outros soberanos, eles é quem o seriam, e não esse que se dei-
xou limitar. Em síntese, quando o poder soberano é dividido, ele se destrói.
Contudo, como já vimos, Hobbes afirma, textualmente, que existem
ações que o Soberano não deve fazer – punir os inocentes ou agir com ini-
quidade –, salvo se, conforme ele afirma no Capítulo XXVIII, o “[…] infligir
qualquer dano a um inocente que não é súdito, se for para o benefício do
Estado, e sem violação de nenhum pacto anterior […]”, por não se constituir
em “[…] desrespeito à lei de natureza”, segundo a qual, pacta sunt servanda.
(Ibidem, p. 253 e s, tradução nossa)
O que essa afirmação nos indica, com bastante clareza, é que as re-
lações entre soberanos, se asseguradas ou regidas por tratados internacio-
nais, obriga-os a cumprirem o pactuado, limitando-se, reciprocamente, e
por vontade, às ações recíprocas entre eles. Conforme afirma Larry May,
“A lei da natureza relativa a contratos e tratados aparentemente vincula
aos soberanos quando interagem com outros soberanos, ou pelo menos
parece governar a arena internacional.” (Idem, 2013, p. 11.)
Ora, se essa interpretação parece ser condizente com a doutrina hob-
besiana, também parece ser bastante difícil sustentar que Hobbes é o grande
defensor de que as relações internacionais se dão em uma pura anarquia,
mesmo porque no Capítulo XXII do Leviatã ele afirma que embora não seja
necessária uma liga entre indivíduos para a defesa mútua no contexto inter-
no, pois isso enfraqueceria o poder do Estado, seria não somente “legítima”
[lawful, isto é, conforme o direito], mas também proveitosa a constituição de
uma liga entre os Estados para defesa mútua: “Portanto, as ligas entre Esta-
dos, acima dos quais não há poder humano constituído, capaz de mantê-los
a todos em respeito, não apenas são legítimas como também são proveitosas
durante o tempo que duram.” (HOBBES, 2017, p. 198, tradução nossa).

162
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Para Larry May, essas duas passagens de Hobbes nos indicam pelo
menos duas teses importantes para se compreender seu pensamento acer-
ca da limitação da soberania no contexto das relações internacionais.
O primeiro atine ao fato de que não é a mesma coisa afirmar-se que,
embora entre Estados par in parem non habet imperium vel judicium, uma vez
que todos gozam de igual soberania, que a sociedade internacional seja
caracterizada pela anomia, por um estado de perene anarquia, uma vez que
pacta sunt servanda, isto é, os tratados internacionais vigentes entre os Es-
tados devem ser cumpridos de boa-fé.
Tanto isso é verdade que o descumprimento de um tratado interna-
cional se constituía numa violação substancial ao Direito Internacional
desde os seus mais antigos registros, sendo, nesse sentido, caracterizado
como um casus belli legítimo, vale dizer, na possibilidade de o Estado
lesado buscar, por meio da guerra legítima, ressarcir-se dos danos provo-
cados pelo Estado faltoso.
Amnon Altman, em seu livro Tracing the earliest recorded concepts
of International Law, um valioso estudo sobre as regras do Direito Inter-
nacional no contexto das cidades-estados do Oriente Médio entre os anos
2500-330 a.C. – Mesopotâmia, Acádia, Babilônia etc. –, comprovou que, pe-
los fragmentos estudados, o descumprimento de um tratado internacional
constituía, de per se, em casus belli.

We have already noted some concern to the runaways issue in


the treaty of the 23rd century concluded between Naram-sin of
Akkad and an Elamite king, and in the Old Babylonian treaty
between Šadlaš and Nērebtum where both parties undertook
not to enlist a runaway soldier of the other party […]. Althou-
gh these treaties do not speak explicitly about extradition, the
actual meaning is to be deduced. The above-mentioned three
commercial treaties from Kültepe, concluded by the city of
Aššur with rulers of some Anatolian cities, are more explicit in
this regard. In those treaties, the stipulated extradition is con-
cerned not only with murderers […], but also with the extradition
of Babylonian merchants - the commercial competitors of the
Assyrian merchants who happened to come to these Anatolian
cities - in order to be executed […]. An extradition stipulation
occurs also in a not yet published treaty from Tell Leilan, con-
cluded between Till-Abnu, king of Apum, and Yamṣi-Ḫandu,
king of Kaḫat […]; but in this case, it concerns runaway slaves.
These occurrences of stipulated extradition should be viewed as
only a small sample of a much greater bulk of material pertai-
ning to an issue which was one of the most common concerns
of rulers throughout the history of the Ancient Near East, when
failure to assent to demand of extradition was often regarded as
casus belli […] (ALTMAN, 2012, p. 83).

163
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

E isso é facilmente explicável no fato de que, até a Carta das Na-


ções Unidas, o direito par excellence do soberano era o de declarar a guerra
para a proteção de seus interesses, nacionais ou internacionais. Com efei-
to, conforme Prosper Weil, “La Charte des Nations Unies […] substitué au
‘modéle de Westphalie’, caractérisé par la force comme principale source
de légitimité, le ‘modéle de la Charte’ […] qui refuse toute légitimité au re-
cours à la force.” (Idem, 1992, p. 28).
O segundo ponto importante: embora Hobbes aplicasse o mesmo
princípio do individualismo egoístico para os Estados, nada obstava, mas,
antes, era “legítimo” e “desejável” que os Estados fizessem pactos de não
agressão e/ou defesa mútua como forma de se assegurar o cumprimento
da primeira lei da natureza, qual seja, esforçar-se pela paz. É importante
frisar: todas as demais leis da natureza – que são quinze, no total –, estão
subordinadas a essa primeira e são consequências dela (em especial, a se-
gunda e a terceira), quais sejam, a renúncia ao direito natural a todas as
coisas e pacta sunt servanda (HOBBES, 2017, p. 131 e s.).

Considerações finais

Mesmo que se estendesse muito mais a análise das limitações in-


ternas e externas da soberania no pensamento de Thomas Hobbes, não
se pode deixar de reconhecer que a sua obra é bem menos radical, espe-
cialmente no plano das relações internacionais, do que o sustentado pelos
diversos autores do realismo político.
Além disso, é bastante óbvio que a discussão sobre esse aspecto par-
ticular da obra de Hobbes permitiria rever muito do que foi escrito pelas
doutrinas negacionistas da juridicidade do Direito Internacional, em par-
ticular Austin e Hegel e seus seguidores.
Com efeito, conforme se viu em linhas acima, Austin foi profunda-
mente influenciado por uma concepção radical de Hobbes, o mesmo se
dando, conforme se pode verificar da leitura de Hegel, em especial quando
ele nega a cogência das normas do Direito das Gentes em sua Filosofia do
Direito (§§ 330-340) (Idem, 1968, p. 273- 278). Isso porque, conforme o de-
monstrou Paulo Konzen, ele se apropriou do mesmo léxico hobbesiano so-
bre direito natural, estado de natureza, natureza humana etc (Idem, 2016).
Em síntese, a obra de Larry May abre novos caminhos para os estu-
dos hobbesianos.

164
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

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166
10
Os refugiados ambientais à luz
dos Direitos Humanos

Francine de Freitas Fernande

É inconteste que a Terra passa constantemente por processos natu-


rais de resfriamento e aquecimento, proporcionando, assim, a formação
de gases no planeta, conhecido como efeito estufa. Além disso, as conse-
quências das atitudes humanas de caráter irresponsável deixam evidente
que a própria humanidade compromete sua qualidade de vida, bem como
sua economia, o que corrobora o início de debates que envolvam o tema
da degradação ambiental, em especial aqueles que tratam a respeito de
mudanças climáticas.
O cenário internacional, permeado por crises financeiras, guerras ci-
vis, extrema miséria e afins, culmina em grandes deslocamentos por todo o
globo terrestre, chamando a atenção para o fenômeno migratório. Não raras
as vezes, o fluxo migratório surge em decorrência de desastres naturais.
À vista disso, pressupõe-se que há certa necessidade de elaboração
de normas jurídicas capazes de garantir estabilidade aos direitos huma-
nos desses indivíduos que porventura vierem a sofrer com os impactos
das mudanças ambientais.
É importante esclarecer que o pretendido nestas poucas linhas é dis-
cutir acerca dos refugiados ambientais, apresentando o conceito jurídico
e contextualizando alguns dados históricos e legislativos a seu respeito a
fim de suscitar um debate sobre como os direitos humanos dessas pessoas
podem ser preservados, ou se há falha na garantia de tais direitos.
A recente exposição acerca dos Direitos Humanos, com perspecti-
vas a partir da Declaração das Nações Unidas de 1948, pretende suscitar
discussões sobre os direitos humanos em âmbito internacional, mas não é
só isso, busca ainda promover que os Estados signatários a ela se adéquem
ao seu pleno exercício.
Nesse contexto, cabe esclarecer sobre a atual condição dos refugiados
ambientais e suas relações à luz dos direitos humanos. Sendo assim, a título
de conhecimento, será abordado o conceito de refugiados ambientais, bem
como a evolução legislativa e histórica no que compete ao conceito de refú-
gio com o fito de proporcionar ao leitor uma viagem cultural e jurídica.

167
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

De início, cumpre esclarecer o conceito do termo refugiado para, en-


tão, aprofundar a temática do refugiado ambiental.
O refugiado é a pessoa estrangeira fugindo de situações conflitu-
osas em seu país de origem que chega a terras de outro Estado para ali
encontrar proteção. Independentemente da classificação que receber, em
sua mais simples concepção é isso: pessoa, ser humano. E, como tal, possui
direitos que são inerentes à sua condição (MENDES, 2014).
Ademais, a Convenção Relativa ao Estado dos Refugiados, de 1951,
conceitua como refugiado o indivíduo que teme ser perseguido em razão
de sua religião, raça, cor, opiniões políticas, grupos sociais e, por isso, se
encontra fora de seu país de origem e, consequentemente, não pode ter a
guarida desse país, ou, ainda, ante o temor que lhe aflige, não pode retor-
nar à sua terra natal (ACNUR, 1951).
Com o passar do tempo e da evolução do conceito, surgiram outras
definições mais abrangentes, incluindo no rol de refugiado não só aquelas
pessoas que se encaixavam no disposto na Convenção de Genebra de 1951,
mas também aquelas compelidas a abandonar seus países por causa dos
conflitos que violassem, severamente, os direitos humanos. Insta ressal-
tar que existe, ainda, aquela crise bélica oriunda do temor à perseguição,
como, por exemplo, as que ocorrem frequentemente nas áreas de conflito
armado e violência generalizada.
Pois bem, o instituto do refúgio permeia vários momentos históri-
cos. Exemplificando momentos em que a população de determinado local
se vê obrigada a se deslocar por causa de guerras, cita-se o genocídio do
povo armênio, ocorrido durante a Primeira Guerra Mundial1. Além disso,
evidencia-se também os casos dos judeus, vítimas da disseminação políti-
ca antissemita, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, que os
obrigou a partir atrás de sua subsistência.
Na prática, o refúgio nada mais é do que a concessão, por parte de
um Estado, de proteção àqueles que se encontram em perigo de dano por
condições conflituosas de seus países de origem.
À vista dos exemplos supramencionados, mas não levando em con-
sideração só isso é que, a partir do século XX, em especial por conta da
Segunda Guerra Mundial, o refúgio se torna uma temática jurídico-inter-
nacional com destaque político, primeiramente dentro da Liga das Nações
Unidas e, posteriormente, na Organização das Nações Unidas – ONU.
Isso posto, referencia-se que a Segunda Guerra Mundial é o marco
histórico que corroborou o maior índice de refugiados, sobretudo de ju-

1 Ocasionado pelo Império Otomano, tendo em vista que temia a insurgência da população, movida por um
sentimento nacionalista, o que poderia vir a pôr fim à soberania daquele Império. O medo de perder o poder e a
soberania motivou o Império Otomano a exterminar – em um número estimado – de 800 mil a 1,8 milhão de pessoas.

168
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

deus, que se viram obrigados a sair de sua terra e a serem postos para fora
das fronteiras na busca de reconstrução de suas vidas no pós-guerra.
Diante de tamanha barbárie já vista no cenário político-mundial, a
ONU elaborou a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, datada
de 1951, também conhecida como Convenção de Genebra.
A Convenção de Genebra abarca uma série de tratamentos que devem
ser dados aos refugiados, que até os dias atuais são usados. A principal con-
tribuição se dá pelo princípio do non-refoulement (não devolução), ou seja,
basicamente impõe que o país que recebe um refugiado não o deve expulsar
ou devolvê-lo sob qualquer que seja a ocasião para território ou local no qual
esse possa sofrer perseguição, desde que essa não seja a sua vontade.
O compromisso global de garantir que o deslocamento e os traumas
causados pela perseguição e destruição ocorridos durante a guerra não pu-
desse mais voltar a se repetir é que potencializou a construção da Convenção
de Genebra. De outro modo, ela impunha limitações geográficas e temporais
ao conceito de refugiado, restringindo-o somente aos acontecimentos ocor-
ridos na Europa antes de 1º de janeiro de 1951. Sendo assim, qualquer outra
situação, mesmo que análoga à dos refugiados da Segunda Guerra Mundial,
não estaria acobertada, cerceando proteção jurídica ao estrangeiro que não
cumprisse ambos os requisitos, o temporal e o geográfico.
Contudo, insta frisar que os aspectos positivos da Convenção cor-
roboraram um avanço à proteção dos direitos de outros refugiados em
torno do mundo todo.
Como em tudo nesta vida, faz-se necessário se adaptar às situações
conforme a vivência dos indivíduos que integram uma sociedade. Sendo
assim, não foi diferente com a Convenção, tendo esta sofrido atualização
por meio do Protocolo de 1967 no que diz respeito à condição de refugia-
do, fazendo com que a ONU percebesse que as limitações geográficas e
temporais não mais assistiam razão dentro daquele conceito. Contudo,
mesmo com as atualizações realizadas, o Protocolo de 1967 deixou a de-
sejar em relação aos direitos políticos e civis violados por aqueles indiví-
duos, ou seja, não abarcou, nesse conceito, as pessoas que se encontravam
em situação de risco, que estavam fora da estabilidade política ou que
sofriam por questões de guerras.
Essa necessidade de proteger os refugiados se espalhou pelo globo e
resultou em alguns instrumentos que salvaguardavam esses direitos, como,
por exemplo, a Convenção da Organização da Unidade Africana – OUA,
datada de 1969, com o objetivo de diminuir a miséria daqueles refugiados2,

2 […] O termo “refugiado” aplica-se também a qualquer pessoa que, devido a uma agressão, ocupação externa,
dominação estrangeira ou acontecimentos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade
de seu país de origem ou do país de que tem nacionalidade, seja obrigada a deixar o lugar da residência habitual para
procurar refúgio noutro lugar fora de seu país de origem ou de nacionalidade.

169
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

preocupando-se, sobretudo, em auxiliar aqueles indivíduos que se viram


obrigados a atravessar as fronteiras nacionais por questões antropológi-
cas, mesmo sem evidências de perseguições.
Demais disso, tem-se a Declaração de Cartagena, que versa sobre re-
fugiados, datada de 1984, que elenca as dificuldades desses indivíduos den-
tro da América Central, em especial no Panamá e no México, evidenciando
vínculo entre os direitos humanos e os direitos inerentes aos refugiados.
Essa declaração traz claramente o conceito de refugiado3.
E, por fim, tem-se a Declaração de São José, que trata de Pessoas Des-
locadas e Refugiados, datada do ano de 1994, ampliando o discurso acerca
dos direitos humanos e corroborando o disposto na Declaração de Cartagena.
Ante todo o exposto, esse foi um apanhado da legislação internacio-
nal que trata da temática dos refugiados num sentido amplo, não sendo
o foco deste estudo esgotá-la, mas sim proporcionar uma visão geral de
como o cenário internacional se comporta diante dessa problemática.
Já em âmbito nacional, o Brasil assinou o Estatuto dos Refugiados,
que versa acerca dos mecanismos pertinentes para auxiliá-los4. Cumpre
salientar que todas as alterações posteriores do supracitado estatuto fo-
ram ratificadas, como, por exemplo, o Protocolo de 1967, cuja aprovação
se deu por meio do Decreto n° 93, de 30/11/1971 e pelo Decreto n° 70.946,
de 07/08/1972. Contudo, a lei que definiu mecanismos para a devida imple-
mentação do Estatuto demorou mais de trinta anos para se concretizar,
vindo a ser criada somente em 1997 por meio da Lei 9.474, de 22/07/1997.
A partir de então, foi criado o Comitê Nacional para os Refugiados
– CONARE, órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da
Justiça, e que, nos termos do art. 12, é competente para analisar o pedido e
declarar o reconhecimento da condição de refugiado, determinar a cessa-
ção de tal condição, além de orientar e coordenar ações visando a eficácia
da proteção dos refugiados, entre outras disposições.
Pode-se afirmar que essa lei é considerada um marco na legislação
brasileira no que compete ao direito dos refugiados, posto que concretiza
as previsões das convenções e protocolos em caráter internacional.
O refúgio é proteção de cunho humanitário, concedido ao imigrante
por fundado temor de perseguição pelos mais diversos motivos: conflitos
armados, perseguições políticas e raciais, entre outros. Suas regras são
aplicáveis de igual forma a todos os países signatários, com regulamenta-

3 […] Considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque sua vida, segurança
ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação
maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.
4 Foi ratificado anos após sua criação. Tal ratificação se deu em dois movimentos: o primeiro com sua aprovação por
meio do Decreto Legislativo n° 11, de 07/07/1960; e o segundo, com sua promulgação por meio do Decreto Executivo
n° 50.215, de 28/01/1961.

170
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ção pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – AC-
NUR. No Brasil, a regulamentação interna dos direitos dos refugiados fica
a cargo da Lei n° 9.474/1997, que criou, ainda, o Comitê Nacional para os
Refugiados – CONARE (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2016).
O Brasil é signatário da Convenção de Genebra de 1951, bem como de
suas demais alterações. Mas, ainda que assim não fosse, o dever de prote-
ção a esses refugiados estaria resguardado de forma indireta na legislação
pátria, porque não trata necessariamente do refugiado, e sim de estrangei-
ro, mas o refugiado, ainda que não tivesse seus direitos assim especifica-
mente garantidos, ao menos os teria frente à condição de estrangeiro que
também ostenta – no art. 5º da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, que estabelece que brasileiros e estrangeiros gozam dos
mesmos direitos civis, ambos iguais perante a lei.
Bem, a partir desse contexto geral acerca do conceito de refugiado e
das legislações que garantem os direitos desses indivíduos tanto no âmbito
nacional quanto no internacional, necessário se faz apresentar o instituto
do Refugiado Ambiental.
Nessa perspectiva, antes de se pensar na necessidade de concessão
de um direito específico, tenha-se em mente que, na inexistência de tal, o
ser humano em situação de vulnerabilidade, como estão os que são vítimas
de catástrofes ambientais, goza de direitos próprios à sua condição.
A natureza é elemento vivo e incontrolável e, sempre que se revolta,
impõe sua força contra os seres humanos. Diversos desastres ambientais
sempre ocorreram no mundo, e a razão de ele ser como é hoje em muito se
deve ao fato dessas intempéries. Contudo, passou-se a pensar mais sobre
como as catástrofes ambientais causam vítimas e que muitos são os Esta-
dos incapazes de prestar o devido auxílio a seus nacionais afetados.
Diante disso, um estudo realizado pela ONU em 2008 calculou que
no ano de 2050 o número de refugiados ambientais chegaria a 200 milhões
de pessoas. Entretanto, em que pese soarem alarmantes tais prognósticos
e os reais e efetivos crescimentos dessa categoria, nada foi pensado no
sentido de se criar um instituto jurídico próprio para esses deslocados for-
çosos, faltante, portanto, uma resposta internacional para o impasse que se
intensificou com o tempo.
Ora, diversas são as causas ambientais que originam o deslocamento
forçado dessas pessoas, tais como: furacões, tsunâmis, terremotos, eleva-
ção do nível do mar, entre outras. São incontestes os efeitos negativos des-
sas intempéries tanto na natureza quanto na espécie humana.
Ante a ausência de previsão jurídica para o conceito de refugiado
ambiental tanto na seara da legislação internacional quanto na nacional
é que se formam as problemáticas suscitadas neste estudo. No entanto, o
referido conceito foi construído pela doutrina.

171
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A fim de se caracterizar a persona do refugiado, são requisitos bási-


cos a perseguição deste por motivos de cunhos racial, religioso, político,
de gravidade, além de generalizadas violações dos direitos humanos, entre
outros, não estando previstas quaisquer causas ambientais, sejam elas na-
turais ou antrópicas. Ademais, há aqueles indivíduos que se enquadram
na categoria dos “refugiados ambientais”, conforme assinalado acima, isto
é, pessoas que fogem de seus países por motivos de acidentes de alguma
ordem ambiental provocados pela natureza, ou mesmo pelo ser humano. A
exemplo de causas ambientais naturais, tem-se os terremotos, os furacões
e os tsunâmis, uma vez que dificilmente a ação humana poderia influenciar
tais eventos. Ao mesmo tempo, existem causas ambientais provocadas pela
ação antropogênica, que, em busca de desenvolvimento econômico, cul-
minou na emissão desenfreada de gases e, consequentemente, ocasionou
o efeito estufa, o aumento da temperatura média global, o derretimento
de calotas polares, o aumento do nível dos mares, entre outras catástrofes.
A expressão “refugiados ambientais” não advém da terminologia ju-
rídica, mas é consagrada pelo uso e fora inicialmente conceituada como:

Aquelas pessoas que foram forçadas a deixar seu habitat tra-


dicional, temporária ou permanentemente, porque uma mar-
cante perturbação ambiental (natural e/ou desencadeada por
pessoas) colocou em perigo sua existência e/ou afetou seria-
mente sua qualidade de vida (EL-HINNAWI, 1985, p. 4 apud
MIALHE; OLIVEIRA, 2010, p. 31).

Sendo assim, o termo “refugiado ambiental” é resultado de uma


construção da doutrina especializada que fora consagrada pelo uso, uma
vez que ainda não se consolidou como um instituto jurídico. O certo é
que, apropriada ou não, tal expressão revela a necessidade de se proteger
uma categoria emergente, a qual não se confunde com a que se conhece
na atualidade – daí a necessidade de diferenciá-la, haja vista não gozar do
amparo a que tem direito, não obstante a urgência.
Diferentemente dos refugiados políticos, de guerras ou de outras cri-
ses internacionais, os refugiados ambientais têm encontrado pouco apoio
jurídico para serem acolhidos, porque ainda são de uma categoria também
carente de tutela, muito embora os problemas advindos de desastres natu-
rais não serem recentes e demandarem atenção há bastante tempo.
No atual cenário jurídico, em que pese a prevalência desse hiato na
legislação em atendimento aos refugiados ambientais, o foco das atenções
tem recaído sobre os acordos internacionais que versam sobre os direi-
tos humanos dos refugiados, bem como tratados regionais, revelando-se,
assim, a importância do compromisso da comunidade internacional para
com essa novel categoria. Ou seja, o jeito é pensar na proteção dessa nova

172
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

categoria incluindo-a sob a proteção das normas garantidoras dos Direitos


Humanos, valendo-se de sistemas jurídicos já existentes e consolidados,
enquanto ausentes normas regulamentadoras específicas.
É possível repensar esses migrantes ambientais como refugiados
dada a massiva violação de direitos humanos pela qual estes passaram
e que motivaram sua saída de seus países de origem, ou até mesmo pela
que passam desde que chegam ao país de destino e não são nele recebidos
com a devida acolhida.
Nessa perspectiva, é importante o reconhecimento que se faz acerca
do sentido de direito como se encontra hoje, com o fito de trazê-lo mais
perto da realidade social. Logo, o sistema jurídico defendido está condi-
cionado à história (tempo e espaço), aos modos de vida das pessoas e às
suas situações no mundo em que vivem. Isto é, tem-se de refletir sobre as
causas e os efeitos das normas jurídicas dispostas nas realidades sociais,
cujas propostas versam, também, sobre a busca de respostas a partir das
observações das lides jurídicas das sociedades em análise. Desse modo, Di-
reito (antecipadamente) significa relações de reciprocidade entre o sistema
social e o subsistema jurídico. Direito é o relacionamento com a sociedade,
sendo que, nesse caso, serve-nos para a orientação e/ou reflexões sobre os
refugiados ambientais.
Notam-se as urgências e a relevância do problema dos refugiados
ambientais, bem como o fato de que os desastres naturais e suas conse-
quências não são recentes, não muito tendo sido feito em relação à tutela
jurídica adequada para essas pessoas.
Após a Convenção de Genebra de 1951 e o Protocolo de 1967, que
primeiramente estabeleceram o conceito original de “refugiado”, surgi-
ram outros instrumentos capazes de acrescentar algo ao conceito origi-
nalmente estabelecido.
A realidade dos fatos é que, apesar dos esforços internacionais e da
crescente preocupação com essa nova categoria, nenhuma solução foi ca-
paz de sair do plano das ideias e das discussões acadêmicas, estando au-
sente, ainda, um conceito comum sobre quem são os refugiados ambien-
tais e em que circunstâncias estes se encaixam.
Mesmo que se tenha essa lacuna na proteção e a urgente necessidade
de preenchê-la, a possibilidade de se adotar um novo instrumento legal
internacional é pouco provável, tendo em vista que há de se considerar
alguns questionamentos.
A dificuldade encontra abrigo em questões como: “quem será o país
a acolhê-los?”, “qual a extensão de seus direitos?”, “quais os ônus para o
país acolhedor?” Discutir as necessidades dos refugiados ambientais en-
quanto as soluções ainda são ideias no papel é muito fácil, pois até então

173
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nenhum estado foi, de fato, responsável. Mas, quando a necessidade é real,


pouco realmente se tem feito a fim de efetivar medidas públicas capazes de
consolidar a garantia de suas necessidades. Verdade seja dita, o deslocado
ambiental tem sido tratado como “batata quente”, pois é um problema que
a comunidade internacional não se dispõe a resolver – ao menos não como
deveria –, nem tão cedo será obrigada a fazê-lo, uma vez que isso pode
acarretar ônus e obrigações indesejadas a todos os envolvidos.
Se até este momento as vítimas de catástrofes ambientais não gozam
da devida proteção jurídica, isso se deve ao estrito conceito de refugiado,
que não prevê, entre as suas causas, os desastres ambientais e tampouco os
abarca dentro da hipótese de violação de direitos humanos. O fato é que,
ainda que pendente de regulamentação legal, os refugiados ambientais já
são uma realidade para o mundo, carecendo, portanto, do mesmo amparo,
preocupação e assistência social que recebem os refugiados.
Identificadas as deficiências da proteção aos refugiados ambientais
em relação aos refugiados propriamente ditos, quais sejam, a não extensibi-
lidade dos direitos destes para aqueles, a precariedade com que a atual tutela
tem sido concedida, a ausência de políticas públicas voltadas para essa cate-
goria especial de refugiados, entre outras, consequentemente, o acolhimen-
to deficitário analisado à luz dos Direitos Humanos demonstrou-se violador
de tais direitos, uma vez que foi incapaz de garantir direitos básicos e funda-
mentais ao ser humano com a manutenção de sua plena dignidade.

Referências

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11 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 45-47.
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Juris, Rio Grande, v 20, p.139-153, 2013.
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Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
______. Lei n° 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para
a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina
outras providências.

174
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

CARDOSO, Jair Aparecido; CASTRO, Rogério Alessandre de Oliveira. Da


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CARNIO, Henrique Garbellini; GONZAGA, Álvaro de Azevedo. Curso de
Sociologia Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 38.
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GÖÇEK, Fatma Müge. Denial of Violence: Ottoman Past, Turkish Pre-
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MIALHE, Jorge Luís; OLIVEIRA, Adriana Ferreira Serafim de. Para além
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Os Direitos Fundamentais dos Refugiados (Deslocados) Ambientais e da
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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA (MJC). Entenda as diferen-
ças entre refúgio e asilo. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noti-
cias/entenda-as-diferencas-entre-refugio-e-asilo. Acesso em: 01 jun. 2020.

175
PARTE III

Filosofia do Direito
em seu próprio locus
11
O sentido do Direito1

Helmut Coing

I.

A finalidade da teoria pura do direito é desenvolver uma ciência do di-


reito que prescinda de todo método sociológico, ético ou político. Referida
teoria busca o método que corresponda à essência específica do direito
em sua particularidade, em contraste com outros fenômenos da realidade
espiritual, como a ética. Um método no qual se manifesta essa particula-
ridade. A teoria encontra essa essência na natureza específica da norma
jurídica como uma norma hipotética coercitiva. O método jurídico puro
consiste em descobrir esse fato e investigar a unidade do sistema de nor-
mas coercitivas. Não lhe interessa o conteúdo das normas jurídicas, já que
é indefinido e infinitamente variável.
Na base dessa teoria encontra-se, apesar de (ou, no fundo, precisa-
mente por causa de) seu caráter puramente formal, uma concepção muito
bem definida da essência do direito e da possibilidade de seu conhecimen-
to. Pode-se precisá-la do seguinte modo:

1 ) o direito é um aparato coercitivo para qualquer finalidade.


É uma ordem de poder e autoridade;
2) os conteúdos morais, em particular a justiça, são, com toda
probabilidade, uma ilusão, uma ‘ideologia’, e, de qualquer modo,
racionalmente incompreensíveis;
3) nenhum conteúdo específico de índole moral ou sociológica
está ajustado com o direito por sua essência.

A teoria pura do direito, então, parte de concepções muito concretas


do direito. Tampouco creio – como Kunz – e, como ele, aparentemente
muitos dos seguidores de Kelsen – que a teoria possa prescindir dessas

1 Este ensaio foi publicado no livro Forum der Rechtsphilosophie sob o título “Von Sinngehalt des Rechtes”, editado pela
Balduin Pick Verlag, Köln, 1950. A presente tradução foi feita a partir da versão em espanhol publicada no livro COING,
H. El sentido del derecho.. Tradução de Roberto Hartmann y Jose Luiz Gonzales, Cuidad de México: UNAM, 1959, p. 5-20.

179
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

pressuposições. O método científico é válido quando alcança o conheci-


mento do assunto ao qual é aplicado, apresentando a sua essência com a
maior compreensão possível. A teoria pura do direito afirma correspon-
der, dessa maneira, à essência do direito, e é o único método possível e
especificamente científico para investigar o fenômeno do direito em ge-
ral (em contraste com os direitos positivos individuais). Essa afirmação,
no entanto, somente se justifica se também as suas próprias teses sobre
o direito forem corretas. Se fosse possível uma aproximação científica
do significado do direito e se se pudesse constatar um conteúdo típico,
então o método da teoria pura do direito demonstraria ser inadequado.
Particularmente, a ideia de um método ‘puramente jurídico’ se tornaria
problemático se se pudesse demonstrar a existência de significados éticos
essencialmente conectados com o direito. Por que – se poderia perguntar
– haveria de se usar um método para o conhecimento do direito que exclu-
ísse todos os pontos de vista éticos se tais significados éticos pertencem
essencialmente ao conteúdo do direito?
As proposições das quais parte a teoria pura do direito correspon-
dem à concepção que o positivismo em geral tem desenvolvido sobre o di-
reito. Ainda que o ponto de partida da teoria pura do direito seja particular
– em suas proposições, sobretudo em sua negação absoluta de um signifi-
cado ético no direito, em sua suspicácia fundamental contra a existência
cognoscível de valores morais em geral, em sua inclinação a reduzir todo
o direito ao poder do Estado (como um dado real positivo) – a teoria pura
do direito concorda com o positivismo. Sua luta contra a concepção ética
no direito está conectada com a luta que o positivismo leva a cabo contra
a metafísica em geral. O filosofo do positivismo, Comte, havia proclamado
a substituição da metafísica pela ciência, no sentido da ciência natural,
como uma lei histórica. A jurisprudência tem acolhido essa ideia em sua
luta contra a lei natural. O famoso ajuste de contas de Karl Bergbohm
com a lei natural, em seu livro Jurisprudência e Filosofia do Direito, cor-
responde inteiramente a essa tendência geral do pensamento, querendo
substituir o direito natural, como fundamentação do direito, por uma teo-
ria geral do direito segundo o protótipo das ciências naturais, constituído
empírica e indutivamente, livre da metafísica, que desenvolva os conceitos
universais, formais e fundamentais do direito mediante a abstração. Como
ponto de partida, Bergbohm quer aceitar somente fatos históricos e pro-
cessos externos; as valorações morais lhe são, quando menos, incognoscí-
veis. É verdade que a doutrina de Kelsen evita a aproximação de Bergbohm
à ciência natural, aproximação que corresponde às tendências do positi-
vismo em geral, a oposição entre ser e dever ser, entre investigação causal
e descoberta das relações do dever dentro de um sistema de normas, o que

180
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

é determinante para seu método. Entretanto, a imagem do direito na qual


se baseia a teoria kelseniana tem essencialmente as mesmas feições que o
positivismo. Não sem razão, o próprio Kelsen tem afirmado que a sua dou-
trina é a teoria do positivismo jurídico. É, em certo sentido, a satisfação da
exigência de Bergbohm de uma teoria positiva do direito, livre da metafí-
sica. Não é possível opor a essa teoria, como corretamente destaca Kunz,
só postulados éticos. Não é possível rechaçar um método de conhecimento
porque contradiz as metas práticas da política ou da educação. A ciência
somente pode se perguntar se tal método é correto. A retidão do método
tem que se demonstrar na fecundidade, isto é, na compreensão dos traços
essenciais do objeto por ele contemplado. Esse objeto é o direito (como
fenômeno geral) e sua estrutura. O método de Kelsen, então, pode ser cri-
ticado somente se existir outro método científico que permita a aproxima-
ção do direito e do conhecimento em seus traços essenciais.

II.

De fato, dispomos de referido método. Desde os dias em que Berg-


bohm cumpriu o seu ajuste de contas fundamental com o direito natural, a
situação científica se modificou significativamente. A hegemonia parcial
do método das ciências naturais perdeu vigor. O reconhecimento funda-
mental da ciência moderna é que o ser tem muitos níveis e, por isso, para
que se o conheça são necessários diversos métodos, cada um dos quais
adequado a um determinado nível do ser. Além das ciências naturais,
reconhecem-se as ciências do espírito, com seu método particular e seu
estabelecimento de metas, e com métodos particulares de conhecimento
que tornam cientificamente possível a compreensão dos conteúdos espi-
rituais. Com relação à vida do espírito (objetivo e subjetivo), vemo-nos
limitados à escolha entre um tratamento inadequado, no sentido das ci-
ências naturais, e um método crítico que ignora os conteúdos espirituais
e se concentra somente na forma, caso não dispusermos de métodos espe-
cíficos para a investigação dos significados espirituais.
Esse método das ciências do espírito baseia-se no reconhecimento
de que a relação do homem com o psíquico-espiritual é diferente de sua
relação com a natureza inanimada. Conquanto nos seja possível explicar
os acontecimentos naturais em seus processos causais individuais, se bem
que não o possamos compreender em seu significado, nos é possível com-
preender o espírito em seu significado. Essa compreensão do significado –
seja a ação de uma personalidade ou o conteúdo de uma obra espiritual – é
possível porque o espírito humano tem uma estrutura igual em todas as
partes, e isso lhe é possível somente em um número limitado de formas

181
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de expressão – circunstâncias nas quais se baseia a possibilidade geral da


comunicação entre os homens. Cada uma dessas atribuições de signifi-
cados se baseia numa valoração. A atividade humana carece de sentido
quando não realiza nenhum valor e carece de propósito quando nenhum
valor significativo é cognoscível. E os valores que fazem possível a atribui-
ção de significado não são dados imediatamente. Podemos demonstrar e
descrever seu significado, por exemplo, pelo valor do santo, do justo etc.
Por isso, cabe desenvolver as diversas possibilidades da atribuição de sig-
nificado em seu conteúdo valorativo apriorístico. Ao fazer isso, ao fazer
viver dentro de nós mesmos o significado dos valores individuais sobre a
base de nossa própria vivência, ganhamos a possibilidade de compreen-
der as obras espirituais e a vida espiritual vivendo-as dentro de nós mes-
mos. Obviamente, esse método não alcança a exatidão do conhecimento
da ciência natural, já que inclui muitos elementos pessoais, a “equação
pessoal” fundada aqui na amplitude de nossa própria possibilidade de
ter vivências e na profundidade de nossa vivência pessoal de valores pos-
suir uma importância consideravelmente maior que na ciência natural.
Contudo, o conhecimento não é, ao contrário, puramente subjetivo, pois
é passível de verificação e repetição. O método da ciência do espírito se
baseia nas compreensões da estrutura do espírito e da alma humanos.
Conduz a uma compreensão do fenômeno individual histórico sobre a
base das tendências universais e fundamentais do espírito e da alma hu-
manos. Compreendemos o individual desde os fins que o ente espiritual
pode delinear ou se propor, em geral.
Mais especificamente, têm-se aqui, desde logo, vários procedimen-
tos de aproximação ao objeto. Além do procedimento propriamente his-
tórico, que serve para a compreensão de uma individualidade histórica ou
do sentido histórico (individual) de uma obra intelectual, está o exame do
significado que referida obra tem objetiva e independentemente da finali-
dade histórica de seu autor. Podemos interpretar e entender um poema no
sentido puramente histórico a partir do significado que lhe tenha dado o
autor, e independentemente desse significado segundo seu conteúdo espi-
ritual em geral. Assim, além da empatia histórica (a compreensão a partir
da pessoa do autor) está, então, a compreensão sistemática (dogmática).
Além disso, existe a crítica valorativa que examina uma obra intelectual
segundo as finalidades a que aspira mediante a comparação do significado
obtido com o conteúdo valorativo pretendido.
O direito é, seja qual for o modo pelo qual se julgue seu conteúdo,
indubitavelmente uma criação significativa do espírito humano. Por isso,
somente pode ser conhecido pelos métodos da ciência do espírito. Isso
também é admitido por Kelsen. Explica que a Jurisprudência trata da sig-

182
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

nificação dos atos segundo normas, sendo, por isso, a ciência do direito
uma ciência normativa. Desde esse ponto de partida, Kelsen começa a
estabelecer o problema da específica estrutura lógica das normas jurídi-
cas. Aqui radica o ponto crítico decisivo de seu pensamento. Se o direito
tem que ver com a significação dos atos segundo normas necessárias, é
natural que surja a pergunta sobre qual seja o significado específico dessas
normas. Iniciando-se com essa pergunta, inicia-se a análise do significa-
do do direito segundo a ciência do espírito. Mas, aqui aparece em Kelsen
o dogma antes mencionado da incognoscibilidade dos significados espe-
cíficos no direito, o que bloqueia o caminho a uma análise mais ampla.
O pensamento se desvia, e a investigação da forma lógica vem a ocupar,
exclusivamente, o proscênio. É preciso, então, examinar esse dogma da
incognoscibilidade das finalidades jurídicas.

III.

Quando se delineia o problema do significado de um fenômeno


como o direito, é difícil encerrar esse significado numa fórmula. Um exa-
me superficial basta para demonstrar que não há um único valor supremo
do qual o direito receba a determinação de sua finalidade, seu sentido na
existência humana, mas sim vários. A finalidade mais elementar do di-
reito é a paz social mediante a ordem social. O direito pretende excluir a
força e produzir a paz, mas não de modo que a vontade de viver e de poder
dos indivíduos e dos grupos sociais sejam suprimidas pela força, mas de
modo que a esfera vital de cada indivíduo e de cada grupo da comunidade
jurídica se definam mutuamente segundo regras universais a fim de que
os conflitos possam ser decididos mediante juízos legais. O direito serve
para a formação do eu, mas não sem consideração dos demais. O direito
é, então, primordialmente uma ordem limitativa das relações de poder
social que torna possível a solução pacífica dos conflitos e que alcança,
mediante tal solução, sua vitalidade e seu significado. Isso não diz nada
sobre o conteúdo e as medidas dessa ordem. Em primeiro lugar, essa não
pode ser mais do que uma estabilização do status quo, como, por exemplo,
o demonstra de forma muito clara o Direito Internacional atual – ou mes-
mo o estabelecimento de certas regras limitativas da decisão pelas armas
–, pense-se, por exemplo, no direito de paz e de trégua na Idade Média e
nas regras do direito de guerra.
Essa ordem é sustentada por grupos individualmente definidos
(tribos, povos, estados, comunidades religiosas e culturais). Quanto mais
firme for a coesão do grupo, quanto mais firme for a organização, tanto
maior será naturalmente a significação e a firmeza da ordem imposta e

183
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

estabelecida pelo direito. Não obstante as ordens pouco eficazes como as


do Direito Internacional moderno ou a ordem jurídica dos islandeses que
conhecemos nas sagas, existem aqueles que são apoiados pelo poder do
Estado vigorosamente organizado e que, por isso, são eficazes quase que
automaticamente, como, por exemplo, a ordem do direito privado dos pa-
íses europeus no século XIX. No entanto, o direito é sempre, em grande
medida, a criação espiritual do grupo.
Estreitamente conectado com o propósito da paz, mas já o trans-
cendendo, está o afã de segurança das posições conquistadas, o interesse
na continuidade ou na estabilidade ativa do direito. Um dos esforços mais
elementares do homem é o de escapar à sinistra insegurança da existên-
cia, fazer seu caminho compreensível, seguro e racional. O homem não
quer estar perdido, quer superar a ansiedade de seu desamparo. Deseja que
aquilo que conquista agora lhe dure até amanhã; busca evitar a mudança
das coisas. O direito o ajuda nesse afã, vez que é projetado para durar e é,
em princípio, inviolável e digno de confiança. A ordem jurídica deve ser
contínua e invariável, sendo que as resoluções judiciais em que se sustenta
devem ser previsíveis, e, uma vez emitidas, devem ser irrevogáveis – assim
se poderia descrever a meta da segurança jurídica, que se observa em mui-
tos lugares da ordem jurídica. A inviolabilidade dos privilégios, a autori-
dade da coisa julgada, o efeito obrigatório dos contratos e das leis, o afã de
clareza, racionalidade e compreensibilidade (condição pública) do direito,
a proteção da confiança na chamada aparência jurídica, enfim, em todas
as partes encontramos a ideia de segurança jurídica. O direito é também a
expressão do afã de segurança quando serve para aumentar a solidez do
poder e a continuidade da organização. A ordem da sucessão num Estado
monárquico deve servir à segurança da dinastia; a estabilidade do Estado,
à continuidade da organização estatal; os privilégios sociais, à conservação
do poder social de uma classe.
No entanto, somente com a ânsia por segurança se descrevem com-
pletamente as tendências fundamentais ativas no direito. Em oposição às
doutrinas do ceticismo, não se pode negar a existência de tendências mo-
rais no direito. A sentença do juiz deve ser justa. Esse requisito se observa
em todas as culturas, períodos e épocas. Juízes parciais e injustos tem ha-
vido sempre, mas não há nenhum povo que os tenha considerado ideais. Já
o juiz homérico devia aplicar a lei retamente, ίθύντατα (Ilíada, XVIII-508).
Isso certamente se refere, em primeiro lugar, à atitude pessoal do juiz, mas
também se aplica, por sua vez, à própria ordem jurídica em que se baseia
a sua decisão. Como poderia ser justo o juiz sem um direito justo? Ainda
mais agora que a justiça e a equidade de uma regra são frequentemente os
critérios essenciais e decisivos para a interpretação e a crítica jurídicas.

184
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Para isso [não], é necessário socorrer-se nos juristas da lei natural ou nos
filósofos do direito; basta uma olhada em qualquer apresentação do direito
positivo ou a uma revista jurídica. Sempre se encontrará esse critério. As-
sim disse, por exemplo, um autor tão pouco suspeito de simpatia com a lei
natural como Martin Wolff, em seu Sachenrecht, por ocasião da aplicação
do parágrafo2 281 do Código Civil alemão com respeito à demanda para a
restituição da propriedade. “A prática baseia-se hoje na essência da natu-
reza da propriedade com relação à inaplicabilidade do §281. O resultado
não é satisfatório se E, diversamente do que se espera, encontra a coisa
em poder de X, tendo então o direito a demandar a restituição por X, não
importando quão baixo seja o preço que B tenha recebido de X (segundo
o §816). Seria mais justo aplicar o §281” (grifos no original). Esse é um
exemplo entre muitos. Obviamente, é arriscado excluir um ponto de vista
na consideração do direito que frequentemente tenha um papel realmente
decisivo na prática do direito e em sua formação. Muitas regras jurídicas
simplesmente não podem ser compreendidas sem o ponto de vista da jus-
tiça, fato este que se pode lamentar ou celebrar. Esse é um fato simples e
verdadeiro que ninguém pode nem deve honradamente negar. A justiça
também é uma finalidade à qual deve servir o direito.
Tampouco é possível indicar em que consiste a essência da justi-
ça, quais as suas exigências. Veja-se simplesmente qualquer direito civil
moderno. A justiça pode se observar primeiramente na consideração de
contratos e ações não permitidos que alterem a condição da propriedade
uma vez estabilizada. O equilíbrio no contrato, a obrigação recíproca e
simultânea, as consequências de uma violação do contrato: em todas as
partes se anuncia a ideia de equiparação, da constituição de um equilíbrio.
Isso se mostra mais claramente no direito à indenização por danos e pre-
juízos. Quanta agudeza jurídica se tem empregado para definir e calcular
as consequências justas de uma violação ao direito! Por que essa agudeza
se não houvesse por detrás de tudo isso a exigência de justiça?
Contudo, a justiça não se cumpre só aqui. Também tem submetido
as suas exigências ao status quo que o direito simplesmente garante. Nisso
consiste a justiça social, que também é um estímulo à formação do direito.
A ordem jurídica não somente tem servido à consolidação de posições ad-
quiridas de poder social, como também se encontra no exemplo contrário
da nova distribuição mais justa dos bens sociais pela lei. Antes de tudo, a
justiça social tem efetuado a distribuição das cargas sociais. Os impostos
são distribuídos proporcionalmente, os danos originados da moderna téc-

2 (N.T.) Conforme informa Virgílio Afonso da Silva na introdução que ele faz à tradução do livro de Robert Alexy:
“Alerto também que, em alguns textos legais alemães, o sinal “§” é utilizado para designar algo que, no Brasil, seria
um artigo. Os exemplos mais importantes são os do Código Civil e do Código Penal”. ALEXY, R. Teoria dos direitos
fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 12.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nica de trânsito e da indústria se indenizam sem consideração da culpa de


quem derivam os benefícios dessas instituições técnicas, os danos que se
originam de uma empresa pública têm que ser indenizados pela comuni-
dade. Tudo isso é uma exigência da justiça. Outra exigência da justiça é a
igualdade, que desempenha um papel importante não somente no direito
público e internacional, como também no direito privado e processual.
Além da justiça, há outro valor moral dominante: a dignidade huma-
na. A lei a realiza ao garantir a liberdade e os direitos subjetivos e constitui
uma esfera segura na qual o homem possa criar e trabalhar livremente.
“Direito e liberdade” é uma velha união de palavras. Também os gregos
e os romanos viram no direito a garantia da liberdade. A liberdade origi-
na-se na limitação do governo pelo direito. O direito se estabelece para
assegurá-la. À ideia de liberdade se unem, assim, as exigências da justiça,
pois ambas excluem a arbitrariedade e o menosprezo à pessoa. Essa união
é o fundamento dos direitos humanos e de toda limitação jurídica ou le-
gal do poder do Estado. Se nos Estados livres clássicos uma condenação
era permissível somente com fundamento num processo legal, se na Idade
Média determinadas regras protegeram o vassalo e determinados privilé-
gios protegeram os habitantes das cidades, se o Iluminismo e o Liberalis-
mo realizaram a ideia do Estado constitucional, as ideias de liberdade e de
dignidade humana foram sempre as que se uniram ao direito.
Finalmente, vemos também outros valores morais elementares que
desempenham um papel de norma no direito. A força obrigatória dos con-
tratos se baseia na ideia de boa-fé. A boa-fé vem a ser a norma do cum-
primento do contrato e, ao mesmo tempo, de toda conduta nos negócios
jurídicos. Dela se deduzem obrigações de informação, sendo que sobre seu
fundamento se proíbe a conduta mal-intencionada e dolosa.
Assim, o direito recebe seu significado a partir de uma pluralidade de fi-
nalidades. Tem que estabelecer a paz, a ordem e a segurança. Tem também
que criar Estados justos, garantir a liberdade e ajudar na vitória da boa-fé
nos negócios jurídicos. Serve a uma série de finalidades. A relação dessas
finalidades pode ser mais bem aclarada com a metáfora dos níveis sobre a
base de uma ordem simples de paz sobre a qual se sobrepõem outros níveis
do direito segura e moralmente determinados. Essas finalidades não têm
necessariamente que ser realizadas de uma vez só; algumas podem ser des-
cartadas; outras, postergadas. Em certas situações, também podem estar
em contradição: a segurança do direito pode contradizer a justiça social;
ou a liberdade à boa-fé. Tais conflitos são inevitáveis. Tampouco aparecem
nos assuntos da alta política. Um exemplo é o problema da aquisição legal
com boa-fé de algo que o vendedor não tem o direito de vender. Aqui, o
requisito da garantia da propriedade e a proteção da confiança justificada,

186
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

requisitos fundamentais da segurança do direito, estão em oposição. Em


tais casos não há nenhuma solução predeterminada, mas tão somente es-
colha e decisão. No entanto, o conteúdo do direito não é “ilimitadamente
variável”, pois seu significado não pode ser determinado arbitrariamente.
O direito serve essencialmente a finalidades definidas, e, também essen-
cialmente, é incompatível com as finalidades definidas. Nenhum direito
pode fazer uma regra da violação de contratos, do dolo, do engano, do rou-
bo, da parcialidade e da desordem. Nenhuma relação legal entre homens,
vale dizer, nenhuma relação vital ordenada por normas legais pode con-
sistir na entrega de um semelhante à arbitrariedade do outro. Não se nos
apresenta como objeção à escravidão e o governo absoluto. A relação do
escravo com o seu amo não é uma relação legal, tais relações somente exis-
tem com respeito à sua pessoa em relação a terceiros (vale dizer, relações
que se originam na propriedade). O escravo não pertence à comunidade do
direito. Somente quando a lei ordena essa relação, por exemplo, quando
proíbe o mau trato arbitrário, como a lei romana da última época clássica,
a relação se converte numa relação jurídica, limitando-se, nesse mesmo
tempo, a arbitrariedade do amo. O direito certamente sanciona a auto-
ridade absoluta do amo, mas o faz somente porque nega a personalidade
legal do escravo. A escravidão não é nenhum exemplo de que o direito e a
arbitrariedade sejam compatíveis, somente demonstra que a proteção da
lei não se tem estendido em todas as épocas a todos os homens, e que por
largo tempo – ainda hoje – muitos homens têm permanecido e continuarão
permanecendo à margem do direito. Contudo, a autoridade política não é
usualmente ilimitada no mesmo grau que a do amo sobre o escravo. Todo
despotismo, toda monarquia absoluta tem reconhecido certos limites. É
verdade que em casos individuais os tem traspassado sem consideração,
mas nunca os têm aniquilado. Isso fica mais bem demonstrado pelo afã
de todos os tiranos em manter ao menos a aparência da legalidade. A vali-
dade do direito é realmente precária em tais casos, e a possibilidade de se
converter em poder puro é um perigo constante. Então, não se pode negar
que o direito ocasionalmente sanciona condições arbitrárias de poder, mas
a arbitrariedade nunca pode ser a finalidade do direito, pois, de outra ma-
neira, o direito dissolver-se-ia a si mesmo.
Existe o estabelecimento de outras finalidades e valores que não se
opõem ao direito, mas que não podem se realizar por e no direito, como o
amor e a genuína comunhão pessoal. Essas finalidades e valores não po-
dem ser integrados numa ordem abstrata e se opõem à formulação de re-
gras gerais. Como o tem observado muito corretamente Spranger, o amor
do homem se transforma em direito inadvertidamente na outorga da liber-
dade. O problema das finalidades do direito resolve-se, então, no sentido

187
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de que este recebe um significado preciso mediante um grupo definido


de finalidades, que exclui ou é indiferente a outras finalidades. Assim, se
apresenta como um fenômeno que se destaca claramente por seu próprio
significado entre os outros fenômenos da vida espiritual e intelectual.
Não é necessário, então, como sustenta a teoria pura do direito, recorrer
a uma estrutura puramente formal para compreendê-lo em sua essência,
pois em verdade referido procedimento erraria necessariamente a verda-
deira natureza do direito, a qual, por ser diferente de disciplinas como
as matemáticas e a lógica, não se esgota em relações lógicas puramente
dedutivas, desenvolvidas a partir de axiomas definidos, mas sim que se
constitui em conteúdos materiais.
A estética, a teologia e a ética, não a matemática, devem ser o modelo
para a compreensão do direito como um fenômeno geral e uma ordem
positiva particular.
De outro lado, a arbitrariedade do conteúdo do direito está limi-
tada também não somente pela meta à qual serve, mas também pelo
material que tem de ordenar, por limites à ordem jurídica. Esse material
é a vida social condicionada pela natureza do homem e do mundo no
qual este vive. Os limites referentes ao material podem ser resumidos
no conceito da “natureza das coisas”. A natureza das coisas consiste, em
primeiro lugar e em sentido literal, nas propriedades destas, como, por
exemplo, a natureza dos bens de raiz. Os bens de raiz, juridicamente,
não podem ser estendidos do mesmo modo que os bens móveis, nem
sequer o direito romano fez isso em relação a todos, embora tenha ido
muito longe na direção da igualdade. Por exemplo, a maneira de entre-
ga será sempre diferente da das coisas móveis. Outro exemplo é o dos
bens de consumo. Também sua natureza requer, em muitos casos, por
exemplo, no usufruto ou na guarda, um regramento especial. Mas, a sig-
nificação da “natureza das coisas” vai além e é mais ampla, transcende
as propriedades das coisas. Quando, por exemplo, uma lei tem que re-
gulamentar as relações entre comprador e vendedor, então em ambas as
partes aparecem interesses determinados e típicos – naturais, por assim
dizê-lo – os quais o legislador não pode descurar se sua regulação há
de ser adequada à vida e eficiente. O caso é o mesmo em todas as rela-
ções de índole econômica. Do contrário, a regulamentação fracassa e os
interesses se colocam acima da lei. Tais leis gerais se revelam também
em grande escala. A economia nacional moderna tem mostrado que a
ordem econômica, em grande escala, tampouco é arbitrária, mas que
somente podemos eleger entre várias formas fundamentais que no fun-
do se reduzem às da livre economia e do dirigismo econômico. Mas, a
natureza das coisas se mostra também fora da esfera da vida econômica.

188
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O procedimento da investigação científica da verdade, por exemplo, tem


peculiaridades que a ordem legal deve respeitar, como, por exemplo, o
fato de que não se pode ordenar a aquisição do conhecimento. Isso tem
significado tanto para o status legal da investigação científica como para
a regulamentação do status processual do juiz. Pois também o juiz tem
que encontrar a verdade sobre um fato determinado.
O que encontramos aqui é, no fundo, a natureza do homem e de sua
vida espiritual e física em seu meio ambiente. O direito tem que considerar
essa natureza do homem se quiser ser eficiente e evitar vicissitudes inúteis.
O direito tem que ter em conta as condições como em realidade são. Nis-
so radica sua humanidade. Um direito que descure disso corre o perigo de
praticamente fracassar, e, em todo caso, provocará o desastre e a desdita. A
história conhece muitos exemplos nos quais as exigências das leis foram em
sentido contrário aos da natureza, e todas essas leis fracassaram. O homem
não pode, enfim, regulamentar contra a natureza das coisas. A proposição
“naturam expellas furca, tamen usque recurret”3 também vale no direito.
Os direitos do homem em sua distinção individual também têm sua
raiz na natureza das coisas. A ideia moral da dignidade humana exige li-
berdade, mas o alcance da liberdade deriva da peculiaridade corporal e
espiritual do homem. Dessa peculiaridade derivam, por sua vez, os direi-
tos individuais, propriedade, paz doméstica, honra, liberdade de opinião,
liberdade de reunião etc. Tudo isso está implícito na natureza do homem.
Também sua conduta típica, em certas situações, é parte da natureza das
coisas. Quando Montesquieu disse “C’est une expérience étternelle, que
tout homme qui a du pouvoir est porté à en abuser; il va jusqu’à ce qu’il
trouve des limites”4, expressa uma experiência acerca da natureza humana
que demanda consideração em toda regulamentação jurídica. Outro exem-
plo é o das determinações processuais sobre a desconsideração da perso-
nalidade jurídica em diferentes casos.
Em toda ordem legal desenvolvida se encontrará a pressuposição de
um grande tesouro de experiências sobre a natureza do homem e das coi-
sas. Nenhum legislador, nenhum juiz pode desconsiderá-las sem riscos.
Isso significa que, além da vinculação a certas finalidades definidas, uma

3 (N.T.) “Expulse a natureza a golpes de forcado, e ela voltará sempre” (HORÁCIO, Epist. Liv. I, Epist. X v. 24), apud
SILVA, A. V. de R. e (Arthur Rezende). Phrases e Curiosidades Latinas. 4. ed. Rio de Janeiro: José Bushatsky, 1952, p. 439.
4 (N.T.) “[…] a experiência eterna nos mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele […]”. Para
a melhor compreensão do raciocínio de Montesquieu, reproduzimos integralmente esta passagem: “Encontra-se a
liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos Estados moderados: só
existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas, a experiência eterna nos mostra que todo homem que tem
poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidades de
limites. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma
constituição pode ser de tal modo que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as
que a lei permite”. MONTESQUIEU. Do espírito das leis. v. 1, trad. José Arthur Giannotti, São Paulo: Nova Cultural,
1997, p. 200 (Coleção “Os Pensadores”).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

limitação essencial da liberdade de decisão em assuntos legais, também


conforme o reconhecimento de que as decisões jurídicas não são de ma-
neira nenhuma arbitrárias conteudística nem ilimitadamente variáveis,
mas sim que se movem dentro de um círculo relativamente estreito de
possibilidades. O direito comparado e a história dos problemas jurídi-
cos confirmam isso. Quem regulamenta um procedimento jurídico ou
um processo econômico não pode proceder segundo a máxima “assim me
apetece”. As metas imanentes e as situações dadas limitam sua escolha
entre possibilidades determinadas cujo número não é muito grande. A ex-
periência tem demonstrado isso ainda no caso de problemas tão técnicos
como a forma da entrega da propriedade.
Essa compreensão da natureza do direito conduz a certas consequ-
ências em relação ao método da ciência jurídica e ao problema do conteú-
do supratemporal do direito.
1) O objeto da ciência do direito é o direito positivo que vige numa
dada sociedade num dado momento. A ciência do direito tem duas tarefas
fundamentais. Tem que compreender o direito positivo em seu significado
de norma histórica definida; tem, além disso, que descobrir ou indagar
o conteúdo normativo da ordem jurídica, assim compreendida, também,
nos casos em que, no processo histórico da formação do direito pela lei, o
costume ou a decisão do juiz não tenham sido considerados. A ciência do
direito é uma ciência prática, sua tarefa é estabelecer padrões para as de-
cisões jurídicas. O juiz tem que decidir todo caso que se apresente em seu
tribunal, não podendo recusar a aplicação do direito. Nos problemas que
se estabelecem devido às lacunas da lei – nenhum legislador pode prever
todos os casos – a ciência do direito deve assistir ao juiz. Daqui deriva a se-
gunda tarefa da ciência jurídica: o descobrimento do conteúdo normativo.
Essa tarefa também pode ser denominada de dogmática.
A primeira nesse modo é histórica. Trata-se de averiguar o que sig-
nifica uma lei historicamente definida, uma regra de costume historica-
mente desenvolvida, uma decisão jurídica histórica no contexto de seus
autores. A tarefa consiste em investigar qual o caso imaginado pelo legis-
lador e a partir de que ponto de vista valorativo o resolveu. Do legislador
incumbe saber quais os juízos de valores (significativos para a formação
do direito) partiram dele; é preciso encontrar as ideias especiais sobre a
justiça, a liberdade, a segurança jurídica etc. A compreensão da solução
individual histórica conduz, inclusive aqui, para além da aparência ou da
atualidade, a saber, as finalidades e os valores que o direito deve servir. A
essa compreensão pertence também uma ideia exata das circunstâncias
do caso, dos interesses sociais em litígio que o legislador ou o juiz tinham
em presença para resolução.

190
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

As regras assim investigadas não poderão, segundo a experiência


universal, dar soluções a todos que praticamente se apresentarão no porvir
para sua solução jurídica. O historicamente definido, único em seu signi-
ficado individual histórico, tem uma significação limitada. Mas, a regu-
lamentação histórica contém, em si, como todo o espiritual, uma signifi-
cação supra-histórica que serve como guia também nos casos nos quais o
legislador não havia pensado, mas que são similares ou iguais aos casos já
resolvidos. O descobrimento desse conteúdo supra-histórico das soluções
é a tarefa da dogmática. Esta procede de tal maneira que examina experi-
mentalmente a regra dada com relação a uma série de casos no nível em
que a regra conduz a um resultado adequado, vale dizer, fundamentalmen-
te justo, correspondente ao sentido da ordem jurídica, e que nesse mesmo
nível tem sua esfera de aplicação. Em última instância, é válida aqui a má-
xima de que os casos iguais têm que ser resolvidos de maneira igual. Para
a investigação da comparabilidade de casos diferentes, existe o método da
análise dos interesses, desenvolvido pela jurisprudência dos interesses. Tal
análise ensina a comparar e a distinguir os diferentes interesses sociais
que aparecem num caso em litígio.
É claro que, com essas tarefas fundamentais, a ciência jurídica resta
inserida na doutrina universal dos métodos das ciências do espírito. Na
medida em que se trata de entender e representar o direito positivo, a
tarefa da ciência jurídica consiste em compreender uma obra espiritual,
individual, historicamente definida em seu significado histórico. Isso, no
fundo, não estabelece nenhum problema que não seja o da compreensão
histórica de uma doutrina filosófica, um programa político ou uma obra
de arte, só que, nesse caso, se trata de outro campo da vida espiritual que
obedece a outro estabelecimento de finalidades e de valores. No que se
refere à chamada dogmática, trata-se da investigação do conteúdo supra-
temporal e supra-histórico de uma obra do espírito. A pergunta não é a
que se propôs o legislador histórico, mas sim o que significa a obra em
geral (e com respeito aos casos nos quais aquele não havia pensado). Isso
também é um problema universal das ciências do espírito. Sua natureza
baseia-se na circunstância de que toda a criação espiritual tem um sentido
subjetivo e um sentido suprassubjetivo que resulta de sua relação com os
valores espirituais universalmente dados. A história da arte confronta o
mesmo problema quando interpreta uma obra de arte segundo um signifi-
cado universal estético. A ciência jurídica encontra-se mais próxima ain-
da da teologia, pois ela também enfrenta a tarefa de desenvolver sistema-
ticamente, sobre a base de uma mensagem de salvação única e histórica,
os conteúdos e as verdades religiosas eternas para o respectivo presente.
Tal é a tarefa da ciência do direito. Aqui também vemos que a inserção

191
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

desta nas ciências do espírito e seus métodos torna possível explicar a


natureza do direito e o procedimento da ciência jurídica, e que isso não
implica uma renúncia da compreensão do conteúdo.
2) Um último problema deve ser investigado: a possibilidade de con-
teúdos supratemporais no direito, ou, falando em termos tradicionais, o
problema do direito natural. A pergunta resume-se à questão de se os valo-
res morais que, como temos visto, devem ser atribuídos ao direito possuem
um conteúdo ou significado de validade supratemporal. Quando se con-
sidera que se trata de valores morais, mas que os valores morais somente
atuam na consciência humana e em relação a uma situação concreta, então
parece que é necessário contestar negativamente a pergunta. Mas, aqui há
que tomar em consideração que o direito se refere a situações típicas, e
resta por ver se tais situações típicas e repetíveis realmente existem. É ver-
dade que a vida individual consiste em situações que não se repetem, mas
para o direito há situações que se repetem porque as situações concretas
têm importância somente em sua estrutura típica, esquematicamente, por
assim dizê-lo. Pense-se na relação entre comprador e vendedor, governo e
cidadão, coordenação e subordinação.
No caso de tais situações típicas, pode-se investigar quais são os re-
sultados para a ordem social que derivam desses valores fundamentais, em
particular quando se consideram as experiências sobre a natureza do ho-
mem etc. Essa consideração não se verá afetada tampouco pela percepção
e a valoração historicamente diferente das diversas partes da esfera dos
valores éticos, pois no direito se trata somente de um número mui limitado
de valores que são, no mais, de uma validade moral elementar e que deixam
lugar para a realização de outros valores em outras esferas da vida e que,
por isso, não somente têm validade universal, como também devem se re-
alizar. Ser justo nas relações sociais é uma exigência elementar que pode
ser feita a toda pessoa e que não abarca o homem em sua totalidade como
o fazem, por exemplo, as exigências de amar-se ao próximo, da realização
do eu ou do estar a serviço da verdade.
Dessa maneira, podem ser descobertos certos princípios universais
que se apoiam nos fundamentos morais do direito e correspondem à es-
sência do direito na ordem social. Podem ser chamados de princípios uni-
versais da justiça somente se restar claro que não se tratam de máximas da
conduta pessoal da vida, da moralidade individual, mas sim de regras de
ordem social, de ordem jurídica. Se se quiser sublinhar esse último ponto
de vista, então devemos dar-lhes o nome venerável (mas certamente bas-
tante discutível) de “lei natural”. Isso estaria justificado porque se deriva
da natureza das coisas; naturalmente, esses princípios nunca irão originar
um sistema jurídico fechado hic et nunc, aplicável sem transformações. Isso

192
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

é impossível pela simples razão de que essas regras se referem a situações


típicas e muito abstratas. Somente podem se tratar de princípios gerais. E,
ainda com essa limitação, tais princípios não podem formar um sistema fe-
chado. Haverá problemas em relação aos quais não será possível encontrar
princípios gerais e ao mesmo tempo realizáveis em face da limitação da
compreensão humana. Mas, ainda dentro desses limites o conhecimento
é valioso. E não somente como fundamento de uma possibilidade crítica
do direito. Confiemos que nem sempre estaremos obrigados a examinar o
direito positivo com relação à sua compatibilidade com a justiça e o direi-
to natural. É mais importante que o conhecimento de tais princípios nos
permita compreender melhor a ordem jurídica em vigor e seu significado
ético, manejá-lo melhor e examinar e analisar com maior agudeza a prática
do direito em suas considerações equitativas, para reduzir, assim, a justiça
subjetiva a princípios objetivos e unir-se a isso. Essa é a última tarefa do
pensamento sobre o direito.

Tradutor: Marcus Vinícius Xavier de Oliveira


Porto Velho, julho/dezembro de 2005

193
12
Avoir des droits: comment, pourquoi, lesquels?

Jean-François Kervégan

Que nous ayons des droits, voire des droits « naturels, inaliénables
et sacrés » (DDH, Préambule), c’est pour chacun de nous une évidence,
surtout lorsque nous avons, à tort ou à raison, le sentiment que certains
d’entre eux sont violés. L’enfant à qui ses parents interdisent de regarder
sa série télévisée favorite juge qu’on « n’avait pas le droit » de le priver
de cet innocent passe-temps ; un chauffeur de taxi de café considère que
c’est « son droit » de percevoir un pourboire ; un salarié licencié considère
qu’en le privant d’un emploi, on a attenté à un droit fondamental, celui de
vivre de son travail. Ces situations sont évidemment très différentes ; et
ceci montre la nécessité d’une clarification conceptuelle. Pour y parvenir,
il convient de nous interroger sur ce que c’est exactement qu’un droit ;
il nous faut aussi suspendre notre croyance au fait que les individus et
certains groupes humains (ou même d’autres vivants, voire d’autres enti-
tés) ont des droits, et ceci peut-être même « par nature ». En effet, avant
même de décider si cette assertion est fondée, il faut savoir ce que veut
dire exactement cette idée apparemment simple: avoir des droits. Alors seu-
lement, on peut se demander s’il y a des raisons fortes qui, indépendam-
ment de convictions humanistes, portent à considérer que les hommes ont
des droits, avant même de s’interroger sur le contenu des droits que nous
avons ou revendiquons d’avoir. Dans ce qui suit, après avoir tenté de pré-
ciser ce qu’est un droit et de définir ce que peut signifier avoir un droit, je
proposerai deux arguments en faveur de l’idée qu’il faut que les hommes
aient des droits. Puis, si le temps le permet, j’aborderai la question con-
troversée du contenu des droits que nous avons, ce qui pose le problème
immense de l’articulation politique des droits, c’est-à-dire, pour aller vite,
des rapports entre les droits ‘subjectifs’ et la démocratie1.
Qu’est-ce qu’un droit? Partons d’une remarque de vocabulaire.
Contrairement à la langue anglaise, le français (mais c’est aussi le cas de
l’allemand et de la plupart des langues romanes) dispose d’un seul mot,

1 Je renvoie à ce sujet aux contributions lumineuses de C. Colliot-Thélène : La démocratie sans demos, chap. 1; «
Après la souveraineté : que reste-t-il des droits subjectifs ? », Jus Politicum 1 (2009), 117-136; « L’interprétation des
droits de l’homme : enjeux politiques et théoriques », Trivium, 3/2009 (en ligne).

195
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

‘droit’, pour désigner le ou les droits qu’un sujet a ou revendique (right) et


le Droit avec un grand D, c’est-à-dire un ensemble plus ou moins systéma-
tique de dispositions normatives (prescriptions, interdictions, licitations)
qui s’appliquent à un ensemble d’individus (éventuellement à l’humanité
entière), en anglais : the law. C’est pour pallier ce désavantage linguistique
que les juristes du 19e siècle, en Allemagne d’abord, puis en France et dans
les autres pays du continent, ont introduit une distinction technique entre
le « droit objectif » et le ou les « droit(s) subjectif(s) », étant entendu qu’il
existe entre l’un et l’autre, autrement dit entre law et right, une relation
qu’il convient de déterminer – l’interprétation de cette relation étant une
pièce importante de toute théorie consistante du droit. Mon propos con-
cerne donc les ‘droits subjectifs’.
Or on peut s’apercevoir que cette notion familière peut être entendue
de façon diverse, et que ces diverses significations ne se laissent pas aisé-
ment ramener à un dénominateur commun, sauf à se contenter d’une défi-
nition très vague, comme par exemple : un droit est « une sorte d’avantage »
(une définition vague que critique précisément Wesley Newcombe Hohfeld
dans l’article séminal qu’il a consacré en 1913 à la typologie des droits, sur
lequel je vais revenir dans un instant). Il est assez clair que le mot ‘droit’
n’a pas exactement le même sens quand je dis que j’ai le droit de voter ou
d’exprimer publiquement une opinion et quand je dis que j’ai le droit de
recevoir une éducation ou des prestations sociales. Dans le premier cas, le
droit concerne une action dont je suis l’auteur ; dans le second, une action
dont je suis le bénéficiaire. On a tenté de rendre compte de cette différence
manifeste à l’aide de distinctions telles que celle entre droits de… et droits
à…, entre libertés et créances (elle est attribuée à Sieyès) ou encore, en un
sens un peu différent, celle entre liberté négative et liberté positive (Isaiah
Berlin2). En réalité, du point de vue de la sémantique des droits, cette op-
position est moins tranchée qu’on ne le croit souvent.
Surtout, il existe des différences logiques importantes entre des
droits que l’on aurait à première vue tendance à regrouper dans la même
catégorie. Le droit de s’exprimer librement et le droit de prélever des im-
pôts sont des droits de faire quelque chose, pourtant leur structure est
différente : en termes hohfeldiens, le premier définit une liberté, le second
un pouvoir. Le droit de percevoir un salaire en échange du travail que je
fournis et le droit d’être dispensé de certaines obligations dans certaines
circonstances sont des droits à.., mais leur structure n’est pas identique ; le
premier est un droit opposable, le second une immunité.
C’est pour rendre compte de cette complexité sémantique du mot ‘ri-
ght’ et, simultanément, du caractère toujours relationnel des droits (une pro-

2 I. Berlin, « Deux conceptions de la liberté » (1958), in Eloge de la liberté, Calmann-Lévy, 1988, p. 167-218.

196
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

priété déjà relevée par Thomas d’Aquin lorsqu’il note que le jus est toujours
ad alterum3), que le juriste Wesley Newcombe Hohfeld, dans un article paru
en 1913 et qui a fait date, s’efforce de distinguer les différents types de droits
en définissant, pour chacun d’entre eux, son contraire et son corrélat (c’est-
-à-dire la nature de l’acte qui est requis ou appelé de la part d’autrui par
l’exercice de ce droit); un tableau (que vous avez sous les yeux) résume le
résultat de son travail4. Même s’il a fait l’objet de critiques5 et si on a pro-
posé de lui apporter certaines modifications6, ce travail classificatoire, qui
se veut purement descriptif (Hohfeld enquête sur un corpus exclusivement
formé de décisions judiciaires et, plus rarement, de commentaires académi-
ques) et qui se défend de toute intention normative, est précieux, car il met
en évidence le caractère imprécis, ou plutôt complexe, de l’expression ‘avoir
un droit’. Je vais donc m’appuyer sur lui pour tenter d’en clarifier le sens.

Type de droit Corrélat Contraire


Right (claim-right)
Duty No-right
Droit (= revendication
Obligation Non-droit
opposable)
Privilege
Liberté (droit de ne No-right Duty
pas être empêché Non-droit obligation
de faire qq chose)
Disability
Power
Liability Incapacité (de
Pouvoir (= capacité,
Assujettissement à modifier une
aptitude à modifier
une situation situation
une situation de droit)
de droit)
Immunity
Disability
Immunité (exemption Liability
Incapacité (de
d’une situation Assujettissement
modifier une
impliquant certaines à une situation
situationde droit)
obligations)

Commentons rapidement ce tableau, afin de préciser les différents


concepts de ‘droit’ qui y sont distingués.

3 Somme théologique, II.2, q. 57, art. 4, resp. 4.


4 “Some fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning” (Yale Law Journal 16-1 / 1913), republié sous
forme de livre avec la 2e partie de l’article, parue en 1917, Yale University Press 1964, p. 36.
5 Voir par ex. H. L. A. Hart, “Legal rights” et “Legal powers”, in Essays on Bentham, Clarendon Press 1982, p. 162 sq., 194 sq.
6 J. Waldron, Introduction, in Waldron (ed.), Theories of rights, Oxford UP 1984, p. 6 sq.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

1) Avoir un droit au sens le plus strict du terme (un claim-right, selon


la terminologie de Hohfeld, qui s’est imposée dans la discussion spé-
cialisée), c’est en premier lieu émettre de façon fondée une revendi-
cation dont le corrélat est, de la part de tiers, une obligation (duty il
vaut mieux éviter le terme ‘devoir’, dont les connotations morales sont
fortes) ; son contraire est l’absence de droit à émettre cette revendica-
tion. Par exemple, si je suis propriétaire d’un terrain, vous avez une
obligation de non-intrusion ; mais si je n’en suis pas le propriétaire, je
n’ai aucun droit à vous l’interdire.
2) Dans le vocabulaire choisi par Hohfeld, le terme privilege désigne
non pas un droit exorbitant mais la pure et simple liberté d’accomplir
une action sans pouvoir en être empêché (on pourrait parler de licence,
mais Hohfeld refuse cette solution pour des raisons pas très claires, p.
49) ; cette liberté a pour corrélat l’absence de droit, de la part d’autrui,
d’entraver son exercice, et pour contraire l’obligation d’accomplir
l’action en question. Par exemple, la liberté de mouvement a pour
corrélat l’absence de droit, de la part de quiconque, d’en restreindre
l’exercice (sauf, éventuellement, dans des cas prévus par la loi), et pour
contraire l’assignation à résidence.
3) Un « pouvoir » est une capacité (juridique et non pas physique) d’agir
sur la situation d’autrui. Son corrélat est l’assujettissement d’autrui aux
effets de son exercice, et son contraire est l’incapacité d’agir sur cette
situation (Hohfeld note que « perhaps the nearest synonym of ‘liabi-
lity’ is ‘subjection’ », p. 59). Par exemple, un créancier a le pouvoir (le
‘droit’) de libérer son débiteur de sa dette mais, s’il ne le fait pas, celui-ci
est assujetti à cette position et, par conséquent, à l’obligation afférente
de rembourser. En revanche, je suis dans l’incapacité juridique de me
soustraire à l’obligation de payer l’impôt à laquelle je suis assujetti en
vertu du « pouvoir » qu’a l’Etat de le lever.
4) Enfin, l’immunité, c’est-à-dire le fait de ne pas être assujet-
ti à une position impliquant certaines obligations, a pour contraire
l’assujettissement à une telle situation et pour corrélat l’incapacité (le
‘non-pouvoir’) d’autrui à m’imposer cette situation. Par exemple, si je
suis objecteur de conscience (à supposer que la loi reconnaisse ce sta-
tut), je suis exempté des obligations militaires (‘exemption’ est, note
Hohfeld, « the best synonym of ‘immunity’ », p. 62); l’Etat, de son côté,
est dans l’incapacité de m’imposer d’accomplir ces obligations, mais il
a le pouvoir d’exiger que j’accomplisse un service civil.

On peut remarquer qu’il existe une différence entre les ‘droits’ et ‘de-
voirs’ figurant aux deux premières lignes et ceux des deux lignes suivantes.
En effet, les ‘pouvoirs’ et les ‘immunités’, ainsi que leurs corrélats, con-

198
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cernent l’usage qu’on peut faire de claims-rights et de libertés, ou de leurs


corrélats. Par exemple, le pouvoir de dispenser d’une obligation est autre
chose que le droit à bénéficier de la prestation définie par cette obligation,
comme on le voit dans le cas d’une promesse faite en faveur d’un tiers : si
A promet à B de rendre un service à C, A à une obligation envers B (c’est
à lui qu’il a fait la promesse), mais C a (dans certains cas) le pouvoir de
dispenser A de cette action promise à B, alors que, dans d’autres cas, C est
dans l’incapacité de faire cette dispense. Pouvoirs et immunités sont, en
quelque sorte, des droits et des obligations au deuxième degré, puisqu’ils
s’appliquent aux droits et obligations de premier degré que sont les claim-
-rights et les libertés (ainsi que leurs corrélats).
On peut aussi constater que claim-rights et libertés d’une part, pou-
voirs et immunités d’autre part ont des structures symétriques inverses : le
corrélat de l’un est le contraire de l’autre, de sorte que les deux parties du
tableau peuvent se lire en quelque sorte en diagonale. Ainsi, on peut dire
que le rapport entre pouvoir et immunité est comparable au rapport entre
claim-right et liberté (Hohfeld, p. 60).
L’analyse de Hohfeld, c’est tout son intérêt, conduit à distinguer
quatre acceptions bien distinctes de l’expression vague « j’ai un droit » : un
droit, ce peut être une revendication opposable, une liberté d’accomplir
certains actes, un pouvoir d’agir sur une situation ou un statut, ou enfin
une exemption d’une position ou d’un statut comportant des obligations.
Leur correspondent, puisqu’on a coutume de corréler droits et devoirs,
quatre types distincts de «devoirs»: l’obligation stricto sensu, l’absence
de droit, l’assujettissement à une position, l’incapacité à agir sur une si-
tuation. Un tel travail classificatoire met donc en lumière le caractère
équivoque du concept commun de droit subjectif (right) et la nécessité,
pour en rendre compte, de combiner diverses conceptions de ce que c’est
qu’avoir, revendiquer ou contester un droit. Elle peut aussi nous mettre
sur le chemin d’une définition plus restrictive : à parler rigoureusement,
un droit est un claim, une revendication dont la propriété caractéristique
est l’opposabilité. Qu’il s’agisse de la vente d’un objet ou du droit à des
congés payés, un claim-right implique un rapport actif à autrui (personne
ou institution), et c’est pour cette raison qu’une obligation déterminée
lui est corrélée. C’est toute la différence, évidemment, avec une liberté
(de parler, d’agir…), à laquelle aucune obligation précise ne correspond,
mais plutôt une impossibilité d’en contrecarrer l’exercice; une obliga-
tion si on veut, mais une simple obligation négative (no-right), une obli-
gation d’abstention. Conséquence remarquable et surprenante: les liber-
tés consignées dans les grands textes déclaratoires (liberté de croyance,
d’expression, etc.), bref les droits humains jugés les plus fondamentaux
(ceux qu’on nomme souvent les droits de la première génération), ne sont

199
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

pas, pour beaucoup d’entre eux, des droits au sens strict (des claim-rights),
car il est impossible de définir une obligation positive qui leur soit corré-
lative et de déterminer à qui reviendrait cette obligation. Il en va de même
de certaines ‘créances’, de certains droits à…, qui sont des revendications
sans doute parfaitement légitimes mais qu’on peut difficilement qualifier
de droits stricto sensu, faute de pouvoir déterminer à qui elles sont op-
posables. Selon leur structure grammaticale et conceptuelle, le droit au
bonheur ou le droit à la paresse ne sont pas des ‘droits’, mais plutôt des
‘privileges’ au sens de Hohfeld : leur revendication (qu’on la juge légitime
ou non) ne signifie pas qu’autrui ou la société aurait l’obligation de me
rendre heureux ou oisif, mais plutôt qu’autrui n’a pas le droit de faire obs-
tacle à ma quête du bonheur ou du repos…
On s’aperçoit alors, en suivant cette voie et en allant au-delà de Ho-
hfeld, que l’interprétation des droits ne relève pas seulement de la séman-
tique et de la pragmatique du langage juridique ; elle engage aussi des
choix politiques. C’est ainsi que le ‘droit au travail’ peut être interprété
comme un droit strict, faisant obligation à la société de me fournir un em-
ploi ; il convient alors que la puissance publique prenne des dispositions
garantissant un emploi à chacun. Ou bien, dans une optique opposée, il
peut être compris comme une pure liberté, dont le corrélat est l’absence
de droit, de la part d’autrui, de s’opposer à ce que je travaille, même si j’ai
douze ou quatre-vingts ans.
J’espère avoir un peu clarifié, en m’appuyant sur le travail de Ho-
hfeld, ce que c’est qu’un droit : un droit est une revendication fondée sur
des raisons et dont la satisfaction génère des obligations corrélatives de
la part d’autrui, obligations qui, comme ce droit lui-même, sont de plu-
sieurs espèces. Mais l’expression ‘avoir un droit’ demande elle aussi à être
élucidée. Posons-nous, avec le philosophe Joel Feinberg7, la question sui-
vante : les femmes avaient-elles le droit de vote en 1900, disons en France
? Indéniablement, elles n’en avaient pas juridiquement le droit; mais on
est tenté de dire qu’elles l’avaient néanmoins moralement. Ceci débouche
sur un problème épineux, qui a fait couler beaucoup d’encre : existe-t-il
véritablement des droits moraux et, si oui, de quelle nature sont leurs
rapports avec les droits juridiques proprement dits8? A première vue, ce
problème semble recouper celui, très classique, des rapports entre droit
naturel et droit positif, et sa solution semble donc dépendre de l’adoption
d’un parti jusnaturaliste ou juspositiviste; le partisan du positivisme ju-
ridique dira que les femmes n’avaient pas le droit de vote en 1900, et on

7 J’emprunte l’exemple, en l’adaptant, à J. Feinberg : voir “In defense of moral rights” (1991), in Feinberg, Problems at
the roots of law, Oxford UP, 2003, p. 37 sq.
8 Voir J.-F. Kervégan, « Y a-t-il des droits moraux ? », in F. Burgat & V. Nurock (dir.), Le multinaturalisme. Mélanges à
Catherine Larrère, Editions Wildproject, 2013, p. 214-225.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

lui rétorquera qu’elles avaient, en tant qu’êtres humains, un droit ‘natu-


rel’ à la citoyenneté et à ses attributs9.
Les choses ne sont pas si simples, cependant. En effet, certains parti-
sans de la conception jusnaturaliste, et non des moindres (je pense à Kant),
considèrent qu’il existe des droits qui ne sont pas positifs (c’est-à-dire posés
par un acte humain) et qui néanmoins ont un caractère pleinement juridi-
que ; d’ailleurs, on pourrait dire que pour Kant une des différences struc-
turelles entre le droit et l’éthique est qu’il n’y a pas à proprement parler de
droits moraux (mais seulement des obligations morales), alors qu’il existe
bel et bien des droits juridiques, naturels aussi bien que positifs (Kant dit
: statutaires). Et il précise qu’il existe un (et un seul) droit « natif » (angebo-
ren), le droit à la « liberté », qui est le droit «unique, originaire, dont dispose
tout homme en vertu de son humanité»10; ce droit est natif parce qu’il est la
matrice des autres droits juridiques, aussi bien naturels (Kant parle alors de
droits « acquis ») que positifs (par ex., ceux que confère le législateur aux res-
sortissants de tel pays). On trouve ici, je le note au passage, l’origine d’une
thématique qui sera développée par Hannah Arendt, celle du «droit au(x)
droit(s)»11. Or, chez Arendt, c’est précisément l’appartenance à une com-
munauté politique qui fonde le droit d’avoir des droits, comme le montre
a contrario le cas de l’apatride ou du réfugié, paradigmatique de l’absence
de droits. On peut présenter les choses autrement et dire que, pour Kant
comme pour Arendt, la citoyenneté et les droits afférents sont la condition
d’effectivité des autres droits, y compris de ceux qui apparaissent comme
naturels (les ‘droits de l’homme’). Dans cette perspective, parler d’un droit
moral à la citoyenneté apparaît ambigu, voire confus; ou alors, il faut avoir
une interprétation déflationniste de ce qu’est un droit moral, et dire qu’en
1900 c’était une revendication légitime (mais légitime par rapport à quoi?)
de la part des femmes que de revendiquer des droits politiques.
Personnellement, j’adhère plutôt à une variante modérée du positi-
visme juridique12, à ce que le juriste et philosophe Herbert Hart a nommé
soft positivism13; j’ai donc tendance à considérer que les seuls droits vérita-
bles sont ceux que le Droit (le droit positif) me reconnaît. Dans une telle

9 Bien entendu, il ne faut pas confondre la distinction théorique entre droit naturel et droit positif et la distinction
métathéorique (‘épistémologique’) entre jusnaturalisme et juspositivisme. Un juspositiviste considère que seul le droit
positif mérite le nom de droit, et que le prétendu droit naturel est une fiction (cf. la critique benthamienne des «
fictions ») ; en revanche, un jusnaturaliste ne nie évidemment pas qu’il existe du droit positif, mais soutient que sa
validité dépend de sa conformité à des principes métapositifs qui constituent ensemble le ‘droit naturel’ (ou ‘rationnel’).
10 Kant, Rechtslehre, AA VI, p. 237 ; Doctrine du droit, trad. Renaut, GF, p. 26.
11 Voir Les origines du totalitarisme, II: L’impérialisme, Gallimard (‘Quarto’), 2002, p. 591 sq. (« Les embarras suscités
par les droits de l’homme »), p. 591 sq., en partic. p. 599.
12 Voir J.-F. Kervégan, «Une défense du positivisme juridique», Annuaire de l’Institut Michel Villey, 2 (2010), p. 247-261.
13 Voir Hart, Le concept de droit, Bruxelles, Presses des Facultés Saint-Louis, 2005, Postface, p. 268 sq.
Contrairement au hard positivism défendu par ex. Par Kelsen, le soft positivism admet l’existence d’un
«recoupement partiel» entre le droit et l’éthique, donc entre la sphère des prescriptions juridiques et celle des
prescriptions (et des droits) moraux.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

perspective, dire que les femmes avaient le droit de vote en 1900 est une
expression confuse, qu’il vaut mieux éviter. Il est préférable, ici aussi, de
parler de revendication légitime, et de réserver l’usage du mot ‘droit’ aux
seuls droits effectivement reconnus et protégés par le Droit ; car la carac-
téristique d’un droit stricto sensu (d’un claim-right hohfeldien) est qu’en cas
de non-respect ou de violation de ce droit il existe des moyens de recours,
moyens dont les femmes (ou celles d’entre elles qui militaient activement
pour l’extension du droit de suffrage) étaient bel et bien privées jusqu’à ce
que la loi définissant le corps électoral change…
Cette discussion sur le sens de ce que signifie l’expression ‘avoir un
droit’ met en lumière un point important : quelle que soit la position qu’on
adopte dans le débat entre jusnaturalisme et juspositivisme, il importe de
bien distinguer un droit et une revendication, même légitime. En effet, une
revendication demande à être satisfaite, alors qu’un droit demande aussi à
être reconnu ; or cette reconnaissance suppose un contexte institutionnel
dans lequel la revendication de ce droit fasse sens. Il y a là un point qui
penche peut-être en faveur d’une conception positiviste des droits. Si le
droit de vote des femmes est un droit moral, et si les droits moraux ont une
valeur absolue (qui peut-être les distingue des droits juridiques), alors ce
droit pouvait être revendiqué non seulement par les suffragettes en 1900,
mais aussi par Antigone (même si elle n’y a pas pensé). Mais si c’est un droit
juridique (et politique), alors il est vraisemblable qu’il présuppose le contex-
te d’une société ‘démocratique’ (avec tout le flou que comporte ce terme),
qui permette à sa revendication d’avoir un sens et une légitimité. Toutefois,
il n’est pas interdit de penser qu’un ‘droit moral’ puisse être non seulement
revendiqué, mais reconnu, dès lors que certaines dispositions juridiques
institutionnelles viennent l’étayer et l’encadrer : c’est le cas de certains
droits subjectifs assez singuliers, puisque leur sujet est virtuel (au sens où
il n’est pas en mesure de le revendiquer lui-même), comme le droit des gé-
nérations futures ou celui des animaux14. Un des arguments classiques en
faveur de la reconnaissance de droits aux animaux est la distinction entre
titulaires actifs et titulaires passifs : les animaux, comme les enfants ou les
handicapés mentaux, seraient titulaires de droits, mais dans l’incapacité
de les exercer ou de les revendiquer eux-mêmes. Une objection, également
classique, consiste à dire qu’on peut parfaitement instituer des obligations
unilatérales ou asymétriques, sans les corréler à des droits : en ce sens, les
humains peuvent avoir des obligations envers des animaux sans qu’on fasse
nécessairement de ceux-ci des titulaires de droits, puisqu’ils ne sont pas en
mesure de les exercer ou de les revendiquer. On pourrait aussi, si on adopte

14 Pour une défense du droit des animaux, voir le livre classique de Peter Singer, La libération animale, Payot, 2012
; Tom Regan, Les droits des animaux, Hermann, 2012. Voir également J. Feinberg, « Le droit des animaux et des
générations futures », Philosophie, 97 (2008), p. 64-90.

202
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

une telle définition de ce qu’est un rightholder, contester qu’il y ait des droits
des enfants stricto sensu, ou alors soutenir que ces droits ont pour titulaire
non pas l’enfant tel qu’il est hic et nunc mais, comme dirait Kant, l’humanité
qui est en lui, c’est-à-dire la personnalité humaine qu’il est appelé à devenir
; mais on rencontre alors la difficulté consistant à se représenter un sujet
virtuel de droits (et d’obligations)…
En tout état de cause, si on admet l’existence de droits moraux, il
faut se garder de les considérer comme de simples candidats au statut de
droits ‘véritables’, comme des droits juridiques in statu nascendi. Sinon, on
s’expose à la critique ravageuse faite par Jeremy Bentham de ces « fictions
» que sont à ses yeux les droits de l’homme : en effet, dit-il, les raisons
que j’ai de revendiquer quelque chose ne constituent pas un droit à cette
chose ou, selon sa formule lapidaire : hunger is not bread15. Joel Feinberg,
qui est par ailleurs un partisan résolu des droits moraux, a montré ce qu’a
d’insatisfaisant ce qu’il nomme la « ‘there ought to be a law’ theory of ri-
ghts », c’est-à-dire une conception optative des droits: proclamer un droit
moral ne peut pas signifier seulement souhaiter qu’une légitime revendi-
cation, par ex. que les femmes soient des citoyennes, devienne (un jour…)
un droit juridique16. Ou bien les droits moraux sont de véritables droits,
et ils doivent disposer d’une consistance spécifique, d’une exigibilité in-
dépendante de celle des droits juridiques qui viendront peut-être un jour
se greffer sur eux ; ou bien ce sont des revendications respectables appe-
lant peut-être une action appropriée, mais en aucune façon des droits. Ter-
tium non datur. Pour ma part, en raison des caractères qui me paraissent
devoir être conférés à des droits, à savoir qu’ils doivent être reconnus et
s’inscrire dans un contexte institutionnel, j’opte pour la 2e solution. Mais
j’admets volontiers que la question des ‘droits moraux’ n’est pas épuisée
par là, et qu’on ne peut pas considérer les droits de l’homme – puisqu’au
fond c’est de cela qu’il est question – comme de simples « manifesto-rights
», ainsi que les nomme Feinberg tout en avouant éprouver « une certaine
sympathie pour les rédacteurs de manifestes »17. Les droits proclamés dans
des manifestes – dont les paradigmes sont la Déclaration d’indépendance
des colonies américaines et la Déclaration des droits de l’homme et du
citoyen de 1789 – ont sans doute une redoutable puissance mobilisatrice
; mais ce sont de simples droits moraux, ou ce ne sont pas des droits du
tout, selon l’optique qu’on voudra adopter, tant qu’ils ne sont pas rendus
effectifs par leur constitutionnalisation. En tout cas, une chose me paraît

15 J. Bentham, L’absurdité montée sur des échasses [Examen critique de la Déclaration des droits de l’homme, art. 2],
in Cléro-Binoche, Bentham contre les droits de l’homme, PUF 2007, p. 34.
16 Feinberg, “In defense of moral rights”, p. 43-44.
17 Feinberg, “The nature and value of rights”, Journal of Value Inquiry, (1970), p. 255 (repris in Feinberg/Coleman,
Philosophy of Law, Thomson-Wadsworth, 2008, p. 355.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

certaine : s’il y a quelque chose comme des droits moraux (anté- et supra-
-juridiques), alors il ne faut pas les concevoir à l’optatif, mais à l’indicatif
: ils doivent être « des droits actuels dès l’instant où ils sont énoncés », et
engendrer en tant que tels des obligations corrélatives18.
Nous savons plus ou moins ce que c’est qu’un droit, ou plutôt ce que
sont les divers types de droits. Nous avons pris conscience d’un des problè-
mes que recouvre l’expression ‘avoir un droit’, celui de l’existence éventuelle
de droits moraux distincts des droits juridiques, donc de types de droits
qu’on n’« a » pas de la même façon. Posons-nous maintenant la question un
peu choquante : mais pourquoi faut-il que nous ayons des droits ? Une sim-
ple observation historique montre que cette question n’est pas vaine : après
tout, c’est seulement depuis une période récente que l’idée que les hommes
ont des droits, en tant que tels et non pas en raison de certains attributs
statutaires, s’est imposée comme une évidence. Je ne partage pas le point de
vue, idéologiquement satisfaisant mais historiquement hasardeux, de ceux
qui font remonter la problématique des droits de l’homme au Bill of rights de
1689, à l’acte d’habeas corpus de 1679, voire à la Grande Charte de Jean sans
Terre (1215), quand ce n’est pas à l’invocation par Antigone d’un droit supé-
rieur au droit de la cité ; en effet, c’est seulement dans les textes déclaratoi-
res de la fin du 18e siècle (dans les «manifestes» de Feinberg) qu’apparaît en
toute clarté l’idée que tous les hommes ont des droits «inaliénables», en tant
qu’ils sont « libres et égaux », c’est-à-dire égaux dans la liberté. Au demeu-
rant, sur le plan philosophique, c’est seulement dans le cadre de la pensée
moderne que l’idée de ‘droit subjectif’ a pu être conceptualisée : même si
certains en font remonter la découverte au nominalisme occamien (c’est la
thèse bien connue de Michel Villey19), cette idée ne reçoit une formulation
claire que chez Hobbes20, bien qu’on puisse en trouver une formulation hé-
sitante dans le De legibus de Suarez (livre I, chap. 2) ou chez Grotius (De jure
belli ac pacis, livre I, chap. 1 : différents sens du mot jus).
Ces rappels historiques avaient pour unique but de monter qu’il n’est
pas absurde de poser la question : pourquoi donc faut-il que les hommes
aient des droits (en général : on ne se soucie pas à ce stade du caractère
‘naturel’ ou ‘positif’ de ceux-ci) ? Hegel, en qui on ne voit pas toujours un
‘ami’ des droits humains, propose une réponse forte à cette question : seul
celui qui est susceptible d’avoir des droits – Hegel nomme cela un tel être
une personne – peut se voir imposer des obligations21. Cette réponse est

18 Feinberg, “In defense of moral rights”, p. 50.


19 Villey, La formation de la pensée juridique moderne.
20 Voir Hobbes, Leviathan, chap. 14, Penguin Classics, p. 189 (Léviathan, trad. Tricaud, Sirey 1971, p. 128) : définition
du right of nature comme « la liberté qu’a chacun d’user comme il le veut de son pouvoir propre pour la préservation
de sa propre nature, autrement dit de sa propre vie » : dans la même page se trouve pour la 1re fois faite une
distinction tranchée entre right et law, autrement dit entre ‘droit subjectif’ et ‘droit objectif’.
21 Hegel, Encyclopédie, § 486 Rem., trad. Bourgeois, Vrin, 1988, p. 284. Voir également PPD, PUF, 2013, § 35, p.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

instructive, en particulier par sa réciproque: un être dépourvu de droits (un


esclave, par exemple) ne peut avoir aucune obligation, il n’est tenu à rien,
il peut seulement être contraint d’agir. Toutefois, cette réponse de prin-
cipe n’est pas totalement satisfaisante, s’il est vrai, comme on l’a indiqué
précédemment, que la corrélation entre droit et obligations ne concerne
qu’une seule catégorie de droit subjectif, celle des claim-rights, des droits
opposables. Sauf à comprendre de manière très extensive comme des obli-
gations le ‘non-droit’ de faire obstacle à une liberté, ‘l’assujettissement’
(liability) à une situation donnée et l’incapacité (disability) de modifier une
situation, il nous faut reconnaître que le ‘théorème’ de Hegel n’est vérifié
que dans un cas particulier, même s’il est très important. De deux choses
l’une, alors : ou bien on restreint l’usage du mot ‘droit’ (right) aux seuls
droits opposables, ou bien on doit chercher une justification plus géné-
rale des droits. La première solution implique une restriction importan-
te de l’extension du concept, et aboutit à cette conséquence paradoxale
que ceux de nos droits que nous considérons souvent comme les plus es-
sentiels (les libertés fondamentales) ne sont pas à proprement parler des
droits… Reste alors la deuxième voie: chercher une autre justification des
droits que la seule corrélation à des obligations. Il faut ici quitter Hegel,
mais en retenant de lui cette idée : s’il est vrai qu’une société ne peut exis-
ter que si ses membres sont soumis à certaines obligations (à commencer
par l’obligation politique : l’homme ne peut être pleinement homme qu’en
‘faisant société’, il y est donc obligé – ce qui signifie bien entendu autre
chose qu’y être contraint), alors il faut probablement aussi reconnaître
aux sociétaires des droits, même s’il n’existe pas de corrélation biunivo-
que entre ces obligations et ces droits.
Une première justification de l’existence nécessaire de droits sub-
jectifs peut être cherchée sur la voie « désenchantée » de l’investigation
historico-sociologique ; on peut s’appuyer ici sur certaines hypothèses
fécondes formulées par Niklas Luhmann. Indépendamment de toutes les
raisons morales ou philosophiques que nous pouvons avoir de croire que
les hommes ont des droits ou de souhaiter qu’il leur en soit reconnu, il
existe des facteurs « structurels » qui font que leur dotation en droits (des
droits dont la liste peut connaître et a connu des évolutions) est une con-
dition de fonctionnement d’un certain type de société, celui dans lequel
nous vivons. La société ‘moderne’ (j’assume le flou de cette désignation,
qui fait tout de même sens par contraste avec les sociétés ‘pré-modernes’)
comporte au moins deux caractéristiques : la complexité (le tout ne se réduit
pas à la somme de ses parties : c’est la propriété que la théorie des systè-
mes nomme ‘auto-transcendance’) et la différenciation (les ‘sous-systèmes’
toujours plus spécialisés composant « la » société disposent d’un mode

182; §155, p. 324 ; § 261, p. 432.

205
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de fonctionnement autonome, ce qui ne signifie pas que ce qui se produit


dans l’un d’entre eux, par exemple l’économie, le droit, la politique ou la
culture, n’ait pas d’écho, de ‘traduction’ dans les autres sous-systèmes). Le
passage d’une société ‘simple’ à une société ‘complexe’ ou, dans les ter-
mes de Durkheim, de la solidarité mécanique propre aux sociétés seg-
mentaires à la solidarité organique des sociétés organisées22, contribue à
expliquer l’émergence des droits subjectifs et la fonction qu’ils ont dans
l’organisation sociale ; il éclaire en effet ce que Luhmann nomme le «pa-
radoxe des droits de l’homme»23. Pourquoi parler de paradoxe ? Pour deux
raisons au moins. Il y a paradoxe logique, tout d’abord (je ne m’attarderai
pas sur ce point), puisque que les droits subjectifs les plus fondamentaux
doivent être pensés comme antérieurs et supérieurs à la société (comme
des droits « naturels, inaliénables et sacrés », dit le Préambule de la DDH
de 1789), alors qu’ils n’ont de sens et de possible effectivité que grâce
à l’Etat, agent de leur « positivation ». Paradoxe assumé, je le note en
passant, par certains des textes déclaratoires : on lit par exemple dans la
DDH de 1793 que « le gouvernement est institué pour garantir à l’homme
la jouissance de ses droits naturels et imprescriptibles » (art. 1). Deuxiè-
me aspect paradoxal : l’affirmation d’une sphère inamissible d’autonomie
individuelle grâce aux droits subjectifs va de pair avec l’accroissement
de l’interdépendance des individus, dû en particulier au développement
d’une économie de marché. Je ne dis pas que celui-ci provoque celle-là,
mais c’est une hypothèse plausible, assumée d’ailleurs par certains théo-
riciens du libéralisme, comme Friedrich Hayek : selon lui, le fonctionne-
ment de « l’ordre étendu » du marché va de pair avec la garantie de « droits
négatifs » protégeant la sphère d’autonomie de chacun24.
A suivre Luhmann, la promotion moderne des droits subjectifs cor-
respond au passage d’une forme de société fondée sur la réciprocité (atten-
tes asymétriques, prestations symétriques) à une forme de société fondée
sur la complémentarité (attentes symétriques, prestations asymétriques)25
ou, pour le dire autrement, au passage d’une intégration sociale verticale
(comme dans une société d’ordres ou dans la société féodale) à une inté-
gration sociale horizontale (dans une société d’individus, ou de classes). Le
« gain en abstraction » que permet l’idée de droits individuels identiques
pour tous est en phase avec une fragmentation et une diversification ‘hori-
zontales’ de l’activité sociale qui a totalement modifié le sens du précepte

22 Voir Durkheim, De la division du travail social, chap. VI, PUF 2007, p. 150 sq.
23 N. Luhmann, „Das Paradox der Menschenrechte und drei Formen seiner Entfaltung“, in Soziologische Aufklärung,
Bd. 6, Westdeutscher Verlag, 1995, p. 229 sq.
24 Voir Hayek, Droit, législation et liberté, t. 2 : Le mirage de la justice sociale, PUF, 1981, p. 121-127.
25 Voir Luhmann, « De la fonction des droits subjectifs », in Trivium (en ligne), 3/2009, p. 3 ; voir également
Gesellschaftsstruktur und Semantik, Bd. 2, Suhrkamp, 1981, Kap. 2 („Subjektive Rechte: Zum Umbau des
Rechtsbewusstseins für die moderne Gesellschaft“), en particulier p. 50 et 72.

206
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

juridique qui définissait classiquement l’équité, suum cuique tribuere. Une


manière différente de présenter les choses, empruntée non plus à Luh-
mann mais à Marx, serait de dire que l’existence du « travailleur libre », ti-
tulaire de droits subjectifs formellement égaux pour tous, est la condition
d’existence du mode de production capitaliste, fondé sur la vente ‘libre’ de
sa force de travail par le travailleur au capitaliste, qui sont complémen-
taires au sens de Luhmann26. Bref, pour résumer cet argument, les droits
subjectifs ont une fonction capitale dans des sociétés complexes : elle
consiste, ainsi que l’avait noté déjà Max Weber27, à assurer une régulation
abstraite et formalisée du fonctionnement en circuit et fort peu égalitaire
d’une société de marché. Ou encore : dans une société hautement différen-
ciée, où les prestations de chacun sont devenues abstraites à l’extrême (on
effleure ici le motif de la « réification »28), la représentation, pourtant sou-
vent contre-intuitive, des individus comme également titulaires de droits
est ce qui permet de la penser comme une totalité intégrée, demeurant
malgré tout une société. Tel est, selon Luhmann, le « paradoxe », voire le «
scandale » des droits de l’homme.
L’argument précédent était en quelque sorte descriptif : on se bor-
nait à constater que « les droits » ont une nécessité fonctionnelle dans une
société complexe. Mais on peut aussi construire un argument normatif en
réponse à la question : pourquoi faut-il que nous ayons des droits ? A cet
égard, il est expédient de recourir, comme le fait Joel Feinberg dans un
article que j’ai déjà évoqué, « The Nature and Value of Rights », à une ex-
périence de pensée : imaginer ce que seraient les rapports des individus
dans une société où la notion de droit subjectif (right) serait absente, mais
où ils seraient pourtant soumis à des obligations. Il s’agit, en accordant
une attention particulière à l’un des quatre types de droits hohfeldiens (les
claim-rights), de défaire en pensée la corrélation intuitive entre droits et
obligations, en vue de montrer au moyen d’un raisonnement apagogique
qu’elle est nécessaire. Je voudrais tirer de cette expérience d’autres enseig-
nements que Feinberg lui-même ; celui-ci conclut pour sa part que le droit
subjectif doit être conçu comme une raison d’exercer une activity of clai-
ming : «avoir un droit, c’est émettre une revendication [un claim] vis-à-vis
de quelqu’un, revendication dont le fait de reconnaître la validité est appe-
lé par un certain jeu de règles en vigueur ou de principes moraux»29. Je note
d’abord que les autres catégories de droits peuvent être également admi-

26 Voir Marx, Le Capital, l. I, trad. Lefebvre, PUF, 2006, chap. 4, p. 188 ; chap. 8, p. 303 ; chap. 13, p. 444.
27 Voir Weber, Sociologie du droit, PUF 1986, chap. 7 et 8.
28 Voir Marx, Le Capital, l. I, chap. 1, p. 82-83 ; Manuscrits de 1857-1858, ES 2011, p. 114-115. Et bien sur Lukàcs,
Geschichte und Klassenbewusstsein, chapitre sur la Verdinglichung, ainsi que l’actualisation de ce motif par A.
Honneth, La réification, Gallimard, 2007.
29 Feinberg, “The nature and value of rights”, p. 257.

207
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ses dans cette expérience. Feinberg l’admet d’ailleurs tacitement, puisqu’il


semble considérer, au moins dans cet article, que tous les types de droits
peuvent être ramenés au modèle des claim-rights, ce qui me semble discu-
table (pensons aux libertés et aux immunités, c’est-à-dire aux droits ‘néga-
tifs’), mais là n’est pas le point. On peut donc imaginer que dans cette so-
ciété « peu attrayante » que Feinberg nomme Nowheresville, les individus
sont également privés des libertés fondamentales (‘privileges’), de pouvoirs
et d’immunités. Bref, on supprime les quatre types de droits hohfeldiens
(right, privilege, power, immunity) tout en maintenant leurs corrélats (duty,
no-right, liability, disability). Que se passe-t-il alors ?
Imaginons que, dans cette société S, la personne A emploie la per-
sonne B. B est dans l’obligation de fournir un certain travail dans les
conditions prévues; mais A n’a pas le droit de l’exiger de B. A est dans
l’obligation de rémunérer B; mais B n’a pas le droit de réclamer le paie-
ment de son salaire. B n’a pas le ‘privilège’ de faire ce que bon lui semble
en dehors de son temps de travail; mais ni A ni qui que ce soit d’autre
n’a le droit de lui dicter la nature de ses loisirs. A n’a pas le pouvoir
d’autoriser B à quitter son travail plus tôt pour regarder un match de
football à la télévision… On voit aussitôt que la seule règle qui régit les
relations sociales au sein de S est le caractère totalement aléatoire, a-nor-
mal ou anomique, de toutes les situations qu’on suppose normalement
régies par des règles : personne ne peut savoir non seulement ce qu’il a
le droit de faire ou de ne pas faire, mais aussi ce qu’il a le droit d’exiger
ou d’attendre. On peut tirer de là un enseignement, intuitivement évi-
dent du reste : Hegel et Hohfeld avaient raison de souligner le caractère
indissociable des droits (au sens large) et des obligations (au sens large)
: dans une société sans droits, il ne peut exister raisonnablement aucune
obligation, aucune règle à laquelle seraient soumises les interactions. S
n’est pas une société, mais un chaos anomique. Pour cette seule raison,
Feinberg a raison d’affirmer que droits et obligations sont comme « les
deux faces d’une même pièce de monnaie »30, même si en toute rigueur
ceci n’est vrai que des revendications opposables.
On pourrait atténuer le caractère aberrant de S en restreignant la
proscription des droits aux seules revendications opposables et en main-
tenant les libertés et les droits et obligations de niveau 2 (pouvoirs, im-
munités et leurs corrélats et contraires) ; autrement dit, on se bornerait
sur la 1re colonne du tableau à rayer les claim-rights. La société S’, ainsi
obtenue, est moins absurde que S. Le salarié B peut organiser ses loisirs
à sa guise. L’employeur A a le pouvoir de lui accorder une demi-journée
de congé pour lui permettre de satisfaire sa passion du football. L’Etat

30 Feinberg, “The nature and value of rights”, p. 250.

208
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

peut assujettir les citoyens à l’impôt, mais ceux-ci peuvent également bé-
néficier d’immunités en raison de telle ou telle propriété particulière. Il
n’en reste pas moins que les relations entre A et B, et par extension toutes
les relations interindividuelles, demeurent très singulières. B est obligé
de travailler pour A, mais il n’a pas le droit de réclamer une rétribution;
ceci veut dire que le versement d’un salaire est, tout comme le pourboire
que je laisse à un garçon de café, un acte de bienveillance, une libéralité.
Pourtant, le travail de B mérite incontestablement d’être rémunéré; dans
une autre société que S’ (ou S, a fortiori), on dirait qu’il en a le droit… Qu’est-
-ce qui alors, en l’absence (dans S’) d’un droit de B à exiger de A par les
voies du Droit le paiement de son labeur, peut garantir qu’il le percevra
effectivement? Uniquement, semble-t-il, le sens moral de A, sa rectitude si
l’on veut. Cela veut dire qu’en l’absence de droits ou lorsque l’accès à cer-
tains types de droits est limité, puisque telle est l’hypothèse, une vie socia-
le plus ou moins régulière ou ‘juste’ (il s’agit ici que d’une forme tout à fait
minimale de justice, correspondant à la prévisibilité des actes et de leurs
conséquences) ne sera possible que si l’on suppose à chacun une vertu le
conduisant à accomplir toutes ses obligations juridiques et morales alors
même que rien ni personne ne peut l’y contraindre.
Si on examine maintenant la proposition contraposée, on parvient
à une conclusion à première vue paradoxale : c’est précisément parce
qu’on ne peut pas supposer de A, de B ou de X qu’ils soient continuelle-
ment vertueux qu’on est dans la nécessité de leur reconnaître des droits
qu’ils puissent opposer aux conduites et aux intentions non vertueuses de
ceux avec qui la société les conduit à être en relation, de telle sorte qu’ils
soient obligés (sous peine de sanctions morales et/ou juridiques) de fournir
à leurs sociétaires les prestations auxquelles ceux-ci ont droit (fournir le
travail demandé, payer le salaire afférent). Contre la vieille idée de la so-
ciabilité naturelle (de l’homme comme zoon politikon), Bernard Mandevil-
le, l’auteur de La fable des abeilles (1714), a soutenu la thèse fameuse selon
laquelle la société est le produit non de nos vertus, mais de nos vices31. Je
dirais volontiers qu’il en va de même des droits : ils sont les contreparties
nécessaires de notre rectitude épisodique. Pourquoi donc faut-il que nous
ayons des droits ? Parce que rien ne nous autorise à nous supposer mu-
tuellement intègres, et parce qu’il faut bien que les remparts formés par
les droits (des remparts dont la géométrie peut et doit être constamment
redessinée) protègent chacun de nous des conséquences de l’absence de
vertu ou de bienveillance toujours possible d’autrui. Les droits – et je pen-
se évidemment d’abord aux droits juridiques, qui ne se restreignent pas

31 Mandeville, La fable des abeilles, trad. Carrive, Vrin, 1990. Voir le commentaire de Hayek, « Le docteur Bernard
Mandeville », in Nouveaux essais de philosophie, de science politique, d’économie et d’histoire des idées, Les Belles
Lettres, 2008, p. 361-385.

209
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

aux seules libertés fondamentales – sont des institutions sans lesquelles


ne saurait subsister une société complexe, dans laquelle la complémen-
tarité ne suffit pas à garantir la réciprocité. Une telle conclusion ne par-
ticipe aucunement d’on ne sait quelle doxa libérale, même s’il est patent
que le discours des « vrais droits » a souvent été tenu de ce côté-là pour
s’opposer précisément à leur « prolifération »32. Mais elle participe, c’est
vrai, de la conviction que le Droit (dont les droits sont une composante
essentielle) n’est pas une simple superstructure, mais forme la grammaire
de rapports sociaux susceptibles de stabilité.
Il ne me reste plus suffisamment de temps pour aborder le dernier
point : quels droits avons-nous ? La réponse que je donnerais à cette ques-
tion irait dans la direction suivante : nous avons ou devons avoir les droits,
et d’abord des droits juridiques, qui sont requis pour que la société dans
laquelle nous sommes appelés à vivre puisse avoir un fonctionnement réglé,
ce qui ne veut pas dire qu’elle soit sans tensions ou sans conflits, mais qu’il
existe des moyens normatifs de maintenir ces tensions à un niveau suppor-
table. Ceci suffit à montrer qu’il ne saurait y avoir une table définitive des
droits, et qu’il n’est pas surprenant que la liste des droits, y compris de ceux
qui sont reconnus comme fondamentaux, n’ait cessé d’évoluer. Plutôt que
de déplorer la prolifération des droits, il vaut mieux s’interroger sur la natu-
re des évolutions sociales qui l’ont suscitée ; on peut conjecturer, de manière
générale, que plus les interactions sont fortes et denses, plus il est besoin de
protections normatives, donc de droits. Les droits, tous les droits (et il n’y a
pas de raisons de clore arbitrairement la liste), constituent une part décisive
de ce capital normative permettant aux sociétés complexes de rester dans
un état métastable. Mais ce serait une illusion – une illusion à laquelle suc-
combent certains de ceux qui réfléchissent sur ces questions – de croire que
les droits (ceux des individus comme ceux des groupes sociaux) sont une
condition suffisante de la liberté sociale et politique, en particulier dans
une situation je fais allusion à ce qu’on nomme la mondialisation – dans
laquelle les protections traditionnelles contre les facteurs d’instabilité indi-
viduelle et sociale, protections qui étaient principalement d’ordre étatique,
se trouvent en bonne partie privées d’efficacité. Repenser les droits subjec-
tifs et leur effectivité dans un cadre supra- ou extraétatique, sans retomber
dans ce que l’on a un peu sévèrement nommé « le rêve du droit naturel », est
sans doute un enjeu décisif pour la philosophie actuelle.

32 Voir C. Wellman, The proliferation of rights, Westview Press, 1999.

210
13
A teoria do Direito de Habermas e o
campo do político: o direito como
médium entre sistema e mundo da vida?

Leno Francisco Danner

Considerações Iniciais

Defenderei, ao longo do texto, três argumentos: (a) o estudo da mo-


dernização ocidental, realizado por Habermas em Teoria do Agir Comu-
nicativo, que apontava para a gênese das instituições Estado burocrático-
-administrativo e economia capitalista de mercado, correlatamente, no
âmbito da cultura, à queda das fundamentações metafísico-teológicas de
mundo, consolidando uma sociedade civil caracterizada como horizonte
normativo, com caráter universalista; (b) as patologias da modernidade se-
riam causadas pelo solapamento desse horizonte normativo pelas lógicas
do poder administrativo e do dinheiro, o que levaria, respectivamente, à
burocratização e à monetarização dos mundos da vida; e (c) a resolução
dessas lógicas, se em um primeiro momento foi defendida como democra-
tização progressiva de todos os âmbitos da sociedade com base na defesa
de uma política radical, a partir de Direito e Democracia foi entendida
como institucionalização de processos de representação marcados pela
pretensão de objetividade e de justificação pública.
Assim, se em um primeiro momento Habermas afirmava a socieda-
de civil com seus movimentos sociais e suas iniciativas cidadãs enquanto
o campo e os atores políticos por excelência de uma democracia radical,
com Direito e Democracia o pensador em comento coloca todo o peso da
evolução social no Estado de direito, que passa a ser entendido como o
médium entre sistema e mundo da vida, entre facticidade e validade. Com
isso, a sociedade civil perde esse papel de um sujeito ampliado detentor de
justificação normativa capaz de lhe conferir poder legítimo para, se neces-
sário, pôr em xeque as instituições sociais, políticas e econômicas deficitá-
rias; a partir de tal obra, a evolução social, embora podendo ser sensibiliza-
da desde a sociedade civil, é uma questão de política parlamentar e interna

211
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

a ela e aos seus procedimentos, realizada por meio do Estado Democrático


de Direito, que deve levar em conta as lógicas autorreferenciais da econo-
mia capitalista (autovalorização do capital) e do Estado administrativo (po-
der), podendo no máximo sensibilizá-las desde fora. É destruído, assim, o
coração da evolução democrática, a saber, o poder dos movimentos sociais
e das iniciativas cidadãs de transformarem as próprias instituições desde
fora, a partir das ruas e de uma política às margens do sistema.

A modernidade entre institucionalização e espontaneidade

A teoria da modernidade de Habermas concebe o processo de mo-


dernização como sendo marcado pela dialética entre sistema e mundo da
vida, ou entre institucionalização e espontaneidade (Idem, 2012b, p. 216).
A modernização, por um lado, consiste na institucionalização progressi-
va de sistemas econômicos (capitalismo e mesmo socialismo) e políticos
(Estado administrativo) que canalizam, com suas lógicas próprias, pro-
cessos de legitimação específicos ao seu âmbito de atuação. Desse modo,
a lógica da economia capitalista – que é um sistema próprio da moderni-
dade ocidental – orienta relações de produção de acordo com a dinâmica
do dinheiro enquanto código de valor; o Estado administrativo – que é
outra instituição própria dessa mesma modernidade ocidental – regula
relações jurídico-burocráticas a partir do meio poder enquanto código
de valor. A modernização, por outro lado, possui um viés sociocultural
caracterizado pelo desencantamento do mundo, isto é, pelo ceticismo em
relação ao potencial de integração social das cosmovisões metafísico-
-religiosas de mundo, que leva, progressivamente, à consolidação de uma
moral pós-convencional ou universalista do direito positivo e da ciência
racional, bem como das noções de liberdade, de igualdade e de solidarie-
dade enquanto os valores básicos sejam dos processos de socialização,
sejam dos processos de subjetivação, eminentemente imbricados (Ibidem,
p. 305 e p. 316-330). Note-se que se no primeiro caso a tônica daquelas
instituições pode ser caracterizada por uma racionalidade instrumental
(manutenção e desenvolvimento do poder econômico; defesa e reprodu-
ção do poder administrativo), no segundo caso a lógica específica dos
mundos da vida é eminentemente normativa (interesses generalizáveis;
reconhecimento e integração sociocultural).
Assim, a modernidade, vista como um todo, caracteriza-se pelas re-
lações entre sistemas específicos de evolução social tanto consigo mesmos
quanto frente aos demais. A economia, por exemplo, possui uma dinâmica
interna própria, ligada à valorização do capital. Pode-se falar de regras eco-
nômicas, de uma dinâmica econômica. Mas, por outro lado, ela se volta ao

212
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

âmbito social, na medida em que a mão de obra é necessária para a reali-


zação dessa dinâmica econômica, o que significa que ela gera impactos e
influencia na reprodução do social. Da mesma forma, ela necessita de uma
determinada orientação dos poderes político e jurídico, que devem garantir
a defesa da ordem e da propriedade, a proteção das fronteiras etc. O mesmo
acontece com a lógica do Estado administrativo, seja em sua relação com
o âmbito econômico, seja em sua relação com o âmbito social. Essa dupla
tendência dos sistemas econômico e administrativo (ter uma lógica própria que,
entretanto, relaciona-se com outras lógicas) é que precisa ser percebida no que
tange à compreensão da modernização ocidental, tanto nos seus aspectos
emancipatórios quanto em seus aspectos patológicos.
Junto à dinâmica dos sistemas, há também, por assim dizer, a dinâ-
mica sociocultural dos indivíduos e grupos constituintes de uma socie-
dade moderna em suas lutas por integração e reconhecimento institucio-
nal. Esses grupos voltam-se às instituições no sentido de buscarem, na
medida em que elas são centrais para os processos de evolução social, a
realização de certos direitos e reivindicações normativas que tais grupos
consideram deficitários ou mal institucionalizados. As lutas por reco-
nhecimento, canalizadas desde a sociedade civil, por conseguinte, po-
dem ser entendidas como lutas não apenas contra essa institucionaliza-
ção deficitária dos direitos e dos processos institucionais de integração,
mas também com o objetivo de uma institucionalização mais consistente
e efetiva de direitos e de processos de reconhecimento cultural e de inte-
gração social. Entra em jogo, aqui, a dinâmica própria à sociedade civil
moderna, caracterizada enquanto esfera sociocultural ampliada: essa di-
nâmica, como eu disse acima, é eminentemente normativa, marcada pela
afirmação de interesses generalizáveis enquanto fundamento de suas lu-
tas e de suas reivindicações frente às instituições.
A modernização, enquanto dialética entre sistema e mundo da vida,
entre institucionalização e espontaneidade, confronta, em um lado, a di-
nâmica interna aos sistemas econômico e administrativo, com suas lógi-
cas específicas de reprodução, e, por outro, as pretensões generalizáveis e
os argumentos normativos lançados por uma sociedade civil pluralizada e
na forma de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs, eminentemente
crítica do poder. Três lógicas de funcionamento e de legitimação entrecru-
zam-se aqui, gerando, como disse acima, possibilidades de emancipação
e tensões: dinheiro, poder e solidariedade social. No que tange às poten-
cialidades emancipatórias geradas pela modernidade, tem-se a política e
o direito, cernes da ligação entre as instituições e a sociedade civil, como
elementos fundamentais de legitimação e de realização das lutas sociais; no
que tange às patologias do processo de modernização, tem-se um cresci-

213
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mento exagerado das instituições do mercado capitalista e do Estado admi-


nistrativo, que levam, respectivamente, à monetarização e à burocratização
da sociedade civil entendida enquanto esfera sociocultural ampliada.

As patologias da modernização como um excesso de institucionalização

Primeiramente, uma digressão sobre o surgimento das patologias


sociais eminentemente modernas. Karl Marx havia sugerido, acredita Ha-
bermas, a ideia de que a dinâmica das relações de produção, calcada na
valorização do capital e na exploração do trabalho, seria o lugar teórico-
-prático privilegiado tanto para se perceber a dinâmica da instituciona-
lização jurídico-política das formas de poder eminentemente modernas
(dinheiro, poder administrativo, direito positivo) quanto para a localização
da gênese das patologias sociais próprias ao fenômeno da modernização,
que seriam, portanto, em primeira ordem, patologias de matiz econômico
(HABERMAS, 2012b, p. 617-621). Max Weber, ao contrário, se por um lado
concebia a modernização como institucionalização da economia capita-
lista (na forma de mercado) e do Estado administrativo (na forma de mo-
nopolização do uso da força considerada legítima e da organização geren-
cial e centralizada da nação), correlatamente à consolidação do processo
de desencantamento sociocultural das imagens metafísico-religiosas do
mundo, que levaria à afirmação do direito positivo enquanto o cerne da so-
ciabilidade propriamente moderna, por outro percebia exatamente o cres-
cimento da burocratização como grande problema a ser enfrentado pelas
sociedades do século XX, herdeiras desse processo de modernização. A
burocratização, isto é, a proliferação das regras técnicas de ação, destituí-
das de qualquer sentido normativo ou metafísico que não a própria reprodu-
ção do sistema enquanto sistema, levaria à perda de liberdade (na medida em
que submeteria os indivíduos às regras internas ao sistema) e à perda de
sentido (na medida em que diluiria qualquer sentido último, restando ape-
nas a reprodução técnica do sistema). Por conseguinte, a espontaneidade
cultural, nessa perspectiva, estaria cada vez mais refém da lógica interna
ao poder e ao dinheiro, cujo fito básico seria a sobrevivência e a reprodu-
ção crescentemente generalizada dos próprios sistemas do mercado e do
Estado burocrático-administrativo (Ibidem, p. 291, p. 383-387 e p. 426-443).
As patologias psicossociais modernas surgiriam no mundo da vida
por causa do crescimento das lógicas sistêmicas próprias do mercado ca-
pitalista e do Estado burocrático. Estes, conforme já dito, possuem lógicas
de desenvolvimento e de reprodução específicas que, entretanto, adentram
nas lógicas um do outro e, principalmente, na lógica própria do mundo da
vida, da sociedade civil. Para Habermas, o mundo da vida obedece, basica-

214
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

mente, a uma lógica normativa de reprodução social: ou seja, em primeiro


lugar, as necessidades de evolução social, vistas do prisma do mundo da
vida, são necessidades normativas, interesses generalizáveis (comer antes
do lucro, direitos para além do status quo, liberdade expressiva antes do di-
nheiro, participação política e não massificação, por exemplo). Na medida
em que ele é submetido, sem qualquer freio e controle, ao poder do dinhei-
ro e à dinâmica da burocratização, a normatividade que lhe é inerente é
emperrada, ou mesmo destruída, originando-se problemas sociais varia-
dos – fome, violência, anomia etc. Patologias psicossociais modernas, por
conseguinte, são causadas por um excesso de institucionalização da eco-
nomia e do Estado, por uma institucionalização desregrada da economia
e do Estado, cujas lógicas aumentam a um ponto tal, que seu crescimento
depende da colonização do mundo da vida e, ao mesmo tempo, conduz a
esta, ao solapamento da normatividade que lhe é inerente (HABERMAS,
2012a, p. 590; HABERMAS, 2012b, p. 278, p. 355 e p. 587-588).
Surgem, assim, como fenômenos patológicos específicos das socie-
dades modernas, a monetarização e a burocratização dos mundos da vida,
isto é, a colonização econômica e burocrática de esferas de reprodução
social eminentemente normativas que ficam submetidas aos processos bu-
rocráticos e massificadores próprios das instituições Estado e economia,
perdendo sua espontaneidade e tendo solapada sua normatividade. As ins-
tituições economia capitalista e Estado administrativo crescem a tal pon-
to, que suas lógicas passam a se reproduzir a partir do consumo das fontes
normativas do mundo da vida, que são reificadas pelas regras de reprodu-
ção do capital e pela dinâmica burocrático-partidária de gerenciamento
do poder estatal. No mundo da vida, tal processo de colonização é perce-
bido sob a forma de fome, violência, desemprego, anomia, massificação,
alienação, crescente burocratização e privatismo civil. O desenvolvimento
do sistema, que passa a ser fim em si mesmo, acontece de um modo tal que
submete os interesses generalizáveis e os argumentos normativos a me-
ros meios, passando para primeiro plano a própria autovalorização e so-
brevivência, ou mesmo o crescimento sem limites, dos próprios sistemas,
em suas lógicas da autovalorização do capital e da razão de Estado. Ora,
qualquer possibilidade emancipatória, própria às sociedades modernas,
precisa frear essa institucionalização desregrada da economia capitalista e
do Estado burocrático a partir da afirmação da normatividade adveniente
da sociedade civil e propagada por movimentos sociais e por iniciativas
cidadãs, que, por meio de suas lutas por reconhecimento social, político,
cultural e econômico, ofereceriam contrapontos aos partidos políticos e
às elites tecnocráticas, da mesma forma que ao poder do dinheiro na vida
social e na dinâmica política. É da sociedade civil e de seu ideal de demo-

215
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

cracia radical que a crescente força das instituições políticas e econômicas


poderia ser domada e canalizada para a realização de interesses generali-
záveis, normativamente fundados.

A política radical e a superação das patologias da modernidade

Com efeito, logo após a publicação de Teoria do Agir Comunicati-


vo, Habermas, em uma série de textos políticos, aponta para a noção de
reformismo radical como forma de superação das patologias da moder-
nidade. Com esse conceito, o referido pensador defendia a necessidade
de um processo democrático de problematização abrangente de todas as
esferas da sociedade, passando da política para a economia e chegando
à cultura (HABERMAS, 1970, p. 49; HABERMAS, 2002, p. 372-373; HA-
BERMAS, 2003a, p. 83). Note-se, aqui, que a política passaria para pri-
meiro plano no que tange à correção das patologias próprias ao fenôme-
no da modernização –, mas não para uma política meramente partidária,
levada a efeito pelas administrações centrais, e sim para uma política de
base, radical, dinamizada pelos movimentos sociais e pelas iniciativas ci-
dadãs. Uma política ampliada, de base, por assim dizer, realizada a partir
da sociedade civil, complementaria a política institucionalizada, levada
a efeito por administrações e partidos políticos. Essa, por si só, seria in-
suficiente para garantir a superação seja da monetarização, seja da bu-
rocratização, na medida em que é exatamente a racionalidade própria ao
mundo da vida, caracterizada pela normatividade e pela espontaneidade,
que garantiria o refreamento dessas tendências. Ora, tal correção das pa-
tologias do fenômeno da modernização seria uma questão eminentemen-
te política, de um viés mais político, de uma radicalização dos processos
democráticos em todos os cantos da sociedade.
Por causa disso, a política democrática não poderia ficar centraliza-
da no âmbito do Estado e nem canalizada apenas por vias institucionais,
da mesma forma como não deveria ser monopolizada pelos partidos pro-
fissionais – em outras palavras, a política democrática não está restrita
ao sistema (ao Estado burocrático-administrativo e aos partidos políticos
profissionais). A política dependeria do grau de informalidade e de espon-
taneidade dos movimentos sociais e das iniciativas cidadãs. Esses, em não
estando comprometidos com a manutenção do sistema pura e simples-
mente, possuiriam poder de crítica que levaria a um correto ajuizamen-
to das instituições. Os movimentos sociais e as iniciativas cidadãs, por
fazerem parte do mundo da vida, conseguem captar melhor os impactos
dos sistemas econômico e administrativo na vida cotidiana, exatamente
porque são os objetos desses sistemas, em grande medida (HABERMAS,

216
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

1970, p. 49). Eles, portanto, sentem os impactos das crises econômicas, do


desemprego, da exploração do trabalho, da burocratização, da alienação
política, da corrupção etc. Ora, nessa situação as vozes das ruas canaliza-
riam, por assim dizer, os interesses generalizáveis e os argumentos nor-
mativos próprios de um mundo da vida sob constante instrumentalização
da economia e dos partidos políticos, sedentos, cada qual em sua área (e
geralmente de maneira integrada, pela hegemonia econômica e política.
Isso levou Habermas, em uma entrevista de meados da década de 1980,
a afirmar que a solução para os problemas da modernização implicaria
correlatamente no refreamento do poder dos partidos políticos e em uma
abolição do mercado de trabalho capitalista.

O problema parece ser, na verdade, o de como seria possível


expandir amplamente as capacidades de auto-organização
dos âmbitos autônomos do público, de forma que os proces-
sos de formação da vontade, objetivos de um mundo vital
orientado pelo valor de uso, limitem os imperativos sistê-
micos do poder econômico e do aparato do Estado […]. Não
consigo imaginar como se pode fazer isso sem uma abolição
do mercado capitalista de trabalho e sem uma implantação
democrática e radical dos partidos políticos em seus âmbitos
do público (HABERMAS, 1997, p. 221-222).

Note-se, nessa passagem, que a tônica da emancipação implicaria na


afirmação do valor de uso próprio de um mundo da vida organizado normati-
vamente e cuja reprodução é normativa, e não sistêmica: o mundo da vida,
em sua constituição normativa, submete a dinâmica sistêmica à realização,
em primeiro lugar, de valores de uso como condição; em segundo lugar,
da realização de valores de troca ou, em outros termos, da própria viabi-
lização interna do sistema enquanto sistema. As instituições, por outras
palavras, estão a serviço da vida cotidiana, e não o contrário – as patologias
da modernização demonstram que estaria acontecendo uma submissão do
mundo da vida às lógicas da economia capitalista e dos partidos políticos
profissionais, o que solaparia, no primeiro caso, as condições materiais de
vida próprias das classes trabalhadoras e, no segundo caso, a espontanei-
dade política e a capacidade de crítica representadas pelos movimentos so-
ciais e pelas iniciativas cidadãs, que são formas de legitimação e de práxis
política alternativas aos partidos políticos.
Por isso, a ideia de uma abolição do mercado capitalista de traba-
lho significaria, nesse contexto, um refreamento de sua dinâmica orien-
tada pela autovalorização do capital, pelos valores de troca, que deveria
ser substituída ou complementada pelos valores de uso, pelos argumentos
normativos e pelos interesses generalizáveis oriundos da sociedade civil.
Abolição do mercado de trabalho capitalista significaria, então, que a evo-

217
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lução do sistema econômico não seria uma sua reprodução meramente in-
terna, calcada na exploração do trabalho pelo capital, na autovalorização
do dinheiro frente à reprodução normativa do mundo da vida, e sim, ao
contrário, uma reafirmação do mundo da vida e de sua constituição norma-
tiva em relação à própria dinâmica da autovalorização do capital e à explo-
ração do trabalho, refreando-as. Correlatamente, a ideia de uma implanta-
ção democrática e radical dos partidos políticos em suas bases significaria,
ainda como quer Habermas, um abandono de uma característica nefasta
dos partidos políticos democráticos, a saber, sua transformação dos cida-
dãos em massa de manobra política, sem qualquer outro substitutivo que
não a própria implantação de processos de democracia radical. Por isso,
na contemporaneidade, a emancipação ganha um acento eminentemente
político, como transformação política das estruturas de decisão, que deve
ser estendida para todos os âmbitos da sociedade, bem como levada a ter-
mo por processos democráticos maximamente inclusivos, consolidando a
primazia normativa do mundo da vida em relação ao desenvolvimento das
lógicas sistêmicas da economia capitalista e do Estado burocrático (HA-
BERMAS, 1986, p. 328-331; MCCARTHY, 2001, p. 298-299; WELLMER,
2001, p. 69-72; HONNETH, 2007). Em outras palavras, a modernidade en-
contraria sua redenção, sua correção e sua prossecução como democracia radical,
como uma política de base dinamizada por uma sociedade civil caracterizada
por movimentos sociais e iniciativas cidadãs críticos das instituições, que
instaurariam espaços de liberdade e de ação alternativos e espontâneos
em relação à dinâmica interna – burocrática, elitista e segmentária – das
próprias instituições, particularmente dos partidos políticos profissionais.

De volta ao institucionalismo?

Comparado com tais discursos, Direito e Democracia apresenta uma


moderação impressionante dos posicionamentos políticos de Habermas em
relação aos fenômenos da modernização ocidental em suas potencialidades
e em suas patologias. Defenderei, no que se segue, que, com tal obra, Ha-
bermas reformula a problemática de uma democracia radical, explicitada
acima, passando a dar ênfase ao procedimento institucional de implantação
de políticas e de normas a partir da colocação do Estado de direito como o
médium entre sistema e mundo da vida. Nesse sentido, é o procedimenta-
lismo próprio ao Estado Democrático de Direito – e não mais uma política
radical encabeçada por movimentos sociais e por iniciativas cidadãs desde a
sociedade civil –, que passa a constituir-se no caminho e no núcleo a partir
do qual a evolução social transcorre e ganha legitimidade. Quer dizer, Ha-
bermas recoloca a institucionalização como o fundamento da moderniza-

218
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ção, deixando em segundo plano e, na verdade, limitando o alcance e o cam-


po de atuação de uma política de base, que encontra nas ruas e nos becos da
vida cotidiana, sob a forma de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs
altamente críticos das instituições, o seu lugar e os seus atores políticos por
excelência, com suas reivindicações normativas e interesses generalizáveis
que refreiam um desenvolvimento ilimitado, irracional e meramente técnico
dos sistemas de poder político e econômico.
Primeiramente, temos a afirmação, logo no início de Direito e De-
mocracia, de que não se pode ter nem manter Estado de Direito sem de-
mocracia radical (HABERMAS, 2003a, p. 13). Ora, mas o que Habermas
quer dizer com isso? Relacionando tal posicionamento com textos publi-
cados nas décadas de 1960 e de 1970, mormente Teoria e Práxis (HABER-
MAS, 2003a, p. 11-13; HABERMAS, 1987, p. 116), o pensador em comento
constata seja o declínio do socialismo real, seja a crise do capitalismo
ocidental, significada particularmente pela crise do capitalismo de bem-
-estar (crise esta que, desde meados da década de 1970, daria a tônica da
estruturação das sociedades desenvolvidas e mais além, definindo, por
exemplo, o sentido das lutas entre neoliberalismo e social-democracia,
bem como os discursos em torno da prossecução ou da falência do Estado
de bem-estar social). Nesse contexto, a falência do socialismo real teria
explicitado a falha do partido perdedor, isto é, o socialismo e sua dita-
dura do partido único, que teria sacrificado a democracia em nome da
revolução. Porém, isso também evidencia, no caso do partido vencedor,
isto é, o modelo capitalista ocidental, um triunfo de Pirro, já que, neste
lado do globo, a prossecução da modernização econômica, ainda que ao
preço da integridade do mundo da vida, dá a tônica dos discursos seja das
posições neoliberais, seja mesmo das posições social-democratas: as pri-
meiras, com sua crítica ao Estado de bem-estar social, transferem todas as
prerrogativas em termos de evolução social ao mercado capitalista; as se-
gundas reforçam o sentido de uma integração social a cargo do Estado de
bem-estar social, tecnocrática e despolitizadora, conduzida basicamente
por partidos políticos profissionais.
Em ambos os casos, as patologias da modernidade são geradas e ar-
refecidas pelos próprios remédios que tais posições acreditam ser os mais
eficazes para a sua resolução (mercado e Estado, monetarização e buro-
cratização). Com isso, ambas as posições, ainda que com motivos diferen-
tes, levam ao solapamento da integridade normativa do mundo da vida e
ao emperramento de processos progressivos de democratização do poder
econômico e político. Ambas as posições – o neoliberalismo mais do que
a social-democracia – impossibilitam que se assuma a herança indivisa da
modernidade ocidental, a saber, a democratização social da produção ma-

219
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

terial e a democratização política das lutas de poder. Desse modo, a políti-


ca estaria em franco declínio, seja no que diz respeito ao papel das institui-
ções públicas, grandemente dominadas pela lógica do poder e do dinheiro,
seja no que diz respeito à participação cidadã, cada vez mais determinada
pelo privatismo civil e substituída pelas elites burocráticas dos partidos
políticos profissionais. O ideal de democracia radical, acima mencionado,
permitiria uma reconsideração da modernização e a sensibilização insti-
tucional frente aos seus impactos no mundo da vida, bem como, correlata-
mente, a afirmação do sentido normativo deste, que deveria redirecionar
o modo de organização das instituições mercado capitalista e Estado de
bem-estar social (HABERMAS, 2003a, p. 13).
Em segundo lugar, então, podemos perguntar: como é pensada a re-
lação entre as instituições e os movimentos sociais e as iniciativas cida-
dãs? Como é pensada, portanto, a ideia de democracia radical enquanto
momento de problematização e de redirecionamento da modernização?
Para se entender o posicionamento de Habermas em relação à ideia de
democracia radical apresentada em Direito e Democracia, é importante
perceber seu ponto de partida, a saber, a complexidade das sociedades con-
temporâneas, complexidade essa que não permite que se as conceba como
sendo centradas no Estado e nem como compostas de uma multiplicidade
de indivíduos pura e simplesmente (HABERMAS, 2003a, p. 17). No primei-
ro caso, temos uma crítica à social-democracia e ao seu núcleo filosófico,
a saber, o republicanismo; no segundo caso, temos uma crítica ao neolibe-
ralismo e ao seu núcleo filosófico, o liberalismo, em particular o liberta-
rianismo (Hayek, Friedman e Nozick). Destituída de um núcleo duro, res-
ponsável de maneira estrita pela evolução social, mas sendo constituída,
por outro lado, por múltiplos sistemas parciais (por exemplo, economia,
culturas as mais diversas, grupos políticos os mais diversos, bem como, na-
turalmente, o próprio Estado), uma sociedade democrática complexa con-
temporânea é atravessada e dinamizada por vários focos de poder e lutas
correlatas do âmbito sociocultural às próprias esferas políticas e econômi-
cas. Não existe, portanto, um centro e nem um macrossujeito da evolução
social, mas existem múltiplos focos de poder social. Como mediá-los de
modo a garantir a viabilidade da democracia?
Habermas, aqui chegado, opta pelo direito enquanto o médium entre
facticidade e validade, isto é, como o médium entre a institucionalização de
práticas e de políticas e as lutas e reivindicações entre diferentes atores
sociais, entre diferentes sistemas sociais (HABERMAS, 2003a, p. 21-25).
Isso faria jus à complexidade de nossas sociedades, que possuem múltiplos
sujeitos de poder que precisam ser orientados e legitimados a partir de
um guarda-chuva normativo amplo, como é o caso do sistema dos direitos

220
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

seja enquanto instituição, seja enquanto normatividade. Sociedades mo-


dernas, nesse sentido, estariam interligadas tanto por meio de sistemas ou
instituições quanto pela normatividade – e o elo seria representado pelo
Estado de Direito. Ora, o direito está ligado às três fontes de integração
social que Habermas considera como propriamente modernas, a saber: di-
nheiro, poder administrativo e solidariedade (HABERMAS, 2003a, p. 61).
Isso certamente lhe confere um caráter ambíguo, acredita o referido pen-
sador, servindo em muitos casos como legitimação de práticas sociais, que,
na verdade, são ilegítimas (pense-se, nesse caso, nas críticas à sociedade
burguesa próprias de posições de esquerda) (HABERMAS, 2003a p. 62);
porém, isso também demonstra exatamente essa função de charneira, de
mediação que o direito possui entre mundo da vida e sistema, na medida
em que, se por um lado ele é a linguagem das instituições, dos sistemas
econômico e político, por outro ele também carrega um fundamento nor-
mativo que o conecta às expectativas e aos interesses generalizáveis loca-
lizados no mundo da vida, na sociedade civil enquanto esfera político-cul-
tural ampliada. (HABERMAS, 2003b, p. 82). Em última instância, o direito
seria a linguagem das instituições e também das práticas normativas e das
lutas por reconhecimento emanadas da sociedade civil pelos seus atores
políticos diversificados. Como linguagem das instituições, ele possui um
aspecto técnico; como linguagem do mundo da vida, ele possui um sentido
radicalmente normativo, marcado pela íntima imbricação e dependência
entre soberania popular e direitos humanos.
Com isso, começa a delinear-se a própria concepção habermasiana
sobre a práxis política democrática, desenvolvida em Direito e Democracia.
Ela pode ser percebida no conceito de política procedimentalista (centrali-
dade dos processos institucionais) enquanto suprassunção dos paradigmas
jurídico-políticos do liberalismo (privatismo civil, concepção negativa e
restrita da vida política – neoliberalismo) e do republicanismo (centralida-
de dos direitos políticos e da vida política; concepção positiva e abrangen-
te da vida política – social-democracia). (HABERMAS, 2003a, p. 326-338)
Contra o paradigma jurídico-político liberal, que enfatiza a política en-
quanto luta por interesses privados, e contra o paradigma jurídico-político
republicano, que identifica a política como contexto vital ético garantidor
do sentido e da integração da sociedade, o paradigma jurídico-político pro-
cedimentalista, que fica no meio do caminho entre os dois, concebe a polí-
tica como institucionalização de formas de comunicação e de formação da
vontade de modo a garantir um ideal de justificação pública e de partici-
pação o mais amplo possível sem necessariamente depender da afirmação
de atores políticos específicos, que, como macrossujeitos, seriam portado-
res de interesses generalizáveis – a institucionalização supriria esse papel.

221
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

(HABERMAS, 2003b, p. 21 e p. 325). Diz Habermas acerca da definição do


conceito de política procedimentalista: “A razão prática é implantada nas
formas de comunicação e nos processos institucionalizados, não necessitando,
pois, incorporar-se exclusiva ou predominantemente nas cabeças de atores
coletivos ou singulares”. (HABERMAS, 2003b, p. 72, grifo nosso)
Desse modo, a política não ficaria centrada na dinâmica interna do
Estado e, aqui, dinamizada pelos partidos políticos, e nem monopoliza-
da pela dinâmica interna do mercado, de modo a ser minimizada em seu
alcance enquanto práxis política, da mesma forma como não haveria um
macrossujeito social portador de interesses generalizáveis, o que lhe con-
feriria o status de coração da transformação. Ela seria constituída pelo mo-
vimento correlato de institucionalização e de espontaneidade, na medida
em que, por um lado, as instituições jurídico-políticas seriam o lugar no
qual as lutas por poder e as reivindicações normativas são realizadas em
vista de sua legitimação pública; e, por outro lado, já que as esferas públi-
cas informais da sociedade civil são constituídas por movimentos sociais e
iniciativas cidadãs os mais diversos, têm poder de pressão frente à dinâmi-
ca institucional, refreando, com base na solidariedade, os poderes econô-
micos e políticos, isto é, um processo de racionalização social desregulado
que ataca as estruturas normativas do mundo da vida por meio da afirma-
ção do dinheiro e do poder administrativo. Para a política deliberativa, o
mundo da vida, constituído normativamente, complementa a instituciona-
lização – esse é o núcleo do paradigma jurídico-político procedimentalis-
ta: a tomada institucionalizada de decisões ligada à discussão informal dos
temas e dos problemas pelo amplo público de cidadãos e grupos sociais
nos trilhos do Estado Democrático de Direito. Segundo Habermas: “[…] a
política deliberativa alimenta-se do jogo que envolve a formação democrá-
tica da vontade e a formação informal da opinião. O seu desenvolvimento
através dos trilhos da deliberação regulada por processos não é autossufi-
ciente”. (HABERMAS, 2003b, p. 34 e p. 186)

O solapamento da democracia radical em Direito e


Democracia – à guisa de conclusão

Com tal posição, podem-se elencar algumas características impor-


tantes da concepção jurídico-política habermasiana, que, no meu enten-
der, apontam para o solapamento de um ideal de democracia radical, que,
fundado nas esferas públicas informais dinamizadas pelos movimentos
sociais e pelas iniciativas cidadãs, altamente críticos do poder, possa não
apenas refrear, mas também transformar desde fora, isto é, desde a socie-
dade civil, deficits institucionais seja no mercado, seja no Estado, ambos

222
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

intrinsecamente interligados, ao contrário da ideia de sociedade comple-


xa, que é ponto de partida de Habermas. Destaco como características im-
portantes as seguintes: (a) o sistema político não é o centro da sociedade;
(b) nem o direito nem uma política radical podem interferir nas lógicas
específicas do poder estatal e do poder econômico, mas tão somente sen-
sibilizá-los desde fora; e (c) os movimentos sociais e as iniciativas cidadãs
somente podem impor-se por meio de discursos institucionais, e não des-
de seu núcleo na sociedade civil.
Em relação ao ponto (a), Habermas afirma que “[…] a teoria do discur-
so considera o sistema político como um sistema de ação ao lado de outros,
não o centro, nem o ápice, muito menos o modelo estrutural da sociedade”
(HABERMAS, 2003b, p. 25). O Estado, por outras palavras, é necessário
enquanto poder de organização e de execução do sistema dos direitos, me-
diando a reprodução dos sistemas e da evolução social, sem emperrar a
lógica desses sistemas e muito menos definir todo o sentido da evolução
social, que segue dependendo de cada sistema específico em sua relação
com a sociedade civil. Em relação ao ponto (b), o Estado de Direito media-
tiza, conforme dito, a reprodução sistêmica e a evolução social, ligando
o sistema administrativo ao poder comunicativo emanado da sociedade
civil e orientando a transmutação mútua de influências, garantindo a pa-
ridade no acesso e no exercício do poder político por meio do controle do
poder econômico (HABERMAS, 2003a, p. 171-190; HABERMAS, 2003b,
p. 21-23). Correlatamente, uma prática política democrática radical, reali-
zada por movimentos sociais e iniciativas cidadãs desde a sociedade civil,
não pode transformar desde dentro as lógicas dos sistemas econômico e
administrativo. Ora, mas o que isso significa? Conforme vimos nos dois
primeiros itens deste texto, a economia e o Estado possuem lógicas de fun-
cionamento próprias, autorreferenciais. Nesse sentido, uma ênfase exage-
rada na normatividade social pode emperrá-las – elas que, antes de tudo,
são técnicas, e não normativas. Por isso, a democracia radical pode apenas
sensibilizá-las desde fora, mas nunca internamente e certamente não por
meios políticos. Diz Habermas:

A política continua sendo o destinatário de todos os proble-


mas de integração não-resolvidos; porém, a orientação políti-
ca muitas vezes tem de seguir o caminho indireto e respeitar,
como vimos, o modo característico de operações de sistemas
de funções e outros domínios altamente organizados. Isso faz
com que os movimentos democráticos oriundos da sociedade
civil renunciem às aspirações de uma sociedade auto-organi-
zada em sua totalidade, aspirações que estavam na base das
ideias marxistas da revolução social (2003b, p. 105).

223
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Devido a esse questionável caráter técnico e autorreferencial afir-


mado por Habermas, não é possível uma transformação desde fora nos
sistemas sociais, em particular na economia capitalista e no Estado buro-
crático-administrativo: suas lógicas internas são, em grande medida, arre-
dias à normatividade do social, que não pode interferir de maneira muito
substantiva nelas – a autovalorização do capital e a tecnocracia impõem
limites à normatividade do mundo da vida, ainda que tenham a tendência
de colonizá-lo! E isso nos leva ao ponto (c): os movimentos sociais e as ini-
ciativas cidadãs até podem realizar uma atividade política desde a socie-
dade civil, direcionada à transformação das instituições, mas essa política
às margens, por assim dizer, dinamizada a partir daquelas esferas públicas
informais, precisa passar pela dinâmica da institucionalização, precisa se-
guir os trilhos da legitimação política parlamentar e partidária. Uma polí-
tica radical que eventualmente possa pôr abaixo instituições deficitárias é
invalidade na posição jurídico-política habermasiana. Ele diz:

Ora, a soberania do povo, diluída comunicativamente, não


pode impor-se apenas através do poder dos discursos públicos
informais – mesmo que eles tenham se originado de esferas
públicas autônomas. Para gerar um poder político, sua influ-
ência tem de abranger também as deliberações de instituições
democráticas de formação da opinião e da vontade, assumindo
uma forma autorizada (HABERMAS, 2003b, p. 105).

Ora, tal afirmação dá a entender que as lutas políticas acontecem


apenas do lado de fora dos parlamentos e das escadarias do Estado De-
mocrático de Direito. Internamente a tais instituições, o procedimento
representativo e o ideal de justificação objetiva, neutros politicamente,
decidiriam – e deveriam decidir – com base em interesses generalizáveis.
Mas, isso é uma cegueira prática, já que ignora que as lutas políticas dão
o sentido da autoconstituição da democracia, que não é neutra em relação
a essas lutas – estas são o coração da própria evolução democrática e não
podem ser encobertas por um obscuro ideal de objetividade e de justifica-
ção pública, neutros teoricamente. É por isso que Axel Honneth atribuiu
à posição de Habermas acerca da modernização um déficit sociológico por
ignorar as lutas políticas em torno ao político e frente aos sistemas da
economia e do Estado como definidoras do tipo de evolução social a ser ins-
taurado (HONNETH, 1991; WHITE, 1995, p. 133-136; FORBATH, 1998, p.
272-276; SCHEUERMAN, 2002, p. 63-64). Por outras palavras, não é possí-
vel conceber a dinâmica democrática de relação entre sistema e mundo da
vida sem as lutas que ocorrem entre os grupos de poder na sociedade e que
determinam o sentido das mediações e mesmo o tipo de institucionaliza-
ção a ser realizado. Sem lutas políticas, não há como definir o sentido da

224
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

evolução; a evolução é resultado de lutas políticas entre grupos de poder os


mais diversos, inclusive grupos econômicos que buscam hegemonia políti-
ca, institucional. O próprio Estado Democrático de Direito não está imune
a essas lutas – qualquer manual básico de história do direito comprova
isso, o que não é menos verdade para a evolução de uma democracia, que
certamente não eliminou lutas por poder, lutas entre grupos e até mesmo
lutas de classe, por assim dizer. O Estado Democrático de Direito não ape-
nas não é independente em relação a tais lutas, senão que depende delas para
sua configuração histórico-social. São elas que dinamizam a organização
da estrutura jurídico-política e sua institucionalização seja em uma so-
ciedade democrática moderna que ainda está em vias de desenvolvimento
e de consolidação (como é o caso do Brasil), seja mesmo em sociedades
democráticas mais consolidadas (como é o caso, acredito eu, de muitas
sociedades europeias e da sociedade norte-americana). Nesse sentido, a
política radical dinamizada pela sociedade civil por meio de movimentos
sociais e de iniciativas cidadãs os mais diversos, radicalmente críticos do
poder e em contraposição, no mais das vezes, em relação aos partidos po-
líticos, precisa ter precedência em termos normativos e em termos políticos. A
dificuldade em se encontrar classes sociais detentoras de interesses gene-
ralizáveis não justifica a opção habermasiana por uma cidadania abstrata
e sem sujeito centrada nos processos democráticos de justificação pública
que ocorrem no interior das instituições e que bebem de motivos norma-
tivos próprios da sociedade civil apenas em momentos específicos, e não
como aspecto determinante da própria práxis política.
Habermas simplesmente castrou a política democrática de seu ver-
dadeiro coração, isto é, das vozes das ruas e dos becos da vida cotidiana,
da ação de movimentos sociais e de iniciativas cidadãs que põem em xeque
a própria viabilidade do poder político-econômico existente, propondo
mesmo sua destituição, substituindo-o por formas mais solidárias, coo-
perativas e inclusivas de produção da vida material e de tomada política
de decisão. Castrou-a por um triplo movimento: (a) retirou a centralidade
da política democrática ampliada no que tange à condução da evolução
social, colocando tal centralidade no Estado Democrático de Direito e em
seu procedimentalismo; (b) aceitou, direta ou indiretamente, o argumen-
to da economia liberal clássica (retomada pelo neoliberalismo), defensora
de uma autorreferencialidade da esfera econômica, entendendo também o
próprio código do poder administrativo enquanto detentor de uma lógica
própria, burocrática, técnica, não normativa; e (c) recusou, pela afirmação
da ideia de uma sociedade complexa, tanto a capacidade de a sociedade
influir desde fora nas instituições quanto a existência de grupos sociais, de
movimentos sociais e de iniciativas cidadãs, que, portadores de interesses

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

generalizáveis, têm condições de derrubar instituições deficitárias a partir


de uma práxis política não institucional, espontânea, realizada a partir da
sociedade civil. Contra isso, defendo, pelas razões já apresentadas, que não
é o direito que se constitui como médium entre sistema e mundo da vida,
mas a política, levada a efeito por movimentos sociais e por iniciativas ci-
dadãs, que, desde a sociedade civil, instauram uma esfera pública informal
que se contrapõe ao poder dos grandes grupos econômicos e dos partidos
políticos profissionais elitistas. Em princípio, conforme defendo, as vozes
das ruas têm todo o poder de transformar o status quo vigente – se o perigo de
anarquia é grande, como acredita Habermas (2003a, p. 11), o perigo da tecno-
cracia e da massificação, correlatamente à influência do dinheiro na políti-
ca, são maiores ainda. Em princípio, em uma democracia as massas podem,
politicamente, pôr as próprias instituições políticas e econômicas em xeque.
A atual crise socioeconômica, na verdade, escancara as deficiências
do argumento habermasiano no que tange à possibilidade de sensibili-
zação desde fora dos sistemas econômico e político, realizada por movi-
mentos sociais e por iniciativas cidadãs – escancara, inclusive, a posição
habermasiana de uma autorreferencialidade, de uma lógica própria a cada
sistema (economia e Estado), que não pode ser totalmente influenciada e
guiada pela normatividade do mundo da vida. A política parlamentar está
longe de transformações estruturais que efetivamente possam orientar
normativamente e com base em interesses generalizáveis a reprodução
econômica e a orientação do poder político frente à economia. A defesa
cada vez mais incisiva por parte de diferentes governos, de partidos po-
líticos à direita e à esquerda e de instituições monetárias nacionais e in-
ternacionais, de políticas de austeridade, em flagrante descaso para com as
necessidades vitais das populações e surdas em relação às vozes das ruas e
dos becos da vida cotidiana mostra o quanto uma transformação interna
às instituições econômicas e políticas é utópica em um sentido negativo,
na medida em que dinheiro e poder político possuem profundas liga-
ções, fechando-se à normatividade do mundo da vida e blindando as pró-
prias instituições de uma democratização abrangente. Por conseguinte,
fecham-se internamente às transformações democráticas e à realização
de valores de uso que sejam detonados, desde fora, pelos movimentos
sociais e pelas iniciativas cidadãs, que, em cada contexto, assumem in-
teresses generalizáveis como o mote de sua práxis política. Com isso, a
dialética entre institucionalização e espontaneidade, com a consequente
primazia da institucionalização defendida por Habermas, dá lugar a uma
política de base, às margens do sistema, que adentra nele e o transforma
a partir da normatividade do social.

226
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

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228
14
Os conceitos de vida, de morte, de suicídio,
de pena de morte e de garantia da vida
na Filosofia do Direito de Hegel

Paulo Roberto Konzen

Introdução

O artigo é uma pesquisa, exposição e análise crítico-filológica, his-


tórica e hermenêutica1 da obra de Hegel, fundamentando-nos em textos
clássicos e interpretativos hegelianos, buscando, assim, apreender devi-
damente os conceitos de “vida” (Leben) e de “morte” (Tod), expostos e
analisados na sua Filosofia do Direito em relação, ainda, com os seus con-
ceitos de “matar” (töten – umbringen), de “se matar” (sich töten – sich um-
bringen), de “suicídio” (Selbsttötung – Selbstmord), de “pena de morte”
(Todesstrafe) e de “garantia da vida” (Sicherung des Leben). Com isso, em
suma, se procura citar e compreender, de forma apropriada, o pensamen-
to hegeliano, examinando a sua obra diante das reais circunstâncias em
que foi exposta, evitando as muitas exposições e interpretações equivo-
cadas, pois há uma disputa, a princípio, entre o que Hegel disse2 e o que
dizem que ele disse e/ou do que deveria ou poderia ter dito. Em resumo, o
objetivo principal do estudo é expor e analisar, de forma criteriosa, o que
Hegel realmente afirmou e, por isso, o presente trabalho possuirá propo-
sitadamente muitas citações, notas e aspas.

1 Cf. VAZ, 1995, p. 225: “[…] sobre o fundamento assegurado da leitura filológica [trabalho crítico-filológico] e da
leitura histórica, podemos tentar nos situar no nível da leitura hermenêutica [de interpretação crítica] para buscar,
aí, as razões que comprovem, para nós, a atualidade do texto hegeliano”. Afinal, “a primeira condição para nos
resolvermos a receber ou refutar as doutrinas que Hegel propõe é (sou por demais obrigado a recordar coisas que
pareciam dever subentender-se) ler os seus livros: acabando com o espetáculo, entre cômico e triste, de acusar e
injuriar um filósofo que não se conhece.” (CROCE, 1993, p. 188).
2 Todas as citações de textos de Hegel, usando as traduções em português publicadas, foram sempre comparadas
com o texto original alemão da Hegel Werke (2000), o qual, infelizmente, por questão de espaço, não citaremos. Nas
citações dos textos hegelianos sempre consta a referência, primeiro, do número do volume (Band) e, depois, da página
(Seite) de Hegel Werke, mantendo os grifos em itálico do autor. O parágrafo (§) seguido da letra A indica Anmerkung
(anotação), e o da letra Z designa Zusatz (adendo) ao caput. O texto aqui traduzido ou com tradução alterada, seja de
Hegel ou de outros autores, consta com a devida especificação de [TP] = Tradução Pessoal. Muitas vezes, faremos
ainda acréscimo de termos em alemão nas citações com o objetivo de destacá-los e/ou mostrar alterações na
tradução publicada (termos citados sempre mantendo o itálico ou não da versão original e entre colchetes [_]).

229
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A importância dos conceitos de vida e de morte e a Filosofia

Inicialmente, falar de vida e de morte é algo importante e essencial,


porque, entre outros, elas são aspectos constitutivos de nossa natureza,
pois sabemos que se há vida, então a morte é inevitável, e, assim, elas es-
tão relacionadas ou vinculadas com tudo de nossa existência. Ora, Hegel
registra, por exemplo, que a morte é uma certeza que nos move, pois “a
vida como tal traz em si o gérmen da morte” (das Leben als solches den
Keim des Todes in sich trägt3). Ao nascer uma vida, nasce também, jun-
to, o “inato gérmen da morte” (angeborene Keim des Todes), porque todo
ser vivo, enquanto “organismo” (Organismus), tem uma “existência fini-
ta” (endliche Existenz), em que vigora sempre a “necessidade de morte”
(Notwendigkeit des Todes)4.
Porém, a possibilidade da perda da vida, passível a cada instante,
não deve impedir alguém de viver. Em suma, dado que a morte tarda, mas
não falha, devemos, antes, nos ocupar com a vida. Ora, sabemos, desde as
afirmações dos filósofos da Antiguidade, em particular as de Epicuro, que
a morte, de certa forma, nada é nem para os vivos nem para os mortos, por-
que para aqueles que ‘vivem’, ela ‘não existe’, e para aqueles para quem ela
‘existe’, já ‘não vivem’ mais propriamente. Sobre isso, nas suas Lições sobre
a História da Filosofia ([TP] [19/324 e 330]), Hegel registra:

Epicuro exige (para ser livre da superstição [Aberglauben])


em particular também a ciência física, para fazer o ser hu-
mano ser libertado de todas as opiniões que causam a suma
não-calma [vorzüglichste Unruhe]: […] em particular a morte
[Tode]. […] Um segundo ponto em Epicuro é, ainda, a consi-
deração da morte [Betrachtung des Todes], o negativo para a
existência, para o sentimento próprio do ser humano; é pre-
ciso ter uma representação correta da morte [richtige Vors-
tellung vom Tode], porque, senão, esta [a morte] perturba a
calma [Ruhe]. Ele [Epicuro] diz assim: “Então, acostume-se
ao pensamento de que”, o negativo, “a morte nada é para nós
[der Tod uns nichts angeht]. Porque todo bem e todo mal es-
tão na sensação”; se também é ataraxia, indoloridade, etc.,
assim, então, pertence à sensação; “mas a morte é uma priva-
ção”, um não-ser, um cessar (στέϱησις) de sensação. “Portan-
to, o pensamento correto de que a morte nada é para nós [der
Tod uns nichts angeht], faz com que o caráter mortal da vida
[das Sterbliche des Lebens] seja plena fruição [Genußvollen]
(ἀπολαυστόν)”, – na medida em que a representação do nega-
tivo, o que é a morte, não interfere no sentimento de vitalida-
de [Lebendigkeit], “que esse pensamento” (na representação)

3 Cf. HEGEL, 1995a (ECF I – § 81 Z), p. 163 [8/173]. Idem, 1995a (ECF I – § 92 Z), p. 189 [TP] [8/198]: “O vivente
morre, e de fato simplesmente porque, como tal, carrega dentro de si mesmo o gérmen da morte.” („Das Lebendige
stirbt, und zwar einfach um deswillen, weil es als solches den Keim des Todes in sich selbst trägt.“).
4 Cf. HEGEL, 1997 (ECF II – § 375 e § 375 Z) [TP] [9/535-536].

230
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

“não acrescenta um tempo infinito, porém diminui o anseio


pela imortalidade [Unsterblichkeit]. Por que deveria temer
você, ó morte? A morte nada é para nós [Der Tod geht uns
nichts an]. Porque se nós estamos [vivos], então a morte não
está aí (οὐ πάϱεστιν); e se a morte está aí, então nós não esta-
mos [vivos]. Logo, a morte nada é para nós [Also geht der Tod
uns nichts an].” Isso é correto na consideração do imediato;
isso é um pensamento espirituoso, o temor é removido. O
negativo, o nada não pode ser trazido para ser mantido na
vida [Leben], que é o positivo; não é para se atormentar com
isso. “Mas o futuro em geral não é nem nosso nem não nosso;
de modo que não esperamos que seja o que será, nem nos de-
sesperamos como se não fosse”. Ele [o futuro] nada é para nós
[Es geht uns nichts an], nem que é nem que não é; com isso,
não precisamos ter nenhuma não-calma [keine Unruhe]. Este
é o pensamento correto sobre o futuro.5

Todavia, cabe ressaltar que a morte jaz como possível, diante de to-
dos, em cada instante. Ora, na realidade pode-se retardar a morte, mas ela
não pode ser adiada para sempre. Assim sendo, todo ser vivo, a partir do
momento em que começa a viver, está, também, começando a morrer.
Outrossim, o problema da morte6 e a busca de resposta para as diver-
sas questões da vida são elementos de relevância quando se analisa a exis-
tência humana, porque são temas, também, sobre os quais as diversas reli-
giões buscam ponderar. Porém, a ansiedade pela perpetuação da existência
e a visível necessidade de alguns mecanismos de proteção diante da notável
fragilidade da vida não levaram o ser humano apenas a uma busca religiosa,
mas também promoveram o desenvolvimento das várias ciências ao longo
do tempo e da história, em que a Filosofia tem muito a contribuir. Ora, so-
bre isso, por exemplo, Vaz (1997, p. 52) afirma: “o terreno onde se demonstra
a necessidade da filosofia no seu alcance prático ou na sua significação para
a vida ou ainda, segundo a expressão do próprio Hegel num texto da época,

5 Cf. Hegel Werke; as frases de Epicuro são de: Diogenes Laertios X, § 142-143, 125 e Diogenes Laertios X, § 124-125.
Sobre isso, convém citar EPICURO, 2002, p. 1-4: “Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que
todo o bem e todo o mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara
de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente
convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não
porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba
quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado. Então, o mais terrível de todos os males,
a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente;
ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os
vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto,
a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males
da vida. O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; viver não é um fardo e não viver não é
um mal. […] Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio, […] que se comporta de modo
absolutamente indiferente perante a morte […]?”.
6 HEGEL, 2002 (FE – Prefácio), p. 44 [TP] [3/36]: “A morte [Tod] […] é o mais terrível; e suster o que está morto [Tote]
requer a força máxima. […] Porém, a vida do espírito [das Leben des Geistes] não é a vida [Leben] que se aterroriza ante
a morte [Tode] e se conserva intacta da devastação, mas ela é a vida que suporta a morte e nela se conserva”.

231
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

enquanto por meio dela se ‘aprende a viver’”. Em resumo, é necessário refle-


tir sobre vida e morte. Inclusive, Rosenfield (2008, p. 1) afirma:

Aparentemente, seria uma tarefa fácil falar da vida e da mor-


te enquanto fatos biológicos. Teríamos o nosso linguajar co-
tidiano, já inserido em determinadas gramáticas ou padrões
culturais e religiosos, que confeririam determinados sentidos
a esse processo constitutivo da finitude humana. Teríamos,
igualmente, as ciências biológicas que possuem como objeto
próprio de conhecimento o fenômeno da vida, aliás hoje muito
em voga, dado o estupendo desenvolvimento do conhecimento
científico nesta área específica. O problema, porém, ganha um
contorno diferente quando procuramos falar filosoficamente
da vida, ou seja, quando nos perguntamos sobre qual o sentido
de uma abordagem filosófica da vida e da morte.

No caso, ao falar a partir da filosofia de Hegel, o objetivo é “falar filo-


soficamente da vida”, isto é, apresentar “uma abordagem filosófica da vida
e da morte”. Ora, isso não significa não falar de aspectos biológicos, físicos,
psicológicos, antropológicos, sociais etc., porém significa não se limitar a
eles, pois, por exemplo, em Hegel o conceito de vida envolve tanto a ques-
tão da vida lógica, da vida natural e da vida espiritual, apresentadas na sua
Ciência da Lógica, Filosofia da Natureza e Filosofia do Espírito (Subjetivo,
Objetivo e Absoluto)7. Em suma, ao falar filosoficamente de vida em Hegel
não devemos nos ater a aspectos de “vida natural”, de “vida naturalmente
considerada”8, porém ter presente sempre a totalidade de elementos consti-
tutivos da Ideia de vida. Em suma, a dimensão da vida espiritual ou da vida
do espírito suprassume9 (nega, conserva e eleva) as demais. Diante disso,
inclusive, limitamos o escopo da presente pesquisa, como veremos a seguir.

7 Cf. SILVA, 2010, p. 87: “Mas sabemos, como leitores de Hegel, que nem a ideia imediata e nem a vida orgânica
são o ápice e o acabamento do sistema. É verdade que a vida biológica é o grau mais alto a que chega a natureza,
contudo, a vida lógica é o grau mais ínfimo e imediato da ideia; o que ambas têm em comum é que serão superadas
[ou suprassumidas] pela vida do espírito. O processo da vida, diz Hegel, consiste em superar a imediatez à qual ela
ainda está presa (Cf. ECF I, § 216 Z). Diante desta afirmação, como poderíamos defender a centralidade da vida no
sistema?” Idem, cf. SILVA, 2010, p. 88: “Para concluir, gostaríamos de dizer que a vida progride e atualiza aquilo
que ela é, tanto a vida lógica como a vida biológica. Embora a ideia imediata seja a vida, ela deve ser suspensa [ou
suprassumida] pela ideia do conhecer e retornar transformada na ideia absoluta como retorno à vida. O campo de
toda a natureza orgânica segue este modelo e deve, do mesmo modo, ser suspenso [ou suprassumido] pelo espírito.
Ora, o progredir no sistema hegeliano é um movimento como o desdobrar-se da ideia que atua relacionando-se com
todos os elementos, alienando-se de si mesma sem perder-se de si. Se tomarmos a ideia de sistema apresentada na
Enciclopédia, segue-se a Ciência da Lógica, a Filosofia da Natureza e a Filosofia do Espírito.”
8 Cf. ROSENFIELD, 2008, p. 6: “[…] Hegel tenha utilizado o conceito de vida em um leque de significações que ora
nos indica a realidade biológica, ora a realidade em geral sob sua forma de existência orgânica ou sistemática, onde um
membro afeta e age sobre outro, sendo ao mesmo tempo afetado por esse processo e seu objeto, ora como categoria
lógica propriamente dita, em que se vislumbra e se apresenta um novo conceito de existência, no caso o da Ideia em
sua forma imediata.” p. 8: “Hegel nos adverte claramente da distinção entre a ideia de vida, ideia na acepção lógica, e a
vida em suas outras acepções científicas, dentre as quais a biológica, estudada na Filosofia da natureza. A ideia de vida
deve, pois, ser distinguida da vida naturalmente considerada.”
9 Adotamos a tradução de aufheben e Aufhebung por “suprassumir” e “suprassunção” a fim de destacar todo o
sentido pleno da polissemia contida na língua alemã e explorada especulativamente por Hegel para significar, ao
mesmo tempo, suprimir [sumir], conservar [assumir] e elevar [supra+assumir].

232
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Os conceitos de vida e de morte na Obra de Hegel (Hegel Werke)

Em primeiro lugar, convém destacar que a escolha de pesquisar e


analisar aqui os conceitos de vida e de morte apenas na Filosofia do Direi-
to, e não em toda a Obra de Hegel (Hegel Werke) é porque seria impossível
tentar apresentar todos os seus principais elementos, já que, entre outros,
eles são temas recorrentes e essenciais em vários dos textos hegelianos.
Sobre isso, por exemplo, Rosenfield (2008, p. 1-2) assevera o seguinte:

Sabemos que Hegel sempre se defrontou com esse problema


[da vida e da morte] em vários de seus escritos e obras funda-
mentais. O seu System der Sittlichkeit […] tem no problema da
vida – e da morte – o seu eixo reitor, seja para qualificar a ideia
de sistema enquanto estruturadora do pensamento em seu afã
de abarcar os distintos estratos da vida humana, seja mais es-
pecificamente para qualificar a íntima imbricação entre as es-
feras biológica e ética, mais particularmente política e penal.
[…] Poucos anos depois, na Fenomenologia do Espírito, Hegel
fez dos conceitos de vida e de morte conceitos centrais do pro-
cesso da “Consciência de si”, na célebre dialética do Senhor e
do [Servo]. […] Ou seja, a vida [e a morte] em seus diferentes
estratos e significações dá forma ao processo de constituição
do espírito, sinalizando a conexão íntima entre as esferas do
biológico e do cultural, de tal maneira que o espiritual está
ancorado nas formas mesmas do vital.

Além disso, convém citar Ferrer (2005, p. 147), que afirma:

A vida [em Hegel] é uma categoria central, com uma função


sistemática maior. Ela afeta a totalidade da esfera lógica, es-
tabelece o corte decisivo na natureza e verifica-se no espírito
como realidade inseparável do conceito. A vida é, então, auto-
manifestação e assume a mesma função unificadora das partes
num mesmo todo, que tinha nos textos de juventude de Hegel.
A vida distingue-se em vida lógica, natural e espiritual, mas,
na verdade, a distinção aqui incide sobre uma mesma realida-
de concreta e, por conseguinte, a vida representa também a
convergência de diferentes planos conceituais numa mesma
realidade e representa, da melhor forma, o denominado uni-
versal concreto hegeliano.

Assim sendo, os conceitos de vida e de morte são centrais em todo o


sistema hegeliano10, seja na Ciência da Lógica, na Filosofia da Natureza

10 Cf. FERRER, 2005, p. 131: “O conhecido dito de Kierkegaard de que Hegel, com o seu sistema, construiu um palácio
sumptuoso para ir habitar um casebre, subscreve uma concepção de sistema que hoje não mais aceitaríamos, nem em
geral, nem a propósito de Hegel. Subjaz a esta crítica uma denúncia da insuficiência do pensamento sistemático de Hegel
em relação ao conceito de vida e, mais especificamente, em primeiro lugar, da vida com aquilo que a envolve, suporta
e favorece; em segundo lugar, da vida como biografia pessoal e, por fim, também da vida na sua relação específica
com o pensar. Em particular a este último respeito, subjaz ao referido dito a concepção de que Hegel teria expulsado
a vida do sistema da filosofia como puro pensar e reduzido o pensamento filosófico a um conjunto de abstrações que

233
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

e na Filosofia do Espírito (Subjetivo, Objetivo e Absoluto), o que envolve


muitos e diversos aspectos, impossíveis de reproduzir e de analisar, aqui,
na sua totalidade. Por isso, na presente pesquisa, nos limitaremos a expor
e a examinar o conteúdo de sua Filosofia do Espírito Objetivo, tal como
apresentada na sua Filosofia do Direito, o que, apesar de igualmente ex-
tenso e complexo, tentaremos fazer o máximo possível.

Os conceitos hegelianos de vida e de morte na Filosofia do Direito

Inicialmente, é necessário registrar que o uso dos termos “vida” (Le-


ben) e de “morte” (Tod) é recorrente na Filosofia do Direito e, assim, mui-
tas de suas ocorrências não citaremos ou veremos na íntegra, pois seria
demasiadamente longo nosso trabalho. Ora, são vários e diversos aspec-
tos11, que, como consta no Prefácio, são uma “figura da vida” (Gestalt des
Lebens), mas que, infelizmente, não analisaremos todos no presente traba-
lho, porque enfatizaremos os elementos abaixo. Em suma, o objetivo aqui é
ver tão somente as suas ocorrências em relação direta com os conceitos de
“matar” (töten – umbringen), de “se matar” (sich töten – sich umbringen),
de “suicídio” (Selbsttötung – Selbstmord), de “pena de morte” (Todesstrafe)
e de “garantia da vida” (Sicherung des Leben).
Ora, as ocorrências do termo “morte” (Tod), na Filosofia do Direi-
to, destacam sua intrínseca relação ou vinculação com a “vida” (Leben).
O sentido usado é sobretudo de ordem natural, mas congrega, também, o
aspecto lógico e espiritual, por exemplo, ao afirmar o seguinte no § 70:

A totalidade englobante da atividade exterior, a vida [das Leben]


não é algo de exterior frente à personalidade [Persönlichkeit],

uma mulher ou um homem não poderia habitar. A concepção, numa primeira análise, a aprofundar no que se segue, é
manifestamente falsa, posto que a vida pertence já ao pensar lógico abstrato, como categoria da Ciência da Lógica, que a
orgânica é uma parte fundamental da filosofia da natureza e que, também no plano do espírito, a vida define não só um
conceito central da antropologia como reaparece em todos os momentos do espírito.”
11 Assim, por exemplo, Hegel fala, entre outros, no Prefácio, de “esferas da vida pública” (Kreise des öffentlichen
Lebens) e, no § 157, de “vida pública” (öffentlichen Lebens), que está em relação, no § 187 A, com a “vida particular”
(partikularen Lebens), aspectos da vida do espírito; além disso, seguindo uma ordem numérica de ocorrência, no §
166 Hegel fala de “vida substancial efetiva” (wirkliches substantielles Leben), no § 170 A, de “vida social civilizada”
(geselligen gesitteten Lebens), no § 175, de “vida ética” (sittlichen Lebens), no § 203 A, de “vida errante do selvagem”
(schweifende Leben des Wilden), no § 206 A, de “vida política” (politischen Leben), no § 209 A, de “vida concreta
do Estado” (konkreten Staatsleben), no § 245, de “modo de vida regular (ordinária)” (ordentlichen Lebensweise), no
§ 247, de “vida familiar” (Familienlebens) e de “círculos limitados da vida civil-burguesa” (begrenzten Kreisen des
bürgerlichen Lebens), no § 250, de “vida familiar e natural” (Familien- und Naturlebens), no § 253 A, de “modo de
vida mais universal” (allgemeinere Lebensweise), no § 258 A, de “uma vida universal” (ein allgemeines Leben), no §
271, de “organização do Estado e o processo de sua vida orgânica” (Organisation des Staates und der Prozeß seines
organischen Lebens), no § 272 A, de “unidade viva” (lebendige Einheit), no § 273 A, de “configuração verdadeira da
vida ética” (wahrhaften Gestaltung des sittlichen Lebens) e de “vida do Estado” (Staatsleben), no § 279 A, novamente
de “vida do Estado” (Staatsleben), no § 290, de “vida civil-burguesa” (bürgerliche Leben), no § 303 A, de “a vida civil-
burguesa e a vida política” (das bürgerliche und das politische Leben), no § 305, de “vida familiar” (Familienleben),
no § 320, de “vida do Estado subsistente” (bestehenden Staatslebens), no § 345, de “vida individual e da vida do
povo” (individuellen und des Volkslebens) etc. Além disso, fala-se, no § 5 A, de “vida religiosa universal” (allgemeinen
religiösen Lebens) e, no § 134 Z, de “vida eterna” (ewige Leben), aspectos mais de sua Filosofia do Espírito Absoluto.

234
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

enquanto ela é essa personalidade e é de maneira imediata.


A alheação [Entäußerung]12 ou o sacrifício [Aufopferung] da
mesma [vida] é muito mais o contrário, enquanto o ser-aí dessa
personalidade. Por isso, eu não tenho de modo geral nenhum
direito a essa alheação, e apenas uma ideia ética, enquanto nela
essa personalidade imediatamente singular está em si desvane-
cida e enquanto ela é o poder efetivo sobre a personalidade,
tem o direito disso, de modo que, assim como a vida [Leben] é
enquanto tal imediata, a morte [Tod] também é a negatividade
imediata [unmittelbare Negativität] da mesma [vida][;] por isso, é
preciso que ela [a morte] seja recebida de fora como uma coisa
natural [Natursache], ou então de uma mão estranha [fremder
Hand] a serviço da Ideia. (HEGEL, 2010, p. 105 [TP] [7/151]).

Assim, afirma-se que a “morte” (Tod) é a “negatividade imediata” (un-


mittelbare Negativität) da “vida” (Leben), afinal, havendo a morte, então não
há a respectiva vida; além disso, afirma-se que a morte é uma “coisa natural”
(Natursache), mas o seu sentido é mais amplo quando se fala do ponto de
vista da Ideia. Assim, por exemplo, no § 172 A, fala-se de “ruptura do ca-
samento pela morte natural [natürlichen Tod]” e, no § 178, de “dissolução
natural da família pela morte dos pais [Tod der Eltern]”; mas, no § 151 Z
fala-se de “morte espiritual ou física” (geistiger oder physischer Tod) e, no
§ 357, fala-se da chamada “dilaceração infinita da vida ética” (unendlichen
Zerreißung des sittlichen Lebens) e, também, da “morte da vida ética” (Tod
des sittlichen Lebens). Trata-se, então, da questão enfatizada do uso he-
geliano do conceito de “vida” (Leben) e de “morte” (Tod) não apenas sob
o aspecto natural (biológico, físico etc.), mas também lógico e espiritual,
sendo que isso, inclusive, afeta a questão do ser humano poder “se ma-
tar” (sich töten – sich umbringen) ou de cometer “suicídio” (Selbsttötung
– Selbstmord)13, que veremos a seguir.

A relação entre vida, morte e suicídio na Filosofia do Direito

Em suma, a citada relação é apresentada em Hegel, por exemplo, no


§ 47, quando afirma:

Enquanto pessoa [Person], sou eu mesmo imediatamente [indi-


víduo] singular, – o que quer dizer, inicialmente, em sua deter-
minação seguinte: eu sou [ou estou] vivo nesse corpo orgânico

12 O termo Entäusserung, normalmente traduzido por “exteriorização”, no âmbito jurídico ou do Direito Abstrato de
Hegel, é sinônimo de Veräusserung e, por isso, foi traduzido por “alheação”, de “alhear”, na medida em que significa
tornar alheio, passar para outrem o domínio ou o direito de desfazer-se, vender, alienar juridicamente. Assim, evitou-
se o uso do termo “alienação”, que foi usado exclusivamente para traduzir o termo clássico Entfremdung.
13 Etimologia de vida (alemão: Leben; inglês: life; grego: ζωή; latim: vita-, francês: vie; italiano: vita; espanhol: vida); de
morte (alemão: Tod; inglês: death; grego: θάνατος; latim: mors-, francês: mort; italiano: morte; espanhol: muerte) e, ainda,
de suicídio (alemão: Selbstmord, Selbsttötung [termos usados por Hegel], Freitod, Suizid [não usados por Hegel]; inglês:
suicide, self-murder; grego: αυτοκτονία; latim: suicidium, francês: suicide; italiano: suicídio; espanhol: suicidio).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

[Ich bin lebendig in diesem organischen Körper], que é, quanto


ao conteúdo, meu ser-aí externo, indiviso, universal, a possi-
bilidade real de todo ser-aí mais determinado. Mas, enquanto
pessoa, eu tenho ao mesmo tempo minha vida e meu corpo [mein
Leben und Körper], como outras Coisas, apenas na medida em
que é minha vontade [mein Wille] (HEGEL, 2010, p. 87 [7/110]).

Depois disso, no § 47 A, Hegel (2010, p. 87 [TP] [7/110-111]) propria-


mente afirma:

O fato de que eu sou [ou estou] vivo [lebendig] e tenho um corpo


orgânico não segundo o aspecto pelo qual existo como o con-
ceito sendo para si, mas como o conceito imediato, repousa
sobre o conceito da vida e o do espírito enquanto alma [Be-
griffe des Lebens und dem des Geistes als Seele] […]. Eu tenho
esses membros, a vida [das Leben], apenas na medida em que eu
quero [ich will]; o animal não pode se mutilar ou se matar [ou
se suicidar], mas o ser humano pode [das Tier kann sich nicht
selbst verstümmeln oder umbringen, aber der Mensch].

No § 47 Z ([TP] [7/111]), ainda consta: “Os animais têm certamente a


posse de si […]; mas eles não têm nenhum direito à sua vida, porque não
a querem” (Die Tiere haben sich zwar im Besitz: […] aber sie haben kein
Recht auf ihr Leben, weil sie es nicht wollen)14. Ora, antes disso, já no § 5
Z ([TP] [7/51]), consta também o seguinte:

Nesse elemento do querer [Willens], reside que eu possa me des-


ligar de tudo, renunciar todos os fins, abstrair de tudo. Somente
o ser humano pode desistir de tudo, também de sua vida [auch
sein Leben]: ele pode cometer suicídio [er kann einen Selbst-
mord begehen]; o animal [das Tier] não pode fazê-lo [o suicídio];
ele [animal] permanece sempre apenas negativo, numa determi-
nação estranha a ele, na qual ele apenas se habitua.

Assim, todas as passagens ressaltam que a vida natural ou orgânica


é um aspecto importante, mas a vida espiritual, com devida consciência e
propriedade, envolvendo querer ou vontade15 é o que propriamente dá va-

14 Cf. Ad § 47 – Hotho, III, 214: “Eu possuo o meu corpo orgânico de maneira natural, mas aquilo que eu tenho como
propriedade tem de ser meu só e primeiramente por minha vontade. Meu corpo, portanto, tem de tornar-se minha
propriedade por minha vontade. A minha vida, a totalidade da minha atividade orgânica só é também minha por minha
vontade. O animal não pode mutilar-se, não pode tomar-se a vida.”
15 No § 48 (2010, p. 87 [TP] [7/111]), Hegel afirma: “O corpo, na medida em que ele é ser-aí imediato, não é adequado
ao espírito; para ser um órgão volitivo e um meio animado desse, ele precisa primeiro ser tomado em posse pelo
espírito”. Depois, no § 48 A (2010, p. 87-88 [TP] [7/111]), ainda registra: “Apenas porque eu sou vivente [lebendig bin]
enquanto ser livre no corpo, não é permitido abusar desse ser-aí vivo [lebendige Dasein], fazendo dele um animal de
carga [Lasttiere]. Na medida em que eu vivo [Ich lebe], minha alma (o conceito e, mais ainda, o livre) e meu corpo não
estão separados, esse é o ser-aí da liberdade, e nele eu sinto. Por isso, apenas um entendimento sofístico, desprovido
de ideias, pode fazer a diferenciação segundo a qual a Coisa em si, a alma, não é tocada ou atacada quando o corpo é
maltratado [mißhandelt] e a existência da pessoa é submetida à violência de um outro. Eu posso retirar-me de minha
existência em mim e torná-la exterior – [eu posso] manter a sensação particular fora de mim e ser livre nas cadeias.

236
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

lor a uma vida humana, sendo que o extremo que serve como elemento de
distinção em relação aos animais é a capacidade do ser humano de “se mu-
tilar” (sich verstümmeln) ou até mesmo de “se matar [ou se suicidar]” (sich
umbringen), de que “ele pode cometer suicídio” (er kann einen Selbstmord
begehen)16. A diferença entre o ser humano e os animais, segundo Hegel,
se dá pelo grau de consciência, de ciência, de querer, de vontade envolvida
na vida. Isto é, o fato do “animal” ou do “bicho” (Tier - Vieh) “ter” (haben)
“vida” (Leben), para o autor, não lhe dá o respectivo direito à sua vida, pois
não a quer racionalmente, mas a tem apenas de forma instintiva. A vida
humana, a fim de não ser uma vida meramente animal, requer o querer
consciente da vida e, assim, envolve o outro extremo, isto é, de não “matar”
(töten – umbringen) a própria vida, de não “se matar” (sich töten – sich um-
bringen), de não cometer “suicídio” (Selbsttötung – Selbstmord).
Todavia, é importante ressaltar que Hegel está falando da “possibi-
lidade” (Möglichkeit) ou de alguém “poder” (können) se matar ou cometer
suicídio, mas não propriamente defendendo ou estimulando a prática, ante
pelo contrário. No § 70 Z ([TP] [7/152]), inclusive, consta o seguinte:

[…] mas, pode [ou é permitido] o ser humano tirar de si mesmo


a vida? [aber darf der Mensch sich selbst das Leben nehmen?]
Pode-se considerar o se matar [das sich Töten], em primeiro
lugar, como uma coragem [Tapferkeit], porém como uma má
[schlechte] coragem, a dos alfaiates e das criadas. Pode-se, por
sua vez, considerá-lo como uma infelicidade [ou desgraça] [Un-
glück], na medida em que leva à dilaceração do interior [Zerris-
senheit des Inneren]. Mas, a pergunta principal é: eu tenho um
direito a isso? [habe ich ein Recht dazu?] A resposta será que
eu, enquanto este indivíduo, não sou senhor da minha vida [ich
als dies Individuum nicht Herr über mein Leben bin], pois a
totalidade que compreende a atividade, a vida [das Leben], não
é algo exterior em face da personalidade, a qual é ela mesma
[a vida] esta personalidade imediata. Portanto, falar-se de um
direito que a pessoa tem sobre a sua vida [von einem Recht, das
die Person über ihr Leben habe] é, assim, uma contradição [Wi-
derspruch], pois isso significaria que a pessoa tem um direito
acima de si [ein Recht über sich]. Mas, ela não tem esse direito,
pois ela não está acima de si mesma [steht nicht über sich] e não
pode se julgar [kann sich nicht richten]17. Quando Hércules se
queimou [sich verbrannte], quando Brutus jogou-se sobre sua
espada [sich in sein Schwert stürzte], este é um comportamento
de um herói contra a sua personalidade [gegen seine Persönli-
chkeit]; mas quando se trata do simples direito de se matar [vom

Mas, isso é minha vontade [mein Wille]; para o outro, eu estou [ou sou] em meu corpo; sou livre para os outros, eu
sou livre apenas no ser-aí; é uma proposição idêntica (ver minha Ciência da Lógica, t. I, p. 49 s.). […]”
16 Cf. ROSENFIELD, 1998, p. 113: “O homem é um ser que pode pôr em questão a vida do espírito, isto é, ele mesmo”.
17 Cf. [zu § 71] ([TP] [7/153]): “É sempre uma representação superior – fim [Zweck] – que se opõe à vida [dem Leben
entgegensetzt] – vinculação à moralidade – no suicídio [Selbstmord] – ideia superior, na qual me faço de juiz [Richter].”

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

einfachen Recht, sich zu töten]18, assim pode [ou é permitido] [so


darf] isso ser negado [abgesprochen] aos heróis19.

Em suma, Hegel defende o “valor da vida” (Werte des Lebens) e é contra


o suicídio, contra alguém se matar ou se suicidar, isto é, tirar sua vida, mesmo
sendo questão delicada e multiforme20. Inclusive, Hegel questiona a questão
ou a prática do “matar” (töten – umbringen), do “deixar se matar” (sich töten
zu lassen) e da “pena de morte” (Todesstrafe), como veremos abaixo.
Sobre “matar” (töten – umbringen), convém citar o [zu § 71] ([TP]
[7/153]), em que se afirma:

Eu sou o senhor da minha vida [Ich bin Herr über mein Leben]
– assim como todos os outros [jeder andere ebensogut] – Hobbes:
cada um pode matar o outro [jeder kann den andern umbrin-
gen], – por isso, todos os seres humanos são iguais [gleich] – Eu
tenho sozinho o verdadeiro julgamento – cada um se faz um jul-
gamento sobre se eu mereço viver [ob ich verdiene zu leben] […].

18 Nos registros de H. G. Hotho das Lições sobre Filosofia do Direito de 1822/23 ([TP] p. 260) consta: “O ser humano
[…] não tem o direito de negar ele mesmo esse direito; ele não tem o direito de se matar [Der Mensch… hat kein Recht
dies Recht selbst zu negieren; er hat kein Recht sich zu tödten]. Nos registros de K. G. V. Griesheim das Lições sobre
Filosofia do Direito de 1824/25 ([TP] p. 242) consta: […] questão sobre o direito do ser humano em vista do suicídio
[Frage auf das Recht des Menschen in Ansehung des Selbstmordes] […] isso é uma ilicitude [Unrecht], o ser humano não
tem nenhum direito de se matar [der Mensch hat kein Recht sich selbst umzubringen]. Nas Lições sobre a Filosofia da
Religião ([TP] [16/123], consta: “Eu posso de fato me matar [Ich kann mich zwar umbringen]; mas isso é a liberdade de
abstrair do meu ser-aí [Dasein]. Eu sou: no eu já está contido o sou [Ich bin: im Ich ist schon das Bin enthalten]”.
19 Cf. [zu § 70] ([TP] [7/151]): “[…] Quando o ser humano desce nessa profundeza – traz sua vida [sein Leben]
em sua amplitude para a comparação, o confronto e o questionamento, – com isso intervém a exigência de que
ele também desça à profundeza de seu espírito – antes que julgue que esta vida não tem valor [dies Leben hat
keinen Wert]. – Se não existe nada nele pelo qual poderia se dar um valor [Wert], – é que ele está num degrau
inferior da sua consciência ética […]”.
20 Cf. § 408 Z da Enciclopédia – HEGEL, 2005, p. 161 [TP] [10/175-176]: “Pode ser considerada como a loucura
mais indeterminada [unbestimmtesten Narrheit] o tédio-de-viver [ou o desgosto-da-vida] [Lebensüberdruß],
quando não é ocasionado pela perda de pessoas amadas, dignas de respeito, e [pela perda] de relações éticas.
O desgosto da vida indeterminado e infundado [unbestimmte, grundlose Ekel am Leben] não é uma indiferença
quanto à vida [Gleichgültigkeit gegen dasselbe] – pois, neste caso, se suporta a vida [erträgt man das Leben] – mas,
antes, a incapacidade de suportar a vida [Unfähigkeit, es zu ertragen], um oscilar para lá e para cá, entre a atração
e a rejeição a respeito de tudo que pertence à efetividade; um estar-cativo [Gebanntsein] na representação fixa
da repulsa da vida [Widerlichkeit des Lebens] e, ao mesmo tempo, um aspirar por ir além [Hinausstreben] dessa
representação. Dessa relutância [Widerwillen] – surgida sem qualquer fundamento racional [vernünftigen Grund] –
contra a efetividade, como também de outras maneiras de loucura [Narrheit], os ingleses são sobremodo afetados;
talvez porque nessa nação o ser-obstinado [Verstocktsein] na particularidade subjetiva é tão predominante.
Aquele tédio-de-viver [Lebensüberdruß] aparece nos ingleses sobretudo como melancolia [Melancholie], como
esse cismar persistente – que não chega à vitalidade [Lebendigkeit] do pensar e do agir – do espírito sobre sua
representação infeliz. Não raramente, desse estado-de-alma desenvolve-se um impulso irresistível ao suicídio
[ein unbezwingbarer Trieb zum Selbstmord]; às vezes, esse impulso [Trieb] apenas se pode anular arrancando o
totalmente desesperado [Verzweiflungsvolle] violentamente de si mesmo. Conta-se, por exemplo, que um inglês,
quando tinha em mente afogar-se [sich… ersäufen] no Tâmisa, foi assaltado por bandidos: defendeu-se o melhor
possível e, de repente, devido ao sentimento que despertou do valor da vida [Werte des Lebens], perdeu todos os
pensamentos suicidas [alle selbstmörderischen Gedanken]. Um outro inglês, que se enforcara [sich gehenkt hatte],
quando seu criado o livrou cortando a corda, recobrou não só o gosto [ou a afeição] pela vida [Neigung zum Leben],
mas também a doença da avareza, pois, ao demitir o criado, descontou-lhe dois pences, porque ele cortou a corda
do enforcamento [fraglichen Strick] sem a ordem do seu senhor.”

238
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A referência a Hobbes e seu “estado de natureza” (Naturzustand)


é uma crítica, pois Hegel não defende a “igualdade natural” (natürliche
Gleichheit), em que “cada um pode matar o outro” (jeder den anderen um-
bringen kann), todavia, sim, a “igualdade” (Gleichheit), “fundamentada na
liberdade do espírito, na igual dignidade, na autonomia” (auf die Freiheit
des Geistes, gleiche Würde, Selbständigkeit gegründet) do ser humano21.
Mas, segundo Hegel, muitos desconhecem ou não reconhecem “a natu-
reza da liberdade do espírito [die Natur der Freiheit des Geistes]” (§ 46 A
– 2010, p. 86 [7/108]), a “igual dignidade [gleiche Würde]” (Prefácio – 2010,
p. 40 [7/23]) e a “livre autonomia [freien Selbständigkeit]” (§ 33 – 2010, p. 77
[7/88]) etc., o que “despojaria [ou privaria] o ser humano de toda verdade,
de todo valor e de toda dignidade [dem Menschen alle Wahrheit, Wert und
Würde raubte]” (§ 21 A – 2010, p. 68 [7/73]). Inclusive, um dos elementos
da liberdade do espírito, da igual dignidade e autonomia de todos os seres
humanos é a condenação enfática e contundente de Hegel da “escravidão”
(Sklaverei), do ser humano ser/estar “escravo” (Sklave). Assim, por exemplo, no §
57 A (2010, p. 93 [7/123]), consta:

21 Hegel, por exemplo, registra que “ele [Hobbes] considera este estado [de natureza] em seu verdadeiro sentido[;]
ele não é o palavreado vazio de um estado naturalmente bom; é muito mais o estado animal” (HEGEL, Vorlesungen
über die Geschichte der Philosophie (Lições sobre a História da Filosofia) [TP] [20/226]). Para o autor, Hobbes
demonstrou que, no estado de natureza, “o ser humano se comporta segundo sua naturalidade”, a saber, que “ele
se comporta segundo os desejos, as inclinações etc.” (Idem [TP] [20/227]). Trata-se de aspecto que Hegel reitera em
praticamente todas as suas obras em que fala sobre a natureza humana, mas sem citar sempre Hobbes. Mas, antes
disso, Hegel fala da “igualdade natural” dos seres humanos, citando literalmente Hobbes, que usa a mesma expressão.
No caso, a passagem hegeliana afirma: “Os seres humanos, apesar da total desigualdade de forças, possuem, porém,
também uma igualdade natural”; isto ele [Hobbes] mostra a partir de um fundamento particular, a saber, porque “cada
um pode matar o outro” [“jeder den anderen umbringen kann”], qualquer um pode [exercer] a violência extrema sobre
o outro. “Qualquer um pode [exercer] este [ato] supremo” [De cive, c. 1, § 3, p. 4]. Sua igualdade vem, assim, não
da maior força, não é fundamentada, como nos tempos modernos, na liberdade do espírito, na igual dignidade, na
autonomia, porém na igual fraqueza dos homens; qualquer um é um fraco frente ao outro.” (Ibidem [TP] [20/226]).
Hegel ainda afirma o seguinte: “A partir disso, ele [Hobbes] tira então a consequência de que o ser humano precisa
sair do estado de natureza (e tali statu exeundum). Isto é correto” (Ibidem [TP] [20/22]). No caso, cita-se novamente
Hobbes, a saber, “De Cive, c. 1, §§ 12-14” e “Leviatã, c. 13”. De fato, nas duas passagens, fala-se da “guerra de todos
contra todos” e declara-se, ainda, que “podemos deixar este estado [de natureza]”. Portanto, Hobbes afirma que
convém ‘sair de tal situação’, do ‘estado de natureza’. Trata-se, pois, de um aspecto hobbesiano que Hegel reitera em
praticamente todas as suas obras ao falar da natureza humana, mas sem citar sempre Hobbes. Sobre isso, na Filosofia
do Direito, Hegel fala da necessidade do ser humano desenvolver sua “segunda natureza” (§ 4 e § 151), isto é, a sua
“natureza do espírito” (§ 4 A), não ficar nos meros “desejos e impulsos” (§ 5, § 11), nas meras “inclinações” (§ 11). Para
ele, convém “converter [ou transformar] a primeira natureza em segunda natureza espiritual”, pois “a primeira natureza
do homem é seu ser imediato, animal” (§ 151 Z [TP] [7/300]). Além disso, no § 93 A, Hegel afirma que a “naturalidade
é um ato de violência, ou é apenas um estado de natureza, – estado de violência em geral existente” (HEGEL, 2010,
p. 118 [7/179]). No § 187 A, ainda critica as “representações de inocência do estado de natureza”, que, segundo ele,
inclusive, “mostram desconhecimento da natureza do espírito” (Idem, p. 196 [7/349]). No § 194 A, ele acrescenta: “A
representação, segundo a qual o homem viveria em liberdade no que diz respeito a seus carecimentos, num pretenso
estado de natureza, em que ele teria apenas pretensos carecimentos naturais simples e utilizaria para sua satisfação
apenas meios que uma natureza contingente lhe proveria imediatamente […] – é uma opinião falsa.” (Ibidem, p. 196
[7/349]). Enfim, no § 200 A, Hegel afirma inclusive que a sociedade civil-burguesa “conserva o resto do estado
de natureza”, tanto na “particularidade natural” quanto na “arbitrária” (Ibidem, p. 198 [7/353]). Com isso, em suma,
podemos ver que são várias as passagens, todas com evidente viés hobbesiano, mostrando a influência de Hobbes em
Hegel, sobretudo falando sobre o correto conceito de “natureza humana”, ressaltando que “é preciso sair” do mero
“estado de natureza”, aspecto que, apesar de envolver diferenças, deve ser devidamente registrado e reconhecido.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A afirmada legitimação da escravidão [Sklaverei] (em todas as


suas justificações mais precisas, por violência física, captu-
ra na guerra, salvamento e preservação da vida [Rettung und
Erhaltung des Lebens], alimentação, educação, benefícios,
consentimento próprio [eigene Einwilligung] etc.) como tam-
bém a legitimação de uma dominação [Herrschaft] enquanto
mero senhorio [Herrenschaft], em geral, e todo aspecto his-
tórico sobre o direito de escravidão [Recht der Sklaverei] e de
senhorio [Herrenschaft] repousam em um ponto de vista que
consiste em tomar o ser humano como ser natural [Naturwe-
sen] em geral, segundo uma existência [einer Existenz] (a que
pertence o arbítrio [Willkür]), que não é adequada a seu con-
ceito [Begriffe]. A afirmação da absoluta ilicitude da escra-
vidão [absoluten Unrechts22 der Sklaverei] atém-se, ao con-
trário, ao conceito do ser humano como espírito [Begriffe des
Menschen als Geistes], enquanto o que é livre em si [an sich
freien], e é unilateral tomar o ser humano enquanto livre por
natureza ou, o que é o mesmo, tomar o conceito como tal em
sua imediatidade, [e] não a ideia [Idee].

Ora, no mesmo § 57 A, Hegel fala ainda da assim chamada “dialéti-


ca” (Dialektik) ou “relação de senhorio e de servidão23” (Verhältnis der Her-
renschaft und der Knechtschaft) e, igualmente, da “luta por reconhecimento”
(Kampf des Anerkennens) e, logo depois, afirma:

Mas que o espírito objetivo, o conteúdo do direito não seja


ele mesmo de novo apreendido somente no seu conceito sub-
jetivo, e assim o fato de que o ser humano, em si e para si,
não seja determinado à escravidão [zur Sklaverei bestimmt
sei], não seja de novo apreendido como um mero dever-ser [ein
bloßes Sollen], isso somente intervém no conhecimento de que
a ideia de liberdade [die Idee der Freiheit] é verdadeira apenas
enquanto Estado.

Depois disso, no § 57 Z ([TP] [7/126]), afirma-se ainda o seguinte:

Caso for sustentado que o ser humano seja livre em si e para


si, assim, com isso, se condena a escravidão [Sklaverei]. Mas,
se alguém é escravo [Sklave], isso reside em sua própria vonta-
de [seinem eigenen Willen], assim como reside na vontade de
um povo se ele é subjugado [unterjocht]. Com isso, ela [a escra-
vidão] não é meramente uma ilicitude [Unrecht] daqueles que
fazem escravos [Sklaven] ou dos que os subjugam [unterjochen],
mas dos escravos [Sklaven] e subjugados [Unterjochten]. A es-
cravidão [Sklaverei] ocorre na transição da naturalidade do ser
humano para a situação verdadeiramente ética [wahrhaft sittli-
chen Zustande]; ela ocorre em um mundo em que uma ilicitude

22 Traduzimos unrecht e Unrecht (lichkeit) por “ilícito” e “ilicitude”, pois se trata do que é “não direito”, “contrário ao
direito”. Assim, para distinguir, traduzimos ungerecht e Ungerechtigkeit por “injusto” e “injustiça”.
23 É importante e essencial registrar a diferença terminológica e conceitual em Hegel entre “servidão” (Knechtschaft)
e escravidão (Sklaverei), sendo “servo” (Knecht) algo distinto de “escravo” (Sklave).

240
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

[Unrecht] ainda é direito [Recht]. Aqui, a ilicitude [Unrecht] vale


e, portanto, encontra necessariamente seu lugar.24

O que é ilicitude ou não direito (Unrecht) não pode ou não deveria


ser direito (Recht), isto é, a escravidão (Sklaverei), para Hegel, não é ou não
pode ser legal, nem moral, nem ética. Assim, Hegel fala da “absoluta ilicitu-
de da escravidão [absoluten Unrechts der Sklaverei]” e que ninguém deveria ser
“determinado à escravidão [zur Sklaverei bestimmt]”, pois o ser humano, se-
gundo seu “conceito [Begriffe]”, é “livre em si [an sich freien]”; mas, enfim, não
basta ficar no “mero dever-ser” [bloßes Sollen], ser apenas em si livre, porque
precisa também ser para si livre, isto é, ser efetivamente livre25.
Além disso, isso se vincula ao que é afirmado no § 91 (2010, p. 118
[TP] [7/178]), a saber:

Enquanto vivente [ou ser vivo] [Lebendiges], o ser humano


pode certamente ser subjugado [bezwungen], ou seja, seu as-
pecto físico e qualquer aspecto exterior estão colocados sob
a violência [Gewalt] de outro, mas a vontade livre [freie Wille]
não pode em si e para si ser coagida [gezwungen] (§ 5), a não ser
na medida em que não se retira ela mesma da exterioridade, em
que está retida, ou da representação dela (§ 7). Apenas pode ser
coagido [gezwungen werden] a algo quem quer se deixar coagir
[sich zwingen lassen will].

24 No [zu § 57] ([TP] [7/124-125]), ainda consta: “[…] A escravidão [Sklaverei] é algo histórico – isto é, ela incide,
pertence a uma situação anterior ao direito [einen Zustand vor dem Rechte] – é relativa – Toda essa situação
não deve ser [soll nicht sein] […]. – Quando se diz que a escravidão [Sklaverei] é em si e para si ilicitude [Unrecht]
–, é totalmente correto [ganz richtig]. Necessidade do Estado. – Mas o que é direito objetivo é essencialmente,
igualmente, um direito subjetivo para si, isto é, ele não é uma pedra, algo exterior, apenas sólido, porém que ele
é a vontade do espírito [Wille des Geistes], – do espírito universal [allgemeinen Geistes], da cultura universal
[allgemeinen Bildung]. A ilicitude [Unrecht] é, assim, o em si e para si, isto é, ela é a própria autoconsciência
universal – não querer ser um escravo, mas ainda querer um senhor [nicht ein Sklave – noch ein Herr sein zu
wollen]; – nenhum senhor, nenhum escravo [kein Herr, kein Sklave], – mas, igualmente, nenhum escravo, nenhum
senhor [kein Sklave, kein Herr]. – Não é [da] culpa [Schuld] deste ou daquele indivíduo – destes ou daqueles, que
eles são escravos [Sklaven] – mas de todos, do todo”.
25 Hegel afirma que “o saber-se dessa liberdade” (ECF (III), 1995, p. 284: § 488 [10/306] „das Sichwissen dieser
Freiheit“) nem sempre é algo efetivo ou envolve efetividade. Por isso, como ele bem afirma, é algo que precisa ser
reconhecido e deve se fazer valer e reconhecer efetivamente: “O ser humano é, segundo a existência imediata, em
si mesmo algo natural, externo a seu conceito; é apenas pela formação de seu corpo e de seu espírito próprios,
essencialmente pelo fato de que sua autoconsciência se apreende como livre, que ele toma posse de si e se torna
propriedade de si mesmo e em relação aos outros. Esse tomar posse é, ao contrário, igualmente o pôr na efetividade
o que ele é segundo seu conceito (enquanto uma possibilidade, faculdade, disposição)” (2010, § 57, p. 93: 7/122-123).
Porém, uma liberdade efetiva requer a atividade da própria pessoa, pois de nada serve ser, em si ou por essência,
livre, mas é preciso, ainda, vir a ser efetivamente ou para si livre. Não basta, para Hegel, que o indivíduo tome apenas
consciência de sua autonomia formal, de sua liberdade enquanto possibilidade, faculdade ou disposição, mas cabe
também efetivar tal potencialidade. Inclusive, no § 382 da Enciclopédia, ele ressalta que “a essência do espírito é
formalmente a liberdade” (ECF (III), 1995, § 382, p. 23: 10/25 „Das Wesen des Geistes ist […] formell die Freiheit“),
porém, “em sua imediatez, o espírito só é livre em si segundo o conceito e a possibilidade, não ainda segundo a
efetividade”; ou seja, “a liberdade efetiva, assim, não é algo essente de modo imediato no espírito, mas algo a ser
produzido por sua atividade” (ECF (III), 1995, § 382 Z, p. 24: 10/27). Logo, para Hegel, não basta só ter formalmente
tal potência, mas ela precisa vir a ser de forma efetiva: “Se o saber da Ideia – isto é, do saber dos homens de que sua
essência [Wesen], meta [ou fim – Zweck] e objeto [Gegenstand] é a liberdade – for especulativo, essa Ideia mesma
como tal é a efetividade dos homens”: assim, “não a ideia que eles têm [haben], porém a ideia que eles são [sind]” (ECF
(III), 1995, § 482 A, p. 275-276: 10/302). No caso, o autor usa o verbo ter, de algo em si, e o verbo ser, de algo para si.

241
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Assim, para Hegel, a escravidão (Sklaverei) ou o ser escravo (Skla-


ve) envolve um aspecto da “própria vontade” (eigenen Willen), de quem
“quer se deixar coagir” (sich zwingen lassen will). Trata-se, certamente, de
aspecto problemático e muito questionável, afinal quem quer ser escravo
ou quem se deixa escravizar? Talvez até tenha [tido] casos, mas a grande
maioria dos escravizados não queria ser escravo e, certamente, lutou con-
tra as amarras ou as correntes físicas ou exteriores e, também, as interio-
res. Mas, enfim, para Hegel, o ser humano pode ser “subjugado [bezwun-
gen]” física ou exteriormente; porém, não pode ser “coagido [gezwungen]”
internamente, em função da assim chamada “vontade livre [freie Wille]”.
Por fim, convém citar ainda o § 174 Z ([TP] [7/327]), em que se registra
que “a relação mais não-ética em geral é a relação de escravos das crian-
ças” (das unsittlichste Verhältnis überhaupt ist das Sklavenverhältnis der
Kinder) e, depois, o § 175 A ([TP] [7/328]), em que se afirma:

A relação de escravos [Sklavenverhältnis] das crianças [Kinder]


romanas é uma destas instituições que mais mancham a essa le-
gislação, e essa ofensa à eticidade [Sittlichkeit], no que sua vida
tem de mais interior e de mais frágil [in ihrem innersten und
zartesten Leben], é um dos momentos mais importantes para
entender o caráter dos romanos do ponto de vista da história do
mundo e de sua orientação para o formalismo jurídico.

Ora, sobre isso, no § 175, Hegel (2010, p. 182 [7/327]) até afirma: “As
crianças [Kinder] são em si livres [sind an sich Freie], e a vida [das Leben] é
apenas o ser-aí imediato dessa liberdade, por isso elas não pertencem a
outros nem aos pais enquanto Coisas26”. Ora, nenhum ser humano pode ou
deve ser considerado uma mera “Coisa [Sache]” ou “coisa [Ding]”, nem mes-
mo as crianças, apesar de ainda não estarem na “maioridade” (Volljährigkeit
ou Mündigkeit [versus menoridade = Unmündigkeit]), ou na “personalidade
livre” (freie Persönlichkeit), com sua devida “autonomia” (Selbständigkeit
ou Autonomie ou autodeterminação = Selbstbestimmung [versus hetero-
nomia = Unselbständigkeit ou Heteronomie]); enfim, conforme também o
já citado § 175, é tarefa “elevar as crianças desde a imediatidade natural,
em que se encontram originalmente, até a autonomia e a personalidade
livre”; pois, segundo o § 177 (2010, p. 184 [7/330]): “A dissolução27 ética [sit-
tliche Auflösung] da família consiste em que as crianças, educadas [erzo-
gen] para a personalidade livre [freien Persönlichkeit], sejam reconhecidas
[anerkannt] na maioridade [Volljährigkeit] […]”.

26 Sache é traduzido por Coisa (com maiúscula) versus o termo Ding, que é traduzido por coisa (com minúscula).
27 Lembrando que existe, segundo Hegel, o processo de “dissolução ética da família” (sittliche Auflösung der Familie
– § 177) mediante a constituição constante de novas famílias ou novos lares/casais; o de “dissolução natural da família”
(natürliche Auflösung der Familie – § 178) mediante a eventual morte dos seus membros; e, também, o de dissolução
‘jurídica’ do casal mediante “o separar do casamento” (die Ehe scheiden – § 176), isto é, o “divórcio” (Ehescheidung).

242
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Enfim, para Hegel, o ser humano deve buscar sempre a liberdade, e


não a irresponsabilidade, que se vincula com a definição realçada várias
vezes na sua obra, de que a verdadeira liberdade não é uma liberdade
para “fazer o que se quer” (tun, was man will), como consta no § 319 A, nem
uma liberdade de “poder fazer o que se quer” (tun könne, was man wolle),
como consta no § 15 A, pois, antes, segundo se afirma no § 27, a “vontade
livre” (freie Wille) é a que “quer a vontade livre” (will den freien Willen).
Com isso, em suma, vinculam-se os conceitos de vida, morte, suicídio,
escravidão, vontade livre, liberdade do espírito, dignidade, autonomia,
maioridade, entre outros, que também se vinculam com a “pena de mor-
te” (Todesstrafe), que veremos a seguir.

A relação entre vida, morte e pena de morte na Filosofia do Direito

No [zu] § 99 ([TP] [7/189]), consta a relação entre “perder a vida” (das


Leben zu verlieren) e a “pena de morte” (Todesstrafe), já que, no § 99 A
([TP] [7/187]), fala-se propriamente de “crime e sua suprassunção” (Ver-
brechen und dessen Aufhebung), isto é, das “diversas teorias sobre a
pena, a prevenção, a intimidação [ou a dissuasão], a ameaça, a correção
etc.” (verschiedenen Theorien über die Strafe, der Verhütungs-, Abschre-
ckungs-, Androhungs-, Besserungs- usw.) dos crimes. Ora, ainda no § 99
A, Hegel ([TP] [7/187]) afirma:

As diversas considerações, que se referem à pena enquan-


to fenômeno [der Strafe als Erscheinung] e à sua vinculação
com a consciência particular [Beziehung auf das besondere
Bewußtsein], e os que concernem às consequências [Folgen]
da pena sobre a representação (intimidar [ou dissuadir], cor-
rigir etc. [abzuschrecken, zu bessern usf.]) são bens essenciais
para ser examinados em seu lugar, isto é, da mera considera-
ção da modalidade da pena [Modalität der Strafe], mas pres-
supõem a fundamentação de que o punir seja em si e para si
justo [das Strafen an und für sich gerecht sei]. Nessa discussão,
importa somente que o crime [das Verbrechen] tem de ser su-
prassumido [aufzuheben], e não, de fato, como produção de
um mal [Hervorbringung eines Übels], mas como violação do
direito enquanto direito e, em seguida, qual é a existência que
o crime tem e que tem de ser suprassumida [aufzuheben]; ela
é o verdadeiro mal [wahrhafte Übel] a ser removido, e o ponto
essencial é aquilo em que ela reside; [contudo,] enquanto os
conceitos, sobre isso, não são conhecidos de maneira deter-
minada, assim é preciso que reine a confusão na consideração
da pena [Ansicht der Strafe].

No caso, em suma, Hegel critica a “teoria da pena” (Straftheorie) vi-


gente em sua época, que congregava a “pena de morte” (Todesstrafe), a
qual é citada no § 100 A (2010, p. 123 [7/190]):

243
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Beccaria [Dei delitti e delle pene [Dos delitos e das penas], Livor-
no, 1764], como se sabe, negou ao Estado o direito à pena de
morte [das Recht zur Todesstrafe] pela razão [ou fundamento
– Grunde] de que não se podia presumir [präsumiert] que es-
teja contido no contrato social [gesellschaftlichen Vertrage] o
consentimento dos indivíduos [Einwilligung der Individuen]
de se deixar matar [sich töten zu lassen][;] antes, tem de ser
admitido o contrário. Porém, o Estado não é de modo algum
um contrato (ver § 75), nem a sua essência substancial é incon-
dicionalmente a proteção e a garantia da vida e da proprieda-
de dos indivíduos [der Schutz und die Sicherung des Leben und
Eigentums der Individuen] enquanto singulares, antes ele é o
superior, que reivindica [nimmt] também essa vida e essa pro-
priedade mesmas [dieses Leben und Eigentum selbst] e exige
[fordert] seu sacrifício [Aufopferung]. – Além disso, não é ape-
nas o conceito de crime, o racional em si e para si, com ou sem
consentimento [mit oder ohne Einwilligung] dos indivíduos
singulares, que o Estado tem de fazer valer, porém também a
racionalidade formal, o querer do indivíduo singular, que reside
na ação do criminoso. Que a pena [Strafe] seja aí considerada
como contendo seu próprio direito, nisso o criminoso [Verbre-
cher] é honrado [geehrt] como um ser racional [Vernünftiges].
– Essa honra [Ehre] não lhe compete quando o conceito e a me-
dida de sua pena [Begriff und der Maßstab seiner Strafe] não
são tomados de seu ato mesmo; – tampouco lhe compete quan-
do é considerado somente como um animal nocivo [schädli-
ches Tier], que tem de ser tornado inofensivo [unschädlich], ou
quando se visa à intimidação e à correção [Abschreckung und
Besserung]. – Além disso, considerado o modo de existência da
justiça [Weise der Existenz der Gerechtigkeit], a forma [Form]
que ela tem no Estado, a saber, enquanto pena [Strafe], não é de
toda maneira a única forma [einzige Form], e o Estado não é o
pressuposto que condiciona a justiça em si.

No caso, Hegel cita Cesare Beccaria (1738-1794), que é considerado o


primeiro que defendeu a abolição da pena de morte, pois todos os indivídu-
os teriam o direito fundamental à vida, o qual não poderia nem deveria ser
desrespeitado por outros, inclusive pelo poder soberano do Estado. Ora,
no caso Hegel procura apresentar e analisar todos os aspectos envolvidos
no assim chamado “direito à pena de morte [Recht zur Todesstrafe]”, que
o Estado teria ou não, principalmente examinando a questão do “consen-
timento [ou não] dos indivíduos [Einwilligung der Individuen] de se deixar
matar [sich töten zu lassen]” e se a “pena” (Strafe) precisa ser “com ou sem
consentimento [mit oder ohne Einwilligung]” do “criminoso” (Verbrecher).
Ora, sobre tudo isso, no § 100 Z ([TP] [7/192]), ainda se afirma o seguinte:

O que Beccaria exige, a saber, que o ser humano precisa dar o


seu consentimento à punição [seine Einwilligung zur Bestra-
fung] é totalmente correto, mas o criminoso [Verbrecher] já o
deu pelo seu próprio ato. É tanto da natureza do crime [Natur
des Verbrechens] quanto da vontade própria do criminoso [eige-

244
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ne Wille des Verbrechers] que a lesão [Verletzung] que procede


dele seja suprassumida [aufgehoben]. Contudo, este esforço
de Beccaria em fazer suprassumir [aufheben] a pena de mor-
te [Todesstrafe] produziu efeitos proveitosos. Ainda que nem
Joseph II28 nem os franceses jamais [jemals] tenham sido ca-
pazes de impor [durchsetzen] a completa abolição [gänzliche
Abschaffung] da mesma [pena de morte], contudo começou-se
a discernir o que seriam crimes dignos de morte [todeswür-
dige Verbrechen] e quais não. A pena de morte [Todesstrafe]
tornou-se, por isso, mais rara [seltener], como convém a esta
pena suprema [diese höchste Spitze der Strafe].

No caso, consta que a “pena de morte” (Todesstrafe) ocupa o “pico


mais alto das penas” e, assim, é a “pena suprema” (höchste Spitze der
Strafe), que deve ser usada apenas em casos raros. Quais casos raros?
Segundo consta, nos casos em que o “criminoso” (Verbrecher) e a “na-
tureza do crime” (Natur des Verbrechens), como “crime digno de morte”
(todeswürdig Verbrech) e enquanto manifestação da “vontade própria do
criminoso” (eigene Wille des Verbrecher) tenham dado, assim, “seu con-
sentimento à punição” (seine Einwilligung zur Bestrafung), a saber, “o
consentimento do indivíduo de se deixar matar” (die Einwilligung der
Individuen, sich töten zu lassen).
Ora, segundo o § 101 (2010, p. 123 [7/192]), a pena ou a punição não
deve ser propriamente “a igualdade do caráter específico” (die Gleichheit in
der spezifischen), mas, “segundo o valor [Werte] da [violação] [Verletzung]”,
isto é, segundo o § 101 A (2010, p. 124-125 [7/193-194]), não é “de que ele me-
rece uma pena [Strafe] e de que o criminoso [Verbrecher] deve sofrer o mesmo
que ele fez”; porém, “a justiça das determinações penais” (die Gerechtigkeit
der Strafbestimmungen) envolve um “caráter qualitativo e quantitativo”
(qualitativen und quantitativen Beschaffenheit), ou um “âmbito qualitativo
e quantitativo” (qualitativen und quantitativen Umfang); em suma, não é
punir “furto por furto, roubo por roubo, olho por olho, dente por dente”
(Diebstahl um Diebstahl, Raub um Raub, Aug um Aug, Zahn um Zahn);
mas, trata-se de ver e analisar o “valor” (Wert) do crime “na sua existência
específica” (in ihrer Existenz spezifisch), lembrando que, para Hegel, con-
forme o § 103 (2010, p. 126 [TP] [7/197]), existe “a exigência de uma justiça
libertada do interesse e da figura subjetivos, assim como da contingência
do poder, portanto de uma justiça que seja não vingativa [nicht rächenden],
mas justiça punitiva [strafenden Gerechtigkeit]”. Enfim, o interesse aqui não
é tentar analisar os vários aspectos da “teoria da pena” (Straftheorie) em
Hegel, mas sobre a “pena de morte” (Todesstrafe), que consta também no §
101 Z ([TP] [7/196]), a saber:

28 Joseph II, ou José II (Viena, 13.03.1741 – Viena, 20.02.1790) foi o Imperador Romano-Germânico e Arquiduque da
Áustria de 1765 até sua morte, em 1790, além de ser Rei da Hungria, Croácia e Boêmia a partir de 1780.

245
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

[…] mas, a pena [Strafe] é, contudo, como temos visto, apenas a


manifestação do crime, isto é, a outra metade que pressupõe
necessariamente a outra [metade]. […] Se, então, na retaliação
[Vergeltung] não se pode chegar à igualdade específica [spe-
zifische Gleichheit], isso, contudo, é diferente no assassinato
[Morde], ao qual necessariamente está a pena de morte [To-
desstrafe]. Porque como a vida é o âmbito todo do ser-aí, as-
sim a pena não pode consistir num valor que não basta para
isso, porém, de novo, apenas consiste na privação da vida [Ent-
ziehung des Lebens].

Enfim, Hegel claramente não é contra a “pena de morte” (Todesstrafe),


mas também, em seu tempo, praticamente ninguém era ou podia ser contra
ela. Ora, isso consta, por exemplo, em seus Frühe Schriften, ou Primeiros
Escritos, nos chamados “Fragmentos de estudos históricos e políticos do
período de Bern e Frankfurt”, de 1795-1798 ([TP] [1/442]), em que consta:

Pena de morte pública [Öffentliche Todesstrafe]. […] Se alguém


propusesse hoje em dia [heutigentags] abolir [abzuschaffen]
a pena de morte (Todesstrafe) pública [Öffentliche], assim
seria gritado [entgegengeschrien], com milhares de línguas
[mit tausend Zungen], que um dos principais fins da pena [ein
Hauptendzweck der Strafen], o exemplo para outros [Beispiel für
andere], seria perdido.

Ora, no caso fica a pergunta: realmente, a execução da pena de morte


(Todesstrafe) torna-se ou não um “exemplo para outros [Beispiel für andere]”?
E, ainda: sem o “direito à pena de morte [das Recht zur Todesstrafe]” se
perde ou não “um dos principais fins da pena [ein Hauptendzweck der
Strafen]”, a saber, o de ser “exemplo para outros [Beispiel für andere]”?
Enfim, por último, convém citar também o § 218 (2010, p. 210-211
[7/372]), em que se fala do “crime” (Verbrechen) e da “periculosidade da ação
[do crime] para a sociedade” (Gefährlichkeit der Handlung für die Gesells-
chaft) pela qual, “de uma parte, a grandeza do crime [Größe des Verbre-
chens] é reforçada, mas, de outra parte, o poder da sociedade29, tornado
seguro de si mesmo, diminui a importância exterior [äußerliche Wichtigkeit]
da violação [Verletzung]” e, no caso, “produz, por isso, uma maior clemên-
cia [größere Milde] no castigo [Ahndung] dela”. Ora, depois disso, no § 218
A, também se afirma o seguinte:

Dado que o crime [Verbrechen], em si uma violação infinita,


precisa ser avaliado enquanto um ser-aí, segundo as diferen-
ças qualitativas e quantitativas [qualitativen und quantitati-
ven Unterschieden] (§ 96), que, agora, é determinado essen-

29 Lembrando que, em Hegel, o poder judiciário, ou a chamada “Administração do Direito” (Rechtspflege), §§ 209-229,
inclusive o “Tribunal” (Gericht), §§ 219-229, é parte da “Sociedade Civil-Burguesa” (bürgerliche Gesellschaft), e não
propriamente um dos poderes do Estado.

246
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cialmente enquanto representação e consciência da validade


das leis, assim a periculosidade [Gefährlichkeit] para a sociedade
civil-burguesa é uma determinação de sua grandeza [Größe] ou
também uma de suas determinações qualitativas [qualitativen
Bestimmungen]. – Mas, essa qualidade [Qualität] ou grandeza
[Größe] é, então, variável [veränderlich] segundo a situação da
sociedade civil-burguesa, e nessa situação reside a justificação
[Berechtigung] tanto de punir com a morte [mit dem Tode] o
furto de alguns centavos ou de um nabo como de punir com
uma pena moderada [gelinden Strafe] um furto cujo valor se
eleva ao cêntuplo ou mais. Esse é o ponto de vista da peri-
culosidade [Gefährlichkeit] para a sociedade civil-burguesa,
pois ele parece [scheint] agravar [aggravieren] os crimes [Ver-
brechen] muito mais, principalmente os que tem diminuído
[vermindert] seu castigo [Ahndung]. Um código penal [Strafko-
dex] pertence, principalmente, ao seu tempo [Zeit] e à situação
[Zustand] da sociedade civil-burguesa nele inserido.

Enfim, para Hegel, a aplicação ou não da “pena de morte” (Todess-


trafe) depende, então, do “código penal” (Strafkodex) ou da “teoria da pena”
(Straftheorie) vigente30 no respectivo tempo, mas convém lembrar que a
preocupação é buscar uma “justiça punitiva” (strafenden Gerechtigkeit), e
“não vingativa” (nicht rächenden). Em suma, a “pena de morte” (Todesstra-
fe), se aplicada, deve, segundo Hegel, estar a serviço da “vida” (Leben), e
não a serviço da “morte” (Tod) enquanto aspecto que busca a “garantia da
vida” (Sicherung des Leben), que veremos a seguir.

3.3. A relação entre vida, morte e garantia da vida em Hegel

A primeira ocorrência da expressão “garantia da vida” (Sicherung31


des Leben) ocorre no já citado § 100 A32, em que se afirma que é papel do
Estado buscar “a proteção e a garantia da vida e da propriedade dos indi-
víduos” (der Schutz und die Sicherung des Leben und Eigentums der Indi-
viduen), mas isso não de forma incondicional, pois, por exemplo, no caso
de “guerra” (Krieg), como veremos abaixo, é dever do cidadão ser patriota,
podendo haver a necessidade de colocar sua vida em risco, via inclusive
“sacrifício” (Aufopferung) de sua vida.

30 Sobre isso, convém ver, também, o § 211 A (2010, p. 204-205 [7/362]), em que se afirma: “É uma ilusão [crer] que
eles [os direitos consuetudinários], pela sua forma de serem enquanto hábitos, devem ter a vantagem de ter passado
à vida [ins Leben übergegangen zu sein] (– fala-se hoje em dia, sobretudo, com mais frequência, precisamente da
vida e da passagem à vida [vom Leben und vom Übergehen ins Leben], em que se versa na matéria mais morta e nos
pensamentos mais mortos [wo man in dem totesten Stoffe und in den totesten Gedanken versiert] –), pois as leis
vigentes [geltenden Gesetze] numa nação, por terem sido escritas e compiladas, não cessam de ser seus hábitos.
31 Sicherung pode ser traduzido por “garantia, segurança, proteção, consolidação”.
32 Cf. “[…] o Estado não é de modo algum um contrato (ver § 75), nem a sua essência substancial é incondicionalmente
a proteção e a garantia da vida e da propriedade dos indivíduos [der Schutz und die Sicherung des Leben und Eigentums
der Individuen] enquanto singulares; antes, ele é o superior que reivindica, também, essa vida e essa propriedade mesmas
[dieses Leben und Eigentum selbst] e exige seu sacrifício [Aufopferung].” (HEGEL, 2010, p. 123 [7/190]).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A segunda ocorrência de “garantia da vida” se dá no § 127 Z ([TP]


[7/240-241]), a saber:

A vida [Leben], enquanto soma dos fins [Gesamtheit der Zwe-


cke], tem um direito [Recht] frente ao direito abstrato [abs-
trakte Recht]. Se, por exemplo, alguém rouba um pão para po-
der se alimentar, então, com isso, a propriedade de uma pessoa
é lesada [verletzt], mas seria ilícito [unrecht] considerar esta
ação como um roubo ordinário [gewöhnlichen Diebstahl]. Se
não se permitir a um ser humano cuja vida [Leben] está em
perigo [gefährdeten] agir desta maneira, então seria como con-
siderá-lo sem direito [rechtlos] e, ao privá-lo [abgesprochen]
de sua vida [Leben], se negaria sua total liberdade [seine gan-
ze Freiheit]. Para a garantia da vida [Sicherung des Leben] há
certamente uma multiplicidade de elementos, e, se miramos o
futuro [Zukunft], então precisamos considerar cada um deles.
Mas, o necessário [notwendig] é apenas, agora, viver [nur, jetzt
zu leben], o futuro [Zukunft] não é absoluto [nicht absolut] e
permanece na contingência [Zufälligkeit].

Além disso, ainda no § 127 Z ([TP] [7/241]), igualmente se afirma:

Por isso, apenas a miséria [Not] do presente imediato [unmit-


telbaren Gegenwart] pode justificar [kann berechtigen] uma
ação ilícita [einer unrechtlichen Handlung], porque na sua
omissão [Unterlassung] mesma se cometeria uma e, de fato,
a mais elevada ilicitude [und zwar des höchsten Unrechts], a
saber, a total negação [totale Negation] do ser-aí da liberdade
[isto é, a vida]; – o beneficium competentiae [benefício da imuni-
dade ou competência] tem aqui seu lugar, pois nas vinculações
de parentesco e outras relações mais próximas reside o direito
de reclamar a não total sujeição ao direito [nicht gänzlich dem
Rechte hingeopfert].

Ora, antes disso, já no § 127 e 127 A (2010, p. 142 [7/239-240]), Hegel


declara:

A particularidade dos interesses da vontade natural, reunida em


sua totalidade simples, é o ser-aí pessoal enquanto vida [Leben].
Essa [vida], no perigo último [letzten Gefahr] e em conflito com
a propriedade jurídica do outro, tem a invocar (não enquanto
concessão [Billigkeit], porém enquanto direito [als Recht]) um
direito de miséria [ein Notrecht]33, visto que, de um lado, se en-
contra a violação infinita [unendliche Verletzung] de um ser-
-aí, e nisso a privação total do direito [totale Rechtlosigkeit], e,

33 Sobre isso, Kervégan (Nota 2, 1998, p. 204 [TP]) afirma: “Desconhecido do direito romano, o jus necessitatis (direito
de necessidade, ou de emergência) foi teorizado pelos canonistas medievais e, desde então, faz parte das ações
ordinárias da cultura jurídica ocidental; em particular, a tradição tomista o absolutizou. A defesa do jus necessitatis
aqui produzida por Hegel é destinada principalmente a contrariar o argumento kantiano segundo o qual este “alegado
direito” repousa sobre uma confusão danosa entre direito e ética; ora, “não há necessidade de tornar legal aquilo que
é injusto [ilícito]” ([KANT,] Doutrina do Direito, p. 110).”

248
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

do outro lado, encontra-se apenas a violação [Verletzung] de


um ser-aí delimitado, singular, da liberdade, em que se reco-
nhece o direito como tal e, ao mesmo tempo, sua capacidade
jurídica do que apenas é lesado nessa propriedade.
Do direito de miséria [Notrecht] deriva o benefício da imu-
nidade [ou benefício da competência – Wohltat der Kompetenz
– benificium competentiae]34, pelo qual se deixam ao devedor as
ferramentas de trabalho, os instrumentos de lavoura, as ves-
timentas, de maneira geral se deixa seu patrimônio, isto é, da
propriedade do credor tanto quanto é considerado como con-
tribuindo para a possibilidade de sua manutenção – conforme
seu estamento [social].

No [zu § 127] ([TP] [7/240]) ainda consta:

A vida [Leben] tem também um verdadeiro direito [wahrhaf-


tes Recht] frente ao direito formal [formelles Recht], isto é,
igualmente momento absoluto. É a peculiaridade do conteú-
do segundo sua totalidade – não como meu bem-estar sendo
apenas uma reflexão-universalidade. – Bem-estar, não é algo
efetivo para si.

No [zu § 128] ([TP] [7/241]) consta igualmente:

“Direito – precisa ter vida” (Recht – muß Leben haben). […] α)


Passagem de direito de miséria e direito de viver [Übergang
von Notrecht und Recht Leben] – apenas a vida [nur Leben]
em que a pessoa é um direito – em si – não se opõe no conceito
– pelo contrário, neste pico mais alto de oposição – aumentado
para a própria identidade – o espírito vem a si próprio, vira-se
– encontra-se – prerrogativa do espírito [Vorrecht des Geistes].

Trata-se de várias e extensas passagens, todas reforçando o valor da


vida e a garantia da vida, sobretudo quando a vida, o ser-aí da liberdade,
como sua condição de possibilidade, está em perigo. Ora, sobre isso, con-
vém citar Weber (2014, p. 24-25), que assevera:

[…] a crítica de Hegel ao formalismo da moral kantiana, so-


bretudo através do “direito de emergência” (Notrecht). Para
o filósofo de Königsberg, reconhecer a validade universal da
lei moral e abrir uma exceção a seu favor é incorrer numa
contradição. Há uma defesa da validade apriorística da lei,
independentemente das circunstâncias. Em contraposição a
isso, Hegel defende um direito de abrir uma exceção a seu fa-
vor em caso de extrema necessidade. Está em jogo uma ame-
aça à vida. É um direito, e não uma concessão. […] O direito
de emergência [Notrecht] é, na verdade, um recurso contra a

34 Sobre isso, Kervégan (Nota 3, 1998, p. 204 [TP]) afirma: “die Wohltat der Kompetenz; este termo é o equivalente
alemão do vocábulo latino benificium competentiae. Este é o “favor especial de amenizar uma condenação [de uma
pessoa] apenas no limite dos seus recursos” […]”.

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injustiça ou contra as consequências injustas da aplicação


da lei. O conflito de direitos no seu efetivo exercício exige
ponderação e hierarquização.

Além disso, Weber (2014, p. 29) ainda defende que:

O direito de emergência [Notrecht] é o marco decisivo no di-


álogo entre Kant e Hegel para demarcar o avanço deste no
que se refere à realização da justiça em situações de extrema
necessidade. A garantia da preservação da vida e tudo o que
isso importa (por exemplo, necessidades básicas materiais) é o
princípio básico de qualquer instituição que queira assegurar
os mínimos padrões de justiça.

Convém citar, também, Roani (2005, p. 304-305), que afirma:

Para Hegel, diferentemente de Kant, cada indivíduo tem con-


dição de abrir uma exceção a seu favor, dado o fato de estar em
uma situação de extrema necessidade, ou seja, “em perigo ex-
tremo e em colisão com a propriedade jurídica de outro” (RPh,
§ 127). […] O direito de emergência [Notrecht] leva em conta a
vida, nem que para isso tenha de lesar a propriedade de outro.
[…] O direito à vida, nesse caso, é um direito primário, e está
além do direito à propriedade. […] A fome é a mais clara ilus-
tração do direito de emergência [Notrecht], pois é algo presen-
te, imediato, que não aguarda uma decisão futura.

Assim sendo, o Notrecht, enquanto “direito de miséria”, exatamente


quer garantir a todos a sua dignidade e seu valor, pois é o direito de violar
os direitos de outros quando do perigo extremo de perder a vida como tal.
Em resumo, um dos aspectos mais importantes do direito hegeliano é o que
evidencia a dignidade e o valor da vida ou o direito de conservar a sua vida,
via, entre outros, o Notrecht = “direito de miséria [ou de penúria, emergência,
‘necessidade’ (constringente), extrema necessidade ou extremo carecimen-
to]”. Ora, é o direito de fazer uso dos meios possíveis para a preservação da
vida. Isso tem como núcleo de sustentação a inviolabilidade da pessoa hu-
mana, de sua vida e liberdade. É a garantia de uma espécie de um “mínimo
existencial”, que visa assegurar as condições mínimas de uma vida digna.
Tudo isso é assegurado, em Hegel, pelo Notrecht. Trata-se, assim, do direito
de abrir exceção, dependendo das circunstâncias, em seu favor, por exemplo,
no caso de perigo extremo ou último (letzten Gefahr) de vida.
Contudo, para Hegel, considerar as circunstâncias não significa abrir
exceções ilimitadas ou discricionárias, pois, nas mesmas circunstâncias des-
critas, essas exceções também devem vir a ser universalizáveis. Afinal, trata-
-se de um direito, e não de uma concessão. Ora, no caso, o direito à proprie-
dade privada, para Hegel, deve ser respeitado, mas há situações de perigo

250
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

extremo que comprometem princípios mais fundamentais, como o direito


à vida. Por exemplo, quando um pai rouba um pão para não deixar morrer
seu filho de fome, assim ele comete um delito jurídico e uma falta moral (a
saber, roubar), mas, se não o fizesse, faria, segundo Hegel, um delito jurídico
e uma falta moral muito maior (a saber, deixar seu filho morrer de fome).
Assim sendo, para Hegel impõe-se legitimamente que o Notrecht faça valer,
por exemplo, o direito à vida ou a viver mesmo que, em alguns casos, em
detrimento do citado direito de propriedade privada. Existe, com isso, uma
hierarquia de direitos. Em suma, são elementos, entre outros, que destacam
a importância e certa atualidade do conceito hegeliano de direito de miséria
(Notrecht), expondo e analisando a preocupação de Hegel com o valor (Wert)
e a dignidade (Würde) da vida de todo ser humano.
Depois disso, a terceira ocorrência de “garantia da vida” se dá no §
270 A e, por fim, a quarta ocorrência se dá no § 324 A, mas, antes disso,
convém citar e analisar alguns aspectos relacionados. Assim, por exemplo,
no § 135 A (2010, p. 147 [7/253]), afirma-se o seguinte:

Se, aliás, for fixado e pressuposto para si que a propriedade e


a vida humana devem existir e ser respeitadas [Eigentum und
Menschenleben sein und respektiert werden soll], é então uma
contradição cometer um roubo ou um homicídio [Diebstahl
oder Mord]; [contudo] uma contradição apenas pode surgir
com algo que é enquanto princípio estável, com um conteúdo
que reside antes em posição de fundamento.

No caso, Hegel critica as antinomias do mero “dever-ser” (Sollen),


do “formalismo vazio” (leeren Formalismus), de “querer a obrigação pela
obrigação” (der Pflicht um der Pflicht willen), entre outros, da “filosofia kan-
tiana” (Kantische Philosophie). Em suma, não basta apenas afirmar que “a
propriedade e a vida humana devem existir e ser respeitadas [Eigentum
und Menschenleben sein und respektiert werden soll]”, mas isso precisa
também ser/estar/ocorrer efetivamente.
Além disso, no § 140 A (2010, p. 156 [7/270]), fala-se de “fazer o Bem
aos pobres, cuidar de mim, de minha vida, de minha família etc. [Armen
Gutes tun, für mich, für mein Leben, für meine Familie sorgen usf.]” e,
depois disso, se afirma:

Roubar para fazer o bem aos pobres [Diebstahl, um den Armen


Gutes zu tun], desertar do combate [Entlaufen aus der Schlacht]
por causa da obrigação de cuidar de sua vida, de sua família (tal-
vez também pobre) [der Pflicht willen für sein Leben, für seine
(vielleicht auch dazu arme) Familie zu sorgen], – o homicídio
por ódio ou vingança, isto é, para satisfazer o sentimento que
se tem de seu direito, do direito em geral, e o sentimento de
maldade do outro, do ilícito contra mim ou contra o outro, con-

251
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tra o mundo ou, de modo geral, contra o povo, pela eliminação


desse ser humano mau, que tem nele o Mal mesmo, o que traz
pelo menos uma contribuição ao fim, que é a exterminação do
Mal, faz-se dessa maneira por causa do aspecto positivo de seu
conteúdo pela boa intenção e, com isso, uma boa ação.

No caso, Hegel critica os que agem meramente buscando uma “boa


intenção” (guten Absicht), pois, assim, como se diz, não haveria “propria-
mente nenhum [ser humano] mau, pois ele não quer o Mal pelo Mal [eigen-
tlich keinen Bösen gebe, denn er will das Böse nicht um des Bösen willen]”.
Trata-se da questão da diferença do Bem e do Mal, do bom e do mau (tam-
bém do legal e do ilegal, do ético e não ético), que não pode ficar na mera
abstração, reservada apenas ao arbítrio do sujeito, de sua subjetividade,
mas precisa ser determinado publicamente, de forma objetiva e intersub-
jetiva. Sobre isso, inclusive convém registrar e analisar o § 260 da Filosofia
do Direito, no qual Hegel (2010, p. 236 [7/407]) expõe a seguinte afirmação:

O princípio [Prinzip] dos Estados modernos possui esse vigor e


essa profundidade prodigiosos de deixar o princípio da subjetivi-
dade [Prinzip der Subjektivität] completar-se até o extremo autô-
nomo da particularidade pessoal e, ao mesmo tempo, o reconduz
para a unidade substancial e, assim, mantém essa nele mesmo.

Porém, no caso, se os Estados deixam tal subjetividade completar-se


até o extremo autônomo da particularidade pessoal e se é direito da subje-
tividade encontrar-se satisfeito, qual é, entretanto, o extremo autônomo a
que pode chegar a individualidade? Em outras palavras, qual é o limite do
princípio da subjetividade?
Hegel busca responder essas questões na parte do parágrafo que an-
tecede a citada. Trata-se de uma elaboração extensa e complexa, composta
por uma única proposição, com 119 palavras na versão original alemã, se-
paradas por 1 ponto-e-vírgula e 5 vírgulas. A passagem destaca-se, ainda,
por ser o 1º parágrafo da 1ª subdivisão: A. O Direito Estatal Interno, da 3ª
seção: O Estado, da assim chamada 3ª parte: A Eticidade, do todo da Filo-
sofia do Direito. Em síntese, no § 260 ele explicita o modo de efetivação da
liberdade da subjetividade no âmbito do Estado.
Em primeiro lugar, separada do restante por um ponto-e-vírgula,
consta a afirmação inicial da longa frase, afirmando o seguinte: “o Estado
é a efetividade [Wirklichkeit] da liberdade concreta” e, logo depois de tal
afirmação descritiva, Hegel introduz uma declaração adversativa:

mas, a liberdade concreta consiste em que a singularidade pes-


soal e seus interesses particulares tenham tanto seu desenvol-
vimento completo e o reconhecimento de seu direito para si (no
sistema da família e da sociedade civil-burguesa), como, em

252
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

parte, passem por si mesmos ao interesse do universal, em par-


te, com seu saber e seu querer, o reconheçam como seu próprio
espírito substancial e sejam ativos para ele como seu fim-último,
isso de modo que nem o universal valha e possa ser consumado
sem o interesse, o saber e o querer particulares, nem os indi-
víduos vivam [leben] meramente para esses últimos, enquanto
pessoas privadas, sem os querer, ao mesmo tempo, no e para
o universal e sem que tenham uma atividade eficaz consciente
desse fim (Idem, 2010, p. 235 [7/406-407]).

Observemos, antes de analisar as informações, que Hegel destaca, no


texto, alguns termos, todos grifados em itálico, a saber: “liberdade concreta”
(konkrete Freiheit), “reconhecimento de seu direito” (Anerkennung ihres Rechts),
“passem” (übergehen), “espírito substancial” (substantiellen Geist), “ativos” (tätig)
e “fim-último” (Endzweck). Ora, Hegel aponta, em primeiro lugar, que não é
qualquer liberdade, mas sim a liberdade concreta. Depois, ele usa o verbo
“bestehen” (besteht), seguido da preposição “darin”, fazendo com que ele assu-
ma a acepção própria de “consistir em [algo]” (in etwas bestehen). Assim, para
ele, a liberdade concreta ‘consiste em algo’ e, em seguida, Hegel mostra que
ela envolve a “singularidade pessoal” (persönliche Einzelheit) e, também, os
seus “interesses particulares” (besondere Interessen), que precisam ambos:
[1º] tanto (sowohl) ter seu desenvolvimento completo e o reconhecimento de
seu direito para si (no sistema da família e da sociedade civil-burguesa) [2º]
quanto (als), [2.1] em parte (teils), é necessário que eles [a singularidade pes-
soal e os interesses particulares] passem (übergehen) por si mesmos ao inte-
resse do universal e, [2.2.] em parte (teils), eles o reconheçam [o interesse do
universal], com seu saber e seu querer, como seu próprio espírito substancial,
e sejam para ele ativos como seu fim-último. Mas, além disso, Hegel ressalta
que isso tudo se deve dar de tal maneira que: nem o universal valha e possa
ser consumado sem (ohne) o interesse, o saber e o querer particulares; nem
os indivíduos vivam [leben] meramente (bloß) para estes últimos, enquanto
pessoas privadas, sem (ohne) os querer [wollen], ao mesmo tempo (zugleich),
no e para o universal, e sem (ohne) que tenham uma atividade eficaz cons-
ciente desse fim. Trata-se, portanto, não de qualquer forma de vida (Leben).
Trata-se, portanto, de conjunto minucioso de informações interliga-
das, o que justifica o fato de se encontrarem, reunidas, numa única propo-
sição. Ora, os seus elementos são de tal ordem, que, ao se tomar uma parte
sem a outra, altera-se a compreensão do seu significado. Assim sendo, para
apreender o grau de complexidade e de relevância do parágrafo citado, é
preciso não se ater apenas a uma parte nem desprezar ou vulgarizar um
item sequer de sua composição.
Depois disso, no § 260 Z ([TP] [7/407]) reafirma-se a defesa de que “a
essência do Estado moderno é que o universal esteja ligado com a plena

253
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

liberdade da particularidade e a prosperidade dos indivíduos”, de acordo


com “o saber e o querer próprios da particularidade”, isto é, que a “subje-
tividade torne-se inteira e vivamente desenvolvida [ganz und lebendig en-
twickelt]”. Enfim, reitera-se, assim, que Hegel defende a respectiva esfera
da subjetividade, da particularidade, que todo Estado livre deve envolver
e respeitar, não se imiscuindo arbitrariamente no seu conteúdo. Portanto,
no caso, a primeira definição ou determinação hegeliana é a negação da
possibilidade de interferir, de se intrometer ou de se imiscuir do Estado
naquilo que não lhe diz respeito, no domínio próprio da subjetividade, que
deve ou precisa ser devidamente garantida.
Mas, segundo Hegel, quando um conteúdo qualquer sai da esfera
meramente interna, privada e entra no âmbito “mundano”, externo, públi-
co, intersubjetivo, então, com isso, passa a estar no ou sob o “domínio do
Estado”; isto é, sendo público, “coloca-se através disso imediatamente sob
suas leis”, sob as leis do Estado (cf. § 270 A, 2010, p. 246 [7/421]). Assim,
para Hegel, na medida em que, por exemplo, uma ação se torna pública,
externalizada, ela fica imediatamente sob as leis que regem a convivência
pública, intersubjetiva, a saber, as leis ou a constituição de um Estado.
Ora, uma das leis do Estado é ou pode ser o serviço militar obri-
gatório, aspecto vinculado, segundo Hegel, ao “patriotismo” (Patriotismus)
enquanto uma “disposição espiritual35 política” (politische Gesinnung). No
caso, é necessário registrar as duas ocorrências da chamada “disposição
espiritual política” (politische Gesinnung) nos §§ 267 e 268, no caso, expos-
to como “patriotismo” (Patriotismus), um “querer” (Wollen) que se tornou
“hábito” (Gewohnheit) ou “costume” (Sitte). E isso remete ao que consta no
§ 151 (2010, p. 171 [7/301]), a saber: “[…] na identidade simples com a efeti-
vidade dos indivíduos, o ético [das Sittliche] aparece como modo de ação
universal deles como costume [Sitte], – o hábito [Gewohnheit] deles como uma
segunda natureza [zweite Natur], que é posta no lugar da vontade primeira
meramente natural [ersten bloß natürlichen Willens]”36. Assim, em suma,
para Hegel, o ser humano, dada sua capacidade racional, deve[ria], logo,

35 Traduzimos Gesinnung por “disposição espiritual”, pois tradutores como J.-F. Kervégan, B. Bourgeois e A. Kaan a
traduziram por “disposition-d’esprit”, o que consideramos mais apropriado e preciso do que “disposición interior”, de
J. L. Vermal; “disposição de ânimo”, de M. L. Müller, etc. Ora, trata-se não de mera “disposição”, mas que é espiritual.
36 Sobre isso, ver o § 151 (2010, p. 171 [7/301]): “Mas, na identidade simples com a efetividade dos indivíduos, o
ético [Sittliche] aparece como modo de ação universal [allgemeine Handlungsweise] deles – como costume [Sitte], – o
hábito [Gewohnheit] deles como uma segunda natureza [zweite Natur], que é posta no lugar da vontade primeira
meramente natural [ersten bloß natürlichen Willens], e são a alma, a significação e a efetividade que penetram seu
ser-aí, o espírito vivo e presente [lebendige und vorhandene Geist] enquanto mundo, cuja substância somente
assim é como espírito [Geist].” E, ainda, o § 151 Z ([TP] [7/302]): “O ser humano morre [stirbt] também por hábito
[Gewohnheit], ou seja, quando se habituou [eingewöhnt] completamente na vida [Leben], se torna espiritual e
fisicamente monótono [geistig und physisch stumpf], e a oposição entre consciência subjetiva e atividade espiritual
desaparece, porque o ser humano apenas é ativo se não conseguiu algo e quer produzir e se fazer valer em vinculação
a ele. Quando isso é consumado [vollbracht], a atividade [Tätigkeit] e a vitalidade [Lebendigkeit] desaparecem, e a falta
de interesse [Interesselosigkeit], que surge, é a morte espiritual ou física [geistiger oder physischer Tod].”

254
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

comportar-se mais de acordo com a sua “segunda natureza” (zweite Natur


– §§ 4 e 151) ou a sua “natureza espiritual” (geistige[n] Natur – §§ 49 A e §
264), não apenas ou mais conforme sua primeira natureza, somente natural
ou animal. Com isso, a “disposição espiritual ética” (sittliche Gesinnung)
significa algo elevado enquanto “costume” (Sitte), “hábito” (Gewohnheit),
“virtude” (Tugend). Hegel mostra, assim, todo o percurso desde o “querer”
(Wollen) com “saber” (Wissen) ou a simples “consciência” (Bewusstsein),
passando, em seguida, ainda pela “consciência-de-si” ou pela “autoconsci-
ência” (Selbstbewusstsein), pela assim chamada “consciência moral” (Gewis-
sen) subjetiva até, enfim, a “disposição espiritual ética” (sittliche Gesinnung).
Sobre isso, no § 268 A (2010, p. 240 [TP] [7/413-414]), afirma-se o se-
guinte:

Entende-se frequentemente por patriotismo [Patriotismus]


apenas a disponibilidade [nur die Aufgelegtheit] a extraordiná-
rios sacrifícios e ações [außerordentlichen Aufopferungen und
Handlungen]. Mas, essencialmente, ele [o patriotismo] é a dis-
posição espiritual [Gesinnung], que na situação e nas relações
de vida habituais [gewöhnlichen Zustande und Lebensverhältnisse]
está habituado [gewohnt] a saber [zu wissen] que a comunidade
[Gemeinwesen] é o fundamento substancial e o fim [substantielle
Grundlage und Zweck]. Essa consciência que se verifica em to-
das as relações no curso habitual da vida [gewöhnlichen Lebens-
gange] é, então, o que fundamenta também a disponibilidade
[Aufgelegtheit] a um esforço fora do habitual [außergewöhnlicher
Anstrengung]. Mas, como os seres humanos são frequentemen-
te mais magnânimos do que justos [lieber großmütig als rechtli-
ch], assim se persuadem [überreden] facilmente de possuir esse
patriotismo extraordinário [außerordentlichen Patriotismus]
a fim de se poupar daquela disposição espiritual verdadeira
[wahrhafte Gesinnung] ou de se desculpar de sua falta [Mangel]. –
Quando, além disso, a disposição espiritual [Gesinnung] é con-
siderada como o que pode constituir para si o começo e provir
de representações e de pensamentos subjetivos [subjektiven
Vorstellungen und Gedanken], assim ela é confundida com a opi-
nião [Meinung], visto que, com esse ponto de vista, carece de
seu fundamento verdadeiro [wahrhaften Grundes], a realidade
objetiva [objektiven Realität].

Abaixo, veremos mais aspectos sobre “sacrifícios” (Aufopferungen)


possíveis ou necessários. Ora, sobre isso, no § 270 A (2010, p. 247 [TP]
[7/422-423]), ainda consta:

[…] o Estado também tem uma doutrina, visto que suas insti-
tuições e o que, em geral, vale para ele a respeito do direito, da
constituição etc. estão essencialmente enquanto lei na forma
do pensamento, e visto que ele não é nenhum mecanismo, po-
rém a vida racional da liberdade autoconsciente [das vernünfti-
ge Leben der selbstbewußten Freiheit], o sistema do mundo ético

255
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

[System der sittlichen Welt], assim a disposição espiritual [Gesin-


nung] e logo a consciência desta nos princípios são um mo-
mento essencial no Estado efetivo [wirklichen Staate].

Depois disso, ainda no § 270 A (2010, p. 248-249 [TP] [7/424]), enfim,


consta o seguinte:

Inicialmente, é de se observar que tal relação se liga com a


representação do Estado [Vorstellung vom Staat], segundo a qual
ele apenas tem [nur hat] por determinação [Bestimmung] a pro-
teção e segurança da vida [Schutz und Sicherheit des Lebens], da
propriedade e do arbítrio de cada um [Eigentums und der Willkür
eines jeden], na medida em que eles não atentem contra a vida
[das Leben], a propriedade e o arbítrio dos outros [Eigentum und
die Willkür der anderen], e assim o Estado apenas é considerado
uma organização da miséria [Veranstaltung der Not].

Trata-se da terceira ocorrência da expressão “segurança da vida”, no


caso referida como “Sicherheit des Lebens”, e não “Sicherung des Lebens”.
Por fim, ainda no § 270 A (2010, p. 252 [TP] [7/424]), igualmente se afirma:

[…] de outra parte, o Estado toma sob sua proteção [Schutz] a


verdade objetiva [objektive Wahrheit] e os princípios da vida éti-
ca [Grundsätze des sittlichen Lebens] frente a esse opinar de maus
princípios [Meinen schlechter Grundsätze], visto que esse faz de
si um ser-aí universal que corrói a efetividade, sobretudo na
medida em que o formalismo da subjetividade incondicionada
[Formalismus der unbedingten Subjektivität] queira tomar por seu
fundamento [Grunde] o ponto de partida científico [wissenschaf-
tlichen Ausgangspunkt] e elevar os estabelecimentos de ensino
do próprio Estado até a pretensão de uma Igreja [Kirche] e voltá-
-los contra ele, assim como, no todo, face à Igreja que reclama
uma autoridade indelimitada e incondicionada [unbeschränkte
und unbedingte Autorität], ele [o Estado] tem, inversamente, de
fazer valer o direito formal da autoconsciência a seu próprio
discernimento, à sua convicção e, em geral, ao pensamento do
que deve valer como verdade objetiva [objektive Wahrheit].

Ora, convém lembrar que o § 270 A é o lugar em que Hegel aborda


“a relação do Estado com a religião [das Verhältnis des Staats zur Religion]”
ou “a relação entre religião e Estado [das Verhältnis von Religion und Staat]”,
citando e analisando, principalmente, os aspectos em que “Estado e Igreja
[Staat und Kirche] se encontram diretamente em acordo ou em oposição”,
sendo que se destaca a questão dos “princípios da vida ética [Grundsätze des
sittlichen Lebens]”, inclusive sobre a “proteção e segurança da vida [Schutz
und Sicherheit des Lebens]”.
Sobre isso, nos §§ 321 a 329, Hegel fala da “soberania externa” (Sou-
veränität gegen außen), em paralelo com a “soberania interna” (Souveränität

256
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

nach innen), falando, entre outros, no § 322, da “relação [de um Estado in-
dividual] com outros Estados” (Verhältnis zu anderen Staaten), o que pode
levar, segundo o § 323 (2010, p. 297 [7/491]), a “eventos contingentes, que
vêm de fora” (zufälligen Begebenheiten, die von außen kommen), o que pode
se tornar um “momento próprio supremo” (höchstes eigenes Moment), que
“enquanto força absoluta [absolute Macht] contra todo singular e particular
[gegen alles Einzelne und Besondere], contra a vida, a propriedade e os seus
direitos [gegen das Leben, Eigentum und dessen Rechte], assim como contra
os demais círculos, traz a nulidade destes ao ser-aí e à consciência”. Trata-
-se da possibilidade da guerra versus da paz, que citamos aqui apenas no
sentido de apresentar e analisar a questão da vida e da morte, em especial
o aspecto da segurança da vida. Por exemplo, sobre isso, no § 324 (2010, p.
297 [7/491]), Hegel afirma:

Essa determinação com a qual o interesse e o direito dos [indi-


víduos] singulares são postos como um momento evanescente,
é simultaneamente o positivo, isto é, não sua individualidade
contingente e mutável, porém sua individualidade sendo em si
e para si. Por isso, essa relação e seu reconhecimento são sua
obrigação substancial – a obrigação de conservar essa indivi-
dualidade substancial, a independência e a soberania do Es-
tado pelo perigo e sacrifício de sua propriedade e de sua vida
[Gefahr und Aufopferung ihres Eigentums und Lebens], além disso,
de seu opinar e de tudo o que, de si, está concebido no âmbito
da vida [Umfange des Lebens].

Em seguida, no § 324 A (2010, p. 297-298 [7/492]), ainda consta o seguinte:

Há um cálculo muito equivocado, quando, na exigência des-


se sacrifício [Forderung dieser Aufopferung], o Estado é con-
siderado apenas como sociedade civil-burguesa e como seu
fim último apenas a garantia da vida e da propriedade dos in-
divíduos [Sicherung des Lebens und Eigentums der Individuen];
pois essa garantia não é alcançada pelo sacrifício [Aufopfe-
rung] do que deve ser garantido; – ao contrário. – No que se
acaba de indicar, reside o momento ético da guerra [sittliche
Moment des Krieges], que não é de se considerar como um
mal absoluto [absolutes Übel] e como uma mera contingên-
cia exterior [bloß äußerliche Zufälligkeit], que teria seu fun-
damento, com isso, ele mesmo contingente [zufälligen], no
que quer que seja, nas paixões dos poderosos ou dos povos,
nas injustiças [Ungerechtigkeiten] etc., em geral, no que não
deve ser [das nicht sein soll]. O que é da natureza do contin-
gente [Zufälligen] vem de encontro ao contingente [Zufällige],
e, com isso, esse destino [Schicksal] é precisamente a neces-
sidade [Notwendigkeit], – assim como, em geral, o conceito e
a filosofia [der Begriff und die Philosophie] fazem desaparecer
o ponto de vista da mera contingência [Zufälligkeit] e nela,
enquanto aparência [Schein], [re]conhecem [erkennt] sua es-

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sência [Wesen], a necessidade [Notwendigkeit]. É necessário


[notwendig] que o finito [Endliche], a posse e a vida [Besitz
und Leben] sejam postos como contingentes [Zufälliges],
porque esse é o conceito do finito [Begriff des Endlichen].
Essa necessidade [Notwendigkeit], de uma parte, tem a figu-
ra do poder da natureza [Naturgewalt], e tudo o que é finito
[Endliche] é mortal e perecível [sterblich und vergänglich].

Ora, trata-se propriamente da quarta e última ocorrência da expres-


são “garantia da vida” na Filosofia do Direito de Hegel, em que se afirma
que a “vida” (Leben) é “contingente” (Zufällige), “finita” (Endliche), “mortal
e perecível” (sterblich und vergänglich). Mas, além disso, afirma-se que,
no caso de “guerra” (Krieg), o Estado pode fazer a “exigência” (Forderung)
do possível “sacrifício” (Aufopferung) da vida individual. Trata-se de pas-
sagem hegeliana muito questionada, inclusive porque parece haver uma
apologia da guerra, sendo apresentado igualmente o chamado “momento
ético da guerra” (sittliche Moment des Krieges), que não deveria vir a ser con-
siderado como um “mal absoluto” (absolutes Übel), até porque a guerra
parece ser considerada aí não enquanto uma “mera contingência exterior”
(bloß äußerliche Zufälligkeit), porém sim até mesmo do âmbito do “destino”
(Schicksal) e/ou da “necessidade” (Notwendigkeit).
Sobre isso, na continuação do § 324 A (2010, p. 298 [7/492-493]),
afirma-se:

[…] A guerra [Krieg] como situação em que se torna algo sério


a vaidade dos bens e das coisas temporais [Eitelkeit der zei-
tlichen Güter und Dinge], que antes costuma ser um modo de
falar edificante, é assim o momento em que a idealidade do
particular recebe seu direito [Recht] e torna-se efetividade [Wi-
rklichkeit]; – ela [a guerra] tem a significação superior [höhe-
re Bedeutung], como já mencionei em outro lugar37, de que
por ela “a saúde ética dos povos [die sittliche Gesundheit der
Völker] é mantida, e sua indiferença frente ao solidificar das
determinidades finitas, como o movimento dos ventos preser-
va os mares da podridão [Fäulnis], em que uma calma durável
[eine dauernde Ruhe] os mergulharia, como faria para os povos
uma paz durável ou inclusive uma paz perpétua [ein dauernder
oder gar ein ewiger Friede]”.

No caso, Hegel mostra ou demonstra que seu pensamento continua


o mesmo, reiterando algo em 1821 que já havia afirmado em 1802, isto é,
que sua compreensão sobre questão da guerra e da paz perpétua não foi
alterada. Depois disso, ainda no § 324 A (2010, p. 298 [7/493]), consta:

37 HEGEL. Sobre as Maneiras Científicas de Tratar o Direito Natural [Über die wissenschaftlichen Behandlungsarten
des Naturrechts], de 1802, Ed. Suhrkamp, vol. 2, p. 482. Traduzido para o português por Agemir Bavaresco e Sérgio
Christino [São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 84].

258
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Aliás, veremos adiante [§ 337] que isso [isto é, a paz perpé-


tua] é apenas [nur] uma ideia filosófica [philosophische Idee],
ou então, como se costuma expressar de outro modo, uma
justificação da Providência [Vorsehung], e que as guerras efe-
tivas [wirklichen Kriege] carecem ainda de outra justifica-
ção [Rechtfertigung].

Assim, Hegel destaca que a noção ou a pressuposição de “paz per-


pétua” (ewige Friede) é “apenas [nur] uma ideia filosófica [philosophische
Idee]” ou, então, como consta no § 324 Z38, é tão somente “um ideal [ein
Ideal]”. Ora, no final do § 324 A (2010, p. 298-299 [7/493]), consta:

Que a idealidade, que aparece na guerra [Kriege] enquan-


to residindo em uma relação externa contingente [zufälligen
Verhältnisse nach außen], e a idealidade segundo a qual os po-
deres internos do Estado são momentos orgânicos do todo, – o
mesmo se apresenta no fenômeno histórico, entre outros, sob a
figura [Gestalt] de guerras felizes [glückliche Kriege] que impe-
diram perturbações internas [innere Unruhen] e consolidaram
o poder interno do Estado. Que os povos, não querendo supor-
tar ou temendo a soberania interna [Souveränität nach innen],
foram subjugados [unterjocht] por outros e que se esforçaram
por sua independência [Unabhängigkeit] com tanto menos êxi-
to e honra quanto menos podiam chegar ao interior de uma
primeira instituição do poder do Estado (sua liberdade morreu
no temor de morrer [ihre Freiheit ist gestorben an der Fur-
cht zu sterben]); – que os Estados, que têm a garantia de sua
autonomia [Selbständigkeit] não em sua força armada [bewa-
ffneten Macht], porém, em outros pontos de vista (como, por
exemplo, Estados excessivamente pequenos frente a vizinhos),
podem subsistir com uma constituição interna, a qual para si
não garantiria tranquilidade nem interna nem externamente
etc. – são fenômenos que a isso precisamente pertencem.

Ora, a frase: “sua liberdade morreu no temor de morrer [ihre Freiheit


ist gestorben an der Furcht zu sterben]” mostra a vinculação hegeliana
entre vida, morte, temor de morrer, liberdade, autonomia, independência,
soberania etc. Em suma, não há vida sem defesa da vida.

38 § 324 Z ([TP] [7/492-493]: “Na paz [Im Frieden], a vida civil-burguesa [bürgerliche Leben] se expande mais, todas
as esferas se encasulam e, no longo prazo, os seres humanos estagnam como pântanos; a sua particularidade torna-
se sempre mais fixa e se ossifica. Mas, faz parte da saúde [Gesundheit] a unidade do corpo, e, quando as partes em
si mesmas endurecem, a morte [Tod] está aí. Paz perpétua [Ewiger Friede] foi frequentemente exigida [gefordert]
como um ideal [ein Ideal] do qual a humanidade precisaria se aproximar [zugehen müsse]. Kant propôs, assim, uma
coligação de príncipes que deveria arbitrar [schlichten sollte] os conflitos dos Estados [streitigkeiten der Staaten], e
a Santa Aliança tinha a intenção de ser aproximadamente um tal instituto. Só que o Estado é um indivíduo e, na
individualidade, a negação [Negation] está essencialmente contida. Ainda que, portanto, um certo número de
Estados se constitua numa família, esta associação, enquanto individualidade, tem de criar uma oposição e engendrar
um inimigo. Não só os povos saem revigorados das guerras, mas as nações, que estão em discórdia dentro de si,
alcançam com a guerra externa a tranquilidade interna. Certamente, pela guerra advém insegurança na propriedade
[Unsicherheit ins Eigentum], mas essa insegurança real nada mais é do que o movimento, o qual é necessário.”

259
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Depois disso, no § 325 (2010, p. 299 [7/494]), Hegel fala do “sacrifí-


cio para a individualidade do Estado” (Aufopferung für die Individualität
des Staates), enquanto “obrigação universal” (allgemeine Pflicht), próprio do
“estamento da valentia” (Stand der Tapferkeit). Ora, em seguida, já no § 326
(2010, p. 299 [7/494]), se afirma o seguinte:

As contendas [Zwiste] dos Estados entre si podem ter por ob-


jeto qualquer aspecto particular de sua relação; para essas con-
tendas [Zwiste], também a parte particular do Estado, dedicada
à sua defesa [Verteidigung], tem sua determinação principal.
Mas à medida em que a autonomia do Estado como tal, entra
em perigo [Gefahr], assim a obrigação [Pflicht] chama todos os
seus cidadãos [seine Bürger] para sua defesa [Verteidigung].
Quando assim o todo se tornou força e é arrancado de sua
vida interna [inneren Leben] dentro de si para fora, com isso a
guerra defensiva [Verteidigungskrieg] passa à guerra de con-
quista [Eroberungskrieg].

No caso, novamente Hegel ressalta a “obrigação” (Pflicht) dos “ci-


dadãos” (Bürger) ou dos membros de se dedicar à “defesa” (Verteidigung)
do Estado, o que busca ser uma “proteção e segurança da vida [Schutz und
Sicherheit des Lebens]”, uma “garantia da vida e da propriedade dos indi-
víduos” [Sicherung des Lebens und Eigentums der Individuen], mas pode ser
também o “sacrifício de sua propriedade e de sua vida [Gefahr und Aufo-
pferung ihres Eigentums und Lebens]”. Trata-se de aspecto reiterado por
Hegel ao longo de sua obra.
Sobre isso, no § 327 Hegel fala da “valentia” (Tapferkeit), sendo que,
no § 327 Z ([TP] [7/495], consta: “A verdadeira valentia de um povo culto é
estar disposta para o sacrifício no serviço do Estado, de modo que o indi-
víduo apenas constitui um entre muitos [Die wahre Tapferkeit gebilde-
ter Völker ist das Bereitsein zur Aufopferung im Dienste des Staates, so
daß das Individuum nur eines unter vielen ausmacht]” e, a seguir, ainda
consta: “A coragem pessoal [persönliche Mut] não é aqui o importante [das
Wichtige], porém o enquadramento no universal [die Einordnung in das
Allgemeine]”. Em seguida, no § 328 (2010, p. 300 [7/496]), Hegel afirma: “O
teor da valentia, enquanto disposição espiritual [Gesinnung], reside no fim
último absoluto verdadeiro, [isto é] a soberania [Souveränität] do Estado”; e
depois, no § 328 A (2010, p. 300-301 [TP] [7/496]), consta:

Pôr sua vida em jogo [Das Leben daran setzen] é certamente


mais do que temer apenas a morte [Tod nur fürchten], mas é,
assim, o mero negativo e não tem, por causa disso, nenhuma
determinação e nenhum valor para si; – somente o positivo,
o fim e o conteúdo dão significação a essa coragem [Mut]; os
ladrões, os assassinos, cujo fim é o crime, os aventureiros, cujo
fim é feito em sua opinião etc., têm também aquela coragem

260
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

de pôr sua vida em jogo [jenen Mut, das Leben daran zu set-
zen]. – O princípio do mundo moderno, o pensamento e o uni-
versal, deram à valentia [Tapferkeit] uma figura superior de
que sua externação parece ser mais mecânica e não aparece
como um atuar dessa pessoa particular, porém apenas enquan-
to membro de um todo, – igualmente de que ela não é mais
dirigida contra as pessoas singulares, porém contra um todo
hostil em geral, com isso a coragem pessoal [persönliche Mut]
não aparece como pessoal. Por isso, esse princípio inventou a
arma de fogo [Feuergewehr], e uma invenção contingente dessa
arma não transformou a mera figura pessoal da valentia numa
figura mais abstrata.

No caso, Hegel ressalta as características da verdadeira “valentia”


ou “bravura” (Tapferkeit), que não é “pôr sua vida em jogo [Das Leben
daran setzen]” de qualquer forma, como é a chamada “coragem de pôr
sua vida em jogo [Mut, das Leben daran zu setzen]” simplesmente de
“ladrões” (Räuber), de “assassinos” (Mörder) ou de “aventureiros” (Aben-
teurer), mas para salvar vidas.
Enfim, como consta no § 329 (2010, p. 301 [7/497]), “decidir a guer-
ra e a paz e outros tratados” (Krieg und Frieden und andere Traktate zu
schließen) é algo essencial, pois disso depende a vida ou a morte do “sujeito
individual” (individuelles Subjekt) seja do Estado, seja dos cidadãos. Ora,
nos §§ 330 a 340, Hegel apresenta o seu “Direito Estatal Externo” (äußere
Staatsrecht), cujos detalhes não veremos aqui39, mas convém destacar, por
mencionar o conceito de vida, o § 338 (2010, p. 305 [TP] [7/502]), que afirma:

No fato de que os Estados se reconhecem reciprocamente


como tais, também na guerra [auch im Kriege], permanece a si-
tuação da ausência de direito, de violência e de contingência,
um laço [ein Band], em que eles valem uns para os outros sendo
em si e para si, de modo que, na guerra mesma [im Kriege sel-
bst], a guerra [der Krieg] é determinada [bestimmt] como algo
que deve ser passageiro [Vorübergehensollendes]. Com isso,
ela [a guerra] contém a determinação do direito dos povos [die
völkerrechtliche Bestimmung] de que nela a possibilidade da
paz [die Möglichkeit des Friedens] seja preservada [erhalten],
assim, por exemplo, os embaixadores sejam respeitados e, em
geral, que ela [a guerra] não seja conduzida contra as institui-
ções internas e a vida familiar e privada pacífica [das friedliche
Familien- und Privatleben] contra as pessoas privadas.

No caso, destaca-se a fala hegeliana de que a “guerra [Krieg]” é “de-


terminada [bestimmt]” como “algo que deve ser passageiro [ein Vorüber-
gehensollendes]”, buscando, assim, a paz, ou, então, pelo menos, “preservar

39 Sobre isso, ver: KONZEN, 2019: Os conceitos hegelianos e kantianos de Direito Estatal Externo, de Direito dos
Povos ou Direito das Gentes ou Direito Internacional, de Guerra e de Paz.

261
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

[erhalten]” “a possibilidade da paz [die Möglichkeit des Friedens]”. Hegel,


a princípio, não quer promover ou incitar a guerra, mas, antes, registrar
que sempre há ou pode haver a possibilidade da guerra. Assim sendo, paz e
guerra não estão no âmbito da necessidade (tem que ser/ter = não pode não
ser/ter), mas, como consta, são do âmbito da contingência (pode não ser/
ter). Em suma, em Hegel, se hoje tem paz, amanhã pode não ter paz. Ora,
no caso, contudo, importa ainda que, havendo guerra, que “não seja con-
duzida contra as instituições internas e a vida familiar e privada pacífica
[das friedliche Familien- und Privatleben], contra as pessoas privadas”40.
Por fim, no § 340 (2010, p. 305-306 [7/503]), parágrafo final da seção,
Hegel fala da “relação dos Estados uns frente aos outros”, de sua “contin-
gência [Zufälligkeit]” enquanto aspecto da “dialética fenomênica da finitude
[erscheinende Dialektik der Endlichkeit] desses espíritos”41. Enfim, são rei-
teradas afirmações de Hegel buscando mostrar, sim, que devemos buscar a
“paz” (Friede) ou a “possibilidade da paz” (Möglichkeit des Friedens), mas
que não seria possível uma “paz perpétua” (ewige Friede), isto é, torná-la ne-
cessária, pois, antes, paz e guerra são do âmbito da “contingência” (Zufälli-
gkeit), sendo que o autor usa duas vezes o citado termo. Assim, para Hegel,
a paz é algo contingente (que pode não ser)42, por mais que todos possam
concordar ou defender que é algo que deve ou deveria ser ou existir.
Em suma, conforme Hegel, § 100 A, “a proteção e a garantia da vida
e da propriedade dos indivíduos [der Schutz und die Sicherung des Leben
und Eigentums der Individuen]”; 127 Z, “a garantia da vida [Sicherung des
Leben]”; § 270, a “proteção e segurança da vida [Schutz und Sicherheit
des Lebens], da propriedade e do arbítrio de cada um [Eigentums und
der Willkür eines jeden]”; § 324 A, a “garantia da vida e da propriedade

40 Sobre isso, inclusive, no § 338 Z ([TP] [7/502]), afirma-se: “As guerras mais recentes são, por isso, conduzidas
mais humanamente, e as pessoas não se defrontam com ódio entre si” (Die neueren Kriege werden daher menschlich
geführt, und die Person ist nicht in Haß der Person gegenüber). Além disso, no § 339 (2010, p. 305 [7/501]), consta:
“[…] o comportamento recíproco [dos Estados] na guerra [im Kriege] (por exemplo, que se façam prisioneiros) e o que,
na paz [im Frieden] um Estado concede aos súditos [Angehörigen] de outro [em matéria] de direitos para o comércio
privado etc., isso repousa principalmente nos costumes das nações [Sitten der Nationen] enquanto universalidade
interna da conduta que se mantém em todas as relações.”
41 § 340 (2010, p. 305-306 [7/503]): “Na relação dos Estados uns frente aos outros, porque estão aí como particulares,
entra o jogo extremamente móvel da particularidade interna das paixões, dos interesses, dos fins, dos talentos e das
virtudes, da violência, do ilícito e dos vícios, assim como o da contingência externa nas maiores dimensões do fenômeno,
– um jogo no qual a totalidade ética mesma, a autonomia do Estado está exposta à contingência [Zufälligkeit]. Os
princípios dos espíritos dos povos [Volksgeister], por causa de sua particularidade, em que eles têm sua efetividade
objetiva e sua autoconsciência enquanto indivíduos existentes são, em geral, delimitados, e seus destinos e seus atos,
em sua relação uns aos outros, são a dialética fenomênica da finitude [erscheinende Dialektik der Endlichkeit] desses
espíritos a partir da qual o espírito universal [der allgemeine Geist], o espírito do mundo [der Geist der Welt] produz-
se tanto como indelimitado quanto é ele que exerce neles seu direito, – e seu direito é o mais elevado de todos, – na
história mundial [der Weltgeschichte], enquanto tribunal do mundo [als dem Weltgerichte].”
42 Cf. Bavaresco e Velasco, 2013, p. 55: “Hegel comenta a proposta kantiana de organizar uma liga de Estados com a
finalidade de resolver os conflitos e arbitrar litígios, evitando a decisão pela guerra. Porém, esses acordos repousariam
em razões morais, religiosas ou outras, ou seja, ‘sempre na vontade soberana particular’. A conclusão é que os
contratos ou tratados entre os Estados permanecem contingentes.”

262
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

dos indivíduos [Sicherung des Lebens und Eigentums der Individuen]”; isso
não é algo incondicional, absoluto. Entre outros, isso depende se estamos
falando “da vida individual e [ou] da vida do povo [des individuellen und
des Volkslebens]”, cf. § 345, da “vida do Estado [Staatsleben]”, cf. § 279 A
e § 290 etc., sendo o pior, segundo Hegel, a “morte da vida ética [den Tod
des sittlichen Lebens]”, cf. § 35743.
Contudo, Hegel procura, sim, “a garantia da vida e da propriedade
[die Sicherung des Lebens und Eigentums]” e, sobre isso, convém citar um
trecho das Lições sobre a Estética ([TP] [13/242]):

[…] nos Estados ordenados [geordneten Staaten], a existência ex-


terna do ser humano é assegurada [gesichert], sua propriedade
é protegida [sein Eigentum beschützt] e tem propriamente sua
disposição espiritual subjetiva e seu discernimento [seine sub-
jektive Gesinnung und Einsicht] apenas para si e por si. Mas,
na situação sem Estado [staatslosen Zustande], a garantia da
vida e da propriedade [die Sicherung des Lebens und Eigen-
tums] repousa apenas na força singular e na valentia de cada
indivíduo [einzelnen Kraft und Tapferkeit jedes Individuums],
que também deve garantir [sorgen] sua própria existência e a
preservação [eigene Existenz und die Erhaltung] do que lhe
pertence e é devido [ihm gehört und gebührt].

Enfim, Hegel busca promover a liberdade e, para tal, precisa ter vida,
e não morte; contudo, não é qualquer vida, meramente natural, animal,
mas precisa ser propriamente, antes, vida espiritual, suprassumida, em
vista de um fim racional, ético.

Considerações Finais

Apresentados e analisados os dados sobre conceitos de “vida” (Le-


ben) e de “morte” (Tod) na Filosofia do Direito de Hegel em relação com
os seus conceitos de “matar” (töten – umbringen), de “se matar” (sich töten
– sich umbringen), de “suicídio” (Selbsttötung – Selbstmord), de “pena de
morte” (Todesstrafe) e de “garantia da vida” (Sicherung des Leben), é pos-

43 Cf. Inwood, 1997: Dicionário Hegel, termos “morte e imortalidade”, p. 283-287. Entre outros, consta: “A morte era
um tema de interesse vital na Alemanha de Hegel. […] Em seus primeiros escritos, a tendência de Hegel foi para colocar
em contraste a morte (Tod) e os mortos (das Tote) com a vida e os vivos […]. Em FE, E e IFR, Hegel considera que a
morte e os ritos a ela associados conferem uma significativa universalidade à vida terrena do indivíduo morto. […] morte
vazia, sem sentido, é a apropriada para os indivíduos simples que a ela sucumbem. […] o medo dessa morte, a “senhora
absoluta”, possibilita o restabelecimento de uma ordem diferenciada […]. A morte é suprassumida na vida. Hegel estava
especialmente interessado nas dramáticas mortes de grandes homens. […] Hegel estava principalmente interessado
nas mortes do Cristo e de Sócrates. […] Hegel antecede Nietzsche ao dizer “Deus está morto” […] acrescenta que a
sobrevivência de Deus à morte é a “morte da morte”. […] No entender de Hegel, conflito e OPOSIÇÃO são requeridos
para manter os seres humanos vivos e despertos: a AUTOCONSCIÊNCIA emerge do conflito; os homens morrem
quando se tornam demasiado satisfeitos com o seu meio ambiente; as nações morrem quando se mostram relutantes
em fazer a GUERRA; e a paz perpétua entre Estados significaria a morte do ESTADO. […]”.

263
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sível ver alguns aspectos questionáveis, mas também vários aspectos atu-
ais e pertinentes. Destaca-se, sobretudo, em Hegel a questão do “valor da
vida” (Werte des Lebens) e de que não existe “um direito” (ein Recht) de
alguém “se matar” (sich Töten), isto é, de que ninguém “pode” ou a nin-
guém “é permitido” (darf) “tirar de si mesmo a vida” (sich selbst das Leben
nehmen), pois, como consta, “o ser humano não tem nenhum direito de se
matar” (der Mensch hat kein Recht sich selbst umzubringen).
Ora, em resumo, para Hegel, nas relações éticas, no âmbito da “vida
ética” ou da “eticidade”, o indivíduo é “membro”, isto é, suas ações estão
em “relação”, “vinculação” ou “articulação” com as dos outros (isto é, são
públicas [com outros membros ou cidadãos] ou não meramente privadas) e,
assim, suas ações não são apenas subjetivas, mas também objetivas ou in-
tersubjetivas. Inclusive, em Hegel, todo “indivíduo” é: 1º, “pessoa”; 2º, “su-
jeito”; e 3º, “membro” de uma “família”, de uma “sociedade civil-burguesa”
e de um “Estado”, neste enquanto “cidadão”. Isso tudo se forma, ainda,
a partir do “espírito do [de um] povo”, do “espírito do tempo” e também
do “espírito do mundo”. Além disso, para Hegel, ele envolve [ou deveria
envolver] uma “disposição espiritual ética”, que é de “amor” no âmbito do
“casamento” ou da família; de “honra”, de “retidão”, de “associação corpo-
rativa”, na “corporação” ou na sociedade civil-burguesa; e de “disposição
de espírito política”, de “patriotismo” no âmbito do Estado. Enfim, assim,
as “ações” dos indivíduos enquanto “pessoas” jurídicas ou legais, “sujei-
tos” morais e “membros” ou “cidadãos” éticos não são mais engendradas
pela mera arbitrariedade subjetiva ou pelo mero temor a um senhor ou
superior qualquer enquanto autoridade suprema, mas, sim, engendradas
propriamente pela sua razão ou racionalidade, envolvendo saber e querer
próprios44 enquanto manifestação de uma vida ética.
Em suma, os conceitos de Hegel de “vida” (Leben) e de “morte” (Tod)
são importantes e com vários aspectos atuais para tentar compreender
melhor nossa atualidade. Conhecer mais e melhor esse pensador clássico
moderno, em especial sua Filosofia do Direito, certamente permite trazer
para a nossa contemporaneidade mais luzes, que nos guiem a encontrar os
melhores caminhos para impedir, ao máximo, por exemplo, o “se matar”
(sich töten – sich umbringen) e/ou o “suicídio” (Selbsttötung – Selbstmord),
promovendo, antes, a “garantia da vida” (Sicherung des Leben), o “valor da
vida” (Werte des Lebens), enfim, a “vida humana” (Menschenleben).

44 Respectivamente: Sittlichkeit; Glied, Mitglied; Verhältnis; Beziehung; Gliederung; Person; Subjekt; Glied; Familie;
bürgerliche Gesellschaft; Staat; Bürger; Volksgeist – der Geist eines Volkes; Zeitgeist – den Geist der Zeit; Weltgeist
– Geist der Welt; sittliche Gesinnung; Liebe; Ehe; Ehre; Rechtschaffenheit; Genossenschaft; Korporation; politische
Gesinnung; Patriotismus; Handlungen; Personen; Subjekten; Glieden; Bürgern.

264
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

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266
15
O ensino domiciliar (homeschooling): um exame
do Recurso Extraordinário nº 888.815 a partir
das divergências pontuadas por Ronald Dworkin
na obra O Império do Direito

Adriana Vieira da Costa

Introdução

O artigo visa examinar e analisar o voto do relator Ministro Luís


Roberto Barroso, que reconheceu o caráter constitucional e a repercussão
geral da temática que envolve a educação realizada em casa, homeschooling,
inclusive com a atenuante de se evitar os gastos públicos e contrapondo
a decisão da corte do Recurso Extraordinário nº 888.815, o qual decidiu
que a educação domiciliar não está autorizada no Brasil, além de fazer um
contraponto com as divergências pontuadas por Ronald Dworkin na obra
O Império do Direito, fazendo uso do viés jurídico-prático.
A justificativa da pesquisa reside na questão posta da educação fora
do regime regular de ensino adotada por diversas famílias, ou seja, fora do
ambiente escolar. Isso ocorre porque esses grupos familiares entendem que
essas crianças teriam um desenvolvimento intelectual de acordo com a pers-
pectiva de seus pais, longe de uma influência pedagógica proposta pelo Es-
tado, sobre o qual deve recair o dever exclusivo da educação formal pelo
Poder Público, ainda que de forma não estatal. Essa questão será discutida
sob o viés das divergências apresentadas pela teoria de Ronald Dworkin, que
engloba as questões de direito, fática, moral, política e de fidelidade.
Toda discussão proposta tem consistência a partir da decisão do re-
lator Luís Roberto Barroso, do RE nº 888.815 e demais votos divergentes
sobre o viés do direito de a criança ser ou não instruída e educada no am-
biente familiar, informalmente, pontuando-se as divergências de direito,
fática, moral, política e de fidelidade, as quais são, no mínimo, aparentes.
Para tanto serão apresentados o caso, a decisão do relator, os votos
dos demais ministros e sua correlação com as divergências estabelecidas

267
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

quanto às proposições jurídicas. Mas, antes de tudo, será trazido à tona o


que é o direito e sua importância para Dworkin, a divergência do direito.
Subsequentemente, será feita a análise dos votos com essa perspectiva.

O direito de ser instruído e educado no ambiente domiciliar (homeschooling)

Homeschooling trata de um termo de origem inglesa muito utilizado


no cenário internacional para tipificar uma modalidade de educação que
é organizada e provida pelos próprios pais da criança ou do adolescente
como modo de escolarização dentro de casa e fora do ambiente escolar.
Além desse termo, homeschooling, existem outras denominações,
como: Ensino Doméstico, Ensino em Casa, Educação do Lar, Escola em
Casa, Educação Doméstica, Educação Não Institucional e Educação Fa-
miliar, conforme dados da ANED – Associação Nacional de Educação
Domiciliar (ANED, 2012).
Contudo, homeschooling não é considerado apenas um termo, mas
sim um movimento exponencial no cenário internacional (ARAI, 1999).
Para termos uma noção desse destaque, algumas das principais nações
que adotam o ensino domiciliar como modalidade educacional válida são:
na América do Norte, EUA e Canadá; na América do Sul, Colômbia, Chi-
le, Equador e Paraguai; na Europa, Portugal, França, Itália, Reino Unido,
Suíça, Bélgica, Holanda, Áustria, Finlândia, Noruega e Rússia; na África,
África do Sul; na Ásia, Filipinas e Japão; e, na Oceania, Austrália e Nova
Zelândia (ANED, 2019).
Segundo o sociólogo André de Holanda Padilha Vieira (2013)1,

[…] A educação em casa é legalmente admitida em pelo menos


63 Países no mundo. Esse é um dado da associação americana,
HSLDA, que acompanha a educação em casa no mundo todo.
Em muitos Países, é um fenômeno emergente e crescente. Nos
Estados Unidos, para vocês terem uma ideia, o número de es-
tudantes domiciliares cresceu 75% desde 1999. Os estudantes
domiciliares já compõem 4% da população em idade escolar
nos Estados Unidos, País que tem a maior população de estu-
dantes domiciliares. Os pais estão combinando as abordagens
da educação: 30% dos pais que participaram da pesquisa disse-
ram que consideram a abordagem, o método que eles aplicam,
eclético. Ou seja, eles estão tentando a educação clássica, a
aprendizagem natural, unschooling, aprendizagem estruturada,
vários métodos da educação em casa. E 84% dos pais disse-
ram que educam em casa e que seguem uma aprendizagem
estruturada com pelo menos 4 horas por dia de atividades pla-
nejadas por eles. Ou seja, é uma abordagem mais ou menos
próxima daquela agenda de estudos da escola convencional.

1 Anotações e citações realizadas na ocasião da audiência pública em 2013, na Câmara dos Deputados.

268
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Logo, o reconhecimento da educação domiciliar no âmbito inter-


nacional não só é latente como perpassa vários aspectos da legislação
que configuram cada País, alguns conforme exemplo acima: (i) como
um modelo educacional legítimo, com fundamento em um direito fun-
damental de liberdade; (ii) a regulamentação legal ou infralegal; (iii) o
processo de fiscalização ou inspeção promovido pelos órgãos e agentes
estatais (ANDRADE, 2017).
Na configuração política da América do Norte, seus limites de inter-
venção estatal na esfera das liberdades individuais foi tema central de sua
conquista histórica; no Brasil, isso foi diferente. Com grande repercussão
tomada no âmbito internacional, esse tema tem provocado no seio popular,
educacional e político a discussão sobre ensino que aqui se apresenta não
apenas sob o viés da liberdade religiosa como apresentado na América do
Norte, mas também, sobretudo, com a ampliação de seu público-alvo, polí-
ticas educacionais e de como estas apresentam sua forma de reivindicação
e legitimação (BARBOSA, 2013, p. 19).
Toda essa discussão em torno do direito como uma obrigatoriedade
de se estar matriculado numa escola, bem como de todo o controle e avalia-
ção da aprendizagem por meio de outros entes autorizados, pela qualidade
educacional proporcionada pelos pais ou responsável legal que pretendam
promover a educação domiciliar da criança ou do adolescente é temática
polêmica, que foi parar no Supremo Tribunal Federal.
A Educação Domiciliar, atualmente, é concebida como um direito de
que todas as crianças e adolescentes fazem jus, sendo que esse tipo de edu-
cação se apresenta de forma universal e qualitativa, não se desprezando a
própria educação formal e os demais direitos correlatos e fundamentais.
O ensino obrigatório e de modo escolarizado inviabiliza outros
meios e modos de garantia e promoção do direito à educação (ANDRADE,
2017). Toma-se nota disso devido à dificuldade de termos uma legislação
que garanta o direito à educação domiciliar no País.
No vasto campo da legislação brasileira, não temos uma proibição da
educação domiciliar, o que temos é a educação como um direito social (art.
6º, caput da CF/88). É de se notar, no artigo 205 da CF/88, como é explícita a
imposição da educação como um dever da família, e não apenas do Estado,
de modo que se apresenta como uma relação de poder-dever decorrente da
autonomia de escolha pelo modelo de ensino que lhe convém.
É de se observar que nas demais prescrições constitucionais cuidou-
-se de regular a escola formal a ser prestada pela rede pública ou privada.
O papel da família, nesse caso, é apenas fazer a escolha quanto à escola
formal. Nesse contexto, a falta de uma lei infraconstitucional que regule
esse modo ou modelo de prestar educação restringe sua aplicação legal.

269
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Outro indicador no plano infraconstitucional que inibe aplicação do


modelo de educação domiciliar é o próprio Estatuto da Criança e do Ado-
lescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), que prescreve, no art. 4º, em
regulamentação ao texto constitucional, o dever da família, da comunida-
de, da sociedade em geral e do Poder Público, com absoluta prioridade, da
efetivação do direito referente à educação, além de outros direitos consti-
tucionais. Vislumbram-se no mesmo estatuto outros preceitos garantido-
res de as crianças serem educadas em escolas, sejam públicas ou privadas,
e em relação à família e ao Poder Público no protagonismo de viabilizarem
esse direito à educação escolar.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº
9.394, de 20 de dezembro de 1996) – reforça o direito de a criança ou o
adolescente estudar em escola, impondo-o como um dever à família e ao
Estado). Tal lei prevê que a educação formal abarque os processos for-
mativos que se desenvolvem na vida familiar, estendendo-se a diversos
aspectos da convivência humana, do trabalho, das instituições de ensino
e pesquisa, dos movimentos sociais, das organizações da sociedade civil
e das manifestações culturais. Contudo, no § 1º desse art. 1º vimos, com
clareza, a intenção do legislador ao prescrever que a educação escolar
se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino em instituições
próprias. E ainda no caso de os pais ou responsáveis não efetuarem a
matrícula das crianças com idade inicial de 4 anos na educação básica,
recair-se-á em crime de responsabilidade.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu
artigo 26, considera-se direito humano o direito à instrução, com os pais
tendo direito a prioridade na escolha do gênero de instrução que será mi-
nistrado a seus filhos. Não tão diferente foi o Decreto nº 591, de 6 de ju-
lho de 1992, por meio do qual o Brasil promulgou e internalizou o Pacto
Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966,
que estabelece, em seu artigo 13, além do direito à educação e o dever dos
Estados-Partes de sua garantia, o direito dos pais de optarem por escolas,
sejam elas públicas ou não, “ou seja, garante-se o direito de escolher uma
escola, mas não se dá o direito de não matricular em escola alguma”. Segue
ainda sugerindo que “todos esses citados diplomas internacionais não es-
tipulam o modelo educacional, conquanto sinalizem em favor da educação
escolar, sem vedar a educação ou ensino domiciliar.” (ALVES JR., 2019).
Desse modo, como não temos proibição da aplicação do modelo
educacional domiciliar aliado às exigências do acesso à educação aos ci-
dadãos do ensino obrigatório, para que estas sejam progressivamente am-
pliadas na idade escolar de 4 a 17 anos, até a universalização da educação
obrigatória, acredita-se que tal modelo pode ser um meio auxiliar para a

270
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

garantia à educação, ainda que não formal (escolar). Além disso, é preciso
lembrar que esse modelo não destaca, no todo, os parâmetros curricula-
res, havendo, sim, em boa parte dos casos, no Brasil, um descontentamen-
to com a educação pública ofertada.

A importância, o conceito do direito e as divergências de Dworkin

Antes de assinalar ou apresentar qualquer conceito, partirmos de


uma frase impactante: “É importante o modo como os juízes decidem os
casos”. É com ela que Ronald Dworkin inicia O Império do Direito, uma
de suas principais obras (talvez a mais importante, ou a mais conhecida) e
que muito contribuiu com o pensamento jurídico no mundo todo.
E, nessa esteira, assinala a difícil tarefa do julgamento, seja ele no
processo criminal ou na esfera civil, muito embora, no primeiro caso,
seja o mais temido. Os processos judiciais têm sua significância, a qual
não pode ser mensurada em dinheiro, tampouco em liberdade. Há, ine-
vitavelmente, uma dimensão moral associada a um processo judicial
legal, tendo esta, portanto, risco de uma forma inequívoca de injustiça
pública (DWORKIN, 1999).
A concepção do Direito, por si só, deixa externar o entendimento de
que seja o Direito um complexo orgânico do qual derivam normas e obri-
gações que devem ser cumpridas pelos indivíduos, sob pena de se subme-
terem a sanções previstas em lei.
Dworkin (1999) analisa o positivismo jurídico na forma que foi dado
por Hart, formulando, entre eles, que o Direito de uma comunidade é um
conjunto de regras especiais utilizado direta ou indiretamente pela comu-
nidade com o propósito de determinar qual comportamento será punido
ou coagido pelo Poder Público.
Nessa linha, o juiz, ao elaborar sua própria interpretação dos fatos
e do Direito, adota a concepção mais persuasiva daquilo que foi constru-
ído pela sociedade por meio de suas instituições até aquele momento,
exigindo do intérprete o que Ronald Dworkin denominou o dever de inte-
gridade. Cláudio de Oliveira (2009, p. 5466) resume o modelo de integrida-
de de Dworkin da seguinte forma: “no modelo da integridade ‘inclusiva’,
defendido por Dworkin, os controversos princípios de moralidade que
os juízes devem usar para justificar suas decisões nos casos difíceis pos-
suem uma dupla limitação.”
Em primeiro lugar, eles não podem ser uma mera expressão
do desejo contingente de justiça de alguns magistrados. Na ativida-
de de construção desses princípios, o passo inicial é dado pelos de-
mais membros da comunidade: os juízes devem apresentar princípios

271
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de justiça capazes de apresentar, de um modo coerente, as decisões


políticas adotadas pela comunidade, articulando, de modo coerente,
as convicções de ‘justiça’ fixadas, de tempos em tempos, por exemplo,
por representantes eleitos.
Em segundo lugar, a coerência pretendida pela integridade não se
resume a oferecer a melhor concepção (a mais coerente) do conjunto de
decisões sobre ‘justiça’ adotadas pela comunidade. Faz parte da atividade
do juiz respeitar, também, os princípios de ‘equidade’ e ‘devido proces-
so’. Especialmente no caso da ‘equidade’, que define os procedimentos
democráticos de legislação, respeitar tais princípios pode fazer com que
juízes se deparem com princípios de ‘justiça’ que, não obstante não sejam
perfeitamente coerentes em relação às demais decisões sobre ‘justiça’,
ainda assim devem prevalecer em virtude dos princípios de ‘equidade’,
que também prevalecem.
Contudo, Dworkin propõe um entendimento diferenciado, direcio-
nado de forma reflexiva para o pensamento e a consciência entre os Juízes,
Juristas e advogados, que lidam, no dia a dia, comungando as situações
mais inusitadas ou comuns ou divergindo delas, das sentenças e das consi-
derações subjetivas com relação ao direito (DWORKIN, 1999, p. 3-5).
Nessa análise das divergências teóricas do direito figuram os juí-
zes como os principais responsáveis por alcançar a justiça ou não em seus
atos. Conquanto, não só as decisões da Suprema Corte são significativas,
mas também as de outros tribunais e, com relevo, as de juízes e advogados,
pois divergem com muita frequência das leis que regem determinado caso.
Nesse contexto, as “proposições jurídicas” são todas as afirmações e ale-
gações que as pessoas fazem sobre aquilo que a lei lhes permite ou proíbe,
aceitando-as como verdadeiras ou falsas.
Em relação à divergência do direito, o relevo da discussão está no
que os Juízes pensam que é o direito e quando divergem nos seus pensa-
mentos. De início, os processos judiciais suscitam três questões distintas;
“questões de fato”, “questões de direito” e “questões morais”. Quando a
divergência está na questão de fato, ou nos fatos concretos, fica visível
sobre o que estão divergindo, o que estabelece que uma evidência poderia
decidir a questão. Quando a divergência está na questão moral ou de fide-
lidade, a divergência toma certa complexidade em vista de que as pessoas
divergem quanto ao certo e o errado em termos morais, o que não produz
problema especial quando manifestada no tribunal. Então, para as consi-
derações entre Advogados e Juízes, a questão de maior relevo é quanto à
“questão de direito”. A confrontação na causa – defesa, acusação, sentença
– constitui formas visíveis de divergência.

272
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

No caso do homeschooling, temos o Estado alegando que os pais ou os


responsáveis legais não têm autorização do Poder Público, do melhor da
lei para educarem seus filhos em casa. Isso pode ser feito somente no am-
biente escolar. Um juiz, propondo um conjunto de provas, afirma que a lei
favorece por não proibir que os pais eduquem seus filhos em casa; e outro,
propondo um conjunto diferente, acredita que a lei não proíbe os pais ou
responsáveis a educarem seus filhos no ambiente domiciliar, tampouco os
autoriza a fazer isso. Isso acaba criando um mistério: essa divergência se
dá em razão de quê? Nesse ponto, inicia-se a discussão sobre a idealização
exigida pela lei do direito à educação a todos os cidadãos.
Desse modo, iremos, no próximo tópico, analisar o caso homeschoo-
ling, RE nº 888.815, decidido pela Suprema Corte brasileira no ano de 2018,
valendo-nos das divergências criadas e fundamentadas pelo doutrinador
Ronald Dworkin, na obra O Império do Direito, por meio das preposições
jurídicas lançadas pelos pais responsáveis pela filha de 11 anos no direito
de estudar em regime educacional domiciliar.

A análise dos votos do Recurso Extraordinário nº 888.815,


aplicando-se as divergências de Dworkin

Como anteriormente mencionado, o caso homeschooling passou por


um enfrentamento, a priori, administrativo na Secretaria de Educação da
cidade de Canela-RS, que indeferiu o pedido dos pais de uma criança de 11
anos de estudar em casa, recebendo, de imediato, a orientação de matrícu-
la. Desse ato os pais impetraram Mandado de Segurança, que foi denegado
tanto pelo juízo da comarca de Canela como pelo Tribunal de Justiça do RS
sob o argumento da falta de previsão constitucional ou legal que reconheça
a modalidade de ensino domiciliar.
Insta aqui analisar e discutir o que foi apreciado pelo Supremo Tri-
bunal Federal ante o reconhecimento da repercussão geral por entender
que constitui questão constitucional saber se o ensino domiciliar (homes-
chooling) pode ser proibido pelo Estado ou promovido como meio lícito de
cumprimento, pela família, do dever de prover educação, conforme previs-
to no art. 205 da CRFB/1988.
A parte requerente traz à baila, na sua defesa, que o não reconheci-
mento da educação domiciliar afrontaria o próprio fundamento no art. 102,
III, a, da Constituição Federal, além de violar os artigos 205, 206, 208, 210,
214 e 229, todos da Constituição. Sustenta, em síntese, que:

Restringir o significado da palavra educar simplesmente à ins-


trução formal numa instituição convencional de ensino é não
apenas ignorar as variadas formas de ensino – agora acresci-

273
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

das de mais recursos com a tecnologia – como afrontar um


considerável número de garantias constitucionais, cujo em-
basamento se dá, entre outros, pelos princípios da liberda-
de de ensino (art. 206, II, CF) e do pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas (art. 206, III, CF), tendo-se presente
a autonomia familiar assegurada pela Constituição (BRASIL.
Supremo Tribunal Federal – RG RE: 888815 RS, Relator: Min.
Luís Roberto Barroso, 2015).

Iniciando, temos a análise do voto do Relator Luís Roberto Barroso,


que pautou o recurso sob a questão de licitude e da constitucionalidade
do ensino domiciliar, ou noutro parâmetro se esse tipo de ensino deve ser
proibido pelo Estado. Além disso, houve o alinhamento dos limites da au-
tonomia familiar e do Estado de prover a educação.
Nessa contextualização, a repercussão geral se apresenta no viés so-
cial existente devido à própria natureza do pedido, que visa à promoção de
um direito fundamental, o da educação. Ademais, para o Ministro o aspec-
to econômico se faz presente, pois o modelo de homeschooling evitaria por
parte do Poder Público gastos com educação.
Nessa esteira, segue com o aceite das alegações dos requentes (pais)
de que o sistema de ensino brasileiro tem mais malefícios (violência, sexu-
alidade precoce, contato com as drogas e bullying) do que um resultado sa-
tisfatório. Trata-se apenas de uma educação formal entregue à sociedade,
e limitá-la com a entrega do ensino convencional é afrontar garantias fun-
damentais espalhadas pela Constituição, ou seja, impossibilitar o acesso a
diversas formas de ensino que se apresentam.
A violação mais precípua é a do artigo 205 da Constituição Federal,
pois educar também é dever da família. Nota-se que a tese versa sobre a
autonomia que os pais têm de escolher qual sistema de ensino querem
para os seus filhos, pois apenas a autonomia da escolha do modelo de
educação, se público ou privado, não é suficiente. Deve-se respeitar e ga-
rantir essa autonomia com embasamento nos interesses da criança e em
suas convicções, que perpassam características pedagógicas, filosóficas
e religiosas. O aspecto administrativo da matrícula em instituição formal
serviria para atingir aqueles pais que não podem ou não querem prover
a educação para seus filhos, preservando-se, assim, o direito àqueles que
quiserem escolher o homeschooling.
A abordagem do Ministro em relação à aceitação do pedido dos pais
passou pela relevância da pesquisa apontada pelo sociólogo André Holan-
da Padilha Vieira na ocasião da audiência pública na Câmara dos Depu-
tados (2013), que apontou dados já mencionados neste artigo, considerá-
veis no plano internacional, deixando claro que a agenda utilizada pelos
pais que adotaram tal modelo de ensino muito se aproxima das matrizes

274
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

da escola convencional. Ademais, o ENEM certificou adeptos da educa-


ção domiciliar que alcançaram notas maiores daqueles do ensino regular,
abarcando um número de duas mil famílias.
Contudo, os argumentos trazidos pela Secretaria Municipal de Canela
são que tal modelo não pode substituir o ensino regular, apenas complemen-
tar. Nesse diapasão, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul se
posicionou e defendeu que o ensino prevalece em face da crença religiosa.
Eis um caso, como diria Dworkin, em que juristas e juízes, bem como
o povo, pressupõem que pelo menos algumas das proposições jurídicas
podem ser verdadeiras ou falsas. Assim, para que se evite tais pressuposi-
ções, as proposições oferecem os “fundamentos” do direito. Igualmente,
temos que distinguir duas maneiras divergentes entre advogados e juízes
(aqui fazendo referência ao Ministro) a propósito da verdade de uma pro-
posição jurídica. Poderiam eles estar de acordo com os fundamentos do
direito quanto à verdade ou falsidade de outras proposições, mas também
poderiam divergir por não saberem se, de fato, aqueles fundamentos foram
observados em um determinado caso.
Sob a ótica de Dworkin, por exemplo, de que advogados e juízes po-
dem concordar que a educação é dever da família e do Estado em provê-la,
o artigo 205 da Constituição Federal, contudo, pode divergir quanto ao
fato de a família ter a autonomia ou a liberdade para escolher de qual siste-
ma de ensino possa se valer por discordar quanto à existência da obrigação
do sistema de ensino regular (público ou privado) na legislação vigente.
Isso é o que o autor chama de “divergência empírica sobre o direito”. É
verdade que os juízes criam novo direito toda vez que decidem um caso
importante em virtude do anúncio de uma regra, de um princípio, de uma
ressalva a uma disposição, e, nesse caso, o juiz (Ministro Relator) se pautou
pela constitucionalidade do ensino domiciliar, devendo este ser viabiliza-
do como meio licito de cumprimento, pela família, do dever de prover edu-
cação tal como previsto no art. 205 da CRFB/1988.
No direito como simples questão de fato, Dworkin (1999) enfatiza
que a divergência teórica é complexa em virtude de não se ter doutrina so-
bre o tema. Ele afirma que a divergência teórica é ilusão, e que os advoga-
dos e juízes estão de acordo quanto aos fundamentos da lei, determinando
isso como “ponto de vista da simples questão de fato dos fundamentos do
direito”. Em relação a isso, principalmente ao se considerar que o direito é
uma trajetória histórica em que as instituições passadas decidiram.
Percebe-se que os teóricos do direito externam disposições que aju-
dam a explicar que os leigos, quando pensam nos tribunais (aqui fazemos
referência à Suprema Corte no caso em questão, RE nº 888.815), se preo-
cupam mais com a conformidade para com o direito do que com qual é o

275
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

direito. Interpreta-se, então, que se os juízes se dividem em algum grande


processo e se sua divergência não pode dizer respeito a nenhuma questão
de direito por ser esta apenas de fato, decidindo-a com facilidade entre
advogados bem informados, um dos lados deve estar desobedecendo a lei,
ou ignorando-a, e esse lado deve ser o que sustenta uma decisão inusitada,
no sentido notório do termo. Assim, a questão da fidelidade é a que exige
um debate público e a atenção do cidadão precavido.
Ora, no caso do homeschooling (RE nº 888.815), sob a análise de 1º
grau e no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, percebe-se
que a divergência foi pautada exclusivamente como uma questão de direito
entre Juízes que estavam submetidos à lei, ou seja, a cumprir puramente
o que a lei proclama, mesmo que duramente, e que, na verdade, foge das
concepções dos juízes essa submissão, tratando-se, portanto, de percebê-
-la adstrita à questão de fato, à concretude ou até mesmo moralmente.
Dworkin (1999) critica a visão do direito como simples questão de
fato, imputando às decisões institucionais passadas classificações de va-
gas, ambíguas ou incompletas. Mais importante, ainda, é que as referidas
decisões concluem que realmente nunca existiu direito relativo a nenhuma
questão, apenas retórica que os juízes utilizam para mascarar decisões,
que, na verdade, são ditadas por preferências ideológicas ou de classe, o
que se pode entender como interesses.
A população, no geral, sabe sobre o modo como um congressista, um
presidente etc. deve desempenhar suas funções, mas, por outro lado, tem
também opiniões claras de como eles se comportam. No entanto, entre o
que pensa a opinião pública sobre os juízes face o posicionamento destes
quanto ao que deveria ser e o que são os procedimentos das autoridades
supracitadas faz com que as opiniões emitam vexames, pois o direito é o
cerne da sociedade (DWORKIN, p. 10-15).
Veja-se que a teoria de Dworkin como uma objeção liminar busca os
fundamentos apropriados do direito, debruça-se na administração adequa-
da da deliberação judicial, das soluções conciliatórias que os juízes devem
às vezes aceitar, declarando o direito de modo um pouco diferente daquele
que consideram mais perfeito. Então, a referida teoria sugere: até que pon-
to e de que modo os juízes são influenciados pela consciência de classe ou
pelas circunstâncias econômicas? E profere outras indagações. O direito
é um fenômeno social, mas suas razões e efeitos dependem de sua estru-
tura, pois ao contrário de outros fenômenos sociais, a prática do direito é
argumentativa, na qual todos os atores entendem que o que ela permite ou
exige depende da verdade de certas proposições que só adquirem sentido
por meio dela e em seu âmbito.

276
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Nessa perspectiva, a decisão do Ministro Barroso sobre declarar


constitucional o ensino domiciliar faz com que emerjam dois olhares sobre
o direito como essência: o externo e o interno, devendo um levar em conta
o outro. A perspectiva do historiador inclui a do participante de modo mais
abrangente, pois o primeiro não pode compreender o direito como prática
social argumentativa, nem mesmo o suficiente para rejeitá-lo como enga-
nador, enquanto não tiver a compreensão de um participante (DWORKIN,
p. 15-19). Isso é o que se depreende que sua decisão.
Em relação ao caso de homeschooling, deparamo-nos com uma ques-
tão do mundo real, não cabendo a distorção dos fatos na prática jurídica,
pois, ao proceder desse modo, vale-se de legislação que não tem o devido
alcance, de uma lei que declara a proibição do ensino domiciliar. A alega-
ção dos requerentes (argumento do advogado) é a de que, na falta de uma
proibição, quis o legislador autorizá-lo. No parecer da Procuradoria-Geral
da República, a tese argumentativa é a de que essa modalidade de ensino
não está amparada na Constituição Federal, e os pais não se encontram
legitimados a negar aos filhos educação nos parâmetros legais, sendo in-
concebível tutelar práticas deliberadas de desescolarização no País.
O Juiz (relator do caso em questão) se utiliza de uma teoria da legis-
lação que dá às intenções do legislador uma importante influência sobre a
verdadeira lei, apegando-se à distinção entre o texto, que chama de “letra”
da lei, e a própria lei, que chama de “lei”: “que algo que esteja na intenção
dos legisladores seja parte dessa lei, tal como se estivesse contida na própria
letra; e que uma coisa que esteja contida na letra da lei somente faça parte
da lei se estiver presente na intenção de seus criadores.” (DWORKIN, p. 19).
Tal padrão ou modo de interpretação seguiu a teoria acima, podendo
ser observado no voto do Relator Ministro Roberto Barroso (BRASIL. Su-
premo Tribunal Federal – RG RE: 888.815 RS, Relator: Min. Luís Roberto
Barroso, 2015), ao afirmar que:

É evidente a presença de princípios como a liberdade de en-


sino e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas
(art. 206, CF). De outro prisma, temos o dever do Estado de
prestar educação básica e gratuita dos quatro aos dezessete
anos de idade (art. 208, I, da CF).
O artigo 208 do diploma constitucional expõe os meios pe-
los quais será efetivada a obrigação do Estado com a educa-
ção. Posteriormente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) trazem
os requisitos de como essa efetivação deverá ocorrer: um de-
les é a obrigatoriedade da matrícula em estabelecimento de
ensino. O código penal vem corroborar com esse dispositivo,
definindo o abandono intelectual como crime, suscetível a
pena de detenção por 15 dias ou multa. A educação não é
somente a aprendizagem de conteúdos curriculares, mas um

277
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

elemento introdutório na sociedade que vem a ensinar como


conviver com a diversidade e a respeitar até aquelas pessoas
que não temos razões para gostar.

Percebe-se que nessa forma de interpretação as controvérsias não


diziam respeito à questão de se os juízes deveriam seguir as leis ou adaptá-
-las, tendo em vista os interesses da justiça. Foram controvérsias sobre a
natureza da lei, sobre aquilo que realmente dizia a própria lei sancionada
pelos legisladores. Esses dois casos dependiam da melhor interpretação da
verdadeira lei a partir de um texto legislativo específico.
Logo, o caso homeschooling envolve divergências não somente so-
bre questões fáticas, empíricas, mas também sobre os reais fundamen-
tos do direito a ser aplicado e da consequente justificativa para a deci-
são, ou seja, sobre teorias semânticas do direito, que visam a esclarecer
o real significado deste.
A teoria do direito é “interpretativa”, enquanto as outras (positivis-
mo, realismo e até mesmo jusnaturalismo), a que a ele se contrapõem, se-
riam teorias “semânticas”. As teorias semânticas pressupõem que os advo-
gados e juízes usem basicamente os mesmos critérios (embora estes sejam
ocultos e passem despercebidos) para decidir quando as proposições jurí-
dicas são falsas ou verdadeiras. Essas teorias divergem sobre quais crité-
rios os advogados de fato compartilham e sobre os fundamentos que esses
critérios na verdade estipulam. (DWORKIN, 1999)
Desse modo, Dworkin critica as teorias semânticas que tratam o di-
reito como simples questão de fato, ou seja, as teorias semânticas mais
influentes sustentam que os critérios comuns levam a verdade das propo-
sições jurídicas a depender de certos eventos históricos específicos.
Essas teorias positivistas, como são chamadas, sustentam o ponto
de vista do direito como simples questão de fato: divergem sobre quais
critérios devem ser utilizados para decidir entre o falso e o verídico; se os
advogados, de fato, deles compartilham; sobre os fundamentos que esses
critérios na verdade estipulam; e a pressuposição de que os advogados e
juízes usem basicamente os mesmos critérios para decidir sobre a veraci-
dade das proposições jurídicas.
A base argumentativa do juiz foi a de que existe liberdade de escolha
de ensino, abrangendo-se todos os indivíduos, isto é, aqueles que têm dis-
ponibilidade e capacitação podem tomar a iniciativa de ensinar de manei-
ra autônoma. Além disso, vale-se dos dizeres do educador Martins (2017,
p. ): “Quem sabe, ensina. Quem ensina com liberdade, educa. Quem sabe
ensinar com liberdade e amor, desenvolve integralmente o educando”, para
fundamentar a teoria da legislação.

278
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

E tudo isso está concretizado nesta afirmação:

Ao analisarmos o caso concreto, é possível perceber que há


uma colisão entre esses princípios, sendo necessária uma so-
breposição de um sobre outro que remeta a uma solução o
mais razoável possível e que não provoque o total esvaziamen-
to de um princípio em prol de outro. Para isso, é fundamental
que haja uma ponderação na interpretação ao longo do caso,
utilizando-se dos métodos e técnicas expostos pela hermenêu-
tica jurídica. É recomendada ao jurista uma “harmonização
das normas”, aplicando-as de modo que proporcionem uma
coexistência pacífica entre os princípios conflitantes, sem
que, ao aplicá-las, uma resulte no completo sacrifício da outra.

E para o Juiz (Ministro), os direitos fundamentais permitem uma


maior adaptabilidade diante de um caso concreto, excluindo a estrita
legalidade que por muitas vezes inibe a concretude do papel do ma-
gistrado, entregando, com isso, uma tutela jurisdicional mais próxima,
justa e aceita pela sociedade.

Considerações finais

A pesquisa teve como objetivo examinar e analisar o voto do Relator


Ministro Luís Roberto Barroso, que reconheceu o caráter constitucional e
a repercussão geral da temática que envolve a educação realizada em casa,
homeschooling, inclusive com a atenuante de se evitar os gastos públicos e
contrapondo a decisão da corte, que decidiu que a educação domiciliar não
está autorizada no Brasil.
Verificou-se que dentre os modelos de divergência teorizados por
Dworkin, o Ministro Relator, Roberto Barroso, se valeu da teoria de que o
direito como uma simples questão de falo não pode prosperar, porque há
uma questão de reparação, ou seja, usar o espírito do direito em questão e
buscar um resultado que seria a melhor adequação para a sociedade. Tam-
bém foi verificado que o Ministro se valeu da teoria da legislação, que dá
às intenções do legislador uma importante influência sobre a verdadeira
lei, algo que esteja na intenção dos legisladores de que seja parte dessa lei,
tal como se estivesse contida na própria letra; e que uma coisa que esteja
contida na letra da lei somente faça parte desta se estiver presente na in-
tenção de seus criadores.
É de se notar que o homeschooling já foi empregado inúmeras vezes, por
diversos motivos, sendo comum, dentre estes, a busca por um ensino de quali-
dade, o combate à violência e ao bullying e outros ligados à religião ou à moral.
A análise da decisão foi sistemática, buscando, nas diversas previ-
sões legais, que esse tipo de educação não é proibido, ou seja, é lícito, e

279
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tampouco limita seu caráter teleológico, sendo utilizado apenas para fins
econômicos. Como é dever da família prover a educação e sendo este uma
relação de poder-dever, recai na primeira a autonomia para optar pela mo-
dalidade de ensino que lhe convencionar. A questão tormentosa é da falta
de regulamentação do homeschooling.
No parecer, a linha argumentativa que perpassa a Declaração Uni-
versal do Direitos Humanos (DUDH) relativa aos pais, afirma que estes
têm o direito de estabelecer o gênero de educação que será fornecido a seus
filhos. O reforço da ONU ressalta a liberdade de escolha do tipo de educa-
ção oferecida às crianças (se em uma escola convencional, ou se em casa,
pelos pais). O Pacto de San José (art. 12.4) – a Convenção Americana de
Direitos Humanos – afirma que os pais têm o direito que os filhos recebam
a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as convicções dos
progenitores. Além disso, esse documento pautou-se em um entendimento
recente proveniente da própria corte, de que os tratados internacionais
de direitos humanos têm status de supralegalidade, significando que eles
estão abaixo da constituição, mas acima da legislação infraconstitucional.
Desse modo, as regras da LDB e do ECA não se aplicam quando da
opção da família pelo modelo de educação domiciliar, pois elas, especifi-
camente, estão amparadas tanto na Constituição quanto nas normas inter-
nacionais de direitos humanos.
Em que pese que a corte tenha entendimento contrário à do Relator
pelo não reconhecimento do ensino domiciliar, são necessários mais deba-
tes, e não apenas algumas audiências públicas direcionadas somente para
o cumprimento da lei. Deve-se, sim, dar mais atenção ao novo paradigma
de relacionamento público-privado, sendo necessários maiores entendi-
mentos entre escola e família e todos os que possam formalizar uma par-
ceria destinada a promover a educação domiciliar no Brasil. Outrossim,
esses pontos de vista devem convergir à ideia de não se valer desse modelo
educacional apenas como forma de conhecimento desse movimento social
e pedagógico, o homeschooling, mas também de saber qual será essa nova
oferta pedagógica aos pais que dele necessitarem.
Por fim, extrai-se desta pesquisa que o RE nº 888.815 da relatoria em
questão trata do princípio da liberdade, que deverá ser considerado, não
havendo, portanto, proibição na escolha do tipo de ensino. O que há é, sim,
a falta de previsão legal dessa permissão. Consequentemente, observa-se
que as divergências teorizadas por Dworkin quanto ao direito perpassam
o viés do fato, do direito e da moral, relacionando-se, também, à política
e à fidelidade. A questão do direito se depara com preposições jurídicas,
empíricas e teóricas, mas, caso elas não se apliquem, mas sim o direito
como questão de fato (concretude), verifica-se a existência de divergências

280
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

teóricas sobre este, ou seja, nesse caso se dá pelo olhar ou o viés do parecer
do relator. Este apresentou um engajamento em uma divergência teórica
sobre o direito, com os demais atores (partes, procuradores, ministros) di-
vergindo quanto à natureza daquele em relação ao verdadeiro significado
do texto jurídico. Desse modo, esses atores discordam sobre a solução do
caso concreto, mas não por divergirem quanto às questões de fato, e sim
quanto à norma jurídica que resulta do texto em análise.
Aqui não se diz respeito, portanto, à questão de se aplicar ou de se
afastar a lei, mas de como interpretá-la neste RE nº 888.815 ou quanto à sua
aplicação na teoria de legislação mais adequada.
No caso homeschooling, entendemos que as divergências não envol-
veram alegações de moralidade, política, fidelidade ou reforma do direito,
ou seja, não seriam debate dos desacordos sobre como o direito deveria
ser; seriam, na verdade, divergências sobre como ele é, ou seja, desacordos
acerca do critério jurídico de validade apenas no que se refere ao critério
que a norma deve satisfazer para ser considerada juridicamente válida.

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Leno Francisco Danner
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282
16
Kelsen e a negação da dualidade ideológica entre
o Direito e o Estado: breves delineamentos

Leonam Liziero

Introdução

O estudo do Direito e do Estado tem, na teoria de Hans Kelsen (1881-


1973), grande referencial em razão das inovações metodológicas de seu nor-
mativismo, destacável entre as demais teorias positivistas. O normativismo
kelseniano apresentou um paradigma científico do Direito. Desse modo, foi
proposta uma teoria do conhecimento na qual o Direito – e, portanto, o Es-
tado, conforme a negação de dualidade ideológica – pudesse ser conhecido,
devidamente analisado na relação entre sujeito e objeto sem que houvesse
bases ideológicas ou interesses na análise do intérprete da ciência.
Nesse sentido, o positivo, em especial a teoria de Kelsen, buscou a
elevação do Direito enquanto objeto, cuja cognoscibilidade pudesse ter
um método próprio. Apesar de ser uma teoria do conhecimento, o positi-
vismo jurídico pode também ser uma ideologização da imperatividade da
norma – o que não se mostra no caso da teoria de Kelsen. Assim, não há
um único positivismo jurídico; há, sim, vários modos de percepção do Di-
reito que podem ser englobados em uma mesma categoria positivista com
pontos em comum, tais quais a negação do Direito natural, a separação do
valor no momento de conhecimento do Direito e a discricionariedade do
criador da norma jurídica.
Entre os interesses do conhecimento jurídico está a questão do Es-
tado, ou seja, como este pode ser estudado e compreendido de acordo com
o normativismo kelseniano. Kelsen, muito influenciado por Kant, Weber e
Wittgenstein, elabora algumas de suas obras com o propósito, em especial
suas obras mais consultadas, Teoria Pura do Direito (1934, com segunda
edição revista em 1960) e Teoria Geral do Direito e do Estado (1945), de
elevar a compreensão do Direito a uma genuína ciência, objetiva e sem
dependência de valorações morais e políticas.
Assim, será discutido o conceito de Estado para Kelsen conforme seu
normativismo. Será visto como Kelsen enfrenta problemas teóricos como o

283
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

fundamento do Direito – e, por consequência, do Estado –, como o Estado


se relaciona com o Direito Internacional em uma unidade normativa e, fi-
nalmente, o porquê ser necessária a negação da dualidade ideológica entre
Direito e Estado para uma compreensão científica do fenômeno normativo.

Uma busca por uma abordagem científica do Estado

A racionalidade do Direito foi abalada na primeira metade do sé-


culo XX com o questionamento acerca da figura do indivíduo, construí-
da sob o paradigma da modernidade, provocada pela virada linguística.
O desgaste dos alicerces modernos era evidente, especialmente o racio-
nalismo jusnaturalista como uma explicação da cognição do Direito e,
consequentemente, do Estado. Desse modo, suas bases de legitimação se
encontravam em limbo político.
O tecnicismo estatal provocou a crise na ontologia do sujeito de
Direito. Uma vez que o jusnaturalismo se mostrou insuficiente, outros
modos de legitimação do Direito como realidade e como objeto cientí-
fico se evidenciaram. Assim, explica-se o Direito por métodos de traba-
lho de outras disciplinas.
A busca por uma verdade racional pode ser questionada pela cienti-
fização das instituições, o que se evidencia na tecnicalidade desenvolvida
com a burocracia estatal novecentista, e a ideia de neutralidade torna-se
não apenas uma tentativa de purificar o conhecimento, mas também de
proteger o objeto externo de influências dos interesses do próprio sujeito.
Impera-se ainda, portanto, uma relação sujeito-objeto na visão de mundo
do intérprete do Direito.
Segundo Billier e Maryioli1, o contexto no qual o desenvolvimento
epistemológico do normativismo de Kelsen está pautado possui dois ob-
jetivos principais para a formulação de uma genuína ciência do Direito: a
sistematização e a autonomia.
Na incipiente elevação ao patamar de ciência social específica do
Direito2, seus métodos e objetos deveriam escapar do limbo incerto no
qual a racionalidade humana estava imersa. Se o Direito moderno era es-
sencialmente bipartido entre o Direito positivo e um Direito natural na
mesma realidade, naquele momento há uma separação ôntica necessária
do Direito como ser e do Direito como dever-ser, uma vez que o “mundo
dos sentidos” se mostrou demasiadamente irracional.

1 BILLIER, J.-C.; MARYIOLI, A. História da Filosofia do Direito. Tradadução de Maurício de Andrade. Barueri:
Manole, 2005. p. 195.
2 KELSEN, H. Reine Rechtslehre. 2 Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2013, p. 161.

284
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Nesse cenário de incertezas em que o Direito e o Estado como ob-


jeto do conhecimento estavam à deriva, Kelsen formulou, entre tantos
outros positivismos, o método da teoria pura para se conhecer o Direito.
A Teoria Pura do Direito não é uma teoria do Direito puro: o Direito
não é puro, pois jamais seria possível imaginá-lo como um sistema de
normas criadas sem nenhum tipo de influência externa; toda norma tem
um objetivo, que é de normatizar alguma conduta do mundo do ser, o que
seria impossível sem conteúdo de influências de toda sorte de outras dis-
ciplinas. O que Kelsen pretende com a teoria pura é a formulação de um
método puro que possibilita a cognição do Direito independentemente
dos outros campos do conhecimento, ou seja, o Direito pode ser conhe-
cido somente tendo a si como objeto3.

O Estado como delimitação dos domínios de validade

A Teoria Pura do Direito precisa ser analisada com alguma corres-


pondência no Direito Internacional e no Direito Público. A pureza do nor-
mativismo kelseniano encontra amparo nas outras ideias de Kelsen, o que
reforça o argumento de que a pretensão da obra não é a criação de uma teo-
ria que purificasse o Direito, mas sim de um método que pudesse encontrar
uma pureza científica de um objeto. A pureza não é do objeto, é da teoria4.
As separações e a busca por uma única origem do Direito marcam
o normativismo kelseniano. Junto às separações entre Direito e natureza
e Direito e moral, o Direito é caracterizado como uma unidade normativa
internacional e estatal. A compreensão da teoria kelseniana do Direito ne-
cessita de uma visão macro de seu alcance. A Teoria Pura do Direito não
fornece explicações do Direito de um Estado em especial, como a Áustria
ou a Alemanha, mas de qualquer Direito de qualquer Estado desde que
tenha características que possam formar um conceito de Direito e de Esta-
do. Sem Estado, não há Direito; sem Direito, não há Estado, uma vez que o
Estado nada mais é que o Direito delimitado em determinados campos de
validade territorial, pessoal, temporal e material, sendo essa delimitação a
função específica do Direito Internacional5.
O Direito existe como um todo em toda a realidade internacional,
em todas as sociedades, mas é dividido por campos de validade, os Estados.
Cada Estado é uma fonte de criação e execução normativa, que se juntam

3 KELSEN, H. Reine Rechtslehre…, p. 144.


4 Ibidem, p. 21.
5 “This delimitation is the specific function of international law. It is in fact by international law that the territorial
and personal as well as the temporal and material spheres of validity of the national legal orders are determined. The
norms regulating these subject matters are essentially and necessarily norms of international law”. (______. Principles
of international law. New York: Rinehart & Company Inc., 2007. p. 207).

285
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

como um todo em um plano maior. Em outras palavras, o Direito de um Es-


tado, ou seja, ele próprio, nada mais é do que uma delimitação normativa6.
Kelsen rejeita a dualidade entre Direito e Estado7. Como o Estado
em sua teoria é uma pessoa jurídica que está contida em um conjunto de
normas, ele não ultrapassa o campo ontológico do Direito. Nenhuma legi-
timação é possível considerando o Estado como uma realidade política; de
fato, a política existe em outro plano alheio ao jurídico e tem um método
de conhecimento diferente daquele do Direito.
O Estado, por sua vez, como delimitação normativa, produz o Direi-
to internamente e externamente à sua esfera de validade. No âmbito na-
cional, a ordem jurídica é o Direito do Estado, no qual, por procedimentos
formais, as normas são emitidas e aplicadas. No caráter externo, o Direito
produzido com o resultado das relações jurídicas entre dois ou mais Esta-
dos é o Direito Internacional. Como o Estado não está sozinho no mundo,
há a necessidade da formulação de normas que possam prescrever certas
condutas aos governantes dos Estados e que sejam destinadas a eles.
O Direito Internacional é, para Kelsen, uma ordem normativa com
um sistema de normas válidas que se destinam a regular o comportamento
humano no tempo e no espaço. Kelsen identifica, assim, quatro domínios
de validade (Geltungsbereich) que caracterizam uma ordem jurídica: o terri-
torial, o espacial, o pessoal e o material. A básica diferença entre o Direito
Internacional e o Direito do Estado é a limitação dessas ordens8.
O Estado, enquanto uma delimitação oriunda do Direito Internacio-
nal, vale em um determinado território, vale em um determinado tempo,
vale sobre determinadas pessoas que habitam no território ou com ele têm
algum vínculo e normatiza determinados assuntos9.
Enquanto uma ordem jurídica no âmbito dos quatro domínios de
validade, então importa saber que o sistema funciona com a criação e exe-
cução de normas dentro de uma relação e validade entre elas. Qualquer ato
ou lei que é criada nesse sistema precisa obedecer a um critério de validade
de acordo com outra norma, que, por sua vez, é válida por corresponder a
outra norma. Toda relação normativa é válida ou inválida, dependendo da
concordância ou não com o fundamento. A identificação do Direito, para

6 “Those normative orders that are designated as states are characterized precisely by the fact that their territorial
spheres of validity are limited”. (Ibidem, p. 208).
7 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
279.
8 Ibidem, p. 208.
9 “If it is assumed that international law is valid only as part of national law, it is necessary to distinguish between
the norms of a national legal order which are international law and norms of the national law which have not this
character and thus are national law in a narrower and specific sense of the term (not comprising international law).
Then it is the spheres of validity of the national law in this narrower sense which are determined by international law
(as part of the national law in a wider sense of the term).” (Ibidem, p. 206).

286
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Kelsen, depende da ideia de norma fundamental, justamente aquela que


serve de fundamento último para a validade de uma ordem jurídica10.

O Estado pelo Direito Internacional

No caminho de se conhecer o Estado segundo a Teoria Pura do Di-


reito, há uma característica de sua ordem normativa que o diferencia das
outras ordens – as primitivas ou a internacional: a relativa centralização
das funções de criação e aplicação do Direito. O Estado é uma ordem jurí-
dica organizada com relativa centralização de suas funções, “uma comuni-
dade criada por uma ordem jurídica nacional (em contraposição à interna-
cional) […] O termo comunidade designa o fato de que a conduta recíproca
de certos indivíduos é regulamentada por uma ordem normativa”11.
Apesar de fazerem parte de um mesmo sistema normativo e de se-
rem ligados pelo mesmo fundamento de validade, o Estado e o Direito
Internacional se diferenciam pelo seu grau de centralização na atividade
de criação e aplicação do Direito. O método da teoria pura não pode levar
a outro caminho senão esse. Negar a dualidade entre Estado e Direito
leva ao entendimento do Estado e do Direito Internacional pertencerem à
mesma ordem. No caso de Kelsen, o Estado ser uma ordem jurídica relati-
vamente centralizada é que faz parte de uma ordem jurídica mais genérica
e descentralizada, o Direito Internacional. O jurista aponta a diferença
entre essas duas ordens:

A diferença entre Direito nacional e Direito internacional é


apenas relativa; ela consiste, em primeiro lugar, no grau de
centralização ou descentralização. O Direito nacional é uma
ordem jurídica relativamente centralizada. Especialmente ca-
racterística de uma ordem jurídica que constitui um Estado
é a centralização da aplicação do Direito, a instituição de ór-
gãos judiciários centrais competentes para estabelecer o de-
lito e ordenar e executar sanções. […] O Direito internacional,
comparado com o Direito nacional, é uma ordem jurídica mais
descentralizada. Ele apresenta o mais elevado grau de descen-
tralização encontrado no Direito positivo12.

A ordem interna, delimitada pelo Direito Internacional como Esta-


do, e a internacional, apesar de serem diferentes no tocante à centralização
funcional na criação e aplicação do Direito, são partes do mesmo ordena-
mento por serem vinculadas pela mesma norma fundamental. A operação

10 ______. Reine Rechtslehre. 2 Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2013. p. 390.


11 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 262-263.
12 Ibidem, p. 463.

287
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lógica exigida para a norma fundamental ganha, no Direito Internacional,


uma nova dimensão e fornece uma compreensão melhor do critério de va-
lidade no sistema. A norma fundamental é uma norma pressuposta ao Di-
reito Internacional. Revisitando a ideia acima exposta sobre fundamento
da ordem jurídica, toda ela encontra amparo em uma norma que transcen-
de os limites do Direito positivo do Estado.
Nesse ponto Kelsen chega a um embate sobre a fonte da autoridade
constituída pela norma fundamental. Se cada Estado é uma ordem norma-
tiva cuja validade de todas as normas deriva de uma mesma norma fun-
damental, seria possível dizer que há uma norma pressuposta para cada
Estado? Como é possível ter uma norma que apenas fundamenta a ordem
estatal se a limitação dessa mesma ordem não é feita pelo próprio Estado?
Esse é um problema de se analisar a teoria pura de Kelsen sem considerar
a visão macro que ela demanda para uma melhor compreensão.
Há em especial dois problemas aí no tocante à fonte do Direito. O
primeiro é lógico: se a norma fundamental pressupõe que a Constituição
foi elaborada por autoridades com o poder jurígeno, as normas que formam
o Estado são apenas emitidas segundo seu sistema, o que negaria uma or-
dem válida de outra fonte que não sua norma fundamental, como o Direito
Internacional. O segundo é a respeito do sentido jurídico dado pela norma.
Se norma é um ato de vontade cuja objetividade é dada pela validade, seria
muito complicado explicar a obrigatoriedade das normas entre Estados, já
que elas estariam validadas por ao menos duas normas pressupostas.
Ao analisar a sociedade internacional, o conceito de norma funda-
mental é elevado para o plano além do Estado. A norma fundamental que
era pressuposta à Constituição na verdade não seria a “autêntica norma
fundamental”, e sim um relativo recurso epistemológico para poder co-
nhecer a ordem interna dentro da ideia do método da ciência do Direito.
Essa norma fundamental hipotética do Direito interno, agora como “rela-
tivamente fundamental”, vem de uma norma de Direito positivo do Direito
Internacional, o princípio da efetividade.
Esse princípio é muito importante para que o sistema de Kelsen
não desmorone. Esse princípio de Direito Internacional é o que estabele-
ce a comunicação entre a ordem internacional e a interna, ou, ainda, que
garante o império da ordem internacional nos Estados. Esse princípio é
uma norma de Direito Internacional positivo que dá autoridade hipoté-
tica aos legisladores constituintes. Então, a pressuposição normativa ao
se colocar um Estado diante do Direito Internacional funciona apenas
como recurso de se conhecer o Estado como objeto isolado, mas não en-
quanto parte de uma ordem maior.

288
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Se, porém, levarmos em consideração o Direito Internacional,


descobriremos que essa norma hipotética pode ser derivada
de uma norma positiva dessa ordem jurídica: o princípio da
eficácia. É segundo esse princípio que o Direito Internacional
confere aos “Pais da Constituição” o poder de funcionar como
os primeiros legisladores de um Estado13.

Essa ideia completa o desenvolvimento anterior de norma fundamen-


tal como uma pressuposição de autoridade dos primeiros constituintes na
primeira Constituição de um Estado. Essa pressuposição, para Kelsen, evi-
ta um regresso infinito ao se tratar da sucessão de diversas constituições
em um mesmo Estado, reforçando, ao mesmo tempo, a importância da efi-
cácia social numa ordem jurídica como condição de validade. A norma
fundamental, dessa forma, “refere-se apenas a uma Constituição que seja
realmente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que seja
eficaz. Uma Constituição é eficaz se as normas estabelecidas em conformi-
dade com ela são globalmente aplicadas e obedecidas”14.
Ao se questionar a validade de uma Constituição, haverá a remissão
a uma mais antiga, que, por sua vez, deve ter sido feita com a observân-
cia de uma mais antiga, uma vez que somente o Direito produz o Direito.
Então, nesse regresso em que é possível encontrar a Constituição que foi
“historicamente a primeira e que foi estabelecida por um usurpador indi-
vidual ou por algum tipo de assembleia. A validade dessa constituição é
a pressuposição última, o postulado final, do qual depende a validade de
todas as normas de nossa ordem jurídica”15.
Ao se considerar a ordem jurídica nacional, ou o Estado, como um obje-
to de estudo isolado, esse artifício pode ser válido logicamente, mas como a te-
oria de Kelsen não é completa sem se levar em conta o Direito Internacional e
o lugar do Estado no mundo, é o princípio da efetividade (Prinzip der Effektivi-
tät) que delimita os domínios de validade temporal, territorial, material e pes-
soal de um Estado16. Em outras palavras, para que o Estado exista ele deve ser
constituído – por uma Constituição – de normas válidas e eficazes. A eficácia
é uma condição necessária para a validade da norma, mas não um fundamento
de validade. As normas de um ordenamento “são válidas não porque a ordem
total é eficaz, mas porque elas são criadas de maneira constitucional. Elas são
válidas, porém apenas sob a condição de que a ordem total seja eficaz”17.

13 Ibidem, p. 522.
14 KELSEN, H. Reine Rechtslehre…, p. 144. Do original em alemão: “Die Grundnorm bezieht sich nur auf eine
Verfassung, die durch einen gesetzgebenden Akt oder Gewohnheit tatsächlich gesetzt wird und· die wirksam ist. Eine
Verfassung ist wirksam, wenn die ihr gemäß gesetzten Normen im großen und ganzen angewendet und befolgt warden”.
15 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 168.
16 ______. Reine Rechtslehre…. p. 336.
17 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 174.

289
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O Estado, então, vale em razão de sua “norma fundamental relativa”,


dada pelo princípio da efetividade, que possibilita a observância de obri-
gatoriedade na conduta dos destinatários daquelas normas. Assim, todas
as ordens jurídicas válidas e eficazes relativamente centralizadas, ou seja,
todos os Estados vigem em razão de estarem unidas em um mesmo funda-
mento. Assim, todos os Estados têm o mesmo fundamento de validade: a
norma fundamental internacional, a verdadeira norma fundamental.
A norma fundamental é uma norma pressuposta de Direito Inter-
nacional. É uma pressuposição como nas ordens jurídicas estatais, mas
aqui ela adquire uma significação mais autêntica. Enquanto as normas
fundamentais dos Estados são pressupostas apenas de forma relativa, já
que num contexto mundial elas são dadas pelo princípio da efetividade,
que permite a delimitação do Estado como ordem jurídica limitada nos
quatro domínios de validade, a norma fundamental do Direito Interna-
cional é realmente a fundamental:

Como as normas fundamentais das ordens jurídicas nacionais


são determinadas por uma norma de Direito Internacional,
elas são normas fundamentais apenas num sentido relativo. A
norma fundamental da ordem jurídica internacional também é
fundamento último de validade das ordens jurídicas nacionais18.

Nesse aspecto, todos os ordenamentos jurídicos retiram sua validade


dessa norma fundamental. O Direito Internacional mantém o princípio di-
nâmico que todo ordenamento jurídico tem. Qual seria, então, a diferença
entre a norma fundamental dos Estados – que dá a autoridade ao legislador
constituinte de criar o Direito como um sistema fechado em si – e a norma
fundamental internacional se não existe uma aparente Constituição ou um
equivalente normativo no Direito Internacional?
Kelsen afirma a existência de uma Constituição na sociedade inter-
nacional, mas ela não se manifesta como no Direito interno, sob a forma
de um documento promulgado. Como o sentido de Constituição do jurista
austríaco é formal, dizendo respeito, principalmente, ao procedimento de
como as normas são criadas, as normas de Direito Internacional que são
celebradas de acordo com formas determinadas, para serem válidas, te-
riam também uma manifestação constitucional para as fontes jurígenas,
ainda que muito diferente do Direito interno.
Essa questão diz respeito à própria estrutura da ordem interna-
cional. Diferentemente do Estado, o Direito interno, que é uma ordem
relativamente centralizada, como acima mencionado, é característico
por ser descentralizado.

18 Ibidem, p. 522-523.

290
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A hierarquia das normas é determinante para se encontrar a norma


fundamental, e este é um ponto muito importante no Direito Internacional
para Kelsen. As normas internas são centralizadas e têm um escalão nor-
mativo muito bem definido: a Constituição e as outras formas normativas
infraconstitucionais são sempre menos genéricas à medida que retiram va-
lidade de um maior. Assim, os atos executórios de uma sentença retiram sua
validade, que é uma norma individual emitida pelo juiz, autoridade, que,
ao mesmo tempo, cria e aplica o Direito. A sentença, por sua vez, retira va-
lidade de leis, como uma lei processual e é aquela que dá competência ao
juiz para emiti-la. Em escala, chega-se à Constituição, que, por sua vez, é
validade pela norma fundamental – analisando-se apenas o Estado em si, ou
pelo princípio da efetividade – sob o ponto de vista do Direito Internacional.
As normas do Direito Internacional são classificadas por Kelsen
em dois grandes grupos: o Direito Internacional particular (partikulären
Völkerrechts), ou seja, as realizadas sob a forma de convenções, tratados,
acordos etc., que são escritas e que criam os domínios de validade entre os
Estados signatários; e o Direito Internacional geral (allgemeine Völkerrecht),
formado por tratados de costume internacional, que, para o autor, é o tipo
normativo que dá validade para os tratados. O Direito Internacional geral
é composto de normas “válidas para um território que compreende o ter-
ritório de todos os Estados efetivamente existentes, e o território em que
os Estados podem potencialmente existir. As normas jurídicas dos Estados
são normas locais desse sistema”19.
O costume (Gewohnheit) é a fonte do Direito mais hierarquizada da
comunidade internacional. A prática de qualquer ato internacional que
resulte em norma, como os tratados, retiram sua validade do costume
internacional (Gewohnheitsvölkerrechtes). O costume assume uma função
diferente no Direito Internacional e no Direito interno. Apesar de suas
características parecidas, é uma norma de geração espontânea do com-
portamento humano.
A norma, clássica definição preliminar de Kelsen, é o sentido objeti-
vo de uma conduta, que forma um dever-ser20. Mas, por questões lógicas,
o ser do costume somente pode ser um dever-ser quando adquire signi-
ficação objetiva, ou seja, quando a situação fática se transforma em uma
vontade subjetiva de todos para que aquela conduta possa ser uma norma,
uma vontade coletiva21. Só que no Direito interno a vontade subjetiva de
todos numa comunidade se transforma em objetivo, e logo em norma, se
essa possiblidade não contrariar o ordenamento jurídico do Estado. Na

19 Ibidem, p. 464.
20 ______. Reine Rechtslehre…. p. 25.
21 Ibidem, p. 34.

291
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sociedade internacional, como não há um desempenho de funções centra-


lizadas, o costume nas relações internacionais dá a validade para que os
Estados possam se autorregular por meio de tratados22.
A autêntica norma fundamental, vazia de conteúdo, seria aquela que
pressupõe que os Estados devem se conduzir de acordo com o costume,
porque o costume é obrigatório, conduzido pela conduta efetiva dos gover-
nos. Dessa forma, “se elas são pensadas como normas jurídicas vinculantes
é porque se pressupõe uma norma fundamental que institui o costume dos
Estados como fato gerador de Direito”23.
A norma fundamental do Direito Internacional é aquela que “vale se
alguém pressupõe a norma fundamental, que institui o costume dos Es-
tados como um fato gerador de Direito, qualquer que seja o conteúdo das
normas assim geradas”24. Em outro momento, mais à frente em Teoria
Pura do Direito, Kelsen volta a reafirmar, com palavras semelhantes, que
a norma fundamental do Direito Internacional é “uma norma que institui
o costume constituído pelo comportamento mútuo dos Estados como um
fato gerador de Direito”25. Em Teoria Geral do Direito e do Estado, 15
anos antes Kelsen já apresentava tal formulação: “Esta norma fundamental
pode ser formulada da seguinte maneira: Os Estados devem se conduzir
como tem se conduzido de costume”26.
A partir dessa formulação de conceito sobre a norma fundamental
do Direito Internacional, o primeiro estágio corresponderia ao Direito
Internacional consuetudinário (Gewohnheitsvölkerrechtes). O seguinte é o
Direito convencional (Vertragsvölkerrechts), formado pelos tratados, cuja
validade é retirada do costume dos Estados em cumprirem os tratados e se
conduzirem daquela maneira. Posteriormente, viriam as normas criadas
por órgãos internacionais que são instituídos por meio de tratados.
Kelsen procurou romper um paradigma em sua tradição da filosofia
analítica – principalmente no tocante ao significado da norma como signi-
ficado – ao apresentar um normativismo dentro do positivismo, ainda que
não com uma ideologia positivista. Há a negação a toda e qualquer ideolo-
gia no tocante à análise do Direito enquanto objeto. Apesar da negação de
ideologia por uma ideia de neutralidade como avessa aos interesses polí-
ticos ou morais por trás da cognição científica, ao entender Kelsen como

22 Ibidem, p. 561.
23 Ibidem, p. 390. Do original em alemão: “Wenn sie als die Staaten verbindliche Rechtsnormen gedeutet werden, so
darum, weil eine Grundnorm vorausgesetzt wird, die die Staatengewohnheit als rechtserzeugenden Tatbestand einsetzt”.
24 Ibidem, p. 391. Do original em alemão: “wenn man die Grundnorm voraussetzt, die die Staatengewohnheit als
normerzeugenden Tatbestand einsetzt, welchen Inhalt immer die so erzeugten Normen haben mögen”.
25 Ibidem, p. 560. Do original em alemão: “als die vorausgesetzte Grundnorm des Völkerrechts eine Norm gelten, die
die durch das gegenseitige Verhalten der Staaten konstituierte Gewohnheit als rechtserzeugenden Tatbestand einsetzt”.
26 ______. Teoria Geral do Direito e do Estado. p. 525.

292
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

um sujeito no mundo no qual ele viveu, se há alguma política jurídica na


teoria pura não é pela neutralidade e legalismo como comumente se veri-
fica ao servir de apoio para legitimar qualquer tipo de regime, mas sim de
tolerância com o regime do próximo.
Um dos pontos principais para a compreensão do pensamento kel-
seniano é a relação entre norma fundamental e o Estado. Como uma or-
dem jurídica, o Estado convive com diversas ordens jurídicas de mesmo
status e com uma ordem maior, que a todos engloba, que é o Direito In-
ternacional. Apesar de terem características diferentes, a ordem jurídica
interna – o Estado – e o Direito Internacional são partes de um mesmo
sistema normativo. Constituem um sistema por suas normas vigerem em
uma relação de validade umas com as outras, dentro dos respectivos cam-
pos normativos limitados.
É preciso, assim, não considerar a tradicional separação entre Esta-
do e Direito como se um fosse o legitimador do outro. A teoria pura nega
o Estado como um ente separado do Direito, porque essa separação car-
rega certo grau de valoração do Estado, que permite a separação do poder
político do comando jurídico, e, dessa forma, retirar o Estado enquanto
ente de um sistema único constituído por um Direito Internacional e pelos
diversos Direitos nacionais.
O Estado como objeto de conhecimento da ciência jurídica se reduz
ao maior conjunto normativo dentro dos campos de validade territorial,
temporal, pessoal e material. Nessa delimitação, o Estado é a ordem com a
maior competência de criação e aplicação do Direito dentro dos próprios
procedimentos pelo Direito instituído. Assim, como será visto adiante, é
correto para a teoria pura do Direito dizer que se o Estado é o Direito in-
terno, então o Estado existente é aquele Estado que efetivamente vige.

A dualidade ideológica entre Estado e Direito

A distinção entre Direito e Estado, conforme a Teoria Pura do Di-


reito, constitui uma questão antes de tudo ideológica. A teoria pura tem o
objetivo de tornar o Direito um objeto de conhecimento27. Para Bobbio,
o normativismo kelseniano como uma das correntes do positivismo jurí-
dico representa “o estudo do Direito enquanto fato, não como valor: na
definição do Direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada
num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio Direito em bom
e mau, justo e injusto”28. O único modo de ser possível um conhecimento
acerca do Estado livre de elementos ideológicos é a aplicação da pureza

27 ______. Reine Rechtslehre. p. 21.


28 BOBBIO, N. O positivismo jurídico. Tradução de Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1995. p. 136.

293
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

teórica, a ser aplicada à entidade estatal enquanto ordem jurídica. Dessa


forma, para livrar o conhecimento do Estado de sua função ideológica é
necessário que seja estabelecida sua identidade com o Direito.
Como verifica Kelsen, o Estado, de acordo com a teoria jurídica tra-
dicional até então, era tido como uma entidade metajurídica, como uma
pessoa superior, que criava o Direito e a ele estava vinculado. Sua autorida-
de e legitimidade era justamente retirada dessa autovinculação ao Direito.
A concepção do Estado enquanto pessoa jurídica artificial é uma das gran-
des marcas da modernidade. Como uma ruptura ao paradigma das relações
políticas de cunho privatista do medievo, o Estado moderno é tido como
uma ordem, uma fonte pública de poder soberano imperante em um ter-
ritório. A corrente contratualista, reflexo da concepção moderna do reino
da razão, é a mais marcante forma de se explicar o Estado enquanto ordem
legítima para a emissão do Direito.
Na historicidade que demonstra a ideologia presente na distinção
entre Direito e Estado, a teoria hobbesiana representa um grande marco.
Em Leviatã, o Estado é uma pessoa constituída por uma reunião de von-
tades em um pacto de submissão representado por uma pessoa ou uma
assembleia de pessoas, que é o portador do poder soberano. Segundo Ho-
bbes, o Estado constituído como uma pessoa artificial é “uma pessoa de
cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os
outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a
força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurar a paz e a defesa comum”29. A artificialidade retira a ideia de po-
der político a um plano metafísico e o institui com Direitos de soberania:
entre eles, o de criar as leis e aplicá-las30.
A completude entre o Estado e o Direito como entes é estabelecida
pelo constitucionalismo no século XVIII. A normatividade constitucio-
nal inaugura uma evolução na história jurídica ao vincular o poder polí-
tico ao Direito. A ideia de uma lei fundamental sobre as leis estabelece
importante limitação à soberania estatal e reforça a proteção ao indiví-
duo, ente em torno do qual e para qual o Estado moderno se legitimou.
Ainda que por interesses de uma burguesia emergente, a solidez jurídi-
ca em determinados territórios e o controle do arbítrio do detentor do
poder político proporcionaram essa ideia de limites estabelecidos pelo
Direito. O Estado é a única fonte emissora do Direito, mas por ele é con-
tido, seja por limitações materiais, seja por limitações de procedimento.
Posteriormente, com o hegelianismo, a idealização do Estado assume um
locus mítico como referência para o Direito positivo. Nessa dualidade

29 HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 106.


30 Ibidem, p. 110.

294
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

entre Direito e Estado, o Direito é justo na medida em que seu conteúdo


se aproxima do idealismo ético-estatal.
Tal dualidade concebe o Estado como uma pessoa detentora de Di-
reitos e deveres, assim como os cidadãos (ou súditos), todavia enquan-
to uma pessoa artificial, cuja soberania é exercida por uma autoridade.
Mesmo com o dilema acerca do titular da soberania – monarca, parla-
mento ou povo –, sempre há uma autoridade que representava o poder
soberano nos atos de Estado.
Conforme a visão de Kelsen, o dualismo entre Estado e Direito obs-
curece um exame puro enquanto objeto em razão da carga ideológica que
tal separação representa31. Essa posição de Kelsen permite pensar sobre
duas ideias basilares. A primeira é que, segundo esse autor, é preciso re-
tirar a carga ideológica para a análise do Estado em conformidade com o
método da teoria pura. Essa é uma concepção de ciência ainda herdada
da neutralidade weberiana, mas que também carrega uma influência da
filosofia analítica, pois há uma crítica à dualidade semântica que acaba
gerando, na linguagem, dois entes diferentes: Estado e Direito. A segunda
é que Kelsen desvincula a ideia de Estado de Direito de legalismo.
Em sua crítica à dualidade entre Direito e Estado, Kelsen critica di-
retamente uma ideologia legalista. Ao dizer ser possível conhecer o Direito
independentemente de seu conteúdo, ele busca desvincular a idealização
de um Estado de Direito (Rechtsstaat) em relação ao Direito em si. Explica
Simone Goyard-Fabre, ao mencionar que Kelsen não é um positivista no
aspecto filosófico de ideologia legalista, que “a teoria pura do Direito ela-
bora uma ciência normativa do Direito não porque estabelece ou constrói
normas, mas porque estuda como as normas em vigor hic et nunc, no Di-
reito positivo, tornam possível a interpretação das condutas humanas”32.
No pensamento de Kelsen, desse modo, é errado conceber o Esta-
do como ente por trás (ou além) do Direito em razão de sua identidade.
Reafirmar a dualidade seria um modo de ideologizar a figura do Estado,
enunciando-o como uma pessoa além da realidade, que ao mesmo tempo
legitima o Direito criado e suas ações por estar de acordo com o Direito
que ele mesmo criou. Dessa forma, “o dualismo de Direito e Estado é uma
duplicação supérflua do objeto de nossa cognição, um resultado de nossa
tendência a personificar e então hipostatizar nossas personificações”33.

31 KELSEN, H. Reine Rechtslehre…. p. 500.


32 GOYARD-FABRE, S. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno. Tradução de Irene Paternot. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 253.
33 KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,
2005. p. 275.

295
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Considerações finais

O que se pode entender por não vincular o Direito à moral e/ou à


justiça? Seria o Direito, então, uma ordem social desprovida de valor? O
Direito como objeto de sua ciência não pode ter valorado? Independente-
mente do conteúdo, Direito é aquilo que é criado e aplicado de acordo com
a norma fundamental de um Estado?
Essas são várias indagações que o leitor tem ao estudar Kelsen ou
outros autores juspositivistas, como Austin e Hart. Uma das principais
questões do positivismo jurídico é a identificação do Direito como uma or-
dem social caracterizada por sua coercitividade. Então, será Direito aquela
ordem social que for coercível, mas sob uma determinada forma. Ou seja,
uma das grandes diferenças entre o Direito e outras ordens sociais – como
a religião – é a heterogeneidade e a possiblidade de fazer valer as condutas
prescritas pela norma por meio do uso da força dentro de uma forma esta-
belecida pelo próprio Direito.
A afirmação da validade de uma ordem jurídica dada pela ciência do
Direito independente do seu valor é baseada em um paradigma de ciência
como o estudo avalorativo dos fatos. O Direito visto como um fato, não
como um valor, é um fenômeno normativo existente e que o jurista deve
estudar como um objeto isolado, sem se envolver diretamente ou sem se
deixar levar por suas considerações de justo ou injusto. Isso significa que
da mesma forma que um cientista das ciências naturais deve olhar para
um objeto e estudar suas propriedades sem considerar se aquilo é bom ou
mau, o jurista deve, segundo o normativismo kelseniano, observar o Direi-
to de um Estado de forma avalorativa e descrever suas relações normativas.
Assim, não importa o conteúdo das normas; se tiverem sido atendidos os
requisitos formais de validade, o fenômeno normativo analisado pode ser
considerado como “Direito”.
A crise da racionalidade do Estado, combinada com as influências do
positivismo sociológico, ambos do século XIX, ocasionou uma necessida-
de de autonomização como objeto de pesquisa pelo positivismo, no quanto
aspecto tal como a questão da validade do Direito, assim como de sua fonte
e de sua forma de abordagem.
Ao separar os juízos de valor dos juízos de fato, o positivismo se
mostra como uma abordagem avalorativa do Direito, uma vez que apenas
os juízos de fato podem fornecer um conhecimento objetivo da realidade
normativa pretendida pela ciência do Direito. Além dessa forma de abor-
dagem, o positivismo é teorização jurídica, especialmente no aspecto da
norma, do ordenamento e de suas fontes.
É possível verificar, também, em alguns autores, uma ideologia positi-
vista segundo a qual a não valoração da norma poderia levar ao legalismo e

296
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

à obrigatoriedade de obediência dos destinatários. Evidentemente, não era a


ideologia por trás da teoria normativista de Kelsen, como o artigo pretendeu
demonstrar. Ao contrário do que o senso comum jurídico declama, não há
na obra de Kelsen uma pretensão de estabelecimento de um Direito puro no
qual qualquer que seja seu conteúdo possa ser considerado como justo.
O conceito de Estado, para Kelsen, é uma questão de análise apenas
do Direito positivo, porque apenas o Direito positivo pode ser conhecido
sem uma vinculação a uma moral ou a uma ideologia política específica.
Desse modo, somente o Direito positivo pode ser compreendido por sua
forma, independentemente de seu conteúdo. A compreensão do conceito
de Estado se realiza por meio de uma ciência do Direito positivo, que não
deve se confundir com uma filosofia acerca da justiça.

Referências

BILLIER, Jean-Cassien; MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Di-


reito. Tradução de Maurício de Andrade. Barueri: Manole, 2005.
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Tradução de Márcio Puglie-
si. São Paulo: Ícone, 1995.
GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político
Moderno. Tradução de Irene Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KELSEN, Hans. Principles of international law. New York: Rinehart &
Company Inc, 2007.
______. Reine Rechtslehre. 2 Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2013.
______. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução de Luiz Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

297
17
Constitucionalismo excluyente y su necesaria
relectura para la inclusión1

Dalliana Vilar Lopes

Introducción

La historia constitucional ultrapasa los textos constitucionales, de


manera que no es la mera reproducción de tales textos; su objeto está más
allá de las libertades y los derechos, ya que en ella se analiza el poder, con
definición de límites y obligaciones.
Cuando se trata de constitucionalismo se puede llegar a momentos
históricos longincuos, como el constitucionalismo antiguo; con todo, por
veces se parte de períodos más recientes, con fundamento en la concepci-
ón de Joaquin Barelas, por la cual «sólo tienen Constitución los países que
respecten la separación de poderes y derechos fundamentales».
La base de la nación moderna, con sus contornos de constitucionalis-
mo, estuvo centrada en distintos factores preliminares, como las condicio-
nes materiales previas generadas por la industrialización, urbanización o
las reivindicaciones de ampliación representativa por partidos nacionales
y asociaciones sectoriales o el sentimiento de nacionalismo de las guerras
napoleónicas, además de las guerras contra los enemigos internos – como
los anarquistas, socialistas, comunistas.
Limitado aquí el estudio del constitucionalismo, en términos geo-
gráficos, a la Europa y el continente americano, y, en el aspecto temporal,
al período del Estado «Moderno» y siglos XVIII y XIX, aunque se haga
referencia al siglo XX, importa delimitar que tal fenómeno ha sido cons-
truido bajo la exclusión, en muchos aspectos, ya que existieran bloqueos,
en razón de género (bloqueo a la mujer), de raza (bloqueo a los negros) etc.
Se pasó en el contexto de creación de un Estado en verdad no parita-
rio, ya que el tercero estado – en referencia al pensamiento revolucionario

1 El presente ensayo consolida discusiones realizadas en las clases de las asignaturas de Historia Constitucional y
Teoría del Estado y de la Constitución del Master en Derecho Constitucional de la Universidad de Sevilla, de manera
que se registra el agradecimiento a los profesores Doctores Bartolomé Clavero Salvador, Sebastián Martín Martín y
Blanca Rodriguez Ruíz por las discusiones y contribuciones.

299
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

de Siéyes – se formaba de los hombres que se ocupaban de los negocios,


con su interese por ellos y sus virtudes o capacidades de practicarlos. O,
en el caso del continente americano, donde, a partir de una revisión his-
toriográfica, se puede decir que surgió el constitucionalismo, el Estado y
el constitucionalismo que lo acompaña se han formado para atender las
pretensiones de los varones, dueños de tierras y con poder familiar.
Ya el constitucionalismo garantista postdictatorial vigente, pero en
colapso, que nació en Constituciones como la portuguesa de 1976 y la es-
pañola de 1978, buscó resignificar lo que ha sido el constitucionalismo en
Europa, con la elevación de ciertos principios y valores al rango consti-
tucional, como la dignidad de la persona, la cual surge como principio en
respuesta al totalitarismo.
Tanto la historia constitucional cuanto la teoría del Estado y de la
Constitución se han basado históricamente en una perspectiva excluyen-
te, una vez que en su base siempre estuvo el varón blanco propietario de
tierras, concebido como el individuo que detenía los derechos y también
como aquél que ocuparía el espacio público representado por el Estado y
sus actividades de administración pública.
Bajo tal contexto, el presente ensayo pretende demonstrar la pers-
pectiva excluyente que ha guiado los textos normativos o declarativos de
derechos producidos históricamente, con recorte para la cuestión de la es-
clavitud y la exclusión de las mujeres, así como proponer la necesaria re-
lectura de los mismos textos, a partir de la percepción de que ellos toman
cuerpo propio y pueden ser leídos con los ojos de ahora.

El colonialismo y la permanencia de la esclavitud

El constitucionalismo y el colonialismo ni mismo son fenómenos


paralelos, sino fenómenos intrínsecamente imbricados. En efecto, el mo-
mento anterior a la formación constitucional tiene la marca de la falta de
control, de manera que así explicase como naciones en que surge el cons-
titucionalismo – símbolo de control de poder y de garantías – también son
las mismas responsables por la colonización, contexto en que hay una au-
sencia de poder y de garantías. De tal manera, el constitucionalismo surge
en América, y no en Europa, como se dice ordinariamente.
La justificación del colonialismo mismo ante el constitucionalis-
mo naciente ha sido realizada por distintos pensadores. Emer de Vattel,
al tratar del derecho de gentes, afirma que «las naciones o estados son
unos cuerpos políticos, o sociedades de hombres reunidos, con el fin de
procurar su conservación y ventaja con la reunión de sus fuerzas» (1758,
traducción 1820, § I). Su tesis es también que los estados soberanos son

300
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

sociedades naturales sumisas a las leyes del derecho de gentes y tienen


la obligación natural de cultivar la tierra, lo que justifica el colonialis-
mo, ya que los «pueblos errantes» o «salvajes» – como afirma – no tenían
ni número suficiente ni necesidad de trabajar en vastas tierras, al paso
que los europeos, por su vez, eran muy numerosos para el territorio de
Europa y con la descubierta estarían legitimados a ocupar los nuevos
territorios y establecer colonias.
Así, se puede decir que el constitucionalismo se desarrolló al servicio
del colonialismo, «el cual ha podido así mantenerse hasta la actualidad»2.
Al mismo paso, se desarrolló en América, y no Europa, como dicho, bajo el
fundamento de que se trata del surgimiento de un sistema, con separación
de poderes, garantía de derechos e instituciones para garantízalos. En tal
dirección, se referencia al constitucionalismo inglés, pero también a las
vivencias de las organizaciones indígenas que ya vivían en el territorio co-
lonizado antes del descubrimiento – por ejemplo, las comunidades «hau-
denosaunne», con cierta organización, fuerza política y militar, anteriores
al surgimiento de los Estados Unidos.
Tales eran las relaciones entre europeos, americanos e indígenas
que, con base en indicios – pero poca documentación –, estudios defien-
den que la idea de confederación que surgió en los Estados Unidos he
venido de los pueblos indígenas.
La historia constitucional denota, específicamente cuanto a tales
pueblos, un verdadero proceso de usurpación de naciones y el estableci-
miento de relaciones «confederales» con ellas para tomarles el territorio
o explorarlo. Al tratar del constitucionalismo en Nueva Granada en prin-
cipios del siglo XIX, Clavero relata que su primera Constitución federal
reconoce la existencia de otras naciones internas de indios en condición
de independencia «pero respecto a las cuales la Constitución de Nueva
Granada plantea un programa de deconstitución, esto es de desaparición
en cuanto que tales naciones para ceder sus territorios a población de na-
ción neograndina»3, con las cuales incluso cabe la celebración de tratados
– como en una práctica confederada –, con todo, «como medio para intro-
ducirse en sus territorios independientes, no como vía de incorporación en
cuanto que tales naciones a la Unión o Confederación»4.
En tal paso, la Constitución que se forma, aunque reconozca las na-
ciones indígenas e incluso prediga la posibilidad de firmar tratados «con-
federales», lo hace para garantizar los intereses de otros en contrapunto al
de los pueblos; y, pues, en una dirección excluyente.

2 Bartolomé Clavero; 2019, p. 201.


3 Bartolomé Clavero. 2016; p. 89.
4 Bartolomé Clavero. 2016; p. 89.

301
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

En el camino de la exclusión y del mantenimiento de la dominaci-


ón de los colonizadores, la proclamación real de 1763 del Rey George R.
consagró su soberanía sobre los pueblos indígenas y ha impuesto que los
tratos o negocios con los indígenas obligatoriamente deberían pasar por la
monarquía británica, sin la posibilidad del trato directo. En sus términos:

And We do further declare it to be Our Royal Will and Ple-


asure, for the present as aforesaid, to reserve under our So-
vereignty, Protection, and Dominion, for the use of the said
Indians, all the Lands and Territories not included within the
Limits of Our said Three new Governments, or within the Li-
mits of the Territory granted to the Hudson’s Bay Company,
as also all the Lands and Territories lying to the Westward of
the Sources of the Rivers which fall into the Sea from the West
and North West as aforesaid5.

El resultado, en verdad, fue que la relación de la monarquía británica


con los líderes indígenas ha funcionado como verdaderas relaciones diplo-
máticas, lo que está en los orígenes del marco confederativo.
John Adams (1787) trata de la confederación, sin, con todo, destacar
la importancia de prácticas confederadas de los pueblos indígenas en
América. Así, en la versión oficial, la historia se pierde y no aparece la
idea de confederación como creación de los pueblos indígenas america-
nos, una vez que no ha sido escrita bajo la ótica de tales pueblos, sino de
los europeos colonizadores.
Por su vez, Blackstone6 escribe sobre las leyes de Inglaterra y ana-
liza la subordinación económica y a los padres de familia, bajo cuya tutela
no se aplica la justicia, sea a los hijos o a los trabajadores, sometidos a la
esclavitud, ya que quien gobierna son los padres de familia, detentores de
poses y tierras. Lo que estudia son los derechos de las personas, pero a
partir del análisis de lo que se aplica al amo y al sirviente, o sea, el análisis
bajo la ótica de dominación. En tal contexto, los derechos solo los tienen
los ciudadanos, en una concepción excluyente. Por ejemplo, la carta de
derechos consagrada «Bills of Rights» (1689), en verdad, no es una declara-
ción de derechos, sino una declaración que buscaba delimitar cuestiones
jurídicas y políticas y, por consiguiente, afirmar algunas garantías.
La Constitución de los Estados Unidos, por su parte, se preocupó
con la organización de las instituciones federales y especialmente del
Congreso, como tratado en los ensayos de los Federalistas; el compromiso
constitucional, en el contexto histórico, fue con los que ocupaban el poder

5 The Royal Proclamation – October 7, 1763. By the King. A Proclamation George R. Disponível: https://avalon.law.
yale.edu/18th_century/proc1763.asp. Acceso en 15 mayo 2020.
6 Blackstone’s Commentaries on de Laws of England. Disponible en: https://avalon.law.yale.edu/subject_menus/
blackstone.asp. Acceso en 16 mayo 2020.

302
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

y su proyecto de Estado, sin analizar otras perspectivas, como la explotaci-


ón en las tierras indígenas. El movimiento de construcción constitucional,
en la dirección de las experiencias vividas en América, incluso las olvida-
das relaciones con los indígenas, resultó en una composición confederal.
Una serie de enmiendas han sido presentadas y aprobadas; en su
presupuesto estaba la incorporación del «Bills of Rights», de 1689, con
sus previsiones de derechos – siempre para los individuos, en una con-
cepción estricta. Las enmiendas, por su vez, han consagrado derechos
como la libertad de expresión, el derecho a portar armas, derecho a ser
juzgado por el jurado, prohibición de penas crueles, los derechos de los
Estados bajo la Constitución.
En que pese todos los derechos previstos, una vez más, el concepto
del sujeto de derechos correspondía al varón blanco propietario de tierras;
tal perspectiva excluyente no incluya ni los indígenas, ni los negros libres,
ni los non-propietarios, ni las mujeres, cuya perspectiva general de exclu-
sión se analiza al tópico siguiente. Tales sujetos no han participado de la
elaboración del Estado ni de la repartición de poderes.
Las enmiendas trece, catorce y quince a la Constitución de los Es-
tados Unidos excluyen la esclavitud, con la prohibición de la esclavitud,
la previsión de protección igualitaria y la prohibición de cualificaciones
respecto al voto determinado por la raza, respectivamente; pero, son las
tres tan solo de finales del siglo XIX.
Del expuesto se extrae que los tratados, declaraciones de derechos
y demás manifestaciones del constitucionalismo han tratado de los ver-
daderos sujetos de derechos – a saber, los propietarios –, los cuales se
han consolidado desde el primer constitucionalismo, sin cualquier entra-
be para la permanencia de la esclavitud. Los propios textos normativos
justifican la permanencia de la esclavitud; incluso, la objeción al tráfico
de esclavos surge, pero la esclavitud permanece, y en paralelo el consti-
tucionalismo americano crea la perspectiva de derechos fundamentales,
pero para sujetos específicos.
La lectura de tales textos a la luz de la sociedad de su tiempo confir-
ma la perspectiva de que se ha producido la exclusión, aunque se destine
derechos a «todos». La definición social y antropológica de «todos» al
tiempo deja claro que, a su tiempo, tales documentos han excluido buena
parte del estrato social y, aún más, justificado la permanencia y naturali-
zación de la esclavitud.
En el contexto del constitucionalismo y de la esclavitud, experiencia
relevante ha sido la haitiana. En efecto, a partir de la internalización y lec-
tura propia de declaraciones de derechos, se ha procedido a la emancipaci-
ón de los esclavos. En Haití se desarrolló la concepción de que la esclavitud

303
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sería incompatible con la Constitución y los fundamentos de la Revolución


Francesa – de libertad, igualdad y fraternidad –, cuando en sus orígenes el
paradigma revolucionario se centraba en la figura del tercero estado y su
composición por propietarios. Hubo, así, una apropiación de conceptos
con la designación de otro sentido.
El artículo tres de la Constitución prohibió la esclavitud, con funda-
mento en el derecho a la libertad. Así, ha dispuesto:

Artículo 3. Il ne peut exister d’esclaves sur ce territoire, la ser-


vitude y est à jamais abolie. Tous les hommes y naissent, vi-
vent et meurent libres et Français7.

El derecho a la igualdad, por su vez, ha sido consagrado, con la ex-


tensión de los derechos a todos los pueblos, como los indígenas, de manera
que se comenzó una migración al Haití, en busca de la ciudadanía haitiana;
de tal manera, incluso, hubo una redefinición de la ciudadanía haitiana,
como una oposición al blanco. La gran definición de igualdad estuvo en el
artículo cinco de la Constitución, lo cual ha establecido:

Artículo 5. Il n’y existe d’autre distinction que celle des vertus


et des talents, et d’autre supériorité que celle que la loi don-
ne dans l’exercice d’une fonction publique. La loi est la même
pour tous, soit qu’elle punisse, soit qu’elle protège8.

En que pese el experimento revolucionario, la conclusión social ha


sido que el rompimiento de la esclavitud no podría parar la producción.
Así, el artículo quince de la Constitución fijó que «Chaque habitation est
une manufacture qui exige une réunion de cultivateurs et ouvriers; c’est
l’asile tranquille d’une active et constante famille, dont le propriétaire du
sol ou son représentant est nécessairement le père»9.
De tal manera, el dueño de las tierras dejó de ser dueño de los esclavos,
ahora libres; los libertos, con todo, pasaran a ser de la familia y presos a la
tierra, como eran los dueños también, pero con una concepción de comuni-
dad, y no de poder familiar que antes tenía el varón propietario. En ese sen-
tido, el artículo dieciséis de la Constitución dice que «Chaque cultivateur et
ouvrier est membre de la famille et portinnaire dans les revenus»10.

7 Haïti. Constitution du 3 juillet de 1801. Disponible en: https://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1801.htm. Acceso en: 16


mayo 2020.
8 Haïti. Constitution du 3 juillet de 1801. Disponible en: https://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1801.htm. Acceso en: 16
mayo 2020.
9 Haïti. Constitution du 3 juillet de 1801. Disponible en: https://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1801.htm. Acceso en: 16
mayo 2020.
10 Haïti. Constitution du 3 juillet de 1801. Disponible en: https://mjp.univ-perp.fr/constit/ht1801.htm. Acceso en: 16
mayo 2020.

304
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Tratase de una experiencia que ha rompido con el paradigma de en-


tonces, incluso con el constitucionalismo excluyente que se tenía, relacio-
nado a la garantía de derechos a individuos determinados. Por su vez, es,
así, una prueba de la posibilidad y necesidad de hacer una relectura sobre
los textos, incluso para superar la exclusión inherente al tiempo, bajo la
idea de que, a pesar de la relevancia de comprender el contexto social y
antropológico del tiempo, los textos gañan su propio cuerpo y pueden ser
releído desde otra perspectiva; ahora, más inclusiva.

La exclusión de las mujeres

Como ya destacado, a partir del análisis del estrato social bajo el


constitucionalismo, se tiene, por principio, un concepto de persona como
individuo en posesión de un estado que se tenía por naturaleza o por ra-
zones sociales. Por ejemplo, mayor o menor edad; varón o mujer; título de
ciudadano por jurar a la ciudad etc.
En tal contexto, brota el constitucionalismo y el discurso de los de-
rechos que lo acompaña, como en el instrumento de la Declaración Uni-
versal de los Derechos de los Ciudadanos (1778), que plantea una igualdad
como premisa para reconocer todos los demás derechos inalienables.
El Estado “Moderno” presenta cinco elementos capitales, como la
mutación en el concepto de sujeto de derechos y en la concepción de la co-
munidad política o del espacio político, además del cambio en torno al po-
der, que actúa conforme a las normas y así el cambio en el propio derecho
que se torna general y uniforme, de manera a garantizar un ordenamiento
nacional y superar la fragmentación del período anterior.
En su contexto, ocurre una mutación en el concepto de sujetos, con
cambio del foco de la persona – y sus estatus correspondientes, como edad,
sexo, ciudadanía – para el individuo. Con todo, como dicho, los individuos
no son todos los que integran la sociedad, en que pese la concepción jaco-
bina minoritaria que ya trataba del derecho a la igualdad y, así, transcendía
los derechos de libertad, propiedad y fraternidad consagrados en la revolu-
ción francesa. Los individuos permanecían los varones dueños de tierras,
con necesaria exclusión de las mujeres.
Así, en ese Estado Moderno, construido por los hombres a partir de
decisiones pensadas y encadenadas al largo de la historia, se tenía la igual-
dad formal de los individuos, la cual basaba el Estado Legislador que garan-
tía derechos. Así, lo que se consolidó ha sido una percepción restrictiva de
los detentores de derechos universales, a saber, los propietarios. Más allá, las
instituciones del Estado Moderno han reproducido la propia estructura ya
existente en la sociedad, de manera que aquellos que tenían poder en el pla-

305
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

no facto también son los mismos que pasaran a componer el Estado, incluso
como manera de garantizar estabilidad y seguridad al Estado.
Tal Estado Moderno, con la marca de la despersonalización del po-
der y objetivación de los criterios de su legitimación, incluso bajo el impe-
rio de la ley, pasó a destacarse como Estado de Derecho, concebido como
un Estado que actúa conforme reglas preestablecidas en un Estado Liberal
y por medio de códigos; todo, sin embargo, en traducción a valores morales
predominantes en la sociedad, o sea, valores económicos, patriarcales y
discriminatorios vigentes.
Como destaca Clavero, los Estados se formaban mediante Consti-
tuciones, con naturaleza normativa superior que conformaba el sistema
político de acuerdo con las presunciones culturales europeas y predijo de-
rechos/libertades y poderes/instituciones11. En sus palabras:

Los primeros, los derechos, tendían a formularse en térmi-


nos universalistas, pero se entendían como atribuciones del
sujeto colonizador, esto es, del padre de familia propietario,
autónomo o patrón y de cultura europea. Sujeto constitucio-
nal no lo era ni el esclavo ni el emancipado ni el trabajador
dependiente ni el inmigrante endeudado ni la mujer ni el me-
nor ni el indígena…12

Así, la construcción del Estado, incluso bajo el constitucionalismo,


ha conducido a una estructura estatal basada en distinción de sexo-género,
expresa en el contenido de «individuos» o «todos», de los textos normati-
vos; o, aún, en el propio pensamiento de los contractualistas. Menciona-
se, por ejemplo, la tese defendida por Rousseau en su obra «Emilio o de
la educación», para quién a la mujer, naturalmente mala, cabe el espacio
privado y el deber de servir a su esposo, lo cual pierde el propio sentido de
ciudadanía, caso sea por ella traído.
Tratase de concepción excluyente que repercute todavía en los días
actuales y exige una nueva lectura de los textos, de la historia y de los propios
conceptos de la teoría del Estado y de la Constitución para que se supere.
A ese respecto, Clavero signala que el propio lenguaje de los
derechos presente en la declaración de independencia de los Estados
Unidos presenta formulaciones con sesgo sexista, ya que indica como
sujetos de derechos «the people, all men, each individual, every subjecto

11 Bartolomé Clavero. Constitucionalismo y colonialismo en las Américas: el paradigma perdido en la historia


constitucional. Revista de Historia del Derecho N° 53, enero-junio 2017 - Versión on-line ISSN: 1853-1784 Instituto
de Investigaciones de Historia del Derecho - Buenos Aires (Argentina). http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_
serial&pid=1853-1784&lng=es&nrm=iso. Sección Investigaciones [p. 25].
12 Bartolomé Clavero. Constitucionalismo y colonialismo en las Américas: el paradigma perdido en la historia
constitucional. Revista de Historia del Derecho N° 53, enero-junio 2017 - Versión on-line ISSN: 1853-1784 Instituto
de Investigaciones de Historia del Derecho - Buenos Aires (Argentina). http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_
serial&pid=1853-1784&lng=es&nrm=iso. Sección Investigaciones [p. 25].

306
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

of the society» y como destinatario de garantías «no person, no man, no


subject». Con eso, para él, en el texto «no quedan comprendidos ni el
indígena, ni el afroamericano, esclavo o emancipado, ni, desde luego
por entonces, la mujer»13. Indica también la ausencia de superación de
una perspectiva excluyente, al analizar la propia Declaración Universal
de los Derechos Humanos y la Convención sobre los Derechos Políticos
de la Mujer, ambas del siglo XX.
Tal construcción sexuada del Estado y del constitucionalismo, con
exclusión de las mujeres, también se presentó en las luchas por derechos
sociales, especialmente laborales, las cuales también componen la historia
constitucional. Así, por ejemplo, al tratar de procesos constituyentes en
España y más específicamente del intento de la II República, Martín re-
cuerda que incluso «se quiso garantizar igualdad de remuneración entre
hombres y mujeres que desempeñasen idéntico trabajo, pero esta propues-
ta de enmienda […] quedó desechada»14.
Como denota en otro estudio, para el mismo autor, el Estado Social
en su versión democrática ha venido para extender el concepto de sujetos
de derechos que clásicamente se construyera, así como para incluir las
mujeres, los menores y los trabajadores en el estatuto de la ciudadanía; lo
que, por su vez, implicaría «un acto de superación de la anterior centrali-
dad política del varón propietario»15.
En efecto, al reflexionar acerca de la ciudadanía democrática en el
contexto europeo y español, Aláez Corral atenta que el principio democrá-
tico es uno de los elementos que perfilan la estructura del Estado nacional
desde principios del siglo XX. Para él, en su concepción contemporánea,
tal principio es más amplio que la observación de las leyes aprobadas por la
mayoría, pues incluye el deber de respetar los derechos fundamentales de las
minorías. Así, asignala que el pluralismo y la igualdad son importantes para
superar el contexto de homogeneidad identitaria de las mayorías sociales16.
Él piensa la ciudadanía actual «como instrumento que permite, a tra-
vés del ejercicio de derechos fundamentales – sobre todo los de carácter
político-participativo –, una praxis cívica funcionalmente orientada a pre-
servar el marco constitucional que la hace posible y la pluralidad cultural
de los sujetos y los grupos que se hallan sujetos a él»17. En su percepción,
así, está ligada al estado democrático con una cultura política que asegure

13 Bartolomé Clavero; No distinction shall be made: sujeto sin derechos y enemigo sin garantías en la Declaración
Universal de Naciones Unidas, 1945-1966; Quaderni Fiorentini: per la storia del pensiero giurido moderno; I diritti dei
nemici; 38; tomo II; 2009.
14 Sebastián Martín. Derechos sociales y procesos constituyentes (1931, 1978, ¿2016?); Gaceta sindical; p. 54.
15 Sebastián Martín; 2017; p. 337.
16 Aláez Corral, Benito; 2017; p. 46.
17 Aláez Corral, Benito; 2017; p. 48.

307
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

la pluralidad cultural individual y colectiva. En el particular, también vin-


cula la ciudadanía al concepto de dignidad de la persona, al que nomina
«ideal ético de persona digna»; la dignidad de la persona, aquí, es consi-
derada «el valor fundamental sobre el que se apoyan los ordenamientos
constitucional-democráticos»18.
En reflexión sobre las estructuras sexuadas del Estado, que guarda
relación con todo que se construyó bajo el constitucionalismo leído a su
tiempo, Rodríguez Ruiz presenta ótica específica acerca de la ciudadanía,
la cual centra su percepción en el discurso del cuidado para construcción
de un Estado paritario, a la luz de la teoría del discurso; la concepción
pasa, entonces, a ser designada «cuidadanía». Con respecto al tema, Ro-
dríguez Ruiz relaciona el sistema de sexo-género y la ciudadanía y apunta
que la última está diseñada en los ideales liberales de igualdad y libertad
en términos sexuados; en particular, defiende que el camino para superar
tal configuración pasa por articular «un modelo de Estado inclusivo y pa-
ritario desde sus orígenes […] sobre la base de la teoría del discurso y de la
autonomía que ella propugna como principio normativo básico»19.
En tal contexto, posiciona la discriminación por razón de sexo-gé-
nero como estructural, presente en las raíces del Estado, lo cual, con todo,
al mismo tiempo que presenta «raíces sexuadas», pretende ser «universal-
mente emancipador», de manera que los ideales de igualdad y libertad son
puestos como deseos de hombres y mujeres. Para ella, eses dos ideales y la
propia ciudadanía participativa tienen rasgos masculinos, así mismo los
derechos que les corresponden20.
Lo que se tiene claro es que, para combatir la discriminación por
sexo-género, es necesario tener conciencia de «la asimilación de las mu-
jeres a parámetros ciudadanos masculinos», para que ellas construyan su
propio parámetro ciudadano, lo cual no debe tener por presupuestos roles
definidos, sino considerar la realidad de mujeres y hombres y basarse en la
autonomía ciudadana como principio normativo y obligatoriamente pari-
taria. En tal línea, propone como norte la teoría del discurso para concep-
ción de ese estado democrático y retoma las palabras presentadas por la
Confederación General del Trabajo (CGT) en 2005 en un manifiesto por la
ciudadanía universal, que se base en la lucha contra relaciones de domina-
ción y la emergencia del «cuidado mutuo no jerárquico y sin privilegios»21.
La autora sustenta que todo ese pasaje de la ciudadanía – y sus es-
tructuras patriarcales basadas en términos sexuados – a la “cuidadanía”
permite crear la base para pasar al Estado post-patriarcal y combatir la

18 Aláez Corral, Benito; 2017; p. 49-57.


19 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 113.
20 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 114-116.
21 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 117-120.

308
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

discriminación, en sus elementos más estructurales y profundos. Aban-


donase la visión individualista de los derechos, los cuales, con todo, se
mantienen centrales «en la articulación de la ciudadanía, sobre la base de
una concepción relacional de las personas y los derechos que nos concibe
como partícipes en complejas relaciones sociales en las que somos tanto
receptores como dadores de cuidados»22. El punto de partida pasa a ser la
sociedad civil, en su complexidad relacional, a partir de que se repiensa el
Estado a luz de la interdependencia, en «un proceso de transformación in-
terdependiente de la esfera público-política y de la sociedad civil en clave
de participación democrática»23.
En tal punto, se revela el papel del Estado, que debe, entonces, actu-
ar para que los derechos sociales mantengan su función de garante de la
autonomía; esta, por su vez, se presenta como principio normativo central
para la ciudadanía democrática y elemento central para «la desconstrucci-
ón del género, para la superación de las relaciones estructurales de poder
de varones sobre mujeres sobre las que descansa el Estado a favor de un
modelo paritario de ciudadanía (de cuidadanía)»24.
En tal punto, se destaca la defensa de Habermas, al tratar de de-
recho y democracia, de que el derecho debe considerar la facticidad de
las condiciones precarias de integración social, la cual se realiza entre
sujetos que actúan comunicativamente. Para él, el sistema de derechos
debe ser informado por el principio del discurso, lo cual se mueve por la
aceptación de las pretensiones de validad de la acción comunicativa; en su
teoría, los derechos subjetivos se apoyan en el reconocimiento reciproco
de los sujetos de derecho que cooperan25. El presupuesto, así como en la
concepción de autonomía relacional delineada arriba, es de que los indi-
viduos no son vistos de manera atomizada; lo que se presupone es la cola-
boración de los sujetos, los cuales reconocen derechos recíprocamente y,
de tal reconocimiento, emergen los derechos reclamables judicialmente.
Hay una estructura intersubjetiva de condiciones de reconocimiento, en
que el entendimiento solo puede ser materializado a partir de reflexiones
sobre la propia acción comunicativa. El principio del discurso es el locus
donde se puede formar la voluntad racional, de manera que la legitimidad
del derecho está en un arreglo comunicativo26.
En el sistema de derecho por él pensado, la autonomía privada y la
autonomía pública conviven equilibradamente, en la medida en que los de-
rechos serán aquellos otorgados recíprocamente por los ciudadanos. Ha-

22 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 122-123.


23 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 122-123.
24 Rodríguez Ruiz, Blanca; 2019; p. 125.
25Habermas, Jürgen; 1929, 1997; p. 120.
26Habermas, Jürgen; 1929, 1997.

309
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

bermas extrae derechos fundamentales que resultan de la aplicación del


principio de discurso, como los que resultan del desarrollo y configuraci-
ón políticamente autónomos «del derecho al mayor grado posible de iguales
libertades subjetivas de acción» y «del status de miembro de la asociación
voluntaria que es la comunidad jurídica»; además de los derechos que ad-
vienen de la accionabilidad de los derechos «y del desarrollo y configuraci-
ón políticamente autónomos de la protección de los derechos individuales»27.
A partir del reconocimiento mutuo entre uno y otro, surgen los «derechos
fundamentales a participar con igualdad de oportunidades en procesos de
formación de la opinión y la voluntad comunes». Los últimos ligados a la
autonomía política y al status de ciudadano, a partir de que los ciudadanos
desarrollan su autonomía privada y pública, de que resultan, además, los
«derechos fundamentales a que se garanticen condiciones de vida que ven-
gan social, técnica y ecológicamente aseguradas».
Pero, de toda manera, se tiene que solo por el «principio de discur-
so muéstrase que cualquiera tiene derecho a la mayor medida posible de
iguales libertades subjetivas de acción», ya que es condición para la regu-
lación legítima que los derechos de cada uno sean equivalentes a iguales
derechos de todos. A eso se soma, además, la necesidad de procedimientos
jurídicos para que cada persona pueda hacer valer sus pretensiones28.
En todo el proceso de superación de estructuras construidas al largo
de la propia construcción del Estado y del constitucionalismo que lo acom-
paña, además de la toma de conciencia de las bases sociales y antropológi-
cas, son elementos relevantes la relectura de los textos normativos a la luz
de teorías actuales como la del «actuar comunicativo» y la «cuidadanía»,
además del empoderamiento de mujeres de todas las clases, razas, religio-
nes, culturas e identidades, con la potenciación de la conciencia colectiva
de las bases discriminatorias que sustentan la historia constitucional.

Una relectura necesaria

El presente ensayo analizó la historia constitucional y los procesos


excluyentes que ha producido. De un lado, se trató del principio del consti-
tucionalismo y su relación con el surgimiento del Estado «Moderno», aun-
que indicada la posibilidad de adopción de un concepto amplio de consti-
tucionalismo, que conduce los estudios a los tempos antiguos.

27 Habermas, Jürgen; Facticidad y validez: sobre el Derecho y el Estado democrático de derecho en términos de
teoría del discurso.
28 Habermas, Jürgen; Facticidad y validez: sobre el Derecho y el Estado democrático de derecho en términos de
teoría del discurso.

310
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

La centralidad del estudio estuvo en la institucionalización de la ex-


clusión de todos aquellos que no se identificaban como sujetos de dere-
chos o como «todos» o «individuos» a que se refieren los distintos textos
normativos o declaraciones de derechos examinados.
Se trató, especialmente, de la compatibilidad inicial del constitucio-
nalismo con el colonialismo y la esclavitud, además del trato diferenciado
y excluyente de la mujer, la cual se encontraba bajo el patrio poder del
varón blanco dueño de tierras.
Por primero, se justificó y se ha demostrado como el constituciona-
lismo ha servido al colonialismo y las razones por que los dos fenómenos
no se han excluido, sino se complementado. En tal contexto, se analizó las
construcciones teóricas y normativas del tiempo y la perspectiva de impo-
sición de dominación del hombre blanco sobre los pueblos que ocupaban
las tierras colonizadas. Se destacó, entonces, que el constitucionalismo
surgió en América, como un movimiento euroamericano, y que incluso el
concepto de confederación nació de las relaciones con las naciones indíge-
nas, aunque con el objetivo de explotar sus tierras.
También la esclavitud se mostró como instituto entonces compatible
con los ideales revolucionarios y las declaraciones de derechos, a partir de
la lectura social vigente del concepto de «individuos». Con todo, se denotó
cómo ha sido posible una relectura de los mismos textos para concluir por
la abolición de la esclavitud. En tal sentido, la experiencia de Haití, cuya
Constitución la prohibió, con fundamento en una nueva interpretación de
los preceptos de la Revolución Francesa, entre otros.
En segundo lugar, se han estudiado las bases excluyentes del consti-
tucionalismo cuanto a las mujeres, también en razón del concepto restric-
to de «todos» o «individuos» presente en los textos que basan la historia
constitucional, sea europea o americana.
En tal punto se analizó la Declaración Universal de los Derechos de
los Ciudadanos (1778) y la restricción de su extensión, al paso en que se in-
dicaran las estructuras sociales patriarcales vigentes en la sociedad. Incluso
el sesgo sexista de la Declaración de Independencia de los Estados Unidos y
los intentos fallidos de garantizar la igualdad de derechos en el contexto de
lucha por derechos laborales en el siglo XX han sido destacados.
Bajo toda construcción presentada, se propuso una nueva lectura de
los textos que componen la historia constitucional, cuanto a las mujeres,
con fundamento en teorías actuales, como la «teoría comunicativa» y la
«teoría de la cuidadanía», la cual encuentra raíces en la primera.
Lo cierto es que la historia constitucional no puede ser reescrita.
Los textos normativos y declaraciones de derechos han tenido su contex-
to específico de surgimiento y las consecuencias históricas presentadas
– como la justificación del colonialismo, de la esclavitud y de la exclusión
de mujeres, negros e indígenas.

311
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Con todo, comprender las raíces discriminatorias y excluyentes de


las distintas fases del constitucionalismo debe servir de instrumento para
la toma de conciencia del momento histórico que representan, pero tam-
bién para posibilitar que se produzca la necesaria relectura de los textos
normativos y declaraciones de derechos con «los ojos de hoy», con el obje-
tivo claro de promover la inclusión.

Referencias

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pañola de 1978: entre la potenciación y la limitación del ejercicio mul-
ticultural de los derechos fundamentales; Democracia constitucional y
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The Royal Proclamation – October 7, 1763. By the King. A Proclamation
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313
18
A importância do conceito de Estado de
Natureza dentro das teorias contratualistas
de Hobbes, Locke e Rousseau

Junior Rangel
Paulo Roberto Konzen

Introdução

Inicialmente, convém destacar que o contratualismo1 desencadeou


um fenômeno ético e político que levou à instituição e à legitimação de
vários governos civis e eclesiásticos durante a Modernidade (período lo-
calizado entre o século XV e meados do século XIX). Além disso, com se-
gurança, pode-se afirmar que vários elementos contratualistas foram fun-
damentais para a construção e a consolidação de vários Estados nacionais
modernos e contemporâneos.
Por isso, em suma, o artigo procura citar e analisar o conceito de
estado de natureza, elemento comum nas teorias contratualistas da Mo-
dernidade de Thomas Hobbes, de John Locke e de Jean-Jacques Rousseau,
como aspecto fundamental para a construção da respectiva teoria do con-
trato social de cada um deles. Para isso, fundamentar-nos-emos em textos
clássicos dos citados autores e de intérpretes.
Assim, um elemento fundamental das teorias contratualistas clássi-
cas da Idade Moderna é o estado de natureza do ser humano. Esse aspecto
é basilar, pois é uma conjectura de como os indivíduos seriam sem a cons-
trução de uma sociedade civil. Essa hipótese faz parte da formatação do
argumento que justifica a origem e a necessidade de uma sociedade civil
e, principalmente, do governo que é seu legitimador. No caso, os contra-
tualistas visavam, entre outras coisas, justificar o governo. Ora, Hobbes,

1 “Denominamos contratualismo a concepção segundo a qual o Estado é o produto da decisão racional dos homens
destinada a resolver os conflitos gerados pelo seu instinto antissocial ou para solucionar os problemas advindos da
convivência. O contrato, assim compreendido, é um ato de lógica política, consistindo numa decisão deliberada e
racional. Os principais contratualistas, considerados clássicos, na teoria do Estado são: Thomas Hobbes, John Locke e
Jean-Jacques Rousseau.” (DIAS, 2013, p. 66).

315
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Locke e Rousseau têm visões diferentes desse estado natural, porém há


um consenso de que tal argumento ou aspecto é fundamental na filosofia
contratualista. Sobre isso, por exemplo, Santos (1998, p. 2) afirma:
As diferenças a esse respeito entre Hobbes, por um lado, e Lo-
cke e Rousseau, por outro, são enormes. Comum a todos eles,
no entanto, é a ideia de que a opção de abandonar o estado
natural para constituir a sociedade civil e o Estado modernos
é uma opção radical e irreversível.

Portanto, é elementar essa característica, sendo também necessá-


ria para criar a legitimação da comunidade de indivíduos regidos pelo
Estado enquanto instituição que detém o poder de governo, pois assim o
contrato social permitiu. O contrato social é, de certa forma, a reparação
das intempéries desse estado natural e, tendo eliminado as inconveniên-
cias da condição natural, forma uma união que beneficia todos, a saber, a
sociedade civil. Sobre isso, entre outros, convém ver o que Ribeiro (2017,
p. 4) assevera, a saber:

Nesse mesmo sentido é importante lembrar que são autores


indispensáveis para tratar do contratualismo e as teorias que
o sucederam a respeito da criação e manutenção do Estado,
tendo em comum a perspectiva de que podemos pensar a his-
tória do homem em pelo menos dois períodos distintos, o ho-
mem no estado de natureza e este na sociedade civil fruto do
contrato social.

Em suma, o estado de natureza é, portanto, uma forma individualiza-


da do ser humano, que vive uma relação com outrem sem mediação de leis
positivas ou um governo comum, situação que não necessariamente tenha
acontecido em algum período histórico, porém que é relevante, já que todos
os filósofos que refletem tal mote lançam mão desse conceito ou aspecto no
início de suas teorias. Por isso, na sequência, vamos citar e analisar os prin-
cipais elementos das teorias contratualistas de Thomas Hobbes (1588-1679),
de John Locke (1632-1704) e de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), consi-
derados pensadores clássicos e os “principais contratualistas modernos”
(ABRÃO, 2007, p. 211), começando com a filosofia hobbesiana.

O estado natural hobbesiano: o medo e a angústia

Ao longo de sua vida, Thomas Hobbes (1588-1679) foi ampliando sua


filosofia natural e moral em várias obras, mas propriamente expõe sua teoria
contratualista na obra O Leviatã – ou Matéria, Forma e Poder de um Estado

316
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Eclesiástico e Civil, de 15612. Ora, nessa publicação fica expresso que, no


estado de natureza, o ser humano vive a insegurança e a angústia eterna do
domínio, que são derivadas da falta de regulamento de um governo e de suas
leis positivas. Tudo o que os indivíduos têm como proteção e segurança de si
são os direitos naturais ilimitados e as leis naturais, que limitam os direitos
na busca de um equilíbrio ao desequilíbrio gerado pelo direito, criando um
terror sistemático. Sobre isso, Ribeiro (2006, p. 71) afirma:

Terror existe no estado de natureza [de Hobbes], quando vivo


no pavor que meu suposto amigo me mate. Já o poder sobe-
rano apenas mantém temerosos os súditos, que agora conhe-
cem as linhas gerais do que devem seguir para não incorrer
na ira do governante.

Assim, em Hobbes, naturalmente todos os seres humanos têm direito


a tudo e, para tal, podem usar todos os meios cabíveis. Mas, sem um poder
para assegurá-los, os seres humanos naturais estariam em conflito, seriam
“corpos em movimento”, constantemente em iminência de choque, e isso é
ilustrado pela conhecida noção de “guerra de todos contra todos”. Em suma,
o problema em questão é que as leis naturais não regulam detalhes impor-
tantes da convivência entre os sujeitos, muito menos organizam pactos e
prescrevem estrutura para o julgamento em caso de descumprimento. As-
sim, em resumo, quando encontram-se no estado de natureza, as pessoas
não vivem sob um poder comum, tal como Hobbes (2003, p. 109) afirma:

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os


homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a to-
dos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição
a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens.

Ainda no Leviatã, Hobbes (2003, p. 109) reitera que o estado de


natureza é um tempo de guerra no qual todos estão em guerra e vivem
sem segurança:

Portanto, tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em


que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também
do tempo durante o qual os homens vivem sem outra seguran-
ça senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força
e pela sua própria invenção. Numa tal condição não há lugar
para o trabalho, pois o seu fruto é incerto; consequentemente,
não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercado-
rias que podem ser importadas pelo mar; não há construções

2 Em ordem cronológica: “Tractatus opticus” (1644), “Elementos da lei natural e política” (1650), “De Corpore” (1655),
“De Homine” (1658). A obra chamada De Cive (1642) traz alguns elementos sobre a natureza humana, completando
uma trilogia associada aos dois últimos; mas, esta, porém, trata mais sobre organização política.

317
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coi-


sas que precisam de grande força; não há conhecimento da
face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras;
não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contí-
nuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária,
miserável, sórdida, brutal e curta.

Assim, o ser humano se faz cauteloso com outrem em função da con-


dição natural, posto que está no ambiente de guerra de todos contra todos.
O medo e a desconfiança gerados pelo direito natural a ter tudo, usando
todos os meios cabíveis, faz do ser humano um mecanismo movido por
desejos e paixões; porém, simultaneamente, dotado de prudência e razão.
Enfim, pelo movimento universal está sempre em rota de colisão com o
semelhante quando este deseja a mesma coisa. Sobre isso, Silva (2009, p.
94) declara o seguinte:

A instabilidade típica do estado de simples natureza não pode


produzir outra coisa senão algumas das causas da guerra ge-
neralizada, isto é, o medo e a desconfiança. A desconfiança
leva os homens a atacar uns aos outros tendo em vista con-
quistar (ainda que provisoriamente) aquilo que naturalmente
não têm, que é a segurança […]. Portanto, da avaliação exclu-
siva da própria natureza só é possível extrair desconfiança,
inconstância, instabilidade, insegurança, em uma palavra,
o medo. Nesse contexto, não há como esperar de seu seme-
lhante outra coisa senão a mesma desconfiança que anuncia
a não possibilidade de construir qualquer vínculo estável que
não possa ser quebrado de forma justa por qualquer motivo de
ordem individual.

Com isso, fica instalado o medo, conceito basilar do estado natural


hobbesiano, pois se tem insegurança o tempo todo. Além disso, só se
pode possuir aquilo que por força defende-se, não sendo possível uma
situação instalada de paz e seguridade suficiente para que o ser huma-
no possa viver e prosperar todos os dias, que lhe cabe sem medo e com
certezas plenas. Se alguém for desprecavido com outro, poderia estar se
entregando como presa, sendo a angústia algo generalizado, conforme
afirma Lopes (2012, p. 171):

Assim, seguindo Hobbes, podemos dizer que no estado de


natureza a utilidade é a medida do direito. Nessa perspec-
tiva, a inclinação geral do ser humano é constituída por um
ininterrupto desejo de poder e de mais poder, que só tem
cabo com a morte. Nesse sentido, o que o autor quer asse-
verar é que o estado no qual o homem naturalmente está
embrenhado é de não segurança, de não paz, de iminência
de guerra e de morte cruel.

318
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Em suma, segundo Hobbes, durante o período de tempo em que o ser


humano convive sem a atuação de um poder capaz de organizar a socieda-
de, há uma desordem generalizada. Simplesmente, no estado de natureza,
todos tentam evitar a morte prematura e cruel.
No caso, vemos que quando estão postos em convívio sem governo ou
sociedade, todos os seres humanos têm direito a tudo e, para tal fim, podem
usar todos os meios cabíveis. Por isso, o contratualista reitera: sem um poder
superior e comum a todos para limitar os direitos e assegurá-los, os indiví-
duos seriam corpos em movimento em iminência constante de choque.
Mas, nessa “guerra de todos contra todos” dois elementos têm des-
taque, a saber: o mecanicismo e a desconfiança gerada pela disputa. Sobre
isso, Limongi (2002, p. 21) afirma:

[…] a inimizade e a disputa são comportamentos que se pode


razoavelmente esperar dos homens em certas circunstâncias,
ou seja, que esse comportamento é justificável e que podemos
esperar que ele possa ocorrer numa situação de igualdade.
Dessa razoável disputa, segue-se ser também razoável descon-
fiarmos dos outros homens. Isto é, a desconfiança é uma pai-
xão que se explica pela circunstância de uma possível disputa.

Ora, as paixões são importantes no citado contratualismo hobbesia-


no, já que “a noção hobbesiana de sociedade não pode ser compreendida
sem que tenhamos presente sua concepção de natureza humana, colhida
a partir do estado de natureza” (SECCO, 2017, p. 191). Por isso, a seguir,
vamos ver e examinar a questão do mecanicismo em Hobbes.

O mecanismo

Convém notar que os conceitos de mecânica dos corpos e de guerra


de todos contra todos são elementos fundamentais em Hobbes, pois, ao
serem associados, levarão à formação da vontade de sair dessa condição
natural. Isso porque esse estado de natureza é angustiante e desfavorável
pela falta de estabilidade e de continuidade, que reside justamente no fato
de não haver regulação coercitiva, nem limitações que impedem as pessoas
de se chocarem de forma constante enquanto estão buscando seus direitos
ilimitados. Ora, Hobbes (2003, p. 109), no capítulo XIII do Leviatã, intitu-
lado “Da condição natural da humanidade”, como vimos, afirma:

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os


homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a to-
dos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição
a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Assim, Hobbes reitera o estado natural como uma condição em que


todos estão com medo, e isso por não terem confirmação de que todos os
indivíduos se regulariam simultaneamente pela solicitude mútua e pela
ética finalista, tendo em vista o bem comum, que seria um elemento dos
reguladores dessa condição, que são as leis de natureza. Portanto, nesse
momento da teoria os sujeitos são governados apenas pela ferramenta com
a qual se discernem os ordenamentos naturais, a saber, a sua própria ra-
zão, e nessa condição se vê que é impossível ter segurança, estabilidade
etc. Essa desordem geral é o que segue de um direito garantido a todas as
coisas simultaneamente para todos, pois é a insegurança constante da pos-
sibilidade de agressão, o que evolui para o conceito de guerra generalizada,
conforme Hobbes (2003, p. 112-113):

E dado que a condição do homem [na condição natural ou es-


tado de natureza] (conforme foi declarado no capítulo anterior)
é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste
caso cada um governado pela sua própria razão, e nada haven-
do de que possa lançar mão que não lhe ajude na preservação
da sua vida contra os seus inimigos, segue-se que numa tal
condição todo homem tem direito a todas as coisas, até mes-
mo aos corpos uns dos outros. Portanto, enquanto perdurar
este direito natural de cada homem a todas as coisas, não po-
derá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que
seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a na-
tureza permite aos homens viver.

Assim, percebe-se que Hobbes não necessariamente atribui à nature-


za humana em si a causa das mazelas. O ser humano, portanto, não é natu-
ralmente mau, pois se afirma que a existência de conflitos generalizados não
é culpa de nossa natureza: “Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza
humana. Os desejos e outras paixões do homem não são em si mesmos um
pecado.” (Idem, 2003, p. 110). Isso argumenta a favor da compreensão de que
o ser humano se faz excessivamente cauteloso com os outros devido à con-
dição natural, não por causa da sua natureza propriamente dita. Em suma,
tudo se segue da ponderação de que, estando em estágio pré-social, todos
ficam entregues a um clima tenso, que é gerado da condição desfavorável
à paz. Em Hobbes, a justificativa desse argumento pode ser encontrada em
uma parte de sua filosofia natural, a saber, o mecanicismo3, que, ao se apli-
car no Leviatã como fundamento para a definição de ser humano enquanto
matéria em movimento e que tende a permanecer em movimento, está en-
tregue perpetuamente às pressões e inferências da inércia e do estímulo.

3 É uma parte da teoria hobbesiana que se alinha com o mecanicismo ao tecer a ideia de que o homem é um
“mecanismo em movimento” e que tende naturalmente a continuar em movimento rumo à conservação da vida,
usando todos os meios possíveis para tal fim.

320
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Assim, analisando que todos os sujeitos são matéria em movimen-


to perpétuo e que existem vários indivíduos que estão simultaneamente
sem um regulador positivo entre eles, a tendência é de uma multidão4
enquanto uma massa material destrutiva por condição própria, pois esses
corpos em movimento estão em trajetórias de impacto. A multidão, por-
tanto, ignora a razão e é desprovida de propósito, muito menos cumpre os
pactos. Está sempre formando atrito pelo movimento perpétuo e irregular.
Dessa maneira, quando próximos e em condição natural, os seres humanos
formam o caos de uma massa irracional e estão em estado de guerra contra
todos os sujeitos que os ameaçarem em seus projetos.
Em resumo, a multidão é o exato inverso da Commonwealth5 e gera
a mesma insegurança, ou seja, a união que a multidão proporciona não
ajuda o ser humano a pacificar as coisas. Assim, é somente o exemplo de
como, no estado de natureza, os seres humanos, juntos ou não, são corpos
em movimento, desprovidos de algum fator comum que possa norteá-los:

A multidão, segundo Hobbes, afasta-se da unidade política,


opõe-se à obediência, não aceita pactos duradouros, não alcan-
ça jamais o status de pessoa jurídica, pois nunca transfere seus
direitos naturais ao soberano. A multidão está impossibilitada
de efetuar esta “transferência” por seu modo de ser (por seu
caráter plural) e de atuar. Hobbes, que era um grande escritor,
sublinhou com uma precisão lapidar como a multidão era an-
tiestatal e, por isso, antipopular (VIRNO; GÓMEZ, 2003, p. 5).

Com isso, o mecanicismo hobbesiano serve como base para, depois,


tecer a situação em que o ser humano contrata, isto é, o momento oportu-
no em que uma multidão desorganizada converge pela razão para se tornar
povo. No Leviatã, portanto, apenas a união entre seres humanos não é ca-
paz de pacificar as relações, já que os sujeitos são mecanismos e, juntos,
formam apenas aglomerados de indivíduos, ao passo que povo é uma união
de sujeitos com finalidade cívica, ou seja, não se faz povo estando fora de
um contrato social. Para Hobbes, somente em sociedade se pode alcançar
paz, pois somente por meio do contrato social uma multidão se torna povo.
Assim, o momento dessa passagem dentro da cronologia do contra-
tualismo hobbesiano é o ensejo para a saída da condição natural, pois essa

4 “A multidão é, para Hobbes, inerente ao “estado de natureza”; portanto, aquilo que precede à instituição do
“corpo político”. Mas, esse distante antecedente pode reaparecer como uma “restauração” que pretende fazer-se valer
nas crises que sabem sacudir a soberania estatal. Antes do Estado, eram os muitos; depois da instauração do Estado,
foi o povo – Uno, dotado de uma única vontade”. (VIRNO; GÓMEZ, 2003, p. 5).
5 Commonwealth é a definição de Hobbes para Estado (República ou monarquia, embora seja clara a preferência
desta última por parte do filósofo). A tradução mais aceita para o termo seria “comunidade”, porém, no Leviatã, isso
deve ser entendido como o corpo artificial formado quando a multidão, por sua vontade, se torna povo e “disso
necessariamente resulta que é o Estado, a Commonwealth o verdadeiro detentor da soberania”. (MIRANDA, 2013,
p. 136). Conforme vemos, a atual concepção de Estado vem, em boa parte, da comunidade apresentada por Hobbes.

321
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

transformação ocorre quando se dá a transferência dos direitos naturais


para o soberano, que se forma em consequência disso. Identifica-se que a
união convergente entre esses sujeitos forma a matéria da qual se constrói,
adiante, o corpo da sociedade civil, conforme afirma Secco (2015, p. 98):
Trata-se de tentar obter um conhecimento da matéria bruta
natural que serve de material para o artifício da sociedade.
Nesse sentido, não é apenas o homem como causa da socie-
dade que interessa, mas o homem como corpo em movimen-
to, gerador de ações que podem ser de sociabilidade, mas
também que são causa da guerra. Em suma, importa conhe-
cer todas as possibilidades do homem. Assim como aquele
que pretende construir um edifício o faz melhor se conhecer
todas as potencialidades e limitações dos materiais empre-
gados na construção, o político deve ter uma ideia geral das
potencialidades e das limitações da matéria a partir da qual
uma sociedade pode surgir.

No caso, percebe-se que o estado de natureza hobbesiano é uma


importante analogia para conceber o ser humano e seus movimentos
possíveis e, assim, legitimar as paixões e o raciocínio tal como são apre-
sentados pelo filósofo; nomeadamente, os elementos também são pres-
sões que geram movimento e, em seguida, é o mesmo movimento que
organizará a matéria humana em contrato, que dará forma ao Leviatã.
Sobre isso, Silva (2009, p. 94) afirma:

A instabilidade típica do estado de simples natureza não


pode produzir outra coisa senão algumas das causas da guerra
generalizada, isto é, o medo e a desconfiança. A desconfiança
leva os homens a atacar uns aos outros tendo em vista con-
quistar (ainda que provisoriamente) aquilo que naturalmente
não têm, que é a segurança. Portanto, da avaliação exclusiva da
própria natureza só é possível extrair desconfiança, inconstân-
cia, instabilidade, insegurança, em uma palavra, o medo. Nesse
contexto, não há como esperar de seu semelhante outra coisa
senão a mesma desconfiança que anuncia a não possibilidade
de construir qualquer vínculo estável que não possa ser que-
brado de forma justa por qualquer motivo de ordem individual.

Com isso, a definição mecanicista de ser humano implica na neces-


sidade de uma força geradora do movimento, já que só se freia se houver
força, da mesma forma que só se movimenta se houver pressão. Hobbes ex-
plica que o combustível alimentador do movimento é essencialmente uma
força atribuída aos desejos e às paixões, porém simultaneamente o indiví-
duo é dotado de prudência e razão. Importa que se explane essa caracterís-
tica da teoria: apesar dos desejos e paixões serem a motriz do mecanismo,
este ser é capaz do raciocínio, logo, não são unicamente as paixões que o
levam à vontade de contratar-se em sociedade.

322
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Os desejos e as paixões na formação da vontade

Hobbes dá para duas paixões o caráter de serem fatores preponde-


rantes para o direcionamento rumo à saída da situação instável, que é a
condição de natureza, a saber: o medo e a esperança. Por isso, convém ana-
lisar primeiramente essas duas paixões e, depois, a razão como a união das
forças que formam a vontade de deixar o estado natural. Ora, essa ordem
de raciocínio se encontra esquematizada no próprio Leviatã, conforme
Hobbes (2003, p. 111):

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo


da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para
uma vida confortável e a esperança de consegui-las através do
trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno
das quais os homens podem chegar a um acordo.

O papel do medo na formação do processo de geração da vontade é


o de impulsionador mais relevante na ação humana em geral, pois essa é a
paixão com que mais se pode contar para o cumprimento dos pactos quan-
do no estado de natureza:

O medo é companheiro constante dos indivíduos quando es-


tão em condição natural, a sensação é relevante em muitos
aspectos: o medo de perder seus cultivos e posses, o medo de
perder pessoas, o medo de perder a paz em geral e, por último,
“diante do medo da morte violenta, a única solução é a insti-
tuição de um poder soberano absoluto capaz de evitar que os
cidadãos se agridam mutuamente.” (SECCO, 2015, p. 124).

O efeito material de uma paixão que é imaterial são os movimentos


rumo ao contrário do que causa o medo, e este é classificado, no Leviatã,
como aversão, já que temos uma tendência a nos movimentarmos em dire-
ção oposta ao que nos causa dano; nesse aspecto, o medo hobbesiano é be-
néfico, pois direciona o cálculo racional rumo ao contrato para a formação
da sociedade civil. Sobre isso, Calandrin (2016, p. 590) afirma o seguinte:

O medo é uma dor, e os homens naturalmente evitam a dor. Os


homens tentam evitar não só o objeto do medo, mas o próprio
medo. Porém, um medo sem objeto é um medo insolúvel. Nin-
guém pode lutar ou fugir do que ele não pode identificar ou
saber para ser resolvido. O medo tem que corresponder a algo;
ele deve ter um objeto.

Ora, esse movimento não é aleatório, mas é uma inclinação preme-


ditada, pois o medo faz parte do que é o cálculo racional feito para a re-
solução do problema principal do estado de natureza. A fórmula racional,

323
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

se pudesse ser escrita, levaria em conta o seguinte raciocínio: medo = dor


/ dor = dano / dano = morte. Esta espécie de fórmula torna o dano causado
pelo estado natural um objeto racionalmente tangível e, portanto, identi-
ficado pela razão. Isso implica no momento gerador da vontade, pois aqui
temos elegido o receio da morte.
Além disso, a esperança é atribuída, no Leviatã, como o apetite que
busca um bem futuro; nesse sentido, é um dos componentes importantes
para a vontade de querer sair do estado natural devido à saciedade do que
se espera, ou seja, pela paz que não se consegue na instabilidade. Quando
o indivíduo faz o cálculo racional para identificar a possibilidade de, na
condição natural, conseguir paz e gozar de todos os dias que lhe são conce-
didos com todos os bens que lhe são necessários, colhendo todos os frutos
do seu trabalho, chega-se à conclusão de que tal gozo é impossível. Logo,
a esperança começa seu movimento rumo à satisfação (já que esta é um
apetite) de sua necessidade de paz. Sobre isso, Silva (2009, p. 91) declara:

Desejo e esperança, portanto, têm a mesma função, se o desejo


“vai em direção a algo”, a esperança, por sua vez, é “a expec-
tativa de alcançar algo”, tanto uma quanto a outra ainda não
têm a fruição do objeto no presente, porém têm a expectativa
e o desejo de possuí-lo. A esperança e o desejo são unidos pela
busca e pela expectativa de bem futuro.

Por fim, a fonte que calcula a situação mediada pelas paixões é a ra-
zão, que no Leviatã é apresentada como cálculo cuja fórmula é a soma e a
subtração de conceitos para chegar às consequências. Logo, é a razão que
identifica, por meio do que se tem de experiência acumulada (prudência) e
de palavras aprendidas (linguagem), os elementos para o silogismo. Sobre
isso, no Leviatã, Hobbes (2003, p. 39-40) afirma:

Isso tudo nos permite definir (isto é, determinar) o que que-


remos dizer com a palavra razão, quando a incluímos entre as
faculdades do espírito. Pois razão, neste sentido, nada mais
é do que cálculo (isto é, adição e subtração) das consequên-
cias de nomes gerais estabelecidos para marcar e significar os
nossos pensamentos. Digo marcar quando calculamos para nós
próprios e significar quando demonstramos ou aprovamos os
nossos cálculos para os outros homens.

Portanto, Hobbes cuida para definir bem o que é razão, pois esta é
importante em seu jusnaturalismo, e mais ainda para formar o arcabou-
ço por meio do qual os indivíduos sairiam do dito estado de natureza. É
interessante, ainda, expor que a razão não é um elemento inato, nem há
conceitos inatos dentro do que é racional, pois inato em Hobbes são ape-
nas alguns apetites. Assim, vemos que somente a prudência tem alguma

324
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

inferência no estado de natureza, sendo a razão surgida e evoluída quando


o ser humano já se encontra próximo do estágio em que o cálculo para fin-
dar a condição natural está sendo realizado.

As leis de natureza: regra e medida da reação entre os indivíduos

As leis de natureza são também elementos fundamentais para uma


teoria contratualista clássica, pois são os limitadores do ser humano quando
não há um governo para regular as relações. No Leviatã, é possível notar
dezenove leis naturais6, que são identificáveis pela razão para a preserva-
ção mútua dos indivíduos, que porventura convivessem entre si. Essa é uma
parte importante da Filosofia Moral hobbesiana, e o peso no seu contratua-
lismo está justamente no elemento “vontade”, pois o discernimento das leis
são também elementos do cálculo que tem por produto o contrato social.
A lei primordial para a racionalização em favor de contrair a socie-
dade civil é o “preceito” ou a “regra geral da razão”, a saber:

Que todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que te-
nha esperança de a conseguir, e caso não a consiga pode procurar e
usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta
regra encerra a primeira e fundamental lei de natureza, isto é,
procurar a paz, e segui-la. A segunda encerra a súmula do direito
de natureza, isto é, por todos os meios que pudermos, defendermo-
-nos a nós mesmos (HOBBES, 2003, p. 113).

Aqui é necessária a diferenciação entre direitos e leis naturais, pois


a lei primaz contém um direito incluso. No caso, podemos afirmar que a
lei é “esforçar-se pela paz”, enquanto o direito é caso no qual não se pode
ter a paz, pois então o indivíduo está autorizado a “usar todas as vanta-
gens da guerra”. Ora, vemos a coexistência de lei e de direito simultane-
amente, em que a lei limita os direitos para que haja uma convivência
mais plausível. Mas, isso é complexo para se entender em um autor, que,
por vezes, leva a fama de defensor do autoritarismo ou mesmo dos abusos
do absolutismo monárquico. Portanto, cabe analisar bem a consonância
entre direito e lei, que ocorre dentro do estado natural hobbesiano, a fim
de que se note que há uma concomitância entre lei e direito, como se lê
novamente em Secco (2015, p. 96):

6 Há debates sobre qual seria o número exato de leis naturais apresentadas no Leviatã; admite-se aqui que são
dezenove, embora na passagem final do Capítulo XV Hobbes disserta que: “São estas as leis de natureza, que ditam
a paz como meio de conservação das multidões humanas, e as únicas que dizem respeito à doutrina da sociedade
civil. Há outras coisas que contribuem para a destruição dos indivíduos, como a embriaguez e outras formas de
intemperança, as quais portanto também podem ser contadas entre aquelas coisas que a lei de natureza proíbe.”
(HOBBES, 2003, p. 135). Tal afirmação abre intepretação de que podem existir várias leis ainda que não estão
contadas. Mas, isso é irrelevante para o raciocínio aqui apresentado.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Leis naturais e Direitos ilimitados podem existir ao mesmo


tempo, como de fato parecem coexistir na descrição do esta-
do de natureza hobbesiano. O que limita direitos na prática é
a possibilidade concreta de se estabelecer uma reciprocidade
por meio de contrato, no qual os indivíduos assumem e con-
cordam em autolimitar seus próprios direitos na mesma me-
dida em que outros assim o fizerem. A própria formulação da
primeira lei de natureza aponta para a convivência entre a lei
de natureza e o direito a todas as coisas. Esse direito é deriva-
do do fato de que em estado de natureza não há outra forma de
julgar sobre os meios para nossa autopreservação senão o uso
de nosso próprio julgamento.

Assim, nota-se que os indivíduos precisam constantemente se es-


forçar pela paz, mas ao mesmo tempo não podem se entregar como presa
ao cumprir os contratos antes dos outros e, por conseguinte, tendo como
prerrogativa o uso de todos os meios possíveis para defesa própria, a des-
confiança fala mais alto. Apesar disso, todos os seres humanos desejam a
paz, e esse esforço para não usar constantemente a prerrogativa do direito
é a esperança, que, dentro da teoria, é o apetite pela solução da equação
que estabelece a paz.
Além disso, calcula-se que a chamada soma dos direitos naturais ge-
rou um excesso de poderes individuais, ao passo que a subtração provoca-
da pelas leis naturais não é vantajosa, levando ao resultado já exposto de
que, sem garantias de que outrem as seguirá, tendo por direito o mesmo
universo ilimitado de coisas, então a desconfiança é generalizada e, enfim,
temos a multiplicação do medo:

Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a mo-


déstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que que-
remos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor
de algum poder que as faça ser respeitadas, são contrárias
às nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para
a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes.
E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força
para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das
leis de natureza […], se não for instituído um poder suficien-
temente grande para a nossa segurança, cada um confiará, e
poderá legitimamente confiar, apenas na sua própria força e
capacidade, como proteção contra todos os outros (HOBBES,
2003, p. 143-144).

Com isso, o cálculo que a razão faz é simples, pois, postas as premis-
sas acima citadas, o mecanicismo manobra em direção à única operação
possível, a saber, a divisão, nesse caso, dos poderes individuais – tudo isso
na tentativa de criar um poder comum e superior que possa, como me-
canismo artificial, criar leis baseadas nas naturais, que freiem os corpos
naturais, haja vista que, no próprio Leviatã, está registrado que os corpos

326
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

(artificiais ou não) em movimento permanecem em movimento, e o que for


freado tende a permanecer assim:

Uma vez em movimento, um corpo move-se eternamente (a


menos que algo o impeça), e seja o que for que o faça, não o
pode extinguir totalmente num só instante, mas apenas com o
tempo e gradualmente. Assim, o que vemos acontecer na água
– cessado o vento, as ondas continuam a rolar durante mui-
to tempo ainda –, acontece também no movimento produzido
nas partes internas do homem quando ele vê, sonha etc., pois
após a desaparição do objeto, ou quando os olhos estão fecha-
dos, conservamos ainda a imagem da coisa vista, embora mais
obscura do que quando a vemos (HOBBES, 2003, p. 18).

Assim sendo, percebe-se que o ser humano usa uma associação, pois
o mecanicismo (movimento) está associado à ideia de observação (paixões
+ razão interpretativa) a fim de identificar as leis de natureza. Daí a impor-
tância da relação entre razão e paixões em Hobbes; afinal, apenas fazendo
o discernimento das leis naturais é que o ser humano pode calcular a ne-
cessidade da lei positiva e do Estado que as gera.
Tendo visto Hobbes, a seguir iremos apresentar e analisar o pensa-
mento de Locke.

O estado de natureza em John Locke: razão instintiva

Locke (1632-1704) foi o segundo contratualista a usar os elementos


fundamentais aqui descritos, inclusive tendo sido considerado o pai do
empirismo7; ele publicou sua teoria na obra intitulada Segundo Tratado
sobre o Governo – um ensaio referente à verdadeira origem, extensão e
objetivo do Governo Civil (1689-1690).
No caso, o ser humano natural lockeano está posto em um estado no
qual o que existe é o completo oposto do que afirmou Hobbes. Mesmo sem
a sociedade civil, os seres humanos não estariam colocados em estado de
medo ou guerra, mas em relativa harmonia. A convivência seria regrada
com reciprocidade e respeito. O filósofo pondera, ainda, a liberdade como
inerente à condição natural, porém não ilimitada, e sem garantia do uso
de todos os meios possíveis. Ora, no caso a liberdade no estado de nature-
za tem limites naturalmente impostos, que seriam descobertos pela razão.
Em suma, Locke (1998, p.382) define o estado natural da seguinte maneira:

7 Existe uma corrente de pensadores que classificam Locke como o pai do empirismo, ou ainda pai do empirismo
britânico. Entretanto, outra corrente entende a teoria mecanicista hobbesiana como a primeira categoria de
empirismo. Consideramos, aqui, Locke como o idealizador do empirismo demonstrado em sua obra Ensaio acerca do
entendimento humano, de 1689.

327
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

[…] devemos considerar o estado em que todos os homens na-


turalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade
para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do
modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei de
natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qual-
quer outro homem.

Assim, é pertinente que se leve em conta que, para Locke, o homem


está limitado pela lei de natureza. O conceito de jusnaturalismo, que já ha-
via sido assinalado por seu antecessor, está aqui presente também, ou seja,
aqui também se diferenciam os direitos naturais da lei natural. Contudo,
em Hobbes a lei natural, ou o “preceito ou regra geral da razão”, é: “Que
todo homem deve se esforçar pela paz, na medida em que tenha esperança de a
conseguir, e caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens
da guerra” (HOBBES, 2003, p. 113); em resumo, a lei está interligada com o
direito, logo, dentro da lei de natureza está o direito a todas as coisas e a
todos os meios e, por isso, fica instalado aquele estado de tensão. Porém,
Locke mostra um ser humano consciente dos limites de seus direitos natu-
rais, pois está governado pela lei. Assim, Locke (1998, p. 384) afirma:

O estado de natureza tem, para governá-lo, uma lei de nature-


za que a todos obriga; e a razão, em que essa lei consiste, ensi-
na a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e
independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua
vida, saúde, liberdade ou posses.

Ademais, Locke também coloca, mesmo ainda no estado de nature-


za, a reciprocidade como característica natural do ser humano, novamente
contrapondo o pensador anterior ao afirmar que: “cada um está obrigado a
preservar-se, e não abandonar sua posição por vontade própria; logo, pela
mesma razão, quando sua própria preservação não estiver em jogo, cada
um deve, tanto quanto puder, preservar o resto da humanidade […]” (LO-
CKE, 1998, p. 384). Ora, Locke coloca, então, o dever de bem viver e, ainda,
o de preservar o semelhante como um dever para com a humanidade.
Assim sendo, o ser humano tem, em sua naturalidade, dois deveres:
um para com sua vida e posses e, além disso, o dever de proteger o resto
da humanidade de infratores das leis naturais. Portanto, o poder de le-
gislar usando a lei de natureza, de julgar e executar os infratores de tais
leis usando a sua medida, isto é, a razão e, ainda, executando penalidades
quando prejudicado na sua vida, saúde, liberdade e propriedade, segundo
o exposto por Ribeiro (2017, p. 13):

Sendo que o estado de natureza [em Locke] nada mais é do


que a condição na qual o poder executivo da lei da natureza
está exclusivamente nas mãos de indivíduos e não se tornou

328
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

coletivo, que é o resultado do processo de reflexão dos ho-


mens que buscam a supremacia da racionalidade formando
a sociedade civil. Então, para Locke, toda sociedade humana
que se encontre em uma autoridade coletiva estabelecida e
permanente é proveniente da condição original, ou seja, do
estado de natureza.

Para Locke, existe uma inclinação presente no estado de natureza,


pois a razão inclina o ser humano a certos preceitos que serão praticados
pelos sentidos (o que Hobbes batiza de desejos de paixões), mas é pela luz de
um raciocínio que os seres humanos discernem o que é bom e o que é mau;
logo, a recompensa e a penalidade. Esse discernimento associado ao arbí-
trio é usado para o cálculo racional, que levaria ao conhecimento da lei de
natureza e sua posterior observância, mesmo sem governo civil para legislar
sobre o tema, executar tal estamento ou punir transgressores, a saber:

Se não existe lei natural, não existiriam nem virtude, nem vício,
nem a recompensa pelo bem, nem a punição pelo mal: onde
não existe lei, não existe falta, nenhuma culpa. Tudo depende-
ria do arbítrio humano, como não haveria nada que exigisse a
ação de obediente, parece que o homem não estaria obrigado a
nada, a não ser àquilo que que a utilidade ou o prazer pudesse
recomendar, ou aquilo que um impulso cego e desregrado pu-
desse por acaso se agarrar (LOCKE, 2007, p. 109).

Podemos definir, então, a condição natural em Locke como uma con-


juntura na qual o indivíduo se encontra limitado pelo jusnaturalismo8.
Entretanto, Locke, ao defender o direito natural, faz questão de distinguir
também a lei de natureza. Dentro do pensamento, a lei serviria como ele-
mento mediador das relações ocasionais entre os seres humanos em uma
condição na qual o governo não mediaria tais contratos. A lei, sendo or-
dem reguladora, criaria uma situação relativamente harmônica, que, por
sua vez, preservaria o direito, a saber: “É preciso distinguir essa lei, desig-
nada por tais nomes, do direito natural: o direito, na verdade, funda-se no
fato de termos o livre uso de algo, enquanto a lei é o que ordena ou proíbe
fazer certa coisa.” (LOCKE, 2007, p. 102). O ser humano seria instintiva-
mente inclinado por sua razão a identificar e a seguir as leis de natureza.
Novamente Locke enuncia a razão como a que detecta os estamentos natu-
rais e que lhes dá validade. O sujeito, sendo naturalmente racional, é capaz
do entendimento necessário à vivência do estatuto, que lhe é dado, e tem a
moralidade necessária ao engenho de exercer tal regra, que é, assim, o “go-
verno das ações do homem em vista da felicidade.” (LOCKE, 2007, p. 332).

8 “Desta forma, é possível definir o Direito Natural como uma doutrina jurídica que defende que o direito positivo
deve ser objeto de uma valoração que tem como referência um sistema superior de normas ou de princípios (direito
ideal) que lhe condicionam a validade.” (BEDIN, 2014, p. 246).

329
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Além disso, sendo moral, o ser humano teria, por pré-requisito, a


ética para respeitar os limites de seus direitos quando percebe o início do
direito de outrem. “Daí que essa lei de natureza possa ser descrita como
decreto da vontade divina discernível pela luz da natureza e indicativo do
que está e do que não está em conformidade com a natureza racional.”
(LOCKE, 2007, p. 102).
Assim, a razão é aqui conceituada como ferramenta necessária ao dis-
cernimento do que está posto como decreto aos indivíduos em condição pré-
-social. Cabe ainda à racionalidade a descrição dos elementos necessários
aos seres humanos, para que possam estruturar uma convivência harmônica.
Com isso, vemos que a razão, em Locke, tem papel basilar na estruturação
daquilo que é a existência humana em si e pauta a ética, bem como elucida,
também, os padrões do comportamento moral em condição natural.
Portanto, pode-se definir o estado de natureza em Locke como um es-
tágio dentro da sua teoria contratualista, em que, sem estamento civil, o ser
humano, sendo capaz da razão, tem nela a luz para identificar leis e direitos
e, assim, estruturar civilidade. É, logo, impensável um estágio pré-civil sem
a razão, pois sem ela seríamos feras como qualquer outro predador.9

As prerrogativas da razão no estado racional

Como vimos, ao idealizar o estado de natureza, Locke deixa claro


que uma das peças fundamentais para que o ser humano se forme e viva
bem é a racionalidade. Porém, quais as implicâncias disso na existência?
Quais as prerrogativas racionais?
Para entender corretamente quando e em que sentido a razão age
dentro do mecanismo jusnatural lockeano, precisamos, primeiramente,
entender que a razão, como já afirmado, é geradora do padrão moral nas
relações humanas sem direito positivo. A própria lei de natureza padro-
niza a moralidade ao dizer que a obrigação de autopreservação do sujeito
implica na preservação de outrem, a saber:

Cada um está obrigado a preservar-se, e não abandonar a posi-


ção por vontade própria; logo, pela mesma razão, quando sua
preservação não estiver em jogo, cada um deve, tanto quanto
puder preservar o resto da humanidade, e não pode, a não ser
que seja para fazer justiça a um infrator, tirar ou prejudicar a
vida ou o que favorece a preservação da vida, liberdade, saúde,
integridade ou bens de outrem (LOCKE, 1998, p. 385).

9 “Como para guardar os homens dos intentos de um criminoso, que, tendo renunciado à razão, e à regra e à medida
comuns a todos os homens por Deus aos homens, pela violência injusta e carnificina por ele cometidas contra outrem,
declarou guerra contra toda a humanidade e, portanto, pode ser destruído como um leão ou um tigre, um desses
animais selvagens com os quais os homens não podem ter sociedade ou segurança.” (Idem, 1998, p. 389).

330
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Assim, o ser humano tem dois deveres elencados pela razão e pelos
sentidos: um para com sua vida, liberdade e posses, pois dessas coisas de-
pendem sua autopreservação. E o segundo está para além da preservação
de sua vida, que é o dever de proteger o resto da humanidade. Portanto, o
poder de legislar está implícito no ser humano desde que a luz da razão
lhe demonstrou os regulamentos, ou seja, pela razão os indivíduos têm a
prerrogativa de “legislar” dentro do estado de natureza, que, apesar de ter
leis fixadas, carece de detalhamento.
A prerrogativa de executar a lei natural cabe também ao indivíduo
no estado de natureza, de forma que os poderes legislativo e executivo são
atributos racionais e prerrogativas da razão. Essas faculdades dão as luzes
para esse governo autônomo. Assim, os indivíduos têm responsabilidade
em tal condição de se governar a si mesmos, inclusive na execução daque-
les que eventualmente desobedecerem a tal lei.

E para que todos os homens sejam impedidos de invadir direi-


tos alheios e de prejudicar uns aos outros, e para que seja obser-
vada a lei de natureza, que quer a paz e a conservação de toda a
humanidade, a responsabilidade pela execução de lei natureza
é, nesse estado, depositada nas mãos de cada homem, pelo que
cada um tem o direito de punir os transgressores da dita lei em
tal grau que impeça sua violação (LOCKE, 1998, p. 385).

Além de elucidar os preceitos do detalhamento da lei e de sua exe-


cução, o ser humano descrito por Locke encontra na razão, também, os
pressupostos racionais para julgar os infratores da lei natural, usando sua
medida racional, que esclarece o dever de serem punidos todos os que pre-
judicarem os seres humanos na sua vida, saúde, liberdade e propriedade,
sendo este último direito natural a causa principal da saída do ser humano
do estado de natureza.
Os indivíduos também encontram na razão a prerrogativa de cele-
brar pactos entre si, mesmo sem as legislações positivas ou um código de
conduta para regulamentar os acordos. Locke afirma que tal conduta mo-
ralmente correta não está ligada apenas à vontade simples e pura, porém
existe uma implicação além dos sentidos.
O filósofo afirma que o repouso do cumprimento dos pactos está
também nas inferências da razão dentro de relações pautadas no jusnatu-
ralismo e principalmente na obrigação racional de se manter fiel à lei de
natureza, que recomenda o cumprimento dos pactos para evitar conflitos
e, assim, manter preservada a humanidade.

Sem a lei natural, também a outra base da sociedade humana


se destrói, qual seja, o cumprimento dos pactos, pois não é de
se esperar que alguém vá se manter fiel a uma convenção por

331
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ter sido essa sua promessa, quando noutras partes se apresen-


tam melhores condições, salvo se a obrigação de manter a pa-
lavra houver derivado da natureza, e não da vontade humana
(LOCKE, 2007, p. 109).

Podemos ver nessa prerrogativa o forte apelo à moralidade, ou seja, o


ser humano em estado natural não é somente fruto dos sentidos e não tem
características intrínsecas inatas que conduzem à prática em relação ao
próprio comportamento, pois suas vontades no exercício desse dispositivo
são sobrepostas por uma obrigação racional maior.
Portanto, não é possível dentro da teoria lockeana adjetivar os indi-
víduos levando em conta a sanguinidade emocional, ou seja, os seres hu-
manos nem são naturalmente “bons”, nem são “maus” por natureza, mas
são capazes, sim, da razão que lhes proporciona o discernimento moral e,
por consequência disso, estão em uma condição na qual há liberdade, mas
que, ao mesmo tempo, há obrigação de cumprimento dos pactos garanti-
da pela racionalidade generalizada entre os indivíduos. Isso torna todos
iguais e livres, ao passo que todos são regrados da mesma maneira pela lei
de natureza. Assim, estão postos em uma condição de inter-relação, mas
não de interdependência, pois não há dominação de homem para homens.
Em resumo, Locke fala do estado de natureza como:

[…] um estado de perfeita liberdade para regular suas ações


e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem
acertado dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir li-
cença ou depender da vontade de qualquer outro homem. E
também um estado de igualdade em que é recíproco todo o
poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qual-
quer (LOCKE, 1998, p. 382).

São aspectos relevantes para compreender o estado de natureza


em Locke.

O jusnaturalismo e as inferências da razão

O jusnaturalismo lockeano, ao ser pautado na razão, dá aos indivídu-


os a condição necessária para o exercício da liberdade, mesmo sem gover-
no civil ou pacto social dos “poderes” governamentais:

E é justamente no estado de natureza que se compreende exis-


tir a perfeita liberdade e igualdade entre os homens, pois to-
dos têm o domínio sobre si mesmos e as leis da natureza que,
cabem a todos de forma indiscriminada e sem restrições, não
existindo subordinação nem sujeição de um em relação a ou-
tro (RIBEIRO, 2017, p. 13).

332
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Em suma, tais poderes, ao serem criados quando o contrato social é


feito, não são necessariamente oriundos do pacto ou da formação do Esta-
do em si, são apenas restabelecidos como instituições de governo, em um
contrato no qual os indivíduos abrem mão do autogoverno para se subme-
terem ao governo representativo.

A saída apontada pela razão, segundo Locke, para que todos


tenham seu direito natural preservado, é que os indivíduos
concordem reciprocamente em formar uma comunidade, re-
nunciando ao poder natural de julgar e executar a lei natural
em favor dessa comunidade (BARROS, 2019, p. 67).

Assim, a inferência última da razão no estado de natureza de Locke é


o direcionamento para a solução de suas desvantagens. Ora, admitindo que
a razão dá poderes ao ser humano natural, que o instrui do que é seu direi-
to natural e que essa mesma racionalidade lhe dá as prerrogativas para que
este faça seu próprio autogoverno, qual é, então, ainda o problema? Ora,
ao perceber que há problemas no detalhamento, na aplicação e na punição
de transgressores, pois nem sempre se pode garantir os direitos naturais, a
razão infere novamente para nortear os indivíduos ao caminho que leva à
solução, a saber: a necessidade da formação de um governo civil e os crité-
rios para sua formação, sendo o principal critério a renúncia dos poderes
racionais de detalhamento da lei natural:

Portanto, sempre que qualquer número de homens estiver uni-


do numa sociedade de modo que cada um renuncie ao poder
executivo da lei de natureza e o coloque nas mãos do público,
então, e somente então, haverá uma sociedade política ou civil
(LOCKE, 1998, p. 460).

O governo civil é, assim sendo, uma consequência da inferência da


razão no estado de natureza, que, ao apontar os estamentos também aponta
a possibilidade de bem cumpri-los, o que é mais passível de solidez em uma
associação de indivíduos de acordo com regras gerais decretadas segundo as
leis de natureza, nas quais haja instituições para realizar tais tarefas, usando
poderes que serviriam como um “juiz universal” do jusnaturalismo:

E isso retira os homens do estado de natureza e os coloca em


uma sociedade política, estabelecendo um juiz na Terra, in-
vestido de autoridade para resolver todas as controvérsias e
reparar os danos que possam advir de qualquer membro dessa
sociedade (LOCKE, 1998, p. 460).

Assim, o estado natural lockeano cessa devido à inferência racional,


associada à demanda por reparação. Diferentemente de Hobbes, não é o

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

medo, a esperança ou qualquer desejo ou paixão associado à razão que


faz com que o ser humano busque o contrato social, mas sim induções da
própria razão ao se buscar conveniência e estrutura. O governo civil, em
Locke, é apenas uma superestrutura criada para legislar de acordo com as
leis de natureza, para executá-las e reparar os dados que possam advir de
conflitos, ou seja, é uma ampliação do estado racional de harmonia que o
ser humano já possuía antes mesmo do contrato.
Vistos Hobbes e Locke, a seguir veremos e examinaremos Rousseau.

O estado natural rousseauniano: o “bom selvagem”

Dentro do que é o estado de natureza em Rousseau (1712-1778), en-


contramos uma teoria que corrobora Locke ao apresentar a ideia de que os
seres humanos não viviam em um estado de guerra, muito menos se mal-
tratavam ou tinham paixões contrárias à harmonia com os semelhantes da
mesma espécie. Antes, pelo contrário, o ser humano natural de Rousseau
é bem pacato, simplório, tem poucas paixões e quase nenhuma pretensão,
como o filósofo ao afirmar que, em seu estado mais natural, o ser humano
apenas necessitava de comida, sexo e descanso10.
No entanto, Rousseau contrapõe Locke em relação às inferências da
razão. Para o contratualista genebrino, o conceito lockeano de que o ser
humano já é ciente das posses e propriedades, é valorizador do trabalho e
entendedor dos seus direitos naturais à vida e à liberdade é algo errôneo.
Rousseau demonstra na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos
das desigualdades entre os homens (1755) que os “modernos” se equivoca-
ram ao conjecturar elementos da sociedade civil em um modelo de homem
que não tem nenhuma relação com ela, acabando, assim por “[…] fazer do
homem um filósofo antes de fazer dele um homem.” (ROUSSEAU, 1999,
p. 154). O iluminista francês critica os contratualistas anteriores por colo-
carem elementos complexos e metafísicos, além de discernimentos racio-
nais, que, segundo ele, só existiriam depois de um primeiro pacto social:

Enfim, todos, falando incessantemente de necessidade, de


avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram
para o estado de natureza ideias que haviam tirado da socieda-
de: falaram do homem selvagem e descreviam o homem civil
(ROUSSEAU, 1999, p. 160-161).

O estado de natureza rousseauniano é, como se vê, o mais primitivo


possível, caracterizado por muitos como uma analogia ao mito do bom

10 Interpretação da passagem de Discurso sobre origem da desigualdade entre os homens, no qual Rousseau
disserta: “os únicos bens que [o homem natural] conhece no universo são nutrição, uma fêmea e repouso.”
(ROUSSEAU, 2001, p. 58).

334
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

selvagem11. Nesse sentido, o indivíduo em estado de natureza sobreviveria


independentemente de sociedade ou colaboração, de senso de dever ou
direito, usando apenas duas inclinações originárias, a saber: o amor de si
(amour-de-soi) e a piedade (sainteté).
No caso, Rousseau se diferencia de Hobbes e de Locke, que o antece-
deram ao não deixarem em relevância o conceito clássico de jusnaturalismo:

Deixando, pois, todos os livros científicos que só nos ensinam


a ver os homens tais como eles se fizeram, e meditando sobre
as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio
nela perceber dois princípios anteriores à razão, dos quais um
nos interessa ardentemente ao nosso bem-estar e à conser-
vação de nós mesmo e o outro nos inspira uma repugnância
natural a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível, princi-
palmente os nossos semelhantes (ROUSSEAU, 1999, p. 154).

Assim, em sua teoria é excluída a importância de uma “lei natural” na


consciência humana; aliás, pode-se dizer que não se conjectura, no contra-
tualismo rousseauniano, um vínculo entre razão e discernimento. Rousseau
(ROUSSEAU, 1999, p. 153) reitera que “conhecendo tão mal a natureza e
concordando tão pouco no sentido da palavra lei, seria bem difícil convir
numa boa definição de lei natural”. Até mesmo as inclinações originárias,
as quais poderíamos classificar como paixões, independem de discerni-
mento e são, como o próprio autor define, algo “comum a todos os animais”.
Além disso, a condição natural segundo Rousseau se difere no fato
de os seres humanos, estando em estado de natureza, terem sido avessos
à constituição de agremiações; viviam isolados, portanto não viveriam em
harmonia, como Locke defendia (pois isso careceria de uma formação co-
munitária pré-sociedade, que, em sua concepção, jamais foi possível) e,
menos ainda, estariam em estado de guerra constante, conforme Hobbes
(já que, para isso, além da convivência, o ser humano precisaria de paixões
mais complexas do que apenas aquelas que a natureza ofereceria). Assim
sendo, o estado de natureza rousseauniano é de quase isolamento total:

Outro ponto de destaque do estado de natureza na concepção


de Rousseau é a virtual ausência de grupamentos humanos,
ou seja, da vida em comunidade, já que esse período é marca-
do pelo isolamento quase completo dos indivíduos, quebrado
apenas para efeitos de reprodução (LEOPOLDI, 2002, p. 160).

Há ainda como cogitar que o estado natural rousseauniano é uma


visão pessimista dos seres humanos, que sequer tem o exercício constante

11 Esta expressão é uma descrição estereotipada dos povos indígenas, oriunda da literatura, durante a Modernidade
europeia, a partir da socialização com as populações nativas da América; enfim, apesar de já existir desde o século XVI,
é com Rousseau que o conceito ganha popularidade.

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

da razão e tem como uma das poucas e simples paixões o amor a si. Portan-
to, o estado de natureza de Rousseau, de certa maneira, concerne à teoria
hobbesiana de que o estado natural não é positivo para o desenvolvimento
humano e o avanço das tecnologias, por exemplo, ao afirmar que, apesar
de o estado civil nos privar “de muitas vantagens concedidas pela natureza,
[o homem] ganha outras de igual importância: suas faculdades se exercem
e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem,
toda sua alma se eleva” (ROUSSEAU, 2006, p. 26). No Leviatã, vemos algo
parecido com isso quando Hobbes afirma que o ser humano fora da socie-
dade civil tem uma vida pobre, emburrecida e curta12.

As paixões e necessidade originárias em Rousseau

A condição natural de Rousseau é uma das mais simplórias e, devido


a isso, a necessidade de um contrato social baseado no raciocínio, ou no
desespero, é quase nula. O homem natural tem tudo o que quer, tem, em
suas simples inferências (amor de si e piedade), tudo de que necessita para
viver com qualidade seus dias. Ocorre que, “pelo amor de si, buscaríamos
o que é bom para nós à custa de nós mesmos, enquanto que pelo amor-
-próprio essa busca se daria à custa dos outros (e é devido a esse caráter da
relação que fazemos o mal)” (COSTA, 2005, p. 109); ora, se o amor de si ga-
rantiria o que é bom, esse estado não necessitaria de mudança. Inclusive,
o conceito de que a razão existiria no estado de natureza e conduziria os
seres humanos para fora deste, algo tão prezado por Hobbes e Locke, em
Rousseau inexiste. Parece não haver razão no homem natural, ou ao menos
esta não está no controle do indivíduo, muito menos é de um cálculo racio-
nal, ou decisão pensada em consenso por inferência universal da razão que
o homem sai de tal condição:

O homem selvagem, entregue pela natureza unicamente ao


instinto, ou melhor, compensado daquele que talvez lhe falte,
por faculdades capazes primeiro de o substituírem e depois
de elevá-lo muito acima do que era, começará, pois, pelas fun-
ções puramente animais: perceber e sentir será seu primeiro
estado, que lhe será comum a todos os animais. Querer e não
querer, desejar e temer serão as primeiras e quase únicas ope-
rações de sua alma até que novas circunstâncias provoquem
nele novos desenvolvimentos (ROUSSEAU, 1999, p. 174).

12 “Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente, não há
cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há
construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não
há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é
pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta.” (HOBBES, 2003, p. 109).

336
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O ser humano percebe e sente, sendo isso quase que a totalidade de


sua capacidade. Ora, com isso vemos uma teoria em que a razão está muito
aquém daquela empregada pelos antecessores, sendo quase o relato de um
hominídeo. E, apesar das inclinações, suas paixões não foram totalmente
desenvolvidas devido à não convivência, ou seja, ao isolamento. Por isso,
para Rousseau, não há desenvolvimento do intelecto racional, muito me-
nos da filosofia moral (conforme o entendido por Hobbes e Locke), já que a
moral tão somente é gerada quando a circunstância é de um convívio pré-
-pacto inexistente na condição natural.

Porque vivendo isolado dos demais, o homem não sentia ne-


cessidades morais, ou seja, não vivenciava situações que re-
queressem um maior desenvolvimento de suas paixões. Além
disso, a natureza, que lhe oferecia todos os recursos de que
necessitava, não carecia de uma moral desenvolvida (BIA-
ZUS, 2015, p. 14).

Identificamos, assim, que, para o filósofo francês, as paixões somen-


te são corrompidas em sociedade; por conseguinte, só corrompem o pró-
prio ser humano quando este passa a fazer parte de arranjos e agremiações.
Nesse sentido, as paixões no estado de natureza são boas, e a única razão
que o homem conhece é instintiva e simples.
Assim, Rousseau, ao contrário de seus antecessores, parece elogiar
a condição natural na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos
das desigualdades entre os homens, de forma que esse estado natural pa-
rece ser um bom estado. No entanto, no Contrato Social, o filósofo lança
a hipótese de o ser humano ter tido a necessidade de união para resistir
aos obstáculos que surgiram com o desenrolar dos fatos. De início, essas
agregações eram temporárias e circunstanciais, mas à medida que foram
se tornando fixas, as sociedades foram surgindo. Enfim, no caso Rousseau
(2006, p. 20) afirma:

Suponho que os homens tenham chegado àquele ponto em


que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de
natureza sobrepujam, por sua resistência, as forças que cada
indivíduo pode empregar para se manter nesse estado. Ora,
como os homens não podem engendrar novas forças, mas ape-
nas unir e dirigir as existentes, não têm meio de conservar-se
senão formando, por agregação, um conjunto de forças que
possa sobrepujar a resistência, aplicando-as a um só móvel e
fazendo-as agir em comum acordo.

Essa espécie de “elogio ao bom selvagem” em Rousseau é peculiar,


mas não faz com que sua teoria não siga o rumo natural do contratualismo,
a saber, fazer o ser humano pactuar-se em contrato social. E após o con-

337
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

trato realizado, o filósofo é tão categórico quanto os outros ao afirmar que


não é possível retornar para as características do estado de natureza após o
pacto, e, no caso, o ser humano apenas mantém alguns sinais desse estado
natural, como os desejos e as paixões, sendo alguns já maculados. Sobre
isso, Leopoldi (2002, p. 162) declara:

Mas a “nostalgia” do estado de natureza não desperta dese-


jo de volta ao passado, já que nesse caminho não só não há
retorno possível, como algumas facilidades tornadas dispo-
níveis na vida em sociedade submetem os indivíduos a no-
vas necessidades das quais não podem nem querem livrar-se.
Além disso, no estado de natureza algumas potencialidades
latejavam no homem primitivo, impelindo-o para um afasta-
mento cada vez maior do reino animal e estimulando nele o
desenvolvimento da sociabilidade.

Assim, em Rousseau, é atípico o fato de não ser uma paixão ou um cál-


culo racional, como em Hobbes, ou uma inferência da razão rumo à conve-
niência, como em Locke, mas a pura e simples necessidade e o instinto que
levam o ser humano ao pacto social. Trata-se de viver não sob uma vontade
geral, mas de certa união das vontades particulares, pois de tal modo foi “nas
primeiras sociedades”13. Com isso, em Rousseau, não se tem um sofisticado
mecanismo, nem raciocínios complexos, mas as agremiações são motivadas
apenas instintivamente pela paixão originaria do amor de si.

Considerações finais

As teorias dos três contratualistas da Idade Moderna aqui apresen-


tados (Hobbes, Locke e Rousseau) legaram modelos de Estado, entendi-
mentos da dinâmica do governo civil, reflexões antropológicas sobre a
natureza humana e discussões a respeito do jusnaturalismo, um campo
frutuoso da jusfilosofia. No entanto, após a análise dos conceitos de estado
de natureza na visão desses três contratualistas da Modernidade, nota-se
a importância desse estágio nas suas teorias. O Estado e seu governo fruto
dos contratos são a “imagem e semelhança” de seus criadores, isto é, os
indivíduos em sua condição natural.
Assim, o Leviatã de Hobbes mostra certo absolutismo monárquico,
um corpo artificial, imortal, forte, que causa medo, pois os homens que o
procuraram por esse mesmo medo também quiseram que sua proteção fosse
feita por esse “monstro”; afinal, todo ser humano deve esforçar-se pela paz,
na medida em que possui a esperança de conseguir alcançá-la; também, caso

13 “A sociedade […] consistiu apenas em algumas convenções gerais que todos os particulares se comprometiam em
observar e das quais a comunidade se tornava fiadora perante cada um deles.” (ROUSSEAU, 1999, p. 225).

338
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

não a consiga, pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra.


Além disso, o governo por consórcio do Segundo Tratado sobre o
Governo, de Locke, vem de homens, que, harmonicamente, legislam sobre
si e têm inferências éticas naturais. Então, o liberalismo é a fonte desse
governo, com poderes bem definidos de acordo com os poderes advindos
do próprio estado de natureza. (legislativo e executivo)
Já as análises do Discurso sobre a origem e os fundamentos das
desigualdades entre os homens e também do Contrato Social, de Rous-
seau, demonstram um Estado cujo próprio corpo político é despersonifi-
cado, totalmente simbiótico da relação dos indivíduos na busca pela von-
tade geral. A falta de razão subjetiva que gerou o pacto deu a estrutura de
poder, sendo uma característica de funcionar muito mais do que a união
das vontades particulares.
Portanto, entender o conceito de estado de natureza é um dos fun-
damentos para entender a filosofia dos contratualistas Hobbes, Locke e
Rousseau, como também, para além disso, a forma como muitos Estados
modernos e contemporâneos se legitimaram ao se basear nesses teóricos
(por exemplo, os absolutismos francês e inglês do século XVII, o liberalis-
mo lockeano estadunidense e as repúblicas e monarquias constitucionais
europeias dos séculos XVIII e XIX). Ademais, a relação entre a condição
natural e o que se espera do governo gerado pelo pacto social dos indiví-
duos fruto dela é íntima e inseparável, conforme demonstrado no texto.
Enfim, são aspectos que mostram a pertinência e a atualidade de vários
dos aspectos apresentados e analisados no presente artigo.

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341
19
Desenvolvimento moral: fim
último de todo ser racional

Vicente E. R. Marçal

Introdução

“Somos civilizados até a saturação por toda espécie de boas maneiras


e decoro sociais. Mas ainda falta muito para nos considerarmos moraliza-
dos (KANT, 2003, p. 16, grifos do autor). Ao lermos essa citação kantiana,
fomos profundamente instigados a buscar, no sistema filosófico desse au-
tor, como ele compreende o processo de moralização do ser racional.
Essa busca nos levou a uma compreensão possível de como Kant, em
seu sistema filosófico, vê a passagem do Direito Objetivo para a Consciên-
cia Moral, ou seja, qual o papel cumpre o Direito Objetivo para que o ser
racional possa chegar à sua plena realização como ser moral.
Nossa intenção, num primeiro momento, foi reconstruir alguns con-
ceitos da doutrina moral kantiana a partir de sua obra Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, que nos permitissem compreender quais seriam
os principais conceitos envolvidos em seu sistema filosófico no que diz
respeito à Filosofia Moral.
Num segundo momento, apresentamos os conceitos de Esclareci-
mento e Direito como instâncias da moralização, salientando o vínculo
que Kant apresenta em sua Filosofia Moral entre a necessidade de Escla-
recimento que o ser racional, no caso o ser humano, deve ter para que pos-
sa chegar ao seu desenvolvimento moral, fim último de todo ser racional.
Além disso, também nos debruçamos na contribuição que o Direito propi-
cia como instância moralizadora.
Num terceiro e último momento, analisamos a possibilidade do Di-
reito numa sociedade plenamente esclarecida. “O Reino dos Fins”, como
a chama Kant, é uma sociedade utópica que não tem possibilidades de
uma realização histórica, mas que serve de modelo ideal a ser buscada, de
modo que o Direito como mediação entre arbítrios é apresentado como
uma necessidade, principalmente pela finitude do ser humano, único ser
racional sobre a terra.

343
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

É a partir da análise de todos esses conceitos e de suas inter-rela-


ções que propomos um entendimento do Direito como meio para a Mo-
ralização do ser racional.

Fundamentos morais da doutrina kantiana


O conceito de “Vontade Boa” 1

Kant inicia sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes


de forma enfática, afirmando: “Neste mundo, e até também fora dele, nada
é possível pensar que possa ser considerado bom sem limitação, a não ser
uma só coisa: uma boa vontade.” (KANT, 1980, p. 109). Com isso, compre-
endemos ser de vital importância para uma pesquisa que almeja recons-
truir, segundo a Fundamentação, os fundamentos morais da doutrina kan-
tiana iniciar com o conceito de Vontade Boa.
Kant compreende que a Vontade Boa é boa independentemente de todo
e qualquer contexto em que possa estar inserida. É dizer que a Vontade Boa é
boa em si mesma, de forma absoluta e incondicional, como afirma Paton:

“we may say that a good will alone can be good in itself, or
can be an absolute or unconditioned good. […] All Kant me-
ans is that a good will alone must be good in whatever con-
text it may be found. It is not good as means to one end and
bad as means to another. It is not good if somebody happens
to want it and bad if he doesn’t. Its goodness is not conditio-
ned by its relation to a context or to an end or to a desire.”
(PATON, 1970, p. 34).2

É uma compreensão que pode trazer uma confusão ilusória à razão


humana vulgar, pois a bondade de tal vontade vai além da sua utilidade.
Kant mesmo afirma que algumas “qualidades são mesmo favoráveis a esta
boa vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas não têm, todavia,
nenhum valor íntimo absoluto, pelo contrário pressupõem ainda e sempre
uma boa vontade” (KANT, 1980, p. 109). Uma vontade que, segundo Kant
(1980), tem por característica suprema ser boa em si mesma, independen-
temente de toda e qualquer circunstância, toda e qualquer finalidade a que
se destina, e mesmo que por força das contingências externas não se rea-
lizasse, brilharia por si só, tal como uma joia, e sua utilidade é apenas um
engaste para facilitar seu manejo.

1 Sobre a tradução que assumimos, de “einguter Wille”, ver a nota 1 da tese de doutoramento do prof. Delamar José
Volpato Dutra, intitulada “A reformulação discursiva da moral kantiana”, 1997, p. 23.
2 “podemos dizer que a vontade boa somente poder ser boa em si mesma, ou pode ser boa absoluta ou
incondicionalmente. […] todo o pensar de Kant é que a vontade boa, sozinha, deve ser boa em qualquer contexto
em que se encontre. Não pode ser boa como meio para um determinado fim e má como meio para outro. Não é boa
quando alguém quer que seja e má caso assim o queira. Sua bondade não está condicionada por sua relação com um
fim, um contexto ou um desejo” (PATON, 1970, p. 34, tradução nossa).

344
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Dutra alerta para o fato de tal conceito ser mal compreendido pela
razão humana vulgar, por esta ter uma “má compreensão da intenção da
natureza” (DUTRA, 2002, p. 24). Ou seja, compreender a felicidade como
sendo o fim último do ser humano, nas determinações da natureza, levan-
do a razão humana vulgar a considerar que a utilidade da vontade poderia
ter um valor em si mesma, além do valor intrínseco da Vontade Boa.
Dutra aponta para os argumentos que Kant utiliza na Fundamenta-
ção para apresentar que a natureza foi sábia o suficiente na distribuição
dos dons naturais de cada espécie, pois “consideramos as disposições na-
turais dum ser organizado, isto é, dum ser constituído em ordem a um fim
que é a vida, aceitamos como princípio que nele se não encontra nenhum
órgão que não seja o mais conveniente e adequado à finalidade a que se
destina.” (KANT, 1980, p. 110).
E se o télos da humanidade fosse a busca pela felicidade, nada mais
justo do que deixá-lo somente com seu instinto, pois este está melhor pre-
parado para alcançar tal fim. Entretanto, é uma má compreensão da nature-
za, pois sua intenção foi a de nos dar a razão por soberana da nossa vontade,
sendo errônea a compreensão de que o fim da humanidade é a felicidade,
pois “The true function of reason on its practical side must be to produce
a will good not as a means to something else such as happiness, but good
absolutely and in itself.” (PATON, 1970, p. 44).3 Tal compreensão se dá prin-
cipalmente pelo fato de a felicidade ser extremamente contingente, ou seja,
“é um conceito tão vacilante, que se uma natureza estivesse a ele submeti-
do, não admitiria nenhuma lei universal” (DUTRA, 2002, p. 26).
Kant aponta para o fato de que tal uso da razão não nos torna felizes,
mas dignos da felicidade, pois o “mérito a ser feliz é a qualidade de uma
pessoa fundada no próprio querer do sujeito, em conformidade com a qual
uma razão legisladora universal (tanto da natureza como do livre querer) se
harmoniza com todos os fins desta pessoa”. (KANT, 2002, p.61).4
Compreende Kant que o cumprimento da obrigação moral gera a
felicidade plena, pois sua fundamentação está na solidez da lei racional,
e não nas efemeridades e contingências que o instinto apresenta na busca
pela felicidade. Assim, segundo Dutra, a felicidade “não será mais tratada
[por Kant] como causa da moralidade, mas como uma das suas consequên-
cias. Ou seja, a moralidade é deslocada da noção de felicidade e estatuída
como sua condição de possibilidade” (DUTRA, 2002, p. 26), age-se com o
intuito de se merecer a felicidade e, desse modo, a Vontade Boa torna-se
a condição para a felicidade, e o agir moralmente nos torna dignos desta.

3 “A verdadeira função da razão em seu lado prático deve ser a de produzir uma boa vontade não como um meio a
algo mais tal como a felicidade, mas boa absolutamente e em si mesma.” (PATON, 1970, p. 44, tradução nossa).
4 Sobre a expressão corrente: “Isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”.

345
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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Desse modo, podemos concluir com Dutra (2002) que a Vontade Boa
é o acatamento subjetivo da lei moral. Ou seja, toda ação moral só tem va-
lor moral se motivada pela lei moral, tornando-se condição subjetiva desta,
pois “o valor moral da ação deverá ser definido pela motivação da lei, e não
pelo interesse empírico” (DUTRA, 2002, p. 28).

Dever – A necessidade de ação por respeito à lei

Na sequência de sua argumentação, na Fundamentação Kant apre-


senta o conceito de Dever, o qual contém o conceito de Vontade Boa, como
ele mesmo afirma:

Para desenvolver, porém, o conceito de uma boa vontade alta-


mente estimável em si mesma e sem qualquer intenção ulte-
rior, conceito que reside já no bom senso natural e que mais
precisa de ser esclarecido do que ensinado, este conceito que
está sempre no cume da apreciação de todo o valor das nossas
ações e que constitui a condição de todo o resto, vamos enca-
rar o conceito do Dever, que contém em si o de boa vontade
(KANT, 1980, p. 112, grifo do autor).

Na explicitação do conceito de Dever, Kant aponta que não se pre-


ocupará com as ações imediatamente reconhecidas contrárias ao dever,
que, apesar de sua utilidade para a explicitação do conceito, não cogitam
qualquer possibilidade de terem, por este ou aquele aspecto, sido reali-
zadas por dever. Também não se preocupará com as ações que, embora
praticadas conforme o dever, não foram realizadas por imediata inclinação
do homem, mas que facilmente se reconheceria que foram praticadas por
outra tendência. Tal abandono se dá em virtude de considerar tais ações,
fáceis de se reconhecer, terem sido praticadas por intenção egoísta.
Portanto, fazem parte da preocupação kantiana as ações que são
conforme o dever e realizadas com imediata inclinação humana por serem
muito mais sutis e difíceis de se identificar.
Assim, após apresentar alguns exemplos, Kant conclui que:

Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral, não no
propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a
determina; não depende, portanto, da realidade do objeto da
ação, mas somente do princípio do querer segundo o qual a
ação, abstraindo de todos os objetos da faculdade de desejar,
foi praticada (KANT, 1980, p. 114).

E, com maestria, aponta que o “Dever é a necessidade de uma ação


por respeito à lei.” (KANT, 1980, p. 114).

346
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A partir dessa conclusão de que o dever é a necessidade de uma ação


por respeito à lei, cumpre-se apresentar o que se entende por respeito.
Kant inicia tal processo afirmando que pelo objeto ou finalidade de uma
ação realizada podemos sentir uma inclinação, mas nunca respeito “exata-
mente porque é simplesmente um efeito, e não a atividade de uma vonta-
de” (KANT, 1980, p. 114). E continua:

Só pode ser objeto de respeito e, portanto, mandamento aquilo


que está ligado à minha vontade somente como princípio e nunca
como efeito, não aquilo que serve à minha inclinação, mas o que
a domina ou que, pelo menos, a exclui do cálculo na escolha, quer
dizer, a simples lei por si mesma (KANT, 1980, p. 114).

Assim, Kant argumenta que a “determinação da vontade pela lei e a


consciência desta determinação é que se chama respeito, de modo que se deve
ver o efeito da lei sobre o sujeito, e não a sua causa.” (KANT, 1980, p. 115).
Kant apresenta mais uma conclusão do problema que ulteriormen-
te vimos, ou seja, do porquê ser a razão a governante da vontade, pois
somente pela representação da lei em si mesma, que só pode se realizar
no ser racional, é que se determina a vontade, e não o efeito esperado; e
a isso ele chama de Moral.

Imperativo categórico – Critério para a obtenção da lei moral

Partindo da compreensão do conceito de Dever, Kant o amplia, inse-


rindo dois novos conceitos: respeito e lei; o primeiro é referente ao segun-
do. Respeito, para Kant, é entendido como um sentimento, contudo não
é um sentimento influenciável, mas que se produz mediante um conceito
da razão e “assim é especificamente distinto de todos os sentimentos do
primeiro gênero que se podem reportar à inclinação e ao medo.” (KANT,
1980, p. 115, nota nº 10).
A lei é compreendida por Kant como o objeto do respeito e, por isso,
ligado à nossa vontade como um princípio, e não como um efeito sobre esta
e, desse modo, não está a serviço de nossa inclinação, mas a domina ou sim-
plesmente a elimina na determinação da ação, como nos diz o filósofo alemão:

Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmen-


te a influência da inclinação e com ela todo o objeto da von-
tade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do
que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito
por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda
obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas
inclinações (KANT, 1980, p. 115).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Kant se indaga qual deve ser essa lei que determina a vontade mes-
mo sem se saber o que esperar dela, de forma que a vontade possa ser tida
como boa absolutamente e sem restrição. Kant assim nos responde:
Uma vez que despojei a vontade de todos os estímulos que lhe
poderiam advir da obediência a qualquer lei, nada mais resta do
que a conformidade a uma lei universal das ações em geral que
possa servir de único princípio à vontade, isto é: devo proceder
sempre de maneira que eu possa querer também que a minha
máxima se torne uma lei universal. (KANT, 1980, p. 115).

Kant compreende que tudo na natureza age segundo leis, e somente


o ser racional tem capacidade de agir segundo a representação delas, ou
seja, somente o ser racional possui vontade. Isso nos leva a concluir que
“[…] para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é
outra coisa senão razão prática” (KANT, 1980, p. 123). Ora, Freitag afirma
que para Kant “a natureza humana é essencialmente racional, e por isso
mesmo todo e qualquer princípio norteador de suas ações morais precisa
estar ancorado na razão” (FREITAG, 2002, p. 49) .
É com esse juízo em mente que Kant apresenta o Imperativo, o qual
tem duas formas distintas: o Hipotético, ou seja, aquele imperativo que
visa alcançar um outro fim; e o Categórico, cujo fim está nele mesmo. Este
último, segundo Kant (1980) também é chamado de Imperativo da Morali-
dade, pois não está relacionado com o objeto da ação ou com o fim por ela
intencionado; o intrinsecamente bom da ação reside na disposição em se
praticar a ação independentemente do resultado desta.
O filósofo de Königsberg, a partir da formulação universal do Impera-
tivo Categórico, qual seja: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas
ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1980, p. 129),
expõe três outras fórmulas possíveis para esse conceito filosófico.
A primeira, ao afirmar que tudo na natureza age segundo leis, adicio-
na ao final da fórmula universal do Imperativo Categórico as palavras “da
natureza”, fazendo com que este fique expresso da seguinte maneira: “Age
como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei
universal da natureza” (KANT, 1980, p. 130).
Na segunda, Kant argumenta sobre a finalidade dos seres racionais,
ou seja, para ele a “natureza racional existe como fim em si” (KANT, 1980,
p. 135), pois só “um fim em si pode constituir um princípio objetivo de von-
tade” (NOUR, 2004, p.10), expressando-o, portanto, da seguinte maneira:
“Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim, e nunca
simplesmente como meio” (KANT, 1980, p. 135).

348
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

A terceira, contudo, não última, pois como afirma o próprio Kant, as


“três maneiras indicadas de apresentar o princípio da moralidade são, no
fundo, apenas outras tantas fórmulas da mesma lei” (KANT, 1980, p. 141),
é derivada das duas primeiras, pois

[…] o princípio de toda a legislação prática reside objetivamen-


te na regra e na forma da universalidade que a torna capaz
(segundo o primeiro princípio) de ser uma lei (sempre lei da
natureza); subjetivamente, porém, reside no fim; mas o sujeito
de todos os fins é (conforme o segundo princípio) todo o ser
racional como fim em si mesmo, sendo expressa da seguinte
maneira: “a ideia da vontade de todo o ser racional concebida
como vontade legisladora universal” (KANT, 1980, p. 137).

Segundo Kant, essa maneira de expressar o Imperativo Categórico


explicita que a vontade dos seres racionais não está submetida deliberada-
mente a todo tipo de lei, mas somente àquela que ele prescreve a si mesmo.
Em outras palavras, os seres racionais submetem-se às leis de que eles
mesmos foram autores.

Autonomia e liberdade – Condições de possibilidade para a Filosofia Moral

Como vimos, a vontade do ser racional não se submete a todo e qual-


quer tipo de lei que se lhe impõe, mas tão somente àquelas cujo autor é o
mesmo, ou, como nos diz Paton ,“We make the law we obey. The will is
not merely subject to law: it is so subject that it must also be regarded as
making the law” (PATON, 1970, p. 180 )5. A isso Kant (1980) denomina de
Autonomia da Vontade.
Quando a vontade busca na natureza uma lei que a determine, ou
seja, fora dela, expressa-se uma heteronomia da vontade, pois não “é a von-
tade que então se dá a lei a si mesma, mas sim o objeto que dá a lei à vonta-
de pela sua relação com ela” (KANT, 1980, p. 145), e, desse modo, temos um
imperativo hipotético, pois a vontade se determina em realizar algo por
querer o fim ou o objeto que essa realização proporciona.
Dessa feita, tal conceito é de vital importância para a compreensão
da Moral kantiana, pois

É a introdução do conceito de autonomia do ser racional


como a faculdade de obedecer apenas à lei dada por si pró-
prio que explica o que nas duas primeiras formulações do
imperativo categórico parecia não repousar sobre nenhum
outro fundamento. Na primeira formulação, a lei moral tinha

5 “Nós fazemos a lei que obedecemos. A vontade não é simplesmente sujeita à lei: ela é tão sujeita à lei quanto deve
ser considerada sua autora.” (PATON, 1970, p. 180, tradução nossa).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

um caráter “coercitivo”. A autonomia, no entanto, significa


que o ser racional se submete à lei moral porque é ele mesmo
seu autor. Na segunda formulação, a afirmação de que o ser
racional é uma pessoa, isto é, é fim em si mesmo e dotado de
valor absoluto, também carece de fundamento. […] Pela auto-
nomia, no entanto, isto é, por se submeter à lei moral dada
pra si próprio, é que o ser racional torna-se uma pessoa, que
não possui preço, mas “um valor absoluto”, uma “dignidade”
(NOUR, 2004, p.10-11).

Temos agora a necessidade de “demonstrar que a vontade de todo ser


racional finito está ligada à autonomia, necessariamente” (DUTRA, 2002,
p. 34). Numa primeira etapa em se buscar demonstrar o fato da vontade
estar ligada à autonomia é que entendermos que não há contradição entre
liberdade e as leis da natureza, como nos sugere Nour (2004). Tal demons-
tração é feita por Kant na Crítica da Razão Pura, na terceira antinomia,
cuja tese se expressa da seguinte forma: “A causalidade segundo leis da
natureza não é a única a partir da qual os fenômenos do mundo possam ser
derivados em conjunto. Para explicá-los, é necessário admitir ainda uma
causalidade mediante a liberdade.” (KANT, 1980, p. 232). E a antítese: “Não
há liberdade alguma, mas tudo no mundo acontece meramente segundo as
leis da natureza.” (KANT, 1980, p. 232). Pois bem, a aparente contradição é
desfeita por Kant ao investigar a noção de causalidade, ou seja, “a ligação
de um certo estado no mundo sensível com um estado precedente, ao qual
o primeiro sucede segundo uma regra” (NOUR, 2004, p.15), chegando à
conclusão de que para haver um estado anterior, deve-se considerar a no-
ção do fator tempo na organização da experiência sensível. Desse modo,
a “liberdade como Ideia cosmológica é a faculdade de causar um estado,
faculdade esta que não está determinada por uma causa anterior segundo
uma lei natural” (NOUR, 2004, p.16), e, não estando temporalmente deter-
minada, a liberdade não entra em conflito com as leis da natureza, poden-
do ser pensada, contudo não conhecida. Assim, temos na Crítica da Razão
Pura a condição de possibilidade de desenvolvimento da Moral a partir
da possibilidade de pensarmos sobre a liberdade sem conflitarmos com o
conceito de leis da natureza.
A partir da possibilidade de podermos pensar a liberdade sem con-
tradição com as leis da natureza, Kant compreende que a vontade é uma
causalidade nos seres racionais que tem a liberdade como propriedade que
a torna causa eficiente. Contudo, é uma definição negativa de liberdade
que a torna infecunda para conhecermos a essência da liberdade.
Kant apresenta um outro conceito de liberdade, positivo, e, portan-
to, fecundo, a saber: sendo a necessidade natural a heteronomia, ou seja,
a causalidade atua segundo leis externas que determinam os efeitos que

350
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

se seguirão às causas. Assim, segundo leis, a liberdade da vontade nada


mais é que autonomia, ou seja, “a propriedade da vontade de ser lei para si
mesma” (KANT, 1980, p. 149). O conceito de autonomia, segundo Kant, é a
possibilidade de termos um conceito positivo de liberdade, pois o ser ra-
cional agirá de acordo com uma máxima universal, que tem por objeto sua
própria vontade. Isso implica em Kant afirmar a sinonímia entre vontade
livre e vontade submetida às leis morais.
Assim, Kant demonstra o princípio da moralidade, ou seja, o Imperati-
vo Categórico, pois “é uma proposição sintética a priori: o predicado, a legis-
lação universal não está contido no sujeito, a vontade” (NOUR, 2004, p.17) .
Temos, portanto, na Autonomia e na Liberdade as condições de pos-
sibilidade para a Filosofia Moral em Kant.

Esclarecimento e Direito – Instâncias da moralização

Esclarecimento e Direito: esses dois conceitos dão suporte para o


que Kant chama de Reino dos Fins, que nada mais é do que a ligação entre
os seres racionais autônomos numa totalidade.
Como ele mesmo afirma, é uma “ligação sistemática de vários se-
res racionais por meio de leis comuns […] (tanto dos seres racionais como
fins em si como também dos fins próprios que cada qual pode propor a si
mesmo) em ligação sistemática” (KANT, 1980, p. 139). Assim, temos uma
unidade jurídica entre os seres racionais, pois, como nos diz Nour, a “lei
moral, como princípio de unidade, une assim, por meio de leis comuns que
com ela estejam de acordo, os diversos seres racionais” (NOUR, 2004, p.12).
Isso é de suma importância, haja vista que o próprio Kant afirma que no
“homem (como única criatura racional sobre a terra), as disposições natu-
rais que visam o uso da sua razão devem desenvolver-se integralmente só
na espécie, e não no indivíduo” (KANT, 2003, p. 5).
Mesmo porque Kant compreende que a liberdade da vontade huma-
na está submetida às leis universais, e, por mais que no âmbito individual
tudo pareça ocorrer de forma aleatória e conforme a própria vontade ou
inclinação do indivíduo, é com a compreensão do coletivo que se percebe
que todos, ao buscarem sua autorrealização pessoal, seu fim próprio, de
uma forma ou de outra “seguem inadvertidamente, como a um fio condu-
tor, o propósito da natureza, que lhes é desconhecido, e trabalham para sua
realização” (KANT, 2003, p. 4).
Terra, a esse respeito, nos diz que o “progresso dependerá, em um
primeiro momento, mais daquilo que a natureza humana forçará os ho-
mens a fazer do que de sua ação consciente” (TERRA, 2003, p. 48).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Isso nos leva à compreensão de que o desenvolvimento moral do ser


racional, visto como télos por Kant, só pode se dar numa comunidade ju-
rídica, ou seja, o “ser humano, como pessoa, é um ser social, membro de
uma totalidade sistemática. Kant justifica, assim, o motivo de um mundo
público comum” (NOUR, 2004, p.12).
Contudo, com a comunidade jurídica surge um problema: por culpa-
do o próprio ser humano (único ser racional sobre a terra, segundo Kant),
por preguiça, covardia ou medo, aquele se mantém no que Kant denomina
de menoridade, ou seja, na “incapacidade de se servir do entendimento
sem a orientação de outrem” (KANT, 2002, p. 11). Isso implica em que o
desenvolvimento pleno do ser humano enquanto ser racional e, portanto,
moral, se dará com o alcance da maioridade, i.e., com o esclarecimento,
mas esbarra na incoerência de o próprio ser humano se condicionar a per-
manecer na menoridade.
Kant compreende que existe a possibilidade de se sair da meno-
ridade culpada, justamente com a liberdade, ao afirmar que “é perfei-
tamente possível que um público a si mesmo se esclareça […] se para tal
lhe for dada liberdade” (KANT, 2002, p. 12). O esclarecimento é condição
necessária para a consciência moral, pois na menoridade o ser racional
não toma decisões por si mesmo, mas delega essa função a seu tutor –
heteronomia. Não tendo uma vontade livre, ele não tem autonomia e,
portanto, não age moralmente.
Apresentasse-nos um paradoxo, porque ao ser dada liberdade ao
ser racional, ele possui autonomia, pois a liberdade é uma condição
da autonomia. Como um ser autônomo, esse ser racional poderá viver
em sociedade. Kant ressalta, aqui, a insociável sociabilidade, ou seja, a
tendência natural do ser humano de buscar uma vida em conjunto com
seus congêneres, mas, concomitantemente, tende a dissolver essa vida
social. É assim que se expressa na quarta proposição da Ideia de uma
História Universal com um propósito Cosmopolita: “O meio de que a
natureza se serve para levar a cabo o desenvolvimento de todas as suas
disposições é o antagonismo das mesmas da sociedade, na medida em
que este se torna ultimamente causa de uma ordem legal dessas mesmas
disposições” (KANT, 2003, p. 25).
Kant concebe o Direito como a solução para esse antagonismo, pois
vê nas leis jurídicas o estatuto moral, visto que elas possuem duplo conte-
údo: um objetivo, que é a textualização de uma lei que prescreve que deter-
minada ação deva ser realizada; e um subjetivo, que é o móbil pelo qual a
realização de uma ação é subjetivamente determinada.
Para Kant, o conceito de Direito é decorrente do conceito de liberda-
de: “na relação externa dos homens entre si e nada tem a ver com o fim, que

352
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

todos os homens de modo natural têm” (KANT, 2002, p. 74)6, implicando


que “o direito é a limitação da liberdade individual em consonância com a
liberdade da comunidade jurídica, sendo esta liberdade possível segundo
uma lei universal” (KANT, 2002, p. 74).
Nesse aspecto, Kant apresenta três princípios a priori que dão supor-
te ao estado civil, considerado como comunidade jurídica, a saber: liberda-
de, igualdade e independência.
A Liberdade é o princípio de que nenhum homem deve impor a outro
a sua compreensão de felicidade, constrangendo-o a agir dessa forma para
ser feliz, “mas a cada um é permitido buscar a sua felicidade pela via que lhe
parecer boa, contanto que não cause dano à liberdade de os outros” (KANT,
2002, p. 75). Esse princípio expressa-se no indivíduo enquanto ser humano.
A Igualdade é o princípio que se expressa no indivíduo enquanto
súdito e compreende que cada membro da comunidade jurídica tem o di-
reito de coação sobre todos os outros, sendo todos, indistintamente, iguais
enquanto cossúditos, ou seja,

[...] num estado de igualdade de acção e reacção de um arbítrio


reciprocamente limitador, em conformidade com a lei univer-
sal (chama-se a isto o estado civil): pelo que o direito inato [grifo
do autor] de cada qual neste estado (isto é, anteriormente a
todo o acto jurídico do mesmo), quanto ao poder de constran-
ger quem quer que seja a permanecer no interior de suas fron-
teiras da consonância do uso da sua liberdade com a minha,
é universalmente o mesmo (KANT, 2002, p. 78, grifo do autor).

A Independência é o princípio que se refere ao indivíduo enquanto


cidadão, ou seja, colegislador. É a possibilidade de se permitir, na comuni-
dade jurídica, que:

[...] todos decidem sobre todos e, por conseguinte, cada um so-


bre si mesmo […] Na realidade, os conceitos de liberdade exter-
na, de igualdade e de unidade da vontade de todos concorrem
para a formação deste conceito, e a independência é a condição
desta unidade, uma vez que o voto se exige quando a liberdade e
a igualdade se encontram reunidas (KANT, 2002, p. 80).

Desse modo, podemos ver que Kant compreende o Direito como ge-
rador de uma ação externa que une dois arbítrios, ou seja “a soma das
condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de
outrem de acordo com uma lei universal de liberdade” (KANT, 2003, p. 76).
Essa característica é a que torna o Direito uma instância moralizadora,
pois com a coação que lhe é própria, conduz o ser humano a uma ação, que,

6 Sobre a expressão corrente: “Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática”.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

num primeiro momento, pode ser realizada por conformidade ao Dever,


contudo pode levar, diante da lei universal da liberdade, ao Esclarecimen-
to — outra instância moralizadora —, de modo que a autonomia floresça e
permita que o ser racional possa agir moralmente.
Assim, podemos concluir que em Kant o Esclarecimento pode ser alcan-
çado mediante uma jurisdiciação, levando o ser racional a uma moralização,
visto que a norma positivada tem dois conteúdos: objetivo e subjetivo, como
descrito. O Direito, nessa perspectiva, atua como instância moralizadora.

O Direito numa sociedade esclarecida

O conceito de Reino dos Fins, ou seja, de uma comunidade total-


mente moralizada é, segundo o próprio Kant (1980), um ideal que apesar de
historicamente intangível, é logicamente possível.
Isso porque, sendo o Reino dos Fins constituído por homens e estes,
como seres finitos, não agem por uma vontade totalmente boa, ao contrá-
rio, sua vontade pode ser influenciada por inclinações e, portanto, não é
pura, como nos diz Kant:

O arbítrio humano, contudo, é uma escolha que, embora possa


ser realmente afetada por impulsos, não pode ser determinada
por estes, sendo, portanto, de per si (à parte de uma competên-
cia da razão) não pura, podendo, não obstante isso, ser deter-
minada às ações pela vontade pura (KANT, 2003, p. 63).

Vemos que, apesar de logicamente possível, o Reino dos Fins é um


ideal norteador, ou, como diz Habermas (1997), assemelha-se a um idealis-
mo platônico, pois permite que a ordem jurídica mimetize de forma con-
creta, no mundo fenomenal, a ordem inteligível do Reino dos Fins, contu-
do historicamente intangível.
Kant compreende que a relação jurídica se dá entre os arbítrios, re-
gulando suas ações externas justamente por esses, como nos diz Bobbio,
exprimirem que:

[...]a relação jurídica pode ser instituída somente entre dois se-
res humanos, ou seja, entre seres que se encontram numa rela-
ção de limitação recíproca da própria liberdade externa. Kant
está bem consciente dessa natureza peculiar da experiência
jurídica e chega à definição da relação jurídica como relação
de direito-dever entre seres humanos (BOBBIO, 2000, p. 99).

Desse modo, mesmo numa comunidade plenamente moralizada, os


seres humanos podem agir a ponto de ferir a ordem estabelecida por que-
rerem buscar a realização de seu fim último e, nesse anseio, violarem a

354
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

liberdade de outrem. Como nos diz Habermas, “o conceito do direito não


se refere primariamente à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários;
abrange a relação externa de uma pessoa com outra; e recebe a autorização
para a coerção, que um está autorizado a usar contra o outro, em caso de
abuso.” (HABERMAS, 1997, p. 140, grifos do autor).
Temos que lembrar que a comunidade jurídica é formada por se-
res racionais autônomos, e que o Direito regula essa autonomia seguindo
uma lei universal de liberdade, contudo de liberdade comunitária e não
individual. O ser racional, no caso específico o ser humano, tem seu pleno
desenvolvimento na espécie, e não no indivíduo, como afirma Hansen: “Na
Resposta à pergunta: que é o Esclarecimento?, Kant enfatiza a dificuldade
de esclarecimento e emancipação da parte de um único indivíduo isolada-
mente, mas ressalta a quase inevitabilidade de que o Aufklãrung ocorra se
houver o envolvimento de uma coletividade.” (HANSEN, 2000, p. 19).
Compreende-se, então, que a sua liberdade individual é limitada
pela liberdade coletiva, ou seja, a liberdade é entendida como limitação
recíproca do arbítrio.
Outro argumento interessante, já mencionado em capítulos ante-
riores, é o da insociável sociabilidade. Tal argumento apresenta que a
natureza conduz o ser humano ao esclarecimento e, assim, à sua plena
moralização, com a insuportável convivência mútua. Por mais paradoxal
que isso possa parecer, implica em mostrar que é natural a tensão na con-
vivência humana mútua, pois

O homem quer concórdia, mas a natureza sabe mais o que é


melhor para a espécie: ela quer discórdia. Ele quer viver cômo-
da e prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone
a indolência e o contentamento ocioso e se lance ao trabalho
e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem
inteligentemente dos últimos (KANT, 2003, p. 9).

Contudo, o Direito exerce papel fundamental, ou seja, equilibra a ten-


são de forças para que não haja o aniquilamento da espécie. Hansen afirma
que na Paz Perpétua Kant apresenta uma possibilidade ainda maior de rup-
tura com esse estado de natureza ao compreender que a “constituição de um
estado de sociabilidade entre eles [os Estados Civis], articulado em torno de
uma possível Liga das Nações” (HANSEN, 2000, p. 20). Essa compreensão
é importante, pois possibilita duas conclusões. A primeira referente a uma
saída da insociável sociabilidade mediada pelo direito entre os indivíduos.
A segunda referente à compreensão do Reino dos Fins como uma “Liga das
Nações”, ou seja, algo que vai muito além de um único Estado Nacional,
mas que compreende a reunião de toda a humanidade numa comunidade
jurídica em que o Direito atue como medium entre as relações, para que a
tensão de forças, já mencionada, mantenha-se equilibrada.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Mais do que uma compreensão negativa do Reino dos Fins, Kant


compreende que o Direito possibilita, por meio de leis comuns, que cada
indivíduo possa buscar seu fim último sem, com isso, ser perturbado nem
perturbar a outrem que faz o mesmo. É a mediação, para que todos possam
perseguir seus interesses particulares sem, com isso, colidir com a liber-
dade do outro de perseguir seus interesses e, desse modo, seguirem o fio
condutor da história na construção da moralidade da espécie.
Outro argumento que nos leva à compreensão da necessidade do Di-
reito numa sociedade esclarecida é a finitude do ser humano. Mesmo en-
tendendo que o ser humano alcança sua plena realização moral na espécie,
e não no indivíduo, o fato de sua vida ser curta prolonga o tempo necessá-
rio para que a espécie alcance essa moralização, pois as gerações que vão
se substituindo necessitam de parâmetros para nortear sua própria liber-
dade. Como nos diz Kant:

Para isso, o homem precisa ter uma vida longa a fim de apren-
der a fazer uso pleno de todas as suas disposições naturais;
ou seja, se a natureza concedeu-lhe somente um curto tempo
de vida (como efetivamente aconteceu), ela necessita de uma
série talvez infinita de gerações que transmitam umas às ou-
tras as suas luzes para finalmente conduzir, em nossa espécie,
o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que é
completamente adequado ao seu propósito (KANT, 2003, p. 6).

Desse modo, cada novo indivíduo que nasce tem a potencialidade


da realização moral acumulada pela espécie até então, contudo necessita
atualizar essa potência e, com isso, necessita passar pelo processo de es-
clarecimento e, como já exposto anteriormente, o Direito contribui para a
moralização como instância dela.
Podemos então concluir que mesmo numa sociedade plenamente
esclarecida e moralizada, o Direito ainda será de vital importância, pois
contribuirá para a manutenção do esclarecimento e da moralização junto
às gerações futuras.

Considerações finais

Vimos que Kant propõe o conceito de Vontade Boa como boa em si


mesma e sem relação com o contexto ou fim que possa ter, sendo apresen-
tado como o acatamento subjetivo da lei moral, no qual o cumprimento da
obrigação moral gera felicidade plena, tornando-se a Vontade Boa condi-
ção para a felicidade.
Vimos também que Kant apresenta o Dever como a necessidade de
uma ação por respeito à lei, e que esse conceito de Dever tem, em si, o de

356
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Vontade Boa. Além disso, fundamentando-se ainda mais nesse conceito, o


fato de a razão ser a governante da vontade, pois somente pela representação
da lei em si mesma é que se pode se realizar no ser racional o que determina
a vontade, e não o efeito esperado, é que se tem o que é chamado de Moral.
Partindo do conceito de Dever, Kant chega ao critério para a ob-
tenção da Lei Moral, ou seja, o Imperativo Categórico. Dessa forma, a
Lei ligada à nossa vontade é apresentada como um princípio, ou seja,
como uma máxima que a determina para que a vontade possa ser boa
absolutamente e sem restrição. Ao compreender que tudo na natureza
age segundo leis, o filósofo alemão percebe que somente o ser racional
é capaz de agir segundo a representação das leis, ou seja, somente o ser
racional possui vontade e que, para derivar das leis as ações que devem
ser praticadas, necessitamos da razão. Assim, Kant postula que a vontade
nada mais é do que razão prática.
Desse modo, Kant nos apresenta três formulações do Imperativo Ca-
tegórico com as quais vai implicando possibilidades de ação do ser racio-
nal enquanto ser moral, chegando à formulação máxima que implica com-
preender que o ser racional, enquanto ser moral, dá a si mesmo, mediante
a razão, as leis que regem suas ações. A esse princípio Kant denomina
Autonomia da Vontade.
O conceito de Autonomia é vital para compreendermos a questão
do Direito, pois este é apresentado por Kant como um meio de delimitar
a liberdade individual do ser racional numa comunidade jurídica. Tal co-
munidade é apresentada por Kant como o Reino dos Fins, pois cada ser
racional é um fim em si mesmo, e a união em sociedade de todos os seres
racionais é chamada por Kant de Reino dos Fins. Assim, apresentando o
conceito de Autonomia e Liberdade, Kant demonstra o princípio da mo-
ralidade, pois apresenta o Imperativo Categórico como uma proposição
sintética, a priori, ao implicar que o predicado, aqui a legislação universal,
não está contido no sujeito, ou seja, na vontade do ser racional.
Vimos, também, que Kant compreende os conceitos de Esclareci-
mento e Direito como suportes para o Reino dos Fins. Kant compreende
que a liberdade da vontade está submetida ao fio condutor da história,
pois as ações humanas não devem ser vistas como ações individualizadas,
mas sim como contribuidoras para o fim próprio da humanidade enquan-
to seres racionais, que é a moralização da espécie. Assim, concluímos
que o desenvolvimento moral do ser racional, ou seja, seu télos, se dá na
comunidade jurídica.
Dessa forma, essa compreensão apresenta um problema, pois o pró-
prio ser humano se condiciona a permanecer na menoridade, ou seja, a não
buscar o Esclarecimento devido a fatores como a preguiça ou a covardia,

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

preferindo, assim, delegar a um tutor a tomada de decisões de sua própria


vida. E que somente ao sair da menoridade, pelo Esclarecimento, é que o
ser humano, enquanto ser racional, portanto moral, atingirá seu télos. As-
sim, Kant apresenta a possibilidade de se chegar ao Esclarecimento quan-
do se propicia liberdade ao coletivo. Mas, isso vai implicar na insociável
sociabilidade por meio da qual Kant apresenta o Direito como mediador,
pois este estabelece os limites necessários para que não haja aniquilação
da espécie. Desse modo, Kant compreende a possibilidade de se chegar
ao Esclarecimento mediante uma jurisdiciação que leva o ser racional a
uma moralização, pois a norma positivada tem dois conteúdos: objetivo e
subjetivo. O Direito, nessa perspectiva, atua como instância moralizadora.
Por fim, pudemos perceber na Filosofia Moral kantiana que existem
argumentos suficientes para a necessidade do Direito, mesmo numa socie-
dade plenamente moralizada.
Primeiramente porque o Reino dos Fins é historicamente intangível,
apesar de logicamente possível.
Em segundo lugar, porque o Reino dos Fins é constituído por ho-
mens limitados que não agem por uma vontade totalmente boa, ou seja,
sempre haverá conflito de interesses em que o Direito servirá de mediação
entre esses arbítrios, para limitar a liberdade individual segundo uma lei
universal da liberdade, compreendida como liberdade coletiva, ou seja, a
liberdade de um sendo limitada pela liberdade do outro.
Em terceiro lugar, porque existe a tendência natural de se desfazer tal
comunidade jurídica pela insociável sociabilidade, pois a natureza imprime,
no ser humano, a competitividade, conduzindo-o ao seu pleno desenvolvi-
mento moral pela insuportável convivência mútua. Em outras palavras, é
plenamente natural a tensão na convivência entre os seres humanos, e o Di-
reito media essa tensão de forças para evitar a aniquilação da espécie.
Por fim, temos na finitude do ser humano outro argumento para de-
monstrar que o Direito é necessário numa comunidade, mesmo que esta
esteja plenamente moralizada. Em outras palavras, é o fato de a natureza
ter dado pouco tempo de vida ao ser humano, para que a cada nova gera-
ção este possa atualizar a potência de moralidade acumulada pela geração
anterior, sendo que o Direito cumpre esse papel mediador.
Concluímos este artigo compreendendo que, apesar de não haver
nenhum exemplo empírico no qual possamos ter garantias de que a ação
tenha sido feita por dever, vimos que para Kant a humanidade caminha, em
sua história, para a moralização, pois esse é o fim último da espécie. E, por
mais que individualmente não seja perceptível o caminhar para a morali-
zação, a Filosofia Moral kantiana aponta para a condução, pela natureza,
da história, para que a espécie alcance seu fim; e o próprio Kant afirma que

358
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

pela finitude do ser humano, este poderá necessitar de um número infinito


de gerações para alcançar seu télos, que é a moralização.

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362
20
O que é justiça?

Christian Iber

Minha contribuição divide-se em duas partes. Na primeira parte,


analisarei, primeiramente, a representação geral de justiça vigente em
nossa sociedade. Aqui procedo em três momentos: inicialmente, delineio
o problema da justiça, o qual consiste no fato de que todos a desejam,
mas ninguém a alcança. Em seguida, articularei minha crítica à justi-
ça com dois exemplos, igualdade de retribuição de mérito e distribuição
equitativa. Por fim, apresento que o princípio da justiça tem sua prove-
niência do direito da sociedade capitalista de troca. Com isso, critico,
com Marx, a igualdade de tratamento dos homens e voto pela fórmula
de Marx do comunismo: “a cada um conforme suas capacidades, a cada
um conforme suas necessidades”. Na segunda parte, ocupar-me-ei com a
teoria filosófica da justiça, em que apresento, primeiramente, uma amos-
tragem de diversas definições da justiça e, por fim, discuto criticamente
a teoria da justiça de Axel Honneth.

Primeira parte: A representação corriqueira da justiça


Nota preliminar – O problema: todos desejam a justiça, mas ninguém a alcança

Trato da questão “O que é propriamente a justiça?” Para tratar da


questão da justiça não dependo, em primeira instância, de teorias filosófi-
cas da justiça, mas da representação corriqueira de justiça em nossa socie-
dade. O que é, portanto, a justiça?
Cada um tem propriamente uma representação geral daquilo que é a
justiça, mesmo que não possa torná-la explícita. Conforme essa represen-
tação, um elemento principal da justiça é que todos os homens na sociedade
são avaliados de acordo com os mesmos critérios, concluindo-se daí, portanto,
que não há nenhum tratamento especial. Quando a justiça prevalece, en-
tão tudo se equilibra. Se é assim, então o justo espera que cada um receba
aquilo que lhe compete, já que não há nenhum tratamento preferencial.
O princípio onipresente da justiça é que entre desempenho e contra-
prestação tem que existir um do ut des (eu dou para que tu dês), ou seja, na
prática a um desempenho tem que corresponder uma compensação equiva-

363
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

lente. À justiça serve de base a igualdade da troca. Quando a justiça prevale-


ce, então prevalece o equilíbrio e a harmonia, em vez de discórdia e oposição.
Também se exige justiça onde nenhuma troca é realizada; por exem-
plo, exigem-se impostos justos ou se sai em defesa de penas justas. Mas,
impostos não são desempenhos aos quais correspondem contraprestações,
mas contribuições obrigatórias para com o Estado. Da mesma forma, exi-
gem-se penas justas para criminosos, como se o crime tivesse seu preço.
A justiça é simbolizada por Justitia. Essa figura oriunda da mitologia
romana personifica a justiça. Justitia é apresentada como uma mulher com
uma venda nos olhos, segurando uma balança com dois pratos na mão es-
querda. Essa balança representa o equilíbrio. E, nesses pratos da balança,
tudo se pesa. Justitia é uma instância imparcial. Para garantir a imparcia-
lidade, tem-se a venda. Ela significa que a justiça é pesada e administrada
sem acepção de partidos. Na mão direita, ela segura a espada, simbolizan-
do que a sentença é imposta com a rigidez que é necessária.
O problema é o seguinte: todos desejam a justiça, mas ninguém a
alcança. Como isso deve ser compreendido?

1. Onde quer que se levante uma crítica em nossa sociedade, ela ocor-
re em nome da justiça, cuja ausência é sentida. Muitos empregados acham
injustas as renumerações exorbitantes dos gestores. A maioria dos quadros
executivos tomam essa reclamação por injusta, porque eles, de fato, seriam
os responsáveis pela economia expressa no lucro das empresas; que eles,
portanto, merecem a remuneração que recebem. Pessoas idosas avaliam os
cortes nas pensões que recebem do governo como uma injustiça, porque elas
se veem enganadas com relação ao rendimento do trabalho realizado ao lon-
go da sua vida e de suas contribuições aos fundos de pensões. Muitos jovens
tomam esses cortes por um imperativo da justiça, porque o Estado lhes pede
sempre descontos maiores da sua renda para a aposentadoria dos idosos. No
Brasil, a classe média se queixa de que é injusto que ela tenha que suportar
todo o imposto do Estado e, então, o dinheiro é gasto em programas sociais
para os pobres, enquanto nas favelas os pobres lamentam que na distribui-
ção da renda eles sejam os últimos a serem considerados.
2. Se, então, críticos que se veem prejudicados nos seus interesses se
tornam praticamente ativos e levantam exigências, isso se sucede de novo
em nome da justiça que deveria ser imposta. As classes menos favoreci-
das são fortemente penalizadas com a ocorrência da crise financeira, os
grandes escapam relativamente ilesos – assim os sindicatos e os grupos de
esquerda os veem e se manifestam a favor de uma redistribuição, quer di-
zer, por uma distribuição honesta dos ônus entre pobres e ricos. De modo
algum se ambiciona alguma vantagem a mais. Em vez disso, negocia-se o

364
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

equilíbrio adequado das perdas que se está disposto a admitir. A justiça pare-
ce, portanto, estar acima do próprio interesse: o próprio prejuízo se torna
tolerável quando o prejuízo alheio é aumentado um pouco.
3. Isso já é esquisito: o que para uma pessoa é justo, para outra é in-
justo, e a boca do povo sabe, também, que a efetivação da justiça se iguala
à quadratura do círculo: “Fazer justiça a todos os homens é uma arte que
ninguém alcança”. Todos querem o mesmo, a justiça, e, todavia, eles estão
incessantemente em um litígio a esse respeito, isto é, sobre aquilo que
constitui o conteúdo da justiça. O que torna a justiça tão flexível, a tal
ponto que ela preste à legitimação de objetivos tão diversos, quando não
opostos? O que a torna tão atrativa se, de fato, todos se zangam com isso,
isto é, com aquilo que a constitui? Em todo caso, vale dizer: prende-se na
justiça como princípio válido. Ninguém chega a pensar que se não se pode
entrar em comum acordo sobre a justiça, que se tente, então, com a injus-
tiça. A injustiça ninguém quer.
4. Antecipado seja o seguinte: a justiça é uma representação moral
a respeito do que cabe legitimamente a cada um em nossa sociedade, que
tem sua base real no direito, com o qual o Estado organiza a sociedade
capitalista da concorrência com seus interesses opostos. O conteúdo da
justiça e sua finalidade é a autolimitação dos interesses opostos, para que
eles possam subsistir conjuntamente. Que isso apenas pode ser o ideal ir-
realizável em uma sociedade da concorrência parece ser indeclinável.
5. Mas, não se deveria de forma alguma gastar a energia com a ques-
tão de como se chega a uma justiça proveitosa a todos. A própria justiça é
um erro, e precisamente também um erro nocivo, no qual é muito melhor
não se envolver, porque a igualdade de tratamento de indivíduos diferentes
é sempre uma desigualdade de tratamento.

Igualdade de retribuição de mérito na economia

A representação que cada um relaciona com a igualdade de retribui-


ção de mérito diz que, em toda posição na escala da renda hierarquicamente
estruturada na economia, a renda corresponde ao desempenho que é forne-
cido. Há trabalhadores que vão à fábrica e montam carros. Há gestores que
organizam esse trabalho. Há professores de Sociologia, que, na universida-
de, proferem lições sobre a justiça. Sempre é dito que o salário, que é pago
para essas atividades diferentes, corresponde ao serviço que é prestado.
Gostaria de explorar essa representação com relação aos trabalha-
dores, gestores e professores. Os conteúdos das atividades que são reali-
zadas nos diversos segmentos da sociedade são de espécie inteiramente
diferente, sim, e frequentemente de natureza oposta, o que não permite de

365
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

forma nenhuma sua comparação. Eles não são compatíveis uns com os ou-
tros. Como deve ser comparada uma hora de lição de um professor de So-
ciologia com uma hora de trabalho do trabalhador da Volkswagen (VW)?
Essas são atividades que não têm nenhum denominador comum. O único
comum efetivo delas é a forma-preço do seu rendimento. E quem defende a
ideia de igualdade de retribuição de mérito supõe, para cada desempenho,
um rendimento de dinheiro que deve justificá-lo.
A justificação da posição de que a renda corresponde ao desempe-
nho apresentado tem a lógica de um preconceito: algo diferente do desem-
penho não é, de modo algum, levado em consideração naquilo que fun-
damenta o rendimento de dinheiro. O professor universitário recebe R$
6.000,00 por mês; o trabalhador; R$ 2.000,00 para sua atividade. Então, o
desempenho do professor tem que valer três vezes mais do que o do tra-
balhador. O desempenho deve fundamentar o rendimento. A repreensão
sobre as remunerações demasiadamente altas dos gestores não desvirtua
esse princípio da justiça, mas o confirma.
Quando se trata do discurso da igualdade de retribuição de mérito,
tem-se sempre a aparência de um silogismo. Na verdade, não é inferido
de forma nenhuma do desempenho o rendimento de dinheiro, mas sim do
rendimento de dinheiro o desempenho que está por trás do rendimento.
Diz-se que o rendimento triplo do professor é condizente com um desem-
penho triplo. Isso é uma representação incorreta da igualdade de retribui-
ção de mérito. Ela não resiste, assim afirmo, a uma prova nem um segundo.
Esclareçamos o problema em dois casos distintos: (i) no salário dos
trabalhadores; e (ii) na remuneração dos gestores. Para o trabalhador é
dito que o desempenho corresponde à renda. Contudo, na verdade, para
o trabalhador é o inverso: o desempenho é a pressuposição do pagamento
do salário. Ele apenas recebe, em geral, seu salário se já prestou o serviço
para o empreendimento, portanto no fim do mês. Isso se afirma também
como exigência franca – justamente na crise se diz: agora significa de-
sempenhar mais por um salário menor. Nesse caso, a economia se põe
novamente em movimento etc. O crescimento capitalista do dinheiro se
baseia no desempenho, e precisamente vale o princípio de que para o má-
ximo possível de desempenho seja pago o menor salário possível. Nessa
disparidade entre o desempenho do trabalhador e seu salário pago se
baseia o lucro do empreendimento.
A forma do salário não invalida essa afirmação. Paga-se ao traba-
lhador por uma hora de trabalho; por exemplo, R$ 10,00. Mas, pagar con-
forme as horas trabalhadas não é o mesmo que remunerar o desempenho
do trabalho de uma hora. O trabalhador recebe R$ 10,00 por hora, o que
quer dizer R$ 80,00 a diária. Nessa multiplicação, a mensuração de tempo

366
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

é, com efeito, objetiva. Mas, os R$ 10,00 que o trabalhador recebe por hora
estão relacionados com o rendimento do empreendimento. A equiparação
60 minutos = R$ 10,00 não é nenhuma lei objetiva, mas reside no cálculo do
empreendedor que quer, com isso, auferir um lucro. A objetividade da re-
numeração do trabalhador reside no cálculo do empreendedor, com o qual
o trabalhador nada tem a ver. No cálculo do empreendedor, o trabalhador
não tem nenhuma competência.
Entretanto, a representação da justiça do salário se conserva contun-
dentemente. Remete-se à hierarquia do salário. Há um escalonamento do sa-
lário, uma diferenciação do salário. Mas, por que exatamente isso existe? Do
desempenho do trabalhador, o empreendedor quer tirar mais rendimento de
dinheiro do que ele remunera. Por que existem diferenças de salário? Isso
tem sua origem no fato de que as empresas competem por forças de trabalho
qualificadas pagando salários mais elevados. Elas pagam, então, por exem-
plo, prêmios não inclusivos na convenção coletiva. A partir disso, o progres-
so tecnológico avança nas empresas, o que torna algumas delas supérfluas
em qualificação das forças de trabalho. À racionalização da produção nas
empresas está associada uma desqualificação das forças de trabalho, o que
tem por consequência uma desvalorização do trabalho. E, com isso, a situa-
ção dos salários elevados tem de novo um retrocesso, já que as empresas são
capazes de pagar salários menores mesmo para trabalhadores qualificados.
No capitalismo, vale o seguinte paradoxo na hierarquia do salário:
aqueles que fazem o trabalho mais pesado e mais difícil ganham muito me-
nos. Por quê? Porque é mais fácil obter forças de trabalho simples. Que os
sindicatos se reportem à hierarquia produzida pelos empreendedores de
modo afirmativo não torna a coisa melhor. Com o reconhecimento sindical
da hierarquia do salário, esta tem definitivamente subsistência. Assim os
sindicatos consideram a hierarquia do salário na seguinte frase: ao perfil
de exigência do trabalho corresponde um salário determinado.
Tomemos o outro extremo, a remuneração de gestores. Também aqui
vale o princípio: o desempenho determina a renda. Também aqui a equipa-
ração não está correta. O trabalhador ganha em um ano R$ 20.000,00. Um
gerente top de uma grande empresa ganha R$ 2.000.000,00 [dois milhões]
em um ano. Um gerente ganha, portanto, cem vezes mais do que um tra-
balhador normal. Isso é um tal aumento exponencial, que mesmo também
os gestores consideram como anormal. Não obstante, há também aqui a
tentativa de deduzir esse aumento exponencial na remuneração tirada do
desempenho. Pode-se ler nos jornais de que forma isso se dá.
Também a jornada de trabalho de um gerente tem meramente 24
horas. É a força a medida que fundamenta a diferença? O emprego de um
gerente é cem vezes maior do que o de um trabalhador normal? O gestor

367
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

é cem vezes melhor formado? Ele sabe cem vezes mais do que o trabalha-
dor? O trabalhador na VW sabe lidar com o ferro de soldar. O gerente não
sabe lidar com o ferro de soldar. O trabalhador e o gestor dispõem de áreas
de conhecimento díspares, que não são comparáveis entre si. A indicação
sobre a formação não leva a um fim. O fim que prevalece é a responsabi-
lidade. O gerente tem responsabilidade sobre mil homens, conforme se
diz. Levemos isso a sério. A enfermeira no hospital tem, todavia, também
responsabilidade sobre muitos homens, mas ela não ganha nada compará-
vel ao gestor. Os políticos também têm responsabilidade por milhões de
homens, mas não ganham o múltiplo do gestor.
Do já discutido resulta o seguinte: a partir do desempenho não se
deixa deduzir a remuneração do gestor. A fundamentação verdadeira para
a remuneração do gestor é a seguinte: o que é renumerado ao gestor é sua
função para o capital. Com a organização da exploração do trabalho, ele
cuida para que o movimento multibilionário da empresa se realize.
Resumindo: nem os trabalhadores, nem os gestores são pagos por
seu desempenho real, mas por seu desempenho ligado ao capital. Nesse
aspecto, encerra-se uma diferença. O desempenho de trabalho do traba-
lhador é a fonte para o lucro do empreendedor. O desempenho do gestor
consiste em tornar o salário do trabalhador a fonte do lucro. Isso é seu
desempenho para o capital. Ele organiza a exploração dos trabalhadores
para o capital. Para isso ele recebe, nas vendas do empreendimento, a sua
parte com alguns milhões.
Nem nos trabalhadores, nem nos gestores se deixa aplicar a repre-
sentação da igualdade de retribuição de mérito. O que essa representação,
contudo, desempenha, não é sem significado. O pensamento da justiça
com seu erro consegue transformar as posições opostas do gestor e do tra-
balhador em uma comunhão. Justifica-se uma oposição, uma hierarquia
da remuneração como se ela fosse uma coisa comunitária. Faz-se de conta
que a sociedade de classes é um exercício de colaboração. Se assim fosse,
então as diferenças do ordenado seriam absurdas. Necessárias são ambas
as atividades, a do trabalhador e daquele que organiza o trabalho. Mas, dis-
so não se conclui que eles tenham que ser remunerados de modo diferente.

Do exigir em nome da justiça e da distribuição equitativa

Aqueles que veem segundo o ponto de vista da justiça não têm uma
atitude meramente contemplativa da sociedade, mas se tornam ativos,
também, na prática. Eles não consideram tudo isso, assim, a fim de justifi-
car algo, mas a justiça é, também, um título de apelação para as exigências
dos prejudicados. Descobre-se tanta quantidade de injustiça. Por exemplo,

368
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

exige-se um salário igual para trabalhos iguais, como para homens e mu-
lheres que fazem o mesmo trabalho. Em nome da igualdade de retribuição
de mérito é exigido um reajuste do salário.
Para isso gostaria de dizer o seguinte: reportar-se à justiça é um ca-
minho inteiramente ruim se se pretende fazer algo para a melhoria de suas
condições materiais. Mas por quê? Aquele que reclama por justiça o faz,
primeiramente, porque ele se vê prejudicado em seu interesse. Faltam-lhe
meios. Para ele e suas necessidades, os meios dos quais ele dispõe são insu-
ficientes. Mas, ao mesmo tempo, ele desvia do ponto de vista do interesse
prejudicado se ele compara os seus meios com os dos outros. A diferença
dos meios em comparação a outros se torna critério.
E, então, não é mais lamentada a própria perda, mas a desvantagem,
a desvantagem em comparação a outros. Esse é um argumento perigoso.
Pois, se eu tiro de qualquer forma algo do outro, então deixa de existir o
fundamento da minha queixa. Isso não é apenas uma reflexão teórica da-
queles que exigem, mas também o método com o qual os empreendedores
enfrentam aqueles que protestam. Se em nome da justiça é exigido mais
dinheiro, vem a retaliação: em outro lugar se ganha ainda menos. Logo,
vocês têm que se contentar com aquilo que vocês recebem.
Imagine-se uma sorveteria na qual uma família com duas crianças
compra sorvete: uma criança tem uma bola de sorvete; a outra, duas. Ago-
ra é dito: isso é injusto, porque uma das crianças tem mais. Isso é um mau
argumento, porque talvez, de fato, para a outra criança uma bola de sorvete
seja suficiente, mas talvez pudessem ser oportunas, também, três bolas de
sorvete. Justiça é um procedimento ruim em que se faz justiça às neces-
sidades e interesses dos homens. Quem atua em nome da justiça nunca
alcança efetivamente um patamar de êxito.
A comprovação de que meu diagnóstico é verdadeiro está na repre-
sentação da distribuição equitativa. Na Alemanha e em outros países, todo
ano há o relatório oficial da pobreza e da riqueza do governo. Nesse rela-
tório, lamenta-se que a disparidade entre ricos e pobres aumenta por aí
afora. É efetivamente verdadeiro que a disparidade entre ricos e pobres
“aumenta por aí afora”? A disparidade entre ricos e pobres “aumenta”. As
frestas das portas do céu aumentam, e começa a chover. Isso é uma cir-
cunstância à qual se está, de fato, exposto.
Mas, não se está puramente exposto à disparidade entre ricos e po-
bres; ela nasce da ação e precisamente da contabilidade dos empreendi-
mentos capitalistas, que aumentam o seu êxito ao depauperarem outros
que eles deixam trabalhar para si. Aqueles, cuja avaliação parte do aumen-
to da disparidade entre ricos e pobres, separam a situação de sua causa.
Essa separação entre a situação e a causa tem consequências. Em nenhuma

369
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

circunstância se questiona a causa, porque existe e se mantém a dispari-


dade entre ricos e pobres. A situação é admitida como dada por natureza
se, por exemplo, é exigida uma redistribuição dos ricos aos pobres, ou uma
distribuição mais justa é minimamente ambicionada. A redistribuição dos
ricos aos pobres pressupõe uma situação ruim.
Em termos econômicos existe, aqui, um equívoco a respeito de como,
no capitalismo, a riqueza é produzida. No capitalismo, não há nenhuma
distribuição retrospectiva dos bens antes produzidos. Com esse modo de
produção já está precisamente decidido sobre a distribuição da riqueza.
Com o pagamento dos trabalhadores, cujo resultado para a empresa parte
de seu cálculo de rendimento, está decidido sobre a distribuição. Seria uma
revogação completa do sistema inteiro dizer que, no primeiro ato, é pago
o menor salário possível a fim de, então, exigir uma redistribuição num
segundo ato. Se assim fosse, já se poderia ter poupado o primeiro ato.
Os ativistas da redistribuição honesta têm levado ao extremo essa
ideia: na crise do Estado social é exigida uma distribuição do ônus a for-
tes e fracos, sobretudo pelos sindicatos e grupos de esquerda. É a redis-
tribuição uma ação racional? Contra a redistribuição falam as seguintes
reservas: no primeiro ato da crise financeira, cujas causas não quero dis-
cutir aqui, os empreendedores passaram a recuperar seus lucros na medi-
da em que eles repassaram seus ônus aos seus empregados. No segundo
ato deve ser constatado que as filas dos desempregados nos serviços de
assistência social aumentam. Então, vem o Estado, que alerta para a situ-
ação tensa do caixa social, que não gostaria de gastar mais dinheiro em
medidas sociais. Ele corta, portanto, os benefícios sociais, que, por outro
lado, sempre se tornam mais necessários.
Agora vem um movimento social que exige uma redistribuição: por
exemplo, um imposto dos mais ricos, ou seja, uma cobrança dos mais ri-
cos. Aqui o ponto de vista não é de forma nenhuma mais o de querer al-
cançar vantagem própria. Pelo contrário, negocia-se em torno da medida
justa do detrimento. Além disso, o imposto dos mais ricos não é revertido
em proveito dos pobres, mas o Estado o recebe e pode decidir livremente
sobre o que ele faz com o dinheiro. Os ativistas querem impor a certeza
de que todos são culpados. Como disse: aqui é desmentido que com o
argumento “justiça” se trate de uma vantagem material; pelo contrário,
trata-se da distribuição dos danos.
O serviço não reside no rendimento material, mas em algo ideal. Tra-
ta-se de uma satisfação moral. Se cabe a todos a ocorrência da crise, então
a solidariedade se torna um evento. Aqui a justiça não é mais um tipo qual-
quer de meio falso, uma fundamentação falsa para o próprio interesse, mas
aqui o interesse é que a justiça seja experienciada coletivamente. Trata-se
do sentir comum da justiça, em vez de reivindicar o interesse prejudicado.

370
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O princípio da justiça e sua proveniência do direito da sociedade capitalista de troca


Crítica à igualdade de tratamento

Agora gostaria de voltar a falar sobre a observação principal já anun-


ciada à justiça e sua proveniência do direito da sociedade capitalista de
troca. Nós vimos que a representação geral da justiça é de que todos são
mensurados sob os mesmos critérios. A igualdade de tratamento vale como
rótulo de excelência. Primeiramente, levanta-se a seguinte objeção lógica:
a igualdade de tratamento não significa um bom tratamento. Poder-se-ia
também decapitar todos os homens – também aí tratar-se-ia de uma igual-
dade de tratamento. O eco da expressão “igualdade” e a afirmação de que a
igualdade de tratamento seria boa não estão fundados de forma nenhuma
pelo conceito de igualdade de tratamento.
Marx critica a representação geral da justiça apresentada por mim
na Crítica ao Programa de Gotha, de 1875. Aqui Marx põe em evidência
que a igualdade de tratamento é sempre, também, uma desigualdade de
tratamento. Os socialistas daquele tempo exigiam um salário diário justo
para um trabalho diário justo, quer dizer, um salário igual para um mesmo
trabalho. Marx criticava essa exigência profundamente.
Na sua Crítica ao Programa de Gotha, Marx aponta que o direito,
“por sua natureza […], só pode consistir na aplicação de um padrão igual
de medida”.1 E conclui: “Mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam
indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos se-
gundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto
de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, como, por
exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como
trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos
são desconsiderados.” (Ibidem).
No direito, os indivíduos são mensurados em um padrão igual de
medida, em um aspecto igual. O pensamento de salário igual para um tra-
balho igual e de que essa igualdade de tratamento é, também, sempre, uma
desigualdade de tratamento pode – no núcleo – ser facilmente identifi-
cada. Pois para os pequenos e fracos, o desempenho igual é muito mais
cansativo e custoso do que para os grandes e fortes. Mas, se eu relaciono o
rendimento com meu desempenho, eu me abstraio dessas diferenças.
Tomemos um pai de família de uma família numerosa e um solteiro
como exemplo. Ambos recebem um pagamento igual para um mesmo de-
sempenho. Esse rendimento igual significa, para o estilo de vida de ambos,
algo muito desigual. Isso ocorre porque igualdade de tratamento é uma

1 Ibidem, p. 31.

371
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

abstração do indivíduo. A igualdade de tratamento significa uma abstra-


ção das diferenças dos indivíduos. Precisa-se de um aspecto igual no qual
se mensurem os indivíduos, que, contudo, são muito diferentes.
Na sociedade moderna e contemporânea, os indivíduos são consi-
derados como máquinas de desempenho, são “considerados apenas como
trabalhadores”, e todos os outros aspectos são abstraídos – como é dito
por Marx em nosso texto. Isso é o aspecto igual que é aplicado a eles.
Mas, isso é uma abstração de todas as outras determinações do indiví-
duo. Todavia, isso deve ser o padrão igual de medida, no qual os diversos
indivíduos são mensurados.
Minha afirmação é a seguinte: reclamar da justiça, da igualdade de
tratamento não é nenhum meio racional sobre o próprio interesse prejudi-
cado. Queremos nos tornar efetivamente servos dessa categoria “justiça”
para que idosos e doentes não recebam mais o que comer porque eles não
desempenham nada? Um outro exemplo: na escola, as crianças, com pres-
suposições muito desiguais, conforme sua situação social e vocação indivi-
dual, são submetidas a uma igualdade de tratamento. Todas as crianças de
uma turma têm que cursar, em um espaço de tempo predefinido, a mesma
matéria de ensino, obtendo, para isso, os resultados, as notas.
A classificação com a qual essa igualdade de tratamento das crian-
ças na escola se estabelece conduz para que as crianças sejam progressi-
vamente excluídas do saber social, porque algumas podem se apropriar
melhor, outras pior da matéria de ensino naquele espaço de tempo prede-
finido. Por meio do êxito escolar se sucede a distribuição dos adolescen-
tes na hierarquia das profissões na sociedade de classes. Há que se dizer,
portanto, que uma desigualdade de tratamento seria o modo adequado
do tratamento de homens com pressuposições diferentes no que diz res-
peito à situação social e à vocação individual, e não uma igualdade de
tratamento pura e simplesmente.

A fórmula de Marx do comunismo

Na Crítica ao Programa de Gotha, Marx formula a seguinte tese


da justiça: “a cada um conforme suas capacidades, a cada um confor-
me suas necessidades!”2 Considero essa fórmula como o único princípio
aprumado que deveria dominar socialmente. Poder-se-ia ser induzido a
vê-la, do comunismo, como uma definição da justiça. De fato, o princípio
expressa como se poderia fazer justiça efetivamente aos homens. Mas,
isso nós não compreendemos como justiça, a qual sempre tem a ver com

2 Ibidem, p. 32.

372
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

uma igualdade de tratamento. A fórmula de Marx do comunismo é, pelo


contrário, um princípio da diferença, pois trata-se do reconhecimento da
diferença dos indivíduos na sua particularidade, que teria que servir de
base a um bom tratamento dos homens.

O direito como base da representação da justiça

A partir da análise da representação da justiça, gostaria de tirar


uma conclusão: a solidez dessa ideia de que a justiça é um meio apto para
se alcançar o próprio interesse e, portanto, o fato de que essa ideia ocorra
assim contundentemente em nossa sociedade tem outras fontes. Os ho-
mens não escolheram a igualdade de tratamento, mas são passíveis a ela,
precisamente àquela do direito que o Estado moderno e contemporâneo
impõe com sua força. O direito torna verdadeiro que todos os homens
são iguais perante a lei.
Os blocos constitutivos básicos elementares dessa igualdade de tra-
tamento jurídico são os seguintes: (i) o reconhecimento da pessoa. Cada um é
reconhecido como uma vontade livre. Em nossa sociedade, não há nenhum
escravo ou servo. Cada um é uma pessoa livre. Isso é o primeiro padrão de
medida. Um outro padrão de medida é: (ii) tudo o que uma pessoa tem ou
não ela possui como propriedade. Para a atribuição da propriedade, para
que cada um tenha algo com que possa se governar, para isso o Estado,
contudo, não é competente. Ele garante apenas a propriedade como tal.
Com a propriedade juridicamente garantida, isto é, com a exclusão
da riqueza vem uma relação de extorsão no mundo. Aqueles que dispõem
da propriedade objetiva podem extorquir outros para que trabalhem para
sua propriedade, a fim de aumentá-la, se eles quiserem receber salário para
seu sustento. Essa igualdade de tratamento é posta em vigor pelo Estado.
Conta-se com vencedores e perdedores. O Estado governa a oposição social.
A finalidade dessa igualdade de tratamento pelo Estado está clara: ele quer
forçar a cooperação do capital e da força de trabalho, e precisamente disso
resulta um crescimento econômico nacional. Para isso é que o direito é pos-
to. Nesse padrão de medida, todos são medidos. Essa igualdade de tratamen-
to pelo direito os homens não escolheram para si, mas a ela são passíveis.
Os homens aceitam o direito na medida em que eles o consideram
como seu meio. Sob as condições do direito eles perseguem seus interesses
particulares. Se não alcançam êxito, então os homens tiram a conclusão de
que o direito não corresponde à sua finalidade e, portanto, não satisfaz sua
determinação. A posição de que ao direito teria que caber uma utilidade é
o ponto de partida para a representação moral da justiça. Se a utilidade do
direito falta, isso é atribuído à injustiça.

373
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Cada um que é demitido de um emprego diz precisamente que sua


própria demissão é injusta. Mas, uma demissão não é nenhuma infração pe-
nal. Todavia, é assim que alguém entende sua situação, denunciando sua de-
missão como injustiça e reivindicando o direito (inexistente) a um trabalho.
Pela sua demissão não é violado o direito real, mas sua representação do di-
reito; ele entende que seu direito incluiria sua utilidade. Essa representação
errada do direito é a fonte da queixa contra a injustiça. Há tantos interesses
prejudicados, como há tantos diversos padrões de medida para a justiça.
Uma máxima da tributação estatal reza: iguais alíquotas de imposto
são levantadas para rendas iguais. Famílias numerosas têm isso por injusto.
Construtoras de moradias consideram os subsídios para a construção de
casas pelo Estado como justos, não construtoras de moradias como injus-
tos. Não fumantes consideram os subsídios de saúde para fumantes como
totalmente injustos, porque estes, com seu pulmão intoxicado, geram mui-
tos custos aos serviços de saúde. Fumantes tomam isso como injusto, pois
eles abdicam, sim, mais cedo de suas vidas. Porque os interesses são dife-
rentes, também os padrões de medida do que é justo são muito diversos.
Conforme o interesse prejudicado, algo diferente é julgado por justo. Por-
que os interesses são opostos, também os padrões de medida para a justiça
se excluem reciprocamente e não pode haver um padrão válido de medida
para a justiça. A justiça também não pode fundar nenhuma harmonia justa-
mente porque os padrões de medida da justiça estão situados em oposição
(cruzada, em forma de quiasmo), como os interesses opostos o estão.
A justiça não serve de nada para o interesse próprio. Ela não serve
também para estabelecer harmonia e equilíbrio na sociedade. O justo é
precisamente um amador do poder, e precisamente do poder do Estado. O
justo exige o poder estatal justo contra os outros. Os interesses próprios
não são de forma nenhuma o padrão de medida para a justiça. Os justos
querem receber honrados os sacrifícios que eles fazem na medida em que
eles reclamam do Estado os sacrifícios dos outros.
Agora se sabe também porque a figura da Justitia não é apenas cega,
mas sim, também, armada, isto é, ela tem uma espada. E quem tem vizi-
nhos sabe do que estou falando.
Resumindo:

1. Todos defendem a justiça. Dependo disso para examinar se o pen-


samento da justiça é convincente. A justiça é a representação falsa de que,
nesta sociedade, o desempenho e o rendimento combinam conforme o
princípio do do ut des. O fundamento da representação da justiça é o direi-
to posto pelo Estado. Esse direito tem que ser apto para a utilidade que os
homens ambicionam. Se essa utilidade não adentra, então somente a in-

374
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

justiça pode existir. A representação moral da justiça se baseia no erro de


igualar o direito com a utilidade própria. O direito, contudo, não coincide
com a utilidade dos homens.
2. A igualdade de tratamento do Estado pelo direito tem a finalida-
de de manter as oposições sociais. As oposições são de natureza social.
Moradia, por exemplo, se decide a partir de um locador oferecendo-a para
venda, e o locatório dispondo de dinheiro suficiente para comprá-la.
3. A justiça não é um ideal a que se deveria aspirar e que mereça
ser realizado. Marx aponta que a igualdade de tratamento sempre inclui
uma desigualdade de tratamento. A sociedade deveria, pelo contrário, ser
organizada de forma que as necessidades diferentes dos indivíduos fossem
bem atendidas, as suas diferentes capacidades levadas em consideração.
Crítico, portanto, o padrão de medida da justiça. Não se trata de poder re-
alizar a justiça ou não. Parto da certeza de que a justiça também não pode,
de forma nenhuma, ser algo que se deixaria realizar, pois ela é um ideal
moral, e não uma finalidade efetiva que alguém busca em nossa sociedade.
4. Questiono de novo: o que há de mau em dizer que os homens são
desiguais, diversos? Se se olha para o vizinho, se ele tem o suficiente para
comer, então questiona-se se, de fato, ele tem o suficiente e o correto para
comer. Não se precisa de nenhum padrão igual de medida. Sou contra a
comparação. A justiça faz apenas essa comparação. Exige-se tratar todos
de modo igual. Mas, o interesse prejudicado não sofre de forma nenhuma
na diferença dos meios em comparação a outros. A própria situação não
melhora se se trata os outros ainda pior. Ao contrário, a proposição “todos
os homens são iguais” pode servir como piada. Ao representante dessa
posição, gostaria de dizer: olhe uma vez à sua volta!

Segunda parte: Para a teoria filosófica da justiça no exemplo da


teoria da justiça de Axel Honneth
Na selva das definições filosóficas da justiça

Recapitulemos: evidentemente, não há nenhuma justiça em nossa


sociedade, mas apenas a ausência desta. Pelo contrário, há tocaias de in-
justiça em toda parte e isso tem que ser combatido. A justiça é um ideal
inacessível, comparável com o pote de ouro no fim do arco-íris. Ao mesmo
tempo, justiça é uma palavra, que, na aplicação perene, deixa como he-
rança apenas pessoas frustradas. Justiça é um taco de basebol no debate
político. Injustiça, pelo contrário, é nosso dia a dia e parece inextirpável.
O conceito de justiça oferece uma selva impenetrável de definições. Ele
se deixa dividir em justiça de distribuição, justiça de gerações, justiça de meio
ambiente, justiça de sexos, justiça de troca, igualdade de retribuição de mé-

375
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

rito, ou igualdade de oportunidades. Há ainda a justiça comutativa; justiça


política; justiça jurídica; justiça subjetiva; justiça celestial e divina; e justiça
preservativa e justiça social. Desde tempos imemoráveis, filósofos cismam
com esse conceito básico da filosofia política. Eis aqui uma amostragem:
Confúcio (551-479 a.C.): “Não faça aos outros aquilo que tu não gos-
tarias que fizessem para ti”.
O filósofo chinês Mo Ti (480-360 a.C.): Justiça seria “a própria vida”,
ele diz. “Onde domina injustiça, aí está a morte”.
Platão (427-347 a.C.): “A justiça estaria alcançada naquele estado, no
qual “cada um faz o próprio e o seu”.
Aristóteles (384-322 a.C.): distingue a justiça “aritmética” da troca
e a distribuição “equitativa”. Esta não é nenhuma distribuição igualitária,
mas segue o princípio de que iguais são tratados igualmente, e desiguais,
de forma desigual. Injustiça seria a fonte de má disposição e de convulsão.
São Tomás de Aquino (ca. 1224-1274 d.C.): Justiça é uma doutrina
cristã da virtude, melhor implementada por um príncipe justo.
Immanuel Kant (1724-1804 d.C.) tinha a opinião de que justiça não
seria nenhuma virtude individual, mas o “princípio formal da possibilida-
de do estado jurídico entre os seres humanos”. Ele provém do imperativo
categórico: “aja sempre de tal modo que tu, ao mesmo tempo, possas que-
rer que a máxima da tua ação se torne uma lei universal”.
Karl Marx (1818-1883): “A cada um conforme suas capacidades, a
cada um conforme suas necessidades!”
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): A constituição do Esta-
do “é a justiça existente como efetividade da liberdade no desenvolvimento
de todas as suas determinações racionais”.
John Rawls (1921-2002): A riqueza social tem que ser governada por
quotas por todos os cidadãos. Por causa disso, todos têm que também par-
ticipar disso. Os ricos devem apenas tornar-se mais ricos se também os
mais pobres se aproveitarem disso.
Otfried Höffe (1943 - ): “A justiça consiste […] na negação do au-
tointeresse e do reconhecimento de um interesse universal definido de
modo mais preciso”.

A teoria da justiça de Axel Honneth: uma resenha crítica

Por fim, gostaria de fazer algumas considerações sobre a teoria da jus-


tiça na obra de Axel Honneth: Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade]
(2011). Partimos do seguinte raciocínio: o que é justiça? Cada um a quer, mas
ninguém a consegue. O que é justiça se todos a querem, mas ninguém a con-
segue? O que Axel Honneth tem a dizer sobre nosso problema? Antes que

376
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

eu entre de modo mais preciso na teoria da justiça de Axel Honneth, queria


dar duas indicações sobre a atualidade das teorias da justiça.

1. A questão pelo estabelecimento justo do Estado e da sociedade


tem atualidade à medida que os impactos do capitalismo se manifestam e
aprofundam mundialmente as oposições sociais. Consequentemente, tam-
bém as teorias filosóficas da justiça se colocam em primeiro plano.
2. Com referência às teorias da justiça, minha tese principal é a se-
guinte: as teorias da justiça normativas contemporâneas coincidem em
imputar às instituições sociais uma finalidade que elas não têm na efeti-
vidade. Todas as teorias da justiça se relacionam de algum modo com os
ideais da sociedade burguesa: liberdade (propriedade privada), igualdade e
solidariedade. Ou então se diz: a justiça é equivalente à liberdade (libera-
lismo), ou a justiça é equivalente à igualdade (igualitarismo), ou a justiça é
equivalente à comunidade solidária (comunitarismo). É correto que esses
ideais sejam, ao mesmo tempo, princípios da dominação do Estado de di-
reito democrático moderno e contemporâneo. Contudo, eles apenas se tor-
nam princípios da justiça com a transformação dos princípios postos esta-
talmente em princípios morais sem validade, mas meramente “desejáveis”.
A partir daqui torna-se possível dar uma apresentação crítica de diversas
teorias contemporâneas da justiça.3
Voltemos a falar agora da teoria da justiça de Axel Honneth:

1. Para Axel Honneth, a justiça não é equivalente à igualdade, mas à


liberdade. Diferentemente de Nancy Fraser, Honneth pleiteia para o reco-
nhecimento em vez de uma redistribuição de bens materiais.4 O objeto da
teoria da justiça não é mais a redistribuição dos bens básicos para corrigir
a desigualdade social, mas sim o reconhecimento da liberdade. Isso combi-
na com o espírito do neoliberalismo e com a reforma do Estado social. Não
obstante, Honneth tem a reputação de ser de esquerda. Contudo, sobressai
que ele não se envolve numa crítica do capitalismo.
2. O princípio normativo da justiça de Honneth é o reconheci-
mento mútuo como forma da geração social da liberdade. Ele afirma o
conceito de justiça normativo, o direito da liberdade, como finalidade
comum válida nos diversos “sistemas de funções” da sociedade e quer,
com isso, chegar aos resultados concretos do conceito de justiça. À di-
ferença das teorias abstratas normativas da justiça, como, por exemplo,

3 O panorama aproveitável e crítico sobre as teorias atuais da justiça dão: DAHME, H. J.; WOHLFAHRT, N. Ungleich
gerecht? Kritik moderner Gerechtigkeitsdiskurse und ihrer theoretischen Grundlagen [Desigual justo? Crítica aos
discursos modernos e contemporâneos da justiça e seus fundamentos teóricos]. Hamburg: VSA Verlag, 2012.
4 Cf. FRASER, N.; HONNETH, A. Umverteilung oder Anerkennung? Eine politisch-philosophische Kontroverse
[Redistribuição ou reconhecimento? Uma controvérsia político-filosófica]. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2003, p. 7.

377
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

a teoria da justiça de John Rawls, Honneth gostaria de reencontrar uma


conexão com a realidade social.
3. Para isso, deve ser dito o seguinte: na sociedade moderna e contem-
porânea da concorrência não existe de forma alguma a finalidade comum de
se reconhecer mutuamente como pessoas. Pois os indivíduos como proprie-
tários privados estão em uma oposição fundamental um ao outro. Por-
que na concorrência os indivíduos estão em uma oposição social um ao
outro, o Estado, com seu direito, tem que forçar o reconhecimento mútuo das
pessoas. Sobre esse estado de coisas Honneth não dá nenhuma indicação.
Com certeza, é correto que haja lutas pelo reconhecimento, não porque
o reconhecimento seria uma finalidade comum da sociedade moderna
e contemporânea, mas porque uma posição social apenas pode fazer-se
valer como legítima pela luta do reconhecimento moral de outros e, por
fim, pelo reconhecimento do Estado.
4. Conforme as formas do reconhecimento, Honneth distingue di-
versas formas da liberdade. Se eu vejo corretamente, são cinco formas
da liberdade: a liberdade jurídica, a pessoal, a moral, a social e a política.
Nesse caso, ele sempre parte da relação de um indivíduo para com outro
indivíduo social, de um “nós” social global como sujeito e fundamento do
desdobramento da liberdade e, com isso, da justiça.
Com Hegel e Durkheim, Honneth distingue três esferas diferentes
da realização da liberdade: a esfera das relações pessoais (família), a esfera
da economia e a da política. Nesse caso, vale como regra geral que a norma
do reconhecimento constituído pelo direito coloca a família, a economia e
a política em um curso inexorável no progresso da modernidade e da con-
temporaneidade. Com efeito, há retrocessos, mas em princípio o progres-
so é irresistível. Em princípio tudo está em ordem. Cada estado de coisas
social que Honneth considera assume a figura do material da norma do
reconhecimento e seu desdobramento.
– A peculiaridade da família moderna não consiste, como Honneth
supõe, no reconhecimento intersubjetivo das pessoas que se amam reci-
procamente, mas sim na configuração juridificada de um relacionamento
afetivo funcionalizado pelo Estado. Sem dúvida, Honneth percebeu que
a ausência de cuidado e amor dos pais para com seus filhos não pode ser
resolvida pelas intervenções jurídicas do Estado.
– Honneth também desconhece a peculiaridade da economia capita-
lista. Nela não se trata de relações de reconhecimento, mas de relações de
utilização e subordinação que jamais teriam existência real no mundo sem
a garantia estatal da propriedade privada. O sentido e o objetivo da análise
normativa do mundo do trabalho de Honneth são sobre sua elevação moral
como meio principalmente apto de um equilíbrio de interesses do trabalho as-

378
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

salariado e do capital. Naturalmente Honneth repara que isso não se realiza


na efetividade. Então, tanto mais vale a afirmação normativa que o mundo
do trabalho teria que tratar disso. Dessa maneira, o moralismo afirmativo
de Honneth (o mundo do trabalho já está estruturado de modo muito har-
mônico) se torna um antineoliberalismo apoiado por um hegelianismo de
esquerda (mas sem redistribuição social).
5. Seu caminho de Hegel a Durkheim, omitindo de Marx, não é por aca-
so. A análise de Marx das posições políticas e econômicas de finalidade no ca-
pitalismo não diz nada para Honneth. Marx não combina simplesmente com
o design teórico que elogia o capitalismo organizado democraticamente como
projeto do esclarecimento da modernidade e da contemporaneidade.
6. A teoria da justiça de Honneth é, no fundo, uma filosofia da histó-
ria teleológica que está na sequência de Hegel. Ele transfere a fórmula re-
lacionada ao mercado por Adam Smith da “astúcia da razão” operante por
detrás no Estado de direito democrático. Com seu princípio do reconhe-
cimento, este coloca com a razão astuta a história do mundo no trem na
direção do progresso e do esclarecimento. O processo de progresso ocorre
mesmo que, nesse caso, na “empiria”, se assinalem retrocessos.
7. Cada oposição social e política da sociedade capitalista é trans-
formada por Honneth em uma comunhão idealmente pensada de um para
com o outro. A “efetividade da liberdade” se desdobra aí, onde a depen-
dência mútua das pessoas privadas, que perseguem interesses opostos, é
compreendida como relação de condição e complementação mútua. Dessa
maneira, em Honneth resulta o ideal harmônico de que a realização da
liberdade própria brota pelo cooperar com outros, de modo que a expe-
riência da liberdade nunca é individual, mas apenas emerge da interação
(Habermas) de, pelo menos, dois sujeitos: a liberdade intersubjetiva. Hon-
neth desenha a imagem da efetivação da liberdade como comunidade mo-
ral ideal na medida em que ele transforma o antagonismo dos interesses
sociais em um exército de colaboração.5
Resumindo – o lema de Axel Honneth reza: para que eu me sinta
melhor neste mundo áspero, basta que eu seja reconhecido. Um pouco de
reconhecimento é preciso para cada homem, para que ele possa preencher
ativamente e com sentido seu espaço de margem da liberdade concedido
pelo direito. As mensagens da teoria da justiça de Honneth não são mui-
to mais avançadas. Mas, com essa imagem idílica do principal, isto é, do
direito à liberdade, muito está de cabeça para baixo. Em primeiro lugar,
Honneth não pode conceber de forma nenhuma que homens desdobram
seus interesses sem que isso esteja permitido por uma regra jurídica. Em

5 A moral, diz Marx, é a “comunidade ilusória” da sociedade burguesa. KARL, M.; FRIEDRICH, E. Die deutsche
Ideologie [A ideologia alemã]. In: MEW 3, p. 33.

379
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

segundo lugar, ele não vê que na sociedade de interesses privados concor-


rentes não se realiza nenhum interesse comum em reconhecer outros e que,
portanto, o Estado, com sua força jurídica, tem de forçar o reconhecimento
mútuo dos indivíduos como pessoas livres. Isso vale também para os interes-
ses de prestar ajuda a outros homens prejudicados nas suas circunstâncias
de vida. Precisa-se de uma intervenção forçada do Estado moderno (na sua
função de Estado social) na concorrência, para que a utilidade dos prejudica-
dos na figura dos trabalhadores assalariados não seja destruída.
Quem, em presença dos insucessos e das diversas formas de fracas-
sar no mundo da concorrência insiste em reclamar tão somente do reco-
nhecimento de si mesmo, desistiu do juízo e da procura pelas razões que
devem ser encontradas para o fracasso na competição. Na aspiração pelo
reconhecimento como ser humano em geral, ele executa a separação dos
seus interesses e pede compensação, reclamando para si compreensão dos
outros como ser humano. Essa separação do reconhecimento e da liberda-
de, por um lado, e dos interesses materiais, por outro, serve de base como
princípio à teoria da justiça de Axel Honneth.

Referências

DAHME, Heinz-Jürgen; WOHLFAHRT, Norbert. Ungleich gerecht? Kri-


tik moderner Gerechtigkeitsdiskurse und ihrer theoretischen Grundlagen
[Desigual justo? Crítica aos discursos modernos e contemporâneos da
justiça e seus fundamentos teóricos]. Hamburg: VSA Verlag, 2012.
FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Umverteilung oder Anerkennung?
Eine politisch-philosophische Kontroverse [Redistribuição ou reconhe-
cimento? Uma controvérsia político-filosófica]. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 2003.
HONNETH, Axel. Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade]. Berlin:
Suhrkamp-Verlag, 2011.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. Seleção, tradução e notas
Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Ru-
bens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Martorano. Apresentação de
Emir Sader. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Die deutsche Ideologie [A ideologia alemã]. In: MEW 3.
______. Werke 39 Bde., 1. Erg. Bd. In 2 Teilen, 2 Verzeichnisse. Berlin
(DDR): Dietz-Verlag, 1956ff. (= MEW).

380
21
Vaza Jato, a modernidade e a correlação entre
direito e política: o direito ainda como médium
entre sistema e mundo da vida?1

Leno Francisco Danner

Considerações iniciais

Pode-se dizer que a sociedade brasileira – das instituições para a


sociedade civil e desta para aquelas, dos sujeitos institucionalizados (par-
tidos políticos e cortes, intelectuais públicos e militares, por exemplo)
para os sujeitos não institucionalizados (lideranças religiosas, econômi-
cas e culturais e profissionais liberais, em geral, por exemplo) – vive um
momento muito problemático, cujos contornos são ainda bastante incer-
tos. Definiremos esse momento como crise e subversão do modelo de Estado
Democrático de Direito, que, como herança da modernidade-modernização
ocidental, tem pautado com mais ou menos intensidade –, mas sempre de
modo constante, progressivo, qualitativa e quantitativamente melhorado, inten-
sificado (mesmo que, em geral, vagaroso) – a constituição, a legitimação e
a dinamização de nossa vida democrática, em especial desde o período da
redemocratização, de meados da década de 1980 para cá, como consequên-
cia pedagógico-política da luta contra a Ditadura Militar e em termos de
afirmação da universalização dos direitos e da efetividade dos processos
de inclusão social, de reconhecimento cultural e de participação política
exigidos por uma democracia sólida e madura. Nesse período, como su-
gere a liderança e o intelectual indígena Ailton Krenak (que participou
como representante dos povos indígenas brasileiros na Assembleia Nacio-
nal Constituinte de 1987-1988, que deu origem ao texto normativo de 1988,
em particular, no caso dele, o Capítulo dos Índios), tivemos um consenso/
compromisso explícito e pungente entre os diferentes grupos sociais e po-
sições político-culturais acerca: (a) da centralidade do Estado Democráti-
co de Direito em termos de sua inultrapassável base imparcial, impessoal,

1 Uma primeira versão desse texto foi publicada em Veritas, Porto Alegre, v. 65, p. 34729-34747, 2020.

381
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

neutra e formal, bem como de sua sobreposição relativamente às comuni-


dades morais particulares próprias à sociedade civil; (b) do caráter basilar
da política democrática como espaço, caminho e valor fundamentais para
a resolução dos problemas sociais, de construção de pautas e de consensos
públicos e de orientação da e pela pluralidade de sujeitos sociopolíticos; e (c)
em torno da tríade direitos de primeira geração (direitos e liberdades bási-
cos), direitos de segunda geração (direitos políticos) e direitos de terceira ge-
ração (direitos sociais) (KRENAK, 2017, p. 13-15). Entretanto, como sugere,
ainda, Ailton Krenak, esse consenso entrou em crise profunda, sendo posto,
em verdade, em xeque e, conforme nosso argumento, subvertido.
No que se segue, nós interpretaremos esse fenômeno de crise e de
subversão do Estado Democrático de Direito brasileiro, um fenômeno que
pode ser percebido desde 2013 com muita intensidade, com extrema radi-
calização até, a partir da ideia de que uma das causas fundamentais dessa
desestabilização social permanente consiste no fato de que os próprios
sujeitos institucionalizados específicos aos sistemas sociais de direito
e política romperam com a base do Estado Democrático de Direito as-
sumida pela Constituição Federal de 1988, a saber, sua autonomia, sua
independência e sua sobreposição a posições pré-políticas, essencialis-
tas e naturalizadas, ou aos diferentes grupos político-culturais sediados
na sociedade civil. Ao romperem essa autonomia, essa separação e essa
sobreposição, lideranças políticas e operadores do direito destruíram os
pressupostos da imparcialidade, da impessoalidade, da neutralidade e do
formalismo metodológico-axiológico, que são a condição basilar para a
autoridade última das instituições públicas, jurídicas e políticas frente
aos sujeitos sociopolíticos sediados na sociedade civil, o que também
significa que se perdeu a segurança jurídica mínima para a prática po-
lítica cotidiana, em especial nos embates político-partidários em torno
das instituições e seus reflexos na vida social em termos de participação
política dos diferentes sujeitos sociais.
No mesmo sentido, se para muitos grupos políticos houve essa perda
de segurança jurídica que faz com que se escondam na esfera privada de
vida, para outros tal subversão do Estado Democrático de Direito encora-
jou-os a aparecerem e a se consolidarem na esfera público-política, defen-
dendo, à luz do dia e sem qualquer pudor, perspectivas fascistas e totalitá-
rias, eventualmente fanáticas, racistas e de negação das diferenças – sem
receio de qualquer punição institucional e, em muitos casos, realizando
uma leitura seletiva do direito e uma prática messiânica da política, cujo
objetivo é a destruição dos inimigos a qualquer custo por meio exatamente
dessa subversão das instituições público-políticas, de um modo geral, e do Estado
Democrático de Direito em particular. Como consequência dessa politiza-

382
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ção do direito, temos exatamente uma fragilização institucional sem fim,


que chega às raias do golpe militar (com o alto comando militar conside-
rando séria e publicamente a possibilidade de um novo AI-5, afirmando-o
explicitamente, ou ameaçando diretamente o Supremo Tribunal Federal),
que legitima sujeitos político-culturais, seja entre os partidos políticos,
seja entre indivíduos e grupos da sociedade civil, a assumir a violência
salvífica calcada em bases pré-políticas como a base de sua atuação so-
cial e institucional. Ora, essa situação é exatamente detonada, motivada
e reforçada pela atuação política de operadores públicos do direito e por
sua instrumentalização do Estado Democrático de Direito em termos de
lawfare e/como warfare permanente contra os seus inimigos, hoje a esquer-
da teórico-política e as minorias político-culturais. Democracia e direito,
aqui, com a politização e a instrumentalização do direito, se tornaram se-
cundários, um luxo, ou até um empecilho.
Nós utilizaremos como fato motivador de nossas reflexões filosófi-
cas, neste texto, o conteúdo das conversas entre membros da Operação
Lava Jato tanto do Ministério Público Federal e da Procuradoria-Geral da
República quanto da Justiça Federal, divulgadas pelo site The Intercept
Brasil. É um fato motivador que serve como ponto de partida, como pano
de fundo, por assim dizer, para a construção de um argumento filosófico
que alcança um grau maior de generalidade na medida em que sua fun-
damentação teórico-normativa se escora em desenvolvimentos contempo-
râneos da filosofia política e da Filosofia do Direito – na nossa compre-
ensão, aliás, a filosofia política e a Filosofia do Direito contemporâneas
permitem elucidar com clareza, dramaticidade e pungência esse fenômeno
de subversão do Estado Democrático de Direito brasileiro, lançando luz,
em consequência, sobre esse problema gravíssimo enfrentado por nossas
instituições público-políticas e intensificado por causa do enraizamento
público, à luz do dia e a altos brados, do fascismo (não apenas contra os ini-
migos, mas também contra as instituições). Sobre a divulgação das conver-
sas desses operadores do direito e entre eles, queremos chamar a atenção
para quatro situações importantes para a construção de nosso argumen-
to. A primeira delas, que aponta para um caráter messiânico e salvífico da
investigação judiciária, consiste em uma afirmação lapidar do trabalho de
investigação e de julgamento assumido pela Operação Lava Jato, quando
o ex-juiz Sérgio Moro fala para Deltan Dallagnol de “[…] nossa capacidade
institucional de limpar o Congresso”. Relativamente a isso, inclusive, Del-
tan, em outro momento, responde elogiosamente a Moro: “[…] seus sinais
conduzirão multidões”2. A segunda delas, mais uma vez de uma conversa
entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, que tem como foco construir uma

2 Cf.: https://theintercept.com/2019/06/12/chat-sergio-moro-deltan-dallagnol-lavajato/

383
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

denúncia em termos de ativismo explícito e de instrumentalização do direito


na qual o ex-magistrado informa de uma possível testemunha conhece-
dora de supostos crimes cometidos por familiares do ex-presidente Lula,
ao que o procurador Deltan, depois de não conseguir contatá-la por tele-
fone, responde: “[…] estou pensando em fazer uma intimação oficial até,
com base em notícia apócrifa”3. Ao que o ex-juiz acrescenta: “[…] me-
lhor formalizar, então”. A terceira delas, caracterizada pela ligação entre
o ativismo judicial e setores da imprensa que tinham como função legitimá-lo
na sociedade civil (mesmo que à revelia de provas sólidas de culpabilida-
de), consiste na discussão entre Deltan e Moro sobre as provas relativas à
acusação de lavagem de dinheiro e de corrupção passiva cometidas pelo
ex-presidente Lula em termos do recebimento do tríplex do Guarujá. Del-
tan diz: “A opinião pública é decisiva, e é um caso construído com prova
indireta e palavra de colaboradores contra um ícone […]”4. A quarta, que
mostra a politização seletiva e a aliança com lideranças políticas tradicionais,
consiste novamente em conversa entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol
em que aquele questiona este relativamente à denúncia contra possível
caixa dois de Fernando Henrique Cardoso, ao que o procurador responde
que foi um procedimento realizado “[…] para passar recado de imparciali-
dade”. E, na sequência, o ex-juiz responde, contrariado, que isso “[…] me-
lindra alguém cujo apoio é importante”5.
Utilizaremos esses quatro pressupostos apresentados por tais con-
versas – (a) caráter messiânico e salvífico do direito; (b) ativismo e instru-
mentalização do direito; (c) correlação de direito, política e moral (a partir
da busca por apoio em grupos de poder privados da sociedade civil, de
cunho pré-político, alicerçada na construção de um imaginário moral es-
pecífico relativamente à corrupção institucional e partidária pela mídia
de massas, com o objetivo de direcionar a avaliação e a ação das massas
contra a esquerda teórico-política e as minorias político-culturais); e (d)
aliança entre operadores do direito e lideranças políticas tradicionais –
como mote para colocar a filosofia política e do direito a trabalhar em
um problema que lhe interessa sobremaneira e que ela efetivamente tem
condições de dinamizar. Lembrando que o núcleo básico da filosofia po-
lítica e do direito contemporâneas, como bem mostraram John Rawls e
Jürgen Habermas, consiste em pensar sobre a justificação, a dinamização
e a vinculação social das instituições públicas de um modo geral e a partir
do Estado Democrático de Direito, em particular, depois da queda das fun-

3 Cf.: https://theintercept.com/2019/06/12/chat-sergio-moro-deltan-dallagnol-lavajato/
4 Cf.: https://theintercept.com/2019/06/09/dallagnol-duvidas-triplex-lula-telegram-petrobras/
5 Cf.: https://theintercept.com/2019/06/18/lava-jato-fingiu-investigar-fhc-apenas-para-criar-percepcao-publica-de-
imparcialidade-mas-moro-repreendeu-melindra-alguem-cujo-apoio-e-importante/

384
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

damentações essencialistas e naturalizadas enquanto fundamento público de


uma sociedade moderna, depois que deus (comunidade de crença homogê-
nea e de identidade plena) e a biologia (sentido étnico-racial da organiza-
ção social) – ambos de base pré-política – deixaram de ser os fundamentos
da ordem social e da estruturação das instituições modernas. Para eles,
essa situação, herdeira do processo de desenvolvimento e de consolidação
da modernidade-modernização ocidental, aponta para cinco características
básicas que permitem à democracia de um modo geral e ao Estado De-
mocrático de Direito em particular legitimarem-se de modo autorreferen-
cial e por seus próprios meios, sem necessidade de utilização de valores
pré-políticos ou até de voltar-se a eles como substrato e salvação para a
democracia. Essas cinco características necessárias para a democracia e
o Estado Democrático de Direito se sustentarem seriam: (a) a primeira e a
mais fundamental, a autonomia, a separação e a sobreposição dos sistemas
sociais de direito e política relativamente às posições abrangentes de mun-
do da sociedade civil e, depois, entre direito e política, com a supremacia
daquele, como base, caminho, fundamento e juiz último desta; (b) o poder
institucionalizado impessoal e o império da lei também como substratos
da vida social; (c) a universalização dos direitos e o reconhecimento do plu-
ralismo axiológico; (d) a correlação político-normativa entre instituições
e sociedade civil, delimitada pelos pressupostos acima; e (e) a cultura e a
educação democráticas calcadas na promoção da reflexividade individu-
al, do reconhecimento cultural, da participação política e do fomento do
Estado Democrático de Direito secularizado, laico e profano. Essas cinco
características dariam o tom da prossecução reflexiva da modernidade oci-
dental, que, em ambos os autores, é dinamizada pelo fato do pluralismo
(Rawls) e pela questão do pensamento pós-metafísico (Habermas), ou mes-
mo pela ideia de eticidade pós-tradicional (Honneth e Forst).
Nesse sentido, nosso argumento central no texto consiste em que a
filosofia política e do direito contemporâneas apontam exatamente para
o fato de que uma das bases fundamentais de uma democracia sólida e
madura – condição de possibilidade para toda a democracia – consiste na
segurança jurídica dos diferentes sujeitos sociopolíticos e entre eles, segu-
rança jurídica, que depende de modo direto (a) da autorreferencialidade, da
sobreposição e da autonomia do direito em relação à política partidário-
-institucional e às comunidades morais particulares próprias à sociedade
civil, bem como (b) de uma atuação imparcial, impessoal e neutra dos e
pelos operadores do direito, que, ao evitarem a politização do direito e
o ativismo judicial militante em favor deste ou daquele grupo político-
-partidário (e mesmo a sua independência em relação ao poder econômi-
co), mantêm o império das leis incontaminado pelas disputas políticas e

385
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

pelos confrontos sociais em torno das normas, das práticas e dos modelos
sociais vinculantes a uma coletividade plural. A filosofia política e a Fi-
losofia do Direito contemporâneas, portanto, nos ensinam que o fascis-
mo somente pode ser evitado pela afirmação da centralidade do Estado
Democrático de Direito enquanto o núcleo, o instrumento e o caminho
basilares da dinâmica de constituição, de disputa e de consenso em uma
sociedade democrática e por ela; e, assim, de que são os operadores do di-
reito que assumem um inultrapassável protagonismo social e institucional
em termos de guardiães e de promotores das “regras do jogo” (Norberto
Bobbio), garantindo a segurança jurídica necessária e afirmando sempre
os valores jurídico-constitucionais definidores dessa mesma estabilidade
jurídica e institucional. Quando esses operadores se politizam, o direito é
instrumentalizado e se transforma em política, permitindo a hegemonia
do fascismo e, com sua (do Estado Democrático de Direito) fragilização,
concomitantemente ao ativismo judicial enquanto partido político e mes-
sianismo moral, abre espaço para o totalitarismo. Aliás, gostaríamos de
esclarecer brevemente o sentido dos termos fascismo e totalitarismo den-
tro de um contexto democrático. Por fascismo entendemos a utilização de
bases pré-políticas (biologia e teologia) como fundamento tanto da po-
lítica quanto do direito. É importante mencionar aqui esse qualificativo:
o fascismo não compreende apenas a política enquanto dependente de
fundamentos pré-políticos e a-históricos, mas também o próprio direito. Por
totalitarismo entendemos a aplicação prático-política dessa perspectiva
fascista sempre que efetivamente um partido e governantes autoritários
tomam (e mesmo populistas) o poder e, contando com a aceitação tácita
ou implícita do judiciário e com o apoio direto do lumpemproletariado
(no nosso caso, inclusive, de camadas médias e altas da sociedade), utili-
zam as instituições estatais – e, em particular, a polícia e a inteligência de
Estado – contra a oposição política em geral.

Situando o contexto e o problema: a prossecução da


modernidade por outros meios e a relação entre direito e política

Um dos pontos fundamentais assumidos pela filosofia política e do


direito contemporâneas tanto na versão analítica (anglo-saxônica) quanto
na versão continental (alemã e francesa) consiste exatamente no conceito
de eticidade pós-tradicional –, ou pensamento pós-metafísico, ou descons-
trução, ou pós-modernidade, ou fato do pluralismo (utilizaremos esses
conceitos com o mesmo sentido, a saber, de uma prossecução crítico-re-
flexiva do conceito de modernidade ocidental, seja na sua compreensão
normativo-cultural, seja na sua dimensão institucional-material). Por eti-

386
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cidade pós-tradicional entende-se a assunção do pluralismo religioso-cul-


tural e, por conseguinte, o fim da verdade em termos metafísico-teológicos
ou essencialistas e naturalizados, ao menos quando a questão consiste em
justificar pública e politicamente normas e práticas socialmente vinculantes
para e por uma democracia, bem como a própria possibilidade de uma
ampliação universalista de uma reciprocidade igualitária, aberta, inclusiva
e participativa entre as diferenças. Nesse caso, a prossecução da moderni-
dade por outros meios implica em manter-se sua perspectiva universalista
calcada na racionalização e fomentada por ela, mas sem comprometimen-
tos essencialistas e naturalizados, sem a afirmação de uma comunidade
étnico-racial-cultural exemplar, ou de um modelo de natureza humana pri-
migênio, com caráter a-histórico como base desse mesmo universalismo.
Por conseguinte, a eticidade pós-tradicional implica em uma perspectiva
não egocêntrica e não etnocêntrica para a qual a imparcialidade, a im-
pessoalidade, a neutralidade e o formalismo metodológico-axiológico são
parâmetros-chave relativamente ao contato com o/a outro/a, considerado/a
em igual dignidade não por pertencer ao meu mundo étnico-moral, mas
por jamais ser acessado/a e enquadrado/a por este (RAWLS, 2000a, §§ 03-
04, p. 12-24; RAWLS, 2000b, p. 201-241; HABERMAS, 2002a, p. 17-41; HA-
BERMAS, 2012a, p. 384-385; RORTY, 1994, p. 379; HONNETH, 2003, p.
280; HONNETH, 2007a, p. 107-110; FORST, 2010, p. 336).
O contexto dessa pretensão antitotalitária, antifascista e antimas-
sificadora da filosofia política e do direito contemporâneas é bem claro
e pungente: trata-se de recusar a compreensão do âmbito sociocultural e
político-institucional por meio de fundamentações essencialistas e natu-
ralizadas, que possuem um cunho pré-político, pré-cultural, pré-social e
pré-histórico, isto é, que não reconhecem a politicidade, a culturalidade e
a historicidade dos valores, das práticas e dos sujeitos socialmente vincu-
lantes. Ora, fundamentos pré-políticos levam exatamente à despolitização
e à apoliticidade desse mesmo contexto social e de seus sujeitos políticos
basilares no sentido de que instituições e grupos hegemônicos podem exa-
tamente assumir tal argumento de que valores, práticas e códigos inter-
subjetivos têm como base não sua construção política e sua dinamização
social na interação, no conflito e no acordo entre os diferentes sujeitos
sociopolíticos, mas princípios que antecedem – e, por isso, determinam,
de modo férreo, como que imutável – as próprias práticas sociais e, aqui, o
protagonismo das instituições público-políticas frente à diversidade de su-
jeitos sociopolíticos (princípios, valores e práticas cuja base pré-política,
pré-cultural e pré-social, exatamente por anteceder a vida sociopolítica,
estão imunes à politização, à crítica e à transformação, não podendo ser
modificados e, ao contrário, impondo freio intransponível às diferenças,

387
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

à práxis, à política) (HABERMAS, 2012a, p. 90-142; HABERMAS, 2002b,


p. 499-500). Como dissemos logo acima, a filosofia contemporânea, de um
modo geral, e a filosofia política e do direito, em particular, são perspec-
tivas antitotalitárias, antifascistas e antimassificadoras que reconhecem
que fundamentações essencialistas e naturalizadas na política levam ao
fascismo, à violência direta contra as diferenças.
Uma vez que a filosofia política e do direito afirmam-se como po-
sições antifascistas, antitotalitárias e antimassificadoras, reconhecendo
o pluralismo religioso-cultural e, com isso, a queda das fundamentações
essencialistas e naturalizadas em termos de justificação pública, política
e institucional, sua grande pretensão, seu objetivo fundamental consiste,
de modo direto, em separar, em autonomizar política, direito e cultura de-
mocrática (esta não no sentido de etnicidade-racialidade, mas de civismo-
-patriotismo constitucional e de razoabilidade ético-política frente ao
pluralismo, utilizando termos respectivamente de Habermas e de Rawls)
relativamente à biologia, à ontoteologia (isto é, neste caso, a correlação de
metafísica-ontologia e teologia) e, aqui, à perspectiva étnico-racial (que
bebe em um misto de biologia e ontoteologia, diga-se de passagem) (RA-
WLS, 2000c, p. 261-306; RAWLS, 2003, § 03, p. 11-13; HABERMAS, 2002a,
p. 94-118). Nesse diapasão, não se trata apenas de separar e de autonomizar
política, direito e cultura democrática relativamente às fundamentações
essencialistas e naturalizadas, mas também, e fundamentalmente, de so-
brepor aquelas em relação a estas, de modo que, sempre que uma questão
pública, política e institucional entrasse em choque com princípios, valo-
res e sujeitos básicos às compreensões de mundo abrangentes, a política,
o direito e a cultura democrática teriam primazia e dariam a justificação
e a decisão finais. Inclusive, como querem Habermas, Rawls e Honneth,
a separação, a autonomização e a sobreposição da política, do direito e
da cultura democrática frente às fundamentações essencialistas e natu-
ralizadas deveria levar à consolidação, nos/as próprios/as cidadãos/ãs e nos
diversos grupos sociais, de uma mentalidade pessoal e social marcada pela
primazia seja dessa noção secularizada, profana e racional de democracia,
para a qual a separação, a autonomia e a sobreposição da política, do di-
reito e da cultura democrática seriam fundamentais, seja da consequente
centralidade nessa mesma democracia pluralista, racionalizada, seculari-
zada e profana, de uma argumentação e de valores públicos, políticos e
institucionais eles mesmos independentes das fundamentações essencia-
listas e naturalizadas. (RAWLS, 2003, p. §§ 10-11, p. 40-54; RAWLS, 2000c,
p. 134-176; HABERMAS, 2002a, p. 134-135; HONNETH, 2013, p. 377-395).
Com isso, passa para primeiro plano, na filosofia política e do direito
contemporâneas, aquela perspectiva não egocêntrica e não etnocêntrica

388
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

caracterizadora de uma noção pós-tradicional de eticidade, constituída e


dinamizada por uma postura axiológico-metodológica imparcial, impes-
soal, neutra e formal. Esta, aliás, para a filosofia política e do direito con-
temporâneas, representa tanto o estágio atual quanto a maturação nor-
mativa da evolução da modernidade em termos de passagem da filosofia
do sujeito para a filosofia da linguagem (virada linguística) em termos de
passagem de um universalismo metafísico para um universalismo pós-me-
tafísico, em termos de etnicidade-racialidade para o pluralismo, de uma
eticidade tradicional para uma eticidade pós-tradicional. (HABERMAS,
2003a, p. 17-22; HABERMAS, 2002b, p. 477-483). Qual a implicação desse
paradigma normativo da modernidade, tal como o estamos definindo aqui
em termos de imparcialidade, impessoalidade, neutralidade e formalismo
metodológico-axiológico? Sua implicação está em que sociedades com-
plexas contemporâneas, eminentemente pluralistas e marcadas por pro-
funda diferenciação e heterogeneização socioculturais e epistemológico-
-políticas, (a) precisam autonomizar política, direito e cultura democrática
relativamente às fundamentações essencialistas e naturalizadas, como já
dissemos, no sentido de que tais esferas sociais e institucionais teriam ca-
pacidade de se autojustificar e de gerar estabilização social e acordo polí-
tico sobre essa sua estruturação eminentemente jurídico-política profana
e secularizada sem necessitar de justificações e de princípios pré-políticos
(biologia e metafísica/teologia, por exemplo); (b) colocam o direito como
base dos processos de socialização e de subjetivação e, no caso, para utili-
zar um termo de Habermas, como médium entre mundo da vida (socieda-
de civil, com sua heterogeneidade, para simplificar) e sistemas sociais ou
estrutura básica da sociedade (instituições com seu caráter lógico-técnico,
para simplificar novamente); (c) exigem uma cultura público-política de
reciprocidade cívica e constitucional em que o/a outro/a é sujeito de di-
reitos iguais e possui um status igual para além e independentemente de
qualquer pertença étnica, racial, comunitária e religioso-moral; e (d), como
fecho de abóboda de tudo isso, a necessidade de argumentações e de de-
cisões apolíticas e despolitizadas, basicamente técnicas, quando a questão
é o procedimento institucional de enquadramento do campo do e pelo direito e
de sua orientação das instituições e das relações sociais de um modo mais
geral. (RAWLS, 2000a, §§ 75-76, p. 544-560; RAWLS, 2003, §§ 54-55, p. 257-
268; HABERMAS, 2003a, p. 34; HABERMAS, 2003b, p. 21-22, p. 24).
Esse último ponto é absolutamente fundamental para uma demo-
cracia contemporânea, pluralista e heterogênea que tem, nas instituições
público-políticas, de um modo geral, e no direito e na política, em parti-
cular, seu núcleo constituinte e dinamizador basilar. Nossos/as filósofos/as
contemporâneos/as, no âmbito da filosofia política e da Filosofia do Direi-

389
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

to, consideram que, quanto mais imparcial, impessoal, neutro e formal forem
os argumentos, as decisões e a atuação dos sujeitos institucionalizados
próprios ao âmbito do sistema social direito/justiça e ao âmbito do sistema
social Estado (incluindo-se, aqui, executivo e legislativo), mais a cultura
democrática é solidificada e maturada, mais ela se torna não egocêntrica
e não etnocêntrica, isto é, independentemente das fundamentações essen-
cialistas e naturalizadas e sobreposta a elas; quanto mais imparcialidade,
impessoalidade, neutralidade e formalismo em termos das instituições e
dos sujeitos próprios à esfera das instituições direito e política, mais os
cidadãos e as cidadãs, assim como os grupos sociais em geral, perceberão
que as instituições estão autonomizadas no que tange aos vieses político-
-ideológicos particulares e, por conseguinte, mais esses cidadãos, essas ci-
dadãs e esses grupos sociais afirmarão tais instituições, assim como agirão
nessa perspectiva não egocêntrica e não etnocêntrica. O grau de confiança
e de aceitação por parte dos/as cidadãos/ãs e dos diferentes grupos sociais,
relativamente às instituições público-políticas – direito e política, no nos-
so caso – e de sua separação, autonomização e sobreposição às perspecti-
vas essencialistas e naturalizadas próprias à sociedade civil, inclusive no
que se refere à própria separação entre direito e política, é proporcional,
portanto, ao grau de imparcialidade, de impessoalidade, de neutralidade
e de formalismo metodológico-axiológico das fundamentações essencia-
listas e naturalizadas e por parte destas, dos sujeitos institucionalizados
próprios aos sistemas sociais direito e política e por parte destes.
Com isso, quanto mais imparcialidade, impessoalidade, neutralida-
de e formalismo existirem por parte do sistema social direito, mais os/ãs
cidadãos/ãs e os diferentes grupos sociais perceberão o sentido impessoal,
inclusivo, participativo e igualitário do poder público e, aqui, a prerrogativa
absoluta e o caráter fundamentalmente democrático da constituição e do
Estado Democrático de Direito nela fundado e por ela dinamizado. Quanto
mais imparcialidade, impessoalidade, neutralidade e formalismo por par-
te desse mesmo Estado Democrático de Direito, mais os/as cidadãos/ãs e
os grupos sociais colocarão bem fundo dentro de seus armários privados,
escuros e empoeirados tendências fascistas, totalitárias e massificadoras,
vistas como quinquilharias velhas e imprestáveis de um passado odioso a
ser no mínimo escondido no mais profundo do porão ou desse armário da
consciência fascista (e, no máximo, combatido social, política e institucio-
nalmente por todos) e, por conseguinte, menos esses/as cidadãos/ãs e gru-
pos sociais estarão dispostos a publicamente confundirem, associarem ou
correlacionarem direito e política, política como direito, direito como políti-
ca. Dito de outra forma, o fato de o direito ser independente de fundamen-
tações essencialistas e naturalizadas, ou, para utilizar um termo de John

390
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Rawls, autônomo e sobreposto às visões abrangentes de mundo (prioridade


da justiça sobre o bem) leva a que ele possa ser a base última de validação
não apenas das relações plurais, heterogêneas e conflitivas próprias à so-
ciedade civil, maturando uma cultura democrática calcada no pluralismo e
por ele dinamizada efetivamente, mas também e principalmente enquadrar
e controlar a prática política na sua correlação de institucionalização (Es-
tado, parlamento-legislativo, partidos políticos etc., de caráter formal) e de
espontaneidade (sujeitos sociopolíticos próprios à sociedade civil, de cará-
ter informal). (RAWLS, 2003, § 57, p. 270-274; HABERMAS, 2003b, p. 186).
O que isso nos revela? Exatamente que a imparcialidade, a impesso-
alidade, a neutralidade e o formalismo metodológico-axiológico próprios
ao sistema social direito são até mais importantes e mais fundamentais
do que essa mesma perspectiva no campo do político, haja vista que, para
o bem ou para o mal, a esfera política é palco de disputas abrangentes e
pungentes entre formas de vida. Mas, veja-se bem: são sempre disputas
heterogêneas que se processam sob o signo dessa imparcialidade, dessa
impessoalidade, dessa neutralidade e desse formalismo do sistema social
direito, isto é, sob a base de uma pressuposição comum, ampla e dissemi-
nada no âmbito social, político, cultural e institucional de que o Estado De-
mocrático de Direito não assume uma base essencialista e naturalizada
em particular e nem adere a ela, sequer ele permite politização de seus
sujeitos, procedimentos e códigos internos no sentido de militância social
fora do texto constitucional e jurídico, em que o/a operador/a do direito
faria justiça pelas próprias mãos a partir do fato de que vestiria a camisa
de um time político, cultural, religioso, normativo ou ideológico (para usar
um qualificativo muito em voga hoje no Brasil) em específico. Ora, o direi-
to mantém primazia sobre a política por causa de sua autonomia e de sua
separação em relação a ela, de modo que a política construiria o direito,
mas exatamente por meio do estreito caminho normativo, das práticas e
dos valores expressos por esse mesmo direito, que acaba, ademais, sendo
fiador último do que se fez e se faz politicamente, do que se pensou e se
pensa politicamente, do que se disse e do que se diz politicamente. Aqui,
o direito não apenas estabelece o caminho e define os valores jurídico-
-políticos fundamentais para a realização da política tanto internamente
às instituições e por parte dos sujeitos institucionalizados (política formal,
para usar um termo de Habermas) quanto externamente a ela na sociedade
civil e em termos dos grupos sociopolíticos (política informal, para usar
outro termo de Habermas), senão que também representa, por meio do
controle de constitucionalidade por parte do Supremo Tribunal Federal, a
voz última a validar o que se fez politicamente. E validação tem um duplo
sentido: a instituição STF propriamente dita, que, como fecho de abóboda

391
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do Estado Democrático de Direito, analisa e decide majoritariamente e de


modo último sobre se o que se fez e faz politicamente está de acordo com a
Constituição política ou não, se é constitucional ou inconstitucional; e os
múltiplos sujeitos, institucionalizados ou não, que podem propor Argui-
ção de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) relativamente
ao que se fez e se faz política e institucionalmente. Note-se, então, que
temos uma Constituição e, por meio dela, toda uma estruturação, uma di-
nâmica e princípios garantidores das práticas e dos confrontos políticos
cotidianos, nas instituições e fora delas, e, ao fim e ao cabo, uma avalização
jurídico-constitucional última sob a forma dos tribunais, dos operadores
do direito e da dogmática jurídica em geral e do STF em particular sobre o
que se fez politicamente. O direito não apenas é o médium da política, mas
também o seu juiz último, que dá a palavra final. A sociedade política co-
meça por ele e sempre termina diretamente nele, mas exatamente porque o
direito não é política, ainda que a política, por sua parte, não seja o mesmo
que o direito (por envolver disputas sobre formas de vida e projetos amplos
de sociedade), é que tenha de andar irremediavelmente sob os caminhos
estreitos e seguir de modo estrito os princípios jurídico-constitucionais
basilares, sob a forma de ritos formais, direitos fundamentais, centralidade
das instituições e reconhecimento social, político e cultural amplo.
Conclusão: a política pode ser militante, pode tomar partido, pode
ser personalista (isto é, em relação aos sujeitos políticos que disputam na
sociedade civil e nas instituições sobre valores e práticas intersubjetiva-
mente vinculantes, estes podem ser militantes e personalistas; não as ins-
tituições público-políticas, que, delimitadas em termos do sistema social
direito, seguem sendo elas, também, imparciais, neutras, impessoais e for-
mais); mas, o direito, não. Repetimos: a política pode ter e tomar partido,
a política pode ser politizada; mas, o direito, não. É essa a condição últi-
ma para que (a) as instituições público-políticas, em particular Estado e
legislativo (e a própria escola!), tenham de assumir uma perspectiva não
personalista calcada, ademais, no respeito ao pluralismo religioso-cultural
e nos direitos fundamentais mais básicos; (b) a política na correlação de
institucionalização e espontaneidade possa seguir seu curso normal, isto
é, como disputa heterogênea por hegemonia sem descambar para a violên-
cia social e para a colonização institucional por parte de formas de vida
essencialistas e naturalizadas e sem levar, por óbvio, à implosão do Estado
Democrático de Direito; (c) as relações normativas próprias à sociedade
civil e aos múltiplos sujeitos sociais tenham sempre um freio, um limite
e uma base educativo-civilizadora em que a dignidade dos/as outros/as e
seus direitos e suas liberdades mais básicos são o fundamento comum, o
norte que nunca pode ser esquecido, abandonado ou violado.

392
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

É só por causa disso que o liberalismo político de John Rawls nega a


legitimidade da desobediência civil violenta, isto é, por causa de um proce-
dimento de justificação e de uma pretensão de atuação imparcial, neutra,
formal e impessoal das instituições público-políticas e por elas, o direito
em particular, na sua condição basilar para a constituição e a dinamiza-
ção do pluralismo político e como instituição última a validar ou não o
que se fez e faz politicamente. No mesmo diapasão, é por causa disso que
o procedimentalismo jurídico-político de Habermas, enquanto meio de
campo entre liberalismo individualista-privatista e republicanismo cole-
tivista-ativista, coloca o Estado Democrático de Direito e, nele, o processo
interno às instituições direito e Estado com suas práticas, seus valores,
seus códigos e seus técnicos autorizados como o baluarte último para a
justificação e a validação das normas e das práticas socialmente vincu-
lantes, de modo que movimentos sociais e iniciativas cidadãs próprios
à sociedade civil chegam, no máximo, às escadas do parlamento e dos
tribunais. A partir delas, eles são substituídos pelas próprias instituições,
sua dinâmica constitutiva e legitimadora interna e seus técnicos auto-
rizados. Obviamente, movimentos sociais e iniciativas cidadãs têm um
papel fundamental em termos de crítica social e de ativismo político, de
enquadramento do poder, de escolha e deliberação políticas etc., mas,
por causa do pressuposto da imparcialidade, da impessoalidade, da neutra-
lidade e do formalismo institucionais, esses mesmos movimentos sociais
e essas mesmas iniciativas cidadãs não substituem as instituições e nem
possuem a última palavra em termos de justificação, que pertence exclu-
sivamente aos sistemas sociais direito e política (RAWLS, 2000a, § 53, p.
388-395; HABERMAS, 2003b, p. 105-106).
Note-se, portanto, que é essa separação, autonomização e sobreposi-
ção às fundamentações essencialistas e naturalizadas e, como consequên-
cia, a separação, a autonomização e a sobreposição do direito em relação
à política, com a sua constituição e dinamização em termos imparciais,
impessoais, neutros e formais, que dão legitimidade para que a sociedade
civil esteja limitada pelo – e, portanto, não limite o – Estado Democrático
de Direito. É só por isso que o direito tem primazia inconteste sobre qualquer
perspectiva política assumida por grupos da sociedade civil contra esse mesmo
Estado Democrático de Direito, contra o Estado, contra o legislativo, con-
tra a cultura democrática secularizada, profana e racionalizada, contra os
direitos e as liberdades individuais. Nesse quesito, John Rawls, Jürgen Ha-
bermas e Axel Honneth sempre deixam muito claro que as perspectivas
não institucionalistas, que pressupõem não apenas o ativismo direto (este
muito válido, diga-se de passagem, para o criticismo social, o reconheci-
mento cultural, a transformação política e a práxis pedagógica), mas exata-

393
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mente um ativismo direto que minimiza, deslegitima ou pretende a subs-


tituição das instituições, não tem lugar e legitimidade em uma democracia
pelo fato de que o procedimento institucional próprio a esta correlaciona
institucionalização e espontaneidade, permitindo inclusão e participação
social, e, com isso, assume como base central a impessoalidade, a impar-
cialidade, a neutralidade e o formalismo metodológico-axiológico, não se
confundindo instituições direito e política com concepções abrangentes
de mundo. Antes, durante e depois da política plural vem como base, dinâmica
e princípio o direito imparcial, impessoal, neutro e formal. Este é o fundamento
da democracia, todo o seu fundamento, só o seu fundamento. Como reco-
nhecem os/as autores/as citados/as, entre outros/as autores/as, é uma base
pequena e frágil, daí o porquê do grande desafio, assumido pela filosofia
política e do direito contemporâneas, antifascistas, antitotalitárias e anti-
massificadoras, em encontrar justificação e estratégias metodológico-prá-
ticas que possibilitem a solidificação e a autossustentação do direito e da
política frente às fundamentações essencialistas e naturalizadas e, final-
mente, do direito em relação à política institucionalizada e não institucio-
nalizada (HABERMAS, 2003b, p. 189; HABERMAS, 2002b, p. 517; RAWLS,
2003, § 60, p. 282-288; HONNETH, 2013, p. 385-387; HONNETH, 2007a, p.
102; HONNETH, 2003, p. 277; FORST, 2010, p. 335).
A impessoalidade, a imparcialidade, a neutralidade e o formalismo
metodológico-axiológico dos sistemas sociais direito e política, portanto,
(a) evitam o fascismo, o totalitarismo e a massificação dos sistemas sociais
direito e política e por parte deles; (b) promovem o caráter impessoal das
instituições e do poder na dupla pressuposição de autonomia, separação e
independência das instituições jurídico-políticas relativamente às concep-
ções abrangentes de mundo e aos grupos políticos da sociedade civil e de
autonomia, separação e sobreposição do sistema social direito em relação
ao sistema social política; (c) enquadram a possibilidade de fascismo por
parte de grupos da sociedade civil, combatendo-a publicamente, ferozmen-
te; e, como consequência, (d) fomentam a afirmação universal de direitos e
liberdades básicos e de processos socializadores de reconhecimento amplo
e de participação-representação política inclusiva, levando a uma efetiva
educação democrática calcada nas diferenças, na diversidade. Note-se, de
todo modo, que essa utópica descrição da democracia e, nela, da centralida-
de do Estado Democrático de Direito depende da imparcialidade, da impes-
soalidade, da neutralidade e do formalismo metodológico-axiológico das
instituições público-políticas de um modo geral e do sistema social direito
em particular. Se essa barreira, base, pressuposição e procedimento falham,
então invertemos a lógica normal da democracia: passamos da correlação
instituições-sociedade-instituições para a lógica sociedade-instituições-

394
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

-sociedade. Isso é totalmente explosivo e, no nosso entender, muito peri-


goso para a estabilidade democrática, seja no âmbito da sociedade civil e,
aqui, da cultura democrática, seja no que tange à legitimidade das institui-
ções público-políticas, aos sistemas sociais direito e política.

A “Operação Lava Jato” revelada pela “Operação Vaja Jato”:


ou sobre a inversão da lógica do Estado Democrático de Direito

Para permitir a construção de nosso argumento de que é exatamente


o sentido impessoal, imparcial, neutro e formal do direito que o coloca
como a base, a dinâmica e o princípio para a constituição da vida social
e institucional, bem como para sua (instituições e sociedade civil) corre-
lação, mutualidade, reciprocidade e interdependência, além de como seu
(sociedade-instituições) baluarte último de justificação (o direito vem an-
tes, acontece durante e aparece depois da política, como base, dinâmica
e juiz dela), simplificaremos a dialética social da pluralidade de sujeitos
sociopolíticos e por ela em termos de relação entre instituições e socieda-
de civil, afirmando que, no contexto de uma democracia contemporânea
marcada pela centralidade do Estado Democrático de Direito, pela hetero-
geneidade de sujeitos sociais, políticos e culturais e tendo como fundamen-
to a universalização de direitos e liberdades básicos (direitos de primeira,
segunda e terceira gerações, aliás), podem ser percebidas duas dinâmicas
fundamentais de compreensão do papel da política democrática (entendi-
da em sentido amplo como disputa sobre formas de vida privilegiadas a
serem impostas socialmente via instituições público-políticas) em luta por
hegemonia. A primeira delas, que chamaremos de modelo legal, é definida
exatamente por esse quadro básico e idealizado que delineamos no primei-
ro capítulo, a saber, a relação instituições-sociedade-instituições, que é o
mesmo que a relação direito-política-direito, ou direito-moral(is)-direito.
A segunda delas, que vamos chamar aqui de modelo fascista, consiste na re-
lação sociedade-instituições-sociedade, que é o mesmo que a relação polí-
tica-direito-política, ou moral(como política)-direito-moral(como política).
No primeiro caso, como fizemos ver acima e como nos permitimos
repetir mais uma vez, a democracia é vista como o poder impessoal das
instituições e, portanto, como o império da lei enquanto seu substrato,
seu princípio e seu movimento mais fundamentais. As instituições são a
base a partir da qual a vida social, nas suas múltiplas dimensões, acontece,
se constitui; e são, também, o sujeito último a partir do qual as posições
políticas heterogêneas e as diferentes reivindicações sociais são temati-
zadas, negociadas e avalizadas ou não. No mesmo diapasão, seu procedi-
mentalismo interno e o conjunto dos princípios, das práticas e dos valores

395
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

colocados como ponte entre essas instituições públicas e a sociedade civil


afirmam-se como o caminho e a dinâmica de qualquer ativismo político-
-cultural que tem como objetivo influir na constituição das instituições
e em seu contato com a sociedade civil. É importante notar, em relação a
isso, que tal procedimentalismo implica em que a influenciação deva ser
em nome da universalização dos direitos e das liberdades básicos e da efe-
tividade dos processos de reconhecimento cultural e de inclusão social,
e nunca o contrário. Não se pode usar o Estado Democrático de Direito
contra o pluralismo e a dignidade humana própria a cada indivíduo e gru-
po social, isto é, não se pode usar o Estado Democrático de Direito contra
o próprio Estado de Direito. Esse caminho totalitário está vedado, só nos
restando avançar para o melhor e com comportamentos e atitudes melho-
res, falando metaforicamente – não se pode tolerar ou voltar ao fascismo
na democracia, uma vez que a razão de ser do fascismo é exatamente o
fim da democracia, a antidemocracia. Note-se, aqui, que esse modelo de
sociedade democrática, marcado pela correlação de universalização dos
direitos e das liberdades básicas e de processos amplos de reconhecimen-
to cultural e de representação/participação sociopolítica, tem exatamen-
te no caráter impessoal das instituições e do poder público e no império
da lei o norte, a bússola, bem como a dinâmica e o princípio básicos de
orientação para todos/as e por todos/as. Nesse sentido, tudo pode ser feito,
dito e justificado na democracia quando pensamos na política cotidiana,
nas instituições público-políticas e nos valores e nas práticas socialmente
vinculantes impostos desde a política institucionalizada, mas exatamente
desde a centralidade da impessoalidade das instituições e do caráter basilar do
império da lei, com as argumentações, as práticas e as justificações consequentes.
Essa sua impessoalidade imposta pela universalização dos direitos e das li-
berdades básicas e pelo reconhecimento sociocultural, determinada ainda
pela necessidade de efetividade de processos consistentes de inclusão so-
cial e pela participação política abrangente do amplo público de cidadãos/
ãs e grupos sociais, é exigência inultrapassável e, por causa disso, coloca
o/a legislador/a democrático/a – isto é, todos/as nós, sujeitos instituciona-
lizados/formais e/ou sujeitos não institucionalizados/informais indistinta-
mente – na obrigação de, publicamente, em termos de esfera pública e no
contexto das instituições, assumirmos esse sentido impessoal do poder,
utilizarmos argumentos genéricos que servem para todos/as e que têm a
todos/as em igual consideração e assumirmos um compromisso férreo com
o império das leis. No caso das instituições públicas, aliás, esse compro-
misso é até mais estrito, posto que elas não apenas precisam assumir esses
três pressupostos – sentido impessoal, igual consideração por todos/as e
compromisso com o império da lei – em termos público-políticos, frente à

396
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

sociedade civil em geral, mas também, e de modo fundamental, internamente


a si mesmas. Não são apenas a argumentação e as práticas que vemos e
ouvimos na esfera pública por parte das instituições jurídico-políticas e
de seus técnicos que queremos que sejam imparciais, neutras, impessoais e
formais, assumindo a mais absoluta juridicidade possível; também quere-
mos que o devido processo legal, a diferença entre acusação, julgamento
e defesa, com a consequente paridade de armas, sigam o estrito rito legal,
assumam esse sentido procedimental em que a lei é a base, o caminho e o
valor últimos, garantindo que todos/as sejamos efetivamente iguais e, no
caso, que as instituições público-políticas estejam imunes, autônomas e
sobrepostas às posições de mundo próprias somente à sociedade civil – a
igualdade e a dignidade dos sujeitos sociopolíticos frente às instituições
se funda em que estas sejam imparciais, neutras, impessoais e formais pu-
blicamente a partir de suas manifestações públicas e em seu trabalho in-
terno, que não podemos ver e nem ouvir. Na verdade, além da igualdade e
da dignidade próprias a cada sujeito sociopolítico, é também a sua própria
segurança/integridade tanto frente às instituições e aos sujeitos institucio-
nalizados quanto frente aos demais membros da sociedade civil que depen-
de dessa lisura interna as instituições jurídico-políticas. Queremos, portanto,
que também aquilo que não vemos, não ouvimos e não temos acesso no
interior das instituições públicas, jurídicas e políticas se dê sob o signo da
imparcialidade, da impessoalidade e da neutralidade – instituições públi-
cas, em particular o judiciário e os órgãos públicos de controle, não podem
ter partido político e nem ser obviamente partidistas.
No modelo legal de compreensão da democracia, portanto, o direi-
to é a base, o caminho, o princípio e o juiz final da política, da moral, da
sociedade, em geral. Aliás, entendemos de modo genérico, neste texto,
por sociedade a pluralidade das formas de vida e dos grupos sociopolíti-
cos em conflito e contraposição, unidos em torno de instituições sociais
comuns (como o Estado, o direito, a política, a língua etc.); as instituições
jurídico-políticas se situam dentro desse grande contexto social, cultural
e político, mas se diferenciam enquanto estruturas formais, impessoais,
imparciais e neutras de poder (pelo menos no que tange a uma sociedade
democrática, que é nosso pano de fundo, aqui). É por isso que dissemos, a
propósito, que o direito é a base, o caminho, o princípio e o juiz final da
política em particular, das morais próprias à sociedade civil de um modo
geral. De fato, a grande herança do longo e disperso processo histórico-
-político de construção das democracias ocidentais (tal como aparece em
nossas teorias políticas exemplares), começando com os confrontos entre
religião e política que levaram à consolidação do liberalismo político em
suas múltiplas variantes, calcadas no sentido basilar dos direitos indivi-

397
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

duais e na importância pública da tolerância religiosa (RAWLS, 2000b,


p. 201-241; RAWLS, 2000c, p. 45-90), passando pelo confronto entre li-
beralismo e socialismo-trabalhismo, que instituíram gradativamente a
correlação de direitos individuais, direitos políticos e direitos sociais,
inclusive a partir da intersecção de capital e trabalho sob a forma de
democracias de massa geridas em termos mais ou menos aproximados
por um modelo de Estado de bem-estar social (HABERMAS, 2012b, p.
625-630; HABERMAS, 2003b, p. 137-153), passando ainda à questão dos
totalitarismos e dos processos de descolonização ao longo do século XX
(ARENDT, 1989, p. 339-532; MBEMBE, 2014, p. 255-298) e chegando-se
à centralidade do pluralismo nas sociedades contemporâneas e à aproxi-
mação entre realidades locais e globais (HALL, 1997, p. 15-45), com todas
as consequentes lutas por reconhecimento dali detonadas (HONNETH,
2007b, p. 62-65, HONNETH, 2003, p. 258; TAYLOR, 2014, p. 249), as socie-
dades democráticas aprenderam e consolidaram essa percepção de que o
poder institucional precisa se separar, se autonomizar e se sobrepor aos
poderes particulares dos diferentes sujeitos e grupos sociais. Nesse caso,
a constituição, a legitimação e a aplicação prático-política dos poderes
institucionais, dentro das instituições e fora delas, na sociedade civil,
deveriam adquirir outra dinâmica e outra base quando comparadas com
o tipo de constituição, legitimação e aplicação dos poderes particulares
assumidos e dinamizados pelos grupos sociopolíticos particulares (HA-
BERMAS, 2002, p. 134-135; RAWLS, 2003, § 47, p. 216-223).
As características mais importantes dos poderes particulares assu-
midos pelos diferentes grupos da sociedade civil (grupos religiosos, cul-
turais, políticos e econômicos), em particular os fascistas, são exatamente
seu caráter pessoal, sua centralização e fechamento, seu hesitante reco-
nhecimento das diferenças e do pluralismo e, finalmente, mas não menos
importante (posto que é seu fecho de abóboda), a minimização do caráter
basilar das instituições públicas e a busca incessante pela imposição da
própria posição particular como um modelo universal tanto para as insti-
tuições públicas quanto para o público heterogêneo e plural dos/as cida-
dãos/ãs e dos grupos sociais (RANCIÈRE, 2014, p. 23-42; VATTIMO, 2009,
p. 19-30). Note-se, portanto, que o poder institucional ou público, em uma
sociedade democrática, deve diferenciar-se de modo direto e explícito re-
lativamente aos poderes privados calcados em bases pré-políticas, seja no
seu contato com os diferentes grupos na sociedade civil, seja internamente
às próprias instituições e em termos de seu procedimentalismo interno e
de seus operadores técnicos. Se o poder privado é um poder fechado, cal-
cado em uma base essencialista e naturalizada, de cunho pré-político, não
necessitado nem de justificação pública e nem de obediência a estritas re-

398
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

gras técnicas baseadas na impessoalidade, na imparcialidade, na neutrali-


dade e no formalismo, como dissemos, e se o dono do poder privado exerce
uma liderança personalista e uma imposição cega (cega no sentido de que,
para ele, não há diálogo público acerca da justificação da posição pessoal e,
portanto, de que há uma aplicação direta, não mediada, dessa sua posição
pessoal sobre a pluralidade como um todo, em que a política é subsumida
e precedida pela moral pessoal, pela autoridade pessoal da comunidade
privada), o poder institucional em uma democracia, por sua vez, precisa
ser aberto à pluralidade em termos de reconhecimento e participação, pre-
cisa ser impessoal no que tange à sua justificação e aos valores internos
e precisa estar dinamizado por um processo permanente de justificação.
Da mesma forma, as lideranças democráticas que assumem um papel de
ativismo político da sociedade civil para as instituições e das instituições para
a sociedade civil têm de se comprometer com um pressuposto básico que é
a condição sem a qual a democracia não tem vez, a saber, de que, no seu
trabalho público, não assumirão uma perspectiva pré-política como base
da política. Na democracia, por conseguinte, o poder jurídico-político é
independente das morais particulares, ou, para usar um termo que estamos
desenvolvendo aqui, o poder jurídico-político é autônomo, independente e
sobreposto às bases pré-políticas, pré-sociais, pré-culturais e pré-históri-
cas que dinamizam os poderes privados próprios à sociedade civil. O poder
político é totalmente político, não tem nada pré-político nele, ele não tem
condições de encontrar e nem de assumir um fundamento essencialista e
naturalizado (em termos de condição pré-cultural, pré-social e, portanto,
pré-política), senão que se constitui exatamente na práxis da pluralidade
sobre si mesma e por si mesma, mediada, como estamos afirmando, pela
centralidade das instituições de um modo geral e do Estado Democrático
de Direito em particular. Com isso, conforme o estamos enfatizando, o po-
der jurídico-político não pode ser instrumentalizado para fins de hegemo-
nia de grupos de crença particulares (e nem instrumentalizar esses grupos
para seus fins político-morais, isto é, enquanto desvirtuação do próprio
direito), senão que sempre deve manter um grande distanciamento fren-
te às perspectivas de mundo pré-políticas, o que também significa que os
líderes políticos e os operadores do direito sabem e querem diferenciar
posições de mundo particulares relativamente à constituição e à atuação
das instituições direito e política e por elas.
Como dissemos na primeira parte, a estabilidade social e o respeito
às instituições só existem e só se sustentam por meio da autonomia, da separa-
ção e da sobreposição do direito, da política e da cultura democrática frente
às posições de mundo particulares, de cunho pré-político. Essa indepen-
dência, que leva também à sobreposição das instituições sobre a sociedade

399
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

civil depende, portanto, da imparcialidade, da impessoalidade, da neutra-


lidade e do formalismo jurídico-político das instituições e por elas, dos
sujeitos institucionalizados e por eles, uma vez que o fecho de abóboda da
universalização dos direitos e das liberdades básicos e do reconhecimen-
to do pluralismo cultural próprios a uma democracia consiste exatamente
na impessoalidade do poder e na imparcialidade-neutralidade das insti-
tuições, que dão, garantem e fiscalizam a segurança jurídica necessária
para as lutas sociais cotidianas próprias a uma democracia. A queda das
fundamentações essencialistas e naturalizadas, de caráter pré-político,
enquanto base da vida pública, política e institucional, por meio da uni-
versalização dos direitos e da consolidação do pluralismo próprios, não
por acaso, a uma sociedade racionalizada, secularizada e profana, conduz
diretamente ao caminho de um institucionalismo técnico, em que o direito
tem precedência sobre a política e a moral e as perpassa, dando a última
palavra sobre elas. Essa independência, essa autonomia e essa sobreposi-
ção do direito e da política relativamente às perspectivas pré-políticas ou
privatistas implica em que as divergências, as contradições, as lutas, as
diferenciações e todo e qualquer acordo possível tenham um fundamento
último a quem recorrer e um caminho, práticas e valores estruturantes a partir
dos quais são dinamizados, que é o direito e, por meio dele, a política.
Nesse sentido, quando o sentido técnico do direito é contaminado por
bases pré-políticas, isto é, por perspectivas morais e visões abrangentes
de mundo próprias à sociedade civil, essa base última e esse caminho,
esses valores e essas práticas impessoais, imparciais e neutras deixam de
ter validade e vinculação não apenas para as instituições, seus técnicos e
seu procedimentalismo internos, mas também para os diferentes grupos
da sociedade civil. Nessa condição de base última, de caminho, valor e
prática para a disputa entre a pluralidade de sujeitos sociopolíticos, o di-
reito e a política se tornam instrumento, subordinando-se a perspectivas
pré-políticas de caráter essencialista e naturalizado.
Aqui emerge o modelo fascista de compreensão dos sistemas sociais
direito e política e de sua relação com a sociedade civil. Conforme de-
finimos brevemente ao longo do texto, no modelo fascista, que constitui
uma subversão do modelo legal de democracia que apresentamos e de-
senvolvemos, a relação de poder básica consiste no seguinte: sociedade-
-direito-sociedade, ou, o que é o mesmo, política-direito-política, moral-
-direito-moral. Nesse modelo, portanto, o direito e a política, enquanto
instituições, enquanto códigos abrangentes de regulação de uma coletivi-
dade democrática pluralista são subordinados a perspectivas pré-políticas
de mundo, a posições moralizantes da vida social e, com isso, a fundamen-
tações essencialistas e naturalizadas para as quais as instituições públi-

400
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cas são construídas com base em tradições étnico-raciais e em modelos


virtuosos de natureza humana que antecedem e, por isso, determinam não
apenas a construção, a legitimação e a dinâmica de funcionamento dessas
instituições, com sua vinculação pública, mas também o modo como elas
enquadram e permitem a própria diferença. No fascismo, portanto, (a) os
direitos e as liberdades básicos e os processos de crítica social, participa-
ção política e reconhecimento cultural são subordinados à consecução da-
quele ideal pré-político e podem ser violados pelo Estado e pelo direito, ou
por grupos da sociedade civil, sempre que minimizam, fragilizam ou põem
em segundo plano aquela base essencialista e naturalizada; e (b) o Estado e
o direito devem se comprometer com a promoção de formas de vida exem-
plares, e sua dinâmica interna de funcionamento tem de ser orientada por
esses valores e mesmo para sua consecução. Aqui, não apenas não há in-
dependência e autonomia das instituições relativamente a grupos sociopo-
líticos e a fundamentações essencialistas e naturalizadas vistas como pri-
vilegiadas (posto serem hegemônicas socialmente, por assim dizer), senão
que essas mesmas instituições também precisam responder a esses anseios
e condições pré-políticas hegemônicas como condição de sua legitimida-
de, como sua razão de ser mais profunda – o que o povo quer, o direito e a
política devem fazer, custe o que custar, ainda que a vontade do povo, este
ente coletivo uniforme, autoconsciente e marcado por unidade de pensa-
mento e de vontade (na compreensão fascista, o que evidentemente é uma
fantasia), signifique a supressão da tecnicalidade própria ao direito e da
abertura assumida pela política e nelas implique.
No modelo fascista da democracia, o direito não é o fundamento úl-
timo, nem penúltimo, seja das instituições público-políticas, seja da so-
ciedade civil de um modo mais geral. É apenas um instrumento para que
sujeitos sociopolíticos e formas de vida normativo-culturais possam apli-
car à sociedade, de modo aparentemente civilizado, ideias morais uniformes,
obediência e aclimatação generalizadas e legitimação intersubjetiva vincu-
lante que se fundam e se dinamizam exatamente como a força de um grupo
de poder privado sobre a pluralidade como um todo. Por isso, no modelo
fascista de democracia, não temos um árbitro último ao qual recorrer, pos-
to que os poderes jurídico-políticos que existem tomam partido direto e
explícito em bases e em valores pré-políticos que não apenas carecem da
possibilidade de discussão e de politização, senão que também já promo-
vem um ideal de vida e uma posição político-moral prévias. Aqui, somente
o maniqueísmo amigo-inimigo ou normal-anormal e natural-antinatural,
ordem-desordem, ou cidadão de bem e bandido são a tônica da vida social,
não havendo mediações e, portanto, não havendo nem interação política,
nem crítica social e nem reconhecimento cultural incisivo. Nessa situação,

401
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

não há segurança jurídica e limitação política – entramos no âmbito do ili-


mitado, da possibilidade absoluta de se fazer qualquer coisa jurídica e po-
liticamente em nome da moral e dos bons costumes, em nome de um ideal
de justiça que subsume e que visa combater não apenas nossas imperfei-
ções, mas também nossos direitos e os direitos dos outros. No modelo fas-
cista, (a) tudo está liberado politicamente para proteger-se e respeitar-se
valores morais ou pré-políticos exemplares e (b) não há segurança jurídica
e política para quem supostamente não se enquadra nesse ideal regulador.
No mesmo diapasão, assim como não temos um fundamento último sob a
forma de um árbitro imparcial e impessoal, também não temos um cami-
nho, valores e práticas neutros que permitam a pluralidade ser representa-
da e participar de modo equalizado, de modo que não há como separar-se
prática política institucionalizada e o poder pessoal dos grupos próprios
à sociedade civil, isto é, não há regras políticas a serem seguidas de modo
estrito para que a representação e o ativismo políticos sejam possíveis. Por
isso mesmo, a perspectiva fascista da democracia ou joga com o Estado
Democrático de Direito conforme a conveniência (em certos momentos,
ele é importante – principalmente quando se trata dos inimigos a serem
combatidos –, em outros ele é um luxo problemático, desnecessário, que
pode ser violado pela minha concepção de mundo verdadeira, salvífica,
redentora), ou simplesmente defende sua extinção pura e simples, posto
que afirma um fundamento prévio, mais íntegro e mais substantivo que o
próprio direito, a saber, a sua moral de mundo.
No modelo fascista de compreensão do direito, da política e da cul-
tura democrática – marcado pela dinâmica sociedade-direito-sociedade,
política-direito-política, moral-direito-moral – o direito e a política per-
dem o protagonismo e são despidos de qualquer efetividade, a não ser a
de, subordinados a posições de mundo pré-políticas, combaterem os ini-
migos do poder particular hegemônico, agora confundido seja com os in-
teresses da sociedade como um todo, seja com algum fundamento reden-
tor universal (“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”; “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos”, eles versus nós etc.). Nesse sentido,
as instituições ou sistemas sociais direito e política são instrumentali-
zados como forma de imposição social da perspectiva cultural, religiosa
e moral do poder particular hegemônico, do grupo de crença privado,
bem como de enfrentamento, de negação, de deslegitimação e de silen-
ciamento dos supostos inimigos – inimigos apenas pelo simples fato de
não compartilharem, de não concordarem e de publicamente afirmarem
que não compartilham e nem concordam com esse modelo hegemônico
de compreensão e de organização da sociedade. Por isso, não há negocia-
ção entre os diferentes grupos e sujeitos sociopolíticos, posto que, antes,

402
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

não há reconhecimento da própria diferença como condição fundante e


dinamizadora da própria política e do próprio direito. Com efeito, essa é
a consequência mais impactante e mais perigosa do modelo fascista de
compreensão do direito, da política e da vida social democráticas, a sa-
ber, o fato de que, para ele, a política é um mal e uma degeneração, posto
que nela e por meio dela não se pode construir nada melhor e mais justo
do que aquilo que já está dado religiosa, econômica e biologicamente,
isto é, do que aquilo que já está definido e revelado pré-politicamente,
pré-culturalmente, pré-socialmente, pré-historicamente e que nós não
vimos por causa de diferentes ideologias sociais que nos impedem uma
visão pura, direta e verdadeira dessa realidade ensombrecida, ideologias
que, além disso, pluralizam os sujeitos sociais e levam ao conflito recí-
proco, ignorando que a sociedade é como uma grande família ordeira,
indivisa e una, com autoridade hierárquica.
No mesmo sentido, o modelo fascista insiste em que a política é
um confronto puramente instrumental entre inimigos cuja condição de
diferenciação e de desacordo está antes da própria política, isto é, em
alguma base religiosa, biológica ou até socioeconômica. Ora, no fascis-
mo, é essa base prévia, de caráter pré-político e, portanto, apolítica que
efetivamente dá o tom do que são os sistemas sociais direito e Estado,
de sua estruturação e de seu funcionamento ao longo do tempo. Note-se,
nesse caso, que o direito e a política, percebidos em termos de herança
da modernidade ocidental, como estruturas abertas, inclusivas e partici-
pativas, limitadoras de perspectivas fascistas, totalitárias, massificado-
ras e unidimensionais, acabam sendo as vítimas sacrificiais de uma falsa
ideia de que a sociedade é simplesmente dividida em amigos e inimigos,
correligionários e adversários, em que a guerra direta, sem limitações, é
a alternativa por excelência – e última – para conquistar-se hegemonia
social, hegemonia que significa, em grande medida, a destruição como
que radical desse inimigo, destruição por qualquer meio, aliás. Mais uma
vez, essa atitude pré-política definidora do que é a política e o direito tem
como consequência o fato de que o direito e a política são uma alternati-
va entre outras – dourada com a pílula da civilização, da legalidade – para
garantir a instauração dessa ordem pré-política, uma alternativa que, por
não ter um caráter último, pode ser substituída ou violada sempre que
não permite que a posição de poder do grupo particular-privado possa
vencer pelos meios convencionais (direito e política) (RANCIÈRE, 2014,
p. 63-66; VATTIMO, 2009, p. 30-37).

403
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Considerações finais: o Estado Democrático de Direito como valor civilizacional

Dentre as muitas conclusões possíveis, abertas por este texto, que-


remos salientar exatamente a importância de se retomar com ênfase, pri-
meiramente por parte das próprias instituições públicas ou sistemas so-
ciais direito e política, com seus operadores do direito e suas lideranças
político-partidárias, essa autonomia, essa separação e essa sobreposição
do direito e da política relativamente às posições de poder particulares da
sociedade civil e, com isso, a autonomia, a separação e a sobreposição do
direito frente à política. Como dissemos ao longo do texto, essa é a heran-
ça mais fundamental do longo, heterogêneo e gradativo processo de evo-
lução da modernidade ocidental, modernização ocidental que não pode
ser vista como uma condição e um luxo apenas da modernização central
(Europa ocidental e América do Norte), mas exatamente como uma con-
dição para nossa frágil democracia brasileira, que, em menos de cento e
cinquenta anos, foi perpassada por um processo social que vai do senhor
de engenho ao oligarca, e destes para golpes militares sucessivos, o mais
recente deles uma Ditadura Militar com vinte e um anos de duração, todos
eles intermediados por quatro fenômenos socioculturais muito problemá-
ticos, a saber, o racismo como base da estratificação social e das relações
recíprocas, a baixíssima escolarização e, portanto, a praticamente ine-
xistente formação humanística da sociedade civil, o subdesenvolvimento
econômico e a grande desigualdade social e miserabilidade que grassam
em nossa sociedade, bem como um primitivismo e fanatismo religiosos
em que exatamente uma suposta condição pré-política serve de base para
o enquadramento, a fundamentação e a orientação de uma evolução social
muito mais heterogênea, plural e diferenciada.
Afirmar a modernização ocidental como nosso legado significa, por-
tanto, assumir a universalização dos direitos e das liberdades básicos e o
pluralismo religioso-cultural como bases da racionalização cultural, secu-
larizada e profana, detonada pela modernização e constituída em termos
desta. Aqui, o ponto nevrálgico é exatamente a imparcialidade, a impesso-
alidade, a neutralidade e o formalismo axiológico-metodológico dos sis-
temas sociais direito e política, isto é, o Estado Democrático de Direito
como base, caminho, procedimento, valor, prática e juiz último da plurali-
dade democrática e de suas contradições, lutas e acordos recíprocos. Pre-
cisamos desse baluarte último, que é também um caminho, um valor, uma
prática e um poder que perpassam nossas relações cotidianas e a consti-
tuição, a legitimação e a vinculação social das instituições e dos sujeitos
institucionalizados. O Estado Democrático de Direito, em sua autonomia,
separação e sobreposição às morais e poderes particulares, é tanto nossa
barreira protetora quanto nosso valor político-pedagógico fundamental contra

404
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

o fascismo, o totalitarismo, a unidimensionalização e a massificação, e lu-


tar por ele e por sua efetividade equivale a uma opção pela civilização, pelo
universalismo e pelo reconhecimento contra a barbárie instaurada sem-
pre que perspectivas pré-políticas colonizam as instituições e entram em
choque direto e explícito contra a pluralidade. Essa precisa ser uma lição
repetida sempre e sempre, assumida sempre e sempre pelos operadores
do direito, pelas lideranças políticas e pelos/as intelectuais públicos; e ela
precisa estar profundamente inserida na pauta assumida pela militância
social e nos currículos de nossas escolas de educação básica.

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406
22
Da teoria à práxis? Axel Honneth e as lutas por
reconhecimento na teoria política contemporânea

Rurion Soares Melo

A entrada da categoria do “reconhecimento” no vocabulário da te-


oria política contemporânea pode ser compreendida segundo duas razões
principais. A primeira, de ordem “negativa”, remete ao enfraquecimento
das grandes narrativas (teoria da luta de classes, contradição entre capital e
trabalho, relação entre base econômica material e superestrutura política,
utopia da sociedade do trabalho), para produzir um diagnóstico adequado
sobre a dinâmica dos conflitos sociais em condições de capitalismo tardio
(com intervenção do Estado, democracia de massas e bem-estar social). A
segunda, de ordem mais propositiva, remete ao engajamento da sociedade
civil e à ampliação da agenda política que acompanhou as reivindicações
plurais dos novos movimentos sociais1.
Assim, no lugar dos conflitos tradicionalmente concentrados em
torno da propriedade, da redistribuição, do salário ou do emprego, os
novos conflitos sociais abrangeriam diferentes causas e objetivos, mobi-
lizações e formas de ação política, mediações e transformações sociais.
Desde então, as demandas e tematizações, cada vez mais diversas e plu-
rais, seriam compostas principalmente pelo feminismo, com as políti-
cas de gênero, movimentos gays e outras amplas políticas em torno da
sexualidade, políticas comunitárias localizadas, como os movimentos
indígenas, movimentos nacionalistas ou regionais, movimentos sociais
urbanos, lutas por reconhecimento, que abrangem, sobretudo, políticas
antirracistas que respondem a problemas de imigração ou lutam pela
afirmação de minorias étnicas e culturais.
Essa mudança de perspectiva teórica, da centralidade da “redistri-
buição” ao “reconhecimento” não implicava, no entanto, apenas a possi-
bilidade de abarcar uma maior diversidade de manifestações políticas e

1 Praticamente todos os principais autores que se apropriam do conceito de “reconhecimento” remetem a essa
configuração comum, ou seja, são conscientes de que as lutas por reconhecimento se referem tanto à pluralidade
cultural quanto ao fim das “grandes narrativas”. Cf., principalmente, Young (1990); Taylor (2000); Habermas (2002);
Honneth (2003); Fraser (2001); Benhabib (2002). Para uma recente exposição de conjunto em relação à atualidade e
transformações do conceito, Cf. Honneth (2013) e Honneth e Stahl (2013).

407
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

entender o que seria “novo” nos novos movimentos sociais. A categoria do


reconhecimento também pretende elucidar de que modo conceitos teóri-
cos explicativos centrais são capazes de apontar simultaneamente para as
“motivações” que levam sujeitos e grupos sociais a agir politicamente. Em
outras palavras, a motivação da práxis política, isto é, a conversão de uma
teoria do reconhecimento em “lutas” por reconhecimento consiste em um
elemento importante que também pode explicar o êxito atual da categoria
na sua recepção por parte da teoria política contemporânea.
A fim de analisar criticamente de que maneira o problema da media-
ção entre teoria e práxis pretendeu ser resolvido pela chave do reconheci-
mento, certamente seria importante, do ponto de vista da exposição, apre-
sentar as razões teóricas que levaram à distinção geral entre diferentes
“gramáticas” de conflito social. Uma vez que eu já me ocupei dessa ques-
tão em outro lugar (MELO, 2013), pretendo aqui me concentrar particular-
mente na teoria da luta por reconhecimento formulada por Axel Honneth
e analisar, de maneira crítica, alguns de seus desdobramentos no debate
contemporâneo. Partindo da ideia de uma “fenomenologia empiricamente
controlada das formas de reconhecimento” (Idem, 2003, p. 121), Honneth
mostra como estas sempre estão vinculadas a tipos de desrespeito cuja ex-
periência pode motivar, em termos práticos, os sujeitos para a emancipa-
ção. Nesse sentido, com o conceito de reconhecimento, poderíamos expli-
car o processo prático no qual experiências de desrespeito podem influir
nos motivos morais capazes de mobilizar indivíduos e grupos para a ação,
isto é, para uma luta por reconhecimento. O diagnóstico das patologias
sociais, observadas na experiência do desrespeito ou do “sofrimento”2,
sempre ancorado na deformação de uma práxis humana constitutiva, deve
ele mesmo permitir apontar para sua superação prática (I).
Em seguida, problematizarei a solução honnethiana para a expli-
cação da motivação prática dos novos conflitos sociais lançando mão de
duas importantes objeções de Nancy Fraser: uma correspondendo à abran-
gência da categoria do reconhecimento e outra concernente à motivação
moral analisada a partir de fenômenos de formas denegadas de reconhe-
cimento recíproco. No primeiro caso, segundo a autora, também as desi-
gualdades econômicas aumentaram no período em que forças neoliberais
características do processo de globalização se acirraram. E se as disputas
em torno de injustiças ligadas a padrões culturais de representação, predo-
minantes no quadro das lutas por reconhecimento, ocorrem justamente no
momento em que se exacerbam as desigualdades materiais, o paradigma
do reconhecimento poderia criar um efeito indesejado: estaríamos deixan-
do de diagnosticar os fenômenos patológicos motivados por injustiças ma-

2 Sobre o “sofrimento”, que, ao ser diagnosticado, aponta para sua superação prática, Cf. Honneth (2007).

408
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

teriais ainda fortemente presentes nas sociedades capitalistas. Honneth


pretende responder a essa questão mostrando que fenômenos de injustiça
material também produzem “patologias” que motivam indivíduos e gru-
pos a lutar por reconhecimento; Fraser avança suas análises das patologias
sociais (do ponto de vista da problemática feminista, sobretudo) com o in-
tuito de sublinhar formas de interconexão entre diagnósticos de injustiça
material e potenciais emancipatórios socialmente enraizados. No segundo
caso, Fraser procura descortinar elementos de poder e de opressão social
incrustados na postura do reconhecimento recíproco, colocando em ques-
tão – e este é o ponto que eu gostaria de ressaltar – a confiança da teoria
na perspectiva privilegiada da práxis dos sujeitos concernidos. Em outros
termos, a autora questiona a maneira com que a teoria do reconhecimento
pressupôs uma articulação entre fundamentação normativa da crítica e os
movimentos sociais mediada pela perspectiva de uma psicologia moral (II).
Por fim, concluo de forma breve que a discussão entre Honneth e Fra-
ser em torno da teoria do reconhecimento teve por consequência um deslo-
camento da preocupação inicial com a relação entre teoria e práxis. Minha
hipótese é a de que ambos Honneth e Fraser acabam reassumindo um pri-
mado da teoria sobre a práxis, preocupados, sobretudo, em elucidar os fun-
damentos normativos que apoiam o conceito de reconhecimento. É elucida-
tivo para justificar minha hipótese o percurso identificado nos últimos anos
que levou a teoria do reconhecimento a se converter em um tipo particular
de “teoria da justiça”, distanciando-se, assim, da perspectiva ligada aos sen-
timentos de injustiça e, sobretudo, do conceito de “luta” que eram tão im-
portantes para a compreensão da gramática moral dos conflitos sociais (III).

Gostaria inicialmente de demarcar o quadro teórico em que podemos


localizar a questão da relação entre teoria e práxis no que concerne à teoria do
reconhecimento formulada por Axel Honneth. A vertente teórica conhecida
como “teoria crítica” – na qual também está inserida a teoria honnethiana
do reconhecimento – tem a pretensão de compreender as situações sociais
de desigualdade, opressão, injustiça e desrespeito de tal modo, que possamos
não apenas diagnosticar os fenômenos negativos em determinadas condições
históricas, mas ao mesmo tempo identificar possibilidades concretas de supe-
ração prática dos problemas diagnosticados. De maneira aparentemente con-
traditória, o diagnóstico das patologias deve apontar tanto para os obstáculos
quanto para os potenciais práticos de emancipação. Nos termos do próprio
Honneth, a teoria crítica parte, assim, da ideia de “que um processo histórico
de formação é deformado de tal maneira pelas relações sociais que somente
em termos práticos isso deve ser superado” (Idem, 2007, p. 30).

409
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

No entanto, essa problemática acerca do diagnóstico traz, da pers-


pectiva da teoria crítica, algumas exigências específicas para tratarmos da
relação entre teoria e práxis, pois é sabido que diversas outras teorias polí-
ticas se caracterizam por um propósito semelhante de identificar ou apon-
tar saídas práticas diante de situações sociais concretas. A teoria crítica,
por seu turno, precisa assumir dois importantes pressupostos para que sua
“atitude crítica” não se confunda com uma atitude meramente “pragmá-
tica”. Primeiro, ela não pode admitir um primado da teoria sobre a práxis
– como se aos teóricos, partindo de uma posição reflexiva privilegiada para
compreender processos históricos complexos, coubesse não apenas a tare-
fa de esclarecer os sujeitos políticos em relação às suas próprias condições,
mas também, ao usufruir de seu discernimento sobre a verdade da socieda-
de, fosse capaz de apontar os remédios mais adequados para as patologias
que dominam os contextos. Assim, a teoria política teria, antes de tudo, a
função pragmática de identificar injustiças e propor “remédios” – algo que
a teoria do reconhecimento procura evitar.
Além disso, a teoria crítica assume um segundo pressuposto. A pro-
dução do diagnóstico precisa ser fundamentada na perspectiva dos concer-
nidos. E tal pressuposto tem implicações não somente para a identificação
dos problemas diagnosticados – fenômenos de opressão, desigualdade e
injustiça –, mas também para a justificação dos potenciais práticos apon-
tados: os próprios afetados pelos contextos negativos devem expressar ten-
dências práticas e políticas para sua emancipação. A teoria do reconheci-
mento de Honneth tem, assim, a pretensão de reunir de maneira adequada
esses dois pressupostos, permitindo que a exigência de ancoramento social
da crítica evitasse construções meramente teóricas nas quais as categorias
empregadas se separassem de seus “contextos de surgimento” (HABER-
MAS, 2013; HONNETH, 2003).3
Luta por Reconhecimento, certamente um dos livros mais importan-
tes de Honneth, pretende ser simultaneamente teórico-explicativo e críti-
co-normativo. O propósito explicativo básico é o de dar conta da “gramática”
dos conflitos e da “lógica” das mudanças sociais, tendo em vista o objetivo
mais amplo de “explicar a evolução moral da sociedade” (Idem, 2003, p. 125).
O lado crítico normativo consiste em fornecer um padrão para identificar

3 Foi também buscando tal ancoramento no “social” que Honneth enfrentou os debates no quadro das “teorias
da justiça”. A tentativa de Honneth de vincular teorias da justiça e análise social, explicitamente iniciada em 2007a,
tem como pano de fundo as investigações da questão da justiça a partir de “sentimentos morais de injustiça”. Com
isso, ele pretende deixar de lado concepções “construtivistas” (tais quais a de John Rawls) e desenvolver uma
“reconstrução normativa” na qual princípios de justiça sejam engendrados de interações sociais e de instituições
características de nossa “eticidade democrática”. Em seu mais recente livro, Honneth desenvolve o projeto de uma
“reconstrução normativa” como fundamento de uma teoria crítica da justiça. Cf. Honneth (2011). Ele apoia essa
possibilidade de ancorar a justificação crítica e normativa da teoria na experiência prática dos sujeitos, principalmente
nos trabalhos de Thompson (1991); Moore (1987); Miller (2001). Para localizar a novidade da “reconstrução normativa”
na obra de Honneth, cf. Nobre (2013).

410
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

patologias sociais e avaliar os movimentos sociais (seu caráter emancipa-


tório ou reacionário), para distinguir “a função que desempenham para o
estabelecimento de um progresso moral na dimensão do reconhecimento”.
(Ibidem, p. 270) Esse padrão crítico normativo é formulado por Honneth em
“uma concepção formal de vida boa, ou, mais precisamente, de eticidade”,
(Ibidem, p. 70). Nesse sentido, compartilha o propósito original da tradição
da teoria crítica de diagnosticar as patologias sociais e os elementos eman-
cipatórios na realidade social.
Analisando os textos do jovem Hegel, Honneth destaca a ideia fun-
damental de que os indivíduos só podem se formar suas identidades pes-
soais e constituí-las quando são reconhecidos intersubjetivamente. O in-
divíduo só pode ter uma “autorrelação prática positiva” consigo mesmo se
for reconhecido pelos demais membros da comunidade. Quando esse reco-
nhecimento não é bem-sucedido (pela ausência ou falso reconhecimento),
desdobra-se uma luta por reconhecimento na qual os indivíduos procuram
restabelecer ou criar novas condições de reconhecimento recíproco. Os
escritos de juventude de Hegel fornecem “o maior potencial de inspira-
ção” para a reconstrução do “conceito de uma luta moralmente motiva-
da”. A reconstrução da argumentação de Hegel “conduz à distinção de três
formas de reconhecimento, que contêm em si o respectivo potencial para
uma motivação dos conflitos”: o amor, o direito e a solidariedade (Ibidem, p.
23). Cada forma de reconhecimento, por sua vez, permite ao sujeito desen-
volver aquela “autorrelação prática positiva” consigo mesmo mencionada
antes, ressaltando, portanto, tanto o vínculo entre liberdade e autonomia
individual quanto vínculos comunitários e societários (a autoconfiança nas
relações amorosas e de amizade; o autorrespeito nas relações jurídicas; e a
autoestima na comunidade social de valores).
A partir disso, Honneth acredita que, dos três padrões de reconhe-
cimento (amor, direito e solidariedade) em conjunto, as mudanças sociais
podem ser explicadas por meio de uma dinâmica do desrespeito, “cuja ex-
periência pode influir no surgimento de conflitos sociais na qualidade de
motivo da ação” (Ibidem, p. 24). A cada uma das formas de reconhecimento
corresponde uma forma de desrespeito: maus-tratos e violação, que ame-
açam a integridade física e psíquica em relação à primeira; privação de
direitos e exclusão, que atingem a integridade social do indivíduo como
membro de uma comunidade político-jurídica, na segunda; e degradação
e ofensas, que afetam os sentimentos de honra e dignidade do indivíduo
como membro de uma comunidade cultural de valores, no caso da terceira
esfera de reconhecimento. Cada uma delas abala de modos diversos a au-
torrelação prática da pessoa, privando-a do reconhecimento de determina-
das dimensões de sua identidade.

411
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Aqui cabem duas observações gerais sobre o modelo de teoria crí-


tica sugerido por Honneth. A primeira delas, como já dito acima, diz
respeito à perspectiva da “luta” privilegiada na sua teoria do reconheci-
mento. A “luta” não é marcada por objetivos de autoconservação ou au-
mento de poder – concepção de conflito predominante tanto na filosofia
política moderna quanto na tradição da sociologia e ciência política, que
tende a eliminar o momento normativo de toda luta social. Para Honne-
th, interessam aqueles conflitos oriundos de experiências de desrespeito
social capazes de suscitar uma ação de luta social que busque restaurar
as relações de reconhecimento mútuo ou desenvolvê-las num nível de or-
dem superior. É possível ver na luta por reconhecimento uma força moral
que impulsiona desenvolvimentos sociais, políticos e institucionais. A
evolução das relações de reconhecimento mútuo tem de ser explicada a
partir de “processos no interior da práxis social: são as lutas moralmente
motivadas de grupos sociais, sua tentativa coletiva de estabelecer institu-
cional e culturalmente formas ampliadas de reconhecimento recíproco,
aquilo por meio do qual vem a se realizar a transformação normativa-
mente gerida das sociedades” (Ibidem, p. 156).
E a chave para Honneth analisar os conflitos sociais é a tipologia
das formas de reconhecimento e as correspondentes formas de desrespeito
“que podem tornar experienciável para os atores sociais, na qualidade de
um equivalente negativo das correspondentes relações de reconhecimen-
to, o fato do reconhecimento denegado” (Ibidem, p. 157). O que importa
mostrar é a lógica dos conflitos que se originam de uma experiência social
de desrespeito, de uma violação da identidade pessoal ou coletiva, capaz
de conduzir a uma mobilização política para restabelecer as relações de
reconhecimento mútuo ou expandi-las a outro patamar.
A ideia básica da gramática moral dos conflitos sociais parece ser
simples. Os conflitos sociais emanam de experiências morais decorrentes
da violação de expectativas normativas de reconhecimento firmemente ar-
raigadas. Essas expectativas formam a identidade pessoal, de modo que o
indivíduo pode se autocompreender como membro autônomo e individua-
lizado, reconhecido nas formas de sociabilidade comum. Quando essas ex-
pectativas são desapontadas, surge uma experiência moral que se expressa
no sentimento de desrespeito. O sentimento de desrespeito, por sua vez,
somente pode se tornar a base motivacional de uma mobilização política
se for capaz de expressar um ponto de vista generalizável dentro do hori-
zonte normativo de um grupo. “Nesse sentido, o surgimento de movimen-
tos sociais depende da existência de uma semântica coletiva que permite
interpretar as experiências de desapontamento pessoal como algo que afe-
ta não só o eu individual mas também o círculo de muitos outros sujeitos”
(Ibidem, p. 258). A sequência “desrespeito, luta por reconhecimento e mu-

412
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

dança social” constitui o desenvolvimento lógico dos movimentos coleti-


vos. Essa é a concepção que Honneth tem da gramática moral dos conflitos
sociais. Em resumo, a ideia básica é a de que sentimentos morais, quando
articulados numa linguagem comum, podem motivar as lutas sociais.
Isso permite a Honneth, num passo posterior, compreender o nexo
que existiria entre movimentos sociais e a experiência moral de desrespei-
to. Para tanto, ele se distancia da mera noção de “interesse” como conceito
explicativo central das lutas e movimentos sociais (NEUENDORFF, 1973;
TILLY, 1970, 1978). De modo diferente, a teoria do reconhecimento deveria
ser capaz de elucidar os fundamentos de uma teoria social de teor normativo
em que o conceito de luta social tivesse como ponto de partida os sentimen-
tos morais de injustiça. Não é possível, segundo essa formulação, desvincular
desrespeito moral e luta social, já que esta última é concebida na qualidade
de processos práticos em que experiências individuais de desrespeito são
interpretadas como “experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de
forma que elas podem influir, como motivos diretores da ação, na exigên-
cia coletiva por relações ampliadas de reconhecimento” (HONNETH, 2003,
p. 257). Um modelo de conflito que começa pelos sentimentos coletivos de
injustiça é aquele que atribui o surgimento e o curso das lutas sociais às ex-
periências morais que os grupos sociais fazem perante a denegação do reco-
nhecimento jurídico ou social. Ainda assim, o próprio Honneth reconhece
que a teoria do reconhecimento não precisa substituir o modelo utilitarista
do conflito, apenas complementá-lo, “pois permanece sempre uma questão
empírica saber até que ponto um conflito social segue a lógica da persecu-
ção de interesses ou a lógica da formação da reação moral” (Ibidem, p. 261).
No entanto, é preciso considerar que, do ponto de vista crítico-nor-
mativo, o conceito de reconhecimento serve também para que a teoria não
se justifique sem mediações diretamente a partir da perspectiva dos movi-
mentos sociais. O teórico precisa poder se distanciar dos atores para poder
avaliá-los de maneira crítica, identificando, portanto, aspectos regressivos
quando presentes. Os padrões de reconhecimento serviriam exatamente a
esse propósito, ressaltando o referencial normativo intrínseco às relações
sociais e conflitos vigentes: da dinâmica social gerada pelas experiências de
desrespeito e da luta por reconhecimento é possível extrair uma concepção
formal de eticidade que sirva de padrão normativo para a teoria política. Isso
tendo em vista que, para Honneth, “o significado que cabe às lutas sociais
particulares se mede pela contribuição positiva ou negativa que elas pude-
ram assumir na realização de formas não distorcidas de reconhecimento.”
(Ibidem, p. 268). Nunca sem vincular o propósito crítico da teoria à práxis
política e social a partir da qual aquela reconstrói suas categorias normati-
vas, a teoria honnethiana da luta por reconhecimento procura reunir todos
os pressupostos intersubjetivos que precisam, então, estar preenchidos para
que os sujeitos possam assegurar processos exitosos de autorrealização.

413
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

II

Tanto o aspecto teórico-explicativo quanto o crítico-normativo da


teoria do reconhecimento foram colocados em questão na teoria política
contemporânea. Ambos os aspectos, ao serem problematizados, trouxe-
ram à tona dificuldades dessa teoria para manter uma articulação bem-
-sucedida com a práxis social e política. Não posso retomar e analisar tais
críticas em sua integralidade4. Pretendo apenas partir de duas objeções
levantadas especialmente por Nancy Fraser para ressaltar dúvidas relati-
vas ao escopo do conceito de reconhecimento e aos efeitos colaterais não
desejados quando a teoria depende tão fortemente de uma concepção de
justiça fundada na autorrealização individual dos sujeitos. Ambas as ob-
jeções servirão, ao final, para minhas críticas concernentes ao gradual
distanciamento que a teoria do reconhecimento vem tomando diante do
paradigma da “luta” e aos riscos de uma despolitização do social.
Nancy Fraser foi a primeira a duvidar de forma mais contundente do
domínio de aplicação do conceito de reconhecimento. E isso não apenas
em termos de fundamentação teórica, mas, sobretudo, em consideração
a dúvidas quanto à centralidade do reconhecimento como categoria pri-
vilegiada para a compreensão do diagnóstico das patologias próprias de
nosso tempo (Idem, 2001, 2009, 2010; FRASER; HONNETH, 2003). Afinal,
o reconhecimento poderia abarcar também elementos de justiça distribu-
tiva e aspectos políticos voltados ao problema atual da representação? É
possível (e desejável) manter a abrangência empírica do conceito de reco-
nhecimento, isto é, sua exigência teórica mais sistemática de abarcar fenô-
menos sociais e políticos de maneira ampla e unificá-los em um conceito
pretensamente adequado? Podemos de fato colocar tudo nessa categoria
única, por mais multifacetada que ela seja?
Na era “pós-socialista”, com a crise do Estado de bem-estar social,
após o colapso do socialismo real e com a aceleração da globalização, os
conflitos sociais acabaram assumindo a forma das lutas por reconheci-
mento. Não há dúvida de que a compreensão cultural ou simbólica da in-
justiça reflete dilemas reais envolvidos nas políticas da diferença, como no
caso de um pluralismo quase que intratável acirrado por conflitos multi-
culturais. Contudo, a desconfiança de Fraser se volta, antes, à gramática
do reconhecimento como forma hegemônica de contestação política e à
consequência que cria na dinâmica dos conflitos atuais, uma vez que tal
gramática desloca ou mesmo tira completamente da pauta dos movimen-

4 Seria necessário acompanhar o desdobramento de tais dificuldades ao longo do desenvolvimento da obra de


Honneth. Cf. Bedorf (2010); Deranty (2009); Petherbridge (2011, 2013); Brink & Owen (2007); Iser (2011); Zurn (2010);
Melo (2013b). Para uma fonte atual de pesquisas empíricas que procuraram aplicar ou também deslocar a centralidade
do reconhecimento, cf. O’Neill e Smith (2012).

414
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

tos sociais e da teoria crítica questões redistributivas: a dominação cultu-


ral acaba tendo prioridade sobre a exploração socioeconômica, fazendo
com que o reconhecimento desloque a pauta da redistribuição como algo
secundário no nosso diagnóstico de época (Idem, 2001).
Por essa razão, Fraser procura revalorizar, não sem uma postura crí-
tica, as lutas em torno da pauta distributivista contra o predomínio das
lutas por reconhecimento, pois tal predomínio reforçaria os efeitos mate-
riais negativos atrelados aos princípios neoliberais uma vez desconsidera-
dos na gramática das políticas de diferença: não se poderia diagnosticar,
entre outras coisas, as patologias derivadas do enfraquecimento do igua-
litarismo cunhadas por uma economia global desregulamentada ou pela
viabilidade de retomar, diante dos efeitos colaterais da globalização, ques-
tões de justiça redistributiva que acompanharam as orientações social-
-democratas. Tal seria, segundo Fraser, o complicado diagnóstico ligado
ao “problema da substituição” causado pela passagem da redistribuição ao
reconhecimento: as questões de reconhecimento acabariam servindo me-
nos para suplementar ou enriquecer as demandas redistributivas do que
para “marginalizá-las, eclipsá-las e substituí-las” (Idem, 2010, p. 212).
A pretensão de Honneth evidentemente também consiste em man-
ter a pauta das questões de justiça material na constelação de sua teoria.
Ambos os autores, Fraser e Honneth, entendem que os debates atuais
envolvendo teoria da justiça e crítica social precisam abarcar tanto as
reivindicações por reconhecimento como as demandas redistributivas.
Rejeitam igualmente uma perspectiva economicista que reduziria, por
exemplo, as lutas por reconhecimento a meros epifenômenos da lógica
capitalista. Porém, como deixam claro no prefácio à publicação que re-
sultou do debate entre os dois, as semelhanças entre ambos para por aí,
pois existem importantes divergências entre as respectivas perspectivas
teóricas: Honneth entende que o princípio moral que justifica normati-
vamente a dinâmica dos conflitos sociais, incluindo as lutas por distri-
buição, é o de reconhecimento; Fraser, por sua vez, propõe um “dualismo
perspectivista” ao negar subsumir as reivindicações redistributivas ao
reconhecimento (FRASER; HONNETH, 2003). O primeiro defende que a
demanda por justiça redistributiva é uma forma de expressão da luta por
reconhecimento; a segunda analisa tanto a categoria do reconhecimento
quanto a de redistribuição como duas categorias fundamentais e igual-
mente irredutíveis das dimensões da justiça.
No entanto, Honneth entendeu ser necessário enfrentar a objeção
levantada pelo diagnóstico de Fraser, ou melhor, pelo temor de que a teo-
ria crítica da sociedade passasse a negligenciar as demandas por redistri-
buição econômica. Para que uma teoria crítica bem fundamentada pudes-
se produzir diagnósticos adequados para conseguir apontar as patologias

415
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sociais e os potenciais emancipatórios existentes, diferentes formas de


demanda social e política necessariamente precisam ser incorporadas
pelo teórico crítico. Quais linguagens teóricas, porém, seriam mais ade-
quadas para reconstruir normativamente as lutas políticas contemporâ-
neas? Questões de justiça redistributiva, responde Honneth, são mais
adequadamente compreendidas com as categorias normativas fornecidas
por uma teoria do reconhecimento. Ao analisar o reconhecimento como
um conceito que pode se manifestar de forma diferenciada – na esfera do
amor, da solidariedade social e do direito – Honneth acredita subsumir a
problemática da redistribuição em seu paradigma e poder pensá-la como
reconhecimento. Desse modo, o conceito de reconhecimento, se compre-
endido dessa maneira, já implicaria, portanto, aquele tipo de questão para
a qual Fraser teria nos chamado a atenção.
Mas, além de descentralizar o diagnóstico de época apontando para
as questões redistributivas e de reconhecimento que subjazem à pauta
emancipatória atual, Fraser radicaliza, ainda, sua tese de acordo com a
qual a pluralidade das lutas não pode ser englobada em projetos totali-
zantes: partindo das demandas de gênero em condições transnacionais,
Fraser acredita que também a dimensão da “representação” precisa ser
tratada como decisiva para os conflitos sociais (Idem, 2009). A representa-
ção diz respeito a formas específicas de exclusão política e deve ser leva-
da em consideração para que possamos atribuir igualdade política de voz
para as mulheres. A política feminista, nesse caso, não se encaixaria em
explicações unitárias (embora Honneth pense as lutas a partir de diferen-
tes padrões de reconhecimento), evidenciando uma pluridimensionalidade
constituída por reconhecimento, redistribuição e representação.
Em segundo lugar, Fraser chamou atenção para as consequências teó-
ricas de se atrelar a justificação normativa da crítica à perspectiva dos sujei-
tos concernidos. Experiências bem fundadas de reconhecimento, segundo a
autora, podem esconder formas de dominação constitutivas de relações so-
ciais (FRASER; HONNETH, 2003). Isso significa que as experiências patoló-
gicas vividas pelos sujeitos podem ser inapreensíveis para eles mesmos. Não
seria problemático, em termos teóricos, fazer com que categorias críticas e
normativas derivassem do sentimento de desrespeito vivido subjetivamente
pelos afetados? E a “autorrelação prática positiva” experimentada pelos con-
cernidos não poderia ser assumida de maneira equivocada pelos sujeitos?
Certamente poderíamos continuar diante de interações distorcidas, pois as
expectativas do reconhecimento estão atreladas a comportamentos social-
mente construídos, isto é, a relações de poder. Portanto, quanto ao problema
da motivação moral da luta, o sentimento de desrespeito não implicaria na
presença real de uma assimetria de reconhecimento. Ou seja, aspectos mo-
tivacionais e morais identificados nas experiências de injustiça ainda não

416
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

dariam conta da origem social das injustiças. Honneth, ao contrário, estaria


limitado a uma “psicologia moral do sofrimento pré-político”, obrigando a
teoria a determinar seu referencial normativo a partir da expectativa de re-
conhecimento da identidade pessoal (Ibidem, p. 201).
Estou interessado novamente nas consequências desse tipo de críti-
ca para pensar a relação entre teoria e práxis. De que maneira tal relação
poderia ser constituída sem que a teoria política se reduzisse à psicologia
moral? Em entrevista, Honneth reconhece as dificuldades aludidas: “Es-
pecialmente o debate com Nancy Fraser me mostrou que a fundamentação
dos padrões da crítica nas experiências de desrespeito está acompanhada
do risco de aceitar todas as expectativas como justificadas” (BOLTANSKI;
HONNETH, 2009, p. 96). Para diminuir esse risco, Honneth se esforça em
apresentar uma justificação teórico-normativa considerada mais adequa-
da, em que o ônus da justificação (carregada, na teoria honnethiana, de
elementos psicológicos) vai saindo das costas dos sujeitos e passando para
a perspectiva reconstrutiva de fundamentação5.
Diante desse problema, causado, principalmente, pelo primado atribu-
ído por Honneth ao ponto de vista da práxis social dos sujeitos concebido
em termos morais – fundado na perspectiva privilegiada da autorrealização
individual – Fraser propõe um exercício mais enfático da teoria política na
elucidação de seus critérios normativos de justiça. O conceito de “paridade
de participação” de Fraser serviria como um princípio de justiça que perpas-
sa questões distributivas, de reconhecimento e de políticas sem ficar preso
a justificações psicológicas (FRASER; HONNETH, 2003). Honneth, por sua
vez, aceita o debate colocado em termos estritamente normativos, ainda que
rejeite o “normativismo abstrato” enquanto solução para questões de justiça.
A “reconstrução normativa” passa para o primeiro plano, agora, na qualidade
de procedimento teórico empregado para elucidar objetivamente as referên-
cias normativas de uma teoria da justiça, que, ao se vincularem aos critérios
de uma teoria da sociedade, derivam imanentemente das instituições, valores
e práticas socialmente compartilhados (Idem, 2011). Afastar-se-iam, assim, os
riscos do reducionismo da psicologia moral e do subjetivismo.
Em todo caso, ambas as objeções de Fraser podem nos ajudar a ques-
tionar a forma com que Honneth tem consumado teoricamente a vincula-
ção com a práxis. O diagnóstico multifacetado em que o reconhecimento
se coloca ao lado da dimensão da redistribuição e da representação é indí-
cio para que os pressupostos mais básicos do ancoramento social da críti-

5 Mudanças importantes na obra de Honneth ocorreram nesse ínterim. De um lado, ele tentou elaborar, com a
teoria do reconhecimento, uma concepção adequada de “práxis social” que fosse capaz de abarcar comportamentos
patológicos sem os pressupostos da psicologia moral (Idem, 2005; 2010). Para uma análise a respeito dessa questão,
ver também Melo (2013c). De outro lado, assumiu mais abertamente que a “reconstrução normativa” permitiria um
ancoramento social da crítica em termos objetivos. Suas tentativas peculiares de fundamentação de uma “teoria da
justiça” tomam esse caminho. Cf. Honneth (2007; 2011).

417
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ca (e da categoria do reconhecimento em especial) fossem modificados. O


reconhecimento já não poderia compreender a totalidade das gramáticas
morais dos conflitos sociais, reduzindo-se a determinadas dimensões da
justiça social. Além disso, desloca a fundamentação de uma fenomenolo-
gia empiricamente controlada das experiências de desrespeito, até então
ligadas intrinsecamente à gramática moral dos conflitos sociais, para uma
“reconstrução normativa” em que à teoria compete avaliar criticamente
em que medida as instituições e práticas éticas realizam de maneira efetiva
os valores universais da justiça e da liberdade que encarnam.

III

As críticas de Fraser a Honneth tocam em dificuldades reais do con-


ceito de reconhecimento. Tal conceito possui um potencial explicativo
muito importante para a compreensão de certos movimentos sociais e de
determinadas pautas políticas do presente. No entanto, fica ainda o desa-
fio –, que, além da abordagem teórica, precisa ser empiricamente enfren-
tado – de saber se é fecundo subsumir a integralidade das reivindicações
políticas atuais a uma categoria unitária, por mais que isso seja custoso
para uma teoria com pretensões sistemáticas. O próprio Honneth por ve-
zes admite que esse tipo de resposta só poderia ser oferecido em termos
empíricos. Mas, isso não diminui o risco da redução, ainda mais quando
se trata de renovar o vínculo da teoria com a práxis: uma categoria teórica
que não é mais capaz de ser empiricamente verificada pode se desvincular
de seu contexto prático de surgimento. É nesse sentido que o conceito de
reconhecimento de Honneth correria o risco de ser um ponto de referência
empírico inadequado para a teoria política contemporânea.
A relação entre teoria e práxis também se perde quando o conceito de
reconhecimento não encontra mais sua gênese na perspectiva dos sujeitos.
Isso cria, parece-me, uma necessidade de que a teoria volte a ter um papel
prioritário na mediação com a práxis. Pois falar agora de justiça consiste não
apenas em reconstruir experiências dos sujeitos, nas quais fosse possível ava-
liar demandas e relações sociais patológicas e legítimas, mas falar de critérios
de justiça teoricamente bem fundamentados. Por isso, Honneth se preocupa-
ria cada vez mais em estabelecer uma “teoria da justiça”, ainda que em termos
hegelianos (Idem, 2007; 2011). Por conseguinte, o paradigma da “luta” vai fi-
cando de lado, e a ideia de uma teoria capaz de reconstruir padrões norma-
tivos ou princípios de justiça que servem de critério crítico salta ao primeiro
plano (tanto em Honneth quanto, de certo modo, em Fraser, vale dizer).
Esse provável primado da teoria tem também déficits políticos. Se
de um lado havia um visível movimento da teoria crítica em compreender
a gênese das categorias críticas com base na reconstrução de experiências

418
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

pré-teóricas e inscrever suas pretensões normativas fundamentalmente


nas interações sociais (no domínio amplo e paradigmático do que Honneth
entende por “social”), de outro lado a dimensão conflituosa intrínseca a
tais relações, bem como a elucidação dos contextos de surgimento basea-
dos em diagnósticos de tempo, parecem ter diminuído seu papel central na
fundamentação dos conceitos críticos utilizados (MELO; WERLE, 2013).
No entanto, para restabelecer a vinculação da teoria com a práxis, não se-
ria fundamental que a reconstrução de conceitos crítico-normativos esti-
vesse enraizada na gênese prático-política dos conflitos sociais? Entendo
que a junção entre preocupações da teoria crítica e da teoria política nos
permitiria tomar a via de uma politização do social, caracterizando, na ver-
dade, algo como um desdobramento à resposta paradigmática de Honneth
contra o déficit sociológico atribuído à formulação habermasiana da críti-
ca da sociedade (HONNETH, 1989)6.
Diversas pesquisas empíricas têm sido desenvolvidas ultimamente
com base no conceito de reconhecimento (O’NEILL; SMITH, 2012). Boa
parte delas ainda nos aponta a fecundidade do conceito para a compreen-
são do problema originário que pretendia abarcar, a saber, elucidar nor-
mativamente os processos práticos pelos quais a experiência negativa do
desrespeito seria capaz de levar os sujeitos a uma luta moralmente motiva-
da. Mas, a compreensão de tal processo precisa ser politicamente contex-
tualizada. Isso significa assumir como ponto de partida dimensões sociais
conflituosas, que, depois de bem compreendidas, podem ou não ser expli-
cadas e interpretadas com base no conceito de reconhecimento. Contudo,
esse potencial explicativo depende do fato de o conceito de reconhecimento
ser produzido pela luta: tal conceito não deveria se transformar em um mo-
delo independente a ser aplicado de maneira generalizada a casos, que, se
bem verificados, podem inclusive ser contrários às características norma-
tivas que o conceito propõe. Sujeitos podem lutar, por exemplo, contra o
reconhecimento por parte do outro, insistindo na autonomia radical de
autoprodução da própria identidade. Nesse caso, o reconhecimento seria
fonte de patologias, reduzindo seu potencial crítico-normativo7.
Se o propósito de evitar um primado da teoria sobre a práxis puder
ser levado a cabo pelo conceito de reconhecimento, não há como reduzir
o papel da “luta”. Mas, o risco da psicologização, por sua vez, só poderia
ser abrandado se o diagnóstico dos conflitos sociais e políticos tomasse a
frente da centralidade da perspectiva ética, ou seja, de uma teoria fundada

6 Isso significa aceitar um tipo de fundamentação nos termos inaugurados por Jürgen Habermas (não produtivista,
não economicista) e seguido por muitos teóricos críticos depois dele, especialmente Honneth. Contudo, este oscila
entre estratégias “antropológicas”, “sociológicas” e “psicológicas” de fundamentação. Cf. Melo (2013c). Recentemente,
porém, Honneth apontou, sem maiores detalhes, para a necessidade atual da teoria crítica em desconfiar de saídas
economicistas e se debruçar sobre dimensões mais “políticas”. Cf. Honneth (2013).
7 Um tipo de problema que o próprio Honneth nunca conseguiu resolver. Cf. Honneth (2010).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

na autorrealização individual. As hipóteses psicológicas (ou mesmo an-


tropológicas) que apontam para fenômenos de reconhecimento, ou ainda
esferas de integração social que pressuporiam reconhecimentos intersub-
jetivos, colocaram de lado o vínculo com aquele tipo de práxis que ani-
mava as preocupações anteriores de Honneth, constituído, como procurei
mostrar, juntamente com as motivações dos conflitos sociais. Entretanto,
o potencial explicativo do conceito de luta por reconhecimento poderia
ainda ser amplamente explorado na teoria política contemporânea. Suas
aplicações empíricas e teóricas precisam estar entrelaçadas com um pro-
jeto de pesquisa social abrangente, já que seu rico horizonte de aplicação
compreende diferentes áreas da vida política e social, de mobilizações e
tematizações públicas, pautas de movimentos sociais e lutas por direitos.

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422
23
Reconstrução Normativa e Socialidade da Razão:
notas sobre a discussão contemporânea em torno
da noção hegeliana de reconhecimento

Erick Lima

Introdução – Reconhecimento: da teoria à prática, e de volta

A noção de reconhecimento (Anerkennung) de Hegel, forjada por


ele desde sua apropriação crítica de Fichte, tem hoje impacto em dis-
cussões na epistemologia, na filosofia social, na filosofia política e na
teoria das ciências humanas. É possível mostrar, ainda, que em Hegel a
noção de reconhecimento tinha implicações epistemológicas, práticas
e sociopolíticas. Todas essas decorrências provêm do fato de que Hegel
vincula a noção de reconhecimento ao seu principal conceito, a liberda-
de enquanto autodeterminação.
Em muitas passagens, Hegel sugere que o reconhecimento, enquan-
to dimensão intersubjetiva constitutiva dos conceitos, é o recurso capaz de
neutralizar a não liberdade do empirismo e, com isso, também do idealis-
mo transcendental, na medida em que este permanece atrelado ao subje-
tivismo. Na fase mais amadurecida de seu pensamento, Hegel critica em
conjunto Kant e Hume na “segunda posição do pensamento a respeito da
objetividade” (Idem, 1970, 8, p. 105) por sua limitação à diferença intrans-
ponível entre forma e conteúdo (Ibidem, p. 110) ao Unterschied der Elemente.
Hegel dá a entender, muitas vezes, que a permanência de Kant nesse pon-
to de vista constitui tanto a limitação de sua filosofia crítica quanto, por
isso mesmo, sua dívida inaceitável com relação ao empirismo clássico. A
conclusão da crítica de Hegel ao empirismo é particularmente interessan-
te para a conexão entre normatividade conceitual e liberdade, construí-
da com base na noção de reconhecimento. “[E]nquanto esse sensível é – e
permanece – um dado (ein Gegebenes) para o empirismo, temos uma dou-
trina da não liberdade, porque a liberdade consiste justamente em que eu
não tenha diante de mim nada absolutamente outro, mas dependa de um
conteúdo que sou eu mesmo.” (Ibidem, p. 110). Esse tema – a relação entre

423
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

cognição, liberdade e reconhecimento recíproco – tem sido explorado atu-


almente principalmente por McDowell e Brandom, os quais defendem, so-
bretudo a partir da dimensão intersubjetiva dos conceitos que estruturam
a experiência, a compatibilidade do idealismo hegeliano com um empi-
rismo mínimo, bem como sua refutação drástica do “mito do dado”. “Para
Hegel, assim como para Kant, todas as normas são normas conceituais: fa-
lar de normas e falar de conceitos são duas maneiras de caracterizar um
fenômeno comum fundamental. A primeira coisa a perceber é que Hegel
entende conceitos, o conteúdo das normas, como essencialmente articula-
do inferencialmente.” (BRANDOM, 2002, p. 223). Tudo se passa, portanto,
como se Hegel, lançando mão de um conceito de reconhecimento que es-
trutura seu próprio conceito de liberdade, tivesse logrado superar as apo-
rias impostas pela tese empirista da realidade como previamente dada – e
isso num sentido em que não se despede totalmente do “empirismo mí-
nimo” associado ao realismo epistemológico –, de maneira a desenvolver
um conceito inferencial, normativo, intersubjetivo e comunicacional de
cognição, o qual é, por isso mesmo, não extrinsecamente limitado, já que
proveniente da superação da diferença entre forma e conteúdo.
Brandom resume numa brilhante colocação a transição feita por He-
gel por meio da noção de reconhecimento entre a dimensão epistemológi-
co-linguística e prático-social da normatividade calcada na autodetermina-
ção. “A ideia mestra, que anima e estrutura a lógica e a metafísica de Hegel,
é sua maneira de desenvolver, de acordo com o modelo de autoridade re-
cíproca e responsabilidade cujo paradigma é o reconhecimento recíproco,
o insight de Kant-Rousseau acerca do tipo fundamental de normatividade
baseada na autonomia.” (BRANDOM, op. cit., p. 234). A questão que me pa-
rece essencial é perceber que para Hegel a unilateralidade e o subjetivismo,
constitutivos não só da epistemologia, mas também da autocompreensão
da modernidade (HABERMAS, 1988, p. 38 e seg.), da percepção que a filoso-
fia moderna tem de seu paradigma de justificação, não se pronunciam por
isso apenas do ponto de visto epistemológico e ontológico, mas também se
deixam perseguir no rastro de seus efeitos e tendências inscritos na reali-
dade social (HONNETH, 2008, p. 393), nas práticas compartilhadas, “reco-
nhecidas”, incorporadas em instituições, compreendidas aqui em sentido
bastante amplo. E a base dessa complexa e improvável transição é apoiada
pela estruturação recognoscente da liberdade prática. Para Hegel, a consci-
ência universal, na qual os singulares reaparecem numa união amalgamada
pelo conhecimento afirmativo e recíproco de si no outro, constitui “a for-
ma da consciência da substância de toda espiritualidade essencial (die Form
des Bewusstseins der Substanz jeder wesentlichen Geistigkeit)” (Idem, p. 1995, §
436). O resultado do processo de reconhecimento recíproco é este “apare-

424
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cer do substancial” (Erscheinen des Substantiellen), o “vir a ser fenômeno” do


elemento “espiritual” no seu ser-aí. Na fórmula que designa o “verdadeiro
conceito de consciência-de-si”, “o eu que é um nós, e o nós que é eu”, o
qual marca o surgimento fenomenológico do espírito e da liberdade positi-
va a partir do reconhecimento recíproco, trata-se do “âmbito do normativo
enquanto produzido pelos processos de reconhecimento mútuo.” (BRAN-
DOM, 2002, p. 222). Ao conceber a liberdade positiva enquanto concretiza-
da pelo ser-reconhecido, e não simplesmente como autodeterminação da
vontade individual, Hegel está, na verdade, honrando uma intuição de ju-
ventude – “a mais elevada comunidade é a mais elevada liberdade, tanto se-
gundo o poder, quanto segundo a execução.” (HEGEL, 1970, 2, p. 82) – e, ao
mesmo tempo, introduzindo a forma da base institucional, ou seja, o modo
consciente, reflexivo, potencialmente moderno que tem de servir como sua
mediação adequada: “A liberdade, configurada em efetividade de um mun-
do, recebe a forma da necessidade, cuja conexão substancial é o sistema das
determinações da liberdade, e cuja conexão fenomênica é como poder (Ma-
cht), o ser-reconhecido, isto é, seu vigorar na consciência” (Ibidem, p. 302).
Tal resultado é da mais alta importância, principalmente se tivermos em
vista o alcance da crítica hegeliana às concepções limitadas da liberdade
individual por meio do conceito de vontade livre em-si-e-para-si. Portanto,
o esforço de Hegel se deixa apreender, do ponto de vista da filosofia prática,
como tentativa de retomar o conceito kantiano-rousseauísta de liberdade
como autodeterminação, compreendendo-o no quadro geral do problema
aristotélico das condições societárias de autoefetivação.
Por conseguinte, não soa de maneira nenhuma inesperado que a crí-
tica imanente que Hegel faz à concepção tipicamente moderna de liberdade
como livre-arbítrio tenha fortes conexões com a crítica à moderna teoria do
conhecimento. Em vista da tese de Hegel de que o “conceito concreto de
liberdade” (Ibidem, p. 55), aquele em que se faz jus à dinâmica da autodeter-
minação sem “reificar” a vontade (Ibidem, p. 54/55), é o fundamento dos mo-
mentos abstratos e unilaterais, entendendo-se melhor como a filosofia prá-
tica tradicional possa ter privilegiado a concepção da liberdade da vontade
como arbítrio (Ibidem, p. 64). Hegel entende o arbítrio como contradição
porque nele se acirra e radicaliza a oposição estanque entre os momentos
na verdade constitutivos da liberdade da vontade, a infinitude formal da
capacidade indeterminada de escolher (Ibidem, p. 64), que se encontra acima
dos diversos impulsos, bem como dos tipos singulares de sua satisfação e
efetivação, um conteúdo apenas finito da autodeterminação. A situação da
liberdade da vontade como arbítrio é uma de pretensa exterioridade dos
conteúdos em relação ao eu (Ibidem, p. 64) e, por conseguinte, uma de para-
doxal contingência, uma vez que tanto se pretende indeterminado por con-

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Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

teúdos singulares quanto tem o conteúdo extrínseco como necessário. “O


arbítrio… é a vontade como contradição” (Ibidem, p. 65), o paradoxo de um
conteúdo contingente, mas necessário.
Eis por que, em vista da separação estanque entre forma e conteúdo,
subjetividade e objetividade, indeterminação e determinação, Hegel associa
o arbítrio a uma posição dogmática, centrada numa autodeterminação pura-
mente subjetiva (Ibidem, p. 65), que sucumbe com rara facilidade às investidas
do determinismo (Ibidem, p. 65), bem como também com o dogmatismo em-
pirista1, que compreende o conteúdo como “algo previamente encontrado”
(Ibidem, p. 65). Mas, a partir dessa associação, seria lícito entender tais in-
suficiências teóricas como expressões epistemológicas de posturas práticas
unilaterais, ou seja, manifestações, ao nível da teoria do conhecimento, do
ideário desenvolvido em torno da “autoatividade formal” (Ibidem, p. 66). O
arbítrio (Willkür), que implica na “indeterminidade do eu e na determinidade
de um conteúdo” (Ibidem, p. 66), não apenas é a compreensão “mais usual
que se tem a respeito da liberdade” (Ibidem, p. 65), mas, por isso mesmo, a
liberdade da vontade em sua inverdade2, “na qual não se encontra nenhum
pressentimento do que seja vontade livre em si e para si, o direito e a etici-
dade” (Ibidem, p. 65). Isso ocorre, sugere Hegel, porque, “se eu quero o que é
racional, não ajo enquanto indivíduo particular, mas, sim, segundo os concei-
tos de uma eticidade em geral: numa ação ética faço valer não a mim mesmo,
mas a Coisa… O racional é a estrada principal, na qual cada um anda, na
qual ninguém se distingue.” (Ibidem, p. 66). Por não ser capaz de penetrar nas
minúcias de uma autodeterminação imanente sempre em jogo na eticidade
em geral, em mundos da vida concretos (PIPPIN, 2008, p. 262), a liberdade
da vontade como arbítrio condensa, em termos de conceitos práticos, a má
infinitude (Ibidem, p. 67), eternamente insatisfeita com a simples finitude da
determinação, com seu caráter por princípio inapropriado à pureza da forma,
má infinitude esta que desencadeia, mormente numa modernidade induzida
aos processos de autocertificação e autojustificação, a alternância tediosa das
adesões conteudísticas, um processo no qual, por afetar estruturalmente o
sentido ético, institucional e compartilhado das ações, bem que poderia ser
interpretado como uma das facetas do “sofrimento de indeterminação”3.

1 Aproveitando a aproximação proposta por Hegel entre sua radicalização não representacionalista da crítica kantiana
ao empirismo e o conceito de liberdade, lembramos que, numa célebre sentença no Naturrechtsaufsatz, Hegel sustenta
que “uma liberdade para a qual houvesse algo realmente exterior e estranho não é nenhuma liberdade: a essência dela e
sua definição formal é, justamente, que nada há de absolutamente exterior.” (Ibidem, p. 476). A solução hegeliana para a
cisão representacionalista entre forma e conteúdo é a visualização dialética de sua originária coabitação.
2 “Se na consideração [da liberdade] se fica no arbítrio, no fato de que o homem possa fazer isto ou aquilo, isso é,
sem dúvida, a sua liberdade, porém se tomamos firmemente em consideração que o conteúdo é dado, então o homem
será por ele determinado e, nessa perspectiva, precisamente, não é mais livre.” (Ibidem, p. 67).
3 Entendo por essa expressão aquela perspectiva por meio da qual Honneth procura ver, na Filosofia do Direito
de Hegel, uma conexão entre teoria da justiça e teoria crítica da sociedade. Trata-se de pensar uma teoria da justiça
cujo programa esteja centrado na proteção daqueles tecidos sociais, potencialmente incorporados nas práticas

426
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Intersubjetividade, Razão Teórica e Linguagem

A principal conexão do conceito de reconhecimento com as discus-


sões epistemológicas pode ser delineada como correspondendo à dimensão
de uma mediação intersubjetiva da validade objetiva, um tipo de alternativa
que, parece-me, fora tangenciada por Sellars, Austin e Wittgenstein nos
anos 1950. Sellars pretende, em suma, um resgate de Hegel com o intuito de
resolver as aporias da filosofia analítica com respeito ao que chama, recupe-
rando Russell, de “mito do dado” (REDDING, 2007, p. 29; SELLARS, 1997,
p. 13 e seg.). Continuadores desse filósofo tomaram a mediação intersubjetiva
da validade como ainda mais central (REDDING, 2007, capítulo 6), a qual,
apesar do risco contextualista de uma assimilação da objetividade da expe-
riência à intersubjetividade da comunicação (RORTY, 2003), ou seja, de uma
eventual projeção do realismo conceitual do “mundo da vida” sobre o mun-
do objetivo (HABERMAS, 2004, p. 170 e 174), conecta-se muito intimamente
com as discussões desencadeadas pelo último, Wittgenstein4, com respeito
a uma articulação mais intrínseca das dimensões representacional e comu-
nicacional da linguagem (BERNSTEIN, 2010, p. 125 e seg.). Finalmente, com
Robert Brandom, a mediação intersubjetiva da validade se converte numa tese
ampla e consistente acerca da articulação inferencial e linguística da cog-
nição, amparada no holismo semântico e na teoria inferencial do conteú-
do, constituindo-se, assim, uma proposta em filosofia analítica refratária ao
construtivismo linguístico, ao mentalismo e ao representacionalismo ato-
mista, tendências mais originárias no registro analítico de discussão.
Eis por que, por exemplo, os seguidores de Sellars defendem a ideia
de que o desenvolvimento da “percepção” para o “entendimento” na Feno-
menologia conteria uma ilustração do “contextualismo cognitivo” de He-
gel5, assim como o desenvolvimento da “consciência” para a “consciência
de si” conteria a demonstração da necessidade de um conceito inferencial-

intersubjetivamente mediadas, imprescindíveis à plena efetivação da liberdade do indivíduo. Por conseguinte, o


“sofrimento de indeterminação” é a patologia estrutural que acomete os agentes modernos graças ao fato de que
os sistemas deficientes de ação e racionalidade que têm de cotidianamente acionar tendem a desconectá-los dos
contextos concretos de motivação (HONNETH, 2007, p. 77 e seg.).
4 “Eu percebo Hegel, já na Fenomenologia do Espírito, de 1807, procurando solucionar uma porção de questões cujo
acesso nós somente recentemente recuperamos, em grande medida, devido aos esforços do Wittgenstein tardio. Eu
tenho em mente questões concernentes à possibilidade de compreensão da objetividade conceitual no contexto de
uma consideração prático-social das normas de conteúdo semântico. Eu também leio Hegel como oferecendo uma
visão inferencialista do conteúdo semântico e, por conseguinte, como o primeiro filósofo a deparar-se com a natureza
e as consequências do holismo semântico. Meu interesse não é, de forma alguma, o do antiquário. Eu creio que nós
temos muito a aprender de Hegel em questões de importância primordial, questões para as quais nós não vemos hoje,
por nenhum meio, uma via ao seu âmago.” (Robert Brandom, Entrevista a Carlo Penco).
5 Redding, 2007, 18. Sobre este tópico, ver a discussão feita por Brandom sobre a articulação da noção de
incompatibilidade material, enquanto o que permite a plena determinação de um conteúdo como plenamente
individuado, ou, segundo Brandom, aquilo que Hegel chama de negação determinada, diferenciando-o da simples
negação de propriedades no capítulo sobre a “Percepção” (Brandom, 2002, 179, 180, 184) e em relação ao que ocorre
no capítulo sobre o “Entendimento”.

427
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

mente articulado de conhecimento6, como movimento imanente desenca-


deado pelas insuficiências e instabilidade de uma forma não inferencial,
pretensamente autossuficiente, de cognição7. Nesse registro, a noção de
reconhecimento corresponde à mediação entre a intersubjetividade dos
sujeitos e a compreensão autoconsciente e compartilhada daquilo que
pode pretender ser legítimo ou “revestido de autoridade” (authoritative rea-
son), compondo, assim, o núcleo da concepção hegeliana de espírito (Geist)
enquanto “forma autoconsciente de vida”, enquanto “forma de ‘espaço so-
cial’ refletindo sobre si mesmo acerca de se é satisfatório em seus próprios
termos” (PINKARD, 1996, p. 8-9).
De acordo com isso, tais inflexões na Fenomenologia, diretivas para
toda obra, posto que contêm a gênese fenomenológica das noções de espí-
rito e conceito, caracterizariam uma radicalização da “revolução copernica-
na”, na medida em que a suspensão do entendimento na autoconsciência,
além de solapar o absolutismo reclamado pelo representacionalismo, signi-
ficaria que doravante o objeto da reflexão filosófica não são mais “coisas em
si mesmas”, essências ou indivíduos com os quais temos acquaintance, mas
a posição que assumimos quando conhecemos as coisas em si desta maneira
específica, no “espaço de razões”, ou seja, no emprego de e compromisso
com “regras e normas semânticas de pensamento inferencial” (HABER-
MAS, 2004, p. 136). A inflexão representa que de agora em diante se tem a ver
com a questão geral de que a maneira “como “nós” nos relacionamos com o
mundo depende de como “nós” nos entendemos ser”, do “formar perspecti-
vas acerca de nós mesmos como parte da pretensão de conhecer as coisas”8.

6 Pinkard entende que a autoconsciência se torna, “ao menos minimamente [,] a assunção de uma posição no ‘espaço
de social’” (Idem, 1996, p. 7), isto é, o criticismo para avaliação de motivos elencados nas práticas sociais de fornecer
razões (Reason-giving). Sendo assim, segundo Pinkard, “o fornecimento de razões… é ele mesmo uma prática social que
atua no âmbito de uma forma determinada de “espaço social”, permitindo alguns tipos de inferência e falhando em
permitir outras” (Ibidem, p. 8). Eis por que, sendo uma consideração reflexiva e autoconsciente dos padrões e normas que
reivindicam legitimidade, “todas estas formas de autoconsciência têm uma estrutura mediada (isto é, inferencial).” (Ibidem,
p. 8) Do ponto de vista histórico-filosófico, a tese de uma alegada “socialidade da razão”, a qual pretende que esteja em
curso, na Fenomenologia, “uma teoria normativa do agir racional de indivíduos ocupando posições no interior de um
“espaço social” compartilhado e governado por regras” (REDDING, 2007, p. 14), representa uma estreita relação entre o
idealismo alemão (Kant, Fichte e Hegel) e a “pragmática linguística” surgida com o último Wittgenstein.
7 (PINKARD, 1996, p. 46). Segundo Brandom, a seção “consciência” da Fenomenologia do Espírito tem por
objetivo primordial investigar e começar a tornar explícito o que é implícito na ideia dos fornecimentos imediatos
dos sentidos enquanto possuindo conteúdo determinado. Nesse programa, a tese mais abrangente de Hegel seria
que a determinabilidade do conteúdo exige mediação (Vermittlung), o que Brandom interpreta como equivalendo à
articulação inferencial. Um dos principais objetivos de Hegel nessa passagem é “desdobrar os compromissos implícitos
nas concepções holistas de conteúdo e reunir as matérias-primas necessárias à explicação do mesmo.” (BRANDOM,
2002, p. 187). Nesse sentido, “não se pode entender as relações de incompatibilidade objetiva que articula a estrutura
conceitual relacional em virtude da qual o mundo é determinado, a não ser que se entendam os processos e práticas
constituindo o reconhecimento (acknowledgment) da incompatibilidade subjetiva dos compromissos que são, por meio
disso, tratados como representações de tal mundo.” (Ibidem, p. 193).
8 Eis aí o fundamento da tese da “socialidade da razão”: “Nós nos afastamos da figura representacionalista do
conhecimento para a ideia de atividades socialmente situadas de fornecimento de razões (reason-giving). Nós nos
afastamos, então, da figura de nós mesmos como “sujeitos” representando o mundo para uma compreensão de nós
mesmos como participantes em várias práticas sociais historicamente determinadas.” (PINKARD, 1996, p. 44).

428
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Assim, creio poder dizer que, a partir da noção de reconhecimento


e da questão da articulação entre objetividade e intersubjetividade, Hegel
acaba por antecipar um problema de vital importância na filosofia pós-
-wittgensteiniana da linguagem, particularmente sob a perspectiva das re-
lações entre semântica e pragmática9. Ao derivar de sua relativização da
ênfase tradicional sobre o papel descritivo ou representacional das senten-
ças (WITTGENSTEIN, 1984, 1, p. 23 e 24), a tese de que essa função cons-
tatativa dos proferimentos se acha possibilitada por determinadas circuns-
tâncias pragmáticas, isto é, elementos que dizem respeito à relação dos
falantes com os signos (Ibidem, p. 25, 26 e 27), Wittgenstein prepara uma
tese que vai ser muito influente sobre os expoentes da tradição pragmáti-
ca, em especial por Austin, a saber: a unidade fundamental entre semân-
tica e pragmática, entre conteúdo proposicional e força ilocucionária, isto
é, a tese de que referência e predicação somente são possíveis como partes
integrantes de um ato de fala. Assim como para Hegel, o mais adequado
para Austin, do ponto de vista de uma consideração da práxis comunica-
tiva, seria justamente a mediação entre intersubjetividade e objetividade,
uma concepção mais abrangente da linguagem como atividade, como algo,
no jargão de Hegel, espiritual. É nesse sentido que a teoria dos atos de fala
traz a vantagem de articular a perspectiva pragmática da relação inter-
subjetiva entre falante e ouvinte com a perspectiva semântica da relação
objetiva da linguagem ao mundo (HABERMAS, 2004, p. 8).

Reconstrução normativa e socialidade da razão

Ao longo das últimas décadas, Robert Pippin e Axel Honneth têm


se notabilizado, dentre outras coisas, também como instigantes e inspira-
dores leitores de Hegel. Em certo sentido, o fascínio que ambos voltam a
exercer a partir do texto de Hegel parece constituir um paralelo, do ponto
de vista da filosofia prática e da teoria da justiça, com aquela revitalização
que desde os anos 1990 vem sendo desencadeada, do ponto de vista dos
temas linguísticos e epistemológicos, pelos famosos hegelianos de Pitts-
burg, Robert Brandom e John McDowell.
Via de regra, Pippin tem se pronunciado mais sobre suas ressalvas,
mais ou menos pontuais, em relação à apropriação de Hegel pretendida por
Honneth. Penso que a melhor forma de expressar a perspectiva geral assu-
mida por Pippin frente ao hegelianismo de Honneth se encontre na frase

9 No início das Investigações Filosóficas, Wittgenstein vincula uma das diretrizes da “visão agostiniana da linguagem”
segundo a qual “sentenças são combinações de nomes”, a decorrências emblemáticas. A única função da linguagem
seria representar a realidade, as palavras se refeririam aos objetos e as frases descreveriam suas concatenações (Idem,
1984, 1, p. 237), uma defesa da função puramente descritiva das sentenças, de uma ênfase na função representacional
ou descritivista da linguagem (Ibidem, p. 250).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

com a qual abre um recente artigo: “Eu gostaria de expressar solidariedade


entusiástica à herança hegeliana de Axel Honneth, bem como à sua transfor-
mação de várias ideias centrais de Hegel, mas queria também expressar um
desacordo principal. Este desacordo não se dá tanto com relação a algo que
ele diz, mas muito mais com algo que não diz. Trata-se de sua rejeição da
filosofia teórica de Hegel e, portanto, sua tentativa de reconstruir a filosofia
prática de Hegel sem se apoiar na filosofia teórica.” (1) Penso que Pippin tem
duas grandes críticas à leitura de Hegel feita por Honneth, uma geral e outra
específica. Aquela mais específica, desenvolvida em maiores detalhes e de-
corrências em Hegel’s Practical Philosophy” (2008), consiste no seguinte: “se
nós pensamos o reconhecimento tal como Axel Honneth o retrata (de forma
claramente inspirada em Hegel), como relações de amor, respeito e estima,
então nós estamos no caminho para tratar o não reconhecimento, a ausên-
cia de tais bens sociais, como um prejuízo social, um tal que deveria ser
corrigido de alguma maneira. Tratar a teoria hegeliana como sendo sobre
um elemento-chave na realização da liberdade humana seria coerente com
sua abordagem apenas se ser-amado, ser-respeitado e ser-estimado fossem
constituintes necessários de uma vida livre, e eu não acho que as coisas se
passam dessa forma, ou que Hegel pensasse que as coisas se dessem assim.
A questão para ele não é, em nenhum sentido convencional, um problema
psicológico, mesmo, em primeira medida, um problema de prejuízo psico-
lógico.” (PIPPIN, 2008, p. 183). Por mais que esse problema seja conside-
ravelmente interessante, não pretendo me ocupar dele aqui, nem de suas
possíveis decorrências, se é que as há, tanto para a leitura de Hegel proposta
por Honneth quanto mesmo para aspectos constitutivos de sua teoria social.
Talvez se pudesse dizer que a crítica de psicologismo fosse mais contunden-
te para Luta por Reconhecimento e Sofrimento de Indeterminação, mas já
não atinja da mesma forma Direito da Liberdade.
Na presente ocasião me interessa muito mais a crítica geral, a qual
denomino dessa maneira por ter a ver com o grau de pertinência da filoso-
fia primeira de Hegel para uma atualização de sua filosofia prática e social.
Em Sofrimento de Indeterminação, Honneth é enfático ao afirmar que,
embora esteja operando, em sua reatualização de Hegel, com ressalvas em
relação ao conceito substancialista de estado e à estruturação lógico-espe-
culativa da Filosofia do Direito (HONNETH, 2007, p. 50)10 – e, em última
instância, com o conceito ontológico de espírito –, apropria-se da compre-

10 Em Sofrimento de Indeterminação, Honneth é enfático ao afirmar que, embora esteja operando, em sua
reatualização de Hegel, com ressalvas em relação ao conceito substancialista de estado e à estruturação lógico-
especulativa da Filosofia do Direito (Idem, 2007, p. 50) – e, em última instância, com o conceito ontológico de
espírito –, apropria-se da compreensão da sociedade moderna por trás do conceito de espírito objetivo, o qual, “sob
a desconsideração de sua vinculação com o conjunto do sistema hegeliano, me parece conter a tese de que toda a
realidade social possui uma estrutura racional.” (Idem, 2007, p. 51).

430
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

ensão da sociedade moderna por trás do conceito de espírito objetivo, o


qual, “sob a desconsideração de sua vinculação com o conjunto do sistema
hegeliano, me parece conter a tese de que toda a realidade social possui
uma estrutura racional” (Ibidem, p. 51).
Pippin encontra duas premissas fundamentais na leitura que Honne-
th tem de Hegel. Por um lado, a concepção de liberdade social como reco-
nhecimento, ou como ser-junto-a-si-mesmo-no-seu-outro. Penso que uma
tal tese é tão importante para Honneth quanto ela é, de fato, importante
para Hegel. Afinal, mesmo na sua maturidade intelectual, Hegel estabe-
leceu a isomorfia entre a liberdade e o conhecimento afirmativo de si no
outro, estrutura prático-cognitiva à qual ele dá o nome de reconhecimento.
A segunda premissa que constitui a apropriação de Hegel por Honne-
th é, segundo Pippin, a tese da “socialidade da razão”, tese à qual Honneth
acabou de se referir e que acaba por fazer dele um autêntico neohegeliano na
medida em que o aproxima intensamente do panorama mais geral que tem
marcado, nos últimos 20 anos, o aproveitamento de intuições hegelianas na
filosofia teórica e na filosofia prática, tanto na América do Norte quanto na
Alemanha. Parece-me que é sobretudo no que concerne à tese da “socialida-
de da razão” que Pippin e Honneth travam sua mais contundente disputa,
disputa que acaba por se resumir à questão acerca de qual é o grau conve-
niente de absorção da filosofia teórica de Hegel necessário para sustentar
uma concepção enfática de constituição normativa das práticas comparti-
lhadas. Procederei aqui da seguinte forma: primeiramente, recordarei rápida
e esquematicamente do que Honneth tem entendido nos últimos anos por
reconstrução normativa (ainda nessa divisão); em seguida, mostrarei como a
ideia geral de uma reconstrução normativa se atrela de maneira mais geral
à tese da “socialidade da razão” (na próxima divisão). Tais passos poderiam
conduzir, num outro exercício de interpretação, à ideia de que na Filosofia
do Direito há, como quer Honneth, reconstrução normativa, mas que isso
não é incompatível com a tese, defendida por hegelianos mais radicais, de
que a socialidade da razão – e, com ela, a reconstrução normativa – depende
visceralmente de aspectos enfáticos da filosofia teórica de Hegel.
Gostaria de retomar, a princípio, de maneira muito genérica, traços
decisivos daquilo que Honneth entende como “reconstrução normativa”.
Para isso, me apoiarei em dois textos nos quais essa ideia é desenvolvida
em forte proximidade com o resgate pretendido por Honneth das posi-
ções defendidas por Hegel na Filosofia do Direito: os textos introdutórios
de Das Recht der Freiheit e o capítulo ao qual me referi acima em Das Ich
im Wir, aquele em que se pretende uma retomada do conteúdo da introdu-
ção à Filosofia do Direito, intitulado Das Reich der verwirklichten Freiheit:
Hegels Idee einer Rechtsphilosophie.

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O que mais interessa a Honneth na Filosofia do Direito de Hegel é o


modelo para um desenvolvimento dos princípios da justiça na forma direta
de uma análise da sociedade. O pressuposto para isso, que Honneth vê pre-
enchido pela Filosofia do Direito, consiste em que a sociedade moderna
possa ser compreendida, em suas esferas constitutivas, como “incorpora-
ções institucionais de determinados valores cuja reivindicação imanente
por efetivação possa servir de indicação para os respectivos princípios de
justiça específico a cada esfera.” (HONNETH, 2010, p. 9).
De uma maneira geral, poderíamos dizer que, segundo Honneth,
pelo fato de a Filosofia do Direito preencher essa condição, estaria nela
em curso uma “reconstrução normativa”.

Sob este título há que se entender um procedimento que tenta


transformar as intenções normativas de uma teoria da justiça
numa teoria da sociedade, ao tomar de maneira imanente valo-
res justificados diretamente como fio condutor para a seleção
e preparação do material empírico. As instituições e práticas
dadas são apresentadas e analisadas nos seus desempenhos
normativos na sequência em que possuem significância para a
incorporação e efetivação de valores socialmente legitimados.
“Reconstrução” deve então significar, no contexto deste pro-
cedimento, que, da massa de rotinas e instituições sociais, são
destacadas e representadas somente aquelas que podem va-
ler como imprescindíveis para a reprodução social. E porque
os fins da reprodução devem ser estipulados essencialmente
através dos valores aceitos, então reconstrução “normativa”
tem de significar, em relação com isso, elencar as rotinas e
instituições na apresentação sob o ponto de vista do quão forte
é sua contribuição na divisão do trabalho em prol da estabili-
zação e transformação desses valores (Idem, 2011, p. 23).

Num outro momento de clarificação metodológica de seu modelo de


teoria crítica, inspirado na dinâmica da Filosofia do Direito, Honneth promove
a visualização daquilo que constituiriam suas quatro premissas fundamentais:

Na tentativa de desenvolver, sob o itinerário de uma teoria so-


cial, uma concepção de justiça, tem-se de pressupor como uma
primeira premissa que a forma correspondente de reprodução
social de uma sociedade é determinada pelos valores e ideais
universais e compartilhados; tanto os fins da produção social
como os fins de sua integração social são regulados, em última
instância, por normas que possuem um caráter ético na medi-
da em que contém representações dos bens compartilhados.
Como segunda premissa, afirma-se, no sentido de uma primeira
aproximação, que o conceito de justiça não pode ser compre-
endido independentemente desses valores socialmente abran-
gentes. Há que valer como “justo” aquilo que, no interior de
uma sociedade, é apropriado, em termos de instituições e
práticas, a efetivar os valores aceitos como universais. Ape-

432
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

nas com a terceira premissa entra em cena, contudo, o que deve


significar mais precisamente desenvolver, com base nas duas
determinações precedentes, uma teoria da justiça como análi-
se da sociedade. Pretende-se dizer com isso que da multipli-
cidade da efetividade social se obtenham aquelas instituições
ou práticas – ou, falando-se metodicamente – reconstruam-se
normativamente aquelas instituições ou práticas que de fato
podem valer como apropriadas para assegurar e efetivar os
valores universais. Com a quarta premissa, deve-se finalmen-
te garantir que a utilização de um tal procedimento metódico
não conduza à mera afirmação das respectivas instâncias exis-
tentes da eticidade; na sua implementação estrita, a recons-
trução normativa terá antes de ser desenvolvida até o ponto
em possa se tornar claro, conforme o caso, em que medida as
instituições e práticas éticas não representam, de forma sufi-
cientemente abrangente e completa, os valores universais in-
corporados através delas (Ibidem, p. 29-30).11

Em Das Ich im Wir, Honneth adota inclusive uma formulação mais


estreitamente ligada ao programa apresentado por Hegel na Introdução
à Filosofia do Direito.

Hegel não quer proceder metodicamente de maneira a cons-


truir intelectualmente, em certa medida, as condições, con-
sideradas necessárias, para a liberdade individual, a fim de,
assim, empregá-las criticamente sobre a efetividade social.
Ao invés disso, ele pretender reconstruir normativamente
tais pressuposições no sentido de identificar, na efetivida-
de social das sociedades modernas, aquelas estruturas nas
quais elas já se incorporaram normativamente. Nós podemos
designar um tal método, o qual se nutre de uma certa con-
fiança, ainda que apoiada teoricamente, na racionalidade das
instituições sociais, como um procedimento de reconstrução
normativa (Idem, 2010, p. 40).

11 Uma das melhores caracterizações do problema da “reconstrução normativa” em Axel Honneth pode ser
encontrada num recente texto de Marcos Nobre, intitulado “Reconstrução em Dois Níveis”. Nesse texto, Nobre
mostra com enorme acurácia o significado do “paradigma crítico reconstrutivo” para a tradição da teoria crítica da
sociedade, evidenciando sua origem habermasiana e a forma diferenciada pela qual Honneth o desenvolve e
modifica ao longo os anos 1990, 2000 e 2010. Se, do ponto de vista da teoria crítica, Nobre detecta, a partir do
resgate do desenvolvimento proposto por Honneth para o modelo crítico reconstrutivo, a necessidade de que ele
seja desdobrado em dois níveis; do ponto de vista da avaliação da relação de Honneth à filosofia hegeliana, Nobre se
acha claramente orientado pela tese de que, “do ponto de vista da teoria crítica, um enorme pensador como Hegel
é ainda pré-crítico, no sentido que “crítica” adquiriu a partir de Marx. Apoiar-se na filosofia hegeliana, portanto, para
reconstruir experiências de liberdade social contemporâneas só tem sentido crítico se uma operação reconstrutiva
inaugural da própria tradição da teoria crítica já tiver sido realizada e puder orientar uma reconstrução de “segundo
nível” de Hegel.” (NOBRE In: MELLO, 2015, p. 50). Na medida em que toma esta posição com respeito à relação entre
Hegel e a reconstrução normativa, fica mais fácil entender por que Nobre endossa, mais fortemente do que Honneth,
a ideia de que as premissas da reconstrução normativa, às quais fiz referência acima, perfazem, como diz Nobre, uma
“estratégia de esquiva” (Ibidem, p. 43) em relação às premissas idealistas ligadas à metafísica hegeliana do espírito.
Para Nobre, mais até do que para Honneth, a reconstrução normativa em Hegel fica atrelada a uma reconstrução do
existente limitada pela racionalidade previamente estruturada do conceito, o qual põe, por assim dizer, os limites de
uma formação histórica racional (Ibidem, p. 44).

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Justamente esse tipo de formulação, mais específico à leitura pro-


posta por Honneth da Filosofia do Direito, constitui o ensejo para que
eu passe à segunda parte do meu argumento, qual seja: mostrar a rela-
ção da “reconstrução normativa” com o programa mais geral, persegui-
do por outras orientações do neohegelianismo, para usar uma expressão
compartilhada por Honneth e por Pippin, de que em Hegel haveria, em
geral, da juventude à maturidade, uma tese enfática acerca da socialidade
da razão. Apenas para que fique claro meu objetivo mais panorâmico nesse
exercício: creio que uma leitura da Filosofia do Direito pode mostrar que
essa tese, embora claramente presente no texto de Hegel, não é exatamen-
te passível de ser separada daquilo que poderíamos chamar de premissas
provenientes da filosofia teórica de Hegel.

Intersubjetividade, Razão Prática e Crítica

Depois de estudar o problema da intersubjetividade na filosofia de


Fichte, poderíamos nos perguntar: como o problema da convicção na rea-
lidade do mundo exterior se nutre da contraposição ao sujeito de algo não
redutível à unilateralidade da causação, mas que entra com ele numa rela-
ção de interpelação (Aufforderung)? Fichte talvez pense aqui, antecipando
Hegel, em algo como a dimensão intersubjetiva da validade objetiva, po-
sições intersubjetivamente resgatáveis assumidas no “espaço das razões”
(KNAPPIK, 2013, p. 11-15). Seja como for, o estudo dos textos de Fichte
nos fornece um instigante conceito normativo de sociedade: o modelo da
interpelação e reconhecimento tem de ser considerado, quando se trata de
seres racionais dotados de arbítrio, quanto à forma transcendental de re-
lação societária. Isso significa, no mínimo, que relações sociais historica-
mente determinadas se referem imediatamente a práticas intersubjetivas
de justificação pautadas pela autodeterminação. (LIMA, 2006, p. 25 e seg.)
Já o desenvolvimento do pensamento político hegeliano acaba por
mostrar o caráter prescindível, para uma percepção da modernidade polí-
tica, da restauração de formas de vida pré-modernas, capazes de refrear as
tendências destrutivas e fragmentadoras impostas pela concepção subjeti-
va da liberdade, e mesmo da liberdade como autodeterminação. Entretan-
to, um tanto paradoxalmente, o itinerário hegeliano incluiu a atribuição à
compreensão subjetivista da liberdade como autodeterminação de uma di-
mensão dotada de sensibilidade para aspectos institucionais, relativos às
práticas concretas de institucionalização dos processos modernos de jus-
tificação, por meio da qual a própria unilateralidade pudesse se tornar, na
verdade, em primeiro lugar legível. Hegel empreende essa sofisticada sín-
tese recorrendo ao componente “comunitarista” presente, por exemplo, em

434
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Platão, Aristóteles e Montesquieu. Mas, como não deseja comprometer o


alcance da concepção moderna dos processos de justificação, pensados a
partir da categoria de autodeterminação, com essa síntese se torna possível
pensar a normatividade moderna do ponto de vista dos processos institucio-
nais constitutivos de formas de vida e de práticas reconhecidas12, ou seja, a
visualização da maneira como processos especificamente modernos de legi-
timação estão ou podem estar inseridos nas práticas modernas. O objetivo
mais geral, poder-se-ia dizer, tornou-se pensar, em sua complementaridade,
os processos de justificação e sua concretização em práticas, explicitando,
assim, o sentido mais enfático em que a liberdade como autodeterminação
pode corresponder à realização moderna da liberdade. Eis por que poderí-
amos ver, num dos mais célebres parágrafos da introdução à Filosofia do
Direito, uma compreensão da dialética13 como transformação da concepção
kantiana de autodeterminação numa teoria da objetividade, numa ontologia
e numa teoria da compreensão, a qual se constitui pela relação intrínseca
entre a razão objetiva e a razão subjetiva, entre substância e sujeito, de tal
maneira que compreender, em filosofia prática, passa também a consistir na
apreensão conceitual (em sentido hegeliano) de uma miríade de práticas e
conceitos compartilhados, dotados de autoridade normativa.
Uma leitura da Filosofia do Direito fortemente inspirada por uma li-
gação entre dialética e intersubjetividade pode fazer vê-la como compatível
com um movimento de virada pragmática na ontologia, o qual prepara uma
noção instigante de ontologia social, de múltiplas decorrências, como cons-
tituída pelas práticas e conceitos compartilhados comunitariamente, ele-
mentos dotados de autoridade normativa. Parece-me que, depois de Sellars,
Pinkard foi o primeiro a chamar atenção para o comprometimento de Hegel
com esse paradigma. Do ponto de vista histórico-filosófico, a tese de uma
alegada “socialidade da razão”, a qual pretende que esteja em curso, na Feno-
menologia, “uma teoria normativa do agir racional de indivíduos ocupando
posições no interior de um “espaço social” compartilhado e governado por
regras” (REDDING, 2007. p. 14), representa uma estreita relação entre Hegel
e a “pragmática linguística” surgida com o último Wittgenstein14.

12 Pippin tem uma compreensão muito instigante dessa “racionalidade objetiva da ordem social, a ordem que
incorpora à pretensão a autoridade normativa de uma maneira consistente com a única origem possível de tal
autoridade: agentes livres, racionalmente autodeterminantes em relações inevitáveis de reconhecimento
recíproco.” (Idem, 2008, p. 236).
13 “A dialética superior do conceito não consiste em produzir e apreender a determinação meramente como barreira
e como contrário, mas, sim, em produzir e apreender a partir dela o conteúdo e o resultado positivos, enquanto
por essa via, unicamente, a dialética é desenvolvimento e progredir imanente… / Considerar algo racionalmente não
significa acrescentar de fora uma razão ao objeto e, por este intermédio, elaborá-lo, senão que o objeto é por si
mesmo racional; aqui é o espírito na sua liberdade, o ápice da razão autoconsciente, que se dá efetividade e se gera
como mundo existente; a ciência tem somente a tarefa de trazer à consciência esse trabalho próprio da razão da
coisa.” (HEGEL, op. cit., v. 7, p. 83/84).
14 “Compreender uma frase significa compreender uma linguagem. Compreender uma linguagem significa dominar

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Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Tal orientação interpretativa geral tem mais elementos do que eu pos-


sa perseguir na presente oportunidade. Por exemplo, parece-me que a com-
preensão proposta por Honneth para a filosofia prática de Hegel circunscre-
ve-lhe um potencial formidável que somente pode ser deslindado a partir da
tese da alegada “socialidade da razão”: a conexão entre a filosofia prática e a
teoria social pela via de uma percepção inspirada no “pragmatismo ético”15,
da “ontologia social”, do “entrelaçamento entre racionalidade e realidade
social” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 15). Os “[teóricos críticos] sus-
tentam uma conexão interna entre as relações patológicas e a condição da
racionalidade social… A tese de que as patologias sociais devem ser entendi-
das como resultado da racionalidade deficiente é tributária basicamente da
filosofia política de Hegel.” (HONNETH, 2008, p. 393).
Tal orientação se embasa numa percepção dos conceitos de “etici-
dade” e “espírito objetivo” em que concorrem elementos provenientes do
pragmatismo e da discussão do sofrimento social elaborada pela teoria
crítica (LIMA, 2013, p. 84-90). O conceito de “espírito objetivo” contém
“a tese de que toda realidade social possui uma estrutura racional, dian-
te da qual se devem evitar conceitos falsos ou insuficientes que levem a
consequências negativas no interior da própria vida social, uma vez que
essas encontram aí uma aplicação prática… Hegel quer afirmar, com sua
representação da sociedade como “espírito objetivo”, que a violação contra
argumentos racionais com os quais nossas práticas sociais sempre se en-

uma técnica.” (Idem, 1984, p. 199). A compreensão de frases é ligada, aqui, ao engajamento apropriado nas práticas
que tornam significativo determinado signo, nas práticas de seu uso, as quais são incorporadas em formas de
vida socioculturais. Compreender uma linguagem, isto é, a diversidade do entrelaçamento entre os elementos
linguísticos e as práticas compartilhadas é adquirir competências que habilitam à participação nestas atividades
regradas. Na linha dessa aproximação, Pippin entende o conceito hegeliano de espírito ou de “ordem normativa”
como “uma questão “lógica” ou categorial sobre o natural e o normativo, ou tal como Sellars primeiro o formulou,
o espaço das causas e o espaço das razões… É também verdade, portanto, que Hegel pensa os conceitos e normas
funcionalmente, em termos kantianos, como predicados de juízos possíveis, e então vai mais longe do que Kant ao
ligar toda possível compreensão do conteúdo conceitual e normativo ao uso efetivo nos limites de uma comunidade
linguística, orientada sensivelmente por normas ou pela emissão de juízos. Em outras palavras, enquanto a teoria
mais fundamental das categorias em Hegel é uma teoria da normatividade (normas para tornar o mundo inteligível
e para agir corretamente), não é uma teoria simplesmente formal, prescritiva. Conteúdo conceitual é compreendido
como fixado pelo uso efetivo, de maneira que não há nenhuma separação “ser/dever-ser”… essa interpretação
requer, em última instância, que a natureza da autoridade de tais coerções normativas e ideais seja autolegislada…
sob essas premissas, exercer a autoridade normativa em geral é compreendido enfaticamente como a expressão
de intenção no espaço público e social, funcionando como [norma] que autoriza somente se há um contexto social
suficientemente harmonioso e dotado de sentido, capaz de responder, de maneira correta, a possíveis desafios
apresentados a uma tal autoridade.” (PIPPIN, op. cit., p. 236).
15 Uma consideração da diferença entre moralidade e eticidade em termos da imbricação entre “intersubjetividade” e
“objetividade” (PIPPIN, op. cit., p. 262) facilita a percepção do pragmatismo ético. A “normatividade inerente às nossas
práticas de conhecimento e ação é irredutível, e a relação entre natureza e espírito, entre causalidade e normatividade,
deixa-se descrever de forma apropriada somente desde o interior dessas práticas.” (QUANTE, 2004, p. 13). Assim,
diretrizes como a “crítica de Hegel ao formalismo e ao ceticismo ético, sua defesa de um realismo ético com respeito
a práticas sociais e sua adesão a uma concepção de ética materialmente enriquecida”, bem como a ideia de que “as
práticas sociais são fundacionais”, são “traços fundamentais de um pragmatismo ético.” (Ibidem, p. 10/11) Para Quante,
“a tese hegeliana acerca da superação da moralidade na eticidade é para ser interpretada não de um ponto de vista da
teoria da validade… mas da perspectiva de uma teoria da fundamentação… toda argumentação moral tem de se apoiar
sobre premissas éticas pressupostas.” (Idem, 2011, p. 287) Nesse sentido, a “superação da moralidade na eticidade” se
deixaria ler como uma “estratégia pragmatista de fundamentação”. (Idem, op. cit., p. 293).

436
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

contram entrelaçadas num determinado tempo, causa dano e lesões à re-


alidade social” (HONNETH, 2007, p. 51/52). Daí que a violação dos funda-
mentos racionais que permeiam a realidade social não possa ocorrer sem
consequências deletérias para a relação a si dos participantes da interação,
isto é, “consequências práticas que refletem um sofrimento de indetermi-
nação.” (Ibidem, p. 79). Por outro lado, em sua crítica à moral deontológica,
Hegel opera, sob o título de “eticidade”, com a tese de que “na realidade
social, ao menos na modernidade, encontram-se dispostas esferas de ação
nas quais inclinações e normas morais, interesses e valores já se mistura-
ram anteriormente em formas de interação institucionalizadas.” (Ibidem, p.
52). Com essa ideia, Hegel se torna capaz de objetar a Kant num paralelo
à sua crítica ao “vestígio mentalista da teoria kantiana do conhecimento”
(Ibidem, p. 93), a abstração procedimental da síntese prática prévia entre norma-
tividade e práticas compartilhadas.
Tal tese de uma realidade social como incorporação da razão (Ibidem,
p. 95) permite a sensibilidade para “uma racionalidade suficiente que já
se manifestou em nossas mentalidades e tradições, em nossas normas e
valores, para podermos aceitá-las como um contexto social cujas prerroga-
tivas morais temos de pressupor geralmente como indubitáveis.” (Ibidem,
p. 96/97). Pippin consolida essa diretriz sustentando, a partir de Hegel,
uma noção de “racionalidade objetiva” que revoga a “perspectiva pré-ins-
titucional”. “O que Hegel pretende por racionalidade objetiva não pode,
portanto, ser interpretado como pretensões por um tipo indireto de ra-
cionalidade subjetiva, como se racionalidade desembocasse “naquilo que
agentes racionais capazes de escolha iriam querer”, ou “naquilo que com-
preenderia as condições objetivas necessárias para a atualização do livre
agir. Hegel parece ter em mente um sentido mais robusto de racionalidade
genuinamente objetiva.” (PIPPIN, op. cit., p. 262).
Aqui basta apreender a relação entre processos de justificação e práti-
cas compartilhadas, constitutiva dessa “ontologia social”, em seus contornos
gerais. Uma vez garantida a necessidade do conceito de direito por meio de
sua dedução ou demonstração, entendida por Hegel no sentido de “seu ter
vindo a ser enquanto resultado” (Idem, op. cit., v. 7, p. 30), deve-se

“olhar em torno aquilo que nas representações e na linguagem


lhe corresponde. Mas, o modo como este conceito é por si em
sua verdade e como ele é na representação não só pode ser diver-
so um do outro, senão que ele tem de sê-lo, também, quanto à
forma e à figura. Se, entretanto, a representação também não
é falsa quanto ao seu conteúdo, o conceito pode, certamen-
te, ser mostrado como contido nela, e, quanto à sua essência,
como nela presente, isto é, a representação pode ser erguida
à forma do conceito. Mas ela é tão pouco padrão de medida
e critério do conceito, necessário e verdadeiro por si mesmo,

437
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

que é antes ela que tem de tomar dele a sua verdade, e a partir
dele corrigir-se e reconhecer-se (sich aus ihm zu berichtigen und
zu erkennen).” (Ibidem, p. 31).

Com efeito, defende Hegel, para além (ou justamente pelo fato) de a
progressão categorial na Filosofia do Direito ocorrer em ritmo dialético,
a tese de que tenha como solo um conceito cuja necessidade em si e para
si já foi demonstrada como objetividade espiritual apropriada à moderni-
dade inviabiliza a linearidade de uma simples aplicação da estruturação
lógica do conceito ao âmbito jurídico. Ao contrário, justamente porque
o direito é o próprio conceito em seu tensionamento entre processos de
justificação e quadros institucionais com eles (possivelmente) condizen-
tes, a progressão categorial da Filosofia do Direito envolve sempre a de-
monstração do caráter verdadeiro da representação enquanto conteúdo
a partir da elevação dela, sobretudo em sua estruturação linguística, ao
conceito, isto é, à interpenetração dos processos de justificação da nor-
matividade e das práticas linguisticamente estruturadas e compartilha-
das nas formas de vida modernas. “Aqui, é preciso pressupor, a partir da
lógica filosófica, em que consiste o procedimento científico da Filosofia.”
(Ibidem, p. 31). Assim, a démarche dialética da ciência filosófica do direito,
que faz do caráter revolucionário dos processos de modernização – com-
preendidos no bojo de uma conexão imanente entre práticas e justifica-
ção – o cerne da Filosofia do Direito, consiste em deslindar a interpene-
tração da autocertificação e do quando institucional, da indeterminidade
e da determinação, da infinitude e da finitude. “A ideia mestra, que anima
e estrutura a lógica e a metafísica de Hegel, é sua maneira de desenvolver,
de acordo com o modelo de autoridade recíproca e responsabilidade cujo
paradigma é o reconhecimento recíproco, o insight de Kant-Rousseau
acerca do tipo fundamental de normatividade baseada na autonomia.”
(BRANDOM, op. cit., p. 234).

Conclusão: reconhecimento, teoria da justiça e


epistemologia das ciências humanas

Procuramos acima mostrar as direções mais gerais da lida con-


temporânea com a noção hegeliana de reconhecimento. Relacionado a
isso, eu pretendo ter sugerido e sustentado a tese de que há uma rica
interdependência entre as discussões epistemológicas e práticas relati-
vas ao reconhecimento, o que desembocou na ideia de que mesmo um
projeto arrojado de teoria da justiça e de crítica social, como aquele
embasado na “reconstrução normativa”, apenas pode ser compreendi-
do, no que tange à sua proveniência hegeliana, com base na aceitação

438
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

da tese da “socialidade da razão”. A partir daí, da adoção mesmo implí-


cita dessa ideia, é possível, então, à guisa de conclusão, delinear mais
claramente a maneira como a noção hegeliana de reconhecimento pode
ter desdobramentos em dois tipos de conexão, a saber: na conexão entre
teoria crítica e epistemologia das ciências humanas (1), e na conexão
entre teoria crítica e teoria da justiça (2).
(1) Influenciado em boa medida pela retomada por Hegel da discus-
são fichteana acerca da teoria da mediação intersubjetivista da consciên-
cia, Habermas tornou o vínculo entre a eticidade e reconhecimento perti-
nente não só para sua teoria da normatividade discursivamente resgatável
(Idem, 1989, p. 24), mas também para a reconstrução de determinados ne-
xos metodológicos das ciências humanas, sobretudo como contribuição
àquilo que permite o engate entre a pragmática formal e uma teoria mate-
rialista da sociedade (Idem, 2004, p. 94-95), a saber: uma noção de mundo da
vida estruturado linguisticamente, sustentáculo da peculiar relação entre
a pragmática universal e a teoria da ação comunicativa e, por conseguinte,
do engate da racionalidade procedimental nos processos de socialização e
individualização que tecem o mundo da vida. Habermas entende que o teor
filosófico inovador da teoria hegeliana do reconhecimento reside, priorita-
riamente, na possibilidade de reconduzir à unidade de um processo dialé-
tico os “impulsos” para a socialização e para a individualização, os quais,
na tradição “mentalista” – e, sobretudo, em sua guinada transcendental –
aparecem não relacionados como os princípios da pessoa em geral e do in-
divíduo impermutável. “[E]u somente adquiri esta autocompreensão como
pessoa e como indivíduo por meio de que eu cresci em uma determinada
comunidade. Comunidades existem essencialmente na figura de relações
de reconhecimento recíproco entre membros. É por esta estrutura inter-
subjetiva da comunitarização (Vergemeinschaftung) de pessoas individuais
que Hegel se deixa guiar na explicação lógica do conceito de ‘universal
concreto’ ou de ‘totalidade’” (HABERMAS, 2004, p. 200).
(2) A partir da ligação entre reconhecimento e liberdade prática, tor-
nou-se também possível estabelecer a relação entre teoria crítica e teoria da
justiça. Honneth propõe uma contraposição entre o projeto de uma teoria
da justiça inspirada em Hegel, uma “reconstrução normativa”, e as linhas
fundamentais do construtivismo, propugnado por J. Rawls a partir de uma
orientação mais kantiana. Ele elabora uma teoria da justiça com um ponto
de partida de inspiração hegeliana – um conceito intersubjetivista de liberdade
individual16 que estipula, como condição de contorno de uma teoria da justiça,

16 Honneth se pergunta “como seriam constituídos os princípios da justiça decididos pelos membros da sociedade,
sob a condição de que eles vissem a efetivação de sua liberdade como dependente da efetivação da liberdade dos
outros”, abandonando, assim, tal como Hegel, o ponto de partida centrado em um individualismo metódico e adotando
“o conceito comunicativo de liberdade individual” (Ibidem).

439
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

uma concepção ético-institucional e intersubjetivamente mediada do bem viver,


o fomento à tessitura de interações unicamente capazes de efetivar a liberdade do
indivíduo. O sentido de tal programa está em pensar sobre uma teoria da
justiça cujo esforço esteja centrado na proteção daqueles tecidos sociais,
potencialmente incorporados nas práticas intersubjetivamente mediadas,
imprescindíveis à plena efetivação da liberdade do indivíduo. A “Filosofia
do Direito hegeliana… como projeto de uma teoria normativa, tem de ser
concebida em relação àquelas esferas de reconhecimento recíproco cuja ma-
nutenção é constitutiva para a identidade moral de sociedades modernas.”
(Idem, p. 51). Nesse sentido, a “inspiração” hegeliana residira na perspectiva
ascendente, que parte da tessitura de práticas sociais definidas pelo próprio
mundo social moderno, perscrutando, assim, seu potencial para a realização
da liberdade; ao mesmo tempo que, por meio de um aclaramento acerca dos
riscos de um desenvolvimento patológico dessas estruturas, obtém-se um
quadro normativo criterioso para aferir a saúde das práticas sociais atuais.
Nesse diagrama, fica delineada a conexão interna que Honneth quer tornar
profícua ao pensamento político atual, entre a teoria da justiça e o diagnós-
tico de época (Idem, p. 77 e ss.).

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443
PARTE IV

Filosofia, Direito e Educação


24
O cuidado de si em Platão e Foucault:
ética, liberdade e sujeito

Fernando Danner
Ádna Rosiene de Araújo Parente

Neste texto, o objetivo é analisarmos o significado do imperativo


do “cuidado de si” em Sócrates/Platão e em Michel Foucault e, ao mesmo
tempo, as implicações éticas, políticas e pedagógicas nele implícitas. Na
primeira parte do texto, faremos uma reconstrução dos principais argu-
mentos presentes no diálogo Alcibíades, de Platão. Nessa parte do texto,
queremos problematizar e entender o significado do “imperativo do cui-
dado de si”. Como demonstraremos no decorrer de nossa exposição, no
diálogo Sócrates mostrará a Alcibíades, um jovem aristocrata destinado
ao exercício do poder político, que para bem governar os outros e a cidade
é preciso, antes de tudo, saber governar e governar adequadamente a si
mesmo – esta é a primeira tese do texto.
Na segunda parte do texto, ao analisarmos A hermenêutica do su-
jeito, apresentamos duas teses essenciais presentes no curso de Foucault:
a primeira delas diz que a constituição ética do sujeito se dá pelo modo
como ele trabalha sobre si mesmo e, consequentemente, pelo modo como
se transforma em um sujeito moral de suas próprias ações. Foucault enten-
de a ética a partir de uma relação de si (do indivíduo) para consigo mesmo,
pela constituição de um indivíduo racional, autônomo e livre – um sujeito
moral de seus próprios atos. Além disso, no pensamento de Foucault a éti-
ca se configura numa prática refletida da liberdade, isto é, a conquista da
autonomia plena do indivíduo de si e de tudo o que o cerca. A segunda tese
que discutimos é a de que a liberdade, na perspectiva de Foucault, apre-
senta um caráter essencialmente político, em dois sentidos: ser livre é, de
um lado, não ser escravo dos outros e, de outro lado, não ser escravo de si e
de seus apetites. Trata-se, portanto, de uma relação de domínio, de poder.
A tese principal desse texto é que tanto Sócrates/Platão quanto Fou-
cault demostram que a constituição de indivíduos éticos, morais e justos
depende do modo como cada um trabalha a sua existência, do modo como
cada um cuida de si, do modo como cada um se ocupa consigo.

447
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O Cuidado de Si no Alcibíades, de Platão

O ponto de partida do diálogo Alcibíades é saber como o jovem Al-


cibíades, de família aristocrata, poderia chegar ao poder e bem governar
os demais. Ora, sua origem aristocrata já lhe dava a condição de tomar
nas mãos o governo da cidade e governar os demais. Em compensação, tal
prerrogativa exigia saber se essa sua condição lhe assegurava a capacidade
de bem governar, de exercer o governo de forma sábia e moralmente justa.
No contexto do diálogo, Sócrates faz Alcibíades perceber que constituir-se
como governante e, por consequência, governar os outros implica, primei-
ramente, que se tenha constituído como indivíduo que cuida de si: […] o
“cuidado de si”, portanto, “apresenta-se como condição pedagógica, ética
e ontológica na constituição do bom governador; pois constituir-se como
governador pressupõe haver-se constituído como indivíduo que cuida de
si. […] Para Sócrates, cuidar de si e cuidar do Estado são tarefas insepará-
veis” (ORTEGA, 1999, p. 128). O bom governo, entendido como a capaci-
dade de governar os outros como convém, é algo que precisa ser formado
e exercitado adequadamente, de modo que, para ser um bom governador
(governante), é necessário cuidar de si, ocupar-se consigo, enfim, conhe-
cer-se a si mesmo – eis a tese principal do diálogo.
Ao abordar Alcibíades, Sócrates o faz perceber que em nenhum mo-
mento o havia abordado e que somente hoje decide fazê-lo, e que assim o
decide porque acredita que Alcibíades tem algo em mente. E o que Alcibí-
ades tem em mente, o que ele mais deseja é tomar nas mãos o governo da
cidade e governar os demais. Alcibíades é de família aristocrata, de grande
status e influência na cidade. Pelo lado de pai, tem boas relações, amigos
e parentes ricos e poderosos. O mesmo pelo lado de sua mãe. Entretanto,
tendo perdido pai e mãe, seu tutor foi Péricles. Além disso, Alcibíades é
belo, sendo por muitos assediado. É tão orgulhoso de sua beleza, que a to-
dos dispensou, restando apenas Sócrates a interessar-se por ele.
Com efeito, o que Alcibíades tinha em mente era tirar proveito de
suas relações, de seu status, de sua riqueza, de sua família, e tomar nas
mãos o destino da cidade: seu objetivo é governar os outros, ou seja, é
alguém que deseja transformar seu privilégio estatutário em ação política
efetiva. Na sequência do diálogo, Sócrates lhe diz que, se quiser governar
a cidade, ele terá de se defrontar com duas espécies de rivais, a saber: por
um lado, os rivais internos pelo fato de ele não ser o único a querer tomar
nas mãos o governo da cidade e governar os demais; e, por outro, os rivais
externos, os inimigos da cidade, isto é, com Esparta e com o Império Persa.
Assim, Sócrates faz Alcibíades perceber que ele está em grande desvan-
tagem em relação a esses dois rivais, pois, diz ele, não há como comparar

448
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

a educação e a riqueza de Alcibíades com a das duas cidades: do lado de


Esparta, a educação é referência de qualidade; ela assegura o rigor contí-
nuo, as boas maneiras, a grandeza da alma, o gosto pelos exercícios, pelas
vitórias e pelas honras, a forte inserção no interior das regras coletivas; do
lado dos persas, a educação do rei, ou do jovem príncipe, é de responsabi-
lidade de quatro professores: a) um professor de sabedoria (sophia); b) um
professor de justiça (dikaiosýne); c) um mestre de temperança (sophrosýne);
e d) um mestre da coragem (andreía), sendo que o primeiro ensina a magia
de Zoroastro, o culto aos deuses e a arte de reinar. O segundo, mestre da
justiça, a dizer a verdade durante toda a sua vida. O terceiro, mestre da
temperança, a não se deixar dominar por nenhum dos seus prazeres, a fim
de que se acostume a ser um homem livre, capaz de refrear seus prazeres,
sem se tornar escravo deles. Finalmente, o mestre da coragem, que ensina
a não fraquejar frente às dificuldades, fazendo-o ver que o temor é coisa de
escravos (PLATÂO, 1993, 120b-121e; 121e-123e, p. 250-251).
Sócrates, então, volta-se para Alcibíades e o convida a examinar so-
bre o que lhe havia acontecido: logo após a morte dos seus pais, a educação
de Alcibíades foi confiada a Péricles. Porém, Péricles teve dois filhos e não
conseguiu educá-los adequadamente. Percebe-se, assim, que Alcibíades
não contou com uma formação adequada e séria. Ademais, Péricles teve
o cuidado de confiar a educação do jovem Alcibíades, destinado a exercer
a carreira política, a um velho escravo, chamado Zópiro da Trácia, que
nada pode ensiná-lo. Nesse momento, Sócrates volta-se a Alcibíades e lhe
diz, segundo a reconstrução de Foucault: “queres entrar na vida política,
queres tomar nas mãos o destino da cidade, mas não tens a mesma riqueza
que teus rivais e não tens, principalmente, a mesma educação. É preciso
que reflitas sobre ti mesmo, que conheças a ti mesmo” (Idem, 2004, p. 46).
Para Sócrates, portanto, é impensável governar os outros, tomar nas
mãos o destino da cidade se não se está ocupado consigo. O “ocupar-se
consigo” inscreve-se, pois, como condição de possibilidade para o exer-
cício do poder político – é uma prerrogativa deste, aliás. No diálogo, Só-
crates quer chamar a atenção de Alcibíades para o fato de que, se este
quiser chegar ao poder e realizar um bom governo, deverá ser aplicado e
sábio: deverá, portanto, conhecer-se a si mesmo. Sócrates incita Alcibíades
a voltar-se criticamente para si mesmo com o intuito de analisar o tipo de
educação que tem recebido até então e, de uma maneira mais geral, o tipo
de vida que tem vivido. Diz ele:

Confia em mim e também na máxima de Delfos: ‘Conhece-te


a ti mesmo’, pois teus rivais são estes, e não os que tu pensas,
de quem somente pela aplicação e pelo saber poderíamos ob-
ter a vitória. Se tu estás realmente privado destas duas coisas,

449
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

perderás a ocasião de alcançar renome entre os gregos e os


bárbaros, o qual, em meu entender, tu anelas como ninguém
no mundo (PLATÃO, 1993, 123e-125b, p. 252).

Nessa perspectiva, o “ocupar-se consigo” (gnôthi seautón) é utilizado


por Sócrates para incitar Alcibíades a refletir um pouco mais seriamente
sobre si mesmo, sobre o que é capaz de fazer e sobre as dificuldades que
enfrentará quando tiver de governar a cidade. Em outras palavras, Sócrates
aconselha Alcibíades a olhar um pouco para si, em face daqueles aos quais
porventura irá afrontar, a fim de se dar-se conta de sua inferioridade. Só-
crates mostra a Alcibíades que lhe falta a tékhne, que lhe permitiria gover-
nar a cidade e competir, de igual para igual, com seus rivais. E faz isso por
meio de um procedimento muito comum nos diálogos de Platão, a saber,
por meio de perguntas. O que é bem governar a cidade? Em que consis-
te o bom governo da cidade? Em que se o reconhece? Ao que Alcibíades
responde: a cidade é bem governada quando reina a concórdia entre seus
cidadãos. Sócrates, então, volta-se a Alcibíades e pergunta: o que é essa
concórdia e em que ela consiste? Alcibíades não consegue responder e se
desespera, afirmando que era possível que ele tivesse vivido em uma ver-
gonhosa ignorância sem sequer se dar conta dessa situação: “pelos deuses,
Sócrates, que nem eu mesmo sei o que digo; e é possível que tenha vivi-
do desde muito tempo em um estado de ignorância bastante vergonhoso”
(PLATÃO, 1993, 127c-128d, p. 255).
Vejamos quais são as implicações éticas, políticas e pedagógicas
implícitas à noção grega de cuidado de si. Em primeiro lugar, percebe-se
que a noção de cuidado de si – intrínseca à máxima do “Conhece-te a ti
mesmo” – é a condição sine qua non para o exercício do bom governo. Em
outras palavras, o cuidado de si aparece, no caso de Alcibíades, como re-
quisito indispensável para passar do privilégio estatutário à ação política
efetiva, ao governo efetivo dos outros e da cidade. O “ocupar-se consigo”
está ligado à vontade do indivíduo (no caso, de Alcibíades) em chegar ao
poder e governar os demais: “não se pode governar os outros, não se pode
bem governar os outros, não se pode transformar os próprios privilégios
em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado
consigo mesmo” (FOUCAULT, 2004, p. 48).
Portanto, pela boca de Sócrates, Platão procura defender que só se
pode tomar nas mãos o governo da cidade e governar os demais no mo-
mento em que se estiver ocupado consigo. A tese socrático-platônica é
clara: “é o poder de si que vai regular o poder sobre os outros” (Ibidem, p.
272). O cuidado de si, nesse sentido, apresenta-se como um exercício de
libertação, de liberdade, pois quem não conhece a si mesmo e, por conse-
guinte, é escravo de si mesmo e de seus apetites pode, consequentemente,

450
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

exercer um poder tirânico sobre os outros: “o risco de dominar os outros


e de exercer sobre eles um poder tirânico”, diz Foucault, “decorre precisa-
mente do fato de não ter cuidado de si mesmo e de ter se tornado escravo
de seus desejos” (Ibidem, p. 272).
Nesse sentido, o cuidado de si – implícito à máxima délfica do “co-
nhece-te a ti mesmo” – constitui-se em uma análise crítica que o sujeito
faz de si próprio, do mundo que o cerca, dos costumes e dos códigos trans-
mitidos por sua sociedade e, de uma maneira geral, dos princípios que nor-
teiam sua vida e a própria sociedade em que vive. Tudo isso – essa crítica
sobre si mesmo e à sociedade em que vive – visa purificar o indivíduo de
toda forma de heteronomia, bem como de todos aqueles códigos que lhe
impedem de agir com base na justiça, a fim de que ele possa realizar uma
prática refletida de sua liberdade – prática refletida de liberdade, portanto,
que é resultado de uma perspectiva educativa crítica. É a prática refletida
de liberdade, implicada no cuidado de si, que possibilita – pois é a conditio
sine qua non – o bom exercício do poder político: um indivíduo acrítico e
que não sabe ser livre jamais será um governante ético e justo.
Em segundo lugar, o cuidado de si, essa necessidade de tomar a si
mesmo em cuidados – para usarmos as palavras de Foucault –, está vincula-
do à insuficiência da educação recebida por Alcibíades e sob dois aspectos:
de um lado, o aspecto pedagógico, isto é, o mestre de Alcibíades nada valia,
era um escravo ignorante, e a educação de um jovem aristocrata, destinado
a exercer o poder político, era coisa séria demais para ser confiada a um
escravo familiar e doméstico; e, de outro lado, a crítica do amor, do éros,
pelos rapazes, que, para Alcibíades, não teve o valor que deveria ter tido,
pois, na realidade, os que dele se aproximavam só queriam tirar proveito
de sua beleza corpórea, e não incitá-lo a ocupar-se consigo mesmo. Prova
disso é que no momento em que mal perdera sua desejável juventude, eles
o abandonaram, deixando-o fazer o que quisesse.
Em terceiro lugar, Sócrates incitava Alcibíades a aprender a se ocu-
par consigo quando se está naquela idade crítica, isto é, quando se sai das
mãos dos pedagogos e se está para entrar na vida política: “[…] na forma
socrático-platônica, o cuidado de si é, antes, uma atividade, uma necessi-
dade de jovens numa relação entre eles e seu mestre, ou entre eles e seu
amante, ou entre eles e seu mestre e amante” (Ibidem, p. 48).
E, em quarto lugar, o cuidado de si refere-se ao momento em que Só-
crates faz Alcibíades perceber que ignora o próprio objeto com que tem de
se ocupar, ou seja, ele sabe que tem de ocupar-se com a cidade, governar os
demais; porém, não sabe como ocupar-se, não sabe em que consistirá o obje-
tivo e o fim do que há de ser seu governo, isto é, o de manter o bem-estar e a
concórdia de todos os cidadãos. E é justamente por não saber qual é o objeto

451
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do bom governo que Alcibíades deve ocupar-se consigo mesmo. Diz ele:

Não consideras, portanto, que os erros na conduta prática


provêm desta mesma ignorância, a saber: de crer que se sabe
o que não se sabe. […] E não praticamos a ação precisamente
quando cremos conhecer o que fazemos. […] E não é certo que
os ignorantes desta classe passam sua vida entregados, nestas
mesmas coisas, à opinião alheia. […] Quem são, portanto, os
que se equivocam? Não são, quando menos, os que sabem? […]
Então, posto que não são os que sabem nem dentre os ignoran-
tes, que sabem que não sabem, não é certo que não fique por
mencionar senão aos ignorantes que creem que sabem. […] Por
conseguinte, é esta ignorância, causa de tantos males, a verda-
deiramente condenável. […] E quanto mais importante sejam
esses assuntos, será também tanto mais danosa e vergonhosa
(PLATÃO, 1993, 117b-118c, p. 248).

Foucault nos adverte que, no contexto do diálogo de Alcibíades com


Platão, o cuidado de si aparece em torno de três aspectos, a saber: 1) rela-
ção com a política; 2) relação com a pedagogia e com o éros para com os
rapazes; e 3) relação com a ignorância. Aliás, essas três questões aparecem
de modo muito familiar em todos os diálogos de Platão.
Em primeiro lugar, a relação com a política. O “ocupar-se consigo
mesmo” apareceu em um cenário muito familiar em todos os diálogos da
juventude de Platão; em um cenário político e social, ou seja, é o cenário dos
jovens aristocratas que, por seu status, são destinados a governar a cidade e
todos os cidadãos. Ora, o problema que surge é o de saber se essa autoridade
que lhes é conferida pela sua situação estatutária lhes possibilita governar
os outros e a cidade de forma sábia, justa e virtuosa: “trata-se, pois, de um
mundo em que se problematizam as relações entre o status de ‘primeiros’ e
a capacidade de governar: necessidade de ocupar-se consigo mesmo na me-
dida em que se há de governar os outros” (FOUCAULT, 2004, p. 56).
Em segundo lugar, temos a dupla crítica à pedagogia: (a) a crítica à
pedagogia, da prática educativa em Atenas, que se encontra em enorme
desvantagem em relação à educação espartana e à educação persa (encara-
das como referência de qualidade); e (b) a crítica do éros, isto é, da maneira
como se desenvolve o amor entre homens e rapazes; isto é, o amor pelos
rapazes, em Atenas, não consegue honrar a tarefa formadora que seria ca-
paz de justificá-lo e de fundá-lo. No diálogo Alcibíades, apresentava-se
claramente a tese de que os homens adultos assediam os jovens enquanto
estão no esplendor de sua juventude; no entanto, quando mal saem dessa
sua condição, eles (os homens adultos) os abandonam, e os abandonam em
um momento em que eles (os jovens aristocratas) mais precisam, isto é, no
momento em que saíram das mãos dos mestres de escola e, portanto, no mo-
mento em que mais precisariam de alguém que os guiasse e os formasse para

452
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

essa nova realidade, na qual ainda não foram formados, que é a atividade
política. O “ocupar-se consigo” inscreve-se, nesse momento, não como uma
necessidade de ‘governar os outros’, mas, ao contrário, como uma necessi-
dade de ‘ser governado’. É preciso, portanto, “ocupar-se consigo para poder
governar, e ocupar-se consigo na medida em que não se foi suficiente e con-
venientemente governado” (Ibidem, p. 57); (c) a questão da ignorância, isto
é, ignorância ao mesmo tempo das coisas que deveria saber e ignorância de
si mesmo enquanto sequer sabe que as ignora. Alcibíades acreditava saber
facilmente responder à questão proposta por Sócrates sobre o significado da
expressão bom governo da cidade, afirmando que era o que assegurava a con-
córdia entre os cidadãos. E, quando perguntado sobre no que consistia essa
concórdia, ele se desespera, mostrando que não sabia em que ela consistia e
ignorava que não sabia. Por isso, é preciso que ele se ocupe consigo mesmo,
é preciso que Alcibíades tome-se a si mesmo aos próprios cuidados.

O cuidado de si n’A Hermenêutica do Sujeito, de Foucault: sujeito, inter-


subjetividade, ética e prática refletida da liberdade

O curso A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault, contém


as principais aulas ministradas por ele no Collège de France entre os anos
de 1981 e 1982. Sob o título de Subjetividade e Verdade, Foucault inicia
uma pesquisa sobre os modos instituídos do conhecimento de si e sobre
sua história. Adotando como fio condutor o imperativo do cuidado de si
(epiméleia heautoû), Foucault se propõe a investigar como foram formadas,
no Ocidente, as relações entre o sujeito e a verdade. Diz ele:

Como um sujeito foi estabelecido, em diferentes momentos e


em diferentes contextos institucionais, enquanto objeto de um
conhecimento possível, desejável ou até mesmo indispensá-
vel? Como a experiência que se pode fazer de si mesmo e o sa-
ber que se pode fazer de si mesmo, e o saber que deles forma-
mos, foram organizados através de alguns esquemas? Como
esses esquemas foram definidos, valorizados, recomendados,
impostos? (Idem, 1997, p. 109).

Para Foucault, a epimeléia heautoû se traduz como o cuidado de si


mesmo, isto é, como o fato de se ocupar consigo, de tomar-se a si mes-
mo como objeto de preocupação; em outras palavras, trata-se de recolocar
o imperativo do “conhecer-se a si mesmo”, característico da civilização
ocidental, na interrogação mais ampla do que fazer de nós mesmos: “o
que fazer de si mesmo? Que trabalho operar sobre si? Como ‘se governar’,
exercendo ações onde se é o objetivo dessas ações, o domínio em que elas
se aplicam, o instrumento ao qual podem recorrer e o sujeito que age?”

453
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

(Ibidem, p. 109-110). Ao retomar a história do cuidado de si e das técnicas


de si, tal como estas se apresentavam na cultura greco-romana, Foucault al-
mejava uma maneira diferente de interpretação da história da subjetivida-
de, portanto não mais calcada na separação entre loucos e não loucos, do-
entes e não doentes, delinquentes e não delinquentes, nem mais também
por meio da constituição entre campos de objetividade científica, dando
lugar ao sujeito que vive, que fala e que trabalha: trata-se, nesse momento,
de estudar a história da subjetividade por meio da problematização das
transformações das relações consigo mesmo, isto é, de retomar a questão
da “governamentabilidade” sob o prisma do “governo de si por si mesmo
na sua articulação com as relações com o outro” (Ibidem, p. 110-111).
Não é nossa intenção, neste texto, reconstruirmos todos os argu-
mentos de Foucault na A Hermenêutica do Sujeito. Ora, um dos argu-
mentos centrais desse texto é o sentido que Foucault dá ao termo “ética”.
Para ele, a ética se configura como o modo como o indivíduo se constitui
como sujeito de seus próprios atos. Portanto, a ética se dá a partir de uma
relação de si para consigo, pela constituição de um indivíduo racional,
autônomo e livre, isto é, de um sujeito moral de seus próprios atos. Nas
palavras de Veiga-Neto:

A ética, numa perspectiva foucaultiana, faz parte da moral, ao


lado do comportamento de cada um e dos códigos que preceitu-
am o que é correto fazer e pensar e que atribuem valores (positi-
vos e negativos) a diferentes comportamentos em termos morais.
[…] Ética […] é o modo como o indivíduo se constitui a si mesmo
como um sujeito moral de suas próprias ações, ou, em outras pa-
lavras, a ética como relação de si para consigo (Idem, 2005, p. 98).

Para Foucault, a ética é a maneira pela qual o ser humano age


sobre si mesmo, procurando constituir-se como sujeito moral, como su-
jeito de suas próprias ações, isto é, a ética se configura no modo como o
indivíduo se constitui enquanto sujeito moral. Na perspectiva de Fou-
cault, a ética é a prática da liberdade, ou melhor, a prática refletida da
liberdade, que possibilita, cada vez mais, a autonomia do indivíduo em
relação a si próprio (seu corpo, seus desejos, seus apetites etc.), aos ou-
tros, aos objetos que o rodeiam e, finalmente, ao próprio mundo: “o que
é a ética”, afirma ele, “senão a prática da liberdade, a prática refletida de
liberdade. […] A liberdade é a condição ontológica da ética. Mas, a ética
é a forma refletida assumida pela liberdade” (Idem, 2004, p. 267). Nesse
sentido, se a ética é a prática refletida da liberdade, o que é a liberdade
para Foucault? Para ele, a liberdade assume um caráter essencialmente
político, isto é, ser livre é, de um lado, não ser escravo dos outros (pois,
na sociedade grega, um escravo não tem ética) e, de outro, não ser es-

454
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

cravo de si e de seus apetites. Portanto, a liberdade está ligada a uma


relação de domínio, de poder. Diz ele:

Já que, para os gregos, liberdade significa não escravidão – o


que é, de qualquer forma, uma definição de liberdade bastan-
te diferente da nossa -, considero que o problema já é intei-
ramente político. Ele é político uma vez que a não escravidão
em relação aos outros é uma condição: um escravo não tem
ética. A liberdade é, portanto, em si mesma política. Além
disso, ela também tem um modelo político, uma vez que ser
livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus ape-
tites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa
relação de domínio, de controle, chamada de archê – poder,
comando (Ibidem, p. 270).

Em Foucault, portanto, a liberdade é essencialmente política, ou


seja, ela se constitui como uma forma de poder que o indivíduo exerce so-
bre si próprio (conhecendo-se, controlando seus impulsos e apetites) e na
relação que o indivíduo realiza sobre os outros. Na perspectiva aberta por
Foucault, a liberdade está ligada essencialmente ao conceito de governa-
mentalidade, isto é, do governo de si e do governo dos outros. Na leitura
de Foucault do diálogo Alcibíades, ficou demonstrado que o jovem deveria
primeiramente ocupar-se consigo mesmo, governar-se primeiro a si mes-
mo para, posteriormente, poder governar bem os outros e a cidade. A tese
principal, nessa parte do diálogo, consistia em mostrar que o governo dos
outros e da cidade dependia, exclusivamente, do governo de si.
Na sociedade greco-romana, a “estética da existência” estava centra-
da em dois momentos decisivos: o primeiro, no esforço de cada indivíduo
em afirmar sua própria liberdade; o segundo, na perspectiva de dar à vida
de cada um uma determinada forma. Ora, Foucault demonstra que essa
prática refletida da liberdade pelo indivíduo não está isenta de uma dimen-
são política e social, pois a constituição de uma sociedade livre só pode
fundar-se na capacidade dos indivíduos em se constituir e em conduzir a
si mesmos; em outras palavras, na capacidade dos indivíduos de praticar
adequadamente (isto é, refletidamente) sua própria liberdade. Portanto, “a
liberdade não é senão uma práxis” (GONZÁLES, 1999, p. 242), a liberdade
só existe na práxis, de modo que o sujeito é – ou torna-se – cada vez mais
livre quanto mais pratica e se exercita em sua liberdade.

Considerações finais

Neste artigo, pela leitura do diálogo Alcibíades, de Platão, e pela lei-


tura do curso A Hermenêutica do Sujeito, de Foucault, procuramos res-
ponder a duas perguntas: (a) o que é o cuidado de si e qual é o significado

455
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

do imperativo “conhece-te a ti mesmo”?; e (b) quais são as implicações


éticas, políticas e pedagógicas do “cuidado de si”? Ao analisarmos o Alci-
bíades, de Platão, demonstramos que uma das teses principais do diálogo
era saber como o jovem Alcibíades, oriundo de uma família aristocrata,
poderia tomar nas mãos o poder e governar a cidade e seus concidadãos.
No decorrer do diálogo, Sócrates mostra a Alcibíades que se ele deseja
constituir-se como governante e, por consequência, governar os outros,
deverá primeiramente cuidar de si mesmo. No núcleo do diálogo está a
tese de que o cuidado de si se apresenta, ao mesmo tempo, como uma con-
dição pedagógica, ética e ontológica na constituição do bom governador,
isto é, o constituir-se como governador (bom governador) exige, antes de
tudo, que o indivíduo tenha aprendido a cuidar de si. Para Sócrates e, con-
sequentemente, para Platão o cuidar de si e o cuidar do Estado são ta-
refas inseparáveis na medida em que o bom governo (entendido como a
capacidade de governar os outros de maneira sábia, virtuosa e justa) é algo
que precisa ser formado e exercitado adequadamente: em última instância,
para ser um bom governante, é necessário cuidar de si, ocupar-se consigo,
enfim, conhecer-se a si mesmo. Já ao analisarmos a questão do cuidado
de si na perspectiva de Foucault, demonstramos que a ética se apresenta
como a prática refletida da liberdade, ou seja, o modo como o ser humano
trabalha sobre si mesmo (isto é, o modo como ele se ocupa consigo mes-
mo) para constituir-se em um sujeito moral de suas próprias ações. É essa
prática refletida da liberdade que dá ao indivíduo a autonomia necessária
para posicionar-se em relação a si mesmo, aos outros, aos objetos que o ro-
deiam e ao próprio mundo. A liberdade, por sua vez, apresenta um caráter
essencialmente político, isto é, o indivíduo livre é, de um lado, um indiví-
duo que não é escravo e, de outro lado, é um indivíduo que não é escravo
de si e de seus apetites. A liberdade, portanto, assume fundamentalmente
a significação de uma relação de domínio, de poder.

Referências

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FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Már-
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456
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

_____. Ética, sexualidade, política. Organização e seleção de textos


de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Au-
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(Ditos e Escritos IV).
_____. Tecnologías del yo y otros textos afines. Tradução e Introdução
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RAJCHMAN, John. FOUCAULT: A liberdade da filosofia. Rio de
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VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005.

457
25
A gestão escolar perante a violência
na escola pública de Porto Velho

Hélio de Araújo Carneiro


Magnus Dagios
Rosana Maria Matos Silva

Introdução

Analisar as características que envolvem a violência na escola para


produzir conhecimento que servirá de apoio às gerações futuras é um de-
safio complexo, pois sabe-se que o ambiente escolar é composto de várias
pessoas, com os mais variados tipos de cultura. Cada um com o seu jeito
humano/cultural de ser. Além disso, se as diferenças culturais não forem
trabalhadas para uni-las em comum acordo, poderão gerar conflitos den-
tro do ambiente educativo.
Precipuamente, analisa-se que todo estudante é o protagonista prin-
cipal dessa problemática em questão e, ao mesmo tempo, reprodutor de
suas ações no ambiente escolar. Dessa forma, veio, por assim dizer, a ne-
cessidade de analisar as situações de violência que ocorrem entre estudan-
tes na escola pública do Estado de Rondônia, especificamente na cidade
de Porto Velho, visando encontrar supostas soluções dessa problemática,
sabendo-se que é um fenômeno complexo.
Com a análise do tema que envolve a violência na escola pública de
Porto Velho, há indícios de que as equipes pedagógicas das escolas que
evidenciam esse fenômeno, os educadores e as equipes de apoio possuem
algum tipo de dificuldade para lidar com a situação-problema talvez por
esta apresentar um grande nível de complexidade. Além disso, a família
também possui papel importante na educação familiar de seus filhos, para
que não cometam esse tipo de ação nas escolas.
Continuando a mostrar as funções dos pais, eles são responsáveis
pela educação social, cultural e moral de seus filhos, e a escola entra com
a educação intelectual, promovendo conhecimento para que os estudantes
não se transformem numa pessoa violenta, e sim num ser social, político e
crítico diante da sociedade.

459
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Certamente há exemplos de que em várias escolas públicas, não so-


mente em Porto Velho como também em várias partes do mundo, sempre
ocorrem ações de algum tipo de violência, assim como a verbal, a física e
até mesmo a material, haja vista que diante desses fatos há algumas moti-
vações relevantes para investigar esses tipos de violência e o que hipoteti-
camente motiva os estudantes a cometerem tal ato.
E, indubitavelmente, para levar a efeito a pesquisa, foram utilizados
alguns nortes para a solução da análise:

- Quais os tipos de violência que mais ocorrem na escola?


- Quais os gêneros de alunos que mais cometem esse tipo
de conflito? São as meninas ou os meninos?
E qual ou quais as causas de tais conflitos?
- O que a equipe gestora está fazendo e o que ela deve
fazer diante disso?

É válido lembrar que o convívio escolar é um meio de ações demo-


cráticas que envolvem todo o corpo técnico-pedagógico, alunos e seus fa-
miliares. É certo que, diante de uma ação violenta na escola, a administra-
ção pedagógica e a família devem promover ações e interdições para evitar
e inibir esse tipo de ação.
Outrossim, os debates entre os grupos escolares devem ser feitos pe-
riodicamente como ferramenta de apoio à prevenção à violência. Além do
mais, deve haver um processo de conscientização entre os alunos de que a
violência não tem valor nenhum e nem espaço no ambiente escolar.

Escola: ainda um ambiente disciplinar?

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) analisou as formas


em que o poder se ramifica na estratificação social e concebeu, em alguns
de seus escritos, a presença do poder disciplinador em várias instâncias
institucionais: Hospitais, Prisões, Escolas, Instituições Públicas, Estado.
De acordo com ele, no sistema feudal e nas monarquias os senhores e o
soberano eram donos dos súditos, principalmente este último, que po-
deria sentenciar à morte qualquer indivíduo com conduta considerada
subversiva: “nas sociedades em questão, quando a pessoa cometia um
crime considerado grave pelo regime do soberano, sua pena era a supres-
são da vida ou outros tipos de penalizações atrozes, como cortar a mão do
criminoso, queimar suas partes do corpo etc.” (SILVEIRA, 2005, p. 61). A
punição era feita geralmente em praças públicas com o objetivo de “dar
o exemplo”. Tal forma de punição submetia o indivíduo a provas físicas e

460
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

psicológicas e reforçava o poder do soberano com suas regras e as obri-


gações por parte dos súditos.
Mas, Foucault explica que entre o final do século XVIII e começo do
século XIX os rituais punitivos foram sendo extinguidos. A punição pas-
sou a ser compreendida como tão desumana quanto o próprio ato cometi-
do pelo infrator. Nas sociedades com esses rituais punitivos, a punição se
concentrava no “bode expiatório” e a vigilância era designada em poucas
instituições, como a Igreja, o castelo e o Estado. A mudança se processou
no sentido de que a sociedade como um todo pudesse ser vigiada e punida,
e não mais o indivíduo, de forma exemplar:

A mudança do modo de punir ocorreu, especificamente, para


estabelecer uma nova economia do poder de castigar e para
assegurar sua melhor distribuição no tecido social, fazendo
com que não ficasse concentrado somente em alguns pontos
privilegiados, mas que fosse repartido em circuitos homogê-
neos por toda a malha social. Pretendia-se fazer da punição
uma função regular e coextensiva à sociedade, buscando punir
sempre e melhor. Procurou-se também defender a sociedade
de seus perigos internos (Ibidem, p. 64).

O objetivo principal não era a punição, mas a prevenção, e evitar


que o delito acontecesse. Procurou-se controlar o indivíduo com grau de
periculosidade potencial em um conjunto de instituições além da justiça,
tais como: polícia, instituições de vigilância estatal, instituições de cor-
reção como manicômios, hospitais, escolas etc. A ideia era submeter o
corpo ao controle das ideias.
O poder disciplinar é a vigilância que procura tornar o corpo dócil,
produtivo e obediente. É uma forma de controle racionalizada dos indiví-
duos nas instituições sociais como as escolas: “trata-se de uma técnica de
poder cujo efeito é o de individualização e que responde às questões de
como vigiar alguém, de como controlar sua conduta, seu comportamento,
suas atitudes, de como intensificar seus rendimentos, de como multiplicar
suas capacidades, de como colocar seu corpo em um lugar que seja mais
útil” (Ibidem, p. 70). Explica Foucault:

Nas grandes oficinas que começam a se formar, no exército,


na escola, quando se observa na Europa um grande progres-
so da alfabetização, aparecem essas novas técnicas de poder
que são uma das grandes invenções do século XVIII. […] A
disciplina implica um registro contínuo. Anotação do indi-
víduo e transferência da informação de baixo para cima, de
modo que, no cume da pirâmide disciplinar, nenhum detalhe,
acontecimento ou elemento disciplinar escape a esse saber.
No sistema clássico o exercício do poder era confuso, global
e descontínuo. […] A disciplina é o conjunto de técnicas pelas

461
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os


indivíduos em sua singularidade. É o poder de individualiza-
ção que tem o exame como instrumento fundamental (FOU-
CAULT, 2006, p. 106-107).

Esse poder disciplinar definido por Foucault parece que aos poucos
perde sua força ou se deforma em suas consequências. A violência escolar
presenciada na atualidade mostra que os regimes disciplinares moldados a
partir do século XVIII, e, dentre eles, a escola, enfrenta uma crise, que, por
um lado, diminui o seu poder de disciplina, enquanto ao mesmo tempo o
indivíduo perde os parâmetros valorativos necessários para a sua socializa-
ção. A violência escolar tem a dupla ocorrência de que a disciplina excessiva
pode ser instigadora de violência antissistêmica, e a de que o indivíduo lar-
gado à própria sorte se torna incapaz de ter o autocontrole esperado pela so-
ciedade contemporânea como cidadão apto para os desafios estabelecidos.

Breve ensaio sobre a violência escolar

O fenômeno violência também está presente no âmbito escolar, pois


nas escolas existem um aglomerado de crianças e jovens de culturas dife-
rentes buscando conhecimento, socialização e interação uns com os outros.
E, diante das diferenças de comportamento, ocorrem ações violentas entre
eles, mesmo sabendo-se que a violência que ocorre nas escolas não é consi-
derada um fenômeno recente, e sim, a priori, um grave problema social.
A propósito, a autora Miriam Abramovay e outros (2003) dizem que “a
violência escolar é um acontecimento preocupante por afetar diretamente o
agressor e por possuir a tendência de quebrar a ideia de que a escola é um
lugar de conhecimento, de educação, de formação do ser para a vida” (Idem,
2003, p. 26). Nesse sentido, é possível observar que algumas escolas se torna-
ram um cenário de ocorrências violentas no qual já não há muita possibili-
dade de transmitir sabedoria e integração social. Diante desses fatos serão
verificados alguns conceitos que envolvem as ações violentas praticadas por
estudantes de escola pública na cidade de Porto Velho.
Quando se fala de violência em escolas, muitas pessoas já estão acos-
tumadas com as notícias desse tipo, e não é preciso ir muito longe para
ouvi-las, pois esse fenômeno já chegou até mesmo nas redes sociais. Basta
digitar numa biblioteca virtual de buscas a combinação de palavras “vio-
lência na escola”, que surgem inúmeros artigos, trabalhos de conclusão de
curso, pesquisas de vários autores interessados no assunto e notícias de
algum tipo de violência ocorrido em escolas.

462
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Características e conceito de violência

Efetivamente, para alguns estudiosos do assunto, conceituar violência


é um tanto complexo, supostamente por se tratar de um grave problema so-
cial. Este está entrelaçado a vários motivos que levam uma pessoa a praticar
tal ato. Mas, a saber, conforme os autores Hannah Arendt e Sposito (1961),
a violência num todo, é um ato que implica a ruptura de uma coesão social
pelo uso de força. Sendo assim, entre as pessoas nega-se, totalmente, a re-
lação social instalada pela comunicação, pelo uso das palavras, pelo diálogo
e pelo conflito (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 22). Já outros países, como os
Estados Unidos, consideram a violência uma delinquência juvenil. Na Ingla-
terra consideram violência os atos que causem suspensão, atos disciplinares
e prisão, isso quando ocorre entre professores e alunos (Idem, p. 23).
Por outro lado, Silva (2002) diz que a violência nada mais é do que
a ausência e o desrespeito aos direitos do outro. Ainda de acordo com o
autor, a violência é uma transgressão aos direitos humanos de uma pes-
soa. É transgressão à sua liberdade de ir e vir. A saber, é uma eliminação
do outro, pegar possessivamente tudo o que outro possui, sem valorizar o
que ele é e o que ele representa (Ibidem). E, no dicionário Aurélio (1993),
a violência é conceituada como constrangimento físico ou moral, uso da
força; coação (Ibidem, p. 1779).

Conceito de violência escolar

Conforme a autora Abramovay (2003),

Num determinado período anterior a este, a violência esco-


lar era vista apenas como uma simples questão de discipli-
na escolar, que bastava algum diálogo e penitência somente;
logo depois passou a ser considerada como manifestação de
delinquência juvenil, uma espécie de expressão de compor-
tamento antissocial. Haja vista que atualmente, se tem uma
visão mais ampla sobre a violência escolar, isso ocorre pela
perspectiva da expressão fenômeno da globalização e exclu-
são social (Ibidem, p. 13).

Já os autores Charlot e Émin (1997) falam da dificuldade de definir


a violência escolar, pelos fatos de que esta remete aos fenômenos hetero-
gêneos, sendo estes difíceis de delimitar e ordenar, além do problema re-
ferente à desestruturação das representações sociais, que, por assim dizer,
possuem valor fundador. Os referidos pesquisadores tratam da ideia de
infância associada à ideia de inocência e de escola com relação a refúgio de
paz (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 21 apud CHARLOT; ÉMIN, 1997).

463
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Tais situações, segundo os autores, trazem complexidades conceitu-


ais no que se refere à violência escolar, tema sobre o qual Charlot amplia o
conceito de violência escolar para três níveis, a saber:

i. Violência: golpes, ferimentos, sexual, roubos, crimes, vanda-


lismo e outros;
ii. Incivilidades: humilhações, palavras grosseiras, falta de res-
peito etc.;
iii. Violência simbólica ou institucional: a falta de sentido
[neurose noogênica] de permanecer na escola por tantos anos,
que é um desprazer que obriga o jovem a aprender conteúdos
alheios aos seus interesses etc. (ABRAMOVAY et al., 2003, p.
21 apud CHARLOT; ÉMIN, 1997).

A autora continua esclarecendo que a violência é uma intervenção fí-


sica de um indivíduo ou de grupo contra a integridade de outro grupo, e
também, ao mesmo tempo, contra si mesmo. Essa coerção abrange desde os
suicídios, espancamentos de vários tipos, roubos, chegando a até assaltos e
homicídios (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 27). Ela diz ainda que a violência
é uma forma de negociação que exclui o diálogo com o outro (Ibidem, p. 63).
Segundo Charlot (1997), a segunda violência que representa a amea-
ça principal para o sistema escolar é a incivilidade. Realmente, as grosse-
rias (violência verbal) estão mais presentes nos ambientes escolares e são
uma porta para os outros tipos de violência. Aquelas estão mais visíveis
nos ambientes escolares, pois os jovens, ao receberem uma ação grotesca,
imediatamente revidam ou com outra incivilidade, ou partem para a vio-
lência física (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 95 apud CHARLOT, 1997).

Análise sobre a violência escolar

A violência escolar é uma ação que causa desconforto tanto para os


envolvidos quanto para o ambiente da escola, criando, também, uma ima-
gem ruim na identidade da escola. Em vez de existir uma escola que serve
como espaço de encontro social e busca pelo conhecimento e cultura pela
interação, ela acaba se tornando um lugar de medo para alguns jovens.
Abramovay e outros autores (2003) esclarecem que a violência traz
várias consequências, e uma delas é que muitos jovens alegam não conse-
guir se concentrar no ambiente escolar por causa da violência. Além disso,
uma parte dos jovens diz ficar nervosos e revoltados em tal ambiente, re-
cusando, assim, o ambiente escolar. Consequentemente, isso causa neles
a perda da vontade de ir à escola. Tal fator também traz perdas para os
professores, porque boa parte deles prefere pedir transferência das escolas
violentas para as mais seguras. Com isso, as primeiras ficam com defasa-
gem de professores (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 65).

464
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Conforme Silva (2010), “há uma necessidade de entendimento de que


é no início de nossa vida que devemos aprender a não tolerar qualquer tipo
de violência, de preconceito e de desrespeito ao próximo” (Idem, 2010, p.
15). É nesse ponto de partida que as famílias devem instruir seus filhos
para serem bons cidadãos, capazes de respeitar todas as diferenças.
Abramovay e outros (2003) informam que para se alcançar uma com-
preensão clara ou até mesmo a explicação para o fenômeno da violência na
escola, faz-se necessário ir ao encontro de fatores internos e externos a essa
instituição. Por exemplo, os aspectos exteriores, a saber, são: verificação do
gênero dos alunos (quem mais causa atritos, se meninas ou meninos); rela-
ções raciais (racismo, xenofobia e etnocentrismo); o lado social da família
(como estão sobrevivendo); a influência dos meios de comunicação (as influ-
ências das novelas e dos filmes); e o espaço social da escola (dentro e no seu
entorno). Além disso, em uma ligação com os aspectos externos, há a neces-
sidade de se verificar os internos, que são: as idades e as séries dos alunos
(alunos que repetiram de série estudando junto com alunos aprovados, o que
gera, portanto, uma grande diferença de idade); o comportamento dos pro-
fessores para com os alunos (aqui entra a questão da violência institucional);
a vulnerabilidade da escola (escola sem estrutura); os preconceitos (descri-
minalização); as ações de bullying, entre outros. Tais aspectos, se analisados
de forma minuciosa, poderão, então, fazer com que se entenda o emaranha-
do da violência na escola. (ABRAMOVAY et al., 2003, p. 25)

Fatores que levam estudantes a praticar atos violentos

Existem vários fatores que influenciam os estudantes a cometerem al-


gum tipo de violência contra si mesmos e contra aqueles que faz parte de seu
convívio escolar. Por exemplo, Abramovay e outros (2003) enumera alguns
desses fatores que devem ser levados em consideração para que se entendam
a ações violentas ocorridas em escolas. O primeiro é a expansão das gangues
(as ações de grupos violentos, que também atuam dentro da escola e no seu
entorno); as drogas (o narcotráfico age de má-fé, influenciando jovens de
todas as classes a servi-lo, para que estes obtenham dinheiro fácil); armas de
fogo (o narcotráfico demonstra aos jovens que, ao terem posse de uma arma
de fogo, terão poder sobre os outros); e as mediações da escola (há escolas
que são rodeadas de bares e de “bocas de fumo”) (Ibidem, p. 94).
Para o autor Muratori (2007), é de conhecimento antigo a estreita
relação que os maus-tratos e os abusos mantêm com a atitude de compor-
tamento violenta dos jovens. Todos os maus-tratos designados à criança
são um fator de maior risco para o surgimento de comportamentos vio-
lentos nas idades posteriores (Idem, 2007, p. 41). Posteriormente, Mura-

465
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

tori (2007) verificou, em uma pesquisa, que crianças que sofreram algum
tipo de espancamento se tornaram precocemente agressivas para com os
outros, principalmente com os mais fracos (irmãos menores, conhecidos
mais jovens, animais, idosos etc.) (Ibidem, p. 45).
Já a autora Silva (2010) discorre que os jovens violentos podem ser
de ambos os sexos. Eles possuem, em sua personalidade, características
de desrespeito e maldade. Além disso, na maior parte das vezes, esse as-
pecto de ser mau está ligado a um perigoso poder de liderança, que é
obtido por meio da força, ou até mesmo pelo assédio psicológico sobre a
outra pessoa (Ibidem, p. 43).
No âmbito da psicologia, a autora Meira (2012) esclarece dois tipos
de transtorno que podem levar jovens a ter atitudes agressivas no ambien-
te escolar; a saber, o primeiro deles é o TDAH, que é uma sigla para Trans-
torno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, caracterizado como um
transtorno neurobiológico, de causas genéticas, que aparece na infância
e frequentemente acompanha o indivíduo por toda sua vida. Dessa for-
ma, indivíduos portadores desse transtorno tipicamente fazem comentá-
rios inoportunos, interrompem demais os outros, se metem em assuntos
alheios, agarram objetos dos outros, pegam coisas que não deveriam to-
car. A impulsividade pode levar a acidentes e ao envolvimento em ativida-
des potencialmente perigosas, sem consideração quanto às suas possíveis
consequências. Ademais, os jovens que têm esse transtorno normalmen-
te cometem atos violentos por não conseguirem controlar seus impulsos.
O segundo tipo de desordem é o TOD, sigla para Transtorno Opositivo-
-Desafiador, que causa, na maioria das vezes, comportamentos, em porta-
dores desse distúrbio, que vão contra as regras que a instituição escolar
apresenta. A característica essencial do TOD é um padrão recorrente de
comportamento negativista, desafiador, desobediente e hostil para com fi-
guras de autoridade, que persiste por pelo menos seis meses. O jovem com
esse transtorno perde facilmente o controle, e as coisas seguem do jeito
que eles desejam. Isso é válido para uma atitude agressiva, pois o jovem se
opõe a outro e, daí, há a geração de violência. (MEIRA, 2012, p. 137.)

Ferramentas pedagógicas contra a violência escolar

No decorrer da pesquisa, já foram abordadas várias questões sobre


violência na escola. Agora, deve-se atentar às medidas para inibir esse tipo
de ação. E, para descobrir como e de que forma deve-se agir para combater
a violência nas escolas, Abramovay e outros autores (2003) discorrem sobre
o fato de que é necessário partir de três premissas gerais, a saber:

466
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

a) Realizar diagnósticos e pesquisas para conhecer


o fenômeno em sua concretude;
b) Legitimação pelos atores/sujeitos envolvidos;
c) Fazer monitoramento permanente das ações
nas escolas (Ibidem, p 73).

Esses pesquisadores complementam dizendo que para uma escola


atuar com medidas de prevenção contra esses tipos de violência, essa ins-
tituição tem que possuir quatro características importantes:

a) Lugar de encontro da diversidade cultural;


b) Estratégia para tecer relações com a comunidade;
c) Criar e experimentar medidas de prevenção;
d) Formação de valores e transmissão de conhecimento (Ibidem).

É necessário apresentar aqui alguns exemplos de projetos que deram


e estão dando certo até hoje: Projeto SAVE – Sevilha Antiviolência Escolar,
criado nos Estados Unidos, em 1995, com o ponto de vista psicoeducativo e
da escola como lugar de vida em comum entre jovens. Há voluntários que
atuam em vários estados norte-americanos. No Brasil, existe o Programa
Abrindo Espaços: Educação e Cultura para a Paz, que foi criado em 2000
pela UNESCO, com o objetivo de combinar elementos de inclusão social
e educação. Tal projeto foi expandido em vários estados com os nomes
Escola da Paz (no Rio de Janeiro), atuando em 250 escolas públicas, com
a abertura das portas das instituições de ensino fluminenses aos finais de
semana para produção cultural. Esse projeto também foi expandido, tendo
recebido o nome de Escola Aberta (Ibidem, p. 74).
Abramovay e outros (2003) apresentam algumas medidas comparti-
lhadas para coibir a violência escolar:

– Aumentar a vigilância policial nas escolas e imediações;


– Diálogo entre alunos, professores e diretores (parceria entre co-
munidade e escola);
– Medidas disciplinares mais duras (exemplo: expulsão);
– Muros altos ou grades;
– Revista dos alunos (bolsas);
– Apoio de psicólogos;
– Cultura e educação (autoestima e solidariedade) (Ibidem, p. 68).

Segundo esses autores, essas medidas trarão resultados de melhoria


da relação entre escola e comunidade; abertura de canais de expressão dos
alunos; grade curricular flexível com apelo às linguagens da arte; mudança
do ambiente físico da escola; trabalho em equipe, respeitando as regras
estabelecidas pela escola, valorizando os alunos; políticas públicas como
prevenção; e proposta pedagógica na linguagem juvenil (Ibidem, p. 70).

467
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Outra medida de prevenção é a relação entre professor e aluno, já que


a maioria dos alunos sabe valorizar aqueles professores que os incentivam
a prosseguir com os estudos, chegando ao nível superior, demonstrando
interesses por eles, preocupando-se com seu desempenho, dando conse-
lhos, dialogando com os discentes e sendo amigos deles. (ABRAMOVAY et
al, 2003, p. 39). Em concordância com isso, o pesquisador Gordon Neufeld
é psicólogo do desenvolvimento e afirma que “crianças aprendem melhor
quando gostam de seu professor – e quando sabem que seu professor gosta
delas” (OSSANES, 2015, p. 14 ).

Metodologia

A pesquisa foi realizada de maneira quali-quantitativa com o intuito


de esclarecer o fenômeno da violência em uma escola pública de Porto
Velho. A procura por resultados envolveu aspectos bibliográficos: leitura
das opiniões de alguns autores; e pesquisa descritiva de campo com ques-
tionários in loco contendo perguntas abertas e fechadas.
Para levar a efeito a pesquisa, foram determinadas algumas questões
de pesquisa:

- Se os alunos gostam da escola, dos colegas e dos seus professores.


- Quem mais cometeu e quem mais sofreu violência na escola?
- Os tipos de violência que mais ocorrem na escola.
- Quais os gêneros de alunos que mais cometem esse tipo de
conflito? São as meninas ou os meninos? E qual ou quais as
causas de tais conflitos?
- O que a equipe gestora está fazendo e o que ela deve fazer
diante disso?
- A Patrulha Escolar ajuda ou não na prevenção da violência escolar?
- Sugestão dos pesquisados para combater a violência escolar.

A coleta de dados foi realizada em uma escola pública da rede esta-


dual na cidade de Porto Velho e por meio de questionários focando a equi-
pe gestora, os professores e os alunos. Além disso, também foi feita uma
análise das opiniões de especialistas na área violência-educação.
A população abordada foi: equipe gestora da escola, professores e os
estudantes de uma escola pública estadual das turmas do 7º, 8º e 9º anos
do Ensino Fundamental e da 3ª série do Ensino Médio, com um total de 75
alunos. Os estudantes possuem idade variada entre 14 e 18 anos. Ademais,
foi realizada a coleta de dados por meio de questionário, contendo 8 per-
guntas abertas e fechadas – pertinentes ao tema abordado e ao grupo de
foco. Foram entrevistados, também, 5 gestores e 5 professores.

468
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Os dados coletados foram analisados de forma interpretativa em


relação às respostas coletadas nos questionários, tendo em vista per-
guntas abertas e fechadas. Também foi feito um gráfico dos dados re-
sumidos para que fossem verificadas, de forma sucinta, as opiniões dos
entrevistados, para que, assim, estas fossem úteis para o futuro da edu-
cação, haja vista que após a aplicação do questionário, foi realizada a
análise do conteúdo das respostas.

Discussão e análise dos dados

Os dados coletados na pesquisa das perguntas fechadas serão apre-


sentados de forma gráfica, acompanhada de comentários sobre o resul-
tado, e as respostas das perguntas abertas serão apresentadas de forma
escrita, por grupos:

Alunos que gostam da escola, dos outros alunos e dos professores

Gráfico 1 – Alunos por identificação de gosto pela escola segundo


a pesquisa realizada com 75 alunos de ambos os sexos, que, por ora, estão
representados por um percentual total de 100%
vermelho
azul

vermelho
azul
verde

azul
vermelho

verde
azul

vermelho
vermelho
verde

verde

verde
azul

Fonte : pesquisa de campo (2014)

Gráfico 2 – Alunos, por identificação de gosto por outros alunos,


segundo a pesquisa realizada com 75 alunos, de ambos os sexos, que, por
ora, está representada por um percentual total de 100%.

469
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

azul
vermelho vermelho
verde
azul
vermelho

vermelho

vermelho
azul

verde

verde

verde
azul
azul verde

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Gráfico 3 – Alunos, por identificação de gosto pelos professores, se-


gundo pesquisa realizada com 75 alunos de ambos os sexos, que, por ora,
estão representados por um percentual total de 100%
azul

vermelho
vermelho
verde

azul
vermelho

vermelho

vermelho
verde
azul

verde
azul

verde

verde
azul

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Esses dados coletados foram de 75 alunos e alunas, tendo ambos os


gêneros respondido às perguntas sobre se gostavam da escola, se gostavam
dos colegas da escola e se gostavam de seus docentes. A primeira catego-
ria é que, dos 75 alunos entrevistados, 36% gostam da escola, sendo esta
a maioria; 9% não gostam do ambiente escolar; e um percentual de 26%
disseram que gostam da escola às vezes, sendo que a maioria é de meninos,
com percentual de 28% contra 17% das meninas. Os meninos gostam mais
da escola do que as meninas.
Quanto ao gosto pelos outros alunos, 58% responderam que gostam
dos colegas contra 12% que não gostam. As meninas gostam mais dos co-
legas do que os meninos, com percentual de 29% contra 28% dos meninos.
Sobre o item acerca de alunos que gostam de seus professores, de acor-

470
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

do com a pesquisa, 57% dos alunos afirmaram gostar de seus professores, e


apenas 7% disseram não gostar dos discentes. E, destes, em relação aos univer-
sos masculino e feminino, os resultados foram iguais, sendo que tanto as me-
ninas quanto os meninos, com 29%, disseram que gostam de seus professores.

Alunos que já sofreram ou já cometeram algum tipo de violência na escola

Gráfico 4 – Alunos, por identificação, que já sofreram algum tipo de


violência na escola, segundo a pesquisa realizada com 75 alunos de ambos
os sexos, que, por ora, estão representados em um percentual total de 100%
azul
vermelho
azul

azul

vermelho
vermelho

verde
verde

azul

azul
verde
azul

azul

verde

Fonte: Pesquisa de campo (2014)

Gráfico 5 – Alunos, por identificação, que já cometeram algum


tipo de violência na escola, segundo a pesquisa realizada com 75 alunos,
de ambos os sexos, que, por hora, estão representados por um percen-
tual total de 100%
azul

vermelho
vermelho
verde
vermelho

azul
azul

verde

vermelho
azul
azul

verde
azul
azul

verde

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Gráfico 6 – Alunos, por identificação, que possuem coragem de de-


nunciar outro aluno que cometeu violência, que possui arma ou drogas

471
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

na escola, segundo a pesquisa realizada com 75 alunos de ambos os sexos,


que, por ora, estão representados por um percentual total de 100%

vermelho
vermelho
azul

azul
verde

azul
vermelho
verde

vermelho
verde
azul
verde

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Os dados especificados nos gráficos 4, 5 e 6 demonstram as respostas


dos alunos referentes ao cometimento ou não de algum tipo de violência
contra alguém na escola, que já sofreram ou não algum tipo de violência no
ambiente escolar e se possuem ou não coragem de denunciar algum tipo de
violência e se se trata de aluno com posse de droga e de arma. O montante
é de 75 alunos e alunas entrevistados, sendo que 41% nunca sofreram vio-
lência na escola contra 30% que já sofreram. Destes, 19% das meninas nun-
ca sofreram violência contra 13% que já sofreram algum tipo de violência
na escola. A violência mais sofrida na escola é a verbal, com 34%; a física
ficou com um índice de 9%; e a violência material ficou em último lugar,
com 1%. Portanto, quem sofre mais violência na escola são as meninas,
com um percentual de 15% contra os 13% dos meninos.
Cinquenta e um por cento dos alunos disseram que nunca comete-
ram algum tipo de violência na escola, e 22% disseram que sim. A violência
que mais foi cometida foi a verbal, com 15%; a física, com 8%; e a material,
com 1%. As meninas cometem mais violência na escola do que os meninos,
com percentual de 15% contra 9% dos meninos.
Quarenta e oito por cento dos alunos possuem coragem de denun-
ciar algum colega que estiver cometendo algum tipo de violência contra
alunos, portando drogas ou armas dentro da escola. E 23% disseram que
não têm coragem de denunciar o colega, sendo que quem denuncia mais
são os meninos, com percentual de 23% contra 20% das meninas.

472
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Gráficos representando a resposta dos gestores e professores

Gráfico 7 – Gestores e professores por identificação de quem mais


comete violência na escola, segundo a pesquisa realizada com 5 gestores
e 5 professores de ambos os sexos, que, por ora, está representada por um
percentual total de 100%

vermelho
azul
vermelho
azul
vermelho azul vermelho
azul azul vermelho
azul

vermelho

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Gráfico 8 – Gestores e professores, por identificação, quanto a se


a escola possui estrutura adequada para combater a violência, segundo a
pesquisa realizada com 5 gestores e 5 professores, de ambos os sexos, que,
por ora, está representada por um percentual total de 100%

vermelho

azul
azul
vermelho

azul azul vermelho

vermelho

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Gráfico 9 – Gestores e professores, por identificação, quanto a se a


Patrulha Escolar ajuda ou não na prevenção e no combate à violência esco-
lar, segundo pesquisa realizada com 5 gestores e 5 professores, de ambos
os sexos, que, por ora, está representada por um percentual total de 100%

473
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

vermelho
azul

azul

azul vermelho vermelho


azul
vermelho

Fonte: pesquisa de campo (2014)

Consideram-se, aqui, um montante de dez pessoas entrevistadas,


dentre elas cinco gestores (diretor, vice, orientadora e supervisor) e cinco
professores de ambos os sexos. Segundo os gestores e professores da esco-
la, quem mais comete violência no espaço escolar são os alunos, com uma
média percentual de 90%, e, desses, as meninas cometem mais violência do
que os meninos contra os docentes.
Para esses funcionários da instituição de ensino, a escola não possui
estrutura adequada para prevenir a violência escolar, inibi-la e combatê-la,
sendo que a maioria alegou que não há um espaço adequado na escola para
esse tipo de trabalho. Há, aí, a necessidade de se firmar uma parceria entre
o governo, a escola, a comunidade e os familiares para que atuem de forma
conjunta na construção do ambiente educacional adequado.
Os gestores e professores também disseram que a atuação da Patru-
lha Escolar ajuda, em média, 90% na prevenção e no combate à violência
dentro da instituição escolar. Deve-se firmar uma parceria com a Polícia
Militar, para que trabalhe na conscientização dos alunos que cometem al-
gum tipo de violência na escola.

Significado de violência escolar para os pesquisados

O que dizem os Gestores sobre a violência escolar?

“É um comportamento onde há causa de dano físico ou moral intencio-


nal”. “É todo e qualquer tipo de agressão, seja ela física ou verbal”.
“Quando se agride verbalmente e fisicamente”.
“É um comportamento que causa, intencionalmente, dano ou intimida-
ção moral a outra pessoa ou ser vivo. Está associado ao assédio (molés-
tia) escolar ou bullying. Isto é, o maltrato físico ou verbal que se produz
entre estudantes de forma repetida e insistente em longo prazo”.

474
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O que dizem os professores sobre a violência escolar?

“É tudo aquilo que perturbe a paz do ser humano; e, na escola, a mais


comum é o bullying”.
“A violência como própria nomenclatura se refere… podendo ser
físicas verbal (palavras) ou atitudes, desrespeito, falta de apoio
familiar, religiosidade”.
“É um ato de denegrir fisicamente ou psicologicamente o indivíduo
de maneira que gere transtornos individuais ou coletivos”.
“Bullying, falta de respeito”.

O que dizem os alunos sobre a violência escolar?

“É como uma demonstração de poder entre alunos”.


“A violência escolar significa a maior barbaridade, porque por nada
os alunos discutem e acabam brigando sem motivo algum; isso acon-
tece com aqueles alunos perversos e sem união”.
“Algum tipo de agressão, seja ela verbal, física ou o famoso bullying”.
“Uma falta de amor com o próximo”.
“Violar o direito do próximo, atacando com violência verbal ou
não verbal”.
“Agressão física, ou verbal, tendo como objetivo atingir a outra pes-
soa, denegrindo sua imagem e caráter”.
“Violência na escola e em qualquer lugar significa uma forma de
constranger uma pessoa, de forma verbal ou física ou psicológica”.
“… significa uma falta de respeito com o aluno, pois muitos vêm para
estudar, e a minoria vem para arranjar confusão”.
“O ato de colocar em perigo o outro aluno, agredindo-o e, muitas
vezes, de uma forma verbal…”.
“Brigas entre alunos, professores… violência verbal ou corporal”.
“Significa pessoas violentas, agressivas, que não têm respeito e
pessoas chatas”. “Xingamento, palavreados, apelidos, brigas por
inveja e ciúme e etc.”.
“Bullying na escola, os alunos um maltratando o outro, ou diminuin-
do o outro aluno por sua classe social, raça ou cor”.
“Violência escolar, para mim, significa alunos da escola contra ou-
tras escolas, ou até mesmo os estudantes agredirem os seus amigos
de sua escola…”.
“Não significa nada, porque traz muitos problemas”. “Violência é
que os alunos se batem…”.
“Significa bullying, por exemplo. Também, os alunos que batem uns

475
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

nos outros, no caso dessa escola, quase sempre os alunos caem em


pancadaria porque não têm paciência”.
“São brigas entre alunos e professores”.

De acordo com as perguntas abertas, os gestores, professores e


alunos descreveram o significado do que é a violência escolar. A saber,
alguns exemplos: conflito de alunos contra outras escolas; bullying con-
tra outro colega; conflito entre professores e alunos; demonstração de
poder entre as partes; comportamento inadequado no ambiente escolar;
agressão física, verbal e material; violação dos direitos do outro; ato de
colocar o outro em perigo; xingamentos, palavreados, apelidos; brigas;
entre outros. Causar um desconforto ao colega da escola é um dos tipos
comuns de violência escolar.

O que causa a violência escolar para os pesquisados

O que dizem os Gestores?

“Preconceitos, injustiças, maldade. Muitos se vingam mal e nas pessoas


erradas, a ignorância, o orgulho, principalmente o amor ao próximo”.
”A falta de amor, caráter e má formação na família”.
“A falta de estrutura, tanto familiar quanto da própria escola”.
“São vários condicionantes, dentre eles o bullying”.

O que dizem os professores?

“A ausência de respeito e educação por parte dos alunos”.


“São vários fatores que contribuem para a violência, como
estrutura familiar, bullying, aliciamento para uso de drogas,
álcool. E, muitas vezes, alunos usuários aliciando outros na
escola”. “Consumo de drogas, educação familiar”.

Segundo os pesquisados, o que mais causa a violência no ambiente


escolar é a falta de respeito, de estrutura familiar, a desobediência, o egoís-
mo, falta de amor ao próximo, o vício pela droga e o uso de armas de fogo, a
busca pelo poder entre a turma, e assim por diante. A causa é variada e de
acordo com o indivíduo, além dos grupos social e cultural.

476
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Algum professor já cometeu algum tipo de violência na escola?

O que respondem os gestores?

“Sim, violência moral, à medida que disse ignorar


alunos com desvios comportamentais”.
“Já, mas nada grave”.
“Já, mas foi verbalmente, há uns cinco anos atrás,
rejeitar o aluno. Porém, o professor recusava o aluno”.

Em alguns casos, o professor é capaz, sim, de cometer violência con-


tra alunos, e o mais comum é ignorá-los dentro do ambiente escolar. É
uma sensação horrível estarem juntos num ambiente e os discentes serem
ignorados, como se não existissem ali. O uso da autoridade também causa
algum tipo de trauma por causa da violência.

O entorno da escola possui algum tipo de influência


que incite a violência aos alunos?

O que respondem os Gestores?

“Sim, alguns bares onde se concentram uns


elementos com influência com drogas”.

O que respondem os professores?

“Sim, muitas das vezes grupinhos formados incentivam


o uso de drogas”. “A mistura de classes sociais”.
“Alguns indivíduos, que, às vezes estão nos arredores da
escola, em muitas vezes, em atitudes suspeitas, como:
aliciando alunos para uso de entorpecentes”.

A escola está sujeita a sofrer com suas remediações, pois ela está in-
serida numa coletividade social, o bairro. Mas, deve-se verificar suas ime-
diações, para, assim, evitar algum tipo de influência de drogas e bebidas
aos alunos. A parceria com a Patrulha Escolar é importante nesse caso.

477
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

O que fazer diante de uma situação de violência na escola?

O que respondem os Gestores?

“Após várias conversas com a professora que não aceitava


o aluno, ela saiu da escola. Porque ninguém é obrigado a
gostar de ninguém, mas sim de respeitar”.
“Dependendo da situação, o professor é remanejado; e o aluno, trans-
ferido”. “Deve-se mobilizar a equipe pedagógica para reintegrar o res-
peito”. “Solicitar a presença dos pais e conversa com o aluno agressor”.

O que respondem os professores?

“Procuram resolver em conjunto com o corpo técnico da


escola e os responsáveis pelos alunos, no caso, os pais”.
“No caso de violência física, separar os envolvidos, ouvi-los e
conversar após levá-los à orientação da escola. Fazer um
relatório para que sejam tomadas as medidas educacionais”.
“Depois da notificação ao gestor, retirar o aluno de sala e,
dependendo da infração, pode ser suspenso pelo docente”.
“Muita das vezes em que me deparo com determinado caso,
eu procuro conversar”.
Tomar uma atitude eficaz diante da violência escolar se torna uma
difícil decisão da parte dos gestores e professores, pois, para os gestores
e os professores faz-se necessário analisar os fatos. Destaco que o diálogo
deve vir em primeiro lugar, ou seja, a conversa com os pais, para que, de-
pois, se aplique a pena adequada.

Sugestões para combater a violência escolar

O que respondem os Gestores?

“A sugestão ou o fato principal seria a presença da família na escola”.


“A formação de uma equipe de profissionais voltada pra acompanha-
mento psicológico dos alunos”.
“Preparar primeiro a família, criar programas durante o horário con-
trário para os alunos ficarem ocupados”.
“Palestras e estabelecer regras”.
“Trabalhar com clareza os direitos e deveres dos alunos e da família.
Manter uma equipe organizada, unida no recinto escolar”.

478
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O que respondem os professores?

“Trazer palestrantes que falem a respeito do assunto”.


“A presença dos pais constantemente, bem como visitas diárias da
Patrulha Escolar”.
“Uma ronda mais efetiva da Patrulha Escolar, palestras para a co-
munidade, pais e responsáveis sobre temas relevantes como drogas,
alcoolismo, violência doméstica e medidas educacionais preventivas
associadas aos temas citados”.
“Cursos educacionais para os responsáveis pelos alunos, no caso, os
pais, orientando-os sobre a importância do respeito e da educação
mútua. Talvez assim diminua a violência… os pais deveriam ser pre-
parados no período de gravidez. Não tem a ver só com os pais, mas
também com o próprio sistema de governo”.
“Palestra da própria Patrulha Escolar”.

O que respondem os alunos?

“Tenha mais palestras sobre esse assunto pra nós alunos”.


“Não sei o que deve ser feito, isso sempre vai existir de alguma
forma, pois é uma guerra de poder entre alunos e outros”.
“A escola tem que ser mais rígida, as pessoas que administram (Equi-
pe Gestora) uma escola de quase 4.000 alunos, exemplo…,
tem que contratar um diretor mais autoritário…”.
“Tirar, expulsar esses alunos da escola, porque esses, mesmo
na escola, não vão ter futuro nenhum”.
“Respeito uns aos outros”.
“Eu acho que o apoio da polícia que é a Patrulha Escolar”.
“Mais fiscalização por parte do diretor, é ouvir quando alguém vir
denunciar outros alunos, e também evitar colocar quem denunciou
na frente de quem está sendo acusado”
“Eu acho que um pouco mais de conversa com os alunos
e professores”
“A elaboração de projetos governamentais onde os alunos tenham a
chance de conhecer um pouco mais uns aos outros, proporcionando,
dessa maneira, maior interatividade com a classe. Assim, um terá
conhecimento das dificuldades dos outros e poderá respeitar, para
que não ocorram desrespeitos”.
“Ter mais rigidez com os alunos e elaborar novas regras
de comportamento”.
“Podem ser realizados projetos na escola junto com a comunidade e

479
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

professores. Palestras sobre a desigualdade humana, sobre respeito


um para com o outro, e assim levar para a vida todos esses quesitos”.
“Muitas atividades escolares. Educação integral”.
“…deve-se implementar projetos que tragam paz nas escolas, uma
forma de que todos se respeitem…”.
“Intervenção da Patrulha Escolar nas escolas já vem diminuindo a
violência nas escolas, mas uma intervenção maior nos bairros onde
estão localizadas as escolas, ensinando e educando desde cedo”.
“Implantar mais educadores nas escolas e voltar os guardas
que tomavam conta da escola”.
“Tornar todas as escolas militares”.
“Implantação de novas câmeras de segurança…”.
“Tira (da escola) as pessoas que vocês estão vendo que não querem
estudar, porque a maioria das agressões acontece… dessas pessoas”.
“Mais educação”.
“Chamar a polícia, que os pais conversem com seus filhos e etc.”
“Na realidade, pra mim, não adianta fazer muita coisa,
porque vai continuar e nunca vai acabar (a violência na escola)”.
“Ter mais policiamento dentro da escola, mais atenção
dos funcionários, mais câmeras etc.”.
“Palestras, devemos entender esses alunos. Muito diálogo, paciência
com eles”. “Ter mais segurança e respeito, isso é o mais importante”.
“Palestras sobre o assunto, vídeos mostrando aos alunos, panfletos,
cartazes, jornais e outros tipos de amostras para serem mostrados
aos alunos sobre o erro do que é a violência na escola”.
“Deve ter programas de reeducação para essas pessoas”.
“Pagar com o mesmo preço”.
“Aumentar o policiamento nas escolas, ensinar os alunos
mal-educados a melhorarem os comportamentos”.

Esse ponto é essencial, pois ele contém inúmeras dicas para se con-
trolar, coibir e combater a violência dentro da escola. As sugestões são:
inserção da presença familiar na escola; formação de equipe de profissio-
nais; atuação da Patrulha Escolar; realização de palestras; educação dos
alunos diante de seus direitos e deveres; promoção de medidas educacio-
nais; orientação às vítimas e atendimento delas; solicitação, aos agresso-
res, para que se retirem da escola; diálogo com os alunos; fornecimento
de mais atenção a eles; entre outras. Além disso, é preciso que haja a for-
mação de uma equipe de alunos e professores preparados para trabalhar
a conscientização entre os alunos por meio de cartazes, textos, panfletos
e muitas outras maneiras de se levar ao outro a atitude dialogal, para se

480
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

construir, dentro da escola, uma cultura de paz, uma sociedade justa e


participativa, uma família escolar.

Considerações finais

Em virtude dos fatos mencionados, é imprescindível que todos se


conscientizem de que a violência escolar se tornou um fenômeno comple-
xo demais e que cresce a cada ano nas escolas públicas de Porto Velho. A
pesquisa foi bibliográfica, com estudo de caso, de caráter quali-quantitati-
vo e realizada por meio de autores inteirados no assunto, tendo sido reali-
zada, também, uma pesquisa de campo (realizada numa escola estadual de
Porto Velho) com perguntas abertas e fechadas como tentativa de entender
o fenômeno da violência escolar.
Está inserido na instituição escolar o fenômeno violência. Na escola e
em seus arredores, existe um amontoado de crianças e jovens buscando co-
nhecimento, socialização e interação uns com os outros. Nessas interações,
surgem as competições, os conflitos e, depois, as ações violentas entre os es-
tudantes, causando, assim, um grave problema social. Isso é um fato preocu-
pante, pois existe a ideia de que a escola é um lugar seguro para se buscar o
conhecimento. A violência é a quebra do paradigma coletivo do convívio so-
cial e amigável por meio da força. Os tipos mais comuns de violência são: a
violência em si, os golpes, os chutes, a violência sexual, os roubos, os crimes,
e o vandalismo. A incivilidade está representada pelas humilhações, pala-
vras grotescas e falta de respeito. Quanto à violência simbólica, professa-se
que a escola não tem sentido e que nela estudar não tem sentido.
A investigação verificou a realidade visível com referência à violência
na escola pública estadual na cidade de Porto Velho, pela qual se demons-
trou que ela realmente existe e que cresce cada vez mais. Denunciou-se,
também, a carência das ações realizadas pela equipe gestora, de professores
e de pais como tentativa de solução dessa problemática. A família tem um
papel importante nessa empreitada, pois os alunos vão ao ambiente escolar
por meio dela. Ela deve ser o suporte para ditar regras aos alunos, e, quando
não consegue fazer isso, surgem os reflexos agressivos dentro da escola.
Na pesquisa de campo foi evidenciado que a maioria dos alunos gos-
ta da escola em que estudam, e os meninos gostam mais da escola do que
as meninas. A maioria também gosta dos outros colegas da escola, ao con-
trário do resultado anterior. Já as meninas gostam mais dos colegas do
que os meninos. A maior parte dos alunos gosta dos seus professores, e os
meninos e meninas gostam destes de forma igual.
A análise dos fatos demonstra que os tipos de violência mais comuns
são: a violência verbal, cometida por apelidos; o bullying; e os palavreados.

481
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Depois vem a física, que, dentre ela, estão os socos e insultos, e, em terceiro
lugar, está a material, com o roubo de objetos. Quem sofre mais violência
na escola são as meninas e elas são as que mais cometem violência contra
outros colegas. Quando ocorre algum tipo de violência, seja esta em re-
lação a um aluno de posse de armas ou drogas, a maioria dos alunos tem
coragem de denunciá-los à Equipe Gestora, sendo os meninos os que mais
possuem a audácia para realizar a denúncia.
Os gestores e os professores confirmam os dados anteriores, alegan-
do que são os alunos que mais cometem violência escolar. No entanto, al-
guns professores também a cometem, mas este problema é mais fácil de
ser solucionado. A escola não possui estrutura adequada para combater a
violência. Além disso, a solução mais viável para resolver esse problema
está no apoio da Patrulha Escolar, que ajuda na maioria das vezes.
O significado de violência escolar foi caracterizado pelos entrevistados
como sendo um comportamento capaz de causar dano físico ou moral inten-
cional ao outro. Nessa categoria, estão o preconceito, a injustiça, o desamor
ao próximo, a extinção da estrutura familiar, o uso do bullying, a ausência
de respeito e as drogas. O entorno da escola possui ambientes que propor-
cionam a violência. Foram abstraídas algumas sugestões para preveni-la e
combatê-la, a saber: formação de equipe preparada na escola; envolvimento
da família na escola; realização de palestras sobre assuntos pertinentes aos
fatos; presença da Patrulha Escolar com mais frequência; oferecimento de
cursos educacionais, bem como de profissionais qualificados; expulsão de
alunos rebeldes; estabelecimento de uma escola mais rígida em termos dis-
ciplinares; atuação fiscalizadora da Equipe Gestora; promoção de diálogo
entre as partes; execução de projetos educativos; entre outras.
Por todos esses aspectos, entendemos que a violência traz, em si,
uma complexidade fenomenal e que deve ser tratada com relação aos fatos
e de forma primordial na busca de soluções para o problema, haja vista que
há uma necessidade de abranger mais a pesquisa com referência à violên-
cia nas escolas públicas de Porto Velho. Isso se dá pela necessidade de se
entendê-la e de procurar saber o que os órgãos competentes estão fazendo
para encontrar meios de atuação diante dela.

Referências

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Instituto Airton Sena, UNAIDS, Banco Mundial, USAID, Fundação Ford,
CONSED, UNDIME, 2003.
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Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 197.

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Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

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MEIRA, Marisa Eugênia Melillo. Para uma crítica da medicalização na
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SILVA, Aida Maria Monteiro. A violência na Escola: A percepção dos
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SILVEIRA, Rafael Alcadipani da. Michel Foucault. Poder e Análise das
Organizações. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

483
26

Suzano: a educação na mira dos


massacres lumpenradicais

Moysés Pinto Neto

A globalidade dos massacres

Em O que resta de Auschwitz, Giorgio Agamben comenta que suas


intervenções na esfera pública em torno da Shoah foram recebidas com
protesto por alguns indivíduos que se sentiram ofendidos pela constante
tomada do evento como paradigma, quando, a rigor, tratar-se-ia de aconte-
cimento “único e indizível”. A intervenção do filósofo, ao contrário, busca-
ria compreender a Shoah enquanto um massacre injustificado, tomando-o
provocação ao pensamento justamente devido à sua completa ausência de
sentido (AGAMBEN, 2002, p. 28). Sacralizar o evento, para o filósofo ita-
liano, seria dar razão aos algozes, atribuindo um sentido àquilo que resiste
a qualquer hermenêutica: “por que conferir ao extermínio o prestígio do
místico?”. (Ibidem, p. 32-33) Entender os massacres escolares como o que
ocorreu no dia 13 de março de 2019, na Escola Estadual Professor Raul
Brasil, localizada na cidade de Suzano, na Região Metropolitana de São
Paulo, que deixou cinco estudantes e duas funcionárias mortos, além de
vários feridos e traumatizados, envolve um exercício semelhante: a extre-
ma repulsa moral não deveria expulsar a reflexão, mas convocá-la, sem que
isso queira significar em absoluto o desrespeito às vítimas, ou a tentativa
de eliminar o caráter singular do acontecimento.
Apesar de algumas características que o ligam a especificidades bra-
sileiras e seu precedente em Realengo (RJ), pode-se ler o acontecimento
de Suzano como um fenômeno tipicamente global, na medida em que foi
alastrado pelo mundo inteiro como materialização de certas tensões cul-
turais, cuja forma se modifica conforme o contexto local, mas a estrutura
permanece similar. Apenas para ilustrar o ponto, um dia depois do evento
no Brasil ocorre outro massacre em duas mesquitas em Christchurch, na
Nova Zelândia, desencadeado pelo terrorista Brenton Harrison Tarrant e
que resultou em mais de 50 pessoas mortas. O assassino justificava seu

485
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

ato com a defesa da supremacia branca e dos valores do Ocidente contra


os imigrantes, em especial os de religião islâmica. Por outro lado, os pró-
prios jovens assassinos de Suzano invocavam Columbine, o primeiro dos
atualmente frequentes massacres escolares ocorridos nos EUA, ainda nos
anos 1990, como seu paradigma e objetivo de superação. As redes que o
atentado mobiliza atravessam países e utilizam a Internet como ponto de
encontro entre seus adeptos e inspiradores.
A história de Anders Breivik, recentemente transformada em filme
na plataforma Netflix e, por sua vez, inspiradora do atentado de Chris-
tchurch, mostra bem o padrão global que esses massacres adquirem. In-
divíduo isolado entre os jovens e ligado ao submundo do fundamentalis-
mo na deep web, Breivik planeja com frieza o atentado que explode uma
sede do governo, mata 77 adolescentes em um camping escolar e afirma
seus valores fascistoides com convicção e desafio diante das autoridades
norueguesas. Em meio ao julgamento, tenta, sem sucesso, mobilizar sua
rede e angariar o grande público por meio de um tom desafiante, con-
vocando, inclusive, um dos respectivos influencers, que, ao final – como
sói acontecer –, acaba recusando qualquer vínculo entre suas ideias e a
matança factual que ocorrera.
Da mesma forma, a escandalosa declaração de que, caso os pro-
fessores estivessem armados em sala de aula, provavelmente o mal teria
sido evitado1, proferida pelo deputado Major Olímpio (PSL-SP), um dos
líderes do novo governo brasileiro no Congresso Nacional, nada mais é
do que a cópia-pastiche do discurso dos ideólogos pró-armamentistas
dos Estados Unidos repetida ad nauseam, e até mesmo “pensada” como
política pública naquele país por governos simpáticos à causa nos últi-
mos vinte anos (BERARDI, 2015, p. 15-16). A utilização pelos assassinos
de máscara que reproduz a caveira, símbolo da cultura de violência ce-
lebrada nos filmes de José Padilha – Tropa de Elite 1 e 2 –, demonstra
apenas a configuração local que o fenômeno global adquire. No Brasil,
são as máscaras do BOPE que exterminam bandidos pobres e revigo-
ram a ordem maculada pela corrupção generalizada e compartilhada
entre esquerda liberal, políticos profissionais e traficantes de drogas.
Nos EUA, na Noruega ou na Nova Zelândia, são heróis da civilização
branca europeia que protestam contra políticas que contemplam, em
geral, imigrantes, feministas, liberais ou muçulmanos, sempre reme-
tendo ao mesmo ecossistema mundial de ideias que obteve diversos su-
cessos eleitorais nos últimos anos.

1 O GLOBO. Ataque seria evitado se professor estivesse armado, diz Major Olímpio. O Globo,
Rio de Janeiro, p. 1-2, 13 mar. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/ataque-seriaevitado-se-professor-
estivesse-armado-diz-major-olimpio-23518634. Acesso em: 14 abr. 2019.

486
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Exatamente pela globalidade do fenômeno, trazer referências inter-


nacionais para pensar o problema não significa a submissão a um colonia-
lismo intelectual ou a desconsideração das particularidades locais brasilei-
ras, mas apreender um fenômeno a partir de variados pontos de vista, bem
como considerar que o Norte antecipou esse tipo de situação que hoje,
quase que por contágio viral, vive-se no Brasil. Por isso, o ensaio percorre
as ideias psicopolíticas de Franco “Bifo” Berardi, Angela Nagle e Achille
Mbembe a fim de discutir a formação dos lumpenradicais na sua conexão
com os fluxos do capitalismo global e das redes sociais.

Os Heróis no Universo do Semiocapitalismo

Conhecido por seus trabalhos em torno do cancelamento do futuro e


o semiocapitalismo, Franco “Bifo” Berardi dedica um livro inteiro, Heroes:
Mass murderer and suicide, para pensar o fenômeno dos massacres que per-
correm o globo no século XXI. A fenomenologia dos eventos possui uma
específica conexão com o deslocamento para o universo virtual que surge
com a emergência da Internet e a transformação da economia fordista para
o capitalismo financeiro. O primeiro caso narrado no livro – que atraiu a
atenção de Bifo e o impeliu a escrever sobre os massacres – trata justamen-
te da performance de James Holmes ao invadir um cinema em que rodava
o filme do Batman, no Colorado (EUA), atuando como se fosse o Coringa
para assassinar a audiência. A combinação entre crime e suicídio parece
traduzir a agonia da civilização e do capitalismo, colocando a nu sua ver-
dadeira face. O livro de Franco não trata apenas dessa combinação tóxica,
mas “mais genericamente do estabelecimento de um reino de niilismo e
deriva suicida que permeia a cultura contemporânea, conjuntamente com
uma fenomenologia do pânico, agressão e violência resultante” (BERAR-
DI, 2015, p. 2, tradução nossa).
As premissas que Bifo estabelece já haviam sido colocadas em outros
trabalhos. Em Depois do futuro, por exemplo, o processo de cancelamento
do futuro desencadeado a partir de 1977, com a ascensão da combinação
entre neoconservadorismo e neoliberalismo de Thatcher e Reagan, produz
uma nova geração em que a crença compartilhada pelas gerações anterio-
res de que “o futuro será melhor” simplesmente desaparece (BERARDI,
2011, p. 17-18). Nesses idos, temos o grito No Future, entoado no refrão de
“God Save the Queen”, do Sex Pistols, e o cinema noir de Martin Scorsese
com a figura sonâmbula do taxista ex-combatente de Taxi Driver (PINTO
NETO, 2018a). Tal clima é bastante diverso do ambiente esperançoso e
criativo de 1 ano antes, quando o cinema registrava a ascensão da nouvelle
vague de Jean-Luc Godard e a música das obras luminescentes como “Sar-

487
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

gent Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, em convergência com
as energias revolucionárias da juventude dos anos de 1967 e 1968.
É também de 1977 a canção “Heroes”, de David Bowie, que inspira o
título do livro. No entanto, Bifo destaca, citando obra de Hito Steyerl:

Ele canta um novo tipo de herói no exato momento da revo-


lução neoliberal e a transformação digital do mundo. O herói
está morto – longa vida ao herói! No entanto, o herói de Bo-
wie não é mais um sujeito, mas um objeto: uma coisa, uma
imagem, um esplêndido fetiche – uma mercadoria banhada de
desejo, ressurreta dos dejetos da sua própria demissão. […] não
apenas o herói de Bowie foi clonado, ele tem acima de tudo
uma imagem que pode ser reproduzida, multiplicada e copia-
da, um riff que atravessa sem esforço os comerciais por quase
nada, um fetiche que empacota o glamoroso e despreocupado
visual pós-gênero como produto (Idem apud BERARDI, 2015,
p. 3-4, tradução nossa).

O cancelamento do futuro de 1977 irá desaguar na “fábrica da infe-


licidade” do semiocapitalismo, caracterizado pela prevalência do aspecto
cognitivo sobre o maquinal e braçal que costumava caracterizar o fordis-
mo. A new economy – inventada pela revista Wire nos anos 1990 –, com as
startups tecnológicas que hoje, alguns anos mais tarde em relação à data
do livro, estão cada vez mais fortes e controlam – pelo Vale do Silício –
os principais investimentos do capital financeiro, seria a instância funda-
mental dos fluxos maquínicos do semiocapitalismo (BERARDI, 2003, p.
11-13). Distante do modelo fabril dos “Anos Dourados” fordistas, o semio-
capitalismo teria uma orientação pós-humana na qual são os algoritmos
e a própria complexidade imanente a esses fluxos que formariam o valor
alheio a qualquer instância humana (Ibidem, p. 16).
No horizonte do seu discurso oficial, com seus gurus, mentores e co-
aches, a new economy traria um discurso de felicidade compulsória na qual
tudo é simples e gratificante, na medida em que o trabalho coincide com
o prazer e, por isso, a convergência libidinal tão buscada nos anos 1960
e 1970 estaria finalmente concluída. No entanto, trata-se apenas de uma
máscara hipócrita da realidade: na medida em que o funcionamento do
semiocapitalismo é baseado no fluxo contínuo e complexo de informações
e suas relações de sintaxe, o corpo aparece como plataforma de sofrimento
por sobrecarga do dispêndio energético (BERARDI, 2003, p. 18-19; 29-30).
Ainda limitado à sua forma orgânica, o corpo acaba violentado pelo exces-
so que cai sobre si, produzindo pânico generalizado seguido de depressão
(BERARDI, 2015, p. 54). Por isso, diferentemente da “era da neurose” que
caracterizava a maior parte do século XX – como diagnosticado por Freud
em Mal-estar na Cultura e depois sob transformações em obras como Eros

488
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

e Civilização, de Herbert Marcuse, ou Psicologia de Massas do Fascismo,


de Wilhelm Reich –, as patologias emergentes com o advento do semioca-
pitalismo são pânico e depressão (BERARDI, 2003, p. 31).
Sob essas premissas, Bifo passeia por casos terríveis e traumáticos
que percorrem o mundo no século XXI exibindo uma dinâmica parecida.
Depois de James Holmes, com sua performance que sutura – como numa
inflexão situacionista – arte e vida, Bifo analisa atiradores em países como
Noruega, Finlândia, Israel, Iraque, entre outros, apresentando as seme-
lhanças e diferenças na fenomenologia dos casos. Alguns – como Cho
Seung-Hui, Eric Harris e Dylan Klebold – eram essencialmente pessoas
em sofrimento que praticaram o assassinato em massa apenas para serem
mortos ao final e, com isso, se livrarem do fardo que carregavam. Seus ges-
tos, diz Bifo, devem ser analisados “do ponto de vista da dor, o que de modo
algum justifica ou reduz o horror dos seus atos” (Ibidem). Outros, como
Breivik, agem friamente como autômatos em nome do seu ideal reacio-
nário, combinando-se com as ideias que o ecossistema da extrema direita
mundial dissemina a partir da deep web (BERARDI, 2015, p. 96).
Todos, no entanto, apresentam certas semelhanças, como o extremo
isolamento social e a imersão do ciberespaço, que podem vir tanto sob a
forma de mergulho na deep web quanto do universo gamer. O estímulo di-
gital do videogame, em particular, atraiu atenção da mídia e dos psicólogos,
mas é não sob a forma vulgar de uma simples causalidade mimética ou
reflexo condicionado que induziria à violência – algo como uma hipnose
produzida pelo jogo sobre o jogador que o levaria a reproduzir o com-
portamento no mundo real. Não é o conteúdo do jogo, mas o “estímulo
mesmo que produz o efeito de dessensibilização da experiência corporal
do sofrimento e do prazer”. Claramente, afirma Bifo, “nem todo mundo
torna-se assassino em massa meramente por jogar videogame ou engajar-
-se na estimulação digital. No entanto, o assassino em massa é apenas uma
manifestação excepcional da tendência geral nessa mutação geral da men-
te humana” (BERARDI, 2003, p. 47, traduçãonossa).
Bifo compartilha com a psicanalista Rose Goldsen o pressuposto
de que a paisagem tecnomidiática que forma a nova geração de jovens
envolve uma transformação da relação até então estabelecida pela lin-
guagem humana e o contato corporal. A articulação com a linguagem, em
particular, dava-se segundo o modelo da criança e da mãe.2 Citando Luisa
Muraro, destaca a autora:

2 Uma tese similar, que relaciona a formação do novo pano de fundo tecnológico e a quebra do
espaço transicional a desencadear a “desafetação” pode ser encontrada, por exemplo, em
Stiegler (2013) e (2008).

489
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

A profunda e emocional compreensão da dupla articulação


da linguagem, na relação entre significante e significado no
signo linguístico, é algo enraizado no vínculo de confiança
com o corpo afetivo da mãe. Quando esse processo é reduzi-
do a um efeito de troca entre máquina e cérebro humano, o
processo do aprendizado da linguagem é separado do efeito
emocional do contato corporal, e a relação entre significante
e significado torna-se meramente operacional. […] Podemos
esperar que o sofrimento psíquico virá em seguida (BERAR-
DI, 2015, p. 48, tradução nossa).

Lembra-se, nesse sentido, do polêmico livro/filme Precisamos falar


sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin, no título original – EUA, 2012,
Diretora Lynne Ramsay), no qual o personagem parece carregar sua per-
versão assassina em face da relação de não amor maternal. Segundo Bifo,
diversas evidências sugerem que a mutação da experiência para o âmbito
digital está produzindo uma patologia na esfera da empatia (uma tendên-
cia autista) e na esfera da sensibilidade (a dessensibilização na presença do
outro) (Ibidem, p. 49). A precariedade da vida submetida ao imperativo da
competição acaba destruindo a própria sanidade dos corpos, que sofrem os
efeitos de um sistema que já não funciona mais sob os limites do humano.
Mesmo o dinheiro, que até então poderia ser símbolo do capital, já funciona
apenas como fator de “mobilização” para produzir o estímulo energético
que o sistema precisa para continuar funcionando. A mobilização dá, então,
lugar ao frenetismo, que, por sua vez, provoca o pânico, seguido da depres-
são (Ibidem, p. 26). É nesse mundo que Pekka-Eric Auvinen, jovem finlandês
de 18 anos, assassina nove estudantes na Jokela School. Definindo-se como
“Humanista anti-humano”, Auvinen inspirava-se na combinação entre so-
ciobiologia darwinista e libertarianismo para defender um mundo em que a
“seleção natural” prevalecesse, com apenas os indivíduos superiores alcan-
çando sucesso em relação à mediocridade dos demais, que deveriam pere-
cer. Seu ato de assassinato em massa nada mais seria do que uma aplicação
prática do darwinismo social (Ibidem, p. 34-36).
Se as ponderações de Bifo nos permitem traçar um diagnóstico
estrutural do problema, colocando em contato o atrito entre uma su-
perabundância informacional e sistemas amplificados e estratificados
maquínicos que funcionam segundo parâmetros de sintaxe inumanos,
de um lado, e o corpo e a sensibilidade superexaustos, em pânico e de-
pressão, de outro, a pesquisa de Angela Nagle entre os “nerds do 4Chan”
nos permite penetrar em outra camada do problema: o encontro entre
a dessensibilização corpórea e um discurso cínico-transgressivo que ir-
riga essas subjetivações.

490
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

O discurso troll e a transgressão conservadora

Durante a repercussão dos atos de Suzano, o termo chan entrou no


vocabulário da mídia acompanhado de outros como incel, lulz e sancto. São
expressões típicas de uma subcultura on-line que reúne geralmente jovens
do sexo masculino com baixa adaptação social, imersão permanente na
rede e uma enorme cota de frustração e ressentimento com o avanço de
pautas relacionadas à ideia de justiça social, como, por exemplo, as femi-
nistas, LGBTs e antirracistas. Segundo consta, os assassinos de Suzano
eram frequentadores do Dogolachan, onde inclusive os ataques teriam sido
comemorados como um “ato sancto”, expressão para caracterizar quando
os usuários realizam no mundo real o que especulam no âmbito virtual,
liberando sua raiva e frustração sobre os que consideram ser responsáveis
pelo seu fracasso vital – geralmente estudantes e mulheres.
Angela Nagle publicou um dos mais importantes livros sobre o tema3,
em que – após permanecer alguns meses imersa no universo do 4chan –
traça uma genealogia da passagem dos EUA de um ex-presidente negro,
culto, cosmopolita e representativo dos mais altos valores liberais para um
sucessor grosseiro, rude, agressivo e simpático ao universo do supremacis-
mo branco e das visões mais reacionárias da sociedade norte-americana.
Kill all normies: Online Culture Wars From 4Chan And Tumblr To Trump
And The Alt-Right é uma etnografia das guerras culturais on-line que ex-
plica o mundo chan dos fóruns anônimos de baixa configuração gráfica e
extrema permissividade discursiva que integram o submundo da deep web.
Segundo Nagle, esses jovens definem-se por oposição ao que ela
denomina como Tumblr liberalism, entendido como a combinação entre
a forma de ativismo identitário e o espaço virtual utilizado por minorias
políticas para narrar seu sofrimento e protestar contra os preconceitos.
Com a estrutura do depoimento, o Tumblr teria se tornado, nos EUA, o es-
paço em que movimentos como feminismo e LBGT conseguiriam maior
visibilidade. Como é sabido, uma das formas discursivas mais comuns
a essas lutas é a denúncia e, em contraponto à violência sofrida, a ideia
de que pela desconstrução dos preconceitos e formação de redes de em-
patia é possível a construção da justiça social. Em um plano caricatural
relacionado a alguns exageros que por vezes ocorreriam, esses ativistas
foram apelidados pela direita de Social Justice Warriors (SJW, Guerreiros
da Justiça Social, na tradução para o português), sendo associados, então,
ao moralismo e à correção política.

3 Outros importantes livros, alguns posteriores ao de Angela Nagle, exploraram a relação entre
a cultura da deep web com a emergência da alt-right e os massacres em questão. Por questão
de foco, deixa-se para outros ensaios sua análise. Ver, por exemplo, Neiwert (2017), Grossberg
(2018), Beran (2019) e Stern (2019).

491
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Nagle exemplifica essa situação com o caso do vídeo “Kony”, virali-


zado na Internet em 2012. O vídeo trazia denúncias sobre fatos ocorridos
em Uganda, quando ocorreu a prisão do chefe de milícia Joseph Kony, com
finalidade de expor uma campanha de caridade em relação às vítimas. Com
uma recepção retumbante e emocionada, o vídeo chegou à capa da revista
Time como o mais popular já feito. No entanto, logo ele tornou-se alvo
de críticas pelos próprios ugandianos, sendo acusado de “clickativismo”
e demonstração hipócrita de virtude. Apesar disso, funcionava como um
sinalizador de tempos de boa vontade e solidariedade empática. Em 2016,
apenas quatro anos depois, um espírito de profundo niilismo cínico já teria
invadido a web. Nesse ano, o gorila Harambe acabou sendo morto quando
uma criança caiu em uma jaula. O ultraje do bom-mocismo diante da mor-
te do animal teria inicialmente levado a culpar os pais da criança e a for-
mar uma competição pela maior virtude, oportunizando, logo em seguida,
que o caso se tornasse uma paródia perfeita do sentimentalismo piegas do
Ocidente liberal. Rapidamente, a web viu-se inundada de memes e piadas
sobre o caso, formando uma espiral de ironias ao senso de superioridade
moral e sentimentalismo que imperava até então (NAGLE, 2017, p. 5-7).
Com isso, inaugura-se uma cultura de transgressão em resposta aos
padrões “politicamente corretos” que guiavam os ativistas relacionados
com as políticas de identidade. Em contraponto aos SJWs, os trolls coloca-
vam-se na posição de defensores da liberdade de expressão e do protesto
contra o puritanismo. Criadores do campo posteriormente denominado
alt-right, que acabou elegendo Donald Trump, os trolls defendiam que eles
seriam a voz anti-establishment, parodiando a esquerda universitária em
relação às acusações de racismo, misoginia, homofobia, transfobia e ca-
pacitismo, por exemplo. Heterogêneos entre si, esses grupos formam uma
composição barroca de pautas como o declínio da civilização ocidental
(que inspirou os terroristas Breivik e Tarrant nos respectivos atentados),
o declínio da masculinidade (em contraponto ao avanços dos movimentos
feministas na sua quarta onda), a liberdade irrestrita de expressão (muitas
vezes associada ao humor), as diferenças de QI (que vão levar a uma recu-
peração do chamado “realismo racial”) e o combate ao “marxismo cultu-
ral”, chegando a ideologias mais orgânicas como o supremacismo branco e
o neonazismo. Sua atração pela juventude vem da capacidade de organizar
a frustração em torno de uma figura inimiga (em geral, mulheres, islâmi-
cos ou marxistas) e da suposta aura transgressora que se coloca contra a
repressão discursiva do politicamente correto (NAGLE, 2017, p. 19).
Nesse universo vazio em que circulam livremente todo tipo de pen-
samentos, numa espécie de ambiente que pode conjugar piadas racistas,
pornografia bizarra, imagens violentas, ideações suicidas e pensamentos

492
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

assassinos, entre outras inúmeras produções perversas, surgem subtri-


bos como os incels, celibatários involuntários que depositam seu ódio no
feminismo devido ao fim do período de submissão da mulher ao domínio
patriarcal. Frustrados e ressentidos com as colegas, idealizam um acting
out mortal no qual finalmente se vingarão do desprezo sofrido no coti-
diano. Casos investigados por Nagle como os da manosfera e do Gamer-
Gate, em que mulheres entraram no universo privado dos gamers e nerds
em geral e acabaram virtualmente linchadas e ameaçadas de morte, são
exemplos da formação desse ecossistema (NAGLE, 2017, p. 20-26). Isso,
contudo, quando ainda existe alguma coisa que importa. Com o aprofun-
damento da posição cínica e da aura transgressiva, a própria relação com
o real acaba se tornando denegatória, formando uma postura de indife-
rença que corrobora a destruição do vínculo empático que Bifo explorara
acima a partir da eclosão do semiocapitalismo (NAGLE, p. 27-40; BE-
RARDI, 2015, p. 116-117; PINTO NETO, 2018b).

O lumpenradicalismo desesperado como culto à morte

A postura frustrada desses nerds/trolls apresenta-se na forma de ca-


tarse a partir do anonimato. E, com isso, catalisa o aspecto violento que
atravessa as redes e projeta sobre o mundo real. Por vezes, o acting out tor-
na-se não uma explosão momentânea, como a expressão designa propria-
mente, mas uma espécie de estado de permanente revolta, encorpando-se
em ideologias paranoicas baseadas no ressentimento. Dale Beran sinaliza-
va que, durante as eleições estadunidenses, os nerds do 4Chan não tinham
interesse em contrapor um candidato melhor a uma candidata pior. Trump
interessava exatamente por ser o pior, e não por ser o melhor. Depois de dé-
cadas frustradas de neoliberalismo, nas quais a possibilidade de se engajar
em um trabalho e obter melhoras acaba cada vez mais distante, a própria
noção de nostalgia não faz mais sentido. Os “Anos Dourados” já não fazem
mais sentido enquanto projeto. É por saber que, aconteça o que acontecer,
nada mudará, que os trolls desistem de tentar. Sua política é, segundo Be-
ran, uma política de desesperança. Trump é apenas uma pegadinha. Ele
não vale por ser um empreendedor bem-sucedido, um self-made man per-
feito, mas justamente pelo oposto: por ser uma farsa, porque o tabuleiro
está viciado desde o começo e, como em Heroes, de David Bowie, o herói é
um pastiche de heroísmo (BERAN, 2016).
É aqui que o pensamento de Achille Mbembe mostra-se adequado
à discussão. Ao investigar a necropolítica como uma tendência do culto
à morte pelo Ocidente, Mbembe aproxima essa noção que Bataille asso-
ciava à despesa sem reserva, o excesso, o esbanjamento, o luxo, ao culto à
morte, ao arriscar a vida do “senhor” hegeliano na dialética do senhor e do

493
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

escravo. Ou seja, o excesso transgressivo que fomentou as revoltas de 1968


– associado à sexualidade, ao uso de psicotrópicos, entre outros – é apenas
uma tendência possível no circuito do desejo. Ele também pode se rever-
ter contra a própria vida, pode se transformar em um desejo destrutivo
ou, como diziam Deleuze e Guattari, na “paixão por abolição” (DELEUZE;
GUATTARI, 1996, p. 111-112; BERARDI, 2015, p. 86-89).
Mbembe associa essa dimensão ao surgimento dos lumpenradicais
na África. Entendido como uma “doença da tirania”, o lumpenradicalismo
seria efeito da separação promovida entre as elites e a população, fazendo
– por meio da desregulação e da privatização – um sequestro do Estado
promovido pelas finanças e pela extração geral. A combinação produz um
bloqueio do futuro – semelhante ao cancelamento do futuro que Bifo ante-
vira (BERARDI, 2015, p. 78) – e faz emergir a cólera, a raiva e a impaciência
como forças que não param de crescer. Vale citar trechos do texto:

A tirania ensinou essa geração a falar uma língua imunda e


destituída de símbolos, a língua desses corpos e dessas exis-
tências transformadas em esgotos. Ela produziu inumeráveis
personagens rachados, centenas de milhares de vidas dividi-
das em relação às quais atores políticos pouco escrupulosos se
consideram hoje, por conta e risco, os porta-vozes. São vidas
já consumadas pelo ressentimento ilimitado, pela sede de vin-
gança, pelos atrativos inebriantes de uma festa, pela carnifici-
na e pela violência imbecis às quais, elas creem, são chamadas
pelo destino. Essa “geração perdida” estima que a única coisa
que nos resta a fazer é combater o fogo com o fogo, a imundí-
cie com a imundície, a violência com mais violência, voltando
o veneno contra aqueles que o fabricaram.
Por fim, trata-se de uma geração que foi socializada de tal
maneira que a brutalidade não lhes parece algo repugnante.
(MBEMBE, 2017).

E, depois de passar por outros importantes pontos, segue:

No mais, o lumpenradicalismo se distingue pelos seguintes tra-


ços: seus principais clérigos têm por hábito reivindicar, quando
lhes convém, o estatuto de intelectuais; o lumpenradicalismo se
caracteriza por suas inclinações anti-intelectuais. Uma oposição
intransponível se estabelece entre a faculdade de pensar e a fa-
culdade de agir. O ativismo (compreendido sob a forma do agir
sem pensar) é identificado ao heroísmo. De resto, o desejo de he-
róis prima sobre toda capacidade de exercício das faculdades crí-
ticas. Daí a hostilidade em relação às figuras intelectuais livres.
O outro aspecto do lumpenradicalismo está em levar a cultura
da brutalidade ao espaço público e o desejo de subjugação. Isso
acontece por meio do uso da violência verbal típica dos movi-
mentos de extrema-direita, pela colonização dos fóruns na in-
ternet, pela intimidação dos oponentes e críticos e pela ausência
de limites na linguagem e nos modos. […]. A tudo isso é possível

494
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

acrescentar: uma concepção anti-igualitária (um grande não é um


pequeno); um virilismo e hipermasculinismo exacerbados, e daí
as constantes referências aos órgãos genitais masculinos e o de-
negrir dos supostos atributos femininos, isto é, a identificação de
toda mulher a uma prostituta (Ibidem).

Como se verifica, Mbembe reúne em torno da pulsão de morte dos


lumpenradicais todos os atributos em torno dos quais orbita o ecossiste-
ma aqui estudado: misoginia, supremacismo, falocentrismo, brutalidade e
anti-intelectualismo.

Considerações finais

Os massacres, infelizmente, tornaram-se um fenômeno global


que se modula conforme as circunstâncias locais e opera por mimese,
alastrando e viralizando a brutalidade lumpenradical em seus heróis-
-pastiche, avessos ao pensamento e dispostos a usar a destruição como
arma para afirmação de uma virilidade ferida e uma vida fracassada (ver
também: MBEMBE, 2004, p. 179-183). Just do it, como lembra Bifo no
slogan da Nike e sua conexão com o acting out (BERARDI, 2015, p. 56).
A defesa da ação volta-se exatamente contra a escola, a educação, os
intelectuais, uma vez que o pensamento funciona como inimigo dessa
concepção misógina e hierárquica de mundo. Esses corpos dilacerados
por uma inadequação a um mundo em que as coisas estão dissociadas
na fratura entre o tempo digital (das finanças aos videogames) e o corpo
físico frágil – não raro atormentado pelos complexos adolescentes – re-
agem promovendo uma sutura forçada na qual seu conjunto de crenças
desorganizadas e niilistas é imposto à força, seguido finalmente do sui-
cídio como ato consumatório (Ibidem, p. 46).
Em 2016, a partir da eleição de Trump, Victor Marques escreveu:

Essa subjetividade que combina a irreverência supostamente


irônica tão comum entre os millenials e a crueldade tóxica que
o anonimato (ou pelo menos a impessoalidade digital) parece
estimular espalha-se feito uma peste, sobretudo entre homens
jovens isolados e deprimidos. Por outro lado, é quase como
se a alt-right fosse a versão da “política de identidade” para a
direita, implicitamente assumindo que o “homem branco he-
terossexual” é uma minoria em perigo, que tem direito de se
defender. O espectro, inteiramente fantasioso, de um “genocí-
dio branco” (supostamente causado pela imigração, pelas co-
tas, pelo feminismo etc.) alimenta a mentalidade paranoica e
violenta desses novos cruzados. Como a internet também pro-
move uma circulação praticamente instantânea de narrativas,
e a política brasileira cada vez mais se espelha na americana,
não se surpreenda se o vírus logo começar a se difundir por es-

495
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

sas terras. Sabe aquele seu amigo de crazy eyes, cara de virjão,
que reclama das feministas radicais e gosta de publicar coisas
sobre Vikings, as Cruzadas ou o Império Romano? Cuidado,
ele pode ser um alt-righter (MARQUES, 2016).

A profecia definitivamente – e infelizmente – cumpriu-se. Mais do


que nunca, vivemos condições espelhadas no mundo. Nas semanas seguin-
tes ao ato de Suzano, várias escolas e universidades no Brasil tiveram que
suspender suas atividades em virtude de ameaças similares. A Universida-
de Federal do Rio Grande do Sul expediu comunicado no qual retratava a
ameaça de execução de mulheres vinculadas ao curso de Engenharia detec-
tada pela Polícia Federal.4 Doze colégios em Porto Alegre tiveram que re-
forçar a proteção policial em face da ameaça de execuções em uma “grande
escola marista”, com o acréscimo que alunos e alunas haviam realizado um
forte ato de protesto após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da
República em 20185. No Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Educação
de Surdos (INES) acionou a Polícia Federal devido à ameaça de aluno de
inspiração neonazista com um “Dia D”6.
A educação encontra-se literalmente sob a mira do ecossistema fascista,
que conseguiu se conectar, depois de décadas de trabalho, em nível mundial.

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498
Autores

Ádna Rosiene de Araújo Parente: Mestranda em Filosofia pelo


Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade
Federal de Rondônia – UNIR. Bolsista CAPES.
Adriana Vieira da Costa: Professora do Departamento de
Direito da Universidade Federal de Rondônia. Doutoranda
em Direito no UNICEUB. Pesquisadora do Jus Gentium:
Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional.
Christian Iber: Doutor em Filosofia pela Universidade Livre de
Berlim, onde é Professor do Instituto de Filosofia e do Pro-
grama de Pós-Graduação em Filosofia da PUC/RS.
Dalliana Vilar Lopes: Procuradora do Trabalho. Mestra em
Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Univer-
sidade Federal de Rondônia e mestranda em Derecho Consti-
tucional da Universidad de Sevilla.
Deborah Christina Biet de Oliveira: Licenciada em Filosofia pela
Universidade Federal de Rondônia. Faz iniciação científica
no Jus Gentium: Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito
Internacional sob a orientação do Professor Marcus Vinícius
Xavier de Oliveira no Projeto de Pesquisa “O crime de geno-
cídio em suas dimensões nacional e internacional”.
Edgardo José Manuel Castro: Doutor em Filosofia pela Univer-
sidade de Friburgo (Suíça). Professor Titular de História da
Filosofia Contemporânea da Universidade Nacional de San
Martín (Argentina) e Investigador do Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas.

499
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Erick Lima: Professor do Departamento de Filosofia na Universi-


dade de Brasília (UnB). Professor do Programa de Pós-Gradua-
ção em Filosofia da Universidade de Brasília (PPGFIL-UnB).
Fernando Danner: Doutor em Filosofia. Professor do Depar-
tamento de Filosofia e do Mestrado em Filosofia (PPGFIL)
da Universidade Federal de Rondônia.
Francine de Freitas Fernandes: Bacharela em Direito pelo Centro
Universitário São Lucas. Mestranda no PPGFIL/UNIR.
Geovana Assunção Kerdy do Casal: Aluna do curso de Direito da
Universidade Federal de Rondônia. Faz iniciação científica
no Jus Gentium: Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito
Internacional sob a orientação do Professor Marcus Vinícius
Xavier de Oliveira no Projeto de Pesquisa “O crime de geno-
cídio em suas dimensões nacional e internacional”.
Gills Vilar-Lopes: Doutor em Ciência Política pela Universidade
Federal de Pernambuco. Professor da Universidade da Força
Aérea no Programa de Pós-Graduação em Ciências Aero-
náuticas. Pesquisador do Jus Gentium: Grupo de Estudos e
Pesquisas em Direito Internacional.
Hélio de Araújo Carneiro: Graduado em Licenciatura em Filoso-
fia pela Faculdade Católica de Rondônia (2012). Graduado em
Serviço Social pela Universidade Norte do Paraná. Mestrando
em Filosofia pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Helmut Coing (1912-2000): Doutor em Direito pela Universida-
de de Frankfurt am Main, desenvolveu pesquisas nas áreas do
Direito Privado, Direito Romano, Filosofia do Direito e Direito
Privado Europeu. Foi professor das cadeiras de Direito Civil
e Direito Romano e Reitor da Universidade de Frankfurt am
Main entre os anos de 1955/1956 e 1956/1957. Em 1964, ele fun-
dou o Instituto Max Planck de História do Direito Europeu.

500
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Ítalo José Marinho de Oliveira: Bacharel em Direito pela Uni-


versidade Federal de Rondônia. Mestrando em Filosofia
pelo PPGFIL-UNIR. Pesquisador do Jus Gentium: Grupo
de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional.
Jean-François Kervégan: Professor de Filosofia da Universidade
Paris 1. Membro Sênior do Instituto Universitário de França
na Cadeira de Filosofia do Direito. Diretor do NoSoPhi.
Jordi Balló [i Fantova]: Professor da Universidade Pompeu Fa-
bra, sendo Coordenador do Máster en Documental de Creaci-
ón, além de produtor de cinema e gestor cultural. Foi Diretor
Artístico do Festival de Cinema de Barcelona e do Centro de
Cultura Contemporânea de Barcelona.
Junior Rangel: Mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Rondônia.
Leno Francisco Danner: Doutor em Filosofia. Coordenador do
PPGFIL-UNIR.
Leonam Liziero: Doutor em Direito. Professor do PPGCJ/
UFPB. Pesquisador do Jus Gentium: Grupo de Estudos e
Pesquisas em Direito Internacional.
Lucas Máximo: Graduado em Relações Internacionais pela
Universidade Federal da Paraíba. Membro do Grupo de
Pesquisa Política Externa, Cooperação e Desenvolvimento
(UFPB)
Lucimar Simon: Doutorando em Letras na Universidade Fede-
ral do Espírito Santo, com orientação do Prof. Vitor Cei. Na
Ufes também concluiu o mestrado em Letras, a Licenciatura
Dupla em Letras Português e Espanhol e a Licenciatura e o
Bacharelado em História. Atualmente, é Professor de História
da Prefeitura Municipal de Vila Velha (ES).

501
Leno Francisco Danner
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira (Orgs.)

Magnus Dagios: Professor do Programa de Pós-Graduação em


Filosofia da Universidade Federal de Rondônia. Doutor em
Filosofia pela PUC-RS. Pesquisador do Jus Gentium: Grupo
de Estudos e Pesquisas em Direito Internacional.
Marcus Vinícius Xavier de Oliveira: Doutor em Direito. Professor
do Departamento de Direito da Universidade Federal de Ron-
dônia. Líder do Jus Gentium: Grupo de Estudos e Pesquisas
em Direito Internacional.
Moysés Pinto Neto: Doutor em Filosofia pela PUCRS. Pro-
fessor do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
Paulo Henrique Lora Gomes da Silva: Aluno do curso de Direito
da Universidade Federal de Rondônia. Faz iniciação científica
no Jus Gentium: Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito
Internacional sob a orientação do Professor Marcus Vinícius
Xavier de Oliveira no Projeto de Pesquisa “O crime de geno-
cídio em suas dimensões nacional e internacional”.
Paulo Roberto Konzen: Doutor em Filosofia. Professor do
PPGFIL/UNIR.
Roberto Esposito: Professor Ordinário de História da Dou-
trina Política da Faculdade de Ciência Política do Instituto
Universitário Oriental de Nápoles, sendo diretor do Depar-
tamento de Filosofia e Política desse Instituto. Foi um dos
fundadores do Centro de Pesquisa sobre o Léxico Político
Europeu (com sede em Bolonha).
Rosana Maria Matos Silva: Doutora em Educação pela
Universidade Católica de Santa Fé/Argentina. Mestre em
Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente UNIR/RO.
Professora de Ensino Superior na Faculdade UNIRON.

502
Filosofia do Direito e Contemporaneidade II

Rurion Soares Melo: Doutor em Filosofia pela USP. Professor


do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-
-Graduação em Ciência Política da USP.
Theo Antônio R. Sant’Ana: Graduando em Relações Internacio-
nais na UFPB. Tem experiência na área de Relações Interna-
cionais e Estudos de Paz.
Vicente E. R. Marçal: Doutor em Psicologia pela USP. Professor
do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de
Rondônia.
Xavier Pérez [Torio]: Professor de Narrativa Audiovisual na
Universidade Pompeu Fabra, sendo Vice-diretor do Curso
de Estudos de Comunicação Audiovisual. É crítico de teatro,
literatura e cinema.

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