Estudos Discursivos Das Praticas de Linguagem Vol 1

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ESTUDOS

DISCURSIVOS
DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM

Vol. I
Rita de Cássia Souto Maior
Rita Maria Diniz Zozzoli
Geison Araujo Silva
Eliane Vitorino de Moura Oliveira
Lilian Soares de Figueiredo Luz
Silvio Nunes da Silva Júnior
Kristianny Brandão Barbosa de Azambuja
(orgs.)

ESTUDOS
DISCURSIVOS
DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM

Vol. I

TUTÓIA, 2020
2020 - Editora diálogos
Copyrights do texto – Autores e Autoras

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei no 9.610, de 19/02/1998. Esta obra pode
ser baixada, compartilhada e reproduzida desde que sejam atribuídos os devidos créditos a
seus autores e autoras, bem como a seus organizadores e organizadoras. É proibida qualquer
modificação ou distribuição com fins comerciais. O conteúdo e revisão dos textos é de total
responsabilidade dos autores e autoras dos artigos que compõe este livro.

Editora Diálogos
[email protected] Capa e projeto gráfico: Geison Araujo Silva
www.editoradialogos.com Editoração: Editora Diálogos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Estudos discursivos das práticas de linguagem, vol. I [livro eletrônico] /


(orgs.) Rita de Cássia Souto Maior...[et al.]. -- Tutóia, MA: Editora
Diálogos, 2020.
Outros organizadores: Rita Maria Diniz Zozzoli, Geison Araujo
Silva, Eliane Vitorino de Moura Oliveira, Lilian Soares de Figueiredo Luz,
Silvio, Nunes da Silva Júnior, Kristianny Brandão Barbosa de Azambuja.
ISBN 978-65-992824-0-9
1. Análise do discurso 2. Linguagem e línguas 3. Linguística I. Maior,
Rita de Cássia Souto. II. Zozzoli, Rita Maria Diniz. III. Silva, Geison
Araujo. IV. Oliveira, Eliane Vitorino de Moura. V. Luz, Lilian Soares de
Figueiredo. VI. Silva Júnior, Silvio Nunes da. VII. Azambuja, Kristianny
Brandão Barbosa de.

20-48809 CDD-401.41

Índices para catálogo sistemático:


1. Análise do discurso: Linguística 401.41
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
Conselho Editorial:

Adail Sobral (FURG)


Aldir Santos de Paula (UFAL)
Antonio Carlos Santos de Lima (IFAL)
Deywid Wagner de Melo (UFAL)
Edineide dos Santos Silva (UFAL)
Elyne Gisele de S. Lima Aguiar Vitório (UFAL)
Eliane Vitorino de Moura Oliveira (UFAL)
Elias André da Silva (UFAL)
Evandro de Melo Catelão (UTFPR)
Flávio Brandão (UEL)
Flávio Faccioni (UFMS)
Gonzalo Abio (UFAL)
João Manuel P. S. e Almeida Veloso (Universidade do Porto)
Joyce Elaine de Almeida Baronas (UEL)
Juliana Teresa de Souza Lima Araújo (UFAL)
Karla Renata Mendes (UFAL)
Kleber Aparecido da Silva (UnB)
Kristianny B. Barbosa de Azambuja (UFAL)
Lauro Gomes (UPF)
Manuel Álvaro Soares dos Santos (FAFICA)
Marcel Álvaro de Amorim (IFRJ)
Marcus Vinicius Freiras Mussi (UFCG)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Nágib José Mendes dos Santos (UFAL)
Pedro Farias Francelino (UFPB)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rusanil dos Santos Moreira Júnior (UFAL)
Silvia Inês C. Carrilho de Vasconcelos (UFSC)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Sônia Cristina Simões Felipeto (UFAL)
Vanderci de Andrade Aguilera (UEL)
Wilder Kleber Fernandes de Santana (UFPB)
I ENCONTRO NACIONAL DE LINGUÍSTICA APLICADA

COMISSÃO ORGANIZADORA: Francisco Renato Lima (UFPI)


Geison Araujo Silva (UFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
Rita Maria Diniz Zozzoli (UFAL)
Josenice Cláudia Moura de Lima (IFAL)
Kristianny B. B. de Azambuja (UFAL)
Kristianny B. B. de Azambuja (UFAL)
Lilian Soares de Figueiredo Luz (IFAL)
Lara Rani Souto Maior (UFAL)
Antonio Carlos Santos de Lima (IFAL)
Lilian Soares de Figueiredo Luz (IFAL)
Eliane Vitorino de Moura Oliveira
(UFAL) Lorena Noberta da Silva (IFAL)
Geison Araujo Silva (UFAL) Maria Edna P. do Nascimento (UNEAL)
Humberto Soares Lima da Silva (UFAL) Nádia Mara da Silveira (IFAL)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL) Paula Tatianne Carrera Szundy (UFRJ)
Rosana T.P. Nicacio dos Santos (UFAL) Poliana Pimentel Silva (IFAL)
Kathia Maria Barros Leite (IFAL) Ricardo Jorge de S. Cavalcanti (IFAL)
Sarah Felicia Paz Cavalcante (UFAL) Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
Mozart Luiz T. da Silva Gomes (UFAL) Rosângela Hammes Rodrigues (UFSC)
Joseane dos S. do Espírito Santo (UFAL) Silvio Nunes da Silva Junior (UFAL)
Denise Maria dos Santos Melo (UFAL) Susana Souto Silva (UFAL)
Cleide Calheiros da Silva (IFAL)
APOIO:
COMISSÃO CIENTÍFICA:
Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Alagoas (FAPEAL)
Antônio Carlos Santos de Lima (UFAL)
Carlos Alberto Matias (UFAL) Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Cristiano Lessa de Oliveira (IFAL)
Faculdade de Letras da Universidade
Eliane Barbosa da Silva (UFAL) Federal de Alagoas (FALE/UFAL)
Erinaldo da Silva Santos (UFAL)
Programa de Pós-Graduação em
Eulália Vera Lúcia Leurquin (UFC) Linguística e Literatura (PPGLL/UFAL)
Evandro Oliveira Santos (UFAL)
Mestrado Profissional em Letras
Fábio José dos Santos (UFAL)
(Profletras/ UFAL)
Fábio Rodrigues do Santos (UFAL)
Flávia Colen Meniconi (UFAL) Instituto Federal de Alagoas (IFAL)
Flávia K. Lima Duarte Barbosa (UFAL)
Agradecemos à Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Alagoas – FAPEAL –
pelo apoio dado para a realização do I
Encontro Nacional de Linguística Aplicada –
Enala.
REITORIA
Maria Valéria Costa Correia
Atual: Josealdo Tonholo

VICE-REITORIA
José Vieira da Cruz
Atual: Eliane Aparecida Holanda Cavalcanti

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PROPEP


Alejandro Cesar Frery
Atual: Iraildes Pereira Assunção

PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO - PROGRAD


Sandra Regina Paz da Silva
Atual: Amauri da Silva Barros

PRÓ-REITORIA DE GESTÃO ESTUDANTIL – PROEST


Silvana Medeiros
Atual: Alexandre Lima Marques da Silva

PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO – PROEX


Joelma Albuquerque
Atual: Clayton Antônio dos Santos Silva

FACULDADE DE LETRAS – FALE


DIRETORA
Rita de Cássia Souto Maior Siqueira Lima

VICE-DIRETOR
José Niraldo de Farias
Atual: Eliana Kefalás Oliveira
Sumário

Apresentação............................................................................................................ 15

LINGUÍSTICA APLICADA

Capítulo 1 - Ética discursiva em tempos sombrios: linguagem e sentidos ..... 17


Rita de Cássia Souto Maior
Capítulo 2 - A pedagogia crítica freireana na literatura só por hoje de Narcóticos
anônimos .................................................................................................................... 37
Tiane Cléa Santos Oliveira Dias
Capítulo 3 - O professor de língua portuguesa e sua relação com o saber:
(re)pensando a forma(ação) inicial em vista do letramento do professor ........ 47
Manuel Álvaro Santos
Capítulo 4 - Linguística ou linguística aplicada? Uma análise do projeto do
curso de pós-graduação em LA do Campus XVIII .............................................. 60
Débora Rodrigues de Souza, Emerson Tadeu Cotrin Assunção

Capítulo 5 - Caracterização e implicações sociais da pesquisa em linguística


aplicada por licenciandos em letras ........................................................................ 70
Silvio Nunes da Silva Júnior
Capítulo 6 - Cultura e interculturalidade nas formas de avaliação: uma análise
do Celpe-Bras............................................................................................................. 88
Débora Simões Araújo
Capítulo 7 - Expectativa x realidade: contribuições do PIBID para a formação
docente e para a educação básica .......................................................................... 101
Silmara Cavalcante Oliveira de Araujo
Capítulo 8 - Linguística Aplicada ou aplicação de linguística? Análise das
ementas do curso de pós-graduação em LA da UNEB, campus XVIII .......... 114
Daniele Santos Rocha, Emerson Tadeu Cotrim Assunção, Juliana Alves dos Santos
Capítulo 9 - O desenvolvimento da criticidade através da música em uma turma
do 6° ano do ensino fundamental II .................................................................... 128
Janaína Maria Silva Santos, Naftali Tuany Souza Roberto

Capítulo 10 - O potencial dos estudos de paisagens linguísticas na abordagem


etnográfica: complexidade e desestabilização da noção de rural ..................... 141
Thaís Elizabeth Pereira Batista

Capítulo 11 - A reforma do ensino médio: uma abordagem da análise do


discurso ..................................................................................................................... 155
Maria Cléia Alves dos Santos, Daniela de Lima Basio

LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DISCURSIVOS

Capítulo 12 - Atividades de compreensão leitora no livro didático de português:


uma proposta didática ............................................................................................ 169
Késia Suyanne Pinheiro Lima, Evanilce Chagas Samico Lopes

Capítulo 13 - A (in)visibilidade da mulher negra universitária nos discursos


político de extrema-direita ..................................................................................... 183
Rosane Correia da Silva
Capítulo 14 - A desconstrução das fake news em sala de aula: atividades de
checagem de informação ........................................................................................ 196
Marcos Randall Oliveira de Freitas, Gerciane Lima de Miranda Silmara Cavalcante
Oliveira de Araujo
Capítulo 15 - A escola crítica e os (re)significados da cidadania: por uma
ensinança da emancipação das massas ................................................................. 209
Eduardo Henriques
Capítulo 16 - A representação do negro-escravo na obra Casa-Grande &
Senzala de Gilberto Freyre delimitada pelo olhar da Análise Crítica do Discurso
.................................................................................................................................... 224
Fernanda Pinheiro de Souza-e-Silva, Karl Heinz Efken
Capítulo 17 - A Sequência Didática como ferramenta para o desenvolvimento
da escrita no Ensino Médio ................................................................................... 236
Luana Maria de Medeiros
Capítulo 18 - Análise do discurso crítica (ADC) e inclusão social: o caso dos
imigrantes Warao e a situação de risco das crianças indígenas venezuelanas em
Belém do Pará .......................................................................................................... 248
Tailson Rodrigues de Lima, Auricélia Silva Monte
Capítulo 19 - Dialogismo em sala de aula: o trabalho didático com o discurso
alheio na sala de aula de língua inglesa da educação profissional .................... 263
Andre Cordeiro dos Santos
Capítulo 20 - Ensino de leitura, escrita e letramento acadêmico ................... 277
Edna Maria de Oliveira Ferreira, César Costa Vitorino

Capítulo 21 - Funcionamento discursivo do Papa Francisco: a marca da


exterioridade na formação das condições de produção .................................... 290
Francisco Oliveira
Capítulo 22 - Homeschooling e planejamento de aula: discussões sobre a
proposta do governo federal ................................................................................. 301
Janielly Linhares Freitas, Raphael Albuquerque Bezerra
Capítulo 23 - O ensino de línguas entre poder e exclusão: caminhos da
Linguística Aplicada para uma educação linguística em espanhol ................... 315
Gabriela Rodrigues Botelho

Capítulo 24 - O processo midiático de legitimação do Golpe de 2016: uma


análise de discurso crítica na revista veja ............................................................. 331
Antonio Edson Alves da Silva
Capítulo 25 - Questões de gênero em aulas de inglês: um estudo sob a luz da
linguística aplicada ................................................................................................... 343
Maryana Josina Tavares da Rocha, Sérgio Ifa
Capítulo 26 - Representações dos imigrantes na imprensa chilena: análise
crítica do discurso do jornal La Tercera ................................................................ 357
José Genival Bezerra Ferreira
Capítulo 27 - Análise discursiva dos silenciamentos nas propostas do governo
Bolsonaro em relação aos direitos trabalhistas ................................................... 372
André Luis Guimarães da Rocha
ESTUDOS DO TEXTO E DO DISCURSO

Capítulo 28 - Argumentação e efeito de verdade em textos publicitários .... 394


Mirian de Melo da Silva Terto, Maria de Fátima Silva dos Santos
Capítulo 29 - Da fala para a escrita: um estudo sobre a retextualização
apresentada por Marcuschi e uma proposta metodológica para o ensino de
Língua Portuguesa ................................................................................................... 406
Dayane Rocha de Oliveira, Maria Silma Lima de Brito, Maria Inez Matoso Silveira
Capítulo 30 - Estudo sobre os aspectos do texto argumentativo: uma
experiência com o Pibid ......................................................................................... 420
Luiz Carlos Gomes da Silva, Jane Cristina Beltramini Berto
Capítulo 31 - Modelos mentais e representação: uma análise sociocognitiva da
fala de pescadores artesanais ................................................................................. 434
Veronica del Pilar Proaño de Fox
Capítulo 32 - O conhecimento linguístico e suas implicações para a leitura e a
compreensão textual ............................................................................................... 449
Leandro Rafael Braz Alves, Suênia Cordeiro Valério
Capítulo 33 - O ensino de uso da vírgula orientado pelo discurso: uma
experiência de atuação no Programa Residência Pedagógica do Curso de Letras
de Arapiraca ............................................................................................................. 462
Fabrício de Farias Melo, Elias André da Silva
Capítulo 34 - O gênero de texto diário virtual de leituras: um instrumento
pedagógico rumo à construção de sentidos ........................................................ 474
Ângela Alves de Araújo Barbosa, Sandra Patrícia Ataíde Ferreira
Capítulo 35 - O processo de organização tópica em artigos de opinião ....... 486
Cleide Vilanova Hanisch
Capítulo 36 - O uso dos elementos coesivos como recurso linguístico
indispensável à produção textual do gênero carta argumentativa numa turma do
9º ano ........................................................................................................................ 500
José Raimundo de Oliveira Filho
Capítulo 37 - O WhatsApp enquanto lugar de interação e negociação de
sentidos entre atores sociais................................................................................... 510
Emanuelle Maria da Silva Piancó, Max Silva da Rocha
Capítulo 38 - Os discursos da balbúrdia: efeitos de sentido e gestos de
interpretação a partir dos operadores da memória social ................................. 525
Francisco Oliveira
Capítulo 39 - Uma análise além do humor na construção de sentidos da leitura
.................................................................................................................................... 536
Daniella Rafaelle A. do Nascimento, Maria Auxiliadora da Silva
Capítulo 40 - Uma leitura dos marcadores conversacionais no discurso
radiojornalístico ....................................................................................................... 548
Daniela Carla Silva Costa, Maria Francisca Oliveira Santos

GÊNERO SOCIAL E ESTUDOS DISCURSIVOS

Capítulo 41 - Transexualidade: ele é ela ou ela é ele? ....................................... 561


Humberto Soares da Silva Lima, Rita de Cássia Souto Maior
Capítulo 42 -Ideologias linguísticas e história natural dos discursos do novo
biologismo ................................................................................................................ 578
Amanda Diniz Vallada

LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS CULTURAIS

Capítulo 43 - Identidade cultural e suas implicações na escolha eleitoral: uma


análise do gênero infográfico ................................................................................ 592
Vanesca Carvalho Leal
Capítulo 44 - Linguagem e identidade: práticas culturais em uma escola pública
do município de Natal/RN ................................................................................... 607
Cíntia Daniele Oliveira do Nascimento, Marília Varella Bezerra de Faria

ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO

Capítulo 45 - Transdisciplinaridade e plurivocidade ........................................ 619


Rita Maria Diniz Zozzoli
Apresentação
Socializamos a coletânea de capítulos dos trabalhos apresentados no
Encontro Nacional de Linguística Aplicada, evento realizado pelo Grupo de
Estudos Discurso, Ensino e Aprendizagem de Línguas e de Literatura –
GEDEALL – do Programa de Pós-graduação em Linguística e
Literatura/PPGLL da Universidade Federal de Alagoas/Ufal.
O evento ocorreu em setembro de 2019 e contou com mais de 600
participantes de 22 instituições de 12 estados do Brasil e de outros países. A
proposta do Enala surgiu mais especificamente como resultado das oito edições
dos Ciclos de Palestras em Linguística Aplicada/CiPaLA, evento semestral ou
anual do grupo supracitado. O Gedeall atua no estado de Alagoas desde a
década de 90, na área da Linguística Aplicada, e é composto por membros de
diversas instituições de ensino de Alagoas, como a Universidade Federal de
Alagoas/UFAL, o Instituto Federal de Alagoas/IFAL, a Universidade Estadual
de Alagoas/UNEAL, a Secretaria Municipal de Educação/ SEMED/AL, a
Secretaria de Estado da Educação/SEED, entre outras.
Um primeiro produto do evento foi publicado em abril de 2020, quando
finalizamos o tão esperado CADERNO DE RESUMOS1, já no quadro ainda
muito incerto de Pandemia do Covid-19, doença provocada pelo SARS-COV-
2, que, infelizmente, assolou e ainda assola o mundo todo.
Mesmo no contexto de adoecimento físico e psicológico no qual nos
encontramos, o corpo editorial, com o auxílio e cuidado de todos que
compuseram a comissão científica do Evento, finaliza e apresenta para toda a
comunidade o primeiro volume da coletânea “Estudos Discursivos das Práticas

1 Disponível em: http://enala.com.br/EBOOK-ENALA.pdf

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 15


de Linguagem”, que consta de 44 capítulos repletos de reflexões,
questionamentos e resultados de pesquisas no campo da Linguística Aplicada,
em diálogo com outras áreas do conhecimento, os quais poderão auxiliar no
movimento científico do cenário regional e nacional.
Os temas que movimentaram o Enala estão, nessa obra, divididos
conforme os eixos temáticos do evento e de acordo com o quantitativo de
textos que seguem respectivamente: Linguística Aplicada, 11 capítulos;
Linguística aplicada e estudos discursivos, 16 capítulos; Estudos do texto e do
discurso, 13 capítulos; Gênero social e estudos discursivos, 2 capítulos;
Linguística aplicada e estudos culturais, 2 capítulos; e Análise dialógica do
discurso, 1 capítulo.
Desejamos uma ótima leitura e tempos melhores de convivência humana
para que possamos novamente nos reencontrar presencialmente na segunda
edição do Enala e, assim, continuarmos com o necessário diálogo para a
publicização e popularização da ciência.
Agradecemos, por fim, a todas/os as/os autoras/es que escreveram
conosco este livro! Com muita esperança, acreditamos que nos veremos em
breve!

Rita de Cássia Souto Maior e Geison Araujo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 16


CAPÍTULO 1

Ética discursiva em tempos sombrios:


linguagem e sentidos
Rita de Cássia Souto Maior1

Introdução

A mudança nas práticas sociais de linguagem, referentes àquelas


relacionadas a interação pelas redes sociais, trouxeram certos reflexos e
refrações na forma como se organizam as informações sobre as temáticas da
vida social nas redes e na maneira como essas informações circulam nos
espaços, ao mesmo tempo que revela algumas peculiaridades sobre como o
sujeito se implica no discurso que produz naquele espaço. Esse discurso
produzido, o qual pode ser postado, comentado, curtido, repostado, também
revela além da ação do sujeito como produtor, sua relação com o mundo vivido
e, principalmente, os significados que subjazem todas as redes de sentido no
mundo. Bauman (2001, p. 178) alerta, por exemplo, para um estado em que o
bem-estar das pessoas é medido por quanto seu domicílio é equipado e fala de
como o acesso à informação se torna o direito humano mais zelado. O autor
diz:

1 Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas e do Programa de Pós-graduação em

Linguística e Literatura da mesma universidade; Pesquisadora na área de Linguística Aplicada e uma das líderes
do Grupo de Estudos Ensino e Aprendizagem de Línguas (Capes/Cnpq).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 17


Essas pessoas [residentes do ciberespaço] são como a maioria antes dela,
dominadas e “remotamente controladas”; mas são dominadas e
controladas de uma maneira nova. A liderança foi substituída pelo
espetáculo: ai daqueles que ousem lhe negar entrada. Acesso à
“informação” (em sua maioria eletrônica) se tornou direito humano mais
zelosamente defendido e o aumento do bem estar da população como um
todo é hoje medido entre outras coisas, pelo número de domicílios
equipados com (invadidos por?) aparelhos de televisão. E aquilo sobre o
que a informação mais informa é a fluidez do mundo habitado e a
flexibilidade dos habitantes. (BAUMAN, 2001, p. 178)

Outra questão que se coloca diante de uma contemporaneidade das


práticas de linguagem é o entendimento, junto com Casara (2018, p. 39), de que,
com a ascensão do neoliberalismo e do estado pós-democrático, o principal
regulador do “mundo-da-vida”2 é o mercado. Segundo ainda o mesmo autor,
“O mercado tornou-se o eixo orientador de todas as ações, uma vez que foi
elevado a núcleo fundamental responsável por preservar a liberdade econômica
e a política.” (CASARA, 2018, p. 39). Volóchinov (2018), por sua vez, assevera
que todo ato do homem integral e sua formação ideológica concreta
incorporam as condições socioeconômicas que os subjazem. No sentido
mercadológico, tudo é objetificado e tem determinado valor nas relações. Assim
sendo, observando os sentidos em pesquisas, é possível desnaturalizá-los e
propor outras narrativas de convivência humana.

Estender cada vez mais o estudo sobre os discursos e aprofundar as


reflexões sobre o que determinado dizer significa no processo interacional que
se opera em um determinado espaço, que tem contexto geográfico, nacional e
cultural, se torna imprescindível para que as relações sociais sejam
compreendidas e para que se possa agir sobre elas. As pesquisas nesse campo

2Aqui fica claro que não se trata de limitar tudo ao mercado, mas de entendê-lo como um dispositivo que ecoa

e destoa (existe o contraditório que também significa) ao mesmo tempo dos demais, como os das questões de
gênero, de raça, de religiosidade etc.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 18


podem fornecer subsídio teórico e prático para colaborar e responder ao
entorno de maneira mais engajada, responsável e com amorosidade.
Partindo dessas considerações iniciais, neste texto tem-se o objetivo
de discutir, no campo da Linguística Aplicada (FABRÍCIO, 2004; MOITA
LOPES, 2004), as implicações dos discursos na dimensão da ética discursiva
por trás deles, nas práticas mais contemporâneas das interações em redes
sociais. Especificamente serão analisados tanto uma postagem (texto verbo-
visual) no facebook da página do perfil Jovens de direita - Organização política3
quanto um extrato de oito comentários que seguiram a sua divulgação.
Para isso, serão definidos discurso e sentido, conforme o círculo
bakhtiniano (BAKHTIN, 2003; 2005; VOLÓSHINOV, 2017) e também as
concepções de ética discursiva, de Discursos Envolventes (SOUTO MAIOR,
2018, 2020a; 2020b; LUZ E SOUTO MAIOR, 2018) e de discurso de ódio
(SILVA et. all, 2013; BRAGA, 2018), a fim de se refletir sobre o contexto do
que é denominado aqui de tempos sombrios.
A perspectiva metodológica de análise é sócio-histórica (FREITAS, 2013)
e interpretativista, relacionadas a características de uma abordagem qualitativa
de pesquisa (LÜDKE E ANDRÉ, 1987; FLICK, 2009).
O artigo é dividido em três partes: uma primeira na qual serão
apresentadas as noções de discurso, de ética discursiva e de discursos
envolventes; uma segunda onde serão apresentadas características da interação
nas redes sociais e uma reflexão sobre o discurso de ódio e suas características
na busca do entendimento dessa construção social e cultural situada nas
relações das redes sociais. E, por fim, será apresentada a análise dos dados.

3 A imagem e os comentários foram copiados da página:


https://www.facebook.com/search/top/?q=jovens%20de20direita&epa=SEARCH_BOX, acessada em 26 de
setembro de 2019. O grupo apresenta a seguinte descrição: Sou jovem, sou conservador, sou cristão, sou de
Direita! instagram.com/jovensdedireita11.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 19


Discursos, Ética discursiva e os Discursos Envolventes

Entende-se o discurso na perspectiva do círculo bakhtiniano, ou seja,


como base das atividades humanas, mas também como constituinte delas
(VOLÓSHINOV, 2017). As atividades ou práticas sociais dos sujeitos se
realizam por meio de gêneros discursivos que são relativamente estáveis,
portanto são reprodução, mas também produção de sentidos (BAKHTIN,
2003). Por conseguinte, os gêneros discursivos e enunciados que os constituem
estão presentes a todo momento nas interações dos sujeitos e compõem tanto
a subjetividade dos sujeitos, quanto as redes de sentido mais coletivas de
comunidades e de grupos identitários. Essas instâncias – subjetividade e redes
de sentidos coletivos - estão em diálogo todo o tempo e constituem as trocas
ideológicas, com suas contradições, com suas diferenças culturais e com suas
diversas dimensões identitárias. O processo da alteridade (BAKHTIN, 2003),
da relação do eu com o outro na rede ideológica de sentidos, é um dispositivo
importante nesse processo4. Pode-se dizer, ainda, que as redes ideológicas do
sistema mais formal5 da sociedade trazem em seu bojo sentidos que seriam mais
“fossilizados”, isto é, estariam mais em um nível de repetição, formalização e
de tradição de sentidos. Já as redes ideológicas do sistema menos formal, ou do
cotidiano, estariam mais propensos a carregar sentidos que, apesar de
dialogarem com aqueles primeiros (mais formalizantes), seriam mais
“efervescentes” de novos sentidos. Segundo Bakhtin (2017, p. 215)

Elas [as camadas superiores da ideologia do cotidiano] são muito mais


ativas e sensíveis do que a ideologia formada; são capazes de transmitir as

4Bakhtin (2003) diz que o processo de alteridade ocorre no encontro do eu com o outro. Oliveira (2009, p.
07) considera que o processo de alteridade se configura sempre pela diferença e é pensada no bojo de uma
relação constitutiva do sujeito pela e na linguagem. Ainda segundo a autora, temos de passar pela consciência
do outro para nos constituir. (OLIVEIRA, 2009, p. 07).
5Bakhtin (2003) estabelece diferença entre gêneros primários e secundários, entendendo que os primeiros

estariam mais correlacionados com práticas do cotidiano e os segundos com práticas culturais mais elaboradas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 20


mudanças de base socioeconômica com mais rapidez e clareza. É
justamente aqui que se acumulam as energias criativas responsáveis pelas
transformações parciais ou radicais dos sistemas ideológicos.

As transformações, como dito na citação acima, portanto, podem ser


parciais ou radicais, mas todas se dão pela/através da linguagem. Os discursos
estão sempre em confrontos e se desestabilizam, ou mesmo estabilizam
sentidos dados como “certos”. Esses dois campos, o menos elaborado e o mais
elaborado, dialogam entre si e trocam faíscas ideológicas que operam práticas e
subjetividades no mundo.
A partir do que foi discutido, é possível ponderar que o dispositivo que
questiona essas trocas de sentido estariam no campo de uma ética discursiva.
Essa, por sua vez, se relaciona com as ações dos sujeitos nas interações sociais
e não é moduladora do que é o certo ou é o errado, apenas destrincha
dispositivos que instituem sentidos, fazendo com que perguntas como: por que
isso acontece? que implicações para as relações humanas isso enseja? sejam
colocadas em pauta. Ainda nessa linha de discussão, o que se diz, assume,
pratica, e aquilo com o que as pessoas se relaciona, se envolve, se identifica,
enfim tudo aquilo que constitui o cenário de atuação no mundo e no campo da
ética discursiva, vão construindo uma rede de sentidos que conduz os sujeitos
por determinados espaços discursivos e que, da mesma forma, atua na
modificação desses espaços6.
O campo da ética discursiva nas pesquisas promove espaços para uma
meta discussão sobre como os sentidos vão estabelecendo redes de ações que
se reverberam em mudanças concretas na vida vivida (SOUTO MAIOR,
2020b). Desse modo ainda, é compreensível que os discursos estejam repletos

6Essa construção também é constituída pelo processo de alteridade. Segundo Volóchinov (2017), há uma cadeia
ideológica que se estende pelas consciências individuais e as une, pois assim, na interação das consciências, o
signo surge. Ainda segundo Volóchinov (2017, p.95), uma “consciência só passa a existir como tal na medida
em que é preenchida pelo conteúdo ideológico, isto é pelos signos, portanto apenas no processo de interação.”.
Já com Bakhtin (2003), podemos entender que até mesmo nosso nome chega a nós por intermédio de outra
pessoa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 21


de tensões que, numa perspectiva bakhtiniana, estão impregnados do que
Bakhtin (2003) chama de tom emocional e volitivo. O tom está colocado na
palavra com a entonação e com sentidos situados (em situações específicas, com
interações específicas, com sujeitos específicos) que pressupõem atuação
subjetiva, mas também atuação de uma memória coletiva. Para Volóchinov
(2018), todo enunciado é antes de tudo uma orientação avaliativa; assim sendo, em
um enunciado vivo, cada elemento “não só significa mas também avalia”
(VOLÓCHINOV, 2018, p. 236, grifo do autor).
O tom, no campo do seu sentido ético-discursivo, comporta também
ações efetivas no mundo e, por isso, é tão importante refletir sobre ele,
problematizá-lo e propor ações efetivas a partir do entendimento do que esse
sentido pode provocar nas relações sociais. Segundo Bajtín (1997):

Um verdadeiro pensar concebido como ato é o pensamento emocional e


volitivo, o pensamento com tom, e esta entonação penetra
substancialmente em todos os momentos do conteúdo do pensamento.
Um tom emocional e volitivo abarca todo o conteúdo semântico do
pensamento no ato e o relaciona com o acontecimento singular do ser.
Justamente este tom emocional e volitivo é o que se orienta no ser singular,
assim como orienta e sustenta nele um conteúdo semântico (BAJTIN,
1997, p. 41-42. Tradução da autora)7.

Pelo que foi desenvolvido até aqui e em resumo, compreende-se que: 1. o


ato enunciativo é um ato ético; 2. os significados de mundo são expressivos
num tom que um determinado sujeito imprime; 3. os sentidos são
compartilhados e se acumulam também num “saber coletivo”; e 4.os sentidos
são retomados na concretude dos discursos e nas interações.

7 Texto no original: “Un verdadero pensar concebido como acto es el pensamiento emocional y volitivo, el
pensamiento entonado, y esta entonación penetra sustancialmente en todos los momentos del contenido del
pensamiento. Un tono emocional y volitivo abarca todo el contenido semántico del pensamiento en el acto y
lo relaciona con el acontecimiento singular del ser. Justamente este tono emocional y volitivo es el que se orienta
en el ser singular, así como orienta y sustenta en él un contenido semántico.” (BAJTIN, 1997, p. 41-42)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 22


Dessa última característica, depreende-se que no discurso há como
observar certos segmentos fossilizados ou sentidos que se repetem como
memória compartilhada entre as pessoas nos atos de interação, os quais são
chamados de Discursos envolventes.
Os discursos envolventes são constituídos em um processo de retomada
(reprodução de sentidos) e de resposta (de produção de sentidos) e eles nos
trazem certo “ar” de verdade e de unanimidade (falsamente constatada pela
repetição). O enquadre de um sentido (a exemplo de estereótipos) nas práticas
sociais de linguagem vai solidificando a existência de tal discurso como algo
natural, como um sentido dado, como algo posto como certo, adequado, bem
colocado, “fácil de passar” (SOUTO MAIOR, 2009, 2020). O discurso
envolvente funciona como uma reincidência discursiva ou como um eco de
sentido. Sentidos como “acordar cedo é sinal de responsabilidade”, ou “toda
mulher quer ser mãe”, ou ainda “quem trabalha enriquece”, são sentidos que
estão arraigados como “naturalmente” verdadeiros e, sendo assim, há o
apagamento da construção cultural dessas afirmações. E essa sensação de
familiaridade, de já ter ouvido aquela frase em algum lugar, ou ainda de ser algo
conhecido e verdadeiro, é altamente argumentativo e coercitivo.
O discurso envolvente pode ser depreendido do sentido geral de um texto
ou estar situado num segmento linguístico (numa palavra, num provérbio, numa
frase de campanha midiática etc.).
Nesse movimento, qualquer outra acepção que possa ocorrer é tratada
como um desvio ou como algo não natural, que desfigura expectativas,
desestabilizando o desejo de controle. A seguir, serão tratadas algumas das
características das relações nas redes sociais e o discurso de ódio.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 23


A trama social: as características das interações em redes
sociais e as implicações dos discursos

Se o discurso é movente, mas também promove reiterações nesse


movimento, é importante que ele seja observado no contexto de interesse deste
estudo. Sendo assim, há implicações do movimento de globalização, ou das
práticas de disseminação de ideias nas redes sociais, que precisam ser
questionadas, desnaturalizadas e/ou problematizadas por pesquisas na
academia e fora dela, para que não haja a promoção de injustiças sociais, de
desigualdades e da miséria humana.
Acerca desse tema, Fabrício (2006, p. 46) indica seis do que ela chama de
“características mais eloquentes da globalização” e diz que a LA vem se
debruçando sobre essa “trama movente” da sociedade. Dentre essas
características, ela alerta para um “crescente declínio e despolitização do espaço
público, decorrente do esvaziamento do sentido moral dessa arena.” (2006, p.
47).
Considera-se, a partir das reflexões acima, que as produções nas redes
sociais estariam num campo das práticas culturais mais elaboradas (a depender
da função e do gênero textual), mas também na interface das práticas de sentido
e de escrita mais cotidianas, bastando para isso ter uma conta registrada.8 As

8Considero importante destacar aqui que a característica da previsibilidade do gênero, vista pela repetição de
uma estrutura instituída pela tradição do uso, não se relaciona necessariamente com a caracterização dos gêneros
como secundários, no sentido de mais elaborado culturalmente que os primários. É preciso compreender que
Bakhtin e o círculo bakhtiniano têm, como parte de seu escopo de análise, obras literárias e que, em alguns
momentos, mesmo quando se referem a elas, consideram que os fenômenos de análise também poderiam ser
encontrados no que ele chama de “vida vivida”, ou em gêneros do cotidiano. Os gêneros podem ser
culturalmente específicos e por isso há certas estruturas (com fórmulas próprias de construção textual-
discursiva), mas não é por isso necessariamente que podem ser considerados mais ou menos elaborados
culturalmente. Outros fatores estariam envolvidos no aprofundamento da discussão sobre essa consideração,
como participantes da interação (comunidades, diálogo do cotidiano entre mãe e filha etc.), meio de divulgação
(zap da comunidade de um condomínio, diálogo entre mãe e filha por telefone etc.), campo discursivo (jurídico,
literário, midiático, religioso etc.) etc.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 24


redes sociais e as práticas de escrita na internet tem uma diversidade enorme e
da mesma forma como as demais práticas sociais de escrita.
Também podemos dizer que as interações dão o “tom” e a previsão de
estrutura dos textos, quanto a modalidade mais ou menos formal de língua. Não
se trata também de querer classificar modalidade mais ou menos formal apenas
levando em consideração o suporte. Uma atuação autoral numa página do
instagram, por exemplo, pode responder a diversos fins, inclusive a fins
comerciais mais ou menos formais (se for uma página de uma loja, na qual atua
profissionais de designer etc. ou ainda se é uma página de uma vendedora de
bolo no bairro). Até a questão da comunidade de interação se torna menos
garantido a partir de opções dos usuários das páginas (se se trata de um perfil
aberto ou fechado etc.). De toda forma, não daria para desenvolver essa reflexão
por ora, considerando o objetivo dessa discussão, mas interessa registrar alguns
aspectos fundamentais que as interações na rede, e mais especificamente nas
redes sociais, institui para as interações humanas na sociedade mais
contemporânea, a saber: 1. os discursos e os pensamentos das pessoas têm uma
possibilidade de alcance nunca vista na história ocidental - aumento da expansão
e expressão da interação humana; 2. há uma suposta democracia de ideias - a
“autorização” para a escrita não está associada ao anterior privilégio de acesso
aos meios e dispositivos que eram restritos ao mercado ou interesses de
determinados grupos (com o aval de grandes editoras por exemplo); 3. a
propagação de textos nas mídias ocorrem num contexto de hibridização de
gêneros que podem coexistir9; 4. loteamento de perfis para a atuação de
mercado – o uso de dados pessoais serve para a oferta de serviços que teriam
mais chances de ter sucesso.

9Mesmo que alguns desses aspectos já ocorressem de certa forma em antigas práticas de escrita na sociedade,

elas se tornam potencializadas nas das redes sociais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 25


O movimento das redes sociais de “bolhas de sentidos10” separa cada vez
mais com quem posso me relacionar, o que devo falar, como devo me vestir etc.
e muitas vezes revela o estímulo a uma caracterização de discurso nomeada de
discurso de ódio, principalmente quando esse loteamento de pessoas começa a
pressupor que a existência de um fere a existência do outro.
O discurso de ódio é “aquele que apresenta como característica a
estigmatização de um indivíduo ou grupo identificável de indivíduos.”
(BRAGA, 2018, p. 218). A autora ainda diz que essa estigmatização seria
direcionada ao insulto, à perseguição ou à privação de direitos. Ainda segundo
Braga (2018), o discurso de ódio é recorrente no campo das notícias falsas e
que se aproveitariam de um clima de polarização política ou afetiva, ganhando
notoriedade como confirmação da validade dos estigmas11.
Para discutir sobre discurso de ódio, é interessante pensar: como fazer
essa discussão sem cair na armadilha de se criar outro desejo de verdade
universal para uma vivência? então onde estaria o parâmetro de instituição de
uma lógica do viver em que sentidos fossem compartilhados e reelaborados,
mas não impostos como regras às custas da anulação do outro?
De qualquer forma, a lógica dos tempos é uma lógica de confrontos, como
sempre foi, ou seja, não se está vivendo tempos sombrios agora, sempre se
viveu à espreita de uma condição sombria, a de não viver em função do seu
outro.
Supostamente, devido ao aumento das interações no mundo, hoje deveria
se ouvir mais o outro. A questão é que várias vozes escutadas ao mesmo tempo

10Chama-se de bolhas de sentidos à constituição de grupos ou comunidades que por meio do discurso de
expurgação do outro tentam estabelecer modos de viver homogêneos, onde o discurso contraditório é o
discurso do inimigo
11Pensa-se que sendo baseada em notícias falsas há uma modalidade ainda mais profunda nessa discussão;

imagina-se como o movimento criminoso de se criar, conscientemente, uma narrativa sobre alguém, sobre algo,
sobre uma situação funciona no âmbito da criatividade perversa de se encobrir motivos perversos de se agir em
uma determinada situação.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 26


provocam confusão de vozes e, nesse sentido, ninguém ouve de fato ninguém;
o que existe é um emaranhado de vozes humanas, que não distintas em nenhum
momento e não ouvidas, funcionam como uma rede de ruídos, porque são
“saraivadas de verdades” em espaços partidos/divididos e não de espaços
compartilhados. E é por se ouvir mais que, triste ironia, se ouve menos. Por se
viver em uma sociedade de muitas vozes se encontrando, mas sem a escuta
sensível, é que não há encontros.
Considerando o que foi dito até agora, o discurso de ódio precisa ser
observado como espaço de não só estigma de um indivíduo, mas também sua
dimensão de provocar o que Silva et all (2011) chamam de vitimização difusa.
Esses autores asseveram que mesmo que um indivíduo tenha sido diretamente atingido,
“aqueles que compartilham a característica ensejadora da discriminação, ao entrarem em
contato com o discurso odiento, compartilham a situação de violação.” (SILVA et.
all, 2011, p. 449).
Segundo Silva e all (2011), há dois elementos que compõem o discurso de
ódio: a discriminação e a externalidade. A discriminação seria, ainda segundo
eles, o desprezo por pessoas que são consideradas inferiores ou indignas e
compartilham de alguma característica que as torna componentes de um grupo.
Já a externalidade está associada ao campo de discussão dos autores no texto
citado: a intervenção jurídica sobre esse ato discursivo12 e se relaciona com a
transposição de ideias do plano mental (abstrato) para o plano fático (concreto),
porque o problema se dá quando a palavra é publicada. Ainda segundo os
pesquisadores, “o discurso existe, está ao alcance daqueles a quem busca denegrir
e daqueles a quem busca incitar contra os denegridos, e está apto para produzir
seus efeitos nocivos, quais sejam: as violações a direitos fundamentais, o ataque
à dignidade de seres humanos.” (SILVA et. all, 2011, p. 447).

12Paraesses autores, se não houver externalidade não há culpa pois para o caso em que não há externalidade
“é inconcebível a intervenção jurídica, pois a todos é livre o pensar.” (SILVA et. all. 2011, p.448)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 27


A fim de manifestar-se e atingir seus objetivos danosos, o discurso de ódio
deve ser veiculado por um meio comunicacional. Esse meio é escolhido de
acordo com o período histórico vivido pelo autor, com suas condições
aquisitivas e de acesso às tecnologias, com o público visado por este, entre
outras variáveis. Inclusive, pode-se dizer que o discurso é tanto mais nocivo
quanto maior o poder difusor de seu meio de veiculação. (SILVA et. all. 2011,
p.449).
Acrescente-se as características do discurso de ódio apresentadas por esses
autores: a) a naturalização da violência; b) enquadramentos das subjetividades;
e c) os comandos de ação para incitar reações coletivas. A naturalização da
violência se dá, discursivamente, pelos processos aligeirados de analogias e pelas
falsas afirmações em construções argumentativamente falaciosas. Os
enquadramentos das subjetividades se dão pela classificação dos sujeitos em
grupos, geralmente vistos como indesejados, e pela defesa de outros grupos que
teriam características que seriam desejadas (geralmente se faz uma oposição
entre o bem e o mal). Os comandos de ações coletivas é sempre uma incitação
ao ódio, ao extermínio e o chamamento a uma conduta de justiçamento.

Análise do ódio nos tempos sombrios

O post a ser analisado foi retirado do perfil Jovens de direita - Organização


Política, página criada 14 de novembro de 2013. Na publicação há a imagem de
um garoto negro (a qual não será copiado aqui, mas descrita), de blusa branca
e bermudas, com cabelo pintado de amarelo, com uma arma na mão, seguido
do seguinte texto:
Calma, é só um guarda chuvas…
Se num confronto ele for alvejado, automaticamente vira esrtudante, que
tinha um sonho de virar jogador de futebol, estava com mochila, indo pra
escolarização
RJ é guerra

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 28


Destaca-se inicialmente as frases que abrem e fecham o texto: “Calma, é
só um guarda chuvas…” e “RJ é guerra”. Elas são contraditórias, visto que
numa guerra não há calma, portanto a ironia se estabelece por essa
incongruência e também pela referência ao objeto que se encontra na mão do
jovem da imagem. Na imagem, vê-se uma arma de fogo de cano longo e essa é
referida no texto como um guarda-chuva demonstrando uma clara ironia. Traz
a memória um caso ocorrido no mesmo período da postagem, no dia 18 de
setembro de 2018, quando um garçom é morto, no Rio de Janeiro, por policiais,
por terem confundido seu guarda-chuva com um fuzil.13Além de lançar ironia
a própria situação relatada na postagem, também é possível interpretar que se
estende, como insinuação, dúvidas sobre a outra situação. Numa comparação
visual, na imagem postada, vemos um fuzil, quando se diz “calma é só um
guarda chuvas”; numa comparação de situações, se lança uma dúvida: então será
que no outro caso também era mesmo um guarda-chuva?
Essa extensão de sentidos já se configura como um espaço da atuação
ético-discursiva sobre a ação da palavra no mundo vivido e sobre como o
discurso de ódio também pode ser velado.
Como proposto, adiante encaminha-se para análise dos oito primeiros

comentários à postagem:

Comentário 114: E ainda tem gente que defende esse tipo de coisa,
saudades de quando o ser humano era racional e se importava com
principios e valores.

Observa-se inicialmente que, como discurso envolvente, estabelece-se


uma narrativa de que havia um período de racionalidade, no qual, segundo o

13PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas Fonte:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/09/19/politica/1537367458_048104.html
14A redação foi reproduzida tal e qual o registro nas redes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 29


autor, o ser humano “se importava com princípios e valores”. Há uma tentativa
de se instituir uma verdade do antes X depois, onde no antes teríamos a
racionalidade e no hoje “gente que defende esse tipo de coisa”. As pessoas que
supostamente defenderia aquele acontecimento da imagem (uma criança com
arma na mão?) não estariam agindo, segundo o comentário, com racionalidade.
Há uma subversão de sentidos, na qual o próprio nomear “esse tipo de coisa”
afasta a humanidade do menino que deixa de ser uma pessoa para ser “uma
coisa”, em prol do que é chamada de princípios e valores (de quem?). Segundo
Borges e Rocha-Coutinho (2015, p. 179), “o ato da nomeação, quando dirigido
a uma pessoa, estabelece uma relação entre identidade pessoal e sociedade”.
Com o comentário dois novamente se estabelece uma polaridade, agora entre
“bandidos” (Deve ser filho de bandidos) e “gente do bem”. Observe-se:

Comentário 2: Deve ser filho de bandidos porque gente do bem ñ permite


esta barbaridade dessas

O comentário incita acima, já configurando-se como discurso de ódio,


acontece como “uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia
superior (emissor) e inferior (atingido) e, como manifestação que é, passa a
existir quando é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor.” (SILVA
et. all, 2011, p. 447). A criança é nomeada como “filho de bandidos”, novamente
há o apagamento da situação de vulnerabilidade pela qual a criança
provavelmente passa. Interessante observar que não se vê uma criança até agora
e que, discursivamente, já é possível depreender, no campo da ética do discurso,
que a polaridade é a engrenagem argumentativa maior. Nesse sentido, “a língua
no processo de sua realização prática não pode ser separada do seu conteúdo
ideológico ou cotidiano” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 181).
No comentário que segue, a condição é justificada como resultado de
uma escolha, a partir de um discurso envolvente: “tudo na vida são escolhas”.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 30


Comentário 3: tudo na vida são escolhas, infelizmente essa foi a dele... o
problema é que o policial que alvejar uma pessoa como essa vai ser
processado

O apagamento das condições sociais, das injustiças, no discurso é um vetor


da perspectiva neoliberal de que todos tem as mesmas possibilidades, para isso
basta se esforçar, ou “fazer boas escolhas”. Esse discurso, denominado aqui
como envolvente, exime a sociedade e as relações sociais de qualquer
responsabilidade pelo todo, estabelecendo a situação de tempos sombrios.
Nesses tempos, a força do sujeito deve se restringir ao seu espaço restrito de
atuação, sem considerar o outro. No final do comentário três é retomada a
narrativa do primeiro comentário que coloca em cena a polícia como poder
cerceador dessas situações, ou seja, interpreta-se que não se ataca as causas, não
se desmistifica a noção do “sujeito único responsável pelos acontecimentos de
sua vida” e, consequentemente, único responsável por seu sucesso. A
desnaturalização dessa noção de sujeito da perspectiva neoliberal poderia
encaminhar o discurso para uma reflexão sobre causas (falta de educação, falta
de acompanhamento de políticas públicas etc.). Nos comentários a seguir, as
dicotomias continuam a aparecer:

Comentário 4: Só a arma do verme Paga uns 4 salarios minimos de país


de família

A polaridade se dá, dessa feita, entre “pais de família” e o que é chamado


no comentário de “verme”. Novamente não há sensibilidade em ver o outro,
nem se acha um absurdo tal situação que está sendo divulgada, no sentido de
se penalizar com o que se vê. Agora a criança é referenciada como “verme”, a
característica do enquadramento das subjetividades do discurso de ódio. Silva
et all, citando Brown (1971), diz que o discurso de ódio, quanto a estratégias de
persuasão

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 31


aproveita-se de elementos relativos à área de publicidade e propaganda
para angariar adeptos, quais sejam, a criação de estereótipos, a substituição
de nomes, a seleção exclusiva de fatos favoráveis ao seu ponto de vista, a
criação de “inimigos”, o apelo à autoridade e a afirmação e repetição
(BROWN, 1971, p. 27-30 apud SILVA et. all., 2011, p. 448).

O nomear institui sentidos no campo da ética discursiva e, por


conseguinte, institui uma identidade no mundo. O discurso de ódio busca

aumentar sua probabilidade de aceitação por conta do uso de argumentos


emocionais e da ausência de contraposição direta e imediata a tais
mensagens. Combinadas essas faces, a que insulta e a que instiga, tem-se
que este discurso, além de expressar, procura aumentar a discriminação.”
(SILVA et. all, 2011, p. 448)

Não se tem a garantia de que os comentários anteriores foram lidos antes


da produção de cada novo comentário, mas é interessante perceber como eles
têm algo em comum até agora: a criança não foi considerada na sua condição
de criança ou adolescente. Os nomes dados a ela, até agora, foram: tipo de coisa,
filho de bandido, uma pessoa como essa e verme. O discurso de ódio começa a
se configurar na desumanização do outro. O tom volitivo emocional no ato de
nomear o outro nesses discursos faz com que o sujeito perca sua cidadania,
perca sua humanidade; torna-se, como no comentário seguinte, um porta-voz
de uma linha de pensamento político:

Comentário 5:
Novo portavoz esquerdista juntamente com a greta

Uma jovem de 16 anos é citada e comparada com a primeira criança no


comentário, Greta Thumberg, ativista ambiental sueca, que no mês de
setembro, época das mensagens, havia feito um discurso na abertura do
Encontro de Cúpula sobre Ação Climática 15 Nesse caso, a objetificação que já
se vinha operando nos primeiros 4 comentários é reforçada agora com a noção

15 O discurso de Greta Thunberg nas Nações Unidas. Fonte:


https://news.un.org/pt/story/2019/09/1688042

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 32


de pertencente a um grupo, como porta-vozes: a criança da imagem postada e
outra adolescente. Esse movimento discursivo reifica pessoas numa lógica de
mercado já previsto por Casara (2018, p. 40), quando esse diz que os “bens, as
pessoas, os princípios e as regras passaram a ser valorizados apenas na condição
de mercadorias, isto é, passaram a receber o tratamento conferido às
mercadorias a partir de seu valor de uso e de troca.”. Ou ainda quando esse
autor considera que “O que caracteriza a mercadoria, e isso fica claro na pós-
modernidade – mais do que a existência de um valor de uso -, é a possibilidade
de sua substituição.” (CASARA, 2018, p. 38).
Segundo Silva et all (2011, p.449), quando se dirige um discurso de ódio a
alguém, “a dignidade é vulnerada em sua dimensão intersubjetiva, no respeito
que cada ser humano deve ao outro. Mas não só isso. No caso do discurso
odiento, vai-se além: é atacada a dignidade de todo um grupo social, não apenas
a de um indivíduo”.
Por fim, os três últimos comentários a seguir serão interpretados em bloco,
já que enquadram os discursos no campo semântico da morte, do desejo de
eliminar o outro, dando ápice a característica extrema do discurso de ódio: o
desejo de extermínio.

Comentário 6: Logo esse cabelinho amarelo vai cantar no inferno.

Comentário 7: Eliminem essa semente do mal sua morte é um alívio prá


sociedade

Comentário 8: Aproveita q ainda n tem cpf e já elimina antes q crie um.


Menos trabalho.

Preocupante perceber como se naturaliza a incitação da violência e seus


comandos: “vai cantar no inferno”, “eliminem essa semente do mal”, “elimina
antes que crie um (cpf)”. Novamente o nomear acontece como desprestigio
daquele que é convocado no discurso: “cabelinho amarelo” e “semente do mal”
e no último comentário ele nem sequer é um cpf... Volóchinov (2018) considera

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 33


que “a expressão realizada exerce uma potente influência inversa sobre a
vivência: ela começa a penetrar na vida interior, dando-lhe uma expressão mais
estável e definida” (VOLÓCHINOV, 2018, p. 212). Não só preocupante
perceber como a violência é naturalizada mas também como essas ações se
replicam na rede sem que haja responsabilização sobre o dizer. As atividades
nas redes sociais têm suas formas de atuação do autor, como dizia no início
deste texto, são postagens (em stories, twiter, instagram, tik tok, Facebook etc.),
curtidas, repostagens, respostas, encaminhamentos etc.,mas também devem ter
formas de implicá-lo. Pode-se dizer qualquer coisa a qualquer pessoa? O
nomear institui sentidos ético-discursivos e, por conseguinte, institui uma
reponsabilidade nessa relação discursiva de quem fala para quem fala. Ainda
conforme Volóchinov (2018)

a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela
procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é
justamente o produto das inter-relações do falante com o ouvinte.
(VOLÓCHINOV, 2018, p. 205, grifos do autor)

E, como produto das relações, a palavra promove as relações. Que relações


estamos promovendo?

À guisa de conclusão

O presente artigo teve como objetivo interpretar, no campo da ética


discursiva, uma postagem e os oito primeiros comentários de um grupo do
Facebook, destacando aspectos como discursos envolventes e os discursos de
ódio ali implementados na relação dialógica e pautados na alteridade das
interações nas redes. Observou-se questões controversas sobre as implicações
dos discursos que se configuram como discurso de ódio. Entende-se que é
mister para as pesquisas refletirem sobre os sentidos das práticas discursivas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 34


que compõem e recompõem a práxis cotidiana e as relações de linguagem,
enquadram e deslocam as subjetividades e subjazem as relações dialogicamente,
porque só assim, é possível possibilitar outras narrativas de mundo a serem
consideradas a fim de auxiliar nos encaminhamentos para necessárias ações de
intervenção na sociedade.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 36


CAPÍTULO 2

A pedagogia crítica freireana na


literatura só por hoje de Narcóticos
anônimos
Tiane Cléa Santos Oliveira Dias1

Introdução

Este trabalho pretende estudar o processo de superação dos limites


impostos pelo uso de drogas, emergente na literatura: Só por Hoje da irmandade
Narcóticos Anônimos (NA). Dada a natureza complexa do objeto, apresento
fundamentos teórico-metodológicos da pedagogia crítica freireana para
investigar como se materializa esta superação. O quadro teórico será ilustrado
por meio de trechos de um dos textos que compõem a não tão vasta, mas
profícua, literatura da irmandade. Propõe-se a refletir sobre a seguinte
indagação: como se manifesta, apoiado em princípios da pedagogia freireana, o
desenvolvimento da recuperação do adicto - membro de NA - em trechos do
livro: Só por hoje e lhes possibilitam reconstruírem/reconquistarem suas práticas
sociais?

1Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura–PPGLINC/UFBA, Área de concentração:


Linguagem e Interação; Linha: Linguística Aplicada. Mestre em Linguística com ênfase em Análise do Discurso
pela UFMG. [email protected]

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Sobre o aporte teórico quero destacar que esta teoria (a pedagogia
freireana) ajudará a examinar de maneira mais apurada que fios discursivos
sustentam a tessitura elaborada por esta irmandade. Os adictos2, pessoas
marginalizadas, estereotipadas e excluídas do convívio social definido como
“normal”, manifestam em seus textos o propósito de ter acesso a “uma nova
maneira de viver”,3conforme é amplamente divulgado no interior de NA;
também por este motivo, tenho convicção ser pertinente circunscrever este
estudo, principalmente, no âmbito da Linguística Aplicada (LA). Baseada em
autores como Moita Lopes e outros, a LA precisa trazer “para o centro das
atenções vidas marginalizadas do ponto de vista dos atravessamentos identitários
de classe social, raça, etnia, gênero, sexualidade, nacionalidade” (MOITA
LOPES, 2006, p. 25). Na esteira do pensamento deste autor, e no campo
epistemológico da Linguística Aplicada, creio ser apropriado trazer o diálogo de
algumas obras freireanas que remontam a uma perspectivação crítico-
libertadora.

O que é Narcóticos Anônimos?

Narcóticos Anônimos é uma irmandade ou sociedade sem fins lucrativos


de homens e mulheres para quem as drogas se tornaram um problema maior,
assim se definem os membros. Dos muitos aspectos importantes a serem ainda
observados, destaco que quando os visitantes (adictos) entram em contato com
NA deparam-se com uma microssociedade, composta de expressões e códigos
específicos, cuja principal meta é lhes revitalizar e propor uma nova maneira de
viver. A irmandade, oriunda de Alcoólicos Anônimos, possui bibliografia

2 “... um homem ou mulher cuja vida foi controlada pelas drogas...” (Narcóticos Anônimos, 1993, p. 03). Neste
projeto, o usuário de substâncias psicoativas será denominado como adicto, respeitando-se assim a definição
que a irmandade emprega.
3 Jargão utilizado pelos membros da irmandade.

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própria e se organiza estruturalmente em torno do que definem como
programação de 12 Passos, 12 Tradições e 12 conceitos – estes últimos
orientam o trabalho dentro de NA (o serviço – de acordo com a denominação
da própria irmandade) para levar a mensagem ao “adicto que ainda sofre nas
garras da adicção4 ativa”.
Acredito na relevância de investigar quais princípios freireanos emergem
desta literatura, sobretudo pela natureza emancipatória e autônoma da
pedagogia de Freire e também porque muito se tem escrito sobre a natureza da
adicção, mas a literatura da irmandade trata da natureza da recuperação e a
eficácia do método está assentada unicamente na força da palavra. Outro
elemento de importante destaque é que a literatura é produzida exclusivamente
por membros da irmandade, não havendo participação de nenhum profissional,
nem de órgãos governamentais (ou não), ligados à área da saúde. Isso remete à
noção de empoderamento, amplamente discutida na obra freireana.

Conceitos de Educação

Assumo aqui a noção de que educação abarca os processos de ensinar,


ensinar (se) e de aprender (se). Este movimento de autoeducação está descrito
na obra freireana, especialmente quando o indivíduo alcança um nível de
conscientização que lhe permite autopercepção, autogestão, autoconsciência
sendo, inclusive, capaz de intervir criticamente em seu ambiente social. Não é
objeto de apreciação neste estudo a noção de educação formal que ocorre de
forma intencional e com objetivos determinados, como é o caso das escolas e

4O termo “adicção” é usado aqui se adotando a terminologia utilizada pelos membros desses grupos, referindo-
se a uma doença cujas manifestações ocorrem através de comportamentos obsessivos e compulsivos que
comprometem o aspecto físico, mental e espiritual do indivíduo, levando-o a um processo contínuo de
autodestruição. (Narcóticos Anônimos, 1993, p. 03).

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universidades. No caso específico da educação formal exercida na escola, pode
ser definida como Educação Escolar.
Do ponto de vista da sociabilização, a educação é praticada nos diversos
espaços de convívio social, seja para a adequação do indivíduo à sociedade, do
indivíduo ao grupo ou dos grupos à sociedade. Nesse sentido, educação
coincide com os conceitos de socialização, mas não está restrita a estes.
O percurso de leituras, além da vivência pessoal, me solidificou a certeza
de que a educação também é exercida para além do ambiente formal das escolas
e universidades e adentra, permeando outras perspectivas caracterizadas como:
educação não formal e educação informal. A educação informal é aquela que
ocorre nos processos cotidianos sociais, tais como com a família, no trabalho,
nos círculos afetivos e sociais. A definição de educação assumida neste trabalho,
no que se refere ao conteúdo da literatura de Narcóticos Anônimos, é a
educação não formal.
De acordo com Marques 5para a maioria dos autores que tratam do
assunto, a educação não formal se caracteriza pela intencionalidade do aluno
em aprender: “Há na educação não formal uma intencionalidade na ação, no
ato de participar, de aprender e de transmitir ou trocar saberes” (GOHN, 2006a,
p. 3). A grande diferença é que esse tipo de educação, na maioria dos casos, não
é compulsório. Baseia-se numa atitude voluntária e, portanto, “a motivação
pode ser extrínseca, mas é tipicamente mais intrínseca” (ESHACH, 2007, p.
174)”. Assim o indivíduo é o centro da aprendizagem, é ele quem escolhe as
atividades e a oferta segundo suas preferências e interesses e pelo fato de não
depender de meios ou fins padronizados confere uma maior liberdade que
permite que a intencionalidade não seja só a de aprender, mas também a de
aprender o quê e como.

5 http://www.scielo.br/pdf/ep/v43n4/1517-9702-ep-S1517-9702201701151678.pdf.

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Princípios freireanos e o livro: “Só por hoje”

O livro Só por hoje foi escolhido por se tratar do principal referencial


destinado à meditação diária dos membros, de acordo com o prefácio:

O propósito do Só por hoje é oferecer ampla variedade de temas de


meditação para adictos em recuperação. Esses temas incluem desde os
quebra-galhos da recuperação, independente do tempo limpo. Esperamos
que transmita, encoraje e até mesmo inspire a alegria inerente à
recuperação. Por incluir, deliberadamente, grande variação de pontos de
vista, conceitos e assuntos, esperamos que abranja a diversidade da nossa
irmandade e ofereça a cada indivíduo aquilo que ele ou ela necessita a
qualquer momento.

O livro contém mensagens distribuídas de acordo com o calendário


anual, cada página destina à meditação está configurada da seguinte maneira: ao
lado de cada data especificada contém uma frase-resumo que pretende chamar
a atenção para o tema a ser pensado; na sequência, há sempre um fragmento do
texto básico (o principal livro da irmandade) e uma reflexão geralmente de
quatro parágrafos feita em primeira pessoa do plural; por último, há sempre a
frase: Só por hoje em negrito, e em seguida uma ou duas sentenças condensando
o conteúdo da reflexão. Os membros são estimulados a usar do começo até o
fim, ou da maneira que mais lhes aprouver. Consta também de um índice
remissivo no final do livro, caso o membro deseje associar a sua meditação a
um assunto específico.
No decorrer das minhas leituras, percebi que poderia comentar neste
livro a relevância das reflexões freireanas, destacadas em forma de princípios de
acordo com Saul6. São eles:
Princípio político: para Paulo Freire (2005a, p. 110) a educação é uma forma
de intervenção na vida coletiva, no sentido de manutenção de uma determinada

6 https://revistas.pucsp.br/index.php/curriculum/article/viewFile/26570/19385.

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realidade ou de sua superação. Tal princípio pode ser observado na seguinte
citação do livro Só por hoje de 16 de abril (p.110): “Hoje buscamos soluções e
não problemas. Tentamos aplicar o que aprendemos de forma experimental”.
Princípio axiológico: Para Freire, a educação deve servir para promover a
humanização em contraposição à educação que visa à domesticação e
coisificação dos sujeitos. Deve promover a reflexão crítica e não os simplismos,
a autonomia e não a alienação. Tal princípio pode ser observado na seguinte
citação do livro Só por hoje de 19 de maio (p.145): “Examinamos nossa atuação
passada e nosso comportamento presente, para ver o que queremos manter e o
que queremos descartar”.
A propósito deste princípio, vale salientar que, para Freire (2016a, p.35),
a tomada de consciência “[...] não é ainda a conscientização. A conscientização
implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade,
para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto
cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica.”.
Princípio epistemológico: Freire afirma que o conhecimento advindo do
educando precisa ser valorizado e trazido para o contexto pedagógico, como
ponto de partida do diálogo entre educadores e educandos (no contexto da
irmandade de NA, membros mais experientes e menos experientes), com a
intenção de que sejam selecionados conhecimentos sistematizados e vivências
que permitam, aos membros menos experientes, melhor compreender e superar
suas situações-limites. Tal princípio pode ser observado na seguinte citação do
livro Só por hoje de 04 de março (p.66): “Este programa se tornou parte de mim...
Eu compreendo mais claramente as coisas que estão acontecendo hoje em
minha vida. Não luto mais contra o processo.”.
Sobre as questões contidas neste princípio, Freire defende que “quanto
mais conscientização, mais se ‘desvela’ a realidade, mais se penetra na essência

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fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo” (2016a,
p.35).
Princípio gnosiológico: Freire defende que o conhecimento humano se realiza
por um processo de construção, desenvolvido por sujeitos concretos, em suas
relações dialéticas com o mundo e com os outros. Os sujeitos produzem
conhecimentos a partir de situações existenciais no mundo. Ou seja, não se
pode desconsiderar o papel ativo dos sujeitos no processo de aquisição e
produção do conhecimento. Tal princípio pode ser observado na seguinte
citação do livro Só por hoje de 17 de outubro (p.303): “Tudo o que sabemos está
sujeito à revisão, especialmente o que sabemos sobre a verdade.”.
Uma das premissas a ser evitada pelo membro menos experiente é o que
denominam de racionalização, como o que consta em 06 de março (p.68):
“Todos nós racionalizamos. Algumas vezes sabemos que estamos
racionalizando, admitimos que estamos racionalizando, entretanto,
continuamos a nos comportar de acordo com as nossas racionalizações!”.
A respeito desta questão, Freire (2016a, p.35) sentencia que a
conscientização
é [...] um teste de realidade. Por esta mesma razão, a conscientização não
consiste em estar frente à realidade assumindo uma posição falsamente
intelectual. A conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor,
sem o ato ação – reflexão. [...] Exige que os homens criem sua existência
com um material que a vida lhes oferece
Desta forma, pode-se depreender que a literatura selecionada de
Narcóticos Anônimos propõe um caminho de autoconhecimento e de
emancipação, via conscientização.

Considerações finais

Assim, assinalo que à luz dos princípios freireanos o processo de


desenvolvimento da recuperação exposto no livro Só por Hoje, de Narcóticos

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Anônimos, se configura como sistemático e multidimensional orientando a
recuperação dos membros na direção da educação emancipatória e crítica.
Por fim, considero, após análise, que os princípios freireanos elencados
neste trabalho permeiam a obra de NA e ajudam a promover gradativamente
maior conscientização do adicto. Esta conscientização não está baseada sobre
a consciência, de um lado, e o mundo, de outro. Ao contrário, está baseada na
relação consciência – mundo, na qual a nova realidade (de recuperação) deve
tomar-se como objeto de uma nova reflexão crítica, como defende o próprio
Paulo Freire.
Convicta de que as reflexões teóricas de Paulo Freire foram profícuas
para este tipo de estudo, defendo que o tema merece ser mais explorado em
Letramento, Letramento Crítico, Multiletramentos e Multimodalidade (porque
subsequentes no percurso histórico das teorias e, eventualmente, relacionados).
Tais incursões podem se revelar mais aprofundadas através de pesquisas e suas
publicações. Considerando as várias demandas das teorias aventadas proponho
delimitação dos seguintes aspectos: a) que eventos de letramentos são mais
comuns nas reuniões físicas de Narcóticos Anônimos? b) que critérios
poderiam ser elaborados para observar membros que possuem letramento,
letramento crítico e multiletramentos, e que relação teriam estes aspectos com
a qualidade da sua recuperação? c) investigar que metodologias participativas
(além da elaboração de literatura) e de construção coletiva são praticadas na
irmandade e que tipos de letramentos são acionados no processo; d) que
práticas sociais efetivas emergem do indivíduo letrado, letrado criticamente e
multiletrado em Narcóticos Anônimos?; e) adictos multiletrados e multimodais
apresentam maior qualidade de recuperação?
À medida em que os frutos da (re) construção da identidade reverberam
na “nova maneira de viver” do adicto em recuperação, a tendência é que suas
práticas também se multipliquem com inequívoca ressonância no ambiente

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social em que vivem, colaborando e cooperando de maneira produtiva e
inevitavelmente ligada a uma sociedade mais equilibrada e humanitária.

Referências

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como um lugar de agenciamento dos sujeitos frente ao uso de drogas e seus tratamentos.
Disponível em: http://www.30rba.abant.org.br/arquivo/downloadpublic
Acesso em: 13/11/2019.
BIESDORF, Rosane Kloh. O papel da educação formal e informal: educação na
escola e na sociedade. Disponível em:
www.revistas.ufg.br/rir/article/view/20432. Acesso em 05/07/2019.
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Dissertação de Mestrado. UFF, PPG-História. Disponível em:
http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Dissert2006_CARDOSO_Ricardo_
Muniz_Mattos-S. Acesso em: 02/09/2018.
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das coisas. São Paulo: Cortez, 2016.
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políticas públicas e de experiências de indivíduos em situação terapêutica na
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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 46


CAPÍTULO 3

O professor de língua portuguesa e


sua relação com o saber: (re)pensando
a forma(ação) inicial em vista do
letramento do professor
Manuel Álvaro Santos1

Introdução

A reflexão a que me proponho neste capítulo está embasada no campo


da Linguística Aplicada, logo não apresentarei soluções aos problemas
elencados, mas sim reflexões situadas a partir do contexto a qual estou
vinculado, uma Instituição de Ensino Superior Privada (IESP), podendo, então,
dialogar com outras realidades institucionais, bem como instigar pesquisadores
à (re)pensar o quadro curricular e político da formação inicial.
Ao longo do curso de Letras os estudantes mantém contato tanto com
disciplinas de natureza teórica (Linguística e Literatura) quanto com disciplinas
de natureza pedagógica (didática e estágio). O que me chama atenção nesse

1 Mestre em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal


de Alagoas – PPGLL/UFAL. Professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – FAFICA, e
do Colégio Sagrado Coração – CSC/Caruaru. Membro do Grupo Interdisciplinar de Formação de Professores
– GIFOP (CNPq/UFAL).

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processo de formação inicial e que, de certo modo, me conduz a esta reflexão
é a maneira como alguns alunos e professores (neste último me incluo)
desconsideram a natureza do curso, isto é, a formação do professor para
educação básica, e diante disto passam a subalternizar discussões que
consideram o caráter pedagógico dos saberes, no qual buscam correlacionar o
saber com a formação docente (CHARLOT, 2005).
Esta postura denota uma questão que é, a meu ver, anterior a própria
criação dos cursos de formação de professores, ou seja, ela está relacionada a
própria natureza do modo de produção de conhecimentos. Com isso, não basta
irmos longe para compreendermos que a tradição positivista até a década de 80,
do século passado, desintegrava a dimensão constitutiva das práticas sociais em
função do teoricismo abstrato (BAKHTIN, 2010, 2011). Assim, a criação dos
cursos de formação de professores trouxe para si essa autossuficiência teórica
de natureza aplicacionista e solucionista (KLEIMAN, 2001; MILLER, 2013),
desprezando a heterogeneidade pedagógica, característica dos conhecimentos
artesanais2 (SANTOS, 2019).
Santos (2011) ao discutir sobre a popularização da Linguística na
formação dos professores, postula sobre uma supervalorização das teorias
linguísticas, concebendo-as como soluções objetivas aos problemas no ensino
de LP. Para o autor, essa postura desconsidera as identidades docentes por meio
da homogeneização prescritiva com que as teóricas operam, reduzindo a
formação do professor e o ensino escolar à reprodução teórica. Comungo
dessas ponderações realizadas, pois em diálogo com alunos do curso de Letras
que leciono, eles me questionam a desvinculação entre algumas discussões
teóricas e a prática pedagógica do professor de Língua Portuguesa no e para o

2 Ao trazer para discussão o conceito de conhecimentos artesanais, situo-me nas Epistemologias do Sul
defendida por Boaventura de Sousa Santos em suas obras.

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trabalho, recorrendo à Kleiman (2001) para me referir ao letramento do
professor. Nessa fala dos alunos é sintomático o antagonismo entre teoria e
prática como se houvesse uma prática que não fosse subsidiada teoricamente
ou como se fosse possível desvinculá-las da prática docente. Logo, o que
acontece é que nem sempre o conjunto de teorias priorizadas na graduação
dialogam com as demandas situadas na sala de aula, nem tampouco com os
documentos oficiais que orientam o ensino e a produção de material didático.
Nesse contexto, compactuo com as reflexões de Charlot (2005, p. 94)
sobre a relação com o saber e a formação dos professores, para o autor “formar
professores é trabalhar os saberes e as práticas [nas diversas realidades do
ambiente escolar] e situar, a partir dos saberes e das práticas” uma formação
reflexiva, crítica e ética (MILLER, 2013). Compreendo, assim, que a formação
do professor de LP deve pautar-se pela relação indissociável entre os sujeitos
da e em formação, quer dizer os professores e os alunos, proposta curricular do
curso e local de trabalho, haja vista que a formação não é uma mera preparação
para aplicação futura de saberes, visto que “não é somente uma relação de
eficácia a uma tarefa, é [sobretudo] uma identidade profissional” que está em
construção (CHARLORT, 2005, p. 95).
Neste capítulo, tenho como objetivo refletir sobre a formação do
professor e sua relação com o saber, trazendo para discussão a voz de duas
alunas em processo de formação inicial. O texto está organizado em duas
seções, em que buscarei, conforme concebo, não realizar uma fissura entre a
voz das alunas, caracterizadas como conhecimentos artesanais, a voz dos
autores com os quais dialogo e minha voz realizando apreciações valorativas,
uma vez que não é possível desintegrar-se deste processo.

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O letramento do professor e os conhecimentos
artesanais

Os Estudos do Letramento, geralmente, são associados ao ensino e a


aprendizagem de línguas, focalizando, sobretudo, as práticas de leitura e escrita
no seio escolar, quer em materiais didáticos quer na prática docente,
especificamente, no modo como os professores podem abordar determinadas
discussões, visando a construção de práticas letramento. Contudo, Kleiman
(2001, 2005, 2007) vem nos apresentando um quadro de reflexões sobre o
letramento do professor, discutindo o modo como estes se reconhecem
enquanto leitores e produtores de texto, tornando-os, assim, agentes de
letramento.
Kleiman (2001), discutindo sobre o letramento do professor e suas
representações compreende que, na sociedade brasileira, há um “Q” de dúvida
sobre a capacidade do professor em trabalhar leitura e escrita, pois as suas
próprias práticas de leitura e escrita estariam em questionamento e descrédito.
Essa representação social possui uma fundamentação sócio-histórica, uma vez
que até a década de 50 o imaginário social que se tinha do professor era de um
sujeito de classe média com práticas de leitura e escrita valorizadas socialmente,
ou parafraseando Street (2014) práticas de letramento dominante. Entretanto,
no curso histórico, especificamente, com a “democratização” da educação
básica na década de 60, o perfil do sujeito professor passou a mudar, pois o
próprio público escolar adquiriu outras conotações de classe, gênero, etnia e
sexualidade. Nesse sentido, o recrutamento3 dos professores tornou-se menos

3 Tendo em vista que esses novos professores não passavam por uma formação no sentido que hoje a
entendemos, considero que o que houve naquele momento histórico foi mais um recrutamento de sujeitos
como “notório saber” do que um formação reflexiva, crítica e ética (MILLER, 2013).

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criterioso, visto que o Estado precisava de profissionais para atender a demanda
de sua “nova clientela”.
Assim, essa mudança sociopolítica ocorrida na educação básica não
deixou de manifestar sintomas no perfil do professor brasileiro, uma vez que
houve uma recursividade sociocultural e econômica no próprio perfil do aluno
nos cursos de licenciatura do país. Nesse contexto, os saberes advindos dos
novos professores passaram a ser subalternizados, uma vez que esses próprios
sujeitos já são subalternizados seja pelo gênero e classe social que advém, seja
pelas práticas culturais que estão inseridos. Desse modo, o saber-científico
expressou seus contornos mais regulatórios possíveis, uma vez que as
identidades dos professores passaram a ser desconsideradas, dando espaço para
as instâncias burocráticas ditarem o que deve e como se deve ser ensinado no
interior das escolas (KLEIMAN, MARTINS, 2007). Santos (2019) discutindo
sobre a geopolítica do conhecimento, compreende que o único conhecimento
válido para a academia é o conhecimento ocidentalocêntrico, logo
conhecimentos que são construídos na metrópole, desconsiderando outras
formas de representar a vida. Com isso, o autor denuncia o epistemicídio
cometido pelas ciências ao não dar espaço à conhecimentos artesanais, ou seja,
conhecimentos produzidos na prática e vivenciados por sujeitos em seu
cotidiano.

[Com isso] verifica-se que esses [novos] professores se veem como


implementadores ou aplicadores de políticas de planejamento que não
foram decididas por eles [...] essa observação culmina por reforçar a
premissa de que, entre os que são intelectuais por profissão, alguns
cumprem a função de apenas implementar ou pôr em prática as ideias ou
propostas pensadas por outros intelectuais [ os agentes burocratas]
(MONTE-MÓR, 2013, p. 221).

O epistemicídio acontece quando os conhecimentos coconstruídos na


luta sociopolítica são subalternizados, tornando os sujeitos que são presentes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 51


em sujeitos ausentes4 (SANTOS, 2019). Nesse caso, os sujeitos presentes
seriam os agentes burocratas, enquanto os sujeitos ausentes seriam os
professores que têm suas reivindicações silenciadas, reservando a estes apenas
o lugar de reprodutores de livros didáticos, sistemas de ensino, de cadernos de
atividade etc.
Vejamos a fala de J25.

Quadro 1: Fala da aluna j2.


J2- Não me sinto muito "atiçada" a refletir... Em alguns momentos, sim. Mas geralmente,
estudamos muito as teorias e respondemos questionários, mas não realizamos debates e discussões
sobre o uso prático dessas disciplinas.
Fonte: acervo do pesquisador.

O meu questionamento para essa aluna problematizou o modo como as


disciplinas discutem a formação do professor para a educação básica, busquei
com isso compreender qual a relevância que os conhecimentos artesanais têm
(se têm) para a formação do professor. O excerto acima denota uma concepção
reprodutiva característica do pensamento ocidental, no qual os sujeitos são
invisibilizados e estabilizados diante das teorias, visto que o conhecimento
ocidental apresenta sempre um caráter regulador, em que os conhecimentos
artesanais não são necessariamente considerados conhecimentos válidos para
vida sociopolítica, econômica e cultural, logo, não interessam para o futuro
professor que, ironicamente, vai ter que se virar com esses mesmos
conhecimentos artesanais no local de trabalho.
O excerto ainda possibilita compreendermos que o epistemicídio é uma
prática presente não só no local de trabalhos dos professores que, conforme

4 Boaventura de Sousa Santos (2019) apresenta o conceito de sujeitos ausentes para referir-se as identidades
em dominação, opressão e exclusão localizadas no lado abissal da linha colonial. O autor defende ainda que
não há sujeitos literalmente ausentes, mas sim sujeitos que se foram sub-humanizados, tornando-os ausentes.

5 Optei por omitir o nome das duas alunas, passando a usar apenas as iniciais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 52


mencionei anteriormente, reserva aos professores o “cativo” lugar de
reprodutores, mas também na própria graduação, uma vez que J2. já é
professora, mobilizando em sua identidade conhecimentos artesanais,
construídos e coconstruídos com seus pares no ambiente de trabalho, mas
mesmo assim não é instigada a (trans)formar-se continuamente. Acredito,
ainda, que J2. ao dizer que “não se senti ‘atiçada’ a refletir” reafirma o lugar
passivo que o professor deve performar em seu ambiente de trabalho, uma vez
que o questionamento aos materiais didáticos, as políticas de ensino, bem como
a outros discursos reguladores de e na sua prática.
Retomando a voz de outra aluna, a seguir a fala de W1. é oriunda de um
pensamento sensível ao local de trabalho, no qual ela questiona o não lugar de
outras formas de conhecimento no currículo do curso. W1., embora ainda não
seja professora, apresenta uma postura ativa frente às práticas escolares que ela
própria vivenciou na Educação Básica.

Quadro 2. Fala da aluna w1.


W1- É mais conteúdo que prática, já conversei com outras pessoas que passaram o mesmo que eu
na sala de aula, muita frustação até porque na faculdade não ensina como o professor lidar com
tantas emoções, conflitos, inclusão... enfim quando vemos é bem rápido.
Fonte: acervo do pesquisador.

No excerto acima, é curioso que grande parte das ausências identificadas


por W1. são contempladas no currículo do curso, como por exemplo: na
disciplina de Prática de Ensino há temáticas voltadas à inclusão social, contudo
em outro excerto da mesma aluna, ela deixa nos traz um ponto importante,
vejamos:

Quadro 3. Fala da aluna w1.


W1- É mais teoria, é tanto que temos um ensino de forma mecânica e superficial, quando vamos trazer
pra prática não sabemos muitas vezes o que fazer e como fazer.
Fonte: acervo do pesquisador.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 53


W1. enfatiza, em sua fala, um antagonismo ente teoria e prática, para ela
a teoria é vista de forma mecânica, ou seja, lê-se o texto e depois repete-se o
que ele discursou, sendo possível verificar se o aluno o leu ou não. Entretanto,
não há uma reflexão situada a partir da teoria acerca do local de trabalho, pois
para os conhecimentos científicos a teoria basta em si, sendo aplicável a
quaisquer contextos de prática pedagógica no futuro. A fala de W1. apresenta,
a meu ver, um dos principais traços constitutivos da formação acadêmica do
professor, quer dizer, inflaciona-se o aluno de várias teorias sejam elas
linguísticas ou não, mas que não necessariamente essas teorias são
problematizadas tendo como ponto de partida as práticas.
Charlot (2005) defende que toda relação com o saber é contextualizada,
com isso não poderíamos dizer que há uma descontextualização das teorias
vivenciadas na graduação, pois elas têm sempre um fio discursivo que visa um
determinado objetivo. Entretanto, o autor alerta que mesmo não sendo possível
haver uma relação descontextualizada com o saber, há relações que não são
situadas a partir do local do trabalho. Nesse sentido, compreendo que a relação
teórica estabelecida entre os saberes na graduação é uma relação que visa
descrever a língua, característica esta latente no pensamento linguístico do
século XX com as teorias estruturalistas, funcionalistas, gerativistas e
behavioristas, conforme W2. expressa em sua fala, vejamos:

Quadro 4. Fala da aluna w1.


W1- Eu acho que o ensino está mais voltado apenas a uma teoria que é a estruturalista
Fonte: acervo do pesquisador.

Cabe salientar que não estou advogando contra a teoria em si, não se
trata de um simples descarte, o que proponho é um novo modo de se relacionar
com ela, ou seja, proponho que a relação com o saber seja uma relação situada,
sensível ao contexto de trabalho que leve em conta toda a heterogeneidade

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 54


sociopedagógica e identitária. Contudo, nessa conjuntura, é claro que algumas
teorias serão revisitadas, outras desconsideradas e outras inseridas no projeto
pedagógico do curso. Esse movimento faz parte, inclusive, da vida humana em
todas as suas esferas de atu(ação).
Diante disso, o que venho defendendo em minha experiência docente e
nos espaços de fala, consiste em uma nova forma de se relacionar com a teoria,
buscando compreender e ser mais sensível ao cotidiano escolar, futuramente
vivenciado pelos alunos que hoje estão na graduação. Defendo que a graduação
deva ter um olhar voltada às práticas do saber (CHARLOT, 2005), ao
letramento do professor (KLEIMAN, 2001, 2006, 2007) e aos conhecimentos
artesanais (SANTOS, 2019), mas que ao adotar essa dimensão não caia em um
ensino tecnicista, pois o objetivo dessa nova relação com o saber não é ditar
liturgias para a sala de aula.
Em resumo, acredito que transform(ações) tanto no plano teórico e
quanto no plano metodológico significam, a meu ver, que fomos capazes de
amadurecer, crescer e, sobretudo, de fortalecer aquilo que construíamos por
meio das nossas lutas sociopolíticas.

(Re)pensando as relações com o saber por meio do


saber da prática e da prática do saber

O curso de Letras da instituição a qual estou vinculado tem uma longa


tradição em toda região do Agreste pernambucano. Sendo assim recebemos
alunos de mais de 10 cidades, tornando a experiência heterogênea, complexa e
multifacetada, pois há alunos de diferentes classes sociais, com perfis
socioeconômicos bem diversos. Além da heterogeneidade socioeconômica dos
alunos, temos ainda no curso uma diversidade de objetivos, quer dizer, há
alunos que entram no curso visando uma formação para tornar-se professor e,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 55


ao fim da graduação, atuarem nas redes municipais e privadas da região, além
da rede estadual. Contudo, outros entram na formação buscando os
conhecimentos para sua vida cotidiana, estes tem como característica fundante
o gosto pela Literatura e com isso veem no curso uma possibilidade de
aprofundar seus saberes literários. Alguns dizem que escolheram o curso de
licenciatura porque na região não há o curso em nível de bacharelado. Essa
contextualização, embora breve, busca introduzir o perfil do discente do curso
de Letras da nossa instituição, pois, a partir disso, podemos desvelar sentidos.
Diante disso, um dos desafios ao longo da formação é fazer com os
alunos construam práticas de letramento acadêmico, discutindo os principais
gêneros dessa esfera discursiva. Após este percurso inicial de letramento
acadêmico, que dura em média de dois a três semestres, iniciamos o letramento
do professor, buscando correlacionar as discussões em sala às demandas para o
local do trabalho. Esse processo formativo, a priori, enfrentou resistência por
parte de alguns professores, tendo como argumento o receio que a formação
caísse em um tecnicismo. No entanto, ao longo dos debates, fomos
conseguindo construir um diálogo harmonioso em torno da proposta que tinha
como objetivo mudar a forma como estaríamos/estamos nos relacionando com
o saber.
Esse processo de mudança, na forma de se relacionar com os saberes
presentes na graduação, não consistiu numa alteração curricular (do ponto de
vista das disciplinas), haja vista que isso demandaria de muitos preceitos
burocráticos, incluindo nessa seara custos6 para a instituição. Desse modo,
nosso foco ao longo das reuniões foi o de discutir o que seria, na medida do
possível, passível de alteração. Com isso, tomamos as ementas das disciplinas

6 A instituição enfrentou ao longo de alguns anos um períodos de bastante incerteza e instabilidade financeira,
comprometendo alguns projetos que eram mantidos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 56


no curso como foco de estudo e fomos, ao longo dos encontros, propondo
alterações. Tivemos, como base a leitura de um texto, um debate acerca da
formação do professor e da relação com o saber, assim podemos ir construindo
um diálogo simétrico em vista dos nossos objetivos, a mudança das ementas
das disciplinas e o modo como passaríamos a nos relacionar com os saberes.
O ponto de encontro desse texto é o de justamente nos conduzir a uma
reflexão acerca da forma como estaríamos/estamos nos relacionando com os
saberes, e o modo como estamos oportunizando esses alunos se relacionarem
com eles no seu ambiente de trabalho
.
Considerações finais

De modo geral, ao longo dos nossos encontros7, fui apresentando


algumas relatos que coletei dos alunos sobre o que eles acreditavam que poderia
mudar no curso. Os relatos tinham como foco apresentar as dificuldades dos
alunos nas suas salas de aula (conhecimentos artesanais), pois a maioria dos
nossos alunos já lecionam. O aspecto majoritário apresentado nos relatos dos
alunos era a dificuldade em trabalhar leitura e escrita. Nesse sentido, a crítica
recaía às disciplinas que tinham como norte uma vertente estruturalista da
linguagem.
Por fim, esse processo de mudança na nossa forma de se relacionar com
o saber é constante, pois ele inclui a nossa própria identidade enquanto
docentes, portanto, não sendo fácil e automático sua recursividade. Acredito
que esse percurso ainda está em construção em nossa instituição, visto

7 Nossos encontros não tinham uma periodicidade constante, em vista da agenda dos professores, pois todos
nós somos professores horistas, e com isso tínhamos que ficar aguardando a disponibilidade de ao menos 70%
do corpo docente.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 57


demandar não só a mudança de uma teoria ou outra, mas, sobretudo, nossas
crenças individuais.
De todo modo, sigamos na constante (re)construção, buscando
(re)pensar a form(ação) do professor, tornando-o a cada dia um sujeito mais
autônomo em sua prática docente e ativo em sua postura sociopolítica.

Referências

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Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
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São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
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KLEIMAN, Angela (Org.). A formação do professor: perspectivas da Linguística
Aplicada. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2001.
KLEIMAN, Angela; MATENCIO, Maria de Lourdes (Orgs.). Letramento e
formação do professor: práticas discursivas, representações e construção do saber.
Campinas-SP: Mercado de Letras, 2005.
KLEIMAN, Angela. Letramento e suas implicações para o ensino de Língua
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KLEIMAN, Angela; MARTINS, Maria. Formação de professores: a
contribuição das instâncias
administrativas na conservação e na transformação de práticas docentes. In:
KLEIMAN, Angela; CAVALCANTI, Marilda (Org.). Linguística Aplicada: suas
faces e interfaces. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2007, p. 273-298.

MILLER, Inés. Formação de professores de línguas: da eficiência à reflexão


crítica e ética. IN: MOITA-LOPES, Luiz Paulo. Linguística Aplicada na
modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola
Editorial, 2013, p. 99-122.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 58


MONTE-MÓR, Walkyria. As políticas de ensino de línguas e o projeto de
letramento. IN: NICOLAIDES, Christine; SILVA, Kleber; TILIO, Rogério
(orgs). Política e políticas linguísticas. Campinas-SP: Pontes Editores, 2013, p. 219-
236.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das
epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
SANTOS, Cosme Batista. Letramento e senso comum: a popularização da
linguística na formação do professor. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2011.
STREET, Brian V. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no
desenvolvimento, etnografia e na educação. Tradução Marcos Bagno. 1. ed.
São Paulo: Parábola Editorial, 2014.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 59


CAPÍTULO 4

Linguística ou linguística aplicada?


Uma análise do projeto do curso de
pós-graduação em LA do Campus
XVIII
Débora Rodrigues de Souza1
Emerson Tadeu Cotrin Assunção2

Introdução

O Brasil, nas últimas décadas, tem experimentado modificações políticas,


sociais, econômicas e culturais que apresentam ao professor uma necessidade
desafiadora para que ele seja reflexivo, atualizado e autônomo. Devido a
necessidade de maior qualificação, frente a essas mudanças, tem-se percebido o
crescimento considerável na busca de cursos de aperfeiçoamento e de pós-
graduação (MOITA LOPES, 2013). Além disso, tendo em vista a minimização
das subalternizações de conteúdos e vivências, chamamos atenção para cursos
de aperfeiçoamento que considerem as vozes daqueles que vivem as práticas
sociais que a LA pretende estudar (MOITA LOPES, 2006). Por isso, propomos
aqui uma investigação de como esses novos cursos em Linguística Aplicada vêm
sendo estruturados. Mais especificamente, o curso de Pós-Graduação Lato Sensu

1 Licenciada em Letras pela Universidade do Estado da Bahia – campus XVIII; ([email protected])


2 Prof. Ms. Emerson Tadeu Cotrim Assunção – orientador.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 60


em Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa da Universidade do
Estado da Bahia – campus XVIII, intentando responder: Qual é a concepção de
LA apresentada no projeto de curso? As disciplinas ofertadas são coerentes com
a concepção de LA apresentada no projeto do curso?

Diferenças entre a Linguística e a Linguística Aplicada

A linguística Aplicada, apesar de apresentada como área, em alguns locais


ainda é considerada uma subárea da Linguística para muitas instituições que
financiam pesquisas, mas para Celani, a validade de tê-la como área se constitui
pela escolha dos pares em reconhecê-la como tal. No Brasil, esse senso já é
validado por um grupo que já são reconhecidos como linguistas aplicados,
sinalizando o progresso da área. Ademais, tem-se contemplado um crescimento
significativo nos programas de pós-graduação na área (CELANI, 1992).
Assim como na área da linguística, a LA no Brasil concebe a linguagem
como centro dos seus estudos, porém não é nela, na linguística, que se
desabrocha. Na verdade, a LA seria um eixo, do qual diversas outras disciplinas,
como a própria Linguística, a Sociologia, a Pedagogia, ou a Tradução
relacionadas à linguagem seriam interligadas a ela com setas bidirecionais.
Portanto, a LA torna-se independente da Linguística, do mesmo jeito que tem
se distanciado cada vez mais da ideia de identidade una no ensino de línguas.
Os programas de pós-graduação têm demonstrado que as linhas de pesquisa,
em diversas áreas, transgridem o ensino de línguas (CELANI, 1992).
Por Orlandi (1999), a linguística é considerada uma ciência recente, que
se inaugurou no começo do século XX e definiu-se com sucesso entre as
Ciências Humanas como o objetivo científico de retratar e/ou elucidar a
respeito da linguagem verbal humana. Após todo um processo histórico, passa-

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 61


se definir a linguística como “o estudo científico da língua(gem)”
(WEEDWOOD, 2002, p. 9).
Segundo Barbosa et al (1978, p. 81), “A linguística é a ciência que se ocupa
do estudo da estrutura e do funcionamento da linguagem verbal, ou seja,
efetivamente, das línguas naturais”. Desta feita, a linguística pode ser
considerada originada do campo semiótico – ciência da significação – e se
ramifica por outros, nos quais tentam “analisar, descrever e explicar diferentes
aspectos da língua e de suas relações com outras instituições humanas”
(BARBOSA et al, 1978, p. 81). Já, de acordo com Fairclough (1989 apud
PENNYCOOK, 1998, p. 43), “a linguística tem operado com uma noção
idealizada de linguagem, que a tem isolado”. Uma das suas subáreas, a
sociolinguística, tem sido discutida por esse autor, pois tendo surgido em um
contexto moderno foi fortemente influenciada pelo positivismo, portanto,
remete à variação linguística, bem como a associa às visões reducionistas de
classe social, e ainda não se perguntou por que essas variações existem e nem
tentou uma mudança frente a essas condições (PENNYCOOK, 1998).
Em contrapartida, temos a Linguística Aplicada que também
compreende a linguagem como objeto principal para seus estudos, porém a
trata como “discurso dialógico” (MORGAN, 1987 apud PENNYCOOK, 1998,
p. 40). Colabora Peirce (1989 apud PENNYCOOK, 1998, p. 40), salientando
ser “um conjunto de sinais e de práticas que organiza a existência social e as
práticas geradoras de sentido”. Por isso, se preocupa em estudá-la em contextos
sociais diversos.
Com a proposta de desconstruir a visão colonialista do conhecimento, a
LA considera que essa relação se dá entre a periferia e o poder, ou seja, a LA
entende a linguagem e o saber como forma de poder. Assim, uma das críticas
concernente às categorias epistemológicas do Norte (ou ocidente) é ausência da

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 62


inserção de histórias que evidencia o sujeito e as histórias locais desses autores
sociais atuando a partir da periferia e nela, como local.
O contexto em que a LA nasceu foi o moderno, o qual sustenta a noção
de sujeito uno, racional, cartesiano, com a capacidade de reconhecimento de si
e dos outros, por isso, as pesquisas em torno da linguagem se davam segundo
paradigmas positivistas e prescritivos – por mais que a contextualizasse, havia
uma verdade que era comparada, no esforço de manter as macroestruturas
dominantes frentes às relações linguísticas e culturais. Hodiernamente, suas
ações baseiam-se no propósito de quebrar paradigmas, dar voz àqueles que
perante a linguística tradicional é desconsiderado. Sem preconceitos, busca
compreender as manifestações naturais que surgem por meio da linguagem, e,
por considerar essas transformações fluidas do dia a dia é que se relaciona
intimamente com o mundo pós-moderno, do qual, considera as relações com a
linguagem, a identidade, a cultura como algo agora, desconcentrado,
contraditório, inacabados e fragmentados, mas não representados (HALL,
2001).

Formação de professores inicial e continuada

A formação de professores, seja ela inicial ou continuada, tem a ver com


a prática que o docente desenvolve ao longo de sua trajetória, que, chamado de
atividades pedagógicas, aponta para a necessidade de vislumbrar um bom
rendimento, desenvolvimento e capacidade de aprendizagem por parte dos
alunos (LIBÂNEO, 2001). Isso se dá, no trabalho, na vida social e na cultura
simbólica, mutuamente, onde se desdobra a razão de ser da existência humana,
e é no processo de formação de docentes que o conhecimento sobre esses
atributos se tornam indispensáveis, pois a educação é envolvida pelo
direcionamento da atuação do sujeito nesses exercícios que concretizam a sua

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 63


humanização. Assim, apoiado nos conteúdos específicos, nas habilidades
técnicas e nas relações situacionais, é que os professores desdobrarão sua
função (SEVERINO, 2007).
Há de se levar em consideração, nesse processo que envolve o exercício
da existência humana, suas respectivas subjetividades, uma vez que a educação
humanizadora concebe o homem como:

um ser de relações, um ser que se encontra sempre numa situação de


permanente relacionamento com sua própria interioridade, com os
produtos simbólicos mediante os quais expressa a intervenção de sua
subjetividade, de relacionamento com os seus semelhantes, próximos e
distante no tempo e/ou no espaço e com os dados objetivos do mundo
material, onde desenvolve sua vida (SEVERINO, 2007, p. 125).

Assim, para que haja entre os sujeitos envolvidos na educação um


resultado positivo, é indispensável à autocompreensão de todos envolvidos,
sendo o objetivo final sincrônico, tanto para a aprendizagem, quanto para a
valoração, fazendo-se necessário o desenvolver da consciência cognitiva e
valorativa, que tem a ver com a dignidade pessoal perpassada pelas limitações e
diferenças de todos.
É sabido que os tempos mudaram e as formações, os currículos que
mediam essas práticas continuam direcionando os futuros docentes a práticas
obsoletas. Por isso, é necessário se repensar também a importância do papel da
formação continuada para identidade docente (SEVERINO, 2007). Segundo
Rios (2011), o processo histórico que envolve a Formação inicial e a Formação
Continuada de professores é marcado por ideologias dominantes das quais
podem ser encontrados discursos que envolvem pressupostos sobre o
professor reflexivo e o professor pesquisador.
O poder hegemônico, historicamente, regula os sistemas de ensino. As
camadas dominantes foram integrando os seus respectivos parâmetros
burocráticos, corporativos e disciplinares. Por isso, ao longo do tempo, os

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 64


modelos antigos de conceber a educação foram sendo alterados, assim as
atividades pedagógicas se voltaram a um só modelo de conceber a educação –
transmitir conhecimento (RIOS, 2011).
Por isso, é com essa afirmativa, da necessidade de se adequar os locais de
práticas de acordo com os objetivos das atividades, ao tempo vigente é que se
chama mais uma vez a atenção para que as formações contínuas estabeleçam
problematizações que façam com que os docentes em formação repensem seus
modos de se colocarem a frente de problemáticas do mundo atual – envolvem
grandes transformações no mundo social, voltados as questões de raça, gênero,
etnicidade, descolonizações, novas distribuições de poder, todos esses típicos
de um mundo pós-moderno, sempre considerando a eticidade nas ações, pois
esse é propósito da Linguística Aplicada Crítica.

Analise curricular

Diante dessa possibilidade é que se concretizou essa pesquisa, que, além


de se apoiar na análise de conteúdo, contou como base a técnica da análise
documental de abordagem dos dados qualitativos que “não são apenas uma
fonte de informação contextualizada, mas surgem num determinado contexto
e fornecem informações sobre esse mesmo contexto” (LÜDKE; ANDRÉ,
1986, p. 39). Isto é, o currículo do curso de Pós-graduação Latu Sensu em
Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa da Universidade do
Estado da Bahia, campus XVIII, bem como suas ementas que são consideradas
aqui como documentos, segundo Flick (2009), precisam ser entendidas como
uma forma de contextualização das informações.
Assim, o projeto de curso da pós-graduação em LA é um documento
situado sócio historicamente, desenvolvido no ano de 2013, tendo sua primeira
turma no ano de 2014, objetivando e justificando-se pela necessidade de dar aos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 65


profissionais da área de Letras, também em outras áreas da educação, uma
formação especializada e continuada que os capacitassem a, diante das
constantes transformações do mundo contemporâneo, terem condições
efetivas de atuarem como docentes. Nesse sentido, a prioridade do programa
foi destinada aos egressos das licenciaturas ofertadas pelo campus – Letras:
Língua Portuguesa e Literaturas e História, não obstante, aos professores que
visam uma progressão em suas formações (PROJETO, 2013).

Quadro 1 - Organização de algumas disciplinas


Descrição das Ementas Pressupostos da LA
Morfossintaxe Aplicada à Língua De acordo com os pressupostos da LA, os
Portuguesa: estudos voltados a linguagem se dá
Estudo da organização morfossintática da considerando vozes periféricas, visões que não
língua portuguesa. Análise das relações entre mais partem do global, mas sim do local onde se
os elementos constituintes do léxico e da dão as relações; não privilegiar uma variante em
estrutura frasal, considerando gramáticas detrimento das outras. A morfossintaxe
diversas e correlacionando seus conteúdos estrutura a língua, obedece a um padrão culto,
com os trabalhados no ensino médio. ou seja, corresponde a ciência linguística.
Aspectos morfossintáticos como objetos de
investigação científica. Sintaxe e discurso.

Fonética e Fonologia do Português: A fonética e a fonologia fazem parte da


modos de operacionalização: gramática que, por sua vez, descrevem sobre a
Estudo dos sons como entidades físico- estrutura da língua, por isso, é uma área de
articulatórias (Fonética) e como elementos estudo dos sons da fala que cumprem princípios
integrantes de um sistema linguístico determinados pela ciência linguística. Mais uma
determinado (Fonologia). O dinamismo vez, esses estudos são pertinentes a linguística.
linguístico e os processos fonológicos.
Processos fonológicos em português e suas
implicações nas práticas pedagógicas de
ensino e aprendizagem de língua materna.

Material Didático de Língua Portuguesa: Essa disciplina diz respeito a materiais para o
análise e produção: ensino de Língua Materna, a possibilidade de
A relação entre teorias de ensino e avaliarem e elaborarem materiais didáticos. Não
aprendizagem de língua materna e a se pode inferir como seriam essas seleções, mas
avaliação e produção de materiais torcemos para que tomem como exemplo os
didáticos. Princípios gerais para seleção e contextos locais dos alunos. (KLEIMAN, 2013)
elaboração de materiais didáticos para
contextos presencial e digital.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 66


Considerações sobre o ementário

De modo geral, as descrições das ementas das disciplinas do projeto do


curso da pós-graduação em LA são voltadas há propósitos puramente
linguísticos tradicionais, acordando com a justificativa, que no seu segundo
parágrafo destaca essa mesma área como proposta inicial, assim, discordando
da finalidade da própria especialização.
Perante essas contemplações é que reforçamos a própria ideia trazida na
justificativa e objetivos, as disciplinas e ementas do curso de pós-graduação em
LA obedecem a área da grande linguística, pois, mesmo que compreendam em
alguns pontos a importância da contextualização, para eles, situar o sujeito sócio
historicamente é, antes de tudo, levá-los a dominação da língua idealizada.

Considerações finais

O projeto do curso da Pós-Graduação Lato Sensu em Linguística Aplicada


ao Ensino de Língua Portuguesa da Universidade do Estado da Bahia – campus
XVIII, desde sua justificativa até as ementas, não possui uma concepção do que
seria a Linguística Aplicada, embora em alguns pontos apareçam demarcações
simplórias, porém, muitas vezes contraditórias, pois tem como objetivo final a
capacitação dos professores em formação continuada para o ensino
operacionalizante da linguagem. Além disso, em nenhum momento há
retratado as especificidades que configuram a área da LA –, compreendida aqui
como uma área de pesquisa mestiça, ideológica que ampara as problematizações
entrelaçadas ao poder, a diferença e a desigualdade.
Todavia, acentuamos que a pesquisa desenvolvida se deu estritamente ao
conteúdo exposto no projeto, por esse motivo, as práticas dos professores do

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 67


curso não são consideradas. Logo, há a possibilidade de não haver uma
dependência, ou, subordinação dos seus respectivos conteúdos aplicados, aos
professores em formação continuada, ao que fora descrito nas ementas.
Nossas contribuições para melhoria do currículo da pós-graduação em
Linguística Aplicada da Universidade do Estado da Bahia – campus XVIII é de
que repensem o projeto como um todo, compreendendo que para além da
teoria, a LA considera as vozes daqueles que vivem as práticas sociais,
atualmente tomando uma postura crítica e ética, deixando de lado os
preconceitos e buscando compreender as manifestações naturais que surgem
através da linguagem, ademais, as relações dela imbricadas no processo de
identidade e da cultura.

Referências

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LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens
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2013.

WEEDWOOD, Barbara. História concisa da Linguística. São Paulo: Parábola,


2002.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 69


CAPÍTULO 5

Caracterização e implicações sociais


da pesquisa em linguística aplicada
por licenciandos em letras
Silvio Nunes da Silva Júnior1

Introdução

As instituições de ensino superior brasileiras, especialmente nos cursos


de licenciatura em Letras, nas mais variadas habilitações, procuram direcionar
professores, com suas afinidades teórico-metodológicas, a componentes
curriculares que estejam nessas mesmas direções. No entanto, nem sempre o
corpo docente corrobora a necessidade de pessoal para assumir componentes
como, por exemplo, de Linguística Aplicada. Como área social conceituada, por
Moita Lopes (2006), como mestiça, crítica e INdisciplinar, a Linguística
Aplicada se distancia de algumas vertentes dos estudos da linguagem,
principalmente pela distância estabelecida entre ela e as correntes vinculadas às
teorias formalistas, uma vez que nela observam-se os usos da linguagem em
diferentes situações, dentro e fora de contextos educacionais, em busca de

1 Doutorando e mestre em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura da


Universidade Federal de Alagoas (PPGLL/UFAL). Membro do Grupo de Estudos Discurso, Ensino e
Aprendizagem de Línguas e Literaturas (GEDEALL/UFAL) e do Grupo de Estudo das Narrativas Alagoanas
(GENA/UNEAL). E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 70


inteligibilidades (MOITA LOPES, 2006). Assim, a linguagem é tomada como
objeto de uso e não de análise dentro de padrões previamente formulados.
Nessa direção, nem sempre os licenciandos em Letras compreendem o
que significa Linguística Aplicada, nem como, por ser uma ciência social, ela
pode implicar de alguma forma nas práticas do dia a dia dos sujeitos. Isso
representa uma problemática que precisa ser (re)pensada por professores e
pesquisadores, considerando que a expansão das áreas e linhas teóricas é
responsável pelo estímulo à constituição de novos pesquisadores, os quais,
cotidianamente, trazem olhares mais atuais para temáticas antigas e podem
descobrir novas facetas para investigar a linguagem em uso. Em alguns casos,
os alunos conhecem os construtos teóricos que defendem a concepção de
linguagem como forma de interação (GERALDI, 1984), como a Teoria
Dialógica da Linguagem e o Interacionismo Sociodiscursivo, dentre outros, mas
não conseguem refletir sobre como esses conhecimentos podem influenciar as
ações e reflexos de pesquisa em Linguística Aplicada.
Diante disso, este estudo propõe duas análises discursivas a respeito das
caracterizações e das implicações sociais da pesquisa em Linguística Aplicada.
Para dar conta de tal objetivo, analisa-se a ementa do componente curricular
“Linguística Aplicada ao ensino de língua portuguesa” e produções escritas por
licenciandos em Letras/Português num curso de férias ofertado numa
universidade pública do estado de Alagoas. O trabalho está estruturado nos
tópicos: considerações iniciais; o tratamento da Linguística Aplicada na ementa
publicada pela universidade; contextualização metodológica; o que é e o que se
faz em Linguística Aplicada; e considerações finais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 71


O tratamento da Linguística Aplicada na ementa
publicada pela universidade

É comum, em diferentes contextos universitários, atribuir aos


professores e às coordenações de curso o fato de os alunos não conhecerem
teorias ou especificidades pontuais de determinadas áreas. No entanto, a ementa
do curso nem sempre é retomada para se pensar quais os pressupostos que
embasam as disciplinas do curso de que se está falando. Nesse sentido, é a partir
do norte dado pelo documento oficial da instituição que o trabalho pedagógico
funciona desde a educação básica até o ensino superior, mesmo que se venha
defendendo a necessidade de o professor, autonomamente, modificar questões
previamente estabelecidas em busca de um ensino interligado às necessidades
da sala de aula.
A respeito da caracterização e da construção social da Linguística
Aplicada, buscou-se subsídios, inicialmente, no Projeto Político Pedagógico
(PPP) do curso de Letras, publicado em 2010, de uma universidade pública
situada no estado de Alagoas, a qual oferta o curso de Letras desde o ano de
1977. Algo que fica evidenciado na primeira leitura do PPP do curso de Letras
é a nomenclatura do componente curricular a ser analisado, intitulado
“Linguística Aplicada ao ensino de Língua Portuguesa”. Num apanhado que,
segundo Silva Júnior (2018), indica duas viradas históricas e um processo de
ressignificação da Linguística Aplicada, pode-se pontuar, inicialmente, que o
termo “ao” indica uma dependência de Aplicada à Linguística, levando o
componente curricular para um apego à primeira Linguística Aplicada. A
respeito da primeira Linguística Aplicada, Silva Júnior (2018) afirma que em
meados da década de 1940, houve-se uma detenção de pesquisadores da
Linguística de aplicar conhecimentos, de base estruturalista, no ensino das
línguas estrangeiras, especialmente do inglês. Essa noção de aplicação de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 72


Linguística foi desmistificada pela primeira virada, cronologicamente ocorrida
nos anos de 1980, e, mais efetivamente, pela segunda virada, na década de 1990.
Desde então, para se referir a alguma temática específica tratada pela
Linguística Aplicada, como o ensino de língua portuguesa, opta-se pelos termos
“no” ou “e”, os quais não anunciam uma dependência da pesquisa aos estudos
linguísticos. A denominação do componente curricular torna-se equivocada e
carece de uma pequena, mas importante alteração do termo “ao” para “no” ou
“e”. Mais adiante, destacam-se os pontos que precisam ser abordados no
decorrer do componente curricular, segundo a ementa:

Quadro 1 – Pontos a serem abordados no componente curricular.


Relação entre conteúdos acadêmicos e a prática docente: interação em sala de aula; relação entre
descrição lingüística e prática de ensino. Estudo das diversas concepções e abordagens aplicadas
ao ensino de língua portuguesa e de suas perspectivas no processo de ensino/aprendizagem.
Conhecimento das implicações discursivas da linguagem, sua natureza social e subjetiva na
interação em sala de aula.
Fonte: PPP do curso de Letras.

Dentre os pontos apresentados no Quadro 1 não se encontra uma


detenção do componente curricular em introduzir reflexões sobre a fundação,
as viradas e a ressignificação pelas quais a Linguística Aplicada passou. Essa
questão acaba apagando o emprego dessa área nas ciências sociais e
aproximando-a somente do estudo linguístico, do qual os alunos já devem estar
habituados. Com isso, é comum que esses sujeitos compreendam a Linguística
Aplicada como aplicação de linguística, e isso, como já foi tratado, não compete
somente ao professor da disciplina, mas, sobretudo, ao conjunto de vozes que
formularam o PPP do curso de Letras.
A interação em sala de aula, mencionada mais de uma vez no Quadro 1,
destaca um dos dados que podem compor um corpus de pesquisa em Linguística
Aplicada. É possível que a pesquisa pautada no ensino de língua portuguesa
investigue documentos oficiais, materiais didáticos, dentre outros aspectos,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 73


concebendo a Linguística Aplicada como uma área mista que não se dedica
totalmente a fenômenos encontrados na interação em sala de aula. Ao abordar
“conteúdos acadêmicos”, a ementa do componente curricular favorece a
compreensão de que a Linguística Aplicada se caracteriza como uma arena de
aproveitamento de todos os conhecimentos anteriormente construídos. Dessa
forma, no tópico não encontra uma compreensão adequada.
A questão da descrição linguística na prática de ensino também se
relaciona com a noção de aplicação de linguística e não de Linguística Aplicada.
O trabalho com conhecimentos gramaticais no ensino de língua portuguesa na
perspectiva da Linguística Aplicada não se detém na aplicação de
conhecimentos de descrição nas abordagens sobre a língua portuguesa em sala
de aula, mas às possibilidades de articulação da produção discursiva com
conhecimentos estruturais ou normativos. Tais conhecimentos, de acordo com
Zozzoli (1999, 2003), precisam ser realmente necessários para as práticas
linguístico-discursivas dos alunos e não a partir de determinações institucionais,
como as oriundas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), das
Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEN), da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) ou dos livros didáticos de diferentes editoras.
O último ponto apresentado na ementa, que relaciona discurso e
subjetividade, é o que mais se aproxima do que realmente se faz em Linguística
Aplicada. No entanto, sem abordagens antecedentes acerca do que caracteriza
a área e de como se faz pesquisa em Linguística Aplicada (o que pode ser
efetuado com apresentações de pesquisas já desenvolvidas), esse tipo de
discussão fica difícil. Por meio da ementa, percebe-se uma exclusão de bases
epistemológicas a respeito da Linguística Aplicada, podendo dificultar a
compreensão dos alunos em relação ao que é a área e como se pode contribuir
nela. Nesse contexto, outro aspecto da ementa que merece ser abordado é a
base teórica sugerida, a qual consta no quadro a seguir.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 74


Quadro 2 – Base teórica do componente curricular.
Bibliografia Básica:

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática. São Paulo: Parábola, 2008.

ILARI, Rodolfo. A lingüística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins


Fontes, 1985.

Bibliografia Complementar:

BARCELOS, Ana Maria Ferreira. Metodologia de pesquisa sobre aprendizagem de


línguas: estado de arte. In: Revista Brasileira de Lingüística Aplicada. v.1, n. 1. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2001.

BECHARA, Evanildo. Ensino da gramática. Opressão? Liberdade? 9. ed. São Paulo:


Ática, 1997.

CORACINI, M. J. (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas-SP: Pontes,


1995.

GERALDI, Wanderley. O texto na sala de aula. Cascavel: Assoeste, 1984.

HILÁRIO, Bohn e VANDRESEN, Paulino. Tópicos de Lingüística Aplicada.


Florianópolis: Editora da UFSC, 1988.

KLEIMAN, Ângela. A leitura: ensino e pesquisa. Campinas-SP: Pontes, 1989.

LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna e
seu ensino. Porto Alegre: L&PM, 1985.

MACHADO, Anna Rachel. Os textos de alunos como índices para avaliação das
capacidades de linguagem. In: Análise do Discurso em perspectivas. Belo Horizonte:
UFMG, FALE/ Núcleo de Análise do Discurso, 2003.

MENDONÇA, Marina Célia. Língua e ensino: políticas de fechamento. In: MUSSALIM,


Fernanda e BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e
fronteiras. V.2 . São Paulo: Cortez, 2001.

MOITA LOPES, L.P. Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas-SP: Mercado de


Letras, 1996.

________. Pesquisa interpretativista em lingüística aplicada: a linguagem como condição


e solução. DELTA., V.10, nº2, 1994, pp.329-38.

PASCHOAL, M. S. Z. & CELANI, M. A. A. (orgs.). Lingüística Aplicada: da aplicação


da lingüística à lingüística transdisciplinar. São Paulo: EDUC, 1992.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas-SP: Mercado
de Letras, 1996. (Coleção Leituras do Brasil)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 75


ROCHA, Décio e GURGEL, Maria Cristina Lírio. Leitura em sala de aula: polifonia e
interação. In: CHIAVEGATTO, Valéria Coelho (orgs.) Pistas e travessias II: bases para
o estudo da gramática, da cognição e da interação. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2002.

_______. A arquitetura das interações verbais: produções de sentidos dos discursos em


sala de aula. In: CHIAVEGATTO, Valéria Coelho (orgs.) Pistas e travessias II: bases
para o estudo da gramática, da cognição e da interação. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,
2002.

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1985.
Fonte: PPP do curso de Letras.

A bibliografia básica aponta dois autores que não pertencem a área da


Linguística Aplicada. Mais especificamente, tem-se Antunes (2008), no campo
da Linguística Textual, em sua articulação com questões de ensino e
aprendizagem de língua portuguesa, e Ilari (1985), que, em sua obra dedicada à
aplicação de linguística, aponta as contribuições dessa área para o ensino de
língua portuguesa. Com tal bibliografia básica, o componente curricular não
considera a atual Linguística Aplicada, pois, indicando, de modo indispensável,
discussões teóricas distanciadas, é bem provável que a compreensão dos
discentes acerca da Linguística Aplicada seja inadequada mediante às demandas
contemporâneas.
Na bibliografia complementar do componente curricular encontram-se
sugestões de leitura em diferentes áreas de atuação, a saber:
9 (nove) textos vinculados à Linguística Aplicada (BARCELOS, 2001;
CORACINI, 1995; HILÁRIO; VANDRESEN, 1988; KLEIMAN, 1989;
MOITA LOPES, 1996, 1994; PASCHOAL; CELANI, 1992; ROCHA;
GURGEL, 2002; ROCHA, 2002);
7 (sete) textos sobre ensino de Língua Portuguesa em diferentes
perspectivas teóricas, como a Análise do Discurso e as Teorias da
Gramática (BECHARA, 1997; GERALDI, 1984; LUFT, 1985;

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 76


MACHADO, 2003; MENDONÇA, 2001; POSSENTI, 1996; SOARES,
1985).
Mesmo com o direcionamento da bibliografia complementar aos
pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Aplicada, percebe-se que a
leitura desses textos não é base do componente curricular e nem se enquadra
nos pontos apresentados na ementa. Assim, as bases de Linguística Aplicada
ficam apagadas. O componente curricular, de acordo com a análise das
bibliografias básica e complementar, gira em torno de contribuições da
Linguística para o ensino de língua portuguesa e se distancia da Linguística
Aplicada. Com isso, acredita-se ser necessário rever objetivos, aspectos
elencados para o trabalho pedagógico no curso de licenciatura em Letras e
reformular bases teóricas direcionadas ao componente curricular que envolve a
Linguística Aplicada, bem como a sua própria denominação.
Diante desta primeira análise, contextualiza-se, no tópico a seguir, a
metodologia da pesquisa desenvolvida com graduandos em Letras que deu
origem às demais inquietações referentes a este estudo.

Contextualização metodológica

O autor deste trabalho ministrou um curso de férias de uma semana


intitulado “Linguística Aplicada e ensino de língua portuguesa” para alunos do
curso de Letras/Português matriculados no 5º período do curso presencial no
contexto de uma universidade pública de Alagoas. Por ser ministrado no turno
diurno (matutino e vespertino), o curso contou com apenas 8 (oito) alunos e,
diante de um curto período de tempo, recebeu, pelos alunos, a adjetivação de
“intensivo”, visto que era composto por discussões teóricas a partir de textos
sugeridos pelo docente, apresentação de trabalho e atividades escritas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 77


Considerando as problemáticas apresentadas na ementa do componente
curricular já mencionado, os textos trabalhados durante o curso foram outros,
como se pode observar no quadro a seguir:

Quadro 3 – Textos lidos e discutidos durante o curso de férias.


Bibliografia básica:

ALMEIDA FILHO, J. C. P. Maneiras de compreender a Lingüística Aplicada. Letras Revista


do Instituto de Letras da Puccamp, Campinas, v. 2, p. 7-14, 1991. Disponível em:
<https://periodicos.ufsm.br/letras/article/viewFile/11407/6882>. Acesso em 27. mai. 2019.

SILVA JÚNIOR, S. N. Aspectos da linguística aplicada para a formação do pesquisador.


Linguagem: Estudos e Pesquisas, v. 22, p. 109-127, 2018. Disponível em <
https://www.revistas.ufg.br/lep/article/view/54469/26053>.

Bibliografia específica:

CARRIJO, V. L. S; PADILHA, S. J. O ensino reflexivo e dialógico da reescrita: contribuições da


teoria bakhtiniana. POLIFONIA: ESTUDOS DA LINGUAGEM, v. 20, p. 189-207, 2013.
Disponível em <
http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/viewFile/664/1117>.

CRUZ, A. M. M; SANTOS, M. A. Letramento literário: ações e reflexões mediadas pela cultura


escolar. Letras em Revista, v. 9, p. 139, 2019. Disponível em <
https://ojs.uespi.br/index.php/ler/article/view/206/89>.

FIAD, R. S. Reescrita, dialogismo e etnografia. Linguagem em (Dis)curso (Impresso), v. 13,


p. 463-480, 2013. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/ld/v13n3/02.pdf>.

MORETTO, M. Vozes que emergem em sala de aula: a importância do dialogismo nas dinâmicas
de produção de texto. Leitura: Teoria & Prática, v. 32, p. 87-98, 2014. Disponível em <
https://ltp.emnuvens.com.br/ltp/article/viewFile/242/141>.

SILVA, M. B. M; SILVA JÚNIOR, S. N. DIALOGISMO E RESPONSIVIDADE NA


PROPOSTA DE REDAÇÃO DO ENEM 2017. Revista Desenredos, v. XI, p. 157-168, 2019.
Disponível em < http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/Desenredos_31_-_Artigo-
Enem2017-MartaBetania-SilvioJunior.pdf>.

SILVA, T. C. G. O dialogismo no fórum acadêmico: um estudo da interação verbal no ensino a


distância. HIPERTEXTOS REVISTA DIGITAL, v. 06, p. 1-12, 2011. Disponível em <
http://www.hipertextus.net/volume6/Hipertextus-Volume6-Telma-Cristina-Gomes-da-
Silva.pdf>.

ZOZZOLI, R. M. D. Conhecimentos linguístico - discursivos na sala de aula de língua


portuguesa: desenvolvendo “táticas” para desobedecer a propostas prontas. Revista Leia

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 78


Escola, v. 14, p. 40-50, 2015. Disponível em <
http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/Leia/article/view/326/256>.

_______. O processo de constituição de uma gramática do aluno leitor/produtor de textos: a


busca de autonomia. Trabalhos em Lingüística Aplicada, UNICAMP/Campinas, v. 33, p.
07-21, 1999. Disponível em <
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8639289/6883>.
Fonte: Plano do componente curricular.

A bibliografia básica foi discutida durante o primeiro encontro do


professor com os alunos (os textos foram enviados anteriormente para os e-
mails dos alunos). O texto de Almeida Filho (1991) foi abordado no matutino
e o de Silva Júnior (2018) no vespertino. A partir do segundo dia de curso, cada
aluno ficou responsável pela apresentação de um texto, para que, após cada
apresentação, houvesse discussões com a turma a respeito das articulações que
cada texto apresenta com as bases teórico-metodológicas da Linguística
Aplicada, pontuadas no primeiro dia.
Dentre as atividades solicitadas aos alunos, contou-se com: síntese de
aula, resenha e estudo dirigido. Para a discussão proposta para este estudo, serão
utilizados trechos das resenhas produzidas pelos alunos a partir do texto de
Almeida Filho (1991) e o estudo dirigido. A escolha se deu pelas possibilidades
dadas aos alunos de estabelecer uma visão crítica a respeito de um texto da área
(resenha), de caracterizar a Linguística Aplicada e desenvolver uma reflexão
acerca das possíveis contribuições da área para as práticas sociais de uso da
linguagem em contextos de ensino de língua portuguesa como língua materna
(estudo dirigido).
Foram escolhidas, entre as resenhas e os estudos dirigidos, as produções
de 3 (três) alunos, os quais, por questões éticas, terão nomes fictícios, a saber:
Pedro, Caroline e Letícia. A análise dos dados segue uma perspectiva
interpretativista, proposta pela pesquisa qualitativa que, como assinala Moita

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 79


Lopes (2013), norteia os estudos contemporâneos em Linguística Aplicada2.
Essa abordagem de pesquisa engloba uma descrição de dados articulada com
discussões teóricas variadas, no intuito de pontuar a relação de teoria,
metodologia e prática de pesquisa, própria das ações de pesquisa em Linguística
Aplicada.

O que é e o que se faz em Linguística Aplicada?

O questionamento de “Para vocês, o que é Linguística Aplicada?” é


comum nos contextos institucionais brasileiros. Os alunos, tomando como base
a própria nomenclatura da área, pensam, de início, em um construto
metodológico de aplicação de teorias linguísticas no ensino das línguas. Para
tentar reverter tal situação, a ação docente é decisiva, pois é a partir do que o
professor determina para a mediação das aulas que os posicionamentos dos
alunos podem ser transformados de alguma forma.
Dentre as atividades efetuadas em sala de aula, durante o curso de férias
de Linguística Aplicada e ensino de língua portuguesa, a escrita da resenha foi
solicitada pelo professor ao término do primeiro dia de aula. Os alunos
precisariam desenvolver suas resenhas tendo como texto-base a discussão
“Maneiras de compreender a Linguística Aplicada”, de Almeida Filho (1991).
No texto, o autor traz uma abordagem didática acerca do que era Linguística
Aplicada na década de 1940, suas transformações e a que havia chegado a
Linguística Aplicada em 1991, após a segunda virada histórica dada pela área. A
discussão atendeu aos objetivos do professor, uma vez que, mesmo com

2A pesquisa qualitativa integra as pesquisas de Linguística Aplicada pelo seu caráter interpretativo. As diferentes
vertentes de pesquisa, como: etnografia, estudo de caso, pesquisa-ação etc., também permeiam as ações de
pesquisa em Linguística Aplicada, para orientar o direcionamento das reflexões e esclarecer melhor as
características metodológicas dos estudos, em nível de graduação e pós-graduação.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 80


bastante receio, os alunos foram questionando e construindo coletivamente
compreensões acerca da temática abordada.
O quadro a seguir apresenta o ponto de vista crítico dos alunos Pedro,
Caroline e Letícia acerca do texto de Almeida Filho (1991). Os fragmentos
foram retirados das resenhas escritas por esses alunos.

Quadro 4 – Posicionamentos dos alunos nas resenhas sobre o texto de Almeida Filho
(1991).

Pedro: A Linguística Aplicada só vai ser ciência a partir do momento em que é delimitado um objetivo
de estudo, porém em 1980 a LA era bem arcaica, numa concepção totalmente diferente da realidade atual.
A LA não é somente pensar em ensino e sim em ação social. Para isso é necessário uma própria
observação social, por exemplo, levar o médico a falar de uma forma mais fácil, estudando seus termos
técnicos, há uma interação social, e definição das relações.
Caroline: Por Linguística Aplicada ser uma área muito abrangente, não existe método específico durante
a investigação de um problema, o que há de fato é uma junção das teorias de muitas outras áreas como
por exemplo a psicologia, a sociologia, entre outras, que podem ajudar a encontrar encaminhamentos
para problemáticas encontradas em contextos sociais.
Letícia: Na Linguística Aplicada não se trabalha com registros passados, mas sim diretamente com
fenômenos em ação, indo de encontro a uma situação recorrente e cotidiana, identificando o problema e
refletindo sobre como ele pode ser aprimorado no dia-a-dia social.
Fonte: dados escritos.

Os fragmentos apresentados no Quadro 4 indicam a construção de uma


caracterização de Linguística Aplicada que é constituída no cruzamento das
vozes dos alunos, qual seja: “a de Linguística Aplicada como área abrangente,
que, mesmo tendo um passado arcaico, carrega consigo a necessidade de se
investigar os fenômenos sociais reais que envolvem a linguagem, tendo que
recorrer, para tanto, a outras áreas de estudo em busca de reflexões sobre
alguma problemática”. Além de tal caracterização, encontra-se, no fragmento
do aluno Pedro, uma implicação social da pesquisa em Linguística Aplicada
quando o aluno menciona o trabalho de facilitação da linguagem médica, que,
naturalmente, pode ser um fenômeno a ser investigado pela pesquisa em
Linguística Aplicada.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 81


Com isso, os conhecimentos apresentados pelos alunos aproximam-se
da afirmação de Moita Lopes (2009, p. 20), quando se destaca que

O fato é que as áreas de conhecimento mudam e novos modos de produzir


conhecimento são reinventados, e aos pesquisadores, como sempre, cabe
escolher os caminhos a seguir. (...) A área de LA tem se repensado
continuamente, o que também, devo dizer, está acontecendo em outros
campos: provavelmente, um repensar característico das sociedades
reflexivas em que vivemos (GIDDENS, BECK E LASH, 1997).

A autonomia do pesquisador, frisada por Moita Lopes (2009), fica


evidenciada no fragmento de Letícia quando ela traz para a sua resenha a junção
entre os termos encontro, identificação e reflexão. Outro aspecto que revela
esse aspecto da Linguística Aplicada é o estudo em contextos sociais, tratado
por Caroline, que não limita o estudo em Linguística Aplicada às situações de
sala de aula, mas remete à amplitude em que atua a linguagem no seio de
diferentes práticas sociais. Nessa perspectiva, os sentidos construídos nas
resenhas dos alunos mostram uma compreensão inicial satisfatória sobre o que
é e o que se faz em Linguística Aplicada atualmente. Essa discussão foi
relevante, pois, antes de adensar na temática mais específica: ensino de língua
portuguesa, os alunos puderam ter uma ideia geral acerca das possibilidades
dadas pela área de pesquisa à investigação em sala de aula.
Em relação ao estudo dirigido, focalizar-se-á em duas questões
específicas que constaram na atividade3, como:

O que é Linguística Aplicada?


Como se pode pensar em Linguística Aplicada no ensino de língua
portuguesa?

A discussão desenvolvida pela aluna Letícia é apresentada a seguir:

3 O estudo dirigido contava com mais uma questão, na qual solicitava-se que os alunos distinguissem Linguística

de Linguística Aplicada.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 82


Quadro 5 – Estudo dirigido da aluna Letícia
O que é Linguística Aplicada?
É uma área de pesquisa que estuda e problematiza a linguagem como prática sócio-cultural.

Como se pode pensar em Linguística Aplicada no ensino de língua portuguesa?


A Linguística Aplicada se situa no contexto do discurso e nas práticas discursivas interacionais. Desse
modo, pensar em LA no ensino de língua portuguesa é olhar o ensino não como um modelo estanque,
mas identificar e problematizar essas práticas com o intuito de compreender seus impactos positivos e
negativos na sala de aula, e interagir, melhorando cada vez mais o ensino.
Fonte: dados escritos.

Na questão geral, Letícia trouxe apenas um dos aspectos que foram


mencionados no decorrer do curso desenvolvido. Entretanto, sua resposta
específica mostrou uma compreensão mais aprofundada no que se refere às
possíveis contribuições da pesquisa em Linguística Aplicada para o ensino de
língua portuguesa. A posição da aluna traz a reflexão sobre o ensino como uma
prática processual, o que fica destacado quando se trata da não detenção da
Linguística Aplicada em um modelo estaque, pronto e acabado, de ensino de
língua portuguesa. A ênfase dada às interações entre os sujeitos em sala de aula
apresenta a necessidade da valorização do papel do aluno na sua própria
aprendizagem, aspecto esse que integra as bases da prática de pesquisa em
Linguística Aplicada.
As respostas dadas por Letícia dialogam com a discussão empreendida
por Caroline.
Quadro 6 – Estudo dirigido da aluna Caroline.
● O que é Linguística Aplicada?
A Linguística Aplicada estuda a linguagem como uma prática social, pensando o ensino como
forma de interação e construção processual, visando uma adaptação do ensino às necessidades
dos alunos.
● Como se pode pensar em Linguística Aplicada no ensino de língua portuguesa?
Pode-se pensar, pois, é através dela que ocorre a transdisciplinaridade. A transdisciplinaridade
faz com que o aluno se questione e problematize o assunto em questão. A interação proporciona
uma construção coletiva de conhecimento e o aluno, bem como os professores, atuam como
pontos importantes para o processo de aprendizagem da língua portuguesa.
Fonte: dados escritos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 83


A transdisciplinaridade, que começou a ser trazida para as discussões
sobre Linguística Aplicada a partir do momento em que Moita Lopes (1996)
passou a definir a área como dentro das ciências sociais, foi a palavra-chave da
resposta da aluna. Assim, a prática transdiscipplinar insere o pesquisador de
Linguística Aplicada num campo mais amplo que o do território imposto pela
Linguística. Sobre a pesquisa em Linguística Aplicada, Rocha e Daher (2015, p.
137) assinalam que

ela pode se tornar a oportunidade de efetivamente exercermos, na


qualidade de linguistas aplicados, o papel de cientistas sociais, de
podermos mapear um social que se deixará apreender por meio da
qualidade das trocas verbais que se atualizam e pelo modo como seremos
então capazes de lê-las

Diante disso, na leitura que Caroline faz, as relações entre Linguística


Aplicada e ensino de língua portuguesa retomam a transdisciplinaridade pelo
fato de, conforme destacou Letícia, a prática de sala de aula, nessa perspectiva,
não seguir modelos estanques. É preciso, segundo se interpreta nos discursos
das alunas, que o ensino gire em torno de necessidades reais de sala de aula,
buscando, de acordo com o estudo dirigido de Pedro, a criticidade do sujeito
por meio dos acontecimentos de sala de aula.

Quadro 7 – Estudo dirigido do aluno Pedro.


● O que é Linguística Aplicada?
É uma ciência que estuda as práticas sociais de linguagem em situações reais de uso da mesma.
● Como se pode pensar em Linguística Aplicada no ensino de língua portuguesa?
Pensar em Linguística Aplicada no ensino de língua portuguesa envolve a reflexão sobre a língua
para além de aspectos estruturais, mas para fins de produção discursiva e criticidade doa aluno
leitor e produtor de textos.
Fonte: dados escritos.

A posição assumida por Pedro na primeira questão se aproxima da


caracterização de Linguística Aplicada apresentada por Letícia, a qual, mesmo
resumidamente, abarca todo um conjunto de objetivos incluídos na pesquisa da

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 84


área supracitada. Na relação com o ensino de língua portuguesa, o aluno traz
possíveis implicações das práticas mencionadas pelas outras alunas (interação
entre os sujeitos, ensino baseado nas necessidades dos alunos etc.) na formação
dos sujeitos que constituem cotidianamente a sala de aula de língua portuguesa
de educação básica.
Diante do que foi observado na análise, percebe-se que os sentidos da
pesquisa em Linguística Aplicada e de suas contribuições sociais para o ensino
da língua portuguesa caminham coerentemente para o que realmente vem se
efetuando no cenário científico. A compreensão dos discentes a respeito do que
norteia essa área de pesquisa pode influenciar de alguma forma a formação de
novos linguistas aplicados, e esse, além dos demais, é um dos objetivos de se
levar a discussão sobre Linguística Aplicada para alunos do curso de Letras, nas
suas diferentes habilitações.

Considerações finais

Buscando problematizar as vozes do discurso institucional e as


possibilidades de alterar questões previamente estabelecidas, este estudo
apresentou algumas ações necessárias para reverter um quadro de baixo
oferecimento de conhecimentos acerca da caracterização e das implicações
sociais da pesquisa em Linguística Aplicada no curso de Letras. Os modos de
compreender a área e as suas particularidades que a concebe como campo
abrangente, híbrido e transdisciplinar de produção de conhecimentos entregam
aos alunos possibilidades de inquietarem e, assim, procurarem fazer pesquisa
em Linguística Aplicada. A discussão empreendida serve, também, para que
professores do ensino superior, ao identificarem inconsistências teórico-
metodológicas, possam refletir e agir situadamente em busca de construções
concretas de conhecimento em sala de aula.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 85


Referências

ALMEIDA FILHO, J. C. P. Maneiras de compreender a Lingüística Aplicada.


Letras Revista do Instituto de Letras da Puccamp, Campinas, v. 2, p. 7-14, 1991.

ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática. São Paulo: Parábola, 2008.

GERALDI, J. W (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel:


Assoeste, 1984.

ILARI, Rodolfo. A lingüística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins


Fontes, 1985.

MOITA LOPES, L. P. Introdução: Fotografias da Linguística Aplicada


brasileira na modernidade recente: contextos escolares. In: MOITA LOPES, L.
P (Org.). Linguística Aplicada na Modernidade Recente. Festschrift para Antonieta
Celani. São Paulo: Parábola, 2013. p. 15-37.

MOITA LOPES, L. P. Da aplicação linguística à Linguística Aplicada


Indisciplinar. In: PEREIRA, R. C; ROCA, P. Linguística Aplicada: um caminho
com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009.

MOITA LOPES, L. P (Org.) Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo:
Parábola, 2006.

MOITA LOPES, L. P. Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado de


letras, 1996.

ROCHA, Décio; DAHER, D. C. Afinal, como funciona a Linguística Aplicada


e o que pode ela se tornar? DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica
e Aplicada (PUCSP. Impresso), v. 31, p. 105-141, 2015.

SILVA JÚNIOR, S. N. Aspectos da linguística aplicada para a formação do


pesquisador. Linguagem: Estudos e Pesquisas, v. 22, p. 109-127, 2018.

ZOZZOLI, R. M. D. Atividades de reflexão gramatical na sala de aula e


autonomia relativa do sujeito. In: LEFFA, V. J (Org.) A interação na aprendizagem
das línguas. Pelotas: Educat, 2003, p. 25-46.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 86


ZOZZOLI, R. M. D. O processo de constituição de uma gramática do aluno
leitor/produtor de textos: a busca de autonomia. Trabalhos em Lingüística
Aplicada, UNICAMP/Campinas, v. 33, p. 07-21, 1999.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 87


CAPÍTULO 6

Cultura e interculturalidade nas


formas de avaliação: uma análise do
Celpe-Bras
Débora Simões Araújo1

Introdução

Este trabalho tomou como objetivo realizar uma análise, sob a


abordagem intercultural, das perguntas do roteiro de interação face a face do
exame de proficiência da língua portuguesa como língua estrangeira (Celpe-
Bras), do ano de 2018. A análise feita se embasou nos conceitos de cultura e de
interculturalidade desenvolvidos por Cuche (1999), Laraia (2009), Mendes
(2012) e Matos (2014).
É preciso ainda ressaltar que o roteiro foi analisado em conjunto com os
elementos provocadores correspondentes. Estes, por sua vez, podem ser “as
fotos, cartuns, quadrinhos, gráficos, textos curtos, etc.” (BRASIL, 2012, p.11),
presentes na etapa de produção oral da avaliação. No caso do Celpe-Bras 2018
esses elementos são publicidades sobre temas da atualidade.
Há três justificativas para a realização desse trabalho. A primeira, é que
pouco se tem falado sobre a presença da interculturalidade em exames de

1 Mestranda, Universidade Federal de Sergipe. [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 88


proficiência em língua estrangeira. A segunda, é que a procura pelo ensino-
aprendizagem de Português como Língua Estrangeira (PLE) vem crescendo
significativamente nos últimos anos, seja por questões econômicas, políticas ou
turísticas, crescendo também a procura pelo Celpe-Bras. Fazendo-se, portanto,
necessários trabalhos que busquem contribuir direta ou indiretamente para o
aprimoramento e qualidade do exame.
Por fim, a terceira e última justificativa corresponde ao recorte temporal
escolhido aqui, o ano de 2018. Essa justificativa deve-se ao fato de que este ano
é posterior a alguns acontecimentos importantes no Brasil que contribuíram
para o aumento da procura do PLE e do Celpe-Bras. Estes acontecimentos são:
em 2014 a entrada do país para o Grupo de Países Emergentes (BRICS), a
realização do Programa “Mais Médicos” (que já não existe mais) e o fato de ser
sediada em solo brasileiro a Copa do Mundo. Em 2016 a realização das
Olimpíadas e em 2017 a chegada muitos imigrantes, em sua maioria,
venezuelanos que buscaram fazer a prova no intuito de conseguir espaço no
mercado de trabalho com a obtenção do certificado ou ainda entrar em
universidades brasileiras.

O exame Celpe-Bras

O Celpe-Bras é a avaliação oficial brasileira, que vem sendo aplicada


desde 1998, para certificar a proficiência em português como língua estrangeira.
Foi desenvolvido pelo Ministério da Educação, porém hoje está aos cuidados
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep). A prova é aplicada anualmente no Brasil e no exterior e certifica os níveis
de proficiência: intermediário, intermediário superior, avançado e avançado
superior.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 89


O exame está dividido em duas etapas, uma escrita e outra oral. A etapa
escrita está dividida em 4 tarefas, em que na primeira delas o aluno faz um texto
escrito a partir de um vídeo disponibilizado na hora do exame. Na segunda, o
texto é feito a partir de um áudio. Nas tarefas 3 e 4 são disponibilizados dois
textos a partir dos quais o avaliado tem que produzir dois textos escritos.
A etapa oral é realizada a partir dos elementos provocadores e do roteiro
de interação do exame, corpus deste trabalho. Nesta etapa, o candidato tem que
fazer uma produção oral que será conduzida pelo aplicador. São 20 elementos
provocadores e cada um deles possui 8 perguntas que o aplicador faz ao
avaliado no intuito de conduzir a interação face a face. Vale ressaltar que dos
20 elementos cada candidato usa apenas dois na interação.
No roteiro de interação face a face o exame diz que

de modo geral, as perguntas dessa etapa do roteiro podem explorar: a)


compreensão sobre o assunto do Elemento Provocador; b) opiniões e
experiências pessoais acerca do assunto abordado; c) relação entre tema
abordado e elementos culturais do país de origem do participante; d)
exploração de aspectos culturais do Brasil (BRASIL, 2018, p. 3).

Nota-se, a partir deste trecho, que apesar do Celpe-Bras não sugerir em seu
manual a abordagem intercultural na avaliação, diferentemente do que acontece
com o Quadro de Referências para o Ensino de Português no Estrangeiro
(Qua-REPE) que sugere a interculturalidade no ensino-aprendizagem de PLE
e nas avaliações, há o cuidado em relacionar os temas apresentados nos
elementos provocadores à cultura de origem do candidato. Mas será que essa
relação é feita de maneira intercultural?

Cultura e interculturalidade

Para entender melhor a interculturalidade é preciso primeiro entender o


conceito de cultura. O que é cultura? É um conjunto de manifestações artísticas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 90


de um povo? É a culinária de um país? É o modo de se vestir e de se comportar
de um grupo?
Há várias formas de entender a cultura, ela pode estar relacionada ao
conjunto de conhecimentos literários e artísticos, ao conjunto de informações
sobre países que se obtém em viagens ou em leituras, ou ainda aos hábitos de
um povo, aos comportamentos do dia-a-dia, etc. Porém nem sempre o termo
foi tão amplo e pode ser tão abrangente como é hoje. Cuche (1999) em seu livro
A noção de cultura nas ciências sociais mostra a evolução semântica que a palavra
sofre, no início do século XVI, na França, por exemplo, cultura significava
“ação de cultivar a terra” (CUCHE, 1999, p 19), já no século XVIII significava
“[...] o cuidado dispensado ao campo ou ao gado ou parcela de terra cultivada”
(CUCHE, 1999, p 19).
O conceito de cultura tomado aqui será o de um “todo complexo que
inclui conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma
sociedade” (LARAIA, 2009, p. 25). É ainda preciso entendê-la como dinâmica,
pois ela está sempre em processo de construção e modificação, nunca estará
pronta em uma caixinha. E por que a cultura tem que estar presente em exames
de proficiência em língua estrangeira? Porque língua e cultura são como dois
lados de uma mesma moeda, não se separam. Não existe uma sem a outra como
salienta Laraia (2009, p.49) “a linguagem humana é um produto da cultura, mas
não existiria cultura se o homem não tivesse a possibilidade de desenvolver um
sistema articulado de comunicação oral”.
Sabendo que língua e cultura são dissociáveis surge a importância de
trabalhá-la sob um viés intercultural no ensino-aprendizagem de língua
estrangeira e, por conseguinte, nas provas de proficiência em língua estrangeira
como o Celpe-Bras. Trabalhar com interculturalidade não se restringe a falar
sobre os hábitos de um dado grupo, culinária, músicas danças, etc, isto porque

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 91


para atuar sob uma perspectiva intercultural, o professor precisa entender
que as sociedades são constituídas heterogeneamente e cada indivíduo
possui suas características e que, apesar de algumas poderem ser agrupadas
por meio de um fio condutor que apaga as suas diferenças, cada indivíduo
será único (MATOS, 2014, p. 167).

A interculturalidade implica, pois, que o aprendiz de PLE, por exemplo,


consiga se expressar linguisticamente e culturalmente no português brasileiro e
relacione aspectos dessa cultura aos da sua cultura de origem, ocorrendo assim,
a interculturalidade. Portanto, ter um material didático ou uma prova com um
viés intercultural não significa trazer, por exemplo, comidas típicas do Brasil e
da Colômbia. Mas fazer com que aspectos dessas culinárias sejam relacionados.
É necessário salientar que ainda existem algumas confusões entre
interculturalidade e multiculturalismo, este se refere à prática de levar diferentes
culturas às aulas, por exemplo, sinalizar seus aspectos e não fazer nenhuma
correlação com a cultura origem dos aprendizes de língua estrangeira. Já a
interculturalidade é, como Mendes (2012, p. 360) coloca,

uma ação integradora, capaz de suscitar comportamentos e atitudes


comprometidos com princípios orientados para o respeito ao outro, às
diferenças, à diversidade cultural que caracteriza o processo de ensino-
aprendizagem, seja ele de línguas ou de qualquer outro conteúdo escolar.

Portanto, surge a necessidade de se averiguar se ocorre a presença da


interculturalidade no roteiro de interação face a face do Celpe-Bras 2018, tendo
em vista que o exame coloca que as perguntas do roteiro buscam relacionar os
temas à cultura do avaliado.

A interculturalidade no roteiro de interação e nos


elementos provocadores do Celpe-Bras 2018

Para analisar as perguntas do roteiro de interação face a face do exame


Celpe-Bras 2018 foi preciso antes de tudo ler e analisar culturalmente todos os
20 elementos provocadores presentes na prova deste ano, a fim de saber se as

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 92


temáticas trazidas faziam parte da cultura brasileira. Feito isto, foi realizada a
leitura das perguntas de forma isoladas e associada aos elementos
correspondentes, a fim de verificar se havia a presença da abordagem
intercultural no roteiro.
A análise se deu por meio do conceito de interculturalidade desenvolvido
por Mendes (2012). Para isso, foi verificado nas perguntas se em algum
momento era pedido ao avaliado que ele relacionasse aspectos da(s) cultura(s)
brasileira(s) a aspectos culturais de seu país de origem.
Os elementos provocadores do ano de 2018 estão intitulados na imagem
abaixo retirada da prova.

Figura 1: Lista dos elementos provocadores do Celpe-Bras 2018

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/roteiro-de-interacao-face-a-face/2018

Como já foi dito na introdução deste capítulo para cada elemento


provocador são feitas 8 perguntas que conduzem o texto oral do participante
na interação face a face. Após a leitura e análise de cada elemento, bem como
das perguntas correspondentes se percebeu que os temas tratados nos
elementos são temas presentes nas mais diversas culturas e países. Não são
únicos do Brasil, como por exemplo, a festa das cabacinhas em Japaratuba –

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 93


SE. Talvez, o fato de ser assim facilitasse ainda mais a presença da
interculturalidade, já que não existiria um esforço maior por pare do
participante em lembrar-se de alguma manifestação artística parecida à festa das
cabacinhas em seu país na hora da prova.
O primeiro tema “rede social não é lugar para criança”, está presente nas
mais variadas culturas e a partir disso poderiam ser feitas perguntas sobre o
entendimento do avaliado em relação ao tema, por exemplo, como ele percebe
o uso das redes sociais por parte das crianças no Brasil e no país dele, o que há
em comum e de diferente entre os dois países. E ainda se ele também teve redes
sociais quando era criança e se sim de que forma era controlado o uso delas ou
como ele acha que deveria ocorrer o acesso às redes sociais por parte de crianças
no país dele e no Brasil, etc. Porém as perguntas são feitas, em sua maioria, de
forma que as respostas ficam restritas a opinião do participante, ou ao país sem
que haja uma correlação com o Brasil. Como ocorre nas perguntas do primeiro
elemento provocador.

Figura 2: Elemento Provocador 1 do Celpe-Bras 2018

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/elementos-provocadores-da-parte-
oral/2018

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 94


Figura 3: Perguntas do roterito de interação face a face do Celpe-Bras 2018
correspondentes ao elemento provocador 1

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/roteiro-de-interacao-face-a-face/2018.

Apesar de a pergunta 8 pedir para o participante relacionar o tema ao seu


país, não há de maneira explícita uma relação entre o Brasil e o país dele, que
poderia ser feita, por exemplo com perguntas como quais as diferenças e/ou
semelhanças entre o acesso às redes sociais das crianças brasileiras e do seu país?
Assim como no Brasil as crianças em seu país estão inseridas no mundo
tecnológico desde muito cedo? Quais aspectos você consegue identificar a
partir do texto presente nas duas culturas?
No elemento 16 intitulado “bebês importados” abaixo, a pergunta 2
pergunta sobre os brasileiros, porém não pede que o participante os relacione
às pessoas do seu país.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 95


Figura 4: Elemento Provocador 16 do Celpe-Bras 2018

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/elementos-provocadores-da-parte-
oral/2018

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 96


Figura 5: Perguntas do roterito de interação face a face do Celpe-Bras 2018
correspondentes ao elemento provocador 16

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/roteiro-de-interacao-face-a-face/2018

Neste caso, para que houvesse interculturalidade poderiam ser feitas


perguntas como: No seu país existem muitas pessoas procurando bancos de
sêmen? Lá as pessoas como no Brasil preferem os bancos americanos? Quais
diferenças você consegue perceber entre o que ocorre no Brasil e o que ocorre
no seu país, relacionadas a este tema?
Em alguns poucos casos ocorrem perguntas que provocam a
interculturalidade, como é o caso do elemento provocador 20, intitulado
“tradições de casamento” em que o texto mostra elementos que são tradicionais
no casamento dentro da cultura brasileira e as perguntas que são feitas
relacionam esses aspectos à cultura do avaliado. A interculturalidade, neste caso,
ocorre porque o texto disponibiliza aspectos culturais presentes no Brasil como
atirar arroz e pétalas de rosas em casamentos e as perguntas pedem que o
avaliado comente se essas mesmas tradições ocorrem no seu país e qual outras
acontecem. Como é mostrado nas imagens abaixo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 97


Figura 6: Elemento Provocador 20 do Celpe-Bras 2018

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/elementos-provocadores-da-parte-
oral/2018.

Figura 7: Perguntas do roterito de interação face a face do Celpe-Bras 2018


correspondentes ao elemento provocador 20

Fonte: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/roteiro-de-interacao-face-a-face/2018

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 98


Posterior à realização da análise o resultado obtido foi a predominância
da ausência da interculturalidade no roteiro de interação face a face do Celpe-
Bras 2018. Podem-se contatar três realidades diferentes, uma em que não há,
em nenhuma das perguntas, dispositivos que possibilitem a ocorrência da
interculturalidade. Outra em que há menos de três perguntas que possibilitam
e uma última em que há quatro ou mais perguntas que possibilitam a
interculturalidade.

Considerações Finais

Conhecer a cultura e a língua do outro nos possibilita um olhar diferente


para o outro, nos permite nos reconhecer no nosso lugar e nos colocar no lugar
de outrem. Conseguir relacionar uma cultura com outra permite criticar,
respeitar e entender melhor tudo aquilo que compõe o que é a sociedade da
qual o indivíduo faz parte e o que compõe a sociedade do outro.
A perspectiva intercultural permite o caráter de inclusão de uma língua e
de uma cultura. Trazê-la para os exames de proficiência como o Celpe-Bras
pode possibilitar ao aprendiz um aproveitamento maior da oralidade no exame,
uma vez que ele estará correlacionando algo da cultura do outro com a sua e
com isso talvez se sinta mais confortável para falar, já que estará falando de algo
com que possui proximidade. Além disso, possibilitará um olhar crítico para
ambas as culturas exercendo assim cidadania. Por fim, é preciso ressaltar que
mais proveitoso que só trazer a bagagem de mundo do participante para a prova
pode ser relacioná-la à(s) cultura(s) brasileira(s) presente(s) direta ou
indiretamente nos temas
.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 99


Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas


Educacionais Anísio Teixeira. Certificado de proficiência em língua portuguesa para
estrangeiros: interação face a face. Brasília: MEC/INEP, 2012. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/elementos-provocadores-da-
parte-oral/2018. Acesso em 12 out. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. Certificado de proficiência em língua portuguesa para
estrangeiros: manual do examinando. Brasília: MEC/INEP, 2012. Disponível em:
http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/manuais/manual-do-
examinando-versao-eletronica-simplificada-2012-2. Acesso em 12 out. 2019.
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira. Certificado de proficiência em língua portuguesa para
estrangeiros: roteiro de interação face a face. Brasília: MEC/INEP, 2012. Disponível
em: http://www.ufrgs.br/acervocelpebras/arquivos/roteiro-de-interacao-
face-a-face/2018. Acesso em 12 out. 2019.
CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2009.
MATOS, Doris Cristina Vicente da Silva. Formação intercultural de
professores de espanhol e materiais didáticos, Revista Abehache, nº 6, p. 165-
185, 1º semestre de 2014.
MENDES, Edleise. Aprender a ser e a viver com o outro: materiais didáticos
interculturais para o ensino de português LE/L2. In: SCHEYERL, Denise;
SIQUEIRA, Sávio (Orgs.). Materiais didáticos para o ensino de línguas na
contemporaneidade: contestações e proposições. Salvador: EDUFBA, 2012, p.
355-378

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 100


CAPÍTULO 7

Expectativa x realidade: contribuições


do PIBID para a formação docente e
para a educação básica
Silmara Cavalcante Oliveira de Araujo1

Introdução

Considerando-se o senso comum, o professor efetiva-se como tal a partir


de sua prática docente, assim como qualquer outro profissional, que percebe
diferenças entre a teoria vista na universidade e a prática do dia-a-dia da sua
profissão. Por sua vez, professores em formação ou recém-formados realmente
sentem essas diferenças ao pisar em sala de aula pela primeira vez. De acordo
com Lira (2019):

um professor iniciante tem, em seu primeiro ano de profissão, o contato


com situações que fogem do programa curricular de sua formação, e isto
faz com que seja um momento de sobrevivência, sendo um período de
adaptar-se aos alunos, ao currículo, aos colegas de trabalho e à toda
comunidade escolar, além de lidar com todas as demais responsabilidades
inerentes à profissão. Esse início é marcado como um ponto importante
na trajetória profissional, pois é aí, através das tensões entre a aquisição de
conhecimento e a competência profissional, que o estudante se torna
professor, e se faz necessário de forma abrupta e repentina o surgimento
de sua identidade docente (LIRA, 2019, p. 24).

1Graduanda em Letras Português-Inglês pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Bolsista CAPES do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Email: [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 101


Além disso, o que esperar quando, ao longo da graduação, e mesmo após
os estágios obrigatórios, o professor em formação ainda não possui a confiança
e percepção de que está realmente preparado para a sala de aula? Seja por um
déficit do curso ou das disciplinas aqui citadas. Nesse sentido, o Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) surge como uma “luz
no fim do túnel”, uma esperança de que a prática docente se inicie, mesmo que
parcialmente e com certas limitações, para que sua formação esteja mais
completa ao fim da graduação e esse professor recém-formado sinta-se mais
seguro ao ministrar aulas.
Segundo Rabelo e Dias (2019, p. 5), o PIBID
tem se apresentado como uma iniciativa de valorização das licenciaturas e
da profissão docente, contribuindo para a permanência de alunos em
cursos de graduação e os incentivando para assumir a docência.

Ou seja, através do PIBID, os professores em formação não somente


sentem-se valorizados como também tem a oportunidade de iniciar sua carreira
docente e, assim, adquirir a experiência e confiança necessárias para o exercício
da profissão.
Além disso, com a criação da Residência Pedagógica e a mudança nos
editais do PIBID a partir de 2018, prevendo que, para participar do Programa,
o discente precisa estar regularmente matriculado na primeira metade do curso
de licenciatura “[...] para o qual concorre à vaga. Considera-se discente na
primeira metade do curso aquele que não tenha concluído mais de 60% da carga
horária regimental do curso” (BRASIL, 2018, p. 2), alunos no início da
graduação tem a oportunidade de participar do PIBID, ou seja, assim que
entram na universidade, esses alunos podem adquirir uma experiência prática
que mostrará se realmente desejam seguir nessa profissão ou não.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 102


Portanto, objetiva-se com este artigo, trazer reflexões acerca da
participação enquanto bolsista ID do PIBID Inglês 2018-2020 da Universidade
Federal de Sergipe (UFS), além de mencionar as contribuições à formação
enquanto docente de língua inglesa, bem como as contribuições do Programa à
escola participante. Desse modo, também pretende-se demonstrar a transição
entre as expectativas iniciais com o Programa e a realidade encontrada no
decorrer do projeto, bem como descrever um dos projetos que vem sendo
desenvolvido ao longo desse ano e compartilhar alguns resultados obtidos, visto
que a participação dos atuais bolsistas no PIBID já está em seu ciclo final.

O PIBID e as expectativas iniciais

Como mencionado anteriormente, o PIBID se configura como um


importante programa para a formação docente, uma vez que ajuda a
complementar a formação dos estudantes das licenciaturas. Ainda,
considerando sua importância dentro e fora do Brasil, Rabelo e Dias (2019)
declaram que:

podemos afirmar que o PIBID é uma política de formação de professores


importante não só em nível nacional, mas também em nível mundial. Essa
afirmação se sustenta na abrangência do PIBID, que possui subprojetos
relacionados às diversas áreas do conhecimento e atua em todos os níveis
do ensino, e também no grande número de trabalhos e simpósios sobre o
PIBID presentes no V Congreso Internacional sobre Profesorado Principiante e
Inserción Profesional a la Docencia realizado em Santo Domingo, na Republica
Dominicana em 2016 (RABELO; DIAS, 2019, p. 14).

Especificamente em relação ao PIBID Inglês 2018-2020 da UFS, este


conta com 2 coordenadoras de área, que são professoras do Departamento de
Letras Estrangeiras da universidade; 6 supervisores, que são os professores em
formação continuada das escolas de educação básica participantes; e 60

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 103


bolsistas, que são os discentes da universidade, professores em formação,
divididos entre 48 bolsistas ID e 12 voluntários, e distribuídos entre as seis
escolas participantes, sendo 8 bolsistas e 2 voluntários por escola.
Quanto a minha participação no Programa, inicialmente as expectativas
enquanto bolsista ID, era ter um primeiro contato com a sala de aula enquanto
docente, antes do estágio obrigatório, por julgar ser essencial esse contato
prévio. No entanto, a princípio, tal expectativa foi parcialmente frustrada, ao
descobrir que não trabalharia especificamente em sala de aula, mas
desenvolvendo projetos que auxiliassem no ensino-aprendizagem de inglês na
escola, sendo essa a orientação das coordenadoras de área, visto que estava
previsto em edital, como o quarto objetivo do PIBID:

IV. inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de


educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação
em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter
inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas
identificados no processo de ensino-aprendizagem (BRASIL, 2018, p. 1).

Posteriormente, ao ser alocada no Centro de Excelência Professor


Hamilton Alves Rocha (CEPHAR), localizado em São Cristóvão/SE, e após
conversa com a supervisora da escola, nos foi proposto, por ela, um projeto
que uniria as minhas expectativas iniciais ao objetivo do PIBID aqui
mencionado, através da criação de grupos de conversação para os alunos que
demonstrassem interesse, o Let’s Talk, descrito no próximo tópico.
Ainda, faz-se importante mencionar que, além das nossas idas semanais
aos colégios, onde permanecermos por cerca de 4 horas, também nos reunimos
quinzenalmente com as coordenadoras de área para trocarmos relatos sobre as
escolas e discutirmos textos que nos são enviados na semana anterior à reunião.
Por sua vez, tais leituras e discussões são outro aspecto de extrema relevância
para a nossa formação, visto que envolvem temas como ensino-aprendizagem

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 104


de língua estrangeira, metodologias de ensino, educação pública no Brasil,
documentos que regem a educação, formação docente, dentre outros.
Dessa forma, o PIBID vem contribuindo para a formação docente dos
envolvidos, seja a formação inicial dos bolsistas ou a formação continuada dos
supervisores das escolas, além de contribuir para o ensino-aprendizagem nas
escolas de educação básica, visto que, primeiramente, os bolsistas foram
inseridos nas escolas e orientados a observar não somente as aulas, mas todo o
ambiente escolar e seu cotidiano, a fim de vivenciar a escola e se indagar sobre
os projetos que poderiam desenvolver dentro daquele determinado contexto.
Em seguida, em reuniões entre bolsistas, supervisores e coordenadoras, foram
pensados os projetos a serem desenvolvidos, visando auxiliar e/ou
complementar o ensino-aprendizagem da língua inglesa.
Portanto, considerando todas essas vivências que o PIBID proporciona
aos envolvidos, reforçamos a sua importância, em especial, para a formação
docente. Lira (2019, p. 25) menciona que “para Neira e Pagnez (2015), o
professor é um sujeito que se constitui muito além do conhecimento acadêmico,
formado a partir das experiências vividas e dos contextos do qual faz parte e
que influenciam diretamente a sua docência” e, nesse sentido, afirmamos a
contribuição das experiências vividas através do PIBID. Rabelo e Dias (2019)
também relatam a importância dessas experiências para a formação do
professor:

Assim, a construção dos saberes docentes não ocorre apenas no âmbito


da formação acadêmica e na vida profissional, ocorrendo também no
âmbito da vida pessoal de cada professor, mas é a partir das experiências
vividas no exercício da docência que a aprendizagem do oficio se modela
de forma mais concreta (RABELO; DIAS, 2019, p. 5).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 105


O “Let’s Talk” no CEPHAR

O Let’s Talk é um dos dois2 projetos que são desenvolvidos no Centro


de Excelência Professor Hamilton Alves Rocha (CEPHAR) e surgiu a partir da
ideia da supervisora da escola em recriar um antigo projeto que desenvolveu
por pouco tempo com alguns alunos, mas que não teve continuidade. Neste
ponto, vale comentar que o CEPHAR é uma escola de ensino médio que
funciona na modalidade regular e em tempo integral, por isso, faz parte do
programa intitulado “Escola Educa Mais”3, que possui um currículo
diferenciado devido às disciplinas específicas do programa e o incentivo, por
exemplo, ao protagonismo dos alunos e à criação de clubes4 pelos próprios
alunos.
Assim, a ideia inicial da professora era criar um clube de inglês onde os
alunos pudessem praticar a habilidade oral da língua, através de discussões de
temas previamente fornecidos por ela. Contudo, o projeto não teve
continuidade devido à falta de um mediador nos encontros, visto que os alunos
não estavam muito comprometidos. Então, com a chegada do PIBID ao
colégio, em novembro de 2018, foi proposto que esse projeto fosse remodelado
e ampliado, com a criação de quatro turmas, com cerca de 10 a 12 alunos em

2A título de curiosidade, o segundo projeto desenvolvido na escola é o programa de rádio “Dobrando a língua”,
que surgiu a partir da ideia em aproveitar um recurso da própria escola, uma rádio interna, que era utilizada
somente para fins recreativos, com a inserção de músicas durante os intervalos da escola. Então, a ideia desse
programa é utilizar a rádio para um fim pedagógico, trazendo diversos aspectos da língua inglesa, como
curiosidades, traduções de música, dicas de estudo, entrevistas, dicas para o ENEM, dentre outros.
3 Para saber mais sobre esse projeto, indico a leitura de “Escola Educa Mais: Conceitos e premissas do modelo
de educação integral adotado pela SEED/SE”. Disponível em:
seed.se.gov.br/arquivos/material_consulta_eti.pdf. Acesso em 30 out. 2019.
4 De acordo com a antiga SEED/SE (2016, p. 30): “são clubes temáticos, criados e gerenciados pelos jovens.
[...] É um trabalho integrado de educadores e estudantes com o objetivo de gerar conhecimento articulado às
mudanças de atitudes e a uma prática educativa transformadora”. Já em relação ao protagonismo: “Os conceitos
de Protagonismo referem-se à formação de um sujeito ativo, capaz de tomar decisões e fazer escolhas
embasadas no conhecimento, na reflexão, na consideração de si próprio e do coletivo” (SEED/SE, 2016, p.
15).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 106


cada, cujos encontros aconteceriam uma vez por semana, durante 40 minutos,
no intervalo do almoço, visto que este é o único horário disponível, pois os
alunos também estudam no contraturno.
A partir de então, começou-se a divulgação do Let’s Talk no colégio e os
alunos interessados em participar foram separados por proficiência, entre as 4
turmas iniciais: duas básicas, para os alunos que precisavam adquirir vocabulário
e praticar a habilidade auditiva (listening); uma intermediária, para alunos que já
possuíam um bom listening mas não conseguiam se comunicar oralmente
(speaking); e uma avançada, para aqueles alunos que já se comunicavam no
idioma e precisavam praticar, tanto o listening quanto o speaking. Por isso, uma
das metodologias escolhidas para o Let’s Talk foi a abordagem comunicativa,
devido à necessidade em desenvolver o listening e speaking dos alunos, habilidades
que não conseguem ser trabalhadas durante as aulas regulares de inglês, assim
como na maioria das escolas.
Sobre a abordagem comunicativa no ensino de língua estrangeira, Schulz,
Custodio e Viapiana (2012) declaram que o foco principal é que os alunos
utilizem o idioma em “contextos comunicativos”, não somente aprendam a
estrutura da língua, ou seja, “a ideia é que o aprendiz seja encorajado a
comunicar intenções e que nem todos os ‘erros’ durante a produção da língua
sejam corrigidos, mas somente aqueles que impedem ou interferem na
comunicação” (SCHULZ; CUSTODIO; VIAPIANA, 2012, pp. 13-14).
Portanto, esse é um dos aspectos que regem os encontros no Let’s Talk,
encorajar os alunos a se comunicarem no idioma sem o medo excessivo de
“errar”.
Outro fator a ser considerado foi qual seria o papel dos bolsistas nos
encontros do Let’s Talk, sendo decidido que teríamos o papel de mediador dos
encontros, a partir do conceito de mediação trazido na teoria sociocultural, pois
de acordo com Lantolf (apud PAIVA, 2014, p. 131), “o aprendiz pode ser

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 107


mediado pelo especialista, pelos pares e por automediação”. No caso do Let’s
Talk, trabalhamos com essas três formas de mediação, considerando que os
bolsistas são os especialistas e contam com a ajuda da supervisora; os colegas
de classe são os pares e, na automediação, é considerado o protagonismo do
aluno previsto na própria escola. Ainda, a interação nos encontros é
incentivada, pois “Vygotsky (1978) defende que a aprendizagem é mediada e
que a interação com outras pessoas e com artefatos culturais influenciam e
geram mudanças na forma como as crianças [neste caso, alunos] agem e se
comportam” (PAIVA, 2014, p. 129).
Mas como funciona o Let’s Talk na prática? Em dezembro de 2018, a
proposta inicial para a turma avançada, em particular, onde sou a mediadora,
era a discussão de temas apresentados anteriormente aos alunos ou mesmo
proposto por eles, para que a habilidade oral (speaking) fosse mais desenvolvida
e praticada. Entretanto, após alguns encontros, ao perceber que os alunos
continuavam tímidos para expressar suas opiniões, principalmente pelo receio
em se comunicar no idioma, propusemos algumas dinâmicas e/ou games nos
encontros seguintes, que ajudaram a minimizar o receio dos alunos em falar.
No fim do ano letivo, aplicamos um questionário com a turma, perguntando
qual era a impressão deles sobre o projeto até então e o que eles esperavam no
semestre seguinte.
Sobre as respostas dos alunos dessa turma, todos relataram estar
gostando dos encontros pela possibilidade em praticar a habilidade oral do
idioma, interagir com os colegas utilizando em inglês e ainda ampliar o
vocabulário durante essa interação. Ainda, muitos mencionaram que os jogos e
dinâmicas foram importantes para minimizar o receio em falar e começarem a
sentir-se confortáveis para expressar suas opiniões utilizando o idioma.
Com a mudança de ano letivo e a entrada de novos alunos na turma, em
abril de 2019, propusemos novas atividades, dessa vez em relação ao listening.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 108


Então, começamos a basear as discussões em alguns áudios ou vídeos
mostrados aos alunos no início de cada encontro. Dessa forma, eles praticavam
o listening antes do momento do speaking e também ampliavam mais o
vocabulário. Porém, algumas dinâmicas ainda eram utilizadas em encontros
intercalados, pois os alunos continuavam interagindo bastante nesses
momentos.
Finalmente, ao perceber a dificuldade dos alunos em se expressar
utilizando determinados conteúdos gramaticais, como verbos na forma passada
e futura, começamos a preparar atividades nesse sentido, selecionando áudios,
vídeos e mesmo jogos que estimulassem o uso desses conteúdos gramaticais.
Para exemplificar, foi proposto um jogo de “verdade ou desafio”, através de
cards (figura 1), para praticar o Present Perfect, onde os alunos que escolhessem
“verdade”, teriam que responder à pergunta do card utilizando a estrutura do
Present Perfect, já os alunos que escolhessem “desafio”, eram desafiados, por
exemplo, a dizer algum trava-língua em inglês, rapidamente, três vezes
consecutivas.

Figura 1: Jogo “Truth or Dare” para praticar o Present Perfect

Fonte: Arquivo PIBID Inglês do CEPHAR

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 109


Resultados do PIBID Inglês

Nessa etapa final do PIBID Inglês 2018-2020 da UFS, em particular no


Centro de Excelência Professor Hamilton Alves Rocha, já é possível mensurar
alguns resultados do Programa à formação dos envolvidos e compartilhar os
resultados dos projetos desenvolvidos ao longo desse ano, em especial o Let’s
Talk.
Sobre este, é perceptível o desenvolvimento dos alunos participantes,
primeiramente porque, ao longo desse ano, foi necessário criar novas turmas
básicas, devido a demanda de alunos interessados no projeto, fazendo com que
muitos dos alunos que estavam nas turmas básicas, avançassem para a turma
intermediária, algo que somente foi possível devido ao desenvolvimento destes
ao longo dos encontros no Let’s Talk. Após alguns meses, um dos alunos que
iniciou na turma intermediária, conseguiu migrar para a turma avançada, ao
ampliar seu vocabulário e começar a comunicar-se utilizando o idioma.
Além dessa percepção tida pelos bolsistas envolvidos com o Let’s Talk e
pela supervisora, os próprios alunos participantes relatam ter se desenvolvido
através desses encontros, como é o caso do aluno J.A., estudante da turma
avançada, que se propôs a comentar sobre sua experiência com o projeto:

O Let’s Talk trouxe vários benefícios quanto a minha pronúncia no inglês,


pois eu tenho contato com o idioma por meio de séries, vídeos, músicas e
principalmente pela Internet. E esses meios acabam me forçando a
praticar apenas a minha escrita. Então esse projeto além de me ajudar na
minha pronúncia e fazer novas amizades, me fez ter novos conhecimentos
de outras pessoas que aprenderam de forma diferente de como eu aprendi
(J.A., 2019).5

5 Comentário cedido pelo estudante à autora, em conversa via aplicativo de comunicação.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 110


Quanto aos resultados da participação dos bolsistas nesse projeto do
Programa, bem como no PIBID de forma geral, acredito que foram bem
positivos, seja pela contribuição à nossa formação, com as leituras e discussões
durante as reuniões, ou mesmo pela oportunidade em atuarmos no Let’s Talk
(ou em projetos similares, no caso das demais escolas), uma vez que nenhum
dos mediadores das turmas tinha uma experiência prévia em lecionar e esse
projeto nos proporcionou isso, seja através da mediação das turmas ou, algumas
vezes, adotando a postura de teacher da turma, principalmente nos momentos
de retirar dúvidas ou sugerir soluções para determinados problemas na
aprendizagem dos alunos.
Sobre a evolução dos bolsistas ao longo desse projeto, a supervisora da
escola relatou, durante participação em um evento do PIBID UFS, que é bem
visível a nossa mudança, pois ao lembrar das nossas aulas iniciais, em especial a
primeira, em dezembro de 2018, recorda o quanto estávamos nervosos e
inseguros, mas que, ao longo do projeto, fomos ganhando confiança e
mediando os encontros do Let’s Talk com uma segurança bem maior. Além
disso, comentou também como a inserção do PIBID na escola foi importante.

Considerações finais

Assenso (2019, p. 19) relata que “espera-se do professor moderno, [...] o


domínio de diferentes habilidades e estratégias para promover de forma
eficiente o aprendizado dos estudantes por meio da interação destes com a
realidade que os cerca e com os conhecimentos teóricos que se deseja
construir”. Já Souza (2011, p. 283), complementa essa ideia ao afirmar que “nós
precisamos abrir os olhos para o fato de que estamos perante novas formas de
aprender e ensinar, perante uma forma diferente de se relacionar”. Diante disso,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 111


e a partir do que foi exposto ao longo deste artigo, é possível concordar com o
senso comum de que o professor “se faz em sala de aula”.
Claro que toda a formação acadêmica e o período durante a graduação
(e até mesmo a pós-graduação) é necessário para que o professor construa sua
“bagagem teórica”, para que conheça diversas teorias e tenha a possibilidade de
escolher dentre as que mais se identifica e/ou as que julga necessárias para a
aprendizagem de seus alunos. Mas também é perceptível que toda essa teoria é
somente um dos aspectos que formam um professor e que, este professor, ao
iniciar sua carreira, muitas vezes ainda se sente despreparado para estar em sala
de aula, pois são os anos de experiência docente que irão suprir a falta de
confiança inicial.
Contudo, entre esse momento de formação inicial e a inserção em sala
de aula na posição de professor, programas como o PIBID e a recente
Residência Pedagógica assumem um papel fundamental para os graduandos
participantes. Se por um lado complementam a parte teórica da formação,
trazendo discussões pertinentes à área e que muitas vezes não ocorrem durante
as disciplinas do curso, por outro lado, ainda permitem que esses alunos
vivenciem, na prática, o ambiente escolar e a sala de aula, além dessa vivência
ser tida de forma mais intensa que nos estágios obrigatórios, visto a duração de
tais programas, de 18 meses.
Por fim, como demonstrado no tópico anterior, o PIBID faz-se
importante tanto para os professores em formação inicial e continuada, quanto
para as escolas de educação básica e para seus alunos, pois os projetos são
pensados e desenvolvidos nas escolas através de uma observação inicial e em
conversa com os supervisores, visando auxiliar e/ou complementar o
ensino/aprendizagem da disciplina, neste caso, do inglês. Então, é de extrema
relevância a manutenção desses programas, visto os seus benefícios para a
educação pública brasileira.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 112


Referências
ASSENSSO, Rafael. O papel da escola básica na formação de futuros
docentes: reflexões de um professor supervisor. In: GALIAN, Cláudia
Valentina Assumpção; ZUFFI, Edna Maura; PIETRI, Emerson de (orgs.). A
formação de professores sob novos ângulos: o PIBID na Universidade de São Paulo
(2015-2018). São Paulo: FEUSP, 2019.

BRASIL; MEC; PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO DA


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE. Edital n° 22/2018: Processo
Seletivo de Licenciandos (as) para o Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação à Docência (PIBID). 2018. Disponível em:
prograd.ufs.br/uploads/page_attach/path/4644/Edital_22_2018_PIBID_UF
S_-_ID_-_RETIFICADO.pdf. Acesso em 30 out. 2019.

LIRA, Fausto Neto Reis de. O papel do PIBID na (re)criação da identidade


profissional do professor supervisor. In: GALIAN, Cláudia Valentina
Assumpção; ZUFFI, Edna Maura; PIETRI, Emerson de (orgs.). A formação de
professores sob novos ângulos: o PIBID na Universidade de São Paulo (2015-2018).
São Paulo: FEUSP, 2019.

PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. Aquisição de segunda língua. São


Paulo: Parábola Editorial, 2014.

RABELO, Leandro de Oliveira; DIAS, Valéria Silva. Programas de iniciação à


docência: situando o caso do PIBID no Brasil. In: GALIAN, Cláudia
Valentina Assumpção; ZUFFI, Edna Maura; PIETRI, Emerson de (orgs.). A
formação de professores sob novos ângulos: o PIBID na Universidade de São Paulo
(2015-2018). São Paulo: FEUSP, 2019.

SCHULZ, Lisiane Ott; CUSTODIO, Magda Mônica Cauduro; VIAPIANA,


Simone. Conceitos de língua, linguagem, ensino e aprendizagem e suas
repercussões na sala de aula de língua estrangeira. Pensar Línguas Estrangeiras –
PLE, ano 1, n. 1, Março/Julho 2012. Disponível em:
www.ucs.br/etc/revistas/index.php/ple/article/view/1434/1088. Acesso em
30 out. 2019.

SOUZA, Lynn Mario Trindade Menezes de. O professor de inglês e os


letramentos no século XXI: métodos ou ética? In: JORDÃO, Clarissa
Menezes; MARTINEZ, Juliana Zeggio; HALU, Regina Célia (orgs.). Formação
desformatada: práticas com professores de língua inglesa. Campinas, SP: Pontes
Editores, 2011.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 113


CAPÍTULO 8

Linguística Aplicada ou aplicação de


linguística? Análise das ementas do
curso de pós-graduação em LA da
UNEB, campus XVIII
Daniele Santos Rocha1
Emerson Tadeu Cotrim Assunção2
Juliana Alves dos Santos3

Caminhos Introdutórios

A Linguística Aplicada (LA) nasceu como uma disciplina de


ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras e hoje se estabelece como uma
disciplina que faz fronteiras com outras ciências. Tendo como objeto de estudo
a linguagem nas práticas sociais, a LA é, como concebe Moita Lopes (2006),
“um modo de criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem
tem um papel central” (MOITA LOPES, 2006, p. 14).
Trazendo essa discussão para o ensino, um currículo que evoca/tematiza
a Linguística Aplicada busca a valorização de conhecimento oriundos de classe

1 Graduanda em Letras Vernáculas, no Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XVIII –


Eunápolis. Pesquisadora do Gelat (Cnpq-UNEB). [email protected]
2 Professor Assistente do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XX – Brumado. Mestre

em Letras (UESB). Pesquisador do Gelat (Cnpq-UNEB). [email protected]


3 Professora Assistente do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XVIII – Eunápolis.

Mestre em Letras (UESB). Pesquisadora do Gelat (Cnpq-UNEB). [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 114


populares, na tentativa de não considerar válido apenas os conhecimentos
vindos da academia, descentralizar as relações de poder dos grandes centros
hierárquicos sobre fortes tendências tradicionais (KLEIMAN, 2013; MOITA
LOPES 2006, 2013; KUMARAVADIVELU, 2006; PENNYCOOK, 1998). Na
contramão do que defende a LA, a Linguística tradicional sempre voltou seus
olhares para a língua de per si, ou seja, a língua por ela mesma, e seus objetos de
investigação sempre colocaram a língua como objeto primeiro e as questões
sociais como coadjuvantes. Afora isso, ainda paira nas Universidades a
compreensão equivocada de Linguística Aplicada como aplicação de linguística,
como tem defendido os manuais que orientam as práticas docentes de
professores da área de linguagens.
Aqui no Brasil, as demandas curriculares fazem com que a LA seja
voltada em sua maior parte para o ensino/aprendizagem de línguas, esses
incluídos na maioria dos cursos de pós-graduação e graduação. A partir dessa
demanda voltada ao ensino de pós-graduação, a nossa inquietação foi a de
analisar as ementas do curso de Linguística Aplicada da Universidade do Estado
da Bahia – UNEB, Campus XVIII Eunápolis – BA, e tentarmos definir se essa
proposta atende a alguns dos atuais conceitos defendidos pela Linguística
Aplicada. Para tanto, pensamos na pesquisa qualitativa (FLICK, 2009) como sul
orientador de nossas apostas metodológicas e, para a análise, nos valemos de
teorizações sobre Análise documental (TÍLIO, 2006) e Análise de Conteúdo
(BARDIN, 2004).
Inicialmente serão apresentados alguns pressupostos da Linguística
Aplicada, falando brevemente da sua história. Em seguida, serão apresentadas
conceituações da Linguística Aplicada Crítica, após, serão textualizados os
caminhos metodológicos limitados para a investigação. Em seguida, exibiremos
alguns achados investigativos e finalizamos com algumas considerações sobre
eles.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 115


Fundamentação teórica

São inúmeros os trabalhos que tratam da diferenciação da Linguística


com a Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 1996; CELANI, 1992). Essa
necessidade de delimitação teórica se deve, entre outros motivos, pelo fato de
as duas terem a língua como objeto de estudo, porém com concepções
diferentes sobre ela. É inegável, entretanto, que a LA tem se distanciado da sua
disciplina-mãe e se tornado cada vez mais consolidada em sua área de estudo.
A LA surgiu na década de 1940, com o intuito de “criar” métodos e
técnicas de ensino de língua estrangeira que fossem rápidos e eficientes.
Naquele momento, buscavam intelectuais que entendessem da aplicação de
uma abordagem científica da língua (MENEZES; SILVA; GOMES, 2009). E
assim foram os primeiros trabalhos da área: uma tentativa de discutir como os
modelos teóricos da linguística poderiam auxiliar na aprendizagem de línguas,
em especial estrangeiras. Um exemplo é o primeiro artigo de Moita Lopes
publicado em 1979: “Como o modelo gerativo-transformacional pode auxiliar
na aprendizagem de línguas” (MOITA LOPES, 2009).
Em 1956 foi fundada a Escola de Linguística Aplicada de Edinburgh,
iniciando um período de significativa expansão dos estudos da área. No Brasil,
os marcos históricos foram a criação na PUC-SP do Programa de Linguística
Aplicada ao Ensino de Línguas em 1970; o Programa de Pós-Graduação em
Linguística Aplicada na Universidade Estadual de Campinas e a fundação da
Associação de Linguística Aplicada do Brasil (MENEZES; SILVA; GOMES,
2009).
Durante todo esse percurso, a delimitação do objeto de estudo da
Linguística e da Linguística Aplicada teve seus momentos de desestabilização e
concordâncias. Um dos motivos, como nos lembra Passos (2015, p. 39), pode

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 116


ser do próprio nome da área: “Batizar essa área de estudo como Linguística
Aplicada precisa ser visto como uma opção infeliz, posto que essa escolha
lexical pode conduzir um leitor não especializado a acionar uma dada memória
discursiva que o leve a interpretação errônea de que a LA se restringe a
aplicação”. Posto isso, são muitos os estudiosos que advogam por uma
independência da área, da necessidade de ser legitimada como área de
investigação autônoma (MOITA LOPES, 1996; ALMEIDA FILHO, 2007;
KLEIMAN, 1998; RAJAGOPALAN, 2006).
A visão mais simplificada da LA é entendê-la como estudos da linguagem
em contextos sociais diversificados. Moita Lopes (2009) nos lembra que uma
das preocupações cruciais dessa área investigativa é com o sujeito heterogêneo,
detentor de múltiplas identidades. Identidades essas que implicam em
desdobramentos epistemológicos cruciais.
Assim, entendemos que essa concepção deve perpassar pela proposta
dos cursos de formação continuada em LA. Dentre os diversos motivos, temos:
i). o fato de ser um campo recente, e, por isso, pressupomos que a formação
inicial do público que esses cursos atendem possa ter sido insuficiente para o
entendimento da importância da LA no ensino de línguas; ii) por constatar na
experiência local do Campus XVIII uma incoerência na oferta de algumas
disciplinas constitutivas da linguística no curso de Pós graduação em LA e iii)
por perceber que os candidatos que chegam a esse mesmo curso ainda partem
da memória discursiva de aplicação de linguística na construção de seus
trabalhos finais e durante o desenvolvimento de algumas disciplinas.
A Linguística Aplicada de tempos pós-modernos é interdisciplinar e
transgressiva (PENNYCOOK, 2006) e, por conta do reconhecimento dos
textos como discursos, tornou-se uma prática social e política. Os linguistas
percebem que “ao propor suas análises estão tentando influenciar a forma como
as coisas se apresentam, isto é, intervir na realidade que aí está”

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 117


(RAJAGOPALAN, 2006). Em outras palavras, o uso da linguagem de maneira
descontextualizada e descorporificada passou a ser duramente criticado, pois
trata-se de um tratamento ao sistema sob paradigma da pesquisa positivista e
prescritivo (KUMARAVADIVELU, 2006).
Rajagopalan (2003) vai mais além ao afirmar que fazer LA atualmente é
adotar posturas críticas em relação às teorias que advém da linguística, por
exemplo. Para ele, é urgente e necessária a pedagogia crítica para os nossos
tempos, pois o pedagogo crítico é um ativista, um militante que por menor e
mais localizada que seja sua ação pode “desencadear mudanças sociais de
grande envergadura e consequência” (RAJAGOPALAN, 2003, p. 106).
Partindo de enfáticas considerações sobre a pedagogia crítica, o autor defende
uma nova vertente para a LA: a Linguística Aplicada Crítica (LAC). O fio
condutor da LAC é repensar a teoria/prática. O pesquisador argumenta que é
isso que a torna com uma postura genuinamente crítica. Nas próprias palavras
do autor, “a linguística aplicada do futuro não só englobará determinadas
funções que eram monopólio da disciplina mãe, como ocupará o terreno
perdido por ela, sobretudo nos anseios populares do dia a dia”.
(RAJAGOPALAN, 2003, p. 80).
Ou seja, o primeiro compromisso da LAC é com a comunidade, da qual
a sala de aula é uma pequena amostra. O professor, nesse sentido, se atreve a
criar um espaço na sala que se discuta a vida fora dela, relacionando a vida real
com o conhecimento escolar.
Defendemos que os primeiros passos para mudanças das posturas
pedagógicas sejam o estudo, a pesquisa, a reflexão e o contato com as novas
discussões na área de atuação, que são proporcionadas em cursos de pós-
graduação, entendidos como formação continuada. Corroboramos com Garcia
(1996) que dispõe que formação de professores é uma proposta ao longo de
toda a carreira docente, desde a formação inicial ao desenvolvimento

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 118


profissional, “sendo uma aprendizagem contínua, cumulativa, em que se troca
uma variedade de formatos de aprendizagem” (GARCIA, 1996, p. 38). É a
partir da formação continuada que se pode vislumbrar mudanças nas práticas
sociais de ensino, é ela que reativa transformações nos sujeitos e que facilita os
processos de ensino e aprendizagens dos alunos.
Sendo assim, o reconhecimento da linguagem enquanto discurso, a
intervenção social e política e a interferência na realidade estão, como falado,
inteiramente atravessadas pelo momento histórico-social contemporâneo, que
perpassa também a constituição identitária dos estudiosos da linguagem, mais
especificamente do linguista aplicado. Implica em dizer que na medida que a
LA se ocupa cada vez mais com questões políticas e sociais vinculadas a
diferentes contextos, propor e questionar uma formação continuada nessa área
traz significativas contribuições para a educação. Desta feita, olhar para nós
mesmos – formadores de professores e professores em formação continuada –
é desafiar-se a compreender como fatores objetivos (práticas discursivas,
posturas, práticas pedagógicas, entre outros) e subjetivos (projeto do curso,
matriz curricular) concorrem para moldar os processos de formação de
professores.

Percursos metodológicos

Flick (2009) destaca que neste cenário de pós modernidade é importante


ressaltar que não há mais espaços para narrativas prontas, entendendo que as
mudanças na sociedade sofrem rápidas alterações, o que torna os métodos
tradicionais dedutivos não mais precisos, visto que a percepção sob o objeto é
diferente.
Pelo fato do objetivo dessa investigação se tratar de análise de currículo,
um dos métodos utilizados é a análise documental, que deve ser considerada

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 119


quando o conteúdo do objeto de estudo é elemento fundamental para a
pesquisa. Para Tílio (2006), os documentos representam uma fonte natural de
informação que são fornecidas em qualquer contexto.
Além da análise documental, foi utilizada também a análise de conteúdo,
nos pressupostos de Bardin (2004). Essa análise conduz descrições sistemáticas,
qualitativas ou quantitativas e ajuda a reinterpretar as mensagens para atingir
uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura
comum.
Para esse recorte da pesquisa4 analisaremos as ementas das disciplinas
propostas no curso de especialização em Linguística Aplicada ao Ensino de
Língua Portuguesa, ofertadas no Campus XVIII da Universidade do Estado da
Bahia – UNEB. Desta feita, é o texto de autores, inserido no contexto da pós-
modernidade, o objeto de estudo desta investigação. Para isso, a pergunta
suleadora da análise será:
- As ementas das disciplinas ofertadas são coerentes com uma visão de
LA que é entendida como área de pesquisa mestiça, ideológica que auxilia na
problematização das imbricações de poder, diferença e desigualdade?

Algumas análises de dados

A proposta desse curso de especialização em específico vem de uma


necessidade de toda a região intitulada Costa do Descobrimento (Bahia), além

4 Essa pesquisa é parte do projeto de investigação “Linguística Aplicada em cursos de especialização: uma
análise documental” submetido ao edital de iniciação científica 013/2017 da UNEB. Como possibilitado no
edital, foram submetidos dois subprojetos, que, devido às limitações de espaço, alguns dos achados de um deles
serão apresentados nesse texto.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 120


das demandas do Plano Nacional de Educação – PNE – que tem como meta a
ampliação de oferta nos programas de formação em nível de pós-graduação
(BRASIL, 2014). Nesse sentido, destaca-se que a oportunidade gerada com o
desenvolvimento de um curso Lato sensu possibilita atualização de professores
e gestores e fortalece a produção científica da área. Além do mais, o Campus
oferta a graduação em Letras vernáculas há 18 anos tendo, assim, impacto na
educação de toda a região extremo sul da Bahia.
O projeto do curso apresenta a oferta de disciplinas organizada em três
eixos suleadores que envolvem a linguagem. Os eixos são intitulados:
“Linguagem, comunicação e ensino”; “Leitura, produção de texto e ensino” e
“Ensino e Pesquisa” (UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2013),
as disciplinas de cada eixo podem ser visualizadas na tabela abaixo:

Quadro 1: Organização das disciplinas por eixo

EIXOS DISCIPLINAS

Teorias da Linguagem: da língua ao discurso


Linguagem, Aquisição da Linguagem: perspectivas
Comunicação e Morfossintaxe Aplicada ao Ensino de Português
Ensino Fonética e Fonologia do Português: modos de operacionalização
Texto e Variação Linguística
Leitura, Leitura e Processamento Textual
Produção de Gêneros Textuais e Ensino de Língua Materna
Textos
e Ensino Práticas Culturais: produção, revisão e avaliação de textos
Material Didático: análise e produção
Ensino e Pesquisa Metodologia da Pesquisa Científica
Trabalho de Conclusão de Curso
Fonte: Universidade do Estado da Bahia - UNEB (2013)

A primeira disciplina “Teorias da linguagem: da língua ao discurso”


apresenta como ementa:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 121


Estudo das relações entre os elementos de descrição da estrutura
linguística e o uso processual da linguagem. Princípios e conceitos básicos
que determinaram a constituição da Linguística como ciência e da língua
como objeto passível de investigação em várias áreas do conhecimento.
Fundamentos teóricos e metodológicos interdisciplinares nos estudos
linguísticos. Linguagem como lugar de construção da
subjetividade/alteridade do homem e de sua historicidade
(UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2013, p. 18).

É possível verificar no texto da ementa o uso de alguns termos que são


essencialmente da concepção da área da Linguística, como “elementos de
descrição da estrutura” e “uso processual da linguagem”. Dessa forma, observa-
se que o primeiro objetivo da disciplina é fazer um estudo da descrição da
estrutura da língua, comparando com seu uso, ou seja, comparar estrutura com
uso linguístico. Esse primeiro objetivo está em acordo com as primeiras
concepções de Linguística Aplicada, de relacionar teorias linguísticas com a
prática linguística. O próprio Moita Lopes, conforme aqui apresentado, teve
como um de seus primeiros trabalhos na área essa concepção de buscar nas
teorias gerativas auxílio para a aprendizagem de línguas (MOITA LOPES,
2009). Contudo, trata-se de um trabalho publicado no ano de 1979, primórdios
dos estudos em LA no Brasil, sendo anos mais tarde refeita por completo essa
concepção de que a LA é a relação direta entre teoria – prática linguística.
Ressalta-se, entretanto, na mesma ementa, a presença dos estudos
interdisciplinares e a preocupação de apresentar a linguagem como lugar da
subjetividade/alteridade. Esse trecho da disciplina trata-se da LA, e é salutar
referendar que é extremamente importante termos propostas interdisciplinares,
uma vez que o contexto de pós modernidade é um contexto de multiplicidades
que exige diálogo, e os estudos culturais tem indicado que é na linguagem que
se constroem as diferenças. Assim, a disciplina/campo LA tem sido vista como
uma Indisciplina (MOITA LOPES, 2006) uma vez que para dar conta da
complexidade dos fatos envolvidos com a linguagem em sala de aula, passou-
se a argumentar na direção de um arcabouço teórico interdisciplinar.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 122


Seguindo a apresentação das disciplinas do primeiro eixo, a próxima
ementa a ser analisada é a do componente “Aquisição da Linguagem”:

Estudo das diferentes abordagens que fundamentam a aquisição e o


desenvolvimento dos processos de expressão verbal e não verbal bem
como dos fatores não linguísticos que influenciam as formas de interagir
com o outro. Distúrbios da linguagem e suas implicações na aprendizagem
da escrita. Pesquisas empíricas em aquisição da linguagem e contribuições
no processo de ensino e aprendizagem de língua materna.
(UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2013, p. 20)

Destacamos nessa ementa o item que versa sobre “os fatores não
linguísticos que influenciam as formas de interagir com o outro”, que
corresponde a LA, tendo em vista que há um cuidado em considerar os fatores
contextuais de entendimento de todo o processo. Contudo, verifica-se um
privilégio da norma escrita, excluindo as variações que fogem à norma, não
respeitando as múltiplas identidades linguísticas que convivem em um mesmo
espaço.
A disciplina seguinte traz já em seu nome uma incoerência com os atuais
e relevantes pressupostos da LA. A ementa de Morfossintaxe Aplicada à Língua
Portuguesa visa ao

Estudo da organização morfossintática da língua portuguesa. Análise das


relações entre os elementos constituintes do léxico e da estrutura frasal,
considerando gramáticas diversas e correlacionando seus conteúdos com
os trabalhados no ensino médio. Aspectos morfossintáticos como objetos
de investigação científica. Sintaxe e discurso. (UNIVERSIDADE DO
ESTADO DA BAHIA, 2013, p. 22)

A morfossintaxe é estrutura da língua, é regida por normas consideradas


únicas e, por vezes, chamadas de “padrão”. Essa é a concepção de língua da
ciência linguística, que não considera as variantes das múltiplas identidades que
compõem o sujeito. Além disso, há na proposta do componente a correlação
de diversas gramáticas com “conteúdos trabalhados no ensino médio”

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 123


(UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA, 2013, p. 22), explicitando
assim, a preocupação em relacionar teorias linguísticas com práticas de ensino,
colocando a LA como metodologia de ensino de língua portuguesa. Souza
(2018) vai além ao sugerir que caso essa disciplina seja reescrita nos
pressupostos da LA, deveria existir o estudo de Língua Portuguesa
considerando as vozes periféricas, abarcando visões que não mais partam do
global, mas sim do local onde se dão as relações.

Considerações Finais

Após a análise do ementário do projeto do curso de Especialização (que


aqui nesse artigo apresentamos apenas uma parte das análises) foi possível
verificar que o currículo ainda está sob amarras da linguística tradicional e que
se mostra uma extensão da matriz curricular do curso de Letras da UNEB
Campus XVIII. Além disso, percebemos que a sua constituição é pautada por
estruturas enraizadas e por barreiras epistemológicas, as quais interferem na
formação identitária profissional (questão essa não abordada nas ementas). Na
contramão do que prega o referido curso, se espera de um especialista em LA
um sujeito analítico, capaz de intervir no mundo real, se fazendo “necessário
reteorizar o sujeito social em sua heterogeneidade, fluidez e mutações, atrelando
a esse processo os imbricamentos de poder e desigualdade inerentes” (MOITA
LOPES, 2006, p. 21).
Além disso, percebemos uma subutilização da Linguística Aplicada
sendo descrita como aplicação de teorias linguísticas e como solução para
resolver problemas de ensino, quando a LA é uma ciência social, que tem como
foco a resolução de problemas da linguagem em diversos contextos sociais.
Ainda, podemos perceber palavras e termos que são marcados pela linguística
tradicional, tais como, “sistema”, “estruturas”, “operacionalização”,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 124


“mecanismos”, contrapondo-se a LA que abriga tudo que está fora dos sistemas
e entende que os sujeitos pós-modernos são imprevisíveis não cabendo mais
nos modelos prescritivos.
As análises completas do projeto do curso e das ementas compõem
nossas contribuições para melhoria do currículo da pós-graduação em
Linguística Aplicada da Universidade do Estado da Bahia – Campus XVIII.
Como constatou Souza (2018, p. 75), após minuciosa análise, a LA não foi
retratada em suas especificidades, ou seja, como “uma área de pesquisa mestiça,
ideológica que ampara as problematizações entrelaçadas ao poder, a diferença
e a desigualdade”. Em síntese, espera-se que o projeto seja repensado como um
todo, compreendendo que, para além da teoria, a LA considera as vozes
daqueles que vivem as práticas sociais, atualmente tomando uma postura crítica
e ética, deixando de lado os preconceitos e buscando compreender as
manifestações naturais que surgem por meio da linguagem. (MOITA LOPES,
2006).

Referências

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https://portal.uneb.br/conselhos/atos-administrativos-consu/
Acesso em: 02 de fev. 2019.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 127


CAPÍTULO 9

O desenvolvimento da criticidade
através da música em uma turma do
6° ano do ensino fundamental II
Janaína Maria Silva Santos1
Naftali Tuany Souza Roberto2

Introdução

O mundo está cada vez mais globalizado, pois a sociedade está em um


momento de grandes avanços, principalmente tecnológicos. Hoje, por exemplo,
ações como enviar uma mensagem de texto ou de voz para pessoas muito
distantes que conseguem lê-las ou ouvi-las quase que instantaneamente é algo
natural. Se antes havia um grande e quase que exclusivo domínio da cultura
escrita nas práticas sociais valorizadas, hoje nos deparamos com vídeos, áudios,
palestras, que circulam e permeiam nossos contextos de mundo e que fazem
uso da linguagem oral. Estamos conectados por essas novas tecnologias, que
acabam por influenciar nossos comportamentos. As instituições educacionais
têm sido, portanto, fortemente marcadas por estas novas formas de ser e agir
no mundo contemporâneo. Elas estão aderindo, em sala de aula, a novas

1 Licencianda em Letras Português pelo Instituto Federal de Alagoas- IFAL/ Email:


[email protected]
2²Licencianda em Letras Português pelo Instituto Federal de Alagoas- IFAL/ Email:
[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 128


metodologias durante o processo de ensino-aprendizagem, pois tal avanço
também tem alcançado os nossos alunos.
Durante o nosso estágio curricular II e na participação como bolsistas do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) observamos
na sala de aula que muitos adolescentes e jovens durante o ensino fundamental
e médio apresentam timidez em expressar-se, o que ocasiona poucas
participações nas aulas e problemas em falar em público. Os Parâmetros
curriculares Nacionais destacam que “cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a
linguagem oral nas diversas situações comunicativas, especialmente nas mais
formais: planejamento e realização de entrevistas, debates, seminários, diálogos
com autoridades, dramatizações, etc” (BRASIL, 1997, p.27).
Embora os PCN’s embasem essa prática, ainda há professores que estão
presos ao modelo tradicional de ensino. Geralmente estes levam para aula
textos com questões muito específicas para serem respondidas. A oralidade,
assim como a escrita, é fundamental no processo de ensino-aprendizagem.
Ambas têm a mesma importância.

No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se


almeja não é levar os alunos a falar certo, mas permitir-lhes a escolha da
forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do
contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a
variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber
coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo; saber
que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção
enunciativa – dado o contexto e os interlocutores a quem o texto se dirige.
A questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de
utilização adequada da linguagem (BRASIL, 1998, p.31).

Durante o processo de ensino- aprendizagem o que se almeja nos


discentes é a adequação tanto da fala como da escrita às diferentes situações
sociais que eles vivenciam, ou seja, se as suas intenções enunciativas em um
dado contexto foram (ou não) pertinentes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 129


A presente pesquisa baseou-se nos seguintes questionamentos: Como o
professor de Língua Portuguesa trabalha a oralidade em sala de aula no 6° ano
do ensino Fundamental II? Como está o desenvolvimento dos alunos com a
modalidade oral? Quais recursos disponíveis que podem ser trabalhados em sala
de aula para o desenvolvimento da oralidade?
Diante das indagações levantadas foi necessário criar métodos e
estratégias para obtermos respostas. Assim, foram feitas observações na sala de
aula do 6° ano do ensino fundamental II, onde verificamos a preferência dos
alunos pela música. Este foi o recurso chave para o desenvolvimento da nossa
pesquisa.
Deste modo, o trabalho objetiva compreender como a música pode
contribuir no desenvolvimento da criticidade na modalidade oral no ensino
fundamental II, especificamente nas aulas de Língua Portuguesa do 6° ano, pois
muitos alunos chegam ao ensino médio ou até mesmo ao ensino superior com
grandes dificuldades para se expor oralmente. Daí a necessidade do incentivo
nesta série.
A seguir evidenciaremos os pressupostos teóricos que nos embasaram
nesse estudo.

O desenvolvimento da criticidade

O aluno aprende a falar muito antes de seu ingresso na escola, deste


modo, a Instituição escolar tem o papel de contribuir para que os discentes
façam uso da linguagem oral para se posicionar criticamente na sociedade e os
tornar capazes de utilizar os usos e formas da língua oral para que o discente
consiga se desenvolver socialmente. Embora muitas escolas ainda priorizem
mais o ensino da escrita do que da oralidade é importante frisar que elas estão
inter-relacionadas e cada uma tem uma finalidade específica.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 130


Entendendo que o ensino de línguas deva preparar o aluno para ler o
mundo criticamente em suas diferentes formas e linguagens,
argumentamos em favor do compromisso da educação em preparar
cidadãos por meio da construção de letramentos, aqui entendidos como
práticas sociais plurais e situadas, em que oralidade e escrita são
combinadas diferentemente e cujos efeitos resultam dos tipos e finalidades
específicas dessas práticas (BUZATO, 2007 et al apud ROCHA, 2008, p
439).

Alencar e Fleith (2008) destacam que “a instituição educacional não pode


se restringir à transmissão apenas dos conteúdos, técnicas e valores.” Tais
estratégias não garantem que o aluno consiga lidar com as diversas situações
sociais eminentes.
Paulo Freire em seus trabalhos propunha uma educação que permitisse
aos alunos o desenvolvimento da criticidade, e de uma visão conscientizada
sobre o desfavorecimento e opressão da sociedade no ensino. O “processo de
libertação em Freire é o que caracteriza o objetivo principal da educação como
tarefa de humanização dos sujeitos” (LEITÃO, 2015, p.31).

Sua tônica fundamentalmente reside em matar nos educandos a


curiosidade, o espírito investigador, a criatividade", escreveu o educador.
Ele dizia que, enquanto a escola conservadora procura acomodar os
alunos ao mundo existente, a educação que defendia tinha a intenção de
inquietá-los (FREIRE, 1968 apud FERRARI, 2008, p.2).

Este processo se dá numa relação conjunta, envolve diversas áreas, e se


dá de forma reflexiva e um tanto trabalhosa, pois tanto o aluno como o
professor sairá de sua zona de conforto.
A criticidade deve fazer parte no processo de ensino e aprendizagem do
aluno com o objetivo de desenvolver nele a autonomia, capacidade de
argumentar em diversas situações sociais. É permitir que ele elabore o seu
pensamento, a imaginação e construa suas próprias ideias, oferecendo a
liberdade de concordar ou não sobre o fato que está lidando. Neste sentido, nos
propomos a trabalhar com a criticidade na oralidade se utilizando da música

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 131


como recurso. A seguir segue o nosso planejamento e ações da pesquisa e os
resultados obtidos com ele.

O desenvolvimento da criticidade através da música:


relatos de experiência na turma do 6° ano do ensino
fundamental II

É durante a infância que se inicia o desenvolvimento da oralidade. Ela


faz parte da vivência dos seres humanos, “como afirma Vigotsky (1998) apud
Paula (2010) a linguagem é um meio de interação social” (p. 06). Por ela possuir
uma dinâmica, este trabalho foi desenvolvido considerando esta perspectiva,
pois é por meio da oralidade que expressamos a criticidade sobre fatos e coisas.
Mas, destacamos que nem sempre as pessoas conseguem expressá-la, porque
nem todos são críticos.
Diante de tal situação fizemos uma pesquisa teórica e prática sobre as
possibilidades e estratégias para que os alunos, principalmente na turma do 6°
ano do ensino fundamental II, fossem estimulados a desenvolver a criticidade.
Inicialmente o nosso trabalho se deu por meio de observações na turma do 6°
ano do ensino fundamental. Foi notório que a professora ficava muito tempo
de sua aula chamando a atenção de alguns alunos que conversavam bastante
com seus colegas.
No período do estágio, mesmo local onde realizamos a presente
pesquisa, tivemos o privilégio de participar do “Projeto Funk na escola”, onde
notamos que a turma tinha bastante envolvimento com a música e
demonstraram muita criatividade para a criação de paródias. Porém, mesmo
demonstrando participação nesta atividade, os discentes apresentaram
problemas em se expressar oralmente.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 132


Deste modo, obtivemos três dados importantes: 1- Os alunos
apresentaram dificuldades com a oralidade; 2- Tinham uma boa relação com a
música; 3- Demonstraram muita criatividade. Diante disto, juntamente com a
professora, propusemos fazer uma junção daquilo que eles tinham afinidade
para contribuir com o processo de ensino aprendizagem. Sendo assim, foi
elaborado um planejamento de atividades para entrarmos em ação.
Inicialmente foi feita uma entrevista com a professora da turma. Seguem
os nossos questionamentos e sua resposta:

1- De que forma pode ser trabalhada a oralidade em sala de aula?


R= A oralidade pode ser trabalhada de forma contínua buscando a participação e
envolvimento dos alunos no decorrer dos assuntos.
2- Como a oralidade pode contribuir para o desenvolvimento dos
discentes enquanto seres sociais?
R= No conhecimento adquirido no dia a dia e sua forma de expressar suas opiniões e
sobressair diante de algum fato ou acontecimento.
3- Qual a percepção dos alunos sobre atividades relacionadas à
oralidade e escrita? Eles privilegiam mais uma modalidade?
R= Preferem aulas escritas, pois o discurso não é algo aceito no momento, ainda está
em andamento.
4- Você percebe alguma diferença com o trabalho da oralidade ou
da escrita? Como?
R= No trabalho com a oralidade. Os alunos apesar de apresentarem muita dificuldade
é importante o professor buscar formas de se trabalhar. As conversas retratam as
dificuldades e aprimoramento no decorrer das aulas.
5- Sente alguma dificuldade em trabalhar com a oralidade?
R= Bastante. Os alunos não param para nos ouvir, sendo assim buscamos alternativas
como forma de buscar sua atenção. O microfone e senso de humor têm nos ajudado
muito.
6- Você percebe um empenho maior dos alunos com a oralidade ou
a escrita?
R= Na oralidade busco sempre ouvi-los, pois a dificuldade na escrita ainda é maior
que na oral. E apesar da dificuldade na forma oral detectamos se o aluno observou algo
ou não.

O questionário com a docente nos permitiu verificar que o trabalho com


a oralidade ainda é um desafio, pois os alunos não estão sendo estimulados a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 133


lidarem com a modalidade oral. Muitos discentes sentem dificuldades em
construir uma opinião própria sobre algum conteúdo, por mais conhecimento
que ele tenha sobre o tema. No trabalho da docente a oralidade não estava
direcionada a criticidade dos conteúdos trabalhados em sala, mas se destinava a
compreensão verbal do que queriam expressar através da escrita, ou seja, ela
trabalhava com o oral, porque os alunos não sabiam se expressar pela escrita.
Os PCNs nos orientam que:

a exposição oral ocorre tradicionalmente a partir da quinta série, por meio


das chamadas apresentações de trabalho, cuja finalidade é a exposição de
temas estudados. Em geral o procedimento de expor oralmente em
público não costuma ser ensinado. Possivelmente por se imaginar que a
boa exposição oral decorra de outros procedimentos já dominados (como
falar e estudar). No entanto, o texto expositivo — tanto oral como escrito
— é um dos que maiores dificuldades apresenta, tanto ao produtor como
ao destinatário. Assim, é importante que as situações de exposição oral
frequentem os projetos de estudo e sejam ensinadas desde as séries iniciais,
intensificando-se posteriormente (BRASIL, 1998, p.39).

Deste modo, a escola precisa elaborar um planejamento de ação


pedagógica que garanta aos discentes o acesso e uso das variadas formas da
língua oral.
A escolha de se trabalhar com a música se deu por ser um recurso de
baixo custo, fácil acesso e que geralmente as pessoas sentem prazer ao entrar
em contato. Ela sempre esteve muito presente na vida dos brasileiros.
Posteriormente tivemos contato com a turma do 6° ano e no primeiro
momento foi realizado um questionário. O objetivo era de se fazer um
levantamento sobre o contato dos alunos com a música, a fim de sondar quais
seriam as suas preferências e se realmente, diariamente, tinham contato com ela
independente do ritmo. Dentre os ritmos específicos de preferência deles, bem
como os estilos que acreditavam que a sociedade tinha algum preconceito, eles
listaram o rap, hip hop, rock e funk. Esses dados nos mostram que o funk

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 134


realmente faz parte do cotidiano dos alunos e que ele pode ser um dos recursos
favoráveis ao desenvolvimento de atividades em sala de aula.
Em continuidade com as atividades na sala de aula foram trabalhadas as
músicas “Que tiro foi esse”, da cantora Jojô Todinho, “Olha a explosão” de Mc
Kevinho, “País do Futebol” de Mc Guimê e o vídeo “Político Ostentação”,
tendo como objetivo da atividade realizar uma análise crítica sobre o quê os
funks e vídeo tratava. Todos eles foram escolhidos por nós pesquisadoras, tendo
como critério de escolha quais eram mais recentes e quais temas estavam em
alta na sociedade. O primeiro momento foi de escuta para que eles se
familiarizassem com o ritmo e se atentassem para as letras e imagens
produzidas, e em seguida os alunos deveriam construir uma opinião para
chegarem a criticidade sobre o que viram e ouviram.
Nos dois primeiros encontros, os alunos demonstraram pouca
participação na análise dos funks supracitados, houve entendimento da
atividade, no entanto, se apresentaram retraídos. Apesar da pouca participação,
conseguiram colocar que os versos,

“(...) Vai, samba


Na cara da inimiga
Vai samba
Desfila com as amigas
Quer causar, a gente causa
Quer sambar, a gente pisa!”- grifos da música “Que tiro foi esse”

“Que tiro foi esse quer dizer que a mulher tá gostosa e que causa”- fala de um aluno.
Ah professora! Quer dizer que a mulher tá bonita- fala de um aluno.
Que tiro foi esse quer dizer que a mulher tá chamando a atenção- fala de um aluno.

Um dos alunos colocou que a música “Que tiro foi Esse” traz uma
apologia ao crime e a violência e que as pessoas estavam brincando com a
situação social brasileira, colocando que as balas perdidas nas comunidades
estavam sendo encaradas como algo natural.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 135


Não gosto dessa música, porque em meio a tanta violência as pessoas ficam fingindo
que estão sendo baleadas- fala do aluno.

A análise deste funk permitiu que o aluno supracitado pudesse ter outra
visão da música e compreender qual a verdadeira intenção da cantora, que é a
de expressar uma narrativa sobre mulher poderosa, dona de si e que gosta de
chamar atenção por onde passa.
Questionamos ainda sobre algumas expressões utilizadas no funk “Olha
a explosão”, as questões levantadas foram: 1- O que o cantor quer dizer ao falar
que a novinha é terrorista? 2- Como a mulher está sendo vista? 3- Ela parece
ser jovem ou mais velha? 4- O que vocês acham dessa ideia de mulher que o
Mc passa? Se essa música fosse fundo musical de um comercial, que produto
seria vendido?
A novinha terrorista é a menina que causa- fala de um aluno
É terrorista, porque gosta de chamar a atenção dos meninos- fala de um aluno.
A mulher tá sendo vista como uma qualquer, sem valor- fala de um aluno
A mulher é vista como uma mulher que fica com um e com outro- fala de um aluno
Ela parece ser jovem- fala de um aluno
É uma ideia ruim né- fala de um aluno
Vixe! Seria um comercial de motel- fala de um aluno
Seria um comercial de lingerie- fala de um aluno
Humm! Seria um comercial de cerveja- fala de um aluno

Nesta análise, notamos que as meninas tiveram menos participação que


os meninos, elas ficaram envergonhadas com as colocações sobre a forma como
as mulheres estavam sendo vistas, apenas como um objeto que era usado e
descartado. Desta forma, ficaram retraídas para se posicionarem.
Na terceira e quarta semana tivemos mais participação da turma.
Deixamos à disposição para que escolhessem o funk ou o vídeo pela qual
iniciariam as discussões. Preferiram o funk “País do futebol”.
Os alunos pontuaram de forma positiva sobre o que o “Mc”, autor da
letra do funk, escreveu relacionado aos sonhos e a vida na favela. Os grifos
destacados foram:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 136


Jogando bola dentro da favela
Pro menor não tem coisa melhor
E a menina que sonha em ser uma atriz de novela. –
Na chuva, no frio, no calor
No samba, no rap e tambor,
Erga as mãos pro céu igual meu redentor Agradeço ao nosso Senhor
Eu sou Zona Norte, fundão Swing de vagabundos
Que venceu a desnutrição E hoje vai dominar o mundo- grifos da música.

Direcionamos as análises baseadas nas seguintes questões: 1- As músicas


têm o mesmo tema? 2- Em relação ao ritmo, são parecidas? 3- Se essa música
fosse fundo musical de um comercial, que produto seria vendido?

Não! Os outros funk falou sobre a mulher, os bailes. Esse fala da vida do favelado!-
fala de um aluno
Esse funk fala de sonhos!- fala de um aluno
Sim, todos são funks!- fala de um aluno
Os favelados são discriminados pela cor e por morarem na favela- fala de um aluno.
Mas mesmo sendo favelados, muitos moleques tem inteligência- fala de um aluno.
Seria fundo comercial de chuteira, camisa, futebol, sapatos, sonhos- fala dos discentes.

As reflexões foram bastante pertinentes, os alunos conseguiram colocar


que independente das pessoas morarem na favela, existem muitos jovens
inteligentes e cheios de sonhos capazes de construírem um futuro brilhante.
Após essas análises foi passado o vídeo “Político Ostentação”. Os grifos
em destaque foram:
É que ser político é ostentação, cheio de dinheiro anda de carrão,
Melhor que sertanejo, do que ser funkeiro, condomínio de luxo, vida de barão...
Ele é eleito com o voto do povo, mas depois que ganha não quer nem saber,
Ele quer curtir é sua vida boa e das promessas ele faz é esquecer...

Os discentes colocaram que o vídeo reproduzido trouxe a realidade da


sociedade brasileira abordando questões relacionadas à educação, saúde e
política frisando que elas precisam ser melhoradas.
O que motivou os alunos a participarem foram os temas que os funks
abordavam. Estes traziam cenas próprias do cotidiano deles, como futebol e
política. Apesar de a turma ainda não ter o título de eleitor, ela está perto de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 137


possuir. Os alunos já demonstraram ter uma opinião própria sobre o assunto
em questão.
As reflexões feitas pela turma do 6º ano foram muito bem colocadas, foi
notório que eles são capazes de organizar seus pensamentos e se posicionarem
de forma crítica sobre algum fato. O que falta em muitos casos é o estímulo a
esta atividade. Desta forma, verificou-se que a música pode ser um recurso
didático para o desenvolvimento da criticidade e estímulo à oralidade. Durante
toda a pesquisa tentamos sempre aproximar os alunos à sua realidade para que
os seus posicionamentos acontecessem de forma natural, e não forçada. Vale
destacar que, o ritmo funk foi escolhido propositalmente, pois fazia parte da
vivência da turma e que o funk não foi trabalhado isoladamente.

Considerações finais

O desenvolvimento da fala se dá muito antes da criança ser inserida na


escola através do estímulo no seio da família, mas na escola ela é encorajada a
desenvolver uma fala mais direcionada e crítica.
A oralidade embora seja um requisito de trabalho nas escolas, embasado
pelos PCNs geralmente apresenta lacunas, pois, muitas vezes, a escrita tem sido
mais priorizada. A presente pesquisa apontou que os alunos, desde as séries
iniciais não vem sendo estimulados a praticarem a oralidade de forma crítica,
muitos discentes sentem dificuldades ao se posicionarem em público,
principalmente por terem vergonha e medo. Diante disto, se percebe a
necessidade de incentivar os discentes a se posicionarem criticamente sobre o
mundo na qual estão inseridos.
Assim, cabe a escola criar estratégias para que os discentes consigam lidar
com as diferentes modalidades orais. Dentre muitos métodos e recursos que

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 138


podem ser trabalhados em sala de aula, destacamos a música. Ela sempre esteve
muito presente na vida dos brasileiros.
Na pesquisa adotamos o ritmo funk, pois era o ritmo de preferência dos
discentes e fazia parte do cotidiano deles. É importante destacar que o trabalho
não pode ser feito considerando apenas um ritmo de preferência, mas deve
considerar o que vai fundamentar o esforço e quais resultados será pertinente
para a turma.
As análises permitiram que os alunos parassem para refletir sobre o que
eles estavam cantando, e se posicionassem sobre os temas que estão em
destaque socialmente, como por exemplo, a política e o posicionamento social
da mulher. Muitas vezes, a turma é embalada pelo ritmo e não se dá conta do
que se trata.
Chegamos a conclusão de que o funk pode ser trabalhado em uma turma
de 6º ano do ensino fundamental II, como recurso para o desenvolvimento da
criticidade na modalidade oral e, que os alunos são capazes de se posicionarem
publicamente de forma crítica. Verificamos que quanto maior a proximidade e
relação com os recursos, maior será o desenvolvimento dos alunos nas
atividades.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 139


Referências

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no Ensino Fundamental. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 2008, vol. 24.

BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL.


PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: terceiro e quarto ciclos
do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília, 1997.

BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL.


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do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília, 1998.

FERRARI, M. Paulo Freire- O mentor da educação para a consciência. Revista


Nova Escola, 2008.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XA5qchX61ew. Acesso
em: 11 Out. 2018.

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https://www.youtube.com/watch?v=bWnS2dIDgQA. Acesso em: 11 Out.
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2018.

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https://www.youtube.com/watch?v=Qw4uBk7DOa8. Acesso em: 11 Out.
2018

LEITÃO, E. S. S. A prática pedagógica docente na perspectiva da humanização em


Paulo Freire na EJA de Olinda. UFPE, 2015.

PAULA, M. H. L. Musicalização e desenvolvimento da oralidade: uma prática na


educação infantil. 2010.

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público na transdisciplinaridade da linguística aplicada. Anais do Seta. Vol. 2,
2008.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 140


CAPÍTULO 10

O potencial dos estudos de paisagens


linguísticas na abordagem
etnográfica: complexidade e
desestabilização da noção de rural
Thaís Elizabeth Pereira Batista1

Introdução
O presente texto discute brevemente o potencial do estudo de paisagens
linguísticas como ferramenta fundamental ao empreender pesquisa em
ambientes que possuem complexidade. Discutirei a princípio o potencial
analítico da ferramenta para que o contexto faça parte da análise etnográfica de
maneira densa e não apenas como pano de fundo, como é comum em muitos
estudos.
Para fundamentar meu argumento sobre a importância da ferramenta em
pesquisas linguísticas de caráter etnográfico, apresentarei alguns resultados de
pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2015, cujos resultados
apontaram para a desestabilização de uma dicotomia ainda presente em estudos
sociolinguísticos variacionistas de que os ambientes rurais apresentam

1Doutoranda em Estudos linguísticos, Universidade Federal de Goiás. [email protected]. Bolsista


CAPES.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 141


características opostas aos ambientes urbanos, o que poderia impactar nas
práticas linguísticas das pessoas que vivem em cada um desses contextos, ou as
que neles interagem, gerando comportamentos homogêneos entre pessoas que
vivem em ambiente rural, que seriam práticas opostas às de quem vive em área
urbana.
Dessa forma, a exposição ampara-se em observação de campo em uma
comunidade, em geral, classificada como rural, mas que por meio de observação
e registro de paisagens e imagens de seus textos e semioses presentes nos
espaços públicos - espaços normativos (BLOMMAERT; MALY, 2014) -
apresentam grande potencial de globalização em elementos que compõem a
paisagem hibridizados aos elementos tradicionais locais de uma comunidade
rural típica.
Tal material contribui para a compreensão da importância desta
ferramenta para os estudos atuais da linguagem, pois tal como apontam
Blommaert e Maly (2014), apesar de serem menos comuns os estudos sobre
globalização em ambientes mais periféricos, a globalização é um fenômeno
presente também nas margens, ou seja, em ambientes que há pouco tempo
ainda se mantinham um tanto diferenciados dos centros, e que ainda hoje
carregam a imagem de interior tradicional e talvez até homogêneo, mas que tem
se mostrado em grande contato, recebendo e exercendo influências em
ambientes diversos.
Portanto, o objetivo desta discussão é apresentar alguns resultados sobre
a referida investigação sociolinguística que analisou paisagens linguísticas
visíveis em espaços públicos em um ambiente rural, levando-se em
consideração os efeitos da globalização (BLOMMAERT, 2010) nessas
paisagens. Trata-se de uma pesquisa realizada em uma comunidade quilombola,
situada em área rural no interior de Goiás, no Centro-Oeste do Brasil. A
pesquisa se justifica pela importância dos estudos de paisagens linguísticas não

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 142


apenas como pano de fundo, mas como um background denso para a
compreensão ampla de fenômenos de linguagem. Assim, é possível perceber o
potencial analítico das paisagens para os estudos da linguagem
(BLOMMAERT; VARIS 2015).
A metodologia utilizada partiu de uma perspectiva etnográfica e teve
como ferramentas o registro de imagens - paisagens linguísticas - e notas de
campo (BLOMMAERT; JIE, 2010). Para tanto, pauta-se nos pressupostos da
sociolinguística da globalização (BLOMMAERT, 2010; 2012; 2016), atentando-
se para os estudos de paisagens linguísticas (BLOMMAERT; MALY, 2014),
mobilidade e globalização nas margens (WANG et al, 2014), considerando o
conceito de superdiversidade (VERTOVEC, 2007).
Os resultados mostram que o ambiente rural apresenta características
tradicionais dessas áreas, mas que é muito mais complexo do que isso, uma vez
que foram observadas interações diversas e suas paisagens têm sido afetadas
por vários índices de globalização que se misturam a uma paisagem ainda com
características do campo, um fenômeno conhecido como globalização nas
margens, que tem afetado de maneira importante as interações nesses ambientes
afastados dos grandes centros, interferindo nas práticas linguísticas (WANG et
al, 2014).
Com base no exposto até aqui, apresentarei nas próximas seções o
referencial teórico-metodológico utilizado para a geração de dados de paisagens
linguísticas e, em seguida, uma breve análise de parte do material, considerando
o aporte teórico citado acima (BLOMMAERT; JIE, 2010; BLOMMAERT,
2010; BLOMMAERT, 2012; BLOMMAERT; MALY, 2014; WANG et al,
2014; VERTOVEC, 2007).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 143


Referencial teórico-metodológico para o registro de
paisagens linguísticas

A metodologia utilizada para tal análise baseai-se na observação de


natureza etnográfica (BLOMMAERT; JIE, 2010) com anotações em caderno
de campo e o registro de imagens por meio de fotos do campo selecionado para
a pesquisa. Após registro e arquivamento do material produzido, foi realizada
uma análise que objetivou, por meio de tais paisagens, identificar possíveis
mudanças em curso no local.
Para Blommaert e Maly (2014), paisagens linguísticas são registros
fotográficos realizados por pesquisadoras e pesquisadores durante o trabalho
de campo. Trata-se de um recurso que tem se tornado comum, além de outros
recursos mais tradicionais que já eram usados, tais como gravadores de voz e
anotações em caderno de campo. Com o desenvolvimento tecnológico, as
câmeras digitais têm se tornado aliadas durante as pesquisas, pois possibilitam
o registro de materiais de linguagem que podem ser vistos nos espaços públicos,
considerados pelos autores como espaços normativos.
Além disso, tais registros permitem observar com profundidade o
contexto no qual se empreende a pesquisa etnográfica, identificando as
infraestruturas presentes naquele local e os grupos que nele interagem. Apesar
de essas paisagens serem documentadas com menos frequência em ambientes
rurais, conforme já observado anteriormente, elas têm mostrado um potencial
analítico importante, uma vez que permite observar mudanças em curso,
entendendo melhor a complexidade existente.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 144


Introduzindo o campo de pesquisa

Os dados foram registrados em uma comunidade quilombola situada no


interior do estado de Goiás. A Comunidade do Engenho II, no território
Kalunga, está localizada a cerca de 27 quilômetros da cidade de Cavalcante –
GO, no nordeste do estado, em uma área reconhecida pelo Governo Federal
como território tradicional de posse do povo Kalunga.
Comunidades denominadas quilombolas têm sua origem nos povoados
que foram se formando em decorrência da fuga de ex-escravos na época da
escravatura no Brasil, que durou até o fim do século XIX. O povo remanescente
desses ex-escravos é denominado quilombola e parte deles vive em
comunidades nas imediações dos locais onde foram formados os antigos
quilombos, que por se tratar de rota de fuga, em geral, localizam-se em regiões
de difícil acesso, embora essa realidade tenha se mostrado em mudança e
embora existam também quilombos localizados em área urbana. No entanto,
esta comunidade apresentada aqui, está localizada em área rural, com acesso por
meio de estrada não pavimentada e em território geograficamente caracterizado
como vãos. Em geral, o acesso se dá por meio de veículo com tração nas quatro
rodas, mas dependendo das condições climáticas é possível o acesso com outros
modelos de veículos.
Apesar dos obstáculos, muitas das comunidades mais afastadas recebem
anualmente visitantes de vários lugares para acompanhar suas festas religiosas
e folias tradicionais. Entre elas, a conhecida festa de Santa Bárbara que ocorre
no povoado chamado Vão de Almas que atrai pessoas de todas as regiões do
estado e também de fora dele.
Já o povoado Engenho II recebe visitantes o ano todo. Atraídos pelas belezas
naturais do território que possui cachoeiras famosas e está no interior da
internacionalmente conhecida área da Chapada dos Veadeiros, tais turistas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 145


também se interessam pelo contato e conhecimento da cultura tradicional do
povo quilombola. Assim, o povoado está constantemente ocupado por
residentes locais e turistas de todo o mundo.

Geração das paisagens linguísticas

O estudo das paisagens linguísticas integra parte de uma pesquisa maior


que utiliza tal ferramenta para analisar o uso de elementos interacionais na fala.
Para tal estudo houve interesse na seleção de um campo considerado rural com
base em estudos tradicionais em linguística que apontam oposição entre
características urbanas e rurais como dois extremos.
Para iniciar a pesquisa neste local, após entrar no campo e conhecê-lo
um pouco melhor, foram apresentados os objetivos de estudo e solicitada
autorização do líder do povoado para registrar e divulgar material de pesquisa.
Em seguida iniciou-se o contato com outras pessoas da comunidade e algumas
foram convidadas para participar de parte da pesquisa e, de maneira geral,
muitas outras pessoas contribuiram para a formação do material contando
histórias do local e explicando como é a vida lá.
Foram feitas fotografias dos locais de interações e gravações em áudio
de interações dos/as participantes. Aqui trataremos da análise do material
produzido por meio de fotografias. Para a análise, amparar-se-á no paradigma
qualitativo interpretativista. Para Moreira e Caleffe, o interesse central do
paradigma interpretativista é o significado humano da vida social e a elucidação
e exposição pelo/a pesquisador/a (MOREIRA & CALEFFE, 2008. p 60).
Assim, entende-se como adequado um paradigma qualitativo para interpretação
dos dados, pois não pretende-se propor generalizações, mas sim observar o
comportamento no grupo específico que participará da pesquisa, pois para esses

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 146


autores o/a pesquisador/a lida com “múltiplas realidades” (MOREIRA &
CALEFFE, 2008. p. 63).

Desestabilização das noções de rural na geração de dados de


pesquisa
A escolha do local para pesquisa foi feita com a intenção de produzir
material em um ambiente rural para observar suas características. Uma ampla
literatura de estudos linguísticos, sobretudo da área da sociolinguística
variacionista (LABOV, 1972; TARALLO, 2007), aponta a localização
geográfica como um dos fatores determinantes para os usos linguísticos.
Partindo de tais abordagens que costumam trazer comparações que opõem o
rural e o urbano e que usam nomenclaturas como Norma Urbana Culta
(PROJETO NURC), Norma Padrão Culta (AGUILERA, 1994) e termos como
dialeto rural ou dialeto caipira (AMARAL, 1982), foi selecionado o campo.
Se fôssemos nos apoiar em estudos mais tradicionais da linguagem, esses
dados já diriam muito sobre os resultados que seriam apresentados, pois cada
comunidade prefiguraria características culturais e sociais baseadas em crenças
que pesquisadoras e pesquisadores compartilham sobre localidades rurais e
urbanas. Assim, já se esperaria que características relacionadas à linguagem
informal ou às formas linguísticas cercadas de estigma social ocorreriam mais
em localidades rurais “mais isoladas” do que nas urbanas (PINTO, 2013). Essa
posição possui limitações por não considerar as diversas formas de contato às
quais as pessoas que vivem em um mundo globalizado estão expostas e que não
oferece possibilidade de mensuração.
Assim, no mundo globalizado o isolamento territorial torna-se cada vez
menos possível. A facilidade dos contatos e dos acessos mediados pelas
tecnologias de comunicação e pelas relações interpessoais proporcionadas pela

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 147


mobilidade tornam as intersecções entre os corpos e as línguas cada vez mais
fluidas, complexificando cada vez mais os ambientes de interação em maior ou
menor intensidade, sendo esses ambientes considerados previamente rurais ou
urbanos (BLOMMAERT, 2010, 2014).

O presente episódio de globalização não pode de modo algum ser


compreendido sem um envolvimento profundo e integrado com os
mecanismos eletrônicos de conhecimento e comunicação que são
intrínsecos a ele e exercem uma influência sistêmica. E é exatamente por
causa do fato de que essa mudança historicamente sem precedentes na
infraestrutura é uma coisa comunicativa, que nossos campos de estudo
podem ter um pouco de vantagem sobre os outros: ninguém pode
compreender com precisão o mundo contemporâneo sem compreender
os novos complexos modos comunicativos e economias que ele gera
(BLOMMAERT, 2016, p. 8).2

Após essas observações, um posicionamento teórico crítico se faz


necessário para buscar problematizar essa complexidade existente de maneira
mais real e dinâmica e menos idealizada e fixadora, e para isso, algumas
convicções e crenças que buscam resolver as questões teóricas
homogeneizando as práticas linguísticas precisam ser colocadas sob suspeita.
É possível observar, por meio das paisagens obtidas no decorrer da
pesquisa, como elementos locais se entrecruzam com elementos globais na
composição da paisagem da comunidade quilombola, considerada uma
comunidade tradicional, inclusive por quem lá vive.
Vamos perceber na próxima seção, em que as paisagens da comunidade
Kalunga são analisadas, que a presença de variados grupos mudou
consideravelmente a dinâmica estritamente local e que com isso, poderemos
perceber que a linguagem é um fenômeno local que recebe interferência de
todos os seus usuários (BLOMMAERT; MALY, 2014).

2 Tradução de minha autoria para compor este capítulo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 148


Paisagens linguísticas: composição da paisagem na
comunidade

Para analisar essa composição devemos responder a algumas questões,


por exemplo, quem vive ou interage nesse local, exerce e recebe influências
constantemente por meio das relações que se estabelecem. A observação
durante o trabalho de campo e o contato com as pessoas da comunidade
possibilitou algumas respostas.
Quem vive na comunidade são pessoas descendentes de ex-escravos que
se denominam quilombolas, além de imigrantes que foram para a comunidade
trabalhar na escola e imigrantes que foram para a comunidade em missão
religiosa.
No entanto, existem pessoas que estão na comunidade em situação de
mobilidade, a saber, turistas de várias regiões do país e do mundo em busca das
belezas naturais do território Kalunga (cachoeiras) e de contato com diferentes
culturas; pesquisadores/as de diversas áreas do conhecimento; agentes de saúde
em trabalho para o governo municipal; outros/as representantes do governo
federal para realização de diversos trabalhos. Isso aponta para uma grande
diversidade de pessoas convivendo por curto ou longo prazo e interagindo
constantemente, tornando o ambiente mais complexo e os comportamentos
bem mais difíceis de pressupor, pois ainda que em ambiente rural, a comunidade
não está de maneira alguma isolada ou isenta de contato ou de elementos que
caracterizam a globalização.
Além das belezas naturais, o povo desta comunidade tem mais a oferecer
para o mercado turístico. A comunidade recebe também o turismo de herança,
o que podemos notar em sua paisagem com a presença de elementos como uma
loja que vende artesanato e outros produtos locais fabricados pelo povo local
(Figura 1), placas que contam a história e mostram a cultura tradicional dos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 149


Kalunga (Figura 2) e um site da Associação Quilombo Kalunga que apresenta a
comunidade como uma das comunidades que há menos tempo possui contato
com outros povos, datando de aproximadamente 30 anos, e que por isso
preserva muito da tradição de origem africana

Figura 1: Central de atendimento ao turista

Fonte: acervo da pesquisadora. Junho de 2014.

Figura 2: Placa Produzida pelo Governo Federal com Informações do Povo e Cultura Kalunga

Fonte: acervo da pesquisadora. Junho de 2014.

Tudo isso tem levado a uma mudança de infraestrutura, anteriormente


somente rural, para atender a novas demandas, como a demanda turística, por
exemplo, que passou a liderar as atividades locais, antes baseadas
principalmente na agricultura e na criação de animais, conforme contam o líder
da comunidade e um antigo morador.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 150


Mudança de infraestrutura

Podemos perceber a nova infraestrutura da comunidade por meio de


diversos elementos, como o fato de parte dos/as moradores/as da comunidade
passarem a alugar quartos de suas casas como dormitórios para turistas,
construírem restaurantes enquanto outros/as permaneceram e ainda se ocupam
em atividades rurais, como pode ser observado por quem está na comunidade.
Ao mesmo tempo em que podemos ver as pessoas trabalhando com a recepção
de turistas, é possível ver muitas vezes pessoas saindo de manhã montadas em
mulas para o trabalho rural. Geralmente essas pessoas voltam dois ou três dias
depois, elas dizem que o local onde a terra é adequada para o trabalho fica
distante da comunidade, e, por isso costumam ficar alguns dias na lavoura antes
de retornar para suas casas.
A análise mostra elementos globais como as placas já mencionadas,
carros de passeio e antenas parabólicas e via satélite (Figura 3) misturam-se a
elementos locais como telhados de palha em construções, casas construídas
com tijolo e taipa (Figura 4), e criação de gado em plena área de moradia.

Figura 3: Antena via satélite em residência

Fonte: acervo da pesquisadora. Junho de 2014.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 151


Figura 4: Casa Construída em Tijolo com Parte em Taipa (pau a pique)

Fonte: acervo da pesquisadora. Junho de 2014.

Considerações finais

A análise dessas paisagens linguísticas nos permitiu observar os


processos de globalização em pleno funcionamento em uma área rural e
inclusive interferindo e mudando a dinâmica do local. Se observarmos esses
locais, veremos que não há razão para se excluir essas margens dos estudos que
tratem sobre “análises dos processos de globalização e suas implicações
sociolinguísticas”, pois “a globalização é uma transformação de todo o sistema
mundial, e não só afetará os centros metropolitanos do mundo, mas também
as suas margens mais remotas.
Assim, encontramos efeitos de globalização também em lugares
inesperados” (WANG et al, 2014, p. 26). A diversidade social e econômica,
chamada de superdiversidade por Vertovec (2007), é o fenômeno do grande
aumento na diversidade na sociedade, e seus efeitos já podem começar a ser
vistos também em áreas rurais, que lidam com diferentes línguas, repertórios e
infraestruturas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 152


Logo, características de informalidade que costumam ser ligadas a
ambientes rurais podem estar presentes também no contexto urbano, assim
como características de práticas linguísticas formais ou institucionalizadas e a
presença de várias línguas não são regras do espaço urbano e podem ocorrer
também no rural. Assim, a área rural investigada é um ambiente globalizado,
com intervenção governamental, e que compartilha informações de mídia em
tempo real assim como em áreas urbanas. Por isso, na modernidade tardia,
urbano e rural são ambientes diferentes, mas não dicotômicos.

Referências

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Imprensa Oficial do Estado, 1994.

AMARAL, A. O dialeto caipira. São Paulo: HUCITEC/ Brasília: INL, 1982.

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Analysis and social change: A case study. 2014.

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PINTO, Joana Plaza. Prefiguração identitária e hierarquias linguísticas na
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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 154


CAPÍTULO 11

A reforma do ensino médio: uma


abordagem da análise do discurso
Maria Cléia Alves dos Santos1
Daniela de Lima Basio2

Introdução

Ao longo da história a educação brasileira passa por constantes


mudanças, que são atribuídas por meio de reformas e leis, com a proposta de
melhoria no quadro educacional. Mas muita das vezes não funciona tal qual são
propostas. Neste trabalho, embasados pela teoria da Análise do Discurso de
linha francesa traremos o dito, o não dito e o silenciado presentes no discurso
acerca da reforma do ensino médio, por meio da Lei nº 13.415, de fevereiro de
2017. Para isso, dividimos o trabalho em três sessões na primeira faremos um
breve histórico sobre a educação brasileira, com o intuito de mostrar o caminho
até a reforma, mostraremos ainda, o papel da lei e a que sujeitos ela está sendo
direcionada, tendo em vista todo um contexto social e psicológico daqueles que
receberão influência direta da lei. No segundo momento traremos algumas

1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas, na unidade de Arapiraca. E-mail:


[email protected]
2 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas, na unidade de Arapiraca. E-mail:

[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 155


categorias estudadas pela Análise do Discurso, que servirá como base para
análise do corpus na terceira sessão.

A educação brasileira: breve histórico

A educação no Brasil começou com a chegada dos jesuítas em 1549, com


o objetivo que catequizar os índios, ou seja, no intuito de levar a fé cristã.
Segundo Ferreira (2010), Manoel de Nóbrega e seus companheiros jesuítas
organizaram uma casa de bê-á-bá em Salvador (BA). Nessas escolas de bê-á-bá,
as crianças eram catequizadas com o uso de catecismos bilíngues em tupi e
português.

A partir daí inúmeras mudanças começaram a surgir como a criação de


colégios, reformas e leis, vale ressaltar que a educação não era um privilégio
para todos, com a criação de colégios a educação ia ficando cada vez mais elitista
e só após muitos anos o proletariado foi conseguindo ocupar um lugar nas
escolas, mas nunca igualitário como afirma Hilsdorf (2017),

embora fosse preciso fornecer ensino a toda sociedade, não se tratava de


oferecer todo o ensino para toda sociedade; ser preocupada com a
extensão da escola elementar, reivindicando a alfabetização das massas.
Assim, o projeto republicano pensa e oferece a escola moldes dos
cafeicultores, antes que outras diferentes camadas sociais a reivindicassem
nos seus próprios moldes; propõe ensino elementar e profissional para as
massas e educação científica para as elites “condutoras do processo” e
reivindica ampla educação popular. (p. 62-63).

Logo, podemos concluir com esse pensamento que já houve na história


da educação um período em que o ensino era mais voltado para o técnico, e
apenas a elite possuía a educação científica. É a partir desta colocação que
iniciamos nossas colocações sobre a lei e o sujeito a qual ela está sendo
direcionada.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 156


Considerações sobre a Lei e o sujeito jovem

Pensar em uma reforma do ensino é, sem dúvida, importante, pois a


educação no Brasil não tem apresentado bons resultados, segundo o Ministério
da Educação (MEC), a qualidade da educação no ensino médio está estagnada
a quase dez anos, ainda, segundo o MEC, o novo ensino médio visa atender
por meio do ensino técnico a demanda profissional do mercado de trabalho,
mas o problema atual não é apenas a formação dos alunos, mas também, a falta
de oportunidade para aqueles que já possuem formação, atuarem de acordo
com as suas habilitações.

O que se evidencia com esta reforma é uma proposta de muitos alunos


com formação técnica, desse modo observamos que não há uma preocupação
com a formação integral do aluno, contradizendo o que diz a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), mas com a mão de obra barata, o que
consequentemente trará uma problemática ainda maior.

Outro levantamento que precisamos fazer a respeito da lei é com relação


ao jovem a qual ela está sendo direcionada. Segundo Bauman (2007), a
sociedade passa da fase “sólida para a líquida”, ou seja, passa para uma condição
em que as organizações sociais, que não podem manter sua forma por muito
tempo, se decomponham e se dissolvam mais rápido que o tempo que leva para
moldá-las. Isso ocorre porque uma vez que os jovens estão inseridos neste
contexto de sociedade líquida, suas ações e escolhas também tornam-se líquidas,
por isso há um perigo em depositar a estes jovens uma escolha que vise um
“projeto de vida” como propõe a lei.

Para Teodoro (2009), é na adolescência que o jovem tenta constituir sua


identidade, onde passa por inúmeros questionamentos como “quem ele é, qual
o seu papel na sociedade, e que caminho deve seguir”, tantos questionamentos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 157


têm levado os jovens a frustrações que acabam causando depressão. Nas
palavras de Teodoro, “o surgimento da depressão na adolescência depende,
entre outros fatores, da maneira como o jovem suporta às pressões internas e
externas dessa fase”.

Embasamento teórico

Para entender a proposta do novo ensino médio, foi preciso caminhar


pela teria da Análise do Discurso. Por volta da década de 60, enquanto a França
refletia os impactos dos acontecimentos da época, como Segunda Guerra
Mundial, Guerra Fria e movimento de estudantes, vários questionamentos
surgiram no campo do saber, estudiosos buscam compreender que a “relação
indissociável entre língua, história e ideologia é o discurso” e foi a partir disso
que surgiu a Análise de discurso- AD, como afirma Florêncio et al (2009, p. 23),

É nessa conjuntura que, em 1969, Michel Pêcheux, elegendo o discurso e


não a língua como objeto de estudo funda, na França, a Análise do
Discurso, inaugurando uma região teórica própria, tanto em relação à
Linguística, como em relação às Ciências Sociais em geral. Introduz na
reflexão sobre a língua o sujeito, a história, a ideologia e o inconsciente.
Isso representa uma virada, um acontecimento na história das práticas
linguísticas.

Ainda segundo a mesma autora, ao eleger o discurso e não a língua como


objeto de estudo, Pêcheux teoriza a relação da linguística com a história e a
ideologia, concebendo o discurso como sempre determinado, apreendido
dentro de relações que o sujeito estabelece no seu mover-se no mundo,
pensando assim a enunciação no quadro de uma teoria não subjetiva ao sujeito,
ou seja, tudo que é enunciado é resultado de todo um contexto social e
histórico, muitas vezes não percebido pelo sujeito que o produz, pois este torna-
se sujeito reprodutor da ideologia que o cerca.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 158


Logo, a Análise de discurso, procura compreender a língua fazendo
sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral,
constitutivo do homem e da sua história. A Análise de discurso nos leva a
questionar como o texto significa, à medida que, considera a linguagem não
transparente, ela busca compreender como um objeto simbólico produz
sentido, como ele está investido de significância para e por sujeitos. Orlandi
(2015, p. 13-24). Concordando com isso, Florêncio et al (2009, p. 25) declara
que, essa é a função da AD: explicar os caminhos do sentido e os mecanismos
de estruturação do texto. Ou seja: explicar porque o texto produz sentido; não
os sentidos contidos no texto.

Seguindo essa linha, para compreender os sentidos presentes na proposta


da Reforma do Ensino Médio, é imprescindível o estudo das categorias
descritas como:

O Discurso

Na perspectiva de Pêcheux, citado por Florêncio et al, (2005, p. 26), o


discurso não se confunde com a língua, nem com a fala, nem com o texto; não
é a mesma coisa que transmissão de informações. Segundo Orlandi (2015, p.
13), o discurso é assim palavra em movimento, percebida pelo homem a partir
do que ele fala, pois ao falar o homem dialogará com todo um contexto daquilo
vivido por ele, logo dizemos que o discurso não se confunde com fala, por que
não analisamos a fala isoladamente, e sim, quem fala, de onde fala, para quem
fala e porque fala.

A partir daí podemos entender que todo discurso é uma resposta a outros
discursos com quem dialoga, reiterando, discordando, polemizando.
Sendo produzido socialmente, em um determinado momento histórico,
para responder às necessidades postas nas relações entre os homens, para
a produção e reprodução de sua existência, carrega o histórico e o
ideológico dessas relações. (FLORÊNCIO ET AL, 2005, P. 27).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 159


Partindo da visão da autora, podemos dizer que o discurso é carregado
de sentido distintos, onde diversos fatores influirão na produção do mesmo,
algumas vezes esses fatores não são percebidos por quem enuncia, e este se
julga dono do próprio discurso, mas nenhum discurso é neutro,
automaticamente ele refletirá algo, diante da realidade vivida por quem o
produz, seja algo atual ou não. Sendo assim, “não há, pois, discurso neutro ou
inocente, uma vez que ao produzi-lo, o sujeito o faz a partir de um lugar social,
de uma perspectiva ideológica e, assim, veicula valores crenças, visões de
mundo que representam os lugares sociais que ocupa.” (FLORÊNCIO, P. 28).
A este respeito, Orlandi (2015) afirma que,
Também não se deve confundir discurso com “fala” na continuidade da
dicotomia de (língua/fala) proposta por F. de Saussure. O discurso não
corresponde a noção de fala pois não se trata de opô-lo à língua como
sendo um sistema, onde tudo se mantém, com sua natureza social e suas
constantes, sendo o discurso, como a fala, apenas uma sua ocorrência
casual, individual, realização do sistema fato histórico, a-sistemático, com
suas variáveis etc. O discurso tem sua regularidade, tem seu
funcionamento que é possível apreender se não opomos o social e o
histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao
produto. (ORLANDI, 2015, p. 20).

Condições de Produção

Para entender como o sujeito produz sentido, é preciso entender antes,


a partir de que Condições de Produção seu discurso foi constituído, antes é
preciso compreender que,

Para a AD, não há um sentido dado, único e verdadeiro, mas sentidos


vários que estão além das evidências. Procura-se compreender como se
constituem os processos de produção de sentidos que se fazem presentes
no texto e dão lugar, ao analista do discurso, a investigar como tal texto
produz sentidos. Isso mostra que os dizeres não podem ser vistos como
mensagens que são transmitidas e compreendidas em sua transparência,
mas em seus efeitos de sentido, produzidos por sujeitos que realizam suas
escolhas, em determinadas situações, que se mostram no modo como
dizem. (FLORÊNCIO ET AL, 2009, p. 67).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 160


Desta forma, torna-se imprescindível para o analista do discurso o estudo
de todo um contexto, que a AD chamará de Condições de Produção, que por
sua vez pode ser considerada em sentido amplo, onde “expressa as relações de
produção, com sua carga sócio-histórico-ideológica”, e no sentido estrito que
“diz respeito às condições imediatas que engendram a sua formulação”.
(FLORÊNCIO ET AL., 2009, p. 67).
Para Orlandi (2015, p. 28), as condições de produção compreendem
fundamentalmente os sujeitos e as situações, logo estas levam em consideração
o contexto, os interlocutores, o lugar de onde falam os sujeitos e a imagem que
eles fazem de si, e do outro no momento da produção discursiva.

Silenciamento
O estudo da categoria silenciamento na AD torna-se indispensável para
que o analista de discurso possa compreender os sentidos presentes no não dito.
Orlandi (2015, p. 14) nos mostra que o silêncio que atravessa as palavras, que
existe entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser outro, ou ainda,
que aquilo que é mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir
dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é “fundante”, ou
seja o silêncio é visto como fundador de determinado dizer. Nas palavras de
Florêncio et al (2009, p.81),

Há, pois, um silêncio necessário que é presença, condição para que se


realize o processo de constituição do sentido, do sujeito e da incompletude
própria da linguagem. Ao falar, o sujeito tem necessariamente uma relação
com o silêncio, pois não se pode dizer, na ausência de sentido. Desse
modo, o silêncio é fundamento para que o sujeito produza sentido e o
reinstaure em cada dizer.

Sendo assim, o silêncio aqui posto, não é o ato de calar, pela falta de
sentido, pois mesmo quando não-ditas essas palavras silenciadas são cheias de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 161


sentidos. Compreender o silêncio não é, pois, atribuir-lhe um sentido
metafórico em sua relação com o dizer (“traduzir” o silêncio em palavras), mas
conhecer os processos de significação que ele põe em jogo, conhecer seus
modos de significar, como diz Orlandi (2015, p. 50), concluindo também que,

Assim, em face do discurso, o sujeito estabelece necessariamente um laço


com o silêncio; mesmo que essa relação não se estabeleça em um nível
totalmente consciente. Para falar, o sujeito tem necessidade de silêncio,
um silêncio que é fundamento necessário ao sentido e que ele reinstaura
falando. (ORLANDI, 2015, p.69).

Dito isso, escolhemos algumas sequências discursivas acerca da Lei nº


13.415 de 16 de fevereiro de 2017, para as análises.

Análises das sequências discursivas

Sequência discursiva 1 - “§ 7º Os currículos do ensino médio deverão


considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho
voltado para a construção de seu projeto de vida e para a sua formação nos
aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.”

O dito da sequência acima é que os currículos do ensino médio deverão


considerar a formação integral dos alunos, neste sentido as escolas deverão estar
preparadas para dar suporte ao aluno em todos os seus aspectos físicos,
cognitivos, socioemocionais, mas evidenciamos com o não dito que a lei não
deixa claro de que maneira será trabalhado esses aspectos, uma vez que para se
trabalhar com os aspectos físicos as escolas necessitam de aulas que instiguem
os alunos a movimentarem o corpo por meio da dança, da capoeira, da natação
entre outros, e vemos que na prática nenhuma dessas atividades são trabalhadas,
principalmente nas escolas de ensino público.
É dito, ainda, que as escolas deverão trabalhar o desenvolvimento
cognitivo dos alunos, mas o não dito é como os professores que serão
responsáveis para função estão sendo preparados/motivados, uma vez que a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 162


voz desses profissionais não está sendo ouvida ou refletida na lei. Ficando
silenciado aqui, que muitos professores trabalham insatisfeitos por falta de
valorização, aos quais por meio de discursos negativos mostram-se
desmotivados para exercer a profissão e isso acaba refletindo diretamente na
sua prática de sala de aula.
Logo, de uma forma geral, temos nessa sequência o dito como uma
proposta “perfeita”, que aparentemente seria capaz de solucionar todos os
problemas existentes na problemática da educação, mas por meio do não dito
conseguimos inferir que a lei não deixa claro como se dará este processo de
aquisição que envolve os principais aspectos da vida e da educação dos jovens,
ficando silenciado então as falhas que surgirão mediante a implantação de uma
lei tão precipitada como essa.

Sequência discursiva 2- “§ 9º As instituições de ensino emitirão certificado


com validade nacional, que habilitará o concluinte do ensino médio ao
prosseguimento dos estudos em nível superior ou em outros cursos ou
formações para os quais a conclusão do ensino médio seja etapa
obrigatória.”

Neste sentido, nos é dito que o aluno sairá com certificado, permitindo
a ele prosseguir no ensino superior, mas no não dito vemos a possibilidade da
acomodação dos alunos apenas com o curso técnico, uma vez que ao passear
pela história da educação, mostramos que houve um período onde o aluno da
classe baixa estudava apenas o curso médio técnico e somente a classe alta
prosseguia com os estudos em nível superior, e isso nos leva ao silenciamento
que há em nossa sociedade, os alunos de escola particular são aqueles que
ocupam os melhores cargos, tendo em vista que esses não precisam de um
salário mínimo para sobreviver, como os alunos de escola pública, que muitas
das vezes não dão continuidade aos estudos pela necessidade de se inserir no
mercado trabalho e acabam não conseguindo conciliar trabalho e estudo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 163


Tendo em vista, que em nosso país a uma relação entre emprego e classe
social, onde as leis determinam os melhores salários para os cargos reservados
a classe alta, sendo que os outros trabalhos também são dignos, e necessitam
serem feitos, porém não recebem o devido valor e esses são os trabalhos
reservados para as pessoas que não possuem uma boa aquisição financeira e
consequentemente um nível de escolaridade mais baixo.
O que fica silenciado, ainda, é que ao aderir essa lei, o país caminha para
um possível retrocesso educacional, ao limitar os alunos de escola pública ao
ensino técnico, tendo em vista que esse não atingirá todo o desempenho ao qual
propõe a lei.
Nesse período de formação, fase decisiva na vida dos jovens, é
importante que estes tenham a maior visibilidade futura possível, e não
incentivá-los ao comodismo, não que eles sejam obrigados a cursar o ensino
superior, mas se não o fizerem que seja por não se identificarem, mas não por
falta de oportunidade ou porque os levamos por meio de uma Lei ao
comodismo.

Sequência discursiva 3- “§ 12. As escolas deverão orientar os alunos no


processo de escolha das áreas de conhecimento ou de atuação profissional
previstas no caput.”

De acordo com a lei, o dito é que caberá as escolas a função de orientar


os alunos na hora da escolha, mas o não dito é que a escola não foi ouvida, e
mesmo assim foi colocada diante de tamanha responsabilidade. Silenciando
assim, o fato de deixarem a cargo da escola a responsabilidade sobre os
resultados frente as escolhas dos alunos, pois se estes não obtiverem sucesso, a
culpa será da escola que não os orientou de forma correta na hora da escolha.
Esse é um assunto que merece muita atenção, pois a escola não é ouvida,
raramente tem suas necessidades atendidas, mas na hora de achar os “culpados”
por algo que não deu certo na formação acadêmica e profissional dos alunos, é

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 164


na escola que vão procurar. Não podemos negar que a escola possui grande
influência na formação acadêmica dos alunos, mas devido a tantas mudanças e
reformas, a escola vem perdendo seu principal papel, adquirindo novas
obrigações pelas quais não consegue dá conta, pelo fato de ir além de suas
especificidades, mas que são impostas pelo sistema, e a escola é obrigada a
tentar cumprir e quando não consegue, leva a culpa pelo fracasso escolar.

Sequência discursiva 4- “§ 1º A transferência de recursos que trata o caput


será realizada com base no número de matrículas cadastradas pelos
Estados e pelo Distrito Federal no Censo Escolar da Educação Básica,
desde que tenham sido atendidos, de forma cumulativa, os requisitos I e
II do caput.”

A sequência deixa claro que os recursos serão repassados de acordo com


o número de matrículas, desde que tenham atendido, de forma cumulativa, os
requisitos I, que consiste em ofertar atendimento em tempo integral a partir da
vigência desta Lei, dando prioridade as regiões com menores índices de
desenvolvimento humano e com resultados mais baixos nos processos
nacionais de avaliação do ensino médio, e no requisito II, exige-se que as
escolas tenham um projeto político-pedagógico, que obedeça ao disposto no
art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que diz o seguinte:

Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional
Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser
organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares,
conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas
de ensino [...].

Desta forma, as escolas só receberão os recursos após terem atendido a


todas essas obrigações, mas o que não é dito, é como o governo atuará para
garantir o cumprimento da LDB e das outras exigências presentes na reforma,
tendo em vista que, a LDB já vigora desde de 1996, logo, ao exigir o
cumprimento desta, subtende-se que esta não deve estar sendo bem aplicada,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 165


pois se estivesse não precisaríamos de uma nova reforma, já que esta vem de
certa forma, repetir aquilo que já vigora nas escolas a mais de vinte anos.
Quando falamos em reforma pensamos em algo totalmente novo, e é
disso que a educação realmente precisa, não o acréscimo de algumas coisas em
um modelo de educação que não funciona, pois no fim estamos apenas
refletindo o velho, que não atende as demandas da sociedade brasileira.
Logo, o silenciado dessa sequência é o de que as escolas são levadas a
preocuparem-se apenas com números, tendo em vista que os recursos serão
repassados frente a quantidade de alunos. Em casos onde há evasão a escola
não se preocupa com o motivo que levou o aluno a isso, mas sim, ao fato de
ter um número a menos. Há uma necessidade muito grande em mostrar altos
índices de matrículas, quando sabemos que esses não significam um bom
rendimento dos alunos que é o que realmente importa.

Considerações finais

Por meio do discurso oficial de lei analisado nas sequências, pudemos


observar no dito a necessidade de uma formação integral de construções
aparentemente “perfeitas”, que trazem, no documento, tudo que o aluno
precisa para o seu desenvolvimento enquanto ser social, mas como vimos o não
dito é que a lei não deixa claro de que forma isso ocorrerá, e de que forma essa
proposta está sendo recebida pelos professores e para que perfil de alunos foi
pensada. Ficando silenciado assim, que há muitas brechas na lei, as quais
acarretarão em inúmeras falhas no desenvolvimento dos alunos, uma vez que
eles são os principais interessados, serão os mais prejudicados. Além do fato de
estarmos caminhando para um possível retrocesso educacional, onde o aluno
não está sendo levado a almejar o ensino científico.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 166


Este trabalho apresentou, ainda, um breve histórico sobre a educação
brasileira o que nos possibilitou perceber que a problemática que envolve a
educação se arrasta desde a colonização, onde os sujeitos que fazem parte do
meio educacional, nunca foram visto como prioridade, de forma que a escola
foi e é um aparelho ideológico reprodutor de ideologia capitalista,
reconhecemos a necessidade de mudança, mas as formas para chegar até ela de
forma que venhamos obter êxito ainda está muito distante de nossa realidade,
uma vez que se reconhece as necessidades do sistema escolar, mas não se dá
suporte para atender a tais demandas.
Por fim, reafirmamos aqui que a reforma do ensino médio, embora
aparentemente venha suprir as necessidades existentes no meio educacional,
não supre, pois acaba deixando brechas que consequentemente serão refletidas
de forma negativa no ensino.

Referências

BAUMAN, Zugmunt, 1925- Tempos líquidos; tradução Carlos Alberto


Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2007.

BRASIL. Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.

BRASIL. Ministério da Educação. O novo ensino médio. Disponível em:


<http://novoensinomedio.mec.gov.br/#!/pagina-inicial>. Acesso em 10 de
novembro de 2019.

FERREIRA Jr., Amarilio. História da Educação Brasileira: da Colônia ao século


XX. São Carlos: EDUFSCAR, 2010.

FLORÊNCIO, Ana Maria Gama. ... [et al.]. Análise do discurso: fundamentos &
práticas. Maceió: EDUFAL, 2009.
HISLDORF, Maria Lúcia Spedo. História da educação brasileira: leituras. São
Paulo: Cengage Learning, 2017.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 167


ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP:


Editora da Unicamp, 2007.

TEODORO, Wagner Luiz Garcia. Depressão: corpo, mente e alma.


Uberlândia- MG: 2009.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 168


CAPÍTULO 12

Atividades de compreensão leitora no


livro didático de português: uma
proposta didática
Késia Suyanne Pinheiro Lima1
Evanilce Chagas Samico Lopes 2

Introdução

Observando que o Livro Didático de Português (doravante LDP) é um


material de apoio tão importante e sabendo da necessidade de compreender
como este desenvolve o trabalho com textos, pretendemos desenvolver, neste
presente estudo, a análise das atividades de compreensão leitora, apresentadas
por um livro didático, verificando as questões e itens a partir da proposta
teórico-metodológica da matriz de referência do SAEB (Sistema de Avaliação
da Educação Básica).
O livro didático, que é editado somente para a prática escolar, é um dos
principais instrumentos para a apropriação do conhecimento nas escolas por
parte dos alunos. Este material acaba sendo o responsável pelo que se ensina e

1Mestranda do Profletras, Departamento de Letras Vernáculas, Centro de Humanidades, Universidade Federal


do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará, Brasil, [email protected]
2Mestranda do Profletras, Departamento de Letras Vernáculas, Centro de Humanidades, Universidade Federal
do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará, Brasil, [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 169


como se ensina, sendo decisivo para o aprendizado. O LDP é, em geral,
norteador das leituras realizadas pelos alunos em nossas escolas. Apesar disso,
vem sofrendo críticas, tomado como um material com erros conceituais,
superficialidade dos assuntos abordados, falta de contextualização, com pouca
valorização do cotidiano do aluno, entre outros. Consideramos, por isso, que o
estudo sobre os conteúdos veiculados no LDP é necessário.
A compreensão leitora não é uma atividade meramente linguística ou
cognitiva, é uma forma de agir sobre o mundo, na interação com o outro dentro
de uma cultura e de uma sociedade. O leitor constrói e não apenas recebe um
significado para o texto, para atingir o seu objetivo. As práticas de leitura se
desenvolvem independentemente da escola, mas esta acaba sendo, numa
sociedade como a nossa, a principal instituição responsável pelo seu ensino.
Ao verificar a importância do livro didático na formação dos nossos
alunos como um público leitor proficiente e crítico, capaz de contribuir com
uma formação social mais consciente e participativa, emergem a ideia e a
intenção de produção desse estudo. A escolha do tema surgiu a partir da própria
experiência docente, uma vez que se pode observar, em sala de aula, a resistência
dos alunos quanto à leitura, o que geralmente está atrelado a sua dificuldade em
ir além da decodificação da escrita.
Diante de tal quadro, realizamos, através de uma pesquisa qualitativa e
bibliográfica, uma investigação de categorização das perguntas de compreensão
textual presentes no material didático de Língua Portuguesa de 7º ano do
Ensino Fundamental, com base nos descritores prelecionados pela matriz do
SAEB, a fim de verificar quais os descritores predominam nas atividades de
leitura do livro didático, quais não são apresentados e quais poderiam ser
abordados, mas foram omitidos, para, assim, compreender o entendimento do
livro didático acerca da questão da compreensão leitora de acordo com a
proposta teórico-metodológica da matriz.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 170


O livro que analisamos, “Português linguagens”, William Roberto Cereja
e Thereza Cochar Magalhães, 7º ano, foi sugerido no PNLD (Programa
Nacional do Livro Didático) de 2013.

Leitura

Ao lermos nosso cérebro poderá reagir de diferentes formas, pois nele


está o mundo organizado e internamente consistente, construído como
resultado da experiência e da cultura por nós vividas, o mundo integrado em
um todo coerente, como resultado de uma permanente aprendizagem.
Possuímos uma teoria sobre como é o mundo, base de todas as nossas
percepções, raiz de todo o aprendizado, fonte de esperanças, raciocínio e
criatividade. A teoria do mundo é a fonte do entendimento ou compreensão.
Iniciaremos apresentando o quanto o desenvolvimento da competência
leitora é imprescindível para a formação de um leitor consciente do seu papel
como sujeito socio histórico e culturalmente ativo.
Koch e Elias (2006) revelam que a concepção que se tem de leitura
determina a maneira de se ler. Quando o foco da leitura está centrado no autor,
o texto é um produto do pensamento, das ideias do autor, cabendo ao leitor
apenas captar as intenções do produtor. Quando o foco da leitura está na
materialidade do texto, codificado por um emissor, cabe ao leitor apenas
decodificar o produto (texto) de maneira linear; o sentido está nas palavras e na
estrutura do texto. No entanto, quando o foco da leitura está na interação entre
autor-texto-leitor, o sentido do texto é construído na interação. A leitura é,
então, uma atividade interativa e complexa de produção de sentidos, e o
processo de leitura se dá não somente entre o sujeito leitor e o texto lido.
Para se ler um texto é necessário que haja muito mais do que somente
conhecimento linguístico compartilhado entre os interlocutores, o leitor precisa

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 171


utilizar uma série de estratégias sociocognitivas para preencher as lacunas e
participar ativamente na construção do sentido. Estas estratégias mobilizam
uma série de conhecimentos que temos armazenados na memória.

Dizer que o processamento textual é estratégico significa que os leitores,


diante de um texto, realizam simultaneamente vários passos interpretativos
finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis e extremamente
rápidos” (KOCH; ELIAS, 2006 p. 39).

Para compreender o texto, o leitor faz uso dos seus conhecimentos de


mundo, aliados aos conhecimentos do texto, que vai orientá-lo para a
reorganização das informações textuais no nível semântico e, intencionalmente,
deve resultar em um processo de extração das ideias principais
(macroestrutura).
Com a interação dos diversos tipos de conhecimento: linguístico, textual,
conhecimento de mundo, o leitor vai conseguindo construir o sentido do texto,
por isso diz-se que a leitura é um processo interativo.
É esperado que o leitor elabore hipóteses para o que vai ler e vá
confirmando ou refutando-as à medida que vai lendo. “Assim, para que o leitor
seja efetivamente um leitor ativo que compreende o que lê, deve poder fazer
algumas previsões com relação ao texto” (SOLÉ, 1998, p. 116). Ajudando o
leitor a inferir, a reconhecer frases ou palavras, para não sobrecarregar os seus
mecanismos de processamento inicial (memória imediata).
O texto, pode ser visto como resultado parcial de nossa atividade
comunicativa, a qual compreende processos, operações e estratégias que têm
lugar na mente humana e que são postos em ação em situações concretas de
interação social.
Assim, consoante Koch e Elias (2006), existem quatro sistemas de
conhecimento responsáveis pelo processamento textual: conhecimento

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 172


linguístico, conhecimento enciclopédico ou de mundo e conhecimento
interacional.
O conhecimento linguístico trata do conhecimento do léxico e da
gramática, responsável pela escolha dos termos e da organização do material
linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos coesivos para efetuar a
remissão ou sequenciação textual, a seleção lexical adequada ao tema ou aos
modelos cognitivos adequados. Já o conhecimento enciclopédico ou de mundo
compreende as informações armazenadas na memória de cada indivíduo:
compreende o conhecimento declarativo, manifestado por enunciações acerca
dos fatos de mundo e o conhecimento episódico e intuitivo, adquirido através
da experiência, ambos estruturados em modelos cognitivos. Isso significa que
os conceitos são organizados em blocos e formam uma rede de relações, de
modo que um dado conceito sempre evoca uma série de entidades.
O conhecimento interacional relaciona-se com a dimensão interpessoal
da linguagem, ou seja, com a realização de certas ações por meio da linguagem.
Divide-se em: conhecimento ilocucional, conhecimento comunicacional, conhecimento
metacomunicativo e conhecimento superestrutural.
O conhecimento ilocucional nos permite reconhecer os objetivos ou
propósitos pretendidos pelo produtor do texto, em uma dada situação de
interação; já o conhecimento comunicacional diz respeito à quantidade de
informação necessária, numa situação comunicativa concreta, para que o
parceiro seja capaz de reconstruir o objetivo da produção do texto, além da
seleção da variante linguística adequada a cada situação de interação e
adequação do gênero textual à situação comunicativa. Relacionado ao
conhecimento ilocucional, diz respeito aos meios adequados para se atingir os
objetivos desejados.
O conhecimento metacomunicativo permite ao locutor assegurar a
compreensão do texto e conseguir a aceitação pelo parceiro dos objetivos com

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 173


que é produzido. Para tanto, utiliza-se de ações linguísticas configuradas no
texto por meio da introdução de sinais de articulação ou apoios textuais,
atividades de formulação ou construção textual. Refere-se aos meios
empregados para prevenir e evitar distúrbios na comunicação.
O conhecimento superestrutural corresponde ao conhecimento acerca
de superestruturas ou modelos textuais globais: permite aos usuários
reconhecer um texto como pertencente a determinado gênero ou tipo, bem
como sobre a ordenação ou sequenciação textual em conexão com os objetivos
pretendidos.

Leitura em sala de aula

Na escola, o objetivo maior é formar alunos letrados, não somente


alfabetizados, que possam ir além da mera decodificação de informações. É
importante que sejam capazes de, não somente compreender o texto lido, mas
também ter uma visão crítica sobre o que está sendo colocado e associá-lo aos
seus demais conhecimentos. Além disso, a escola deve ajudar o aluno a
desenvolver a capacidade de construir relações e conexões entre os
conhecimentos existentes, pois, somente quando se consegue fazer ligações
com significado entre objetos, fatos e conceitos, podemos considerar que houve
aprendizado.
Os aprendizados articulam-se, em redes construídas social e
individualmente, e estão permanentemente se atualizando. A leitura é a prática
social mais eficaz para esse fim. E é através da partilha desse conhecimento que
a escola contribui para a diminuição da injustiça social, fornecendo a todos
oportunidades para o acesso ao saber acumulado pela sociedade. “Ensinar não
é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para a sua produção ou a
sua construção.” (FREIRE, 2002, p. 25)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 174


Para a perspectiva discursivo-interacionista, a língua é uma atividade
interativa, inserida no universo das práticas sociais e discursivas, envolvendo
interlocutores e propósitos comunicativos determinados e realiza-se sob a
forma de textos – concretamente sob a forma de diferentes gêneros de textos.
O sujeito competente no domínio da linguagem é capaz de compreender
(e produzir) textos orais e escritos, adequados às situações de comunicação em
que atua, de posicionar-se criticamente diante do que lê e ouve, de ler (e
escrever) produzindo sentidos, entendendo o propósito comunicativo do
produtor do texto, formulando hipóteses de leitura, articulando respostas
significativas em variadas situações de comunicação. Esta visão traz em seu
cerne que a leitura e a compreensão se constituem em um ato social e não uma
atividade individual.

As Diretrizes Nacionais Curriculares (2013) trazem a escola como


elemento fundamental para selecionar e transformar os conhecimentos
escolares em um conjunto de conhecimentos possíveis de serem
ensinados, bem como servirem de elementos para a formação dos
princípios éticos, estéticos e políticos dos alunos. A esse processo, em que
se modifica o conhecimento de diferentes áreas em conhecimento escolar,
chamamos de transposição didática. “O acesso ao conhecimento escolar
tem, portanto, dupla função: desenvolver habilidades intelectuais e criar
atitudes e comportamentos necessários para a vida em sociedade”
(BRASIL, 2008, p. 112).

Geralmente, os textos que são utilizados no livro didático de língua


portuguesa procuram variar de acordo com o grau de complexidade que
supostamente possa ser atingido pelo leitor, variando de acordo com a faixa
etária do leitor típico; a atualidade do assunto e tema tratados; o contexto de
produção e recepção; a época de produção; as escolhas sintático-semânticas; o
vocabulário; a disposição e ordem das ideias e assuntos; os recursos expressivos
utilizados; as estratégias textuais utilizadas na composição; as determinações do
gênero. E deveriam variar de acordo com a proximidade do assunto, tema com
o meio cultural e o conhecimento de mundo do leitor, mas há dificuldade em

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 175


se contemplar esse item, tendo em vista que o livro é escrito para uso em larga
escala.
De acordo com Kleiman (2002), a leitura, normalmente, surge da
necessidade de se chegar a um propósito. Quando lemos porque outra pessoa
nos manda ler, como acontece frequentemente na escola, estamos apenas
exercendo uma atividade mecânica, que pouco tem a ver com construção de
sentido. Toda leitura ocorre de uma motivação antecedente. As práticas de
leitura não são somente escolares, elas ocorrem diariamente. Mas, na nossa
sociedade, as práticas de leitura são escolarizadas, sendo a escola a principal
instituição responsável por seu ensino. De acordo com Solé (1998), podemos
ler com diversos objetivos: para buscar algum dado de interesse, para seguir
instruções na busca de um objetivo concreto, para saber do que trata o texto,
para aprender o conteúdo abordado, para revisar algo anteriormente escrito,
por prazer, para repassar um conteúdo etc, mas qualquer uma dessas práticas
parte de uma motivação.
O professor de português, de acordo com o que preleciona Antunes
(2003), deverá promover uma participação cooperativa do aluno/leitor na
interpretação e na reconstrução do sentido pretendido pelo autor, para isso, há
uma série de implicações pedagógicas pelas quais pode se orientar. A escola
deve se afastar dessa perspectiva nomeadora e classificatória de que fala
Antunes (2003), com exercícios que apenas tratam da análise morfológica e
sintática, como se estas existissem onde não há comunicação, onde não há um
uso social da língua.
O movimento deve ser o contrário, primeiro se estuda o texto, para que
esse conduza nossa análise e em função dele se recorra às determinações
gramaticais, aos sentidos das palavras e se perceberá que os nomes das funções
sintáticas ou gramaticais não têm tanta importância. No texto, a relevância dos
saberes é de outra ordem.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 176


Só assim a leitura deixaria de ser praticada como se fosse uma atividade
artificial, somente voltada para a prática escolar, e seria vista como uma forma
de integração do aluno/leitor com o seu meio social, criando-se oportunidades
diárias para que o aluno possa construir, analisar, discutir, levantar hipóteses a
partir da leitura de diferentes gêneros textuais, permitindo a compreensão de
como a língua que ele fala funciona.
Deve-se buscar a formação de um sujeito competente no domínio da
linguagem, capaz de compreender textos orais e escritos e se posicionar
criticamente acerca desses. É preciso, através dessas leituras, não só dominar
habilidades intelectuais, mas se tornar capacitado para viver em sociedade.

O livro didático de Língua Portuguesa

O livro didático (doravante LD) já ocupa um papel institucionalizado no


contexto escolar brasileiro, a importância desse material para a prática de aula
do professor de língua é inquestionável. Com tal destaque, esse material se
transformou num objeto de análise e questionamentos de várias pesquisas
acadêmicas e ainda do próprio professor de línguas. “É voz corrente e antiga
que o livro didático constitui o centro do processo de ensino-aprendizagem em
todos os graus do ensino, com ênfase no ensino fundamental e médio”
(CORACINI,1999, p. 34).
Uma apreciação a que chegamos é a de que o LD direciona as aulas a tal
ponto de termos uma crença de que os próprios professores é que são adotados
pelo livro e, por esse motivo, não são autores de suas aulas, são apenas
mediadores das metodologias, atividades e propostas pedagógicas apontadas
pelos autores dos LDs. Isso promove uma dependência perigosa para o
profissional que está em sala de aula.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 177


Os livros para o Ensino Fundamental precisam estar alinhados a uma
proposta atualizada de leitura e de ensino de língua materna, que poderiam ser
orientadas também a partir das provas de grande porte estipuladas para o
Ensino Fundamental, com base na matriz de referência do SAEB para língua
portuguesa.
No entanto, ainda mostram, atividades de compreensão e propostas de
produção de textos, dentre outros problemas, que não contemplam a maioria
dos descritores presentes na matriz de referência exigidos para o aluno de
determinado nível. A escola, via LDP, restringe a metodologia de ensino a uns
poucos descritores.
A concepção de linguagem que está subjacente aos PCNs (BRASIL,
1998) não é a da simples codificação, mas de um fenômeno profundamente
social, histórico e ideológico, numa relação direta com a construção do sujeito,
que se constitui na fronteira entre aquilo que é seu e aquilo que é do outro,
numa permanente (des)construção dos objetos discursivos.
Nesse sentido, identificar as competências e habilidades dos alunos,
como indica a matriz de referência de Língua Portuguesa do SAEB, é
imperativo aos professores e especialistas interessados em promover um ensino
de qualidade, bem como é necessário aproveitar os resultados desta avaliação.

De acordo com os pressupostos teóricos que norteiam os instrumentos


de avaliação, a Matriz de Referência é o referencial curricular do que será
avaliado em cada disciplina e série, informando as competências e
habilidades esperadas dos alunos.” (BRASIL, 2002).

O termo matriz refere-se a uma maneira de apresentar relações entre duas


variáveis de naturezas distintas, mas intimamente associadas quando tratamos
dos processos de aprendizagem. No sentido vertical da matriz, os conteúdos
das áreas, objetos de conhecimento, apresentam-se de forma hierarquizada,
organizados por temas e assuntos em uma sequência lógica ou em temas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 178


específicos relacionados aos diferentes objetos do conhecimento. No sentido
horizontal, as competências cognitivas envolvidas e os níveis dessas operações
mentais, das quais os alunos farão uso para adequada construção do
conhecimento, são apresentados em níveis crescentes de complexidade.
O “cruzamento” dos conteúdos com as competências (operações
mentais) envolvidas, em seus diferentes níveis de complexidade, gera as
associações desejadas e em cada uma delas temos a indicação das habilidades.
Para construção de uma matriz de referência para a avaliação do
rendimento escolar, é necessária a identificação dos conteúdos ou objetos do
conhecimento necessários para o desenvolvimento cognitivo próprio da faixa
etária dos alunos nas diferentes etapas do currículo.
Torna-se necessário ressaltar que as matrizes de referência não englobam
todo o currículo escolar. É feito um recorte com base no que é possível aferir
por meio do tipo de instrumento de medida utilizado na prova. As matrizes são,
portanto, a referência para a elaboração dos itens e as aulas de LP não devem,
assim, se limitar ao que é exigido na matriz, tampouco se diz aqui que os alunos
devam ser treinados para a realização de um teste. O que se pretende, aqui, é
que a matriz de referência do SAEB seja utilizada como um norte para o ensino
de LP.

Considerações finais

Esse estudo traz como objeto de estudo as perguntas de compreensão


textual presentes no livro didático de Língua Portuguesa do Ensino
Fundamental, especificamente as unidades didáticas destinadas ao ensino de
compreensão textual, tendo como método avaliativo a comparação com a
matriz de referência proposta pelo SAEB para o ensino de língua portuguesa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 179


Tomamos como categorias de análise os descritores para língua portuguesa
propostos pelo SAEB que predominam nessas perguntas.
Essa opção metodológica deu-se pela hipótese de que o livro didático
quanto à questão da compreensão leitora e suas estratégias para a formação de
um leitor proficiente, ainda não responde por tais aspectos.
O livro que analisamos, “Português linguagens”, William Roberto Cereja
e Thereza Cochar Magalhães, 7º ano, foi sugerido no PNLD de 2013. A análise
dos dados da nossa pesquisa apontam na direção de que os autores propuseram
as atividades de leitura do LDP em estudo privilegiando o conceito de leitor
passivo, que apenas decodifica o que está presente no texto, precisando apenas
extrair do texto o significado que o produtor deixou no texto.
Nossa pesquisa evidencia ainda que o posicionamento do LD, contudo,
contraria o que propõe a matriz curricular para língua portuguesa do SAEB,
que solicita do aluno o conhecimento da linguagem como forma de interação,
ou seja, leitura e compreensão são processos de interação entre o texto, o leitor,
o produtor, as condições sociais, culturais, econômicas e discursivas do texto.
Por essa perspectiva, o leitor não é um sujeito passivo que reproduz
informações lidas, mas um sujeito ativo que completa os sentidos dos textos
através de seus conhecimentos linguísticos, conhecimentos prévios de mundo,
sua história de vida, sua cultura, sempre em interação com o texto e o contexto
social e discursivo de produção do texto.
Encontramos dados que nos permitem constatar que as atividades
propostas pelo LD não estão próximas do que é solicitado pela matriz de
referência e, por consequência, ao que é cobrado nas avaliações de larga escala.
Verificamos, assim, que as atividades de leitura do livro didático sob
análise não trabalham os descritores a contento, visto que faz uso apenas de
alguns deles, em sua maioria, de modo muito incipiente, possibilitando ao aluno
pouco sucesso nos exames externos que fazem uso dessa matriz para avaliá-los.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 180


Estamos certos de que esse trabalho ajuda a refletir sobre a prática
escolar e sobre o processo de construção do conhecimento dos alunos, além de
ajudar professores e outros profissionais da educação na tarefa de refletir sobre
a linguagem, seus conceitos e usos sociais, inclusive, seus usos no contexto
escolar. Esperamos que ele possa contribuir para o engrandecimento de
trabalhos futuros, uma vez que consideramos não estar aqui concluso tal
estudo.
É notável que há ainda a carência de estudos específicos sobre as
avaliações de grande porte e sobre como estas impactam a aprendizagem da
leitura na escola. A maioria dos estudos encontrados se detêm somente na
aprendizagem da leitura.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo:


Parábola editorial, 2003.
ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo:
Parábola editorial, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação; Secretaria de Educação Fundamental.
Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. Item 2001:
novas perspectivas. Brasília: Inep, 2002.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e terra, 2002.
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Tereza Cochar. Português
linguagens, 7º ano. São Paulo: Saraiva, 2012.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 181


CORACINI, Maria José. O processo de legitimação do livro didático na escola de ensino
fundamental e médio: uma questão de ética. In: CORACINI, Maria José. (Org.)
Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. São Paulo: Pontes, 1999.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e terra, 2002.
KLEIMAN, Ângela. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. São Paulo:
Pontes, 2002.
KOCH, Ingedore Vilaça e ELIAS, Vanda Maria, Ler e compreender: os sentidos
do texto. São Paulo: Contexto, 2006.
KOCH, Ingedore Villaça e ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de
produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Compreensão de texto: algumas reflexões, p. 48-61.
In: DIONÍSIO, Ângela Paiva e BEZERRA, Maria Auxiliadora (orgs.). (2005)
O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Editora Artmed, 1998.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 182


CAPÍTULO 13

A (in)visibilidade da mulher negra


universitária nos discursos político de
extrema-direita
Rosane Correia da Silva1

Breve introdução
A luta do homem contra o poder, é a luta da
memória contra o esquecimento (KUNDERA,
M. apud COURTINE, 2014, P.27)

O estudo aqui evidenciado tem por base os fundamentos teóricos da


Análise do Discurso de Michel de Pêcheux e contribuições dos diálogos nas
aulas de Discurso e Ontologia. Ao tratar do funcionamento discursivo deste
trabalho consideraremos a função interdiscursiva, aqui compreendida como
domínio de memória, que possibilita ao sujeito “o retorno e o reagrupamento
de enunciados...” (COURTINE apud MELO, 2007, p.150) como
dispositivo/categoria teórica a favor da “luta da memória contra o
esquecimento” na intenção, para o momento, de desvelar os sentidos
produzidos nos discursos de embates políticos como, por exemplo, o debate
entre o Abraham Weintraub e a Deputada Federal Talíria Petrone (mulher negra
universitária), que trataremos nas sequências discursivas.

1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Universidade Federal de Alagoas,


com ênfase em Análise do Discurso. E-mail: [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 183


Em se tratando das Condições de Produção como efeito de sentido,
ressaltamos, também, a importância de sempre voltarmos a quase quatro
séculos de história do Brasil escravista, mesmo que de forma breve, tomando
carona nas palavras de uma notável escritora negra brasileira, Conceição
Evaristo (2008, p.17) para registrar que “a memória bravia lança o leme:
recordar é preciso” – daí a relevância de pesquisas como esta resgatarem a
memória discursiva, que, portanto é histórica, como forma de combater toda
forma de opressão.
Dessa forma, acreditamos que a base de sustentação da nossa pesquisa é
considerarmos o ser ontológico, ou seja, o ser como sujeito histórico e
responsável por suas palavras ou/e por seu silenciamento, pois de acordo com
nossos professores da AD, ausência também é ideologia. Partimos, também, do
pressuposto de que o sujeito se constitui na relação com o outro, no interior
das lutas de classes (re) produzir é se posicionar em relação à valores, sendo
assim, o ser é sempre social e por ser social/histórico/ideológico, de acordo
com Magalhães (2009, p.27) o discurso nunca é neutro ou inocente, uma vez
produzido parte de um lugar social, de uma perspectiva ideológica, com isso
relaciona valores, crenças, leituras de mundo que representam os lugares que
ocupa na sociedade.
Neste sentindo buscaremos evidenciar, aqui, que os discursos
produzidos pelo Ministro da Educação estão marcados ideologicamente pelo
sistema político de extrema direita, advindos da classe dominante e que por isso
hegemônica, segregacionista, racista e sexista. Objetivamos investigar o discurso
materializado nos pronunciamentos do porta-voz2 do atual governo que
(in)visibiliza a mulher negra universitária.

2A figura do porta-voz é definida como funcionamento enunciativo de mediação de linguagem, como forma
nova de enunciar a palavra política, através da qual um sujeito pertence a um grupo, e é reconhecido pelos
outros integrantes como igual, destaca-se do resto como centro visível de um de nós em formação, que coloca
em posição de negociador potencial com o poder constituído (PÊCHEUX, 1982 apud ZOPPI, 1997, P.20)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 184


Para tanto, o trabalho está estruturado em – Condições de Produção
Ampla e Restrita – para mostrar a produção de efeitos de sentidos nos
contextos em que são produzidos os discursos racistas e sexistas; Percurso de
Análise – trataremos de desvelar os sentidos dos discursos e por último os
Apontamentos – que traz a conclusão parcial do presente trabalho.

Condições de Produção – CP,s Ampla e Restrita das


mulheres negras

A pesquisa situa-se em estágio inicial, transita pelo cenário da mulher


negra universitária que luta e resiste aos espaços e aos discursos racistas e
sexistas que se propagam como forma de oprimir e invisibilizar a mulher negra.
Tendo como pano de fundo três momentos históricos – os negros escravizados
no Brasil, o período pós abolição perpassando as políticas das cotas para negro
(a).
Nesse sentido, nos posicionamos de acordo com Magalhães & Sobrinho
(2014), ao afirmarem que as condições de produção devem ser tomadas como
“fundantes de toda práxis humana [...] em uma sociabilidade capitalista, todas
as práxis sociais serão afetadas pelas relações de classes geradas pela lógica
capitalista”, é o que mobiliza a (re)produção das relações sociais.
Ao trazer à tona a escravidão no Brasil e suas (re) produções de classes
sociais, estamos destacando o que Pêcheux, em Semântica e Discurso, descreve
sobre o aspecto ideológico da luta para transformação das relações de produção,
ele diz que:

a objetividade material da instância ideológica é caracterizada pela


estrutura de desigualdade-subordinação do “todo complexo com o
dominante” das formações ideológicas de uma formação social
dada, estrutura que não é senão a da contradição
reprodução/transformação que constitui a luta ideológica de classes
(PÊCHEUX, 2014, p.134)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 185


Dessa forma, vale mencionar a escravidão no Brasil e suas (re)produções
de classes sociais. Na época colonial e no período imperial do Brasil, foi a força
escrava que sustentou economicamente o país, durante os séculos XVI a XIX
[1550 – 1888]. Herdamos, desse momento escravista, “o desprezo e o ódio
covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade
minimamente igualitária” (SOUZA, 2017, p. 47)
O Estado, para tornar legítima a escravização africana, procurou, então,
associar o corpo negro às mercadorias3 e eram vendidas com preço de acordo
com as oscilações de mercado e até mesmo com prazo de validade.
Após séculos de escravidão, em que os negros foram escravizados para
enriquecer a população branca, incentivou-se a vinda dos imigrantes europeus
para o Brasil. Estes tiveram acesso a trabalho remunerado e muitos deles
receberam terras do Estado brasileiro. Graças a essa indenização, os
descendentes de imigrantes hoje desfrutam de uma realidade confortável. Em
contrapartida, para os ex escravizados, não se criou nenhuma medida de
segurança social – das senzalas foram para as favelas.
Daí a pertinência da luta do movimento negro por ações afirmativas para
construir mecanismos de inclusão na contemporaneidade. Trata-se de fato de
uma forma de exigência diante de uma sociedade excludente e injusta,
sobretudo com a minoria da população.
Dados sobre esse período decadente da nação brasileira apontam para o
fato de que no Brasil oitocentista, da década de 1820 (1821-1830),
desembarcaram cerca de 524 mil africanos escravizados nos portos brasileiros
(MARQUES & SALLES, 2016). O que nos leva a refletir sobre o quão intenso
foi o movimento de matança dessa condição no decorrer da construção de
nossa identidade enquanto povo.

3Desde os tempos da escravidão, a força humana foi transformada em mercadoria, segundo Konder (1999),
mercadoria é tudo aquilo que se produz para a venda, a produção de mercadorias já existia antes do capitalismo
existir, mas foi difundido pelo sistema capitalista. A força de trabalho produzida na mais valia é mercadoria.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 186


No ano de 1831, iniciou-se os primeiros passos rumo à proibição do
tráfico de escravos. Na Câmara, vários projetos foram apresentados entre maio
e julho de 1869, visando à emancipação dos escravos. Ao contrário do que
estava acontecendo no mundo acerca do fim da escravidão, os países mais
desenvolvidos já tinham condenado tal ato criminoso; a escravidão, aqui no
Brasil, continuava com a firmeza de sempre. Mesmo com a significativa redução
da entrada de escravos vindos da África, ou com o aumento do preço de
escravos, continuava a prática de tráfico negreiro no país.
Em 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea (n.º 3.353),
que proibia a escravidão em todo o país. Com a Lei aprovada, foi assinada
também a próxima batalha: a do preconceito, a da falta de emprego, a da
miséria, a da injustiça e, principalmente, a da falta de escolaridade.
A forma animalesca como homens e mulheres negros eram tratados foi
abolida. Mas, as marcas dessa realidade nunca foram apagadas. O processo de
luta e resistência negra perpassa por nossas mais diversas (re) produção social.
Dizer ou aceitar que a Lei Áurea foi um presente dado aos negros é ocultar da
nossa história toda uma trajetória dos movimentos abolicionistas, é esconder a
luta, a resistência de um povo. A abolição “foi um acontecimento de
instituições, um jogo de fatores, de interesses, de ideias, de contradições, de
projetos e de condicionantes que perpassou o lento processo que culminou com
a libertação dos escravos” (SILVA, 2017, p. 27)
Munanga e Gomes (2006), ao tematizar as ações provocadas pela
abolição, afirmam que o fato de as negras e os negros serem libertos/as não
lhes davam os mesmos direitos e nem as mesmas oportunidades dados aos
brancos e às brancas em nosso país.
Com a abolição formal da escravidão surge um mercado formal
competitivo do trabalho com base no contrato que gera um deslocamento
espacial do eixo desenvolvimento econômico nacional. Podemos citar, como

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 187


exemplos de tal constatação, os trabalhos de Florestan Fernandes4 quando, nos
anos de 1950, trataram da integração do negro na sociedade de classes paulistas.
Em sua pesquisa, o autor destaca uma diferenciação entre brancos europeus
que migraram para o Brasil no século XIX e sua ascensão social, que se deu
numa uma velocidade maior e mais rápida do que a ascensão social das negras
e dos negros que aqui já se encontravam.
Segundo Gomes (2017), o fato de a abolição ter sido realizada sem
preocupação com a inserção social dos negros libertos na sociedade brasileira e
o fato de ter sido um ato realizado pelo Império e por força da lei, atesta o seu
aspecto regulador pelo Estado. A ausência de condições estruturais para a
inserção social da população negra corroborou para reforçar o imaginário
racista, aumentando as desigualdades raciais entre não brancos e brancos que
são evidenciadas até hoje.
Se refletirmos sobre essas premissas, podemos notar que as
oportunidades dadas aos brancos de origem europeia foram diferentes daquelas
dadas aos negros e seus descendentes. Com certeza, por diversas razões, que
vão desde a forma como foram expostos à sociedade capitalista, sem nenhuma
instrução ou mínima mão de obra que atendesse às exigências do modo de
produção daquela época, até o preconceito que já se fundia no caráter de
inferioridade e o destrato social posto pelo branco.
No período pós abolição vários decretos e leis foram formalizados para
impedir a presença negra nos espaços valorizados, como o escolar, a exemplo
do Decreto nº 7.031 – A, de 06 de setembro de 1868, que estabelecia que os
negros só poderiam estudar no período noturno. Diversas estratégias foram
montadas no sentido de inibir a tentativa de instrução das negras e dos negros.
Ainda durante esse período também foram estabelecidas leis com o objetivo

4 FERNANDES, Florestan. A integralização do negro na sociedade de classes. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1978.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 188


de excluir ou até limitar o acesso da população negra ao cenário brasileiro como
a Lei do Sexagenário; Lei do ventre Livre e a Lei Áurea (FREITAS, 2017) 5
Assim, o breve relato sobre a História do Brasil serve para esclarecer que
a abolição não foi um presente doado aos negros como o é creditado nos
comportamentos sociais que até hoje imperam, a extinção da escravatura
ocorreu pelas transformações estruturais do comércio advindo de interesses
capitalistas. Como nos diz Machado (2017), foi o produto de pressões
internacionais, de interesses econômicos contraditórios e de uma tomada de
consciência que mobilizou a imprensa e se alimentou da militância de grupos
cada vez mais organizados e mais eficazes.
Passando para década de 1930, a questão da mulher e a questão racial
estavam interligadas às temáticas próprias ao marxismo-leninismo. Movimentos
de mulheres junto aos movimentos negros, articulados com os movimentos de
esquerda, começaram a se interrogar sobre a condição das mulheres e dos
negros, consequentemente, elaboraram várias críticas capazes de associar a
exploração de classe à opressão de sexo e de raça.
Os anos 1960-1970 foram marcados por uma fase da estruturação da
militância política das mulheres negras, no interior dos grupos de esquerda,
contra o autoritarismo no Brasil. Durante a ditadura militar, as mulheres negras
buscaram todas as formas de organizações para combater os discursos racistas
e sexistas. Nesse período, muitas militantes tiveram suas primeiras experiências
políticas nos partidos de esquerda, já outras iniciaram suas trajetórias no
movimento feminista, assim como no movimento negro. Esses grupos,
constituídos em um contexto autoritário, lutavam pelos direitos civis, pela
liberdade política e contra as desigualdades sociais. (MOREIRA, 2011, p.61)

5Freitas, Williem Silva de. É professor, Mestre em Educação pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL.
Dentre suas publicações, destacam-se: A ideologia do Racismo: entre o discurso do cotidiano e a materialização
da mídia brasileira. Autor também do livro Cabeça Preta.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 189


Em 1946, o senador Hamilton Nogueira (UDN) propôs na Assembleia
Nacional Constituinte um projeto de lei antirracista, mas o PCB se recusou a
aprovar. Já nos anos 1970, os militantes do movimento negro também foram
identificados como subversivos, os quais ao denunciar o racismo brasileiro,
foram acusados pelos militares de introduzir “antagonismos raciais” que
supostamente não existiam no país.
O ano de 1969 foi marcado por uma política que proibia toda forma de
luta contra o racismo, sob pena de um a três anos de prisão. A constante
repressão sofrida pelos militantes dos movimentos negros facilitou, dessa
maneira, seu diálogo com todas as organizações mobilizadas na luta contra a
ditadura militar, especialmente os grupos comunistas. (KOSSLING, 2008, p. 3)
Os anos 1980, marcados pelo fim do regime ditatorial, representaram o
apogeu da luta política das mulheres negras no Brasil. Os Movimentos de
Mulheres Negras estruturados durante esse período proporcionaram-lhe uma
maior visibilidade na cena política nacional. Dessa maneira, as mulheres negras
se mobilizaram contra o racismo e o sexismo no Brasil, uma dupla
discriminação que as relegou, desde a escravidão às camadas mais
desfavorecidas da sociedade.
Avançando a história e chegando aos dias mais atuais, mais precisamente,
abordando a política de ações afirmativas para negro (a) nas universidades
públicas.
A ação afirmativa foi adotada pela primeira vez em 1960 nos Estados
Unidos, na tentativa de diminuir a desigualdade socioeconômica entre negros e
brancos, no entanto a lei foi destituída já que não houve resultados satisfatórios,
uma vez que somente os negros da classe média usufruíram da medida e por
isso a desigualdade continuou em índice alarmante. As diretrizes de ações
afirmativas foram implantadas no governo de Barack Obama, mas correm risco
de serem destituídas desde o ano de 2018 pelo republicano Donald Trump, que
considera e defende uma política neutra em relação à cor da pele.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 190


No Brasil, as calorosas discussões acerca da política de cotas raciais
atravessam o mesmo viés ideológico estadunidense, o atual governo de Jair
Bolsonaro luta contra a lei 12.711/2012. Seria então uma coincidência? Vocês
respondem.
A Lei 12.711/12, mais conhecida como lei de cotas raciais, foi sancionada
no governo Dilma Rousseff, a lei destina 25% das vagas sociais (equivalente a
renda da família) aos que se autodeclaram preto ou indígena. A Universidade
de Brasília (UnB) foi a primeira federal a adotar as cotas, em junho de 2004,
antes mesmo da lei ser instituída, mas em 2012, quando a UnB completou oito
anos de sistema de cotas, o Partido Democratas (DEM) entrou com recurso no
Superior Tribunal Federal contra a medida, alegando, inclusive “racismo”.
Sempre houve várias tentativas de retirar ou/e negar direitos sociais ao negro
(a).
No que tange essa perspectiva, o acesso de direitos aos negros e negras
pelo sistema de cotas raciais nas universidades corrobora para melhores
empregos, melhores condições de vida e possibilidades outras de se atuar
em/na sociedade, por isso, talvez, esse acesso seja tão inviável ao capitalismo.
Hoje a imposição do atual governo é acabar com a política de cotas raciais com
a alegação que “todos os brasileiros são iguais”.

Percurso de Análise
O discurso é acontecimento que articula uma rede de
memória [...] Todo discurso é índice de agitação nas
filiações sócio-históricas. (PÊCHEUX apud
FLORÊNCIO [et al], 2017, p.26).

Ao analisar o pronunciamento do porta-voz do Ministério da Educação


(MEC) direcionado à deputada federal Talíria Petrone , durante a Comissão de
Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, entendemos como
entrecruzamento de discursos que atravessam a memória do discurso. Tal
discurso produz efeito de sentido que dialoga com a história do racismo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 191


estrutural e sexismo que configura uma posição assumida pela ideologia do
capital.
A materialidade do discurso se dá na intensa discussão sobre o programa
inovador universitário, quando Abraham Weintraub questiona a posição da
deputada Talíria Petrone de defender o povo negro, e em seu discurso
acrescenta que “não existe povo negro, existe brasileiro de pele escura”.

Figura 1 - Weintraub critica Talíria Petrone: “Não existe povo negro, existe brasileiro de
pele escura”

Meu avô era mais escuro que ela. Quando ela se atribui como grande defensora do povo negro, não
sei quem lhe deu esse cargo. (06 de setembro de 2019, 11h07)
Fonte: revistaforum.com.br

Teremos como SD’s:


SD1: Quando ela se atribui como grande defensora do povo negro, não
sei quem lhe deu esse cargo.
SD2: Não existe povo negro, existe brasileiro de pele escura.

É sabido que os efeitos de sentidos do discurso podem ser vários dependendo


de quem enuncia, do lugar que é enunciado e em qual contexto social é
produzido. Diante disso, pode-se dizer a mesma coisa, mas provocar sentidos
diferentes, porque as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação
discursiva para outra.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 192


Levando em conta as duas sequências discursivas provenientes do
mesmo sujeito, que ocupa cargo político do atual governo liderado pelo Partido
Socialista Liberal (PSL), constatamos que segue a forma sujeito de caráter
hegemônico/dominante. A formação ideológica (FI) situa-se no modo de
produção capitalista e de parâmetros econômicos neoliberal, que visam à
crescente desigualdade social, corta gastos em políticas sociais e vendem o
discurso de que todos são iguais perante a lei.
A SD 1 nos remete à formação imaginária – A-B: Quem é ela para que
me fale assim? Nessa formação, o interdiscurso é acionado pela memória
discursiva ao lugar predestinado à mulher negra na sociedade. Mostra também
um silenciamento, pois ao indagar quem a instituiu como defensora do povo
negro, ele invisibiliza Talíria Petrone quanto ao gênero e à raça. Lembrando,
aqui, que Petrone além de deputada (PSOL), é ativista política e professora de
história, então, mesmo que alguém precise de autorização para defender uma
política pública para uma equidade racial, não seria o caso da deputada, que
defende a partir de um lugar que é dela de mulher, negra e universitária. A
análise constata também que a posição sujeito se identifica com o discurso
sexista, na qual o sujeito sente-se no direito de desautorizar a fala da deputada
federal.
Na SD2, o sujeito identifica-se com o discurso instaurado pela
democracia racial que ganhou força durante a ditadura militar, pois há um
silenciamento funcionando como apagamento da memória, é como se o avesso
do dizer fosse: só existe branco, portanto não existe racismo no Brasil. É
resgatada uma memória discursiva de 1970, em que os militantes do movimento
negro quando foram identificados como subversivos ao denunciar o racismo
brasileiro, foram acusados pelos militares de introduzir “antagonismos raciais”
que supostamente não existiam no país. Então, na atualização do discurso, ao
dizer que não existe povo negro, ele provoca um novo paradigma social

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 193


brasileiro e logo isenta o governo de continuar ou melhorar a política de ação
afirmativa para pretos nas universidades.
Observa-se também o equívoco quando ele diz “... existe brasileiro de
pele escura”. Mas ele não se coloca como esse brasileiro, já que ele usa a terceira
pessoa verbal, podemos afirmar que a partir do cargo que ele ocupa como
ministro da educação, de uma formação discursiva dada numa ordem jurídica,
política e educacional, seu discurso racista e sexista é ofensivo e desestabilizante
diante de um processo socioeconômico em crise que vivenciamos neste país.

Apontamentos

Através das Condições de Produção entendemos como os discursos são


constituídos e seus sentidos são produzidos nas/pelas relações entre os homens
em sociedade, estas relações conflituosas evidenciam o poder do direito, a
soberania de uma raça e classe sobre a outra, com base na exploração e
aniquilação, sobretudo, do povo negro, retrato da ideologia do capital, que
corrompe toda humanidade.
Com base em que “o discurso é práxis humana [...] e todo discurso tem
a ver com o sujeito no processo de produção da vida de uma sociedade”
(MAGALHÃES 2016, p.27) Mostra que os discursos analisados no percurso de
análise são permeados por questões supracitadas, neste trabalho, que envolve
desde o período dos negros escravizados no Brasil, a trajetória da mulher negra
durante a ditadura até as discussões da política de cotas raciais, que, ganhou
visibilidade nos governos anteriores, ampliando o espaço, também, para a
mulher negra se estruturar profissionalmente.
Questionar o direito de uma mulher negra e/ou mudar a narrativa da
história de um povo como faz Abraham Weintraub, é no mínimo uma estratégia
de manipulação social para garantir o silêncio do povo nas reformas de
monetarização universitária.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 194


Referências

DOMINGUES, Petrônio. Movimento Negro Brasileiro: alguns apontamentos


históricos. Tempo, São Paulo, vol.12, nº23, p. 100-122, 2007.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo
Horizonte: Nandyala, 2008.
FLORÊNCIO, Ana Gama [et al]. Análise do Discurso: fundamento e prática. –
Maceió: EDUFAL, 2009.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. – Rio de Janeiro:
Leya, 2017.
KOSSLING, Karin Sant’Anna. Movimentos negros no Brasil entre 1964-
1983. Revista Perseu História, Memória e Política, 2008.
MAGALHÃES; SOBRINHO. “Erro” no apoio ao Golpe de 64: sujeitos
enfrentam-se nesse acontecimento discursivo. Letras, Santa Maria, v. 24, n. 48,
p. 177-192, jan./jun. 2014
MARQUESE, Rafael e SALLES, Ricardo. Escravidão e capitalismo histórico no
século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1ª ed. – Rio de Janeiro, 2016.
MELO, Kátia. Discurso, consenso e conflito: a (re)significação da profissão docente
no Brasil. Maceió: EDUFAL, 2011.
MOREIRA, Nubia Regina. Organização das feministas Negras no Brasil.
Vitória da Conquista: Edições UESB, Ciências Sociais-Sociologia, 2011.
MUNANGA, Kabengele e Gomes, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje.
Global, 2016.
NETTO; BRAZ, José Paulo. Economia Política: uma introdução crítica.
– São Paulo: Cortez, 2006.
ZOPPI-FONTANA, Mónica Graciela. Cidadãos Modernos: Discurso e
Representação Política. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 195


CAPÍTULO 14

A desconstrução das fake news em


sala de aula: atividades de checagem de
informação
Marcos Randall Oliveira de Freitas1
Gerciane Lima de Miranda 2

Introdução

Cada vez mais o universo digital apresenta desafios aos sujeitos,


principalmente em relação às diferentes formas de ver e pensar o mundo no
contexto contemporâneo. Assim, constitui-se como uma exigência que a escola
e os professores, amparados pelo documento da BNCC (Base Nacional
Comum Curricular), proporcionem aos educandos propostas de trabalho com
práticas diversificadas de linguagem que possibilitem aos estudantes
desenvolver habilidades relativas ao mundo e a cultura digital. A pesquisa em
questão tem por objetivo apresentar uma atividade sobre a desconstrução das
fake news em sala de aula a partir de processos que envolvam o letramento
digital crítico e a checagem de informações. Com isso, elaborou-se uma

1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGLing) da Universidade Federal do Ceará


(UFC). Fortaleza-CE. [email protected].
2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Linguística (PPGLing) da Universidade Federal do Ceará

(UFC). Fortaleza-CE. [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 196


atividade para alunos do ensino médio com foco no gênero notícia e no campo
de atuação jornalístico- midiático, que contempla leitura e oralidade. Com o
andamento da atividade, outros gêneros irão se cruzando, como o debate. Para
tanto, urge que todos, professores e alunos, estejam empenhados em discutir
ideias, checar informações e compreender as relações de poder existentes nos
diferentes ambientes sociais, inclusive na internet.

A Web e suas tramas: ser/estar em rede

As múltiplas transformações tecnológicas, o processo de globalização


dos mercados e a diversidade cultural proporcionaram o aumento crescente das
informações e a interação entre os diversos sujeitos e culturas. Além dos já
tradicionais temas relacionados à diferença de classes sociais, estes fatores
trazem à tona o debate sobre sexualidade, gênero, religião, corpo, inclusão de
pessoas com deficiência, entre outros. Para isso, discutir e (re)pensar sobre a
disseminação das fake news é um processo que amplia a percepção sobre o
ser/estar no mundo contemporâneo.
Com o fortalecimento das práticas de letramentos, na rede e fora dela, o
cotidiano tornou-se dinâmico e mais complexo para atender a uma demanda de
informações, novidades, chamados, e possibilidades. A nossa compreensão
desses novos tempos está em construção, por isso, posicionamentos estritos
pró ou contra, merecem ser revistos, pois que, o essencial seja o fortalecimento
da emancipação e da construção de identidades sociais. Conforme Fairclough
(1989, p. 4):

Ao se focar em ideologia, pode-se ajudar as pessoas a enxergar que a


linguagem repousa sobre suposições do senso comum, e os caminhos
pelos quais tais suposições podem ser ideologicamente moldadas pelas
relações de poder (FAIRCLOUGH, 1989, p. 4).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 197


Nessa perspectiva, para Fairclough (1989), a leitura crítica reflete uma
compreensão de mundo pautada nas relações e nos posicionamentos
ideológicos. Sendo assim, ser/estar na Web urge mais desafios aos sujeitos,
principalmente em relação às diferentes formar de ver e pensar o mundo no
contexto contemporâneo.
Street (2014, p. 105) define práticas de letramento como sendo
“comportamentos exercidos pelos participantes em um evento de letramento,
onde as concepções sociais que o configuram determinam sua interpretação e
dão sentido aos usos da leitura e/ou escrita naquela situação particular”. Essas
práticas perpassam por uma multiplicidade de gêneros orais e escritos, fazem
parte do cotidiano dos sujeitos e também contribuem com o fortalecimento da
percepção crítica dos sujeitos, pois são

múltiplas e diversas, pois dependem das formas como as pessoas e grupos


sociais integram a língua escrita em seu cotidiano e dos processos e
estratégias interpretativas utilizadas pelos participantes de um processo de
interação (MORTATTI, 2004, p. 106).

Esse novo contexto tecnológico, ao contrário do que possa parecer, não


deve angustiar, deve ser apenas desafiador. Deve reforçar o papel dos
professores e das escolas e universidades, pois, diante da alta competitividade
social, a qualificação é imprescindível, assim como uma formação inicial e
continuada dos docentes de modo que integre a aprendizagem e o
desenvolvimento de competências em TICs. Trata-se da inserção da dos
sujeitos em uma transformação social de alcance global para fins equilibradores
do desenvolvimento intelectual e humano, além do fortalecimento de agentes
que questiona, investigam e buscam a veracidade das informações.
Para Rojo (2012), a multiplicidade de linguagens (imagens, sons, links,
vídeos, cores) dos textos contemporâneos, tanto em ambientes digitais quanto
impressos, exige capacidades e praticas de compreensão e produção de cada

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 198


uma delas para fazer significar cada hipertexto. Por isso, o leitor assume um
novo papel, e esse novo perfil do leitor é influenciado também pelo amplo
acesso à informação e pela rápida circulação dessa informação. Marcuschi
(2001, p. 86) menciona que

essa escritura eletrônica não-sequencial e não-linear, que se bifurca e


permite ao leitor o acesso a um número praticamente ilimitado de outros
textos a partir de escolhas locais e sucessivas, em tempo real; permite ao
ledor definir interativamente o fluxo de sua leitura a partir de assuntos
tratados no texto sem se prender a uma seqüência fixa ou a tópicos
estabelecidos por um autor. Trata-se de uma forma de estruturação textual
que faz do leitor simultaneamente co-autor do texto final. O hipertexto se
caracteriza, pois, como um processo de escritura/leitura eletrônica
multilinearizado, multisequencial e indeterminado, realizado em um novo
espaço de escrita. (MARCUSCHI, 2001, p. 86)

Diante da necessidade de identificação das fakenews, é fundamental que


a escola em parceria com os professores desenvolvam atividades de forma a
possibilitar aos alunos a apropriação de estratégias leitoras que lhe permitam,
entre outras coisas, ser capaz de diante dos escritos, (nesse caso, do gênero
notícia em suportes digitais/ nos mais variados suportes) conseguir discernir
sobre a veracidade dos fatos apresentados, contribuindo assim com seu
processo de letramento (digital e/ou crítico), bem como com sua formação para
o exercício de uma cidadania plena.
É importante salientar que as atividades com práticas de linguagens em
diferentes mídias (impressa, digital, analógica) constitui um dos aspectos
contemplados na BNCC, ampliando, assim, as situações não só do que os
alunos devem saber, mas, sobretudo, do que devem saber fazer, mobilizando
os conhecimentos e habilidades adquiridos para orientar suas escolhas e
posicionamentos diante das demandas de ordem comunicativa que se lhe são
apresentadas diariamente.

Em que pese o potencial participativo e colaborativo das TDIC, a


abundância de informações e produções requer, ainda, que os estudantes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 199


desenvolvam habilidades e critérios de curadoria e de apreciação ética e
estética, considerando, por exemplo, a profusão de notícias falsas (fake
news), de pós-verdades e de discursos de ódio nas mais variadas instâncias
da internet e demais mídias (BRASIL, 2017, p. 479).

O exposto já seria suficiente para respaldar a efetivação de diferentes


textos multimodais no cotidiano. Acrescentando-se o problema do déficit no
letramento escolar, estas ganham forças e faces. A web trouxe outras formas de
agir, facilitando algumas atividades que antes, quando realizadas de maneira
convencional, demandavam um trabalho maior e conhecimentos específicos
que não estavam acessíveis à grande massa popular. Para tanto, urge que todos,
professores e alunos, estejam empenhados em discutir ideias, checar
informações e compreender as relações de poder existentes nos diferentes
ambientes sociais, inclusive na internet.

A sequência da atividade

Sobre a atividade: esta é uma atividade com foco no gênero notícia e no


campo de atuação jornalístico-midiático, e faz parte do módulo de leitura e
oralidade. Com o andamento da atividade, outros gêneros irão se cruzando,
como o debate.
Materiais necessários: Smartphone e/ou computador com internet; data-
show; e cópias dos materiais listados nas orientações (quantidades de acordo
com o número de alunos).
Público-alvo: Alunos do Ensino Médio
Competências: Competência específica 7 - Mobilizar práticas de linguagem
no universo digital, considerando as dimensões técnicas, críticas, criativas, éticas
e estéticas, para expandir as formas de produzir sentidos, de engajar-se em

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 200


práticas autorais e coletivas, e de aprender a aprender nos campos da ciência,
cultura, trabalho, informação e vida pessoal e coletiva.
Habilidades: (EM13LGG701) Explorar tecnologias digitais da
informação e comunicação (TDIC), compreendendo seus princípios e
funcionalidades, e utilizá-las de modo ético, criativo, responsável e adequado a
práticas de linguagem em diferentes contextos.
(EM13LGG704) Apropriar-se criticamente de processos de pesquisa e
busca de informação, por meio de ferramentas e dos novos formatos de
produção e distribuição do conhecimento na cultura de rede.
Informações sobre o gênero: O gênero notícia pode ser entendido como
um texto no qual se divulga um fato ou acontecimento, veiculado
principalmente por jornais, revistas e rádios, impressos, eletrônicos ou
televisivos. Por ser um gênero expresso em diversos meios de comunicação,
atinge diversas camadas da população, trazendo informações e contribuindo
para a disseminação e construção da opinião dos leitores sobre diferentes
temáticas. Esses textos são dinâmicos, atuais e contínuos, e, como não é
qualquer fato que vira notícia, ele deve ser marcado por ser um fato inédito, que
gera interesse no público e aproximação com os leitores, por isso, a
preocupação dos jornalistas em atrair um público que confie na credibilidade
do meio de comunicação.
Tendo em vista que há diversos públicos que leem os jornais, cada linha
editorial se adéqua ao que entende que chamará mais a atenção de seu público
alvo, determinando assim seu vocabulário, extensão do texto, temáticas e o nível
de parcialidade no tratamento das informações. Em sala de aula, é importante
que os alunos compreendam que a imparcialidade no jornalismo é um mito,
pois cada notícia carrega ideologia e marcas de uma pessoa, grupo ou
instituição.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 201


A notícia3 é composta por três partes: título, lead e corpo. O título e
subtítulo (quando houver) buscam despertar o interesse no leitor, como as
manchetes, por exemplo. O lead (1º parágrafo do texto) deve apresentar as
informações essenciais do fato: o quê, quem, quando, onde, como, por quê; ou
seja, é um resumo da notícia, que será mais detalhada no corpo do texto. As
fotos e legendas são marcas fundamentais nesse gênero e fundamentam a
informação dada na notícia, ampliando as possibilidades multissemióticas do
gênero.
Os alunos devem saber que para se escolher a notícia que se vai ler,
dentre tantas em um jornal, é comum se ler o título e a imagem, por isso, essas
escolhas são feitas de forma criteriosa pelos jornalistas a fim de causar impacto
e chamar a atenção do leitor.

Tempo sugerido: 150 minutos4

Passo a passo da atividade:

1º momento: Explique sobre o fenômeno das fakenews e os impactos da


divulgação dessas informações na vida das pessoas. Sugerimos que neste
momento seja realizado um debate com todos os alunos, mostrando os
impactos, as características e que se abra um espaço para expor algumas notícias
onde os alunos, após a leitura, sinalizarão razões, indícios no texto para essa
notícia ser considerada Fake News. É um valioso momento de trabalho com a
oralidade e argumentação. Apontamos, abaixo, alguns exemplos dessas Fake
News: (Tempo estimado: 25 minutos).

3 Além da notícia, outros gêneros serão trabalhados. Professor, apresente diversos gêneros para os alunos,
assim, o repertório de gêneros será sempre ampliado.
4 O tempo da atividade pode ser ampliado ou reduzido. Essa mudança depende do planejamento de cada

professor. Analise o perfil de sua turma e propicie momentos contínuos de aprendizagens significativas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 202


Figura 1: Fake news sobre Haddad

Fonte:http://www.portals1.com.br/haddad-entra-na-justica-contra-bolsonaro-por-insistir-em-kit-
gay-na-eleicao/

Figura 2: Fakenews sobre Fátima Bernardes

Fonte: http://www.psafe.com/blog/rp-noticias-falsas/

2º momento: Projete outras manchetes de Fake News no quadro. Caso


não tenha projetor em sua escola, imprima o material previamente e distribua
aos alunos. Peça para que leiam em voz alta (o título e, se houver, o subtítulo).
Este momento pode ser feito também na sala de informática da escola.
Sugerimos algumas manchetes a seguir, que podem ser utilizadas em sala de
aula: (Tempo estimado: 25 minutos)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 203


Fernando Haddad convida Jean Wyllys para ser ministro da Educação

Marielle Franco foi esposa do traficante Marcinho VP

McDonald's deu folga para os homens no Dia das Mulheres

Mark Zuckerberg anuncia que o Facebook será pago

Lula acena para a multidão com 10 dedos nas mãos

As manchetes acima são sugestões e podem ser substituídas de acordo


com a preferência do professor e com a receptividade dos alunos. Cada
professor conhece sua turma a partir das vivências construídas em sala de aula.
Após mostrar as manchetes aos alunos, faça alguns questionamentos:
Alguém já conhecia estas manchetes ou já sabia de alguma informação
sobre esses fatos? Use a palavra “fato” para que depois seja possível recuperar
essa ideia, de que existem fatos e opiniões. Se alguém responder que já tinha
ouvido falar dessa notícia, pergunte em qual meio midiático o aluno viu.
A diferença entre fato e opinião é um assunto que urge ser discutido nas
nossas salas de aula. Por isso, quanto mais exemplos você levar para sala de
aula, mais fácil será a aprendizagem dos alunos.
Já que a aula é sobre Fake News, vocês acham que essas notícias podem
ser falsas? No início, você perguntou se alguém conhecia esse fato, essa pode
ser uma boa dica para dizerem que a notícia é verdadeira ou falsa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 204


3º momento: Divida os alunos em grupos com 4 integrantes e peça para
eles buscarem na web informações sobre as manchetes apresentadas nos slides.
A pesquisa pode ser feita pelos smartphones. Caso a escola tenha laboratório
de informática, recomendamos a utilização. (Tempo estimado: 50 minutos)
A partir da pesquisa na internet, que dados vocês têm para argumentar
que essas notícias são falsas ou não? Deixe que apontem as informações que
veem. Estimule o senso de pesquisador dos alunos.
Que outras formas teríamos para identificar ou checar que essas notícias
são Fake News? Neste momento, é importante refletir com os alunos a
importância da verificação da notícia em outras fontes e a necessidade de
verificar o site da publicação, de onde saíram os dados expostos e a
confiabilidade do autor da “notícia”.
Professor, sugira alguns questionamentos aos alunos a fim de norteá-los
nesse processo de checagem e reconstrução dessas notícias:

 O autor da notícia está identificado?


O autor/site produziu outros textos/materiais? Quais?
O texto usa alguma pesquisa como base? Se sim, o que essa pesquisa
conclui?
O texto usa dados estatísticos? Se sim, qual o uso o autor faz desses
dados?
O texto apresenta mais de uma visão sobre o mesmo tema?
Há algum lado da história que não aparece no texto?
O autor expressa uma opinião? Se sim, qual?
O autor impõe um ponto de vista? Se sim, como?
Os fatos são apresentados dentro de um contexto histórico?
O texto dialoga com fatos recentes da história?
Como o texto dialoga com a imagem? O que essa imagem representa?

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 205


4º momento: Depois do tempo de checagem das informações, esse é o
momento em que professores e alunos vão debater sobre o processo de
checagem, as curiosidades, as dificuldades e as potencialidades deste momento.
Neste momento, é importante que sejam discutidas detalhadamente as
informações encontradas com o objetivo de ampliar a percepção dos jovens
investigadores. (Tempo estimado: 50 minutos)
Dificuldades antecipadas: Os alunos podem apresentar dificuldades em
identificar os fatos, opiniões e notícias falsas em textos jornalísticos por não
terem muita experiência com o gênero notícia em seu dia a dia.
Os alunos podem apresentar dificuldades em distinguir fatos de opiniões,
pois para isso precisam ter conhecimentos de ordem linguística, para diferenciar
o acontecimento em si dos comentários sobre o fato, e, senso crítico, para
identificar quando há manipulação tendenciosa das informações, as fakenews.
Além disso, os alunos podem ainda ter dificuldade de refletir criticamente
sobre algumas temáticas que desconhecem, como política e economia, não
percebendo questões controversas presentes nos textos lidos ou outros indícios
que firam a credibilidade da informação lida.

Considerações finais

As digitalidades estão em nosso cotidiano e influenciam diretamente no


processo de ser/estar no mundo, afinal, transformam as experiências de
comunicação e possibilita um trabalho pedagógico aprofundado em rede. Ao
levar o debate sobre as Tecnologias da Informação e Comunicação para a sala
de aula, o professor reflete sobre os múltiplos letramentos críticos e possibilita
aos alunos experiências para além do tradicional.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 206


Nesse contexto, professores e alunos, imersos no contexto digital,
deparam-se diariamente com infinidades de notícias, que podem se aproximar
do fato ou distanciar-se, originando assim as fake news. Cabe aos docentes
buscarem uma atuação pautada na ênfase ao letramento crítico, o que amplia as
possibilidades de trabalho dentro e fora da sala de aula.
Além do uso do computador, cada professor pode incentivar o uso de
smartphones na escola, já que este instrumento viabiliza o acesso a variados
caminhos digitais, além de possibilitar o uso de jogos, tradutores e outras
ferramentas que fundamentam o processo de ensino-aprendizagem.
Dessa forma, todos os envolvidos no processo pedagógico, professores
e alunos, são, cada vez mais, os protagonistas na construção do conhecimento,
a partir da desconstrução de mitos e manipulações depreciativas de
informações.

Referências

FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989.


GALLO, Fabio. O persistente mundo da pós-verdade. In: BLANCO, P. (Org):
Pensadores da Liberdade: liberdade e cidadania. São Paulo: Palavra Aberta,
2017.

GOMES, HelonSimões. Facebook e Google miram modelo de negócio das notícias


falsas; entenda. G1, 2 abril 2017. Disponível em: < https://goo.gl/GgPJbL>
Acesso em 02 mai. 2019.

IANDOLI, Rafael. Trump, ‘fakenews’ e a guerra declarada contra a imprensa. Nexo,


03 jul. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/sw7Wvq>. Acesso em 02 mai.
2019.

JUNIOR, Oswaldo Giacoia. E se o erro, a fabulação, o engano revelarem-se tão


essenciais quanto a verdade?. Folha de São Paulo, 10 fev. 2017. Disponível em:
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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 207


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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 208


CAPÍTULO 15

A escola crítica e os (re)significados


da cidadania: por uma ensinança da
emancipação das massas
Eduardo Henriques1

Introdução

É mais fácil ensinar do que educar,


para ensinar você só precisa saber,
mas para educar você precisa ser!
(autor desconhecido)

Pensar a Educação, via de regra, implica considerar os diálogos entre


teoria e prática, e não apenas com relação às experiências de ensino e de
aprendizagem em sala de aula, mas, sobretudo, àqueles concernentes às políticas
públicas educacionais.
Tal exposição se clarifica à luz da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei nº 9.394/96, na qual está ordenada a promoção de uma
escolarização universal orientada ao desenvolvimento pleno da cognição e do
físico, das habilidades e competências qualificadoras para o mundo do trabalho,

1 Doutorando em Linguística do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de


Pernambuco – PPGL/UFPE. Professor de Linguística e Língua Portuguesa – SEE-PE. Contato:
[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 209


e da autonomia para o exercício dos direitos sociais, civis e políticos. Tudo isso
em contraste com a hodierna realidade da escola pública brasileira, como
também, e principalmente, das investidas governistas direcionadas à dissociação
entre o conhecimento construído na vivência escolar e a sua relação e
implicação direta com a vida social.
Com vista ao aditamento de atos governamentais supressores da
pertinência do debate das identidades e das formas de existir, intentando aleijar,
da escola, questões de classe social, raça, etnia, gênero, sexualidade, ideologia e
poder, o Estado se impõe no espaço escolar, através da exigência de uma
neutralidade pedagógica na qual o conhecimento é trabalhado em si mesmo,
apartado da cultura e das estruturas corporificadoras da sociedade.
Contudo, mais significativo que o dissenso ora exposto se revela a
possibilidade de uma escola subversiva, cuja lealdade não esteja com aparato
ideológico governamental, e sim com a própria finalidade do empreendimento
escolar: a promoção da cidadania. Nesses termos, o presente trabalho exorta a
uma prática docente desfiliada de partidos políticos e iguais projetos partidários
de governo, a fim de estar alinhada com o basilar compromisso educacional de
desnormalização dos significados culturais e suas materialidades na sociedade,
haja vista que é através de um posicionamento autônomo, reflexivo, crítico e
responsável que os sujeitos se tornam capazes de exercer a cidadania, de acessar
à cultura letrada e de atuar sobre as estruturas vigentes a fim de subverter
quaisquer assimetrias que subjuguem a pessoa humana à opressão de
hegemonias marginalizadoras.
Sob esse intuito, faz-se mister refletir a Educação Crítica para pensar a
escola e a docência, consoante a Linguística Aplicada Crítica e Indisciplinar em
atenção às práticas linguageiras em contexto pedagógico, empregadas à aula de
língua portuguesa da educação básica pública. Assim, discutir o ensino da língua
por meio da contextualização dos eixos da Leitura, da Escrita, da Análise

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 210


Linguística e da Oralidade nos princípios do educar para a cidadania concorre
para desvelar à leitura docente as deformidades normalizadoras de uma
pedagogia neutra.
Logo, em face das ações silenciadoras, apagadoras e cúmplices das
opressões empreendidas ao se orientar a aula de português apartada de práticas
de letramentos alicerçadas nas realidades da comunidade escolar, de seus
problemas, desafios, alienações, carências e direitos alijados, uma educação
crítica assume por compromisso basilar o explicitar, inclusive, o papel da língua
na manutenção ou no enfrentamento dessas conjunturas opressoras e
oprimidas. Nesses termos, defender, tal qual efetivamente executar, uma
ensinança crítica da língua, significa centralizar a aprendizagem como ação
transformativa, a qual deve contar com o protagonismo discente sobre as
estruturas de acesso - e de subversão daquelas outras negadoras - ao bem-estar
social e ao desenvolvimento e gozo da dignidade humana.

Educação: entre o oficial e o oficioso

A Educação brasileira, em primeira ordem, precisa ser sempre entendida


e explicitada como uma competência do estamento nacional, estando, portanto,
duplamente vinculada às políticas que regem o país, sejam aquelas de Estado,
sejam as de governo.
A partir dessa perspectiva, urge sempre ter como bússola norteadora a
letra da Lei que erige a face institucional da Educação, a qual versa não apenas
daquela educação promovida pelas instâncias públicas, mas também assinala a
promoção privada desse domínio. Assim sendo, conforme a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394/96, em seu artigo 2º, fica
compreendida a Educação enquanto todo o processo de escolarização, do
ensino escolar básico ao superior, tem por vocação inalienável “o pleno

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 211


desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”, a qual deverá ter por bases os princípios
democráticos de liberdade e de solidariedade humana (BRASIL, 1996).
Logo, as instituições de ensino podem ser traduzidas como guaridas das
ensinanças necessárias à formação do alunado no concernente ao seu
desenvolvimento biológico, psicológico, cultural, social, político, econômico,
desportivo, democrático, ético, moral, reflexivo, crítico, responsável, técnico e
laboral. Soma-se a isso que à escolarização e aos seus agentes, por tanto, seja à
luz da LBD ou de tantos outros documentos norteadores das práticas de
ensinança no Brasil (DCN, PCN, OCEM, BNCC...), recai o compromisso de
proporcionar experiências formativas empenhadas na construção de uma
sociedade emancipada, em que os sujeitos realizem plenamente sua
humanidade, superando a desigualdade constitutiva de nosso atual estágio social
(DALVI, 2019; GIOVEDI, 2019).
Entretanto, sob outra perspectiva, a escola é o lugar em que o Estado
opera arquétipos normatizadores, normalizadores e homogeneizadores da
sociedade, no qual determinados modelos sociais de cidadão e de exercício de
cidadania (de ser e de viver), por estarem em posição hegemônica, impõem-se
como matriz exemplar do projeto de sociedade que uma determinada
comunidade é motivada a acreditar que deseja vir a ser. Tais engendramentos
operam consoantes estipulações curriculares que engendram um coletivo de
práticas de ensino e de aprendizagem que versem sobre arquétipos sociais que
devam ser experienciados por estudantes na escola. A apreensão desse universo
de formas de ser chanceladas pela cultura hegemônica se dá por meio de
atitudes, posicionamentos, envergaduras, percepções e orientações advindos do
diálogo entre o meio social e o próprio espaço escolar (SANTOMÉ, 2004).
Além disso, nos termos de Santana (2017), vigora como inalienável à
Educação hodierna que os documentos oficiais em vigor, por meio dos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 212


instrumentos legais competentes alusivos às demandas educacionais, deem
conta das diferenças presentes na sociedade. Isso com o intuito de que as
diferentes formas de ser, de viver, de agir e de significar o mundo sejam
experiências de maneira reflexiva, crítica e responsável dentro do espaço escolar
como um diálogo vivo com as realidades existentes para além das instituições
educadoras. De mesmo modo, todas as discussões elencadas, concernentes ao
desenvolvimento biológico, psicológico, cultural, social, político, econômico,
desportivo, democrático, ético, moral, reflexivo, crítico, responsável, técnico e
laboral, possuem fulcral relevância para o espaço escolar ao se lançar luzes ao
papel formador que as instituições de ensino desempenham, notadamente no
tangente às identidades das jovens e dos jovens que compõem a nossa sociedade
do hoje e dor por vir (SANTOMÉ, 2004).
Por todo o exposto, ao problematizar as questões viventes no ambiente
escolar, assim como aquelas levadas a ele didatizadamente, observa-se como
premente necessidade de abalizamento as experiências estimuladas com base
nos significados que serão criados e exercidos na vida além da escola pelos
sujeitos escolarizados, consoante as diretrizes legais para a Educação. Por
conseguinte, desponta a posição da escola como instituição cujo fazer
educacional tem por alicerce o currículo escolar, estando este fundamentado
em práticas elegida por grupos sociais de controle político capaz de decidir o
que é ou não ensinável, o que é ou não correto, o que é ou não ético e moral.
Em detrimento das demandas sociais emergentes, os assuntos chancelados
como escolarizáveis e ensináveis operam normalizações que culminam por
tentar imprimir uma realidade social única a uma sociedade demasiado plural,
diversa e diferente.
Por isso, em outras palavas, mas dialogando com Santana (2017) e Louro
(2011), expressa-se como uma ação educadora de hierarquização social, cultural
e econômica, sobrepondo como cultura letrada aquilo que uns podem afirmar

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 213


como sendo sua forma de ver o mundo como a dita forma correta e culta, ao
passo que marginaliza a visão de mundo de outrem ao considerá-la menos
elaborada, menos complexa, menos evoluída, menos densa etc. E, sob essa
conjectura, vale salientar que a políticas educacionais vigentes no Brasil aludem
a uma escola que “não é somente espaço para a diferenças, mas também espaço
de produção dessas diferenças e, consequentemente, das desigualdades”
(LOURO, 2011, p.61).
Então, ao efetivamente assumir um propósito escolar aliado da
emancipação dos sujeitos, da transformação da sociedade, da promoção
universal à cidadania, da garantia e manutenção da dignidade humana e do
Estado Democrático de Direito, segundo as prerrogativas legislativas
constituidoras da Educação nacional, vige a urgência em não mais omitir que
“escola tradicional fundamentada em seu modelo ocidental, esteve sempre
centrada na separação e na distinção das diferenças, fossem elas de natureza
econômica, étnica ou mesmo religiosa” para se advogar em favor de uma
escolarização que não tolha as identidades em prol da homogeneização social,
mas sim que reconheça nas diferenças a genuína materialização da Democracia
(SANTANA, 2017, 1888).

Educar para a Cidadania: o que isso quer dizer?

A LDB/96 assinala a função precípua e inalienável da Educação de


formar a juventude para o exercício da cidadania brasileira na inteireza de seus
direitos e deveres de ordem civil, social e política. Assente nesse panorama,
vigem imperiosas duas questões nevrálgicas à Educação: o que significa ser
cidadão à luz da Constituição Federal de 1988 e o que consiste no pleno exercício
da cidadania perante o Estado Nacional?

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 214


Com base no Portal da Cidadania e Justiça do Governo Federal
(BRASIL, 2010), ser cidadão significa deter Direitos Civis, Direitos Políticos e
Direitos Sociais, estando todos esses assinalados na Carta Magna e definidos e
operados pelas instituições do Estado. Noutras palavras, ser cidadão consiste
em uma experiência de vida manifestada conforme paradigmas regulatórios
identitários, agentivos, intelectuais, ideológicos, subjetivos e objetivos que,
note-se, alteram-se em função da natureza do Estado regulador da sociedade,
da ideologia que o está constituindo e operando e designando o que é ser
cidadão (BRASIL, 2010).
Segundo Silva & Tavares (2012, p. 51), imprescinde à formação para a
cidadania sua orgânica relacional com a humanização desenvolvida sob
prescrição curricular, ou seja, é com base no tratamento dado às temáticas
fundamentais à Educação que se erige o projeto de cidadão pelo qual opera a
escola. Então, o trabalho com os temas Dignidade Humana, Igualdade de Direitos,
Respeito às Diferenças, Laicidade do Estado, Democracia da Educação, Transversalidade e
Globalidade, e Sustentabilidade Socioambiental ditam a consistência e a
intencionalidade da formação cidadã escolar, devendo ser essa,
inequivocamente, advogada de um processo de escolarização que contribua
“para as pessoas serem protagonistas da história da sociedade em que atuam, e
das suas próprias histórias” (SILVA & TAVARES, 2012, p. 55).
Por sua vez, o pleno exercício da cidadania deve ser entendido, em
primeiro plano, como a ordinária existência sob a égide das leis, gozando,
através delas, dos direitos e dos deveres configurados como manifestação
legítima do consciente democrático que zelam pelo bem-estar de toda a
sociedade (BRASIL, 2010). Contudo, entende-se que o gozo do status acima
elucidado demanda que o sujeito porte consigo algumas condicionantes
inalienáveis à sua inserção no universo da plenitude cidadã. Acerca disso, Silva
(2000) pontua que tanto a compreensão da cidadania quanto o seu exercício se

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 215


vinculam ao nível de conhecimento e de conscientização que o sujeito detém
sobre os seus próprios direitos e deveres constitucionais, assim como das
instituições e dos mecanismos institucionais que garantem e viabilizam a sua
existência cidadã na sociedade brasileira. Logo, cabe uma consciência da parte
do sujeito cidadão de sua própria cidadania e do que ela consiste e implica
individual, social e institucionalmente, de maneira que o exercício da cidadania
se revela uma ação desempenhada na individualidade, mas cuja articulação se
dá no plano da coletividade (SILVA, 2000).
Nesses termos, educar para a cidadania é reconhecer a escola como espaço
essencialmente coletivo, o qual se edifica através das possibilidades efetivadas
de socialização de conhecimentos, de comportamentos, de valores morais e
éticos, de atitudes singulares a refletir múltiplas identidades e de promoção e
defesa das liberdades fundamentais, com vistas às relações entre as pessoas e
com o meio ambiente (SILVA & TAVARES, 2012, p.59). Por outro lado, o
projeto de cidadania também diz do próprio projeto de vida que o Estado e a
sociedade urdem para a população.
Entretanto, Santana (2017, p.188) salienta que a escola se fundamenta em
práticas muitas vezes derivadas dos ditames curriculares, quando não emanadas
das demandas sociais efervescentes. Com isso, o trabalho escolar pode tanto
produzir uma série de diferenças que hierarquizam e marginalizam, quanto tem
condições de promover uma convivência harmoniosa entre as realidades sociais
diversas, focando na promoção da dignidade social a todas elas, garantindo a
cidadania e o gozo em plenitude de seu exercício constitucional. Por isso, há de
se problematizar a escola em sua própria concepção de escola, de trabalho
pedagógico, de função social e de instituição pública a serviço de um projeto
estatal de nação.
Sob esse contexto, em diálogo com Saviani (2018, p. 24), não declina-se
a superação das teorias crítico-reprodutivistas como orquestradoras das práticas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 216


pedagógicas, haja vista que essas atuam pela “reprodução das relações de
produção, a escola na sociedade capitalista necessariamente reproduz a
dominação e exploração. Daí seu caráter segregador e marginalizador”. O
mesmo autor advoga pela Educação Crítica como uma epistemologia teórica
que emane das populações oprimidas em função da superação de suas próprias
condições indignas. Dessa forma, “é possível uma teoria da educação que capte
criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a
superação do problema da marginalidade?” (SAVIANI, 2018, p. 25). Apenas
uma resposta afirmativa pode concretizar uma educação cidadã.

Educação Cidadã em Perspectiva: o Crítico e o Acrítico


no ensino de Língua Portuguesa

Segundo Paro (2014, p. 93), “ninguém é sujeito se não reflete, não se faz
autônomo, cidadão”. Nesses termos, uma Educação para a formação cidadã
consiste em uma experiência formativa básica no ensino escolar na qual a
culminância do processo protagonizado pelo educando seja o exercício pleno
de suas faculdades cidadãs, no que tange aos direitos e deveres constitucionais,
morais, éticos e humanos, no desempenho autônomo, reflexivo, crítico e
responsável do seu lugar social, inclusive no tangente ao ensino da língua
portuguesa como língua materna.
Por conseguinte, educar é reproduzir pontos de vista (já existentes) ou
trabalhar pontos de vista, o que consiste em estimular o corpo discente a
analisar, avaliar, questionar, revisar, atualizar, refutar, substituir... os pontos de
vista apresentados, processando-os com base nas bases culturais experienciadas
por cada leitor(a). Por esse motivo, o ensino da língua deve vir afixado ao
propósito de clarificar a língua como instância de poder, de ideologia, de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 217


controle, de normatização e de normalização de hábitos, costumes,
comportamentos e visões de mundo.
Mas, se a língua opera materializações das naturezas elencadas por meio
do discurso, seja ele explícito ou implícito em suas pretensões, qual deve ser a
experiência fomentada pela escola ao trabalhar a linguagem e a língua? Nas
palavras de Paulo Freire (2005, p.16), a língua é uma produção social, com uma
“presença individual nessa produção social. É precisamente por isso que a
linguagem é corpo ideológico. Não é possível pensar em linguagem sem
ideologia e poder” e, portanto, não se pode ensinar a língua de modo alienado
a tudo isso.
Pelo exposto, ensinar a ler, a interpretar, a compreender, a escrever, falar
e analisar a língua, o discurso, o texto tem por obrigação trazer à baila que “a
palavra dita, expressa, enunciada, constitui-se como produto ideológico,
resultado de um processo de interação na realidade viva” (STELLA, 2016,
p.178), sendo, assim, sempre carregada de propósitos e arquitetada e
arquitetante de estruturas sociais mantenedoras da organização social que
assegura aos que ditam a norma sigam normatizando os demais.
Na mesma direção, dialogando com Janks (2000), Scott (1999), Foucault
(1980) e Fanon (1961; 2008), Pennycook (2006; 2001) chancela como obrigação
primaz do ensino da língua o trabalho de desvelamento das inter-relações entre
dominação - manifestada pela linguagem enquanto instrumento de exercício e
reprodução de estruturas de poder -, os domínios e usos da língua em que os
exercícios de poder se materializam e legitimam-se, a diversidade – a qual age
vozeando o Paradigma da Diferença e a naturalidade das diferenças no mundo
-, e planejamento - enquanto inventividade e agenciamento.
Sem a compreensão dessas agências da língua, sem a experiência
pedagógica dessas faces dos usos da língua a partir da análise da própria língua
em uso e reconhecimento das facetas discursivas que materializam pontos de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 218


vista, abrem-se as portas das salas de aula para o fantasma falacioso do
Paradigma da Neutralidade. Esse, por sua vez, ilude os sujeitos sobre a
possibilidade de se manter uma relação descompromissada com quaisquer
pontos de vista e ideologias em confronto. Desde a Antiguidade Clássica, esse
sofisma promove distorções, confusões e equívocos por inverdades, sendo já
desse período os primeiros estudos alusivos à linguagem que combate à ilusão
do discurso neutro e à equivocidade da crença nas manifestações culturais não
ideológicas (FERNANDES, 1986).
Em virtude do cenário explicitado, cabe ao ensino da língua ser mais do
que um operador de experiências de aquisição dos sistemas da língua, mas sim
aliar às práticas de ensino dos sistemas linguísticos as relações de sentido que
permeiam as produções discursivas em atenção ao extralinguístico. Logo, ao
pensar em ensino de língua, deve-se pensar em práticas de Letramento, o qual
não pode ser pensado, operacionalizado, ensinado e experienciado sob qualquer
contexto de alienação das estruturas vinculantes e vinculadas oriundos das
engenharias de poder que corporificam a sociedade – corporificando também a
língua e por meio de seus usos dando o tônus da própria arquitetura social.

A que pontos chegamos? Letramentos e (in)conclusões

Nos dizeres de Paulo Freire (1997, p.95), “a escola não apenas reproduz,
mas também contradiz a reprodução” quando esta, tal qual elucida Saviani
(2018) ao explicitar trabalhos pedagógico alicerçados em teorias educacionais
crítico-reprodutivistas que operam em favor de estruturas de dominação e
exploração, age sobre sua comunidade não com vistas à preperação dos sujeitos
para a cidadania, para o exercício da vida cidadã autônoma de modo reflexivo,
crítico e responsável.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 219


Jinkings (2008, p.09), por sua vez, defende que educar demanda
permanentemente o resgate do “sentido estruturante da Educação e de sua
relação com o trabalho, as suas possibilidades criativas e emancipatórias”. Além
disso, em diálogo com Gramsci e Mészáros, a autora assevera ainda que a
educação escolar não se resume ao espaço próprio da sala de aula, bem como
não se encerra no “terreno estrito da pedagogia, mas tem de sair às ruas, para
os espaços públicos, e se abrir para o mundo” (JINKINGS, 2008, p.09-10). Em
igual sentido, a educação linguística demanda ser efetivado no trabalho com a
língua em seus usos genuínos, para além dos perímetros pedagógicos das
instituições escolarizadoras.
Justamente por isso, o ensino da língua precisa explicitar como a língua
media os conflitos da existência humana e da própria cultura, produzindo e
agindo sobre materialidades que refletem o estado de coisas em que os sujeitos
estão imersos, dos quais são parte ativa ou submissa. É em atenção a esse
contexto que os professores educadores precisam se posicionar “engajados
num palco de luta permanente” por aqueles que ocupam posição submissa,
oprimida, com direitos negados, acessos restringidos à cultura letrada e
nulificações de suas epistemologias não hegemônicas (FREIRE, 1997, p.75).
Em função de sua vocação legal ser o fomentar do desenvolvimento, da
formação humanística, da promoção da cidadania e do preparo para o mercado
de trabalho, a Educação precisa ser uma realidade universal, ao alcance de
todos, e universalizadora, ao dar ao sujeito saber do mundo em que vive em seu
horizonte mais alargado e complexo. Contudo, Mészáros (2008, p. 11) discute
que “o simples acesso à escola é condição necessária, mas não suficiente para
tirar das sombras do esquecimento social milhões de pessoas cuja existência só
é reconhecida nos quadros estatísticos”. Assim, toma centralidade, por isso, a
prática educacional em protagonismo sobre a instituição educadora em si.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 220


Por conseguinte, “a existências de práticas educacionais que permitam
aos educadores e alunos trabalharem as mudanças necessárias para a construção
de uma sociedade na qual o capital não explore mais o tempo de lazer, pois as
classes dominantes impõem uma educação para o trabalho alienante”. Ou seja,
a mera existência e acesso à escola não é confirmação de uma formação para o
gozo dos direitos civis, sociais e políticos, bem como o cumprimento
responsável e autônomo dos deveres igualmente pertinentes à luz da lei. O
presente cenário tem aplicações diretas no ensino da Língua Portuguesa, o qual
deve, também, e sem se apartar disto, ter “como função transformar o
trabalhador em um agente político, que pensa, que age, e que usa a palavra como
arma para transformar o mundo” (MÉSZÁROS, 2008, p. 12).
Estabelecendo diálogo com Saviani (2018), a Educação, por fim, precisa
estar a serviço daqueles em maior vulnerabilidade e falar acerca deles,
advogando pela emancipação de suas condições em prol de uma comutação da
marginalidade para a dignidade social. Para isso, faz-se urgente uma pedagogia
que seja alinhavada consoante a agenda dos próprios desvalidos sociais,
subjugados pelo Estado, abjetados sociais, a fim de o tom dessa educação ser
composto pelo enfrentamento das adversidades sociais vividas justamente por
essas pessoas em demérito social. Assim sendo, a educação por uma perspectiva
crítica deve ir muito além do capital e transpor as estruturas opressoras, com o
objetivo de costurar uma “luta por uma transformação radical do atual modelo
econômico e político hegemônico”, a fim de que a educação esteja sempre em
favor de um ensino para além do capital (MÉSZÁROS, 2008, p. 12 – 13).
Portanto, consoante tal perspectiva, as práticas de letramento se revelam
instrumentos de conscientização e formação cidadã crítica com vistas à
transformação das relações sociais de normalização das assimetrias que
subjugam as massas por meio de condicionantes ideológicos de experienciação
fragmentada, descontextualizada, despolitizada, desumanizada e neutralizada da

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 221


realidade. Logo, “no atual contexto, a defesa da Educação, de modo geral, e da
escola pública, em particular, liga-se à defesa da Democracia contra o
autoritarismo; à afirmação da soberania do Brasil contra a subserviência a
interesses externos; à civilização contra a barbárie”, e nesse sentido, o ensino da
língua portuguesa deve incorporar como responsabilidade o compromisso para
com a promoção da cidadania a todas as brasileiras e todos os brasileiros,
realizado, inclusive, sobre práticas de letramento que instrumentalize os sujeitos
a lograrem dignas condições de vida.

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CAPÍTULO 16

A representação do negro-escravo na
obra Casa-Grande & Senzala de
Gilberto Freyre delimitada pelo olhar
da Análise Crítica do Discurso
Fernanda Pinheiro de Souza-e-Silva1
Karl Heinz Efken2

Introdução

Este artigo é um recorte da tese ainda em desenvolvimento pela autora


no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade
Católica de Pernambuco, esse estudo tem como problema a verificação de um
olhar preconceituoso arraigado no discurso de Gilberto Freyre relacionado ao
negro-escravo. Pretende-se, então, analisar a voz de Gilberto Freyre na obra
Casa Grande & Senzala observando seus movimentos discursivos e ideológicos
sobre a representação do negro na época do regime escravocrata. Mais
especificamente, identificar e analisar o léxico adotado por Freyre, através de
três temáticas: arquitetura, relações íntimas e caracterização do povo português
e do negro, procurando perceber como ele naturaliza ou não as vozes
hegemônicas e não hegemônicas, escravos e não-escravos. Importante destacar

1 Mestra em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco, bolsista Capes.


2 Professor-Doutor titular em Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 224


que a categoria do léxico é vista sobremaneira na pesquisa atual, em
contrapartida, outras categorias ainda serão estudadas como a
interdiscursividade e a modalidade na tese ainda em desenvolvimento.

A dissimulação do preconceito no Brasil como herança


do mito da democracia racial

O Brasil adota, segundo Oliveira (2006), o racismo mais eficaz do


mundo: o que não tem padrão nem é evidente. Ele é sofrido e praticado todos
os dias, mas não pode ser mensurado porque é mascarado. Esse racismo
minimizado dá a ideia de convivência pacífica. Entretanto, a paz aparente
desaparece quando as relações implicam algum tipo de concorrência:
econômica, social, educacional. Este aspecto opressor das relações raciais em
que vivia (e ainda vive) o Brasil foi, de certa forma, ocultado ou mesmo
minimizado pelo discurso conservador da democracia racial sistematizado por
Gilberto Freyre e realçado por pensadores como Caio Prado Júnior e Sérgio
Buarque de Holanda em suas obras mais clássicas, sendo ainda nos nossos dias,
um discurso muito forte e que camufla a realidade de preconceito sofrida pela
população negra. Devido a isso, aqui no Brasil se desenvolveu uma espécie de
“preconceito racial dissimulado e assistemático” (FERNANDES, 2007, p.61),
um “racismo anti-racista”. A reflexão que é colocada em evidência vem dessa
inquietação, da plena consciência da existência de um racismo velado, mais que
isso, herdado, constitutivo até da cultura brasileira. Por mais que ao negro fosse
dada a condição jurídica de livre, não foi permitida a ele a igualdade econômica,
política e social, ou seja, a verdadeira democracia nos dizeres de Florestan
Fernandes (2007). E trazer um pouco, pela pesquisa, da origem das relações
sociais do Brasil, pode ajudar a compreender as origens das injustiças raciais

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 225


atuais e por conseguinte enxergando a origem do problema, poder transformar
o rumo que ele segue.

Justificativa

Como justificativa do trabalho tem-se a citação de Freyre (2006) que diz:


Considerando o elemento colonizador português em massa, não em
exceções como Duarte Coelho- pode-se dizer que seu ruralismo no Brasil
não foi espontâneo, mas de adoção, de circunstâncias (...) Terra e homem
estavam em estado bruto. Suas condições de cultura não permitiam aos
portugueses vantajoso intercurso comercial que reforçasse ou prolongasse
o mantido por eles com o Oriente. Nem reis de Cananor nem sobas de
Sofala encontraram os descobridores do Brasil com quem tratar ou
negociar. Apenas morubixabas. Bugres. Gente quase nua e à toa,
dormindo em rede ou no chão. Animal doméstico não possuíam nenhum,
agricultura, umas ralas plantações de mandioca. (FREYRE, 2006, p.86)

Freyre, nesse trecho, afirma que as circunstâncias do Brasil levaram o


português a adotarem o ruralismo e consequentemente a escravidão no país.
Não havia aqui uma agricultura de relevo, segundo o autor, nem mesmo os
índios para ele estavam aptos para negociar nada “estavam nus e à toa”. Então,
o extermínio de negros e de índios foi meramente circunstancial? Esta pesquisa
busca investigar a obra referida sob outro ponto de vista, mais crítico, tentando
aproximar-se do discurso freyreano e identificar nele certa reprodução
ideológica dominante ou mesmo até refutação dessa forma de pensar e agir.

Análise Crítica do Discurso como contribuição para


desmistificação de obras literárias, a Casa-Grande &
Senzala pela ACD

Intenta-se questionar e até mesmo desmistificar essa obra de cunho


quase que inabalável pela perspectiva da Análise Crítica do Discurso por
acreditar que é dever do pesquisador, identificado com a teoria citada, trazer à

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 226


tona ideias, informações novas que ajudem a sociedade no processo de
(des)naturalização de problemas sociais que atingem em cheio o mundo. E a
questão do reconhecimento do valor do negro deveria ser bandeira a ser
levantada por todos os brasileiros que de uma forma ou de outra tem “o pé na
senzala”, ou seja, são afro-descendentes. A Análise Crítica do Discurso é o
instrumental teórico e metodológico que é utilizado, sua escolha está
diretamente ligada às questões de poder e hegemonia que estão imbricadas no
discurso freyreano a ser analisado. Essa corrente está debruçada sobre temas
relacionados ao poder, a desigualdade social, e mesmo ao racismo. Gilberto
Freyre ao trazer no livro a casa grande, como berço da nação brasileira,
oportuniza também discussões sobre essa mesma casa como sendo embuste da
democracia racial brasileira. A ACD traz um olhar sobre o objeto em três
dimensões: a textual, a discursiva e a da prática social. Essas dimensões são
oriundas da proposta do modelo tridimensional de análise discursiva de
Fairclough (1992) que foi baseado nas macrofunções de Halliday (1985):
ideacional, interpessoal e textual. A partir de então, Fairclough (2003) em
“Analysing Discourse” sugere no lugar das funções da linguagem, três principais
tipos de significado: o significado acional (observando o discurso como forma
de interação), o significado representacional (como forma de representação do
mundo) e o significado identificacional (como forma de identificação dos atores
discursivos). Contudo, no artigo será observado e analisado o significado
representacional do léxico, compreendendo, contudo, sua correlação com os
demais significados.

O léxico

A escolha da categoria do léxico está atrelada à ideia de que não é por acaso que
se faz preferência por um dado grupo de palavras e seus respectivos significados
em detrimento de outros. Consoante com Fairclough (2001), a relação dos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 227


significados com as palavras envolve tanto os vários significados que uma
palavra pode apresentar, quanto o inverso que seria as várias palavras que
remetem a um só significado. Isso nos deixa diante de constantes escolhas sobre
os usos que fazemos das palavras. O autor, sobre isso, ainda diz que as escolhas
e decisões não são de natureza puramente individual, ou seja, os significados
das palavras e a lexicalização de significados são questões que são variáveis
sociais e socialmente contestadas. Como o mesmo autor defende, essas escolhas
lexicais são facetas de processos sociais e culturais mais amplos. Pode-se
apreender, com isso, que a relação entre palavra e significado nem sempre é
uma questão de dicionarização, uma vez que os significados atribuídos às
palavras vai depender do contexto em que elas são usadas e de todo o processo
socio-histórico e ideológico que está por trás de cada escolha lexical. Segundo
Marcuschi (2008), as palavras não espelham o mundo tal como ele é, de fato,
elas são instáveis e passíveis de construção de novos sentidos a cada vez que
são ativadas. Os nomes estão a serviço do querer-dizer do sujeito, a serviço dos
objetivos comunicativos e ideológicos dele. Mais especificamente em relação à
ACD, o foco de análise recai sobre o modo como os sentidos das palavras
entram em disputa dentro de lutas mais amplas. Fairclough (2001) sugere que
as estruturações particulares das relações entre os sentidos de uma palavra são
formas de hegemonia

Concepções de discurso, poder e ideologia

Uma das maiores contribuições do trabalho de Foucault para as teorizações da


ACD foi não somente evidenciar a existência do discurso como um lugar, mas
sim estabelecer suas ligações com o poder, tornando o discurso um lugar de
poder, indo além do estruturalismo. O discurso, dessa maneira, não seria só o
meio através do qual se exerce o poder, mas também o lugar pelo qual se luta
para exercê-lo. Luta-se por meio do discurso, no discurso, pelo discurso. O

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 228


poder dentro desse lugar é uma questão de inscrição na Ordem do Discurso, de
legitimação como pessoa que tem o direito de fala. Nessa perspectiva, o poder
sobre o discurso é uma questão de capacidade para mudar e controlar as regras
das práticas discursivas e as estruturas da ordem do discurso (FAIRCLOUGH;
WODAK,2000).
Mesmo sendo extremamente relevante a contribuição do pensamento
foucaultiano para a ACD, Fairclough (2001) discorda sobre a problemática do
sujeito totalmente assujeitado pela estrutura social. E defende que existe um
espaço onde o sujeito social pode agir em prol de uma mudança, não sendo
apenas um reprodutor de ideologias, mas um agente. Para Wodak (2003), a
ACD tem o objetivo de tornar os aspectos obscuros do discurso mais visíveis,
a fim de esclarecer de que maneira a linguagem funciona em suas diversas
formas de realização na constituição e na transmissão do conhecimento, na
organização das instituições sociais, e no exercício do poder e dominação. O
discurso é concebido, então, pela ACD como prática social. Prática essa,
permeada de posturas ideológicas, compreendendo ideologias como
“significações da realidade construídas nas várias dimensões do poder”
(FAIRCLOUGH,2001, p.121). Para o autor, a ideologia naturalizada nas
práticas discursivas das instituições atinge o status de senso comum, mas um
senso comum relativo à manutenção de determinadas ideias, de específicos
modos de ser das instituições. É esse tipo de ideologia preconceituoso que essa
pesquisa visa desnaturalizar.

Metodologia

A abordagem qualitativa é a escolhida por abordar o universo de


significados, crenças, valores, o que corresponde a um espaço mais profundo
das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 229


operacionalização de variáveis (MINAYO, 2001). Para a análise da voz de
Gilberto Freyre será verificado seus movimentos discursivos e ideológicos
sobre a representação do escravo-negro na época do regime escravocrata.
p.105). Além do método citado, é utilizado também a pesquisa descritiva e a
explicativa que seguindo Gil (2007), exige do investigador uma série de
informações sobre o que deseja pesquisar e é um tipo de pesquisa que se
preocupa em identificar os fatores que determinam ou que contribuem para a
ocorrência dos fenômenos.
Para coleta de dados, alguns temas que perspassam foram escolhidos
como: os elementos que compõe a estrutura da casa(arquitetura), as relações
entre os casais, características do português e do negro por serem tópicos
discursivos destacados pelo próprio Freyre para a configuração de uma
macroestrutura semântica ou significativa. Como já abordado na
fundamentação teórica, o pesquisador a partir da compreensão discurso
tridimensional de Norman Fairclough, investigará o discurso de Freyre
apropriando-se da categoria do léxico por ser um instrumental desvelador de
ideologias e pontos de vista.
A partir desses tópicos discursivos elencados por Freyre e pela escolha
da categoria lexical pelo pesquisador far-se-á uma análise dos posicionamentos
do autor a favor ou contra os escravos-negros, mostrando com isso, se na obra
há certa tendenciosidade quer para o lado hegemônico-português quer para o
lado do escravo-negro.

Análise dos movimentos discursivos e ideológicos de


Gilberto Freyre

Para análise, será descrito e analisado alguns poucos excertos da tese ainda
em desenvolvimento pelo autor. O primeiro tema a ser analisado pelas escolhas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 230


lexicais é a vida íntima dos colonos e negros/escravos, sobre isso Freyre (2006)
diz :

A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre


vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser
relações de ‘superiores’ com ‘inferiores’ e, no maior número de casos, de
senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se,
entretanto, com a necessidade de muitos colonos de constituírem família
dentro dessas circunstâncias(...). A miscigenação que aqui largamente se
praticou corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado
enorme entre a casa-grande e a mata tropica, entre a casa-grande e a
senzala(...). A índia e a negra-mina à princípio, depois a mulata, cabrocha,
(...) tornando-se caseiras (...) e até esposas legítimas dos senhores brancos,
agiram poderosamente no sentido da democratização social no Brasil.
(FREYRE, 2006, p.33).

Essa citação sobre a miscigenação racial no país, traz à princípio,


algumas nomeações referidas ao branco conquistador como “ senhores
desabusados e sádicos” que poder-se-ia observar como Freyre se posiciona a
favor dos escravos, que foram abusados por estarem em situação social inferior,
mas ao fazer a leitura do parágrafo na íntegra, percebe-se que, pelas palavras do
autor, que “todo esse processo de miscigenação foi fundamental para o
branco/colono constituir família”, ele assevera que “ A miscigenação que aqui
largamente se praticou corrigiu a distância social(...)”, ou seja, o modo como as
negras, as índias foram se tornando esposas, foi válido, segundo Freyre (
2006,p.29), para o processo de democratização social. Para ele, segundo a
citação vista, não haveria outra maneira para ascender socialmente, “de mulata
a esposa”, senão a humilhação de primeiro ser amante, submeter-se a todas as
imposições do colonizador para que assim houvesse a verdadeira
democratização.

Outro tema a ser analisado é a arquitetura e a função da casa-grande e


senzala, o autor afirma que “Essa força, na formação brasileira, agiu do alto das
casas-grandes, que foram centros de coesão patriarcal e religiosa: os pontos de
apoio para a organização nacional” (FREYRE, 2006, p.36). Em todo esse

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 231


parágrafo, Freyre enaltece a casa-grande como um arquitetura sólida ponto de
apoio do que ele chama “coesão patriarcal”, mas que se pode chamar essa
coesão de “hegemônica”, construída pelos colonos, uma arquitetura , que vai
além da coesão , mas divisão, ou melhor segregação. A senzala, pouco citada
em relação a casa-grande, é a materialização da prisão do negro, do ínicio do
processo de desigualdade social que figura até hoje no nosso Brasil. Outra
citação freyreana diz que :

A casa-grande, completada pela senzala, representa todo um sistema


econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária), de
trabalho (a escravidão), de religião (o catolicismo). (...) Foi fortaleza,
banco, cemitério, santa-casa de misericórdia, amparando os velhos e
viúvas. (FREYRE, 2006,p.36)

Nesse momento, Freyre descreve a função social da casa-grande,


interessante citar que nessa descrição há inúmeras palavras positivas
representando a casa do conquistador como amparo aos velhos e viúvas,
fortaleza. E nas páginas seguintes, evoca a sua arquitetura como, utilizando as
próprias palavras de Freyre, de “honesta e autêntica”, “cozinhas enormes,
vastas salas de jantar, numerosos quartos para os filhos e hóspedes, capelas,
puxadas para os filhos casados e a senzala”, ele afirma que essa arquitetura foi
a expressão mais verdadeira do interesse da vida patriarcal, ainda fala em
“trabalho eficiente dos negros” como forma de dar vida à casa grande. E
durante, várias páginas, segue essa romantização do regime escravocrata, da
exaltação das características de uma arquitetura construída para segregar e
assassinar os negros e unir os que pertenciam a classe hegemônica, os
cemitérios, por exemplo, nas casas-grandes, serviam de depósitos de negras
mortas por estarem grávidas do senhor de engenho ou de sua prole.

O terceiro e último tema a ser analisado no artigo é a caracterização do


povo português e do negro, Freyre diz:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 232


Gente de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade
tanto social como física que facilmente se surpreendem no português
navegador e cosmopolita do século XV. Hereditariamente predisposto a
vida nos trópicos, por um longo habitat tropical, o elemento semita, móvel
e adaptável como nenhum outro, terá dado ao colonizador português do
Brasil algumas das suas principais condições físicas e psíquicas de êxito e
de resistência ( FREYRE, 2006, p.78).

Quanto à adaptabilidade citada por Freyre, ele a corresponde com a


miscibilidade, ainda afirma que nenhum povo colonizador, dos modernos, se
igualou a essa capacidade de se adaptar a diferentes climas e culturas. Ele diz:
“O português, não só conseguiu vencer as condições de clima e de solo
desfavoráveis, como suprir a extrema penúria de gente branca para a tarefa
colonizadora unindo-se com mulher de cor”. Nessas citações, Gilberto Freyre
de novo apresenta o “esforço” em vários sentidos que o colonizador teve que
realizar. Palavras como: “adaptabilidade”, “mobilidade”, “plasticidade”
remetem a capacidade do povo colonizador em lidar com algo difícil, que no
caso é para Freyre e para o povo português o clima, o solo, a alimentação, etc.
A questão é que não é apenas difícil para o colonizador, que está em condição
privilegiada em tudo, mas sobremaneira para o negro-escravo.
Quanto à caracterização do povo negro-escravo, o autor já no sumário
correlaciona a caracterização desse povo à sua vida sexual, diferente do capítulo
reservado ao conquistador branco que é apresentado seus antecedentes e
predisposições. Freyre abre o capítulo reservado às características do povo
escravo com a apresentação das mulheres negras como “predileção” dos
homens brancos, ele diz: “Eles só queriam saber de molecas” (Freyre, 2006,
p.368), sem nenhum comentário de natureza social, mais crítica. Não tarda e
Freyre remete a figura do negro,sem crítica, mais elogiando, a cozinha. “Uma
vez no Brasil, os negros tornaram-se donos da terra, em certo sentido:
dominaram a cozinha.” (Freyre, 2006, p.374), comentário irônico, diante de
tanta falta de terra que os negros tiveram que vivenciar, eles, na cozinha,
tornam-se donos. Contrastando, com uma tendência lusófona de Freyre, ele,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 233


nesse capítulo destinado aos povos negros, traz estudos, testes de QI
(coeficiente de inteligência) que comprovam que a inteligência não é fator
específico de brancos, e que depende de vários fatores como as circunstâncias
ambientais. Nesse momento, rompe com o paradigma da inferioridade da raça
negra. Intrigante, entretanto, é ele abrir espaço para uma longa discussão sobre
isso, inclusive trazendo estudos como o do médico Raimundo Nina Rodrigues
que observava o negro como raça inferior.

Considerações finais

Gilberto Freyre, numa determinada passagem do livro, comentando


sobre a situação do negro na época escravocrata afirma:
Ninguém nega que a negra ou a mulata tenha contribuído para a precoce
depravação do menino branco da classe senhoril, mas não por si, nem
como expressão de sua raça ou do seu meio-sangue: como parte de um
sistema de economia e de família: o patriarcal brasileiro (FREYRE,2006,
p. 457).

Ele não só nessa citação, como no livro todo, traz como o grande vilão
da escravidão, da situação do período escravocrata, o “sistema patriarcal”, mas
a questão é, quem representava esse sistema, quem comandava a forma de se
fazer política, economia. Há, nas análises vistas, que sempre Freyre retirava um
pouco do poder do povo colonizador, remetendo os problemas para outros
lados, seja o solo, o clima, o estado nativo dos indígenas, a passividade da negra,
etc., quando o estopim para tudo foi realmente a forma como os colonizadores
vieram para o Brasil, seus interesses, suas intenções, seus descasos, e, ao
contrário do que Freyre fala, seus desamores, pois um povo que ama sua pátria
não escraviza, assassina, e denigre seus habitantes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 234


Referências

FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. New


York:Routledge,2003.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília:Ed. UNB - tradução do
Discourse and Socieal Change, 2001.
FAIRCLOUGH, Norman; WODAK, Ruth. Análisis crítico del discurso. In:
FAIRCLOUGH, Norman; WODAK, Ruth. El discurso como interacción social.
Estudios sobre el discurso II: una introcucción multidisciplinaria. Barcelona, Espanha:
Gedisa, 2000, p. 367-404.
FERNANDES, F. O negro no mundo dos brancos. 2 ed. São Paulo: Global, 2007.
FREYRE, G. Casa Grande & Senzala. 51 edição, São Paulo, Global, 2006.
HALLIDAY, M. A. K. Introduction to functional grammar. London: Edward
Arnold, 1985.
OLIVEIRA, V. R. R. Políticas públicas e ações afirmativas na formação de professores:
cotas uma questão de classe e raça – Processo de implementação da Lei 73/1999 na
UFRGS. 2006. 101 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2006.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 235


CAPÍTULO 17

A Sequência Didática como


ferramenta para o desenvolvimento da
escrita no Ensino Médio
Luana Maria de Medeiros1

Introdução

Essa pesquisa e o projeto de intervenção fazem parte de um trabalho


maior do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID,
que teve como principal objetivo desenvolver e aprimorar as competências em
escrita para as produções textuais dos alunos de 3° ano de Ensino Médio da
Escola de Referência em Ensino Médio Cornélio Soares, em Serra Talhada –
PE.
Os encaminhamentos metodológicos centraram-se no processo de
reescrita com ênfase na formação do sujeito-autor, que visa desenvolver a
competência da escrita e de autonomia dos alunos. Além do mais, buscamos
enfatizar que a reescrita textual é uma forma de refletir sobre a língua,
descartando que só se reescreve algo que está “errado”, pois, segundo os PCN
(BRASIL,1997), mudar a noção de revisão textual no exercício de prática de

1 Graduanda em Letras, Universidade Federal Rural de Pernambuco – Unidade Acadêmica de Serra Talhada,
bolsista do PIBID-Letras, sob a orientação da Profª Drª Jane Cristina Beltramini Berto. Email:
[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 236


escrita influencia num diálogo melhor entre professor e aluno para a construção
da autoria. Para tanto, selecionamos como gênero textual o Artigo de Opinião,
primeiramente por constar no programa de ensino da disciplina, e tendo em
vista que o projeto visa intervir e atuar sobretudo na necessidade da escola, além
ainda de ser um dos gêneros indicados para a série para a participação nas
Olimpíadas de Língua Portuguesa – OLP.
Por isso, metodologicamente, o projeto busca desenvolver a
competência de escrita no processo de produção textual escrita nesse gênero,
adotando o modelo de sequência didática (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004),
desenvolvida por meio de módulos afins. Nesse sentido, buscamos apresentar
como os conceitos de revisão e de reescrita podem auxiliar ao aprimoramento
da competência escritora do aluno ao longo das produções e revisões, tomando
como eixo a escrita como trabalho (FIAD, 1991), de forma a desenvolver a sua
autoria e, consequentemente, a sua autonomia.

Do projeto à Prática em sala de aula

Após a organização do material, bem como a diagnose da turma,


decidimos atuar com o gênero Artigo de Opinião, por permitir ao aluno o
desenvolvimento e construção do sujeito-autor, dando-lhes mais liberdade e
autonomia, através da argumentação e escrita dos seus pontos de vista. Para
isso pautamo-nos na abordagem desenvolvida por Berto (2018), a partir de
outros estudiosos cujo exercício de produção textual, só pode se dar pela escrita,
revisão e reescrita textual (FIAD, 1997; BERTO, 2018).
A seleção pelo gênero também beneficia tanto a escola quanto os alunos,
pois pode prepará-los para a participação nas Olimpíadas de Língua Portuguesa
– 2019, e, portanto, o conhecimento do gênero, a leitura, escrita, revisão e
reescrita dos textos, seguirá os procedimentos teórico-metodológicos previstos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 237


na organização de módulos, a sequência didática de Dolz e Schneuwly (2004),
de forma a contribuir para o desenvolvimento da competência da escrita.,
conforme o modelo de SD a seguir:

Fonte: Dolz e Schneuwly (2004).

Nesse sentido, elencamos alguns trabalhos que pudessem subsidiar essa


proposta, dentre estes, o próprio material da OLP e ainda foi tomado como
exemplo, a sequência didática da Revista Bem Legal da UFRGS (2016), cujo
tema “Escolha Profissional” vinha sendo abordada com textos de apoio e
atividades que envolvem discussão sobre a temática, leitura, escrita e
posteriormente, a revisão e a reescrita pelo autor.
A apresentação da situação foi inicialmente um momento de diálogo a
respeito do que pensam para o futuro, se já trabalham, ou se já escolheram sua
profissão, sendo uma maneira dos discentes sentirem-se mais à vontade com o
professor em sala de aula, quebrando um pouco o clima pesado, alguns falaram
sobre sua vida pessoal, suas experiências com o mercado de trabalho, e outros
se abriram sobre os seus sonhos após a conclusão do Ensino Médio. Este
diálogo possibilitou ainda mais que eles entendessem a proposta do gênero.
Primeiramente, foi necessário revisar o Artigo de Opinião, momento em
que iniciamos com o módulo de reconhecimento do gênero, por meio de uma
aula expositiva com características, exemplos e curiosidades sobre o gênero.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 238


Neste momento, foi possível observar as dificuldades quanto ao conhecimento
de gênero que os alunos traziam, possibilitando pensar em maneiras futuras de
suprir esta necessidade, com mais atividades e produções em escrita.
Dessa forma, fizemos a seleção pela temática e apresentamos os textos-
base já indicados, seguida posteriormente da leitura dirigida e discussão dos
pontos relevantes, contribuindo para que os alunos se sentissem envolvidos
com o tema e pudessem argumentar, para posteriormente, discutirmos a
elaboração dos argumentos possíveis e lógicos. Todo o trabalho realizado pela
oralidade dispôs da participação ativa dos alunos que foram produzindo
argumentos orais e os defendendo frente a questionamentos.
Após a realização de cada módulo, enfatizamos a importância da revisão
e da reescrita nos pontos que exigem reflexão e aprimoramento, com o trabalho
individual sobre a língua, após a correção do professor, havendo a revisão entre
pares, posteriormente, individual, para que assim houvesse a indicação da
reescrita textual, como discutimos nos módulos a seguir.

Módulo I
No módulo I, levamos um texto base a respeito do tema: “Escolha
profissional” da psicóloga Rosângela Martins, que atua com o público adolescente,
para fins de leitura dirigida, seguida de uma pequena discussão. Posteriormente,
mais um texto foi apresentado, o poema: “E agora, José?”, de Carlos
Drummond de Andrade.
Após a leitura do Poema que foi recitado por um aluno – que já se sentia
à vontade com a situação, discutimos a importância da decisão sobre a formação
profissional e as escolhas individuais, tendo em vista que eles estão terminando
o Ensino Médio e subindo mais um degrau rumo à vida adulta. Então,
propusemos um caminho possível para pensar essa nova vida: “Substitua o

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 239


José, pelo seu nome: “E agora, fulano?”, o que você irá fazer no futuro? Qual
a sua perspectiva a partir do término do Ensino Médio?
Com o conhecimento e debate do tema, é hora de iniciar as produções
com a perspectiva de que o texto é uma construção, com objetivos, leitor e
finalidades específicas.

Módulo II

Diante da 1 ª produção e nos preparando para iniciar o módulo II,


discutimos a importância do exercício a revisão e da reescrita, e, juntamente
com o professor, foram apresentados os textos já corrigidos pelo professor.
Para as correções, foram adotadas alguns procedimentos como correção
indicativa, resolutiva e textual-discursiva, conforme orienta Ruiz (2010). De
acordo com as indicações feitas, os alunos passam a realizar a revisão entre
pares e, posteriormente, individual, com vistas à compreensão dos
encaminhamentos indicados para revisão e reescrita visando à produção final.
Esse procedimento de revisar, possibilita rever suas incompletudes, ampliar o
dito, pesquisar e acrescentar ou retirar elementos, bem como reestruturar os
períodos e o léxico selecionado, possibilitando ao aluno ajustar o que quer dizer,
“o que tem a dizer” à sua constituição de sujeito que “diz o que diz”
(GERALDI, 1984).
A partir desse ponto, já haviam sido realizadas a revisão em pares e a
revisão e a reescrita individual, então, realizamos a discussão e reflexão a
respeito do exercício de escrita, questionando os alunos se haviam encontrado
dificuldades e ou se perceberam a melhoria do texto neste processo de
construção, de acordo com o gênero proposto. Como afirma Berto (2018):

Os conceitos de revisão e de rescrita são complementares e figuram como


possibilidade de interação sobre/com o texto/autor/leitor, de forma oral

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 240


ou escrita e constituem o cunho social da escrita, importantes para o aluno
no desenvolvimento de sua escrita. (BERTO, 2018, p. 401).

Nesse sentido, houve interesse e participação efetiva dos alunos, pois a


partir dessa reflexão professor poderá ainda, nesse processo, mostrar que a
revisão e a reescrita trazem um amadurecimento para o texto, por meio da
reflexão, leitura e do autoconhecimento do sujeito-autor. Como se tratava de
projeto de implementação escolar, a critério do professor regente, essa
produção final poderia receber ou não alguma pontuação para avaliação, mas a
ênfase do trabalho apresentou encaminhamentos que possibilitaram aos alunos
do 3º ano do colégio em questão compreender que o mais importante é ir além
da primeira escrita, propondo revisão e reescritas recursivas como forma de
aprimoramento do texto, destacando o gênero textual e atendendo a sua
finalidade, como apontam os registros das figuras (1, 2 e 3) e os textos (1 e 2).

Figura 1: Primeira produção.

Fonte: Fotografia- Acervo da autora (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 241


Texto 1:1ª versão
A Escolha “proficional”
A Escolha “proficional”

“A escolha proficional”
“Essa escolha é cobrada todos os dias pela sociedade e principalmente pelos nossos
pais, des de cedo nossos pais nos coloca em uma escola para que futuramente tenhamos
um “futuro” da forma que eles imaginam, e você esta satisfeito com o que eles querem?
A escolha proficional não deve ser influenciadas por pessoas ao seu redor, mas
deve ser escolhida somente por você, o título desse texto não deveria ser como esta,
deveria ser na verdade A Escolha Vocacional, todos nos temos vocações individuais, até
mesmo em um grupo musical cada um tem a sua determinada vocação, assim deve ser a
nossa “Escolha”, não devemos ser influenciados pela sociedade, mas devemos ser oque
nos somos chamados a ser, a minha mãe queria um medico para mostrar as amigas, meu
pai queria um borracheiro para ajudalo nos negócios da família, porém, minha vocação é
ser missionário e dedicame a Deus, e você? O que sua mãe quer? O que seu pai quer?
Agora reflita comigo, o que você nasceu pra ser?
Não nascemos para ser o que todos querem, nascemos para ser nos mesmos, no
futuro pode não haver mais pai nem mãe para mostrar as amigas, ou continuar os negócios
da família, a sociedade sempre vai estar ai, mas me dizer uma coisa, quem vai te alimentar é
o fruto da tua vocação ou as pessoas que te criticam em nome da sociedade?”

Observamos no texto 1, que há muitas falhas gramaticais, mesmo


assim, se adequando ao gênero.

Figura 2: Processo de Revisão individual.

Fonte: Fotografia- Acervo da autora (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 242


Texto 2: 2ª versão
A Escolha Profissional

“Essa escolha é cobrada todos os dias pela sociedade, e principalmente por nossos
pais, desde cedo nossos familiares nos colocam na Escola para que futuramente tenhamos
um “futuro”, da forma que eles imaginam, você esta satisfeito com o que eles querem?
A escolha Profissional não deve ser influenciada por pessoas ao seu redor, mas deve
ser escolhida somente por você, o título desse texto não deveria ser como esta, deveria ser
na verdade “A Escolha Vocacional”, todos nós temos vocações individuais, até mesmo em
um grupo musical cada um tem sua determinada vocação, assim deve ser a nossa “escolha”,
não devemos ser influenciados pela sociedade, mas devemos ser o que nós somos chamados
a ser, minha mãe queria um medico pra mostrar as amigas, meu pai queria um borracheiro
para dar continuidade aos negócios da família, porém, minha vocação é ser missionário e
dedicarme a Deus, e você? O que sua mãe quer? O que seu pai quer? O que a sociedade
quer? Agora reflita comigo, o que você nasceu para ser?
Não nascemos para ser o que todos querem, nascemos para ser nós mesmos, no futuro pode
não haver mas pai nem mãe, a sociedade sempre vai estar aí, mas me diga uma coisa, quem vai te
alimentar é o bom fruto da tua vocação ou as pessoas que te criticam em nome da sociedade?”

No texto 2, podemos perceber uma melhoria significativa; o aluno pôde


revisar e reescrever o texto, tendo liberdade para escolher melhor o léxico,
organizando melhor as ideias. Erros com pontuação e acentuação gráfica
diminuíram consideravelmente.

Figura 3: Momento da reescrita

Fonte: Fotografia- Acervo da autora (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 243


Ao longo do projeto, os alunos pareciam empenhados em discutir um
tema relevante para eles e buscaram reunir suas experiências, a partir de suas
vivências a fim de compreenderem o que e como podem se relacionar no
mundo, pelo estudo e o trabalho, gerando bons textos e dedicação dos alunos
autores, com o exercício de sua autonomia em escrita.
Apresentamos na sequência a distribuição dos módulos organizados no
Quadro 1 - Cronograma, contemplando as datas, atividades propostas e a carga
horária indicada para sua realização.

Quadro 1: cronograma de atividades sequenciadas.


DATA CH ATIVIDADE
27/03 7:20h às MÓDULO I: Apresentação do projeto.
9:00h
Leitura dirigida do primeiro texto, dividindo-o para o maior
número de alunos lerem em voz alta, após a leitura, instigar
um debate.
28/03 7:20h às
9:00h
Leitura do segundo texto e primeira escrita de artigo de
opinião.
03/04 7:20h às MÓDULO II: Pequeno debate a respeito da reescrita,
9:00h revisão, e por fim, a segunda escrita de artigo de opinião.

24/04 7:20h às Entrega das produções textuais, com notas atribuídas.


9:00h Discussão a respeito das dificuldades. Reescrita da versão
final.
Dados organizados pela autora (2019).

A partir dessa tabela, observamos que esse planejamento sequenciado


auxilia não somente o aluno, mas também ao professor – que tem mais controle
da situação de aprendizagem, pois parte das dificuldades apresentadas no
módulo de reconhecimento para ordenar as demais propostas teórico-
metodológicas visando ao desenvolvimento da escrita dos alunos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 244


Considerações finais

O objetivo da sequência didática foi auxiliar o aprimoramento da escrita,


visando uma melhoria não somente das produções textuais, como também um
maior diálogo entre professor e aluno. Desta forma, durante o desenvolvimento
da produção textual, no processo de escrita da 1ª versão, aprimoramento
individual, revisão em pares e a reescrita, a turma demonstrou que há
dificuldades quanto à adequação ao gênero e ao próprio encadeamento das
ações propostas, mesmo depois de termos discutido a estrutura composicional,
temática, estilo e elaborado atividades para isso.
Também foi possível observar “erros” recorrentes de concordância
verbal e nominal, e aspectos da pontuação. Sendo assim, além de enfatizar o
processo de reescrita, a partir dali, poderíamos pensar em atividades que
pudessem suprir as necessidades da turma, com mais aulas de reflexão sobre o
uso da língua, que não foram objeto desse estudo, em especial, daqueles
conteúdos que os alunos apresentaram mais dificuldades. Após a correção
textual-interativa (RUIZ, 2010), através da qual indicamos essas inadequações,
foram feitas observações pessoais em cada produção textual, de forma
interativa, com vistas a auxiliar e direcionar o caminho para a reescrita.
Com a produção da 2ª versão escrita, foi possível observar que a maioria
dos alunos conseguiu se nortear baseando-se nas orientações indicativas,
resolutivas e interativas (RUIZ, 2010) revisando a repetição de palavras,
pontuação e aspectos gramaticais de forma geral, que diminuíram de maneira
significativa. Desta forma, percebemos a importância da revisão e reescrita no
processo de aperfeiçoamento da competência escrita, fazendo com que os
alunos desenvolvam as suas competências leitora e escritora, além das aptidões
pessoais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 245


A Sequência didática (SD) contribuiu para tal feito e mostrou-se eficaz
como ferramenta de ensino, pois oportunizou o diálogo com os alunos, a
retomada frente as dificuldades e contribuiu significativamente para uma
reflexão a respeito da língua, que teve como consequência um amadurecimento
entre a primeira e segunda escrita, enfatizando a importância de entender o
texto como uma construção.
Assim, o processo de escrita, revisão e reescrita não se limitam à
produção e avaliação com atribuição de nota pelo professor, mas em um
processo de aprimoramento constante visando à melhoria do texto e,
consequentemente, a autoria do sujeito-escritor. Trazendo mais confiança e
autonomia para os alunos, que se sentem muito mais competentes a
desenvolver as suas produções textuais.

Referências

ANDRADE, C.D. Poesias; Ed. José Olympio, 1942.


BERTO, J. C. B. As orientações curriculares oficiais para a produção textual escrita e os
conceitos de revisão e reescrita. In: CHAGURI, J. P.; BERTO, J. C. B. (org).
Pesquisas em História da Educação e Linguística Aplicada Novos olhares para
o ensino de Línguas no Brasil. Campinas Pontes, 2018, p.393 - 420.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. B823p Parâmetros curriculares
nacionais: língua portuguesa / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília :
144p. 1.Parâmetros curriculares nacionais. 2. Língua portuguesa : Ensino de
primeira à quarta série. I. Título
COSTA DA, Elizabeth Dias; MENEGOLO, Wallace; MENEGOLO,
Leandro Wallace: O significado da reescrita de textos na escola: a (re) construção do
sujeito-autor. Ciênc. cogn. vol. 4 Rio de Janeiro, mar. 2005.
DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita –
Elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: SCHNEUWLY,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 246


B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos da escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales
Cordeiro. Campinas: Mercado de Letras, 2004, p. 41-70.
GERALDI, J. W.(org). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel:
Assoeste, 1984.
FIAD, R. S. Operações linguísticas presentes nas reescritas de textos. Revista
Internacional de Língua Portuguesa, n. 4, p. 91-97, 1991.
MARTINS, R. A Escolha Profissional. Disponível em <
http://www.rosangelapsicologa.com/site_pagina.php?pg=textos&texto=30>
Acesso em 10 de Fevereiro de 2019.
MENEGASSI, R. J. Leitura e Ensino; 2. ed. Maringá: Eduem, 2010.
Revista Bem Legal, Sequência didática sobre artigo de opinião - Estudantes concluintes
de Ensino Médio em “Escolha profissional”. Vol. 6 n° 2 – 2016.
RUIZ, E. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 247


CAPÍTULO 18

Análise do discurso crítica (ADC) e


inclusão social: o caso dos imigrantes
Warao e a situação de risco das crianças
indígenas venezuelanas em Belém do Pará
Tailson Rodrigues de Lima1
Auricélia Silva Monte2

Introdução

Este artigo se propõe analisar sob a ótica da Linguística Aplicada (LA),


aliada à Análise Crítica do Discurso (ADC), a problemática da situação de risco
das crianças indígenas Warao na cidade de Belém do Pará. O interesse pelo
estudo se deve pelo número de imigrantes indígenas de origem venezuelana, os
Warao, que vivem em situação de risco nas ruas. Longe de direitos básicos
como a educação, as crianças Warao ficam expostas ao preconceito e à violência
urbana. Outra dificuldade de inclusão dos indígenas em Belém, além da pobreza
e negação de direitos: é a barreira linguística, pois os Warao não possuem o
português como língua materna. Relevando-se este fato, entende-se a
importância do processo ensino-aprendizagem de língua portuguesa para a
inclusão das crianças Warao nas escolas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 248


Para tal estudo, iniciou-se a compreensão teórica da LA por meio de
revisão bibliográfica, com autores como Roxane Rojo, Moita Lopes, Kanavillil
Rajagopalan e outros, que explanam sobre a LA uma ciência linguística que
dialoga com outras disciplinas e se dirige aos problemas sociais. Neste sentido,
a LA é relacionada com a Análise do Discurso Crítica (ADC) para compreender
a problemática das crianças Warao.
Utilizando o aporte teórico e metodológico da LA e ADC, foi possível
aplicar o método tridimensional de Fairclough, que se refere a três camadas
requeridas pelo estudo de caso - a análise o texto, da prática discursiva e da
prática social - à matéria de cinco de fevereiro de 2019 do Diário do Pará, em
que o título de chamada jornalística: MP quer explicação: crianças venezuelanas são
ignoradas em Belém, que demonstra o problema social dos indígenas e a falta de
ação à questão das crianças Warao.

Referencial teórico

A LA proposta pelos teóricos1 expressa duas grandes temáticas: a


linguística aplicada como ciência trans/inter/indisciplinar e a LA como ciência
eminentemente social, engajada e contemporânea, pautada em perspectivas das
minorias, (mulheres, negros, indígenas, homossexuais, cidadãos de países
pobres, etc.) e em teorias pós-modernas, pós-estruturalistas e pós-coloniais.
(RAJAGOPALAN, 2006, p. 149) - questão social e teorias citadas por Rojo:
misturar-se (linguística “mestiça”), “melecar-se” (linguística impura”) com
as questões práticas entendidas como “problemas sociais” ou “privação
sofrida” na perspectiva das “minorias” e das ideologias ditas “alternativas”
(teorias feministas, das relações de gênero, as narrativas étnicas e raciais,

1Graduando do 6º semestre de Licenciatura em Língua Portuguesa, IFPA. [email protected]


2Especialista em Ensino Aprendizagem de Língua Portuguesa, UFPA. [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 249


as teorias queer, o pós-modernismo, pós-estruturalismo e pós-
colonialismo, os estudos culturais) (ROJO, 2013, p. 02).

Para que haja uma real ação transformadora da LA no social é primordial


a ética, “central na vida social e na pesquisa” (MOITA LOPES, 2008, p. 94). A
ética é a força da atitude transformadora, “forma de conhecer a nós mesmos e
de criar possibilidades para compreender a vida social e alternativas sociais”
(MOITA LOPES, 2008, p. 104).
Consequentemente, Moita Lopes afirma que a LA deve, para conseguir
seus objetivos:
criar inteligibilidades sobre a vida contemporânea ao produzir
conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar para que se abram
alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem:
os pobres, os favelados, os negros, os indígenas, homens e mulheres
homoeróticos, mulheres e homens em situação de dificuldades sociais e
outros [...] (MOITA LOPES, 2008, p. 86).

Criar inteligibilidades, conhecimentos criados por meio da percepção e


compreensão dos fenômenos da realidade, empregadas pela LA correspondente
a cada problemática e/ou forma contemporânea de se abordar os problemas da
atualidade conduzem ao ponto da inter/intra/indisciplinaridade. A LA busca a
rejeição da ciência superespecializada, a qual a autoridade científica dá-se com
o processo de especialização, hierarquizando conhecimentos e relegando visões
mais holísticas (abrangentes) de mundo (COSTA, 2013, p. 293). A LA devem
dialogar com outras ciências, sobretudo a linguística, procurando a:

interiorização de pressupostos de outras áreas (áreas aqui em sentido geral),


ou seja, adota-se contribuições de outras pesquisas científicas em um
processo de (re)interpretação e avanço dessa contribuições. O resultado
daí são teorias, categorias ou metodologias muito próprias, e que, embora
não neguem suas origens, não são pertencentes àquela área da qual a
disciplina em questão pedira o empréstimo (COSTA, 2013, p. 294).

A LA, portanto, “não nasceu como disciplina de aplicação linguística, mas


como disciplina de investigação linguística” (COSTA, 2013, p. 290), o que se traduz
em uma ciência indisciplinar, ou seja, não é limitada pelo paradigma

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 250


superespecializado positivista, em que a Linguística e consequentemente a LA
é descrita como “concebida dentro de uma torre de marfim, isto é, sem se
preocupar com o que ocorre no mundo real, tem pouca relevância ou utilidade
no dia a dia para a vida das pessoas comuns” (RAJAGOPALAN, 2006, p. 157-
158).
Para a LA, desconstruir-se como ciência torre de marfim e apresentar-se
como uma linguística engajada, é necessário que atenda aos problemas sociais.
Assim, Roxane Rojo afirma a importância da LA não investigar um problema
social definido teoricamente a priori, abstratamente, e sim relevar os problemas
“com relevância social suficiente para exigirem respostas teóricas que tragam
ganhos a práticas sociais e a seus participantes, no sentido de uma melhor
qualidade de vida, num sentido ecológico” (ROJO, 2013 apud ROJO, 2006, p.).
Destarte, a LA ocupar-se-ia de problemas graves e urgentes da realidade, de
modo a poder mitigar o sofrimento humano e ser instrumento de
transformação social.

Análise do discurso crítica (ADC) e análise


tridimensional
Compreendendo o caráter inter/trans/indisciplinar da LA e a concepção
desta como uma ciência de investigação linguística, ética, com o objetivo de agir
nos problemas sociais da realidade, observa-se a relevância da análise do discurso
crítica (ADC) como instrumento para a ação social e linguística. De acordo com
Viviane Resende e Viviane Ramalho, a ADC está “situada na interface entre a
Linguística e a Ciência Social Crítica” e mapeia “relações de poder e recursos
linguísticos selecionados por pessoas ou grupos sociais” (RESENDE &
RAMALHO, 2004, p. 185). A ADC, como interface social e linguística, indica
o caráter de ação social inter/trans/indisciplinar representativo da LA.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 251


A ADC estabelece um quadro analítico de teorias sociais e metodologias,
direcionando esforços de caráter emancipatório, analisando discursos
(socialmente construídos, de formação de ideologias) para desconstruir crenças
naturalizadas – reproduzidas socialmente, que “servem de suporte a estruturas
de dominação” –, “a fim de favorecer a desarticulação de tais estruturas”
(RESENDE & RAMALHO, 2004, p. 185).
A ADC é empregada utilizando o método tridimensional de Fairclough ao
objeto social. Neste método, há três práticas a serem analisadas, formando um
todo orgânico de relações sociais e linguísticas: a prática discursiva, do texto e a
prática social (RESENDE & RAMALHO, 2004, p. 186).

Figura 1: Concepção tridimensional do discurso em Fairclough

Fonte: RESENDE & RAMALHO

Cada uma dessas dimensões contém categorias de análise que servirão de


base apara a análise do texto de caso contidas no seguinte quadro:

Quadro I: Categorias analíticas propostas no modelo tridimensional

TEXTO PRÁTICA PRÁTICA SOCIAL


DISCURSIVA
vocabulário produção ideologia
gramática distribuição
sentidos
coesão consumo
pressuposições
estrutura textual contexto

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 252


força metáforas
coerência hegemonia
intertextualidade
orientações econômicas,
políticas, culturais, ideológicas

Fonte: RESENDE & RAMALHO

Seguindo as três dimensões de análise e os elementos correspondentes a


cada uma delas, é possível obter um recorte do real, um dado relevante à ação
política e social de intervenção a problemas sociais. Compreendendo o modelo
tridimensional, é possível utilizá-lo no caso das crianças Warao, encontradas em
situação de risco e vulnerabilidade social.

Análise de caso

Em fontes jornalísticas primeiras sobre o caso da imigração de indígenas


da etnia Warao, encontradas por meio de busca online, há a matéria Fugindo da
fome na Venezuela, índios pedem esmolas no centro de Belém de 2017, no Diário do Pará,
noticiando a causa da imigração: a crise na Venezuela, onde o país sofre com
escassez de elementos básicos para a sobrevivência. Constatam-se indígenas em
estado de mendicância, com crianças expostas a situações de risco, condenável
pela Lei 9.394 de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996 e o ECA, que legitimam a
função do Estado de assegurar às crianças educação e proteção.
Em fevereiro de 2019, o Diário do Pará noticiou o caso das crianças
indígenas que permaneciam nas ruas sem proteção e educação. Este texto
veiculado no Diário é, nesse estudo, objeto de análise pelo método
tridimensional de Fairclough, de modo a lançar luz à problemática da imigração
e inclusão de crianças indígenas Warao em Belém, Pará.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 253


Análise do texto
São categorias da análise textual, o vocabulário, a gramática, a coesão e a
estrutura textual. O estudo do vocabulário trata das palavras individuais –
neologismos, lexicalizações, relações entre palavras e sentidos – e a gramática,
das palavras combinadas em frases. A coesão trata das ligações entre as frases,
através de mecanismos de referência, palavras de mesmo campo semântico,
sinônimos próximos e conjunções. A estrutura textual refere-se às propriedades
organizacionais do texto em larga escala, às maneiras e à ordem em que
elementos são combinados (RESENDE & RAMALHO, 2004, p. 187).

MP QUER EXPLICAÇÃO: Crianças venezuelanas são ignoradas em Belém

A 2ª promotora de Justiça da Infância e da Juventude de Belém, Maria do Socorro Pamplona


Lobato, determinou a instauração de processo administrativo para acompanhar e fiscalizar, de forma
continuada, os serviços do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente para
combater a vulnerabilidade das crianças da etnia Warao, em Belém. O Ministério Público do Estado
do Pará (MPPA) notificou, via ofício, órgãos e secretarias municipais e estaduais para que, no prazo
de 15 dias, respondam a todos os questionamentos feitos pela promotoria sobre a real situação de
rua dessas crianças.
Um dos ofícios, para a Secretaria Municipal de Educação (Semec), exige respostas sobre o
plano de atendimento escolar voltado às crianças no Abrigo Domingos Zaluth e na Casa de
Autogestão Monitorada. E ainda o que tem sido feito para evitar a situação de rua e mendicância
delas.
Apesar da preocupação do MPPA, a situação dos pequenos venezuelanos continua precária.
Muitas famílias estão em abrigos, mas a maioria ainda sai às ruas para pedir esmola, na companhia
das crianças. Em alguns abrigos as atividades escolares já começaram, mas precariamente; em outros,
sequer existem. Nas moradias particulares sem vínculo com o governo o assunto escola sequer é
cogitado.

PROCURA

No abrigo Casa de Autogestão Monitorada dos Indígenas, na avenida Perimetral, um grupo


de técnicas da Semec tenta ensinar as crianças desde o dia 23 de outubro. Mas a adesão continua
irrisória, segundo as professoras. Das 57 crianças abrigadas, apenas um grupo de cerca de dez
meninos e meninas participa das aulas, já que fica a critério dos pais. No momento em que as aulas
acontecem, muitas delas estão nas ruas com a família.
No abrigo Domingos Zaluth, nenhuma criança estuda, a maioria também passa a maior parte
do tempo nas ruas. Encontrar um warao pela cidade pedindo esmola já virou rotina para quem mora
em Belém. Os adultos quase sempre estão acompanhados por uma ou mais crianças. Na Avenida

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 254


Senador Lemos, próximo à Praça Brasil, o venezuelano Agenor Átia, que está refugiado em Belém
há um ano e meio, pede ajuda todos os dias junto com a filha de dez anos. Ele conta que a menina
estudava na Venezuela e que gostaria que ela também estudasse em Belém. “Não tenho condições de
pagar e não sei onde procurar escola para ela”, disse. Segundo ele, nenhuma das 66 crianças que
vivem no hotel onde ele mora, estuda. Já o índio Nilson Guerra, que vive com a família em um abrigo
há duas semanas, conta que os três filhos, de quatro, sete e nove anos, não estudam. “Primeiro quero
trabalho, depois penso na escola, mas queria muito que estudassem”.

O Que Diz A Prefeitura

A Prefeitura de Belém informa que já realiza aulas no abrigo da Perimetral, do Município, e


no Domingos Zaluth, do Estado.
As aulas são ministradas de segunda a quinta, com três professores da Semec que trabalham
com um projeto pedagógico específico. Apesar do idioma, as aulas fluem bem, inclusive para adultos.
A Prefeitura informa ainda que tem prestado serviços por meio da Assistência (Funpapa),
Saúde (Sesma) e Educação (Semec), aos grupos venezuelanos desde setembro de 2017.
Todos os dias eles recebem atendimentos de saúde e cidadania, como a emissão de
documentos, consultas, exames, vacinas e encaminhamento para atendimento especializado,
incluindo psicossocial. (Leidemar Oliveira/Diário do Pará)

No presente texto, um ponto norteador da análise é a estrutura textual,


pois dá a ideia do gênero a ser apresentado e a linguagem a ser organizada e
utilizada no texto. A produção jornalística veicula o gênero textual da notícia,
de tipologia descritiva e narrativa para informar sobre algo. No caso do texto
das crianças Warao, o título “MP QUER EXPLICAÇÃO: Crianças
venezuelanas são ignoradas em Belém” aponta um texto em forma de denúncia,
característico do jornalismo investigativo.
A análise estrutural divide o texto. A apresentação se dá por meio do
título da matéria jornalística, expondo a problemática das crianças “ignoradas”.
Os embasamentos da matéria encontram-se na segunda parte do texto,
denominado Procura, a qual apresenta números e relatos para reforçar o
argumento de autoridade. A réplica à matéria do jornal está na parte de título O
que diz a prefeitura. Nestas três partes, encontra-se o recorte do problema social
das crianças indígenas Warao em Belém do Pará.
O texto possui uma linguagem simples, com preocupação em uma escrita
gramaticalmente direta (sujeito + verbo + complemento) para que possa ser

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 255


entendido pela população leitora. O registro informal transparece como uma
conversa, um diálogo estabelecido entre o narrador e o leitor. Neste viés, a
personificação do Ministério Público (MP), “querendo” explicação das
autoridades quanto ao caso das crianças Warao, é típico do registro informal,
própria para estabelecer um canal comunicativo direto.
Quanto à coesão, percebe-se o uso frequente e repetitivo da conjunção
adversativa “mas”, o que indica oposição entre as ideias apresentadas. “Muitas
famílias estão em abrigos, mas a maioria ainda sai às ruas para pedir esmola, na
companhia das crianças” e “Em alguns abrigos as atividades escolares já
começaram, mas precariamente” demonstra na matéria a ineficiente ação do
Estado para resolver o problema da educação das crianças indígenas e da
mendicância dos Warao, que levam seus filhos para as ruas em vez da escola.
A problemática da ausência de ação do Estado se encontra no “mas” dos
Warao - “Primeiro quero trabalho, depois penso na escola, mas queria muito
que estudassem”, mostram aos receptores da informação a busca de
sobrevivência como prioridade em vez da educação das crianças.
O vocabulário escolhido torna claro o objetivo do texto: expor o problema
social da situação dos Warao e, principalmente, suas crianças, como um
fenômeno lastimável, em que o Estado deveria ter uma ação eficaz na resolução
dos problemas. A falta de modalização no texto e uso de palavras fortes é a
marca desta matéria. No título, crianças são ignoradas demonstra total descaso
com a situação das crianças indígenas; o uso de “precário” na asseveração “a
situação dos pequenos venezuelanos continua precária” reforça a incapacidade
do Estado em solucionar as questões concernentes aos Warao e suas crianças;
a palavra “precária” aparece novamente na frase “em alguns abrigos as
atividades escolares já começaram, mas precariamente”, confirmando que, apesar
de alguma ação governamental, são insuficientes para atenderem a questão da
educação das crianças indígenas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 256


A palavra “sequer” confirma no texto uma desorganização e pouco
interesse do governo em resolver o problema da educação e proteção das
crianças Warao. Em “nas moradias particulares sem vínculo com o governo o
assunto escola sequer é cogitado”, percebe-se a ausência de diálogo sobre o
problema, o que inviabiliza a solução. Já no período “em alguns abrigos as
atividades escolares já começaram, mas precariamente; em outros, sequer
existem”, a intenção de reforçar a desorganização e a parcialidade da ação
educacional do governo é patente.
Na análise das práticas discursivas, participam as atividades cognitivas de
produção, distribuição e consumo do texto. Analisam-se também as categorias força,
coerência, e intertextualidade. A força dos enunciados refere-se aos tipos de atos de
fala desempenhados; a coerência, às conexões e inferências necessárias e seu
apoio em pressupostos ideológicos; a análise intertextual refere-se às relações
dialógicas entre o texto e outros textos (intertextualidade) e às relações entre
ordens de discurso (interdiscursividade) (RESENDE & RAMALHO, 2004, p.
187).
Segundo Fairclough (2001, p. 111), a força em um texto se constitui de
uma “ação social que se realiza, que ‘atos de fala’ desempenha (dar uma ordem,
fazer uma pergunta, ameaçar, prometer, etc.)”. Relevando-se este conceito, no
texto a força tende para as exigências do Ministério Público em defesa dos Warao
contra o governo sobre a situação educacional das crianças indígenas:

A 2ª promotora de Justiça da Infância e da Juventude de Belém, Maria do


Socorro Pamplona Lobato, determinou a instauração de processo
administrativo para acompanhar e fiscalizar, de forma continuada, os
serviços do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do Adolescente
para combater a vulnerabilidade das crianças da etnia Warao, em Belém.

A pressão quanto ao conhecimento das ações governamentais se


expressam igualmente no jornal: o título da matéria reforça a exigência de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 257


comprovação de resultados, citando o sujeito impositivo em uma frase
imperativa: “O MP QUER EXPLICAÇÃO”.
Complementando a ideia de força, o excerto “O Ministério Público do
Estado do Pará (MPPA) notificou, via ofício, órgãos e secretarias municipais e
estaduais para que, no prazo de 15 dias, respondam a todos os questionamentos
feitos pela promotoria sobre a real situação de rua dessas crianças”. Nota-se o
uso do vocábulo “real” á palavra situação, o que indica a tendência do governo
a mascarar os resultados de suas ações e evitar a culpabilidade do problema para
si.
Esta força imperativa do MP sobre o governo expressa na matéria é
reforçada com o contexto: ao jornal cabe incentivar meios de chamar atenção do
leitor. Uma estratégia adotada para a venda de informações é a empatia quanto
ao noticiado. O jornal inflama o leitor contra o descaso do governo em prol das
crianças indígenas no título: “Crianças venezuelanas são ignoradas”, compelindo
ao leitor saber do assunto por meio do jornal e da matéria.
A coerência como conceito de Fairclough a ser analisado pelo método
tridimensional na esfera da Prática Discursiva, em essência se apresenta no texto
como a estrutura de ideias relacionadas entre si, permitindo inferências e
conexões de acordo com princípios interpretativos relevantes
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 113). O texto da matéria concatena suas ideias por
meio das ações da MP, formalizando uma denúncia contra a ausência de política
pública, reforçada a trama de responsabilização do poder público. O governo
parece se livrar de suas responsabilidades no excerto “Das 57 crianças
abrigadas, apenas um grupo de cerca de dez meninos e meninas participa das
aulas, já que fica a critério dos pais”, pois é obrigatório o ensino de crianças, direito
de educação universal e compulsório discorrido na LDB.
A intertextualidade é a característica textual de se relacionar em ordem de
ideias a outros textos produzidos. Dessa forma, a compreensão do artigo “MP

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 258


QUER EXPLICAÇÃO: crianças venezuelanas são ignoradas em Belém” faz
relação com demais matérias jornalísticas que abordam o assunto, por exemplo,
a matéria de Roberta Paraense sobre o início da imigração dos Warao a Belém
em 2017, e a percepção que, em dois anos, a situação de risco das crianças
indígenas continuou.
Enquanto as autoras Viviane Resende e Viviane Ramalho apresentam a
interdiscursividade em caráter de relação entre os discursos (2004, p. 187),
Fairclough afirma que a interdiscursividade são discursos historicamente
construídos que se tornam presente (2011, p. 115). O autor afirma uma
tendência dos discursos passados serem retomados e naturalizados, portanto,
necessitam ser desconstruídos para formar novos discursos críticos, de ação e
transformação social.
A interdiscursividade desta matéria foi relacionada com o texto e a área
de “Comentários” dos leitores. Quando um anônimo que se denomina OJR
pergunta: “Alguém me informa o que o MP faz pelas crianças brasileiras?”, este
expressa um discurso naturalizado de oposição entre grupos sociais, em vez de
criticar esta concepção de oposição e criar um discurso de inclusão, a qual os
direitos são garantias do Estado para indígenas e brasileiros igualmente.
Por sua vez, a análise da prática social está relacionada aos aspectos
ideológicos e hegemônicos na instância discursiva analisada. Na categoria
ideologia, observam-se os aspectos do texto que podem ser investidos
ideologicamente, como os sentidos das palavras, as pressuposições, as metáforas, o
estilo. Na categoria hegemonia, observam-se as orientações da prática social, que
podem ser orientações econômicas, políticas, ideológicas e culturais. Procura-se
investigar como o texto se insere em focos de luta hegemônica, colaborando na
articulação, desarticulação e rearticulação de complexos ideológicos
(FAIRCLOUGH, 1997 apud RESENDE & RAMALHO, 2004, p. 188).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 259


Fairclough conceitua ideologia como “significações/construções da
realidade (...) que contribuem para a produção, a reprodução ou a
transformação das relações de dominação” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117). A
análise da ideologia visa principalmente compreender discursos que reforçam o
status quo, situação em que os grupos hegemônicos mantêm o poder político,
econômico e ideológico, reproduzindo as condições de dominação.
O poder político e o Estado mantém um sistema de dominação e uma
ação paternalista-assistencialista em relação às pessoas a margem do poder. Na
parte reservada à réplica da prefeitura acerca da denúncia sobre crianças Warao
em Belém, as afirmações de ação pública são todas imediatistas: “Todos os dias
eles recebem atendimentos de saúde e cidadania”. Percebe-se a falta de palavras
que comprovem discursivamente o interesse do governo em resolver os
problemas sociais. Há, por exemplo, o desinteresse em integrar os indígenas à
sociedade.
Na categoria hegemonia, relevam-se as orientações econômicas, políticas,
ideológicas e culturais (RESENDE & RAMALHO, 2004, p. 188). Considerando o
texto, encontram-se práticas sociais opostas: o ministério público paraense
defendendo os direitos das crianças Warao, e a prefeitura se esquivando da
responsabilidade econômica, política, ideológica e cultural de integração dos
Warao à sociedade e das crianças à educação.

Considerações finais

A linguística aplicada como ciência que dialoga com as demais ciências e


instrumento transformador da realidade é a concepção adotada e defendida
atualmente pelos teóricos e críticos de maior influência da LA. Atitude
necessária para uma ação anti-hegêmonica baseada na ética e na empatia.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 260


A LA emprega as áreas teóricas e metodológicas necessárias, não se
limitando a ciência linguística ou metodologia específica. Dessa forma, a união
das ciências críticas da análise do discurso (ADC) e da análise linguística da LA
concebe o método tridimensional de Fairclough, que releva linguagem, texto e
orientação social na análise de uma problemática do real, direcionada às pessoas
a margem da sociedade.
Observando a problemática da imigração, a falência do Estado na
Venezuela e as dificuldades sofridas pelos Warao nas ruas de Belém, há uma
preocupação marcante com as crianças indígenas, devido ao estado de
vulnerabilidade social, expondo-as à violência urbana e ao preconceito, além da
negação de direitos básicos, como a educação.
O método tridimensional de análise do texto, da prática discursiva e da
prática social no recorte da realidade revela dados da pesquisa para o
conhecimento e a modificação da situação dos Warao, como convocação à ação
política, conscientização e solidarização, promovendo a desnaturalização
discursiva e ideológica.
A presente análise intentou representar a essência da LA engajada e inter-
trans-indisciplinar, buscando compreender os problemas sociais, focando em
uma problemática mundial que se apresenta no país e se encontra patente na
região Norte do Brasil.

Referências

COSTA, L. P. A.. Reflexões sobre o estatuto da linguística aplicada: novos rumos


para velhos temas. Entrepalavras, v. 3, 2013, p. 287-301.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: editora UNB,


2001.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 261


MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Linguística aplicada e vida contemporânea:
problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: Luiz Paulo
da Moita Lopes. (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. 2. ed. São
Paulo: Parábola Editorial, 2008, p. 85-107.

OLIVEIRA, Leidemar. MP quer explicação: crianças venezuelana são ignoradas em


Belém. Diário do Pará (Onmline - DOL): Belém, 05 fev. 2019. Caderno
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<https://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-573832-.html>
Acesso em: 05 fev. 2019.

PARAENSE, Roberta. Fugindo da fome na Venezuela, índios pedem esmolas no centro


de Belém. Diário do Pará (Online – DOL): Belém, 04 out. 2017. Caderno
Notícias do Pará. Disponível em
<http://www.diarioonline.com.br/noticias/para/noticia-455952-fugindo-da-
fome-na-venezuela-indios-pedem-esmolas-no-centro-de-belem.html> Acesso
em: 05 fev. 2019.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Repensar o papel da linguística aplicada. IN: MOITA


LOPES, L. P. (Org.). Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006, p.149-168.

RESENDE, V. M.; RAMALHO, V. V. S. Análise de Discurso Crítica, do modelo


tridimensional à articulação entre práticas: implicações teórico-metodológicas. Linguagem
em (Dis)curso, Tubarão - Santa Catarina, v. 5, n. 2, 2004, p. 185-208.

ROJO, R. H. R.. Caminhos para a LA: política linguística, política e globalização. In:
NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A.; TILIO, R.; ROCHA, C. H. (Org.). Política
e políticas linguísticas. 1ed. Campinas, SP: Editora Pontes, 2013, v. único, p.
63-78.

SCHMITZ, John Robert. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. (Resenha).


Rev. Brasileira de Linguística Aplicada, v. 8. n. 1, 2008.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 262


CAPÍTULO 19

Dialogismo em sala de aula: o


trabalho didático com o discurso
alheio na sala de aula de língua
inglesa da educação profissional
Andre Cordeiro dos Santos1

Entrando no fluxo do diálogo

Assumindo a posição de professor-pesquisador e inserido dentro do


campo da Linguística Aplicada (doravante LA), neste trabalho – que é parte de
uma pesquisa maior, de doutorado – analiso, por meio autorreflexão
(ALARCÃO, 2011) sobre minha prática de ensino de língua, os modos de
apropriação do discurso alheio na composição de enunciados autorais, em
língua inglesa, de alunos da educação profissional, de um curso técnico em
agroindústria integrado ao ensino médio, da rede federal de educação básica,
técnica e tecnológica, em um campus do Instituto Federal de Alagoas. Desse
modo, este trabalho se caracteriza por um duplo movimento de olhares: por
um lado, há um professor inquietado com o processo de ensino aprendizagem
do qual faz parte; por outro lado, há um pesquisador que busca compreender

1Professor da Educação Básica, Técnica e tecnológica de Língua Inglesa do Instituto Federal de Alagoas,
Campus Piranhas. Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura do
Universidade Federal de Alagoas, na linha da Linguística Aplicada. E-mail: [email protected]. Bolsista Capes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 263


os processos pelos quais os alunos se apropriam de dizeres/enunciados alheios
para construir seus próprios enunciados.
Penso ser necessário, neste ponto, fazer uma rápida contextualização dos
motivos pelos quais me lancei na busca da compreensão desse fenômeno
discursivo de construção de sentido posto acima. Ao ingressar na rede federal
de educação profissional, no ano de 2018, deparei-me com um seguimento de
ensino novo para mim e, nessa nova realidade, desenvolvi práticas de ensino de
língua inglesa alinhadas a uma perspectiva social de linguagem – na qual o
linguístico e o ideológico estão imbricados, como mostrarei na próxima seção
–, rompendo com a lógica de identificação e classificação presente nas ementas.
Nesse processo de ensino e de aprendizagem, inquietou-me os processos pelos
quais os alunos tomam os dizeres alheios para comporem os seus próprios
dizeres escritos. Nos enunciados escritos dos alunos, percebi que havia indícios
de processos diversos de interrelação entre o discurso alheio e o discurso
autoral. Assim, apoiado sobretudo em Volóchinov (2017), que defende que os
modos de apropriação dos discursos alheios interferem na construção de
enunciados e de sentidos como um todo, quis compreender esses processos
discursivos.
Diante disso, surge o meu objetivo de pesquisa: compreender os modos
de apropriação do discurso alheio que se dão na escrita de enunciados autorais,
em língua inglesa, de alunos da educação profissional da rede federal de ensino.
Para cumprir com este objetivo, recorro aos estudos do chamado Círculo de
Bakhtin e aos demais autores que se debruçam sobre a teoria bakhtiniana,
ressignificando e expandindo a teoria. Passo, a seguir, à discussão da perspectiva
social de linguagem defendida pelo Círculo e de algumas noções a ela atreladas,
necessárias a este estudo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 264


Linguagem e(m) diálogo

A perspectiva social de linguagem do chamado Círculo de Bakhtin,


expressa sobretudo em Volóchinov (2017), surge no início do século XX, como
um contraponto às duas correntes linguístico-filosóficas vigente na época,
nomeadas, por Volóchinov (2017), como objetivismo abstrato e subjetivismo
idealista/individualista. O objetivismo abstrato se caracteriza como a corrente
linguístico-filosófica que reúne as diferentes vertentes de estudo da língua que
se detêm unicamente aos elementos linguístico dos sistemas linguísticos das
diferentes línguas; para esta vertente tudo pode – mais que isso, deve – ser
explicado a partir das relações que os elementos estabeleciam entre si, não
cabendo à linguística estudar questões que fugissem do sistema linguístico; e
seu principal representante foi Ferdinand de Saussure. Já o subjetivismo
abstrato se caracteriza como sendo a corrente que reúne vertentes idealista e
subjetivistas que buscavam entender a linguagem a partir das relações psíquico-
individuais dos falantes; para os subjetivistas, a linguagem tinha origem no
psíquico do falante o social/exterior não tinha qualquer relação com esse
processo criativo; seu principal representante foi Vossler.
Diante dessas duas correntes linguístico-filosóficas, Volóchinov (2017)
teceu críticas sobretudo ao fato de as duas não terem dado atenção ao social
como sendo parte constitutiva da linguagem, sendo esse, segundo o autor, o
maior erro das duas perspectivas. A partir dessa crítica, Volóchinov (2017)
propõe uma nova perspectiva que daria conta de olhar o social na sua relação
de indissociabilidade com o linguístico. A perspectiva social de linguagem,
proposta por Volóchinov (2017), pode ser resumida nas seguintes proposições-
síntese: o sistema de signos, por si só, não dá conta da realidade dos fenômenos
linguísticos; a língua é um fenômeno em processo e esse processo se efetiva

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 265


pela interação; as leis da evolução da linguística são sociológicas; a criatividade
de uma língua está ligada aos valores ideológicos e essa criatividade é originada
de uma necessidade social; e a enunciação é puramente social/ideológica (p.223-
224).
Assim, Volóchinov (2017) toma o enunciado – seja ele verbal, visual ou
verbo-visual Brait (2013) – como sendo a unidade da interação discursiva e,
nele, diferentes relações de diálogo/sentido se estabeleceriam. Essas relações
dialógicas podem ser indiciadas no enunciado de diferentes formas. Santos
(2015), a partir de Volóchinov (2013a; 2017) e Bakhtin (2010; 2015), resume
esses modos pelos quais as relações dialógicas de evidenciam nos enunciados
da seguinte forma: a orientação social, para o outro; a presença de diferentes
vozes sociais que dialogam ou se conflitam; a materialização do enunciado
enquanto elo entre os já-ditos e a presunção de respostas; a adequação ao
contexto enunciativo; e as marcas valorativas/emotivo-volitivas/axiológicas do
sujeito em relação ao objeto da enunciação.
Ainda relacionado a este carácter dialógico da linguagem está a questão
da apropriação do discurso alheio para a composição de enunciados autorais.
Para Volóchinov (2017) esse processo diz respeito a entrada da enunciação
alheia na enunciação autoral e é justamente a interrelação entre esses diferentes
discursos que deve ser estudada a fim de se construir sentidos de forma
responsável e responsiva. Para o autor, os processos de apropriação do discurso
alheio estariam divididos em dois diferentes grupos, os modos e as formas de
apropriação. No que se refere aos modos, Volóchinov (2017) diz haver o estilo
linear e o estilo pictórico de apropriação do discurso alheio: O estilo linear tende
à delimitação do discurso alheio enquanto o estilo pictórico tende ao
apagamento das fronteiras.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 266


No que se refere às formas, segundo Volóchinov (2017), elas dizem
respeito às variações do discurso direto e do discurso indireto – discurso direto
preparado, discurso direto reificado, discurso direto retórico, discurso direto
substituído, a modificação analítico-objetual do discurso indireto, a modificação
analítico-verbal do discurso indireto, a modificação impressionista do discurso
indireto e a modificação indireta livre –, no entanto, o estudioso adverte que
essas formas dizem respeito especificamente ao romance russo do início do
século XX e que, em outro tempo, em outras formas relativamente estáveis de
enunciado e em outras línguas, podem haver formas diferentes. Sendo assim,
seria somente a partir de uma experiência pensante com a linguagem que se
poderia pensar em formas de apropriação do discurso alheio.
Baseado na concepção social de linguagem e partindo desse último
entendimento de Volóchinov (2017), analiso dois modos de apropriação do
discurso alheio, presentes nos enunciados dos alunos da educação profissional.
Antes da análise em si, na seção seguinte, exponha os aspectos metodológicos
necessários para a compreensão deste trabalho.

Aspectos metodológicos

Os dados que servem de análise neste texto surgem da minha própria


prática, por isso, esta pesquisa trata-se de uma autorreflexão (ALARCÃO,
2011). No primeiro semestre do ano letivo de 2018, em uma turma de quarto
ano do curso técnico em agroindústria integrado ao ensino médio, propus-me
a desenvolver práticas de ensino alinhadas à perspectiva social de linguagem e
coletei informações do processo de ensino e aprendizagem para refletir sobre
minha prática a fim de repensá-la se preciso fosse. Posteriormente, ocupando a
posição de professor-pesquisador (BORTONI-RICARDO, 2008), debrucei-

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 267


me sobre essas informações e os modos de apropriação do discurso alheio,
determinantes na construção de sentido dos enunciados, chamaram-me atenção
e, assim, tomei alguns deles como dados de pesquisa a fim analisá-los e
compreendê-los.
Esses dados surgiram de duas sequências de atividades, cada uma com
tema gerador e conteúdo linguístico específicos: no primeiro bimestre, tomei o
tema Inequalities between men and women para discussão e, ao mesmo tempo, vimos
questões referentes ás formas do reported speech; no segundo bimestre, trabalhei
com o tema Prejudice and discrimination, tema escolhido pelos alunos, e, no âmbito
linguístico, estudamos conditional clauses. Nos dois bimestres, os processos
culminaram na produção de enunciados escritos em língua inglesa sobre as
temáticas em discussão. Nesses enunciados produzidos pelos alunos, tomando
como base a discussão e as categorias postas por Volóchinov (2017) e Bakhtin
(2015) sobre a apropriação do discurso alheio, pude identificar alguns processos
específicos de apropriação do discurso alheio e, neste texto, trago à discussão
dois desses processos: a apropriação ironizada do discurso alheio e a
apropriação verbo-visual do discurso alheio. Passamos, a seguir, à análise desses
dois processos de apropriação, em uma perspectiva social (VOLÓCHINOV,
2017) e qualitativa (ANDRÉ, 2013).

Análise de dados

Nessa seção, trago duas amostras de enunciados produzidos pelos alunos


no primeiro semestre de 2018, uma de cada bimestre, a fim de analisar e
compreender os processos de apropriação odo discurso alheio presentes nos
enunciados e, com isso, evidenciar como esses processos interferem na

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 268


produção de sentidos ideologicamente marcados e socialmente situados. Passo
à análise da apropriação verbo-visual do discurso alheio.
3.1 A apropriação verbo-visual do discurso alheio
Respondendo a minha orientação para a produção de um cartaz que
pregasse a equidade entre homens e mulheres, um dos grupos produziu o
seguinte cartaz:

Figura 1: Cartaz-enunciado 1 produzido por alunos

No cartaz-enunciado, um dos alunos, uma mulher, aparece com a mão


no pneu de um carro e, mais à frente, um outro aluno, um homem, está
segurando uma plaquinha na qual está escrito: “I was alone on the roand and she who
repaired my car [sic.]”2. No texto escrito pelos alunos, há uma inadequação
caracterizada pelo acréscimo do “n” à palavra “road”. Cabe mencionar que este
e outros desvios de escrita foram objeto de discussão em sala de aula. No
entanto, como não é esse o objetivo principal desta pesquisa, opto por, neste
momento, apenas mencionar o reconhecimento dos desvios e esclarecer que
eles foram objeto de discussão em sala de aula.

2Apesar do desvio de escrita (road escrito como roand) o texto quer dizer: Eu [homem] estava sozinho na estrada
e foi ela (mulher) que consertou meu carro.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 269


Na interação do visual com o verbal, tem-se a mulher trocando um pneu,
situação na qual, no senso comum, geralmente se tem um homem, e o homem
sendo ajudado, posição esta que, também no senso comum, quem geralmente
ocupa é a mulher. Com isso, o estereótipo da mulher como figura frágil, incapaz
de executar atividades que envolvam força física, como a troca de um pneu e o
estereótipo do homem como figura sempre pronta a ajudar sem jamais precisar
de ajuda são relativizados. Ou seja, tanto homens quanto mulheres podem
ocupar os lugares socialmente estereotipados para o sexo oposto.
A respeito do enunciado posto acima, cabe mencionar e pontuar que, se
se observa o cartaz isoladamente, pode parecer que houve no enunciado apenas
uma inversão de lugares ocupados pelo homem e pela mulher, no entanto, se
se estende o olhar para a hashtag usada pelo grupo (#shecanalso), percebe-se que
não é o caso. A interação entre o cartaz e hashtag mostra que os alunos falam de
situações nas quais as mulheres também podem assumir papéis sociais
diferentes dos que a cultura patriarcal e machista predetermina. Ao fazer isso,
os alunos também acabam por fazer o mesmo com o homem: mostrar que os
homens também podem assumir papéis normalmente associados à figura
feminina.
No que se refere à apropriação do discurso alheio, para a escrita do
enunciado, os alunos usam, de modo não marcado – portanto, no estilo
pictórico (VOLÓCHINOV, 2017) – de discursos socialmente correntes e
tentam desmontá-los, mostrando que a mulher também pode, por exemplo e
no caso específico, trocar um pneu. Além disso, percebe-se que os alunos
respondem dialogicamente ao discurso do professor e constroem cartazes nos
quais a equidade entre homens e mulheres se faz presente, fazendo com que o
enunciado se mostre como um elo responsivo-ativo à cadeia de interação
discursiva da orientação dada pelo professor surgiu. Com isso, os alunos fazem

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 270


ressoar, no enunciado, outras vozes – do professor, das leituras realizadas, das
discussões feitas, etc. – do processo dialógico de composição de enunciados
(BAKHTIN, 2015).
Ainda a respeito da apropriação de discursos alheios no enunciado acima,
tem-se mais que o material verbal para se observar, pois, para além de uma
apropriação do discurso alheio na dimensão verbal, tem-se uma apropriação
refratada do discurso imagético-visual da propaganda da Those Guys (abaixo).

Figura 2: Cartaz da Those Guys visando quebrar estereótipos em relação à mulher

Assim, como na propaganda usada para iniciar os trabalhos didáticos,


há, nos cartazes, a presença de plaquinhas com textos escritos em inglês. Cabe
frisar, no entanto, não se tratar de uma mera repetição da dimensão imagética-
visual dos enunciados da campanha publicitária, pois os alunos imprimem algo
novo no que já era dado, como, por exemplo, a presença de um homem e uma
mulher no cartaz em uma situação que exemplifica a possibilidade de a mulher
assumir papéis atribuídos a homens e vice versa. Portanto, no enunciado acima,
tem-se a presença de diferentes vozes, tanto verbal quanto imagético-visual,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 271


coabitando o mesmo espaço discursivo (BAKHTIN, 2015); tem-se uma
apropriação verbo-visual de discursos alheios. Passo à apropriação ironizada do
discurso alheio.

A apropriação ironizada do discurso alheio

No segundo bimestre, produzindo enunciados sobre Prejudice and


discrimination, um grupo de alunos produziu enunciados sobre a “heterofobia”.
Os alunos trouxeram exemplos de preconceito através dos quais as pessoas
lançariam mão de palavras de autoridade como, por exemplo, os textos da Bíblia
para, assim, julgar o comportamento heterossexual. Assim, os alunos
representam na imagem a seguir um trecho que, segundo eles, seria usado para
repreender os comportamentos héteros.

Figura 3: Cartaz-enunciado 2 produzido por alunos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 272


Para eles, o trecho da Bíblia – I Coríntios, 6, 103 – seria tomado de forma
isolada, descontextualizado a fim de justificar ou fundamentar atitudes
preconceituosas. Seria, portanto, para os alunos, necessário romper com esse
pensamento fundamentalista que subjugaria os héteros a uma posição inferior
aos homossexuais. Ao fazerem isso, os alunos se apropriam de um discurso
alheio de forma linear (VOLÓCHINOV, 2017), atribuindo o discurso à Bíblia
– o livro é tomado em detrimento do autor do texto, tendo em vista o grande
peso que a Bíblia tem entre os cristãos, sendo vista como a palavra de Deus.
No entanto, percebemos que os alunos se apropriam do discurso alheio de
forma simulada, ou seja, fingem trazer o discurso em um estilo linear, quando,
na verdade, o enunciado é fruto da interação de vozes autorais com vozes
alheias (a da Bíblia, o discurso socialmente corrente), o que caracteriza o estilo
pictórico (VOLÓCHINOV, 2017).
A apresentação do grupo consistiu em um série de imagens tais quais as
apresentadas acima, refletindo e, sobretudo, refratando discursos alheios de
uma forma simulada/ironizada, por meio da qual finge-se trazer, à composição
dos enunciados, dizeres outros em sua forma linear, quando, na verdade, tem-
se o uso do estilo pictórico que é caracterizado pela interação da voz alheia com
a voz autoral (VOLÓCHINOV, 2017). Ainda no que se refere à apresentação
do grupo, cabe mencionar que, após terminada a exposição de todos os
comentários e questionamentos preconceituosos dos quais os héteros seriam
vítimas, os alunos disseram que toda a apresentação foi uma simulação, para
que, através da ocupação desse outro lugar e invertendo dizeres sociais, fosse

3“Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas,
nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o Reino
de Deus.”

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 273


possível evidenciar a inconsistência do argumento do preconceito reverso, ou
seja, da heterofobia.
A partir dos exemplos supracitados do modo de apropriação ironizada
do discurso alheio, percebe-se que, ocupando um lugar simulado, os alunos
fingiram ocupar um lugar que, ao final da apresentação, revelaram não ocupar.
Consequentemente, o processo de apropriação do discurso alheio também se
deu nesse jogo de fingimento: os alunos fingiram trazer enunciados outros em
um estilo linear, quando, na verdade, o que se tinha era um enunciado
fortemente perpassado por discursos autorais, o que caracteriza o estilo
pictórico de apropriação de dizeres outros (VOLÓCHINOV, 2017).
Ainda a respeito desse processo, pode-se perceber a interação entre
diferentes vozes – a observação do processo, permite observar coisa que só o
produto (texto) não permitiria – em relação de diálogo e de conflito, o
caracteriza o enunciado como plurilíngue (BAKHTIN, 2015), evidenciando-o
também a luta entre grupos sociais distintos. A esse respeito, conforme pontua
Volóchinov (2013b, p. 197), no texto “A função social da palavra”, devido a
sua natureza social e ideologicamente dialogizada, no seu valor estilístico, “a
palavra torna-se arena da luta de classes [ou de grupos sociais distintos], a arena
da dissidência de opiniões e de interesses de classes orientados de modos
distintos”, evidenciando diferentes pontos de vista avaliativos.
Portanto, por meio desse modo simulado/ironizado de tomar o discurso
alheio à composição de seus enunciados, os alunos respondem dialogicamente
(VOLÓCHINOV, 2017; BAKHTIN, 2015) à orientação do professor
[produzir texto em inglês sobre prejudice and descrimination]; a textos
anteriormente vistos na sala de aula [campanha publicitária que direciona
comentários homofóbicos a héteros]; aos discursos preconceituosos sobre

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 274


homossexuais; a discursos sobre o chamado preconceito reverso4, heterofobia,
e instauram uma zona de conflito entre diferentes grupos em seus enunciados.
Ou seja, partindo de sentidos já dados, os alunos refletiram e refrataram os
enunciados outros instaurando, em seus enunciados, sentidos outros.

Considerações finais

Diante do que foi analisado, ainda que de forma aligeirada, percebemos


que os processos de apropriação do discurso de outrem evidenciam que os
alunos, quando da composição dos seus discursos na língua outra-estrangeira,
lançam mão de diversos discursos alheios e, nesse processo de apropriação e
interrelação de discursos, instauram zonas de diálogo e conflitos entre vozes
que evidenciam posicionamentos ideológicos assumidos. Essas zonas de
diálogo e de conflito são determinantes do sentido do enunciado como um todo
e, portanto, saber reconhecer e compreender esses processos de apropriação
são indispensáveis à interação discursiva responsável e responsiva.
No que se refere ao ensino de língua, este não pode fechar os olhos aos
efeitos ideológicos de sentido que se instauram no enunciado por meio dos
diferentes processos estilístico-dialógicos de composição. É preciso, cada vez
mais, romper com concepções de língua objetivistas ou subjetivistas de
linguagem que buscam identificação, classificação e uma quase adivinhação de
intenções, para que, assim, adotem-se perspectivas de língua que deem conta de
olhar a linguagem como um todo, em sua natureza social.

4 Expressão usada para referir o tipo de preconceito de grupos minoritários e/ou étnicos oprimidos em relação
a grupos majoritários e/ou historicamente dominantes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 275


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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 276


CAPÍTULO 20

Ensino de leitura, escrita e letramento


acadêmico
Edna Maria de Oliveira Ferreira1
César Costa Vitorino2

Introdução

Em toda sociedade letrada é natural que haja valorização, exigência cada


vez maior em relação ao domínio da leitura e da escrita. Entretanto, essa
imposição por si só não garante a todos os cidadãos o acesso à alfabetização,
nem qualidade na educação básica àqueles que nela ingressam. É preciso que a
escola esteja atenta e que haja interesse por parte dos que gerenciam as políticas
educacionais para que as coisas fluam a contento.
O crescente processo de urbanização a que estamos submetidos,
principalmente nas últimas três décadas, em que a população das cidades tem
aumentado de forma significativa, passou a exigir um nível de leitura e escrita
cada vez mais proficiente para uma atuação participativa e responsiva em
sociedade, devido à pluralidade sociocultural resultante dessa nova estruturação
da sociedade: o rural invadiu o urbano (ANTUNES, 2016).
O aumento da demanda nas escolas brasileiras deu demonstrações de
que a qualidade do ensino sofreu consequências. Uma delas bem visível é a

1 Mestre em Educação Agrícola, pela UFRRJ, professora EBTT no IF Baiano, disciplina de língua portuguesa,
e aluna de doutorado na UNR-Argentina, [email protected].
2 Doutor em Letras, pela PUC- RS, Professor permanente do Mestrado MPIES/ UNEB, Professor Doutor II

da FVC, coautor deste texto e orientador da autora, [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 277


ausência de competência em leitura e escrita, ou seja, em linguagem, trazida para
a escola pelos alunos, não apenas agora por conta da urbanização ou da
convivência com as tecnologias e inovações, mas também desde a
redemocratização do ensino e das políticas públicas desenvolvidas com vistas a
um maior acesso à educação, somado à carência de profissionais qualificados,
naquela época.
A crise se deu na alfabetização e prosseguiu na falta de atenção dos
sistemas escolares com o ensino de língua materna na educação básica,
comprometendo as fases do desenvolvimento da competência linguístico-
discursiva dos alunos durante o ensino fundamental e médio, correspondente à
educação básica, e chegando ao segmento mais avançado, o ensino superior. A
maioria dos alunos chega ao ensino superior sem habilidades de leitura e de
escrita, correspondentes às exigências desse segmento de ensino. (ROJO, 2009).
Nesse contexto, surge a preocupação em combater essa situação e uma
atenção maior é dispensada à questão da alfabetização acadêmica, com o
propósito de promover situações e vivências em sala de aula da graduação, que
resultem na continuidade do desenvolvimento da competência linguístico-
discursiva dos alunos, sem que assuma um caráter compensatório. Dessa forma,
concepções teóricas advindas dos Novos Estudos do Letramento (NEL),
associados aos estudos da linguística do texto e do discurso serão articuladas no
sentido de possibilitar as discussões sobre o letramento acadêmico, ou
multiletramentos, como define Street (2003 apud FIAD, 2015).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 278


Ensino de leitura e escrita: novos tempos, novas
exigências

No dia a dia, somos estimulados e provocados por textos de formatos


composicionais e tipologias várias o tempo todo, e por todos os lados. Os mais
diferentes modelos de textos, advindos de suportes textuais também diversos,
de gêneros textuais os mais variados, associado ainda à presença das tecnologias
de informação que se renovam com tanta rapidez, fazem parte de nossas
práticas sociais constantemente.
Ou seja, somos convocados a miúde a interagir, buscar soluções para
problemas e, não raro, até criando novos anseios e novas necessidades culturais.
Vejamos o que diz Arbusti (2016, p. 175-176) sobre as práticas de leitura em
nosso meio

Las prácticas de lectura también se han cambiado. Leer en el tranvía se


prestaba a un tiempo que se percibía más lento. El formato papel poseía
el reinado, y la linealidad también. Leer a los saltos era un acto poco
común, provocativo, propio de los lectores avezados. Hoy las distancias
se han acortado – espaciotemporalmente – y las prácticas de lectura
acompañan esa velocidad que por momentos nos mantienen asombrados
a quienes pertenecemos a las generaciones que nos formamos andando
con ritmos más apacibles.

A citação acima resgata ao leitor deste artigo as mudanças por que


passaram (ou passam!) o conceito de leitura, de prática do ato de ler, enfim, até
mesmo o conceito de ensino de leitura, já que não são vistos mais como outrora.
As concepções tanto de leitura (ato de ler) como ensino de leitura (ação
pedagógica criteriosa e intencional) estão sendo reformuladas diante das
exigências do tempo presente.
O ensino de leitura e escrita já foi visto com preocupação apenas voltada
à codificação e decodificação, ou como expressão do pensamento, numa
abordagem estruturalista da linguagem. Entretanto, numa perspectiva funcional
e interacionista da língua e, graças aos estudos em psicologia cognitiva,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 279


linguística, entre outros, o ensino de leitura assume um caráter processual e
contínuo, em que o aprendizado resulta de experiências cada vez mais
complexas. Arbusti (2016, p. 173) esclarece

Hemos dejado atrás (felizmente) la idea de que la alfabetización culminaba


en los primeros dos años de la escolaridad primaria, y eso supone que
nuestro compromiso sigue siendo guiar los procesos de lectura y escritura
a lo largo de toda la formación de los alumnos, sea en que nivel que sea.

Atualmente, pesquisas e estudos na área de linguagem e de áreas afins


comprovam que tanto a escrita como a leitura são mais que apenas codificar ou
decodificar, que é a primeira etapa desse aprendizado. A aquisição da linguagem
compreende várias etapas; é um processo contínuo que vai da alfabetização
inicial à alfabetização integral3. Para Silveira e Oliveira (2015, p. 70),

a construção da compreensão leitora não deve ser desenvolvida sem a


interação leitor-autor, via texto [..] é através [...] que ocorrerá a ativação de
todo o processo cognitivo, desde a percepção do texto [...] até chegar à
compreensão dos processos inferenciais [...].

Essa perspectiva se situa numa abordagem sociointeracionista.


Vejamos algumas concepções de leitura, a título de reflexão, acerca das
abordagens da leitura mais frequentes em nossas escolas, e que entendem os
leitores como capazes de mobilizar estratégias4 para a compreensão do texto
“[leitura] o processo mediante o qual se compreende a linguagem escrita [...].
Nesta compreensão intervêm tanto o texto, sua forma e conteúdo, como o

3 Alfabetização integral em referência a um estágio mais avançado da aquisição da leitura. Avendaño e Perrone

( 2015, p. 10) assim se referem à competência comunicativa integral “involucra actitudes, valores y motivaciones
relacionadas con la lengua, con sus características y con sus usos, y con otros sistemas semióticos.”
4 Estratégias são “procedimentos [úteis] para regular a atividade das pessoas, à medida que sua aplicação permite

selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determinadas ações para conseguir a meta a que nos propomos.”
(SOLÉ, 1998, p. 69).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 280


leitor, suas expectativas e conhecimentos prévios.”. (SOLÉ, 1998, p. 23). Ou
ainda

[leitura] (...) como uma atividade a ser ensinada na escola, (...) embasada
em modelos sobre como processamos informações. Esses modelos lidam
com os aspectos cognitivos da leitura, isto é, aspectos ligados à relação
entre sujeito leitor e o texto enquanto objeto, entre linguagem escrita e
compreensão, memória, inferência e pensamento. (KLEIMAN, 2004, p.
31).

Nesse trecho de Kleiman, fica explícita a ideia de que a leitura pode/deve


ser ensinada na escola. Inclusive, aproxima-se da ideia defendida na abordagem
processual-cognitiva da linguagem, em que se defende o uso das estratégias de
leitura para compreensão e atribuição de sentidos ao texto, a exemplo do que
nos propõe também Solé (1998). Outro conceito de leitura que se aproxima de
uma perspectiva discursiva da linguagem é este apresentado por Orlandi (1996,
p. 38)

Leitura é o momento crítico da constituição do texto, o momento


privilegiado do processo verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o
processo de significação. No momento em que se realiza o processo da
leitura, se configura o espaço da discursividade, em que se instaura um
modo de significação específico.

Como se pode notar, é uma perspectiva discursiva da leitura, pois aponta


para uma interação sujeito leitor/texto/contexto. Essa perspectiva, trabalhada
numa abordagem sociocognitiva, tem logrado espaço não apenas nas escolas,
como um norte para o ensino de leitura e escrita, mas em várias áreas de
conhecimento ou de produção de conhecimento, fazendo interfaces com todas
essas outras áreas.
Diante das críticas sobre a ausência de propostas pedagógicas para o
ensino de leitura e escrita, Lillis & Scott (2007 apud FIAD, 2015) apresentam as
diferenças básicas entre uma abordagem normativa e uma abordagem
transformadora, demonstrando preferência pela última, já que esta além de
oportunizar a proficiência do aluno, reconhece o poder transformador das

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 281


relações estabelecidas entre os sujeitos e o conhecimento, e as relações de poder
que existem no ambiente de ensino.
Isso vai coincidir com o que apregoam os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN/2001) que contemplam objetivos para um ensino de língua
materna capaz de formar para uma atuação linguística competente na sociedade.
Vejamos o que dizem os PCN (2001, p.30) a esse respeito

Toda educação verdadeiramente comprometida com o exercício da


cidadania precisa criar condições para o desenvolvimento da capacidade
de uso eficaz da linguagem que satisfaça necessidades pessoais - que
podem estar relacionadas às ações efetivas do cotidiano, à transmissão e
busca de informação, ao exercício da reflexão.

Como se pode perceber, embora com outra redação e outra abordagem,


a Base Nacional Comum Curricular-BNCC/2018 mantém essa preocupação
com a formação em língua materna, capaz de proporcionar competência
linguística necessária às demandas pessoais, à atuação em sociedade. E, ainda,
como mecanismo de reflexão sobre seu entorno, seu ambiente de trabalho, na
apreensão de informações diversas e constantes a que estamos submetidos
cotidianamente. Só uma abordagem transformadora no ensino de leitura poderá
dar conta desse objetivo.

Letramento acadêmico e ensino de leitura

Com os baixos índices de aproveitamento em leitura e escrita, entre os


alunos egressos da educação básica, no Brasil, e o contexto de efervescência
criado pelos NEL, o termo letramento acadêmico (ou alfabetização acadêmica)
passou a fazer parte do cotidiano escolar em nível de graduação, na década de
90 Houve um interesse em identificar as formas de letramento que aconteciam
na graduação; e em amenizar essas dificuldades de linguagem apresentadas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 282


pelos discentes, ao mesmo tempo em que se investia em sua formação docente
ou profissional.
Nessa perspectiva, foram muitas as ementas dos cursos de graduação,
analisadas em diferentes Instituições de Ensino Superior (IES), cada uma com
uma nomenclatura diferenciada: Leitura e Produção de Texto I, Produção
Textual II, Alfabetização Científica, etc., porém sempre voltadas para o
desenvolvimento da linguagem de modo a desenvolver no aluno as habilidades
para o domínio discursivo-acadêmico, ao mesmo tempo em que oferecia
formação docente ou profissional.
É válido ressaltar que no início dos anos 90, havia certa confusão quanto
aos propósitos da disciplina até mesmo entre os professores que a ministravam:
uns, a entendiam como necessária ao letramento científico individual, e outros,
já evidenciavam aspectos mais formais, composicionais dos textos.
Atualmente, essas disciplinas foram extintas, mas a metodologia de
trabalho e os procedimentos didático-pedagógicos acionados pelos professores
para o trabalho com a leitura e com a escrita de textos ainda devem ser objeto
de reflexão. Impõe-se ainda como exigência um ensino de leitura proficiente,
pois Marcuschi (2008, p. 228) defende que “ler não seja apenas uma experiência
individual sobre o texto, oral ou escrito. Compreender o outro é uma aventura,
e nesse terreno não há garantias absolutas ou completas”. Portanto, quanto
maior e mais amplo o contato do aluno com a diversidade de gêneros, mais
proficiente será em linguagem.
A Linguística Textual (LT), entendendo o texto como objeto de sentido,
passa a ser grande aliada e aponta caminhos a serem percorridos tanto no ensino
de leitura dos mais variados gêneros textuais, para que se alcance a compreensão
do texto, quanto à competência discursiva, no momento de produção de novos
textos. Os estudos teóricos sobre análise do discurso (AD) também vão
contribuir, uma vez que também se ocupam com a questão da variabilidade e

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 283


instabilidade dos sentidos/da significação. É um espaço rico também a ser
ocupado pela didática da leitura, facilitando o trabalho de ensino de leitura,
pelos professores que não são formados na área de linguagem.

Ensino de leitura e passos em direção ao(s) letramento


(s)

A alfabetização apresenta duas dimensões: o ler e o escrever. Cada uma


dessas dimensões exige habilidades específicas, tanto no processo de ensino e
de aprendizagem das duas, quanto no uso social que se faz das mesmas. As
especificidades de leitura vão desde a decodificação de palavras escritas, até a
compreensão de informações veiculadas em textos de gêneros e tipologias
variadas.
Já as habilidades de escrita vão desde a capacidade de registrar as
unidades de som dos fonemas/palavras, até a competência em transmitir
significado a um leitor potencial. Assim, fica difícil um conceito único e
consistente para o termo ‘letramento’, já que as capacidades cognitivas 5 e
metacognitivas6 que constituem a leitura e a escrita são de natureza bastante
heterogênea, embora sejam habilidades de um mesmo fenômeno: a
comunicação, por meio da língua escrita.
Carlino (2013, p. 370), reformulando o conceito de alfabetização
acadêmica, termo aceito nas comunidades de língua espanhola, e equivalente à
letramento científico, afirma que se denomina alfabetização acadêmica

al proceso de enseñanza que puede (o no) ponerse en marcha para


favorecer el acceso de los estudiantes a las diferentes culturas escritas de

5 Cognitivas no sentido de que são subjetivas e levam em consideração a capacidade de aprendizado pela
cognição.
6 Metacognitivas, refererindo-se à etapa em que o aluno toma consciência sobre seus conhecimentos e sua

capacidade de compreender, controlar e manipular suas habilidades para aprender.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 284


las disciplinas. Es el intento denodado por incluirlos en sus prácticas
letradas, las acciones que han de realizar los profesores, con apoyo
institucional, para que los universitarios aprendan a exponer, argumentar,
resumir, buscar información, jerarquizarla, ponerla en relación, valorar
razonamientos, debatir, etcétera, según los modos típicos de hacerlo en
cada materia.

Esse conceito de alfabetização acadêmica, muito bem fundamentado


pela autora, e em consonância com os fundamentos epistêmicos, filosóficos e
teóricos que amparam a educação nesses países de língua espanhola, enfatiza a
questão do acesso do aluno ao conteúdo e às linguagens das distintas culturas
escritas correspondentes a cada uma das disciplinas que compõem o currículo.
Desse modo, a preocupação centra-se tanto nas especificidades de cada
conteúdo como no formato composicional dos textos de maior circulação no
meio acadêmico. É importante que o aluno e o professor dialoguem sobre essas
características dos textos em cada gênero.
Rivero (2012, p. 82) defende que

A escrita acadêmica se define como o tipo de escrita que se produz no


âmbito formal superior universitário, em nível de pós-graduação ou
relacionados – tanto por parte dos alunos como por parte dos docentes
investigadores e da instituição, já que tem como finalidade gerar,
transformar e manipular conhecimento disciplinares. (tradução nossa)

Percebe-se, dessa forma, a intenção explícita de inserir o aluno num


contato mais próximo com as linguagens, com o conteúdo que compõe os
diferentes campos, áreas do saber, oportunizando a ele condições de
argumentar, avaliar raciocínios com senso crítico, debater, hierarquizar ou
buscar informações necessárias em dado momento de sua vida escolar ou
pessoal, nas mais diversas práticas sociais a que está sujeito. E, na opinião da
autora, todos os professores, cada um em sua disciplina, devem estar atentos a
isso, dando suas contribuições para desenvolver a competência discursiva do
aluno, reforçando a ideia de que a leitura é um instrumento, um mecanismo que
pode e deve ser utilizado por todos os professores e por todas as disciplinas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 285


Uma abordagem dialógica no ensino de leitura e escrita, a exemplo da
abordagem transformadora sugerida por Lillis & Scott (2007 apud FIAD, 2015)
e que coincide com a ideia defendida por Juchum (2016), admite que os
estudantes adaptam-se com facilidade, impondo novos modos de fazer e de
dizer na universidade, quando provocados por práticas de letramento
acadêmico.
Dessa maneira, é notória a necessidade de o ensino de leitura ser tomado
como objeto de ensino, em todo o processo de escolarização, para favorecer a
inserção dos alunos nas práticas letradas, preparando-os também para a
inserção no ambiente acadêmico e para a participação cidadã nas práticas
sociais. Enfim, para capacitar esse aluno a argumentar, questionar, saber buscar
informações, hierarquizar essas informações, etc. Ou seja, quanto mais se lê e
se escreve textos literários ou científicos, multimodais ou não, mais se aprimora
tanto da capacidade de ler, de compreender e de atribuir sentidos como a de
escrever e de versar sobre seus conteúdos diversos e em diversas áreas do
conhecimento.
Embora a leitura ainda ocupe um espaço menor que o dedicado à escrita
no espaço escolar, pode-se afirmar que, após os avanços, sobretudo, nos
estudos da Psicologia Cognitiva (PC), da Psicolinguística (P), da LT e dos
estudos da Análise do Discurso (AD) ficou patente que o ensino de leitura deve
ocupar um espaço significativo ao longo de toda a escolaridade. Sim-Sim (2001)
faz referência à importância dos conhecimentos teóricos e práticos que o
professor deve ter na sua formação para o ensino de leitura e escrita, garantindo
sua competência pedagógica para selecionar suas ações, metodologia e
procedimentos didáticos, sabendo quando, como e por que utilizá-los.
Na ausência de um conceito que correspondesse às expectativas deste
artigo para a expressão ‘ensino de leitura’, ousamos construir uma ideia
compartilhada com outras tantas leituras, e definir ensino de leitura como o

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 286


desenvolvimento de um conjunto de ações sistematizadas e selecionadas
intencionalmente pelo professor (mediador), para possibilitar ou facilitar a
compreensão do texto, num trabalho de associação de traços linguísticos,
conhecimentos prévios e percepções outras do leitor a essa compreensão, com
vistas à atribuição de sentidos. Ou seja, vai desde a decifração do código até a
atribuição de sentidos, numa ordem progressiva de
dificuldades/amadurecimento, conforme experiências ao longo da vida e
conhecimentos prévios do leitor.
Enfim, a leitura precisa ser vista para além de uma prática social comum,
ou seja, como atividade acessível a todos que dominam o código de escrita. Mas
pode e deve também ser objeto de ensino intencional e criterioso durante a vida
escolar, pelo conjunto de professores das várias disciplinas, quer dizer, numa
perspectiva interdisciplinar. E, como tal, ser ensinada àqueles que buscam a
educação formal, como forma de garantir-lhes uma formação leitora mais
proficiente possível, capaz de apreender os sentidos do texto.

Considerações finais

Os avanços tecnológicos, as inovações e demais mudanças causadas pelo


próprio dinamismo do mundo impuseram ajustes também aos sistemas de
ensino e, com isso, constata-se que o ensino de leitura, escrita e letramento
acadêmico ganharam expressividade nos contextos escolares, no Brasil e na
América Latina. Entretanto, nem sempre isso se deu de forma adequada. Na
maioria das vezes, as mudanças ocorreram sem o devido planejamento para tal.
A leitura de signos verbais e outras semioses ganham espaço cada vez
maior na sociedade atual. E a instituição ‘escola’ deve estar atenta a esse fato.
Esta revisão literária nos aponta para a necessidade de a leitura ser tomada não
apenas como recurso didático, como parece ser realidade na maioria das salas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 287


de aula. Mas como objeto de ensino, e acontecer de forma criteriosa e
intencional em todos os componentes curriculares, e por todos os professores.
Desse modo, a seleção de procedimentos didático-pedagógicos
adequados em cada situação de aprendizagem e em cada estágio de
desenvolvimento do aluno, pelo professor em espaços escolares, passou a
merecer atenção especial. A didática da leitura pode ser grande aliada.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 289


CAPÍTULO 21

Funcionamento discursivo do Papa


Francisco: a marca da exterioridade na
formação das condições de produção
Francisco Oliveira1

Introdução

Desde que o Papa Francisco iniciou seu pontificado em março de 2013


indicando que seu discurso teria a função de mobilizar conceitos ideológicos
alinhados a certas alas ideológicas da Igreja e desalinhadas a outras. O Papa
Francisco funciona discursivamente movimentando preceitos ideológicos que
ativam duas alas da igreja: progressistas e conservadores.
Oficialmente e institucionalmente, o papa alterou apenas um dogma
católico, aquele no qual torna a morte inadmissível em qualquer circunstância.
E isto por si só traz em seu discurso elementos que geram determinados efeitos
de sentido elencados ideologicamente com a ala progressista da igreja. Perceber,
entender e discutir estas condições de produção inferem compreender melhor
as ânsias atuais não apenas católicas, mas sociais, culturais e humanas.

1 Doutorando em Ciências da Linguagem, Universidade Católica de Pernambuco. [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 290


O mundo apresenta inquietações sobre relacionamento entre sujeitos,
nações, influência com a natureza, meios digitais, e outros aspectos, que exigem
da igreja possíveis novas relações no qual o papa coloca em pauta.
O objetivo deste trabalho é analisar as condições de produção sobre as
chamadas polêmicas do papa Francisco. Trata-se da mobilização do conceito central
da análise do discurso de Pêcheux sobre as condições do produção que é
determinar aquilo que está/é exterior ao discurso.
Para tanto, os objetivos específicos deste trabalho são discutir como os
gestos de interpretação, a partir das ações do pontífice, mobilizam diferentes
efeitos de sentido nos operadores envolvidos nas questões deste trabalhos;
apresentar as condições de produção exteriores a Francisco que inferem ao
Papa posicionamento ideológico a partir de seu discurso.

Mídia e memória social

Orlandi (2012a) atribui à memória um papel fundamental nas condições


de produção que aciona o sentido presente na relação entre sujeitos e as
situações. Títulos de reportagens mobilizam funcionamentos discursivos a
partir de certos efeitos de sentido que são produzidos em condições
determinadas pela exterioridade, afetadas pela língua e pela história. Pode-se
destacar que principalmente após o aparecimento da imprensa o
desenvolvimento dos meios de registro deslocam a questão da memória social,
que não se encontra com o apenas com o uso de um grupo de indivíduos, mas
na mídia de uma forma geral e consequentemente ao acesso de sujeitos de
forma atemporal por tempo indeterminado (ACHARD, 2015).
É importante destacar também que objetos culturais como livros,
escritos, imagens, filmes, arquiteturas, entre outros elementos que funcionam
como operadoras de memória social, trabalham no sentido de entrecruzar

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 291


memória coletiva, ou seja, lembrança, conservação do passado, foco da
tradição, monumento de reminiscência e história ou qualquer quadro dos
acontecimentos, conhecimento, documento histórico (ACHARD, 2015).
Logo, toda publicação sobre o Papa Francisco contribui como fonte de
memória do funcionamento de seu pontificado e não servem apenas como
fonte de informações temporárias sobre suas ações diárias. Na verdade o
conjunto de discursos do Papa, compreender dizer que se trata do discurso do Papa,
pois isto implica se referir ao discurso sendo necessário referi-lo “ao conjunto
de discursos possíveis, a partir de um estado definido das condições de
produção” (MALDIDIER, 2003, p.22).
As condições de produção acionam e são acionados em contextos
históricos específicos a partir do funcionamento da imprensa pois cria-se assim
uma situação histórica entre os sujeitos e as funções míticas ideológicas nas
relações de consumo. “A imprensa, e a mídia em geral, criam as condições de
nascimento, circulação e penetração das representações sociais” (MININNI,
2008, p.35). Tais representações sociais ajudam a compor o que se entende por
formações ideológicas que por sua vez, se comportam necessariamente como
um de seus componentes uma ou mais formações discursivas interrelacionadas
que determinem o que pode ser dito (MALDIDIER, 2003).

Interdiscurso e memória discursiva

Tendo em vista que o termo condições de produção compreende a maneira


pela qual a memória aciona o sentido, considerando os sujeitos e as situações,
tanto em contextos imediatos, como em contextos sócio-históricos, ideológicos
mais amplos representados no discurso (ORLANDI, 2012a), este por sua vez
apresenta ao leitor da matéria elementos já-ditos, pois, no interdiscurso, a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 292


historicidade determina aquilo que da situação, das condições de produção, é
relevante para discursividade (ORLANDI, 2012b).
Logo a memória discursiva acionada nos discursos do Papa Francisco
podem gerar efeitos de sentidos diversos considerando os sujeitos que tal
discurso funciona no contexto mobilizado a partir do interdiscurso, que
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma
situação discursiva dada (ORLANDI, 2012a).
Sendo assim utilizar a sigla LGBT em documento oficial do Vaticano,
pode apontar um discurso mais tolerante do Papa aos homossexuais em maio
de 2018, mas ao mesmo tempo pode significar uma afronta aos dogmas
católicos por parte da ala mais conservadora da Igreja, pois todo elemento
discursivo que produz memória, produz impacto, direto ou não, curto prazo ou
não.
Afinal o funcionamento dos sentidos estão colados ao sujeito que é
ideológico, logo o processo de interpretação funciona com este filtro também
ideológico. “No processo de interpretação todos os temas se cruzam pela
leitura, todas as revisões, todas as reconfigurações” (MALDIDIER, 2003, p.88).
Quando o Papa discursa sobre certos temas, o impacto deste discurso
mobiliza funcionamentos discursivos diversos para católicos e não católicos,
conservadores e progressistas fora e dentro do próprio Vaticano. Elementos
discursos mobilizam formações discursivas específicas e tudo isto ameaça
poderes instituídos formado num cerne no qual as memórias sociais e
discursivas habitam.
Com isto, o sujeito discursivo é uma posição entre outras e não uma
forma subjetiva, mas um lugar que ocupa para ser sujeito do que diz
(ORLANDI, 2012a). Daí o interdiscurso implica ser a forma no qual o discurso
encontra maneira de dizer o que foi dito sendo assim o sujeito. O interdiscurso
designa o “espaço discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 293


discursivas em função de relações de dominação, subordinação, contradição,
como ocorre na luta política” (MALDIDIER, 2003, p.51).
Atribui-se à ideologia o papel de colar a palavra à coisa e a partir desta
associação, se mobilizará no processo discursivo a partir das condições
constitutivas da língua, quando “a ideologia torna possível a relação entre
pensamento, a linguagem e o mundo, ou seja, reúne sujeito e sentido. [...] O
sujeito se constitui e o mundo se significa pela ideologia” (ORLANDI, 2012a,
p.96).
A partir destas abordagens, o funcionamento discurso proposto a partir
do que se noticia sobre o Papa Francisco instaura novas discursividades somado
aos sentidos nos quais o próprio Papa traz para ser exteriorizado e mobilizam
novos gestos de interpretação.

Método e discussão sobre o objeto

A análise do discurso pecheutiana servirá como procedimento


metodológico pelo qual os elementos do corpus foram retirados do site Folha de
São Paulo em notícia publicada em 28 de março/19 intitulada: “Papa recusa beija-
mão por questão de higiene, diz Vaticano”.
A mídia foi escolhida pois atua de forma direta não apenas na
transmissão de informação, mas também na maneira pelo qual os sentidos
podem ser mobilizados. A mídia depende diretamente dos espaços sócio
históricos para fazer valer a mobilização de sentidos da linguagem de seu
discurso (MAZIÈRE, 2007).
Considerando esta abordagem, a análise do discurso propõe discutir o
funcionamento dos gestos de interpretação assim como o entremeio de efeitos
de sentido. Para Gregolin (2007, p.13):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 294


A análise do discurso (AD) é um campo de estudo que oferece ferramentas
conceituais para a análise desses acontecimentos discursivos, na medida
em que toma como objeto de estudos a produção de efeitos de sentido,
realizada por sujeitos sociais, que usam a materialidade da linguagem e
estão inseridos na história.

Em março 26 de 2019 a Folha de São Paulo fez uma matéria com o


seguinte título: Papa acirra polêmica entre alas do Vaticano ao recusar beija-mão. Dois
dias depois, em 28 de março, outra matéria foi veiculada no mesmo portal de
notícias com o seguinte título: Papa recusa beija-mão por questão de higiene, diz
Vaticano. A primeira matéria traz uma lista com o seguinte título: Polêmicas do
Papa Francisco.
O título em si mobiliza condições de produção específicas que permitem
o jornal utilizar a palavra polêmica associada às ações do Papa Francisco. Afinal
[...]

as condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a


equívoco e a historicidade), o que é institucional (a formação social, em
sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens
dos sujeitos, assim como do objeto do discurso dentro de uma conjuntura
sócio histórica (ORLANDI, 2012.p.40).

O primeiro caso dito como polêmico por parte da reportagens traz o


seguinte enunciado: i. Vaticano anunciou uma mudança feita na doutrina da Igreja feita
a pedido do Papa Francisco que tornou a pena de morte inadmissível. A apropriação da
palavra polêmica a partir desta abordagem do papa Francisco sobre morte
inadmissível, pois antes a morte (uma pessoa causar a morte de outra de forma
proposital e consciente) era admissível pela igreja se esta, por exemplo, fosse
utilizada para defender os próprios dogmas e interesses católicos.
A ala conservadora da igreja católica apostólica romana entendeu que
alterar um dogma abre espaço para alterar outros princípios o que enfraqueceria
o respeito dos adeptos às leis que regem o funcionamento da igreja. Para os

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 295


progressistas, a mudança defende a vida em toda e qualquer circunstância e
coloca interesses físicos e institucionais abaixo da essência do perdão.
As duas alas entenderam que alterar um dogma pode abrir precedentes
para discutir outros, mas esta atitude foi encarada como enfrentamento ao
poder que rege a ala conservadora da igreja católica no próprio Vaticano. Isto
ocorre pois o dizer do interdiscurso, em seu intrincamento, funciona como o
complexo das formações ideológicas, fornecendo a cada sujeito sua realidade,
enquanto sistema de evidências e de significações “percebidas-aceitas-sofridas”
(MALDIDIER, 2003, p.53).
No segundo caso polêmico o título estava distribuído da seguinte forma: ii.
Na encíclica Laudato Si, Francisco criticou o desmatamento e o uso de combustíveis fósseis,
disse que a mudança climática é um dos principais desafios da humanidade e pediu um novo
tipo de desenvolvimento, que leve em conta também o ambiente.
Trata-se de uma afronta ao capitalismo que controla o funcionamento
político, social e econômico moldado a partir de um sistema de produção em
que grande parte dos países no mundo inteiro exploram os combustíveis
fósseis, hidrelétricas e outros meios de degradam a natureza.
Logo a afirmativa do Papa não ataca apenas o sistema de produção dos
países ricos, ataca todo um sistema ideológico de funcionamento de relações
sociais e econômicas entre nações, inclusive no próprio Vaticano, que tem um
banco.
O discurso também atinge interesses capitalistas que formam o cerne de
uma ala de conservadores que fazem parte do universo de investidores que
interferem diretamente na manutenção do sistema capitalista que também se
caracteriza pela concentração de renda nas mãos de poucos.
O Papa, enquanto autor, promove uma discussão que afronta interesses
financeiros e institucionais, posicionando-se assim por meio de seu discurso,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 296


funcionando de tal forma que afeta ao mesmo tempo que é afetada pela
exterioridade (ACHARD, 2015).
O terceiro discurso apontado como polêmico, por parte da reportagem, diz
que: em 2014, ao confortar uma criança que tinha perdido seu cachorro, Francisco afirmou
que animais também podem ir ao céu, discordando assim da ala mais conservadora, que
afirma que os bichos não têm alma e por isso não podem ir para o paraíso.
O fato de existir uma ala católica que não acredita na existência de alma
em animais, marca uma posição de distanciamento com religiões e filosofias de
vida orientais que discutem a espiritualidade considerando a existência da alma
de animais inclusive com possibilidades de manifestações e vindas em outras
formas vitais.
Não considerar esta abordagem é não considerar que a vitalidade divina
possa ser compartilhada em outros seres vivos que não seja humano. O
enunciado por sua vez mostra a forma como os sentidos concretos e explosivos
de liberdade afrontam novos sentidos para os sujeitos e para a história,
barrando, provocando e interpelando o status quo formadores das instituições e
institucionalizadas pelo poder, o que influencia o poder descobrir novos saberes
(ACHARD, 2015).
O quarto destaque sobre o Papa apontava que: em discurso na Bolívia em
2015, o Papa Francisco disse que o capitalismo era uma ditadura sutil e que este sistema já
não se aguenta, os camponeses, trabalhadores, as comunidades e os povos tampouco o
aguentam.
O fato de criticar o capitalismo em uma nação que no mesmo ano o
então presidente, Evo Morales, havia tomado posse pela terceira vez desde
2006, destaca um apoio discursivo sem precedentes para as pretensões políticas
futuras de Morales que se perpetuou na cargo até renunciar em novembro de
2019 após ondas de violência no país.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 297


O discurso do Papa Francisco naquelas condições o posiciona
ideologicamente pois aponta sua formação discursiva que é o que pode e deve
ser dito articulado sob a forma de um sermão, por exemplo, ou de uma
exposição, em uma formação ideológica definida, isto é, a partir de uma posição
de classe no seio de uma conjuntura dada (MALDIDIER, 2015).
No quinto apontamento da matéria traz a seguinte abordagem: apesar de
criticar a separação, o papa Francisco defendeu em sua exortação “Amoris Laetitia”, de
2016, que os divorciados não devem ser excluídos da igreja e abriu a possibilidade de poderem
receber comunhão.
Trata-se de outro dogma da igreja católica que estabelece a indissolução
do casamento. Aceitar a comunhão de divorciados é aceitar a enfraquecimento
de um dos principais sacramentos católicos que é o matrimônio. Pode vir a ser
tratado como um gesto interdiscursivo que especifica as condições pelos quais
um acontecimento histórico é suscetível de vir a inscrever-se na continuidade
interna, no espaço potencial de coerência próprio a uma memória (ORLANDI,
2012).
Logo, a ação poderia ocasionar em acontecimento ao estabelecer novos
pareceres sobre comportamentos institucionalizados, gerando assim novos
funcionamentos por parte dos católicos, o que certamente apontaria
instabilidades no seio da existência do sacramento católico gerando outros
efeitos sobre outros sacramentos.
Por fim a última chamada polêmica do papa Francisco: o pontífice fez
diversas sinalizações defendendo a tolerância aos homossexuais e em maio de 2018 disse a
uma vítima de abuso no Chile que o fato de ele ser gay não importava. Por um lado, efeitos
de sentidos gerados fora da igreja implicaram permissividade por parte do papa
pela aceitação de homossexuais dentro da própria igreja já que não havia
problema de alguém ser gay, enquanto, dentro da igreja, outros efeitos de
sentidos alinhavam que o papa poderia ter aconselhado o jovem frisando o

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 298


papel do homem e da mulher na sociedade sem destaque ao fato dele ser gay.
Na situação inclusive, foi a primeira menção do termo LGBT (Lésbicas, gays,
bi e transexuais) em documento oficial do Vaticano.
O ineditismo do ato já coloca a abordagem em evidência abre
precedentes para outras discussões do gênero o que ocasiona em desgastes
devido às arestas entre os diversos interesses que envolvem o tema. O
acontecimento é o ponto em que um enunciado rompe com a estrutura vigente,
instaurando uma nova forma de dizer, estabelecendo um marco inicial de onde
uma nova rede de dizeres possíveis irá emergir (ORLANDI, 2012a).

Considerações finais

A conclusão aponta para relevância da exterioridade nos efeitos de


sentidos mobilizados pelo pontífice que marca sua posição ideológica a partir
do funcionamento de seu discurso. Tais funcionamentos discursivos reforçam
interesses internos e externos na e da própria igreja católica, assim como acirra
também comportamentos contrários à visão progressista do Papa sobre o
caminho no qual ele leva a igreja católica.
O uso da palavra polêmica nas reportagens ocorre devido aos gestos de
interpretação sobre as ações e discursos do Papa apontando para determinadas
formações discursivas, e estas por sua vez, são interpretadas como formas
conflitantes que ameaçam instituições, interesses e a própria igreja.
O papa é marcado por acontecimentos promovidos por ele mesmo a
partir do momento em que é colocado na pauta de discussões assuntos que
anteriormente não eram enfrentados de frente, como os políticas para o meio
ambiente e o combate à pobreza.
Por tudo isso, o papa Francisco atua diretamente sobre os operadores de
memória social promovendo outras discursividades e colocando frente-a-frente

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 299


interesses conservadores e progressistas que atuam dentro e fora do Vaticano.
Os efeitos de sentido nos quais o discurso do Papa geram apontam em
formações discursivas diferentes nos quais colocam no centro dos discursos
opiniões divergentes ao que se refere à economia, pobreza, meio ambiente e
principalmente, fé e os chamados dogmas católicos.

Referências

ACHARD, Pierre. Papel da Memória. Tradução: José Horta Nunes. 4ed.


Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do discurso e mídia: a (re) produção de


identidades. Dossiê – Comunicação, mídia e consumo. São Paulo: SP. Vol.4.
n11. p.11-25. Nov.2007.

MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux.


Tradução: Eni Orlandi. Campinas, SP: Pontes Editores, 2003.

MININNI, Giuseppe. Psicologia cultural da mídia. Trad. Mario Breghello. São


Paulo: Edições SESC SP, 2008.
MAZIERE, Francine. A análise do discurso: história e prática. Trad. Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parabólica Editorial, 2007.

ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos.


10ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.a.

______. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. 3ed. Campinas, SP:


Pontes Editores, 2012.b.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 300


CAPÍTULO 22

Homeschooling e planejamento de
aula: discussões sobre a proposta do
governo federal
Janielly Linhares Freitas1
Raphael Albuquerque Bezerra2

Introdução

Atualmente no Brasil, o ensino domiciliar ou homeschooling, teve sua


regulamentação do governo federal assinado pelo atual presidente da república.
Porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou que a prática não seria
permitida, pois não há leis que regulamentam tal modalidade de ensino. Mesmo
com a decisão do STF, o assunto se tornou uma polêmica por todo o país,
sendo de grande relevância ser discutido.
Diante disso, há diversas explicações sobre o ensino-aprendizagem, seja
do professor ou de outro que venha a ensinar, para que a aula seja produtiva e
as atividades organizadas e sistematizadas, os responsáveis pelo ensino precisam
elaborar um planejamento de aula, ou seja, uma sequência didática que
direcionará o professor dentro da sala de aula. Pois, “qualquer atividade, para

1 Graduanda do curso de Letras – Língua Inglesa pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e
pelo Centro de Formação de Professores (CFP). E-mail: [email protected]
2 Graduando do curso de Letras – Língua Inglesa pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e

pelo Centro de Formação de Professores (CFP). E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 301


ter sucesso, necessita ser planejada. [...] Não se pode improvisar a educação, seja
ela qual for o seu nível.” (SCHMITZ, 2000, p. 101).
Considerando essa perspectiva, o objetivo geral aqui é discutir acerca do
planejamento no ensino domiciliar no contexto brasileiro. Para alcançarmos tal
objetivo, nossa pesquisa atentará sobre a pergunta: como o planejamento de
aula se adequa a essa nova proposta de ensino domiciliar? Assim como, no
objetivo específico buscamos analisar como o planejamento de aula se adequará
a essa proposta, levando em consideração a taxa de analfabetismo existente no
Brasil e a pobreza que ainda é marcante na sociedade brasileira.
Com o propósito de alcançar o objetivo geral, que é discutir como o
planejamento de aula fica inserido na proposta do governo de ensino domiciliar
e investigar se este é realmente um ponto positivo para o contexto educacional
do país, realizamos uma pesquisa bibliográfica, ou seja, reunimos a partir de
trabalhos acadêmicos, como artigos, teses, livros e outros, que já discutem sobre
o tema que será tratado nesta pesquisa, utilizando-os como aporte teórico para
as discussões que serão abordadas. Segundo Fonseca (2002, p. 32):

A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências


teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como
livros, artigos científicos, páginas de web sites. Qualquer trabalho
científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao
pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto.

Esta pesquisa também se respalda sobre uma análise qualitativa ou


interpretativista. Segundo Lakatos e Marconi (2003, p. 168), “é a atividade
intelectual que procura dar um significado mais amplo às respostas, vinculando-
as a outros conhecimentos”. Isto é, esse tipo de pesquisa averígua o que os
indivíduos em sociedade estão discutindo a respeito, ou melhor, seus pontos de
vista sobre determinado assunto, e partir disso, buscar compreender a realidade
e transmitir significados a partir do objeto de pesquisa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 302


Outra metodologia que será abordada neste trabalho é a pesquisa
quantitativa, porém, não será tratada com muita ênfase, mas utilizaremos de
números e estatísticas que são relevantes para a nossa investigação e análise.
Entende-se por pesquisa quantitativa, de acordo com Fonseca (2002, p. 20):

Diferentemente da pesquisa qualitativa, os resultados da pesquisa


quantitativa podem ser quantificados. Como as amostras geralmente são
grandes e consideradas representativas da população, os resultados são
tomados como se constituíssem um retrato real de toda a população alvo
da pesquisa. A pesquisa quantitativa se centra na objetividade.

Nessa perspectiva, selecionamos uma matéria de jornal bastante


conhecido e conceituado no contexto jornalístico brasileiro, o jornal G1 o
portal de notícias da rede globo, com a seguinte manchete: “Bolsonaro assina
projeto de lei que pretende regulamentar a educação domiciliar no Brasil”.
Acreditamos que estas sejam as metodologias que mais atendem aos propósitos
analíticos, pois são os tipos de pesquisa que buscam esclarecer a realidade atual,
na qual constitui o título deste trabalho.

Conceitos sobre o plano de aula

O planejamento de aula é uma importante ferramenta dentro da prática


docente. Este documento caracteriza-se por ser um guia para auxiliar os
professores sobre como aplicar, de forma organizada, suas atividades e lições
que serão realizadas, seus objetivos alcançados e os recursos que vão ser
utilizados e que contribuirão para o desenvolvimento da aula.
Segundo Piletti (2001, p. 73), o plano de aula é

a sequência de tudo o que vai ser desenvolvido em um dia letivo, (...) É a


sistematização de todas as atividades que se desenvolvem no período em
que o professor e o aluno interagem, numa dinâmica de ensino-
aprendizagem.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 303


Isto é, o plano de aula é uma ferramenta estrutural e organizada de todas
as atividades que serão realizadas pelo professor em um tempo determinado.
Sob o mesmo ponto de vista, Padilha (2001, p. 30) postula que o
“planejamento é o processo de busca de equilíbrio entre meios e fins, entre
recursos e objetivos, visando o melhor funcionamento de empresas,
instituições, setores de trabalho, organizações grupais e outras atividades
humanas.” Ou seja, concluímos que toda e qualquer instituição necessita de um
planejar, para que haja um equilíbrio entre o que se almeja e os meios de busca
para alcançar os objetivos da aprendizagem. Então, o planejamento não está
presente somente na escola, mas nas empresas e em qualquer setor de trabalho
para melhor se ter uma organização entre os setores que as compõe.
Diante disso, embora haja conceitos diferentes sobre o que é
planejamento e plano de aula, todos os autores concordam e apontam para o
mesmo intuito, que é a importância de se planejar no âmbito educacional,
principalmente. O ato de planejar já acompanha o ser humano desde seus
primórdios, pois se o ser humano não planeja, ele é um indivíduo confuso,
alienado, mecânico e sem perspectivas. Por isso, o planejamento em sala de aula
visa ser uma ferramenta de intervenção para a aprendizagem dos alunos, pois é
a partir dele que o professor organiza, e torna o ensino mais eficaz.

Estrutura de um plano de aula

Antes de iniciarmos este tópico, vale salientar, que não existe uma
estrutura de plano ideal e/ou prevalecente, a estrutura que será abordada neste
tópico é apenas um dos exemplos diversos que constitui o arcabouço de um
plano de aula. Dada essa questão conceitual do plano de aula, trataremos agora
das partes que o organiza e seus conceitos. As partes que regem um plano de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 304


aula mais comum são os objetivos (gerais e específicos), os materiais e
equipamentos, os procedimentos e avaliação.
Brown (2000, p. 149, tradução nossa)3 considera que “professores
experientes, em geral, concordam sobre quais devem estar os elementos
essenciais de um plano de aula”. Sendo de relevância ser lembrado mais uma
vez que não existe um plano de aula predominante, mas que cada docente
elaborará seu planejamento dentro de seu contexto de ensino e que melhor se
adéque as necessidades dos alunos.
Com relação aos objetivos, segundo Haydt (2011, p. 84), são “os
resultados desejados e previstos para a ação educativa. São os resultados que o
educador espera alcançar com a atividade pedagógica.” Por isso, é muito
importante em um plano de aula, segundo Brown (2000, p. 150), que o docente
deixe bastante explícito o que ele pretende com a lição executada, isto serve
para que ele possa avaliar o aluno ao final da aula e verificar se o resultado foi
o esperado.
Ainda por cima, de acordo com Libâneo (1990, p. 119), os objetivos
“antecipam resultados esperados do trabalho conjunto do professor e dos
alunos, expressando conhecimentos, habilidades e hábitos, (conteúdos) a serem
assimilados (...)”. Em face disso, espera-se que no final do período ou do ano
letivo o aluno seja capaz de reproduzir e pôr em prática tudo aquilo que
aprendeu. Da mesma forma, os objetivos precisam estar de forma clara o que
se quer alcançar com o conteúdo que será proposto.
Brown (2000, p. 151, tradução nossa)4 afirma que um “bom
planejamento inclui saber o que você precisa levar consigo ou providenciar para
ter em sua sala de aula”. Isso quer dizer que é importante que o professor utilize
de materiais e equipamentos como uma forma de trazer algo novo para dentro

3 [...] seasoned teachers generally agree on what the essential elements of a lesson plan should be.
4 [...] good planning includes knowing what you need to take with you or to arrange to have in your classroom.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 305


da sala de aula, e não que ele apenas utilize formas tradicionais, e
consequentemente, a imagem do professor como autoritário. Já de acordo com
Freitas (2009, p. 21), “também conhecidos como ‘recursos’ ou ‘tecnologias
educacionais’, os materiais e equipamentos didáticos são todo e qualquer
recurso utilizado em um procedimento de ensino, visando à estimulação do
aluno e à sua aproximação do conteúdo.
Diante dos postulados acima, é pertinente observar que os recursos
pedagógicos ou instrumentos que serão utilizados em sala de aula, possam ser
utilizados da forma correta pelo professor e não de qualquer forma essa questão
merece ser discutida junto a elaboração do planejamento de forma conjunta
com o corpo docente da escola, e que tais recursos proporcionem aos alunos à
inspiração a pesquisa e a sua busca pelo seu próprio conhecimento de forma
autônoma.
Os materiais, equipamentos e procedimentos citados por Brown (2000),
tem atualmente uma visão mais delimitada, na qual todos esses elementos
podem ser reunidos em um único tópico, que é nomeado a metodologia do
plano de aula. Conforme postula Menegolla & Sant’ Anna (2001, p. 90), as
metodologias são “atividades, procedimentos, métodos, técnicas e modalidades
de ensino, selecionados com o propósito de facilitar a aprendizagem.” Ou seja,
a metodologia está para além do livro didático e inclui outras formas de se
trabalhar com os assuntos em sala de aula. São inúmeras as metodologias,
técnicas e abordagens e cabe ao professor saber utilizá-las e adequá-las à sua
sala de aula.
Para determinar se todas essas etapas foram cumpridas e se realmente
houve proveito das aulas, o professor verificará por meio de uma avaliação ou
teste. As formas de aplicação das avaliações são distintas e podem acontecer
tanto no decorrer dos procedimentos como de forma individual. Conforme
postula Luckesi (2002, p. 34), a avaliação é “a atual prática da avaliação escolar

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 306


estipulou como função do ato de avaliar a classificação e não o diagnóstico,
como deveria ser constitutivamente.” Isto é, a avaliação tem sido mais
fortemente somativa no contexto escolar, ou seja, é utilizada apenas como
ferramenta que visa a nota e a aprovação e não como recurso avaliativo do
processo de ensino, metodologia, conteúdo etc.

Ensino domiciliar ou homeschooling

Posta todas as questões relativas ao conceito do planejamento de aula,


bem como a sua estrutura, abordaremos nesta ocasião o conceito de ensino
domiciliar. De acordo com Edmonson (2008, pp. 437-438), entende-se por
homeschooling, “qualquer situação em que os pais ou responsáveis assumem
responsabilidade direta sobre a educação das crianças em idade escolar,
ensinando-as em casa ao invés de enviá-las ao sistema educacional público ou
privado”. Diante disso, há uma inversão quanto ao processo de ensino, na qual
os pais serão os responsáveis e passarão a ter controle sobre a educação dos
seus filhos. O tema se tornou bastante polêmico com o novo presidente
Bolsonaro, pois esta era uma de suas principais proposta de governo.
De acordo com Kloth (2014, pp. 105-106), países como Estados Unidos,
Canadá, Portugal, França, Rússia e dentre vários outros, já é permitido
legalmente a prática do ensino domiciliar. Alguns tem legalidade permitida,
porém, exige-se relatórios anuais e testes constantes das crianças. Já outros, é
necessário autorização junto ao Ministério da Educação, como por exemplo, na
Inglaterra, Israel e Nova Zelândia. E ainda há aqueles que não são legalmente
reconhecidos e que até momento é novidade para a educação, como no Chile,
Holanda, Gana e Uganda. E, por fim, aqueles que são proibidos por lei, como
é o caso da China e Alemanha.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 307


Essa modalidade de ensino ainda é indefinida no Brasil, visto que, com
Art. 55°, capítulo IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “os pais
ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede
regular de ensino.” Ou ainda, o Art. 6°, título III da lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a
matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.
As principais questões levantadas contra a educação domiciliar são
atribuídas pela ideia de que a escola é o lugar, onde além de ser palco da
transmissão e construção de conhecimentos, é também um espaço de
socialização, e formação de cidadania do indivíduo de cada sociedade. É na
escola que os alunos interagem não apenas com os colegas e professores, mas
também com toda a equipe componente da escola. Além disso, há um grande
fator em relação aos pais que não podem estar presentes nessa prática, pelo
simples fato de que uma grande quantidade de pais e responsáveis pelas
crianças, passam grande parte de seu tempo trabalhando fora de casa.
Nesse caso, a possibilidade de os pais participarem dessa educação
domiciliar seria mínima. A não ser que haja a contratação de professores para
essa colaboração, contudo, pode-se concluir que a criança que não frequenta a
escola está limitada de interações sociais e isso inclui que o indivíduo será
prejudicial na formação do cidadão de forma participante da sociedade, como
também vai além do âmbito familiar. Dessa forma, é a partir do contato social
que a criança desenvolve na escola, que ela aprenderá sobre as maneiras de
convivência com os outros e respeitar os direitos e deveres de cada membro da
sociedade, como também os seus próprios.
O fato de que as pessoas passam a maior parte de suas vidas na escola,
também é uma abordagem sociológica que analisa as limitações da socialização
no espaço escolar e também as relações culturais da modernidade. No Brasil,
em grande medida a escola é o local onde é possível oferecer a educação da

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 308


cidadania e todo o debate que relaciona a cidadania baseia-se em uma educação
contínua, ou seja, o que os alunos aprendem hoje, futuramente poderão
repassar o conhecimento para seus filhos. No entanto, a escola ao ensinar para
a cidadania de forma que os alunos se tornem críticos implica que eles
questionem e tenham habilidades intelectuais para avaliar modos de vida
diferentes.

Planejamento de aula no homeschooling funciona?

De acordo com dados divulgados no site de notícias Gazeta do Povo,


uma pesquisa recente divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), realizada em maio de 2018, por meio da Pesquisa por
Amostra de Domicílios (Pnad 2017), mostra que o Brasil ainda tem pelo menos
11,5 milhões de pessoas analfabetas, o que mostra uma porcentagem de 7% da
população nacional. Para melhor entendimento, o infográfico abaixo traz uma
explicação sobre cada região do Brasil e seus respectivos valores sobre o índice
de analfabetismo:

Figura 1: taxa de analfabetismo por estado

Fonte:https://infograficos.gazetadopovo.com.br/educacao/taxa-de-analfabetismo-no-
brasil/

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Em relação a isso, outro fator relevante que merece discussão em relação
ao homeschooling é a pobreza que grande parte da população brasileira sofre. A
pobreza está relacionada diretamente com fatores como a falta de moradia, a
falta de recursos econômicos, a falta de comida e dentre muitas outras
condições. Um relatório do Banco Mundial publicado recentemente no portal
de notícias do G1, em maio de 2019, mostrou que houve um crescimento da
pobreza no Brasil entre os anos de 2014 e 2017, ou seja, 21% da população
(43,5 milhões de pessoas) vivem nesse estado. Quando elencamos essas
informações com o contexto educacional, Gentili e Alencar (2005, p. 11),
afirmam que:

Crianças vindas de famílias pobres são, em geral, as que têm menos êxito,
se avaliadas através dos procedimentos convencionais de medida e as mais
difíceis de serem ensinadas através dos métodos tradicionais. Elas são as
que têm menos poder na escola, são as menos capazes de fazer valer suas
reivindicações ou de insistir para que suas necessidades sejam satisfeitas,
mas são, por outro lado, as que mais dependem da escola para obter sua
educação.

Diante desse contexto, vemos um forte problema na proposta do


governo com a modalidade de ensino domiciliar, visto que, levando em
consideração a taxa de analfabetismo, ficaria inviável os pais serem responsáveis
pela educação dos seus filhos, principalmente no que se refere a elaboração do
planejamento de aula tratado neste trabalho. Com relação a pobreza, muitas
crianças e adolescentes veem a escola como um espaço de fuga da realidade em
que vive, isto é, eles enxergam a instituição de ensino como um espaço em que
eles podem se alimentar e terem relações de socialização como outras crianças
de sua faixa etária, o que muitas vezes não existe no seu ambiente de extrema
pobreza.
A atual Ministra da mulher, da família e dos direitos humanos, Damares
Regina Alves, em uma matéria feita pelo G1 defende que “O pai que senta com

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 310


o aluno duas, três horas por dia, pode estar aplicando mais conteúdo que a
escola durante quatro, cinco horas por dia”. Tal afirmativa conduz a realização
de uma proposta de planejamento de ensino que, pelo menos, de acordo com
os dados do analfabetismo visto anteriormente, equivalem a uma enorme
porcentagem de pessoas que de forma lógica, não poderão cumprir essa prática
de ensino.
Elucidando que a educação seja compreendida como um instrumento de
democratização e considerando que a construção da sociedade acontece
juntamente com a construção da educação, ambas fazem parte do mesmo
processo. Não adianta somente pensar em uma educação para um grupo de
pessoas, é preciso que todos tenham acesso à proposta de ensino de forma
igualitária. Em outras palavras, as famílias de classe média baixa, por exemplo,
seriam as mais afetadas pois não teriam quase que nenhum acesso a esse tipo
de educação, uma vez que os pais das crianças fossem analfabetos e não
tivessem renda o suficiente para contratar um profissional da educação para
seus filhos.
Em virtude dos fatos apresentados, fica evidente que grande parte da
sociedade brasileira não está pronta para a modalidade de ensino domiciliar
proposta pelo governo e não está habilitada suficiente para elaborar um plano
de aula se levarmos em consideração os altos índices de analfabetismo ainda
presentes no Brasil, principalmente, de acordo com a figura mostrada neste
trabalho, o nordeste é uma das regiões que ainda apresentam um alto nível de
analfabetismo. Portanto é necessário conhecimento científico para se elaborar
tal recurso didático.
Com base nisso, podemos perceber a grande importância que o
planejamento possuí no processo de ensino-aprendizagem, não apenas como
um recurso pedagógico, mas como um objeto de organização de conteúdo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 311


visando a melhoria na qualidade da educação, evitando dessa maneira, aulas
desorganizadas e desestimulantes.

Considerações Finais

O planejamento de aula atrelado ao ensino domiciliar, tendo em vista


ainda presente no Brasil uma taxa considerada elevada de analfabetização e
outra ainda maior de pobreza, concluímos que essa modalidade de ensino
proposta pelo atual governo Bolsonaro é irrealizável no âmbito educacional
brasileiro. A aula e/ou educação não pode ser realizada de forma aleatória, sem
nenhum objetivo com o aprendizado, pois toda e qualquer ação, seja na
educação ou em outras áreas profissionais, o planejamento é necessário para
uma boa organização e sucesso profissional.
O que defendemos aqui, portanto, é uma educação na escola, em que os
alunos tenham contato com outras vivências, ideias, opiniões e formas de
pensar, que só a escola com suas diversidades pode proporcionar aos alunos, a
fim de que se tornem sujeitos plurais e não apenas com uma visão limitada
escolhida pelos pais no ensino domiciliar. Defendemos também, acima de tudo,
uma educação escolar de qualidade e gratuita.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 314


CAPÍTULO 23

O ensino de línguas entre poder e


exclusão: caminhos da Linguística
Aplicada para uma educação
linguística em espanhol
Gabriela Rodrigues Botelho1

Introdução

Neste trabalho, refletimos a respeito das teorizações em Linguística


Aplicada, daqui em diante LA, que corroboram para a educação linguística em
espanhol. Explicitamos como o âmbito social, histórico e político estão
imbricados ao uso e ensino de línguas e como o processo colonial interferiu e
interfere na prática da linguagem em contextos colonizados.
Em seguida, fazemos um breve histórico sobre as concepções de LA e
nos concentramos nas pautas transgressivas que marcam suas investigações
atualmente. Assim, argumentamos que as premissas da educação linguística vão
ao encontro de pressupostos da LA e demonstramos como essas concepções
se relacionam ao ensino de espanhol no Brasil.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail para

contato: [email protected]. Agência de fomento da pesquisa: FAPITEC/SE.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 315


Língua: poder e exclusão

Considerar o ensino de línguas estrangeiras (doravante LE) um


instrumento de expressão e comunicação para além do domínio do sistema
linguístico e de finalidades mercadológicas, implica entender o papel dessa
língua na sociedade na qual está sendo inserida; implica também reconhecer
como seus aspectos históricos, sociais e culturais se relacionam com esse novo
contexto. Por isso, no ensino de espanhol como LE no Brasil nos pautamos no
que Bagno e Rangel (2005, p. 63) definem como educação linguística:

Entendemos por educação lingüística o conjunto de fatores socioculturais


que, durante toda a existência de um indivíduo, lhe possibilitam adquirir,
desenvolver e ampliar o conhecimento de/sobre sua língua materna,
de/sobre outras línguas, sobre a linguagem de um modo mais geral e sobre
todos os demais sistemas semióticos. Desses saberes, evidentemente,
também fazem parte as crenças, superstições, representações, mitos e
preconceitos que circulam na sociedade em torno da língua/linguagem e
que compõem o que se poderia chamar de imaginário lingüístico ou, sob
outra ótica, de ideologia lingüística. Inclui-se também na educação
lingüística o aprendizado das normas de comportamento lingüístico que
regem a vida dos diversos grupos sociais, cada vez mais amplos e variados,
em que o indivíduo vai ser chamado a se inserir.

Compreender os processos que influenciam a aprendizagem e uso das


línguas, como os fatores anteriormente mencionados, pode proporcionar uma
formação mais abrangente, como propõe a educação linguística desvelando as
relações de poder estabelecidas culturalmente e sócio historicamente através da
língua e possibilitando o rompimento de ciclos de dominação.
A esse respeito, Bagno e Rangel (2005, p. 77) nos alertam para o mito
da língua única, processo autoritário responsável por criar a imagem de um
Brasil monolíngue servindo de instrumento de dominação das classes
favorecidas em relação ás demais. Esse tipo de processo histórico é comum em
outros países colonizados, de modo que, a língua oficial que em um primeiro
momento pretendia unir a população da colônia, logo tornou-se instrumento

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 316


de poder e exclusão, seja em relação aos que não conheciam a língua do
colonizador (povos originários e estrangeiros) ou os que se comunicavam, mas
não dominavam a norma culta.
O vínculo entre língua e dominação é retratado em hooks (2013) no
contexto dos Estados Unidos ao explicar como as pessoas negras trazidas da
África foram violentamente obrigadas a deixar suas respectivas línguas
maternas, daqui em diante LM, e aderir à língua do colonizador para ter voz,
para ter direito a se comunicar. A autora ressalta, que mais do que abdicar da
articulação e seus sons, toda forma de pensamento, de reflexão e cultura foram
negados junto com a LM. Segundo hooks (2013), esse processo colonial reflete
hoje na segregação das pessoas negras ao serem estereotipadas por sua forma
de usar a língua inglesa. Uma vez que tais grupos foram impedidos de ocupar
os espaços de poder onde a norma culta circula, acabaram criando sua própria
linguagem nos espaços a eles permitidos. No entanto, a resposta da sociedade
a essa forma de resistência se dá pelo preconceito linguístico. Combater essa
visão rasa sobre a linguagem e questionar o monolinguísmo é tarefa da educação
linguística, ao explicar e valorizar as variações idiomáticas sem hierarquizá-las.
Do mesmo modo, Fanon (2008) mostra a dominação entre a colonização
francesa e a população negra da Martinica, porém, além de limitar o espaço de
uso da língua culta e marginalizar as demais línguas existentes no país, o autor
elucida como os falantes são induzidos a darem status à língua oficial. Desse
modo, a classe mais humilde almeja se aproximar ao máximo do colonizador
inclusive ao dominar sua língua para ser aceito em um grupo privilegiado. No
entanto, ainda que se tenha o domínio da língua a aceitação nunca ocorrerá,
pois, o objetivo será sempre definir o outro pela sua origem. Esse tipo de
preconceito, também pode ser questionado através de uma educação linguística
que desvele as formas de poder exercidas através do conhecimento ou
desconhecimento da língua.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 317


Um processo parecido aconteceu na Bolívia como afirma Maconde
(2018) ao retratar que por volta dos anos 50 e 70 do século XX, após a reforma
agrária os afro-bolivianos e os povos originários passaram a ser livres e
receberam terras para sobreviverem. No entanto, não tinham o domínio da
língua espanhola o que ocasionou inúmeras extorsões e fraudes, pois
dependiam de desconhecidos para realizar qualquer procedimento oficial que
exigisse leitura e escrita. Seus filhos passaram a ter relativo acesso à escola,
porém, eram vítimas de um tratamento depreciativo. Esta situação resultava na
reprovação ou acesso a cursos de nível inferior ao que se pretendia matricular,
devido ao fato de serem tachados como menos capazes por virem de escolas
rurais, como explica o autor. Discutir os processos de desigualdade e formas de
repará-la é exercer uma educação linguística que estimule relações igualitárias.
Nesses relatos, notamos que os aspectos sociais, culturais, históricos e
até econômicos considerados alheios a língua, seu uso e aprendizagem, na
verdade estão diretamente imbricados. Também fica evidente nesses exemplos,
como a língua é importante para legitimar poder e que ao conceder status ou
validade a apenas uma língua em territórios multilíngues se legaliza a exclusão.
Podemos sequenciar esse processo primeiro ao obrigar o indivíduo a negar sua
identidade (exercício de poder), depois à necessidade de aderir a uma identidade
que não lhe apetece (processo de aculturação ou resistência, dependendo de
como cada pessoa assimila essa nova cultura) e em seguida, ao julgar essa pessoa
como não pertencente ao grupo que supostamente quer adentrar (consolidando
a exclusão).
Essa lógica de dominação se manifestava no período colonial através do
espanhol, do francês, do inglês e do português, como línguas colonizadoras e
se consolidou com a oficialização dessas línguas em seus respectivos territórios.
Portanto, não foi banida junto com a colonização. Pelo contrário, o sistema de
dominação colonial, no qual as línguas são um dos instrumentos de poder,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 318


segue sendo uma forma ordenação entre os diferentes grupos sociais presentes
em países do continente americano. Esse sistema de dominação vigente mesmo
após a independência das colônias é denominado por Quijano (2007), como
colonialidade do poder.
Sendo parte do continente americano e de seus processos históricos, o
Brasil não se distancia da lógica colonial das relações entre língua, poder e
exclusão estabelecidas por este sistema, de modo que, seguimos perpetuando
essa relação inclusive no ensino de línguas. Não é à toa que (MONTE MÓR,
2013, p. 127 apud MATOS e CAETANO, 2019, p. 167) sugerem: “as almas dos
professores brasileiros são habitadas por um jesuíta, um colonizador e um
autoritário”, figuras coloniais típicas que influenciaram a identidade brasileira e
ainda permeiam nossa memória, podendo ser uma influência no imaginário
educacional.
Diante do exposto, podemos entender que exercer poder se relaciona a
dominação de um povo, e consequentemente, na eliminação e/ou
silenciamento de sua língua. Mudar essa lógica não é simples mesmo seguindo
o viés da multiculturalidade e do pluralismo linguístico, pois, implica a perda de
privilégios e do status de soberania que uma parcela da população entende ser
naturalmente sua, impedindo o reconhecimento do outro. Assim:

A tarefa mais urgente, nos parece, é promover a reflexão e a ação capazes


de articular (i) as demandas sociais por uma educação lingüística de
qualidade, (ii) as políticas públicas de ensino de língua e (iii) a pedagogia
de educação em língua materna praticada na escola. Evidentemente, esse
processo, se exitoso, viria a interferir na própria formação dos professores
de português, o que decerto acarretaria uma reavaliação e reformulação
dos cursos superiores de Letras – que parecem ainda se prender, já pela
própria denominação, a estruturas sociais e ditames culturais do século
XIX (BAGNO e RANGEL, 2005, p. 68).

Para atender a demanda citada é preciso pensar uma educação que não
seja excludente. Da mesma maneira, as pesquisas em ensino e linguagem
precisam se direcionar para a compreensão social e das práticas da linguagem

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 319


como tem sido feito atualmente na LA. Pensamos que desse modo o domínio
da língua oficial ou mesmo de uma LE deixará de ser uma forma de aculturação
ou uma mercadoria, para ser um instrumento de poder e resistência, no sentido
de ser uma forma de exercer direitos e cidadania. É desse modo que pensamos
o ensino de espanhol no Brasil. Assim, para cumprir as tarefas dessa educação
linguística podemos nos fundamentar em teorizações feitas pela LA como a
indisciplinaridade, a desaprendizagem, a perspectiva transgressora, mestiça,
híbrida, o pensamento de fronteira ou mesmo a Linguística Aplicada Crítica
(doravante LAC), como vemos adiante.

Caminhos da LA

Ao relacionar a educação linguística à grande área da Linguística Aplicada


(LA) se faz necessário explicitar os rumos trilhados por esse campo de
investigação para entendermos como chegamos até aqui. Em resumo, Moita
Lopes (2009, p. 11), descreve o início da LA como: “Uma área que começa nos
anos 1940, com o interesse por desenvolver materiais para o ensino de línguas
durante a Segunda Guerra Mundial, vai ter uma Associação Internacional (a
AILA) constituída em 1964, quando ocorre o primeiro evento internacional de
LA.” Após esse período a LA passou a ser vista como aplicação de teorias da
linguística, principalmente no ensino de inglês como LE, desde 1946 nos
Estados Unidos com Charles Fries e Robert Lado e na Inglaterra desde 1957
com Pit Corder, Widdowson e Davies, segundo Moita Lopes (2009).
Assim, chegou ao Brasil nos anos 70 firmando-se primeiro através dos
cursos de pós-graduação, posteriormente através da criação de revistas
científicas nos 80, associações nos anos 90 e na década seguinte na graduação,
como explicam Menezes, Silva e Gomes (2009). No Brasil, a influência maior
veio da Inglaterra após Almeida Filho e Carmen Caldas-Coulthard voltarem de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 320


seus respectivos doutorados trazendo as concepções da LA que pensavam o
ensino de línguas com base na abordagem comunicativa. Enquanto a LA se
desenvolvia no ensino de língua inglesa no Brasil, segundo Matos (2013), suas
teorias ainda estavam se iniciando na Espanha nos anos 70 e chegaria por aqui
apenas nos anos 90 com materiais fundamentados na abordagem comunicativa.
Já as pesquisas voltadas para o espanhol tardam a acontecer.
A relação entre Linguística e LA caracteriza ambas identidades, pois se a
segunda nasce a partir da primeira, é no distanciamento entre elas que a LA
conseguirá sua autonomia e se firmará como ciência aplicada. Menezes, Silva e
Gomes (2009, p. 3) reconhecem que

Ao contrário do que diz o verbete do Concise Oxford Companion to the


English Language e do conceito que se estabeleceu no senso comum, a
LA não nasceu como aplicação da lingüística, mas como uma perspectiva
indutiva, isto é, uma pesquisa advinda de observações de uso da linguagem
no mundo real, em oposição à língua idealizada. Essa nova forma de fazer
ciência abalou a academia e se confrontou com a pesquisa tradicional
dentro de modelos teóricos e metodológicos muito rígidos.

Essa divergência epistemológica e histórica do surgimento da LA marca


o vínculo entre Linguística e LA uma vez que, a princípio, a teoria linguística
era vista como única fonte de conhecimento, desconsiderando como científicas
as descobertas realizadas em sua aplicação. Por isso, é importante resgatar o
posicionamento dos pesquisadores citados por evidenciar o caráter
investigativo da LA desde sua gênesis. Do mesmo modo, ao citar Deleuze os
autores reforçam que a prática de uma teoria exige conhecimentos próprios do
seu local de aplicação, conquistados por aquele que a aplica, afirmando o viés
investigativo das ciências aplicadas:

Com isto, Deleuze nos faz suspeitar que, naqueles anos 1940 na
Universidade de Michigan, onde teve início a experiência de uma
“linguística aplicada”, algo acontecia de muito mais complexo do que a
mera “aplicação” de saberes produzidos em laboratório a grupos de
sujeitos que ali se apresentavam para aprender uma língua estrangeira
(ROCHA e DAHER, 2015, p. 128).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 321


Portanto, afirmar que a LA surge a partir da Linguística é fato, porém, é
a partir da peculiaridade de entender teorias cada vez mais diversas e o seu
contexto de aplicação que essa área de pesquisa conquistou espaço no campo
científico de estudos da linguagem. Considerando que a ciência acompanha a
realidade de cada época, para Moita Lopes (2009, p. 11):

estamos diante de uma série de discursos que socialmente fizeram essa


área operar de uma forma ou de outra, de acordo com o pensamento
intelectual da época, ou seja, o zeitgeist que orientava os pesquisadores.
Entendo que os discursos da ciência, como outros, são construções sociais
que, em certos momentos, abalizam certas compreensões de produzir
conhecimento, excluindo outras.

Observando as mudanças da LA por esse viés, entendemos a necessidade


de os estudos da linguagem adentrarem outras áreas que ajudam compreender
a complexa sociedade atual. Nesse sentido, também se explica o que o autor
classificou como as viradas linguísticas, a primeira, ao agregar outras disciplinas à
sua teorização, por considerar que nenhuma área de conhecimento sozinha é
suficiente para compreender a complexidade de ensinar e aprender, (MOITA
LOPES, 2009). E a segunda, ao adentrar outros contextos e estudar a linguagem
a partir do seu uso nas práxis humanas. Esse direcionamento leva à LA
indisciplinar definida por Moita Lopes (2006, p. 14) como “um modo de criar
inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel
central”, não como prescrição dada por uma disciplina, mas com o intuito de
refletir criticamente as relações humanas através da linguagem.
Pennycook (2006) acrescenta mais duas viradas que surgiram em outros
campos de estudo e consequentemente afetaram a LA indisciplinar: a primeira
chamada virada somática em direção ao corpo e a segunda chamada virada
performativa, que nos estudos linguísticos se caracteriza por entender que “as
pessoas são o que são também pela forma como falam” (PENNYCOOK, 2006,
p.81). Assim, os estudos atuais buscam inteligibilidade entre as relações

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 322


humanas e a linguagem como forma de identidade, pertencimento ou exclusão.
Esses temas não são próprios da LA mas, adentram ao seu escopo na medida
que nos levam a questionar o papel da linguagem na formação social. Por isso,
para Motta-Roth, Selbach e Florêncio (2016) não é possível se desprender de
questões políticas e ideológicas nessa vertente investigativa.
Contudo, Moita Lopes (2006) considera legítimos tanto os estudos
autônomos, que se preocupam com a língua e ensino, quanto os estudos
ideológicos, que teorizam o uso da linguagem a partir da realidade prática dos
sujeitos não só na escola, mas em diversos contextos. Os estudos ideológicos
se relacionam aos ideais modernistas (direitos humanos, cidadania) para
entendê-los não como uma relação de causa e efeito, mas, de modo que o sujeito
investigado conquiste voz e seja ouvido. Nesse sentido, questiona-se também a
forma de produzir conhecimento. A esse respeito, Moita Lopes (2006) destaca
as pesquisas interpretativistas exemplificadas pelo conceito de ciência
performativa contemplando a outridade e o exercício da alteridade; e na
possibilidade de que a pesquisa contemple outras histórias além das do sujeito
hegemônico, criando possivelmente melhores formas de sociabilidade.
Para Menezes, Silva e Gomes (2009, p.6), “ a ciência progride quando
não há consenso”, com base nesse descenso a LA tem dialogado com diversas
áreas e com ela própria para entender a linguagem e suas formas de
manifestação e relação social na prática, por isso a necessidade de interpretar o
mundo atual e suas dinâmicas que refletem na linguagem. Vemos adiante, como
esses estudos têm acontecido na LA e na pesquisa em língua espanhola.

LA um espaço entre fronteiras

De acordo com Moita Lopes (2006), mesmo a LA sendo um campo


científico consolidado também está suscetível a diferentes vertentes de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 323


investigação. Por isso, nos aproximamos das teorizações da LA que
problematizam a linguagem em diversos contextos e no ensino de línguas, de
modo mais abrangente e crítico, como sugere a educação linguística.
Para Fabrício (2006), os estudos em LA entendem que as relações
estabelecidas pela linguagem são flutuantes, mutáveis e inseparáveis de práticas
sociais e discursiva, assim, a autora defende uma LA como prática interrogadora
que questiona o conhecimento vigente e também sua própria reconstrução, sem
se prender a verdades absolutas, por isso nos propõe: “uma agenda política, uma
agenda transformadora/intervencionista e uma agenda ética, decorrente da ideia de que
nossas práticas discursivas envolvem escolhas que têm impactos diferenciados
no mundo social e nele interferem de formas variadas” (FABRÍCIO, 2006, p.
49).
Para a autora, não podemos nos pautar no conservadorismo, pois “existir
é movimento” (FABRÍCIO, 2006 p. 46), por isso se baseia no conceito de
desaprendizagem, como uma disposição para desprender-se de conhecimentos
estabelecidos, possibilitando novas inteligibilidades e criando relações humanas
mais igualitárias e éticas através da linguagem. Entretanto, afirma que não
significa um vale tudo ao contestar as verdades (im)postas e ao não buscar
verdades absolutas, mas defende o questionamento e engajamento crítico para
evitar supostas neutralidades que vão contra o fluxo cambiante do existir
(FABRÍCIO, 2006).
Seguindo esta direção, Pennycook (2006) resgata quatro noções do termo
crítico: no sentido de desenvolver distância crítica e objetividade; no sentido de
ser relevante socialmente; no sentido neomarxista de pesquisa; e como uma
prática pós-moderna problematizadora. Essas noções são identificadas em
diversos campos da LA e principalmente em sua vertente crítica que segundo
Pennycook (2006, p. 67) não constitui uma disciplina, mas vislumbra, “a práxis
em movimento que é a LAC”. Desse modo, a definição de conhecimento

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 324


híbrido, indisciplina, antidisciplina e transgressivo são características da LAC
que vão além de apenas adicionar o termo crítico no nome e implica novas
formas de politização, segundo Pennycook (2006).
O referido autor, também faz algumas considerações sobre o termo
transgressivo, primeiro como questionamento de conceitos para transgredir o
pensamento vigente e a política tradicional. O segundo ponto é que ao pensar
o que não deve ser pensado encontram-se soluções que até então não eram
possíveis. Na educação, Pennycook (2006) se remete à hooks para defender que
transgressão é se opor, resistir e cruzar os limites da dominação. As teorizações
apresentadas se relacionam à educação linguística pelo fato de problematizar
situações que envolvem a linguagem, de modo a proporcionar maior reflexão e
entendimento ao aprendiz ou aos usuários da língua e seu meio.
Pensar uma investigação crítica, por pontos de vista que não do sujeito
hegemônico, leva a LA a questões levantadas por Kleiman (2013, p. 40):
“Venho trazer outras vozes latino-americanas, a fim de "sulear" (orientar para
o Sul)2 o debate e questionar a hegemonia ocidental do Norte, ainda imperante
na definição dos nossos problemas de pesquisa.” Dentre essas questões ganha
espaço a discussão de Quijano (2007), sobre o processo de colonialidade
mencionado na primeira seção, quando relacionada às formas de poder e
exclusão exercidas através da língua. Embora o Programa
Modernidade/Colonialidade3 (ESCOBAR, 2003) seja pioneiro em debater a
colonialidade este é um dos temas que vem se destacando na LA:

2 A autora segue a definição de Norte global como os países economicamente desenvolvidos e que atuaram
como colonizadores (independentemente de estarem localizados no norte geográfico); e os países do Sul global,
se caracterizam pelo subdesenvolvimento e por terem sido colonizados, ainda que estejam no norte geográfico.
3 He denominado este grupo como «el programa de investigación de modernidad/colonialidad» para referirme

a lo que parece ser una perspectiva emergente pero significativamente coherente que está alimentando un
creciente número de investigaciones, encuentros, publicaciones y otras actividades en torno a una serie de
conceptos compartidos, aun si son objeto de debate. Este cuerpo de trabajo constituye una nueva perspectiva
desde Latinoamérica, pero no sólo para Latinoamérica sino para el mundo de las ciencias sociales y humanas
en su conjunto (ESCOBAR, 2003, p. 51).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 325


A dimensão ética da LA crítica, seja ela anti-hegemônica, mestiça ou
híbrida (Moita Lopes, 2006a: 88) está contemplada no PM/D: o
pensamento de fronteira, segundo Mignolo (2007), é uma forma ética de
pensar porque, sendo marginal, não tem uma dimensão etnocida, de
destruição de uma cultura ou etnia. Tampouco tem propósitos
proselitistas, ligados à correção de inverdades e à proclamação da verdade
única; seu objetivo é pensar de outro modo, em direção a uma outra lógica
"em suma, mudar os termos, não somente o conteúdo da conversação"
(p. 29). (KLEIMAN, 2013, p. 47)4.

É a partir do entendimento de que a colonialidade permanece, que dentro


da LA, os estudos se preocupam em entender tais relações. Por isso a
necessidade de considerar outros campos de estudo, outros sujeitos de pesquisa
e até mesmo outras epistemologias para compreender a sociedade que utiliza a
língua e constrói continuamente a linguagem, com base em uma lógica que não
seja colonial. Assim, a LA se coloca entre as fronteiras da língua dominante,
oficial, de prestígio e a língua marginalizada; entre fronteiras epistemológicas e
sociais; da mesma forma as pesquisas em língua espanhola se colocam na
fronteira entre variações linguísticas; entre a multiculturalidade presente nos
países colonizados; e entre as relações interculturais estabelecidas no contexto
brasileiro com vistas a uma formação mais completa e cidadã dos aprendizes de
espanhol, para nesse espaço centralizar as discussões, que têm como
protagonistas as vozes do Sul, como nos mostra Paraquett (2009, p. 4):

Por lo tanto, la filosofía de Paulo Freire nos ha enseñado desde la mitad


del siglo XX, que en Brasil y en América Latina, hay gente que mucho
tiene que decir y que hemos de darles voz en lugar de silenciarlos. Y es por
eso que mucho de lo que se produce en LA tiene una vertiente crítica […].

Dedicar-nos a questões que abrangem as realidades do Brasil e da


América Latina, como o processo de coloniadade, é uma forma de crítica e

4A autora se refere ao Programa Modernidade/Colonialidade como Programa Modernidade/Decolonialidade,


ou seja, PM/D. Esclarecemos que são duas maneiras de se referir ao mesmo grupo de investigação.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 326


reflexão a esse processo, mas também, é uma forma de repensar a educação de
maneira transgressora. Consideramos que no ensino de língua espanhola dar
voz a questões que afligem nosso contexto é uma forma também de se fazer
ouvir quem por muito tempo foi silenciado. Por isso, tem aumentado as
pesquisas na LA em língua espanhola que contemplam a representatividade dos
povos originários e afrodescendentes como protagonistas da língua e cultura
nos países colonizados. Também há pesquisas que comtemplam as discussões
de gênero e identidade, uma vez que são temas recorrentes em nossa sociedade
e que se materializam pela linguagem.
No ensino de línguas e no Programa M/C, esse tipo de discussão é
pautado pela proposta de interculturalidade crítica com base em Walsh (2009),
caracterizada por um processo que se constrói com as pessoas e não de cima
para baixo hierarquicamente buscando intercambiar conhecimentos e saberes
de uma cultura para outra através do diálogo intercultural. Desse modo,
podemos constatar que os estudos em LA se direcionam para uma vertente
crítica e busca formas de investigação e ensino que contemplem também a
politização. Igualmente o ensino de espanhol pautado na LA e nos pressupostos
da educação linguística caminham nessa direção.

Conclusão

Como vimos até aqui as mudanças conceituais ocorridas na LA visam


acompanhar a sociedade em que vivemos, entendê-la e refletir sobre seus mais
diversos aspectos. Nesse contexto, a linguagem passa a ser objeto de
investigação não apenas como comunicação ou ensino, mas também como uma
forma de entender a própria sociedade. Por isso, cabe repensar até que ponto
nossas pesquisas e ensino colaboram para que a LM ou LE sejam fontes de
poder ou se ainda as utilizamos como forma de exclusão.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 327


Buscamos com esse breve histórico identificar as mudanças da atuação
da LA e como suas investigações influenciam as pesquisas e ensino de língua
espanhola no Brasil. Concluímos assim, que para romper com o ciclo de ensino
de línguas baseado no autoritarismo, na aculturação ou no mercado, podemos
nos pautar em formas transgressoras e politizadas de ensinar como a vertente
crítica da LA e a educação linguística.

Referências
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Brasil. Rev. Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 5, n. 1, 2005.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 330


CAPÍTULO 24

O processo midiático de legitimação


do Golpe de 2016: uma análise de
discurso crítica na revista veja
Antonio Edson Alves da Silva1

Introdução

A Constituição Federal de 1988, em seu §5º, estabelece que “os meios de


comunicação social não podem direta ou indiretamente ser objeto de
monopólio ou oligopólio”, na constatação desta afirmação constitucional,
percebemos o quanto esses meios têm sido utilizados para beneficiar famílias
específicas, partidos políticos e grupos que detêm o poder econômico deste
país.
Nesse seguimento, os meios de comunicação social têm contribuído
fortemente para modificar o cenário democrático brasileiro, quando se utilizam
de um discurso raso que criminaliza determinados políticos – principalmente
os vinculados a partidos de esquerda – em detrimento de outros com posturas
de possam beneficiar seus interesses hegemônicos.

1 Doutorando em Linguística Aplicada no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da

Universidade Estadual do Ceará - UECE. E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 331


Nesse sentido, este artigo, que é parte da dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da
Universidade Estadual do Ceará, em 2019, objetiva analisar os recursos
linguísticos e extralinguísticos que constituíram o discurso midiático de
legitimação do Golpe de 2016, na revista Veja, tendo em vista o significado
identificacional, proposto por Fairclough (2003), com as ocorrências de
avaliação.

Fundamentos Teóricos

A Análise do Discurso Crítica (ADC) entra em cena, no contexto


científico, tendo em vista seu caráter social de intervenção e modificação dos
cenários em que os sujeitos estão inseridos, como forma de oposição às elites e
classes dominantes, conforme as estruturas sociais apontadas pelo marxismo.
Neste contexto, tudo que permeia as relações sociais internas e externas aos
sujeitos são colocadas em questão, como cultura, contexto social, político,
filosófico e ideológico para que os analistas tenham uma visão ampliada dos
mais diversos contextos que serão analisados.

Na atualidade, a Análise de Discurso Crítica tem contribuído muito


fortemente para uma variedade de abordagens nos mais diversos grupos
disciplinares, em virtude do seu caráter profundo de análise textual orientada,
visando suas implicaturas nas estruturas e práticas sociais. Para um trabalho
analítico mais eficaz, faz-se necessário compreender as relações de poder e
ideologia que envolvem os mais diversos contextos trabalhados, numa
abordagem crítica da linguagem, conforme destaca Fairclough (2001. p. 31):

As abordagens críticas diferem das não-críticas não apenas na descrição


das práticas discursivas, mas também ao mostrarmos como o discurso é
moldado por relações de poder e ideologia e os efeitos construtivos que
o discurso exerce sobre as identidades sociais, as relações sociais e os
sistemas de conhecimento e crença. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 31)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 332


Toda abordagem crítica da ADC é impulsionada, para Fairclough, pela
Linguística Crítica, nascida na década de 1970, com base nos estudos de Fowler,
Kress e Hodg, na Universidade de East Anglia. Os teóricos buscavam unificar
um método de análise de texto com as teorias sociais do funcionamento da
linguagem, recorrendo à compreensão dos processos políticos e ideológicos que
estão intrinsecamente ligados à política e ideologia.
A concepção de Análise de Discurso Crítica apontada por van Dijk
(2017) corrobora com a apresentada e desenvolvida por outros autores, como
as brasileiras Izabel Magalhães, Viviane Resende e Viviane Ramalho que se
sustentam nas discussões cunhadas por Fairclough para apontar um caminho
profícuo de trabalho com as categorias de análise textualmente orientada. O
autor ainda vem compreender a ADC como um tipo de investigação sistemática
que estuda preponderantemente as relações de (abuso de) poder, a dominação
e as mais diversas manifestações de desigualdades sociais representadas,
produzidas e divulgadas através de textos orais e escritas em determinados
contextos sociais.
“Com essa investigação de natureza tão dissidente, os analistas críticos
do discurso adotam um posicionamento explicito e, assim, objetivam
compreender, desvelar e, em alguma instância, opor-se à desigualdade social.
(VAN DIJK, 2017, p. 113). Destarte, entendendo os analistas como atores
sociais engajados neste processo de transformação e mudança social. O
interesse em estudar a linguagem através do discurso foi amplamente divulgado
e trabalhado a partir da década de 1970, iniciado no Reino Unido, com o apoio
da nascente Linguística Crítica, tendo influências positivas das mais diversas
áreas do conhecimento, como sociolinguística, psicologia, ciências sociais,
dentre outras.

A Análise de Discurso Crítica não é, na verdade uma diretriz, uma escola,


nem uma especialização semelhante a tantas outras “abordagens” nos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 333


estudos discursivos. Antes, a ADC objetiva oferecer um “modo” ou uma
“perspectiva” diferente de teorização, análise e aplicação ao longo de
todos os campos. Podemos encontrar uma perspectiva mais ou menos
crítica em diversas áreas, tais como a pragmática, a análise da conversação,
análise da narrativa, a retórica, a estilística, a sociolinguística, a etnografia,
a análise da mídia, entre outras. (VAN DIJK, 2017, p. 114)

Neste sentido, percebemos uma necessidade de uma consciência


explicita do papel do analista do discurso crítico, frente aos mais diversos
contextos sociais de exploração, dando assim sua contribuição a essa tradição
que rejeita a possibilidade de uma ciência acrítica e acomodada, mas
compreende que a ciências discursivas são parte inerente às estruturas sociais.
A relação entre sujeito, discurso e sociedade é tão tênue que o papel do analista
é sempre colocado em pauta, tendo em vista seu posicionamento transgressor
ao fazer uma ciência crítica engajada e comprometida com a transformação
social através da consciência dos discursos hegemônicos e contra-hegemônicos.
Para van Dijk (2017, p. 115), todas as propostas investigativas em ADC
devem cumprir uma série de requisitos para que os objetivos que foram
apontados possam se concretizar e cumprir o seu papel, tais como:
1.Como ocorre com outras tradições de pesquisa mais marginais, a
investigação em ADC de ser melhor que qualquer outra investigação para
ser aceita;
2. A ADC encontra-se principalmente nos problemas sociais e nas questões
políticas no lugar de paradigmas correntes e modismos;
3. A Análise crítica de problemas sociais, empiricamente adequada, é
normalmente multidisciplinar;
4. Em vez de meramente descrever estruturas do discurso, a ADC procura
explica-las em termos das propriedades da interação social e especialmente
da estruturação social;
5. A ADC enfoca, mais especificamente, os modos como as estruturas do
discurso produzem, confirmam, legitimam, reproduzem ou desafiam as
relações de poder e de dominação na sociedade.

Ademais, compreendendo todos esses requisitos necessários para uma


investigação séria em Análise de Discurso Crítica, o autor ainda sintetiza as

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 334


ideias do artigo de Fairclough e Wodak, publicado em 1997, no livro Discourse
studies, sinalizando oito pontos como possíveis fundamentos da ADC, a saber:

1. A ADC aborda problemas sociais;


2. As relações de poder são discursivas;
3. O discurso constitui a sociedade e a cultura
4. O discurso realiza um trabalho ideológico
5. O discurso é histórico;
6. A relação entre texto e sociedade é mediada;
7. A análise do discurso é interpretativa e explanatória;
8. O discurso é uma forma de ação social.

Estes fundamentos colaboram para uma discussão acerca de todo


processo sério de investigação científica do discurso, sendo que alguns pontos
podem ser mais específicos e produtivos quanto ao enfoque que cada analista
propuser para corroborar com sua pesquisa.
A Análise de Discurso Crítica, compreendida aqui pelos teóricos
apresentados, vem preencher uma lacuna existente entre as concepções de
macronível e micronível, compreendendo as distinções políticas inerentes a
cada enfoque que se presente trabalhar. Nesta perspectiva, tanto o macro como
o micronível vem formar uma estrutura intrínseca e extremamente bem
elaborada formando um todo unificado. O autor ainda propõe alguns
direcionamentos que possam orientar as mais diferentes formas de analisar e
relacionar esse todo unificado, desdobrado o micronível e macronível, como:
1. Membros-grupos: os usuários da língua participam no discurso como
membros de (diversos) grupos sociais, organizações ou instituições; e,
por outro lado, os grupos então podem agir “através” de seus
membros.
2. Ações-processos: os atos sociais de atores individuais são, desse modo,
partes constituintes das ações e dos processos sociais do grupo, tais
como a legislação, a produção de notícias ou reprodução de racismo.
3. Contexto-estrutura social: de maneira semelhante, as situações de interação
discursiva são partes ou constituintes da estrutura social; por exemplo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 335


uma entrevista coletiva jornalística pode ser uma prática típica de
organizações e instituições da mídia. Isto é, os contextos “locais” e
maus “globais” estão intimamente relacionados e ambos impõem
restrições ao discurso.
4. Cognição pessoal e social: os usuários da língua, enquanto atores sociais,
possuem cognição pessoal quanto social: memórias, conhecimento e
opiniões pessoais, bem como aqueles compartilhados com os
membros do grupo de outra cultura como um todo. Ambos os tipos
de cognição influenciam a interação e o discurso dos membros
individuais, enquanto que as “representações sociais” compartilhadas
governam as ações coletivas de um grupo.

Percebemos, então, que os usuários da língua são agentes ativos e


participativos dentro dos seus determinados grupos sociais e organizacionais,
agindo conforme as orientações implícitas e explícitas de seus grupos. Neste
sentido, são atores que constituem os processos sociais, através das ações. Tais
representações e participações destes indivíduos ocorrem dentro de um
contexto político organizado, como também se dá através de meios mais
específicos, como é o caso da mídia. Tudo isso acaba sendo construído através
do processo cognitivo inerente ao ser humano que participa das práticas sociais,
tendo por base, suas crenças particulares que se constituem através das crenças
coletivas.
A discussão acerca da ADC direciona-se para o conceito de poder como
controle social de grupos e instituições, sendo isso um dos temas mais centrais
e complexos no percurso de análise textualmente orientada. Neste sentido, os
grupos são extremamente importantes para a concretização desse poder, visto
que se eles possuem maior ou menor poder, têm a capacidade de exercer o
controle em maior ou menor grau dos atos e das mentes de seus membros,
como também, através da prática discursiva de membros de outros grupos
sociais, formando assim um processo hegemônico.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 336


Fundamentos Metodológicos

O objetivo deste trabalho é analisar os recursos que constituíram o


discurso midiático de legitimação do Golpe de 2016, na revista Veja, tendo em
vista o significado identificacional, proposto por Fairclough (2003), com as
ocorrências de avaliação. Para chegarmos a total compreensão, propusemos
ainda descrever as práticas discursivas de legitimação do Golpe de 2016, tendo
em vista os recursos de avaliação, emissões de julgamento e juízo de valor.
Neste prisma, esta pesquisa se concretiza a partir da análise de textos que
emergem de contextos reais de uso da língua, no caso os textos jornalísticos de
grande circulação no cenário midiático, por atores sociais. Fabrício (2006) e
Signorini (2007) entendem que a Linguística Aplicada (LA) deve promover um
campo de pesquisa, com base em situações concretas e demandas sociais no
mundo atual, compreendendo a emergência de se investigar, principalmente,
fenômenos sociais marginalizados. Ademais, na perspectiva de Moita Lopes
(2006), a LA é vista como uma área de conhecimento que deseja compreender
o mundo em que vivemos, tendo como foco as relações do homem com a
língua. Neste sentido, o autor classifica a LA como uma disciplina nômade, pois
está sempre inquieta em pensar a linguagem de forma diferente nos mais
diversos espaços para além das ciências linguísticas, numa perspectiva
transdisciplinar.
Outrossim, a Análise de Discurso Crítica, por ser uma ciência da
linguagem associada à Linguística Aplicada, tendo se desenvolvido e constituído
mais sólida ao longo do seu percurso histórico, dará conta de compreender os
mais diversos fenômenos sociais, por trazer em sua essência, um
comprometimento ético de pesquisa voltado para as mazelas que afligem nossa
sociedade.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 337


Para tanto, analisamos o artigo de opinião denominado “Impeachment não
é guerra”, publicado em 04 de dezembro de 2015, na revista Veja, sendo assinado
por Daniel Pereira.

Análise de dados

Fairclough (2003) afirma que o discurso é um modo de representação


dos mais distintos aspectos do mundo e das relações sociais, conforme a citação
que segue:

Os processos, relações e estruturas do mundo material, o "mundo mental"


de pensamentos, sentimentos, crenças e assim por diante, e o mundo
social. Aspectos particulares do mundo podem ser representados de forma
diferente, por isso estamos geralmente na posição de ter de considerar a
relação entre diferentes discursos. Diferentes discursos são diferentes
perspectivas sobre o mundo, e estão associados com as diferentes relações
que as pessoas têm para com o mundo, que por sua vez depende de suas
posições no mundo, suas identidades sociais e pessoais, e as relações
sociais que travam com as pessoas. (FAIRCLOUGH, 2003, p 124)

No que se refere ao significado representacional, compreendemos os


discursos como modos de representação do mundo pelos atores sociais. Há
diferenças de representação de acordo com a maneira como esses atores
estabelecem relação entre si e os eventos representados.

(01) O Brasil passará a conviver com a sobreposição de cenários ainda


mais complexos. Na economia, estão dadas as condições para o que pode
ser a crise mais profunda de todos os tempos. A inflação e o desemprego
sobem rapidamente. Na defensiva, as indústrias se recolhem ao mínimo
de atividade produtiva. O comércio prevê o pior Natal em décadas.
(PEREIRA, 2015)

Os modos de representação são atribuídos de maneira genérica ao Brasil


que não conseguirá conviver com esse cenário, mostrando assim uma urgente
necessidade de mudança, que nesta perspectiva seria a consumação do
impeachment. Outros atores são também representados de maneira generalizada,
mostrando que toda classe da indústria e do comércio está insatisfeita com a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 338


crise econômica ocasionada pela má gestão do Governo Federal, conforme
salienta o autor.
(02) As lideranças políticas, que deveriam se empenhar em apontar a porta
de saída dessa espiral destrutiva, parecem ocupadas demais tentando salvar
a si mesmas das investigações de corrupção que envolvem mais de meia
centena de autoridades – entre elas o presidente da Câmara, o presidente
do Senado, assessores e ex-assessores da presidente da República.
(PEREIRA, 2015)

O autor representa negativamente outras pessoas envolvidas nesse


contexto, sem fazer nenhuma distinção. Inicialmente, começa falando de forma
generalizada sobre as lideranças políticas que devem se empenhar para a
continuidade do impedimento, porém estão preocupadas com sua reputação,
tendo em vista estarem também envolvidas em escândalos de corrupção. Ao
final é que são especificados esses atores, como o presidente da Câmara Federal
no período, Eduardo Cunha, o presidente do Senado, Eunício Oliveira (ambos
dos MDB), além de ex-assessores ligados à presidenta.

(03) A partir desta semana, quando será instalada a comissão do


impeachment, o país enfrentará momentos de extrema tensão, conflitos
de interesses, debates acalorados e tentativas de manipulação. É desse
substrato típico das democracias que, espera-se, surgirá a força capaz de
fazer o Brasil voltar a respirar. (PEREIRA, 2015)

A comissão do impeachment é representada como sendo, mesmo em meio


a tantos conflitos de interesse por parte dos envolvido, a salvação para esse
momento, haja vista a constante afirmação que este processo é legal e típico de
democracias, podendo assim ao final, como sugere o autor, “fazer o Brasil
voltar a respirar”.

(04) Pela Constituição, cabe ao comandante da Câmara dos Deputados


aceitar ou negar os pedidos de impedimento apresentados contra o
presidente da República. O deputado Eduardo Cunha deu seguimento na
semana passada ao recurso formulado pelo jurista Hélio Bicudo, pelo ex-
ministro da Justiça Miguel Reale Júnior e pela advogada Janaina Paschoal.
(PEREIRA, 2015)

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 339


Para fundamentar a legalidade e dar um ar de coerência e legitimidade ao
processo de impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff, o autor representa
a Constituição Federal como sendo àquela que preconiza tal processo, devendo
ser executado pelo presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha.

A representação de outros sujeitos envolvidos nesse processo é feita por


meio da titulação de cada um, influenciando uma credibilidade, tendo em vista
que tem um jurista, um ex-ministro da Justiça e uma Advogada, ou seja, pessoas
sérias que entendem da legalidade do processo e em tese devem saber o que
estão fazendo.

(05) Eles alegam que Dilma cometeu crime de responsabilidade ao praticar


as chamadas processo essencialmente político, que refletirá as convicções
de cada parlamentar.
(06) Ao fim e ao cabo, são eles que decidirão se Dilma ainda tem condições
e autoridade para continuar à frente do cargo para o qual foi eleita com 54
milhões de votos.
(07) Dilma e Cunha são adversários figadais
(08) A presidente quer restringir o caso a um duelo de biografias da santa
da moralidade com o tinhoso do fisiologismo. (PEREIRA, 2015).

A representação mais grosseira apresentada pelo artigo de opinião em


análise é da ex-presidenta Dilma Rousseff sendo sempre colocada como a
culpada pelos atos que está sendo acusada. O jornal não proporciona uma
criticidade ou necessidade de se discutir se não houve crime, mas a todos os
momentos elucida que a então presidenta é criminosa e que há uma necessidade
de impeachment.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 340


Considerações finais

Tendo em vista nossa análise, entendemos o processo de impedimento


da ex-presidenta Dilma Rousseff como sendo um golpe político, jurídico e
midiático, dissonante do discurso oficial, tendo em vista o que a mídia
alternativa, além de diversos autores como Jessé de Sousa, Ricardo Guerra e
Renato Rovai, apontam-no como tal, uma vez que é perceptível como os
partidos políticos da direita brasileira e as grandes corporações aliadas à grande
mídia hegemônica, foram arquitetando e tramando uma forma sutil para
retomar o poder perdido nas eleições diretas.
Portanto, esperamos que a discussão empreendida neste trabalho possa
despertar para a reflexão efetiva desse evento político, construído,
principalmente com o apoio da mídia hegemônica, haja vista que todo o cenário
social que se vivencia na contemporaneidade está intrinsecamente ligado ao
golpe como um possível desdobramento, bem como uma atenção especial aos
mecanismos inerentes ao uso da linguagem que colaboram para a construção
das relações sociais.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 342


CAPÍTULO 25

Questões de gênero em aulas de


inglês: um estudo sob a luz da
linguística aplicada
Maryana Josina Tavares da Rocha1
Sérgio Ifa2

Introdução

Sabe-se que gênero é uma construção social que influencia nossas


escolhas e práticas sociais, logo não há nada de natural nas categorias impostas
a cada gênero. No nosso país, fruto de uma colonização, ser mulher significa
ocupar um lugar de desprestígio. Diariamente, nos deparamos com noticiários
informando sobre mulheres que foram agredidas, desrespeitadas, estupradas
e/ou mortas.
Além disso, as mulheres são criadas para servir, comprovamos isso em
jogos e brinquedos, enquanto meninos ganham aviões, jogos eletrônicos e
carros, as meninas ganham bonecas e utensílios de cozinha; por consequência,

1 Especialista em Metodologia do Ensino de Língua Inglesa pela Faculdade São Luís. Mestranda no Programa

de Pós-graduação em Letras e Linguística (PPGLL) na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professora


substituta no Instituto Federal de Alagoas (IFAL) - campus Maceió. E-mail: [email protected].
2 Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

É professor associado de inglês no curso de Letras-Inglês e pertence à linha Linguística Aplicada do Programa
de Pós-Graduação em Letras e Linguística (PPGLL), da Universidade Federal de Alagoas. E-mail:
[email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 343


isso ensina que “uns são campeões, outras são princesas, uns pilotam aviões,
outras fazem ovo frito na cozinha e depois lavam, é claro” (HENDEL, 2017,
p.47).
Nesse contexto, ao presenciarmos falas sexistas de alunas e alunos do
ensino médio técnico integrado, decidimos problematizar com essas/esses
discentes as questões de gênero. Assim, compreendemos que a temática
gênero é de grande valia para desnaturalizar discursos sexistas e buscar o fim
de violências e injustiças contra as mulheres. A presente pesquisa encontra-se
em estágio inicial e fará parte de um trabalho em nível de mestrado.
A pesquisa é um estudo sob a luz da Linguística Aplicada (doravante
LA) ciência problematizadora, voltada para questões de relevância social. O
presente trabalho traz um breve apanhado teórico sobre a LA, sobre o conceito
de gênero, sua importância no ensino e nas relações de trabalho, assim como
reflete sobre o sexismo presente na estrutura da língua portuguesa e inglesa.
Por fim, explanamos sobre o contexto da pesquisa.

A linguística aplicada na contemporaneidade

Sabe-se que durante muito tempo a LA foi associada ao ambiente


escolar e ao ensino de línguas. Pode-se perceber que essa ciência era reduzida
a aplicações de teorias da Linguística e o próprio nome de LA sugeria uma
relação de dependência dessas teorias. Lyons (1987, p. 44), ao definir a LA,
escreveu que essa ciência: “ocupa-se da aplicação dos conceitos e descobertas
da linguística a uma série de tarefas práticas, inclusive o ensino de línguas”.
Na atualidade, essa concepção é amplamente criticada e não é mais
aceita. Kumaravadivelu (2006) explana que a LA não é a aplicação de teorias,
é uma ciência produtora de seus postulados teóricos e que não concebe a
divisão dualista entre teoria e prática.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 344


No que se refere a definição de LA, a compreendemos como uma
ciência social que busca trabalhar com “problemas sociais nos quais a
linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2009, p. 37, 38), assim a
LA procura “focalizar a linguagem como prática social e observá-la em uso”
(FABRÍCIO, 2006, p. 48). Nesse sentido, Kleiman (2013, p. 43) define que o
que essa ciência procura são:
respostas para as investigações que se ocupam de questões em que a
linguagem tem um papel constitutivo nos saberes, nas configurações
identitárias e nas relações – feministas, étnico-raciais, sociais - que
formam, conformam, deformam, informam, transformam as realidades
que construímos (KLEIMAN,2013, p.43).

Por conseguinte, a LA visa solucionar problemas socialmente relevantes


e devemos destacar que as soluções desses problemas devem trazer melhorias
para as vidas das/dos participantes das pesquisas (ROJO, 2006). Entretanto,
faz-se necessário frisar que as/os pesquisadores/as da LA questionam e
refletem sobre suas próprias produções e não procuram por soluções universais
e definitivas (FABRÍCIO, 2006).
Dentre os temas, pode-se dizer que a LA se interessa por questões de
gênero, sexualidade, classe e raça, pois são questões presentes na nossa
sociedade e geram sofrimento humano. De acordo com Moita Lopes (2009),
não faz sentido fazer pesquisas que apaguem o gênero, a raça, a história e a
classe social das/dos participantes da pesquisa. Desse modo, nas palavras do
autor:

Novas formas de pesquisa (tanto teóricas como metodológicas) são,


portanto, necessárias. É crucial abrir a pesquisa para vozes alternativas de
modo que seja possível revigorar a vida social ou construí-la por meio de
outras narrativas, aquelas normalmente apagadas no decorrer da
modernidade, como a dos pobres, mulheres, indígenas, negros,
homossexuais etc. Essas vozes podem não somente apresentar alternativas
para compreender o mundo contemporâneo, mas também podem
colaborar na produção de uma agenda anti-hegemônica (MOITA LOPES,
2009, p.37).

Assim, a LA não pode ignorar o racismo, a homofobia e o sexismo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 345


(MOITA LOPES, 2013); pois, o racismo, a homofobia e o sexismo são
posições marginalizadas que geram discriminações e influenciam nas nossas
vidas como aprendizes e educadores (PENNYCOOK, 2006). Portanto, para
nós, linguistas aplicados, acreditamos que ao escolher trabalhar com as questões
de gênero em aulas de língua inglesa sob a luz da LA, estamos objetivando uma
sociedade mais justa e igualitária e que contribua para o fim de padrões
misóginos e sexistas que foram construídos socialmente.

Conceituando gênero

A famosa frase de Simone de Beauvoir: “ninguém nasce mulher: torna-se


mulher” do livro segundo sexo e todos os seus postulados auxiliaram na
reformulação de como sexo e gênero eram concebidos para a teoria feminista.
De acordo com a autora, há uma relação social na construção do gênero
(BEAVOUIR, 1980). Isso significa que no nascimento de dois bebês – um do
sexo feminino e outro do sexo masculino - ao bebê do sexo masculino
colocarão roupas de cor azul, posteriormente, de acordo com seu crescimento
lhe darão brinquedos, tais como: armas, bolas, jogos de computador e será
esperado que essa criança se comporte de forma severa, agressiva, seja
competitiva e não demonstre sentimentos; já do bebê do sexo feminino, lhe
colocarão roupas cor de rosa, posteriormente, lhe darão brinquedos, tais como:
maquiagem, bonecas, utensílios de cozinha e será esperado um comportamento
passivo, obediente, educado e agradável dessa criança (CONNELL e PEARSE,
2015).
Assim, pode-se perceber que o gênero é construído e precisa de ações
efetivas e repetidas para se realizar nos corpos. Butler (2018, p. 69), explica que:
“gênero é a esterilização do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 346


de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para
produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”.
De acordo com Louro (2008), o gênero é aprendido socialmente e
regulado por várias instâncias sociais, tais como: a família, a escola, a igreja, a
mídia, dentre outras. Vale destacar que na sociedade brasileira, a identidade
valorizada é a do homem branco, heterossexual, classe média e cristão, as
mulheres, as/os negras/os, os não cristãos e não heterossexuais não são
respeitados e não contam com o mesmo prestigio perante a sociedade, assim
“alguns sujeitos parecem “valer mais” que outro, parece que alguns “podem”
mais que outros” (LOURO, 2011, p.64).
Ademais, ao conceber gênero como uma performance, compreende-se
que existem consequências punitivas para aquelas e aqueles que não ajam de
acordo com o que é esperado de seu gênero (BUTLER, 2018).
Por fim, faz-se necessário enfatizar que por ser construído socialmente,
as sociedades que foram colonizadas sofreram uma mudança nas ordens de
gênero e perderam costumes locais, sendo afetadas até hoje nas percepções de
gênero (CONNELL, 2016). Para Oyěwùmí (2019), as categorias de gênero e
raça surgiram devido a colonização e é possível perceber na família tradicional
yorubá que as divisões e princípios organizatórios são feitos de acordo com a
idade e não no gênero. Logo, a colonização modificou, influenciou e influencia
amplamente as noções e as relações sociais dos povos.

Gênero e ensino

Entende-se que as pesquisas sobre gênero advieram do movimento e da


teoria feminista, a primeira onda do feminismo concentrou suas
reinvindicações e lutas em busca dos direitos civis, entretanto, foi percebido
após as conquistas desses direitos que as opressões ainda estavam presentes na

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 347


vida das mulheres (MCCANN et al., 2019). Nesse contexto, surge a segunda
onda do feminismo que tem como marco as teorias de gênero com Simone de
Beauvoir e posteriormente, na terceira onda, Judith Butler amplia e teoriza
sobre gênero como performance (RIBEIRO, 2018).
Assim, as questões de gênero começaram a ser discutidas a partir dos
anos 70 pelas feministas e teóricas e estão presentes até hoje. Devido a
demanda para a solução de problemas sociais atuais, faz-se necessário levar
essa temática para sala de aula, visto que as discussões sobre gênero buscam
problematizar as desigualdades entre os sexos, questionar preconceitos e
refletir sobre práticas sociais sexistas.
Nesse contexto, nós, professoras/es presenciamos situações em sala de
aula ao qual nossos alunos e alunas reproduzem preconceitos e discriminações
aprendidos na família e em sociedade contra outras/os discentes e cabe a
escola, devido a sua função educativa problematizar e superar preconceitos
contra mulheres, negras/os, homossexuais, dentre outros (GOMES, 2019).
Todavia, a palavra gênero está sendo propagada de forma errônea por
muitos políticos conservadores vinculados a religião judaico-cristã, esses
políticos propagam para a sociedade que os debates de gênero são, na verdade,
uma “ideologia de gênero”. Esses/essas parlamentares tendem a vetar os
debates sobre gênero nas escolas e excluem a palavra gênero dos currículos
(CARVALHO, 2015). De alguma forma, esses políticos sentem-se
incomodados pelo fato de a temática questionar a naturalização dos papéis
sociais das mulheres e buscar pelo fim de preconceitos.
Além disso, as/os docentes vinculados as religiões judaico-cristãs
corroboram e compactuam com a visão das/dos parlamentares, condenam as
discussões sobre gênero e refletem sobre várias temáticas como coisas do
diabo, potencializando discriminações entre gêneros e religiões (GOMES,
2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 348


Portanto, acreditamos que ao evidenciar como gênero e raça foram
construídos e torná-los visíveis no discurso escolar significa uma tentativa de
desnaturalizar discursos hegemônicos e por conseguinte, buscar uma
possibilidade de reconstrução do que mulheres e homens podem ser (MOITA
LOPES, 2009).

Língua e sexismo

Compreende-se que na língua portuguesa a regra geral de concordância


é o masculino, se ao adentrarmos em uma sala de aula e nos depararmos com
trinta alunas e cinco alunos, a regra será dizer: os alunos, no masculino. Castro
e Machado (2018), advogam que as flexões na língua priorizam o masculino e
apagam o feminino, como se fossem todos homens e não existissem mulheres.
Hendel (2017), retrata que na língua espanhola o mesmo acontece, a regra é o
masculino, além disso, quando mulheres estão falando delas mesmas,
terminam usando a palavra nosotros3 ao invés de nosotras4.
Essa universalização do masculino também ocorre na língua inglesa, é
possível perceber que o pronome he5 aparece na literatura com mais frequência
que she6; e ao usar o pronome they7 é comum supor que estão se referindo aos
homens e não as mulheres (KHOSROSHAHI,1989 apud EHRLICH e KING,
1994).
Ademais, Khosroshahi (1989 apud EHRLICH e KING, 1994), em suas
pesquisas pediu para um grupo de participantes – mulheres e homens - lessem
um parágrafo ambíguo a respeito do gênero de um/a personagem, concluiu-

3Todas as traduções feitas no presente trabalho são de inteira responsabilidade dos autores deste trabalho.
Tradução: Nós – usado para homens.
4 Pronome pessoal – nós – usado para mulheres.
5 Pronome pessoal – ele.
6 Pronome pessoal – ela.
7 Pronome pessoal – elas/eles.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 349


se que a tendência foi descrever o personagem como homem. Por conseguinte,
percebe-se que a língua não é neutra e o sexismo nas línguas refletem nas
práticas reais da sociedade (EHRLICH e KING, 1994).
Pode-se constatar que tanto na língua inglesa, quanto na língua
portuguesa, a palavra: homen, man8, mankind9 podem-se utilizadas no sentido
de ser vivo, humanidade. Isto posto, Butler (2018), advoga que o gênero
universal é o masculino e isso enaltece aos homens. Por consequência, não
existe dois gêneros, existe somente o feminino, visto que o masculino assume
um gênero universal, todavia, deve-se deixar claro que a linguagem em si não
é sexista e misógina, somente os usos que as pessoas fazem dessa língua a torna
sexista (WITTIG, 1983 apud BUTLER, 2018).
Portanto, os casos citados tratam de alguns exemplos linguísticos e
concluímos que “em uma sociedade patriarcal a língua assume a aparência e
conteúdo patriarcal” (ARAUJO, 2007, p.63).

Gênero e trabalho

Compreendemos que as questões de gênero guiam ações, moldam


corpos e consequentemente, interferem nas relações sociais e nos trabalhos. No
que se refere ao campo salarial, as mulheres ganham em média 18% a menos
que homens e esse índice pode chegar até 46% a depender do país (CONNELL
e PEARSE, 2015). No Brasil, as mulheres ganham por volta de 30% a menos
que os homens, mas ao interseccionar as questões de gênero e raça, a
desigualdade salarial aumenta, assim, os homens brancos ganham 30% a mais
que mulheres brancas, as mulheres brancas ganham mais que homens negros,

8 Tradução: homem.
9 Tradução: Humanidade.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 350


os homens negros ganham mais que mulheres negras e as mulheres negras
ganham menos que todos (RIBEIRO, 2019).
Além disso, as mulheres tendem a ocupar os empregos menos
valorizados e raramente chegam aos postos e cargos de gerência. Outrossim,
as mulheres negras são as que mais estão envolvidas em situações de trabalhos
precários e são o maior número de desempregadas, seguidas pelos homens
negros, mulheres brancas e por fim homens brancos (RIBEIRO, 2019).
A despeito da divisão sexual de trabalhos, as mulheres tendem a ocupar
funções de atendimento, limpeza, trabalhos relacionados a cuidados,
enfermagem e educação básica; já os homens ocupam postos como gestão,
contabilidade, direito, profissões técnicas, engenharia e computação
(CONNELL e PEARSE, 2015). Logo, pode-se afirmar que essas divisões não
são naturais, são construídas durante a história por meio de uma sociedade
patriarcal que põe o homem em lugar de privilégio e a mulher em um lugar de
opressão.

O contexto da pesquisa

A presente pesquisa ocorrerá em aulas de língua inglesa no Instituto


Federal de Alagoas (IFAL) – campus Maceió. A escola oferta cursos de
extensão, técnicos de ensino médio integrado, subsequentes, assim como
cursos de licenciatura e técnicos em graduação. No campus Maceió, os cursos
do ensino médio são: edificações, eletrônica, eletrotécnica, estradas, mecânica,
química e informática. Escolhemos realizar a pesquisa com alunas e alunos
dos segundos anos devido as falas sexistas de alunos homens nos cursos de
mecânica e informática.
Devido ao fato de certos postos de trabalhos serem compreendidos
como profissões para homens, o número de alunos matriculados em certos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 351


cursos tende a ser maior que o número de alunas. Além disso, as meninas
matriculadas nesses cursos são vítimas ou presenciam sexismo por terem
escolhido o curso (LIMA, 2015).
Tavares da Rocha e Bezerra Santos (2018), ao analisarem o número de
discentes matriculados nos cursos de informática, mecânica e eletrotécnica,
perceberam que há o predomínio de alunos homens matriculados nesses
cursos, na amostra de 122 discentes, 85 eram homens e 37 mulheres. Assim,
acreditamos que o sexismo e os padrões opressores de gênero influenciam nas
escolhas dos cursos.
Diante desse contexto, buscaremos problematizar as questões de gênero
em aulas de inglês a fim de contribuir para uma atmosfera mais justa e
igualitária, pois o papel da/do linguista aplicado deve ser contribuir para a
melhoria de vida das/dos participantes da pesquisa.
Acreditamos que o “professor deve dar oportunidades aos alunos de
construir e negociar significados de forma coletiva, de rever suas crenças e de
questionar as implicações e suas visões de mundo” (JORDÃO e FOGAÇA,
2007, p.91); portanto, cabe a/o docente “estimular a visão crítica dos alunos,
de implantar uma postura crítica, de constantes questionamentos”
(RAJAGOPALAN, 2016, p.111).

Considerações finais

Como dito anteriormente, a LA lida com questões sociais, tais como: sexismo,
racismo e homofobia (MOITA LOPES, 2013). Devido ao papel educativo da
escola, faz-se necessário problematizar discursos e práticas preconceituosas.
Nesse sentido, os debates sobre gênero são de grande valia e contribuem para
um ambiente escolar mais justo e igualitário.
No contexto do Instituto Federal de Alagoas, percebemos que há um

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 352


grande predomínio de alunos homens matriculados nos cursos técnicos,
acreditamos que isso deve-se ao fato dos padrões de gênero influenciarem nas
escolhas e nos postos de trabalhos (CONNELL e PEARSE, 2015). Ademais,
meninas que estudam em cursos como mecânica e informática são vítimas de
preconceito e machismo devido ao terem escolhido um curso que
supostamente seria para homens. Em nossa opinião, faz-se necessário
questionar os discursos hegemônicos para que não se perpetue machismo nas
aulas e nos ambientes sociais.
Logo, cabe as/os docentes estarem atentos em sala de aula em posturas
sexistas e discriminatórias de suas/seus discentes. Vale salientar que por
vivermos em uma sociedade patriarcal, muitas mulheres podem ser tão sexistas
como homens; e a única forma de conseguirmos o fim do machismo é por
meio da consciência e do envolvimento de todos, mulheres e homens
(HOOKS, 2018).
Por fim, salientamos que o presente trabalho encontra-se em fase inicial,
acontecerá no primeiro semestre de 2020 e será um trabalho de mestrado.

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CAPÍTULO 26

Representações dos imigrantes na


imprensa chilena: análise crítica do
discurso do jornal La Tercera1
José Genival Bezerra Ferreira2

Introdução

Neste trabalho, apresentado no I Encontro Nacional de Linguística


Aplicada – Estudos Discursivos das Práticas de Linguagem, no Programa de
Pós-Graduação em Linguística e Literatura (PPGLL/UFAL), questionamos,
por meio da análise de notícias publicadas no jornal chileno La Tercera, como o
periódico construiu a representação social dos imigrantes entre nos anos de
2017 e 2018, período em que o Chile recebeu maior número de imigrantes em
sua história. Para tanto, analisamos as estratégias ideológicas que foram
mobilizadas nos discursos jornalísticos para constituir a representação dos
imigrantes venezuelanos e haitianos principalmente.
O corpus é composto por 39 notícias coletadas na versão online do jornal
em questão. A análise é alicerçada nos pressupostos principais da Análise de
Discurso Crítica (ACD), por Norman Fairclough (2001) e por van Dijk (2008);

1 Órgão Financiador: Dirección de Investigación Científica y Tecnológica (DICYT) de la Vicerrectoría de


Investigación de la Universidad de Santiago de Chile
2 Doutor em Linguística, Universidad de Santiago de Chile. [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 357


em conexão com a Representação de Atores Sociais, de van Leeuwen (2008).
Fundamenta-se ainda na perspectiva da ideologia e seus modos de operação
conforme Thompson (2009). As categorias analíticas são adotadas de van
Leeuwen (1997) e de Thompson (2009).
Com este estudo, pretendemos contribuir para a compreensão da
responsabilidade da tarefa jornalística na construção discursiva da realidade,
além de propiciar dados para pesquisas em torno do estudo da imigração no
Chile.
Iniciaremos discutindo sobre a relação entre imigrantes, discurso
jornalístico e metodologia; posteriormente expomos alguns dados relevantes
sobre os imigrantes no Chile, atenção dada aos haitianos e aos venezuelanos;
depois, adentramos na discussão teórica que subsidia nosso trabalho e por
último apresentamos parte dos dados de nossa pesquisa, seguida de breve
análise e procederemos à finalização com nossas conclusões.

Discurso jornalístico, imigrantes e metodologia

A tentativa de explorar as formas pelas quais a “realidade” dos imigrantes


é construída dentro da linguagem, do discurso e das representações mediáticas,
num processo de produção e de difusão da ideologia, constitui uma tentativa de
realçar a natureza discursiva e linguística do poder midiático Fairclough (1997),
principalmente, nas suas formas de representar os acontecimentos e os atores
sociais. O papel ideológico da mídia no processo de reprodução social das
nossas sociedades reside sobretudo no modo como continuamente trabalha os
processos materiais produzidos na vida social, integrando-os em sistemas
ideológicos consistentes e, na medida em que as ideologias estão ligadas e
nascem das práticas sociais e materiais e lhes dão expressão e articulação, a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 358


mídia tem, inevitavelmente, um efeito político na reprodução social (WODAK,
2004).
Ao abordamos a análise do discurso – ao contrário da análise quantitativa
do conteúdo das notícias – implica uma visão construtivista “forte” do mundo
social, isto é, envolve um conjunto de pressupostos relativos aos efeitos
construtivos da linguagem, sugerindo análises textuais detalhadas. Nelas, os
utilizadores da linguagem são considerados membros de comunidades, grupos
ou organizações, supondo-se que falam, escrevem ou compreendem a partir de
uma posição social específica. Assim, o discurso é entendido, nessa
metodologia, como uma prática social (FAIRCLOUGH, 2001). Seguimos aqui
a lição do referido autor ao entender as notícias como enunciados linguísticos
(sendo que o uso da língua é sempre um uso social, contextualizado e dirigido)
e constituem-se como práticas discursivas de natureza sociocultural.
Selecionar fatos noticiados pela imprensa e torná-los
acontecimentos – isto é, torná-los legíveis como história – é uma das funções
primeiras (e mesmo primárias) da textualidade jornalística. Esse aspecto remete
para as principais dominantes do processo narrativo: a sua dimensão temporal
e antropomórfica; a atitude de distanciamento do seu enunciador e o seu pendor
objetivo.
Procuramos indagar, assim, a representação discursiva e a forma como
os atores sociais são designados, no caso dos imigrantes, incluídos ou excluídos
nos discursos, revelando os interesses e objetivos de quem os representa (VAN
LEEUWEN, 2008, p. 38). Tal questão permite verificar o tipo de papéis
atribuídos a esses grupos sociais: quem age, como age, em benefício de quem;
serão essas ações transitivas ou intransitivas; serão veiculadas por formas
verbais semanticamente disfóricas ou eufóricas? Isto é, para Theo van Leeuwen
(2008), um elemento crucial: nem sempre a “ação sociológica é realizada pela
ação linguística” (VAN LEEUWEN, 1997, pp. 169-222). Ao analisar como os

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 359


atores sociais ocupam posições tópicas e que tipo de atores intervém como
agentes ou pacientes nos processos, podemos dar conta de como as notícias são
discursos que constroem identidades, podendo induzir o leitor a percepcionar
o mundo social de determinada forma, muitas vezes, com base em modelos
partilhados (HALL, 2001).
Como já mencionado, as notícias analisadas foram publicadas em sua
versão online pelo jornal La Tercera, totalizando 39 textos nos anos de 2017 e
2018. Coletamos notícias publicadas nesse período de tempo a fim de analisar
a forma como os atores sociais envolvidos no processo de realização desse
evento foram representados. Tal análise permitiu observar o modo como o
jornal construiu a representação dos imigrantes haitianos e venezuelanos.
Descrevemos as escolhas gramaticais e lexicais que esse jornal fez para
representar os atores incluídos e excluídos, com o objetivo de verificar os efeitos
de sentido ideológicos.

Imigração no Chile

O mundo hoje se encontra diante de uma realidade brutal: milhares de


pessoas são diariamente forçadas a deixar suas casas, suas vidas, sua terra, para
fugir de perseguições e rumar para uma vida melhor, longe da violência e da
pobreza. O Chile entrou como receptor dessas pessoas de diversos países nos
últimos anos, houve um movimento crescente de grupos estrangeiros no país,
advindos tanto de países desenvolvidos quanto de países subdesenvolvidos.
Segundo dados da Cepal e da OIT, entre 2010 e 2015, a imigração cresceu na
média de 4,9% por ano, acima do México e Brasil. Esses imigrantes têm mais
escolaridade que os chilenos, ou seja, 79% têm 10 ou mais anos de estudo. A
tendência é que as imigrações atuais no Chile continuem aumentando,
sobretudo de populações advindas de países subdesenvolvidos ou com uma
precária situação econômica, além de povos de regiões marcadas por grandes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 360


conflitos, com destaque para os haitianos e os venezuelanos. No caso dos
haitianos é consequência da instabilidade política e econômica no país, além
disso as catástrofes naturais como a que ocorreu em 2010, deixando mais de
300.000 mortes (GUTIÉRREZ, 2006). Já no caso da imigração venezuelana
para o Chile resulta do cenário de crise em que vivem os venezuelanos, o que
envolvem questões políticas, econômicas e sociais (VARGAS, 2015).
Segundo Maldonato (2018), em 2016 foi o ano que aumentou
significativamente o número de imigrantes no país, em especial, de haitianos.
Durante esse período, de acordo com dados do Departamento de Extranjería y
Migración (DEM), entregou-se mais de 3 mil permanências definitivas e mais de
20 mil permissões de residência definitiva. Caso semelhante se aplica aos
venezuelanos.

Fundamentação Teórica

Para a fundamentação teórica norteadora do trabalho, lançamos mão de


diversos teóricos de reconhecida credibilidade na área da Análise Crítica do
Discurso (ACD), considerando que se trata de uma vertente do pensamento
relativamente nova na história, mas não por isso menos importante do que as
demais correntes que buscam a compreensão do comportamento humano.
A abordagem crítica da linguagem se faz indispensável, em uma época
em que se torna cada vez mais visível o fenômeno social em que o homem se
volta para si mesmo e toma ciência de si e de suas práticas, fato que ocorre
através do discurso. Isso demonstra que essa consciência crítica das práticas
linguísticas cotidianas responde as mudanças fundamentais nas funções que
cumpre a linguagem na vida social (FAIRCLOUGH, 2001, p. 369).
Para a ACD o uso da linguagem se molda no âmbito do social e não no
individual. Por isso, Fairclough (1997) sugere que se use a palavra discurso

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 361


quando se mencionar a utilização da linguagem enquanto forma de prática
social. Nesse caso, o discurso é reconhecido como forma e ação que se
relacionam dialeticamente com a estrutura social vigente. O meio social constrói
o discurso e é por ele construído simultaneamente. Existe, assim, uma relação
de reciprocidade entre as situações de caráter social e o conjunto de discursos
criados e proferidos, visando invariavelmente à conquista do poder.
Apesar da existência de diferentes vertentes na abordagem de análise
crítica da linguagem, Fairclough (1997 e 2001) apresenta uma abordagem da
linguagem como expressão de prática social vinculada às concepções de poder
e ideologia, enfoque bastante próximo do discursivo-interacionista de Bakhtin
(1998), o qual contemplava a linguagem como uma atividade/uma prática social
incorporada numa conjuntura comunicativa concreta.
Fairclough (1997) elabora uma proposta que busca abordar as questões
de discurso e texto, a partir de uma visão teórico-metodológica tridimensional,
de acordo com a qual os procedimentos de análise se pautariam por matrizes
que se complementariam.
Por sua vez, van Dijk (2008), aborda uma diversidade de conceitos sobre
poder no âmbito das ciências socais e da filosofia, em que assinala o poder em
termos de controle social, quando um grupo da população exerce domínio
sobre outros em forma de poder político e econômico. O controle ocorre numa
forma de dominação e exploração sobre os outros, sendo que esse controle é
sempre exercido em benefício dos detentores do poder, tendo como
consequência situações de abuso de poder. O que este autor demonstra com
suas reflexões é que o controle do discurso é uma arma importante para as
classes dominantes se manterem no poder, lançando mão do controle rigoroso
de acesso ao discurso, elaborando e peneirando cuidadosamente o conteúdo de
tudo que é divulgado em meios de comunicação de massa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 362


Van Dijk (2008) ainda chama a atenção para o aspecto interacional do
poder, já que, para que ele exista, deve ser legitimado de acordo com as relações
de poder. Em sua opinião, cabe aos estudiosos investigar como esse poder é
exercido, manifestado, descrito, disfarçado ou legitimado por textos e
declarações orais dentro do contexto social. Ressaltando que tem o controle
ideológico da sociedade quem for capaz de controlar o discurso; trata-se de
quem pode escrever o quê, para quem, em que circunstâncias e o que se espera
que o receptor compreenda.
Um dos teóricos que também subsidiam as discussões deste trabalho é
Teo Van Leeuwen (1997), para quem o discurso se apresenta como forma de
ação, embora também seja uma das maneiras de representação das práticas
sociais, defendendo que a Análise Crítica do Discurso deve focar suas análises
em ambos.
Para o autor, as representações ocorrem nas relações sociais e
interpessoais e na relação com o mundo que nos rodeia. Os textos, dessa forma,
são produzidos dentro de determinado contexto cultural e mudam de acordo
com o objetivo dos sujeitos.
As escolhas linguísticas produzem representações sociais. Van Leeuwen
(2008) usa o termo “atores sociais” para nomear os indivíduos dentro de um
texto, ou seja, o escritor/autor. Assim, van Leeuwen (2008) analisa as várias
maneiras como esses atores podem ser representados dentro de determinado
texto que circula socialmente.
No que concerne ao interesse desta pesquisa, o autor nos apresenta uma
gramática que tem como ponto de partida categorias sociológicas em vez de
categorias gramaticais, isso porque busca identificar de que modo a linguagem
é usada para representações várias. A representação é justamente o foco
primordial na tese de van Leewen (2008), embora o estudo da linguagem no
processo de interação social seja também muito abrangente, uma vez que não só

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 363


envolve o texto tradicionalmente concebido, mas, de acordo com o teórico, há
outras simioses de cunho muldimodal, fornecendo as condições teóricas e
práticas para lidar adequadamente com os textos multimodais da atualidade.
Segundo van Leeuwen (2008), em sua teoria da representação dos atores
sociais, existem categorias às quais estão ligadas e por meio delas pode-se
identificar de que forma os atores sociais são representados, as suas
características e ainda o posicionamento de cada um deles no discurso. A
Inclusão ou Exclusão dos atores sociais acontece para obedecer a interesses,
propósitos e expectativas do grupo social a quem foi construído o texto, o
público-alvo é quem determina direta ou indiretamente quais atores sociais
ficam ou saem, onde, como e porque devem permanecer.

Análise

Em questões quantitativas, um primeiro dado notável da pesquisa é a


pequena quantidade de textos jornalísticos publicados acerca dos homens e
mulheres imigrante. Foram 39 textos ao longo de dois no segundo jornal
chileno de maior circulação e mais acessado em todo o país. Quando o jornal
La Tercera fala das mulheres e dos homens imigrantes haitianos e venezuelanos,
as principais temáticas que encontramos associadas a eles são as seguintes:

Tabela 1: Temáticas associadas aos homens e mulheres imigrantes haitianos


Temas ligados aos imigrantes haitianos Recorrências
Discriminação 33%
Idioma 17%
Trabalho 14%
Clima 14%
Saúde 13%
Integração cultural 9%
Fonte: Elaborada pelo autor (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 364


Como observamos na Tabela 1, o tema mais recorrente é a
“discriminação”, ocupando o primeiro lugar com 33% de referências pelo
jornal. Essa questão encontramos respaldo no estudo Haitianos en Chile
Integración Laboral, Social y Cultural (2019)3, da Universidade de Talca, que revela
que os haitianos são discriminados em órgãos públicos, pelos vizinhos, nos
centros de saúde, para arrendar/comprar uma casa, no transporte, nas lojas, nos
bancos e também quando vão solicitar trabalho. A segunda questão mais
recorrente diz respeito ao “idioma” com 17%. Para o jornal, os haitianos não
se adaptam ao Chile principalmente por causa do idioma (falam o crioulo
haitiano), sempre estão em grupo com outros haitianos e dificilmente se
misturam com os chilenos e não aprendem espanhol. Quanto ao “trabalho” e
ao “clima”, respectivamente, 14% ocuparam as páginas do jornal. No que diz
respeito ao trabalhador haitiano no Chile, o periódico põe em questão: os que
têm contrato de trabalho e os que não têm. Para os poucos que falam espanhol,
conseguem um contrato, mesmo que seja trabalho manual, e os que não têm
vão para o mercado informal, muitos vão trabalhar como vendedores
ambulantes ou na agricultura. Segundo La Tercera4, de 8 de novembro de 2018,
para 86% dos haitianos é mais difícil encontrar trabalho do que imigrantes de
outras nacionalidades. No que concerne ao “clima”, conforme o jornal, as
pessoas do Haiti no Chile, sofrem com as baixas temperaturas que podem
chegar, por exemplo, a -3 °C, e são a principal causa de doenças respiratórias
dos haitianos (há relatos de mortes), ao contrário do Haiti que tem uma
temperatura mínima de 20 °C. O jornal cita como consequência às condições
precárias de suas casas, sem calefatores, bem como alguns não tem roupas
adequadas. No que se refere à “saúde”, com 13%, o jornal dá voz a

3 Disponível em: <http://www.cenem.utalca.cl/docs/pdf/Integracion%20social-cultural-


laboral_haitianos_ppt_prensa.pdf> Acesso em: 13 de novembro de 2019.
4 Disponível em: <

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 365


vulnerabilidade dessa comunidade, o fato de ser regular ou irregular no Chile,
tem um impacto direto na saúde deles. O acesso ao sistema de saúde oferecido
aos imigrantes depende, muitas vezes, de se ter um trabalho regular (assim
contribui para o sistema de saúde pública), ter cédula de identidade e o tipo de
visto. Por último, a “integração cultural”, com 9%, dos haitianos no Chile, para
o jornal essa questão perpassa por vários fatores, menciona: a língua, o racismo
(a primeira comunidade afrodescendente chegar ao Chile e mais pobre),
imigrantes sem direito e ausência de políticas migratórias. Essas são as
principais questões que levam o imigrante haitiano a não se integrar às
comunidades chilenas.

Tabela 2: Temáticas associadas aos homens e mulheres imigrantes venezuelanos


Temas ligados aos imigrantes venezuelanos Recorrências
Luta por trabalho 38%
Burocracia dos órgãos públicos 28%
Discriminação 18%
Problemas sociais 12%
Prostituição 4%
Fonte: Elaborada pelo autor (2019).

Como se nota na Tabela 2, o jornal La Tercera faz referências aos


venezuelanos, com 38%, por questões ligadas ao trabalho. A inserção dos
nacionais da Venezuela no mercado de “trabalho” chileno não é fácil, mesmo
que os estudos demonstrem que os venezuelanos têm mais escolaridade que os
chilenos5 e os que conseguem vão para trabalhos “inferiores”, ou seja, há
engenheiros, médicos etc. que estão trabalhando como garçons, em limpeza de
casas e ruas, bem como há de assinalar a dificuldade de reconhecer os estudos
no Chile para que possam exercer suas profissões. Para La Tercera, um tema
recorrente, com 28%, para os venezuelanos é a “burocracia por parte dos

5 Disponível em: <https://www.elmostrador.cl/noticias/pais/2017/01/17/mayoria-de-los-inmigrantes-en-


chile-tiene-mas-estudios-que-los-chilenos/> Acesso em: 15 de setembro de 2019.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 366


órgãos públicos” chilenos, como por exemplo, conseguir um visto temporário
ou permanente chega a levar anos, mesmo com a desburocratização que o
governo anunciou (solicitação online recentemente)6. Segundo o jornal, os
venezuelanos também são “discriminados”, com 18%, não pela cor da pele,
como os haitianos, mas porque têm mais escolaridade que os chilenos, também
no trabalho sofrem algum tipo de discriminação (BUSTILLOS, 2018). No que
diz respeito aos “problemas sociais”, com 12%, (que englobam alguns já
citados), o jornal destaca a questão da xenofobia, a violação dos direitos
trabalhistas (se paga menos aos venezuelanos), o mau trato nos
estabelecimentos públicos quando são empregados de garçom ou vendedores
em loja. (BUSTILLOS, 2018). O jornal também menciona a questão da
“prostituição” venezuelana em Santiago principalmente. Algumas profissionais
venezuelanas, ao chegarem ao Chile, sem trabalho, se dedicam à prostituição.

A representação dos denominadores comuns associados à


construção de identidade
Neste momento, quantificamos a frequência dos vários denominadores
comuns (atores sociais). A fim de tornar mais simples o registro dessas
ocorrências e frequências, segmentamos tais atores por denominadores comuns
em grupos, de acordo com o explicitado no procedimento metodológico
adotado, que se apresenta na tabela-resumo a seguir.

Tabela 3 – Representação dos atores sociais Ativados e Apassivados em La Tercera


NÚMERO DE INCLUSÂO
ATORES SOCIAIS
ATIVAÇÃO APASSIVAÇÃO
Haitiano(s) 43 66
Venezuelano(s) 32 59

6 Disponível em: <https://www.latercera.com/nacional/noticia/extranjeria-proyecta-200-mil-solicitudes-


permanencia-definitiva/824812/> Acesso em: 15 de setembro de 2019.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 367


Discriminação 22 11
Trabalho 13 9
Saúde 20 21
Clima 24 20
TOTAL 154 186
Fonte: Elaborada pelo autor (2019).

Para van Leeuwen (2008), dentro de um texto os atores sociais são


incluídos ou excluídos com propósitos variados a depender do produtor do
texto. Nos textos analisados, conforme Tabela 3, foram detectadas 340
ocorrências de Inclusão por Ativação e Apassivação, no corpus, sendo 154 as
ocorrências de atores por Ativação e 186 por Apassivação. Ao analisar a forma
como a Ativação e a Apassivação foram distribuídas, considerando os
denominadores comuns, percebemos que os denominadores “haitiano(s)” e
“venezuelano(s)” foram os mais representados por Apassivação no corpus, com
a diferença de apenas 32 ocorrências entre eles. Isso se repete com os outros
denominadores comuns, ou seja, os atores são mais incluídos por Apassivação
do que por Ativação, ou seja, os atores assumem papeis submissos ou inferiores
nas notícias analisadas (VAN LEEUWEN, 2008).
As categorias de análise foram escolhidas de acordo com a importância
que elas representam dentro do inventário produzido por Van Leeuwen (2008),
as quais, mesmo sendo as formas mais genéricas, são capazes de nos fornecer
elementos para entendermos a construção da identidade dos haitianos e
venezuelanos por intermédio das veiculações na imprensa online chilena e quais
suas consequências sociais, políticas e culturais para esses atores.
Assim, a análise das notícias, no nosso corpus, nos revelou sentidos que
vai ao encontro ao que Thompson (2009) indica cinco formas de
funcionamento da ideologia: a) legitimação (o jornal legitima a imigração haitiana
e venezuelana no Chile tanto positivamente como negativamente); b)
dissimulação (na representação dos imigrantes de forma negativa, como

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 368


discriminação e prostituição); c) unificação (ao representar os imigrantes como
identidade única, em alguns pontos não os diferencia); d) fragmentação (ao
representar os imigrantes responsáveis pelo desemprego, pela violência no país
etc.) e e) reificação (ao representar os imigrantes como algo não bom para o
Chile). No jornal em questão, notamos a tentativa de naturalizar essas e outras
representações, apresentando a dominação e a subordinação à classe
hegemônica, perpetuando alguns estereótipos na sociedade. Tais modos de
operação da ideologia, com suas estratégias comuns de produção simbólica,
contribuem para que as ideologias conquistem o estado de senso comum,
podendo converter-se propícios na preservação do status quo.

Conclusões

O ponto de largada deste trabalho respaldou-se na diligência de observar


a forma como estariam representados os atores sociais (incluídos ou excluídos),
no caso os imigrantes haitianos e venezuelanos, nas notícias. Com o intuito de
responder a esse questionamento, abraçou-se a teoria da representação dos
atores sociais, de Theo Van Leeuwen (2008), para observar às Representações
dos Grupos Nominais. O tratamento dos resultados foi alcançado por meio da
análise qualitativa de alicerce quantitativo, por intermédio da delimitação do
inventário das categorias, observando as categorias mais genéricas como a
Inclusão (por Ativação e Apassivação), sendo que os resultados atingidos foram
representativos e desvelam o modo como esses atores sociais foram
representados no corpus.
Considerando os paradigmas teóricos, investigamos as escolhas
linguísticas produzidas pelo jornal La Tercera, em suas notícias e os significados
gerados por essas escolhas. Foi possível perceber que as escolhas linguísticas de
tal periódico representam os imigrantes de forma incluída por Apassivação nas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 369


notícias no que dizem respeito ao seu papel como comunidade, por meio dos
papéis lexicogramaticais de Ator, Experienciador e Portador. Por outro lado, a
representação desses atores aparece em papéis ativados, porém em segundo
plano, de forma mais positiva, ou seja, Ativados. No papel Experienciador, os
imigrantes são representados como atores que precisam apresentar-se
motivados na função de seus papéis, conforme o jornal deixa desvelar.
É possível comprovar, portanto, que os imigrantes foram intensamente
divulgados na imprensa chilena online. Dito isso, o trabalho de (de)construção
não se encerra por aqui. É preciso, no entanto, que outros caminhos sejam
abertos e outros olhares críticos sejam lançados a fim de entender os valores
que estão entranhados na língua e que se materializam nos seus diversos
suportes, nos diversos discursos, como no gênero textual notícia online sobre os
imigrantes.

Referências

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1935). São Paulo: Hucitec, 1998.
BUSTILLOS, F. (org.). La migración venezolana en Santiago de Chile: entre
la inseguridad laboral y la discriminación. Revista Internacional de Estudios
Migratorios, 2018, Vol. 8(1), pp. 81-117
DEPARTAMENTO DE EXTRANJERÍA Y MIGRACIÓN DEL
MINISTERIO DEL INTERIOR Y SEGURIDAD PÚBLICA (2017).
“Reportes Migratorios: Población Migrante en Chile”. Recuperado de:
http://www.extranjeria.gob.cl/media/2017/09/RM_PoblacionMigranteChile.
pdf
FAIRCLOUGH, N. A análise crítica do discurso e a mercantilização do discurso público:
as universidades. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2001.

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GUTIÉRREZ, J. Violencias etnorraciales en el contexto de la inmigración
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marca de la inmigración. Santiago, Chile: Editorial Universitaria, 2006.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MALDONADO, P. Crónicas de Migrantes Haitianos: Chile, ¿País De
Oportunidades? Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo)
Universidad de Chile. Instituto de la Comunicación e Imagen Escuela de
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VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, E. R.
(org.) Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e funcional.
Lisboa: Caminho, 1997. p. 169- 222.
VAN LEEUWEN, T. Representing social actors. Nova Iorque: Oxford University
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VAN DIJK, T. Discurso e poder. Tradução Judith Hoffnagel. São Paulo:
Contexto, 2008.
VARGAS, D. La inmigración reciente de la juventud venezolana en Canarias: un
reportaje audiovisual en el que se manifiestan sus protagonistas. 2015,
Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Jornalismo). Universidad de
la Laguna, Santa Cruz de Tenerife, 2015.
WODAK, R. Disorders of discourse. Nova Yorque: Longman, 2004.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 371


CAPÍTULO 27

Análise discursiva dos silenciamentos


nas propostas do governo Bolsonaro
em relação aos direitos trabalhistas
André Luis Guimarães da Rocha

Introdução

No presente trabalho, tem-se o objetivo geral de analisar duas


materialidades que estão presentes no plano de governo e nos discursos do
candidato à presidência da república do Brasil, eleito em 28 de outubro de 2018,
através dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso – AD, de linha
Pecheutiana e de perspectiva materialista-histórica.
Para atingir nosso objetivo, tomaremos como categoria da AD o
Silenciamento e faremos a análise das condições de produção amplas e restritas,
tendo em vista que a AD pecheutiana de perspectiva materialista-histórica prega
que o sentido de um enunciado não é apresentado de imediato, na estrutura da
língua, antes, sim, é produzido sob a influência de determinadas condições de
produção (CP), necessitando, consequentemente, de uma análise das
materialidades inseridas em seu contexto histórico e ideológico.
Ante o exposto, surgem os seguintes questionamentos: Quais ideologias
estão por trás de tal discurso? Quais as condições existentes que permitem a
legitimação de um discurso dessa natureza? O que leva parte da classe

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 372


trabalhadora a destinar seu voto a um candidato que promete retirada de
direitos? E o último, porém não menos importante dos questionamentos: O
que tal discurso esconde?
Com o escopo de responder a essas indagações, este estudo se dedica a,
a partir dos pressupostos teóricos e da metodologia da Análise do Discurso –
AD de perspectiva materialista-histórica, sob a categoria Silenciamento,
desvelar aquilo que fora silenciado nos enunciados postos pelo candidato,
visando a mostrar suas intenções e implicações futuras.

Algumas noções teórico-metodológicas

Uma vez que a proposta do trabalho é analisar sequências discursivas sob


a perspectiva da Análise do Discurso – AD de linha francesa e corrente teórica
de Michel Pêcheux, em sua categoria Silenciamento, entende-se ser de suma
importância posicionar o leitor acerca de noções teóricas e metodológicas. Para
tanto, pretende-se conceituar Análise do Discurso, Discurso, Condições de
Produção, Formação Ideológica e Silenciamento.
De acordo com Florêncio et al (2016, p.19), “Análise do Discurso é um
campo de estudo ou uma área do conhecimento que tem por objeto de estudo
o discurso”, porém, ainda conforme os autores, esse objeto, na linha francesa e
corrente teórica de Pêcheux, não está centrado apenas na língua, mas sim na
fala, no sujeito e nas relações sociais, diferentemente de outras correntes.
Para Orlandi (2007 apud FLORÊNCIO et al, 2016, p.23) a Análise do
Discurso “se constitui na conjuntura intelectual [...] em que a grande questão é
a relação da estrutura com a história, do indivíduo com o sujeito, da língua com
a fala.”
A partir das passagens acima, podemos depreender que a AD, na
perspectiva pecheutiana, não se limita a analisar frases, falas, textos, levando em

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 373


consideração simplesmente o que está exposto nessas passagens, limitando-se
à estrutura da língua em relação à fonologia, morfologia e sintaxe. Antes, estes
campos da Linguística servem como base para análise do processo discursivo
que, segundo Pêcheux (2012, p. 128) é o “funcionamento da base linguística em
relação a representações postas em jogo nas relações sociais”.
Assim, Pêcheux define discurso como:

uma sequência linguística de dimensão variável, geralmente superior à


frase, referida às condições que determinam a produção dessa sequência
em relação a outros discursos, sendo essas condições propriedades ligadas
ao lugar daquele que fala e àquele que o discurso visa, isto é, àquele a quem
se dirige formal ou informalmente, e ao que é visado através do discurso.
(PÊCHEUX, 2012, P. 214).

O discurso é um conjunto de dizeres que se utilizam da linguagem e que


são postos de forma objetiva por um enunciador num determinado momento,
o qual deve ser analisado e interpretado subjetivamente levando em
consideração aspectos ideológicos do sujeito que enuncia, do contexto em que
enuncia e para quem dirige o enunciado. Ou, como nos mostra Florêncio et al
(2016, p. 50), “o discurso é a objetividade feita subjetividade, através de um pôr
social feito de linguagem.”
Entendendo ter deixado claros os conceitos de Análise do Discurso e de
seu objeto de análise, Discurso, pretende-se explicar o que são as condições de
produção do discurso, visto que estas são parte importante para o entendimento
do discurso, uma vez que, segundo Florêncio et al (2016, p. 23), o discurso é a
“relação indissociável entre língua, história e ideologia”.
Na AD de linha pecheutiana entende-se que todo discurso, por ser
produzido nas relações sociais, é construído com base nas contradições e
choques de ideias e posições típicos desse convívio, principalmente nas relações
de produção, na luta de classes. Nesse sentido, Florêncio et al (2016, p. 27-28)
nos mostram que “não há, pois, discurso inocente, uma vez que ao produzi-lo,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 374


o sujeito o faz, a partir de um lugar social, de uma perspectiva ideológica e,
assim, veicula valores, crenças, visões de mundo que representa os lugares
sociais que ocupa.”
As Condições de Produção (CP) referem-se ao contexto histórico, social
e político em que o sujeito construiu seu discurso para alguém, em nome de
alguém ou algo. Nesse sentido, Pêcheux (2012, p. 214) teoriza CP como
“conjunto da descrição das propriedades relativas ao destinador, ao destinatário
e ao referente, sob condição de dar imediatamente certo número de precisões.”
Ainda nesse mesmo sentido, Florêncio et al nos dão a seguinte contribuição:

as relações sociais e a luta de classes são as condições de produção do


discurso, compreendendo sujeito e situação, em suas relações sociais,
abrangentes da cultura, economia, política, de um determinado momento
histórico e de momentos outros, resgatados pela memória sócio-histórica
e ideológica, ratificando, assim, o caráter histórico e ideológico do
discurso. (FLORÊNCIO et al, 2016, p. 69).

É nesse sentido que a AD e o Marxismo se encontram e se


complementam, pois é baseado nas concepções marxistas que o analista do
discurso vai buscar as condições de produção de seu objeto de análise, como se
pode depreender do que é exposto por Bahktin/Volochínov:

Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica – as


dos estudos sobre o conhecimento científico, a literatura, a religião, a
moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da
linguagem. Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou
social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de
consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra
realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado
e remete a algo que lhe é exterior (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1981,
p.31).

A concepção marxista mostra que a ideologia é baseada em signos, os


quais podem ser expressos em corpos físicos, instrumentos de produção,
produto de consumo e na palavra que, segundo Bahktin/Volochínov (1981, p.
36), “é o fenômeno ideológico por excelência.” Assim, a busca por desvelar as

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 375


posições ideológicas com as quais o sujeito enunciador se identifica, além da
relação com outros discursos, constitui o objetivo da AD.
Para atingir este objetivo, necessário se faz identificar qual ideologia
move o sujeito enunciador, uma vez que, segundo Florêncio et al (2016, p.54),
não podemos imaginar a existência de um discurso sem que haja um sujeito que
o produza, como também não podemos pensar na existência de sujeito que não
tenha ideologia. Essa ideologia buscada está relacionada a uma dada Formação
Ideológica, a qual pode ser definida como a posição tomada pelo sujeito
enunciador em meio às contradições existentes no conflito de classes e
expressas em práticas sociais concretas, que são particulares, porém, não
individuais, uma vez que refletem a ideologia incutida no inconsciente desse
sujeito e que contribuem (ou não) para a manutenção do status quo:

As formações ideológicas são representadas pela via de práticas sociais


concretas, no interior das classes em conflito, dando lugar a discursos que
põem à mostra as posições em que os sujeitos se colocam/são colocados.
[...] e é no discurso que as formações ideológicas se materializam
(FLORÊNCIO, 2016, p. 71-72).

Para concluir as noções teórico-metodológicas julgadas como necessárias


à compreensão da análise das sequências discursivas que serão realizadas neste
trabalho, passa-se a esclarecer a categoria da AD denominada Silenciamento, a
qual surge da tentativa de dar sentido não somente ao que é dito expressamente,
mas ao que é intencionalmente (ou não) calado. Importante considerar que toda
tentativa de significação esbarra, também, na instabilidade e incompletude da
linguagem que, por sua vez, permite extrair do que não foi dito sentidos
múltiplos existentes na formação discursiva ou, mais que isso, a verdade que
está por trás daquilo que foi dito, pois, como nos esclarece Orlandi (1995, p.
31), “o real da significação é o silêncio.”

O silêncio é assim a “respiração” (o fôlego) da significação; um lugar de


recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça
sentido. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 376


que não é “um”, para o que permite o movimento do sujeito. (ORLANDI,
1995, p.13, grifos da autora).

O silêncio, que revela sentidos nas formações discursivas, por sua vez,
não possui uma única forma. Orlandi, em seus estudos sobre as formas do
silêncio, apresenta duas formas distintas, quais sejam: o silêncio fundante e a
política do silêncio.
O silêncio fundante se caracteriza pelo que não é dito na formação
discursiva para que esta possa ter significação. Nesse sentido, Florêncio et al
(2016, p.83) salientam que “[...] o silêncio é fundamento para que o sujeito
produza sentido e o reinstaure em cada dizer.” Enquanto para Orlandi (1995,
p.72), “a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio
às palavras. Movimento permanente que caracteriza a significação e que produz
o sentido em sua pluralidade.”
Já a política do silêncio se caracteriza pela escolha do que é dito,
silenciando, assim, outros dizeres que trazem em si significados que o
enunciante não deseja que sejam revelados. Para Orlandi (1995, p. 75) “a política
do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente
outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada.”
Outra forma possível para a política do silêncio, trazida por Orlandi
(1995, p.76), é o que ela chama de silêncio local, e que se caracteriza pela
“interdição do dizer”, pela “censura”. Assim, diferentemente do silêncio
constitutivo, essa forma não permite a escolha do que será dito por parte do
enunciante, mas sim a proibição da enunciação do que este quer dizer, o
obrigando a substituir palavras em sua formação discursiva.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 377


Os silenciamentos de JAIR BOLSONARO: a análise
discursiva

Nesta análise, nos debruçaremos sobre as seguintes sequências


discursivas:
SD1: “Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela,
voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no
mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício
baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o
ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela
(onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os
direitos constitucionais)”.

SD2: “Aos poucos, a população vai entendendo que é melhor menos


direitos e [mais] emprego do que todos os direitos e desemprego”.

A primeira SD foi extraída do plano de governo do então candidato à


presidência da república, Jair Messias Bolsonaro, denominado “Caminho da
Prosperidade”, enquanto a segunda SD fora retirada de uma entrevista dada
pelo candidato aos meios midiáticos e pode ser encontrada na página Web da
Revista Veja, publicada na data de 21 de maio de 2018.
Realizaremos a análise dessas duas sequências discursivas levando em
consideração que fazem parte de um mesmo contexto sócio-histórico, tendo,
portanto, as mesmas condições de produção, amplas e restritas, o mesmo
sujeito enunciante e os mesmos interlocutores. Contudo, iniciaremos a análise
pela elucidação de suas formações ideológicas (FI), posteriormente suas
condições de produção (CP), tanto amplas como restritas e, em seguida,
partiremos para o desvelamento dos silenciamentos.
As duas sequências discursivas estão enunciadas sob a Formação
Ideológica Neoliberal, o que significa dizer que foram construídas sob a
perspectiva de alguém que está posicionado ideologicamente, no contexto da
luta de classes, do lado do detentor do capital, seja por pertencer a esta classe
ou por reproduzir e defender os anseios dela.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 378


A ideologia Neoliberal surge a partir de uma severa crise do capital
ocorrida no início da década de 70 – provocada, principalmente, pela profunda
estagnação econômica das sociedades capitalistas daquele período, da elevação
dos índices de inflação e da primeira grande crise do petróleo – como uma
“espécie de releitura e resgate do liberalismo econômico clássico, pregando uma
concepção de Estado mínimo, um retorno à versão de Estado liberal
abstencionista.” (FIREMAN, 2017).
Para que fique claro o que é defendido hodiernamente pela ideologia
neoliberal, recorremos ao que nos explica Véras Neto (2007, p. 288), ao
expressar o pensamento de Osvaldo Coggiola:

o neoliberalismo corresponde a um conjunto de medidas políticas e


econômicas, coincidentes com um ciclo de eventos propiciadores de uma
conjuntura histórica ocasionadora da disseminação em escala mundial, de
políticas tendentes à privatização econômica e à destruição das
conquistas sociais;[...] (grifo nosso).

A forma típica de ação dessa ideologia se dá, segundo Fireman (2017),


através do “desmonte e desaparelhamento do Estado a partir de privatizações,
processo de desregulamentação, redução drástica de direitos sociais, ausência
ou diminuição de políticas públicas compensatórias e de inclusão social,
intervenção mínima do Estado na economia”.
Assim, podemos verificar na SD1, na passagem “[...] todo jovem que
ingresse no mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo
empregatício baseado na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o
ordenamento jurídico atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela
(onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, mantendo todos os
direitos constitucionais).”, especificamente na parte destacada, um discurso
em defesa dos ideais capitalistas neoliberais promovendo, com a proposta, uma
precarização do emprego através da destruição de conquistas sociais, mais
especificamente leis trabalhistas, uma vez que o acordo dar-se-ia por contrato

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 379


individual que permitiria suplantar direitos protegidos pela Consolidação das
Leis do Trabalho (CLT).
Nesse mesmo sentido, a SD2 evidencia essa FI Neoliberal quando coloca
a classe trabalhadora entre a possibilidade de desemprego ou emprego mais
flexível, como se observa na parte em destaque: “aos poucos, a população vai
entendendo que é melhor menos direitos e [mais] emprego do que todos
os direitos e desemprego.”
Elucidada a Formação Ideológica, passa-se, agora, a abordar as condições
de produção das sequências discursivas, iniciando pelas Condições Amplas e,
posteriormente, as Restritas.
As crises são inerentes ao modo de produção capitalista e causadas pelo
próprio objetivo do sistema, que é a acumulação cada vez maior, como nos
afirmam Paulo Netto e Marcelo Braz (2012, p. 170) “[...] a crise é constitutiva
do capitalismo: não existiu, não existe e não existirá capitalismo sem crise.” e,
também, por Lessa (2014, p.16) “as crises cíclicas nada mais são do que a
manifestação de que a abundância inviabiliza o mercado”. Porém, quando
acontecem, mesmo que esperadas, causam grande estrago na economia,
levando o sistema a se reinventar, superar tais dificuldades e iniciar um novo
ciclo, como nos é revelado por Netto e Braz (idem, p. 175): As crises “[...] de
uma parte, trazem à luz as contradições do MPC; de outra, criam as condições
para uma reanimação e um novo auge [...]”
Hodiernamente, ainda vivemos os reflexos de uma grave crise do capital,
a qual provoca reações neoliberais que buscam apresentar soluções para superar
uma dificuldade, que chega a ser comparada a maior das tensões desse sistema,
ocorrida em 1929. Tal alteração teve seu estopim nos EUA, a maior potência
capitalista mundial, e se transformou numa crise sistêmica de grandes
proporções devido à mundialização econômica, como nos revelam Farhi et al.
(2009, internet):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 380


a crise financeira internacional, originada em meados de 2007 no mercado
norte-americano de hipotecas de alto risco (subprime), adquiriu
proporções tais que acabou por se transformar, após a falência do banco
de investimentos Lehman Brothers, numa crise sistêmica. O desenrolar da
crise colocou em xeque a arquitetura financeira internacional, na medida
em que explicitou as limitações dos princípios básicos do sistema de
regulação e supervisão bancária e financeira atualmente em vigor, bem
como pôs em questão a sobrevivência de um perfil específico de
instituições financeiras.

Nesse contexto, o Neoliberalismo apresenta sua ideologia como solução


para a recessão econômica com fórmulas de ajustes macro e microeconômicos
que depositam nos trabalhadores o ônus do processo de recuperação sistêmica,
mantendo o bônus nas mãos dos detentores dos meios de produção. Isso é feito
através de uma reconfiguração do próprio sistema capitalista, a qual

resulta simultaneamente em uma precarização do emprego, do salário e da


organização dos sindicatos [...]; emerge o desafio de garantir o lucro contra
a tendência ao declínio da taxa de lucros [...].
O risco e o sofrimento, dessa forma, são continuamente transferidos para
os trabalhadores, alcançando a previsibilidade e a segurança agregadoras
de mais lucro ao capital [...] (VÉRAS NETO, 2007, p. 15).

Ainda nesse contexto, Véras Neto (2007, p. 298) ressalta que a crise
“favorece o crescimento da extrema direita neofacista e neonazista;
reascendendo os ódios étnicos tribais e o separatismo” assim como “também
reaparecem os ódios raciais e xenofóbicos, expressos nos tribalismos e nas
visões fundamentalistas religiosas”.
Pode-se dizer que o cenário supradescrito, de crise do capital e suas
consequências, reflete as Condições Amplas de produção das Sequências
Discursivas tomadas como corpus no presente artigo. Contudo, para completar
a descrição das condições sócio-históricas de produção, pretende-se apresentar
as Condições Restritas de produção, o que será realizado nas linhas que seguem.
Inicialmente, é necessário frisar que os dois enunciados são veiculados
durante, e logo após, o período eleitoral que visava a eleger, entre outros, o
novo presidente da república brasileira. Este pleito foi marcado pelo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 381


agravamento de uma polarização política iniciada ainda na eleição anterior, em
2014, que, por sua vez, teve origem no agravamento da crise mundial do capital
e do discurso ultra neoliberal de uma crescente extrema direita que, somada a
uma crise política, fortaleceu a oposição e provocou uma votação cingida,
conforme evidencia Osvaldo Coggiola (2016, internet.):
o quadro de acentuação da crise econômica teve repercussões políticas.
[...] Abriu-se, nessas condições, uma nova transição política e um período
de crise. Dilma Rousseff começou seu segundo mandato depois de vencer
o segundo turno só com 51,6% dos votos. Nas eleições presidenciais
anteriores, no segundo turno, Lula havia obtido 61,3% e 60,8% (2002 e
2006) e a própria Dilma, 56% (2010). No berço histórico do PT, o ABC
paulista, Dilma foi derrotada.

Nesse cenário, os ambientes econômico e político do país foram-se


deteriorando, levando a denúncias de corrupção generalizadas, déficits fiscal e
primário, queda dos investimentos, aumento do desemprego e de tantos outros
índices econômicos, levando o governo a ceder às chantagens do capital
especulativo, porém sem obter êxito na tentativa de reverter a recessão. Isso
resultou num processo de impeachment que fora questionado pelos partidos
aliados, juristas e imprensa internacional, os quais acusaram um golpe jurídico-
parlamentar.

Após a crise econômica se abater de forma fulminante no Brasil, Dilma


sofreu um desgaste profundo. Em meio à crise e a inúmeras denúncias de
corrupção, seu governo tentou de forma desesperada realizar um ajuste
fiscal contra os interesses da grande maioria da população, primeiro
timidamente, no final de seu primeiro governo com o então ministro
Guido Mantega, e depois de forma mais agressiva com o ministro Joaquim
Levy. O desgaste acabou numa guerra aberta com o Congresso,
representado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Aos poucos,
tanto a tropa de choque de Eduardo Cunha, quanto os deputados da base
do governo (os que não faziam parte do PT e do PC do B) e os da oposição
fecharam questão em realizar o impeachment para colocar um governo
que os blindasse da operação Lava-Jato e realizasse um ajuste fiscal que
fosse realizado sem meias medidas, um governo que defendesse os
interesses da burguesia, do grande capital, e salvasse o regime político do
total esgotamento, evitando que fossem consumidos em escândalos de
corrupção e por delações premiadas, com um amplo apoio da grande
imprensa e da mídia em suas diversas tendências, da classe média
reacionária (os coxinhas) e da quase totalidade dos partidos políticos
burgueses (COGGIOLA, 2016, internet).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 382


A derrubada da presidenta eleita, porém, não rendeu os efeitos
prometidos e a economia prosseguiu em situação complicada, o que rendeu um
aumento do número de desempregados, que saiu, segundo dados do IBGE, de
6,8% em 2014, para 12,7% em 2017. A grande mídia, financiada pelos
detentores do capital, buscou imputar a responsabilidade da crise à corrupção
atribuída ao PT e aos erros de Dilma, fato contestado por outras fontes
midiáticas:

Dois anos depois do golpe que afastou a ex-presidenta Dilma Rousseff, as


perdas sociais são inquestionáveis e marcam profundamente a vida de
milhões de brasileiros. Um dos aspectos mais contundentes desse
processo de retirada de direitos dos trabalhadores influencia diretamente
as estatísticas de desempregados no país. [...] Para Cristina Froes de Borja
Reis, professora adjunta de Economia e de Relações Internacionais da
Universidade Federal do ABC (UFABC), o golpe tem profunda relação
com a crise econômica que o Brasil vem amargando, porque se reveste de
uma clara ideologia política, voltada para os interesses das grandes
corporações financeiras e industriais.[...] Já na avaliação de Fernanda
Graziella Cardoso, também professora de Economia e de Relações
Internacionais da Universidade Federal do ABC, o desemprego no Brasil
aumentou nos últimos dois anos porque a agenda que motivou o golpe de
2016 é guiada pela defesa da austeridade e pela fé na eficiência do mercado,
tal como expresso no documento “A ponte para o futuro” (VASQUES,
2018, internet).

As eleições de 2018 seguiram a mesma polarização de 2014, porém


alguns fatores trouxeram vantagem para a extrema direita conservadora: a
primeira delas foi a prisão do “maior líder carismático da história brasileira
desde Getúlio Vargas”, de acordo com Souza (2016, p.47), Lula, que levou parte
das classes mais pobres a acreditar no “discurso anticorrupção usado de modo
seletivo contra o PT, procurando atingir, sobretudo, seus principais líderes: Lula
e Dilma” (SOUZA, 2016, p.106) como também o impediu se ser candidato,
sendo que, mesmo preso, dominava as pesquisas eleitorais. A segunda, foi o
discurso de ódio à esquerda e ao PT, capitaneado pelo candidato Jair Messias

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 383


Bolsonaro e impulsionado pelo uso das redes sociais e do poder de
disseminação das famigeradas Fake News.
A estratégia de conciliação de classes implantada pelos governos petistas,
iniciando com Lula em 2002 e indo até o início do segundo mandato de Dilma
Rousseff, levou grande parte da classe trabalhadora a se voltar contra o governo
que durante alguns anos havia propiciado “crescimento econômico com a
criação de empregos, diminuição da desigualdade pessoal de renda [...], em um
contexto de baixa inflação e com retomada relativa do papel do Estado como
coordenador de planos de investimento”, como nos mostra De Brito (2019, p.
254-255).
Tal estratégia subverteu a classe trabalhadora à lógica capitalista,
acostumando-a às benesses do consumismo ao mesmo tempo em que a levava
a um arrefecimento da condição de luta e, até mesmo, a uma perda de sua
consciência de classe. Outro ponto que contribui para tal situação é o fato de
essa estratégia ser baseada na figura do líder populista, que “declinaria da
estratégia de ruptura com as estruturas econômicas – modelo próprio da classe
trabalhadora organizada – e afirmaria um programa que não se confrontasse
com o capital.” (SINGER apud FIGUEIREDO, 2019, p. 237). Isso teve como
consequência a adesão de boa parte da classe trabalhadora, na crise do capital,
a um discurso conservador, neoliberal, neofacista típico da extrema direita,
como nos mostra Iasi (2019, p.435):

A crise material da classe é, também, a crise de sua consciência de classe


agravada pelo transformismo de sua principal referência política. Dessa
forma, amplos setores das massas trabalhadoras se veem presos à ideologia
burguesa e a suas derivações, seja na vertente diretamente política
(conservadorismo, neofascismo etc.), seja nas suas derivações religiosas
(fundamentalismo, obscurantismo, conservadorismo de valores, culto à
família etc.).

Diante da situação exposta nas condições de produção amplas e restritas


descritas até aqui, abriu-se espaço para a prisão, acompanhada de enorme

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 384


campanha de difamação, do “maior líder carismático da história brasileira
desde Getúlio Vargas” (SOUZA, 2016, p.47), Luiz Inácio Lula da Silva, e, com
isso, a propagação de discurso de ódio à esquerda, em que surge como
catalisador e difusor o candidato Jair Messias Bolsonaro.
Neste momento, passa-se a olhar individualmente para cada SD que se
propõe a analisar com o intuito de buscar revelar aquilo que não foi explicitado
no momento da enunciação, pois, segundo Orlandi (1995, p.24), embora sejam
utilizadas palavras que já tenham sentidos, “estes não estão nunca
completamente já lá. Eles podem chegar de qualquer lugar e eles se movem e
se desdobram em outros sentidos.” “Isso equivale a afirmar que as palavras,
expressões, proposições etc., recebem seu sentido da formação discursiva na
qual são produzidas” (PÊCHEUX, 2009, p. 147). Assim, no escopo de iluminar
os sentidos trazidos nas SDs em análise, buscaremos revelar os silenciamentos
contidos em cada uma delas.
SD1: “Criaremos uma nova carteira de trabalho verde e amarela,
voluntária, para novos trabalhadores. Assim, todo jovem que ingresse no
mercado de trabalho poderá escolher entre um vínculo empregatício baseado
na carteira de trabalho tradicional (azul) – mantendo o ordenamento jurídico
atual –, ou uma carteira de trabalho verde e amarela (onde o contrato individual
prevalece sobre a CLT, mantendo todos os direitos constitucionais)”.
Tal qual orienta Pêcheux, buscar-se-á, primeiramente desvelar qual a
ideologia que orienta o discurso. Nesse sentido, duas passagens podem
contribuir com essa tarefa: “[...] carteira de trabalho verde e amarela, [...]” e “[...]
onde o contrato individual prevalece sobre a CLT, [...]”.
Na primeira, o fato de enfatizar que a carteira de trabalho terá as cores
verde e amarela, cores marcantes da bandeira brasileira, transparece o caráter
nacionalista do discurso, típico, segundo Véras Neto (2007, p.299), da ideologia
neoliberal, a qual faz ressurgir “em vários pontos do planeta o regresso de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 385


ideologias essencialmente ancoradas nos desígnios tribalistas oriundos da
fragmentação e dos nacionalismos xenofóbicos, [...]”.
A segunda passagem destacada, ao sobrepor o contrato individual sobre
a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), também denota dois aspectos
intrínsecos à ideologia neoliberal, ainda segundo Véras Neto (2007, p.299), que
são os “ataques aos direitos sociais”, evidenciados pelo desmerecimento da
CLT, e “reforma sindical”, escondida por trás da ideia de “contrato individual”
em detrimento dos acordos coletivos mediados pelos sindicatos de classe.
Dessarte, infere-se que a ideologia que conduz o posicionamento do
sujeito é a neoliberal. Isso nos levará a buscar os silenciamentos contidos no
discurso buscando os sentidos de uma formação discursiva Neoliberal.
Nessa orientação, buscar-se-á expor o que fora silenciado na SD1, ao
proferir as possibilidades de escolha, por parte do trabalhador, entre a carteira
tradicional, azul, e a verde amarela, bem como entre os vínculos empregatícios
com todos os atuais direitos trabalhistas e outro, no qual abdicará de parte
desses direitos; o que acontecerá aos trabalhadores atuais, uma vez que essa
nova possibilidade está sendo ofertada apenas aos novos trabalhadores; e quais
seriam os direitos suscetíveis à abdicação, já que o enunciante deixa clara a
intenção de manter “todos os direitos constitucionais”.
Ao optar pelo adjetivo “voluntária” e pelo verbo “escolher”, o sujeito
tenta transmitir a ideia de que o trabalhador é livre para seguir o caminho que
for mais conveniente a si, silenciando a realidade capitalista na qual o
trabalhador se encontra numa situação completamente desfavorável em relação
ao patronato pela necessidade ne manutenção do emprego que traz o seu
sustento, principalmente num contexto de altos índices de desemprego, que
produz o que, segundo Véras Neto (2007, p.30), Karl Marx chamava de
“exército industrial de reserva”, que seria um “mecanismo sociodemográfico
que assume uma importância fundamental com a composição de permanente

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 386


de excedentes demográfico induzindo a pauperização dos trabalhadores” a qual
tem, entre outras, a função de manter os trabalhadores com menores salários e,
assim, “impondo uma organização e um poder de barganha limitado dos
trabalhadores.”
A negociação é apontada como uma panaceia, ignorando a falta de
igualdade entre patrões e empregados, que ocorre em negociações
conduzidas em processos de crise, que contam com a nítida imposição de
condições hostis em uma conjuntura defensiva para o trabalho no que se
refere à defesa dos direitos dos próprios trabalhadores. (VÉRAS NETO,
2007, p.425).

Nesse contexto, ao propiciar as “benesses” da nova carteira de trabalho apenas para


os novos trabalhadores, para os jovens que estejam ingressando no mercado de trabalho, o
enunciante esconde a situação a que ficarão expostos os trabalhadores que estão empregados,
com registros na carteira de trabalho tradicional, azul, e, portanto, com contratos de trabalho
regidos pela CLT, assim como, e principalmente, os desempregados que já possuem outros
vínculos celetistas firmados na antiga carteira de trabalho. Para a primeira categoria citada,
restará o medo do desemprego e a sujeição às mais diversas condições precarizantes, tais
como carga horária excedente sem a contrapartida remuneratória, defasagem dos salários,
aceitação de ambientes insalubres, impossibilidade de licenças para tratamentos de saúde,
entre outras. Já os destituídos, passarão a ter que concorrer por vagas com os “beneficiados”
pela nova forma de contratação, os quais, obviamente, serão preferidos por boa parte dos
empregadores, dada a “flexibilização” trazida pelo novo método.

As supostas fórmulas criadas para geração de empregos, trabalho


intermitente e terceirização de atividade-fim gerarão, isto sim, um
deslocamento dos empregados fixos e diretos para as relações
intermediadas e temporárias, aumentando a precariedade no mercado de
trabalho como um todo, além de fragmentar e fragilizar ainda mais a classe
trabalhadora, como forma, inclusive, de aniquilar por completo qualquer
possibilidade de exercício de pressão sobre os empregadores no momento
da negociação coletiva (SOUTO MAIOR, 2017, internet).
Outro silenciamento importante encontrado na SD1 refere-se aos direitos
que podem ser suprimidos no âmbito do contrato individual propiciado pela
carteira de trabalho verde e amarela, uma vez que esta manteria todos os direitos
constitucionais. Destarte, na busca por ampliar os lucros, o capital não costuma
se contentar com limites, antes, sim, busca ultrapassá-los ou eliminá-los e, ao

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 387


transferir essa negociação do campo coletivo para a esfera individual, tal tarefa
seria facilitada, não sendo possível, assim, garantir quais seriam os direitos
suprimidos nem, tampouco, a manutenção daqueles previstos na constituição.

Isso, no entanto, afronta, diretamente, o projeto de Estado Social, no qual


a vontade dos sujeitos não deve prevalecer sobre o pacto de solidariedade
que se estabelece por meio de um patamar civilizatório mínimo. [...]
O problema é que se tenta afastar por completo a participação do Estado
do controle do respeito aos preceitos constitucionais por meio de
fórmulas processuais, que incluem até mesmo a interferência na
independência do juiz, dizendo-lhe como deve julgar, se isto
eventualmente vier a ocorrer.
Além disso, por mais que o projeto tente assegurar esse efeito, de que
nenhum direito será perdido, o concreto é que ao falar que direitos
constitucionais não podem ser simplesmente reduzidos, acaba, pela
própria expressão utilizada, dando margem à compreensão, em
interpretação a contrario sensu, de que mesmos esses direitos podem ser
compensados com outras vantagens, mas não estipula o modo dessa
“equivalência” e ainda diz que a ausência das contrapartidas não implica
em anulação do negociado (SOUTO MAIOR, 2017, internet).

Esperando ter lançado luz sobre os silenciamentos contidos na SD1,


passa-se a iluminar, também, aquilo que fora silenciado na SD2, a qual se repete
em seguida como forma de facilitar tal trabalho. “Aos poucos, a população vai
entendendo que é melhor menos direitos e [mais] emprego do que todos os
direitos e desemprego.”
A afirmação feita por Jair Bolsonaro é embasada nos ideais neoliberais,
defendidos, também, por Paulo Guedes, que, viria a ser seu “superministro” da
economia, e se apoia no argumento de que os altos custos com os encargos
sociais seriam a motivação para o desemprego. Em outras palavras, a afirmação
transfere a culpa do desemprego da crise do capital para os próprios
empregados, como alerta Véras Neto (2007, p.401), “[...] assim, esse discurso
pró-flexibilização transforma o efeito em causa, desonerando a
responsabilidade do capital e colocando os custos dos processos das mudanças
e da crise sobre os próprios trabalhadores [...]”. Porém, Souto Maior (2017,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 388


internet), ajuda a revelar o silenciado quando explicita o real objetivo de tais
movimentos e suas consequências:

ora, a redução de custos por meio da retração de direitos é um abalo no


próprio sentido de cidadania, transformando direitos em números e
visualizando pessoas como mercadorias. Além disso, economicamente
falando, isso só favorece ao processo de acumulação da riqueza produzida
pelo trabalho, o que, interessando a poucas empresas, diminui o consumo
e, por consequência, prejudica também os próprios empregadores,
sobretudo as micro e pequenas empresas.

O que na realidade podemos evidenciar é a estratégia do capital de usar


garantias políticas através do Estado para ampliar e legitimar a exploração do
trabalhador através da extração cada vez da maior da mais valia, como nos
mostra Mészáros (2011, p.576):

A dominação do capital sobre o trabalho é de caráter fundamentalmente


econômico, não político. Tudo o que a política pode é fornecer as
‘garantias políticas’ para a continuação da dominação já materialmente
estabelecida e enraizada estruturalmente. Consequentemente, a
dominação do capital não pode ser quebrada no nível da política, mas
apenas as garantias de sua organização formal.

Em vista do que fora explicitado, inferimos que os enunciados são


elaborados por um sujeito influenciado por uma ideologia neoliberal, sob
condições amplas e restritas que permitiram o ressurgimento de um discurso de
extrema direita voltado a defender o lucro dos grandes grupos capitalistas e do
mercado financeiro especulativo, postos em risco pela grave crise do capital, em
detrimento das conquistas trabalhistas e sociais, obtidas após vários anos de
luta, dos trabalhadores.

Considerações Finais

Ao realizar a análise das duas materialidades propostas neste trabalho sob


a perspectiva da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, materialista
histórica, a qual tem como precursor Michel Pêcheux, pode-se responder aos

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 389


questionamentos propostos na introdução do presente trabalho, primeiramente
ao se demonstrar que a ideologia que move os discursos em análise é a
neoliberal; depois, ao evidenciar que a crise do capital aliada a um fracasso da
política de conciliação de classes – a qual provocou um conformismo da classe
trabalhadora com a ideologia burguesa baseado no acesso ao consumo, mas que
não atacou a desigualdade estrutural, e levou ao aprisionamento da consciência
de classe –, juntamente com uma polarização política e um processo de
impeachment permitiram a legitimação dos discursos analisados; em seguida,
que parte da classe trabalhadora subvertida à lógica capitalista, acostumada às
benesses do consumismo, não aceitou perder seu poder de compra e sua
perspectiva de mobilidade social e aderiu ao discurso de ódio contra o partido
que outrora havia apoiado e, principalmente, contra o líder populista que
representava, ao mesmo tempo, essas conquistas e a causa de suas perdas,
levando a destinar seu voto a um candidato que prometia tirar seus direitos em
troca de emprego e renda; por último, podemos demonstrar que os discursos
escondem o uso do Estado como legitimador e garantidor do poder econômico
do capital sobre o trabalhador, ampliando a exploração das elites sobre o
trabalhador e garantindo os lucros dos grandes capitalistas em detrimento dos
pequenos capitalistas e, principalmente, em detrimento do trabalhador, através
da extração cada vez maior da mais valia.
Em suma, pode-se concluir que o discurso do candidato Bolsonaro
evidenciou estar defendendo os interesses do grande capital financeiro, em
detrimento da classe trabalhadora, demonstrando estar falando para os
trabalhadores, em tom de recado e transmissão de medo, bem como para o
capital financeiro internacional, empresários e classe média, como forma de
angariar apoio e financiamento.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 390


Referências
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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 393


CAPÍTULO 28

Argumentação e efeito de verdade em


textos publicitários
Mirian de Melo da Silva Terto1
Maria de Fátima Silva dos Santos2

Introdução

A mensagem veiculada no campo da publicidade é produzida através da


utilização de argumentos, com o intuito de persuadir e influenciar o
comportamento do consumidor, visando influenciá-lo a adquirir o produto ou
o serviço ofertado. Para fazer com que o consumidor acredite nos benefícios
anunciados nos textos publicitários e adquira o produto ofertado, os produtores
desses textos lançam mão de diversas estratégias persuasivas, a fim de conferir
um efeito de verdade ao texto da campanha publicitária.
Nesse contexto, este artigo apresenta uma análise do efeito de verdade
em textos de campanhas publicitárias como uma estratégia persuasiva. Efeito
de verdade porque mesmo não veiculando uma verdade absoluta acerca do
produto/serviço, é possível que o texto da campanha publicitária produza a
sensação de que os benefícios e os resultados apresentados correspondam a

1Graduanda do curso de Letras da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra
Talhada (UFRPE/UAST). E-mail: [email protected].
2Doutora em Estudos da Linguagem. Professora adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco,
Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE/UAST). E-mail: [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 394


uma verdade. Trata-se de uma pesquisa, em fase inicial, inserida nos trabalhos
desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Linguagem e Educação – GEPLE,
da Universidade Federal Rural de Pernambuco, na Unidade Acadêmica de Serra
Talhada – UFRPE/ UAST.
O interesse aqui não é o de verificar se os dados apresentados nos textos
publicitários são verdadeiros ou falsos, mas sim analisar as estratégias
persuasivas utilizadas para criar esse efeito de verdade, além de buscar
compreender como essas escolhas resultam nesse efeito. Logo, o estudo parte
dos seguintes questionamentos: Quais estratégias discursivas são empregadas
para conferir aos textos publicitários um efeito de verdade? Qual a relação entre
o uso de diferentes estratégias persuasivas e a produção do efeito de verdade
em textos publicitários? A partir desses questionamentos, têm-se os seguintes
objetivos: i) analisar as estratégias discursivas empregadas para conferir aos
textos publicitários um efeito de verdade; e ii) identificar e descrever como a
mobilização de diferentes estratégias discursivas colaboram para conferir o
efeito de verdade ao texto publicitário.
Na metodologia, adota-se uma abordagem qualitativa, de base descritiva,
em que se analisa um corpus constituído por exemplares de textos de peças
publicitárias, publicadas on line em sites diversos. Para o estudo das estratégias
discursivas responsáveis pela credibilidade publicitária, buscou-se evidenciar os
elementos sobre os quais incidem efeitos de verdade, tais como a modalização
e os tipos de argumentos.
A escrita deste artigo encontra-se organizada em duas partes. A primeira
aborda a noção de gêneros, iniciando a discussão com Bakhtin (2003) e, em
seguida, a discussão é ampliada com base nos estudos de Marcuschi (2008;
2011) e Bazerman (2006). Na sequência, apresenta-se, de forma sucinta, a
distinção entre os termos propaganda e publicidade, bem como, uma breve
abordagem do discurso propagandista, conforme descrito por Charaudeau

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 395


(2010). A segunda parte apresenta a análise e a discussão das estratégias
persuasivas presentes em dois textos de campanhas publicitárias das marcas O
Boticário e Monange, respectivamente. Por fim, as considerações finais e as
referências.

A noção de gêneros textuais discursivos

Atualmente, a noção de gênero tem-se ampliado para a definição,


caracterização e especificação de toda a produção textual. Num primeiro
momento, encontramos em Bakhtin (2003) o que ele entende por gêneros do
discurso. Para esse autor, todas as esferas da atividade humana, por mais
variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Em
outras palavras, as esferas de atividade humana (do trabalho, da família, da
escola, da jurídica, dentre outras) implicam a utilização da linguagem na forma
de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos.
Desse modo, o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades
de cada uma dessas esferas. Ou seja, qualquer enunciado considerado
isoladamente é individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus
tipos relativamente estáveis, sendo isso que Bakhtin denomina gêneros do discurso.
Assim, na concepção desse autor, gêneros de discursos são tipos de enunciados
relativamente estáveis. O termo relativamente estável dá a entender que não haveria
uma normatividade nesse conceito. Com isso, é preciso levar em consideração
a historicidade dos gêneros, que estão em contínua mudança, uma vez que, para
ele,

A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a


variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa
atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se
desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 2003, p. 279).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 396


Reforçando essa noção de gênero percebida na conjunção do social com
o linguístico, nessa dinâmica da atividade humana, encontramos em Marcuschi
(2011, p. 18) a ideia de que “Essa laicização progressiva da categoria levou a que
se diluísse a noção de gênero, a ponto de indagar que categoria é essa a que
chamamos de gênero textual.”. Para esse autor, “precisamos da categoria de gênero para
trabalhar com a língua em funcionamento com critérios dinâmicos, de natureza
ao mesmo tempo social e linguístico.” (MARCUSCHI, 2011, p. 19, grifos do
autor). Esse autor defende que os gêneros não podem ser tomados como peças
que se sobrepõem às estruturas sociais, muito menos peças que refletem as
estruturas sociais. Antes, são formas de ação, artefatos culturais e também
fenômenos linguísticos. Ou seja, o gênero é uma “ação social tipificada, que se
dá na recorrência de situações que tornam o gênero reconhecível.”
(MARCUSCHI, 2011, p. 20).
Em suas reflexões sobre essa questão, Bazerman (2006) considera que,
apesar da tentativa de identificar os gêneros e de classificá-los, é difícil ou até
mesmo impossível estabelecer taxonomias e classificações duradouras. Para
esse autor, gêneros são o que as pessoas reconhecem ou identificam como
gêneros a cada momento do tempo, seja pela denominação, institucionalização
ou regularização. Isto é, os gêneros são rotinas sociais que incorporamos no
nosso dia a dia. Essa concepção é ampliada por Marcuschi (2011, p. 19), para
quem os gêneros “Devem ser vistos na relação com as práticas sociais, os
aspectos cognitivos, os interesses, as relações de poder, as tecnologias, as
atividades discursivas e no interior da cultura.”.
De acordo com Marcuschi,

cada gênero textual tem um propósito bastante claro que o determina e


lhe dá uma esfera de circulação. Aliás, esse será um aspecto bastante
interessante, pois todos os gêneros têm uma forma e uma função, bem
como um estilo e um conteúdo, mas sua determinação se dá basicamente
pela função e não pela forma. (MARCUSCHI, 2008, p.150).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 397


Nessa perspectiva, os gêneros caracterizam-se muito mais por sua função
comunicativa do que por suas peculiaridades linguísticas e estruturais.
A importância da função comunicativa para a caracterização de um
gênero pode ser exemplificada pelos gêneros que circulam no campo da
publicidade: mesmo apresentando formas variáveis, textos desses gêneros são
facilmente reconhecidos como anúncios publicitários, tendo em vista sua
função de apresentar um determinado produto ao consumidor, com o intuito
de fazer com que este passe a adquirir o produto anunciado no texto
publicitário, conforme veremos mais adiante, no item 2.

Propaganda e publicidade: termos distintos

Comumente, o termo propaganda é utilizado para fazer referência ao


gênero publicitário e, na maioria das vezes, os termos propaganda e publicidade
são vistos como sinônimos. No entanto, mesmo possuindo pontos em comum,
a propaganda e a publicidade possuem objetivos distintos.
Machado (2006, p. 80), no quadro da Análise do Discurso, propõe uma
distinção entre esses termos. De acordo com a autora, a propaganda é algo
ligado a
uma campanha que tenta influenciar comportamentos no seio de uma
coletividade ou de um grupo social; ela não visa especificamente vender
ou fazer conhecer um determinado produto de uma determinada marca,
como é o caso da publicidade. (MACHADO, 2006, p. 80)

É certo que a publicidade opera com questões ideológicas ao propagar


crenças e valores. Contudo, diferente da propaganda, o resultado que se busca
na publicidade, de modo prioritário, não é tanto a adesão às ideologias
veiculadas, e sim, ao aumento das vendas do produto anunciado, mesmo que
este último possa estar ancorado no primeiro.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 398


Por sua vez, Pinho (2002, p.16) concebe a publicidade como
uma ferramenta do composto promocional, entendido [...] como um
conjunto de técnicas de persuasão destinadas a despertar o interesse e
informar a existência e características dos produtos e serviços, de maneira
a estimular a sua compra.

O discurso propagandista

Qualquer situação de comunicação pode ser definida por suas


expectativas, suas visadas. De acordo com Charaudeau (2010), a expectativa ou
o que está em jogo para qualquer ato de linguagem pode ser descrito em termos
de visadas, que correspondem à intencionalidade do sujeito falante, que tem em
perspectiva um sujeito destinatário ideal. Estas visadas podem ser determinadas
através de um triplo critério: “1) a intenção pragmática do eu diante do tu, 2) a
posição de legitimidade do eu e 3) a posição que, ao mesmo tempo, instaura
para o tu.” (CHARAUDEAU, 2010, p. 61). Nesse sentido, o ato de linguagem
constitui uma unidade pragmática, atividade capaz de produzir efeitos e reações.
As finalidades que intervêm no discurso propagandista podem ser
descritas a partir das seguintes visadas:

A visada de prescrição: 1) o eu quer fazer fazer (ou pensar) algo a tu e se


encontra legitimado por uma posição de autoridade absoluta, ou seja,
ele dispõe de um poder de sanção; 2) o tu se encontra, então, em posição
de dever fazer. Encontramos esta visada, por exemplo, no discurso da
lei, nos regulamentos e nas situações nas quais se inscrevem as relações
hierárquicas (professor, pais, superior hierárquico etc.).

A visada de informação: 1) o eu quer fazer saber algo a tu e ele se encontra


legitimado por uma posição de saber; 2) o tu encontra-se em posição de
dever saber. É possível que se trate do acontecimento de um evento ou
de sua explicação. Encontramos esta visada, por exemplo, nos discursos
presentes nos centros de informação públicos, além de ser esta a visada
que funda o discurso midiático.

A visada de incitação: 1) o eu quer fazer fazer alguma coisa a tu, como na


visada de prescrição, mas aqui, não estando em posição de autoridade,
eu não pode senão incitar a fazer a tu; 2) ele deve, então, passar por um
fazer crer a fim de persuadir o tu de que será o beneficiário do seu
próprio ato, de modo que este aja (ou pense) na direção desejada por

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 399


eu; 3) o tu se encontra, então, em posição de dever crer no que lhe é dito.
Esta visada é típica dos discursos publicitário e político.
(CHARAUDEAU, 2010, pp. 61-62, grifos do autor).

Levando em consideração essas visadas, o discurso propagandista pode


ser definido e ou descrito, enquanto contrato de fala, como um discurso de
incitação a fazer (A visada de incitação), cujas características são as seguintes:

O eu se encontra numa posição de não autoridade e deve, a partir daí, usar


uma estratégia de fazer crer, que atribui ao tu uma posição de dever crer.
Este discurso se origina de um ato voluntário proveniente de uma
instância de produção, um eu, que constitui uma fonte individual ou
coletiva.

Ele tem como alvo uma instância coletiva, o que explica que ele se inscreva
sempre num dispositivo de difusão; daí o qualificativo de propagandista no
seu sentido etimológico de difusão e circulação do discurso no espaço
público, junto ao maior número possível de pessoas. (CHARADEAU,
2010, pp. 62-63).

Para conseguir o objetivo de fazer crer e colocar a instância de recepção


em posição de dever crer, o discurso propagandista se organiza de acordo com
um duplo esquema cognitivo: narrativo e argumentativo. Para Charaudeau (2010,
p. 63), o esquema narrativo é o mais adequado para seduzir o interlocutor. Isso
porque, conforme o autor, uma narração não impõe nada, ela apenas propõe
um imaginário de busca cujo interlocutor poderia, se assim o quisesse, ser o
herói, sob a forma de uma narrativa que diria, pelo menos de maneira implícita:
“você tem uma falta que busca preencher > você pode/deve partir em busca
do preenchimento desta falta da qual você será o beneficiário > eis o objeto de
busca que te permitirá preencher esta falta.”.
Já o esquema argumentativo procura persuadir o interlocutor, se
impondo a ele. Charaudeau (2010) explica que o esquema argumentativo impõe
um modo de raciocínio e de argumentos para manifestar possíveis objeções em
relação ao esquema narrativo precedente:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 400


1) objeção em relação ao objeto de busca (...), 2) objeção em relação ao
meio proposto para realizar a busca, ou seja, o interlocutor pode
considerar que existem outros; trata-se, então, de impor a ideia de que
somente o meio que te proponho vai te permitir realizá-la” (CHARAUDEAU,
2010, p. 63).

Assim definido, o discurso propagandista não pode ser tachado de


manipulatório, haja vista que as duas instâncias (produção e recepção)
conhecem os termos do contrato. É preciso considerar também que a questão
do iludir não deve ser levada em conta neste quadro, porque ela é variável de
acordo com o uso que a instância de produção faz das condições de produção.
O discurso propagandista é, desse modo, um tipo de discurso definido de
maneira ideal que se concretiza por diferentes gêneros que variam de acordo
com o tipo de legitimidade do qual goza o sujeito falante, a natureza do objeto
de fala (ou objeto de busca) que constitui o fazer crer e o dever crer, e o lugar
atribuído ao sujeito influenciado (cf. CHARAUDEAU, 2010).

Estratégias persuasivas em textos publicitários

De acordo com Charaudeau (2013, p. 49), “o efeito de verdade está mais


para o lado do acreditar ser verdadeiro do que para o do ser verdadeiro”. Para esse
autor, diferentemente do valor de verdade, que se baseia na evidência, o efeito
de verdade baseia-se na convicção, e participa de um movimento que se prende
a um saber de opinião, a qual só pode ser apreendida empiricamente, através
dos textos portadores de julgamento. O que está em causa aqui não é tanto a
busca de uma verdade em si, mas a busca de credibilidade.
Assim, o efeito de verdade torna-se um fator preponderante no processo
persuasivo, uma vez que, para fazer com que o consumidor compre um produto
ou adquira determinado serviço, o texto publicitário procura fazer com que ele

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 401


(o consumidor) acredite no que é informado no texto produzido. Com efeito,
cada tipo de discurso modula seus efeitos de verdade de uma maneira particular.
Geralmente, o texto publicitário apresenta a seguinte configuração:
chamada, texto, slogan (do produto e da marca), assinatura e imagem.
Observem-se a presença desses elementos na configuração do texto
apresentado na figura 1, a seguir:

Figura 1: propaganda da marca O Boticário

Fonte: http://consumoepropaganda.ig.com.br/index.php/2011/04/04/o-boticario-lanca-campanha-e-abre-
lojas-nativa-spa/

Nesse texto publicitário (Figura 1), observa-se a presença dos seguintes


elementos em sua composição: A chamada (texto curto utilizado para atrair a
atenção do leitor-alvo e despertar-lhe o interesse pela leitura do anúncio
publicitário): A vida é bonita, mas pode ser linda. O texto – escrito no centro do
anúncio colabora para desenvolver a ideia apresentada na chamada – Um dia, eu
quero chegar lá. Mas quero chegar linda!. O slogan – símbolo visual representado pela
letra B em forma de desenho característico, que identifica a marca do produto
– e a assinatura – identificação do anunciante – O Boticário, que sinaliza para o
leitor que não se trata de um produto qualquer, mas do produto de uma marca
famosa, valorizada no mundo da beleza. Por fim, a imagem duplicada de uma
mulher que atende a um certo padrão de beleza imposta pela mídia: na primeira,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 402


observa-se a imagem da mulher usando o produto anunciado (batom) e, na
segunda, a imagem do rosto da mulher posicionada de frente para o leitor, com
ênfase na boca, mostrando para o público-alvo o efeito da beleza provocado
pelo uso do produto.
Para garantir o que é prometido, os textos publicitários se valem de
alguns argumentos, tais como: argumento de autoridade (imagem de uma
pessoa famosa), argumento pelo apelo emocional, pelo desejo do destinatário,
pelos valores apresentados. É o que se observa no texto da Figura 2,
reproduzido a seguir:

Figura 2: Propaganda da marca Monange

Fonte: http://produtodapropaganda.blogspot.com/2013/04/publicidadeproganda-e-valor-
simbolico.html

O texto apresentado na Figura 2, publicidade da marca Monange, tem a


apresentadora Xuxa Meneghel, que é garota propaganda dessa marca há vários
anos. Na apresentação do produto, a imagem da apresentadora é utilizada como
um argumento de autoridade, de modo que o produto não é apresentado apenas
pelo seu valor de uso e de sua utilidade para o consumidor, mas principalmente
pelo seu valor simbólico, que é a presença da apresentadora conhecida
nacionalmente. O consumidor acredita ser aquele o produto usado por ela,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 403


despertando-lhe o desejo de adquiri-lo com a ilusão de se tornar parecido, de
ter a pele como a dela ou apenas pelo fato de ser o hidratante que a Xuxa usa. A
marca agrega o status de figura pública da apresentadora com o intuito de atingir
um número elevado de consumidores que tenham na imagem dela algum tipo
de exemplo, seja como fã, seja pela beleza dela ou apenas pelo status social que
ela representa.

Considerações finais

O discurso persuasivo surgiu na Grécia antiga pela necessidade de regular


os conflitos sociais e comerciais. Com efeito, o sujeito, enquanto ser social, tem
a necessidade de gerir as relações de força que se instauram na vida coletiva
com lances de discursos persuasivos cuja finalidade não é a verdade, mas fazê-la
crer verdadeira.
Logo, o discurso propagandista não é produzido para iludir o
consumidor, muito menos para manipulá-lo. Antes, tem a intenção de
influenciá-lo, de fazer crer e assim, persuadi-lo a adquirir o produto propagado
no texto da campanha publicitária.

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 404


http://www.patrick-charaudeau.com/O-discurso-propagandista-uma.html.
Acesso em 12 nov. de 2019.

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2013.

MACHADO, Ida Lúcia. Análise do discurso e texto paródico: um encontro


marcado. In: LARA, Glaucia Muniz Proença (org.). Lingua(gem), texto, discurso:
entre a reflexão e a prática. v. 1. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: FALE-
UFMG/Lucerna, p. 71-85, 2006.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade.


In: DIONÍSIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel; BEZERRA, Maria
Auxiliadora (Orgs.). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2011.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.


São Paulo: Parábola, 2008.

PINHO, José Bendito. Publicidade como ferramenta para promoção de


commodities agrícolas. In: Comunicação & Sociedade. São Bernardo do Campo:
Pós Com-Umesp, v. 24, n. 38, p. 1326, jun./dez. 2002.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 405


CAPÍTULO 29

Da fala para a escrita: um estudo sobre


a retextualização apresentada por
Marcuschi e uma proposta metodológica
para o ensino de Língua Portuguesa
Dayane Rocha de Oliveira1
Maria Silma Lima de Brito2
Maria Inez Matoso Silveira3

Introdução

O presente artigo tem por objetivo divulgar os estudos sobre a


retextualização proposta por Marcuschi (2010) apresentando sua importância, seu
conceito e suas contribuições para o Ensino de Língua Portuguesa. Neste
trabalho será exposto um breve percurso dos paradigmas que envolvem a fala
e a escrita para que haja uma compreensão a respeito de suas aproximações, nos
mais variados contextos, sejam os de produção textual escrita ou interacional

1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura- PPGLL da Universidade Federal de

Alagoas- UFAL. Graduação em Letras-UNEAL. Especialista em Metodologia do Ensino de Língua


Portuguesa- FSH. Estudante no grupo de pesquisa Escritura, Texto & Criação, UFAL. E-mail:
[email protected]
2 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura- PPGLL da Universidade Federal de

Alagoas- UFAL. Graduação em Letras – UNEAL. Especialista em Letras- UPE. Especialista em


Psicopedagogia Clínica e Institucional – UNINTER. E-mail: [email protected]
3 Professora e Pesquisadora da UFAL; Coordenadora do Projeto GETEL-OBEDUC-CAPES-INEP, “O

Ensino da Leitura e da Escrita em escolas públicas alagoanas”, sediada no NEPEAL, Centro de Educação,
UFAL. E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 406


discursiva. Percebendo, pois, que falar ou escrever envolvem aspectos que
subjazem ao uso de regras da língua, faz-se necessário produzir um efeito de
diferentes contextos interacionais, visto que não se trata de saber como se chega
a um texto ideal pelo emprego de formas, mas como se chega a um discurso
significativo pelo uso adequado às práticas e à situação a que se destina. Serão
abordadas, também, as nove operações presentes no método de retextualizar, a
saber, a transformação de um texto base para outro texto, sendo a passagem da
fala para a escrita a forma mais comum desse processo, o qual não implica uma
espécie de ajustar a fala para o texto escrito, posto que, para que haja essa
passagem do oral para o escrito, é preciso, antes, a ocorrência de uma atividade
cognitiva chamada compreensão, uma vez que, para se dizer, de outro modo, o
que foi dito por alguém, como relata o autor, é preciso compreender o que esse
alguém disse. A partir deste estudo, propõem-se atividades de retextualização
da fala para a escrita de um gênero para outro, colocando em ação o que foi
apresentado por Marcuschi (2010), sobre fala/escrita e gênero, bem como, de
forma prática, os construtos apresentados por Silveira (2006). Por meio desse
estudo foi possível compreender a complexidade que envolve o ato de
retextualizar, bem como sua importância e presença frequente desse
componente em nosso cotidiano, o que, até então, era imperceptível.

Fala e escrita: uma síntese sobre a retextualização


apresentada por Marcuschi

Em seu ensaio sobre a retextualização, Marcuschi analisa as operações


mais relevantes presentes neste método, a saber, a passagem do texto falado
para o escrito, afirmando que esta é a forma mais comum do processo. O
pesquisador inicia o texto falando sobre o avanço nos estudos entre língua

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 407


falada e língua escrita, das quais faz algumas considerações importantes, dentre
elas, “que a questão é complexa e variada” (MARCUSCHI, 2010, p.45).
O autor deixa claro que a escrita não é simplesmente uma representação
da fala, e afirma que as duas são diferentes, mas que as diferenças são “graduais
e contínuas” (MARCUSCHI, 2010, p.46).

A retextualização, tal como tratada nesse ensaio, não é um processo


mecânico, já que a passagem da fala para a escrita não se dá naturalmente
no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que
envolve operações complexas que interferem tanto no código como no
sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-
compreendidos da relação oralidade-escrita (MARCUSHI, 2010, p.46).

O estudioso esclarece, ainda, que o processo de retextualização não


implica uma espécie de ajustar a fala para o texto escrito, pois o texto oral está
“em ordem na sua formulação e no geral não apresenta problemas para a
compreensão [...]. Portanto, a passagem da fala para a escrita não é a passagem
dos caos para a ordem: é a passagem de uma ordem para outra ordem”
(MARCUSCHI, 2010, p.47). Para que haja essa passagem do oral para o escrito
é preciso que, antes, ocorra uma atividade cognitiva chamada compreensão,
visto que para se dizer de outro modo o que foi dito por alguém, como relata o
autor, é preciso compreender o que esse alguém disse. Abaixo, mostraremos
um dos quadros propostos por Marcuschi (2010, p.48):
Figura 1 – Possibilidades da retextualização.
Possibilidades da retextualização
1. Fala Escrita (entrevista oral entrevista impressa)
2. Fala Fala (conferência tradução simultânea)
3.Escrita Fala (Texto escrito exposição oral)
4. Escrita Escrita (Texto escrito resumo estrito)
Fonte: Marcuschi (2010, p. 48).

São diversos os casos em que o ato de retextualizar está presente em


nossas vidas e não nos damos conta de que esse processo é diariamente

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 408


reproduzido por nós dos contextos mais simples aos mais complexos, como
mostra o quadro acima, em concordância com Marcuschi (2010, p.49):

É fácil imaginar vários eventos linguísticos quase corriqueiros em que


atividades de retextualização, reformulação, reescrita e transformação de
textos são envolvidos. Por exemplo: (1) a secretária que anota informações
orais do (a) chefe e com elas redige uma carta; (2) o (a) secretário(a) de
uma reunião de condomínio (ou qualquer outra) encarregado(a) de
elaborar a ata da reunião, passando para a escrita um resumo do que foi
dito; (3) uma pessoa contando à outra o que acabou de ler no jornal ou na
revista; (4) uma pessoa contando à outra o que acabou de ouvir na TV ou
no rádio; (5) uma pessoa contando à outra o filme que viu no dia anterior
ou último capítulo da novela ou as fofocas da vizinhança; (6) alguém
escrevendo uma carta relatando o que ouviu no dia anterior; (7) o(a) aluno
que faz anotações escritas da exposição do(a) professor(a); (8) juiz ou o
delegado que dita para o escrevente a forma final do depoimento e assim
por diante (MARCUSHI, 2010, p.49).

Diante desta citação é indispensável refletirmos a importância dos


estudos sobre a retextualização para sabermos quais são os aspectos envolvidos
nesse processo, bem como saber quais são as diferenças entre estudos similares
a este, como o apresentado no tópico abaixo.

Transcrição e transcodificação

Neste tópico, o estudioso aborda as diferenças existentes entre a


retextualização e a transcrição, declarando que transcrever é “passar um texto
de sua realização sonora para a forma gráfica com base numa série de
procedimentos convencionalizados” (MARCUSCHI, 2010, p.49), ou seja,
passar um código para outro código. Não muito distante do que foi proposto
por Marcuschi (2010) sobre o estudo aqui discutido, porém cada uma trás suas
peculiaridades, visto que na transcrição não há interferências no discurso ou no
conteúdo, em oposição ao termo retextualização, que traz consigo
características de uma mudança mais específica no caso da linguagem.
Neste mesmo tópico, podemos analisar, com base na autora Rey Debove
(1996, apud MARCUSCHI, 2010) alguns critérios para distinguir o oral do

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 409


escrito no francês, em que a pesquisadora traz à tona quatro parâmetros de
análise, que são forma e substância; conteúdo e expressão:

Transcrever não é uma atividade de metalinguagem nem é uma atividade


de simples interpretação gráfica do significante sonoro. A transcrição
representa uma passagem, uma transcodificação (do sonoro para o
grafemático) que já é uma primeira transformação, mas não é ainda uma
retextualização (MARCUSHI, 2010, p. 51).

Em resumo ao que foi proposto por Rey-Debove e apresentado por


Marcuschi (2010), a respeito das contradições entre fala e escrita, temos a
seguinte afirmação:

a fala apresenta-se com todos os caracteres extralinguísticos ligados a uma


produção personalizada; a escrita, pelo contrário, é na maioria das vezes
neutralizada e perde os caracteres extralinguísticos de sua produção, sem
que seja por isso perdida a origem do texto” (MARCUSCHI, 2010, p.51).

Desse modo, parafraseando Rey-Debove, a transcrição do oral para o


escrito perderá traços de seu caráter original e pessoal e passará por uma
operação complexa de transcodificação, na qual tal passagem sofrerá todas as
transformações designadas a este processo.
Além dessa distinção, o autor diferencia a transcodificação, como já foi
abordado acima, que é “a passagem do sonoro para o gráfico” (MARCUSCHI,
2010, p.52) da adaptação que, segundo Marcuschi, é considerada uma mudança
na perspectiva de uma das modalidades que ele chama de retextualização e
também a diferencia da paráfrase, a qual refaz o texto de um formato linguístico
para outro formato equivalente. Ademais, o pesquisador expõe que a oralidade
traz certas características peculiares que a escrita poderia imitar sem deixar de
ser escrita (p.53), entretanto, aborda que as línguas faladas e escritas possuem
relações semelhantes.
Dando prosseguimento ao texto, o autor põe em exibição quatro
variáveis e explica cada um delas (Ver MARCUSHI, 2010, p.54 e 55 para
maiores esclarecimentos):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 410


 O propósito ou objetivo da retextualização;
 A relação entre o produtor do texto original e o transformador;
 A relação tipológica entre o gênero textual original e o gênero da
retextualização;
 Os processos de formulação típicos de cada modalidade
(MARCUSHI, 2010, p.54).

Em seguida, Marcushi faz um longo percurso sobre os processos de


editoração e sua ligação com questões relativas ao sistema linguístico e
encaminha-se para uma análise de estudos já realizados sobre a retextualização.
Um dos pontos mais importantes do trabalho aqui exposto são os
aspectos envolvidos no processo de retextualização, sintetizados no quadro a
seguir, proposto por Marcuschi (2010, p. 69)

Aspectos envolvidos nos processos de retextualização

Fig. 2 – Aspectos envolvidos no processo de retextualização.

Fonte: Marcuschi (2010, p. 69).

Posteriormente, Marcuschi apresenta dois diagramas que esclarecem


diversos aspectos para os estudos acerca da retextualização; são eles: o fluxo
das ações e o modelo das operações textuais-discursivas na passagem do
texto oral para o escrito.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 411


Fig. 3 - fluxo das ações

Fonte: Marcuschi (2010, p. 72).

Marcushi define que o texto base designa a produção original; o texto


transcodificado seria uma simples transcrição e o texto final é versão final com as
operações realizadas ao longo do percurso. Acima, a transcrição é definida por
ele como algo fiel e indefinido quanto ao padrão; sobre a retextualização, é
representada neste ponto como uma transformação com base em operações
mais complexas.
Por fim, abaixo, mostraremos, em resumo, o modelo das operações
textual-discursivas na passagem do texto oral para o escrito exibido por
Marcuschi (2010, p. 75):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 412


Fig. 4 – Modelo das operações textual-discursivas na passagem do texto oral para o texto
escrito

1ª OPERAÇÃO: Eliminação de marcas estritamente interacionais, hesitações e partes de palavras.


(estratégia de eliminação baseada na idealização linguística)
2ª OPERAÇÃO: Introdução da pontuação com base na intuição fornecida pela entoação das falas.
(estratégia de inserção em que a primeira tentativa segue a sugestão da prosódia)
3ª OPERAÇÃO: Retirada de repetições, reduplicações, redundâncias, paráfrases e pronomes egóticos.
(estratégia de eliminaçãopara uma condensação linguística)
4ª OPERAÇÃO: Introdução da paragrafação e pontuação detalhada sem modificação da ordem
dos tópicos discursivos.
(estratégia de inserção)
5ª OPERAÇÃO: Introdução de marcas metalinguísticas para referenciação de ações e
verbalização de contextos expressos por dêiticos.
(estratégia de reformulação objetivando explicitude)
6ª OPERAÇÃO: Reconstrução de estruturas truncadas, concordâncias, reordenação
sintática, encadeamentos.
(estratégia de reconstrução em função da norma escrita)
7ª OPERAÇÃO: Tratamento estilístico com seleção de novas estruturas
sintáticas e novas opções léxicas.
(estratégia de substituição visando a uma maior formalidade)
8ª OPERAÇÃO: Reordenação tópica do texto e reorganização da sequência
argumentativa.
(estratégia de estruturação argumentativa)
9ª OPERAÇÃO: Agrupamento de argumentos condensando as ideias.
(estratégia de condensação)

Operações especiais: readaptação dos turnos (nos diálogos) para formas monologadas ou dialogadas.

1 2 3 4 5 6 7 8 9
Texto escrito final

Fonte: Marcuschi (2010, p. 75, com adaptações).

O autor afirma que “para uma retextualização ser bem-sucedida, não é


necessário que se efetivem todas as operações e, sobretudo, não
necessariamente na ordem proposta” (p.76).
A seguir, as nove operações de retextualização propostas por Marcuschi
exemplificadas por Pantaleoni (2013):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 413


Quadro 1: as nove operações de retextualização propostas por Marcuschi, exemplificadas
por Pantaleoni (2013)

Operações de regularização e idealização

Estratégia 1ª operação: L2 — e ela mora L2 — e ela mora lá mas


de eliminação eliminação de marcas lá… mas ela é… bem ela é bem velhinha
baseada na estritamente velhinha… maluca né? maluca ela até hoje não
idealização interacionais, ela até hoje não sabe sabe das coisas ela
linguística hesitações e partes de das coisas ela esquece os esquece os nome ela a
palavras. nome ela:: a mim ela mim ela sabe mas eu
sabe… mas eu invento invento história pra ela e
história pra ela… e ela ela acredita em todas as
acredita em todas as história que eu invento
história que eu perturba muito a vida de
invento… perturba minha irmã porque não
mui:to a vida de minha tem os conceitos de
irmã porque não higiene dela já sumiram
tem… os conceitos de só gosta de andar
higiene dela já mulamba
sumiram… só gosta de
andar mulamba…
L1 — ((riu))

Estratégia 2ª operação: L2 — e ela mora lá L2 — e ela mora


de inserção em que introdução da mas ela é bem velhinha lá, mas ela é bem
a primeira tentativa pontuação com base maluca ela até hoje não velhinha,maluca, ela até
segue a sugestão da na intuição fornecida sabe das coisas ela hoje não sabe das
prosódia pela entoação das esquece os nome ela a coisas, ela esquece os
falas. mim ela sabe mas eu nome, ela a mim, ela
invento história pra ela sabe, mas eu invento
e ela acredita em todas história pra ela e ela
as história que eu acredita em todas as
invento perturba muito história que eu
a vida de minha irmã invento,perturba muito a
porque não tem os vida de minha irmã
conceitos de higiene dela porque não tem os
já sumiram só gosta de conceitos de
andar mulamba higiene, dela, já
sumiram, só gosta de
andar mulamba.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 414


Estratégia 3ª operação: retirada L2 — e ela mora L2 — ela mora lá, mas
de eliminaçãopara de repetições, lá, mas ela é bem ela é bem
uma condensação reduplicações, velhinha,maluca, ela velhinha,maluca, ela
linguística redundâncias, até hoje não sabe das esquece os nome, eu
paráfrases e coisas, ela esquece os invento história pra ela e
pronomes egóticos. nome, ela a mim, ela ela acredita em
sabe, mas eu invento todas,perturba muito a
história pra ela e ela vida de minha irmã
acredita em todas as porque os conceitos de
história que eu higiene,dela, já
invento,perturba muito sumiram, só gosta de
a vida de minha irmã andar mulamba.
porque não tem os
conceitos de
higiene, dela, já
sumiram, só gosta de
andar mulamba.

Estratégia 4ª operação: L2 — ela mora Ela mora lá, mas ela é


de inserção introdução da lá, mas ela é bem bem
paragrafação e velhinha,maluca, ela velhinha, maluca.Ela
pontuação detalhada esquece os nome, eu esquece os nome. Eu
sem modificação da invento história pra ela invento história pra ela e
ordem dos tópicos e ela acredita em ela acredita em
discursivos. todas,perturba muito a todas.Perturba muito a
vida de minha irmã vida de minha irmã
porque os conceitos de porque os conceitos de
higiene,dela, já higiene,dela, já
sumiram, só gosta de sumiram. Só gosta de
andar mulamba. andar mulamba.

Operações de transformação

Estratégia 5ª operação: Ela mora lá, mas ela é Ela mora na casa de
de reformulação introdução de marcas bem minha irmã, mas ela é
objetivando metalinguísticas para velhinha, maluca.Ela bem
explicitude referenciação de esquece os nome.Eu velhinha,maluca. Ela
ações e verbalização invento história pra ela esquece os nome. Eu
de contextos e ela acredita em invento história pra ela e
expressos por todas. Perturba muito ela acredita em
dêiticos. a vida de minha irmã todas.Perturba muito a
porque os conceitos de vida de minha irmã
higiene, dela, já porque os conceitos de
sumiram. Só gosta de higiene,dela, já
andar mulamba. sumiram. Ela só gosta
de andar mulamba.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 415


Estratégia 6ª operação: Ela mora na casa de Ela é uma velhinha
de reconstrução reconstrução de minha irmã, mas ela é maluca que mora
em função da estruturas truncadas, bem velhinha, maluca. na casa de minha
norma escrita concordâncias, Ela esquece os nome. irmã. Ela esquece
reordenação sintática, Eu invento história pra os nomes. Eu
encadeamentos. ela e ela acredita em invento histórias e ela
todas. Perturba muito acredita em todas.
a vida de minha irmã Perturba muito a vida de
porque os conceitos de minha irmã porque os
higiene, dela, já conceitos de higiene, dela,
sumiram. Ela só gosta já sumiram. Ela só gosta
de andar mulamba. de andar mulamba.

Estratégia 7ª operação: Ela é uma velhinha Maria é uma velhinha


de substituição tratamento estilístico maluca que mora na maluca que mora na casa
visando a uma com seleção de novas casa de minha irmã. de minha irmã. Ela
maior formalidade estruturas sintáticas e Ela esquece os nomes. esquece os nomes das
novas opções léxicas. Eu invento histórias e coisas e das pessoas. Eu
ela acredita em todas. invento
Perturba muito a vida histórias absurdas e ela
de minha irmã porque acredita em todas.
os conceitos de higiene, Perturba muito a vida de
dela, já sumiram. Ela minha irmã
só gosta de andar porque seus conceitos de
mulamba. higiene já sumiram. Ela
só gosta de
andar maltrapilha.

Estratégia 8ª operação: Maria é uma velhinha Maria é uma velhinha


de estruturação reordenação tópica maluca que mora na maluca que mora na casa
argumentativa do texto e casa de minha irmã. de minha irmã. Ela só
reorganização da Ela esquece os nomes gosta de andar
sequência das coisas e das maltrapilha. Pertur
argumentativa. pessoas. Eu invento ba muito a vida de
histórias absurdas e ela minha irmã porque
acredita em todas. seus conceitos de
Perturba muito a vida higiene já
de minha irmã porque sumiram. Ela esquece
seus conceitos de higiene os nomes das coisas e das
já sumiram. Ela só pessoas. Eu invento
gosta de andar histórias absurdas e ela
maltrapilha. acredita em todas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 416


Estratégia 9ª operação: Maria é uma velhinha Maria mora na casa
de condensação agrupamento de maluca que mora na de minha irmã e
argumentos casa de minha irmã. perturba muito sua
condensando as Ela só gosta de andar vida porque anda
ideias. maltrapilha. Perturba suja e maltrapilha.
muito a vida de minha A velhinha parece
irmã porque seus maluca, pois
conceitos de higiene já esquece os nomes
sumiram. Ela esquece das coisas e das
os nomes das coisas e pessoas e acredita
das pessoas. Eu invento nas histórias
histórias e ela acredita absurdas que eu
em todas. invento.

Fonte: Pantaleoni (2013)

Uma proposta de escrita colaborativa no ensino de


Língua Portuguesa proposta por Silveira (2006)

Em seu trabalho sobre aspectos teóricos e práticos da retextualização,


Silveira (2006, p.7) expõe uma tarefa a ser aplicada pelos professores de língua
Portuguesa aos seus alunos para a compreensão do processo de retextualização,
a tarefa é retextualizar um aviso escrito em uma placa de madeira na entrada de
um banheiro, primeiro para um cartaz, segundo, para um aviso mais detalhado
e, por fim, para um folder. O texto é o seguinte:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 417


Fig. 6 – Texto escrito numa placa encontrada na porta do banheiro de um camping
“ALO - ATENÇÃO QUANDO VOÇE
SAIR DO BANHEIRO APAGAR A LUZ POR FAVOR
OBRIGADO| - - - - OUTRAS COIZAS VOÇEIS QUE
FUMÃN POR FAVOR NÃO JOGUE BITUCA DE
CIGARROS
EN QUAU QUER LUGAR - - NÃO É PERMITIDO
VOÇE ANDAR FUMANDO MACONHA______
DENTRO DO CAMPIMG. RESPEITE
A REGRA DO CAMPIMG. OBRIGADO
NÃO ANDAR - GRITANDO NEIN DE DIA
NEIN DINOITE. OKEI TODOS – VÃO GOSTAR
DE VOÇE PRINCIPALMENTE O CAMPIMG
VOÇE É UMA PESSOA BEM EDUCADA
ENTÃO FAÇA ISTO QUE VOÇE
VAI EN QUAL QUER LUGAR VOÇE CERA
BEM VINDO OU BEM – INDO. NOEL AGRADECE
A TODOS _ A COMPRIENÇÃO E QUE – DEUS
NOSSO CRIADOR A BEMSSOIE A TODOS
AMÉM OBRIGADO< < < < < < 2005”
Fonte: Silveira (2006, p. 7)

Considerações Finais

Nas palavras de Silveira (2006, p.6), “a conscientização sobre o


fenômeno da retextualização é de grande valia para o ensino e a prática da leitura
e da escrita na escola” Nesta perspectiva, este trabalho objetivou divulgar os
estudos sobre a retextualização, proposta por Marcuschi (2010), apresentando sua
importância, seu conceito e suas contribuições para o Ensino de Língua
Portuguesa. Nele foi exposto um breve percurso dos paradigmas que envolvem
a fala e a escrita para que houvesse uma compreensão a respeito de suas
aproximações nos mais variados contextos, sejam os de produção textual escrita
ou interacional discursiva. Por meio deste texto é possível compreender que
falar ou escrever envolvem aspectos que subjazem ao uso de regras da língua e
que é necessário produzir um efeito de diferentes contextos interacionais, visto
que não se trata de saber como se chega a um texto ideal pelo emprego de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 418


formas, mas como se chega a um discurso significativo pelo uso adequado às
práticas e à situação a que se destina.
Neste trabalho, foram apresentadas e exemplificadas as nove operações
presentes no método de retextualizar, ou seja, transformar um texto em outro
texto, sendo a passagem da fala para a escrita a forma mais comum desse
processo, o qual não implica uma espécie de ajustar a fala para o texto escrito,
posto que, como já abordado, para que haja essa passagem do oral para o
escrito, é preciso, antes, a ocorrência de uma atividade cognitiva chamada
compreensão, uma vez que, para se dizer, de outro modo, o que foi dito por
alguém, como relatou o autor, é preciso compreender o que esse alguém disse.
A partir deste estudo, foram propostas atividades de retextualização da fala para
a escrita de um gênero para outro e da escrita para a escrita colocando em ação
o que foi apresentado por Marcuschi (2010), sobre fala/escrita e gênero, bem
como, de forma prática, os construtos apresentados por Silveira (2006). Por
meio desse estudo foi possível compreender a complexidade que envolve o ato
de retextualizar, bem como sua importância e presença frequente desse
componente em nosso cotidiano, o que, até então, era imperceptível.

Referências

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Da fala para a escrita – atividades de


retextualização. São Paulo: Cortez Editora, 2010.
PANTALEONI, Nílvia. Aplicação das nove operações de retextualização propostas
por marcuschi. https://nilviapantaleoni.wordpress.com/2013/04/01/aplicacao-
das-nove-operacoes-de-retextualizacao propostas-por-marcuschi/.
01/04/2013. Acesso em: julho de 2019.
SILVEIRA, M. Inez Matoso. Retextualização – aspectos teóricos e práticos.
Artigo apresentado em mesa-redonda durante o V ELFE – Encontro
Nacional de Língua Falada e Escrita –Maceió, novembro de 2006.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 419


CAPÍTULO 30

Estudo sobre os aspectos do texto


argumentativo: uma experiência com
o Pibid
Luiz Carlos Gomes da Silva1
Jane Cristina Beltramini Berto2

Introdução

O presente trabalho busca apresentar resultados parciais de uma


intervenção pedagógica realizada por meio do Programa Institucional de
Incentivo à docência – PIBID em uma escola pública do interior
pernambucano, acerca da produção textual escrita do texto dissertativo-
argumentativo, com uma turma do 3º ano do ensino médio. Destacamos que o
projeto atende a perspectiva interacionista de linguagem (BAKHTIN, 2003),
cujos desdobramentos pautou-se pela organização metodológica de uma
sequência didática, doravante SD, orientado pelos pesquisadores genebrinos,
Dolz e Schneuwly (2004), com vistas à elaboração de módulos didáticos que
pudessem contribuir para elucidar questões relativas aos aspectos discursivos,

1 Graduando em Letras pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada
UAST-UFRPE, bolsista do PIBID-Letras (UAST-UFRPE), email: [email protected]
2 Professora Adjunta da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada

UAST-UFRPE,Coordenadora de Área Adjunta do PIBID-Letras (UAST-UFRPE); email:


[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 420


textuais e metatextuais durante a escrita, revisão e reescrita da produção textual.
Pautamos-nos também em outros pesquisadores e teóricos com vistas à
concretização de nossos objetivos. Enfatizamos que a correção, coletiva,
colaborativa e individual foi orientada por Ruiz (2010), e que a avaliação de tais
projetos de intervenção didática não são centradas no produto final mas sim,
orientadas pelo processo de desenvolvimento, com base nas dificuldades
apresentadas pelos alunos frente a um dado conteúdo, e em atendimento à
demanda da escola sede do projeto. Assim, trata-se de uma pesquisa-ação, cujos
resultados podem ser retomados, a partir os módulos didáticos, ao longo de
1ano e sete meses de vigência do Programa PIBID na escola.

O contexto escolar

A realização dessa pesquisa ação foi oportunizada pelo Programa


Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) que busca promover a
articulação entre teoria e prática inserindo alunos bolsistas no contexto das
escolas públicas. O programa objetiva elevar o nível das licenciaturas a partir da
valorização do magistério e contribuir para a formação inicial através da
obtenção de experiência docente, tendo como meta
Inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de
educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação
em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter
inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas
identificados no processo de ensino-aprendizagem. (CAPES, 2018, p.1).

Buscando atingir esse objetivo, os alunos bolsistas se articulam com o


supervisor, que é um professor da escola, cuja função, basicamente, é
estabelecer o diálogo entre os professores que estão em formação inicial e
continuada. Além disso, toda a ação é coordenada por nossos coordenadores,
professores da Instituição Superior de Ensino (IES), que nos dão suporte
acadêmico nas atividades desenvolvidas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 421


O resultado dessa mobilização é a pesquisa-ação que, segundo
Appolinário (2011, p.146) consiste em “resolver, através da ação, algum
problema coletivo no qual os pesquisadores e sujeitos da pesquisa estejam
envolvidos de modo cooperativo e participativo.” Desse modo, elaboramos
projetos bimestrais para o agir docente, atendendo estrategicamente
dificuldades e/ou carências dos alunos, que contribuem para nossa formação e
possibilitam, ao mesmo tempo, a prática de metodologias inovadoras. Nesse
molde, a nossa pesquisa não só contribui para o processo de ensino e
aprendizagem dos alunos da educação básica, mas também para nos
identificarmos enquanto docentes.
É nesta conjuntura que atuamos na instituição Escola Methódio de
Godoy Lima localizada no município de Serra Talhada, PE. Ao iniciarmos
nossas atividades, fomos designados às turmas, em especial, esse relato centra-
se na experiência com o 3º ano do ensino médio, cuja necessidade, segundo o
professor e reiterada pelos alunos, era atender à demanda de produção textual
com o texto dissertativo-argumentativo, em função do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM). Portanto, intervimos incisivamente, dando ênfase à
escrita/reescrita sem deixar de abordar a leitura, com textos de temáticas sociais,
e a prática de oralidade, por meio do debate, estendendo para a análise
linguística, ao discutirmos a coesão e a coerência para o texto, no referido
gênero.

Gêneros Textuais

O referencial teórico para o estudo e a produção textual é pautado pela


concepção interacionista da linguagem (BAKHTIN,2003), tendo a escrita como
trabalho o pilar do nosso projeto de intervenção (FIAD, 1997; BERTO, 2018).
Sob esse prisma, concebemos os gêneros como modelos relativamente estáveis

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 422


de enunciado que elaborados circulam pelos campos de atuação, adaptando-se
como um elo à cadeia discursiva, como advoga Bakhtin (2003), pois cada
“enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua
elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos
gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2003, p. 262). Portanto, cada esfera da
atividade humana produzirá padrões discursivos que se desdobram tanto na fala
quanto na escrita, nunca de forma estática, mas com relativa estabilidade.
Nesse contexto, buscamos o desenvolvimento da competência discursiva
do discente, no intuito que o aluno se adapte aos mais diversos eventos
comunicativos, em especial, aos que exijam a modalidade formal da língua,
subdivididos em duas ordens de acordo com sua complexidade: primária e
secundária. Os primários denominam os tipos de enunciados utilizados em
nosso cotidiano, que dispensam um planejamento demasiado em sua produção,
tais como: bilhete, mensagens em aplicativos a fala coloquialmente utilizada. Já
os das esferas da linguagem, demandam maior trabalho em sua escrita e,
comumente, são utilizados em eventos comunicativos mais complexos, como
o artigo científico, documentos, e-mails profissionais entre outros. (BAKHTIN,
2003)
É importante ressaltar que a língua é estruturada em um discurso, cuja
manifestação se dá através de textos linguisticamente realizados que evocam e
são evocados por uma atitude responsiva do interlocutor/locutor (BAKHTIN,
2003) e cujo
discurso só pode existir de fato na forma de enunciações concretas de
determinados falantes, sujeitos do discurso. O discurso sempre está
fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do
discurso, e fora dessa forma não pode existir.” (BAKHTIN, 2003, p.274)

Diante dessa dinâmica da linguagem, os gêneros são voláteis, e portanto,


em constante mutação. Tendo em vista a variedade dos moldes discursivos, sua

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 423


relativa estabilidade e a complexidade epistemológica para analisá-los, Bakhtin
(2003) elegeu três categorias para o estudo dos gêneros. Segundo ele,

O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados* (orais e escritos)


concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu (conteúdo
temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção de recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais mas, acima de tudo, por sua estrutura
composicional. (BAKHTIN, 2003, p. 261).

Logo, de acordo com a constituição do gênero, temos estrutura


composicional que refere-se a aspectos formais como: a disposição dos
recursos linguísticos, a estética, dentre outros; o conteúdo temático; e ao estilo
que se desdobra no estilo do gênero e no autoral, o primeiro designa a gramática
que será empregada, jargões e a liberdade que o enunciador terá no emprego de
suas caraterísticas, por exemplo: a possibilidade do aluno inovar em um poema
é maior que em um texto dissertativo argumentativo. O segundo estilo envolve
o que é individual expressivamente. Partindo dessa tríade, objetivamos o ensino
da estrutura com o propósito comunicativo, visando o desenvolvimento de uma
competência metagenérica ou metatextual (KOCH e ELIAS, 2009) que se
debruça tanto no reconhecimento e intelecção quanto na produção de textos.
Para as autoras, essa habilidade é aprimorada gradativamente conforme

o contato com os textos da vida cotidiana, como anúncios, avisos de toda


a ordem, artigos de jornais, catálogos, receitas médicas, prospectos, guias
turísticos, manuais, etc., exercita a nossa capacidade meta textual, que vai
nos orientar quando da construção e intelecção de textos.” (KOCH;
ELIAS, 2009, p. 55).

Com base nos pressupostos levantados, concluímos que o trabalho com


gêneros textuais fundamentado nessa perspectiva é o que mais se adéqua a
realidade escolar, pois

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 424


Dominar um gênero consistiria no próprio domínio da situação
comunicativa, domínio esse que se pode dar por meio do ensino das
aptidões exigidas para a produção de um gênero determinado. O ensino
dos gêneros seria, pois, uma forma concreta de dar poder de atuação aos
educadores e, por decorrência, aos seus educandos.” (KOCH; ELIAS,
2009, p.61).

Desse modo, cremos que o ensino do gênero é vital para a disciplina de


língua portuguesa, uma vez que extrapola os limites da sala de aula, e concede
ao aluno a possibilidade de compreender e discursar nos mais diversos
contextos.

Sequência didática

Para esse projeto, elencamos o modelo de Sequência Didática (SD), cuja


base proposta por Dolz e Schneuwly, configura-se em “um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um
gênero textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 97). A SD é,
portanto, um programa de atividades devidamente planejada para uma sala de
aula, com o fim de desenvolver a oralidade e/ou a escrita de dado gênero de
texto.
Usar esse método proporciona trabalhar as diferentes facetas dos textos,
pois segundo os autores: “As sequências didáticas servem, portanto, para dar
acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis”
(SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 98). Logo, empregamos a SD para apresentar
aos alunos textos mais complexos que exigem a instrução do professor, cuja
função, nesse sentido, é ensinar as aptidões necessárias para o referido gênero
textual, oral ou escrito, como apresentado a seguir.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 425


Figura 1: Esquema da Sequência Didática

Fonte: (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 98).

Vale ressaltar que o modelo deve ser reorganizado e reestruturado


conforme o contexto em que o projeto será aplicado, pois, de acordo os autores
a SD
Se inscreve numa perspectiva construtivista, interacionista e social que
supõe a realização de atividades intencionais, estruturadas e intensivas que
devem adaptar-se às necessidades particulares dos diferentes grupos de
aprendizes.” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 110).

Assim, trata-se principalmente de conhecer as dificuldades apresentadas


pelos alunos, revisá-las por meio de módulos explicativos e elaborar um
esquema cuja aprendizagem seja gradual, a partir de sua realização,
contemplando as diferentes nuances que envolvem o ensino e a aprendizagem
de um gênero em sala de aula. Buscaremos apresentar o modelo de SD a partir
dos passos metodológicos, na sequência.

Metodologia

A primeira ação foi a apresentação da situação inicial na qual explicamos a


proposta, os objetivos, qual o tipo de gêneros que será posto em análise e a sua
função social. Em nosso projeto, trabalhamos o gênero redação escolar, o texto
dissertativo-argumentativo, explicando sua estrutura composicional, a temática
e o estilo; bem como suas implicações na sociedade. Também lemos e
discutimos com os alunos textos com temas sociais, pois além de desenvolver

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 426


o senso crítico do discente, é característico do ENEM trabalhar temáticas
sociais.
Ao final desta etapa, a produção inicial, que é um texto com a finalidade de
diagnosticar as dificuldades e as ações necessárias, que conduzirá toda nossa
prática. O tipo de correção empregada nesse caso foi a correção interativa
coletiva, com especial atenção à coesão e a coerência, bem como aos aspectos
discursivos. Adotamos essa postura durante a reescrita do texto, pois “A
questão da correção ortográfica não deve obscurecer as outras dimensões que
entram em jogo na produção textual” (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004, p. 117).
A partir do diagnóstico elaboramos os módulos didáticos, cujo objetivo
é o de “trabalhar os problemas que apareceram na primeira produção e de dar aos
alunos instrumentos necessários para superá-los” (SCHNEUWLY; DOLZ,
2004, p. 103). Na diagnose, percebemos o uso da linguagem coloquial, ausência
dos elementos conectivos entre os parágrafos, e baixa adesão à estrutura do
texto dissertativo argumentativo, agravada por problemas de coesão e coerência
entre outros.
Foi oportuno, portanto, no primeiro módulo trabalhar a argumentação
com base no manual de redação disponibilizado pelo MEC. Como critério de
avaliação solicitamos uma produção textual, é importante deixar explícito que
avaliamos não só o produto final, mas também o processo no qual o resultado
foi atingido. No segundo módulo, voltamo-nos para as questões relacionadas a
coesão, com base em Koch (2010) que define coesão textual como “elementos
da língua que têm por função precípua estabelecer relações textuais” (KOCH,
2010, p.8), e coerência a partir de Charolles (1978) com as metarregras da
coerência, Progressão, Repetição, Não contradição e Relação, que “tratam da
constituição da cadeia de representações semânticas e suas relações de
conexidade que constituem um texto (CHAROLLES, 1978 apud KOCH, 2005,
p. 51).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 427


Na produção final, obtivemos os resultados de nossa intervenção e
verificamos que os objetivos propostos foram atingidos. Uma produção textual
foi feita para tanto, a partir dela verificamos a compreensão da proposta de
escrita do texto dissertativo-argumentativo com base em uma coletânea de
textos. Destacamos que ao longo desse projeto visávamos à culminância, com
a redação do ENEM, contudo, como não temos acesso buscamos avaliar o
módulo final com essa produção escrita.

Análise e discussão de resultados

Na sequência, apresentamos alguns dos textos produzidos pelos alunos,


considerando o processo dos módulos apresentados, de antemão, vale ressaltar
que nossa conduta está pautada na perspectiva construtivista, que não só avalia
o produto final, mas também o processo, portanto, cabe aqui detalhá-lo
brevemente. de forma que a figura 1 destaca a produção inicial, já com a
reescrita, após a correção interativa. A figura 2, após a aplicação do módulo 2 e
por fim, o texto final, na figura 3, que remete à produção final do aluno,
discutidas a seguir.

Figura 2 Primeira produção textual (reescrita)

Fonte: Corpus do autor.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 428


A princípio, apresentamos a situação inicial, trouxemos e lemos textos
relacionados e realizamos um debate o qual pedimos um posicionamento. No
contato com o texto dos alunos observamos, a imaturidade escritora dos
mesmos, a falta de progressão textual, a cópia de parágrafos inteiros dos textos
de apoio sem o uso de aspas, a própria estética que nos lembra produções do
ensino fundamental, o desvio da estrutura do texto dissertativo.
Observadas essas questões, corrigimos coletivamente a primeira
produção e atentamo-nos à adequação ao gênero, coesão e coerência; outras
dimensões que não apenas a ortografia, como destacam Schneuwly e Dolz
(2004), ao tratar dos aspectos que se sobressaem na correção dos professores,
sem deixar de falar de pontos cruciais, como a utilização de letra maiúscula no
início de frase. Na segunda escrita, a 2 versão, observamos uma insensibilidade
às indicações feitas e a simples higienização do texto, onde os alunos apenas
transferiram o texto a lápis para a caneta, sem atentar-se para a correção dos
erros ortográficos, revelando desconhecimento do processo de revisar e
reescrever.

Figura 3: Produção textual após o módulo 1 (sem a reescrita)

Fonte: Corpus do autor (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 429


Nessa produção, a melhora estética é significativa, contudo há uma
transcrição da fala para a escrita e a persistência de alguns erros ortográficos
triviais como a troca do ‘m’ pelo ‘n’ constantes. Apesar disso, observamos a
progressão de uma linha de raciocínio, o que não existia na produção anterior.
O aluno apresenta a problemática que é abordada pelo tema, explica as suas
consequências, dentro dos limites do tema, e, ao fim, diz que a questão precisa
ser resolvida, embora não apresente uma proposta de resolução, o que é
característico para a escrita do texto dissertativo-argumentativo no ENEM.

Figura 4: Produção final do aluno

Fonte: Corpus do autor (2019).

Depois da aplicação do módulo 2 o progresso foi expressivo, houve


adesão à estrutura do texto em 3 parágrafos, o primeiro introduzindo uma tese,
o segundo argumentando em prol da temática e, no terceiro, os impactos
gerados por uma possível intervenção. Ainda que o texto produzido em
situação escolar, após a realização dos módulos didáticos e com a intervenção

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 430


do professor esteja longe de ser considerado como um texto perfeito à estrutura
proposta e temática, os resultados apontam uma melhora significativa,
avaliando de forma qualitativa as produções textuais do aluno, o que pode
indicar relação com a metodologia abordada pela SD, bem como à visão da
escrita como trabalho, na qual a cada texto produzido a competência escritora
é aprimorada, por meio da revisão e da reescrita constantes e a qualquer tempo.
Assim, destacamos que a análise aqui proposta não pretende dar conta
dos problemas apresentados pelos alunos em sua maioria no Ensino Médio,
tampouco relacioná-los aos avanços obtidos com a SD implementada, mas
apresentar um olhar diferenciado sobre as práticas cotidianas de escrita textual
e leitura realizadas na escola, considerando que as propostas são acessíveis e
podem ser realizadas com sucesso, respeitadas às diferenças e dificuldades dos
alunos, para sua superação.

Considerações finais

Neste artigo, discutimos as possibilidades de intervenção pedagógica de


um projeto com Sequência didática para o ensino da produção textual do gênero
redação escolar, texto dissertativo-argumentativo, a partir do trabalho realizado
em uma turma do 3º ano do ensino médio, em uma escola pública do sertão de
Pernambuco.
Essa pesquisa-ação realizada pelo PIBID, oportunizou a colaboração
entre professores em formação inicial e continuada para a melhoria do processo
de ensino e aprendizagem dos alunos envolvidos ao longo de 1 ano e sete meses,
tendo em vista que esses projetos buscam atender à demanda da escola e às
necessidades apresentadas pelos alunos ao longo de sua formação, que por via

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 431


de mão dupla, favorece a inserção de pesquisas e de nossas ações, enquanto
profissionais em formação, nas escolas participantes do projeto.
Fundamentados nas teorias interacionista e, no modelo de sequência
didática postulado por Dolz e Schneuwly (2004), visamos a melhoria da escrita
dos alunos envolvidos, pela elaboração de módulos de atendimento às
dificuldades apresentadas, destacando que as práticas de leitura e de escrita são
articuladas para o desenvolvimento das competências leitoras e escritoras dos
alunos, de forma a não negligenciar a oralidade, entendida como prática
fundamental nesse processo, por contemplar a organização dos argumentos
orais, durante o debate de ideias. Assim, tanto as práticas de leitura, oralidade e
escrita foram enriquecidas com a discussão de temas sociais relevantes e a
elaboração de um planejamento de escrita, com destaque para os aspectos
linguístico-discursivos que oportunizou a elaboração de argumentos e de
emprego de elementos como operadores argumentativos além de rever coesão
e coerência dos textos, frente à proposta.
Dessa forma, considerando os objetivos propostos e a realização dos
módulos, percebemos que a opção pela sequência didática nos trouxe
orientações pontuais de como agir e também orientou todo o processo de
escrita, revisão e reescrita ao longo de sua realização apresentando bons
resultados. Cabe sempre destacar que nosso olhar para o desenvolvimento das
capacidades de leitura e de escrita dos alunos orientam-se ao longo do processo
de ensino e de aprendizagem, coletivamente, não sendo consideradas apenas
como meras etapas para avaliação de um produto final, a redação.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 432


Referências

APPOLINÁRIO, Fabio. Dicionário de Metodologia Científica. 2. ed. São Paulo:


Atlas, 2011.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BERTO, J. C. B. As orientações curriculares oficiais para a produção textual


escrita e os conceitos de revisão e reescrita. In: CHAGURI, J. P.; BERTO, J.
C. B. (org). Pesquisas em História da Educação e Linguística Aplicada Novos olhares
para o ensino de Línguas no Brasil. Campinas Pontes, 2018, p.393 - 420.

CAPES, Processo nº 23038.001433/2018-98. 2018. Disponível em:


https://www.capes.gov.br/images/stories/download/editais/01032018-
Edital-7-2018-PIBID.pdf. Acesso em 9 nov. 2019.

FIAD, R. S. Operações linguísticas presentes nas reescritas de textos. Revista


Internacional de Língua Portuguesa, n. 4, p. 91-97, 1991.

MEC, Redação do ENEM 2018: cartilha do participante. 2018. Disponível em:


<download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/guia_participante/2018/man
ual_de_redacao_do_enem_2018.pdf.> Acesso em 9 nov. 2019.

KOCH, Ingedore. Texto e Coerência. São Paulo: Cortez, 2005

_______; ELIAS, Vanda. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São


Paulo: Contexto, 2009.

______. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2010.

RUIZ, E. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola.


Campinas: Mercado das Letras, 2004.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 433


CAPÍTULO 31

Modelos mentais e representação: uma


análise sociocognitiva da fala de
pescadores artesanais
Veronica del Pilar Proaño de Fox1

Introdução

Neste trabalho, analisamos a fala de três pescadores artesanais que


entrevistamos simultaneamente, no Encontro dos Pescadores e Pescadoras
Artesanais do Recife realizado entre 18 e 19 de setembro de 2017, em Recife
(PE). Dentre os entrevistados está o pescador artesanal (P1), que trabalha na
Vila Tamandaré e na Ilha de Deus, comunidades pesqueiras urbanas recifenses.
A segunda participante é sua esposa (P2), que também desenvolve a atividade
pesqueira nessas localidades. O terceiro participante (P3) é pescador e filho de
pescadores, além de vizinho do referido casal na Vila Tamandaré. A quarta
participante é a entrevistadora (E) e autora deste artigo que indaga: o que é ser
pescador artesanal? Nosso objetivo é analisar como os pescadores evidenciam na
sua fala modelos mentais e representações sociais sobre o que é ser pescador
artesanal urbano na atualidade.

1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Universidade Católica


de Pernambuco, Recife (PE). Email: [email protected]. Estágio do Programa de Doutorado Sanduíche
(PDSE) / CAPES. Outubro, 2018 a Maio, 2019. Barcelona - Espanha.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 434


Para realizar essa tarefa, transcrevemos o texto falado nos moldes
apontados por Marcuschi (2001). Em termos teórico-metodológicos,
analisamos a fala com base em Koch e Elias (2006, 2009), isto é, como uma
atividade de coprodução discursiva, na qual os interlocutores cooperam,
coonegociam e coargumentam na produção de uma resposta. Considerando
que a fala surge no momento de uma situação comunicativa ou interação
presencial (KOCH; ELIAS, 2009) e que o contexto não envolve somente a
situação física de produção da fala ou texto, mas as condições cognitivas e
pragmáticas (MARCUSCHI, 1995), identificamos representações mentais
envolvidas na produção e compreensão da interação verbal (VAN DIJK 2012,
2015, 2016) ou, como definido por Koch e Elias (2009), saberes ou modelos
cognitivos que intervêm na comunicação dos pescadores artesanais, moldando,
organizando e limitando a sua fala. Por ter o texto falado uma estruturação
marcada por circunstâncias sociocognitivas de produção (KOCH; ELIAS,
2009), também explicitamos como a coprodução entre interlocutores se realiza,
identificando funções cognitivo-interacionais que apontem coautoria nas
argumentações dos participantes.

Sobre os pescadores artesanais e o evento

Os pescadores artesanais se autodefinem como uma cultura tradicional2


“com direitos garantidos na constituição e nos tratados internacionais dos quais
o Brasil é signatário, a exemplo da convenção 169 da OIT” (TERRITÓRIO
PESQUEIRO, 2013). Diferentemente de outros grupos tradicionais, como
índios e quilombolas, os pescadores artesanais ainda não contam com uma lei
específica que explicite e regule o direito ao seu território de pesca e garanta seu

2 As culturas tradicionais se desenvolvem dentro da pequena produção mercantil, dependem dos recursos
naturais, possuem amplo conhecimento dos ciclos da natureza e de técnicas de pesca ancestrais passadas de
geração em geração. Sua produção tem baixo impacto ambiental e são importantes agentes na preservação das
espécies. Esses aspectos implicam em uma concepção e representação do mundo natural e seus recursos
diferentes (DIEGUES, 1998; CALLOU, 2010; FOX, 2010).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 435


modo de vida. A intrínseca relação dos pescadores com a natureza faz com que
estes tenham uma forma de ser e estar no mundo, ou seja, um modo de vida
específico do seu grupo social3 (DIEGUES, 1998).
Em 2017, o Encontro dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Recife
reuniu membros das comunidades pesqueiras da Ilha do Maruim, Coque, Santo
Amaro (Ponte do Limoeiro e Espaço Ciência), Coelhos, Bode, Brasília Teimosa,
Vila da Imbiribeira, Vila São Miguel, Caranguejo Tabaiares e Vila Tamandaré.
Além de discutir as especificidades de cada um desses territórios pesqueiros, o
evento promoveu a rearticulação e mobilização dos pescadores urbanos
recifenses, visando melhores condições de vida e trabalho (CONSELHO
PASTORAL DOS PESCADORES; AÇÃO COMUNITÁRIA
CARANGUEJO UÇA, 2017).

A perspectiva sociocognitiva: modelos mentais e


representações sociais
A teoria sociocognitiva possibilita uma análise do discurso que dá conta
das complexas relações entre estruturas discursivas e estruturas sociais, pois leva
em conta a interface cognitiva. Isso porque somente podemos relacionar o discurso
à sociedade através da mente das pessoas (VAN DIJK, 2012, 2013) 4. No entanto,
a cognição não está somente dentro da cabeça dos usuários da linguagem, ela
também é externa enquanto processo de elaboração, de formação de
conhecimento com uma dimensão social. Por isso, denomina-se de cognição
social (VAN DIJK, 2013). Desse modo, a tríade discurso, cognição e sociedade
é a base da teoria sociocognitiva, pois, não é possível estudar as frases separadas
de seus textos e contextos; nem o processamento do discurso nas mentes dos
usuários da linguagem pode ser isolado do seu verdadeiro uso em contextos

3 O modo de vida dos pescadores artesanais não é estático e pode variar de região para região, no Brasil. Isso

depende da sua maior ou menor interação com a sociedade capitalista globalizada, cujos efeitos podem
desorganizar ou até mesmo destruir a cultura e o modo de produção pesqueiro, em certas localidades.
4 Todas as traduções neste trabalho são da nossa autoria.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 436


sociais, porque “a linguagem, o discurso e o conhecimento são essencialmente
sociais” (VAN DIJK, 2005, p. 9).
Como Van Dijk (2016b, p. 173) explica: “as estruturas do discurso e as
estruturas sociais são de natureza distinta e somente podem estar relacionadas
através de representações mentais dos usuários da linguagem como indivíduos e
como membros sociais”. Cárdenas (2018, p. 126) reforça que a mediação
cognitiva se define pelos

conhecimentos, as ideologias e as atitudes que compartilham os membros


de um grupo, e como estes construtos influenciam os modelos mentais
que monitoram os processos de produção e compreensão discursiva.

Os modelos mentais são estruturas cognitivas únicas e subjetivas. Estes


não representam de forma objetiva os eventos abordados pelo discurso, mas

a maneira como os usuários da língua interpretam e constroem cada um a


seu modo esses eventos, por exemplo, em função dos objetivos pessoais,
conhecimentos ou experiências prévias – ou em função de outros aspectos
do ‘contexto’” (VAN DIJK, 2012, p. 92).

Assim, a cognição pessoal (modelos mentais) governa a interação e o


discurso dos membros individuais de um grupo e, por sua vez, a cognição social
(crenças/representações sociais) influencia as suas ações coletivas. Na teoria
geral do processamento discurso, essas dimensões estão intrinsecamente
interligadas. Esse marco teórico (VAN DIJK, 2012, 2015, 2016a) nos ajuda na
compreensão do rol das crenças sociais compartilhadas pelos membros de um
grupo social, tais como conhecimento, ideologias, atitudes, normas e valores, as
quais são mobilizadas na produção do seu discurso e na representação de seus
oponentes.
Segundo Van Dijk (2016, p. 142), tais crenças se representam na memória
de longo prazo (MLP)5 como um sistema “organizado de maneira que é

5 Cárdenas (2018, p. 127, interpolação e grifo nossos) explica que “a memória se divide de acordo com o seu
alcance de processamento e armazenamento: memória de curto prazo (MCP), também conhecida como
memória de trabalho, pois monitora os processos de produção e compreensão discursiva em linha [online], e;
b) memória de largo prazo (MLP), que se subdivide por sua vez na memória episódica ou autobiográfica, encarregada

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 437


cognitivo e socialmente funcional”. Portanto, não existe uma influência direta
entre a sociedade (estrutura social) ou as categorias sociais (gênero, classe,
profissão etc.) e o discurso multimodal (escrita, fala, gestos etc). Entendemos
que são os modelos mentais, enquanto representações cognitivas subjetivas,
aliados a cognições sociais compartilhadas que influenciam os discursos e outras
práticas sociais das pessoas (VAN DIJK, 2012, p. 99-101).

Modelos de Contexto

Os modelos (mentais) de contexto representam “os aspectos do


ambiente comunicativo e por consequência os parâmetros sociais do uso da
linguagem, definidos como relevantes para e pelos participantes. São modelos
pragmáticos que tratam da experiência ou situação comunicativa em que os
usuários da língua se encontram” (VAN DIJK, 2016, p. 11 - 12). Eles
representam a comunicação ou interação verbal, e organizam os modos como
o discurso é estruturado e adaptado estrategicamente à situação comunicativa
global (VAN DIJK, 2012, p. 87-107). A principal função dos modelos de
contexto é “controlar as maneiras como os usuários da língua são capazes de
adaptar seu discurso e interação em andamento à situação comunicativa atual”
(VAN DIJK, 2016, p. 12). Isso significa que os modelos de contexto controlam
todas as estruturas variáveis do texto e da fala, por exemplo, a sintaxe (léxico,
estilo, transitividade etc), estruturas semânticas etc. Em outras palavras, é um
tipo de modelo mental que controla como a pessoa diz as coisas e não o que está
dizendo. Nesses termos, os modelos (mentais) de eventos ou experiências
fornecem a informação para o conteúdo do discurso, enquanto os modelos de
contexto controlam a maneira como as pessoas se expressam em uma situação
comunicativa.

de coletar as experiencias individuais e o conhecimento pessoal, e na memória semântica ou social, encarregada de


coletar o conhecimento genérico e as ideologias e atitudes compartilhadas por grupo mais amplos”.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 438


Funções cognitivo-interacionais

Os modelos (mentais) de contexto não podem ser reduzidos à fala e suas


propriedades geralmente permanecem implícitas e pressupostas, conforme Van
Dijk (2012, p. 38) explica: “Eles influenciam fala e texto de maneiras indiretas
que só são explicadas na própria fala ou texto em circunstâncias específicas
(problemas, erros, equívocos)”. Sempre que necessário, os modelos de contexto
são “indiciados ou referenciados em estruturas linguísticas ou variações [...]
conforme estas são usadas em diferentes situações sociais” (VAN DIJK, 2012,
p. 39).
Para Koch e Elias (2009), na oralidade é comum recuperar os referentes
na própria situação comunicativa, de forma extralinguística, apontando para
eles, dirigindo o olhar ou fazendo um gesto em sua direção. E isso também se
deve a que os interlocutores compartilham conhecimentos sobre a situação
comunicativa e sobre o que falam. Além disso, há pistas linguísticas na fala que
“se encontram no cenário e no conhecimento que os participantes têm sobre o
que aconteceu antes da interação. Daí o uso de formas referenciais cujos
referentes são depreendidos da situação comunicativa ou do conhecimento
compartilhado com o interlocutor” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 20). Dentre essas
marcas, estão elementos anafóricos (ele, ela), que remetem a outros elementos
do texto e dêiticos6, que apontam para elementos do contexto.
Apesar da natureza dos modelos de contextos ser geralmente implícita,
Van Dijk (2012, p. 38) explica que eles também podem ser discursivos e
intertextuais, fazendo “referência a outros textos ou conversas mais antigos”.
Eles podem representar situações sociais ou comunicativas em vários níveis de
generalidade. Por exemplo, em um nível micro, podem representar interações

6 Os dêiticos são elementos da língua, cuja função é “localizar entidades no contexto espaço-temporal, social e

discursivo, como pronomes de 1ª e 2ª pessoa (eu, tu, você, vocês, nós, vós); demonstrativos (este, esse, aquele),
certos advérbios de tempo e lugar (aqui, aí, ali, agora, ontem, amanhã) etc”. Eles não possuem valor semântico
em si mesmos e variam a cada nova enunciação (KOCH; ELIAS, 2006, p. 60).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 439


“situadas, momentâneas, em andamento, face a face [...] e, por outro, podem
representar situações históricas ou sociais totalizadoras, isto é, a estrutura social
num nível macro” (VAN DIJK, 2012, p. 39).
Nesses mesmos termos, Koch e Elias (2006, p. 58-59) esclarecem que,
para além da compreensão linguística, a coprodução do texto falado ou escrito
entre interlocutores também demanda a “(re)ativação de outros conhecimentos
armazenados na memória”. Ou seja, para que os participantes se compreendam
“é preciso que seus contextos sociocognitivos sejam, pelo menos, parcialmente
semelhantes” (KOCH; ELIAS, 2006, p. 61).
Ainda sobre as marcas linguísticas, Van Dijk (2012, p. 17) sugere que o
uso de expressões dêiticas pode fazer referência explícita a modos como o
falante compreende a fala na interação. Isso inclui referentes como: eu, este
assunto, esta pauta, nosso direito, eu digo, aqui estamos, isso, lá fora, no lugar,
o homem, ele, ela, naquela noite etc. Ou seja, “fazendo referência à situação
presente e a si mesmo enquanto falante [...] à orientação política vigente”.
Outras propriedades relevantes do contexto se referem à relação entre os
falantes e seu papel social e os membros do grupo, bem como sua opinião e sua
oposição a “Outros” (VAN DIJK, 2012). Como o texto falado surge no próprio
momento da interação, analisamos se na fala dos participantes ocorre uma
interlocução ativa, pelo fato de estarem copresentes, possibilitando “um
processo de coautoria, refletido na materialidade linguística por marcas de
produção verbal conjunta” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 14). Os graus de
coprodução em situações face a face variam e, portanto, observamos as trocas
de turno7 ou alternâncias no diálogo entre os interlocutores. Na interação há
pressões de ordem pragmática, que “obrigam o locutor a sacrificar a sintaxe em
prol das necessidades de interação” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 17).

7 O turno na fala é a contribuição de um locutor dada em certo momento da conversação e que corresponde
ao que, nas artes cênicas teatrais, se denominam réplicas. “Os turnos de fala de diferentes locutores se encadeiam
segundo um sistema de alternância. Em análise conversacional, o turno de fala constitui a unidade essencial da
organização das produções orais dialogadas” (KOCH; ELIAS, 2009, p. 14).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 440


Dentre as marcas cognitivo-interacionais, que podem apontar coautoria
nas argumentações dos participantes, estão: falsos começos, truncamentos,
correções, hesitações, bem como inserções, repetições, paráfrases, dentre
outras. Essas propriedades do texto falado podem fornecer “indícios sobre os
processos cognitivos e monitoramento subjacentes a essas falas” (VAN DIJK,
2015, p. 63). A repetição é muito frequente no texto falado e pode ser
considerada uma ferramenta para organizar essa modalidade textual.
Organizadores textuais como aí, daí, então, aí então, são exemplos da oralidade
(KOCH; ELIAS, 2009, p. 17-22).
Analisamos, ainda, se há uma coprodução discursiva dos pescadores
artesanais, durante a entrevista, na qual eles “cooperam, conegociam e
coargumentam” (MARCUSCHI apud KOCH; ELIAS, 2009, p. 17). Os graus
de manifestação da coprodução discursiva dependem também do texto, por
exemplo, em conversas informais como a conversação a coprodução se
manifesta muito mais do que em palestras, discursos públicos e congressos.

Transcrição da entrevista

Para fins de análise da fala, transcrevemos a entrevista na íntegra e,


seguindo orientações de Marcuschi (2001), mantemos o máximo de fidelidade
à produção oral dos interlocutores:
E – agora...deixa eu ver...tá gravando...eu acho...é
P2 – fala inaudível
E – não não...eu queria saber assim...éh:: o que representa para você...
desculpa...me esqueci teu nome
P1 – meu nome éh:: [nome do pescador P1]
E– [P1] de que?
P1– [nome completo do pescador P1]
E – certo...[nome]...tem quantos anos?
P1 – eu tenho 42 anos
E – 42...é da comunidade de?
P1- vila tamandaré e a ilha de deus
E – [nome]...o que representa para você ser pescador? como você
diria?...como você diria o que é ser pescador?
P1 – ser pescador?...pescador para mim éh::.pra mim é tão mais
importante...porque meus pais já veio da pesca...né? e eu já [inaudível] essa
atividade...esse trabalho...e é o trabalho que eu gosto...que eu vivo...que eu

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 441


dou meu sangue...então...quando surge outro trabalho...eu penso três
vez...eu penso muito para eu sair da minha...do meu trabalho que eu gosto
para ir para outro...aí...
E - é sua vida né?
P1 – éh::é minha vida
E - e pra você [nome do pescador P3]?...o que é ser pescador?
P3 - pra mim a pesca é uma tradição dos meus pais...dos meus avós...é
uma...como se fosse uma...como se chama aquele negócio...que vem lá de
baixo até agora?
E – ancestral né?...é uma tradição ancestral?
P3 – é...é...eu mantenho até...os meus filhos...
E - quer passar isso pros seus filhos é?
P3 – éh::como se fosse uma...é uma tradição
E – uma tradição né?...de pai pra filho né?...entendi [nome do pescador
P3]
E - e pra nossa lindinha... como...me esqueci o nome...
P2 – meu nome é [nome completo pescadora P2]...tenho 35 anos e para
mim a pesca... desculpa...a pesca...ela tá no sangue né? A pesca é uma coisa
que vem de geração em geração né? E tamos vendo que agora no nosso
futuro está tudo se acabando...por quê?...por conta da poluição...por conta
de...como é...assédio...por conta de um monte de coisas a pesca e os
pescadores estão acabando...estão como se tivessem em extinção...e o que
a gente quer é que isso não acabe...mas sim que dê continuidade para os
nossos filhos...porque é o futuro né? Que a gente tem pé na frente
P1– eh::
E – oi?
P1 – nós pensamos no futuro...porque o futuro também é...uma parte bom
né? E futuramente vai se acabando...a...como é...a nossa facção...os nossos
costumes né? O que a gente nascemos...daquela raiz...daquele
sangue...então...isso é muito triste...isso é muito triste de ver essas coisas
acontecerem e não poder fazer nada...mas...agora né?
agora...junto...junto...se unindo...falando alto...a gente crê...que...como éh::
algo vai acontecer
E - Obrigada gente!

Inicialmente, observamos algumas formas discursivas de superfície ao


longo da entrevista. Uma delas é que a fala dos participantes mantém marcas
típicas da oralidade, embora o gênero discursivo entrevista se situe mais
próximo ao polo da escrita formal. A entrevistadora mantém sua fala próxima
da conversa informal, tratando os entrevistados pelo seu nome, usando
pronomes como “tu” e adjetivos como “lindinha”, ao que parece, com o intuito
de criar um ambiente de maior aproximação e identidade com os entrevistados.
É também o gênero, o ambiente e o momento político, a temática do
encontro, os subtemas debatidos nesse episódio e circunscritos à situação social
dos pescadores artesanais do Recife, ou seja, aspectos do contexto que
demandam dos pescadores a melhor expressão verbal possível. Por isso, mesmo

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 442


que na sintaxe da fala dos pescadores, especialmente na concordância nominal
e verbal, notemos uma limitada produção oral normativa, há um esforço de se
expressarem da forma mais formal. Esses aspectos também se traduzem em
várias funções cognitivo-interacionais dos entrevistados tais como falsos
começos, correções etc.
Ainda no aspecto contextual, notamos na fala dos pescadores a referência
a textos mais antigos, isto é uma intertextualidade, especialmente sobre
situações históricas e mesmo socioculturais e econômicas, em um nível macro,
as quais são referenciadas e indiciadas em diversos momentos por todos os
entrevistados e que parecem ser acionadas na fala, a partir da sua memória. Por
exemplo, quando eles se referem à pesca artesanal como uma atividade
“ancestral” e “tradicional”, passada “de geração em geração”. Ou mesmo
quando falam sobre aspectos sociopolíticos e econômicos negativos que afetam
sua atividade produtiva, quando afirmam que “a pesca e os pescadores estão
acabando”, que é “como se estivesse em extinção”.
Percebemos também uma coprodução na fala dos pescadores que
demanda reativar modelos mentais (subjetivos) bem como representações
sociais compartilhadas (ideologias, conhecimento, atitudes, valores, metas)
sobre o que é ser pescador artesanal. Outros elementos contextuais como as
identidades e papéis sociais dos participantes (nome, idade, local de moradia e
trabalho dos pescadores), bem como aspectos sociais, históricos e culturais
também são verbalizados na interação: “porque meus pais já veio da
pesca...né?”, “A pesca é uma coisa que vem de geração em geração né?” “como
se fosse uma...como se chama aquele negócio...que vem lá de baixo até agora?”.
Além de se tratar de conhecimentos que constituem diferentes contextos
subsumidos pelo contexto sociocognitivo, também revelam o papel
socialmente assumido pelos pescadores artesanais e aspectos da atividade
pesqueira.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 443


Observamos uma interlocução ativa provocada pela interação
copresencial dos participantes, gerando uma coprodução maior nas trocas de
turno entre os quatro participantes. No entanto, tomando o gênero como um
dos elementos constitutivos do contexto sociocognitivo, que regula e modula a
fala dos participantes, a entrevistadora domina a maior parte dos turnos, pois
conduz a entrevista. Isso, contudo, não impede alternâncias realizadas pelos
outros interlocutores, que têm representações sociais semelhantes sobre a pesca
artesanal.
Em relação à construção do diálogo, percebemos que os pescadores se
colocam como participantes ativos que, na interação, constroem argumentações
e são construídos na fala. Também se nota que, embora o sentido geral da fala
não seja preexistente a esta interação, muitos modelos mentais bem como
representações compartilhadas intervêm na comunicação dos quatro
participantes, organizando, moldando, limitando sua fala, inclusive, em
suposições sobre o conhecimento dos outros interlocutores a respeito do tema
em questão.
Considerando que os modelos mentais têm uma dimensão pessoal e que
as representações são socialmente compartilhadas entre os membros de uma
mesma comunidade epistêmica, é possível observar que a fala dos pescadores
remete à representação de uma cultura tradicional, nos termos apontados por
Diegues (1998). Podemos dizer ainda que as práticas sociais se traduzem em
práticas discursivas, intermediadas pelos modelos mentais dos pescadores
artesanais sobre si mesmos e sua atividade, o que se percebe na fala em
expressões dêiticas, indiciais e referenciais, bem como em recursos retóricos,
tais como organizadores de texto, repetições etc, conforme se pode observar
nas seguintes falas:
- Para mim é tão mais importante, porque meus pais já veio da pesca né?
- E eu já aprendi essa atividade...esse trabalho
- E é o trabalho que eu gosto...que eu vivo...que eu dou meu sangue (P1)
- Para mim a pesca é uma tradição dos meus pais, dos meus avó
- Que eu mantenho até os meus filhos...é uma tradição (P3)
- A pesca...ela tá no sangue né?

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 444


- A pesca é uma coisa que vem de geração em geração né?
- E tamos vendo que agora no nosso futuro está tudo se acabando (P2)

Ainda sobre as representações mais gerais e compartilhadas pelo grupo


social, há uma riqueza na fala dos pescadores que se traduz em uma estratégia
discursiva ideológica, representando positivamente Nós, que linguisticamente
se enquadra na categoria dos dêiticos. Como frisado anteriormente, os dêiticos
não têm valor semântico, mas adquirem-no a cada nova enunciação, pois fazem
referência explícita a modos como o falante produz e compreende a fala na
interação. É o que ocorre quando os pescadores fazem referência à situação
presente e passada, a si mesmos como falantes, a sua identidade, à orientação
sociopolítica vigente em relação à pesca artesanal etc. Essas expressões dêiticas
tendem a ser explícitas, precisas, específicas, declaradas, detalhadas (VAN
DIJK, 2015), conforme pode ser observado nesta fala:

- Nós pensamos no futuro...porque o futuro também é...uma parte bom


né?
- A nossa facção...os nossos costumes.
- O que a gente nascemos daquela raiz, daquele sangue (P1)

O contexto que dá conta da interação dos pescadores envolve suposições


baseadas nos saberes ou conhecimentos dos interlocutores, bem como suas
opiniões e emoções ancoradas em modelos mentais, como se percebe nas
seguintes falas:

- Então, isso é muito triste, isso é muito triste...(P1)


- E o que a gente quer é que isso não acabe...mas sim que dê continuidade
para os nossos filhos...
- A gente tem um pé na frente (P2)
- Pra mim a pesca é uma tradição dos meus pais...dos meus avós...
- É uma...como se fosse uma...como se chama aquele negócio...que vem
lá de baixo até agora? (P3)

Quanto às representações ideológicas, a fala dos pescadores também


apresenta pressuposições sobre a atuação de grupos opositores. No sentido
apontado por Van Dijk (2015), isto é, sem detalhes em termos de críticas ou
intolerância, mas sim em relação aos desvios, crimes ambientais e à violência
dos “Outros” contra o modo de vida dos pescadores:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 445


- e tamos vendo que agora no nosso futuro está tudo se acabando.
- por quê? por conta da poluição.
- assédio...por conta de um monte de coisas... os pescadores estão
acabando...como se tivessem em extinção (P2)
- e futuramente vai se acabando
- isso é muito triste de ver essas coisas acontecerem e não poder
fazer nada (P1)

Considerações finais

Na análise da fala dos pescadores em torno da pergunta “o que é ser


pescador artesanal?”, percebemos um processo de coautoria, coargumentação
e coprodução que se observa em marcas de produção verbal conjunta como
trocas de turno e alternâncias no diálogo entre os interlocutores. Quanto às
funções cognitivo-interacionais, estas se fazem presentes em truncamentos,
repetições, hesitações e outras. O processamento do texto falado acaba
(re)construindo e atualizando um modelo mental de cada participante sobre o
que é ser pescador artesanal, tanto a partir dos modelos mentais pessoais quanto
das representações compartilhadas entre os participantes desta situação
comunicativa. Mesmo em se tratando da entrevistadora, que acaba inclusive
complementando muitas vezes a fala dos entrevistados.
Ainda em relação à construção do contexto, notamos que os
participantes continuamente ativam sua memória tanto episódica quanto de
longo termo, fazendo referência a textos do passado, quando falam da pesca
artesanal. Ou seja, além de haver uma interação situada, em andamento e face a
face, de construção de uma representação social, a fala dos participantes remete
a situações históricas (positivas e negativas), ou seja, uma estrutura social
ideológica e epistêmica mais ampla, o que é indiciado em diversos momentos
da fala dos entrevistados.
Além disso, a subjetividade dos modelos mentais dos pescadores pode
ser observada nas suas falas carregadas de emoções, como tristeza e

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 446


desesperança, ao se referir à sua atividade produtiva, mas também esperança,
quando afirmam que “juntos, se unindo, falando alto” acreditam que “algo vai
acontecer”. Em relação a este último ponto, acreditamos que isso também se
deve a que a entrevista foi realizada em um episódio comunicativo relevante
para o grupo social, em que os pescadores buscavam debater soluções para
enfrentar os problemas da pesca artesanal urbana. Por último, a análise
sociocognitiva das falas dos pescadores entrevistados deixa transparecer a
situação contingente em que o grupo social se encontra, enfrentando desde
ameaças à manutenção do seu modo de vida e produção, que está “em
extinção”, bem como do seu território pesqueiro, que “está se acabando”.

Referências
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Dissertação (Mestrado em Extensão Rural). – Programa de Pós-Graduação
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Grande do Sul, 1986.

CÁRDENAS, C. N. Discursos de protesta y redes sociales: análisis de las prácticas


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FOX, V. D. P. P. Pesca artesanal e desenvolvimento local: o Movimento Nacional


dos Pescadores – MONAPE (1990 – 2009). Dissertação (Mestrado em
Extensão/Comunicação Rural e Desenvolvimento Local), Programa de Pós-
Graduação em Extensão Rural – Universidade Federal Rural de Pernambuco,
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MARCUSCHI, L. A. Contextualização e explicitude na relação entre fala e


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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 448


CAPÍTULO 32

O conhecimento linguístico e suas


implicações para a leitura e a
compreensão textual
Leandro Rafael Braz Alves1
Suênia Cordeiro Valério2

Introdução

O ensino de Língua Portuguesa apresenta uma série de desafios, entre os


quais podemos citar a dificuldade dos alunos em leitura e compreensão de texto.
Nesse sentido, as concepções de texto defendidas pela Linguística Textual
apontam a existência de conhecimentos envolvidos no processamento textual,
a exemplo dos que foram utilizados nessa pesquisa para investigar como eles
influenciam no desempenho dos alunos em questões de múltipla escolha.
Para isso, baseamo-nos em Cavalcante (2013) e Koch e Elias (2018), que
defendem a importância do conhecimento linguístico, o qual engloba as noções
de aspectos gramaticais e lexicais que auxiliam na compreensão do texto.

1 Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Letras- PROFLETRAS da Universidade de


Pernambuco- UPE. Professor da rede municipal de Itaíba e da rede estadual de Pernambuco. E-mail:
[email protected]
2 Mestranda do Programa de Mestrado Profissional em Letras- PROFLETRAS da Universidade de

Pernambuco- UPE. Professora da rede municipal de Venturosa e da rede estadual de Pernambuco. E-mail:
[email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 449


Complementamos o referencial teórico com os estudos da significação de Ilari
(2001, 2002), Biderman (2001), Henriques (2018), Cançado (2012) e Antunes
(2010), que apresentam uma visão significativa da importância e contribuição
que os estudos de semântica e léxico podem dar à formação do leitor/ falante
de língua portuguesa.
O objetivo deste paper é investigar o fator gerador de erro em questões
de múltipla- escolha que envolve/ exige a inferência do sentido de alguma
palavra em específico. Propomos, ainda, identificar a influência que a falta de
conhecimento linguístico tem para o resultado negativo obtido por alguns
alunos diante de questões que exigem o tipo de conhecimento supracitado.
A urgência de se conhecer e compreender as dificuldades com as quais
nossos alunos se deparam quando estão diante de textos, atividades e avaliações,
que exigem deles um nível de competência linguística que já deveriam ter,
resultantes dos conhecimentos básicos de semântica e do repertório lexical
adequado, justificam a preocupação disposta neste paper, já que os resultados
das aferições têm mostrado o contrário do que se tem registrado.
Para a realização da pesquisa acerca do fator gerador do erro em leitura
e interpretação, fizemos uma pesquisa de campo numa escola municipal da
cidade de Venturosa-PE. Para tanto, aplicamos para uma turma de nono ano
com 33 alunos uma atividade com quatro questões de múltipla-escolha que
exigiam dos alunos a inferência do sentido de determinadas palavras. Em
seguida, foi aplicado um questionário para os alunos explicitarem sobre
possíveis dificuldades que tiveram ao responder a atividade. Após a realização
dessa atividade, foi feita a análise das respostas dos alunos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 450


Tipos de conhecimentos envolvidos no processamento
textual

Ao realizarmos atividades de leitura de textos, utilizamos, mesmo que


inconscientemente, estratégias sociocognitivas para compreendermos de forma
efetiva o sentido daquilo que lemos. Essas estratégias são apontadas por
estudiosos da Linguística Textual como sistemas de conhecimento.
De acordo com Cavalcante (2013, p.21), “esses conhecimentos podem
ser de natureza linguística, enciclopédica e interacional”. Em uma breve
descrição, o conhecimento linguístico engloba as noções de aspectos
gramaticais e lexicais que auxiliam na compreensão do texto. O conhecimento
enciclopédico também conhecido como conhecimento de mundo compreende
os conhecimentos gerais adquiridos pelo indivíduo ao longo da vida que
permanecem ativos na sua memória. Já o conhecimento interacional está ligado
à interação que mobilizamos através da linguagem.
Esses conhecimentos são essenciais para a compreensão dos sentidos de
um texto e podem ser ativados em conjunto, pois há textos que necessitam da
ativação de mais de um tipo de conhecimento, já que eles. “envolvem o
conhecimento das operações cognitivas, das estratégias e dos procedimentos
que fazem a rotina das pessoas em seus eventos de interação verbal” (ANTUNES, 2010,
p. 40). Para a análise em questão, utilizaremos apenas a influência do
conhecimento linguístico na compreensão textual de alunos do ensino
fundamental.

O conhecimento linguístico e a produção de sentidos

Conforme já foi mencionado, o conhecimento linguístico aborda o


funcionamento da língua, ou seja, os aspectos gramaticais e o léxico e permite
que o leitor identifique através do material linguístico algumas escolhas do

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 451


produtor do texto com mais facilidade, acarretando a compreensão do sentido
do texto apresentado. Acerca desse tipo de conhecimento, Koch e Elias (2018,
p.40) mencionam que ele:

abrange o conhecimento gramatical e lexical. Baseados nesse tipo de


conhecimento, podemos compreender: a organização do material
linguístico na superfície textual; o uso dos meios coesivos para efetuar a
remissão ou sequenciação textual; a seleção lexical adequada ao tema ou
aos modelos cognitivos ativados.

É conveniente conhecer as particularidades da língua, pois, em muitos


casos, podemos perceber que a compreensão do sentido está diretamente ligada
a um aspecto do uso da língua. Logo, para Cavalcante (2013, p.21), “o
leitor/ouvinte utiliza tudo o que sabe, consciente ou inconscientemente, sobre
o funcionamento da língua para interpretar o texto”.
Quando o leitor não identifica algo específico da língua que, em
determinado texto, é fator essencial para a sua compreensão, como, por
exemplo, um recurso coesivo, a ambiguidade de um termo, o significado de
uma palavra ou expressão, e os sentidos desse texto são construídos
basicamente em um desses elementos linguísticos da superfície textual, fica
perceptível que a compreensão do texto é prejudicada no momento que não se
ativa o conhecimento necessário. Percebemos, nesse ponto, a importância do
conhecimento linguístico nas atividades de leitura e interpretação de texto.

Léxico e semântica: contribuições dos estudos das


teorias da significação

Há dois fatores com tanta relevância para o processo de compreensão e


interpretação de texto quanto o conhecimento dos aspectos gramaticais de uma
determinada língua: são os conhecimentos semânticos e lexicais. Rios (2009, p.
415) define léxico como “o conjunto de vocábulos de um idioma, ou seja, as

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 452


palavras que compõem o repertório de uma língua”. Fazem parte do léxico de
uma língua, portanto, as gírias, os neologismos, as expressões idiomáticas e os
ditados populares. Não importa se o falante reconhece sua origem ou processos
de formação, mas cada palavra ou frase que ele usa no dia a dia faz parte do seu
repertório lexical. E esse repertório pode ser vasto e plural, contendo desde
palavras corriqueiras de uso mais comum e despretensioso dos falantes com
menor escolaridade aos níveis mais específicos de uma língua, como a
linguagem técnica de determinadas profissões, ou mesmo as palavras mais
polidas e rebuscadas da língua culta.
O estudo lexical é feito pelas ciências do léxico, a exemplo da lexicologia
e da lexicografia que são definidas por Biderman (2001, p.15) da seguinte forma:

A Lexicologia, ciência antiga, tem como objetos básicos de estudo e análise


a palavra, a categorização lexical e a estruturação do léxico. Enquanto a
Lexicografia é a ciência dos dicionários. É também uma atividade antiga e
tradicional. A Lexicografia ocidental iniciou-se nos princípios dos tempos
modernos. Embora tivesse precursores nos glossários latinos medievais,
essas obras não passavam de listas de palavras explicativas para auxiliar o
leitor de textos da antiguidade clássica e da Bíblia na sua interpretação. A
Lexicografia só começou, de fato, nos séculos XVI e XVII com a
elaboração dos primeiros dicionários monolíngues e bilíngues (latim e uma
língua.moderna).

Há, ainda, dentre as ciências, a terminologia, que trata da criação de


termos para nomear conceitos. É a partir da identificação de características
semelhantes que a terminologia faz a nomeação de palavras da mesma categoria
lexical, conforme defendem Krieger e Finatto (2004).
Tão importante para nossa proposta quanto o conceito de léxico, das
ciências relacionadas a ele e das contribuições teóricas a serem contempladas
no trabalho com a língua materna é entendermos o que é semântica. Essa
categoria linguística é definida por Rios (2009, p.615) como “estudo ou ciência
das mudanças que, no espaço e no tempo, sofrem os significados das palavras”.
Essa definição aparenta ser um pouco incipiente, o que torna necessária a
verificação de outras fontes. Considerando a definição de semântica encontrada

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 453


em Pottier (1992, p.11 apud Henriques 2018, p.01), verificamos que:

A Semântica se preocupa com “mecanismos e operações relativos ao


sentido, através do funcionamento das línguas naturais [...]”, tentando
“explicar os elos que existem entre os comportamentos discursivos num
dado envolvimento, constantemente renovado, e as representações
mentais que parecem ser partilhadas pelos usuários das línguas naturais”.
Essa reflexão traça um “percurso entre o individual e o universal, através
do cultural” e procura conciliar “a extensão e a variedade das
manifestações linguísticas e a necessidade de uma apresentação
relativamente simples dos funcionamentos profundos da língua.

Cançado (2012, p.18) resume as definições supracitadas, considerando


que “a semântica é o ramo da linguística voltado para a investigação dos
significados das sentenças”. Ou seja, dedica-se a estudar as múltiplas
possibilidades de sentido que uma única palavra pode assumir, dependendo do
falante, do contexto e da situação comunicativa do uso de determinada palavra”.
E para ratificar nosso pensamento quanto ao destaque conferido ao
estudo da significação, Ilari (2001, p.11) afirma que:

Umas das características que empobrecem o ensino médio da língua


materna é a pouca atenção reservada ao estudo da significação. O tempo
dedicado a esse tema é insignificante, comparado àquele que se gasta com
“problemas” como a ortografia, a acentuação, a assimilação de regras
gramaticais de concordância e regência, e tantos outros, que deveriam dar
aos alunos um verniz de “usuário culto da língua”. Esse descompasso é
problemático quando se pensa na importância que as questões da
significação têm, desde sempre, para a vida de todos os dias, e no peso que
lhe atribuem hoje, com razão, em alguns instrumentos de avaliação
importantes, tais como o Exame Nacional do Ensino Médio, os
vestibulares que exigem interpretação de textos e o Exame Nacional de
concursos.

Observa-se que há falhas no ensino de língua quando não se percebe a


importância do léxico para ampliar a competência comunicativa dos estudantes
e isso interfere no desempenho da leitura e compreensão de textos, como
exploraremos a seguir.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 454


Análise dos dados e discussão

Para ser feita a comparação e análise dos dados, foi tomado como ponto
de partida a quantidade de erros e acertos na primeira questão da atividade
entregue aos alunos. Como pode ser visto no gráfico 1, a quantidade de erros
na primeira questão da atividade - 60,6% foi superior à quantidade de acertos
registrados em 39,4% das respostas dos alunos. A partir desses dados,
observamos também a relação de erros e acertos com as outras questões. Dos
alunos que acertaram a primeira questão, o índice de acertos também nas
questões 2, 3 e 4 foi satisfatório, ultrapassando os 76% e chegando a 84,6 % na
questão 4. Já com relação aos alunos que erraram a 1ª questão, a dimensão de
erros nas questões 2, 3 e 4 foi proporcional ao resultado dos acertos, mas de
forma negativa, tendo como resultado 55% de erros na questão 3 e 75% nas
questões 2 e 4.

Figura 1: primeira questão da atividade aplicada com os alunos

Fonte: https://profwarles.blogspot.com/por descritor - português - 9° ano

Para causar o humor no texto, seu produtor se utiliza de um jogo de


sentidos no uso da expressão “PETRÓLEO REFINADO”. Um dos sentidos
possíveis para a palavra destacada é petróleo:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 455


(A) estruturado.
(B) mal humorado.
(C) diversificado.
(D) bem educado.

Figura 2: Gráfico com percentual de erros e acertos dos alunos

Fonte: Elaborada pelos autores

Figura 3:gráfico com percentual de acertos na primeira questão

Fonte: Elaborada pelos autores

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 456


Figura 4:gráfico com percentual de erros na primeira questão

Fonte: Elaborada pelos autores

Ao final da atividade, os alunos responderam um questionário com


apenas quatro quesitos, acerca das dificuldades que tiveram para responder às
questões da atividade, caso eles confirmassem a existência de alguma. As
perguntas foram as seguintes:

1º Houve dificuldades de compreensão no objetivo da questão, ou seja, no era que para


ser feito? Em qual/quais questão/questões?
2º Houve dificuldade de compreensão do enunciado de alguma questão por não conhecer
o significado de alguma palavra? Qual foi a questão? Qual palavra gerou dúvida?
3º Houve dificuldade de compreensão do texto de alguma questão por não conhecer o
significado de alguma palavra? Qual foi a questão? Qual palavra gerou dúvida?
4º Houve dificuldade para reconhecer a alternativa correta de alguma questão por não
conhecer o significado das palavras das alternativas? Qual alternativa? Qual palavra?

Ao analisarmos as respostas que os estudantes deram, percebemos a


seguinte relação: nos 39,4% dos alunos que acertaram a primeira questão, a
maioria disse não ter havido as dificuldades apresentadas nas perguntas do
questionário nas alternativas 1 e 2, havendo um índice de respostas afirmativas
quanto às questões 3 e 4. Porém, os alunos que disseram ter havido alguma
dificuldade expuseram que o contexto os ajudou a responder a questão e
identificar o sentido das palavras que lhes causaram dúvida, sendo a palavra

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 457


mais citada como difícil ou desconhecida, a palavra erradicada contida na questão
três, que foi a mais citada como a que gerou mais dúvidas na hora de respondê-
la.
Como foi citado anteriormente, o índice de acertos por parte dos alunos
que acertaram a primeira questão, com relação às outras questões da atividade
foi bem próximo e com acertos acima de 76% dos alunos. O que fez com que
as respostas do questionário fossem sempre bem parecidas e na maioria das
vezes iguais. Abaixo as outras questões aplicadas:

Texto 2

Prezado Senhor,
somos alunos do Colégio Tomé de Souza e temos interesse em assuntos
relacionados a aspectos históricos de nosso país, principalmente os
relacionados ao cotidiano de nossa História, como era o dia a dia das
pessoas, como eram as escolas, a relação entre pais e filhos etc. Vínhamos
acompanhando regularmente os suplementos publicados por esse
importante jornal. Mas agora não encontramos mais os artigos tão
interessantes. Por isso, resolvemos escrever-lhe e solicitar mais matérias a
respeito.
2. O tema de interesse dos alunos é:
(A) cotidiano.
(B) escola.
(C) História do Brasil.
(D) relação entre pais e filhos.

Figura 5:Terceira questão da atividade aplicada com os alunos

Fonte: https://profwarles.blogspot.com/por descritor - português - 9° ano

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 458


3. No trecho “A variante da doença estaria erradicada desde 1990, mas foi
reintroduzida na região, de acordo com o ministro”, a palavra em destaque
poderia ser substituída sem prejuízo para a compreensão por:
(A) extinta.
(B) esquecida.
(C) adormecida.
(D) isolada.
4. Em “Não é simples, mas o Rio de Janeiro, ano passado e este ano, teve
bom desempenho”, a conjunção mas poderia ser substituída sem
mudança do sentido da oração por
(A) nem.
(B) logo.
(C) pois.
(D) porém.

Ao analisarmos as respostas dos alunos que erraram a primeira questão,


60,6% dos alunos, as respostas registraram um número muito superior de
afirmação das dificuldades relacionadas no questionário. As dificuldades
elencadas nas questões 1 e 2 foram citadas poucas vezes, havendo um
percentual muito maior de respostas relacionadas as alternativas 3 e 4. Como
ocorreu com os alunos que acertaram a primeira questão da atividade, os que a
erraram citaram como a questão que gerou maior dificuldade para a resolução
e a palavra que mais causou dúvida como sendo a mais difícil de compreendê-
la a questão 3 e a palavra erradicada.

Considerações finais

Após a correção das questões e análise das respostas dadas pelos alunos
na atividade, e posteriormente no questionário que eles receberam, chegamos
às seguintes conclusões:
a) As dificuldades estavam mais relacionadas ao baixo conhecimento do
léxico e da variação de sentido que algumas palavras podem assumir em
diferentes contextos.
b) A falta de conhecimento linguístico dos alunos foi nítida, pois a maior
parte dos estudantes apresentaram dificuldades em relação ao significado

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 459


de determinadas palavras e em fazer a inferência do sentido dessas
palavras pelo contexto e não conseguirem responder corretamente às
questões que lhes foram apresentadas.
Dessa forma, percebemos que o conhecimento linguístico influencia no
desempenho da competência leitora. É preciso refletir sobre o ensino de língua
portuguesa e como o estudo dos recursos lexicais e gramaticais é abordado,
rever a prática pedagógica na qual esses aspectos são vistos de maneira isolada,
ou apenas de meras classificações e pensar em estratégias de ensino em que
esses elementos sejam vistos como estruturadores do texto para sua
interpretabilidade linguística de maneira que amplie a competência linguística
do estudante.

Referências

ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo:


Parábola, 2010.

BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. As ciências do Léxico. In: OLIVEIRA,


Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri. (org.) As ciências do
léxico: Lexicologia, Lexicografia, terminologia. Campo Grande: Editora da UFMS,
2001.

CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios. 2. ed. São


Paulo: Contexto, 2018.

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto,


2013.

HENRIQUES, Claudio Cezar. Léxico e semântica: estudos produtivos sobre palavra e


significação. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

ILARI, Rodolfo. Introdução ao léxico-brincando com as palavras. 5. ed. São Paulo:


Contexto, 2012.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 460


______. Introdução à semântica- brincando com a gramática. 8. ed. São Paulo:
Contexto,2014.

KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos


do texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2018.

KRIEGER, Maria da Graça; FINATTO, Maria José Bocorny. Introdução à


Terminologia: teoria e prática. São. Paulo: Contexto, 2004.

RIOS, Dermival Ribeiro. Grande dicionário unificado da língua portuguesa. São


Paulo: DCL, 2009.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 461


CAPÍTULO 33

O ensino de uso da vírgula orientado


pelo discurso: uma experiência de
atuação no Programa Residência
Pedagógica do Curso de Letras de
Arapiraca
Fabrício de Farias Melo1
Elias André da Silva2

Introdução

Este artigo é resultado de atividades do Grupo de Pesquisa Descrição,


Análise Linguística, Literatura e Textualidade – DALLT, vinculado ao Curso de
Letras – Português da UFAL de Arapiraca. Traz o início de uma discussão a
respeito do ensino de uso da vírgula orientado pelo discurso, envolvendo não
só questões práticas, como o uso de vírgula(s) para isolar termos sintáticos
como o aposto – em alguns casos – e/ou o vocativo, mas também provocação
de efeitos de sentidos específicos. Parte da proposição de que importa mais
abordar, em sala de aula, questões discursivas, como indica Antunes (2003),

1Graduando em Letras (Português), UFAL, Campus Arapiraca. [email protected].


2Dr. em Letras (UFPE – PPGL) e Mestre em Letras (UFAL – PPGLL), Docente do Curso de Letras da
UFAL/ Campus de Arapiraca. [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 462


pois é a partir desse tipo de discussão que os estudantes podem (como devem)
refletir sobre o uso ou não uso dessa pontuação em determinados contextos.
O embasamento para tal sugestão de ensino se deu a partir de uma experiência
de atuação no Subprojeto Residência Pedagógica do Curso de Letras –
Português da UFAL de Arapiraca, a qual possibilitou a aplicação da proposta
em sala de aula.
Tem como objetivo geral sugerir uma proposta para o ensino de uso(s)
de vírgula(s) no que se refere ao isolamento de Expressões Adverbiais (EA) –
em forma de oração – enquanto determinador de sentido, e não apenas refém
da quebra da ordem canônica, como se indica tradicionalmente. Para isso,
especificamente, importa trazer relatos da prática mencionada a partir dos
resultados alcançados pelos alunos das turmas envolvidas na experiência.
Fundamenta-se em Melo e Silva (2017), que sugerem o isolamento de EA não
apenas como indicador de inversão da ordem canônica desse elemento, mas a
quebra da ordem em função de um sentido específico. Sobre o funcionamento
da vírgula como operador sintático e semântico, recorre-se aos estudos de
Dahlet (2006) e de Bechara (2015). Especificamente sobre uso da vírgula como
operador discursivo, adotam-se as concepções de Silva (2019). E, embora não
seja feita uma aproximação ao que se entende por funcionamento da vírgula
como fator argumentativo, também é importante mencionar Silva (2018). A
concepção de ordem canônica adotada (SVO+Adv) advém do que defende
Bechara (2015) e Azeredo (2008). Sobre advérbios, são trazidas considerações
de Mateus et al (2003). Especificamente no que se refere ao ensino de Língua
Portuguesa, as sugestões de Antunes (2003) são indespensáveis a este artigo.
A abordagem adotada se assume qualitativa, uma vez que a intenção
aqui é apontar caminhos voltados para o ensino de uso(s) da vírgula a partir
de um relato de experiência, independentemente da quantidade de aulas
previstas em calendário escolar, por exemplo. Além disso, apresenta a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 463


proposta tomando como base as discussões travadas em um processo de
interação com os alunos, como recomenda Antunes (2003). Essas discussões
foram norteadas por dois dados: um deles, para corroborar com a sugestão, é
apresentado por Dahlet (2006, p. 143); o outro é dado extraído de um texto 3
escrito único e exclusivamente em função das discussões propostas em sala.
Os procedimentos metodológicos adotados para esta produção contam com
o estudo da fundamentação teórica acima, com as observações e diagnóstico
das aulas ministradas, na forma das atividades de leitura de texto autêntico,
discussão para percepção de sentidos motivados pela virgulação, identificação
e aplicação de critérios de (não) usos. Este artigo encontra-se desenvolvido
em dois tópicos, antecedidos pela introdução e seguidos pelas considerações
finais. O primeiro dá conta da sugestão para a abordagem do conteúdo
didático. E o segundo dá conta do relato de experiência propriamente dito.

O ensino de uso da vírgula orientado pelo discurso

A sugestão que aqui se pretende fazer toma como base não só a


abordagem habitual que geralmente é feita quando se trata do ensino de uso
da vírgula no Ensino Básico. Inclusive, as aulas deram conta do que é
apresentado pelo livro didático utilizado4 como base para a abordagem das
aulas. Além disso, a prática oportunizou para que pudessem ser feitas
discussões voltadas para uma abordagem não só de construção sintática, mas
também semântica, de efeitos de sentidos distintos, utilizando-se da
manipulação de enunciados homônimos5, como sugere Dahlet (2006, p. 143).
Exemplo disso são os dados (1) e (2) apontados pela autora:

3 Encontrar-se-á em apêndice.
4 BORGATTO, Ana Trinconi; BERTIN, Terezinha; MARCHEZI, Vera. Projeto Teláris: Português – 7º ano.
2. ed. São Paulo: Ática, 2015.
5 Termo cunhado por Dahlet (2006).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 464


(1) Houve uma época em que os ricos não trabalhavam para ter
tempo de desfrutar a riqueza.
(2) Houve uma época em que os ricos não trabalhavam/,/ para ter
tempo de desfrutar a riqueza.
Fonte: Dahlet (2006).

Observe-se que em (1), não há a presença de vírgula entre o verbo


trabalhar e a Expressão Adverbial (EA) Final. Isso autoriza o leitor a
compreender que os ricos trabalhavam, mas não com o objetivo de ter tempo
para desfrutar da riqueza; muito pelo contrário, trabalhavam para qualquer
coisa, menos com intuito de atingir essa finalidade. Já em (2) ocorre o
movimento inverso, provocado especificamente pela presença de vírgula
entre o verbo trabalhar e a EA Final; isto é, entende-se que os ricos não
trabalhavam justamente para ter tempo de gozar da riqueza, ou seja, para
curtir seus privilégios financeiros. E isso não ocorre refém de uma pausa, por
exemplo, como se costuma pregar tradicionalmente; ocorre refém de uma
proposta discursiva, assim como para a quebra de ordem canônica de EA em
alguns casos, como pode ser visto abaixo:

(3) As pessoas eram convidadas para trabalhar nas ruas.


(4) Nas ruas, as pessoas eram convidadas para trabalhar.
Fonte: Melo e Silva (2017).

Acredita-se que promover abordagens como essas, por exemplo, em


sala de aula, oportuniza aos alunos de Educação Básica (ED) a não
permanecerem com a ideia de que não sabem fazer uso de uma vírgula, pois
os instiga a refletir a respeito do processo de escrita, para não dizer (X) ao
invés de (Y); além disso, e inevitavelmente, trabalha o processo de
interpretação textual – o que é de suma importância, para não se
configurarem, mais adiante, como pessoas que leem, mas que não entendem
o que está sendo dito.
Segundo Silva (2019, p. 168):

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 465


O que dever (sic) ser tomado como objetivo, no que diz respeito ao
tratamento dado às marcas de pontuação, é que elas devem ser vistas –
assim como todo signo presentes no texto – como recursos preenchidos
de sentido e de intencionalidades. Os estudantes precisam desde cedo
serem orientados a compreenderem que as marcas de pontuação
expressam muito mais que delimitações morfossintáticas e orientações
ritmo-melódicas. Como usuários da escrita, os alunos devem ser
apresentados à carga comunicativa inerente aos sinais de pontuação;
reconhecendo que algumas marcas de pontuação, por exemplo, indicam,
necessariamente, intenções discursivas, que sua presença no texto não se
justifica por aspectos morfossintáticos e/ou rítmico-melódicos. (SILVA,
2019, p. 168)

A fala desse autor converge com o que foi apresentado na aplicação da


proposta de ensino, uma vez que foi discutido um caso envolvendo EA em
forma de oração subordinada e em ordem canônica do Português do Brasil
(PB), isolada e não isolada por vírgula, em dados homônimos, para instigar os
estudantes a perceberem os diferentes efeitos de sentido entre um caso e outro,
como poderá ser visto adiante. Além disso, claro, também foram abordadas
questões dispostas no livro didático – que não oportunizaram esse tipo de
discussão, mas que não deixam de ser importantes para o
ensino/aprendizagem dos alunos.
É exatamente com base nesse tipo de constatação que essa proposta se
sustenta, uma vez que o livro didático nem sempre dá conta de algumas
demandas6, até porque não é dele a obrigação de se adequar a todas as turmas
de 7º ano e/ou de progressão de um país inteiro, por exemplo. Essa é uma
atividade que corresponde ao professor, cuja responsabilidade de interagir com
o livro e com os alunos, ao mesmo tempo, é atribuição bastante pertinente
para essa profissão, sabendo-se da ousadia de não tomar o livro como fonte
única para a aplicação das aulas; ou seja, o professor é quem deve diagnosticar
a turma e promover as devidas aplicações em prol do ensino/aprendizagem

6 Aqui não se faz nenhuma crítica ao livro didático.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 466


dos alunos. E assim foi feito.
Com isso, os estudantes conseguiram compreender que a vírgula pode
operar em um nível além do sintático-estrutural, por exemplo. Puderam
perceber que essa pontuação pode ir além do fator prosódico e/ou estético do
texto. A partir disso, entende-se que é mais vantajoso, tanto para quem se
encontra na posição de professor quanto para quem está na condição de
estudante, que as aulas sobre esse sinal de pontuação, por exemplo, também
abarque questões como essas.

Expressões Adverbiais em forma de oração

O advérbio é uma classe de palavra bastante complexa, haja vista o que


menciona Matheus et al (2003, p. 417) “os advérbios modificam vários tipos
de constituintes e podem ocupar posições distintas”. Por isso, a depender da
posição que esse tipo de expressão ocupe dentro de uma construção textual7,
a intenção comunicativa pode (não) ser atingida pelo escritor8. Isso depende
muito da percepção e domínio que determinada pessoa tem sobre a escrita.
Ademais, e não menos importante, a pontuação por vírgula pode ser bastante
útil com relação a isso, uma vez que ela pode atuar em função da estrutura,
para marcar uma quebra de ordem canônica, por exemplo, e/ou em função do
sentido, para alcançar o que se compreende como objetividade na escrita,
como sugere Bechara (2015).
Diante dessa perspectiva, sugere-se que, para o ensino de uso da vírgula,
além de motivações que dão conta da estrutura e do sentido, como as
adjetivações em forma de oração, por exemplo, sejam adotados casos em que

7 A quem interessar, ver Melo e Silva (2017).


8 O foco deste artigo é a modalidade escrita, mas isso não impede de esse tipo de situação se dar na fala.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 467


as EA se encontrem em forma de oração subordinada adverbial final9. Além
desse fator, precisa ser levado em consideração que a estrutura indique a ordem
canônica do PB, como pode ser visto em dados anteriormente apresentados.
A depender do que se queira dizer, isso fará com que, de certa forma, a
utilização da vírgula se torne indispensável, indo a um movimento divergente
com o que se prega tradicionalmente: o isolamento está para a quebra de
ordem canônica.
É importante destacar que essa marcação indispensável se dará à medida
que, na oração principal, houver a presença de um advérbio de negação não. A
aposta é que o uso de vírgula, em casos como esses, se dá, obviamente, em
função de uma proposta discursiva específica, como vem sendo defendido ao
longo desse trabalho. Havendo a ausência da negação não, entende-se que não
se faz necessário a utilização da vírgula, já que, com (ou sem) o isolamento, o
sentido permanece inatingível, adentrando, assim, em questões não só
semântica, de sentido, mas, sobretudo, de ordem sintática, de estrutura. Essa
constatação só reforça a importância dos advérbios para a escrita.

Relato de experiência

As aulas foram ministradas em uma Escola Estadual de Ensino Básico,


localizada no município de Arapiraca, em duas turmas de Ensino
Fundamental: uma de progressão (8º e 9º ano), no turno da tarde, e outra de
7º ano, no turno da manhã. O diagnóstico das aulas foi feito meramente pela
participação dos alunos no momento das discussões, cuja compreensão do
conteúdo se deu em um nível não esperado, já que, inicialmente, foram
colhidas informações de que tais alunos sentiam dificuldades para fazer uso de

9 Até o momento, não foi possível fazer um levantamento para verificar a existência desse fenômeno com

relação às outras adverbiais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 468


vírgulas e de entender suas motivações para uso(s) – o que, pelo sendo comum,
é praxe em quase todas as escolas.
A proposta inicial foi colher informações dos próprios alunos a
respeito do uso dessa pontuação. Para isso, foram feitas perguntas do tipo:
Para quê serve? Vocês costumam utilizá-la quando estão produzindo textos?
Vocês observam se o uso ou não uso interfere no sentido das informações de
um texto? As respostas divergiram, embora, infelizmente, a maioria tenha dito
que não observava e não fazia uso porque não sabia (e se sabia, indicou a
famigerada pausa, orientada, inclusive, pelo Google). Diante de tais
constatações, para não perder tempo – embora este artigo não sugira pressa
para abordagens de conteúdos –, partiu-se para as discussões, tomando como
base a leitura e conversa sobre o texto “A menina que gosta de estudar”, de
minha autoria, que foi de grande valia, já que trouxe reflexões a respeito do
foco e da oportunidade que o estudo – no sentido de estudar –, pode oferecer
a eles próprios.
A partir disso, foram feitos alguns comentários básicos a respeito do
uso dessa pontuação, utilizando-se de argumentos de autoridades, sempre
tomando cuidado para não pular etapas, em busca de um equilíbrio entre o
fato de se utilizar da ferramenta texto – após ter lido de forma compartilhada
com os alunos –, e contextualizar o que autores como Bechara (2015, p. 625)
defendem quando tratam dos sinais de pontuação “Os sinais de pontuação,
que já vêm sendo empregados desde muito tempo, procuram garantir no
texto escrito [...] solidariedade sintática e semântica”. Isso, de certa forma,
causou impacto e dificuldade para compreender o que estava se passando
naquele momento, uma vez que eles se acostumaram a lidar com a concepção
de que esse sinal de pontuação se fundamenta na mera indicação de uma
pausa breve, por exemplo.
Tendo isso em vista, a proposta inicial foi “quebrar” esse tipo de ideia,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 469


tomando como ponto de evolução o discurso de que há critérios para a
marcação com a vírgula, e um deles, inclusive, não é planamente o trato
estético e/ou prosódico quem vai orientar esse uso, pois, segundo Dahlet
(2006, p. 142), “[...] é contraditório o fato de referir ao conceito pausa, cujo
domínio de aplicação é o registro falado, quando trata-se(sic) da pontuação,
cujo domínio é por natureza o da escrita”. Ou seja, a pausa se dá na fala, à
medida que se lê determinada construção, e a marcação de uso da pontuação
se dá na escrita, que teve uma motivação específica e que, inclusive, pode ser
orientada pelo discurso.
Mas, antes de iniciar o debate em torno dessa perspetiva, optou-se por
dar conta de algumas discussões propostas no livro didático, que se
restringem a questões meramente estruturais. Além disso, o livro não dispõe
de uma abordagem abrangente com relação aos usos apresentados. Portanto,
diante da indicação e amostragem de algumas motivações para o uso da
vírgula, como o isolamento de aposto, vocativo, enumeração de elementos
que exercem uma mesma função sintática e quebra de ordem canónica de
expressões adverbiais (EA), foi possível “conversar” a partir das
oportunidades oferecidas pelo texto, das provocações feitas por eles próprios
e por mim, enquanto professor estagiário e regente em sala de aula.
Foi por meio dessas atividades que se chegou à discussão a respeito da
construção (5) “A escola não hesita em incentivar seus alunos/,/ para que
eles tenham sucesso”. Diante dela, foi possível provocar outra situação (6),
sem a presença da vírgula, “A escola não hesita em incentivar seus alunos para
que eles tenham sucesso”, para instigar os estudantes a refletirem a respeito
da mudança de sentido entre um caso e outro, denunciando, indiretamente,
que existe peculiaridade comunicativa em cada uma das construções textuais.
Na turma de progressão (8º e 9º ano), não foi possível obter um retorno
tão plausível, pois eles tiveram dificuldade para perceber distinções

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 470


significativas entre os enunciados. O entendimento só veio a partir do
momento que houve explicação. Mas assume-se que esse fator não prejudicou
as discussões. Já na turma do 7º ano, embora se trate de uma turma mais
jovem, foi possível obter um resultado que, de certo modo, pelo que eles
mesmos diziam, era considerado inesperado. O entendimento veio pouco
tempo depois de terem sido instigados a refletir a respeito – o que foi
surpreendente.
Observe-se que, no caso (5), a presença da vírgula autoriza concluir que
a motivação para a escola incentivar seus alunos era justamente para que eles
obtivessem sucesso na vida estudantil e social, e não para outra coisa. Já no
caso (6) não há a presença da vírgula, provocando um efeito de sentido
totalmente oposto ao de (5), uma vez que a não hesitação da escola em
incentivar seus alunos se deu para qualquer coisa, menos para que eles
tivessem sucesso na vida estudantil e/ou social. Isso implica dizer que o uso
da vírgula pode ser orientado, também, pelo discurso, sobretudo quando a
motivação para o isolamento envolver Expressões Adverbiais (EA) em forma
de oração e em ordem canônica do Português do Brasil (PB), como discutido
com os alunos.

Considerações finais

Ousar em função do ensino/aprendizagem não é e nem pode ser


considerado um equívoco, ainda mais quando se trata de aula de Língua
Portuesa (LP), que requer um nível de atenção bastante peculiar tanto do
professor quanto do aluno. Por isso, levar discussões como essas para o
Ensino Básico é indispensável, principalmente quando os próprios
documentos norteadores da Educação Básica já aderem concepções
inovadoras, que tratam de ações pensadas e refletidas em prol de uma escola

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 471


mais eficiente. Antunes (2003, p. 22), mencionando os PCN, diz que “já
privilegiam a dimensão interacional e discursiva da língua e definem o
domínio dessa língua como uma das condições para a plena participação do
indivíduo em seu meio social”. Isto é, não é a mera indicação de regras e
nomenclaturas que vai interessar ao ensino de LP e ao aluno, mas a utilização
dessas regras em função do uso da língua, da produção textual, da leitura e
interpretação de textos, etc.
Para isso, importa considerar o processo de interação e discursivo
apontado pela autora e, inclusive, por este artigo, em relação à especificidade
de ensino de uso da vírgula orientado não apenas por motivações estruturais,
mas também discursivas, uma vez que esses alunos, especificamente, a partir
da aplicação da proposta, conseguiram compreender que a vírgula, se usada
(ou não) dentro de determinada construção textual, pode causar efeitos de
sentido distintos, que a motivação para esse uso não se restringe à indicação
de pausa, como se costuma afirmar tradicionalmente. Acredita-se que a
compreensão básica entre o que se comunica em uma construção e outra já é
suficiente para o que se propõe a respeito dessa discussão, já que se trata de
alunos do Ensino Básico, que estão avançando no processo de escrita e
entendimento de textos. Portanto, considera-se que essa abordagem,
especificamente, foi bastante rica em comparação com o que foi alcançado e
tempo disponibilizado para a concretização das aulas.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola
Editorial, 2003.
AZEREDO, José, Carlos. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2008.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 472


BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 38. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2015.
BRITO, Ana Maria. Categorias Sintácticas. In Mateus, Maria Helena Mira.
Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho, 2003.
DAHLET, Véronique. As (man) obras da pontuação: usos e significações. São Paulo:
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MELO, Fabrício de Farias; SILVA, Elias André. Isolamento de Expressões
Adverbiais por vírgula e efeitos de sentido no Português do Brasil (PB). In ATAIDE, C.
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análises e aplicações. Recife: Pipa Comunicação, p. 919-930. ISBN 978-85-
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textuais – do sintático ao discursivo. In AZEVEDO, I. C. M.; ANDRADE, A. de
M.; MARENGO, S.
M. D. A. Estudos linguísticos e literários em múltiplas perspectivas. São
Cristóvão – SE: Editora UFS, 2019, p. 158-174. ISBN: 978-85-7822-678-7.
SILVA, Marcone Salgueiro. O papel argumentativo dos sinais de pontuação. In
GELNE, XXVII JORNADA INTERNACIONAL, 27, 2018, Recife. Recife:
2018.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 473


CAPÍTULO 34

O gênero de texto diário virtual de


leituras: um instrumento pedagógico
rumo à construção de sentidos
Ângela Alves de Araújo Barbosa1
Sandra Patrícia Ataíde Ferreira2

Introdução

Este artigo é um recorte do nosso trabalho investigativo de dois anos,


que resultou em nossa dissertação, no campo da Psicologia Cognitiva, com
interface com o campo da Linguística. O objeto de estudo foi a produção de
sentidos pela mediação de diários de leituras produzidos na plataforma de um
blogue por estudantes do curso do primeiro período de Pedagogia, turno
noturno, do departamento de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Os diários produzidos tiveram como referente textual de
leituras o livro intitulado Conceitos da Psicanálise afetos e emoções.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de

Pernambuco (UNICAP). Integrante do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos Dialógicos e Textuais. E-mail:
[email protected]. Bolsista CAPES/PROSUC.
2 PhD em Linguística Aplicada. Graduação, Mestrado e Doutorado em Psicologia. Professora do quadro efetivo

do Departamento do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Professora do


Programa de Pós-Graduação de Psicologia Cognitiva (UFPE). Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa
Linguagem Leitura e Letramento (GEPELLL). E-mail: [email protected].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 474


A fundamentação teórica teve por eixo o materialismo histórico e
dialético à luz do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), partindo-se do
pressuposto que toda atividade humana, envolvendo práticas verbais ou
linguageiras, é mediada por gêneros de textos. Sendo o diário de leituras um
gênero de texto informal que se adapta ao contexto de produção formal,
construído paralelamente à leitura de um texto-base, o objetivo geral da
investigação foi compreender o processo de interpretação e o agir de produção
de sentidos de um universitário pela mediação desse gênero de texto. Por ser
uma produção diarista em blogue, em ambiente virtual, os diários de leituras
foram adaptados a um novo contexto de produção, o virtual, configurando um
gênero de texto digital. A justificava da pesquisa voltou-se para a contribuição
nos estudos sobre os mecanismos receptivos em gêneros de textos situados em
contexto acadêmico pelo viés sócio-interacionista.

Breve apresentação do quadro do Interacionismo


Sociodiscursivo (ISD)

O quadro do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) se autodenomina


como uma “corrente da ciência do humano” (BRONCKART, 2006, p. 10), com
abertura a todos os princípios fundadores do interacionismo social, contestando
a divisão das Ciências Humanas/Sociais em uma corrente linguística,
psicológica ou sociológica. A sua base filosófica sintetiza três princípios
conjuntos que são o materialismo, o monismo e o evolucionismo, articulados
ao esquema de desenvolvimento de Vygotsky. Como destacado por Barbosa
(2014), a argumentação de Bronckart (2008) é que

O princípio do materialismo permite afirmar que o universo é constituído


pela matéria em permanente atividade e que todos os ‘objetos’ que nele se
encontram, inclusive os processos de pensamento da espécie humana, são
realidades materiais. O princípio do monismo leva a firmar que, embora
alguns desses objetos pareçam ser físicos e outros pareçam ser psíquicos,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 475


isso se deve apenas a uma diferença ‘fenomenológica’ e não a uma
diferença de essência; pois na verdade, em essência, tudo é matéria. [...] O
princípio do evolucionismo leva a considerar que, no decorrer da marcha
do universo, a matéria ativa deu origem a objetos cada vez mais complexos
e a organismos vivos, em um processo em que os objetos [...] produzem
mecanismos para sua própria organização. (pp.109-110) [grifo do autor]

O ISD defende a ideia da apreensão da evolução humana pelo viés da


perspectiva dialética e histórica, uma vez que a genealogia humana se dá de
forma não linear, descontínua. Neste princípio, as capacidades biológicas do ser
humano “possibilitaram as atividades coletivas com o uso de instrumentos e,
para a organização dessas atividades, foi necessária a emergência de produções
linguageiras.” (BRONCKART, 2008, p. 110). As práticas linguageiras situadas,
(ou os textos-discursos), são, para Bronckart (2006), os instrumentos
fundamentais do desenvolvimento das pessoas, tanto em relação aos
conhecimentos e aos saberes como em relação às capacidades do agir e da
identidade.

O gênero de texto pelo ISD e algumas considerações


acerca do diário [virtual] de leituras

Os gêneros de texto são instrumentos simbolicamente utilizados como


mediadores e orientadores assim como os signos são para Vygotsky. Eles
gêneros são múltiplos e em número infinito pela relação de interdependência
com as atividades humanas. De acordo com Bronckart (2006), os gêneros de
textos são produtos configurados por escolhas que, pelo uso, ficam
estabilizados momentaneamente, sofrendo mudanças, necessariamente, tanto
com o tempo quanto com a história das formações sociais de linguagem. Essas
escolhas têm dependência com o trabalho desenvolvido por essas formações
sociais, fazendo com que os textos sejam adaptados às atividades, a um dado
meio comunicativo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 476


Os gêneros de texto também são compreendidos como pré-construídos
e são concebidos níveis de relações entre eles que são a mediação
sociossemiótica e a apropriação, em permanente movimento dialético. A
apropriação dos gêneros, de acordo com Bronckart (1999/2003), condiciona a
pessoa humana por ser um mecanismo fundamentalmente socializável que, na
práxis, a insere nas atividades comunicativas tipicamente humanas. Os
conjuntos das propriedades ativas do desenvolvimento da pessoa (re)constroem
os pré-construídos coletivos.
O quadro do ISD propõe um esquema de arquitetura do gênero de texto,
em três níveis estruturais superpostos: nível 1, o mais profundo, definido pelas
características do planejamento geral do conteúdo temático e os tipos de
discursos, de ordem cognitiva, além de suas modalidades de articulação; nível
2, a coerência temática ou linear constituída pelos mecanismos de textualização;
nível 3, a coerência pragmática que se refere ao engajamento enunciativo,
constituído pelos mecanismos de responsabilidade enunciativa e de
modalização. Essa arquitetura é voltada para a configuração da produção
textual, aqui adaptada e situada no nosso estudo do mecanismo de recepção
pela mediação do diário [virtual] de leituras.
Ataíde et al. (2017), apoiadas em Machado (2009), trazem a definição do
diário de leituras como:
um gênero textual do domínio privado, de valor heurístico de escrita que
favorece, por sua vez, a apropriação dos gêneros públicos pelo fato de
possibilitar a ‘apropriação do gênero por si para si’”, orientado por
escolhas pessoais” (MACHADO, 2009 apud ATAÍDE et. Al, 2017, p.
182).

As autoras também destacam a partir de Machado (op. cit.) que o diário de


leituras é
um gênero de texto que se produz à medida que se lê, com o principal
objetivo de dialogar com o autor do texto, de forma reflexiva, como em
uma situação de conversa em uma situação real. Para tal, o leitor precisa
fazer uso de operações e atos de linguagem, como, por exemplo,
concordar ou discordar e avaliar de acordo com as normas vigentes; pedir

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 477


esclarecimentos e perguntar, parafrasear; relacionar o que foi dito com as
experiências pessoais ou de outras pessoas; expressar emoções; relacionar
o que foi dito com outros conhecimentos ou outras linguagens. (ATAÍDE
et al., p. 182).

Segundo as observações de Machado (1998),

a mobilização dos conteúdos para uma produção verbal relacionada à


atividade de leitura em situação escolar sofrerá uma restrição não só pelas
representações dos parâmetros da situação de comunicação específica,
mas também pela representação que o aluno se faz dessa atividade. (pp.
63-64).

O diário [virtual] de leituras produzido no suporte da plataforma de um


blogue configurou-se em um gênero de texto digital e emergente, com
influências do gênero diário genérico3 (MACHADO, 1998) ao gênero de texto
diário de leituras (MACHADO, 1998) adaptado ao blogue pelos agentes que
participaram da atividade. Na produção dos diários investigados na nossa
pesquisa, são introduzidos desdobramentos como exemplo a linguagem não-
verbal (imagens relacionadas à leitura em realização), como uma característica
do diário virtual de leituras.
Nos achados da pesquisa, o gênero diário virtual de leituras funciona
como uma ferramenta pedagógica para o aluno na atividade de leitura rumo à
produção de sentidos. Os leitores ao postarem comentários, estabelecem
discussões e promovem questionamentos, potencializando a geração de novas
leituras, outras rotas interpretativas e processamentos outros de atribuição de
sentidos. Como ferramenta pedagógica, ainda auxilia o(a) docente no
acompanhamento do processo de interpretação textual dos alunos.

3 Citação direta do trabalho dissertativo de Barbosa (2014, p. 41) para esclarecimento sobre o gênero diário
genérico. “O gênero diário genérico é tratado por Machado (1998) situando-o historicamente quanto à
imposição da prática diarista datado a partir do século XIX. Por razões de mudanças históricas e sociais
decorrentes daquele século, que foram as contradições e rupturas dos princípios sociais da liberdade e igualdade,
confrontados às condições reais no cotidiano dos indivíduos, a prática diarista passa a ser realizada.”

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 478


Percursos metodológicos

A metodologia fundamenta-se na perspectiva qualitativa (GRESSLER,


2004), visando a compreensão de uma realidade específica, ou seja, ideográfica,
em que os significados são relacionados a determinado contexto, não
desobrigada à contribuição do conhecimento. Optamos pela análise
documental, pois as análises dos dados foram feitas a partir dos textos dos
diários virtuais de leituras de um aluno universitário. O instrumento de coleta
foi o blogue e os corpora foram os diários.
O diário virtual de leituras teve como objetivo primeiro ser um
instrumento pedagógico para avaliar o processo da aprendizagem dos alunos.
A produção desses diários foi uma proposta da professora responsável pela
disciplina Aspectos Sócio-Afetivos do Desenvolvimento, oferecida à turma do
1º período do curso de Pedagogia, do turno da noite, no segundo semestre de
2010, composta por 52 alunos, dos quais 47 frequentavam regularmente. A
Teoria de Freud foi o eixo de leitura, cuja atividade realizada foi dividida em
grupos de 5 (cinco), culminando na proposta da atividade de elaboração de um
blogue chamado de Diário de Leitura, nele sendo postadas impressões,
interpretações e considerações sobre a leitura de um pequeno livro, abordando
os conceitos da Teoria Psicanalítica de Freud. Cada grupo ficou responsável
pela discussão de um dos conceitos oriundos dos textos básicos, Complexo de
Édipo, Libido, Associação Livre, Histeria, Superego, Inconsciente, Sublimação,
Afetos e Emoções.
Os blogues, criados pelos grupos para a realização do diário de leituras,
possibilitaram a cada integrante seu próprio diário ao passo que iam refletindo
a leitura daquele texto. O blogue construído para as elaborações dos diários,
aqui selecionado, foi o intitulado de “Afetos e emoções”, dando referência ao
livro solicitado para leitura, o texto-apoio, encontrando-se ainda disponível na

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 479


internet (on-line), mas inativo. O critério de seleção do blogue foi a frequência
e o comprometimento dos membros em construir seus diários, totalizando em
seis diaristas, dentre os quais um foi selecionado.
Como critério de seleção, consideramos dois diários de autoria do
mesmo aluno, que desencadearam um maior número de comentários dos
participantes do blogue como também a interação de outros grupos, sendo seis
comentários no primeiro diário e quatro comentários no segundo diário. Os
diários foram intitulados de (1) “O que sentiram ao ler o livro?” e (2) “O que
pensaram?” cujos títulos foram questionamentos precursores da
professora/mediadora, postados no blogue, para todos os alunos. A seleção dos
comentários, compreendidos neste estudo como um processo colaborativo de
trocas e complementos interpretativos, seguiu dois critérios: 1) legitimidade ao
que é comentado ou discutido (o assunto/tema do diário e do livro, dúvidas,
considerações, não extrapolando conteúdos de outra ordem que não do
contexto do diário); 2) efeito dos comentários sobre o agir do leitor/produtor
dos diários (contrarréplica, (re) posicionamento e/ou novo percurso
interpretativo).
O procedimento de análise iniciou com realização de uma pré-análise
para contextualizar e situar a ação de linguagem que originou cada diário,
considerando a pessoa, o tempo e o lugar da produção (leitura e escrita digital)
seguindo para as análise dos três níveis da arquitetura textual dos gêneros
(mundos discursivos através dos tipos de discursos; (ii) textualização através dos
organizadores textuais com função de organizadores interpretativos; (iii)
coerência pragmática) advindos da proposta de Bronckart (1999/2003), mas
adaptada ao que buscamos compreender: os processos interpretativos pelo
mecanismo receptivo mobilizador da produção de sentido.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 480


Análise

Pré-análise de um dos diários virtuais de leituras intitulado de


“o que sentiram ao ler o livro?”
Esse procedimento analítico denominamos de Pré-análise do Contexto Sócio-
interacional de Produção - Parâmetros Físicos e Sociossubjetivos do Diário Virtual de
Leitura, considerado relevante para contextualizar a pessoa leitora, o período da
leitura e lugar da leitura para a progressão analítica da seguinte forma:
a) Leitor-agente/produtor do diário/autor: Lean4
b) Título do diário de leitura 1: O que sentiram ao ler o livro?
c) Data da postagem (suposta produção do diário): 10 de setembro de 2010
d) Perfil da pessoa que escreveu o texto: aluno universitário, primeiro ano de
pedagogia, supostamente, tendo um primeiro contato com o livro em
questão e reflexão sobre os conceitos afeto, sentimento e emoção,
mediante atividade de origem formal/acadêmica.
e) Perfil do(s) Destinatário(s) do produtor do diário de leitura: os
leitores/interlocutores desse diário de leitura são os colegas de sala, outros
universitários em períodos mais avançados e a professora. Os colegas-
interlocutores estão divididos em 3 grupos: leitores do mesmo livro
(Afeto e emoções), também produtores de diários no mesmo blogue;
leitores de outros livros (outros conceitos da psicanálise), produtores de
diários em outros blogues e “não leitores de ambos os grupos”, não
produtores de diários (alunos de períodos adiantados). A professora é a
destinatária-mediadora, pois lança no(s) blogue(s) questionamentos
precursores para as postagens dos diários de leitura, como, por exemplo,
“o que sentiram ao ler o livro?”

4 Nome fictício do aluno universitário que produziu o diário virtual de leituras a ser investigado.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 481


f) Perfil da instituição que o diarista de leitura virtual estava filiado: instituição de
ordem formal e governamental, educativa-profissionalizante em nível de
graduação. A realização dos diários foi constituída em espaço
descentralizado mediante recurso tecnológico, internet, blogue, cuja
responsabilidade de criação e manutenção desse espaço virtual foi do
grupo de diaristas de leituras. Dessa forma, construindo um canal de
produção acadêmica entre o formal, contato com o representante
institucional (a professora), e o informal, contato com os colegas, fora
do espaço físico da universidade, possibilitando até um terceiro na
interação de contexto informal (possível familiar ou amigo).
g) Objetivo do diário de leituras: refletir sobre o tema/conceitos tratado(s) no
livro à medida que lê e escreve, ao passo que a plataforma blogue
possibilita a discussão com os interlocutores ausente do contexto
imediato, em tempo assincrônico.
h) O local social de onde fala/escreve o enunciador (leitor): mesmo estando em
um ambiente físico (o blogue) aquém da instituição em si, a produção
dos diários de leitura foi uma proposta originária de uma atividade
acadêmica que acometeu responsabilidades a esse leitor quanto à
realização dessa atividade. O leitor escreve, pois, de um local social
acadêmico no papel de aluno em que o interlocutor reforça a
permanência desse leitor nesse local social.
i) Efeitos pretendidos pelo leitor/produtor do diário sobre o(s)
destinatário(s)interlocutor(es): construir uma imagem de concordância e
utilidade sobre a psicanálise, buscando convencer seu destinatário que a
leitura do livro irá proporcionar “prazer”, fácil compreensão,
aprendizagem, reconhecimento e solução de problemas de ordem
psicológica (mental-emocional).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 482


j) Efeitos do livro para o leitor-agente: convencimento, mudança de
compreensão sobre o tema, prazer na leitura, identificação dos conceitos
com seu meio de convivência.
k) Efeitos dos interlocutores para esse leitor-agente (diarista): aceitação,
confirmação e reforço sobre a imagem construída pelo próprio diarista
sobre os conceitos da psicanálise freudiana discutidos (afetos,
sentimentos, emoções) consonante com seu círculo de convivência
cotidiana; o significado dos termos em si; estímulo à continuidade da
leitura da teoria de Freud.

Análise adaptada dos níveis da arquitetura textual do diário “o


que sentiram ao ler o livro?”

Esta fase da análise foi desdobrada em três momentos, comportando os


níveis da arquitetura textual, adaptadas ao objeto de estudo5. A análise do nível
1 procura identificar e compreender através de unidades linguísticas a posição
do leitor quando produz o diário virtual de leituras, as decisões tomadas nessa
produção quanto à constituição do mundo discursivo e a ativação de tipos de
raciocínios predominantes como mecanismos organizadores na produção de
sentidos. A análise do nível 2 está sobre a escolha do leitor/produtor diarista,
que é orientada por operações mobilizadoras de procedimentos textuais
mediante conexão, coesão verbal e coesão nominal. No nível 3, a análise é
voltada para os modalizadores e a gestão de vozes, pois promovem a
manutenção interativa do texto em uma organização que envolve jogos de
vozes e julgamentos do leitor/diarista diante do conteúdo temático do livro.
Três subconjuntos de vozes são identificáveis pelo ISD, chamados de a) voz do

5Indicamos a leitura da dissertação “O agir de produção de sentidos no processo de interpretação em diários de leitura/blog
por estudante universitário” (BARBOSA, 2014) para um maior aprofundamento das análises realizadas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 483


autor empírico, b) vozes sociais exteriores ao conteúdo temático do texto e c)
vozes de personagens que são diretamente implicadas no percurso temático.
Identificamos no diário seis vozes as quais denominamos de explícitas e
implícitas.

Considerações finais

Os resultados indicaram que a produção do diário virtual de leituras


revelou-se como um gênero de texto propiciador de circuitos de leituras que,
adaptado às redes comunicativas virtuais, possibilita ao professor/pesquisador
adentrar nos circuitos construídos pelo leitor e pelos demais interlocutores
(interleitores), mobilizando ações concretas, em determinado tempo e situação
de produção de leitura, pela mediação da atividade acadêmica. Configura-se,
pois, uma ferramenta que possibilita compreender como são orientados os
“agires” que constituem [novas] rotas interpretativas em processos de produção
de sentidos. No contexto pedagógico, o gênero diário [virtual] de leitura
funcionou como uma ferramenta pedagógica auxiliadora para o diarista quanto
à leitura e à produção de sentidos sobre o texto lido e como auxiliadora do
professor/orientador, permitindo acompanhar o processo de interpretação
textual do aluno/diarista. Apresentou implicação do leitor, diálogos com
aspectos de suas experiências e deslocamento de posições do produtor diarista
e leitor. A arquitetura textual do plano interpretativo do diário demonstra que,
paralelamente, à leitura textual do livro, outra visão sobre a psicanálise foi
construída.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 484


Referências

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e filiações de sentidos. Ensino & Pesquisa, [S.l.], ago. 2017. ISSN 2359-4381.
Disponível em:
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BARBOSA, A. A. de A. O agir de produção de sentidos no processo de interpretação em


diários de leitura/blog por estudante universitário. 2014. 156 f. Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva)
Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um


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Paulino Teixeira Lopes, Maria de Lourdes Meirelles Matencio, Rosalvo
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Letras, 2009, p. 71-91.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 485


CAPÍTULO 35

O processo de organização tópica em


artigos de opinião
Cleide Vilanova Hanisch1

Introdução

Neste trabalho2, que se insere no âmbito da Gramática Textual-Interativa


(JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN, 2007), procuramos analisar e discutir as
regularidades particularizadoras do processo de organização tópica em seus dois
níveis de funcionamento, isto é, a organização intertópica e a intratópica, em
artigos de opinião publicados em jornais.
Além desse objetivo central, nossa expectativa com a descrição e
caracterização de artigo de opinião é contribuir, no que concerne à estruturação
tópica, com a disponibilização de dados que possibilitem comparações futuras
da funcionalidade do processo de construção textual do gênero em estudo com
dados de diferentes gêneros textuais, de modo a se identificar um inventário das
diferentes regras de estruturação tópica e a verificar como elas se articulam em
diferentes gêneros textuais (PENHAVEL, 2017).

1 Doutorado, Universidade Federal do Acre. [email protected].


2As ideias expostas neste capítulo baseiam-se nos resultados de pesquisa da minha tese de doutorado, O processo
de organização tópica em artigos de opinião de alunos da Universidade Federal do Acre - Câmpus Floresta (HANISCH, 2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 486


Desse modo, o presente trabalho encontra-se organizado da seguinte
forma: a seção 1 traz uma síntese da Gramática Textual-Interativa e de seus
aspectos mais relevantes para este trabalho; a seção 2 compreende a exposição
e a discussão dos dados sobre a organização tópica nos artigos de opinião
estudados; por fim, apresenta-se as considerações finais.

A Gramática Textual-Interativa

A Gramática Textual-Interativa (JUBRAN; KOCH, 2006; JUBRAN,


2007), quadro teórico-metodológico em que se insere o presente estudo,
constitui uma vertente da Linguística Textual (KOCH, 2009), sendo, assim,
uma abordagem que assume o texto como objeto de estudo. Em particular, a
Gramática Textual-Interativa (GTI, daqui em diante) centra-se no estudo dos
processos de construção do texto, compreendendo que o processo (ou princípio)
denominado de organização tópica configura-se como o fio condutor da
construção textual e, portanto, propriedade central caracterizadora do texto.
Além desse processo, essa abordagem estuda outros processos de
construção do texto, os quais, em alguma medida, estão vinculadas a ela. São
eles os processos de repetição, correção, parafraseamento, parentetização,
tematização/rematização e referenciação. Complementam o campo de estudos da
GTI os mecanismos de organização textual-interativa, encarregados de
gerenciar o funcionamento desses processos, os chamados marcadores discursivos.
A GTI, como mencionado, estuda o texto, visto em seu aspecto tanto
organizacional interno (estruturação linguística textual) como seu
funcionamento sob o ponto de vista enunciativo. Isto corresponde a dizer que
o enfoque textual-interativo congrega uma visão em que as formas de
processamento textual se integram aos fatores interacionais num só conjunto e
se revelam nos próprios processos de elaboração textual. A partir disso,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 487


postula, então, o texto como uma entidade comunicativa verbalmente realizada
e simultaneamente estruturado e emergente.
A base da proposta teórica sobre a qual está assentada diz respeito à concepção
de língua como forma de interação social, como atividade verbal impregnada
pelo contexto sociointeracional. Melhor dizendo, a língua nessa perspectiva é
vista como uma atividade com a qual os interlocutores agem e expressam suas
intenções com ações adequadas aos propósitos em cada intercâmbio
comunicativo. Ou nas palavras de Jubran (2007, p. 314), trata-se de considerar
a língua como

interação social, pela qual os interlocutores realizam tarefas comunicativas


de troca de representações, metas e interesses, no contexto de um espaço
discursivo sempre orientado para os parceiros da comunicação: como eles
se situam reciprocamente, em função de suas representações mútuas
quanto a papéis sociais e discursivos, conhecimento partilhado de mundo,
atitudes, propósitos e reações assumidas no intercâmbio comunicativo
(JUBRAN, 2007, p. 314).

No âmbito dessa concepção de língua, a GTI estabelece alguns princípios


que orientam os estudos nessa abordagem. O primeiro princípio teórico-
metodológico é o de que “os fatos nela considerados têm propriedades e
funções definidas no uso, nas situações concretas de interlocução,
coenvolvendo as circunstâncias enunciativas” (JUBRAN, 2007, p. 315). Pode-
se dizer que esse princípio prevê, entre outras consequências, que a análise
completa dos processos de construção textual depende de estes serem situados
no contexto específico em que são utilizados.
Com base, então, nesse primeiro princípio e na concepção de língua
adotada, a GTI vem postulando que os processos de construção textual, em
grande parte, são definidos pela função sociocomunicativa do gênero em que
se manifestam, ou seja, estão relacionados às funções do gênero, tendo em vista
que estes amalgamam ações particulares empreendidas por meio de textos. Daí

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 488


o delineamento do presente estudo a um gênero particular, nesse caso, o artigo
de opinião.
O segundo princípio central da GTI, decorrente do primeiro, diz respeito
ao entendimento de que os fatores interacionais são constitutivos do texto e
inerentes à expressão linguística. Ou seja, postula-se que os dados pragmático-
situacionais se introjetam no texto, de modo que o interacional é intrínseco ao
linguístico. Nessa direção, considera-se que “as circunstâncias enunciativas que
sustentam a ação verbal se mostram no próprio texto, por meio das escolhas
comunicativamente adequadas à situação interativa” (JUBRAN, 2007, p. 317).
Dessa forma, como explica a autora, os elementos pragmáticos são vistos
como fatores imanentes da construção do texto e de sua análise. Esses fatores,
continua a autora, ao manifestarem, na superfície do texto, as condições
enunciativas, revelam regularidades do processamento textual pelos
interlocutores e, assim, sustentam a admissão e a identificação de
sistematicidade no processo de construção textual. É, nesse sentido, então, que
esse princípio desempenha um papel primordial na GTI e, inclusive, no
presente estudo, na medida em que fundamenta nossa premissa de que seria
possível identificar regularidades no processo de organização tópica, no âmbito
de um gênero textual particular.
Apoiada nesse princípio, Jubran (2007, p. 316) estabelece, então, a tarefa
da GTI:
A GTI deve, portanto, apontar regularidades relacionadas ao
processamento dos procedimentos de elaboração do texto, aferindo o
caráter sistemático deles pela sua recorrência em contextos definidos, pelas
marcas formais que os caracterizam e o preenchimento de funções textual-
interativas proeminentes que os especificam.

À luz dos pressupostos teórico-metodológicos acima descritos, a GTI


estabelece-se como uma abordagem do texto nos estudos linguísticos, cuja
atenção volta-se, de modo particular, ao exame dos processos de construção
textual. Nessa perspectiva, considera-se que as atividades de processamento do

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 489


texto estão estreitamente relacionadas ao processo básico de construção textual,
a organização tópica (também denominada topicalidade).
Pode-se dizer, então, que a organização tópica consiste na construção e
articulação hierárquica e sequencial de grupos de enunciados formulados pelos
interlocutores a respeito de um conjunto de referentes, concernentes entre si e
em relevância em determinados pontos do texto (cf. JUBRAN, 2006). Em
outras palavras, pode-se dizer que esse processo se funda na organização do
texto em partes e subpartes, as quais são denominadas de Segmentos Tópicos
(SegTs), sendo as menores subpartes chamadas de SegTs mínimos.3 Desse modo,
a organização tópica abrange (i) a articulação entre SegTs mínimos – processo
chamado organização intertópica e (ii) a articulação (de grupos) de enunciados no
interior dos SegTs mínimos – processo chamado de organização intratópica.
A organização intertópica compreende a organização hierárquica e
sequencial. A primeira estabelece no texto as relações de dependência de
superordenação e subordinação entre tópicos discursivos que se relacionam
pelo grau de abrangência do assunto.4 Ou seja, essas relações instauram em um
texto a possibilidade de divisão do tópico global em tópicos mais específicos,
da possibilidade de divisão destes em outros mais específicos ainda, e assim
sucessivamente, configurando, pois, níveis de hierarquização na organização
tópica. Desse modo, nesse plano, os tópicos se relacionam como
“Supertópicos” (ST) e “Subtópicos” (SbT), na medida em que os STs
expressam maior grau de abrangência do assunto em pauta e os SbTs

3Pode-se dizer que, os SegTs mínimos, de modo simplificado, são unidades que equivalem a trechos de textos

correspondentes, usualmente, a um, dois ou três parágrafos, no caso de um gênero escrito como o artigo de
opinião.
4Nos estudos sobre a organização tópica, comumente, o termo “tópico discursivo” (ou apenas “tópico”) pode
ser conceituado como o tema (o assunto) – de um texto ou parte de um texto – interacionalmente produzido
pelos interlocutores em um cenário social de construção textual. Pode ser caracterizado também como o modo
como o assunto é desenvolvido num contexto específico de enunciação, ou seja, “como” se trata determinado
assunto.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 490


comportam maior grau de particularização do assunto (correspondentes, então,
aos segmentos identificados como SegTs mínimos, também, denominados de
SbTs mínimos) também como compondo, assim, níveis de hierarquização na
estruturação tópica.
A organização intertópica sequencial diz respeito às relações que se
estabelecem entre os tópicos, no que tange à sua disposição na linha discursiva.
O estudo desse processo envolve, particularmente, a análise dos diferentes
modos de sequenciamento entre SegTs mínimos, os quais compreendem
especialmente as estratégias de (i) continuidade tópica e (ii) descontinuidade
tópica – esta última incluindo a as estratégias de ruptura, cisão e expansão
tópicas.
A organização intratópica, processo que compõe o segundo nível de
funcionamento da organização tópica, concerne ao modo como os SegTs
mínimos, depreendidos na linearidade textual, se estruturam internamente, ou
seja, como eles articulam internamente os enunciados que os constituem. Nesse
estudo, com base em Penhavel (2010) assumimos a hipótese de que a
organização intratópica constitui um processo estruturalmente sistemático, que
pode ser descrito em termos de regras gerais de estruturação.
Aqui, ao abordarmos o processo de organização tópica, consideramos,
então, os dois níveis de funcionamento, isto é, o processo de organização
intertópico e intratópico, conforme suas características aqui apontadas e
especificadas no decorrer do trabalho.
Na seção a seguir, apresentamos a organização tópica em artigo de
opinião e discutimos os principais resultados de nosso estudo.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 491


A organização tópica em artigos de opinião

Para atender o modo de organização deste livro, esta seção procura fazer
o possível no impossível por meio de um único exemplo tentar ilustrar a
operacionalização da teoria e apresentar algumas características do gênero artigo
de opinião. Assim, optamos por um processo que não analisa o texto, mas
apresenta sucintamente a metodologia de análise e algumas características de
um gênero, a partir de um estudo já feito.
Para tal intento, o primeiro passo metodológico de análise orientou-se
para o estudo do funcionamento da organização intertópica – divisão do texto
em tópicos e SbTs mínimos5 em um texto que circula na sociedade e efetivou-
se a partir de sua subdivisão em duas estratégias metodológicas articuladas entre
si. Na primeira, analisou-se a organização intertópica hierárquica. Na segunda
estratégia, a análise focalizou a organização intertópica sequencial. No segundo
passo metodológico, a observação centrou-se mais de perto no estudo da
organização intratópica de SegTs mínimos componentes do artigo de opinião
em análise.
Como uma caracterização prévia do gênero artigo de opinião, partimos
de uma conceituação mais ou menos consensual (cf. por exemplo
RODRIGUES, 2007; KÖCHE, BOFF, MARINELLO, 2014), segundo a qual
o artigo de opinião constitui essencialmente argumentativo, que se vale da
argumentação para analisar, avaliar e responder a uma questão controversa.

5 A título de esclarecimento, vale explicar que, usamos, em alguns momentos, a expressão “SbTs mínimos”, e
não “SegTs mínimos”, porque, nesse caso, estamos no domínio da hierarquização tópica, que diz respeito a
relações entre tópicos (temas), isto é, entre STs, SbTs (incluindo os SbTs mínimos). No que concerne à
organização intertópica sequencial, falamos não de “SbTs mínimos”, mas sim de “SegTs mínimos”. É claro que
“SbTs mínimos” e “SegTs mínimos” são conceitos correspondentes. Porém, dependendo de qual aspecto do
processo de organização tópica se está focalizando, é adequado falar em “SbT mínimo” (organização intertópica
hierárquica) ou em “SegT mínimo” (organização intertópica sequencial e/ou organização intratópica).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 492


Geralmente, esse gênero discute um tema atual de ordem social, econômica,
política e/ou cultural, relevante para os leitores.
Expostas essas informações metodológicas básicas, passamos, então, à
análise do gênero em pauta, começando com a organização intertópica,
especificamente com a hierarquização tópica.
Para efeito de ilustração, observemos o exemplo, a seguir, em (1):
1) Concepção negativa da pobreza

[SbT mínimo 1] Nutro aversão aos discursos articulados e políticos em


relação à pobreza material das pessoas. Tenho consciência da delicadeza
do tema e da condição de vida que a pobreza material imputa à
humanidade. Há, todavia, ao lado dessa chaga social, a pobreza espiritual
que empobrece, vilmente, o mundo dos pobres e dos ricos.
Acredito, no sutil entendimento de pessoa humana, ser a pobreza
espiritual a maior de todas as pobrezas. Tem-se, aqui, a vilania, a covardia
e a desnudez disfarçadas sob um véu de falsidade, de fraquezas, de opções
de vida que envergonham a nós seres humanos, nascidos no seio de uma
família e participantes do corpo social da comunidade.
Esses “pobres espirituais” agem segundo os interesses pessoais mais
escusos, atropelam o código da ética, da moral, do trabalho e do convívio
social. São figuras que ocupam espaços, que tomam como seus, dentro do
corpo social, como a lei a serviço dos interesses pessoais. Lidar com essas
“criaturas” é uma questão para a psicologia, a sociologia, às ciências
médicas ou para as leis penais. Pois se trata, na verdade, senão de atos
criminosos, pela infâmia como são praticados, mas de uma anomalia que
o Estado de Direito deve olhar com certa urgência, para assegurar direitos
fundamentais à sociedade.

[SbT mínimo 2] Valor humano – no mundo globalizado, um dos temas que


vem merecendo articulados discursos é justamente aquele referente à
concepção negativa que se tem de pobreza e o menosprezo que a
sociedade tem pelos pobres. Aqui, o homem passa a valer pelos bens
materiais que possui e não pela pessoa humana que é. Ou ainda, pelo peso
político que representa no corpo social e não por sua presença enquanto
cidadão no seio da sociedade. Assim, em termos de uma definição, no
sentido de existência e de ressurreição social, para a prosperidade
econômica e a sociedade de consumo, a pobreza é percebida como um
eco ou expressão de uma condição humana degradante.

[SbT mínimo 3] A tradição cristã – estudos recentes, realizados em países


desenvolvidos, demonstram que essa atitude humana de olhar a pobreza,
sob o ponto de vista material, constitui uma ruptura com toda a concepção
pré-industrial da pobreza, particularmente na idade Média. A tradição
cristã e todas as grandes religiões fizeram da pobreza um estatuto de
santificação, enquanto a riqueza não era um valor nos antigos modelos
socioculturais. Só bem mais tarde a noção de assistência é substituída pelo
da integração.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 493


Essa mudança não é apenas semântica, pois procura integrar, na
pluralidade da realidade social, a ideia de um “direito” a uma vida decente,
que a democracia deve assegurar a todo cidadão. Essa reivindicação de
novos direitos e novas formas de solidariedade inscrevem-se no
aprofundamento da noção de direitos do homem.

[SbT mínimo 4] Condição humana humilhante – a pobreza como um sigma,


leva à Sociologia a afirmar que ela evoca uma condição humana
humilhante. Nesse sentido, distinguem-se três níveis de pobreza, que
formam ciclos concêntricos: 1) primeiro, aquele que inclui todos os
pobres, qualificados em relação ao seu baixo nível de renda; 2) segundo
aquele que reagrupa os pobres que se beneficiam de certa alocação social;
3) terceiro, o reúne os que recebem, ocasionalmente uma alocação, mas ao
mesmo tempo são considerados como pessoas depravadas e malformadas.
O estigma da degradação, de maneira tradicional, confunde a pobreza com
a prática de atos ilícitos. Uma vida fundada sobre a exclusão social
constitui a verdadeira definição da pobreza.

[SbT mínimo 5] Pelas ideias aqui postas e por outras implícitas, no texto de
hoje, compreende-se a importância de uma luta contra todas as formas de
exclusão, numa sociedade que deve defender a verdadeira eficácia dos
“Direitos do Homem”. E todas essas “coisas”, mazelas do cotidiano,
passam por um processo educacional. Assim, pobre é também a nação que
despreza os professores. (Luísa Lessa. A Gazeta, 03.07. 2016).

De acordo com nossa análise, o exemplo em (1) revela que o tópico


global do artigo de opinião em questão pode ser definido como As várias faces
negativas da pobreza. O tópico global, nesse caso, divide-se em cinco tópicos,
sintetizados como Pobreza espiritual (SbT mínimo 1); Valor humano (SbT mínimo
2); Tradição cristã (SbT mínimo 3); Condição humana humilhante (SbT mínimo 4) e
Desvalorização dos professores (SbT mínimo 5). Os SbTs mínimos 1, 2, 3 e 4, por
sua vez, são desdobramentos de um tópico mais geral, que pode ser
denominado de Faces negativas da pobreza.
A organização intertópica hierárquica desse artigo em que o tópico global
subdivide-se em cinco tópicos, entre os quais, um (o primeiro) subdivide-se em
quatro outros tópicos mais específicos, pode ser representada no esquema em
(2):

(17) Tópico global: As várias faces negativas da pobreza


Tópico 1: Faces negativas da pobreza
Tópico 1.1 (SbT mínimo 1): Pobreza espiritual

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 494


Tópico 1.2 (SbT mínimo 2): Valor humano
Tópico 1.3 (SbT mínimo 3): Tradição cristã
Tópico 1.4 (SbT mínimo 4): Condição humana humilhante
Tópico 2 (SbT mínimo 5): Desvalorização dos professores

Nesse exemplo, como se pode notar, no que diz respeito à hierarquização


tópica – que consiste na instauração de relações de dependência de
superordenação e subordinação entre tópicos em termos do grau de
abrangência do assunto –, o artigo em pauta caracteriza-se pela complexidade
hierárquica, isto é, organiza-se mediante a divisão do tópico global em dois SbTs
mínimos, um dos quais se subdivide em outros dois mais particulares ainda.
Como se percebe, essa configuração não chega a demonstrar um alto grau de
complexidade, diferindo-se do que pode ocorrer em outros gêneros como, por
exemplo, a conversação espontânea (cf. JUBRAN et al, 2002), entretanto,
representa uma complexidade bastante significativa. Nesse sentido, parece
interessante ver o artigo de opinião como um texto argumentativo de extensão
e complexidade, digamos, “intermediárias” entre outros gêneros
argumentativos que circulam na sociedade, como a carta de leitor, por um lado,
e o artigo científico por outro lado.
Além da complexidade hierárquica, o artigo em análise naturalmente
também apresenta complexidade sequencial. Nesse caso, a propriedade
característica do gênero é a utilização da estratégia de continuidade tópica. A
continuidade é uma forma de encadeamento em que um tópico é
completamente desenvolvido e, somente, após seu encerramento, um novo
tópico é introduzido e desenvolvido.
O artigo de opinião em análise ilustra o uso da estratégia da continuidade
tópica. Como se observa, nesse exemplo, as transições tópicas como, por
exemplo, entre os SbTs mínimos 1 e 2, são feitas mediante essa estratégia.
Sobre esse aspecto, acrescentamos ainda que no texto escrito, a
continuidade tópica está relacionada diretamente à manutenção da coerência

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 495


textual. Isso significa que tópicos e/ou subtópicos muitas vezes são
desenvolvidos, ao logo do texto argumentativo, como no caso do artigo de
opinião, como dados cuja função é sustentar a tese defendida, daí a necessidade
de elaboração de uma construção textual estruturalmente mais clara e objetiva
de forma que não ocorram rupturas definitivas ou interrupções excessivamente
longas do tópico (assunto) em andamento.
No que se refere à análise da organização intratópica, corroborando a
hipótese mencionada na seção 1, da sistematicidade desse processo, os dados
evidenciaram, de fato, a existência de uma regra geral desse processo no artigo
em apreço. Essa regra prevê a estruturação interna de SegTs mínimos mediante
a alternância, potencialmente recursiva,6 das unidades de Posição e Suporte.
A Posição pode ser compreendida como o conjunto de enunciados do
SegT mínimo que estabelece, instaura, de forma mais direta, o tópico do SegT,
ou seja, a ideia central, nuclear que perpassa todo SegT. O Suporte, por sua vez,
corresponde ao conjunto de enunciados do SegT mínimo que desenvolve
aspectos mais específicos, particulares da ideia nuclear manifestada na posição.
Em outras palavras, pode-se dizer que, na maioria das vezes, Posição e Suporte,
constituem, respectivamente, a proposição de uma tese e o desenvolvimento de
argumentos que a sustentam a tese.
Os SegTs mínimos em (3) e (4), extraídos do artigo de opinião em análise,
ilustra a regra geral da alternância entre as unidades de Posição e Suporte:

(3) [[POSIÇÃO]] Condição humana humilhante – a pobreza como um


sigma, leva à Sociologia a afirmar que ela evoca uma condição humana
humilhante.

[[SUPORTE]] Nesse sentido, distinguem-se três níveis de pobreza, que


formam ciclos concêntricos: 1) primeiro, aquele que inclui todos os
pobres, qualificados em relação ao seu baixo nível de renda; 2) segundo,
aquele que reagrupa os pobres que se beneficiam de certa alocação social;

6 Na definição da regra, a expressão “potencialmente recursiva” quer dizer que as unidades de Posição e Suporte

podem se organizar, internamente, também com base em unidades de Posição e Suporte.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 496


3) terceiro, o reúne os que recebem, ocasionalmente uma alocação, mas ao
mesmo tempo são considerados como pessoas depravadas e mal
formadas. O estigma da degradação, de maneira tradicional, confunde a
pobreza com a prática de atos ilícitos.

[[POSIÇÃO]] Uma vida fundada sobre a exclusão social constitui


a verdadeira definição da pobreza.

(4) [[SUPORTE]] Pelas ideias aqui postas e por outras implícitas, no texto
de hoje, compreende-se a importância de uma luta contra todas as formas
de exclusão, numa sociedade que deve defender a verdadeira eficácia dos
“Direitos do Homem”. E todas essas “coisas”, mazelas do cotidiano,
passam por um processo educacional.

[[POSIÇÃO]] Assim, pobre é também a nação que despreza os


professores.

O SbT mínimo em (3) é o quarto SbT constituinte do artigo transcrito


em (1) acima. Nesse SbT, o primeiro trecho e o último constituem unidades de
Posição, uma vez que expressam a ideia nuclear do SegT, isto é, a tese – a
pobreza vista como uma condição humana humilhante, que remete a uma vida
fundada na exclusão social. Ao passo que o trecho intermediário constitui um
Suporte, expondo uma série de aspectos que corroboram a pobreza como
condição humana humilhante tomados como argumentos para sustentar a tese
expressa na Posição.
O SbT em (4) é mais um dos SbTs mínimos componentes do artigo
sistematizado acima em (1), particularmente o SbT que desenvolve o tópico 2.
Nesse caso, o primeiro trecho é uma unidade de Suporte na medida em que
expõe argumentos que asseguram a ideia de que pobre é a nação que não
valoriza os professores, apresentada no segundo trecho que manifesta a unidade
de Posição, como o fato de que todos os problemas sociais estariam
relacionados diretamente com o processo educacional.
Pode-se dizer, então, que o esquema de organização intratópica unidade
de Posição-Suporte, mostra-se, notadamente, apropriado ao teor
argumentativo, propriedade central definidora do artigo de opinião, dado que,
conforme explanado, constitui um esquema primordialmente argumentativo,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 497


fundado no mecanismo de alternância entre a apresentação de uma tese
(Posição) e sua sustentação (Suporte).

Considerações finais

Embora tenhamos apresentado apenas um exemplo de artigo de opinião,


outros exemplares, em que se baseou nossa pesquisa, confirmam, de forma
significativa, as regularidades do processo de organização tópica em artigo de
opinião em seus dois níveis de funcionamento, a saber: a organização
intertópica e a intratópica.
Conforme tentamos demonstrar, o artigo de opinião seria caracterizado,
em termos de organização intertópica, basicamente, pela instauração de
complexidade hierárquica e de continuidade tópica e, em termos de organização
intratópica, pela presença de uma regra geral que consiste na alternância das
unidades Posição-Suporte. Essas regularidades, a nosso ver, se mostraram
associadas a aspectos da natureza do gênero.

Referências
HANISCH, C. V. O processo de organização tópica em artigos de opinião de alunos da
Universidade Federal do Acre – Câmpus Floresta. 467f. Tese (Doutorado em
Estudos Linguísticos) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho”, São José do Rio Preto, 2019.

JUBRAN, C. C. A. S. Uma gramática textual de orientação interacional. In:


CASTILHO, A. T. et al (org.). Descrição, história e aquisição do português brasileiro.
Campinas: Pontes, 2007. p. 312-327.

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______. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (org.).
Gramática do português falado – v. II: Níveis de análise linguística. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2002, p. 341-420.

______. Tópico Discursivo. In: JUBRAN, C. C. S. A.; KOCH, I. G. V. (orgs).


Gramática do português culto falado no Brasil. v. 1, Campinas: UNICAMP, 2006a.
p. 89-132.

JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. (orgs). Gramática do português culto falado


no Brasil – v. I: Construção do texto falado. Campinas: Editora da UNICAMP,
2006.

KOCH, I. G. V. Introdução à Linguística Textual: trajetória e grandes temas. 2.


ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

KÖCHE, V. S.; BOFF, O. M. B.; MARINELLO, A. F. Leitura e produção


textual: gêneros textuais do argumentar e expor. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

PENHAVEL, E. Marcadores Discursivos e Articulação Tópica. 168 f. Tese


(Doutorado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.

PENHAVEL, E. Estudo do Processo de Estruturação Interna de Segmentos Tópicos


Mínimos em Diferentes Gêneros Textuais. Relatório Final de Pesquisa. São José do
Rio Preto, Universidade Estadual Paulista, 2017.

RODRIGUES, R. H. A constituição e funcionamento do gênero Artigo de Opinião:


cronotopo e dialogismo. 356 f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e
Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2001.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 499


CAPÍTULO 36

O uso dos elementos coesivos como


recurso linguístico indispensável à
produção textual do gênero carta
argumentativa numa turma do 9º ano
José Raimundo de Oliveira Filho1

Introdução

A partir das produções dos estudantes, percebe-se a necessidade de se


aprofundar no estudo de elementos coesivos, visto que delas emergem
dificuldades resultantes do desconhecimento das funções de tais elementos. Em
que pese aos esforços que se despendem na sala de aula, houve a necessidade
de se debruçar sobre o que, de algum modo, impede que se conheça melhor o
que se quer comunicar: a inobservância do emprego da coesão.
Nesse sentido, estudaram-se os valores semânticos das conjunções,
locuções conjuntivas, pronomes, advérbios, locuções adverbiais, preposições e
locuções preposicionais e numerais, buscando entender possíveis causas, como:
o desconhecimento do valor semântico de elementos coesivos a partir dos
estudos desenvolvidos por estudiosos como Koch (2010) e Marcushi (2008) e

1 Mestrando Profletras/UPE/[email protected]/CAPES

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 500


Antunes (2005). Esta autora, por exemplo, ressalta a relevância de um texto
coeso ao afirmar que “a função da coesão é exatamente a de promover a continuidade
do texto, a sequência interligada de suas partes para que não se perca o fio de
unidade que garanta a interpretabilidade” (ANTUNES, 2005 p. 48) grifo da
autora.
Assim, com objetivo de mostrar a importância do emprego de elementos
coesivos na produção de carta argumentativa por alunos do nono ano de uma
escola na cidade de Belo Jardim, PE, e presumindo-se que o conhecimento de
partes – elementos coesivos –, influencia a produção textual, vislumbrou-se
obtenção de resultados profícuos no que tange à produção escrita. Para
comprovar a ideia inicial, no levantamento do corpus, observaram-se
ocorrências da coesão da sequencial e da recorrencial, bem como a
inobservância dessas ocorrências. O gênero textual utilizado nesta pesquisa foi
a carta argumentativa de solicitação e de reclamação, vistas a importância dessa
no meio social e sua presença no âmbito histórico.
No Brasil, a gênese da produção escrita dá-se com a carta de Pero Vaz
de Caminha na qual a nova terra é retratada com riqueza de detalhes acerca dos
povos indígenas, seus costumes, tradições, além das riquezas naturais. Segundo
Sá (1985, p. 5),
A carta de Pero Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel assinala o
momento em que, pela primeira vez, a paisagem brasileira desperta
o entusiasmo de um cronista, oferecendo-lhe a matéria para o texto
que seria considerado a nossa certidão de nascimento. Se a carta
inaugura o nosso processo literário é bastante discutível: sua
importância histórica e sua presença constante até mesmo nos
modernos poemas e narrativa parodísticos atestam que, pelo
menos, ela é um começo de estruturação, é o marco inicial de uma
busca que, inevitavelmente, começaria na linguagem em um dos
descobridores que chegavam a Terra de Vera Cruz, até que um
natural dos trópicos fosse capaz de pensar a realidade brasileira pelo
ângulo brasileiro, recriando-a através de uma linguagem livre dos
padrões lusitanos.

Ocupando lugar de destaque na história e sendo utilizada em outras


categorias na sociedade atual, o gênero foi apresentado e trabalhado conforme

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 501


a necessidade da turma. Utilizando meios de percepção entre os exemplos
demonstrados para inspiração as produções posteriores.

A argumentação

Numa sala de aula observa-se, mais frequentemente na oralidade, as mais


diversas ocorrências comunicativas nas quais se observa a presença da
argumentação entre os estudantes, mesmo sem estes se darem conta de que
estão convencendo outrem empregando múltiplos meios de persuadir mediante
argumentos. Dessa forma, para Silveira (2002, pp. 9-10),

a persuasão de sala de aula compreende quatro níveis inter-


relacionados: o filosófico, que se funda em uma argumentação sutil,
cujo objetivo consiste em tentar persuadir, produzindo um efeito
de sentido no outro, seu interlocutor; o psicológico, que
corresponde a uma postura ou comportamento utilizado pelo
sujeito na tentativa de persuasão do outro; o histórico-social,
decorrente das relações sociais e da ideologia mantenedora e
instituidora das relações de dominação em que se apoia na
persuasão; e o linguístico, pois já que a persuasão encontra-se em
todas as formas de comunicação, ele caracteriza os momentos em
que o sujeito escolhe quais recursos ou aspectos linguísticos
pretende explorar em seu discurso.

Dessa forma, sempre se está persuadindo o interlocutor por meio da


interação verbal. Para isso, faz-se uso da argumentação, que pode ser de forma
oral ou escrita. Os argumentos podem ser de vários tipos como: de autoridade,
de consenso, de provas concretas e de competência linguística. Para Köche e
Marinello (2017, p. 77), “o argumento de autoridade consiste em citar a voz de
autores reconhecidos ou autoridades no assunto para fundamentar o ponto de
vista, a ideia ou a tese”. Em dissertações e teses, esse tipo de argumento é o
mais empregado para dar sustentação à tese a ser defendida. Já o argumento de
consenso, para as mesmas autoras, refere-se “ao uso de proposições evidentes
por si mesmas ou universalmente aceitas como verdade”.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 502


A carta argumentativa

Trata-se de um gênero textual em que alguém (o emissor) escreve ao


receptor com o intuito de reclamar ou solicitar alguma coisa, fundamentando-
se em argumentos consistentes. Köche e Marinello (2017, p. 75) explica que
“Esse gênero oportuniza ao emissor denunciar irregularidades, pedir
providências e sugerir mudanças entre outras finalidades”. Podendo o professor
valer-se de demandas na própria escola para estimular os discentes a
produzirem cartas argumentativas, seja de solicitação ou de reclamação, vistas
a utilização da língua.

o homem usa a língua porque vive em comunidades, nas quais tem


necessidade de comunicar-se com os seus semelhantes, de estabelecer com
eles relações dos mais variados tipos, de obter deles reações ou
comportamentos, de atuar sobre eles das mais diversas maneiras, enfim,
de interagir socialmente por meio do discurso.(KOCH, 2011, p. 15)

Dessa forma, o gênero a ser trabalho atende as necessidades no


estabelecimento da comunicação, de acordo com Dolz e Schneuwly (2004) apud
Köche e Marinello (2017, p. 75), “esse gênero faz parte da ordem do argumentar
e apresenta como capacidades de linguagem dominantes a sustentação, a
refutação e a negociação de tomadas de posição”, assim o ato de argumentar
significa estabelecer o discurso pautado em ações dotadas de intencionalidade.

Tipos de carta argumentativa

A carta argumentativa pode ser de dois tipos: de reclamação e de


solicitação. De acordo com Barbosa (2001 apud KÖCHE E MARINELLO
2017, p. 77), “a carta e reclamação veicula quase uma reivindicação, pois o
remetente julga ter direito ao que se está pedindo”. É muito com esse gênero
ser utilizado em meios de comunicação como jornais, revistas e rádios. Já a carta
de solicitação tem como objetivo pedir a alguém competente algo em benefício

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 503


do requerente, que pode ser individual ou em nome de uma coletividade. Ainda
para as autoras:
A carta de solicitação trabalha o diálogo entre duas pessoas, a fim
de convencer o interlocutor de que o ponto de vista apresentado
pelo emissor é válido e merece crédito. Por isso, para a autora, é
preciso expor argumentos, defendendo ou criticando determinada
ideia, e solucioná-los de acordo com o interlocutor. (KÖCHE E
MARINELLO 2017, p. 77)

Esse gênero segue as características da tipologia dissertativa, o que indica


que há interlocutor específico, para quem o locutor irá direcionar sua
argumentação, construindo assim o seu texto.

Partes da carta argumentativa

A carta argumentativa apresenta a seguintes partes: local, data, vocativo,


corpo do texto, despedida e assinatura. No local situa-se o emissor que se
propõe a enviar o texto ao destinatário. A data refere-se ao momento em que a
produção textual do referido gênero é criado. No vocativo, introduz-se a
saudação adequada ao receptor, como Prezado Senhor, Ilustríssima Senhora, Prezado
Gestor Excelentíssimo Govenador. Após o vocativo, pode-se usar a vírgula, ou não
empregar nenhuma pontuação. (grifo nosso)
De acordo com Köche e Marinello (2017, p. 76),

No primeiro parágrafo, expõe o assunto e objetivo da carta. Nos


parágrafos subsequentes, explícita o que foi exposto inicialmente, a
fim de convencer o interlocutor da legitimidade da reclamação ou
do pedido por meio de argumentos consistentes. No último
parágrafo, faz o fechamento da discussão. Nessa parte, o autor
geralmente emprega o presente do indicativo, pois a carta trata de
questões vinculadas ao momento da produção.

Na despedida, apresenta-se a saudação final, de forma cordial, buscando


fixar um contato entre o emissor e o receptor. Pode-se despedir-se da seguinte
maneira: atenciosamente, cordialmente, na certeza de ser atendido. Na

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 504


assinatura, indica-se o emissor, exarando o nome completo e a identificação da
profissão.

Elementos coesivos: recurso linguístico da produção


harmônica

A finalidade da carta de argumentação centra-se em convencer ou


persuadir o receptor à adesão de uma afirmativa e, de acordo com a
intencionalidade, o emissor faz uso de recursos linguísticos que promovam essa
aceitação e compartilhamento da ideia imposta, o que pressupõe a necessidade
do conhecimento de termos que possibilitem uma construção coesa a partir de
elementos coesivos.
Falar em elementos coesivos pressupõe entender o que é coesão.
Segundo Koch (2014), coesão textual “diz respeito a todos os processos de
sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação linguística
significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual”. Essa ligação
pode ser de forma referencial ou sequencial.
Para Koch (2014, p. 18), a coesão referencial “é aquela em que um
componente da superfície do texto faz remissão a outro (s) elemento (s) nela
presentes ou inferíveis a partir do universo textual”. Nesse caso, o
processamento se faz por meio de pronomes, advérbios, numerais e outros
recursos coesivos como anáforas, catáforas, elipses, nominalizações etc.
Em contrapartida, a coesão sequencial ainda de acordo com Koch (1989,
p. 45).:
Diz respeito aos procedimentos linguísticos por meio dos
quais se estabelecem, entre segmentos do texto
(enunciados, partes de enunciados, parágrafos e sequências
textuais) variados tipos de semântica e/ou pragmáticas
uma medida que se faz ao texto progredir.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 505


Esse tipo de coesão constitui um dos percalços na vida do estudante
uma vez que, pelas suas numerosas formas, há que se dedique de forma intensa,
de modo a assimilar suas funções semânticas. Dessa forma, o emprego correto
desses elementos coesivos, particularmente na carta argumentativa, torna a
compreensão mais inteligível.
As relações lógico-discursivas, isto é, relações de coerência e coesão,
permeiam todo o gênero textual carta argumentativa, matéria-prima do estudo
em tela. Outro conceito de coesão, entendem Koch e Travaglia (2013, p. 47)
como “a ligação, a relação, os nexos que se estabelecem entre os elementos que
constituem a superfície textual”.
Um texto com sentido precisa de encadeamento lógico, pelo qual
perpasse o fio condutor daquilo que se quer transmitir. Esse fio condutor é
relevante na ligação entre orações, períodos, parágrafos e partes maiores do
texto. Se se perceber a coesão textual, mais fácil ficará para o estudante a
inferência do sentido do texto, visto que esses elos se concatenam na
manutenção ou na progressão temática.
É a amarração que torna o texto coeso, aquilo que confere a sua unidade
semântica, sem a qual pairariam dúvidas no que concerne à intencionalidade
comunicativa. Para Koch e Travaglia (2013, p. 21), “para haver coerência é
preciso que haja possibilidade de estabelecer no texto alguma forma de unidade
ou relação entre seus elementos”. Consequentemente, de posse dessas
informações, a compreensão textual tenderá a ser absorvida com menos
dificuldade.
Dessa forma, o conhecimento das funções semânticas dos elementos de
coesão proporciona a compreensão e capacidade interpretativa do texto,
tornando perceptível a coerência nele estabelecida, o que requer o domínio das
relações lógico-discursivas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 506


Em outras palavras, a apreensão das funções dos elementos coesivos
serve de suporte para a compreensão da coerência textual. Koch e Travaglia
(2013, p. 14) afirmam que “A coesão textual, mas não só ela, revela a
importância do conhecimento linguístico (dos elementos da língua, seus valores
e usos para a compreensão do texto e sua compreensão e, portanto, para o
estabelecimento da coerência”.
Essa organização gramatical e semântica do texto é um critério
imprescindível para a coesão textual. Um texto coeso pode ser definido de
forma bastante simplificada, como aquele que apresenta unidade e uma perfeita
relação entre todas as suas partes. Para que isso ocorra, o aluno precisará valer-
se de algumas estruturas que, na língua, cumprem exatamente a função de
garantir a coesão dos textos. A coerência e coesão seguem lado a lado para que
a mensagem se faça transmitir e a interpretação se torne possível.
Daí porque “A coerência e a coesão têm em comum a característica de
promover a inter-relação semântica entre os elementos do discurso
respondendo pelo que se pode chamar de conectividade textual” (COSTA
VAL, 2002, p. 7). Por essa conectividade perpassa o fio que conduz o sentido
do texto.
Numa produção textual, em particular a carta argumentativa, merece
destaque o emprego de operadores argumentativos. Esses operadores usados
na carta podem ser de adição (e, também, ainda); de finalidade (a fim de, para,
com o propósito de); de oposição (mas, porém, no entanto, entretanto, todavia,
contudo, apesar disso); de esclarecimento (isto é, ou seja); de conformidade
(conforme, segundo, de acordo com); de conclusão (assim, portanto, então).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 507


Considerações finais

Tendo consciência da relevância no emprego de elementos coesivos, sem


os quais o texto perderá seu fio condutor, o escritor muitas tem a possibilidades
de evitar impropriedades em textos argumentativos, com a utilização de
repetições desnecessárias de palavras, evitando ambiguidades e a ausência de
operadores argumentativos.
Neste sentido, o objetivo inicial de mostrar a importância do emprego
de elementos coesivos na produção de carta argumentativa por alunos do nono
ano de uma escola na cidade de Belo Jardim, PE, vem sendo comprovado nas
produções dos estudantes, que passaram a escrever de forma coesa e inteligível.

Referências

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo:


Parábola, 2005.

CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português:


linguagens. São Paulo, 2003.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e Textualidade. 2ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

FAULSTICH, E. de J. Como ler, entender e redigir um texto. Petrópolis: Vozes,


2002.

KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 13 ed. São Paulo: Cortez,


2011.

______. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 2014.

_______, TRAVAGLIA, L. G. Texto e Coerência. São Paulo: Cortez, 2013.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 508


KÖCHE, Vanilda Salton; MARINELLO, Adriane Fogali. Ler, escrever e analisar
a língua a partir de gêneros textuais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.


São
Paulo: Parábola, 2008.

SÁ, Jorge de. A crônica. 2 ed. São Paulo: Ática, 1985.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 509


CAPÍTULO 37

O WhatsApp enquanto lugar de interação


e negociação de sentidos entre atores
sociais
Emanuelle Maria da Silva Piancó1
Max Silva da Rocha2

Introdução

Há mais de trinta anos tiveram início os estudos que buscam


compreender a função dos gêneros, os quais vêm se solidificando nos dias atuais
e passam a assumir novas formas para atender as transformações do meio
social. Desse modo, os gêneros digitais surgem como adaptação dos gêneros já
existentes e têm sido crescentes os estudos nesta linha de pesquisa.
Com os avanços tecnológicos, na sociedade, torna-se cada vez mais
evidente a interação a partir dos aplicativos digitais. Assim, os estudos em
Linguística Textual, numa vertente que leva em consideração os aspectos sociais
e cognitivos, vêm possibilitando relevantes contribuições para um melhor
entendimento das práticas comunicativas em diferentes espaços sociais.

1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas, unidade de Palmeira dos Índios.
Especialista em Linguística Aplicada na Educação pela Universidade Candido Mendes. E-mail:
[email protected]
2 Graduado em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas, unidade de Palmeira dos Índios.

Especialista em Linguística Aplicada na Educação pela Universidade Candido Mendes. Mestrando pelo
Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Alagoas – PPGLL/FALE/UFAL. E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 510


Assim sendo, o presente trabalho surge com a seguinte inquietação
norteadora: como os sentidos são (re)construídos durante conversas entre
alunos do Ensino Médio, no gênero textual chat do aplicativo Whatsapp? Com o
interesse de responder tal questionamento, objetiva-se analisar como categorias
textuais orientam a interação e a negociação dos sentidos durante as
conversações no gênero textual chat.
O trabalho ancora-se na abordagem qualitativa, tendo em vista que se
trata de uma análise descritiva em que há relação entre o objeto de estudo e o
indivíduo. O estudo se realizou no espaço escolar, tendo como suporte o
aplicativo Whatsapp, como instrumento para a coleta de dados. A análise e a
intepretação dos dados estão embasadas nas teorias da Linguística Textual.
A relevância do estudo reside em estar vinculada às evoluções das formas
de comunicação, que se apresentam na esfera virtual. Por isso, parece viável
utilizar o gênero digital como instrumento para o ensino de Língua Portuguesa,
tendo em vista que, ao fazer uso do celular na sala de aula, pode ser que o
professor desperte o interesse de alunos em relação às escolhas textuais
utilizadas na conversa virtual, além de incentivar os alunos a produzirem e
organizarem textos de acordo com as situações de uso.
Dessa maneira, o uso do gênero textual chat, pertencente ao suporte
digital Whatsapp, como ferramenta de ensino-aprendizagem, no espaço de sala
de aula, pode contribuir com o desenvolvimento de habilidades textuais de
alunos do Ensino Médio. Além disso, contribui para que os chamados gêneros
digitais sejam efetivados em sala de aula, oportunizando uma aprendizagem
mais significativa em tempos tão modernos como é o atual.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 511


Considerações sobre os gêneros textuais

Os gêneros textuais são estudados a partir das contribuições que exercem


na ordenação e estabilização das práticas comunicativas e interativas. Para
Marcuschi (2008), os gêneros são eventos comunicativos que têm capacidade
de adaptação, eles são originados a partir das necessidades dos falantes, bem
como diante dos avanços no meio social e cultural.
De acordo com Marcuschi (2008, p. 20), os gêneros “surgem, situam-se
e integram-se funcionalmente nas culturas em que se desenvolvem”. Eles são
diversificados, infinitos, pois se relacionam com as inúmeras atividades
humanas e são concebidos/materializados por meio de textos, que conduzem
à comunicação.
Bakhtin (2009) defende que só é possível estabelecer comunicação, falar
e escrever, através dos enunciados orais e escritos. Estes são adaptados,
mediante as necessidades dos falantes que possuem uma infindável coleção de
gêneros, que lhes permite ativá-los coerentemente ao momento da interação. A
esse respeito, Bakhtin (2009, p. 282) salienta que os gêneros nos são
apresentados “quase da mesma forma com que nos é dada a língua materna, a
qual dominamos livremente até começarmos o estudo da gramática”.
Seguindo esse pensamento, observa-se que os gêneros determinam as
formas de comunicação para que atendam as variadas situações ou
transformações vivenciadas no espaço-tempo. Percebe-se, dessa forma, que os
gêneros são produtos da linguagem em funcionamento e se apresentam como
diferentes textos que são utilizados diariamente pelos sujeitos sociais.
Nesse sentido, Marcuschi (2008, p. 78) evidencia que os gêneros são os
“textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam
características sociocomunicativas”. Com base nisso, denota-se que os gêneros
ao mesmo tempo em que se estruturam a partir da sociedade, eles não se

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 512


ancoram a ela, pois se organizam diante das variações culturais e ajustam-se às
necessidades de uso comunicativo.
Para Marcuschi (2008), os gêneros variam de um contexto social e
cultural para outro, eles surgem, modificam-se e desaparecem ao logo do
tempo. Os gêneros textuais não são estáticos, assim como a linguagem, eles são
dinâmicos, seguem as ações criativas dos usuários da língua.
A partir das considerações acerca dos gêneros, o trabalho segue os
postulados da Linguística Textual, entendendo os gêneros como textos orais e
escritos que os atores sociais utilizam-se cotidianamente para a comunicação e
outros fins sociais. Não é possível imaginar a língua sem o uso dos falantes
(ROCHA & SILVA, 2017).

Gêneros digitais e suporte textual

As inovações tecnológicas são as grandes responsáveis pelo surgimento


de novos gêneros, uma vez que as plataformas de comunicação mudam e com
elas evoluem as formas de interação, que direcionam a estrutura dos gêneros.
Perante os avanços sociais, o meio digital tornou-se uma das principais formas
de interação e o aplicativo Whatsapp tem se consolidado como um grande
suporte comunicativo.
Para Xavier & Marcuschi (2010, p. 22), “à medida que surgem novas
situações sociais de interação, os gêneros são constantemente renovados, de
acordo com as dinâmicas sociais”. Todos os textos se manifestam em algum
gênero textual e são reflexos do ambiente em que são produzidos. Desta forma,
as comunicações realizadas por meio destes gêneros textuais existentes no
ambiente virtual podem ser chamadas de gêneros digitais.
Assim, os gêneros digitais apresentam-se como um recurso a mais no
estudo dos gêneros e ampliam o arcabouço já existente na sociedade. Para

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 513


Marcuschi (2008, p. 117) os gêneros “[...] nem são estáticos, nem puros, são
formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de organização social que
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia”.
Segundo Dionísio (2011), nos dias atuais a sociedade tornou-se visual,
pois a escrita combina-se com a oralidade e constrói-se a comunicação. A
representação contemporânea da escrita consta de objetividade, é considerada
imediata e eficaz, os gêneros digitais são vistos como formas de
desenvolvimento, que possibilitam o trabalho da oralidade e escrita, além de
possibilitar e facilitar a busca de informações.
De acordo com Marcuschi (2008), o gênero digital caracteriza-se pelo
mecanismo textual que torna possível apresentar a escrita dinamizada e
interativa, nos meios eletrônicos. Com a presença dos avanços sociais, o meio
digital tornou-se uma das principais formas de interação e as redes sociais são
o suporte para a concretização do ato comunicativo.
Ao construir um texto para que a mensagem seja reproduzida e
compreendida pelos interlocutores, precisa-se de um suporte textual. Este, por
sua vez, é entendido “aqui como suporte de um gênero um locus físico ou
virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do
gênero materializado como texto” (MARCUSCHI, 2008, p. 174). Neste
contexto específico, o aplicativo Whatsapp é o suporte do gênero textual chat.
Para Fonte e Caiado (2014), o Whatsapp tem conquistado o espaço e se
tornado a rede social de maior sucesso, visto que instiga a produção escrita e a
construção de diálogos, que são permeados por escolhas linguísticas e
cognitivas, integradas aos movimentos virtuais, com a inserção de imagens, sons
e códigos ortográficos.
No gênero digital, a troca de mensagens se realiza por meio do gênero
textual chat, o qual permite informalidade no diálogo, descontração e a
comunicação com várias pessoas ao mesmo tempo. Além disso, a interação

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 514


ocorre de modo rápido, com a introdução de onomatopeias, reduções de
palavras (abreviações) e sem cobranças ortográficas. De acordo com Costa
(2009, p. 62) o gênero textual chat:

Trata-se de um novo código discursivo e cultural, espontaneamente


construído, que se caracteriza como um conjunto de recursos já existentes
(sinais de pontuações, abreviações, elementos gráficos, maiúsculas, etc.)
são utilizados pelos usuários para o desenvolvimento do falar-escrito ou
da escrita-oralizada, de caráter híbrido, que caracteriza os chats (bate-
papo) da internet, uma interação bastante informal.

Os gêneros digitais se constroem por meio das adaptações dos gêneros


já existentes. Para Marcuschi (2008), o gênero digital caracteriza-se pelo
mecanismo textual que torna possível apresentar a escrita dinamizada e
interativa, nos meios eletrônicos. Assim, as inovações tecnológicas são as
grandes responsáveis pelo surgimento de novos gêneros, uma vez que as
plataformas de comunicação mudam e com elas se aperfeiçoam as formas de
linguagem, que direcionam os variados gêneros.

As categorias textuais estudadas no gênero chat

Para Marcuschi (2012, p. 33), a Linguística Textual “trata o texto como


um ato de comunicação unificado num complexo universo de ações humanas”.
Seguindo essa linha de pesquisa, o texto é entendido como unidade de sentidos,
constituído por categorias e/ou fatores que sustentam a arquitetura
organizacional do todo significativo.
Partindo desse entendimento, este trabalho objetiva realizar uma análise
sobre os possíveis sentidos (re)construídos durante conversas em um grupo
constituído por discentes no aplicativo whatsapp. Assim, nesta investigação,
algumas categorias textuais possibilitaram a interação e a negociação dos
sentidos. As categorias foram: o tópico discursivo, a repetição, a intertextualidade e os
argumentos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 515


O tópico discursivo refere-se ao direcionamento do discurso, permitindo ao
interlocutor a compreensão e linearidade de um dado texto. Marcuschi (2008,
p.135) adota “a noção de tópico discursivo, designando com isso o tema
discursivo, aquilo sobre o que se está falando num discurso”. Todo texto tem
um tópico discursivo, pois diz respeito à temática, ao assunto tratado em um
evento comunicativo.
A repetição garante o reforço de sentido ao enunciado, desse modo, pode
ser considerada como um recurso persuasivo, argumentativo de fixação, visto
que contribui para reforçar um argumento. Para Koch (2017, p. 84) “a repetição
de itens lexicais tem por efeito trazer ao enunciado um acréscimo de sentido
que ele não teria se o item fosse usado somente uma vez”. A repetição não pode
ser considerada como um desvio da língua, mas sim como um recurso
argumentativo, como será possível observar nas análises.
A intertextualidade é um dos sete fatores3 de textualidade e se configura
por meio de elementos exofóricos e endofóricos que contribuem para a
construção de sentidos em um determinado texto. De acordo com Koch (2017,
p. 51) “a intertextualidade compreende as diversas maneiras pelas quais a
produção/recepção de um dado texto depende do conhecimento de outros
textos por parte dos interlocutores”. Assim, é preciso que o interlocutor tenha
um conhecimento cognitivo e social partilhado para entender os possíveis
sentidos evocados em um texto.
Os argumentos dizem respeito às ideias colocadas de maneira estratégica
para defender determinado ponto de vista, com o objetivo de persuadir o
interlocutor. Por esta razão, se pode afirmar que

o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de


determinadas conclusões, constitui o ato linguístico fundamental, pois a

3 Para um melhor entendimento dos sete critérios de textualidade, ver o trabalho de Rocha & Silva (2017).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 516


todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais ampla do
termo” (KOCH, 2004, p. 17).

Portanto, essas quatro categorias da Linguística Textual foram analisadas


no gênero textual chat. Acredita-se que elas organizam a conversa no citado
gênero, bem como produzem sentidos diversos, os quais foram analisados
minuciosamente. Possivelmente, sem o uso de tais elementos textuais, o gênero
chat não teria o funcionamento linguístico que tem.

O percurso metodológico

Este trabalho foi desenvolvido a partir da pesquisa de abordagem


qualitativa, visto que trabalha com os dados de maneira dinâmica e processual
(MARCONI & LAKATOS, 2011), em que a ênfase dada não é em números,
mas sim nas informações textuais que foram adquiridas, selecionadas e
analisadas de acordo com os postulados da Linguística Textual. Além disso, há
o contato direto entre pesquisador e objeto pesquisado.
No que respeita ao corpus deste trabalho, tem-se que faz parte de um
banco de dados oriundo do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência4, do curso de Letras/Português, da Universidade Estadual de
Alagoas, na unidade de Palmeira dos Índios. No PIBID/UNEAL foram
desenvolvidas várias ações interventivas, entre elas, o estudo do texto por meio
do aplicativo Whatsapp. Assim, foi possível ter acesso a esses dados e
selecionaram-se 4 (quatro telas) para serem analisadas textualmente.
O trabalho se desenvolveu por meio do gênero textual chat, tendo como
suporte o aplicativo Whatsapp. Quanto ao cenário, a investigação foi realizada

4 Os autores fizeram parte do projeto PIBID/UNEAL durante dois anos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 517


na esfera escolar, em uma escola estadual de esfera pública do município de
Palmeira dos Índios, em uma turma com alunos do Ensino Médio. Para dar
cumprimento às etapas do trabalho, foi preciso desenvolver algumas ações
ordenadas.
Assim, desenvolveram-se as seguintes etapas: a) leituras e fichamentos
dos textos em Linguística Textual; b) aplicação de sequências didáticas na turma
observada; c) criação do grupo no aplicativo Whatsapp, para a realização das
conversas a partir de um tema previamente selecionado; d) seleção e análise do
material coletado por meio das conversas entre os alunos; e) identificação das
categorias de linha textual; e f) apresentação dos resultados obtidos durante as
intervenções pibidianas.

A linguística textual no gênero chat

As telas a seguir mostram os diálogos realizados por meio do gênero chat


do suporte Whatsapp. As discussões giraram em torno do posicionamento de
cada aluno acerca da legalidade ou ilegalidade do porte de armas no Brasil.
Nesse sentido, a conversa foi realizada a partir das seguintes questões: a) vocês
são contra ou a favor da legalização do porte de armas? b) como a legalização
do porte de armas faria efeito na sociedade? c) resolveria o problema da
segurança? e d) poderia contribuir para resolver a violência no Brasil? A partir
dessas questões, os alunos começaram as discussões no grupo virtual, como
pode ser visto na amostragem a seguir:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 518


Fonte: corpus deste trabalho.

A primeira categoria estudada no gênero textual chat produzido por


alunos do Ensino Médio foi o tópico discursivo. Nessas duas primeiras telas, é
possível observar que os alunos não desviaram o foco da temática (a legalização
do porte de armas no Brasil). Assim, infere-se que os discentes seguiram a ideia
de abordar a questão da legalização das armas e conseguiram dar continuidade
ao que foi proposto desde o início das ações interventivas.
Em seguida, depois da apresentação do tópico discursivo abordado no
chat, L1 termina a sua fala com a seguinte pergunta: “você é a favor ou contra?”.
Logo em seguida, L2 recorre a uma heterorrepetição, ou seja, ele repete a
expressão “a favor” quando diz: “A favor, em espaços privados”. Vê-se o uso da
repetição, objetivando ratificar a opinião de L2 acerca da pergunta anterior. O
locutor L2 se serviu de uma espécie de “deixa” do locutor L1 e conseguiu fazer
com que o texto progredisse.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 519


Mais à frente, é possível perceber que L2 ainda recorre à repetição de
outros elementos do texto, com o intuito de persuadir e ganhar a adesão dos
outros interlocutores do grupo virtual. Verifica-se esse aspecto em: “sua casa”,
“seu carro”, “seu patrimônio”. As mesmas estruturas semânticas e sintáticas são
utilizadas para fixar na mente do outro a opinião de L2, que se diz favorável à
legalização, mas em espaços restritos.
Após isso, L2 utiliza um argumento de autoridade, quando ressalta: “mas
a polícia afirma que das armas apreendidas no Brasil, somente 30% são compradas de formas
ilegais”. Atesta-se que L2 usa de forma habilidosa o argumento de autoridade,
pois sabe que é difícil uma contra argumentação por parte dos outros
debatedores. Ele demonstra um conhecimento do assunto, o que autoriza
pensar que é um leitor atento aos fatos sociais.
Outro debatedor, agora L3, na segunda tela do lado direito, retoma o
referente introdutório, como é possível observar no trecho: “o que eu acho do porte
de armas?”. Novamente, o tópico discursivo é retomado, mas, como será
possível ver adiante, L3 apresenta dois posicionamentos e provoca certas
digressões. Mesmo assim, ainda na tela destacada, é possível ver que L3 repete
outras expressões como: “seja um ladrão, vagabundo, ou seja lá o que for”. Mais uma
vez, a repetição entra em cena, atuando como categoria argumentativa de
fixação.
As duas telas iniciais apresentam as categorias textuais do tópico
discursivo, repetição e argumento. Isso mostra que os alunos do Ensino Médio
conseguiram utilizar, por meio do gênero textual chat, elementos textuais para
efetivarem o acontecimento do referido gênero da esfera virtual. Assim, a
construção dos sentidos foi possível nessas duas telas analisadas. A seguir, tem-
se a continuidade das telas (3 e 4) e da análise realizada.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 520


Fonte: corpus deste trabalho.

Continuando a interação por meio do gênero chat, L3 ainda está


mostrando o seu posicionamento. Neste momento, ele recorre ao argumento
da contradição e/ou incompatibilidade, quando diz: “não existe uma relação lógica
entre ter armas e combater a violência”. Infere-se que o argumento é persuasivo, pois
mostra a impossibilidade lógica entre andar armado e, ao mesmo tempo,
defender a violência na sociedade, conforme a ideia transmitida por L3.
Como fecho de sua opinião, L3, no início da tela 4 (quatro), utiliza o
seguinte pronunciamento: “seria bom que o governo liberasse o porte de armas e criasse
um ‘Bolsa munição’”. Ao fazer isso, ele faz uso da intertextualidade, pois esse
discurso remete diretamente ao programa do Governo Federal, denominado
bolsa família. Naturalmente, os sentidos só são captados se os demais
interlocutores tiverem um conhecimento partilhado acerca do que é e para
quem é destinado o programa do bolsa família.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 521


Percebe-se que L3 foi além do contexto interacional e buscou fatores
exofóricos, ou seja, fora do texto, para efetivar sua argumentação. Além disso,
vê-se, também, que o conhecimento social e o processamento cognitivo
contribuem de maneira imprescindível para a negociação do sentido entre os
atores sociais que trocaram mensagens no chat.
Por fim, outro participante, L4, faz uma pergunta a L3, como é possível
observar em: “desse md a violência aumentaria ñ?!”. Ao invés de L3 responder com
uma afirmativa ou negativa, ele, de forma habilidosa, encadeia outra pergunta e
diz: “você se arriscaria a roubar alguém armado?”. Após isso, L4 é convencido e
persuadido no plano das ideias, pois afirma: “Eu??! Ñ,ñ!”. Os argumentos
colocados por L3 conseguiram vencer os de L4. Logo, entende-se que os alunos
participantes sabem utilizar os argumentos; uns com mais habilidade; outros,
com menos.

Considerações finais

Após as análises realizadas, este trabalho mostrou que o gênero textual


chat é efetivado a partir de categorias textuais (tópico discursivo, repetição,
intertextualidade e argumentos), que organizam os sentidos produzidos no
citado gênero do aplicativo Whatsapp. Durante o percurso teórico e
metodológico realizado, procurou-se responder ao seguinte questionamento
norteador: como os sentidos são (re)construídos durante conversas entre
alunos do Ensino Médio, no gênero textual chat do aplicativo Whatsapp?
Foi possível perceber que o aplicativo Whatsapp serviu como um suporte
textual capaz de contribuir para que, nesse espaço virtual, os discentes
colaboradores pudessem desenvolver uma melhor competência argumentativa
por meio das mensagens; e que os alunos fizeram uso de elementos textuais
para interagirem, negociarem e produzirem sentidos por meio do gênero textual

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 522


chat. Por fim, conclui-se que, a partir do gênero chat, a construção textual é
permeada por atividades linguísticas e sociocognitivas, que garantem a
produção de sentidos em um texto de esfera virtual.

Referências
BAKTHIN, Mikhail Mikhailovich. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico da linguagem. 13. ed. São Paulo:
Hucitec, 2009.

COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. 2. ed. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2009.

DIONISIO, Ângela Paiva. Gêneros textuais e multimodalidade. In.:


KARWOSKI, Acir Mário; GAYDECZKA; BRITO, Karin Slebeneicher
(Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo: Parábola Editorial,
2011. pp. 137-152.

FONTE, Renata.; CAIADO, Roberta. Práticas discursivas multimodais no


WhatsApp: uma análise verbo-visual. Revista do Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade de Passo Fundo, v. 10 - n. 2 - p. 475-487 - jul./dez. 2014.

KOCH, Ingedore. A coesão textual. 19. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

KOCH, Ingedore. Introdução à linguística textual. 2. ed. São Paulo: Contexto,


2017.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão.


São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Linguística textual: o que é e como se faz. São


Paulo: Parábola Editorial, 2012.

MARCONI, Marina de Andrade; LAKATOS, Eva Maria. Metodologia do


trabalho científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e
relatório, publicações e trabalhos científicos. 7. ed. São Paulo: Atlas: 2011.

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ROCHA, Max Silva da; SILVA, Margarete de Paiva. A linguística textual e a
construção do texto: Um estudo sobre os fatores de textualidade. Revista a Cor
das Letras, Feira de Santana, v. 18, n. 2, maio/ago. 2017, p. 26-44.

XAVIER, Antônio Carlos, MARCUSCHI, Luiz Antônio. Hipertexto e gêneros


digitais: novas formas de construção de sentido. 3.ed. São Paulo: Cortez, 2010.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 524


CAPÍTULO 38

Os discursos da balbúrdia: efeitos de


sentido e gestos de interpretação a partir
dos operadores da memória social
Francisco Oliveira1

Introdução

Inserida em um discurso, existem palavras que não significam apenas


nelas mesmas. Elas podem ser mobilizadas para gerar outras discursividades,
ser transformadas no próprio teor discursivo e/ou funcionar como discurso
oposição ou protesto. Quando o Ministro da Educação Abraham Weintraub
utilizou a palavra balbúrdia para justificar os contingenciamentos/cortes nas
Universidades Federais em maio/19, a comunidade universitária reagiu
utilizando a mesma verbete para manifestar sua insatisfação à atitude do
governo.
Dentre algumas reações está a criação de perfis em redes sociais por parte
de estudantes e profissionais do ensino superior das universidades com o uso
da palavra balbúrdia marcando um contradiscurso, ou seja, atitude reacionária
aos então argumentos que tentaram justificar os cortes.

1 Doutorando em Ciências da Linguagem, Universidade Católica de Pernambuco. [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 525


Uma vez que o discurso mobiliza funcionamentos sociais, culturais,
políticos e ideológicos constantemente, a importância deste trabalho ocorre no
fato em se perceber que uma palavra não está engessada nos sujeitos, nos
indivíduos, no estilo, numa época, no tempo, numa ocasião, numa circunstância
ou um sentido apenas.
Logo, o objetivo deste trabalho é analisar a produção discursiva do
sentido da palavra balbúrdia a partir dos operadores sociais envolvidos no
episódio de corte de 30% das verbas nas Universidades Federais no Brasil em
maio de 2019. Por sua vez, os objetivos específicos necessários são: discorrer
sobre a influência das formações discursivas sobre os efeitos de sentido dos
diferentes operadores da memória social que fizeram parte do episódio e
apresentar entrecruzamento das práticas de interpretação que mobilizaram
outros funcionamentos discursivos da palavra em questão.
O funcionamento discursivo decorre do fato de depender das relações
entre os operadores da memória, ou seja, aquele que discursa e o sujeito pra
quem se discursa. O discurso é ideológico pois todo sujeito é ideológico, logo
o funciona e não simplesmente ele é. Operadores de memória podem funcionar
diferentemente considerando seus valores ideológicos e a forma no que eles se
relacionam com as práticas discursivas.

Interdiscurso e memória social

Para se compreender a dinâmica do funcionamento discursivo, entende-


se que ele é apresentado ao leitor a partir de elementos já-ditos, o que por sua
vez gera efeitos interdiscursivos, pois é mobilizado a partir da historicidade que
determina aquilo que da situação, das condições de produção, é relevante para
discursividade (ORLANDI, 2012a).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 526


Os elementos já-ditos no discurso são mobilizados por operadores da
memória social como a mídia, instituições educacionais, personalidades,
literatura que criam, reforçam valores, costumes, abordagens comportamentais,
culturais e ideológicas que se refletem na linguagem.
Toda esta articulação ocorre funciona no contexto mobilizado a partir
do interdiscurso, que disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito
significa em uma situação discursiva dada (ORLANDI, 2012b).
Por conseguinte, abre-se espaço para atuação dos gestos de interpretação
no qual se cruzam nos gestos de leitura, nas revisões e em todas as
reconfigurações permitidas que ocorrem por meio da linguagem previamente e
socialmente convencionada (MALDIDIER, 2003).
O discurso, portanto, marca um conjunto de relações e práticas sociais,
não funcionando apenas no âmbito exclusivo da língua. O discurso não
funciona apenas na relação gramatical e sua coerência não está na organização
léxico formativa. O discurso é tomado nas relações e nos procedimentos
imaginados pelo mecânico-teórico que funcionam e são mobilizados na relação
entre o sujeito falante e o sujeito leitor considerando sua formação discursiva
(MALDIDIER, 2003).
Há uma relação tênue entre formação discursiva e interdiscurso, pois na
formação discursiva “o interdiscurso designa o espaço discursivo e ideológico
no qual se desdobram as formações discursivas em função de relações de
dominação, subordinação, contradição, como ocorre na luta política”
(MALDIDIER, 2003, p.51).
É relevante destacar que a luta política no qual se refere Maldidier ocorre
no âmbito da discussão das ideias e dos interesses dos sujeitos e de suas
correspondentes formações discursivas que por sua vez envolve suas formações
sociais. A formação social

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 527


é o espaço a partir do qual se pode prever os efeitos de sentido a serem
produzidos. Para a AD as posições que os sujeitos ocupam em uma dada
formação social condicionam as condições de produção discursivas,
definindo o lugar por eles ocupado no discurso. Ao funcionamento das
formações sociais está articulado o funcionamento da ideologia,
relacionado à luta de classes e às suas motivações econômicas
(FERREIRA, 2001, p.16).

A luta de classes entra em cena a partir das mobilizações existentes nas


relações sociais e econômicas que funcionam no discurso. Os sujeitos são
ideológicos e esta composição de ser entra em conflitos quando expostos a
valores diferentes dos seus propósitos. Há desta forma uma relação direta entre
ideologia, memória discursiva e efeitos de sentido.

Ideologia, memória e discurso

O ideológico, enquanto representação imaginária está por essa razão,


necessariamente subordinado às forças materiais que dirigem os homens
(PÊCHEUX [1988] 2009). Estas ideologias práticas compõem as formações
sociais e consequentemente geram efeitos que por vezes fazem colidir interesses
entre aqueles que conduzem as instituições detentoras do poder e aqueles nos
quais sofrem algum tipo de influência direta desta formação ideológica.
Não há ideologia sem sujeito e este faz o sentido na história, por meio
do trabalho de memória e da incessante tomada do já-dito. As condições de
existência de universos discursivos não estabilizados logicamente, próprios ao
espaço sócio histórico dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos, dos
enunciados políticos, da expressão cultural e estética possibilitam a criação de
todas as condições de produção que por sua vez se fundem linguística e
ideologicamente ao discurso do sujeito (MAZIÈRE, 2007).
Nenhum discurso faz sentido nele próprio, pois ele não é um conjunto
estático de elementos linguísticos correlacionados, coesos, findados de
funcionamento estático em condições léxicas. Para Orlandi (2012) o discurso é

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 528


uma prática social que ocorre a todo instante, considerando sujeitos que mesmo
constituídos de mesmas formações de linguagem, podem se diferenciar das
condições de produção segundo suas formações políticas, culturais e
econômicas.
Orlandi (2012a) ainda atribui à memória um papel fundamental nestas
condições de produção que aciona o sentido presente na relação entre sujeitos
e as situações discursivas que por sua vez são produzidos em condições
determinadas pela exterioridade, afetadas pela língua e pela história.
Ferreira (2001) atribui à ideologia “um elemento determinante do sentido
que está presente no interior do discurso e que, ao mesmo tempo, se reflete na
exterioridade, mesmo não sendo a ideologia exterior ao discurso, ela é um
elemento constitutivo da prática discursiva.
Compreende-se também que tais práticas discursivas e ideológicas são
apropriadas com base em certas condições de produção, que compreende a
maneira pela qual a memória aciona o sentido, considerando os sujeitos e as
situações, tanto em contextos imediatos, como em contextos sócio históricos,
ideológicos mais amplos representados no discurso (ORLANDI, 2012b).
Toda esta relação discursiva conflituosa é percebida quando um ministro
de estado aciona determina prática discursiva que gera efeitos de sentidos e
gestos de interpretação reacionários a partir de suas próprias práticas de
linguagem.

Método e discussão sobre o objeto

O corpus deste trabalho é formado por meio dos elementos utilizados na


reportagem do jornalista Gilberto Amendola do jornal Estado de São Paulo que
foi publicado no site Estadão em 15 de maio de 2019 com o título: ‘Balbúrdia’
do ministro virou inspiração nas faculdades. O texto foi escrito pelo jornalista,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 529


Gilberto Amendola, do Estado de São Paulo e após entrevista do ministro da
educação, Abraham Weintraub, em 30 de abril.
O texto chama atenção do uso da palavra balbúrdia pelo ministro que a
utilizou para justificar o corte de 30% das universidades no Brasil: Universidades
que, em vez de procurar melhorar o desempenho acadêmico, estiverem fazendo balbúrdia, terão
verbas reduzidas. Abraham Weintraub, Ministro da Educação.
Na fotografia da legenda da reportagem havia uma legenda que dizia a
seguinte frase: O ministro da educação ressuscitou a palavra balbúrdia. O jornalista
argumenta também que o termo já saiu da boca de personagens shakespearianos entre
outros clássicos.
O maior destaque da reportagem foram os posts colhidos nas rede social
Instagram no qual apresentou diversos perfis com o uso da palavra balbúrdia
mais as siglas das principais universidades nos Brasil, em especial aquelas nos
quais sofrerão os cortes de verbas e paralisaram algumas pesquisas de relevância
para o país e sociedade científica.
Os destaques acima servirão para discutirmos o funcionamento da
linguagem no qual tem a ideologia materializada nesta objetos de estudo da
análise do discurso de linha francesa. Para Orlandi (2012a), a AD pensa a
ideologia como mecanismo estruturante do processo de significação que numa
sociedade capitalista age mobilizando sentido e faz circular gestos de
interpretação que ora se apoiam, ora colidem entre si, como foi o caso.
É importante destacar que, segundo o dicionário Aurélio, a palavra
balbúrdia possui 38 (trinta e oito) significados nos quais pode-se destacar:
confusão, barulho, alvoroço, escarcéu, desordem, tumulto, agitação e zoeira, entre outros, e
2 (dois) sentidos: ruído alto e grande confusão.
Quando o ministro se utilizou da palavra para justificar os cortes de
recursos nas universidades, ele pretendia atrelar o sentido da palavra apenas a
significados que estivessem elencados à desordem.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 530


Porém, quando a classe universitária formada por alunos, professores e
pesquisadores soube do uso da expressão, entenderam que o argumento não
justificava o corte e que neste sentido sim, havia um ato de balbúrdia por parte
do governo.
Logo a palavra, além de tantos significados e sentidos, ganhou também
um efeito de sentido discursivo. Para Orlandi (2012b), o deslizamento de
sentido ocorre para o discurso apoiar gestos de interpretação que atendam as
expectativas ideológicas pelos quais os sujeitos se identificam. O sentido não é
estático, ele funciona com base na circulação de elementos socio históricos.
Achard (2015), por sua vez, estabelece que um texto trabalha através de
sua circulação social, o que supõe que sua estruturação é uma questão social, e
que ela se diferencia seguindo uma diferenciação das memórias e uma
diferenciação das produções de sentido a partir das restrições de uma forma
única.
A reportagem também destaca que a palavra foi retirada da boca de
personagens shakespearianos entre outros clássicos, o que infere atrelar o argumento do
ministro ora erudito, ora inadequado, a depender das forças simbólicas
envolvidas no discurso.

Compreender é saber como um objeto simbólico produz sentidos


analisando assim seus próprios gestos de interpretação. A AD não
estaciona na interpretação, trabalha seus limites, seus mecanismos, como
parte dos processos de significação” (ORLANDI, 2012a, p.16).

Dentre vários gestos de interpretação na sociedade civil, alguns apoiaram


o ministro. Como forma de protesto a esta identificação um aluno de
odontologia usuário do Perfil @balburdiaufpe destacou que quando a sociedade
concorda com o ministro, quando ele diz que nas universidades o que se faz é balbúrdia, é
porque as pessoas não sabem o que acontece dentro da instituição. Então resolvemos divulgar
e dar publicidade a tudo de bom e importante que acontece aqui dentro.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 531


O fato de criar um perfil numa rede social, atribui memória ao
acontecimento. Trata-se de um acontecimento que fica memorizado e poderá
entrar na história e a “partir da memória do grupo, pelo qual poderá perdurar e
se estender além dos limites físicos do grupo social que viveu o acontecimento”
(ACHARD, 2015, p.24).
Portanto o perfil não serve apenas para dar publicidade às ações internas,
eventos, pesquisa e outras benfeitorias das universidades, o perfil exerce um
papel de operador de memória que anteriormente no máximo era noticiado na
chamada grande mídia, mas o acesso era exclusivo aos donos ou executivos dos
canais de comunicação.
Nesta conjuntura, o acesso ao termo balburdia na rede social permite um
funcionamento discursivo que mobiliza dizeres que se fortalecem no conflito
de interesses entre uma agenda política econômica do governo, e uma política
de desenvolvimento da pesquisa e educação em prol do desenvolvimento social
por meio da comunidade universitária.
Por isso o uso da expressão @balburdia por parte das universidades, traz
um discurso e funciona muito além de outro sentido institucionalizado a sua
expressão. Tudo se esbarra na ideologia que torna possível a relação entre
“pensamento, a linguagem e o mundo, ou seja, reúne sujeito e sentido. [...] O
sujeito se constitui e o mundo se significa pela ideologia” (ORLANDI, 2012b,
p.96).
Outra abordagem presente no discurso que envolve o uso da palavra
balbúrdia é a prática da liberdade em se exercer atividades que constituem
outras práticas discursivas. Um aluno usuário da @balburdiaUnB que diz é
chegada a hora de mostrar o tamanho da balbúrdia que a gente consegue fazer. Se é balbúrdia
que eles querem, é balbúrdia que eles vão ter. Trata-se de um enunciado que expressa
a forma de como os sentidos podem se mostrar concretos e explosivos de
liberdade, e nos quais alguns sentidos mobilizam outros que são mobilizados

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 532


por sujeitos e para a história que barram ou desafia o status quo, pelas instituições,
pelo poder (ACHARD, 2015).
A reportagem traz também a participação do idealizador do evento
Palavra do Ano, o cientista político, Leandro Machado. Foi perguntado se a
palavra balbúrdia poderia ser a palavra do ano e ele respondeu ainda ser muito
cedo para responder. Ainda assim o contexto que ela foi usada, e o fato de ter sido usada por
um ministro de estado, pode influenciar o uso, o significado ou o desuso de um termo como
balbúrdia.
A palavra do ano está condicionada às formulações do uso e
mobilizações de sentido por parte de determinado grupo de sujeito, e expressa
preocupação ambiental, social ou política como já foram eleitas as palavras pós-
verdade e tóxico. Isto evolve uma formação discursiva que pode ser articulado sob
a forma de “uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição em
uma formação ideológica definida, isto é, a partir de uma posição de classe no
seio de uma conjuntura dada” (MALDIDIER, 2003, p.52).
Toda esta relação do já-dito incorre no interdiscurso, que funciona em
sua “intrincação com o complexo das formações ideológicas fornecendo a cada
sujeito sua realidade, enquanto sistema de evidências e de significações
percebidas-aceitas-sofridas” (MALDIDIER, 2003, p.53).

Considerações finais

As considerações finais apontam para necessidade de compreensão sobre


funcionamento do sentido na produção do (inter)discurso considerando fatores
externos que deslocam elementos entre operadores da memória social que
geram interpretações a partir das diferentes posições dos sujeitos.
A palavra, que no contexto apresentado traz uma abordagem discursiva
que não está totalmente contemplada em seu significado convencionado, antes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 533


de ser ressuscitada pelo ministro atendia aos sentidos sem marcar posicionamentos
discursivos, mas o contexto social e operadores de memória possibilitaram um
deslizamento de gestos de interpretação opostos às pretensões
desqualificadoras abordadas na intenção de sentido que o ministro da educação
tentou empregar.
O emprego da palavra aponta gestos de interpretação que posicionam o
conteúdo da expressão enquanto conteúdo discursivo político-social. Utilizado
pelo ministro que representa o governo se utiliza da palavra enquanto aquele
que quer dominar e tenta desqualificar o objeto de seu discurso. Quando
utilizada por aqueles que sofrem o efeito do discurso dominador, sofre o
deslizamento na proposta invertendo o sentido proposto de desordem, para
produtividade, abordagem político-ideológica e discurso-protesto caraterizado
pela resistência e pelo afrontamento ao sistema atual.
As redes sociais passam a ser o principal aporte dos operadores da
memória discursiva por meio de um conjunto de sujeitos que não representa
apenas posições ideológicas, mas sujeitos que sabem de fato transformar as
agressões sofridas em atos discursivos em prol da construção de um projeto de
nação, diferentemente do ministro que enquanto representante do poder,
posicionou-se apenas no sentido de defender um projeto de governo, leia-se de
partidário.

Referências
ACHARD, Pierre. Papel da Memória. Tradução: José Horta Nunes. 4ed.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2015.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Glossário de Termos do Discurso: análise do
discurso. Instituto de Letras – UFRGS, Porto Alegre, 2001.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 534


GREGOLIN, Maria do Rosário. Análise do discurso e mídia: a (re) produção de
identidades. Dossiê – Comunicação, mídia e consumo. São Paulo: SP. Vol.4.
n11. p.11-25. Nov.2007.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux.
Tradução: Eni Orlandi. Campinas, SP: Pontes Editores, 2003.
MININNI, Giuseppe. Psicologia cultural da mídia. Trad. Mario Breghello. São
Paulo: Edições SESC SP, 2008.
MAZIERE, Francine. A análise do discurso: história e prática. Trad. Marcos
Marcionilo. São Paulo: Parabólica Editorial, 2007.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos.
10ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.a.
______. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. 3ed. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2012.b.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Trad. Eni Orlandi et al. 4ed. Campinas: Editora Unicamp, 2009 [1988].

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 535


CAPÍTULO 39

Uma análise além do humor na


construção de sentidos da leitura
Daniella Rafaelle A. do Nascimento1
Maria Auxiliadora da Silva2

Introdução

O ato de ler é uma atividade interativa entre o leitor e seu texto, que passa
a construir sentido a partir dos elementos nele encontrados, se relacionando
com outros que vão além do mesmo. Segundo Koch (2018, p. 57), “(...) o
sentido de um texto não existe a priori, mas é construído na interação sujeitos-
texto”, o que reforça a ideia de que a interação na leitura torna-se essencial para
a construção de significado.

Neste processo, espera-se que estudantes, principalmente do 9º ano da


Educação Básica, possam construir sentido ao interagir com o texto, uma vez
que essa prática se faz presente no ambiente escolar diariamente, além também
de ser uma exigência das avaliações em larga escala, como o SAEPE 3 (Sistema
de Avaliação Educacional de Pernambuco), aplicadas a fim de apontar a

1 Mestranda Profletras/UPE/[email protected]/CAPES
2 Mestranda Profletras/UPE/[email protected]/CAPES
3 Para compreender melhor esse sistema de avaliação indicamos a Revista Pedagógica encontrada no endereço:

http://www.saepe.caedufjf.net/wp-content/uploads/2016/05/SAEPE-RP-LP-9EF-WEB.pdf, a qual
descreve na página 20, os termos técnicos utilizados em nossa pesquisa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 536


realidade do ensino medindo a proficiência na leitura de nossos discentes a
partir de descritores estabelecidos na Matriz de Referência.
Assim, decidimos analisar a forma como é requerido dos estudantes essas
habilidades de leitura, no período de 2008 a 2018, focando no D22 que consiste
em identificar efeitos de humor no texto, tendo em vista os estudos sobre o
processamento textual e ativação dos sistemas de conhecimento necessários à
compreensão de sentido de Ingedore.
Nosso aporte teórico baseia-se nas concepções de Koch e Vanda Elias
(2018), Koch (2011), Koch & Travaglia (1999) e construção de sentidos de texto
de Cavalcante (2013), além da perspectiva de Sírio Possenti (2010), defensor do
discurso humorístico, buscando discutir á ótica de estudo do texto, o humor e
as avaliações de larga escala, com base no papel que esta ocupa no âmbito
educacional Depresbiteris (2001), tendo como objetivo de analisar se a proposta
avaliativa do SAEPE utilizada na identificação do efeito de sentido humor
possibilita o processamento textual como estratégia da ativação dos
conhecimentos linguísticos e enciclopédicos necessários a interpretação do
texto.
Desta forma, devido a importância do desenvolvimento das habilidades
de leitura a vida escolar e para além desta, a escolha desta temática se mostra
pertinente ao processo da escola, uma vez que é exigida no sistema de avaliação
educacional estadual, justificando sua importância ao desenvolvimento da
competência leitora visando à formação de um leitor proficiente. Assim, ao
analisar tais questões pretendemos contribuir com o processo de aprendizagem,
buscando refletir o ensino do texto e suas possibilidades em consonância ao
embasamento teórico aqui citado.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 537


Referencial teórico

A leitura como processo interativo vai além do próprio texto, essa


interação demonstra como o significado é construído não de forma isolada, mas
no processo interativo, tendo em vista o contexto em que se insere. Desse
modo, Cavalcante (2013, p.305), afirma que:

Ao compreendermos que os sentidos do texto não estão presentes apenas


na superfície textual, que esses sentidos são construídos por meio da
interação locutor texto interlocutor, entendemos que os contextos das
situações discursivas são essenciais para o trabalho de interpretação dos
eventos comunicativos

Neste sentido, o ato de ler não pode ser considerado passivo, tendo em
vista que as experiências e conhecimentos do leitor exercem influência na sua
compreensão. Essa ideia é fortalecida a partir dos estudos sobre o
processamento textual e ativação dos sistemas de conhecimento necessários à
compreensão de sentido, concepções de Ingedore Koch e Vanda Elias (2018),
que afirmam que na leitura recorremos a três grandes sistemas de
conhecimento; linguístico, enciclopédico e interacional, na nossa análise
optamos pelos conhecimentos linguísticos e enciclopédicos. Semelhantemente
Koch (2011, p.19) ainda afirma que:

Espera-se sempre um texto para o qual se possa produzir sentidos e


procura-se, a partir da forma como ele se encontra linguisticamente
organizado, construir uma representação coerente, ativando, para
tanto, os conhecimentos prévios e/ou tirando as possíveis
conclusões para as quais o texto aponta. O processamento textual
quer em termos de produção, quer de compreensão, depende, assim,
essencialmente de uma interação – ainda que latente – entre produtor
e interpretador.

Esse fato pode ser comprovado, levando em consideração as estratégias


de interpretação que o leitor utiliza para mobilizar e desvelar os mecanismos
linguísticos. Dessa forma os conhecimentos citados por Koch permitem que
um mesmo texto possa estabelecer, para diferentes leitores, diferentes sentidos,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 538


que poderão estar ligados aos conhecimentos linguísticos, podendo ser
gramaticais e lexicais suficientes para entender as frases, bem como o
enciclopédico/mundo. Segundo Koch e Travaglia (1999, p. 60):

O conhecimento de mundo se estabelece e se armazena na memória


não isoladamente, mas se organiza e representa na mente em
conjuntos, em blocos, como unidades completas de conhecimento
estereotípico, chamadas de conceitos e modelos cognitivos globais.

Espera-se que a partir desta organização, os mecanismos se ativem e


operem de modo a acolitar para construção de significados. Ainda no que se
refere ao conhecimento enciclopédico Koch & Travaglia (1999, p. 64) citam um
modelo cognitivo originário da Inteligência Artificial e da Psicologia da
Cognição conhecidos por:

Frames são modelos globais que contêm o conhecimento de senso


comum sobre um conceito central (por exemplo, Natal, viagem aérea);
estabelecem quais as coisas que, em princípio, são componentes de um
todo, mas não estabelecem entre eles uma ordem ou sequência (lógica
ou temporal).

Estes atributos são utilizados para explicar a forma que a mente processa
tais informações, segundo os autores ao recebermos informações os frames são
ativados relacionando o novo ao fato a ele comum, dessa forma os valores
associados para a construção de sentido são atribuídos de um ponto de vista
particular.
Para o estudo do texto de humor focamos nas ideias de Sírio Possenti
(2010 p.148), defensor de que “o discurso humorístico, nos diversos gêneros
textuais em que se materializa, faz apelo a um saber, a uma memória – mas não
necessariamente a uma cultura específica”. O que também faz referência aos
conhecimentos ativados na leitura.
A partir das considerações anteriormente colocadas, partimos da escolha
de análise da avaliação em larga escala (SAEPE) visto sua finalidade no âmbito
escolar, como afirma Depresbiteris (2001, p. 144), esta visa: “Fornecer

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 539


resultados para a gestão da educação, subsidiar a melhoria dos projetos
pedagógicos das escolas e propiciar informações para a melhoria da própria
avaliação, o que a caracteriza como meta-avaliação”. Fato que aponta a
importância de verificar a forma como tal atividade avaliativa exige certas
habilidades de nossos discentes, tendo em vista sua importância para uma
educação eficiente.

Metodologia

Para alcançarmos nosso objetivo, realizamos o levantamento das


questões do SAEPE do 9º ano do ensino fundamental entre o período de 2008
a 2018, utilizando da Matriz de Referência o D22, identificando nos itens deste
descritor os gêneros e comandos abordados.

Quadro - Matriz de referência do SAEPE


MATRIZ DE REFERÊNCIA DE LÍNGUA PORTUGUESA - SAEPE 9º ANO DO
ENSINO FUNDAMENTAL I. PRÁTICAS DE LEITURA
I. PRÁTICAS DE LEITURA
D6 Localizar informação explícita em um texto.
D6 Inferir informação em um texto.
D8 Inferir o sentido de palavra ou expressão a partir do contexto.
D9 Identificar o tema central de um texto.
D10 Distinguir fato de uma opinião
D11 Interpretar textos não verbais e textos que articulam elementos verbais e não
verbais.
II - IMPLICAÇÕES DO SUPORTE, DO GÊNERO E/ OU DO ENUNCIADOR
NA COMPREENSÃO DO TEXTO
D12 Identificar o gênero do texto.
D13 Identificar a finalidade de diferentes gêneros textuais.
III - RELAÇOES ENTRE TEXTOS

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D14 Reconhecer semelhanças e/ou diferenças de ideias e opiniões na comparação
entre textos que tratem da mesma temática.
IV - COESÃO E COERÊNCIA
D16 Estabelecer relação de causa e consequência entre partes de um texto.
D17 Estabelecer relações lógico-discursivas entre partes de um texto, marcadas por
locuções adverbiais ou advérbios.
D18 Reconhecer relações entre partes de um texto, identificando os recursos coesivos
que contribuem para sua continuidade (substituições e repetições).
D19 Identificar a tese de um texto.
D21 Reconhecer o conflito gerador do enredo e os elementos de uma narrativa.
D27 Diferenciar as partes principais das secundárias em um texto.
V - RELAÇÕES ENTRE RECURSOS EXPRESSIVOS E EFEITOS DE SENTIDO
D22 Identificar efeitos de humor no texto.
D23 Identificar efeitos de sentido decorrente do uso de pontuação e outras notações.
D24 Reconhecer o efeito de sentido decorrente do emprego de recursos estilísticos e
morfossintáticos.
D25 Reconhecer o efeito de sentido decorrente da escolha de palavras, frases ou
expressões.
VI - VARIAÇÃO LINGUÍSTICA
D26 Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e/ou o interlocutor.
Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano
2014.

O descritor utilizado em nossa pesquisa encontra-se no eixo V, que diz


respeito as relações entre recursos expressivos e efeitos de sentido. Dessa
forma, selecionamos às questões, como pode ser visto no corpus a seguir:

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 541


Figura 2- Questão do SAEPE 2008 - gênero tirinha

FFonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2008.

Esse item avalia a habilidade de identificar efeitos de humor em um


texto. Nesse caso, além da conjugação entre a linguagem verbal e a não verbal,
o estudante precisa ter o conhecimento enciclopédico para relacionar a questão
de uso do celular com a tirinha apresentada, fator determinante para a
compreensão da história e a percepção do humor.

Figura 3- Questão de 2010 – Pertencente ao gênero crônica.

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Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2010 .

O item abaixo avalia a habilidade de identificar efeitos de humor no texto.


Nessa questão, a crônica é construída apenas com trechos de falas que seriam
ditas por uma mãe, sendo necessário o estudante ter os conhecimentos
enciclopédicos para identificar a alternativa correta.

Figura 4- Questão de 2012- Relativo ao gênero piada.

Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2012.

Este item avalia a habilidade de identificação de efeitos de humor


produzidos em textos diversos. Essa é uma habilidade que se relaciona
diretamente aos processos de compreensão que ultrapassam as barreiras da
mera identificação literal de sentidos, exigindo do estudante a capacidade de
construir uma representação coerente do texto e perceber que o humor se
estabelece pela quebra de uma expectativa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 543


Figura 5- Questão de 2013 - gênero piada

Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2013.

Esse item avalia a habilidade de identificar efeitos de humor em um texto.


Nesse caso, o estudante precisa ter o conhecimento enciclopédico e linguístico
para saber responder à questão com coerência.

Figura 6- Questão de 2016- gênero tirinha.

Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2016.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 544


Esse item avalia a habilidade de identificar efeitos de humor em um texto.
Nesse caso, o estudante precisa ter o conhecimento linguístico das palavras
utilizadas no item.

Figura 7- Questão de 2017- gênero crônica.

Fonte: Revista Pedagógica 8ª série/9º ano do Ensino Fundamental Língua Portuguesa, ano 2017.

Esse item avalia a habilidade de os estudantes identificarem o efeito de


humor em uma piada, para tanto esses precisam ter o conhecimento linguístico
para compreender a construção do texto que se dá por meio de um diálogo.

Descrição dos resultados

Com a realização do levantamento das questões identificamos que o


órgão avaliador não disponibiliza o caderno de provas dos anos anteriores, que
dificulta um estudo mais específico de cada questão. Sendo possível encontrar
apenas recortes em modelo de boletim, com algumas questões, onde o próprio
avaliador tece comentários sobre o item. Quanto aos gêneros trabalhados, existe
uma variação entre os anos estudados, no intervalo de 2008 a 2018
encontramos; duas tirinhas, duas crônicas e duas piadas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 545


Considerações finais

Após as análises, constatamos que nas edições disponíveis, os itens que


avaliam os efeitos de humor têm se mostrado complexos no referente à
linguagem adotada, que não pertence aos conhecimentos linguísticos dos
nossos alunos, segundo os estudos de Koch e Elias (2018), fato que pode os
induzir ao erro. Além disso, o comando da questão é vago e mecanizado
sistematicamente, o que permite inferir que o avaliador espera uma resposta
automatizada do educando. Outro ponto observado foi a escolha dos gêneros
abordados como suporte na construção dos itens, esses influenciam a
identificação dos efeitos de humor, visto que apresentam conteúdos densos e
exigem conhecimentos enciclopédicos que não são compatíveis com a realidade
educacional, reafirmando as ideias de Possenti, quanto ao “apelo a um saber”.
Concluímos assim, que as questões apresentam problemas em sua
elaboração que precisavam ser revistos, objetivando uma formulação do item
que permita o estudante ativar conhecimentos necessários a interpretação do
sentido, em vez de mecanizar os enunciados acarretando respostas errôneas, o
que corrobora para diminuição dos índices positivos em muitas escolas

Referências

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto,


2013.

DEPRESBITERIS, L. Avaliando competências na escola de alguns ou na escola de todos?


Boletim Técnico do Senac. São Paulo, v. 27, n. 3, set.-dez. 2001.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e
Coerência. 6 ed. São Paulo: Cortez Editora, 1999.

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KOCH, Ingedore Vilhaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do
texto. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

PERNAMBUCO. Secretaria da Educação. SAEPE Universidade Federal de Juiz


de Fora, Faculdade de Educação, CAED.UFJF, Juiz de Fora.

POSSENTI, S. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 547


CAPÍTULO 40

Uma leitura dos marcadores


conversacionais no discurso
radiojornalístico
Daniela Carla Silva Costa1
Maria Francisca Oliveira Santos2

Introdução

Os estudos conversacionais estão presentes em pesquisas acadêmicas,


permitem que sejam feitas análises de conversas cotidianas, mostram como
essas conversas estão estruturadas e organizadas, evidenciando os diversos
aspectos que as compõem, além da sua contribuição aos estudos interpretativos
da linguagem. Respondem a questionamentos acerca do papel da análise da
conversação não somente nos estudos conversacionais, mas também em
outros, como os retóricos, textuais, argumentativos, entre outros.
Entre os estudos conversacionais, temos os marcadores conversacionais
que desempenham papel fundamental na análise da conversa, sendo eles
verbais, não verbais e prosódicos, que desempenham funções interacionais
dentro da fala. Esses marcadores foram aqui estudados, na sua caracterização e

1 Graduada em Letras/Português pela Universidade Estadual de Alagoas, na unidade de Arapiraca. E-mail:


[email protected]
2 Doutora em Letras. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística e Literatura da

Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas – PPGLL/FALE/UFAL. Professora titular da


Universidade Estadual de Alagoas, na unidade de Arapiraca. E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 548


classificação quanto aos seus tipos, assim como, a outros aspectos da
conversação e do discurso entrevista oral.
Este trabalho versa sobre a oralidade3, mais especificamente os
marcadores conversacionais no discurso radiojornalístico, com um corpus de
pesquisa, representado por uma entrevista coletada pela rádio Universitária
Web da Universidade Estadual de Alagoas. Esses marcadores foram estudados
por aparecerem na conversação e são próprios da oralidade, servindo para a
melhor fruição do discurso, como articuladores que ajudam a preencher
espaços e silêncios que podem ocorrer naturalmente na conversa.
Diante de um questionamento surgido acerca dos marcadores
conversacionais dentro da entrevista e de seu papel para a melhor organização
do texto falado, bem como a interação e compreensão por parte dos envolvidos
na conversa, surgiu o desejo de pesquisar mais a fundo sobre esses elementos
específicos da interação face a face, para mostrarmos a sua relevância na
interação e a importância de estudá-los em situações de comunicação real, em
conversas cotidianas.
O principal objetivo deste trabalho foi compreender o papel dos
marcadores conversacionais dentro da entrevista radiojornalística, bem como
sua importância dentro da entrevista, mapeando os estudos conversacionais e
o discurso radiojornalístico.
Para a realização do trabalho, foi feita uma pesquisa bibliográfica,
seguindo a linha qualitativa, em que foram feitas as leituras para coletar dados
acerca dos estudos conversacionais e do discurso radiojornalístico a partir do
gênero entrevista oral e, por fim, foram realizadas as análises dos fragmentos
do corpus em que ficaram explícitos os marcadores conversacionais utilizados
pelos interactantes participantes da entrevista.

3 Acerca dos estudos sobre a oralidade, ver Santos & Rocha (2018) e Santos (2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 549


Os estudos conversacionais: objeto e marcadores
conversacionais

A análise da conversação (AC) surgiu na década de 60, dentro da linha


da Antropologia cognitiva e da Etnometodologia, até a metade da década de 70.
Preocupava-se, sobretudo, com a descrição das estruturas presentes na
conversação e os mecanismos que a organizavam. Até então, as pesquisas que
tratavam da conversação originavam-se de ideias, moralistas do ponto de vista
basicamente estético e ético, sob uma concepção puramente normativa, ou seja,
tratava-se, principalmente de regras para a “arte de bem conversar”, como falar
corretamente e expressar-se de acordo com o que as regras formais
determinavam.
Atualmente, diferentemente daquela época, os estudos da conversação
seguem uma linha descritiva e interpretativa, que visam tratar, mais
objetivamente da conversação, com análises feitas por meio de corpora, gravados
cuidadosamente e transcritos, como estão na gravação.
Segundo Marcuschi (1998), a Análise da Conversação norteava-se pelo
princípio básico de que todos os aspectos da ação e interação social presentes
na conversa poderiam ser analisados e descritos em termos de organização
estrutural convencionalizada ou institucionalizada. Além disso, para o enfoque
interacionista, as investigações devem ser realizadas não em frases isoladas,
abstratas e fora de contextos, mas em situações de comunicação concreta.
Na Análise da Conversação, são analisados, simultaneamente, materiais
verbais e não verbais, sendo essas construções coletivas, constituídas por
palavras, silêncios, entonações da voz, gestos, mímicas e posturas que formam
um conjunto, constituindo-se o objeto da Análise da Conversação.
Como diz Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 36), “as conversações exploram
diferentes sistemas semióticos para se constituir”, ou seja, a Conversação

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 550


explora diferentes áreas da conversação oral, em que tudo que é realizado nas
conversas, até mesmo naquelas mais simplórias do dia a dia, é analisado na
conversação.
No material verbal, encontramos conteúdos de análise nos seguintes
aspectos: nas unidades constitutivas da língua, representadas por itens
fonológicos, lexicais e morfossintáticos, que são as palavras que o interlocutor
escolhe para se comunicar de maneira eficaz.
Temos também como material, os elementos paraverbais em que se
encontram todas as unidades transmitidas para os falantes através do canal
auditivo, como entonação, pausas, características da voz, ou seja, todos os
comandos que recebemos durante o diálogo e que são percebidos pela audição.
Percebemos então se a pessoa está em dúvida, seu estado de humor através da
voz e o momento quando devemos parar de falar.
Torna-se fundamental para a AC a coleta do material através de gravação
de áudio ou vídeo para que esses aspectos não passem despercebidos. Um
exemplo claro disso acontece quando um analista pode perceber que
interrupções ocorrem, coincidentemente, com a pouca atenção do ouvinte ao
que está sendo falado, que é marcado justamente pelo desvio do olhar ou pela
distração com outras coisas que acontecem ao seu redor. Isso só poderá ser
percebido através de um material de pesquisa gravado em vídeo, por exemplo.
A Interrupção exercida pelo locutor, neste caso, tem a função de reconquistar
a atenção do ouvinte, sendo considerado um ato espontâneo e automático por
parte do locutor.
O material não verbal e os paraverbais também exercem grande
importância dentro da AC, pois seríamos incapazes de fazer uma análise sem
conhecer a importância desses elementos. Neste momento, a conversação deixa
de ser considerada apenas como uma verbalização das palavras e é introduzida
nos estudos dos textos, onde são observadas as condições de produção das

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 551


atividades interacionais. Distinguem-se, assim, da análise do discurso e da
pragmática filosófica, por motivações históricas que a conversação sustentam,
que se voltam às ações humanas diárias, nas mais diversas culturas e formas de
interação verbal, espontâneas do cotidiano ou não.
Diante dessa motivação, a AC fomentou, desde o seu princípio, sua
preocupação básica com a conexão com diversas situações e, em consequência,
com o caráter pragmático da conversação e de toda e qualquer ação da língua
no cotidiano.
Percebemos, assim, que o objetivo principal da Análise da Conversação
é relatar e descrever o andamento das conversações do cotidiano nas situações
mais naturais possíveis. Possui como objetivo evidenciar regras que irão
sustentar e organizar o funcionamento da conversa, das trocas nos diferentes
gêneros, compreender o comportamento daqueles que estão inseridos nas
atividades comunicativas.

Marcadores conversacionais

Os marcadores conversacionais são unidades constitutivas da conversa


que servem para organizá-la e torná-la mais compreensiva para os participantes
da interação. Essa expressão é usada para definir não só os elementos verbais
existentes nas conversações, como também para os elementos paraverbais ou
prosódicos e não-verbais, que são constitutivos da comunicação e exercem
papel fundamental no processo comunicativo, pois desempenham papel
interacional na conversa. Esses recursos são utilizados tanto pelo falante quanto
pelo ouvinte, e demonstram que estão, de fato, participando da interação.
Os marcadores que abrangem a entonação dentro de uma conversa são
chamados de prosódicos ou paraverbais; não são linguísticos, mas servem para

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 552


nos revelar aspectos da conversação, tais como: alteração na voz, ironia, entre
outros que podem nos ajudar a distinguir os “rumos” da conversa.
Também são demonstradas neste grupo de marcadores as pausas que
podem ser breves, longas e silenciosas; também alongamentos de vogais que
podem demonstrar a ênfase que se quer dar à determinada palavra para que o
interactante perceba imediatamente o sentido que o falante deseja imprimir
através desse artifício da linguagem.
Os marcadores prosódicos ou suprassegmentais podem apoiar-se, ainda,
em marcadores verbais, porém concretizam-se por meio de recursos
prosódicos, em que o falante exprimirá seus sentimentos, humor, entre outros
aspectos, através da entonação que colocar nas palavras ao expressá-las.
Além disso, os marcadores verbais segmentam essa conversa,
substituindo, de certa forma, a pontuação presente na escrita, dentro da fala.
Temos por marcadores verbais: “então”, “certo”, “uhn”, “é”, “mas”, “e daí”,
“e então”, “sim”, “viu”, “claro”, “sabe?”, “né?”, “eu acho”, “e” e “daí”,
Esse grupo de marcadores possui um grande poder comunicativo, pois
mesmo que o ouvinte não esteja compreendendo o que o outro está falando,
não esteja ouvindo bem ou não domine bem a língua do falante, o ouvinte pode
manter um diálogo bem-sucedido, desde que utilize os sinais do ouvinte
corretamente.
Quanto à função sintática, ela possui relação com a sintaxe gramatical,
serve para marcar sintaticamente as unidades em que ocorrem correções, elipses
ou pausas, dentro da conversa. Os sinais do falante podem vir no início, no
meio ou no fim do diálogo; já os sinais do ouvinte ocorrem geralmente em
pontos em que ele discorda ou concorda com o falante.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 553


Aspectos do discurso radiojornalístico

A primeira transmissão radiofônica no Brasil ocorreu por volta de 1922


e, desde então, vem passando por mudanças e evoluções, quer seja na
programação, quer seja na linguagem utilizada neste veículo de informação.
Embora o rádio seja um instrumento de comunicação, no seu início,
poucas pessoas tinham acesso a aparelhos de transmissão radiofônica, devido
ao custo que era alto. Assim, passou a atender apenas à minoria da população;
em suas programações, havia músicas eruditas, concertos e palestras.
O radiojornalismo está ligado à oralidade e estão interligados, pois é
através da linguagem oral que o radiojornalismo se concretiza em que os
elementos verbais, não-verbais e paraverbais aparecem para que discurso
consiga atingir o público ouvinte e este produza suas próprias imagens sobre o
que é falado, visto que, no rádio, não há a presença do visual, como é o caso da
TV, aqui só se conseguirá atingir o espectador através da audição. O que
alcançará o ouvinte é a junção de pausas, o texto oral, a voz, o timbre e a
intensidade para que ele se sinta atraído a ouvir determinado programa.
A linguagem radiofônica baseia-se em quatro elementos, segundo Cézar
(2006, apud MELO JUNIOR, 2016), quais sejam: a palavra, a música, os efeitos
sonoros e o silêncio. A palavra estará presente na maior parte da programação,
pois diz respeito ao conteúdo que será tratado pelos interactantes em
reportagens e comentários etc., conduzirá ainda a reflexões acerca de um tema
ou uma notícia, sempre associada a outros aspectos como voz, conhecimento
sobre o assunto, assim obtendo a coerência em suas manifestações.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 554


Gênero entrevista oral

O gênero entrevista oral está presente em diversas práticas da sociedade,


como na entrevista de emprego, a qual envolve um entrevistador e entrevistado,
presente ainda em consultas com terapeutas, consultas médicas, em reportagens
e na produção de telejornais. Em todas essas práticas sociais, as entrevistas
possuem pontos em comum, pois elas possuem, em sua estrutura, normas
específicas para os interlocutores, ou seja, entrevistador e entrevistado
desempenham papel padronizado com práticas de linguagem padrão, e ao
mesmo tempo variável, de acordo com cada prática social em que estejam
inseridos.
O gênero entrevista oral jornalística possui um discurso conversacional
que segue a linha expositiva, ou seja, procura expor opiniões, avaliações,
divulgações, esclarecimentos, bem como coletar declarações, explicações
através dos meios de comunicação, permitindo que os expectadores tomem
conhecimento de fatos e informações que são de interesse social ou individual.
Assim, para se compreender a entrevista radiojornalística ou analisar seus
aspectos, faz-se necessário recorrer à conversação para entender a relação do
escrito e do falado, as duas modalidades da língua em um continuum tipológico
dos gêneros textuais.
Fávero, Andrade e Aquino (2012) apontam que a entrevista é uma
atividade em que todos os participantes do processo comunicativo possuem seu
papel, promovendo uma inter-relação humana, ainda que os papéis
desempenhados não sejam os mesmos. Existe, dentro deste processo, um jogo
duplo de inversão de papéis, tendo em vista o diálogo simétrico e assimétrico,
em que o entrevistador geralmente controla o diálogo (interação), pois é ele
quem possui a tarefa de escolher o tópico discursivo, a distribuição de turnos,
e o entrevistado restringe-se a responder às perguntas, mas esses papéis podem

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 555


ser invertidos quando o entrevistado passar a aprovar ou não a ação do
entrevistador e começar a fazer-lhe perguntas.
Percebemos assim que a entrevista faz parte da interação oral e traz
informações ou entretenimento aos ouvintes/espectadores que ouvirão ou a ela
assistindo, devendo ser bem preparada e pensada para que consiga atingir o seu
principal objetivo para os envolvidos na entrevista ou para a sociedade.

Aspectos metodológicos do trabalho

Este trabalho segue a linha dos estudos conversacionais, tem como


ênfase a Análise da Conversação, analisando os marcadores conversacionais,
dentro do gênero entrevista oral. A pesquisa segue ainda, a linha qualitativa, que
permite a coleta de dados e informações, conferindo sempre maior ênfase à
qualidade da pesquisa em vez da quantidade. Essa linha de pesquisa requer que
o pesquisador busque respostas para abordagens sociais, bem como que ele
colete os dados para concretizar sua pesquisa, mostrando, dessa forma, a
relevância ou não do tema abordado.
De acordo com Flick (2009), a pesquisa de linha qualitativa enfatiza o
ponto de vista dos sujeitos inseridos em práticas sociais do cotidiano em que as
teorias são desenvolvidas a partir do método empírico. Nesta linha de pesquisa,
o pesquisador torna-se parte integrante da investigação, contextualizando as
abordagens através de métodos, trazendo, dessa forma, contribuições para a
modificação ou a criação de opiniões com relação ao tema abordado,
imprimindo a grupos sociais diferentes visões acerca dos conteúdos presentes
na pesquisa.
O campo do radiojornalismo é o universo deste trabalho, possuindo
como objeto principal de pesquisa o gênero entrevista oral, que é parte
integrante do radiojornalismo. A entrevista oral, portanto, será o corpus desta

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 556


pesquisa, possuindo aproximadamente 30min 9s de gravação e trata-se de uma
entrevista que envolve dois participantes, entrevistador e entrevistado, realizada
pela rádio Universitária Web da Universidade Estadual de Alagoas. Foram feitas
as transcrições da entrevista, seguindo as normas de Marcuschi (1998), as quais
conduzem as análises e observações a partir dos estudos conversacionais.
O estudo que se seguiu a partir deste corpus segue a linha da Análise da
Conversação, mais precisamente os marcadores conversacionais, presentes na
interação da entrevista radiojornalística; foram analisados quatro fragmentos da
entrevista; deste total, apenas um fragmente segue como análise.

Momento interativo entre entrevistador e entrevistado

Neste primeiro momento, temos a fala do F2, que é o entrevistado,


quando vai responder a uma indagação do entrevistador, sobre os avanços
significativos que a Uneal, instituição pública, obteve durante o ano de 2016
com a ajuda de todos os grupos que a compõem, e o reconhecimento por parte
do governo do estado que passou a contribuir para as melhorias de trabalho
para os funcionários.

F2: olha...contrariando:: o fluxo da crise nacional... né? Que afetou o Brasil


nos anos de 2015... e 2016 sobre a maneira... a uneal... ela tem tido... nesses dois
últimos anos...eh... avanços significativos... eh... tais avanços ele... ela... eles... eles
surgem eh... fruto de uma série de elementos...... primeiramente... a tomada de
consciência... né?dos movimentos organizados da instituição... o sindicato... o
diretório central dos estudantes... as entidades... organizadas... dos nossos servidores
professores e dos nossos estudantes. ah... oREconhecimento por parte do governo
do estado...eh... do papel... desenvolvido pela uneal nesses últimos... anos na
verdade... as conquistas dos avanços que a gente teve eh...nós não teríamos tido:: se
o mantenedor... se o:: chefe do poder executivo... continuasse pensando o que se
pensava num num...passado recente... então na verdade... a progressão por tempo
de serviços dos professores... a progressão por titulação dos servidores... a dedicação
exclusiva em curso... o edital tá aí aberto... a comissão trabalhando... essas demandas
reprimidas... eh... que dizem respeito aos recursos humanos professores servidores
da instituição... de fato solucionados... de fato resolvidas... né?
Fonte: corpus da pesquisa (2018-2019).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 557


Para a organização deste turno, o entrevistado utiliza recursos
conversacionais para sustentar sua fala. Podemos perceber alguns recursos
paraverbais utilizados por ele, tais como: entonação da voz para dar ênfase a
algumas palavras como “O REconhecimento”. No caso, esse recurso está
representado pelas letras maiúsculas que estão representando a ênfase dada à
palavra. Segundo Marcuschi (1998); ele também utiliza com muita frequência
em suas falas sinais de preenchimentos de pausas ou hesitação como “eh, num”
Outro tipo de marcador que percebemos, neste primeiro momento
interativo, são os verbais expressos, quando ele utiliza o sinal “olha” que indica
o início de um turno. Neste primeiro momento, o F2 também utiliza muito o
sinal “né?” de modo que, segundo Marcuschi (1998), este é geralmente um sinal
de entrega de turno, mas sendo utilizado pelo interactante como sinal de
sustentação de turno, em que ele se utiliza deste marcador para verificar se o
entrevistador está realmente atento ao que ele está falando.

Considerações finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou conhecer, com mais


profundidade, o funcionamento dos marcadores conversacionais na entrevista
radiojornalística, bem como a sua importância dentro da conversação. Além
disso, permitiu a realização de uma pesquisa bibliográfica e de campo para
coletar dados sobre os estudos conversacionais e o discurso radiojornalístico, a
partir do gênero entrevista oral, com o corpus entrevista gravada na rádio
Universitária Web pertencente à Universidade Estadual de Alagoas.
Dentro dos estudos conversacionais, pudemos conhecer sua origem e
seu objeto de estudo que se dá por meio de material gravado para que possamos
chegar mais próximo possível da realidade quando ocorreu a gravação. Dentro

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 558


desse estudo, foram ainda caracterizados os marcadores conversacionais que
constituem a parte integrante da Análise da Conversação.
Foram feitas, ainda, observações acerca do discurso oral, mais
especificamente, o discurso radiojornalístico, com a entrevista, como no
trabalho. Entre os estudos do discurso, pudemos destacar o discurso
radiojornalístico com seus principais aspectos que o compõem, bem como os
do gênero entrevista oral.
Os estudos conversacionais podem ser, enfim, aplicados à entrevista
radiojornalística, e os marcadores conversacionais estão presentes na vida do
ser humano sempre que se inicia uma conversa ou entrevista como é o caso
aqui estudado. Embora passem despercebidos por nós, eles estão presentes na
nossa conversa, exercendo o seu papel de articulador e organizador do diálogo.
Percebemos que a entrevista radiojornalística, como um gênero
primordialmente oral, possui uma gama de marcadores que ajudam na
construção de perguntas e formulação de respostas na relação entrevistador e
entrevistado.

Referências
FÁVERO, Leonor Lopes. AQUINO, Zilda G. O. ANDRADE, Maria Lucia
C. V. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da língua materna.
Cortez, 8° Ed. São Paulo, 2012.

FLICK, U. Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009.

KERBRAT-ORECCHIONI, Caterine. Análise da conversação: princípios e


métodos. Parábola, 1 ° ed. São Paulo, 2006.

MARCUSCHI, Luís Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3°


ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 559


_________. Análise da conversação. Ática, 4. ed. São Paulo, 1998.

MELO JUNIOR, José Nildo Barbosa de. Aspectos conversacional-textuais na


entrevista oral no radiojornalismo alagoano. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras
e Linguistica)- Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2016.

SANTOS, Maria Francisca Oliveira; ROCHA, Max Silva da. (Orgs.).Teceres


diferentes em gêneros orais e escritos. Arapiraca/AL: EDUNEAL, 2018.

SANTOS, Maria Francisca Oliveira. A propaganda oral radiofônica enquanto


gênero textual: implicações argumentativas e referenciais. Leitura, Maceió, n.
63, jul./dez. 2019.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 560


CAPÍTULO 41

Transexualidade: ele é ela ou ela é ele?


Humberto Soares da Silva Lima1
Rita de Cássia Souto Maior2

Introdução

As discussões sobre gênero e sexualidade estão presentes no cenário


acadêmico e no cenário social sob as mais diversas perspectivas teóricas e
metodológicas. Entretanto, suas possibilidades de discussão não estão
exauridas, o que nos permite interrogar como ambos termos se tornam objetos
problemáticos para se pensar tais categorias como importantes nos variados
espaços.
Em meio as categorias supracitadas, destacamos de início os
questionamentos: “ele é ela ou ela é ele?” como um norte para discussão, não
tentando responder às perguntas, mas sim abordando questões identitárias que
possam possibilitar as discussões na dimensão da éticas dos sentidos e dos
posicionamentos discursivos em contextos de atuação contemporâneos. O uso
desses questionamentos representam, de modo geral, uma discussão que

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura (PPGLL), da Universidade Federal de


Alagoas (UFAL) em Linguística, na linha Linguística Aplicada e Processos Textual-Enunciativos, integrante do
Grupo de Estudos Discurso, Ensino e Aprendizagem de Línguas e Literaturas (GEDEALL). E-mail:
[email protected].
2 Professora da Faculdade de Letras (FALE) e do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura

(PPGLL), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e líder do Grupo de Estudos Discurso, Ensino e
Aprendizagem de Línguas e Literaturas (GEDEALL). E-mail: [email protected]

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 561


emerge nas relações sociais, em se tratando das identidades, e que parecem
subverter a norma vigente e binária, pois complexifica a discussão. Os pontos
de partida para esses questionamentos são: 1. a construção tradicional do
pensamento homem vs. mulher, masculino vs. Feminino; 2. a valoração de um
sentido como “o melhor” para o viver uma realidade idealizada como “a
normal”.
Diante a emergência dos estudos de gêneros em infinitos espaços e
lugares, entendemos que as Transexualidades3 podem ser o foco de debates
muitas vezes acalorados, sobretudo, quando são evidenciadas constituições
identitárias desinformes do esquadrinhamento social tradicional. Diante disso,
as Transexualidades, de alguma forma, “transformam os/as pesquisadores/as
em transexuais e travestis políticos/as” (BENTO, 2011, p. 86).
Entendemos, inicialmente, que os/as transexuais – homens e mulheres
trans – são vistos como sujeitos que subvertem as normas identitárias sexuais e
de gêneros vigentes. Além disso, os homens e as mulheres trans agem com
mudanças e transformações que vão compondo, pelo e no discurso, sua
constituição identitária, conforme memórias dos deslocamentos construídos
em suas vidas, ao mesmo tempo, que sua identificação de gênero e sexualidade
vão também processualmente sendo entendidos (no próprio pensamento e
memória, no seio familiar, no trabalho, com os amigos etc.).
O discurso, aqui entendido no sentido bakhtiniano (BAKHTIN, 2003,
2010), é espaço de construção desses sentidos nesses diversos campos citados
mais acima (família, trabalho etc.), é dialógico (são encontros discursivos) e é
resultado das relações sociais ao mesmo tempo que as subjazem (é prática social
e é discurso). Dessa última característica, destacamos que esse encontro da

3 Concebemos que há várias formas de representação das Transexualidades, segundo as transfeministas Jesus

(2010; 2012; 2016; 2018), Vergueiro (2015), Bagagli (2016; 2019) e outras, pois há múltiplas expressões
associadas à identidade de gênero.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 562


prática com o discurso constitui a dimensão das discussões sobre valores
sociais, sobre certo e errado e sobre verdade e mentira no que chamamos de
dimensão da ética discursiva (SOUTO MAIOR, 2018). Nas pesquisas, o
movimento de interpretação dos dados se dão nessa dimensão e na implicação
do pesquisador e da pesquisadora com o tema a ser debatido. Dar voz aos/às
colaboradores/as e não objetificar sujeitos que participam das pesquisas, trazer
temas daqueles/as que parecem estar sempre à margem na sociedade, sofrendo
violência e perseguição, e contextualizar cultural e socialmente os discursos é
uma maneira de atuar de maneira implicada na pesquisa.
É nesse contexto que nos inserimos nas discussões que constroem
pensamentos se sentidos acerca das Transexualidades: por um lado, a partir das
noções de constituições identitárias possíveis nos discursos dos homens trans
e, por outro lado, apresentando as problematizações existentes sobre os
estudos, na dimensão da ética discursiva.
Dessa forma, iniciamos o texto com a discussão sobre “Estudos de
gênero: concepções em trânsito”, abordando a concepção dos estudos de
gênero frente pensamento no século XIX; em seguida, enveredamos por sobre
as “Considerações metodológicas e políticas à luz da Linguística Aplicada”,
envolvendo o campo de análise, em que se constitui a análise e, por fim, “O
microcosmo da constante transformação” com a análise dos discursos de dois
homens trans acerca das suas constituições identitárias.

Estudos de gênero: concepções em trânsito

A emergência dos estudos de gênero é constante nas pesquisas


acadêmicas – praticamente e de certa forma em todas as áreas do conhecimento
humano e social – e as discussões sobre o tema estão cada vez presentes no
pensamento coletivo (senso comum). De acordo com as abordagens de ordem

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 563


social, o gênero é emergente na produção de inteligibilidades e na produção de
discursos (re)significados e, na década de 80 do século XX, estava associado aos
estudos feministas. (SCOTT, 1995, p. 75). Segundo Butler (2015), as relações
de gênero são anteriores à emergência do humano.
Ainda que os estudos de gêneros tenham surgido através dos estudos
feministas, Preciado (2008) diz que a categoria também se atrelou ao discurso
biotecnológico do final dos anos 40, cuja base estava voltada para o tratamento
psicológico infantil de bebês intersexuais. No entanto, é no interior dos estudos
feministas que a categoria gênero passou a ser pensada de outra forma: como
instrumento de análise para apontar as diferenças entre homens e mulheres,
como um processo de desnaturalização dos gêneros das pessoas.
A necessidade de haver mais discussão sobre os gêneros na atualidade
compreende um conjunto de ideias e de comportamentos, a fim de minimizar
as intolerâncias praticadas nas práticas sociais que geram violência e crimes.
Sendo assim, por um lado, as intolerâncias são disseminadas por todos os
mecanismos e em todos os veículos em que os discursos são propagados; por
outro, elas, as intolerâncias, reforçam um comportamento hegemônico e sexista
a respeito do binarismo presente na sociedade.
Nesse sentido, entendemos que mesmo que o tema tenha tido certo
relevo nas discussões feministas, ele não se restringe ao campo das discussões
sobre ser mulher. Para Colling (2018), por exemplo, o gênero

Não é nunca sinônimo de mulher, pois tanto homens quanto mulheres


possuem gênero. De alguma forma, a categoria gênero também abriu
espaço para pensar as masculinidades, estejam elas presentes em corpos
lidos como femininos ou masculinos. (COLLING, 2018, p. 23).

De acordo com Colling (2018), o entendimento de gênero compreende


não somente a uma abordagem social e política, mas principalmente as várias
possibilidades existentes no contexto social de ser no mundo. Levamos em

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 564


consideração, para entender como Colling essa questão, que as formas de
existências do gênero podem corresponder a um conjunto de existências (no
plural) e de estratégias de atuação (e de reação). Além disso, para Colling, a
categoria gênero também corresponde aos espaços possíveis em que estão as
masculinidades, item muitas vezes questionado e problematizado, a partir de
referências e de opiniões sociais.
Importante destacar, para adentrarmos no desenvolvimento desse
texto, que o “gênero não determina diretamente a sexualidade” (SCOTT, 1995,
p. 76). A discussão acerca do gênero atrelado à sexualidade pode ser
compreendida por dois pensamentos categóricos: no primeiro, entendemos que
o gênero e a sexualidade são construções sociais e culturais, podendo haver uma
aproximação entre as referências dos corpos e dos sujeitos; no segundo, vemos
que a questão consiste, como aponta a autora, não diretamente, mas sobretudo
indiretamente às questões de ordem das identidades fluidas, pois os modos de
produção influenciam às categorias de gênero e sexualidade.
Nesse sentido, o campo do discurso é fundamental para questionarmos
as construções sociais sobre as relações entre sujeitos, a nomeação da pessoa na
sociedade e os significados que redimensionam nossos pensamentos nas
interações. Os discursos são re/produzidos nos movimentos de interação
verbal do mundo. Segundo Bakhtin (2010), a palavra é sempre dirigida a um
interlocutor e comporta duas faces. A palavra é “determinada tanto pelo fato
de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte”.
(BAKHTIN, 2010, p. 117). Assim as construções de identidade estão
implicadas nas modificações discursivas sociais, num campo da ética discursiva
(SOUTO MAIOR, 2018). Torna-se mister considerar como esses sentidos
enredam a vida social. Pelo discurso, as pessoas se encontram no mundo, mas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 565


também se perdem numa profusão de possibilidades de construções
identitárias.
Entendemos as identidades como “contraditórias, inacabadas,
fragmentadas, do sujeito pós-moderno” (HALL, 2006, p. 46). Com Hall (2006),
não concebemos as identidades como impressas em nosso gene, mas apesar de
não estarem necessariamente nos genes, “nós efetivamente pensamos nelas
como se fossem parte de nossa natureza essencial.” (HALL, 2006, p. 47). Nesse
sentido e pelo discurso, as “impressões” de quem somos podem ser apreendidas
numa análise e podem ser destrinchadas nas suas implicações em relação com
as práticas sociais e é esse nosso projeto com este texto, porque pesquisar sobre
esse tema pelo viés discursivo é possibilitar o deslocamento de narrativas que
sejam mais humanizadoras nas interações, que não promovam o sofrimento,
que não releguem a alguns espaços de desprestígio e de desrespeito.
Entendemos, diante de tudo que foi exposto até aqui, que os modos de
produção de sentidos – reconhecimento, discurso, transição, constituição
identitária e outros – são representados a partir da construção social que o
sujeito vivencia e de como essa vivência dialoga com a sua sexualidade. A fim
de construir não apenas um único entendimento sobre as possibilidades de
existências no mundo, o sujeito, a partir da construção social, reitera os espaços
e os limites a serem atingidos na camada social.

Considerações metodológicas e políticas à luz da


Linguística Aplicada

Ancorado na perspectiva da transdisciplinaridade da ciência, a partir de


uma orientação explícita para o desenvolvimento de uma agenda política, uma
agenda transformadora/intervencionista e uma agenda ética (FABRÍCIO,
2006) em Linguística Aplicada, o texto trará a discussão de um argumento de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 566


um homem trans a respeito do seu processo de transição e outras questões
inerentes à constituição da sua identidade.
A LA tem como um dos objetivos “criar inteligibilidade sobre modos
de viver a vida social, com base em um arcabouço interdisciplinar” (MOITA
LOPES, FABRÍCIO; 2002, p. 12). Assim, mediante às práticas de linguagem
em que os discursos são construídos e constituídos os modos de viver a social
importam consubstancialmente à LA, de maneira a visar a compreensão de
“vertigens contemporâneas” nas situações relatadas. (MOITA LOPES,
FABRÍCIO; 2002).
Logo, a criação de inteligibilidades acerca dos modos de viver é
constantemente debatida e repensada nas discussões que emergem do campo
da LA, construindo e constituindo uma “vida social” com vários “sujeitos
heterogêneos e contraditórios” (FABRÍCIO, 2006, p. 30). Diante da vida social,
a partir da compreensão de Fabrício (2006), a área da LA também reflete em
“face das metamorfoses em variados contextos cotidianamente”. (FABRÍCIO,
2006).
A exposição do discurso está em uma plataforma de vídeos, na internet,
onde há a aglomeração de ideias e argumentos acerca de vários assuntos. Trata-
se, portanto, de uma mesa redonda4, promovida por um coletivo voltado a
questões de gênero e sexualidade, em que na ocasião, a mesa composta por
homens trans, respondeu ao total de 9 (nove) perguntas, a saber: (1) Quais
foram os desafios e as conquistas a partir do momento em que assumiram sua
identidade de gênero? (2) Como foi o seu processo de transição de gênero? (3)
A relação com a família se modificou após assumir sua identidade de gênero?
(4) Suas amizades são compostas por pessoas cis ou trans e por quê? (5) Como
é para você falar com as pessoas sobre questões de gênero e sexualidade? (6)

4 O evento Transmasculinidades em ação, com duração de 2h:56min, contou com a participação de 4 (quatro)

homens: 2 são homens trans e os outros 2 são não-bináries.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 567


Poderia comentar sobre a sua relação com profissionais de saúde quanto tem
de realizar exames ou procedimentos médicos? (7) Já sofreu discriminações em
ambiente de trabalho, escola ou em outro lugar? Se já, poderia comentar um
pouco sobre isso? (8) Você se considera militante e ativista da causa
transmasculina? (9) Tinder time: você está solteiro, namorando, qual sua
orientação sexual?
À luz de algumas das perguntas acima, a partir das respostas dadas pelos
homens trans que compuseram a mesa, os discursos serão analisados e
interpretados conforme a análise do discurso dialógica, numa perspectiva
interpretativista da Linguística Aplicada. Assim, os discursos, através do olhar
transdisciplinar da LA, serão interpelados a partir das “identidades sociais que
são revestidas por efeitos de estaticidade e que podem ser alteradas” (MOITA
LOPES, FABRÍCIO, 2002, p. 13).
As construções de sentido, em torno dos discursos, serão analisadas
mediante o processo de narrativas sobre transições que os homens trans
passaram e sobre quais relatam, de modo que as micropolíticas de resistências,
obervadas na dimensão da ética do discurso, pautadas na constituição
identitária, sirvam como suporte para aprofundamento da análise. Além disso,
a análise das micropolíticas estão associadas ao entendimento dos deslocamento
de identidades que homens trans detalham sobre as questões de gênero, em
relação aos desafios e as conquistas enfrentadas.

O microcosmo da constante transformação

Nesta subseção, analisaremos alguns discursos dos homens trans5 que


participaram da mesa redonda. Para efeito da análise, escolhemos os discursos

5 Utilizaremos dois discursos de pessoas diferentes em relação a mesma pergunta.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 568


que são mais representativos em relação à transição e reconhecimento da sua
identidade de gênero. De modo a ilustrar a contextualização da análise,
escolhemos para a análise a primeira pergunta, a saber: Quais foram os desafios e as
conquistas a partir do momento em que assumiram sua identidade de gênero?

Desafios são sempre muitos, né?! Quando eu assumir publicamente e muito fortemente,
porque eu me vejo como homem trans há muitos anos da minha vida, mas para
sustabilizar a minha própria sobrevivência, tive que ocultar isso por muito anos, né?!
E isso me fez sofrer muito mesmo. Porque eu falava que eu tava me vestindo de algo
que eu não era para as pessoas que eu era algo que não era. (risos) Eu falei “eu não tô
sendo sincero comigo mesmo, eu tô ferindo a mim mesmo, me importando mais com o
que as pessoas querem ver do que com o que eu realmente sou”. Então esse foi o maior
desafio que eu tive, de falar “eu sou um homem trans e essa é a minha maior realidade,
eu me vejo nesse gênero”. E eu sempre me via assim, né?! Sempre me olhando no espelho
eu já me via do gênero masculino e não me importa se você me vê de outro gênero, o que
me importa é que eu me sinta e o que eu sou. Esse foi o grande desafio conquistado, na
verdade né?! E a partir desse momento, as portas se abriram, porque as pessoas
começaram a ver que não adiantava o que elas queriam que eu fosse pra elas, porque
as pessoas, as oportunidades ou os meios estariam abertos independentemente de eu ser
um homem trans ou não. Entende? Então quando eu coloquei isso pra fora, quando
eu realmente tive a coragem de me assumir para o mundo, as oportunidades foram
surgindo e ai eu vi o quanto eu tava sendo bobo comigo mesmo, sabe? Eu falava “poxa,
por que que eu te escondi?” E eu aprendi a amar esse cara todos os dias. Foi isso.
(Homem Trans 16)

Um desafio grande atual é por eu ter me assumido como homem trans e não ter iniciado
a hormonização. E ai, eu sinto na cara das pessoas o constrangimento e o quanto que
isso me deixa desconfortável e o outro também fica desconfortável. O que não era para
ser assim ou gostaria de que não fosse. É, eu tive sorte de ter grandes amigos comigo que
me apoiaram desde o início, alguns choraram na minha frente, outros ficaram em
choque, mas eu recebi apoio de todo mundo, né?! Eu diria que a minha família é o meu
maior problema, né? Eles sabem, tá, mas assim, é um tabu horroroso! Minha mãe
chora todas as vezes, meu irmão também. Eles já foram transfóbicos comigo. Dizem
que não tem problema nenhum eu querer usar o lado masculino, mas não tem pra quê
fazer cirurgia, não tem que tomar hormônio. Eu falo: “mas é o meu corpo, é sobre a
minha pessoa, não diz respeito a vocês”. E eles não entendem, né?! Eu faço um exercício
grande na minha vida de ressignificar e mudar essas relações, né? A gente tem que
entender também que não somos só nós, né, que temos as nossas limitações, os nossos
defeitos, o outro também. Então, a gente não pode condenar e partir para a cultura do
cancelamento, ou ao menos, pra mim família é uma coisa importante. [...] não sei se é
sorte ou não, mas eu tenho um psicólogo heterocisnormativo que me acolheu de cara, né,
e eu tô fazendo um passo grande na minha, que é transicionar de área e não só de físico,
né, eu tô querendo largar tudo do mercado empresarial e ir pra psicologia, né?
(Homem Trans 2)

6 Embora o vídeo seja de domínio público, preferimos não denominar.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 569


O posicionamento do Homem Trans 1 é permeado por uma
construção de identidade fragmentada e inacabada, haja vista o momento em
que passou para, segundo diz, se “aceitar”: Então esse foi o maior desafio que eu tive,
de falar “eu sou um homem trans e essa é a minha maior realidade, eu me vejo nesse gênero”.
De acordo com Hall (2006), as identidades estão em processo de construção e
reconstrução, de modo que as dinâmicas sociais garantem uma transformação
constante mediante a mudança existente entre os espaços e entre os sujeitos.
Ao passo que a identidade está em constante processo e transformação,
percebemos, no discurso do Homem Trans 1, que o processo da constituição
identitária é marcado a partir do momento em que há um reconhecimento da
sua identidade de gênero. Para Moita Lopes e Fabrício (2002), as identidades
sociais são construídas através dos efeitos de estaticidade, realizando um
conjunto de ações e de relevâncias às práticas discursivas da modernidade
(MOITA LOPES, FABRÍCIO, 2002). Pelo discurso e na dimensão da ética
discursiva, no primeiro excerto temos uma remissão ao discurso citado de um
possível “pensamento da época”, a saber: Eu falei “eu não tô sendo sincero comigo
mesmo, eu tô ferindo a mim mesmo, me importando mais com o que as pessoas querem ver do
que com o que eu realmente sou”.
Essa referência metadiscursiva está no campo da interpretação dos
sentidos, portanto no campo da avaliação, da ética discursiva (SOUTO
MAIOR, 2018) do sujeito. Importante destacarmos que na constituição da
identidade desse sujeito, ele se (auto) remete no tempo, numa avaliação
temporal de sentidos e se coloca com alguém que “fingia ser”, mas que já era
como identidade, mas que já era como pessoa trans. Os discursos possibilitam
o registro dessa avaliação e nos permite essa interpretação discursiva. No
tempo, num movimento da dimensão da ética discursiva, o homem trans 1 diz:
“eu falei” (naquele tempo) “eu não tô sendo sincero comigo mesmo”, são vozes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 570


de avaliação sobre si que ele relata, e isso nos demonstra como os sentidos
encontram vozes, de avaliação, de autoavaliação.
Em outro trecho ainda, no discurso do Homem Trans 1, percebemos
que há um desafio, sendo relatado como “desafio conquistado”, pois, segundo
ele, quanto mais se reconhecia como parte integrante do gênero, mais ainda
tinha a certeza de que estava assumindo o que ele pensa ser sua verdadeira
identidade ou, pelo menos, ratificando uma das identidades possíveis. Desse
modo, a partir do relato “desafio conquistado”, resgatamos a construção de
“conflitos e saberes” ao mundo do/a transexual apontada por Bento (2006).
De acordo com o entendimento de Bento (2006), a respeito da
transexualidade, quanto à construção de conflitos e de saberes:

quando se diz 'transexual', não se está descrevendo uma situação, mas


produzindo um efeito sobre os conflitos do sujeito que não encontra no
mundo nenhuma categoria classificatória e, a partir daí, buscará
comportar-se como 'transexual'. O saber médico, ao dizer 'transexual' está
citando uma concepção muito específica do que seja um/a transexual.
(BENTO, 2006, p. 43).

De algum modo, a primeira pergunta – o que significa ser Trans? –


ainda pressupõe uma construção constitutiva que oferece como resposta um
tipo de sujeito constituído que, a partir da visão médica, é especificado como
pertencente a um determinado grupo social. Bento (2006), portanto, constrói
um entendimento plausível a partir da situação da pessoa transexual, de sorte
que detalha como efeito de conflitos associados à categoria classificatória.
O pensamento coletivo ou social deriva de um conjunto de associações,
determinando a um sujeito um grupo específico. Logo, esse grupo consiste
unicidade na ordem de gênero ou da sexualidade, sendo, por conseguinte, não
diferente ao sujeito trans. Diante disso, a compreensão identitária do Homem
Trans 1 é entendida como um processo de constituição, relacionando as
construções diversas e existentes no seu autoreconhecimento.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 571


Já em relação ao posicionamento/discurso do Homem Trans 2,
percebemos que, embora em alguns momentos, as realidades sejam equiparadas
em se tratando do reconhecimento da sua identidade de gênero, há uma
interpretação diferente sobre o seu lugar de conquista e de desafio no campo
da ética discursiva. Se, por um lado, o desafio é ter assumido a sua identidade
de gênero; por outro, o início da hormonização ainda não é uma realidade para
ele, de modo que se configura, a partir do seu discurso, como um desafio, como
um processo.
O discurso do Homem Trans 2 é permeado por um suposto
reconhecimento de constrangimento das pessoas em relação à sua própria
identidade, numa perspectiva de alteridade ele se vê no olhar do outro e avalia
seu próprio olhar pelo que interpreta da ação do outro: “eu sinto na cara das
pessoas o constrangimento e o quanto que isso me deixa desconfortável e o outro também fica
desconfortável”. A questão desconfortável implica na compreensão de que os
“gêneros e as sexualidades são performances continuamente repetidas na
cultura” (BUTLER, 2008); desse modo, vemos que não o constrangimento está
nas pessoas que o vê, mas também na sua própria visão, enquanto homem trans,
levando em consideração que as performances de gênero e sexualidade são
reproduzidas, constantemente, no confronto de olhares no contexto social.
A ressignificação presente no discurso dele está relacionada à mudança,
transformação, trânsito, cujo sentido é compreendido a partir de condutas que
representam a sua identidade: “Eu faço um exercício grande na minha vida de
ressignificar e mudar essas relações, né? A gente tem que entender também que não somos só
nós, né, que temos as nossas limitações, os nossos defeitos, o outro também”. Além disso, o
reconhecimento de que precisa mudar mediante às limitações e os defeitos é
importante para a sua constituição identitária, haja vista a constante relação de
construção e transformação que está submetido e a constante avaliação do olhar
do outro pelo qual passa.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 572


Em contrapartida ao seu processo de ressignificação, o sofrimento por
parte da sua família é presente “Eu diria que a minha família é o meu maior problema,
né? Eles sabem, tá, mas assim, é um tabu horroroso! Minha mãe chora todas as vezes, meu
irmão também. Eles já foram transfóbicos comigo”. Logo, o sofrimento é relatado
também através da não aceitação da sua “expressão de gênero” (JESUS, 2012,
p. 13), por parte da sua família, no entanto, notamos que, no caso do Homens
Trans 2, há um impulso por relatar o sofrimento do outro em relação a si. Esse
sofrimento não oblitera suas conquistas identitárias, mas as compõem como
parte de que é. Sua mãe e irmão sofrem e ele sofre sua identidade junto a eles.
As valorizações e não valorizações de suas práticas não - aceitáveis interpelam
o gênero com o qual se identifica.
Sendo assim, tanto o Homem Trans 1 quanto o Homem Trans 2,
entendidos como agentes principais e atuantes de/em sua realidade, vivem
imbuídos a um processo potente de desterritorialização do desejo no campo de
uma ética discursiva, dos valores atribuídos pelo outro ou pela própria voz que
é sua e que é do passado. Além do mais, são portadores de fluxos que escapam
aos territórios codificantes do gênero disciplinar, que os embaralham, que
deslizam sobre as linhas do corpo social
Quanto às sexualidades que abarcam os sujeitos em processo
desterritorialização, Louro (2015) afirma que:

a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações,


símbolos, convenções [...] Processos profundamente culturais e plurais.
Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente “natural” nesse terreno, a
começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através
de processos culturais, definimos o que é – ou não – natural; produzimos
e transformamos a natureza e a biologia e, conseqüentemente, as tornamos
históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. (LOURO, 2015, p. 11).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 573


Considerações inconclusas

Entendemos, na incompletude da análise aqui empreendida, que um


“outro mundo é possível, um mundo feito de alternativas e possibilidades”
(SOUSA SANTOS, 2006). De acordo com o posicionamento de Sousa Santos,
podemos perceber que um mundo com infinitas possibilidades se faz
necessário, no entanto, algumas possibilidades ainda não transitadas sem que se
sobreponham a dores e valores, como, por exemplo, o reconhecimento das
pessoas LGBTQIA+ e, principalmente, das pessoas TRANS na dimensão da
possibilidade de vida. Diante disso, precisamos refazer um mundo com infinitas
alternativas e possibilidades para sujeitos comprometidos com novos espaços e
práticas sociais.
Sousa Santos (2006), portanto, constrói inteligibilidades acerca das
práticas possíveis, seja de linguagem, seja de interação que compõem a
contemporaneidade, visto que as dinâmicas de sentido consistem no processo
constante de interação. Através da emergência dos pensamentos
contemporâneos, gênero e sexualidade são categorias que se comportam em
deslocamentos dentro da dimensão da ética discursiva. Esses deslocamentos
nos remete ora em polarização ora em hierarquização de valores. Mas há a
possibilidade de desconstrução dessa concepção binária ou da voloração e
objetificação das pessoas, sedimentadas na concepção de poder unilateral, nas
relações através da resistência explícita social, na subversão dos/as que não
pretendem se enquadrar nos modelos considerados normais, na construção de
multiplicidades.
Conforme Louro (2003), as discussões sobre gênero e sexualidade
sofrem as influências da nova dinâmica dos movimentos sexuais e de gênero,
que adotam como agenda teórica a análise das desigualdades e das relações de
poder entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e mulheres,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 574


gays e heterossexuais). Questionam também as próprias categorias,
problematizando sua fixidez, separação ou limites que o jogo do poder articula.

A crítica feminista tem de explorar as afirmações totalizantes da economia


significante masculinista, mas também deve permanecer autocrítica em
relação aos gestos totalizantes do feminismo. O esforço de identificar o
inimigo como singular em sua forma é um discurso invertido que mimetiza
acriticamente a estratégia do opressor, em vez de oferecer um conjunto de
diferentes termos. O fato de a tática poder funcionar igualmente em
contexto feministas e antifeministas sugere que o gesto colonizador não é
primária ou irredutivelmente masculinista. [...]. (BUTLER, 2008, p. 33-34).

Nas discussões sobre gênero e sexualidade, o grande desafio, hoje, é


ultrapassar, no campo da ética discursiva, a mera constatação da multiplicação
das posições de gênero e sexualidade, por meio da desconstrução dos esquemas
binários (masculino/feminino, heterossexual/homossexual), para admitir que
as sexualidades e os gêneros são discursivamente construídos, fabricados, são
derivados das diferenças, de adiamentos, de desvios, de multiplicidades.
Não existe um sujeito, homem e mulher, heterossexual e homossexual
originário e pré-discursivo, pois cada discurso instala o sujeito em certa posição,
certo lugar e que, a partir disso, a cada discurso em embate perpétuo e fluidez,
corresponde a uma matriz de posição de sujeito móvel.
O sujeito, ao final, é resultado de um processo discursivo, portanto, não
há um sujeito: homem ou mulher, heterossexual ou homossexual,
transcendental, originário, autônomo e centrado. Homens e mulheres,
heterossexuais ou homossexuais são constituídos a partir de composições
discursivas que agenciam adiamentos, diferimentos, que abram espaço para a
contingência, as multiplicidades, os devires.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 575


Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 14. ed. Tradução por Michel


Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2013

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência


transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BENTO, B. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos Feministas,


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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 577


CAPÍTULO 42

Ideologias linguísticas e história


natural dos discursos do novo
biologismo
Amanda Diniz Vallada1

Introdução
A “questão da mulher”, aponta Adriana Piscitelli (2002), foi central para
o pensamento feminista pós anos 1960 e tem origens na ideia do feminismo
radical de que é característica comum a todas as mulheres o fato de serem
oprimidas. A opressão seria, portanto, a identidade primária de todas as
mulheres, o que as une a despeito de tudo o mais que poderia diferi-las. E se
encontrar um denominador comum entre as mulheres foi o núcleo do
feminismo ocidental da época, assim também foi encontrar as origens deste
denominador (e dominador), as origens do patriarcado.
Quando as feministas da segunda geração ocidental estavam tecendo
reformulações teóricas, já que a preocupação delas deixou de ser propor
hipóteses sobre a origem da opressão feminina e se tornou procurar
desnaturalizar essa opressão (PISCITELLI, 2002), o conceito do sistema
sexo/gênero estava criando forma a partir das conceitualizações da antropóloga

1 Mestranda em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da UFG. E-

mail: [email protected]. Fomento da pesquisa: Capes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 578


Gayle Rubin (1975). O dualismo sexo/gênero – em consonância aos modos
dualistas europeus e norte-americanos de compreender o mundo (FAUSTO-
STERLING, 2001) – parte de outro dualismo, natureza/cultura. Dessa forma,
gênero é visto como a expressão social (cultura) de aspectos biológicos
determinados pelo sexo (natureza). Nas palavras de Anne Fausto-Sterling
(2001, p. 16, grifos da autora): “sexo passou a denominar a anatomia e
funcionamento fisiológico do corpo e gênero passou a representar as forças
sociais que moldam o comportamento”.
Tanto na interface sexo/natureza quanto na interface gênero/cultura, a
noção de diferença sexual se configura como um princípio universal de
classificação de homens e mulheres. A busca pelas características “masculinas”
e pelas características “femininas”, quer tenham origem na constituição
biológica do corpo humano, quer sejam produtos da interação social, bem
como seus efeitos que culminam na opressão de homens sobre mulheres, são
pontos centrais nos debates teóricos feministas desde os anos 1960, com as
discussões sobre a “questão da mulher”, até o final da década de 1980
(PISCITELLI, 2002; PINTO, 2014).
Nesse contexto, desenvolvia-se na Linguística pesquisas que
consideravam questões de gênero centrais para lidar com questões de
linguagem. Esses trabalhos pioneiros, como o de Robin Lakoff (1975 [1973]) e
de Don Zimermman e Cadence West (1975), foram marcos iniciais do campo
de estudos plural que é a Linguística Feminista, mas têm filiação com a
Sociolinguística. Um dos mitos que constitui o campo da Sociolinguística é de
que língua e sociedade mantêm entre si uma relação especular, ou seja, a língua
apenas reflete a realidade social de quem fala, é somente um espelho que designa
as coisas que há no mundo (BORBA; LOPES, 2018; CAMERON, 2012;
PINTO, 2014).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 579


O ponto de partida dessas pesquisas se dava como bem colocam Rodrigo
Borba e Adriana Lopes (2018, p. 254): “se no mundo real vivemos
dicotomicamente como homens e mulheres, como a língua poderia fugir de tal
predicamento?”.
Com essa visão dualista de mundo e de linguagem, os precursores
estudos sociolinguísticos feministas acompanharam os campos afins na
empreitada de buscar o que diferencia mulheres e homens. O foco dessas
pesquisas era encontrar as diferenças entre a fala de mulheres e a fala de
homens, de forma a catalogar quais seriam as características femininas e
masculinas da linguagem, e procurar evidências linguísticas da desigualdade
entre esses dois gêneros (MCELHINNY, 2003; LAKOFF, 2004).
As críticas às formas essencialistas e reducionistas de enxergar gênero
foram tão duras que fizeram as feministas do patriarcado e suas sucessoras
repensarem seu pensamento e ativismo. Entrando na década de 1990, as
teóricas feministas passaram a se empenhar em reformular o conceito de
gênero, a fim de estabelecer uma categoria que considerasse as diferenças (de
raça, classe e sexualidade) entre as mulheres e que desnaturalizasse a distinção
e dualidade sexual (PISCITELLI, 2002).
É neste momento de reformulações que Judith Butler (2019 [1990])
confronta o dualismo sexo/gênero. Para a autora, é necessário repensar a
imutabilidade da categoria sexo. Nesse sentido, a categoria gênero deve se
configurar como um esforço para impedir as armadilhas da naturalização, isto
é, a “associação simétrica e constante entre determinadas características
chamadas femininas [e] as mulheres, e as chamadas masculinas e os homens”,
nas palavras de Joana Pinto (2007, p. 4). Butler não compreende gênero como
uma característica individual, uma posse, mas como algo que é construído
cotidianamente através de ações, como “um efeito pragmático de um amálgama

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 580


de recursos semióticos usados localmente para este/a interlocutor/a aqui e
agora” (BORBA, 2014, p. 448).
A crítica produtiva de Butler (2019, p. 69, grifo meu) ao dualismo
sexo/gênero origina sua própria definição: gênero é “a estilização repetida do
corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente
rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância,
de uma classe natural de ser”. Os corpos não são naturalmente sexuados, tornam-
se sexuados através da contínua repetição de atos enquadrados na rígida
estrutura reguladora. As possibilidades limitadas dentro da estrutura rígida
cristalizam certos recursos semióticos como apenas femininos e outros como
apenas masculinos. Ou seja, da estrutura reguladora fazem parte “certas
configurações culturais do gênero [que] assumem o lugar do ‘real’ e consolidam
e incrementam sua hegemonia por meio de uma autonaturalização apta e bem-
sucedida” (BUTLER, 2019, p. 69).
O impacto das reelaborações da categoria de gênero feitas por Butler em
1990 reverberou na Linguística Feminista, que acompanhou essas
transformações. Até mesmo os artigos mais recentes do campo são afetados
pelas teorizações da filósofa estadunidense, como verificamos eu e Joana Pinto
(no prelo). Os estudos linguísticos feministas, desde 1990, vêm procurando
desafiar as relações essencialistas entre linguagem e gênero propostas
anteriormente (MCELHINNY, 2003).
Deborah Cameron (2012, p. 17), em referência direta à estilização de
gênero de Butler (2019), presume que a estilização também se aplica à
“linguagem em uso, e especialmente à fala: existem ‘estilizações’ de voz, de
escolhas lexicais, gramaticais e interacionais”. Para a linguista, “falar é um
exemplo clássico de um ato que é constantemente repetido ao longo do tempo;
é também um exemplo clássico de uma atividade feita dentro de um ‘rígido
enquadramento regulador’”. Na estilização da fala, as/os falantes empregam

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 581


rígidos recursos semióticos adequados às normas de gênero para serem
posicionadas/os no gênero adequado, ao mesmo tempo em que criam o que é
o gênero adequado.
A partir das considerações sobre a estilização da fala, entendo que as
ideologias linguísticas são um instrumento central atuante no rígido
enquadramento regulador da linguagem em uso. Em artigo de 1989 (p. 255),
Judith Irvine define ideologias linguísticas como “o sistema cultural de ideias
sobre as relações sociais e linguísticas, juntamente com sua carga de interesses
morais e políticos”. Essa definição é notável porque evidencia que as relações
entre linguagem e sociedade são mediadas por valores culturais.
Outra definição importante para pensar as conexões teóricas entre
ideologias linguísticas e estilização de gênero é dada por Jan Blommaert (2014,
p. 68-69, grifos do autor). O autor diz que as ideologias linguísticas são as
“crenças, ideias, visões e percepções sobre linguagem e comunicação” com que
as pessoas “produzem semiose como performance [...] dentro de um campo
regimentado no qual as ideologias linguísticas produzem estabilidade e
capacidade de reconhecimento”. A conceitualização de Blommaert chama a
atenção para o papel das ideologias linguísticas na produção de estabilidade e
reconhecimento num campo regimentado.
Por último, Cameron (2014, p. 281) oferece uma conexão direta entre
gênero e ideologias linguísticas ao predicá-las não apenas como “as
representações nas quais a linguagem é impregnada de sentido cultural”, mas
também como “as representações de linguagem como um fenômeno
generificado, usado de formas diferentes por falantes homens e mulheres”.
São as ideologias linguísticas sobre gênero que estabelecem, por
exemplo, fronteiras bem delimitadas no uso da linguagem das mulheres e dos
homens. São essas ideologias que permitem que Otto Jespersen (2005) atribua
às mulheres os eufemismos e “refinamentos”, e aos homens, os “chefes

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 582


renovadores da linguagem”, uma linguagem com vigor e franqueza. A separação
precisa entre linguagem das mulheres e linguagem dos homens é
“provavelmente a mais geral, mais interculturalmente disseminada, e mais
historicamente persistente de todas as ideologias linguísticas sobre gênero”
(CAMERON, 2014, p. 283).
Como já visto, a opressão da mulher, cerne das discussões feministas
entre 1960 e 1970, repercutia também, julgavam as linguistas da dominância,
nas práticas de linguagem. Desse modo, a presença das mulheres em contexto
de fala pública de autoridade (política ou legal) era moralmente inaceitável
(CAMERON, 2006), o que as impediria de desenvolver recursos linguísticos
valorizados. No entanto, mostra Cameron (2012; 2014), nem sempre foi assim
nas sociedades ocidentais: na Europa Moderna, as mulheres da aristocracia
eram encorajadas a participar de duelos verbais públicos, desafiando tanto
homens quanto outras mulheres; o cenário muda drasticamente com a ascensão
da burguesia, cujas noções de comportamento verbal feminino apropriado
consistiam em falar com poucas pessoas e “orgulhar-se de seu silêncio”. Já nas
interações dos Gapun, investigados por Don Kulick (1993), as mulheres são
associadas à fala direta e à autoridade verbal (pública, inclusive). As ideologias
linguísticas generificantes são, portanto, “específicas de seu tempo e espaço”
(CAMERON, 2014, p. 286). As regimentações que enquadram um certo
comportamento linguístico como feminino ou masculino em um determinado
tempo e espaço não são as mesmas regimentações que enquadram um
comportamento linguístico como feminino ou masculino em outro tempo ou
em outro espaço.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 583


Novo biologismo

Desde o início deste século, uma nova vertente da ideologia linguística


que separa linguagem feminina e linguagem masculina tem ganhado ares de
“cientificidade” através de tecnologias das ciências biológicas. Nesta
perspectiva, as diferenças (linguísticas, principalmente) entre homens e
mulheres teriam raízes na constituição biológica dos seres humanos: nas taxas
hormonais e em seus efeitos no cérebro humano. Mas isso não é novidade: os
argumentos biológicos de diferenças foram exatamente o objeto de crítica das
feministas de 1970 e 1980. O que reconfigura esse biologismo é o emprego de
artifícios da ciência biológica para não apenas determinar as origens da
diferença, mas também para dizer que a empreitada feminista de mudar o que
seria “natural” não pode dar certo. Trata-se de uma nova roupagem de uma
ideologia linguística sobre linguagem e gênero extremamente conservadora, à
qual Deborah Cameron (2009; 2010b; 2014) dá o nome de “novo biologismo”.
A novidade do aparato científico-tecnológico vem para deixar o sexismo dessa
ideologia menos aparente. Afinal, se a legitimação da diferença está ancorada
em exames de ressonância magnética e estudos genéticos, como isso pode ser
uma tentativa deliberada de subjugar mulheres?
Mesmo com metodologia questionável, afirmações generalistas e
resultados inclusivos (CAMERON, 2009; 2010; 2014; FINE, 2010), o novo
biologismo tem ganhado adeptas/os que se sentem ansiosas/os com as
mudanças sociais procedentes dos movimentos feministas, já que “uma das
funções ideológicas do novo biologismo é tranquilizar as muitas pessoas para
quem isso [as mudanças sociais decorrentes do feminismo] é uma fonte de
ansiedades que as distinções de gênero não foram, e não podem ser, apagadas”
(CAMERON, 2014, p. 293).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 584


Além dos artifícios científicos, o novo biologismo também é menos
abertamente sexista porque inverte o déficit linguístico. Se antes os recursos
linguísticos das mulheres eram tidos como deficitários, o novo biologismo
tende a colocar a inaptidão verbal na conta do homem. Como Cameron mostra
em suas análises (2009; 2010; 2014), no novo biologismo, as mulheres falam
mais que os homens e têm mais habilidade em criar laços afetivos e resolver
conflitos através da linguagem, mas têm dificuldade em atividades de
sistematização, especialmente as que envolvem números e organização espacial;
já os homens são ineptos nas questões de linguagem e melhores com os
números. As consequências desta demarcação de capacidades resultam na
separação ideal de profissões para “pessoas com cérebro feminino” e “pessoas
com cérebro masculino”, como faz Simon Baron-Cohen (2003): professoras
primárias, enfermeiras, assistentes sociais e secretárias devem ser as pessoas de
cérebro feminino, e cientistas, engenheiros, programadores e banqueiros devem
ser quem tem cérebro masculino.
O novo biologismo tem servido de subterfúgio para representações
estereotipadas de gêneros nos mais diversos contextos. Alunos australianos que
apresentam mau desempenho nas disciplinas de linguagens e textos se
justificam com os argumentos do novo biologismo. Para eles, ter sucesso nessas
disciplinas é algo naturalmente improvável, já que seus cérebros masculinos não
seriam feitos para lidar bem com linguagem. Além disso, suas imagens de
masculinidade poderiam ser prejudicadas caso se empenhem ou demonstrem
interesse em uma disciplina de linguagem, conforme mostram Jo Carr e Anne
Pauwels (2006).
Em suas pregações para casais, o estadunidense Mark Gungor, pastor
evangélico e comediante, usa as pesquisas do novo biologismo tanto para
justificar quanto para solucionar conflitos conjugais. No Brasil, o pastor
evangélico Cláudio Duarte também se baseia no novo biologismo para

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 585


aconselhar casais, assim como o casal Renato e Cristiane Cardoso, pastor e
pastora da Igreja Universal, que dizem que “os cérebros feminino e masculino
são bem distintos, e por isso homens e mulheres se comunicam de maneiras
bem diferentes. Homem e mulher têm as suas diferenças, suas peculiaridades.
Isso já está comprovado pela ciência”2.
Uma iniciativa feminista de negar a pertinência de argumentos biológicos
na construção e manutenção de diferenças e defender que as diferenças são
produtos de aspectos culturais tem encontrado massiva resistência na medicina,
na biologia e até mesmo nas ciências sociais (FAUSTO-STERLING, 2001).
Isso não é exatamente uma surpresa, já que “em nossa cultura, a ciência carrega
consigo a pompa do acesso especial à verdade: a pretensão à objetividade”
(FAUSTO-STERLING, 2001, p. 17). Por isso, para uma pesquisa feminista
sobre ideologias linguísticas, a questão sob escrutínio deve ser “como e por que
tais representações [de linguagem e de gênero] alcançam amplo escopo e
influência em um determinado momento histórico” (CAMERON, 2014, p.
288), e não se essas representações são “verdadeiras” ou “falsas”.

História natural dos discursos

Para entender o alcance das ideologias linguísticas que atuam na


construção biológica das diferenças entre homens e mulheres, também é
preciso entender os processos de textualização pelos quais circulam os discursos
do novo biologismo. Os processos de textualização podem ancorar discursos
em contextos de uso assim como podem desatá-los de contextos de uso
(BAUMAN; BRIGGS, 1990). Nos processos de ancoragem e separação, os

2 Textualização de áudio de post publicado em 24 de março de 2014 no endereço


https://blogs.universal.org/renatocardoso/2014/03/24/cerebros-feminino-e-masculino-e-o-pedido-de-
desculpas/. Acesso em 15 de junho de 2019.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 586


discursos se transformam em textos, ou fragmentos de textos (MOITA
LOPES; FABRÍCIO, 2018), processo nomeado por Bauman e Briggs (1990)
de entextualização, e são modificados e transformados conforme são
descontextualizados e recontextualizados, construindo o que Michael
Silverstein e Gregg Urban (1996) chamam de história natural dos discursos.
Nesse sentido, um texto “é o discurso que pode ser descontextualizável” e a
entextualização pode “incorporar aspectos do contexto, de forma que o texto
resultante carregue consigo elementos da sua história de uso” (BAUMAN;
BRIGGS, 1990, p. 73).
Mary Bucholtz (2003, p. 61) diz o seguinte sobre pesquisas que lidam
com gênero, história natural dos discursos e ideologias linguísticas:

A pesquisa [sobre história natural dos discursos] está intimamente


relacionada com os estudos sobre ideologias linguísticas na medida em que
as possibilidades da entextualização são frequentemente ideologicamente
delimitadas, e as ideologias muitas vezes poder ser rastreadas através dos
processos da recontextualização discursiva. Em ambas as pesquisas,
gênero emerge da interação entre ideologias e práticas discursivas. Ainda,
a história natural dos discursos oferece uma perspectiva sobre essa questão
diferente da forma considerada pelos estudos de ideologias linguísticas
porque dá ênfase não à circulação das ideologias, mas à circulação dos
discursos entre contextos.

Na visão sobre textos sugerida por Bauman e Briggs (1990), o texto não
é um objeto fixo em um espaço específico, e sim um movimento. Essa visão de
mobilidade textual compreende que os textos têm a característica de se
descontextualizarem de um contexto específico e se recontextualizarem em
outros. Tornar um discurso extraível, uma unidade que pode ser levada de um
contexto a outro, é o processo de entextualização. O trânsito do texto por esses
três processos é um movimento de adaptação, de perda e ganho, e o que se
ganha e o que se perde depende dos interesses envolvidos nos processos de
construção de significado (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2018).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 587


Considerações finais

O objetivo deste capítulo foi apresentar as conexões entre novo


biologismo, ideologias linguísticas e história natural dos discursos, elementos
cernes para a pesquisa de mestrado que está sendo desenvolvida. A pesquisa vai
investigar a interação entre ideologias linguísticas e os processos de
textualização que formam a história natural dos discursos do novo biologismo
que circulam na plataforma YouTube.
As ideologias linguísticas são o sistema de crenças sobre a linguagem e as
relações sociais, e o novo biologismo é uma ideologia linguística específica deste
tempo e deste espaço que leva as supostas diferenças estritamente biológicas
entre homens e mulheres às suas últimas consequências deterministas por meio
de tecnologias das ciências naturais, ditas “neutras”. Em uma circulação que vai
desde estudos da Medicina sobre os cérebros femininos e masculinos
(BARON-COHEN, 2003) até o uso dos resultados dessas pesquisas em
pregações evangélicas, os discursos do novo biologismo são modificados de
várias maneiras nesses processos de entextualização. Um olhar atento aos
mecanismos operantes nessas entextualizações pode elucidar sobre os aspectos
da guinada essencialista da compreensão do que é ser homem, do que é ser
mulher e os efeitos dessa compreensão.

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CAPÍTULO 43

Identidade cultural e suas implicações


na escolha eleitoral: uma análise do
gênero infográfico
Vanesca Carvalho Leal3

Breve retrospectiva dos estudos sobre Linguística


Aplicada (LA)

A Linguística Aplicada (LA) “é um campo de investigação relativamente


novo” (MOITA LOPES, 2009, p.11). Esses estudos iniciaram com o ensino-
aprendizagem de línguas, principalmente, estrangeiras; numa segunda fase,
tentou-se distinguir entre Linguística Teórica e Aplicada – continuando ainda
restrito ao ensino de línguas; em seguida, buscou-se trabalhar com a resolução
de problemas do exercício de uso da linguagem, seja dentro ou fora da sala de
aula. Na contemporaneidade, propõe-se uma (in) disciplina linguística híbrida,
transdisciplinar e que apresente outras vozes, sobretudo, da periferia. Dessa
forma, Moita Lopes (2009, p. 16) diz que “o objeto de investigação, porém,
passa a ser também construído com base na relevância que teorias de outros
campos do conhecimento possam ter para sua compreensão”, isto é, um campo
do saber que se realiza na interação com outras áreas, muito próxima das

3Artigo apresentado à disciplina de Linguística Aplicada, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Dóris Matos e pela Prof.ª
Dr.ª Júlia Matos, elaborado pela mestranda do curso de Letras, do Programa de pós- graduação em Linguística
– PPGL, Da Universidade Federal de Sergipe – UFS.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 592


Ciências Sociais e preocupada com a equidade. Assim, a LA é considerada uma
disciplina autônoma, independente, com princípios, objetos de estudos e
metodologias próprias, preocupando-se com o estudo da linguagem e
deleitando-se nas averiguações sobre identidade, cultura e suas divisões.
Por nascer da Linguística Teórica, muitas vezes, depara-se com
problemas para ser notada como disciplina autônoma. Uma diferença que se
estabelece, de acordo com Rajagopalan (2006) é que a Linguística Teórica não
tem preocupação social ou insere este ponto a segundo plano. Entretanto, com
os estudos de Widdowson, no final dos anos 70, dá início a uma nova
perspectiva dos olhares sobre a LA. Dessa forma, Menezes, Silva e Gomes
(2009, p. 25), expressam que “o objeto de investigação da LA é a linguagem
como prática social, seja no contexto de aprendizagem da língua materna ou
outra língua, seja em qualquer outro contexto onde surjam questões relevantes
sobre o uso da linguagem”.
Os principais objetos de estudos da LA estão concentrados nas
expressões e seus respectivos estudiosos: indisciplina (MOITA LOPES, 2009),
transgressividade (PENNYCOOK, 2006) e desaprendizagem (FABRÍCIO,
2006). Analisar a LA numa perspectiva indisciplinar é expressar que ela
“reconhece a necessidade de não se constituir como disciplina, mas como uma
área mestiça e nômade, principalmente, porque deseja ousar pensar de forma
diferente (MOITA LOPES, 2009, p. 19), isto significa que ela é híbrida e
heterogênea, transita por várias áreas e não segue regras disciplinares, pelo
contrário possui um alto nível de teorização que vai além do interdisciplinar,
tornando-se, assim, transdisciplinar. Então, o desafio do trabalho com esta
indisciplina é, como exprime Moita Lopes (2009, p. 22) “atravessar fronteiras no
campo do conhecimento, assim como na vida, é expor-se a riscos”. E
complementa, é “uma forma de repensar a vida social” (2009, p. 23).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 593


De acordo com Pennycook (2006) a “transgressividade” da LA tem
caráter e engajamento em práticas problematizadoras do próprio saber, ou seja,
compreende um campo de investigação transdisciplinar. Para ele, as disciplinas
não são estáticas, são marcadas de empréstimos de constructos teóricos e
dinâmicos do conhecimento. Isto se refere, “a necessidade crucial de ter
instrumentos tanto políticos como epistemológicos para transgredir as
fronteiras do pensamento e das políticas tradicionais” (PENNYCOOK, 2006,
p. 82).
Por conseguinte, Fabrício (2006) propõe a ideia de uma LA da
desaprendizagem como uma possibilidade de conhecimento, pois é uma área
que se coloca em movimento contínuo e auto-reflexivo, apostando nos
‘descaminhos’ de qualquer tipo de conhecimento incontestável e
inquestionável.
Este desafio, instaurado por Fabrício (2006), faz referência a questão dita
por Rajagopalan (2006) que toda entidade possui uma questão política de
representação. E essa está indo em direção da identidade, algo amplo e que envolve
diferentes perspectivas, repensando a força produtiva da linguagem e na
construção da identidade. (PENNYCOOK, 2006, p. 80-81). Neste sentido,
todos os sujeitos do discurso possuem características baseadas na
heterogeneidade, fluidez e mutações que estão inseridos. Essas mutações
permitem atravessar fronteiras do pensamento e ver o mundo com outros
olhos, dando voz aqueles que não a tem, repensando a vida de maneira social,
tomando como base a sua cultura, mas construindo novas identidades. Para a
compreensão desses fatores, precisa-se entender o(s) conceito(s) de cultura(s) e
identidade(s).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 594


Considerações sobre identidades e culturas

De acordo com Laraia (2001) a forma como se vê o mundo nos aspectos


morais e de valores, bem como os diferentes comportamentos sociais e até
mesmo corporais são determinantes de uma herança cultural. Essa herança é
rapidamente identificada somente através de uma pequena observação do
modo de vestir, agir e, principalmente, ao usar determinada língua. Dessa forma,
“o fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como
consequência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais
correto e o mais natural. (LARAIA, 2001, p. 72).
Sabe-se que a discussão sobre identidade é vasta, sendo reconhecida
oficialmente no contexto educacional. Apesar disso, há algo estranho nessa
discussão que é a falta de uma teoria que aborde o conceito de identidade e
diferença (SILVA, 2012). Nesse contexto, Hall (2006, p. 8) explica que “o
próprio conceito com o qual estamos lidando, ‘identidade’, é demasiadamente
complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência
social contemporânea para ser definitivamente posto à prova”.
Dessa forma, Silva (2012) expressa a sua definição de identidade como
aquilo que sou e se integra ao conceito de diferença aquilo que o outro é, porém
complementa que estes dois conceitos são inseparáveis, já que um depende do
outro. Identidade e diferenças são decorrências de atos de criação linguística,
pois se referem aos aspectos sociais e culturais (SILVA, 2012). Ainda segundo
o autor, a identidade e a diferença é um processo de produção simbólica e
discursiva que nasce da relação social e está sujeita a vetores de força e relações
de poder.
Já Hall (2006) diferencia as concepções de identidade, baseadas em três
sujeitos: do Iluminismo; Sociológico e Pós-moderno. O sujeito do Iluminismo apresenta
uma concepção individualista, fundamentada na pessoa centrada, dotada de

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 595


razão, cujo seu núcleo interior é o centro de tudo e permanentemente idêntico
ao longo de sua existência. Isso contraria a ideia proposta por Silva (2012) que
indica a identidade como algo ativamente produzido. O Sociológico apresenta que
“a identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade” (HALL, 2006,
p.11), corroborando com a ideia de Silva (2012) que as identidades são marcadas
pelo processo de hibridismo, contudo ainda permanecem traços que Hall (2006)
chama de “eu real”. E o Pós-moderno – que não possui uma identidade fixa ou
imutável, o que o autor chama de “celebração móvel”.
Esse sujeito pós-moderno é o que classifica a “crise de identidade”, pois
está em um processo constante de “descentralização” ou “deslocamentos”, isto
é, “a sociedade não é, como os sociólogos pensaram muitas vezes, um todo
unificado e bem delimitado” (HALL, 2006, p. 17), mas é caracterizada pela
diferença e essa se relaciona a identidade. Em resumo:

A identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato - seja da


natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, estável, coerente,
unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a
identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma
relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a
estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.
(SILVA, 2012, p.80).

Um dos sistemas de representação atribuídos à sociedade está a


identidade nacional, a qual se define quem somos ou o que somos: “brasileiros”,
“ingleses”, “espanhóis”, pois é o local de origem. Segundo Hall (2006), essa
identidade não está ligada aos nossos genes, apesar de atribuir a ela a natureza
essencial de cada indivíduo.
Hall (2006) afirma que a cultura nacional é discurso. E este está
relacionado à cinco elementos sociais e culturais que fomentam esta afirmação:
(1) a narrativa de nação – que representam as experiências partilhadas, os triunfos
e os desastres que dão sentido à nação; (2) ênfase nas origens e na tradição – os

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 596


elementos considerados essenciais ao caráter nacional permanecem fixos,
apesar de todas as mudanças na história; (3) invenção da tradição – conjunto de
práticas que se fixam pela repetição e continuidade de culto a valores e normas
de comportamento; (4) mito fundacional – uma história criada que promove a
origem da nação e o seu caráter nacional; e (5) ideia de um povo puro, original –
que raramente exercita o poder da nação. Renan (1990, p. 19 apud Hall, 2006,
p. 58) complementa a ideia de que para obter um princípio de unidade da nação,
são necessários três elementos “[...] a posse em comum de um rico legado de
memórias[...], o desejo de viver em conjunto e a vontade de perpetuar, de uma
forma indivisível, a herança que se recebeu”.
Essa herança está baseada, também, no jogo de identidades. Esse jogo
envolve situações cotidianas em uma sociedade, em que se julga algum
acontecimento ou alguém diante de determinados contextos. Para isso, são
agregados valores, crenças, identificação de etnia, sexo, ideal político, entre
outros, a fatos a partir daquilo que toma-se como verdade e o papel social que
se exerce. O desafio maior no jogo de identidades é o princípio de justiça social
que vise a equidade.
Um exemplo prático que se pode notar o jogo de identidades é,
principalmente, no período eleitoral, quando se tem por objetivo persuadir o
eleitor na escolha do seu candidato. E é sobre esse ponto que este artigo faz um
debate, focalizando a relação entre os conceitos de identidade, ideologia e
comportamento eleitoral, bem como o estabelecimento de algumas
características para a compreensão do perfil dos candidatos escolhidos pelo
eleitorado brasileiro. Para isso, far-se-á a análise de um infográfico que
representa onde os candidatos foram mais bem votados e possíveis implicações
na escolha dos mesmos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 597


Análise do infográfico “Eleições presidenciáveis: Onde
os candidatos foram mais bem votados 2018”

O infográfico4 “Eleições presidenciáveis: onde os candidatos foram


mais votados em 2018” foi publicado no site do jornal El País do Brasil.
Um portal de notícias de origem espanhola, que chegou ao Brasil em 2013,
devido ao grande acesso do público brasileiro ao site espanhol. Em relação
ao contexto sócio-histórico desse infográfico, percebemos que o jornal fez
uma referência aos principais candidatos à presidência da República: Ciro
Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB), Fernando Haddad (PT) e Jair
Bolsonaro (PSL). Para análise é de extrema importância o conhecimento
do perfil dos candidatos, e aqui será tomado como referência os dois mais
votados da população brasileira, já que possuem perfis e características de
identidades bem distintas.
Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT) - desde 1983,
é formado em Direito, mestre em Economia e doutor em Filosofia. Foi
Ministro da Educação e prefeito de São Paulo e atua como professor
universitário. Seu lema é “Um livro numa mão e uma carteira de trabalho
na outra”, defendendo os principais objetivos do seu governo “o trabalho
e a educação”. Tendo como vice Manuella D’Ávila.
Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), foi Militar e
professor de Educação Física. Atua como deputado - desde 1991,

4 Infográfico é um gênero textual visualmente informativo, desenvolvido em domínios discursivos diversos


(jornalístico, educacional, científico, publicitário etc.), que se baseia na articulação esquemática de recursos
semióticos e tem funções de exposição (de dados estatísticos e geográficos), explicação e narração.
(NASCIMENTO, 2013, p.61).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 598


cumprindo sete mandatos em partidos diferentes. Em 2017, foi
condenado a pagar indenização a uma deputada por danos morais, bem
como foi denunciado por crimes, envolvendo preconceitos contra negros,
indígenas, mulheres e LGBT’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais ou Transgêneros). Sua campanha eleitoral é marcada pelo
lema: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”, esse tem por objetivo
retomar o amor à pátria, a identidade nacional e os valores religiosos.
Tendo como vice o General Mourão.
A intenção de mostrar o perfil de cada um, sua formação, campo de
atuação, lema e escolha do vice é justamente para se perceber o “jogo de
identidades” que esteve presente na campanha eleitoral 2018, já que os
eleitores se espelhavam naquilo que mais se aproximava ou distanciava de
sua personalidade e serviam de influência e impulsão para a escolha do
voto. Para isso, far-se-á uma análise do infográfico, à luz da Gramática do
Design Visual5 (GDV), de Kress e Van Leuween (2006 [1996]).

5 A GDV apresenta uma proposta teórico-metodológica para a análise crítica de textos multissemióticos,
organizada em torno de uma função e que esta pode ser claramente relacionada à organização do contexto,
com a produção de significados ideacionais, interpessoais e textuais. Assim como a linguagem verbal, as imagens
atuam como forma de representação, negociação de identidades e relações sociais e como mensagem. Neste
sentido, são propostas as metafunções representacionais, interacionais e composicionais que operam simultaneamente
em toda imagem, construindo padrões de experiência, interação social e posições ideológicas a partir das
escolhas de qual realidade está sendo representada, qual a visão de mundo é apresentada, que tipo de
proximidade há entre os participantes da imagem e o leitor, como os participantes são construídos, quais são
as cores da imagem etc.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 599


Figura 1: Infográfico “Eleições presidenciais: onde os candidatos foram mais votados em
2018”

Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/media/1539013415_545929.html

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 600


A análise terá início a partir da metafunção representacional,
desenvolvida por Kress e Van Leeuwen (2006 [1996]), isto significa que há uma
relação representacional entre os participantes internos da imagem. Essa pode
ocorrer a partir de processos narrativos ou conceituais. Dessa forma, é percebido que
não há processos narrativos nos elementos do infográfico - as pessoas presentes
(os candidatos mais votados) estão apresentados de forma estática, apesar de
seus rostos estarem demonstrando emoções, não podem ser considerados
vetores6, devido ao tamanho da imagem e a não percepção de suas ações. Mas,
apresenta processos conceituais, isto é, os participantes estáticos, sem a
presença de vetores, podendo ser distribuídos em (1) classificacionais, (2) simbólicos
e (3) analíticos.
O primeiro, representa os participantes que pertencem a uma mesma
categoria, tornando-os semelhantes, do ponto de vista de serem candidatos com
maior aprovação, maior número de votos e gráficos que representam o
percentual de cada um, por meio de uma estrutura hierárquica – do mais votado
ao menos votado. Já se percebe uma retomada dos conceitos de identidade e
diferença. Um é o “mais preferível”, pela sua irreverente identidade, mesmo
cheio de preconceitos e posições antidemocráticas, prega a valorização da pátria
e impõe uma ideologia de que o segundo colocado não presa por este
patriotismo ou pela falta do mesmo.
Em seguida, observa-se os processos simbólicos pela relação entre portador
e seus atributos possessivos. Isso quer dizer que a identidade do representante
é estabelecida por suas cores e posições. Este aspecto é bem nítido em que o
gráfico, o mapa e a linha do tempo são constituídos pelas cores, destacando a
porcentagem de eleitores, sendo que o “vermelho” destaca-se na “evolução do
voto” - que determina a perda, no decorrer dos anos, do prestígio do PT; e o

6 Elementos que realizam ações visuais.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 601


“verde” no “mapa do Brasil” por possuir o maior número de votos (PSL). Este
evidenciado pela sua posição, estando sempre na primeira representação do
gráfico e o primeiro da legenda do mapa. Esse destaque é uma forma de
contribuir e determinar a hierarquização.
Os processos analíticos são estruturados quando especificam a relação entre
as partes e o todo, apresentando descrições, que, em determinados momentos,
podem ser consideradas “exaustivas”. Já que evidenciam um dos portadores
(candidato do primeiro lugar) de forma repetitiva, mostrando seus atributos,
bem como o do segundo lugar sendo disseminado em cada parte da linha do
tempo das eleições de 2002 a 2018, mostrando o seu desprestígio.
Em relação à metafunção interativa, de acordo com a Gramática do Design
Visual, é uma relação que se estabelece entre a imagem, o produtor e o
espectador e se constitui pelo contato, distância social, modalidade e perspectiva.
Entretanto, no infográfico já foi percebido a falta de vetores, mostrando os
participantes de forma impessoal, sendo assim, o contato não se estabelece. Isso
ocorre por ser uma notícia que preza pela neutralidade do seus produtores,
mesmo apresentando indícios de não neutralidade, como visto nos tópicos
anteriores. Essa mesma explicação serve a questão de perspectiva, já que não
possuem vetores, não tem como estabelecer relação com o ângulo que os
mesmos apresentam.
O uso das cores instiga uma dimensão afetiva entre o espectador e a
imagem, por representar as cores de cada partido: o verde – uma das cores da
bandeira brasileira, incide o “patriotismo” estabelecido na campanha, em que
os eleitores se inspiravam na bandeira e no uso das camisas da seleção brasileira
para determinar sua identidade política e nacional. E o vermelho – cor que
determina o PT e serve de relação a diversos movimentos sociais, como por
exemplo, o MST (Movimento Sem-Terra), CUT (Central Única dos
Trabalhadores), e vários outros que apoiam o trabalho e a educação. Essa

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 602


relação interativa faz com que o eleitor/leitor “simpatize” com a imagem ou
“antipatize”, como foi citado a exemplo, a cor vermelha, que apareceu até com
uma famosa hastag (#) contra esta cor (nossa bandeira nunca será vermelha). A
utilização da cor é uma forma de aproximar ou distanciar o produtor do
espectador socialmente, isso de acordo com sua ideologia e, neste caso, posição
política.
Quanto à modalidade - é dividida em naturalista, sensorial, científica e
abstrata. Neste infográfico, percebe-se a científica, pois há uma relação entre os
gráficos e mapas com a linguagem verbal, principalmente, na seção que diz:
“Bolsonaro obteve maioria dos votos especialmente nas regiões produtoras de soja no norte do
Mato Grosso e Rondônia, com sua mensagem antiambientalista e pró-agronegócio”,
referindo-se ao ambiente e apresentando uma contradição, pois sua cor de
referência é o verde – representa a natureza.
Por fim, a metafunção composicional, como o próprio nome já diz, é
responsável pela composição dos elementos representacionais e interacionais,
que se integram aos sistemas de valor de informação, o enquadre e a saliência. Neste
infográfico, os elementos estatísticos estão presentes a todo instante – na parte
superior – através dos gráficos e com a retrospectiva das eleições; e na parte
inferior – na legenda e nas cores do mapa. O mapa aqui está como elemento
correspondente ao Valor da informação, já que todas as outras o envolve
(elementos marginais).
De acordo com Assunção (2014), o sistema de enquadre, citado na
metafunção composicional, destaca-se pelos elementos que estão representados
como identidades separadas (em quadros) e tem por função conectá-los ou
desconectá-los na imagem. Como neste infográfico não há vetores, as conexões
se realizam por meio das cores apresentadas. As desconexões são representadas
pelo aspecto vazio entre os elementos que dão a impressão de serem separados,
porém enquadrados. A expressão saliência, é utilizada por Kress van Leeuwen

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 603


mostrando a importância hierárquica dos elementos numa imagem, fazendo
com que chamem mais a atenção do leitor. Esse aspecto foi demonstrado nos
processos analíticos da metafunção representacional.
Com esta breve análise, pode-se evidenciar que a Gramática do Design
Visual de Kress e van Leeuwen (2006 [1996]) é cultivável à interpretação. Além
disso, contribui bastante para a identificação da influência de identidades
culturais estabelecidas pelos partidos políticos, como também, dos noticiários
que implicam na escolha do representante nacional, a partir de pontos retóricos
e multissemióticos que estão presentes nas linhas e entrelinhas do infográfico.

Considerações finais

Este artigo pretendeu discutir os conceitos de identidade cultural e suas


implicações na escolha da representatividade nacional, a partir da análise do
gênero infográfico no contexto eleitoral de 2018. Para isso, foi realizado um
breve contexto histórico do surgimento e áreas de estudos da Linguística
Aplicada. Seus principais objetos de estudos são: indisciplina (MOITA LOPES,
2009), transgressividade (PENNYCOOK, 2006) e desaprendizagem
(FABRÍCIO, 2006). Esses objetos envolvem diferentes pontos de vista, dentre
eles os do conceito de identidade e cultura.
Os conceitos de identidade e cultura são complexos. A cultura é o que
determina as características próprias de um povo. Essa está intimamente ligada
a questão de identidade, pois é aquilo que determina “o que sou”, bem como
ao conceito de diferença “aquilo que o outro é”. Por não serem fixos estão
sempre em um processo de construção e ligadas a sistemas de representação,
sendo um deles a identidade nacional, a qual define nossa nacionalidade. Por
isso, há uma crise de identidade, pois o sujeito pós-moderno está em um

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 604


processo constante de “descentralização”. E nessa conjuntura, surge o jogo de
identidades. Esse jogo inclui circunstâncias cotidianas em uma sociedade.
Diante do exposto, fez-se uma análise de um infográfico, seguindo a
metodologia da Gramática do Design Visual, de Kress e Van Leeuwen, a partir
das metafunções. Com o intuito de demonstrar a constituição de sentidos da
composição multissemiótica referente a um período polêmico de disputa pelo
poder, em que o “jogo de identidades” esteve presente.
Dessa forma, pode-se concluir que através de um estudo
multissemiótico, de textos compostos por fatos noticiados, pode-se perceber a
influência na escolha da ideologia e cultura que a população irá seguir,
determinado pelo contexto de cores, posições, ênfase e saliência na
apresentação dos candidatos e dos possíveis resultados expostos.

Referências

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ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 606


CAPÍTULO 44

Linguagem e identidade: práticas


culturais em uma escola pública do
município de Natal/RN
Cíntia Daniele Oliveira do Nascimento1
Marília Varella Bezerra de Faria2

Primeiras palavras

A escola como um lugar de entusiasmo, e não de tédio: esse é o grande


desafio da pesquisa que está sendo construída3 e sobre a qual vamos tratar neste
artigo. Para que a escola seja vista dessa forma, é importante dar voz aos
indivíduos que fazem parte da dinâmica da instituição, é importante organizar
o espaço de modo que a comunidade se sinta pertencente àquele lugar. É apenas
por meio de uma pedagogia pautada pela ética, pelo respeito à dignidade, pela
autonomia do educando e pela valorização das culturas locais e populares que
a escola pode ser considerada como esse lugar de entusiasmo.
Percebe-se que a instituição escola apresenta elementos da sociedade
disciplinar, uma sociedade da negatividade, determinada pela negatividade da

1 Doutoranda em Estudos da Linguagem/Linguística Aplicada, na Universidade Federal do Rio Grande do


Norte - UFRN. E-mail: [email protected].
2 Doutorado em Estudos da Linguagem/Linguística Aplicada, na Universidade Federal do Rio Grande do

Norte - UFRN e Pós-doutorado, na Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. E-mail:


[email protected].
3 Trata-se de uma pesquisa a nível de Doutorado realizada pelas autoras deste artigo no Programa de Pós-

Graduação em Estudos da Linguagem (PPgEL/UFRN), área: Estudos em Linguística Aplicada, linha de


pesquisa: Estudos de práticas discursivas.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 607


proibição; a sociedade disciplinar vê instituições como escolas, presídios,
fábricas, hospícios e hospitais como lugares de controle. A escola também
apresenta muitas marcas que a caracterizam como pertencente à sociedade do
desempenho – como pode ser caracterizada a sociedade do século XXI –, uma
sociedade da produtividade, do projeto, da iniciativa, da motivação (HAN,
2017). A arquitetura das escolas e as múltiplas relações estabelecidas nesses
espaços revelam tais características da escola: disciplina e desempenho.
Como podemos potencializar as discussões sobre questões relacionadas
à escola pública na contemporaneidade? É relevante pensar a escola como uma
instituição que contemple uma educação linguística que traga benefícios para a
vida das pessoas que estão ali inseridas.
Trazemos neste artigo, reflexões que estão sendo desenvolvidas em uma
pesquisa de doutorado que envolve o estudo da paisagem linguística escolar e
as construções identitárias de escolas públicas na cidade de Natal/RN. O
objetivo da pesquisa de doutorado é investigar as identidades culturais
atribuídas a escolas públicas, a partir da paisagem linguística, considerando a
ótica dos seus alunos, professores e funcionários. No presente artigo,
apresentaremos informações sobre algumas das temáticas que norteiam a
pesquisa em desenvolvimento, tais quais: linguagem, sociedade, identidade,
cultura e práticas culturais.

Linguagem e sociedade

Para falar sobre a instituição escola não podemos esquecer de destacar


os indivíduos, sujeitos ímpares que estão em permanente interação e que
contribuem para a constituição identitária da escola, além disso, todo o contexto
histórico e social que cerca a escola também é fundamental para compreender

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 608


as relações que ali se estabelecem. Para isso, utilizamos os pressupostos da
Linguística Aplicada Crítica (MOITA LOPES, 2006).
Fazer pesquisa em Linguística Aplicada (LA) envolve tratar temáticas que
estão presentes na vida contemporânea, dar voz aos que estão à margem: “a
pesquisa é um modo de construir a vida social ao tentar entende-la” (MOITA
LOPES, 2006, p. 85). A escola pública está à margem, por isso, é preciso que
se fale sobre ela, sobre em que condições os alunos chegam à escola, sobre
educação linguística, sobre formação de professores etc.
“Como pensar novas formas de produzir conhecimento com base em
outros olhares, e, assim, colaborar na reinvenção da vida social?”, a pergunta
feita por Moita Lopes (2006, p. 94) é um dos norteadores para o
desenvolvimento desta pesquisa. Estamos interessados em ouvir e em conhecer
os olhares das pessoas que frequentam as escolas, seja por meio de diálogos, de
respostas a questionários, de atividades desenvolvidas em sala de aula.
Para desenvolver pesquisas em LA de forma completa também
precisamos sair do campo da linguagem, é necessário conhecer temas da
sociologia, da geografia, da história, da antropologia, da psicologia cultural e
social, pois a LA se aproxima de áreas que focalizam o social, o político e a
história. É por meio dessas pontes que são estabelecidas com outras áreas que
a LA é caracterizada como uma área híbrida/mestiça, ou a área da INdisciplina
(MOITA LOPES, 2006). Ao falar sobre escola pública e sobre o estudo da
paisagem linguística, fazemos esse caminho em direção às outras áreas,
contemplamos outras vozes, outros pensamentos sobre o tema que está em
discussão.
Aliado aos estudos da Linguística Aplicada, utilizamos uma concepção
dialógica e filosófica da linguagem que foi pensada pelo Círculo de Bakhtin
(BAKHTIN 2015, 2016, 2017; VOLÓCHINOV, 2017). A arquitetônica
bakhtiniana busca entender os aspectos sociais, históricos, culturais e

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 609


ideológicos da produção da linguagem (BAKHTIN, 2017). De acordo com essa
concepção de linguagem, os sujeitos – indivíduos socialmente organizados,
marcados por profunda e tensa heterogeneidade (FARACO, 2009) – são
imersos em amplas, variadas e complexas relações sociais ao longo de toda a
vida, possibilitando o diálogo e a reflexão:

É característica do pensamento do Círculo o contínuo reportar-se às


práticas do cotidiano, valorizando-as como espaços em que já estão
embutidas as bases da criação ideológica mais elaborada e as fontes da sua
contínua renovação. As raízes dessa valorização do cotidiano estão
certamente no envolvimento filosófico inicial de Bakhtin com o mundo
da vida (FARACO, 2009, p. 62).

O mundo da vida é o mundo em que nós criamos, conhecemos,


contemplamos, vivemos e morremos, “o mundo no qual se objetiva o ato da
atividade de cada um e o mundo em que tal ato realmente, irrepetivelmente,
ocorre, tem lugar” (BAKHTIN, 2017, p. 43). Assim, transitando nas mais
diversas esferas da vida, o sujeito participa de relações dialógicas, também
chamadas de relações de sentido, “que se estabelecem entre enunciados, tendo
como referência o todo da interação verbal” (FARACO, 2009, p. 65).
Ao participar de relações dialógicas, o sujeito constitui-se
discursivamente, assimila vozes e é capaz de posicionar-se diante delas:

Como a realidade linguístico-social é heterogênea, nenhum sujeito absorve


uma só voz social, mas sempre muitas vozes. Assim, ele não é entendido
como um ente verbalmente uno, mas como um agitado balaio de vozes
sociais e seus inúmeros encontros e entrechoques. O mundo interior é,
então, uma espécie de microcosmo heteroglóssico, constituído a partir da
internalização dinâmica e ininterrupta da heterroglossia social. Em outros
termos, o mundo interior é uma arena povoada de vozes sociais em suas
múltiplas relações de consonância e dissonâncias; e em permanente
movimento, já que a interação socioideológica é um contínuo devir
(FARACO, 2009, p. 84).

Além dessas muitas vozes que permeiam a vida dos sujeitos sociais, pode-
se perceber que o mundo também está repleto de imagens, em todos os espaços,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 610


cidades, bairros, avenidas, ruas, instituições; o mundo está sendo vivido em
função das imagens, “no campo das ciências humanas e sociais, não podemos
mais negligenciar as mudanças na vida social desencadeadas pelo diálogo que as
imagens travam conosco” (SOUZA, 2007, p. 80).
A partir dessa compreensão, podemos apresentar, ainda, questões que
vêm sendo discutidas nos estudos sobre paisagem linguística. Trata-se de uma
área de investigações relativamente nova, que tem despertado o interesse de
pesquisadores das mais diversas áreas, tais como linguistas, sociolinguistas,
psicólogos, geógrafos, uma vez que busca compreender como o espaço público
é simbolicamente construído4. Podemos perceber que os estudos sobre
paisagem linguística relacionam-se com os estudos da LA quando apresentam
esses diálogos com outras áreas do conhecimento.
As mais diversas ruas, prédios, instituições, outdoors, cartazes e outros
elementos linguísticos que caracterizam os espaços urbanos podem ser objetos
de estudo da área da paisagem linguística. Em se tratando de elementos que
fazem parte dos cenários que compõem as cidades, a paisagem linguística é
moldada por fatores históricos, sociais, políticos, ideológicos, geográficos e
demográficos. Assim, percebe-se que a paisagem linguística também pode ser
utilizada como elemento responsável por construir identidades de determinados
espaços.
É importante destacar que os estudos da paisagem linguística
compreendem as marcas linguísticas que estão dispostas nos espaços públicos
e que podem servir para investigações que estão interessadas em grandes
questões sociais5.

4 “The common interest of all is the understanding that the LL [Linguistic Landscape] is the scene where the
public space is symbolically constructed” (SHOHAMY; BEN-RAFAEL; BARNI, 2010, p. xi).
5 “LL studies may serve the investigation of major societal issues” (BEN-RAFAEL e BEN-RAFAEL, 2010, p.

326).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 611


As pesquisas realizadas a respeito dessa temática, em sua maioria,
apresentam a presença de mais de uma língua em espaços urbanos, o que é
conhecido como multilinguismo. De acordo com Faria e Diniz (2015, p. 156),
“os estudos realizados até o momento tratam dessa temática envolvendo
diferentes línguas que coexistem em um mesmo espaço urbano, a partir da
linguagem em uso, desvelando práticas sociais, escolhas e valores de
determinada comunidade em um tempo também determinado”.
Em nossa pesquisa, destacamos a paisagem linguística em um ambiente
delimitado, a escola, e marcado apenas pelo uso da língua portuguesa, ou seja,
monolíngue. Nesse contexto, concordamos com pesquisadores que discorrem
sobre os diversos significados e usos da linguagem: “mais importante do que a
diversidade de línguas seja a diversidade de significados/discursos que
construímos e com os quais operamos nas práticas” (MOITA LOPES, 2013, p.
110), ou seja, é possível perceber variedades culturais e linguísticas em se
tratando de uma mesma língua, “dois contextos culturalmente distintos –
mesmo no seio de um território em que se fale a mesma língua – terão,
necessariamente, distinções também no âmbito de suas realizações linguísticas”
(ANTUNES, 2009, p. 24).
A paisagem linguística de um determinado espaço se constrói a partir de
escritos que “parecem falar a língua dos seus habitantes em determinado
momento sócio-histórico” (FARIA, 2016, p. 1009). Portanto, acreditamos que
se trata de um conjunto de enunciados capazes de revelar possíveis identidades.
A compreensão que temos sobre identidade e cultura será abordada na próxima
sessão.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 612


Identidade e cultura

Ao abordarmos as temáticas que estão presentes ao longo da última


sessão – linguagem e sociedade – faz-se necessário lembrar, também, que os
discursos emergentes na sociedade refletem diversas culturas e possibilitam o
surgimento de múltiplas identidades. Para estudá-las, utilizamos os
pressupostos dos estudos culturais, que tem como temática central o processo
de formação das identidades culturais (FARIA, 2007).
Em consonância com os pressupostos apresentados pelo Círculo de
Bakhtin, “as identidades construídas nas práticas discursivas da linguagem em
uso assumem sua natureza de base sócio-histórica e cultural” (FARIA, 2007, p.
28). Além disso, tais identidades adquirem sentido por meio da linguagem, “o
povo tem uma identidade, que resulta dos traços manifestados em sua cultura,
a qual, por sua vez, se forja e se expressa pela mediação das linguagens”
(ANTUNES, 2009, p. 19).
Aliado ao fato de essas identidades estarem imersas nas relações
dialógicas, no seio da linguagem, compreendemos, também, que a identidade é
relacional, pois, para existir, depende de algo fora dela, de outra identidade. A
identidade é, desse modo, marcada pela diferença e, também, por meio de
símbolos (WOODWARD, 2014). Nesse sentido, também dialogamos com a
concepção de linguagem adotada, pois, para existir, o ser humano precisa do
outro, ou seja,

a compreensão que o sujeito tem de si se constitui através do olhar e da


palavra do outro. Cada um de nós ocupa um lugar determinado no espaço
e deste lugar único revelamos o nosso modo de ver o outro e o mundo
físico que nos envolve. Nesta perspectiva de análise, a ênfase está no lugar
ocupado pelo olhar e pela palavra na constituição do sentido que
conferimos à nossa experiência de estar no mundo. Ao observarmos as
interações sociais e os enunciados que emergem na vida cotidiana
constatamos a nossa necessidade absoluta do outro (SOUZA, 2007, p. 83).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 613


Destacamos a importância desse outro, pois ele é responsável pela
construção das identidades das pessoas com quem ele convive, bem como dos
espaços em que ele transita. No ambiente escolar, por exemplo, esfera em que
acontece a nossa pesquisa, busca-se perceber a construção e a reconstrução das
identidades da escola por meio dos discursos dos sujeitos que nela estão
inseridos. A vida moderna permite a fluidez das identidades, uma vez que elas
são múltiplas e estão sempre em processo de construção, assim, as mais diversas
pessoas que circulam pela escola podem apresentar diferentes identidades para
a instituição.
Aliado aos estudos culturais, é imprescindível destacar que para construir
as identidades das escolas, fazemos uso dos estudos da paisagem linguística,
pois acreditamos que as imagens da paisagem linguística das escolas refletem as
identidades e as práticas culturais deste lugar, temática que será abordada a partir
de agora.

Práticas culturais em escolas públicas

Os indivíduos que transitam na escola estão em permanente interação e


vivenciam práticas sociais e culturais, “toda ação social é cultural e todas as
práticas sociais expressam ou comunicam um significado, sendo portanto
práticas de significação” (OLIVEIRA; SZUNDY, 2014, p. 189-190).
Consideramos que para falar sobre as práticas culturais que emergem nas
escolas públicas, precisamos dar voz às pessoas que pertencem a essas
instituições:

A voz de cada um de nós é, na verdade, um coro de vozes. Vozes de todos


os que nos antecederam e com os quais convivemos atualmente. Vozes
daquele que construíram os significados das coisas, que atribuíram a elas
um sentido ou um valor semiológico. Vozes que pressupõem papéis
sociais de quem as emite; que expressam visões, concepções, crenças,

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 614


verdades e ideologias. Vozes, portanto, que, partindo das pessoas em
interação, significam expressão de suas visões de mundo e, ao mesmo
tempo, criação dessas mesmas visões (ANTUNES, 2009, p. 23).

Tais vozes refletem às múltiplas culturas que estão presentes dentro das
escolas públicas, uma vez que “a língua que falamos deixa ver de onde somos”
(ANTUNES, 2009, p. 23). O ambiente escolar é um espaço plural, as mais
diversas vozes e culturas não podem ser caladas, precisam ser ouvidas, precisam
ecoar para além dos muros da escola:

Cabe, portanto, também à escola potencializar o diálogo multicultural,


trazendo para dentro de seus muros não somente a cultura valorizada,
dominante, canônica, mas também as culturas locais e populares e a
cultura de massa, para torná-las vozes de um diálogo, objetos de estudo e
de crítica. Para tal, é preciso que a escola se interesse por e admita as
culturas locais de alunos e professores (ROJO, 2009, p. 115).

Acreditamos que é possível construir uma escola que privilegia a


formação integral do cidadão, que se preocupa com a realidade em que o aluno
vive, que traz essa realidade para dentro da escola e tenta dar a ela um novo
significado. Acreditamos que é importante, sobretudo, estimular o pensamento
crítico dos alunos, dos pais e demais familiares.

Falta, na verdade, um engajamento da sociedade nos programas de


educação de sua comunidade. A escola pública não é coisa de governo. É
coisa nossa. É coisa de todos. Nos diz respeito. O desenvolvimento é de
todos e para todos. O crescimento não deve ser prerrogativa de quem tem
dinheiro. Saber ler e escrever não pode ser um bem disponível apenas para
quem pode pagar. A comunidade precisa, portanto, entrar na escola,
assumi-la como alguma coisa que também lhe pertence (ANTUNES,
2009, p. 42).

É diante desse alerta que somos motivados a fazer da escola um espaço


plural, que reúne e respeita as culturas dos sujeitos que ali estão inseridos, capaz
de formar um cidadão flexível, democrático e protagonista, um aluno ético,
crítico e isento de preconceitos, com ampla visão de cultura e que saiba lidar

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 615


com as diferenças socioculturais (ROJO, 2009). É nessa escola que acreditamos,
é por isso que buscamos outras vozes que se somem a nossa...

Em busca de outras vozes

As reflexões aqui desenvolvidas não estão totalmente concluídas. Sempre


há mais alguma palavra, mais alguma voz, mais algum conceito a ser explorado...
Para consolidar essas ideias, estamos percorrendo caminhos que perpassam as
teorias da linguagem e que consideram as características da sociedade na
contemporaneidade, além disso, acreditamos ser imprescindível compreender
as identidades de um povo, de uma determinada região, ou até mesmo de
instituições, como as escolas. Enfatizamos que as vozes que falam sobre as
escolas públicas precisam ser ouvidas. Existem práticas dentro dessas escolas
que precisam ser aperfeiçoadas, para que elas se tornem lugares de
encantamento.
Por isso, reforçamos que a temática posta neste artigo deve despertar
mudanças nos educadores, nas gestões escolares, nos alunos, nos pais, nos
familiares, nos políticos. Existe uma rede responsável por cumprir o desafio
apresentado no início deste texto – fazer da escola um lugar de entusiasmo, e
não de tédio –, uma rede de pessoas que está dentro e fora das escolas e que
acreditam nessa instituição. Encerramos esta breve reflexão com palavras de
esperança, “o futuro não pode repetir o ontem; as coisas devem se modificar”
(FREIRE; NOGUEIRA, 2014, p. 36).

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 616


Referências

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Editorial, 2009.
BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e
glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015.
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas
de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo:
Editora 34, 2016.
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir
Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2017.
BEN-RAFAEL, E; BEN-RAFAEL, M. Diaspora and Returning Diaspora:
French-Hebrew and Vice-Versa. In: SHOHAMY, E., BEN-RAFAEL, E.,
BARNI, M. (orgs.). Linguistic landscape in the city. Bristol, UK: Multilingual
Matters, 2010.
FARACO, C. A. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de
Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
FARIA, M. V. B. A construção estilística das identidades poéticas da cidade de Natal:
um olhar bakhtiniano. 2007. 188f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem)
– Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.
FARIA, M. V. B. Letreiros como fios dialógicos que tecem um bairro. VI
CÍRCULO – Rodas de Conversa Bakhtiniana: literatura, cidade e cultura popular. São
Carlos: Pedro & João Editores, 2016. p. 1009-1017.
FARIA, M. V. B; DINIZ, M. R. M. Construção identitária da cidade de Santa
Cruz/RN: ordem ou desordem? In: CASADO ALVES, M. P; VIAN JR., O.
Práticas discursivas: Olhares da Linguística Aplicada. Natal: EDUFRN, 2015. p.
154-170.
FREIRE, P.; NOGUEIRA, A. Que fazer: teoria e prática em educação popular.
Petrópolis/RJ: Vozes, 2014.
HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea:
problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA
LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar. São Paulo:
Parábola Editorial, 2006.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 617


MOITA LOPES, L. P. Como e porque teorizar o português: recurso comunicativo em
sociedades porosas e em tempos híbridos de globalização cultural. In: MOITA LOPES,
L. P. (Org.). O Português no século XXI: cenário geopolítico e
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Editorial, 2009.
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SOUZA, S. J. Dialogismo e alteridade na utilização da imagem técnica em
pesquisa acadêmica: questões éticas e metodológicas. In: Ciências humanas e
pesquisa: leituras de Mikhail Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.
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do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. São Paulo: Editora 34,
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WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e
conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 15. ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 2014.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 618


CAPÍTULO 45

Transdisciplinaridade e plurivocidade
Rita Maria Diniz Zozzoli1

Neste texto procuro aproximar os conceitos de transdisciplinaridade e de


complexidade, utilizados na Linguística Aplicada contemporânea e em outras
áreas do conhecimento, e de plurivocidade (BAKHTIN, 1998), situando-os na
dimensão do discurso epistemológico. A transdisciplinaridade é aqui definida
por Nicolescu (1997) e autores da Linguística Aplicada, como Celani (1992),
Moita Lopes (2006) e Pennycook (2006), e se articula com o princípio da
complexidade (NICOLESCU, 1997; MORIN, 2000a; 2000b). Bourdieu (2001)
está nas bases da discussão sobre a distribuição do capital econômico e
simbólico no campo da ciência.
As reflexões sobre os conceitos em jogo conduzem a considerações
sobre o fazer da Linguística Aplicada nas situações de pesquisa, tendo como
apoio conceitos da Teoria Dialógica (VOLOCHINOV, 2017; BAKHTIN,
1997, 1998, 2003, 2010, 2017).

Complexidade e transdisciplinaridade

A transdisciplinaridade tem como base um pensamento complexo


(mesmo que não se adote esse conceito), multidimensional, contrário ao

1 Docente do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura/ Faculdade de Letras/UFAL.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 619


pensamento que restringia/restringe o pensamento científico ao que é
“formalizável e quantificável” (MORIN, 2000a, p. 188-189) que
dominava/domina o mundo da ciência clássica.
Citando Bachelard, que ele considera como exceção dentro do
pensamento epistemológico contemporâneo, que ainda despreza o pensamento
complexo, Morin reitera que “não há nada simples na natureza, só há o
simplificado” (BACHELARD apud MORIN, 2000a, p. 176).
Para Nicolescu (1997), a lógica quântica quebra o paradigma da
simplicidade, quando, ultrapassando o axioma de não contradição da lógica
clássica (A é A; A não é Não-A; não existe um terceiro termo que seria A e
Não-A), inclui esse terceiro termo, que é A e Não-A ao mesmo tempo (“onda
e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não
separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de
simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo”. Seriam, assim, três
termos: (A, Não-A e T). “Um bastão sempre tem duas pontas”, diz Nicolescu
(1997, p. 19), recorrendo a um sketch de Raymond Devos, para defender a
lógica de não poder separar as duas pontas e de propor um terceiro termo.
Dito de outra forma, a lógica do par binário, das dicotomias presentes
nas diferentes áreas do conhecimento clássico, cede, então, espaço a uma lógica
da complexidade.
Para Nicolescu (1997), a complexidade é produto de nossa própria
cabeça, complexa por natureza, e é, ao mesmo tempo, o espelho da natureza
das coisas. Na mesma direção, Morin comenta que se trata de enfrentar o
“incontornável desafio que o real lança a nossa mente” (2000a, p. 176).
Entretanto, isso não significa buscar a completude, mas buscar um
conhecimento multidimensional. Segundo o mesmo autor, “ao aspirar a
multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um
princípio de incompletude e de incerteza” (MORIN, 2000a, p. 177). Este último

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 620


autor define a complexidade como “a união entre a unidade e a multiplicidade”
(MORIN, 2000b, p. 38).
Ao falar de multiplicidade, Calvino (1988, p. 131) comenta:

[...] os livros modernos que mais admiramos nascem da confluência e do


entrechoque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras
de pensar, estilos de expressão. Mesmo que o projeto geral tenha sido
minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa
figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade
de linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial.

No final da sua “apologia do romance como grande rede”, o mesmo


autor questiona: “quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma
combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações?”
(CALVINO, 1988, p. 138). Tal pensamento vai ao encontro da visão de
multiplicidade de vozes presente em Bakhtin (1998), como veremos mais
adiante. Dessa forma, trata-se aqui de um paradigma que questiona uma visão
unitária do mundo como expressa ainda Nicolescu: “Por que será que a
proliferação acelerada das disciplinas torna cada vez mais ilusória qualquer
unidade do conhecimento?”
Do ponto de vista histórico, a visão clássica unidimensional do mundo é
questionada no século XX pela complexidade, segundo Nicolescu (1997), e isso
acontece mesmo nas ciências exatas, como bem mostra esse mesmo autor ao
fornecer exemplos da Física Quântica. Assim, surge primeiramente a
necessidade de ligações entre as disciplinas expressas pelas propostas de
pluridisciplinaridade e interdisciplinaridade. Mas essas visões permanecem
dentro dos limites disciplinares, como bem argumenta Celani (1992), e é a
transdisciplinaridade que “concerne ao que está ao mesmo tempo entre as
disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina”,
afirma Nicolescu (1997, p. 26-27). Assim, como argumenta o físico quântico,
“A complexidade se nutre da explosão da pesquisa disciplinar e, por sua vez a

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 621


complexidade determina a aceleração da multiplicação das disciplinas”
(NICOLESCU, 1997, p. 21).
A ideia da ultrapassagem das propostas disciplinares nos é também
fornecida por Moita Lopes (2006), quando defende uma visão de Linguística
Aplicada como conhecimento indisciplinar ou, segundo Pennycook (2006),
antidisciplinar e transgressivo. Situando-se em uma Linguística Aplicada crítica,
este último autor também nos apresenta uma visão do que ele denomina Teorias
Trangressivas, às quais subjaz um ponto de vista de disciplinas dinâmicas, que
não constituem domínios demarcados do conhecimento. Essa perspectiva se
articula à ideia de dinamicidade de Nicolescu (1997, p. 28), segundo a qual “[...]
a transdisciplinaridade se interessa à dinâmica engendrada pela ação de vários
níveis de Realidade ao mesmo tempo”. Pensar dessa forma “tem um alcance
considerável na teoria do conhecimento, pois ela implica a impossibilidade de
uma teoria completa, fechada em si mesma” (NICOLESCU, 1997, p. 31).
Essas reflexões me levam a considerar que o pensamento complexo, a
transdisciplinaridade, bem como os diferentes níveis de realidade
(NICOLESCU, 1997) aos quais essas noções nos remetem podem ser
aproximados de pressupostos da Teoria Dialógica, a qual defende o
inacabamento do conhecimento e até mesmo da vida:

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o


contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem
limites). Mesmo os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos
séculos passados, jamais podem ser estáveis (concluídos, acabados de uma
por todas): eles sempre hão de mudar (renovando-se) no processo do
futuro desenvolvimento do diálogo. (BAKHTIN, 2017, p. 79).

O inacabamento, na minha compreensão, aplica-se também ao


conhecimento, científico ou não. A impossibilidade de uma teoria completa,
fechada em si mesma, é uma certa forma de inacabamento e implica abertura
para complementação da mesma teoria e articulação com outros conhecimentos
teóricos.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 622


Assim, como já pontuado neste trabalho, aproximo as reflexões sobre a
visão clássica unidimensional do mundo, já referidas do que Bakhtin (1998)
nomeia forças centrípetas, e a visão complexa e transdisciplinar das forças
centrífugas da plurivocidade (BAKHTIN, 1998).

Forças centrípetas, forças centrífugas

É necessário, antes de tudo, registrar que não apenas o caráter do


inacabado, mas, também, os outros conceitos da Teoria Dialógica aqui
apresentados, outros não mencionados (linguagem/língua, interação,
plurivocidade, carnaval, riso etc.), e até a própria noção de diálogo me fazem
considerar que essa Teoria se inclui na visão de mundo surgida das limitações
do paradigma formalizante e do cientificismo, haja vista a crítica de Volóchinov
(2017) ao objetivismo abstrato e a sua visão de língua. A figura do Jano bifronte
(BAKHTIN, 2010, p. 52) simboliza a separação entre o mundo da
cultura/mundo teórico e o mundo da vida na crítica de Bakhtin ao teoreticismo:
“O mundo teórico se obtém por uma abstração que não leva em conta o fato
da minha existência singular [...]”.
No plano da língua/linguagem, para Bakhtin (1998, p. 81), a ideia de uma
“língua única expressa as forças de união e de centralização concretas
ideológicas e verbais que decorrem da relação indissolúvel com os processos de
centralização sociopolítica e cultural”. Essas forças centrípetas, centralizadoras,
estão presentes desde a poética de Aristóteles até o “ideologismo concreto de
Humboldt, com todas as diferenças e nuanças” (BAKHTIN, 1998 p. 81). A
poética cartesiana e o universalismo gramatical de Leibniz, bem como o estudo
das línguas indo-europeias como advindas de uma única língua-mãe, também
expressam as mesmas forças para o autor, o que permite pretender que a elas

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 623


também estão ligados tanto os pressupostos estruturalistas de língua como o
sistema homogêneo e imanente e os universais linguísticos chomskyanos.
Num plano mais amplo, considero que, ideologicamente, são essas forças
que subjazem, também, ao ideal de pureza da língua dos gramáticos normativos
de todas as épocas, como, por exemplo, o abade francês Grégoire, o qual
defende o ideal mítico da homogeneidade nacional na língua e na nação
(ACHARD, 1989). Ideais de homogeneidade e de pureza no plano linguístico
não estão para mim distantes de ideais de pureza políticos, sociais e étnico-
raciais, tanto é que o estudo das raízes comuns das línguas europeias se articula
com as origens dos povos indo-europeus e com a supremacia desses povos e
línguas.
Concomitantemente à atuação das forças centrípetas, as forças
centrífugas atuam na descentralização e na desunificação e são responsáveis pela
diversidade (BAKHTIN, 1998, p. 82):

Em cada momento da sua formação a linguagem diferencia-se não apenas


em dialetos linguísticos no sentido exato da palavra (formalmente por
indícios linguísticos, basicamente por fonéticos), mas, o que é essencial,
em línguas socioideológicas: sociogrupais, ‘profissionais’, ‘de gêneros’, de
gerações etc.

Assim, considerando que a língua é viva e continua se desenvolvendo,


essas forças são responsáveis pelo plurilinguismo dialogizado, “anônimo e
social como a linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado
como enunciação individual.” (BAKHTIN, 1998, p. 82). É indispensável
considerar que, segundo esse mesmo autor, são as forças da língua única que
asseguram “um certo maximum de compreensão mútua” (BAKHTIN, 1998, p.
82), ao mesmo tempo em que atuam as forças centrífugas. Dessa maneira, em
cada enunciado concreto, temos tanto a presença das forças centrípetas, que
asseguram “sua pertença ao sistema normativo-centralizante da língua única”
(BAKHTIN, 1998, p. 82), como o plurilinguismo vivo.

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Plurivocidade

No plano ideológico, a plurivocidade provocada pelas forças centrífugas


evidentemente não existe apenas na língua, mas considero que atuam nos
embates sociais e dentro desse quadro, na diversidade do pensamento científico.
No discurso científico atual, o poder das forças unificadoras ainda
permanece muito atuante, uma vez que essas forças, socialmente situadas,
também agem na ciência, reproduzindo vozes homogeneizantes que defendem
uma unidade teórica e metodológica. Segundo Bourdieu, “o capital científico é
uma espécie particular de capital simbólico, capital fundado sobre o
conhecimento e o reconhecimento” (2001, p. 70). Nesse quadro, domina quem
ocupa “um lugar tal que a estrutura age em seu favor.” (2001, p. 71). Mesmo
sem adotar a noção de que a estrutura do campo de Bourdieu age, e
considerando que são os grupos sociais que agem - nesse caso, os grupos
científicos compostos de agentes que têm condição de uma compreensão
responsiva ativa - compartilho da ideia de que pesquisadores são submetidos a
coerções. No meu entender, essas coerções atuam no campo científico em geral
e, em particular, no campo mais específico, no nosso caso, das Ciências
Humanas, e, mais específico ainda, da Linguística Aplicada. Para mim,
existiriam ainda as coerções burocráticas, como a das instituições e a das
agências de fomento, por exemplo.
Isso faz com que, no plano científico geral, Ciências Humanas sejam
preteridas em discursos acadêmicos ou políticos (existem exemplos de
discursos recentes no âmbito da política) em favor de Ciências Exatas e da
Terra, Ciências Biológicas etc. Considero, ainda, que essas coerções, num plano
mais específico da Área e da Subárea, fazem com que sejamos levados a preferir
determinados temas de pesquisa que têm a chancela dos grupos de poder. No

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 625


plano burocrático, agências de fomento, geridas pelos grupos de maior poder
econômico e científico, definem as prioridades das atividades acadêmicas e
científicas.
No cenário brasileiro, como em muitos outros, o poder da ciência
clássica unidimensional se une muitas vezes ao poder dos que estão mais bem
situados no campo científico, em virtude da distribuição do capital econômico
e simbólico. Estes seriam os dominantes ou first movers, segundo Bourdieu
(2001).
Entretanto, como pontua o mesmo autor, o campo científico se define
como um campo de lutas, no qual agentes “se afrontam para conservar ou
transformar as relações de força vigentes” (BOURDIEU, 2001, p. 72). Nesse
contexto, os dominados ou challengers, ainda de acordo com Bourdieu (2001),
são uma ameaça constante aos dominantes.
Nesse jogo de poder, deter o selo de uma vertente teórica e conseguir
mantê-lo por uma inovação permanente é um trunfo decisivo para quem quer
manter uma posição dominante ou quem quer conquistá-la (BOURDIEU,
2001), mesmo em campos tradicionalmente transdisciplinares como o da
Linguística Aplicada.
Mas essa implacável lógica da eficácia pela eficácia muitas vezes significa
perdas no plano dos contatos humanos e diminuição da qualidade das
pesquisas, sacrificada no altar do “publish or perish”. Essa corrida à publicação
a todo custo tem também implicações desfavoráveis na dedicação desses/as
mesmo/as professores/as ao ensino e aos alunos/as que têm a cada semestre
diante de si e que demandam uma formação através do diálogo. Como formar
professores/as responsivos/as e responsáveis na graduação se o/a professor/a
universitário/a formador/a está ocupado demais em atender às metas
numéricas de publicação estipuladas por órgãos da administração federal?

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 626


Além disso, no meu entender, a competição para um lugar ao sol leva
muitas vezes à obediência de seguidores, indo de paradigmas a conceitos,
passando por temas e até mesmo ao que se transforma em lugar-comum, tudo
isso já posto e chancelado pelos já denominados dominantes, o que, a meu ver,
prejudica o desenvolvimento de uma ciência complexa e transdisciplinar que dê
espaço a plurivocidade.
Com relação ao conceito de plurivocidade em si, é necessário pontuar
que o termo plurivocal é empregado por Bakhtin (1998) para caracterizar o
romance (duas outras características seriam pluriestilístico e plurilíngue). Vozes
diferentes e variedade de vozes sociais são termos também utilizados para se
referir às múltiplas vozes presentes no romance.
Contrária às forças centrípetas, a plurivocidade (BAKHTIN, 1998),
frequentemente mais relacionada a questões específicas da linguagem, é vista
neste trabalho numa dimensão mais ampla da vida ideológica, a qual já é
apontada pelo próprio Bakhtin (1998), uma vez que a centralização não é apenas
verbal, mas ideológica. Retomando o cenário de luta a que se refere Bourdieu
(2001), julgo que o apelo a vozes dissonantes no lugar da obediência às vozes
dominantes são, em princípio, uma conduta possível (apesar dos obstáculos)
para aqueles que De Certeau (1996) chamou de usuários ou consumidores que
são muitas vezes confinados a espaços já delimitados por outros.

Implicações para a linguística aplicada

O que fazer, então, quando se está numa área de estudos como a


Linguística Aplicada, que reivindica para si uma posição em favor dos espaços
e discursos de luta das vozes não favorecidas?
Antes de tudo, trata-se de, ao invés de se fechar no que Bourdieu (2004)
denomina de “cidadela mandarina” (referindo-se à academia), criar e produzir

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 627


ações política e academicamente responsáveis em relação à sociedade e, em
relação ao campo científico em que os/as pesquisadores/as se encontram, abrir
espaço à plurivocidade.
Isso nos faz, no nosso grupo de estudos, o GEDEALL (Grupo de
Estudos Discurso, Ensino e Aprendizagem de Línguas e Literaturas), privilegiar
metodologias de pesquisa como a pesquisa-ação, a pesquisa colaborativa e a
auto-observação, cujas metodologias permitem reflexão/autorreflexão e ação,
nela incluindo a produção responsiva ativa (ZOZZOLI, 2012). Uma das
características que esses tipos de pesquisa ditas qualitativas ou interpretativistas
têm em comum é que nelas são abolidas as fronteiras que separam sujeito-
observador (pesquisador/a) e objeto observado e sujeito
observado/participante, e, nesse movimento, abandona-se também a ilusão da
neutralidade e da perfeita objetividade clássica (qualquer pesquisador deve obter
os mesmos resultados que outro nas mesmas condições é um dos pressupostos
dessa objetividade).
O fato de o sujeito pesquisador/a, o objeto e o sujeito participante da
pesquisa não serem neutros nem objetivos no sentido descrito e serem
considerados dentro de um contexto de interação nesses tipos de pesquisa me
permite aproximar essa discussão de noções do chamado círculo bakhtiniano.
Sobre a ideia de neutralidade e, ao mesmo tempo, de objetividade total,
é possível recorrer a Bakhtin (1997, p. 203), que comenta: “Um membro de um
grupo falante nunca encontra previamente a palavra como palavra neutra da
língua, isenta das aspirações e avaliações de outros ou despovoada das vozes
dos outros.” Assim, a palavra, o enunciado ou o texto não devem ser extraídos
da comunicação dialógica para serem estudados fora das relações dialógicas,
sem levar em conta a pluralidade de vozes.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 628


No que diz respeito à interação discursiva, segundo Volóchinov (2017,
p. 220), “A comunicação discursiva nunca poderá ser compreendida nem
explicada fora dessa ligação com a situação concreta”. Nessa perspectiva, não é
possível pesquisar enunciados (ou qualquer outra unidade de estudo) proferidos
pelos diferentes sujeitos fora da sua relação concreta com a situação “extra-
verbal mais próxima e, por meio desta, a situação mais ampla”
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 220).
Nessa mesma concepção de interação discursiva, tem-se o conceito de
alternância dos sujeitos do discurso, segundo a qual “O falante termina o seu
enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão
ativamente responsiva.” (BAKHTIN, 2003, p. 275). Dessa forma, no quadro
de uma pesquisa, como não há lugar fixo para o emissor e o receptor, visto que
se alternam, concebem-se as relações entre sujeito pesquisador e sujeito
participante numa perspectiva dinâmica, na qual o pesquisador não detém de
uma vez por todas a posição de falante, podendo também ser ouvinte, o que
contribui para desfazer a hierarquia do primeiro sobre o segundo.
Pesquisadores/as e sujeito participante têm a oportunidade de desenvolver
respostas ativas (VOLOSCHINOV, 2017, BAKHTIN, 1975, 2003), isto é,
quando ultrapassam o estágio de meros repetidores de outros discursos e são
capazes de elaborar respostas a enunciados e textos proferidos e a ações em
uma situação discursiva específica, desde o momento da compreensão até o
momento da produção.

Palavras finais

As reflexões sobre complexidade, transdisciplinaridade, forças


centrípetas/forças centrífugas e plurivocidade dizem respeito a um paradigma
de ciência que procura alternativas a um modo de conceber o mundo e a própria

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ciência distinto do cientificismo da Ciência Clássica. Pensar em ciência dessa
forma significa não resumi-la às Ciências Exatas e às Biológicas; significa
considerar as Ciências Humanas e Sociais como possibilidade de estudar o ser
humano e a natureza de maneira distinta daquela do paradigma da eficiência, da
objetividade clássica e do determinismo.
A Física Quântica questionou em seu próprio terreno pressupostos
clássicos como o da realidade única, objetiva, regida por leis objetivas e propôs
a noção de níveis de realidade e a descontinuidade (NICOLESCU, 1997). Em
nosso campo de estudos e em áreas afins alguns/algumas pesquisadores/as
assumem a subjetividade possível e aceitável, a não neutralidade e a ideia de que
nossos próprios objetos de estudos são móveis e cambiantes.
Em Linguística Aplicada como em campos de estudos vizinhos, é através
do recurso à transdisiplinaridade e à plurivocidade que o discurso científico
pode ser desviante e resistente, pois sem a presença viva da multiplicidade de
visões e da pluralidade de vozes nos discursos acadêmicos, corremos o risco de
retornar ao cientificismo da ciência clássica com novas roupagens.

Referências

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São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ESTUDOS DISCURSIVOS DAS PRÁTICAS DE LINGUAGEM - VOL. 1 630


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