Folhetim Eletrônico Repaginado - Temática

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temática ISSN 1807-8931

O “folhetim eletrônico repaginado”:


a constituição da narrativa teleficcional brasileira

The leaflet to the "electronic leaflet" repaginated:


the constitution of the Brazilian teleficcional narrative

Rondinele Aparecido RIBEIRO1

Resumo

A telenovela é o gênero de ficção midiática de maior importância para o Brasil. Presente


no país desde a década de 1950, esse gênero tem sua fórmula consagrada, sobretudo
pelo seu aspecto narrativo. Estruturalmente falando, trata-se de um gênero híbrido, já
que suas origens estão relacionadas ao folhetim, ao melodrama, às soap operas e às
radionovelas. A partir dessa constatação, este artigo intenciona recuperar a gênese da
telenovela buscando enfocar desde suas matrizes remotas até sua constituição como
“folhetim repaginado”.

Palavras-chave: Telenovela. Ficcionalidade. Narração. Folhetim.

Abstract

The telenovela is the genre of media fiction of major importance for Brazil. Present in
the country since the 1950s, this genre has its formula consecrated, above all, by its
narrative aspect. Structurally speaking, it is a hybrid genre, since its origins are related
to the leaflet, the melodrama, the soap operas and the radionovelas. From this finding,
this article intends to recover the genesis of the telenovela seeking to focus from its
remote matrixes until its constitution as "republished leaflet".

Keywords: Soap Opera. Fictionality. Narration. Folhetim.

Introdução

A televisão constitui-se como veículo de comunicação onipresente nos lares dos


brasileiros. A implantação dessa “máquina antropofágica” ocorreu em 1950 por
intermédio do empresário da comunicação Assis Chateaubriand. Para a crítica, tal
aparelho foi responsável pelo redimensionamento do entretenimento para a sociedade.

1
Mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP-ASSIS).
E-mail: [email protected]

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De acordo com dados do Obitel2, a cobertura do sinal de televisão abrange cerca de 97%
dos lares dos brasileiros, que passam em média 4 horas diárias em frente à televisão. É
importante acrescentar que a parcela maior dessa audiência é destina à ficção, uma
necessidade atávica humana.
A partir dos dados revelados pela pesquisa, comprova-se que na
contemporaneidade, mesmo que a televisão dispute com as plataformas multitelas a
hegemonia para a transmissão do alimento vital humano, continua tendo lugar de grande
importância na alimentação do imaginário social. A estudiosa Maria Tereza Fraga
Rocco (1994), ao tecer algumas considerações acerca da televisão, defende que esse
suporte se constitui, ao lado do computador, como o invento mais importante do século
XX.
De acordo com Domenique Wolton (1996), a televisão, suporte que pode ser
rotulado como “fantástica fábrica ficcional”, constitui-se como um verdadeiro laço
social, já que o receptor ou espectador assiste à programação, mas não o faz sozinho.
Em outros locais, há milhares de pessoas que também partilham do mesmo hábito de
assistir aos programas. A esse fenômeno, o estudioso denomina de laço invisível. O
autor explica ainda que nas outras instituições, tais como igreja, trabalho, escola ou
família, esse laço já existe. Para o autor, com o advento da televisão, esse laço é
explicado pela recepção da programação televisiva. Por esse motivo, Dominique
Wolton (1996) sustenta a tese de que a televisão se notabiliza por ser uma espécie de
“espelho” da sociedade, uma vez que ela fornece referências que possibilitam ao
telespectador se ver representado. Nas palavras do estudioso, a televisão “cria não
apenas uma imagem e uma representação, mas oferece um laço a todos aqueles que
assistem simultaneamente” (WOLTON, 1996, p. 124).
Com efeito, a ficção ocupa lugar privilegiado na programação televisiva, de
modo que a telenovela se notabiliza por ser o gênero mais popular da ficção seriada,
particularidade que pode ser atestada pela grande audiência gerada pelo “folhetim
eletrônico repaginado”. Presente no país desde 1951, quando se deu a exibição de Sua
Vida me Pertence, essa modalidade de narrativa goza de bastante prestígio e sucesso no
Brasil, que passou a exportar o produto.

2
Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva.

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A partir dessas constatações iniciais, este artigo, longe de esgotar as amplas


possibilidades de trabalho oferecidas por um gênero tão singular na história do Brasil,
presta-se à finalidade de tecer considerações acerca da telenovela no país. Para tanto,
recupera sua gênese e avança na configuração do gênero na contemporaneidade
marcada pela adoção de narrativas denominadas naturalistas por incorporarem, dentro
dos limites do gênero, ações socieducativas.
Assim, a telenovela brasileira, pode-se dizer, tornou-se uma narrativa sobre a
nação, conforme os estudos de Maria Immaccolata Vassallo de Lopes (2009). Vale
acrescentar que essa especificidade apontada pela estudiosa pode ser vista como uma
função acidental do gênero surgida, dentre outros fatores, pela omissão do Estado em
garantir uma educação de qualidade. Dessa forma, pelo menos no Brasil, a telenovela
incorporou em seu discurso ações educativas revelando um papel que extrapolou a
vocação de entretenimento evasivo e alienante a que o gênero esteve confinado. Dessa
forma, a telenovela, essa potente contadora de histórias, adquiriu uma forma peculiar de
narrar o país, de modo a criar no receptor mecanismos de pertencimento e de projeção
devido aos debates sociais instaurados a partir dos mecanismos de discursivização
narrados pelo “folhetim eletrônico”.
Em termos comerciais, a telenovela é de um formato bastante lucrativo na
televisão brasileira pelo fato das emissoras empregarem estratégias de merchandising
em sua estrutura, o que pode ser facilmente observado pela inclusão de objetos do
consumo no cotidiano vivenciado pelas personagens. Desse modo, essa narrativa
audiovisual pode ser vista como um gênero multifacetado associado ao entretenimento,
ao consumo, à narrativização da sociedade e a certo didatismo observado pela adoção
cada vez mais comum de ações socioeducativas.

O lugar da ficção na tevê: a supremacia da telenovela

Enquanto suporte, a televisão se notabiliza por apresentar em sua configuração


vários programas e formatos, como bem mostrou o estudioso Arlindo Machado (2000).
Dentre eles, os produtos de ficção seriada exercem grande importância na sociedade,
seja pelo fato de responderem pelo acesso à ficção na sociedade contemporânea, seja
pela facilidade que as emissoras têm de obter lucro pela inserção das ações de
merchandising.

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Não restam dúvidas de que a ficção na mídia exerce o papel de mediadora social,
sendo que o destaque maior deve ser conferido para as telenovelas, que devem seu
sucesso, entre outros fatores, à necessidade atávica do homem em ter acesso à narração.
O estudioso José Roberto Sadek (2008), ao se referir às peculiaridades dos programas
seriados, salienta que esses gêneros da ficção seriada estão entre “os programas mais
cuidados e mais caros da TV brasileira. São campeões de audiência e atraem milhões de
pessoas, que assistem ao mesmo tempo à mesma história” (SADEK, 2008, p. 11).
Para Maria Aparecida Baccega e Maria Amélia Paiva Abrão (2016, p. 180), a
telenovela é um forte componente da teleficção, sendo um formato bastante consagrado
consumido por todas as classes, raças ou gêneros. “É importante traçar o percurso deste
gênero em território brasileiro, tendo em conta as heranças latino-americanas e norte
americanas, assim como o desenvolvimento da televisão e da indústria televisiva”
(TONDATO; ABRÃO; MACEDO, 2013, p. 154). Assim, desde a narrativa primordial,
passando pela ascensão do romance, do folhetim e do meio audiovisual, o ideal humano
prevaleceu, apenas alterou-se o suporte em que a ficção é oferecida.
Muniz Sodré (1985), ressalta os aspectos imanentes dessa narrativa audiovisual:

[...]na era da telenovela-gênero narrativo de maior consumo na


sociedade brasileira, imaginário e real interpenetram-se com força
maior do que nunca no espaço urbano. Se é verdade que o cinema
“materializa” o sonho romanesco, a televisão incorpora isto e vai
além: ficcionaliza o real, seja dramatizando o cotidiano, seja
incorporando ao drama as pequenezas do dia-a-dia (SODRÉ, 1985, p.
85).

Para Ana Maria Balogh (2002, p. 24), “a existência da televisão está ligada a um
complexo processo de evolução e entrelaçamentos entre os campos da tecnologia, das
comunicações e das artes”. Nessa perspectiva, o produto ficcional mais promissor da
televisão, como já afirmado, é a telenovela, que responde por ser a grande promotora de
ficção na contemporaneidade, sendo lícito lhe atribuir o título de “folhetim eletrônico”,
sobretudo, por ser o gênero ficcional mais perceptível na televisão devido a sua
serialidade e por constituir-se como um gênero híbrido herdeiro do vasto conjunto de
narrativas anteriores.
Pode-se perfeitamente depreender que cabe à televisão cumprir um novo papel
de legar e promover o acesso à ficção, uma vez que se consubstancia como um veículo
capaz de materializar as referências histórico-sociais do indivíduo e catapultá-las em

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suas narrativas repletas de significados e símbolos, que acabam por envolver o ser
humano na urdidura de seu amargo dia, atualizando mitos a partir de aspectos
corriqueiros, fazendo com que os telespectadores encontrem um verdadeiro significado
para sua existência vital.
Milly Buonanno (2004), ao teorizar sobre as histórias seriadas, defende que: “A
razão principal pela qual é necessário levar a sério as histórias, de modo especial
aquelas criadas e contadas pelo contemporâneo “supernarrador televisivo”, é que por
meio delas a sociedade se representa” (BUONANNO, 2004, p. 339). No rol de autores
que veem na telenovela fundamentos da narrativa estão as autoras Cláudia Mogadouro
(2007) e Maria Aparecida Baccega (2013). Assim, falar acerca da origem desse folhetim
eletrônico é mergulhar na história da trama seriada, uma vez que a telenovela é o
representante contemporâneo da velha forma de narrar, cujo exemplo mais distante é As
Mil e uma Noites. Pode se acrescentar ainda que sua constituição segue um percurso
bastante peculiar no Brasil: de um simples produto alienante e destinado às mulheres,
reconfigurou-se e passou a ser o produto de mídia mais importante da televisão
brasileira.

Telenovela e sociedade

Depois de estabelecidas considerações acerca da narrativa na


contemporaneidade, faz-se necessário apresentar algumas considerações acerca do
gênero televisivo de maior destaque. Assim, o artigo traçará um breve panorama acerca
da gênese deste gênero bem como apontará sua função na sociedade atual. Na
contemporaneidade, a telenovela consolidou-se como um produto de exportação do
Brasil e veicula formas de viver, fornecendo um amplo painel acerca da constituição da
sociedade brasileira. Ao tratar das características da telenovela, Lopes (2009) assevera
que esse produto foi alçado ao posto de uma verdadeira narrativa sobre a família por sua
peculiaridade de dar visibilidade a certos assuntos, temas e comportamentos. Para a
autora, esse produto ficcional define uma certa pauta que regula as intersecções entre a
vida pública e a vida privada.
A telenovela apresenta uma trajetória paralela ao desenvolvimento da televisão,
de modo que é impossível abordar os contornos da narrativa audiovisual sem mencionar
a televisão, seu suporte. Notabilizando-se como um gênero híbrido pelo fato de sua

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estrutura originar-se a partir de características herdadas de diversas matrizes, como


folhetim, melodrama, radionovela, soap opera, a telenovela constitui-se como um
verdadeiro fenômeno artístico-cultural do Brasil, alcançando o posto de uma verdadeira
narrativa sobre o país, como muito bem definiu Lopes (2009).
Mogadouro (2007), ao tecer considerações esclarecedoras acerca dos
mecanismos de projeção empreendidos pela telenovela, salienta que essa narrativa é
responsável por promover reconhecimento com o público devido suas histórias serem
constituídas por enredos de caráter notoriamente familiar. A estudiosa ainda enfatiza
outros aspectos relacionados ao sucesso dessa potente narradora no cotidiano brasileiro:

Além de se relacionar com outros textos (intertextualidade), a


telenovela traduz-se num gênero em que há uma representação da
identidade nacional. Para a compreensão desse “repertório
compartilhado” que a telenovela estabelece com milhões de
telespectadores, a partir de um mesmo texto ou produto, tomou-se o
conceito de nacionalidade como nação imaginada [...]
(MOGADOURO, 2007, p. 88).

Retomando a origem desse “folhetim eletrônico”, Renato Ortiz, Sílvia Helena


Simões Borelli e José Mário Ortiz Ramos (1991) explicam que o folhetim serviu como
modelo para a telenovela, apontando “a existência não só de uma continuidade entre o
gênero folhetinesco e a telenovela, mas também rupturas e descontinuidades” (ORTIZ,
1991, p. 25-28). A explicação dos autores é corroborada por Mogadouro (2007) para
quem “a telenovela buscou uma forma própria de narrativa popular pautada nas relações
de cotidiano, agregando realismo e críticas sociais, construindo um produto
extremamente representativo da modernidade brasileira [...] (MOGADOURO, 2007, p.
88-89).
Pensando-se em aspectos da teoria dos gêneros, a telenovela se caracteriza pela
dinamicidade e hibridização, tal como propõe Bakhtin, já que se formou como um
verdadeiro mosaico a partir da transmutação de outros gêneros, tanto é que, sua
estrutura, como já foi apresentada, fundamenta-se no melodrama, nos folhetins, nas
radionovelas e nas soap operas. Para Alencar (2002, p. 49), o melodrama é “um gênero
em que os diálogos são entremeados de música. Humano, imaginoso e vivaz, cria
intrigas e paixões com habilidade e requer uma completa identificação entre o
espectador e personagem”.

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De modo assertivo, Patrícia Piveta (1999), revela as ligações entre a telenovela e


o melodrama:

Enquanto base estrutural, a telenovela tem no melodrama seu principal


componente. Em termos, ela não foge à mesma regra de sucesso
consagrada pelo cinema, pelo teatro e até mesmo pela música. No
entanto, quando se diz que a novela tem sua estrutura pautada no
melodrama, muitos críticos fazem a associação com algo meloso, de
enredo pobre, desenvolvimento previsível e final que privilegie os
bons. Enfim, um verdadeiro dramalhão (PIVETA, 1999, p. 24).

Para a autora, tal fórmula foi empregada pelas produções em seu início e a
escritora de maior importância nesse quesito é Glória Magadan, que muito contribuiu
para a consolidação da telenovela para o Brasil. Outros autores, como Martín-Barbero
(2001) sustentam a tese de que esse gênero é constitutivo da América Latina e estão
presentes não apenas na telenovela como em outros programas de auditório, o que
revela uma alta carga de plasticidade dessa estética.

Um cânone para o estudo da telenovela

Fazendo-se uma trajetória acerca do percurso da telenovela no país, este artigo


optou por adotar o modelo proposto por Lopes (2009), que dividiu esse estudo em 3
fases. A primeira, intitulada Sentimental, compreende o período que se estende desde as
primeiras transmissões até o ano de 1967. O segundo período é definido pela estudiosa
como Realista e se estende de 1968 a 1990. Por fim, a 3ª fase é definida como período
Naturalista pelo fato de as produções realizadas a partir da década de 1990
aprofundarem as temáticas sociais conferindo-lhes um perfeito acabamento com a
possibilidade se aproximação com a realidade.
Recuperando a gênese das primeiras experiências do formato no Brasil, faz-se
importante citar a telenovela Sua Vida me Pertence, de Walter Foster, exibida pela Rede
Tupi em 1951. Tal produção contava com capítulos curtos, com duração de cerca de 20
minutos. Como definiu Lopes (2009), essa primeira fase é denominada de Sentimental
por conter aspectos extremamente melodramáticos marcado pela luta entre bem e mal e
moralidade exagerada. Seu conteúdo era extremamente evasivo. Como a realidade
nacional não figurava nos enredos, essas produções foram tachadas de alienantes. Além

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do mais, pesava à telenovela o status de ser um produto destinado às mulheres, o que


lhe rendia mais preconceito ainda.
A estudiosa Cristina Brandão (2007), fornece de modo profícuo informações
importantes acerca dos contornos do gênero nessa fase considerada incipiente:

A novela, escrita por Walter Foster, inaugura uma série de outras que
permaneceriam esporadicamente no ar duas ou três vezes por semana
com capítulos curtos, de duração média de 20 minutos. Como a
televisão era uma aquisição recente (1950), as primeiras novelas
ainda carregavam a influência do período áureo das radionovelas,
mantendo a figura de um narrador que ligava os capítulos, informando
aos telespectadores um resumo da história já veiculada anteriormente,
como se fazia no rádio (BRANDÃO, 2007, p. 165).

Sadek (2008) reitera o caráter improvisado típico de tais produções no início da


história da teledramaturgia nacional. “O começo da TV no Brasil foi improvisado. Ela
foi trazida praticamente num rompante na década de 1950, e, como não havia gente
especializada nesse trabalho, os técnicos do rádio foram requisitados para fazer os
primeiros programas da TV” (SADEK, 2008, p. 12). Já que no tange às temáticas, pode-
se falar que, nessa fase inicial, grande parte dos roteiros eram adaptações de obras
literárias, estratégia empregada para legitimar um gênero incipiente, que não contava
ainda com um formato profissional. Outra característica dessa fase, como aponta
Brandão (2007), é a supremacia de autores advindos da radionovela, contribuindo para a
estrutura melodramática dessa fase.
Para Lopes (2009), a segunda fase é constituída por telenovelas que diluíram o
melodrama a situações cotidianas, nutrindo o receptor de referências. A autora enquadra
nessa fase as produções datadas a partir de 1968, sendo Beto Rockfeller um grande
marco na teledramaturgia nacional por ter abandonado o caráter evasivo predominante
até então nas telenovelas para retratar e a dialogar diretamente com o cenário nacional
nutrindo os espectadores de referências. Assim, essa narrativa audiovisual passou a
servir como meio de representação e de diálogo com uma nação que se modernizava ao
passo que experimentava uma situação sociopolítica bastante significativa. Ao se
posicionar sobre as produções dessa fase, Lopes (2009) explica que a telenovela “[...] se
estruturou em torno de representações que compunham uma matriz imaginária capaz de
sintetizar a sociedade brasileira em seu movimento modernizador” (LOPES, 2009, p.
23-24).

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Essa mesma característica, como destaca Esther Hamburger (2005), pode ser
estendida para as novelas produzidas nos anos 80: a de uma perspectiva crítica acerca da
realidade brasileira, podendo-se dizer que esse gênero contribuiu de maneira contumaz
para o entendimento do contexto social brasileiro no seu movimento modernizador. Ao
polarizar em seu discurso temáticas extremamente complexas, como a reconfiguração
do lar, a alteração do papel da mulher na sociedade, as questões ligadas à política, a
telenovela mostrou-se um gênero de forte representação nacional, tanto é que
Mogadouro (2007) enfatiza que a telenovela “[...] buscou uma forma própria de
narrativa popular, pautada nas relações do cotidiano, agregando realismo e críticas
sociais, construindo um produto extremamente representativo da modernidade brasileira
[...]” (MOGADOURO, 2007, p. 88-89).
Por fim, a última fase compreendida por Lopes (2009) como Fase Naturalista
(iniciada a partir dos anos 1990) deve ser entendida como o momento de radicalização
da presença de elementos realistas da fase anterior associadas ao emprego de temáticas
de cunho social e inserção de campanhas socioeducativas, revelando um forte
componente educativo desse gênero de forte penetração nos lares dos brasileiros. Aqui,
percebe-se a incorporação de um modelo de produção cultural notoriamente brasileiro,
particularidade evidenciada pelas configurações de um gênero que extrapolou sua
função ligada ao entretenimento.
Ademais, devido os mecanismos de identificação e projeção instaurados na
telenovela, o gênero torna-se uma narrativa capaz de alimentar mecanismos de
socialização, tanto é que para Lopes (2009) essa narrativa apresenta a peculiaridade de
ser onipresente na vida do brasileiro, uma vez que fornece assuntos para a discussão na
sociedade, além de alimentar toda uma indústria de entretenimento construída em torno
dessa narrativa. É importante acrescentar que, devido a essa peculiaridade, a telenovela
emerge como o produto principal da indústria televisiva.
Ainda acerca dos mecanismos discursivos da telenovela, é importante salientar
que a incorporação de aspectos realistas e a adoção de campanhas educativas permitiu
ao gênero se constituir, observados evidentemente os limites de sua representação, num
verdadeiro espaço de problematização do Brasil, retratando aspectos ligados à
intimidade bem como problemas sociais. Pela profundidade dos temas retratados e pelo
serviço de formativo que prestam à nação, é indiscutível que a telenovela deixou de
ocupar o posto de mero entretenimento para se consolidar numa narrativa acerca da

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nação com potencialidades socioeducativas. Como exemplos férteis de estratégias


socioeducativas, temos o número significativo de crianças resgatadas e devolvidas aos
lares após a exibição de Explode Coração, o aumento expressivo de doação de medula
após o Brasil acompanhar o drama de uma personagem em Laços de Família,
campanhas contra a violência doméstica e a violência contra idosos (a partir do drama
representado em Mulheres Apaixonadas).
As telenovelas incorporaram temáticas polêmicas em seus enredos, passando a
ser um componente integrante da cultura brasileira. Essa particularidade permite que o
telespectador veja seu cotidiano representado, podendo-se, dessa forma, perfeitamente
entender tal gênero um instrumento de mediação, haja vista fornecer um vasto material
para o leitor interpretar o mundo à medida em que propõe uma série de reflexões ao
telespectador.

Considerações finais

A narrativa teleficcional, aqui representada pela telenovela, apresenta-se como


um gênero de grande sucesso para a história da televisão brasileira. Esse gênero híbrido,
cuja origem está alicerçada em uma série de formatos, tais como o folhetim, o
melodrama, as radionovelas e as soap operas, notabiliza-se por ser um fenômeno
representativo do país.
Na contemporaneidade, a teledramaturgia superou sua vocação essencialmente
ligada ao entretenimento para se constituir numa forte narrativa capaz de representar os
dilemas sociais. Ancorada num formato que diluiu as fronteiras entre ficção e realidade,
o gênero passou a discutir temáticas sociais responsáveis pela promoção de um amplo
debate na sociedade.
A partir dessas considerações iniciais, é importante salientar que esse gênero
ocupa, na atualidade, um papel de destaque na cultura nacional. Dessa forma, superou o
status inicial lhe atribuído: o de produção evasiva. Desprezada pela crítica e até mesmo
pelos atores, a telenovela passou de um produto menor e desprezado pelos intelectuais
para ser vista pelo meio acadêmico como um artefato cultural, o qual se constitui como
uma narrativa sobre a nação tal como defende Lopes (2009). Pelo forte diálogo que
mantém com a realidade, percebe-se que a telenovela brasileira alterou
significativamente sua configuração, abandonando a estrutura melodramática de sua

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matriz latino-americana e incorporou referências sociais e problemas atinentes sobre a


sociedade brasileira, alimento e possibilitando a discussão de temas sociais de maneira
mais abrangente, ainda que tais discussões possam incorrer em estereótipos e também
possam se estruturar em torno de uma representação que, muitas vezes, ignora a
verossimilhança.
Como arremate, pode-se deduzir que a telenovela, na sociedade midiática, é um
gênero de extrema importância para a compreensão do papel que a mídia ocupa na
tarefa de se constituir como principal forma de acesso à ficção na atualidade, por essa
razão vários estudiosos têm se voltado para analisar como se dá esse processo em uma
sociedade em que pauta sua essência no audiovisual, que além de comunicar, ganha
tarefas cada vez mais importantes seja em promover o entretenimento, a ficção ou
emancipação ao representar aspectos sociais bem como na veiculação para seu público
alvo.

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