Sobre A Taxonomia Dos Transtornos Mentais
Sobre A Taxonomia Dos Transtornos Mentais
Sobre A Taxonomia Dos Transtornos Mentais
mentais1
Ian Hacking
301
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
tânica de Psicologia) divulgou um ataque violento ao Manual, foi logo incorporada ao censo realizado a cada dez anos nos EUA.
manifestando seu ceticismo quanto ao próprio projeto de realizar Durante a Primeira Guerra Mundial, a classificação foi usada
diagnósticos padronizados, especialmente de esquizofrenia e de para avaliar recrutas do exército, talvez a primeira vez em que se
transtorno bipolar. No geral, a crítica se opõe ao modelo biomé- destinou a fins de diagnóstico.
dico de doença mental, que exclui condições sociais e eventos ao Embora o manual seja norte-americano, ele é muito utilizado
longo da vida. Sob um prisma totalmente diferente, Allen Fran- em outros lugares (no Brasil inclusive), ainda que a International
ces, editor chefe do DSM-IV, há anos vem fazendo críticas às mo- Classification of Diseases, ICD, (Classificação Internacional de
dificações que levaram à elaboração DSM-5. Mais e mais tipos de Doenças), concebida sob os auspícios da Organização Mundial
comportamento estão agora sendo classificados como transtornos, da Saúde, em Genebra, seja normalmente considerada o manual
abrindo vastos campos lucrativos para a indústria farmacêutica. oficial, se é que isso existe. O DSM-5 informa o código do ICD
Não discutirei nenhuma dessas questões, todas elas importantes, quando há coincidência, e existe um projeto que pretende har-
e tentarei, neste artigo, ser informativo e mesmo encorajador, monizar os dois compêndios. Para um estadunidense, no entanto,
até quase o final, quando apontarei uma falha fundamental na receber um código do DSM determina se o seguro de saúde pa-
empreitada. gará pelo tratamento, e que tipo de tratamento será oferecido. (O
Quem precisa das 947 páginas do DSM-5? O que a maioria DSM em si não inclui recomendações de tratamento.) Um diag-
dos consumidores necessita é do aplicativo para celular chamado nóstico pode também exercer outros efeitos mais sutis na maneira
DSM-5 Diagnostic Criteria (critérios para diagnóstico do DSM- como o paciente entende a si mesmo, como ele se sente e como
5). Uma pergunta mais interessante é quem precisa do DSM-5, ele se comporta. Particularmente hoje em dia, quando os pacien-
afinal? Em primeiro lugar, as burocracias. Todas as pessoas nos tes que recebem um diagnóstico tendem a procurar informações
EUA e no Canadá, esperando que seu seguro de saúde cubra ou online. Na Internet eles encontram uma espécie de estereótipo de
pelo menos custeie parte do valor do tratamento de suas doen- como deveriam sentir e agir. Quem digitar Transtorno de Estresse
ças mentais, precisa primeiro receber um diagnóstico que se en- Agudo no Google encontrará cerca de 400 mil resultados (busca
quadre no esquema e tenha um código numérico. Por exemplo, feita em inglês, “Acute Stress Disorder”).
abrindo o livro ao acaso, encontro a entrada 308.3 para Transtorno O DSM se apresenta como um manual para clínicos. A in-
de Estresse Agudo. A codificação é exigida pelos seguros privados tenção é que seja neutro, válido para escolas de psiquiatria, psi-
norte-americanos e pelo Medicare. É exigida também pelos se- cologia, psicanálise e assim por diante, que competem entre si.
guros de saúde universais oferecidos pelas províncias canadenses. O Webster define um clínico como “alguém qualificado ou en-
Existe ainda outro uso burocrático bem diferente. Por que gajado na prática clínica da medicina, da psiquiatria ou da psico-
este é um manual “estatístico”? Porque suas classificações po- logia, distinto daquele especializado em técnicas de laboratório
dem ser usadas para estudar a predominância de diversos tipos ou pesquisa nas mesmas áreas”. A maioria das principais revistas
de doença. Para tanto, é preciso uma classificação padronizada. de psiquiatria em língua inglesa exige que os artigos científicos
Em certo sentido, o manual teve origem em 1844, quando a As- que tratam de doenças mentais as caracterizem usando o DSM.
sociação Americana de Psiquiatria, no ano de sua fundação, fez Isso passou relativamente despercebido, talvez encarado até como
uma classificação estatística dos pacientes em manicômios. Ela algo bom, porque ajuda a esclarecer conceitos. Daí que tenha
302 303
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
tânica de Psicologia) divulgou um ataque violento ao Manual, foi logo incorporada ao censo realizado a cada dez anos nos EUA.
manifestando seu ceticismo quanto ao próprio projeto de realizar Durante a Primeira Guerra Mundial, a classificação foi usada
diagnósticos padronizados, especialmente de esquizofrenia e de para avaliar recrutas do exército, talvez a primeira vez em que se
transtorno bipolar. No geral, a crítica se opõe ao modelo biomé- destinou a fins de diagnóstico.
dico de doença mental, que exclui condições sociais e eventos ao Embora o manual seja norte-americano, ele é muito utilizado
longo da vida. Sob um prisma totalmente diferente, Allen Fran- em outros lugares (no Brasil inclusive), ainda que a International
ces, editor chefe do DSM-IV, há anos vem fazendo críticas às mo- Classification of Diseases, ICD, (Classificação Internacional de
dificações que levaram à elaboração DSM-5. Mais e mais tipos de Doenças), concebida sob os auspícios da Organização Mundial
comportamento estão agora sendo classificados como transtornos, da Saúde, em Genebra, seja normalmente considerada o manual
abrindo vastos campos lucrativos para a indústria farmacêutica. oficial, se é que isso existe. O DSM-5 informa o código do ICD
Não discutirei nenhuma dessas questões, todas elas importantes, quando há coincidência, e existe um projeto que pretende har-
e tentarei, neste artigo, ser informativo e mesmo encorajador, monizar os dois compêndios. Para um estadunidense, no entanto,
até quase o final, quando apontarei uma falha fundamental na receber um código do DSM determina se o seguro de saúde pa-
empreitada. gará pelo tratamento, e que tipo de tratamento será oferecido. (O
Quem precisa das 947 páginas do DSM-5? O que a maioria DSM em si não inclui recomendações de tratamento.) Um diag-
dos consumidores necessita é do aplicativo para celular chamado nóstico pode também exercer outros efeitos mais sutis na maneira
DSM-5 Diagnostic Criteria (critérios para diagnóstico do DSM- como o paciente entende a si mesmo, como ele se sente e como
5). Uma pergunta mais interessante é quem precisa do DSM-5, ele se comporta. Particularmente hoje em dia, quando os pacien-
afinal? Em primeiro lugar, as burocracias. Todas as pessoas nos tes que recebem um diagnóstico tendem a procurar informações
EUA e no Canadá, esperando que seu seguro de saúde cubra ou online. Na Internet eles encontram uma espécie de estereótipo de
pelo menos custeie parte do valor do tratamento de suas doen- como deveriam sentir e agir. Quem digitar Transtorno de Estresse
ças mentais, precisa primeiro receber um diagnóstico que se en- Agudo no Google encontrará cerca de 400 mil resultados (busca
quadre no esquema e tenha um código numérico. Por exemplo, feita em inglês, “Acute Stress Disorder”).
abrindo o livro ao acaso, encontro a entrada 308.3 para Transtorno O DSM se apresenta como um manual para clínicos. A in-
de Estresse Agudo. A codificação é exigida pelos seguros privados tenção é que seja neutro, válido para escolas de psiquiatria, psi-
norte-americanos e pelo Medicare. É exigida também pelos se- cologia, psicanálise e assim por diante, que competem entre si.
guros de saúde universais oferecidos pelas províncias canadenses. O Webster define um clínico como “alguém qualificado ou en-
Existe ainda outro uso burocrático bem diferente. Por que gajado na prática clínica da medicina, da psiquiatria ou da psico-
este é um manual “estatístico”? Porque suas classificações po- logia, distinto daquele especializado em técnicas de laboratório
dem ser usadas para estudar a predominância de diversos tipos ou pesquisa nas mesmas áreas”. A maioria das principais revistas
de doença. Para tanto, é preciso uma classificação padronizada. de psiquiatria em língua inglesa exige que os artigos científicos
Em certo sentido, o manual teve origem em 1844, quando a As- que tratam de doenças mentais as caracterizem usando o DSM.
sociação Americana de Psiquiatria, no ano de sua fundação, fez Isso passou relativamente despercebido, talvez encarado até como
uma classificação estatística dos pacientes em manicômios. Ela algo bom, porque ajuda a esclarecer conceitos. Daí que tenha
302 303
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
caído como uma bomba quando, uma semana antes da publi- médica, que atuaram como um “grupo de consultores”, levando
cação do DSM-5, Thomas Insel, chefe do US National Institute a cabo os “Experimentos do DSM-5 em Centros Clínicos Acadê-
for Mental Health, NIMH (Instituto Nacional para Saúde Mental micos” etc. Muitos milhares de estudantes, técnicos, secretários e
dos EUA) – principal financiador de pesquisas na área –, anun- assim por diante também devem ter se envolvido. É um projeto
ciou que o órgão iria abandonar o DSM porque a publicação tra- profundamente entrincheirado, totalmente apoiado pela imensa
tava apenas de sintomas. Ele queria ciência; queria pesquisa ge- Associação Psiquiátrica Americana, com seus 36 mil membros. O
nética e neurológica, e acreditava que, como em qualquer outro DSM e as publicações a ele associadas são também tidos como
campo da medicina, tais recursos deveriam ser usados para definir bastante lucrativos – ao redor de 5 milhões de dólares ao ano, de
a identidade de uma doença. acordo com o New York Times.
Seguiu-se uma onda de indignação, um lobo no meio do re- O primeiro DSM (1952) e seu substituto, o DSM-II (1968),
banho. Mas o lobo não estava nem aí para os carneiros (diagnósti- foram fortemente influenciados pela psicanálise então dominante
co preparatório para o tratamento); estava atrás de porcos – as ba- nos Estados Unidos. Mas o DSM-III marcou um novo começo
ses neurológicas ou bioquímicas da doença mental. Se tomarmos em 1980. Isso aconteceu por duas razões notáveis, além do declí-
o Webster literalmente, o DSM é – conforme insiste – para clíni- nio da terapia psicodinâmica. A primeira foi a descoberta de uma
cos, enquanto um sistema de classificação mais etiológico pode droga genuinamente eficaz para controlar mania. O australiano
ser requerido para pesquisa. Para aqueles de nós que duvidam do John Cade descobriu que o lítio era realmente eficiente, e depois
modelo médico NIMH para todos os tipos de loucura, sem dúvida de muito ceticismo (e muitas overdoses involuntárias), o Federal
existe motivo para preocupação, ainda que não haja contradição Drug Administration (Agência Federal de Medicamentos, hoje
de princípio entre um manual para clínicos e outras diretrizes Food and Drug Administration) aprovou seu uso em 1970; em
para pesquisa. Eu não nego haja uma tensão, mas os dois podem 1974 ele foi aprovado para tratar transtornos maníaco-depressivos.
coexistir bastante bem. Antes disso, não existiam tratamentos químicos eficientes para
Além disso, o DSM é um trabalho em desenvolvimento. nenhuma doença mental, mas agora havia algo que funcionava.
Algumas semanas depois da publicação do DSM-III, em 1980, Portanto, critérios comportamentais claros passaram a ser necessá-
as pessoas já discutiam como deveria ser o DSM-IV. Depois do rios para identificar quem poderia se beneficiar do lítio. A segun-
DSM-III veio o DSM-IIIR (R de “revisado”), em 1987; o DSM-IV, da razão foi um estudo comparativo feito em 1972, em Nova York
em 1994; o DSM-IVTR (TR de “revisão de texto”), em 2000; e e Londres, de diagnósticos de esquizofrenia. Foi um duro golpe.
agora o DSM-5. Alguns sugerem que jamais existirá o “DSM-6”, O diagnóstico de esquizofrenia era duas vezes mais frequente em
com base na ideia de que o empreendimento inteiro é em si mes- Nova York do que em Londres. Havia concordância quanto aos
mo autodestrutivo. Que não se conte com isso. Ao contrário, mais sintomas, mas não quanto ao diagnóstico final. O critério “opera-
provável é que o manual fique mais sintonizado com as causas cional” teve de ser ajustado. Como não se conheciam as causas
neurológicas na medida em que elas conquistem cada vez mais da maioria das doenças mentais – ou melhor, como havia muitas
espaço na psiquiatria. O DSM é uma criatura viva e orgânica, teorias incompatíveis sobre as causas – era preciso basear-se nas
mantida por uma miríade de abelhas operárias. No final do livro síndromes, em padrões observáveis de sintomas, um comporta-
há uma lista de cerca de mil pessoas, quase todas com qualificação mento, em resumo, algo que pudesse produzir um consenso. Essa
304 305
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
caído como uma bomba quando, uma semana antes da publi- médica, que atuaram como um “grupo de consultores”, levando
cação do DSM-5, Thomas Insel, chefe do US National Institute a cabo os “Experimentos do DSM-5 em Centros Clínicos Acadê-
for Mental Health, NIMH (Instituto Nacional para Saúde Mental micos” etc. Muitos milhares de estudantes, técnicos, secretários e
dos EUA) – principal financiador de pesquisas na área –, anun- assim por diante também devem ter se envolvido. É um projeto
ciou que o órgão iria abandonar o DSM porque a publicação tra- profundamente entrincheirado, totalmente apoiado pela imensa
tava apenas de sintomas. Ele queria ciência; queria pesquisa ge- Associação Psiquiátrica Americana, com seus 36 mil membros. O
nética e neurológica, e acreditava que, como em qualquer outro DSM e as publicações a ele associadas são também tidos como
campo da medicina, tais recursos deveriam ser usados para definir bastante lucrativos – ao redor de 5 milhões de dólares ao ano, de
a identidade de uma doença. acordo com o New York Times.
Seguiu-se uma onda de indignação, um lobo no meio do re- O primeiro DSM (1952) e seu substituto, o DSM-II (1968),
banho. Mas o lobo não estava nem aí para os carneiros (diagnósti- foram fortemente influenciados pela psicanálise então dominante
co preparatório para o tratamento); estava atrás de porcos – as ba- nos Estados Unidos. Mas o DSM-III marcou um novo começo
ses neurológicas ou bioquímicas da doença mental. Se tomarmos em 1980. Isso aconteceu por duas razões notáveis, além do declí-
o Webster literalmente, o DSM é – conforme insiste – para clíni- nio da terapia psicodinâmica. A primeira foi a descoberta de uma
cos, enquanto um sistema de classificação mais etiológico pode droga genuinamente eficaz para controlar mania. O australiano
ser requerido para pesquisa. Para aqueles de nós que duvidam do John Cade descobriu que o lítio era realmente eficiente, e depois
modelo médico NIMH para todos os tipos de loucura, sem dúvida de muito ceticismo (e muitas overdoses involuntárias), o Federal
existe motivo para preocupação, ainda que não haja contradição Drug Administration (Agência Federal de Medicamentos, hoje
de princípio entre um manual para clínicos e outras diretrizes Food and Drug Administration) aprovou seu uso em 1970; em
para pesquisa. Eu não nego haja uma tensão, mas os dois podem 1974 ele foi aprovado para tratar transtornos maníaco-depressivos.
coexistir bastante bem. Antes disso, não existiam tratamentos químicos eficientes para
Além disso, o DSM é um trabalho em desenvolvimento. nenhuma doença mental, mas agora havia algo que funcionava.
Algumas semanas depois da publicação do DSM-III, em 1980, Portanto, critérios comportamentais claros passaram a ser necessá-
as pessoas já discutiam como deveria ser o DSM-IV. Depois do rios para identificar quem poderia se beneficiar do lítio. A segun-
DSM-III veio o DSM-IIIR (R de “revisado”), em 1987; o DSM-IV, da razão foi um estudo comparativo feito em 1972, em Nova York
em 1994; o DSM-IVTR (TR de “revisão de texto”), em 2000; e e Londres, de diagnósticos de esquizofrenia. Foi um duro golpe.
agora o DSM-5. Alguns sugerem que jamais existirá o “DSM-6”, O diagnóstico de esquizofrenia era duas vezes mais frequente em
com base na ideia de que o empreendimento inteiro é em si mes- Nova York do que em Londres. Havia concordância quanto aos
mo autodestrutivo. Que não se conte com isso. Ao contrário, mais sintomas, mas não quanto ao diagnóstico final. O critério “opera-
provável é que o manual fique mais sintonizado com as causas cional” teve de ser ajustado. Como não se conheciam as causas
neurológicas na medida em que elas conquistem cada vez mais da maioria das doenças mentais – ou melhor, como havia muitas
espaço na psiquiatria. O DSM é uma criatura viva e orgânica, teorias incompatíveis sobre as causas – era preciso basear-se nas
mantida por uma miríade de abelhas operárias. No final do livro síndromes, em padrões observáveis de sintomas, um comporta-
há uma lista de cerca de mil pessoas, quase todas com qualificação mento, em resumo, algo que pudesse produzir um consenso. Essa
304 305
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
abordagem é muitas vezes chamada de krepeliana, em referência precisam ser identificáveis pelos critérios do DSM porque os EUA
ao grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926). Kraepe- são o maior mercado de medicamentos do mundo. Em parte para
lin dividiu as psicoses graves no que ele chamava de “dementia evitar comitês de ética, em parte para manter uma rede global dis-
praecox” e “depressão maníaca”. A primeira foi novamente des- ponível, os caçadores de genes muitas vezes vão para regiões mais
crita por Eugen Bleuler por volta de 1910 e rebatizada esquizofre- pobres. Em um caso, uma empresa farmacêutica francesa queria
nia. A última, um dia chamada folie circulaire, é hoje conhecida obter DNA de pacientes bipolares. Havia um hospital psiquiátrico
como transtorno bipolar, de forma a excluir a depressão e a mania com poucos recursos na Argentina, que adotava práticas psicana-
unipolares. O primeiro a insistir na distinção parece ter sido o líticas. Transtorno bipolar é krepeliano, não freudiano, portanto
psiquiatra alemão-oriental Karl Leonhard, em sua nosologia sis- o hospital não tinha pacientes diagnosticados como bipolares. A
temática de 1957. empresa farmacêutica fez uma oferta que o hospital não podia
Ei-las aqui no DSM-5, Esquizofrenia 295.90 – agora com a recusar. Os pacientes foram então reclassificados segundo os pa-
adição de numerosos subtipos – e Transtorno Bipolar I e Transtor- drões do DSM; os médicos repensaram os sintomas, e os pacien-
no Bipolar II 296.89, esse último descrito em algum lugar como tes os experimentaram de novas maneiras. Funcionam assim os
“Bipolar lite” (‘lite’ como a cerveja sem álcool ou a Coca-Cola Li- mecanismos do imperialismo cultural.
ght). Mas existem muitos outros códigos no capítulo “O Espectro
da Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos”, e no seguinte, *
“Transtorno Bipolar e Transtornos Relacionados”. Esses códigos
são nossos meios atuais de descrever e organizar muito do que um Temos hoje muito mais conhecimentos do que há 40 anos,
dia foi chamado apenas de loucura ou insanidade. (A maioria dos mas ainda não entendemos essas formas clássicas de loucura. Te-
diagnósticos no DSM atualmente se baseia em algum tipo de dis- mos o lítio para transtorno bipolar, em que o principal problema
função, mas eu jamais falaria em insanidade em relação a eles.) é muitas vezes que o paciente “para de tomar os remédios”. Exis-
Se eu começasse a tentar explicar as novas categorias sob esquizo- tem inúmeros coquetéis de drogas que aliviam diferentes tipos de
frenia, me perderia na floresta. De fato, ao ler esses capítulos, me esquizofrenia. Os critérios definidores da esquizofrenia vêm mu-
senti incapaz de enxergar a árvore – a esquizofrenia – por causa dando incessantemente desde Bleuler, embora venham se estabi-
de todos os galhos que aparecem. lizando nas sucessivas edições do DSM. Bleuler não deu muita
A fim de sugerir os efeitos globais desse manual americano, atenção para delírios e alucinações. Posteriormente, ouvir vozes
examinarei um transtorno específico. Em Pharmaceutical Re- (alucinações auditivas) tornou-se às vezes crucial para o diagnós-
ason: Knowledge and Value in Global Psychiatry (2005) (Razão tico. Isso deixou de ter importância. Muitas pessoas ouvem vo-
Farmacêutica: Conhecimento e Valor na Psiquiatria Global), zes, e muitas delas querem se tratar. No Reino Unido existe a
Andrew Lakoff escreve sobre empresas farmacêuticas caçadoras Hearing Voices Network (rede para quem ouve vozes); o World
de genes que anseiam por amostras de saliva e de sangue que Hearing Voices Congress (congresso mundial para quem ouve
permitam associar doenças com DNA, descobrir uma maneira de vozes) acontece no final deste ano em Melbourne. É um exem-
detectar o mal através de marcadores de DNA e então encontrar plo de pacientes tentando ter controle sobre suas dificuldades.
uma nova droga que atenue os sintomas. Os transtornos mentais No caso do autismo, com que estou mais familiarizado, existem
306 307
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
abordagem é muitas vezes chamada de krepeliana, em referência precisam ser identificáveis pelos critérios do DSM porque os EUA
ao grande psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926). Kraepe- são o maior mercado de medicamentos do mundo. Em parte para
lin dividiu as psicoses graves no que ele chamava de “dementia evitar comitês de ética, em parte para manter uma rede global dis-
praecox” e “depressão maníaca”. A primeira foi novamente des- ponível, os caçadores de genes muitas vezes vão para regiões mais
crita por Eugen Bleuler por volta de 1910 e rebatizada esquizofre- pobres. Em um caso, uma empresa farmacêutica francesa queria
nia. A última, um dia chamada folie circulaire, é hoje conhecida obter DNA de pacientes bipolares. Havia um hospital psiquiátrico
como transtorno bipolar, de forma a excluir a depressão e a mania com poucos recursos na Argentina, que adotava práticas psicana-
unipolares. O primeiro a insistir na distinção parece ter sido o líticas. Transtorno bipolar é krepeliano, não freudiano, portanto
psiquiatra alemão-oriental Karl Leonhard, em sua nosologia sis- o hospital não tinha pacientes diagnosticados como bipolares. A
temática de 1957. empresa farmacêutica fez uma oferta que o hospital não podia
Ei-las aqui no DSM-5, Esquizofrenia 295.90 – agora com a recusar. Os pacientes foram então reclassificados segundo os pa-
adição de numerosos subtipos – e Transtorno Bipolar I e Transtor- drões do DSM; os médicos repensaram os sintomas, e os pacien-
no Bipolar II 296.89, esse último descrito em algum lugar como tes os experimentaram de novas maneiras. Funcionam assim os
“Bipolar lite” (‘lite’ como a cerveja sem álcool ou a Coca-Cola Li- mecanismos do imperialismo cultural.
ght). Mas existem muitos outros códigos no capítulo “O Espectro
da Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos”, e no seguinte, *
“Transtorno Bipolar e Transtornos Relacionados”. Esses códigos
são nossos meios atuais de descrever e organizar muito do que um Temos hoje muito mais conhecimentos do que há 40 anos,
dia foi chamado apenas de loucura ou insanidade. (A maioria dos mas ainda não entendemos essas formas clássicas de loucura. Te-
diagnósticos no DSM atualmente se baseia em algum tipo de dis- mos o lítio para transtorno bipolar, em que o principal problema
função, mas eu jamais falaria em insanidade em relação a eles.) é muitas vezes que o paciente “para de tomar os remédios”. Exis-
Se eu começasse a tentar explicar as novas categorias sob esquizo- tem inúmeros coquetéis de drogas que aliviam diferentes tipos de
frenia, me perderia na floresta. De fato, ao ler esses capítulos, me esquizofrenia. Os critérios definidores da esquizofrenia vêm mu-
senti incapaz de enxergar a árvore – a esquizofrenia – por causa dando incessantemente desde Bleuler, embora venham se estabi-
de todos os galhos que aparecem. lizando nas sucessivas edições do DSM. Bleuler não deu muita
A fim de sugerir os efeitos globais desse manual americano, atenção para delírios e alucinações. Posteriormente, ouvir vozes
examinarei um transtorno específico. Em Pharmaceutical Re- (alucinações auditivas) tornou-se às vezes crucial para o diagnós-
ason: Knowledge and Value in Global Psychiatry (2005) (Razão tico. Isso deixou de ter importância. Muitas pessoas ouvem vo-
Farmacêutica: Conhecimento e Valor na Psiquiatria Global), zes, e muitas delas querem se tratar. No Reino Unido existe a
Andrew Lakoff escreve sobre empresas farmacêuticas caçadoras Hearing Voices Network (rede para quem ouve vozes); o World
de genes que anseiam por amostras de saliva e de sangue que Hearing Voices Congress (congresso mundial para quem ouve
permitam associar doenças com DNA, descobrir uma maneira de vozes) acontece no final deste ano em Melbourne. É um exem-
detectar o mal através de marcadores de DNA e então encontrar plo de pacientes tentando ter controle sobre suas dificuldades.
uma nova droga que atenue os sintomas. Os transtornos mentais No caso do autismo, com que estou mais familiarizado, existem
306 307
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
movimentos de orgulho e de neurodiversidade, que o veem como um esquizofrênico sem precisar de muita discussão ou contato.
uma variação do que é típico neurologicamente, e não como um Em alguns casos a espécie de esquizofrenia é evidente – catatôni-
transtorno. cos ficam fora do ar, imóveis, retraídos, insensíveis a toda espécie
Uma das razões pelas quais os manuais são tão difíceis de ler de estímulo. Mas muitas vezes o esquizofrênico não se encaixa
é que os critérios assumem a forma de cardápios. Para exempli- bem em nenhuma das subespécies, impondo aos burocratas a ne-
ficar de forma aleatória, Transtorno de Estresse Agudo tem dois cessidade de mais um NOS.
critérios primários, A e B. Em A o paciente tem de ter sofrido O DSM-5 se esforça ao máximo para eliminar o NOS, mas
algo horrível, “de uma (ou mais) das seguintes maneiras” – es- com frequência termina em confusão. Agora temos “O Espectro
colha uma ou mais das quatro indicadas. Em B lemos “Presença da Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos”, com uma es-
de nove (ou mais) dos seguintes sintomas em qualquer uma das trutura bem diferente da do DSM-IV. Agora há a espécie “Cata-
cinco categorias de...” e segue uma lista de 14 sintomas divididos tonia”, com duas subespécies, “Catatonia Associada com Outra
em cinco grupos. E esse é um dos cardápios mais simples do livro. Doença Mental (Catatonia Specifier)” (298.89), e “Transtorno
Essa organização do tipo cardápio sempre foi utilizada pelo Catatônico devido a Outro Problema Médico” (293.89). A entra-
DSM. O DSM-5 reconhece duas dificuldades, experimentada por da genérica se encerra com “Catatonia Não-Especificada”, sem
qualquer um que tenha tentado usar as edições anteriores: NOS código. Esta se aplica quando não é possível encontrar a condição
e comorbidade. NOS é a sigla para “Not Otherwise Specified” subjacente ou quando “nem todos os critérios são satisfeitos”, ou
(não especificado de outro modo). A expressão é sensatamente simplesmente quando falta informação. Então lemos “nota sobre
utilizada quando alguém não tem um bom histórico, como em a codificação: primeiro informe 781.89... seguido de 293.89 Cata-
um pronto atendimento. Mas no contexto do DSM havia um pro- tonia Não-Específica”, que soa muito como o NOS. E 781.89 não
blema. Um item começa com um transtorno genérico, passa por aparece na lista numérica de códigos no final do livro.
várias espécies e subespécies, e finalmente chega ao NOS. Assim, A seguir temos a comorbidade, que significa que um paciente
no DSM-IV, gênero: “Esquizofrenia e Outros Transtornos Psicó- pode satisfazer vários diagnósticos. Certamente alguém pode ter
ticos”. Oito espécies: e. g. Esquizofrenia. Cinco subespécies: ex. esclerose múltipla e pegar pneumonia. Hipertensão muitas vezes
Tipo Catatônico (295.20). Depois das primeiras sete espécies e acompanha o câncer. Mas aqui estamos preocupados com diag-
suas subespécies, chegamos na oitava: Transtorno Psicótico, NOS nósticos sobrepostos tão sistematicamente a ponto de não ficar
(298.9). Uns 32 transtornos genéricos acabam com espécies NOS, claro que faz sentido falar de uma doença principal. No decorrer
em que pacientes são considerados sob o título genérico mas não do livro, muitos dos diagnósticos incluem um parágrafo intitulado
sob qualquer dos títulos específicos. “comorbidade”. Segue aqui o texto para Transtorno Bipolar I:
O que acontece? A verdade talvez seja que a maioria dos
psiquiatras e outros clínicos não se incomoda com o código do Transtornos mentais concomitantes são comuns, e os mais frequentes
DSM até que precise preencher a papelada. Pensam em termos são os relativos a ansiedade (e. g. síndrome do pânico, transtorno de an-
de protótipos, não definições. Têm uma visão geral do que é uma siedade social, fobias específicas), ocorrendo em aproximadamente três
pessoa esquizofrênica, com várias versões de diferentes graus de quartos dos indivíduos; TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção por
especificidade. Um clínico experiente comumente reconhece Hiperatividade); qualquer transtorno de controle de impulsividade e de
308 309
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
movimentos de orgulho e de neurodiversidade, que o veem como um esquizofrênico sem precisar de muita discussão ou contato.
uma variação do que é típico neurologicamente, e não como um Em alguns casos a espécie de esquizofrenia é evidente – catatôni-
transtorno. cos ficam fora do ar, imóveis, retraídos, insensíveis a toda espécie
Uma das razões pelas quais os manuais são tão difíceis de ler de estímulo. Mas muitas vezes o esquizofrênico não se encaixa
é que os critérios assumem a forma de cardápios. Para exempli- bem em nenhuma das subespécies, impondo aos burocratas a ne-
ficar de forma aleatória, Transtorno de Estresse Agudo tem dois cessidade de mais um NOS.
critérios primários, A e B. Em A o paciente tem de ter sofrido O DSM-5 se esforça ao máximo para eliminar o NOS, mas
algo horrível, “de uma (ou mais) das seguintes maneiras” – es- com frequência termina em confusão. Agora temos “O Espectro
colha uma ou mais das quatro indicadas. Em B lemos “Presença da Esquizofrenia e outros Transtornos Psicóticos”, com uma es-
de nove (ou mais) dos seguintes sintomas em qualquer uma das trutura bem diferente da do DSM-IV. Agora há a espécie “Cata-
cinco categorias de...” e segue uma lista de 14 sintomas divididos tonia”, com duas subespécies, “Catatonia Associada com Outra
em cinco grupos. E esse é um dos cardápios mais simples do livro. Doença Mental (Catatonia Specifier)” (298.89), e “Transtorno
Essa organização do tipo cardápio sempre foi utilizada pelo Catatônico devido a Outro Problema Médico” (293.89). A entra-
DSM. O DSM-5 reconhece duas dificuldades, experimentada por da genérica se encerra com “Catatonia Não-Especificada”, sem
qualquer um que tenha tentado usar as edições anteriores: NOS código. Esta se aplica quando não é possível encontrar a condição
e comorbidade. NOS é a sigla para “Not Otherwise Specified” subjacente ou quando “nem todos os critérios são satisfeitos”, ou
(não especificado de outro modo). A expressão é sensatamente simplesmente quando falta informação. Então lemos “nota sobre
utilizada quando alguém não tem um bom histórico, como em a codificação: primeiro informe 781.89... seguido de 293.89 Cata-
um pronto atendimento. Mas no contexto do DSM havia um pro- tonia Não-Específica”, que soa muito como o NOS. E 781.89 não
blema. Um item começa com um transtorno genérico, passa por aparece na lista numérica de códigos no final do livro.
várias espécies e subespécies, e finalmente chega ao NOS. Assim, A seguir temos a comorbidade, que significa que um paciente
no DSM-IV, gênero: “Esquizofrenia e Outros Transtornos Psicó- pode satisfazer vários diagnósticos. Certamente alguém pode ter
ticos”. Oito espécies: e. g. Esquizofrenia. Cinco subespécies: ex. esclerose múltipla e pegar pneumonia. Hipertensão muitas vezes
Tipo Catatônico (295.20). Depois das primeiras sete espécies e acompanha o câncer. Mas aqui estamos preocupados com diag-
suas subespécies, chegamos na oitava: Transtorno Psicótico, NOS nósticos sobrepostos tão sistematicamente a ponto de não ficar
(298.9). Uns 32 transtornos genéricos acabam com espécies NOS, claro que faz sentido falar de uma doença principal. No decorrer
em que pacientes são considerados sob o título genérico mas não do livro, muitos dos diagnósticos incluem um parágrafo intitulado
sob qualquer dos títulos específicos. “comorbidade”. Segue aqui o texto para Transtorno Bipolar I:
O que acontece? A verdade talvez seja que a maioria dos
psiquiatras e outros clínicos não se incomoda com o código do Transtornos mentais concomitantes são comuns, e os mais frequentes
DSM até que precise preencher a papelada. Pensam em termos são os relativos a ansiedade (e. g. síndrome do pânico, transtorno de an-
de protótipos, não definições. Têm uma visão geral do que é uma siedade social, fobias específicas), ocorrendo em aproximadamente três
pessoa esquizofrênica, com várias versões de diferentes graus de quartos dos indivíduos; TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção por
especificidade. Um clínico experiente comumente reconhece Hiperatividade); qualquer transtorno de controle de impulsividade e de
308 309
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
conduta (e. g. transtorno explosivo intermitente, transtorno do desafio co, e essa é a sua falha fatal. Outros tipos de doenças são como as
antagonístico); e transtornos relativos a abuso de substâncias (e. g. alco- plantas, e podem ser singularmente caracterizadas, como Krae-
olismo) ocorrem em mais de metade dos indivíduos com transtorno Bi- pelin tentou fazer, por um padrão distinto de sintomas quando a
polar I. causa ainda não é conhecida. A sigla NOS não é utilizada no resto
da medicina, onde não se verifica com frequência comorbidade
Isso mostra que a classificação de doenças mentais não é de sistemática. Talvez, ao fim e ao cabo, o DSM seja visto um dia
modo algum como a classificação de animais, plantas ou minerais. como uma reductio ad absurdum do projeto botânico no campo
Mencionei gêneros, espécies e subespécies. Esse tipo de hierarquia da insanidade. Se digo isso, não é por acreditar que a maior parte
foi fixado desde que um jovem sueco chegou em Amsterdam, em da psiquiatria venha algum dia a ser reduzida à neurociência, à
1735, trazendo consigo o primeiro esboço de um “sistema da na- bioquímica ou à genética. Não tenho uma posição a respeito. O
tureza”, em que os três reinos – plantas, animais, minerais – eram NIMH (Instituto Nacional para Saúde Mental dos EUA) disse
organizados por ordens, classes, gêneros e espécies. O sistema fun- que deixaria de usar o DSM porque este não tem valor. Na verda-
cionou mal para os minerais, mas até hoje utilizamos o sistema ta- de, há um grande empenho, no DSM-5, para assegurar que seu
xonômico de Lineu para a classificação dos seres vivos. Seu êxito conteúdo está de acordo com os critérios que se entende como
foi imediato, e ao longo do século seguinte tentou-se classificar de válidos. (*VER NOTA) Pouco importa para meu argumento. Mi-
acordo com esse esquema tudo que era encontrado na natureza – nhas afirmações se baseiam antes na lógica que na medicina. O
incluindo os elementos químicos. Foi apenas quando Darwin disse sonho de Sauvages de classificar as doenças mentais pelo mode-
que “toda a verdadeira classificação é genealógica” que as pessoas lo da botânica foi tão equivocado quanto o plano de classificar
se deram conta de que o sistema de Lineu só funciona quando o os elementos químicos pelo modelo da botânica. Os elementos
que está sendo classificado aparece na natureza conforme uma des- químicos têm uma organização cuja profundidade impressiona
cendência. (É claro que organizamos as coisas, especialmente as – a tabela periódica –, mas ela é muito diferente da organização
pessoas, em hierarquias, o tempo todo, veja-se o exército; refiro-me das plantas, que emerge em última instância da descendência.
aqui, porém, ao que encontramos na natureza.) As tabelas de elementos baseadas em Lineu (houve muitas) não
A primeira tentativa de constituir um manual médico de representavam a natureza.
diagnóstico foi feita por um amigo e contemporâneo de Lineu, O DSM não é uma representação da natureza ou da realida-
com o intimidador nome de François Boissier de Sauvages de La- de das variedades de doenças mentais, e essa crítica é muito mais
croix, um médico e botânico de Montpelier. Em 1793, Sauvages radical do que a alegação de Insel de que o livro carece de “valor”.
publicou Nosologia Methodica, declarando explicitamente já no O que afirmo é que ele se baseia numa compreensão equivocada
título que a obra era modelada na classificação das plantas. Ele da natureza das coisas. Continua sendo um livro muito útil para
apontava dez classes de doenças, das quais a oitava era a loucura. outros propósitos. É essencial que algo assim exista para cumprir
Cada classe era dividida primeiro em gêneros, depois em espé- as necessidades burocráticas ligada ao pagamento de tratamentos
cies, produzindo 2.400 tipos de males. e à avaliação de prioridades. No que se refere a outros propósitos,
Desde então, surgiram muitos sistemas para classificar doen- porém, as mudanças realizadas do DSM-IV para o DSM-5 não es-
ças mentais, mas todos me parecem baseados no modelo botâni- tiveram à altura do trabalho prodigioso, das reuniões de comitês, e
310 311
discurso 43 RESENHA 2 – PERDIDOS NA FLORESTA – SOBRE A TAXONOMIA DOS TRANSTORNOS MENTAIS | Ian Hacking
conduta (e. g. transtorno explosivo intermitente, transtorno do desafio co, e essa é a sua falha fatal. Outros tipos de doenças são como as
antagonístico); e transtornos relativos a abuso de substâncias (e. g. alco- plantas, e podem ser singularmente caracterizadas, como Krae-
olismo) ocorrem em mais de metade dos indivíduos com transtorno Bi- pelin tentou fazer, por um padrão distinto de sintomas quando a
polar I. causa ainda não é conhecida. A sigla NOS não é utilizada no resto
da medicina, onde não se verifica com frequência comorbidade
Isso mostra que a classificação de doenças mentais não é de sistemática. Talvez, ao fim e ao cabo, o DSM seja visto um dia
modo algum como a classificação de animais, plantas ou minerais. como uma reductio ad absurdum do projeto botânico no campo
Mencionei gêneros, espécies e subespécies. Esse tipo de hierarquia da insanidade. Se digo isso, não é por acreditar que a maior parte
foi fixado desde que um jovem sueco chegou em Amsterdam, em da psiquiatria venha algum dia a ser reduzida à neurociência, à
1735, trazendo consigo o primeiro esboço de um “sistema da na- bioquímica ou à genética. Não tenho uma posição a respeito. O
tureza”, em que os três reinos – plantas, animais, minerais – eram NIMH (Instituto Nacional para Saúde Mental dos EUA) disse
organizados por ordens, classes, gêneros e espécies. O sistema fun- que deixaria de usar o DSM porque este não tem valor. Na verda-
cionou mal para os minerais, mas até hoje utilizamos o sistema ta- de, há um grande empenho, no DSM-5, para assegurar que seu
xonômico de Lineu para a classificação dos seres vivos. Seu êxito conteúdo está de acordo com os critérios que se entende como
foi imediato, e ao longo do século seguinte tentou-se classificar de válidos. (*VER NOTA) Pouco importa para meu argumento. Mi-
acordo com esse esquema tudo que era encontrado na natureza – nhas afirmações se baseiam antes na lógica que na medicina. O
incluindo os elementos químicos. Foi apenas quando Darwin disse sonho de Sauvages de classificar as doenças mentais pelo mode-
que “toda a verdadeira classificação é genealógica” que as pessoas lo da botânica foi tão equivocado quanto o plano de classificar
se deram conta de que o sistema de Lineu só funciona quando o os elementos químicos pelo modelo da botânica. Os elementos
que está sendo classificado aparece na natureza conforme uma des- químicos têm uma organização cuja profundidade impressiona
cendência. (É claro que organizamos as coisas, especialmente as – a tabela periódica –, mas ela é muito diferente da organização
pessoas, em hierarquias, o tempo todo, veja-se o exército; refiro-me das plantas, que emerge em última instância da descendência.
aqui, porém, ao que encontramos na natureza.) As tabelas de elementos baseadas em Lineu (houve muitas) não
A primeira tentativa de constituir um manual médico de representavam a natureza.
diagnóstico foi feita por um amigo e contemporâneo de Lineu, O DSM não é uma representação da natureza ou da realida-
com o intimidador nome de François Boissier de Sauvages de La- de das variedades de doenças mentais, e essa crítica é muito mais
croix, um médico e botânico de Montpelier. Em 1793, Sauvages radical do que a alegação de Insel de que o livro carece de “valor”.
publicou Nosologia Methodica, declarando explicitamente já no O que afirmo é que ele se baseia numa compreensão equivocada
título que a obra era modelada na classificação das plantas. Ele da natureza das coisas. Continua sendo um livro muito útil para
apontava dez classes de doenças, das quais a oitava era a loucura. outros propósitos. É essencial que algo assim exista para cumprir
Cada classe era dividida primeiro em gêneros, depois em espé- as necessidades burocráticas ligada ao pagamento de tratamentos
cies, produzindo 2.400 tipos de males. e à avaliação de prioridades. No que se refere a outros propósitos,
Desde então, surgiram muitos sistemas para classificar doen- porém, as mudanças realizadas do DSM-IV para o DSM-5 não es-
ças mentais, mas todos me parecem baseados no modelo botâni- tiveram à altura do trabalho prodigioso, das reuniões de comitês, e
310 311
discurso 43
Perfil de Rousseau1
William Hazlitt
1 Título no original, “On the Character of Rousseau”. Ensaio publicado pela primeira
vez na revista The Examiner de 14 de abril de 1816 e, em seguida, reunido na primeira
coletânea de ensaios do autor, The Round Table, 1817. (N.T.).
[*] Um comitê externo foi estabelecido para ajudicar as mudanças propostas para o
discurso 43
DSM-IV e a validade delas. Um relato dos procedimentos adotados se encontra em
“A History of the DSM-5 Scientific Review Committe” (Uma História do Comitê
de Revisão Científica do DSM-5), redigido por seu presidente, Kenneth S. Kendler,
a ser publicado em breve na revista Psychological Medicine.
312 313