Villalva, Aspectos Morfologicos Grama

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PARTE V ...................................................................................................................................

2
Aspectos Morfológicos da Gramática do Português .................................................................. 2
18. Estrutura morfológica básica................................................................................................ 4
18.1. O radical ........................................................................................................................ 4
18.2. Classes temáticas........................................................................................................... 6
18.3. O tema ........................................................................................................................... 9
18.4. Flexão .......................................................................................................................... 10
18.4.1. Flexão nominal..................................................................................................... 10
18.4.2. Nota sobre género ................................................................................................ 12
18.4.3. Flexão verbal ........................................................................................................ 14
18.5. A palavra ..................................................................................................................... 19
19. Formação de palavras: afixação ......................................................................................... 21
19.1. Derivação .................................................................................................................... 23
19.2. Derivação parassintética e conversão.......................................................................... 29
19.3. Modificação morfológica ............................................................................................ 32
19.3.1. Sufixação avaliativa ............................................................................................. 34
19.3.2. Prefixação............................................................................................................. 38
ANEXO - Sufixos derivacionais: ................................................................................. 41
20. Formação de palavras: composição ................................................................................... 45
20.1. Composição morfológica ............................................................................................ 45
20.1.1. Estruturas de modificação .................................................................................... 46
20.1.2. Estruturas de coordenação.................................................................................... 47
20.1.3. Vogal de ligação ................................................................................................... 48
20.2. Composição morfo-sintáctica ..................................................................................... 50
20.2.1. Composição morfo-sintáctica vs lexicalização de expressões sintácticas ........... 51
20.2.2. Justaposição e aglutinação ................................................................................... 51
20.2.3. Estruturas de adjunção ......................................................................................... 52
20.2.4. Estruturas de conjunção ....................................................................................... 53
20.2.5. Estruturas de reanálise ......................................................................................... 54
Referências bibliográficas ........................................................................................................ 56

1
PARTE V

Aspectos Morfológicos da Gramática do Português

A morfologia ocupa-se da descrição da estrutura interna das palavras, procedendo à sua


segmentação em constituintes morfológicos1 e à análise das relações que estabelecem entre si,
e trata também da formação de palavras, nos casos que envolvem processos morfológicos2.
A utilização do termo constituinte morfológico em substituição de morfema não corresponde
a uma simples alteração terminológica. Aronoff (1976) apresenta argumentos que põem em
causa a tradicional definição de morfema3, e, consequentemente, a sua pertinência no domínio
da análise morfológica. A sua argumentação é baseada em dados do inglês, mas ela também se
aplica ao português4. O caso exemplar baseia-se em palavras formadas por prefixos e radicais
de origem latina, aos quais não é possível atribuir um significado constante:
(1) ceb duz fer mit / met sum
a(d) aduzir aferir admitir assumir
con conceber conduzir conferir cometer consumir
de deduzir deferir demitir
in induzir inferir
per perceber permitir
pre preferir presumir
pro produzir proferir prometer
re receber reduzir referir remeter resumir
sub submeter subsumir
trans transferir transmitir

1 Constituintes morfológicos são as unidades de análise na morfologia. Sobre a distinção entre constituinte
morfológico e morfema, veja-se Villalva (1994, 2000: 89-110).
2 A formação de palavras faz apelo a processos morfológicos, como a afixação e a composição, de modo
sistemático: um dado processo, satisfeitas as restrições por si impostas, permitirá formar uma nova palavra cujas
propriedades gramaticais e significado são previsíveis. Porém, a formação de neologismos também pode recorrer
a processos não morfológicos, como, por exemplo, a acronímia (cf. palop), ou a amálgama (cf. barrigordo), a
introdução de empréstimos (cf. bué, scanner) ou a lexicalização de expressões sintácticas (cf. malmequer, maria
vai com as outras).
3 Cf. Hockett (1958, 1968: 123), na tradução portuguesa de Ullmann (1964, 1970: 57): "morfemas são os mais
pequenos elementos individualmente significativos nas elocuções de uma língua".
4 Cf. Villalva (1994, 2000: 83-111).

2
É por esta razão que combinações não atestadas são ininterpretáveis, e consequentemente
agramaticais:
(2) *inceber
*perduzir
*subferir
*premitir
*transumir
Este mesmo conjunto de dados permite, no entanto, e ainda na linha do que foi defendido por
Aronoff, defender a relevância do conceito de morfema, enquanto unidade de análise da
estrutura morfofonológica. Com efeito, os morfemas podem estar associados a processos
fonológicos, como os de alomorfia: é o que se verifica com a forma [mit] que alterna com a
forma [mis]5: a primeira ocorre nas formas verbais, a segunda ocorre em diversos derivados
deverbais:
(3)a. admitir
demito
emitia
permitirá
transmita
b. admissível
demissão
emissário
permissivo
transmissor
Os instrumentos de análise morfológica permitem estabelecer uma distinção entre palavras
simples e palavras complexas: as palavras simples (e.g. claro, livro, contar) possuem um
único radical, que é uma unidade lexical inanalisável, e sufixos que o especificam morfológica
e morfo-sintacticamente, variando nas suas categorias de flexão; as palavras que possuem uma
estrutura interna complexa, para além da adjunção dos sufixos especificadores morfológicos e
morfo-sintácticos e da flexão, são (ou foram) o resultado da intervenção de processos de
formação de palavras, pelo que o seu radical é decomponível (cf. contável, claridade,
clarificar) ou coexiste com um outro radical (cf. claro-escuro, cheque-livro, conta-gotas).
Os processos morfológicos de formação de palavras disponíveis no português são processos
de afixação e de composição: os primeiros, claramente predominantes, resultam da
concatenação de um afixo a um radical, um tema ou uma palavra; os segundos operam por
concatenação de dois ou mais radicais ou de duas ou mais palavras.
À distinção entre palavras simples e complexas deve associar-se uma outra, que estabelece um
contraste entre palavras complexas com uma estrutura composicional e palavras complexas

5A agramaticalidade de formas como *demitição, face à ocorrência de palavras como competição ou repartição,
demonstra que a alternância é entre [mit] e [mis] e não entre [t] e [s]. Por outro lado, formas como imitação
comprovam que é o morfema mit e não apenas a sequência [mit] que desencadeia a alomorfia.

3
com uma estrutura lexicalizada. A lexicalização é um processo de perda da
composicionalidade morfológica, que pode afectar apenas a interpretação da palavra (veja-se,
por exemplo, a das acepções de sombrinha que não é interpretável à luz do significado de
sombra), apenas a forma dos seus constituintes (cf. construção vs *construição), ou uma
conjugação destes dois factores (a interpretação de idoso, que se sobrepôs à forma
composicional *idadoso, diverge da interpretação dominantemente atribuída aos adjectivos
em -oso, como astucioso ou audacioso).

18. Estrutura morfológica básica

As palavras pertencentes a classes principais e que admitem formação morfológica de


neologismos (i.e. adjectivos, nomes, verbos e os advérbios em -mente) podem ser analisadas
morfologicamente, através de um conjunto de instrumentos que permitem a sua segmentação
e a hierarquização das unidades encontradas, que tomam o nome de constituintes
morfológicos. Com base nestas operações de análise morfológica é possível estabelecer uma
distinção entre palavras simples (cf. 1a) e palavras complexas (cf. 1b):
(1) a. lev e
livr o s
cant a r
b. lev ez a
livr inh o
des lig a r
Radical, tema e palavra são as etiquetas que identificam os constituintes morfológicos que
ocupam os três vértices nucleares da estrutura básica das palavras. Os restantes constituintes
morfológicos são afixos. Vejamos, então, as principais propriedades de cada um destes
diversos tipos de constiuintes morfológicos.

18.1. O radical

O radical das palavras simples (cf. 1a) é uma forma inanalisável, que pode ser representada da
seguinte forma:
(2) [lev]Radical
[livr]Radical
[cant]Radical

4
O radical das palavras complexas (cf. 1b) é uma forma complexa, integrando dois ou mais
constituintes morfológicos, um dos quais é obrigatoriamente um radical simples:
(3) [[lev]Radical simples [ez]Afixo]Radical complexo
[[livr]Radical simples [inh]Afixo]Radical complexo
[[des]Afixo [lig]Radical simples ]Radical complexo
Os radicais simples são unidades lexicais portadoras de informação idiossincrática de natureza
morfológica, sintáctica e semântica. Para além de outras propriedades, são especificados
quanto à categoria sintáctica, quanto à classe temática e ainda quanto ao género, no caso dos
nomes:
(4) a. [lev] Radical Adjectival=RADJ cf. leve
Tema -e; invariável

b. [livr] Radical Nominal = RN cf. livro


Tema em -o ; masculino

c. [lig] Radical Verbal = RV cf. ligar


1ª conjugação

A categoria sintáctica dos radicais simples é determinada em função da categoria sintáctica


das palavras simples em que cada radical pode ocorrer. Os exemplos seguintes mostram que
alguns radicais ocorrem numa única palavra simples (cf. 5a), enquanto outros ocorrem em
duas ou mais (cf. 5b). Estes últimos são foneticamente idênticos, ou muito próximos, mas têm
diferentes propriedades gramaticais (cf. secoADJ, secaN, secarV), pelo que todos deverão ser
registados no léxico.
(5) a. feliz RADJ cf. feliz ADJ
mes RN cf. mesa N
abr RV cf. abrir V
b. bel RADJ cf. belo/a ADJ
bel RN cf. belo N
activ RADJ cf. activo/a ADJ
activ RV cf. activar V
olh RN cf. olho N
olh RV cf. olhar V
sec RADJ cf. seco/a ADJ
sec RN cf. seca N
sec RV cf. secar V
A especificação dos radicais relativamente à classe temática diz respeito à identificação das
subcategorias dos adjectivos, dos nomes e dos verbos, cuja relevância é estritamente
morfológica.

5
18.2. Classes temáticas

Verbos, nomes e adjectivos distribuem-se por diferentes classes temáticas. A pertença de um


radical a uma dada classe temática é uma relação lexicalmente determinada e que geralmente
é tornada visível através da presença de um sufixo entre o radical e a flexão, que é chamado
constituinte temático.
Às classes temáticas dos verbos dá-se o nome de conjugações e o seu constituinte temático é
chamado vogal temática. No português, os verbos distribuem-se por três conjugações,
propriedade a que é sensível a flexão6:
(6) 1ª conjugação 2ª conjugação 3ª conjugação
infinitivo andar beber fugir
conjuntivo presente ande beba fuja
A integração dos adjectivos e dos nomes em classes temáticas, tradicionalmente chamadas
declinações, é um pouco mais complexa, dado que ela é definida por três factores:
(7) a. a natureza fonética do constituinte temático, que nos nomes e nos adjectivos toma o
nome de índice temático, gera uma distinção entre formas de tema em –a (e.g. poeta,
aluna, monarca, mapa, mosca, casa, artista e clara, careca), formas de tema em –o
(e.g. aluno, ídolo, livro, tribo, modelo e claro), formas de tema em –e (e.g. infante,
abutre, dente, gente, semente, agente e leve), formas de tema 7 (e.g. apresentador,
imperatriz, furriel, mar, variz, mártir e falador, cortês), formas atemáticas8 (e.g. avô,
avó, tatu, café, manhã, selvagem e ruim) e formas com constituintes temáticos
marginais (e.g. –as em piegas);
b. o acesso dos adjectivos e nomes a contrastes de género gera uma distinção entre
formas variáveis (e.g. aluno / aluna, imperador / imperadora / imperatriz e claro /
clara, são / sã) e formas invariáveis (e.g. ídolo, mosca, artista, mapa, tribo e leve,
ruim);
c. o valor de género9 que possuem gera uma distinção entre formas masculinas (e.g.
aluno, monarca, café e claro, falador), formas femininas (e.g. aluna, gente, tribo e

6 Sobre flexão verbal, ver 18.2.3 e 21.


7 Esta classe temática integra as palavras que, no singular, terminam em –l, -r, -s ou –z, e cujo plural, para além
da adjunção do sufixo próprio (i.e. –s), recorre à introdução de uma vogal epentética na posição do índice
temático ou à nuclearização do [l] final (cf. 21.3.1):
(i) pedal pedais
(ii) mar mares
(iii) país países
(iv) rapaz rapazes
8 São atemáticas as palavras que não integram índice temático, pelo que a forma da palavra, no singular, é
idêntica à forma do radical. Estas palavras terminam geralmente em vogal tónica, oral ou nasal (cf. chá, irmã) ou
ditongo tónico, oral ou nasal (cf. chapéu, irmão), mas também se encontram formas terminadas em vogal átona
(cf. táxi), ditongo átono (cf. viagem) e em consoante (cf. cais, lápis).
9 Sobre género ver 18.4.2.

6
clara, sã) e ainda formas que admitem os dois valores de género (e.g. artista,
modelo, agente, mártir, selvagem e careca, leve, cortês, ruim).
A conjugação destes três factores dá origem a diferentes classificações para nomes e
adjectivos10. Para os nomes, é possível identificar um sistema de vinte e três classes temáticas.
A complexidade deste sistema decorre do grande número de distinções existentes, mas
também ou sobretudo da quase impossibilidade de estabelecer generalizações.
Com efeito, é fácil constatar que todos os nomes variáveis têm como referente uma entidade
animada (e.g. infante, avó), mas a observação dos dados mostra que nem todos os nomes que
referem entidades animadas são nomes variáveis (cf. monarca, ídolo, mosca, gente).
Por outro lado, verifica-se que tendencialmente os nomes terminados em –o são masculinos
(e.g. aluno, livro) e que os nomes terminados em –a (eg. aluna, casa) são femininos, mas
nenhuma generalização pode, de facto, ser estabelecida, dado que (i) há nomes terminados em
-o que são femininos (e.g. tribo) ou que admitem os dois valores de género (e.g. (um/uma)
modelo), (ii) há nomes terminados em -a que são masculinos (e.g. poeta, monarca, mapa) ou
que admitem os dois valores de género (e.g. (um/uma) artista) e (iii) o valor de género dos
nomes terminados em -e, de tema e atemáticos é totalmente arbitrário (e.g. (o) pente / (a)
lente, (o) arroz / (a) noz, (a) pá / (o) pó):

10 Excluídas destas sistematizações estão as palavras (nomes e adjectivos) que possuem índices temáticos
marginais, como –as (cf. piegas / pieguinhas) ou –os (cf. Carlos / Carlinhos) e que constituem um pequeno
subconjunto do léxico do português.

7
(8) nomes género índice temático exemplos
-a poeta
-o aluno
masculino -e infante
variáveis - apresentador
atemático avô
-a aluna
feminino - imperatriz
atemático avó
-a monarca, mapa
-o ídolo, livro
masculino -e abutre, dente
- furriel, mar
atemático tatu, café
-a mosca, casa
-o tribo
feminino -e gente, semente
invariáveis - variz
atemático manhã
-a artista
masculino -o modelo
/ -e agente
feminino - mártir
atemático selvagem
Quanto aos adjectivos, os variáveis repartem-se por cinco classes temáticas e os invariáveis
distribuem-se por quatro. Neste caso, podem estabelecer-se duas generalizações: todos os
adjectivos de tema em –o são masculinos (e.g. claro) e todos os de tema em –e são invariáveis
(e.g. leve):

8
(9) adjectivos género Índice temático exemplos
-o claro
masculino - falador
variáveis atemático bom
-a clara
feminino atemático sã
-a careca
masculino -e leve
invariáveis / - cortês
feminino atemático ruim
Contrariamente ao que se verifica com os verbos, a integração dos nomes e dos adjectivos em
diferentes classes temáticas não tem consequências para a flexão (em número). Estas classes
temáticas são, pois, residuais.

18.3. O tema

Voltando à descrição da estrutura morfológica básica, o tema é a unidade morfológica que


domina o radical e o constituinte temático, ou seja, o afixo que especifica a classe temática do
radical: índice temático (i.e. IT) dos adjectivos e nomes e vogal temática (i.e. VT) dos verbos:
(10) a. [[lev]RADJ [e]IT ]Tema Adjectival = TADJ cf. leve
b. [[livr]RN [o]IT ]Tema Nominal = TN cf. livro
c. [[fal]RV [a]VT ]Tema verbal = TV cf. falar
Os temas verbais do português são morfologicamente interessantes, dado que os sufixos
derivacionais deverbais são sensíveis às sub-classes desta categoria morfológica. É por esta
razão que formas como *respondével (cf. respondível) ou como *transferíncia (cf.
transferência), por exemplo, são agramaticais:
(11) a. domin a dor
respond e dor
transfer i dor
b. domin á vel
respond í vel
transfer í vel
c. domin â ncia
correspond ê ncia
transfer ê ncia

9
Os exemplos de (11) mostram que a realização fonética da vogal temática nos derivados de
verbos das segunda e terceira conjugações não é constante: distingue-se o tema verbal do
infinitivo, o tema verbal do passado e o tema verbal do presente, identificando a vogal
temática que especifica cada uma das formas11:
(12) 1ª conjugação 2ª conjugação 3ª conjugação
TV infinitivo domin -a -r respond -e -r transfer -i -r
TV passado domin -a -do respond -i -do transfer -i -do
TV presente domin -a respond -e transfer -e

18.4. Flexão

Flexão é o processo morfológico de formação de palavras que se caracteriza pela sua


obrigatoriedade e sistematicidade: se uma dada categoria de palavras é flexionável numa dada
categoria morfo-sintáctica (por exemplo, os adjectivos flexionam em número), então todas as
palavras pertencentes a essa categoria sintáctica são flexionáveis na referida categoria morfo-
sintáctica (i.e. todos os adjectivos flexionam em número). Por outro lado, a realização da
flexão só pode variar em função de subclasses morfológicas identificadas no domínio da
categoria de palavras em questão.
Assim, em português, é necessário distinguir a flexão nominal da flexão verbal: os adjectivos
e os nomes flexionam em número (Nº)12 e os verbos flexionam em tempo-modo-aspecto
(TMA) e pessoa-número (PN). As preposições e os advérbios são palavras invariáveis.

18.4.1. Flexão nominal

A flexão nominal diz respeito aos nomes e aos adjectivos e, no português, realiza uma
categoria morfo-sintáctica - o número - que possui dois valores: singular e plural. Dado que,
por definição, a flexão é obrigatória e sistemática, espera-se que todos os nomes e todos os
adjectivos exibam contrastes de número e que os realizem sempre do mesmo modo. Na
verdade, a observação dos dados mostra que a maioria dos nomes e a maioria dos adjectivos
apresentam uma forma para o singular e outra para o plural, e que o contraste é realizado pela
ausência ou presença de um único sufixo (cf. gato / gatos; esperto / espertos): no singular, a
flexão dos nomes e dos adjectivos opera no vazio, ou seja, não existe nenhum sufixo para este

11 Note-se que o tema verbal do passado e o tema verbal do presente neutralizam a distinção entre as segunda e
terceira conjugações.
12 Alguns dos itens que integram as restantes categorias sintácticas que constituem classes fechadas exibem
flexão em número, bem como contrastes de género. É o que se verifica com determinantes como o, a, os, as ou
com os possessivos (cf. nosso, nossa, nossos, nossas). Esta flexão, tal como a variação em género, ou outros
tipos de variação (cf. o /um; este / esse, eu /tu /ele) está lexicalizada.

10
valor de número, podendo admitir-se que esse valor de número é assumido por defeito13; o
plural dispõe de um sufixo próprio, que é –s.
No entanto, a observação dos dados também mostra que existem nomes que têm uma flexão
defectiva e nomes e adjectivos que, aparentemente, não realizam a flexão em número da
forma esperada, ou seja, por recurso ao sufixo -s. Quanto à defectividade, ela pode afectar (i) a
forma do singular, como se verifica em anais ou calças, (ii) a forma do plural, o que se
verifica nos nomes próprios (cf. Filipe, Luísa), ou (iii) as duas formas, nos casos em que o
singular e o plural têm diferentes significados (cf. óculo / óculos, féria / férias, costa / costas).
À excepção dos nomes próprios, todos os outros casos são reduzidos em número e estão
lexicalizados, não afectando a gramática da flexão dos nomes. No que diz respeito aos nomes
próprios, a restrição deve ser modalizada: eles podem ser flexionados no plural (cf. Filipes,
Luísas), o que tipicamente não podem é manter a sua interpretação de nomes próprios,
remetendo para uma única entidade, a entidade que é portadora daquele nome próprio e que é
singular. O plural de um nome próprio pode remeter para o / um conjunto de entidades que
partilhem essa propriedade, como uma dinastia (cf. os Filipes), uma família (cf. os Pachecos),
uma associação onomástica (cf. os Joaquins), ou uma mera conjunção de pessoas possuidoras
do mesmo nome próprio (cf. as Luísas). Pode, assim, concluir-se que não é o contraste
morfológico de número que está em questão, mas sim a interpretação semântica das duas
formas em oposição.
Aliás, a interpretação semântica dos contrastes de número não diverge apenas no caso dos
nomes próprios - os massivos também se apresentam como um caso particular. Nos nomes
contáveis (e.g. cadeira), o contraste de número remete para um contraste de cardinalidade: o
singular refere uma unidade, ou um conjunto de unidades que formam um todo se se tratar de
um nome colectivo como rebanho ou multidão; o plural refere mais do que uma unidade. Nos
nomes massivos (e.g. água), o contraste de número tem uma interpretação mais complexa,
frequentemente relacionada com uma tipologia ou com uma medida (vejam-se as
interpretações mais imediatas para uma sequência como duas águas).
Quanto à forma de realização dos contrastes de número dos nomes e dos adjectivos, a
assistematicidade é apenas aparente: pode tratar-se de uma mera alternância gráfica, exigida
pela ortografia do português (cf. refém / reféns, bom / bons), ou de alternâncias fonéticas
condicionadas pelo contexto fonológico (cf. mão / mãos, pão / pães, sabão / sabões, papel /
papéis, azul / azuis, cais / cais, simples / simples)14.
Nos compostos, a flexão em número é sensível à sua estrutura15. Os compostos morfológicos
têm um comportamento idêntico ao das restantes palavras (cf. 13a). Nos compostos morfo-
sintácticos, a flexão opera sobre o constituinte que é o núcleo do composto: nos compostos
com núcleo à esquerda, a flexão é marcada apenas nesse constituinte (cf. 13b); nos compostos
coordenados, a flexão é marcada em todos os constituintes e com idêntico valor (cf. 13c); nos

13 Cf. Trask (1993: 73).


14 Sobre este assunto, ver também 22.1.5.
15 Sobre este assunto, ver também o capítulo 20.

11
compostos formados por reanálise, a flexão não reconhece a estrutura interna, operando como
se se tratasse de uma palavra simples16 (cf. 13d).
(13) a. cronómetro
cronómetros
luso-brasileiro
luso-brasileiros
b. bomba-relógio
bombas-relógio
c. trabalhador-estudante
trabalhadores-estudantes
surdo-mudo
surdos-mudos
d. quebra-mar
quebra-mares

18.4.2. Nota sobre género

No português, o género é uma categoria morfo-sintáctica que possui dois valores: masculino e
feminino. Quando associado a um nome animado, o masculino refere geralmente uma
entidade de sexo masculino, e o feminino refere uma entidade de sexo feminino17 (cf. 14a).
Desta generalização ficam excluídos os chamados nomes epicenos e os sobrecomuns (cf. 14b),
que dispõem de um único valor de género qualquer que seja o sexo da entidade que referem.
Existem ainda alguns nomes animados, classificados como comuns de dois, cuja forma
morfológica é ambígua quanto ao género, podendo porém essa ambiguidade ser resolvida pelo
contexto sintáctico (cf. 14c). O valor de género associado aos nomes inanimados não tem um
conteúdo referencial definido (cf. 14d):
(14) a. gato gata
escritor pintora
ladrão mentirosa
b. cônjuge testemunha
corvo águia
c. (um) jornalista (uma) jornalista

16 Geralmente, o constituinte da direita neste tipo de compostos é um nome flexionado no plural. Por esta razão,
o valor de número no composto é frequentemente indeterminável.
17 Há excepções: algumas formas masculinas referem entidades de sexo feminino (cf. mulherão).

12
d. mapa planta
copo taça
pêro pera
Contrariamente ao que se verifica relativamente ao número, nem todos os adjectivos e nomes
admitem contrastes de género:
(15) a. leve
ruim
simples
b. casa, pessoa
livro, indivíduo
pente, mestre

Por outro lado, nos casos em que esses contrastes se manifestam, a sua realização não é
homogénea:
(16) aluno aluna
juiz juiza
barão baronesa
europeu europeia
águia-macho águia-fêmea
homem mulher
A não-obrigatoriedade de existência de contrastes de género e o facto de a sua realização estar
a cargo quer de processos estritamente lexicais, pelo contraste de índices temáticos (cf. aluno /
aluna; professor / professora) ou pelo contraste de diferentes palavras (cf. homem / mulher;
carneiro / ovelha), quer de diversos processos morfológicos, como a derivação (cf. barão /
baronesa; judeu / judia; europeu / europeia; conde / condessa; lavrador / lavradeira;
imperador / imperatriz; espertalhão / espertalhona) e a composição (cf. águia-macho / águia-
fêmea), são propriedades que distinguem claramente o género das restantes categorias morfo-
sintácticas disponíveis no português, e que impedem a sua análise como uma categoria
flexional18, contrariamente ao que a tradição gramatical portuguesa tem consagrado19. Os
tradicionalmente chamados ‘morfemas de género’ dos adjectivos e nomes do português não
têm qualquer relação com o género (nem com a flexão), mas sim com a classe temática a que
cada palavra pertence.

18 A defesa de que o género não é uma categoria flexional no português é apresentada e justificada em Villalva
(1994, 2000) e também se encontra, por exemplo, em Hüber (1933, 1986: 167-168, 272), que considera que, no
português antigo, desaparecida a flexão casual, a flexão dos adjectivos e dos nomes se reduz à realização do
plural. A formação do feminino é considerada como um processo derivacional, ainda que não sejam apresentados
argumentos que suportem esta hipótese. Carvalho (1967, 1984: 601) também refere que os nomes não flexionam
em género.
19 Cf. Câmara (1971, 1984: 53), Lopes (1971: 66-67) ou Cunha e Cintra (1984, 1991: 133, 183).

13
18.4.3. Flexão verbal

Como foi já referido, no português a flexão verbal é sensível à conjugação a que o verbo
pertence. As três conjugações habitualmente consideradas são identificadas a partir da forma
do infinitivo em que a vogal temática está sempre presente20:
(17) Primeira conjugação: fal a r
Segunda conjugação: bat e r
Terceira conjugação: part i r
Estas conjugações têm, no entanto, diferentes comportamentos morfológicos: por um lado, só
a primeira conjugação acolhe novas palavras21; por outro lado, todos os verbos irregulares
pertencem à segunda ou à terceira conjugações. Esta situação é historicamente motivada: em
latim, a primeira conjugação (i.e. tema em –a) era já a mais produtiva e a transposição do
sistema latino de quatro conjugações para um sistema de três conjugações no português
afectou basicamente a segunda e a terceira.
(18) LATIM PORTUGUÊS
1 1
2 2
3
4 3

Posteriormente, alguns verbos que entraram no português para a segunda conjugação


passaram mais tarde para a terceira:
(19) caer cair
confonder confundir
correger corrigir
finger fingir
empremer imprimir
traer trair
Estas perturbações na diacronia das conjugações verbais são particularmente visíveis em
paradigmas de verbos morfologicamente relacionados, por partilharem um mesmo radical
latino, ou emformas divergentes de um único radical latino:

(20) cometer admitir

20 A flexão do verbo pôr e seus compostos integra-se na segunda conjugação, embora a vogal temática não
esteja presente na maioria das suas formas, incluindo o infinitivo.
21 Formas como eucaliptizar ou printar mostram a integração de neologismos verbais na primeira conjugação.
Note-se que o português dispõe de um sufixo que forma verbos da segunda conjugação (i.e. –ecer), mas este
sufixo não é, na actual sincronia, um sufixo produtivo.

14
intrometer demitir
meter vs. emitir
prometer omitir
remeter permitir
submeter transmitir
converter advertir
perverter vs. divertir
reverter
verter
A actual sincronia do português mostra que a distribuição dos verbos por três conjugações (e
que é visível em formas do infinitivo, como falar, bater, partir) é, de facto, substituída por
uma dicotomia entre a primeira conjugação, por um lado, e as duas restantes, por outro:
(21) fal a vs. bat e part e
fal ei vs. bat i part i
fal ava vs. bat ia part ia
fal e vs. bat a part a
fal ado vs. bat ido part ido
Em suma, a segunda e a terceira conjugações do português devem ser interpretadas como um
resíduo de contrastes morfológicos desaparecidos, sendo, assim, mais compreensível que a
distinção entre elas tenda a ser neutralizada.
Em português, a flexão verbal gera as chamadas formas simples22 e opera em duas categorias
morfo-sintácticas: tempo-modo-aspecto, que codifica morfologicamente informação sobre
tempo, modo e aspecto, e pessoa-número, que codifica a concordância com o sujeito frásico.
Os valores de tempo-modo-aspecto (TMA) repartem-se por dois grupos: o primeiro é
constituído por paradigmas que também flexionam em pessoa-número (cf. 22a) e no segundo
integram-se as chamadas formas nominais do verbo (cf. 22b):
(22) a. Pretérito mais-que-perfeito do indicativo
Pretérito perfeito do indicativo
Pretérito imperfeito do indicativo
Presente do indicativo
Futuro do indicativo
Pretérito imperfeito do conjuntivo
Presente do conjuntivo
Futuro do conjuntivo
Condicional
Imperativo –forma afirmativa
Imperativo – forma negativa
Infinitivo flexionado

22 As formas compostas, que integram o auxiliar ter e o particípio passado, são construções sintácticas.

15
b. Infinitivo
Gerúndio
Particípio passado
Os sufixos de tempo-modo-aspecto identificáveis na flexão verbal do português são os
seguintes23:

(23) 1ª conjugação 2ª e 3ª conjugações


Indicativo Pretérito mais-que-perfeito ra
Pretérito imperfeito va a
Pretérito imperfeito sse
Conjuntivo
Presente e a
Futuro r24
Infinitivo r25
Gerúndio ndo
Particípio do
Os valores de pessoa-número (PN) estabelecem uma distinção entre três pessoas – primeira,
segunda26 e terceira – referidas individualmente, no singular, ou conjuntamente, no plural.
(24) Primeira pessoa do singular
Segunda pessoa do singular
Terceira pessoa do singular
Primeira pessoa do plural
Segunda pessoa do plural
Terceira pessoa do plural
Os sufixos de pessoa-número que se associam aos sufixos de tempo-modo-aspecto acima
identificados, à excepção do infinitivo, gerúndio e particípio, são os seguintes:

23 Os sufixos de flexão verbal são indicados em representação ortográfica.


24 À flexão da segunda pessoa do singular do Futuro do conjuntivo e do Infinitivo flexionado está associada a
introdução de um [e] epentético.
25 Ver nota anterior.
26 Note-se que a segunda pessoa se desdobra em dois valores: no singular existe uma distinção entre uma forma
de tratamento informal e uma forma de tratamento formal. No plural o desdobramento da segunda pessoa não
permite o mesmo tipo de interpretação, opondo antes uma forma mais utilizada (i.e. vocês) a outra que parece
estar a cair em desuso (i.e. vós), pelo menos em alguns dialectos. Do ponto de vista morfológico, esta distinção
só é relevante porque uma das ocorrências da segunda pessoa recorre às formas flexionadas da terceira pessoa:
você / o senhor / ... / conhece esta rua? Cf. ele conhece esta rua?
vocês / os senhores / ... / conhecem esta rua? Cf. eles conhecem esta rua?

16
(25) Segunda pessoa do singular s
Primeira pessoa do plural mos
Segunda pessoa do plural des27
Terceira pessoa do plural m
Em seis paradigmas de flexão verbal (i.e. pretérito mais-que-perfeito e pretérito imperfeito do
indicativo, pretérito imperfeito, presente e futuro do conjuntivo e infinitivo flexionado), as
categorias de tempo-modo-aspecto e pessoa-número são realizadas por sufixos independentes,
gerando uma sequência em que o sufixo de tempo-modo-aspecto precede obrigatoriamente o
sufixo de pessoa-número.
Note-se que a especificação da primeira e da terceira pessoas do singular destes paradigmas
são formalmente ambíguas entre si (cf. 26), dado que não dispõem de nenhum sufixo próprio.
Nestes casos, a flexão em pessoa-número opera no vazio:
(26) falara
falava
falasse
fale
falar
Este tipo de ambiguidade formal também afecta a totalidade dos paradigmas do futuro do
conjuntivo e do infinitivo flexionado28:
(27) Futuro do conjuntivo Infinitivo flexionado
falar falar
falares falares
falar falar
falarmos falarmos
falardes falardes
falarem falarem
O presente e o pretérito perfeito do indicativo não dispõem de sufixos distintos para TMA e
PN. O sufixo de flexão que ocorre nestes paradigmas é uma amálgama de tempo-modo-
aspecto e pessoa-número:

27 Este sufixo ocorre como –des nos paradigmas do futuro do conjuntivo e infinitivo flexionado, e em formas
como credes, ledes, vedes. Nas restantes formas, a consoante /d/ é suprimida, o que provoca a elevação e
semivocalização da vogal seguinte, que passa a ser precedida por outra vogal (cf. falais, bateis, partis).
28 Alguns verbos irregulares (cf. dar, fazer, haver, poder, pôr, querer, saber, ser, trazer, ver) exibem contrastes
na flexão do futuro do conjuntivo e infinitivo flexionado:
couber caber disser dizer
couberes caberes disseres dizeres
coubermos cabermos dissermos dizermos
couberdes caberdes disserdes dizerdes
couberem caberem disserem dizerem

17
(28) Presente do indicativo Pretérito perfeito do indicativo29
fal o fale i
fala s fala ste
fala falo u
fala mos falá mos
fala is fala stes
fala m fala ram
Tendo em conta a análise acima apresentada, a ambiguidade que afecta as formas de terceira
pessoa do plural do pretérito-mais-que-perfeito e pretérito perfeito do indicativo (cf. falaram)
é uma ambiguidade fonética mas não estrutural: o sufixo amálgama de tempo-modo-aspecto e
pessoa-número (i.e. -ram) que está presente nas formas do pretérito perfeito é distinto da
sequência constituída por um sufixo de tempo-modo-aspecto (i.e. -ra) e um sufixo de pessoa-
número (i.e. -m), que integra as formas do pretérito-mais-que-perfeito.
Até aqui não foi feita referência ao imperativo, ao futuro do indicativo e ao condicional.
Relativamente ao imperativo, cabe uma nota particular dado que este é o único paradigma da
flexão verbal em que é necessário distinguir a forma que ocorre em frases afirmativas da
forma que ocorre em frases negativas, ainda que a distinção só afecte a segunda pessoa do
singular (cf. canta vs. não cantes). Por outro lado, à excepção da segunda pessoa do plural do
imperativo afirmativo (cf. cantai, bebei, fugi), todas as restantes são formas supletivas do
presente do indicativo e do presente do conjuntivo.
Quanto ao futuro do indicativo e ao condicional, estes paradigmas merecem uma referência
autónoma por um conjunto de razões. Note-se, por exemplo, que estas são as únicas formas
que permitem a ocorrência de mesoclíticos:
(29) falar-lhe-ei
bater-te-íamos
Do ponto de vista morfológico, a propriedade mais relevante tem a ver com o facto de estas
formas não serem estruturas morfológicas básicas. Com efeito, o futuro do indicativo e o
condicional são uma espécie particular de compostos, constituídos pela forma do infinitivo de
um verbo principal e terminações do presente do indicativo e do imperfeito do indicativo do
verbo haver, respectivamente:
(30) a. Futuro do indicativo
falar (h) ei
falar (h) ás
falar (h) á
falar (hav) emos
falar (hav) eis
falar (h) ão

29 Sobre alterações da vogal temática, ver 22.1.5.2.4.

18
b. Condicional
falar (hav) ia
falar (hav) ias
falar (hav) ia
falar (hav) íamos
falar (hav) íeis
falar (hav) iam
Falta, ainda, referir as chamadas formas nominais do verbo, ou seja, o infinitivo, o gerúndio e
o particípio passado. Nestas formas ocorre apenas um sufixo da categoria de tempo-modo-
aspecto (respectivamente, -r, -ndo e -do), sendo paradigmas defectivos em pessoa-número.
Note-se, por último, que alguns verbos são defectivos por razões de natureza fonética: vejam-
se, por exemplo, (algumas d)as formas rizotónicas30 de verbos como abolir, demolir, falir (cf.
abole, demoles, falo). Outros são defectivos por razões de natureza semântica: alguns verbos
não podem ter um sujeito [+humano], o que bloqueia a flexão de primeira pessoa singular ou
plural. É o que se passa com os verbos que referem as chamadas ‘vozes dos animais’ (cf.
ladrar, miar, zurrar), fenómenos meteorológicos (cf. chover, nevar, trovejar), ou verbos
como acontecer. Esta defectividade não afecta, no entanto, a sua morfologia: formalmente,
palavras como demoles, miei, ou ladrámos são gramaticais e em alguns registos discursivos
metafóricos elas podem mesmo ser encontradas.

18.5. A palavra

Para concluir a descrição da estrutura morfológica básica falta olhar para o nó que a domina
na sua totalidade. Palavra é, pois, a etiqueta da projecção máxima do radical, ou seja, da
unidade morfológica que domina o tema e o seu especificador, que é a flexão morfológica (=
FM):
(31) a. [[[lev]RADJ [e]IT ]TADJ [ ]FM ]ADJ singular cf. leve
[[[lev]RADJ [e]IT]TN [s] FM ]ADJ plural cf. leves
b. [[[livr]RN [o]IT]TN [ ] FM ]N singular cf. livro
[[[livr]RN [o]IT]TN [s] FM ]N plural cf. livros
c. [[[lig]RV [a]VT ]TV [[r]TMA [ ]PN ]FM ]V infinitivo cf. ligar
[[[lig]RV [a]VT ]TV [[va]TMA [mos]PN ]FM ]V imperfeito do indicativo, 1ª pessoa do plural cf.
ligávamos

30 Rizotónicas são as formas acentuadas numa sílaba do radical. Na conjugação verbal são rizotónicas as
formasde 1ª, 2ª e 3ª pessoas do singular e 3ª pessoa do plural do presente do indicativo e do presente do
conjuntivo: falo, falas, fala, falam, fale, fales, fale, falem).

19
20
19. Formação de palavras: afixação

A afixação é geralmente descrita com base nas propriedades que caracterizam os afixos
envolvidos, partindo da distinção estabelecida pela posição relativa que ocupam na estrutura
morfológica em que ocorrem. No português, os afixos disponíveis são prefixos, quando
ocorrem na periferia esquerda da forma de base (cf. 1a), e sufixos quando se encontram à
direita da forma de base (cf. 1b):
(1) a. [[prefixo] [base]] forma afixada
ex. [[in] prefixo [capaz] base]
b. [[base] [sufixo]] forma afixada
ex. [[natural] base [mente] sufixo]
A distinção entre prefixos e sufixos não é, porém, a mais produtiva para a análise
morfológica. Em primeiro lugar, esta distinção não permite a identificação dos afixos que
ocupam a posição de constituinte temático nem daqueles que ocupam as posições de flexão
morfológica. Estes afixos, que são sempre sufixos, constituem dois subconjuntos com
propriedades distintas dos restantes sufixos (i.e. dos sufixos que permitem formar novas
palavras) e também são diferentes entre si: os primeiros são especificadores morfológicos e os
segundos são especificadores morfo-sintácticos.
Em segundo lugar, pode aparentemente estabelecer-se uma distinção entre prefixos e sufixos
(à excepção dos já referidos sufixos temáticos e flexionais) com base no seu comportamento
típico:
(2)a. Os sufixos determinam a categoria sintáctica da palavra em que ocorrem:
formRN formalADJ
formalRADJ formalizaTV
formalizaTV formalizaçãoN

Os prefixos não interferem na categoria sintáctica da palavra em que ocorrem:


humanoADJ desumanoADJ
justo ADJ injustoADJ
fazerV refazerV

b. Os sufixos determinam o valor das categorias morfológicas, morfo-sintácticas e


morfo-semânticas relevantes:
normalTAdj normalizarV 1ª conjugação
normalTAdj normalidadeN feminino
normalTAdj normalidadeN massivo

Os prefixos não determinam o valor das categorias morfológicas, morfo-sintácticas e


morfo-semânticas relevantes:
atarV [1ª conj] desatarV 1ª conjugação
21
inscriçãoN [+fem] pré-inscrição N feminino
inscriçãoN [+cont] pré-inscrição N [+cont]

b. Os sufixos não podem coocorrer em posições adjacentes:


* ...[vel]] [vel]]]
* ...[ção]] [ção]]]

Os prefixos podem coocorrer em posições adjacentes:


[[super] [[super] [interessante]]]
[[re] [[re] [apreciar]]]
Mas, a existência de alguns prefixos que se comportam como sufixos31 e, sobretudo, de
sufixos que exibem o comportamento típico dos prefixos (cf. 3) mostra que a distinção em
causa não dispensa o estabelecimento de outras distinções de natureza gramatical.
(3) [dedo]N [dedão]N
[pequeno]ADJ [pequenino]ADJ
[dedo]N [dedinho]N
[fino]ADJ [fininho]ADJ
[cedo]ADV [cedinho]ADV
[bocado]N [bocadinhinhinhinho]N
Os dados apresentados em (3) mostram que alguns sufixos, particularmente os chamados
avaliativos, não determinam a categoria sintáctica, nem os valores das categorias
morfológicas, morfo-sintácticas e morfo-semânticas das palavras em que ocorrem. E que, por
outro lado, estes sufixos podem co-ocorrer em posições adjacentes. Conclui-se, assim, que as
propriedades referidas em (2) não são atribuíveis à posição que o afixo ocupa, mas sim à
função que ele desempenha na estrutura da palavra, o que justifica a distinção entre afixos
derivacionais e afixos modificadores: os afixos derivacionais exibem todas as propriedades
que em (2) estão listadas como propriedades típicas dos sufixos, e os afixos modificadores
exibem todas as propriedades que em (2) foram atribuídas aos prefixos. Os afixos
derivacionais integram, previsivelmente, estruturas de derivação (cf. 19.1) e os afixos
modificadores ocorrem em estruturas de modificação morfológica (cf. 19.3).

31 Formas como acaule ou anti-rugas exemplificam este comportamento dos prefixos: são adjectivos derivados
de nomes (respectivamente caule e rugas) por prefixação (respectivamente em a- e anti-). Estes prefixos
determinam todas as propriedades gramaticais das palavras em que ocorrem, ou seja, são o núcleo destas
estruturas. Estes casos não são frequentes no português.

22
19.1. Derivação

A estrutura morfológica básica apresentada no capítulo anterior descreve, tipicamente, a


estrutura das palavras simples do português, em que a posição de núcleo é ocupada por um
radical morfologicamente inanalisável. A estrutura das palavras complexas formadas por
derivação corresponde a uma expansão dessa estrutura. Nestes casos, a posição de núcleo é
ocupada por um radical complexo, formado por um afixo derivacional, que é o núcleo, e pelo
seu complemento, que pode ser um radical, um tema ou mesmo uma palavra, cuja estrutura
pode ser simples ou ainda complexa. Na morfologia do português, tipicamente, o
complemento precede o núcleo, ou seja, a derivação é quase exclusivamente um processo de
sufixação32:
Para a caracterização dos afixos derivacionais importa, fundamentalmente, proceder à
identificação das propriedades gramaticais das formas de base às quais os sufixos se associam
e das formas derivadas que eles integram. Por outras palavras, a especificação lexical dos
afixos derivacionais explicita o conjunto das propriedades inerentes e das propriedades de
selecção que os caracteriza e que são propriedades idiossincráticas. As propriedades inerentes
são aquelas que transmitirão à palavra derivada; as propriedades de selecção registam as
condições em que se podem associar a uma forma de base.
Vejamos, em primeiro lugar, o que diz respeito à categoria sintáctica. Os exemplos seguintes
mostram que o sufixo –ism(o) forma nomes, podendo associar-se a formas adjectivais,
nominais ou verbais (cf. 4a); o sufixo –iz(ar) forma verbos, seleccionando formas adjectivais
ou nominais (cf. 4b); e o sufixo –vel forma adjectivos, com base, exclusivamente, em temas
verbais (cf. 4c):
(4) a. decadent(e)ADJ decadentismoN
simbol(o)N simbolismoN
determin(ar)V determinismoN
b. etern(o)ADJ eternizarV
simbol(o)N simbolizarV
c. realiza(r)V realizávelADJ
A categoria sintáctica dos derivados é pois calculada a partir da categoria sintáctica dos afixos
derivacionais, o que explica por que razão derivados de uma mesma forma de base pertencem
a diferentes categorias sintácticas:
(5) simbol(o)N simbólicoADJ
simbol(o)N simbolismoN
simbol(o)N simbolizarV
A conjugação destas duas propriedades dos afixos derivacionais (i.e. a categoria sintáctica da
base e a categoria sintáctica do derivado) permite obter a seguinte classificação: são afixos de

32 Como já foi referido na nota anterior, há poucos prefixos derivacionais e a sua produtividade é baixa.

23
adjectivalização os que formam adjectivos, de adverbialização os que formam advérbios33, de
nominalização os que formam nomes, e de verbalização os que formam verbos. Estas quatro
classes subdividem-se, por sua vez, em deadjectivais, denominais e deverbais, conforme
seleccionam, respectivamente, formas adjectivais, nominais ou verbais. O quadro (6)
apresenta alguns exemplos de sufixos pertencentes a estas diferentes categorias:
(6) adjectivalização nominalização verbalização
deadjectival fraternal decadentismo eternizar
belicista magreza facilitar
claridade dignificar
alegria robustecer
denominal simbólico simbolismo simbolizar
montanhoso papelaria guerrear
cultural folhagem ramificar
cinzeiro alvorecer
abadia
deverbal realizável determinismo dormitar
proibitivo animação escrevinhar
enganador entendimento
interessante lavagem
organizador
tolerância
Para além da categoria sintáctica, os afixos derivacionais, e em particular aqueles que
seleccionam formas verbais, são sensíveis à estrutura temática e à estrutura de
subcategorização da forma derivante, estabelecendo, com base nessa informação, algumas
restrições de selecção. O sufixo –vel, por exemplo, associa-se, tipicamente, a verbos que
seleccionam um complemento directo caracterizável como tema (cf. 7a), embora também se
possa associar a verbos intransitivos, desde que o sujeito tenha o papel de tema (cf. 7b). Os
exemplos em (7c) e (7d) mostram que o argumento do verbo tem de ser um sintagma nominal
e tem de exibir a função de tema:
(7) a. A Rita bebeu [uma coca-cola]ODtema
A coca-cola é bebível
O Zé Maria apresentou [um trabalho] ODtema na escola
O trabalho estava apresentável
b. Estas pilhas vão durar um mês
Estas pilhas são duráveis
Aqui [o tempo]SUJtema varia muito
Aqui o tempo é muito*variável
c. A Vera falou com o professor [sobre o seu trabalho]SPreptema
*falável

33 O único afixo de adverbialização disponível no português é o sufixo –mente (cf. claramente). Por esta razão,
o quadro apresentado em (64) não apresenta dados sobre adverbialização.

24
d. [A Joana]SUJag sorriu
*sorrível
Por outro lado, os sufixos derivacionais também definem a estrutura argumental dos
derivados, o que é particularmente relevante nos casos de verbalização. O sufixo –iz, por
exemplo, forma verbos transitivos, cujo objecto directo tem o papel de tema:
(8) -iz: [ _ SNTema]
alfabetizar
calendarizar
concretizar
eucaliptizar
exteriorizar
modernizar
suavizar
Dados como os de (9) permitem ainda constatar que a estrutura temática dos derivados é
determinada pelo sufixo derivacional a partir da estrutura temática da forma derivante34:
(9) a. Os estudantes organizaram uma manifestação
A organização da manifestação (pelos estudantes) deu muito trabalho
Os organizadores da manifestação estão reunidos
As manifestações são organizadas pelos estudantes
As manifestações são organizáveis
b. Vou lavar o casaco
O casaco é lavável
c. A água da fonte é pura
Não é preciso purificar a água da fonte
d. Esta saia está larga
A saia alargou
A Maria alargou a saia
e. O dicionário é muito útil
A utilidade do dicionário é inegável
Uma outra restrição de selecção imposta pelos afixos derivacionais diz respeito à categoria
morfológica da forma de base. Com efeito, a postulação de três níveis hierárquicos na
estrutura básica das palavras (i.e. radical, tema e palavra) não se justifica, apenas, na sua
adequação descritiva: os diversos processos de sufixação derivacional reconhecem essa
distinção, integrando-a nas suas restrições de selecção. Esta opção é observável a partir do
seguinte conjunto de exemplos:
(10) a. fraternRADJ fraternalADJ
certRADJ certezaN

34 Sobre esta questão, ver também as secções 14.2 e 14.3.

25
dignRADJ dignificarV
gordurRN gordurosoADJ
livrRN livrariaN
espaçRN espacejarV
intrujRV intrujãoN
saltRV saltitarV
b. discutiTV discutívelADJ
curaTV curativoADJ
continuaTV continuaçãoN
seguiTV seguidorN
espacejaTV espacejamentoN
bebeTV bebedouroN
c. claraADJ claramenteADV
Os dados de (10a) mostram alguns sufixos que seleccionam radicais: -al, -ez(a) e -ific(ar)
associam-se a radicais adjectivais; -os(o), -ari(a) e –ej(ar) escolhem radicais nominais; -ão e
–it(ar) juntam-se a radicais verbais.
Os sufixos derivacionais que seleccionam radicais como forma de base são os únicos que
podem associar-se a formas pertencentes a diferentes categorias sintácticas:
(11) formalRADJ formalismo
raçRN racismo
35
humanR[+N] humanismo
determinRV determinismo
Os dados de (10b) mostram sufixos que seleccionam temas e mostram também que estas
formas de base são sempre temas verbais: todos os sufixos que seleccionam formas temáticas
(e.g. –vel, -tivo, -ção, -dor, -mento, -douro) ocorrem em formas derivadas deverbais. Como já
foi referido, nestes casos os sufixos devem especificar a subclasse de tema verbal que
seleccionam. O tema verbal do infinitivo é seleccionado por um grande número de sufixos (cf.
12a), o tema verbal do passado é seleccionado por –ção, –mento e –vel (cf. 12b) e o tema
verbal do presente é seleccionado por –ndo e –ncia (cf. 12c):
(12) a. -dor domina(r) dominador
responde(r) respondedor cf. *respondidor
transferi(r) transferidor cf. *transferedor
-dela espia(r) espiadela
varre(r) varredela cf..*varridela
cuspi(r) cuspidela cf. *cuspedela
-deira torra(r) torradeira
bate(r) batedeira cf. *batideira

35 R[+N] identifica o radical de palavras que ocorrem quer como adjectivos, quer como nomes.

26
frigi(r) frigideira cf. *frigedeira
-dio resvala(r) resvaladio
corre(r) corredio cf. *corridio
fugi(r) fugidio cf. *fugedio
-dura belisca(r) beliscadura
coze(r) cozedura cf. *cozidura
poli(r) polidura cf. *poledura
-nte domina(r) dominante
corresponde(r) correspondente cf. *correspondinte
pedi(r) pedinte cf. *pedente
b. -ção educa(do) educação
perdi(do) perdição cf. *perdeção
demoli(do) demolição cf. *demoleção
-mento aperfeiçoa(do) aperfeiçoamento
adormeci(do) adormecimento cf. *adormecemento
descobri(do) descobrimento cf. *descobremento
-vel domina(do) dominável
repondi(do) respondível cf. *respondével
transferi(do) transferível cf. *transferével
c. -ndo educa educando
elege elegendo
divide dividendo cf. *dividindo
-ncia domina dominância
corresponde correspondência
transfere transferência cf. *transferíncia
Por último, o exemplo registado em (10c) mostra um sufixo que selecciona uma palavra como
forma de base. O único sufixo do português que tem este comportamento é o sufixo -mente,
que selecciona adjectivos femininos ou invariáveis em género36 (cf. 13a) e flexionados no
singular (cf. 13b). Note-se que quando a forma de base é um adjectivo derivado em -vel, é
essa a forma do sufixo que ocorre, porque essa é a forma que o sufixo assume quando está em
posição final de palavra. Nos casos em que o adjectivo derivado em -vel é seleccionado por
sufixos que se associam a radicais adjectivais, o sufixo ocorre com a forma -bil (cf. 13c).
(13) a. claramente cf. *claromente
presentemente
b. amavelmente cf. *amavei(s)mente

36 Portuguesmente, que é um contra-exemplo à restrição enunciada, é uma palavra lexicalizada: a sua formação
ocorreu, certamente, num momento em que o sufixo –ês não admitia contrastes de género.

27
c. amavelmente cf. *amabilidade
Note-se que estes são os únicos derivados em que a vogal tónica da forma de base fica imune
aos efeitos do vocalismo átono37:
(14) clar RADJ cl[ ]ridade N
clara ADJ cl[ ]ramente ADV
Note-se ainda que só neste caso, ou seja, quando a forma de base é uma palavra, é que a
coordenação de derivados permite a supressão do sufixo do primeiro termo coordenado:
(15) seca e apressadamente
Os exemplos anteriores mostram também que a categoria morfológica da sequência resultante
da adjunção de um sufixo derivacional a uma forma de base é invariavelmente um radical:
trata-se do radical derivado que, na estrutura básica das palavras, ocupa a mesma posição que
o radical das palavras simples.
Quanto às restantes propriedades morfológicas, sintácticas e semânticas dos derivados, elas
são definidas para cada classe de palavras. Assim, aos sufixos de nominalização compete a
determinação do género dos derivados:
(16) a. raçRN[+fem] racismoN[-fem]
capitalRN[-fem] capitalismoN[-fem]
b. dignificaTV dignificaçãoN[+fem]
dinamizaTV dinamizaçãoN[+fem]
fundamentaTV fundamentaçãoN[+fem]
articulaTV articulaçãoN[+fem]
ensurdeciTV ensurdecimentoN[-fem]
condicionaTV condicionamentoN[-fem]
tracejaTV tracejamentoN[-fem]
congelaTV congelaçãoN[+fem]
congelaTV congelamentoN[-fem]
deslocaTV deslocaçãoN[+fem]
deslocaTV deslocamentoN[-fem]
Os sufixos de nominalização também definem os valores de traços morfo-semânticos, como
[ animado] e [ contável]. Formas como cinzeiro e mosquiteiro mostram que esses valores
não podem ser calculados a partir do valor que possuem na forma de base:
(17) folhRN[+cont] folhagemN[-cont]
cinzRN[-cont] cinzeiroN[+cont]
mosquitRN[+cont] mosquiteiroN[+cont]
canRN[+anim] canilN[-anim]
jornalRN[-anim] jornalistaN[+anim]

37 Os sufixos z-avaliativos provocam um efeito semelhante, mas não são sufixos derivacionais - são
modificadores e deles se ocupará a secção 19.3.1.

28
Aos sufixos de adjectivalização compete a especificação da possibilidade de variação em
género:
(18) horrorRN[-fem] horrorosoADJ[-fem] / horrorosa ADJ[+fem]
temiTV temívelADJ[ fem]
Os sufixos de verbalização especificam a conjugação a que o verbo derivado pertence:
(19) modernRADJ modernizarV[1ª conj]
robustRADJ robustecerV[2ª conj]
Note-se, por último, que a derivação é um processo recursivo: o complemento seleccionado
por um afixo derivacional pode ser, ele próprio, uma forma derivada. É o que se verifica em
casos como formalização. Os exemplos seguintes permitem, aliás, constatar que a presença de
alguns sufixos potencia a ocorrência de outros:
(20) ção cf. dignificação
ific(a) dor cf. falsificador
vel cf. justificável

ção cf. modernização


iz(a) ção
dor cf. realizador
vel cf. uniformizável
do
ific dor
vel

mento cf. envelhecimento


ec(i/e)
ific
ção
do
dor
vel
dor cf. endurecedor
Os sufixos derivacionais que participam em palavras com uma estrutura composicional no
português, e que, consequentemente, poderão ser utilizados na formação de novas palavras,
estão listados no anexo que se encontra no final deste capítulo

19.2. Derivação parassintética e conversão

A derivação parassintética, que pode ser exemplificada por formas como enfraquecer ou
esbracejar, é particularmente frequente na formação de verbos deadjectivais ou denominais,
embora também se verifiquem alguns casos de adjectivalização:
(21) en [fraqu] RADJ ecer
es [braç]RN ejar
en [son]RN ado/a
Geralmente, a parassíntese é descrita como um processo de prefixação e sufixação
simultâneas38, dado que tanto a prefixação da forma de base quanto a sua sufixação geram
formas não atestadas na língua:
(22) *enfraco/aADJ *fraquecerV

38 Cf. Basílio 1992.

29
*esbraçoN *bracejarV
*ensonoN *sonado/aADJ
De acordo com esta descrição, a estrutura das formas parassintéticas é uma estrutura ternária.
Note-se, porém, que os sufixos que integram as formas parassintéticas também permitem
formar verbos por simples sufixação, ou seja, nenhum dos sufixos que ocorre na parassíntese
é exclusivo da parassíntese ou inexistente em estruturas de derivação não parassintética39:

(23) pentRN pentear


escurRADJ escurecer
pestanRN pestanejar
fragilRADJ fragilizar
Por outro lado, os exemplos seguintes mostram que algumas formas parassintéticas não
integram qualquer sufixo derivacional. Presente no verbo parassintético está a sequência -ar,
que é constituída pela vogal temática40 e por um sufixo de flexão:
(24) a. lisRADJ a lis ar
bravRADJ des brav ar
gordRADJ en gord ar
friRADJ es fri ar
b. campRN a camp ar
tronRN des tron ar
barcRN em barc ar
farelRN es farel ar
patriRN ex patri ar
fogRN re fog ar
Os dados de (24) permitem aproximar a parassíntese da formação de verbos por conversão41:
o que distingue a conversão da parassíntese é justamente a presença de um prefixo nesta
última. Num caso e noutro, o radical adjectival ou nominal é integrado numa nova categoria
sintáctica, sem qualquer alteração formal. O que distingue estas formas são o especificador
morfológico e os sufixos de flexão exigidos pelas respectivas categorias sintácticas:
(25) olh RN o olh RV ar
rem RN o rem RV ar

39 O sufixo que ocorre na formação de adjectivos parassintéticos assemelha-se ao sufixo do particípio passado,
mas a semelhança é superficial: no primeiro caso o sufixo é -ad(o/a) e no segundo caso é -do. Só o particípio
passado de verbos da primeira conjugação terminam em -ado, mas neste caso -a- é a vogal temática do verbo,
não faz parte do sufixo.
40 Todos os parassintéticos com esta estrutura são verbos da primeira conjugação.
41 Esta designação é utilizada em substituição de 'derivação regressiva' e de 'derivação imprópria', dado que estes
tipos de formação de palavras não tem qualquer semelhança com os processos derivacionais canónicos que têm
nos afixos uma componente nuclear (ver 21.4.1). A distinção entre 'derivação regressiva' e 'derivação imprópria'
advém do facto de, no primeiro caso, a conversão afectar um radical (cf. chorRV), gerando um radical de outra
categoria sintáctica (cf. chorRN) que necessitará dos seus especificadores para ocorrer como palavra (cf. choroN),
enquanto que, no segundo caso, a conversão afecta palavras (cf. olharV), gerando uma palavra pertencente a uma
outra categoria sintáctica (cf. olharN).

30
Quanto aos prefixos que integram as estruturas parassintéticas, eles não formam um conjunto
homogéneo. Aqueles que detêm uma função semântica composicional são prefixos
independentemente existentes no português (cf. 26a), os restantes, que têm uma mera função
fática, de reforço expressivo, não ocorrem em nenhum outra construção morfológica do
português (cf. 26b):
(26) a. descafeinar
descaroçar
b. abrilhantar
embelezar
esbranquiçar
Paralelamente, verifica-se que os verbos parassintéticos coexistem, em alguns casos, com
verbos em que o prefixo não está presente, ainda que sejam frequentemente assinalados (nos
dicionários42) como 'arcaismos' ou 'provincianismos'. Geralmente, o valor semântico é
idêntico (cf. 27a). Este contraste é também visível em pares de formas pertencentes a
diferentes sincronias do português (cf. 27b), em formas pertencentes a diferentes variedades
do português (cf. 27c) e em formas cognatas que, em línguas diferentes, podem ocorrer ou não
como parassintéticos (cf. 27d):
(27) a. aparafusar parafusar
emoldurar moldurar
encaracolar caracolar cf. caracolear
escavacar cavacar cf. cavaquear
engravidar gravidar
elanguescer languescer
enquadrar quadrar
esfarrapar farrapar
b. apacificar43 pacificar
c. baralhar embaralhar44
gatinhar engatinhar45
d. Português Castelhano Francês Inglês
abotoar abotonar boutonner button
enriquecer enriquecer enrichir enrich
aprofundar profundizar approfondir ---------------
Note-se que o inverso de (27a), ou seja, a coexistência de um verbo simples com um
parassintético estranho à norma do português, está igualmente atestado:
(28) baixar abaixar

42Os dados aqui registados foram recolhidos no DLP.


43 Esta forma ocorre na carta de Pêro Vaz de Caminha (1500).
44 Forma atestada no português do Brasil.
45 Forma atestada no português do Brasil.

31
calcar acalcar
limpar alimpar
mandar amandar
Pode, pois, admitir-se que os verbos referidos em (24) são derivados por conversão (a partir
de um radical adjectival ou nominal), tal como os de (25), mas no primeiro caso a adjunção do
prefixo é obrigatória. Ao prefixo compete a actualização de um radical verbal possível mas
inexistente no léxico do português num radical verbal possível e existente.
As combinações de prefixos e sufixos, ou ausência de sufixo, que participam em estruturas
parassintéticas verbais são as seguintes:

(29) Base ADJ -e- -ec- -ej- Sem sufixo


a- aformosear amolecer anegrejar alisar
des- desbastecer desbravar
en-/em- engalhardear empalidecer enverdejar encurtar
es- esverdear esclarecer esbravejar esfriar
re- relouquear requentar

Base N -e- -ec- -ej- -iz- Sem sufixo


a- asenhorear anoitecer apedrejar aterrorizar abastardar
des- descantear descasquejar desratizar descafeinar
en-/em- enlamear enraivecer encarvoejar encolerizar embelezar
es- esfaquear espavorecer esbracejar espavorizar espalmar
ex- expatriar
re- recensear repatriar

19.3. Modificação morfológica

As estruturas de modificação podem ser exemplificadas pelas seguintes formas, geradas


respectivamente por sufixação (30a) e por prefixação (30b):
(30) a. livrinho
pijaminha
pãozinho
pijamazinho
interessantíssimo
b. injusto
desligar

32
recomeçar
pré-história
super-interessante
Os afixos modificadores formam um conjunto autónomo, dado que o seu comportamento é
distinto do comportamento dos afixos derivacionais: os afixos modificadores não determinam
as propriedades gramaticais das formas que integram, competindo-lhes, exclusivamente,
alterar a informação semântica do núcleo. Veja-se, por exemplo, que a categoria sintáctica da
forma de base e a categoria sintáctica da forma que contém o sufixo –inho é sempre a mesma:
quando se associa a um adjectivo gera um adjectivo, quando se associa a um nome gera um
nome, quando se associa a um advérbio gera um advérbio.
(31) baratoAdj baratinhoAdj
sinoN sininhoN
cedoAdv cedinhoAdv
De igual modo, os afixos modificadores preservam as propriedades morfo-sintácticas das
formas de base, como a conjugação dos verbos ou o género dos nomes:
(32) a. atacarV[1ª conj.] contra-atacarV[1ª conj.]
verV[2ª conj.] reverV[2ª conj.]
polirV[3ª conj.] despolirV[3ª conj.]
b. casaN[+fem] casinhaN[+fem]
livroN[-fem] livrinhoN[-fem]
maridoN[-fem] ex-maridoN[-fem]
mulherN[+fem] ex-mulherN[+fem]
Este comportamento dos afixos modificadores mostra que o processo em que participam é um
processo de adjunção: os afixos modificadores adjungem-se a uma forma de base, um radical
ou uma palavra, constituinte que se mantém como núcleo dessa estrutura morfológica. Não
devem, pois, os afixos modificadores ser confundidos com os afixos derivacionais que geram
palavras cuja categoria sintáctica é idêntica à da forma de base. Neste caso, o afixo assume a
função de núcleo do derivado, determinando não só a categoria sintáctica, como todas as
propriedades gramaticais dos derivados (i.e. género, conjugação, traços semânticos, etc). O
comportamento dos afixos derivacionais isocategoriais pode ser observado a partir do seguinte
conjunto de exemplos:
(33) -aça [[calor]RN[-fem] aça]N[+fem]
[[car]RN[+fem] aça]N[+fem]
-agem [[folh]RN[+fem, +contável] agem]N[+fem, -contável]
-ário [[estagi]RN[-fem, -humano] ário]N[-fem, +humano]
-ia [[abad]RN[-fem, +humano] ia]N[+fem, -humano]
-inhar [[escrev]RV[2ª conj] inhar]V[1ª conj]
-ismo [[simbol]RN[-fem] ismo]N[-fem]

33
[[decadent]RADJ ismo]N[-fem]
[[determin]RV ismo]N[-fem]
A modificação morfológica abrange diversos processos morfo-semânticos, destacando-se,
pela sua produtividade, a sufixação avaliativa, que inclui a formação dos chamados
aumentativos e diminutivos e do superlativo absoluto sintético dos adjectivos, e alguns tipos
de prefixação. Estes processos serão descritos nas duas secções seguintes.

19.3.1. Sufixação avaliativa

Os dados de (34a) exemplificam os casos típicos de sufixos modificadores: trata-se,


exclusivamente, dos chamados sufixos diminutivos, aumentativos e dos sufixos de grau.
Tendo em conta que a descrição da interpretação semântica das palavras que estes sufixos
integram é complexa46, não se esgotando na expressão de dimensões (que os termos
diminutivo e aumentativo consagram), e admitindo que, qualquer que seja o efeito concreto da
adjunção de um destes afixos, todos eles exprimem um juízo de valor do locutor relativamente
ao conteúdo semântico da forma de base, adopta-se, para os identificar, a designação de
avaliativos.
Uma das questões mais interessantes relacionadas com a morfologia dos avaliativos diz
respeito à existência de duas séries paralelas de sufixos, que se distinguem pela ausência ou
presença da consoante [z] no início da sequência. Considerem-se os seguintes exemplos:
(34) a. -inho cf. livrinho
-zinho cf. bombonzinho
b. -ito cf. carrito
-zito cf. pãozito
c. -ão cf. dedão
-zão cf. pezão
Tradicionalmente, esta consoante é considerada como um elemento de ligação que, sob certas
condições, se interpõe entre a forma de base e o sufixo. Na verdade, trata-se de diferentes
sufixos, dado que as formas de base a que se associam exibem diferentes propriedades. Estes
diferentes sufixos tomam o nome de sufixos avaliativos e sufixos z-avaliativos.
O principal contraste entre estes dois tipos de sufixos está relacionado com a categoria
morfológica da forma de base: os sufixos avaliativos associam-se a radicais, enquanto que os
sufixos z-avaliativos se associam a palavras.
Note-se que o índice temático das formas que contêm um sufixo avaliativo é o índice temático
da forma de base (cf. 35a), quando a forma de base é uma palavra de tema em -a ou de tema
em -o, independentemente do seu valor de género. Pelo contrário, quando está presente um
sufixo z-avaliativo, o índice temático da forma de base ocorre na sua posição original, e o

46 Ver Rio-Torto (1993).

34
sufixo z-avaliativo é especificado por um índice temático próprio, determinado pelo valor de
género da base (cf. 35b):
(35) a. livr RN[-fem] inh o N[-fem]
canet RN[+fem] inh a N[+fem]
pijam RN[-fem] inh a N[-fem]
trib RN[+fem] inh o N[+fem]
b. livr RN[-fem] o zinh o N[-fem]
canet RN[+fem] a zinh a N[+fem]
pijam RN[-fem] a zinh o N[-fem]
trib RN[+fem] o zinh a N[+fem]
Quando a forma de base é uma palavra de tema em -e ou de tema Ø, tanto o sufixo avaliativo
como o sufixo z-avaliativo são especificados por um índice temático que concorda com o
valor de género da base, sendo -a para o feminino e -o para o masculino:
(36) a. sabonet RN[-fem] inh o N[-fem]
sement RN[+fem] inh a N[+fem]
papel RN[-fem] inh o N[-fem]
espiral RN[+fem] inh a N[+fem]
b. sabonet RN[-fem] e zinh o N[-fem]
sement RN[+fem] e zinh a N[+fem]
papel RN[-fem] Ø zinh o N[-fem]
espiral RN[+fem] Ø zinh a N[+fem]
Note-se, por outro lado, que a forma de base seleccionada pelos sufixos z-avaliativos exibe
contrastes de género e de número, contrariamente ao que se verifica com os sufixos
avaliativos:
(37) nuinho nuzinho
nuinha nuazinha
animalinho animalzinho
animalinhos animaizinhos
Por último, nas palavras que integram um sufixo z-avaliativo, a vogal tónica da forma de base
é preservada, contrariamente ao que sucede nas formas que integram sufixos avaliativos.
Neste caso, a vogal tónica da forma de base está sujeita ao processo geral de elevação das
vogais átonas:
(38) d[ ]d inho
d[ ]do zinho
p[ ]rn inha
p[ ]rna zinha
palh[ ]c inho
palh[ ]ço zinho
esc[u]v inha
esc[o]va zinha

35
s[ ]l inho
s[ ]l zinho
Aparentemente, a coexistência dos sufixos avaliativos e z-avaliativos duplica os recursos
disponíveis, mas o que se verifica é que o uso preferencial parece ser sensível a dois factores:
o número de sílabas da forma de base e o universo semântico a que essas formas pertencem.
Os sufixos avaliativos são preferidos por bases com menor número de sílabas e um elevado
índice de ocorrência no vocabulário do quotidiano; os sufixos z-avaliativos são preferidos nos
restantes casos:
(39) livrinho cf. */? livrozinho
cadeirinha cf. */? cadeirazinha
percursozinho cf. */? percursinho
rendimentozinho cf. */? rendimentinho
As preferências acima referidas permitem, no entanto, que em muitos casos a escolha resulte
apenas dos gostos ou dos hábitos linguísticos dos falantes, sobretudo quando se trata de
palavras de tema em -e ou de tema Ø:
(40) dinheirinho vs dinheirozinho
almofadinha vs almofadazinha
bifinho vs bifezinho
postalinho vs postalzinho
A única restrição atestada é a que impede a adjunção de sufixos avaliativos a palavras
atemáticas:
(41) *caféinho cf. cafezinho
*ladrãoinho cf. ladrãozinho
*cacauinho cf. cacauzinho
Note-se, por último, que -inho e -zinho não são os únicos sufixos deste tipo disponíveis no
português. Estes são talvez os mais frequentes em alguns dialectos, nomeadamente no dialecto
de Lisboa, mas os recursos são mais extensos. Não são, no entanto, tão extensos quanto o
habitualmente referido, dado que as listagens disponíveis integram sufixos que não cabem na
definição aqui apresentada de afixos modificadores. Considerem-se os seguintes exemplos:
(42) a. film RN[-fem] aço N[-fem]
febr RN[+fem] aço N[-fem]
carr RN[-fem] ão N[-fem]
pern RN[+fem] ão N[-fem]
rapaz RN[-fem] ote N[-fem]
caix RN[+fem] ote N[-fem]
dram RN[-fem] alhão N[-fem]
fac RN[+fem] alhão N[-fem]
b. peit RN[-fem] aça N[+fem]

36
cen RN[+fem] aça N[+fem]
molh RN[-fem] anga N[+fem]
unh RN[+fem] anga N[+fem]
beij RN[-fem] oca N[+fem]
pern RN[+fem] oca N[+fem]
dent RN[-fem] ola N[+fem]
graç RN[+fem] ola N[+fem]
Os dados de (42) mostram que estes sufixos definem o valor de género (cf. caixote, peitaça),
pelo que são sufixos derivacionais, responsáveis pela formação de hipónimos: caixote é um
'tipo de caixa', peitaça é um 'tipo de peito'. Estes sufixos são muito numerosos, mas pouco
produtivos:
(43) casa casebre
folha folheto
guitarra guitarréu
bife bifana
bolo bolacha
carro carroça
livro livrete
cravo cravina
giesta giestelo
abelha abelhuco
aranha aranhiço
cabra cabrão
galo galinha
lebre lebracho
mosca moscardo
O contraste entre avaliativos e estes sufixos derivacionais pode, ainda, ser visto a partir do
conjunto de formas em (44). Nestes exemplos verifica-se que a interpretação semântica das
palavras em que está presente o sufixo avaliativo (i.e. -ona) é muitíssimo mais previsível do
que a interpretação das palavras onde está presente o sufixo derivacional (i.e. -ão):
(44) caixa caixona caixão
carta cartona cartão
flor florona florão
garrafa garrafona garrafão
palavra palavrona palavrão
porta portona portão
pulga pulgona pulgão
Note-se, por último, que só os sufixos avaliativos podem dispor de sufixos concorrentes z-
avaliativos:

37
(45) a. mulheraça mulherzaça
lojeca lojazeca
livrinho livrozinho
carrito carrozito
vidoca vidazoca
mulherona mulherzona
ilhota ilhazota
anelucho anelzucho
b. riacho *riozacho
gentalha *gentezalha
casebre *casazebre
fitilho *fitazilha / *fitazilho
festim *festazim
quintalório *quintalzório
dentuça *dentezuço / *dentezuça

19.3.2. Prefixação

Como já foi dito, os prefixos modificadores são afixos que não determinam a categoria
sintáctica da palavra em que ocorrem (cf. 46a), nem o valor das categorias morfológicas,
morfo-sintácticas e morfo-semânticas relevantes (cf. 46b) e que podem coocorrer em posições
adjacentes (cf. 46c):
(46) a. humanoADJ desumanoADJ
amorN desamorN
justoADJ injustoADJ
verdadeN inverdadeN
deferirV indeferirV
fazerV refazerV
b. atarV [1ª conj] desatarV [1ª conj]
aprenderV [2ª conj] desaprenderV [2ª conj]
comprimirV [3ª conj] descomprimirV [3ª conj]
inscriçãoN [+cont, +fem] pré-inscriçãoN [+cont, +fem]
avisoN [+cont, -fem] pré-avisoN [+cont, -fem]
existênciaN [-cont, +fem] pré-existênciaN [-cont, +fem]
c. [[super] [[super] [interessante]]]
[[re] [[re] [apreciar]]]
No que diz respeito às suas propriedades de selecção, constata-se que, de um modo geral, as
restrições dos prefixos modificadores são menos limitadoras do que as dos sufixos

38
derivacionais (vejam-se os exemplos em (4) de 19.1) e mais limitativas do que as dos sufixos
avaliativos e z-avaliativos (vejam-se os exemplos em (31) de 19.3). Note-se que prefixos
como super- ou in- podem adjungir-se quer a adjectivos, quer a nomes, quer mesmo a verbos,
embora a sua ocorrência típica seja a primeira:
(47) super-interessanteADJ
super-carroN
super-curtirV
injustoADJ
inverdadeN
indeferirV
No que diz repeito à categoria morfológica da forma de base, a existência de prefixos tónicos,
como por exemplo super- ou pré-, indicia que a forma de base, nesses casos, é uma palavra; a
existência de prefixos átonos (cf. des-, in-, re-) aponta para que a sua forma de base seja um
radical. Note-se que só nestes últimos casos se verifica a ocorrência de derivação subsequente
à prefixação (cf. montar  desmontar  desmontável).
Os prefixos modificadores distribuem-se por diferentes categorias morfo-semânticas. No
português as mais relevantes são as seguintes:
(48) avaliativos: infra- ex. infra-estrutura
macro- ex. macro-economia
maxi- ex. maxi-saia
mega- ex. mega-concerto
mini- ex. mini-mercado
micro- ex. micro-clima
super- ex. super-interessante
negação: des- ex. desleal
in- ex. injusto
oposição: des- ex. desligar
quantificação: uni- ex. unicelular
bi- ex. bi-motor
tri- ex. tripé
referência espacial: ante- ex. ante-câmara
sobre- ex. sobrepor
sub- ex. subcave
referência temporal: pré- ex. pré-história
pós- ex. pós-produção
repetição: re- ex. recomeçar
Esta listagem exclui um grande número de formas habitualmente consideradas como prefixos
(cf. abster, adjunto, decair, ingerir, objecto, perfurar, prosseguir, anónimo, diacronia,

39
epiderme, simpatia), dado que todas ou quase todas as suas ocorrências estão lexicalizadas:
ou a base é ininterpretável no português (cf. *jecto, *patia), ou o prefixo não tem um valor
semântico conhecido e estável (cf. ab-, an-). Estes prefixos foram, talvez, produtivos em latim
ou em grego antigo, mas no português não o são.
Com efeito, no português, os prefixos com maior grau de intervenção não são muito
numerosos: des- com valor negativo associado a bases adjectivais, des- com valor de oposição
associado a verbos, in- com valor negativo associado a bases adjectivais; re- com valor de
repetição associado a verbos, super- que é um avaliativo e pré- e pós- que são prefixos de
referência temporal, são os mais frequentes:
(49) desleal
desfazer
inútil
refazer
super-caro
pré-aviso
pós-parto

40
ANEXO - Sufixos derivacionais47:

Sufixos Exemplos
-aça caloraça, caraça
-aco / -aca maníaco, maníaca
-aco / -aca velhaco, velhaca
-aço talentaço, vergonhaço
-ada cotovelada, canelada, chicotada, bengalada
-ada arrozada, laranjada
-ada noitada, invernada
-ada criançada, cachorrada
-ada americanada, canalhada
-ado aprendizado, comissariado
-ado bocado, braçado
-ado cortinado, eleitorado
-ado / -ada brasonado, brasonada
-agem armazenagem
-agem folhagem
-al teatral
-al laranjal
-ar espectacular
-ama dinheirama
-ame vasilhame
-ano / ana alentejano, alentejana
-ano / ana microbiano, microbiana; bacteriano, bacteriana
-ão /-ã beirão, beirã
-ão / -ona trintão, trintona
-ão / -oa leitão, leitoa
-ão empurrão

47 Esta listagem não é exaustiva, mas cobre a maior parte dos recursos morfológicos derivacionais disponíveis
no Português.

41
-ão chorão, respondão
-ão salão
-aria alfaiataria, cervejaria
-aria barbearia
-aria gritaria, maquinaria
-ário / -ária lendário, lendária
-ário / -ária estagiário, estagiária
-ário anedotário, mobiliário
-ática problemática
-ático / ática traumático, traumática
-ato anonimato
-ato iodato
-ção amortização, arguição
-deira torradeira, batedeira, frigideira
-dora empilhadora
-dor / dora apresentador, apresentadora
-dor / dora assimilador, assimiladora
-dor / -deira vendedor, vendedeira
-dor aspirador
-douro ancoradouro, comedouro, encobridouro
-douro / -doura duradouro, duradoura
-ecer favorecer, obscurecer
-edo folguedo
-edo vinhedo
-eira bananeira
-eira azeitoneira
-eira barulheira
-eira canseira
-eira cegueira
-eiro / -eira peixeiro, peixeira
-eiro / -eira beijoqueiro, beijoqueira

42
-eiro açucareiro
-eiro nevoeiro
-eiro coqueiro
-eiro cativeiro
-ejar gaguejar, espacejar
-engo mulherengo
-enho / -enha nortenho, nortenha
-eno / -ena chileno, chilena
-ense madeirense
-ento / -enta bolorento, bolorenta
-eo / -ea jasmíneo, jasmínea
-ês / -esa chinês, chinesa
-esco / -esca animalesco, animalesca
-estre terrestre
-eu / -eia europeu, europeia
-ez altivez
-eza beleza
-ia alegria
-io / -ia algarvio, algarvia
-io compadrio
-io pastio
-ice burrice
-ície imundície
-ício / -ícia alimentício, alimentícia
-ício / -ícia natalício, natalícia
-ico / -ica alcoólico, alcoólica
-idade dignidade
-idão podridão
-il estudantil
-ino / -ina esquerdino, esquerdina
-ismo analfabetismo, estilismo, conformismo

43
-ista activista, aderecista, conformista
-ita moscovita
-ite laringite
-itude plenitude
-izar suavizar, computadorizar
-mento alargamento, aborrecimento, fingimento
-ncia tolerância, antecedência, afluência
-nte tolerante, antecedente, afluente
-onho / -onha medonho, medonha
-oso / -osa caloroso, calorosa
-tória convocatória
-tório / -tória condenatório, condenatória
-tório reservatório
-udo / -uda sortudo, sortuda
-ugem penugem
-ume azedume
-ume ardume
-ura ternura
-vel palpável, bebível, temível

44
20. Formação de palavras: composição

A composição é um processo de formação de palavras que consiste na concatenação de duas


ou mais variáveis lexicais, que podem ser radicais ou palavras. No português, há dois tipos de
composição, entre os quais é possível estabelecer uma clara proximidade semântica48: trata-se
da composição morfológica, que concatena radicais segundo os princípios da formação
morfológica de palavras, e da composição morfo-sintáctica, que é um processo híbrido de
formação de palavras, no qual se conjugam propriedades das estruturas sintácticas e
propriedades das estruturas morfológicas:
(1) Compostos morfológicos Compostos morfo-sintácticos
herbívoro papa-formigas
(= X que come ervas) (= X que come formigas)
biblioteca guarda-jóias
(= depósito de livros) (= depósito de jóias)
luso-brasileiro surdo-mudo
(= português e brasileiro) (= surdo e mudo)
A estrutura dos compostos morfológicos é, no entanto, muito diferente da estrutura dos
compostos morfo-sintácticos. Veja-se, por exemplo, a forma como estes dois tipos de
compostos realizam os contrastes de género e a flexão em número, em estruturas adjectivais
muito próximas:
(2) Compostos morfológicos Compostos morfo-sintácticos
luso-brasileiro surdo-mudo
luso-brasileira surda-muda
cf. *lusa-brasileira cf. *surdo-muda
luso-brasileiros surdos-mudos
cf. *lusos-brasileiros cf. *surdo-mudos
As secções seguintes apresentam uma descrição das principais propriedades destes dois tipos
de composição.

20.1. Composição morfológica

Na tradição gramatical portuguesa, formas como ortografia ou sócio-cultural não são


consideradas compostos49, ou são tratadas como compostos literários50 ou eruditos51. A este

48 Esta é uma distinção semelhante à que se verifica entre a derivação e a composição, em casos como afiador vs
afia-lápis.
49 Cf. Said Ali (1931, 1964: 229, 258).

45
estatuto não é, certamente, alheio o facto de muitos dos constituintes deste tipo de compostos
serem empréstimos gregos (cf. 3a) ou latinos (cf. 3b), e o facto de serem particularmente
frequentes em terminologias científicas e técnicas:
(3) a. hemograma52
cardiopatia53
b. herbicida54
fusiforme55
Note-se, no entanto, que este processo também está disponível para a formação de
neologismos no português, quer a partir de empréstimos de outras línguas (cf. samba56 em
sambódromo, skate57 em skatódromo), quer com base em formas que integram o léxico do
português, tendo origem latina (cf. luso-descendente, ministricida), ou não (cf. sal58 em
salódromo). Por outro lado, estes radicais podem ter uma estrutura morfológica simples (cf.
[rat]i[cid]a) ou complexa (veja-se o segundo radical de luso-[[brasil]eir]o, que é um radical
derivado).
Assim, pode descrever-se a composição morfológica como um processo de concatenação de
dois ou mais radicais, que exige a presença de uma vogal de ligação como delimitador da
fronteira entre esses radicais. Os radicais que integram este tipo de compostos podem
estabelecer entre si uma relação de modificação (cf. 20.1.1) ou uma relação de coordenação
(cf. 20.1.2).

20.1.1. Estruturas de modificação

Os compostos morfológicos com estrutura de modificação são formas de núcleo à direita,


como se pode constatar a partir da observação dos seguintes dados:
(4) [cron]ómetro iso[cron]ia
[tecn]ocracia piro[tecn]ia
Comparem-se, por exemplo, as formas tecnocracia e pirotecnia que partilham o radical
tecn59. Considerando que tecn pode ter como glosa ‘arte, ofício, técnica’, crac / crat ‘domínio,
poder’ e pir ‘fogo’, as formas em consideração podem ser parafraseadas da seguinte forma60:

50 Cf. Nunes (1919, 1975: 398-404).


51 Cf. Cunha e Cintra (1984, 1991: 109).
52 Do grego ha ma, «sangue» e grámma, «registo».
53 Cf. DLP. Do grego kardía, «coração» e páthos, «doença».
54 Cf. DLP. Do latim herba-, «erva» e caedere, «matar».
55 Cf. DLP. Do latim fusu-, «fuso» e form- também de origem latina, que exprime a ideia de forma.
56 Cf. DLP. Samba é um empréstimo do quimbundo.
57 Cf. DLP. Skate é um empréstimo do inglês.
58 Sal é um acrónimo formado a partir da expressão Semana Académica de Lisboa.
59 Habitualmente, a forma de citação destes radicais inclui a vogal de ligação (i.e. tecno-, piro-, etc). Note-se,
porém, que a vogal de ligação que ocorre nas formas que integram estes radicais nem sempre é aquela que ocorre
na forma de citação (cf. ministricida, ministrocracia) e que nem sempre estes radicais são seguidos de uma vogal

46
(5) tecnocracia = ‘poder da técnica’
pirotecnia = ‘arte do fogo’
A posição que o radical ocupa na estrutra do composto é, pois, determinante para a
interpretação da palavra. Note-se que os exemplos anteriores faziam uso de dois radicais
neoclássicos de natureza nominal. A posição de modificador, e apenas essa, pode também ser
ocupada por um radical de natureza adjectival:
(6) [cali]61grafia
[ort]62opedia
Este tipo de compostos pode integrar mais do que dois radicais. É o que se verifica em casos
como termo-vasodilatador. A estrutura deste tipo de compostos não é, porém, uma estrutura
ternária. O primeiro modificador (i.e. term) tem escopo sobre toda a sequência à sua direita,
ou seja, sobre o composto que já integra um modificador:
(7)[term [[o] vasodilatador]

20.1.2. Estruturas de coordenação

Os compostos morfológicos que têm uma estrutura de coordenação são sempre formas
adjectivais:
(8) político-cultural
luso-brasileiro
afro-luso-brasileiro
sócio-político-cultural
De um modo geral, a interpretação destes compostos pode ser do tipo dvandva ou
karmadharaya63, mas, em muitos casos, a distinção só pode ser estabelecida com base num
contexto mais alargado. A estrutura destes compostos é, pois, ambígua, no que diz respeito à
sua interpretação: o composto luso-brasileiro, por exemplo, permite as duas interpretações:
(9) a. acordo luso-brasileiro
'acordo entre portugueses e brasileiros e brasileiros e portugueses'
b. cidadão luso-brasileiro

de ligação (cf. pirotecnia, pirite). Por estas razões, os radicais são aqui referidos sem qualquer vogal de ligação
no final. Sobre este assunto, ver ainda 20.1.3.
60 As definições constantes no DLP são as seguintes:
tecnocracia = sistema político e social baseado na predominância dos técnicos no processo socio-económico
pirotecnia = arte de se empregar o fogo; fabrico de fogo-de-artifício
61 Do grego kallíon, de kallós, «belo».
62 Do grego orthós, «recto; direito; correcto».
63 Cf. Bauer (1978: 68). Nos compostos dvandva, os membros que integram o composto representam indivíduos
diferentes. Nos compostos karmadharaya, os membros do composto representam diferentes aspectos do mesmo
indivíduo. Estas designações (provenientes do Sânscrito) são habitualmente utilizadas para referir este contraste
de interpretação nos compostos coordenados.

47
'cidadão que é cumulativamente português e brasileiro'
‘cidadão português que também é brasileiro e cidadão brasileiro que também é
português’
Qualquer que seja a interpretação semântica, a relação entre os diversos termos coordenados,
mesmo quando são mais do que dois, é uma relação equivalente. Assim, este tipo de
compostos apresenta uma estrutura n-ária, ou seja, uma estrutura em que o radical composto
domina imediatamente todos os radicais coordenados:
(10) [[[sóci] [[o]polític] [[o]cultural]] ]
[[[afr] [[o]lus] [[o]brasileir]]o]

20.1.3. Vogal de ligação

A presença de uma vogal de ligação é um dos aspectos mais característicos da estrutura dos
compostos morfológicos. O contraste entre as formas que exibem o mesmo radical à esquerda
e à direita da vogal da ligação mostram que esta vogal é um constituinte autónomo e que
ocupa uma posição própria na estrutura dos compostos.

(11) [fon] o [log] ia


[estere] o [fon] ia
[morf] o [lóg] ico
[antrop] o [mórf] ico
A função da vogal de ligação na estrutura dos compostos morfológicos do português é,
exclusivamente, uma função de delimitador dos radicais. É talvez por esta razão que a vogal
de ligação-o- é preservada dos efeitos do vocalismo átono (cf. 12a), deixando de o ser quando
os compostos são lexicalizados (cf. 12b):

(12) a. antrop[ ]mórfico cf. *antrop[u]mórfico


claustr[ ]fóbico cf. *claustr[u]fóbico
etn[ ]centrismo cf. *etn[u]centrismo
maníac[ ]depressivo cf. *maníac[u]depressivo
matern[ ]infantil cf. *matern[u]infantil
sóci[ ]polític[ ]cultural cf. *sóci[u]polític[u]cultural
b. aut[u]móvel cf. *aut[ ]móvel
bibli[u]teca cf. *bibli[ ]teca
dactil[u]grafia cf. *dactil[ ]grafia
dem[u]cracia cf. *dem[ ]cracia
neur[u]logia cf. *neur[ ]logia
Mas esta vogal de ligação é um resíduo de um marcador casual na estrutura dos compostos do
latim e do grego antigo. É por esta razão que, no português, se encontram duas diferentes

48
vogais de ligação: -o- e -i-. Os dados disponíveis mostram que a vogal -i- ocorre sempre que o
radical da direita é um radical neoclássico de origem latina, se o composto tiver uma estrutura
de modificação. Em todos os outros casos, a vogal de ligação é -o-:

(13) a. [X] i [Y][+lat]


[ministr] i [cid] a
[agr] i [cultor]
[arbor] i [form] e
[herb] í [vor] o
[fratr] i [cid] a
b. [X] o [Y][-lat]
[ministr] o [crac] ia
[antrop] o [mórf] ico
[fot] o [gram] a
[analític] o [sistemático]
[angl] o [saxónico]
[lus] o [brasileiro]
[polític] o [económico]
Esta generalização não se aplica nos casos em que o radical da direita começa por vogal,
qualquer que seja a sua etimologia:

(14) [neur] [ilem][+gr] a cf. *neuroilema


[nevr] [alg][+gr] ia cf. *nevroalgia
[ped] [agog][+gr] o cf. *pedoagogia
[psiqu] [iatr][+gr] ia cf. *psicoiatria
[acut] [ângul][+lat] o cf. *acutiângulo
[magn] [ânim][+lat] e cf. *magniânime
sul-americano cf. *suloamericano
A generalização acima enunciada depara com alguns contra-exemplos e mesmo com algumas
hesitações, indiciadores de acidentes da mudança linguística que talvez sejam fruto da história
das línguas e do desconhecimento etimológico. Em (15a) nenhuma vogal de ligação está
presente. Em (15b) a vogal de ligação -o- precede um radical de origem latina e em (15c) o
radical de origem grega é precedido pela vogal de ligação -i-. Os exemplos de (15d) e (15e)
mostram a existência de hesitação por parte dos falantes entre formas que respeitam a
generalização acima enunciada e formas, que por vezes são as preferidas pelos falantes, que
não respeitam essa generalização. Estas perturbações afectam um conjunto relativamente
pequeno de formas, pelo que não devem ser tomadas em consideração para a descrição do
processo de composição morfológica do português.

49
(15) a. [braqui] [log][+gr] ia cf. biologia
[cali] [graf][+gr] ia cf. ecografia
[taqui] [card][+gr] ia cf. megalocardia
b. [gen] o [cíd][+lat] io cf. regicídio
c. [veloc] í [metr][+gr] o cf. fluxómetro
d. organograma organigrama64
parcómetro parquímetro65
e. taxiologia taxilogia66
taxionomia taxinomia67
Tendo em conta que a escolha da vogal de ligação é sensível a um traço do radical à sua
direita, deve ser-lhe atribuída, na estrutura dos compostos morfológicos, uma posição que
permita verificar esse traço quer no radical, quer na vogal de ligação. Essa posição é, pois,
uma posição de adjunção à esquerda, do seguinte tipo:
(16) [ministr [o [crac][-lat] ]ia]
[ministr [i [cid][+lat] ]a]

20.2. Composição morfo-sintáctica

Os compostos morfo-sintácticos são unidades lexicais que ocupam posições terminais nas
estruturas sintácticas, mas que têm uma estrutura híbrida, exibindo algumas propriedades das
estruturas sintácticas e algumas das propriedades das estruturas morfológicas. Neologismos
como os seguintes mostram a vitalidade deste processo e são exemplo dos casos a considerar
na sua descrição:
(17) político-fantoche
primavera-verão
governo-sindicatos
apanha-bolas
No português os compostos morfo-sintácticos podem ser gerados por adjunção (cf. bomba-
relógio), processo que será descrito em 20.2.3, por conjunção (cf. trabalhador-estudante e

64 Organograma é a única forma atestada no DLP, e, geralmente, o radical gram é precedido pela vogal de
ligação -o- (cf. cardiograma, ideograma, monograma). No entanto, a maior parte dos falantes dá preferância à
forma organigrama.
65 O DLP regista as duas formas, e regista também, a par de formas em que o radical metr é precedido pelo
vogal -o- (cf. cronómetro, distanciómetro, potenciómetro), outras em que é precedido pela vogal -i- (cf.
altímetro, calorímetro, planímetro). A esta situação talvez não seja alheio o facto do radical metr encontrar quer
um étimo grego (cf. métron), quer um étimo latino (cf. metru-).
66 O DLP regista as duas formas.
67 O DLP regista as duas formas.

50
surdo-mudo), cuja descrição será objecto de 20.2.4 ou por reanálise de uma expressão
sintáctica (cf. abre-latas), que será tratada em 20.2.5. Esta tipologia põe em causa a
tradicional distinção entre justaposição e aglutinação (cf. 20.2.2) e estabelece uma nítida
fronteira entre compostos morfo-sintácticos e expressões sintácticas lexicalizadas (cf. 20.2.1).

20.2.1. Composição morfo-sintáctica vs lexicalização de expressões sintácticas

Antes de iniciar a descrição dos compostos morfo-sintácticos, importa distingui-los das


expressões sintácticas lexicalizadas. Observe-se, então, o seguinte conjunto de dados:
(18) a. compostos morfo-sintácticos
bomba-relógio
trabalhador-estudante
surdo-mudo
abre-latas
b. expressões sintácticas lexicalizadas
pés de galinha
ministro da educação
amor-perfeito
fita magnética
primeiro-ministro
curto-circuito
O critério aqui utilizado é o seguinte: qualquer sequência que possua uma estrutura idêntica à
de (18a) pode ocupar uma posição sintáctica terminal – estas sequências são compostos
morfo-sintácticos; as sequências sintácticas estruturalmente idênticas às formas de (18b) só
ocupam posições sintácticas terminais quando a sua interpretação semântica não é
composicional – estas sequências são expressões sintácticas lexicalizadas68. Note-se que a
ortografia destas formas não é relevante nem determina a sua análise linguística.

20.2.2. Justaposição e aglutinação

Uma segunda observação prévia à descrição dos compostos morfo-sintácticos diz respeito à
distinção entre justaposição e aglutinação. Esta distinção baseia-se no facto de a estrutura
fonológica dos compostos conter ou não conter fronteiras de palavra. A ausência de fronteiras
de palavra é, no entanto, o resultado de uma transformação progressiva e gradual, dependente

68 Formas como pernas de galinha, amor platónico, último ministro, apesar de estruturalmente idênticas às
formas de (18b), têm uma interpretação semântica composicional, e é por esta razão que não são habitualmente
consideradas como compostas.

51
da evolução do valor referencial do composto. Consequentemente, a distinção entre
justaposição e aglutinação não permite identificar duas sub-classes de compostos morfo-
sintácticos, mas sim dois diferentes estádios de lexicalização destes compostos: trata-se de
categorias diacrónicas e não de uma tipologia sincrónica. De um modo geral, os compostos
caracterizados como justapostos são compostos que sofreram apenas um processo de
lexicalização semântica (cf. 19a), os compostos aglutinados são aqueles que sofreram um
processo de lexicalização semântica e formal, ou seja, trata-se de formas que perderam a sua
estrutura interna (cf. 19b):
(19) a. pontapé
madrepérola
b. corrimão
artimanha
Na descrição da composição morfo-sintáctica do português, estas formas são praticamente
irrelevantes, dado que se trata, nos dois casos, de formas lexicalizadas.

20.2.3. Estruturas de adjunção

Os compostos morfo-sintácticos formados por adjunção são estruturas constituídas por dois
nomes, com comportamentos semelhantes às estruturas sintácticas de núcleo nominal: trata-se
de estruturas de núcleo inicial, ou seja de núcleo à esquerda, o que se pode inferir a partir da
observação do seu comportamento no que diz respeito à realização dos contrastes de género e
da flexão em número. Considerem-se os seguintes exemplos:

(20) a. aluno-modelo aluna-modelo


homem-aranha mulher-aranha
b. bomba-relógio bombas-relógio
crocodilo-fêmea crocodilos-fêmea
crocodilo-macho crocodilos-macho
governo-sombra governos-sombra
homem-rã homens-rã
notícia-bomba notícias-bomba
peixe-espada peixes-espada
O constituinte da direita é um modificador nominal, pelo que a estrutura destes compostos é
uma estrutura de adjunção que envolve, exclusivamente, unidades lexicais e gera uma nova
unidade lexical.

52
20.2.4. Estruturas de conjunção

Os compostos morfo-sintácticos que têm uma estrutura de conjunção podem ser nomes ou
adjectivos, embora estes últimos sejam muito mais raros:
(21) autor-compositor
surdo-mudo
Os compostos que envolvem a coordenação de nomes são bastante mais frequentes do que
aqueles que envolvem a coordenação de adjectivos, podendo mesmo gerar sequências de mais
de dois termos coordenados:
(22) autor-compositor-intérprete
café-bar-restaurante
conta-poupança- habitação
rádio-gravador-leitor de cassetes
O comportamento morfológico destas formas não permite identificar nenhum dos seus
constituintes como núcleo de toda a estrutura. No que diz respeito à flexão em número,
verifica-se que todos os constituintes devem exibir idêntico valor:
(23) autor-compositor autores-compositores
autor-compositor-intérprete autores-compositores-intérpretes
surdo-mudo surdos-mudos
Quanto ao género, os valores dos adjectivos coordenados são obrigatoriamente concordantes:
(24) surdo-mudo surda-muda

Paralelamente ao que se verifica com os compostos adjectivais, no que diz respeito aos
compostos em que os termos coordenados são nomes animados: todos devem exibir o mesmo
valor de género; excepto quando algum deles é invariável, caso em que o valor de género do
composto é determinado pelo valor de género do constituinte que admite contraste de género:
(25) autor-compositor autora-compositora
trabalhador-estudante trabalhadora-estudante
autarca-deputado autarca-deputada
Os nomes inanimados permitem a coordenação de formas com qualquer valor de género. O
valor de género do composto é idêntico ao valor dos termos coordenados, sempre que estes
valores são idênticos entre si (cf. 26a), e é masculino quando os termos coordenados têm
valores distintos (cf. 26b):
(26) a. [[rádio][-fem] [gravador][-fem]][-fem]
[[batedeira][+fem] [picadora][+fem]][+fem]
b. [[saia][+fem] [casaco][-fem]][-fem]
[[bar][-fem] [discoteca][+fem]][-fem]]
Note-se, por último, que, à semelhança do que se verifica com os compostos morfológicos
com estrutura de coordenação, também estes compostos se caracterizam como 'dvandva' (cf.

53
saia-casaco) ou 'karmadharaya'69 (cf. rádio-gravador). Esta distinção, uma vez mais, não tem
repercussão na estrutura dos compostos.

20.2.5. Estruturas de reanálise

A reanálise é um processo de formação de palavras que consiste na reinterpretação de uma


estrutura sintáctica como uma palavra. No português, as formas geradas por este processo são,
tipicamente, compostos do seguinte tipo70:
(27) a. abre-latas
conta-gotas
guarda-jóias
tira-nódoas
b. papa-jantares
tira-olhos
c. porta-voz
lava-louça
picapau
quebra-mar
d. fala-barato
A estrutura sintáctica que está na base deste tipo de compostos é uma projecção máxima do
verbo (i.e. Vmax), constituída obrigatoriamente por uma forma verbal flexionada na terceira
pessoa do singular do presente do indicativo e seguida de uma forma nominal ou, muito
raramente, adjectival (cf. 27d). Em geral, o constituinte da direita é um nome, masculino ou
feminino, flexionado no plural, e núcleo da projecção nominal caracterizável como objecto
directo do verbo, exibindo a função de tema (cf. 27a e 27b). Os exemplos registados em (27c)
e (27d) mostram que esta tendência geral não constitui uma restrição absoluta, dado que a
forma nominal presente pode estar flexionada no singular.
Quanto à forma composta resultante do processo de reanálise, trata-se de um radical nominal,
geralmente com uma interpretação de instrumental ou de agentivo: os que constituem nomes
instrumentais são masculinos (cf. 28a); os nomes agentivos são comuns de dois (cf. 28b):
(28) a. [conta-gotas]N[-fem]
[quebra-mar]N[-fem]
b. [porta-voz]N[ fem]
cf. (um) porta-voz, (uma) porta-voz

69 Ver nota 63.


70 Para além destas estruturas, a reanálise também opera sobre estruturas de coordenação de verbos flexionados
na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (cf. vaivém). A produtividade destas formas não é, no
entanto, significativa.

54
Os compostos cujo constituinte da direita é um nome flexionado no singular são os únicos que
permitem desambiguar o valor de número do próprio composto e perceber que a estrutura
reanalisada tem como categoria morfológica radical (cf. 29a):
(29) a. [picapau]N[-plu] [picapaus]N[+plu]
[porta-voz]N[-plu] [porta-vozes]N[+plu]
[quebra-mar]N[-plu] [quebra-mares]N[+plu]
b. [conta-gotas]N[ plu]

Nos restantes casos (cf. 29b), a adjunção do sufixo do plural não é foneticamente
identificável, porque a sequência gerada (i.e. /...s+s#) é objecto de um processo fonológico de
degeminação.

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