MACHADO, Lourival - Barroco Mineiro

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lourival gomes machado

BARROCO MINEIRO
/iprt:stnwçãít
1Í 0 DRK3O M. F. DK-ANHkMV

hurvduçíto t>orgjanizaçàti
F rancisco Io i í Isias

Fotografias
Urs“áí»TO U ma '))• Tcljedo

ÉUITCRA PÊRSPECTÍVA
I

VIAGEM \ OURO PRETO

1
Cheça o viajante* a Ho!o Horizonte determinado a
visitar Ouro Preto c. anotar suas observações sdbrc z
arte Que a civilização úoloniul semeou e nutriu, como
a prever que, uma vez apagad&s as hues de seu esplen­ i;
dor, algum testemunho deverá restar de sua grandeza. i.
1 - A<tu< « tw,b!>ca, C ir- t> r,u * a p s it c c t u c o t tM b r n -
r - id ^ s p e s f> £ s ?otftt Ce .f. Cuufo, i:«s ru c s* i <?t: 4 it 6 '-<o. c
C i. t J b r u d o i r o passado. A I o r a lm H iJ r« v ò iS o . n à c sf m o d if ic o u r>
?* * |0 S i f ã o Fa r# a;rt> ~ U Ti? n (r p c c ír jíO / in a l, C S ç u t c iJ ô un pr<i'c<i(;i
p u t r io ç J i* F.n\ s u m a . C or,< ef*us-s« a f p . T ia d cà.tt* ra -
14* d e v í a f t m , tin : p l« s r tjt .s s r o d f oWsfcrr%çò«* pe.ctoai*, :.i| c o m o , a liJ t ,
(P s*<i-t i a p r o s - t iia d a . ' i ? o ‘*a r-C t v . t w m l t s r f p a r a t f m o r u m i r * b i l ? o reò-
r:C u lò v ir t 15 a b s o lu t is m o f o b a riu e r»
t ♦) K c í W « ,‘ i: o A , iu IW 1 A w C í i , » p u b llc a f à o d o .' a r H lt t» r.:i
tivfí S 3 ô Pa> .l'. k r.n 5C V . vr,t. C X X l V . a s f il.
•ni* r< \\ r s íb . ‘ ,'A ij c rorr^$pi:*i<J«nie $<f*r«ns.

17?
M
Mas, ja no acroporu» Ja l^mpulhq, <mdc a Lcrra rasgue!*
pelos planos urfcanísíkos agasalha cm seu rubor os mo-
dcrmssimos vidros e cimento.*» do Niemeyet, começa *$
hesitar. Oual a atitude de espírito que deve assumir o
visitante de igrejas barrocas ou o espectador desajoi-
tado desse desdobrar de sobrados mfinitameitfe belos
em sua severidade farta? O comportamento do jomu-
li.sta, a registrar uctas para a futura reportagem, seria
algo como um insulto que Ouro Preto não merece, nem
poderia tolerar. K as veleidades críticas, que se podem
alimentar na grande cidade, etn face duns abstratos ou
cxpresstonismoi c até — o tanio chega a vaidade^ . .
— contemplando cotaus meno-s contemporâneas num mo-
seu, desaparecem tangidaj pelo pudor aítnal ressuscitado.
Não há, no ca&o do barroco mineiro, caminho crítico
prcconcelàtk: que se afigure legítimo.
Diante dum complexo artístico, consislente e fico,
dír-sc-ía que a critica reclama a erudição- Mas quem.
com alguma saúde mcaial. tentará lazer-ac passar por
erudito ou sequer iniciado nos mistérios do conheci­
mento pormenorizado, quando os segnulos da inspira­
ção, da fatura, dos artótíi:; c das próprias obras ergueu*
uma muralha ameaçadora c capaz de deter todas as
ousadias? Se eonhcec, de leitura, os esforços sificera-
nicnto modestos c, por isso, esplendida mente fecundos,
por exemplo, de ííauiiah i^evy o« de Rodrigo M. F. d»;
Andrade, visando erguer umu pon ta de véu para a me­
lhor compreensão dos modelos do pintor Ataídc ou a
precisa autenticação dos principais trabalhos do Alei-
jadinho, desde logo perceberá a inconsistência das im­
provisações. embora brilhantcmente disfarçadas.
Caberá, então, o recurso do guta ííril e informativo,
cm que sc compendiem as indicações necessárias aos
que doutra forma sc perderiam chegando de súbito a
um- cidade que parece zombar de todas as ousadias tu­
rísticas? Talvez fosse legitima a escapatória, sc não
existisse o Guia tle Ouro Preto, que Manuel Fiandeira
fc?. para o Serviço do Património. Cem dez anos já e
tendo virado raridade, como quase iodas as esplêndidas
publicações daquele serviço, que a cupidez dos livreiros
tiào perdoa, o livro-guia do poda continua a constituir
obra-prima ein seu ingrato gênero. Is-so leria ftuafntentc
dc acontecer, pois Manuel Bandeira dispõe da paciência
meticulosa do pesquisador honesto e pôde, assim, reunir

m
iodos os dados úteis coateciéos em 1938, mas ninguém
esqw.ctjú que Manuel Bandeira é dos grandes da
poesia nacional c, desse modo, talvez mesmo sem o cjue-
rer, deixou filtrar, entre duas duras c localização ih um
altar, a gotinha de suo infiniiu sensibilidade. O seu
wahaUto, coro as ilustrações de Luís Jardim, nada tem
de tdtetieker cacete para ter tud > dc passeio ameno, na
melhor companhia deste ntundu.
Vedadas, dessa forma, as passagem; extremas, o
viajante anterionuente tiio ambicioso cai ctu dúvida e
corneça já a imaginar um manhoso meio-termo, escapa­
tória habitual de todos os escribas de jornal, quando
numa banca da Avenida Aíonso Pena recebe o conselho
th' Cari ns Dnimmond tlc Andrade, ali postado nos pági­
nas Uc VolUicii e Leiras, a latar dos profetas monumen­
tais de Congonhas do Campo. Descobriu, esse homem
tora do comum, que as estátuas do Aleijar! inlio se reu­
niram para agitar, eu» xumt-vosa assembleia, n cauxn
eterna «ia liberdade. Gritaria o doutor que jamais o
estilo da coettra-reforma visou alimentar ir»submissões
e objetaria o informante preciso que nada, na enfarrus­
cada rude2 de mestre Lisboa, autoriza uma tal interpre­
tação. Mas os intérpretes não pedem, quando são gran­
des, mais do que o penhor ce sua própria antoridade,
e ninguém negará a Carlos Drummond direito de advogar
seu imenso liberalismo. Aos pequenos, conceder-se-á
acompanhai o modelo, sem aspirar à imitação dos re­
sultados.
Esta será, pois, a solução. Tratar da grandeza da
arte mineira, esperando apeais que* ela venha a tauger
qualquer coisa de íntimo e profundo no viajante. Depois,
contar, com plena sinceridade, o que sentiu por si pró­
prio. O a generosidade de Ouro Preto ehega ao ponto
de fazer ressoar as almas mau; modestas. Mesmo aque­
las que em nada repetem os eruditos c os svustvtis, de
que há pouco falávamos. Mesmo aquelas que chegam a
Belo Horizonte já hesitando e quase a desistir da inten­
ção de anotar observações sobre Ouro Preto. Ademais,
só o conjunto dc todos os depoimentos dirá iuteiramente
ilo poder dessa arte que uno civilização passada nos
legou. Ouçamos, pois, a todas as testemunhas.
Dc-ctos o leitor aquela uiesma liberdade que ha­
verá de exigir quando vier, 'ele próprio, à cidade onde
•re refugiam as sombra? potentes dc Vila Kica.

J79
{■'tliçào da irrra
Nos meses frios c que íc deve viajar p;ira Ouro
Preto. Não se etnia, porém, que só os hábitos nigièni
eos fundamentam ml preferência. H;i também ness-..
escolha, que traz a Minas tanln peide em junho c julho,
o desejo de alcançar certo proveito estético na contem
piaçàn da superficial geografia que a paisagem insinua,
verdadeira introdução ao canil cr gera) do barroco mi
neiro. £, pois, de todo aconselhável viajar no tempo
mais fresco o, sobretudo, começar a jornada da nova á
velha capital das Gerais no fitn ela noite, para sttrpjcen
der a madrugada na serra. Ouandn a Uv/, começar a d-n
vida a bninin, pela junelii do trenzinho saltitante ou
através de litplex do automóvel descobrir-se-á um jnno-
do en> incefiniçâo. Não há cores, mas vagas tintas es­
branquiçadas ou cinza-claro. Náo há torenas, ur.is
vaguíssimas MUiucias npenas indicadas. Mesmo que u
sol aquente um po.ico mais esssts serranias» não se bus­
que o irisado colorido dos impressionistas, que tal lin­
guagem não cabe ua drscrjçíio de Minas Cbeiipr-se-ia,
r.o máximo, à fala de Whisdci, na época de seu tnujtessc
pelas gravuras japcn«tós e pelas névoas londrinas. Por­
que a névoa por aqui é densa, quase sólida, ruas, quando
começa a abrir-se em rasgões oblíquos» não se encon­
trará. por certo, nenhum vulto ele construção europeia.
As sombras fogem para o horizonte o, tirante as árvores
que se agacham h margem du No, cada vez «tais distuo-
ciado da linha férrea, não se espete por outras visões
que niio a tW^as enormes montanha* — umas macias
nas suas fraldas suave* capeados d:* verde, outras ás­
peras na pedra de ferro que reponto nua - - formando
cidópicos anfiteatro. Agora, a neblina sumiu c retnft
uma luz amarela, esplêndida e quente. Jà se subiu tanto,
que o chão adquire visiio infinita — o céu veio para mms
peno.
Daqui por diante, readapta-se a vista. Findou-se
o espetáculo fantasmal da raadruçadn t reina o dia. O
viajante, j;i ateio causado, já um pouco sonolento, eiv
lre£a-.se às arbitrariedades ferroviária* <*. cada solavanco
í! é um passo gigantesco a firmar'se na montanha. Mus,
aos poucos» o sentido do roteiro vai-se esclarecendo,
pois a locomotiva, pequenina e anciã» reaparecendo
eonsmmemcuU' à esquerda, insinua que andamos em

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contínua serpentina. qnc assim quer o chão. Imaginemos
que, lá quase pelo mein-dte, o irem se detenha teimo-
sameme em Ttipuí, a seis quilómetros cie Ouro Preto.
A G.K. Central co UrasiU pródiga musa de impossíveis
aventuras, cnYW-vovã o maquiftista cm pessoa para
comunicar, com um sorriso (eito de cética experiência
c algum alegre espírito de aventura, que um acidente -
zinho (nada tneuos que ur.t descanilamejitoj afi vos
conservará ate a l&rrlc. Kntio, é a cavalgada heróica.
A sabedoria dos caixeiros-viajantes providencia, pelo
seletivo, automóvel. O liem despeja malas, sacos, pa­
cotes e rríesmo máquinas datilográficas, etn plena caivb
pina. Há os esportivos que i;ão a pé, por desconhecidos
atalho* que encolhem milagrosamente as distâncias. Há
oa caritativos que repartem a bagagem do pai dc famí­
lia esmagado sob malas. Há a preparação de coisas e
seres numa plataforma natural •— o que ..eni inteira-
mente inútil, está claro. Atirai, as buzinas.
Agora, no automóvel, arustando-sc pela es.iradinlui
que não íoí aberta per ninguém e que desconhece */>
turmas dc conserva, o viajante sentirá ainda melhor a
natureza do roteiro. Se viesse dc Belo Horizonte num
táxi, desde Itabmto o saberia. Mas, mesmo nessa meia-
-hora da etapa imprevista, compreenderá o caráter da
terra e do povo que visita. Uma enorme cobra dc poeira
vai costeando o morro, sempre para cima, até que Curo
Preto surge, dc repente, com todas as suas vime e tantas
torres maiores. Entramos pela parte alta, recebidos pelo
São Miguel da portada de Matozinhos das Cabeças, com
seu cocar dc pedra-sabáo.

Niio estraahe o leitor que o façamos sofrer essas


duas viagens a das hesitações intelectuais e a dos so­
frimentos terrenos — pois só chs, cm sua lentidão c em
sua real impositividade, podem trazer a compreensão da
humildade, sem a qual jamais s: sentirá, por inteiro, a
grandeza de Ouro Prelo.

A Matriz dn Antônio Dias


li tu Ouro Prêto. há as mah variadas amostras de
arte colonial. Mas, na verdade, vísitaio-se as igrejas.
Assim o esige um hábito turístico e, por acompanhá-lo,

m
naçía perderá o viajante, pois essas igrejas constituem,
por si sós, um conjunto de belíssimos monumentos, dos
màis representativos de nossa arte passada. Há, na ver­
dade, esplendores de construção civil — a Casa dos
Contos, sobradôes belíssimos, os palácios do Museu c da
Escola de Minas, o aljube de Maiiana —, tuas sempre
acaba-sc por visitar as igrejas.
Se o viajante que vem a Ouro Preto é paulista e
se a indicação profissional que deixa na ficlia do hotel
atribui-1hc algumas luzes presuntivas, é quase certo que
sua primeira visita será à Igreja de Nossa Senhora da
Conceição de Antônio Dias. Talvez, tiistoricamehic,
fosse tua is adequado começar por uma terrível e esta­
fante excursão ao Morro Queimado, para rever as ruí­
nas da primitiva aglomeração bandeirante, que cresceu
sob os olhos protetores daquele Pascoal Silva, cuja casa
e riqueza se consumiram cm cinza e fumo na punição
exemplar determinada pula Coroa, tão irritada peia re-
beUíto de que se tornou símbolo Felipe dos Santos, o
mártir primeira. Mas a aventura retrai-se diante das
escarpas .sem caminhos t a história que se traz na alma
tem base em vagos sentimentos humanos c não em do­
cumentos comprovados. Antônio Dias, menos que o
nome de certo bandeirante taubaieano ou de uma fase
histórica, é o apdativo de uma evocação entcmcccdora.
Vai-se, pois, primeiramente, à sua Matriz, muito embora
cem a certeza de que a igreja grandiosa aô conserva,
ila primitiva capela, o sítio.
Vara chegar at6 lá, faz-se um longo caminho que,
em hipótese alguma, deverá ser cumprido, tanto na ser-
penteante descida, quanto, na marcha de volta por ín­
gremes ladeiras, senão a pá. Desde o Largo Tiradentes,
a Rua Direita de Antônio Dias (freguesia que até hoje
mantém orgulhosamente as diferenciações, já quase
ideais apenas, que a distinguem de Ouro Preto propria­
mente dita) escachoa sobrados pela fralda dos morros.
Primeiro sobrados nobres e ricos, à volta da casa de
Tomás Antônio Gonzaga. Depois, a pobreza crescente
das moradias tnais humildes, que humiííssimas se en­
contram na tua lateral, que traz o nome do Aleijadinho.
Alcança-se a igreja pelos fundos, pois a sua fachada e
o seu jardim olham para a região externa das lavras,
deitando sobre a ponte de Marflia. Entra-se,
A nota domina me Un Conceição de António Dta<
vem do contraste enete a fachada c o interior enrique­
cido pelos altares. Não se traia. frisemos* cie uma casa
externam eme pobre que guarda tesouros no interior. Ao
contrário, há um equilíbrio inegável entre os dois as­
pectos e a impressão de d:s«o:iâueia provirá quase* ex-
chisivameiitc d» haver uma orientação estilística q*ic
presidiu ao risco e outra, à talha, tinquamo a fachada
sc Tez serena e pura. dc linhas sóbrias e sinceras,'-a
madeira dos altares laterais — principal mente no caso
do segundo à direita — rendilhou*se. dc tal maneira que
o dossel c as figuras aladas que o dominam, parecem
ilutuar em pleno ar. Essas agitações em ouro. biaaco.
carne c azul, ondeiam-se em progressão ascendente ai 6
atingirem o altar-mor. imponente, poderoso e bem plan­
eado, que representa o auge daquela .«infonia rio inde­
finições surpreendente.* Om auge. sim, mas um auge
orqucstia! cm que o compositor, conhecendo seu mis-
ict, ataca “com brio” 5 cm perder as linhas da pauta,
ira/ pela babntu lodo* os .sons de que dispõe sem esca­
par aos cânones con.sagrados, faz um “fortíssimo’* sem
entregar-se ao descabe lamento descomposto dos puro*
xisrnos nervosos.
Uru A lta r

O altar já vos espera, bem untes tla mesa do oficio.


oo:n dois nichos elaborados c que xo projetam à frente
gTirças a uma ilusão dc perspccti-a cm que 0 corte da
madeira prepara a mutação violenta das cores bem con­
trastadas — lá estâc» sentinelas c anunciadoras, São
João Nepomucono c a serviçal Santa Bárbara das tro­
voadas. As dua$ velhas imagens são apenas um prelú­
dio; a tempestade orquestral começa propriamente a
>artir das duas grandes colunas salomônicas, retorcidas
;m suas gordas roscas, branco e curo, que, grandiosas
mas ágek no envolvimento ascendente, ccnstiiuern 0
ponto de referência c o elemento estável do conjunto.
Moldura da santa que governa a igreja, servem também
de apoio lateral ao escachoar de formas aladas (huma­
nas t«i nâo) que agitam-a atmosfera à volta tbt Concei­
ção. A cada momento, os olhos, para não se perderem,
voltam a essas colunas. Mas nãç xo espere do barroco
grande sossego. Pelo contrário, ate o rápido instante
de segurança tksvc servir para patentear a fragilidade
da certeza humana. lintão. logo por tifo dos pilares
que a vista, subindo, abandona para chegar ao capite),
desdobram-se mais e mais capitéis, fá nào agora con­
sistentes capitéis verdadeiros que se emalham com pro­
fundidade igual ou proporcional à aliara c à largura.
|5csfa/xm-$e as três dimensões que amparam nossa
realidade habitual c delas só permanece a ilusão. Os
capitéis complementares, sob os quais escorregam fios
anunciadores dc outras tamas colunas i.çualmcntc ilu­
sórias, ocuparão talvez meio palmo» ou menos, para o
interior do altar, porém, nascidos da força da ilusão *juc
nenhuma verdade supera, dão ao retábulo toda u ima­
ginável amplidão.
Direis que tudo isso, afinal, é a própria linguagem
do barroco. l>c facos c. Por outra parte, a itiatiix dc
Antônio Dias não Mira nem o melhor, nem o mais rico
barroco que encontrareis em Ouro Preto. Sua rival, a
matriz do Pilar, *oda cm ouro o sombras, satisfará muito
mais os que conheceram a.s fórmulas europeias desse
estiJo <]tic os livros especializados descrevem. Mas aqui,
na velha igreja que frea próxima à Rua dos Paulistas, a
análise será menos fatigante para o náo-erudiro. a cujos
olhos muito do ouro foi escondido pOT uma capa de
gesso alvo. Um esplendido barroco, mas nâo utu bar­
roco esmagador, cis o meio-termo conveniente para
quem cbeea a Vih Rica armado apenas de muita curio­
sidade e alguma sensibilidade. Assim, diante desse altar-
-mor que cobre, tuda a parede do fundo da capela, pode
o visitante reconhecer o que procurava e, ao mesmo
tempo, encontrar-lhe na fisionomia muito que não es­
perava. Dc fato, ali está aquele senso dc ilusão e mo­
vimento incansável que sabia constituir a alma do bar­
roco. Começa, cornudo, a distinguir.
Na verdade, a ilusão desse barroco, muito embora
empregue todos os recursos de uma magia armada e
consciente, não se esgota no iro/npe-Vccil, nem exige o
esforço do **i como se fosse1’. Revolta-sc contra os li­
mites da pura prestidigitação c da simples cenografia.
Não deseja fazer-se passar polo real e. por isso mesmo,
cria sua realidade própria, fora da qual ji£u poderá ser
alcançado. Engendra uma ilusão sem buscar iludir-vos
e, sobretudo, se òesciais contprcemlê-la, rleveis evitar
todos os esforços para decifrar seus pequeninos roisté*

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rius e seus passei hábeis. Porque, se são eles facilmente
decifráveis, jamais por ;it se chegará á inteira fruição
estética do todo e dos pormenores. Para tanto, impõe-se
receber esse muido formal, cio como substituto do
mundo habitual, senão como uri mundo diverso, mas,
nem por isso, mesmo autentico.
Voltando ao nosso sxempio. poderíamos assegurar
que uma coluna barroca apenas enunciada pelo csba­
timento de linhas à berda dc um retábulo monumental,
se imita gs formas cm escorço de uma verdadeira co­
luna, não eleve sit apreendida como uma coluna verda­
deira que assim se figurou. Antes pelo contrário, para
c»ptà-la em toda a belera, importa aecitá-la tal como
é, deformação consciente ev por certo, mais boia o po­
tente que o modelo inicial. Ent outra oportunidade,
podn-j-e ter, à borda <fe. um medalhão que encabeça
uma portada rica, uma linha dc florão ornamental que
se resolve, subitamente, ciuitia asa de. anjo. Seria inútil
tentar unia dissecação íóijicn dn conjunto, pois jamais
te.r-se-?í por razoável que uma linha de flores dê nas­
cença a um membro feito de penas leves. Não obstante,
a consistência do conjunto c ta! que faz obrigatória a
compreensão puramente estética da obra regida apenas
pelo impulso das linhas em voluias largas que, para aca­
barem-se, pedem a contradição dc uma curva ascenden­
te., pequenina e fone, aiUes do gesto final da linha qitase
reta que vai do aJto ao termo da plumagem. Por que
falar de ilusões ópticas ou, sequer, dc habilidades enga­
nadoras? Só *>c chega ao barroco mergulhando nele, ou
melhor, deixando que cie submerja o espectador.
Esta tese, no entanto, não exige nenhum esforço.
Nào precisareis procurar aquela simpatia calculada,
aquela tcansjidàção especial c temporal que quase todas
ai grandes fases históricas da arte solicitam. Peio con­
trário, tudo que se pede será apenas a cessação dc
qualquer esforço, a entrega total do ser. Se, par?, dor­
mir e penetrar no mundo dos sonhos, o corpo deve ir
furtando cada másculo ;i sua função dinâmica diurna c
desligar-se. desse modo, dos pedestais da vigília* tam­
bém o espírito diante do barroco deverá abandonar
todos os frágeis pontos dc apoio a que* cm ttoása vigília
intelectual, nos agarramos, paca subir ate a beleza. E..
sé o sonho erubreoha-so quase sozinho no corpo c o
adormece, também o barroco SQvolve o espírito c o

m
amolenta com sua;» sugestões, até amansar-lhe todas as
resistências. DífíciJ seria resistir. Detenha-se, pois. a
ríifcão, cm sua sofreguidão impotente, diante da ubta de
arte c esta, sozinha, atingirá seu-fim.
fim seus caminhos altíssimos, a arte tem-se defron­
tado com o racional, alimentando as mais variadas in­
tenções. Tentou servir-sc dele para acabar na menos
gloriosa vassalagem, como aconteceu no chamado cs-
pleiulor grego. Ignorou-o, voltando-lhe as costas, para
aJçat- sc a mundos novos, no gótico. Chegou mesmo a
tentar a superação do conhecimento inteligente peia
negação ou pela assimilação total, em tentativas mais
recentes. Mas talvez nunca tenha enfrentado a razão
com decidido ânimo de combater c para da luta sair
plcpamcate vitoriosa, como sucedeu no barroco. A vi­
tória, velha de séculos, ainda ecoa hoje, em Ouro Preto.

P aisagem e Mon u m en to
Já aludimos ao contraste entre a fachada e o in­
terior da Matriz dc Antônio Dias. De um modo geral,
essa ó a nota curiosa dc todas as igrejas do complexo
ouropretano. Karroco perdulário no interior, severida­
de austera do lado de fora. Não que faltem olhos-dc-
-boi. medalhões esculpidos, portadas ricas e imaginosas.
Aí estão os dois Canno — o de Vila Rica c o de Ma-
liana — > São Francisco de Assis, o santuário de Con­
gonhas. Todos interessados em adornar a fachada. Sâo
Miguel c Almas têm mesmo seu famoso nicho com be­
líssimo santo em escultura Jivrc. Mas a ondulação das
paredes c mais rara: dc «ovo São Francisco, Rosário
ou o risco primitivo de São Pedro de Mariana valerão
como raros exemplos do bombeamento das linhas prin­
cipais da planta baixa. Mas nunca — salvo na exceção
especialíssima dc Congonhas — a arquitetura se impõe
ò paisagem para ordená-la segundo as regras do barroco
e subordiná-la ao monumento.
No entanto, esta foi a regra básica na Europa. San
Cario allc Quattro Fontane tomou-se marco do estilo e
glória de Boiromini por ter imprimido àx suas paredes,
batidas numa -:esga dc terreno, o panejamemo incon-
traíávcl de bandeira ao vento, e dali parte, em linha
reta. a evolução que levará às escadarias da PJam dt

1H6
Spagiut e aos degraus d'agua dc Vjila TorJonia. Nunr...
mais o barroco fugiria dessa senda.
Em Minas, uma primeira ic%tnçào ioi imposta
pelo próprio meio, pois nác se encontraria, malgrado
toda a fartura de oure», uqueJa superabundância de for­
tuna que justificara e provocara as maiores obras «i:-
ropcias. De uma maneira geral, a.\ bycjus nas ceia: o.
em sua pobre/a, da genrr<«;dad« dos grandes da terra,
posto que a Coroa mais sabia cobrar tjoe aplicar ;is i:i-
xas devidas ao Papa. Um >:eiai, cou-ítnmam-se fcomo
San Cario) da capela para o fachiòa. aguardando $c n:>
doações c reservando» se a igreja pnra um enriqueci
mento final sem fugir à finalidade eclesiástica. Contudo,
ao chegar à fachada c, setide |à tantas delas bem ricas,
parece que se hesitou ames de. iransoordar paru o ex­
terior. Vor vozes, adniit'mlo-.!ie o melhor aparo)hamcuíu
da seçào frontal, dali contudo não : o passou c mesmo
tais manifestações são cl aramou to monos barroens c::.
fora do que lá dentro. A simples embrança do "cbiuri-
guesco” mexicano (co:ti seus «visionais paralelos d>j
norte do Brasil) melhor evidenciará o que querunu^.
anotar e-, assim, a explicação fundada no simplieisMo
determinista, qiie atribuiria o maior despojamento for­
ros! à menor riqueza da socieàvh- subjacente, devç
completar-se por outras interpretações. Sobretudo nos
monumentos uiais velhos, a discrepância entre altares c
fachada (que» em termos gerais, possam ser considera­
dos como obras contemporâneas) apela para outras
causas. Padre Faria t a igreja de Ouro Branco são ilus­
trações gigantes; Antônio LXas, a peça global de mai»
fácil análjse; Pilar, o argumento decisivo.
Na verdade, as igrejas jnincitas nào sentiam aquela
fome espacial — "feeling for spacc”, dizem os comenta­
ristas ingleses c norte-americanos —■que tantas vezes le­
vou o barroco às expansões paisagísticas e panorâmicas.
Em primeiro lugar, porque, o problema, ent Minas, se in­
vertia: tratava-se apenas de plantar a igreja na terra
como uma afirmação e nunca $c procurou comunicar ao
chão mais próximo o ritmo arquitetônico. Aqui. o
tejtoplo não tiasceu afogado pelo casario de cidades ve­
lhas, mas sempre teve à disposição todo o terreno que
desejava. Farte o viajante, em suas excursões por Ouro
Preto, das margens dos córrego; — o Caquendc. o
Tripuí, o Sobreira — onde, por certo, brotar.auí as pri

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moiras casas, e compreenderá que todas as igrejas pro­
curaram <j alto dos morros c, desde que o casario as
circundava, podiam-se encontrar sítios novos ainda mais
elevados, até alcançar o pedestal formidável cm que sc
plantou São Francisco de Paula. São se cuidou, pois,
de enriquecer o terreno, mas de evidenciar a igreja.
Além djs.sú, seria abso'.ulamente inútil qualquer
tentativa em sentido contrário. Porque, na verdade, a
topografia da zona dtj ouro ofereceu-se monumental e
barroca. A orografia da.% Gerais, desdobrando-se em
imensos dorsos aniediluvianos na imobilidade do re­
pouso, tem sempre uma dobra envolta em penumbrq,
como as estátuas barrocas sempre entregam uma parte
de sua superfície à voracidade da sombra. Vila Rica,
com seus mil e cem metros dc altitude, longe de domi­
nar senho ciai mente os canpos subjacente*, ataçapa-sc,
à beira dfágua, no fundo <tc ires valczinhos apertados
que despejam no ribeirão do Funil c entrega a metade
de seu céu ao espetáculo impositivo da montanha. Esta,
mesmo quando desabrocha a as flores ásperas das gran­
des rochas, mantém a mesma variedade dc colorido c
de luz. pois a pedra, ao invés dc mostrar-se na esíerici*
dade negra a que nos acostuma a paisagem paulista,
rompe a terra ç.jn gume* o dentes afiados, formando
florões ornamentais à voha dos grandes caracóis cicló-
picos dos montes, que a carapinha rasteira da vegetação
apenas colore. Mas, afora essa impressão, que não sa­
bemos ao certo se vem da orografia ou se nasce da su­
gestão poderosa da obra humana atacada a seus flancos,
vale por atribuir à paisagem uma função ruais direta e
concreta na determinação dc uma monumentalística pe­
culiar das Minas Gerais.
De falo, se A feição das cidades prende-se ao ca­
ráter do solo que a agasalha, esse parentesco nao se
deverá à inspiração estética que o panorama admirável
incute, mas ao esforço cotidiano que a terra impõe ao
homem: quem alicerça ou bateia, traz sempre os olhos
voltados paru o chão em que planta as pcs. Ora, as ci­
dades da zona do ouro, e sobretudo Ouro Preto, in­
crustaram-se na montanha e dela tiraram sua fisionomia.
Até as praças e os adros são em declive. A rampa e a
curva dominaram avassaliduramente toda a organização
urbanística. Não há ruas, há ladeiras. Nâo há caminhos,

188
há valias no mono. As poates, que são tantas» não
ligam numa só duas retas que se encontram, mas repre­
sentam apenas o ponto de passagem entre um declive
que sc percorreu e um adive que começará a subir.
Os chafarizes pox vezes apóianvse nas encostas. As es­
quinas transformam-sc cvn escadas circulares, quando
iodo mn quarteirão nao se fragmenta em degraus. Casas
que icm quintuis em tabuleiros defrontam-se com casas
que jogam os cômodos traseiros sobre pilares de pedra
ou de madeira forte. E isso por tocas as partes, desde
o Caminho das Lajes ;i r.strada que leva a Ouro
Branco, desde a ponte de António Dias à ponte do Pi­
lar.
Que adiantaria, nessa paisagem, uma escadaria
barroca, longa t espalhada, cm vários lances, seguindo
eixos divergentes? De que valeriam, nesse panorama,
jogos tTágua que alternassem lagos «valados c. cachoei -
rinhas espumejantes? Degraus, curvas c rampas há cm
todas as ruas de Ourei Preto c os córregos c ribeirões
espadanam ágnaa fervilhantes sob cada ponte c debaixo
das janelas de cada sobradáo. A cidade já nasceu bar-
toesi,
•Fokma f Intenção
Não sairemos, tão já da tmitri2 de Antônio Dias.
Descanse o leitor, qus o viajante nua insistirá no
pecado de descrever altares, balaustradas ou pinturas.
Sc cedeu um pouco, diante do aifeti-mor dessa igreja
velha, foi pela imposição da própria peça que não -se
resigna ao simples registro e parece forçar a visão t :i
sensibilidade dc quem a defronta. Por isso, mais do que
suas belíssimas formas, o que anotamos foram a$ prin­
cipais aventuras dos olhos nessa fbresta cerrada de
curvas e brilhos. Aliás, seria inútil a descrição desses
desperdícios de talha vestidos do branco do gesso, do
grito colorido do óleo, do ouro verdadeiro. A regra é
válida, aliás, para toda e qualquer arquitetura de maior
valia e, mais, para hido que a compata e acaba. Num
manual de desenho geométrico pode*$e encontrar, por-
mcnorizadameiue exposta t até acompanhada de umas
tantas formuJazinhas matemáticas, una voluta; que se­
melhança, para nós, haverá entre (ais indicações, dita*
objetivas, e a sensação que nasce, desprcconcebida e
nua de razoes, da mais simples, da maU pobre, da mais

m
tria voluta jónica que o homem fez. de peara e pastou
ao ôl(o He vmA coluna q«c a integra na construção? O
descrever, o calcular, o expor c, mesmo, o reproduzir
ainda teni do encanto vivo de um volume organizado em
tazáo do coniuuto arquilciòoico. Fujamos, pois, as
descrições: o homo sttyivns pode interferir o, interfe­
rindo, ordenar a obtenção da peça artística, mas a obra
de arte, tal como a recebemos, já pronta c total, con­
tinuará sempre a pertencer ao homo faber. E não se
poderá aviltar a grandeza da criação reduzindo-a, ana­
liticamente, sos pobres passos da confccção, para igno­
rar a contribuição humana que comunica à aitc vida
peru de c . Iu:ni nosa.
Essa observação, válida para iodas as grandes fa­
ses da arte, torna-se geitantemente impositiva no caso
do barroco, onde parece incluir-se na própria intenção
explícita das peças. Dir-se-á, talvez, que a pretensa
fuga ao racionai não pa$<ará dc simples projeção dc
nosso próprio desejo dc fuga à razão, atitude artificial
ou, pelo menos, requintada. Incréu. crítico, indtgestado
<le pretensa erudição ou exaltado por fragílimos con­
vicções teóricas, ó viajante buscaria apenas arrancar
do* monumentos dc Ouro Preto uma simples compen­
sação, bda c sensível, ce suas canseiras cerebrais ou
cercbrinas. Mas essa guerra à ra2 ão, hostilidade pura-
meittc ocasional e fugaz no homem moderno, cuja con­
dição social há dc incluir uma fatal coordenada, carte­
siana, foi campanha sofrida, matéria do vida e morte
no processo do barroco. O ;ogo de espírito contempo­
râneo já constituía justa sangrenta há cento e cinquenta
ou d-rzentos auos atrás. Colocai, em Antônio Dias, o
homem dos fins da colónia. Ele ét por natureza, um
hesitante. Não por timidez, mas pela incompleta ousa­
dia que o leva apenas a m-?io*caminho da superação
almejada. Na poesia é árcade, pastor helénico, mas já
começa a sentir o encanto <lo negro escravo, das lavras,
da América. Nos costumes, aspira aos figurinos euro­
peus, mas já cedeu algo às cômodas simplificações indí­
genas. Nas realizações de maior porte, admitirá a cópia
de uma igreja portuguesa — digamos, dc .Braga —, ruas
faz o seu casarão citadino dentro das novas normas im­
postas pela adaptação ao ambiente ou pelas necessida­
des sociais nascidas da cultura nova. Na política, so-

190
breiudo, quando toma consciência do grupo c intento
aper^içoá-lo. cai cm verdadeiro paroxismo de oaargina-
)idade Esboça timidamente uma república futura, tao
vaga, táo sonhada, tão poética, que nela haverá todas
as possibilidades dc uma aristocracia risonha. Pmscnte
os prejuízos das barreiras sociais, mas inveetiva o Mi
nésio por não usar alvas cabeleiras, nem beijar cum
graça a mão das senhoras. Homem livre da América,
não resiste às injunçoes do colete dc seda c da casaca
verde-alecrim. Quando cisca a bandeira da revolução,
que não saberia deflagrar, fica interdito entre um índio
dc cocai e um verso latino. Sob tantas indecisões, pa­
tenteia-se, enfim, a indecisão fundamental, que viera dc
fora, que lhe chegara do europeu autentico, também ele
hesitante entro a Cru2 c a Enciclopédia. Para esse ho­
mem fêz-sc o barroco um argumento forte.
Contra a razão setecrntisui, Razão maiuscula que
chegaria à condição divina, ergue-se uma arte poderosa
e convincente. Ê a catequese intposiliva que a todos se
diiige: ao intelectual armado de diploma coimbrão e
delicado versejador de rimas perfeitas, ao tenente-coro­
nel bonacheirão que mantinha lavras medianamente
rendosas, ao subofjcial espezinhado e mata smcerainentc
violento em suas façanhas, ao mascate matreiro, no ven­
deiro bem humorado, ao escrivão míope e acanhado, à
rudeza do capataz, ao orgulho bárbaro do íorro dc
Chiw-Kci, à inquietação <Jo mulato pobre, à mística
impermeabilidade do negro escravo. Contudo, esse
apelo ao não racional — pois, nenhum valor tinha a
crença alcançada pela inteligência despojada da fé - -
ilcixcu dc atingir o tini último, embora .superablindasse
em efeitos colaterais.
Em primeiro lugar, extremam^, os tipos e os he­
sitantes recorrem aos exageros pau definir-$ç. Perante
o braço secular, coiuc se verá na insurreição frustra,
definem-se os leai.s súditos e os posiiivamente revoltados.
Perante o trono romano, dcfincm-sc o.s crentes devotos
nu os ousadarnente ímpios. A ccnáição e a posição so­
cial, no caso, pouco coutatn: não se cstrauhaju os có­
negos voitairianos de quem postumamente Eduardo
Frieiro se faria demónio. . . E, se havia traidores e hi­
pócritas, não devemos esquecer que a traição e a hipo­
crisia são formas aberrantes da fidelidade c da rebeldia.

191
I

De sua parte, a arte nâo se define. Adnpla-sc.


Assimila. Pe*cnvoJve-se. Destinada, de origem, a com­
bater a ra/.ão, prefere cui<lar ilc ú própria a continuai
hostilizando um inimigo tão fraco c tão desesperado. O
barroco mineiro começa, pois, a atender menos aos
I interesseiros destinos que o tinham engendrado na Rv-
rapa e contra plena satisfação cm desenvolver-se, desin-
teressadamcnCc, cm razáo de si próprio. A ilusão visual,
de onde partimos Aessas primeiras observações, deixa
de ser meio e instrumento, o passa a constituir interesse
c objetivo em si mesmo. Não é, consequentemente,
csiranhável ou sequer surpreendente que o barroco dc
Minas apresente uma originalidade toda sua, um es­
plendor nessa originalidade e, sobretudo, que acabasse
por servir à expressão da sociedade “centra” a qual,
inicial mente, se organizara. Ao cabo da sua evolução
c tal como o temos ainda hoje, não esmaga a raz.io com
a simplicidade do.s guerreiros estúpidos, mas, em sim­
ples torneio lúdico, mostra-se tão snperiormenie pode­
roso que finda pot enriquecer o homem.

A Matriz de Ouro Preto


A mesma curiosidade que levou o viajante a pro­
curar inicialmcnlc, em Vila Rica, a Matriz de Antônio
Dias, deverá impcli-lo agera a atravessar a cidade paca
ir i\ igreja <íe Nossa Senhora <lo Pilar, Matiiz do Fundo
dc Ouro Preto. Na verdade, os homens dessas duas
freguesias até hoje se defrontam ignorando a'unidade
municipal que, desde cedo, a Coroa Instituirá colocando,
entre os dois grandes arraiais evoluídos, o poderoso
traço-de-união da autoridade reinol afirmada pelo palá­
cio dos governadores c pela intensa cadeia, no alto do
morro de Santa Quitéria. A majestade lusitana c seus
canhões vigiavam pelas cosias os deis povoados e foram
temidos, mas nâo conseguiram convencer aos de Ouro
Preto c aos de Antônio Dias que pertenciam, todos, a
Vila Rica. O antagonismo de ontem continua na dife­
renciação puramente convencional de hoje, sendo sem­
pre viva essa memória. Por ls$o, depois dc uma Matriz,
impõo-$e visitar a outra.
Esteticamente, a transição 6 fácil e agradável. A
fachada da Matriz do pilar tem a mesma sobriedade
severa dc AntOnio Dias. Apesar de todas as modifica-

/9 ?
yõôs sucessivas, a semeilhança ainda 6 imposiiiva: o que
levou alguns a atribuírem-nas, aiubus, a um mesmo ar­
quiteto — Pedro Gomes Chaves. Ademais, aqui tam­
bém «e mostrará o contraste entre exterior e interior.
Muito mats forte, porem.
Desde o tapaveniCK o visitar.te é engolfado numa
onda de ouro. A nave, escura c ampla, é toda ornada
pelos seis fartos altares laterais e cercada de camarins
em toda a volta. A capela-mor, ainda ma is sóbria, c
inteiramente dominada pelo altar do trono. E.ss<is peças,
talhadas no inais sincero barroco que se poderia esperar
do lado de cá do oceano, nâo desprezaram as regras da
boa escola dc que nasceram c, se Iví, de toda evidência,
maior desperdício de pormenores ornamentais, com
largo predomínio de adornos florais denticulados que
sc dobram em torções frequentes, os elementos compo­
nentes, .sejam humanos ou vegetais ou arquitetónicos,
ainda nâo sc ecn laminaram dc todo, cm sua morfologia
intrínseca, do ritmo do barroco nativo. Corpo c rosto
dc anjos são calmos e bem formados, as ociíunas saía-
nvbnicas mostram-se ágeis e isentas daquelas adiposas
roscas que «outras igrejas se veem: tudo, enfim, parece
rnais regrado quando encarado em pormenor, destacado
do conjunto. Não obstante, a igreja, no todo, parece
ma is afrontosamente rica, mais, exuberante cm sua vai­
dade, roais impositiva em sua autoridade arrogante. O
milagre está no pigmento. Porque r.o Pilar tudo, mesmo
aquilo que o óleo coloriu mais tarde, e coberto de ouro.
Aqui, o arranhar do tempo e cena curiosidade cau­
telosa revelaram que houve, de fato, recobrimentos pos­
teriores. Então a igreja, já ião cheia de ouro à primeira
vista, parece recobrir-se inteira desse brilho amarclo-
-tostado que fulge entre sombras, consumindo ioda a Juz
ambiente «os reflexos fulvos das obras encurvadas dos
altares e dos notáveis painéis laterais da capela-mor, A
pintura foge para o tetc onde se encastoa cm caixões
<le três palmos de profundidade, «ovamente cercados de
ouro. IJvres dessa capa régia estão, apenas, as aves
monumentais — pelicanos cm estilização funcional,
quer parecer-nos, apesar das opiniões em contrário — .
que sustentam, sobre a nave, as lâmpadas votivas late­
rais, e também a bela c equilibrada Trindade que coroa
o altar-mor e na qual figura um Deus-Pai (entidade

m
frequente na Darroco e rara na iconografia posterior)
ião vigoroso, Ião belo c ião jovem que inais parccc
uma réplica do Deus-Filho que defronta. Mas, afora
essas figuras e as pinturas do teto. Pilar se fez de to-
retttica c douradura.

O T riunfo do Hmboaba.
Cabe, então, ouvir a explicação que gencrosarnento
dá o vigário da Matriz, o paciente Padre João do Pilar,
cuja voz calma c cuja paciente narrativa, completadas
pelo momo depois-dc-almoço dominical de Ouro Preto,
levain à imaginação o roais positivo dos homens. A ex­
periência dos quarenta anos dc serviço aos pés do mes­
mo altar e a prudente sabedoria da idade levaram-no
a uras simplicidade interpcetalíva que, talvez se conju­
gando mal com a tniuçyillia. de fatos da crónica, atingiu,
contudo, à mesma solução alcançada pelo Sr. João Ca-
tuilo dc Oliveira 'forres ao tentar uma visão amropo-
-soctotágica dos primeiros povoamentos do ouro. Para
o padre e pai a o historiador, a diferenciação entre An­
tónio Dias c Ouro Preto descende diretamente dos cho­
ques entre paulistas e emboabas. Dos encontros san­
grentos k vaguíssima competição bairrista de lioje,
vai ioda uma escala de antagonismos, estando o ponto
intermediário de maior importância na competição or­
gulhosa das fortunas. Ora, as duas matrizes, centro da
vida religiosa e social dos dois arraiais, haveriam de
registrar esse passado dc embates.
Na guerra, nem sempre branca, das duas facções.
n grande batalha e a maior vitória de Ouro Preto foi o
famoso Triunfo Eucarístico, a monstruosa procissão que
em 1733 transladou o Santíssimo para o Pilar, então
simples capela, pois a nave ainda não foca atacada. O
incrível préstito compôs-se de incontáveis figuras mito­
lógicas, bíblicas, cio martirotógio ou da imaginação
tradicional, todas representadas pelos “grandes”, que
esgotaram supérfluos e reservas em veludos bordados
com fios preciosos para cobrirem-se e às suas montarias;
em pedraria de cor e brilhantes para marchetar os flo­
rões <lo peito, das costas, dos gorros; cin rendas c plu­
mas para acabar mangas e arrematar chapéus; em chu­
veiros de diamantes, postos em diademas, pulseiras c
broches. Aquele que encarnava “Outo Preto” — quem
seria? — vinha vestido dc veludo negro c ouro escuro,
c trazia, numa salva dc ouro, enorme réplica, aioda de
curo t maciça, do morro que deu nome à freguesia!
Era o batismo áureo da matriz. Antônio Dias, dc qur.i •
quer forma, fora derrotado.
A consolidação da vitória fez-se aiuda peJo orgulho.
A igreja tio Pilar sempre preferia os artistas reiuóis, ig­
norando a contribuição dos primeiros artesãos da terra
e dos primeiros mestiços. Essa interpretação do padre
vigário do Pilar peca um pouco, como dissemos, quanto
à precisão histórica. Teremos de abrir mão dela se
aceitarmos a hipótese de um só arquiteto para os riscos
tht construção, ou sc lembrarmos que mestre Manuel
Francisco Lisboa enriqueceu coai seus trabalho^ a fre­
guesia dc Antônio Dias, oq que a famosíssima estátua
eqileatrc dc S. Jorge, do Aleijadintm, pertencia à igreja
do Fundo. Mas, se abrirmos mão dessa teoria simples
e eletiva, corno compreender a matriz do Pilar, tão di­
versa das igrejas dessas montanhas e que logo lembra
aos viajantes mais experimentados os templos baianos?
Porque só o orgulho etnboaba explicará a riqueza po­
derosa da matriz corra seus nobres e negros jacarandás,
a profusão de esplêndidos paramentos, a grande cômoda
dc dez metros dc comprimento e feita de uma só ma­
deira, o infinito de suas pinturas da sacristia o da nave,
c. afinal e piincipahncntc, a lavra mais fina, mais re­
gular, mais acadêmica, de seus altares c adornos. Negar
que entíe Antônio Dias e Nossa Senhora do Pilar me­
deia a distância de dois ciclos culturais, aparentados
mas em antagonismo, será requerer, para explicar-lhes
a dessemelhança, o argumento inviável dc duas esferas
artísticas autónomas ou dc duas espécies sensíveis ig-
norando-sc rnutuaincntc.
A igreja mineira toma-se, pois, o instrumento <lc
diferenciação dos vários grupos. Muito provavelmente,
também os indivíduos se utilizaram desse mesmo pro­
cesso, pois, além de *>c terem conservado alguns nomes
dc. instituidores dc capelas (com a auréola trágica de
uma legenda romântica, no caso de Mercês de Baix.0%
as crdens funcionariam como organismos intermédios,
o bastante grandes para evitar as personalizações gritan­
tes, o bastante pequenas para não velar de todo a iden­
tidade dos doadores de maior monta. Afinal, numa s o

195
ciedade escravagiíta, sem vida feminina fora da mora^
dia, as parcelas operantes, isto é. os homens maiores e
não-dependentes constituiriam, talvez, o décimo ou o
duodécimo da população lo'.al. Dentre esses, os ricos
destacavam-sc c chamavam sobre si a atenção dc toda
a cidade. Daí o desejo de afirmar-se t reafirmar-se, de
fazcr-sc o manter-se “um’1. Se a Igreja se tomara o foco
de competição entre *& freguesias rivais, seria também
torço samente a via dc satisfação da vaidade pessoal;
quem não consegue perceber que c> ouro-prcianos dis­
putaram »rduamente o direito dc personificar tal cva qual
figura relevante no Triunfo Eucarístico? *
Mas acrescentamos uma palavra final que nos ser­
virá de guia na* próximas visitações aos templos de Vila
Rica. Sc a igreja era 9 via, o ouro era 0 motor. Nâc
sc trata dc repetir apenas 0 tmismo sobre a infra-estru-
lurn económica, mas sobretudo de sublinhar 0 pape!
imivalente do metal precioso que. encontramos cumprin­
do utu punhado dc fuações: produto da indústria mine­
rado™, moeda correuu (cunhada ou não), abjeto de
adorno, matéria-prima das obras de arte — tudo isso in
concreto, sem as abstrações do capitalismo porvindouro.
Ouro e arte religiosa são, por via de regra, os ter­
mos das equações que exprimiram, pelo menos nas ex­
pansões tnais altas c duradouras, os movimentos sociais
da civilização das Montanhas.

Permaménua r>o Rstílo


Patenteado por tantas evidencias históricas de or­
dem geral, o antagonismo entre Antônio Dias c Pilar.
mcJhor do que qualquer outro dos conflitos intergrapuis
que agitaram e aqueceram a vida social de Vila Rica,
servirá para iniciar 0 viajante nos mistérios do barroco.
Porque, como vimos, a afirmação social e económica,
que inspirou e custeou a ercçfto c o desenvolvimento
das duas igrejas, deve permanecer no meio-termo tie
algo entre 0 pressentimento c a interpretação, evitando-
-se colocar o problema cru tertnos dc extremado deter-
mitiismo, que. nos afastariam, irremediavelmente, da
realidade. Que houve rivalidade acesa c, até, choques
violentos entre os dois arraiais c as freguesias suas her-
ddras, não há dúvida. Julgar, porém, que daí proviesse

Í96
oma diferenciação total dos dois monumento*, seria
pouco inteligente e menos viável.
Trata-se dc apanhar, quase sempre por via sensí­
vel apenas, as modulações no tom, na nota, na expressão
subjetiva das obras de aric. não esperando modificações
fundamentais na linha, na ordem, na fisionomia mate­
rial do estilo. A rigor, não se deve procurar saber se
mudou i\ regra, mas tão só se buscará conhecer as ma­
neiras especiais de obedacer-lhc. Ma verdade, salvo cer­
tos casos particulares que a seu tempo serão anotados,
vale considerar Ouro Preto como um reino quase absolu­
to do barroco, empregando-se aqui o termo em sua acep-
ção brasiteira, segundo passo dc uma evolução iniciada
vigorosamente pelo “jesuítico", ou, muna palavra, algo
que corresponderia a uma maturidade e esplendor da
concepção européia inicial. Há mesmo, a marcar ponto
de partida da maneira local e começo dc declínio da
fórmula vinda dc fora, esplêndidas amostras mais anti­
gas, como a capeia do Paire Faria. Também do termo
final desse processo, h.i docu:rier.tos iá do tempo úc
império. Nessas notas, ao menos em sua intenção ini­
cial, procuraremos ficar mais nas generalidades (mesmo
arbitrárias. . . ) c, assim, intercssar-nos-á roais captar o
fenômeno em sua fase de plena expansão.
Aliás, esse “barroco brasileiro" ntostra-sc bastante
farto para dar vazão a moelas as necessidades de ordem
social. Vimos como issu aconteceu enquanto mais vio­
lento íoi o atrito entre >>s dois grandes grupos globais.
O caso, no entaruo, não é único, nem o mais gritante,
muito embora represente o ponto dt contato inicial mais
favorável ao viajante desprecorcetido e curioso. Mas,
imediatamente contíguos, outros exemplo* abundam co­
mo o dos grupos negros. Escravo ou liberto, o africano
sentiu necessidade dc demonstrar vigorosamente que
era feito da mesma massa humana dos brancos, senho­
res ou não. E. ao menos nas igrejas, o conseguiu.

igrejas Negras
Conviucentcmcnic, o St. João Camilo de Oliveira
Tôrrcs encareceu, já, o papel das ordens terceiras. “Um
dos caracteristicos principais, uma das notas essenciais
da sociedade do período histórico que se convencionou
chamar de ‘antigo regime era a existência'de grupos
197
dentro dos quais todos eram irmãos.” Na Europa, co-
nlicccram-sc as corporações que visavam “não sòincnte
resolver os diversos probietna6 dos seus sindicalizados
no ponto«de-visra terreno, como também salvar as suas
almas”. Mas no Brasil interferem as difereoças raciais.
“Distribuíram então as irmandades pelas três taças.
Dentro da irmandade, cada irmão tinha amigos e socie­
dades, socorros espirituais e materiais; os que ocupavam
cargos de diretória tinham oportunidade para ganhar
prestigio social e desenvolver suas qualidades de domi­
nação. Havia ambiente para firmarem-se coletivamcnte;
pertenciam a um grupo importante na vida social.”
Donde podcr-sc concluir: “O aspecto no nosso caso,
maia importante, das Ordens Terceiras, foi o social. Aos
negros recém-vindos da África, foi concedido um am­
biente favorável ç adequado, onde eram homens livres
e não sujeitos a outrem e onde escolhiam os seus che­
fes.
Uma vez traçada a linha de antagonismo entre
Antônio Dias e Ouro Preto, o encontrar-se um par dc
igrejas “negras” cm Vila Rica assume ar dc coisa certa,
de comprovação de lei. Elas lá estão: Rosário, na fre­
guesia emboaba, e $ta. Ifigênia, do. lado paulista. Am­
bas não teriam muito para mostrar ao viajante, não
fosse a particularidade da linha arquitetônica geral (o
sítio numa, e noutra, a planta baixa) e auréolas lendá­
rias verdadeiramente curiosas. Sta. Ifigênia (na ver­
dade, N. S. do Rosário dos Pretos da Cruz do Alto de
Padre Fatia, como ensina Manuel Bandeira) está no
alro do morro no extremo leste da cidade. Para chegar
lá, é preciso vencer a ladeira colubrejante e íngreme do
Vir&ssaia (expressão das dificuldades topográficas ou o
come expressivo de uoi lendário bandido e kmbeur de
lemmes?), mas, mesmo ao cabo dessa longa e exte­
nuante subida, o acesso à igreja ainda exigiu uma esca­
daria de trÍDta ou quarenta degraus — é a topografia
barroca de Ouro Preto, lá referida, diante da qual o
arquiteto, respeitoso da Natureza, evitou retorcer de­
graus ou espaçar lances desiguais. A fachada é graciosa,
sobretudo para quem vem das velhas matrizes severas,
mas não se entrega a grandes fantasias. As linhas tra­
dicionais que o bano abrandou sem desfigurar só cede­
ram à imaginação no implantar um nicho que, forçando

J98
com a base o arremate da porta, vai encobrir um pedalo
do ollto-de-boi — sacrifício do funcionai ao decorativo
que sugere acréscimo posterior — ou no desenho ágil
da cúpula das torres, cid que o bulhoso se achata em
esbatimento forçado para mais leves se tornarem os
expressivos pináculos. Se formos çxigeutes, isto é tudo
que Sia. Ifigêiiiâ pode dar-nos. Nada, cm seu interior,
merece nraa especial atenção. Mas St», tfigènia tam­
bém na lenda se coloca alto: ela é a igreja de Chico-Rei,
construída quase à boca da mtoa que alforriava escravos
c de onde subiam as negras com o cabelo empoado de
ouro para lavado na pia de água-benta.. .
Rosário (isto é, N.S. do Rosário dos Prelos da
Freguesia de N.S. do Pilar) possui atributos niais posi­
tivos. Sua famosa estrutura bombeada, formada perr
dois ovais intcrsectados entre si e, na fachada, interrom­
pidos pelos círculos das torres, abrem caso especial na
formaÚstiea do barroco mineiro. O Sr, Miran dc Barro*
Latif quis, a propósito, falar de l'Jieotradicionali$mo” c
“rteocla.<KÍcisrtont admitindo-» '‘embora muito barroca
em suas formas abauladas, nos pináculos do coroimen-
to e tc ...” e apegando-se a ,:um» certa severidade
tradicional”. Parece-nos um pouco forçada a interpre­
tação, apoiada, aliás, apenas no fato de não se poder
conceber "o fuste das colunas com a placidez dos galbor,
clássicos, quando na missa, aos domingos, os homens
sc perturbam com o simples pressentimento das curvas
dos corpos, sob a seda armada vlos vestidos. . . " A
regra das fachadas do barroco mineiro é, mesmo, a da
severidade e nisso devem* acompanhá-las as colunas.
cf»concraiido-se exceção nos pilares centrais do adro dc
S. Francisco dc Assis. Ademais, colunas de volume
liberto teriam perturbado a facliada Uo Rosário, onde o
movimento abundante c poderoso da planta baixa, no
caso de ser multiplicado nos pormenores, descairia para
um amancirantento rococó qualquer. A.aparente sim­
plicidade exterior dessa igreja na verdade não existe;
será antes impressão vaga da quase desilusão que nos
causa seu interior. Sua fisionomia externa, mesmo sem
pedra-sabão e medalhões elaborados, enquadra-sc no
barroco e constitui apenas urna ousadia arquitetónica,
como há, no Carmo, uma modesta ousadia decorativa.
Mas só.

199
Aqui, aliás, pura as Observações que aos sugeriram
estu nota, há um dado histórico que não sc pude subesti­
mar. A lenda Cccc ao fato comprovado e o poder das
irmandades negras torna-se patente c imposilivo quando
sabemos que o Rosário dos Pietos, quando ainda cape-
Jinha, abrigou o Sacrário Paroquial c que na igreja, dos
africanos teve u orgulho português dc vir buscar o
Santíssimo para o Triunfo Eucarístico. Cútno tatnhétn
no Rosário ds Ouro Preto sempre houve "hú ftey e hua
Rainha, ambos pretos dc qualquer nassão que seja'1,
parece-nos que assim se comprova a tese da função de
afirmação .social desempenhada pelas igrejas e iccnapda-
des na civilização do povo. Pretos e brancos, no mundo
religioso, colocavum-.se, como poderes soberanos vizi­
nhos, cm pê dc igualdade.
Deve precaver-se o visitante de Ouro Preto contra
a$ tentações do esquema, pois tão farto e tào beto é o
material que encontra c tào envolvente o clima histórico
que, muito provavelmente, as pretensões eruditas vol­
tam a emergir do silêncio em que a afogara a humaai-
dade <lo primeiro instante. Valha, pois, esse mea culpa
para escusar certo esquematismo algo forçado que co­
meça a dominar essas notas. Interessados em apontar
a docilidade do barroco quando submetido a certas
exigentes necessidades de expressão social, c insistindo
em sublinhar o caráter suuiuário e o processo de osten­
tação da auto-afirmação dc grupos em choque, tememos
agora ter simplificado exageradamente o pensamento.
Não se creia, pois, que atribuímos ao barroco
mineiro uma constante tendência a exprimir-se apenas
em formas ricas. As expressões ualtasu, de verdadeira
prepotência económica, parecem ames resultar dos va­
lores sociais dominantes na civilização do ouro, aos
quais a arte pode acompanhar sem cair cm escravidão.
Não há, como forçosamente haveria dc não haver, para­
lelismo entre a altura da expressão artística c o nível
da fonte económica que a instigou. Assim, se mi lata
entre as freguesias Ouro Preto pode conseguir a vitória
esmagadora do TríunU» Eucarístico, na competição mais
lenta e mais grave dos nioaumeutos —- Pilar teve de
enfrentar Antônio Dias, embora muito mais rica.
Depois dc encerrado c espetáculo da competição
social, voltam a pesar outra* elementos que o exibicio­
nismo perdulário do ouro-moeda temporariamente ofus-

:.oo
cara, A autenticidade, o equilíbrio e, sobretudo, a ori­
ginalidade da obra acabara por reclamar seus direitos.
Dai, talvez, certo desapontamento que causara os inte­
riores das igrejas '‘negras*', nas quais uma primeira
reivindicação de staíus superior concretizou-sc cm pre­
tensão arquitetônica (c sitio em Sta. Ifigênia, a planta
no Rosário), mas às quais faltou uma segurança artís­
tica que continuasse na nave, no atuir-mor e na sacristia,
a diretiva adotada no exterior, Nào se conclua, contudo»
que a pobreza enfeie os templos; na verdade, nada asse­
gura que a igreja dc Chie o-Rei não contasse sempre
com os necessários recursos económicos, sendo antes
licito supor ud) depauperameuto artístico ou, mesmo,
artesanal.

7t>rejas Pobres
' Ganha, pois, o ba:rroco mineiro uma independên­
cia expressiva que limita a tirania das determinantes
económicas. Há igrejas pobres, belas t feias, ou então
belas e feias igrejas ricas. Algumas vezes, a pobreza á
mesmo condição. Em outros casos, 6 apenas o fruto
de progressiva decadência. Na primeira categoria está
Mercês de Cima. Na segunda, Mercês dc.Baixo. Am­
bas, aliás, cheias dessas emendas de arquitetura e deco­
ração que refletem os abares do dinheiro ou a transição
dos raros mecenas individuais. Mercês de Cima não
deveria ter a fachada atual e a torre exigiu o desfigura-
mento da estrutura interna, como anota Manuel Ban­
deira no Guia. Abriga alguns móveis antigos. Mas já
no que tem de mais velho restou da igreja primitiva,
já no que tem dc mais recente marca-se por urna nota
decididamente- pouco próspera. Tem mesmo unia certa
graça c imitação de grande templo, com os camarins
laterais da capela-mor, redução das largas varandas dos
templos maiores. E, nesse espírito humilde de fazer o
possível, desenvolve-se toda a igreja de altares despo­
jados e claros, desarmados das douraduras, dos planos
múltiplos c das rotundidade? sucessivas do barroco
farto. Ê a timidez discieta do pobre imitando o tico,
sem desejo de iguafá-lo, que recorta curvas barrocas à
borda tios retábulos, oias deixa as tábuas, no maú, lisas
e limpas. Dir-se-ia uraa versão íínear daquela mesma
decoração, que, de comum, se vê jogando à custa das

201
três dimensões e dc suas ilusões. Não se creia que daí
venha o mau gosto da imitação simiesca e desajeitada;
peío contrário, a igrejinha, tocada pela luz da manhã,
tem um encanto especial, uma concisão modesta e cons­
ciente de quem prefere calai-se para não proferir dis-
parares. No seu aparelhamenío discreto, só terá, para
uma vaidade maior, a fachada, que não é talvez muito
honita. dado o excesso da scluçuo rigorosatnente canó­
nica do frontão cm triângulo regular, nem exagerada-
mente graciosa com suas sacadinhas de ferro ornadas de
pjnhas de cristal de cor, mas que pode dar-se ao orgulho
de um medalhão dc discreta lavra de pedra-sabão, Com­
pletado por elegantes florões de ornato, em que se quer
ver a influência estilística, direta ou indireta, do Aleija-
dinbo.
Um pormenor que não merecç ser desprezado 6 o
conjunto dc imagens dc Mercês dc Cima, tanto alguns
santos, bem antigos, que se encontram nos altares (so­
bretudo um Batista-menino de exagerada cabeça),
quanto, principaknente, as estátuas que figuram nas
procissões. Ficam estas, cm geral, desarmadas, e só
têm suas peças compostas para as grandes ocasiões: as
treze figuras da Santa Ceia, que na Semana da Paixão
sc arma numa sala aos fundos da sacristia; um paps ç
dois cardeais — todos anónimos, como convêm à trans­
cendência do poder espiritual —, com que se carrega xun
andor semi-alegórico; uma imagem anónima (talvez um
segundo São Pedro Nolasco, fundador da Ordem), que
está de pé, o ano todo, «o consistório, para ajoelhar-se
aos pés da padroeira nas procissões, e, também, uma
santa igualmente sem identidade nas suas alvas roupas
frei táticas, roas que o sacristão transforma, nas ocasiões,
cm uma Senhora das Dores de trajes roxos c longa
cabeleira. O maior interesse não está, contudo, nos
"segredos de bastidores1’, com perdão da palavra —
mas na fatura dessas peças, todas elas saídas de uma
ou inais mãos não eruditas. Têm o poder expressivo do
artista primitivo. Em Mercês de Cima, onde a peça
de acabamento fino se chocaria com o resto do am­
biente, as estátuas rudes fazem continuidade com as
outras, roais antigas e bem autênticas, dos altares, c,
sobretudo, com o tom geral do templo. A igreja encon­
trou o santeiro que lhe convinha.

202
I

Valha a referência para tomar patente a capaci­


dade de absorção do formulário barroco, capar dc
rcsumir-sc ou de expandir*se em extremos inauditos.
Todas as mãos podem trazer-lhe contribuição, todas as
sensibilidades podem dar-lhe uma interpretação, todas
as forças do homem c do grupo encontram maneira drt
exprimir-se através dessa linguagem poderosa. Haverá,
nas igrejas de Ouro Preto, um barroco culto, uni baixo
barroco ou barroco bárbaro, roas a língua é uma só v.
a mesma, e suas variações ali vivem lado a lado. A
mensagem, pois, não sc perderá. Seria inútil tentar
explicar o esplendor barroco pelas lutas sociais que
foram a contingência e não a determinante das belezas
de Vila Rica. Seria improfícuo tentar enquadrá-lo nos
rigores dc um esquema de prosperidade c disponibili­
dade económica. Seria ingénuo tentar traçar uma sim­
ples linha evolutiva para reger e organizar esse conjunto
dc manifestações que, fossem quais tossem as condições
circundamos, sempre encontrou meio de expandir-se
dentro delas c até contra das, modifícando-sc, adaptan­
do-se, simplificando-se cu complicando-se, mas auncu
— c isso é que importa — chegando a negar-se.

lyrejtj.v Velhas
Encantado com a maleabilidade do barroco mineiro
e tendo os olhos cheios dessas contínuas c sempre reno
varia? variações sutis com que a arte desencadeada pela
conira «reforma e alimentaria paio absolutismo conse­
guiu, afinal, em terra estranha t para outra gente,
atender às solicitações exigentes de uma sociedade nova
cm.plena expansão, o viajante acaba por hesitar * de-
ter-se. Não cairia ele, afinal, no preconceito turístico
de sc ver o que prefigura cm espírito antes riu excursão?
Na higiénica simplicidade, do hotel dc Niemeyer estão
seus companheiros de férias, c, na verdade, lambem
eles, diante da cidade-monumento, só fazem selecionas
segundo o “seu" critério. Urna comissão mspedona-
<lora. militar, louva o sitio. .. tios quartéis, o.s turistas
ricos excitam-se com a perspcciiva do boas compras de
antiguidades; estudante? de belas-artes enfurecem-se
contra as ladeiras e dcUcianvsc com as serenatas. Há
mesmo especialistas dentro de cada categoria coiuo c
aulOutico crenólogo, amante de “antigorio”, descoberto

i
por d. Raquel de Queiroz, ou aquele douto professor,
cultor ela estrita autenticidade. que virou as costas ao
lavabo da sacristia de Sàc Francisco de Assis afirmando
•‘não haver inteira comprovação da autoria do Aleija-
dinho'\ .. Mas, com que direito os criticaremos, se
também nós andamos a buscar, no espetáculo impo­
nente, 0 positividadezinha medíocre c .sensaborona que
carregávamos ao embarcar?
Não nos deixemos, pois, afogar na sociologia seca
c esquemática, sobretudo se ela desmerece a história,
pois que história e sociologia ou andam de mãos dadas
tr.> perdem-se a meio caminho. *
Na verdade, tão efetiva c autêntica é n função do
barroco na civilização do ouro, que jamais nos perdere­
mos, diante de seu esplendor, ent esterilidades abstratas.
Se das próprias igrejas salta a evidência das velhas lutas,
das acomodações raciais e das desigualdades de for tu
nu. lainbcKi delas próprias poderemos tirar toda a evo­
lução da história que as fez e modificou. Não queremos
aludir à crónica de fatos minúsculos, que registra um
prego de curo Ml ido por D. Pedro II na base de um
altar. Nem à história global desse núcleo económico e
polilico que conheceu pessoalroente Felipe dos Santos c
Tiradentes c Pedro I. Mas, sim, à história «lo próprtG
barroco das Gerais, o que, de certo modo, é fazer a
história de algo que sintetiza a história.
Certas igrejas servem de ponto de referencia inicial
c outras de indicação da etapa de termo. Basta que
não se seja demasiado exigente no tocante às datas.
Assim, por exemplo, a Capela elo Padre Faria — que»
pelo seu interior, já poderia considerasse algo mais
que capela c que se construiu muito depois de o padre*
-bandeirante ter-se tetirado para Guaratinguetá •—
constitui a peça mais velha de Ouro Preto. Porém, aqui,
mau velha nSo se traduz no enunciado numérico dc
um determinado ano: diz seu lindo sino 1750, diz sua
cruz pontifícia, lindíssima, 175Ú — no entanto, diz a
tradição que isso ludo já é posterior aos anos dé som­
bria interdição da capela primitiva (cuja porta se fechou
por causa do assassínio de um padre) e, também, de
sua reconstrução pela irmandade do Rosário dos bran­
cos. Quem sabe? No ca tanto, em Padre Faria está o
inais velho barroco de Ouro Preto, o único que, todo
de talha domada, como o dc Pilar, escapa à ostentação
evidcntíssiiua da matriz umboaba. Há, na capclinha,
uma tirânica severidade, que rege os altares fulvos cm
sua avançada para fora das sombras densas da constru­
ção de reduzidas proporções. E> todo, ali, indica que
não foi a riqueza que ícz o banoco de Minas enri­
quecer-se.
A Capela do Pe. Faria é rica. No acanhado espaço
que a taipa pode cercar, põs-sc um máximo de torêutica
finíssima t nobre metal. O oficiante vinha para o púl­
pito passando por um aJpcndrczinho externo à sacristia
e ao corpo do templo (lá estão, a.nda, alicerces e cal­
çadas), mas no interior respira-se a atmosfera da lar­
gueza económica. Não nos deixemos arrastar, portanto,
pelo exemplo da Pilar, cuja decoiação luxuriante não
deve ir para a conta da evolução dum estilo, mas ape­
nas ser atribuída à hipertrofia do orgulho dos nababos
que sucederam aos pioneiros. Tanto melhor: o que se
desfez foi o caráter dos homens e .ião o da ane. Esta,
no máximo, tolera; nunca pactua, porem.
Essa interpretação nào sc deve a um cx8sero. Ela,
como todas as idéias que nos vên à cabeça cm Vila
Rica, c imposta por mau \im outro monumento: no
caso, a igreja dc S. Miguel c Alma’, ou seja, do Senhor
Bom Jesus dc Matozinhos das Ca teças segundo a con­
sagração popular. Certos críticos, ardentes dc espírito
de geometria, sorrirão com ver aqui citada, como igreja
antiga, aquela que possui na portada um belíssimo São
Miguel dc pedra-sabão que, embora faltem documentos,
terá de ser atribuído ao Alcijadinho, a menos que hou­
vesse na antiga Ouro Preto outro génio de porte idên­
tico ao do mestiço famoso. Hesitamos, contudo, ao
defrontar o belo arcanjo e, sobretudo, esse baixo-relevo
que, a seus pés guerreiros, figura o Purgatório. Olhe­
mos, antes, para a construção ca igreja.
Matozinhos cresceu lentamentc. Vista dos fundos,
deixa perceber que, cie início, foi simples capela
ocupando o espaço que hoje é da capela-mor, segundo
o ritmo dc tantas outras construções religiosas de Minas.
Aliás, o próprio altar-mor parece vir desses tempos difí­
ceis; tão simples é no recorte dc tábuas lisas, à borda
dos retábulos, a Èetnbrai talvez os de Mercês de Cima,
não fossem ainda mais toscas as colunas que aqui, ao
invés de aparecerem cónicas ou cilíndricas, são simples
secções de obeliscos truncados — três pranchas que
oma tabuinha, lá no alto, coroa com umtação pmtaoa
de capitel florido. Todas as curvas desaparecera, seja
no altar, seja na planta baixa, e até no teto, querendo
íazcr-se côncavo, só consegue uma retilínea conjunção,
a 45 graus, de très planos lisos. Salvo os concziiihos
envergonhados dos cois Dichos laterais, nenhuma linha
da construção e da decoração escapa à régua. Voltas
ç volutas só mesmo pintadas e, ainda assim, raríssimas.
Contudo, Matozinhos aspirava ao barroco. Mal­
grado esse império do retilíneo — a reta traduz a p o ­
breza de recursos c a rustiddade técnica — é barroca.
Aii c^tá toda uma época a reclamar o seu espíritp, a
remediar-se como pode para não faltar à fidelidade para
consigo mesma. E a faial idade, de certa forma, que s<:
sabe xínica capaz tíe exprimi' um estado de alma, uma
cultura, uma política até. Contudo, Matozinhos cresce.
Faz-se a nave muis larga e maia alta que a capela-mor
e, ao mesmo tempo ou logo depois, as tones. Os tem­
pos sáo melhores e, embora sejam só dois, os altares
laterais superam folgariamente, em risco e execução, a
peça do trono. Que mais longe ainda sc queria chegar,
mostra*» o púlpito começado em pedra lavrada, uras
até hoje ostentando a caixa sumária de madeira livre,
ali posta, por certo, provisoriamente.
Veio, afinal, a terceira parte da construção, em
" \'" t a pinçar os extremos da nave c a envolver a cape­
la-mor, lateralracnte com dois corredores e ao fundo
com uma sacristia. Nesse corpo, as peças complemen­
tares, raais ocasionais e menos funcionais, não dão
seguras indicações: no lavabo, de áspero arenito e
talvez mais velho que a parede cm que se apóia, íèz-se
o acréscimo de uma cabeça de anjo, de melhor fatura,
em pedra-sabão, e nas paredes há uma série de estra­
nhos quadros de macieira cm relevo encarnado (nos
quais Cristo, solitário e cm tamanho natural, é repre­
sentado nas várias cenas da paixão), obras rudes no
lavor, mas de um vigor primitivo que a distorção ca­
nhestra mais acentua. Peças velhas, postas ali depois
de uma reforma? Coisa vinda de fora? Simples primi-
tivjsmo, catalogáve) em qualquer época ou. fase?
Mas o barroco a que aspirava Matozinhos já esrava
ali, conquistado e suficiente. Um último toque, no en­
tanto, foi dado e, esse, definitivo e confirraador da
precária teoria que se pode aventurar acerca do templo

206
de São Miguel e Almas. Para os corredores da sacristia,
vieram duas telas que, sc ferem dc Ataídc, como se
diz, estarão entre as melhores obras do artista, c a escul­
tura e o$ relevos da entrada que, a serem, corno devem
ser, do Aleijadinho, jamais figurarão entre seus traba­
lhos menores.

Igrejas Novas

Não mais insistiremos sobre os primeiros arroubos


do barroco a buscar livrar-se da contenção, tão superior
e bela, do jesuítico. Poderíamos, por exemplo, exami­
nar melhor o caso dessa igreja de Ouro Branco, tãu
pouco falada e de linda decoração. Mas o leitor nao
pode ter os tazeres de um viajante cm férias. Saltare­
mos, pois. para o extremo oposto; procuraremos o fim
do barroco, se c que, jamais, uma fornia de arte, uma
vez cultivada, morre.
São Francisco de Paula é a mais nova das igrejas
uhistóricasn de Ouro Preto. Posta ao alto do morro
mais alto tlc todo o núcleo urbano, ?. vista, cá embaixo,
de todos os pontos, sobretudo nas noites de luar, quan­
do o rebrilho de suas cúpulas se torna fantasmal. Ê, dc
todos os templos, o de sítio mais privilegiado. Grande t
farto, não poupou despesas, nem trabalhos. Começada
em 1804, a construção conclui-sè em 187H. Em 81.
D. Pedro TI honrou-a com uma inspeção dos rratat/ios
de decoração, xà terminados, contudo, com a douradura
do altar-mor, ezn 1898, e dos laterais, cm 1908. A
igreja, nascida na colónia, chegou incompleta aos pre­
sidentes republicanos. Estendea-se por todo o vi;c-
-reino e cobriu, por inteiro, o primeiro c o segundo
império, Mas essa aritmética dc datas nada significaria,
se em sua própria feição não estivesse a marca visível
dos tempos imperiais.
Que não se procure a marca na frontaria. Esta
concorda com o tempo do risco, cujo autor — o Sar­
gento-mor Francisco Machado da Cruz — tirou partido
do sítio e projetou um volume exterior grosso e impo­
nente. Dominam as horizontais que afogam as linhas
retas com estratagemas sabidíssimos: a cornija a atra­
vessar a fachada de lado a lado, na altura do telhado
da nave; o frontão desmanchado cm um par de enormes
volutas a alcançar as sineiras e a abater as torres; as

207
cúpulas feitas da superposição de duas meias-esferas
(igeiramente achatadas, cercadas por quatro pináculos
e coroadas por outra grimpa ma is afirmativa. A massa
é, pois, potente. Mas não pesada. Alguns contrastes
castanhos sobre o alvo da cal, o adro bem planejado,
a escadaria com seus santos de louça c, sobretudo, a
topografia favorecedora dão graçn e movimento à soli­
dez da construção
Do lado de íoia, nada. pois, contradita a data ini­
cial. No interior, contudo, já não se encontra a atmos­
fera do comum das igrejas de Vila Rica: um novo
espírito instalou-sc. Digamos logo: c o espirito imperial,
A intenção cia$sici2ante, uni dia chegada com a missão
francesa c depois abrigada à sombra do paço de São
Cristóvão, procura 3poderar-$e dc Ouro Preto. A pri­
meira impressão c a da obediência à linha tradicional,
mus Ioga sc sente a ausência das colunas salomónieus e
de suas companheiras estriadas, que umas tímidas ca­
ndura* ao pc de lisos cilindros rememoram vagaoientc
— vem a nostalgia daquela superabundância das for­
mas, lastima-se não haver a ilusão mágica do barroco.
Sahe-sc, então, que do passado só há a cortês reminis­
cência da decoração. Se o belo, como dizia a velha
definição, é "o ««plemJor da forma na ordem perfeita”,
vemos que há fases da arte em que sc insiste na ''or­
dem” desprczando-se o '‘esplendor''. K os batalhadores
da renovação clássica acreditavam que a sua ordem
fosse 3 própria ordem universal: impuseram-na ao
barroco tiranicamcnte, sem perceber que o barroco
tinha a sua ordem peculiar c própria, difícil de captar
porque muito complexa, nur.io original e muito autên­
tica. O barroco feneceu. Ainda assim, forçaram seti
fantasma a revestir uma nova ossatura, tentando impos­
sível ressurreição. Consequentemente, o que era esplen­
do externo de uma coerente ordem íntima perdeu a
razão de ser ç comemou-se com estar onde o puseram,
com simples ademane imita tivo. A quimera fez-se
adorno.
Iixpltca-se, pois, que o interior de São Francisco
de Pauta não desagrade como simples espetáculo visual.
Tudo ali se esbateu e se adocicou. A lavra c serena e
bem comportada, o gesso alvinifcmte das igrejas velhas
abdica cm favor dum azui-claro juvenil e feminino, a
douradura faz-se muito mais lavada no amarelo pálido

2 OS
do metal menos opulento e msis recente. H á, pois,
uma harmonia nesse dcsnaturamertto total. A arqui­
tetura não se recusou a colaborar e seis janelas altas,
que num conjunto barroco seriam rcglutíiías pelas ba­
laustradas de jacarandá, pelas dobras repetidas c pro­
fundas do entalhe, pelas roupas <los santos» pelas tintas
carregadas t pçlo ouro negro, jorram agora uma lira
abundante e alegre, um sol de manha montanhesa sobiç
os meios-tons risonhamenie tímidos da decoração nco-
clássica. O homem do século dezenove julgou seu ante­
passado imediato como nos hoje encaramos os orientais,
divertindo-sc com sua Luxuriante ostentação c atribuin-
do-ft a uma extroversão, incontida c escandalosa, que
não sc equilibrava por um universo lógico, consistente
e legítimo. Mas, sempre que a zombaria dos “ espíritos
fortes” inferioriza as épocas dc paixão, acaba por paten­
tear sua fragilidade, servindo-se, sem o sentir, das con­
quistas passadas.
A escadaria dc São Francisco dc Paula despeja
sobre uma ladeira íngreme que leva à acropolezinha
miniatural onde construiu a igreja, ou tnelhor, «a capela
de Sfto Josc. Mão nos deteremos, agora, a csairimar-
-Ihe o interior, que nem por isso é pouco intercssaQte.
Basta-nos uma inspeção dc sua fachada, que mal se
entrevê desse adro mínimo que sc precipita para os
lados do Rosário c da Rua Tirarientes cm ladeiras quase
intransponíveis. Aqui também houve um intuito dc
alcançar a graça c a leveza do decorativo, mas, como
estamos diante ds uma ohrj» roais velha (construída en­
tre 1752 c 1811), os caminhos trilhados foram bem
diversos. Sc não sc resistiu ao desejo de enfeitar a
fachada - - coisa rara. nestas Gerais c que, no caso, só
se compreende como uma comptnsação do reduzido
tamanho da ofcra —, não houve socorro do adorno
proposto ou da estilizaçao. A píanta incumbi u-se da
tarefa. Projetou, na frontaria, um corpo niais avançado,
com o modesto pórtico à frente z dois abaulamentos
laterais que se prenclem na nave. Ao alto corre a ba­
laustrada <le uma sacadinha a trazer lembranças renas­
centistas. Desta base. nasce & torre, também cia
avançada em relação à nave, mas detendo-se antes de
alcançar o plano da cn^racla. Corta-a uma cornija com
sua linha dc telhas que, reta a partir do telhado, íaz
um semicírculo no centro da fachada. Idêntica linha

209
<lc telhas ondulante corre pelo telhado, onde este se
prende à torre, e pela própria torre acima, das sineiras.
Duas grandes grimpas rematam as esquinas.
Não há por que procurar, num conjunto dessa
ordem, aquele espírito decorativo de acréscimos epidér-
micos que íaz a ruína do neoclássica e demais acade-
niismos. Aqifl também, por certo, houve a preocupação
de. enriquecer o conjunto com elementos que, julgados
segundo um injustificável rigor funcional, seriam inex­
plicáveis. No entanto, não há uma contradição entre
função c embelezamento que, antes, se completam,
ajustando-sc reciprocaraente. Em suma, a visita â São
José traz contraprova ao que começáramos a perceber
em São Francisco de Paula — a ordent do barroco, as
soas leis dc organização c cristalização, não só existem,
mas também são de uma inesperada potência, pois onde
ofi “estilos” posteriores se mostram convencionais ou
parasitários, o barroco demonstra uma força expansiva
e criadora. E nisso, rbalmeme, nada há de surpreen­
dente. Por meio do barroco exprimiu-se todo o espírito
de uma civilização ou. pelo menos, de um estágio bem
deftniclo de determinada civilização. Por isso, tem uma
autenticidade que seria inútil buscar-se nas formas arti­
ficiosas com que outras épocas, de menor consistência
histórica, procuraram exprimir sua ansiedade, ou melhor,
disfarçar suas vicissitudes.

A Obra-prima
Vimos o barroco mineiro brotar, desejado ou
espontâneo, mas sempre determinado a alcançar seus
objetivos, seja da riqueza fabulosa das primeiras igrejas
que, tão belas e equilibrada;-, não se satisfizeram com o
rigor do ''jesuítico”, seja da abençoada pobreza dos
templos humildes que, táo fundonalmentc despojados
a princípio, não se conformam con\ sua condição e
aspiram à expansão destinada a agasalhar mais fiéis e
a firmar maior prestígio, porém capaz, também, de con­
quistar a glória da arte. Nessas notas não caberá, por
certo, a minuciosa descrição evolutiva de um processo
artístico que, como já vimos, traduz não apenas a fle­
xibilidade de um padrão estético refletindo todas as
necessidades sociais subjacentes, roas ainda o vigor dç
uma íormalística gerada pelo próprio espirito dc seu

210
tempo. Não podemos íugir, contudo, u obrigação dc
ao menos registrar alguns pontos típicos. Por isso, ano­
tados os marcos iniciais, é preciso, agora, apontar o
ponto de auge, já não tanto para traduzir o deslumbra­
mento, por sinal indescritível; senão para aludir às
possibilidades máximas do barroco mineiro.
A tareia é fácil, porque existe a igreja <Jc Sito
Francisco de Assis, em Ouro Preto.
Não exageramos ao inlar cm possibilidades máxi­
mas. São Francisco de Assis n§o só c obra-prima, mas
teve ainda a fortuna de construir-sc rápida, numa região
em que o-arrastar das obras constitui o único pecado
c c maior interesse tios templos maiores. Suas obras
ergueram-se e completaram-sc entre 1765 e, mais ou «ic-
nes, t ôSO. Nesse meio sécuio — uma eternidade segun­
do nossos padrões, um minuto apenas no ritmo colonial
—, não só a igreja se aprestou com a celeridade ncccs •
sária para apresentar-sc esplendi damente hannomeu,
pias ainda leve a ventura dt contar, para fazê-Ja, com
o gênio do Aleijadinlio c o ta‘ento dc Ataíde e 3cnsò
Arocca. Mestre Lisboa, que só morreu em l$] 4, ama­
dureceu cm São Francisco dc Assis sua arte, cuja paixao
fina) ficaria plantada no adro dc Congonhas do Campo.
O Ataíde, se não deixou num só ponto o melhor de
$\>a obra, em São Francisco são desmereceu dc sua
fama, que aliás não convém exagerar. Por fim. dos
Aroucas dc Mariana, ainda à espera de um pesquisador
paciente que lhes compute a contribuição ao barroco,
veio também alguma coisa para Ouro Preto; quando
mais não fosse, o inestimável aviso de mestres dc obra
experimentados.
Mas a conjunção de esforços parcos resultados
daria se a inspiração total da obra não proviesse de um
mesmo artista, do mesmo grande artista, do maior
artista do barroco mineiro. R difícil falar de São Fran­
cisco de Assis colocando-o a margem da ebra do
Aícijadinho. Nessa igreja, ele imperou soberano e, até.
despótico. Suas sâo ás obras principais do adorno: essa
portada divina, esses púlpitos primorosos, esse extraor­
dinário lavabo que marcam os pontos mais altos cia
escultura brasileira e pináculos atevantados na criação
do pobre mundo moderno. $«a será, por certo, a plan­
ta que lhe é atribuída com todos os vezos de probabi­
lidade histórica e com todo o rigo. da dedução estilística
C estética. Sc. um dia, descobrir*se outro autor do pro­
jeto que não o Aleijadinho, ler-sc-á também inilagrosa-
Tneiue descoberto outro gênio na civilização do ouro.
Mas, enquanto não sobrevier essu impossível. Silo
Francisco de Assis será do Aleijadinho.
Encontramos aqui uma perfeita coerência entre
interior c exterior, fenômeno tão raro até agora. Posta
num patamar intermediário da fralda oriental do Morro
<le Santa Quitérài, a igreja não se notabilizaria pelo
sítio, pois, se domina as torres de Mercês de baixo, alt
ao fundo, c olha sobranceira para Antônio Dias a seus
pés, essa posição de rainha de sua freguesia foi esfaa-
gada peia ostentação do poder secular que, se já incum­
bira ao pai de seu autor do construir o Palácio dos
Governadores cm lugar ruais ao aorte e mais elevado,
acabou plantando ao seu lado esquerdo o arrogante
Paço Municipal, que depois cadeia e depois museu.
Mas a sua fachada, presa a um esquadramento urbano
mais denso do que o dc suas irmãs, conseguiu (como 9
do Rosário) apelar para o erudito e ortodoxo recurso
dc tarroquizar-sc paia impor-se. Assim fez o Alci-
iadinho.
Desde os fundos, a planta mostra-se inquieta e
dividc-^L*. em trós corpos distintos onde a •pura funcio­
nalidade. estanu satisfeita com a Unha pura, A arte.
contudo, exigiu mais c lançou os três corpos comple­
mentares da sactistia, da capela-mor e da nave, sendo
este mais pronunciado em largura e na altura das telhas.
Como sc fosse pouco, rasgam-se, na porção intermédia,
iogRie tríplices qur, provavelmente, atendem à função
de iluminação, mas .sublinham também urna nostalgia
da Renascença» que mui sc encontrará ein outros monu­
mentos de Vila Rica. Seria contudo inútil descrever
obra tão acabada, pois, já nus fachadas laterais, que
são o ma is pobre do conjunto, encontramos um não-
•acabai dc pontos .scduiores. como, por exemplo, as
belíssimas cornijas de rifeo tão puro. Vamos, portanto:
para frente e anotemos as iurres circulares, que só se
prendem a planta baixa pelo raio da hase e, por isso,
atirando ao espaço livre metade de seu.s cilindros, em­
prestam um impulso maucUlo ao conjunto. São elas o
toque de atenção, claro e corajoso, anunciando um
espetáculo: a fachada.
Duas torres c uma Cromaria central arrematada cm
triânguto — eis o normal da igreja histórica brasileira.
Lúcio Costa tem perfeito esrudo sobre o jesuítico; mas
aqui adotamos uma fórmula, um esquema didático.
Essa fórmula está sempre presente, mas com que suti­
leza se soube tratá-la até que desse à luz a novidade
total de São Francisco de Assis. Circulares, as torres
plasticamente conto que pertencem, por inteiro, tanto à
fachada lateral quanto à frontaria. pois tanto a uma
como a outra entrega metade de sua fisionomia. Ma?,
por liviar-se da massa total avançando metade de seu
volume para além dos alicerces da nave, adquirem uma
função dupla e, na aparência, paradoxal dc limite e
transição entre os lados c a frente da igreja. A partjr
delas, como se fossem continuar a linha laterai, mas já
infletindo a quarenta e cinco graus sobre o eixo longi­
tudinal da construção, projetam-se duas paredes estrei­
tas c altas, vazadas por uma porta falsa e por utua
janela com sacada, que permitem à frontaria propria­
mente dita libertar-sc nas duas dimensões dos elementos
que. no esquema oormil a que aludimos, a prenderiam
à esquerda e à direita.
Estamos, pois, diante dc uma porção do templo
que já exige uma definição larga, pois se é uma pro­
jeção da frontaria, nao c toda a frontaria, e, embora
pareça constituir um desenvolvimento da entrada, so-
brepassa notoriamente os limites de um simples pórtico.
Limitam-na duas grandes colunas dc pedra arenosa c
rosada, que sobem para desenharem, por sobre os capi­
téis, sempre cm pedra, duas asas poderosas que, pre­
nunciando um grande froutao, no entanto, fogo se
interrompem. O verdadeiro frontão nasce, na verdade,
do interior desses elementos e, esbatendo seu triângulo
estrutural em curvas vagarosas, encaracola-se em volu-
tas e coroa-se pelo poderoso supcdânco da cruz de Lorc-
na ladeada por duas esferas flamejantes. A linha inferior
do frontão, que coincidiria com a cornija vinda do teto
da nave, atravessando as torres e alinhando-se pelos ca­
pitéis das colunas fronteiras, suspende-se num semicírcu­
lo que acaba dc desfazer a configuração habituai do aca­
bamento em triângulo. O recurso é conhecido, sendo
frequente onde há olho-de-boi, ura nicho ou utn meda­
lhão, mas aqui a sugestão duma linha livre é mais
acentuada e mistura-se, portanto, norma barroca.

213
Também o aprisionamento do verdadeiro frcmào dentro
dc ‘lois prenúnvios de um inexistente froníuo maior, c
conhecido, mas agora adquire tiova beleza por colocar-se
o elemento figurado em uma linha de orientação diversa
da do verdadeiro — um a 45, outro a 90 graus em rela­
ção ao eixo longitudinal, o primeiro op plano do lance
intermediário e o segundo na linha da fachada.
São elementos barrocos puros e autênticos. O
espírito que os organiza, no entanto, mesmo continuan­
do inteiramente mergulhado na mais pura inspiração
barroca, não abre mão de uma contribuição original e
impõe uma ordem especial cm que se guarda, do estilo
adotado, a caraeierística principal que é o contínuo mo­
vimento das massas c linhas, sem perder-se nos paro­
xismos do '‘barroquismo” decadente e aos ademaues
prettunciadores do roeocó. Numa palavra, em São
Francisco esplende o barroco, mas o barroco brasileiro
das Gerais.

Construir e Decorar
Foi, provavelmente, o elemento brasileiro que
surpreendeu, a Burton, homem de sensibilidade muito
limitada e estrangeiro incapaz de captar as variantes
da abria local. Se, no Carmo, indignou-se com a exu­
berância deforraadora, chacoteando contra um “estilo
barrigudo” que julgou descobrir, em São Francisco
pacemeou-se sua superficialidade ao estranhar que duas
colunas jónicas pudessem servir como pilastras. Numa
observação assim, transparecem todos os preconceitos
do crítico, peado pelos prejuízos nacionais (o barroco,
na Inglaterra, será mais uma aspiração racial do que
uma época ou um estilo), pelos prejuízos históricos
(Burton vinha de uma Europa antibarroca, para uma
América fulgindo em esplendores barrocos) c, afinal,
prejuízos conceituais (que o frizem reservar para deter­
minado cLemento uma só função cm todos os conjun­
tos). Ora, em Slo Francisco de Assis, Burton enfrentava
uma rigorosa aijnnaçlo barroca e de ura barroco evo­
luído e autcnticamcQte radicado ao racio. Positivamente,
era demais. ..
Há, aliás, para o espectador que, diante dessa
fachada, sente pruridos dc analista, uma tremenda difi­
culdade cm distinguir o arquitetônico do ornamental (a

2J4
coluna c a pilsstra, na linguagem de rJurtou). Cahv ]
mesmo perguntar se não scría maia razoável evitar Lais j
rigores enciclopédicos, sobretudo quando o exemplo sob \
os olhos nào apresenta confusão, mistura ou abastarda* ]
mento cie uma das artes pela outra, nas, peb> contrário, l
as mostra fundidas en uma mútua complemeniaçito
cm que ambas buscam adequai-se y um resultado finrú
que a cada qual valori/a t* que supera a .soma das dua>.
Afinal, a impressão ce joia citi/elada •• • que Muni;oI
Bandeira assinalou — donde, vem? Apenas dos meda­
lhões geniais do AJeijadinho não será, pois outra* igrejas
também têm enfeitadas suas fachadas (por vezes com
obras equivalentes a essa. como acotuecc ctti Matozi
nhos) sem conseguirem a mesma impressão de coerên­
cia entre o fundo construído e a aplicação artística.
Aqui, o decorativo apenas contribui para um fim jà con­
tido no conjunto. De. fa*o, os três planos que compõem a
fachada dc São Francisco (dos quais um sô c, na verda­
de, plano, pois os outros alternam côncavos e convexos)
imprimem o movimento em profundidade. Dc .sua parte,
o arqueamçnto semicircular da cornija, o arremate alta­
neiro do froiitão c. sobretudo, os vazamento*, da porra c
das janelas tmpdcm o ritmo ascensional que se reencon­
tra, lá cm cima, nas sineiras que não olham de frente,
mas buscam a orientação das quairo esquinas. Ora, mu­
ros, abas de telhado, janelas, porta;; c sineiras são elemen­
tos intrinsecamente construtivos e. cm São Francisco, ne­
nhum deles desmente a ma is rigorosa (uticionalidadc.
Arquitetônicas são também, c não menos, a$ pila*;iras e
a cantaria de esteio, cuja significação decorativa começa
já na cor — o rosa —, imposta pela escolha do mate­
rial mais adequado c mais abundante na região - o
itacolnmito, áspero e forte. Encarado como volume, o
conjunto sò poderia ser analisado em exame paciente e.
exaustivo, coisa para calhamaço indcglotívcl, porque,
mal começa o observador a dcslocar-se c a perceber
que não há um pento-de-vista cm que o (imite da massa
escape a uma superfície bombeada que, atém disso, no
contorno extremo assim tão mal definido, é cortada por
uma saliência qualquer da pedra que emolduro olhos-
-de-boj ou janelas, pelo arrebitado de um capitel ou dc
uma gárgula em feitio de canhão. Mas, cingindo-nos ao
que nos interessa, notemos apenas que a planta nado
sofreu para que tais formas se coadaptassem em sua

2L 5
aparente liberdade; pelo contrário, tudo que o arquiteto
dc São Francisco fez foi colocar as torres cntie a $çção
do vestíbulo e coro, e o corpo da oave propriamente
dito. Nenhum preceito o proibia disso e, ademais, o de­
sejo de compor precisarnento a porção vestibular não
constituía mera solicitação estética, mas também desejo
de enobrecimento do ritual. Nem diga um discuttdor
impenitente que as torres sc fizeram cilíndricas e côn ­
cavas as paredes intermediárias apenas para formar
mais graciosa a fachada, porquanto isso já seria defen­
der às avessas o estranho princípio de que se deveria
adotar a retilineitridadc para que o conjunto tysse
feio. . .
O elemento decorativo extra-arquitetónico entra
agora em cena, porém já encontra não só seu lugar
indicado, mas também a orientação geral determinada.
O espaço que Lhe sobra é pouco: a portada e, exata­
mente tnaU acima, o lugar destinado ao olho-dc-boi que,
no caso. constituiria inútil superfe ração, desde que o
coro já ceccbc la/ das duas janelas fronteiras e das duas
imorais. Além disso, a nota rosada do itacolumito está
a solicitar uma coloração complementar ç a arquitetura,
já dc si tão leve c agitada, exige que a escultura se
rendilhe e se componha em verdadeiros panejamemos;
mima palavra: pedra-sabão, ri da para a li vem, con­
trastando ccm um cinza azulado o róseo esmaecido da
outra pedra. E, nela, o Aleijadinho pós todo o seu
genio de escultor.
Este seria, talvez, o melhor momento para traçar
mos um lipitío confronto entre São Francisco e o Car­
mo, pois, sc nesta última, abundante e rica, também
há, de ioda a evidencia, participação indireta do Aleija-
tlinho (talvez o fisco original de obras menores) entre
uma e outra igreja patenteia-se a minudenic variação
que, entre duas obras dc apogeu, pode marcar as dis­
tinções que separam o momento em que o estilo ama­
durece a tradição herdada e aquele cm que já sc capa­
cita para dar a contribuição original. No Carmo, a
decoração da frontaria ainda obedece, ao menos par^
cialmente. à nerma européia de fazer a submersão do
eonstniídc na exuberância do adorno. O medalhão
visa, como sempre, preencher o espaço monótono dí»
parede que fica, por sobre a porta, entre as janelas,
mas não resiste à tentação de ligar a verga central ao

216
olho-de-boi do alto da. Eachada, eQquanto a sobrecarga
de aplicações por sobre as linhas mais definidas faz
jnisturarem-sc o friso inferior da cornija e a moldura
das duas jaoelas que, por sua vez, aparecem cavalgadas
por uma sobreverga puramente ornamental. Coroando
as ombreiras da poria, há um par de elementos pesados
e híbridos (meio-capitéis, meio-frontões truncados),
resolvcndo-se numa conclia cercada de volutas, mas <juc
passam de enfeite destinado a desfigurar a linha da
construção. Ora, em São "Francisco a solução formu­
lou-se no aspecto formal, de maneira bem próxima
desta, mas, esteticamente, c bem diversa. Instigada pela
arquitetura, como já acentuamos, a decoração não teme
atribuir-se uma função para-arquitctõnica. Também
aqui os olhos viajam da portada para cima, até chegar
ao medalhão, percorrer do ornamentos de pedra-sabão.
Mas o abandono da simetria rígida que se substitui
agora por uma simetria apenas ideal e feita dc com­
pensações afasta qualquer falsa imponência e, em seu
lugar, põe a graça da variedade. Aumenta, dess:i for­
ma, a coerência da peça que, por exemplo, faz assenta-
rem-se nas sobre-ombreiras, da mesma família das do
Carmo, dois anjos c assim se acaba por encontrar uma
“função” .para as formas menos graciosas. Isso permite
aos anjos destacarem-se, com inteiro vulto, do relevo
geral e projetarem para o ar as cruzes que sustentam
(hoje, resta só uma). Apaga-sc, pois, a impressão de
aposição ocasional e, jgualmente, a dc disfarce da rea­
lidade arquitetônica. Pelo contrário, o pressentimento
da continuidade da parede por detrás das costas das
figuras aladas confirma a natureza construtiva do con­
junto. Enfim, a coroa da Virgem que, no Carmo, se
prende à carteia, mergulhando em sombra a cabeça de
um anjo, para, superioimcnte, apertar-se contra a mel*
dura do olho-de-boi, agora fica a flutuar entre as duas
peças, cujas hordas apenas sobrepassa, mas com notável
diferença de profundidade. Não se disfarça uma porta,
mas emprega-se uma. porca como soco dc obra escul­
tórica, jungindo-se à íunção arquitetônica a função
decorativa.
Confluem, pois, as duas artes para o mesmo fim,
não há dvivida, mas não são duas obras paralelas mar­
chando em emulação amistosa eu competição, ucm
tampouco o servilismo dc uma arte à outra. Ambas

2 /7
estão presentes, mas c impossível separá-las, senão pela
abstração crítica. Podc-se, fazendo u Událisc dc qual­
quer das duas realizações, esgotar-se a obra, mas jamais
seria possível negar o outro aspecto da realidade global.
O barroco, que estamos habituados a ouvir descrevei
como fornia paradoxal» desordenada c contraditória,
mostra-se coerente, organizado e assente numa lógica
assaz rígida. Se, na Europa, barroco soa como denomi­
nação dc uma tendência que» forçando todas as fron­
teiras estabelecidas, negou a própria estrutura arquite­
tónica, retorcendo as construções para desmentir-lbes o
sentido funcional c imprimir-lhes vezo dc gratuylacíe
irrestrita c Irresponsável, provocando o exagero decora­
tivo que acabou por violentar a própria índole da deco­
ração pois instigou-a a superabundar, qual vegetação da­
ninha capaz de cobrir c matar o tronco a que se encosta.
Agora, na América, vamos encontrar o barroco cm novo
equilíbrio, a levar cada arte ate as máximas consequên­
cias, mas sempre respeitandolbes as tendências idiossin­
cráticas, preservando-lhes a índole temperamental, pon-
p.mdo-lhes o espírito natural. Por isso, se a casa
barroca e, sobrerudo, o templo barroco, na Europa, tor-
noa-se algo próximo do cenário teatral, em Minas o
encontramos não só fiel à pragmática finalista, senão
também — o que é mats importante — sobrepassando
esse conceito funcional, sem jamais o desmentir, pela
reconquista da exata noção de monumento.

Critír e Ordenar
Ainda em São Francisco dc Assis, de Ouro Freto,
encontraremos a indisponível contraprova de quanto
dissemos do caráter e possibilidades do barroco de
Minas. Quando reafirmamos que essa arte fora capaz,
ecu seu apogeu, dc recompor, segundo as leis da coerên­
cia interna, a organização do monumento, empregamos
como exemplo a peça de análise uma fachada de tem­
plo, o que poderia causar algumas confusões, muito
naturais» entre a índole plural da obra de acte e a gran­
diosidade física da mesma, à qual se aplicaria melhor o
adjetivo monumental, em seu sentido corrente. Não
empregamos o termo nessa accpção, como bem se pode
depreender do fato de acabarmos distinguindo a ade­
quação de duas artes a um escopo comum, do caráter

21 ê
de grandiosidade decotativa e simplesmente apcuia que
marca a grande* massa das realizações monumentais da
arte ccidemal a partir do Renascimento. Vias, ao invés
de nus prendermos a uma simples palavra ou dc ca km o»
em sutilezas puramente teóricas, preferível será experi­
mentarmos nossas atirmaçòcs vm peças dc. diverso na­
tureza, onde. ao menos na aparência, dominem demen-
los diversos. Por exemplo, na decoração interna dc São
Francisco tlc Paula.
Passaremos rápidos pela nave, não por falta <lo
interesse ou dc espetáculo, mus porque ali há matéria
para cogitações que já deixamos pura trás: a força do
artesanato mineiro (a talha, dc José Pinto dc Souza), a
inten;âo. de'disfarce à maneira do barroco ortodoxo c*
europeu na imaginária (os jojílos de roça, com olhos
de vidro, cabelos c roupas humanas) e a pintem do
icto (Ataide obedecendo aos cânones etnográficos do
modelo importado). Vamos, pois, direto aos púlpitos.
São obras do Aleijadinho; não se precisaria dizer,
porque as cabeças dc anjos <hi base estão a atestà-lo
com a serena *e segura autenticidade de tudo que fez o
grande artista. O caso prodigioso do Aleijadinho pode
em grande parte ser compreendido pela meticulosa
observação de seu domínio da matéria que, de preferên­
cia, empregou cm seus trabalhos. À pedra-sabão, tal-
co$a e escorregadia, adquire com o tempo um aspecto
de solidez c frieza; seus reflexos de cor põem em perigo
a expressão final da escultura, mas reforçam-iv> quando
a arte I fegítima; sua enganadora maciez e a aparente
facilidade de corte não ajudam, mas perturbam o
esculior, que nâo encontra ponto de apoio para o esco­
pro e, por isso, começa a fugir à linha fina e ao por­
menor. Ora, do trabalho de Amónio Francisco Lisboa
não .saiu apenas obra-prima de escultura, atas igual-
mente um perfeito repositório de normas técnicas para
a lavra da esteatita. O material, dúbio, sem caráter c
traiçoeiro — um exército de artesãos aos poucos o
tornara conhecido e ma is dócil — , adequa-se facilmente
à arte do homem prodigioso que pertencia legitima-
mente à coípcração dos artífices coloniais, mas que
também possuía o gênio do artista isolado.
Os púlpitos do Aleijadinho repetem, no interior de
São Francisco, a função formai das torres na fachada:
são o fim da nave (dentro da ouve se colocam os púl­
pitos da generalidade da igreja de Vila Rica) o, não
menos, o começo da capela-mor. Atribui-los a uoi dos
dois corpos seria desconhecer seu papel de intermediá­
rio, de transferidores que a situação do :irco-cni2CÍro
ainda mau reforça. Nem se julgue, por estranho amor
às definições abstratas, que nesse ponto dc transiterie-
dade se tenham colocado obras-primas, pcis isso aitula
mais sublinha seu emprego paradoxal cie, ao mesmo
tempo, deter o espectador no corpo principal da igreja
c atrair a atenção do fiel para a cena do sacrifício. Ao
pecador expõc-sc a sublimidade do divino, inas não se
permite uma participação no sagrado senão pela ascese
espiritual propiciada somente aos que se humilham.
Tudo isso ensinam os púlpitos do Aleijadinho, esse estra­
nho pórtico que não deve ser ultrapassado.-
Mas, hoje, a igreja é também um museu e os visi­
tantes desrespeitam as regras do ritual para alcançar
mais de perto o esplendor da beleza, tnvade-se a cape­
la-mor para encontrar um aliar que — nova repetição
— vaganienic imita as linhas gerais da fachadl c, sobre­
tudo, seu movimento. De maneira geral, a planta baixa
do altar é a mesina da fachada, sobretudo no recurso
da curvatura dos corpos intermediários que trazem à
frontaria. Mas, nesse caso, o caráter da obra e a natu­
reza do material permitem uma solução mais elaborada,
que compõe as três linhas ent pequenas porções varia­
das em lamanho. flexão, ou sentido da curva, todas
buscando dois eixos auxiliares que idcalmentc cruzam
a linha média de profundidade a tneja altura do suce­
dâneo. Esle enriquecimento no plano horizontal ganha
ainda mais com o complemento que lhe trazem mesa,
retábulo e trono, principalmente este último, que soube
movimentar com corta novidade a conhecida superpo­
sição do degraus sucesstvamcntc menores. Mas ainda
não sçrá aqui que no.s deteremos.
A originalidade notável dessa capela — que, mais
uma vez, a esse respeito, realiza em toda plenitude a
tendência apenas prenunciada ou esboçada em outras
igrejas - - reside na decoraçào propriamente dita. De
passagem digamos que talvez, # luz peculiar a São Fran­
cisco, onde o dia penetra com relativa liberdade, tenha
sugerido e possibilitado o que noutros monumentos não
passou dc singularidade contrária à índole da consini-
ção. Talvez instigado por essa lu-*t o artista faz nascer.

220
bem por sobre o retábulo, uma composição, complexa
porém bem ordenada, reunindo grandes figuras da
Trindade ■ — um Deus-íHho ressurreto de um Deus-pai
de severa e poderosa fisionomia sem qualquer marca dc
velhice, sobrevoados pélo Espírito Santo —, nas quais
é notória a atenção dr> cntnlhador pek» escorço hori­
zontal, pois as estátuas inclinam-se entre as paredes do
fundo e o forro da capela. Ncsíe, à frente e mais ao
centro, aparece um grande anjo, flutuando paralela»
mente ao teto. que, dc braços erguidos, deixa pender
a corrente de prata da lanterna votiva. Mas, ao invés
de apoiar-se numa base, como a Trindade, voa solto no
ar, deixando evidente o.spaço entre suas costas e a
abóbada, e isso permitiu ao artista resolvc-lo não pelo
escorço horizontal — estratagema “realista” tão fre­
quente —, mus pelo esbatímento da terceira dimensão,
única, aliás, a nuo obedecer ao estrito figuralivisnio da
imagem. A partir dessa figura e passando às imediata-
mente seguintes, inicia*se uma progressiva diminuição
da profundidade da lavra, passando o truque artístico
a fingir ardilosatnente o elemento real que já desertou
das possibilidades práticas da decoração.
Em relevo pronunciado, mas afinal em simples
relevo, surgem aos cantos as figuras dos quatro cano­
nizados da ordem — São Boavcntura, Santo Antônio,
Santo Ivo c São Gonçalo. Contudo, os papas da irman­
dade, que aparecem logo abaixo, são simplesmente
pintados, bem como os dois quadros grandes ejue la­
deiam — uma ceia e ur:i iavapils, Não será inútil dizer
que esses painéis abusam uni pouco do claro-escuro do
barcoquismo pictórico — maneira de acentuar volumes
e de rebater o fimdo das cenas, comô se sabe —• porque
c preciso preparar os olhos para as cenas menos pro­
fundas com que, nos painéis inferiores, Manuel da Costa
Ataíde narrou a vida de Abraão, imitando a técnica
dos azulejos.
Ao leitor mio terá escapado a sutil mas segura
progressão que, nesse passeio óptico, fizemos da escul­
tura de pleno vulto ao relevo, (leste à pintura imitativa
dos painéis e, atinai, a essa espécie de desenho que é
a monucromia dos azulejos, falso ou verdadeiro. Acres­
centemos, apenas, que as figuras esculpidas são de viva
encarnação (obra de Ataíde, dizem) e melhor se po­
derá compreender a natureza do conjunto. Dc fato, o

221
artista, para sugerir o divino c o supranaturai, rompeu
com as barreiras clássicas dyx artes especiais e Uas nor­
mas da figuração artística; até aí, é evidente, estamos
diante do barroco. Mas, se esse rompimento de fron­
teiras clássicas, que apenas deveria significar a prepo­
tência absolutista sobre a ração, procurou e, sobretudo,
encontrou, uma nova regra, uma nova ordem e uma
nova coerência, isso dc novo aos autoriza a falar na
originalidade do barroco mineiro.

Aqui termina nossa viagem, que nao foi feita pur^a


levantar teorias. Se. aqui e ali, repontaram veleidades
críticas ou pruridos analíticos, procuramos resistir n
lais provocações. Mesmo porque, para aprofundar esses
vagos pressentimentos e levá-los à categoria de afirma­
ções bem fundamentadas, precisaríamos abordar com
muita coragem c, mesmo alguma ousadia, o caso espe­
cialíssimo do Ateijadinho. Mas isso, no mínimo, exigi­
ria nova viagem. Que. talvez, um dia venha a ser feila.
Talvez o leito; proteste, pois não lhe escaparam
certas divagações; interprelativas, por vezes bem longas
c insistentes, que fetam aparecendo nessas notas c aca­
baram por conduzi-las. Parecc-lhe-á, portanto, algo
forçada essa fuga ès conclusões, que, no entanto, sobre
ser sincera, nos parece inevitável: não possuem nossas
notas a íudole c o estilo requerido petos rigores da ciên­
cia objetiva e fria. £ verdade que ^ participação ativa
—- no caso, a simpatia senlímental c estética — de há
muito deixou de ser desprezada pelos investigadores
sociais, mas, ainda assim, não ousamos misturar duas
tarefas originalmente diversas. Aqui ficam as anotações
do primeiro contato. Não negamos que nelas se incluem
dados que aproveitamos, neste momento, na redação ile
uma análise sociológica das relações entre o barroco c
o absolutismo; (udo, no entanto, nos aconselha a pu­
blicá-las separadamente. Afinal, se a reportagem
acabou por beirar o turve*, c a viagem transformou-se
em pesquisa, nada há a ejtranhar-se. Jnicialmcnte, ao
leitor pedimos apenas liberdade. Ora, a Uberdade é.
fecunda.

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