Trilhas Do Imaginário: (Re) Visitando Espaços e Memórias

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Heloísa Juncklaus Preis Moraes

Pelas trilhas do imaginário, as visitas


a espaços e memórias têm sempre as
portas abertas. A liberdade do sentido,

Eunice Simões Lins


da imaginação e dos afetos, ainda que
ancorada em uma matriz simbólica

organizadoras
estruturante, é o que nos seduz à teoria,
às discussões, aos seus vôos.

Trilhas do imaginário: (re)visitando


espaços e memórias é reunião de
esforços de pesquisas, de olhares e
de motivações à luz da perspectiva
de que o imaginário é o conector de
toda a representação humana, por sua
capacidade de simbolização. A força
imaginal presente em nosso cotidiano
é discutida a partir de vários objetos
que os autores buscam apresentar à
sua maneira, conectados na potência
poiética das imagens. Porque elas estão
nas múltiplas narrativas que formam a
nossa ambiência sociocultural, como os
textos nos permitem sobrevoar.

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TRILHAS DO IMAGINÁRIO
(re)visitando espaços e memórias
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

Reitora MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA MELO DINIZ


Vice-Reitora BERNARDINA Mª JUVENAL FREIRE DE OLIVEIRA
Pró-Reitora PRPG MARIA LUIZA PEREIRA DE ALENCAR MAYER FEITOSA

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Editora filiada à:
Eunice Simões Lins
Heloísa Juncklaus Preis Moraes
organizadoras

TRILHAS DO IMAGINÁRIO
(re)visitando espaços e memórias

Editora UFPB
João Pessoa
2020

Direitos autorais 2020 – Editora UFPB

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conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À EDITORA UFPB

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Contracapa


Catalogação na fonte:
Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba

T829 Trilhas do imaginário: (re)visitando espaços e


memórias / Eunice Simões Lins, Heloísa
Juncklaus Preis Moraes, (organizadoras).
– João Pessoa: Editora UFPB, 2020.
436 p. : il.
ISBN: 978-85-237-1494-9
1. Imaginário – Estruturas antropológicas.
2. Fotografia – Documentos. 3. Memória. I. Lins,
Eunice Simões. II. Moraes, Heloisa Juncklaus Preis.
III. Título.

UFPB/BC CDU: 39.77.03


Livro aprovado para publicação através do Edital Nº 01/2019, financiado pelo
Programa de Apoio a Produção Científica – Pró-Publicação de Livros da Pró-
Reitoria de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.

EDITORA UFPB Cidade Universitária, Campus I –­­ s/n


João Pessoa – PB
CEP 58.051-970
editora.ufpb.br
[email protected]
Fone: (83) 3216.7147
Sumário

Apresentação.....................................................................................................07
Eunice Simões Lins | Heloisa Juncklaus Preis Moraes

1
Foto-grafia: registros de um ambiente como imagem de pertencimento
e memória afetiva – o pátio interno da Unisul, Tubarão/SC..................... 09
Heloisa Juncklaus P. Moraes | Ana Caroline Fernandes | Luiza Liene Bressan

2
“Terezinha”: representações imagéticas do negro
e seus significados.................................................................................. 39
Bruno Marcelo |Elivaldo Serrão Custódio

3
Técnica de Associação Semântica: uma metodologia possível
para os estudos do imaginário............................................................... 57
Leidiane Coelho Jorge

4
O retorno das Deusas: hermenêutica simbólica no imaginário
do Instagram Mulheres de Raízes.......................................................... 81
Jade V. de Azevedo | Eunice Simões Lins

5 O conceito de memória teleafetiva: estudo do Canal Viva..................... 101


Mário Abel Bressan Júnior

6
Memória e resistência na ditadura brasileira: os manuscritos
de Linhares........................................................................................... 117
Christina Musse | Ramsés Albertoni Barbosa

7
Teoria do imaginário e capoeira: a hermenêutica simbólica
do imaginário cantado e vivido............................................................. 145
Adriano Florêncio | Marcos Nicolau

8
A casa do Bilbo Bolseiro: um olhar à intimidade do espaço,
outras conquistas e o retorno na obra O Hobbit................................ 165
Lucas Pereira Damázio | Luiza Liene Bressan | Heloisa Juncklaus P. Moraes

9
Presos que Menstruam: o gênero livro-reportagem reposicionando
imaginários sobre o cotidiano de mulheres encarceradas.................... 181
Bianca Dantas | Nayane Rodrigues | Eunice Simões Lins
10
O imaginário social na teledramaturgia brasileira
e o personagem transgênero........................................................... 197
Flávio Freitas Ferreira | Edielson R. da Silva | Cláudio C. de Paiva

11
O consumo das imagens espetaculares e trágicas na era
digital sob a perspectiva do imaginário no episódio White Bear
da série Black Mirror..................................................................... 215

12
Emanuelle Querino Alves de Aviz | Lucas Pereira Damázio

O ritmo das identidades em A hora da estrela................................ 235


Jussara Bittencourt de Sá | Marlene Rodrigues Brandolt | Mayara de Paulo | Jackson Gil Ávila

13 Uniformização dos corpos: cultura escolar, moda e imaginário....... 255


Suellen Cristina Vieira

14
Notícia não é espelho: a construção da realidade e a influência
do imaginário no jornalismo......................................................... 277
Natália Xavier | Eunice Simões Lins

15
Memória e imaginário: a constituição de autobiografias simbólicas em
A Dança da realidade e Poesia sem fim, de Alejandro Jodorowsky...... 295
Agamenon Porfírio | Bertrand Lira | Esmejoano Lincol França

16
Cinema e representatividade: uma incursão às características
e discursos do cinema clássico e alternativo.................................. 327
Leonardo Gonçalves | Marcel Vieira Barreto Silva

17
Marcas do imaginário: estudo de caso da Graphic Novel MSP
Turma da Mônica Laços................................................................... 343
Jéssica Raissa Pessoa | Juliana Chacon | Alberto Pessoa

18
Criação, sexualidade e ascensão: o imaginário simbólico
no clipe God is a woman de Ariana Grande..................................... 363
Esmejoano Lincol França | Gilmara da Mata Farias | Sandra Raquew Azevêdo

19
A influência do Cinema Noir na releitura do videoclipe
Smooth Criminal.............................................................................. 395
Edyelton Marinho | Ed Porto Bezerra

20 Noções de risco e saúde no imaginário midiático............................. 413


Patrícia Monteiro | Luís Augusto Mendes

Sobre os autores..............................................................................................427
|7

Apresentação

O Imaginário faz rotas. Tem um trajeto antropológico,


mescla daquilo que trazemos de matriz imaginal e a potência
do cotidiano que preenche de forma e sentido estas imagens.
Pelas rotas vamos percorrendo, trilhando, revisitando lugares
e memórias pela potência da imagem. Também aproximamos
o que está distante, ou, apenas imaginado. Visitamos lugares,
pessoas, ideias. Este livro é um registro de uma trilha coletiva
pelas andanças do Imaginário por certos imaginantes. Fruto das
aproximações entre a disciplina de Tópicos Especiais em Estudos
do Imaginário, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina e de Mídia
e Imaginário, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal da Paraíba, além da colaboração de outros
colegas professores destas e outras instituições.
Trilhas do imaginário: (re)visitando espaços e memórias
é reunião de esforços de pesquisas, de olhares e de motivações à luz
da perspectiva do Imaginário. Bachelard, Durand e Maffesoli são,
em linha diacrônica, propositores dos postulados que fundamentam
as discussões. Tomamos, pois, como linha de partida, a ideia de
imaginário como o conector de toda a representação humana, por
sua capacidade de simbolização. Buscamos, em ambas as ambiências
acadêmicas – no sul e no nordeste, provocar reflexões sobre aquilo
que dá sentido e valor ao cotidiano. Está na raiz do imaginário os
modos de pensar e ser dos homens. Apresentamos aqui alguns
recortes, frutos das efervescências de 2018.
O imaginário dos sonhos, dos devaneios poéticos é o mesmo dos
textos midiáticos e das redes sociais. É a nossa potência cotidiana. É o
imaginário o responsável pelas imagens que nos colocam em relação
conosco, com os outros e com o mundo. As tecnologias do imaginário
são dispositivos que fazem circular, interpelam e ressignificam
8 | Trilhas do imaginário

estas imagens, como a que podemos perceber nonas páginas que se


apresentam a seguir. São imagens que se fazem memória. Imagens
que alcançam uma dimensão ambiental, coletiva e atua como força
social. O imaginário tem algo como o “estado de espírito”, certa “aura”
de uma coletividade e é isso que os textos, cada um à sua maneira
e ao estilo de seus autores, buscam apresentar.
Que esta força imaginal que nos une por teoria, práticas
metodológicas e questões de reflexões, mas também por relações
de afeto e proxemia, possa servir de pistas das nossas andanças,
mas também de aproximações de roteiros trilhas a fora. Podemos
perceber o quanto o cotidiano, em suas mais diversas manifestações,
pode ser instigante, denso e maravilhoso. Há muita coisa para ser
compreendida, refletida e compartilhada. Estamos no começo, mas
vibrando pela parceria e pela construção. Aqui temos o humano em
suas potencialidade cotidianas e é isso que nos (re)une. Desejamos
uma boa leitura, de norte a sul!

Eunice Simões Lins


Heloisa Juncklaus Preis Moraes
Organizadoras
|9

Foto-grafia: registros de um ambiente


como imagem de pertencimento e memória
afetiva – o pátio interno da Unisul, Tubarão/SC

Heloisa Juncklaus Preis Moraes1


Luiza Liene Bressan2
Ana Caroline Voltolini Fernandes3

1 Um espaço para ser (re)lembrado


Durante os estudos realizados no Grupo de Pesquisas do
Imaginário e Cotidiano, vinculado à Linha de Pesquisa Linguagem
e Cultura do Programa e Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
da Unisul, verificamos que um dos temas recorrentes durante
os encontros era a experiência estética que o jardim interno do
prédio sede da Unisul proporcionava a seus alunos, professores e
comunidade em geral.
Sua imagem, de alguma maneira, afeta aqueles que por algum
motivo perpassam suas imediações e decidem interromper seus
trajetos para fotografá-lo. O verde de suas árvores contrasta com
a cor clara do prédio, cuja arquitetura remonta a um tempo outro,
conforme podemos verificar na imagem:

1 Doutora em Comunicação Social (PUCRS). Docente do Programa de Pós-


Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina
– UNISUL. Líder do Grupo de Pesquisa Imaginário e Cotidiano (pesquisa.unisul.
br/imaginario). E-mail: [email protected]
2 Doutoranda no PPGCL da Unisul. Professora do Centro Universitário Barriga
Verde-Unibave-Orleans. Membro do Grupo de Pesquisa Imaginário e Cotidiano.
E-mail: [email protected]
3 Mestre e doutoranda no PPGCL da Unisul. Bacharel em Direito – Unisul. Membro do
Grupo de Pesquisa Imaginário e Cotidiano. E-mail: [email protected]
10 | Trilhas do imaginário

Imagem 1 – jardim interno do prédio sede da Unisul

Fonte: Arquivo das autoras.

Ao realizamos uma busca na rede social Facebook com as


palavras jardim unisul encontramos muitas imagens do jardim
publicadas, as quais eram seguidas de vários comentários acerca
das emoções suscitadas pelas fotografias compartilhadas.
A partir dessas evidências, decidimos estudar por meio
da perspectiva do Imaginário, a relação entre imagem de
pertencimento e memória afetiva presente nas fotografias do
jardim da Unisul compartilhadas na rede social Facebook, assim
como as emoções suscitadas e manifestas nos comentários destas
imagens e, por último, evidenciar os vínculos entre linguagem,
escritura e fotografia como meio de expressar o imaginário
individual e coletivo. Buscamos, assim, uma discussão reflexiva
a partir de um exemplo que pertence ao nosso cotidiano e nos
remete ao vínculo e ao pertencimento.
Trilhas do imaginário | 11

2 Memória, imagem e afetividade: elementos que compõem o


imaginário individual e coletivo
A relação entre memória, imagens e afetividade permeia
o mundo em que vivemos. O vínculo entre estes três elementos,
embora sutil, é responsável por estruturar o imaginário individual
e coletivo. A relação que tecemos com o mundo, com o outro e com
a nossa própria individualidade se dá por meio de imagens, tendo
como matriz o imaginário.
A necessidade por imagens não é algo atual, ela somente
se estendeu em razão da facilidade que temos para produzi-las. A
imagem nos serve como um traço, uma ranhura, uma evidência de
que existimos, de que determinados fatos aconteceram, de que, em
algum momento do nosso viver, experienciamos certas emoções
que nos levaram a querer perenizá-las por meio de um registro, seja
escrito ou fotográfico.
Isso porque as palavras, enquanto imagens, também fazem
esse registro. Quando alguém utiliza palavras para grafar seu
texto, à medida que a narrativa é construída, imagens ganham
relevo na imaginação do narrador e um “filme” então passa a ser
reproduzido em sua consciência. Durante a narrativa, as imagens
utilizadas por sua imaginação são reflexos do real e geralmente
estão envolvidas com a experienciações do indivíduo com o meio
em que vive. Para Wunenburger (2018, p. 4-6), a imaginação utiliza
imagens preexistentes e através da associação traz reminiscências
de outras por semelhança ou contiguidade. Mas não somente,
pois as imagens também podem estar envolvidas em um plano
mais abrangente de existência, plano esse denominado imaginal,
quando então a imagem parece adquirir vida própria em relação
ao sujeito e só restaria à consciência dele nelas penetrar, sem,
contudo, apreendê-la em sua totalidade. Wunenburger enfatiza
como as imagens medeiam a percepção e a visão de mundo nos
sistemas de representação individual ou coletivo, pois é a partir
da imagem que “toda consciência tece suas relações com o mundo
e com o sentido” (WUNENBURGER, 2018, p. 68).
12 | Trilhas do imaginário

Essas configurações cujo significado coletivo passa a ser


compartilhado em uma rede social, como é o caso que trazemos à
discussão, tecem relações com a alteridade. A memória armazena
seus vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades,
tudo que pode desencadear lembranças no indivíduo e trazê-lo à
luz conforme a necessidade, todas as “imagens entram na memória
por suas respectivas portas, sendo ali armazenadas.” (AGOSTINHO,
1987, p. 96).
Para Bosi,

a memória opera com grande liberdade, escolhendo


acontecimentos no espaço e no tempo, não
arbitrariamente mas porque se relacionam através
de índices comuns. São configurações mais intensas
quando sobre elas incide o brilho de um significado
coletivo. (BOSI, 2013, p. 31)

Assim, além de a memória se fundamentar nas imagens


adquiridas durante o percurso existencial de determinado indivíduo,
elas não estão particularmente isoladas no tempo e no espaço. Essas
imagens individuais e particulares estariam assentadas em uma “pré-
história”, em uma anterioridade onírica além do contemporâneo e
individual, conforme afirma Bachelard:

As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma


história e uma pré-história. São sempre lembrança
e lenda ao mesmo tempo. Nunca se vive a imagem
em primeira infância. Qualquer grande imagem tem
um fundo onírico insondável e é sobre esse fundo
onírico que o passado pessoal põe cores particulares.
Assim também, só quando já se passou pela vida é
que se venera realmente uma imagem descobrindo
suas raízes além da história fixada na memória. No
reino da imaginação absoluta, somos jovens muito
tarde. É preciso perder o paraíso terrestre para vivê-
lo verdadeiramente, para vivê-lo na realidade de suas
imagens, na sublimação absoluta que transcende
qualquer paixão (BACHELARD, 1984, p. 218).
Trilhas do imaginário | 13

Nesse sentido, por meio das imagens, o imaginário de


um indivíduo ou civilização assume forma simbólica através da
confluência dos dados históricos, sociológicos, culturais e das pulsões
individuais subjetivas. A convergência desses dois polos – intimações
do meio e pulsões subjetivas – constituem o que Durand (2002, p. 41)
denominou de trajeto antropológico.
A memória é construída em grupo, mas também é sempre
um trabalho do sujeito e para ela se tornar mais ou menos vívida
depende do grau ausência ou presença de outros que constituem um
grupo de referência. Esse grupo de referência é aquele da qual “o
indivíduo já fez parte e com o qual estabeleceu uma comunidade de
pensamentos, identificou-se e co-fundiu seu passado” (HALBWACHS
apud SCHMIDT; MAHFOUD, 1993. p. 288).
É contexto das relações sociais em que o indivíduo está inserido
que dá relevo às imagens, pois é através das experiências em comum,
que o vínculo entre imagem e lembrança se solidifica, conforme
explicita Halbwachs:

[...] O grupo está presente para o indivíduo não


necessariamente, ou mesmo fundamentalmente,
pela sua presença física, mas pela possibilidade
que o indivíduo tem de retomar os modos de
pensamento e a experiência comum próprios
do grupo. A vitalidade das relações sociais do
grupo dá vitalidade às imagens, que constituem
a lembrança. Portanto, a lembrança é sempre fruto
de um processo coletivo e está sempre inserida
num contexto social preciso (HALBWACHS apud
SCHMIDT; MAHFOUD, 1993. p. 288).

Dessa forma, as imagens constroem as memórias individuais


ou coletivas e, segundo Bressan Júnior (2017, p. 47), elas têm grande
potencialidade para produzir sentimentos e fortalecer o que se está
vendo. Através de uma imagem, emoções podem ser evocadas, as
quais representam uma força, um choque, uma energia que pode
direcionar uma ação (FERRES apud BRESSAN JÚNIOR, 2017, p. 47-48).
14 | Trilhas do imaginário

Bachelard (2009) propõe-se a dizer que ao trabalharmos


com a memória produzimos histórias, vivências e experiências.
Relembramos nossas coisas de criança, escancarando os velhos baús
e fisgando retalhos multicoloridos, com muitas formas e repletos
de significados.
Outro aspecto da memória diz respeito à lembrança das
afeições da alma. A memória lembra-se da alegria sem alegria, da
tristeza sem tristeza. Esse aspecto condiz com o encontro do homem
consigo mesmo efetivado na memória, lugares e atos realizados
e afeições sentidas. Encontrar a lembrança reconhecendo nela a
experiência, não importa se (re)apresentada ou (re)significada, é o
pequeno milagre da memória,
Enquanto milagre, também ele pode “faltar”, ou
seja, podemos ser arremetidos ao esquecimento ou
ao esvaecimento das imagens, no entanto, quando
ele se produz, sob os dedos que folheiam um álbum
de fotos, ou quando do encontro inesperado de
uma pessoa conhecida, ou quando da evocação
silenciosa de um ser ausente ou desaparecido para
sempre, escapa o grito: “É ela! É ele!” E a mesma
saudação acompanha gradualmente, sob cores
menos vivas, um acontecimento rememorado, uma
habilidade reconquistada, um estado de coisas
de novo promovido à “recognição”. Todo o fazer-
memória resume-se assim no reconhecimento
(RICOEUR, 2007, p. 502).

Assim, a imagem ativa a memória e traz à tona sentidos,


sentimentos e sensações. A memória é um instrumento precioso
em que o imaginário se manifesta e (re)constrói as ações simbólicas
cotidianas. Desse modo, podemos considerar as imagens que circulam
nos mais diferentes suportes, seja nas redes sociais, na Literatura,
constituem-se como uma política de estesia que promove a circulação
de bens simbólicos e experiências de identificação e pertencimento,
criando laços de memória e imagens em potência (MORAES e
BRESSAN, 2018).
Trilhas do imaginário | 15

Um estudo mais minucioso sobre memória e espaço vivido nos


é dado por Durand na obra Ciência do Homem e Tradição (2008) em
que o autor nos fala sobre “as transmutações dos valores epistêmicos”,
lembrando o homem ocidental (leia-se civilização ocidental) e homem
tradicional, ou seja, aquele que se relaciona com o universo a partir
do pensamento simbólico. Em suas palavras:

[...] o sentido da imagem do homem- o que faz com


que a imagem do homem seja um símbolo que
remeta a um significado vivido – só se recupera
se separarmos as imagens das “metamorfoses”,
ou seja, dos desvios que tiveram a ambição de
“forçar” o sentido simbólico para substituí-lo pela
dissecação não vivida dos conceitos, das definições
claras e distintas, das extensas correntes da razão
(DURAND, 2008, p. 13).

Para Durand (2002, p. 403), “a memória – como imagem – é essa


magia vicariante pela qual um fragmento existencial pode resumir
e simbolizar a totalidade do tempo reencontrado”.
É interessante observarmos que à memória é atribuída grande
importância, sendo inclusive personificada na mitologia grega como
a deusa Mnemósine, irmã de Cronos e que segundo Hesíoso (apud
ELIADE, 1972, p. 108) sabe “tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que
será”. Segundo Eliade (1972, p. 83), as filosofias orientais dispõem de
métodos no intuito “curar” o homem de sua existência no Tempo, pois
através de rituais e práticas ascéticas o iniciado busca rememorar
todos os detalhes da existência e, assim, dominar o Tempo:

A memória desempenha um papel fundamental.


Através da rememoração, da anamnesis, há uma
libertação da obra do Tempo. O essencial é recordar
todos os acontecimentos testemunhados no curso
da duração temporal. Essa técnica relaciona-se,
portanto, à concepção arcaica longamente discutida
por nós, a saber, a importância de se conhecer a
origem e a história de uma coisa para dominá-la. [...]
16 | Trilhas do imaginário

Devemos, contudo, precisar desde já que a memória


é considerada o conhecimento por excelência. Aquele
que é capaz de recordar dispõe de uma força mágico-
religiosa ainda mais preciosa do que aquele que
conhece a origem das coisas (ELIADE, 1972, p. 83).

Nesse sentido, a memória atua como reservatório de imagens


e enquanto arcabouço imagético permite que estas, em razão da
potência que possuem para suscitar emoções, imprimam afetos
sobre a consciência do indivíduo ou grupo.
Isso porque as imagens que ativam a memória afetiva criam
imagens outras de pertencimento, de sonhos, de vínculo e, também,
saudosismo, contribuindo para que venham à tona os inúmeros
processos de subjetivação e mobilização de símbolos e afetos. Bressan
Júnior (2017, p. 74) destaca que a memória afetiva é “aquela composta
por experiências emocionais e afetivas, constituindo um local onde
um sentimento ressurge através de uma recordação”.
Para Jung (2013, p. 67) acontecimentos que suscitam emoções
fortes são de grande importância e recordações desta natureza
formam complexos de associações duradouros e estreitamente ligados
entre si, originando o que ele chamou de “complexo ideoafetivo”.
Aliás, para Jung os sentimentos também têm caráter coletivo, assim
como ideias e concepções:

Não apenas conceitos e concepções devem ser


designados coletivos, mas também os sentimentos.
[...] Por causa desse valor coletivo dos sentimentos,
denomina as représentations collectives de
mystiques porque essas representações não são
apenas intelectuais, mas também emocionais. Na
pessoa culta misturam-se certos conceitos coletivos
com sentimento. [...] Também o sentimento pode
ser coletivo em sua função toda, enquanto, por
exemplo, for idêntico às expectativas gerais,
correspondendo, por exemplo, à consciência
moral de todo mundo etc. Também são coletivos
a sensação, o modo de perceber pelos sentidos ou
Trilhas do imaginário | 17

a intuição que são peculiares a um maior grupo


de pessoas. (JUNG, 2013, p. 435-436)

Aliás, o caráter coletivo desses sentimentos foi uma das


características que encontramos nos comentários das imagens, os
quais serão analisados na próxima sessão, o que evidencia a ideia
proposta por Jung acerca de aspectos coletivos permearem também
os sentimentos, emoções e percepções individuais.
Sendo assim, o universo simbólico, do qual o Imaginário é
matriz, evoca sentimentos atemporais e para Durand (2002, p. 402),
a memória afetiva estaria no domínio do fantástico por organizar
esteticamente a recordação. A memória afetiva, segundo Durand,
eufemiza a angústia existencial humana face aos semblantes do
tempo e da morte:

E o famoso problema da existência de uma “memória


afetiva” significa exatamente essa possibilidade
de síntese entre uma representação revivescente,
lavada da sua afetividade existencial de origem, e
a afetividade presente. A recordação mais funesta
é desarmadilhada da sua virulência existencial e
pode entrar assim num conjunto original, fruto de
uma criação. Longe de estar às ordens do tempo, a
memória permite um redobramento dos instantes
e um desdobramento do presente; ela dá uma
espessura inusitada ao monótono e fatal escoamento
do devir, e assegura nas flutuações do destino a
sobrevivência e a perenidade de uma substância.
O que faz com que o pesar esteja sempre imbuído
de alguma doçura e desemboque cedo ou tarde no
remorso. Porque a memória, permitindo voltar ao
passado, autoriza em parte a reparação dos ultrajes
do tempo. A memória pertence de fato ao domínio
do fantástico, dado que organiza esteticamente a
recordação (DURAND, 2002, p. 402).

É inegável a estreita relação entre afetividade, imagens e


memória, as quais são responsáveis por criar vínculos de pertencimento
18 | Trilhas do imaginário

entre indivíduo e seu meio. As imagens nos possibilitam evocar


sentimentos e contribuem para a estruturação do individual e coletivo.
Assim, no próximo item serão identificados e analisados os
comentários manifestos nas publicações de fotografias do jardim da
Unisul na rede social Facebook e sua relação com o sentimento de
pertença de um grupo.

3 Jardim da Unisul: imagens de um tempo e espaço


reencontrado
Durante a busca realizada na rede social Facebook por meio
do termo Jardim Unisul, encontramos imagens publicadas seguidas
de vários comentários com teor afetivo. Podemos observar o quando
uma imagem é significativa para um indivíduo ou grupo através da
predisposição daquele que a ousou fotografar, publicar em uma dada
rede social e daqueles que se dispuseram a comentar esta mesma
imagem, manifestando seus afetos.
Isso significa dizer que esta imagem, este “corte no devir”, tem
importância e por isso a seguir vamos analisar e identificar as relações
de afeto manifestas nos comentários4 destas imagens e relacioná-las
com os Regimes de Representação da Imagem propostos por Gilbert
Durand em sua obra As estruturas antropológicas do imaginário (2002),
na qual imagens e representações foram organizadas segundo seus
isomorfismos. Para melhor identificar estas manifestações, optamos
por separar os comentários pelas expressões que denotam prazer
estético (belo), amor, lugar transcendente/místico/divino, lugar de paz/
bem estar, lugar de pertencimento e, por fim, saudosismo.
Importante destacar que ao todo foram 98 (noventa e oito)
comentários transcritos e que quando um comentário apresentou mais

4 Para não comprometer a fluidez da leitura com o excesso do termo sic e para
melhor preservar o sentido e significação dos comentários, esclarecemos
que optamos por transcrevê-los ipsis litteris, inclusive com erros gramaticais
e ortográficos, comuns nos meios virtuais, fazendo somente um destaque
sublinhado para o termo/palavra recorrente.
Trilhas do imaginário | 19

de uma das expressões acima indicadas, optamos por considerá-lo


duas vezes, analisando-o tanto em relação a um sentimento manifesto,
quanto também a outro e por isso este comentário aparecerá em
mais de uma seção dependendo das expressões utilizadas.
Em relação ao sentimento de saudosismo, foram 34 (trinta
e quatro) comentários indicando boas lembranças, recordações
e vivências relacionadas ao jardim através das palavras saudade,
lembranças, outros tempos e referências das experienciações
individuais em relação ao local:

   1. Este é o lindo jardim de nossa #Unisul Tubarão ...


Espaço que fez e faz parte de muitas histórias. E pensar,
que um dia este espaço era uma quadra de esportes,
e depois da enchente de 74 se transformou no jardim.
Hoje ele esta assim, bem lindo e continuando fazendo
parte da história de muitas pessoas.
   2. Nossa!!! Durante muitos anos cruzei esse jardim!!!
Saudade....
   3. Nossa, que lindo que está, faz um tempinho que não
passo por ele. Saudades!!!
   4. Lembro da enchente. Passou, e agora, lindo ficou.
   5. Eu também, muitas vezes ficava sentada na calçada
apreciando o visual
   6. Um espaço eternizado nos corações de muitos!
   7. Lindíssimo. Este jardim ficará para sempre no
pensamento e na saudade de muitos corações. Beijos
   8. Plantamos árvores, grama e flores sobre o barro
trazido pela enchente, na esperan ça de um futuro
melhor para as próximas gerações.
   9. Saudades desse jardim ...
   10. Lugar de contemplação que guarda histórias e
sonhos.
   11. Amo esse jardim, em 95 q´do trabalhava no protocolo,
tive o prazer apreciá-lo em todas as estações e
condições climáticas e as q mais me marcaram foram
as manhãs ensolaradas de inverno e as noites com
20 | Trilhas do imaginário

neblina. Passei este sentimento às minhas filhas, elas


adoram passar por ele. A Madú pede pra passear
na “floresta”!!
   12. Eeee saudade que deu! Estou aqui dando voltas no
jardim que estou até tonto
   13. Saudades
   14. Lembranças
   15. Comecei a namorar o Marcelo bem aí rsrsrsrs uixi
que maravilha esse namoro que segue até hoje MEU
DEUS 25 anos!!!!
   16. Esse jardim faz parte da minha história desde a
infancia, ele e lindo... e com certeza faz parte da
história dos meus pais tbem..
   17. Creio que na nossa época, o telegrama era um dos
melhores meios de trocar recados, conversas nos
degraus do xerox, hoje estamos modernos no face, bons
momentos que jamais iram sair de nossas memórias
   18. Saudades deste local
   19. Nossa que lindo que está, faz um tempinho que não
passo por ele. Saudades!!!
   20. Eu também, muitas vezes ficava sentada na calçada
apreciando o visual
   21. Saudades
   22. Saudades!!!
   23. Saudades das amigas para sempre.
   24. Saudades!!!
   25. Andei muito por aí ...
   26. Saudades....
   27. Quanto tempo ... saudades...
   28. Muitas lembranças deste local ...
   29. Saudade desse tempo, onde agente fugia pro Bar do
Bejo pra compra bala Frumelo! Kkkk
   30. Faz parte da minha [história] Quantas vezes nos degraus
da entrada da sala hehehehehe, outros tempos
Trilhas do imaginário | 21

Os comentários “falam” por si mesmos e os resultados saltam


aos olhos, indicando que a imagem do jardim da Unisul se inscreveu
afetivamente nas memórias daqueles que com ele tiveram algum
contato. A partir da publicação de uma fotografia, ou seja, de um
estímulo formulado pelo próprio acaso, sem qualquer intervenção
destas pesquisadoras, as pessoas, espontaneamente, manifestaram,
grafaram, tornaram concretos seus sentimentos e lembranças em
relação ao jardim na rede social Facebook.
Nos comentários acima, ficam evidentes as manifestações
relacionadas com a memória, com o passado que, em algum momento,
foi tocado pelo contato com o jardim da Universidade. Os verbos no
pretérito são recorrentes e o conjunto dos comentários evidencia a
memória afetiva e coletiva compartilhada pelas pessoas em relação ao
jardim, indicando o sentimento de pertença das pessoas a um grupo,
a um lugar comum, pois como já indicou Maffesoli “o sentimento
de pertença próprio às tribos pós-modernas se acompanha por
uma copertença com um lugar determinado: o lugar faz ligação”
(MAFFESOLI, 2014, p. 52).
Segundo Assman (2011, p. 359-360), em razão do acelerado
processo de renovação e envelhecimento no mundo e da vida, os
lugares de recordação estão cada vez mais numerosos e a consciência
de ruptura com o passado se mescla com o sentimento de abertura
da memória, contribuindo para a corporificação desta nos lugares
de recordação. Assman também afirma que a memória é alheia às
normas da medida temporal cronológica em razão de seu poder de
trazer o que está distante para muito próximo e que a memória de
uma nação ou grupo se materializa através da paisagem memorativa
de seus locais de recordação, pois o que se procura neles é justamente
o contato direto com o passado. A busca do passado confere aura
a esses locais, os quais atuam como uma “tessitura incomum de
espaço e tempo”:

O vínculo peculiar entre proximidade e distância


confere aura a esses locais e neles se procura um
22 | Trilhas do imaginário

contato direto com o passado. A magia atribuída


aos locais da recordação se explica por conta
de seu status de zona de contato. [...] O local da
recordação é de fato uma “tecitura incomum
de espaço e tempo”, que entretece presença e
ausência, o presente sensorial e o passado histórico.
Se a marca da autenticidade é a ligação entre o
aqui e o agora, então o local da recordação como
aqui sem um agora, não passa de autenticidade
parcial. Longe de unir as duas metades, o local da
recordação insiste em mantê-las separadas como
aqui e outrora (ASSMAN, 2011, p. 359-360).

Desse modo, o espaço se apresenta como intermediário entre o


momento presente e um passado não tangível, abstrato, mas que existiu
e permanece registrado na memória destas pessoas. Para Durand (2002,
p. 413), o espaço é a forma onde se desenham todos os trajetos imaginários,
ele é a forma do poder eufêmico do pensamento, pois o espaço “é o lugar
das figurações, uma vez que é o símbolo operatório do distanciamento
dominado” (DURAND, 2002, p. 407). Em razão de não conseguirmos
dominar o tempo, tecemos relações com o espaço, com o topos, pois toda
imaginação se inscreve em um lugar. Além do mais, a eufemização da
distância pelo espaço também se conjuga com a eufemização provocada
pela memória, pois a memória, segundo Durand,

longe e estar do lado do tempo, a memória, como


imaginário, ergue-se contra as faces do tempo e
assegura ao ser, contra a dissolução do devir, a
continuidade da consciência e a possibilidade de
regressar, de regredir, para além das necessidades
do destino. É essa saudade enraizada no mais
profundo e no mais longínquo do nosso ser
que motiva todas as nossas representações e
aproveita todas as férias da temporalidade para
fazer crescer em nós, com a ajuda das imagens
das pequenas experiências mortas, a própria
figura da nossa esperança essencial (DURAND,
2002, p. 403).
Trilhas do imaginário | 23

Nesse caso, as manifestações apresentadas nos comentários


relacionadas à memória e ao espaço se inscrevem no Regime Noturno
de representação da imagem proposto por Durand, pois as imagens
presentes neste regime se sobressarem por

captar as forças vitais do devir, em exorcizar os


ídolos mortíferos de Cronos, em transmutá-los em
talismãs benéficos [...], assegurando a perenidade
de figuras constantes que se inscrevem no devir
(DURAND, 2002, p. 403).

Já em outros comentários, o sentimento manifesto foi o amor,


com sete recorrências da palavra nos comentários:

   31. Amoooooooo esse jardim


   32. Não tem como não amar e admirar esse jardim,
simplesmente lindo
   33. Jardim da minha segunda casa... Parabéns aos que
trabalharam, especialmente o seu Pedro e aos que
trabalham com dedicação e amor para mantê-lo
assim lindo e harmônico.
   34. Eu amo este jardim!
   35. Muito amor por esse jardim e por essa Universidade!

   36. Amo demais


   37. Amo esse jardim ele me da paz

Em relação ao amor, Durand em sua obra As Estruturas


Antropológicas do Imaginário (2002, p. 194-197), indica que é em razão
de Eros que as imagens se organizam, tanto no regime diurno (postura
heroica) quanto no regime noturno (postura mística e dramática),
pois Eros “tinge de desejo o próprio destino” eufemizando a postura
ameaçadora do tempo. Aliás, o que é o destino senão aquilo que
não dominamos? A libido, em razão de sua natureza ambivalente,
funciona como um impulso primordial onde o desejo de eternidade
e processo temporal/cronos se confundem:
24 | Trilhas do imaginário

A libido aparece assim como um intermediário entre


a pulsão cega e vegetativa que submete o ser ao
devir e o desejo de eternidade que quer suspender
o destino mortal, reservatório de energia de que o
desejo de eternidade se serve, ou contra o qual, pelo
contrário se revolta. Os dois Regimes da imagem
são, assim, os dois aspectos do símbolo da libido.
Por vezes, com efeito, o desejo de eternidade liga-
se à agressividade, à negatividade, transferida e
objetivada, do instinto de morte para combater o
Eros noturno e feminóide [...] outras vezes, por fim,
o desejo de eternidade parece querer ultrapassar a
totalidade da ambiguidade libidinosa e organizar
o devir ambivalente da energia vital numa liturgia
dramática que totaliza o amor, o devir e a morte. É
então que a imaginação organiza e mede o tempo,
mobilia o tempo em mitos e as lendas históricas, e
vem, pela periodicidade, consolar da fuga do tempo
(DURAND, 2002, p. 197).

Ora, é inegável que o amor constitui verdadeiramente


uma eufemização em relação ao tempo. O amor é o princípio
organizador de todas as nossas atividades, embora muitas vezes
essa relação não seja assim tão evidente. O que é uma guerra
senão a vontade humana em dominar territórios e assegurar
sua sobrevivência biológica/material? Se nos dispusermos a
aprofundar todas as ações que engendramos durante nosso
percurso existencial verificaremos que o amor está presente em
todas elas, seja em prol do amor próprio/individual/egoístico que
todo organismo vivo possui pela necessidade de perpetuar sua
existência, ou aquele amor em prol do outro, mais sutil, quando
alguém se doa em benefício de outrem, por exemplo. Em ambos os
casos, é a vida que continua e novamente o tempo é dominado. No
caso do sentimento manifesto nos comentários, o sentimento amor
indica a afeição pelo local, pois a fotografia apresenta uma imagem
de vida e de um caos organizado/harmônico, evidenciando, assim,
a paradoxal relação entre vida e morte.
Trilhas do imaginário | 25

Em outros 39 (trinta e nove) comentários, foram recorrentes


as palavras belo, lindo, maravilhoso e frases se referindo à beleza
do jardim, conforme podemos verificar na transcrição abaixo:

   38. Nossa que lindo que está, faz um tempinho que não
passo por ele. Saudades!!!
   39. Entre os estudos e afazeres deparo-me com o lindo
jardim da #Unisul
   40. Nossa, que lindo que está, faz um tempinho que não
passo por ele. Saudades!!!
   41. Belo trabalho na época professor (...) hoje está
maravilha de jardim!!!
   42. Lembro da enchente. Passou, e agora, lindo ficou.
   43. É isso mesmo! Esta lindo e recebendo todo o cuidado
que merece #unisul
   44. Muito lindo..
   45. Lindo nosso jardim, maravilhoso!!!
   46. É um lindo lugar!
   47. Lindíssimo. Este jardim ficará para sempre no
pensamento e na saudade de muitos corações. Beijos
   48. Lindo, lindo, lindo. Felicidades a todos
   49. Muito lindo. Parabéns pelo cuidado com o jardim
que já é patrimônio.
   50. Lindo demais.
   51. Esse jardim é maravilhoso, adoro contemplá-lo! que
continue sempre assim trazendo bem estar e alegria
pela sua simples beleza!!!
   52. Também acho maravilhoso!
   53. Lindo esse jardim!
   54. Não me canso de fotografa-lo [sic] (....)
   55. Merece vários registros (...)
   56. Lindooo
   57. Não tem como não amar e admirar esse jardim,
simplesmente lindo
26 | Trilhas do imaginário

   58. tbem adoro este jardim ... lindo


   59. Espetacular lindíssima foto. Este jardim nos remete
a imaginarmos somente coisas boas. Beijosss
   60. Este é o lindo jardim de nossa #Unisul Tubarão ...
Espaço que fez e faz parte de muitas histórias. E
pensar, que um dia este espaço era uma quadra de
esportes, e depois da enchente de 74 se transformou no
jardim. Hoje ele esta assim, bem lindo e continuando
fazendo parte da história de muitas pessoas.
   61. Que lindo esse lugar para uma tarde !!!!!!!!!!!
   62. Inclusive da minha que dei boas vassouradas no
nas calçadas, linda foto!!
   63. Jardim da minha segunda casa... Parabéns aos que
trabalharam, especialmente o seu Pedro e aos que
trabalham com dedicação e amor para mantê-lo
assim lindo e harmônico.
   64. Lindo!
   65. Este jardim é maravilhoso!
   66. Nossa, que lindo!!!
   67. O mais belo recanto de nossa casa UNISUL –
Universidade
   68. Realmente muito bonito
   69. Que lugar lindo frei
   70. Lindo!
   71. Lindo! O jardim ...
   72. Tenho o privilégio de olhar para ele todos os dias!
   73. Lindo... eu ia tirar algumas fotos quando fui no
enterro da tia.. mas já era tão tarde da noite, saí dai
24:00 e tínhamos que vim descansar para trabalhar
no outro dia... mais oportunidades não me faltaram...
beijos... eu presenciei o lugar e é lindo... tem ate uma
ponte... nossa incrível..bj
   74. Lindo!!!
   75. A unisul deveria ter mais espaços assim ... é lindo
   76. Esse jardim é top demais Brother
   77. Realmente um belo recanto da Universidade
Trilhas do imaginário | 27

Podemos verificar que nos comentários as palavras belo,


lindo, maravilhoso atuam como adjetivos do substantivo jardim e
representam uma qualidade contrária ao feio. Em relação ao regime
de representação da imagens, estes comentários estão inseridos no
Regime Diurno pois apresentam o lado de um polo, de uma dicotomia
e este regime de representação se caracteriza por “constelações
simbólicas polarizadas em torno de dois grandes esquemas, diairético
e ascensional, e do arquétipo da “luz”, ou seja, nesse caso o imaginário
atua contra as faces do tempo através de imagens que indicam beleza,
ascese, purificação e transcendência (DURAND, 2002, p. 179-180).
Por meio dos comentários das imagens do jardim da Unisul,
podemos verificar que ele, enquanto estímulo, suscitou nas pessoas
associações imaginativas relacionados ao belo, ao sensível, pois
para Maffesoli “a sensibilidade coletiva é, de um certo modo, o
lençol freático de toda vida social” e a afetividade tende a explodir
e contaminar de forma expressa todos os setores da vida social
(MAFFESOLI, 1996, p. 41). Aliás, é o que podemos observar nas
expressões utilizadas nos comentários, cujas manifestações indicam
a sensibilidade coletiva em relação a um local específico que em
algum momento fez parte de suas vidas:

Imagem 2 – comentários nas redes sociais

Fonte: Arquivo das autoras.


28 | Trilhas do imaginário

Seis comentários, por sua vez, indicaram manifestações do


sentimento de transcendência do lugar através das expressões lugar
mágico, lugar especial, lugar divino, pedacinho do paraíso, belo recanto,
além de referências de ter o jardim já se tornado um patrimônio:

   78. Lugar mágico!! Jardim interno da Unisul –


Universidade. Meus filhos adoram correr e brincar
neste jardim!
   79. [foto] do prédio da reitoria da UNISUL, um lugar
especial
   80. É um patrimônio. Tem que ser bem cuidado
   81. Lugar divino
   82. Muito lindo. Parabéns pelo cuidado com o jardim
que já é patrimônio.
   83. Pedacinho do paraíso

Nos comentários acima fica evidenciada a aura diferenciada


que paira sobre o jardim da Unisul e sobre aura é sempre bom
lembrarmos que Benjamim (1987, p. 170) a caracteriza como “uma
figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a
aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”.
Aliás, o relato de Benjamin sobre “respirar a aura de um local” se
assemelha aos relatos nos comentários sobre as experienciações
individuais em relação ao jardim:

observar em repouso, numa tarde de verão, uma


cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho,
que projeta suas sombras sobre nós, significa
respirar a aura dessas montanhas, desse galho
(BENJAMIM, 1987, p. 170).

Embora Benjamin (1987) atribua a decadência da aura à


necessidade que a modernidade possui de ficar mais próxima do
objeto, de possuí-lo por meio da reprodutibilidade técnica de suas
imagens, verificamos através dos comentários, que esta aura existe na
memória individual e grupal daqueles que por alguma circunstância
Trilhas do imaginário | 29

tiveram contato com o jardim. O que verdadeiramente vislumbramos


é que a fotografia somente suscitou a manifestação desse sentimento
em relação ao local, mas o registro para além da rede social Facebook,
está também na memória e, por conseguinte, no imaginário individual
e coletivo destas pessoas.
Também podemos verificar nos comentários que ao jardim é
dado um aspecto singular, diferenciado, transcendente e nesse sentido
Assman (2011, p. 359) indica que em toda cultura há registros de locais
diferentes e inclusive sagrados que possibilitam uma ligação com os
deuses. Aliás, é interessante observarmos aquilo que Mircea Eliade
registrou em seu livro Imagens e Símbolos (1952, p. 18) quando indicou
que “a vida do homem moderno fervilha de mitos semiesquecidos”.
Embora o jardim da Unisul não se trate de um local propriamente
vinculado a alguma religião, as manifestações nos comentários
se referiram ao jardim como um lugar divino, lugar mágico, um
pedacinho do paraíso, o que evidencia aquilo que Jung (2000, p. 15-16)
denominou de archetypus, ou seja, aquelas representações coletivas
de tipos arcaicos/imagens primordiais, pois algumas pessoas tiveram
o mesmo tipo de associação em relação ao estímulo fotográfico.
Eliade (1992, p. 17) afirma que para o homem religioso o
espaço não é homogêneo, ele apresenta fissuras, quebras, as quais
diferenciariam o espaço profano, amorfo, e o espaço sagrado, este
último dotado de força e significação:

Existem, por exemplo, locais privilegiados,


qualitativamente diferentes dos outros: a
paisagem natal ou os sítios dos primeiros amores,
ou certos lugares na primeira cidade estrangeira
visitada na juventude. Todos esses locais guardam,
mesmo para o homem mais francamente não
religioso, uma qualidade excepcional, “única”: são
os “lugares sagrados” do seu universo privado,
como se neles um ser não religioso tivesse tido
a revelação de uma outra realidade, diferente
daquela de que participa em sua existência
cotidiana (ELIADE, 1992, p. 18).
30 | Trilhas do imaginário

Podemos observar que os comentários que apresentaram


as palavras lugar divino, lugar mágico, um pedacinho do paraíso
suscitam representações tanto afeitas ao Regime Diurno quanto
ao Regime Noturno de representação das imagens propostos
por Durand (2002), pois é tanto um lugar transcendente/céu ,
típico ao regime diurno que se caracteriza por “um fugir daqui
platônico”, quanto um lugar de refúgio, ou seja, de um “receptáculo
geográfico”, caracterizado pelo aspecto de acolhimento típico ao
regime noturno:

A floresta é centro de intimidade como o pode ser


a casa, a gruta ou a catedral. A paisagem silvestre
fechada é constitutiva do lugar sagrado. Todo lugar
sagrado começa pelo “bosque sagrado”. O lugar
sagrado é uma cosmicização maior que o microcosmo
da morada, do arquétipo da intimidade feminóide
(DURAND, 2002, p. 179-180).

Aliás, é interessante observarmos que o perímetro do jardim da


Unisul é quadrado com um espaço circular em seu centro e, segundo
Durand (2002, p. 246-248), o recinto quadrado ostenta o caráter
simbólico da defesa e integridade do interior e, por isso, se refere
à cidade, à fortaleza e à cidadela, enquanto que o recinto circular é
característico do jardim, do fruto, do ovo, do ventre, acentuando o
simbolismo da intimidade afeita ao regime noturno de representação
da imagem. Durand (2002) ainda afirma que os lugares sagrados
também se caracterizam por apresentarem imagens de estruturas
fálicas, como montanhas, pedra levantada e árvore, esta última
também símbolo de individuação.
Os comentários acima que denotam caráter divino e
transcendente ao jardim também encontram sintonia com os
comentários que expressaram sentimentos de bem estar, alegria,
paz, paz de espírito e com aqueles relacionados ao sentimento de
pertença, manifesto através das expressões fazer parte, ambiente
familiar e segunda casa:
Trilhas do imaginário | 31

   84. Esse jardim é maravilhoso, adoro contemplá-lo! que


continue sempre assim trazendo bem estar e alegria
pela sua simples beleza!!!
   85. Espetacular lindíssima foto. Este jardim nos remete
a imaginarmos somente coisas boas. Beijosss
   86. Amo esse jardim ele me da paz
   87. Espaço muito bonito, que transmite paz
   88. É muito bom passar por aqui, paz de espírito
   89. Esperando para começar a aula! Adoro este pátio,
como se fosse o jardim da minha casa! Muitas
inspirações! #Unisul #Moda #amoOquefaço
   90. Este é o lindo jardim de nossa #Unisul Tubarão ...
Espaço que fez e faz parte de muitas histórias. E
pensar, que um dia este espaço era uma quadra de
esportes, e depois da enchente de 74 se transformou no
jardim. Hoje ele esta assim, bem lindo e continuando
fazendo parte da história de muitas pessoas.
   91. Jardim da minha segunda casa... Parabéns aos que
trabalharam, especialmente o seu Pedro e aos que
trabalham com dedicação e amor para mantê-lo
assim lindo e harmônico.
   92. O mais belo recanto de nossa casa UNISUL –
Universidade
   93. Esse jardim faz parte da minha história desde a
infância, ele e lindo... e com certeza faz parte da
história dos meus pais tbem..
   94. Ambiente familiar!

Nos comentários acima fica evidente o sentimento de pertença


e de vínculo dessas pessoas em relação ao jardim e à Universidade.
As expressões utilizadas denotam o caráter de acolhimento, de
intimidade, de segurança que o ambiente transmite para estas pessoas.
Para Durand (2002, p. 244), a casa sempre se refere à imagem da
intimidade repousante, seja no templo, palácio ou cabana ou, como
neste caso, na Universidade e seu jardim. Aliás, a cor verde é associada
às sensações de calma, ao repouso e à profundidade materna e
32 | Trilhas do imaginário

por isso se inscreve no regime noturno das imagens em razão dos


aspectos vinculados ao aconchego, refúgio e intimidade (DURAND,
2002, p. 220-221).
Também é interessante observarmos que o jardim se tornou
símbolo de esperança para algumas pessoas, pois em alguns
comentários estas mencionaram que antes da enchente que assolou
a cidade de Tubarão em 1974 havia uma quadra de esportes no local
que atualmente é o jardim:

   95. Este é o lindo jardim de nossa #Unisul Tubarão ...


Espaço que fez e faz parte de muitas histórias. E
pensar, que um dia este espaço era uma quadra de
esportes, e depois da enchente de 74 se transformou no
jardim. Hoje ele esta assim, bem lindo e continuando
fazendo parte da história de muitas pessoas.
   96. Plantamos árvores, grama e flores sobre o barro
trazido pela enchente, na esperança de um futuro
melhor para as próximas gerações.
   97. [foto] Escolha a sua posição neste coração verde
de esperança. Jardim de beleza ímpar nascido pós
intempéries (...)
   98. Quem cuida de um jardim cultiva esperanças.

Nos comentários acima fica evidente que a enchente de 1974


marcou a vida destas pessoas5 e chegou a se inscrever em suas
memórias, assim como também fica evidente como o jardim se
tornou um símbolo de esperança, de renascimento, de dominação
do devir e da finitude. Para Durand (2002, p. 230) a água e a terra são
elementos que estão relacionadas com a origem, tanto do mundo,
quanto dos seres humanos: “as águas seriam, assim, as mães do
mundo, enquanto a terra seria a mãe dos seres vivos e dos homens”,

5 Sobre a recorrência simbólica da enchente no imaginário local, sugerimos


a leitura da publicação: MORAES, H. J. P.; MÁXIMO, W. C. Recorrências
e convergências do imaginário: o dilúvio mítico como matriz imaginal de
identidade local após uma enchente. Revista Cadernos de Comunicação.
Santa Maria, v. 20, n. 3, art. 9, p. 180-191, set/dez. 2016.
Trilhas do imaginário | 33

o que evidencia o fato de as pessoas vincularem a enchente/água e


a terra/jardim como simbolização da esperança, de renascimento e
dominação da morte.
Podemos verificar que o estímulo proporcionado por fotografias
publicadas na rede social Facebook suscitaram manifestações de
várias pessoas em relação ao jardim, o que nos possibilitou mapear o
imaginário deste grupo de pessoas que tinham em comum o registro
deste ambiente como lugar de refúgio, pertencimento, paz e símbolo
de esperança. Através deste estudo podemos verificar o quanto uma
imagem possui capacidade de se inscrever na memória individual e
coletiva e o quanto a afetividade permeia esse registro e contribui
para a perpetuação do imaginário grupal e individual.
Para melhor compreendermos o objeto deste estudo, no
próximo item buscaremos evidenciar os aspectos que fazem da
fotografia um meio de registrar, construir e consolidar o imaginário
individual e grupal através da perenização de acontecimentos, lugares
e afetos que permeiam cotidianamente nosso viver.

4 Foto-grafia: registros de um ambiente como imagem


de pertencimento e memória afetiva
A fotografia é uma maneira de falarmos, de escrevermos e nos
inscrevermos no devir, porque tudo é linguagem. Segundo Heiddeger,
em sua obra A caminho da Linguagem (2003, p. 7), falamos em todos
os momentos, quando estamos acordados, quando sonhamos, quando
ouvimos, quando lemos e inclusive quando não falamos. Para ele,
a linguagem está em toda parte e ao nomearmos as coisas, criamos
o nosso mundo:

no nomear, as coisas nomeadas são evocadas em


seu fazer-se coisa. Fazendo-se coisa, as coisas des-
dobram mundo, mundo em que as coisas perduram,
sendo a cada vez a sua duração. Fazendo-se coisa,
as coisas dão suporte a um mundo. (HEIDDEGER,
2003, p. 17).
34 | Trilhas do imaginário

Nesse sentido podemos presumir que a fotografia enquanto


“corte no devir” permite o registro e construção do mundo, de nossas
vivências, de nossas emoções, de nossos olhares e permite que nossas
histórias sejam perenizadas através de imagens, atuando como
linguagem que tece e registra o imaginário individual e coletivo.
Por meio da fotografia, os registros das imagens do jardim da
Unisul puderam ser publicados na rede social Facebook e a partir
dessas imagens as pessoas puderam expressar suas lembranças,
afetos e sentimentos, que até então pairavam tão somente em
suas memórias. A partir destes dados compartilhados através da
mencionada rede social, conseguimos identificar o imaginário destas
pessoas em relação ao referido ambiente. Desse modo, a fotografia
possibilita a circulação de imagens, solidifica os laços de memória
e pertencimento, pois tem potência para perenizar um momento e
principalmente emoções.
Sobre o imaginário se constituir através de imagens e ter a
visão como aspecto dominante, Durand indica que a “ocularidade”
que atua sobre o espaço é eufemização do tempo e afirma que
mesmo nas artes musicais a terminologia utilizada se refere a
termos “visuais”, tais como altura, volume, medida, evidenciando,
assim, como a ocularidade/visão é responsável por dar vida ao
nosso imaginário (DURAND, 2002, p. 408-409). Isso porque as
matérias-primas da fotografia são luz e tempo e um registro
fotográfico eufemiza a angústia existencial humana em relação
ao devir e as emoções suscitadas através das imagens re-ligam o
indivíduo com um lugar ou pessoa(s) da qual esteja separado no
espaço e no tempo.
Nesse sentido, a fotografia, enquanto arte e escritura, é um
instrumento precioso que nos possibilita fazer uma leitura do
imaginário individual e coletivo, assim como registrá-lo, escrevê-
lo, torná-lo visível e palpável, pois conforme indica Wunenburger
(2007, p. 57), “a arte atesta no homem uma necessidade universal
de fabricar imagens e de dar corpo e controle a um imaginário
visual e textual”.
Trilhas do imaginário | 35

Segundo Flusser (1998, p. 35) vivemos na era das imagens


técnicas e delas emanam um fascínio mágico palpável e através
desta magia imagética: “vivenciamos, conhecemos, valorizamos
e agimos cada vez mais em função de tais imagens”. Para Flusser
(1998; 1985) fotografia e linguagem caminham juntos, pois conforme
suas palavras:

o fotógrafo produz símbolos, manipula-os e


os armazena. Escritores, pintores, contadores,
administradores sempre fizeram o mesmo. O
resultado deste tipo de atividade são mensagens:
livros, quadros, contas, projetos. (FLUSSER, 1985, p. 14)

Sobre o ato fotográfico e seu vínculo com a linguagem, Berger


(2017. p. 18) afirma:

em seu sentido mais simples, a mensagem,


decodificada, quer dizer: eu decidi que a visão
disso vale a pena ser registrada. [...] A fotografia é
o processo de tornar a observação consciente de si
mesma. (BERGER, 2017. p. 18)

Com a fotografia podemos materializar nossa subjetividade


por meio da perenização de nossos olhares:

O homo aestheticus, ao criar para o prazer uma


outra imagem do mundo, um outro modo de
manifestação das coisas, modifica ao mesmo tempo
seu mundo interior e o mundo exterior: por um
lado cria imagens para objetivar experiências
sensoriais, afetivas, imaginárias, como se sua
vivência interior, oculta, silenciosa, não fosse
suficiente para experimentar toda a sua intensidade
e toda a sua riqueza. O imaginário das obras
mostra-se assim como um espaço de realização,
de fixação e de expansão da subjetividade. Mas,
por intermédio dessa representação, o artista visa
a algumas imagens novas, que por sua vez farão
parte da subjetividade de cada um. As obras de
36 | Trilhas do imaginário

arte permitem a transmissão e o compartilhamento


do vivido, do sentir, do ver, e assim tornam
possível uma participação num mundo comum
(WUNENBURGER, 2007, p. 58).

A fotografia, como arte, permite este compartilhamento do


vivido e estreitando os laços entre escritura e fotografia, Durand
(2002, p. 409) afirma que ver e dar a ver constitui uma poética, pois
para ele “[...] ´a objetiva´ da máquina fotográfica, sendo um ponto de
vista, nunca é objetiva. A contemplação o mundo é já transformação
do objeto”.
A fotografia e seu compartilhamento através das redes sociais
contribui para que as pessoas estejam unidas através uma imagem e
um sentimento comum, como vislumbramos nos registros fotográficos
do jardim da Unisul na rede social Facebook. As redes sociais permitem
que esta união seja concretizada também através da virtualidade,
corroborando o que Maffesoli (2014, p. 60) indicou quando afirmou
que “o ´estar-com´ é a antiga e obsessiva preocupação com a relação:
estar religado ao outro”, pois o ambiente virtual é o novo topos capaz
de unir as pessoas.
Nesse sentido, as fotografias atuam como escritura de um
mundo e permitem o compartilhamento dele com outros, além
de perenizar memórias e relações de afeto. Aliás, para Maffesoli
(1996, p. 40), é a ligação da experiência e da tradição que exprime
o sensualismo do grupo que funda a relação com a alteridade e
constitui o fundamento da sociedade, permitindo que a memória
que repousa sobre um hedonismo popular se inscreva em uma
prazo mais longo.
Desse modo podemos verificar que a fotografia enquanto
escritura, mais do que um reflexo o real, permite a criação de mundos
através do compartilhamento de experiências individuais e contribui
para revelar o imaginário individual e coletivo sobre determinados
aspectos que permeiam nossa realidade.
Trilhas do imaginário | 37

Referências
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Cultural, 1987.
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de textos de José Américo Motta Pessanha. 2. ed. São Paulo: Abril
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técnica. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BERGER, John. Para entender uma fotografia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2017.
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um estudo do Canal Viva. Programa de Pós-Graduação em Comunicação
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introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DURAND, Gilbert. Ciência do Homem e Tradição: o novo espírito
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ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
FLUSSER, Vilém. Ensaio sobre a fotografia: para uma filosofia da
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FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura
filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução
de Maria Luíza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis:
Vozes, 2000.
38 | Trilhas do imaginário

JUNG, Carl Gustav. Tipos Psicológicos. Tradução de Lúcia Mathilde


Endlich Orth. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Tradução Marcia de Sá
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MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.
MAFFESOLI, Michel. Homo Eroticus. Rio de Janeiro: Forense
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MORAES, Heloisa Juncklaus Preis; BRESSAN, Luiza Liene. A terra
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WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Loyola, 2007.
| 39

“Terezinha”6: representações imagéticas


do negro e seus significados

Bruno Marcelo de Souza Costa7


Elivaldo Serrão Custódio8

1 Situando o leitor
Na contemporaneidade, as imagens televisivas entram na
maioria dos lares brasileiros. O aparelho de TV massificou-se e,
atualmente, é difícil não encontrarmos um lar brasileiro que não faça
uso desse aparelho. As imagens veiculadas pela televisão certamente
ajudam a compor nossos imaginários e também nos influenciam em
nossas maneiras de ser e estar no mundo. Especificamente, nesse
artigo, tratamos da representação imagética e social de uma mulher
negra que vive na periferia.
O mote principal do artigo é analisar, pela perspectiva da
semiótica, os usos e sentidos dessa personagem e seus “supostos”
desdobramentos na vida social dos receptores dessa imagem televisiva.
É importante lembrar que a imagem analisada é veiculada em um

6 Personagem televisivo do Programa humorístico de TV Fechada Vai que cola


da Rede Globo de Televisão.
7 Doutorando em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da
Amazônia (PPGCLC/Unama). Mestre pelo Instituto de Ciências da Arte da
Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Arte-Educação e História
das Culturas Afro-brasileira e Indígena. Atualmente é professor da redes
públicas estadual e municipal do Amapá e também professor substituto da
Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). E-mail: [email protected]
8 Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Doutor
em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS. Docente da Secretaria de
Estado da Educação do Amapá (SEED). Membro do Grupo de Pesquisa Educação
e Religião (GPER/IPFER) e do Grupo de Pesquisa Educação, Interculturalidade
e Relações Étnico-Raciais (UNIFAP/CNPq). Contato: [email protected]
40 | Trilhas do imaginário

programa de humor que não faz parte da televisão aberta e sim de


um canal fechado de televisão.
As ideias que motivaram/fomentaram a escrita deste artigo
emergiram a partir das discussões levantadas pela disciplina Imagem
e Tecnologia na Arte, ministrada pelos professores Mariano Klautau e
Lucilinda Teixeira, ofertada pelo curso de Doutorado em Comunicação,
Linguagem e Cultura da Universidade da Amazônia (Unama).
Além disso, o artigo também faz parte de uma pesquisa maior de
doutoramento, cujo objeto de estudo principal é a representação
imagético-social do negro na televisão brasileira e seus imbricamentos
com os processos educativos em artes visuais.
As imagens televisivas certamente influenciam e atuam
diretamente na constituição das identidades das pessoas. Por essa
razão, é de fundamental importância analisarmos de que forma se
dá esse processo de recepção dessas imagens. Certamente existem
inúmeras interpretações/significados que podem ser extraídos das
imagens a partir de aspectos específicos de consumo. As imagens
televisivas por muitas vezes ditam padrões e comportamentos
fazendo com que esses padrões e comportamentos se expandam
em nossa sociedade.
Nas novelas e séries televisivas, acompanhadas conti-
nuamente pelas famílias brasileiras, os negros são quase invisíveis.
Salvo raras exceções, eles não existem como protagonistas da
história central. Fora das novelas e séries históricas específicas
sobre negros, estes só aparecem em relação com os brancos. A
principal razão de ser dos negros é fortificar a trama da história
dominante, seja por meio de imagens banais de motoristas ou
delinquentes. Nesse sentido o texto visa partir dessa perspectiva
para analisar a personagem elencada.
Como suporte teórico, utilizamos os estudos de Santaella (1997,
2000, 2001), Peirce (1997), Toutain (2002, 2007) e Rodrigues (2001).
O texto é de cunho bibliográfico e ancorou-se na análise visual da
personagem Terezinha, do humorístico de canal fechado Vai que
cola, Multishow/Globosat pertencente a Rede Globo de Televisão.
Trilhas do imaginário | 41

Essa análise baseou-se no campo da semiótica, buscando enfatizar


os possíveis significados dessa representação imagética.
Para dar conta da proposta do artigo, dividiu-se a estrutura do
texto da seguinte maneira: no primeiro tópico, aborda-se, de forma
sucinta, as imagens de TV e suas representações em meio à sociedade
que as consome. Nesse tópico, tenta-se elucidar e problematizar as
influências dessas imagens de TV na cena diária dos receptores,
é necessário afirmar aqui que essa influência nos receptores é
analisada de forma intuitiva, tendo em vista que a impossibilidade
nesse momento de uma análise quantitativa.
Logo em seguida, faz-se uma descrição/apresentação
detalhada da personagem analisada. Esse tópico possibilita o
leitor conhecer, de forma mais profunda, todas as características
que compõe a imagem. Além do aspecto visual, também se
apresenta um recorte sociocultural da personagem, enfatizando
algumas características “sempre” ou “quase sempre” presentes na
população negra periférica brasileira como forma preconceituosa,
discriminatória e racista.
Dando continuidade, o artigo traz uma análise visual da
personagem a partir da abordagem semiótica, o objetivo nessa
parte do texto é olhar de maneira mais aprofundada para o que
a composição visual da personagem tem a nos dizer e quais os
significados e interpretações possíveis de serem feitas a partir deste
discurso visual. Neste tópico, baseamo-nos principalmente nos estudos
de Santaella (1997). Por fim, o artigo apresenta as considerações
finais acerca do que foi pesquisado e analisado.

2 Imagens de TV e suas representações


Quanto tempo passamos na frente das mídias? Quais são
os efeitos de ordem social, econômico, cultural das telas de TV,
do computador, do vídeo, do palmtop e dos telefones celulares?
Como vivemos, sentimos e pensamos a partir do uso desses
mecanismos? As telas se tornaram tão íntimas que são quase uma
42 | Trilhas do imaginário

biotecnologia9. Que nós vivemos uma civilização de imagens parece


ser a opinião mais comum sobre as características da nossa época,
visão repetida há mais de trinta anos. Todavia, quanto mais esta
verificação se confirma, mais parece que pesa, como uma ameaça,
sobre os nossos destinos. Quanto mais imagens vemos, mais nos
arriscamos a ser iludidos. Agora que estamos apenas na alvorada de
uma geração de imagens virtuais, essas novas imagens nos propõem
mundos ilusórios e, no entanto, perceptíveis, no interior dos quais
nos movimentamos sem que, para tal, tenhamos de abandonar o
nosso quarto de dormir.
Com o surgimento das novas tecnologias de obtenção de
imagens, principalmente a partir da fotografia, cinema, televisão,
publicidade e, hoje, com a internet, o que se vê é um novo conceito
de produção e distribuição do conhecimento, que se dá, cada vez
mais, pelo uso da imagem.
Atualmente, as imagens não são mais manipuladas
exclusivamente por artistas, mas desempenham funções sociais.
“Assim, distancia-se das obras de arte, dos museus e do cinema
para focalizar sua atenção na experiência cotidiana” (SARDELICH,
2006, p. 462). A isso, muitos autores como o aporte teórico já citado,
dão o nome de “cultura visual”, termo que muitas vezes é utilizado
para estudar e entender o mundo contemporâneo, cada vez mais
influenciado e construído por meio das imagens.
Segundo Freedman (2002 apud SARDELICH, 2006, p. 463),
“a cultura é a forma de viver e a cultura visual dá forma ao nosso

9 O avanço da tecnologia em diversas áreas tem facilitado e ajudado a vida de


muitas pessoas em diversos sentidos, mas também trouxe problemas que antes
não existiam. A internet revolucionou a vida de muitas pessoas, tanto para o
bem quanto para o mal. As opções de escolhas que temos no universo on-line
são bastante atrativas, desde o acesso às inúmeras informações até a utilização
de serviços diversos. Entretanto, toda escolha vem acompanhada também de
suas consequências. Se o crescimento da tecnologia da informação, a internet
e o seu fácil acesso, foi rápido, o mesmo não aconteceu na criação de novas
leis determinando o seu uso. Assim, a navegação nesse ambiente tornou-se
praticamente uma terra sem dono, onde qualquer um coloca qualquer coisa
e muitos acabam caindo em armadilhas perigosas.
Trilhas do imaginário | 43

mundo, ao mesmo tempo em que é nossa forma de olhar o mundo”.


Com a televisão, a situação cognitiva mudou radicalmente. Graças à
TV, todas as pessoas que estão assistindo ao mesmo tempo vivenciam
juntas o mesmo conteúdo, apesar de sabermos que essas pessoas são
afetadas de forma e maneira diferentes, conforme seus contextos
socioculturais (KERCKHOVE, 2003, p. 17).
Atualmente vivemos na chamada civilização da imagem. E a
era da visualidade, da cultura visual. Existem imagens por toda parte.
As crianças, desde cedo, aprendem a interagir com elas através de
comandos nos vídeos games e computadores, e aprendem a produzir
e consumir imagens de toda ordem.
Na publicidade contemporânea, a imagem é presença
obrigatória. E nesse tipo de imagem que são investidos mais dinheiro,
mais talento e energia do que em qualquer outro. Na publicidade, as
imagens sugerem o que devemos fazer, o que devemos necessitar,
o que devemos valorizar ou desejar. Moldam pensamentos e
comportamentos. Para Kellner (1995) uma pedagogia crítica seria uma
provável solução para degustar essas imagens de forma a interpretá-
las com mais clareza e senso crítico.
Experimente contar quantas imagens você vê diariamente.
São edificações em diversos estilos, carros de vários modelos, pessoas
vestidas cada uma a seu gosto. Há ainda a poluição visual das cidades,
com propagandas e pichações, a televisão, a internet, as fotos de
jornais e revistas. Alunos e alunas usam adereços nos cabelos e
enfeitam cadernos com ilustrações de todo tipo. Muitas vezes, isso
passa despercebido e parece não ter sentido. Esses elementos visuais
estão carregados de informações sobre nossa cultura e o mundo
em que vivemos. Portanto, têm muito a ensinar/significar, essas
informações visuais dizem um pouco de quem somos e como nos
relacionamos com o mundo.
Nos tempos atuais, há uma grande quantidade de informações
imagéticas à disposição de todos, nas diversas práticas de leitura.
Os textos assumem um caráter cada vez mais visual, integrando
palavra e imagem. Uma das razões para essa tendência pode ser o
44 | Trilhas do imaginário

fato de que a percepção visual é mais rápida do que a leitura do texto


escrito. Assim, se o objetivo é atingir o maior número de leitores em
um espaço curto de tempo, o uso de elementos visuais se mostra, de
fato, muito eficiente.
Antigamente, a palavra predominava; a imagem, quando
existia, era subordinada àquela. Hoje, a imagem tem um papel
fundamental na formação dos sentidos, pois ela e a palavra, juntas,
constroem o sentido global da comunicação, muitas vezes implícito.
Daí a necessidade de se desenvolver habilidades que vão além da
simples decodificação do visual e que possibilitem a construção de
significados a partir da leitura simultânea de palavras e imagens.
Somos consumidores de imagens. Por isso a necessidade de
compreendermos a maneira como a imagem comunica e transmite
as suas mensagens. De fato, não podemos ficar indiferentes a
uma das ferramentas que predomina no mundo contemporâneo.
Percebemo-nos, todavia, de que a imagem, longe de ser um
flagelo contemporâneo ameaçador, é um meio de expressão e
de comunicação que nos liga às tradições mais antigas e mais
ricas da nossa cultura. A sua leitura, mesmo a mais ingênua
e cotidiana, mantém em nós uma memória que apenas exige
ser um pouco estimulada para se tornar num utensílio mais de
autonomia do que de passividade. Vimos, com efeito, que a sua
compreensão necessita que seja tomado em linha de conta o
contexto da comunicação, da historicidade da sua interpretação,
assim como as suas especificidades culturais.
É importante destacar as representações imagéticas e sociais
que são veiculadas pela TV. Em um breve panorama de observação,
é notório o quanto essas imagens ditam normas e padrões de
comportamentos. Por isso, cabe à área da comunicação, junto com
as demais ciências afins, como a Sociologia e Antropologia, analisar
como se dão esses processos e como essas imagens se legitimam
como padrões “aceitáveis” ou hegemônicos. As representações que
emergem a partir de imagens televisivas se instauram como padrões
a serem seguidos pelo resto consumidor.
Trilhas do imaginário | 45

Dessa forma é de fundamental importância observamos


e analisarmos como essas representações se legitimam, quais os
aspectos de historicidade e de cultura corroboram para que elas
sejam tomadas como “verdades visuais”. Além disso é necessário
irmos além do discurso imagético do senso comum e tentarmos
compreender os discursos velados, que, na maioria das vezes, está
tomado de preconceitos e discriminações que já se naturalizaram
no seio da sociedade brasileira.
Nesse sentindo podemos anunciar o quanto algumas imagens
televisivas são racistas10, preconceituosas11 e discriminatórias12 e/
ou pensadas por um grupo dominante. Em relação a isso, vejamos
o que diz D’ Adesky (2005):

No que diz respeito à questão da mídia e do


pluralismo étnico, convém interrogar a realidade
do acesso dos grupos ditos minoritários, em termos
da visibilidade de imagens, mas também em relação
ao conteúdo dos programas de TV, às matérias da
impressa escrita etc. A resposta a tais perguntas
esclarece, sem sombra de dúvida, a relação de força
que impera nos centros decisórios da mídia. Em
particular, pode revelar qual é o grupo étnico – que

10 O racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes do


ódio, em relação às pessoas que possuem um pertencimento racial observável
por meio de sinais, tais como: cor da pele, tipo de cabelo, etc. E por outro lado
um conjunto de ideias e imagens referentes aos grupos humanos que acreditam
na existência de raças superiores e inferiores (GOMES, 2005, p. 52).
11 De acordo com Ferreira (2011), autor do Novo Dicionário Aurélio de Língua
Portuguesa, preconceito é: “Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão
a outras raças, credos, religiões, etc.”.
12 O conceito de Discriminação adotado deste trabalho refere-se ao artigo 1º da
Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino, da
Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO),
ratificada pelo Brasil em 1967, que estabelece que: “O termo discriminação
abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião,
origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto
ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino”
(UNESCO, 2003, p. 3).
46 | Trilhas do imaginário

realmente detém o poder da informação, em que


medidas programações da TV ou o perfil editorial
seguem uma linha que dá primazia ou não `a
cultura dominante, reforçam o monopólio de fato
dessa cultura, visando a homogeneização total, ou
preferem seguir uma política multicultural, em que
cada cultura e cada etnia encontram espaço para se
explicar e se posicionar sem entrave ou subterfugio
por parte da etnia dominante (D’ ADESKY, 2005,
p. 87-88).

Portanto como anunciado por D’Adesky (2005) a mídia e muitas


vezes agenciadora dos modos de ser estar no mundo, suscetível
então a proporcionar mudanças de atitudes nas mentalidades no
interior das sociedades. Dessa forma a mídia tem poder negligenciável
na constituição das identidades, na medida em que é veículo de
informações e de imagens que podem ser destacadas ou manipuladas
segundo os interesses em jogo.
Numa sociedade como a brasileira, na qual predomina uma
visão preconceituosa, historicamente construída, a respeito do
negro e, em contrapartida, a identificação positiva do branco, a
identidade estruturada durante o processo de socialização terá por
base a precariedade de modelos satisfatórios e a abundância de
estereótipos negativos sobre os negros (CUSTÓDIO, 2014).
Observamos que o preconceito está inserido na sociedade
brasileira através do cotidiano dos indivíduos, sendo altamente
prejudicial para a população negra, tanto nas relações sociais (família,
escola, bairro, trabalho e etc.) quanto nos meios de comunicação. O
preconceito é um fator importante para a expansão da discriminação
étnica, visto que um indivíduo preconceituoso racialmente, não
aceita de maneira positiva o contato com negros na vida social
(CUSTÓDIO, 2014).
Lembramos que o surgimento do racismo atual é um resultado
das teorias evolucionistas do século XIX, que influenciaram diversas
áreas do conhecimento, como a Biologia e as Ciências Sociais. A
Trilhas do imaginário | 47

conceituação de igualdade entre os homens vai de encontro com a


afirmação da existência de uma hierarquia racial entre os homens,
denominado de racismo científico.
Sodré (2000) ao referir-se ao racismo, aponta a existência
de um imaginário racista na sociedade brasileira e afirma ser o
imaginário uma categoria importante para entendermos muitas
das representações negativas do cidadão negro. Segundo Schwarcz
(1993), o surgimento do racismo científico no século XIX e seus
respectivos desdobramentos na sociedade e na política têm sido
muito discutido e, ainda, responsável pela constituição de diversas
representações negativas sobre a população negra como é o caso da
personagem Terezinha.

3 Descrição da personagem analisada


Foto 1 – Terezinha

Fonte: Canal Multishow13

Será que as imagens podem ter significado diretamente como


signos visuais, ou o significado da imagem só se origina pela mediação
da linguagem?

13 Disponível em: <http://multishow.globo.com/programas/vai-que-cola/


terezinha-128.htm>.
48 | Trilhas do imaginário

Nossa personagem de estudo é a Terezinha, interpretada


por Cacau Protásio14, no programa de comédia Vai Que Cola. Esse
programa é uma sitcom brasileira produzida e exibida pelo canal
Multishow desde 8 de julho de 2013. Escrita por Leandro Soares e
dirigida por César Rodrigues e João Fonseca, o programa é baseado
nos moldes popularizados por Miguel Falabella em Sai de Baixo e
Toma Lá Da Cá com humor popular e plateia ao vivo presente no
estúdio. Conta com Catarina Abdala. Marcus Majella, Cacau Protásio,
Fiorella Mattheis, Samantha Schumutz, Emiliano D’Avila, Marcelo
Medicie e Paulo Gustavo nos papéis principais.

Foto 2 – Elenco Principal

Fonte: Canal Multishow15

14 Anna Claudia Protásio Monteiro, Cacau Protásio. Nascida em 3 de julho de


1975 no Campos dos Goytacazes – Rio de Janeiro, negra nascida no interior do
Rio de Janeiro. Viveu uma vida simples até começar a cursar a faculdade de
Pedagogia, quando decidiu trancá-la e se matricular na escola de teatro. Ela
então se forma atriz na Casa de Arte das Laranjeiras. Cacau, até chegar ao auge
de sua carreira, recebeu muitos NÃOS, mas isso era o que dava mais força para
conseguir realizar seus sonhos, até chegar à Rede Globo, onde ganhou o papel
de ZEZÉ, mulher pobre que vive na periferia, empregada doméstica de família
rica, com o qual ganhou destaque pelo desempenho na novela Avenida Brasil.
15 Disponível em: <http://multishow.globo.com/programas/vai-que-cola/
terezinha-128.htm>.
Trilhas do imaginário | 49

Terezinha é viúva do bicheiro Tiziu do Salgueiro e sabe


“aproveitar a vida”. Vive no forró, no samba, no baile funk e em
todo tipo de festa onde pode “beber uma cerveja gelada” e “dançar
até o chão”. Dizem que Tiziu lhe deixou um dinheiro guardado, mas
ninguém sabe quanto. Terezinha faz parte de uma classe pobre da
população brasileira, é negra, viúva, vive em uma pensão localizada
no bairro do Méier, na cidade do Rio de Janeiro-RJ. A personagem
usa roupas extravagantes, ou seja, bregas pra definição de nortista,
coloridas, vestidos curtos, bijuterias, e o cabelo black power. Terezinha
não tem vergonha de mostrar sua origem, seus costumes e sua(s)
identidade(s). A personagem Terezinha denota a representação da
mulher negra brasileira que vive na periferia.

Foto 3 – Terezinha16

Fonte: Canal MultiShow

Terezinha fala alto e usa expressões engraçadas e corriqueiras


nos bairros de periferia do Rio de Janeiro, a personagem está fora dos
padrões de corpo reproduzidos pela sociedade, no entanto, possui
um alto autoestima, não se envergonha do seu corpo e acredita que
os homens preferem mulheres mais “gordinhas”.

16 Disponível em: <http://multishow.globo.com/programas/vai-que-cola/


terezinha-128.htm>.
50 | Trilhas do imaginário

A personagem carrega consigo vários atributos a serem


analisados, a saber: Terezinha é negra, e, em decorrência disso, são
notórios o estigma e o preconceito racial reproduzidos pela imagem
e pelo discurso dos outros personagens em relação a ela; segundo:
por ser mulher independente, gera uma discussão muito eloquente
sobre gênero e feminismo; e, terceiro: vive em área periférica. Dessa
forma podemos dizer que Terezinha é uma personagem “negra/
mulher/periférica”.
O que vemos na televisão brasileira em relação às mulheres
negras são vários estereótipos que normalmente estão ligados à
empregada doméstica ou à escrava em novelas de época. Não é
indigno ser empregada: o problema está nestes papéis serem, via
de regra, feitos por atrizes negras. Atualmente encontramos uma
participação maior do negro na televisão, é fato, porém continua a
vinculação do estereótipo do negro que samba, gosta de pagode, é
malandro ou exerce profissões subalternas e quase imperceptíveis.
Muitos negros e negras não gostam de samba, alguns nem
sabem sambar, gostam de outros estilos, mas esses nunca são
representados na televisão. A sociedade mudou, mas ainda não
conseguimos ver o reflexo disso nas representações televisivas.
Não podemos deixar de destacar a questão das gírias pronunciadas
pela personagem, “erros de português”, ou seja, costumes de fala de
quem vive em áreas periféricas e deixa escapar rastros de cultura na
linguagem e na maneira como fala (variações linguísticas). É nesse
cenário que se constitui a formação da representação da mulher negra
no programa em questão, a imagem de alguém “desletrado”, que usa
roupas inadequadas, que fala alto e que vive sendo sustentada por
um homem do tráfico.
A imagem e o discurso que emana da imagem quer nos revelar
muito mais que uma cena cotidiana que nos causa riso, a imagem
nos revela que, na maioria das vezes, o lugar do negro está posto e
que as regras sociais estão ali a todo momento a nos vigiar e a nos
comandar. É certo que Teresinha, apesar do lugar que ocupa na trama,
foge dos padrões de vitimização e de se sentir inferior, no entanto
Trilhas do imaginário | 51

o controle ideológico para o espectador permanece, pois reverbera


uma representação de forma massiva, não possibilitando ao negro
enxergar-se de outra maneira. Araújo (2004) corrobora dizendo:

Por isso, a televisão não é o espaço da narrativa do


real, mas da construção do real. Sendo essa construção
perpassada nitidamente por processos de controle
político da realidade que objetivam homogeneizar
o coletivo. Por isso, a televisão não é o espaço da
narrativa do real, mas da construção do real. Sendo
essa construção perpassada nitidamente por processos
de controle político da realidade que objetivam
homogeneizar o coletivo (ARAÚJO, 2004, p. 4).

Dessa forma podemos dizer que as imagens televisivas não


são desprovidas de uma vinculação ideológica dominante e que,
muitas vezes, somos reprodutores dessa ideologia sem perceber,
a Teresinha além de recolocar o negro em uma posição sempre
cômica e de inferioridade, também nos revela a representação na
mulher periférica, uma mulher simples, engraçada, mas sempre
desprovida de estudo.
A construção de uma imagem negativa do negro tem marcos
históricos importantes, que se iniciam no contato dos europeus
com o continente africano. Diante desse contexto, é importante
recuperarmos raízes para reconstruir a identidade positiva do negro,
mas precisamos também, simultaneamente, preocupar-nos com as
questões referidas às condições sociais, econômicas e culturais de
hoje que afetam diretamente as condições de vida do negro.

4 Um viés semiótico da representação imagética de Terezinha


Segundo Santaella (1999, p. 13) as imagens são um sistema
semiótico em que falta uma metassemiótica, ou seja, enquanto a
língua pode servir tanto a si mesma como a um meio de comunicação,
por seu caráter metalinguístico, a imagem não serve como um meio
em si mesma. Nesse viés, o discurso verbal torna-se necessário para
52 | Trilhas do imaginário

o desenvolvimento de uma teoria da imagem. Porém, para Peirce


(1999, apud SANTAELLA, 1999, p. 14), é o código verbal que não se
desenvolve sem imagens, ou, como ele determina, iconicidade.
No âmbito deste trabalho, tratamos as imagens sob a
perspectiva semiótica. Para isso, é importante definirmos o conceito
de representação, considerada uma ideia chave na área desde a época
da escolástica e que, nos últimos anos, ganhou espaço nas ciências
cognitivas. Enquanto no mundo cognitivo a representação é um
processo em que se imbricam os mecanismos visuais e mentais, sendo,
portanto, uma capacidade de captar, interpretar e representar uma
informação (TOUTAIN, 2007, p.13), na semiótica, há uma tentativa de
definição do termo, que não adquiriu um consenso geral, mesmo que
esteja atrelado ao signo. Assim, o substantivo abstrato “representação”
caracteriza uma função sígnica, já que, em seu âmbito conceitual, se
estende até a relação de objeto ou até a função referencial sígnica.
Segundo Santaella (2001, p. 91), o signo funciona como um
mediador entre o objeto e o efeito que ela está apta a produzir em uma
mente, já que, de alguma forma, representa o objeto. Porém, o signo
só pode representá-lo porque o objeto determina o signo. Todavia,
embora o signo seja determinado pelo objeto, este último só é acessível
pela mediação do sujeito, sendo assim, uma das razões em que não
se pode dispensar a representação. Peirce (1987), genericamente,
define o signo como

qualquer coisa que determina alguma outra (seu


interpretante) para referir-se a um objeto ao qual
o mesmo se refere (seu objeto); dessa maneira, o
interpretante se converte, por sua vez, em um signo
ad infinitum (PEIRCE, 1987, p. 274).

É comum vermos, nas telenovelas, uma pequena parcela


de pessoas negras atuando e, geralmente, suas participações são
compostas por características que as rotulam de tal forma que é como
se tais características fossem oriundas de si, reforçando estigmas
existentes sobre as mesmas.
Trilhas do imaginário | 53

São diversos os arquétipos criados sobre os homens negros e


mulheres negras nas telenovelas brasileiras. O primeiro geralmente é
representado de malandro, que sempre tira proveito das situações; a
segunda é o da mulata “boazuda”, caracterizada por sua sensualidade
e sucesso sexual, este último podendo ser percebido em várias canções
populares. Notadamente, esses estereótipos expressam as reais
intencionalidades de uma sociedade que – mesmo de forma camuflada
– procura diminuir a cultura e autoestima do outro.
Terezinha mostra um pouco de tudo, malandramente, viúva,
“boazuda” acima do peso, se veste com roupas extravagantes,
bijuterias baratas, adora festas e cerveja de graça, e vive em uma
pensão no Méier, bairro periférico da cidade do Rio de Janeiro,
onde acontece de tudo um pouco, vivenciando e experimentando
situações reais de mulheres e famílias negras dos bairros periféricos
de todo o Brasil.
Dessa forma, percebe-se que “Terezinha” é caracterizada
com o estereótipo da boazuda, a qual apresenta característica
“costumeiramente apresentada como sofredora e conformada (...)
sacrifica-se pelo conforto, e, nem sempre reconhecida pelas suas
caridades (conselhos)” (RODRIGUES, 2001, p.320). Esse arquétipo
rotula a mulher negra como passiva, capaz de se martirizar pela
satisfação do outro, como se seus sentimentos fossem inferiores aos
das outras pessoas. No entanto, a personagem foge desses padrões
previamente estabelecidos, pois como já dito anteriormente ela
possui uma elevada autoestima.
No viés semiótico as significações de Terezinha e os símbolos
que ela nos traz são caros tendo em vista todo esse arcabouço das
relações étnico raciais que já nos apresentam as representações
costumeira do negro na sociedade brasileira. A “Teresinha”, portanto,
é signo que funciona como o mediador entre o objeto e o efeito que
é reverberado para os telespectadores, o que nos causa um certo
incômodo porque o senso comum nos permite apenas rir de uma
cena ou de uma representação que inferioriza de uma certa forma
a população negra do Brasil.
54 | Trilhas do imaginário

5 Considerações finais
As emissoras, por meio da televisão e de seus comerciais e
propagandas, estimulam o consumismo, que é uma das características
do capitalismo. Dessa forma, percebe-se que a mídia tem um poder
enorme na construção de identidades, principalmente por meio das
telenovelas, que estão presentes no dia a dia da sociedade brasileira,
transmitindo imagens que formam/reforçam arquétipos, tanto de
forma explícita como sutil, sobre as características das pessoas negras
– em sua maioria física – que os distanciam dos brancos, maiores
vão ser sua inserção em cargos subalternos. Isso serve tanto para
os negros quanto para os índios.
A característica de semelhança entre signos da imagem e o
seu objeto de referência é também uma das causas para a polissemia
do conceito de imagem. Partindo de um modelo triádico de signo, o
signo de imagem se constitui de um significado visual, que remete
a um objeto de referência ausente e evoca no observador um
significado ou ideia do objeto. Já que o princípio da semelhança
possibilita ao observador unir três elementos constitutivos do signo,
não é de estranhar que o conceito de imagem seja reencontrado nas
denominações de cada um dos três constituintes.
A maneira como organizamos o tempo e o espaço nas nossas
mentes e nas nossas vidas depende de como as próprias mídias
tratam o tempo e o espaço. Talvez a realidade virtual seja o lugar
em que o tempo e os espaços estejam reunidos. As mídias também
determinam que tipo de associação mantemos com os vários
conteúdos que elas produzem para nós. Qual a consequências
disso tudo? Somos moldados pela cultura da tecnologia? Estamos
mudando de uma cultura de sensibilidade de leitor, telespectador
para uma cultura de usuários alienados pelos bombardeios de
imagens. Estamos deixando de viver algo coletivo para viver ao
conectivo, e a importância disso é que o conectivo permite que
se integre tanto a psicologia do grupo como a do indivíduo com
respeito mútuo.
Trilhas do imaginário | 55

Interessante destacar como uma leitura mais profunda da


imagem representada pela personagem pode ser mote para muitas
discussões em várias áreas do saber. A leitura semiótica da imagem
de Terezinha nos possibilitou compreender as relações constituídas
entre o signo e as supostas mensagens que são (o quê?) se encontram
enraizadas no senso comum da população brasileira. A ideia de
subalternidade é evidente, as mensagens visuais que se remetem
aos signos e índices são claras se fizermos uma analogia do que eles
representam socialmente, na maioria dos arquétipos da personagem
os traços nos remetem a uma condição inferior de ser humano.

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telenovela brasileira. São Paulo: Editora Senac, 2004.
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56 | Trilhas do imaginário

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TOUTAIN, Lídia Maria. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira
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| 57

Técnica de associação semântica:


uma metodologia possível
para os estudos do imaginário

Leidiane Coelho Jorge17

1 Introdução
A Técnica de Associação Semântica consiste em um modelo
metodológico desenhado para alcançar os objetivos lançados durante
a trajetória de pesquisas que priorizam análises hermenêuticas
observadas sob a ótica da teoria do Imaginário. Sua construção foi
pensada de modo a atender as especificidades da tese de doutorado
intitulada “O imaginário e as recorrências simbólicas narradas pelos
descendentes dos colonizadores europeus sobre os índios Laklãnõ
Xokleng: memória e associação semântica na construção histórica
de José Boiteux – SC”. A referida pesquisa que tinha como objetivo
“compreender o imaginário e as recorrências simbólicas narradas
pelos descendentes dos colonizadores europeus sobre os índios
Laklãnõ Xokleng partindo de um estudo de caso no município de Jose
Boiteux – SC”, demonstrava a necessidade de uma técnica específica
que correspondesse às pretensões da pesquisa, mas que permitisse
ao mesmo tempo, envolvimento com os colaboradores, mas sem
induzir nos relatos e corromper os resultados.
Para tanto, iniciamos uma busca por referenciais bibliográficos
diversos que tratassem de propostas metodológicas de ação que
valorizassem o ‘sentido’ da palavra e as ‘motivações’ imbricadas nela.

17 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da Universidade


do Sul de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano
(www.pesquisa.unisul.br/imaginario) . E-mail: [email protected]
58 | Trilhas do imaginário

Esse levantamento indicou supostas possibilidades de abordagens,


mas nenhuma contemplava integralmente nosso propósito. Nesse
momento, percebemos que poderíamos utilizar dessas técnicas
apenas algumas características ou etapas, e conceber uma técnica
que corroborasse com as nossas pretensões. Assim, convergimos
à percepção refinada da narrativa da técnica de História Oral,
a identificação dos elementos comuns a um grupo, ou seja, as
representações coletivas da técnica de Associação de Palavras e
a proposta de sondagem das iscas semânticas que compõem o
teste AT-9 idealizado por Yves Durand (1988) a partir da teoria das
Estruturas Antropológicas do Imaginário proposta por Gilbert Durand
(2002). Essas características foram organizadas, de modo que foram
empregadas em consonância nessa pesquisa através da Técnica de
Associação Semântica resultante dessa convergência.

2 A técnica de Associação Semântica


Nossa intenção, basicamente, consistiu em explicar
hermeneuticamente quais elementos compõem as experiências
narradas pelos descendentes dos colonizadores no município de José
Boiteux – SC em relação aos índios Xokleng – que vivem na mesma
região, cujas recorrências estabelecem um imaginário social. Partimos
da observação de que as construções narradas, em sua maioria, são
formuladas em decorrência ao que foi vivido e narrado pelos seus
antepassados. Os moradores da cidade apreendem os contextos
relatados, os armazenam em sua memória e apropriam-se de tal
maneira que, ao narrarem (repetirem) os fatos, percebem-se como
se tivessem vivenciado diretamente essa mesma história. Como
resultado, o imaginário social vai sendo atualizado, mas preserva
os elementos descritos por outras gerações. Meihy (1996, p. 15), ao
conceituar a história oral, esclarece como se dá essa apropriação de
sentido do narrado ao dizer que:
A presença do passado no presente imediato das pessoas é a
razão de ser da história oral. Nessa medida, ela não só oferece uma
Trilhas do imaginário | 59

mudança do conceito de história, mas, mais do que isso, garante


sentido social à vida dos depoentes e leitores, que passam a entender
a sequência histórica e se sentem parte do contexto em que vivem.
Essa particularidade, em especial, contribui e reforça a (re)
formulação dos imaginários, o fortalecimento dos mitos e, por fim, a
constituição das representações simbólicas arquetípicas, e evidencia
que a aplicação da técnica de História Oral não seria suficiente
para executarmos em profundidade e consonância com a Teoria
do Imaginário de Durand (2002) a análise dos elementos expressos
nos relatos narrados. Por isso, aproveitamos da História Oral seus
procedimentos de coleta de dados.
Encontramos, nesse percurso, a Técnica de Associação de
Palavras, proveniente das Técnicas de Análise Projetivas, que
buscam, através da exposição de algumas palavras, verificar os
elementos comuns a um grupo, ou seja, suas representações coletivas
motivadas pelo sentido da palavra. Percebemos que esse modelo
poderia enriquecer ainda mais nossa pesquisa e seus resultados ao
permitir a seleção e exposição de palavras fundamentais verificadas
nos referenciais bibliográficos durante a construção desse trabalho
e, por conseguinte, identificar quais efeitos de sentido e memórias
cada palavra suscitava em cada participante da pesquisa. Para
complementar nossa proposição de método de coleta e análise de
dados, buscamos no Teste Arquetípico dos nove elementos -AT-9
proposto por Yves Durand (1988), a partir da Teoria do Imaginário
concebida por Gilbert Durand (2002), a inserção da sondagem
realizada pelos elementos ou, como serão descritos nessa metodologia,
iscas semânticas.
O emprego das iscas semânticas permite a percepção
analítica simultânea dos aspectos qualitativos (semântico),
quantitativos (recorrências) e estruturais (organização de sentido
dos textos culturais), propiciando que os elementos que compõem
a imaginação simbólica e o imaginário social de um grupo sejam
identificados, conforme proposto no objetivo geral desse trabalho.
Tal característica exemplifica a importância de sua inserção nos
60 | Trilhas do imaginário

procedimentos metodológicos da pesquisa, bem como corroborou


com nossa intenção de executar uma leitura mitohermenêutica
embasada no método mitocrítico de análise proposto por Gilbert
Durand (2002).
As iscas semânticas são palavras aleatórias, mas que em
consonância fazem sentido aos participantes de um grupo quando
seu contexto geográfico, histórico, cultural e social é levado em
consideração, ou seja, quando seu universo imaginário culturalmente
determinado é a base para formulação dessas estruturas de sondagem.
A soma das particularidades de cada técnica destacadas até aqui foi
convertida na Técnica de Associação Semântica.
Para esclarecer um pouco melhor a origem da Técnica de
Associação Semântica, apresentamos, na sequência, um pouco mais
detalhados os conceitos das técnicas que foram utilizadas como base
para a formulação da Técnica de Associação Semântica.

3 A história oral: a legitimação do narrado


A técnica de história oral atualmente é empregada em
estudos etno-históricos, etnográficos, sociológicos, antropológicos e
arqueológicos, devido ao fato de permitir uma compreensão mais
significativa sobre um determinado grupo ou tempo. No início,
ela era utilizada principalmente por historiadores, que,quando se
deparavam com a ausência de fontes escritas, recorriam às fontes
orais. Os depoimentos orais eram solicitados para então responder
a questões que outras fontes não tinham conseguido. “Assim, a
história oral ganhava legitimidade como documento complementar”
(RIOS, 2000, p. 10). A legitimidade da história oral é evidenciada
através dos relatos que ilustram o sentimento de pertencimento ao
contexto cultural, histórico e social ao qual pertencem os depoentes:
o privilégio de contar a sua história, a história do seu lugar e de
seu tempo, a sua experiência. Em muitas situações, a história que
não está registrada nos documentos oficiais, especialmente quando
tratamos de dados locais.
Trilhas do imaginário | 61

O uso da técnica de coleta de história oral permite ao


pesquisador visitar os locais específicos e entrevistar os moradores
que, por sua vez, narram fatos que consideram relevantes da sua
comunidade. A partir desses relatos, podemos conhecer a história,
a identidade e entender a singularidade e diversidade cultural de
cada localidade.
Segundo Meihy (1996, p. 13), a

história oral é um recurso moderno usado para


elaboração de documentos, arquivamento e
estudos referentes à experiência social de pessoas
e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo
presente e também reconhecida como história viva.

Toda história narrada está carregada de sentidos e, assim


como o imaginário, é constantemente atualizada. O autor reforça
ainda que, mesmo após a apreensão, análise ou estabelecimento
de um texto das entrevistas, elas não se esgotam. A história oral
enquanto relato é um discurso dinâmico que é atualizado pelos
atores sociais conforme sua inserção no cotidiano, desta forma
carrega tanto traços narrados na ambiência familiar, como
adquiridos nos mais diversos contextos em que o sujeito se insere
durante sua vida.
Cabe ressaltar “que todo relato é uma narrativa histórica no
sentido intencional dos autores” (MEIHY, 1996, p. 31). Mas, mesmo
que o relato não tenha uma completa veracidade, os elementos
matriciais arquetípicos são evidenciados pelas repetidas recorrências
simbólicas expressas pelos símbolos descritos pelos entrevistados
em seus relatos. As recorrências demonstram a estrutura interna
e significativa de toda a obra a que pertence e suas marcas míticas
ou arquetipais (FERREIRA-SANTOS, 2012, p. 76). A reprodução dos
símbolos pelos depoentes sugere uma raiz comum, que manifesta
a identificação, o pertencimento e mobiliza as estruturas sensíveis
semelhantes que insurgem nas narrativas aleatórias coletadas.
Queiroz (1987, p. 3) salienta que:
62 | Trilhas do imaginário

A transmissão tanto diz respeito ao passado mais


longínquo, que pode ser mesmo mitológico, quanto
ao passado muito recente, a experiência do dia-a-dia.
Ela se refere ao legado dos antepassados e também
a comunicação da ocorrência próxima no tempo;
tanto veicula noções adquiridas diretamente pelo
narrador, que pode inclusive ser o agente daquilo
que está relatando, quanto transmite noções
adquiridas por outros meios que não a experiência
direta, e também antigas tradições do grupo ou da
coletividade.

A palavra, o relato oral, é uma das primeiras técnicas que


permitiram a conservação do saber, antecedendo até mesmo o
desenho e a palavra escrita. Conforme elucida Queiroz (1986, p. 3),

da mesma forma que o desenho e a palavra escrita


constituem uma reinterpretação do relato oral,
também o indivíduo intermediário, por mais fiel,
acrescenta sua própria interpretação àquilo que
está narrando.

4 As técnicas de análise projetiva


As técnicas de análise projetiva são técnicas que efetuam
sua análise considerando duas faces da expressão humana: uma
interpretação e uma criação-manipulação do objeto. A essência das
técnicas de análise projetiva consiste em perceber a personalidade
do sujeito, principalmente em relação à sua estrutura psicoafetiva,
a fim de verificar suas representações coletivas e os imaginários
sociais produzidos (LEGROS et al, 2014, p. 165). Legros (2014, p. 165)
acrescenta ainda que:

o indivíduo dispõe de um capital narrativo que


utiliza conforme suas conversações ou reflexões,
modelando assim sua visão de mundo e revelando
sua singularidade individual ou coletiva. (LEGROS,
2014, p. 165)
Trilhas do imaginário | 63

Nosso propósito é verificar quais elementos compõem esse capital


narrativo, de modo que as palavras lançadas remetam à necessidade de
acesso e revisitação às memórias e à própria consciência do indivíduo.

4.1 A técnica das associações de palavras

A técnica das associações de palavras é uma das propostas


apresentadas dentre as técnicas de análise projetiva. Podemos dizer
que a utilização de uma técnica que considerasse as projeções ou
ideias a partir de um tema começou a ser desenhada no final do
século XIX e recebeu o nome de associacionismo. Mas foi apenas
no século XX que passa a ser agregada a teoria à dimensão afetiva
e emocional que as associações suscitavam. Neste mesmo período,
entre 1906 e 1910, Jung utiliza as associações verbais para revelar a
existência dos complexos (LEGROS et al, 2014, p. 165).
Na psicologia clínica, o método de associação verbal de palavras
é centrado sobre a singularidade do paciente e do seu psiquismo,
conforme explica Legros et al (2014, p. 166). Assim, interessa apenas
identificar as associações particulares de um único indivíduo e analisar
seus complexos. Quando o método é desenvolvido na psicologia social, na
sociologia e na antropologia, tem por objetivo desenvolver os elementos
comuns a um grupo, ou seja, intenta verificar suas representações
coletivas. Dessa forma, o emprego da técnica é reestruturado e ao invés
de apresentar várias palavras indutoras a uma só pessoa, sugere a
apresentação de uma só palavra a vários indivíduos. A palavra indutora
corresponde a um referente, à representação social (LEGROS et al,
2014, p. 166). São as recorrências presentes nas falas dos indivíduos
que indicam a formulação de um imaginário social e dão pistas de
quais arquétipos sustentam essa imaginação simbólica.

4.2 As iscas semânticas


As iscas semânticas são palavras ou temas que podem ser
utilizados de modo semelhante às palavras indutoras da técnica de
64 | Trilhas do imaginário

associação de palavras apresentada anteriormente. Elas podem ser


adaptadas a todos os temas devido à sua flexibilidade de elaboração.
As iscas, originalmente, compreendem o Teste Arquetipal dos Nove
Elementos – AT-9, que é um método de avaliação do imaginário
centrado sobre o estudo da personalidade proposto por Yves Durand
(1988) a partir do modelo proposto por Gilbert Durand em ‘As
estruturas antropológicas do imaginário’ (2002). Yves Durand propõe
a utilização de nove elementos simbólicos a partir das estruturas
heróica, mística e sintética descritas por Durand (2002). A partir da
exposição das iscas, os sujeitos envolvidos no teste fazem um desenho,
explicam o seu desenho e respondem algumas perguntas. Todo esse
material é analisado enorteia os resultados. Considerando nossos
objetivos nesse trabalho, utilizaremos apenas a ideia de exposição
das iscas semânticas proposta no AT-9.

4.3 A técnica de Associação Semântica e seus usos como procedimento


Considerando nossa escolha por empregar a Técnica de
Associação Semântica criada especificamente para materializar
o corpus da pesquisa e responder aos objetivos sinalizados nesta,
iniciamos nossa trajetória refletindo que a Técnica de Associação
Semântica estrutura-se sob o viés especulativo e acionador das
memórias dos participantes através da exposição das iscas semânticas.
Dessa forma, consiste em verificar nesses relatos as representações
simbólicas e o imaginário social formulado em decorrência de tais
representações. Amado e Ferreira (2001, p. 16) esclarecem que a
história oral é

um espaço de contato e confluência interdisciplinares;


sociais, em escalas e níveis locais e regionais; com
ênfase nos fenômenos e eventos que permitam,
através da oralidade, oferecer interpretações
qualitativas de processos histórico-sociais (AMADO
E FERREIRA, 2001, p. 16).
Trilhas do imaginário | 65

Para tanto, partiremos dos dados já registrados por pesquisas


arqueológicas, etno-históricas e etnográficas, amparando-nos no
objeto de estudo de cada uma dessas áreas de conhecimento para
abarcarmos a temática proposta neste trabalho em sua totalidade.
Conforme descrevem Schmitz et al (2009, p.187),

A arqueologia estuda o passado sem escrita da


cultura material remanescente; a etno-história
explora os documentos escritos que trazem
informações sobre o passado sub-atual; a etnografia
procura analogias, através de contato com os
descendentes atuais.

O levantamento bibliográfico realizado foi essencial para


um maior entendimento do contexto histórico, social e geográfico
que permeia a construção dos enredos relatados nas entrevistas. O
cumprimento dessa ação permitiu a identificação prévia de alguns
elementos que sinalizam as memórias, a cultura e os processos
de aculturação, dentre outros diversos aspectos que revelam
inferências de convivência direta e indireta entre os índios Xokleng e
os colonizadores, que foram repassados, e que agora são recontados
por seus descendentes, o que apontou a necessidade da formulação
de uma técnica específica de análise e coleta de dados.
As iscas semânticas foram definidas a partir dos referenciais
teóricos estudados durante a construção da pesquisa, e por isso são
inéditas. Para garantir que as inferências projetadas ficassem livres
de intencionalidade dos relatores e não fossem comprometidos os
resultados, o problema de tese e a temática central da pesquisa
não foram revelados aos participantes. Foi realizado apenas o
esclarecimento de que era uma pesquisa, assim como foi exposto o
modo como aconteceria a dinâmica de exposição das iscas semânticas.
Assim, as iscas semânticas (palavras) foram apresentadas a 20
moradores do município de José Boiteux, que descreveram narrativas
ou memórias ativadas a partir da exposição dessas palavras.
66 | Trilhas do imaginário

Durante a trajetória da pesquisa, verificamos a incidência


de palavras que apareciam com frequência nas bibliografias que
tratavam sobre a temática, e muitas delas eram tomadas como linhas
centrais que estruturavam as discussões. Percebendo essa constância
semântica foi que elencamos as sete iscas semânticas que serviram
de eixos norteadores para a coleta de dados dessa pesquisa. Assim,
foram listadas as seguintes palavras:

1. Imigrantes
2. Colonização
3. Índios
4. Herói
5. Terra
6. Disputa/luta
7. Medo

As palavras foram apresentadas a todos os participantes na


ordem em que estão descritas acima, e os colaboradores falavam
tudo o que lembravam e associavam a cada uma delas. Não foi
estipulado um tempo para a resposta, e de modo algum a pesquisadora
interviu nos relatos, evitando comprometer os fatos narrados. É
importante ressaltar que os dados coletados não foram transcritos
integralmente, pois não era essa nossa intenção. Com a aplicação da
Técnica de Associação Semântica, intentamos verificar, relacionar
e transcrever somente as recorrências presentes nos relatos que
evidenciam representações simbólicas que originaram o imaginário
social local e regional e a construção de mitos; e que influenciam
até os dias atuais o comportamento dos moradores de José Boiteux,
Santa Catarina, descendentes dos colonizadores europeus. Para
tanto, procedemos ao longo das análises citando as associações
motivadas pelas iscas semânticas, e transcrevendo os trechos que
exemplificaram as construções imaginárias produzidas na localidade
onde a pesquisa foi desenvolvida.
Trilhas do imaginário | 67

Considerando que nossa investigação aconteceu no município


de José Boiteux- SC e que demarcamos nosso interesse, em especial,
em tratar os dados coletados na região de forma descritiva,
observando suas características singulares, a fim de verificar quais
elementos sugerem a construção de um Imaginário formulado
pelos descendentes dos colonizadores acerca dos índios Xokleng,
podemos situar essa pesquisa como um estudo de caso. Rauen (2015,
p. 559) esclarece que um estudo de caso é “uma análise profunda e
exaustiva de um ou poucos objetos, de modo a permitir o seu amplo
e detalhado conhecimento”. O autor ainda complementa que há
um estudo de caso quando analisamos algo que tem valor em si
mesmo, ou seja, quando estudamos o valor intrínseco de um objeto
a partir de suas características peculiares. Assim, sua unicidade é
que lhe confere valor.

5 Descrição do objeto
Nosso objeto de pesquisa é resultante da aplicação da Técnica
de Associação Semântica - TAS junto aos moradores do município de
José Boiteux, pertencente à mesorregião do Alto Vale do Itajaí, em
Santa Catarina. A visita ao local em estudo aconteceu entre os dias
25 e 28 de dezembro de 2017, quando foi realizado o reconhecimento
mais detalhado das características do município, pois em nossa
primeira visita à região, ainda no ano de 2014, data de início do
projeto de pesquisa, isso não havia sido possível.
O emprego da TAS resultou na coleta de 140 registros orais
gravados em áudio provenientes da exposição das sete iscas semânticas
listadas anteriormente. Reforçamos que a única ação empreendida
pela pesquisadora foi esclarecer aos participantes que se tratava de
uma pesquisa, além de explanar o modo como se daria a aplicação
da Técnica de Associação Semântica.
As iscas semânticas serviram de eixos norteadores e ativadores
das memórias dos relatores e propiciaram à pesquisadora uma
percepção ampliada dos elementos e marcas que compõem o
68 | Trilhas do imaginário

imaginário social e as representações simbólicas dos descendentes


dos colonizadores acerca dos índios Xokleng nessa região.

5.1 Quem são os narradores?


Os relatos em questão são narrados por moradores do local
que são descendentes dos primeiros colonizadores europeus da
região, que atualmente compreende a microrregião do Alto Vale
do Itajaí. Pesquisas arqueológicas realizadas em Santa Catarina
apontam que o local foi cenário tanto de contato como de conflito
entre os colonizadores europeus e os grupos indígenas conhecidos
como Xokleng (SCHMITZ et al, 2009; SANTOS, 1987). Os depoentes que
compõem a amostragem da pesquisa foram escolhidos aleatoriamente,
de acordo com sua disponibilidade, sem grau de parentesco entre
eles e a autora, sendo de diferentes classes sociais, escolaridade e
bairros do município. A amostra da pesquisa é compreendida por
colaboradores com idades variadas que abrangem sete faixas etárias
(20, 30, 40, 50, 60, 70 e 80 anos), com plena capacidade mental. Dentre
estes sujeitos, 11 são do sexo masculino e nove do sexo feminino.
É importante ressaltar que todos os participantes assinaram
um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como um termo
de autorização para a gravação de áudio (ambos os termos encontram-
se nos apêndices), consentindo a utilização das informações relatadas
e a publicação dos dados.
Os colaboradores, em sua maioria, relataram histórias
contadas pelos pais, avós e pela comunidade local. Histórias que
foram forjadas na trajetória de muitas gerações, a partir da vivência
(contato) direta ou indireta dos imigrantes que se instalaram após
a segunda metade do século XIX e parte do século XX na região em
que viviam os índios Xokleng.
O cenário atual do município evidencia aspectos que indicam a
presença da colonização e são expressos na arquitetura, visto que as
casas são feitas com os moldes semelhantes ao período da colonização;
na gastronomia, apresentando os pratos típicos trazidos dos países
Trilhas do imaginário | 69

de origem e as adaptações sofridas na falta de alguns ingredientes;


na cultura, com as vestimentas, danças, sotaques, comportamentos;
enfim, na disseminação de um imaginário de quem mora nessa região
sobre as terras e sobre o modo de ver os índios, que é resultante das
interações entre os indígenas e os primeiros colonos que chegaram
ao local na época do início da colonização.

6 Análise dos relatos orais: a mitocrítica como técnica para


evidenciar o imaginário
A análise é a primazia de uma pesquisa, a essência de sua
abrangência e existência. De acordo com Queiroz (1986, p. 5), esta
fase permitirá a decomposição do texto, a fragmentação de seus
elementos fundamentais, assim como tornará possível separar os
diversos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que
é compatível com a síntese que se busca.
Partindo dessa constatação, esclarecemos que nossa
análise foi realizada com base nas proposições de Gilbert Durand
apresentadas em sua teoria do Imaginário (2002). O autor sugere
a compreensão das imagens através de dois regimes: o Diurno e o
Noturno, e apresenta todos os elementos que constituem a imagem
e que permitem a formulação do Imaginário Social. Durand desenha
um esquema que propicia a compreensão do Imaginário e das
construções imaginais das quais nos constituímos. Dessa forma,
as constatações abordadas por Durand indicam o caminho para a
interpretação das construções imaginais através da evidenciação no
imaginário social local de elementos dispostos nos relatos coletados
que compreendem o corpus dessa pesquisa e sinalizam o mito
diretor contextualizado na região, além das demais interfaces da
teoria do imaginário.
Nesta ótica, destacamos nossa intencionalidade ao cruzar os
contextos narrados com a teoria do imaginário e a técnica mitocrítica,
sugerida também por Durand, para evidenciar os elementos que
embasam as representações simbólicas dos descendentes dos
70 | Trilhas do imaginário

colonizadores acerca dos índios Xokleng. A oralidade é legitimada


enquanto texto cultural que está sempre em constante construção.
É através do oral que se pode apreender com mais clareza
as verdadeiras razões de uma decisão; que se descobre o valor de
malhas tão eficientes quanto as estruturas oficialmente reconhecidas
e visíveis; que se penetra no mundo imaginário e do simbólico, que é
tanto motor e criador da história quanto o universo racional (AMADO
E FERREIRA, 2000, p. 34).
E é essa condição que torna a aplicação da mitocrítica
tão eficaz e significativa para a leitura e mensuração de nosso
objeto. Durand (1996, p. 245) esclarece que o pesquisador deve
basear-se em uma interpretação mais fiel e sincera possível, não
podendo, nesse sentido, negligenciar nenhum pormenor, nenhum
esclarecimento sobre a obra, sobre o autor em sua época e em sua
sociedade. A compreensão do contexto histórico, social e geográfico
de um determinado narrador tem que ser considerada durante
a aplicação da mitocrítica e a realização da análise. Os preceitos
mitocríticos estabelecem que toda narrativa (literária, como é obvio,
mas também, em outras linguagens: musical, cênica, pictorial, etc.)
possui um estreito parentesco com o sermomythicus, o mito. O
mito seria, de algum modo, o modelo matricial de toda a narrativa,
estruturado pelos esquemas e arquétipos fundamentais da psique
do sapiens sapiens, à nossa (DURAND, 1996, p. 246).
A utilização da técnica de história oral autoriza perfeitamente
uma análise pelo viés mitocrítico quando consideramos a presença
da repetição e a redundância marcada pelos elementos descritos
nos relatos. É a redundância que assinala um mito, nas palavras
de Durand (1996, p. 247). A reafirmação instituída pelo constante
narrar impregna o contexto social de um grupo, de um tempo, de
uma geração. Nesse sentido, a narração oral, a contação de história,
permite ao narrador vivenciar, re-viver até mesmo fatos que ele
não viveu através dos elementos constitutivos do Imaginário.
Conforme os escritos de Busatto (2011, p. 107), a narração oral
está relacionada
Trilhas do imaginário | 71

[...] ao narrar enquanto ação que se liga a recordação,


re-cordar (cor, cordis: coração, em latim), trazer
para o coração o que estava na memória, e fazer da
memória um coração, numa relação com a narração
original, no sentido de narração que se ouviu
primeiro, a que primeiro despertou no imaginário.
Quando conto uma história é a história que se narra
através de mim. Eu me torno a história. Eu me torno
a minha própria história. Neste contexto, o contador
de histórias é também um espectador, um leitor. Ao
trazer do coração para o corpo presente as histórias
narradas e suas significações, ativa-se a instância do
recordar a si próprio, da experiência vivida.

A força/potência que a narração confere ao narrador propicia


o fortalecimento e a disseminação do mito. A repetição e a atualização
do mito, que é reforçado pelo ato narrativo, constituem a essência
do mito que “repete e repete-se para impregnar” (DURAND, 1996,
p. 247). Ferreira-Santos (2012) corrobora com esta proposição
descrevendo que esta recorrência simbólica transpõe a narrativa
textual ou imagética, de modo a reiterar seu nível de pertença a um
registro simbólico específico ou estrutura de sensibilidade.
A utilização da mitocrítica é válida pelo fato de que as entrevistas
são compreendidas como um texto cultural, pelo contexto em que
foram coletadas e pelo conteúdo que descrevem. Teixeira (2013, p. 57)
salienta que a mitocrítica pretende “extrair das obras os cenários, os
temas redundantes, os mitemas característicos, a fim de identificar
o mito diretor subjacente”. A autora sugere que essa verificação
subsidia a detectação das estruturas figurativas que configuram
uma obra; favorece assinalar os mitos e suas metamorfoses mais
significativas, as quais caracterizam a obra individual de um autor
ou de uma obra de uma época ou de determinado ambiente psico-
socio-cultural. As sucessivas repetições balizam a formatação do mito
que se configura, segundo Durand (1985, p. 244), “como um relato
(discurso mítico) que dispõe em cena personagens, situações, cenários
geralmente não naturais, segmentáveis em sequências ou reduzidas
72 | Trilhas do imaginário

unidades semânticas” denominadas mitemas. É a disseminação, a


repetição diacrônica dos mitemas que confere sincronicidade ao
discurso mítico.
Durand (1985) concebe a mitocrítica enquanto método de
crítica literária (ou artística) seja em sentido amplo ou restrito, de
crítica do discurso, que se concentra no esforço de compreensão no
relato de caráter mítico inerente à significação de todo e qualquer
relato. Para tanto, o autor sugere que a percepção dos mitemas pode
ser realizada a partir dos seguintes procedimentos: a) Inicialmente,
um levantamento dos “temas”, motivos redundantes, que constituem
as sincronias míticas da obra; b) A seguir podem ser examinadas as
situações e as combinatórias das situações, personagens e cenários; c)
Por fim, podem ser detectadas as diferentes lições do mito (diacronia)
e as correlações de uma tal lição de um tal mito com as de outros mitos
de uma época ou de um espaço cultural bem diferente (DURAND,
1985, p. 253). Estas ações idealizadas por Gilbert Durand permitem
analisar cada imagem, palavra e gesto, bem como suas recorrências
e ressurgências míticas.
A utilização mitocrítica se deu em quatro passos dos cinco que
são sugeridos por Durand (1983) e aplicados por Eunice Simões Lins
Gomes em seu livro ‘A catástrofe e o imaginário dos sobreviventes:
quando a imaginação molda o social’(2011), que serão descritos a
seguir. Assim, os relatos coletados através do emprego da Técnica
de Associação Semântica serão observados pelas lentes da técnica
mitocrítica de análise.

6.1 Mitema: o núcleo do mito


O mitema é a menor unidade de discurso miticamente
significativa e seu conteúdo pode ser um motivo, um tema, um
cenário mítico, um emblema, uma situação dramática (DURAND,
1998, p. 253). O autor ainda infere que os mitemas são os pontos
fortes, repetitivos da narrativa. Representam a possibilidade de
organizar os seus elementos em pacotes (enxames, constelações, etc.)
Trilhas do imaginário | 73

sincrônicos (isto é, possuidores de ressonâncias, de homologias, de


semelhanças semânticas), ritmando obsessivamenteo fio diacrônico
do discurso. O mitema é o núcleo do mito que é verificado através
das redundâncias, repetições e homologias descritas nos contextos
estudados. Para Gomes (2011, p. 107), “este núcleo, que é o centro do
mito, permite a análise” dos textos culturais em suas particularidades.
Com isso, pretendemos verificar em cada história oral os mitemas
fundadores (diretores), a fim de compreender os núcleos que se
destacam pela presença da pregnância simbólica.

6.2 Mitologemas
Os mitologemas correspondem ao tema ou à ideia-força da
narrativa. Eles resultam do empobrecimento do mitema, porque é
uma narrativa resumida e abstrata de uma situação mitológica, o
esqueleto de uma obra (DURAND, 1983, p. 32). Enquanto resumo, o
mitologema permite dimensionar a amplitude do mito e estabelecer-se,
portanto, “como um tema constituído de unidades mais significativas
e menos redundantes que o mitema” (TEIXEIRA, 2013, p. 65).

6.3 Narrativa Canônica


A narrativa canônica é mais complexa, completa e ampla que o
mitologema. Ela sistematiza omito. Conforme descreve Gomes (2011,
p. 109), a narrativa canônica “não se restringe ao resumo da obra
(os textos entre si, daquela época), leva em consideração todas as
lições de um mito e tenta dar o modelo delas”. Ela propicia formular
um padrão para mapear as variantes e suas possíveis derivações.

6.4 Variantes
Com o passar do tempo, o mito sofre alterações em suas
características e “assume outras funções ou acrescenta outros
elementos a sua imagem” (GOMES, 2011, p. 110). A flexibilidade
74 | Trilhas do imaginário

do mito permite sua atualização e ampliação em função do tempo.


As variantes garantem o dinamismo do mito reformulando alguns
e desfazendo outros nesse processo. Gomes (2011) informa que
podemos considerar três possibilidades de variação: variantes de
um tema (temas que recorrem no texto); variantes da situação mítica
(heróica, mística, triangular...) e variantes da derivação”.
Os relatos orais serão analisados, com base na técnica
mitocrítica e suas noções operatórias, a fim de interpretarmos, através
das narrativas, os elementos imaginais em relação aos índios Laklãnõ
Xokleng. Por isso, destacamos o medo como hipótese na formação
de toda a narrativa mítica dentro dos depoimentos.
Apesar da presença dos grupos indígenas ter sido relatada
por vários entrevistados, ser citada nas narrativas orais coletadas
e também ser constatada em pesquisas arqueológicas já realizadas
na região, torna-se perceptível o receio, o medo, bem como,
em algumas situações, o descaso dos moradores pela temática.
Sentimentos estes que foram gerados desde o início do período
da colonização, devido aos conflitos que se sucederam entre os
colonos e os indígenas, os quais foram sendo alimentados pelas
gerações seguintes.

7 As iscas semânticas, as reflexões e os resultados


Entendendo que as entrevistas coletadas através da Técnica
de Associação Semântica constituem-se em uma materialidade
denominada por Durand (1996) como um texto cultural, empregaremos
a mitocrítica e suas noções operatórias para que possamos analisá-
las. Ferreira-Santos e Almeida (2012, p. 113) situam a mitocrítica
como sendo

uma técnica de investigação que parte das obras


literárias, artísticas, dos relatos, histórias de vida,
documentos e narrativas de modo geral para
depreender os mitos diretores dessas produções
(Ferreira-Santos e Almeida 2012, p. 113).
Trilhas do imaginário | 75

Os autores ainda enfatizam que há um relato mítico inerente


à significação de todo relato, reafirmando as proposições de Durand
no que confere à estrutura do mito.
A constelação de símbolos e as recorrências simbólicas
são citadas pelos teóricos como alicerces que sustentam o mito
e fortalecem sua disseminação, como podemos evidenciar nos
relatos coletados, uma vez que, mesmo quem não viveu a situação
narrada diretamente, conta os fatos com riqueza de detalhes. Para
fins de análise, temos 140 relatos resultantes da exposição das sete
iscas semânticas aos 20 colaboradores (20 colaboradores x7 iscas
semânticas=140 relatos), os quais serão observados na íntegra, mas
somente os trechos que contemplem nosso enfoque, ou seja, que
evidenciem elementos e representações imaginárias/simbólicas
acerca dos índios Xokleng que viveram na região, e ilustrem o
imaginário social e local é que serão transcritos e apronfundados
hermeneuticamente. Os relatos serão identificados pelas iniciais
grafadas em letras maiúsculas, seguidas da idade dos relatores
dentro de cada uma das sete categorias: imigrantes, colonização,
índios, herói, terra, disputa/luta e medo.
A apresentação das iscas nos permitiu coletar indícios de um
imaginário formulado na região e verificar, a partir da utilização da
técnica de análise mitocrítica, os mitemas, mitologemas, a narrativa
canônica e as variantes que compõem, nos contextos relatados, as
representações simbólicas decorrentes do imaginário local sobre
os índios Xokleng.
Apesar de as iscas semânticas serem apresentadas sem
questionamentos agregados, afinal de contas esse era nosso objetivo
ao utilizar a Técnica de Associação Semântica, as explicações e
complementações expressas nos discursos revelaram o sucesso na
escolha das iscas, o que foi evidenciado pela descrição de fatos ligados
a iscas que ainda seriam apresentadas ou que eram reforçados à
medida que as iscas eram lançadas. As recorrências apareceram de
modo interdependente e os enredos narrados à complementaridade
do imaginário e suas atualizações.
76 | Trilhas do imaginário

As recorrências revelaram a pregnância de um discurso que,


mesmo atualizado, ainda reforça a imagem estereotipada de um
índio constituída essencialmente pela disseminação do medo entre
os primeiros imigrantes que chegaram ao município e pelo o que
era contextualizado pela mídia na época. É claro que esse medo
justificava-se em parte, pois tanto índios quanto imigrantes não se
conheciam, não falavam a mesma língua e apresentavam costumes
e cotidianos bem diferenciados. Mas foi a disputa pelas terras que
intensificou o medo e o imaginário local. A partir daí, tudo justificava
a ação dos imigrantes e das companhias destinadas a combater os
índios ou a amansá-los. Até mesmo uma dizimação autorizada.
Assim como a disputa pelas terras, a disseminação desse
imaginário construído em outro tempo continua. Poucas mudanças
ocorreram em relação ao imaginário do colonizador sobre o índio
Xokleng. O que foi verificado nos relatos quando os descendentes dos
colonizadores citavam a percepção inicial do colonizador ou de seus
antepassados em relação ao índio é que esse imaginário não sofreu
muitas alterações, ou que este ainda é produzido e representado
a partir das percepções lançadas e herdadas anteriormente.
Compreendemos, dessa forma, a proposição de Silva (2017, 155) ao
descrever que:

Toda descrição é um ponto de vista, a vista de um ponto,


um olhar com uma lente que amplia, reduz, forma e
deforma. Mesmo aquele que se autodescreve, cria,
recria, inventa e transfigura, mas não aleatoriamente.
O imaginário só se dá a ver consistentemente como
desconstrução e reconstrução.

O movimento que impulsiona a narrativa mítica é poder


refletir seu núcleo diretor e descrevê-lo de maneira recorrente,
fazendo com que a ideia central do discurso e seus símbolos sejam
cada vez mais reforçados e significativos nos contextos em que são
narrados, assim, ao recuperar a narrativa, contando-a outra vez, ela
se torna ainda mais autêntica.
Trilhas do imaginário | 77

O imaginário dos descendentes dos colonizadores analisado


nesta pesquisa abarcou sete faixas etárias diferentes e alcançou
as percepções de três gerações (consideramos uma nova geração
a cada 30 anos). Durante o andamento da pesquisa e na busca por
conservar a integridade dos dados, pensamos em utilizar uma técnica
em que o pesquisador não influenciasse os/nos relatos, por isso
idealizamos a Técnica de Associação Semântica, resultante da junção
de características de três métodos diferentes que foram convergidos
em um único modelo.
A utilização das iscas semânticas que, por sua vez, originaram-
se dos exaustivos estudos bibliográficos, serviu de estratégia para
que as memórias fossem acessadas e o imaginário viesse à tona.
Cada palavra lançada a cada colaborador foi recebida com uma
expressão diferente. E, depois de alguns segundos, assim como água
em vertentes naturais, o imaginário começava a brotar. Questionamo-
nos: Conseguimos verificar o imaginário e as recorrências simbólicas
dos descendentes dos colonizadores sobre os índios Xokleng no
município de Jose Boiteux? Sim, conseguimos. E, além disso, foi
possível também sentir e vivenciar in loco como esse imaginário foi
construído através da experiência no local, com as pessoas e com
os relatos narrados.
Podemos afirmar que os entrevistados, em sua maioria, narram
histórias contadas pelos pais, avós e pela comunidade local. Histórias
que foram construídas na trajetória de muitas gerações e nesse curso
fortaleceram cada vez mais a constituição do estereótipo acerca do
índio Xokleng que viveu na região.
Apesar de alguns entrevistados não descreverem relatos
extensos para cada uma das iscas semânticas apresentadas, os dados
coletados evidenciaram a presença de muitas memórias relacionadas
ao período da colonização no município. A pregnância é evidenciada
novamente nos relatos dos entrevistados quando estes falavam dos
grupos indígenas fazendo as afirmações com sentimento de medo
e temor, justificando essa sensação pelo fato de que os pais ou avós
relatavam histórias em que o índio aparecia como ameaça. A faixa
78 | Trilhas do imaginário

etária dos colaboradores também foi um fator que contribuiu para


a exposição de situações mais detalhadas que contribuíram para
enriquecer as análises.
Os arquétipos que se sobressaíram nas narrativas foram o
do herói relacionado ao colonizador e ao pacificador; do inocente
relacionado à compreensão do índio como não civilizado, e por
isso agia da forma com agia; o paternal e matriarcal direcionado
à importância dos familiares para a construção da história do
município. Esses arquétipos embasaram as representações
simbólicas dos moradores do município, e são narrados pelos
colaboradores de faixas etárias, bairros e ambiências culturais
diferenciadas, mas que se originam de núcleos singulares que
se convergem e se constituem nas narrativas que descrevem o
imaginário local.
Durand (2002, p. 43) salienta que “os símbolos que compõem
as narrativas constelam porque são desenvolvidos de um mesmo
tema arquetipal, porque são variações sobre um arquétipo”. Desse
modo, são esses mitos diretores ou núcleos organizadores que
servem de base para a formatação das representações simbólicas
e do imaginário que permeia o município de José Boiteux desde o
início de sua colonização, perpetuando-se até os dias atuais.

8 Considerações finais
Durante o andamento da pesquisa e na busca por conservar
a integridade dos dados, pensamos em utilizar uma técnica em que
o pesquisador não influenciasse os/nos relatos, por isso idealizamos
a Técnica de Associação Semântica, resultante da junção de
características de três métodos diferentes que foram convergidos
em um único modelo.
A utilização das iscas semânticas que, por sua vez, originaram-
se dos exaustivos estudos bibliográficos, serviu de estratégia para
que as memórias fossem acessadas e o imaginário viesse à tona. A
aplicação da Técnica de Associação Semântica torna o pesquisador
Trilhas do imaginário | 79

um mediador de uma construção coletiva resultante da ação de


diversos atores sociais em um dado tempo e espaço.
A utilização da técnica permitiu visualizar a força do imaginário
e sua atemporalidade evidenciando assim que essas construções
coletivas provenientes de um Imaginário Social local sejam um
processo em contínua construção que parte de elementos comuns
– matrizes arquetipais – que orientam por sua vez, as construções
imaginais e/ou o Imaginário Social das sociedades.

Referências
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história oral. 4 ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001.
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Fac. Educ., 11 (1/2): 243-273, 1985.
DURAND, Gilbert. Campos do Imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.
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DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário:
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Imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012.
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sobreviventes: quando a imaginação molda o social. 2. ed. João Pessoa:
Editora UFPB, 2011.
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2007.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo:
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80 | Trilhas do imaginário

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Relatos orais: do indizível ao dizível.


Ciência e Cultura, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 272-286, mar., 1987.
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da pesquisa científica desde a concepção até a produção e apresentação.
Palhoça: Ed. Unisul, 2015.
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imaginário? A hipótese do excedente de significação. Porto Alegre:
Sulina, 2017.
TEIXEIRA, Maria Cecília Sanchez. Gilbert Durand: imaginário e
educação. 2. ed. Niterói: Intertexto, 2013.
| 81

O retorno das Deusas:


hermenêutica simbólica no imaginário
do Instagram Mulheres de Raízes

Jade Vilar de Azevedo18


Eunice Simões Lins19

1 Introdução
O imaginário acerca do feminino é composto por séculos de
processos civilizatórios que criaram redes simbólicas e discursivas a
respeito das mulheres de acordo com as nuances culturais, econômicas
e religiosas vigentes.
Nos primórdios da civilização a figura do feminino aparece
entrelaçada a figura da Terra (Gaia) fonte de fecundidade que gera
e alimenta todos os homens. Com o descobrimento das técnicas
agrícolas que se tornaram a base da estrutura social e através do
viés místico que sempre acompanhou a história da civilização,
os homens primitivos associaram a fecundidade da terra, com
a fecundidade provida no ventre da mulher, concedendo a elas
um status de destaque social por gerarem o essencial para a
sobrevivência da espécie.

Neste complexo simbólico, tudo que toca à vida e,


portanto, à riqueza, diz respeito à mulher. Fonte da
fertilidade ela é também a curadora que conhece

18 Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestranda


em Comunicação Social no Programa de Pós-Graduação em Comunicação pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: [email protected]
19 Pós-Doutora. Professora no Programa de Pós Graduação em Comunicação na
Universidade Federal da Paraíba. E-mail. [email protected].
82 | Trilhas do imaginário

as ervas e a protetora que guarda o sono dos


mortos até que estejam prontos para retornarem
(OLIVEIRA, 2005, p. 4).

Rosalira Oliveira traz a discussão acerca do uso do termo


sociedade matrifocal ou matrística, ao invés da designação
de sociedade matriarcal para designar a ordem social das
sociedades primitivas, a partir do período Neolítico (cerca de
8.000 a.C. até 5.000 a.C.).
O conceito de matriarcado traz a ideia da sobreposição
das mulheres em relação ao poder dos homens e segundo a
autora, não há uma definição entre os teóricos a respeito da
real situação sociopolítica exercida pelas mulheres naquelas
sociedades do continente Europeu. Mas é consenso da maioria
dos estudiosos a ideia de que as mulheres viviam em harmonia
com o masculino, sem uma relação de dominação entre os sexos
e por isso o termo matrifocal ou matricial foram adotados como
mais ideais para designar o período (2005, p. 4-5).

É este o modelo que emerge de trabalhos como os


realizados por Marija Gimbutas, sobre as divindades
da “velha Europa” e por James Meelart nas ruínas da
cidade de Çatal Hüyuk na atual Turquia, entre outros.
Estes autores têm sugerido que as sociedades do
período Neolítico eram realmente culturas pacíficas
e cooperativas, nas quais as mulheres ocupavam
posições sociais importantes como sacerdotisas,
artesãs ou chefes de clã matrilineares, e onde não
se encontram registros de grandes diferenciações
de status baseadas no sexo. Enfim, sociedades
matrifocais, nas quais o pensamento e as práticas
espirituais giravam em torno de uma Deusa-Mãe
e onde a filiação era definida através da linhagem
materna (OLIVEIRA, 2005, p. 5).

Analisando o imaginário das sociedades matrifocais, utilizando


a metodologia da hermenêutica simbólica proposta por Durand
Trilhas do imaginário | 83

(2012) que vai esquematizar em regimes, simbolizações semelhantes


através de “protocolos normativos das representações imaginárias”
(DURAND, 2012, p.63), observa-se nesse período uma simbolização
exaltada da imagem feminina.
Havia uma valorização sagrada das características exclusivas
ao sexo feminino, como a gestação. A simbolização da mulher
ancorava-se no Regime Noturno do trajeto antropológico proposto por
Durand (2012), que agrupa simbolizações de imagens de eufemismo,
harmonia e espiritualidade.

O antídoto do tempo já não será procurado no


sobre-humano na transcendência e da pureza
das essências, mas na segura e quente intimidade
da substância ou nas constantes rítmicas que
escondem fenômenos e acidentes. Ao regime
heróico da antítese vai suceder o regime pleno do
eufemismo. Não só a noite sucede ao dia, como
também, e sobretudo, às trevas nefastas (DURAND,
2012, p. 194).

No Regime Noturno as mulheres vão ser representadas através


das simbolizações do Mater, que vai trazer as figuras das grandes
Mães, como a Mãe terra e a Mãe água. O homem primitivo como já
mencionado, tinha uma relação intrínseca e sagrada com a natureza,
imputando a ela a divindade máxima, e foram as características do
feminino que se associaram as da natureza.
As Deusas – mães (terra e água), que proviam seus filhos do
alimento físico e espiritual eram cultuadas no simbólico do sagrado e
as mulheres passaram por um processo de simbolização semelhante
por trazerem a fecundidade como característica inerente.
As mulheres da Europa primitiva, eram uma ponte entre o
social e o divino, seus ventres eram sagrados e seus fluidos corporais
como o sangue menstrual e o leite materno, eram ritualizados em
prol do alcance de benefícios para a comunidade. As características
maternas é que preenchiam o desejo do divino dos homens primitivos
em suas adversidades.
84 | Trilhas do imaginário

Todavia, apesar desses compromissos e matizes,


devemos sublinhar desde já o notável isomorfismo
dos símbolos que estudaremos. Isomorfismo que
Dumézíl: destaca, por exemplo, nos Vedas e nos
textos masdeístas e que liga a idéia de riquezas, a
noção de plural a figuras femininas da fecundidade,
da profundidade aquática ou telúrica. É o que
acontece com os Açvinos ligados a Púshan, deus da
vida, “dador de riquezas”, “massa divina”, que se
concentram na figura feminina de Sarasvati, deusa
das águas mães, dadora de viela e de posteridade,
portadora do alimento, do leite, do grão e do mel,
abrigo à prova de tudo, inviolável refúgio (DURAND,
2012, p. 200).

Foi a partir de 1300 a.C com o processo de estabelecimento


de uma religião de um Deus único judaico-cristão, representado
através da forma masculina, que a simbologia das Deusas
passou a ser silenciada e ressignificada. Através de um quadro
mitológico cristão perpetuado no tempo através das escrituras
da Bíblia, os modelos das Deusas pagãs foram sendo substituídas
pelos modelos cristões de mulher.
Lilith veio como o mito da primeira mulher de Adão, sua
descrição é observada na Torah assírio-babilônica e hebraica
e em alguns outros textos apócrifos. Ela foi criada do mesmo
material que Adão e trazia consigo um forte impulso sexual e
senso de igualdade perante o masculino, recusando-se então, a
ser subserviente ao companheiro, o que ocasionou o seu exílio
e sua transformação em demônio. Eva veio em substituição
a Lilith, criada a partir de Adão feita foi feita para atender a
solidão dele, e traz a dor e o pecado ao mundo ao desobedecer
às ordens do Deus único, influenciando Adão a também pecar.

O exemplo de uma instigadora inclinada para o


mal é o que melhor expressa os preconceitos que
predominaram em relação à função perturbadora
das mulheres, eternas responsáveis pelo pecado
Trilhas do imaginário | 85

original que levou os homens a perderem a sua


pureza, a se envergonharem do próprio corpo e a
atentar contra os ditames divinos ao aspirarem à
imortalidade (ROBLES, 2006, p. 38).

Através do quadro mitológico de Lilith e Eva observa-se uma


mudança na simbolização do feminino, que sai do Regime Noturno e
vai para o Regime Diurno, repleto de dualidade e conflitos, trazendo
os símbolos nictomórficos e catamórficos para a simbolização da
mulher. Os símbolos nictomórficos estão ligados às trevas, morte
e terror, à água estagnada e sombria, que vai se conectar com a
simbolização obscura dos fluídos femininos.

Os símbolos nictomórficos são, portanto, animados


em profundidade pelo esquema heraclitiano da
água que corre ou de cuja profundidade, pelo seu
negrume, nos escapa, e pelo reflexo que redobra
a imagem como a sombra redobra o corpo.
Esta água negra é sempre, no fim das contas,
o sangue, o mistério do sangue que corre nas
veias ou se escapa com a vida pela ferida, cujo
aspecto menstrual vem ainda sobre determinar
a valorização temporal. O sangue é o temível
porque é a senhora da vida e da morte e porque
na sua feminilidade é o primeiro relógio humano,
o primeiro sinal humano correlativo do drama
lunar (DURAND, 2012, p. 111).

Já os símbolos catamórficos são ligadas às simbolizações


das quedas: do tempo, dos castigos, da idade... e simbolizados no
Mito de Eva pela queda da moralidade da humanidade através da
desobediência da mulher à figura masculina suprema. “Chega-se
assim a uma feminização do pecado original que vem convergir
com a misoginia que a constelação das águas escuras e do sangue
deixava transparecer” (DURAND, 2012, p. 115).
Observa-se assim o desenrolar de um processo de transmutação
da simbolização exaltada da mulher sagrada e fecunda para a mulher
86 | Trilhas do imaginário

nefasta. O ser mulher sofre uma queda social para a simbolização


nictomorfa do seu sangue impuro e sujo, por exemplo.

fortemente ancorada no vínculo mágico que une


agricultura e procriação, na qual os ritos destinados a
assegurar a fecundidade do solo são frequentemente
realizados pelas mulheres (OLIVEIRA, 2005, p. 4)

O sangue que era utilizado em ritos de vida e abundância,


nos próximos séculos, em que a religião cristã vai se perpetuar pelo
mundo, vai ser restrito ao ritual da noite de núpcias, onde o sangue
feminino era derramado pelos homens através do ato sexual para
simbolizar a pureza e o controle sexual da mulher.
Sangue este que, se não fosse derramado unicamente pelo
homem escolhido pelo seu pai para a ter como esposa, tornava-a
indigna socialmente.

Esta vigilância servia para que, ao vir a moça a casar-


se, o seu futuro marido, pudesse ter a presunção
de que a mulher pela qual pagara um dote fosse
“honesta” com menos possibilidades de ser-lhe
sexualmente infiel (CAMPOS, 2010, p. 66).

Essa mudança de simbolização do sangue feminino de


sagrado e utilizado em ritos de fecundidade, para ser prova do
controle sexual da mulher pelo homem, explicita a diferença do
novo papel social performado pela mulher, e consequentemente do
novo imaginário que se criou acerca do feminino. O cristianismo
ressignificou as características femininas das divindades para
valorizar a soberania do masculino através de seu Deus. O sagrado
feminino começa a ruir, cedendo espaço para uma sociedade
centralizada no homem.
Anete Roese (2015, p. 180) ressalta que no primeiro Testamento
da Bíblia são inúmeras as passagens em que se condena o politeísmo,
especialmente no discurso de Jeremias (Jeremias 44) que detalha
a ira do Deus que deveria ser único, contra a adoração de outros
Trilhas do imaginário | 87

deuses, inclusive através da queima de incensos que era feita em


homenagem as Deusas.
Jeremias atrela todos os sofrimentos pelos quais o povo passava
a sua falta de fidelidade ao culto do Deus soberano, abominando
os rituais pagãos. A sociedade ainda não era monoteísta, e esse
processo se dará de forma violenta através das perseguições aos
cultos diferentes.

Esse texto de Jeremias revela nas suas linhas e


entrelinhas a amplitude geográfica do culto à Deusa,
a quantidade de adeptos e os poderes divinos dela.
No texto fica claro o conflito religioso. Verifica-se
que também os homens e as crianças participam
desse culto à Rainha dos Céus. As pesquisas
apontam uma semelhança no título Rainha dos
Céus – compartilhado por Inana/Ishtar e Asherá.
Achados arqueológicos verificaram a presença de
elementos importantes relacionados a divindades
com estas características em diferentes regiões. No
Egito – num templo dedicado a uma Rainha dos
Céus, formas de bolos com o símbolo da Deusa –
foram encontrados, na Síria e na Mesopotâmia, um
selo fenício mostra um ritual sagrado de mulheres
assando bolos. (ROESE, 2015, p. 180)

Em paralelo a proliferação da simbolização obscura das


Deusas as mulheres que as adoravam e praticavam rituais em sua
homenagem, passam a ser perseguidas dentro do mesmo processo de
apagamento e subordinação ao masculino. Inicia-se a caça às bruxas,
designação que será postulada para as mulheres que seguiam os
cultos pagãos e que ainda praticavam rituais usando os elementos
da natureza.
Lucía Tosi (1997, p. 374) explicita que as mulheres mais
acusadas de bruxaria e possessão demoníaca, eram as que não
pertenciam a nenhum pai ou marido, ou seja, eram responsáveis por
si mesmas e que viviam na zona rural, tendo ainda muito contato com
a cultura da Deusa representada pela força dos elementos naturais.
88 | Trilhas do imaginário

A autora aponta que até o século XV ainda se era tolerado


socialmente as mulheres independentes que trabalhavam na
feiras populares para seu próprio sustento, mas que a partir da
metade do século XV quando o Capitalismo, a Reforma Protestante
e a Contra-reforma Católica tomaram forma, as mulheres sem um
figura masculina que as representasse passaram a ser consideradas
suspeitas (1997, p. 373-374).

[...] o estereótipo da bruxa foi construído, a partir do


século XVI, por teólogos e magistrados. A bruxaria
foi considerada uma prática demoníaca e a mulher
o principal agente do demônio (TOSI, 1997, p. 374).

A mulher que não se encaixava nas regras sociais da supremacia


masculina e do puritanismo religioso, passou a ser simbolizada pelo
caráter das trevas nictomorfas através da figura do demônio.
As mulheres saem da esfera do sagrado feminino da semelhança
com as Deusas, para o feminino controlado, recluso ao ambiente do
lar e fadado a um destino fatídico de pertencer e ser governada pelo
masculino. Elas passam por um processo de domesticação de seu ser,
representado no mitológico cristão por Maria, mãe de Deus. Maria
foi posta como “[...] sempre imóvel, alheia à agitação, à vitalidade,
ao descomedimento e aos namoros legendários que nutriram a
mitologia e a tragédia, representava a graça por excelência, o rosto
da sabedoria [...]” (ROBLES, 2006, p. 334).
Maria veio como o modelo padrão de mulher a ser adotado
pelas demais. Simone de Beauvoir (1970, p. 212) postula que a Igreja
é conivente com a sociedade patriarcal e que, portanto, reproduz
padrões que incitam a subordinação da mulher ao homem através
da adoção de modelos ideais de mulheres dóceis e santas.
Com a troca do quadro mitológico preponderante no imaginário
do pagão para o cristão, a mulher sai da simbolização do Regime
Noturno do imaginário. Durand (2012, p. 202) postula que a forma de
tratar o corpo é uma grande diferença entre os regimes. No Regime
Noturno “como bem notou Séchehaye”, o interesse e o afeto pelo
Trilhas do imaginário | 89

corpo marcam, para o esquizofrênico, “uma etapa positiva na via da


cura. É quando os sentimentos de culpabilidade carnal são afastados
[...]” (DURAND, 2012, p. 202).
No Regime Diurno o corpo é o meio do pecado, o ventre
que era incubador de vida, “este ventre polivalente pode, decerto,
englobar valores negativos, como já notamos, e vir simbolizar o
abismo da queda, o microcosmo do pecado” (DURAND, 2012, p. 202).
A mulher agora precisa torna-se um ser subordinado, doméstico e
dessexualizado para ser valorizada socialmente.
As Deusas passaram a ser ressignificadas como monstros
malignos, detentoras do caos e das dores do mundo, trazendo
um outro aspecto da simbolização do Regime Diurno que são os
símbolos teriomórficos, os quais junto aos símbolos nictomórficos
e catamórficos, “consagram às Faces do Tempo as implicações
libidinosas e sexuais contidas na constelação que agrupa, ao lado do
simbolismo teriomórficos símbolos da queda e do pecado” (DURAND,
2012, p. 73).
Os símbolos teriomórficos trazem a animalidade, a agitação,
e a boca aberta cheia de dentes pronta para devorar a todos. “O
animal é assim, de fato, o que agita, o que foge e que não podemos
apanhar, mas é também o que devora, o que rói” (DURAND, 2012,
p. 90). As figuras femininas são agora associadas a bestas com aspectos
animalescos, figuras que devem ser temidas e controladas para que
as trevas não se instalem no mundo.

Na China antiga, a deusa criadora se tornou a Grande


Mãe do Ocidente, uma criatura apavorante com um
rosto humano, dentes de tigre e rabo de leopardo,
que moraria numa caverna da montanha e que
governaria as pragas e a pestilência. Na mitologia
assírio babilônica, a deusa bruxa Tiamat, que teria
dado à luz o mundo, era também a imagem do caos
cego e primitivo contra a qual lutavam os deuses
inteligentes e organizados (masculinos). Enquanto
na mitologia hindu, Kali, outra mãe divina bruxa,
possuía uma outra face como a terrível mulher
90 | Trilhas do imaginário

aranha e o estômago do abismo que a tudo devorava.


(CAMPOS, 2010, p. 67).

Andrea Campos (2010) ressalta que além da contribuição do


cristianismo, o capitalismo e a noção de propriedade privada também
teve forte influência na opressão das mulheres e no desenvolvimento
de uma sociedade patriarcal. Segundo a autora quando a sociedade
passou a ter bens privados, o homem criou a necessidade de controlar
a sexualidade da mulher para garantir a paternidade legítima de
seus filhos (2010, p. 65).
Em nome desta defesa patrimonial foi criada
uma moral social e religiosa [...] que classifica as
mulheres que põem em risco a propriedade privada
e a instituição familiar que é a sua maior guardiã,
de bruxas e vadias. (CAMPOS, 2010, p. 70).

A difusão do cristianismo e do capitalismo arrancou as Deusas


do paraíso, amordaçou, perseguiu e castrou as mulheres de seus
impulsos sexuais e vivências para além do lar.
Um novo imaginário foi criado em torno do feminino,
transformando Deusas em monstros, liberdade em opressão, e
sagrado em inferioridade. Porém, um mito não desaparece, ele
apenas adormece e no século XXI as Deusas acordam sob a égide da
comunicação digital e das redes sociais.

2 O despertar do imaginário do sagrado feminino no Instagram


Mulheres de Raízes
Clarissa Pinkola Estés, é uma psicanalista junguiana e poeta
americana com descendência mexicana, que escreveu em 1999
o livro “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem”. Nesse livro a pscinalista faz uma
ode mitológica ao retorno do feminino para sua áurea sagrada do
período das sociedades matriciais, ao despertar em si o que ela vai
chamar de arquétipo da mulher selvagem.
Trilhas do imaginário | 91

Segundo Estés, o isolamento da mulher da sua verdadeira


essência sagrada e selvagem tornou-a fraca e ignorante em relação
ao seu poder, quando a sociedade patriarcalista ressignificou seus
dons e diferenciais, como a capacidade única de gerar uma vida,
com aspectos negativistas.

Mesmo que tenhamos tentado impedir uma


reincidência do roubo praticamente nos costurando
à nossa pele da alma, são pouquíssimas as mulheres
que atingem a maioridade com mais do que alguns
tufos da pele original intactos. Deixamos de lado
nossas peles quando dançamos. Aprendemos o
mundo, mas perdemos nossa pele. Descobrimos que,
sem nossas peles, começamos lentamente a definhar.
Como a maioria das mulheres foi educada de modo
a suportar esse tipo de estado com estoicismo, como
suas mães suportaram antes delas, ninguém percebe
que algo esteja definhando, até que um dia... (ESTES,
2014, p. 307).

Para Estés a sociedade vai moldando o feminino para que elas


não reconheçam seu verdadeiro instinto, por isso todas precisam se
reconectar com sua essência, com seu ventre fecundo, com seus ciclos
menstruais que se misturam aos ciclos lunares enfim, com o poder
feminino que foi oprimido durante séculos de dominação masculina.
Com seu livro, Estés gera uma onda de propulsão do despertar
de um mito que estava adormecido: a Deusa Mãe. Um retorno a
simbolização exaltada do feminino, um imaginário que começa a
traçar o caminho antropológico inverso, que traz a representação
da mulher de volta para o Regime Noturno, para o mater como
eixo central.

Elas estão trazendo à tona o velho mito da Deusa


Mãe. Campbell (2014, p. 174), afirma que o mito
se renova a cada geração e em cada hemisfério.
Dele renascem histórias, superstições e renovam-
se vidas. A grande Deusa Mãe é o princípio
92 | Trilhas do imaginário

regenerador da atualidade, e muitas mulheres


o revivem quando tentam resgatar a natureza
selvagem perdida em sua psique, pois “quando
você tem uma Deusa como criadora, o próprio
corpo dela é o universo, ela se identifica com o
universo” e você alcança a dádiva oferecida por
ela (ARAÚJO, 2017, p. 6).

Tendo o livro como norteador, surge no Instagram o perfil


“Mulheres de Raízes”. O Instagram é uma rede social mundial de
compartilhamento de fotos e vídeos, que em 2017 alcançou a marca
de 1 bilhão de usuários ativos por mês20. A primeira postagem do
perfil Mulheres de Raízes data de 22 de janeiro de 2017, e atualmente
já conta com 441 postagens e 21,7 mil seguidores que acompanham
o conteúdo postado por ele21.
A indicação de leitura do livro de Estés é a sexta postagem
do perfil, publicada apenas três dias após o lançamento, e em todo
o conteúdo abordado pelo Mulheres de Raízes as lendas, mitos e
arquétipos femininos trabalhados no livro são citados e comentados.
Utilizando a hermenêutica simbólica, já é possível notar uma
ressignificação de simbolização no próprio nome do livro de Estés.
No regime diurno o lobo é um símbolo teriomórfico,

[...] um símbolo infantil de medo pânico, de ameaça,


de punição. O ‘Grande Lobo Mau’ vem substituir o
inquietante Ysengrin. um pensamento mais evoluído,
o lobo é assimilado aos deuses da morte e aos gênios
infernais (DURAND, 2012, p. 86).

Ao se posicionar como mulheres que correm com esses lobos,


há uma reapropriação desse poder feminino que foi posto como
maligno e destruidor, ressignificando-o para um poder positivo,
selvagem e indomável.

20 Disponível em: https://www.tecmundo.com.br/redes-sociais/131503-instagram-


tem-1-bilhao-usuarios-ativos-mes.htm
21 Dados verificados em 23 de agosto de 2018.
Trilhas do imaginário | 93

Figura 1 – Postagem do Instagram Mulheres de Raízes,


datada de 5 de fevereiro de 2018.

Fonte: Instagram Mulheres de Raízes

A ressignificação de pontos importantes do feminino que


foram oprimidos junto com as mulheres pelo patriarcalismo, é
um objetivo recorrente no perfil. Aspectos como a menstruação
e questões ligadas à sexualidade e ao aparelho ginecológico são
sempre abordados.
Na significação do regime diurno o sangue menstrual
passou a ser motivo de vergonha e falta de higiene, as mulheres
passaram a esconder seus ciclos e até a palavra menstruar tornou-se
impronunciável, sendo substituída na linguagem popular por “estar
naqueles dias”.
É neste isomorfismo que se deve considerar o símbolo
que os psicanalistas ligam a uma exasperação do
Édipo, a imagem da “Mãe Terrível”, ogra que o
interdito sexual vem fortificar. Porque a misoginia
da imaginação introduz-se na representação através
desta assimilação ao tempo e à morte lunar –” das
menstruações e dos perigos da sexualidade (DURAND,
2012, p. 104).
94 | Trilhas do imaginário

Figura 2 – Postagem do Instagram Mulheres de Raízes, datada de 10 de abril de 2017.

Fonte: Instagram Mulheres de Raízes

Nessa postagem o perfil instiga as mulheres a retomarem


a apropriação acerca do entendimento do seu ciclo menstrual,
comparando-o com as fases da lua. “Não só a etimologia como também
os sistemas métricos arcaicos provam que a lua é o arquétipo da
menstruação” (DURAND, 2012, p. 285).
Na simbolização do regime diurno inserida no contexto da
sociedade patriarcalista,
o que constitui a irremediável feminilidade da água
é que a liquidez é o próprio elemento dos fluxos
menstruais. Pode-se dizer arquétipo do elemento
aquático e nefasto é o sangue menstrual (DURAND,
2012, p. 101).

Na própria Bíblia há exemplos da simbolização obscura do sangue


menstrual pela religiosidade, “o Levítico ensina-nos que o sangue do
Trilhas do imaginário | 95

fluxo feminino é impuro e prescreve minuciosamente a conduta que


se deve seguir durante o período menstrual” (DURAND, 2012, p. 108).
No retorno ao sagrado feminino da simbolização do Regime
Noturno, o ciclo menstrual é posto como uma ligação cósmica da mulher
com o universo, enaltecendo que ela tem em si um mesmo ciclo que
se observa na natureza, e que da mesma forma que a lua influencia
as marés, os ciclos ginecológicos influenciam a psique da mulher.
O ritual de “plantar a sua lua” voltou a ganhar popularidade na
modernidade, onde as mulheres depositam sua menstruação na terra
fecunda para restabelecer a conexão com a Deusa-mãe Terra (Gaia).
Há o retorno da simbolização exaltada da mulher e suas características
como seu sangue, assemelhando-os aos processos da natureza.

Figura 3 – Postagem do Instagram Mulheres de Raízes, datada de 20 de fevereiro de 2017

Fonte: Instagram Mulheres de Raízes

Nessa outra postagem, o aparelho ginecológico doente e


causador de problemas é ressignificado como fonte de mulheres
96 | Trilhas do imaginário

criativas, com a cabeça trabalhando no fervor de diversas ideias,


tanto quanto seus ovários trabalham a mais do que o necessário.
No retorno ao sagrado feminino existe um apelo de reconexão
do corpo da mulher, que durante séculos foi renegado e oprimido,
com a psique da mesma. A intenção é fazer a mulher olhar para a
própria pele e seus órgãos exclusivos, como parte de um grande
conjunto que compõe a harmonia e o poder feminino. “[...] o ventre,
quer seja digestivo ou sexual, e pela meditação deles inaugura-se
toda uma fenomenologia eufemizante das cavidades” (DURAND,
2012, p. 202).
A ideia é fazer com que a mulher passe a olhar novamente
para si mesma, para sua biologia e para seu corpo sob um viés
positivo, em detrimento da negatividade que foi depositada sob as
características femininas nas simbolizações diurnas.

Figura 4 – Postagem do Instagram Mulheres de Raízes, datada de 3 de mai o de 2018.

Fonte: Instagram Mulheres de Raízes


Trilhas do imaginário | 97

Como já mencionado no artigo, uma das características


do Regime Diurno é a simbolização do corpo como fonte de
pecado. Consequentemente, ao serem simbolizadas dentro dessa
perspectiva, o prazer feminino foi renegado. O impulso sexual é
uma fonte de força e poder, por isso a dessexualização da mulher
imputando culpa e pecado ao seu prazer, fez parte do processo
de opressão das mesmas.

No que tange ao prazer, este permaneceria como


um desconhecido sob o véu negro da culpa, já que
sentir prazer, predisporia a mulher a desejar, e ser
desejante, e não apenas desejada, possibilitaria
que escapasse ao poder dos homens. Portanto, à
mulher casada era vedado o prazer sexual, ficando
este a cargo das meretrizes, que apesar de poderem
externar o prazer, também não passavam de meros
objetos do prazer masculinos, não sendo, também,
agentes desejantes, já que eram escolhidas e não o
contrário (CAMPOS, 2017, p. 66).

No Regime Diurno, “a queda é, assim, simbolizada pela carne,


a carne que se come, ou a carne sexual, unificadas uma e outra
pelo grande tabu do sangue” (DURAND, 2012, p. 118). O símbolo
teriomórfico da carne sexual que sangra, vai ser representado pela
mulher, por ela também sangrar.
Durand (2012, p. 115) explicita que em diversas culturas
acreditava-se que as mulheres sangravam na menstruação para
pagarem o erro de terem cometido o pecado original através de Eva.
Para as mulheres, ficava então vedado o prazer sexual, tornando
seus ciclos naturais em processos de vergonha e expiação.
Ao retornar para o Regime Noturno, o corpo passa a ser
simbolizado exaltadamente como fonte de prazer. “A libido ligar-
se-á às coisas agradáveis do tempo, invertendo como que do interior
o regime afetivo das imagens da morte, da carne e da noite, e é
então que o aspecto feminino e materno da libido é valorizado [...]”
(DURAND, 2012, p. 197). No sagrado feminino da mulher selvagem,
98 | Trilhas do imaginário

elas são incentivadas a tomarem as rédeas da sua própria sexualidade,


libertando-se das culpas e descobrindo o poder de si mesmas.

3 Considerações finais
Através da investigação do imaginário, utilizando a
hermenêutica simbólica proposta por Durand (2012) no seu trajeto
antropológico, do auge das sociedades matriciais, passando pelo seu
declínio e analisando seu resgate através do Instagram “Mulheres
de Raízes”, observa-se uma tentativa de retorno ao imagético do
sagrado feminino na sociedade atual.
As mulheres buscam a eufemização da carga opressora que
foi imputada as mesmas ao longo do tempo. Elas se unem, inclusive
em eventos presenciais como workshops e rodas de conversas
divulgadas no próprio perfil do Instagram do “Mulheres de Raízes”,
para redescobrirem juntas as Deusas que um dia foram utilizando
as redes sociais como intermediadoras dessa ligação digital e física
e como palco para suas trocas discursivas.
Observa-se a busca da liberdade de ser e existir: ora Deusas,
ora nefastas, ora identificadas no regime Diurno, ora no Noturno.
Seres livres para explorarem todas as suas nuances. As mulheres
almejam sua simbolização como sujeitas detentoras do direito
de exercerem suas pulsões de desejos, de sonhos e de vida, sem
que a existência masculina se sobreponha. E sob as bênçãos das
Deusas, as mulheres se ressignificam em busca de desbravar os
seus próprios caminhos.

Referências
ARAÚJO, Mariclécia. A mitologia arquetípica feminina em imagens
primordiais: os encontros. Disponível em: <https://www.publionline.iar.
unicamp.br/index.php/abrace/article/view/952>. Acesso em: 24 ago. 2018.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo – Fatos e mitos. Vol I. São Paulo:
Difusão Europeia do Livro, 1970.
Trilhas do imaginário | 99

CAMPOS, Andrea. As bruxas retornam... cacem as bruxas! (um


argumento para o controle histórico da sexualidade feminina).
Disponível em: <http://ojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/
article/viewFile/9151/5144>. Acesso em: 24 ago. 2018.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 4. ed.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. As mulheres que correm com os lobos. Rio de
Janeiro: Rocco, 2014.
ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos
tempos. São Paulo: Aleph, 2006.
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Acesso em: 20 ago. 2018.
Fonte: https://www.flaticon.com/authors/freepik
| 101

O conceito de memória teleafetiva:


estudo do Canal Viva

Mario Abel Bressan Júnior22

1 Introdução
Os estudos da memória vêm ganhando destaque atualmente
em função da quantidade de trabalhos publicados e apresentados
sobre o tema e o interesse social em recuperar formas de lembranças,
buscando algo do passado para recordar e viver.
As lembranças coletivas, bem como a identidade social dos
indivíduos, marcam uma trajetória no tempo e espaço. Mesmo
sendo subjetiva, a memória é um tipo de narrativa que volta a ser
rememorada com as percepções e lembranças.
Percebemos a televisão como um instrumento que transformou
hábitos sociais e globalizou culturas. Desde a sua implantação, várias
foram as suas fases e surgem distintas discussões, mas ela permanece
como meio de comunicação influente na transmissão de informação,
cultura e entretenimento.
Entender a memória é essencial para as diversas áreas em
que a sociedade participa, pois cada vez mais se percebe a volta
de elementos do passado, configurando um presente nostálgico,
composto por lembranças e memórias. Na moda, na arquitetura, no
design, constatamos esse movimento. Objetos de decoração e produtos
da “linha retrô”, por exemplo, também fazem parte deste contexto.

22 Doutor em Comunicação Social – PUCRS / FAMECOS, Professor no Programa de


Pós-Graduação em Ciências da Linguagem da UNISUL. Líder do Grupo de Pesquisa
Redes e Tecnologias Convergentes (UNISUL); Membro do Grupo de Pesquisa
Televisão e Audiência – GPTV (PUCRS / UFRGS) E-mail: [email protected]
102 | Trilhas do imaginário

O objetivo deste artigo é discutir o conceito de memória


teleafetiva (BRESSAN JÚNIOR, 2017) do telespectador diante de uma
programação que é (re)exibida anos depois. Procura responder
porque há um prazer em rever imagens e cenas e como isso provoca
e manifesta sentimentos e afetos na audiência.
Como objeto de estudo analisamos o Canal Viva, do Grupo
GloboSat, que em maio de 2018 completou oito anos no ar. Estreou no
dia 18 de maio de 2010. A programação, na sua maioria, consiste de
produtos que pertencem ao arquivo da Rede Globo de Televisão. Essa
grade é formada por telenovelas, programas de humor e musicais,
seriados, filmes antigos e algumas produções do próprio canal.
As reprises vem colocando o canal entre os primeiros em
audiência na TV. A telenovela Tieta, por exemplo, que estreou no
Viva em maio de 2017, alcançou bons números de telespectadores.
Nos meses de setembro e outubro, colocou o canal entre os 10 mais
assistidos da TV paga no Brasil e, em alguns meses, permaneceu
na liderança da programação a cabo (LEITE, 2017). Em julho deste
ano, com Vale Tudo, fez o Viva conquistar o ranking de programa
mais assistido na televisão a cabo, durante a primeira semana
de estreia.
Nesse cenário, a função que a memória traz para o contexto
televisivo merece ser investigada, visto que a TV pode ser um meio
condutor de lembranças. O conceito de memória teleafetiva explica
que há vibrações que dão prazer ao estar diante de uma programação
exibida tempos atrás, sendo que a sociabilidade e o contato com
sujeitos e objetos auxiliam na rememoração. Além disso, evidencia a
reformulação de um laço social, fortalecido pelos grupos de referência
e que auxilia na constituição de memórias e afetos.

2 Coletividade, sociabilidade e formação da memória


Muitas são as linhas que discutem a formação da memória
de um sujeito. O arquivamento de recordações ocorre por estarmos
constantemente aprendendo e arquivando o que vimos, escutamos
Trilhas do imaginário | 103

e presenciamos. Esta coletividade e sociabilidade é fator importante


para pensarmos a constituição das memórias.
Como diz Halbwachs (2003, p. 30), as nossas memórias
continuam coletivas e são acionadas por outros, mesmo em situações
e eventos (como ele gosta de referir), em que estivemos sós. Para
ele, o sujeito nunca está sozinho. “Não é preciso que outros estejam
presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos
conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem”.
O pertencimento do ser humano em um grupo não
necessariamente deve ser presencialmente, mas na forma de como
podem estar influenciados pelas formas de pensamentos e vivências
proporcionadas pelo grupo. “Para confirmar ou recordar uma
lembrança, não são necessários testemunhos no sentido literal da
palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma forma material e
sensível.” (HALBWACHS, 2003, p. 31). Esta participação coletiva vai
além da presença física, pois está ligada a outras formas de “estar
junto”. Os sujeitos podem partilhar de momentos comuns ao revisitar
uma cidade em que ele conheceu com familiares. No momento deste
retorno, ele está sozinho. Contudo, a primeira vez em que ele foi até
lá, havia outras pessoas consigo.
Em alguns casos, para o autor, estas pessoas ajudam a recordar
e, para melhor lembrar, voltamos a elas e adotamos os seus pontos
de vistas, já que “uma ou mais pessoas juntando suas lembranças
conseguem descrever com muita exatidão fatos ou objetos que vimos
ao mesmo tempo [...]” (HALBWACHS, 2003, p. 31). Conseguem até
reconstruir nossas ações sem que tenhamos lembrado de algo.
Essas pessoas nos trazem provas de que o evento ocorreu e que
participamos.
Isso é bastante comum, no sentido de que, durante as
nossas vidas, episódios acontecem. Porém, depois de algum tempo,
não lembramos mais. As recordações ocorrem em função dos
testemunhos de outros. São os testemunhos, não só discursivos,
falados por pessoas próximas, como também imagens e situações,
que provocam lembranças em nossas memórias. Para Halbwachs
104 | Trilhas do imaginário

(2003), estamos diante de vários testemunhos e renovamos


constantemente nossas memórias.
É este o processo de construção de uma memória coletiva,
embasada pela força viva das imagens proporcionadas pelas relações
sociais. Por isso, «a lembrança é sempre fruto de um processo coletivo
e está sempre inserida num contexto social preciso», reforçam Schmidt
e Mahfoud (1993, p. 288).
Huyssen (2000, p. 68) complementa que

a memória de uma sociedade é negociada no corpo


social de crenças e valores, rituais e instituições.
No caso específico das sociedades modernas, ela se
forma para espaços públicos de memória tais como
o museu, o memorial e o monumento (HUYSSEN,
2000, p. 68).

Para ele, estamos cada vez mais conscientes de como é coletiva


a memória social e desenvolvida a partir de falas e reproduções.
No entanto, quando as imagens se fundem com as lembranças,
destaca Halbwachs (2003), as recordações de um ou mais processos
coletivos criam figuras que podem não reproduzir exatamente o
passado, podendo modificar a impressão de um fato antigo. São
sensações que se misturam e se compactuam em massas de lembranças
imaginadas. Há esta relação entre o que foi verdadeiramente vivido e
o que foi fictício. “Inversamente, pode acontecer que os testemunhos
de outros sejam os únicos exatos, que eles corrijam e rearranjem a
nossa lembrança e ao mesmo tempo se incorporem a ela.” (2003, p. 32).
Quando isso acontece é porque nossa memória se apresenta
como uma peça profunda e sentimos ter condições de diferenciar, por
esforço nosso, alguns traços e contornos que vêm do nosso passado,
mesmo quando observamos estes elementos em uma espécie de
espelho turvo, compara Halbwachs (2003). Para ele, é necessário
“trazer uma espécie de semente da rememoração a este conjunto
de testemunhos exteriores a nós para que ele vire uma consistente
massa de lembranças”. (2003, p. 32-33).
Trilhas do imaginário | 105

Por isso, a necessidade dos testemunhos, tanto verbais quanto


visuais para a composição da memória, porque quando uma cena
não deixa nenhum traço de recordação, sentimo-nos (HALBWACHS,
2003) desqualificados de remontar qualquer parte dela. Mesmo
se algum dia outras pessoas nos contem o fato em si, jamais será
pontuado como uma lembrança, destaca o autor.
A lembrança é resultado de um conjunto coletivo, por
necessidade de uma comunidade afetiva.

Esta comunidade afetiva é o que permite atualizar


uma identificação com a mentalidade do grupo no
passado e retomar o hábito e o poder de pensar
e lembrar como membro do grupo (SCHMIDT;
MAHFOUD, 1993, p. 289).

As lembranças acontecem, nesta lógica, por esses contágios


afetivos, que são permanentes na coletividade em que o sujeito
vive ou viveu.
As lembranças surgem porque são os outros que fazem
recordá-las (HALBWACHS, 2003). Mesmo que esses outros não estejam
presentes, podemos dialogar sobre esta coletividade da memória, pois
evocamos fatos e situações de um lugar que vivemos e que houve
uma relação com os sujeitos.
É pela lembrança que, segundo Halbwachs (2003), ocorre
o reconhecimento e isso acontece em função do déjà vu, muitas
vezes, manifestado pelas experiências citadas acima. Halbwachs
(2003) explica que consiste em um resgate do que foi vivido, ou
seja, são vivências que retornam e estão inseridas em um espaço,
em um tempo e em grupos de referências, de relações sociais a que
pertencem o sujeito.
A memória, complementa Schmidt e Mahfoud (1993), ao
reconhecer e reconstruir algo, atualiza os quadros sociais e faz
com que as lembranças possam articular-se entre si. Isso é diferente
nas crianças, que não estabelecem este tipo de troca, pois não têm a
capacidade, ainda, de se ver como elemento formador de recordações.
106 | Trilhas do imaginário

Para Halbwachs (2003, p. 43), não lembramos a primeira infância


por ser essa uma fase onde não nos constituímos como seres sociais.
“É difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento em
que nossas sensações eram reflexos dos objetos exteriores” e que
não havia misturas de imagens e a homogeneização de pensamentos
com os que nos cercavam.
As lembranças surgem conforme as circunstâncias que se
criam (HALBWACHS, 2003), para que elas possam ser despertadas
e representadas. Nem sempre as encontramos. É necessária esta
espera, sobre a qual nossa vontade não tem muita interferência.

Nada é mais surpreendente em relação a isso do que


o reconhecimento de uma figura ou de um lugar,
quando estes voltam a se encontrar no campo de
nossa percepção. Nunca mais voltamos a pensar
naquilo desde que o vimos pela primeira vez e
talvez tenhamos a impressão de que, por algum
esforço de memória que tenhamos feito, nos teria
sido impossível reconstituí-lo. Absolutamente não
estamos enganados: reconhecemos muito bem esse
lugar e ao mesmo tempo recordamos a disposição
de espírito em que estávamos quando o vimos,
parece que a lembrança permaneceu, agarrada
às fachadas daquelas casas, aguardando ao longo
daquela vereda, na borda daquela enseada, nesse
rochedo em forma de cadeira - e, quando voltamos
a passar por lá, damos uma paradinha e ela retoma
em nossa memória um lugar que, sem isso, jamais
teria sido ocupado. (HALBWACHS, 2003, p. 53).

Isso é comum quando voltamos a um lugar que não lembramos


mais ou quando assistimos a algum vídeo caseiro ou uma cena na
televisão e que havíamos esquecido. Ao ‘revisitar’ estes lugares,
damo-nos conta da lembrança, que permanecia ali, só não nos
recordávamos dela.
Faz parte das condições necessárias para se voltar a pensar em
algo, diante de circunstâncias (HALBWACHS, 2003). São sequências de
Trilhas do imaginário | 107

percepções que temos ao fazer novamente o mesmo caminho tempos


depois. Estas lembranças ocorrem não só referentes a lugares, mas
também casas, ruas, bairros, cidades, países, como também pelo fato
de rever algo na TV, no cinema ou reler um livro.
Bosi (1994) reforça que este retorno, na concepção de
Halbwachs, consiste na reconstrução do passado, uma releitura da
experiência. A autora traz como exemplo quando estamos diante
de um livro que foi lido há muito tempo. A impressão inicial traz
de volta a ansiedade ou a curiosidade da primeira leitura. Ao nos
depararmos com as primeiras páginas, lembrar-nos-emos de algumas
marcas, personagens e fatos. No entanto, ao reler, vamos percebendo
coisas novas que, muitas vezes, não tínhamos percebido. Além de
lembrar, teremos outras percepções, visto que estão em função das
inferências do tempo presente. Neste caso, como dito pelo autor, a
única forma de completar uma lacuna vazia da memória é voltar
a um lugar.

3 Materialização de uma Memória Teleafetiva


A televisão é um dos meios mais populares no Brasil, são mais
de 60 anos de história, proporcionando para a audiência experiências
que transferem reações afetivas. O público é envolvido por estes
efeitos e arquiva em sua memória os momentos e sentimentos.
Ferrés (1998) explica que a influência da televisão não incide
sobre a racionalidade e sim sobre os apelos emocionais provocados
por ela. Temos um processo de sedução, mas que não percebemos
de forma consciente. Consiste em uma comunicação inadvertida
e que ocasiona um efeito mais profundo, algo despercebido, que é
subliminar. Para o autor (1998, p. 14), podemos considerar subliminar
“qualquer estímulo que não é percebido de maneira consciente”.
No telespectador, a televisão influi nas decisões e crenças em
função destes recursos emocionais e isso reflete na sua percepção
de como vê a realidade e o que está a sua volta. “A percepção da
realidade está condicionada não apenas por esquemas culturais
108 | Trilhas do imaginário

como também por esquemas emocionais.” (FERRÉS, 1998, p. 30).


Uma mesma realidade pode ser percebida de forma diferente,
em função das atitudes pessoais, que em alguns momentos não
são conscientes.
O fato de não estarmos imaginando o que pode vir e que
sentimentos teremos ao ver um programa, faz com que a experiência
televisiva produza consequências socializadoras justamente por não
possuirmos expectativas.

Se no efeito placebo, o paciente abre as portas de seu


psiquismo pela fé que tem no poder do tratamento,
na experiência televisiva o espectador deixa aberta
as suas por ingenuidade e desconhecimento do poder
socializador do meio (FERRÉS, 1998, p. 35).

A proposta de Ferrés (1998) é refletir sobre a transposição da


emoção sobre a razão, como isso interfere no processo de socialização,
até que ponto a paixão engana o pensamento e a consciência é traída
pela comunicação inadvertida.
Para ele, a nossa racionalidade não deve ser pensada como
única forma de convivência. As emoções potencializam e contradizem
a razão. Por isso, é preciso ver, também, até que ponto os meios
de comunicação de massa, principalmente a televisão, exercem
aplicações mais socializadoras do que a razão.
Não nascemos seres humanos, escreve Ferrés (1998), nascemos
com potencialidades para nos tornarmos seres racionais e emocionais.
É perante a socialização que nos tornamos indivíduos sociais. A
televisão integra, como instrumento cultural e social, esta convivência
em grupos. Seria um laço social (WOLTON, 1996), permitindo partilha
e experimentações comuns, através das afeições positivas e negativas
transmitidas pelos programas de TV.
Para o autor, a televisão é socializadora, porque proporciona
uma onda de energia emotiva. Estas energias são formadas
principalmente por impulsos, tendências, desejos e temores, e, quando
formadas, utilizamos para nosso próprio benefício. “As emoções se
Trilhas do imaginário | 109

definem precisamente pelo que têm de excitação, de ativação. É neste


sentido que são mobilizadoras.” (FERRÉS, 1998, p. 39).
Este processo na experiência televisiva é constante em função
da quantidade de cenas que presenciamos e que associamos com
alguma lembrança ou sentimento. Uma telenovela pode provocar
raiva com o vilão, emoção com alguma criança ou romantismo com
alguma cena de amor. Com os telejornais, podemos temer a sociedade
com as notícias sobre violência exibidas e, com um programa de
humor, podemos rir e nos sentir tranquilos.
Ferrés (1998) explica que há um processo de transferência
afetiva quando transportamos de forma positiva ou negativa, para
coisas ou pessoas, estes sentimentos e afetos. Ou seja, as imagens de
um determinado programa de TV pode nos transferir um sentimento
de saudade de uma ou mais pessoas ou transmitir raiva de uma
situação vivida em algum momento. É importante que entendamos
que a televisão modifica comportamentos por ser socializadora e
por pensamentos associativos. Todavia, podem sofrer alterações ou
trocas de sentidos com as proximidades.
O telespectador é peça fundamental no processo de construção
da mensagem televisiva. É ele quem recebe, decodifica e reage perante
o que foi passado. O sentimento só é elaborado por ter um indivíduo
que se propõe, de forma despercebida, a sentir algo e vibrar com ele.
Esta vibração vem devido à força sedutora da linguagem da televisão
e da contemplação do receptor sobre ela.
A televisão constitui uma relação de afeto com o telespectador,
principalmente quando atua como dispositivo de recordações. As
pessoas precisam estar envolvidas por sentimentos e o laço social
da TV contribui para a formação de uma memória teleafetiva.
“O homem está afetivamente presente no mundo”, diz
Le Breton (2009, p. 111). O simples fato de existir provoca um
contínuo fluxo de sentimentos que podem ser mais ou menos
vivos e pode mudar de acordo com as circunstâncias. Para o autor,
“o gozo do mundo é uma emoção que cada situação renova de
acordo com suas próprias cores”, e mesmo a ação de pensar não
110 | Trilhas do imaginário

escapa a seleções. O pensamento é uma atividade que faz parte


da memória, traz elementos correspondentes às recordações.
Assim, é importante salientar que no ato de lembrar também
vem consigo questões emocionais, visto que não há como separar
pensamento e afetividade.
São os afetos que simbolizam a permanência, a relação do
homem com o mundo e a sua intimidade inserida nos acontecimentos
do quotidiano, explica Le Breton (2009). Temos sempre uma
apropriação de afeto sobre os objetos que nos cercam e que é
duradoura, independentemente do tempo. “A emoção é a própria
propagação de um acontecimento passado, presente ou vindouro, real
ou imaginário, na relação do indivíduo com o mundo”. Exposta em
momento provisório, é originada de um fato, no qual o “sentimento
se cristaliza com uma intensidade particular: alegria, cólera, desejo,
surpresa ou medo”. (LE BRETON, 2009, p. 113).
A memória afetiva é aquela composta por experiências
emocionais, constituindo um local onde um sentimento ressurge
através de uma recordação.
Nessa perspectiva, a televisão consiste em um dispositivo que
produz imagens e lembranças constantes aos telespectadores. Ao
reprisar um programa, esta expõe elementos que serão percebidos
e, com isso, uma recordação será impulsionada. O arquivo televisivo
carrega consigo esta qualidade de rememorar um tempo passado.
Quando essas reminiscências são compostas por sentimentos,
temos uma memória que, além de afetiva, passa a ser teleafetiva, faz
vibrar ainda mais o pensamento, visto que a TV envolve os indivíduos
em experiências individuais e coletivas, de forma igualitária, como
definido por Wolton (1996).
Na televisão, o déjà vu recria laços sociais a todo instante,
a partir do momento em que imagens e cenas são reprisadas.
Uma programação que foi assistida tempos atrás efetivou um laço
social naquele tempo e espaço. Portanto, ao revê-la, o telespectador
reformula estes laços a partir da memória que é resgatada, constituído
por impulsos afetivos que a televisão proporciona.
Trilhas do imaginário | 111

Na TV aberta, para Wolton (1996) o laço social que une


indivíduos é invisível, com os comentários em rede, através da
transmidiação, ele passa a ser identificado e quantificado. Sabemos
quem fala e o conteúdo da conversa que estabelece um elo de
ligação entre telespectadores. Com a memória teleafetiva, este laço é
reconstruído com as reminiscências que surgem, da volta ao passado,
carregado de propulsores que desencadeiam sentimentos individuais,
mas de ordem coletiva, por ser a televisão um elemento socializador,
pertencente a um convívio social, capaz de gerar recordações que
satisfazem e dão prazer para quem assiste.
Na figura abaixo, ilustramos a reconfiguração deste laço social
ao utilizar como exemplo a programação do Canal Viva.

Figura 1 – Reconstituição do Laço social através da memória teleafetiva

Fonte: Elaborada pelo autor (2016)

Identificamos a memória teleafetiva essa que é reconquistada,


reformulando novamente uma experiência, que é restaurada por um
tipo de emoção e de afeto. Como explicado por Halbwachs (2003), em
alguns momentos, é preciso fazer dos depoimentos exteriores uma
espécie de semente de rememoração para que possa fazer surgir as
lembranças. A TV executa este papel. Consiste em um dos elementos
externos que auxiliam na volta ao passado.
Esta memória teleafetiva é a responsável por recuperar e
reformular reminiscências reconstituídas a partir das imagens
exibidas na televisão e pelos afetos em torno das vibrações
provocadas por ela. Além de socializadora, de Laço Social, a TV
pode ser um desses “lugares” que revisitamos e que são percebidos
pelas nossas memórias.
112 | Trilhas do imaginário

Difere-se da memória afetiva por trazer pulsões geradas a


partir da visualização das imagens televisivas, provocadas pelos
efeitos emocionais durante o ato de reassistir. A teleafetividade
da memória, neste caso, é resultado do laço social reformulado
pelas recordações.
Com a imagem a seguir, ilustramos um telespectador diante de
uma reexibição. As letras correspondem aos objetos percebidos e, do
outro lado, já no cérebro, os mesmos elementos, mas com vibração
proporcionada pela memória teleafetiva. Os números representam
outras lembranças e recordações, impulsionadas por emoções vividas
em uma época.

Figura 2 - Vibração com a memória teleafetiva

Fonte: Elaborada pelo autor (2016).

A televisão proporciona esta relação teleafetiva por ser um


dispositivo que rememora, recria reminiscências e que esteve e está
presente no dia a dia do telespectador.
O Canal Viva proporciona estas vivências ao reprisar uma
programação diária, organizada de forma horizontal e vertical. Ao
reexibir telenovelas, seriados e programas de humor, por exemplo,
evoca memórias afetivas através da trilha sonora que ambienta o
enredo, as personagens, os cenários e os objetos que (re)contam as
narrativas.
Consideramos que a preferência por estar diante de uma
narrativa antiga está articulada nesta relação de afetividade, visto
que, quando voltamos ao passado, os grupos de referência, que
Trilhas do imaginário | 113

faziam parte de suas vidas, deixaram marcas ou sentidos e que são


recuperados ao estarem diante, novamente, “daquele tempo”. É a
nostalgia de um tempo vivido que afaga este tipo de audiência, algo
que deseja ser revisto na televisão.
Ao estar diante da mesma personagem tempos depois,
ouvir novamente a música tema da abertura ou do ator e atriz que
compõe a cena, reestabelece os “lugares” de revisitação, pontuado
por Halbwachs (2003).
As situações e ações das narrativas que são revistas levam
o telespectador a um laço social reformulado, potencializado pelos
afetos evocados em suas memórias. O que é assistido tempos depois
funciona como uma localidade de recuperação de lembranças.
Se relacionarmos que a TV propicia e recicla identidades
coletivas, além de estabelecer mecanismos simbólicos comuns
(CÁDIMA, 2006), temos na programação televisiva (re)exibida uma
extensão destes simbolismos e outras “discursividades” atribuídas
pelo audiovisual (CÁDIMA, 1996).
O sentimento de saudade é evidenciado pelo telespectador
que sente uma satisfação e um prazer ao rever as cenas e todo o
conjunto que as compõe (imagens, sons, ruídos).
Este laço social gerado num primeiro momento, tempos atrás,
é retomado e tem um sentido novo através da rememoração. Há
uma força do sujeito em querer reconstruir este laço. A TV esteve
presente na coletividade e na socialização. Ao revisitar os lugares
com o Canal Viva, o laço reaparece, com outro fio, agora duplo. O
primeiro configurado com aquilo que foi vivido no passado, e o
segundo, no presente, com as interferências do primeiro e “costurado”
com recordações afetuosas, tanto alegres, quanto tristes.
Os “quadros sociais” (HALBWACHS, 2003) contribuem
para estas observações. Afinal, a memória é sempre coletiva. Os
telespectadores estão constantemente em contato com grupos de
convívio e de referências. Mesmo cada um possuindo memórias
individuais, estas acontecem no dia a dia, no contato com as
outras pessoas.
114 | Trilhas do imaginário

A figura a seguir demonstra visualmente como a televisão


pode estar relacionada como grupo de referência do telespectador
e, com isso, fazer parte do contexto vivido por ele, tanto no passado,
como no presente, ao “revisitar” a programação no Canal Viva.

Figura 3 – Grupos de referência e movimentos da memória teleafetiva

Fonte: Elaborada pelo autor (2017)

A coletividade da memória contribui neste movimento.


Lembremos que, mesmo individual, a memória é coletiva
(HALBWACHS, 2003). Os grupos de referência atuam na formação
de memórias. A nostalgia, a saudade, a infância, a trilha sonora, as
personagens, atores e atrizes, repercute em rememorações de um
tempo existido com a família, com os amigos, na escola ou trabalho.
Todos, incluindo a TV, constituem elos de identificação social e
presente para a construção de memórias dos indivíduos.

4 Considerações Finais
O fenômeno da memória teleafetiva pode ser explicado,
porque há um prazer em voltar ao passado com as imagens da
Trilhas do imaginário | 115

televisão. Ela agrada, porque traz novamente um laço social,


reconstruído com as reminiscências e com as experiências coletivas
e individuais atuais do sujeito. Possuímos memória afetiva desde
pequenos. Somos formados por sentimentos e as pessoas que estão
ao nosso lado auxiliam nisso. Os grupos de referência interferem
na aquisição dos sentimentos.
A TV consiste em um destes grupos, que, além de auxiliar na
formação dos afetos, tem a possibilidade de atuar como objeto de
evocação da memória. Por isso, a memória do telespectador não
é somente afetiva e sim teleafetiva por conta da relação de uma
experiência televisiva, que só ela é capaz de fazer.
O Canal Viva representa esta materialização dos afetos
com as recordações e o efeitos sensíveis por força da experiência
televisiva. Com uma programação construída em função do Dejà
Vú, traz pulsões rememoradas de um tempo e espaço em que o
telespectador estava inserido.
Trata-se de um laço social que traz de volta o “estar com”. As
sensações nostálgicas descritas pelos internautas foram decisivas
para concluir que o sujeito sempre recorda por intermédio de outras
pessoas. A coletividade e a socialização são fatores que determinam
a memória e os afetos.
É pelo laço social reconstruído pelas reminiscências que
visualizamos a teleafetividade das memórias. Podemos dizer que a
teia invisível que une as pessoas, descritas por Wolton (1996) através
da televisão, é tão forte, que não se limita somente à “igualdade” de
assistir uma programação, mas também traz marcações de momentos
na vida de cada um.
A emoção e os afetos só ocorrem por conta desta socialização.
Por isso, a comprovação de que só houve lembranças e sentimentos
por este tempo passado, porque a televisão estava junto com o sujeito.
Caso contrário, se não estivesse, não traria essas sensações. Gostamos
da nostalgia porque estamos emocionalmente ligados ao mundo, e
as emoções estão presentes em nossas memórias, de forma movente
e também cristalizadora.
116 | Trilhas do imaginário

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| 117

Memória e resistência na ditadura brasileira:


os manuscritos de Linhares

Christina Ferraz Musse23


Ramsés Albertoni Barbosa24

1 A força do que é frágil


Durante a ditadura militar brasileira, diante do silêncio da
imprensa sobre as transgressões aos mais simples direitos humanos,
os presos políticos lançaram mão de estratégias para romper os
limites das penitenciárias e denunciar publicamente a tortura e
as violações aos direitos humanos a que eram submetidos. A força
dessas formas tão precárias de comunicação, como bilhetes e cartas
manuscritas, chama a atenção quando em comparação com o
cenário contemporâneo em que a facilidade da troca de mensagens
via dispositivos móveis permite que presos se comuniquem com
grande facilidade com pessoas que vivem do lado de fora das
instituições penitenciárias.
Este texto relata parte do inventário do projeto de pesquisa
“Ruínas do passado: a imprensa, a memória e os depoimentos
da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora”, iniciado em
2016, no âmbito da Universidade Federal de Juiz de Fora, e que se
propõe a:

[...]compreender as estratégias de comunicação


alternativas que aqueles que foram ameaçados,
perseguidos, presos e torturados pela ditadura

23 Doutora. Professora do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora.


E-mail: [email protected].
24 Mestrando do PPGCOM da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: ramses.
[email protected].
118 | Trilhas do imaginário

desenvolveram para conseguir sobreviver e


denunciar as perseguições e torturas durante o
regime, criando redes colaborativas de informação,
através de cartas, por exemplo, ou pequenos
jornais clandestinos, como também analisar o
silenciamento da imprensa em geral sobre essas
histórias tão dramáticas (MUSSE, 2017, p. 2).

Desde o início do projeto, as histórias de vida que se tornaram


conhecidas através da pesquisa nos processos das Auditorias Militares
e a leitura dos testemunhos de sobreviventes da ditadura, colhidos
pela Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora (CMV-JF)
têm revelado informações preciosas para a compreensão daquele
período sob uma ótica nova, que desvela a humanidade daqueles
que resistiram não como heróis, mas como anônimos. Cada relato
é passível de ser transformado em romance ou roteiro de filme,
dada a sua carga dramática, ao seu formato narrativo pontuado por
conflitos. Assim, não é sem razão que várias dessas histórias tenham
se transformado em produtos de comunicação, como livros. Em
“Cova 312”, Daniela Arbex desvenda o mistério sobre o assassinato
do desaparecido político Milton Soares de Castro, resultado de ampla
reportagem investigativa. Outros são livros (auto) biográficos, em
que o relato é contagiado pelo ponto de vista, pela rememoração,
como aquele que contém a história de Carmela Pezzuti e seus dois
filhos, Ângelo e Murilo, e que foi narrado por outro sobrevivente,
Maurício Paiva. Todos são ricos em histórias, construídas entre a
razão e a emoção, para dar conta do passado.
A investigação nas hemerotecas e arquivos digitais, à procura
dos legados da imprensa, também foi reveladora das memórias
possíveis em um cenário de censura e repressão. Como bem nos
lembra Juremir Machado (2017), o golpe não foi apenas militar, e,
sim, midiático, civil e militar. Neste aspecto, a adesão de quase todos
os veículos de comunicação à preparação do cenário para o golpe
de 31 de março de 1964 é surpreendente. Em Minas Gerais, por
exemplo, Belo Horizonte e Juiz de Fora, as cidades mais importantes
Trilhas do imaginário | 119

do estado à época, tinham seu mercado jornalístico dominado pelos


Diários Associados, que publicavam apenas o que lhes interessava 25.

Chatô filtrava e moldava o noticiário. A reunião por


3 horas no Aeroporto de Juiz de Fora, na tarde do
dia 28 de março de 1964, sábado de Aleluia, entre
o governador Magalhães Pinto, o comandante da
PM mineira, os generais Mourão Filho e Carlos Luis
Guedes e o ex-ministro da Guerra Odylio Denys, para
marcar o início da intentona em Minas, passaria
em branco nas redações dos Associados. Agora,
para plainar o estado de espírito da opinião pública
em Juiz de Fora, os bonecos da Malhação de Judas
serviriam para ilustrar no dia 31 a fotolegenda da
capa do “Diário Mercantil” e a matéria “27 Judas
queimados na cidade representavam Brizola e seus
comparsas” publicada na contracapa do “Diário da
Tarde” juiz-forano (LARANGEIRA, 2015, p. 106).

A imprensa não demoraria muito para perceber que, ao apoiar


o golpe, de fato, tinha legitimado o caminho para a instauração da
ditadura. Depois do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968,
a censura e as perseguições aos jornais, rádios e TVs destruíram
as poucas vozes dissidentes e estimularam a omissão ou, mesmo,
adesão. Em Juiz de Fora, por exemplo, uma das principais cronistas
do “Diário Mercantil” (DM), Cosette de Alencar, em plena década de
1970, interpretava as denúncias contra a ditadura como “uma trama
contra o bom nome do País”:

Não há lugar, no momento, para outra coisa que


não seja a chamada “imagem do Brasil” no exterior.
Consta que há uma campanha soez contra nosso

25 Em Belo Horizonte, Assis Chateaubriand dominava o setor de imprensa com


os jornais “Estado de Minas” e “Diário da Tarde”, as TVs Alterosa e Itacolomi
e as rádios Guarani e Mineira. Em Juiz de Fora, dava-se o mesmo com os
jornais “Diário Mercantil” e “Diário da Tarde”, a Rádio Sociedade de Juiz de
Fora e os sinais da TV Itacolomi e da TV Tupi do Rio de Janeiro (LARANGEIRA,
2014, p.106).
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País, campanha naturalmente financiada pelos


que se viram prejudicados pela guinada heróica
por nós dada em 1964. Vencidos aqui dentro,
estes inimigos do Brasil entregaram-se, agora, à
vileza de uma trama contra o bom nome do País,
a ponto de conseguirem preocupar as autoridades
brasileiras. […] Começando por forjar um espantoso
genocídio brasileiro, nossos inimigos tão logo viram
desmoralizada esta acusação estapafúrdia, criaram
tópicos novos: a tortura dos presos políticos, a
perseguição ao clero católico, a ditadura violenta
governando o país garroteado (ALENCAR apud
MUSSE, 2008, p. 186).

Finalmente, ao recuperar o conteúdo dos processos militares,


em que são narrados os julgamentos de vários presos políticos,
observa-se a incapacidade da imprensa em relatar as denúncias
que os próprios presos explicitavam durante as audiências nos
tribunais militares, tentando aproveitar a presença de jornalistas
para fazer chegar à opinião pública as mensagens de resistência.
Para esses presos, que tentavam denunciar os abusos dos quais
eram vítimas, não houve respaldo dos jornalistas, assim, eles
próprios tiveram, então, que se organizar para criar suas redes de
comunicação. E essas redes é que possibilitaram que as denúncias
de tortura ganhassem o exterior. Este artigo se propõe a recuperar
as histórias da “Carta de Linhares” e do manuscrito “Até sempre
3”, instrumentos de resistência à ditadura, que, na sua fragilidade,
foram passíveis de gerar mudanças.

2 Os Pezzuti: uma família enredada em histórias


A história dos irmãos Ângelo Pezzuti e José Murilo da Silva está
no centro dos episódios que vamos relatar. Suas vidas se cruzam com
a resistência ao regime militar e a elaboração dos dois documentos
que analisaremos aqui: a “Carta de Linhares” e o manuscrito “Até
Sempre 3”. Ambos ficaram presos na penitenciária de Linhares,
Trilhas do imaginário | 121

Juiz de Fora, Sudeste de Minas Gerais, como também a mãe deles,


Carmela Pezzuti, a dona-de-casa de Araxá, no Oeste mineiro que,
depois de separada do marido, o comerciante Theofredo, foi viver
com os filhos em Belo Horizonte, a capital do estado, considerada “o
palco principal da luta política e da contestação frontal ao regime
militar, entre os anos de 1966 a 1969” (PAIVA, 1996, p. 24).
Estudante de Medicina, Ângelo Pezzuti sempre foi muito
ligado ao movimento estudantil, na vertente ligada inicialmente à
Polop (Política Operária, de 1961) e, depois, ao Colina (Comandos de
Libertação Nacional)26, onde abraçaria a luta armada. Foi Ângelo
quem acabou levando Murilo e Carmela a se juntarem ao projeto
político em questão. A mãe, atuando na captação de recursos para
a organização, Murilo, na divulgação.
Murilo, por seu lado, integrado à célula de imprensa,
se esfalfava rodando documentos internos e o
jornalzinho “Piquete” num velho mimeógrafo.
Eram documentos e mais documentos, polpudos
calhamaços, que alimentavam prolíficos debates
internos (PAIVA, 1996, p. 27).

Não demorou muito, em janeiro de 196927, em ações diferentes,


Ângelo, Murilo e Carmela Pezzuti foram presos em Belo Horizonte.
Eles, na Colônia Penal Magalhães Pinto, em Neves, nos arredores de

26 O Comando de Libertação Nacional (Colina) foi uma organização guerrilheira


brasileira de extrema-esquerda, composta basicamente por estudantes
universitários mineiros, que lutou contra a ditadura civil-militar. Teve origem
em 1967, a partir da fusão com outra organização de esquerda, a Organização
Revolucionária Marxista Política Operária (Polop), abraçando as ideias
defendidas pela cubana Organização Latino Americana de Solidariedade
(Olas), executando, desde 1968, ações armadas urbanas para o levantamento
de recursos para fazer a guerrilha no campo (MEMÓRIAS, 2016) .
27 Segundo o relatório da Comissão Estadual da Verdade de Minas Gerais, o Colina
foi desmantelado em Minas Gerais, a partir da prisão de sete dos seus líderes,
em um aparelho, no dia 28 de janeiro de 1969, em Belo Horizonte. Nesta ação,
muito violenta, é que Murilo foi preso. Na sequência, no intervalo de menos
de um mês, outros trinta membros foram presos, e a rede se dissolveu. Esta
foi uma das primeiras ações de sucesso da ditadura em desmantelar um grupo
de resistência armada.
122 | Trilhas do imaginário

BH, ela, na Penitenciária de Mulheres, no Horto. Carmela ganhou


liberdade condicional com três meses de prisão.

No momento em que Carmela ganhava a liberdade


condicional, Murilo era transferido para um quartel
do Exército, em Juiz de Fora, e Ângelo, submetido a
frequentes interrogatórios em decorrência da sua
responsabilidade de comando da Organização, foi
colocado numa cela do 12º RI [BH] para ficar mais
à mão (PAIVA, 1996, p. 54).

Finalmente, seis meses depois das prisões, os filhos de


Carmela foram transferidos para a sede da Polícia do Exército (PE)
da Vila Militar, no Rio de Janeiro, enquanto a mãe teve sua prisão
preventive decretada e foi levada para a penitenciária de Linhares,
em Juiz de Fora. “Em fins de outubro a PE do Rio devolve os presos,
fisicamente arruinados, à Auditoria Militar de Juiz de Fora, que
os mandou para o presídio [sic] de Linhares” (PAIVA, 1996, p. 56).
Quando eles chegam a Linhares, Carmela sai em liberdade. A partir
daí, nosso enredo ganhar novos ganchos, e a história pessoal se
mistura à história coletiva, já que são esses personagens que vão
nortear nossa narrativa.
Ao estudar os processos de rememoração, a crítica argentina,
Beatriz Sarlo, afirma que as escritas de si tiveram um papel
indispensável para a interpretação e ressignificação da memória
traumática da América Latina. Não foram apenas uma “cura
identitária”, mas um processo ainda em curso para se interpretar a
história recente dos países do continente.

Quando acabaram as ditaduras do sul da América


Latina, lembrar foi uma atividade de restauração
dos laços sociais e comunitários perdidos no exílio
ou destruídos pela violência do Estado (SARLO,
2007, p. 45).

Neste artigo, utilizamos os relatos de memória bem como


os textos jornalísticos e os processos da Justiça Militar brasileira
Trilhas do imaginário | 123

para compreender as histórias de resistência dos presos políticos à


ditadura militar.

3 A penitenciária de Linhares: espaço de resistência


A penitenciária regional José Edson Cavalieri, localizada
no bairro Linhares, em Juiz de Fora, foi inaugurada no dia 22 de
janeiro de 1966 (PENITENCIÁRIA, 04 jan.1966, s.p.) e funcionaria,
a princípio, como órgão técnico de recuperação de delinquentes,
conforme declarou seu primeiro diretor, Silvio de Andrade Abreu
(ESTADO, 25 jan. 1966, p. 5). Todavia, em 1967, a penitenciária passou
a receber também os presos políticos, porquanto, a partir de 1964, sob
a repressão do golpe civil-militar, os variados tipos de instituição penal
começaram a atender às pretensões da polícia política. A penitenciária
era um local de reclusão e, não, de interrogatório, portanto, não há
registros conhecidos de que ali tenham sido cometidas torturas28. De
acordo com Flávia Ribeiro, mesmo sem a violência dos centros de
interrogatório, a rotina era opressora. De forma geral, a configuração
da penitenciária era a seguinte:

[...] o local tinha o formato da letra “U” e estava


dividido em alas, sendo que uma delas ficou
destinada ao isolamento daqueles que ingressavam
na instituição. A ala feminina possuía o pátio
reservado e a convivência das mulheres era isolada

28 A repórter Daniela Arbex relata o assassinato de Milton Soares de Castro,


participante da guerrilha do Caparaó, cujo corpo foi encontrado numa cela
de Linhares. Ele e 15 sobreviventes da guerrilha chegaram à penitenciária
em 3 de abril de 1967. Foram os primeiros presos políticos recolhidos ao
local. No dia 27 de abril, Milton foi levado para interrogatório na 4ª Região
Militar, em Juiz de Fora. Na manhã do dia seguinte, 28 de abril, seu corpo
foi encontrado na cela. Segundo os carcereiros, ele teria se enforcado com o
lençol. A versão de suicídio perdurou por anos, mas o corpo do guerrilheiro
nunca tinha sido encontrado. A jornalista desvendou o mistério em seu
livro “Cova 312”, publicado em 2015. Na verdade, Milton Soares de Castro
foi assassinado e estava enterrado como indigente no Cemitério Municipal
de Juiz de Fora (ARBEX, 2015).
124 | Trilhas do imaginário

dos demais. As celas eram todas individuais e com


portas de ferro, com uma pequena entrada com
frestas. Possuíam uma privada turca com uma
pequena torneira, acoplada no cano. A janela para
o pátio era um buraco pequeno e gradeado, com as
laterais em aclive, dificultando a visão (RIBEIRO,
2007, p. 46).

A penitenciária de Linhares, além de receber os presos já


condenados, também passou a abrigar os que aguardavam julgamento
e respondiam a processos na Auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária
Militar (4ª CJM), o que caberia, de fato, a um presídio. Devido ao
grande número de indiciados, em Juiz de Fora, Linhares foi de
enorme praticidade para comportar todos eles, gerando uma grande
movimentação no local, principalmente a partir de 1969, com a
promulgação do Ato Institucional nº5, em 13 de dezembro de 1968.
As alas passaram então a ser ocupadas, majoritariamente, por
guerrilheiros urbanos, em sua maioria brancos, jovens, estudantes
universitários, de classe média, de diversos movimentos (RIBEIRO,
2007). Em suas memórias, Maurício Paiva relata o clima entre os
presos. Para ele, havia, de uma parte, ousadia e resistência, de outra,
apenas resignação:

Estávamos à disposição da Justiça Militar de Juiz


de Fora, que abrangia a área de Minas Gerais,
Goiás e Brasília, e aguardávamos a definição final
de nossas penas nos morosos julgamentos. Este,
na maioria dos casos, um espetáculo com epílogo
previamente definido, para alguns não tinham
maior significado. Com efeito, a julgar pelas peças
acusatórias e pelo absoluto cerceamento do direito
de defesa, havia quem tivesse razões de sobra para
convencer-se de que teria pena para cumprir na
outra encarnação. Perdido, perdido e meio – não
é bem isso, mas fica assim mesmo: os que estavam
na expectativa de ter mais anos de condenação do
que de vida, pouco se importaram em declarar,
Trilhas do imaginário | 125

na primeira audiência do julgamento, que não


reconheciam àquele Tribunal autoridade moral
e política para julgá-los e que, em qualquer caso,
encarariam a pena como um galardão por sua luta
contra a ditadura militar. E, de fato, o galardão
ficou um pouco mais pesado, com a abertura
de outros processos por desrespeito ao Egrégio
Tribunal de Justiça Militar. Esta irreverência e
ousadia foi, no entanto, uma exceção. A imensa
maioria dos presos alimentava a esperança de uma
pena leve, havendo até os que estavam certos de
poder em breve tomar um chopinho e tirar outros
atrasos lá fora (PAIVA, 1986, p. 58).

A entrada de mulheres na penitenciária inicia-se em 01 de


outubro de 1969 e finda em setembro de 1971, com a extinção da ala
feminina, ocorrendo suas transferências temporárias para outros
locais, entre eles, a Penitenciária de Mulheres, de Belo Horizonte.
Depois da saída das “companheiras”, os presos da ala masculina
passaram a ocupar também o espaço que era delas. Após quase
dois meses trancafiados nas celas, eles conseguiram novamente o
direito ao banho de sol, horário que era destinado para as discussões
políticas. “Os intervalos das reuniões, estas pareciam intermináveis,
e geralmente aproveitávamos para fazer ginástica, correr um pouco,
desintoxicar os músculos e desenferrujar as juntas” (VIANA, 1979, p.
22). Nessas reuniões intermináveis, forjou-se também a resistência. Os
presos políticos criaram pequenas redes colaborativas de informação,
constituídas por cartas, bilhetes, panfletos e jornais clandestinos,
tentando romper o cerco da censura e do arbítrio, e enfrentando o
silenciamento da imprensa local e nacional a respeito das violências
a que eram submetidos29.

29 Entre os presos políticos que estiveram detidos em Linhares, deve-se citar a


ex-presidente da República brasileira, Dilma Rousseff (PT), o atual governador
de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), e o ex-prefeito de Belo Horizonte,
Márcio Lacerda (PSB), entre muitos outros. O último preso político a sair de
Linhares foi o sindicalista José Francisco Neres, em 1979.
126 | Trilhas do imaginário

4 A rede de comunicação interna


Ao estudar a penitenciária de Linhares, Flávia Ribeiro descreve
as estratégias de comunicação dos militantes, várias delas aprendidas
com os presos comuns, como a “teresa”, a corda que, esticada entre
a celas, levava mensagens ou objetos - até rádios -, ou as “balas”,
diminutas cápsulas de papel, que eram escondidas em partes do
corpo ou dentro de alimentos e roupas, e que serviam para a troca
de informações entre os detentos.
Dessa forma os militantes de esquerda se
organizavam para trocar informações entre os
que estavam presos no mesmo pavimento, ou
entre os que já desfrutavam do convívio. Havia
a prática da chamada de nomes, dos presos
trancafiados nas celas de isolamento, realizada
todas as manhãs, para que eles mesmos pudessem
estabelecer o controle dos companheiros da mesma
organização que permaneciam na penitenciária de
Linhares. A iniciativa também auxiliava ao grupo
ter conhecimento sobre as condições em que se
encontrava cada um no seu cubículo, para que
pudessem exigir dos carcereiros atendimento em
caso de doença ou outras dificuldades (RIBEIRO,
2007, p. 144).

A militância continuava no interior da penitenciária.


Mesmo aqueles que já tinham sido alvo da tortura, durante
interrogatórios anteriores, pareciam não temer punições e se
expunham ao perigo, não só como missão, mas estratégia de
sobrevivência contra o controle da instituição. A rotina da
penitenciária, embora burlada pelos presos, não era simples:
quase sempre, eles ficavam fechados em celas individuais quase
vinte horas diárias, proibidos de ter fósforos, isqueiros, jornais,
revistas ou rádios dentro das celas (MEMÓRIAS, 2016, p. 239),
embora os presos conseguissem burlar a lei, organizando-se
para se opor ao sistema regulador.
Trilhas do imaginário | 127

Mas não somente informações clandestinas eram


trocadas dentro de Linhares. O coletivo organizou
veículos de comunicação, confeccionados pelos
presos políticos, que eram utilizados também como
espaço para o debate e para repassar as notícias.
Entre os que circularam, [o preso] Nilo Sérgio
relembra como aproveitava uma concessão da
direção do presídio, um rádio de pilha na sua cela
para amenizar o zumbido que tinha no ouvido
para transmitir fatos ocorridos fora dos muros
aos companheiros de prisão: “E eu ouvia a rádio
Pequim, eu ouvia a rádio Havana, etc. E eu editava
um jornal que se chamava ‘Bandeira Vermelha’
(RIBEIRO, 2007, p. 149).

De acordo com vários relatos memorialísticos sobre a


penitenciária, apesar da separação física, os presos, homens
e mulheres, conseguiam se comunicar, às vezes, até mesmo
de forma poética, através da cantoria. É um fato bastante
ilustrativo sobre essa rede de solidariedade a recepção que
Carmela Pezzutti teve, quando de sua segunda detenção na
penitenciária. Naquela época, o preso nunca sabia nem quando
nem para onde o estavam transportando e, mesmo ao retornar
a um lugar familiar, como Linhares, onde já tinha estado detida
e, em liberdade provisória, costumava visitar os filhos, Carmela
inicialmente estranhou.

Ao retornar da audiência na Auditoria Militar,


Carmela foi retirada do isolamento e colocada
no pavilhão de outras presas, de onde saíra nove
meses antes. Fora com efeito, o tempo de um parto.
Extremamente doloroso.
No pavilhão dos homens, na outra ala do presídio,
ouviram-se então os gritos das companheiras:
– Ângelo, Murilo, a Carmela chegou, está aqui!
Ângelo e Murilo receberam surpresos a novidade.
Eles sabiam que a mãe havia sido presa no Rio. Mas
128 | Trilhas do imaginário

só naquele momento tomavam conhecimento da


boa nova.
Pelo resto daquele dia, Carmela, Ângelo e Murilo
mataram as saudades com os gritos que se cruzavam
entre os pavilhões. E, também assim, trocaram
algumas informações que podiam ser captadas
por qualquer ouvinte eventualmente interessado.
Ao cair da noite, os presos recolhidos às celas,
como se todos, ensaiados, estivessem aguardando
os primeiros versos da homenagem do dia, fez-se
repentinamente silêncio e, junto à grade da janela
que dava para o pátio interno, ouviram-se as vozes
de Ângelo e de Murilo:
“Hoje, eu quero a rosa mais linda que houver,
Quero a primeira estrela que vier;
Para enfeitar a noite do meu bem...” (PAIVA, 1996,
p. 82).

O convívio de Carmela Pezzuti com os filhos, na prisão,


demoraria pouco tempo. Logo, chegaria a Linhares a informação
do sequestro do embaixador alemão, e a exigência de que 40 presos
políticos fossem libertados, entre eles, os filhos de Carmela.

Todo o presídio madrugou naquele dia. E, através


das conversas entre as celas e dos gritos entre os
pavilhões, foram se difundindo as informações
captadas por um preso no rádio do PM que fazia
a guarda na guarita fronteira à sua cela. Na lista
dos 40 presos cuja liberdade era exigida pelos
sequestradores, havia seis de Linhares, todos da
Colina, entre os quais Ângelo e Murilo. Deveriam
ser enviados para a Argélia (PAIVA, 1996, p. 84).

As precárias, mas eficientes, redes de comunicação tinham


permitido não só a sobrevivência ao cárcere, como a divulgação e a
recepção de mensagens do exterior.
Trilhas do imaginário | 129

5 A comunicação com o mundo exterior: a “Carta de Linhares”


A “Carta de Linhares” foi o primeiro documento escrito em
uma prisão brasileira, que denunciou com riqueza de detalhes as
violações dos direitos humanos a que eram submetidos os presos
políticos. O manuscrito assinado por doze presos, entre eles Ângelo
Pezzuti e Murilo Pinto da Silva, revelava as torturas cometidas pelo
regime e a situação das prisões no Brasil . O objetivo do documento
de 28 páginas, datado de 19 de dezembro de 1969, era o de apresentar
ao Conselho de Defesa da Pessoa Humana os testemunhos sobre a
violência e a tortura nas prisões, quartéis e delegacias. Não se sabe
exatamente como o manuscrito foi contrabandeado da penitenciária
para o seu exterior. No Brasil, sua repercussão, à época, não existiu,
mas, no exterior, foi o primeiro passo para a grande campanha de
desmascaramento da ditadura.
De acordo com o transcrição do original manuscrito, publicado
como apêndice ao relatório da Comissão Municipal da Verdade de
Juiz de Fora (CMV-JF), chama a atenção o rigor das informações que
são organizadas de forma extremamente didática e que englobam : as
diligências e prisões; os interrogatórios nas delegacias de Vigilância
Social (DVS), Furtos e Roubos, na Colônia Penal Magalhães Pinto, 12º
Regimento de Infantaria, todos em Belo Horizonte, e , finalmente, na
Polícia do Exército, na Vila Militar da Guanabara. “Nas duas primeiras
noites após a sua chegada, os presos foram proibidos de dormir,
sendo obrigados a permanecer de pé por 96 (noventa e seis) horas e
de momento a momento jatos de água fria [eram] jogados por uma
mangueira” (MEMÓRIAS, 2016, p. 234). Na Vila Militar, em setembro
de 1969, os presos foram submetidos à tortura. Os procedimentos
são detalhados no texto, como também não se omitem os nomes dos
torturadores:

Ângelo Pezzuti da Silva – torturado em choque


elétrico e com a palmatória de madeira. Chegando
a um determinado ponto da tortura, Ângelo não
130 | Trilhas do imaginário

suportou mais e atirou-se na janela de vidros da sala,


cortando-se em várias partes do corpo e perdendo
os sentidos. Foi levado para o Hospital Militar da
Vila, onde recebeu vários pontos nas costas e no
braço. [...] Ângelo Pezzuti foi torturado pelos cabos
Mendonça e Bovoreli a mando do tenente Haylton
(MEMÓRIAS, 2016, p. 235)

No documento, ganha destaque a descrição de uma


“instrução sobre interrogatórios”, que é ministrada para um
grupo de cem militares, a maioria “sargentos das três armas”,
na Polícia do Exército.

Em seguida, fizeram-nos entrar na sala, tirar as roupas


e, enquanto o tenente Haylton projetava “slides”
explicando a forma de tortura, suas características
e efeitos, os sargentos Andrade, Oliveira, Rossoni
e Rangel juntamente com os cabos Mendonça e
Bovoreli e o soldado Marcolino torturavam os presos
frente aos cem militares, numa demonstração ao vivo
dos vários métodos de tortura empregados. Maurício
recebeu choques, Bretas teve o dedo comprimido
pelos ferrinhos, Murilo teve que subir nas latinhas
de bordas cortantes, Zézinho foi pendurado no pau-
de-arara, o ex-PM foi espancado com a palmatória,
enquanto Nilo Sérgio deveria ficar segurando pesos
com os braços abertos, equilibrando-se numa perna
só (MEMÓRIAS, 2016, p. 235).

Além de denunciar a institucionalização da tortura, a “Carta


de Linhares” divulga os nomes de duas vítimas, que morreram em
consequência da tortura, em 1969: João Lucas Alves e Severino Viana
Collou (sic). A polícia, segundo o documento, mentia ao dizer que
eles tinham se suicidado.
A “Carta de Linhares” descreve com detalhes cada tipo de
tortura e mostra como a violência é usada para conseguir informações
dos presos que, em seguida, vão ser incorporadas aos inquéritos que
sustentarão os processos na Justiça Militar.
Trilhas do imaginário | 131

A tortura está nas entranhas da repressão


política. É uma de suas instituições. E vai além
disso. A tortura é um dos baluartes da Justiça
Militar – Basta que seja examinado um processo
político. Tudo encontra seu centro de irradiação,
sua pedra de toque, no depoimento do réu.
Durante o inquérito policial-militar, o exército,
os centros de informações e a polícia orientam-se
exclusivamente pelas informações obtidas sob
tortura. Procuram obter as indicações das provas
materiais para incriminar o próprio réu, seus
companheiros, ou um outro acusado político, no
interrogatório sob pancadas – O interrogatório do
réu é a peça orientadora fundamental de todas as
demais peças do processo político (MEMÓRIAS,
2016, p. 247).

A coação física utilizada como instrumento para obter a


confissão dos indiciados se transformou em método rotineiro e
eficaz da ditadura. Também sob tortura, obtinham-se declarações
de arrependimento das vítimas, que traíam assim suas crenças e
negavam o uso da violência pelo sistema. Na guerra de informações,
as frágeis estratégias dos presos políticos mostraram-se vigorosos
instrumentos de denúncia, embora, nem sempre, tenham chegado ao
seu fim. A “Carta de Linhares” não foi manchete em nenhum jornal
brasileiro, mas, no exterior, foi um instrumento fundamental para
reverter a imagem que a ditadura procurava perpetrar de um Brasil
Grande. De acordo com o jornalista Élio Gaspari, o “Documento de
Linhares” teve uma versão de vinte páginas que chegou aos Estados
Unidos. A partir daí, as denúncias passaram a ser conhecidas no
mundo inteiro, até porque as “aulas de tortura” integraram cenas
do filme “Estado de Sítio” do diretor grego Costa-Gravas (GASPARI,
2002, p. 274). O documento teve grande repercussão internacional,
servindo de base para denúncias apresentadas pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos – CIDH/OEA.
132 | Trilhas do imaginário

6 “Até sempre 3”: o manuscrito e o processo de mais


de 600 páginas
Nem sempre os presos de Linhares conseguiram contrabandear
para fora do penitenciária as denúncias às quais queriam dar
visibilidade. O caso do manuscrito “Até sempre 3” é emblemático.
Apesar de não ter obtido o sucesso da “Carta de Linhares”, a apreensão
do mesmo dá a dimensão de como o Estado lidava com as táticas de
guerrilha da informação, durante a ditadura militar. A apreensão do
manuscrito deu origem a um processo de mais de 600 páginas, que
findou sem levar nenhum acusado à condenação, mas, no âmbito deste
trabalho, revela o embate entre a frágil estrutura da resistência e a força
do aparato da repressão. Ao mesmo tempo, chama a atenção outro dado
relevante: era no espaço dos tribunais, que alguns presos denunciavam
as torturas à que tinham sido submetidos anteriormente, durante
os IPMs, na esperança de que, naquele momento, com a legalidade
da justiça e com a legitimidade da imprensa, pudessem denunciar
as violências e também a maneira como tinham sido conseguidas
confissões mentirosas, durante os interrogatórios policiais. No caso
do manuscrito “Até Sempre 3”, não conseguindo a visibilidade de seus
protestos na imprensa, os presos redigem eles próprios um documento,
relatando detalhes do julgamento do processo 73/69, um dos mais
longos do tribunal militar de Juiz de Fora.
Durante 27 horas, entre os dias 19 e 20 de março de 197030, na
sede da 4ªCJM, e em razão do Processo 73/69, ocorreu o interrogatório
coletivo de 12 presos políticos, ligados ao Colina, detidos na penitenciária
de Linhares. Esse processo possui como objeto de acusação, a 28
réus, a provocação de guerra subversiva, sabotagem e terrorismo,
agrupamento paramilitar, propaganda subversiva, posse ilícita de
armamentos, apologia de crime contra a segurança nacional, motim,
tentativa de homicídio qualificado e favorecimento real. A sessão foi
presidida pelo juiz-auditor Mauro Seixas Telles.

30 A data da denúncia consta como 15 de dezembro de 1969 e a do julgamento


como 13 de junho de 1973.
Trilhas do imaginário | 133

Em função da extensão dos depoimentos prestados, e que


estão no processo, citaremos aqui apenas parte dos testemunhos
de dois dos presos políticos, cujos testemunhos foram depois
transcritos no manuscrito “Até Sempre 3”. Para termos ideia das
denúncias realizadas por Ângelo Pezzuti, por exemplo, lemos em
seu interrogatório:

Que os depoimentos dos indiciados são produto


de uma montagem levada a cabo pela polícia,
muitas vezes inconscientemente, através de dados
colhidos em informações às vezes esparsas, que
servem para a montagem da estória; que foi
dessa forma que a polícia obteve informações e
os depoimentos que informam a denúncia; que o
depoimento dado na Delegacia de Furtos e Roubos
e confirmado no 12º RI é totalmente inverídico;
que esse sistema de interrogatório não vicia apenas
o IPM, como o IPM é considerado uma instrução
preliminar sob o qual se baseia e em torno do qual
gira todo o processo na Junta Militar, não só porque
a denúncia é oferecida pelas conclusões do IPM,
como as testemunhas arroladas pela acusação são
pessoas que participaram do interrogatório [...] em
que as testemunhas são os próprios interrogadores;
[...] que o interrogatório montado nessas condições
vicia todo o processo subsequente, atingindo até
os próprios princípios da justiça militar; [...] que
na Delegacia de Furtos o interrogado foi torturado
com outros companheiros, sendo para tanto
utilizado o pau-de-arara, os choques elétricos, a
hidráulica; [...] que as pessoas que participaram
dessas torturas, com relação ao interrogado, foram
os indivíduos da DFRBH, Pereira, Saraiva, José
Maria, Cecildes, delegado Mário Rocha, e que
estavam presentes ao ato de tortura o delegado
Lara Rezende e o dr. Luiz Soares da Rocha,
superintendente da polícia do estado de Minas
Gerais, que autorizou e orientou essas torturas; que
134 | Trilhas do imaginário

na PE da Guanabara, também foram torturados


mais ou menos pelos mesmos métodos; que
verificaram o interrogado e seus companheiros
que as torturas são uma instituição, vez que o
interrogado foi instrumento de demonstrações
práticas desse sistema, em uma aula de que
participaram mais de 100 (cem) sargentos e cujo
professor era um oficial da PE chamado tenente
Ayton; [...] que não considerará a pena que lhe for
imposta como uma punição, pois não se considera
réu de uma justiça que não emana de nenhuma
autoridade que ele, interrogado, reconheça; que
só reconhece a justiça que provem de valores da
luta revolucionária do seu povo; [...] que o que se
vê não só nesse tribunal, como em outros lugares,
é o confronto entre a verdade revolucionária e a
mentira reacionária; que, por fim, quer declarar
que o sistema de terror ainda perdura dentro da
Penitenciária de Linhares. (PROCESSO 73/69, p.
929-932).

O detendo Júlio Antônio Bittencourt Almeida, que foi preso


em flagrante, por desrespeito, depois do interrogatório, declarou
na sessão:

Que as acusações constantes da denúncia são


totalmente falsas; [...] que foi informado dos
fatos constantes da denúncia e que são atribuídos
através de seus torturadores; [...] que conhece
o seu depoimento, todo obtido sob tortura o
qual é negado “in totun”; que apresenta como
motivo particular da acusação que lhe pesa
a necessidade dos elementos da repressão de
mostrar serviço de qualquer maneira; [...] que
quer declarar ainda que o presente regime é
ilegal e ilegítimo e contra todas as leis e que
este Tribunal não representa o poder das leis
e sim o poder contra as leis e por isso não tem
autoridade nem jurídica e nem moral para julgar
pois... (PROCESSO 73/69, p. 941-944).
Trilhas do imaginário | 135

No dia 21 de março, o “Diário Mercantil” (DM), em Juiz de Fora,


noticiou o fato de maneira abreviada e não mencionou as denúncias,
feitas pelos detentos, durante o interrogatório. Segue a reprodução
da matéria na íntegra:

CONSELHO PERMANENTE OUVIU MEMBROS DO


GRUPO “COLINA”
Num ambiente de grande tensão, a que se aliou o
visível cansaço dos juízes, do promotor Simeão de
Faria Filho e dos demais funcionários da justiça, 14
acusados foram ouvidos, e alguns dos depoimentos
duraram mais de 3 horas cada um. Segundo
informação da Auditoria, são 28 acusados, mas
nem todos se encontravam presentes, e outros são
apontados como criminosos em outros processos.
DESACATO
Às 5h30 da manhã de ontem, quando era ouvido pelo
Conselho, Júlio Antônio Bittencourt de Almeida disse
um impropério para os juízes, tendo sido chamado
a atenção, mas o acusado afirmou “que não tenho
satisfações a dar”, sendo novamente advertido.
Logo depois, os juízes resolviam dar voz de prisão
a Júlio Antônio, chamando à Auditoria o delegado
Damião Mendes, para autuar o acusado, sob alegação
de desacato à autoridade. Antes do episódio que
envolveu Júlio Antônio, os seus companheiros Ângelo
Pezzuti e Afonso Celso Lana Leite também afirmaram
que não reconheciam autoridade no Conselho
para julgá-los. Afonso foi mais longe, dizendo que
a sua condenação “seria um galardão de ouro que
guardaria para o resto da vida”.
ADVOGADO RENUNCIA
A Auditoria ainda teve momentos de tensão e
nervosismo, na manhã de ontem, quando o advogado
Francisco José Ferreira Neto pediu exame de sanidade
mental para o acusado Afonso Celso Lana Leite. Logo
em seguida, num gesto que deixou muitos perplexos,
renunciou à procuração para defesa de seu cliente.
136 | Trilhas do imaginário

SOCIALISTAS
Presos há mais de 1 ano, aguardando julgamento,
os acusados têm responsabilidade nas atividades do
Grupo Colina e reconheceram os objetivos socialistas
a que se propuseram. Pedro Paulo Bretas, um deles
(filho de um dos mais poderosos fazendeiros de
Goiás e excelente aluno da Faculdade de Medicina
de Belo Horizonte) também confessou ser membro
do esquema de expropriação do grupo, embora
lembrando que não estivesse presente em dois
assaltos citados pelo juiz Mauro Telles (CONSELHO,
21 mar.1970, p. 8).

No dia 2 de abril, foi apreendido, na penitenciária de Linhares,


o manuscrito “Até Sempre 3”, que relata, em detalhes, o que tinha
ocorrido no julgamento do processo 73/69. As informações a que
tivemos acesso para reconstituir essa história fazem parte de um novo
processo, 32/70, que acusa cinco réus, de propaganda subversiva e
apologia de crime contra a segurança nacional. As datas da denúncia
constam como 23 de julho e 13 de novembro de 1970 e a do julgamento
como 10 de agosto de 1971.
A partir da junção das várias informações espalhadas ao longo
das 683 páginas do Processo 32/70, foi-nos possível reconstituir o que
tinha acontecido a partir da apreensão do manuscrito “Até Sempre
3”. A riqueza de detalhes é impressionante. Por isso, apresentamos
apenas uma espécie de resumo do que é narrado. Reconhecemos
que esta é a versão da história contada para um tribunal militar,
mas capaz de revelar detalhes reveladores sobre o comportamento
das vítimas e dos perpetradores da opressão.
De acordo com o laudo emitido pelos peritos grafotécnicos
do Dops-BH, o manuscrito “Até Sempre 3” (FIG. 1) consta de
uma peça de 11 folhas de papel branco, tipo seda, sem pautas,
numeradas de 12 a 24, grampeadas, com capa em papel de cor
amarela, manuscritas à caneta esferográfica de carga azul, em
caracteres imitativos tipográficos apresentando como título os
seguintes dizeres:
Trilhas do imaginário | 137

ATÉ SEMPRE 3 – CADERNO ESPECIAL – REVISTA


QUINZENAL: DEBATES – FEVEREIRO – MARÇO/1970
– A DITADURA NO BANCO DOS RÉUS – H. Expect.
(PROCESSO 32/70, p. 381).

A apreensão desse manuscrito ocorreu no dia 2 de abril de


1970, ocasião em que ocorria a visita aos presos políticos. Neste dia,
com a presença de 20 pessoas na sala de entrevistas, entre visitantes
e detentos, a vigilância era exercida por um sargento da PM e três
guardas civis. Os irmãos Ângelo e Murilo receberam a visita de seu pai,
Theofredo Pinto da Silva, acompanhado da esposa e duas tias paternas.
Os familiares levaram alimentos em uma caixa de isopor.
Durante a visita, as tias procuraram se inteirar de detalhes do
interrogatório acontecido no mês anterior. Ângelo contou, então,
que ele e seus companheiros tinham feito um “jornalzinho” que
reproduzia a sua atuação no julgamento. Diante do interesse das
tias, o preso disse que tentaria conseguir “passar” o manuscrito para
o pai (PROCESSO 32/70, p. 187).
Ao fim da visita, os detentos, acompanhados de um guarda
civil, levaram o que lhes fora trazido para o Coletivo, organizado pelos
presos, e onde tudo era depois compartilhado. Em seguida, Ângelo
solicitou ao guarda para devolver as bolsas e as sacolas à família.
O policial viu que o preso segurava um documento dobrado, que
passou ao pai, por baixo da caixa de isopor, na despedida. Theofredo
prontamente colocou os papéis dentro da caixa e exclamou: “Aqui
dentro só tem gelo”.
Mas, ao chegar ao carro, na área externa, o pai de Ângelo e
Murilo foi interpelado por um policial. A princípio, disse que não
havia nada na caixa, somente o gelo restante. Mas o policial exigiu a
caixa e, assim, verificou o documento, que se encontrava camuflado
entre o gelo. Theofredo foi obrigado a devolver o manuscrito, que
foi apreendido, mas a família foi liberada.
No dia 4 de abril de 1970, o diretor da penitenciária enviou
ao comandante da 4ª RM o manuscrito “Até Sempre 3”. Em seguida,
foi determinada a instauração do IPM e designado o capitão Arthur
138 | Trilhas do imaginário

Verlangieri como encarregado do inquérito. Theofredo da Silva, que


tinha viajado para Araxá, foi surpreendido com a solicitação de seu
comparecimento à capital mineira e, logo após, a sua prisão efetuada
por membros do Dops-BH, e o retorno a Juiz de Fora.

Figura 1 – Manuscrito “Até sempre 3”

Fonte: RIBEIRO, 2007, p. 219

Segundo Ângelo Pezzuti explicaria, mais tarde, o título do


manuscrito “Até sempre” é uma saudação31 e o “3” se refere ao número
do exemplar, porquanto devem ser computados os exemplares dos
murais anteriormente expostos no refeitório32. A primeira página
do manuscrito expõe um editorial assinado por H. Expect, em que
o autor acusa a ditadura militar de imperialismo, relatando que,
durante a sessão, tinha havido um clima tenso, em que todos os

31 “Hasta Siempre” é uma canção cubana de 1965, de autoria de Carlos Puebla,


em homenagem a Ernesto Che Guevara.
32 Não foram localizados esses outros exemplares.
Trilhas do imaginário | 139

responsáveis pelo julgamento estavam submissos aos “milicos” e


que os réus tiveram suas defesas obstruídas desde a penitenciária
de Linhares, onde lhes foram confiscados os relatos escritos que
haviam preparado para entregar no tribunal. Nesse editorial, afirma-
se a tentativa de reconstituição dos aspectos mais importantes “[...]
do memorável início de sumário de culpa da ditadura” (PROCESSO
32/70, p. 24), e se conclui chamando o tribunal de farsa. Verifica-se
que os interrogados construíram um discurso de conformidade em
suas avaliações e julgamentos, negando o teor de seus interrogatórios
anteriores, formulados sob tortura e coação, além de denunciarem
os responsáveis pelas sevícias em diversas instituições e os maus-
tratos na penitenciária, desafiando, no próprio tribunal militar, o
governo ditatorial instituído com o golpe.
A partir dos autos do Processo 73/69, em que constam os
depoimentos referidos no manuscrito “Até Sempre 3”, foi possível
fazer um cotejamento entre os dois discursos, o oficial e o marginal, e
perceber suas semelhanças com leves diferenças de tom. É interessante
ressaltar que, de maneira audaciosa, as denúncias foram feitas dentro
do tribunal do júri, incomodando as grandes patentes militares
presentes na ocasião. Quatro presos políticos negaram as torturas
e as coações, e disseram ter abandonado as atividades criminosas;
entretanto, a maioria confirmou as torturas e as coações, além de
questionar o tribunal, sendo que um dos réus acusou a penitenciária
de Linhares de não respeitar os direitos humanos, sendo detido em
flagrante (PROCESSO 73/69, p. 927-964).

7 O inquérito policial militar (IPM) e o processo 32/70


A primeira ação do capitão Verlangieri, encarregado do IPM,
é emitir, em 15 de abril de 1970, um mandado de prisão contra
Theofredo da Silva e, no dia 25 de abril, em virtude da suspeita de
existência de outros informes e/ou objetos proibidos em poder dos
presos políticos e comuns, realizar uma diligência na penitenciária
de Linhares, em que foi possível, segundo o capitão, caracterizar a
140 | Trilhas do imaginário

continuada atividade delituosa por parte dos detentos. No dia 7


de maio de 1970, após várias diligências, o agora major Verlangieri
publica seu relatório, enviando-o ao general comandante, indiciando
todos os envolvidos. Afirma o major:

Os grupos subversivos, a partir de 1969, quando


recolhidos à Penitenciária Regional de Juiz de
Fora (Linhares), passaram a adotar nova técnica
de estruturação, a fim de se amoldarem à tática
revolucionária, ditada pelas condições carcerárias.
Inicialmente apenas montaram grupos destinados
a debater temas durante os coletivos, normalmente
dirigidos pelos militantes que atuariam como
“profissionais”; posteriormente dedicaram-se a
fabricar panfletos e documentos sobre torturas
de presos. Logicamente esta atuação visava ao
recrutamento de militantes, e a preparação da
massa popular para a subversão através da técnica
conhecida da “agitação e propaganda”. O documento
“Até Sempre 3” tinha a finalidade de sintetizar as
várias posições adotadas pelos presos. Seu texto
procurava criar um clima de ódio entre familiares
e militares, sempre ressaltando a necessidade de
atestarem sua profissão de fé comunista e seu
desprezo pelos tribunais de julgamento (PROCESSO
32/70, p. 219-220).

Em razão da apreensão do manuscrito “Até Sempre 3”, o


Ministério Público Militar acusou, em 23 de julho de 1970, os civis
Theofredo Pinto da Silva, Ângela Maria Pezzuti33, Ângelo Pezzuti da
Silva, Murilo Pinto da Silva e, posteriormente, Erwin Rezende Duarte,
de propaganda subversiva e apologia de crime contra a segurança
nacional (PROCESSO 32/70, p. 232).
O julgamento de Theofredo da Silva, Ângela P. e Erwin D.,
presidido pelo juiz-auditor Mauro Seixas Telles, ocorreu no dia 10

33 Ângela Maria Pezzuti, tia dos presos, foi indiciada por tentar contrabandear
informações sobre a situação política de outros grupos de guerrilha urbana
para os sobrinhos.
Trilhas do imaginário | 141

de agosto de 1971, de 13h30 às 20h, na sede da Auditoria da 4ª CJM,


em audiência pública, em que o Conselho Permanente de Justiça do
Exército emitiu a sentença, concluindo que, como o manuscrito “Até
Sempre 3” não conseguira amealhar a publicidade desejada, o que
consumaria o delito, resolveu-se entender que o fato não chegou
a ferir a norma penal. Assim, por unanimidade, o Conselho julgou
improcedente a denúncia.
Os irmãos Ângelo P. e Murilo da Silva não foram sentenciados,
por terem sido banidos anteriormente do território nacional34.
Posteriormente, foi extinta a punibilidade de Ângelo, em razão de
sua morte ocorrida na França, em 197535. Em 03 de setembro de
1979, oito anos após o encerramento do Processo 32/70, o Conselho
Permanente da Auditoria da 4ª CJM decretou extinta a punibilidade
de Murilo da Silva36, em face da Lei nº 6.683/79, a Lei de Anistia.
De toda a família, apenas Ângela Pezzuti da Silva ainda está viva,
residindo em Belo Horizonte, Minas Gerais37.
A recuperação das narrativas sobre o manuscrito “Até
sempre 3”, como outros frágeis mas contundentes veículos de
comunicação utilizados pelos presos para denunciar e resistir à
ditadura militar, abrem um campo de investigação pouco conhecido
e que revela detalhes importantes para a compreensão da história
recente do país.

34 Ângelo e Murilo estavam entre os 40 presos políticos trocados pelo embaixador


alemão, sequestrado pela guerrilha urbana, em 11 de junho de 1970, e foram
levados à Argélia. Seis meses depois, Carmela Pezzuti, mãe deles, estava entre
os 70 presos trocados pelo embaixador suíço, e desembarcou no Chile, para
onde foram seus dois filhos.
35 Ângelo Pezzuti morreu no exílio, em acidente entre sua moto e um carro, na
estrada que ligava Evry, onde morava, e Paris, no dia 11 de setembro de 1975
(PAIVA, 1994, p. 184).
36 Murilo da Silva suicidou-se em Vila Bela da Santíssima Trindade, em Mato
Grosso, em 1990, estado onde ele atuava junto aos movimentos de lavradores
(PAIVA, 1994, p. 244).
37 Carmela Pezzuti morreu em 2009, em decorrência de complicações de saúde,
quando já estava em estado avançado do mal de Alzheimer (ARBEX, 2015, p. 336).
142 | Trilhas do imaginário

8 Considerações finais
Ao resgatar parte dos registros de resistência ao golpe civil-
militar de 1964, no Brasil, por parte de militantes políticos e de
outros ativistas, na cidade de Juiz de Fora, durante as décadas de
1960 e 1970, através de pesquisas em processos jurídico-militares,
dos depoimentos cedidos à Comissão Municipal da Verdade de Juiz
de Fora, e em periódicos jornalísticos, foi-nos possível reconstruir a
história do período. A pesquisa enveredou na análise de pequenas
redes colaborativas de informação, em especial o manuscrito “Até
Sempre 3”, que procurou romper o cerco da censura e do arbítrio,
e enfrentar o silenciamento da imprensa local e nacional a respeito
de histórias de violação de direitos humanos. Apesar de ter sido
apreendido, o frágil manuscrito revela a coragem dos presos políticos
na tentativa de denunciar publicamente os abusos e torturas a que
eram submetidos. A dimensão dos processos em que essas tentativas
de denúncia são narradas revelam o zelo das autoridades militares
em investigar e punir qualquer desvio ao controle do Estado. A
investigação documental dos Processos 73/69 e 32/70 possibilitou
uma nova compreensão da história recente do país.
É necessário ressaltar que o acesso aos acontecimentos narrados
por estratégias alternativas de comunicação se deu também a partir
dos arquivos da própria repressão que fez um minucioso trabalho de
controle e vigilância que nos possibilitou essa pesquisa. Se os arquivos
são instituições de memória cultural, igualmente o são lugares de
memória investidos de uma aura simbólica que ultrapassa sua mera
aparência material e sua funcionalidade, cujos documentos refletem
as atividades que lhes deram origem; portanto, é preciso compreender
e analisar suas contradições, seu velamento e seu desvelamento, pois
foram produzidos na vigência de regimes de exceção, cuja hipertrofia
documental constitui uma de suas características.
No que concerne à relação do manuscrito “Até Sempre 3” com
o jornal” Diário Mercantil”, conclui-se que, apesar das acusações
proferidas pelos presos políticos, registradas nos autos do processo
Trilhas do imaginário | 143

73/69, a imprensa se calou diante das sérias denúncias de sevícias,


assassinatos e desrespeito às leis. O silenciamento e, em alguns casos,
a adesão foram a marca característica da grande mídia durante a
ditadura militar, comportamento contestado pela chamada mídia
alternativa, as organizações não-governamentais, e ações isoladas
ou coletivas de militantes e presos políticos.
Por conseguinte, é preciso que se deixe bem claro que não
é que os profissionais da imprensa não soubessem ou fossem
censurados pelo sistema repressivo, mas que muitos profissionais
se calaram por medo, enquanto outros foram coniventes com os
crimes cometidos. A crítica à mídia e aos poderes constituídos deve
ser constante. A rememoração nos abre possibilidades para refletir e
reconstruir algumas das lacunas da história. Através desta pesquisa,
procuramos desvelar narrativas frágeis, marginais, que nos permitem
compreender melhor a complexidade do país em que vivemos. Nessa
trama, encontrar alguns fios da meada e interpretar seus enredos nos
parece justificar todo o esforço em contribuir para dar um sentido
ao nosso papel como pesquisadores, educadores e cidadãos.

Referências
ARBEX, Daniela. Cova 312. São Paulo: Geração Editorial, 2015.
BRASIL nunca mais: um relato para a história. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985.
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comissaodaverdade.mg.gov.br/ Acesso em: dez 2017.
COMISSÃO MUNICIPAL DA VERDADE DE JUIZ DE FORA. Disponível em:
http://www.ufjf.br/comissaodaverdade Acesso em: jul 2017.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Disponível em: http://www.cnv.gov.
br. Acesso em: jul 2017.
CONSELHO permanente ouviu membros do grupo “Colina”. Diário
Mercantil, 21 de março de 1970, p. 8.
ESTADO terá dificuldade para amenizar o presente de grego da peniten-
ciária de JF. Diário Mercantil, Juiz de Fora, 25 de janeiro de 1966, p. 05.
FICO, Carlos. O golpe de 1964: momentos decisivos. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2014.
144 | Trilhas do imaginário

GASPARI, Elio. A ditadura escancarada – as ilusões armadas. São


Paulo: Cia das Letras, 2002.
GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a Esquerda Brasileira – das
ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.
LARANGEIRA, Álvaro Nunes. A mídia e o regime militar. Porto Alegre:
Sulina, 2014.
MEMÓRIAS da repressão: relatório da comissão municipal da verdade de
Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG: MAMM, 2016.
MUSSE, Christina Ferraz. Imprensa, cultura e imaginário urbano:
exercício de memória sobre os anos 60/70 em Juiz de Fora. São Paulo:
Nankin; Juiz de Fora, MG: Funalfa, 2008.
MUSSE, Christina Ferraz. Ruínas do passado: a imprensa, a memória e
os depoimentos da CMV-JF. Relatório do projeto de pesquisa financiado
pela UFJF. 8p.
PAIVA, Maurício. O sonho exilado. Rio de Janeiro: Achiamé, 1986.
PAIVA, Maurício. Companheira Carmela – a história da luta de Carmela
Pezzuti e seus dois filhos na resistência ao regime militar e no exílio. Rio
de Janeiro: Mauad, 1996.
PENITENCIÁRIA de Linhares poderá funcionar logo. Diário Mercantil,
Juiz de Fora, 04 de janeiro de 1966, s/p.
PROCESSO 32/70. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/
DocReader.aspx?bib=BIB_03&PagFis=14904. Acesso em: 12 nov 2016.
PROCESSO 73/69. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/
docreader.aspx?bib=BIB_02&PagFis=80004. Acesso em: 2 jan 2017.
RIBEIRO, Flávia Maria Franchini. A subida do monte purgatório:
estudo da experiência dos presos políticos da penitenciária regional
de Linhares (1969- 1972). Dissertação de Mestrado. Instituto de Ciências
Humanas. Programa de Pós-Graduação em História. Juiz de Fora: UFJF,
2007.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada
subjetiva. São Paulo: Cia das Letras; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007.
SILVA, Juremir Machado da. 1964: golpe midiático, civil e militar.
Florianópolis (SC): Ed. Insular, 2017.
VIANA, Gilney Amorim. 131-D, Linhares – memorial da prisão política.
Belo Horizonte: Editora O Lutador, 1979.
| 145

Teoria do imaginário e capoeira:


a hermenêutica simbólica do imaginário
cantado e vivido

Adriano Florencio38
Marcos Nicolau 39

1 Introdução
O presente artigo traz uma compreensão da Teoria do
Imaginário e a Capoeira numa ótica específica, trabalhando sob
forma de perspectiva analítica com as músicas que são cantadas
e entoadas nas rodas de capoeira, o que as coloca aqui em nossa
pesquisa como objeto de estudo. Assim, buscamos compreender
dentro dos aspectos simbólicos e significantes que o imaginário nos
fornece, utilizando para isso o aporte da Análise de Discurso.
Por isso nosso estudo se apropria de uma das expressões
artísticas mais significativas da cultura brasileira, um misto de
dança, canto e luta. A Capoeira tem dentro de si por natureza um
jogo de significados e ressignificações que induziram e teceram os
fios dessa teia de descobrimento e revelações de ordem interna e
externa, articulando a Capoeira com as representações do imaginário
social. São sob esses termos que fundamos essa pesquisa.

38 Mestre pelo PPGC da Universidade Federal da Paraíba. Doutorando


no PPgEM da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
[email protected]
39 Pós-doutor em Comunicação pelo PPGCOM da UFRJ e em Neurociência Cognitiva
e Comportamento pelo PPGNeC da UFPB. Foi professor do PPGC da UFPB. Editor
da revista científica Temática. E-mail: [email protected]
146 | Trilhas do imaginário

São poucas as produções que abordam a temática da capoeira


e que a coloque numa perspectiva de elemento simbólico, forma
de resistência e expressividade da luta do negro pela liberdade.
Assim consideramos ser esse um momento oportuno para levantar
essa temática pertinente no campo filosófico, bem como no campo
sociológico. Uma abordagem sobre a Capoeira pode abranger aspectos,
culturais, esportivos, religiosos e da mesma forma também os aspectos
musicais. Tal possibilidade levantou dúvidas para produção que
foram sanadas quando Barros (p. 127, 2010) que afirma:

O imaginário não é um objeto de estudo em si e


sim um ponto de vista sob o qual o pesquisador
se coloca, uma perspectiva que ele assume,
uma dimensão que ele explora. Isso resulta do
caráter transversal do imaginário, que atravessa
todas as produções humanas. É possível estudar
empiricamente o imaginário porque ele se epifaniza
em cada manifestação criativa, sendo a menor de
suas unidades detectáveis a imagem simbólica.
Para encontrá-la, são necessários instrumentos
específicos, resultantes de uma heurística peculiar
ao entendimento que se tem sobre o que seja o
imaginário (BARROS, 2010, p.127).

Dessa forma, acreditamos no potencial da pesquisa pelo que


ela permite de aplicação da Teoria do Imaginário, que se dá pela
perspectiva adotada por este pesquisador, com um posicionamento
neutro, sem deixar de ser crítico, devido a transversalidade do
assunto abordado. A simbologia que a musicalidade da capoeira
carrega consigo, o que ela representa em termos de energia e
elemento sintetizador da prática cultural pode e deve ser estudada
pelo prisma aqui proposto, somando toda essa carga de referenciação
com o que é o imaginário, ou seja, basicamente a materialização
de toda uma simbolização.
Trilhas do imaginário | 147

Além de refletir a maneira como a capoeiragem e o seu


canto não só conseguiram atravessar os séculos e se manter
ativos, mesmo figurando por um longo período da nossa história
na ilegalidade40, mas também mostrar como isso perpassou
entre os povos de diferentes gerações culturais, ou seja, com
diferentes formas de socialização e aspirações. A Capoeira
continuou sedimentada como elemento comunicativo que liga
ancestralidade e atualidade fortalecendo um mesmo ideal sob
o qual fora forjada, a busca da liberdade.
Nossa pesquisa consiste em utilizar a Análise do Discurso nas
letras musicais da capoeira. Para isso utilizaremos das metodologias
da Análise do discurso (conhecida como AD francesa, que permite-
nos observar o assujeitamento dos indivíduos) e da Hermenêutica
Simbólica, própria da Teoria do Imaginário.
Para alcançar o objetivo proposto temos como aporte teórico
a Teoria do Imaginário e a Hermenêutica Simbólica, utilizamos
teóricos como: Gilbert Durand, Gaston Bachelard e Michael Maffesoli.
Tais autores do Imaginário foram escolhidos por apresentarem
perspectivas complementares sobre essa teoria. Para analisar o

40 Segundo o Código Penal da República do Brasil, o Decreto número 847, de 11


de outubro de 1890, que versa:
Capítulo XIII – Dos vadios e capoeiras Art. 402. Fazer nas ruas e praças públicas
exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação
Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capaz es de
produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa
certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal;
Pena de prisão celular de dois a seis meses. A penalidade é a do art. 96. Parágrafo
único. É considerado circunstância agravante pertencer o Capoeira a alguma
banda ou malta. Aos chefes ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Art. 403. No caso de reincidência será aplicada ao capoeira, no grau máximo,
a pena do art. 400. Com a pena de um a três anos.
Parágrafo único. Se for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena.
Art. 404. Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar
alguma lesão corporal, ultrajar o pudor público e particular, perturbar a ordem,
a tranqüilidade ou segurança pública ou for encontrado com armas, incorrerá
cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes.
148 | Trilhas do imaginário

corpus da pesquisa (as letras das músicas de capoeira) utilizaremos


a abordagem metodológica da AD francesa.
De tal modo estabeleceremos uma análise somando a teoria
do Imaginário a análise do discurso, uma nos ajuda a tratar dos
aspectos simbólicos a outra na operacionalidade das três músicas
do arcabouço vocacional da capoeira. Uma vez que pretendemos
desvelar aqui as intensidades das aplicações dos câmbios sígnicos
dentro da perspectiva cultural da musicalidade da Capoeira.
Com isso buscaremos uma compreensão de como está
estabelecida a relação das músicas que fazem parte do jogo dentro
da observação imaginária e de seus signos, o que nos faz trabalhar a
capoeira numa perspectiva exclusivamente cultural, mas sem perder
sua essência, expressa em sua aplicabilidade múltipla.

2 Capoeira e imaginário
A Capoeira é para muitos antes de tudo um instrumento
de libertação, sendo assim um genuíno fruto do imaginário.
Os negros brasileiros criaram a Capoeira para que através de
sua prática pudessem lutar para alcançar duas liberdades. A
primeira liberdade que pode ser compreendida é a de seu corpo
nas emboscadas sofridas contra Capitães do Mato e Feitores já
que muitas vezes não dispunham de armas de fogo como seus
algozes. E a segunda liberdade compreendida é a de suas mentes
contra o sistema vigente à época (escravagista) que os mantinha
cativos da crueldade e desumanidade que no Brasil perdurou por
trezentos anos.
Tendo assim nessa necessidade imanente de se transportar
das condições que lhe foram impostas nasce essa arte criada
primordialmente para luta uma ferramenta que foi espelhada em
movimentos de animais selvagens para que assim pudessem lhe
dar a defesa tão necessária, quanto o ataque, e também libertava
a mente do escravizado contra um sistema altamente desumano
que pretendia limitar até suas capacidades de sonhar. Mesmo
Trilhas do imaginário | 149

com sua prática proibida dos tempos coloniais até meados do


Século XX. Ainda sobre a proibição na prática da Capoeira aponta
Albuquerque e Fraga Filho (2006, p. 244) quando dizem:

Na primeira metade do século XIX a capoeira


era praticada pelos escravos e libertos. Jogar
capoeira consistia no uso de agilidade corporal
e no manejo da navalha para golpear os
adversários. A presença dos capoeiras nas ruas
marcava o cotidiano da escravidão urbano no
Rio de Janeiro. Para a polícia eles eram vadios e
desordeiros sempre dispostos a afrontá-la com
violência. Entretanto, os Capoeiras também
eram trabalhadores ocupados no transporte
de mercadorias, operários, marinheiros, enfim
pessoas que constituíam nas ruas e praças espaços
próprios. Mas, para as autoridades policias do
período imperial os capoeiras comprometiam a
ordem social, desestabilizavam o cotidiano das
cidades. A destreza no manuseio da navalha e a
habilidade no uso do próprio corpo nos golpes
faziam deles uma gente potencialmente perigosa.

A partir da leitura desse trecho, podemos crer que com


o passar dos anos e o fim do período escravista a visão inferior
e o temor pelas práticas e cultos de origem negra a Capoeira,
estendeu-se durante todo o período em que se deram as lutas por
liberdade, para que o ódio, medo e o temor fossem diluídos no
espaço territorial e temporal, figuras que passaram pela Capoeira
foram peças fundamentais para que ela não cumprisse o destino
traçado por uma minoria branca, elitista e detentora dos meios
de produção, além do poder de comando frente a um poder
judiciário que estava se formando, essa elite desejava que as
marcas culturais do negro simplesmente sumisse do seio brasileiro,
essas figuras foram e são reconhecias, tanto para que a Capoeira
não cumprisse esse destino cruel que lhe fora traçado. Entre essas
figuras destacam-se dois mestres que lá nasceram e lutaram pela
150 | Trilhas do imaginário

Capoeira e a organização e modernização da mesma, como: Mestre


Bimba41 e Mestre Pastinha42.
Assim também é a Teoria do Imaginário, que em sua essência
prevê a materialização dos processos de simbologia a que o homem
se submete diariamente para significar e ressignificar o mundo.
Se para Durand (1989) que define o imaginário como atuante num
conjunto das relações de imagens que constituem o capital pensado
do homem moderno, entendendo então que o imaginário detém um
potencial libertador e solidificador do sujeito dentro do contexto
social, e que o imaginário se materializa em um símbolo e é através
dele que procuramos fundamentar aqui que o imaginário de luta
e liberdade do negros atrás da combate interno e externo contra a
escravidão se materializou na Capoeira, na qual a Capoeira significa
o próprio negro. Nesse sentido Dantas (2016, p. 2) aponta que:

Nesse espaço de brecha e dobra, volto-me para


canções da capoeira na tentativa de discuti-la dentro
do contexto cultural afro-brasileiro e latino americano
que a prática se funda. Num contexto de expansão da
capoeira, como o sistema contemporâneo lida com
a comunicação entre os elementos da tradição e a
cultura moderna? De que maneira o cosmopolitismo
subalterno emerge por meio da Capoeira Angola e,
pouco a pouco, se constitui em uma globalização
contra-hegemônica?

41 Mestre Bimba é extremamente reverenciada não só pela sua habilidade no jogo,


mas também pela sua capacidade em criar uma didática de aprendizagem para
a Capoeira com as famosas - Sequências de Bimba – que são 11 combinações de
movimentos básicos que dão um primeiro suporte aos iniciantes na Capoeira
possibilitando um aprendizado mais flexível, além da visibilidade de esporte
disciplinado e educativo, em outras palavras bimba deu a Capoeira uma mesma
plasticidade artística “eurocêntrica” a capoeira que os esportes olímpicos
possuem, mudando assim a visibilidade da elite sobre ela.
42 Vicente Joaquim Ferreira Pastinha, nasceu na Bahia em 5 de abril de 1889,
faleceu em 13 de novembro de 1981 em Salvador. Dizia não ter aprendido a
Capoeira em escola, mas “com a sorte”. Foi na atividade do ensino da Capoeira
que Pastinha se distinguiu.
Trilhas do imaginário | 151

Acreditamos que a Capoeira é a própria demonstração


do Imaginário, sua materialização, sua criação demonstra que a
afirmação é positiva. Ela provém dos desejos de povos oriundos de
um grande continente, mesmo que heterogêneos, e até por vezes
rivais, jogados à própria sorte numa terra desconhecida e inóspita,
alijados de suas vontades, uma vez que eram forçados a trabalhar,
procriar e adorar deuses que não eram os seus.

3 O Imaginário, presente em toda parte


O imaginário é a ferramenta utilizada pelo homem para
dar sentido ao mundo. Segundo Danielle Pitta (1995) Imaginário
não se confunde com Simbolismo, uma vez que em seus estudos
aprofundados, enxergaram uma cisão entre as terminologias, as
implicações e a metodologia de pesquisa, gerando assim métodos
científicos distintos.
Já que o simbolismo é a maneira de expressar o imaginário, ou
seja, tudo que o homem imagina e idealiza, externa por meio desse
símbolo. O símbolo nasce decorrente da carga cultural da sociedade
pertencente ao indivíduo imaginador.
Ao imaginário cabe então duas funções uma libertadora e outra
aprisionadora, libertadora no sentido de elevar o pensamento dos
homens a locais e patamares improváveis, uma vez que ele possui
propriedades imagéticas advindas da criação e aprisionadora, no
sentido de que, ao mesmo tempo em que ela liberta ela também
enclausura o indivíduo em sua própria imaginação, tornando-se refém
de seu próprio potencial, daquilo que faz o homem um ser único.
Assim podemos presumir que o imaginário uma vez estruturado
como um conhecimento, pode ser utilizado como base de estudo para
qualquer disciplina. O que, nos dá liberdade para nos debruçar sobre
uma pesquisa a qual utilizaremos teorias próprias do jornalismo.
Dentro desse propósito veremos aqui três fundamentos de
imaginário que são ao mesmo tempo distintos, mas congruentes. Sua
compreensão parte de uma constituição sensorial oriundo das forças
152 | Trilhas do imaginário

da natureza que partem da compreensão externa para a interna


(Bachelard), uma visão fragmentada de imaginário proposta em
regimes nos quais os opostos se unem e se reorganizam de maneira
a construir os sentidos expressos pelo sujeito de acordo com a
interpretação do mundo que esse o faça (Durand) e uma visão dualista,
mas que responde aos estímulos sociais sendo a reinterpretação do
sentimento de individualismo e coletividade (Maffesoli). Por essas
bases segue nossa interpretação e análise discursiva.

4 As estruturas do imaginário relacionadas com as músicas


da Capoeira

4.1 O método de análise:


A Teoria do Imaginário sugere um conflito constante presentes
nos seus conceitos a presença constante de uma dicotomia entre luz e
sombra, por isso tivemos a peculiaridade de trabalha-los como peças
ressignificadas entre vida e morte para que pudessem se assemelhar
e dialogar com a fórmula constitutiva da Capoeira. A maneira como
a expressão cultural multifacetada herdada dos tempos coloniais,
chamada Capoeira ocupou seu espaço, já que esta advém não só
da (re)interpretação do contexto social imposto sobre um grupo de
pessoas duramente penalizadas a toda sorte e desprezo.
Ao decorrer de cada enunciado discursivo fomos realizando
uma breve explanação daquilo que coloca cada teórico, assim como
nossa análise discursiva, pois como dito anteriormente usaremos três
teóricos da Teoria do Imaginário e cada um deles tem uma perspectiva
distinta dessa teoria, porém suas perspectivas não se anulam, muito
pelo contrário, elas se completam. Articulamos essas perspectivas
distintas em uma mesma linha visual, assim relacionamos cada uma
delas a uma letra de música, tida por nós aqui como o discurso da
Capoeira, assim temos uma música com o pensamento de um autor
que acreditássemos ser correspondente para análise.
Trilhas do imaginário | 153

4.2 A estrutura do imaginário de Bachelard


Bachelard criou um sistema a partir dos elementos; água, terra,
fogo e ar, que para ele regulam o imaginário como arquétipos do
inconsciente, alimentando assim sonhos e pensamentos. Quatro obras
foram escritas pelo autor seguindo esses quatro elementos em relação
os sonhos nos quais a ficou-se convencionado que cada elemento
corresponderia a Movimento (ar) Força (terra) Transformação (fogo)
Materialização (água).
Nessa pesquisa aplicaremos as concepções de Bachelard sobre
uma canção que externa aspectos do imaginário, sendo assim o
imaginário regido pelo inconsciente
A ladainha aqui apresentada nos mostra um narrador que é
pelo inconsciente colocamos o agente a qual a música retrata como
incorporador de um elemento que motiva suas atitudes.
A letra foi composta e gravada pelo mestre Boa Voz, no ano
de 201343.

Mandei dizer – Mestre Boa voz


Mandei dizer pro meu amor Que não ver mais pai nem mãe
Um dia eu volto morena pra te Em busca de outros caminhos
buscar. Nem por isso cai no chão
Hoje eu saio bem cedinho Sou caminhador
Na mão levo um berimbau A capoeira é quem me leva
No meu peito a capoeira Eu sigo pela estrada
O mundo pra conquistar Já não temo vento forte
Sou caminhador Chuvaceira ou trovoada
Gira mundo sopra o vento Sou caminhador
Me leva pra Lá e pra Cá Espera só um pouquinho
Só não sai do pensamento Prometo não demorar
A vontade de lutar Quando ouvir meu berimbau
Sou caminhador Abra a porta pra eu entrar
Pássaro que sai do ninho Sou caminhador

43 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DFdLOFLEdiI>Acesso


em: Out 2018.
154 | Trilhas do imaginário

Essa música se enquadra no elemento “ar” da perspectiva


de imaginário de Bachelard no qual o narrador enxerga o exercício
de sua liberdade, na sua movimentação constante, como se a sua
razão de vida fosse ser um “caminhador”, tendo em vista que para
Bachelard o ar é a imaginação do movimento, algo que não pode
ser contido, mesmo que para traz tenha ele que deixar sua família
ou sua amada. Comparando-se a um passado que ao sair do ninho
pois aprendeu a voar abandona o ninho e começa sua própria
caminhada, sendo assim um “caminhador também”.

4.3 A estrutura do Imaginário de Durand


Aqui se demonstra as estruturas do imaginário como uma
estrutura dual uma que divide os elementos em opostos e outra
que une os opostos, os quais chamamos de Regimes. São dois
os Regimes que Durand propõe chamados de Regime Diurno e
Regime Noturno.
A música foi gravada e composta pelo Mestre Tony Vargas,
fazendo parte do seu trabalho Liberdadê44, no ano de 2012.
Aqui a Ladainha proposta se assemelha ao que é proposto
no Regime Diurno que é o regime da antítese, da oposição entre
palavras e ideias, oposição completa dos elementos para dar-lhes
independência.

Noite sem Lua – Mestre Tony Vargas


Era uma noite sem lua
Era uma noite sem lua
Era uma noite sem lua
Era uma noite sem lua e eu tava sozinho
Fazendo do meu caminhar o meu próprio caminho
Sentindo o aroma das rosas e a dor dos espinhos

44 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=B3or9X_hQ-I>. Acesso em:


Set 2018.
Trilhas do imaginário | 155

Era uma noite sem lua


Era uma noite sem lua
Era uma noite sem lua
Era uma noite sem lua e eu tava sozinho
Fazendo do meu caminhar o meu próprio caminho
Sentindo o aroma das rosas e a dor dos espinhos

De repente apesar do escuro eu pude saber


Que havia alguém me espreitando sem ter nem porquê
Era hora de luta e de morte, é matar ou morrer
A navalha passou me cortando era quase um carinho
O meu sangue misturou-se ao pó e as pedras do caminho
Era hora de pedir axé para o meu orixá
E partir para o jogo da morte, é perder ou ganhar

Eu dei o bote certeiro da cobra, alguém me guiou


Meia lua bem dada é a morte
E a luta acabou

Eu segui pela noite sem lua


Histórias na algibeira
Não é fácil acabar com a sorte de um bom capoeira.

Se você não acredita me espera num outro caminho


E prepara bem sua navalha
Eu não ando sozinho

Essa Ladainha mostra aspectos da Teoria do Imaginário


seguindo os Regimes de Durand a luta a noite as estruturas místicas
símbolos de intimidade e as estruturas sintéticas. As estruturas do
imaginário são as representações dos Schémes de forma agrupada.
Serve de orientação fundamental para compreensão dos sentimentos
que compõem uma cultura. Nos dão a ciência da importância e da
perenidade dos processos culturais, uma vez que antes mesmo de
serem teorizados eram praticados livremente em todos as culturas
156 | Trilhas do imaginário

do mundo (cada uma a sua maneira), porém de forma a que todos


que estavam ligados a comunidade, mesmo que os em menor
proporção pudessem, entender e contribuir para o desenvolvimento
e sedimentação do processo cultural.
Aqui vemos a simbologia permear toda narrativa do discurso
que vai tecendo a rede de sentido o qual o narrador embala.
No primeiro e segundo verso quando o narrador enuncia
que era uma noite sem lua que estava só... nos deparamos com os
Símbolos Nictomórficos, tem relação com o obscuro, nebuloso, aquilo
que o homem não consegue desvendar, sua estrutura compõe-se de:
Situação das trevas e água escura. Esses pontos remetem ao medo
aquilo que o homem não consegue mensurar por não conseguir
identificá-lo ou ao menos enxergar.
Chegando terceiro verso vemos a presença de O Cetro e o
Gládio (símbolos diairéticos) são as armas, os dispositivos de luta
dos quais o homem se vale para enfrentar seus temores e agruras.
Sua estrutura compreende: Armas Espirituais e Armas do Heroi. Nele
o narrador chama pela entidade divina (um Orixá), acreditando que
assim conseguirá se manter protegido e diz seguir a luta com toda
determinação para a derrota e para vitória.
Já no quarto verso o narrador nos demonstra a presença dos
Símbolos Teriomórficos, tem uma relação antropozoomórfica,
são sensações ligadas a animalidade do ser humano sua estrutura é
dividida em: Formigamento; Animação e Mordicância. Esses pontos
remetem a angustia, a agonia, desordem ou qualquer coisa que iniba
a concentração. Ali o narrador externa que acertou uma cobra,
animal comumente relacionado a traição, em diversas culturas, o
que nos dá a entender que a luta a qual ele está narrando contra
alguém muito próximo.
Nos dois últimos versos da Ladainha vemos que o narrador
expõe a sua vitória, comemora e dedica que essa vitória está relacionada
a ajuda divina, pois ele não anda sozinho o que é característico do
símbolo O Cetro e o Gládio (Símbolos espetaculares) tem a ver
com a salvação, a força externa que vem para salvar o indivíduo do
Trilhas do imaginário | 157

momento de dificuldade da qual não conseguiria ele sair sozinho.


Sua estrutura compõe-se de: Luz e Sol e O Olho e o Verbo, podem
ser considerados como simbolizadores de sabedoria e imponência.

4.4 A estrutura do imaginário de Maffesoli


Essa música está ligada aos conceitos de imaginário propostos
por Maffesoli (2001) na qual ele propõe a existência de um imaginário
dualista, mas não dicotômico esse imaginário vai do individual ao
coletivo. Nessa variante entre real e imaginário é que habita a teoria de
Maffesoli, os elementos que se articulam para dar contar dos compostos
simbólicos do sujeito, a identificação, apropriação e distorção, que
propiciam o encontro de si no outro, o desejo de ter o outro em si e a
reelaboração do outro em si, são discutidas em relação a essa Ladainha.
Essa ladainha tem origem desconhecida, porém está sempre
presente nas rodas de Capoeira, e atualmente faz parte do acervo
musical da Associação Brasileira de Apoio e desenvolvimento da
Arte – Capoeira (ABADA Capoeira)45.

Maitá sou eu – ABADA Capoeira

Seu Sinhô lhe jurou liberdade


Se ele fosse pra guerra lutar
E o negro foi para o Paraguai
Pra se juntar ao pelotão, Maitá

Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu


Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu

Solano Lopez pretendia


O Mato Grosso conquistar
Mas o que ele não sabia é que Caxias
Traria consigo o Maitá

45 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QP0QLGKUxeA&t=184s


Acesso em: Out 2018.
158 | Trilhas do imaginário

Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu


Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu

Na batalha de Riachuelo
O negro surpreendeu
E com rasteira e cabeçada
A vitória aconteceu

Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu


Sou eu, sou eu, Maitá, sou eu

A tão sonhada liberdade


Que o negro procurou
Foi levada à vitória
O grito de guerra ecoou

O discurso estudado aponta para um período turbulento da


história do Brasil, a Guerra do Paraguai46, durante todo o percurso
que a narrativa foi construída a menção aos momentos de luta da
guerra são recorrentes, o pelotão a que o narrador se refere, chamado
por ele de pelotão Maita, na realidade chamava-se pelotão Humaitá,
um pelotão constituído por negros que voluntariamente ou não como
aponta TORAL (1995) o exército brasileiro, chamado de macacuno47
era formado em sua grande maioria por negros, escravos ou não.
Aqueles que ainda não possuíam a tão sonhada carta de alforria,
lhes era prometida como recompensa caso voltassem vitoriosos do
confronto. O que vem expresso no primeiro verso da ladainha.
Já no segundo, terceiro e quarto verso o narrador expressa
como os negros engajados no exército e na batalha surpreenderam
o exército paraguaio, assim como certamente os exércitos uruguaios

46 Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado internacional ocorrido na


América do Sul. Foi travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta
pelo Brasil, Argentina e Uruguai. A guerra estendeu-se de dezembro de 1864
a março de 1870.
47 Referente a macaco, devido ao grande número de negros.
Trilhas do imaginário | 159

e argentinos também, provando que a capoeira é um acontecimento


genuinamente brasileiro, já que os negros de outros países também
desconheciam o modo de combate ali empregado sob o comando de
Duque de Caxias, que no momento pós guerra fora condecorado .
Quando entoado o coro “Sou eu, sou eu, Maitá sou eu”
percebemos que aqui o narrador faz a remontagem do seu passado, no
qual vários negros foram a guerra lutar e derramar seu próprio sangue
numa guerra por um país que os escravizara sob uma promessa de
liberdade, é como se evocasse para si nesse momento toda luta aos
quais os seus ancestrais foram submetidos para si, momento em que
podemos visualizar passagem do coletivo para o individual, pois o
narrador rememora o vivido para aplicá-lo ao presente.

5 Considerações finais
Vimos nesse artigo que através da musicalidade fornecida
pela capoeira no cantar de temáticas antigas ou contemporâneas
é possível visualizar e remontar a luta vivida durante o passado
escravista do Brasil, que em diversos escritos é resumido numa
busca por liberdade.
Essa tão sonhada liberdade foi materializada dentro das
nossas expressões culturais das quais a capoeira é um exemplo, pois
através dela antes mesmo de se alcançar a liberdade do corpo se fez
a liberdade da alma, do espírito, e da mente através do imaginário.
Essas canções que foram aqui apresentadas como fragmentos
do grande campo interpretativo do imaginário no qual acreditamos
que a capoeira se insere, servem também como retrato cognitivo
da relação homem x sociedade. Cada indivíduo devido sua visão
de mundo e particularidades de relacionamento com outros de sua
sociedade e de seu tempo apresenta de maneira variada.
A relação intrínseca sobre a Teoria do Imaginário demonstrada
a partir das concepções de Bachelard, Durand e Maffesoli, nos dão
fôlego para traçar outras perspectivas na qual o imaginário pode ser
instrumento de pesquisa sobre os elementos da cultura afro-brasileira.
160 | Trilhas do imaginário

Tivemos a oportunidade de observar a materialização dos


desejos através do elemento ar, no qual um narrador não aceita de
pertencer a apenas um lugar, o que provoca a sua diáspora solitária,
assim como tivemos a diáspora negra.
Hoje temos uma diáspora da capoeira, atualmente presente em
mais de 150 países do mundo, (claro que guardando suas proporções,
intencionalidades e voluntariedades), as memórias dos antepassados
que criaram a capoeira para sua defesa, transmutando-a em dança
para escapar das proibições impostas, mostrando mais uma vez o
poder de ressignificação dos povos do passado e do presente.
Em nosso atual contexto a Capoeira superou a invisibilidade
e a marginalização, conquistou espaços importantes e está sendo
reconhecida tanto no plano nacional como no internacional, essas
mudanças partem de setores da sociedade que se aproximaram e
a enxergaram com respeito e toda sua importância sociocultural,
mas não só como ferramenta de manutenção de memória afetiva
histórica, mas sim, como mecanismo de educação, socialização.
A manutenção de tal prática demonstra como a comunidade
negra manteve acesa e ativa na conservação das instituições que
concentram sua história e sua cosmogonia. Nenhum desses aspectos
culturais deixa transparecer uma certa dispersão para com seus bens
históricos, mesmo que a consciência desse processo não se anuncie
de forma muito clara.

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Fonte: https://www.flaticon.com/authors/freepik
| 165

A casa de Bilbo Bolseiro: um olhar à intimidade


do espaço, outras conquistas
e o retorno na obra O hobbit

Heloisa Juncklaus Preis Moraes48


Lucas Pereira Damazio49
Luiza Liene Bressan50

1 Introdução
Por décadas o imaginário foi visto pela ciência como “a louca
da casa” (DURAND, 2001). Estudar o imaginário significava adentrar
no universo do irreal ou do esotérico. Para muitos cientistas do século
XIX, que tinham em sua formação uma base racionalista, pautada
na lógica aristotélica e nos estudos cartesianos de René Descartes,
não era viável ordenar e classificar o imaginário. Os pesquisadores
compreendiam que havia muita aleatoriedade no ato de imaginar.
Era uma tarefa complexa encontrar uma regularidade ou um método
de racionalizar a produção de imagens da imaginação humana.
Contudo, em 1938, a partir das investidas de Gaston Bachelard,
filósofo e professor francês, as pesquisas sobre o imaginário ganharam
um novo fôlego e voltaram a circular no âmbito acadêmico. Isso

48 Doutora. Docente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem.


Líder do Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano (www.pesquisa.unisul.
br/imaginario). Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Tubarão, Santa
Catarina, Brasil. E-mail: [email protected]
49 Doutor em Ciências da Linguagem. Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano.
Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Tubarão, Santa Catarina, Brasil.
E-mail: [email protected]
50 Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem. Grupo
de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano. Universidade do Sul de Santa Catarina
– Unisul. Tubarão, Santa Catarina, Brasil. E-mail: [email protected]
166 | Trilhas do imaginário

porque o filósofo observou nas imagens poéticas uma genuína ação


da imaginação. Seu fascínio pelos versos de Edgar Poe, Victor Hugo,
Nietzsche, motivaram a se empenhar em investigar profundamente
os processos imaginários.
Em Cassirer, as formas simbólicas são entendidas como o
campo das produções constitutivas da cultura. Os símbolos, aqui,
não podem ser reduzidos a meros sinais, pois têm função mediadora
entre o espírito e a matéria.

É inegável que o pensamento simbólico e o


comportamento simbólico tenham traços mais
característicos da vida humana e que todo processo
da cultura humana está baseada nessas condições
(CASSIRER, 1994, p. 141).

E é a linguagem que funciona como sistema de símbolos:

A humanidade não poderia começar com o


pensamento abstrato ou com uma linguagem
racional. Tinha de passar pela era da linguagem
simbólica do mito e da poesia. As primeiras nações
não pensavam por conceitos, mas por imagens
poéticas; falavam por fábulas e escreviam em
hieróglifos (CASSIRER, 1994, p. 251).

Para Durand (1998, p. 41), “todo pensamento humano é re-


presentação, isto é, passa por articulações simbólicas. O imaginário
é, pois, o conector necessário por meio do qual se constitui toda
representação humana”. Assim, para o autor, “a imagem – por mais
degradada que possa ser concebida – é ela própria portadora de um
sentido que não deve ser procurado fora da significação imaginária”.
E é justamente pelo dinamismo das imagens é o que se “permite
compreender as manifestações psicossociais da imaginação simbólica
e sua variação no tempo” (DURAND, 1988, p. 78).
Nessa empreitada, um dos méritos do filósofo foi verificar que
o espaço tinha uma relação íntima com o imaginário. Para Bachelard
(2000), os espaços, como a casa da infância, a cabana e, até mesmo
Trilhas do imaginário | 167

o ninho, produzem impulsos profundos no imaginário. Na visão


do autor, esses espaços incessantemente enriquecem o imaginário
e motivam a criação de novas imagens. Eles expressam beleza e
proporcionam originalidade à obra de arte.
Posteriormente, os estudos de Bachelard foram retomados
por Gilbert Durand. Este estudioso afirma que

o imaginário é não somente explorado como um todo


acabado, analisável em séries fixas, mas também,
como um processo constante de equilibração
e desiquilibração no qual os procedimentos
experimentais podem positivamente intervir”
(DURAND, 1984, p. 26).

Assim, pensar o imaginário é pensar nas possibilidades de


análise a partir da constelação de imagens sugeridas por elementos
simbólicos que permeiam o espaço da casa. O poder do símbolo de
acordo com Durand (2012) em seu processo simbólico lhe dá uma
semântica especial. Nesse sentido o símbolo é detentor de um “essencial
e espontâneo poder de repercussão” (DURAND, 2012, p. 31). Para
Bilbo Bolseiro, personagem da narrativa O hobbit, de Tolkien, a casa
expressa sua vida, resguardada pelo simbolismo do lar. Esse lar faz
revelar o indizível, o sentido do símbolo ou, nas palavras de Durand:

[...] o símbolo é, pois, uma representação que faz


aparecer um sentido secreto, é a epifania de um
mistério [...]; remete para um indizível e invisível
significado e, deste modo, sendo obrigado a encarnar
concretamente esta adequação que lhe escapa, e isto
através do jogo das redundâncias míticas, rituais,
iconográficas, que corrigem e complementam
inesgotavelmente a inadequação (DURAND, 2012,
p. 12 e 16).

Como representação, os símbolos na linguagem literária


reforçam a potência poética, tornando a literatura um campo profícuo
para os estudos do imaginário e, por isso, o objetivo deste estudo é
168 | Trilhas do imaginário

refletir sobre o imaginário relacionado aos espaços, especificadamente


na obra O hobbit, livro escrito por John Ronald Reuel Tolkien em
1951. A nossa empreitada consiste, sobretudo, em investigar como
o imaginário do autor retrata os ambientes no enredo da sua
história, assim como propor um diálogo entre a narrativa literária
e o simbolismo da casa, tal como apresentado em e A Poética do
Espaço de Gaston Bachelard (2000).

2 Sejam bem-vindos ao Condado


Os postulados bachelardianos apontam para o estudo das
imagens poéticas. Para ele, há uma transubjetividade nestas imagens
que tocam de forma intensa as mais variadas consciências. Conforme
Bachelard (2000, p. 3, grifos no original), “só a fenomenologia – isto
é, a consideração do início da imagem numa consciência individual –
pode ajudar-nos a reconstituir a subjetividade das imagens e a medir
a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem”. O
autor comenta, ainda, que as subjetividades e transubjetividades das
imagens não são terminadas em definitivo, pois a imagem poética é
essencialmente variacional.
Concordando com Bachelard, o estudo que aqui empreendemos
está focado na imagem de um espaço poético específico, mas que
reúne uma constelação de imagens muito sugestivas acerca de um
imaginário que se concentra na espacialidade de um ambiente.
Bachelard propõe a topofilia:

No presente livro, nosso campo de exame tem


a vantagem de ser bem delimitado. Isso porque
pretendemos examinar imagens bem simples, as
imagens do espaço feliz. Nessa perspectiva, nossas
investigações mereceriam o nome de topofilia. Visam
determinar o valor humano dos espaços de posse,
dos espaços defendidos contra forças adversas, dos
espaços amados. O espaço percebido pela imaginação
não pode ser o espaço indiferente entregue à
Trilhas do imaginário | 169

mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço


vivido. E vivido não em sua positividade, mas com
todas as parcialidades da imaginação (BACHELARD,
2000, p. 19, grifos do original).

Em A Poética do Espaço, Bachelard toma como temática o


imaginário acerca da casa. De forma minuciosa, o filósofo incita
que, em nosso imaginário, a casa natal é o nosso principal canto do
mundo: um autêntico cosmos particular. Nenhum outro lugar do
planeta é tão íntimo e tão acolhedor quanto nossa casa natal. Desde
pequeno, ela já nos acolhia e nos protegia “das tempestades do céu
e da vida” (BACHELARD, 2000, p. 24).
Bachelard (2000) nos afirma ainda que, quando se sonha
com a casa natal, a casa da infância, na profundidade extrema do
devaneio, mergulha-se em um intenso sentimento de aconchego.
O ser humano, então, reina no seu próprio paraíso, sempre muito
bem acolhido e recebido. Um lugar no qual o ser humano se sente
completo e seguro. O lar revela-se, portanto, um refúgio: um refúgio
da intimidade humana:

Logicamente, é graças à casa que um grande


número de nossas lembranças estão guardadas
e se a casa se complica um pouco, se tem porão
e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças
têm refúgios cada vez mais bem caracterizados.
Voltamos a eles durante toda a vida em nossos
devaneios (BACHELARD, 2000, p. 27-28)

Isso significa dizer que, ao deixar um intruso entrar em


nossa casa, abrimo-nos para o mundo e revelamos toda a nossa
intimidade. É nesse momento que ficamos totalmente expostos. As
janelas da alma são reveladas. Corpo, mente e espírito não estão
mais escondidos dentro dos quartos, mas expostos a céu aberto.
Torna-se possível penetrar, de modo profundo, em cada detalhe
da nossa história, da nossa essência. Em outras palavras, ficamos
completamente vulneráveis.
170 | Trilhas do imaginário

Na obra O hobbit, de John Ronald Reuel Tolkien, a personagem


Bilbo Bolseiro, um hobbit do Condado, de aparência amigável e
humilde, sentiu na própria pele essa invasão de privacidade. Isso
porque um bando de anões, homens pequenos, barbudos, fortes e,
certamente, um tanto importunos, entraram em sua casa e começaram
uma grande bagunça:

– Desculpe por fazê-lo esperar! - ia dizer, quando viu


que não era realmente Gandalf. Era um anão com
uma barba azul enfiada num cinto de ouro, e olhos
muito brilhantes sob seu capuz verde escuro. Assim
que Bilbo abriu, ele se enfiou porta adentro, como
se fosse esperado. (TOLKIEN, 2013, p. 7)

De imediato, Bilbo Bolseiro sentiu-se incomodado com a


situação. O pequeno hobbit, um cidadão simples, que cuidava para
manter a ordem em tudo, viu sua casa ser invadida por anões mal
educados. O que mais poderia sentir? Afinal, por onde passavam,
sujavam o chão, mexiam nos objetos e perambulavam pela casa. Aos
poucos, Bilbo começou a ficar enfezado, pois não se tratava apenas
da bagunça, mas da invasão da sua privacidade, do seu legado, do
seu espaço. Aquela casa representava tudo para Bilbo. Ela era uma
herança dos seus pais. A casa continha a essência da família dos
Bolseiros. Bilbo se sentiu intimidado, pois

A casa é um corpo de imagens que dão ao homem


razões ou ilusões de estabilidade. Incessantemente
reimaginamos a sua realidade: distinguir todas
as imagens seria revelar a alma da casa; seria
desenvolver uma verdadeira psicologia da casa
(BACHELARD, 2000, p. 36).

A invasão da casa deixou Bilbo vulnerável, pois o livro da sua


vida estava aberto. O pobre hobbit estava exposto. Seu reino invadido,
suas histórias, suas memórias, tudo estava em conflito, uma vez que

Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário


mantém os personagens em seu papel dominante.
Trilhas do imaginário | 171

Por vezes acreditamos conhecer-nos no tempo,


ao passo que se conhece apenas uma série de
fixações nos espaços da estabilidade do ser, de um
ser que não quer passar no tempo; que no próprio
passado, quando sai em busca do tempo perdido,
quer “suspender” o voo do tempo. Em seus mil
alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É
essa a função do espaço [...]. Aqui o espaço é tudo,
pois o tempo já não anima a memória. A memória
– coisa estranha! – não registra a duração concreta,
a duração no sentido bergsoniano. Não podemos
reviver as durações abolidas. Só podemos pensá-
las, pensá-las na linha de um tempo abstrato
privado de qualquer espessura. É pelo espaço, é
no espaço que encontramos os belos fósseis de
duração concretizados por longas permanências
(BACHELARD, 2000, p. 28-29).

As longas permanências da família Bolseiro no condado,


naquela casa haviam criado raízes profundas, do porão ao sótão.
Havia em cada canto uma memória a ser resguardada e que, de
acordo com Tolkien (2013, p. 9-10), deixou Bilbo completamente
desnorteado e desconcertado com a chegada dos intrusos:

Bilbo correu pelo corredor, muito zangado e


totalmente desnorteado e desconcertado - era a mais
estapafúrdia quarta-feira de que ele se lembrava.
Abriu a porta com um solavanco e todos caíram
para dentro, um em cima do outro. Mais anões, mais
quatro! E Gandalf estava atrás, inclinando-se sobre
seu cajado e rindo. Tinha feito um estrago razoável
na superfície da bela porta; a propósito, também
tinha feito desaparecer o sinal secreto que deixara
nela na manhã anterior.

A chegada de invasores incomoda a personagem a ponto de


deixá-la sem um norte, seus domínios estavam sendo invadidos, sua
intimidade, suas memórias e tudo o que pertencia à família Bolseiros
poderia perder a singularidade familiar, pois
172 | Trilhas do imaginário

É preciso dizer como habitamos o nosso espaço


vital de acordo com todas as dialéticas da vida,
como nos enraizamos, dia a dia, num “canto
do mundo”. Porque a casa é o nosso canto do
mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. [...]
Os verdadeiros pontos de partida da imagem, se
os estudarmos fenomenologicamente, revelarão
concretamente os valores do espaço habitado,
o não-eu que protege o eu. [...] Todo espaço
realmente habitado traz a essência da noção de
casa (BACHELARD, 2000, p. 23-25).

O espaço sagrado que resguarda a vida da família Bolseiro,


a casa do Condado, parece sofrer pelos estragos feitos na porta e
Bilbo se incomoda com a situação para, na sequência da narrativa,
sentir-se desconfortável pois, embora os anões, juntamente com
o mago Gandalf, o Cinzento, tenham entrando sem convite à sua
casa, o pequeno hobbit teve um motivo especial para perdoar essa
repentina invasão. Pelas sábias palavras do mago, Bilbo soube que,
diferente dele, os anões não tinham mais um lar. Eles perderam o
que mais amavam para um dragão chamado de Smaug. O poderoso
Smaug não só roubou a casa dos anões, como tirou toda a honra
desses pobres seres da Terra Média.
Diante da situação, Bilbo Bolseiro, que, inicialmente, estava
enraivecido com aqueles intrusos, solidarizou-se com suas tristes
histórias e tomou uma atitude: decidiu participar, juntamente
com Gandalf e o grupo de anões de uma grande aventura. Esta
aventura consistia em destruir Smaug e recuperar o tesouro
perdido do povo. No entanto, para alguns anões do grupo, como
Dwalin e Balin, essa aventura significava muito mais do que um
busca por riquezas. Ela representava o retorno ao lar, o lugar em
que tinham guardado não somente joias, ouro, prata, bronze e
milhares de outras riquezas, mas uma oportunidade de reviver
suas recordações: as imagens mais íntimas, queridas e valiosas
de suas histórias.
Trilhas do imaginário | 173

3 A casa dos anões: Erebor


A Montanha Solitária, também chamada Erebor, dentro do
universo fantástico das obras de J. R. R. Tolkien, é uma montanha
localizada entre a Floresta das Trevas e a as Colinas de Ferro. Devido
à sua disposição geográfica vantajosa, do alto da montanha é possível
ter uma ampla visão de grande parte da Terra Média. Tolkien (2013,
p. 183), no livro O hobbit, menciona a montanha da seguinte maneira:

Bilbo então viu uma paisagem. As terras abriam-


se amplas ao seu redor, cheias da água do rio que
subdividia-se em centenas de cursos tortuosos,
ou parava em pântanos ou lagos pontilhados de
ilhotas por todos os lados; mas, mesmo assim,
uma forte correnteza avançava pelo meio. E, na
distância, a cabeça escura, enfiada numa nuvem
rasgada, assomava a Montanha! Não se viam seus
vizinhos mais próximos ao nordeste nem o terreno
acidentado que ligava a eles. Sozinha se erguia,
olhando para a floresta através dos pântanos.
A montanha Solitária! Bilbo viera de longe e
enfrentara muitas aventuras para vê-la, e agora
não gostava nem um pouco de sua aparência.

Bilbo se depara com a montanha. Diferentemente do aconchego


da casa, a montanha lhe parece desafiante, imensa, sem a intimidade
resguardada que encontra em seu lar. Há, nas montanhas, um
simbolismo evocado pelo mistério dos picos mais elevados e pela
profundeza de seus vales de onde podem emergir os seres fantásticos,
como os dragões, por isso J. R. R. Tolkien descreve Erebor como um lugar
isolado e repleto de riquezas naturais, explorada por anos pelo anões
da Terra Média. Colonizada inicialmente por Thráin I, o primeiro rei
da montanha, a cidade transbordava riquezas e luxo. Sua economia
girada em torna da exploração de minérios, como ouro, prata, bronze,
entre outras preciosidades. No universo fantástico das obras de Tolkien,
poucas cidades da Terra Média tinham esse poder e essa fortuna.
174 | Trilhas do imaginário

Ela fora descoberta pelo meu ancestral distante,


Thrain, o Velho, mas na época de Thror eles
exploraram minas e fizeram salões maiores e
oficinas maiores também, e, além disso, acho que
encontraram uma grande quantidade de ouro,
além de muitas jóias. De qualquer modo, ficaram
imensamente ricos e famosos, e meu avô tornou-se
Rei sob a Montanha novamente, e era tratado com
grande reverência pelos homens mortais, que viviam
no sul, e estavam se espalhando gradualmente ao
longo do Rio Corrente até o vale que fica à sombra da
Montanha. Naqueles dias, eles construíram a alegre
cidade de Vaíle. Reis costumavam mandar buscar
nossos artífices, e recompensavam muito bem até
os menos habilidosos. Pais nos imploravam para
aceitar seus filhos como aprendizes, e nos pagavam
regiamente, sobretudo com suprimentos de comida,
que nunca nos preocupávamos em procurar ou
cultivar para nosso uso. (TOLKIEN, 2013, p. 22)

Devido aos rumos sobre suas riquezas, a fama de Erebor não


demorou a chegar aos ouvidos do dragão Smaug. Seduzido pelos
minérios raros da cidade, o dragão Smaug, descrito como um dos
mais poderes de toda a Terra Média, atacou sem nenhuma piedade
o reino dos anões. Com um intenso desejo de poder, o dragão não
só saqueou a cidade, mas a fez de moradia. Tolkien (2013, p. 22)
descreve Smaug com detalhes em sua obra:

Havia um dragão especialmente ganancioso, forte e


mau, chamado Smaug. Um dia ele alçou voo e veio
para o sul. O primeiro sinal dele que ouvimos foi
um barulho como um furacão vindo do norte, e os
pinheiros das montanhas chiando e estalando com o
vento. Alguns dos anões por acaso estavam do lado
de fora (por sorte eu era um deles um bom rapaz
aventureiro, naqueles dias, sempre andando por ai, e
isso salvou minha vida naquele dia) quando, de uma
boa distância, vimos o dragão pousar na montanha
num jato de fogo. Então ele desceu as encostas e,
Trilhas do imaginário | 175

quando atingiu a floresta ela se incendiou inteira.


Naquele momento todos os sinos estavam repicando
em Vale e os guerreiros estavam se armando. Os
anões correram para fora pelo seu grande portão,
mas lá estava o dragão à espera deles. Nenhum
escapou por ali.

Foi nesse instante, depois da derrota contra essa fera voadora, que
os anões ficaram terrivelmente abalados. Isso pelo fato de que, conforme
Bachelard (2000), o lar de um indivíduo é um corpo de imagens que
fornece ilusões de estabilidade. Em Erebor, os anões tinham essa ilusão
de estarem protegidos, de serem intocáveis. Contudo, a chegada de
Smaug, com seu poder quase indestrutível, rompeu com essa ilusão. Os
anões observaram seu lar ser conquistado pela ganância dessa criatura
terrível. Com isso, houve um enorme trauma no imaginário da raça dos
anões. As imagens do lar seguro ficaram apenas na memória. A doce
ilusão da casa protegida se foi. O que sobrou foi um ódio enorme, uma
sede de vingança contra Smaug. Uma vingança que, durante o enredo
do livro O hobbit, viria a acontecer.

4 O retorno ao lar
Após inúmeras investidas, Smaug finalmente conquistou a
Montanha Solitária. O dragão tomou posse das riquezas dos anões,
além de fazer de Erebor a sua residência. Derrotados e enfraquecidos,
os anões escaparam do cerco fugindo para o sul, onde permaneceram
por séculos. Mas a vingança ainda estaria por vir.
No ano de 2941, Thorin Escudo de Carvalho, filho de Thrain I,
mais alguns guerreiros e seu amigo, o mago Gandalf, e o hobbit Bilbo
Bolseiro formaram um grupo com a meta de reconquistar o antigo
reino de Erebor, pegar os seus tesouros e matar o dragão Smaug
para vingar a morte de seus antepassados:

Foi assim que todos vieram a partir, saindo da


estalagem numa bela manhã de fim de abril, em
176 | Trilhas do imaginário

pôneis carregados. Bilbo vestia um capuz verde-


escuro (um pouco manchado pelo tempo) e uma capa
verde-escura emprestados de Dwalin. Eram grandes
demais para ele, que ficou com uma aparência
bastante cômica, O que teria pensado seu pai, Bungo,
não me atrevo a imaginar. Seu único consolo era que
não poderia ser confundido com um anão, já que
não tinha barba. (TOLKIEN, 2013, p. 28)

Nessa trama, o que nos chama a atenção é o carinho dos anões


por Erebor. A Montanha Solitária transmite uma porção de imagens
positivas aos seus antigos habitantes. Para eles, o que mais importa
é retornar à velha casa. Há um desejo impulsivo de retornar ao lar.
Para Bachelard (2000, p.34), existe uma explicação para esse desejo
de voltar para casa:

As casas sucessivas em que habitamos mais tarde


tomaram banais os nossos gestos. Mas ficamos
surpreendidos quando voltamos à velha casa,
depois de décadas de odisseia, com que os gestos
mais hábeis, os gestos primeiros fiquem vivos,
perfeitos para sempre. Em suma, a casa natal
inscreveu em nós a hierarquia das diversas
funções de habitar. Somos o diagrama das funções
de habitar aquela casa e todas as outras não são
mais que variações de um tema fundamental. A
palavra hábito é uma palavra usada demais para
explicar essa ligação apaixonada de nosso corpo
que não esquece a casa inolvidável.

Pela perspectiva bachelardiana, as imagens das casas sucessivas


em que habitamos quando nos tornamos adultos são ordinárias. Nada
representa mais para o nosso imaginário do que as imagens da velha
casa. A casa natal é o nosso alicerce. Ela nos transmite segurança e
um cacho de imagens positivas. A casa natal parece nos dizer: “sejam
bem-vindos! Aqui, nessa querida residência, todos serão acariciados
pelo conforto da cama, acolhidos pelo calor da cozinha e protegidos
pelos muros do jardim”. Dito de outro modo, quando imaginamos
Trilhas do imaginário | 177

o nosso primeiro lar, seja por um breve devaneio ou um profundo


sonho, encontramos as mais doces e puras imagens e retornamos ao
país da Infância, conforme afirma Bachelard (2000, p. 25):

Assim, a casa não vive somente o dia-a-dia, no fio


de uma história, na narrativa de nossa história.
Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida
se interpenetram e guardam os tesouros dos dias
antigos. Quando, na nova casa, voltam as lembranças
das antigas moradias, viajamos até o país da Infância

Ao analisar a obra de Tolkien, observamos o quanto as imagens


da casa natal tinham importância para os anões. Para Thorin Escudo
de Carvalho, filho de Thrain I, o antigo rei sob a montanha, Erebor
significava a felicidade plena. Não se tratava apenas de riquezas
ou de luxos. A Montanha Solitária simbolizava muito mais do que
poder. Ela retratava os dias felizes e prósperos dos anões na Terra
Média. Esse amor por Erebor, que estava no imaginário dos anões,
fica evidente quando Thorin realizada o seguinte relato:

Esses foram dias felizes, e os mais pobres de nós


tinham dinheiro para gastar e emprestar, e tempo
para fazer coisas bonitas por puro prazer, sem falar
dos brinquedos mais mágicos e maravilhosos, do tipo
que não se encontra em lugar algum no mundo hoje
em dia. Desse modo, os salões de meu avô ficaram
cheios de armaduras e joias, de esculturas e taças,
e o mercado de brinquedos do Vale era a maravilha
do norte. (TOLKIEN, 2013, p. 22)

Desse modo, para os anões, o que importava, nessa história,


era reconquistar a cidade da Erebor. Embora fosse uma missão
arriscada, devido ao fato de que teriam como adversário um dos
mais poderosos dragões da Terra Média, a jornada foi realizada. O
desfecho, depois de inúmeras batalhas, de conflitos psicológicos e da
morte de Smaug, foi a retomada da cidade. Os anões conquistaram,
de forma corajosa, o direito de retornar à Erebor. Com isso, fizeram
178 | Trilhas do imaginário

novas alianças, retomaram as atividades comerciais e, certamente,


voltaram a sorrir nos salões dourados do reino.

5 Considerações finais
Bachelard (2000), em seu livro A Poética do Espaço, determinou
como meta científica fazer do espaço instrumento de análise para a
alma humana. Desde o início da obra, o filósofo realizou uma análise
sobre as imagens desencadeadas por meio do contato de renomados
autores de literatura internacional com determinados espaços, como
a casa, a cabana, a gaveta, o cofre, o armário, entre outros.
A proposta do filósofo consistia em chegar, por meio da análise
de poesias, na profundidade das imagens geradas pela relação entre
homem e ambiente. Bachelard (2000) acreditava que o contato como
a casa da infância ou qualquer outro espaço produzia no imaginário
do indivíduo imagens profundas e marcantes. Godinho (1999, p. 59),
ao analisar narrativas literárias, chega à conclusão:

Porque há um dado básico para uma imagem/tempo


bem construído: as entidades parentais devem
fornecer os traços com que o próprio começará a
desenhar esta imagem, a começar pelo conhecimento
do passado, da origem. (GODINHO, 199, p. 59)

Com esses estudos, Bachelard (2000) afirma que, nós, seres


humanos, temos uma relação íntima com os espaços, marcada por
experiências, afinidades e memórias. Podemos nos arriscar dizendo
que os espaços fazem parte da nossa identidade. Ao analisar o livro
O hobbit, de autoria de Tolkien, por meio dos estudos de Gaston
Bachelard, identificamos o quanto é intensa essa relação entre os
espaços e os personagens do enredo.
Nesta análise, constatamos que, mesmo acostumados a viver
longe de casa, os anões almejavam, mais do que tudo, retornar a
Erebor. No entanto, não se tratava apenas de um retorno por questões
financeiras. O ouro, a prata e as riquezas não eram o ponto mais
Trilhas do imaginário | 179

importante da aventura. Os anões queriam mesmo era sentir o prazer


do pertencimento. A riqueza, para os aventureiros, era, sobretudo,
emocional. Para Bachelard (2000, p. 92), a casa onírica como força
de proteção:
não é um simples cenário onde a memória reencontra
as suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que
já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes
sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto.
(BACHELARD, 2000, p. 92)

Ainda para o autor, “o ato de habitar reveste-se de valores


inconscientes, que o inconsciente não esquece”.
Com o retorno à cidade, os anões então resgataram as velhas e
boas imagens do reino anão: as imagens de proteção. Erebor voltou
a brilhar no imaginário dos personagens da Terra Média. Foi-se o
tempo de Smaug e as imagens sombrias. A cidade ganhou encanto,
cor, vida, e não apenas nas paredes, mas no imaginário das próximas
gerações do povo anão.
Buscamos, com estas passagens em relação aos espaços
de aconchego e proteção, falar da potência imaginativa que, em
Bachelard (2000, p. 10), diz muito sobre as subjetividades:

a imagem se transforma num novo ser de nossa


linguagem, exprime-nos, fazendo-nos o que ela
exprime, ou seja, ela é ao mesmo tempo um devir
de expressão e um devir de nosso ser. No caso,
ela é a expressão criadora do ser. (BACHELARD,
2000, p. 10)

Quanto à casa, “este primeiro mundo do ser humano, é berço,


ninho aconchego: afasta contingências, multiplica continuidades:
a imaginação simpatiza com o ser que habita o espaço protegido”
(BACHELARD, 2000, p. 141).
A casa é uma dessas imagens recorrentes em nosso imaginário,
um ninho de aconchego, que pode estar representado das mais
variadas formas simbólicas, mas expressam a sua força.
180 | Trilhas do imaginário

Referências
BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CASSIRER, E. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofiada
cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa:
Presença, 2012.
DURAND, G. Exploração do Imaginário. In: PITTA, Daniele Perin Rocha
(org.) O Imaginário e a Simbologia da Passagem. Recife: editora
Massangana, 1984.
DURAND, G. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da
imagem. Rio de Janeiro: Difel, 1998.
GODINHO, Helder. História, educação e imagem. In: ARAÚJO, Alberto
Filipe; MAGALHÃES, Justino. História, educação e imaginário.
Universidade do Minho, 1999.
TOLKIEN, J. R. R. O Hobbit. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
| 181

Presos que Menstruam: o gênero


livro-reportagem reposicionando imaginários
sobre o cotidiano de mulheres encarceradas

Bianca Dantas51
Nayane Rodrigues52
Eunice Simões Lins53

1 Introdução
No Brasil, 72% dos autores publicados são homens. Isso
quer dizer que as mulheres também são minoria (28%) no mercado
editorial. É o que aponta a pesquisa de Regina Dalcastagné, presente
no livro Literatura Brasileira Contemporânea – um território
contestado (2012), que analisou 258 obras publicadas entre os
anos de 1990 e 2004 pelas editoras Companhia das Letras, Rocco
e Record.
Enquanto personagens, na maioria das 258 obras analisadas,
as mulheres ainda aparecem como donas-de-casa ou objetificadas
sexualmente. Ou seja, esse estudo nos revela que as mulheres
estão sujeitas às desigualdades de gênero também no mercado
editorial, enfrentando dificuldades tanto para publicar quanto
para se estabelecerem como escritoras. Além disso, as obras ainda

51 Jornalista. Mestre do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC/


UFPB), vinculada à linha de pesquisa Mídia, Cotidiano e Imaginário. Email:
[email protected]
52 Jornalista. Especialista em Assessoria de Comunicação. Mestre do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação (PPGC/UFPB), vinculada à linha de pesquisa
Mídia, Cotidiano e Imaginário. Email: [email protected]
53 Pós-Doutora. Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
PPGC-UFPB – Orientadora. Email: [email protected]
182 | Trilhas do imaginário

representam a mulher em posições de submissão, seja ela econômica,


sexual, social, etc.
Assim como os livros citados na pesquisa, os meios de
comunicação também contribuem para a falta de novas perspectivas
de representação feminina, muitas vezes ainda na contramão das
discussões mundiais sobre o empoderamento e o papel da mulher na
sociedade. Segundo Marques (2011), para os movimentos feministas,
os veículos de comunicação de massa ainda reproduzem concepções
patriarcais e contribuem para que as desigualdades de gênero, raça
e orientação sexual sejam perpetuadas.
Nesse sentido, foi a partir do silêncio dos livros, do jornalismo,
do cinema e da TV que Nana Queiroz54 escreveu o livro-reportagem
Presos que Menstruam (2016), que conta a história de sete mulheres
encarceradas e oferece um panorama do sistema penitenciário
feminino brasileiro. A obra dedica atenção especial à personagem
Gardênia, presente em sete capítulos, que relatam desde a sua entrada
na criminalidade como outros fatos importantes da sua vida na prisão.
Do ponto de vista metodológico, a pesquisa se desenvolve
sob a aplicação da revisão bibliográfica, seguindo os procedimentos
de Stumpf (2015). Em se tratando de fundamentação teórica, os
seguintes autores, entre outros, estruturam a hipótese apresentada:
Gilbert Durand (2001), Juremir Machado (2017), Agnes Heller (2008),
Eduardo Belo (2006).
No Brasil, os presídios também são espaços onde as
desigualdades de gênero permanecem. Como o título do livro sugere,
as mulheres presas são tratadas como homens, já que tanto as
políticas públicas quanto o atendimento que recebem não garantem,
muitas vezes, que suas especificidades e necessidades mais básicas
(inclusive as de higiene, como o uso de absorventes suficientes) sejam
respeitadas. No entanto, de acordo com Nana (2016), “a igualdade é
desigual, quando se esquecem as diferenças”.

54 Jornalista, ativista pelo direito das mulheres e fundadora do Movimento Eu


Não Mereço Ser Estuprada, contra a culpabilização das vítimas de estupro, que
ganhou repercussão internacional.
Trilhas do imaginário | 183

O cotidiano das mulheres privadas de liberdade no Brasil é


um tema necessário, pois, de acordo com dados do Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias (2016), o país tem a 3ª maior
população carcerária feminina do mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos e Tailândia. Ainda segundo o levantamento, há mais de 42
mil mulheres privadas de liberdade no Brasil e 7% das unidades
prisionais55 são destinadas a elas.
A influência que a mídia exerce no imaginário, assim como os
silêncios estabelecidos acerca do cotidiano nos presídios femininos
no Brasil, acabam por criar realidades específicas, recortadas, por
vezes manipuladas não pelo excesso, mas pela superficialidade de
informações. Tal condição exige um emergente entendimento sobre
a relação que o gênero livro-reportagem exerce no reposicionamento
e criação de novos imaginários, bem como no diagnóstico profundo
desses cotidianos. A função social delegada ao gênero jornalístico livro-
reportagem em Presos que Menstruam encara ainda um pertinente
debate sobre a necessidade de diálogo constante entre jornalismo
e imaginário, especialmente em situações de silenciamentos,
invisibilidade, ou exposição seletiva das supostas realidades.

2 Presos que Menstruam


Escrito pela jornalista Nana Queiroz, Presos que Menstruam
é resultado de uma pesquisa de quatro anos desenvolvida em
penitenciárias femininas de todo o Brasil. O livro é uma grande
reportagem sobre a história, a vida e o cotidiano de sete mulheres –
Safira, Gardênia, Júlia, Vera, Camila, Glicéria e Marcela – e se divide
em 59 capítulos. A autora distribuiu as histórias de acordo com
os temas, mas também dispôs de um índice de personagens por
capítulos, permitindo que os leitores possam acompanhar cada caso
isoladamente com mais facilidade.

55 De acordo com os dados, 74% das unidades prisionais são destinadas aos
homens; 17% são mistas (celas específicas para mulheres em estabelecimentos
originalmente masculinos) e 2% sem informação.
184 | Trilhas do imaginário

O título do livro é inspirado em um artigo de Cerneka (2009),


que trata das condições do sistema carcerário feminino brasileiro
e suas necessidades específicas, e explica que, para o Estado e a
sociedade, ainda parece que existem apenas homens nas prisões do
país. No prefácio, Nana explica que o início da pesquisa que originou
Presos que Menstruam foi “uma coleção de silêncios”:

As prateleiras das bibliotecas se calavam sobre


as prisões femininas brasileiras. O cinema e a TV
fingiam que elas nem existiam, a não ser para dar
fim a uma ou outra vilã de novela ou uma trama de
superação a uma mocinha injustiçada. Os jornais
pouco falavam sobre o assunto e as reportagens
que encontrei apenas tocavam a superfície de
determinados problemas. Depois, veio a indiferença
das secretarias de segurança pública. Algumas nem
sequer respondiam a pedidos de visita, outras os
negavam sob os mais diversos pretextos (QUEIROZ,
2016, p. 17).

Além desses múltiplos silêncios, Nana enfrentou várias


dificuldades para percorrer os presídios e conhecer a história
daquelas mulheres, como a necessidade de se relacionar com as suas
famílias para obter maiores informações e também a proibição de
utilizar equipamentos de uso de qualquer jornalista no exercício
da sua profissão.

Foi preciso paciência para atravessar uma barreira de


cada vez. Aproximar-me de famílias de presidiárias,
fazer visitas me passando por amiga de infância,
acampar em portas de presídios, aceitar trabalhos
voluntários. Mesmo quando consegui autorizações
oficiais, nunca me foi permitido levar câmeras ou
gravadores e tive que desenvolver uma memória
robusta. Muitas vezes, deixava o presídio repetindo
frases em sussurros, feito ave-marias, para não
esquecer exatamente como foram ditas. Noutras,
anotava tudo nas mãos ou em pequenos pedaços de
Trilhas do imaginário | 185

papel que carregava nos bolsos. Era, afinal, possível


quebrar silêncios (QUEIROZ, 2016, p. 17).

Ao longo do livro, é perceptível o grau de imersão e envol-


vimento da jornalista com o tema e a vida das presidiárias, sejam elas
anônimas ou conhecidas, como é o caso de Suzane von Richthofen,
condenada a 39 anos de prisão por planejar o assassinato dos pais
Manfred e Marísia von Richthofen em 2002, sobre a qual Nana
escreveu o capítulo O efeito Suzane. Além das entrevistas e visitas
às prisões, a pesquisa também envolveu outros livros e estudos aos
processos judiciais das personagens.
É importante ressaltar que Presos que Menstruam também
dá um salto no campo de investigação sobre o sistema carcerário
feminino e as condições de vida das mulheres nos presídios do Brasil.
O livro traz um panorama mais completo, em âmbito nacional, já que
a jornalista visitou dez prisões em todas as regiões do país. Outras
obras que tratam sobre o assunto tendem a abordar apenas um
presídio, como é o caso dos livros Prisioneiras, de Dráuzio Varella;
Cadeia: relato sobre mulheres, de Debora Diniz; Prisioneiras: vida
e violência atrás das grades, de Bárbara Musumeci Soares e Iara
Ilgenfritz; e Auri, a anfitriã, de Aline Moura e Bárbara Almeida.
Presos que Menstruam também ultrapassou os limites da
literatura e do jornalismo e ganhou versão em curta-metragem, com
lançamento em setembro de 2018. No filme, a personagem principal
é Gardênia (recorte mantido neste artigo), condenada por tráfico
e homicídio, que não quis contar à Nana quem tinha matado. A
jornalista, no entanto, descobriu ao ler o processo da presa.

3 Livro-reportagem: conceitos e sua relação com o cotidiano


de mulheres encarceradas
Em Páginas Ampliadas – o livro-reportagem como extensão
do jornalismo e da literatura, Lima (2004) vê o livro-reportagem
como um subsistema do jornalismo capaz de auxiliar o homem
186 | Trilhas do imaginário

contemporâneo a entender o seu tempo. Assim, o autor conceitua


o livro-reportagem:

Entendendo a reportagem como a ampliação da


notícia, a horizontalização do relato -  no sentido
da abordagem extensiva em termos de detalhes
– e também sua verticalização – no sentido de
aprofundamento da questão em foco, em busca de
suas raízes, suas implicações, seus desdobramentos
possíveis -, o livro reportagem é o veículo de
comunicação impressa não-periódico que apresenta
reportagens em grau de amplitude superior ao
tratamento costumeiro nos meios de comunicação
jornalística periódicos. (LIMA, 2004, p. 26)

Belo (2006) também reconhece o potencial do livro-reportagem


quanto à sua capacidade de abordagem e aprofundamento no assunto
ao qual se proponha, definindo-o como:

Um instrumento aperiódico de difusão de informações


de caráter jornalístico. Por suas características, não
substitui nenhum meio de comunicação, mas serve
como complemento a todos. É o veículo no qual se
pode reunir a maior massa de informação organizada
e contextualizada sobre um assunto e representa,
também, a mídia mais rica – com a exceção possível
do documentário audiovisual – em possibilidades
para a experimentação, uso da técnica jornalística,
aprofundamento da abordagem e construção da
narrativa. (BELO, 2006, p. 41)

Diante da variedade de livros-reportagens, Lima (2004)


classificou-os em treze grupos com base em dois fatores: “o objetivo
particular, específico, com que o livro desempenha narrativamente
sua função de informar e orientar com profundidade, e a natureza
do tema de que trata a obra”.
Apesar de apresentar características do livro-reportagem-
ensaio, como o uso da primeira pessoa e a presença do autor em
Trilhas do imaginário | 187

evidência, Presos que Menstruam se enquadra no livro-reportagem-


retrato, já que tem seu foco num segmento da sociedade com o
objetivo de explicar seus problemas e complexidade, “na troca de
miúdos de um campo específico do saber para o grande público não
especializado”.
De acordo com Lima (2004), o livro-reportagem mais comum
no Brasil ainda se limita à continuação pouco ampliada da imprensa
cotidiana, sem explorar e avançar, por exemplo, nos recursos
linguísticos que esse gênero oferece. No entanto, o autor também
reconhece a autonomia do livro-reportagem, o apontando como “a
fonte potencial para um jornalismo de vanguarda que se poderá
praticar no futuro”.
Dadas as conceituações sobre o livro-reportagem e entendendo
em que categoria se encaixa Presos que Menstruam, alguns aspectos
da vida das mulheres retratadas no livro serão discutidos de acordo
com as concepções de Heller (2008) sobre o cotidiano. Segundo a
autora, todo homem participa da vida cotidiana inteiramente, ou
seja, com todas as suas particularidades. Essas, no entanto, não
atingem a sua intensidade porque o ser humano não tem tempo
nem possibilidade de desenvolvê-las.
Comparando o perfil da população prisional brasileira56 –
que é de 64% negra e 51% com ensino fundamental incompleto – à
assertiva de Heller (2008), é fácil pensar que as políticas públicas
implantadas nas últimas décadas no Brasil ainda não alcançaram
essas pessoas sujeitas à pobreza e à criminalidade.
A autora também aborda a questão da significação da vida
cotidiana. Para ela, a nossa significação é heterogênea, hierárquica
e mutável. Dito de outro modo, o ser humano interpreta sua
realidade envolvendo diversos símbolos, dando a eles uma posição
de importância que pode mudar com o tempo, de acordo com suas
vivências e com o contexto social em que esteja inserido. Ou seja,
não se pode exigir que as mulheres presas enxerguem o mundo e

56 Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (2016).


188 | Trilhas do imaginário

interpretem sua realidade da mesma maneira que mulheres que


tiveram melhores condições de vida educacional e financeira,
por exemplo.
De acordo com Heller (2008), se o indivíduo “dispõe de um certo
âmbito de movimento no qual pode escolher sua própria comunidade
e seu próprio modo de vida no interior das possibilidades dadas”, às
mulheres pobres e desempregadas não restam muitas alternativas
em tempo hábil que garantam o sustento (por vezes, o alimento) de
suas famílias.

4 Análise: o cotidiano de Gardênia

Gardênia está presente em sete capítulos de Presos que


Menstruam, identificados no índice como: Gardênia; A sentença do
filho; Andando pelas carnes; Quanto menos virem grades; O um-dois-
um de Gardênia; Maria sofrida; e Dia das Mães. O primeiro conta
que ela foi presa várias vezes (em uma delas, estava grávida) por
tráfico de entorpecentes, reincidindo quando estava em liberdade.
Na prisão, era uma boa faxineira e às vezes manicure. O uso das
drogas provavelmente teria contribuído para que ela aparentasse
mais idade do que tinha. Sua imagem é descrita como judiada pela
vida, demonstrando também sinais de loucura. Como relata Nana
(2016), “Gardênia, em resumo, era um caos. [...] E com a capacidade
de abarcar em si toda a ira de titãs”.
No segundo capítulo, a discussão gira em torno das condições
de parto para as presidiárias, bem como a realidade de voltar para
as alas maternas das prisões. Ser presa estando grávida de sete
meses não garantiu tratamento digno ou especial da polícia para
Gardênia. Quatro dias depois, entrou em trabalho de parto e foi
levada ao hospital em uma viatura. Ela lembra da médica com carinho
porque se sentiu bem tratada ao receber várias anestesias durante
o procedimento. Deu à luz a sua filha Ketelyn, que nasceu com a
saúde frágil, e mesmo assim só tinha permissão de amamenta-la uma
Trilhas do imaginário | 189

vez ao dia. De volta à prisão, mesmo com um bebê, nem sempre é


possível que as presas durmam em camas. Fatores como a ordem
de chegada no presídio ou mesmo a caridade das outras são levados
em consideração.
Gardênia diz ter achado fezes de rato na comida do presídio.
Outras presas disseram ter encontrado coisas como lesmas e vidro.
Ela lembra que as funcionárias serviam a comida com as mãos,
usando apenas luvas e nenhum utensílio. Muitas presas, assim
como Gardênia, que está no semiaberto, preferem passar fome e
comer na rua ou esperar que suas famílias levem comida - apenas
aos domingos.
A assertiva de que a Penitenciária do Tremembé foi planejada
para homens abre o quarto capítulo. Suas instalações e até mesmo
os banheiros são masculinos. Gardênia viveu lá por um ano. Em
seguida, o leitor começa a descobrir que ela também foi presa por
homicídio, mas não gosta de falar no assunto. Pagou os honorários
do advogado com seus serviços de manicure no presídio. Com o caso
levado a júri, ela lembra que foi condenada por quatro votos a três,
gerando comoção especialmente em um dos jurados: “Eu lembro
que tinha um jurado que chorava muito. Eu chorava e ele chorava
junto. Ele achô que votou a favor de mim”. Também demonstrada
nessa parte do livro, a confusão mental de Gardênia não permitia
que ela dissesse, com segurança, com quem seus filhos estavam - se
com parentes ou em abrigos do Estado.
No quinto capítulo que trata sobre a vida de Gardênia na prisão
e seus crimes, Nana (2016) conta que foi preciso vigiar a si mesma para
que seu livro não fosse sobre vítimas. Assim, achou necessário também
conhecer os processos judiciais das presas que havia entrevistado. Foi
assim que descobriu que Gardênia foi condenada por assassinar seu
próprio filho, uma criança de 4 anos, a pauladas. Como revela nesse
trecho do livro, apesar de buscar justificar o crime pela loucura de
Gardênia ou até mesmo pelo efeito das drogas, a autora apresenta
um trecho do processo que demonstrava saúde mental e o não uso
de entorpecentes no momento do crime.
190 | Trilhas do imaginário

Maria sofrida é, na verdade, um poema escrito por Gardênia


quando estava em castigo. Fala sobre uma mulher que engravida
sem planejamento familiar e depois entra em desespero por não ter
condições financeiras de sustentá-lo, o que a faz entrar para o mundo
do crime. Depois de deixar a criança com uma vizinha e cumprir pena,
a Maria, agora livre, vê que “seu filho, pelas droga, ia perecendo”. À
mulher, resta a culpa pela ausência durante a vida do filho.
Nana Queiroz encerra Presos que Menstruam com o capítulo
Dia das Mães. A data é uma das cinco oportunidades por ano de
saída permitidas às presas em regime semi-aberto. Exceto Glicéria,
todas as outras personagens são citadas nesse capítulo. Através do
menininho que olha fixamente para a porta do presídio, o texto
sugere que essa é a data mais importante não só para as presas, mas
também para as suas famílias, principalmente para os filhos, o que
faz sentido, já que, segundo o Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (2016), 74% das mulheres encarceradas no Brasil têm
pelo menos um filho.
Presa na maioria das vezes por tráfico, o tipo de pena cumprida
por Gardênia também segue os números nacionais. O levantamento
aponta que a maioria das mulheres cometem crimes que envolvem
a necessidade de completar a renda: 62% por tráfico de drogas ou
associação ao tráfico, 11% roubo e 9% furto.

5 Imaginário e jornalismo em Presos que Menstruam


Acertada a pertinência das reflexões entre o gênero livro-
reportagem e o cotidiano, é substancial um entendimento capaz de
delinear as conexões entre o fato e o sensível, a partir da relação
entre imaginário e jornalismo.
Gilbert Durand define o imaginário como:

O imaginário – isto é, o conjunto de imagens e


de relações de imagens que constitui o capital
pensado do homo sapiens –, nos aparece como o
Trilhas do imaginário | 191

grande denominador fundamental onde se alojam


todos os procedimentos do pensamento humano.
O imaginário é o cruzamento antropológico que
permite iluminar a abordagem de uma ciência
humana com a abordagem de outra. (DURAND,
2002, p. 18)

A partir da concepção de Durand (2002), pode-se entender


o imaginário como conjunto de símbolos e seus significados que as
mais diversas culturas estabelecem para dar sentido à forma que
os seres humanos enxergam o mundo. Assim, percebe-se que o
imaginário e a subjetividade estão profundamente ligados, mas são
coisas diferentes. Como explica Machado (2017), “a subjetividade é
o canal natural por meio do qual o imaginário se expressa”.
Estabelecer uma relação entre real e imaginário, especi-
ficamente diante da obra em questão, torna-se um exercício
indispensável pela quantidade de imaginários potencializados
a partir dos silêncios e recortes midiáticos, além de desertos de
informação até então instaurados.

Imaginário é distorção, ruído na comunicação,


interferência no canal, leitura, releitura, discurso,
significação e ressignificação. Todas essas camadas
que se sobrepõe ao real podem, em princípio, ser
retiradas. Essa operação de desconstrução não traz
de volta o sentido original, mas a sua ausência.
(MACHADO, 2017, p. 32)

Todo o legado de invisibilidade e silêncio a respeito do


cotidiano de mulheres no sistema prisional brasileiro, aliado
aos viciados recortes dessa representação na mídia, acabam por
encobrir o sentido original, com camadas de imaginário que
se sobrepõe ao real. Ao mesmo tempo em que a ausência de
documentação, de registro oficial do real, torna-se campo fértil
para o imaginário, faz-se imprescindível entender que o imaginário
é uma realidade aumentada:
192 | Trilhas do imaginário

A ideia de que o real só tem uma face suprime o


imaginário da própria realidade, impedindo-o de
ser aceito na sua condição realista. (...) O discurso
científico positivista e a narrativa jornalística objetiva
levada às últimas consequências deturpam o real por
negação ou ocultamento do seu lado imaginário. A
festa é descrita sem a sua atmosfera. O imaginário
é uma realidade sempre aumentada. (MACHADO,
2017, p. 35)

Ao entregar a sociedade um livro-reportagem com


amplo diagnóstico do sistema prisional no Brasil, a partir de
uma perspectiva específica – das mulheres; ao dar voz a quem
realmente enfrenta essa realidade e, com ela, todos os dilemas do
seu cotidiano, Nana Queiroz, não reproduz concepções patriarcais
que acostumaram a sociedade a tratar as mulheres privadas de
liberdade como homens, invizibilizando e desmerecendo suas
necessidades de natureza feminina. Ao contrário, com base na
profundidade de relatos e dados que apresenta, a autora estabelece
novas perspectivas de representação feminina nos presídios. Uma
ebulição de imaginários a partir dos novos documentos, conforme
corrobora Machado (2017): a secularização, a racionalização e a
estabilização, mais cresce o deserto do real e maior é a necessidade
de imaginários de evasão.
No entanto, observando a natureza investigativa do livro-
reportagem, com profundo acompanhamento em tempo real de
apuração, como foi o caso de Nana Queiroz, existe um limite entre
essa relação de fato e imaginário, conforme adverte Machado (2017):

No plano narrativo do jornalismo, a banalização


da noção de imaginário confunde a apuração com
a narração. Não há mais fato, somente construção.
(...) O fato é sempre é uma referência a partir da
qual se produzem narrativas. (...) Quando há uma
situação empírica vista em tempo real, a certeza de
que existem fatos e de que o imaginário tem limites.
(MACHADO, 2017, p. 38)
Trilhas do imaginário | 193

No campo da apuração jornalística, quanto ao grau de


imersão e envolvimento da jornalista com o tema, é salutar discorrer
considerações a respeito do imaginário no jornalismo, a partir de
aspectos como neutralidade, isenção e imparcialidade.
Machado (2017) considera que “durante muito tempo, no
imaginário jornalístico, a objetividade era incontestável. Hoje, é
indefensável”, havendo limites e ponderações. Se a objetividade já foi
o principal critério para que as informações jornalísticas recebessem
credibilidade, hoje já se reconhece que o jornalismo também teu
seu imaginário, que foi e é construído tanto pelos jornalistas como
pelo seu público, levando em consideração também as múltiplas
realidades que norteiam a elaboração das notícias e reportagens
nos dias atuais.
Sabe-se que o jornalismo pode falar sobre qualquer assunto
e se apresentar em diversos formatos. É necessário adequar sua
narrativa àquilo que cada tipo de mídia requer ou permite. Nesse
sentido, Belo (2006) explica as vantagens que o livro-reportagem
tem em relação a outros meios de comunicação:

O livro pede um nível de detalhamento,


profundidade e contextualização que outros
veículos não conseguem oferecer. Até por
sua extensão e pelo trabalho mais acurado de
pesquisa, ele leva evidente vantagem em relação
aos periódicos na hora de explorar as ramificações
de um tema, as conexões entre fatos diferentes,
os desdobramentos de cada história e as infinitas
maneiras de contá-la. É uma forma de ter uma
visão mais ampla e profunda, sem a fragmentação
que caracteriza a cobertura jornalística cotidiana.
(BELO, 2006, p. 42)

Nesse sentido, observa-se que o gênero livro-reportagem


exigiu muito mais que imersão e envolvimento da autora. Decretou
uma necessidade básica de profundidade em dados, detalhamentos,
conexões e desdobramentos objetivos, enraizados no campo do real
194 | Trilhas do imaginário

e dos fatos concretos. No entanto, isso não implica a ausência de


imaginários, conforme lembra novamente Machado (2017):

Os discursos científico e jornalísticos sofrem a


mesma interferência iluminadora dos imaginários.
Ganham transcendência pelo acréscimo de uma
aura, essa marca do subjetivo na objetividade, essa
transfiguração do enunciado pelo seu contexto e
pelos seus receptores. O cientista estuda o cérebro
ignorando, muitas vezes, que há também o espírito.
(MACHADO, 2017, p. 36)

Observa-se que o livro-reportagem, em toda sua condição


de investigação e diagnóstico, ocupando lugar privilegiado no
desempenho da função social do jornalismo, em nenhum momento
inibe, limita ou esvazia a produção de imaginários. A obra gera novas
perspectivas, novos imaginários, pautados dessa vez não em recortes
específicos da mídia, comunicados de órgãos oficiais ou silêncios,
mas na profundidade dos relatos de quem enfrenta o cotidiano por
trás das grades. Uma resistência dupla, que contempla desde a busca
pela garantia dos mínimos direitos humanos ao reconhecimento
das necessidades básicas da natureza feminina, como em qualquer
outro ambiente do espaço social.

6 Considerações finais
Os resultados mostraram que o gênero livro-reportagem
potencializa os recursos do jornalismo, permitindo uma abordagem
mais aprofundada acerca da vida, da realidade e do cotidiano das
mulheres presidiárias no Brasil. Presos que Menstruam também
proporciona uma melhor compreensão do sistema carcerário
feminino brasileiro, por evidenciar a estrutura física das prisões
e o tratamento dado às mulheres.
A obra é uma prova inconteste de que o diálogo entre
jornalismo e o imaginário é essencial, sobretudo em contextos
Trilhas do imaginário | 195

onde a produção de imaginários vem sendo refém do acesso


superficial aos fatos, de recortes direcionados e aspectos de
realidades. Apesar de haver limite entre os dois, um não elimina
o outro. Uma espécie de choque de realidade nos estereótipos, nos
imaginários alimentados até então. Mais que isso, uma limpeza,
uma oxigenação e novas perspectivas imaginárias concebidas
na profundidade dos relatos orais, ultrapassando estigmas e
preconceitos num exercício de amadurecimento do olhar sensível
para com a situação dessas mulheres.
O livro é um caso positivo no que diz respeito ao tratamento
que a mídia pode dar ao cotidiano de determinado grupo social
marginalizado, indo além da cobertura regida pela urgência do
factual e apresentando um relato significativo não só para jornalistas,
mas para as autoridades do setor e a sociedade como um todo, sem
esquecer das mulheres privadas de liberdade que, por tantas vezes,
não tiveram nem têm sua história de vida, seu cotidiano e suas
necessidades específicas respeitadas.

Referências
BELO, Eduardo. Livro-reportagem. São Paulo: Contexto, 2006.
CERNEKA, H. A. Homens que Menstruam: considerações acerca do
sistema prisional às especificidades da mulher. Disponível em: http://
www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/6/5.
Acesso em: julho de 2018.
DALCASTAGNÉ, Regina. Literatura Brasileira Contemporânea: um
território contestado. Vinhedo: Horizonte, 2012.
DINIZ, Débora. Cadeia: relato sobre mulheres. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015.
DURAND, Gilbert. As Estruturas antropológicas do imaginário. São
Paulo: Martins Fontes, 2001 (Les structures anthropologiques de l’
imaginaire. Paris: Dunod, 1992).
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Tradução de Carlos Nelson
Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
196 | Trilhas do imaginário

LIMA, E. P. Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do


jornalismo e da literatura. Barueri: Manole, 2004.
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias. Atualização – junho de
2016. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/
infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/
relatorio_2016_22111.pdf> Acesso em: julho de 2018.
MOURA, Aline; ALMEIDA, Bárbara. A anfitriã: Memórias do Instituto
Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa. Fortaleza: Editora
Aline de Sousa Moura, 2015.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2016.
SILVA, Juremir Machado da. Diferença e descobrimento. O que é
imaginário? A hipótese do excedente de significação / Juremir Machado
da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2017. 175p.
SOARES, B. M; ILGENFRITZ, I. Prisioneiras – vida e violência atrás das
grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002.
STUMPF, I. R. C. Pesquisa bibliográfica. In: DUARTE, Jorge e BARROS,
Antonio (org.). Métodos e Técnicas de Pesquisa em Comunicação. São
Paulo: Atlas, 2015.
VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
| 197

O imaginário social na teledramaturgia


brasileira e o personagem transgênero

Flávio Freitas Ferreira57


Edielson Ricardo da Silva58
Cláudio Cardoso de Paiva59

1 Introdução
A teledramaturgia brasileira há décadas é considerada um
dos produtos de entretenimento de maior alcance na sociedade.
Temas de mobilização e responsabilidade social são cada vez mais
frequentes nas narrativas telenovelísticas e atraem um público cada
vez maior. Programações voltadas para o gênero das telenovelas estão
disponíveis em canais de televisão abertos e, desta maneira, todas as
classes têm acesso às produções que são exibidas em distintos horários
e nas mais diferentes emissoras presentes no território nacional.
Sobretudo no contexto da principal emissora de televisão
no país, na Rede Globo, há um núcleo de trabalho focado na
responsabilidade social em suas produções. Esse espaço é grande
produtor no lançamento de ideias, experimentos e tramas que,
junto aos autores e roteiristas, planejam qual o impacto que podem
ter diante da sociedade, medindo os níveis de eficiência, eficácia e
efetividade em suas atrações.
Os enredos fictícios, alternados com a inserção de problemáticas
reais nas histórias, permeiam o imaginário do público noveleiro. Agem

57 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação na UFPB. E-mail:


[email protected]
58 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação na UFPB. E-mail:
[email protected]
59 Doutor em Ciências Sociais e professor do Programa de Pós-Graduação da
UFPB. E-mail: [email protected] r
198 | Trilhas do imaginário

de tal maneira que moldam o comportamento, influenciam formas


de pensar, ditam tendências e trazem temas muitas vezes não claros
para a sociedade e iniciam discussões. Ou seja, os temas trabalhados
em telenovelas, passam por rigorosas seleções e visam a especificação
e o lançamento de olhares mediante a reprodução televisiva.
Visando analisar como tais procedimentos ocorrem a
presente pesquisa objetiva analisar um personagem transgênero,
identificando os regimes e suas estruturas e significados, tomando
como base e referência a Teoria do Imaginário, proposta por Gilberto
Durand (1988).
A telenovela A Força do Querer, da autora Glória Perez, iniciada
em 2017 na Rede Globo, foi o recorte da pesquisa. A escolha se deu
por conta de a mesma abordar uma questão que ainda não é tão
comum nos espaços televisivos e por colocar em evidência um assunto
que é tido por muitos como tabu. O recorte será feito em cima da
personagem Yvana (Carol Duarte), que no decorrer da novela se
reconhece como uma pessoa transgênero.
O método aplicado foi a hermenêutica simbólica, proposta
por Gilberto Durand (1988). Propondo identificar a presença dos
regimes diurno e noturno em momentos diversos da narrativa,
que vai desde o momento em que ela se identifica com outros
personagens transgêneros e realiza a transição de gênero, passando
pelos desdobramentos da revelação de sua condição, até as relações
que a fazem vivenciar na família, trabalho e sociedade por ter feito
escolhas e opções sexuais que foge do padrão que é acreditado
como o ideal.
Ao percorrer os momentos vividos pela personagem, que se
descobre como transexual na novela, considerando os conceitos
e aplicações dos regimes, pretende-se compreender e decifrar
corretamente cada fase por ela vivenciada a partir de uma seleção
prévia. Além de refletir se as imagens que foram mostradas na
teledramaturgia trouxeram para o público algum entendimento,
se é possível perceber que tais situações ou fatos podem ocorrer
além da ficção.
Trilhas do imaginário | 199

Considerando tais aspectos e fundamentos demonstrando,


uma breve apresentação sobre qual o poder das telenovelas, das
imagens e qual a relação destas com os símbolos e regimes proposto
por Durand (1988) pode-se observar no meio televisivo.

2 As telenovelas, as imagens e os símbolos


A teledramaturgia brasileira tem uma grande importância de
mercado. As produções da TV Globo, por exemplo, já foram exportadas
para 170 países, além de ter ganhado diversos prêmios nacionais e
internacionais60. Esse produto televisivo-midiático, gera uma receita
milionária para a emissora e traz também um forte apelo cultural por
sugerir, através dos seus enredos, modos de vida que influenciam
os telespectadores.
Ao se identificarem com tais elementos persuasivos, os
consumidores deste tipo de programação, buscam se relacionar
com a estrutura simbólica das imagens que são transmitidas. Os
escritores de novelas, portanto, têm o desafio de criar histórias e
personagens que caiam no gosto daqueles que as assistem.
As tramas são muito bem planejadas e os recursos utilizados
para o êxito das telenovelas são os mais variados possíveis. Um
deles acontece através da percepção dos símbolos fazendo com que
o público possa construir numa perspectiva imaginária que não
condiz com a sua realidade, mas que pode servir para a distração e
lazer em momentos difíceis.
O poder da teledramaturgia está, intrinsecamente, ligado ao
uso repetitivo e redundante das imagens e falas que podem trazer
empatia e sensação de estar imerso em um ambiente seguro e familiar.
De acordo com Bachelard (1997, p. 28) “o simbolismo aberto nos prova
que o homem tem a necessidade de imaginar, que tem o direito de
imaginar, que tem o dever de aumentar o real” e que anterior, até

60 Informação disponível em: <https://natelinha.uol.com.br/noticias/2014/05/29/


governo-premia-rede-globo-por-exportacoes-de-novelas-entenda-75544.php>.
Acesso em: 15 jul. 2018.
200 | Trilhas do imaginário

mesmo ao pensamento, as imagens é que desencadeiam os modos


de pensar que estruturam a psiquê humana.
A sociedade, como um todo, é baseada na visualidade das
imagens. Começando pelas mais simples até as que possuem alto
nível de resolução, elas estão em tudo e a todo instante disponíveis
para que possamos visualizá-las. Na natureza se apresenta nos
quatro elementos, que são: fogo, água, ar e terra. Conforme estudos
de filosofias orientais, esses elementos servem para alcançarmos
níveis de meditação à medida que mentalizamos essas imagens em
forma de círculo e nos imaginamos no centro desse círculo. Além
disso, podemos vislumbrar o imaginário simbólico através de diversas
manifestações artísticas como a literatura, a música, as artes plásticas
no cotidiano e etc.
A imaginação e os símbolos que fazem parte do imaginário
tem o poder de ir ao mais profundo das mentes, resgatando imagens
que podem suscitar boas ou más recordações conforme a realidade
que se apresenta.
A despeito de haver confusões sobre a noção de imaginação e
imaginário um conceito proposto por Gomes da Silva e Gomes (2010)
define bem essa concepção quando dizem que a imaginação pode
ser compreendida de dois modos: primeiro, como uma operação
da mente, uma cognição que age evocando objetos conhecidos e,
segundo, como uma faculdade de criar, que é o próprio devaneio.
Já o imaginário se manifesta nas culturas humanas através da
imagens e símbolos, cuja função é colocar o homem em relação de
significado com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Nesse sentido,

o imaginário não é um simples conjunto de


imagens que vagueia livremente na memória e
na imaginação, ele é uma rede de imagens na qual
o sentido é dado na relação entre elas (GOMES- DA-
SILVA; GOMES, 2010).

Para Gomes (2013) as teorias propostas por Durand (2004)


visam um equilíbrio entre razão e imaginação, diferentemente
Trilhas do imaginário | 201

da estrutura do pensamento moderno marcado pelo positivismo


racional que ignora o mito e as suas influências. O imaginário,
neste contexto, é considerado não um coadjuvante, mas, sim, como
uma força geratriz, que traz movimento às ações da sociedade.
Segundo Durand (2004) a razão e as ciências unem os homens às
coisas, mas o que os unem entre si, sejam em níveis de alegria
ou tristeza, são as representações que perpassam o universo
constituído por imagens.
Neste contexto e nos inserindo neste universo simbólico,
temos os regimes e a tripartição dos gestos simbólicos, que compõem
a Teoria do Imaginário.

3 Os regimes e a tripartição dos gestos simbólicos


Para uma melhor compreensão do drama vivido pela
“personagem Yvana”, a qual essa pesquisa objetiva identificar os
regimes e suas estruturas, se faz necessário entender a integração
entre razão e imaginação desenvolvida na Teoria Geral do Imaginário,
de Gilberto Durand (1988). Estruturada em dois regimes, diurno e
noturno, essas concepções abrangem a sensibilidade heroica, mística
e dramática, implica numa “incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras do indivíduo
e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social”,
conforme Gilbert Durand (1988, p. 56).
Ao adentrarmos no estudo antropológico das imagens e símbolos,
percebemos que, diferentemente de outras áreas da ciência, o estudo
das Teorias do Imaginário foge ao método sistemático ditado por regras.
Para Bachelard (1997) seria imprudente querer propor uma análise
racional das imagens. As teorias do imaginário buscam desvelar os
sentidos e propósitos a partir de uma reflexão da existência do ser
humano de forma não apenas racional, mas, também, se utilizando
de recursos poéticos para entender a psiquê humana.
As imagens, segundo Gomes (2013), são classificadas a partir
das três estruturas e estratégias que são utilizadas pelos estudos
202 | Trilhas do imaginário

das Teorias do Imaginário, que servem para ajudar a humanidade


sobre questões referentes à finitude da vida e sobre o modo como
aproveitamos o tempo que dispomos e aproveitamos enquanto
seres humanos. Elas se classificam em: estrutura heroica, que visa
combater os aspectos negativos da morte; estrutura mística, que
inverte os valores, o negativo se torna positivo e vice-versa e a
estrutura dramática, que visa conciliar as estruturas heroica e mística
em meio às tensões existentes.
Tais estruturas trazem a dinamicidade e características de
transmutação que ocorrem no nível do imaginário que implicam
nas estruturas figurativas. Que ocorrem no âmbito dos sistemas
míticos ou constelações estáticas que são relacionadas aos símbolos,
arquétipos e isomorfismo dos esquemas, cada um desses estudos são
fomentados pela razão, como também pela sensibilidade enquanto
dimensão poética no estudo do ser.
Para Gomes (2013) o homem busca exercitar as faculdades das
quais é dotado, sendo assim, busca dar sentido a vida, se utilizando da
imaginação para ir compondo um cenário repleto de símbolo. Utiliza-se,
ainda, da razão para analisar os fatos que ocorrem no nosso cotidiano,
percebendo que a dualidade entre raciocínio e simbolismo está entre
os aspectos evidentes nas estruturas da Teorias do Imaginário.
Ainda de acordo com Gomes (2013) a dimensão simbólica não
tem a pretensão de evocar coisas a fazer, mas coloca a imaginação a
disposição das pessoas observando o modo como elas se relacionam
no dia a dia com os outros e enfatizando não o que é dito em palavras,
mas o que é expresso através do símbolo.
As estruturas do imaginário são compostas pelos dois regimes,
o diurno e o noturno, que são transbordados através dos arquétipos,
consistem na representação de símbolos que refletem a humanidade
em todos os aspectos.
A estrutura heroica (o regime diurno) traz o isomorfismo que
polariza imagens de separação e ascensão, tem relação com uma
postura vertical se relacionando com os sentidos da visão e tato. Em
outras palavras e exemplificando o conceito, é como se o ser humano
Trilhas do imaginário | 203

erguido tivesse uma melhor visão e compreensão, tanto do que está


a sua frente quanto aquilo que ocorre no seu entorno. Ele tem em
mãos a possibilidade de separar e decidir por aquilo que deseja fazer.
Os símbolos da luz, que são contrários às trevas se caracterizam
por seu aspecto ascensional, assim, pode-se tomar como parâmetro
a simbologia da árvore, que é constituída por raízes entranhadas na
terra, seu tronco firme e ereto ligando a sua copa ao céu, mostrando
que a elevação é para o alto.
Os símbolos que constituem a estrutura heroica são: os
ascensionais que almejam a subida, representados pela escada, asa,
flecha que rapidez nos entendimentos e compreensão do universo
ao redor; os espetaculares, que buscam alcançar a transmutação
e sublimação da carne através dos símbolos que refletem a luz; os
dialéticos, que apresentam como característica principal o corte, a
separação, os embates na vida e requerem uma transmutação nas
esferas espirituais, intelectuais e morais.
Durand (1988) afirma que a qualidade das adjetivações tem
uma boa recepção no campo do imaginário no regime diurno e
que isso gera interpretações e sugere que não nos atenhamos a
interpretações rasas ou faces que compreendem o regime diurno
como o bem, a razão e o regime noturno ligado ao mal. A oposição
que existe na estrutura heroica se utiliza da figura de linguagem
denominada de antítese para enfrentar a angústia existencial da
finitude e da passagem do tempo através da simbologia teriomórfica
(animalesca); nictomórfica (noite) e catamórfica (queda).
Enquanto que a estrutura de sensibilidade mística
compreende o regime noturno do campo do imaginário, também
denominada de antífrase, aqui se encontra os símbolos de inversão
onde a concessão e condição de tempo se fazem presentes, de
forma que antes ocorria uma queda rápida, agora ocorre uma
oposição, ou seja, um cair lentamente. A virilidade masculina é
substituída pela gestação que brota do ventre materno (o feminino).
O fogo místico diferentemente do fogo heroico não é o que reluz
e ilumina, mas aquele que tem forte relação com o acolhimento,
204 | Trilhas do imaginário

que cuida da intimidade, das interações sexuais e alimentares e


necessidades fisiológicas do ser humano.
Percebemos neste reflexo a conexão ao regime noturno das
imagens que é o Eufemismo. Uma figura de linguagem que intenta
abrandar a situação ao redor em que estamos imersos, que neste
caso inverte características negativas das imagens. Por exemplo: ao
invés de nos lançarmos em uma luta armada em posição de postura
ereta, nesse caso, nos lançamos numa busca pela harmonização
junto ao seio materno.
Ferreira – Santos e Almeida apud Gomes (2013, p. 35) declara que

[...] a face trágica do tempo é minimizada pela


negação ou pela inversão do valor afetivo a ele
atribuído, pois a intenção é construir um todo
harmonioso, na qual a angústia e a morte não
tenham lugar. Para isso, a imaginação utiliza-se da
eufemização (a noite não é mais trevas nefastas,
mas apenas sucessão do dia). O antídoto do tempo
é buscado na intimidade e no aconchego (Ferreira
– Santos e Almeida apud Gomes 2013, p. 35).

A estrutura sugere, ainda, uma ação de confundir a proposta


pela dominante da descida digestiva, fazendo transbordar imagens
intrinsecamente ligadas à intimidade do homem.
E, por fim, apresentamos a terceira estrutura de sensibilidade
mística que é representada pela ritmicidade dos gestos. Neste aspecto
os símbolos são organizados de dois modos: o poder de repetição
ou desempenho do papel genético e progressista, ligados ao vir a
ser, ou tornar-se.
No primeiro, localizamos símbolos cíclicos e, no segundo,
símbolos messiânicos, além dos mitos históricos. Valoriza
características positivas e negativas das imagens, conciliando
temporalmente sensações contraditórias como o medo e a esperança.
Tem como característica a figura da retórica, hipótese que implica
na descrição viva de objetos, cenas como se realmente estivesse
acontecendo de verdade no tempo presente.
Trilhas do imaginário | 205

Temos algumas representações dos símbolos cíclicos. Entre


elas a roda, o cultivo agrário, o ciclo lunar. Para Durand (2001, p.
34) “o calendário anual tem uma estrutura circular, pois tudo o que
se faz na vida é repetir e o ano novo é visto como o recomeço do
tempo”. A vida se renova a partir das datas comemorativas, das fases
lunares, que caracterizam a epifania do eterno retorno.
Diante de tais premissas se faz necessário conhecer um pouco
mais sobre o contexto da telenovela escolhida e da personagem
objeto da nossa ideia.

4 O transgênero na A Força do Querer


A telenovela a Força do Querer, de autoria de Glória Perez,
produzida e exibida pela rede Globo, em 2017, abordou alguns temas
polêmicos, entre eles a transexualidade. Um dos núcleos principais
da narrativa traz o dilema vivido por Yvana (Carol Duarte) que se
sente um homem em um corpo de mulher.
Yvana ao se reconher como um transexual resolve mudar de
sexualidade causando um enorme conflito no seio familiar que a
criou para viver como uma princesa. A resistência se deu maior por
parte da sua mãe Joyce (Maria Fernanda Cândido), a cena que Yvana
se assume transexual para sua família atinge recorde de audiência,
chegando a alcançar 44 pontos no IBOPE61.
As telenovelas brasileiras, sobretudo, as da Rede Globo são
atualmente consideradas os principais produtos da cultura televisiva
brasileira, sendo exportadas para dezenas de países, competindo
no mesmo patamar com o futebol e samba em termos de alcance
mundial. E quando as tramas trazem à cena questões polêmicas há
um envolvimento bem maior dos telespectadores.
Esses dados nos leva a concluir o quão importante foi abordar
e trazer a temática transgênero. O fato de que levou o público a ficar

61 Dados disponíveis em: <https://epoca.globo.com/sociedade/bruno-astuto/


noticia/2017/08/cena-em-que-ivana-revela-ser-trans-faz-novela-das-9-bater-
novo-recorde-de-audiencia.html> Acesso em: 18 jul. 2017.
206 | Trilhas do imaginário

curioso para acompanhar o desenrolar dos fatos e como se comporta


uma pessoa que se descobre transgênero alavancou a audiência da
telenovela para além do que era esperado.
Faz-se necessário citar que, antes da novela se iniciar, sites
ligados religiosos criticaram a emissoraa acusando de popularizar
a idologia de gênero por não considerar como algo correto e
adequado para as famílias, logo, não merecia ser amplamente
divulgado em uma emissora de televisão. No entanto a autora
retrucou afirmando que sua ideia é fazer com que essas pessoas
sejam olhadas com compreensão62.
Como o pedido não foi deferido observou-se que diversas
pessoas ligadas a grupos religiosos conservadores atacaram,
principalmente em redes sociais digitais e boicotes, a autora Glória
Perez e a TV Globo, por fazerem apologia à ideologia de gênero63.
Para Glória Perez (2008), autora da telenovela, trazer temas
que levem a reflexão da sociedade a partir deste pressuposto é fazer
com que a sociedade possa tomar novos posicionamentos e novos
pontos de vista. A escrita de uma novela acontece diariamente no
período mesmo da sua exibição, por seu um produto voltado ao
mercado, o feeedback do público chega em tempo real, graças a
convergência dos meios digitais.
Ao adentrar no universo ficcional de Yvana (Carol Duarte)
pode-se perceber toda a trajetória de uma personagem que não
tem qualquer identificação com a sua constituição biológica e, por
esse fato, resolve tomar a atitude de mudar de gênero, enfrentando
diversas formas de preconceitos. Para a autora Glória Perez,
temas como este devem vir apoiados por alguma campanha ou
engajamento social.

62 Disponível em: <https://noticias.gospelmais.com.br/globo-novela-a-forca-do-


querer-ideologia-de-genero-89914.html>. Acesso em: 20 ago. 2018.
63 Informações disponíveis em: <https://noticias.gospelmais.com.br/a-forca-do-querer-
ideologia-de-genero-evolucao-humana-93332.html>. Acesso em: 18 jul. 2018.
Trilhas do imaginário | 207

De acordo com Bargas64, Glória, ao retratar a temática, não


tinha plano B caso o tema tivesse sido repudiado pelo público. Então,
como estratégia, buscou ganhar a empatia do público e somente no
centésimo capítulo depois do público cair nas graças da personagem é
que Ivana demonstra insatisfação em pertencer a um corpo feminino.
O ineditismo é um ponto crucial e muito bem trabalhado
pela escritora. Muitas pessoas não conheciam ou não sabiam se
reportar à temática trans, alguns segmentos consideram, inclusive,
um comportamento de aberração. Para Maria Carolina Maia, A dor
de Yvana é uma dor existencial vivida por cada um de nós em algum
momento da nossa experiência de vida terrena e é necessário olhar
com verdade para tais questões65.
Com as mudanças pelas quais o mundo na era globalizada vem
passando, é possível perceber que as telenovelas têm se atualizado
em relação aos temas vivenciados pela sociedade. A teledramaturgia
brasileira, de distintas emissoras de televisão, vem dando destaque
às questões LGBTs, mas pelo fato de ainda grande parcela do público
ser constituída de pessoas conservadoras e preconceituosas, são
necessárias algumas precauções.
Quando uma narrativa de telenovela apresenta personagens
transexuais, acaba-se gerando emponderamento e esperança para
essas pessoas. Abordagens sobre questões legais estão também tendo
maior abertura, como no caso da troca do nome das certidões de
nascimento, participações como candidatos em eleições de 2018, uso
de nome social e etc. Um exemplo exposto na Bahia prova tais dados:
estado que cerca de 318 eleitores, que são transexuais e travestis,
vão usar o nome social no título eleitoral nas eleições de 201866.

64 Informação disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/


08/1913533-trans-em-novela-da-globo-faz-parte-de-estrategia-por-mobilizacao-
social.shtml. Acesso em: 24 de out. de 2018.
65 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/entretenimento/acerto-de-gloria-
perez-e-mostrar-que-a-dor-de-ivana-e-universal>. Acesso em: 15 de out. 2018.
66 Informação disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/
noticia/2018/09/17/mais-de-300-transexuais-e-travestis-vao-usar-nome-social-
para-votar-na-bahia.ghtml Acesso em: 20 jul. 2018.
208 | Trilhas do imaginário

Propõem-se, portanto, analisar alguns principais acontecimentos


que se destacaram na narrativa telenovelística, em específico para
essa personagem, a partir dos princípios da Teoria do Imaginário.

5 Aplicando a Teoria do Imaginário em quatro cenas


com a/o personagem Yvana/Ivan (novela A Força do Querer,
da Rede Globo)
A partir da apresentação dos conceitos sobre a Teoria do
Imaginário, é possível identificar os regimes diurnos e noturnos.
Propõe-se aqui, a análise de quatro cenas da telenovela objeto de
estudo desta pesquisa. As quatro cenas foram escolhidas em virtude de
terem alcançado altos índices de audiência, além do fato que a autora
só revelou a condição e desenvolveu o tema a partir do centésimo
capítulo, quando os telespectadores já estavam mais adaptados e
criaram maior empatia com a trama. Garantindo, assim, uma maior
audiência e fidelidade do público.
Como foi feito um recorte, a personagem Yvana será a
principal referência de análise, na qual serão apresentados os
regimes que são recorrentes em cenas específicas, bem como os
seus significados.
A primeira67 cena a ser analisada consiste no momento em que
a personagem Yvana decide contar que é um homem no corpo de uma
mulher. Ou seja, após muitas conversas com amigos, procurando se
informar sobre como se comporta e pensa uma pessoa transexual,
ela decidiu enfrentar o seu medo indo em busca do confronto.
Ela começou a dizer para seus pais que: “Vocês não tiveram
a filha que queriam ter, eu nasci menino. Passei a vida diante dos
espelhos tentando me achar e não me achando na imagem que eu
via. Vocês sabem o que é isso? Sabem o que é se sentir num vazio?
Sem identidade nenhuma? Sabem? Sabem o que é sentir seu próprio

67 Cena disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_skotvgkuaY&t=


42s&pbjreload=10> Acesso em: 10 ago. 2018.
Trilhas do imaginário | 209

corpo como um território inimigo? Que só te humilha, só te incomoda?


Como se fosse uma roupa emprestada que não cabe em você, mas
meteram você lá dentro e você não tem como sair?”. Argumentava
a jovem enquanto seu pai, mãe e irmão afirmavam que ela precisa
de ajuda ou estava louca.
Sob o viés da Teoria do Imaginário, nesta situação, o regime
diurno se apresenta como dominante, do tipo simbólico teriomórfico,
que apresenta ênfase na animalidade e angústia, provocando
formigamento, ou seja, as faces do tempo e da inquietude do ser
humano. Outro reflexo também ainda pode ser identificado, ficando
assentado no cetro e no gládio e as virtudes do ser humano. Destaca-
se os símbolos de ascensão diairético de antítese (as armas do herói).
Para Gomes (2013, p. 32)

O diurno é o regime da antítese, em que os monstros


hiperbolizados são combatidos por meio de símbolos
antitéticos: as trevas são combatidas pela luz e a
queda pela ascensão. (GOMES, 2013, p. 32)

Gomes (2013) declara, ainda, que

O primeiro gesto, ou dominante postural, responsável


pelos demais reflexos, está ligado à verticalização
e exige as matérias luminosas, as técnicas de
separação, de purificação, de armas, flechas e gládios.
É o esquema heroico que põe em ação imagens e
temas de luta. É a antítese (do herói contra o monstro,
do bem contra o mal, da vida e morte) (GOMES,
2013, p. 33-34).

Nessa cena, é possível constatar que a personagem Yvana


se coloca e lança-se para o combate (revelando seus pensamentos
e postura), com seus argumentos e pronta para ser sua própria
heroína perante os monstros (aqueles que vão lhe recriminar por suas
decisões). A cada indagação dos familiares, surgia uma explicação
de Yvana, emocionada ao falar como sentia-se preso em um corpo
que nunca foi seu.
210 | Trilhas do imaginário

A não aceitação da família fez com Yvana se prendesse em seu


quarto e cortasse seus cabelos, como em um ritual de libertação. Cada
cacho de cabelos que caía, representava a despedida da menina que
nunca existiu, libertando-se daquilo que nunca foi. Logo após, ela
pega os pertences pessoais e resolve passar um tempo fora de casa
para avançar no processo de transição de gênero. Ela reaparecerá
dias depois no escritório do pai com o cabelo ainda mais curto.
A segunda68 cena que damos destaque é quando Yvana (Carol
Duarte) se veste com roupas masculinas e vai encontrar com
Ruy (Fiuk), que a critica e afirma para ela que não tem irmão. Mas
ela não se intimida e rebate todas as acusações do seu irmão. Em
seguida, se dirige ao seu pai, que estava dentro do banheiro fazendo
a barba e pede alguns objetos emprestados e muito surpreso o pai
declara não saber o que dizer. Em seguida, ela procura o tio, o qual
reage de forma grossa e a chama de aberração. Por último, ela busca
se reconciliar com a mãe. No entanto, a mãe não se mostra amigável,
resolve cortar a mesada de Yvana e esta sai em busca de emprego e
constata diversos tipos de dificuldades e preconceitos.
Aqui, percebe-se que os acontecimentos se dão dentro do
regime noturno. Ela busca o aconchego, a aceitação, o apoio familiar,
no entanto, não recebe nada disso e não se deixa abater. Para
Gomes (2013, p. 32) “[...] o noturno é o regime da antífrase, que está
constantemente sob o signo da conversão e do eufemismo, invertendo
radicalmente o sentido afetivo das imagens”.
Sobre esse reflexo Gomes (2013, p. 35) argumenta que

Neste reflexo está presente o esquema místico


(incluir), com suas imagens assimiladoras. O que
remete ao regime noturno das imagens, voltado
ao eufemismo, ou seja, acontece uma inversão do
aspecto negativo das imagens, ao invés de combater
com a arma na mão, em pé, como na posição postural,
aqui isso acontece se empenhando em fundir, em

68 Cena disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FS6ySFpLquA&t=93s>.


Acesso em: 15 ago. 2018.
Trilhas do imaginário | 211

harmonizar. Ao invés da luminosidade transparente,


temos a opacidade das substâncias, aqui o ventre, o
acolhimento (GOMES, 2013, p. 35).

Ainda sobre essa condição Ferreira-Santos e Almeida (2012),


salientam que a negação é minimizada pela inversão de cunho afetivo,
pois a intenção principal é de construir algo harmonioso, utilizando-
se da eufemização (a noite não é mais trevas e sim sucessão do dia).
Aqui, busca-se a intimidade e o aconchego e na cena sob análise
identificamos claramente.
Já na terceira cena69 a qual propomos observar, consiste na
situação que Yvana, já se denominando Ivan, foi vítima de um ataque
transfóbico e vai parar no hospital. O filho de Joyce (Maria Fernanda
Cândido) levará uma surra no meio da rua e ficará sangrando e
inconsciente. Ao ser socorrido, o rapaz descobrirá que perdeu o bebê
que esperava de Cláudio (Gabriel Stauffer). A violência chocará toda
a família. Ao encontrar o herdeiro todo quebrado no corredor de
um hospital, Joyce o chamará pela primeira vez de filho e entenderá
que a questão de gênero não é uma escolha. Após a agressão, tanto
ela quanto seu esposo e filho aceitarão a condição de Ivan.
Após o atendimento, o enfermeiro avisará os dois. “Machucou
muito, mas não chegou a quebrar nada! Agora... perdeu o bebê”,
anunciará. Depois, já em casa, Ivan será ajudado pela mãe a se
deitar em sua cama. Muito emocionada, Joyce conversará com o
filho. “Você não vai mais embora daqui! Essa é sua casa, essa é a sua
família. Ninguém vai mais maltratar você! Ninguém! Olharam para
você e saíram batendo? Foi isso?”, pergunta a mãe de Ivan. “Mãe...
você entende que ninguém escolhe isso? Entende?”, indagará Ivan.
Joyce balançará a cabeça que sim e o abraçará.
É notável que esses momentos podem ser divididos em duas
situações do regime diurno. Na primeira situação, Ivan se insere
nos símbolos nictomórficos da escuridão, em uma situação de

69 Cena disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=Ip1ADv5ytdg>. Acesso


em: 20 ago. 2018.
212 | Trilhas do imaginário

trevas. É duramente agredido, verbalmente e fisicamente. Como


consequência deste primeiro estágio, vêm os símbolos catamórficos
em forma de dor e castigo, a dor pelas pancadas que levou em
seu corpo.
Não obstante, na segunda situação, as cenas nos transmitem
os símbolos da ascensão e elevação. Tal trauma e dores sentidas
não foram suficientes para que ele quisesse retroceder em suas
escolhas. Foi, inclusive, nesta situação que a família compreendeu a
sua condição e o aceitou tal como ele é, tendo desta forma, não mais
uma negação, mas aceitação e ascensão da pessoa dele em relação
aos seus parentes mais próximos que decidiram acolhê-lo em casa
e o proteger. Sobre isso Gomes (2013, p. 39) afirma que “Então o
regime diurno suscita ações e temas de luta e fuga diante do tempo
ou da vitória sobre o destino e a morte”.
A quarta70 e última cena analisada é a que Ivan pede os
documentos para iniciar o processo de troca de nome e de gênero
na certidão de nascimento ao seu pai, Eugênio (Dan Stulbach).
Após refletir sobre o pedido, Eugênio chamou o filho para ir até seu
escritório e o surpreende com a certidão original. Ivan agradece ao
seu pai e fique irradiando felicidade.
O regime noturno se observa na cena através da estrutura
sintética do imaginário com os movimentos do tempo e do destino. Os
símbolos cíclicos predominam, se observa uma decisão conjunta, uma
determinação do grupo ao qual pertencem. Sobre tais características,
Gomes (2013, p. 39) afirma que

Assim, esta atitude imaginativa põe em evidência as


valorizações positivas e negativas do tempo. Desse
modo, o regime noturno se caracteriza por inverter
os valores simbólicos do tempo, logo, não existe
mais o combate, como no regime diurno e, sim, a
assimilação. (GOMES, 2013, p. 39)

70 Cena disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=FS6ySFpLquA&t=93s>.


Acesso em: 25 ago. 2018.
Trilhas do imaginário | 213

Verifica-se que não existe mais o confronto combativo e


desafiador. O que há é compreensão, assimilação da condição e dos
sentimentos do outro em relação aos seus, de crescimento coletivo,
transmitindo o sentido da árvore e a ideia de fases do ciclo lunar.
Houve a fase do desconforto, do choque, do drama, do sofrimento, do
isolamento, da aceitação e, finalmente, chegou-se a fase de assimilar
o que o outro sempre quis passar através de gestos, ações e palavras.
Ao finalizar essas análises e tomando como base os estudos
realizados por Gomes (2013), chegamos a reflexão que:

[...]a dimensão simbólica não sugere coisas a fazer e,


sim, propõe coisas a imaginar a respeito das possíveis
redes de significações que cada pessoa associa a seu
cotidiano, imprimindo-lhe aquilo que não é expresso
com palavras, sinais ou gestos (GOMES, 2013, p. 22).

Portanto, toda tomada de decisão, suas ações e reações são


relacionadas aos princípios e aspectos do imaginário. Durand (1989)
explicita que o ser humano é dotado de uma extensa capacidade
de formar símbolos em sua vida sócio-cultural. Assim, todas as
atitudes desenvolvidas pelo homem advêm destes símbolos e imagens
formadas e armazenadas ao longo de sua vida social e cultural.

6 Considerações Finais
Diante de um longo período centrado na racionalidade
científica, aspectos diversos da natureza humana pautados na arte,
na poesia, no pensamento não racional funcionavam como uma
resistência a uma única maneira de enxergar o cientificismo ocidental.
Nesse contexto, a teoria do Imaginário vem, ao longo dos anos, se
estruturando enquanto teoria científica, a partir da comprovação de
que o psiquismo não funciona apenas à luz da percepção imediata e
de um encadeamento racional de ideias, mas, também, na penumbra
de um inconsciente, revelando as imagens irracionais do sonho, da
neurose ou da criação poética (DURAND, 2001).
214 | Trilhas do imaginário

Objetivando abordar os conceitos da Teoria do Imaginário e sua


aplicação em um objeto em específico foi algo, no mínimo, desafiador.
O presente capítulo não teve apenas o objetivo de apresentar de utilizar
a hermenêutica simbólica, mas, também, em evidenciar como ocorrem
em uma telenovela, deixando claro aos leitores os momentos, cenas e
os significados respaldados na teoria geral do imaginário.
Não obstante, propomos uma análise a partir de uma problemática
que sucinta divergência de opiniões, preconceitos velados ou não e,
principalmente, falta de informação. Ao analisar a/o personagem Yvana/
Ivan, trabalhou-se não somente os aspectos teóricos e conceituais, mas,
também, um tema social que instiga a sociedade a desenvolver uma
nova postura em relação as pessoas transexuais.
Após a explicitação de como é e como se aplica a teoria,
foi possível perceber na/o personagem escolhida/o o quanto as
emoções, as imagens, gestos e atitudes estão relacionadas ao universo
simbólico da Teoria do Imaginário, conseguindo transparecer até
onde queríamos evidenciar a temática evidenciada.

Referências
BACHELARD, G. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Trad. De Eliane Fittipaldi
Pereira. São Paulo: Cultrix, 1988.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da
filosófica da imagem. Trad.Renée Eve Levié. Rio de Janeiro: Difel, 2004.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário:
introdução à arquetipologia geral. Trad. Hélder Godinho. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA, Rogério. Aproximações ao
imaginário: bússola de investigação poética. São Paulo: Editora Kepos, 2012.
GOMES, Eunice Simões Lins. Um baú na sala de aula. São Paulo:
Paulinas, 2013.
GOMES-DA-SILVA, Pierre Normando; GOMES, Eunice Simões Lins. Malhação:
corpo juvenil e imaginário pós-moderno. João Pessoa: Editora UFPB, 2010.
PEREZ, Glória. Autores: histórias da teledramaturgia. São Paulo: Globo, 2008.
| 215

O consumo das imagens espetaculares


e trágicas na era digital sob a perspectiva
do imaginário no episódio White Bear
da série Black Mirror

Emanuelle Querino Alves de Aviz71


Lucas Pereira Damazio72

1 Introdução
A série britânica Black Mirror, dirigida por Charlie Brooker,
estreou em 2011 na televisão. Contudo, foi a partir de 2016, por meio do
sistema virtual de streaming, Netflix, que a série recebeu notoriedade
mundial. Seu formato é composto de episódios individuais, mas
ligados por um tema em comum: a representação do futuro baseado
no comportamento do homem pós-moderno. A série, como temática,
apresenta as consequências aterrorizantes que o mau uso, ou o uso
exagerado da tecnologia, pode causar. O que levou a seguinte questão
problema: como a pós-modernidade é retratada pelas lentes dos
produtores da série, especialmente no episódio White Bear?
Este episódio despertou o interesse dos autores pelo fato
de mostrar uma mulher desmemoriada, sendo perseguida por
mascarados, enquanto várias pessoas assistem aos acontecimentos
e filmam com seus celulares, sem oferecer qualquer ajuda. Ao

71 Mestre e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem.


Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano. Universidade do Sul de Santa
Catarina – Unisul. Tubarão, Santa Catarina, Brasil. E-mail: [email protected]
72 Doutor em Ciências da Linguagem. Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano.
Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Tubarão, Santa Catarina, Brasil.
E-mail: [email protected]
216 | Trilhas do imaginário

final do episódio, revela-se que a personagem principal é cúmplice


do assassinato de uma criança, ao qual ela assistiu e filmou o
crime, cometido por seu noivo. Sua pena é reviver diariamente o
sofrimento que causou à criança, dentro de um Parque de Justiça,
onde as pessoas podem filmá-la, assim como ocorre em safáris.
Encerrado as atividades, um dispositivo eletrônico apaga sua
memória, o que permite a encenação do espetáculo novamente, de
forma que esta mulher permaneça inconsciente de sua condição
até o momento da revelação, quando é torturada psicologicamente
e verbalmente.
Diante desse episódio, delimitou-se como objetivo compreender
como funciona o consumo das imagens espetaculares e trágicas na
era digital. A justificativa baseia-se no questionamento de como o ser
humano pode assistir ao sofrimento alheio e, ao invés de ajudar, assiste
a tragédia, sem fazer absolutamente nada, de forma a permanecer
distante dos acontecimentos. O fato de existir registros de casos
reais, em que pessoas deixaram de ajudar alguém para filmar seu
sofrimento, estimula ainda mais esta pesquisa.
Para isso, esta pesquisa apoia-se nos estudos sobre a Sociedade
do Espetáculo (DEBORD, 1997), na Teoria do imaginário (DURAND,
1985, 2002, 2011) e no conceito de pós-modernidade (MAFFESOLI,
1996, 2000, 2001). Salienta-se ainda que, para efetuar o estudo,
optou-se pela mitocrítica, a fim de identificar o mitema norteador
do episódio.

2 Sociedade do espetáculo
O Parque de Justiça White Bear é um local onde as pessoas
escolhem para assistir a justiça sendo feita. Este local, no qual o
público tem a oportunidade de punir uma criminosa, é possível
torturar uma pessoa que infringiu de algum modo a lei. O Parque de
Justiça, como é identificar no episódio, aparenta ser um condomínio
residencial, com casas, ruas largas e áreas verdes. Trata-se de uma
área cercada, com cancelas e cobrança de ingresso, além de um
Trilhas do imaginário | 217

anfiteatro para a recepção dos visitantes, onde é realizada a revelação


diária da identidade de Victória: a assassina e vilã.
Neste cenário, as personagens vivenciam o espetáculo, “uma
relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD,
1997, p. 14). Imagens estas que são produzidas por elas mesmas,
com seus celulares e filmadoras. Nota-se, nas cenas apresentadas
durante o episódio, famílias com crianças, amigos, idosos, todos são
representados como se estivessem prontos para assistir uma peça
de teatro ou um filme no cinema. Com isso, é viável identificar “uma
negação da vida que se tornou visível” (DEBORD, 1997, p. 15), ou
seja, nega-se a vida para idolatrar a própria morte, intercedida por
vídeos e fotos de aparelhos eletrônicos.
Isto nos permite comparar a situação com uma forma de
“turismo, circulação humana considerada como consumo, resume-se
fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal” (DEBORD,
1997, p. 112). Neste raciocínio, visitar um “parque de justiça” é o
equivalente a ir a um safári, como o próprio personagem narra ao
alertar o público, que devem considerar a criminosa como uma leoa
solta. Até parece que o crítico do espetáculo, Debord, assistiu ao
episódio quando afirma que “desde que a arte morreu, sabe-se que
é muito fácil disfarçar policiais em artistas” (1997, p. 228).
Para o autor, “aquilo que o espetáculo deixa de falar durante
três dias é como se não existisse. Ele fala de outra coisa, e é isso
que, a partir daí, afinal, existe. As consequências práticas, como
se percebe, são imensas” (DEBORD, 1997, p. 182), pois por mais
que as imagens estejam ali sendo consumidas, compartilhadas e
comentadas, parece haver um distanciamento da realidade, como
se o vídeo permitisse considerar a cena como algo que não é real.
Esse entendimento é retomado por Maffesoli, quando afirma
que o que não pode ser visto é como se não existisse, pois, “fazer
incidir a atenção sobre o jogo das aparências é certamente uma
boa maneira de tomar conhecimento da presença deste algo que
está lá “cegando os olhos” do observador que, no entanto, nada
vê (MAFFESOLI, 2000, p. 114).
218 | Trilhas do imaginário

Esta capacidade de ver algo está relacionada às sensações


que permitem observar determinados objetos ou cenários, afinal,
pode-se ser despertados ou não para esta estética, é necessário que
exista uma motivação para esta sensibilidade. Maffesoli (1996, p. 25)
fala de uma ética da estética, em que compreende a ética como uma
motivação e a estética como a faculdade de sentir em comum (1996,
p. 28) com um caráter social e uma estrutura antropológica (1996, p.
28). “A cultura do sentimento é, portanto, a conseqüência da atração.
Agregamo-nos segundo as ocorrências e desejos. [...] Eis a ética da
estética: o fato de experimentar junto algo é fator da socialização”
(1996, p. 37-38), desejo que nos parece, neste caso, ser o de apreciar
o sofrimento alheio em coletividade. Para o autor, esta maneira da
humanidade de estar junto uns com os outros é como uma forma
profana de religião, o que faz sentido ao lembrar que chamamos a
audiência on-line de seguidores e que o alcance e a interação com
eles são as medidas do sucesso, que também podem ser chamadas
de tribos pós-modernas.
Kauling (2017, p. 26) irá detalhar que

A ética da estética equivale à necessidade do inútil


para fortalecimento do corpo social. Tudo serve
para celebrar um estar-junto cujo fundamento
é menos a razão universal do que a emoção
compartilhada, o sentimento de fazer parte.
(KAULING, 2017, p. 26)

Desta forma, localizamos o episódio exatamente nesta


comunhão social, em que a motivação estética é partilha da
violência do in loco para o virtual.
Podemos comparar este momento de coletividade no exemplo
de Maffesoli (2000, p. 184) que cita os centros comerciais como
não sendo apenas locais para venda, mas que são “ocasiões de
comunhão” que causam “transes de consumo”. White Bear seria
um transe de consumo da vídeo-imagem, vendida pelo sistema
prisional do “Parque de Justiça” um “mundo imaginal pós-moderno
Trilhas do imaginário | 219

em que a imagem é o elemento essencial do elo social” (MAFFESOLI,


2000, p. 67). Indícios que nos mostram que podemos procurar no
Imaginário Social o mito fundador parece estar no centro destes
tempos trágicos.

3 Imaginário trágico
Somos levados a questionar como seria possível compreender
a recorrência desta forma de agir socialmente, buscando o prazer
no sofrimento. Para Maffesoli, o imaginário

É o estado de espírito que caracteriza um povo.


Não se trata de algo simplesmente racional,
sociológico ou psicológico, pois carrega também
algo de imponderável, um certo mistério da criação.
(MAFFESOLI, 2001, p. 75)

Ou seja, o imaginário está além da compreensão racional


humana e faz parte dela, especialmente na coletividade.
Maffesoli ainda conceitua a vida como o que nos permite
“compreender como é ao redor de algo ‘irreal’ que, na maioria das
vezes, no reunimos para sentir, experimentar [...] viver em conjunto”.
Para o autor, não se contabiliza coisas sem preço, as quais em certas
épocas retomam sua importância, exemplificando a época de excessos
e de consumo em que

inclui-se a pós-modernidade que, por muitas


práticas sociais, em particular juvenis, acentua bem
a afirmação da vida, sobretudo no que ela pode ter
de animal, de bárbaro ou até mesmo de arcaico
(MAFFESOLI, 2000, p. 143).

Este comportamento do retorno dos “excessos juvenis” para


Maffesoli pode ser considerado o retorno de Dionísio, que é uma
figura mitológica grega em que se encontram inúmeras variantes
em todas as culturas,
220 | Trilhas do imaginário

mas igualmente as belas figuras do desporto, da


música, das <<notícias>> que entretém a crônica.
Sem esquecer as figuras romanescas e teatrais que
servem de pano de fundo à existência do homem
sem qualidades (MAFFESOLI, 2000, p. 87).

Ou ainda, como “Dionísio dos tempos modernos”, que é a


“expressão de um arquétipo invariante [...] Eis a lição do trágico: dar
o seu lugar à alegria demoníaca de viver. (MAFFESOLI, 2000, p.88).
Se partirmos da premissa proposta por Silva (2003, p. 7) que nos
desafia ao afirmar que “todo imaginário é real. Todo real é imaginário.
O homem só existe na realidade imaginal. Não há vida simbólica fora
do imaginário. [...] o ser humano é movido pelos imaginários que
engendra. O homem só existe no imaginário” podemos compreender
que não há como analisar qualquer objeto sem considerar esta aura
indefinível que perpassa as águas da compreensão.
Alguns autores, a partir do trabalho desenvolvido por Gilbert
Durand, em 1960, chegam a aproximações do que é o imaginário,
como Ferreira-Santos e Almeida (2012) ao explicar que o imaginário
é “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens [...] que engloba a produção
poética, artística, mas também a científica, filosófica, ideológica,
etc.” (FERREIRA-SANTOS; ALMEIDA, 2012, p. 38) de forma a ser mais
característico pelo dinamismo do que pelas bases estruturais.
Assim, o imaginário pode ser identificado amplamente nos
aspectos mais variáveis da vida humana, já que sua marca está
situada anteriormente a nossa formação consciente e, por isso,
perpassa por nossa forma de agir e criar. Para Durand (2002, p. 21)
“o imaginário é a infância da consciência” e o autor cita Jung sob a
visão da psicanálise para explicar que “todo pensamento repousa
em imagens gerais, ou arquétipos, ‘esquemas ou potencialidades
funcionais’ que ‘determinam inconscientemente o pensamento”
(2002, p. 30). Em seu esquema da tópica sociocultural do imaginário
(2011, p. 94) amplia que este inconsciente “forma-se quase que no
estado de origem (tal como o gesso, adquire forma num molde) das
Trilhas do imaginário | 221

imagens simbólicas sustentadas pelo meio ambiente, especialmente


pelos papéis, as personaes (as máscaras) desempenhadas no jogo
social”. Isto pode apontar para a possibilidade de usarmos as telas
dos celulares como máscaras que nos permitem ver, às vezes e
especialmente, no anonimato todo tipo de conteúdo.

4 Metodologia
Para dar conta da análise proposta, adotaremos como
metodologia o estudo de caso, qualitativo, aprofundado com a
mitocrítica de Durand (1985). Rauen (2015, p. 559) explica que o
método qualitativo é aplicado quando há um caso distinto, em que
mesmo que existam outros semelhantes, seu “valor intrínseco implica
valorizá-lo em sua unicidade e não como suporte para a generalização
indutiva”. Para o autor o estudo de caso qualitativo “é uma descrição
intensiva e holística e uma análise de uma unidade singular” (RAUEN,
2015, p. 561), neste caso o episódio White Bear, da série Black Mirror.
Para entender as recorrências dos mitos, Durand elaborou
uma forma de entender seus retornos, sendo que sua mitodologia nos
permite “recensear os ‘grandes mitos que presidiram a construção
de todo o saber’” (LEGROS, 2014, p. 125). O mito, do grego mythos,
aquilo que se relata, apresenta cenários surreais ou divinos, que
pode ser divido em sequências ou unidades semânticas, que foram
chamadas de mitemas (DURAND, 1985, p. 245), pontos fortes e que
se repetem na mesma narrativa. Assim, através da mitocrítica
(análise de uma obra) e da mitanálise (análise de um período de
tempo em determinadas sociedades) podemos tentar encontrar as
“entidades mitológicas” com seus poderes e forças, além das formas,
apreendendo “os grandes mitos que orientam (ou desorientam...)
os momentos históricos, os tipos de grupos e de relações sociais”
(DURAND, 1985, p. 246).
Para realizar a mitocrítica proposta por Durand, deve-se
primeiro relacionar temas e recorrências que estruturam a sincronia
mítica da obra; em seguida, examinar situações, personagens e
222 | Trilhas do imaginário

combinações através do tempo, e por fim, localizar as diferentes lições


do mito, comparando-o com outros mitos de uma época determinada,
o que já abre caminho para a mitanálise (ALMEIDA, 2011, p. 25).
Mesmo inconscientes, formulamos, reformulamos e somos
expostos a imagens míticas atualmente. Estas pistas estarão ora
latentes, ora patentes, de forma que mais de um mito pode estar
presente em um determinado período de tempo.

Podemos [...] interpretar o imaginário colectivo


europeu como um ciclo onde se sucedem, durante
estes dois últimos séculos, as figuras emblemáticas
de Prometeu, Dionísio e Hermes, cuja simbólica
ilumina a maior parte dos factos culturais (ARAÚJO
E BAPTISTA, 2003, p. 29).

Em alguns momentos um irá sobressair-se ao outro, e assim


sucessivamente, sem uma ordem específica, mas de acordo com os
imaginários que perpassam as sociedades.

5 White Bear
O episódio White Bear foi exibido pela primeira vez em
fevereiro de 2013 e é o segundo episódio da segunda temporada de
Black Mirror. Apresenta uma mulher que acorda apenas com flashes
de memória, está em frente a uma televisão que emite um sinal,
similar a uma peça do jogo tetris. Então sai da casa para pedir ajuda
e percebe que todos ao seu redor não fazem nada além de filmá-la.
Começa a ser perseguida por um homem armado e mascarado.
As pessoas continuam filmando, sem oferecer nenhum tipo de
socorro. Encontra uma “amiga” e descobre que por algum motivo
desconhecido, as não foram afetadas pelo sinal de encantamento
emitido pelas telas dos celulares e televisores, que transformou a
maioria da população em espectadores passivos. As que não foram
afetadas se tornaram caçadores, pareciam normais até notarem que
poderiam fazer o que quisessem e agora têm audiência.
Trilhas do imaginário | 223

A perseguição segue ao longo do episódio por pessoas


mascaradas e armadas. Após uma longa jornada, ao chegar na estação
onde desligaria o sinal, quando enfim consegue roubar uma arma,
dispara o gatilho, mas em vez de uma bala, que mataria seu algoz,
saem confetes brilhantes. Abre-se uma cortina e ela é colocada
em um palco, amarrada a uma cadeira, com dezenas de pessoas
rindo e aplaudindo. Um showman revela que ela é Victoria Skillane
uma criminosa que com seu noivo Iain Rannoch, portador de uma
tatuagem igual ao símbolo emitido como sinal, raptaram a menina
Jemima Sykes. Victoria filmou enquanto Iain torturou, assassinou e
queimou a menina. Iain cometeu suicídio antes do julgamento, o que
o público considerou uma fuga da justiça. Ela admitiu ter filmado sob
pressão do noivo e disse que estava sob o encanto dele. A sentença
de Victoria seria sofrer dia após dia, sendo filmada.
Ao fim do show, é levada de volta para a casa onde acordou,
em exposição pública. O homem incita o público a agredi-la dizendo
que este é o clímax do dia, para tirarem muitas fotos. A memória de
Victoria é apagada com um dispositivo eletrônico que causa dor. Em
seguida a casa é arrumada para recomeçar no dia seguinte. Nas cenas
dos créditos, descobrimos que tudo se passa no “Parque de Justiça
White Bear”, um local onde as pessoas vão, entre família e amigos.
White Bear era o urso que Jemima tinha e tornou-se o símbolo por
sua procura. Os atores explicam as medidas de segurança: a primeira
é não falar nem com Victoria, nem entre si, para que ela ache que o
público está encantado; para que a considerem como uma leoa solta;
e por último, a regra mais importante é que se divirtam e aproveitem
o dia. “Vamos fazer esse show acontecer”.

6 Análise
Podemos começar a entender o episódio White Bear de Black
Mirror se observarmos que “o crime tem sua beleza, pelo facto de
lembrar, [...] que a vida só vale se a situarmos na perspectiva da
morte” (MAFFESOLI, 2000, p. 137). A obra pode nos dar indícios
224 | Trilhas do imaginário

da recorrência do mito de Dionísio: podemos identificar como


mitemas a histeria cotidiana, os constrangimentos e a busca da vida
no prazer e pelo excesso, ao observar os espectadores na plateia
rindo do medo da criminosa, gritando e xingando, jogando tomates
e até mesmo nos sorrisos que são apresentados na expectativa do
começo de uma apresentação para assistir e filmar uma exibição
de perseguição e tortura.
Todos os ingredientes do trágico espetáculo apontando
para o cenário do comportamento recorrente do mito dionisíaco,
numa experiência coletiva e tribal, falsa moralista. Até mesmo a
expressão “Parque de Justiça” nos remete às arenas romanas e aos
ringues espetaculares que se tornaram as arenas de lutas esportivas
atuais, outra recorrência em uma diferente época, podendo hoje ser
comparada às lutas de artes marciais mistas.
O homem é atraído por este formato de entretenimento desde
a Grécia Antiga. Se observarmos que pouco depois do surgimento
das Olimpíadas (776 a.C) em 440 a.C já se competia em homenagem
a Zeus com uma modalidade chamada pugilato, uma luta similar
ao boxe moderno, mas com regras diferentes e mais sangrento; e
também com o esporte chamado de pancrácio que era ainda mais
cruel, misturando o pugilato com a luta livre (FERNANDES, 2017);
isso nos leva a imaginar que os gregos antigos consideravam que
Zeus ficaria feliz assistindo a este espetáculo de sangue.
Nesse período, surgem também os primeiros registros dos
Gladiadores na Roma Antiga. Homens que eram prisioneiros,
criminosos ou traidores, lutavam entre si até a morte, mas recebiam
treinamento e alimentação especial, tendo uma condição melhor do
que um escravo comum. Se massacrassem o opositor poderiam ficar
famosos e ganhar dinheiro para comprar sua liberdade.

No dia das lutas, os gladiadores eram conduzidos


de carro com toda a pompa até o Coliseu. Davam
uma volta pela arena em ordem militar, vestidos
com mantos tingidos de púrpura e bordados com
ouro (GRECCO, 2002).
Trilhas do imaginário | 225

A diferença é que no Coliseu o público podia influenciar na


decisão do imperador sobre qual escravo deveria morrer, quando eles
não padeciam em combate. Assim, não é difícil encontrar evidências
de que este espetáculo sangrento foi transformando-se ao longo da
história, com a evolução das olimpíadas, o sucesso histórico das
lutas de boxe (antigo pugilato), talvez comprovada pela massificação
cinematográfica do icônico personagem ficcional Rocky Balboa
– e segue até os dias de hoje transformando-se e inserindo novas
tecnologias ao espetáculo esportivo.
Em 26 de agosto de 2017, a luta de boxe entre os atletas Floyd
Mayweather e Conor McGregor movimentou aproximadamente
R$ 1,9 bilhão, dos quais R$ 248 milhões arrecadados apenas em
bilheteria. Entre ingressos, patrocínios e pay-per-view, o vencedor,
Mayweather, lucrou algo perto de US$ 320 milhões, enquanto o
rival lucrou aproximadamente US$ 100 milhões. Os servidores de
pay-per-view da Califórnia travaram devido ao grande número de
acessos simultâneos (GLOBO, 2017).
Em 2016, o evento UFC (Ultimate Fighting Championchip) de
lutas de artes marciais mistas (MMA, na sigla em inglês para Mixed
Martial Arts, que antigamente era chamada luta livre), foi vendido
por R$ 13 bilhões, atingindo a marca de franquia esportiva mais cara
da história (GLOBO, 2017). O UFC é um campeonato de MMA que
em seu próprio site apresenta-se como a “organização esportiva que
cresce mais rápido no mundo” e que tem “revolucionado os negócios
de lutas” e ainda que “hoje se destaca como o principal promotor de
MMA do mundo, oferecendo a série principal de eventos esportivos
de MMA que lotou algumas das maiores arenas e estádios de todo
o mundo”. Descreve-se com “uma rica história e tradição de MMA
competitivo que remonta aos Jogos Olímpicos de Atenas” (UFC, 2017).
As arenas lotadas, repletas de luzes que se movem e piscam,
música alta e envolvente, mulheres bonitas de biquíni passando de
um lado para o outro, preparam o espetáculo de MMA promovido
pelo UFC. Os lutadores entram, cada um em sua vez, ao som de suas
músicas preferidas, vestindo as marcas que os patrocinam (quando
226 | Trilhas do imaginário

não são suas próprias marcas) e são recebidos por aplausos e gritos
de uma plateia sedenta pela batalha. Um narrador apresenta detalhes
de cada lutador e, até ele, tem sua chance neste espetáculo quando
grita o bordão: “It’s time!”.
Quando pensamos no comportamento de assistir ao sofrimento
do outro e somamos a reação de filmar este momento, seja para
guardar ou compartilhar com outrem, o cenário da soma é o trágico.
Maffesoli (2000, p. 42) afirma que a valorização da imagem de herói
na mídia tradicional desperta em nós “o desejo de um destino intenso”
de forma que este fascínio sugere que “o trágico regressa à ordem
do dia e que a sociedade assepsiada que, pouco a pouco, se impôs,
talvez não seja tão sólida como parece” e são essas ruínas que White
Bear representa, e encontramos referências em nossa sociedade,
atual e antigamente, como exposto acima. Ou seja, é a mesma ética
da estética que perpassa por todos estes cenários apresentados: o
consumo espetacular da violência.
Ao olhar por esta perspectiva, vivemos estes momentos em que
o trágico está em nosso cotidiano. A intensidade que as personagens
de White Bear vão até o parque de justiça, para estar perto de uma
criminosa e cometer o mesmo crime que ela, é, de fato, uma aventura
intensa. Mesmo que pareçam sob efeito do “sinal” que os deixa
como zumbis-espectadores há um ritual, praticamente selvagem.
Maffesoli afirma que

a característica essencial da modernidade foi


certamente a de ter <<domesticado>> o homem, de
ter racionalizado a vida em sociedade” tornando-se
uma “sociedade sem risco, perdendo a sede de viver e
perdendo também a capacidade de lutar contra esse
risco maior que é o tédio (MAFFESOLI, 2000, p. 140).

Também identificamos claramente como um dos principais


elementos do episódio, o sinal que encanta as demais personagens,
deixando-as em estado de torpor perante a violência. Em White Bear,
“sob o encanto do noivo”, Victória filmou a tortura e o assassinato
Trilhas do imaginário | 227

de uma menina de seis anos, ao invés de impedir o crime, e como


punição foi condenada a ser filmada por outras pessoas enquanto
era torturada. Perdeu sua potência e tornou-se controlada, tendo sua
vida espetacularizada como consequência. Afinal, Dionísio reflete
este delírio mágico, que contagiava as mênades e as mulheres por
onde passava, levando-as para seu mundo de luxúria e embriaguez.
Assim como o grupo do deus, que andava em horda, as pessoas que
seguem Victória estão sempre juntas. Isto pode ser interpretado
como uma forma de proteção, mas após a revelação do sentido da
narrativa, podemos compreender que é um gesto de opressão.
Fica claro que a história do episódio é uma capitalização
espetacular do sistema penitenciário, a justiça como mercadoria,
representada e reapresentada dia após dia, como se estivesse em
cartaz. Leva-nos a pensar que o sucesso deste modelo só pode
ser possível por sua coesão com o contexto em que está inserido:
uma sociedade mediada por imagens, que são multiplicadas pela
tecnologia, em que o ser humano parece blindado, ou encantado,
pela tela, enquanto paga para assistir às mais diversas violências.
Assim, percebemos que o consumo exacerbado das imagens
espetaculares não garante que as pessoas estejam, de fato, conscientes
da realidade e das consequências da capitalização da imagem
espetacularizada. Esta “relação de pessoas mediada por imagens”
nos torna cada vez mais passivos. A partir do momento em que,
neste mundo possível criado em White Bear, a trama desenvolve-se
em torno da contemplação do sofrimento e a inação perante ele,
precisamos considerar a sério esta sedução pelo “espelho negro”
que nos reflete como sociedade.
Uma sociedade em que a mediação das imagens torna-se
cada vez mais intensa, ao ponto de já não nos bastar viver, é preciso
registrar em foto e vídeo, para as mais diversas plataformas, em seus
mais diversos formatos, o trágico e o cômico, o banal e o surreal, como
comprovação de nossa existência no meio social virtual. O amplo
acesso à internet tem nos levado a uma nova forma de interagir
socialmente. Os meios digitais, especialmente através dos sites e
228 | Trilhas do imaginário

aplicativos de relacionamento, nos dão a sensação de estarmos


em novo ambiente, com novas possibilidades e oportunidades,
porém temos apenas reproduzido nossos comportamentos em um
meio virtual, por exemplo, utilizando-o para encontrar um novo
relacionamento, chats, mostrar as fotos de nossas viagens e nossos
parentes que morreram: fazemos um espetáculo de nós mesmos.
O espetáculo criado para entreter os habitantes do mundo
possível onde está inserido o parque de justiça White Bear é verossímil,
pois faz parte, de certo modo, do mundo real. A sociedade em que
vivemos consome filmes, notícias, séries e jogos que explicitam a
violência. O próprio episódio White Bear traz uma história violenta.
Com a crescente popularização dos dispositivos de acesso à
mídia, especialmente a Internet, a afirmação que “o homem domina
a tecnologia que o domina” (SILVA, 2003, p. 32) está cada vez mais
palpável. Black Mirror veio para escancarar esta premissa na forma
de série, um dos produtos da Indústria Cultural. Se observarmos que
o ser humano é acostumado a receber mensagens de massa, de um
para muitos, da Igreja, do Governo, das autoridades, da grande mídia,
e que agora ele pode ser o produtor do conteúdo que será veiculado
para os outros, é natural que haja um encantamento neste poder,
na capacidade de utilizar a tecnologia para satisfazer este desejo,
explorando a sua própria potência como mídia.
E se “a tecnologia é um instrumento de ‘coesão social’, um
dispositivo capaz de produzir controle pela manipulação de mentes”
(SILVA, 2003, p. 31) o episódio White Bear é uma representação clara
deste controle, afinal a sociedade anseia por controle e rigor. Podemos
identificar tanto no episódio quanto na sociedade que “tudo é controle.
Adorno e Horkheimer condensam esta visão apocalíptica numa frase
célebre: “Divertir-se significa sempre não pensar em nada, esquecer
o sofrimento até onde mesmo ele é mostrado” (SILVA, 2003. p. 31).
É esta visão de fim do mundo e cegueira coletiva que é
representada em White Bear. Coloca o comportamento de filmar o
sofrimento do outro como uma diversão e uma forma capitalista do
sistema penitenciário, podemos interpretar que é um exagero do que
Trilhas do imaginário | 229

pode vir a acontecer no futuro. Porém é justamente esta a conduta


do homem contemporâneo. Este jeito quase obsessivo de registrar
o seu próprio ponto de vista dos acontecimentos mais banais do
cotidiano, que, em outra época, ficariam restritos à vida privada, e
compartilhá-los com o maior número de pessoas, nos leva a buscar
uma explicação para este comportamento coletivo, e nos parece
estar na recorrência do mito dionisíaco.
O culto a Dionísio deu origem ao teatro e a um de seus símbolos
mais fortes, as máscaras. A personagem principal é perseguida por
caçadores mascarados ao longo de todo o episódio, e no desfecho
descobrimos que tudo foi coreografado, como em uma peça. Esta
tribo urbana, em que seus membros controlam virtualmente uns
aos outros pelas câmeras de vigilância e dos dispositivos individuais,
cria uma troca de posições a todo momento, pois cada um pode ter
o controle ou ser controlado, temos o panóptico em nossas mãos
e parece que assistimos à vida, como quem espera o desfecho da
encenação teatral, e que vença nossa personagem preferida.
Em janeiro de 2017, encontramos no portal O Globo o
registro de um imigrante africano morrendo afogado na Itália,
sob a seguinte chamada: “Em Veneza, turistas filmam refugiado
africano se afogando e não fazem nada”. O jovem de 22 anos aparece
em vários vídeos morrendo no Grande Canal de Veneza. Apesar
de três boias terem sido jogadas na água, o que deixou a suspeita
de suicídio, ninguém pulou para ajudar, sendo que vários barcos
estavam no local. De acordo com a matéria, no vídeo é possível
ouvir as seguintes frases: “Deixe-o morrer”; “Estúpido” e “Vá em
frente, volte para casa” (GLOBO, 2017).
Em abril de 2017 o portal da Revista Veja publicou a seguinte
manchete: “Mulher filma empregada caindo da janela e não ajuda”.
O caso ocorrido no Kuwait, termina com uma senhora etíope, que
trabalhava como doméstica, com um braço quebrado e alguns
ferimentos. A empregadora foi presa por omissão de socorro. A
justificativa da dona da casa foi que filmou a queda para proteger-se
de um possível processo de homicídio (VEJA, 2017).
230 | Trilhas do imaginário

E qual a diferença entre assistir a uma pessoa morrendo


afogada ou caindo da janela, de ir a um parque de justiça filmar uma
criminosa ser perseguida por atores? Qual a diferença entre estes e os
romanos em suas arenas torcendo por gladiadores lutarem até a morte
ou dos que pagam pelo espetáculo de uma luta livre globalmente
televisionada? É como se este comportamento espectador sádico do
sofrimento alheio estivesse arraigado em nós de maneira profunda
e cíclica. Mudamos apenas a nossa forma de saciar esta vontade,
criando produtos e esportes recreativos novos para o mesmo fim.
Mantemos e perpetuamos uma mesma ética da estética.
É como se dramatizar a punição de Victoria fosse um ritual
em que enquanto para ela o tempo está parado, retornando todos os
dias, para o espetáculo é apenas um rito diário de execução, como
nas Arenas. No episódio, quase todos são encantados pelo sinal
que é emitido pelas telas de celulares, computadores e televisores,
assim como em nossa sociedade muitos ficamos inebriados com
psicotrópicos, álcool, músicas techno, que nos deixam em estado
similar de selvageria e excessos. Os que não são afetados são os
que descobriram que podem fazer tudo de ilícito que não serão
impedidos ou punidos, apenas filmados como estrelas: estes utilizam
máscaras para não serem reconhecidos e todos em grupo fazem o
espetáculo do trágico.
O comportamento de filmar o trágico representado em White
Bear, como a oportunidade de filmar um acidente, uma morte, ou
ainda de colocar uma tela entre si e o drama dá a oportunidade de
gravar, dar replay, colocar filtro e criar novos significados para um
fato. Observamos que isso só faz sentido a partir do momento em que
estamos conectados com outras pessoas, vivenciando experiências
coletivas de troca, exibição ou compartilhamento. Momentos de
êxtase ou transe que existem também fora do mundo digital e em
diferentes momentos históricos.
Durand afirma que há continuidade entre as antigas
mitologias e os relatos culturais modernos, como
literatura, artes, ideologia, história. Tal constatação
Trilhas do imaginário | 231

resgata a importância do mito na forma como


engendramos e compreendemos a realidade
(ALMEIDA, 2011, p. 15).

Este comportamento coletivo parece ser cíclico e isso nos leva


a possibilidade de uma origem em algo mais profundo, o que indica
a recorrência de um mito: o de Dionísio, neste caso.
White Bear representa a sociedade do espetáculo mostrando
um sistema penitenciário moderno, que ao invés de levar os bandidos
para as arenas, comete contra a criminosa o mesmo crime que ela
cometeu com o auxílio da tecnologia e da sede do vídeo. Como se
o ritual fosse o necessário para puni-la, o “olho por olho”. E sob a
vigilância de tantos olhos o trágico torna-se cada vez mais perceptível
e menos sensível aos humanos desumanos, ou espectadores.
Durand (2011, p. 118) alerta que a explosão do vídeo é fruto de
um efeito perverso que está “prenhe de outros ‘efeitos perversos’ e
perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens” e que ao impor seu
sentido criam um espectador passivo sem criatividade e imaginação.
É como se quiséssemos ser heróis justiceiros sendo na verdade vilões
tendo a Internet como potencializadora de nossas ações, já que a
mídia tradicional só dá espaço aos anônimos quando lhe interessa
ou não é mais possível deixar de notar o fato. Por isso, aproveitamos
a oportunidade de termos a nossa própria forma de impactar o
mundo sendo mídia, através das redes sociais e das câmeras dos
celulares, e filmamos todos os passos de nossos dias. Conscientes ou
encantados por Dionísio.

7 Conclusão
Podemos concluir, com base na leitura dos autores citados e dos
fatos narrados, que a sociedade tem mantido seus rituais de punição
e prazer, adaptando-os apenas às novas tecnologias disponíveis para
tal, atualizando e perpetuando a ética da estética de contemplação
da violência. Os dispositivos móveis de interação social parecem
232 | Trilhas do imaginário

ter transformado cada usuário em um juiz pronto para proferir em


streaming sua sentença, seja baseado em sua ideologia ou natureza
humana. E que o material de registro do trágico produzido por cada
um em seu celular realimenta este comportamento recorrente de
assistir ao sofrimento do outro, sem lhe ser solidário, pela distância
oferecida pela tela.
Entendemos que os dispositivos tecnológicos não pioraram o
comportamento humano em relação ao trágico, apenas lhe servem
como uma nova ferramenta que, por sua vez, é ideal para o consumo na
Sociedade do Espetáculo. Essa necessidade da hiper-realidade mostra-
se cada vez mais inerente às mais variadas formas de entretenimento,
chegando ao ponto de uma morte poder ser interpretada da mesma
forma, desde que mediada por um aparelho.
Mostramos indícios de que este comportamento que nos parece
cíclico, pode ser justificado como o retorno do mito de Dionísio na pós-
modernidade, observando os mitemas, através da mitocrítica, baseada
na Teoria do Imaginário. Acreditamos que os sentidos e sentimentos
despertados nos casos reais que provam a existência do consumo da
imagem trágica, passam pelo imaginário coletivo, representado no
episódio White Bear, de modo que tentamos identificar observando
comparativamente a vida e a arte.

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Hermenêutica Simbólica. In: GOMES, Eunice Simões Lins (Org.).
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Trilhas do imaginário | 233

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234 | Trilhas do imaginário

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empregada-caindo-da-janela-e-nao-ajuda/pagina-comentarios-
1/#comments>. Acesso em: 26 ago. 2017.
| 235

O ritmo das identidades


em A hora da estrela

Jussara Bittencourt de Sá73


Marlene Rodrigues Brandolt74
Mayara de Paulo75
Jackson Gil Avila76

1 Compassos narrativos
Por que ler A hora da estrela? Para Ítalo Calvino, em Por
que ler os clássicos? é preciso “incluir uma metade de livros que já
lemos e que contaram para nós, e outra de livros que pretendemos
ler e pressupomos possam vir a contar” (CALVINO, 1993, p. 16). No
modo de argumentação do escritor, a narrativa presume futuras
leituras e, ao mesmo tempo, indica um retorno ao passado, nesse
particular interpretativo, a narrativa citada remete a esses olhares
temporais. Especialmente, com um olhar “para trás”, há um convite
para ler os clássicos (CALVINO, 1993, p. 14), os quais podem estar
ligados à identidade da Macabéa. Na verdade, independente das
mudanças sociais que ocorrem, o homem não deve perder a memória
da literatura, e mais, é preciso incluí-la no espaço rigorosamente
invadido por mecanismos digitais que também colaboram para
imprimir um modo de pensar sobre os compassos poéticos, com os

73 Doutora em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


E-mail: [email protected].
74 Pós-doutora pelo Programa de Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina. E-mail: [email protected].
75 Doutoranda pelo Programa de Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina. E-mail: [email protected].
76 Doutorando pelo Programa de Ciências da Linguagem da Universidade do Sul
de Santa Catarina. Bolsista do UNIEDU. E-mail: [email protected].
236 | Trilhas do imaginário

quais o narrador retém ou solta a fantasia “ao vento no infinito”


(LISPECTOR, 1999, p. 83).
O romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, publicado
em 1977, permanece acessível a múltiplas leituras ou porque o leitor
precisa se conhecer melhor, ou por necessitar de conhecimento,
não apenas de terceiros e dele mesmo, mas para compreender as
situações diversificadas do dia a dia, conforme invoca Haroldo Bloom
em Como e por que ler (2001). Em minha opinião, as colocações de
um e de outro autor são inspirações que justificam escrever com
discernimento estético sobre a obra, “não para acreditar, nem para
concordar, tampouco para refutar, mas para buscar empatia” com
a natureza da escrita poética contemplada que traz uma visão da
realidade social contemporânea e histórica (BLOOM, 2001, p. 25).
A forma como Clarice Lispector apresenta o discurso oferece à
narrativa um elo universal caracterizado por um conjunto de signos
decifrados pela maioria das pessoas, a saber, referenciais musicais,
geográficos e emocionais. A obra poética faz uso desses símbolos
para refletir sobre a invenção que sobrepõe o caráter operacional da
linguagem humana, pois, se esta ocorre no plano do diálogo objetivo,
aquela se desenvolve no plano da abstração. A mobilização presente
em A hora da estrela atribui à obra um sentido humano e ficcional,
lembrando que, no literário, a construção de cada personagem
não ocorre de forma puramente linear, fator que traz um certo
estranhamento justificado pelo livre arbítrio da expressão verbal
que existe na e pela linguagem da arte.
A voz narrativa do romance de Clarice Lispector “com algum
prévio pudor” (LISPECTOR, 1999, p. 12) elabora o seu próprio
código linguístico e tece a narrativa pela “potencialidade simbólica
da língua para criar [a] beleza” da arte literária (BIDERMAN,
1978, p. 32). Resumindo, a história é contada sob o ponto de vista
masculino de Rodrigo S. M., que é personagem, narrador, autor
da narração; igualmente à Macabéa, nordestino e, no instante
da escrita, morando no centro do país. A focalização gira em
torno de uma moça com aspectos de menina criada por uma tia
Trilhas do imaginário | 237

muito religiosa, em Alagoas, e, após a morte da parente, ela vai


para o Rio de Janeiro, onde passa a dividir um quarto de pensão
com quatro moças. Para aliviar a solidão, ouvia a Rádio Relógio.
Atento a uma carga emotiva que traz a personagem, o narrador
mantém a ingenuidade do lado menina, integrada à linguagem
absorvida da Rádio Relógio, que age como filtro da garota – que se
entrega a um breve instante de sua essência a partir dos encantos
de um livro chamado “Alice no País das Maravilhas” (LISPECTOR,
1999, p. 50). A sonoridade que vem da rádio é um dos meios
expressivos com os quais a narrativa trabalha na tentativa de
resolver a limitação linguística de Macabéa, a quem cabe viver o
momento dramático da morte anunciada pelo narrador. Ele, na
condição de observador, salienta o caráter impreciso da jovem e
cumpre a determinação de concluir a estética da nordestina, cujo
ciclo não se afasta da realidade “para a obra manifestar-se em
arte” (BUYSSENS, 1972, p. 36). O narrador conectado à linguagem
da alagoana pressupõe uma atitude regulada pelo autoritarismo
de um narrador que intervém na narrativa, ao passar informação
da natureza existencial da personagem.
Retomando o enredo, Macabéa conheceu Olímpico de Jesus,
único namorado que teve, o qual se irritava facilmente com as
perguntas da nordestina, que se desculpava para não perdê-lo.
Entretanto, o rapaz termina o namoro, ao conhecer Glória, moça
que participa indiretamente do desfecho de Macabéa. É Glória quem
indica uma cartomante, a qual prevê o destino trágico da protagonista,
conforme relato frio e “sem piedade” do narrador (LISPECTOR,
1999, p. 13). De modo dissimulado, o narrador transfere para a
cartomante o poder de manipular a alma pueril da jovem, que se
deixa influenciar pelos sonhos projetados pela adivinha. Ao sair da
casa da profetisa, aos tropeços, em busca da realização predita, ela é
atropelada, ficando no meio-fio da rua, onde é comparada, pela voz
narrativa, à “estrela de mil pontas” que adquire a forma de mais de
“uma Macabéa, como se chegasse a si mesma”, no “êxtase” daquele
momento (LISPECTOR, 1999, p. 85-82).
238 | Trilhas do imaginário

2 O ritmo poético do narrador e de Macabéa


Cabe salientar o jogo que o narrador de Clarice Lispector faz
com as possibilidades narrativas, alterando os diversos modos de
narração e a não obediência a uma determinada teoria. O relato
interno da obra é conduzido por um personagem que, na posição de
escritor, faz uso do encantamento ficcional para registrar a construção
de Macabéa. A escritora não isola da narrativa a essência do homem,
acrescentando ao narrador um nome próprio o de Rodrigo S.M.
capaz de impressionar outras almas, outros corações. A denominação
que caracteriza o narrador, no corpo da obra, pode ser considerada
como um elo com as dificuldades particulares do nome do autor o
qual instaura “um regime de propriedade para o texto literário”77
(FOUCAULT, 2001, p. 11), sugerindo a descrição da provável figura de
quem dá lugar ao aparecimento da escritura. Ao apresentar-se com
um nome fictício que corresponde ao ritual de uma tradição histórica
de identidade, sofrendo literariamente os mesmos problemas dos
homens e recuperando o diálogo da protagonista, o narrador serve
ainda como referência às suas leitoras e aos seus leitores nas diversas
situações da história narrada.
Além do mais, Rodrigo S. M. traça linhas no sentido de explicar
a organização da narrativa, diz: “Escrevo neste instante com algum
prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior
e explícita” (LISPECTOR, p. 12). Por esse viés, a obra mescla duas
vozes narrativas – a de Macabéa e a dele mesmo – que se revela
centralizador da história da moça dirigindo uma ação brutal no
final da nordestina. A analogia com o real é viável, considerando
a troca que vem do interior da narrativa e outra fornecida pela
percepção de mundo que o narrador escritor traz com ele; portanto
o literário de Clarice Lispector é uma construção mobilizadora que
não se limita a uma produção estática. Nos interstícios da densidade

77 FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?” In: Ditos e escritos: estética – literatura


e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
Trilhas do imaginário | 239

cênica, o narrador-personagem tenta um desabafo provocando menor


distanciamento entre ele e a personagem, enfatizando a reconstrução
linguística da jovem sem perder a intenção ficcional do texto que
se opõe à regularidade da vida diária, mantendo o elo poético da
estrutura que se realiza antes pelo imaginário.
Não faltam, ao ato de narrar, os efeitos intimistas que se voltam
para o mundo interior do narrador, resultantes das inquietações
provocadas por Macabéa, o que o faz desejar “andar nu ou em farrapos
[para] experimentar pelo menos uma vez a falta de gosto que dizem
ter a história” (LISPECTOR, 1999, p. 19). No ato ficcional, a imagem do
narrador-personagem não se capta no plano físico, mas na essência
da poesia dos diversos encadeamentos com a protagonista que há

dois anos e meio [vem] aos poucos descobrindo os


porquês. É visão da iminência de. De quê? Quem sabe
se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo
na hora mesma em que sou lido. Só não início pelo
fim que justificaria o começo – como a morte parece
dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos
antecedentes (LISPECTOR, 1999, p. 12).

Nas diversas transformações, o narrador define a fragilidade


de Macabéa como pretexto para revelar o comportamento instável
do homem real e dele próprio que, em muitas circunstâncias, não
possui apenas razão, mas também sensibilidade. Pela afinidade com
a arte poética, Clarice Lispector permite que as entonações da poesia
sejam materializadas na prosa d’A hora da estrela, isso acontece
naturalmente pela conexão entre o lúdico e uma consciência social
que cumpre discutir a situação estreita da protagonista destituída de
afeto e de uma política adequada. A carga poética da obra confere uma
leitura atenuada do cotidiano de Macabéa, resultante da entonação
que há entre palavras e frases, conteúdo humano e significado estético,
conforme aspiração de todas as artes. Os sentimentos da personagem
e do narrador são objetos de reflexão da arte que elege uma poética
relacionada à melancolia, cuja linguagem de natureza lúdica mostra
240 | Trilhas do imaginário

o esforço da artista em manter uma conversa com o homem de


qualquer espaço e de algum tempo.
Assim, é válido registrar que Clarice Lispector produz uma
estética de aparência inacabada, a qual tem inspirado leituras de
diferentes gerações, tendo em vista emergir da obra a essência da
poesia que não se esgota nas ações dos personagens nem na voz
autoral do narrador na interioridade do texto. A criação artística da
escritora sugere autonomia ao narrador em relação ao nome próprio
que o produz, aliás, o discurso de Rodrigo S. M. tem fundamento
na questão de arbitragem a qual oferece subsídio a ele enquanto
construção independente do universo referencial de seu criador, o
que define, de certo modo, o princípio da expressão artística que é
antes ficcional.

3 Contingências na identidade de Macabéa


Nos espaços da tradição literária, a narrativa citada ocupa
a intimidade da casa de leitores e de bibliotecas pela força de uma
estética que “Detém-se, por assim dizer, [no] plano de personagens,
situações ou estados (líricos), fazendo viver o leitor, imaginariamente,
os destinos e aventuras dos heróis” (ROSENFELD, 2014, p. 42).
Pensando na explicação de Anatol Rosenfeld, a literatura refere-se
ao plano de camadas sociais exterior ao texto, priorizando as vidas
de estéticas lúdicas, atribuídas pelo prazer, pelo ritmo e pelo modo
de as palavras configurarem o fantástico próprio da ficção; como
já mencionado, tampouco exclui observações triviais, integrando
à obra esses elementos à medida que isso não afete a unidade
das evocações narrativas. Em geral, na ficção, “há certo repouso”
da objetividade com o fim de realçar as pistas que reforçam as
impressões estéticas, até porque, na criação poética, o “definível”,
conforme expressa o narrador de Clarice Lispector, cansa “um
pouco” (LISPECTOR, 1999, p. 83).
Em outros termos, interessa aqui mais a literatura de criação
artística, apresentando a vida de Macabéa no seu fluir cinzento do
Trilhas do imaginário | 241

cotidiano, para acompanhar não a forma singular de o narrador


dirigir a personagem, mas outras relevâncias como a de um narrador
“capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a
sua própria situação [...] em todos os matizes”, repetindo as palavras
de Anatol Rosenfeld (2014, p. 48-49). Sob a imagem de escritor, ele
tem como pretexto para revelar-se as diversas transformações,
apresentando-se como um narrador-personagem inicialmente forte,
identificado como principal e que, por vezes, dilui-se no contexto
da personagem e experimenta vivências emocionais de opressor,
passando a oprimido. Ao construir-se na multiplicidade de focalizações,
permite-se mostrar as próprias fragilidades e inquietações por meio
de comentários e intromissões acerca dos processos narrativos da
escrita e da protagonista. Para Macabéa, ele anuncia, desde o início, a
participação em uma peça dramática que se prolonga na sua “própria
dor”, pois é ele quem carrega o mundo “e há falta de felicidade” –
sobretudo da nordestina (LISPECTOR, 1999, p. 83).
A hora da estrela, sem priorizar a ideia de esquema fixo
do narrador e de personagens, reproduz os aspectos do romance
moderno definido entre o século XVIII e o começo do século XX,
ao conferir às personagens “uma natureza aberta, sem limites”;
contudo, a forma variada segue certa lógica ao criar “a ilusão do
ilimitado”, pois a arte, apesar de autônoma, respeita a ligação à
realidade social que se transforma em literatura (CANDIDO, 2014,
p. 60). Com posições dinâmicas de pensar a arte, o narrador Rodrigo
S. M., que se intitula como criador de um universo feminino, usa
tal mobilidade em favor da subjetividade da protagonista que
representa um sujeito desprovido de uma formação educacional
completa, isto é, sem preparação de cidadania para a vida. Razão
para o personagem-autor sobrepor-se à experiência estética da
protagonista com os aspectos linguísticos intimamente ligados a
uma identidade nordestina de maneira que ela permanece num
plano linear da ficção; até porque, do início ao fim da narrativa, a
moça obedece a uma expressão restrita destacada pelo narrador
que não cede lugar a uma mudança cultural da garota de Alagoas.
242 | Trilhas do imaginário

Seguindo o relato do narrador, o qual oscila entre a invenção


estabelecida pelo afastamento do cotidiano e os traços de inferioridade
de Macabéa, é válido comentar que as impressões narrativas
aproximam-se do universo feminino e Rodrigo S. M., ao se colocar
entre “uns [dos] sete personagens”, torna-se “um dos mais importantes
deles, é claro.” (LISPECTOR, 1999, p. 54). Em relação aos aspectos
referenciais do modo de contar do narrador, é interessante expor
a ideia de Nádia Battella Gotlib (2001) articulada aos pressupostos
da Teoria literária que esclarece os traços de uma produção aberta
à pluralidade de focalização:

Macabéa é então um produto do seu narrador.


Aliás, toda personagem é, de fato, o produto de um
narrador que lhe conta a história, seja este narrador
quem for. Mas neste romance há uma situação
especial: Macabéa nasce mesmo do narrador que
faz parte da história enquanto personagem. Ele é
o autor do romance em que nos conta como ele
“cria” Macabéa. Ele é o criador e Macabéa é sua
criatura. Macabéa existe como projeção dele, como
parte dele e existe em função dele. Ou seja: Macabéa
existe na sua relação com o narrador, o personagem
Rodrigo M. S. É ele quem nos conta a história de
como ele, escritor, inventa Macabéa, explicando, a
todo o momento, como este trabalho, difícil, de lidar
com as palavras e escrever um romance, acontecer.
(GOTLIB, 2001, p. 2).

Em temporalidade diferente da protagonista d’A hora da


estrela, Albertine, do início do século XX, inventada pelo narrador de
Marcel Proust, aponta para equivalências com a exposição artística de
Clarice Lispector. As lembranças surgem Em busca do tempo perdido,
no volume 5, “A Prisioneira”, editado em 1925. O romancista francês
cria um narrador-personagem que mantém uma relação conflituosa
com a protagonista Albertine. Nessa continuidade, o relacionamento
fictício entre eles move-se do amor a “uma espécie de ódio que só
fez” ele “tornar mais viva a necessidade de retê-la” (PROUST, 1925,
Trilhas do imaginário | 243

p. 147), pois, enquanto ela estivesse ali, sentia o poder de refletir o


futuro da personagem. No narrador de Clarice Lispector, de modo
similar, existem sentimentos que comportam um efeito ambíguo:
em certo trecho, diz não ter nada para contar e, em outros, expõe
sua paixão e o cansaço da presença atemporal da personagem, que,
por sua vez, provoca nele a sensação de ser ele – o narrador – o
prisioneiro da construção de Macabéa. Igualmente, Albertine aceita
a condição de prisioneira do narrador-personagem, seu amante, cuja
história é marcada por domínio e insegurança, sentimentos que
tornam ambos prisioneiros entre si, sendo que ele diz:

Esse vago receio que senti na casa dos Verdurin, de que


Albertine me abandonasse a princípio se dissipara.
Quando cheguei em casa, foi com o sentimento de ser
um prisioneiro, e não de ir encontrar-me com uma
prisioneira (PROUST, 1925, p. 144).

De valor semelhante ao narrador de Albertine, o narrador de


Clarice Lispector sentiu o peso de dirigir uma existência dependente
linguisticamente do processo criativo, levando em conta uma
personalidade incapaz de chegar a uma consciência acerca do meio no
qual está inserida. Essa necessidade reside na personagem, cuja voz
é reproduzida por frases curtas em diálogos ou por uma linguagem
fragmentada, associada ao fluxo de consciência, categoria entendida
como “uma linguagem truncada ou desordenada [com] o pensamento
ainda não claramente formulado do ponto de vista lógico ou linguístico”
(CARVALHO, 1981, p. 61). O narrador faz dessa matéria poética uma
forma de imprimir uma crítica acerca da realidade e, por extensão, no
espaço literário, a moça vive, na pele de tantas outras mulheres brasileiras
a urgência de um suporte linguístico. As articulações empregadas na
visibilidade do aspecto social mencionado correspondem à focalização
em primeira pessoa de um narrador que se mistura à construção da
trama para entender qual a verdade da sua protagonista e, em terceira
pessoa, numa posição onisciente, cuidando de Macabéa com a obrigação
de “contar sobre essa moça entre milhares delas” (LISPECTOR, 1999, p. 83).
244 | Trilhas do imaginário

No plano da onisciência, o narrador “sabe tudo sobre a


história” (Gancho, 2006, p. 36) e, com noção do papel artístico na
construção da personagem, ironicamente diz que “quando não se
a tem, inventa-se-a” (LISPECTOR, 1999, p. 17), o que não diminui o
brilho da protagonista, pelo contrário, ela é o processo vivo localizada
entre as palavras do narrador que junta divagações à estética da
nordestina de caminhar sem direção certa, fazendo dela presença
indispensável ao confessar a sua paixão: “Macabéa, a minha querida
Maca”, apesar de ela ser “grotesca como sempre fora” (LISPECTOR,
1999, p. 68, 84). Acrescenta à narrativa outras contradições, como a
de desconhecer se a protagonista teria um passado ou expectativa
em relação ao futuro. É com uma tonalidade indeterminada que a
voz narrativa comenta não saber o “nome da moça”, contudo, logo
muda o tom literário e a personagem é associada à “delicadeza de
borboleta branca” (LISPECTOR, 1999, p. 19, 20).
A metáfora indicada apresenta vestígios da manipulação do
narrador em ajustar a sensibilidade pueril de Macabéa ao próprio
universo linguístico de tal modo que não impõe a ela uma fala que
resolva a dificuldade comunicativa como recurso de adaptação ao
meio. Motivo para permanecer “calada” (por não ter o que dizer) ainda
que gostasse de ruídos. Ela permanece na linha do narrador, como
personagem plana, isto é, construída “ao redor de uma única ideia ou
qualidade” (FORSTER, 1974, p. 54), quando o corpo, a nacionalidade
e a subjetividade não superam o drama que existe em um indivíduo.
Macabéa reproduz essa condição humana sujeita a uma identidade
sofrida e neutralizada, cumprindo com o que disse o narrador: “Com
esta história eu vou me sensibilizar, e bem sei que cada dia é um dia
roubado da morte” (LISPECTOR, 1999, p. 17), ficando alienada a ele,
que organiza a linguagem ficcional, intuindo sobre a passividade
mental da moça para quem, como diz, “pensar era tão difícil, ela não
sabia de que jeito se pensava” (LISPECTOR, 1999, p. 54).
Notadamente, a frágil identidade da protagonista é um ponto
de vista em destaque na trama, a qual pode corresponder à ausência
da metáfora da casa. Nas pesquisas de Gaston Bachelard, a casa
Trilhas do imaginário | 245

é o local onde não se vive somente o dia a dia e, de acordo com o


pensamento do filósofo, “ela é o fio de uma história” que continua
nas diversas moradas da vida, onde as memórias “se interpenetram
e guardam os tesouros dos dias antigos” (1974, p. 18). A personagem
não detém a configuração da casa em Alagoas, tampouco no Rio
de Janeiro, o que é compreensível, pois o urbanismo, na capital
fluminense, leva a jovem ocupar um quarto, condição que acentua
a solidão dentro de um “velho sobrado colonial” com outras moças.
Não penso o enredo como um espelhamento do real, e sim como um
espaço temporal de reciprocidades entre a ficção e a história que
desvela os sonhos e angústias de uma nordestina que sai de sua terra
para residir em uma cidade grande.
A transição de espaço temporal instala na personagem feminina
um vazio existencial, resultando na subjetividade de indefinição que
o narrador projetou: “Quando acordava não sabia mais quem era”
(LISPECTOR, 1998, p. 33). Ele não retira do enredo a falta de percepção
que forma a identidade de Macabéa, ao contrário, entrelaça o sentido
de incertezas à perda de uma localização habitacional. Nem mesmo
quando viveu com a tia a palavra “casa” é mencionada; embora elas
tenham um passado juntas, no Nordeste, a referência é em relação ao
“chão” que a protagonista varria por imposição da parente, dotada
de uma atitude castradora que “não a entenderia” (LISPECTOR, 1999,
p. 41), o que colaborava para manter a infantilidade da sobrinha. Se,
na cidade do Rio de Janeiro, a casa é uma conquista difícil, o narrador
é coerente com a situação de quem veio de um terreno árido do sertão
brasileiro, guardando o “chão”, recinto universal, como espaço de
“coroação” e com o “direito ao grito” literariamente construído no
instante do silêncio da morte (LISPECTOR, 1999, p. 68) da nordestina.
Pensando em Macabéa como metáfora da massificação a que
se submete parte das pessoas da região do Nordeste ao transferir-
se para o grande centro urbano brasileiro, o narrador destaca o
esforço de sobrevivência dela em relação à fome, cuja representação
é concretizada nos hábitos – que vão desde a mastigar papel, tomar
um café pago por Olímpico até a desejar comer o conteúdo de um
246 | Trilhas do imaginário

pote de creme, sendo que na infância comeu um gato frito e, agora


instalada na rua do Acre, come um ovo cozido duro num botequim
e, nas palavras do narrador, ela pelo menos não mendigava comida
enquanto outras pessoas, em situação de desvantagem social,
passavam fome. Em especial, Rodrigo S. M. usa o espaço intervalar
da personagem para criticar a impossibilidade de a nordestina
não ter o direito de pertencer “ao ambicionado clã do sul do país”,
conforme se sente Glória, ao apresentar-se como “carioca da gema!”.
Aliás, a narrativa enfatiza o condicionamento desigual que é imposto
à protagonista que “Trouxera consigo, comprada no mercado da
Paraíba, uma lata de vaselina perfumada e um pente, como posse
sua e exclusiva. Besuntava o cabelo preto até encharcá-lo” e fazia
isso sem desconfiar “que as cariocas tinham nojo daquela meladeira
gordurosa” (LISPECTOR, 1999, p. 59, 57).
Para complementar, o descompasso da personalidade de
Macabéa contradiz a metáfora da casa como ideia de uma raiz onde
estão os valores íntimos e memória. Nela, as recordações aparecem
em fragmentos e esse vazio é o efeito produzido pelo narrador que
distancia a personagem da própria casa onde os recintos poéticos “se
soltam e se transportam facilmente, aliás, para outros tempos, para
outros planos diferentes dos sonhos e das lembranças” (BACHELARD,
1974, p. 49). Clarice Lispector permite a correspondência com o
pensamento do filósofo, uma vez que sua ficção absorveu a ausência
desse espaço simbolicamente representado apenas por uma
lembrança, descreve o narrador que “Em pequena ela vira uma
casa pintada de rosa e branco com um quintal onde havia um poço
com cacimba e tudo. Era bom olhar para dentro. Então seu ideal se
transformara nisso: em vir a ter um poço só para ela” bem como
comprar um buraco (LISPECTOR, 1999, p. 49). Ela é seduzida pela
água do poço e, numa fala desconectada com o namorado, interroga
se pode adquirir um buraco; nessa conversa estranha, as palavras
ganham a dimensão metafórica da solidão e de uma identidade
portadora dos diversos sintomas de inquietações que o narrador
não consegue explicar. Na teia dos acontecimentos da vida, além das
Trilhas do imaginário | 247

figuras evocadas, a alagoana encontra, por ocasião da morte, o chão


o qual é transformado pelo narrador em poesia, cujo espaço marca a
saída do ambiente privado para o lugar público de quem, na inteireza
da mocidade, vai experimentar os últimos sonhos individuais daquele
breve “tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade
toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc., etc.,
etc.” (LISPECTOR, 1999, p. 86).
Dessa forma, o “chão” é quem sustenta Macabéa em meio
aos deslumbramentos de estar compartilhando da sorte anunciada
pela cartomante; segundo a voz narrativa, na superfície do solo, a
personagem tem “um encontro consigo”, entretanto, a impressão
dos sentimentos vivenciados por ela é movimentada pelo narrador
que a conserva refém do império onisciente pois, segundo ele, a
jovem não “passava de um vago sentimento” (LISPECTOR, 1999,
p. 86, 83). É exatamente o que faz Rodrigo S. M.: cerca a figura artística
da impossibilidade de escapar da morte prematura à semelhança
do sistema repressor que a sociedade do Nordeste vivencia, o que
alude ao que diz Walter Benjamin: “A morte é a sanção de tudo o que
o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade”
(BENJAMIN, 1994, p. 208). Não por acaso, o tempo “da estrela”
romanceada intensifica a anulação que ocorre durante o processo
de criação linguística, intensificado pela manipulação da porta voz
da consciência da personagem.
Na tensão criada, no episódio da morte, o escritor ficcional
não foge das contradições, opondo imagens “de revolta e uivo”,
bem como de “reflorescimento” no encontro com a ressurreição
(LISPECTOR, 1999, p. 67). Imerso no panorama dramático, constata
que ele também tem um destino, e a morte determinará a sua extinção
simbolicamente projetada para o final da escritura. Ao experimentar
a consciência de “que a gente morre”, contrariado encobre a dor - a
qual procurou disfarçar diante do ritmo da vida da protagonista - e
alivia dissimuladamente a crise existencial tirando proveito de um
“tempo de morangos” (LISPECTOR, 1999, p. 70). O acontecimento de
libertação, comandado pelo narrador, não é revestido de espanto
248 | Trilhas do imaginário

e, embora tenha dito que faria o possível para a protagonista não


morrer, ele examina o acontecimento sem maiores preocupações,
recordando que é estação de viver e, sem ter mais o que fazer, resta-
lhe “acender um cigarro”; diferentemente da personagem, ele segue
“para casa” (Lispector, 1999, p. 87).
Em seu conjunto, a história é indissociável do universo literário
do narrador que não se distancia do choque entre ele e Macabéa para
contar a história, mas convém notar que poeticamente ele procura
um distanciamento do real, ao dizer não ter acontecido a trama
nem ter informação da existência dela, confirmando a supremacia
de um discurso sobre o outro, como diz: a personagem “não passara
de uma caixinha de música meio desafinada” (LISPECTOR, 1999,
p. 87). Na opinião de Clarisse Fukelman, a referência à música em
A hora da estrela

impregna todo o texto, pontuando-o de fio a pavio.


Isso mesmo: sublinhando o seu fio, a sua tessitura;
marcando-lhe o alvo, limite, ponto de explosão. Ela
está presente desde o prefácio, ao qual, terminada
a leitura, somos impelidos a voltar para melhor
entender a relação que mantém com a narrativa
como um todo, a significação da música e outras
questões relativas à proposta ficcional do livro
(FUKELMAN, 1992, p. 14).

Assim, a metáfora unida à musicalidade fortifica a confusão


com que a alagoana tem em distinguir a aparência da realidade, o
que não surpreende, talvez, por vir acompanhada da ótica masculina
do narrador que, como esclarece, o narrado “teria que ser [de um]
homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (LISPECTOR,
1998, p. 14), opinião que se soma à forma imaginária do estrangeiro
Hans, identidade atribuída pela cartomante, e que iria se casar com
a jovem. Aqui é bom mencionar que a narrativa “dos preparativos
à execução” (NUNES, 2013, p. 14) mostra os efeitos poéticos da
nordestina estabelecidos pela presença da força imperial de quem
formula uma história feminina a partir dos papéis construídos de
Trilhas do imaginário | 249

gênero com ênfase na separação, entre homens e mulheres, ambos


ocupando posições diferenciadas no discurso social. Ao colocar
a questão dessa maneira, em que o comportamento ficcional da
personagem advém da compreensão de Rodrigo S. M., a história de
Macabéa surge fragmentada, resultando numa identidade inacabada,
suscitando críticas que presumem transformações na política de
divisão que ainda sujeita a mulher à impossibilidade de contestar
ou de promover alterações sociais.
O caminho percorrido pelo narrador viabiliza a existência
de um sujeito mesclado à percepção humana de A hora da estrela,
cujo efeito estético implica compreender a elaboração da identidade
da protagonista, a qual é situada na identidade de Rodrigo S.M. que
soma à sua bagagem de experiências o diálogo com sua produção
artística. As particularidades ficcionais que cercam a nordestina
adquirem a forma de “uma identidade [...] variável” realizada sob
o julgamento da razão e da emoção do narrador que usa a palavra
individual em proveito da subjetividade do outro. (BAKHTIN, 1997,
p. 357). Por conseguinte, a rede de significações destacada nesta
análise emerge dos diversos encadeamentos provocados pelo
narrador que se prende à relação com a alagoana, determinando não
somente pensar a identidade social com Macabéa, mas entender sobre
todos os elementos que a rodeiam: estado psicológico, vocabulário,
relacionamento com a voz narrativa e, principalmente, a projeção
do eu no outro como vem à tona a imagem de Marylin Monroe na
protagonista, que “pintou a boca toda e até fora dos contornos para
que os lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios” da
artista americana (LISPECTOR, 1999, p. 62).
Esse olhar de dependência, na composição das limitações de
Macabéa, é intensificado pela influência dos personagens que a rodeiam:
Olímpio, cartomante, Glória e a tia. Apesar do comando linguístico,
ela recria, na dimensão do pensamento, a sua interação com os
prazeres que estabelecem conexão com o mundo externo, apreciando
o luxo de ir ao cinema ou de presentear-se com uma rosa uma vez
por mês, além da atração por ouvir rádio e música; ler e colecionar
250 | Trilhas do imaginário

anúncios, demonstrando curiosidade pelo desconhecido, ainda que


não se aprofunde em questionamentos, até porque “o único capaz
de responder” às indagações “fosse seu próprio criador, e esse não se
apresentava disposto a abrir mão de seu domínio” (ROCHA, 2007, p. 10).
Ao assinalar um percurso de resgate da identidade da
jovem, reportando-se à perda dos pais e aos castigos injustos que a
protagonista sofrera na infância, Rodrigo S. M. contribui para projetar
a visão de uma sociedade de classes, uma dominante e outra de
submissão que, independentemente do momento em que a obra foi
escrita, faz com que as constatações estejam ligadas a uma realidade
em que permanecem os mesmos traços de ambiguidade humana.
Quem sabe isso explique a não adaptação da nordestina ao espaço a
que foi submetida e a consequente morte da personagem de forma
teatral. Na verdade, a caracterização intimista de que se reveste a
obra colabora para a reconstrução da personalidade estética que se
localizou numa terra que não era sua:

É jovem, tem 19 anos [...] datilógrafa, profissão que


lhe confere dignidade, segundo o próprio narrador.
Essa habilidade rendeu a ela um emprego, o qual,
mesmo não lhe proporcionando grandes benefícios,
colocava-a em situação privilegiada, se comparada à
situação de milhares de brasileiros que não estavam
no mercado de trabalho no período em que se passa
a história e que assume, hoje, marcas exorbitantes
(ROCHA, 2007, p. 15).

Não há como pensar na estética de A hora da estrela sem


ter como alusão as condições sócio-políticas de quem nasceu no
sertão de Alagoas, uma das regiões mais castigadas pela seca e pela
miséria. Para a análise em A hora da estrela não foram destacados
os problemas sociais importantes da história do Brasil que a obra
pode suscitar como o resultado das políticas de exclusão, em torno
dos anos de 1970, mas a interpretação tomou a poética do narrador-
escritor associada às circunstâncias marcadas pelo deslocamento da
protagonista para viver outros costumes até então desconhecidos.
Trilhas do imaginário | 251

Ela representou, na ficção, a posição de quem sobrevive às mazelas


da sociedade, posto que se vê forçada a lidar com a sua entidade
ficcional definida pela fatalidade e justificada, desde o início da
história, pelo narrador que sentiu a impossibilidade de salvá-la
das brutais consequências do plano de uma existência esmagadora
como foi toda sua vida. Com o drama, Macabéa luta com a palavra
e o narrador igual experimenta o mesmo valor de dificuldade para
escrever, ainda que ele controle a voz da protagonista e é o esforço
sobretudo da mulher do Nordeste em desejar sobreviver que o deixa
sem fôlego no ato da linguagem, quando fecha o palco narrativo,
para dar aos homens reais a atemporalidade da criação artística de
Clarice Lispector.

5 Algumas discussões
Este trabalho destaca a figura do narrador, a da personagem
Macabéa e a forma como Clarice Lispector apresenta o discurso,
considerando a interatividade da linguagem poética que ocorre
dentro da narrativa com o real. É importante estabelecer que
na arte não há uma coincidência exata entre personagens e a
vida cotidiana, porém, identifica-se somente um paralelismo com
ela e, por conseguinte, a criação artística da autora permite esse
desdobramento dos símbolos que podem suscitar uma imagem
próxima à realidade. No romance, o narrador não eliminou os
devaneios da protagonista com os quais descreveu os aspectos
profundos de uma temática que concilia o regional ao universal em
uma situação imaginada e impôs-se por meio de variadas focalizações
voltadas, quase sempre, para a subjetividade da protagonista e a dele
própria. Esses fatores que potencializaram uma estética, localizada
na segunda metade do século XX, servem como modo de entender
as existências e suas implicações. Portanto, A hora da estrela é
de Macabéa “alegrezinha dentro de sua neurose” que resulta da
“mais profunda tristeza” do escritor narrador que se dilui entre
as percepções melancólicas da moça (LISPECTOR, 1999, p. 36; 35).
252 | Trilhas do imaginário

Acompanho, neste ensaio, um caminho poético em que a


palavra não se sujeita aos relatos e às descrições, todavia, relaciona-
se a um narrador que comanda e participa da ação verbal; ele não
apenas conta, mas realiza um percurso que ultrapassa a subjetividade
da linguagem para humanizar o âmbito da ficção. Com tais contornos
literários, a voz narrativa dá conta da atitude pueril da protagonista
que retira da solidão os desejos e, principalmente, a delicadeza, medo
e amor, entre outros conceitos, que devem ser exercitados ainda
pelos indivíduos em seus contextos.
Portanto, é válido retomar A hora da estrela, que pode ser lida
por iniciativa própria do leitor, em cursos de formação profissional
e de caráter acadêmico nos dias atuais devido aos temas passíveis de
serem debatidos, contribuindo com interpretações ligadas à morte e à
vida, bem como ao drama que desencadeou a restrição da nordestina
atrelada a um enredo específico do narrador. Resta pensar que a
produção de arte examinada contribui para o reconhecimento da
individualidade da literatura e dos elementos que vêm de fora da
obra, os quais devem suscitar outras análises sobre como a mulher
percebe-se hoje; o quanto ainda deixa-se falar pela voz do outro
e outras evidências, uma vez que a produção artística de Clarice
Lispector dispõe de um número variado de contingências humanas.

Referências
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1974.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
Fontes., 1997.
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Trilhas do imaginário | 253

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ROSENFELD, Anatol. Literatura e personagem. Antonio Candido... [et
al.] São Paulo: Perspectiva, 2014.
Fonte: https://www.flaticon.com/authors/pixelmeetup
| 255

Uniformização dos corpos: cultura escolar,


identidade, moda e imaginário78

Suellen Cristina Vieira 79

1 Introdução
A presente pesquisa tem como escopo o debate acerca do
uniforme escolar e suas representações de identidade. Para tanto,
vê-se que a cultura escolar, sob o prisma da moda, é amparada pela
teoria do imaginário, cuja análise aponta para novas formas de
ressignificação do traje escolar e sua influência na uniformização
dos corpos.
A problemática deste estudo repousa no modo pelo qual as
identidades dos sujeitos constituem-se através do uso do uniforme,
enquanto artefato cultural que reproduz os padrões estéticos e
morais de um determinado grupo, bem como inculca e reforça estes
mesmos moldes naqueles que dele fazem uso cotidianamente. Em
tal cenário, questiona-se, portanto: Qual o imaginário dos alunos da
escola – pública e particular – sobre o uso do uniforme escolar? O
uso obrigatório do uniforme fere a necessidade de individualidade
inerente ao sujeito? Qual a função social e pedagógica do traje escolar?
Visto assim, o debate tem como substrato as perspectivas
contemporâneas de um elemento histórico, como o uniforme, sob

78 Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina de Estudos Culturais


do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem na Universidade
do Sul de Santa Catarina – UNISUL, orientado pela Professora Dra. Heloisa
Juncklaus Preis Moraes (E-mail: [email protected]).
79 Mestre em Ciências das Linguagem; Especialista em Gestão de Negócios;
Graduada em Design de Moda; Docente atuante no Curso de Design
de Moda – Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL. E-mail:
[email protected]
256 | Trilhas do imaginário

o viés do imaginário pós-moderno, o qual pode ser compreendido


como o “cimento social” que liga um indivíduo ao outro. Com
isto, busca-se refletir sobre o imaginário, utilizando-se de tal
conceito como marco teórico que acentua os pensamentos coletivos,
juntamente com o tribalismo, sentimento de pertencimento na
atualidade, sem olvidar a complexidade das diferentes formas de
organização da vida individual e coletiva, sob a ótica do sociólogo
francês Michel Maffesoli, cujo pensamento será utilizado como
referencial teórico basilar.
É que, com embasamento no tribalismo maffesoliano, pretende-
se entender as relações sociais e as características culturais que reúnem
os indivíduos por grupos de identificação. Isso porque a dimensão
simbólica, compartilhada em rotinas que geram identificação, permite
insculpir o traço constitutivo da comunidade, assegurando-se como
linguagem de pertencimento, razão pela qual o imaginário relaciona-
se com a ideia de fazer parte de algo e tem por função estabelecer
um importante papel na estrutura social.
Além disso, os objetivos específicos miram perscrutar os
elementos que compõem a problemática aqui delineada através
de um estudo de caso, de modo a desenvolver uma pesquisa de
campo qualitativa com questionário aberto para elucidar o uso dos
uniformes escolares, suas experimentações, funções sociopedagógicas,
mediante a identificação dos sujeitos como seres sociais na cultura
escolar, perante o imaginário de alunos de 12 a 15 anos de uma
escola pública e outra da rede privada de ensino do município de
Imbituba, em Santa Catarina.
Para tal desiderato, opta-se pela metodologia descritiva
para permear o estudo, desde o referencial teórico até a técnica
de análise, buscando-se descrever os resultados e os dados do
objeto estudado. A repercussão dos resultados esperados se dá
através do entrecruzamento da cultura escolar e do uniforme
como expressão de identidade, que sintetizam os valores, modos
de convivência e significados que geram um padrão coletivo de
pensar, agir e perceber o ambiente. Daí por que se tem como
Trilhas do imaginário | 257

expectativa o despertar de consciências e um novo olhar para


as normas e práticas do âmbito educacional, haja vista que tais
padronizações são consequências de normas oriundas de elementos
políticos e das forças que detêm o poder em um determinado
contexto histórico-social.
Portanto, objetiva-se, ao cabo, compreender e ressignificar
o uso do uniforme no universo escolar, não apenas como um dos
elementos que compõem a cena institucional, mas com um novo
sentido a nortear as relações no ambiente de ensino e no imaginário
individual e coletivo.

2 Reflexões sobre o uniforme escolar


O uniforme é impregnado de valores históricos, culturais e de
práticas distintas pelas quais as instituições organizam-se e associam-
se. Assim, segundo Sabino (2007, p. 606), o uniforme é adjetivo do
que só tem uma forma, sinônimo de “traje padronizado e distintivo,
usado por integrantes de uma determinada categoria. Geralmente,
qualificam e servem de identificação social”.
Sob esta perspectiva, Lonza (2005) afirma que o uniforme
não serve apenas para distinção e identificação, mas possui outras
funções que determinam sua existência, na medida em que “[...] são
roupas especiais que têm diversas funções que envolvem desde fatores
relacionados à segurança, proteção do usuário, até a personalização,
identificação, e divulgam de uma instituição ou marca” (LONZA,
2005, p. 21).
Nesta senda, a história do uniforme escolar está vinculada ao
surgimento da escola moderna, a partir do século XIX. Ao depois,
com um novo olhar sob as aparências, as mudanças ocorridas na
idade moderna possibilitaram as famílias a entender o papel da
criança e as escolas tornam-se um lugar para educá-las, contribuindo
essencialmente à sociedade, afirma Aranha (2006, p. 23).
Outrossim, a escola moderna com seus novos métodos,
modelos e novas formas de pensar as práticas de ensino e de
258 | Trilhas do imaginário

passar os conhecimentos, também influenciou o modo de vestir dos


alunos, proporcionando uma uniformização diferenciada para os
diversos tipos de entidade educacional. Deste modo, para Neppel
(2000, p.106), “o uso do uniforme associa as individualidades,
coletivizando, tornando o indivíduo parte de um grupo específico.
Por isso o traje adquire a característica de um dispositivo disciplinar
que classifica e identifica”.
Nesta toada, a utilização e a necessidade de identidade do
vestuário escolar no Brasil surge entre 1800 e 1900 com o advento
da Escola Normal cuja primeira escola surgiu em Niterói, no Rio
de Janeiro, na primeira metade do século XIX. Assim, gradativo
aumento do número de escolas no Brasil trouxe a necessidade de
caracterizar os estudantes de cada instituição de ensino, afirma
Lonza (2005, p. 21).
Adiante, a partir das décadas de 1920 e 1930 os uniformes
ganham destaque, mas é somente no ano de 1940 que eles se
tornam de uso obrigatório, servindo como diferencial para as
instituições educacionais, como um marco de distinção e disciplina.
Nesse contexto, a utilização do uniforme no Brasil iniciou com o
objetivo de identificar os alunos e as escolas, garantir a segurança
e a disciplina como meio de coesão de grupo, segundo inculca
Lonza (2005, p. 19).
Ou seja, neste cenário, os uniformes são artefatos que
materializam a cultura escolar como linguagem específica,
apresentando um regime de aparências que delimita os contornos
e fronteiras da instituição de ensino com o externo. Assim, segundo
Dussel (2005, p. 133) “a prática de uniformização transformou-se em
um elemento fundamental para a construção de um sistema educativo
baseado no ideal de igualdade de oportunidade para todos, ainda
que muitas vezes essa igualdade seja mais estética do que efetiva”.
Além disso, Corazza (2004, p 55) denomina o uniforme como
farda ou fardamento, o que pode ser compreendido como aquilo
que possui a mesma unidade. Para tanto, esta forma de vestimenta
surgiu com o exército e caracteriza-se pela padronização e disciplina.
Trilhas do imaginário | 259

Daí se vê que a adoção dos trajes escolares como um procedimento


institucional de relação de poder que age sobre o corpo de um
indivíduo, produzindo conformidades e modelando sua relação com o
outro. Tal constatação corrobora o pensamento foucaultiana segundo
o qual “a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos ‘dóceis’ […] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada”
(FOUCAULT, 1999, p. 64). Com efeito, vê-se que o corpo torna-se alvo do
poder, sendo, inclusive, moldado, rearranjado, treinado e submetido
para se tornar, ao mesmo tempo, tão útil quanto sujeitado.
Em contrapartida, pode-se acrescentar que o uniforme
representa o pertencer a um determinado grupo social, cultural
e intelectual, gerando assim uma identidade ou cultura escolar.
Neste sentido, existem significados culturais que podem ser mais
potentes para o indivíduo do que as funções sócio-pedagógicas, pelo
que, consoante ensina Souza (2009), a cultura escolar é também
compreendida em suas regularidades e transformações. É dizer,
ela comporta aspectos que se solidificam ao longo tempo, como as
“tradições, sedimentação de práticas, ideias, modos de fazer e pensar
que governam o ensino, sobrevivendo às reformas e inovações”
(SOUZA, 2009, p. 17).
Contudo, nesta conjuntura, abre-se o questionamento sobre a
influência do uniforme escolar sobre a identidade e a individualidade
inerente ao ser humano. Com isto, busca-se olhar para esse traje
como elemento materializado da cultura escolar que desperta os
mais diversos sentidos, sendo alvo de transformações com o tempo e
que, de conseguinte, recebe inclusive influência direta do fenômeno
da moda.

3 A moda e a ressignificação do uniforme escolar


O vestuário como forma de comunicação é abordado por
Umberto Eco (1989), para quem a roupa não serve apenas para proteção,
mas também como aquilo que se quer comunicar intrinsecamente, no
260 | Trilhas do imaginário

seio das relações interpessoais e dos aspectos culturais da sociedade


em que se insere. Bem por isso, o sobredito pensador aduz que
“a indumentária assenta sobre códigos e convenções, muitos dos
quais são fortes, intocáveis, defendidos por sistemas de sanções ou
incentivos,” como o uniforme (ECO, 1989, p. 15).

Porque a linguagem do vestuário, tal como a


linguagem verbal, não serve apenas para transmitir
certos significados, mediante certas formas
significativas. Serve também para identificar posições
ideológicas, segundo os significados transmitidos e
as formas significativas que foram escolhidas para
os transmitir (ECO, 1989, p. 17).

Com tais aspectos em vista, a presente pesquisa sobre o


imaginário dos uniformes escolares recorre ao campo da moda
para distinguir alguns significados e transformações presentes nos
trajes, assim, considera-se que a história do vestuário educacional
compreende as questões das práticas escolares que apresentam
rupturas ao longo do tempo.
Assim, Lonza (2005, p. 160) salienta que nos períodos entre
1930 e 1940, a Era Vargas no Brasil caracterizou-se pela reconstrução
nacional, democratizando cada vez mais o ensino, contexto em que os
uniformes passaram a adquirir inspirações militares. Entretanto, no
final dos anos de 1940, a efervescência jovem e a contracultura rebelde
que emerge no pós-guerra transformam os uniformes escolares no
que diz respeito à forma e à sua composição em razão também da
influência do rock and roll. É que, no início de 1950, o gênero musical
já estava difundido por todo o ocidente e os uniformes escolares
passaram a ganhar destaque entre os jovens, servindo de inspiração
e influência para a moda da época através do estilo colegial, em que
predominavam as saias plissadas, sapatilhas, suéteres e camisetas
sobrepostas a camisas. Por sobre isso, leciona Lonza:

Nessa época, os uniformes tiveram um papel


especial. O estilo de roupa que se usava para ir
Trilhas do imaginário | 261

ao colégio – a chamada moda colegial – inspirou a


moda jovem. Eram as saias rodadas combinadas
com blusas mais simples, sapatos baixos e
camisetas, usadas para baixo da camisa ou nas
aulas de Educação Física, tornando-se peças
indispensáveis no vestuário jovem masculino. O
jeans chegou para ficar definitivamente, no uso
diário e nos uniformes, embora tenha gerado
muita controvérsia – era ideal para os meninos
e problema para o pessoal da escola, já que em
diferentes, estágios de descoramento, os alunos
nunca ficavam uniformes (LONZA, 2005, p. 160).

Ademais, o mesmo autor ainda sustenta que, na década


de 1960, o jeans ganha notável popularidade entre os jovens e
a rebeldia chega ao seu ápice. Por isso, algumas instituições de
ensino cederam ao uso de calças jeans, até então combinadas com
camisas de colarinhos e botões, como uma opção de uniformização
(LONZA, 2005, p. 160).
Outrossim, dentre as mudanças ocorridas nos trajes
escolares ao longo tempo encontravam-se completamente ligadas
ao comportamento do jovem e da sociedade em diversos período
histórico. Após as décadas de 1970 e 1980, deu-se início a uma
diversificação maior nos uniformes da escola pública brasileira.
O fenômeno da moda começa a influenciar a cultura escolar e o
uniforme é reavaliado. Assim, nesta época, começou-se a olhar para
o conforto, a modelagem e os materiais que compunham o traje, de
sorte que as escolas passaram a dar importância a modelagens e à
ergonomia das peças, levando em consideração a rotina e os gostos
dos alunos. Assim, “os estudantes começaram a usar agasalhos,
utilizados não só para a prática de esportes, mas para o dia a dia
e que serviram de opção para as escolas também. Os tênis, nessa
conjuntura, substituíram definitivamente os sapatos e a apropriação
da moda unissex” (LONZA, 2005, p. 176).
Isso se deu porque, conforme advertiu Michel Maffesoli (1996),
a moda é onipresente e não há domínio que lhe escape:
262 | Trilhas do imaginário

A moda pode ser um bom ponto de partida para


análise. Do início, porque ela está onipresente. Não
há nenhum domínio que lhe escape, todos possuem
a necessidade de se identificar. Moda vestuário, é
claro, mas também modas culinárias, linguísticas,
musicais, esportivas. Mesmo as ideias que não
escapam de suas influências. Tanto no mundo
acadêmico, produtor dessas ideias, quanto no meio
jornalístico que as difunde, é de bom tom, em tal
momento particular, pensar de um modo conforme
o ar do tempo (MAFFESOLI, 1996, p. 346).

Sob esta perspectiva, observa-se que o uniforme ao longo do


tempo vem recebendo influências de moda em suas composições,
razão por que a história dos uniformes está conectada à educação e à
moda. Como tal, o traje escolar através dos elementos de moda pode
ser aperfeiçoado e confeccionado com detalhes e segurança para o
conforto dos estudantes. Neste sentido, Pires (2004, p. 45) explica que
a funcionalidade é de extrema importância no desenvolvimento de
uma peça de vestuário, pelo que através dos elementos de design,
silhuetas, texturas, cores e materiais, a ergonomia é associada e
amplia-se os benefícios, balizada pelas soluções estéticas do traje.
Por conseguinte, compreende-se que o design é um instrumento de
qualidade de vida, estando ligado à solução de problemas.
Além disso, considerando as informações esposadas, entende-
se que a aplicação da ergonomia no desenvolvimento de um produto
têxtil possui a função de adaptar o vestuário ao homem, além de
ressaltar a qualidade da modelagem e a segurança do corpo. Logo,
a adequação dos materiais para a confecção do uniforme escolar
valoriza e facilita as práticas cotidianas dos alunos, motivo pelo
qual afirma Lonza (2005, p. 47) que a matéria-prima utilizados no
desenvolvimento das peças devem apresentar qualidade, durabilidade
e funcionalidade.
Convém pontuar, ainda, que o uniforme também serve
para comunicar, haja vista que a noção de comunicabilidade do
vestuário amplia-se na vida em sociedade, de tal modo que tudo se
Trilhas do imaginário | 263

torna comunicação. Sobre isso, Eco (1989, p. 8) salienta que “pelo


menos tudo que não é natureza bruta, para aquém da sociedade
constituída, para aquém do homem que tem uma percepção da
natureza e a faz dobrar-se aos seus objetivos, possui significado”, de
onde se extrai que o uniforme escolar é um item material simbólico
que permeia a cultura escolar e diligencia princípios, regras e
desígnios que influem na relação sócio-pedagógica sem que, para
isso, seja necessário a alocução verbal. Daí se vê que no tocante
à vestimenta escolar existe uma comunicação subconsciente que
exige dos estudantes uma conduta de excelência, zelando assim
pela imagem da instituição de ensino, quer estejam os alunos
dentro ou fora da escola.
De toda sorte, a moda é o hábito resultante de determinado
gosto ou ideia, bem como das interferências do meio, através
do que a sociedade pode refletir seus valores e costumes em um
determinado espaço de tempo. Portanto, para Lipovetsky (1989, p.
24), “a moda é considerada um dispositivo social caracterizado por
uma temporalidade particularmente breve, por reviravoltas mais ou
menos fantasiosas, podendo, por isso, afetar esferas muito diversas”,
tal como ocorre na escola e sua cultura.

4 Cultura escolar, identidade e a uniformização dos corpos


Dentre outros tantos elementos materiais que compõem a
escola e sua cultura está o uniforme. Nesse tocante, importa perquirir
a influência do uniforme perante a identidade e a individualidade
inerente ao sujeito. Indaga-se, com isto, se o mero uso de determinada
vestimenta pode influenciar as mentes, disciplinar os corpos e
as atitudes das pessoas. Busca-se, assim, investigar se é possível
controlar, regular e governar, de algum modo, a maneira de viver,
sentir, pensar, fazer e dizer, de modo a uniformizá-los.
Como cultura escolar deve-se entender a função da escola
como transmissora de uma cultura específica no quadro do processo
de socialização e integração, o que corrobora o pensamento de
264 | Trilhas do imaginário

Bourdieu (1998, p. 78), ao sustentar que a escola faz parte de um


“campo social”, onde o indivíduo participa e constitui um conceito
material, possuindo um conjunto de recursos simbólicos capazes
de contribuir na construção de sua identidade. Por assim dizer, o
ambiente escolar é multicultural e inclui a construção de laços afetivos
entre os indivíduos, além de permitir desenvolvimento cognitivo e
preparar o sujeito para a vida social.
Diante de tal quadro, nota-se que discussão sobre o uso
do uniforme e a formação da identidade vem gerando diversos
debates e questionamentos dentro e fora do campo acadêmico.
Hall (2006, p. 38) salienta que “a identidade é realmente algo
formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes,
e não algo inato. Ela permanece sempre incompleta, está sempre
em processo, sempre sendo formada”. Em contrapartida, o filósofo
francês Michel Maffesoli aduz que a sociedade pós-moderna está
passando da identidade para a identificação. Neste contexto,
para o autor esse conceito de identificação se resume na palavra
empatia, o qual pode ser compreendido como o componente afetivo
baseado na partilha e compreensão do outro. Logo, “a identificação
ressalta que a pessoa é composta de uma série de estratos que são
vividos de um modo sequencial, ou mesmo que podem ser vividos
concorrentemente, ao mesmo tempo” (MAFFESOLI, 1996, p. 330).
Vê-se, com isto, que a identificação expressa-se na experiência do
outro, no comum, no coletivo e nas emoções, fazendo parte de um
processo que se dá também através dos trajes escolares, os quais
possuem o condão de fazer com que determinado sujeito se sinta
incluído a um grupo.
Porém, d’outro lado, sob a ótica foucaultiana, Neppel (2000,
p. 44) aborda a relação de poder no cotidiano escolar, em que o uniforme
é visto como um dispositivo disciplinar que aprofunda a sujeição e
busca a relação de obediência. Além disso, a pesquisadora afirma que
“a utilização do uniforme retrata uma rede de relações nas tramas
sociais, que hierarquiza e seleciona, confere posicionamento, constrói
subjetividades que afirmam ou negam o indivíduo” (NEPPEL, 2000,
Trilhas do imaginário | 265

p. 108), de modo que a regulação das aparências e a disposição dos


corpos no âmbito escolar são indicativos de formas de intervenções.
Também nesse norte, Inês Dussel (2005, p. 107), através de um
estudo sobre a implantação do uniforme para alunos e professores
na Argentina, defende a representação dos trajes escolares como
dispositivo disciplinar, em que a utilização do uniforme está longe
de promover a prática da igualdade social; ao revés, para além das
aparências, a utilização do traje está também voltada para a segurança
e zelo ao aluno.
À vista disso, depare-se com um paradoxo bipolar na presente
discussão, qual seja: ao mesmo tempo em que se cria um imaginário
de pertencimento a um grupo, em outro polo, o uso do uniforme faz
com que o sujeito se dilua num todo maior e, em nome disso, oculte
sua expressão individual através do traje.
Tem-se, por assim dizer, que, ao ser incorporado por um
aluno, o traje escolar ganha características próprias que expressam e
compõem um conjunto maior de informações, de maneira que o uso
do uniforme é reflexo de uma sociedade que vive em coletividade
e busca o pertencimento. Por isso, o uniforme ultrapassa os limites
do domínio escolar e pode ser entendido, também, como aquele
traje empregado no cotidiano que o indivíduo utiliza para se fazer
pertencente e identificável no seu meio social.

(...) os alunos se parecem cada vez mais uns com os


outros, vestem os mesmos modelos de roupas ditados
pela moda, alguns da mesma marca, o mesmo tipo
de celular estufa o mesmo bolso esquerdo da saia
ou da calça. Logos idênticos marcam as preferências
pelas mesmas griffes, os alunos uniformizam-se de
acordo com as regras impostas pela sociedade de
consumo, de fora para dentro, de cima para baixo”
(LONZA, 2005, p. 227)

Igualmente, Hall (1999, p. 12) argumenta que “o sujeito tornou-


se fragmentado; composto não de uma única identidade, mas de várias
identidades.” Por seu turno, Maffesoli completa “somos plurais [...]
266 | Trilhas do imaginário

estamos sempre em outro lugar além de onde nos esperam, somos


sempre outra coisa além do que nos creem ser.” Combinando-se
tais enunciados, pode-se inferir que a realidade social apresenta o
indivíduo inserido numa estrutura social ampla, fazendo parte de
uma coletividade como membro transitório de vários grupos que o
tornam plural.
Além disso, o espaço escolar é compreendido como um locus
produtor de identidades e de dispositivos, em que uniforme - enquanto
artefato material da cultura escolar -, insere-se como elementos de
inclusão e pertencimento, tanto no espaço educacional como na
sociedade. É dizer, uma identidade se expressa justamente através
de representações que definem a ideia e o sentimento de pertencer
a um grupo, consoante preleciona Maffesoli (2001, p. 32)
Portanto, o traje escolar encontra-se neste espaço onde
identidades são construídas e reconstruídas diariamente,
desconstruindo-se, de tal modo, a ideia de uma identidade
permanente. Vê-se a partir disso que o uniforme escolar faz parte
das máscaras diárias utilizadas por um sujeito, mesmo que carregado
de intervenções racionais ou irracionais, tal vestimenta proporciona
ao indivíduo a experiência do coletivo.

5 Tribalismo e imaginário sob a ótica de Michel Maffesoli


Diante do pensamento exposto até então, abre-se porta para
a compreensão do conceito de tribalismo e imaginário através do
pensamento do sociólogo francês Michel Maffesoli. Para o autor, o
imaginário é determinado pela ideia de fazer parte de algo, sendo
construído através dos conhecimentos e vivências obtidas dentro de
um ambiente e de uma cultura na qual o indivíduo se insere. Assim,
a escola e sua cultura material, podem ser consideradas produtoras
de imaginário.
Assim, o imaginário é um “cimento social” que liga um
indivíduo ao outro através de um patrimônio compartilhado que se
caracteriza como um catalisador, uma energia, uma fonte comum de
Trilhas do imaginário | 267

emoções, de lembranças, de afetos e de estilos de vida (MAFFESOLI,


2001, p. 77). Logo, a construção do imaginário se dá, essencialmente,
por identificação, o reconhecimento de si no outro, estruturando-
se principalmente por uma lógica tribal de contágio e aceitação do
modelo do outro. De se ver:

O imaginário é algo que ultrapassa o indivíduo, que


impregna o coletivo ou, ao menos, parte do coletivo.
O imaginário pós-moderno, por exemplo, reflete o
que chamo de tribalismo. Sei que a crítica moderna
vê na atualidade a expressão mais acabada do
individualismo. Mas não é esta a minha posição. [...]
O imaginário é o estado de espírito de um grupo, de
um país, de um Estado, nação, de uma comunidade,
etc (MAFFESOLI, 2001, p. 76)

Consoante leciona Maffesoli, a sociedade é estruturada por


pequenos grupos que definem o compasso das transformações
sociais. Daí por que o autor alega que “só existe imaginário coletivo”
(MAFFESOLI, 2001, p. 76), de modo que transcende o sujeito e imbue
o grupo, demonstrando tanto elementos racionais quanto irracionais
e sendo, por isso, ao mesmo tempo, real e impalpável.
Mediante o pensamento maffesoliano, observa-se que a sociedade
caminha para um tempo marcado pela tribalização das relações sociais.
Tal perspectiva, mostra que, cada vez mais, a constituição de grupos
afetuais, cimentados pela partilha de uma estética comum, caracteriza
nossa sociedade (MAFFESOLI, 2006 p. 159).
Diante de tal cenário, identifica-se a escola como uma expressão
desse processo tribal, onde o convívio dos grupos e tribos no interior
da instituição germina uma ressignificação da cultura escolar e do
seu espaço como representação, o que ocorre também em outros
campos, como:
Universidade, imprensa, política, sindicato, poder-
se-ia continuar a lista: administração, clubes,
formação, assistência social, patronato, igrejas
etc. O processo tribal tem contaminado o conjunto
268 | Trilhas do imaginário

das instituições sociais. E é em função dos gostos


sexuais, das solidariedades de escolas, das relações
de amizade, das preferências filosóficas ou religiosas
que vão se constituir as redes de influência, a
camaradagem e outras formas de ajuda mútua,
das quais se tratou, que constituem o tecido social
(MAFFESOLI, 2006, p. 13-14).

Nesta toada, o autor aponta para a “era da sociabilidade”


como uma estrutura complexa e orgânica, um universo das
ideias compartilhadas, vividas no cotidiano das comunidades e
instituições, na qual as pessoas desempenham papéis derivados
de suas escolhas, gostos, desejos, e se inserem em grupos sociais,
que segundo ele, adquirem uma feição de “tribos” (MAFFESOLI,
2006, p. 22). Tal perspectiva, também pode servir para a reflexão
do processo de tribalização dentro do âmbito escolar, justo porque
o convívio de identidades plurais, como descrito por Maffesoli, faz
com que a escola deixe de se constituir apenas enquanto objeto
material, institucional, racional e burocrático, e desloca-se a para
um locus de partilha, de emoções e afetos, ganhando uma nova
representação e tornando-se um espaço de significados atribuídos
por seus frequentadores.
Vale ressaltar que a utilização da metáfora das “tribos” não
tenciona vincular-se com o conceito antropológico da palavra; pelo
contrário, mira observar sua metamorfose a partir dos vínculos
sociais. Para tal perspectiva, Maffesoli (2006, p. 28) procura persistir
nas experiências sociais e no aspecto coesivo da partilha sentimental
de valores, de lugares ou de ideais. Logo, o termo “tribo” constitui
uma aliança que ultrapassa os particularismos de grupos domésticos
e locais, indo de além das divisões de clã ou linhagem de uma aldeia,
pelo que afirma:

O quotidiano e seus rituais, as emoções e paixões


coletivas, simbolizadas pelo hedonismo de Dionísio,
a importância do corpo em espetáculo e do gozo
contemplativo, a revivescência do nomadismo
Trilhas do imaginário | 269

contemporâneo, e tudo o que acompanha o


tribalismo pós-moderno (MAFFESOLI, 2006, p. 63).

Portanto, ao voltar-se essa reflexão para o objeto de análise,


observa-se a necessidade do estudo do uniforme enquanto artefato
simbólico, que permite ampliar a compreensão sobre o cotidiano
da escola, o sentido que o traje possui para determinados grupos, as
exigências de comportamentos, além dos influxos sobre o imaginário
coletivo. É que o imaginário assume contornos de um fenômeno
de força social e de ordem espiritual que se constrói mentalmente,
perpassa e se inscreve no campo da pluralidade, ganhando voz
através dos alunos que serão entrevistados (MAFFESOLI, 2001, p.
75). Sob esta perspectiva, busca-se entender a dimensão simbólica
que envolve esse vestuário padronizado.

6 Análise: o imaginário dos alunos sobre o uniforme escolar


Por meio de um estudo de campo com aplicação de um
questionário com respostas abertas, buscou-se identificar os elementos
que compõem o imaginário de alunos de 12 a 15 anos de uma escola
pública e outra de rede privada do município de Imbituba. Para tal
desiderato, optou-se pela metodologia descritiva para permear o
presente estudo, levando-se em conta teorias sociológicas, dentre as
quais se destaca a teoria do imaginário e da cultura escolar.
De partida, no contato imediato com os alunos de ambas
instituições, pode-se observar, como primeira impressão, uma notável
diferença entre os dois grupos em análise: os alunos da escola pública
possuem uniformes escolares cedidos pelo governo, porém seu
uso não é obrigatório. Alguns alunos explicaram que a direção da
escola liberou o uso de calça preta ou jeans e camiseta branca como
alternativa secundária de uniformização. Entretanto, todo os alunos
entrevistados estavam utilizando suas próprias roupas no momento
da entrevista. Em contraponto, os estudantes da rede de ensino
privado possuem uniformes escolares exclusivos e de uso obrigatório.
270 | Trilhas do imaginário

Sobre isso, importa resgatar, segundo Neppel (2000, p. 106), que


o uso obrigatório do traje escolar faz do usuário um ser observável e
controlável por todos. Permite aferir a entrada e saída do estudante
no ambiente escolar, supervisionar a ocupação de um determinado
espaço, além de hierarquizar o sujeito, determinando seu lugar em
um todo.
De todo modo, a partir das respostas dos alunos, abre-se
debate sobre o imaginário do uniforme escolar, enquanto vestuário
padronizado que compõe a estética da cultura material das instituições
de ensino.
Ao serem indagados sobre a importância do uso do uniforme,
a resposta foi unânime entre alunos de ambos os grupos no sentido
de que o uso do traje é de extrema importância para a organização,
identificação, segurança do aluno e embelezamento do ambiente
escolar. Além disso, alguns dos entrevistados chegaram a afirmar que
“uma escola precisa possuir um uniforme para ter credibilidade e
unidade”. Tais afirmações encontram amparo na lição de Lonza (2005,
p. 21), para quem “os uniformes são roupas especiais que possuem
diversas funções, além de envolver desde fatores relacionados à
segurança e proteção do usuário, também incluem a personalização
e identificação, além de ser um recurso de identidade visual e
publicidade”. De qualquer sorte, o discurso dos alunos ressalta o
uniforme como um elemento de marketing, que valoriza a identidade
visual coletiva de uma instituição, e não como um traje disciplinar.
Além disso, verificou-se que o uniforme da rede privada,
também pode ser considerado um símbolo de status e pertencimento
a um grupo seleto. Não obstante, o que se vê é que, em determinados
casos, o traje não apaga as diferenças sociais entre alunos de intuições
distintas; pelo contrário, ressalta-as. Por isso, sublinhou Neppel
(2000, p. 105), “pode-se entender que a utilização do uniforme apenas
mascara as diferenças sociais. Neste caso, a segregação social estaria
apenas sendo camuflada.”. Assim, há grandes dissemelhança entre
os grupos, na medida em que a escola particular possui uniforme
exclusivo e é composto por uma variedade de peças e modelos que
Trilhas do imaginário | 271

permitem ao aluno imprimir sua individualidade e gosto pessoal; por


outro lado, a escola pública possui apenas um modelo de uniforme
com modelagem unissex.
Buscou-se, ainda, entender mais sobre a relação cotidiana
dos alunos com seus uniformes, razão pela qual os grupos foram
questionados sobre a hipótese de utilizarem suas próprias roupa para
irem à escola. Sobre tal quesito, a maioria dos alunos da escola pública
responderam que gostariam de utilizar uniforme, pois “acabaria com
o desfile de moda na escola dentro da instituição”. Notadamente, a
presente afirmação desperta a sensação de que o uso do traje escolar
poderia amenizar as diferenças sócioeconômicas evidenciadas pelas
roupas, além de que, ao assim responderem, os alunos demostram,
em certa medida, o sentimento tribal subjacente de querer pertencer
a um grupo maior. Nesse sentido, Maffesoli (2006, p. 11) diz que “o
tribalismo lembra, empiricamente, a importância do sentimento de
pertencimento, a um lugar, a um grupo, como fundamento essencial
de toda vida social”.
À vista disso, alguns alunos da rede pública relataram, também,
que fazer uso do uniforme facilitaria na hora de se vestir, ressaltando a
praticidade que os eximiria de perder tempo na escolha de roupas. Sob
tal perspectiva, os estudantes afirmam que não utilizam o uniforme
cedido pelo governo, pois o mesmo é extremamente desconfortável
e feio. Isso se dá em razão de os governantes não abrirem margem
para discussão de melhorias no uniforme, de modo que os usuários
acabam por ter que aceitar aquelas peças que lhes são impostas, em
situação na qual “o corpo está preso no interior de interesses muito
apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações”
(FOUCAULT, 1999, p. 118).
De outro lado, os alunos da rede privada, reagem quanto ao
gosto duvidoso das peças e reclamam que seus uniformes, mesmo
sendo exclusivos, não confirmam seus gostos pessoais, mostrando,
assim, ter preferência por suas próprias roupas, pois acham que o
uniforme limita sua individualidade e obriga-os a vestirem cores,
modelagens e padrões estéticos que não favorecem a aparência.
272 | Trilhas do imaginário

Desta maneira, a moda e os elementos do design podem servir


de aliados para o desenvolvimento de um uniforme escolar que
possua os gostos coletivos dos estudantes. Neste sentido, Pires
(2004, p. 45) explica que a funcionalidade é de extrema importância
no desenvolvimento de uma peça de vestuário, tendo-se em vista
elementos de design, silhuetas, texturas, cores e materiais, e
ergonomia, os quais, associados, ampliam os benefícios e trazem
consigo soluções inteligentes e estéticas ao traje.
Ademais, os alunos, ao longo da entrevista, sugeriram mudanças
e melhorias em seus uniformes. Os estudantes da rede pública foram
consonantes em afirmar que o traje escolar, cedido pelo governo,
precisa passar por um novo processo de desenvolvimento, pois o
mesmo não possui funcionalidade, a modelagem é extremamente
larga, a cor clara não favorece a higienização e os tecidos não se
adaptam as estações do ano, de forma que no inverno são frios
e no verão são quentes. Em seguida, os alunos da rede privada
declararam que o uso obrigatório do uniforme rouba a criatividade
e afeta o humor, pois são forçados a fazer uso de um vestuário
que não valoriza suas respectivas identidades. Sugeriram, por isso,
cores diferenciadas, informações de moda e peças com modelagens
confortáveis e modernas.
Neste contexto, Lobach (1981) aduz que a função estética do
vestuário está ligada aos aspectos psicológicos:

A função estética é a relação entre um produto e


usuário experimentados no processo da percepção,
ou seja, é o aspecto psicológico da percepção
sensorial durante o uso, onde o atributo da beleza e
bem-estar em relação ao objeto está perceptível ao
usuário. Estilo e moda somados de cores, formas,
texturas, atração visual ou sensações são aspectos
relacionados à estética. (LOBACH, 1981, apud
CARMONA E HERREIRA, 2011, p. 13)

Perquiriu-se, ainda, o modo como os estudantes criam


identificação uns com os outros, e como as tribos se diferenciam
Trilhas do imaginário | 273

dentro do ambiente escolar. Nesse caso, ambos os grupos relataram


que se identificam a partir de gostos, pensamentos, crenças, ideologias,
e que seria a roupa ou o uniforme algo secundário neste contexto.
Daí por que, o conceito de tribalização expresso por Mafessoli, é
evidenciado e ganha vida no ambiente escolar, eis que a “estética”,
no sentido mais profundo de ver com a faculdade comum de sentir
e experimentar o mundo, exerce um papel principal na composição
dos grupos.

O fato de partilhar um hábito, uma ideologia, um


ideal determina o estar-junto, e permite que este
seja uma proteção contra a imposição, venha ela
do lado que vier. (...) A confiança que se estabelece
entre os membros do grupo se exprime por meios de
rituais, de signos de reconhecimento específicos, que
não tem outro fim senão o de fortalecer o pequeno
grupo contra o grande grupo. (...) A partilha secreta
do afeto, ao mesmo tempo em que confirma os
laços próximos, permite resistir às tentativas de
uniformização (MAFFESOLI, 2006, p. 159).

Por todo o exposto, através da presente análise, pode-se


perceber que o imaginário do estudante sobre o uniforme escolar
parte do pressuposto segundo o qual a identidade de cada indivíduo
está sujeita a diversos mecanismos de influência, sendo um deles as
suas práticas cotidianas, o que acaba, invariavelmente, por envolver
o traje escolar. Além disso, evidenciou-se que o ambiente escolar
pode criar um corpo coletivo capaz de modelar os aspectos morais e
estéticos de seus indivíduos; muito embora haja traços distintivos no
imaginário dos grupos em análise. É que, de acordo com os alunos
da escola pública, o traje escolar representa a ideia e o sentimento
de pertencer a um grupo, inclusão social, segurança, organização e
praticidade; de outra banda, no grupo de alunos da rede privada,
observou-se um imaginário que evidencia a valorização da identidade
pessoal e a busca pela diferenciação da vestimenta no ambiente
escolar. De todo modo, o ponto comum e nevrálgico no pensamento
274 | Trilhas do imaginário

dos dois grupos examinados reside na consciência de si que impõe


limites em torno das fronteiras entre um grupo e outro, evidenciando-
se o desejo de transitar livremente entre o individual e o coletivo
– o que se dá inclusive através da maneira com a qual lidam com a
uniformização da aparência na seara estudantil.

7 Considerações finais
Ante o esposado, ao longo do presente estudo vislumbrou-se os
vários desdobramentos e particularidades do uso uniforme escolar,
através do qual se permitiu compreender e analisar a cultura escolar
e suas práticas. Além disso, constatou-se que o vestuário escolar
acompanhou as evoluções e as mudanças ocorridas ao longo do
tempo e, por essa razão, apresenta-se como um elemento impregnado
de valores históricos, culturais e de práticas distintas pelas quais as
instituições organizam-se e associam-se.
Ao analisar as narrativas dos estudantes, observou-se que o
imaginário coletivo sobre o uniforme escolar não aponta para uma
vestimenta disciplinar propriamente dita. Longe disso, o traje é
também entendido como uma ferramenta de marketing, que promove
visibilidade, credibilidade, harmonia, embelezamento e organização
para uma instituição de ensino.
Afora isso, percebeu-se a escola como um campo de convívio
tribal, onde as relações sociais são construídas através de laços
afetivos entre os indivíduos, em um ambiente no qual o traje escolar
encontra um ponto referencial em relação às múltiplas identidades
em constante construção, fazendo, assim, parte de uma estrutura
social mais ampla.
Sob esta perspectiva, ambos os grupos entrevistados visualizam
o uniforme no seu sentido agregador, de sorte a promover a harmonia
e a inclusão em um grupo. De outro lado, também se admite uma busca
pela individualidade, na medida em que os estudantes procuram
adaptar o traje aos seus gostos pessoais. Neste contexto, constatou-se
que a obrigatoriedade do uso do uniforme não fere a individualidade
Trilhas do imaginário | 275

ou qualquer outro atributo intrínseco ao sujeito, porquanto, uma


vez que o traje é incorporado pelo aluno, as características próprias
dos estudantes passam a expressar e a compor um conjunto maior
de informações.
À vista disso, a reflexão aponta para a evolução dos uniformes
através do sistema de moda, que serve como ponto de equilíbrio entre
o aluno e instituição de ensino. Desta forma, destacou-se o desejo
dos alunos de utilizar um uniforme ergonomicamente confortável,
com design atraente, moderno e que valorize sua aparência dentro
e fora do ambiente escolar.
Por fim, à luz dos dados e das informações colacionadas à
presente pesquisa, pode-se afirmar que o uso do uniforme é reflexo
de uma sociedade que vive em coletividade e busca constantemente
consolidar o sentimento de pertencimento. Portanto, vê-se a partir
disso que o traje escolar faz parte das máscaras diárias utilizadas por
um estudante, mesmo que carregado de intervenções, tal vestimenta
possui o condão de proporcionar ao indivíduo a experiência do coletivo.

Referências
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Pedagogia: Geral e do Brasil. São Paulo: Moderna, 2006
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo:
Editora Perspectiva S. A., 1998.
CORAZZA, Sandra. O Paradoxo do Uniforme. Pátio: Revista Pedagógica,
Porto Alegre, nº 28, 2004
DUSSEL, Inês. Cuando las apariencias no engañan: uma historia
comparada de los uniformes escolares en Argentina y Estados Unidos.
Pro-Posições. Campinas, v. 16, n. 1. 2005.
ECO, Humberto. O hábito fala pelo monge. Psicologia do vestir. 3.ed.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Tradução R.
Ramalhete. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
276 | Trilhas do imaginário

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Tradução


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de Conclusão de Curso (Graduação) – Curso Superior de Tecnologia
de Design de Moda. Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
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LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: A moda e seu destino nas
sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LÖBACH, Bern. Design industrial: Bases para a Configuração dos
Produtos Industriais. São Paulo: Edgard Blucher, 1981.
LONZA, Furio. História do uniforme escolar no Brasil. Brasília:
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MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução Bertha
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MAFFESOLI, Michel. O imaginário é uma realidade. In: Revista da
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poder no cotidiano escolar, Questionando a Obviedade dos Prêmios
e Castigos. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção
do grau de Mestre em Educação, do Programa de Pós-Graduação em
Educação, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC. 2010.
PIRES, Dorotéia Baduy. O desenvolvimento de produto de moda:
Uma atividade multidisciplinar. Congresso Brasileiro de Pesquisa e
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SABINO, Marcos. Dicionário da Moda. Rio de janeiro: Elsevier, 2007.
SOUZA, Rosa Fátima de Souza. Alicerces da pátria: história da escola
primária no estado de São Paulo (1890-1976). Campinas: Mercado das
Letras, 2009.
| 277

Notícia não é espelho:


a construção da realidade
e a influência do imaginário no jornalismo80

Natália Xavier81
Eunice Simões Lins82

1 Introdução
O jornalismo é uma ferramenta frequentemente utilizada pelo
homem na busca de conhecimento sobre os fatos da vida cotidiana e
na construção de sentidos sobre a realidade. Muitas vezes as ideias
reproduzidas em conversas foram extraídas dos noticiários. Isso
não implica dizer que o jornalismo tem influência total sobre o que
a sociedade discute ou pensa, mas também não é possível recusar a
função dos veículos de comunicação na construção da realidade social.
Para Correia (2005, p. 124), “o mundo dos mass media desempenha
um lugar significativo na construção, amplificação, divulgação e
partilha dos significados”.
Diante da importância do jornalismo na construção da
realidade é salutar que façamos a reflexão sobre como a notícia é
construída e como são acontecimentos divulgados os acontecimentos.
Se por um lado a Teoria do Espelho defende que as notícias são um

80 As reflexões aqui apresentadas fazem parte dos estudos preliminares de


pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal da Paraíba (PPGC-UFPB) para elaboração de dissertação.
81 Jornalista. Mestre em Comunicação pelo PPGC da Universidade Federal da
Paraíba. E-mail: [email protected]
82 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC-UFPB).
Pós-doutora em Ciências da Religião (2012) na Universidade Metodista em São
Bernardo do Campo-SP. E-mail [email protected].
278 | Trilhas do imaginário

reflexo perfeito da realidade, entendemos que por vários motivos não


é possível alcançar a utópica ideia de objetividade e imparcialidade
total nas notícias.
Embora o entendimento da notícia como um reflexo da
realidade ainda seja muito presente no imaginário dos profissionais
que atuam nas redações dos veículos de comunicação, não
conseguimos vislumbrar a possibilidade de retratar os acontecimentos
sem interferências.
Muitas vezes, em nome da credibilidade da profissão, os
jornalistas defendem que retratam apenas os acontecimentos tal qual
aconteceram, esquecendo-se (ou omitindo) que é preciso considerar
que fatores como experiências anteriores do jornalista, cultura local, e
interesses empresariais interferem na construção narrativa dos fatos.

O processo de produção da notícia é extremamente


complexo e envolve desde a captação, elaboração/
redação/edição, até uma audiência interativa. Envolve
momentos de contextualização e descontextualização
dos fatos. É resultado da cultura profissional, da
organização do trabalho, dos processos produtivos,
dos códigos particulares (as regras de redação), da
língua e das regras do campo das linguagens, da
enunciação jornalística e das práticas jornalísticas.
(VIZEU e CORREIA, 2008, p. 13)

Há que se acrescentar também que, além de todas essas


influências, não podemos deixar de lado o imaginário, utilizado
para dar sentido aos fatos (SILVA, 2017). Consideramos que ao pensar
ou agir o homem já ativa o imaginário, mesmo que sem perceber.
Se no agir diário, o homem utiliza o imaginário para dar
sentido aos fatos, entendemos que também no fazer jornalístico a
imaginação está sempre presente.

A notícia, no entanto, como expressão cultural


desse sujeito, jamais deixa de configurar também
um registro simbólico. Compreender a notícia
como narrativa mitológica significa permitir que
Trilhas do imaginário | 279

dela brotem sentidos outros que a simples relação


linear da identidade, da contradição, da causa.
Também emanam do texto, e principalmente
o jornalístico pela base enfática em relatos da
realidade comum, imagens a respeito dos sujeitos
e dos acontecimentos que falam não somente dos
valores da empresa jornalística, mas também do
sujeito-autor, das fontes primárias do texto, e,
envolvendo todo esse corpo de relações, os valores
culturais da sociedade.” (DE CARLI e BARROS,
2015, p. 12)

Assim, considerando não haver como separar o imaginário dos


valores vivenciados em sociedade ou individualmente, entendemos
que ele está presente também no jornalismo e, em consequência, na
construção das notícias.
Sob a inspiração dos estudos sociológicos de Schutz,
entendemos a notícia como uma construção social da realidade.
Tal assertiva é aprofundada no campo jornalístico na Teoria do
Newsmaking, na qual nos recostamos também no presente artigo
e que vê a notícia como uma construção. Além disso, apoiamo-
nos ainda na Teoria Geral do Imaginário para verificar como a
imaginação simbólica está presente no jornalismo. Para tanto,
analisamos, pelo viés da hermenêutica simbólica proposta por
Durand (2011), as imagens e textos de duas reportagens exibidas
sobre o mesmo tema em emissoras diferentes. O tema abordado
nas reportagens é a repercussão de uma carta do Papa Francisco
sobre os casos de pedofilia envolvendo a Igreja Católica nos
Estados Unidos da América. Escolhemos abordar notícias com
tema relacionado à religião por entendermos que as instituições
religiosas ao mesmo tempo em que são importantes na produção e
comunicação de sentido na vida cotidiana (BERGER E LUCKMANN,
2012) são uma rica fonte simbólica que permeia e interfere na
formação do imaginário individual e coletivo.
As reportagens escolhidas foram exibidas no dia 4 de janeiro
de 2019, no Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, um dos mais
280 | Trilhas do imaginário

tradicionais jornais brasileiros, e no telejornal Canção Nova Notícias,


da emissora católica Canção Nova. Entre os motivos da escolha das
duas emissoras, estão o fato de que a Rede Globo é a emissora secular
com maiores índices de audiência da TV aberta nacional, e em seus
princípios editoriais declara-se laica83, enquanto que a TV Canção
Nova é uma das mais antigas emissoras confessionais ligadas à Igreja
Católica e declara como linha editorial no telejornal escolhido o
“jornalismo a serviço da esperança e da vida”84, buscando reforçar
os valores do Evangelho. Dessa maneira, as duas emissoras possuem
perfis editoriais claramente distintos.
Por sua vez, os telejornais foram selecionados dentro da grade
de telejornalismo por serem considerados os principais em suas
respectivas emissoras e serem exibidos em horários próximos: ambos
no período da noite.
Na união entre a visão da notícia como uma construção da
realidade com a Teoria do Imaginário pretendemos refletir sobre
como o produto jornalístico se diferencia de acordo com as diversas
influências que permeiam a construção da notícia

2 O cotidiano, construção social da realidade e produção


da notícia
Entendemos que na vida cotidiana o homem assume atitudes
naturais diante de vários acontecimentos, conforme Schutz (2003)
e, constantemente, recorre aos meios de comunicação na busca de
significação para os fatos. “O mundo do executar cotidiano é o arquétipo
de nossa experiência da realidade. Todos os outros âmbitos de sentido
podem considerar-se como modificações suas” (SCHUTZ, 2003, p. 28).
Na produção e processamento de reserva de sentido, Berger
e Luckmann evidenciam o papel das empresas de comunicação:

83 Os princípios editoriais do Grupo Globo estão disponíveis em: <http://g1.globo.


com/principios-editoriais-do-grupo-globo.html>. Acesso em: janeiro de 2019.
84 Disponível em: <https://noticias.cancaonova.com/brasil/jornalismo-cancao-
nova-a-servico-da-vida-e-da-esperanca/> Acesso em: janeiro de 2019
Trilhas do imaginário | 281

desempenham um papel-chave na orientação


moderna de sentido, ou melhor, na comunicação
de sentido. São intermediadoras entre a experiência
coletiva e a individual, oferecendo interpretações
típicas para problemas definidos como típicos.
(BERGER E LUCKMANN, 2012, p. 68)

O homem sente-se mais seguro ao saber o que acontece à sua


volta, ao ter conhecimento básico sobre o que está ocorrendo. Desde
a antiguidade, desvendar o que acontecia mexia com o imaginário
humano, e o jornalismo aparece como uma forma de conhecimento
capaz de trazer ao homem informações de que necessita para sentir-
se mais seguro diante do desconhecido. “Os jornais funcionam como
uma janela para a realidade, mostrando que o mundo circundante
existe, está lá e tudo não se transformou num caos e a vida segue
sua normalidade”. (VIZEU e CORREIA, 2008, p. 21)
Ao passo em que retrata o cotidiano, o jornalismo também
faz parte dele. Ajuda a construir a realidade, ao mesmo tempo que
é também uma construção, pois admitimos ser impossível que a
notícia seja um espelho da realidade. No entanto, é salutar registrar
que ao adotarmos o entendimento da notícia como uma construção
não estamos afirmando que ela é uma obra ficção ou algo inventado
e sem vínculo com a realidade. A notícia deve sempre informar tendo
referência na realidade (PENA, 2015).
Ao entender a notícia como uma construção, vemos o jornalista
como sujeito ativo, capaz de fazer escolhas que já começam com
o vocabulário utilizado e a forma da apuração. Essas escolhas, no
entanto, não devem ocorrer de forma aleatória. Embora não consiga
refletir os acontecimentos na sua forma mais pura, a narrativa é
realizada de forma sistemática e, tanto o processo de produção
das notícias quando a seleção do que vai ou não ser publicado está
atrelado a regras e situações que norteiam e influenciam diretamente
o trabalho dos jornalistas.
Wolf (2008) afirma que ao escolher o que publicar em meio à
variedade de acontecimentos diários, os jornalistas levam em conta os
282 | Trilhas do imaginário

valores-notícia como brevidade, atualidade, novidade, organização interna


da empresa, qualidade e equilíbrio, com diversificação dos assuntos, que
servem para nortear o trabalho nos veículos de comunicação.
Os critérios de seleção estabelecidos nos valores-notícia não
são as únicas influências na construção da notícia. A partir dos
pensamentos de Shoemaker e Reese (1996) e Shudson (1998), Souza
(2000, p.18) enumera outros fatores que interferem na produção
jornalística. Entre estes, estão a ação pessoal, em que, segundo o autor,
“as notícias resultam parcialmente das pessoas e suas intenções”;
a ação social, em que “as notícias são fruto das dinâmicas e dos
constrangimentos do sistema social, particularmente do meio
organizacional, em que foram construídas e fabricadas”; e a ação
ideológica, em que “as notícias são originadas por forças de interesse
que dão coesão aos grupos, seja esse interesse consciente e assumido
ou não” (SOUZA, 2000, p. 18).
Além disso, Bourdieu (1997, p. 106) lembra ainda questões
como a influência das audiências e do mercado. “O campo
jornalístico está permanentemente sujeito à prova dos vereditos
do mercado, através da sanção, direta, da clientela ou, indireta,
do índice de audiência.”
Da mesma maneira que é muito difícil para o jornalista afastar
suas experiências, ideologias e outras influências no momento da
produção da notícia, entendemos que também não é possível afastar
o imaginário, incorporando-o ao que está produzindo. Isso não quer
dizer que, deliberadamente, o jornalista deixe de lado a ética e a
objetividade no fazer jornalístico, mas que mesmo seguindo todas as
regras estabelecidas para agir eticamente, dificilmente ele conseguirá
despir-se de tudo que foi acumulado em experiências e vivências
anteriores e o que delas pode derivar.

3 O imaginário na construção da notícia


A partir do momento em que admitimos que o jornalismo não
é um reflexo perfeito da realidade e que trata-se de uma construção,
Trilhas do imaginário | 283

consideramos também a presença do imaginário no jornalismo, o


não significa atribuir-lhe ar fantasioso. Aqui, não entendemos o
imaginário como mero devaneio. O imaginário está imbricado com
o real e entendemos que este é um dos instrumentos utilizados
pelo homem para atribuir sentido à vida. Legros et al (2014, p. 11)
afirma o caráter inseparável do imaginário e da racionalidade: “se é
o caso de sublinhar que racionalidade e imaginário são inseparáveis
no psiquismo humano, ninguém o contestaria, principalmente os
especialistas do imaginário”.
Partimos do pressuposto de que o noticiário (mas não apenas
ele) sofre a interferência do imaginário, tanto social, quanto atrelado
às características da comunidade envolvida em sua produção, aqui
citamos os jornalistas, a própria política da empresa jornalística,
entre outros fatores. Ao mesmo tempo, os veículos de comunicação
são capazes também de interferir na formação do imaginário coletivo
sobre determinado tema (STEINBERGER-ELIAS, 2005).
Ao refletir sobre os pensamentos de Schutz sobre a
existência de um mundo intersubjetivo que existe antes mesmo
de nossos nascimento e sobre as heranças socioculturais em nosso
imaginário, Pereira (2007, p. 28) constata que “há de se considerar
o caráter de “estocagem” do conhecimento adquirido na luta pela
sobrevivência”.
Ora, se o imaginário faz parte do conhecimento acumulado
pelo homem, haveria então como separá-lo da atividade jornalística
em nome de uma pretensa imparcialidade?
A hipótese de que o imaginário está presente na atividade
jornalística é atestada por autores como Silva (2017). Para ele, o
discurso jornalístico é atingido pela influência do imaginário, e isso
não faz com que o jornalismo perca a relação com a realidade.

Assim como virtual, o imaginário também não


se opõe ao real. O imaginário pode ser visto
justamente como a complementação do real, sua
ampliação, sua face escondida, sua extensão ao
modo luminoso. A ideia de que o real só tem uma
284 | Trilhas do imaginário

face suprime o imaginário da própria realidade


impedindo-o de ser aceito na sua condição realista.
(SILVA 2017, p. 35)

O jornalismo vai além da narração objetiva de fatos, nos


leva a experiências que envolvem o que está na imaginação do
jornalista e da sociedade e, ao mesmo tempo, aguçam a maneira
de imaginar. “O registro jornalístico situa e ordena o mito no dia-
a-dia, garantindo a todos a harmonia e a continuada normalidade”
(MOTTA, 2000, p. 3).
Os mitos podem estar escondidos, por exemplo, nos personagens
usados para ilustrar os acontecimentos, nos comportamentos
ilustrados, na “moral da história” dada no final do texto jornalístico.
Tudo isso, também influenciado pelas escolhas feitas pelo jornalista
na construção do texto.

Os profissionais envolvidos na produção dos


telejornais são atores sociais que compartilham
um quadro de imagens, não apenas materiais,
concretas, palpáveis e visíveis aos olhos, mas
também constituídas de matéria subjetiva e
povoadas por imagens, símbolos e mitos, elementos
aparentemente distantes de uma lógica “objetiva”,
tão difundida pela mídia como bandeira de isenção
e credibilidade, mas que acreditamos poder influir
diretamente no ângulo de produção e construção
da notícia. (LEAL e LINS, 2017, p. 43)

Ao escolher o que é mais importante, ou ao usar técnicas


para deixar as informações cotidianas mais atraentes, o jornalista
não tem como se despir do que está em sua imaginação, mesmo
que use técnicas para buscar a objetividade e a neutralidade.
Ademais, o mito está presente no cotidiano da sociedade, na forma
como as pessoas pensam e agem, e esta é uma das matérias-primas
do jornalismo.
Ao refletirmos sobre a presença do imaginário no jornalismo,
não estamos nos distanciando das tipificações estudadas por Schutz
Trilhas do imaginário | 285

ou do que nos é trazido pela Teoria do Enquadramento. Legros et al


(2014, p. 24) afirmam que “o imaginário tira sua vitalidade de uma
‘bacia semântica’ que, segundo Durand, impõe sua universalidade,
limita o número de suas descobertas e modela o estilo de uma época
dada”. Se a bacia semântica do imaginário limita as descobertas, não
seria essa uma forma de tipificação diante do que já temos? Ou um
enquadramento das novidades diante das formas como interpretamos?
Ao tratar sobre a Teoria do Enquadramento, Sábada (2001)
afirma que, para os jornalistas, os enquadramentos acabam
funcionando como esquemas de interpretação, o que nos remete
ao imaginário, também utilizado para dar sentido.

O mundo é observado, organizado, a partir de uma


perspectiva condicionada tanto pela organização
em que os jornalistas trabalham quanto por suas
características pessoais ou pelo espaço em que se
movem. Os enquadramentos são revelados assim
como esquemas de interpretação de jornalistas
particulares em organizações e sociedades
específicas. (SÁBADA, 2001, p. 172).

4 Análise das notícias


Durand (2011) apresenta as estruturas do imaginário de
maneira agrupada em uma bacia semântica. Conforme o autor,
o imaginário é composto por um conjunto de imagens que estão
divididas em dois regimes: o diurno e o noturno. Essas imagens
possuem sentido e relações entre elas e servem de orientação para
compreensão dos sentimentos.
Segundo a estrutura proposta por Durand, no regime diurno
temos dois momentos: “as faces do tempo”, com símbolos de agitação,
queda e angústia, e “o cetro e o gládio”, com símbolos de ascensão e
de luta para vencer a angústia. Já no regime noturno, temos outros
dois momentos: “a estrutura mística do imaginário”, com símbolos
de inversão e de intimidade, e a “estrutura sintética do imaginário”,
286 | Trilhas do imaginário

com símbolos cíclicos, que tendem à repetição. Gomes (2013), explica


desta forma a divisão proposta por Durand:

O diurno é o regime da antítese, em que os


monstros hiperbolizados são combatidos por meio
de símbolos antitéticos: as trevas são combatidas
pela luz e as quedas pela ascensão. E o noturno é o
regime da antífrase, que está constantemente sob
o signo da conversão e do eufemismo, invertendo
radicalmente o sentido afetivo das imagens.
(GOMES, 2013, p. 32)

É nesse contexto, da hermenêutica simbólica proposta por


Durand que analisamos as imagens e o texto das reportagens sobre a
carta do Papa Francisco aos bispos norte-americanos tratando sobre
a gravidade dos casos de abuso sexual envolvendo a Igreja Católica
nos Estados Unidos. A carta foi enviada aos bispos durante retiro
ocorrido no mês de janeiro de 2019. O pontífice não esteve presente
no encontro, mas o documento enviado por ele aos participantes
repercutiu em diferentes veículos de imprensa.
Analisamos a seguir as imagens e texto de notícias exibidas
no dia 4 de janeiro de 2019 no Jornal Nacional, da Rede Globo de
Televisão, e no Canção Nova Notícias, da TV Canção Nova. Aqui
não temos a pretensão de esgotar a análise simbólica das notícias,
mas traçar um olhar geral destacando alguns aspectos e identificar
semelhanças e diferenças dos símbolos e conteúdos divulgados,
buscando não fazer juízo de valor sobre a qualidade do material
divulgado ou qual das emissoras fez a abordagem mais correta.
Abaixo, na Tabela 1, a transcrição textual da notícia exibida
no Canção Nova Notícias85 e, em seguida, na Tabela 2, a transcrição
textual da notícia exibida no Jornal Nacional86.

85 Notícia disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=JtKulqIE9cY> Acesso


em: janeiro de 2019.
86 Notícia disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/01/04/
papa-diz-que-abusos-sexuais-acabaram-com-a-credibilidade-da-igreja-catolica-
dos-eua.ghtml> Acesso em: janeiro de 2019.
Trilhas do imaginário | 287

Tabela 1 – transcrição da notícia veiculada no telejornal Canção Nova Notícias

O Papa Francisco escreveu uma carta aos bispos dos Estados


Unidos em retiro espiritual para pedir uma nova abordagem
Locução
aos escândalos de abusos sexuais. Francisco reconheceu
apresentadora
que é a credibilidade da Igreja tem sido questionada e pede
mudança de mentalidade contra os abusos.

O Papa Francisco enviou nesta quinta-feira carta aos bispos


da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, na qual
pede zelo na abordagem dos abusos sexuais que atingiram
a Igreja dos Estados. Os membros do episcopado estão
reunidos desde quarta-feira no seminário de Mundelein, na
Arquidiocese de Chicago, onde participaram de um retiro
espiritual. O texto do Santo Padre recorda que no dia 13 de
setembro passado, quando encontrou-se com a presidência
da conferência episcopal, propôs aos bispos que fizessem
juntos os exercícios espirituais. Um tempo de retiro, oração
e discernimento, como elo necessário e fundamental no
caminho para enfrentar e responder sob a luz do Evangelho
a crise da credibilidade que os religiosos atravessam como
Igreja. Francisco ressalta que a relevância do tema não
resiste a qualquer resposta ou atitude, ao contrário, exige
de todos os pastores a capacidade e, sobretudo, a sabedoria
Locução de gerar uma palavra fruto de escuta sincera, orante e
repórter comunitária das Sagradas Escrituras e da dor do Povo de
Deus. Nos últimos tempos, diz Francisco na carta, a Igreja
dos Estados Unidos foi abalada por muitos escândalos que
afetam sua credibilidade no sentido mais profundo. Tempos
de tempestades na vida de tantas vítimas que sofreram sua
carne o abuso de poder de consciência e sexual por parte
de ministros ordenados, consagrados e fiéis leigos. Tempos
tempestuosos e de cruz para estas famílias e todo povo de
Deus. Pediu mais atenção para que o remédio não se torne
pior do que a doença e isso requer da Igreja sabedoria,
oração, muita escuta e comunhão fraterna. Ao final da
carta, Francisco convida os bispos a contarem sempre com a
intercessão da Santa Mãe de Deus, para que ela os mantenha
unidos e perseverantes, como no dia de Pentecostes, para
que o Espírito Santo seja derramado em seus corações e
os ajude em todos os momentos e lugares para que deem
testemunho da ressurreição.
288 | Trilhas do imaginário

Tabela 2– transcrição da notícia veiculada no telejornal Jornal Nacional

O Papa Francisco disse que os casos de abusos sexuais


Locução acabaram com a credibilidade da Igreja Católica americana
apresentadora e pediu aos bispos dos Estados Unidos que se unam para
enfrentar o escândalo.

A carta do Papa Francisco ao bispado americano não é só uma


cobrança forte, mas praticamente uma sentença. Por serem
responsáveis pelo maior número de casos de abuso sexual na
igreja, os representantes do clero dos Estados Unidos estão em
retiro espiritual, proposto pelo próprio Francisco. Na carta, o
Papa pede uma conversão profunda, e não apenas estratégias,
Locução
como se a igreja fosse uma organização comercial. O Papa
repórter
exige uma mudança de mentalidade, que não esconda mais os
padres e bispos pedófilos. O texto tem ainda passagens sobre
poder e dinheiro, e sobre os excessos de ego entre os clérigos.
Reconhece os danos constantes que os abusos sexuais vêm
causando às vítimas. Em Chicago, algumas se reuniram com
jornalistas e se queixaram da indiferença ao sofrimento deles.

Em 1992, eu procurei a arquidiocese de Chicago; me disseram


que o padre que tinha me molestado era um agostiniano, e
Entrevistado I que não tinha nada a ver com eles. Passei a não confiar mais
em ninguém, o que realmente afeta muito a minha vida
pessoal e profissional.

Fevereiro será um mês decisivo para a questão dos abusos.


Bispos do mundo inteiro estarão no Vaticano, junto com o
Locução Papa, para discutir o que fazer. Antes que os danos à igreja
repórter se tornem irreparáveis, o Papa Francisco quer promover
mudanças radicais nem que para isso precise reduzir ao
estado laico muitos religiosos.

Antes de iniciar a análise com base na hermenêutica simbólica


proposta por Durand, acreditamos ser importante salientar alguns
aspectos do conteúdo notícias. Nos dois casos, como o Papa não
participou do encontro em que os bispos estavam quando a carta foi
enviada, as imagens exibidas do pontífice foram de situações anteriores.
Trilhas do imaginário | 289

Com relação ao tempo das notícias, enquanto que o material


que foi ao ar na TV Canção Nova teve 2 minutos e 39 segundos de
duração, no Jornal Nacional, contou com 1 minuto e 57 segundos.
Apesar de ter um tempo de duração menor, a notícia veiculada na
Rede Globo contou com o depoimento de um entrevistado, vítima de
abuso sexual. Já o material da TV Canção Nova, foi formado apenas
pela narração da apresentadora e da repórter. Entendemos que as
declarações de uma vítima de abuso sexual é capaz de aproximar o
telespectador dos casos de pedofilia, a partir da narrativa de quem
vivenciou o trauma quando criança.
Do ponto de vista textual, percebemos já na introdução das
notícias pelas apresentadoras a diferença no tratamento dado:
enquanto que na emissora católica a apresentadora menciona que o
Papa “reconheceu que a credibilidade da igreja tem sido questionada”,
no Jornal Nacional a apresentadora menciona que o Papa afirmou
que os casos de abuso sexual “acabaram com a credibilidade da
Igreja Católica americana”.
Na análise simbólica presente nos textos das duas notícias,
podemos perceber a predominância de símbolos relacionados ao
regime diurno do imaginário, mas com aspectos distintos: enquanto
em uma das notícias há predominância de símbolos de luta contra
o problema, na outra há predominância de símbolos de angústia.
Na notícia veiculada pela emissora católica há uma
predominância de aspectos relacionados à constelação simbólica
do “cetro e do gládio”, que remete à luta diante dos problemas, ao
reerguimento e à purificação. Um dos trechos que traz esse simbolismo
é o que faz menção aos exercícios espirituais solicitados pelo Papa
aos religiosos para “enfrentar e responder sob a luz do Evangelho
a crise da credibilidade que os religiosos atravessam como Igreja”.
Por outro lado, o texto da notícia publicada no Jornal Nacional
tem a predominância de símbolos pertencentes à constelação das
“faces do tempo”, em que há sentimentos de angústia, de queda,
de escuridão e medo, como por exemplo, na declaração da vítima
de abuso sexual: “Passei a não confiar mais em ninguém, o que
290 | Trilhas do imaginário

realmente afeta muito a minha vida pessoal e profissional”, remetendo


à escuridão vivenciada por causa do trauma e ao medo da vítima.
Outro trecho que pode ser destacado está no início da notícia,
quando a repórter afirma que a carta enviada aos bispos é um tipo
de “sentença”, remetendo à angústia de uma condenação judicial. Há
ainda a angústia relacionada ao fim do tempo, à corrida contra prazos,
quando é mencionado que “Fevereiro será um mês decisivo para a
questão dos abusos” porque bispos do mundo inteiro irão reunir-se
no Vaticano “antes que os danos à igreja se tornem irreparáveis”.
As imagens utilizadas nas duas notícias seguem o mesmo
direcionamento textual. Aqui, salientamos que na notícia divulgada
pela emissora católica há a predominância de imagens do Papa de pé,
ou, quando sentado, está de cabeça erguida e gesticulando como quem
orienta e ensina, trazendo à memória imagens descritas na Bíblia de
quando Jesus ensinava aos apóstolos. Mais uma vez, predominam
símbolos relacionados à constelação de imagens do “centro e do
gládio”: o Papa de pé para a luta. De pé também são mostrados
os bispos americanos em um momento do retiro, remetendo aos
símbolos de “Ascensão”, à verticalidade que seria capaz de levar
para o alto a busca do perdão divino, ao mesmo tempo em que a
posição também pode remeter aos símbolos “Diaréticos” (também
pertencentes à constelação do “centro e do gládio”), em que estão
prontos para a luta.
Por sua vez, na notícia exibida no Jornal Nacional, as imagens
dos bispos americanos em retiro mostram todos sentados. Há também
imagens do Papa em reunião anterior com bispos em que é exibido o
momento em que todos estão sentando, o que, conforme a hermenêutica
simbólica de Durand, também nos remete ao movimento de queda,
presente nos símbolos “catamorfos”, pertencentes à constelação de
imagens das “faces do tempo”. Embora nas imagens da TV Canção
Nova haja também momentos em que o pontífice está sentado, não
é exibido o movimento de sentar e ele permanece a maior parte
do tempo com postura ereta e cabeça erguida, o que evidencia a
diferença do sentido das imagens.
Trilhas do imaginário | 291

5 Considerações finais
A partir das reflexões realizadas acerca da notícia como uma
construção da realidade, da influência do imaginário no produto
jornalístico e da análise das duas notícias sobre o mesmo tema,
percebemos como o mesmo fato pode ser abordados de formas
distintas a depender das influências que integram o processo de
produção da notícia. Mesmo que à primeira vista e apressadamente
ao telespectador possa parecer que os conteúdos são idênticos, as
diferenças são salutares e capazes de influenciar a forma como as
pessoas atribuem sentido aos acontecimentos.
A partir das análises das notícias fica também evidenciada
a influência da política editorial no conteúdo veiculado. Enquanto
a emissora católica tratou o tema relacionado a abusos sexuais
envolvendo membros da Igreja nos Estados Unidos de maneira a
transmitir o sentimento de que é possível vencer o problema, mesmo
seja necessário muito esforço, a emissora secular trata o assunto
mostrando a angústia do Papa diante dos acontecimentos, mesmo
que ele esteja buscando tomar providências.
Mesmo que sejam seguidos valores-notícias e técnicas
de produção, o imaginário presente na organização em que o
jornalista trabalha e também o imaginário do próprio jornalista
responsável pela notícia fazem parte da construção da narrativa.
Do mesmo modo, experiências anteriores e outras vertentes podem
influenciar no momento das escolhas das palavras, imagens e
angulações. Diante disso, reafirmamos: as notícias não são um
espelho da realidade.

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Alejandro Jodorowsky
Fonte: https://issuu.com/enquadramento/docs/enquadramento-7
| 295

Memória e imaginário: a constituição


de autobiografias simbólicas
em A dança da realidade e Poesia sem fim,
de Alejandro Jodorowsky

Agamenon Porfírio87
Bertrand Lira88
Esmejoano Lincol França89

1 Introdução
A busca por uma construção de subjetividades e identidades
partindo de uma narração acerca de si pode ser vista em vários
âmbitos: na literatura, nas artes visuais, na mídia em geral e ao
longo das últimas décadas vem sendo incorporada também pelo
cinema. Quem escreve sobre si busca uma maior compreensão de sua
subjetividade, uma maneira de rememorar e reorganizar o passado
e, quem sabe, ressignificar o presente.
A concepção da escrita autobiográfica – apesar de alguns
embates teóricos – já é algo estabelecido e aceito. Em contrapartida,
a ideia de uma autobiografia fílmica evoca dúvidas e incredulidade
em alguns teóricos. Os maiores problemas estão relacionados às

87 Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação


(PPGC) da UFPB. Membro do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual
(Gecine/PPGC). E -mail: porfi [email protected].
88 Professor doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da
UFPB. Coordenador do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual (Gecine/
PPGC). E-mail: [email protected].
89 Mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação
(PPGC) da UFPB. Membro do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual
(Gecine/PPGC). E -mail: [email protected].
296 | Trilhas do imaginário

características e idiossincrasias que a autobiografia exige para que


algum produto seja categorizado como tal. Mas, se o “cinema foi
inicialmente mudo, depois aprendeu a falar. Porque não poderia estar
aprendendo a dizer ‘eu’ – a sua maneira?” (LEJEUNE, 2014, p. 264).
Em 2013, após mais de 20 anos longe das produções
cinematográficas, o diretor chileno radicado na França Alejandro
Jodorowsky voltou a fazer cinema, propondo desta vez cine-
autobiografias. Baseados em seu livro A dança da realidade (2009),
os filmes A dança de realidade (2013) e Poesia sem fim (2016) dão
conta da infância e juventude do autor. As assinaturas do cinema
produzido por Jodorowsky ao longo de sua carreira são presentes nos
dois filmes e, nesse percurso rememorativo, visitamos lugares que
elucidam algumas dúvidas sobre sua vida e sobre como o cineasta
enxerga o mundo.
Nosso objetivo no presente artigo é analisar as possibilidades
de um cinema autobiográfico através desses dois filmes de Jodorowsky.
De maneira a introduzirmos nossos estudos, tratamos de entender
como se constituem estes escritos autobiográficos, no entendimento
do que são essas “narrativas do eu”, sua manifestação ao longo da
história e a importância deste tipo de escrita na constituição dos
sujeitos. Identificamos, em seguida, que características próprias deste
gênero narrativo encontram-se presentes ou omitidas em A dança
de realidade e Poesia sem fim. Finalmente, procuramos esclarecer
a relação que três elementos distintos estabelecem na constituição
na autobiografia dos filmes selecionados: a memória pessoal de
Jodorowsky, o espaço sócio-histórico no qual os filmes estão imersos
e o imaginário, como elemento estilístico e narrativo.
Discussões levantadas por teóricos como Phelippe Lejeune e
Elizabeth Bruss em torno da autobiografia e da memória – principalmente
no que foi preconizado em O pacto autobiográfico (LEJEUNE, 2014) – nos
deram pistas de caminhos a serem seguidos na presente análise. Outros
autores que teorizam o imaginário e os simbolismos, como Gilbert
Durand, Danielle Pitta, Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, também nos
deram base para a constituição deste trabalho.
Trilhas do imaginário | 297

Como metodologias de estudo, utilizaremos a pesquisa


bibliográfica, analisando e fichando textos dos autores acima
relacionados e de outros tantos referenciados neste artigo, e a análise
fílmica. A segunda, norteada por Francis Vanoye e Anne Goliot
Lété (2002), indica que ao aplicá-la no estudo de um filme estamos
exercendo “a atividade de analisar (...) e também pode significar
o resultado dessa análise, isto é, com algumas exceções, um texto”
(VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002, p. 14).

2 Escritas do eu: um percurso histórico


Gêneros literários como o diário íntimo, o diário ficcional, a
narrativa epistolar, a autoficção e autobiografia podem ser classificados
como narrativas de introspecção. Esse tipo de escrita explora as
subjetividades do indivíduo e tem em comum o voltar-se para si mesmo,
a busca de autoconhecimento e a análise das experiências vividas
por um sujeito. Historicamente, a produção de escritas biográficas e
autobiográficas pode ser observada desde a Grécia Antiga, embora a
maneira como esses povos se entendiam como indivíduos diferisse
bastante do sujeito na modernidade e na pós-modernidade. Como
nos aponta Bahktin (1993), para o homem grego não haveria nada
de íntimo-privado ou de sigiloso-pessoal na sociedade, numa clara
diferença da divisão atual entre vida pública e vida privada.
Em um percurso histórico, podemos recorrer a Walter
Benjamin (1987) em O narrador para explicarmos um ponto de
ruptura na maneira de se contar histórias e assim observarmos
as novas configurações de uma escrita pautada na subjetividade.
No texto, o autor discorre sobre a obsolescência do narrador e o
surgimento da figura do romancista em decorrência das rupturas
com antigas formas de narrar acarretadas pela modernidade. O
“novo” narrador é definido por Benjamin como “um homem para
dar conselhos” (1987, p. 200), situado numa posição de sabedoria,
de verdade, enquanto o que o narrador conta pode ser visto como
um extrato da experiência coletiva e de sua própria: o romancista
298 | Trilhas do imaginário

aparta-se do todo. “A origem do romance é o indivíduo isolado,


que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações
mais importantes e que não recebe conselhos e não sabe dá-los”
(BENJAMIN, 1987, p. 201). A intimidade do sujeito é posta à mesa;
o romancista escreve menos sobre a exterioridade dos fatos e mais
sobre uma busca interior.
A partir do século XIX, durante o processo da leitura, há
uma busca pelo que está escrito nas entrelinhas, um eu profundo
do auto: “do lirismo romântico à psicanálise, da crítica biográfica
a la Saint-Beuve a ‘Apostrophes’. Consome-se o ‘eu’ alheio para
alimentar seu próprio eu” (LEJEUNE, 2014, p. 260). Em seu mergulho
na individualidade de sentimentos e confissões íntimas, Lejeune
alcança a universalidade. Comunica-se com o leitor justamente
quando fala de particularidades e do cotidiano. O trabalho do
romancista moderno não se resume a narrar o que aconteceu,
mas o que os personagens inseridos no centro dos acontecimentos
sentem e como lidam com as situações.
As transformações que ocorreram na escrita foram obviamente
desencadeadas pelas mudanças na maneira como a sociedade passou
a se organizar. Se antes as identidades e papéis sociais estavam
ligados a questões familiares e hereditárias, na modernidade as
individualidades são exaltadas e o sujeito passa a entender sua
existência como trabalho de construção e realização pessoal.  Podemos
dizer que a biografia existe antes mesmo de ser escrita. A autobiografia,
por conseguinte, consiste num um ato de constante de modelagem da
própria subjetividade (BEZERRA, 2007). Quem compõe esse tipo de
narrativa de si busca acima de tudo dar vazão a um desejo interno
de organização, de autoconhecimento, ou mesmo de ressignificação
de momentos vividos. Normatizando a presença do biógrafo, esse
tipo de visão faz com que os sujeitos passem a encarar sua vida como
algo coeso, dotado de sentido.
O escrito autobiográfico implica uma cultura na
qual, por exemplo, o indivíduo (seja qual for sua
relevância social) situe sua vida ou seu destino
Trilhas do imaginário | 299

acima da comunidade a que ele pertence, na qual


ele conceba sua vida não como uma confirmação
das regras e dos legados da tradição, mas como
uma aventura para ser inventada. (CALLIGARIS,
1998, p. 46)

Se esse tipo de narrativa, pautada na introspecção e


autorreflexão, teve possibilidade de se desenvolver foi graças ao
triunfo de uma cultura cada vez mais pautada pela individualidade
e pela construção/reconstrução constante de si. Substituindo a visão
iluminista de um indivíduo permanente e centrado na razão, na
pós-modernidade o sujeito assume uma forma fluida: não há só uma
identidade, mas identidades variantes, continuamente deslocadas
(HALL, 2006). É nas narrativas de si que esses sujeitos podem fluir
nessas identidades; na contemporaneidade, por exemplo, estamos
amparados pela tecnologia e pelas redes sociais virtuais, onde as
possibilidades de modificação de seus avatares são infinitas.
Não seria a proliferação de youtubers e digital influencers
mais um sintoma da importância dada a esse tipo de narrativa
do eu hoje em dia? Esse complexo fenômeno merece com toda
certeza um estudo que aprofunde essas discussões, porém o que
desejamos levantar com esse questionamento é justamente a noção
de que essas autonarrativas se comunicam com um pensamento
autobiográfico. O “sujeito comum” expõe sua vida, criando narrativas
que são assistidas e compartilhadas por pessoas em vários lugares
do mundo. A aceleração, a globalização e a virtualização compõem
fatores que contribuem para as profundas transformações que as
narrativas do eu atravessam. Esses novos mecanismos de construção e
consumo identitário encenam uma espetacularização do eu por meio
de recursos performáticos, visando justamente o reconhecimento
aos olhos do outro (SIBILIA, 2003).
Seria então ousado dizer que, depois da narração e do romance
moderno, seria a autobiografia (literária ou cinematográfica) o
gênero que melhor traduz os modos de construção da subjetividade
e identidade desse sujeito pós-moderno?
300 | Trilhas do imaginário

3 Lejeune e O pacto autobiográfico


Diferenciando-se dos outros gêneros narrativos de introspecção,
da autobiografia espera-se um compromisso com a realidade, uma
declaração de veracidade dos fatos contados. Acerca dos problemas
teóricos e definições necessárias para a constituição deste modo
de narrar uma história pessoal, em 1975 o teórico francês Philippe
Lejeune, publica o ensaio O pacto autobiográfico. Nele, o teórico
levanta questionamentos sobre a relatividade do real, da verdade e
da literalidade desse complexo gênero. Lejeune define autobiografia
como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real
faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual,
em particular a história de sua personalidade” (2014, p. 16).
Referente a esta definição, o teórico aponta quatro categorias
como elementos fundamentais:

1. Forma de linguagem:
a) narração;
b) em prosa.

2. Tema tratado: vida individual, história de uma personalidade.

3. Situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma


pessoa real) e do narrador.

4. Posição do narrador:
a) identidade do narrador e do personagem principal;
b) perspectiva retrospectiva da narração (LEJEUNE, 2014, p. 16).

Essas categorias servem para demarcar o espaço da


autobiografia e cindir o gênero das outras narrativas de
introspecção. Por não ser em prosa, o poema autobiográfico não
se enquadra nas categorias do teórico (1b). As memórias não
tratam da vida individual ou da história de uma personalidade
(2). A biografia não mantém o pacto de identidade entre narrador
e personagem (4a). E o diário íntimo, o autorretrato e o ensaio
Trilhas do imaginário | 301

não têm perspectiva retrospectiva (4b) – os dois últimos sequer


encaixam-se no campo da forma de linguagem (1). Obviamente
essas categorias não são absolutamente rigorosas, tratando-se
de uma questão de proporcionalidade: o texto deve aparecer
principalmente de forma narrativa e o cerne deste a vida individual
e a gênese da personalidade, podendo haver transições com gêneros
como as memórias, o diário ou o ensaio.
No entanto, duas dessas categorias são terminantes: as
condições (3) e (4a). Para que haja autobiografia, deve haver relação
de identidade entre autor, narrador e personagem (LEJEUNE, 2014,
p. 18). Essa “identidade”, no entanto, acaba por levantar problemáticas
que o teórico elucida no decorrer de seu ensaio. Alguns desses aspectos
serão trabalhados mais à frente neste trabalho.
Dos estudos de Lejeune, o que precisamos frisar seria que O
pacto autobiográfico nos propõe algo que vai além de uma análise das
estruturas aparentes do que se denomina um texto autobiográfico.
A análise feita pelo autor é

empreendida a partir de um enfoque global da


publicação, do contrato implícito ou explícito
proposto pelo autor ao leitor, contrato que determina
o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que,
atribuídos ao texto, nos parecem defini-lo como
autobiografia. (LEJEUNE, 2014, p. 54)

Ou seja, as investigações acerca da autobiografia estariam


muito mais pautadas nesta relação estabelecida entre leitor e
autor. Esse contrato, selado a partir do momento em que o texto
é apresentado ao leitor como autobiográfico, vai ser verificado no
decorrer da leitura. Aliás, conseguir estabelecer uma fórmula clara
e única para a biografia, como nos diz o próprio Lejeune (2014)
constituiria um fracasso, dada a maneira com que este texto varia
de acordo com os contornos pessoais e históricos que toma. A razão
de existir d’O pacto seria mais compreender ou consolidar o gênero
autobiográfico.
302 | Trilhas do imaginário

Ao longo dos anos o teórico revisitou e reformulou seu


ensaio: em 1987 (O Pacto autobiográfico (bis)) e sua releitura em
2001 (O pacto biográfico, 25 anos depois). Além disso, Lejeune
continuou a ampliar suas pesquisas quanto a escritas do eu,
abrangendo outras formas da expressão de si: dos textos de autores
consagrados aos relatos do homem comum, da autobiografia
canônica à autoficção contemporânea, dos diários aos blogs
pessoais, da pintura ao cinema. E é justamente para fazer essas
reflexões quanto à possibilidade de um cinema autobiográfico
que desenvolvemos o tópico a seguir.

4 Cinema e autobiografia
O maior problema relacionado à concepção de um cinema
autobiográfico está ligado à migração de uma linguagem de um
meio de comunicação para outro. Em Lejeune (2014), conseguiremos
encontrar respostas para perguntas relativas à viabilidade de um
“cinema-eu” ou “autobiografia-filme”, como o próprio autor batiza
esse tipo de gênero fílmico. A partir de suas discussões, conseguiremos
analisar os filmes de Jodorowsky e tentar validar a classificação do
diretor de seu fazer autobiográfico.
Antes de tudo, para entendermos as ideias de Lejeune,
precisamos recorrer ao texto da poetisa e crítica norte-americana
Elizabeth Bruss, Eye for I: Making and unmaking autobiography
in film (1983). A autora afirma a impossibilidade de o cinema
expressar algo equivalente à autobiografia e para isso recorre a
características do ato autobiográfico, dispostos em três tópicos:
valor de verdade (um enunciado apto à validação), valor do
ato (reconhecer a identidade do autor) e valor de identidade (a
confluência das identidades autor/narrador/personagem). É na
perspectiva de responder às afirmações da autora que Lejeune
nos fornecerá uma base analítica.
Os parâmetros estabelecidos por Bruss se aproximam bastante
do que O pacto autobiográfico apresenta. No entanto, a visão da
Trilhas do imaginário | 303

autora fecha-se numa perspectiva de adaptação de linguagens;


além do mais, ao insistir em demonstrar sua tese, a insistência da
autora acaba tornado suas análises distorcidas (LEJEUNE, 2014).
Para contornarmos primeiramente a questão da transposição de
uma obra para um suporte fílmico, podemos fazer um retorno aos
primeiros anos do cinema, citando o trabalho do diretor D.W. Griffith
(1875 - 1948), e sua intenção de adaptar romances, peças e poemas
para a grande tela, a fim de popularizar a então nova linguagem.
Poderíamos também citar as contribuições seminais de Gérard Genette
aos estudos da narratologia em obras ficcionais – estejam elas na
literatura ou cinema. Ocorre que o cinema possui uma linguagem
específica e cada obra é dotada de uma unicidade desconcertante.
Ao falar de um filme, estamos lidando com um objeto audiovisual
multifacetado; portanto, para conceber a autobiografia no cinema,
precisamos entender que:
No mínimo, não se trata somente de uma mudança
de suporte, e, indubitavelmente, há de se considerar
as potencialidades e características inerentes
de cada plataforma, assim como as eventuais
transferências que ocorrem nesta mediação do
sujeito com o mundo através da câmera, pois é
através dela que muitas memórias são construídas.
(VIEIRA, 2003, p. 02)

Por mais que os filmes de Jodorowsky sejam produzidos a


partir de sua autobiografia escrita, a maneira como o diretor transpõe
suas memórias para a tela exige uma mudança de abordagem, um
entendimento das diferentes linguagens e maneiras de comunicar
o que uma “escrita” audiovisual permite, exige ou possibilita.
Para Lejeune, o principal problema das considerações de
Bruss (1983) parece ser o valor de verdade. O cinema autobiográfico
estaria condenado à ficção: a ele não poderíamos pedir que se
mostrasse o passado; somente é possível evocá-lo ou reconstituí-lo.
Aliás, qualquer filme por seus materiais de expressão – imagem
em movimento, som, montagem – irrealiza o que ele representa, o
304 | Trilhas do imaginário

transforma em espetáculo (AUMONT, 2002). Quando Jodorowsky nos


apresenta passagens da infância e juventude, não vemos a figura
“real” de quem foi o diretor, nem tampouco imagens documentais
ou arquivos de família: vemos atores interpretando. A grande
distinção entre essas linguagens é especificamente o fato de que
se pode fazer acreditar no relato escrito ao ponto de que este não
imitaria a realidade, enquanto no cinema o que vejo é sempre uma
representação, um simulacro. De qualquer modo, a “superioridade”
da linguagem escrita estaria muito mais ligada a sua capacidade de
fazer esquecer seu aspecto ficcional do que a uma aptidão especial
para dizer a verdade (LEJEUNE, 2014).
Seguindo adiante, esbarramos no problema da expressão
do sujeito, o valor de ato. Esse aspecto trata-se da impossibilidade,
segundo Bruss (1983), de identificarmos um enunciador e um
enunciado no filme, da mesma maneira que o veríamos no caso da
autobiografia na literatura. O problema estaria na capacidade que
o suporte literário e a língua – oral e escrita – têm de mesclar numa
só figura o sujeito que fala e de quem se está falando. O cinema
não possui a capacidade de fundir esses dois aspectos do sujeito
biográfico e o que percebemos em A dança da realidade e Poesia sem
Fim são várias instâncias que representam Jodorowsky (Figuras 1
e 2). O autor surge na posição de grande imagista (LEFFAY, 1964),
uma instância que a princípio seria invisível e extradiegética90,
mas que aparece nas duas obras aqui destacadas como narrador
personagem de forma metalinguística (o diretor do filme dentro
do filme): Jodorowsky materializa-se no meio da história, seja para
narrar os fatos ou mesmo para agir como uma “consciência” etérea
que acalenta e dá conselhos às suas duas versões ficcionais (como
criança, no primeiro filme, e como adolescente e jovem, no segundo);
ao final, são três versões de um mesmo Jodorowsky que vemos nos
dois filmes.

90 Que está fora da ficção.


Trilhas do imaginário | 305

Figura 1 – Alejandro Jodorowsky, Figura 2 – Alejandro Jodorowsky,


enquanto narrador, encontra-se com enquanto narrador, encontra-se com
a representação ficcional de si mesmo a representação ficcional de si mesmo
em A dança da realidade em Poesia sem fim

Fonte: Print screen do filme Fonte: Print screen do filme


A dança da realidade (2013) Poesia sem fim (2016)

Nesse ponto poderíamos dizer que a tentativa de autobiografia


fílmica fracassa, descumprindo uma das regras básicas d’O pacto:
a simbiose entre as identidades de autor, narrador e personagem.
Isso não significa, contudo, que não haja diferenças entre as três
figuras nos filmes analisados. Tratando-se do enunciado, o pacto
autobiográfico prevê e admite falhas, esquecimentos, omissões e
deformações na história do personagem (BEZERRA, 2007). Quando
na autobiografia se escreve sobre passagens de diferentes épocas da
vida, o autor não é a mesma pessoa de quem ele fala; o narrador e
o personagem apenas remetem a figura do autor.

E assim, torna-se possível dizer que, apesar de


não ‘concretizar’ um imaginário, a autobiografia
tampouco constitui ‘reflexo’ do real, pois admite,
senão um ‘ângulo de refração’ em que o sujeito se
dissipa, ao menos um certo espaço de movência
desse sujeito, na medida em que a relação entre
“personagem” e autor é apenas de semelhança, e
não identidade” (ALBERTI, 1997)

Um detalhe narrativo importante em A dança da realidade


poderia retirá-lo do enquadramento de autobiografia fílmica.
Jodorowsky mostra em boa parte do filme as histórias que teriam
acontecido com seu pai, Jaime, enquanto ele abandona família por
306 | Trilhas do imaginário

certo período. Ao decidir matar o coronel Carlos Ibáñez, presidente


do Chile na época, Jaime enfrenta toda uma série de intempéries até
que finalmente retorna para sua casa. No entanto, esses momentos
continuam sendo pontuados com o cotidiano que Alejandrito, sua
versão infantil, e Sara, sua mãe, viviam.
Por fim, o que pode respaldar a empreitada do diretor de fazer
uma “autobiografia-filme”, confirmando o cumprimento d’O pacto
autobiográfico, seria o valor de verdade concedido pelo espectador.
A aceitação dos possíveis esquecimentos, omissões, edições. O acordo
firmado entre Jodorowsky e o espectador continua selado: ele relatará
sua vida, mesmo que ele se utilize de uma linguagem repleta de
simbologias e metáforas, sujeita às possibilidades de reencontro e
reajuste de contas com o passado.

5 O imaginário como elemento autobiográfico


e escolha estilística
Em maior ou menor medida, o imaginário, a constelação
simbólica que povoa nossa mente e que é retratada em nossa vida
cotidiana desde que a nossa consciência humana despertou, influencia
o cinema. Principalmente se notarmos que ambas as instâncias – o
filme e a mente humana – trabalham com representações daquilo
que estão em outras instâncias: na vida palpável ou em nosso
inconsciente. Christian Metz (1980), como que sedimentando a
relação entre estes dois elementos, dirá que durante o século XX o
cinema era considerado a técnica do imaginário. Apesar de ressalvar
que “o simbólico não é suficiente para produzir um conhecimento”
(1980, p. 10), Metz confirmará que no seu rastro se encontram
as possibilidades de compreensão das representações as quais o
cinema utiliza.
Conforme preconizado neste artigo, Alejandro Jodorowsky
imprime nas duas obras aqui analisadas suas memórias, na tentativa
de criar uma narrativa autobiográfica remontando aquilo que viveu
ou que soube através de outras pessoas, constituindo um texto fílmico
Trilhas do imaginário | 307

único, quase como uma impressão digital cinematográfica. Isabel


Carvalho (2003) revela que

(...) os métodos biográficos nas ciências sociais, na


psicologia social contemporânea e na psicanálise,
por exemplo, operam neste interjogo entre a
privacidade de um sujeito e o espaço sócio-histórico
de sua existência, seja ampliando a compreensão dos
fenômenos sociais e grupais, seja fazendo emergir
um sujeito capaz de recontar a narrativa sobre si
mesmo (...). (CARVALHO, 2003, p. 284)

Assim sendo, a autobiografia dosa aquilo que é ultrasubjetivo


e o que é coletivo, já que toda história pessoal que é narrada ou
ficcionalizada sofre influências do mundo histórico e de seus
acontecimentos. Mas, nas narrativas de Jodorowsky dissecadas
neste paper, outro elemento parece influenciar sobremaneira as
suas representações imagéticas: o imaginário. Por opção estética,
este diretor inunda suas obras de diversos simbolismos, passando
por “universos poéticos, sonhos, infernos e paraísos simultâneos que
proporcionam ao espectador novos regimes perceptivos” (RIBEIRO,
2014, p. 2), desde aqueles ligados ao seu cotidiano místico de tarólogo,
até às referências diretas e indiretas a narrativas bíblicas e mitológicas,
como a de Jesus Cristo.
Sander Castelo destaca uma entrevista de Alejandro Jodorowsky
ao repórter de O jornal Luiz Carlos Maciel, em junho de 1973, na qual
o chileno afirma:

Estou tentando colocar os sonhos na realidade e não a


realidade em sonhos. Quando você senta comigo para
ver o filme, o que estou tentando fazer é colocar os
seus símbolos na realidade. Cada um de nós tem seus
símbolos inconscientes. (...) O que estou tentando
fazer é usar símbolos para despertar alguma reação
no seu inconsciente. Tenho muita consciência do que
estou fazendo porque os símbolos podem ser muito
perigosos. Quando usamos linguagem normal, nós
308 | Trilhas do imaginário

podemos nos defender porque nossa sociedade é


uma sociedade linguística, uma sociedade semântica.
Mas quando você começa a falar, não com palavras,
mas somente com imagens, as pessoas não podem se
defender. É por isso que ou você ama ou odeia um
filme como esse. Você não consegue ficar indiferente.
(JODOROWSKY citado por apud ASTELO, 2013, p. 33).

Como propõe Castelo ao falar de Santa Sangre, outro filme


de Jodorowsky, lançado em 1989, o universo fílmico do diretor
“comportaria três níveis de significação: o fatual, o psicológico e o
simbólico (...)” (CASTELO, 2013, p. 38). A dança da realidade e Poesia
sem fim mesclam, numa narrativa calendoscópica, estes três elementos:
espaço sócio-histórico no qual a obra se insere (fatual); a memória
pessoal de Jodorowsky (psicológico); e o imaginário (simbólico),
através da opção estilística do autor, utilizando arquétipos, símbolos
e fragmentos mitológicos na constituição desses longas-metragens.
O objetivo desta seção no presente artigo é fazer a análise de três
momentos de cada um dos dois filmes de nosso corpus onde a simbiose
entre os elementos apontados acima ajudam a constituir cenas-chave
nos filmes de Jodorowsky.

6 O imaginário em A dança da realidade: o homem


em transformação

O pequeno Alejandro e a construção da subjetividade


Tanto em A dança da realidade como em Poesia sem fim, o pai de
Alejandro, Jaime (papel do ator Brontis Jodorowsky), é representado
como um homem violento e preconceituoso. Na linha temporal entre
o final do primeiro longa e o início do segundo, este personagem passa
por uma série de situações que em alguma medida o transformam:
ele perde o emprego, sofre com uma séria paralisia nas mãos, é preso
e torturado. Sua visão política – alinhada com o fascismo do Josef
Stalin, então primeiro ministro da União Soviética – é modificada;
Trilhas do imaginário | 309

seu relacionamento machista com o filho e a mulher são abrandados.


Mas até chegarmos ao momento da história em que Jaime engendra
uma passageira transformação, acompanhamos a trajetória de um
personagem agressivo, verborrágico e intransigente.
Numa das primeiras sequências do filme, o pequeno Alejandro
(papel de Jeremias Herskovits) oferece-se para coçar as costas de um
andarilho sem braços que para em frente à loja do seu pai. Este homem
veste calças camufladas, como se pertencesse ao exército; o homem
deficiente ganha um abraço do menino e um sorvete, que o garoto
estava tomando. Ao ver a cena, Jaime agride e expulsa o andarilho,
achando que ele estava assediando o filho. O pai também bate em
Alejandro e o leva para cortar seus longos cabelos loiros, que, segundo
o chefe da família Jodorowsky, é uma das características físicas que
tornaria o filho frouxo, afeminado. No caminho, ele encontra com
outros homens mutilados que vestem o mesmo uniforme do exército;
eles confrontam Jaime e iniciam uma briga (Figura 3).

Figura 3 – Alejandro e Jaime são abordados por um grupo de homens deficientes

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)

A provável referência histórica que o diretor inseriu nesta


sequência é o período entre-Guerras que marcou profundamente o
mundo durante a primeira metade do século XX. O Chile, país onde
o clã Jodorowsky vivia nesta época, permaneceu neutro durante
a Primeira Guerra Mundial, mas foi palco da Batalha Naval de
310 | Trilhas do imaginário

Coronel, em 01 de novembro de 1914 e sofreu sanções econômicas


e diplomáticas por não ter tomado partido (HEINSFELD, 2014).
No plano do imaginário, como lembra Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant (2009, p. 628), a deformidade “aparece na maior parte das
vezes como desqualificação”, mas não somente. Em algumas culturas,
as deformidades são encaradas como uma capacidade singular,
sagrada, “o que explica o temor que a sociedade africana testemunha
ao louco, ao estropiado, sobretudo aos cegos, que se têm como capazes
de ver a outra face das coisas” (CHEVALIE e GHEERBRANT, 2009,
p. 328). Ao passo que Jaime enxerga como uma monstruosidade a
figura do deficiente, Alejandrito se apieda do homem, ao ponto de
lhe coçar as costas e de lhe oferecer sorvete.
Inserida no mesmo espaço temporal do Chile entre-guerras está
a sequência anterior àquela destacada acima: após ser confrontado
pelo pai, por dizer que sente medo das figuras humanas do circo
que Jaime e ele visitam na primeira cena do filme, Alejandro foge
e decide desafiar o mar, jogando pedras na direção das ondas,
afirmando não ser um “maricón91”. Neste momento do longa, surge
um personagem que se autodenomina “Rainha de Copas”; a figura
andrógina repreende o menino, afirmando que ele matará todos os
peixes do mar com as pedras (Figura 4).

Figura 4 – A Rainha de Copas e Alejandro

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)

91 Gíria na língua espanhola equivalente a afeminado, homossexual.


Trilhas do imaginário | 311

No fim das contas, o mar se revolta e despeja na direção de


Alejandro milhares de peixes, para o desespero do menino e da
“Rainha” (Figura 5).

Figura 5 – A Rainha de Copas, Alejandro e a profusão de peixes trazidos pelo mar

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)

Jodorowsky, além de cineasta, ator, poeta é, como adiantamos


acima, tarólogo. A figura presente na carta da Rainha de Copas pode
significar a confusão do pequeno em relação a seus sentimentos
(medo, coragem). Dentro do tarot, esta carta:

É caracterizada pela predominância do elemento


Água (duas vezes Água), portanto representa a
capacidade de recepção, assimilação e reflexão desse
elemento. Esta personalidade se mostra muito sensível,
impressionável, sensitiva, receptiva e sentimental.
Pode mostrar clarividência, mediunidade e misticismo.
Pode ter a devoção como caminho espiritual. Em
virtude da unilateralidade do elemento, Água, há a
possibilidade de se mostrar uma pessoa perdida e
confusa em um mar de emoções, não conseguindo
tomar iniciativas práticas. Acaba ocultando o que
sente e o que quer e começa a manipular, geralmente
adotando papel de vítima. Deprime-se e/ou somatiza
facilmente. (ARAÚJO, 2008, p. 38-39)
312 | Trilhas do imaginário

Sobre os peixes que invadem a praia, Chevalier e Gheerbrant


(2009, p. 705) dirão que, no plano da astrologia, a imagem que
simboliza o signo dos pscianos, “peixes sobrepostos em sentido inverso
e ligados por uma espécie de cordão umbilical de guelra a guelra
(...)”, são indicação de que situamo-nos “no mundo da indistinção,
do inundado, do confuso”. Estas características dadas a estes dois
símbolos relacionados à agua reforçam a ideia de desordem subjetiva
em que o personagem vive.

Jaime Jodorowsky em busca de purificação


Mais adiante em A dança da realidade, após abandonar a família
para se infiltrar no governo e tentar matar o presidente Carlos Ibáñez,
em razão da discordância ideológica que mantém com o político,
Jaime Jodorowsky passa por diversas desventuras, até chegar ao ponto
de ser preso e torturado, acusado de traição. Após ser resgatado e
regressar ao lar, Jaime é encorajado pela esposa, Sara, mãe de Alejandro
(personagem de Pâmela Flores), a destruir os fantasmas de seu passado,
incluindo ele mesmo: a mulher dispõe no quintal de casa, como num
altar, as fotos de Ibáñez, Josef Stalin, figura admirada por ele, e a foto
do próprio Jaime, que durante quase todo o filme vestiu um uniforme
militar muito parecido com o do político soviético (Figuras 6 e 7).

Figura 6 – Jaime empunha um revólver

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)


Trilhas do imaginário | 313

Munido de um revólver, Jaime atira na direção das fotos,


que pegam fogo instanaeamente e são consumidas pelas chamas
(Figura 7). No plano do imaginário, temos nesta cena dois elementos
símbólicos, arma e fogo, que são agrupados em dois regimes
imagéticos complementares, segundo a classificação das Estruturas
Antropológias do Imaginário preconizadas por Gilbert Durand
(PITTA, 2016). A arma está elencada no Regime Diuno da imagem, na
temática O Cetro e o Gládio – ou Estrutura Heroica do Imaginário.
Ela é responsável por ajudar um pernsonagem heroico (sendo este
personagem um arquétipo ou um mito, elementos constituidores
da simbologia estuada por Durand) a combater as forças do mal;
mas as armas do heroi não são objetos violentos: elas são “símbolos
de poder e pureza, pois todo combate é espiritualizado” (PITTA,
2016, p. 30).

Figura 7 – As imagens de Ibáñez, Stalin e Jaime queimam.

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)

Assim sendo, Jaime, ao empunhar o revolver contra as


figuras fascistas e autoritárias de Stalin, de Ibáñez e de si próprio,
tenta se livrar de suas influências, através de um processo de
espiritualização, purificação. O fogo também faz parte deste
processo de transformação do pai de Alejandro. Este fenômeno
da natureza, considerado um símbolo diairiético de purificação,
também está presente no outro polo de imagens proposto por
314 | Trilhas do imaginário

Durand, o Regime Noturno. O fogo é um elemento cíclico, ligado à


Estrutura Sintética do Imaginário. “(...) proporcionando a morte
total é o elemeneto mais propício ao renascimento (renascer das
próprias cinzas)” (PITTA, 2016, p. 37). Sendo assim, ao matar sua
antiga imagem, emparelhada com os dois políticos acima, Jaime
deseja renascer como um novo homem.

7 O imaginário em Poesia sem fim: nasce o artista, nasce


o amante

Alejandro e a borboleta que queima


No segundo filme, Poesia sem fim, a família de Alejandro
muda-se de Tocopilla, lugarejo afastado do centro chileno, para a
capital do país, Santiago. Neste período biográfico da história do
diretor, acompanhamos sua adolescência e juventude e seus primeiros
contatos com a arte. Elementos fatuais, relacionados em alguma
medida com os acontecimentos do mundo histórico, também são
incluidos nesta narrativa: um terremoto, possivelmente relacionado
àquele ocorrido na cidade de Chillán, em 24 de janeiro de 193992; e a
reeleição de Ibáñez, que voltou a ocupar a presidência do Chile no
início da década de 195093.
Nessa época, o jovem Alejandro trabalha ajudando o pai na
loja de confecções da família. Numa manhã, ele descobre um livro
de poesias do autor Frederico Garcia Lorca, poeta e dramaturgo
espanhol que neste momento histórico do filme já havia falecido, aos
38 anos, assassinado durante a Guerra Civil Espanhola94. Alejandro

92 Segundo referência histórica em: http://www.memoriachilena.cl/602/w3-


article-3576.html
93 Segundo referência histórica em: https://www.bcn.cl/historiapolitica/resenas_
parlamentarias/wiki/Carlos_Ib%C3%A1%C3%B1ez_del_Campo
94 Referências em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/08/1497609-
a-vida-e-as-mortes-de-garcia-lorca.shtml
Trilhas do imaginário | 315

fica maravilhado com os versos de Lorca, a ponto de lê-los em voz


alta; neste momento, ele é descoberto por Jaime, que, tendo voltado
a ser um homem instransigente, repreende o filho, acusando-o de
ser afeminado e obrigando-o a substituir a poesia pelos estudos em
biologia; os pais de Alejandro queriam que o rapaz fosse médico.
Mesmo contra a vontade de Jaime e influenciado pela obra de
Lorca, Alejandro começa a escrever poemas. Numa das sequências,
enquanto é atormentado pela figura do pai, o jovem bate à máquina
seus primeiros versos (Figura 8).

Figura 8 – Alejandro é atormentado pela figura do pai

Fonte: Print screen do filme A dança da realidade (2013)

Alejandro lê seus versos em voz alta e, ao amassar a


folha de papel, a figura do pai desaparece; a folha pega fogo
instantaneamente, enquanto ele recita os versos que ouviu de um
bêbado no início do filme: “Poesia, iluminarás meu caminho como
uma borboleta que queima” (Figuras 9 e 10). Como preconizado na
seção anterior, o fogo é um símbolo diariético e cíclico, elencado,
respectivamente, tanto no Regime Noturno como no Regime Diurno
da imagem. Enquanto símbolo diairético, uma arma espiritual, é
equivalente às armas objetificadas do heroi; através das chamas,
conseguimos “distinguir as trevas do luminoso valor” (PITTA,
2016. p. 32).
316 | Trilhas do imaginário

Figura 9 – Alejandro recita poesia que datilografou


enquanto ela “queima” com o papel.

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)

Figura 10 – Alejandro continua a recitar sua poesia.

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)

Susana Rodrigues (2015) rememora que o fogo era considerado


pelo arquiteto romano Vitrúvio (século I a.C.) como o elemento
constituidor do homem social, já que foi através dele que os indivíduos
puderam sair do isolamento e se reunir em volta de uma fogueira, em
busca de calor e alimento. Do ponto de vista mitológico, Rodrigues
(2015) cita a simbologia aliementada pelas narrativas greco-romanas,
à exemplo de Vulcano, deus romano do fogo, “invocado como uma
Trilhas do imaginário | 317

divindade do lar (...) que representava o ignis elementatus, ou seja,


o fogo civilizador de Hefesto e Vulcano, oposto ao fogo simbólico de
Prometeu” (RODRIGUES, 2015, p. 35).
Apesar da diferenciação apregoada por Rodrigues, o fogo
de Prometeu também traz um simbolismo relativo à massificação
de um elemento social entre os homens: o conhecimento. A chama
que Prometeu rouba dos deuses representa um poder que antes era
renegado aos mortais. Sobre isto, Alexandra Santos (2015), explica
que “ao longo dos séculos, Prometeu foi o símbolo da imagem da
Humanidade, sendo aquele que traz a luz à humanidade sofredora”
(SANTOS, 2015, p. 406).

O fogo, essa força divina, torna-se símbolo sensível


da cultura. Prometeu é o espírito criador dessa
cultura, que penetra e conhece o mundo, que o põe
a serviço da sua vontade por meio da organização
das forças dele de acordo com os seus fins pessoais,
que lhe descobre os tesouros e assenta em bases
seguras a vida débil e oscilante do homem. (JAEGER
citado por SANTOS, 2015, p. 406).

Ainda sobre o fogo, enquanto elemento natural emissor de luz


e de calor e sua associação simbólica com o conhecimento, Gilbert
Durand (2012) dirá que “constantemente, os textos upanixádicos95
associam a luz, algumas vezes o fogo, e a palavra, e nas lendas egípcias,
como para os antigos judeus, a palavra preside à criação do universo.
As primeiras palavras de Atum96 ou as de Javé são fiat lux97”. (DURAND,
2004, p. 154). Ainda segundo o autor, “Jung mostra que a etimologia
indo-européia de “aquilo que luz” é a mesma que a do termo que
significa “falar”, e esta semelhança também se encontraria em egípcio”
(DURAND, 2004, p. 154). Assim sendo, a poesia-borboleta de Alejandro

95 Referente às Upanixades, textos filosóficos do hinduísmo. Referência em: https://


super.abril.com.br/comportamento/upanishads/
96 Figura mitológica egípcia. Referência em: https://antigoegito.org/deusatum/
97 Expressão latina que significa “faça-se a luz”.
318 | Trilhas do imaginário

que se consome com o fogo simboliza não só a constituição social


do menino (o fogo de Vulcano), como o início de sua produção de
conhecimento (o fogo de Prometeu).

Alejandro e os mitos de Édipo e Orfeu


Narrativas de elevada importância dentro das teorias do
imaginário, os mitos ajudaram não só na constituição de sociedades,
graças à sua dimensão pedagógica (PITTA, 2016), como também a
balizar análises do inconsciente humano. Sigmund Freud, expoente da
psicanálise, foi um dos autores que mais se utilizaram de narrativas
mitológicas para teorizar a constituição mental subjetiva dos
indivíduos e sua relação com as outras pessoas. Um dos estudos
freudianos mais citados remonta o mito de Édipo, personagem grego
cercado por uma tragédia familiar: ele mata o próprio pai e desposa
a própria mãe, sem saber de quem se tratam; este destino havia sido
preconizado por um oráculo antes de seu nascimento. Sem conseguir
lidar com as desgraças que cometeu acidentalmente, Édipo fura os
próprios olhos, como sinal de autopunição.
O Complexo de Édipo surgiu enquanto conceito nas obras de
Freud em 1910, após ensaiar em textos anteriores análises da relação
inconsciente entre pais e filhos (MOREIRA, 2004). Jean Laplanche
e Jean-Bertrand Pontalis (citado por SOUZA, 2006) explicarão o
complexo edipiano como:

Conjunto organizado de desejos amorosos e hostis


que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua
forma dita positiva, o complexo apresenta-se como
na história de Édipo-Rei: desejo da morte do rival
que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual
pela personagem do sexo oposto. Sob a sua forma
negativa, apresenta-se de modo inverso: amor
pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento
ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas
duas formas encontram-se em graus diversos na
Trilhas do imaginário | 319

chamada forma completa do complexo de Édipo.


Segundo Freud, o apogeu do complexo de Édipo é
vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase
fálica; o seu declínio marca a entrada no período
de latência. É revivido na puberdade e é superado
com maior ou menor êxito num tipo especial de
escolha de objeto. (LAPLANCHE e PONTALIS citado
por SOUZA, 2006, p. 136)

Em Poesia sem fim, a solução narrativa que Jodorowsky


encontra para a representação do Édipo de seu personagem na
ficção é dar à mesma atriz que interpreta sua mãe, Sara (Figura 11),
o papel da poetisa Stella Díaz Varín (Figura 12) personagem real com
quem Alejandro teve um romance, contemporânea a outros poetas
como Enrique Lihn, Jorge Teillier e Armando Uribe (TORO, 2017) –
alguns deles mencionados no filme. A atriz Pâmela Flores utiliza-se
de recursos interpretativos e cênicos para marcar a diferenciação:
enquanto Sara é uma personagem de figurino e maquiagem sóbrios,
de personalidade tranquila, sonhadora e lírica (a ponto de representar
este lirismo em seus diálogos, já que a personagem só fala cantando,
como se estivesse em um musical), Stella é uma mulher de figurino
berrante, expansiva, misteriosa, exuberante.

Figura 11 – Pâmela Flores interpreta Sara Jodorowsky

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)


320 | Trilhas do imaginário

Fausto Calaça e Célia Reis (2014) mencionarão a noção de “Édipo


romântico”, elaborada anteriormente por Pierre Laforgue (2002). De
acordo com Calaça e Reis, este arquétipo narrativo povoa diversas
obras literárias e cinematográficas desde Honoré de Balzac e Stendhal,
representando o jovem confuso entre a realização de seus desejos
amorosos e sexuais e sua inserção no contexto social. Despido do
simbolismo incestuoso que Freud utiliza, o Édipo de Laforgue é uma
“referência para uma interpretação do mal-estar do rapaz romântico.
Essa geração sofre de um mal-estar político e erótico. (...) no contexto
histórico do Romantismo, o mito edipiano expressa os problemas
históricos e políticos do desejo” (CALAÇA e REIS, 2014, p. 120-121).
A narrativa edipiana de Jodorowsky tenta emular as características
incestuosas inconscientes e a aura romântica e confusa do personagem
grego, esta última, presente no personagem Alejandro tanto no primeiro
longa, A dança da realidade, como neste segundo, Poesia sem fim.

Figura 12 – Pâmela Flores interpreta Stella

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)

A primeira relação sexual entre Alejandro e Stella é marcada


por uma fetichização do sexo através de uma citação da personagem
de Pâmela Flores ao mito de Orfeu. Lúcia Nagib resume este mito
em artigo publicado em 2001:
Trilhas do imaginário | 321

(...) Orfeu, inventor da cítara, encantava homens,


animais e toda a natureza com seu dom musical.
Chamado pelos argonautas para marcar o ritmo
de seus remos, livrou-os, com sua música, do
canto irresistível e mortal das sereias, razão pela
qual, segundo algumas versões da lenda, elas
teriam se suicidado. De volta à Trácia, casou-se
com Eurídice. Um dia, fugindo de Aristeu que
queria possuí-la, Eurídice foi picada por uma
cobra, vindo a falecer. Desesperado, Orfeu desceu
aos infernos a sua procura, dominando com sua
música Caronte, Cérbero e mesmo os deuses
infernais. Hades, impressionado, concordou em
devolver-lhe Eurídice, mas com a condição de que
ela o seguisse e que Orfeu não olhasse para trás
até atingirem a luz do sol. Ansioso para confirmar
que não fora enganado, Orfeu virou-se para trás
e perdeu a amada para sempre. Enciumadas ao
vê-lo cantar inconformado a paixão perdida, as
mulheres da Trácia o esquartejaram. (NAGIB,
2001, p. 17)

Figura 13 – Stella começa a vendar Alejandro

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)


322 | Trilhas do imaginário

Figura 14 – Stella venda Alejandro

Fonte: Print screen do filme Poesia sem fim (2016)

Stella conserva-se virgem, com seu hímen intacto, a espera do


homem certo; para satisfazer Alejandro, eles só poderão fazer sexo
anal. Sendo assim, ela venda o parceiro para que, assim como Orfeu,
não se deixa ser vislumbrada pelo amado. No paradigma levantado
por Stella, não é a sua face que não pode ser vista e sim o seu órgão
sexual, inacessível a Alejandro (Figuras 13 e 14). Interpretando o mito
de Orpheu em uma de suas adaptações para o cinema (Orfeu, de Cacá de
Diegues, adaptação fílmica de 1999 do texto teatral Orfeu da Conceição,
de Vinícius de Morais), Nagib (2001) revela que o teste de Hades era
uma tentativa de fazer com que “os excessos da carne” (a pressa em
possuir Eurídice) fossem “redimidos pela pureza do espírito. Era, para
tanto, fundamental que Orfeu fosse bom, ‘um ser quase divino, pela
excelência de sua qualidade pessoal e artística’” (NAGIB, 2001, p. 17).
Stella, assim como Hades, tentaria retardar o prazer sexual de Alejandro
em prol de uma relação menos carnal com ele. O mito orfeico transmuta
Eurídice na genitália de Stella. Mas, Alejandro, diferentemente de Orfeu,
consegue vencer o desafio.

8 Conclusão
Em um trecho de seu texto Cinema e autobiografia, incluído
em O pacto autobiográfico (2014), Lejeune questiona se existiriam
Trilhas do imaginário | 323

realmente filmes autobiográficos em que “o diretor conta sua vida e


evoca o caminho que o levou a sua obra, como faz um escritor que, no
fim da vida, usa a linguagem que elaborou em suas obras anteriores,
para falar de si mesmo” (2014, p. 262). A ambiciosa “autobiografia
imaginária” de Jodorowsky parece responder que sim. Seja nos
encontros com artistas chilenos que viveram intensamente o século XX,
seja com os modos como ele e seus pais lidaram com seus problemas
pessoais, conseguimos identificar em seus filmes momentos que
parecem ter sido divisores de água na vida de Jodorowsky.
É bastante significativa a cena em que o jovem Alejandro é
consolado por um bêbado, em que o Jodorowsky “real” (o diretor, que
aparece metalinguisticamente nesta sequência do filme) confirma num
comentário a importância do encontro: “Este bêbado, convertido em
profeta pelo vinho, com uma só frase, me salvou do abismo: ‘una virgen
desnuda alumbrará tu camino, como una mariposa que arde!98” A
mariposa era a poesia, e acompanhando a trajetória de Jodorowsky, –
como diretor, tarólogo, escritor e psicomago – conseguimos confirmar
que o que ele diz em seu filme parece realmente verdade. Ou talvez
estejamos apenas confirmando o “pacto autobiográfico”, aceitando que as
memórias e a narrativa de Jodorowsky não traem nem a ele e nem a nós.
Quanto às possibilidades, a autobiografia fílmica parece ser
factível, se consideradas as transformações e especificidades que
a mudança de linguagem acarreta. Pensar uma “narrativa do eu”
no cinema requer considerar as particularidades de uma arte que
trabalha com som e imagem em movimento. Uma plataforma que
constrói uma realidade que quase chega a tocar (ou toca?) o onírico e
que em suas ilusões, tenta se aproximar do real. Neste artigo, pudemos
traçar uma abordagem mais próxima das teorias do cinema, por
mais indispensáveis que sejam os paralelos traçados com as teorias
literárias. Cientes que as “escritas do eu” parecem impregnar cada
vez mais os media, devemos olhar atentos para os caminhos pelos
quais este tipo de narrativa pode nos levar.

98 Citação do filme em espanhol, já traduzida acima, numa das seções do artigo.


324 | Trilhas do imaginário

Referências

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Alejandro Jodorowsky, Michel Seydoux. Chile: Le Soleil Films, 2013.
(133min.), son., color.
POESIA sem fim. Direção e Roteiro: Alejandro Jodorowsky. Produção de
Xavier Guerrero Yamamoto. Chile: Le Soleil Films, 2016. (128 min.), son.,
color.
| 327

Cinema e representatividade:
uma incursão às características
e discursos do cinema clássico e alternativo99

Leonardo Gonçalves100
Marcel Vieira Barreto Silva101

1 Introdução
O Cinema tem sido, ao longo do tempo, tema de densas
discussões estéticas e políticas: aquele, concentrado nos aspectos
técnicos, nos diversos códigos de representação e de produção
de sentido que dão forma e autonomia ao filme; enquanto este,
direcionado à perspectiva sociológica, buscando refletir como estas
capacidades ou linguagem do cinema desempenha uma função social,
cultural e psíquica no indivíduo.
Um objeto frequente e comum em ambas às referidas
discussões é o cinema feito em Hollywood que se convencionou
como sendo a principal indústria do ramo. E como tal, é natural
que Hollywood exerça influência basilar nas formas de fazer
cinema, estabelecendo regras e convenções dominantes para
narrar histórias no meio audiovisual, e nas formas de representar a
sociedade, estabelecendo recortes do que pode ou não ser mostrado

99 O trabalho que ora apresentamos tem como influência algumas discussões


abordada no Trabalho de Conclusão de Curso intitulado Rua Sórdida: a concepção
de um curta metragem (2017) para obtenção da graduação em Cinema &
Audiovisual do autor deste artigo na instituição da Universidade Federal da
Paraíba – UFPB.
100 Mestre em Comunicação pelo PPGC da Universidade Federal da Paraíba. E-mail:
[email protected].
101 Orientador do trabalho. Professor do Curso de Cinema e Audiovisual na UFPB.
E-mail: [email protected]
328 | Trilhas do imaginário

e construindo uma visão de mundo, por meio de valores morais e


ideológicos, que se julga ser a ideal.
Partindo do princípio que a mídia fílmica é um mecanismo de
criação de subjetividades, ou seja, um instrumento criador de modos
de agir, de sonhar, de pensar, pretende-se investigar o papel desta na
produção de discursos que constroem visões de mundo. Discutimos,
em um primeiro momento, como cinema clássico, especificamente
o hollywoodiano, berço do cinema industrial narrativo, dominante
nas nações e mercado de todo o mundo, representa o discurso
de ordem patriarcal e conservador. Em seguida, nossos esforços
são direcionados para uma reflexão sobre o cinema alternativo e
como este se configura como signo de resistência às representações
padronizadas do cinema industrial.
Desse modo, neste artigo procuramos discernir sobre
questões mais gerais que concernem alguns dos aspectos fundantes
desse cinema representativo a qual Hollywood é herdeiro: o
desenvolvimento e autonomia de sua linguagem, e de seu dispositivo
técnico/arquitetônico; para buscar compreender as potencialidades
de imersão deste veículo.
Utilizamos principalmente as reflexões teóricas de Graeme
Turner (1997), Ismail Xavier (2003, 1977, 2016), João Batista Brito
(1995), Zani (2009) para abordar as questões referentes aos estudos
do cinema, e, em uma perspectiva psicanalítica, Edgar Morin (2003)
no intuito de compreender o processo de construção de significados
do cinema, a partir dos conceitos de projeção-identificação e
participação afetiva.
Em seguida, nossos esforços recai para o cinema alternativo,
aqui considerado, num sentido amplo, aquele que está distante
do modelo industrial, tanto nos aspectos técnicos, de produção e
distribuição, quanto no sentido discursivo de suas histórias, nas
tentativas de ampliar a representatividade de uma parcela da
sociedade marginalizada, por condições seja étnicas, de gênero,
econômicas, sociais etc. Nosso recorte dará ênfase aos filmes B,
Cinema Moderno, ao movimento do Cinema Marginal brasileiro, e em
Trilhas do imaginário | 329

alguns filmes brasileiros contemporâneos no interesse de concebê-


los como possibilidade de resistência aos discursos e modelos de
produção hegemônicos do cinema clássico. Adotaremos as reflexões
de Mulvey (2003), bem como os estudos de Fernão Ramos (1984),
Ismail Xavier e Ricardo Zani (2009).
É necessário afirmar que optamos por uma abordagem
econômica e sucinta que sirva de base para nossos objetivos de
refletir como cinema alternativo emergiu ao longo da história
como uma expressão artística diversificada capaz de ampliar a
representatividade de grupos, povos e culturas muitas vezes excluídas
nos discursos do cinema industrial.

2 O cinema que nos convoca


Em 1896, os irmãos franceses Louis e Auguste Lumière foram
um dos primeiros a projetar, para uma plateia, um filme. A exibição
de estreia foi no então conhecido Café de Paris e, diz a lenda, ficou
conhecido como “o dia que a plateia fugiu da sala acreditando que o
trem sairia da tela”. Segundo a imprensa da época, o filme L’Arriveé
d’um trains à La Ciotat (A chegada do trem na estação) provocara o
incidente devido a crença do espectador na fidedignidade da imagem
obtida mecanicamente, forjando a impressão que o trem ali filmado
fosse real. Verdade ou não, tal ocorrido já nos dá indícios do poder
da imagem-em-movimento sobre nosso imaginário.
Naquele período, os filmes eram, basicamente, pequenas
reproduções de situações do cotidiano, apresentando, principalmente,
um caráter documental – operários saindo da fabrica, café da manhã
com a família, todos esses microacontecimentos da vida comum
despertava profunda curiosidade entre os voyeuers fascinados com
a nova tecnologia.
Aparentemente, os irmãos Lumière não compreendiam a força
lúdica do cinema e acreditavam que seu trabalho com as imagens
animadas, como nos relata Graeme Turner (1997, p. 11), “seria
direcionado para pesquisa científica e não para a criação de uma
330 | Trilhas do imaginário

indústria do entretenimento”. Contudo, conseguiram popularizar seu


invento. E um dos espectadores que se encantou com o cinematógrafo,
foi o ilustre Georges Méliès ainda um jovem e prestigiado mágico
francês. Méliès é responsável por dar um novo rumo à história
do cinema no ano de 1902, com a estreia do filme Viagem à lua. O
ilusionista francês se desprende do realismo dos irmãos Lumière
e apresenta a capacidade cinematográfica de criar uma narrativa
ficcional, com tempo, espaço e lógicas próprias, cujo objetivo é de
encantar o público e direcioná-lo a uma experiência estética e onírica.
Também se atribui a Méliès a invenção de práticas e técnicas que
fizeram com que a narrativa pudesse ser composta com alguma
organização. Técnicas como “o fade-out (desaparecimento gradual
da imagem), que é um método de transição ou fechamento, e o lap-
dissolve (um fade-out que coincide com a sobreposição gradual de
uma nova imagem), que é uma técnica mais elegante de transição”
(TURNER, 1997, p. 37) possibilitaram que o cineasta arranjasse a
sequência das imagens na tela e manipulasse o tempo narrativo
conforme seu desejo.
Entretanto, o cinema como narrativa ficcional - com
linguagem e convenções próprias, como produto comercial viável e,
portanto, com o status de “sétima arte”, a primeira forma artística
original do século XX - só se estabelece por volta de 1915. Essas
conquistas devem-se, em parte, ao cineasta norte-americano David
Wark Griffith que ajuda a romper com a limitação do teatro filmado,
vivenciado nas primeiras produções cinematográficas, em que “a
câmera, fornecendo um plano de conjunto de um ambiente (cenário
teatral) [...] situava-se na clássica posição dos espectadores”
(XAVIER, 1977, p. 20-21). Vale a pena mencionar que o caráter
estático da câmera tem suas primeiras rupturas, mesmo que tímida
ou despretensiosamente, em algumas produções cinematográficas,
como é caso de The Great Train Robbery (1903) e The Life of an
American Fireman (1903) ambos do cineasta Edwin S. Porter.
Todavia, é com Griffith em que há de fato o desenvolvimento de um
espaço cinemático, com manipulação temporal e espacial através
Trilhas do imaginário | 331

de articulações dos planos em variados ângulos. João Batista Brito


(1995), crítico de literatura e cinema, ressalta o essencial aporte
literário que inspirou Griffith a construir esta linguagem específica
do cinema. De acordo com o autor:

Sob os protestos dos seus produtores, Griffith


alternava, pela primeira vez, uma panorâmica e
um close, porque tinha a intuição de que o pública
pagante entenderia esse procedimento narrativo,
na mesma medida em que entendia as técnicas
romanescas de Dickens. O interessante é que,
aparentemente “imitando” o romance, Griffith
inventava uma linguagem específica, genuinamente
cinematográfica. (BRITO, 1995, p. 5)

Desta tentativa de inventar uma linguagem específica e


genuinamente cinematográfica, deve-se a Griffith, por exemplo,
a noção de campo/contracampo, utilizado principalmente em
diálogos, em que a câmera assume o ponto de vista de um e do
outro interlocutor, e do uso psicológico do primeiro plano. Outro
recurso importante consiste no paralelismo, método de montagem
que tenciona duas situações dramáticas até convergirem e atingirem
um clímax. Não por acaso, Griffith é descrito por Ismail Xavier
(1977, p. 36) de “o primeiro grande sistematizador, o primeiro
modelo a ser seguido pelos cineastas”. Suas práticas de montagem
conhecidas como decupagem clássica amplia nosso entendimento
sobre a linguagem cinematográfica não apenas como método de
juntar as cenas ou planos separados, mas meio de controlar a
“direção psicológica” do espectador.
Assim, à medida que a linguagem cinematográfica desenvolvia-
se de maneira vertiginosa no início do século XX, teóricos e cineastas
tomam o cinema como objeto de sérias discussões estéticas,
preocupadas em conhecer as suas propriedades, seus caminhos
de aperfeiçoamento em direção à maturidade de suas capacidades
expressivas. Destaco o famoso experimento realizado por Lev
Kuleshov, no qual a câmera enquadra o rosto de um homem e, em
332 | Trilhas do imaginário

seguida, a imagem se alterna para outras imagens, como a de um


caixão, um prato de sopa, uma criança e um bebê sorridente. A
expressão do ator permanece a mesma, entretanto, cada situação
em que seu rosto era associado, causava nos espectadores uma
experiência diferente, versando entre fome, nojo, tristeza etc. Este
experimento ficou conhecido como efeito Kuleshov e, conforme
explica Marcel Martin (2005, p. 33), demonstra uma dialética externa
da imagem, “fundada sobre as relações das imagens entre elas,
quer dizer, sobre a montagem, noção fundamental da linguagem
cinematográfica”. Isso nos permite refletir como a articulação dos
planos, no exercício da montagem, pode construir significados.
No caso do cinema industrial, a montagem desenvolvia-se
em uma direção à representação mimética, de modo a tornar as
rupturas entre um plano e outro o mais o “invisível”, imperceptível.
Mimético, aqui, refere-se ao conceito de mimesis elaborado por
Aristóteles, que não se reduz apenas à mera “imitação do real”, mas
como esclarece Beth Brait (1985, p. 30), o conceito revela “o quanto
Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é ‘imitado’ ou
‘refletido’ num poema, mas também com a própria maneira de ser
do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração
de sua obra.”
Nesse raciocínio, para transmitir uma impressão de
realidade, o artista faz uso de estratégias e meios específicos para
causar verossimilhança nos fatos. No cinema clássico almeja-se a
mesma intenção de “imitar a realidade”, através da eliminação de
lacunas causadas pelo corte da edição, transmitindo a sensação
de tempo corrido, entre outros recursos. Isso não quer dizer que
os acontecimentos narrados sejam verdadeiros, mas necessitam
ser fiéis e realistas com a diegese fílmica, quer dizer, a trama deve
transmitir sentidos, coerência, enfim, deve convencer o espectador
sobre a veracidade dos eventos que vê na tela.

O cinema clássico serve a um objetivo conservador,


perpetuando um hábito, por meio de sua narrativa,
Trilhas do imaginário | 333

ao trabalhar um estado emocional que se repete


à exaustão e facilita ao espectador a escolha do
que assistir, enquanto mantém sempre a mesma
estrutura narrativa. Uma obra clássica tende a
possuir um roteiro padrão e industrial, com doses
bem-estabelecidas em suas situações de tensão
e relaxamento. A intenção do cinema clássico é
envolver o espectador e fazê-lo acreditar que a
estória contada é “real” [...] (ZANI, 2009, p. 132)

O advento do som reforça o caráter mimético das narrativas


ficcionais dominantes, “de início, uma implantação com alguns
pontos críticos, mas em pouco tempo perfeitamente integrado no
sistema, com excepcionais vantagens”. (XAVIER, 1977, p. 36) E como
observa Gérard Betton (1987), a linguagem do cinema não se limita
aos procedimentos da montagem e a manipulação do espaço-tempo;
elementos como diálogo, música, cenário, iluminação etc., também
são essenciais e auxiliam no processo de construção de significados.
Assim, nenhum sistema que produz significados opera sozinho
no cinema. Para Turner (1997, p. 51) “É claro que o cinema não é
uma linguagem, mas gera seus significados por meio de sistemas
(cinematografia, edição de som e assim por diante) que funcionam
como linguagens”.
Em uma perspectiva psicanalítica, Edgar Morin (2003)
descreve esse processo de construção de significados do cinema
em O cinema ou o homem imaginário (1970). Morin nos introduz no
processo de projeção-identificação, participação afetiva e participação
cinematográfica (p. 145-172). A projeção-identificação trata-se de
um processo universal e multiforme pelo qual, “as necessidades,
aspirações, desejos, obsessões, receios, projetam-se não apenas em
sonhos e na imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos
os seres.” (MORIN, 2003, p. 145) No processo de identificação, o
sujeito em vez de se projetar no mundo, absorve-o, constituindo seu
próprio ser. São estes processos de projeção e identificação que estão
no âmago da relação entre o indivíduo e o cinema:
334 | Trilhas do imaginário

na medida em que identificamos as imagens da


tela com a vida real, pomos as nossas projeções-
identificações referentes à vida real em movimento.
[...] Não há mais do que jogo de sombra e luz sobre
a tela; só num processo de projeção é suscetível
identificar as sombras com coisas e seres reais e
atribuir-lhes essa realidade que tão evidentemente
lhes falta na reflexão, ainda que muito pouco na
visão. (MORIN, 2003, p. 112-113)

O autor ainda define a participação afetiva como parte


integrante do binômio projeção-identificação. A zona da participação
afetiva (MORIN, 2003, p. 149) “estende-se, assim, dos seres às coisas,
reconstituindo as fetichizações, as venerações, os cultos”. Esta provoca
a nossa subjetividade, “identificamo-nos com o ser amado com as
suas alegrias e tristezas, sentindo os seus próprios sentimentos; nele
nos projetamos.” (idem, p. 149)
Assim, Morin entende esta relação espectador-filme como
simbiose, a qual o cinema parece insinuar “um sistema que tende
a integrar o espectador no fluxo do filme. Um sistema que tende a
integrar o fluxo do filme no fluxo psíquico do espectador”. (MORIN,
2003, p. 161) Dessa maneira, percebemos a capacidade do cinema
como condição de possibilidade, mediador e amplificador da
vivência. Como um processo de mão dupla, em que o espectador
projeta sua história, memória e corporeidade sobre o filme e se
identifica com as personagens, relacionando-se afetivamente com
os eventos narrados, e via imaginação consegue imergir-se para
dentro deles.
E é através da linguagem cinematográfica que este processo
se articula e adquire sentidos. Outros elementos que se referem
à arquitetura do cinema, a sala escura, a camuflagem do aparato
tecnológico que projeta o filme, contribuem para imersão, para
despertar as potencialidades afetivas que “arrasta, pois, consigo [...]
uma profundidade de alma e de vida subjetiva”. (MORIN, 2003, p.
149) Esta forma particular de cinema (como espetáculo e formação
Trilhas do imaginário | 335

discursiva) se torna hegemônica e, conforme investigamos, apresenta


um imenso potencial de agir de modo singular sobre o espectador.
O cinema convencional, que doravante chamamos de cinema
industrial ou clássico, utiliza-se desses recursos narrativos para
propagar valores, significados e visão de mundo. Trata-se de uma
forma particular de fazer cinema que se tornou um eficiente veículo de
espetáculo e formação discursiva, conhecido como modelo mimético
ou “modelo-representativo-institucional” (termo empregado por
Noël Burch).

3 Cinema alternativo como possibilidade de resistência


A autora e cineasta Laura Mulvey faz uma crítica ao
caráter patriarcal nos discursos fílmicos do cinema comercial e se
posiciona pessimista em relação aos avanços que o cinema narrativo
hollywoodiano pode desempenhar: “Não importa o quanto irônico e
autoconsciente seja o cinema de Hollywood, pois sempre se restringirá
a uma mise en scène formal que reflete uma concepção ideológica
dominante do cinema.” (MULVEY, 2003, p. 439)
A aludida autora aposta suas expectativas no cinema alternativo
como contraponto à produção industrial hollywoodiana. Diz Mulvey
(2003, p. 329) que “O cinema alternativo por outro lado cria um espaço
para o aparecimento de um outro cinema, radical, tanto num espaço
político quanto estético e que desafia os preceitos básicos do cinema
dominante.” Mulvey parece referir-se, principalmente, ao cinema
moderno entre a década de 1960 e 1970, em que se propuseram
romper com a “estética da transparência” e ilusionista do cinema
dominante a fim de construir uma nova linguagem cinematográfica
mais opaca e anti-naturalista.
Contudo, entram nesse bojo de cinema alternativo, grosso modo,
os filmes cujas produções são marginalizadas enquanto indústria,
e não apenas aqueles que adotam uma linguagem “moderna” e
“opaca”. Exemplo disso são os chamados “Filmes B” ou “Trash”,
336 | Trilhas do imaginário

assim rotulados devido ao baixo orçamento que impossibilitava


os filmes alcançarem uma estética “sofisticada” de Classe A, e que,
geralmente, apresentavam defeitos causados pela falta de recursos
e/ou inexperiências dos cineastas envolvidos. Em todo caso, essas
produções B abriram caminho para novas possibilidades de viabilizar
obras audiovisuais, fazendo seus filmes tornarem-se símbolos de um
cinema mais inventivo e autoral. Por isso, a vontade de produzir,
sobretudo filmes de gênero – ficção científica, terror etc – permitia
os cineastas driblarem as dificuldades financeiras e improvisarem
em cima disso. Tal atitude resultou, em alguns casos, verdadeiros
clássicos do gênero, alcançando grande sucesso de público e bilheteria,
e confirmando, assim, seu valor e contribuição para a sétima arte.

Independente da opinião do pessoal de Hollywood


que acha que única maneira de fazer bons filmes
é fazendo-os com muitos dólares, os ‘Filmes B’
quebraram essa regra e provaram que era possível
fazer películas divertidas e agradáveis sem toneladas
de dinheiro. Esta é a filosofia que fez o que eles
são. Os diretores de ‘Filmes B’ pegaram orçamento
minúsculos e fizeram alguns dos maiores longa-
metragem da história102.

Além das produções B, a emergência de um pensamento


crítico, durante o pós-guerra, em relação a este modelo de
representação do sujeito no cinema dominante, o modelo mimético
já discutido, constitui outro fator importante que contribuiu para
ascensão de um cinema mais autoral que aborda outras realidades
em suas narrativas.
O Código Hays 103, realmente, não se sustentaria diante
tais transformações sociais e circunstâncias. A emergência da

102 MARTIN, Duane L. B-Movie Central, where the classics come to life all over
again. Disponível em: <http://www.bmoviecentral.com/bmc/>. Acesso em: 24
de maio de 2017.
103 O conhecido Código Hays foi uma das estratégias para a perpetuação de padrões
morais no cinema, e consistiu na obrigação dos produtores seguirem uma série
Trilhas do imaginário | 337

“contracultura” hippie, fatores mercadológicos relacionados a um


público cada vez mais ávido por narrativas menos puritanas e mais
temerárias – fez com que houvesse maior liberdade para abordar
assuntos antes considerados promíscuos e de teor amoral no cinema
dominante de Hollywood.
Contudo, se por um lado, a mudança é lenta e gradativa no
cinema hollywoodiano que buscava novas estratégias para manter-
se no mercado após enfrentar sua grande crise nos anos 1960104, o
já mencionado Cinema Moderno105 ou alternativo conquista espaço
no cenário como contraponto ao padrão conservador visto nas telas
hollywoodianas. Definitivamente, este movimento/postura contagiou
o mundo sob as mais variadas formas – Nouvelle Vague na França
com Godard, Truffault; Cinema Novo no Brasil com Glauber Rocha,
Ruy Guerra, Leon Hirszman; Cinema Novo Japonês com Ozu; e até
o Cinema Novo norte-americano com Coppola e Scorsese, só para
citar alguns cineastas em seus respectivos movimentos.

de normas, listas e regras que procurariam moralizar Hollywood. Estas normas


de condutas foram organizadas, a partir dos anos de 1930, pela Motion Pictures
Production Code, e ficou conhecido, também, como Código de Conduta Hays.
Segundo Klanovich (2006, p. 03-04), o código estabelecia, por exemplo, “o que
era e o que não era moralmente aceito na produção de filmes nos EUA e seu
poder atingia diretores, artistas, produtores, roteiristas, diretores de fotografia,
enfim, toda a gama que compunha a produção, finalização e difusão de filmes”.
104 Fernando Mascarello (2006), em artigo intitulado Cinema Hollywoodiano
Contemporâneo, integrado ao livro História Mundial do Cinema, propõe uma
brilhante reflexão sobre o novo cinema hollywoodiano após a crise dos anos
1960. Diante da hegemonia hollywoodiana no Brasil, Mascarello verifica os
seguintes aspectos da reconfiguração estética e mercadológica do blockbuster
a partir de 1975: “(1) a debilitação narrativa dos filmes, privilegiando o
espetáculo e a ação em detrimento do personagem e da dramaturgia; (2) a
patente juvenilização/infantilização das audiências; e (3) o lançamento por
saturação dos blockbusters, reduzindo os espaços de exibição para o cinema
brasileiro e o cinema de arte internacional.” (MASCARELLO, 2006, p. 335)
105 É importante ressaltar que o cinema moderno não compreende apenas os
referidos movimentos do Cinema Novo durante a década de 1960, mas estes
já são desdobramentos do cinema moderno, ou de escola, surgido na Europa,
no período entre-guerras com o Expressionismo alemão, o cinema russo, o
Futurismo italiano, o Cubismo e o Surrealismo na França.
338 | Trilhas do imaginário

Em cada nação houve seus próprios desdobramentos e modos


de enxergar suas realidades através das lentes do cinema. Entretanto,
é possível destacar algo em comum no Cinema Moderno, como afirma
Ricardo Zani (2009, p. 135):

o cinema moderno não é conservador como o clássico.


É questionador e busca sempre novas formas de
construções narrativas que sejam condizentes com
suas indagações estéticas, refletindo em suas obras
um espírito contestador.

Tal “espírito contestador” que contagia esses jovens cineastas


é refletido num cinema mais engajado politicamente, que se apropria
da limitação dos recursos de produção e direciona sua atenção nas
mazelas da sociedades, na crítica contra o capitalismo etc. Assim,
personagens associados à marginalidade tornam-se mais interessantes
para discutir temáticas sociais do que um personagem que segue um
padrão estético androcêntrico, semelhante aos mocinhos brancos
burgueses, de boa moral e sempre dispostos a fazer o “bem”, tão
retratados no cinema clássico. Dá-se aí, maior representatividade a
estes sujeitos até então excluídos nas relações práticas e políticas na
sociedade, tornando possível a sua representação no meio artístico
do cinema.
No próprio Brasil não é diferente, o Cinema Marginal apresenta
uma postura radical à moralidade vigente no país. Filmes como
Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) de Júlio Bressane, A Mulher
de Todos (1969) de Rogério Sganzerla, O Pornográfo (1970) de João
Callegaro entre outros produzidos nos anos de 1968 a 1975, inspirados
na linguagem moderna godardiana e nos signos popularescos de
nossa cultura e da cultura massiva estrangeira, abordam temáticas
antes contidas e reprimidas, até mesmo por conta da censura da
época, visto que essas produções ocorreram durante a Ditadura
Militar (1964-1985).
Porém, isso não os impediu de cutucar, sem o menor pudor,
os tabus mais enrustidos da sociedade, como também a ênfase ao
Trilhas do imaginário | 339

erotismo/pornografia e ao grotesco eram explorados demasiadamente


em narrativas que pareciam debochar das grandes produções
hollywoodianas moralmente comportadas e até mesmo dos
compatriotas do Cinema Novo. Como destaca Ângela José (2007, p. 157)
“À margem da sociedade de consumo e das grandes produções, fitas de
orçamentos baixos, simples, abordando temas insólitos e inesperados,
realizando uma profunda análise do homem e seus valores”. Essa
postura decorre, em parte, pela “atração por cineastas e produções
de classe ‘B’, assim como a atração pelo estilo kitsch(...)”(RAMOS,
1984, p. 76).
Concomitantemente a este cenário, as adaptações para o
cinema das obras de Plínio Marcos como A navalha na carne (1969),
dirigido por Braz Chediak, Rainha Diaba (1974), dirigido por Antonio
Carlos da Fontoura, também reforçam a resistência perante ao
monopólio capitalista e cultural do dito “primeiro mundo”, ao também
abordarem o universo marginalizado brasileiro, lidando com a
hipocrisia do discurso machista e o uso de estereótipos homossexuais
por ele depreciado.
Na contemporaneidade, o Cinema alternativo, no âmbito
nacional ou internacional, continua se destacando no compromisso
político de investigar determinada realidade que está estereotipada
e excluída nos discursos dominantes. As produções cinematográficas
brasileiras das últimas décadas, em especial as de Pernambuco,
vêm se configurando em torno dessa problemática comum sobre
questões sociais e de representação - guardadas as diferenças de
estilo e forma de cada cineasta. Ismail Xavier (2014) descreve que
filmes como O Som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Árido
Movie (Lírio Ferreira, 2003), Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2007),
Boa sorte, meu amor (Daniel Aragão, 2012), Eles voltam (2012) e
outros, exploram certos motivos dramáticos ligados à experiência
contemporânea marcada “pelas permanências do mundo do
‘homem cordial’, [...] mundo que trava a formação da cidadania,
embaralhando o público e privado, repondo a hegemonia de classe
e as tradições patriarcais de mando na vida da cidade” (XAVIER,
340 | Trilhas do imaginário

2014). No contexto internacional, vale mencionar a importância


da obra de Pedro Costa. O filósofo francês Rancière em Política
de Pedro Costa procura pensar a política em alguns filmes de
Pedro Costa, onde destaca a preocupação do cineasta português
em representar “a sorte dos explorados, daqueles que vieram de
longe, das antigas colônias africanas, para trabalhar nos estaleiros
de construção portugueses, que perderam a família, a saúde, por
vezes a vida nesses estaleiros.” (RANCIÈRE, 2009, p. 53)

4 Conclusão
Eduardo Geada (1977, p. 34) diz que o cinema hollwoodiano
sofre algumas mudanças após a crise de 1960, tornando-se mais
flexível em relação aos valores austeros e puritanos do passado, para
se adaptar às novas exigências de mercado e público:

As transformações sofridas pela correlação de


forças a nivel mundial e a passagem do período
da guerra-fria para a política da co-existência
pacífica facilitaram, porventura, o relançamento
do dólar nas indústrias de cinema europeias e no
mercado internacional do filme. Os produtores
norte-americanos procuraram, então revitalizar
a capacidade de mobilização ideológica dos seus
filmes, entretanto mais variados, pluralistas e liberais
do que nunca, e prepararam-se para ganhar a batalha
dos espíritos [...]

Essas mudanças foram ocorrendo paulatinamente ao longo


do tempo, conforme descrevemos, e é preciso dar atenção a este
caráter dinâmico dos discursos, em constante movimento, embora
ainda seja possível perceber a forte presença dos velhos valores
hegemônicos nos meios de comunicação de massa, resistindo à
mudança social e mantendo o status quo (TURNER, 1997, p. 133)
Em paralelo à grande indústria cinematográfica, destacamos a
importância das produções alternativas que vislumbram narrativas
Trilhas do imaginário | 341

mais inclusivas e críticas de forma a combater as representações


padronizadas do cinema clássico.
Assim, analisamos a evolução da linguagem cinematográfica e
suas potencialidades em construir subjetividades, significados e valor
por meio da articulação de suas capacidades técnicas. Verificamos
que o cinema pode tanto perpetuar quanto modificar divisões nas
maneiras de ver, perceber e pensar o mundo. Mundo este que é cada
vez mais marcado pela pluralidade e hibridismo entre as culturas. As
produções alternativas, nesse sentido, nos possibilitam vislumbrar
não apenas novas formas de fazer cinema, mas também ampliam a
representatividade de figuras submetidas historicamente a exclusão
nas artes e na vida social.
Dessa maneira, o contato com o cinema ajuda o indivíduo
adquirir valores e regras de conduta, permitindo este avaliar melhor
seu lugar no mundo, assim como as ideologias e mecanismos de
dominação social que tendem coibir outras expressões artísticas
e, por conseguinte, culturais. Isso vale mesmo que a obra fílmica
trate o que é alheio àquele que espectra, pois o contato ainda assim
proporcionará maiores possibilidades de emancipá-lo e de torná-lo
capaz de conviver harmonicamente com a diversidade cultural do
mundo, cada vez mais híbrida e com suas fronteiras turvas.

Referências
BRITO, João Batista de. Imagens amadas. São Paulo: Ateliê Editorial,
1995.
GONÇALVES, Leonardo. Rua Sórdida: a concepção de um curta-
metragem. Monografia (Graduação em Cinema & Audiovisual) –
Universidade Federal da Paraíba. Paraíba. Ano de obtenção: 2017.
GEADA, E. O Imperialismo e o fascismo no cinema. Ed. Moraes
Editores, 1977.
JOSÉ, Ângela. Cinema marginal, a estética do grotesco e a
globalização da miséria. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2007.
Disponível em: <http://revistaalceu.com.pucrio.br/media/Alceu_n15_Jose.
pdf> Acesso em: 2 de ago. de 2016.
342 | Trilhas do imaginário

MASCARELLO, Fernando. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In


História do cinema mundial. São Paulo: Papirus. 2006.
MORIN, E. A alma do cinema. In: Xavier, I. (Org.) A experiência do
cinema. São Paulo: Graal, 2003.
MULVEY, Laura. O Prazer Visual e Cinema Narrativo (1975). In: Xavier, I.
(Org.) A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 2003.
RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968-1973) – A representação em
seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. Estética e política. São Paulo: EXO/
Editora 34, 2009.
RANCIÈRE, J. Política de Pedro Costa. In: Cem Mil Cigarros – os filmes
de Pedro Costa. Ed. Ricardo Matos Cabo, Lisboa: Orfeu Negro, 2009,
p. 53-63.
TURNER, G. O cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997.
KLANOVICH, Luciana Rosar Fornazari. Corpos erotizados: entre a
morena brasileira e a loira americana (cinema na década de 80 e 90).
UFPB :Revista Ártemis, 2006. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/
index.php/artemis/article/view/2104/1862> Acesso em: 9 de ago. de 2016.
XAVIER, Ismail. Discurso cinematográfico: A Opacidade e a
Transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
XAVIER, Ismail. O cinema ao redor. XVIII Socine, 2014. Disponível em:
<http://www.socine.org.br/anais/2014/interna.asp?cod=335>. Acesso em:
25 de set. 2016.
ZANI, Ricardo. Cinema e narrativas: uma incursão em suas
características clássicas e modernas. UCS. In: Conexão – Comunicação e
Cultura, Caxias do Sul, 2009. <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/
conexao/article/view/118>. Acesso em: 13 de mar. 2017.
| 343

Marcas do imaginário: estudo de caso


da Graphic Novel MSP Turma da Mônica Laços

Jéssica Raissa Pessoa106


Juliana Chacon107
Alberto Pessoa108

1 Introdução
Completando, no ano de 2019, seus 60 anos desde sua primeira
tirinha publicada pela Folha de São Paulo, com o cachorrinho Bidu
saindo de uma caixa para encontrar seu dono, Franjinha, 109 desse
ponto em diante, iniciou-se uma trajetória de sucesso da que, hoje,
certamente é um dos quadrinhos infanto-juvenis mais conhecidos
não apenas no Brasil, mas no mundo inteiro: a Turma da Mônica,
pela Mauricio de Sousa Produções (MSP).
Já em 2013, com mais de 80% do mercado infanto-juvenil de
bancas, de acordo com dados do Estadão110, e derivando do projeto
MSP 50, que, em 2009, comemora os 50 anos de seu criador, é criado o

106 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC/UFPB).


Bolsista Capes. E-mail: [email protected].
107 Bacharela em Comunicação em Mídias Digitais pela UFPB. E-mail:
[email protected].
108 Orientador do trabalho. Professor pós-doutor do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected].
109 Informação extraída de <https://f5.folha.uol.com.br/diversao/2018/07/no-
aniversario-de-sua-1a-publicacao-mauricio-de-souza-anuncia-abertura-de-
seu-estudio-para-fas.shtml>. Acesso em: 10 de out. 2018.
110 Dados extraídos de <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,com-a-marvel-
como-modelo-mauricio-de-sousa-investe-em-graphic-novels,1097129>. Acesso
em: 10 de out. 2018.
344 | Trilhas do imaginário

selo Graphic MSP, em 2011111. O selo em questão designa graphic novels


(novela gráfica, em tradução livre) nas quais autores independentes,
em estilo próprio, utilizam personagens da Turma da Mônica em
histórias próprias e autorais.
Dentre essas graphic novels está Turma da Mônica – Laços,
dos autores Vitor Cafaggi e Lu Caffagi. Segunda HQ pela coleção
MSP112 e lançada em 2013 (algumas fontes também registram como
2014), narra uma história que conta com o principal quarteto do
selo (Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão): após o desaparecimento
do cachorro do Cebolinha, Floquinho, seus três amigos embarcam
com ele em uma aventura para ajudá-lo em sua busca.
A graphic Laços é, até hoje, um dos mais aclamados sucessos
da coleção, gerando sequências, dentro da própria coleção, com
Lições e Lembranças. Além disso, Laços gerou, também, um filme
longa-metragem, de mesmo nome, a ser lançado no ano de 2019,
que é, justamente, o ano da comemoração dos 60 anos da Turma da
Mônica, pode-se dizer. Sobre o sucesso do selo Graphic MSP, Azevedo
e Senna (2017, p. 58) explicam:

As novelas gráficas foram uma oportunidade de


resgatar um público que cresceu lendo A Turma da
Mônica, mas com o passar do tempo desenvolveu
interesses diferentes que as histórias tradicionais da
turma não supriam. Com a perspectiva de alcançar
um público adulto, mas não esquecendo seu público
principal, as crianças, e de dar oportunidade a
artistas que cresceram com a referência da turma

111 Informação extraída de <https://s3.amazonaws.com/academia.edu.


documents/35661628/Turma_da_Monica_e_a_expansao_para_as_graphic_
novels.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1539391
746&Signature=CpNbcKOReDK8a%2BarIClU%2Foz2MrE%3D&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DTurma_da_Monica_e_a_expansao_
para_as_gra.pdf>. Acesso em: 08 de out. 2018.
112 Lista completa das graphic novels já lançadas pela coleção MSP em <http://
www.guiadosquadrinhos.com/capas/graphic-msp/gr011104>. Acesso em: 11
de out. 2018.
Trilhas do imaginário | 345

da mônica, fazerem suas releituras das personagens


e universo, nasceu a Graphic MSP.

É com isso em mente que, no caso da própria graphic Laços,


essa lança mão do imaginário de seu público para atraí-los e cativá-
los. Imaginário, a partir da teoria de Durand e de acordo com SILVA
(2017), nada mais é do que aquilo que vem de imediato à mente,
que é imaginado e que dá sentido às experiências de um indivíduo.
Desse modo, em sua história de aventura infantil é efetiva em sua
comunicação, usando dessa capacidade de gerar sentido para com
seu público. Sentido esse que, por vez, gera atração e entendimento,
além de um sentimento de empatia e reconhecimento.
Assim, com o intento de compreender as subjetividades de
sua narrativa, no que se refere ao imaginário, este artigo segue uma
linearidade que parte da explanação do objeto de estudo (quem é
a Turma da Mônica e qual sua história) para o referencial teórico
(imaginário), de modo que, por fim, a partir disso, seja feita a análise
e as considerações finais acerca do estudo realizado.

2 A Turma da Mônica: uma história de gerações


Em 1959, Maurício de Sousa abandona o trabalho de repórter e
decide se dedicar à sua paixão por história em quadrinhos, publicando
sua primeira tirinha com os primeiros personagens da Turma da
Mônica, Franjinha e Bidu, pela Folha de São Paulo. Posteriormente,
também na Folha de São Paulo, foram lançados os personagens
presentes centrais de Laços (incluindo o principal quarteto da Turma):
Cebolinha (1960), Floquinho (1963), Mônica (1963), Cascão (1963) e
Magali (1964), respectivamente. 113
Com a popularidade de seus personagens, em 1970,
Maurício de Sousa lança, enfim, a primeira revista: Mônica e a
sua Turma (contanto com uma tiragem de nada menos do que

113 CAFAGGI, Vitor; Lu, CAFAGGI. Turma da Mônica – Laços. São Paulo: Maurício
de Sousa Editora / Panini Comics, 2014.
346 | Trilhas do imaginário

200 mil exemplares, na época114), que viria a se tornar A turma


da Mônica. Com o tempo, mais personagens e turmas sugiram,
de modo a, além de aparecerem na revista e/ou deram origem a
outras, como Turma do Chico Bento, Turma do Penadinho, Turma
da Mata, por exemplo. 115
Desse ponto em diante, o sucesso de sua criação só aumentou,
do Brasil para o mundo: atualmente, a turma da Mônica conta com
gibis e demais produtos licenciados em 40 países e um total de
14 traduções de idioma116. Para que se tenha uma ideia, em 2011,
enquanto a DC Comics vendeu 200 mil exemplares da revista Liga
da Justiça #1 (alcançando o mérito de título mais vendido do mês,
no mundo), a revista da Turma da Mônica Jovem “Quer namorar
comigo?” (apresentando, na capa, o beijo de Mônica e Cebolinha),
vendeu 500 mil117.
Apesar dos números já expressivos, no ano de 2011, em
segmento às publicações de aniversário de 50 anos da Maurício de
Sousa Produções, é criado o selo Graphic MSP, visando, com suas
graphic novels, reaver, principalmente, o público já adulto que havia
crescido com a Turma da Mônica, resultando em uma coleção de
grandes sucessos e público. Assim, percebe-se que a Turma da Mônica,
atualmente, mais do que nunca, estabeleceu-se como um sucesso
que atingiu e ainda atinge públicos de variadas faixas etárias no
decorrer de gerações.

114 Dado extraído de: <https://www.buzzfeed.com/clarissapassos/55-coisas-que-


voce-nao-sabia-sobre-a-turma-da-monica>. Acesso em 12 de out. 2018.
115 Maurício de Sousa: conheça a trajetória do criador da Turma da Mônica.
2018. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2018/05/
mauricio-de-sousa-conheca-trajetoria-do-criador-da-turma-da-monica.html>.
Acesso em 11 de out. 2018.
116 Dados extraídos de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Turma_da_M%C3%B4nica>.
Acesso em 12 de out. 2018.
117 Dados extraídos de: <https://legiaodosherois.uol.com.br/2013/50-anos-de-monica.
html>. Acesso em: 12 de out. 2018.
Trilhas do imaginário | 347

3 Laços e o sucesso das graphic novels da coleção MSP


O projeto Graphic MSP, de fato, deriva do projeto MSP 50, o
qual está relacionado a comemoração dos 50 anos dos quadrinhos de
Maurício de Sousa (visto que a tirinha com primeiros personagens,
Bidu e Franjinha, foi publicada em 1959). Para essa comemoração, são
publicados três álbuns: “MSP 50 – Maurício de Sousa por 50 artistas”
(2009) e, devido ao sucesso do primeiro, “MSP + 50 – Maurício de
Sousa por mais 50 artistas” (2010) e “MSP Novos 50 – Maurício de
Sousa por 50 novos artistas” (2011). Cada um desses contava com
histórias curtas e autorais de variados quadrinistas brasileiros, com
os personagens do estúdio.
Em vista do enorme sucesso dos álbuns, é percebida a
possiblidade de graphic novels como novos produtos. Azevedo e Senna
(2017, p.58) bem definem que esse formato se refere às “histórias em
quadrinhos que permeiam o universo dos livros. Elas possuem um
começo e fim normalmente bem delimitados”. Todavia, atualmente,
as graphic novels costumam ser mais do que isso, de modo que as
mesmas autoras complementam o conceito, ao dizer, logo em seguida,
que essas são “histórias que tratam de assuntos profundos com o
intuito de fazer as pessoas refletirem sobre questões da vida”.
Eisner (2010, p.138) já afirmava “o futuro da graphic novel
encontra-se na escolha de temas importantes e na inovação da
exposição”. A Maurício de Sousa Produções (MSP) busca justamente
essa inovação de seu formato e narrativas, propondo o convite de
diferentes quadrinistas independentes para o desenvolvimento de
graphic novels para a coleção, utilizando os personagens em um
roteiro e traço mais autoral, havendo apenas restrição para morte
de personagens, sexualização, dentre outras questões similares,
por exemplo.
Essa liberdade de criação, por autores independentes, gera
narrativas que seguem por caminhos mais imprevisíveis ao leitor,
mas, além disso, até mesmo pelo seu formato, e como salientado pelas
citações anteriores, são permitidos novos pontos de vista e a discussão
348 | Trilhas do imaginário

de temas mais diferenciados, complexos e profundos, em relação ao


material original. O sucesso do formato e das histórias apresentadas
faz com que as graphic novels da coleção permaneçam sendo lançadas,
sem qualquer previsão de fim. São, atualmente, 19 quadrinhos já
lançados, sendo uma periodicidade de 3-4 quadrinhos por ano.
Danilo Beyruth (autor da Graphic MSP Astronauta – Magnetar, com
Cris Peter) ainda faz uma comparação com a fase áurea da Marvel
Comics em 1960, ao afirmar “A MSP virou uma casa de ideias, como
a Marvel era” 118.
Laços é um dos frutos mais bem sucedidos dessa coleção, o
que fica comprovado pelas duas sequências já feitas para a história
(Lições e Lembranças) e pelo filme longa-metragem em live action
(adaptações cinematográficas com atores reais119) de mesmo nome
a ser lançado em 2019. Com uma estética meiga e, à primeira vista,
simples, essa graphic pode enganar, uma vez que, em verdade, a
mensagem por traz de seu visual e narrativa é mais profunda.
Com uma base que lembra bastante filmes da infância,
principalmente, de muitos brasileiros anos 1980 e 1990, como Goonies
(1985) e Garotos perdidos (1988), por exemplo, juntamente com uma
série de referências do mesmo período espalhadas pela graphic, como
Chaves e Thundercats, provoca em nós, juntamente com sua história
de crianças, uma identificação, uma empatia, um sentimento de
nostalgia. Além disso, Laços traz uma mensagem que fala de união,
amizade, esperança, amor, etc.
Tudo isso somado à variados elementos de sua narrativa (dos
quais os principais serão identificados na análise) tem a capacidade de
provocar o imaginário do leitor, especificamente daquele pertencente
ao principal público-alvo: adultos que, tal qual os autores, tiveram
sua infância entre os anos 80 e 90 e cresceram com a Turma da

118 Conceito extraído de <http://icbeusjc.com.br/site/2017/09/19/voce-sabe-o-que-


e-live-action/>. Acesso em: 12 de out. 2018.
119 Extraído de <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,com-a-marvel-como-
modelo-mauricio-de-sousa-investe-em-graphic-novels,1097129>. Acesso em: 10
de out. 2018.
Trilhas do imaginário | 349

Mônica. Mas para identificar e compreender os mecanismos desses


elementos provocativos ao imaginário, antes é preciso entender o
próprio conceito de imaginário.

4 O imaginário
Gilbert Durand criou uma organização classificatória
das imagens, através de sua tese do doutorado, no ano de 1960,
denominada as estruturas antropológicas do imaginário, que ademais
se transformaria em um livro fundamental para o estudo sobre as
imagens. O imaginário é o acúmulo de imagens que ao longo da
vida todo ser humano coletou e de forma coletiva e individual dá
sentido ao mundo, a junção de todas as imagens traz o significado
de tudo o que existe120. Segundo Laplantine e Trindade (2003) “O
imaginário, ao libertar-se do real que são as imagens primeiras,
pode inventar, fingir, improvisar, estabelecer correlações entre os
objetos de maneira improvável e sintetizar ou fundir essas imagens”.
Sendo o imaginário o lugar onde se armazena e manipula todas as
imagens, além das imagens reais é o lugar onde é possível migrar
para o irreal, que talvez um dia se torne realidade.
A imagem é uma representação de um original, já visto
previamente pela pessoa. Juntando várias imagens simbólicas, as
pessoas compreendem o mundo e nisso dão significado e criam os
seus pensamentos. Wunenburger (2007) explica que o imaginário
é “(...) o estudo das produções imagéticas, de suas propriedades e
de seus efeitos(...)”. Com isso, pode se entender que o imaginário é
“(...) o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o
capital pensado do homo sapiens (...)” (DURAND, 2012 p.18). Sendo a
imagem de muita importância para as nossas experiências de vida,
ela “possui o atributo básico de mobilizar nossos afetos, memória,
percepções, nos exigindo formas de acompanhar seu movimento”

120 PITTA, Danielle. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. 2ª ed.


Curitiba: Editora CRV. 2017.p. 8.
350 | Trilhas do imaginário

(FERREIRA-SANTOS E ALMEIDA, 2012 p.31). Por finalidade de um


melhor entendimento, é preciso observar e analisar como se estrutura
o processo do imaginário.

Para construir o processo do imaginário é preciso


mobilizar as imagens primeiras, como dos homens,
cidades, animais e flores conhecidas, libertar-se
delas e modificá-las. Como processo criador, o
imaginário re-constrói ou transforma o real. Não
se trata, contudo, da modificação da realidade, que
consiste no fato físico em si mesmo, como a trajetória
natural dos astros, mas trata-se do real que constitui
a representação, ou seja, a tradução mental dessa
realidade exterior. (LAPLANTINE e TRINDADE, 1997,
p. 26-27)

O imaginário utiliza os símbolos para se expressar, tendo ele a


função de esclarecer qualquer ideia que surja a mente. Assim sendo, o
imaginário e o símbolo, de acordo com Laplantine e Trindade (1997),
“são sinônimos que emergem do inconsciente universal, doador
de significados e, ao mesmo tempo, irredutível aos significados
históricos e culturais que os homens atribuem a esses símbolos”.
Os símbolos possuem seus significados a partir da pessoa que o
proferiu, porém, cada pessoa tem sua interpretação a partir do seu
repertorio imagético.

5 Estruturas do imaginário
Para categorizar as imagens, Gilbert Durand criou duas
estruturas, sendo elas o regime diurno e o regime noturno. Na cultura
ocidental é o regime diurno que prevalece, sendo este um regime
no qual os seus principais símbolos têm relação com o heroísmo,
o poder, a ascensão e a razão. As ideias mais presentes são as de
verticalidade, ascensão, o próprio herói guerreiro, dominação. Esse
regime é sempre muito representado através de imagens de animais
ferozes, dentes, fogo, rei guerreiro, entre outras coisas mais.
Trilhas do imaginário | 351

O Regime Diurno tem a ver com a dominante


postural, a tecnologia das armas, a sociologia do
soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação
e da purificação; o Regime Noturno subdivide-
se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira
subsumindo as técnicas do continente e do hábitat,
os valores alimentares e digestivos, a sociologia
matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando
as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da
indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais
do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos.
(DURAND, 2012, p. 58)

Diferentemente do regime anteriormente visto, o regime


noturno tem suas imagens nas ideias de descida, profundidade, queda,
refúgio, transformação e em imagens de noite, como sombras, águas
profundas, monstros, serpentes, abismos, natureza, terra, árvores,
répteis, lagartos, peixes, flores, alimentos, grãos e dentre outros.

6 Análise da graphic novel Laços: as marcas do imaginário


Para a análise, foram escolhidos os principais pontos onde
os regimes do imaginário, diurno e noturno, se faziam presente na
representação de mais imagens simbólicas possíveis. Tendo como
base a sua importância para o desenrolar da história. Sendo os
pontos mais abordados os relacionados aos temas da animalidade,
com a representação do lobo e do cão, além de outros pontos como
a noite, da escuridão, do calor, da queda e da descida.
A representação dos lobos e dos cães no quadrinho Laços,
em sua grande maioria (por exceção do cachorro do protagonista,
o qual desapareceu no começo da história), traz em si o significado
de monstros e de perigo. As cenas principais envolvendo-os são
sempre ao anoitecer, onde “O bom senso popular não chama à hora
crepuscular a hora “entre cão e lobo”” (Durand 2012 p. 92). É no
crepúsculo, como mostrado na figura 01, que as situações de perigo
estão em maior evidencia e “No folclore, a hora do fim do dia, ou a
352 | Trilhas do imaginário

meia-noite sinistra, deixa numerosas marcas terrificantes: é a hora


em que os animais maléficos e os monstros infernais se apoderam
dos corpos e das almas” (DURAND 2012 p. 91). Isso se confirma na
figura 01, na qual o morador de rua avisa exatamente isso para
os garotos, os previnindo do perigo que é a floresta ao anoitecer,
inclusive os perigosos caninos que nela vivem.

Figura 01. Recorte da página 35

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços

O lobo é um antigo “inimigo” do ser humano, por seu caráter de


fera. Apenas posteriormente, em sua teórica evolução, para o cachorro,
o qual foi domesticado, é que passou a ocorrer uma convivência e
até mesmo companheirismo. Mesmo assim, “Para a imaginação
ocidental, o lobo é o animal feroz por excelência. Temido por toda
a Antiguidade e pela Idade Média” (DURAND, 2012, p.85). O lobo é,
comumente, protagonista de muitas histórias e mitos assustadores,
uma vez que, como Durand (2012, p.86) já afirma, “O lobo é ainda
no século XX um símbolo infantil de medo pânico, de ameaça, de
punição”. Ele é recorrente no imaginário popular como vilão em,
por exemplo, contos que são repassados para as crianças terem em
mente os perigos e se prevenirem contra tão terrível ameaça. Durand
(2012, p. 84) explica:

[...] a boca que passa a simbolizar toda a animalidade,


que se torna o arquétipo devorador dos símbolos
que vamos examinar. Reparemos bem num aspecto
essencial deste simbolismo: trata-se exclusivamente
da boca armada com dentes acerados, pronta a
triturar e a morder.
Trilhas do imaginário | 353

A boca da fera traz em si os dentes bem afiados, que são


assustadores. Ela representa grande perigo, e não é apenas a
mordida, mas todas possíveis variações de ações provindas dela:
“É, portanto, na goela animal que se vêm concentrar todos os
fantasmas terrificantes da animalidade: agitação, mastigação
agressiva, grunhidos e rugidos sinistros” (DURAND, 2012, p. 85).
Nas figuras a seguir, fica bem evidente os símbolos presentes nas
imagens referentes ao regime diurno, no quadrinho, no momento
em que a turma da Mônica encontra na floresta os lobos e o canil
de cachorros.

Figura 02. Recorte da página 50

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços

Na figura 2, é possível ver os vultos e olhos dos lobos, porém


em vez de ameaçar com a boca aberta e dentes a mostra, os olhos
brilhantes chamam mais a atenção e transmitem mais o medo.
Além dos grunhidos e rosnados como os que podem ser notados
nas onomatopeias da figura 2, 3 e 4. As crianças, como já foram
devidamente avisadas dos perigos, se abraçam e tentam se proteger,
claramente temendo que o pior aconteça. “É, portanto, na goela
animal que se vêm concentrar todos os fantasmas terrificantes da
animalidade: agitação, mastígação agressiva, grunhidos e rugidos
sinistros. ” (DURAND, 2012, p. 85)
354 | Trilhas do imaginário

Figura 03. Recorte da página 60

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços

Figura 04. Recorte da página 69

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços

Nas figuras 3 e 4, é o cão que se faz presente. Esses cães mostram


seus dentes e tentam avançar de forma agressiva nas crianças, no
entanto, é no homem do canil que eles, de fato, saltam. Homem esse,
Trilhas do imaginário | 355

que judiava dos pobres animais. Os cães latem e se apresentam de


forma ameaçadora, em posição de ataque, mostrando o lado bestial
do animal, como o

lobo devorador, como nos nossos campos franceses,


onde se diz indiferentemente que um cão “uiva à
lua” ou “uiva à morte”. Com efeito, a duplicação mais
ou menos doméstica do lobo é o cão, igualmente
símbolo da morte (DURAND, 2012, p. 43).

Figura 05. Recorte da página 69

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços

Figura 06. Recorte da página 43

Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços


356 | Trilhas do imaginário

Nas figuras 5 e 6, podemos analisar a escuridão altamente


presente nas cenas, gerando medo e angústia nas crianças: “Esta
angústia seria psicologicamente baseada no medo infantil do negro,
símbolo de um temor fundamental do risco natural” (DURAND
2012, p.91). Sendo comum uma criança ter medo do escuro, por
não saber o que se encontra nele e pela possibilidade em encontrar
algo perigoso, é provável que seu imaginário apresente alguma
memória na qual algo de ruim ocorreu no escuro ou apenas a
lembrança das advertências de outras pessoas sobre o perigo
da noite. Inclusive, na figura 1, vemos a imagem do homem as
alertando sobre os perigos do parque a noite, ao que Durand (2012,
p.92) confirma “a noite recolhe na sua substância maléfica todas
as valorizações negativas precedentes”.
Em ambas as figuras, também é possível notar a presença
de animais pequenos e/ou rastejantes, como os insetos que,
provavelmente, são vagalumes (figura 5) e a teia de aranha (figura
6). Sendo a presença de “(...) insetos em geral, e que expressam
a repugnância primitiva diante da agitação incontrolável que é
o arquétipo do caos”. (PITTA p. 27). Claramente, existe um medo
enorme nas crianças ao passar pelos vagalumes, além da teia de
aranha que traz em si uma representação
imagética bem negativa, sendo este “o
simbolismo negativo da aranha, fiandeira
exemplar e devoradora” (DURAND 2012
pag.315). Uma vez que esses insetos são a
parte da imagem a demostrar os perigos
da noite, são símbolos bem precisos
que ajudam o leitor a perceber que a
narrativa está sendo direcionada para
algo deveras incerto.

Figura 07. Página 41


Fonte: Graphic MSP Turma da Mônica Laços
Trilhas do imaginário | 357

A descida é um
momento no qual é
necessário perseverar
e tomar todo o cuidado,
pois desde cedo fomos
ensinados a andar e tomar
cuidado com a gravidade
ao nosso redor (DURAND,
2012, p.112), além disso
nesse fator da queda há
lembranças ruins e com
prováveis machucados,
que muitas pessoas guardam em seus imaginários: imagens de quando
mais novos, quando caíram e se machucaram de alguma forma.
Porém, mesmo sendo um momento de possível derrota, é necessário
e “Trata-se de “desaprender o medo”. É uma das razões pelas quais
a imaginação da descida necessitará de mais precauções que a da
ascensão” (DURAND 2012, p. 201). A alta montanha da qual a turma da
Mônica caiu foi um obstáculo enorme, que causou sequelas, mas que
os farão mais forte
para enfrentar os
perigos da vida.

Figura 08 (acima).
Recorte da página 42
Figura 09 (ao lado).
Recorte da página 45

Fonte: Graphic MSP


Turma da Mônica Laços
358 | Trilhas do imaginário

Em meio a todo o caos, o fogo traz consigo a esperança e se


destaca em meio a escuridão: “Pelo calor tudo é profundo, o calor
é signo de uma profundidade, o sentido de uma profundidade”
(DURAND, 2012, p. 202). A profundidade que vem com ele ajuda a
unir e aconchegar as crianças nesse momento em que estão em tão
grande desamparo. Ele também demonstra a grande inteligência das
crianças, tal como Durand (2012, p. 174) expõe “[...]o simbolismo
intelectual do fogo. O emprego do fogo marca, com efeito, “a etapa
mais importante da intelectualização” do cosmos”. A sagacidade das
crianças mesmo tão novas e conseguindo sobreviver tão bem aos
perigos da noite e da floresta demonstra um grande nível intelectual.
Todas as figuras presentes na análise possuem em si o
simbolismo da escuridão, mesmo a figura 3, no qual se apresenta
na hora do crepúsculo sendo este o prelúdio do anoitecer, que é
característico do regime noturno, enfatizando assim o caótico, o
misterioso e o sombrio. Além desse elemento, alguns outros estão
presentes, os quais se dividem entre ambos os regimes. As figuras 1,
2, 3 e 4 tendo o cão e o lobo, remetem ao regime diurno.
Por sua vez, nas figuras 5, 6 os símbolos predominantes são
a escuridão e os insetos, havendo uma mistura, pois a escuridão é
um elemento do diurno e os insetos são do regime noturno. Assim
como nas imagens citadas anteriormente, as 7 e 8 possuem em si
essa dualidade, onde a descida é uma característica do noturno,
mas precaução dos perigos da queda são provindos do diurno. Por
fim, na imagem 9, mesmo se fazendo presente a escuridão, temos a
presença do fogo, que é um elemento do regime noturno.

7 Considerações finais
Por meio desse trabalho, foi possível uma compreensão inicial
das subjetividades presentes na graphic novel Laços, da coleção
MSP, e por consequência, de que modo seu imagético, ao longo da
narrativa de uma aventura infantil, age sobre o imaginário de seus
leitores, gerando identificação, interesse e apatia.
Trilhas do imaginário | 359

Essa identificação, classificação e análise foi possível devido às


classificações concebidas por Durante acerca do Imaginário, dentro
das categorias do regime diurno e regime noturno. Classificação
essa que permite a designação dos signos e uma compreensão das
possíveis formas pela qual o leitor dessa obra pode compreender e
relacionar, a partir de um suprassumo de sua experiência de vida e
do seu banco de imagens e sentimentos vinculados ao seu imaginário
particular e coletivo.

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Você sabe o que é live-action!?. Disponível em: <http://icbeusjc.com.
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2018.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário 1ª ed. São Paulo: Editora:
Loyola. 2007.
Ariana Grande, em God is a woman
Fonte: https://wallpaperaccess.com/ariana-grande-god-is-a-woman
| 363

Criação, sexualidade e ascensão:


o imaginário simbólico no clipe
God is a woman de Ariana Grande

Esmejoano Lincol França121


Gilmara da Mata Farias122
Sandra Raquew Azevêdo123

1 Introdução
O videoclipe é uma ferramenta utilizada desde a década
de 1950 como veículo de produção de sentido ou mesmo de
uma extensão do sentido produzido por um artista musical. Se
inicialmente ele era notado nos filmes musicais, como no clássico
O prisioneiro do rock, onde Elvis Presley pode imortalizar sua
canção Jailhouse rock, depois ele passou a criar vida própria
com os Beatles e o Abba, duas das primeiras grandes bandas que
popularizaram seus vídeos musicais ao redor do mundo entre as
décadas de 1960 e 1970. O Brasil também teve sua participação na
vanguarda do desenvolvimento destes vídeos com o Fantástico,
da Rede Globo, que a cada domingo, durante as décadas de 1970
e 1990, exibia clipes musicais produzidos pelo próprio programa
(SOARES, 2013).

121 Mestrando em Comunicação e Culturas Midiáticas pelo Programa de Pós-


Graduação em Comunicação (PPGC) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: [email protected].
122 Mestranda em Comunicação e Culturas Midiáticas pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação (PPGC) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
E-mail: [email protected].
123 Doutora em Sociologia. Professora Associada da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Atua no Departamento de Jornalismo da instituição. E-mail:
[email protected]
364 | Trilhas do imaginário

Mas foi com o canal Music Television – MTV – que o videoclipe


pode se consolidar não apenas como um produto de consumo,
mas como um produto cultural, portador de significados únicos
e de influências perenes para a indústria da música. Neste canal,
os vídeos eram lançados pelos mais diversos artistas populares,
sobretudo aqueles que se conectavam em alguma medida com
o público jovem. Este poderio cultural só veio a ruir a partir da
década de 2000, quando a internet também a passou distribuir
conteúdo audiovisual de maneira massiva – na maioria das vezes
gratuita e sem redistribuição de lucros de volta para gravadoras,
empresários e artistas.
Apesar de ter sido redesenhada, a indústria do videoclipe
permanece ativa, com alcance e influência potencializados pela
internet. Mas o imaginário popular produzido pelos clipes da “era
televisiva” continua povoando nossa memória – tanto entre aqueles
que consumiram o vídeo na época no lançamento, há 20, 30 anos, como
entre aqueles que conheceram o clipe agora, graças a plataformas
como o Youtube. Não à toa, muitos vídeos lançados nas décadas de
80 e 90 permanecem como referências do gênero. Bad de Michael
Jackson, Like a prayer de Madonna e I want to break free do Queen
são exemplos que de clipes que se estabeleceram na cultura popular
e na memória dos que consomem esta cultura.
No rastro de sua produção de sentido, o videoclipe também
pode ser usado como ferramenta sociológica, com a discussão de temas
pertinentes em suas narrativas. Os clipes citados acima, a propósito,
traziam algumas dessas discussões, tanto de modo mais explícito,
a exemplo de Bad, que abordava os problemas da juventude negra
americana, como através de subtextos, como em Like a prayer, que
problematizava o racismo sob a representação religiosa do negro
(SOARES, 2010).
A produção de sentidos sociais nos clipes hoje em dia é
notável graças ao ativismo na internet. Este espaço cibernético,
segundo Carolina Brito (2016, p. 01), serve “não apenas como meio
de entretenimento e lazer, mas sim para pesquisa de conteúdo,
Trilhas do imaginário | 365

criações artísticas, divulgações e debates, também, relacionados à


vida off-line oferecendo um novo espaço de militância”. Citando
Eugênio Trivinho (2006), Brito (2016), dirá que há a formação de uma

(...) politização multilateral124, que muitas vezes não


pretende ficar apenas no espaço virtual. Para atingir
o público e/ou a sociedade como um todo, os grupos,
ONGs ou coletivos, se utiliza, desta cibermilitância
e dromocracia, também, para articulações políticas
de atos, encontros para debates e divulgação de
eventos, nascidos ou não no ciberespaço, mas que
acontecem também na esfera “off-line” através de
interação interpessoais que tentam reestruturar
a visão social sobre determinados temas. (BRITO,
2016, p. 05-06),

Atingindo em cheio a produção audiovisual, o ativismo


pode utilizar-se de imagens concretas e subtextos (nos exemplos
já citados em Bad e Like a prayer) para produzir sentidos. E é
exatamente na representação e classificação dos subtextos
imagéticos que repousa o objetivo deste artigo. Destacando as
imagens simbólicas encontradas em um determinado videoclipe,
pretendemos analisa-las e agrupa-las conforme os estudos que
teorizam a constelação simbólica que povoa o imaginário coletivo,
dentre elas, sua vertente antropológica organizada pelo francês
Gilbert Durand (1921-2012).
Escolhemos como corpus de nossa análise o clipe God is a
woman, da cantora americana Ariana Grande, vídeo dirigido por
Dave Meyers para a música homônima – terceiro compacto do álbum
Sweetener. Lançado em 13 de julho de 2018 no Youtube, o produto
audiovisual estreou numa época em que diversos movimentos
feministas na internet lançavam mão deste meio digital para
denunciar e combater diversas formas de assédio, como o #MeToo,

124 Segundo Brito (2016, p. 5), o termo utilizado por Trivinho define “as relações
a politização da cibercultura, seus vetores de sustentação e relação com a
dromocracia”.
366 | Trilhas do imaginário

#VamosJuntas e #MeuPrimeiroAssédio (PEREIRA, 2018). Nosso intuito


neste paper é destacar e analisar algumas das imagens simbólicas
femininas do videoclipe, agrupando-as em três tipos: imagens que
remetem à criação, imagens que remetem à sexualidade e imagens
que remetem à ascensão (ou verticalidade). Para isso, utilizaremos
três metodologias complementares, que serão melhor descritas nas
seções seguintes deste trabalho: a pesquisa bibliográfica, a análise
fílmica e a hermenêutica simbólica.

2 Videoclipe: elementos e metodologia


A música pop se configura como um dos meios pelos quais
a indústria cultural pôde criar produtos e sentidos ao longo dos
séculos XX e XXI. Como já preconizado na Introdução deste artigo,
a vinculação do vídeo à música foi uma criação do cinema que
encontrou um mercado expectatorial vantajoso na TV e que, depois
de algumas décadas, passou a ser ressignificado pela internet. Mas,
a produção de videoclipes ao longo dos últimos 50 anos permaneceu
sob um propósito maior: ancorar a produção musical de um artista à
sua imagem. Especificamente sobre a mulher na indústria fonográfica,
Soares (2013) revelará que

a voz feminina, a variar de timbre, volume e


entonação, desperta para a composição de uma
série de imagens previamente inscritas e que,
muitas vezes, são incorporadas em materiais
de divulgação – incluindo videoclipes (SOARES,
2013, p. 162).

Sobre a representação musical e imagética da canção, por


vezes há uma “disjunção” entre o que é visto no clipe e ouvido na
música na qual ele se baseia, mas não no sentido de que estes dois
elementos não se relacionam de nenhuma maneira. É que nem
sempre as associações entre o texto musical e o texto fílmico são
óbvias ou de fácil detecção para todos os públicos. Umberto Eco
Trilhas do imaginário | 367

(1989), ao falar do caráter dialógico dos textos que se relacionam


em alguma medida, também dirá que apenas alguns leitores ou
espectadores terão bagagem discursiva e textual suficiente para
entender a relação estabelecida entre os dois produtos; seria
necessário o estabelecimento de uma visão crítica por parte do
espectador para entender os sentidos depositados em camadas não-
superficiais do texto; em se tratando da obra que aqui analisamos, God
is a woman, as significações imagéticas que tentaremos desvendar
estarão, quase todo o tempo, no âmbito do subtexto.
Na impossibilidade haver uma metodologia própria para a
análise de videoclipes, recorremos àquela mais próxima deste conteúdo
audiovisual: a análise fílmica, orientada por Francis Vanoye e Anne
Goliot-Lété (2002). Segundo esses autores, utilizar esta metodologia
significa “a atividade de analisar (...)” um filme; “(...) também pode
significar o resultado dessa análise, isto é, com algumas exceções, um
texto” (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002, p. 14). Para Vanoye e Goliot-
Lété, isolando e descontruindo a obra fílmica, podemos analisar cada
um dos pedaços destacados, buscando compreender, depois, o elo une
estes fragmentos (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 2002).
Realizando uma pesquisa bibliográfica para balizar
nossas impressões sobre este gênero ausdiovisual, o videoclipe,
encontraremos substanciais referências bibliográficas sobre clipes
em trabalhos de Thiago Soares e Jeder Janotti Júnior (2008; 2014)
e Carolina Brito (2016). No tocante à análise deste tipo de produto
audiovisual, o videoclipe, Thiago Soares (2013) dirá:

(...) é preciso compreender que a análise de um


videoclipe, tomando-o como uma performance
da canção popular massiva, não pode ignorar
dinâmicas discursivas dos objetos, ou seja, que
condições de produção e reconhecimento geraram
também gramáticas de produção e reconhecimento
nas canções e nos clipes. Discutindo estes aspectos,
estaremos nos direcionando à constituição da
ampliação da relação empreendida entre videoclipe
368 | Trilhas do imaginário

e gêneros musicais, uma vez que, através do conceito


de performance, é possível localizar as constituições
entre clipe, canção e estratégia de endereçamento
genérica (SOARES, 2013, p. 151).

Para destacarmos os fragmentos necessários para nossa


análise, recorreremos a recortes de frames (quadros) das sequências
do clipe onde as temáticas imagéticas esta obra estão. Estes frames
serão obtidos através da ferramenta Print screen do Windows. A
minutagem de cada uma das imagens selecionadas será referenciada
em minutos (’) e segundos (’’) e cada vez que uma mesma imagem
aparecer novamente no videoclipe a minutagem da recorrência
também será creditada.
Escolhemos nove sequências dentre as diversas que o clipe
oferece. Este recorte se justifica pois estas são as imagens que mais
tomam tempo de projeção no clipe e as que mais se repetem ao longo
dos 04’11’’ do vídeo. São elas: Ariana com a Via Láctea representada
em seu ventre (Figura 1); Ariana amamentando três homens (Figura
3); Ariana em uma imagem que remete ao afresco O nascimento de
Adão (Figura 5); Ariana nua no centro da imagem que remete a uma
vagina (Figura 7); Ariana simula um gesto masturbatório em um furacão
(Figuras 8 e 9); Ariana medita enquanto faz um gesto obsceno com as
mãos (Figura 11); Ariana sentada sob um livro enquanto é atacada
verbalmente por vários homens (Figura 12); várias imagens de Ariana
constituindo uma montanha (Figura 14); Ariana retratada como uma
espécie de guerreira, gladiadora (Figuras 15 e 16).

3 Imaginário: elementos e metodologia


As teorias que estudam o imaginário foram sendo construídas
ao longo do século XX com trabalhos dos mais diversos autores.
Danielle Pitta (2016) cita Gaston Bacherlard, Mircea Eliade, Henry
Corbin, Edgard Morin e Gilbert Durand como “os pais fundadores
da noção de imaginário” (PITTA, 2016, p. 11), dando respaldo
também às contribuições de outros autores como Carl J. Jung,
Trilhas do imaginário | 369

Paul Ricoeur e Ernst Cassirer. Os trabalhos destes autores visam


o estudo das diversas representações simbólicas que o homem
vem desenvolvendo desde o despertar de sua consciência até os
tempos atuais.
As noções básicas de imaginário se debruçam sobre quatro
conceitos elementares: o schème, a imagem ancestral da qual todo
o símbolo descente; o arquétipo, estado simbólico preliminar da
imagem, constituinte de símbolos diversos, de caráter generalista;
o símbolo, a representação cristalizada de uma imagem, eternizada
como um signo, mas de caráter mais pessoal; e o mito, que segundo
a definição de Durand (apud PITTA, 2016, p. 23) é “‘um sistema
dinâmico de símbolos, arquétipos e schèmes que tente a se compor
em relato’”.
Coube a Gilbert Durand a elaboração de uma das classificações
mais consagradas das imagens que compõem; este teórico dividiu os
símbolos dois polos simbólicos distintos, nomeando-os dentro das
“Estruturas Antropológicas do Imaginário’: O Regime Diurno, da
polêmica, das distinções, e o Regime Noturno, da conciliação (PITTA,
2016). As imagens correspondentes ao primeiro regime abarcam
dois temas: As Faces do Tempo e O Cetro e o Gládio (ou Estrutura
Heroica do imaginário), “estruturas estas que dão resposta à questão
fundamental do homem, que é a sua mortalidade”, (PITTA, 2016,
p. 26). Os temas diurnos se opõem num duelo de forças. As Faces do
Tempo reúnem os símbolos ligados às trevas, à angústia, à queda;
O Centro e o Gládio abarcam os símbolos que irão combater os
anteriores, representando a luz, o conhecimento e a vitória.
O Regime Noturno não atua de forma opositora ao Diurno (já
que os símbolos de oposição às imagens angustiantes são elencados
dentro do mesmo regime) e sim de maneira semanticamente
complementar. Agora, “não se trata mais de ascensão em busca do
poder, mas de descida interior em busca do conhecimento” (PITTA,
2016, p. 32). Eles estão dispostos em dois grandes temas: a Estrutura
Mística do Imaginário, que reúne símbolos eufemísticos, ligados
à reflexão, à intimidade e ao feminino; e a Estrutura Sintética do
370 | Trilhas do imaginário

Imaginário, onde os símbolos que se referem ao tempo cíclico e à


vida estarão representados.
O imaginário possui uma metodologia própria, que se
complexifica à medida que conectamos a imagem com suas relações
sociais. Encontramos como ferramentas metodológicas dessas
teorias, por exemplo, a hermenêutica simbólica, a mitocrítica e
a mitanálise; cada um destes procedimentos disseca arquétipos,
símbolos e mitos presentes nos mais diversos textos criados desde
antiguidade até os dias atuais. Utilizaremos neste trabalho a
hermenêutica simbólica. Esta “mitodologia”, modo de parafrasear a
metodologia de análise destas imagens, é chamada de “filosofia do
símbolo” (SILVA e GOMES, 2013), o entendimento de sua natureza
partir de sua existência enquanto imagem simbólica; “passamos
do mero significado (o que se diz) para o sentido (o que se quer
dizer)” (ORTIZ-OSÉS apud SILVA e GOMES, 2013, p. 132), isto é,
analisamos o símbolo isoladamente não apenas como uma imagem
qualquer, mas como uma imagem portadora de uma infinidade
de significações.

4 Dissecando arquétipos, símbolos e mitos: imagens que


remetem à criação
A primeira imagem destacada do clipe de Ariana Grande
(Figura 1), que aparece no primeiro segundo de projeção (e novamente
aos 2’12’’), é a Via Láctea (Figura 2), representada ao redor do ventre
da cantora, girando. Caracterizando-se como um símbolo cíclico, a
espiral, forma na qual a Via Láctea se organiza, é

(...) um simbolismo frequentemente ligado à


permanência e ao movimento. Representação
importante para as culturas cuja mitologia se baseia
no equilíbrio dos contrários. O caracol participa do
mesmo significado, já que carrega uma aspiral, ao
qual se somam o aspecto aquático (da concha) e o
feminino. (PITTA, 2016, p. 36)
Trilhas do imaginário | 371

Figura 1 – A Via Láctea no ventre de Ariana Grande, ao centro da imagem

Fonte: Clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube125

A forma circular através da qual a Via Láctea é representada


é para muitas culturas uma forma perfeita, indivisível, geralmente
associada à figura de Deus. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009,
p. 254) assevera que “a comparação neoplatônica de Deus a um
círculo, cujo centro está em toda parte” é um tema comum a diversos
autores ligados ao sufismo, a corrente mística do islamismo. Este
mesmo autor também evidencia que a dança circular dos dervixes,
praticantes do sufismo, “inspira-se num movimento cósmico: eles
imitam a ronda dos planetas em torno do Sol, o turbilhão de tudo
o que se move, mas também imitam a busca de Deus, simbolizado
pelo Sol” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 254). E como propõe
Gilvone Miguel (2005, p. 68), “a ciclicidade”, que observamos na
imagem da Via Láctea, “tem a propriedade de aproximar o fim do
começo, compensando a angústia causada pelo fim com a esperança
de um novo começo”.

125 https://www.youtube.com/watch?v=kHLHSlExFis
372 | Trilhas do imaginário

Figura 2 – Representação da Via Láctea

Fonte: Internet; Portal BBC126

A inserção do fenômeno cíclico da Via Láctea na altura do ventre


da cantora não é por acaso. Gloria Viero (2005, p. 166) rememora
que no cristianismo “o útero é usado como metáfora para falar de
Deus como a fonte que faz brotar a vida e a fertilidade na natureza
(Jo 38, 28-29), e como fonte originária de Israel, que forma o povo e o
carrega no ventre (Is 46, 29)”. Sendo assim, a composição imagética
que vemos aqui refere-se a união de dois símbolos referentes à
criação, ao começo: o ventre feminino e a espiral – ou círculo.
O mito da criação de Roma sob o protagonismo heroico dos
irmãos Rômulo e Remo ou mesmo o mito da criação do mundo pelo
cristianismo, segundo o qual Deus forjou o homem em sete dias
(Figuras 4 e 6), são dois exemplos de narrativas mitológicas bastante
conhecidas; ambas são referenciadas em God is a woman (Figuras
3 e 5). Aos 2’06’’, Ariana aparece amamentando três homens em
tamanho proporcionalmente menor ao seu. A referência buscada
para a constituição desta sequência do vídeo é a escultura em bronze
Lupa capitolina, do artista etrusco Vulca (Figura 3). A obra retrata
o momento mais conhecido do mito da criação de Roma: os irmãos
Rômulo e Remo são jogados num rio dentro de um cesto por ondem de

126 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-44942246


Trilhas do imaginário | 373

seu tio-avô Amúlio, que tentava matar todos os possíveis herdeiros do


trono de Alba Longa, cidade troiana. Os irmãos sobrevivem quando
o cesto atola no Rio; ambos são resgatados por uma loba que os
amamenta até a chegada do Fáustulo, pastor de ovelhas que adota
os meninos e os cria como filhos (LOPES, 2012).
O seio – que não aparece de forma explicita no clipe, mas está
subtendido – é, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 809) “um
símbolo de maternidade, de suavidade, de segurança, de recursos.
Ligado à fecundidade e ao leite – o primeiro alimento –, é associado
às imagens de intimidade, de oferenda, de dádiva, de refúgio”.
Posicionados abaixo de Ariana, os homens se refugiam, tal qual bebês,
ou filhotes de animais, nos seios de uma figura materna, à exemplo
da loba que alimentou os gêmeos Rômulo e Remo no mito romano.

Figura 3 – Ariana Grande no centro da imagem, que remete à representação


do mito da criação de Roma

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Se antes o ventre de Ariana era representado como o centro


da Via Láctea – uma imagem da constituição da vida –, a cantora
agora é retratada mantendo esta vida, com o ato da amamentação.
Esta imagem está alocada em dois momentos do Regime Noturno
do imaginário. No primeiro momento, num complemento à ideia
de mordicância elencada no Regime Diurno, como a imagem de
encaixotamento; ao invés de morder, destroçar, destruir, a ideia é
374 | Trilhas do imaginário

“assimilar, ‘engolir’ o outro para se apropriar de sua essência” (PITTA,


2016, p. 33). Sorvendo o leite da loba, os gêmeos puderam absorver
a vida presente no líquido.
No segundo momento, através do leite, especificamente,
representado nas imagens de alimentos e substâncias arquetípicos,
responsáveis pela constituição das criaturas e do próprio mundo, ao
lado do mel, das bebidas sagradas, da água e do sal. Relembrando
os mitos de Héracles, que é amamentado pela deusa Hera, e de São
Bernardo, que sorve o leite da Virgem Maria, tornando-se irmão
adotivo de Jesus, Chevalier e Gheerbrant dirão que “a amamentação
feita pela mãe divina é o sinal da adoção e, em consequência, do
conhecimento supremo” (2009, p. 543); ainda segundo estes mesmos
autores, o leite é o “alimento da imortalidade” (CHEVALIER e
GHEERBRANT, 2009, p. 543).

Figura 4 – Escultura Lupa capitolina, que representa o mito da criação de Roma

Fonte: Internet; Verbete “Romulo e Remo” na Wikipedia127

Aos 3’40’’, na última imagem do clipe, Ariana faz as vezes


de Deus numa releitura do afresco A criação de Adão, obra que
Michelangelo criou para o teto da Capela Sistina do Palácio Apostólico
do Papa, em Roma. Ariana estende os dedos para tocar os dedos
de sua criação; mas desta vez o primeiro “homem” não é do sexo

127 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B4mulo_e_Remo


Trilhas do imaginário | 375

masculino, mas é uma mulher, negra, que representa, ao invés de


Adão, Eva, a primeira “mulher”, segundo o Gênesis da Bíblia Cristã.
O panteão de anjos que acompanham Ariana também são todos do
sexo feminino (Figura 5).

Figura 5 – Ariana grande no centro da imagem, que remete


ao afresco A criação de Adão, de Michelangelo

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Em sua obra A grande mãe (1996), Erich Neumann dirá que


a instância criadora vinculada simbolicamente à mulher remete
a uma das mais antigas representações do corpo feminino pela
humanidade: a mulher como um vaso, um receptáculo, composição na
qual “todas as funções vitais básicas, principalmente o ‘metabolismo’”,
estão elencadas (NEUMANN, 1996, p. 46). Para este autor, esta
estrutura envasada tem zonas de entrada e saída: “da mesma
forma que o alimento e a comida são colocados para dentro deste
vaso desconhecido, dele mesmo nascerão coisas todas as funções
criadoras, desde as excreções e o sêmen, até a respiração e a palavra”
(NEUMANN, 1996, p. 46).
A representação do indivíduo do sexo feminino como
“recipiente de onde se forma a vida, continente de todas as coisas
vivas as quais depois descarrega no mundo” (NEUMANN, 1996,
p. 46) possibilitou que vários símbolos se organizassem a partir deste
376 | Trilhas do imaginário

arquétipo, constituindo, por conseguinte, uma série de mitos nos


quais uma deusa era a protagonista desta narrativa mitológica, com
poderes para criar ou destruir criaturas ou o próprio mundo – como o
Deus masculino das religiões judaico-cristãs, que constituiu o mundo
em sete dias para depois “passa-lo à limpo” em um grande dilúvio.
Dentre os exemplos mais diversos estão a deusa Isis, cultuada no
Egito antigo, que foi capaz de ressuscitar seu marido, Osíris, morto e
esquartejado, e dele ter um filho; ou a deusa Kali, da mitologia Hindi,
representando “as trevas, o tempo que tudo devora” (NEUMANN,
1996, p. 134).

Figura 6 – Afresco A criação de Adão, de Michelangelo

Fonte: Internet; Portal da Revista Veja128

Representada como o Deus cristão de Michelangelo, Ariana


simboliza o arquétipo constituidor dessa deusa mãe, que atravessa
narrativas simbólicas antigas e deságua em filosofias religiosas
recentes, como a Wicca, crença pagã europeia que se desenvolveu já
no século XX emulando diversos elementos mitoló gicos ancestrais.
Para os adeptos da Wicca, “a mulher é considerada fonte primordial
da criação, uma vez que tudo emana dela, inclusive a divindade
masculina, que é seu filho e consorte” (CORDOVIL, 2015, p. 432-433).

128 https://veja.abril.com.br/entretenimento/vaticano-vai-monitorar-
eletronicamente-suas-obras-de-arte/
Trilhas do imaginário | 377

5 Dissecando arquétipos, símbolos e mitos: imagens


que remetem à sexualidade
A representação do corpo feminino nas pinturas e nas esculturas
na antiguidade era pautada pelo exagero das formas e curvas, tanto
nas imagens de mulheres comuns como nas imagens de grandes
deusas. De acordo com Eric Neumann (1996), as figuras tinham seios
e coxas grandes, pernas abertas e um tamanho desproporcional
entre o corpo e cabeça (NEUMANN, 1996). Algumas também eram
representadas sentadas, como que entronadas sob uma cadeira
invisível ou constituindo o próprio trono.

O homem primitivo descobriu a possibilidade


de representar a grandeza numinosa 129 e a
peculiaridade do Grande Feminino, através de um
exagero expressivo da forma, de uma acentuação
do caráter elementar, em que a sensação corporal
desempenha um papel decisivo. A pessoa que
criava e o grupo que venerava tais obras,
estavam, sem dúvidas, fascinados e atraídos
pela corporalidade, pela exuberante plenitude,
pelo calor maciço emanados por estas figuras.
(NEUMANN, 1996, p. 98).

Esse exagero das formas como possibilidade de ode à


opulência feminina também está no videoclipe de God is a woman.
Aos 14’’ (e novamente aos 36’’, 1’20’’, 2’09’’), Ariana Grande aparece
nua no centro do quadro, envolta por uma imagem que lembra o
órgão genital feminino. A cantora está coberta por uma substância
líquida, leitosa – como numa alusão ao próprio leite, elemento já
abordado neste paper como substância constituinte da vida na
Terra (Figura 7).

129 Possuidor de características sobrenaturais, divinas.


378 | Trilhas do imaginário

Figura 7 – Ariana Grande ao centro da imagem, que remete à genitália feminina

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Ainda que tenha sido representada de forma exuberante e até


erotizada em suas simbologias divinas, a mulher comum foi tolhida
no exercício de sua própria sexualidade durante muito tempo. Idalina
Zikan (2005. p. 8) rememora que “até o final do século XIX, as mulheres
saudáveis eram as que não tinham desejos sexuais, esperava-se
da mulher o não prazer”. A masturbação, especificamente, “com a
ascensão do Cristianismo, até o início do século XVIII (...), passou
a ser vista como prática imoral, juntamente com outras práticas
sexuais” (BAUMEL, 2014, p. 17).
Mas, antes disso, na antiguidade, a prática da manipulação
do órgão genital feminino era resguardada como uma maneira
de combater uma doença: a histeria. Este problema, que hoje é
reconhecido pela psicanálise como uma neurose oriunda de uma
desordem mental, era sintomatizado como resultado de um desarranjo
na região do ventre feminino, resultando em mudez, dores por
todo o corpo e impossibilidade de locomoção; desde o antigo Egito,
relatos davam contas de pacientes histéricas (CASTRO, 2012). Foi o
grego Galeno (130-200 D.C.) quem atribuiu à masturbação o caráter
curativo da mulher portadora de histeria. Este autor descrevia a
histeria como “uma enfermidade uterina provocada pela privação
sexual, recomendando o coito ou a masturbação como solução para
esse problema” (TRILLAT apud MURIBECCA, 2013).
Trilhas do imaginário | 379

Figura 8 – Ariana Grande simulando uma masturbação feminina, ao centro da imagem

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Ainda que estigmatizada como uma forma de controlar


mulheres portadoras de histeria, a manipulação genital dava a
elas a possibilidade de conhecer os seus corpos, pacificando uma
desordem através do orgasmo. É o que faz Ariana Grande aos 29’’
(e novamente aos 39’’ e 41’’ de projeção) no momento em que ela,
sentada sob o globo terrestre, “pacifica” um furacão ao tocá-lo, num
gesto que lembra a masturbação feminina (Figuras 8 e 9); o fenômeno
meteorológico se dissipa com o toque da cantora.

Figura 9 – Ariana Grande simulando uma masturbação feminina, ao centro da imagem

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube
380 | Trilhas do imaginário

Ariana está de pernas abertas sobre a Terra, como em muitas


figuras divinas descritas por Neumann (1996), a exemplo da deusa
Isis, que é representada do mesmo modo, sentada sobre uma
porca prenhe (Figura 10). A exposição da região genital, reflete a
simbolização da postura de diversos animais quando dão à luz (gatos,
cachorros, cavalos). Estando a mulher também de pernas abertas,
Neumann (1996) entende esta imagem como sendo a representação
da fertilidade feminina, do parto e da maternidade. No clipe, mesmo
apresentando-se como uma mulher fértil, com a capacidade de dar à
luz ao mundo, Ariana não esquece que pode sentir prazer; praticando
um “gesto masturbatório” num furacão, ela sinaliza que ao realizar
sua sexualidade plenamente exercita tanto a capacidade de apaziguar
a si mesma quanto de apaziguar suas criações – no caso, o mundo.

Figura 10 – Deusa Isis sobre um porco

Fonte: Foto extraída do livro A grande mãe: um estudo fenomenológico


da constituição feminina do inconsciente, de Eric NEUMMAN, 1996, p. 127130

Em outro momento do clipe, Ariana Grande aparece no centro


do quadro em posição de meditação, envolta por uma forma triangular
(aos 2’14’’ e novamente aos 2’17’’, 3’05’’ e 3’17’’); ao fundo, constelações,

130 NEUMANN, Erich. A grande mãe: um estudo fenomenológico da constituição


feminina do inconsciente. Tradução de Fernando Pedroza de Mattos e Maria
Sílvia Mourão Neto. São Paulo: Cultrix,1996.
Trilhas do imaginário | 381

planetas e o sol. Mas o que chama a atenção na composição da imagem


são as mãos da artista, juntas, em forma de triângulo com a ponta para
baixo, constituindo um gesto obsceno que remete à genitália feminina
(Figura 11). O triângulo e a constituição de suas pontas, para cima ou
para baixo, são, respectivamente, a representação de forças masculinas
e femininas para muitas culturas, segundo Jung (1964). Este teórico
indica que na religião Hindu, a união destes dois triângulos:

(...) simboliza a união de Xiva e Shakti, as divindades


masculina e feminina e aparece também na escultura
em um sem-número de variações. Com relação ao
simbolismo psicológico, expressa a união dos opostos
— a união do mundo pessoal e temporal do ego com
o mundo impessoal e intemporal do não-ego (JUNG,
1964, p. 240).

Figura 11 – Ariana Grande no centro da imagem, fazendo um gesto obsceno com as mãos

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

O triângulo de ponta ascendente reconstitui simbolicamente


a forma da genitália masculina: o pênis, que, ereto, aponta para
cima. Os símbolos astrológicos de Vênus (deusa da beleza, conforme
mitologia greco-romana) e Marte (deus da guerra) repetem esta
constituição segundo seus mitos fundantes: o espelho de Vênus, o
círculo com a cruz para baixo, numa analogia ao sexo feminino;
382 | Trilhas do imaginário

e o escudo e a lança de Marte, com a ponta para cima, remete ao


sexo masculino.

6 Dissecando arquétipos, símbolos e mitos: imagens


que remetem à verticalidade
A primeira imagem do tipo ascensional aparece aos 42’’
de projeção: Ariana aparece sentada sob um livro, num tamanho
relativamente maior que os seis pequenos homens que despejam
ofensas contra a cantora. As palavras são “jogadas” na direção da mulher
e ricocheteiam, sem atingi-la (Figura 12). A posição de Ariana (pernas
cruzadas e mão no queixo) parece emular a escultura O pensador, de
Auguste Rodin (Figura 13). Este tipo de imagem arquetípica encontra-
se no regime diurno das imagens conforme a organização de Durand,
mais precisamente no tema O Cetro e o Gládio.

Figura 12 – Ariana Grande à direita, remetendo à escultura


O pensador do escultor Auguste Rodin

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Para Ferreira-Santos e Almeida (2012) todos os símbolos


ascensionais,

independentes de sua variedade, continuam o


impulso postural do corpo, substantificam-se em
Trilhas do imaginário | 383

escada, montanha, zigurate, pirâmide, outeiro,


montículo, obelisco, farol, flecha, campanário, raio,
espada, cetro, asa, cabeça, etc”. (FERREIRA-SANTOS
e ALMEIDA, 2012, p. 21).

Durand, (apud MARQUES, 2007) relembra que o movimento


de ascensão pode ser consolidado na criança que aprende a ficar
de pé, sendo este “de posição, que leva a criança a perceber a
verticalidade e a horizontalidade ‘de maneira privilegiada’ e a
insistir na postura ereta do corpo (...)” (DURAND apud MARQUES,
2007, p. 64).

Figura 13 – Escultura O pensador, de Auguste Rodin

Fonte: Internet; Blog Júlio Rossi131

A posição dominante de Ariana diante dos pequenos homens


que tentam atingi-la remete ao estado de reflexão e tranquilidade
do homem na escultura de Rodin e a coloca num lugar superior em
relação às pequenas criaturas que a xingam. E esta constituição da
Figura 15 chama atenção para outra imagem simbólica ancestral:
Sofia, figura mítica detentora da sabedoria. Empostada sobre um livro
(imagem que remete ao conhecimento) a figura sofística de Ariana,
como a aura sofística original, “se revela inatingível aos homens,
mantendo uma distância numinosa” (NEUMANN, 1996, p. 287).

131 Disponível em: http://julirossi.blogspot.com/2013/02/o-pensador_6.html


384 | Trilhas do imaginário

Aos 1’45’’, surge a segunda imagem com ideia de verticalização


em God is a woman: diversos desenhos da cantora no quadro ajudam
a constituir a imagem de uma montanha, cujo cume não podemos
visualizar no clipe (Figura 14). A montanha também é um símbolo
de ascensão. Este tipo de imagem é cristalizado no imaginário
coletivo sobretudo pelas práticas ascensionais religiosas, como
a ideia de que há um deus nos céus e a peregrinação a locais
sagrados, geralmente em um ponto elevado, um “monte sagrado”
(PITTA, 2016).

Figura 14 – Várias imagens de Ariana Grande constituindo uma montanha

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

Na Bíblia cristã, Deus castigou os homens que tentaram


alcançar o céu através da Torre de Babel, já que “o alto e o grande
são atribuições dos seres superiores” (COSTA, 2000, p. 64). Ariana
tenta, através dessa imagem, concluir este feito de alcançar o céu a
partir deste símbolo ascensional, “levantando-se contra o tempo e a
morte” (COSTA, 2000, p. 64). Esta tentativa de ascender aos céus se
repetirá mais tarde no clipe.
Na terceira sequência imagética onde uma ideia ascensional
está representada (a partir dos 2’23’’, se repetindo aos 2’53’’, 3’02’’,
3’06’’, 3’10’’, 3’13’’ e 3’31’’), Ariana Grande está numa espécie de
arena, coberta por uma cúpula de vidro, vestida como uma guerreira:
Trilhas do imaginário | 385

no corpo, roupas sumárias que lembram os gladiadores da Roma


Antiga; na cabeça, um elmo132; nas mãos, luvas de couro com a
inscrição POWER (poder, em inglês); e sobre os ombros, um martelo,
que ela segura início da cena (Figura 15). A cantora recita uma
passagem da Bíblia Cristã, do livro de Ezequiel 25:17, adaptada
para o filme Pulp fiction – Tempo de violência (1994), do diretor
Quentin Tarantino: “And I will strike down upon thee with great
vengeance and furious anger those who attempt to poison and
destroy my sisters. And you will know My name is the Lord when
I lay My vengeance upon you”133.

Figura 15 – Ariana Grande no centro da imagem, vestida como uma gladiadora

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

No longa de Tarantino, o personagem Jules, vivido pelo ator


Samuel L. Jackson, é quem profere esta fala, escrita com algumas
modificações do texto bíblico original. No clipe, Ariana substitui a
palavra “brothers” (irmãos) por “sisters” (irmãs) de modo a conectar
o discurso com o interlocutor feminino, como se ao invés do Deus
cristão masculino uma deusa feminina estivesse direcionando

132 Espécie de capacete que compõe a indumentária do guerreiro.


133 Em tradução livre: “E eu vou atacar com grande vingança e raiva furiosa aqueles
que tentam envenenar e destruir minhas irmãs. E você saberá que Meu nome
é o Senhor quando eu depositar Minha vingança sobre você”.
386 | Trilhas do imaginário

essas ameaças para proteger suas criações também femininas. Não


por acaso a voz que emposta esses versos é feminina: a cantora
Madonna é quem narra o trecho134 para que Ariana possa dubla-lo.
Sendo Madonna a “rainha do pop” (ANTUNES, 2011, p. 13), a
artista se configura como uma influência perpétua na cultura popular
desde o seu aparecimento como produto fonográfico, na década de
80. Thiago Soares (2010, p. 5) dirá que esta influência de Madonna
está assentada “na lógica da construção de um lugar de legitimação,
embora não estanque, no território das mídias que se faz a partir de
claras retrancas temáticas em seu discurso – a defesa dos negros, dos
gays, a crítica à religião, etc”, a partir de suas produções musicais e
suas extensões em videoclipes – um deles, Like a prayer, já citado neste
trabalho. Sendo assim, no plano da significação social, para Ariana,
recorrer a Madonna num trabalho cheio de simbologias feministas
implica uma tentativa de conexão com este lugar de legitimação.
Mas no plano do imaginário, a ligação de uma mulher com
uma instância superior feminina remete à relação estabelecida por
mãe e filha, conforme apontada por Eric Neumann (1996), moldada
pela sinonímia entre a figura materna e as figuras dos arquétipos das
“grandes deusas” – como o cristão católico faz com a Virgem Maria,
ao coloca-la no mesmo patamar de sua mãe biológica. Para este autor,
“a relação que existe entre mãe e filha, que é o cerne do grupo das
mulheres, reflete-se na manutenção da “relação primordial” entre
ambas. O Masculino é um estranho aos olhos desse grupo feminino,
pois vem de fora (...)” (NEUMANN, 1996, p. 267). Assim como católico
faz com a mãe de Cristo, pedindo sua benção, ao evocar a figura
de um indivíduo com influência superior dentro de seu território
audiovisual, Ariana age como se estivesse “pedindo a benção” a
Madonna, assim como uma filha pediria benção à sua mãe.
Ainda na sequência analisada, após citar a passagem do livro
de Ezequiel, Ariana Grande pisca para a câmara, balança o martelo

134 Conforme notícia publicada em: http://madonnaonline.com.br/2018/07/14/


madonna-participa-como-deus-em-novo-clipe-da-ariana-grande/
Trilhas do imaginário | 387

que segurava sobre os ombros para lá e para cá e o atira para o


alto, quebrando a cúpula de vidro da arena que a cerca (Figura 16).
Como na tentativa anterior de alcançar o céu constituindo-se como
montanha, a artista agora tenta alcançar o alto utilizando-se do
martelo. Este objeto está ligado a diversas simbologias e narrativas,
desde à mais pragmática, como o malhete, o martelo que o juiz bate
durante as audiências (emulando então os significados de direito,
justiça) (BORGES, 2005), às mitológicas, como o martelo de Thor,
deus nórdico da guerra e do trovão (LANGER, 2010) e o martelo de
Hefesto, instrumento bruto que é ressignificado na busca de uma
“sensibilidade dramática, em que se conjugam em suas marteladas
rítmicas o metal, o fogo, a água e o ar, num trabalho incansável,
bigorna, fole e fornalha na transformação da matéria” (FERREIRA-
SANTOS e ALMEIDA, 2012, p. 28).

Figura 16 – Ariana Grande, no centro da imagem,


joga um martelo em direção à cúpula do local

Fonte: Frame do clipe da música God is a woman de Ariana Grande publicado no Youtube

A imagem guerreira de Ariana neste momento do clipe nos


remete também a outras figuras femininas mitológicas: primeiro,
as amazonas, “representadas como mulheres fortes, hábeis na arte
da guerra e da sedução” (BRANDÃO apud MARTÍNEZ e SOUZA,
2014, p. 173). Uma das narrativas mitológicas sobre essas mulheres
388 | Trilhas do imaginário

reza que elas eram filhas de Ares, o deus da guerra, com a ninfa
Harmonia, uma divindade ligada à natureza. A imagem da mulher
guerreira também remete às Icamiabas “mulheres que combatiam
em pé de igualdade com os homens que se aventuravam em terras
Amazônicas nos séculos V e VI (...)” (SÁ e DUTRA, p. 03, 2012). Elas
“eram mulheres altas, pele clara, sempre montadas em cavalos,
armadas e sem pudor algum, pois estas não usavam trajes nenhum”
(SÁ e DUTRA, p. 03-04, 2012).
Estes mitos personificam não apenas a ideia de ascensão,
relacionadas à imagem postural de suas personagens mitológicas, mas
também as imagens diairéticas, aquelas que representam as armas
objetificadas (no caso desta sequência destacada do clipe, o martelo)
e as armas espirituais na luta do bem contra o mal. Este combate “é
uma atitude espiritualizante na medida em que os guerreiros são
purificadores e possuem uma função unidimensionalizada para a
luta e vitória sobre o oponente caído”. (CAVALCANTI, 2011, p. 20)
Portanto, o poder de Ariana Grande – representado explicita
e imageticamente pelas luvas que ela veste neste momento no clipe,
onde se lê a palavra POWER – emula tanto a ideia de ascensão ligada
à postura do herói quanto a ideia de vitória promovida pela arma
objetificada deste personagem, o martelo. E se a figura mitológica
do herói elenca um sem número de personagens masculinos
desenvolvidos ao longo da história – Apolo, Sansão, Teseu, Prometeu
–, todos fundamentados na característica arquetípica da “liberdade
de espírito” (COSTA, 2000, p. 64-65), o videoclipe traz o equivalente
feminino destas figuras, tentando de algum modo cristalizar a ideia
de que as mulheres também podem ser heroínas combatentes.

7 Considerações finais
Como vimos nas últimas três seções deste artigo, os frames
coletados para esta análise agrupam as imagens em três significações
principais: criação, sexualidade e ascensão. E cientes da capacidade
de produção de sentido de um videoclipe e do uso deste produto
Trilhas do imaginário | 389

como ferramenta sociológica de engajamento e (ciber)ativismo,


depreendemos que tais significações podem ser tomadas não apenas
como um modo de interpretar estas imagens, mas como modo de
refletir sobre elas e de utiliza-las na constituição de um manifesto em
prol de uma representação positiva e empoderada da mulher dentro
e fora do audiovisual, sob a ótica destas três palavras possuidoras
de sentidos tão profundos.
Refletir os paradigmas constituidores da imagem da mulher
que são criados e/ou mediatizados pelo audiovisual contemporâneo
dá margem para que outras reflexões, realizadas fora de seu campo
de origem, possam vir à tona, na tentativa de construir um novo
imaginário social coletivo, onde o empoderamento feminino está
presente. Cláudia Pedro e Olegna Guedes (2010) apregoam que

(...) a atribuição de características específicas e


diferenciadas à homens e mulheres, são determinadas
pelos diversos tipos de culturas e impostas por cada
sociedade de forma específica, e naturalizadas
tanto por homens quanto por mulheres, tornam
o “ser homem” ou “ser mulher” diferente em cada
sociedade. Portanto, é através dessa reflexão que é
possível compreender a clássica frase de Simone de
Beauvoir em O segundo sexo: “ninguém nasce mulher;
torna-se mulher”, ou seja, o corpo é determinante nas
relações sociais, porém não é capaz de definir alguém
enquanto homem, ou enquanto mulher. Ter ciência
deste fato, uma conquista possível com os estudos
de gênero, põe a necessária luta na construção do
próprio conceito de gênero que figura como um dos
aspectos fundantes no protagonismo das mulheres
na luta pela concretização de seus direitos humanos
e de cidadania (PEDRO e GUEDES, 2010, p. 05).

Permanecer visível e forte nas expressões imagéticas da


indústria cultural se mostra uma reinvindicação de presença das
mulheres não apenas nos espaços audiovisuais como também
em outros espaços. Para Veloso (2013, p. 294), “sair das margens,
390 | Trilhas do imaginário

nas indústrias culturais, deve ser uma bandeira primordial da


denominada terceira onda feminista, iniciada entre o final do século
XX e o princípio do século XXI”. Para esta autora,

a maior participação das mulheres nos vários espaços


de produção e controle do setor, sem dúvida, poderá
ampliar a diversidade de posições e do olhar sobre as
coberturas e os temas que deverão ser visibilizados
e representará ganhos no tocante à qualidade das
produções (...) (VELOSO, 2013, p. 294).

A partir das representações de sua plenitude como instância


criadora, da possibilidade de autonomia para viver sua sexualidade
sem tolhimentos, amarras ou intervenções masculinas, e da capacidade
e merecimento de ascender socialmente, as mulheres podem encontrar
num produto audiovisual como o videoclipe imagens essenciais para
firmarem sua subjetividade e representatividade.

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| 395

A influência do Cinema Noir na releitura do


videoclipe Smooth Criminal

Edyelton Marinho135
Ed Porto Bezerra136

1 Introdução
O cinema noir é algo intrínseco na cultura cinematográfica
hollywoodiana. A palavra, no entanto, significa “filme negro” devido
a sua temática policial, fotografia sombria, personagens criminosos
marcantes que também são características claras do movimento
expressionista alemão.
Os longas foram inicialmente escuros por opção estética.
Além disso, o estilo do filme noir pode ser bastante atraente em
um orçamento relativamente baixo, o que também os torna
suficientemente atrativo para cineastas os produzirem. Atualmente
somos um público de cinema muito complexo, de modo que um filme
noir tradicional pode não agradar algum espectador, tanto quanto
uma homenagem nostálgica ao passado, como em L.A. Confidential
(Los Angeles - Cidade Proibida) dirigida por Curtis Hanson em 1997.
Os filmes mais notórios segundo Edward Dimendberg (2004,
p. 04) que contém a natureza noir são The Stranger on the Thrid
Floor (Boris Ingster, 1940), Relíquia Macabra (John Huston, 1941), A
Dama Fantasma (Robert Siodmak, 1944), Curvas do Destino (Edgar G.
Ulmer, 1945), Almas Perversas (Fritz Lang, 1945), À Beira do Abismo
(Howard Hawks, 1946) e Gilda (Charles Vidor, 1946).

135 Mestre em Comunicação pelo PPGC da Universidade Federal da Paraíba.


E-mail:[email protected].
136 Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade
Federal da Paraíba (PPGC/UFPB). E-mail: [email protected]
396 | Trilhas do imaginário

Destes filmes citados acima, dois foram usados (e mais um que


será citado posteriormente) por Michael Jackson para uma releitura
especial do videoclipe clássico de Smooth Criminal para a turnê
This Is It, que seria realizada em Londres entre 2009 e 2010, mas foi
transformada em filme-documentário por causa da morte do cantor.
Com a ajuda da tecnologia, através de chroma-key, o
artista foi inserido digitalmente nos filmes noirs, em que as obras
cinematográficas ganharam um aspecto moderno, com tratamento de
imagem e sua captação original de duas dimensões para conversão
a uma nova de três dimensões. Neste artigo iremos analisar passo a
passo e detalhar a presença do universo noir, até mesmo do neo-noir,
na narrativa e na estética de Smooth Criminal em 2009.

Compreendendo o cinema noir


O cinema expressionista pode-se considerar como uma
das influências mais fortes para a construção do cinema noir
americano. Proveniente da Alemanha, esse estilo cinematográfico
ganha os Estados Unidos, com a chegada de judeus profissionais
do cinema nos anos 1930, refugiados da sua nação que havia
sido tomada pelo nazismo137.

O cinema noir trata-se de um conjunto de filmes


realizados a partir dos anos 40 em Hollywood, que
consistia do casamento entre o drama criminal, então
em voga, e a adoção do estilo visual que marcou o
cinema expressionista dos anos 20 na Alemanha.
(LIRA, 2015. p. 16)

Uma das principais características do noir consiste no uso da


sua fotografia preto-e-branco, mesmo o cinema em cores na época
sendo uma realidade em algumas produções, segundo Lira (2015,

137 Relativo ao Partido Nacional alemão, socialista e de extrema-direita, fundado


e consolidado por Adolf Hitler cuja ideologia política baseava-se no racismo,
segregação racial, antissemitismo e fascismo.
Trilhas do imaginário | 397

p. 26) o estilo visual dos filmes noirs traz consigo um elaborado uso
dramático do claro-escuro – associado a temas mórbidos e macabros –
com toda a carga simbólica que o embate luz-sombra luz representa.
Lira ainda complementa,

A fotografia do cinema noir – deliberadamente em


preto e branco pois já estava disseminada a cor no
cinema americano da época, - é arquitetada para
reforçar a atmosfera de terror, niilismo e dor,
exacerbando o contraste entre luz e sombra, preto
e branco etc. (2015, p. 20)

Existem várias definições para o cinema noir, a mais difundida,


como vemos em Mattos citado por Lira (2015), afirma que o sub-
gênero não é considerado apenas com a nomenclatura citada acima
no cinema de Hollywood: o noir pode ser classificado também como
gênero, uma estética ou um estilo.
Apesar de sua propagação nos Estados Unidos, o termo film
noir (em francês: filme preto) é proveniente da França. Ele surge
das menções dos críticos franceses pela semelhança entre os filmes
policiais hollywoodianos, produzidos no início dos anos 1940 e os
melodramas sombrios franceses.
A narrativa do filme noir contém uso da atmosfera policial,
criminal e gângster americana, sendo esta última proveniente da
instauração da Lei Seca, que aumentou o tráfico de bebidas e da
criminalidade, gerando semelhanças dos integrantes destas organizações
com as famosas máfias. O gângster está para o cinema noir, como o
cowboy está para o western138, outro notável gênero americano.

A. C. Gomes de Mattos cita que o cinema noir consiste


num “desvio ou evolução dentro do vasto campo
do gênero drama criminal, que teve o seu apogeu
durante os anos 1940 até meados dos anos 50 e
foi uma resposta às condições sociais, históricas e

138 Ou gênero faroeste, que consiste predominantemente ambientações no velho


oeste americano, com cowboys, índios, pistoleiros entre outros.
398 | Trilhas do imaginário

culturais reinantes na América durante a Segunda


Guerra Mundial e no imediato pós-guerra. Nele
se combinaram, basicamente, as formas da ficção
criminal americana (...) com um estilo visual
inspirado nos filmes expressionistas dos anos 20”.
(MATTOS citado por LIRA, 2008. p. 215).

Alguns autores definem e pontuam sobre os períodos em que


o cinema noir foi produzido em Hollywood.
Um dos primeiros filmes que mais se destaca ao trazer esses
fundamentos narrativos e estéticos do cinema noir é Relíquia Macabra
(The Maltese Falcon) de John Huston lançado em 1941. E um dos
últimos é a Marca da Maldade (Touch of Evil) de Orson Welles, lançado
em 1958. Lira diz que:

O monocromatismo deliberado das imagens do


cinema noir se presta eficazmente à atmosfera de
terror pretendida nesses filmes. [...] desempenha
papel fundamental como um recurso dramático,
produzindo forte impacto emocional no espectador
por toda significação mística que carrega. (2015, p. 21)

A partir desta última data, os filmes que contém esta


representação, já não podem ser considerados noir. Para explanar esta
afirmação, faremos um recorte, a partir de um produto audiovisual do
cantor Michael Jackson para esclarecer acerca do neo-noir, algo como
“novo negro” que surge em função das obras inspiradas no puro noir.

3 O universo de Smooth Criminal


A música Smooth Criminal é o sétimo single139 do disco Bad (1987),
sétimo álbum de estúdio lançado pelo cantor e compositor Michael
Jackson. Composta pelo artista, a canção foi promovida a partir de

139 Na nomenclatura da indústria fonográfica, um single é uma canção considerada


viável comercialmente o suficiente pelo artista e pela companhia para ser
lançada individualmente, mas é comum que também apareça num álbum.
Trilhas do imaginário | 399

24 de outubro de 1988 em todo o mundo, o seu videoclipe estreou


originalmente no longa-metragem Moonwalker (1988), que mesclavam
biografia audiovisual com uma sequência de fantasia e ficção científica.

Dirigido por Colin Chivers e Jerry Kramer,


Moonwalker punha lenha na fogueira do que os
jornais vinham chamando de “febre do Jacko”. Como
Captain EO, o filme não era nenhum Cidadão Kane.
Uma surreal de filmagem de show ao vivo, vídeos,
biografia de Jackson, animação e uma fantasia
críptica, levemente sobrenatural, trazia Joe Pesci
(“O Touro Indomável”), Sean Lennon, de doze anos
(filho de John Lennon), e, naturalmente, Jackson.
(ROBERTS, Chris. 2010, p. 80).

Em 1987 o vídeo de Smooth Criminal foi originalmente planejado


e inspirado no gênero western, no qual é possível acompanhar no
documentário para TV Michael Jackson’s Private Home Moveis (FOX,
2003). No documentário, Michael Jackson ensaia planos e sequências
de coreografias140 em um ambiente desértico, dentro de seu rancho
Neverland em Santa Barbara, Califórnia (Figura 1). A mudança
aconteceu quando Jackson assistiu O Poderoso Chefão (1972) de
Francis Ford Coppola e decidiu investir na temática gângster.

Figura 1. Michael Jackson em cena do que viria a ser Smooth Criminal

Fonte: Michael Jackson’s Private Home Movies (Fox Broadcast Company)

140 YouTube. Michael Jackson - Smooth Criminal video demo in Neverland – 1988.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=kOD0RqwPpvQ> Acesso
em: 31 jul. 2018.
400 | Trilhas do imaginário

O “curta-metragem” (como o artista se referia aos seus


videoclipes141) de Smooth Criminal foi inspirado no filme de comédia
musical The Band Wagon (1953) de Vicente Minnelli (Figura 2) – no
Brasil A Roda da Fortuna – estrelado por Fred Astaire e baseado em
um musical da Broadway de 1931, em que seu figurino e coreografia
se assemelham em alguns aspectos ao vídeo de Jackson (KHAN,
2012, p. 187).

Figura 2 À esq.: Fred Astaire


e Cyd Charisse em The Band
Wagon. À dir.: Michael Jackson
em Smooth Criminal

Fonte: À esq.: Metro-Goldwyn-


-Mayer. À dir.: Warner Bros

O longa de Minnelli
é retratado nos anos 1930,
década marcada por clubes
e gângsteres, mesmo estilo
utilizado em Smooth Criminal,
onde o local em que acontecem
as cenas de dança é descrito
como Club 30s.
A comparação reforça a ideia das releituras e das influências
de Michael Jackson para uso em seus produtos audiovisuais. O artista
mesclava em sua obra elementos do cinema e da música. A influência
dos gângsteres em Smooth Criminal fez parte desde a sua concepção,
nas demos da canção seus nomes anteriores eram Chicago 1945 e Al

141 “Era assim que o astro chamava seus clipes” – disse John Branca, administrador
do seu Espólio no documentário Bad 25. (Spike Lee, 2012)
Trilhas do imaginário | 401

Capone142, clara referência ao um dos maiores gângsteres dos Estados


Unidos no período da Lei Seca.

A Lei Seca e os desdobramentos de sua instauração,


como o tráfico ilegal de bebidas e o aumento
da criminalidade, introduziram o gângster na
iconografia do cinema americano dos anos 30.
(COSTA citado por LIRA. 2015, p. 39)

O curta de Smooth Criminal dirigido por Colin Chilvers possui


quatro versões provenientes da versão incluída no longa-metragem
de Jackson e uma releitura especial para a turnê This Is It Tour143. A
versão original, mais longa e mais difundida, com quase 10 minutos,
que ainda contém uma estrofe exclusiva da música, está presente em
Moonwalker144. Logo nos primeiros segundos, percebemos a influência
do noir, com a utilização da sombra que nos insere previamente no
que acontecerá a seguir, criando o clima do videoclipe (Figura 3).

Figura 3. Michael Jackson surge em um plano aberto


e a sombra prenuncia o que acontecerá

Fonte: Moonwalker (Warner Bros.)

142 MJ Beats. Os segredos de ‘‘Al Capone’’. 07 jun. 2017. Disponível em: <https://
mjbeats.com.br/os-segredos-de-al-capone-5c2ef5260545> Acesso em 10 ago. 2018.
143 Título da turnê residente de Michael Jackson, no qual ele faria em Londres entre
2009 e 2010 por cinquenta noites, mas que acabou sendo cancelada devido a
sua morte. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1041343-
7085,00-INGRESSOS+PARA+SHOWS+DE+MICHAEL+JACKSON+EM+LONDRES+
ESGOTAM+EM+HORAS.html> Acesso em: 30 jul. 2018.
144 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=h_D3VFfhvs4> Acesso
em:31 jul. 2018.
402 | Trilhas do imaginário

A segunda versão145 contém alguns segundos a menos de


duração em relação à primeira e também foi extraída e editada do
filme original, no qual se nota poucas diferenças na introdução e
em alguns versos da música; está presente nos home vídeos e DVDs
oficiais lançados (Figura 4). A terceira146, lançada como versão editada
do álbum, com o mesmo tempo de duração da música, é marcada
pelas cenas com blur effect147 e aceleração. Foi a primeira disponível
no canal oficial do YouTube do cantor. E a quarta versão corresponde
à exibida na MTV americana, sendo a mais curta e não lançada
oficialmente pelo cantor.
Todas as versões citadas acima foram produzidas no mesmo
ano de divulgação do single em 1988 e sequencialmente à sua
apresentação no capítulo.

Figura 4. Mesmo que o clipe seja colorido, ele ainda consegue capturar
a sombria iluminação do claro-escuro associada ao noir preto e branco

Fonte: Moonwalker (Warner Bros.)

145 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=eWu_htIxYtM> Acesso


em: 01 ago. 2018.
146 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sFvENQBc-F8> Acesso em:
01 ago. 2018.
147 Efeito de desfoque.
Trilhas do imaginário | 403

Michael Jackson expandiu a performance do clipe de Smooth


Criminal a todas as suas turnês mundiais148, levando a essência
do gângster dos anos 1930 e a ambiência noir para vários países.
Naquela que seria sua última turnê (This Is It Tour), vinte anos
após o lançamento do videoclipe, a proposta seria recriá-lo com
toda a disposição tecnológica do ano de 2009, para a interlude149 da
performance da canção.

O que antes era suplementar ao cinema se converte


em sua norma; o que estava em sua periferia
passa ao centro. As mídias computadorizadas nos
trazem de volta o reprimido do cinema. (Manovich
2001, p. 308).

Com a morte do cantor em junho de 2009, antes da estreia da


turnê prevista para julho do mesmo ano, as filmagens dos bastidores
e de toda a concepção do concerto foram lançadas em formato de
documentário musical, naquele mesmo ano. Intitulado Michael
Jackson’s This Is It (Kenny Ortega, 2009) o filme permaneceu apenas
duas semanas em cartaz nos cinemas de todo o mundo, para dar
uma espécie de ambiência de temporada de uma turnê150. Neste
longa-metragem destacamos o lançamento oficial da releitura do
videoclipe de Smooth Criminal, do mesmo modo em que sua versão
original foi lançada em 1988 num longa.
É o momento no qual o clipe ganha novo roteiro, mas continua
com a mesma premissa utilizada em seu vídeo original. O estilo
noir domina toda a duração do interlude, num retorno ao passado
recuperado digitalmente, mesclando com o cinema digital, em que
Jackson – o protagonista – foi inserido em três dimensões (tecnologia

148 Bad World Tour (1987-1989), Dangerous World Tour (1992-1993) e HIStory
World Tour (1996-1997).
149 Intervalo, que pode ser em vídeo ou em dança nos shows para introdução de
música, troca de cenário ou de descanso para o artista ou protagonista.
150 G1, 2009. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Musica/0,,MUL1299328-
7085,00-TRAILER+DO+FILME+SOBRE+ULTIMA+TURNE+DE+MICHAEL+JACKS
ON+SERA+EXIBIDO+NA+MTV.html> Acesso em 01 ago. 2018.
404 | Trilhas do imaginário

3D), em três clássicos noir (dois americanos e um inglês) no qual


detalharemos no próximo tópico.

4 A releitura de Smooth Criminal


O cinema noir inclui títulos como The Maltese Falcon (1941) e
The Big Sleep (1946) e toda uma série de filmes de Hollywood lançados
entre 1941 e 1958, segundo Lira (2015), cujo tema obscuro e estilo
cinematográfico refletem o clima negativo durante e após a Segunda
Guerra Mundial. O noir tem características visuais e temáticas facilmente
reconhecíveis e distintas, como o uso impressionante de silhuetas,
iluminação sombria, mulheres fatais e paisagens urbanas perigosas.
O Neo-noir, no entanto, surgiu nos anos 1970, 1980 e 1990, e
vem em muitas formas, desde as tentativas modernas de filmes puros
noir até ficção científica e thrillers. Para Mattos, citado por Lira (2015)
o filme noir puro é “somente aquele que conjuga formas de ficção
criminal americana (...) com o estilo visual expressionista” (p. 37).
Alguns títulos importantes do neo-noir são: Os Suspeitos (Bryan
Singer, 1995), Blade Runner (Ridley Scott, 1982), Sin City - A Cidade do
Pecado (Frank Miller, Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, 2005)
e Drive (Nicolas Winding Refn, 2011).

Mais tarde, o gênero (noir) ainda deixaria seu legado


no que se convencionou chamar de neo-noir e
passaria a influenciar decisivamente não apenas
outros cineastas estadunidenses de grande prestígio
artístico, como Martin Scorsese, Francis Ford
Coppola e os irmãos Coen, mas também um dos mais
importantes movimentos do cinema contemporâneo,
a nouvelle vague francesa. (FIORUCI, 2017. p. 58)

Essa breve explanação nos traz à releitura de Smooth Criminal


em Michael Jackson’s This Is It, em que Michael Jackson foi inserido
nos film noir Gilda (Charles Vidor, 1946), No Silêncio da Noite (Nicholas
Ray, 1950) e À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946) integrando
sua imagem aos clássicos do cinema de Hollywood.
Trilhas do imaginário | 405

A experiência estética na releitura do videoclipe trouxe consigo


uma nova configuração e conceito para Smooth Criminal, que a partir
das inserções pode ser considerado um filme neo-noir. A seguir
faremos uma breve análise das principais cenas noir no videoclipe
de Michael Jackson.
Logo nos primeiros quadros ficamos ambientados numa espécie
de downtown151 de Chicago dos anos 1940, onde nele está localizado
o Break o’dawn152 Club, sequência em que o primeiro clássico surge,
Gilda, interpretado pela atriz Rita Hayworth performando Put On
Blame On Mame (Figura 5). Aqui já começa a interação com Jackson,
que revive o gângster da ideia original de Smooth Criminal, numa
espécie de continuidade.

Figura 5. Gilda tira a luva da mão, e a joga para a plateia

Fonte: Michael Jackson´s This Is It (Columbia Pictures)

151 Centro da cidade.


152 Nome que faz referência a canção “Break of Dawn”, faixa quatro do álbum
Invincible de Michael Jackson lançado em 2001. Dispoível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=O8ELJ_Eh8A0> Acesso em: 31 jul. 2018.
406 | Trilhas do imaginário

A cena seguinte exibe o início da história, com uma cena


de In a Lonely Place, o diálogo desconfiado e olhar profundo num
plano close de Laurel Gray (personagem de Gloria Grahame) com
Dixon Steele (Humphrey Bogart) se referindo ao gângster Jackson
(Figura 6).

Figura 6. Momento do perigoso e do imprevisível. Marca dos filmes noir

Fonte: Michael Jackson’s This Is It (Columbia Pictures)

Como uma ameaça ela interroga: “- What’s he doing here?”


(O que ele está fazendo aqui? - em tradução livre), Michael Jackson
sai às pressas e começa uma perseguição.
O que a mise-en-scène “antitradicional” do noir propõe
segundo Place e Peterson (1976) é a representação de um mundo
em frágil equilíbrio, inseguro, sob uma constante ameaça da
insurgência do inesperado (PLACE, J. A.; PETERSON, L. S. citado
por LIRA 2015. p. 49).
Na sequência da fuga, Jackson surge descendo rapidamente
por um corrimão de uma escada - instrumento de grande significação
para os clássicos noir (Figuras 7 e 8). Para Lira (2015, p. 69), o objeto
se compara com “espelhos, janelas e outros objetos emoldurantes
que compõem a iconografia noire. Estes elementos estão para o noir
como o saloon está para o western”.
Trilhas do imaginário | 407

Figuras 7 e 8. Uso da escada


como objeto de tensão entre os
personagens

Fonte: Michael Jackson’s This Is It


(Columbia Pictures)

Numa das últimas cenas,


Jackson é ameaçado pelo
personagem Philip Marlowe de
Humphrey Bogart extraído do
longa noir The Big Sleep (À Beira
do Abismo), do qual destacamos
a presença da sombra e iluminação que caracteriza o ambiente dos
filmes policiais americanos dos anos 1940 (Figura 9), que segundo Lira
(2015, p. 81) analisando a fotografia do longa Almas Perversas (Fritz
Lang, 1945), descreve suas cenas finais como low key lighting (luz baixa
ou escura, iluminação por baixo): “onde as sombras enegrecem quase
todo o quadro exibido, com a luz revelando o mínimo necessário na
cena para a visualização da ação”.

Figura 9. A sombra apaga o volume, os contornos, as cores dos objetos (LIRA,


2015. p.19). Cena de À Beira do Abismo em Smooth Criminal

Fonte: Michael Jackson’s This Is It (Columbia Pictures)


408 | Trilhas do imaginário

Há também o reaproveitamento de cenas presentes no


videoclipe original de 1988 de Smooth Criminal por ter suficiente
apelo ao estilo noir. As imagens que eram coloridas, agora passam
a ser preto e branco. Na sequência, os soldados armados aparecem
cercando Jackson, contrastados na luz e na sombra, em forma de
silhueta, nas janelas do alto de um edifício (Figura 10). Estas cenas
foram reutilizadas e expõem a condição em que está o personagem,
além de explicitar a utilização de enquadramentos dos filmes noir,
“com uma extrema e perturbadora alternância de ângulos e planos,
de fechado (close up), a médio (medium shot) e a plano geral (long
shot)”, parafraseando Lira (2015, p. 63).

Figura 10. Cena original do filme Moonwalker estilizada em Michael Jackson’s This Is It.

Fonte: Michael Jackson’s This Is It (Columbia Pictures)

Por fim, a análise chega aos últimos minutos da obra audiovisual


de Michael Jackson com duas cenas que chamam a atenção, uma pelo
uso da tecnologia e a outra pelo contraste em que o preto e branco dão
lugar ao colorido para dar início a performance da canção no palco.
O cantor possuía a pretensão de imergir na plateia nos inter-
ludes e nos gráficos da canção em 3D, ao vivo e exibidas na enorme
tela de led sobreposta em todo o palco, em que mescla filmes noir,
originalmente analógicos, com a inserção digital do artista e o uso
da tecnologia 3D. O final de Smooth Criminal evidencia a inovação
Trilhas do imaginário | 409

- quando Jackson se transforma em alvo de fogo de Philip Marlowe,


quebra a janela com um salto, e os estilhaços e as balas que saem da
metralhadora do vilão têm efeito de ultrapassarem a tela (Figura 11).

Figura 11. Momento em que Jackson, o gângster salta da janela de um edifício

Fonte: Michael Jackson’s This Is It (Columbia Pictures)

Após todo o ruído provocado pela arma e pelo vidro na cena


anterior, uma imensidão de silêncio surge, anunciando a apresentação
numa marquise de época com alguns foleys153 de trânsito e em cores
(Figura 12).

Figura 12. Cena em que a metrópole dos anos 1940 é introduzida em cores

Fonte: Michael Jackson’s This Is It (Columbia Pictures)

153 É a reprodução de efeitos sonoros complementares de um filme, vídeo


ou de outros meios audiovisuais na pós-produção para melhorar a
qualidade do áudio.
410 | Trilhas do imaginário

Logo surge uma cidade, com arquitetura dos anos 1940


antecedendo o início da performance, que foi exibido no início
e no fim de Smooth Criminal. Lira (2015, p. 43) nos explica que
“a cidade representada no cinema noir, por exemplo, é um meio
perigoso, inquietante, pecaminoso, sedutor e amiúde propício ao
vício e à promiscuidade”.

6 Considerações Finais
Analisamos um breve histórico acerca do gênero noir no
cinema americano e a partir dele, realizamos uma comparação
do que Smooth Criminal utilizou-se para compor o seu universo
e ambientação, baseado na atmosfera do gênero, conhecido pelas
sombras e estética marcantes. Após décadas, o artista Michael
Jackson autor do produto audiovisual, celebra uma releitura especial
do clássico e o insere num atual contexto de tecnologia disponível
para exibições.
O cantor Michael Jackson conseguiu ser inovador em vários
aspectos do mercado do entretenimento, seja ele da música, da
dança, do vídeo e até da moda. Sua marca quando impressa em
algum tipo de produto fonográfico ou audiovisual, é na maioria das
vezes sinônimo de propagação midiática.
Tal inovação atingiu também Moonwalker (1988) que é
seu primeiro filme autobiográfico, no qual Smooth Criminal está
introduzido. O longa foi “contra a maré” do mercado no seu lançamento,
quando não entrou para o circuito mundial de exibição nos cinemas
(mesmo sendo produto de Hollywood) e foi comercializado apenas
em home vídeo, retirando a exclusividade do cinema e da televisão
para a estreia de um dos seus principais produtos.
O audiovisual Smooth Criminal, além do visual marcante,
contém uma das marcas registradas do artista, o passo The Lean
- patenteado por Jackson - notável por inclinar o artista para
frente, formando um ângulo de 45º com o chão. Este passo denotou
significamente o videoclipe, fazendo-o ser popularmente conhecido
Trilhas do imaginário | 411

tão quanto às obras visuais renomadas lançadas anteriormente:


Billie Jean (Steve Barron, 1983), Beat It (Bob Giraldi, 1983) e Thriller
(John Landis, 1984).
Podemos considerar que o produto original final audiovisual
de Smooth Criminal (2009) tomou proporções que o afastou do longa-
metragem em que está sequenciado, devido tanto a sua estética
quanto a sua narrativa, ambas inspiradas nos longas-metragens do
cinema noir americano.
Com isso, o recorte feito sobre apenas à releitura do videoclipe
exibido em Michael Jackson’s This Is It reforça a análise do produto como
um tipo de narrativa audiovisual, livremente inspirada no cinema noir.
A partir desta pesquisa explanamos como um novo produto
audiovisual, mesmo sendo ele do século XX ou XXI, consegue imprimir
uma fidelidade ao uso do gênero noir, podendo ela ser pura ou não.
Outros produtos audiovisuais de Michael Jackson também possuem
influência noir, mas estão caracterizadas como neo-noir, como a
sequência inicial de Bad (Martin Scorsese, 1987) toda em preto-e-
branco e os curtas completos de Who Is It (David Fincher, 1993) e
de Stranger in Moscow (Nick Brandt, 1996), produtos esses que em
artigos futuros podem ser analisados como fizemos com a releitura
de Smooth Criminal.
Ainda pontuamos que esta análise contribuirá tanto nas
pesquisas comunicacionais futuras, acerca da influência do cinema
noir em outros segmentos audiovisuais, como na documentação da
carreira profissional de Michael Jackson que possui um material
de ampla qualidade e um vasto campo de estudos sobre as ações
midiáticas de um artista dos anos 1980 e 1990 que não tinha tanta
tecnologia como hoje ao seu dispor.

Referências
BAD 25. 2012. Direção: Spike Lee. Produção: Antonio Reid, John Branca,
John McClain e Spike Lee. Estados Unidos, Optimum Productions.
123min. 1 DVD.
412 | Trilhas do imaginário

DIMENDBERG, Edward. Film Noir and the Spaces of Modernity.


Cambridge: Harvard University Press, 2004.
FIORUCI, Wellington. Fuego de diamantes: o noir literário de Muñoz
Molina em El invierno en Lisboa. Vitória: Revista Contexto n. 32 -
2017.2.6.6: 50-79.
KHAN, Amir. Michael Jackson’s ressentiment: Billie Jean and Smooth
Criminal in conversation with Fred Astaire. Popular Music and Society,
vol. 35(2): 187-201, 2012.
LIRA, Bertrand. Cinema noir: a sombra como experiência estética e
narrativa. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015. 142p.
LIRA, Bertrand. Luz e sombra: uma interpretação de suas significações
imaginárias nas imagens do cinema expressionista alemão e do cinema
noir americano. 2008. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
MANOVICH, L. The language of new media. Cambridge: MIT Press,
2001.
ROBERTS, Chris. Michael Jackson: o rei do pop, 1958-2009. Tradução
Cristina Borba. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2010.

Filmografia
MICHAEL JACKSON’S PRIVATE HOME MOVEIS, 2003. Producão: Brad
Lachman Productions, Fox Television Network. 120min. color. 1 DVD.
MICHAEL JACKSON’S THIS IS IT, 2009. Direção: Kenny Ortega. Estados
Unidos, Columbia Pictures. 111min. color. 1 DVD.
MOONWALKER. 1988. Direção: Jerry Kramer, Will Vinton, Jim Blashfield
e Colin Chilvers. Estados Unidos, MJJ Productions e Warner Bros. 93min.
son. color. 1 DVD.
| 413

Noções de risco e saúde


no imaginário midiático

Patrícia Monteiro154
Luís Augusto Mendes155

A partir das noções de risco (Vaz, 2006) e de tecnologias do


imaginário (SILVA, 2012), com base na sociologia compreensiva de
Michel Maffesoli (2012), destacamos como as imagens de corpo da
cultura contemporânea contribuem para o desenvolvimento do que
chamamos de saúde imaginária156.
As informações produzidas pelas tecnologias do imaginário,
alicerçadas na atual fase do capitalismo e no discurso do risco,
focalizam a saúde numa perspectiva estética de viver e experimentar
em comum – como nos remete a leitura do imaginário em Maffesoli
(2007). A ênfase no corpo em forma repudia toda e qualquer
transgressão a esta imagem, fortemente alimentada pela mídia.
Neste capítulo, abordamos que a noção de saúde imaginária está
entremeada em torno de conflitos e sinergias que colocam o corpo
como emissário de um bem viver.

154 Jornalista, Profª Drª no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e


do curso de Jornalismo da UFPB. É mestre em Comunicação e Culturas
Midiáticas pela UFPB e Doutora em Comunicação pela UFPE. E-mail:
[email protected]
155 Jornalista e Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Social pela UFPB.
Professor dos cursos de Jornalismo e Psicologia na UNINASSAU João Pessoa.
E-mail: [email protected]
156 Esta noção foi desenvolvida pela autora na tese defendida em fevereiro de
2016 no PPGCOM-UFPE.
414 | Trilhas do imaginário

Práticas contemporâneas de saúde e autocuidado


Por meio da ênfase sobre a reeducação alimentar e a atividade
física, as tecnologias do imaginário – sobretudo os reality shows de
emagrecimento – atuam como dispositivo de modelagem do corpo,
normatizando-o num processo semelhante ao da sociedade disciplinar
cujos dispositivos visavam à criação de corpos dóceis por meio de
um conjunto de saberes, discurso e práticas.
Com seus múltiplos processos de agenciamento e disseminado
por todas as instituições, da família ao Estado, o exercício do biopoder
foi um elemento essencial ao desenvolvimento do capitalismo, “este só
foi garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de
produção e através de um ajustamento dos fenômenos de população
aos processos econômicos” (FOUCAULT, 1994, p. 144).
Conforme o autor coloca, a partir de 1960 percebeu-que o
poder disciplinar não era tão indispensável quanto supunha. Neste
caso, as lutas que têm o corpo como campo de batalha são operadas
em outras instâncias, indicando que a saúde está em torno de novas
lutas e investimentos.
A partir de reflexões foucaultianas, Paulo Vaz (2006a)
compreende como a passagem da sociedade moderna para a
contemporânea modificou as práticas de subjetivação e cuidado.
Para ele, três fatores evidenciam o deslocamento nas experiências
corporais: as novas tecnologias de comunicação (transformação
cultural); a nova articulação entre o corpo e o mercado (transformação
do capitalismo) e a passagem da norma ao risco (transformação nas
relações de poder).
Por atualizar a problemática do corpo em Foucault e contribuir
com a noção de risco, tomamos os três fatores explicitados por Vaz,
articulando-os às noções de tecnologias do imaginário e à nossa
proposição de saúde imaginária.
As novas tecnologias são, para Vaz, o primeiro vetor do
deslocamento do cuidado de si da modernidade para a atualidade,
modificando os modos como cada corpo experimenta e modifica a
Trilhas do imaginário | 415

realidade. Atualmente não cabe mais a um poder médico ou estatal


decidir as técnicas de combate às enfermidades ou de conformação
dos corpos à uma determinada higiene pessoal ou saúde coletiva.
Retomando as questões problematizas por Vaz: “que corpo o
pensamento pode produzir?” e “como mantê-lo belo e saudável?”,
encontramos a mídia oferecendo uma série de respostas que se
dispõem a ajudar – não mais disciplinar - o indivíduo na incessante
busca pela saúde.
A hipótese de Vaz é de que as tecnologias, viabilizando
a mediação generalizada, afetaram a experiência do corpo.
Concordando com o autor, complementamos que o imaginário de
saúde contemporâneo, alicerçado às tecnologias do imaginário, forma
(ou produz) um tipo específico de corpo no qual habita bem-estar,
beleza e performance.
Fernanda Bruno (2006) reforça que, investindo no saber
biomédico, a mídia encarrega-se de um biopoder exercido nos espaços
abertos dos meios de comunicação, seus procedimentos se dispõem
mais a responsabilizar do que a normalizar os indivíduos: “função
deles é informar mais que curar. A gestão de si, do corpo e da saúde
implica, portanto, o contato e o acesso à informação, e não mais uma
relação de produção ou desvelamento da verdade” (BRUNO, 2006, p. 73).
Em nosso entendimento, assim como as instituições disciplinares
criavam mecanismos para vigiar e punir os indóceis, as tecnologias do
imaginário, apoiando-se em instrumentos mais refinados, centrados
na produção de uma estética (de um gosto ou sentimento em comum),
cercam o público por todos os lados com uma perspectiva de dever
de informação e de responsabilidade de gerir o corpo.
É isso o que fazem os realitys shows voltados a práticas de
emagrecimento, entre os quais mencionamos Além do Peso (TV
Record) e Medida Certa (TV Globo)157.

157 Em três das cinco temporadas, Medida Certa utilizou celebridades como
participantes. Além do Peso é a versão brasileira do Cuestión de Peso, produção
original da Endemol Argentina. Foi veiculado no Programa da Tarde e no
matutino Hoje em Dia. Até fevereiro de 2016 foram veiculadas cinco temporadas
416 | Trilhas do imaginário

Medida Certa e Além do Peso têm como participantes pessoas


famosas e anônimas, respectivamente, que apresentam um corpo
“autêntico”: com estrias, banhas, flacidez, excesso de peso. Ambos
produzem o mesmo imperativo: reprograme seu corpo em 90 dias.
Público e personagens dos programas, todos podem (e devem) cuidar
de si mesmos, desde que tenham acesso às informações adequadas,
disseminadas por meio da televisão, mas também disponíveis em
sites e aplicativos dos programas.

Saúde e tecnologias do imaginário


Michel Maffesoli considera o fato de que a informação é
constituída por uma instrumentalização da técnica. Ora, para que
o discurso da medida certa faça sentido, há alguns (celebridades)
fora de forma e com ameaças de desenvolver doenças, provocando
um efeito imediato de inclusão do todo (a população). O que faz
isso funcionar é a técnica, a qual, apoiada no (mau) exemplo
dos personagens e referendada pelo discurso (programado)
dos especialistas em saúde, cristaliza no imaginário social uma
informação sobre a saúde.
Mas o essencial dessa técnica, e por isso estamos trabalhando
as noções de risco e saúde à luz da sociologia compreensiva, é o
elemento comunicativo que dela brota. A linguagem das tecnologias
do imaginário é a sedução, no universo empático da compreensão
(SILVA, 2012).
Buscando a adesão voluntária do público, Além do Peso e
Medida Certa lançam diversos instrumentos para acentuar, por
meio da interação operada pela televisão e pela internet, um pacote
biopolítico de informações rumo à “vida saudável”.
Voltando às mudanças nas tecnologias do corpo, no século
XX, diante de um imaginário tão fortemente marcado pela ideia de
que a doença era algo estranho ao corpo humano e por isso deveria
o “anormal” ser retirado do convívio social, o médico e filósofo
francês Georges Canguilhem (2013) defendeu que há uma diferença
Trilhas do imaginário | 417

qualitativa entre o estado patológico e o normal, bem como um duplo


sentido nesta última palavra, marcada por um juízo de valor. Com a
contribuição de Canguilhem, saúde e doença não são mais tidas como
situações opostas, a doença, por sua vez, passa a ser constitutiva da
própria saúde.
Sendo assim, não são os sinais e sintomas de uma doença
que informam um indivíduo sobre seu estado de saúde. Concebido
no seio dessa mudança de paradigmas, o conceito elaborado pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) define: “saúde é o estado
de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a
ausência de doença ou incapacidade”.158
Em todo o mundo, a ideia de “completo bem-estar” foi marcada
por críticas. Considerado irreal, utópico e impossível de ser alcançado
objetivamente, a definição da OMS contesta a visão de saúde como
simples oposição à doença e está na direção de um ideal de saúde
positiva, reunindo as dimensões social, intelectual, espiritual, física
e emocional (ALMEIDA FILHO, 2011).
Tomando a saúde como “bem-estar”, cabe a cada um gerenciar
o corpo, sendo o cuidado acionado não pelo combate a uma doença já
instalada, e sim no que tange à prevenção, ao melhor gerenciamento
de tudo o que possa constituir ameaça ou risco, como descreve Bruno:

O fato de uma enfermidade não estar já constituída ou


em desenvolvimento, não implica sua inexistência. A
doença virtual não perde em realidade se comparada
à atual. Duas modalidades de existência, portanto:
a virtual e a atual. Um indivíduo pode estar, dessa
forma, simultaneamente são e enfermo [...] o corpo
com o qual o indivíduo mantém relação não é tanto
o seu corpo presente ou atual, corpo que o informa,
por dores, sintomas e sinais, sobre o seu estado. É
em torno do possível que se dá a gestão do corpo
(BRUNO, 1997, p. 110).

158 Conceito extraído da obra “O que é saúde”? ALMEIDA FILHO, Naomar. O que
é saúde? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.
418 | Trilhas do imaginário

Quando coloca à disposição de qualquer usuário - e não apenas


do telespectador que num dado tempo e espaço está assistindo o
reality show – um conjunto de informações sobre riscos à saúde e
como entrar na medida certa, o biopoder dos meios de comunicação
alastra a virtualidade do adoecer, indicando que esta possibilidade é
tão real quanto a atualidade das dores crônicas no joelho da cantora
Preta Gil, uma das personagens da quarta temporada de Medida Certa
que malha para “não piorar o estado de saúde”. Gerando, portanto,
uma permanente tensão, as tecnologias do imaginário disseminam
a informação do campo biomédico e indicam como agir.

Da empresa ao corpo: capitalizar a imagem enquanto ícone


de saúde
De acordo com Vaz, a segunda mudança no que tange à
experiência do corpo refere-se à nova fase do capitalismo. Vimos com
Foucault que, direcionado à produção, o capitalismo investia o corpo
como força de trabalho, devendo ser explorado e docilizado em sua
máxima potencialidade de gerar lucro, de produzir. Já a atual fase é
marcada pela superprodução, “onde o que faz problema é consumir
o que se produz em excesso comparativamente à necessidade. Desde
então, o corpo entra no mercado como capacidade de consumir e
ser consumido” (VAZ, 2006b, p. 42).
Se o corpo entra no mercado para consumir, ser consumido, e
também como alvo de um ajuste, ou seja, em estado de reprogramação,
isso nos permite dizer que há uma imagem de corpo – e não outra
em seu lugar – que é econômica, política e simbolicamente viável,
assim como ocorreu no advento da modernidade. Isto nos ajuda a
pensar nos interesses que permeiam a TV Globo ao ocupar-se com
a imagem do ídolo do penta.
Ronaldo Fenômeno entrou no Medida Certa em 23 de setembro
de 2012, com a meta de perder 18 quilos até o fim dos três meses
de reprogramação, exibida nas noites do dominical Fantástico.
Na época, pesava 118,4 kg e se preparava para integrar o time de
Trilhas do imaginário | 419

comentaristas da Globo na Copa do Mundo de Futebol de 2014


(sediada no Brasil).
O gordo é o corpo indócil do capitalismo atual, ao qual cabe
uma quarentena multiplicada: não 40 dias de penitência, mas
90 dias de reprogramação, viabilizada por especialistas aptos na
medicalização das aparências (educadores físicos e nutricionistas).
Após ser transformado pelas técnicas corporais da televisão,
o corpo de Ronaldo se torna o instrumento de veiculação dos valores
imaginários da sociedade brasileira, está apto ao consumo.
Mas de que consumo estamos falando? Sabemos que o tema
suscita grandes debates teóricos, mas permanecemos sob o aporte
de Vaz, para quem o corpo consome principalmente a si mesmo.
Defendemos que o corpo (saudável) atende, sobretudo, a uma ética da
estética, voltada a despertar as sensibilidades, os gostos, as realidades
e os imaginários buscando consumir imagens (corporais) adornadas
ao consumo das tecnologias do imaginário.
Tendo em vista o fator estético tão primordial no cotidiano,
relacionado ao sentir (particular) e ao experimentar em comum
(experiência coletiva), este corpo que consome a si mesmo (e que
também entra no mercado para ser consumido), assim se coloca
não mais pela força de um controle disciplinar, mas pela sedução do
espetáculo audiovisual, que age primariamente sobre o imaginário
e sobre as subjetividades.
O Ronaldo rechonchudo não serve ao imaginário capitalista
do trabalho e da superprodução de si mesmo como performance. Já
o Ronaldo no desafio da “medida certa” inspira a audiência em torno
de aspirações como qualidade de vida, saúde e bem-estar, tão caras
ao consumo atual. Mas o Ronaldo mais magro e disposto fisicamente,
este sim é ícone de um tempo em que os valores empresarias são
aplicados à pessoa, que coloca a si mesma como alvo de consumo.
Tomando os discursos do consumo, do esporte e da empresa
para pensar a evidência do que chama de “culto da performance”,
Alain Ehrenberg destaca que “a democratização do aparecer não está
mais limitada ao confortável consumo da vida privada: ela invadiu
420 | Trilhas do imaginário

a vida pública sob o viés de uma performance que impulsiona cada


um a se singularizar, tornando-se si mesmo” (2010, p. 11).
Na atualidade, cuidar do corpo é parte do projeto de
autorrealização do eu. No sentido que Ehrenberg analisa, o consumo
se volta para a crença de que todas as necessidades (do indivíduo) têm
de ser satisfeitas; do esporte vem uma série de mitologias arraigadas à
competição, superação e vitória; e no que tange ao discurso empresarial,
as empresas tornam-se o grande feixe de revelações acerca do direito
e do “dever” de cada um de ser um empreendedor.
Malhar o excesso de peso em frente às câmeras é um modo
de assumir a responsabilidade sobre si tão alardeada pelos meios de
comunicação, que encontram no imaginário da saúde e do esporte
um motor essencial. Malhando, o gordo expressa: eu também posso
me redimir.
De acordo com Ehrenberg, o centro dessa mitologia que
une performance e autonomia está nas transformações da narra-
tividade esportiva:

Hoje, o esporte é um aspecto da “galáxia da autonomia”:


não mais uma obrigação que nos é imposta em nome
de qualquer coisa superior a nós, mas uma liberação
que se impõe em nome de si mesmo, de sua saúde,
de seu estresse, de sua aparência física (Idem, p. 23).

Uma das faces dessa “mitologia esportiva” demonstra que


o sujeito deve se abster dos limites da vida privada e, aos olhos
públicos, alcançar notoriedade, o que, por sua vez, depende somente
do próprio esforço e do governo de suas paixões e pulsões.
O corpo se torna um valor exibido publicamente e glorificado
através de nádegas duras, gomos no abdôme, pele jovem. Tomando o
critério da beleza associado a um determinado imaginário de corpo, as
tecnologias do imaginário fortalecem o consumo das formas perfeitas.
Mídia e saúde funcionam a serviço de uma diversidade corporal,
trazendo, sem dúvida, outros desafios e contradições, como a interface
entre saúde e beleza. Conforme Sant’Anna acentua:
Trilhas do imaginário | 421

No Brasil, o sucesso das cheias de corpo deveu-se,


em parte, à ascensão das classes C e D. A antiga
imagem de que gordura é formosura, charme,
generosidade e, sobretudo alegria, foi renovada
[...] Milhares de cirurgias para a redução do
estômago situam-se na interface entre saúde
e beleza. Em paralelo, o mercado da beleza
gorda tornou-se cada vez mais concorrencial
(SANT’ANNA, 2014, p.183).

Cada um é convocado a transcender as imagens de consumo


oferecidas nas mídias de massa e nas redes sociais, e convocado
a realizar-se em acordo com as recomendações midiáticas que
preconizam a produção de corpos programados/formados para
a saúde, a performance, o bem-estar e o sucesso. Em suma, é um
tempo de vigilância exacerbada a tudo o que ofereça risco ao desejo
de fabricar a si mesmo com as formas do imaginário vigente.

Da norma ao risco: a saúde entre novos paradigmas


Chegamos ao terceiro fator que, segundo Vaz (2006b), permite
o equilíbrio entre as possibilidades tecnológicas e a padronização de
comportamentos requerida pelo capitalismo. Trata-se da passagem
da norma para o risco, como efeito do deslocamento da disciplina
(sociedade moderna) para o controle (sociedade contemporânea).
Vaz destaca que a Modernidade distinguia doenças do corpo
e doenças da alma, mas, na Atualidade, estas distinções caem por
terra em função de novos paradigmas que envolvem a saúde e a
doença, configurando o deslocamento de um poder que estava nas
mãos dos médicos (modernidade) a uma responsabilização dos
indivíduos (atualidade):

Enquanto não havia experiência da dor, o


indivíduo não se preocupava muito com sua
saúde; no máximo, observada as regras médicas
de higiene. A partir da percepção do sofrimento,
422 | Trilhas do imaginário

ele ia ao médico para que este diagnosticasse,


isto é, transformasse sua experiência subjetiva
em uma lesão observável no espaço do corpo.
Desde então, o indivíduo aceitava limitações em
sua prática diária, podendo até ser internado
em um hospital. A preocupação com a saúde e a
ascese – em termos práticos, restrita à obediência
ao médico – ocorriam a partir da experiência
de sofrimento. Se o indivíduo se recuperasse do
episódio de doença, retornava ao horizonte de
despreocupação próprio do estado de normalidade
[...]A medicina contemporânea é aquela que tem
que lidar com as doenças crônico-degenerativas
[...] A noção de causa a elas associada é a de fator
de risco (VAZ, 2006a, p. 91).

Com esta contextualização, chegamos a uma das compreensões


implicadas neste capítulo: as relações entre saúde e aparência
promovidas pelo imaginário midiático estão na base de um novo
momento em que cada indivíduo é interpelado a se responsabilizar
pelo controle de suas formas corporais, sendo os meios de comunicação
o novo lugar de (re)programação da vida.
Ser gordo ou magro passa mais pela escolha do que pelas
condições orgânicas e até mesmo sociais. Comer exagerada ou
moderadamente assume uma importância capital, assim como
se exercitar ou dar vazão ao ócio. Cada um se torna uma espécie
de gestor da própria vida. Sem a tutela das normas, instituições
e poder disciplinares, o indivíduo está liberado para viver
seus prazeres, desde que estes não afetem o futuro. Segundo
Vaz, administrar o risco e o prazer é uma decisão requerida
continuamente de cada indivíduo.
O conceito de risco159 focaliza o indivíduo em suas diversas
relações, partindo de um cuidado de si a um cuidado com o outro e

159 Vaz (2006) destaca que a noção de risco foi utilizada pela primeira vez no
final dos anos 40, numa associação entre fumo e câncer de pulmão. Czeresnia
(2013) completa que a gestão dos riscos é um dos eixos que norteiam o
Trilhas do imaginário | 423

com o mundo. Para Vaz, à medida em que propõe o compromisso,


a antecipação de agir no presente eterniza o círculo de valores do
cotidiano. E nisto reside o lugar central ocupado pelo conceito de risco
na atualidade. Esta compreensão tem plena aderência à perspectiva
de imaginário e vida cotidiana adotada neste texto, porque é nos
entremeios do discurso do risco e da responsabilização individual
pela saúde que se desenvolve todo um conjunto de imagens sobre o
nexo entre formas corporais e vida saudável.
Encarnando o discurso do risco e da promoção da saúde e
tendo a atividade física como fonte para seus discursos, os meios de
comunicação utilizam a informação para recomendar determinados
hábitos e condenar outros, tornando-se os vigilante pós-modernos
dos delinquentes do peso.
Nos reality shows de emagrecimento também cabe à mídia o
papel de dosar e frear a relação entre perda e ganho.
No caso de Medida Certa e Além do Peso, os participantes
não ficam confinados 24 horas por dia, mas decidem aceitar,
deliberadamente, as metas de reprogramação. No primeiro não há
eliminação durante o processo, já no segundo, o participante pode
sair se, após pesagem, não tiver atingido a meta de emagrecimento.
O risco de engordar povoa o imaginário dos participantes,
que precisam calcular quando e se haverá algum tropeço, por menor
que seja, na dieta alimentar e na atividade física.
A “virtualidade do adoecer” (2006b), nos termos de Paulo
Vaz, predispõe o indivíduo a evitar o quanto puder a atualização
da doença e isto produz um outro estado, o de “quase-doença”, que
é em grande parte alardeado pela mídia, deixando as pessoas em
constante alerta, num estado que nunca se acaba o cuidar de si:

A antiga separação entre normal e patológico é


substituída, primeiro, por um estranho estado de
quase-doença, que convida a um cuidado de si

discurso da promoção da saúde, relacionado diretamente aos hábitos e


estilo de vida das pessoas.
424 | Trilhas do imaginário

cotidiano que dura enquanto houver a crença de


que ainda se pode fazer algo. Esse estranho estado
tem como oposto o estado terminal, no qual nada
mais pode ser feito para que se evite a morte (VAZ,
2006b, p. 59).

Sendo marcadas por uma ênfase de produzir ou experimentar


sensações associadas ao “bem-estar”, as experiências corporais
expandem a norma da modernidade e se fixam no imaginário social
através das incitações ao prazer, à moderação e à responsabilização
irradiadas pelas tecnologias do imaginário. Ao lado da atividade
física, a comida tem sido uma das experiências mais comumente
ligadas ao prazer.
O comer é um dos alvos das prescrições midiáticas da moral
da boa forma por causa de sua relação com a obesidade. A partir do
momento em que esta passou a ser definida como doença (VIGARELLO,
2012), seguiu-se um horror generalizado que coloca a gordura em
constante interdição, tendo o gordo de ser submetido à disciplina
da atividade física e do controle alimentar para pagar a culpa de ter
deixado o corpo fora da forma ideal.
De acordo com Le Breton (2009), é no terreno das aparências
físicas que os estereótipos são semeados, transformando-as em
estigmas, em marcas fatais de imperfeição moral. Ao discutir a
noção de estigma, Goffman (1988) destaca que o estigma é um
atributo (ou característica) considerada socialmente indesejada,
que torna o indivíduo desvalorizado e diferente dos demais, sendo
assim, um atributo que estigmatiza um indivíduo pode reforçar a
normalidade de outro.
Pensando no corpo “além do peso” ou fora da “medita certa”,
vemos o quanto este se transformou numa “marca” depreciativa,
desviando-se do padrão tido como normal. Nessa perspectiva, o
indivíduo “fora de forma” ou obeso é estigmatizado e tratado com
diferença por ter uma aparência física que destoa dos modelos
socialmente desejáveis, o que nos mostra a força de uma biopolítica
das medidas corporais que encontra eco nas tecnologias do imaginário.
Trilhas do imaginário | 425

Compreensões finais
No lugar da submissão a uma norma e instituições específicas,
na atualidade cada um deve assumir o cuidado e o controle do corpo-
performance, transformando a aparência em signo de autonomia,
de saúde, mas também de uma ética da estética no sentido de viver
e experimentar em comum.
Esse contexto nos faz compreender como a promoção
da saúde e o combate aos riscos encarnam-se às tecnologias do
imaginário que funcionam como um lugar privilegiado de fabricação
dos corpos contemporâneos, ligando-se à biopolítica, tanto no que
tange a articular um determinado saber sobre a saúde quanto na
transformação da vida saudável em um dever.
Encontramos a saúde imaginária como metáfora de uma
sociedade que repudia as formas contrárias ao que imagina ser a
demanda corporal vigente, sorvendo o suor da malhação, a combustão
da gordura e o viço da juventude como imagens do suposto equilíbrio
peso e beleza, informação e risco.
Investindo na gordura como uma ameaça individual (ao
obeso) ou coletiva (à saúde pública), as tecnologias do imaginário
transformam em performance de volumes, curvas, cores, sons e
imagens as graças e as culpas associadas a cada padrão de corpo
(e conduta), numa mediação, medição e moralização generalizadas
da vida saudável como um espetáculo sensorial, para todos os
gostos e públicos.

Referências
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Fiocruz, 2011.
BRUNO, Fernanda. O biopoder nos meios de comunicação: o anúncio de
corpos virtuais. Comunicação, Mídia e Consumo (São Paulo), São Paulo,
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BRUNO, Fernanda. Do sexual ao virtual. São Paulo: Unimarco, 1997.
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CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2009.
EHRENBERG, Alain. O culto da performance: da aventura
empreendedora à depressão nervosa. Aparecida: Ideias e Letras, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 29. ed.
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GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
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MAFFESOLI, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-
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MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-
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SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. História da beleza no Brasil. São
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VAZ, Paulo. As narrativas midiáticas sobre cuidados com a saúde e a
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VAZ, Paulo. Consumo e risco: mídia e experiência do corpo na
atualidade. Comunicação, Mídia e Consumo (São Paulo), São Paulo, v. 3,
n. 6, p. 37-62, 2006b.
VIGARELLO, Georges. As metamorfoses do gordo: história da obesidade
no Ocidente: da Idade Média ao século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
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Sobre os autores

Adriano Florencio
Bacharel em Rádio, TV e Internet pela Universidade Federal de Pernambuco
– UFPE (2015). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação
– UFPB (2018-2020). Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Mídia PPGEM – UFRN. E-mail: [email protected]

Agamenon Porfírio
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da
UFPB, graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo
pela UEPB. Integrante do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual
(Gecine). Experiência em comunicação popular, como também em produção
audiovisual. Atualmente desenvolve pesquisa em narrativas cinematográficas
e memória. E-mail: [email protected]

Alberto Ricardo Pessoa


Pós-doutor em Sociologia pela UFPB (2014). Professor Adjunto IV na
mesma instituição. Possui Licenciatura em Educação Artística pela
Faculdade de Artes Alcântara Machado (2003), Mestrado em Artes Visuais
pela UNESP (2006) e Doutorado em Letras pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie (2010). É professor do Curso de Comunicação em Mídias
Digitais (DEMID), do Programa de Pós-Graduação em Comunicação
(PPGC/UFPB) e Coordenador do Projeto Narrativas em Cordel – Uma
proposta complementar na formação cidadã de crianças em comunidades
periféricas – DEMID/UFPB); ensina e pesquisa os seguintes temas:
Comunicação e Linguagens Midiáticas, Socialidade das Mídias. E-mail:
[email protected]

Ana Caroline Fernandes


Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2014), mestre
e doutoranda em Ciências da Linguagem (Unisul) e desenvolve pesquisas
em antropologia, imaginário social e áreas correlatas. Membro do Grupo de
Pesquisa Imaginário e Cotidiano. E-mail: [email protected]

Bertrand Lira
Professor Doutor do Departamento de Comunicação em Mídias Digitais
(Demid) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da
UFPB; coordenador do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual (Gecine).
Realizador, dirigiu diversos documentários de curta, média e longa-metragem;
autor dos livros Fotografia na Paraíba (1997), Luz e sombra (2013) e Cinema
noir (2015).E-mail: [email protected]
428 | Trilhas do imaginário

Bianca Dantas
Mestre pelo Programa de Pós-Gradução em Comunicação (PPGC/UFPB),
vinculada à linha de pesquisa Mídia, Cotidiano e Imaginário. Graduada
em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade
Estadual da Paraíba (2014). Foi repórter no projeto Repórter Junino, da
UEPB, e no Jornal A União. Tem experiência em assessoria de imprensa e
redação publicitária. Pesquisa e se interessa pelos temas: mídia e direitos
humanos; estudos do imaginário; estudos de gênero e análise de conteúdo.
E-mail: [email protected]

Bruno Marcelo
Doutorando em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade
da Amazônia (PPGCLC/Unama). Mestre pelo Instituto de Ciências da
Arte da Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em Arte-
Educação e História das Culturas Afro-brasileira e Indígena. Atualmente
é professor da redes públicas estadual e municipal do Amapá e também
professor substituto da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).
E-mail: [email protected]

Cláudio Cardoso de Paiva


Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal da
Paraíba (1984), mestrado em Comunicação pela Universidade de Brasília
(1988), mestrado em SciencesSociales – Universite de Paris V (Rene Descartes)
(1991) e doutorado em SciencesSociales – Universite de Paris V (Rene
Descartes) (1995). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase
em Comunicação e Estudos Culturais, atuando principalmente nos seguintes
temas: televisão, sociedade, estética e teoria da comunicação e da informação,
novas tecnologias e cibercultura. E-mail: [email protected]

Christina Musse
É jornalista, mestre e doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2006). É professora associada do Curso de
Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Universidade Federal de Juiz de Fora. É líder do Grupo de Pesquisa/
CNPq Comunicação, Cidade e Memória. Coordena o GP de Telejornalismo
da Intercom e é uma das coordenadoras do GT de História da Mídia
Audiovisual e Visual da Rede Alcar. Participa da Rede de Pesquisa em
Telejornalismo (Telejor), através da qual tem feito várias publicações. Tem
longa experiência em telejornalismo e comunicação organizacional, em
especial no âmbito das instituições federais de ensino superior. E-mail:
[email protected]
Trilhas do imaginário | 429

Ed Porto Bezerra
Graduação em tecnologia em processamento de dados pela Universidade
Federal da Paraíba (1985), mestrado em Ciência da Computação pela
Universidade Federal da Paraíba (1989), doutorado em Engenharia
Elétrica pela Universidade Federal da Paraíba (2000), pós-doutorado em
Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011) e Estágio
Sênior no Collegeof Communication da Universityof Texas no Knight Center
for Journalism in theAmericas (2013). Atualmente é professor Titular da
Universidade Federal da Paraíba onde leciona nos cursos de Ciência da
Computação, Engenharia da Computação e Licenciatura da Computação;
no Programa de Pós-Graduação em Computação, Comunicação e Artes
(PPGCCA) e no Programas de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC). Tem
experiência na área de Administração de Dados, Banco de Dados e Análise
e Projeto de Sistemas, atuando principalmente nos seguintes temas: design
audiovisual, culturas midiáticas audiovisuais, visualização de dados e
educação à distancia. E-mail: [email protected]
Edielson Ricardo da Silva
Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal
de Campina Grande (2015), é especialista em Supervisão e Orientação
Educacional pelas Faculdades Integradas de Patos (2017), mestrando em
Comunicação e Culturas Midiáticas pela Universidade Federal da Paraíba.
Seus estudos e pesquisas são centrados nas áreas da educomunicação,
com ênfase em literatura, educação e participação popular, rádio escolar,
análise de conteúdo, gênero e raça na teledramaturgia brasileira.
E-mail: [email protected]

Edyelton Marinho
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal da Paraíba (PPGC/UFPB) e possui bacharelado em Comunicação em
Mídias Digitais pela Universidade Federal da Paraíba (2015). Atualmente é
integrante do Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas, o
Gmid (PPGC/UFPB) e coordenador da Pastoral da Comunicação da Paróquia
São Rafael de João Pessoa. Tem experiência na área de Comunicação, com
ênfase em midiatização, videoclipes e transmídia, atuando principalmente
nos seguintes temas: Michael Jackson, cultura pop e fãs. E-mail:
[email protected]

Elivaldo Serrão Custódio


Pós-Doutor em Educação pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP).
Doutor em Teologia pela Faculdades EST, em São Leopoldo/RS. Docente da
430 | Trilhas do imaginário

Secretaria de Estado da Educação do Amapá (SEED). Membro do Grupo


de Pesquisa Educação e Religião(GPER/IPFER) e do Grupo de Pesquisa
Educação, Interculturalidade e Relações Étnico-Raciais (UNIFAP/CNPq).
E-mail: [email protected]
Emanuelle Querino Alves de Aviz
Doutoranda e mestre em Ciências da Linguagem com foco nos estudos
do Imaginário Social, participa do Grupo de Pesquisas do Imaginário e
Cotidiano do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da
Unisul. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade do Sul
de Santa Catarina (2010). Tem experiência na área de Comunicação, com
ênfase em Jornalismo e Editoração, atuando com assessoria de imprensa,
mídia impressa e digital, rádio e televisão. Especialista em Jornalismo para
Editores; Docência no Ensino Superior e em Gestão de Mídias Sociais e
Marketing Digital. E-mail: [email protected]
EsmejoanoLincol França
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da
UFPB, graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela
UFPB. Integrante do Grupo de Estudos em Cinema e Audiovisual (Gecine),
coordenado pelo professor doutor Bertrand Lira, também na UFPB. Estuda
produção e ressignificação de sentidos no cinema, na televisão e na música.
Email: [email protected]
Eunice Simões Lins
Pedagoga e Teóloga, possui pós-doutorado em Ciências da Religião (2012) na
UMESP – Universidade Metodista em São Bernardo do Campo-SP. Doutorado
em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2008), Mestrado em
Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (2000) e
Mestrado em Teologia pela Faculdade de Ensino Teológico de São Paulo
(1995). É Professora Adjunto do Departamento de Educação do Campo-DEC
da Universidade Federal da Paraíba- UFPB, no Centro de Educação -CE.
Professora e pesquisadora no Programa de Pós Graduação em Comunicação
PPGC da UFPB, na linha de pesquisa: Mídia, Cotidiano e Imaginário. Líder
do grupo de Estudo e Pesquisa em Antropologia do Imaginário-Gepai.
E-mail: [email protected]
Flávio Freitas Ferreira
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da
UFPB, graduado em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade
e Propaganda pelo IESP – Instituto de Educação Superior da Paraíba. Atua
na área de produção cultural(audiovisual, teatro, música, dança, circo) há
mais de 15 anos. E-mail: [email protected]
Trilhas do imaginário | 431

Gilmara da Mata Farias


Mestranda em Comunicação e Culturas Midiáticas pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação (PPGC) da Universidade Federal da Paraíba
(UFPB). E-mail: [email protected].

Heloisa JuncklausPreis Moraes


Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade do Sul de
Santa Catarina (1999), mestrado em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001) e doutorado em
Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2004). Atua como docente de graduação de Jornalismo e Publicidade
e Propaganda e docente-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem - Linha de Pesquisa Linguagem e Cultura, ambos
na Universidade do Sul de Santa Catarina. Autora do livro “A descoberta e
a vivência do virtual: experiências infantis”. Editora da revista Memorare.
Líder do Grupo de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano (http//pesquisa.
unisul.br/imaginario). E-mail: [email protected]

Jackson Gil Avila


Possui graduação em Letras – Português e Espanhol (2005), mestrado
em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina
(2015). Doutorando em Ciências da Linguagem e integrante do grupo de
pesquisas em Identidades, Migrações e Representações, vinculado à linha de
pesquisa Linguagem e Cultura, do programa de Pós-graduação em Ciências
da Linguagem, da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Bolsista
do UNIEDU. E-mail: [email protected]

Jade V. de Azevedo
Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal da Paraíba, da
linha de pesquisa de Mídia, Cotidiano e Imaginário. Possui graduação em
Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba (2017). Foi monitora da
disciplina de Estudos Culturais (2016), pela qual foi agraciada com o prêmio
de Iniciação à Docência – 2016 da referida instituição. Foi pesquisadora e
extensionista, membro do GEM – Grupo de Estudos em Gênero e Mídia,
que desenvolveu a extensão “ Um grito por elas” , na Universidade Federal
da Paraíba. Tem experiência na área de pesquisa acadêmica, monitoria e
extensão.E-mail: [email protected]

Jéssica Raissa Pessoa


Mestranda em Comunicação pela UFPB, bolsista CAPES e integrante do grupo
de pesquisa Gmid (Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas).
Bacharela em Comunicação em Mídias Digitais e ex-bolsista do Programa
432 | Trilhas do imaginário

Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) na graduação, tem


como maiores interesses de estudo Semiótica, jogos, cinema, quadrinhos,
imagem. E-mail: [email protected]
Juliana Chacon
Bacharela em Comunicação em Mídias Digitais, pela Universidade
Federal da Paraíba, tem como principais interesses e estudos, na
área de comunicação, o Cotidiano e Imaginário, a espetacularização,
as redes sociais, quadrinhos, design, games, religião. E-mail:
[email protected]
Jussara Bittencourt de Sá
Possui Doutorado em Literatura/ Letras, pela Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC-2005), Mestrado em Literatura/Letras, pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC- 2000), Especialização em Literatura,
pela niversidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL-1990), Graduação em
Letras, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL-1985). E-mail:
[email protected]
Leidiane Coelho Jorge
Possui Doutorado em Ciências da Linguagem – UNISUL (2018), Mestrado
em Ciências da Linguagem – UNISUL (2012), Especialização em Prática
Interdisciplinar: Educação Infantil e Séries Iniciais – FUCAP (2010),
Licenciatura em Pedagogia – UNIASSELVI (2009) e Licenciatura em Sociologia
– UNISUL (2016). Atualmente é participante do Grupo de Pesquisa Imaginário
e Cotidiano da UNISUL na linha de pesquisa Linguagem e Processos Culturais.
E-mail: [email protected]
Leonardo Gonçalves da Silva
Possui graduação em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal
da Paraíba – UFPB. É atual mestrando pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação, na linha de pesquisa Culturas Midiáticas Audiovisuais
na mesma instituição. Possui experiência como cineasta onde trabalhou
nas atividades de Roteiro, Direção cinematográfica, de captação e
mixagem de Som, e edição/montagem de vídeo para Cinema ou Tv. Email:
gonç[email protected]
Lucas Pereira Damazio
Doutor e Mestre em Ciências da Linguagem (UNISUL), especialista em
Produção Multimídia (CESUSC), graduado em Comunicação Social, com
habilitação em Publicidade e Propaganda (UNISUL) e graduado em Letras com
habilitação em Português e Inglês (UNESC). É Diretor Criativo na Volcanum
Creative Lab e membro do Grupo de Pesquisa do Imaginário e Cotidiano,
que atualmente é liderado pela professora Heloísa Juncklaus Preis Moraes.
E-mail: [email protected]
Trilhas do imaginário | 433

Luis Augusto Mendes


Doutor e mestre em Psicologia Social pela UFPB. Especialista em Gestão da
Comunicação e Marketing Institucionais pela Universidade Castelo Branco
do Rio de Janeiro/RJ. Graduado em Comunicação Social (Jornalismo) pela
UFPB e em Psicologia pela Uninassau João Pessoa. Atualmente atua nas áreas
de Psicologia Clínica, Pesquisa, Marketing, Comportamento do Consumidor
e Psicologia Social. E-mail: [email protected]
Luiza LieneBressan da Costa
Mestre e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Especialista em
Gestão de Bibliotecas Escolares pela UFSC (2015) e em Língua Portuguesa
pela FURB (1988). Professora na área de linguagens dos cursos de Direito,
Pedagogia, Psicologia e Enfermagem do Unibave. Integrante do Grupo
de Pesquisas do Imaginário e Cotidiano. É membro e preside a Academia
Orleanense de Letras. E-mail: [email protected]
Marcel Vieira Barreto Silva
Professor Adjunto do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal
da Paraíba, onde trabalha com Roteiro, Narrativa e Dramaturgia, e Professor
do Programa de Pós-graduação em Comunicação, na linha de pesquisa
Culturas Midiáticas Audiovisuais. Possui graduação em Comunicação Social
pela Universidade Federal da Paraíba (2005). É mestre em Comunicação
pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação, na Universidade Federal
Fluminense. É doutor pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação, na
Universidade Federal Fluminense. Tem experiência em Comunicação com
ênfase de pesquisa nos seguintes temas: Narrativas Seriadas Televisivas,
Audiovisual e Literatura, História e Teoria do Cinema e da Televisão, e Cinema
e Televisão no Brasil. Foi coordenador do PPGC-UFPB entre 2016-2018.
E-mail: [email protected]
Marcos Nicolau
Pós-doutor em Comunicação pela UFRJ (PROCAD/CAPES/2013). Pós-doutor
em Neurociência Cognitiva (PPGNeC/UFPB/2018). Professor titular. Possui
graduação em Comunicação Social (jornalismo) pela Universidade Federal da
Paraíba (1988), especialização em Metodologia da Comunicação pela UFPB
(1989), mestrado em Educação pela UFPB (1996) e doutorado em Letras pela
UFPB (2001). Atuou como Professor do Curso de Comunicação em Mídias
Digitais (DEMID), do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC/
UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Computação, Comunicação e
Artes (PPGCCA/UFPB); ensina e pesquisa os seguintes temas: comunicação
e culturas midiáticas, teoria geral dos signos (Semiótica), linguagens
de jornalismo, processos e linguagens em mídias digitais, cibercultura,
linguagem das marcas e criação publicitária, história em quadrinhos,
livros digitais, metodologia de pesquisa, jogos de tabuleiro, gamificação
434 | Trilhas do imaginário

e game design, processos de criação e criatividade. Editou a revista


acadêmica Culturas Midiáticas (PPGC/UFPB) no período de 2008 à 2018;
É fundador e editor da revista científica, Temática (NAMID/UFPB), desde
2004. E-mail:[email protected]

Mario Abel Bressan Junior


Doutor em Comunicação Social – PUCRS/FAMECOS. Professor titular da
Universidade do Sul de Santa Catarina. Professor no Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL – UNISUL), linha: linguagem
e cultura. Coordenador da Especialização em Gestão de Mídias Sociais
e Marketing Digital e da Especialização Inovação e Digital Business.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Memória, Afeto e Redes Convergentes
– .marc e membro do Grupo de Pesquisa: Televisão e Audiência (GPTV –
PUCRS / UFRGS). Avaliador de Cursos de Graduação (área comunicação e
marketing) do INEP. E-mail: [email protected]

Marlene Rodrigues Brandolt


Pós-doutora pelo Programa de Ciências da Linguagem da Universidade do
Sul de Santa Catarina (2018). Pós-doutoranda pela Universidade Federal de
Santa Catarina. Graduou-se em Letras, Licenciatura Plena pela Fundação
Universidade Federal do Rio Grande (1979); Especialização em Literatura
Brasileira Contemporânea pela Universidade Federal do Rio Grande (1991);
Mestrado em História da Literatura pela Fundação Universidade Federal
do Rio Grande (2006); Doutorado em Literatura pela Universidade Federal
de Santa Catarina (2017); Tem experiência em EAD e em treinamentos
para empresas com ênfase na comunicação, bem como na área de Letras,
mais especificamente nos temas relacionados às práticas de Língua
Portuguesa e da Literatura Brasileira vinculada às escritoras do século XIX.
E-mail: [email protected]

Mayara de Paulo
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem
pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul. Graduada em Letras
– Português / Inglês pela Universidade do Sul de Santa Catarina – Unisul
(2013). Atua como professora de Língua Portuguesa e Língua Inglesa na
rede pública estadual de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

Natália L. A. Xavier
Mestre em Comunicação da UFPB na linha de pesquisa Mídia, Cotidiano e
Imaginário. Jornalista, formada pela UFPB. Atuou como repórter e editora
setorial do Jornal da Paraíba e como editora-chefe do portal G1 Paraíba.
Atualmente atua na TV-UFPB. E-mail: [email protected]
Trilhas do imaginário | 435

Nayane Rodrigues
Comunicóloga com Habilitação em Jornalismo. Especialista em Assessoria
de Comunicação. Pós-Graduanda em Produção de Conteúdo para
Mídias Digitais e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal da
Paraíba (PPGC/UFPB), vinculada à Linha de Pesquisa Mídia, Cotidiano e
Imaginário. Atua ainda, na identificação de fenômenos comunicacionais,
realizando estudos e desenvolvendo pesquisas no âmbito da Assessoria
de Comunicação, Folkcomunicação, Marketing Político; além dos temas,
dilemas e perspectivas do Jornalismo no contexto de pós-verdade. E-mail:
[email protected]

Patrícia Monteiro Cruz Mendes


Professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba
e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo na mesma instituição.
Doutora em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (2016).
Mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Especialista em Teorias do Texto pela Universidade Federal
de Sergipe (UFS) e graduada em Jornalismo pela Universidade Tiradentes
(Unit). Implantou e coordenou o curso de graduação em Jornalismo da
Faculdade Uninassau João Pessoa. Trabalhou como editora-chefe, repórter e
produtora em afiliadas da TV Globo e RedeTV. Prestou serviços de produção
de conteúdo digital e assessoria de comunicação para a Associação da Igreja
Metodista no Nordeste. Áreas do Conhecimento: Produção em Áudio e
Vídeo, Radiojornalismo, Jornalismo Multimídia, Telejornalismo e Imaginário
Midiático. E-mail: [email protected]

Ramses Albertoni Barbosa


Mestre em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2002). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(1999). Graduando em Artes & Design e mestrando em Comunicação pela
UFJF. É professor, pesquisador e atua como Assistente Editorial e Revisor da
revista Lumina do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM-
UFJF). Parecerista de revistas acadêmicas, artista visual e fotógrafo. E-mail:
[email protected].

Sandra Raquew Azevêdo


Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba. Atua no
Departamento de Jornalismo da UFPB. Doutora em Sociologia pela
Universidade Federal da Paraíba( 2009). Graduada em Jornalismo
pela Universidade Federal da Paraíba (1997). Especialista e Mestre em
Educação(UFPB, 2004). Áreas de atuação: Jornalismo, Mídia-Educação;
Estudos de Gênero e Mídia. Autora dos livros Perfis em Jornalismo
436 | Trilhas do imaginário

Cultural (2014, Editora Idéia); Mulheres em Pauta: gênero e violência


na agenda midiática (2011); Cartografias: escritos sobre mídia, cultura
e sociedade(2008) e Gênero, Rádio e Educomunicação: caminhos
entrelaçados(2005), publicados pela Editora da UFPB. Integra os grupos
de pesquisa sobre Comunicação Comunitária e Mídia Local (UMESP) e
Coordena o Grupo de Pesquisa em Jornalismo, Gênero e Educomunicação
(Objor-Semiárido). Colabora com a Revista Ártemis(UFPB) e a Revista
Mídia e Cotidiano (Programa de Pós Graduação da Universidade Federal
Fluminense). Desenvolve e orienta projetos de pesquisa nas seguintes
áreas: Jornalismo; Mulheres nas Mídias; e Tecnologias da Informação
e Comunicação; Comunicação e Cidadania no Semiárido Brasileiro;
Comunicação e Saúde; E-mail:[email protected]

Suellen Cristina Vieira


Mestre em Ciências das Linguagem, pós-graduada em MBA Gestão de
Negócios e graduada em Design de Moda. Atualmente, é docente no curso
de Design de Moda da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL.
Além disso, desempenha funções na área de criação e desenvolvimento de
produtos de moda, projeto de coleção, empreendedorismo de moda, mídias
digitais e marketing, desde 2009. E-mail: [email protected]
Este livro foi diagramado pela Editora UFPB em 2020,
utilizando as fontes Droid Serif e DIN Condensed.
Impresso em papel Offset 75 g/m2
e capa em papel Supremo 250 g/m2.
Heloísa Juncklaus Preis Moraes
Pelas trilhas do imaginário, as visitas
a espaços e memórias têm sempre as
portas abertas. A liberdade do sentido,

Eunice Simões Lins


da imaginação e dos afetos, ainda que
ancorada em uma matriz simbólica

organizadoras
estruturante, é o que nos seduz à teoria,
às discussões, aos seus vôos.

Trilhas do imaginário: (re)visitando


espaços e memórias é reunião de
esforços de pesquisas, de olhares e
de motivações à luz da perspectiva
de que o imaginário é o conector de
toda a representação humana, por sua
capacidade de simbolização. A força
imaginal presente em nosso cotidiano
é discutida a partir de vários objetos
que os autores buscam apresentar à
sua maneira, conectados na potência
poiética das imagens. Porque elas estão
nas múltiplas narrativas que formam a
nossa ambiência sociocultural, como os
textos nos permitem sobrevoar.

 

 

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