A Mata Dos Medos

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Literatura e educação para os valores ambientais: Os Contos

da Mata dos Medos, de Álvaro Magalhães


Carlos Nogueira

Hispania, Volume 96, Number 1, March 2013, pp. 39-50 (Article)

Published by The Johns Hopkins University Press


DOI: 10.1353/hpn.2013.0000

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Accessed 9 May 2014 09:49 GMT GMT


Literatura e educação para os valores ambientais:
Os Contos da Mata dos Medos, de Álvaro Magalhães
Carlos Nogueira
Universidade Nova de Lisboa, Portugal

Abstract: A afirmação da grandeza de tudo o que constitui a natureza, e a necessidade de nos concebermos
numa relação de igualdade e respeito em relação a ela, é o tema dos Contos da Mata dos Medos. Nesta
série de quatro narrativas, publicada entre 2003 e 2010, Álvaro Magalhães concilia o seu modo de ver a
infância com ética animal, ecologia e consciência ambiental. O autor, partindo de personagens-animais
que ilustram a biodiversidade de uma área do litoral do concelho de Almada (distrito de Lisboa), celebra
a natureza e convida-nos a assumir perspectivas e comportamentos ecocêntricos. O Coelho, o Ouriço, o
Chapim, a Toupeira, a Coruja ou o Caracol não têm como única função explicar o Homem. Estes animais
aparecem-nos como seres que têm a sua dignidade própria e direito à vida como qualquer ser humano.
Dotados de características próprias, eles procuram sobreviver num ambiente natural que lhes satisfaz todas
as necessidades biológicas e oferece todos os bens materiais e espirituais, mas que, por ação do Homem,
pode ser profundamente hostil.

Keywords: childhood/infância, ecology/ecologia, environmental ethics/ética ambiental, Portuguese


children’s and youth literature/literatura infanto-juvenil portuguesa, teaching–learning process/
ensino–aprendizagem

H
oje, ninguém minimamente informado e esclarecido pode dizer que a literatura infanto-
juvenil é, no seu conjunto, literatura menor. Não é por acaso que a vemos tratada em
encontros, seminários e instituições de ensino superior, em Portugal e no estrangeiro.
O seu corpus, cada vez mais extenso, é desigual em qualidade. Daí ser necessário estabelecer
critérios que permitam distinguir a boa literatura da má literatura dirigida aos mais novos: tanto
a mais antiga, em que se inclui aquela que não tinha inicialmente em vista o leitor infantil e
juvenil, como a que é escrita nos nossos dias.
Não há boa educação escolar e social sem um contacto prolongado e pedagogicamente bem
pensado com a boa literatura. Por isso, compete às universidades, aos institutos politécnicos e
ao jornalismo literário contribuir para o estudo e a divulgação de obras destinadas ao público
infantil e juvenil. E aos jardins-de-infância e às escolas de todos os níveis de ensino compete
promover a utilização de textos que cumpram elevados níveis de exigência literária, ética e
moral. Também os adultos que não puderam ser bons leitores durante a infância e a adolescência
entram, muitas vezes, neste processo: em casa, influenciados pelos mais novos, e nas atividades
escolares abertas à comunidade (leitura intergeracional na sala de aula, encontros com escritores,
feiras do livro, etc.).
Sophia de Mello Breyner Andresen afirmou várias vezes que a cultura e a literatura não
existem para adornar a vida, mas sim para fazer do mundo um lugar cada vez mais livre e justo
(164). A literatura de Álvaro Magalhães inscreve-se nesta ideia de construção do ser humano
em igualdade e justiça. Nesta construção, tal como acontece em Sophia, é essencial a harmonia
com a natureza e o pensamento ambientalista.
O tempo dos Contos da Mata dos Medos não é simplesmente o tempo em que os animais
falavam. Magalhães não quer apenas reproduzir ou ilustrar pensamentos e comportamentos

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humanos através de diálogos e ações de personagens-animais. Dando-lhes voz, este autor


mostra-nos o seu valor intrínseco e expõe a desumanidade do bicho-homem caçador nas suas
relações com o meio ambiente.
O leitor encontra nestas narrativas elementos que entram tanto nos mais célebres contos
infantis como nos contos populares e de fadas: animais que falam, aventuras, esconderijos,
tocas, ar livre. Estes pequenos seres e estes lugares, ao mesmo tempo maravilhosos e reais,
trazem imagens de mistério, conforto e segurança. Interagindo com eles, a criança ou o jovem
encontram uma oportunidade única para explorar o mundo criando mundos em que a natureza e
a cultura dialogam. Nestes livros, a natureza não é entendida como uma fonte inesgotável de
riqueza, nem a cultura aparece como uma afirmação da superioridade do humano sobre os
recursos naturais e os outros seres vivos.
Há uma diferença de perspectiva e amplitude entre os Contos da Mata dos Medos e a gene-
ralidade dessa tradição literária, oral e popular ou de autor. Estas narrativas contrariam o pensa-
mento antropocêntrico e dizem-nos que, a partir da observação da natureza e do respeito pela sua
identidade, é possível criar uma nova ética. Todas as imagens e todos os diálogos destas histórias,
em que os animais não aparecem simplesmente humanizados, são simples e fortes. Simples
e intensa é também a mensagem que atravessa toda a série e que nenhum leitor esquecerá: a
natureza é sublime e um bem a preservar. Acima de tudo, é preciso protegê-la de um dos seus
filhos, o Homem, sobretudo quando polui e provoca incêndios, destrói e mata deliberadamente.
A ecologia “profunda” (Naess 95) destes textos só tem paralelo, na literatura para a infância
e a juventude portuguesa, no Romance da Raposa (1924), de Aquilino Ribeiro. A protagonista,
tal como as personagens de Álvaro Magalhães, não aparece reduzida a simples metáfora do
humano, nem a mero instrumento de moralização de costumes. Esta “raposeta matreira, fagueira,
lambisqueira” (Ribeiro 13), a que o autor atribui valor inerente, é um exemplo perfeito do
vitalismo que atravessa todas as obras de Aquilino. A natureza surge enquanto energia criadora
e misteriosa que se reflete na luta pela sobrevivência de todos os seus seres, cuja sintonia com
as outras espécies, com os ritmos naturais dos dias e das estações e com os ciclos da vida
(nascimento, vida adulta, morte) o autor destaca constantemente.
A raposa de Aquilino é também vítima do Homem, que manipula e explora a natureza
para satisfazer os seus desejos materiais e irracionais de domínio sobre os outros seres. O
deslumbramento do autor pelo mundo natural e o seu envolvimento cósmico dão origem a
uma “mensagem ecológica” (Topa 25) que não se esgota na crítica aos abusos do ser humano.
Verifica-se igualmente a celebração da natureza como um todo indivisível e epifânico, que, tal
como acontece nos Contos da Mata dos Medos sobretudo com o Ouriço, coincide com a reação
física e psicológica da protagonista aos “prazeres naturais” (Topa 25). Esta disposição vital
intensifica-se durante as seis noites em que ela se vê cruelmente privada de liberdade (“o bicho-
homem veio e emparedou a raposa com os filhos. Emparedou-os tapando muito bem tapadas com
pedras e torrões todas as saídas da cova, e armando a ratoeira à entrada principal” [Ribeiro 101]):

Pela galeria dentro, até ela, escorria um arzinho de luz, que o céu estava estrelado como o
chapéu dos espantalhos nos milheirais. E com esse arzinho vinham os bons perfumes de Maio,
a macela e a giesta a florir a cada canto, os pinheiros a cheirar a seiva nova, as ervas todas a
reverdecer, como se o sol daqueles dias fosse esplêndida e mansíssima ave, ocupada em chocar
o grande ovo da Terra. (101)

Os animais de Álvaro Magalhães (e os de Aquilino), perfeitamente integrados na natureza,


vivem com pouco. As suas casas, simples mas acolhedoras, dão-lhes segurança durante a noite
e protegem-nos das agressões do clima e do ser humano. É também na casa de um ou de outro
que eles se encontram, ora para discutirem como hão-de enfrentar os problemas que põem em
risco a sua sobrevivência, ora para se evadirem e adquirirem conhecimento através da litera-
tura: “Era na casa da Toupeira que eles se reuniam naqueles dias. Estava mais quentinho e ela
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lia-lhes livros que começavam assim: ‘É Primavera’ . . .” (Lugar 5). Cada um tem o seu espaço,
a sua privacidade e individualidade, mas nenhum recusa a vida em grupo, a camaradagem e a
solidariedade. Este comportamento é típico das crianças, que o revelam continuamente nos
seus jogos individuais e coletivos. É em grande parte nestes momentos que os mais novos
expõem as suas tendências mais ou menos altruístas ou antissociais, adquiridas nos meios de
socialização, e experimentam mudanças de atitude. A formação e a construção do ego não se
fazem sem experiências, confrontos, cruzamento de visões às vezes completamente distintas.
Daí o valor da conversa entre o Ouriço e o Chapim, que, apesar de andar sempre muito ocu-
pado, convoca os companheiros para uma expedição de salvamento do Coelho. O despojamento
do Ouriço, o seu carpe diem, pode, afinal, ser um defeito aos olhos dos outros, como o Chapim
lhe diz claramente: “Não me parece que hoje cumpras esse programa de mandrião” (Lugar
12). A ideia que sobressai de episódios como este é a de que não há verdades absolutas, nem
argumentos infalíveis. Tudo deve estar em constante julgamento, em auto e hetero-avaliação. A
resposta do Ouriço ao comentário do Chapim, que não fica impressionado perante a definição
de “Ouriçar” (“Isso não é fazer. É não fazer”), é, assim, apesar de engenhosa, inconsequente:
“E olha que hoje tenho muito que não fazer. Não procurar comida, não trabalhar, não consertar
a casa, não espalhar as sementes dos pinheiros” (Contos 12). Ao saber que o Coelho está em
perigo, o Ouriço não hesita em querer ajudar.
O que move estes animais não é o ter nem a exploração dos outros ou do ambiente natural.
Nem o agitado Chapim é materialista no sentido em que um humano o é. Também ele se
compromete com os comportamentos e os valores éticos-morais dos que o rodeiam: a amizade,
o diálogo, a cooperação. Podemos ser levados a dizer que o Chapim representa, em parte, a
tendência da vida moderna: ele vive pressionado por uma vontade incontrolável de acumular e
contar bagas. Mas a verdade é que um chapim, como qualquer ave, é sempre irrequieto e veloz.
Estes quatro livros constituem uma saga. A saga de um grupo de animais que vê e diz o
mundo à maneira intensa e criadora das crianças. E há também a saga de cada leitor infantil, que
é capaz de dar corpo e voz, durante a leitura e para lá dela, a cada um destes animais. A sociedade
humana e a sociedade animal misturam-se e enriquecem-se através da língua e da literatura.
Cada personagem-animal deste pequeno grupo tem a sua especificidade. Ao contrário do que
acontece no conto popular, em que os animais são bons ou maus, nenhuma destas personagens
é rígida. Todas têm a capacidade de usar a linguagem, mas não o fazem, homocentricamente, à
imagem e semelhança de um adulto comum. Através da linguagem, elas desenvolvem o seu pen-
samento e as suas perspectivas sobre o que as rodeia: sobre o seu mundo e sobre o nosso mundo.
Ao criá-las, Magalhães cria-se ou reinventa-se a si próprio, ilustra e molda comportamentos.
Por isso é que o ouriço de Magalhães não pode ser visto apenas como um elemento que
representa uma espécie animal. Reconhecemo-lo e classificamo-lo morfologicamente, mas
devemos também entendê-lo para lá da sua existência física. Este ouriço, que é o Ouriço, tem
uma característica que o aproxima de Alberto Caeiro. Prefere manter-se placidamente no mesmo
lugar, livre das paixões que suscitam outras paixões. Cultiva um ideal de simplicidade, quer
apenas sentir a paz e a tranquilidade da natureza, afastar as perturbações trazidas pelo pensa-
mento, ser natural. Ele conhece bem a dor de pensar (que tanto preocupa Fernando Pessoa) e,
portanto, sempre que possível, afasta-se dela. A sua filosofia inclui o autodomínio dos estoicos,
a serenidade e o carpe diem horaciano. O seu maior prazer é “ouriçar” (neologismo que, tal
como muitos outros também criados por Magalhães, aparece com frequência nestes livros):
estar deitado ao sol, de barriga para o ar, sem pensar em nada, livre das preocupações que vêm
da ligação aos bens materiais.
Como qualquer criança, estes pequenos animais falantes exploram o mundo, têm dúvidas e
enfrentam inúmeros obstáculos e frustrações. Esta correspondência de escala, visão do mundo
e linguagem faz com que o leitor elimine rapidamente as fronteiras entre o animal humano
infantil e o animal não humano, e crie empatia com os seres que protagonizam estas histórias.
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Pensar e sentir são aqui capacidades comuns que desencadeiam uma ética da indagação, não
faculdades exclusivamente humanas. Estas personagens, apesar de ameaçadas pelo Homem, são
livres e perguntam, ignoram e questionam-se, ensaiam respostas. O Caracol, por exemplo, é um
viajante incansável, o que contraria a imagem que temos dele. No primeiro livro da tetralogia,
ficamos a saber que ele tem um objetivo e uma filosofia de vida: quer ver o mar, mas sabe que
o que verdadeiramente lhe interessa é a viagem, o movimento, a descoberta, não a chegada.
A simplicidade destas personagens é a sua excepcionalidade, e a sua naturalidade é a sua
maior competência. A imaginação de cada um destes animais e o imaginário que se produz
a partir da relação entre eles permite-lhes vencer todas as crises. Também o leitor, se souber
encontrar o seu “largo do Pinheiro Grande” (Contos 7), se for capaz de enfrentar a sua crise de
imaginação, pode contribuir para a solução de todas as crises (a começar pela crise ambiental).
Lemos estes textos, acompanhamos estes animais na sua luta pela sobrevivência e pensamos
que também eles sentem dor e prazer, tristeza e alegria; e reconhecemo-nos como um animal
criminoso e uma cultura, em muitos aspectos, criminosa. Apercebemo-nos de que, na relação
com os animais e a natureza em geral, temos sido movidos por instintos, impulsos e hábitos
que nos levam a destruir mais do que a criar e proteger. Mas as mentalidades têm mudado
para melhor. Ações de proteção da natureza e do ambiente são cada vez mais uma realidade e,
através do contributo da literatura, podem sê-lo ainda mais. Estes livros, aliás, fazem desde o
início parte de um projeto interdisciplinar de sensibilização para as questões da biodiversidade
e do ambiente. Por isso é que nas quatro narrativas participou uma equipa de revisores ligada
às ciências da vida.
O texto da contracapa de cada um destes volumes indicia, de modo muito sugestivo, esse
diálogo entre o escritor e o cientista da natureza. No primeiro título, Contos da Mata dos Medos
(2003), privilegia-se a perspectiva do especialista das ciências da natureza:

A Mata dos Medos, onde se desenrola esta história, estende-se por uma faixa de 5 quilómetros
junto ao mar por terras de Almada e Sesimbra e está incluída na Paisagem Protegida da Arriba
Fóssil da Costa da Caparica. Pela riqueza do seu património natural, a Mata dos Medos foi
classificada como Mata Nacional e Reserva Botânica.
Situada sobre dunas e medos que lhe deram o nome, a Mata dá guarida a imponentes pinheiros-
mansos e a um vasto elenco de plantas e flores de cores e cheiros intensos. Espécies tipicamente
mediterrânicas como a sabina-das-praias, o medronheiro, a aroeira, o carrasco, a madressilva ou
até a camarinha são algumas das plantas que se podem encontrar na Mata dos Medos.
E é este pedaço precioso do Concelho de Almada com uma paisagem única, rica em tons e
aromas, dádiva generosa da Natureza, que estes Contos dão um pouco a conhecer.

Nos volumes seguintes, continua a descrição do espaço geográfico, mas há já referências à acção
e aos animais que inspiraram as personagens criadas por Álvaro Magalhães:

A história contada neste livro tem lugar na Mata dos Medos, uma floresta que se estende ao
longo de parte do litoral do Concelho de Almada, cobrindo as dunas e os medos que encimam
a arriba fóssil da Costa da Caparica.
Cores contrastantes, arribas abruptas, testemunhos fósseis de tempos distantes, plantas
mediterrânicas de aromas intensos e a moldura do Oceano Atlântico fazem da Mata dos Medos
um cenário fantástico para que histórias e aventuras aconteçam.
Estes novos contos da Mata dos Medos lembram-nos que devemos usufruir dela com todo
o cuidado e respeito. Só assim conseguiremos protegê-la, para que os ouriços, os coelhos, as
toupeiras, os chapins e todos os outros bichos e plantas que ali habitam continuem a conviver
connosco por muitos anos. (Criatura Medonha)

Esta sociedade de animais não humanos é um modelo para a sociedade humana. Nela, cada
um tem direito à sua individualidade, mas todos contribuem para o bem-estar comum, todos se
respeitam e aceitam a diferença, todos participam na construção do destino do grupo. O leitor
Nogueira / Contos da Mata dos Medos 43

vê a natureza única de cada um destes animais, mas também os vê como uma comunidade
que, apesar de todos os problemas, vive uma vida despojada. Nenhum destes animais é só uma
metáfora do ser humano. Dir-se-á, numa primeira impressão, que todos apresentam apenas
elementos humanos. Contudo, há neles características da respectiva espécie: um chapim é, por
natureza, ativo e inquieto; e um ouriço parece ser, em comparação com outros animais, pacato
(pelo menos é assim que o podemos ver, apesar de, como acontece com qualquer insetívoro
terrestre, o seu elevado metabolismo o obrigar a uma atividade constante).
Um adulto tenderá a ver apenas nestas personagens metáforas dos seres humanos. Já uma
criança vê sobretudo animais cuja vida solicita a sua atenção e compreensão, o seu afeto ou a
sua desconfiança e rejeição. Daí a importância destes livros, cuja utilização pode ser decisiva
para o sucesso de programas de educação cívica e ambiental. Convém não esquecer que há
crianças e jovens que quase não têm contactos diretos com a natureza e que, portanto, podem
nunca vir a saber apreciar e respeitar o ambiente natural.
Os mais novos, que têm uma visão animista do universo, aderem com entusiasmo a esta
saga. Nela encontram seres com os quais se identificam imediatamente, tanto pela dimensão
como pelos comportamentos e visões do mundo. Acompanhando estas personagens, o leitor
dialoga com os seus próprios pensamentos e com a linguagem que os diz, e vê-se a pensar e
a organizar o mundo com ousadia e integridade. Neste processo de descoberta e (re)criação,
interioriza, mais ou menos conscientemente, que tem responsabilidades e dívidas na sua relação
com os outros e com a natureza.
Mas também os leitores adultos, principalmente aqueles que já se esqueceram do que é
ser criança, podem reconhecer-se nestas narrativas. Os adultos, leitores ou não leitores, sempre
aprenderam com as crianças a ver o mundo de maneira menos rígida e dogmática. Hoje, é cada
vez mais de crianças leitoras que devemos falar. Com elas e com os animais destas narrativas,
os adultos podem voltar a ser aprendizes de filósofos que exercitam continuamente a atitude
crítica e a capacidade de ver o mundo como se fosse a primeira vez.
A Mata dos Medos de Álvaro Magalhães é um mundo em miniatura, mas nem por isso
diz pouco aos leitores menos jovens, em especial àqueles que recusam aceitar que não somos
os únicos habitantes da Terra. Como arte literária e como pensamento, como educação para a
prática filosófica, estes contos entram em diálogo com qualquer leitor ou ouvinte: com as suas
ideias ou preconceitos acerca da sociedade humana e da sociedade animal. São livros à medida
das crianças e dos jovens, mas não são menos à medida dos adultos de qualquer geração e,
sobretudo, de um tipo de adulto: aquele que necessita de rever as suas noções de escala e de se
aperceber da sua pequenez e da grandeza das coisas pequenas.
Os Contos da Mata dos Medos não pertencem à tradição didática de celebração imediata e
sentimentalista da natureza. Esta escrita não se limita a promover bons sentimentos em relação
a paisagens e a animais. Concilia a glorificação ética e estética da natureza com uma explicação
científica; e promove um conhecimento esclarecido e científico sobre vários aspectos do
mundo natural, da fauna à flora (terminologia, morfologia, contexto ecológico) e da geofísica
(meteorologia) à geologia (referências à presença do mar, em tempos remotos, na Mata dos
Medos). O leitor, seduzido pela arte narrativa e pelos diálogos atravessados de imprevistos de
todo o tipo, é estimulado a procurar informação sobre todos estes aspectos. Ao mesmo tempo,
estabelece-se entre ele e a natureza uma relação mí(s)tica e filosófica.
Magalhães mostra-nos que a sabedoria da natureza, a sabedoria das ciências da natureza
e a sabedoria da literatura não se excluem mutuamente. Estes tipos de conhecimento podem
interagir de maneira muito funcional enquanto construção cultural única. A mensagem ecológica
é transmitida por personagens cujas vozes se cruzam, confrontam e enriquecem, criando novas
perspectivas sobre a natureza, o ambiente e o lugar do ser humano em todo este universo.
Sem incorrer em qualquer tipo de moralismo ou dogmatismo, estes quatro livros propõem-se
alertar o espírito dos leitores para questões ambientais e de proteção da natureza. O conhecimento
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da natureza através da literatura é um modo de elevação do espírito e um contributo importante


para a mudança da nossa perspectiva em relação ao ambiente. Ter consciência das paisagens
exteriores é conhecer e enriquecer as paisagens interiores, os lugares da mente e dos sentidos.
Literatura e ciência convergem num mesmo propósito: desenvolver o gosto pela escrita
literária, fomentar o interesse pelos temas científicos e promover o apreço por todos os seres,
animais e não animais, que a constituem. No discurso da Toupeira, por exemplo, o rigor científico
é compatível com o jogo humorístico e com o conhecimento empírico, cuja organização abre
caminho ao saber especializado:

A Mata dos Medos salvou-se, mas passaram anos e anos até que as zonas queimadas voltassem
a ser como eram. Primeiro, nasceram as plantas pequenas, das sementes que estavam enterradas.
Depois, muito devagarinho, foram aparecendo as plantas maiores e, só no fim, é que voltámos
a ver os carrascos, as aroeiras, os medronheiros. E foi assim. (Criatura Medonha 54)

A Toupeira, para narrar um episódio que a mãe lhe contara, recorre ao olhar objetivo do repórter
e do ambientalista, mas também faz uso de uma linguagem poética que, sem desvirtuar o
conteúdo referencial, ensina. Estamos no âmbito do discurso mítico, das narrações que dizem
o nascimento do mundo e o seu fim (“Foi o fim do mundo. Eu ainda não tinha nascido, mas a
minha mãe, que sabia tudo, contou-me como foi” [52]):

Era uma bela tarde de Verão e os Serafins começaram a chegar. Não eram só dois, mas muitos
mais. Uns aqui, outros ali, invadiram a Mata dos Medos. Faziam um barulho infernal, calcavam
e perseguiam criaturas como nós, destruíam a vegetação e espalhavam lixo por todo o lado.
Mas o pior não era isso. As fogueiras que faziam para assar os ouriços em lata, e outras coisas
que traziam, era o pior. Havia tantas que alguma teria de ficar mal apagada quando acabou a
invasão (e parece que foram várias). Ao princípio, é uma fogueira pequenina, mas depois começa
a devorar tudo em volta e quanto mais come mais cresce e mais alto levanta os braços. . . . O
fogo também é uma Criatura Medonha, uma coisa viva, esfomeada. Só pára de comer quando
não há mais nada que comer. (52)

Aos grandes temas universais, como a vida e a morte, a amizade e o amor ou a alegria e a
tristeza, Magalhães associa um tema cada vez mais atual: o da ecologia. Aquela passagem é
suficiente para percebermos como o autor concilia discrição e profundidade, objetividade
e ironia satírica. Magalhães sabe ser, no tratamento de uma matéria sobre a qual há inúmeras
abordagens, original, e, no melhor sentido do termo, didático (é conhecida a afirmação de
Sophia de Mello Breyner Andresen: “Creio profundamente que toda a arte é didática, creio
que só a arte é didática” [149]). Aquela passagem é uma imagem forte em palavras: imagem e
palavras que, em conjunto, criam um quadro memorável que transforma as sensações em saber
e o saber em sensações. A sua inscrição no corpo e na memória de quem lê e imagina favorece
a interiorização e o conhecimento.
O sintagma Mata dos Medos, que no primeiro volume faz parte do título e nos restantes do
subtítulo, é enigmático e muito sugestivo. Não só situa a acção num espaço misterioso como
tem conotações ecológicas (os “medos” são dunas) e psicológicas, emotivas. A expressão “Mata
dos Medos” apela à coragem do leitor, que se vê a si próprio, lendo o livro, a pertencer a um
grupo de eleitos.
A literatura que se destina à infância, tal como a literatura oral de recepção infantil, não está
isenta de medos. Não é um universo de “histórias da carochinha”, como diz o adulto que já não
sabe ser, de vez em quando, a criança que foi. Na literatura dirigida aos mais novos, há bruxas
e lobos, perseguições e tempestades que trazem medo e terror, perigos e morte às personagens e
sentimentos de angústia e perda aos leitores.
O medo é um dos temas da literatura de Álvaro Magalhães e, de maneira muito original,
também destas narrativas. Nos Contos da Mata dos Medos, o medo é, essencialmente, medo
do desconhecido. Medo, portanto, natural, inscrito no código genético de qualquer espécie, que
Nogueira / Contos da Mata dos Medos 45

luta sempre pela sua preservação biológica: medo da morte, medo do Fantasma da Pena Azul,
medo das criaturas medonhas, medo das tempestades. Como acontece na infância, que está
longe de ser apenas um período de alegria e descontracção, a dimensão destes medos está de
acordo com a dimensão e a experiência de vida destes animais. Os adultos que idealizam esta
fase da vida, e, à luz deste ponto de vista, criticam a presença da morte na literatura infantil,
esquecem que ela é também vulnerabilidade e medo.
Na literatura para a infância, o tema do medo tem sido tratado de dois modos. Na linha
do conto O Capuchinho Vermelho de Charles Perrault, o medo deve assustar ou aterrorizar as
crianças. Acredita-se que só assim é possível dizer-lhes que não devem ser ingénuas. Daí a
morte violenta da menina e da avó. Na linha ainda de O Capuchinho Vermelho, mas na versão
dos irmãos Grimm, as crianças são encorajadas a conhecer e a vencer o perigo e o medo. Por
isso é que, no final, a menina e a avó são resgatadas por um caçador.
Em Álvaro Magalhães, não há uma moral à maneira de Perrault ou dos Grimm, não há
lobos que comem avozinhas e capuchinhos vermelhos. Há homens que querem caçar e matar
animais. A morte existe porque há quem queira matar. O Coelho conta aos amigos que um de
“dois estrondos” acertou numa asa da Coruja, que “Ficou logo ali, nunca mais se mexeu” (Pro-
blema 51). O segundo era para ele, que, ao fugir, ouviu: “Eu mato o coelho!” (51). Há a quase
morte da coruja, que é atingida por uma bala disparada por um caçador, e a morte da Morte, tal
como a entendem os animais destas histórias. A Morte é um caçador e a morte da coruja é um
desmaio. A função lúdica dá coesão a estes episódios, mas isso não impede que o problema da
morte seja tratado em termos metafísicos. Este procedimento permite, aliás, que as questões
filosóficas suscitadas pela morte surjam como perguntas naturais que fazem parte da vida
de todos: “—Porque é que se morre? —perguntou o Caracol, muito impressionado”; “—De
que é que se morre? E como é que se morre? —insistiu ele, inconformado” (52). Na resposta
do Chapim subentende-se a pergunta que inclui todas essas questões: o que é morrer? Nesta
definição, ele lamenta e simultaneamente aceita o ciclo de vida e de morte: “O problema é esse:
nunca mais vai [a coruja] a lado nenhum. . . . Morrer é isso: nunca mais ir a lado nenhum” (52).
Esta leitura configura uma tese cuja clareza de expressão contrasta com a obscuridade de
muitas teorias filosóficas que sustentam a mesma ideia: morrer é ficar parado, “sem se mexer”
(Problema 53), é deixar de existir. O humor é a tonalidade que acompanha, discretamente mas
em profundidade, estas meditações: um humor inteligente e perturbante que dialoga com a
ironia e até com o riso satírico (na caricatura do caçador, que representa a absurda e irracional
ferocidade humana contra a natureza animal); um humor que, um pouco à maneira surrealista,
pode desafiar o destino e a ordem cósmica: “—E eu escapei por pouco —acrescentou o Coelho.
—A esta hora, onze menos um quarto, podia ser um coelho morto” (53).
A Coruja, que por mero acaso não morreu, renasce para uma vida mais intensa e completa.
O seu renascimento vem da valorização positiva da sua experiência de morte. Também os outros
animais, falando sobre a morte e o renascimento da Coruja, atingem um plano mais elevado da
existência. Sabendo-se limitados e imperfeitos, eles procuram ultrapassar essa carência através
de uma perspectiva ao mesmo tempo pragmática (biofisiológica) e filosófica (inquiridora) da
morte. Todas as personagens, e, com elas, os leitores, apreendem que pensar sobre a morte é
um modo de compreender a vida e saber viver. O Ouriço, fiel à sua liberdade interior e ao seu
viver simples, sabe que a vida é um processo imparável que termina na morte. No final do
primeiro volume, antes de se deitar de “barriga para o ar”, “disposto a passar o dia a ouriçar”,
ele “pensou na Pequenita, que não voltara a aparecer. Talvez não tivesse resistido ao temporal,
como tantos outros bichos da mata, ou talvez tivesse voado para mais longe, para outra mata
ou para outro mundo” (Contos 90). Incapaz de explicar a morte, perturbado pelos mistérios
que ela encerra, nem por isso se deixa paralisar. Em vez de a apagar da sua mente, inclui-a na
sua filosofia de vida.
Os protagonistas destes Contos não vivem num estado de medo doentio da natureza
tempestuosa e das mortes que ela reclama. Devemos antes falar em respeito por tudo o que
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constitui a natureza e em respeito pelas suas leis. Nela, os habitantes da Mata dos Medos
encontram os recursos de que todos necessitam para se realizarem: o sol que cria, aquece ou
convida ao descanso, alimentos, abrigo. Mas também o Outono ou o Inverno são estações a que
esta sociedade se adapta naturalmente. O frio, a chuva, as tempestades levam estes animais a
delinear planos de sobrevivência e trabalho comunitário, e a aproveitar com mais intensidade
o sol, a brisa, a amenidade da natureza.
Há uma correspondência evidente entre os medos destes animais e os medos infantis. As
crianças vivem os medos, sentem-nos e constroem um discurso sobre o medo e a morte que
é uma explicação tão válida quanto as especulações mais abstratas e filosóficas do adulto.
As interrogações dos protagonistas dos Contos da Mata dos Medos e os seus discursos sobre
a morte são um modo singular de enfrentar um tema que (ingenuamente) muitos dizem ser
impróprio para crianças. O leitor infantil vive o mistério e o medo da morte através do medo
de animais que sentem e procuram entender o mundo como as crianças. O conhecimento do
medo coincide com o conhecimento da morte. As crianças que leem estes contos identificam-se
com os protagonistas-animais porque se reveem nos seus comportamentos e na sua linguagem.
Estes animais são como as crianças. A sua organização num grupo em que não entram
personagens de outras faixas etárias também sugere essa relação com a infância. O Sapo velho
surge nestas narrativas como representante da sabedoria, não como membro de uma sociedade
em que apenas podem entrar animais juvenis. E é assim porque a infância quer ser, sempre que
possível, um jogo de descoberta e um espaço de liberdade.
Não há conhecimento do mundo nem desenvolvimento psicológico saudável sem o
conhecimento da morte do outro e sem discursos sobre ela. Esta afirmação contraria a opinião
daqueles para quem só há um tipo de literatura infantil: aquela em que tudo é delicadeza, bons
sentimentos e entretenimento. Ninguém ignora que a morte inspira medo e terror. Mas, se
soubermos falar sobre ela como falam estes animais, podemos aprender a compreendê-la e a
evitar ou a reduzir o chamado “luto patológico” na infância, na juventude e na idade adulta.
Há, na criança, uma aguda percepção das antinomias e um esforço para superá-las. Ela aprende
a compreender o determinismo inflexível da natureza, que conduz ao fim material de todas
as coisas, mas também se predispõe a ver o mundo natural como um todo orgânico em que é
possível valorizar a vida como espaço de criação e prazer.
Escrever literatura para as crianças e os jovens não é escrever difícil, mas também não
pode ser escrever de maneira simplista. Álvaro Magalhães, a partir das palavras e das coisas do
quotidiano, vem recordar-nos que a língua tem vida própria. Não há literatura maior sem valor
estilístico. O de Magalhães, como já dissemos noutros lugares, é inconfundível. Este autor é
muito criativo nos temas e na efabulação, mas não o é menos na linguagem.
A literariedade das palavras de Magalhães vem, muitas vezes, da sua literalidade. O mais
denotativo, recontextualizado, é poético e significativo. O lugar-comum, reinventado e usado
num contexto imprevisto, surpreende pela novidade e proposta de outros sentidos. O leitor, em
frases ou expressões como “a arca que não é” (Contos 72), “Porque o sol quando nasce é para
todos” (Problema 21), “A hora da Morte” (Problema 83) ou “O Amor está no ar” (Lugar 19),
encontra enigmas que pedem decifração. Este jogo, marcadamente linguístico e conceptual,
convida aquele que lê a convocar os seus conhecimentos e a aperceber-se da complexidade da
linguagem e da vida. É um jogo que promove uma construção mental e ética mais pessoal e
profunda; um jogo de liberdade, confiança, coragem, autonomia; e um jogo de invenção lúdica
da língua que diz ao leitor que ele é linguagem e, portanto, objeto de conhecimento de si mesmo.
Há, nestas narrativas, uma experimentação constante da forma que mostra ao leitor os
limites da própria escrita e os seus inúmeros caminhos. Nos poemas do Ouriço, a ideia de uma
literatura única, séria, autoritária e omnipotente desaparece. O texto, através do humor e do
burlesco, surge como um espaço que solicita o riso e uma atenção reflexiva em relação aos
seus múltiplos significados.
Nogueira / Contos da Mata dos Medos 47

Isto não quer dizer que não existe nestes Contos da Mata dos Medos uma preocupação
com o apuramento formal. Há um cuidado muito especial com a forma da expressão, mas não
há formalismo. Cada um destes livros é uma fábula moderna que concilia arte narrativa e arte
da palavra. Os episódios, subordinados a um elemento ou função principais, ligam-se uns aos
outros sem quebrar o valor de cada parte e a unidade do conjunto. A narração é bem-humorada
e a linguagem, que funde o oral e o escrito, lúdica. O parágrafo inicial do primeiro livro mostra
bem como Magalhães alia clareza, rigor, proporção, ritmo e ludismo da linguagem: “Na Mata
dos Medos há uma pequena clareira dominada por um pinheiro-manso muito alto. É o largo do
Pinheiro Grande. Um pássaro que por lá passarou pôs-se a cantar e acordou o Ouriço, que estava
a hibernar” (Contos 7). Esta linguagem, simples e poética, económica e sugestiva, transmite
desde logo a ideia que atravessa os quatro títulos: a beleza, a força e a dignidade da natureza.
Os parágrafos seguintes confirmam a valorização da palavra (veja-se, acima, o neologismo
“passarou”) e da natureza, que é também a valorização do pensamento e da inteligência do
leitor. Em vez de ir buscar o maravilhoso a um espaço ou tempo fora da História, Magalhães
encontra-o num real que pode ser vivenciado e recriado pelos leitores. Estes animais, que falam
e se comportam em parte como animais e em parte como pessoas, não são simples instrumentos
ao serviço da crítica social e da personificação de características humanas universais. Neles, nas
suas ações e palavras, podemos ver lições de vida, mas não exemplaridade em sentido estrito.
Há arquétipos, forças e impulsos do espírito humano (instinto de sobrevivência, medo, morte,
amor, amizade, narcisismo, coragem, etc.), mas não há personagens arquetípicas. A riqueza
e a complexidade destes animais reside no facto de, apesar de algumas características que os
individualizam, cada um ser uma personalidade em construção permanente.
Nenhuma destas personagens é estática ou, aos olhos do leitor, monótona. Cada uma delas,
em autodeterminação e em compromisso com os outros elementos do grupo, busca harmonia
interior e equilíbrio social. Todas expõem as suas dúvidas, contradições e interrogações exis-
tenciais, o seu bom ou mau humor e a sua alegria de viver, as suas virtudes e os seus defeitos.
Nenhuma é só candura ou bons sentimentos, razão e lógica imediatas. A contingência de uma
conversa, um mal-entendido, pode levar o Ouriço a responder “com desprezo” ao Chapim, que,
por sua vez, reage “muito irritado” (Contos 12). Pouco depois, todavia, o entendimento e a
reconciliação sobrepõem-se à emoção, sem que permaneça qualquer resíduo de ressentimento.
Estes animais não vivem só de acordo com o princípio da realidade, obcecados com o
mundo factual e as suas vicissitudes, nem só de acordo com o princípio do prazer e a busca
descontrolada de satisfação. Esforçam-se por conjugar a atenção aos perigos que os rodeiam
com a fruição do presente, da natureza e da vida em grupo. Cultivam o pensamento discursivo
e intuitivo, a sensibilidade e a imaginação, as sensações e a razão. Nem o Ouriço, que vive a
variedade do mundo natural e cada impressão como se fosse sempre a primeira vez, deixa de
relacionar prazer e realidade.
Estas narrativas lembram-nos que não há liberdade de pensamento sem liberdade da palavra.
Os animais destes “Contos” entregam-se ao prazer do discurso oral e do discurso escrito, do
canto, da música e da poesia. O Ouriço, no início do primeiro livro, assim que acorda, canta,
com boa disposição e humor, “Ouçam a Primavera!” (Contos 7). E acrescenta, recorrendo a um
ritmo e a uma rima que reconheceremos em todas as suas canções, através das quais Magalhães
nos sugere que a literatura não tem de ser necessariamente solene e ensimesmada. O seu estilo
é infantil como o de uma criança, que procura sempre quer a eufonia das palavras e dos versos,
quer a familiaridade da linguagem: “Chegou o sol, que faz a vida girar, os dias claros e longos
que não gostam de acabar” (Contos 7). A Toupeira, letrada e culta, leva as histórias escritas a
todos. Nos dias frios, é na casa dela que eles se encontram e a ouvem ler livros que falam da
Primavera. Divertindo o leitor, despertando-lhe a curiosidade para o que de surpreendente pode
ser dito ou acontecer a seguir, e transmitindo-lhe ideias de conforto e segurança, Magalhães
sintetiza, nestes momentos, a ideia que subjaz a estas obras: a da importância de cada pessoa
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procurar a sua unidade e os valores básicos da vida na natureza, na palavra, no conhecimento


e nas artes em geral.
Estes animais, como as crianças, procuram compreender a realidade e a existência. Cada
um, isolado, rapidamente sucumbiria às suas contradições, à sua natureza mortal. Juntos,
contudo, são capazes de dar sentido à realidade e à vida. As aventuras vividas em conjunto e os
diálogos permitem-lhes controlar e ultrapassar os medos, os fracassos e as limitações físicas e
psicológicas. É no espírito de cada um, na moral individual e na moral coletiva que os grandes
problemas da vida podem ser superados. Estas personagens não vivem protegidas de angústias e
medos, mas também não deixam de acreditar que é possível imaginar e construir, com otimismo,
o futuro. A decepção, a frustração e o desespero são etapas na construção ininterrupta de um
mundo novo. As relações incontroláveis de causa e efeito e o determinismo da natureza que
conduz à morte não eliminam a liberdade individual. Há caminhos em que cada um poderá
realizar-se, se estiver disposto a lidar com os excessos e as limitações da vida. Estas personagens
apelam a todos os seus recursos anímicos—sentimentos, emoções, mas também à razão e ao
pensamento organizado e esclarecido. Procuram uma verdade que tenha real eficácia sobre o
seu modo de ser e estar, e que os construa enquanto sujeitos activos que veem o mundo através
dos sentidos, dos afetos e da inteligência.
É vivendo dentro de si, e também com os outros e para os outros, sem abdicar de liberdades
essenciais, que cada um destes animais aprende a entender a vida como projecto. Do primeiro
ao último volume, nenhum deles dita leis autoritárias, nem é impedido de se reger de acordo
com a sua visão do mundo e interesses pessoais. Nenhum se recusa a discutir ideias e a mudar
de opinião e de comportamento.
O leitor, a partir da sua posição privilegiada, vê como estes animais tão humanos rejeitam a
vida falsa, regulada por uma dialética fria e abstrata ou por excessos sentimentais que prejudicam
a vida de cada um e de todos. Vendo como o Ouriço ou o Coelho se esforçam por viver cada
vez mais em comunhão com a natureza e com os outros, ele interioriza que esse pode ser um
bom modelo de vida. A opção de diminuir os abusos cometidos contra tudo o que constitui o
mundo natural e de ser cada vez mais justo na relação com todas as coisas será, nos leitores
não ocasionais, a consequência natural desta leitura, que se juntará a outras ou desencadeará
mais leituras.
Álvaro Magalhães valoriza tematicamente a vida, a morte, a natureza, a infância e o
amor. Em O Lugar Desconhecido, o autor não idealiza este sentimento, nem o apresenta a
uma luz cruamente realista e desencantada. Há um compromisso entre a concepção idealista
e idílica deste arquétipo e a sua ligação ao quotidiano. O amor, neste livro, é o tema de uma
série de peripécias a que os cómicos de linguagem, de carácter e de situação, como nas outras
narrativas desta série, trazem um interesse que se renova ao longo de toda a leitura. Magalhães
evita, através do riso, a idealização convencional e retórica do amor, mas não o simplifica nem
vulgariza. Apresenta-o como um sentimento contraditório e acessível a todos, incompreensível
e claro, espiritual e físico.
O tratamento deste tema no último livro dos Contos da Mata dos Medos não parece ter
sido ocasional. Mas, se aconteceu por acaso, esta opção acaba por ter uma importante função
simbólica e psicológica nos leitores. Qualquer leitor, independentemente da sua idade e da
sua preparação intelectual e cultural, poderá interiorizar que o amor não surge desligado de
outros valores e de outras experiências. O Rato Apaixonado, que canta: “Se chegares ao Lugar
Desconhecido, / Seja lá ele onde for, / estás perdido e não estás perdido. / Encontrou-te o Amor”
(Lugar 76), diz aos seus companheiros, de diversos modos, que todos devem estar atentos aos
paradoxos e mistérios do amor. O Rato Apaixonado sabe que este sentimento é um valor que
pode transformar e elevar a vida; mas não ignora que a felicidade que vem com o amor pode
desaparecer rapidamente e dar lugar ao abatimento e à dor extrema. O amor, que não aparece
nem se mantém facilmente, exige vigilância atenta e cuidados permanentes. Esta personagem,
Nogueira / Contos da Mata dos Medos 49

que é uma espécie de filósofo da paixão e do amor, também lembra que não há um discurso único
para dizer estes sentimentos. O dele é realista e romântico, cómico e sério, simples e elevado.
Estes animais falam à maneira dos humanos, mas não de quaisquer humanos. O seu idioleto
leva-nos a estabelecer um paralelismo com a linguagem infantil e juvenil. Mas também não
podemos esquecer a linguagem dos adultos que, como Álvaro Magalhães, nunca deixaram de
ver o mundo com a sensibilidade, a imaginação e a inteligência das crianças. Estas palavras
de Ilse Losa aplicam-se bem aos Contos da Mata dos Medos e a toda a literatura deste autor:
“Escrever para crianças significa fazer literatura, literatura autêntica, que também o adulto lê
com prazer” (121). Esta não é uma conclusão qualquer, nem um simples convite à leitura. Os
mais novos e a boa literatura que lhes é dirigida dão ao adulto uma perspectiva mais poética do
mundo e, desse modo, religam-no à natureza e à espiritualidade das coisas pequenas.
Magalhães unifica o que a sociedade moderna separa: o diálogo, a pergunta-resposta, a
palavra como representação, experiência e, ao mesmo tempo, ato de conhecimento que não nega
nem ignora o valor intrínseco de cada elemento da natureza (animal e não animal).
As peripécias e a linguagem levam o leitor a sair do texto para o mundo e do mundo para
o texto. Magalhães estrutura estas narrativas articulando diversos tipos de experiências: expe-
riência do eu e do outro, experiência da natureza e da linguagem. Esta combinação permite que
qualquer leitor se liberte de preconceitos, estereótipos e automatismos acerca do mundo natural
e se (re)descubra, ética e ontologicamente, na (re)descoberta da natureza e da língua portuguesa.
As crianças estão mais disponíveis do que os adultos para se transformarem e enriquecerem
neste processo. Elas projetam-se de tal forma em imagens que chegam praticamente a acreditar
que são esta ou aquela entidade, mas sem perderem completamente a ligação à vida de todos
os dias. Essa nova realidade temporária não é equívoca nem falsa: é a concretização de uma
projeção. É, no sentido original da palavra, “imaginação” (imago: imagem). A diferença que se
gera nesses momentos dá origem à redefinição e superação da realidade mais comum.
A infância reflete-se nas características essenciais destas personagens, que colocam questões
tão exatas e profundas como as das crianças. Aquelas e estas distinguem-se pela curiosidade
e capacidade para perguntar e propor respostas que nunca são assumidas como definitivas, e
pela coragem para colocar em voz alta todas as dúvidas, incertezas e contradições. Esta série de
quatro narrativas pode, por isso, contribuir para o nosso conhecimento acerca das relações entre
as crianças, a natureza e o mundo, e para um entendimento mais profundo dos pensamentos e
comportamentos dos mais jovens.
O ser humano tem vindo a destruir a grande casa que é a Terra. Reconstruí-la implica o
trabalho de todos, em particular o daqueles que dizem a verdade através da ficção: os escritores
que, como Álvaro Magalhães, têm uma imaginação utópica sem limites e um estilo que faz do
texto um espaço de prazer e revelação de valores que desconhecíamos ou marginalizávamos.
A Mata dos Medos, como espaço geográfico real e, ao mesmo tempo, como universo utópico
ou não-lugar, recria os lugares que habitamos. Através da narração literária, a Mata real
transforma-se em paisagem literária e projeta-se num espaço e num futuro sempre ilocalizáveis:
numa ecotopia. Mas este lugar literário também transforma o aqui e o agora, o espaço físico e
o espaço social, os usos e os costumes, a relação dos leitores com a natureza.
Estas narrativas, como toda a grande literatura, são uma forma elevada de busca de con-
hecimento: colocam-nos perante um tempo e um espaço totais e cíclicos em que tudo é vida e
maravilhamento, mistério e descoberta, em que tudo se relaciona com tudo. É esta sabedoria
da Terra que Álvaro Magalhães nos convida a (re)conhecer e a assumir como essência da nossa
cultura.
Os mistérios e a beleza da natureza sempre estimularam a consciência humana a conhecer o
mundo, a conhecer-se a si mesma e a reformar-se constantemente. A literatura que promove a
experiência estética e o conhecimento científico da natureza intensifica essa relação estética e
ética, de comunhão sensitiva e intelectiva, entre o Homem e o universo. Em oposição à nossa
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hostilidade face à natureza, estes livros conciliam ética e literatura, ética social e ética da
literatura, ética humana e ética animal, ética do ambiente e ética da natureza.
Em diálogo com as artes em geral e com as ciências, a literatura sempre nos disse que é
possível um novo paradigma ecológico e humano. Hoje, perante as contínuas previsões sobre o
fim do mundo, estamos mais aptos a aceitar esta tese. A cultura científica e racionalista pode ser
complementada com a reinvenção do simbólico e do mito, com um investimento nas faculdades
mitopoéticas do pensamento e da sensibilidade, com o aproveitamento de textos como os Contos
da Mata dos Medos.

OBRAS CITADAS
Andresen, Sophia de Mello Breyner. “Luís de Camões: Ensombramento e descobrimento”. Poemas
escolhidos. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981. 149–64. Impresso.
Llosa, Ilse. Nós e a criança. 1954. 3a ed. Porto: Porto Editora, 1980. Impresso.
Magalhães, Álvaro. Contos da Mata dos Medos. 2003. 2a ed. Ilustrações de Cristina Valadas. Lisboa:
Assírio & Alvim / Câmara Municipal de Almada, 2009. Impresso.
———. A Criatura Medonha: Novos Contos da Mata dos Medos. Ilustrações de Cristina Valadas. Cacém:
Texto Editores / Câmara Municipal de Almada, 2007. Impresso.
———. O Lugar Desconhecido: Últimos Contos da Mata dos Medos. Ilustrações de Cristina Valadas.
Cacém: Texto Editores / Câmara Municipal de Almada, 2010. Impresso.
———. Um Problema Muito Enorme: Novíssimos Contos da Mata dos Medos. Ilustrações de Cristina
Valadas. Cacém: Texto Editores / Câmara Municipal de Almada, 2008. Impresso.
Naess, Arne. “The Shallow and the Deep, Long-range Ecology Movement: A Summary”. Inquiry 16 (1973):
95–100. Impresso.
Perrault, Charles. “O Capuchinho Vermelho”. Contos ou Histórias dos Tempos Idos. Mem Martins:
Europa-América, 1999. 69–72. Impresso.
Ribeiro, Aquilino. Romance da Raposa. Ilustrações de Benjamim Rabier. Lisboa: Livraria Bertrand,
1961. Impresso.
Topa, Francisco. “Em torno da obra infantil de Aquilino Ribeiro”. Olhares sobre a literatura infantil:
Aquilino, Agustina, conto popular, adivinhas e outras rimas. Porto: Edição do Autor, 1998. Impresso.

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