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O Instituto Moçambicano

e o Estado Social dentro da FRELIMO

Catarina Antunes Costa

2018
Catarina Antunes Costa

O Instituto Moçambicano
e o Estado Social dentro da FRELIMO

Tese realizada no âmbito do Doutoramento em História, orientada pelo


Professor Doutor Manuel Vicente de Sousa Lima Loff
e coorientada pela Professora Doutora Isabel Maria Alçada Padez Cortesão Casimiro

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

julho de 2018
O Instituto Moçambicano
e o Estado Social dentro da FRELIMO

Catarina Antunes Costa

Tese realizada no âmbito do Doutoramento em História, orientada pelo


Professor Doutor Manuel Vicente de Sousa Lima Loff
e coorientada pela Professora Doutora Isabel Maria Alçada Padez Cortesão Casimiro

Membros do Júri

Presidente:
Professor Doutor Jorge Fernandes Alves

Vogais:
Professora Doutora Paula Cristina Antunes Godinho
Doutor Bruno Sena Martins
Doutora Ana Sofia de Matos Ferreira
Professor Doutor José Maciel Honrado Morais dos Santos
Professor Doutor Manuel Vicente de Sousa Lima Loff
Aos meus pais,
à Judite e ao seu grupo,
Ao Mau e ao Tao.
«A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se,
primeiro e acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que
torne a opinião significativa e a ação eficaz.»
Hannah Arendt

«Sabemos muito mais do que julgamos, podemos muito mais do


que imaginamos.»
José Saramago

«Que seria, pois, de nós, sem a ajuda do que não existe?»


Paul Valéry
Sumário

Declaração de honra ......................................................................................................... 9


Agradecimentos .............................................................................................................. 10
Resumo ........................................................................................................................... 12
Abstract ........................................................................................................................... 13
Índice de ilustrações ....................................................................................................... 14
Índice de quadros ............................................................................................................ 15
Lista de abreviaturas e siglas .......................................................................................... 16
Introdução ....................................................................................................................... 18
Estado da arte.............................................................................................................. 23
Problematização e estrutura interna ............................................................................ 30
Metodologia ................................................................................................................ 34
Entrevistas .................................................................................................................. 36
Parte I A FRELIMO
Capítulo 1 – Início da contestação em Moçambique – o NESAM, o CONCEP e
UNEMO ......................................................................................................................... 42
1.1. Criação da FRELIMO: independências dos países limítrofes; MANU E
UDENAMO ................................................................................................................ 45
1.2. O I Congresso da FRELIMO e a UNAMI........................................................... 49
1.3. O início da guerra, os campos de treino e as zonas libertadas............................. 51
Capítulo 2 – A grande crise de 1965-69 e a II sessão do Comité Central ...................... 56
2.1. A crise de 1965 .................................................................................................... 56
2.2. A II sessão do Comité Central (1966) .................................................................. 58
2.3. A crise de 1968-69 ............................................................................................... 60
2.4. O II Congresso e a mudança definitiva de rumo ideológico ............................... 62
2.5. O culminar da crise em 1969: a morte do Presidente Mondlane ......................... 69
Parte II O Instituto Moçambicano
Capítulo 3 – A origem do Instituto Moçambicano ......................................................... 72
3.1. Janet, a mentora e líder ........................................................................................ 87
3.2. A crise de 1968-69 dentro do Instituto Moçambicano ....................................... 106

6
3.2.1. Mobilização de estudantes para a guerrilha ................................................. 108
3.2.2. Motivação das autoridades tanzanianas ........................................................114
3.2.3. Hostilidade para com os brancos ..................................................................118
3.2.4. A atitude de Janet Mondlane........................................................................ 120
3.2.5. Mudança de estratégia do Instituto Moçambicano face à crise ................... 124
3.3. Mudança de objetivos e alargamento de competências: trabalho hercúleo na
retaguarda ................................................................................................................. 127
Capítulo 4 – O Ensino .................................................................................................. 140
4.1. O ensino enquanto projeto revolucionário......................................................... 140
4.1.1. O confronto dos jovens com as autoridades política, militar e patriarcal: o
empoderamento feminino ......................................................................................... 147
4.1.2. Acautelando as necessidades básicas dos estudantes .................................. 155
4.1.3. Os professores e os programas curriculares ................................................ 161
4.2. A escola secundária em Dar-es-Salaam ............................................................. 170
4.3. Campo, escola e centro infantil de Tunduru ...................................................... 183
4.4. A escola secundária de Bagamoyo .................................................................... 196
4.5. Mbeya e o Orfanato, Rutamba, Songea, Kianga e Mtwara. .............................. 223
4.6. As escolas nas zonas libertadas de Moçambique: Províncias de Cabo Delgado,
Tete e Niassa. ............................................................................................................ 231
4.7. Editora, publicações e bibliotecas ..................................................................... 236
Capítulo 5 – A Saúde .................................................................................................... 243
5.1. Equipamentos: cuidados básicos no âmbito da saúde ....................................... 243
5.1.1. A formação médico-sanitária enquanto suporte clínico comunitário. ......... 247
5.1.2. Uma tentativa de implementar o planeamento familiar............................... 250
5.2. O Hospital Dr. Américo Boavida ....................................................................... 253
5.3. O Hospital Dr. Américo Boavida enquanto escola ............................................ 271
5.4. Os dispensários, ou centros de saúde básicos, da Tanzânia às zonas libertadas de
Moçambique: as províncias de Cabo Delgado, Tete e Niassa .................................. 277
Capítulo 6 – As Doações .............................................................................................. 282
6.1. Os doadores e os cooperantes ............................................................................ 282
6.2. A Tanzânia e a OUA .......................................................................................... 297
6.3. ONU e as suas agências: UNICEF, UNESCO, ACNUR, OMS, FAO e OIT .... 301
6.4. Os EUA e Canadá .............................................................................................. 305
6.5. Os países escandinavos, a Holanda e a Suíça .....................................................311

7
6.6. Os países socialistas .......................................................................................... 324
6.7. Outros países ..................................................................................................... 325
Conclusão ..................................................................................................................... 328
Referências bibliográficas ............................................................................................ 348
Anexos .......................................................................................................................... 361
Anexo 1 - Mapas ...................................................................................................... 362
Anexo 2 - Quadros.................................................................................................... 364
Anexo 3 - Fotografias ............................................................................................... 374

8
Declaração de honra

Declaro que a presente tese é de minha autoria e não foi utilizado previamente
noutro curso ou unidade curricular, desta ou de outra instituição. As referências a outros
autores (afirmações, ideias, pensamentos) respeitam escrupulosamente as regras da
atribuição, e encontram-se devidamente indicadas no texto e nas referências
bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho consciência de que a
prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

Porto, 20 de junho de 2018

Catarina Antunes Costa

9
Agradecimentos

A presente tese nunca teria sido possível sem a ajuda inestimável de algumas
pessoas que tiveram a amabilidade de, ao longo da execução de todo o trabalho, ir dando
o seu apoio das mais variadas formas.
Desde logo, os meus pais que têm sido o suporte, mais do que certo, em todas as
aventuras a que me tenho proposto, abrindo-me os braços e incitando-me a seguir sempre
que preciso de uma força motivadora. Com eles, enquanto elementos da família, apesar
de serem legalmente considerados seres não racionais, os meus gatos, que me escolheram
para sua tutora, que me suportam os humores e me dão alento nos momentos mais penosos
dos longos dias de escrita.
Agradeço também a todos os amigos que foram apoiando e motivando das mais
variadas formas este percurso longo, todos sabem quem são. Contudo, de entre os amigos
tenho a destacar aqueles que participaram ativamente na execução da tese, dando o seu
tempo para me ajudar num trabalho que, à maior parte, pouco ou nada dizia: - a Vânia,
companheira na tradução de inúmeros documentos, que mesmo não gostando de História
e lutando contra o sono que a temática lhe provocava, se manteve perto de mim na
trabalhosa tarefa da tradução; - o Bruno, o meu irmão honorário, que mesmo entre
resmungos foi fazendo tudo o que eu lhe pedia e a quem não foi preciso ameaçar muito;
- a Ana, que acreditou que eu não estava louca e me ajudou com as suas competências de
tradutora; - a Isabel, que desde a primeira leitura me garantiu que eu tinha escrito uma
tese; - a Fátima, por ter estado sempre por perto quando me ia abaixo e também me
garantiu que eu não estava a ficar louca; - a Lu, que veio em meu auxílio quando eu mais
precisava de uma ajuda especial; - o Miguel, que acorreu em tempo útil a todos os
achaques dos meus computadores; - o querido amigo e nome maior da poesia
moçambicana, Calane da Silva, a quem devo o enorme favor de me facilitar a maioria das
entrevistas e que sempre teve para comigo uma palavra amiga; - a Dra. Carla Amaral, dos
serviços administrativos da FLUP, que foi demonstrando uma enorme paciência para com

10
todas as minhas ansiedades.
Por fim tenho a agradecer o constante apoio dos meus orientadores: a Professora
Doutora Isabel Casimiro que tão bem me recebeu em Moçambique, mas muito
especialmente ao Professor Doutor Manuel Loff que, não só me apoiou num momento de
extrema fragilidade, como me fez acreditar sempre na qualidade do trabalho que
estávamos a fazer.
A todos os que de alguma forma contribuíram para a presente tese a minha mais
sincera gratidão, sem o vosso apoio nada disto teria sido possível.

11
Resumo

O Instituto Moçambicano foi o organismo que, sob a capa formal de fundação


independente para a ajuda humanitária, permitiu ao movimento de libertação de
Moçambique responder às necessidades mais básicas dos moçambicanos sob a sua
responsabilidade. O verdadeiro Estado Social que a FRELIMO, graças ao trabalho do
Instituto, pode implementar durante a luta de libertação permitiu que, quer os refugiados
na Tanzânia, quer as populações que viviam nas zonas que iam sendo paulatinamente
libertadas em Moçambique, pudessem contar com um sistema de proteção social que lhes
garantia os serviços mínimos nas áreas da educação e da saúde, estabelecendo escolas,
dispensários e um hospital que respondiam às necessidades de uma população que, em
1974, ascendia, segundo dados da própria Frente, a um milhão e duzentos mil
beneficiários dispersos por uma área de mais de 250.000 km2, só nas zonas libertadas.
Toda esta obra, para além de conceder uma ajuda imediata no campo humanitário e do
desenvolvimento, permitiu encontrar estratégias que pudessem ser aplicadas no
Moçambique Independente, visando o surgimento de uma nova Nação, alicerçada no
pressuposto de uma nova sociedade, de cunho igualitário e mentalmente descolonizada.
O Instituto Moçambicano, não só permitiu à FRELIMO ter acesso a fundos
internacionais concedidos por Estados e organizações de apoio humanitário e ao
desenvolvimento de países da Europa Ocidental e da América do Norte que não podiam
apoiar uma organização militar apresentada por Portugal como terrorista, como também
possibilitou a criação de verdadeiras redes internacionais de simpatia e ativismo para com
a causa moçambicana.

Palavras-chave: Instituto Moçambicano, FRELIMO, educação, saúde, apoio


humanitário.

12
Abstract

The Mozambican Institute was the organization that, under the formal cloak of
independent foundation for humanitarian aid, allowed the Mozambican liberation
movement to respond to the most basic needs of Mozambicans under its responsibility.
The true welfare state that FRELIMO, thanks to the work of the Institute, could
implement during the liberation struggle has allowed both refugees in Tanzania and the
populations living in the areas gradually liberated in Mozambique to have a system of
social protection that guaranteed them the minimum services in the areas of education
and health, establishing schools, dispensaries and a hospital that responded to the needs
of a population that, according to data of the Front itself, was one million two hundred
thousand beneficiaries dispersed over an area of more than 250,000 km2, only in the
liberated areas. All this work, besides granting immediate aid in the humanitarian and
development field, allowed finding strategies that could be applied in an Independent
Mozambique, aiming at the emergence of a new Nation, based on the presupposition of a
new egalitarian and mentally decolonized society.
The Mozambican Institute not only allowed FRELIMO to have access to
international funds granted by Countries and some development and humanitarian aid
organizations in Western Europe and North America that could not openly support a
military organization presented by Portugal as terrorist, and also enabled the creation of
true international networks of sympathy and activism towards the Mozambican cause.

Keywords: Mozambican Institute, FRELIMO, education, health, humanitarian aid

13
Índice de ilustrações

Mapa 1: Campos de acolhimento da FRELIMO na Tanzânia…………………….……… 362


Mapa 2: Zonas libertadas de Moçambique em 1968/69…………………………………. 363
Fig. 1 e 2: Livro de Matemática para a 2ª Classe……………………………………….. 374
Fig. 3: Escola secundária de Bagamoyo..……………………………………………….. 374
Fig. 4: Relatório do Instituto Moçambicano para a ACNUR……………………………... 375
Fig. 5: Capa do Programa orçamental do Instituto Moçambicano para o período de
outubro de 1968 a dezembro 1969……………………………………………………….. 376

14
Índice de quadros

Quadro 1: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para as escolas dos


campos educativos da FRELIMO na Tanzânia…………………………………………... 364
Quadro 2: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para as zonas libertadas
de Moçambique………………………………………………………………………….. 365
Quadro 3: Orçamento de 1969 para o programa de apoio às jovens grávidas no campo
de acolhimento de Mbeya………………………………………………………………... 365
Quadro 4: Orçamento de 1969 para os programas educativos de Bagamoyo………….. 366
Quadro 5: Orçamento da Administração Central do campo Mbeya (?) para 1969…….. 366
Quadro 6: Valores estimados dos Kits Pessoais para o Instituto Moçambicano para o
ano de 1969……………………………………………………………………………... 367
Quadro 7: Orçamento de 1969 para a editora………………………………………….. 367
Quadro 8: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para a Administração de
Moçambique interior…………………………………………………………………….. 368
Quadro 9: Orçamento de 1969 para o orfanato (Moçambique interior?)………………. 368
Quadro 10: Orçamento de 1969 para o programa de apoio aos deficientes de
Moçambique interior…………………………………………………………………….. 369
Quadro 11: Estimativa do número de pessoas em processo de deslocação forçada no
interior de Moçambique, em 1969……………………………………………………….. 369
Quadro 12: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para os gastos comuns
no Moçambique interior…………………………………………………………………. 370
Quadro 13: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para os Serviços
Sanitários dos campos educativos da Tanzânia…………………………………………... 370
Quadro 14: Orçamento de 1969 para a Administração Central da Saúde……………… 371
Quadro 15: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para a construção e
equipamento do Hospital Dr. Américo Boavida 1969……………………………………. 372
Quadro 16: Orçamento para os anos de 1970 e 1971 para o Hospital Dr. Américo
Boavida………………………………………………………………………………....... 373
Quadro 17: Valores de doações parcelares recebidas pelo Instituto Moçambicano entre
1964 e 1974………………………………………………………………………………. 373

15
Lista de abreviaturas e siglas
CC- Comité Central
CE - Comité Executivo
CEI – Casa dos Estudantes do Império
CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias
Portuguesas
COREMO – Centro Revolucionário de Moçambique
DANIDA - Agência Governamental Dinamarquesa para a Cooperação e
Desenvolvimento
DEC- Departamento de Educação e Cultura
DEF- Destacamento feminino
DD - Departamento de Defesa
DDS – Departamento de Defesa e Segurança
DOI – Departamento de Organização do Interior
EUA – Estados Unidos da América
FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique
IAA – Instituto Afro-Americano
KIEC – Escola Internacional de Kurasini
LIFEMO – Liga Feminina de Moçambique
MANU – União Nacional Africana de Moçambique
MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola
NESAM – Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique
ONU – Organização das Nações Unidas
OMM – Organização da Mulher Moçambicana
OUA – Organização da Unidade Africana
OXFAM - Comité de Oxford para o Combate à Fome
PAIGC – Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde
PIDE/DGS – Polícia Internacional e de Defesa do Estado/ Direção Geral de
Segurança.
RDA – República Democrática da Alemanha
16
SIDA – Agência Sueca para a Cooperação e Desenvolvimento Internacional
TANU – União Nacional Africana do Tanganica
UDENAMO – União Democrática Nacional de Moçambique
UNAMI – União Nacional Africana para Moçambique Independente
UNEMO – União Nacional dos Estudantes de Moçambique
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
USAID – Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional

17
Introdução
A presente tese nasceu de um interesse pessoal pelos estudos de género na
historiografia contemporânea, nomeadamente ao nível das resistências aos regimes
ditatoriais europeus, cuja investigação tem levantado questões pertinentes nos domínios
social e político. Rapidamente este interesse levou a um questionamento particular sobre
o caso português, o que, por sua vez estimulou a curiosidade sobre o papel das mulheres
africanas durante as lutas de libertação e o seu contributo para o esforço de guerra, sob
uma perspetiva dos estudos subalternos.
Partindo do pressuposto sob o qual a historiografia, muito graças aos estudos
feministas e a um maior número de mulheres na academia, tem vindo a fazer um esforço
para mudar o seu paradigma - tradicionalmente assente numa divisão clássica dos papéis
de género que votava ao esquecimento o contributo feminino no devir histórico,
relegando-o para o domínio da História privada - começámos por tentar aprofundar o
estudo da história colonial, política e militar portuguesa e africana, procurando identificar
em particular os seus atores femininos que colaboraram com os movimentos de libertação
africanos.
Assim, acabámos por conhecer o caso moçambicano, onde as mulheres
guerrilheiras foram uma realidade, com um corpo militar próprio, o Destacamento
Feminino, demonstrativo, não só da sua capacidade de liderança e atuação em cenários
tradicionalmente masculinos, mas sobretudo impulsionador de uma mudança valorativa
na própria forma de viver o feminino, rompendo com uma visão estereotipada da mulher
e afrontando as bases da sociedade tradicional patriarcal.
As mulheres moçambicanas, tal como as suas congéneres oriundas das mais
diversas colónias africanas, viram-se confrontadas com guerras que se arrastaram anos a
fio e às quais não passaram indiferentes. Rejeitando o papel de vítima, um número
significativo destas jovens mulheres optou por se organizar e participar na luta pela
independência do seu país, o que resultou num legado, que ainda hoje, se encontra
consagrado na memória coletiva da Nação, fazendo de Moçambique, a nosso ver, um caso
particular.
A Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), ao trazê-las para o
18
movimento de libertação a fim de as preparar e enquadrar militarmente, imprimiu uma
carga ideológica à sua emancipação que lhes permitiu, após a libertação, manter a
paridade conquistada, apesar de alguns retrocessos posteriores, neste campo, inerentes à
evolução cultural, política e social de qualquer país. Tal não aconteceu noutros países da
África Austral, onde as mulheres, mesmo depois das independências e não obstante a
importância do seu contributo para a libertação nacional, continuaram confinadas às suas
representações sociais tradicionais.
Assim, afigurou-se-nos imperativo aprofundar a atuação das mulheres
moçambicanas e dos seus movimentos dentro de uma estrutura tradicionalmente
dominada por homens. Tínhamos interesse em conhecer os seus percursos individuais, as
motivações pessoais, a ideologia, a educação, a religião, as redes de contactos nacionais
e/ou internacionais, caracterizando, através desta memória pessoal, a sua influência
dentro do movimento de libertação, de forma a entender o seu enquadramento social,
político e cultural, durante e após o período da guerra.
Ao aprofundar a História da FRELIMO, deparámo-nos com os trabalhos de
Isaacman e Stephen (1984), Casimiro (1999) e Panzer (2009), que nos fizeram questionar
sobre a amplitude da real importância das mulheres moçambicanas para o desenrolar da
luta, as condições em que aderiram ao movimento de libertação, bem como, o seu
enquadramento inicial. Tínhamos então, como objetivo, perceber a atuação destas
mulheres no contexto da luta armada contra o colonialismo, através do seu
enquadramento nos movimentos femininos moçambicanos: Destacamento Feminino e
Organização da Mulher Moçambicana. Pretendia-se, assim, partir de um quadro
explicativo das respetivas líderes e das suas motivações pessoais e políticas para, em
última análise, traçar a criação, evolução e influências políticas dos movimentos, dentro
da estrutura revolucionária e tecido social nos territórios libertados, bem como, explicar
a libertação das condicionantes de género decorrente da redistribuição de papéis sociais
durante a guerra.
Ainda em contexto de análise documental em Portugal, no arquivo da PIDE-DGS,
integrado nos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, deparámo-nos com uma
documentação residual, não permitindo uma análise aprofundada sobre o tema. Contudo,

19
no espólio português aguardava-nos uma surpresa na forma de uma cópia das resoluções
do I Congresso, e respetivos estatutos, da Liga Feminina de Moçambique (LIFEMO), que
se assumia como a Liga Feminina da FRELIMO. Este documento levantou, no imediato,
uma miríade de novas questões, uma vez que, a informação sobre esta organização na
literatura de referência sobre as mulheres moçambicanas e a luta de libertação de
Moçambique é quase inexistente, limitando-se a referi-la como um grupo informal de
mulheres, na sua maioria esposas de líderes militares, que se encontrava para beber chá e
promover alguma caridade pelos refugiados moçambicanos na Tanzânia, sem expressão,
nem grande continuidade no tempo. Deparávamo-nos, assim, com aquele que viria a ser
um dos primeiros episódios de «organizações fantasma» na memória coletiva de
Moçambique, aguçando-nos a curiosidade e redefinindo todo o nosso projeto de tese para
aquela intrigante organização, que, segundo a historiografia oficial moçambicana, nunca
existiu, mas cuja documentação oficial provava o contrário, deixando antever a hipótese
de ter tido mais importância dentro da FRELIMO do que a, ainda hoje, assumida.
Este documento de 1966 prometia uma linha de investigação tão mais interessante
quanto impunha uma rutura com a historiografia oficial moçambicana sobre os primeiros
anos do movimento de libertação, já que prova que, ao contrário do que é veiculado, as
mulheres já se encontravam representadas na FRELIMO desde o seu início, enquadradas
numa organização bem definida, anterior ao DEF, com poder de mobilização suficiente
para realizar um congresso, onde declaravam a existência de mulheres militantes na luta
de libertação a combater ao lado dos seus camaradas homens. A LIFEMO defendia, assim,
através das resoluções do seu congresso, a sua militarização efetiva num Destacamento
Feminino, meses antes da criação deste ter ficado decidida na reunião de outubro de 1966
do Comité Central da FRELIMO.
Na ausência de mais documentação sobre o tema em Portugal, rumámos a
Moçambique com o intuito de continuar no terreno a nossa investigação de fontes
primárias: no Arquivo Histórico de Moçambique, nas memórias de guerra, e nos
testemunhos orais, através da realização de entrevistas in loco, das personagens ainda
vivas, bem como, de testemunhos de terceiros, para as mulheres já falecidas. Sempre com
o objetivo de obter um quadro conceptual, organizativo e operacional da LIFEMO, de

20
forma a contribuir para a narrativa sobre a evolução da condição feminina na sociedade
moçambicana durante os anos de guerra, esperávamos, assim, demonstrar o contributo
pessoal e coletivo da organização, e das suas militantes, para o desenrolar da guerra, bem
como, para o desenvolvimento do novo país.
Uma vez em Moçambique, e confrontados, desde logo, com uma tarefa hercúlea no
Arquivo da FRELIMO situado no piso térreo do Arquivo Histórico de Moçambique, não
nos foi possível continuar com a investigação sobre a LIFEMO por manifesta falta de
documentação. Excetuando um número irrisório de documentos, que não atingiam uma
dezena, em que a liga feminina era de facto referenciada numa ou outra valência, não nos
foi possível traçar um perfil exaustivo e metodológico da organização.
Contudo, à medida que a investigação prosseguia, fomo-nos apercebendo, através
das fontes documentais a que tínhamos acesso, da existência complexa de uma outra
organização, também parcamente referida na literatura de referência, o Instituto
Moçambicano.
Assim, foi num contexto de alguma frustração e desorientação resultantes da
ausência de informação sobre a LIFEMO que nos fomos apercebendo, inadvertidamente,
que, no meio de um substancial número de pastas de diversos organismos da FRELIMO,
onde procurávamos informações sobre as mulheres, se encontravam os primeiros
documentos de índole contabilística e algumas partes de relatórios oficiais referentes ao
Instituto Moçambicano, com uma amplitude cronológica que se estendia do início da
década de 60 até às vésperas da independência. O facto de estarmos perante uma
organização que, pelos documentos encontrados, se podia adivinhar ter tido um alcance
temporal que acompanhava o da FRELIMO, a que pertencia e com a qual interagia aos
mais altos níveis, como nos era dado a ver por alguma troca de correspondência entre as
respetivas direções, quer da FRELIMO, quer do Instituto, bem como demonstrava ter
uma rede de ligações internacionais vasta, levou-nos a intuir que tínhamos entre mãos um
organismo com uma importância substancial para o movimento de libertação.
Desde logo, os documentos iniciais começaram por se contrapor à informação
oficial vigente sobre o Instituto Moçambicano, sobre o qual, desde o início da pesquisa,
apenas encontrámos referências muito leves na historiografia moçambicana, quase ao

21
nível de notas de rodapé, ou em referências pontuais à sua escola secundária,
confundindo-se com ela, como se um e outra fossem, em exclusivo, a mesma coisa e
servissem um único propósito. Ao nível historiográfico, apenas o trabalho desenvolvido
por Panzer (entre 2009 e 2015) se permite a ir um pouco mais longe, já que, ao abordar a
influência de temas como, a criação de um «proto-Estado», a consciência nacional, e a
educação na legitimação da FRELIMO durante a guerra de libertação de Moçambique,
acaba por enquadrar concetualmente a obra e o contributo do Instituto Moçambicano, na
sua condição de educador e formador, para a evolução e a caracterização interna do
movimento.
Esta visão só é alterada com a leitura da biografia de Janet Mondlane (Manghezi,
2001), mentora e Presidente do Instituto, onde, de uma forma muito generalista, somos
apresentados à real dimensão da organização, à sua história, aos seus objetivos e ao seu
raio de ação alargado.
A análise da correspondência oficial mais recente pertencente ao Instituto
Moçambicano, cujo teor marcadamente de apoio humanitário e assistencial, produzida
posteriormente ao encerramento da escola secundária, levou-nos a perceber, no imediato,
que tínhamos em mãos documentação inédita imprescindível para o entendimento da
história da libertação moçambicana.
Na verdade, estávamos perante um corpo documental que nos permitia entender e
esquematizar a política assistencial da FRELIMO durante a luta de libertação de
Moçambique, através do trabalho deste organismo que foi pensado como uma estratégia
engenhosa para aceder a fundos internacionais de ajuda humanitária que estavam vedados
a um movimento com cariz militar e que, por isso, exigia a intermediação de uma nova
organização, cuja idealização, enquanto fundação independente com objetivos
humanitários, se ficou a dever a Janet e Eduardo Mondlane (primeiro Presidente da
FRELIMO).
Desta forma, o Instituto Moçambicano mostrava-se, através da documentação
disponível no arquivo, como uma das organizações mais importantes dentro da Frente de
Libertação. Através da sua obra no terreno, mas sobretudo da angariação de fundos
internacionais de ajuda humanitária, a que a sua independência formal relativamente à

22
Frente permitia aceder, facultava a esta os apoios necessários para colocar em andamento
um projeto que mimetizou um verdadeiro Estado Social.
Abrangendo, sobretudo, as áreas da educação e da saúde, respondeu às necessidades
de uma população que, em 1974, ascenderia, segundo uma estimativa interna da
FRELIMO, a um milhão e duzentos mil beneficiários, repartindo-se entre refugiados
moçambicanos na Tanzânia, e os habitantes das zonas que iam sendo paulatinamente
libertadas no território de Moçambique e que ficavam sob responsabilidade da FRELIMO.
Entendemos, então, redirecionar todo o nosso foco de investigação para o Instituto
Moçambicano, reposicionando-o na historiografia como o «braço social» da FRELIMO,
cujo desempenho permitiu ao movimento de libertação moçambicano uma atuação eficaz
na resposta às necessidades mais básicas da população que tinha sob sua responsabilidade,
quer na Tanzânia, quer a viver zonas libertadas de Moçambique, seguindo um modelo a
que Panzer (2013, p.5) chamou «proto-Estado», potenciador de uma experiência
«biossocial» única, desencadeadora de várias ferramentas de adaptação direcionadas para
a sobrevivência.

Estado da arte.

Para proceder a este trabalho fomos consultando, ao longo de todo o período de


escrita da tese, variadíssimas obras, desde logo, de contextualização do tema na época em
que se insere. Neste sentido, não podemos deixar de referir algumas obras recentes que
têm dado um valioso contributo para o estudo da guerra colonial portuguesa, sendo que
toda a problemática envolvente tem vindo a ser exaustivamente trabalhada por uma nova
geração de historiadores, muitos dos quais já nascidos após o conflito, trazendo por isso
um olhar mais descomprometido, de maior independência ideológica, e simultaneamente
mais abrangente.
No sentido de traçar um grande quadro teórico sobre a política colonial portuguesa
e o seu impacto num contexto internacional, começámos por abordar algumas obras de
referência para entender o colonialismo português, entre elas: A História da Expansão
Portuguesa, (2000, Vol. V), sob a direção de Francisco Bethencourt e Kirti Chauduri; a

23
Guerra Colonial: Angola, Guiné e Moçambique (2000), Os Anos da Guerra Colonial:
1961-1975 (2010), e Alcora: O Acordo Secreto do Colonialismo (2013), de Aniceto
Afonso e Carlos Matos Gomes; ou A Luta pela Independência: a Formação das Elites
Fundadoras da FRELIMO, MPLA e PAIGC (1999), bem como a PIDE/DGS na Guerra
Colonial (2004), de Dalila Cabrita Mateus.
Mais recentemente, os trabalhos de Amélia Neves Souto, Cláudia Castelo, e
Fernando Tavares Pimenta, três jovens investigadores portugueses, vieram lançar novas
linhas para a interpretação da História colonial de Portugal.
Amélia Neves Souto, através da sua obra Caetano e o Ocaso do “Império”:
Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo (1968-1974)
(2007), explica em que medida as alterações no exercício de poder no aparelho
administrativo da colónia de Moçambique, no período anterior e durante o conflito, foram
determinantes para a evolução da guerra, bem como para as ruturas ideológicas e sociais
que pautaram, quer a mobilização popular para guerrilha, quer a sociedade moçambicana
no pós-independência. Por sua vez, Fernando Tavares Pimenta veio trazer uma nova luz
sobre a guerra colonial, sobretudo nos territórios de Angola e Moçambique. A sua obra
República e Colonialismo na África Portuguesa (2012), bem como, o contributo que deu
para a obra Outros Combates pela História (2010), escrita sob a coordenação de Maria
Manuela Tavares Ribeiro, em que faz um ponto de situação da historiografia colonial
portuguesa para o século XX, ou o livro Comunidades Imaginadas: Nação e
Nacionalismos em África (2008), do qual foi um dos coordenadores, vieram lançar novas
perspetivas sobre o tema na sua generalidade, apontando aspetos fraturantes nos tecidos
social e político da metrópole, e nas colónias, que influenciaram significativamente o
desenrolar do conflito armado.
Após a análise do contributo da historiografia portuguesa para a História do
colonialismo, e com o objetivo de traçar um quadro teórico para o caso específico de
Moçambique durante o séc. XX, com especial enfoque nos movimentos sociais de
contestação colonial, começámos por abordar algumas obras clássicas sobre o tema, entre
as quais: A História de Moçambique (1997), de Malyn Newitt; e, dentro de um paradigma
dos estudos subalternos, Mozambique from Colonialism to Revolution: 1900-1982 (1983),

24
de Allen e Barbara Isaacman; Paz na Terra, Guerra em Casa: Feminismo e Organizações
de Mulheres em Moçambique (1999), de Isabel Casimiro; ou o Manual de História da
FRELIMO, de Brito et al [1980-1985], uma edição inédita da Faculdade de Marxismo
Leninismo da Universidade Eduardo Mondlane, que nos permitiu aceder a uma primeira
abordagem historiográfica de autores moçambicanos sobre a luta colonial, com uma
preocupação em retratar interna e detalhadamente todo o movimento de libertação
nacional, bem como a sua evolução até ao período da independência. Lamentavelmente
não nos foi possível consultar a tese de doutoramento do Dr. João Paulo Borges Coelho
subordinada ao tema: Protected villages and communal villages in the Mozambican
Province of Tete (1968-1982): a history of state resettlement policies, development and
war, defendida em 1993 na Universidade de Bradford.
Após esta primeira abordagem, verificámos que até 2010 pouco mais se escreveu
sobre o assunto em Moçambique. Contudo, com a entrada na segunda década do século
XXI, num contexto nacional de paz e de estímulo à produção intelectual, generalizou-se
o interesse pelo período da luta de libertação, nomeadamente pela história da FRELIMO
e pelas memórias dos seus protagonistas. Este interesse veio a ser estimulado com a
edição de algumas obras de grande abrangência e redefinição temática, nomeadamente:
Moçambique 1974: O Fim do Império e o Nascimento da Nação (2011), de Fernando
Amado Couto; Moçambique: Identidades, Colonialismo e Libertação (2010), de José
Luís Cabaço; ou A História da Luta de Libertação Nacional (2014), sob a coordenação
de Joel das Neves Tembe.
Simultaneamente, verificou-se uma dinâmica muito grande ao nível da História
Oral, com a edição de narrativas memorialísticas, individuais ou em formato de recolha
coletiva, patrocinadas por entidades públicas e privadas, nas quais a maioria dos
protagonistas históricos tinham assumido responsabilidades militares durante a luta de
libertação. Destas, destacam-se, pela preocupação em apresentar uma abordagem coletiva
e abrangente dos testemunhos individuais, sob uma premissa metodológica que
demonstra orientação para a integração estruturada ao níveis temático e cronológico
dentro da FRELIMO, as seguintes obras: FRELIMO 50 Anos de História: 20 depoimentos
que marcaram uma época (2012), organizada pela SOICO; Protagonistas da Luta de

25
Libertação Nacional (2012), de Ana Mussanhane; Memórias da Revolução 1962-1974
(2011, Vol. I), e Sacrificados para Criar uma Nação (2016), de Raimundo Pachinuapa,
et al; bem como, A Mulher Moçambicana na Luta de Libertação Nacional, Memórias do
Destacamento Feminino (2012), sob a organização de Benigna Zimba; e 50 Anos do
Destacamento Feminino: Génese, Expansão e Impacto (2017), de Raimundo Pachinuapa,
et al. Contudo, ainda que este momento de grande expansão do registo memorialístico,
de biografias e autobiografias, venha a desempenhar um papel de inegável importância
na construção da narrativa histórica, o facto é que atualmente continua a carecer da
respetiva problematização historiográfica, desejável para uma salutar construção da
memória coletiva.
Após, a aturada análise das fontes disponíveis, começámos a analisar
criteriosamente todas aquelas em que o Instituto Moçambicano pudesse ser abordado,
ainda que ao de leve, dado que, no decorrer da consulta bibliográfica preliminar sobre a
FRELIMO, fomos encontrando, esporadicamente, alguma informação, parca, sobre
aquele organismo. Contudo, as fontes limitam-se a falar da existência da escola
secundária do Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, encerrada na sequência de
distúrbios ocorridos em 1968, assumindo-se, a partir daí, a mesma sorte para o Instituto.
De facto, nenhuma obra historiográfica, até ao momento, abordou de forma
exaustiva o Instituto Moçambicano. Ainda assim, devemos fazer a devida ressalva aos
trabalhos de Panzer, nomeadamente a dois artigos que publicou: um, em 2009, no Journal
of Southern African Studies, e outro, em 2013, na Social Dynamics: A Journal of African
Studies, sobre a guerra de libertação de Moçambique e a atuação da FRELIMO enquanto
construtora de identidade nacional e garante social junto dos refugiados moçambicanos,
demonstrando o contributo do Instituto Moçambicano para o efeito e identificando-o
enquanto tal; bem como, um artigo científico da autoria da cineasta Catarina Simão,
subordinado ao tema Projeto Instituto Moçambicano: uma montagem de afetos, inserido
na obra A Luta Continua, 40 Anos Depois: Histórias Entrelaçadas da África Austral,
coordenada por Caio Simões de Araújo, editada em 2017, e onde, apesar de apresentar o
Instituto Moçambicano de forma concisa desde a sua origem, à sua mudança de
orientação em exclusivo para a angariação de apoio humanitário acaba apenas por abordar

26
a importância deste enquanto escola e veículo formador de mentalidades, não
aprofundando de forma sistemática as suas várias valências.
Este cenário repete-se na esmagadora maioria das narrativas memorialísticas
consultadas, com as honrosas exceções das autobiografias de Hélder Martins (2001) e
Jacinto Veloso (2011), a que acrescentámos o testemunho de Maria Francisca Mécia de
Jacama, publicada na obra 50 Anos de História, 20 depoimentos que marcaram uma
época (2012), e alguns apontamentos que afloram o assunto de forma muito dispersa, e
pouco consistente, num ou noutro testemunho presente nas obras: Memórias da
Revolução: 1962-1974 (2011, Vol. 1), coordenada por Raimundo Pachinuapa; e História
da Luta de Libertação Nacional (2014), coordenada por Joel das Neves Tembe. Nem
mesmo a revista Tempo, que fez um aturado e importantíssimo trabalho de recolha
documental sobre a guerra de libertação durante a década de 80, documentou a obra do
Instituto Moçambicano enquanto tal.
Assim, a principal fonte bibliográfica para o conhecimento do Instituto
Moçambicano, enquanto organismo central para a história da FRELIMO e da luta de
libertação moçambicana, encontra-se patente na biografia de Janet Mondlane (Manghezi,
2001), mentora e Diretora do Instituto, que, ao longo das suas memórias, nos vai
retratando cronologicamente a origem, desenvolvimento, parcerias, trabalho, desafios e
estrutura interna deste, enquadrando sempre o Instituto dentro da estratégia de política
social desenvolvida pela FRELIMO.
Pelas memórias da Diretora, esposa do primeiro Presidente da Frente de Libertação,
vamo-nos apercebendo do real contributo histórico do Instituto Moçambicano para a
evolução da luta de libertação de Moçambique. Porém, contrariamente a todas as
expectativas, e apesar do grande esforço e muito trabalho realizado recentemente em
Moçambique sobre a guerra de libertação, a informação sobre o Instituto Moçambicano
que tem vindo a ser disponibilizada, quer pela historiografia, quer pelo número já
considerável de testemunhos disponíveis dos intervenientes, continua a ser residual,
parcelar e com imensas lacunas, sendo que muito do seu trabalho continua a ser
reconhecido como exclusivo da FRELIMO, não existindo, na esmagadora maioria das
vezes, qualquer referência ao Instituto. Esta carência de atenção por parte da

27
historiografia moçambicana torna-se mais flagrante quando constatamos a amplitude e o
trabalho consolidado deste organismo quando comparado com organismos da mesma
natureza pertencentes aos restantes movimentos de libertação das colónias portuguesas,
demonstrando, em última análise, o engenho da FRELIMO em contornar os entraves
impostos pelos doadores internacionais de ajuda humanitária, impedidos de cooperar com
um movimento armado, mas possibilitando o seu apoio através da mediação de uma
fundação formalmente independente, isto é, através do Instituto Moçambicano.
De forma a podermos englobar o Instituto Moçambicano no contexto das lutas de
libertação das restantes colónias portuguesas, Angola, Guiné e Cabo-Verde, analisámos o
que já foi publicado nesta área e percebemos que em todos os movimentos de libertação
houve a implementação de estruturas educativas e sanitárias de apoio aos refugiados.
Contudo, nenhuma das organizações de natureza semelhante ao Instituto Moçambicano
conseguiu o sucesso deste nas várias frentes de trabalho: desde a duração temporal, à
penetração no terreno que ia sendo progressivamente libertado, à amplitude e
consolidação do trabalho, ao volume de beneficiários, e especialmente à capacidade de
captação de fundos.
Não existindo até ao momento nenhuma obra dedicada em exclusivo ao estudo do
tema da ajuda humanitária e do desenvolvimento nas lutas de libertação na historiografia
angolana, guineense e cabo-verdiana, o facto é que, não podemos deixar de referir o
importante contributo de alguns jovens autores, que englobaram a ajuda aos refugiados
destes países em obras mais abrangentes sobre a luta pela independência.
Assim, para o estudo de caso guineense temos a referir o trabalho de Patrícia Gomes
Godinho, Os Fundamentos de Uma Nova Sociedade: o P.A.I.G.C. e a Luta Armada na
Guiné-Bissau (1963-1973) - Organização do Estado e Relações Internacionais,
publicado em 2010, com um capítulo dedicado à «edificação dos pilares de uma nova
sociedade: a educação, a saúde e a justiça», onde de uma forma muito genérica, e
esquematizada, apresenta o trabalho do Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC) e do Instituto Amizade nestas áreas. Já para o caso angolano
destacamos a dissertação de mestrado em História Contemporânea de Fátima Peres,
apresentada em 2010 e subordinada ao título, A Revolta Ativa: Os Conflitos Identitários

28
no Contexto da Luta de Libertação Nacional, onde aborda a temática da ajuda aos
refugiados através de um estudo breve do Corpo Voluntário Angolano de Assistência aos
Refugiados (CVAAR) e do Centro de Estudos Angolanos (CEA).
Ambos os trabalhos dão-nos a conhecer, ainda que resumidamente, as organizações
de apoio humanitário nestes países.
No caso angolano, temos dois organismos distintos, o CVAAR e o CEA, que se
propunham, entre ambos, a fazer durante a guerra de libertação de Angola o mesmo tipo
de trabalho que o Instituto Moçambicano fez até à independência de Moçambique.
O CVAAR, fundado em 1961 no então Congo Léopoldville, tinha como missão
apoiar os milhares de refugiados angolanos que se encontravam neste país,
providenciando uma estrutura que, graças à ajuda humanitária internacional, pretendia
auxiliar as populações ao nível das suas necessidades mais básicas, de saúde, de
escolaridade e alfabetização, e através da promoção da autossuficiência. Contudo, apesar
de nos seus estatutos constar como uma «organização filantrópica apolítica fundada por
africanos originários de Angola» (Peres, 2010, p.15), o facto é que, o CVAAR não resistiu
a uma crise interna do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), nem à
rivalidade e hostilidade deste com a União das Populações de Angola (UPA), que, por sua
vez, aproveitava as questões raciais para lançar a desconfiança das populações sobre os
elementos brancos e mestiços do CVAAR. Assim, em 1965 o governo congolês encerrou
a atividade desta organização.
Por sua vez, o CEA foi fundado na Argélia, em 1964, por nacionalistas angolanos,
na sua maioria mestiços e brancos, que se propunham a aderir ao MPLA. Tendo sido
transformado «num polo cultural com fins políticos, cujo objetivo era o de ajudar e
contribuir para o desenvolvimento da luta contra o colonialismo e para a elevação cultural
do povo angolano» (Peres, 2010, p.15). O CEA, entre outras funções, dedicou-se à
divulgação internacional da causa moçambicana, bem como à publicação de manuais de
ensino. Porém, devido à instabilidade política, interna e externa, e à sua dificuldade de
financiamento, terminou a sua ação em 1965, conseguindo a sua integração formal no
MPLA.

29
Para a análise do caso guineense apoiámo-nos na obra de Patrícia Gomes Godinho
(2010) que apresenta o Instituto Amizade, fundado em 1965 em Conacry, como uma
criação formal do PAIGC na área da educação. Apesar de a autora não abordar o
financiamento deste organismo, acreditamos que o mesmo se fazia maioritariamente com
recurso aos meios próprios do PAIGC, dado que o apoio humanitário internacional
ocidental era concedido por países e organizações que não podiam formalmente apoiar
movimentos armados. Esta situação, em nada semelhante ao ocorrido no movimento de
libertação de Moçambique explica em parte o sucesso residual do caso angolano, bem
como o relativo sucesso, ainda que modesto, do caso guineense, sobretudo, quando
comparados com a dimensão e penetração no tecido social da obra do Instituto
Moçambicano.

Problematização e estrutura interna

À medida que íamos organizando a informação disponível, fomos traçando um


quadro mental sobre o Instituto Moçambicano. Interessava-nos, por isso, perceber as
razões que levaram à sua origem, a sua estrutura interna a nível organizativo, o seu papel
dentro da FRELIMO, as suas redes de suporte internacional, o seu trabalho junto dos
moçambicanos vítimas do colonialismo e da guerra, as suas balizas temporais, e o
contributo do seu legado para o Moçambique independente. Neste sentido, dividimos a
tese em duas grandes partes, subdivididas em seis capítulos.
A primeira parte, dedicada à contextualização da FRELIMO, enquanto movimento
de libertação de Moçambique, foi subdividida em dois capítulos.
Do primeiro capítulo, explicativo da génese do movimento, passamos a um segundo,
onde se aborda a história da Frente no período de tempo que medeia entre 1965 e 1969.
Estes quatro anos são essenciais para entender os desafios internos do movimento de
libertação, nomeadamente as várias crises intestinas em que se viu envolvido, e que
tiveram como corolário a morte do seu primeiro Presidente, Eduardo Mondlane, em 1969.
Consequentemente, as estratégias de gestão interna da Frente apuradas neste período, e
particularmente as adotadas durante o II Congresso da FRELIMO, permitiram a

30
redefinição do cenário político e militar que o arrastar da luta de libertação imprimia ao
futuro do movimento, reforçando ideologicamente a Direção da Frente e legitimando as
suas opções políticas e militares.
Considerámos a morte de Eduardo Mondlane como o corte necessário na
contextualização dentro da FRELIMO, dado que, entre 1968 e 1969, quer a Frente, quer
o Instituto Moçambicano, sofreram grande alterações, cujo impacto iria marcar e
estabilizar a dinâmica na luta de libertação até ao seu final. Assim, dedicámos a segunda
parte, e restantes capítulos ao nosso objeto de estudo, o Instituto Moçambicano.
O terceiro capítulo apresenta o Instituto desde a sua origem, a sua motivação, o seu
objeto de trabalho, a sua estrutura interna enquanto fundação independente, bem como a
sua Diretora e os primeiros apoios internacionais que levaram à exigência de uma
independência formal em relação à FRELIMO. Abordando ainda os desafios internos,
nomeadamente os resultantes da crise de 1968, que obrigaram à mudança de estratégia
operacional do Instituto no terreno de forma a continuar a responder às necessidades do
movimento de libertação. Esta situação poderá ajudar a entender a crença, por parte da
maioria dos militantes da Frente, no encerramento simultâneo do Instituto com a sua
escola secundária, bem como a ausência posterior de uma atenção historiográfica mais
cuidada.
O quarto capítulo é dedicado à educação e formação enquanto agentes de
transformação social e de legitimação ideológica do movimento de libertação, bem como
fator de instabilidade dentro da própria FRELIMO.
O paradigma educativo presente na Frente de Libertação, adotado e apoiado pelo
Instituto Moçambicano, é aqui apresentado ao pormenor através do estudo das principais
escolas fundadas pelo movimento. Da escola secundária do Instituto Moçambicano, em
Dar-es-Salaam, à escola secundária do campo de acolhimento em Bagamoyo, passando
pelas escolas primárias existentes nas zonas libertadas de Moçambique, vamos traçando
um quadro de grande investimento, físico e humano, patente neste projeto, cujo alcance
a dois tempos foi desde logo traçado.
Com o apoio do Instituto Moçambicano, a FRELIMO pretendia formar quadros
técnicos para responder às necessidades imediatas da luta de libertação, mas pensando já

31
numa nova construção social a aplicar no terreno, promotora do nascimento do «Homem
Novo», e cujo alcance visava a transformação no tecido político e social de Moçambique
independente.
No quinto capítulo abordaremos a temática da saúde que, a par da educação,
constituiu o grande pilar das políticas sociais do movimento de libertação durante todo o
período que antecedeu a independência moçambicana.
Neste capítulo analisaremos os cuidados sanitários prestados aos refugiados
moçambicanos, desde a sua génese, ainda na clínica do Instituto Moçambicano em Dar-
es-Salaam, até ao estabelecimento do hospital central da FRELIMO, em Mtwara, o
Hospital Dr. Américo Boavida. Assim, abordaremos a solução encontrada para colmatar
a necessidade crónica de profissionais na área da saúde, preparados para um contexto de
guerra, através da formação in loco de técnicos que, no âmbito da sua aprendizagem,
respondiam às necessidades hospitalares imediatas, e que, após o término da mesma, eram
distribuídos pelos territórios controlados pelo movimento de libertação.
Ao retratar o Hospital Dr. Américo Boavida, bem como os restantes equipamentos
sanitários sob a responsabilidade da Frente de Libertação, vamo-nos apercebendo da
importância do contributo do Instituto Moçambicano para os cuidados de saúde prestados
junto dos refugiados e das populações das zonas libertadas. De facto, era o Instituto quem
se encarregava de encontrar meios para colmatar a esmagadora maioria das necessidades
logísticas hospitalares, bem como estava envolvido em todas as grandes decisões
administrativas que eram tomadas dentro da FRELIMO, quer sobre a formação para a
saúde, quer sobre a gestão dos equipamentos sanitários.
No sexto capítulo analisaremos toda a dinâmica necessária para a construção deste
Estado Social informal da FRELIMO, através da relação de trabalho e cooperação entre
o Instituto Moçambicano e os doadores internacionais para a ajuda humanitária.
Analisaremos a ajuda dada pelos diversos países e respetivas organizações não
governamentais, sem esquecer o apoio de grandes organizações internacionais como a
ONU ou a OUA.
Ao perceber a mudança estratégica ocorrida no comportamento dos atores
internacionais face à política colonial portuguesa, conseguimos percecionar o tipo de

32
apoio prestado (maioritariamente em géneros), bem como o alinhamento político dos
Estados, face aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, permitindo, assim,
que a ajuda humanitária, inicialmente pensada para beneficiar apenas os refugiados
moçambicanos, pudesse ser alargada a todas as vítimas do colonialismo, resultando no
reconhecimento oficial do Instituto Moçambicano como parte integrante da FRELIMO.
Neste capítulo documentaremos a mudança na postura de grande parte dos atores
internacionais face à guerra colonial, consubstanciada em dois momentos distintos: um
primeiro período entre 1962 e 1968, e um segundo após 1968. Este último viria a ser um
ano de viragem definitiva, quer na evolução da guerra, quer na aceitação internacional da
legitimidade dos movimentos de libertação e da sua luta pela independência. Desta forma,
também o Instituto Moçambicano viria a sofrer mudanças significativas na sua estrutura
interna, conforme se terá podido ver ao longo dos capítulos anteriores.
Se, nos primeiros anos, o Instituto Moçambicano haveria de contar com as grandes
fundações dos EUA para subsidiar a sua obra, tendo-se para isso instituído como fundação
independente de ajuda humanitária formalmente alheia à FRELIMO, com o passar do
tempo, e a gradual perda destes fundos, o Instituto vai redirecionar os seus pedidos para
alguns países da Europa, em especial da Europa do Norte, que fazem chegar a sua ajuda
por intermédio de organizações de carácter privado e público, bem como através das
agências da ONU. Na sua função de angariador de fundos, o Instituto, passa a ser um
embaixador político preferencial do movimento de libertação junto de países que não
queriam, nem podiam, ver-se envolvidos com a FRELIMO devido às relações
diplomáticas que mantinham com Portugal.
A partir de 1968, a comunidade internacional, muito mais sensibilizada para as
questões dos direitos civis e, consequentemente, para as reivindicações anticoloniais, vai
pressionar os governos dos Estados doadores no sentido de se destacarem
progressivamente do apoio tácito à política colonialista de Portugal, passando a permitir
um apoio humanitário direto à FRELIMO, ainda que em complemento do apoio ao
Instituto Moçambicano, que se mantém inalterado até à independência de Moçambique.

33
Metodologia

Após uma breve passagem pelo arquivo da PIDE-DGS, nos Arquivos Nacionais
Torre do Tombo, que se revelou inicialmente pouco profícuo face ao nosso primeiro
objeto de trabalho - a ele regressaríamos mais tarde, já com o objetivo de pesquisar sobre
o espólio ali existente relativo ao Instituto Moçambicano - virámos, então, a nossa atenção
para Moçambique, onde haveríamos de dar continuidade ao trabalho de campo.
Começámos por centrar a nossa atenção no espólio documental do arquivo da
FRELIMO, sito no Arquivo Histórico de Moçambique. Uma vez aqui, e já na posse de
todas as autorizações concedidas pela FRELIMO, deparámo-nos com uma quantidade
massiva de informação, muito dispersa, que revelava ter sido objeto de um trabalho de
organização documental prévio, mas ao qual já não obedecia, encontrando-se totalmente
desfasado da sua organização e categorização metodológicas. Fomos estão obrigados a
um aturado trabalho de perícia na análise documental, a cujo conteúdo só podíamos
aceder utilizando uma técnica mista, que exigia tanto a análise do organograma
arquivístico, como os nossos melhores dotes intuitivos, sem nunca descurar o enorme
apoio prestado pelo arquivista que nos acompanhava e que tinha um grande conhecimento
efetivo, não só do espaço, quanto do material armazenado, bem como da sua peculiar
organização.
Ao fim de um ano de pesquisa no arquivo da FRELIMO, e após termos reunido um
corpo documental variado e em número significativo, nomeadamente sobre o Instituto
Moçambicano, cujo espólio ascendia a mais de uma centena de documentos, optámos,
então, por redirecionar toda a nossa pesquisa para o Instituto Moçambicano, mudando
definitivamente o tema da nossa tese de doutoramento.
Efetivamente tínhamos em mãos um espólio documental com informação
maioritariamente parcelar, com muitas lacunas, composto por partes avulsas de relatórios
de atividades, pedidos de fundos, documentação contabilística e muita correspondência
institucional entre o Instituto Moçambicano, os doadores internacionais e a Direção da
FRELIMO, que nos permitiu, desde logo, desenhar, com relativa exatidão, um quadro
mental explicativo sobre a organização, as suas balizas temporais, entre 1962 e 1975, e a
sua função dentro do movimento de libertação. Contudo, esta documentação referente à
34
FRELIMO e ao Instituto Moçambicano não tem o peso de uma referência de Estado,
tendo sido produzida num contexto de exílio, durante o período de guerra, mostrando-se,
por isso, menos formal e mais incompleta ao nível da informação e titulação institucionais,
deixando-nos com algumas lacunas na referenciação bibliográfica dos documentos
trabalhados.
Esgotadas as fontes documentais primárias encontradas nos Arquivos Nacionais
Torre do Tombo, em Lisboa, no Arquivo Histórico de Moçambique, em Maputo, e em
espólio privado, decidimos prosseguir o nosso trabalho recorrendo à leitura
complementar de obras de caráter biográfico e coletâneas memorialísticas, entretanto
publicadas, sobre o período da luta de libertação, com o contributo de alguns dos seus
atores históricos. Porém, face, ao reduzido volume de informação publicada sobre o
Instituto Moçambicano, confrontámo-nos com a necessidade de proceder à realização de
uma série de entrevistas orientadas no sentido de responder a algumas das questões que
o material de arquivo levantava.
Assim, conscientes dos desafios apresentados pela História oral na produção da
memória coletiva ao fundamentar uma parte significativa do nosso trabalho nas
coletâneas memorialísticas, nas biografias e na memória individual dos entrevistados,
optámos por reunir um pequeno grupo de personalidades históricas que fizeram parte dos
vários momentos da vida do Instituto Moçambicano, desempenhando diferentes papéis
dentro da organização, capazes de testemunhar o dia-a-dia bem como o alcance da sua
obra.
As entrevistas foram realizadas através de uma metodologia que privilegiou as
questões abertas, isto é, a partir de um número reduzido de questões fundamentais sobre
o Instituto Moçambicano, sendo permitido aos entrevistados discorrerem sobre as suas
memórias, com uma intervenção mínima, no sentido de uma maior contextualização, por
parte da entrevistadora. A análise de toda a documentação memorialística utilizada para
este trabalho foi efetuada de forma crítica e diacrónica, tendo sempre em conta a realidade
moçambicana atual, bem como a premissa defendida para este tipo de estudos, e a
propósito da qual, nas palavras de Paula Godinho: «as memórias refletem o presente em
que emergem, e contam por vezes tanto sobre o momento da vida coletiva ou individual

35
em que são recolhidas, como sobre o tempo a que reportam.» (Passados insubornáveis:
acontecimento, razão escrita e memórias fracas, in Loff et al, 2014, p.147).
Mesmo tendo uma ideia predefinida sobre os atores históricos preferenciais a
entrevistar, a maioria dos nomes aqui apresentados foi sendo sugerida pelos próprios
entrevistados no decorrer das conversas. Infelizmente, por motivos de saúde, não nos foi
possível contar com o testemunho mais relevante sobre o Instituto Moçambicano, o da
sua Presidente, Janet Mondlane, pelo que nos fomos apoiando na sua biografia e nos
testemunhos de quem com ela privou e trabalhou, de forma a complementar o estudo
sobre o contributo do Instituto para a luta de libertação de Moçambique.

Entrevistas

Nas entrevistas aqui publicadas e partindo do pressuposto inicial a toda a tese que
pretendia conhecer a atuação das mulheres moçambicanas e dos seus movimentos dentro
da dinâmica da luta de libertação, bem como traçar os seus percursos individuais, as
motivações pessoais, a ideologia, a educação, a religião, as redes de contactos nacionais
e/ou internacionais, caracterizando, através da memória, a influência destas mulheres
dentro do movimento de libertação, de forma a entender o seu enquadramento social,
político e cultural, durante e após o período da guerra, acabámos por nos afastar do projeto
inicial no seu todo, mas não nos afastámos da essência do tema. De facto, acabámos por
não traçar qualquer quadro sobre os percursos individuais femininos dentro da FRELIMO,
nem dos movimentos de mulheres em exclusivo, acabámos sim, por encontrar no Instituto
Moçambicano um objeto de estudo preferencial para, através da analise ao seu trabalho
social, conseguir perceber o seu impacto na mudança de perspetiva sobre o papel
tradicional da mulher dentro do movimento de libertação e as respetivas consequências
do contributo feminino para a construção social de uma nova Nação após a independência
de Moçambique.
Neste sentido, excetuando a descrição mais ou menos pormenorizada de uma parte
da vida de Janet Mondlane no seu contexto de Diretora do Instituto Moçambicano e
militante da FRELIMO, optámos por não restringir o nosso estudo ao contributo

36
exclusivo das mulheres ou às suas memórias, preferindo abordar o trabalho destas dentro
da Frente de forma inclusiva, a par com os seus camaradas homens. Desta forma, também
as entrevistas seguiram a mesma abordagem, com uma preocupação em recolher
testemunhos importantes de quem contribuiu diretamente para o trabalho do Instituto,
permitindo-nos traçar o quadro concetual de toda a sua obra.
Mais do que o género, interessava-nos, agora, a memória de cidadãos
moçambicanos, militantes do movimento de libertação, construtores e beneficiários do
Instituto.

Elisabeth Sequeira - nasceu em Lourenço Marques, onde viveu até ir para Portugal
em 1960, a fim de frequentar o curso de Matemática na Universidade de Coimbra. Os
movimentos estudantis de 1960/61 e a amizade com outros estudantes das colónias
portuguesas levaram-na a ser interrogada pela PIDE. Em virtude deste interrogatório,
sentiu necessidade de se refugiar em França, na cidade de Paris, onde, em 1962, adere à
FRELIMO, que a enviou para Moscovo com o objetivo de prosseguir os seus estudos.
Terminado o curso de Matemática em 1969, é enviada com a família, que entretanto criara,
para a Argélia, até ser mandada para a Tanzânia, já divorciada e na companhia das filhas.
Em 1972, começa por dar aulas no campo de Bagamoyo, onde, ainda nesse ano, é-lhe
atribuída a direção pedagógica da escola secundária. Retornou a Moçambique com a
independência do país.

Feliciano Gundana - começou a colaborar com a resistência moçambicana através


da UDENAMO, tendo sido depois membro fundador da FRELIMO. Foi enviado para
fazer a preparação militar na Argélia em 1963, e em 1964 esteve envolvido no início da
luta de libertação e no Departamento de Defesa. Em 1967 foi destacado pela FRELIMO
para o Instituto Moçambicano, a fim de substituir o anterior Deão (espécie de reitor)
durante um ano. Reside em Moçambique.

Hélder Martins - médico da Marinha Portuguesa, de onde desertou em 1961,


aderindo à UDENAMO. Refugiou-se inicialmente no Tanganica, em Dar-es-Salaam,

37
tendo depois procurado asilo em Marrocos e na Argélia, onde ajudou a fundar o Centro
de Estudos Moçambicanos, através do qual começou a colaborar ativamente com a
FRELIMO. Regressou a Dar-es-Salaam em 1965 para, já na condição de militante ativo
do movimento de libertação, se responsabilizar pelo Departamento de Saúde da Frente e
pelo programa de ensino na área da saúde do Instituto Moçambicano. Foi, ainda, o
responsável pela conceção e acompanhamento da construção do Hospital Dr. Américo
Boavida até à sua expulsão da Tanzânia, em consequência dos distúrbios de 1968. Reside
atualmente em Moçambique.

Jacinto Veloso - Piloto aviador da Força Aérea Portuguesa, desertou em março de


1963, passando a colaborar com a FRELIMO de forma consistente a partir de 1965. Foi
convidado por Eduardo Mondlane, em 1966, para dar aulas no Instituto Moçambicano
em Dar-es-Salaam, onde permaneceu até aos distúrbios de 1968, altura em que foi
obrigado a regressar à Argélia, onde já tinha residido nos seus primeiros anos ao serviço
da FRELIMO. Reside atualmente em Moçambique.

Marcelina Chissano - Nascida no distrito de Nangade, província de Cabo Delgado,


em Moçambique, onde frequentou o ensino primário na missão católica local, foi
chamada pelo pai, militante da FRELIMO, para atravessar clandestinamente a fronteira
para a Tanzânia, aos 17 anos e após o término da quarta classe. Uma vez em território
tanzaniano, após um breve compasso de espera de um ano com a família, é encaminhada
para Dar-es-Salaam, onde seria uma das primeiras alunas a frequentar as aulas do Instituto
Moçambicano, em finais de 1964. Em virtude dos distúrbios de 1968, optou por
interromper os estudos e passou a trabalhar enquanto funcionária do Instituto até à
independência moçambicana. Vive atualmente em Moçambique.

Maria Salghetti - Enfermeira, nascida em Itália, conhece o trabalho da FRELIMO


graças ao irmão que assistiu, em Roma, a uma conferência de imprensa sobre o
movimento de libertação e os seus esforços na área da saúde, organizada por um médico
parasitólogo. A conselho do irmão, foi falar com o especialista a fim de se candidatar a

38
uma missão de voluntariado junto dos refugiados moçambicanos. Integrou, então, uma
equipa de voluntários do hospital de Reggio Emilia enviada para colaborar com a Frente
durante o período de um ano, na qualidade de técnica destacada. Chegou a Dar-es-Salaam
em julho de 1971 e desenvolveu o seu trabalho no Hospital de Américo Boavida, em
Mtwara, depois de uma breve passagem pelo campo de Bagamoyo para aprender
Português. Tendo decidido permanecer com o movimento até à independência
moçambicana, continua a residir em Moçambique.

Nyeleti Brooke Mondlane - Filha de Janet e Eduardo Mondlane, nasce na Tanzânia,


tendo vivido em Dar-es-Salaam, onde frequentou a escola do Centro Educativo
Internacional de Kurasini (KIEC) até aos nove anos. Em finais de 1971, prestes a
completar dez anos de idade, é transferida para o campo de Bagamoyo, onde permanece
como aluna interna até à independência de Moçambique. Reside atualmente em
Moçambique.

Polly Gaster - Nascida no Reino Unido, cedo se envolveu no movimento anti-


apartheid. Ao viajar por África com uma amiga cineasta, conhece Eduardo Mondlane, em
1967, e este convence-as a colaborarem com a FRELIMO. Aceitaram, tendo Gaster ido
trabalhar, em estreita colaboração com Janet Modlane, como secretária administrativa do
Instituto Moçambicano, substituindo a secretária anterior, Betty King. Na sequência dos
distúrbios de 1968, é obrigada a deixar a Tanzânia e a regressar ao Reino Unido, onde
continua a colaborar com o movimento de libertação através do Comité para a Libertação
de Moçambique, Angola e Guiné. Atualmente vive em Moçambique.

Teresa Veloso - Adere à FRELIMO em 1972, na Argélia, onde se encontrava, desde


finais de 1970, a colaborar com o movimento de resistência à ditadura em Portugal, e
onde conheceu o atual marido, Jacinto Veloso. Tendo iniciado a sua licenciatura em
ensino de Física e Química em Portugal, pediu transferência para Paris, onde acaba por
se dedicar em exclusivo à política, vindo depois a terminar a licenciatura na Universidade
de Argel já enquanto militante da FRELIMO. É nesta condição de estudante do

39
movimento de libertação que, em meados de 1973, é chamada a dar aulas no campo de
Bagamoyo durante as suas férias letivas. Vive atualmente em Moçambique.

Pretende-se, assim, traçar um quadro, o mais completo possível, do Instituto


Moçambicano, do seu contributo para a FRELIMO, e das suas implicações para o
desenrolar da luta de libertação.

40
Parte I

A FRELIMO

41
Capítulo 1 – Início da contestação em Moçambique – o NESAM,
o CONCEP e UNEMO

Muito antes da criação da FRELIMO, já se ouviam vozes de contestação contra o


colonialismo, na província ultramarina de Moçambique.
No dizer de Garcia:

«Mondlane1, no seu livro “Lutar por Moçambique”, retoma as origens da resistência


moçambicana no século XX, na tradição local, na criação da Liga Africana, em Lisboa,
em 1920, na formação em Moçambique do Grémio Africano, depois Associação Africana,
no Centro Associativo dos Negros de Moçambique e na Associação dos Naturais de
Moçambique.
Na metrópole, a Casa dos Estudantes do Império desempenhou também papel de
relevo. Além desta e das associações académicas foram diversas as instituições que
contribuíram para transformar o pensamento dos estudantes africanos, como o Clube
Marítimo Africano e o Centro de Estudos Africanos.» (2010, p.13).

Ainda durante os anos cinquenta há a registar a greve dos estivadores de Lourenço


Marques e, em 1960, o massacre de Mueda2, um dos grandes catalisadores da resistência
organizada.

1 Eduardo Mondlane, primeiro líder da FRELIMO, foi educado numa escola da missão suíça em
Moçambique, prosseguindo estudos na África do Sul, de onde viria a ser expulso, passou brevemente por
Lisboa para prosseguir a sua educação, mas acabou por se refugiar nos EUA, onde obteve o grau de Doutor.
Trabalhou na ONU e deu aulas na Universidade de Syracusa. Casou com a cidadã americana branca Janet
Rae que o seguiu na luta pela libertação de Moçambique.
2 Ocorrido em 16 de junho de 1960, resultou dos confrontos entre a autoridade colonial e a população,
produtora de algodão. A opção de confrontar com armas a população desarmada originou o ponto de
viragem para a população de Cabo Delgado no que respeita ao seu envolvimento na resistência contra o
domínio colonial.
42
Contudo, pelo facto de ter dado à FRELIMO o seu primeiro líder carismático, o
Núcleo dos Estudantes Secundários Africanos de Moçambique (NESAM) acaba por ter
uma importância de grande envergadura histórica para a então colónia portuguesa.
Fundado em 1949 por estudantes moçambicanos do ensino secundário, de entre os quais
se destaca Eduardo Mondlane, será das suas fileiras que sairão alguns dos mais destacados
quadros da FRELIMO, tais como Josina Abiatar Muthemba3, Filipe Samuel Magaia4,
Joaquim Chissano5, Mariano Matsinha6 e Armando Guebuza7.
Mantendo desde o início uma ligação ao Centro Associativo dos Negros de
Moçambique8, a rede de contactos do Núcleo será mais tarde utilizada para a instalação

3 Posteriormente Josina Machel, cujo apelido se ficou a dever ao casamento com Samora Machel, a
quem conheceu durante a luta de libertação. Foi uma guerrilheira ímpar, estando nas fileiras da FRELIMO
desde o inicio da guerra. Pelo seu exemplo e fim trágico e prematuro, é hoje considerada pelos
moçambicanos como “a mãe da nação”, tendo sido a data da sua morte, 7 de abril, escolhida para
homenagear anualmente a mulher moçambicana.
4 Filipe Samuel Magaia foi o líder do primeiro grupo de guerrilheiros da FRELIMO na Argélia,
vindo posteriormente a ocupar o cargo de Secretário do Departamento de Segurança e Defesa da Frente de
Libertação, até à sua morte em 1966.
5 Joaquim Alberto Chissano foi membro fundador da FRELIMO, secretário pessoal do Presidente
Eduardo Mondlane e seu assistente no Departamento da Educação. Em 1964 acumulou as suas funções
com as de Secretário de Departamento de Segurança e Defesa.
6 Mariano Matsinha aderiu à FRELIMO em 1963. Até 1974 exerceu várias funções: no Comité
Central da Frente; na Zâmbia, enquanto representante do movimento de libertação; e, posteriormente, como
Secretário do Departamento de Organização do Interior.
7 Armando Emílio Guebuza, foi Presidente do NESAM, tendo também aderido à FRELIMO, ainda
na clandestinidade, em Lourenço Marques. Mais tarde, já na Tanzânia, passou pelos campos de Bagamoyo
e Nachingweya, antes de ser transferido para Dar-es-Salaam onde se ocupou das funções de: secretário
particular do Presidente Mondlane, Secretário para a Educação e Cultura, membro do Comité Central,
inspetor das escolas da FRELIMO e comissário político nacional.
8 O Centro Associativo dos Negros de Moçambique surge, durante a década de 30 do século XX, no
seguimento da transformação de outras organizações do género, agregadoras de uma minoria negra urbana
no Sul de Moçambique. As suas raízes recuam à década anterior, com a criação do Grémio Africano, que
mudaria de nome para Associação Africana, de cuja ala mais radical sairá o Instituto Negrófilo. Este, será
obrigado a mudar de nomenclatura para Centro Associativo dos Negros de Moçambique devido a pressões
43
clandestina da Frente de Libertação (Brito et al [1980-1985], s/p). Foi, a coberto de
atividades culturais, um veículo difusor do pensamento independentista que, apesar de
não ter passado despercebido à PIDE, sobreviveu até aos anos sessenta, publicando nesta
colónia uma revista de grande contributo cultural de nome Alvor (Mateus, 1999, p. 59).
As ideias ligadas à independência dos territórios ultramarinos já se encontravam
particularmente ativas junto de um grupo de jovens adultos africanos, na sua maioria
estudantes universitários na metrópole, que se reuniam em Lisboa em várias
organizações9 criadas para o efeito pelo regime, que as utilizava como método de controlo
social e político, ainda que, na verdade, tenham servido para facilitar a veiculação de
ideais independentistas.
Com o objetivo de se fazerem ouvir, estes jovens, viram os seus anseios acolhidos
pelo Partido Comunista Português e pela ala jovem do Movimento Democrático Unitário
(MUD juvenil), que os invetivavam na defesa dos seus interesses.
Na década de 50 surgem as primeiras organizações independentistas, e alguns
destes estudantes africanos, mais tarde líderes da resistência ao colonialismo, vão sair de
Portugal, clandestinamente, a fim de representar os respetivos países em festivais e
encontros internacionais de jovens pela paz, sendo obrigados a seguir para o exílio, onde
lutarão pelo ideal de independência. Em 1954 é criado em Lisboa o Movimento
Democrático das Colónias Portuguesas, com um núcleo em Paris, formado por ativistas
no exílio. E, em 1958, do Movimento Democrático surgirá o Movimento Anticolonialista
(MAC), também com dois núcleos, em Lisboa e em Paris, agregando elementos africanos
que iam da elite cultural das colónias aos jovens estudantes universitários, e cuja função
consistia em lutar contra o colonialismo, interna e externamente. O MAC transformou-se
na Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colónias Africanas (FRAIN),

exercidas pela administração colonial. A sua ação será determinante para a consciencialização e crescente
politização dos respetivos membros, nomeadamente ao nível de uma consciência nacionalista,
posteriormente tributária das ideias anticoloniais. (Mateus, 1999, p.59).
9 Estas instituições, a Casa dos Estudantes do Império, o Clube Marítimo Africano e o Centro de
Estudos Africanos, foram inicialmente constituídas pelo regime para acolher e apoiar os estudantes vindos
do Ultramar, servindo posteriormente como controlo dos seus ímpetos nacionalistas.
44
que pretendia agregar partidos e organizações pró-independência dos países africanos sob
domínio português (Mateus, 1999, pp. 85-90).
Será da FRAIN que sairá a Conferência das Organizações Nacionalistas das
Colónias Portuguesas (CONCP), fundada em Casablanca, em abril de 1961, um mês
depois de declarada a guerra pela independência em Angola. Esta organização congregará
os movimentos nacionalistas já consolidados das colónias portuguesas em África,
permitindo gizar uma estratégia conjunta pela independência dos respetivos territórios;
colaborando na cooperação e coordenação de ações no plano internacional e também no
plano cultural, vindo a editar livros para as escolas do MPLA, do PAIGC e,
posteriormente, da FRELIMO (Mateus, 1999, pp. 91, 92).
Marcelino dos Santos10, um dos membros fundadores, torna-se secretário-geral da
CONCP, representando nesta a União Democrática de Moçambique (UDENAMO), um
dos primeiros movimentos moçambicanos de libertação, granjeando então um
reconhecimento internacional que favorecerá em muito a FRELIMO.
No ano seguinte, em 1962, foi criada, por estudantes exilados em Paris, a União
Nacional dos Estudantes de Moçambique (UNEMO) que, querendo participar mais
ativamente na luta nacionalista, contacta Marcelino dos Santos e Eduardo Mondlane,
fazendo também ela, pressão para a unidade dos vários movimentos independentistas
moçambicanos que existiam nos países limítrofes da colónia, de forma a que a luta se
desenrolasse sob o auspicio de uma Frente única e mais eficaz.

1.1. Criação da FRELIMO: independências dos países limítrofes; MANU E


UDENAMO

Portugal tudo fez para impermeabilizar as suas colónias aos ventos de mudança que

10 Nacionalista moçambicano, sai de Moçambique nos anos cinquenta rumo a Lisboa para completar
os seus estudos. Na metrópole trava conhecimento com outros nacionalistas das diferentes colónias, como
Amílcar Cabral e Mário de Andrade, com quem milita pela independência dos territórios sob soberania
portuguesa, sendo por esta razão obrigado a fugir de Portugal rumo a Paris onde prossegue os estudos,
acumulando com as funções de secretário geral da CONCP (Brito et al [1980-1985], s/p).
45
sopravam no continente africano desde os anos 50, contudo não foi possível manter tal
isolamento em nenhum dos seus territórios ultramarinos daquele continente.
Moçambique, apesar de isolado no seu contexto regional pela língua oficial 11 ,
mantinha, desde o séc. XIX, ligações laborais com os países fronteiriços 12 , o que
favoreceu uma consciencialização política aguda pelo menos entre os moçambicanos
emigrados.
Estes emigrantes económicos, na sua maioria, mas também políticos, acabaram por
ser permeáveis às influências políticas, sociais e económicas dos países de acolhimento.
Nos finais da década de 50, na mesma época em que a TANU, de Julius Nyerere,
começa a fazer as primeiras ações conducentes à independência do território do
Tanganica13, os moçambicanos do Norte que ali se tinham radicado, havia cerca de três
gerações, encontravam-se sem trabalho, devido, em grande medida, ao desencadear da
chamada crise do sisal14.
Quando começam a acontecer os primeiros despedimentos, estes emigrantes do
Norte de Moçambique, grandemente influenciados pelos ideais nacionalistas veiculados
pelo governo de transição para a independência do Tanganica, optaram por transformar a
sua associação de assistência mútua numa associação representativa da população local
de origem maconde, a Maconde African Association. Esta transformar-se-ia
gradualmente, numa primeira fase, graças a sucessivas alterações da sua sigla, e por
analogia com a TANU, em Maconde African National Union.
Por fim, a conselho, e com o apoio, do partido de Nyerere, e do próprio, que

11 Apesar da língua portuguesa ser, por imposição da metrópole, a língua oficial em Moçambique,
apenas era falada por uma minoria de pessoas, entre colonos e assimilados, sendo que a maioria da
população continuava a falar as línguas nativas, comuns à região.
12 Já desde o último quartel do séc. XIX, Portugal permitia à África do Sul recrutar trabalhadores
para as suas minas no sul do território moçambicano.
13 O Tanganica seria rebatizado posteriormente, em 1964, após a integração no seu território do
Zanzibar, com o seu nome atual, Tanzânia. No texto serão utilizadas as duas denominações dependendo da
necessidade de reporte à fonte.
14 A crise do sisal ficou a dever-se a uma menor procura internacional desta fibra, devido ao
aparecimento das novas fibras sintéticas.
46
considerava a alusão à tribo Maconde demasiado redutora, face à emergência de um
partido nacional que defendesse a independência de todo o Estado Moçambicano, dava-
se a mudança definitiva de denominação, e, em Março de 1962, nascia a Mozabican
African National Union, MANU15.
Pela mesma altura, um grupo de trabalhadores moçambicanos das plantações de
tabaco da zona da Rodésia do Sul fundava a União Democrática Nacional de Moçambique,
UDENAMO.
O reflexo dos nacionalismos africanos que se estavam a desenrolar nos países
limítrofes de Moçambique (Rodésia do Sul, Malawi e Tanganica) levou estes dois novos
movimentos a defenderem, de uma forma organizada e sistemática, a independência de
Moçambique.
Neste enquadramento político, as populações locais de Mueda, Cabo Delgado,
especialmente os regressados do Tanganica, começaram a dirigir petições às autoridades
portuguesas, a partir 1959, no sentido de exigir «uma administração autónoma de Mueda
por africanos», ou seja, a independência. Esta exigência foi aumentando
exponencialmente a tensão entre a administração colonial e os movimentos populares,
culminando no Massacre de Mueda, a 12 de junho de 1960 (Tembe, vol. 1, 2014, pp. 30,
31).
As sucessivas crises laborais obrigaram ao regresso a Moçambique de muitos
trabalhadores do Tanganica, favorecendo assim uma junção de ideais e esforços em
território nacional.

«A existência destas organizações do exterior – sobretudo a UDENAMO e a


MANU – significam um passo importante na construção do movimento de libertação
nacional, na medida em que objetivos políticos como o da luta anticolonial e pela
independência, se sobrepunham já aos objetivos de simples ajuda mútua ou solidariedade
étnica entre os moçambicanos emigrados.» (Brito et al [1980-1985], s/p).

15 Fernando Ganhão, entrevista à Rádio Moçambique a propósito das origens da FRELIMO, 24 de


julho,1999.
47
A UDENAMO, enquanto movimento nacionalista que reivindicava o direito à
independência de Moçambique, contava nas suas fileiras com Marcelino dos Santos,
desde cedo um ativista da causa moçambicana, a viver como refugiado político em Rabat
(Marrocos), onde viria a estabelecer contactos internacionais importantes para o futuro
da luta de libertação das colónias portuguesas (Pachinuapa, 2011).
Será no rescaldo de todos estes acontecimentos que, em 1961, Eduardo Mondlane
fará a sua primeira visita a Moçambique, na qualidade de delegado da Organização das
Nações Unidas, constatando a situação interna do país e contactando com diversos
círculos nacionalistas (Brito et al [1980-1985], s/p). A missão suíça e outras metodistas
vão espalhar a notícia da sua visita, apresentando-o como um Doutor moçambicano negro,
que vivia nos EUA, trabalhava na ONU, e ensinava numa universidade americana,
originando uma grande comoção, numa conjuntura política já de si efervescente e
contaminada pela crise do Congo (Fernando Ganhão, Rádio Moçambique, 24 de julho,
1999).
Face a esta conjuntura, e à pressão de Nyerere que condiciona o apoio da Tanzânia
à causa nacionalista moçambicana, mediante a criação de um movimento único de
libertação que reunisse todas as organizações independentistas existentes sob uma
liderança forte e reconhecida internacionalmente, Mondlane acaba por aceitar o convite
dos vários movimentos para se juntar à luta pela independência moçambicana. Estes
movimentos reconhecem no seu prestígio pessoal, académico e profissional, uma
condição necessária para catapultar as suas aspirações de independência a nível
internacional.
O apoio inicial de Julius Nyerere à independência de Moçambique foi
imprescindível, não só para a criação e posterior sustentação logística da FRELIMO, mas
também para que esta obtivesse o apoio da Organização da União Africana (OUA)16, onde
o Presidente tanzaniano exercia influência. Assim, pouco mais restava aos movimentos
independentistas moçambicanos do que a observação das suas duas exigências, por um

16 A OUA, Organização da União Africana, criada em 1963, visava unir os países africanos
independentes num esforço de entreajuda contra todos os tipos de colonialismo e neocolonialismo,
apoiando simultaneamente os movimentos de libertação dos países ainda sob domínio estrangeiro.
48
lado a fusão de todos os movimentos numa só frente, e, por outro, que a presidi-la
estivesse Eduardo Mondlane, o único elemento que, na sua opinião, pelo seu prestígio,
conhecimento e imparcialidade podia trazer unidade e projeção internacional à causa
nacionalista.
Em virtude deste facto, primeiramente, uniram-se a UDENAMO e a MANU, para
em conjunto com Mondlane, e mediante o apoio da Tanzânia, se formar uma frente única
militante pela independência de Moçambique.
Em maio de 1962, por uma questão de facilidade de representação, a FRELIMO
apresentou-se, enquanto tal, pela primeira vez numa reunião da OUA, realizada em Acra.
Apesar de, formalmente, a Frente de Libertação moçambicana só vir a ser fundada a 25
de junho de 1962, em Dar-es-Salaam, Tanzânia, numa conferência constituinte, sob a
presidência de Eduardo Mondlane, e a vice-presidência de um dos dirigentes da
UDENAMO, o reverendo Uria Simango (Feliciano Gundana, Houve pessoas que não
acataram as decisões do II Congresso, in SOICO, 2012, p.81).

1.2. O I Congresso da FRELIMO e a UNAMI

Para além da UDENAMO e da MANU, existia ainda um terceiro movimento


independentista, a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI), de
menor expressão militante, cujas origens ainda hoje não são muito claras. Segundo o
testemunho de Inácio Nunes, membro fundador, a UNAMI é constituída em Tete em 1958,
sob a fachada do Clube Africano de Tete. Posteriormente em 1959, o presidente da
UNAMI, Baltazar da Costa Chagonga, é obrigado a fugir para o Malawi, onde retoma a
atividade política, dando origem à crença de que o movimento teria nascido no Malawi,
onde exercia a sua influência junto dos moçambicanos emigrados (Inácio Nunes, Não
tivemos capacidade para gerir as Lojas do Povo, in SOICO, 2012, pp. 140,141).
A UNAMI também foi convidada a se unir à UDENAMO e à MANU na
constituição de uma frente única de oposição ao Estado colonial, ao que só vai aceder já
no decorrer do I Congresso da FRELIMO, acabando por, historicamente, ser considerada

49
uma das suas organizações fundadoras.
Será o I Congresso da FRELIMO, realizado entre os dias 23 e 28 de setembro de
1962, em Dar-es-Salaam, a unir os três movimentos existentes numa só organização, com
o objetivo de definir e legalizar as estruturas da Frente e discutir a estratégia de luta contra
o colonialismo (Brito et al [1980-1985], s/p). Daqui saíram as resoluções que
determinariam os pressupostos da luta contra o colonialismo e, em última análise, a
construção de um Moçambique independente.
O congresso definiu a FRELIMO como a plataforma de unidade de todos os
moçambicanos, independentemente da raça, credo ou género, na luta contra o
colonialismo, não aceitando a divisão política como opção e considerando-a, a existir, um
verdadeiro fracasso histórico. Com a elaboração e aprovação do programa, fica
estabelecido, logo desde o início, que a libertação do território moçambicano se efetuaria
com recurso à luta armada, uma vez que o massacre de Mueda e as várias diligências
feitas junto do governo colonial, quer por intermédio da ONU, quer através de pedidos
de negociação diretos levados a cabo pelos diversos movimentos de libertação,
demonstraram a irredutibilidade e a intransigência dos planos de Lisboa em manter
Moçambique como parte integrante do seu território, sem qualquer tipo de autonomia.
Simultaneamente, o movimento de libertação nacional é alargado a todo o território
moçambicano, isto é, ao nível nacional, afastando-o das suas raízes regionais.
Posteriormente, esta situação ir-se-á tornar, de tempos a tempos, num foco de tensão
dentro da própria FRELIMO. Originando rivalidades entre os militantes, quer ao nível do
posicionamento Norte/Sul para os cargos de direção, quer ao nível de questões éticas e
raciais, que punham em questão as origens étnicas dos dirigentes face aos militares, bem
como a militância de brancos e mestiços, face a pretos, e que, embora não fossem
discutidas abertamente, permaneceram num estado latente dentro da Frente, ao ponto de
desencadearem os confrontos internos de 1968 e, posteriormente, serem um dos aspetos
abordados no II Congresso da FRELIMO.
Com a aprovação do programa do I Congresso, seguiu-se o estabelecimento dos
estatutos e da estrutura orgânica da Frente de Libertação; sendo eleita a direção e os
restantes órgãos dirigentes do Comité Central (C.C.) Comité Executivo (C.E.) e

50
constituídos os respetivos departamentos. Todo o congresso foi acompanhado
atentamente, quer pela CONCP, cujo secretário-geral, Marcelino dos Santos, viria a
ocupar o cargo de secretário das relações exteriores da FRELIMO, quer pelo Tanganica,
desde o início o seu aliado por excelência.
Para além da preparação da luta armada, as restantes resoluções do Congresso
prenderam-se, não só com dar visibilidade da luta no plano internacional, através de
contactos com diversas organizações e países estrangeiros, bem como, com a necessidade
de criar estruturas de acolhimento e proteção para os refugiados moçambicanos, a sua
organização e formação políticas. Como resposta, a partir deste momento, o interior do
território moçambicano conheceu um aumento de repressão por parte das autoridades
coloniais. Simultaneamente, foram dados os passos necessários para criar estruturas de
suporte à luta armada, considerada, a partir daqui, como estando iminente.
Será mesmo a opção pela luta armada, bem como a sua natureza, um dos pomos da
discórdia no seio da Frente, cuja atividade, desde o seu início, será marcada por lutas
intestinas promovidas por fações divergentes, inclusive entre os seus dirigentes (Brito et
al [1980-1985], s/p).

1.3. O início da guerra, os campos de treino e as zonas libertadas

A 25 de Setembro de 1964, com os ataques a Cabo Delgado e junto ao lago Niassa,


estava declarada a guerra de libertação de Moçambique (Ndegue, 2009, p.42).
Com as vicissitudes próprias de uma guerra, os avanços e recuos foram constantes,
mas o expandir da luta a todo o território moçambicano foi desde o I Congresso uma
certeza e o esforço conjunto foi sempre efetuado nesse sentido.
A FRELIMO teve consciência, desde o seu início, de que havia todo o interesse em
abrir diversas “frentes de guerra”, dando simultaneamente cartas no plano internacional,
onde os variadíssimos contactos diplomáticos com organizações e países amigos da causa
se tornaram prolíficos e frutuosos nos anos vindouros. Para este facto, muito contribuíram
a figura e experiência profissional na ONU do Presidente, Eduardo Mondlane, cuja

51
consciência da importância das ações de pressão junto da comunidade internacional se
viria a revelar certeira.
Tendo plena noção de que a libertação de Moçambique também se conquistava
junto, e com o apoio, da comunidade internacional, foram dados passos decisivos para
criar um jogo diplomático que favorecesse as ambições emancipadoras do país e que
ultrapassasse na medida do possível a visão bipolar do mundo que então se verificava. As
relações com os países amigos da causa moçambicana, por razões de alinhamento
internacional, nem sempre se podiam dar ao mais alto nível, pelo que muito do apoio
internacional estrangeiro chegava através de instituições várias, como as pertencentes à
ONU, à Cruz Vermelha, escolas, associações e igrejas.
Assim, foram criados no Cairo, em Argel, e em Lusaka, centros permanentes de
divulgação e informação, onde os mais importantes periódicos editados pela Frente
estavam sempre presentes em pelo menos duas línguas, Português e Inglês, com algumas
exceções esporádicas para o Francês17 (Brito et al [1980-1985], s/p) .
A partir do momento em que a guerra de libertação foi encarada como uma
inevitabilidade, a FRELIMO tratou de enviar combatentes para campos de treino em
países aliados, como a Argélia, China e URSS, de forma, não só a preparar
convenientemente a guerra de guerrilha, bem como a criar quadros militares e instrutores
que, no mais breve espaço de tempo, pudessem, também eles, preparar novos recrutas em
campos edificados e geridos pela Frente em território vizinho da fronteira com
Moçambique, nomeadamente na Tanzânia (Brito et al [1980-1985], s/p) .
Assim, é no território do Tanganica, país de acolhimento da FRELIMO e do
Instituto Moçambicano, que são fundadas as primeiras bases militares do movimento de
libertação. Edificadas no exterior de Moçambique, perto da fronteira, estas bases são
controladas em exclusivo pela Frente, com o apoio do Instituto que para lá canalizava

17 Em Dar-es-Salaam foi editado, para informação interna e externa, o Boletim Informativo, que em
1964 mudaria de nome para Boletim Nacional e em 1965 para Voz da Revolução, órgão teórico da
FRELIMO, orientado para a formação ideológica dos militantes. Entre 1963 e 1975 seriam também
publicados nesta cidade o 25 de setembro, órgão de informação geral dos militantes da Frente, e o
Mozambique Revolution que dará conta dos progressos da luta e das zonas libertadas em língua inglesa.
52
uma grande parte dos recursos angariados.
Em 1963, é criada a base de preparação militar de Bagamoyo e nos anos seguintes
as bases de Kongwa, Tunduru e Nachingwea. Sendo que, tanto Tunduru, quanto
Nachingwea, ainda que de forma diferente, vieram a desempenhar um papel importante
enquanto escolas político-ideológicas da Frente.
Com o evoluir da guerra, as bases de Bagamoyo e Tunduru sofreram alterações
significativas, perdendo o seu carácter inicial de preparação militar e transformando-se
exclusivamente em campos com valência educativa e de formação para crianças, jovens
e adultos, onde o Instituto Moçambicano exercia um apoio muito mais direto,
influenciando a sua gestão quotidiana.
Por sua vez, o campo situado em Kongwa servirá como base militar para treino de
unificação ideológica e de comando dos vários guerrilheiros da FRELIMO, vindos dos
campos de treino dos mais variados países estrangeiros: Egito, Argélia, China e URSS
(Lopes Tembe in SOICO, 2012, p. 203). Já o campo de Nachingwea viria a ser destinado,
enquanto base de treino militar no exterior do território moçambicano, às mulheres
guerrilheiras, especialmente para aquelas que se preparavam para ascender na hierarquia
militar, sendo que, no geral, as raparigas eram treinadas em bases internas do território de
Moçambique, situadas nas zonas libertadas.
Posteriormente, com o avanço da guerrilha e a libertação de áreas, nomeadamente
no Niassa e em Cabo Delgado, foi-se procedendo à fundação de bases militares em solo
moçambicano e ao assentamento das populações nas suas imediações.
A partir de 1965, a FRELIMO, em consequência do avanço da guerra, vai
progressivamente controlando maiores áreas no interior do território moçambicano,
nomeadamente em Cabo Delgado e no Niassa, nas zonas Ocidental, Oriental e Austral,
estabelecendo assim as primeiras zonas libertadas, ainda muito sujeitas a constantes
avanços e recuos no teatro de guerra. Aqui, a preocupação inicial centrava-se em unir as
sinergias aldeãs e militares numa conjugação de forças conducentes ao reforço da guerra
de guerrilha.
A estas zonas libertadas, o Estado colonial respondeu com aldeamentos nativos
junto às suas bases militares, não conseguindo, no entanto, igualar o apoio popular que a

53
FRELIMO granjeava, havendo mesmo muitas tentativas de evasão desses locais. (Brito
et al [1980-1985], s/p). De facto, a Frente de Libertação incentivava a população a
participar na guerra, quer através do apoio logístico aos guerrilheiros, quer através do
suprimento de víveres, na transferência de material bélico e informação estratégica, ou
mesmo em ações de sabotagem e na defesa dos próprios locais de habitação e respetivas
bases militares. Neste sentido, as mulheres tiveram capital importância, dado que eram
elas quem coordenava a defesa paramilitar com os civis, organizando milícias populares,
o que se revelaria crucial para a evolução estratégica do conflito.
Com a organização de milícias e o apoio generalizado da população aos
guerrilheiros, a capacidade de retoma das áreas perdidas pelo exército português – que se
acantonava em pequenos postos cercados e isolados (Ndegue, 2009, pp. 158-172) –
tornava-se logicamente mais difícil, permitindo um salto qualitativo na luta, uma melhor
distribuição de forças e, sobretudo, um avanço mais rápido para novos territórios18.
Esta nova realidade permitiu à FRELIMO começar a ensaiar novas formas de
organização estatal, dado que as zonas libertadas traziam novos desafios de planeamento
do dia-a-dia das populações (Sérgio Vieira, O grupo de Kavandame não queria o II
Congresso no interior de Moçambique, in SOICO, 2012, p. 297).

18 Logicamente os avanços e manutenção de novos territórios por parte da FRELIMO não eram
lineares e progressivos. A história militar, como qualquer outra, faz-se de avanços e recuos, sendo
Moçambique também um exemplo neste ponto. Para além do Cabo Delgado e do Niassa, foram abertas as
frentes de Tete, da Zambézia e do Sul do Save. Porém, com estas ultimas três não se verificou o mesmo
sucesso que nas primeiras. Na verdade, a frente de Tete foi tendo ataques esporádicos, enquanto as frentes
das províncias da Zambézia e do Sul do Save tiveram mesmo de ser abandonadas por razões políticas, uma
vez que não poderiam ser abertas sem o apoio do Malawi e da Zâmbia. Estes dois países, com
independências recentes, não apoiaram abertamente a FRELIMO, tal como a Tanzânia havia feito, optando
por não hostilizar abertamente o Estado Português (Ndegue, 2009, p. 148, 196-201). A colaboração do
Malawi com a guerrilha é inexistente (Cara-Alegre Tembe, Malawi de Banda nunca prestou apoio à
FRELIMO, in SOICO, 2012, p.56), sendo que este na maioria das vezes mudava o seu alinhamento ao sabor
das conveniências políticas: ora alinhando com o poderio português, ora parecendo apoiar os diversos
movimentos moçambicanos pró-independência opositores à FRELIMO (Couto, 2011, p. 61). Contudo, em
1973 as frentes de Tete, Manica e Sofala já estavam abertas. (Cara-Alegre Tembe, Malawi de Banda nunca
prestou apoio à FRELIMO, in SOICO, 2012, p. 58).
54
Sujeitas ao Departamento de Operações do Interior (DOI) da FRELIMO, estas
zonas introduziram uma nova realidade, com necessidades muito próprias no contexto da
guerra de libertação. Este verdadeiro proto-Estado só foi exequível graças a uma
verdadeira ação concertada entre o Instituto Moçambicano e a Frente de Libertação.
Contudo, a pressão manifestada nestes territórios aos diversos níveis (sociais, políticos e
bélico) ajudou, a seu tempo, a agravar as tensões existentes entre alguns dos membros
mais destacados do movimento. A criação de uma Frente única de libertação não fez
desaparecer por completo as rivalidades internas, nomeadamente em relação à mudança
de poderes internos que a formação da FRELIMO exigiu, com alguns elementos a
sentirem-se defraudados por terem perdido o protagonismo que tinham tido nos
movimentos fundadores. Simultaneamente, a evolução da guerra não reunia consensos,
com alguns militantes a contestarem abertamente a direção da Frente, bem como a opção
desta em aceitar militantes brancos de ascendência portuguesa. A filosofia de luta da
FRELIMO, que se afirmava por combater o colonialismo e não o branco, não era bem
aceite por todos.
Todo este quadro de pressão interna acabou por redundar numa situação de
instabilidade grave que quase metia em causa a própria FRELIMO e que só seria sanada
com a realização do II Congresso, realizado em abril de 1969.

55
Capítulo 2 – A grande crise de 1965-69 e a II sessão do Comité
Central

2.1. A crise de 1965

O mal-estar no seio da FRELIMO nunca deixou de se fazer sentir. Ainda antes do I


Congresso manifestaram-se as primeiras dissidências, que se agravaram após a reunião
magna, com a distribuição dos lugares de chefia19, e devido à falta de consenso na opção
estratégia pela luta armada como meio político de combate20 (Couto, 2011, pp 161-163).
Para além do agravamento dos conflitos internos, também as zonas libertadas
demandavam novas exigências: desde logo ao nível da sua governação, da alimentação,
saúde e educação das populações, bem como colocava em causa o papel tradicional da
mulher nesta nova sociedade (Brito et al [1980-1985], s/p).
Desde o I Congresso ficou claro que, para a FRELIMO, era essencial que a luta de
libertação se estendesse também à mulher moçambicana. Esta era uma luta de todos e
onde todos eram necessários, pelo que a defesa da emancipação feminina foi
simultaneamente um ponto de honra para o movimento, e uma questão fraturante entre os
seus sectores mais conservadores. Contudo, as mulheres tornaram-se demasiado
importantes para continuarem confinadas aos seus papéis tradicionais, passando a exercer
tarefas variadas e vitais para o esforço de guerra. Enquadradas no Destacamento Feminino

19 Nascem assim novas organizações de oposição ao Estado colonial (UNAR/UNAMO, PAPOMO,


FUMO, MOLIMO e COREMO), com visões diferentes sob a forma de luta pela independência. Contudo,
não só não conseguiram a projeção internacional da FRELIMO, como não obtiveram resultados práticos na
sua luta (também porque nunca se conseguiram unir pelo seu desígnio) (Couto, 2011, pp. 162, 163, 188-
190).
20 Mesmo a própria estratégia usada na luta armada entre 1964 e 1969 vai ser várias vezes motivo
de discórdia entre as próprias chefias da FRELIMO. Exemplo desse facto será a opção de guerra relâmpago
defendida por Uria Simango (Couto, 2011, p. 164), e contrariada por chefes como Samora Machel e
Eduardo Mondlane, defensores da guerra prolongada, engajadora do apoio popular e preparadora de um
novo Estado (Brito et al [1980-1985], s/p).
56
(DF), exerceram funções ao nível do comissariado político21, mas também na guerrilha,
na frente de combate em conjunto com os homens, ou protegendo as populações, bem
como executando tarefas que à priori estariam mais em conformidade com o seu género,
como a enfermagem, o ensino, a agricultura, a puericultura, ou o transporte de armamento
(Pachinuapa, et al, 2017, pp. 30, 74, 75).
Os conflitos entre os “chairmen”22 e a população agudizam-se com a acusação de
que estes dirigentes usavam o respetivo poder e organização para substituir o Estado
colonial por outro igualmente explorador da população que representavam (Brito et al
[1980-1985], s/p).
Na verdade, esta procura por um novo modelo de Estado dividia os próprios
dirigentes da Frente, dividindo-os entre os que queriam simplesmente a substituição dos
elementos do Estado colonial, mantendo o modelo, e os que queriam um novo arquétipo
de Estado, com um carácter igualitário. Entre os dirigentes que defendiam a manutenção
das estruturas do Estado colonial na mão de moçambicanos negros encontravam-se
Lázaro N'kavandame e Uria Simango, opondo-se a Mondlane e Machel que defendiam
um modelo de Estado diferente, assente numa base igualitária, onde todos os
moçambicanos pudessem coexistir e se desenvolver independentemente da sua cor e etnia
(Brito et al [1980-1985], s/p).
Também a questão das mulheres se ia tornando premente com o desenvolver da
guerrilha, já que elas se iam progressivamente engajando na luta, quer com uma
participação cada vez mais ativa nas questões políticas e sociais inerentes ao conflito,
quer no seio das milícias das zonas libertadas e mesmo no próprio campo de batalha, onde
já se encontravam, pelo menos desde 1965. Esta nova realidade das mulheres, fora dos

21 As mulheres enquanto comissárias políticas eram essenciais para reduzir o nível de deserções da
guerrilha, já que os homens sentiam vergonha por uma mulher lutar no seu lugar. A FRELIMO contava
com essa pequena estratégia de “recrutamento”.
22 Autoridades máximas na organização local das populações a que pertenciam, tinham como papel
principal a ligação entre a população e o DOI, devendo fazer cumprir as determinações deste departamento.
Substituíram a figura do régulo, conotado com o poder tradicional e apoiante do Estado colonial. Por razões
de compreensível influência anglófona, viram os seus títulos expressos na língua inglesa.
57
conceitos tradicionais, criou antagonismos dentro da Frente, com uma fação a insurgir-se
contra esta dinâmica que, no entanto, já se tinha tornado inevitável e sem retorno (Brito
et al [1980-1985], s/p).
Todas estas questões, que de uma forma ou de outra, não permitiam o normal
desenvolvimento da luta de libertação, culminaram com a convocação da II Sessão do
Comité Central, em outubro de 1966.

2.2. A II sessão do Comité Central (1966)

Em Outubro de 1966, em clima de contestação interna, e ainda de luto pela morte


recente dos altos dirigentes da FRELIMO Jaime Rivaz Sigaúke 23 e Filipe Samuel
Magaia24, realiza-se a segunda sessão do Comité Central em Dar-es-Salaam.
Nesta sessão, porém, longe de se resolverem a maioria dos problemas que se
arrastariam até 1969, ano da morte de Eduardo Mondlane, tomaram-se decisões
importantes para a reestruturação da organização e dinâmica da Frente. Ao nível militar
foi levada a cabo uma reorganização do Departamento de Defesa dando origem a um
comando político-militar centralizado, sob a chefia do presidente do movimento,
elevando-o a organismo vocacionado para a condução da luta por excelência, aumentando
a sua complexidade e eficácia militares e transformando o exército de guerrilheiros numa
estrutura de exército regular, correspondente com a manutenção e alargamento dos
cenários de guerra (Brito et al [1980-1985], s/p). Ao nível económico, foram criadas, sob
responsabilidade do DOI, as secções da agricultura, do comércio e da indústria, sempre
procurando responder às necessidades de autossuficiência das zonas libertadas,
preparando já o terreno para uma futura opção cooperativista.

23 Jaime Rivaz Sigaúke, membro do Comité Central, secretário do DOI e representante da


FRELIMO na Zâmbia, foi morto pela PIDE, em 1966 (Ndegue, 2009, p.173).
24 Filipe Samuel Magaia, secretário do Comité Central para o Departamento de Defesa e Segurança
(DDS) foi assassinado, em 1966, por um agente infiltrado na FRELIMO (Ndegue, 2009, p.173).
58
Na grande luta contra o tribalismo e o regionalismo 25 , o Comité Central da
FRELIMO decidiu continuar a confiar nos quadros do DOI, a fim de encontrar soluções
que superassem as tensões internas 26 , também muito ligadas a este tema, que se
agudizaram até 1969 (Brito et al [1980-1985], s/p). Esta preocupação, com o
fortalecimento da noção de unidade nacional em todos os combatentes, advinha da
necessidade da FRELIMO em familiarizar os militantes em quadros normativos de
valores que galvanizassem o orgulho coletivo e a motivação militar. Portugal utilizava
nas colónias a estratégia de «dividir para reinar», usando as diferenças tribais e étnicas
como uma forma de manter os moçambicanos separados entre si, esforçando-se por
impossibilitar ao máximo uma noção de unidade nacional local que metesse em risco o
sistema colonial.
Visando a redefinição social, política e cultural da Frente, nesta sessão, o Comité
Central deixou decididas e concertadas com o Instituto Moçambicano estratégias e
políticas que versavam sobre o papel social da mulher e sobre a educação. (Brito et al
[1980-1985], s/p).
Para a educação, foram traçados novos planos, investindo ainda mais no Instituto
Moçambicano, fazendo dele um centro de excelência para a formação de quadros
políticos e militares, criando-se simultaneamente escolas de formação política,
alfabetização de adultos e escolas primárias no exterior e especialmente no interior de
Moçambique (Brito et al [1980-1985], s/p). No que concerne à mulher, o Comité Central

25 Os conceitos de tribalismo e regionalismo estão ligados, para a FRELIMO, aos diversos grupos
étnicos que compõem o território moçambicano. A Frente tinha como ideal a ideia de Moçambique
enquanto país unitário, um só povo e uma só nação, do Rovuma ao Maputo. Para este efeito estimulava ao
máximo a união de grupos étnicos diferentes, sob os mesmos valores da luta e da liberdade, contrariando a
prática da administração colonial, que impedia os moçambicanos de se movimentarem no seu território,
promovendo o desconhecimento entre populações e pretendendo manter, assim, sob controlo quaisquer
tentativas de união e independência.
26 Uma das questões levantadas pelos guerrilheiros, e muito fomentadas pelos opositores à liderança
da Frente, prendia-se com o facto da maioria dos militantes dirigentes serem oriundos do Sul de
Moçambique, negligenciando a realidade de estes terem efetivamente um maior nível de instrução e,
consequentemente, uma consciência política mais elevada.
59
não podia ter sido mais perentório. Ao arrepio de toda e qualquer sensibilidade tradicional,
a Frente assumiu a participação das mulheres na luta de libertação, demonstrando a sua
igualdade de direitos e deveres no que dizia respeito a todos os processos de discussão e
ação políticos e bélicos, dado que a sua opressão era considerada dupla, quer em relação
à sociedade patriarcal a que estavam sujeitas, quer em relação ao sistema colonial (Brito
et al [1980-1985], s/p). Nascia assim oficialmente o Destacamento Feminino, que
agrupava todas as mulheres já engajadas na luta, tanto ao nível dos combates, quanto ao
nível das milícias populares, procurando simultaneamente convocar mais mulheres para
este dever patriótico, preparando-as para as necessidades militares e paramilitares da
guerra de guerrilha (Brito et al [1980-1985], s/p).

2.3. A crise de 1968-69

A II sessão do Comité Central acabou por se tornar num marco incontornável na


história da FRELIMO, uma vez que redefiniu toda a estratégia para a luta de libertação.
Contudo, a questão da liderança e da sua estratégia política e militar não foi abordada,
deixando margem de manobra para a continuação de um mal-estar latente no seio da
Frente, originando assim uma clivagem entre fações. A evolução do conflito ajudou a
trazer à luz do dia as contradições ideológicas existentes na direção da FRELIMO, o que
terá contribuído para um grave retrocesso na esfera militar ao longo de todo o ano de
1968, e para o extremar de posições no que respeitava às duas linhas diretivas antagónicas
(Brito et al [1980-1985], s/p).
Como já foi anteriormente referido, opuseram-se desde sempre duas linhas
orientadoras da Frente: uma que pontuava pelo corte radical com o modelo do Estado
colonial, e outra que pretendia apenas substituir os agentes estatais coloniais por
moçambicanos negros, mantendo todo o modelo organizativo. Também as questões
regionalistas e étnicas se mantinham, com os combatentes das várias etnias a revelarem
desconforto no convívio forçado entre si, especialmente ao nível das bases militares.
Na mesma altura, foram envidados esforços, por parte de uma das fações contrárias

60
à liderança da Frente no sentido de expulsar todos os militantes brancos do movimento
de libertação, o que chegou mesmo a obrigar à expulsão do país de alguns destes
elementos pelo governo tanzaniano, apesar de, segundo a consciência geral, esta ser uma
manobra óbvia para tentar desacreditar a direção da FRELIMO, cujo presidente tinha por
cônjuge uma mulher branca de nacionalidade americana. N’Kavandame terá sido um dos
líderes desta fação, já que, após o assassinato de Paulo Samuel Kakhomba (chefe adjunto
das operações militares), falta a uma reunião do Comité Executivo, para a qual tinha sido
intimado a comparecer, acabando por ser imediatamente expulso do Comité Central da
Frente. Optou então por se render à PIDE, com quem já vinha efetuando negociações,
aliando-se às forças coloniais, confirmando assim as suspeitas que sobre ele recaiam
(Couto, 2011, p. 124,125).
Simultaneamente, um grupo de jovens denominado FRELIMO Youth League27, ao
se alinhar pela fação rebelde, arrastou consigo inúmeros estudantes28 que se recusavam a
estar em permanente disposição para qualquer ordem da Frente que os inserisse na
guerrilha, por considerarem ter apenas como obrigação a sua preparação escolar enquanto
futuros quadros do Moçambique independente (Brito et al [1980-1985], s/p).
Será neste clima de contestação (Couto, 2011, p.191) que se prepara o II Congresso
da FRELIMO, desta feita em pleno território moçambicano, na zona libertada do Niassa,
à revelia do exército colonial que, tendo atempadamente em mãos essa informação,
intensifica os ataques às bases militares da Frente, e com a oposição declarada de
N’Kavandame e dos «chairmen» de Cabo Delgado29.

27 Corpo juvenil da FRELIMO que foi dissolvido após o II Congresso como resposta ao seu
alinhamento com os militantes N’Kavandame e Gwengere, opositores confessos de toda a direção da
FRELIMO e particularmente do presidente Mondlane; promotores dos distúrbios na sede da Frente e do
Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, causando a morte a Mateus Sansão Mutemba, militante
destacado da Frente (Brito et al [1980-1985], s/p).
28 Vide, 3.2 A crise de 1968 – 69 dentro do Instituto Moçambicano, p. 106.
29 Este grupo de oposição à realização do congresso e à própria direção da FRELIMO acaba por
boicotar a reunião, cuja delegação regional acabou sendo representada por elementos eleitos pela população,
conforme proposta de Mondlane.
61
2.4. O II Congresso e a mudança definitiva de rumo ideológico

Seria com um clima turvado pela agitação interna que, entre os dias 20 e 25 de julho
de 1968, em Matchedje, na zona libertada do Niassa, se realizaria o II Congresso da
FRELIMO: com cerca de 170 delegados (Brito et al [1980-1985], s/p), na presença de
observadores internacionais, enfrentado o boicote de alguns elementos, entre eles os
«chairmen» locais (pertencentes ao grupo de N'kanvadame, não só boicotaram o
congresso, como se recusaram a aceitar as suas resoluções acabando por desertar da
Frente, como o seu chefe também viria posteriormente a fazer), e com a participação de
representações civis e militares de todo o país (Feliciano Gundana, Houve pessoas que
não acataram as decisões do II Congresso, in SOICO, 2012, p. 88).

«Os delegados vieram de todas as partes de Moçambique […] e representavam


todas as camadas do povo moçambicano, operários, camponeses, intelectuais e chefes
tradicionais. Entre os observadores estavam 2 representantes da Organização de
solidariedade Afro-Asiática, 1 representante do Movimento Popular de Libertação de
Angola, 1 representante do ANC da África do Sul, e um representante da ZAPU da
Rodésia. No Congresso esteve também um escritor e jornalista inglês, Basil Davidson.»
(Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de
Moçambique, Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões
Políticas a Nível Superior, 2 de outubro de 1969, p. 5).

Quer para a Frente, quer para a inteligência militar portuguesa à época, a maior
importância do II Congresso da FRELIMO residia no facto de este ter na sua composição
delegados vindos diretamente das suas regiões de origem, onde se encontravam
ativamente engajados na revolução, ao contrário do I Congresso, em que os participantes
eram maioritariamente emigrantes moçambicanos. Esta alteração de representatividade
demonstrava o real avanço da luta e as conquistas do movimento de independência. Assim,
este foi considerado o primeiro Congresso realmente representativo do povo
moçambicano, com uma representatividade alargada às massas, aos elementos da

62
Juventude, às Organizações de Mulheres e aos Estudantes30.
Esta reunião magna teria como consequência a alteração dos quadros eleitos no
congresso anterior, bem como a redefinição estratégica de todo o objeto da luta.
Com a ascensão ao Comité Central dos militares, a Frente terminou com a divisão
entre militares e políticos, reforçando o Departamento de Defesa enquanto estrutura de
uma organização em guerra (Couto, 2011, p. 191). A criação do Comité Político-Militar,
composto pelo Presidente, Vice-presidente, Secretários dos Departamentos de Defesa,
Organização, Segurança, pelo Departamento Político, e pelos Secretários Provinciais,
pretendia resolver todas as questões políticas e militares de cariz urgente que se
apresentassem entre as reuniões ordinárias do Comité Central31. Encontrava-se assim uma
solução orgânica intermédia para responder aos múltiplos desafios com que o movimento
de libertação se deparava diariamente.
Apesar de não resolver as questões de ambição política interna (o que só aconteceria
com a reação à morte de Eduardo Mondlane e consequente reestruturação da Frente), o
congresso não deixou de constituir um grande sucesso, desde logo por se realizar em solo
moçambicano, mesmo com o acentuar da ofensiva colonial que só conseguiu bombardear
o local exato já depois do término dos trabalhos32 (Mateus Kida, Lutámos porque não
havia alternativas in Pachinuapa, 2011, p. 122).
De todas as questões discutidas, algumas houve que se destacaram pela importância
que viriam a tomar para o prosseguimento da luta, e para a própria opção ideológica que
já se vinha a desenhar através da defesa da «instauração de uma ordem social popular em

30 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 5.
31 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 6.
32 Os diversos autores estudados referem que o exército colonial sabia antecipadamente da
preparação do II Congresso da FRELIMO no Niassa, pelo que tentou por todos os meios impedi-lo.
Contudo, o local exato do congresso só foi bombardeado depois de um reconhecimento aéreo, ambos
efetuados já após o término dos trabalhos e o abandono do local pelas delegações internacionais.
63
Moçambique» 33 , reveladora do modelo de Estado que o país viria a adotar nos seus
primeiros anos de independência. Porém, só mais tarde, com a chegada ao poder de
Samora Machel, se iria impor clara e categoricamente a definição do marxismo como
única via de luta e de governação (Darch, 1981, pp. 105-120).
O II Congresso foi perentório ao afirmar que a guerra não podia continuar sem um
suporte assente em princípios de orientação política, arrastando este conceito à produção
nas zonas libertadas.

«O Congresso tomou outras decisões importantes. […] A luta armada é o único


meio de libertar Moçambique, e que, considerando as condições em que a nossa luta se
trava, ela será longa. O Congresso decidiu intensificar a mobilização do povo; recrutar
elementos de outras Províncias onde a luta armada ainda não chegou; aumentar as forças
de milícias; ampliar o Destacamento Feminino; e aplicar a política de clemência aos
soldados inimigos capturados.» (Arquivo Privado, família Mateus, Documentação
Interna da Região Militar de Moçambique, Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso
sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de outubro de 1969, p. 6).

Confirmava-se, assim, a tese da «guerra popular revolucionária», realçando-se o


papel das milícias populares como apoio privilegiado à guerrilha, saindo evidenciado o
papel das mulheres do Destacamento Feminino como combatentes efetivas, quer do
exército, quer das milícias, e o seu contributo para a organização e mobilização das
populações no esforço de guerra e no recrutamento de jovens de ambos os sexos.

«Toda a população, velhos e jovens, mulheres e homens, que não fazem parte das
guerrilhas, devem fazer parte das milícias.
As milícias populares devem satisfazer ao mesmo tempo as necessidades de
produção, vigilância e defesa. […]. As milícias populares participam em combates de

33 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 15.
64
grande envergadura, quando para isso forem chamadas.» (Arquivo Privado, família
Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique, Quartel General 2ª
Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 9)

Nas zonas libertadas, reafirmou-se a necessidade de consolidação do seu poder


administrativo e político, com o objetivo de repovoar e aumentar a produção do território
sob domínio da FRELIMO. Às populações, o Congresso garantia um esforço educativo e
cultural, através da criação de mais escolas e do treino de um maior número de professores,
bem como o reforço da assistência social e médica.34
Os desertores foram considerados inimigos, apesar de se compreender este ato
como resultado das dificuldades inerentes à guerra de guerrilha. No mesmo sentido, a
palavra de ordem foi a de respeitar e salvaguardar a integridade física de todo e qualquer
prisioneiro de guerra, bem como de todos os civis (Sérgio Vieira, O grupo de Kavandame
não queria o II Congresso no interior de Moçambique, in SOICO, 2012, p. 298). Esta
decisão em relação aos prisioneiros de guerra enviava, para o exterior do país, uma clara
mensagem de conformidade com a Convenção de Genebra e de proclamação de «guerra
justa», tão necessária para a estratégia desenhada pela FRELIMO ao nível das relações
internacionais, no sentido de influenciar tanto os países simpatizantes, caso das social-
democracias do norte da Europa, quanto os países socialistas da Europa e da Ásia,
cooperantes explícitos e definitivos no esforço de guerra. Simultaneamente, esperavam
com este gesto de clemência demonstrar que a sua luta tinha um cunho «essencialmente
político», contra o colonialismo, e nunca contra o povo português, de forma a quebrarem
«o espírito de combatividade do exército inimigo», encorajando assim à deserção dos
soldados portugueses35.

34 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 6.
35 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
65
Voltava-se, numa linguagem de pendor marcadamente socialista, a reiterar a luta
enquanto combate e direito de todos os povos do mundo na senda de uma sociedade mais
justa, livre da exploração do Homem pelo Homem, definindo-se como inimigo o
colonialismo e o sistema imperialista, e nunca a população branca, considerada ela
própria vítima do sistema. O povo português foi saudado pela sua luta contra «o fascismo
Salazarista»36.
Traçou-se ainda neste congresso uma estratégia unificadora com orientações
concretas para a produção e comercialização de bens e produtos, bem como para a
educação, saúde e cultura nas zonas libertadas, na prossecução dos objetivos para uma
revolução democrática nacional que encorajava ao regresso dos emigrantes e refugiados37.
Foi dada continuidade aos programas de alfabetização de adultos e ao aumento e
desenvolvimento das escolas primárias, com particular incidência no território
moçambicano sob controlo da Frente, sem que o ensino ministrado na Tanzânia tenha
sido descurado. No que respeita a saúde, foram tomadas providências para que se
abrissem mais postos médicos nas zonas que iam sendo libertadas, com especial foco na
saúde preventiva. Este objetivo foi diretamente assumido pelo Instituto Moçambicano
que, longe de ser apenas uma escola, funcionou de uma forma consistente e eficaz durante
todo o período que mediou o início da guerra e a transição de poderes para o Moçambique
independente, como plataforma de apoio logístico da Frente e enquanto entidade
angariadora de ajuda humanitária para as zonas libertadas, junto dos diversos países e
organizações doadoras internacionais.
O aumento da segurança, da qualidade de vida e o repovoamento das zonas
libertadas, demonstrava não só a capacidade da FRELIMO em criar e gerir um verdadeiro

outubro de 1969, p. 10.


36 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, pp. 6, 7.
37 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, pp. 11-14.
66
proto-Estado, só possível através da ação incontestável do Instituto Moçambicano, bem
como reafirmava a sua cada vez maior autonomia em relação à Tanzânia.
Contudo, nas resoluções do II Congresso não se encontram quaisquer referências
ao Instituto Moçambicano, o que talvez ajude a explicar a razão pela qual a esmagadora
maioria dos autores considera que o verdadeiro «Estado Social», construído pela
FRELIMO durante os anos de resistência, se deveu apenas, e tão só, ao desempenho da
Frente, sendo que raramente evocam o trabalho do Instituto, limitando-o à sua valência
de escola secundária. Apesar dessa ausência, o facto é que, a extensa atividade do Instituto
Moçambicano é notada e saudada na pessoa da sua Presidente, Janet Mondlane, durante
a reunião do Comité Central, realizada a 24 de agosto de 1968, com o objetivo de
operacionalizar e colocar em prática as resoluções do Congresso.
O Comité Central começa por distinguir a obra do Instituto Moçambicano nas suas
diversas valências, reconhecendo que o trabalho na escola de Dar-es-Salaam ofuscava a
sua identidade enquanto «centro de angariação de fundos, cujo propósito [era] financiar
e assistir, através dos seus serviços técnicos, os programas do DEC, Saúde, Assuntos
Sociais e LIFEMO 38 [Liga Feminina de Moçambique], em conformidade com as
informações fornecidas pelos departamentos de Educação e Cultura, Saúde, Assuntos
Sociais e LIFEMO» da FRELIMO39. Reconhecendo que a confusão poderia advir «do
facto de se ter usado durante longo tempo [o] mesmo nome “Instituto Moçambicano”
para ambas as instituições e elas terem funcionado nas mesmas premissas»40.
A reunião do Comité Central demonstrava, assim, que o Instituto Moçambicano foi,
na verdade, alvo de reconhecimento no II Congresso. Tendo visto confirmadas as suas
competências de formação e de organização humanitária por excelência, enquanto rede
de contacto e captador de fundos perante as organizações e países doadores para a causa
humanitária. O Instituto começava agora a dar os «primeiros passos» para, no futuro, se

38 Sobre a LIFEMO vide: 3.1 Janet, a mentora e líder, p. 87.


39 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p.36.
40 Idem.
67
dedicar em exclusivo à sua vertente humanitária e assistencial, apoiando e ajudando a
gerir estratégica e logisticamente todo o trabalho social nas zonas libertadas da FRELIMO.
Só no ano seguinte, entre 11 e 21 de abril de 1969, em reunião do Comité Central,
se viria a discutir os confrontos internos de 1968, já que a preocupação principal do
movimento de libertação se prendia com a apresentação uma aparente união da Frente,
quer para os próprios combatentes, quer para o exterior41.
A análise da crise dentro da FRELIMO recuou a 1966 e estendeu-se até à então
recente morte do Presidente Mondlane. Em virtude de toda esta conjuntura, foram
tomadas medidas que alteravam profundamente a estrutura do movimento.
No que aos estudantes dizia respeito, foram adotadas uma série de medidas
reveladoras de uma via ideológica mais forte e consistente. Como estratégia central, todas
as escolas continuaram a dar instrução política aos seus alunos, independentemente da
sua função dentro da guerrilha, nas zonas libertadas, ou mesmo no local onde estivessem
a estudar. Qualquer estudante, no interior ou exterior de Moçambique, deveria estar apto
a interromper os seus estudos sempre que o esforço da luta e a guerrilha o exigissem,
pondo, assim, um ponto final na principal razão de litígio entre os estudantes externos, o
Instituto Moçambicano e, consequentemente, a FRELIMO.
A permanente disponibilidade dos estudantes ficou desde logo assegurada através
das diversas atividades nas zonas libertadas, nomeadamente durante a época das férias
escolares. Simultaneamente, o Instituto Moçambicano, libertava-se da sua função de
escola, que viria a ser oficialmente encerrada em 1970, no seguimento dos distúrbios
causados pela Youth League, para se dedicar em definitivo à recolha e gestão de doações.

41 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p.45.

68
2.5. O culminar da crise em 1969: a morte do Presidente Mondlane

A 3 de Fevereiro de 1969, em Dar-es-Salaam, Eduardo Mondlane é vitimado por


um livro bomba armadilhado, preparado e enviado pela PIDE, com apoio interno de
elementos da Frente (Mateus, 2004, pp.171-173), revelando-se assim o epílogo da
«grande crise» que abalou a estrutura da FRELIMO desde os primeiros anos da sua
formação.
Após o choque de mais este assassinato, o Comité Central foi obrigado a reunir-se,
entre os dias 11 e 21 de abril de 1969, de forma a analisar os últimos acontecimentos e a
escolher a nova liderança da Frente, bem como, as linhas diretrizes do novo ciclo político.
Ao contrário do esperado, Uria Simango não foi imediatamente indigitado como
presidente interino. Ao invés, o Comité Central optou por formar um «triunvirato»
presidencial constituído por Samora Machel, Marcelino dos Santos e Uria Simango.
Considerando o litígio interno que tinha culminado no assassinato do Presidente da
Frente, Eduardo Mondlane, o Comité Central decidiu que, «tendo em conta as
necessidade de estabelecer uma direção coletiva capaz de assumir uma eficaz orientação
da […] organização e sobretudo de assegurar a predominância da linha política
corretamente definida pelo II Congresso da FRELIMO», passava a Presidência a ser
assumida por «um órgão colegial composto de três membros eleitos pelo Comité Central
e designado Conselho da Presidência.»42
Simango reagiu mal a esta opção política, entrando em rutura com a FRELIMO43.
Demonstra-o ao dar uma conferência de imprensa em Dar-es-Salaam, subordinada ao
tema A situação sombria da FRELIMO, onde repudiava a decisão do Comité Central

42 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p.54.
43 Segundo Joaquim Chissano (Não era só Mondlane que queriam matar, in Pachinuapa, 2011, pp.
63, 64), Simango ter-se-á confessado magoado numa reunião do Comité Central, já depois da morte do
Presidente, com a forma como Mondlane o teria tratado enquanto dirigente, admitindo a sua “ambição
natural” ao lugar de presidente. Revelando ainda que se teria sentido ameaçado nas vésperas do II Congresso.
Após esta reunião, ter-se-á recusado a estar presente em qualquer outra reunião do triunvirato.
69
(Marcelino dos Santos, A partida de um companheiro de Armas, in Pachinuapa, 2011,
p.47). Em resposta, este órgão, por sua vez, rejeitou o teor da conferência, acusando o
autor de falta de lealdade, por vir para a «praça pública» com um assunto que não teria
remetido à discussão interna no seio da organização (Couto, 2011, p.193), o que resultou
primeiramente numa suspensão da Frente e, posteriormente, em 1970, no efetivar da sua
expulsão44 (Brito et al [1980-1985], s/p).
Após a expulsão de Simango, a ordem foi restabelecida, com Samora Machel e
Marcelino dos Santos a serem indigitados para os cargos de Presidente e Vice-Presidente
da FRELIMO, respetivamente. Machel, na qualidade de membro do Conselho da
Presidência, que acumulava com o de Secretário do Departamento de Defesa, acabou por
dar grandes provas de liderança ao imprimir uma nova dinâmica na luta, aos mais variados
níveis, desde o bélico, ao político.
A FRELIMO foi conquistando progressivamente mais terreno no cenário de guerra
e, simultaneamente, foi imprimindo uma maior relação com a população das zonas
libertadas, forjando a guerra popular e cimentando a nova opção ideológica da Frente,
alinhando-se cada vez mais com o bloco socialista45.Os sentimentos de maior unidade e
empenhamento na luta de libertação que, a pouco e pouco, ajudaram a superar as maiores
crises, foram, não só, fruto da liderança de Machel, mas sobretudo, da implementação e
consolidação das teses saídas ainda durante o II Congresso da FRELIMO, de que o
Instituto Moçambicano é simultaneamente testemunha e coadjuvante.

44 Após a expulsão da FRELIMO, Simango juntou-se à COREMO – outra das organizações


independentistas de Moçambique – dirigida por Adelino Gwambe e Paulo Gumane, ambos dissidentes da
FRELIMO (Couto, 2011, p.181).
45 Consta que o alinhamento com os países do bloco de Leste já havia sido preconizado por
Mondlane. Na verdade, este já havia visitado a União Soviética e a República Popular da China logo em
1963 (Brito et al [1980-1985], s/p), voltando posteriormente a visitar a China em 1967 (Couto, 2011, p.
177). Este tema do alinhamento político também terá sido abordado e explicado numa entrevista dada por
Mondlane a Aquino de Bragança, em 1968, O marxismo como uma perspetiva da FRELIMO (Marcelino
Dos Santos, A partida de um companheiro de Armas, in Pachinuapa, 2011, p.47).
70
Parte II

O Instituto Moçambicano

71
Capítulo 3 – A origem do Instituto Moçambicano

O Instituto Moçambicano, fundado sob a liderança de Janet Mondlane, foi


formalmente constituído em 1963, data em que Eduardo Mondlane trocou a vida nos
Estados Unidos da América pela Tanzânia, para onde foi viver acompanhado pela família,
a fim de lutar pela independência de Moçambique (Brito et al [1980-1985], s/p).
Esta americana, com formação superior em Sociologia, adotou o ideal
revolucionário do marido e, desde logo, mostrou interesse em colaborar com a recém-
fundada FRELIMO na prossecução do seu objetivo anticolonial e independentista. A
consciência política e social que resultou no seu apoio à independência de Moçambique,
surgiu no seguimento de uma visita de reconhecimento ao território efetuada na
companhia dos filhos e aproveitando a ausência de Eduardo Mondlane, que, entre
novembro de 1960 e fevereiro de 1961, se encontrava nos Camarões, enquanto
funcionário da ONU, a organizar um plebiscito no território a propósito da independência
da Nigéria. (Brito et al [1980-1985], s/p).
O seu objetivo era, não só, conhecer melhor o país do marido e, portanto, as «raízes»
africanas da família, mas também perceber até que ponto era possível ajudar a população
e colaborar com a resistência anticolonial.
Segundo Joaquim Chissano:

«Não foi por acaso que ele [Eduardo Mondlane] e sua esposa [Janet Rae Mondlane]
fizeram contactos nos EUA para angariar fundos para a construção da primeira escola
secundária da FRELIMO». (Não era só Mondlane que queriam matar in Pachinuapa,
2011, p.57).

Com a visita ao território moçambicano e com um contacto mais próximo da


realidade do país, o casal pôde confirmar in loco que as condições de vida da população
negra colonizada continuavam a se deteriorar, pelo que sentiram necessidade de encontrar
uma solução que não passasse apenas pela via política e militar, mas que desse uma

72
resposta mais ampla e abrangente às múltiplas solicitações de cariz humanitário que o
cenário exigia, nomeadamente junto da grande massa de refugiados que se dirigiam para
o país vizinho, a Tanzânia.
Assim, foi esta americana, na sua qualidade de Diretora e responsável internacional
do Instituto Moçambicano a angariar, posteriormente, os fundos para todas as escolas,
hospital e demais obras sociais da FRELIMO, durante a luta da libertação de
Moçambique.
Muitos moçambicanos continuavam a refugiar-se na Tanzânia, quer vindos
essencialmente do norte de Moçambique, quer vindos de países limítrofes para onde
tinham ido trabalhar. Uma grande parte acorria a colaborar com a resistência, mas muitos
destes exilados não demonstravam quaisquer preocupações políticas e ideológicas.
Contudo, os desafios e necessidades enfrentados por esta vaga de migrantes iam
aumentando exponencialmente, bem como a lotação nos campos de refugiados existentes
no sul do país de acolhimento.
Só em 1962, o Ministério do Interior do governo do Tanganica estimava em
cinquenta mil o número de refugiados moçambicanos no seu território (Manghezi, 2001,
p. 215). Simultaneamente, urgia dar uma resposta imediata aos jovens que procuravam
continuar a sua educação formal, já que o fraco nível educativo da esmagadora maioria
dos moçambicanos «não podia ser negligenciado por quem pensava numa luta por um
país independente»46.
O casal Mondlane estipulou como um dos seus objetivos responder às necessidades
básicas da população. Percebendo que era necessário começar por organizar e estruturar
um projeto novo, de cariz diferenciador, «reconheceram a questão política ao separar a
parte social da parte militar, para conseguir ajudas externas, mas tudo começou a partir
do problema interno. Começaram algo sem saber para onde ia. O problema cresceu e os
refugiados continuaram a chegar»47.
Como faz notar, atualmente, Hélder Martins, o Instituto Moçambicano foi desde
logo enquadrado legalmente como fundação, por imposição das fundações doadoras,

46 Entrevista realizada a Polly Gaster a 23 de setembro de 2015, Maputo.


47 Idem
73
especialmente da Fundação Ford, «com um “board of governors” [conselho de
administração], ao estilo das legislações americana e britânica que os tanganiquenses
tinham herdado» (entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo) e onde se
encontravam representantes do país de acolhimento. Este facto, não só garantia uma
independência, ainda que meramente formal, do Instituto em relação à Frente, bem como
permitiu abrir todo um leque de competências que iam para além do mero acolhimento,
ou ensino de jovens estudantes. Assim, o Instituto conseguiu captar fundos internacionais
destinados a questões humanitárias que a FRELIMO, pelo seu carácter de movimento
armado nunca poderia ter auferido, já que a esmagadora maioria dos países e
organizações doadoras não podiam, nem queriam, comprometer-se com o conflito militar
que se desenrolava em território moçambicano, mas mostravam-se aptas a enviar a sua
ajuda para mitigar o sofrimento das respetivas vítimas, fundamentando assim a sua
intervenção na luta de libertação de Moçambique pela urgência do socorro às vítimas da
guerra, através de uma instituição que se apresentava formalmente como independente, e
nunca pelo apoio político declarado ao movimento de libertação.
Apesar de o Instituto ter centrado os seus principais objetivos na área da educação,
Hélder Martins refere que Mondlane se apercebeu imediatamente da pertinência de
incluir nos seus estatutos a mobilização alargada de recursos para refugiados, tendo desde
logo ficado inscrito que o Instituto Moçambicano também podia acumular a tarefa de
recolha de fundos para as vítimas do colonialismo, fundamentalmente refugiados na
Tanzânia. Abria-se assim espaço de manobra para outras atividades que apoiassem este
mesmo objetivo, nomeadamente um programa de saúde, sendo que toda a assistência
médica prefigurava a formação com recurso à prática clínica48.
Fundado pela FRELIMO em Dar-es-Salaam, o Instituto Moçambicano arrancou
inicialmente com o trabalho de três funcionários – Janet Mondlane, Betty King, que deu
lugar, em 1967, a Polly Gaster e uma terceira pessoa não fixa, que Gaster identifica como
sendo um tanzaniano chamado Viriani, ressalvando que às vezes existiam outros
funcionários, essencialmente jovens da escola secundária49.

48 Entrevista realizada a Hélder Martins a 14 de outubro de 2015, Maputo.


49 Nomeadamente Josina Machel e Marcelina Chissano (Entrevista realizada a Polly Gaster, a 23 de
74
A instituição pautou-se desde o início por uma apertada cooperação com os vários
departamentos da Frente de Libertação: Educação e Cultura; Serviços de Saúde;
Assistência Social; e Liga das Mulheres Moçambicanas (LIFEMO)50. De facto, em 1968,
o Comité Central da FRELIMO estipulava que a comissão do Instituto fosse completado
pelos seguintes elementos da Frente: Presidente e Vice-Presidente, Secretários do
Departamento de Educação e Cultura, e do Departamento de Assuntos Sociais,
responsável da Saúde, Secretário do Departamento de Tesouraria e Finanças, Inspetor das
escolas e Diretor do Instituto Moçambicano51.
Apesar de quase todas as personagens entrevistadas para este trabalho 52 fazerem
questão de assumir o Instituto Moçambicano como mais um órgão da FRELIMO, também
são unânimes ao afirmar a sua independência face à Frente e a sua clareza nas prestações
constantes de contas e objetivos aos doadores.

«Como disse, o Instituto Moçambicano fazia parte do programa de educação da


FRELIMO, era uma instituição que materializava os seus objetivos e por isso também
tinha a função de angariar os meios materiais e financeiros para as várias escolas que a
FRELIMO tinha, não só no interior de Moçambique, como também na parte de
cooperação que se situava na República da Tanzânia, espalhadas por vários campos de
acomodação. Então, prestava esta assistência e ministrava outros cursos. […] Não sei se
teria tido outras influências, sei que o Instituto tinha o seu conselho de direção chefiado
por Janet Modlane mas que incluía estrangeiros, tanzanianos. Faziam auditorias, de
contas e tudo o mais que se recebia e enviavam pareceres para os fundos [que financiavam
o Instituto Moçambicano]. Havia um conselho fiscal também. O Instituto tinha uma

setembro de 2015, Maputo.


50 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, pp. 12-14.
51 Arquivo Privado, família Mateus Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 37.
52 Nomeadamente: Elisabeth Sequeira, Feliciano Gundana, Jacinto Veloso, Marcelina Chissano,
Maria Salghetti, Nyeleti Brooke Mondlane, Polly Gaster e Teresa Veloso.
75
direção independente da FRELIMO. Havia um corpo de direção de que faziam parte os
professores, mas que não faziam parte da administração». (Feliciano Gundana, entrevista
realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

O Instituto foi subsidiado, durante o seu primeiro ano de funcionamento, por uma
grande fundação humanitária americana, o Instituto Afro-Americano, que, desde logo,
confiou ao Instituto Moçambicano a gestão dos fundos doados, incluindo a decisão de
construir com esse dinheiro as instalações destinadas às residências para os alunos53. Para
além deste apoio patente nos relatórios internos, Hélder Martins (entrevista realizada a
14 de Outubro de 2015, Maputo), Jacinto Veloso (entrevista realizada a 14 de Outubro de
2015) e Nyeleti Brooke Mondlane (entrevista realizada a 9 de Novembro de 2015,
Maputo) são unânimes em confirmar que, graças aos contactos do casal Mondlane junto
do aparelho de Estado dos EUA, foram reunidos fundos doados inicialmente pela
Fundação Ford54, a que se juntaram as Fundações Rockefeller55 e Rowntree56.

53 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964.
54 Fundação norte-americana que, desde os anos 30 do séc. XX, tem vindo a desenvolver o seu raio
de ação no apoio ao desenvolvimento local e internacional, com grande enfoque na justiça social. Foi o
principal apoio monetário do Instituto Moçambicano durante os primeiros anos, obrigando-o à adoção de
regras rígidas para uma gestão transparente. Com a alteração da política internacional dos Estados Unidos
da América, decorrente da morte do Presidente Kennedy, a Fundação foi progressivamente retirando o seu
apoio ao Instituto Moçambicano.
55 Fundação norte-americana fundada na primeira década do séc. XX. No início dos anos 60,
juntamente com a Fundação Ford apoiou uma série de projetos para a educação e desenvolvimento que
estavam a ser implementados na Tanzânia, entre eles o projeto do Instituto Moçambicano. Com a perda do
apoio da Fundação Ford, o Instituto Moçambicano perde também o apoio da Fundação Rockefeller.
56 A Fundação Rowentree foi fundada no Reino Unido no início do séc. XX. O seu trabalho,
essencialmente nacional, prende-se com a luta contra a pobreza, criando estratégias para o desenvolvimento,
com especial enfoque no patrocínio de casa sociais para famílias de baixos rendimentos. O apoio dado por
esta organização ao Instituto Moçambicano só veio ao conhecimento graças à entrevista realizada a Nielety
Mondlane em Maputo, a 9 de novembro de 2015. Não foi possível conferir esta informação junto das fontes
escritas consultadas, pelo que acreditamos que tenha sido um apoio pontual.
76
Simultaneamente, o Instituto Moçambicano pôde desde logo contar com o
encorajamento e cooperação do governo do Tanganica na prossecução dos seus
programas. O Presidente do então Tanganica, Julius Nyerere, envolveu-se pessoalmente
no projeto ao mandatar os seus ministros para que lhe fornecessem todo o apoio
necessário. Conforme descreve Janet Mondlane, num relatório destinado ao Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, «o Instituto Moçambicano recebeu
o maior encorajamento e cooperação do governo do Tanganica para o prosseguimento
dos seus programas. O Presidente Nyerere em pessoa foi imprescindível para a ajuda que
nos foi prestada pelos vários ministros para o início do projeto.»57
Contudo, o objetivo do Instituto prendeu-se inicialmente com a construção de
alojamentos para os jovens moçambicanos escolarizados que tinham fugido para Dar-es-
Salaa, alguns dos quais com as respetivas famílias, na esperança de continuar a sua
educação, dado que ainda não tinham idade para ingressar nas atividades militares da
resistência58. Muitos destes jovens tinham sido expulsos da escola em Moçambique por
se mostrarem «inteligentes e promissores» – encontrando-se agora a viver num limiar
abaixo do nível de pobreza59.

«Era necessário dar-lhes a oportunidade de continuarem os seus estudos e por outro


lado também estavam a ser preparados para trabalhos futuros. Assim, o Presidente
Mondlane decidiu que era necessário criar uma instituição que se ocupasse dos problemas
relacionados com a educação, para além de uma área política que era o Departamento de
Educação e Cultura que existiu sempre nos estatutos da FRELIMO. Portanto, o Instituto
trabalhava em estreita colaboração com o Departamento de Educação e Cultura».
(Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

57 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, p.2.
58 Entrevista realizada a Feliciano Gundana a 22 de outubro de 2015, Maputo.
59 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, p.1.
77
Como primeira grande tarefa, o Instituto responsabilizou-se por garantir a
frequência escolar dos jovens moçambicanos em idade e condições de a frequentar junto
do Centro Educativo Internacional de Kurasini (KIEC) 60 , cuja gestão pertencia ao
Instituto Afro-Americano, bem como o respetivo alojamento em residências de
estudantes, sendo que, numa fase inicial, muitos alunos foram transferidos para um
campo de acolhimento perto do KIEC, e outros ocuparam casas particulares pagas pelo
Instituto, que também lhes providenciava alimentação, roupa e acompanhamento
médico.61
Contudo, à medida que o programa foi tomando forma, constatou-se que era
irrealista esperar que os estudantes moçambicanos conseguissem aceder ao ensino
secundário tanzaniano, dada a lacuna de quatro anos entre o final do ensino primário
português e o início do ensino secundário tanzaniano, agravada pelo facto de que muitos
jovens não tinham sequer completado o ensino primário que o Estado português
disponibilizava.

«A entidade responsável pela educação dos indígenas era a Igreja Católica e o


Cardeal Patriarca de Moçambique, Dom Alvim Pereira, dizia que “os negros não podiam
ter mais do que a quarta classe”. De facto, os poucos que conseguiam só o logravam
através do processo de assimilação... Mas este processo foi um total fracasso, mesmo
entre 1933 (altura do Ato Colonial)62 e 1961 (quando Adriano Moreira aboliu a Lei do
Indigenato), houve muito poucos assimilados, entre seis e sete mil numa população que

60 O Centro Internacional de Kurasini (KIEC) tinha sido instalado em 1962 em Dar-es-Salaam, por
iniciativa do Instituto Afro-Americano com fundos da Ajuda Internacional dos Estados Unidos da América
(USAID), com o objetivo de dar formação secundária aos estudantes da África Austral, apoiando
especialmente refugiados, era dirigido por voluntários da Universidade de Harvard (Manghezi, 2001, p.
237). Esta situação de estreita cooperação com o Instituto Moçambicano gerou, inicialmente, alguma
confusão entre os dadores que imaginavam o Instituto Moçambicano como órgão integrante do Instituto
Afro-Americano.
61 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, pp.1-4.
62 O Ato Colonial foi aprovado, na realidade, em 1930.
78
na altura da independência tinha dez milhões e meio de habitantes e que em 1961 teria
uns sete milhões». (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

O ensino primário nas colónias destinado às crianças moçambicanas, na sua


esmagadora maioria filhas de assimilados63, esteve quase sempre sob o domínio de várias
64
missões religiosas, maioritariamente dependentes da Igreja Católica , que se
encarregavam de usar os programas educativos da metrópole nas colónias portuguesas
sem qualquer adaptação de currículo formativo, mas com sugestivas alterações de
operacionalidade do programa escolar, no que ao ensino primário dizia respeito.
Conforme Cabaço explica em relação aos currículos escolares, efetivamente, não se
verificava qualquer diferença entre o ensino na metrópole e o ministrado nas colónias.
Sendo que o autor descreve o ensino colonial desta forma: «na escola primária em
Moçambique, estudava-se, (eu estudei), até meados da década de 1960, em textos que se
referiam à vida rural em Portugal, sua vegetação e fauna, sua paisagem, seus “usos e
costumes”. Era a tentativa de alienação física do espaço sociocultural e da natureza que

63 Considerava-se assimilado todo o nativo africano que tivesse em seu poder um alvará de
assimilação que o qualificava com o estatuto jurídico de cidadão ao assumir os valores do colonizador,
ainda que em condição efetiva de subalternização em relação àquele. «O objetivo sempre foi o que criar
uma pequena elite de africanos que servisse e não competisse. Estes africanos “não indígenas” deveriam,
em troca de alguns pequenos privilégios, constituir-se como intermediários entre dominador e dominado,
se possível colaboradores “reconhecidos”» (Cabaço, 2010, p. 113).
64 Desde o final do séc. XIX, devido aos acordos estabelecidos no Congresso de Berlim, o Estado
Português passou a incentivar a instalação de missões católicas nos seus territórios africanos, tentando assim
limitar o livre acesso dos missionários estrangeiros. Com a I República e a Lei de Separação entre o Estado
e a Igreja, aquele incentivo desapareceu, sendo que os Seminários e os Centros de Formação Missionária
para o Ultramar em Portugal foram proibidos – situação que haveria de mudar ainda em 1919, com a
publicação de algumas medidas legislativas de apoio às missões católicas. O Estado português, através do
Estatuto Orgânico das Missões Católicas de 1926, viria a fomentar a as medidas de apoio ao trabalho
missionário, reafirmando-as no Ato Colonial de 1930. Posteriormente, em 1941, em conformidade com a
Concordata entre Portugal e a Santa Sé, foi publicado um novo estatuto regulamentar do anterior Acordo
Missionário, dando um grande impulso aos trabalhos religiosos, nomeadamente através de um aumento de
subsídios públicos. (Demartini & Cunha, 2015).
79
cercava a criança das colónias», situação esta que não se alterava no grau seguinte de
escolaridade: «as disciplinas de História e Geografia, física, humana e económica, que se
prolongavam por todo o ensino médio, referiam-se à história e à geografia de Portugal,
visando a comprometer deliberadamente o universo da imaginação e mitificar a
metrópole. O passado de África remontava às “descobertas”!» (2010, p.110).
Porém, no que aos programas do ensino primário dizia respeito, a situação divergia
segundo a respetiva ascendência dos alunos. Às crianças indígenas moçambicanas
abrangidas pela escolaridade, na sua esmagadora maioria filhas de assimilados, estava
reservado um programa de ensino misto que englobava o currículo da metrópole, com a
prática de trabalhos manuais variados e o ensino do catecismo, traduzindo-se numa
assimilação de conteúdos mais lenta e menos profícua, colmatada com a existência da
terceira classe ministrada a dois tempos, a rudimentar e a elementar, correspondendo a
dois anos letivos distintos. Segundo Ávila (in Marroni, 2008, p.35), «em Moçambique
surgiu o ensino primário rudimentar “estrutura própria para o ensino destinado
exclusivamente aos indígenas” com o objetivo de “conduzir gradualmente o indígena
selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência de ser português e prepará-lo
para a luta da vida, tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio”, organizando-se em
ramos: rudimentar, profissional e normal».
Marcelina Chissano, aluna do ensino primário em Cabo Delgado, recorda
atualmente a sua frequência na escola primária, sob a direção de uma missão católica, da
seguinte forma:

«Eram dadas disciplinas normais, mas havia um tempo determinado para ir à


lavoura. Podiam-nos destinar durante três meses apenas lavoura e nesse tempo não
tínhamos aulas. Era arbitrário, lavoura, colheitas, empacotamento, o que decidissem, e só
depois voltávamos para as aulas. Imagine a dificuldade de qualquer aluno, que após uma
interrupção tão longa, tinha de voltar a continuar os estudos do ponto onde tinha deixado,
sem qualquer apoio. Também, sempre que decidissem, podiam-nos mandar dar catequese
e interrompíamos as aulas para dar catequese durante três meses. Eu fui dar catequese,

80
tive de interromper a terceira classe elementar e fiquei três meses nessa função.»
(Entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

Apesar de permitir o acesso à instrução primária destas crianças, a esmagadora


maioria não podia aceder aos graus educativos para além da quarta classe. Esta mesma
situação é recordada de forma clara e objetiva no testemunho de Elisabeth Sequeira que
o refere enquanto condição construtora de mentalidades:

«Felizmente no 6º e 7º anos do liceu, o que seria agora o pré-universitário [10º e


11º anos], tive pela primeira vez um colega negro na minha turma, o Pascoal Mocumbe.
Isto desde a primeira classe. O Pascoal foi meu colega de turma. Ao mesmo tempo o
Chissano tinha sido praticamente expulso do Liceu Salazar [atual escola secundária Josina
Machel] ...» (Entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Este facto era tanto ou mais dramático quando comparado com os números globais
irrisórios da alfabetização na colónia, sendo que, nas palavras de Hélder Martins, «na
altura da independência o analfabetismo ascendia aos 95% em Moçambique. Mesmo os
nativos que tinham a quarta classe correspondiam a uma percentagem insignificante,
muito inferior a 10% relativamente à população moçambicana» (entrevista realizada a 14
de outubro de 2015, Maputo).
Jason Sumich afirma que, na década de 60, o Estado colonial aumentou
«drasticamente as oportunidades de educação ao dispor da população africana, num
esforço para conquistar “o coração e o espírito do povo”, para o dissuadir de lutar pela
libertação, ainda que com escassos resultados práticos» (2008, p. 334). Esta ideia é
reforçada em Minter quando este declara que «apenas 1% da população – cerca de 80.000
pessoas – tinha ido além dos quatro anos do ensino básico e a maioria destes eram colonos
portugueses. Em 1973 apenas 40 dos cerca de 3000 estudantes universitários eram
africanos» (1996, pp. 20, 21).
Esta realidade justificava a parca existência de liceus no território moçambicano,
dado que a esmagadora maioria dos alunos nunca atingia este grau de ensino.

81
Segundo Demartini e Cunha:

«Em Moçambique, o seu primeiro liceu, batizado com o nome de Salazar, foi
fundado em Lourenço Marques em 1939. Em 1955, foram criados mais dois liceus, por
ordem do ministro do Ultramar Sarmento Rodrigues: o Liceu Pêro de Anaia, na Beira, e
o Liceu António Enes, também em Lourenço Marques. Cidades coloniais de porte médio,
como [...] as moçambicanas Nampula e João Belo (Xai-Xai) tinham apenas colégios
particulares para o ensino secundário, laicos ou não. Na prática, eram, assim como os
liceus, restritos aos filhos de colonos e a alguns poucos filhos de “assimilados”, mesmo
depois do fim oficial do modelo colonial assimilacionista.» (2015, pp. 60, 61).

Assim, também os seminários católicos, sediados em cidades de menor dimensão e


em vilas, acabaram por ser reconhecidos como uma resposta educativa fundamental para
«a educação sobretudo para os filhos dos “assimilados” [já que] apenas alguns poucos
estudantes, geralmente oriundos das elites regionais, conseguiam alcançar os liceus
coloniais» (Demartini e Cunha, 2015, p. 61).
Para fazer face a esta situação e no sentido de superar o desfasamento académico
existente entre os alunos moçambicanos e os seus colegas tanzanianos, o Instituto
Moçambicano organizou, em Dar-es-Salaam, em estreita cooperação com o KIEC, um
programa de ensino intensivo com o objetivo de ajudar os estudantes nas disciplinas em
que se encontravam mais atrasados e onde podiam frequentar um programa propedêutico
de um ano, especialmente criado para os refugiados conhecedores da língua portuguesa e
que abarcava as disciplinas mais importantes de uma forma intensiva. Começando pelo
necessário estudo da língua inglesa – dado ser a língua oficial do país onde os estudantes
se tinham refugiado – seguindo-se o Português, História, Geografia, Ciências e
Matemática.
Quando aquele currículo destinado a obter equivalências nas competências
académicas exigidas se encontrava concluído, iniciava-se então o programa
correspondente ao ensino secundário, com as disciplinas de Inglês, História, Geografia,

82
Matemática e Ciências, segundo o programa do Tanganica e dando acesso ao certificado
do exame geral de educação.
Em 1964 estavam inseridos no programa propedêutico 55 alunos, sendo que a
maioria aprovou no programa, existindo apenas 3 alunos a frequentar o curso intensivo
de inglês sem as outras componentes académicas65. No ano seguinte, o número de alunos
a frequentar a escola de Kurasini aumentou para 9266.
Para aqueles alunos sem qualificações que iniciavam os estudos secundários no
Instituto Afro-Americano foi criado um programa de instrução primária num campo de
refugiados situado na periferia de Dar-es-Salaam, onde professores voluntários,
recrutados entre os próprios exilados com maiores qualificações académicas, davam aulas
em português e inglês.
Assim, deu-se primeiramente uma concentração de esforços nas faixas etárias entre
os 14 e os 16 anos, exceção feita para aqueles alunos, maiores de 18 anos, que se
revelassem brilhantes, como sinal de fé no seu rápido progresso67.
Começando por ser uma instituição que primeiramente pretendia acomodar os
jovens moçambicanos refugiados, o Instituto Moçambicano depressa se tornou num
organismo de angariação de fundos e de apoio técnico que ajudava no financiamento da
assistência social, educativa, cultural e médica. Empenhado em ser o braço direito da
FRELIMO no que aos seus objetivos assistenciais e de desenvolvimento humano dizia
respeito, estendeu as suas operações para lá do cenário bélico, impondo-se aos olhos
internacionais como uma instituição de ajuda humanitária por direito e com obra realizada,
o que permitia à FRELIMO manter a paz e uma certa estabilidade política num contexto
de verdadeiro compromisso social e governativo dentro dos territórios que ocupava, quer
na Tanzânia, quer nas zonas libertadas de Moçambique. O seu trabalho era reconhecido

65 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964.
66 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pastas Sem Cota, Presidência, Correspondência trocada com
individualidades/instituições na Europa 1963-68, Relatório do Instituto Moçambicano, por ocasião do seu
2º aniversário, 1 de setembro de 1965.
67 Idem.
83
pela Frente e a autoridade que conquistou fazia-se sentir, não só, junto dos que se dirigiam
à Tanzânia para colaborar nos esforços anticoloniais, mas sobretudo nas populações
libertadas em território moçambicano.

«O Comité Central da FRELIMO […] após ter analisado profundamente a


evolução histórica do Instituto Moçambicano, desde o momento da sua fundação até à
data presente [1968], verificou que, apesar das dificuldades experimentadas, ele tem
conseguido grandes sucessos no âmbito da sua função de angariar fundos, e isto graças
ao singular esforço e dedicação da Camarada Janet Rae Mondlane, Diretora daquela
instituição.» (Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar
de Moçambique, Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO,
Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de outubro de 1969, p. 37).

O Instituto cresceu graças a um esforço massivo do movimento de libertação que,


enquanto estrutura política, geria interesses, pessoas e instituições em dois territórios, o
de acolhimento e os paulatinamente libertados, transformando-se num proto-Estado sem
território internacionalmente reconhecido, que só podia levar a bom fim os seus intentos
com o apoio internacional daqueles Estados que se opunham declaradamente às políticas
coloniais de Portugal. Contudo, a Frente, não estava em condições de desprezar a ajuda
de outros Estados e organizações que, não se opondo politicamente ao regime português,
financiavam o trabalho humanitário do Instituto Moçambicano, cuja Diretora, Janet
Mondlane, patrocinava com credibilidade internacional.

«O Instituto Moçambicano é um instituto de angariação de fundos e assistência


técnica que apoia financeiramente e presta assistência educativa, cultural, médica, e ao
nível dos serviços sociais, à população moçambicana.» (AHM, Arquivo FRELIMO,
Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do
Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p. 1).

84
Quer para a FRELIMO, quer para o Instituto, tanto quanto a descolonização, estava
em causa a criação de um «Homem Novo» que, não só, viesse fazer a revolução, mas que
trabalhasse para a criação de um Moçambique moderno e independente do jugo colonial,
cada vez mais próximo de uma via socialista e emancipatória, cujas aspirações deveriam
ser conseguidas pelas armas, mas também, sobretudo, através da educação. Segundo
Jason Sumich «embora o sistema assimilacionista possa ter fornecido uma base ao
socialismo da FRELIMO, as diferenças entre ambos são muito reais. […] O objetivo da
FRELIMO era subverter este sistema e criar a sua própria forma de modernidade» (2008,
p.327). Embora a FRELIMO tenha partido do modelo assimilacionista, como objeto de
integração de todos os seus militantes, segundo padrões de igualdade política e social,
adotados através de uma grelha normativa de regras e valores impostos pelo movimento
de libertação, na realidade, a Frente almejava a criação de uma construção social nova e
inovadora que, partindo dos ideais socialistas, pudesse responder ao que considerava
serem as necessidades e idiossincrasias da população moçambicana, procurando, desde
logo, encontrar estratégias que pudessem viabilizar um Moçambique de maior igualdade,
equidade e coesão nacional, no pós independência.
Assim, o Instituto passou progressivamente a apoiar várias atividades de diferente
índole. Desde a criação e gestão da sua própria escola secundária, ao estabelecimento de
várias escolas primárias, quer na Tanzânia, quer em Moçambique, bem como de vários
cursos técnicos independentes: de administração, de ajuda médica, cursos especiais
intensivos de ensino primário, e na publicação de manuais. Envolveu-se, ainda, no
estabelecimento de uma clínica e laboratório em Dar-es-Salaam e na construção de um
hospital em Mtwara, na Tanzânia, tendo-lhe, também, sido pedido que assumisse os
assuntos sociais, resultando na responsabilidade de manter a seu cargo os deslocados de
guerra, os deficientes e os órfãos.68
Todo este projeto só se podia realizar com as múltiplas ajudas de variadíssimos
doadores internacionais, tendo-se o Instituto Moçambicano notabilizado, bem como a sua
presidente, numa rede internacional abrangente que lhe permitiu levar a cabo as suas

68 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p. 14.
85
tarefas até 1975, época em que, por fim, foi encerrado69. O reconhecimento internacional
granjeado pela sua diretora, Janet Rae Mondlane, está bem patente nos contactos pessoais
que ela manteve com os responsáveis dos organismos doadores mais importantes, e todos
os documentos de índole oficial do Instituto Moçambicano estudados foram, dos mais
antigos, aos mais recentes, assinados por si.
A fim de financiar o projeto, era preparado anualmente um orçamento de interesse
humanitário destinado a organizações religiosas e políticas, de cariz não governamental,
e governos estrangeiros que, embora hesitantes, davam assistência ao movimento de
libertação que, mais do que nunca, necessitava de fundos, produtos e pessoal técnico que
ajudassem a pôr em prática os diversos programas educativos, de saúde e assistência
social70.

«No sentido de financiar todo este trabalho, preparamos anualmente um orçamento


estimativo direcionado a organizações humanitárias, religiosas e políticas, bem como a
governos estrangeiros, que, hesitantes em dar assistência a um movimento de libertação,
estão, contudo, empenhados em enviar fundos, mantimentos, bens de primeira
necessidade e pessoal técnico a fim de apoiar programas educativos.» (AHM, Arquivo
FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro
1969, p. 2).

No início, estas necessidades eram essencialmente dirigidas ao projeto da escola


secundária. Contudo, a expansão das atividades de angariação de fundos do Instituto
surgiu da necessidade de responder aos problemas de saúde das pessoas que viviam nas

69 Ao contrário do que é comummente veiculado, inclusivé por antigos alunos do Instituto


Moçambicano que, como Maria Francisca Mécia de Jacama, declaram que o Instituto encerrou em 1968
(Uma Guerra de Guerrilha não sobrevive sem o Apoio Popular, in SOICO, 2012, p.127).
70 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p.2.
86
áreas libertadas de Moçambique, bem como da vaga cada vez maior de refugiados71,
dando posteriormente o salto para todas as questões de cariz social da FRELIMO,
preocupando-se com os centros de acolhimento e ensino, com as crianças órfãs e com os
deficientes de guerra, bem como com as suas famílias.
O Instituto Moçambicano postulava, assim, a verdadeira assistência social da Frente,
e era reconhecido internacionalmente como tal. Angariava fundos, bolsas estudantis e
meios que permitiam o trabalho da Frente no território libertado e nos centros de
acolhimento, bem como legitimava, junto da comunidade internacional, o seu esforço e
a luta pela independência moçambicana.

3.1. Janet, a mentora e líder

A Diretora do Instituto Moçambicano, Janet Rae Mondlane, viu a sua biografia


publicada pela pena de Nadja Manghezi (2001), que a retratou, ainda que de uma forma
apologética, nos seus vários papéis sociais: na condição de mulher, esposa do primeiro
Presidente da FRELIMO, Eduardo Mondlane, enquanto mãe e profissional, mas,
sobretudo, enquanto uma das maiores lutadoras pela causa da liberdade moçambicana.
Descrevendo-a como uma cidadã americana que, tendo desistido da sua carreira
académica e profissional para acompanhar e assessorar o marido na luta pela libertação
de Moçambique, adotou, como seu, o desígnio nacional de um país que ainda não se
reconhecia enquanto tal.
A sua adesão à cultura africana, aos valores de liberdade e independência, foram,
desde cedo, o motivo para servir este objetivo, abraçando-o em toda a sua plenitude,
sendo mesmo a sua maior defensora, quando até o próprio Eduardo Mondlane o colocava
em causa, relembrando-lhe sempre que o ideal de um Moçambique livre estava em
primeiro plano na vida do casal72.

71 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p.10,11.
72 «Quando o Eduardo, numa carta dos Camarões, lhe disse que tinha decidido regressar aos Estados
87
Tendo em conta o nosso objeto de estudo, interessa-nos perceber o papel de Janet
Mondlane enquanto mentora, ideóloga e executora do Instituto Moçambicano. Para o
efeito, optámos por traçar o perfil da Diretora do Instituto através da memória de quem
com ela trabalhou e conviveu.
Nyeleti Mondlane (entrevista realizada a 09 de novembro de 2015, Maputo), a filha
mais nova do casal Mondlane, descreve a mãe como uma mulher diferente, que ainda
jovem já demonstrava vontade em ir para África na condição de missionária, tendo sido
demovida da ideia por Eduardo Mondlane que, ao dar a conhecer o seu povo e a respetiva
luta, lhe apresentou outra forma intervir socialmente. Apesar de, inicialmente, ter
desempenhado o típico papel feminino, à época, de esposa e mãe, apoiando o marido no
seu trabalho, dedicando-se à família e descurando o seu futuro pessoal, cedo se integrou
na luta de libertação através de um projeto ambicioso: o Instituto Moçambicano.
Manghezi (2001, p.163-210) reconhece em Janet Mondlane a consciência dos
desafios que iria enfrentar enquanto cônjuge de Eduardo Mondlane, tendo dado provas
da sua resiliência logo ao visitar Moçambique, no início da década de 60, onde, apesar de
se sentir muito insegura graças à constante presença da PIDE, se manteve com os dois
filhos mais velhos durante meses, sabendo-se, contudo, protegida pela sua condição de
cidadã americana e pelo facto do marido ser funcionário da ONU.

«Vem para Moçambique em 1961, deixando-o nos Camarões [em missão da ONU] ...
Vem para a missão suíça, aqui no Kovo, em circunstâncias difíceis [...] Ela sabe das
adversidades, sente-se perseguida e vê o marido a ser perseguido pela PIDE. Ela vai a
Portugal com os dois filhos de Eduardo Mondlane... É uma mulher que enfrenta situações

Unidos para ser professor na Universidade de Colúmbia e lhe escreveu, com entusiasmo, sobre a oferta que
lhe tinha sido feita, o que significava que iriam ter que encurtar em um mês a sua estadia em Moçambique,
ela ficou muito desapontada ao ver que ele ainda podia pensar em voltar para o professorado. A vida dele
era em Moçambique. E, por muito bom professor que ele fosse, por muito que gostasse da vida académica
nos Estados Unidos, não podia desapontar o seu povo. Aquilo fê-la ficar zangada e perder o sono nessa
noite, e, em muitas cartas, disse-lhe como tinha ficado infeliz com a decisão. Na realidade ele concordou
imediatamente com ela e escreveu mesmo a anular o aceitar da oferta...» (Manghezi, 2001, p. 185).
88
de adversidade muito segura de si e continua o caminho que traçou, coerente». (Nyeleti
Mondlane, entrevista realizada a 09 de novembro de 2015, Maputo).

Porém, a vontade de intervir no futuro de Moçambique já vinha de trás, antes mesmo


da criação do Instituto Moçambicano, dado que, o casal Mondlane, em conjunto com um
grupo de amigos e ativistas, já se tinha organizado numa Comissão de Ajuda aos
Estudantes Africanos, com o nome de código Eidelweiss, a partir da qual angariavam
bolsas de estudo com o fim de financiar alunos moçambicanos considerados promissores
e que de, outra forma, teriam dificuldade em prosseguir com a respetiva carreira
académica. (Manghezi, 2001, p.213).
Com a mudança dos Mondlane para a Tanzânia, base da Frente de Libertação de
Moçambique, o drama dos refugiados tornou-se-lhes muito mais premente,
especialmente no que aos jovens que procuravam prosseguir estudos dizia respeito.
Compreensivelmente, a educação era um tema particularmente acarinhado pelo casal,
sendo ainda uma excelente forma de arrecadar receitas para a ajuda humanitária. Mas,
apesar do empenho do casal Mondlane pela liberdade moçambicana, segundo a atual
opinião de Hélder Martins (entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo), tanto
Eduardo, quanto Janet, «eram de uma ingenuidade política enorme [sendo que] ela não
tinha militância política nenhuma». Esta situação era, segundo a sua opinião, agravada
pelo facto de Janet Mondlane ser jovem, inexperiente, e com um grau universitário
limitado à licenciatura, o que não facilitava a vida do casal, obrigando-os a procurar uma
solução que ajudasse a provir às necessidades da família e simultaneamente lhe garantisse,
a ela, uma ocupação laboral que correspondesse às suas expectativas na área da educação,
do apoio aos refugiados moçambicanos e, consequentemente, ligado ao trabalho do
movimento de libertação.
A área da educação demonstrou ser a opção mais lógica para responder a esta
ambição, já que, a formação de Janet Mondlane em Sociologia prestava-se ao
desenvolvimento de um projeto original voltado para o ensino, onde se procurava
responder às solicitações dos jovens refugiados que desejassem prosseguir com a sua
carreira académica, e, simultaneamente, permitia a formação de quadros que ajudassem

89
no desenrolar da luta de libertação, com o posterior objetivo de desempenhar funções no
Moçambique independente. Assim, Janet Mondlane, motivada e de forma voluntariosa,
mergulhou de cabeça num trabalho que se viria a revelar de extrema importância para
toda a obra assistencial da FRELIMO.

«A primeira ideia de ambos foi fazer algo na área da educação, então surge a ideia
do Instituto Moçambicano como uma escola secundária... […] Totalmente original, ideia
da Janet e do Mondlane. Ele tinha de encontrar uma solução para si, para a sua família e
especialmente para a Janet, cuja grande ambição era vir a ocupar a posição de Secretário
do Departamento da Educação da FRELIMO. O Mondlane sabia de início que não era
possível atribuir-lhe esse cargo, optando por o manter sob o seu controlo temporariamente,
até que desistiu definitivamente da ideia em 1966 – quando o Gebuza é nomeado
Secretário do Departamento. Mas, viu a possibilidade de criar um Instituto, independente
da FRELIMO». (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Por razões políticas, dado que Janet Mondlane era uma cidadã americana, e porque,
apesar do discurso da Frente sobre a necessidade da emancipação feminina, a FRELIMO
nunca deu oportunidade a uma mulher de dirigir nenhum dos seus departamentos internos
durante o período da luta, a possibilidade de vir a ocupar qualquer cargo de relevo dentro
do movimento de libertação tornava-se impossível. Porém, o mesmo já não acontecia
num projeto educativo com as características do Instituto Moçambicano, cuja
independência formal em relação à Frente, permitia, não só, responder a solicitações
urgentes, de cariz humanitário, como obter apoios só destinados a organizações não
governamentais e de desenvolvimento, de cariz não militar.

«E esta ideia era lógica, primeiro porque era a área onde ela gostava de trabalhar,
depois porque era uma área onde existiam necessidades gritantes. […]. Esta era a área de
atuação preferencial da Janet que faz surgir a escola secundária para todos aqueles
moçambicanos que tinham conseguido chegar à quarta classe...». (Hélder Martins,
entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo)

90
Para conseguir meter em andamento um projeto educativo que, paulatinamente, foi
alargado a outras funções de cariz assistencial, o trabalho de recolha de fundos foi-se
revelando prioritário, com o casal Mondlane a candidatar-se, inicialmente, a projetos
dedicados à beneficência, cujos fundos eram concedidos por grandes instituições dos
EUA, em especial as fundações Ford e Rockefeller, aproveitando, para o efeito, as suas
relações pessoais no país73. De facto, para a resposta positiva inicial destas fundações terá
contribuído a influência de Eduardo Mondlane, ex-colaborador da ONU como
«Assistente Profissional no Departamento dos Territórios Não Auto-Governados, na
Secção de Pesquisa Territorial e Análise da Divisão de Curadoria» (Manghezi, 1999,
p.141)74, e ex-professor universitário na Universidade estadunidense de Syracusa, e da
sua esposa e Diretora do Instituto, Janet Mondlane, cidadã americana, ex-professora e sua
assistente na mesma universidade.
Partindo de uma ação de cooperação com o Instituto Afro-Americano, e com o
KIEC, subsidiário de um projeto de voluntariado da Universidade de Harvard destinado
à educação, Janet gizou um plano maior onde, não só, cabia um estabelecimento de ensino
e formação, em regime de internato independente, como dava os passos necessários para
criar toda uma rede de escolas de ensino primário, com acesso ao ensino secundário,
formação de adultos e uma rede de cuidados de saúde, permitindo, em última instância,
a sobrevivência e gestão de milhares de moçambicanos espalhados, quer pelo território
tanzaniano, quer, posteriormente, pelas zonas libertadas em Moçambique. Nascia assim
o Instituto Moçambicano, cujo contributo para a luta de libertação se notabilizou pelas
respostas que permitiu dar às necessidades da população moçambicana deslocada, quer
na Tanzânia, quer nas zonas libertadas.
O seu contributo não se restringiu a uma mera recolha de fundos, já que, ao dirigir
o Instituto Moçambicano, desempenhava também uma função de análise de necessidades,

73 Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.


74 Ou no dizer de Brito et al ([1980-1985] (s/d)): «Oficial de investigação em conexão com os
territórios do Tanganica, Camarões Ingleses e Sudoeste Africano, cujas funções se destinavam a preparar
as comunicações básicas sobre o desenvolvimento social, económico e político para o Trusteeship Council».
91
planificação de projetos e facilitação de meios, que permitia responder com soluções
práticas às varias carências da população moçambicana a seu cargo no decorrer da luta
de libertação.
Todo este trabalho, apesar de não poder ter sido reconhecido no II Congresso da
FRELIMO, por razões estratégicas que se prendiam com a neutralidade dos doadores em
relação ao conflito, não passou em branco. Na reunião do Comité Central, de 24 de agosto,
de 1968, no «rescaldo» do Congresso, é renovado o voto de confiança dado ao Instituto
e endereçado um agradecimento formal à sua Diretora «por tão valioso trabalho, fruto de
uma inquebrantável determinação no exercício das suas funções […] o que muito
[contribuiu] para a expansão dos programas do DEC e dos Serviços de Saúde. […]
Congratulando a sua dedicação à causa nacional [...] e exortando-a a que prosseguisse
incansavelmente com a realização das tarefas que lhe foram confiadas em prol da Luta
de Libertação Nacional.»75

O cargo de Diretora do Instituto Moçambicano exigia múltiplas capacidades


diplomáticas e de gestão, credibilidade, externa e interna, e uma avaliação permanente de
resultados, o que, segundo todos os entrevistados, permitiu um constante reconhecimento
do trabalho de Janet Mondlane. Contudo, o seu trabalho dependia de uma equipa de
confiança, essencial nas tarefas chave que permitiam o normal funcionamento das várias
unidades de apoio social sob responsabilidade da Frente de Libertação.

«Sem o Instituto não sei se, de uma forma organizada, essa máquina teria
funcionado e a Janet, apesar de não ter sido a única pessoa, foi crucial nesse processo.
Conta quem com ela trabalhou que trouxe credibilidade na angariação de fundos. Pessoa
inteligente, coerente, capaz de mobilizar financiadores (até as Fundações Ford,
Rockefeller e Rowntree tinham confiança nela). Quem dá a cara tem muito a ver com o

75 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, pp. 37, 38.
92
que acontece depois e nisso eu penso que ela também teve um mérito incrível». (Nyeleti
Mondlane, entrevista realizada a 09 de novembro de 2015).

O casal Mondlane demonstrava publicamente funcionar em sintonia e em regime de


confiança total na perseguição do objetivo comum – a independência de Moçambique
(Manghezi, 2001, p. 244). De facto, não se pode dar o merecido crédito a Eduardo
Mondlane sem referir a capacidade de organização, raciocínio e estratégia de Janet no
cenário da luta de libertação.
O Instituto Moçambicano detinha uma relevância política e estratégica fundamental
para as aspirações e necessidades da Frente de Libertação, ao ponto de ser o Comité
Central a propor a nomeação do Diretor, bem como «a aprovação das listas dos membros
do Conselho de Tutela, que deviam ter pelo menos dois membros do Comité Central, um
dos quais devia ser membro do Comité Executivo do Instituto»76.
Esta posição, de importância estratégica para o movimento de libertação, conferia
ao Instituto, e à sua Diretora, uma posição de destaque que obrigava a um trabalho junto
da cúpula da Frente, nem sempre bem compreendido pela maioria dos militantes.

«A Janet era uma pessoa que tinha um nível de contacto a uma hierarquia acima da
minha. A FRELIMO era muito hierarquizada, então a Janet tinha as pessoas que tinham
a função de a informar sobre tudo o que precisava de saber. Era o Gideon Ndobe77 quando
estava à frente do departamento de educação, era o Rebelo78... Todas aquelas reuniões
que eles faziam da Direção da FRELIMO que estava em Dar-es-Salaam, ela estava
sempre e tinha de saber de tudo porque tinha de (re)trabalhar toda aquela informação para

76 Arquivo Privado, família Mateus, Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 36.
77 Gideon Ndobe aderiu à FRELIMO em 1964. Formou-se na Checoslováquia em Educação e
Cultura, ao abrigo de uma bolsa de estudo. Regressado à Tanzânia para continuar a colaborar com a Frente,
assume a função de Secretário do Departamento da Educação e da Cultura.
78 Jorge Rebelo aderiu à FRELIMO em 1963. Durante os anos da luta de libertação desempenhou
as funções de Secretário para a Informação e Propaganda e editor da revista Mozambique Revolution.
93
passar para fora, junto com o Rebelo e toda a área de propaganda e comunicação.»
(Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo)

A Diretora, graças ao prestígio internacional que foi granjeando ao longo do tempo,


desempenhou um papel decisivo em toda a estrutura de angariação de fundos, sendo um
dos «braços direitos» da FRELIMO, para quem o Instituto Moçambicano representava
uma peça essencial na execução e manutenção de toda a área humanitária da luta de
libertação. Conforme recorda Elisabeth Sequeira, «toda a formação de Bagamoyo 79 ,
como de Tunduru80, até o trabalho com os departamentos femininos em Nachingwea81,
ou os centros piloto no interior, tudo aquilo era da parte humanitária, o desenvolvimento
das zonas libertadas – na agricultura, as escolas, tudo... Ela era fundamental» (entrevista
realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Janet Mondlane terá tentado trabalhar, inicialmente, junto de algumas mulheres


moçambicanas que de alguma forma estavam ligadas à resistência, correspondendo-se
com Priscilla Gumane, a fim de se inteirar sobre a criação de uma Liga das Mulheres
Moçambicanas82, contactando com o Comité das Mulheres do Instituto Afro-Americano

79 Campo de educação da FRELIMO, situado no distrito de Bagamoyo, na parte oriental da Tanzânia,


a 75 km a norte de Dar-es-Salaam, na costa do Oceano Índico, próxima à ilha de Zanzibar. Vide mapa em
anexos, p. .362.
80 Campo de educação da FRELIMO, situado no distrito de Tunduru, no sul da Tanzânia. A 795 km
de Dar-es-Salaam. O distrito de Tunduru, confina com a província moçambicana do Niassa, sendo a
fronteira entre os dois países feita pelo rio Rovuma. Vide mapa em anexo, p. 362.
81 Campo de educação da FRELIMO, situado no distrito de Nachingwea, no sul da Tanzânia. A 611
km de Dar-es-Salaam e a 249 km de Tunduru. Vide mapa em anexo, p. 362..
82 Segundo as fontes escritas, esta organização, LIFEMO, colaborou de uma forma próxima com o
Instituto Moçambicano, nomeadamente no que respeita ao trabalho desenvolvido com as crianças órfãs.
Contudo, a história da Liga Feminina de Moçambique tornou-se proscrita com o tempo, encontrando-se
muito poucas referências documentais, a par de testemunhos orais muito vagos. No II Congresso da
FRELIMO a LIFEMO é referenciada como a Liga das Mulheres Moçambicanas, parceira na execução dos
objetivos sociais da Frente, nomeadamente no que respeitava às crianças órfãs. As reuniões dos Comité
Central, em 1968 e em 1969, têm como um dos seus pontos de agenda a estrutura da Liga e as suas
94
(Manghezi, 2001, p.221). Porém, estas aproximações não terão sido suficientemente
eficazes para fazerem a futura Diretora do Instituto ingressar num projeto já gizado por
outros, talvez por não irem de encontro à sua visão e estratégia de trabalho. A única
solução encontrada pelos Mondlane prendeu-se com criar algo de raiz, algo novo que
respondesse às necessidades dos refugiados e da luta, e que correspondesse aos seus
conceitos de apoio e assistência às necessidades mais básicas, integradas num projeto
maior e de longo alcance temporal. Mesmo com a sua inexperiência e incerteza em
relação ao futuro, Janet Mondlane utilizou os seus conhecimentos de sociologia para
erguer uma instituição que viria a ser pioneira dentro do género.
O Instituto Moçambicano foi assim produto de um grande ativismo e voluntarismo,
da vontade em querer ajudar uma população em fuga e de estratégias que se foram
experimentando e afinando no terreno da luta, onde a única experiência vinha do saber
que se adquiria com a prática diária e em função das necessidades crescentes, conforme
confirma Polly Gaster:

«Mas a Janet, enquanto socióloga, não fundou o Instituto por ter experiência –
naquele tempo na FRELIMO ninguém tinha experiência de nada (nem de organizar uma
luta armada, e muito menos um instituto). Sabiam onde queriam chegar e foram-se
enfrentado problemas de uma forma dialética entre: problema, discussão, solução... Uma
dialética que foi progressivamente ganhando maiores contornos de esquerda». (Entrevista
realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo).

necessidades. Contudo, em 1972, inexplicavelmente a Liga desaparece, bem como qualquer referência a
este organismo. Segundo Maria Salghetti, enfermeira que chega à Tanzânia para colaborar com a
FRELIMO, já na década de 70: «O que eu ouvi sobre a LIFEMO foi que era constituída pelas mulheres dos
responsáveis da FRELIMO, as chamadas “Senhoras”, que não lutavam pela emancipação da mulher, mas
que era algo mais no género de uma associação, não digo de caridade, mas de apoio.... Não era bem
considerada, apesar de não ser condenada, mas era considerada não revolucionária». (Entrevista realizada
a 20 de outubro de 2015, Maputo). Para mais informações sobre o tema, vide: 4.5. Mbeya e o Orfanato,
Rutamba, Songea, Kianga e Mtwara, p. 223.
95
Segundo Manghezi, o sucesso do Instituto Moçambicano ficou a dever-se, não só,
à personalidade e competência de Janet Mondlane, que chegou a Dar-es-Salaam com «um
financiamento para um ano da Fundação Ford e uma administradora competente, Betty
King», mas também graças à sua relação marital com o Presidente da FRELIMO, Eduardo
Mondlane, já que, segundo a autora, era prática do casal discutir «intimamente todos os
detalhes quer do Instituto, quer da FRELIMO», que lhe permitiu responder à preocupação
constante em garantir aos doadores a independência do Instituto face à luta armada (2001,
pp.237, 239).
Terá sido este contexto pouco convencional que, para Manghezi (2001, p. 239),
explica a razão pela qual os outros movimentos de libertação, tendo embora procurado
replicar o modelo, não tenham conseguido o mesmo sucesso que a FRELIMO. Contudo,
a autora continua a ressalvar as competências académicas e administrativas de Janet
Mondlane como garantia de independência e capacidade de execução necessárias para a
contínua captação de doações:

«As suas capacidades académicas, que faziam com que os seus relatórios e artigos
fossem muito legíveis, e a sua crescente capacidade organizativa tornaram-na muito
popular entre os doadores, e a capacidade administrativa e a paciência da Betty King
davam-lhes a confiança de que aqueles fundos eram controlados corretamente».
(Manghezi, Nadja, 2001, p. 239).

O facto de estar casada com o Presidente da FRELIMO e de ser uma americana


branca, granjeou a Janet Modlane muitas inimizades, e as tentativas para a afastar não
foram poucas. Sobre ela pairavam o que Manghezi acha não passarem de «calúnias», que
chegavam a apontar o casal como estando ao serviço dos Estados Unidos da América,
nomeadamente através da CIA.
À medida que o Instituto ia ganhando importância, a Diretora ia sendo visada das
mais variadas formas, especialmente quando o marido se encontrava no estrangeiro,
deixando-a «muito vulnerável» (Manghezi, 2001, pp. 241,242). O facto de continuar com
um estilo de vida muito americanizado e não falar com facilidade o português cimentava

96
as desconfianças. Contudo, esta mulher, que, nas palavras de Feliciano Gundana, era uma
«chefe exigente, como devia ser, [que se] conseguia entender com todas as pessoas [e] de
fácil trato», não desistiu e continuou a levar por diante a sua missão. E, no seu dia-a-dia,
segundo Hélder Martins, apesar de todas as críticas, a família Mondlane fez questão de
manter um estilo de vida o mais parecido possível com aquele que manteria nos EUA
(entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

«Janet ficou muito mais moçambicana após a morte de Mondlane. O tipo de vida
que eles levavam em Dar-es-Salaam era muito americanizado, porque os amigos da Janet
eram os americanos. Todas as manhãs ia no mesmo carro com a Betty King para o
Instituto. Penso que era a Janet que conduzia um desses Volkswagen “carocha” e que
passava na casa da Betty para lhe dar boleia, atravessava a cidade e vinha para o Instituto
em Kurasini, almoçavam lá e às 17h voltava para Oyster Bay. […]. Durante o dia
contactava com moçambicanos, mas às 17h contactava com os amigos americanos que
viviam em Oyster Bay. Os filhos do Mondlane iam à escola americana.» (Hélder Martins,
entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Simultaneamente, à realidade política e social que fazia parte integrante da sua vida,
sobrepunha-se, como não poderia deixar de ser, a família. Sabendo que não podia
prejudicar os filhos pelas suas escolhas de vida, Janet esforçava-se por lhes dar uma rotina
o mais normal possível dentro de um cenário tão peculiar quanto aquele em que viviam.
Apesar de tudo, os filhos de Janet e Eduardo Mondlane não podiam deixar de ser
herdeiros da resistência, com uma infância coroada por uma família que alternava entre
a típica família de classe média e os valores e sacrifícios inerentes à luta pela libertação
do seu país.
O Instituto Moçambicano, algumas reuniões da FRELIMO e a luta pela libertação
de Moçambique, eram uma constante no dia-a-dia e na casa da família Mondlane, e,
apesar das crianças se aperceberem que algo sério se passava, eram envidados todos os
esforços no sentido de as manterem alheadas do clima de insegurança inerente às funções
de ambos os progenitores, conforme recorda Nyeleti Mondlane:

97
«Eu tinha sete anos quando o meu pai foi assassinado. Já adulta, em retrospetiva e
cruzando informações, percebo que a nossa vida era extremamente instável, de todos os
pontos de vista... Mas como criança, eu era uma menina feliz. Acordava de manhã, ia à
escola internacional, voltava, brincava... Sim, tinha mãe e pai ausente mas quando eles
estavam connosco tínhamos, na minha opinião, uma vida familiar normalíssima... [...]
Bem, de vez em quando os pais vinham-nos acordar, levantavam-nos da cama de
madrugada e íamos para a universidade de Dar-es-Salaam, para a casa de professores,
passar lá dois ou três dias, e a mim sempre foi dito que íamos passear, e eu aceitava isso
com a maior naturalidade, mas é óbvio que isto era o resultado de ameaças à segurança.
Então, para os meus irmãos deve ter sido mais difícil, porque já tinham idade (o Eddie
tinha onze anos). Aos nove anos já não se engana uma criança, na minha opinião, mas eu
era pequenina, portanto aquilo para mim era aventura atrás de aventura». (Entrevista
realizada a 09 de novembro de 2015, Maputo).

Durante as muitas ausências dos progenitores, os três filhos do casal Mondlane


(Eddie, Chude e Nyeleti) ficavam ao cuidado de elementos de confiança da FRELIMO,
já que, na ausência de suporte familiar, os membros do movimento de libertação tentavam
apoiar-se mutuamente. A Frente funcionava como a pequena aldeia de suporte na vida
das crianças, conforme recorda Marcelina Chissano: «aquela mulher [Janet Mondlane]
ensinou-me muito. Graças a ela aprendi muito. Ela confiava, eu ficava com a casa dela,
tomava conta dos seus filhos, praticamente como se fizesse parte da família. [...]. Eu saía
da minha casa e ia ficar na casa dela, às vezes um mês. Pegava no meu filho e ia ficar
com os filhos dela a sua casa até ela regressar» (entrevista realizada a 18 de novembro de
2015, Maputo).
De facto, o ambiente vivido no contexto de luta e a proximidade dos membros mais
destacados da FRELIMO e do Instituto Moçambicano, favorecia o desenvolvimento de
laços emocionais muito semelhantes aos sentidos no seio de uma família, fazendo com
que o apoio desta rede fosse vital para o desenrolar eficiente das funções desempenhadas
por cada um dos seus elementos:

98
«A Janet nunca se importou de aperfeiçoar o seu português, mas manteve-se sempre
firme em encarar todos quantos estivessem contra a nossa libertação. [...]. Ela cuidou dos
filhos e de todos nós. Eu casei e quem me ajudou foi a Janet. Quando me casei o Mondlane
já tinha morrido, mas a festa do nosso casamento foi na casa dela. Tudo o que eu aprendi
logo no início foi com ela». (Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de novembro
de 2015, Maputo).

Nyeleti Mondlane, a filha mais nova do casal, recorda que, sob a perspetiva de uma
criança, à época, a mãe viajava muito, quer para os campos de acolhimento, quer
sobretudo para o estrangeiro. Usando, sempre que ia em missão, «fundos destinados a
viagens para angariações de outros fundos», pelo que as crianças nunca a acompanhavam,
exceto quando iam aos EUA e tinham a oportunidade de visitar os avós, que se
responsabilizavam pelas passagens dos netos (entrevista realizada a 09 de novembro de
2015, Maputo).
Para minorar esta situação, e também por uma questão de racionalização de custos,
apesar de Janet Mondlane, enquanto Diretora e representante internacional do Instituto
Moçambicano, ter a seu cargo a maioria das viagens realizadas com o objetivo de angariar
fundos, o facto é que, sempre que podia, delegava funções. Assim, os ativistas e militantes
da FRELIMO, espalhados por vários países e com maior facilidade de deslocação, sempre
que tinham oportunidade, iam fazendo o trabalho de sensibilização e recolha de fundos
para a causa, o que permitia rentabilizar o trabalho, as pessoas e gerir com maior eficácia
o tempo e os orçamentos83.
Com a morte de Eduardo Mondlane, a infância dos seus três filhos sofreu uma
reviravolta, confrontando-os com uma nova realidade: a dos campos de treino, da escola
militar, e do ensino no estrangeiro. A família reestrutura-se e é obrigada a uma separação,
só voltando a reunir-se já após a independência de Moçambique. Janet Mondlane optou
por enviar os dois filhos mais velhos, adolescentes, para o estrangeiro, com o objetivo de

83 Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo.


99
prosseguirem estudos, enquanto manteve a filha mais nova na Tanzânia, enviando-a para
a escola do campo de acolhimento de Bagamoyo. Uma decisão, que segundo Nyeleti
Mondlane, terá sido pensada com o objetivo de a manter sob maior proteção.

«A sua decisão de me enviar para a escola da FRELIMO não deve ter sido fácil,
porque ela sabia para onde estava a enviar a filha. Ela é que fazia a gestão, era ela quem
trazia os fundos para a escola e conhecia-a bem... Quando cheguei à escola, nos primeiros
nove meses eu não comia e fiquei doente. Eu vi na cara da minha mãe o choque quando
viu a filha minguada. Apanhei uma malária aguda... Levaram-me de emergência para
Dar-es-Salaam e ela estava em Nachingwea a trabalhar e o Samora mandou que se
deslocasse até à cidade para ir ter comigo e eu vi... Pela primeira vez a minha mãe olhou
para mim e não conseguiu esconder o choque». (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada
a 09 de novembro de 2015, Maputo).

Dentro do contexto da morte de Eduardo Mondlane, num cenário que obrigava ao


surgimento e legitimação de uma nova liderança da FRELIMO, a Diretora do Instituto
optou por continuar a desempenhar o seu papel dentro da resistência. O seu cargo tinha-
se revelado imprescindível para o movimento de libertação, e, apesar do incómodo que
uma personagem com as suas características (mulher, branca e americana) poderia
suscitar no novo enquadramento político da Frente, o facto é que, Janet Mondlane,
manteve intactos os seus principais apoios, bem como, a sua vontade férrea em levar por
diante os ideais do casal na construção de um Moçambique livre e independente, o que a
fez declinar a proposta dos seus pais para que voltasse aos EUA84.

84 Neste sentido, Janet Mondlane pode contar com o apoio dos seus amigos e camaradas mais
próximos como se de uma família se tratasse. A mudança de Josina Mutemba para casa dos Mondlane é
reveladora deste facto. Josina, mesmo antes de casar com Samora Machel, optou por se mudar para a casa
dos Mondlane de forma a apoiar mais proximamente Janet e as crianças. Posteriormente, e no seguimento
do seu casamento, o casal Machel ficou lá a viver em ambiente totalmente familiar, até que a repentina
morte de Josina alterou este quadro (Manghezi, 2001, pp.307-314).
100
O Comité Central, reunido de 11 a 21 de Abril de 1969, congratula-se formalmente
pela decisão tomada por Janet Mondlane em permanecer na resistência moçambicana,
como membro pleno da FRELIMO «no momento mais difícil da sua vida […] [dando]
coragem [para] continuar a marchar na vida revolucionária claramente traçada pelo
Presidente Eduardo Chivambo Mondlane»85.
Esta opção revelou-se politicamente muito importante, já que permitiu enviar duas
mensagens fulcrais: - uma, de força e resiliência, para o interior da própria Frente; - e
uma outra, de estabilidade e coesão do movimento de libertação, para o exterior.
Marcelina Chissano dá disso exemplo ao recordar que, aquando da morte do Presidente,
os colaboradores do Instituto Moçambicano esperavam que Janet Mondlane abandonasse
o projeto e regressasse aos Estados Unidos. Contudo, perante a sua decisão de permanecer
na Tanzânia, reconheceram a sua coragem e o seu apoio como um exemplo determinante
para a luta de libertação.

«Lembro-me do dia do funeral... Sabe que temos a tradição de chorar, vestir de luto...
Ela vestiu a roupa mais bela, branca, com os filhos... Os tanzanianos ficaram
escandalizados... Não havia quem a impedisse de fazer isso [homenagear o marido] e
nós da FRELIMO, os colegas de trabalho dela, interpretámos como o facto de ela não
querer chorar, para nos dar mais força. Nós sentimos força ao lado dela, apesar de termos
perdido o nosso presidente e líder. Só o facto de ela aparecer daquela maneira e falar com
os jornalistas tanzanianos deu-nos essa força». (Marcelina Chissano, entrevista realizada
a 18 de novembro de 2015, Maputo).

A Diretora do Instituto Moçambicano é, ainda hoje, descrita como uma mulher de


caráter excecional, inclusivé por aqueles ativistas e militantes que, não tendo trabalhado
com ela diretamente, a conheceram e puderam participar no esforço da FRELIMO graças
aos fundos que ela angariava. Maria Salghetti recorda-se da Diretora como «uma pessoa

85 Arquivo Privado, família Mateus Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,


Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 52.
101
extremamente ativa, eficaz, sempre muito atarefada, mas muito acolhedora, [com] um
valor como pessoa notável», cujo perfil pessoal refletia, a seu ver, os valores de
abnegação e entrega que imprimiu ao seu trabalho no Instituto Moçambicano, e ao
próprio Instituto:

«Não lhe era permitido vir para o sul da Tanzânia... Eu e os búlgaros estávamos,
mas ela não podia... Penso que foi em 1973 que ela conseguiu obter a autorização para
visitar Mtwara86 e Tunduru. Acabou por ficar um mês em Tunduru e chegou a adoecer
com uma tromboflebite.» (Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Janet Mondlane considerava o futuro de Moçambique como uma responsabilidade


também sua, e nem mesmo a proibição 87 , decretada pelo governo tanzaniano, de os
militantes brancos da FRELIMO visitarem o Sul da Tanzânia, a levou a abrandar o seu
ritmo de trabalho, envolvendo-se cada vez mais na recolha de fundos e doações, ajudando
a criar maiores e mais fortes laços de cooperação internacional, nomeadamente com a
Europa.
A mobilidade de Janet Mondlane nos campos de acolhimento situados no Sul da
Tanzânia tornou-se limitada, o que, segundo Polly Gaster, se ficava a dever ao facto da
população local ter «medo de qualquer branco que aparecesse» devido à prática de
sabotagens e ataques perpetrados por portugueses (entrevista realizada a 23 de setembro
de 2015, Maputo).

86 Campo de educação/saúde da FRELIMO, situado no distrito de Mtwara, no sul da Tanzânia, a


561 km a sul de Dar-es-Salaam, perto da fronteira com Cabo Delgado, vide: mapa, p. 362.
87 Esta proibição foi decretada na sequência dos distúrbios internos vividos em 1968-69 no seio da
FRELIMO. Sendo que na altura também a Tanzânia se via a braços com um fenómeno interno de
instabilidade política, com cariz racial, que acabou por, segundo os entrevistados, contagiar os elementos
descontentes do movimento de libertação de Moçambique. Em resultado, a Tanzânia inicialmente dá ordem
de saída dos militantes brancos da FRELIMO do Sul do seu território, chegando a dar posteriormente ordem
de expulsão. Janet Mondlane, provavelmente por ser esposa de Eduardo Mondlane, Presidente da
FRELIMO, não é obrigada a sair, mas fica circunscrita a Dar-es-Salaam.
102
Apesar de Gaster (entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo) afirmar
que nas zonas libertadas em Moçambique não se colocava a questão racial, confirma que
havia uma efetiva necessidade de alinhamento, entre as forças tanzanianas e da
FRELIMO, para que qualquer elemento branco da Frente pudesse fazer este tipo de visita.
Pelo que, o trabalho da Diretora se centrava essencialmente em gerir, a partir de Dar-es-
Salaam, a obra do Instituto Moçambicano, em viajar e reunir com variadíssimas
organizações internacionais de ajuda humanitária, em «ir ao Conselho Mundial das
Igrejas, às Igrejas Luteranas e Presbiterianas e Metodistas dos diversos países, à OXFAM,
à organização Save The Children (que nunca apoiou, por exemplo)», na apresentação de
projetos e resultados do trabalho humanitário realizado e a realizar, em preparar e estar
presente nas operações de charme e solidariedade, que visavam continuar a angariação de
fundos, e exercer pressão internacional pela independência de Moçambique.
Segundo a entrevistada, os esforços nem sempre surtiam o efeito desejado, apesar
de o trabalho de Janet Mondlane não passar despercebido, quer dentro da FRELIMO,
quer junto dos doadores, fazendo-se notar além-fronteiras.

«Era diretora do Instituto Moçambicano. Do que me era dado a ver, era uma pessoa
importante... […]. Porque ela conseguiu as ajudas daqueles países que não queriam apoiar
o movimento de libertação armado... Portanto, todos os países: Noruega, Suécia... São
países que não querem nada com as armas. Financiar um movimento de guerrilha não
lhes era possível. Então, o Instituto Moçambicano conseguiu angariar fundos porque era
supostamente independente, esse foi o grande sentido do Instituto. Até os EUA
ajudaram.... Imagine... Canadá, Norte da Europa, Itália, Países Socialistas...» (Maria
Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Pouco depois da morte de Eduardo Mondlane, em maio de 1969, a FRELIMO


preparou à Diretora do Instituto, e viúva do Presidente, uma viagem ao interior de
Moçambique, na tentativa de a ajudar a ultrapassar o momento que estava a viver, mas
também, para que pudesse ver o que estava a ajudar a construir: as escolas e postos de
saúde, para os quais angariava doações, e as populações que auxiliava com a sua obra.

103
Esta foi a única vez que foi autorizada a se deslocar ao interior moçambicano antes da
proclamação de independência do país e, apesar do perigo, foi importante para a
FRELIMO poder mostrar que a viúva de Eduardo Mondlane continuava a militar na
Frente, apoiando e trabalhando no esforço da luta, numa visível mensagem de resiliência
e coesão internas (Manghezi, 2001, p.321).
A proibição de visitar o Sul da Tanzânia, e portanto os campos de Tunduru, Songea88
ou Mtwara, durou quase até ao final da guerra, e foi sentida como um golpe brutal
(Manghezi, 2001, pp.315, 316). Distanciava-a do trabalho que ajudava a realizar, mas,
teve a mais valia de a libertar para a sua outra e mais importante função de captação de
fundos, essencial para manter tudo a funcionar.
Segundo Polly Gaster, «as estruturas da FRELIMO e do Instituto continuavam a
crescer», trabalhando a uma escala de grandeza que já obrigava a uma divisão proficiente
das estruturas sociais e do apoio que envidavam junto da população moçambicana,
obrigando a um esforço constante de angariação de fundos. Sendo esta a situação
verificada com o sistema de saúde das zonas libertadas que «estava a ser gerido a partir
de Mtwara e não de Dar-es-Salaam» (entrevista realizada a 23 de setembro de 2015,
Maputo).
Apesar de a realidade familiar dos Mondlane ter sofrido uma grande alteração com
a morte de Eduardo Mondlane, o mesmo não se passou com a FRELIMO, cuja
estabilidade política e de missão tinha de ser mantida. Pelo que, no que às dinâmicas da
luta dizia respeito, a rotina de Janet Mondlane manteve-se de acordo com os objetivos
traçados, e a casa da família Mondlane em Oyster Bay, na Tanzânia, que, desde o início,
funcionou como uma espécie centro social dos quadros da FRELIMO, onde estava
sediado o equipamento de rádio e onde as visitas se podiam encontrar e discutir
livremente, continuou a sua função mesmo depois da morte de Eduardo, já que lá
continuavam a viver Janet e, durante o tempo em que esteve casado com Josina, o próprio
Samora Machel (Manghezi, 2001, p.308).

88 Campo de educação da FRELIMO, situado a 934 km a sudoeste de Dar-es-Salaam, perto da


fronteira com Moçambique. Vide: mapa em anexo, p. 362.
104
A Diretora do Instituto, continuava firme no seu papel de coadjuvante de
importância vital para o desenrolar da luta, mesmo que a sua exposição interna já não se
fizesse sentir de forma tão categórica. Afinal, o seu marido, Presidente da FRELIMO,
tinha morrido e os quadros da Frente de Libertação posicionavam-se internamente no
novo cenário político, consolidando na sua maioria as suas novas funções.
A Diretora, assertiva, de postura independente e perseverante, dava a conhecer os
seus pontos de vista de forma categórica, chocando com uma postura prática de
subalternidade feminina a que a FRELIMO estava habituada (Manghezi, 2001, p.335-
341).
Apesar da sua tão propalada política de emancipação da mulher, o movimento de
libertação, na sua condição de exército de guerrilha mantinha uma postura interna
patriarcal, tradicionalista e hierarquizada, própria de uma guerra. Pelo que, as mudanças
socais só se desenrolavam na medida em que se demonstravam indispensáveis à luta de
libertação. Assim, a forma de estar de Janet Mondlane granjeou-lhe problemas ao longo
da vida, mas também ajudou a fazer escola, isto é, ajudou a quebrar tabus e tentou dar o
impulso necessário a um pensamento independente dentro de uma tradição política
militarizada, massificante, e hierarquicamente organizada, onde o Comité Central da
FRELIMO era o responsável máximo pelos conceitos de lei, justiça e sociedade,
orientadores da nova sociedade que o movimento de libertação defendia.
Nyeleti Mondlane (entrevista realizada a 09 de novembro de 2015, Maputo) define
a mãe como uma mulher inconformista que, apesar de se movimentar num meio
tipicamente paramilitar, onde não se questionavam decisões superiores, sempre fez
questão de dar a sua opinião, no local e momento apropriados.
Janet Mondlane desempenhou o seu trabalho no Instituto Moçambicano de forma
determinada e perseverante, demonstrando a importância do Instituto para o desfecho
vitorioso da luta de libertação. Segundo Sequeira, o Instituto Moçambicano foi
fundamental para a luta de libertação ao nível internacional, lançando pontes para o futuro
Moçambique independente, tendo sido seguido, como consequência lógica, pelo trabalho
posterior de Janet Mondlane no Serviço Nacional de Cooperação, num projeto de

105
«continuação de todo o apoio aos movimentos de libertação» (entrevista realizada a 19
de novembro de 2015, Maputo).

3.2. A crise de 1968-69 dentro do Instituto Moçambicano

O ano de 1969 trouxe consigo grandes mudanças, não só para a FRELIMO, mas
também para o Instituto Moçambicano, e, sobretudo, para a sua escola secundária,
obrigando-os a responder a múltiplos desafios.
Na verdade, a crise que o Instituto viveu, e que culminou em 1969, foi, na sua
essência, um reflexo de uma crise interna do movimento de libertação que se arrastava já
desde 1966.
O mês de outubro de 1966 ficaria marcado pela reunião do Comité Central
FRELIMO onde se abordou, não só, a situação da mulher e da educação, como ficou
estipulada uma estratégia direcionada à «formação de quadros para a tarefa de ação
política e armada e para as tarefas da construção da sociedade no interior» (Brito et al
[1980-1985], s/p).
Já nesta altura, a opção pelo Instituto Moçambicano enquanto escola de formação
política, para além de escola com valências educativas normais, ia de encontro ao objetivo
central da formação de quadros, de forma a contrariar o afastamento que então se fazia
sentir por parte dos alunos do exterior, especialmente em relação ao que a FRELIMO
sentia serem a realidade e as exigências da luta (Brito [1980-1985], s/p). A situação longe
de resolvida, arrastou-se até 1968, altura em que as contradições no seio da Frente se
confundem com os protestos e consequentes convulsões dentro do Instituto.
Os conflitos culminaram a 9 de maio de 1968 com um ataque à sede do movimento
de libertação, onde também funcionava a sede do Instituto, vitimando Mateus Sansão
Mutemba, quadro destacado e apoiante da fação do presidente, que viria a falecer a 6 de
junho do mesmo, ano em virtude dos ferimentos resultantes do conflito (Brito [1980-
1985], s/p). No ataque aos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salaam, bem como nos
distúrbios causados no recinto do Instituto, sentiram-se particularmente visados os
elementos brancos da Frente, principais vítimas de uma contestação violenta que não se

106
dirigia apenas contra eles, mas a todos quantos defendiam a linha política seguida pela
direção da FRELIMO.
Feliciano Gundana, apesar de ter deixado o cargo de Deão 89 do Instituto
Moçambicano em finais de 1967, e de garantir que nessa altura ainda não se fazia sentir
a contestação interna que, mais tarde, levaria aos desacatos, deixa bem claro que, no seu
entender, os confrontos ocorridos no ano seguinte foram uma resposta da oposição interna
às opções levadas a cabo pela direção da Frente, nomeadamente no que respeitava ao
desenvolvimento da luta.
A FRELIMO encontrava-se num momento charneira e as oposições internas
agudizavam-se, sobressaindo dois grupos principais que discutiam, não só, a liderança do
movimento, mas sobretudo, a sua estratégia militar. Um dos grupos contestava claramente
a liderança e as respetivas opções políticas e militares. Segundo Gundana:

«Quem estava a dirigir a outra fação [contrária à direção da FRELIMO e do Instituto]


eram adultos e não é alheio o facto de em 1968 se ter realizado o II congresso da
FRELIMO. Neste congresso esclareceram-se muitas coisas, inclusive a oposição à outra
linha [de contestação interna, liderada por N'kavandame] ... Então, esses grupos [de
oposição à liderança de Eduardo Mondlane] influenciaram os estudantes, dizendo-lhes
que estavam a estudar, mas que depois seriam enviados para morrer, sendo que também
era um problema racial, contra os estrangeiros e particularmente os portugueses».
(Entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

O clima de violência e contestação vivido no Instituto Moçambicano só foi possível


com a manipulação da opinião da maioria dos estudantes, que se recusavam a ser
mobilizados para a Frente de combate. Estes, ao considerarem os respetivos estudos como

89 Designação de influência inglesa («Dean») de uma espécie de reitor sem poder regulamentar ou
de administração, mas com algum poder disciplinar e de gestão junto dos alunos: «o Deão era um adjunto
da diretora, responsável pela parte relacionada com a vida dos estudantes – devia participar e orientar os
alunos para a solução dos problemas decorrentes do dia-a-dia da instituição» (Feliciano Gundana, entrevista
realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).
107
a sua única missão no período de luta, rejeitavam, não só, a liderança da Frente, mas
sobretudo, as suas orientações.
Para a FRELIMO, os jovens alunos eram considerados, antes de mais, militantes
que tinham de estar aptos a servir a luta em quaisquer circunstâncias e sempre que
chamados, nomeadamente durante «o ano de serviço obrigatório que antecedia a
educação universitária»90, o que era manifestamente repudiado por uma grande parte dos
estudantes que se recusavam a servir como «carne para canhão».
Estes jovens fizeram notar o seu descontentamento ao se aliarem às forças de
oposição que então se movimentavam dentro da Frente, fazendo recrudescer as vozes de
descontentamento e aumentando o nível de conflito interno.

3.2.1. Mobilização de estudantes para a guerrilha

A oposição à liderança, conjugada com o facto de os estudantes expatriados


sentirem que, como futuros quadros, não deveriam pôr a sua vida em risco ao serviço da
luta, levou a uma cisão, quer dentro da Frente, quer dentro do Instituto Moçambicano,
com o Comité Central a alinhar pela defesa e manutenção do Instituto, após a promoção
de algumas alterações chave.
A decisão de obrigar todos os estudantes de todas as escolas da Frente, ou em cursos
superiores no exterior, a estarem permanentemente disponíveis para as tarefas da luta,
mesmo que isso significasse a interrupção dos seus estudos, conjugada com as cisões
vividas na FRELIMO, originou um extremar de posições entre líderes e estudantes. Uns
e outros, levaram a cabo uma guerra interna violenta, onde se envolveram os estudantes
do exterior, que se recusavam a regressar a Moçambique antes do término dos seus cursos.
Neste processo envolveram-se ainda alguns professores do Instituto e a organização
juvenil da FRELIMO, a FRELIMO Youth League.
Esta situação tornava-se tanto mais grave para os estudantes que se encontravam no
exterior da Tanzânia, ao abrigo de bolsas de estudo para o ensino superior, dado o seu

90 ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2), 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fl.89,


reprodução de entrevista de Janet Mondlane ao DAGBLADET, de 23 de junho de 1969.
108
acesso à informação resultar numa amálgama parca de notícias, pouco clara e bastante
distorcida, ideal para fomentar desentendimentos, atitudes extremadas e cisões.
O cenário de desinformação e confusão generalizada era vivido de tal forma, que
os estudantes moçambicanos na URSS, apesar de terem acesso à Voz da FRELIMO91,
também se encontravam divididos. Ao ponto da Frente ter sido obrigada a organizar a
visita do seu Vice-presidente, Uria Simango, a Moscovo, com o objetivo de esclarecer a
situação e acalmar os ânimos, conforme relata a então estudante universitária na capital
russa, Elisabeth Sequeira (entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).
A tensão dentro do Instituto Moçambicano era palpável entre alunos e professores,
com muitos estudantes a faltarem a aulas e a promoverem distúrbios à revelia dos
respetivos docentes e direção da escola.

«Comecei a sentir que havia problemas quando os alunos começaram a faltar às


aulas, mas isso aconteceu aos poucos. Só que chegou um momento em que só vinham às
aulas uns três ou quatro alunos. Quando perguntávamos, eles diziam que não queriam ir
para a guerra, que queriam garantias que depois dos estudos na escola secundária teriam
bolsas para continuar a estudar. A maior parte tinha sido aliciada por aqueles que achavam
que a guerra devia ser levada a cabo por soldados analfabetos, diziam que não fazia
sentido estar a formar quadros para irem morrer na guerra. Os alunos foram aliciados para
ir para as escolas no Quénia. Para se prepararem para o pós-independência...» (Jacinto
Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015).

Veloso e Gundana são unânimes na leitura do processo desencadeado, quer pelos


alunos do Instituto Moçambicano, quer pelos que tinham transitado para o KIEC,
reconhecendo as suas ações como o resultado de uma manobra de manipulação efetuada
pelo padre Gwendjere92.

91 Nome dos jornal e rádio da FRELIMO, cujo retransmissor ficava na casa da família Mondlane em
Oyster Bay, Tanzânia.
92 Este sacerdote moçambicano negro fazia parte da fação da FRELIMO que, segundo Veloso, não
queria a participação na luta de moçambicanos brancos: «a situação é empolada e manipulada pelo padre
109
O padre, professor de português, foi desde logo apontado como um dos grandes
impulsionadores dos distúrbios que alastraram ao Instituto Moçambicano. Timóteo
Mateus Gwendjere demonstrou-se um declarado opositor da linha seguida pela direção
da FRELIMO93, manipulando os alunos no sentido de os fazer acreditar que tinham sido
enganados, defendendo que à Frente não interessava mais gente com capacidades
académicas, outrossim gente para a guerra de guerrilha.
Segundo refere Eduardo Koloma, Deão do Instituto entre 1967 e 1968, foram
deliberadamente transmitidas aos alunos uma série de informações difamatórias e com
pendor racista, quer contra a Frente, quer contra o Instituto Moçambicano:

Mateus Pinho Gwendjere, que consegue colocar os alunos contra os elementos brancos, galvanizando o
racismo e a violência a ele inerente, mas a maior parte dos alunos fugiu, não esteve envolvida. Os ataques
à sede da FRELIMO em Dar-es-Salam foram efetuados por elementos da FRELIMO com apoio de alguns
elementos ligados ao governo tanzaniano, acabando por vitimar Sansão Mutemba. O Padre Gwendjere
acabou por ser expulso das instalações do Instituto Moçambicano, onde queria ser professor de Português
e onde contactava constantemente com os alunos, e a escola secundária do Instituto é encerrada, para depois
ser reaberta em 1970 em Bagamoyo» (entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo). Já Hélder
Martins diz, a respeito da contribuição do padre para a situação vivida no Instituto, e, particularmente, em
relação a si e à sua esposa de então, que: «quando veio o Gwendjere, a raiva maior era dirigida à Helena,
porque estava lá todas as manhãs a dar aulas e a tarefa dele era ser professor de Português (não sabiam que
posto lhe atribuir...). O Mondlane ainda o enviou para Nachwingea [fazer treino militar], mas só lá esteve
três dias... Como não sabiam que fazer dele, e como era padre, foi decidido que ficasse enquanto professor
de Português. Era nessa condição que se encontrava com a Helena e começou um dia a insultá-la por ser
branca e portuguesa... Eu só soube quando regressei e depois começou a confusão... Eu estava lá menos
tempo e talvez ele tivesse algum medo de se confrontar comigo por saber que não me iria atemorizar.»
(entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo). As fontes dividem-se a respeito do papel de docente
dentro do Instituto desempenhado pelo Padre Gwendjer e alguns entrevistados afirmam que este era
professor, enquanto outros apenas dizem que ele passava muito tempo a conversar com os estudantes no
recinto do Instituto. A documentação trabalhada sobre o Instituto Moçambicano é omissa a esse respeito.
93 ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2), 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fl.136, relatório
e cópia da embaixada de Portugal em Washington sobre o Washington Post e o Los Angeles Times,
Mozambique rebels disagree, Stanley Maisler, de 23 de agosto, 1968.
110
«Aos estudantes moçambicanos se inculcava a ideia de que estavam a sofrer,
enquanto os dirigentes da FRELIMO estavam a viver bem juntamente com os brancos,
que estavam a matar os seus pais em Moçambique. Isto era uma referência aos professores
do Instituto Moçambicano e outros militantes da FRELIMO de raça branca!». (Eduardo
Koloma, Os Padres também vão à Guerra, in Pachinuapa, Gemo, 2015, p.131).

A situação escala de tal forma que obriga Janet Mondlane a expor


internacionalmente este episódio, ao ser confrontada nos países doadores com a razão do
fecho da escola secundária de Dar-es-Salaam:

«É uma longa história, mas um dos professores, um padre católico, industriou uma
grande parte dos estudantes contra o movimento de libertação, FRELIMO. Assustou-os
com o regresso às suas obrigações para com o seu povo. Nós temos uma regra na escola
que determina que após o términus da sua educação, os alunos têm de prestar serviço
como professores, apoio médico ou serviço social nas áreas libertadas. […] O padre, que
pensamos ser um agente português, contou-lhes histórias fantásticas sobre terem de
combater e serem mortos em Moçambique, porque a direção [da Frente] não deseja mais
elementos com grau universitário que os possam ameaçar. Muitos alunos infelizmente
acreditaram nesta história, e nós tivemos de parar as aulas por um tempo. Esperamos
recomeçar brevemente. Esta escola é uma parte importante da atividade do Instituto.»
(ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2), 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fl.89,
reprodução de entrevista de Janet Mondlane ao DAGBLADET, de 23 de junho de 1969).

Durante o conflito, os alunos sentiram-se obrigados a escolher entre fações e


acabaram por se envolver violentamente nos distúrbios, apesar de uma grande parte se ter
limitado a fugir, quer para o Quénia, onde procuraram escolas internacionais que os
acolhessem, quer dispersando-se pelas imediações, sendo que não terão permanecido no
recinto da escola pouco mais de uma dezena94. Segundo Koloma, dos 120 estudantes, 100

94 Jacinto Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.


111
teriam abandonado definitivamente o Instituto (Eduardo Koloma, Os Padres também vão
à Guerra, in Pachinuapa, Gemo, 2015, p.131).
As altercações no seio da comunidade estudantil moçambicana resultaram da
preparação política e ideológica que a Frente de Libertação impunha, não só à
generalidade dos militantes, mas em particular aos estudantes, que deveriam adotar e
difundir o ideal do «Homem Novo». As motivações da guerra de libertação, e o papel que
esperavam desempenhar no contexto de independência nacional, contribuíram para a
instabilidade interna do movimento de libertação.
A preocupação destes jovens quanto à sua formação ideológica, necessária para
responder às necessidades do momento político e histórico, rivalizava com a sua postura
e perceção de importância, considerando-se vitais numa estratégia que visava o futuro
país e, por isso mesmo, até certo ponto, intocáveis:

«Eles sabiam [da sua importância] ... Sobretudo porque já tinham a componente
política e isso ajudava-os a entender a finalidade da educação que estavam a receber...
Alguns alunos do ensino secundário já tinham idade para estar nas forças armadas, mas
continuavam a estudar... Eles sabiam da sua importância, sim... Mesmo os que saíram de
Bagamoyo [após a independência de Moçambique] ... Alguns foram para Ribáuè95, mas
outros alunos vieram diretamente para Maputo, onde lhes foram atribuídas várias áreas,
particularmente na educação... Participaram em várias atividades e viajaram para todo o
país, onde ficaram a trabalhar... Eles sabiam que constituíam um viveiro dos quadros da
FRELIMO, apesar disso, muitos foram aliciados a abandonar o partido e alguns fizeram-
no, bem como outros que saíram com bolsas para estudar no estrangeiro e nunca mais
voltaram.... Aconteceu... Eles sabiam sim a responsabilidade que caía sobre eles,
especialmente naquela altura.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro
de 2015, Maputo).

95 Após a independência de Moçambique, a escola de Bagamoyo, foi transferida para a vila de


Ribáuè, no distrito com o mesmo nome, na província de Nampula, Moçambique, continuando aí a exercer
a função de escola secundária.
112
Entre os estudantes, a alternância entre intimidação e confusão era grande, e muitos
não percebiam porque estavam a ser atacados pelos colegas que os obrigavam a alinhar
por uma fação, sendo que alguns deles foram mesmo atacados por serem mais próximos
de certos membros da direção da FRELIMO e do Instituto. Marcelina Chissano, na altura
aluna do Instituto no KIEC e, já então, namorada de Joaquim Chissano, foi
particularmente visada nos confrontos, o que quase lhe custou a vida:

«Eu fui um dos alvos. Nós praticamente fomos divididos ao meio quando aparece
o que hoje se chamaria de oposição. Enquanto estudantes não nos apercebemos do que
estava a acontecer e de repente vimos entre nós comportamentos diferentes. Eu senti na
carne, fui agredida, só não fui morta porque... O KIEC era muito perto, talvez 0,5 Km, e
no meio havia uns arbustos onde alguns estudantes nos emboscavam ao regressarmos às
instalações do Instituto e amarravam-nos e batiam-nos. Nós gritávamos até virem em
nosso auxílio. Não entendíamos o que estava a acontecer... Eu e mais umas quantas
colegas fomos agredidas.» (Entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

O ambiente geral na escola era pesado e as ameaças à integridade física dos alunos
muito concretas, espalhando um clima de terror, impotência, mas, sobretudo,
incompreensão, obrigando-os, na sua maioria, a escolher entre reagir e lutar com os
colegas, ou fugir:

«Eu lembro-me que voltava do KIEC e encontrei a minha roupa da cama e a mala
despedaçadas, fiquei só com a roupa do corpo e uma ameaça a dizer que a segunda vez já
não seria a roupa, mas que eu é que sofreria. Tentaram-me matar, estava a estender roupa
e tentaram-me estrangular com uma corda... Eu tinha tido um bocadinho de treino, porque
nas férias íamos para os campos de treino e consegui-me defender. Ele estava sozinho,
era um companheiro meu, também era um aluno. Fugi e fui até à casa do Dr. Hélder
Martins, fiquei lá e não voltei mais.» (Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de
novembro de 2015, Maputo).

113
A FRELIMO reagiu aos desacatos e tentou coordenar uma resposta efetiva com a
direção do Instituto Moçambicano. Para esse efeito, os alunos foram instruídos no sentido
de reportar as agressões, com especial enfoque para aqueles que, já então, se encontravam
emocionalmente mais próximos de determinados dirigentes da Frente, sendo, por isso
mesmo, considerados alvos preferenciais entre os colegas, como era o caso de Marcelina
Chissano. A estratégia centrava-se tanto em gerir os danos, quanto em salvaguardar a
integridade física de alunos e professores.

«A FRELIMO já nos tinha instruído para reportar estas situações... Eu e mais


algumas colegas deixámos mesmo de ir à escola, porque perseguiram de tal maneira todos
aqueles que tinham uma relação com alguns responsáveis dentro da FRELIMO (eu já
namorava com o Chissano e outras colegas também namoravam com pessoas destacadas,
nós éramos um alvo preferencial).» (Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de
novembro de 2015, Maputo).

A situação descontrolou-se com a desestabilização no Instituto Moçambicano a


contribuir para o clima de confronto aberto que, então, se vivia dentro da FRELIMO.
Porém, a esta situação de tumulto não eram totalmente alheios os conflitos políticos e
raciais que se desenrolavam no país de acolhimento. Na verdade, a celeuma racial e
política que se vivia na Tanzânia permitiu inicialmente camuflar o nível de hostilidade
entre os militantes da FRELIMO. Assim, a desestabilização da Frente veio por arrasto do
clima de agitação nacional tanzaniana, cuja capacidade de disseminação não permitiu
inicialmente que a direção da Frente conseguisse destrinçar a contestação interna, das
motivações e respetivas consequência externas.

3.2.2. Motivação das autoridades tanzanianas

A própria Tanzânia estava a ser palco de uma profunda contestação política interna
de cariz racial contra os brancos.
Esta colónia britânica, inicialmente chamada de Tanganica, após a inclusão de
Zanzibar no seu território mudou o seu nome para Tanzânia. O governo de Julius Nyerere
114
esforçou-se por, segundo os valores da filosofia pan-africanista, defender e aplicar leis
inclusivas e universalistas que reconhecessem os direitos de todos os cidadãos no novo
país. Contudo, «a ideologia que o socialismo africanista viria a adotar para o projeto do
nacionalismo tanzaniano [após 1964], era simultaneamente inclusiva, universalista,
centrada no Estado, bem como exclusiva, particularista e centrada na cultura. Insistia nos
direitos iguais de todos os cidadãos do Estado-nação, ao mesmo tempo que enfatizava os
valores culturais africanos, como o comunalismo e o coletivismo, enquanto base para um
comportamento cívico adequado.» (Aminzade, Ronald, 2013, p.3). Esta postura,
simultaneamente inclusiva e exclusivista, resultou num sentimento de relativa crispação
social, com alguns líderes nacionalistas a defenderem que os estrangeiros e os cidadãos
naturalizados devessem ser considerados inimigos. A situação tornou-se flagrante,
nomeadamente em 1968, com as atenções viradas para a minoria de tanzanianos de
origem asiática que tinham adquirido a sua cidadania já depois da independência nacional,
acusados de atitudes antipatrióticas, dado não terem aderido explicitamente à
implementação do Estado Socialista e aos rituais inerentes à implementação do Estado-
nação.
Este episódio adveio por arrasto a toda uma situação conjuntural de tentativa de
consolidação da identidade coletiva que reportava a, pelo menos, um ano antes. Ainda em
1967, com a proclamação da Declaração de Arusha, a Tanzânia tinha levado a cabo a
premissa do Estado Socialista, determinando a nacionalização de investimentos e
empresas internacionais, o que desencadeou na sociedade uma onda de sentimentos hostis
face aos cidadãos estrangeiros. (Aminzade, Ronald, 2013, pp.172,173).
Nyerere, consciente da ausência no país de quadros técnicos especializados,
repudiou qualquer atitude xenófoba, mostrando-se tranquilizador e recetivo quanto ao
investimento estrangeiro e ao apoio dos expatriados na gestão das empresas, agora
nacionalizadas. Contudo, a onda de instabilidade estava gerada, metendo em causa tudo
o que era considerado de origem estrangeira, bem como todos os expatriados, fazendo
deste um momento histórico de charneira, a que não foram alheias as tentativas de
construção de uma cultura nacional.

115
A crispação social vivida na Tanzânia acabou por contaminar a oposição interna da
FRELIMO, fomentando o caos dentro do movimento de libertação que, impotente e a
braços com a gestão de danos internos, não se conseguiu opor à expulsão da esmagadora
maioria dos seus elementos brancos do território de acolhimento.
Inicialmente, Polly Gaster confirma que a própria Frente não conseguiu perceber a
dimensão, origem e motivações, dos distúrbios de que estava a ser palco, apanhando toda
a gente de surpresa e retardando qualquer iniciativa que pudesse meter cobro à
instabilidade interna que grassava no seu seio.

«Eu e a Margaret éramos as primeiras vítimas, foi a causa da nossa saída [da
Tanzânia] ... Aquando da nossa saída ninguém percebeu que era o início de uma confusão
maior, pensou-se que era um problema pontual, nosso. Porque nós éramos britânicas e a
Tanzânia tinha cortado relações diplomáticas com a Inglaterra por causa da Rodésia 96.
Temos de contextualizar... Então pensou-se que pudesse ser um problema antibritânico,
mas depois transformou-se numa situação anti-brancos e aí atingiu o Hélder Martins, o
Veloso, o Ganhão97 e atingiu mesmo os mestiços, como o Sérgio Vieira98...» (Polly Gaster,
entrevista realizada a 23 de Setembro de 2015, Maputo).

A confusão generalizada tornou-se transversal e as autoridades tanzanianas foram


mesmo obrigadas a intervir nos tumultos que se viviam nas instalações da FRELIMO e
no Instituto Moçambicano, apesar de, desde o início, ter sido dado todo o apoio e
autonomia à causa da independência moçambicana e, por conseguinte, às suas instituições.

96 A Tanzânia cortou formalmente relações diplomáticas com o Reino Unido em 1965, acusando a
potência colonizadora de não se ter oposto de forma firme à declaração unilateral de independência
proclamada pela minoria branca da Rodésia, permitindo assim a manutenção de uma política de apartheid
no novo país (Blommaert, 2014, p.57).
97 Fernando Ganhão começou a sua licenciatura em Portugal, mas abandonou-a para se juntar à
FRELIMO. Com a expulsão dos militantes brancos da Tanzânia, é enviado para a Polónia, onde termina a
licenciatura em História, regressando posteriormente à Tanzânia para colaborar com a Frente.
98 Militante da FRELIMO. Representou a Frente em Argel e no Cairo, tendo também sido Secretário
da Presidência sob as direções de Eduardo Mondlane e Samora Machel.
116
«Havia um ambiente, não só dos alunos, mas também de atitudes desfavoráveis das
autoridades tanzanianas contra o Instituto Moçambicano, como por exemplo, a certa
altura, prenderam o Aurélio Manave99 para o interrogar sobre o Instituto Moçambicano.
Durante pelo menos uma noite ele ficou preso, perguntaram sobre o conteúdo das aulas,
o que se ensinava lá, etc. Tinham receio que fosse uma escola de ensino da ideologia
comunista.» (Jacinto Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Não obstante a filosofia socialista que pretendia imprimir no seu ADN sociocultural,
o facto é que a Tanzânia procurava impor uma matriz cultural africana muito própria,
absolutamente necessária à construção do Estado-nação, encontrando-se, por isso, no «fio
da navalha» em relação às tentativas de ingerência política por parte do Bloco de Leste,
o que aumentava as suspeitas em relação às aulas ministradas no Instituto Moçambicano.
Simultaneamente, a FRELIMO via-se a braços com o que suspeitava serem
tentativas de desestabilização por parte de agentes duplos, com ações de sabotagem
vindas de militantes que trabalhariam a soldo da PIDE.
A própria PIDE, que acompanhava de perto toda esta situação, quer na Frente, quer
no Instituto, considerava que nomeadamente a «expulsão dos professores brancos do
“Instituto de Moçambique” deveu-se a uma decisão do governo da Tanzânia, que os
julgou suspeitos de serem agentes pagos pelo governo português e causadores dos
incidentes naquele estabelecimento de ensino.»100
Na realidade, excetuando a desconfiança generalizada sobre o padre Mateus Pinho
Gwendjere, não dispomos de provas de que este cenário de agentes duplos ao serviço de
Portugal se tenha verificado entre os professores do Instituto Moçambicano. Contudo, a
ameaça de duplicidade, espionagem e ações de desestabilização interna era real e
constante dentro do movimento de libertação, e o Instituto não constituía exceção neste

99 Enfermeiro, militante da FRELIMO, que trabalhava no Instituto Moçambicano, exercendo e


dando aulas práticas de enfermagem.
100 ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2) 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fls. 112,
Relatório PIDE Moçambique, 2 de outubro de 1968.
117
enredo, já que naturalmente tinha ao seu serviço elementos voluntários de varias
nacionalidades, o que facilitava a obtenção de todo o género de informações internas.
Portugal era só mais uma peça no panorama político internacional de grande
efervescência, numa época em que as superpotências mundiais se digladiavam pelo poder
de influência efetiva junto dos territórios africanos. Porém, também era o país que, graças
ao facto de querer manter Moçambique a todo custo sob a sua alçada colonial, mais tinha
interesse em criar estratégias de desestabilização interna dentro da FRELIMO.

«Mais tarde descobrimos que havia uma conspiração e que N'kavandame101 já não
estava connosco, mas do lado da PIDE. Nesta situação vieram mais alguns aliciar
estudantes e professores no Instituto Moçambicano e começou a hostilidade entre nós.
Muitos estudantes fugiram e abandonaram a FRELIMO, alguns ficaram, mas defendendo
que se fechasse o Instituto Moçambicano, atacavam professores e conseguiram aliciar até
a própria polícia da Tanzânia nas ruas.» (Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de
novembro de 2015, Maputo).

A situação descontrolava-se dia após dia, e a Frente foi confrontada com a


necessidade urgente de tomar medidas drásticas para conter os tumultos. Tal como o
Segundo Congresso da FRELIMO, a decisão de encerrar a escola secundária de Dar-es-
Salaam foi o resultado da tomada de decisões cruciais para uma nova estratégia no
panorama político e da luta, defendidas, quer pela liderança da Frente, quer pela direção
do Instituto Moçambicano.

3.2.3. Hostilidade para com os brancos

No rescaldo da convulsão interna tanzaniana, a FRELIMO, sentindo-se fragilizada,


teve receio de fazer regressar ao território os seus elementos e cooperantes brancos
expulsos pelo governo daquele país. Assim, enquanto os cooperantes se viram obrigados

101 Lázaro N'kavandam fazia parte da fação que se opunha à direção da FRELIMO. Sobre o assunto
vide: 2.1. A crise de 1965, p. 56; 2.4. O II Congresso e a mudança definitiva de rumo ideológico, p. 62.
118
a regressar aos seus países de origem, os militantes do movimento refugiaram-se nas
representações diplomáticas que a Frente mantinha em países como a Argélia, Marrocos,
ou o Egito, que apoiavam a luta de libertação.
O regresso destes elementos só se tornou possível e seguro, após 1970, quando a
FRELIMO se assegurou que a situação política e social na Tanzânia já não constituía
qualquer tipo de ameaça à integridade física dos seus elementos brancos. Sendo que,
também ao nível interno, a própria Frente já tinha levado a cabo a reorganização política
e militar necessária à sua existência enquanto organismo independente.
Jacinto Veloso recorda que «os distúrbios de 1968 envolveram uma situação mais
complexa e política com a Tanzânia, que acaba por dar ordem de expulsão aos brancos, e
por recomendar que os próximos dos brancos fossem afastados, como Sérgio Vieira, que
teve de ir para a Argélia por algum tempo» (entrevista realizada a 14 de outubro de 2015,
Maputo), demonstrando assim o grande nível de influência tanzaniana na dinâmica
interna da FRELIMO, com o respetivo impacto no Instituto Moçambicano.
Inclusive os militantes que se encontravam no estrangeiro, durante a época em que
se verificaram os confrontos, viram as suas situações agravadas ao ponto de não saberem
bem o que fazer, ou para onde ir, limitando-se a esperar novas instruções, conforme
recorda Elisabeth Sequeira: «quando chegou o momento de voltarmos para a Tanzânia já
foi muito depois, embora continuássemos ligados à FRELIMO. Mas a Frente também
tinha muitos receios e hesitações em nos mandar regressar à Tanzânia ou para outro sítio
qualquer» (entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).
Todos se encontravam sob suspeita interna e externa, pelo que a depuração dentro
do movimento de libertação moçambicano afigurou-se de uma prioridade absoluta, com
o II Congresso da FRELIMO a desempenhar um papel fundamental para o desenrolar
militar e político dos acontecimentos, permitindo clarificar os objetivos da luta e afastar
todos os elementos que, declaradamente, se opunham quer ao plano militar gizado, quer
à presença de militantes brancos.
A fação que, dentro da Frente, repudiava a presença de indivíduos de cor branca era
a mesma que entendia a luta como uma questão de raça. O seu alvo principal incidia nos
quadros do movimento, tentando afastá-los do poder, mas também contestava diretamente

119
a presença, influência e liderança de Janet Mondlane, quadro de topo, mulher, branca e
americana (Brito et al [1980-1985], s/p).

3.2.4. A atitude de Janet Mondlane

O Instituto Moçambicano não saiu incólume deste contexto político inflamável,


cuja teia intrincada de episódios levou a que os confrontos se alastrassem ao recinto da
Escola Secundária de Dar-es-Salaam, desencadeando uma sucessão de acontecimentos
que se auto-alimentavam de forma tóxica e explosiva. Os professores do Instituto sentiam
que estavam a viver o dia a dia num verdadeiro «barril de pólvora»:

«Criou-se um ambiente psicológico desconfortável, tanto interno como externo, que


levou os professores, em bloco, a decidirem deixar de dar aulas, porque não havia
condições, sentíamos que não havia futuro. Fomos falar com a diretora Janet Mondlane e
informámos que iríamos parar com as aulas, até se resolver o problema. A Janet disse-
nos: “Keep going”; ela queria que continuássemos a dar aulas, mas nós dissemos que não
tínhamos condições». (Jacinto Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015,
Maputo).

Os esforços da direção centraram-se numa verdadeira gestão de danos. Tentavam


controlar as tensões internas e manter uma rotina o mais normalizada possível. A própria
Janet Mondlane invetivava os professores a manterem as suas aulas, apesar de estes
sentirem que já não se encontravam reunidas as condições necessárias.
A ideia de um Instituto forte e alheio aos confrontos tornava-se essencial. A imagem
internacional da FRELIMO, mas sobretudo do Instituto Moçambicano, e do seu trabalho
junto das vítimas do conflito colonial, tinha de continuar a ser reconhecida como
merecedora de confiança, sob pena de enfraquecer a mensagem de coesão social existente
entre os refugiados moçambicanos que o Instituto se esforçava por propalar, já que in
extremis estava em causa o futuro de todos os apoios para a ajuda humanitária.
Face ao alarme internacional, Janet Mondlane esforçou-se por manter uma imagem
de tranquilidade junto dos países doadores. Tentou mitigar ao máximo a significativa
120
repercussão internacional dos conflitos que assolaram o movimento, que levaram ao
fecho da escola secundária de Dar-es-Salaam e que tanto alarmaram os países doadores.
O facto de a sua imagem, enquanto líder do Instituto, continuar a merecer o respeito
internacional facilitou a superação de toda a situação, mesmo quando no seio dos países
doadores se discutia a manutenção, ou não, dos apoios humanitários:

«O Sr. Ian Sproat 102 (21de Abril) [...]Não consegue ele realmente aceitar a
sinceridade de ninguém relacionado com a FRELIMO, salvo a Sra. Mondlane, que
acontece não ter nascido em África. Ele devia em todo o caso debruçar-se de novo sobre
o Instituto de Moçambique e as suas relações com a FRELIMO. Não é segredo para
ninguém que as duas organizações trabalham de mãos dadas, enquanto é igualmente do
conhecimento público que a contabilidade do Instituto é examinada todos os anos».103
(ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2) 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, telex
de Londres enviado por um informador não identificado ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros, sobre uma carta aberta ao “Daily Telegraph” de Lord Gifford com
esclarecimentos sobre a ajuda ao Instituto Moçambicano e à FRELIMO, 23 de Abril de
1971).

Nas suas viagens de captação de fundos, a propósito da apresentação de um caderno


de encargos do Instituto Moçambicano para os meses de outubro a dezembro de 1968, e
janeiro a dezembro de 1969, a Diretora optou por afrontar o problema e expor a situação
internacionalmente. Justificando as alterações aos programas e valências do Instituto, não
demonstrava qualquer pudor em admitir que, durante os primeiros meses de 1968, alguns
estudantes se tinham envolvido em atividades de efervescência política, obrigando o
comité executivo do conselho de curadores da escola a suspender as aulas104.

102 Membro do Partido Conservador no Parlamento do Reino Unido entre os anos de 1970-83, e
entre os anos de 1992-97.
103 No Reino Unido, os apoios humanitários concedidos ao Instituto Moçambicano chegaram a ser
discutidos pelos partidos Trabalhista e Conservador.
104AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
121
No decurso de uma das suas muitas viagens à Europa do Norte, centrou todos os
seus esforços em manter a imagem de tranquilidade possível dentro do Instituto
Moçambicano, desdobrando-se em procurar demonstrar a sua importância enquanto
instituição de cariz social, na vertente da ajuda humanitária e de desenvolvimento, com
uma necessidade crescente de apoios, de forma a fazer face ao aumento do trabalho social
nas áreas libertadas em Moçambique. A captação e manutenção da ajuda anteriormente
conseguida tornava-se agora vital face às desconfianças internacionais que a situação de
instabilidade interna tinha gerado:

«As autoridades norueguesas foram erroneamente informadas sobre o


encerramento do Instituto Moçambicano, diz Janet Mondlane. [...] “O que me desaponta
é este montante e o facto de não nos ter sido concedido nenhum apoio no último ano. […].
Isto deve-se ao caso, segundo a minha interpretação, de o secretário do comité, Oystein
Opdahl, ter reportado que o trabalho do Instituto Moçambicano tem estado parado. O que
é manifestamente falso, […] nós tivemos de suspender as aulas na escola secundária de
Dar-es-Salaam, mas esta foi a única atividade que de momento tem estado suspensa. O
Instituto Moçambicano tem muitos outros projetos que continuam a ser desenvolvidos na
sua plenitude. Temos mais de 20.000 alunos do ensino primário nas áreas libertadas de
Moçambique, continuamos a gerir casas de acolhimento para as crianças, a formar pessoal
na área da saúde e a formar professores. Tudo isto só em Moçambique.» (ANTT,
PIDE/DGS, SC, CI (2) 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fls. 89,
Reprodução da entrevista de Janet Mondlane ao DAGBLADET, 23 de junho de 1969).

Ao nível de estratégia interna, os estudantes, alvos preferenciais dos discursos de


oposição à direção do Instituto, e posteriores vítimas dos ímpetos de violência perpetrada
pelos colegas, eram estimulados a falar com a direção da escola e da FRELIMO,
conforme recorda Marcelina Chissano: «depois houve várias reuniões dos estudantes com
os nossos responsáveis que explicaram que alguma coisa estava a acontecer e que isso

informação integrante do Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro –


dezembro 1969, pp.6,7.
122
tinha a ver com a vontade de dividir a FRELIMO. Nós estudantes não entendíamos o
porquê de dividir a FRELIMO...» (entrevista realizada a 18 de novembro de 2015,
Maputo).
Era essencial que a rotina se mantivesse e que os estudantes percebessem o que
estava em causa, já que a estratégia de desestabilização é uma constante neste tipo de
conflitos, tendo sido, por isso, envidados todos os esforços para manter um certo
equilíbrio. Porém, apesar de todas as manobras efetuadas inicialmente a fim de recuperar
o controlo da situação, a instabilidade não só continuou, como se agudizou, não
permitindo um ponto de retorno e obrigando à tomada de decisões drásticas. A decisão
definitiva passou por encerrar a escola secundária, salvaguardando toda a função
assistencial do Instituto. Tentava-se assim seguir a estratégia de «cortar o membro afetado
a fim de salvaguardar a saúde do organismo»:

«A situação [da escola secundária] foi muito má, ao ponto de ser uma das causas do
encerramento do Instituto Moçambicano. O Instituto Moçambicano continuou, mas ficou
mais crítico a partir do momento em que perdemos o Presidente Eduardo Mondlane, e a
situação tornou-se mais séria para nós estudantes, não havia como continuar as aulas,
porque em toda a parte tínhamos medo. Lembro-me que tive de me refugiar, por uma
semana talvez, com algumas colegas na casa do Dr. Hélder Martins. Procuraram por nós
e não podíamos sair, perdemos as aulas e perdemos muitas coisas. Mais tarde as coisas
foram voltando ao normal até que eu fui escolhida para trabalhar com a Janet. Já não
podia mais voltar para a escola. Podia ficar no Instituto mas trabalhando, então eu fui
trabalhar com ela e as outras tiveram de ir para os centros de treino. A Sabina e o
namorado e mais outros camaradas tiveram sorte e foram para o exterior para tirar os
cursos. A escola secundária do Instituto ficou assim desfeita...» (Marcelina Chissano,
entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

Em plena mudança de estratégia, e ao ser associado aos confrontos internos da


FRELIMO, o Instituto optou por se dedicar apenas ao trabalho de assistência humanitária
aos deslocados e vítimas do conflito, perdendo oficialmente as suas valências de

123
instituição educativa, mas, continuando a apoiar todo o trabalho de cariz social, inclusive
o ensino, que agora passava para a responsabilidade exclusiva dos órgãos internos da
FRELIMO, aproveitando o momento em que esta se preparava para se reorganizar
estrategicamente na decorrência do seu II Congresso.

3.2.5. Mudança de estratégia do Instituto Moçambicano face à crise

Como consequência da gravidade dos confrontos em Dar-es-Salaam, e em


cumprimento das resoluções do II Congresso da FRELIMO, realizado na província
moçambicana do Niassa, em 1968, o Instituto Moçambicano sofreu várias alterações na
sua organização, objetivos e programas escolares, no sentido de reconquistar a
estabilidade (Brito et al [1980-1985], s/p).
O que começou por ser uma suspensão temporária de aulas em Dar-es-Salaam,
resultou no fecho definitivo da escola, com os alunos que ainda não tinham terminado os
seus estudos a serem reencaminhados para a nova escola secundária do movimento de
libertação, desta feita situada no campo educativo de Bagamoyo, de carácter
vincadamente paramilitar.
O Instituto passava a abraçar assim, em exclusividade, a sua função de provimento
assistencial aos moçambicanos apoiados pela FRELIMO. E, apesar de continuar a ter
influência quanto aos programas educativos, o seu papel foi-se restringindo cada vez mais
à captação e distribuição das doações estrangeiras destinadas à ajuda às vítimas do
conflito colonial, sendo que, por arrasto, acumulava a função de embaixador do
movimento de libertação junto dos países amigos da causa moçambicana. Percecionado
internamente como apenas mais um órgão da FRELIMO, acabou por ver a sua autoridade
cada vez mais diluída dentro do movimento. A PIDE, atenta aos movimentos internos da
Frente, dá conta de que «após a morte de Mondlane, o aludido estabelecimento passou a
ter [um] controle mais efetivo por parte da FRELIMO.»105

105 ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2) 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, Relatórios
Imediatos, Processo João José Craveirinha Júnior, Instituto Moçambicano, 26 de julho de 1972.
124
Contudo, a obra do Instituto falava por si, continuando a permitir identificá-lo
externamente enquanto referência de independência e competência e permitindo o
aprofundamento das suas funções humanitárias, muito graças à sua cada vez maior
importância na captação de fundos internacionais para as questões sociais da Frente.
Apesar das alterações efetuadas pela FRELIMO em toda a sua orientação política,
militar, social e educativa, a crise não ficou sanada, como se verificou em 1969, aquando
do assassinato do Presidente Eduardo Mondlane. Como consequência, o Instituto também
seria afetado e acabaria por sofrer o que seria o epílogo desta instabilidade conjuntural,
obrigando-o a uma mudança de paradigma, com a consequente entrada para um plano de
semi retaguarda na estrutura orgânica da Frente. A uma menor projeção interna, o Instituto
passou a responder com o aprofundamento das suas relações internacionais e com o
aumento dos valores doados, da mesma forma que atendia às necessidades do movimento
com uma dinâmica organizativa e de distribuição de bens e serviços pautada por uma
grande proficiência.
O ano de 1969 foi um momento de viragem na história do Instituto, bem como para
a sua escola secundária, que sofreu inúmeras mudanças estruturais, nomeadamente em
relação à população de alunos, às instalações do campus e aos programas escolares.
Os alunos que em Dar-es-Salaam ainda não tinham concluído os seus estudos foram
transferidos para Bagamoyo. E, de forma a prevenir ocorrências semelhantes, foram
realizadas mudanças de fundo na rotina do corpo estudantil em relação às férias escolares,
roupas, atividades calendarizadas, entre outras, com o propósito de ajudar a escola a
manter o objetivo de preparar os alunos, moral e intelectualmente, para continuarem os
seus estudos no ensino técnico e/ou universitário. Dando-lhes suficiente formação para
prosseguirem a vida numa profissão útil, no sentido de desenvolverem futuramente o seu
trabalho entre a população moçambicana e não simplesmente para o seu proveito pessoal,
conforme as próprias palavras de Janet Modlane:

«Na prossecução de uma sólida preparação académica, de forma a permitir que os


estudantes venham a desenvolver trabalho junto do povo moçambicano, e não
simplesmente no sentido de obterem uma educação que lhes permita estudarem e

125
continuarem a viver no estrangeiro às custas do subdesenvolvimento do seu país.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p.6).

Esta última prerrogativa tentava evitar que os estudantes que beneficiavam de


bolsas de estudo no estrangeiro continuassem a viver nos países de acolhimento, ou
noutros, após a conclusão dos seus cursos, sem que daí viesse benefício algum para
Moçambique e para a luta de libertação.
Assim, o novo plano de objetivos escolares defendia a prossecução e alargamento
dos programas de alfabetização e desenvolvimento, quer das várias escolas no exterior,
quer maioritariamente no interior de Moçambique, à medida que se ia conquistando o
país, bem como a integração dos seus muitos estudantes em diversas atividades nas zonas
libertadas, envolvendo mesmo aqueles que se encontravam no estrangeiro a concluir
licenciaturas.
As restantes escolas e os equipamentos sanitários, quer nos campos tanzanianos,
quer nas zonas libertadas de Moçambique, passariam a ter ainda menos contacto direto
com o Instituto Moçambicano, o que resultou no decréscimo do seu reconhecimento na
gestão diária da área social. A generalidade dos militantes beneficiários da obra social,
para quem o Instituto tinha sido encerrado com a sua escola secundária, passaram a
reconhecer apenas, e só, à FRELIMO a responsabilidade e iniciativa de todos os apoios
que usufruíam.106
Contudo, ao nível internacional, o Instituto passava agora, cada vez mais, a ser
reconhecido como o «braço direito» da FRELIMO, permitindo uma resposta de cariz
social às populações sob a responsabilidade da Frente, num reconhecimento público do
rigor, competência, idoneidade e mérito, graças às provas dadas no trabalho efetuado:

106 Esta situação ainda se verifica nos dias de hoje. Quando questionados sobre as escolas que
frequentaram, os ex-alunos das escolas afetas à FRELIMO no período da luta de libertação remetem toda a
responsabilidade e iniciativa para o movimento, raramente mencionando o apoio do Instituto.
126
«Na essência, o Instituto é parte integrante da luta de libertação contra os
portugueses em Moçambique, iniciada em 25/9/1964 pela FRELIMO. […] hoje o
Instituto faculta instrução liceal aos moçambicanos na Tanzânia, organiza bolsas de
estudo no estrangeiro e é responsável pela instrução primária de 20000 crianças nas áreas
libertadas de Moçambique. Prepara assistentes sanitários para cuidarem dos feridos e
doentes nas áreas libertadas, treina pessoal administrativo para dirigir as organizações
cooperativas.» (ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2) 1044 Instituto Moçambicano em Dar-es-
Salaam, apoio aos terroristas: notícia de 26 de novembro de 1971, publicada na imprensa
zambiana sobre os movimentos de libertação em África, 7 de dezembro de 1971, pp.16-
19).

3.3. Mudança de objetivos e alargamento de competências: trabalho hercúleo


na retaguarda

Como já foi exposto, o Instituto Moçambicano começou por tentar responder às


necessidades concretas dos jovens que se refugiavam na Tanzânia com o objetivo de
poderem prosseguir os seus estudos, nomeadamente procurando proporcionar-lhes
alojamento apropriado. Contudo, rapidamente se verificou que as necessidades eram
muito mais vastas e todas com um caráter de extrema urgência, pelo que o projeto e
respetivo modus operandi tiveram de sofrer ajustes constantes e variados, alargando o seu
âmbito de ação, de forma a promover respostas mais abrangentes, eficientes e céleres.
Ao verificar a impossibilidade de incluir estes jovens no sistema de ensino
tanzaniano, devido ao desfasamento entre o ensino primário português e o secundário
daquele país, o Instituto, que inicialmente se propunha apenas a providenciar-lhes o
alojamento, viu-se confrontado com a necessidade de lhes facultar um outro tipo de
ensino complementar que permitisse obter em tempo recorde as competências necessárias
para então frequentarem o nível escolar seguinte.

127
Para o efeito, o Instituto tratou de criar laços de cooperação com o Centro Educativo
Internacional de Kurasini (KIEC), dirigido pelo Instituto Afro-Americano107, o que gerou
alguns equívocos iniciais entre os países doadores que confundiam estes dois institutos
(o Instituto Moçambicano e o Instituto Afro-Americano), obrigando a Diretora, desde
logo, a proceder aos respetivos esclarecimentos, sob pena de perder donativos. Ficava
assim claro que, apesar de ambos trabalharem em estreita colaboração, eram totalmente
independentes, respeitando-se na diferença.

«Parece haver alguma confusão em separar as identidades dos institutos


Moçambicano e Afro-Americano. […] O primeiro ano de funcionamento do Instituto
Moçambicano foi financiado por uma grande fundação humanitária americana. Esses
fundos doados ao Instituto Moçambicano foram canalizados através do Instituto Afro-
Americano, mas todas as decisões […] foram da responsabilidade do Instituto
Moçambicano.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
A, Processo DEC 1964-1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, p.2).

Com o início dos trabalhos, o Instituto foi progressivamente tomando consciência


da realidade e sobretudo das dificuldades sentidas, não só pelos estudantes expatriados
bem como, por todos os refugiados que se amontoavam nas zonas fronteiriças da Tanzânia
com Moçambique, fugindo, inicialmente, das condições de vida no território
moçambicano e, posteriormente, da guerra que se viria a despoletar a 25 de junho de 1964.

«Inicialmente pensava-se que o Instituto seria uma instituição para formar


professores para as várias escolas da FRELIMO, mas acabou por realizar outras tarefas,
nomeadamente a formação de enfermeiros (curso dirigido pelo Dr. Hélder Martins e pela
esposa), além da escola secundária.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de
outubro de 2015, Maputo).

107 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, p. 2.
128
Verificou-se com o passar do tempo um aumento exponencial das necessidades
básicas, particularmente do foro médico, que se estendiam a toda a comunidade refugiada
nos diversos campos tanzanianos e nas zonas libertadas de Moçambique, e às quais o
Instituto ia tentando responder graças aos fundos humanitários cedidos por variadíssimas
organizações: religiosas, não governamentais, de desenvolvimento, políticas e de
governos estrangeiros, que, embora hesitantes, dadas as condições geoestratégicas do
momento, iam facultando assistência aos diversos movimentos de libertação do
continente africano.108

«Estava escrito por aí que não tínhamos nada a ver com a FRELIMO... Eu não
consigo explicar como contornámos essa questão.... Sabíamos que estávamos a contornar
o estabelecido porque a causa era mesmo nobre, não havia como fazer de outra forma.
Nós recebíamos doações de muitos pontos do mundo e dávamos o necessário para os
soldados avançarem para os treinos...» (Chissano, Marcelina, entrevista realizada a 18 de
novembro de 2015, Maputo).

O que começou como um programa da escola secundária estendeu-se rapidamente


a toda uma nova área e expansão das atividades já realizadas, com o Instituto a se
responsabilizar por toda área assistencial da FRELIMO, tendo como seu principal
objetivo angariar fundos e recursos que possibilitassem o máximo de apoio possível aos
esforços de guerra, ajudando as suas vítimas e promovendo a consolidação das conquistas
militares.

«O Instituto Moçambicano foi a instituição que assegurou, em grande medida, o


mecanismo de financiamento para o trabalho da luta de libertação nacional. Primeiro foi
criado com o objetivo de ser uma escola secundária e não funcionou... Penso que o
Instituto contribuiu muito mais para a luta como a instituição que fazia essa ligação [aos
doadores].» (Mondlane, Nyeleti, entrevista realizada a 09 de novembro de 2015, Maputo).

108AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p.2.
129
O fluxo de refugiados aumentou drasticamente, sobretudo após o início da guerra.
Segundo Manghezhi (2001, p. 269), só nos primeiros meses de 1966 atravessaram a
fronteira cerca de seis mil refugiados moçambicanos, aumentando assim as
responsabilidades do Instituto. A sua ação estendeu-se pelas diversas escolas e programas
de ensino, direcionados, não só, para grande parte dos refugiados, mas sobretudo, para os
moçambicanos a viverem em território nacional, graças à expansão progressiva das zonas
libertadas.
Da escola secundária às escolas primárias, da Tanzânia a Moçambique, foram
ministrados diversos cursos especiais intensivos: do ensino primário, de administração e
de saúde. Simultaneamente, tendo em conta as necessidades médicas da população, o
Instituto estabeleceu uma clínica e laboratório em Dar-es-Salaam e envolveu-se no início
da construção de um hospital em Mtwara, com a posterior expansão de cuidados médicos
primários a todas as zonas libertadas. Também a editora da FRELIMO ficou ao cargo do
Instituto Moçambicano que passou a ser responsável, não só por todas as edições da
Frente, bem como pela publicação de manuais e pelas pequenas bibliotecas espalhadas
pela Tanzânia e zonas libertadas de Moçambique. Posteriormente, assumiu os assuntos
sociais e, como resultado, o Instituto ficou com os deslocados de guerra, os deficientes e
os órfãos a seu cargo109.

«Apesar de no início [o Instituto Moçambicano] ser essencialmente direcionado


para o programa da escola secundária, a atividade de angariação de fundos sofreu uma
expansão de forma a incluir as necessidades urgentes de um programa médico destinado
para aquelas pessoas que vivem nas áreas libertadas de Moçambique, da mesma forma

109 O orfanato que as fontes orais referem situava-se em Tunduru e estava ao cuidado de militantes
da FRELIMO, com o apoio e coordenação total do Instituto. Contudo, as fontes escritas reclamam a
existência de um segundo orfanato, em Mbeya, sob a alçada da LIFEMO que respondia ao Instituto
Moçambicano e com quem aquela trabalhava em estreita colaboração (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas
DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do Instituto Moçambicano, outubro
– dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, pp.12, 13).
130
que para os refugiados.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do Instituto Moçambicano,
outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p.2).

No espaço de poucos anos e com tantas dificuldades quantas as provocadas por um


conflito militar (particularmente quando os meios e as forças são tão desproporcionais
como é o caso nas guerras de guerrilha), o Instituto Moçambicano ficou com quase toda
a gestão diária dos campos de acolhimento sob a responsabilidade da Frente110.
Quer a Tanzânia, enquanto Estado, quer a FRELIMO, tinham a seu cargo campos
separados para os refugiados moçambicanos, sendo que uns não se envolviam na gestão
dos outros, isto é, segundo Hélder Martins:

«[O] governo da Tanzânia sempre quis assumir a responsabilidade dos campos de


refugiados e a FRELIMO também não queria isso [porque não se queria sobrepor à
Tanzânia], porque era uma despesa enorme... Talvez o Instituto no princípio tenha ajudado,
se bem que o seu papel era mais o de mobilizar algumas instituições religiosas... Também
existiam organizações religiosas americanas que canalizavam fundos para o Instituto
Moçambicano... Mas o governo tanzaniano foi quem quis tomar conta dos campos de
refugiados, apesar de deixar a FRELIMO lá entrar para mobilizar combatentes...»
(Entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

De facto, a distinção entre os refugiados a cargo da FRELIMO e aqueles a cargo da


Tanzânia fica bem patente nas palavras de Maria Salghetti (entrevista realizada a 20 de
outubro de 2015, Maputo), demonstrando bem a divisão entre uns e outros: «havia um

110 Para melhor compreensão, e dado que em todos os campos sob direção da FRELIMO se
encontravam pessoas que, de alguma forma, estavam ligadas à luta de libertação, enquanto militares, ex-
combatentes, familiares, ou pessoas mobilizadas para outras tarefas, mas sempre relacionadas com o esforço
de libertação, optámos por chamar a estes campos da Frente, sob alçada do Instituto, «campos de
acolhimento», distinguindo-os dos campos, ou bases, de preparação militar. Ainda que a maioria dos
entrevistados não faça este tipo de distinção.
131
campo de refugiados em Lindi, mas nós não tínhamos contacto, até eram considerados
verdadeiramente refugiados porque não estavam envolvidos nos processos de libertação»,
sendo portanto, estes últimos, da exclusiva responsabilidade da Tanzânia.
Nas zonas libertadas a preocupação com as populações deslocadas em virtude da
guerra tornava a assistência humanitária muito mais premente, com uma exigência e uma
dimensão muito maiores.
Os confrontos entre a guerrilha e o exército colonial não se limitavam ao plano
militar, mas obedeceram a uma estratégia mais ampla, especialmente a partir de 1968. O
que para as forças portuguesas englobou uma série de políticas visando «a conquista das
populações e o seu aldeamento111, a africanização do exército e as relações com os países
vizinhos, nomeadamente com a África do Sul, Rodésia e Malawi» (Souto, 2007, p.219).
A acompanhar o plano político e administrativo, as Forças Armadas portuguesas
adotaram, já na década de 70, uma estratégia militar de grande envergadura que se pautou
por avanços e recuos no território Moçambicano, e de onde se destacaram duas grandes
ofensivas: a Operação Nó Górdio e a Operação Fronteira, que tentaram sem sucesso
rechaçar o exército de guerrilha da FRELIMO, bem como a sua implementação territorial
nas províncias de Cabo Delgado, Niassa e Tete112.
A FRELIMO respondeu a estes ataques com uma reestruturação política e militar
que resultou numa resposta ofensiva eficaz, permitindo-lhe, não só consolidar os
territórios sob o seu poder, como avançar militarmente dentro do cenário de guerra

111 Os aldeamentos implementados pela administração colonial eram oficialmente apresentados


como uma forma de garantir a proteção, promoção social e a melhoria das condições vida das populações
nativas moçambicanas. Contudo, o seu estabelecimento ficou, na realidade, a dever-se a critérios
unicamente militares, cuja preocupação se prendia com a criação de «zonas tampão» e de isolamento face
aos guerrilheiros da FRELIMO. Esta estratégia de reordenamento territorial não funcionou e a Frente
continuou a manter as suas ligações junto das populações (Souto, 2007, pp.225-232).
112 Para aprofundar sobre o tema da Guerra Colonial Portuguesa em Moçambique vide: Amélia
Neves Souto, Caetano e o Ocaso do «Império»: Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante
o Marcelismo (1968-1974) (2007); e Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes nas obras: Guerra Colonial:
Angola, Guiné e Moçambique (2000), Os Anos da Guerra Colonial: 1961-1975 (2010), e Alcora: O Acordo
Secreto do Colonialismo (2013).
132
Moçambicano. Assim, com o progressivo aumento dos territórios sob controlo da Frente,
a população ia sendo estimulada a permanecer em Moçambique, apesar dos combates
frequentes tornarem a vida diária muito mais difícil.
Para além do perigo de vida, as povoações eram, com frequência, confrontadas com
a destruição, ou com a necessidade de abandono, dos campos de cultivo. Não obstante
estas dificuldades, o fluxo de refugiados a cruzar a fronteira foi diminuindo
paulatinamente à medida que as áreas libertadas se expandiam, tornando o cuidado com
estas zonas um objetivo maior, cuja grandeza permitia à FRELIMO, em 1974, reconhecer
como tendo em seu poder cerca de 250.000 km2 de território moçambicano, perfazendo o
total de 1.200.000 pessoas sob a sua proteção, só nas províncias de Cabo Delgado, Niassa
e Tete.

«Um terço do nosso país, cerca de 250.000 km2, estão agora sob a administração da
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), onde vivem aproximadamente
1.200.000 pessoas. A maioria das áreas das Províncias de Cabo Delgado, Niassa e Tete
são zonas libertadas, e a luta armada tem-se expandido para a zona industrial e central
[corredor] das comunicações de Moçambique, as Províncias de Manica e Sofala.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972
– 1974 (B), Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano ao Fundo Africano, 28 de
março 1974, p.1).

Para que esta verdadeira «engrenagem» funcionasse todos os apoios eram poucos
e o muito trabalho era distribuído por toda a gente disponível, conforme confirma
Marcelina Chissano, já na altura uma das funcionárias do Instituto Moçambicano:

«As funções eram diferenciadas para cada um de nós. As minhas funções prendiam-
se com conseguir localizar e trazer até nós os contentores [de bens doados], contactar os
camaradas nos campos para virem buscar, fazer uma lista e certificar-me de que as
doações chegavam ao destino. Foi um trabalho em que eu aprendi e cresci muito.... Era
muito nova para essa responsabilidade. Mesmo depois de casar eu trabalhava,

133
especialmente nos dias em que ele [Joaquim Chissano] desaparecia, aí trabalhava muito,
do dia cedo até à noite, ou ao dia seguinte.» (Entrevista realizada a 18 de novembro de
2015, Maputo).

Todas as doações e restantes apoios angariados pelo Instituto Moçambicano eram


da responsabilidade deste, ainda que a sua coordenação e distribuição fosse sempre
realizada em estreita colaboração com a FRELIMO, numa ação conjunta de gestão de
recursos:

«O trabalho era muito... Para o nosso último soldado tínhamos de ter açúcar, sabão,
o que quer que fosse... E isso dependia do Instituto Moçambicano, para se conseguir
mandar. E isto era muito importante. O trabalho que nós fazíamos, hoje em dia, seria
responsabilidade de um ministério. […]. Pelas minhas mãos passou muita gente a quem
conduzi para os treinos militares, e também passavam por mim os cadernos, os lápis,
vestuário; preparava até roupa para os casamentos dos camaradas no Interior e também
os contactos com algumas entidades em Dar-es-Salaam.» (Marcelina Chissano, entrevista
realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

Simultaneamente, e à semelhança da forma como geria os apoios, o Instituto


Moçambicano, enquanto facilitador de recursos humanos, também funcionava como o
organismo que primeiramente recebia os militantes, cooperantes e simpatizantes que
vinham do estrangeiro, deixando depois à FRELIMO a responsabilidade de os
acompanhar e/ou distribuir pelos campos militares, zonas libertadas, ou pelos campos de
acolhimento. Assim, através do crescimento das suas valências humanitárias, o Instituto
foi acompanhando o esforço de guerra, tornando-se paulatinamente responsável pela
coordenação da dinâmica diária da Frente, desempenhando um papel de facilitador dentro
da FRELIMO.

«O Instituto Moçambicano deu uma grande contribuição para a luta, sem dúvida
alguma. Foi uma ideia que pegou e foi bem executada, mas se não tivesse tido sempre

134
como pano de fundo as políticas da FRELIMO, nomeadamente no que respeita às zonas
libertadas e à reconstrução, não teria conseguido ser tão bem sucedido como foi,
nomeadamente no que à angariação de fundos diz respeito, porque a credibilidade do
Instituto não se prendia só com a boa gestão dos dinheiros, mas sobretudo tinha a ver com
a demonstração no terreno da obra executada e isso era FRELIMO, não Instituto
Moçambicano. Os professores e enfermeiros nas zonas libertadas identificavam-se com a
FRELIMO, não com o Instituto». (Gaster, Polly, entrevista realizada a 23 de setembro de
2015).

O Instituto continuava a responder, desta forma, às mais variadas demandas da obra


social da Frente de Libertação, desde alimentação, sementes, animais vivos 113 para
produção, e alfaias agrícolas, de carpintaria e ferraria, educação básica, política e
cultura 114 , saúde, transportes, roupa civil e fardas, material de costura, escolar, de
escritório e fundos para as bases internas e externas ao território moçambicano e para as
zonas libertadas, apoiando ainda a impressão dos órgãos de informação da Frente115.
Após 1968, o apoio do Instituto Moçambicano à Luta de Libertação, e a sua relação
oficial com a FRELIMO, começaram a ser encarados de uma forma mais aberta e
descomplexada pela comunidade internacional, permitindo já ao Instituto afirmar-se junto
dos doadores como um órgão de pleno direito da Frente de Libertação.

113 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (A), Nota de despesa enviada pelo D.P. e Comércio, 5 de janeiro 1974.
114 Os produtos culturais, como estatuária e pintura, produzidos nas zonas libertadas e nas bases
eram vendidos no exterior, também como ajuda ao financiamento dos projetos da FRELIMO, por
intermédio do Instituto, que, à laia de curiosidade, ajudava a preparar os casamentos dos militares mais
destacados – como o casamento de Emílio Guebuza, por exemplo. (AHM, Arquivo FRELIMO, Pasta R,
DD, Comissariado Político, caixa 3, fl., Correspondência expedida do Instituto Moçambicano para Dinis
Moiane, Chefe do Comissariado Político, 5 de agosto de 1969).
115 AHM, Arquivo FRELIMO, Pasta R, DD, Comissariado Político, caixa 3, fl., Correspondência
expedida do Instituto Moçambicano para Dinis Moiane, Chefe do Comissariado Político, 5 de agosto de
1969; AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas O, Comissariado Político, caixa 3, fl., Cópias da correspondência
expedida para o Instituto Moçambicano, 24 de dezembro de 1969.
135
3.3.1. Estrutura e organização funcional dentro da nova conjuntura

A denominação «Instituto Moçambicano», enquanto fundação independente, só


fazia sentido para os doadores internacionais que, não podendo apoiar um movimento de
guerrilha, fundamentavam a sua ajuda às vítimas do colonialismo e, consequentemente,
ao movimento de libertação moçambicano, na garantia de independência formal do
Instituto. Contudo, internamente, para a FRELIMO e, sobretudo, para os militantes, o
Instituto era visto como mais um dos seus departamentos, existindo, para além da ligação
orgânica, uma grande interação e influência de ambas as partes e em ambos os sentidos.
A Diretora do Instituto fazia parte do Comité Central da FRELIMO que, por sua
vez, era quem a nomeava, enquanto tal. Da mesma forma eram indicados militantes da
Frente para os quadros do Conselho de Tutela e do Comité Executivo do Instituto
Moçambicano 116 . Não obstante a independência formal do Instituto Moçambicano, a
Frente de Libertação fazia-se representar na comissão daquele, mediante os seguintes
órgãos: Presidente e Vice-presidente da FRELIMO; Secretários do Departamento de
Educação Cultura, dos Assuntos Sociais, e do de Tesouraria e Finanças; responsável da
Saúde; e inspetor das escolas117.
Esta ligação entre o Instituto Moçambicano e a FRELIMO permitiu ao Instituto
desempenhar um papel político e social interno que lhe outorgava uma posição de
autoridade moral e ética dentro da Frente. Assim, foi o órgão a que esta recorreu para,
através de uma metodologia de base sociológica, ajudar a desenhar uma lei social que
pudesse guiar a organização, no sentido de, através de um quadro teórico universal que

116 Arquivo Privado, família Mateus Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 37.
117 Arquivo Privado, família Mateus Documentação Interna da Região Militar de Moçambique,
Quartel General 2ª Repartição, dossier avulso sobre FRELIMO, Decisões Políticas a Nível Superior, 2 de
outubro de 1969, p. 37.
136
visava a justiça social, homogeneizar os princípios que regiam cada grupo étnico 118 .
Seguramente não era alheia a esta circunstância o facto de Janet Rae Mondlane possuir
habilitações académicas superiores na área, bem como o reconhecimento, dentro e fora
da Frente, do seu carisma e competências, especialmente por parte dos seus interlocutores
internacionais pertencentes às instituições e governos doadores.

«O Instituto Moçambicano formou quadros para a FRELIMO. O Instituto não teve


uma vida, ideias ou filosofia separados da FRELIMO, em nenhum momento. Distinguir
o legado do Instituto do da FRELIMO não é possível, apesar de ter ajudada a criar a
identidade da FRELIMO. Se não tivesse existido o Instituto Moçambicano, a FRELIMO
e o Moçambique atual teriam tido o mesmo percurso, apesar de possivelmente com
maiores dificuldades. Mas, não gostaria que se pensasse que o Instituto Moçambicano era
um elemento separado da FRELIMO, no sentido de ter um peso decorrente de uma
hipotética atuação à margem desta, da mesma forma que o trabalho do Instituto não se
resumia a ir de mão estendida a pedir caridade, não, fazia parte da luta política, de
conquistar amizades e alargar a frente de solidariedade, oferecendo uma componente
social na luta pela independência». (Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro
de 2015, Maputo).

Marcelina Chissano reconhece no Instituto Moçambicano um dos principais


responsáveis pela filosofia de pendor social que a FRELIMO tanto acarinhou,
especialmente como vetor de transformação social que partia da revolução para a ideia de
um «Homem Novo», construtor de um novo Moçambique, independente e livre de todo
o tipo de opressão, social, política e económica.

«Por um lado [Moçambique] seria diferente sim. Porque se nós não pensássemos
logo no princípio em formar o “Homem Novo” ... Tivemos, por um lado, a guerra (que

118 AHM, Arquivo FRELIMO, Pasta R, DD, Comissariado Político, caixa 3, fl., Correspondência
expedida do Instituto Moçambicano para Dinis Moiane, Chefe do Comissariado Político, 5 de agosto de
1969.
137
não sabíamos até quando duraria), mas, por outro, tínhamos a esperança de, um dia, ter o
nosso país livre. Se não tivéssemos começado a formar logo esse “Homem Novo”, depois
teria sido muito tarde. E isto foi obra do Instituto Moçambicano. Formaram-se homens e
quadros ali. O ideal era ter o nosso país, mas a preocupação era a de quem seria o
moçambicano que ficaria com “os pés no chão”. Qual seria a identidade moçambicana?
Então começou ali. Eu fui recrutada em 1964, já tinha começado a guerra, e entrei sem
saber o que era a FRELIMO.... Fui sabendo, formei ali o que sou hoje. O ideal de quem
participou na luta era formar um “Homem Novo” para o novo Moçambique, para os
nossos filhos e para os nossos netos.» (Entrevista realizada a 18 de novembro de 2015,
Maputo).

Apesar de a maioria dos militantes da FRELIMO acreditarem que o Instituto


Moçambicano se tivesse naturalmente extinto na sequência do encerramento da sua
escola secundária, em 1968, a verdade é que o seu trabalho internacional de angariação
de apoios para a causa moçambicana se intensificou, permitido ao Instituto prosseguir, e
aprofundar, a sua obra.
Aproveitando os «ventos de viragem», quer no desenrolar da guerra de libertação,
quer através das ações de sensibilização da opinião pública internacional, que se mostrava
cada vez mais recetiva às ideias anticoloniais, pacifistas, aos direitos civis, condenando a
política colonial portuguesa, o Instituto vai adotar uma postura internacional oficial muito
mais próxima da militância política ativa, alinhando-se formalmente com a FRELIMO.
Assim, depois do II Congresso da FRELIMO, o Instituto Moçambicano continuou a
demonstrar ser um aliado imprescindível da Frente, não só ao nível da captação de
doações e conquista da simpatia internacional para a luta, mas também ao nível da própria
dinâmica da revolução interna do movimento de libertação.
Tal como confirma Manghezi (2001, pp. 238, 239), este foi um projeto singular
dentro dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, condição sine qua non
para obtenção de fundos internacionais não compatíveis com o carácter de guerrilha da
FRELIMO, de quem, apesar de «politicamente sinónimo», usufruiria formalmente uma
autonomia que garantia a independência necessária para a satisfação das condições

138
impostas pelos doadores simpatizantes com a luta do povo moçambicano. Este foi o ponto
de partida para a construção de um verdadeiro Estado Social dentro do movimento de
libertação, que, entre outras mais valias, deu a possibilidade de preparar quadros e
estratégias de governação adaptadas, posteriormente, à realidade de Moçambique
independente.

139
Capítulo 4 – O Ensino

4.1. O ensino enquanto projeto revolucionário

O Instituto Moçambicano teve na educação a sua génese e um dos seus objetivos


estratégicos, preocupando-se, desde o início, com a construção de várias escolas no
território tanzaniano, localizando-as preferencialmente ao longo da fronteira com
Moçambique. Tendo começado o seu trabalho com a escola secundária em Dar-es-Salaam,
que não conseguiu sobreviver à crise de 1968, o projeto educativo prosseguiu em alguns
dos campos sob alçada da FRELIMO, estendendo-se para o interior de Moçambique à
medida que a Frente ia conquistando território às forças coloniais portuguesas.
Os campos de refugiados, afetos ao movimento de libertação moçambicano,
encontravam-se divididos em centros de acolhimento, com valências educativas, e em
centros de treino e formação militar, acolhendo não só as populações em fuga do território
moçambicano, mas também todos aqueles que cruzavam a fronteira com o objetivo
específico de participar no esforço da luta de libertação. Assim, foram envidados esforços
por parte do Instituto no sentido de promover, na medida do possível, uma melhoria das
condições de vida das populações nesses locais. A especialização de tarefas e
competências que definiam e diferenciavam todos os campos de acolhimento permitia ao
Instituto Moçambicano racionalizar de forma eficaz os seus esforços, trabalho e
necessidades, ao mesmo tempo que garantia aos doadores uma base de conhecimentos
sólida e transparente sobre os projetos de ajuda humanitária que se estavam a desenvolver,
nomeadamente ao nível da aquisição das mais variadas competências por parte dos
refugiados.
Permitia-se, assim, ao movimento de libertação manter ativo um verdadeiro Estado
Social que respondia às necessidades desses refugiados, demonstrando publicamente,
através da promoção da autossustentabilidade, a sua capacidade de autogestão e
competência governativa. Os projetos de formação profissional, de que a produção

140
agrícola fornecia um exemplo paradigmático, obedeciam a objetivos políticos concretos,
de curto e longo prazo, saindo do simples âmbito do socorro humanitário de emergência.
Dentro da estratégia pensada para o apoio humanitário, as escolas funcionaram
como um dos instrumentos fundamentais na conquista de competências por parte, quer
das crianças, quer dos adultos, que encontravam aqui a oportunidade de usufruir de um
ensino pensado para suprir as suas necessidades individuais e as da luta de libertação. De
facto, o ensino tornou-se numa «peça de xadrez» fundamental dentro do cenário da
resistência moçambicana, com todos os intervenientes muito conscientes da importância
e alcance que a escolaridade alargada detinha a curto, médio e longo prazo.
Se para os estudantes, nomeadamente do ensino secundário, a escola significava
uma perspetiva de vida mais auspiciosa, especialmente para aqueles que tinham a
oportunidade de prosseguir os seus estudos no estrangeiro, também para os líderes da
Frente estes jovens representavam um ponto estratégico na consolidação da resistência,
permitindo demonstrar, interna e externamente, a capacidade do movimento em construir
uma alternativa credível para o futuro de Moçambique, através da formação de quadros e
líderes que deviam servir, primeiramente, a resistência e, posteriormente, o país
independente, legitimando assim, mais uma vez, a luta pela libertação.
Internamente, a FRELIMO apostava no ensino enquanto motor de divulgação
ideológica, promovendo o ideal de revolução e igualdade em que assentava o movimento.
Afirmava-se, assim, através da escola, o combate às rivalidades étnicas e regionalistas
que, no final da década de sessenta, quase viriam a pôr em causa a sua sobrevivência
(Panzer, 2009, p.812). Simultaneamente, ao implementar a expansão de oportunidades
educativas, quer na Tanzânia, quer nas zonas libertadas, a Frente tentava diminuir a
diferença de qualificações escolares entre os militantes oriundos do Norte e os do Sul de
Moçambique. Estes últimos, com níveis de escolaridade mais elevados, ascendiam com
maior facilidade aos quadros de liderança, o que resultou no aumento do
descontentamento entre as bases, que apoiadas pela fação que se opunha aos líderes da
FRELIMO, acreditavam numa tentativa de usurpação do poder por parte das etnias do
Sul, incendiando os ânimos e levando aos confrontos de 1968.
Conforme Panzer declara:

141
«[Uma] FRELIMO vitoriosa significava o empoderamento político e social dos
indivíduos nas posições de autoridade mais elevadas dentro do movimento, a
independência nacional de Moçambique tinha sérias implicações nas reivindicações de
âmbito regional, étnico e individual quanto à distribuição do poder dentro da futura
nação». (2009,p.812).

Desta forma, a educação revestia-se de uma importância vital, com a Frente a


utilizar os jovens estudantes do ensino secundário enquanto divulgadores ideológicos com
responsabilidade na legitimação política e na motivação militar, nomeadamente através
das missões de alfabetização feitas entre os refugiados e nas zonas libertadas.
As missões de alfabetização respondiam a duas preocupações essenciais: por um
lado, manter os alunos do ensino secundário, e também os do superior, quando chamados
para o efeito, em contacto com a realidade e necessidades da luta, estimulando-lhes a
ligação ao movimento e aos ideais orientadores da luta de libertação; e, por outro,
ajudavam a suprir, na medida do possível, a necessidade sempre presente de um maior
número professores do ensino primário. Uma vez que, apesar dos constantes cursos de
capacitação de professores que a Frente e o Instituto levavam a cabo, as necessidades iam
crescendo à medida que o território moçambicano sob alçada da FRELIMO se ia
expandindo. Todo este projeto educativo do movimento de libertação, revolucionário à
época, lançava as bases de um verdadeiro Estado Social que permitia à Frente encontrar
estratégias de gestão para o Moçambique independente, o que, durante o período da guerra,
não teria sido exequível da mesma forma e com a mesma abrangência, caso o Instituto
Moçambicano não tivesse sido constituído.
Maria Salghetti, enfermeira de nacionalidade italiana e, à época, cooperante com a
FRELIMO, é clara ao destacar a importância de todo este projeto:

«O Instituto Moçambicano teve um papel fundamental... Formou consciências e


permitiu que a saúde e a educação existissem dentro da FRELIMO. De outra forma como
teria sido possível receber apoio dos países ocidentais? Toda a educação era financiada

142
através do Instituto. Toda a educação é fundamental, mais do que a saúde, quase...».
(Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

A estratégia educativa tornava-se assim um conceito chave, a partir do qual a


FRELIMO pretendia imprimir, ao longo do tempo, a sua ideologia revolucionária no
tecido político, social e económico do novo país.
Alunos e professores moçambicanos, militantes do movimento de libertação,
usufruíam da obra do Instituto Moçambicano, conscientes da sua importância para a
construção futura de uma Nação independente. Assim, encaravam a sua como uma missão
essencial no processo revolucionário, pautada pela filosofia do Materialismo Dialético,
só possível através da construção, na prática diária, do conceito de «Homem Novo». O
Instituto, ainda que sob condições precárias resultantes do exílio, esforçava-se por
providenciava tudo o que era possível, ao nível administrativo, para não faltasse o
essencial, quer nas escolas, quer nos campos de acolhimento, de forma a que a obra se
cumprisse. Contudo, o grande responsável pelos currículos escolares continuava a ser o
Departamento da Educação e Cultura da FRELIMO, com verdadeiro poder de decisão
final sobre tudo o que era, e como era, ensinado. A mensagem era unânime, e era a
veiculada pela Frente:

«Do ponto de vista do conteúdo da formação nós estávamos dependentes do


Departamento de Educação da FRELIMO. Primeiro foi o Guebuza e depois o Ndobe,
Gideon Ndobe. O Gideon Ndobe é que era o orientador pedagógico, ele é que ia verificar
os materiais. Volta e meia nós tínhamos de mandar cópias dos materiais todos, porque era
preciso ter a certeza que não estávamos a passar mensagens [subversivas]». (Elisabeth
Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

A preparação ideológica e identitária da futura Nação constituía uma preocupação


central dentro dos currículos escolares. As divisões étnicas que o Estado colonial se
esforçava por manter, como forma de controlo de um vasto território como o de
Moçambique, colidiam com o espírito igualitário defendido pelo movimento de libertação,

143
pelo que a FRELIMO mantinha uma política de educação que visava a integração e
homogeneidade social e cultural nos seus campos de acolhimento, quer durante a
preparação militar, quer especialmente através do ensino. A ideia de unidade e identidade
nacional representava um dos pontos basilares da luta de libertação, já que legitimava o
futuro do país na prossecução de uma Nação independente.
Apesar de ser identificada como um instrumento colonial, a língua portuguesa foi,
paradoxalmente 119 , ensinada e acarinhada como parte da estratégia de unidade num
território com variadíssimos grupos étnicos que se desconheciam entre si e com línguas
muito díspares. Assim, a Frente optou pelo português enquanto idioma oficial e único,
impondo a obrigatoriedade a todos os militantes de a falarem, mesmo em conversas
privadas. Através desta opção decidia-se de forma sumária a questão das precedências
entre as línguas africanas, permitindo uma homogeneização linguística, nomeadamente
nas salas de aula. Contudo, numa primeira fase, acabou por funcionar como obstáculo ao
acesso dos alunos aos níveis mais elevados do ensino, já que os obrigava a uma fluência
da língua portuguesa de que a maioria não dispunha (Panzer, 2009, p.810).

«A unidade nacional e o Português foram o nosso cavalo de batalha... E


conseguimos, embora a grande maioria [dos estudantes] fosse do Norte. Não sei se no
total seria a maioria, mas em termos de grupo eram de facto maioritários os de Cabo
Delgado e do Niassa. Depois havia um pouco de todo o resto do país. [...], Mas o
Português.... Era quase que proibido falar a língua materna. Não era totalmente proibido,
mas havia uma pressão bem forte. Todo o tempo em que estive em Bagamoyo e depois
nas escolas da FRELIMO o meu foco estava em só falar Português. Foi muito mais fácil
para o Jan Draisma120 começar a falar Maconde, do que para mim [falar Maconde]... Eu
não devia fazer isso, porque seria entendido como um incentivo. E nós não queríamos
fazer nenhum incentivo que pudesse criar [divisão]… Naquele tempo não se pensava na
diversidade cultural, isso não estava em causa, estava ali em causa uma Nação e um povo.

119 Paradoxalmente porque esta era a mesma estratégia utilizada por Portugal enquanto lógica de
ocupação colonial e imposição política, social e cultural.
120 Um dos professores estrangeiros cooperantes com o Instituto Moçambicano.
144
Eu acho que o português foi estrategicamente escolhido pela FRELIMO para ajudar nessa
batalha. “Abaixo a tribo e viva a Nação”: diziam os tempos.» (Elisabeth Sequeira,
entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

A ideia de unidade nacional opunha-se assim à ideia de etnia, apesar de


Moçambique ser constituído por diversos grupos étnicos bem diferenciados entre si. Neste
sentido, as disciplinas de História e Geografia, pelo seu carácter problematizador e
unificador do espaço nacional, eram objeto de uma atenção muito especial por parte do
Departamento de Educação e Cultura. O conteúdo ensinado nestas disciplinas centrava-
se na informação existente sobre o território moçambicano, afastando-se da matriz
colonizadora que, ao obrigar os estudantes em Moçambique a saberem
pormenorizadamente a História e Geografia de Portugal121, limitava a informação sobre
África ao período das descobertas (Cabaço, 2010, p.110). Promovia-se junto destes jovens
a reestruturação intelectual dos conceitos de soberania e Nação. Assim, atentos à
importância da inclusão cultural como um dos pontos basilares na reconstrução nacional,
a FRELIMO e o Instituto Moçambicano estimulavam a expressão cultural enquanto fator
de unidade, isto é, aproveitavam, nomeadamente, a arte performativa como forma de
interação, conhecimento e aproximação dos diversos grupos étnicos, elevando-a a fator
de orgulho patriótico. A diversidade existia e era aceite desde que se mantivesse no
domínio cultural e longe das línguas e autoridades tradicionais autóctones. Promovia-se,
desta forma, um «melting pot» que pretendia favorecer o entrosamento de todos os
moçambicanos e o nascimento de uma nova identidade nacional. Simultaneamente, a
expressão artística moçambicana também tinha um pendor diplomático, já que as danças
tradicionais eram apresentadas em todas as reuniões internacionais onde houvesse uma
delegação de jovens estudantes, e até a venda, pelo Instituto, de trabalhos de escultura122
era encarada como um meio de financiamento do movimento de libertação.

121 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p. 15.
122 AHM, Arquivo FRELIMO, Pasta O, Comissariado Político, caixa 3, Cópias da correspondência
expedida para o Instituto Moçambicano, Secção do Comissariado Político Nacional para Janet Mondlane,
145
Alguns campos de acolhimento, mas, particularmente, a escola secundária,
enquanto agente preferencial da mudança social e da criação da unidade nacional,
tornaram-se nos principais polos aglutinadores de um orgulhoso ressurgimento cultural
moçambicano.

«Os professores eram principalmente do Sul [de Moçambique], bem como, alguns
combatentes que apareciam e que vinham, e os grupos culturais da FRELIMO que, volta
e meia, vinham para ajudar nas coisas da cultura... Os nossos melhores dançarinos iam ter
com eles durante as férias, quando estavam em Nachingwea e voltavam sempre com
muito mais ideias, ali havia muitas danças de todo o país. Em Bagamoyo, os programas
culturais tinham sempre danças.» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de
novembro de 2015, Maputo).

As escolas primárias, e sobretudo a escola de Bagamoyo que, após o fecho da escola


de Dar-es-Salaam, passou a acolher os estudantes do ensino secundário, foram essenciais
para todo o processo de libertação. Permitiram, através dos estudantes, não só divulgar
mais rápida e eficazmente os ideais da FRELIMO pela população, como, concluído o
processo de independência, ajudaram a fornecer quadros técnicos que viriam a ser
essenciais ao novo país.
Posteriormente, com a declaração de independência em 1975, a escola secundária
de Bagamoyo foi transferida para Ribaué, na província moçambicana de Nampula,
mantendo o grupo de alunos mais novos e o mesmo corpo docente, demonstrando bem a
importância dada a este programa de ensino e ao seu empenhamento na criação do
conceito de «Homem Novo», de que a FRELIMO tanto se orgulhava.
Extinto em 1975, o Instituto Moçambicano ajudou a lançar as bases para o novo
país, e o seu projeto educativo, enquanto legado, permitiu continuar a expandir a filosofia
da revolução.

15 de janeiro, 1970.
146
«Eu tenho dificuldade em associar o Instituto Moçambicano ao Moçambique atual.
Teria de desenvolver uma outra teoria: - o que acha que teria acontecido se a FRELIMO,
durante a luta de libertação nacional, não tivesse feito o trabalho que fez na educação?
Por exemplo, há muitas pessoas que não teriam tido acesso à escola se a FRELIMO não
tivesse criado escolas nas zonas libertadas, mas é possível que nestas escolas os cadernos,
os lápis e até a roupa tivessem vindo através do Instituto.... Aí sim, há uma relação... Na
verdade, existe um número considerável de quadros que passaram por lá... Mas a
FRELIMO nunca separou muito, sempre se chamou a escola da FRELIMO. Tanto que,
depois dos acordos de Lusaka, a escola secundária da FRELIMO que era Bagamoyo (às
vezes nem se chamava Instituto [à instituição educativa de Dar-es-Salaam], mas
simplesmente escola secundária) foi transferida para a província de Nampula, em Ribaué,
com todos os professores. E foram criadas mais escolas, mesmo aqui na cidade [Maputo],
chamadas escolas da FRELIMO, que funcionaram ainda durante algum tempo….
Naturalmente, com esta relação ficou difícil separar, neste processo, o trabalho do
Instituto Moçambicano do trabalho de educação feito pela FRELIMO.» (Feliciano
Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

4.1.1. O confronto dos jovens com as autoridades política, militar e patriarcal: o


empoderamento feminino

Muitos dos futuros quadros técnicos de Moçambique e da FRELIMO começaram,


ou tiveram oportunidade de prosseguir, o seu percurso estudantil nas escolas que a Frente
e o Instituto Moçambicano implementaram em conjunto. Foi aqui que, pela primeira vez,
tomaram consciência da responsabilidade e importância políticas que recaíam sobre si
próprios. Estes jovens sabiam estar a usufruir de uma oportunidade única de evolução
pessoal, pelo que também lhes era exigido uma entrega completa à aprendizagem, aos
ideais, e aos sacrifícios da luta de libertação.
Nas escolas, especialmente nas duas que tiveram a responsabilidade do ensino
secundário, havia a consciência coletiva de que os alunos estavam a ser preparados para
serem o futuro do novo país. Assim, desde o início, os jovens estudantes assumiram um
estatuto de elite intelectual, intocável e imprescindível para o futuro de Moçambique, ao
147
ponto de se julgarem salvaguardados do esforço da guerra. Ao contrariar esta ideia de
elite estudantil, a liderança da FRELIMO precipitou a revolta de uma parte significativa
dos alunos, nomeadamente da escola secundária e dos bolseiros universitários, que
retaliaram aliando-se à oposição interna da Frente e envolvendo o Instituto nos conflitos
que originaram a crise de 1968123.
Panzer esclarece a este propósito que:

«A possibilidade de estudar no estrangeiro, na década de sessenta, serviu como a


proverbial “cenoura” para a disciplina, motivação e controlo da juventude na escola
secundária, e restantes locais de ensino, da FRELIMO. O acesso (ou a falta dele) à
educação universitária foi mais um dos aspetos a contribuir para os eventos do Instituto
Moçambicano, em março de 1968. Em causa estava o facto de, devido à escalada do
conflito anticolonial, os líderes da FRELIMO terem começado a impor severas restrições
ao número de estudantes a frequentarem o ensino no exterior.» (2009, p.813).

Esta autorrepresentação inflacionada do próprio valor individual que os estudantes


demonstravam, apesar de entrar em choque com os ideais igualitários defendidos pela
Frente, acabava por se ver legitimada pela limitada capacidade financeira do Instituto
Moçambicano, que não conseguia responder, de igual forma, a todas as solicitações de
carácter educativo. Isto é, os jovens moçambicanos mais velhos, refugiados na Tanzânia,
com níveis escolares mais baixos, não encontravam na Frente as mesmas oportunidades
de acesso à educação oferecida a alguns dos seus pares. Para poder ser aluno do ensino
secundário era necessário reunir uma série de condições, competências e potencial
reconhecido pelos professores. Desde logo, os estudantes não podiam ter mais do que 18
anos e tinham de trazer uma educação formal mais ou menos sólida, com um
conhecimento da língua portuguesa suficientemente fluente para poder acompanhar as
aulas (Panzer, 2009, p.810).

123 Vide: 3.2 A crise de 1968-69 no Instituto Moçambicano, p. 106.


148
Como consequência, estes jovens, que se encontravam numa condição excecional
de mais-valia dentro do movimento de libertação, e a quem era prometido um futuro
coincidente com o ideal revolucionário, confrontavam-se agora com a exigência da
FRELIMO e do Instituto Moçambicano no sentido de demonstrarem uma efetiva e total
disponibilidade para as tarefas que lhes eram impostas pela luta, nomeadamente o seu
contributo nos programas de alfabetização promovidos pelo movimento nos campos de
refugiados e nas zonas libertadas. Assim, quer a educação formal, quer as campanhas de
alfabetização, serviam simultaneamente como formatação disciplinar e ideológica, tanto
para os jovens instrutores, quanto para os refugiados. Emissores e recetores encontravam-
se, desta forma, alinhados na promoção do movimento de libertação e na divulgação e
aplicação da sua doutrina.

«A presença de jovens educados nos campos de refugiados demonstrava o


compromisso da FRELIMO em expandir a educação a todos os moçambicanos, bem
como dava visibilidade à sua capacidade de usar os seus jovens enquanto agentes pró-
ativos do movimento de libertação.» (Panzer, 2009, p.812).

Através da difusão dos ideais revolucionários defendidos pela FRELIMO, estes


jovens instrutores veiculavam uma mensagem que punha em causa, de forma flagrante,
os poderes tradicionais e coloniais, bem como as visões raciais, colonialistas, de classe, e
de género, que a maioria dos refugiados reconhecia e mimetizava (Panzer, 2009, pp.813-
817). Esta situação, aliada ao conflito intergeracional, veio-se a revelar, simultânea e
paradoxalmente, uma ameaça para a continuidade da própria Frente, uma vez que também
punha em causa a liderança interna do movimento e as suas estratégias, dando origem a
uma série de questões fraturantes que só viriam a ficar resolvidas no II Congresso, graças
a um reforço da liderança interna da FRELIMO e à consequente aposta na reafirmação da
sua doutrina revolucionária e do ideal socialista124.

124 Vide: 2.4 O II Congresso e a mudança definitiva de rumo ideológico, p. 62.


149
Encerrada a escola secundária de Dar-es-Salaam, e resolvidas as fragilidades
internas do movimento de libertação, a FRELIMO optou por uma abordagem doutrinária
rígida junto dos seus militantes, de forma a prevenir futuros desvios ideológicos. Neste
sentido, a Frente e o Instituto Moçambicano uniram esforços na formatação psicológica
dos estudantes, segundo uma matriz de doutrinamento ideológico, com um
desenvolvimento de estratégias ao nível de quadros mentais e sociais, inspiradas em
práticas autoritárias oriundas de países socialistas, que promoviam a autocensura e uma
hipervigilância constante de toda a comunidade. Assim, pretendia-se uma subjugação do
indivíduo ao coletivo e uma submissão social e política generalizada.

«A educação política era permanente, porque tínhamos reuniões de turma em que


falávamos sobre os nossos problemas, o que não estava bem, o que podia melhorar –
sentido de crítica e autocrítica. Se alguém tivesse roubado alguma coisa a turma podia
dizer que não estava a sentir sinceridade nas desculpas apresentadas. Penso que foi uma
energia política muito positiva na altura. Era o que os mais velhos chamavam da criação
do “Homem Novo”, formatavam as pessoas para pensarem de uma outra maneira, com
abertura de conhecimento. Tínhamos palestras com pessoas como o [Jorge] Rebelo, entre
outras, que vinham frequentemente à escola reunir connosco e a liderança máxima da
FRELIMO estava muito presente. […]. Uma vez por semana as turmas tinham de se
reunir, para falar sobre a semana, quem estava doente, o que estava a acontecer... E depois
nas disciplinas... Se alguém pensava em fugir de uma atividade a turma era obrigada a
discutir o assunto e o aluno tinha de se explicar. A doutrina era feita neste sentido em que
o aluno era sempre puxado para a unidade escolar. Havia uma energia de tentativa de o
reter na unidade escolar... E se o aluno se desviasse, na reunião de turma, ou reunião de
classe (uma reunião bem mais séria) falava-se dele enquanto indivíduo, responsabilizava-
se o seu comportamento e as suas motivações. Então, quando viesse um dirigente, como
o presidente Samora, ficávamos todos maldispostos, porque ele recebia o relatório escolar,
sobre os bons e maus alunos. [...] E no fim da reunião vinha a lista dos alunos que, ou iam
ser expulsos por indisciplina tremenda, ou que tinham queixas e avisos contra si.»
(Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

150
Parece-nos, assim, legítimo afirmar que a estratégia educativa adotada conferia ao
grupo, através da coletivização das rotinas e das próprias vidas dos alunos, um controlo
censório, de carácter policial, aos níveis moral, ético, político e ideológico, com poderes
para sancionar e corrigir os indivíduos. As reuniões coletivas a que os estudantes de
Bagamoyo se sujeitavam regularmente, e onde se procedia através de um verdadeiro
julgamento público, segundo uma dinâmica de crítica e autocrítica, à avaliação e correção
do desempenho político e ideológico, pretendiam na verdade prepará-los para a adesão
incontestada aos valores da FRELIMO.
A transformação social tinha-se tornado, a par com a libertação de Moçambique,
um dos maiores objetivos da FRELIMO, fazendo da criação do «Homem Novo», segundo
os pressupostos socialistas igualitários, a norma comunitária a defender e implementar
dentro do movimento e do futuro país. Neste sentido, a condição de género, cujo
paradigma vinha a sofrer alterações desde a criação do Instituto Moçambicano, promoveu
e estimulou uma fragmentação do panorama cultural e social vigente, através da
oportunidade dada às raparigas para aí estudarem em condições semelhantes aos colegas
do sexo masculino, o que traria consequências ao nível da igualdade de géneros que se
estenderiam no tempo125.
Ao fundar o Instituto Moçambicano, Janet Mondlane, criou na prática um sistema
informal de quotas educativas destinadas às raparigas, permitindo que, através da
educação formal, lhes fossem garantidas ferramentas para participarem ativamente no
desenvolvimento de Moçambique. Dava-lhes, assim, poder efetivo para, ainda que a um
nível diferente do dos rapazes, pudessem confrontar o sistema tradicional patriarcal
africano, bem com as práticas racistas e sexistas das autoridades coloniais portuguesas,
que minoravam o estatuto e poder femininos.

125 Especialmente se tivermos em consideração que o Destacamento Feminino seria formalmente


constituído em 1968, apesar de haver indicação de que algumas mulheres já faziam serviço militar desde
1965. Através do ensino e do Destacamento Feminino, estava dada a possibilidade às mulheres de verem a
sua condição de género formalmente alterada dentro da FRELIMO, conseguindo uma maior equiparação
aos homens no que respeitava a oportunidades e responsabilidades, apesar de os postos de liderança máxima
dentro da Frente lhes continuarem vedados até à independência.
151
Para Panzer:

«Contudo, este era também um expediente político e ideológico destinado a


providenciar o acesso à educação das jovens raparigas pois, embora o seu futuro papel
em Moçambique fosse previsivelmente diferente do dos rapazes, dava à FRELIMO uma
oportunidade de promover o conceito de igualdade presente na sua ideologia. […] Desta
forma, a educação era usada como uma arma numa guerra de duas frentes contra a
ignorância e a exclusão». (2009, p.810).

Todavia, independentemente da maior sensibilidade demonstrada em relação à


promoção da igualdade de género, o facto é que as raparigas, mesmo dentro da Frente
continuaram a ser penalizadas na sua condição de mulheres, nomeadamente quando
confrontadas com um quadro de gravidez não desejada. Sendo que, a este respeito, a
FRELIMO e o Instituto não demonstravam qualquer complacência, expulsando as alunas
do ensino secundário e impossibilitando-as de prosseguirem os estudos programados.
Porém, tendo em atenção a formação que já detinham, era permitido às jovens mães
prosseguirem para uma formação básica como professoras, assistentes de enfermagem,
ou no secretariado, de forma a contribuírem para o desenvolvimento da comunidade. Para
o efeito, enviavam as jovens, especialmente aquelas que optavam por não casar, para um
dos centros de acolhimento educativo com o objetivo de terem ali os seus filhos e poderem
redefinir o seu projeto de vida estudantil, através da frequência de um curso de formação
mais básico:

«Eram expulsas, iam de castigo ao centro de Nashingwea, ou ao centro educativo


de Tunduru, onde ficavam professoras, enfermeiras... Mas, eram expulsas. O castigo era
perderem a oportunidade de continuarem com a sua carreira estudantil, beneficiando de
escola secundária. E era um grande castigo, porque se terminava o ciclo de conhecimento
sem ter alternativa. Eu discuti muitas vezes com a minha mãe sobre o assunto...» (Nyeleti
Mondlane, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

152
Este tipo de situação era vivido de forma dramática por todos os intervenientes. A
escola secundária perdia os dois alunos envolvidos e estes, por sua vez, viam os seus
projetos cair por terra, sendo obrigados a desempenhar outras funções dentro do
movimento.
Inicialmente, só a rapariga sofria as consequências, mas, com a passagem para a
escola do campo de Bagamoyo, ambos os infratores, rapaz e rapariga, passaram a ser
submetidos ao mesmo castigo, sujeitando-se à expulsão daquele nível de ensino. Elisabeth
Sequeira recorda a problemática das gravidezes precoces como uma situação de particular
dureza:

«Às vezes era tratado com uma dureza muito grande, recordo-me que os poucos
alunos que foram enviados de volta para o interior o foram por causa disso. Porque
namoraram, porque engravidaram... Os dois iam embora, a menina e o rapaz, de regresso
ao interior para ter lá o bebé.» (Entrevista realizada a 19 de novembro de 201, Maputo).

A educação sexual strictu sensu nunca foi uma das disciplinas a constar do currículo
escolar, isto é, tirando as poucas aulas de biologia sobre o assunto, a dinâmica das relações
amorosas entre os alunos e o ensino para o planeamento familiar não chegou a ser uma
questão debatida dentro das escolas. Ainda que Hélder Martins (entrevista realizada a 14
de outubro de 2015, Maputo) refira a existência de uma consulta de planeamento familiar,
implementada por si na clínica do Instituto Moçambicano126 a pedido das mulheres de
alguns dirigentes, e onde chegou a aconselhar as alunas que o solicitassem. Contudo, não
verificou uma grande adesão ao serviço. Por medo de represálias sociais, vergonha, ou
mesmo por receio de má interpretação por parte dos progenitores das jovens, que
poderiam considerar o Instituto como instigador de práticas sexuais, esta iniciativa não
teve continuidade.
Nielety Mondlane, na altura aluna da escola secundária de Bagamoyo, admite que
a situação levava as alunas ao desespero, recorrendo ao aborto clandestino com medo das

126 Vide: 5.1.2. Uma tentativa de implementar o planeamento familiar, p. 250.


153
represálias: «abortos? Claro que fizeram... Mas acabava-se sabendo, porque às vezes
corria mal e a menina era expulsa. Mas de certeza que também houve quem o tivesse feito
e não se chegou a saber...» (entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).
A oportunidade única de estudar era um grande catalisador de vontades junto destes
jovens, e a Frente de Libertação contava com o apoio e trabalho de todos quantos tivessem
formação académica para ajudar a construir e dirigir o futuro país, independentemente do
seu género. Pelo que a educação, mais do que uma questão social, desempenhava um
papel estratégico aos mais variados níveis, do político, económico e social, à propaganda
internacional política e humanitária. O Instituto Moçambicano, e a sua gestão cuidada dos
recursos que lhe eram confiados, foi determinante para fazer da educação uma das
bandeiras por excelência da FRELIMO. O projeto educativo foi o instrumento que
permitiu ao movimento de libertação pensar e preparar a independência de Moçambique,
mas sobretudo, funcionou enquanto moldura de capacidade administrativa que
apresentava a Frente como um dos vetores de legitimidade política aos olhos da
comunidade internacional. Ou seja, a FRELIMO alinhava-se assim como a única opção
política com condições para governar um novo país, com capacidade imediata para
colmatar as muitas lacunas de quadros resultantes da fuga da maioria dos cidadãos
portugueses com responsabilidades em áreas estratégicas. Estes jovens, rapazes e
raparigas, desempenharam, desde o início, um papel importante no xadrez político interno
e externo da FRELIMO:

«Eu diria que os estudantes estavam a ser preparados para serem quadros da
FRELIMO, para irem trabalhar: na área da educação nas zonas libertadas, para existirem
melhores escolas no interior; na área da saúde; na área militar, da artilharia, de tudo aquilo
em que fosse preciso reconhecimento, fazer mapas... Em tudo quanto fosse necessários
quadros, até a produção agrícola, a organização do comércio, porque era todo um país que
estava a funcionar em todas essas áreas não só militares, mas também civis: sociais e
económicas e que tinham de se desenvolver...» (Teresa Veloso, entrevista realizada a 17
de novembro de 2015, Maputo).

154
4.1.2. Acautelando as necessidades básicas dos estudantes

Dentro do paradigma da educação enquanto formadora do cidadão e da sociedade


decorrente de um projeto humanitário, o Instituto Moçambicano esforçava-se por
acautelar as necessidades básicas dos seus estudantes, providenciando a todos os jovens
um apoio alargado que se estendia do acompanhamento individualizado, para enfrentar
as dificuldades de aprendizagem, até ao provimento de itens como a alimentação, saúde
e higiene, vestuário, e material escolar127.
Todos os alunos eram vistos pela FRELIMO como imprescindíveis e, como tal, o
insucesso na aprendizagem era descartado à partida. Assim, com o objetivo de garantir o
sucesso académico a todos os estudantes, o Instituto Moçambicano adotou, desde o início,
uma estratégia de trabalho e acompanhamento constante dos alunos, dentro e fora do
horário das aulas. Envolvendo, quer professores, quer colegas (em regime de estudo
partilhado), que se empenhavam numa aprendizagem coletiva, repetindo e explicando as
matérias até à exaustão.

«Havia uma coisa que para mim foi marcante. Era proibido, não por lei, mas porque
não podia acontecer, nenhum aluno podia reprovar. Não podia acontecer. Nós tínhamos
um sentimento de que éramos tão poucos e precisávamos de tanto que não se podia
desperdiçar nenhum aluno. […]. Os alunos logo a seguir ao jantar iam para o estudo e os
professores todos estavam à volta do estudo, e por isso é que eu digo que era proibido
algum aluno reprovar, porque qualquer aluno que tivesse a mínima dificuldade tinha logo
todo um trabalho em cima de si, com o professor a explicar de novo e um colega que
melhor pudesse estudar com ele, até ter notas para passar. Não era permitido chumbar por
não saber...» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Esta metodologia, que começou por ser inicialmente aplicada na escola secundária
de Dar-es-Salaam, foi a solução encontrada para conseguir manter todos os alunos ao
mesmo nível escolar. Uma vez que, a maioria dos jovens refugiados não trazia consigo

127 Vide tabelas em anexo, pp. 364-367.


155
qualquer documentação que atestasse a idade, ou o nível de instrução, o Instituto, ao
proceder à seleção e ingresso dos jovens na escola secundária era obrigado a confiar na
veracidade dos seus relatos, bem como em impressões gerais, baseadas na sua aparência
física (atribuindo-lhes uma idade estimada) e em testes de competências, onde os
candidatos eram avaliados, em última análise, por comparação com os colegas que
aparentavam ter a mesma idade.
Apesar de este tipo de avaliação ser muito subjetivo, ele não era encarado como um
obstáculo, mas como uma mais valia que exigia dos alunos mais velhos uma atitude que
influenciasse positivamente os colegas mais novos. Assim, tal como argumenta Panzer,
era comum esperar o mesmo nível de maturidade e educação entre adolescentes de grupos
etários muito diferentes:

«Apesar de a escola secundária da FRELIMO ter um caráter misto, os estudantes


de idades diferentes e pertencentes a grupos distintos frequentemente assistiam às
mesmas aulas. O resultado consistia numa sala de aulas heterogénea constituída por
jovens de diferentes idades e géneros com um nível de instrução similar. As diferenças
de idades entre estudantes não afetavam necessariamente o nível académico na sala de
aula, mas os alunos mais velhos diferenciavam-se dos mais novos, uma vez que se
esperava daqueles uma atitude de modelo e liderança perante os colegas mais novos.»
(2009, p.811).

A respeito das restantes condições básicas à sobrevivência, e apesar de a


documentação consultada ser omissa para a esmagadora maioria das escolas,
conseguimos perceber, na generalidade, o tipo de acompanhamento e apoio prestado pelo
Instituto Moçambicano aos estudantes, nomeadamente através dos relatórios que eram
enviados aos países doadores e nos quais se discriminava o tipo e quantidade de artigos
que eram entregues ao corpo estudantil no início de cada ano letivo.
A escola secundária de Dar-es-Salaam, enquanto escola internato, mantinha uma
rotina comum a todas as escolas da região, não faltando sequer a utilização de uniformes

156
escolares, fornecidos pelo Instituto Moçambicano, uma ou duas vezes por ano,
dependendo dos itens.
Os kits destinados ao tempo de frequência das aulas eram constituídos por um par
de sapatos de pele, três pares de sapatos de lona, calças ou saias, camisola ou blusa, quatro
pares de meias e demais roupa interior, uma camisola, seis pares de lenços, uma escova
de sapatos, quatro t-shirts, duas camisolas pesadas e dois pares de meias pesadas.
A propósito dos uniformes escolares, de uso comum na maior parte das escolas da
África Austral, Panzer recorda que estes não configuravam uma prioridade no orçamento
do Instituto Moçambicano:

«As fotografias nestes panfletos [editados pelo Instituto Moçambicano] também


mostram como os uniformes escolares não constituíam sempre a regra. Apesar de o uso
destes ser comum para os estudantes africanos que frequentam escolas missionárias, ou
outras, em África, os rapazes na escola secundária da FRELIMO usavam uma camisa
branca e calças escuras e as raparigas usavam blusas e saias variadas. Assim sendo, é
pouco provável que o fundo destinado a um uniforme escolar universal tivesse prioridade
sobre os materiais pedagógicos necessários a uma sala de aulas, à própria sala de aulas, e
aos salários dos trabalhadores, professores e demais pessoal administrativo; a prioridade
passava por educar o número máximo de estudantes possível.» (2009, p.813).

Apesar de alguns dos itens serem comprados e a esmagadora maioria ser fruto de
doações internacionais, o Instituto mantinha um alfaiate ao seu serviço para a execução e
arranjos de peças de vestuário, tais como calças, calções, saias, camisas, camisolas e
blusas128.
Marcelina Chissano (entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo) relata
que, inicialmente, a escola secundária de Dar-es-Salaam ainda atribuía aos seus alunos
uma mesada residual destinada a pequenas despesas, tais como, pasta de dentes, sabão ou
pensos higiénicos. Mas, com o passar do tempo, o Instituto encarregou-se de satisfazer

128 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.24,25.
157
este tipo de necessidades, encaminhando esse dinheiro para outras valências. Também os
estudantes que eram direcionados para uma formação académica avançada, após a
conclusão dos seus estudos na Tanzânia, continuavam a ser apoiados pelo Instituto
Moçambicano na obtenção de bolsas de estudo em instituições estrangeiras de ensino
superior. O Instituto atribuía-lhes ainda um subsídio de cerca de 435 TZS 129
[correspondente, mediante ajustes à taxa de inflação atual, a 26.100 MZN, ou a 348
EUR130], de forma a fazer frente a pequenas despesas inesperadas. Estas bolsas de estudo
internacionais eram solicitadas pelo Instituto aos mais diversos doadores, governos e/ou
organizações governamentais e não governamentais, no país de acolhimento onde os
estudantes prosseguiam os seus estudos (maioritariamente fora da Tanzânia, ainda que
este país também tenha atribuído bolsas de estudo a estudantes moçambicanos).
No campo de Tunduru, o Instituto Moçambicano disponibilizava, com uma
periodicidade trimestral, kits de roupa destinados aos estudantes, professores e demais
pessoal responsável pelo centro. Contudo, o restante grupo de escolas de ensino primário,
quer nos campos de acolhimento da Tanzânia, quer nas zonas libertadas, estava sinalizado
como tendo necessidades diferenciadas que exigiam respostas mais direcionadas à sua
natureza. Assim, era-lhes fornecido desde material escolar, tecido para confecionar roupa
de seis em seis meses, vários pares de meias, duas peças de roupa interior, composta por
duas camisas interiores e dois pares de cuecas, dois pares de lenços para seis meses, um
par de sapatos de lona, beneficiando tantos os alunos, quanto os professores e restante
pessoal. As escolas situadas no mato, exteriores aos recintos de acolhimento, viam os
seus kits iniciais reforçados por um par de botas e uma camisola pesada131.
Na escola secundária de Bagamoyo, e dado o seu caráter de ensino paramilitar, os
estudantes usavam a farda pingo de chuva como uniforme universal. Aqui, para além da

129 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.24.
130 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um cambio atual de 300 MZN.
131 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.21,22.
158
educação política e para a cidadania, os professores sentiram a necessidade efetiva de
abordar com os seus alunos outras questões de cariz mais individual e higiénico, em modo
de educação não formal.
Esta escola internato tinha sob sua responsabilidade a educação e socialização dos
jovens, substituindo-se ao agregado familiar, ou à sua comunidade de origem. A maioria
destes estudantes teve nos campos de acolhimento o seu primeiro contacto com
instalações sanitárias completas, pelo que, ao se encontrarem numa situação de
deslocados dos seus meios de referência, necessitavam de quem lhes ensinasse as regras
básicas de higiene. Muitas alunas tiveram pela primeira vez acesso a pensos higiénicos,
sendo um dos itens que o Instituto fornecia a todas as mulheres sob a sua alçada.
Assim, os professores, a quem era votado o maior respeito, tinham também uma
função de educadores, substituindo frequentemente a figura parental.

«E a escola, por exemplo, para as meninas, até nos distribuía os pensos higiénicos.
[...]. Todas nós os recebíamos mensalmente…. Viam aqui os seus primeiros pensos
higiénicos. Nós tínhamos reunião das mulheres, já não me recordo com que frequência (a
Elisabeth Sequeira era uma das professoras que falava connosco) e falávamos sobre a
nossa higiene, cuidados especiais que uma mulher tinha de ter, problemas com ciclo
menstrual, identificar nódulos mamários, como tratar do cabelo… [Para os rapazes
também] havia reuniões de casernas e nesse sentido, sim... […] Limpeza nas casas de
banho, era algo constante.... Havia quem as não soubesse usar bem. E tínhamos de apontar
a falha e o seu autor... Estas poderiam ser atividades de género... Mas no resto não havia
diferenças, fazíamos tudo juntos. Os homens faziam tudo tal como nós, partilhávamos
tarefas. (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

Todos os alunos, independentemente da idade (com exceção do caso da escola


secundária em Dar-es-Salaam), eram encorajados pelo Instituto, a providenciarem às suas
necessidades mais básicas. Dentro da doutrina de cooperativismo e da produção coletiva,
a FRELIMO e o Instituto Moçambicano, tentavam colmatar a escassez de meios, bens, e

159
de recursos alimentares, preparando simultaneamente os jovens para a sua
autossuficiência.
Os horários escolares contemplavam várias atividades que permitiam o incremento
da qualidade de vida dos estudantes dentro dos centros, através de atividades ligadas à
produção agrícola e pecuária, e da própria confeção culinária, à confeção da sua roupa ou
de artefactos de carpintaria. Com frequência os alunos eram envolvidos na construção das
instalações da sua própria escola.
Em Bagamoyo, os uniformes eram confecionados dentro da escola e os alunos
cozinhavam para si a carvão, com panelas muito gastas, sendo a comida servida,
inicialmente, no quintal, até à construção de um refeitório. Relativamente à jardinagem e
à agricultura, os jovens já tinham adquirido bastante conhecimento, ainda assim,
deparavam-se constantemente com vários obstáculos de ordem prática e ambiental e, não
raras vezes, situações anedóticas podiam, em última instância, efetivamente, meter em
causa, a sobrevivência do coletivo. A título de exemplo, a preocupação em afugentar os
macacos, que comiam e estragavam a colheita, era uma realidade que envolvia muitos
esforços.132

«Todos nós sabíamos acartar água, cortar lenha, cozinhar, fazer limpeza, trabalhar
na machamba133 (porque eram requisitos básicos). […] Íamos em turmas, para qualquer
atividade íamos em grupos, nunca sozinhos... O que era fascinante, e talvez difícil [de
conceber] na escola, era o facto do rácio rapazes/raparigas nem fazer sentido (penso que
seria algo como 300 rapazes para 30 ou 40 meninas). [...] A minha melhor amiga era mais
velha do que eu três anos, mas era já uma pessoa adulta, madura na maneira de ser... Sabia
trançar, lavar e passar a própria roupa com ferro de carvão, usava arma, cultivava… […]
As minhas amigas eram autossuficientes, sabiam fazer tudo, mas tínhamos supervisão
adulta, sim. Estávamos em turmas e em cada uma delas havia pessoas adultas. Na cozinha

132 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
133 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um cambio atual de 300 MZN.
160
havia dois ou três cozinheiros para cozinhar para trezentas pessoas... Era sempre
destacada uma equipa para ajudar na cozinha. Então, sabia-se fazer um pouco de tudo, de
cozinhar à limpeza. Havia um grupo de alunos que tinha de lavar e passar a roupa dos
professores... Aprendia-se tudo. […] A única coisa que, nós raparigas, não podíamos
[fazer] era trabalhar com enxofre (utilizado nas várias machambas de milho que abrimos
à volta da escola), porque nos diziam que afetava o nosso sistema reprodutor. De resto,
fazíamos tudo, inclusive segurança noturna. (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9
de novembro de 2015, Maputo).

4.1.3. Os professores e os programas curriculares

A fim de colocar em prática o projeto educativo, a escola secundária da FRELIMO,


quer inicialmente em Dar-es-Salaam, quer a posteriormente aberta em Bagamoyo,
contava com a colaboração de professores oriundos de diferentes nacionalidades. De
moçambicanos, na sua maioria combatentes que, por isso mesmo, sofriam alguma rotação
devido à disponibilidade permanente para integrarem outras missões na FRELIMO 134, a
tanzanianos contratados localmente, mas também professores de outras nacionalidades
envolvidos nos acordos de cooperação135.
Eduardo Koloma, Deão e professor no Instituto entre 1967 e 1968, refere a este
propósito que:

«Tínhamos poucos professores moçambicanos, dependíamos de docentes que


recrutávamos de países amigos. Os professores moçambicanos eram Jacinto Veloso,
Fernando Ganhão, eu próprio também dei aulas de Português por algum tempo».
(Eduardo Koloma, Os Padres também vão à Guerra, in Pachinuapa, 2015, p.128).

134 Marcelina Chissano elenca alguns destes professores moçambicanos que, apesar de terem um
conhecimento científico reconhecido, não tinham formação pedagógica: «bem, um deles é o meu marido,
Joaquim Chissano (foi assim que o conheci); também Armando Emílio Guebuza; Campira e um outro
camarada (que de vez em quando desapareciam, ficavam meses fora); depois tínhamos outros que vinham
substituir todos esses...» (entrevista realizada a 18 de novembro de 2015).
135 Jacinto Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo.
161
Independentemente da multiplicidade das nacionalidades presente no corpo docente,
fruto de uma carência constante de professores para o nível de formação exigido pelo
ensino secundário, todos os envolvidos tinham consciência das exigências da causa para
a qual trabalhavam, tendo sido considerados como muito empenhados na instrução dos
jovens a seu cargo136.
A educação, enquanto estratégia para a diplomacia da FRELIMO, ganhava
duplamente com o envolvimento de docentes de diversas nacionalidades, uma vez que os
alunos beneficiavam com uma formação a que era reconhecida qualidade e que lhes era
oferecida por professores com competência pedagógica e cientifica, na maioria dos casos
de matriz ocidental, e cuja abordagem potenciava o conhecimento de outras realidades
culturais. Simultaneamente, estes docentes funcionavam como embaixadores credíveis
do trabalho da Frente junto dos seus países de origem, aumentando a simpatia
internacional perante a causa moçambicana. Também a maioria dos colegas
moçambicanos aptos para dar aulas a este nível tinha obtido a sua formação nas
universidades dos países cooperantes ao abrigo de bolsas internacionais, o que lhes
conferia autoridade moral para impor aos estudantes, através do exemplo, toda uma nova
postura e mentalidade assentes no espírito do «Homem Novo».

«Nós não recebíamos “uma quinhenta”, não tínhamos salário. […] Nós, os que
estávamos no centro como professores da FRELIMO e não tínhamos dinheiro, não
tínhamos nada nosso. Eu não tinha nada meu... Não tinha uma máquina de filmar... Mas
os professores estrangeiros tinham, evidentemente, até porque eles precisavam de ter
imagens para alimentar o apoio à luta de libertação. Portanto, tinham de tirar fotografias,
de registar, de gravar, de escrever, de guardar materiais, porque, quando iam de férias,

136 A propósito do recrutamento de docentes, Hélder Martins refere que: «no Instituto trabalharam
as mulheres que lá apareceram. Como professoras só apareceram estrangeiras. Mas foi essencialmente
quem apareceu... Eu nunca entendi os métodos de seleção do/e para o Instituto. A mesma fonte refere ainda
que o recrutamento de docentes estrangeiros potenciava casos de espionagem internacional, referindo em
particular um casal de professores americanos, os Minter, que, a coberto da cooperação com o Instituto
Moçambicano, seriam informadores da CIA». (Entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).
162
tudo isto era necessário para a causa que eles também apoiavam do outro lado do mundo.
Mas nós outros não, não tínhamos sítio, não tínhamos para onde ir de férias, não havia
nada, sítio nenhum, para onde pudéssemos ir. […] Nós estávamos numa guerra de
sobrevivência, pela independência, por uma sociedade em desenvolvimento muito
idealista, para o “Homem Novo”, mas ao mesmo tempo era também sobrevivência,
porque sabíamos que se a guerra não acontecesse e a vitória não viesse... O que seria feito
de nós?» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Os docentes moçambicanos, na sua condição de professores e militantes da


FRELIMO, esforçavam-se pelo ideal revolucionário e pela única oportunidade possível
de futuro, naquela que consideravam ser a sua pátria.
Só os professores cooperantes usufruíam de salário, previamente acordado com as
suas organizações de origem. Aos colegas moçambicanos, o Instituto concedia um valor
monetário residual destinado a pequenas despesas, à semelhança de qualquer outro
funcionário, para quando, por exemplo, se deslocassem a Dar-es-Salaam. Porém, alguns
dos professores nunca chegaram a reclamar qualquer dinheiro, satisfazendo as suas
necessidades com tudo aquilo que o Instituto providenciava aos funcionários, alunos,
professores, militares e restantes elementos dos campos.

«Em Bagamoyo, eu tinha direito à alimentação, a roupa (não só o fardamento - que


era feito na secção de alfaiataria que fazia o fardamento para todos os alunos; quando eu
lá cheguei tiraram-me as medidas e fizeram-me também uma farda militar). De vez em
quando chegavam fardos de roupa usada oferecida, que também era direcionada para a
alfaiataria, e os alunos eram chamados para ver o que lhes servia, de acordo com tamanhos
e medidas. Eu fui lá chamada e lembro-me que recebi uma blusa... E quando ia a Dar-es-
Salaam, davam algum dinheiro para gastar... Quando fui com o João Ferreira, não me
lembro se fui e voltei, ou se lá fiquei uns dias no Instituto Moçambicano para conhecer...
Nestas ocasiões, o senhor Daniel Mbanze, que era o tesoureiro, chamava-me para me dar
um estipêndio para pequenas despesas pessoais: para comer um sorvete, tomar um café
na cidade, ou fazer uma pequena compra de champô, por exemplo... De resto, eu não tive

163
champô e reclamei, lá mesmo, em Dar-es-Salaam, acabei por ter de lavar a cabeça com
sabão e o cabelo ficou todo espetado...» (Teresa Veloso, entrevista realizada a 17 de
novembro de 2015, Maputo).

Os docentes nunca foram obrigados a adotar qualquer fardamento durante as aulas.


Contudo, por questões práticas, de orgulho pessoal e coletivo, os professores de
Bagamoyo que eram membros do movimento de libertação optavam por usar a farda
pingo de chuva, à semelhança dos seus alunos. Compreensivelmente, os colegas
cooperantes, enviados por organizações não governamentais e religiosas, não o faziam,
já que, apesar de apoiarem com o seu trabalho o Instituto Moçambicano, não queriam ser
confundidos com os restantes colegas militantes da Frente, uma vez que esta situação
poderia agravar as relações diplomáticas dos seus países de origem. Assim, evitavam uma
imagem que poderia sugerir uma colagem ao movimento militar, conforme recorda
Elisabeth Sequeira:

«Todos nós andávamos de farda militar. Eu usava sempre farda, habituei-me de tal
maneira à farda... Os professores estrangeiros não, nem podiam... Só usavam farda os que
eram membros da FRELIMO. […] Eles estavam-nos a ajudar… Estavam a apoiar-nos,
não era a causa deles, portanto a situação era diferente, não podíamos exigir». (Entrevista
realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Os professores da FRELIMO, militantes imbuídos ideologicamente num espírito de


missão, sentiam-se responsáveis por corresponder a um constante desdobramento de
funções decorrente da exiguidade do corpo docente. Na falta de alternativa, lecionavam
com frequência matérias para as quais não tinham qualquer formação inicial, obrigando-
se a um esforço pessoal de requalificação, visando o domínio da matéria nas áreas
académicas com docentes em falta. Sem que com isto ousassem pôr em causa um bom
resultado escolar. O sucesso de cada estudante era considerado como uma obrigação
partilhada por todos os implicados no processo de aprendizagem, e uma conquista que
não podia ser descurada.

164
«Eu costumo dizer que, apesar de ser formada em matemática, foi o que ensinei
menos. Porque, logo a partir do segundo ano, entrei na disciplina de Materialismo
Dialético e de História da FRELIMO em cheio. Estudei os livros todos de Engels, Marx
e Mao Tsé-Tung, para buscar e tirar tudo aquilo que pudesse fundamentar, e abrir as
cabeças aos nossos alunos para a luta e para a preparação para uma nova vida. Este
trabalho todo também deu volta na minha cabeça, porque, para convencer e explicar bem
a alguém, tem de se interiorizar e entender muito bem. Eu realmente entendi. Os meus
alunos até hoje continuam a chamar-me “camarada professora”... Até o atual Presidente
da Republica137 foi meu aluno em Cabo Delgado, depois da independência. Consideram-
me muito menos professora de matemática e muito mais uma professora para a vida. Dá-
me muito prazer!» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015,
Maputo).

Assim, a inerência da luta e a construção do «Homem Novo» exigiam, através do


improviso, que os professores fossem capazes de operar resultados escolares exemplares
nas mais diversas matérias através de um exercício de disponibilidade dos docentes para
a sua auto-requalificação formativa. Desta regra excluíam-se os professores cooperantes,
uma vez que, por serem estrangeiros, ao serviço de organizações amigas, e habituados a
sistemas de ensino mais padronizados, eram escusados pela Frente deste tipo de
reconversão académica que exigia abordagens alternativas para uma formação altamente
politizada.

«Depois havia coisas cómicas, numa situação onde não se tem professores... Eles
dizem que fui eu que dei a ordem, mas não me recordo... Numa direção coletiva alguém
é o porta-voz e eu devo ter sido a porta-voz nomeada para dizer à Pamela [Rebelo]138 de

137 Filipe Jacinto Nyusi.


138 Pamela Lodge Rebelo, de origem inglesa, pertencia ao Comité de Informação para Moçambique,
Angola e Guiné Bissau (MAGIC), órgão que fazia campanha no Reino Unido pela descolonização das
colónias portuguesas. Chegou à Tanzânia para colaborar com a FRELIMO, na companhia de Polly Gaster.
Já depois de casada com Jorge Rebelo, fez preparação militar com o Destacamento Feminino e deu aulas
165
que tinha de ensinar História e ela não sabia nada de História, mas recorda-se de que eu
lhe dei a ordem... Ela fez a licenciatura depois, naquele tempo acredito que não era ainda
licenciada, era muito nova. […] Portanto, quem não era indispensável numa disciplina ia
dar outra.» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

O esforço dos professores moçambicanos visava a sobrevivência coletiva, já que a


sua futura cidadania dependia da independência de Moçambique. Quase tudo era feito de
raiz tendo como finalidade a luta de libertação. Assim, tendo em conta a singularidade
histórica do momento, não restava aos docentes outra alternativa que não a da
experimentação enquanto método de trabalho recorrente:

«Penso que foi em finais de 1972, ou princípios de 1973, que passei a


responsabilizar-me pela parte da direção pedagógica. Era complexo... Não seguíamos
nenhum programa do ensino colonial português, trabalhávamos com base em objetivos
específicos que retirávamos de vários programas, tanto do ensino colonial, quanto dos da
RDA ou da Tanzânia. Os assuntos, e a forma como os encadear, eram trabalhados para
irem sempre ao encontro do objetivo que consistia em preparar os alunos para uma luta
prolongada e para o desenvolvimento do país. Tinham de saber de agricultura, de saúde...
Todos os exercícios e todos os trabalhos que se davam eram virados para o que queríamos
que os alunos soubessem e interiorizassem. Eu aprendi em Bagamoyo a ensinar, porque
realmente, na prática, termina-se a universidade e não se sabe nada. Os alunos ensinaram-
me a saber explicar e a falar devagar... Todas as semanas éramos criticados... Para os
alunos, o Português era uma língua estrangeira...» (Elisabeth Sequeira, entrevista
realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Ainda durante a atividade da escola secundária de Dar-es-Salaam, deu-se inicio a


um projeto pedagógico alargado que visava a reestruturação de toda a metodologia e
currículos escolares que viriam a ser adotados pela totalidade das escolas da FRELIMO,

na escola secundária de Bagamoyo.


166
quer no território tanzaniano, quer nas zonas libertadas. Este esforço, que se inspirou e
adotou os métodos pedagógicos da Europa Ocidental, nomeadamente os dos países
cooperantes do Centro e Norte Europeu, teve como função a total reorganização do
programa de estudo para os ensinos primário e secundário. Os seus mentores e executores
encontravam-se entre os vários professores do ensino secundário que desenvolveram o
projeto de forma considerada diligente, adaptando-o ao longo dos anos.
A escola secundária, quer em Dar-es-Salaam, quer em Bagamoyo, pelas
características do respetivo corpo docente, foi apontada como o centro de referência
pedagógica, metodológica e científica por excelência, assumindo, por essa razão, a
responsabilidade sobre a execução dos materiais pedagógicos a distribuir por todas as
escolas do movimento de libertação, sempre segundo as orientações constantes do
Departamento da Educação e Cultura da FRELIMO.

«Não seguíamos nenhum programa do ensino colonial português, trabalhávamos


com base em objetivos específicos que retirávamos de vários programas, tanto do ensino
colonial, quanto dos da RDA ou da Tanzânia. […] Fazíamos tudo, dos livros que
tínhamos... Outros comprávamos na Tanzânia e os professores estrangeiros, quando iam
de férias, traziam coisas novas. Então, nós íamos procurar o material para fazer os textos
de apoio para tudo. Chamávamos textos de apoio.» (Elisabeth Sequeira, 19 de novembro
de 2015, Maputo).

Dentro do esforço intelectual, e na preparação da abordagem pedagógica, a


descolonização mental dos alunos era considerada como prioritária, a par com a exigência
dos conteúdos escolares: «o objetivo passou por rever o sistema de educação colonial,
transformando-o num outro que preparasse o estudante para a construção nacional, bem
como para os parâmetros académicos internacionais.» 139 No essencial, os currículos
escolares com a chancela da FRELIMO e do Instituto Moçambicano, preparados e
adotados pela escola secundária, tal como os restantes adaptados às escolas primárias,

139 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.7.
167
baseavam-se nos seus congéneres da escola do KIEC140, apesar de terem sofrido algumas
adaptações em disciplinas específicas, resultantes da singularidade da situação
moçambicana:

«O ensino na FRELIMO tinha por objetivo aumentar a consciência das pessoas


para a realidade de Moçambique na altura, para a luta de libertação, pelo que os
programas não se podiam basear apenas nos tanzanianos, nem no que era o programa de
Moçambique do regime colonial. Foi um programa (re)feito pelo Instituto e pela própria
direção da FRELIMO.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015,
Maputo).

Independentemente do Instituto Moçambicano aceder, através das doações


internacionais, a inúmeros bens de natureza diversificada, entre os quais livros de estudo
e de divulgação científica, a opção pela produção própria da generalidade dos manuais
utilizados em sala de aula, inclusive para o ensino primário, respondia, não só, às
necessidades específicas da formação mediante as diretrizes do Departamento de
Educação e Cultura da Frente, bem como permitia a poupança de recursos financeiros
que eram canalizados para outras áreas. A fim de redigirem os manuais, os professores
dispunham do apoio de uma biblioteca 141 , cujos livros, oriundos de diferentes
proveniências, se encontravam escritos em várias línguas. Estas obras, na sua maioria
fruto de doações, ou da compra por parte do Instituto Moçambicano, também podiam ser
adquiridas pelos próprios professores estrangeiros, quando se deslocavam aos seus países
de origem.

«Nós produzíamos os nossos manuais, mas a partir de outros livros, não me lembro
quais... Alguns da Tanzânia. Brasileiros não me lembro, teríamos talvez alguns, mas não
tantos... Eram livros do programa. [...] Tínhamos um programa da matéria a ensinar e os
livros eram feitos pelos próprios professores… Na maior parte dos casos, a partir de cada

140 Jacinto Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.


141 Vide: 4.7. Editora, publicações e bibliotecas, p. 236.
168
aula que era preparada vários dias antes de acontecer na prática. […] Aliás, quando fui
para a Argélia [após os conflitos de 1968], ainda continuei a trabalhar nos livros de estudo
que tinha para terminar: Matemática, Física, Geografia...» (Jacinto Veloso, entrevista
realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Contudo, tendo em consideração o número de escolas primárias espalhadas, quer


pelos campos de acolhimento, quer pelas zonas libertadas, a resposta de materiais
pedagógicos permanecia, na generalidade, aquém das necessidades, obrigando os
professores, mais uma vez, a uma dinâmica de ensino baseada na improvisação,
respondendo o melhor possível com os recursos disponíveis. Estes docentes,
independentemente do seu nível de formação, viam o seu estatuto social acrescido de
reconhecimento público. A prática diária junto dos alunos, os seus conhecimentos e a sua
influência no seio da comunidade, colocava-os numa posição de destaque e referência em
qualquer dos campos, bem como nas zonas libertadas. A comunidade, em geral, e os
estudantes, em particular, aprendiam a dirigir-se ao professor com o máximo respeito,
conforme recorda Nyeleti Mondlane, à época estudante na escola secundária de
Bagamoyo:

«O professor na escola da FRELIMO era Deus. Faltar ao respeito a um professor


era um crime grave. A sua qualidade era boa e as expectativas sobre eles eram muito
grandes... Quando nos cruzávamos com um professor e usávamos boina tínhamos de bater
continência, se não a estivéssemos a usar ficávamos apenas em sentido. Havia um sentido
de hierarquia muito, muito, forte.» (Entrevista realizada a 9 de novembro de 2015,
Maputo).

Apesar da posição reverencial ocupada pelos docentes, de onde se destacavam os


do ensino secundário, os professores eram instruídos no sentido de darem o exemplo,
numa dinâmica de transmissão vertical de conhecimentos, práticas e normas. Assim, dos
docentes moçambicanos era esperado que coadjuvassem nas atividades de
autossuficiência do grupo. Porém, aos colegas cooperantes, apesar de não lhes ser pedido

169
que tomassem parte neste tipo de atividades coletivas, era-lhes imputada a
responsabilidade individual pelo seu próprio bem-estar.

«Nós não os podíamos obrigar a levantarem-se às cinco da manhã para irem fazer
machamba, ou para limpar, mas o mínimo que nós exigíamos é que todas as coisas que
fossem deles, o seu quarto, fosse sua responsabilidade. Ninguém ia fazer limpeza
nenhuma no quarto de ninguém. Eles lavavam as próprias roupas, toda a gente lavava...
Eu não me lembro de ter mandado lavar roupa minha a ninguém. […] Os alunos tinham
turnos para ajudar na cozinha, os professores não, nem os moçambicanos, nem os
estrangeiros. Nós tínhamos outras tarefas, tínhamos de preparar todo o material didático,
tínhamos de datilografar... Eu aprendi a datilografar tudo naquelas máquinas, para depois
ir tirar cópias com o stencil e para distribuir. Todos os nossos alunos sempre tinham
material escrito para estudar. Isso de ditar para tirarem apontamentos inventámos depois
da independência. Mas para isto era preciso ter dinheiro, para o stencil, para o papel...»
(Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

A educação foi encarada, pela FRELIMO e pelo Instituto Moçambicano, como uma
parte estratégica determinante para a luta de libertação. Partindo da captação de recursos
destinados à ajuda humanitária, este projeto, determinante para a construção embrionária
de um Estado Social, tinha, através do trabalho dos professores, a responsabilidade da
criação de bases sustentáveis para uma sociedade nova. O «Homem Novo» nascia assim
através da arma, da enxada e do livro, tal como se encontra ainda hoje patente na Bandeira
Nacional de Moçambique.

4.2. A escola secundária em Dar-es-Salaam

O Instituto Moçambicano decidiu fundar a sua primeira escola ao reconhecer a


dificuldade generalizada dos alunos refugiados oriundos de Moçambique em
corresponder às exigências do ensino secundário tanzaniano. O nível escolar com que

170
estes jovens saíam da colónia portuguesa era considerado insuficiente, resultando numa
evidente incapacidade em acompanhar os colegas das escolas locais.
Assim, foi fundada, ainda que só formalmente, em 1962142, a escola secundária do
Instituto Moçambicano. Localizada na então capital tanzaniana, Dar-es-Salaam, o
principal objetivo desta escola prendia-se, inicialmente, com a formação académica de
cinquenta estudantes moçambicanos, inseridos no âmbito do projeto de cooperação para
o ensino com o Instituto Afro-Americano, através de aulas ministradas no recém-criado
Kurasin International Education Center (KIEC).
No seguimento desta ideia, e perante a realidade de um crescente número de jovens
moçambicanos que chegavam à Tanzânia em idade escolar e com alguma formação, a
Diretora do Instituto preocupou-se, a partir de 1963, em encontrar um espaço onde
pudesse alojar e aumentar a oferta educativa para a crescente comunidade de estudantes
refugiados da colónia portuguesa. «Nos finais de 1964, o edifício estava pronto, com uma
capacidade de cento e quatro lugares para rapazes e dezasseis para raparigas» (Manghezi,
2001, p.238).
Este número tão díspar entre vagas para cada um dos géneros devia-se
essencialmente ao facto de, à época, o número de raparigas a frequentar qualquer nível
de ensino em Moçambique ser incontestavelmente muito mais baixo quando comparado
com os colegas rapazes da mesma idade.
Na sua esmagadora maioria, as meninas eram encaminhadas, desde cedo, para o
apoio à família e para os afazeres domésticos, o que, aliado aos casamentos precoces,
resultava num altíssimo índice de analfabetismo feminino.

«O facto de serem poucas estava relacionado com o regime colonial, onde as


mulheres não tinham quase oportunidade de estudar, excetuando aquelas que iam para as
[escolas das] missões [religiosas], ou que saíam de Moçambique com os pais para a
Tanzânia. Mas havia, todos os cursos tinham alunas, incluindo os cursos de enfermagem.»
(Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

142 Em projeto e legalmente (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
B, documentos avulsos, livreto finlandês sobre cooperação e desenvolvimento, S/D).
171
Esta, que pretendia ser mais uma escola semelhante a todas as outras, foi ao longo
do tempo aumentando exponencialmente as suas valências, de forma a responder ao
máximo de solicitações da comunidade moçambicana refugiada, funcionando como
estabelecimento de ensino com internato, com um dormitório para rapazes, e outro para
raparigas, escola de formação com prática clínica de enfermagem, alojamento de
professores e local de pernoita para militantes da FRELIMO em trânsito:

«Era um local de aulas, construído com fundos da Fundação Ford, mas também era
um lugar de passagem, onde a gente da FRELIMO, em trânsito, ficava instalada. Os
professores e os colaboradores viviam lá. Mas era uma escola típica, com as atividades
típicas de escola com internato.» (Jacinto Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de
2015, Maputo).

Inicialmente, devido ao facto de as instalações do Instituto ainda não se encontrarem


concluídas, os estudantes foram encaminhados para várias escolas de língua inglesa,
situadas em Dar-es-Salaam, sendo que o Instituto Moçambicano se socorria, sobretudo,
dos já citados acordos de cooperação que tinham sido, desde logo, estabelecidos com o
KIEC. Ali lecionavam-se os programas escolares do ensino secundário e de nível médio,
de forma a dotar os alunos de competências que lhes permitissem prosseguir os estudos
em universidades estrangeiras, dispondo de bolsas de estudo conseguidas ao abrigo de
diversos acordos de cooperação que o Instituto mantinha com os países doadores. Em
alternativa, e porque nem todos os estudantes conseguiam obter fundos para estudar no
estrangeiro, ou se encontravam preparados para um projeto pessoal desta envergadura, o
movimento de libertação permitia-lhes obter aqui uma formação suficientemente
abrangente para o desempenho de uma profissão considerada útil, de forma a
desenvolverem o seu trabalho entre a população moçambicana143.

143 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.6.
172
«No Instituto Moçambicano, não formávamos dirigentes, mas sim dávamos
educação a jovens moçambicanos. Naturalmente, dentre os que terminavam a
escolaridade, uns recebiam tarefas imediatas, enquanto outros podiam continuar com os
estudos fora da Tanzânia.» (Eduardo Koloma, Os Padres também vão à Guerra, in
Pachinuapa, Gemo, 2015, p.131)

Inicialmente, ainda através do KIEC, por motu próprio, sobretudo, numa fase já
posterior, a escola secundária do Instituto pôde implementar um programa de ensino
primário vocacionado para as crianças moçambicanas alojadas em campos de
acolhimento, sendo que na sua maioria, estas não dominavam a língua inglesa, nem tão
pouco a portuguesa. Simultaneamente, arrancavam dentro das instalações do Instituto,
em Dar-es-Salaam, um programa inicial de enfermagem e um outro de ocupação de férias.
A preocupação centrava-se, desde logo, em enviar os alunos do ensino secundário durante
nas férias de junho para o campo de Bagamoyo, ainda que, numa fase embrionária, com
o mero objetivo de apoiar localmente os programas de alfabetização, frequentar aulas de
esforço físico, apoiar a reestruturação da biblioteca, das residências e dinamizar cursos
livres de leitura para as raparigas144.
Em 2015, Feliciano Gundana referia que estes acampamentos de férias tinham já
uma componente ativa de formação ideológica e militar, bem como um programa efetivo
de visitas dos estudantes às zonas libertadas. Contudo, as fontes escritas indicam-nos que
haveria uma preparação política e militar ainda muito «leve» que, em última análise,
teriam permitido e potenciado os desvios ideológicos dos alunos em 1968145. Também as
visitas às zonas libertadas seriam, inicialmente, muito restritas devido a motivos de
segurança militar, pelo que é provável que haja alguma confusão na memória entre os

144 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pastas Sem Cota, Presidência, Correspondência trocada com
individualidades/instituições na Europa 1963-68, Relatório do Instituto Moçambicano, por ocasião do seu
2º aniversário, 1 de setembro de 1965.
145 ANTT, PIDE/DGS, SC, CI (2), 1044, Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam, fl.89,
reprodução de entrevista de Janet Mondlane ao DAGBLADET, de 23 de junho de 1969.
173
dois momentos que marcam politicamente a guerra de libertação, isto é, o antes e o depois
do II Congresso da FRELIMO.

«A dado momento, em algumas férias, começou-se a fazer um acampamento para


a preparação política. Foi criado um campo especial... […] Alguns foram para
Nachingwea, os que terminavam.... Lembro-me que o primeiro campo que foi criado foi
relativamente perto de Dar-es-Salaam, a cerca de 100 km. Não me recordo do nome...
Aliás, quando foi criado eu não me encontrava no Instituto, estava na Defesa, e por isso
também tinha que estar ligado a este assunto. A satisfação dos alunos em terem estado
nesse campo com os militares, onde aprenderam autodefesa e a parte política, foi muito
grande. Noutras férias alguns foram mesmo para o interior, para a alfabetização das
populações. Esta passagem pelos campos foi importante para eles.» (Feliciano Gundana,
entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

No seguimento do projeto para o ensino secundário, quer os alunos que iniciaram a


sua educação em escolas de língua inglesa em Dar-es-Salaam antes da abertura das
instalações definitivas do Instituto, quer aqueles que se encontravam à espera da
regularização dos seus processos para estudar no estrangeiro, continuavam a ser apoiados
pelo trabalho do Instituto Moçambicano, fosse através de programas informais de estudo
e leitura independente, ou graças a uma supervisão em regime de tutoria, que os
estimulava a prepararem-se intelectualmente para as exigências académicas146.
Contudo, no decorrer do trabalho escolar, as lacunas no ensino de base
demonstraram ser flagrantes, ao ponto de, inicialmente, se ter optado por lecionar cursos
noturnos vocacionados para o aumento da cultura geral dos estudantes refugiados
(Manghezi, 2001, p.238).

146 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pastas Sem Cota, Presidência, Correspondência trocada com
individualidades/instituições na Europa 1963-68, Relatório do Instituto Moçambicano, por ocasião do seu
2º aniversário, 1 de setembro de 1965.
174
«O Instituto Moçambicano recebia os alunos que tinham completado o ensino
primário e, além destes, havia alguns que já estavam no ensino secundário. Nós não
tínhamos este nível de ensino e havia uma escola dirigida pelos americanos (a Afro-
American School, ou KIEC) onde estudavam, então, os nossos alunos que, no entanto,
ficavam alojados no Instituto. Este tinha uma outra parte de alojamento e refeitório. Os
estudantes frequentavam o KIEC apenas para estudar, fazendo parte naturalmente do
grupo dos moçambicanos.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de
2015, Maputo).

Após a conclusão dos seus estudos na escola secundária, que só ministrava o ensino
entre a quinta e a sétima classes, inclusive, os alunos eram posteriormente encaminhados
para o KIEC a fim de completarem a sua formação.
Marcelina Chissano (entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo)
recorda que, na Tanzânia, começou por ser aluna do Instituto Moçambicano, no seu
primeiro ano de funcionamento, tendo transitado para o KIEC, onde completou a décima
primeira classe e aprendeu a língua inglesa, em simultâneo com as outras disciplinas. Na
escola internacional, socorreu-se, inicialmente, de uma espécie de linguagem gestual e de
um método que consistia em apontar objetos e repetir nomes, o que demonstrava a enorme
disponibilidade dos professores em qualquer das instituições de ensino.
Em virtude das grandes dificuldades sentidas pelos estudantes moçambicanos, a
Diretora terá conseguido, numa primeira fase, encontrar tutores que os ajudavam a
colmatar essa situação, de forma a que ficassem ao nível dos seus colegas da escola
internacional, tendo mesmo pedido «a alguns dos estudantes de Harvard, que trabalhavam
noutras zonas do país, para irem reforçar o pessoal de Kurasini»147 (Manghezi, 2001, p.
238). Mais tarde, esta situação passou a ser colmatada através de uma disciplina de Inglês
inserida no currículo da escola secundária, dada a partir da quinta classe, conforme
confirma Jacinto Veloso (entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

147 Estes estudantes de Harvard faziam serviço voluntário para o Instituto Afro-Americano e nessa
medida, respeitando os acordos de cooperação, colaboravam com o Instituto Moçambicano.
175
Dentro da política educativa gizada pela FRELIMO, a escola secundária de Dar-es-
Salaam foi fundada com o objetivo de secundar a obra do Instituto Moçambicano,
servindo os interesses e necessidades do movimento de libertação. A sua missão escolar
prendia-se com a formação de quadros técnicos entre os jovens refugiados moçambicanos.
Contudo, a dinâmica de trabalho conseguida entre o Instituto e a escola, aliada à ocupação
do mesmo espaço físico, potenciou uma imagem simbiótica de ambos, promovendo uma
perda identitária interna do Instituto Moçambicano no que respeitava às suas restantes
valências. Perante os militantes e estudantes do movimento de libertação, a função do
Instituto Moçambicano aparentemente resumia-se à escola secundária, o que motivou um
esclarecimento do Comité Central da FRELIMO, em 1968, na sequência do
reencaminhamento do Instituto para o seu trabalho inicial de recolha de apoio
humanitário e preparando já o novo destino da escola secundária.
Na realidade, ainda nos dias de hoje, a maioria dos antigos combatentes pela
libertação acredita que o Instituto Moçambicano encerrou as suas portas em 1969, como
consequência dos distúrbios ocorridos no ano anterior148.
Se a menor consciência do trabalho humanitário que o Instituto desenvolveu se pode
justificar com as opções políticas centralizadoras da FRELIMO, também a importância
estratégica que a escola secundária teve inicialmente para o Instituto Moçambicano, e
consequentemente para a Frente, se pode justificar da mesma forma. Na verdade, o
impacto da escola enquanto agente de transformação revolucionária dentro da própria
estrutura do movimento de libertação foi tão grande que, permitiu ajudar a consolidar o
ideário anticolonial e a estruturar social e culturalmente as novas gerações, dentro de um
espírito emancipado, crítico e instruído, imbuído da filosofia socialista, com um pendor
igualitário e centralizado, em que a subordinação social estava muito enraizada num
esquema em pirâmide. Panzer, a este propósito, postula que:

«A escola secundária da FRELIMO, em Dar-es-Salaam, foi geradora de uma


lealdade ao movimento de libertação através da apropriação dos métodos pedagógicos

148 Vide: 3.2: A crise de 1968-69 dentro do Instituto Moçambicano, p.106.


176
ocidentais. Representando ainda a possibilidade de futuras escolas num Moçambique
libertado, organizado e construído sob pressupostos socialistas que se propunham a
eliminar as diferenças raciais, de género e de classe. Finalmente, e acima de tudo, a escola
secundária era uma criadora de obediências para com a FRELIMO, através da orientação
diária de tarefas e regulamentação que estabelecia ordem, respeito na sala de aula, com
uma relação de poder dicotómica, ainda que recíproca, entre aluno e professor. É neste
ambiente educativo que o conflito de gerações emerge a fim de desafiar a hierarquia da
FRELIMO.» (2009 p.808).

Compreensivelmente, as questões de rutura política e de mundividência, bem como


a imposição hierárquica e a conquista de lealdades, eram mais facilmente atingidas
através do ensino, o que conferia às escolas um papel fundamental no cenário de
legitimação interna do movimento de libertação. A escola secundária de Dar-es-Salaam
tornou-se, assim, num ponto chave para todo o projeto da FRELIMO. Em 1969, na
sequência dos distúrbios estudantis, e depois de se concluir que as alterações
implementadas com o objetivo de controlar os conflitos entre os jovens estudantes e o
Instituto, não tinham surtido o efeito de estabilização necessários à continuação do
projeto, o Instituto Moçambicano, em conjunto com a Frente, optaram por deslocalizar o
ensino secundário para o campo de Bagamoyo, prosseguindo aí o legado académico
inicial, adaptando-o politicamente para uma realidade de maior controlo e com um cunho
paramilitar.

«Permanece como objetivo da escola preparar moral e intelectualmente os


estudantes a fim de prosseguirem os estudos técnicos ou universitários depois da
graduação, ou de forma a adquirirem o treino suficiente para fazerem um trabalho útil.»
(AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos
avulsos, Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro -
dezembro 1969, p.6).

177
Formalmente, durante o tempo que esteve em funcionamento, a escola secundária
de Dar-es-Salaam encontrava-se registada como estabelecimento escolar destinado
exclusivamente aos refugiados moçambicanos na Tanzânia. À época do seu encerramento
oficial, em 1969, estavam a ser envidados esforços no sentido de a estabelecer enquanto
parte integrante de uma rede escolar internacional, com diplomas reconhecidos149, sem
no entanto existir confirmação do seu sucesso nesta matéria. Assim, facilmente se
compreende a exigência que o Instituto Moçambicano colocava em todos os aspetos deste
projeto educativo. Aos próprios alunos, a escola exigia responsabilidade e um
determinado grau de maturidade. Não era permitido que se limitassem ao papel de
simples formandos, recetáculos finais do conhecimento ministrado. Ao invés, era
esperado destes jovens que se envolvessem no dia-a-dia do Instituto, inclusive naquelas
tarefas mais simples de secretaria, ou noutras que pressupunham o bem-estar da
comunidade, subjugando as necessidades pessoais às do coletivo:

«A rotina era estudar, da parte da manhã e tarde. Tratávamos da nossa roupa e


ajudávamos na cozinha. Quando estávamos no lar e saíamos do Instituto, três ou quatro
raparigas eram escolhidas para ir para a cozinha. O mesmo acontecia aos rapazes no
dormitório deles. Toda a gente fazia tudo. E quando passámos todos a viver no Instituto
aconteceu o mesmo, rapazes e raparigas eram destacados para ajudar os cozinheiros, pelo
menos ao jantar. Do almoço os cozinheiros tratavam, mas para o jantar nós ajudávamos.»
(Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

A rotina, hierarquicamente imposta, era igual para rapazes e raparigas, a despeito


da visão tradicionalista patriarcal africana, forçando também nestes aspetos práticos,
inerentes à vida quotidiana dos estudantes, a adesão a uma ideologia igualitária ao nível
dos géneros, que se opunha abertamente aos estereótipos com que os jovens haviam sido
educados, quer no seio da cultura e tradição familiares, quer pela moral colonial.

149 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.7.
178
Havia pouco pessoal para tratar das instalações e dos alunos, pelo que os estudantes
eram formatados no sentido de responderem coletivamente ao que havia para fazer,
ocupando-se com tarefas tão diversas quanto as que lhes diziam respeito na secretaria,
até à limpeza dos espaços comuns, conscientes de que esta também era parte
complementar da sua formação. Embora tivessem a oportunidade de estudar, não lhes era
permitido esquecer que estavam integrados na FRELIMO, e, portanto, também estavam,
de alguma forma, presentes na resistência e no apoio à guerra. O sacrifício e o improviso
faziam parte do dia-a-dia.

«No princípio não havia interrupção de aulas para fazer outras atividades. Durante
os dois anos em que lá fiquei estudávamos e ajudávamos na cozinha... Às quinze horas,
depois de terminarmos as aulas, podíamos ir para a secretaria, num grupo escolhido,
ajudar a compor as sebentas (porque não tínhamos livros suficientes), tirar fotocópias...
Havia também um jornal e alguns de nós íamos ajudar... Era um dia normal...
Organizávamo-nos em equipas semanais, de meninas e rapazes... A limpeza aos espaços
comuns era feita por nós durante os sábados. As nossas roupas eram lavadas por nós,
durante o sábado e o domingo, ou depois das aulas.» (Marcelina Chissano, entrevista
realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

Como em qualquer escola internato, com um ensino vocacionado para uma


educação mista, sob o primado da igualdade entre ambos os géneros, os alunos eram
submetidos a algumas regras internas um pouco mais rígidas do que as das escolas
regulares. Aqui encontravam-se alunos em plena adolescência, com uma variação de
idades que ia dos 12 aos 18 anos150, em convivência permanente, e que, logo no primeiro
ano de funcionamento, formaram duas turmas mistas.
Só aos rapazes foi, inicialmente, permitido o alojamento no primeiro andar do
edifício do Instituto, devido ao facto de as instalações ainda não se encontrarem
totalmente concluídas. As poucas raparigas com instrução primária destinadas a

150 Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo.


179
prosseguir os seus estudos na escola secundária foram alojadas numa vivenda próxima,
que funcionou como lar feminino até à finalização da obra, altura em que passaram a
ocupar o último andar151.
No seu perímetro total, o espaço do Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam era
conhecido por ser bastante grande e amplo, comportando dentro de si instalações
diversificadas: salas de aulas, serviços administrativos, clínica, dormitórios masculino e
feminino, quartos para alguns professores, e «quartos para visitantes, nomeadamente
militantes da FRELIMO em trânsito»152. Os professores moçambicanos pertencentes ao
movimento de libertação ficavam ali alojados durante o período em que se encontravam
destacados para dar aulas. Já os seus colegas estrangeiros ocupavam casas nas redondezas,
pagas pelas organizações cooperantes responsáveis pelo seu trabalho.
Construído de raiz, de forma a responder a todas as necessidades de expansão, o
Instituto foi vendo as suas instalações serem ampliadas, transformando-se gradualmente
num espaço aglutinador de funções e pessoas com características e sensibilidades muito
diversas, mas unidas por um objetivo comum.
Se num edifício com estas características, quando ocupado exclusivamente por
adultos, os pequenos conflitos diários tendem a ser habituais, no caso de comportar
também uma escola internato, lar de jovens adolescentes, numa situação de tensão
permanente inerente à condição de refugiado, o aumento da conflitualidade torna-se
expectável. Para dirimir tensões, o Instituto contava com a figura do Deão, cujo trabalho,
enquanto adjunto da diretora, consistia em ajudá-la na gestão da escola, intermediando as
relações entre alunos e direção escolar e zelando pela manutenção das regras, disciplina,
e paz social:

«Não podiam faltar alguns problemas... Por exemplo, tínhamos a questão da saída:
[os alunos] só podiam sair no sábado e não tinham hora de saída, mas tinham hora para
recolher. […] Muitas vezes havia o problema do recolher obrigatório, muitos atrasavam-
se e depois quando regressavam encontravam as portas de acesso ao dormitório fechadas.

151 Marcelina Chissano, entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo.


152 Martins, Hélder, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.
180
E aí já era considerado um caso disciplinar. [...] [Os castigos] não eram muito duros...
Limitavam-se a perder folgas.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro
de 2015, Maputo).

Este cargo de chefia interna, o de Deão, foi sendo ocupado por vários militantes
indicados pelo Comité Central da FRELIMO até ao encerramento formal da escola
secundária em 1969. Como cargo de apoio pedagógico, permitia manter constantemente
um militante destacado da Frente nos quadros diretivos da escola do Instituto
Moçambicano, assegurando assim uma maior articulação entre o Instituto e a movimento
de libertação, útil ao reconhecimento público e hierárquico junto dos jovens e restantes
militantes. Jacinto Gundana elencou os vários Deões, anteriores e posteriores a ele próprio:

«Ao primeiro Deão, Bernardo Ferraz, seguiu-se José Carlos Lobo (o nosso primeiro
embaixador na ONU e, mais tarde, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, função na
qual acabou por perder a vida, no acidente de Mbuzini153), e só depois fui eu. A mim ainda
se seguiram Eduardo Koloma e Daniel Saul Mbanze. Mas o Instituto foi sempre dirigido
pela esposa do Dr. Eduardo Modlane, Janet Rae Modlane». (Entrevista realizada a 22 de
outubro de 2015, Maputo).

A rotina ficava, assim, hierarquicamente assegurada, e as aulas decorriam


diariamente, quer da parte da manhã, quer de tarde, e mesmo à noite. Depois do jantar,
todos os alunos, inclusive os que estudavam no KIEC, faziam a sua revisão da matéria
para o dia seguinte com a ajuda de alguns professores. A atenção prestada aos alunos
moçambicanos da escola internacional implicava, ainda, o seu acompanhamento pelo
Instituto, sendo que, de vez em quando, as duas instituições realizavam encontros de
forma a analisar situações pontuais154.

153 Acidente aéreo ocorrido a 19 de outubro de 1986, na fronteira entre Moçambique e África do Sul,
que vitimou, entre outros, o Presidente Samora Machel.
154 Jacinto Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo.
181
Contudo, apesar de a escola secundária responder aos anseios dos jovens estudantes
através de uma abordagem avançada para a época, permitindo-lhes sonhar com outras
realidades académicas, acabou por paradoxalmente ser vítima da sua própria política
educativa. Ao pôr em causa os valores tradicionais africanos, bem como os da linha
opositora que crescia dentro da Frente, e que se pautava pela defesa em exclusivo da
negritude moçambicana enquanto identidade do movimento de libertação, o Instituto
Moçambicano acabou por provocar uma reação de intolerância e conflito em alguns dos
seus próprios alunos, influenciados pelos setores de oposição interna da FRELIMO.

«A intersecção [da problemática aliada à] raça, género e ao conflito de gerações


minou as políticas da FRELIMO para o proto-Estado e, em última análise, forçou a escola
em Dar-es-Salaam a cessar funções por quase dois anos e meio. […] Muitos estudantes
abandonaram o campus, deixando os professores e restantes funcionários (brancos e
pretos) disponíveis para servir […] noutras funções. Como resultado destes eventos, a
escola secundária da FRELIMO no Instituto Moçambicano foi forçada a fechar […] por
forma a avaliar as causas da violência entre estudantes e as ameaças dirigidas aos
professores e funcionários.» (Panzer, 2009 pp. 813,817).

Como corolário dos conflitos de 1968, a direção do Instituto Moçambicano, em


conjunto com a FRELIMO, decidiu fechar formalmente a escola de Dar-es-Salaam em
1969, sendo que as aulas já se encontravam interrompidas desde a época dos conflitos
ocorridos no ano anterior. Atribuiu-se à sua localização, em plena cidade, uma influência
negativa perante os alunos. Assim, a escola secundária sofreu uma deslocalização,
reabrindo posteriormente, em 1970, nas instalações do campo de Bagamoyo, a uma
distância de cerca de 60km, a norte da cidade.

182
4.3. Campo, escola e centro infantil de Tunduru

Depois da abertura da escola secundária de Dar-es-Salaam, o campo de Tunduru,


situado no sul da Tanzânia, a cerca de 800 km a sudoeste da cidade de Dar-es-Salaam, a
224 km da fronteira terrestre com Moçambique, mas próximo do território fronteiriço da
Reserva Natural do Niassa155, foi uma das primeiras extensões com caráter educativo do
projeto humanitário do Instituto Moçambicano. Este espaço permitia a concentração dos
refugiados a cargo da FRELIMO, garantindo as condições necessárias para que tivessem
uma vida o mais funcional e digna possível.
Nos anos 60, o campo, que havia sido destinado ao acolhimento dos feridos
moçambicanos, vítimas da guerra colonial, viu a sua capacidade aumentar em virtude da
crescente procura por parte dos refugiados, levando a FRELIMO e o Instituto
Moçambicano a aperceberem-se das potencialidades que o seu alargamento podia
oferecer. Substituindo a natureza do apoio que prestava, este campo viu a sua capacidade
aumentada, o que obrigou a uma redefinição de competências, que o dotavam,
nomeadamente, das condições necessárias para abrigar de órfãos e crianças perdidas,
fornecendo-lhes um ambiente pacífico onde viver e estudar. Esta transformação em centro
educativo seguia uma gestão que apostava no apoio, formação e educação dos seus
beneficiários. Neste sentido, foram estabelecidos vários programas que comportavam,
uma escola primária piloto, um centro infantil, um centro de treino para mulheres, e um
projeto de formação e reabilitação de deficientes de guerra, bem como um plano de apoio
às suas famílias156.
Através do apoio humanitário imediato, procurava-se ir ao encontro do objetivo
final do movimento de libertação, ou seja, defendia-se o acautelamento prévio das
necessidades futuras de Moçambique, com o esforço a ser feito no sentido de começar a
formar, já aqui, os seus futuros cidadãos.

155 Vide mapa em anexo, p. 362.


156 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho 1970.
183
Partindo de uma capacidade inicial para uma lotação de vinte e cinco crianças,
acompanhadas por adultos, o campo de Tunduru assumiu as suas novas funções e
competências, demonstrando uma flexibilidade necessária para responder ao rápido
aumento da sua população157. À medida que o fluxo de refugiados ia aumentando em
virtude da escalada da guerra, tornou-se óbvia a necessidade de ampliar a capacidade da
escola primária que, em plena atividade, chegou a ensinar as crianças tanzanianas das
redondezas.
Em 1968, o ensino primário já se encontrava totalmente estabelecido e organizado
no campo, apesar dos terceiros e quartos anos ainda serem temporariamente lecionados
na escola do centro de acolhimento de Bagamoyo. No ano seguinte, esta situação ficou
parcialmente corrigida com a transferência da terceira classe 158, sendo que as quartas
classes prosseguiram em Bagamoyo em conjunto com os restantes cursos especiais para
adultos, de capacitação de professores, e um novo programa de formação em ciência, de
nível básico. Situação que se manteve até ao momento em que a escola de Bagamoyo viu
redefinida a sua função, dedicando-se em exclusivo ao ensino secundário.

«Mais e mais crianças chegam ao campo [Tunduru] vindas de Moçambique, muitas


que se enquadram dentro da categoria dos sem-abrigo. Contudo, à medida que a escola
cresce, muitas crianças chegam até nós porque nas suas áreas de residência, nas zonas
libertadas de Moçambique, não encontram ainda as classes correspondentes ao seu nível
de ensino.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1970-1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à
Dinamarca, junho 1970, p.1).

A escola primária de Tunduru, após a redefinição de competências do campo, deu


início às suas aulas com cinquenta crianças e algumas cabanas. Porém, rapidamente se

157 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho 1970.
158 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
184
verificou a necessidade de retificar todo o projeto já que, ao longo do ano de 1969, a
escola viu sextuplicar a sua lotação. O número de alunos cifrava-se agora em quatrocentas
e quarenta e quatro crianças, divididas em cinco grupos, que frequentavam o quarto ano
do ensino primário, e cinquenta e oito crianças residentes na zona infantil do centro. A
população do campo sofria, desta forma, um crescimento maior do que as instalações
disponíveis permitiam, o que obrigou à respetiva ampliação do espaço159.
A ampliação, inicialmente tomada em mãos pelo próprio pessoal residente, em
conjunto com as crianças da escola, acabou por exigir uma equipa permanente de
construtores, o que permitia uma dinâmica constante entre construção e ampliação das
novas instalações, na sua valência de salas de aula, dormitórios, cozinhas e gabinetes160.
A explosão numérica a que o campo assistiu, nomeadamente ao nível da população
infanto-juvenil, implicava a existência de uma equipa de 48 de funcionários permanentes,
em que se incluíam os construtores 161 . Estes elementos, também na condição de
refugiados e militantes da FRELIMO, permitiam levar a cabo todos os programas
pensados e implementados no campo, cuja gestão diária era efetuada numa ótica de
formação para a autossustentabilidade, envolvendo o trabalho de todos os beneficiários,
crianças incluídas.
A clínica médica existente teve de ser ampliada, de modo a conseguir atender e
socorrer todos os refugiados que continuavam aqui a procurar abrigo em número
crescente. Apesar, de nunca ter tido um médico residente, o campo socorria-se, sempre
que era necessário, do espírito de solidariedade e entreajuda do pessoal técnico de saúde
do Hospital Américo Boavida, que se deslocava ali quando podia:

159 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho 1970.
160 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
161 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho 1970.
185
«Durante o tempo de férias, entre um curso e outro, ia para Tunduru, que era o
campo educacional da escola primária da FRELIMO, onde me ocupava da creche.
Organizei a creche e fiz dois cursos de puericultura para as mães que lá se encontravam
a dar apoio, e para as que estavam nos infantários do interior. [...] O único medo que tive
foi em Tunduru, onde não havia médico. Neste campo imenso, certa vez, houve uma
adolescente, uma miúda mesmo, que estava grávida e que entrou de repente em trabalho
de parto... E eu sou enfermeira, mas não sou parteira... Portanto foi o meu primeiro parto
sozinha e eu só pensava “vai fazer uma laceração, o que é que eu vou fazer?” ... Depois,
finalmente apareceu a cabeça do bebé e ela não rasgou nada... Que maravilha!» (Maria
Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Toda esta preocupação com a ampliação das instalações de Tunduru prendia-se com
o rápido crescimento de um campo que, no início, havia sido pensado para um fluxo de
refugiados mínimo, e para o qual contava apenas com o recurso de uma escola primária.
Com a crescente afluência de crianças e jovens, passou progressivamente a desenvolver
um maior número de atividades de aprendizagem, capacitação de competências e
formação. O ensino prático e orientado para a autossustentabilidade abarcava desde o
cultivo do arroz, à produção de sabão (graças aos conhecimentos artesanais de um médico
cooperante italiano)162. No inicio dos anos setenta, foi decidido que o campo também
serviria para treinar os refugiados adultos nas artes da agricultura, na criação de animais
e na puericultura, demonstrando uma especial preocupação direcionada para o aumento
das competências femininas. Assim, entre as residentes, eram treinadas em particular as
mulheres casadas que tivessem os maridos afastados devido ao conflito militar, bem como
as viúvas. 163 No grupo destas mulheres, contavam-se a jovens grávidas da escola
secundária de Bagamoyo que, devido à sua condição, eram expulsas do ensino secundário,

162 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Instituto Moçambicano, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D
163 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Instituto Moçambicano, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca,
junho, 1970.
186
restando-lhes as opções de voltar para junto da família, casar, ou ingressar no campo de
Tunduru onde podiam frequentar outro tipo de formação, à semelhança das suas
congéneres mais velhas.

«O programa era destinado inicialmente às viúvas, ou mulheres cujos maridos se


encontrassem a trabalhar [lutar] em Moçambique, e que necessitavam de formação prática
em ambiente de trabalho, que as ajudasse na adaptação às suas novas circunstâncias, bem
como as preparasse para uma cidadania útil entre a nova estrutura social de Moçambique
livre.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1970-1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à
Dinamarca, junho 1970, p.2).

As mulheres graças à formação obtinham ou aumentavam as suas competências,


dentro de uma base cooperativa, em técnicas tão dispares quanto: puericultura básica,
nutrição, artesanato, literacia e produção agrícola. Assim, tinham à sua responsabilidade
a tarefa de manter o bem-estar e educar as crianças institucionalizadas. Simultaneamente,
através dos conhecimentos adquiridos, era esperado que contribuíssem para a
autossuficiência do campo, e que, posteriormente, aplicassem as suas competências nas
zonas libertadas em Moçambique 164. Ao apetrechá-las com uma série de capacidades
técnicas, o Instituto Moçambicano permitia à FRELIMO prosseguir no seu desígnio de
construção de um novo arquétipo social, ao mesmo tempo que promovia, na prática,
cuidados fundamentais para o incremento da saúde e da sobrevida materno-infantil.
Estas mulheres rompiam com a tradição e com os tabus em que tinham sido
educadas, assumindo, na medida das suas possibilidades, um novo papel social de
autonomia e responsabilidade que lhes conferia uma voz interveniente na nova sociedade
moçambicana. A sua dinâmica impunha-as enquanto agentes de transformação, quer pelo
exemplo, quer pela educação que davam às crianças a seu cuidado.

164 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
187
De facto, Tunduru refletia as crescentes necessidades do futuro Moçambique
independente, bem como disseminava os ideais igualitários da FRELIMO, usando o
empoderamento feminino como uma bandeira política e uma ferramenta económica
preparada para as solicitações do novo país. Ainda que as suas fossem funções
tradicionalmente femininas, as mulheres foram aqui preparadas para gerir e colaborar na
organização dos centros infantis, manter um estudo constante com respetiva investigação
e experimentação no campo do ensino primário, bem como na adoção e introdução de
novos métodos de produção165. Destas mulheres, pela formação ideológica e prática que
recebiam, esperava-se que funcionassem, não só como uma frente unida na luta contra o
sistema tradicional, colonial e patriarcal, mas sobretudo como agentes de mudança e
mobilização na defesa dos novos paradigmas sociais, económicos e políticos defendidos
pela FRELIMO.
No início da década de setenta, eram beneficiárias das condições disponibilizadas
em Tunduru cerca de noventa mulheres que, apoiadas pelos quarenta e oito colaboradores
do programa, aumentavam as suas competências literárias, trabalhavam na agricultura,
cuidavam dos animais, das crianças, e mantinham as condições sanitárias e higiénicas
aconselhadas. Na mesma época, o campo viu-se obrigado a expandir novamente as suas
instalações e a melhorar os seus acessos, passando de doze edifícios para vinte e dois,
incluindo um laboratório e um centro de saúde, em fase de construção em 1970,
agregando ainda quinze casas de habitação para os construtores. O problema central nesta
fase prendia-se com o acesso à água potável, que ainda esperava resolução, apesar dos
esforços realizados pelo departamento rural do governo da Tanzânia166.
As crescentes necessidades dos campos na Tanzânia, tal como das zonas libertadas
em Moçambique, foram, assim, sendo supridas ao longo dos anos através de um processo
misto que dependia, na sua maioria, da ajuda humanitária internacional, mas também de

165 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
166 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório elaborado pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho, 1970.
188
uma crescente, ainda que tímida, economia de subsistência, que se organizava quer nos
campos de acolhimento, quer nas zonas libertadas, suprindo consideravelmente as suas
necessidades básicas167.
Esta solução económica artesanal, que tentava responder às preocupações de
subsistência das populações, prestava-se ainda às solicitações da propaganda política,
permitindo captar apoios e simpatia junto dos doadores para a causa moçambicana e,
simultaneamente, projetando, em última análise, a própria FRELIMO no panorama
internacional como a única opção governativa credível para o futuro de Moçambique.
Tunduru contribuía para a sua própria manutenção graças ao trabalho de todos os
beneficiários, incluindo o das crianças, que, após o período de aulas, eram chamadas a
ajudar em tarefas agrícolas simples. Conforme recorda Maria Salghetti, que à época
visitava com regularidade este campo na sua qualidade de enfermeira do Hospital
Américo Boavida:

«Os pequeninos vinham no atrelado de um trator do campo de Tunduru... Como lá


tínhamos muitas machambas [hortas], também tínhamos um trator… Não havia regadores
suficientes e as crianças regavam com os pratos e com os copos. Toda a gente trabalhava.
Criavam-se porcos... Lembro-me de uma reunião onde discutimos o facto dos porcos
ficarem muito gordos por estarem sempre parados, então decidiu-se que os porcos deviam
andar... Assim, havia um grupo de crianças encarregue de fazer correr os porcos! As
crianças corriam atrás dos bichos, para que eles emagrecessem... Porque quando os
matavam era tudo banha...» (Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Ainda que a dieta resultante do programa de autossuficiência não fosse


particularmente rica, baseando-se especialmente nas leguminosas (de alto valor proteico),
nos tubérculos e na farinha de milho168, conseguia-se esporadicamente ver a sua condição
melhorada através da carne, proveniente do abate de animais criados no campo, do

167 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
168 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.
189
consumo de ovos, e até de fruta. Esta solução demonstrava-se capaz de permitir uma
situação alimentar em que a sobrevivência se encontrava assegurada, sem grandes
percalços. Num ano de boas colheitas era frequente haver produção excedentária que se
podia vender localmente, ou partilhar por outros organismos da FRELIMO. Tunduru
chegava mesmo a fornecer carne ao hospital Américo Boavida, que, por sua vez, lhe
garantia a assistência hospitalar possível, nas situações médicas a que a clínica e respetivo
dispensário do campo não conseguiam responder169.

«No conjunto, temos agora vinte e uma vacas, vinte cabras, trinta porcos, três patos,
oito pombos e muitas galinhas, muitas delas a fazer criação. As colheitas incluem
amendoim, milho, arroz, cassava, batata doce, bananas, laranjas e cana de açúcar. Em
complemento plantamos ainda vegetais da época.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas
DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-1971, Relatório elaborado
pelo Instituto de Moçambique, enviado à Dinamarca, junho 1970, pp. 2,3).

Assim, o maior problema do campo passou a estar relacionado com outras


preocupações também básicas, mas mais difíceis de resolver através do método da
autossuficiência, tais como a falta de vestuário. Esta era uma realidade comum aos outros
campos e às zonas libertadas em Moçambique, e cuja resolução não dispensava a
intervenção do Instituto Moçambicano.
Para além das funções aqui elencadas, Tunduru funcionava também como um dos
pontos de acolhimento dos militantes recrutados no estrangeiro, antes de serem
encaminhados para as respetivas missões, conforme refere Marcelina Chissano:
«recebíamos os camaradas que eram recrutados no estrangeiro, na Europa, todos
passavam por nós. Ficavam inicialmente no Instituto e nós tínhamos de ter condições para
eles poderem ir para as suas funções, primeiro o treino em Nachingwea, depois Tunduru,
e posteriormente o interior» (entrevista realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

169 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.12,13.
190
Num relatório de 1974, o centro infantil de Tunduru é referenciado como sendo
residência de duas mil pessoas, oriundas de todos os pontos de Moçambique, na sua
maioria crianças, num número aproximado de mil e quinhentas, nas mais diversas
condições familiares: órfãos, filhos de prisioneiros em cadeias coloniais, filhos de
combatentes, filhos de famílias sem condições para os manter, e as restantes provenientes
de zonas instáveis onde ainda não tinha sido possível estabelecer escolas e centros infantis.
Entre estas, cerca de trezentas e trinta crianças encontravam-se no ensino pré-escolar e
mil e cem frequentavam a escola primária, com idades compreendidas entre os sete e os
catorze anos170, não sendo explícito se se encontravam todas as crianças, maiores de dez
anos, a frequentar a escola primária, ou se o campo mantinha algum programa de ensino
destinado a anos escolares complementares.
Uma concentração tão grande de crianças exigia uma planificação constante e
rígida das necessidades e estratégias por parte da gestão do campo. Contudo, os
imponderáveis da guerra, ou mesmo do clima, impunham uma permanente flexibilidade,
muito orientada para a gestão de danos, onde a única solução residia com frequência no
recurso à criatividade e improviso de todas as partes.

«Tunduru era fantástico! Imagine só... viviam ali mil e quinhentas pessoas e dessas
mil e cem eram crianças até à quarta classe! Um dia veio um vendaval fortíssimo e
arrancou o telhado a dez dormitórios, depois a chuva molhou todos os colchões... Janet
estava lá, com a sua tromboflebite... Os telhados a voar, sorte não ter acontecido nada
pior... Tanzanianos morreram, porque essas chapas cortam as pessoas, mas connosco não
aconteceu nada... Era fim de tarde, aproximava-se uma noite fria porque tinha chovido...
Então fizemos tambores de chá (utilizávamos os tambores grandes para cozinhar) e eu
dava chá com um quarto de aspirina a cada criança para prevenir resfriados... Depois
chamámos o tocador de batuque e havia uma dança de Tunduru que se chamava a
“nantchota”, onde crianças andavam em grupos dançando com o batuque à frente, e eu
mandei dançar para aquecer e secar... Estavam todas molhadas... Por fim, vieram os

170 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório de 5 de abril de 1974 para a ONU, UNHCR.
191
soldados de Nachingea reconstruir as casas. Até aí apertou-se tudo nos dormitórios
intactos... Dormiam dois, três por cama.» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de
outubro de 2015, Maputo).

Apesar de todas as contingências, o campo de Tunduru foi, na maior parte do tempo,


um reduto de paz e segurança, onde todos os esforços eram envidados a fim de permitir
o máximo de estabilidade a uma população predominantemente constituída por crianças
fragilizadas. O Instituto e a FRELIMO levaram a cabo uma série de esforços com o
objetivo de proporcionarem condições de vida dignas a estas crianças e jovens, de forma
a que se pudessem desenvolver em toda a sua plenitude. Contudo, a situação real era de
guerra. Estes verdadeiros «filhos da luta de libertação» não se encontravam imunes às
vicissitudes do conflito, sendo que o seu campo de acolhimento, até pela relativa
proximidade com a fronteira moçambicana, não deixava por isso de ser um potencial alvo
para o exército colonial.
Salghetti, relata o medo de se ser detetado pelo exército inimigo, com tantas
crianças para proteger, bem como o protocolo de segurança adotado para este tipo de
situações:

«Em Tunduru não havia medo, o problema consistia no facto do campo ter sido
detetado pelo exército português e ali havia crianças, desde bebés até à quarta classe,
pequenas, portanto... Então, os da quarta classe permaneciam no campo e os da creche,
primeira, segunda e terceira classes saíam a pé de madrugada, faziam uns dois
quilómetros no mato e lá ficavam todo o dia. Tinham aulas em clareiras diferentes, cada
clareira era uma aula, mas como havia muitas árvores não era fácil detetar... Eles só
tinham detetado os telhados de chapas de zinco... Levávamos a comida para todo o dia,
cozinhava-se e comia-se ali e depois voltávamos à noite.» (Entrevista realizada a 20 de
outubro de 2015, Maputo).

Como se tem vindo a referir, ao longo dos anos, o campo viu-se forçado a
permanentes ampliações, de forma a dar resposta à sua crescente importância dentro do

192
próprio quadro da luta e enquanto viveiro formador do ideal do «Homem Novo»
moçambicano, que deveria reconstruir o país independente.
Alguns dos alunos deste campo tiveram mesmo a oportunidade de viver
experiências internacionais graças aos vários protocolos de cooperação que lhes
permitiram participar em eventos realizados no estrangeiro, como o X Festival Mundial
da Juventude e dos Estudantes, realizado em Berlim, na RDA, em 1973, onde marcaram
presença numa comitiva que integrava os colegas vindos de Bagamoyo e de outras escolas
das zonas libertadas171. Porém, esta experiência internacional foi mais além, e alguns
estudantes de Tunduru, após o término do seu programa de estudos, puderam partir
diretamente para escolas de ensino secundário, em países do Leste Europeu, que os
aceitavam como alunos bolseiros:

«Houve alguns que foram a partir de Tunduru. Houve alunos selecionados com a
quarta classe em Tunduru para ir para fora fazer o secundário. Lembro-me de alunos que
foram diretamente para a Roménia e que lá fizeram a escola secundária e formação.
Naquele tempo, a RDA e a União Soviética eram só para a universidade. Acho que a
Roménia foi o único pais que aceitou alunos para estudarem na escola secundária.»
(Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

A formação integral e o seu engajamento político na FRELIMO transformou-se


numa preocupação constante projetada pelo Instituto Moçambicano, de forma
sistematizada, no trabalho efetuado pelo campo de Tunduru. Aqui, a escola primária
piloto servia para capacitar professores do ensino primário que, posteriormente, eram
encaminhados para as zonas libertadas, bem como, para compilar todo o material
pedagógico que era utilizado nas diversas escolas sob alçada do Instituto e do
Departamento de Educação da FRELIMO, quer na Tanzânia, quer nas zonas libertadas de
Moçambique. Tunduru tinha como desígnio a criação dos novos paradigmas culturais, da
música, à dança, e à poesia, através da integração das várias etnias no mesmo espaço.

171 Teresa Veloso, entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo.


193
Promovia-se, assim, o fortalecimento da noção de unidade nacional junto dos
combatentes e das suas famílias, de forma a fomentar a adoção da integração individual
coletiva no conceito de Nação moçambicana, contrariando a prática colonial que visava
a separação étnica e territorial. Simultaneamente, esta estratégia era utilizada de forma
eficaz como propaganda política e ideológica, interna e externamente, graças ao trabalho
e visibilidade deste campo através do acolhimento das delegações estrangeiras que
visitavam a obra da FRELIMO172.
Apesar de, em 1973, Tunduru ter atravessado uma situação de crise devido aos
menores rendimentos agrícolas, à falta de materiais de construção e ao aumento das
valências do campo173, os planos para o futuro eram ambiciosos e almejavam um raio de
ação alargado.
Num despacho para a UNICEF, datado de 2 de janeiro de 1974, o Instituto delineou
as linhas diretrizes para o futuro do campo de Tunduru, tendo em vista a justificação do
trabalho realizado, bem como, o pedido de renovação de fundos.

«No ano passado, um sonho antigo começou a ganhar forma – a construção de um


centro social que providencie as condições para a reabilitação e formação profissional
para os deficientes de guerra. Homens, mulheres, ou crianças, todos necessitam de ajuda.
Se tiverem família, deverão ser acompanhados por ela. Estas vítimas perderam membros,
a visão, ou a audição, ou padecem de uma combinação das três condições. Damos apoio
moral e um novo começo de vida e, sobretudo, seja qual for a sua idade, oferecemos apoio
e formação.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1971-1974, Relatório de 5 de abril de 1974 para a ONU, UNHCR, p.3).

Assim, na área da saúde, estava prevista a transformação da clínica do campo em


hospital, e a construção de instalações para treino do pessoal técnico. Propunha-se a
expansão das instalações e reabilitação de equipamentos, a construção de salas de aula e

172 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório de 5 de abril de 1974 para a ONU, UNHCR.
173 Idem.
194
o melhoramento do suprimento de água, com vista ao reforço do projeto educativo. O
investimento estender-se-ia a todas as formações, do treino em puericultura e nutrição à
educação primária básica, ao incremento dos programas intensivos de instrução de
assistentes para o centro de dia, bem como, a uma formação básica em nutrição e
agricultura, produção animal, produção de artesanato, desporto e recreação. Defendia-se
ainda a ampliação das instalações das cozinhas e do hospital tanzaniano na localidade de
Tunduru. Através da cooperação bilateral entre a Tanzânia e a FRELIMO, o hospital local
deveria estender o seu raio de ação servindo de referência ao campo, ao mesmo tempo
que permitiria, com a sua expansão, dar formação no tratamento das doenças mais comuns
que afetavam a população local, como malária, vermes, tuberculose, ou bilharziose174.
Num relatório, datado de 28 de março de 1974, o Instituto Moçambicano informava
o Fundo Africano de que a Organização das Nações Unidas iria enviar médicos para dar
formação aos colegas que trabalhavam nos campos geridos pela FRELIMO175, ficando o
seu alojamento a cargo das Nações Unidas na vila de Tunduru, restando para a direção do
campo o alojamento de uma médica que, no seguimento da linha ideológica da FRELIMO,
era tratada por camarada Dr.ª Diana dos Santos176.
A evolução do projeto médico que previa a formação dos quadros clínicos do
campo de Tunduru revelava, não só uma preocupação bem patente na abrangência dos
serviços clínicos que o campo oferecia aos seus residentes, bem como uma preocupação
constante do Instituto e da FRELIMO na formação local de novos quadros clínicos.
Dotando-os de competências técnicas que possibilitavam a resposta às necessidades

174 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), despacho do Fundo para as Crianças da ONU, 2 de janeiro de 1974.
175 Os médicos a colaborarem permanentemente com a FRELIMO, na década de setenta,
encontravam-se todos a trabalhar em exclusividade no hospital Dr. Américo Boavida, situado no campo de
Mtwara. Esporadicamente podiam deslocar-se em missão aos outros campos de acolhimento, cujas equipas
de saúde, a existirem, se limitavam aos auxiliares de enfermagem.
176 A propósito desta médica, nos documentos não é explicito se ela pertencia aos quadros da ONU
ou se pertencia a alguma ONGD, ainda que integrada na mesma missão de formação. (AHM, Arquivo
FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972 – 1974 (B), Relatório
enviado pelo Instituto Moçambicano ao Fundo Africano, 28 de março 1974).
195
particulares dos habitantes do campo e das zonas libertadas, fora planeada a criação de
uma equipa, simultaneamente provedora e formadora para os cuidados de saúde, a ser
composta por um médico professor, um assistente médico, um assistente nutricionista,
um enfermeiro chefe, dois enfermeiros, um radiologista e um assistente de laboratório177.
O campo de Tunduru transformava-se, na década de setenta, na aposta por
excelência do Instituto Moçambicano, e consequentemente da FRELIMO, para a criação
de um laboratório social que apoiasse a construção ideológica de um Moçambique livre,
sem barreiras de cor, tribo, credo ou género, onde homens e mulheres pudessem crescer
enquanto cidadãos de uma Nação independente. Pretendia-se assim, num contexto de
guerra longa, que este campo viesse a auxiliar de uma forma mais completa o trabalho de
transformação social que já vinha a ser trilhado pela escola secundária de Bagamoyo,
ajudando a lançar as sementes do «Homem Novo» no movimento de libertação e no
Moçambique independente.

4.4. A escola secundária de Bagamoyo

«Bagamoyo, terra do “coração partido”. Durante a época da escravatura,


Bagamoyo foi um símbolo de tristeza e horror. Acima de tudo, as estacas de ferro cravadas
na rocha, onde os escravos eram acorrentados enquanto esperavam o seu transporte para
longe da sua terra natal, mantêm-se como testemunhas silenciosas do que outrora se
passou aqui. Hoje, esta mesma costa [marítima] presencia outra cena bem diferente
daquela representada pelas cruzes de ferro.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,

177 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Conclusões de uma carta de autor desconhecido com o carimbo da FRELIMO de 1974. Contudo,
esta informação não é confirmada pelas fontes orais, pelo que poder-se-á dar o caso de ser apenas um
projeto futuro, então em análise, já que a FRELIMO se encontrava preparada para uma guerra de libertação
de tempo indeterminado.
196
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 – 1973, Relatório enviado pelo
Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D, p.1)

O campo de Bagamoyo ficava situado a cerca de 70 km a norte de Dar-es-Salaam,


junto à costa do Índico, e a mais de 700 km da fronteira terrestre com Moçambique178.
Segundo Hélder Martins, o espaço de Bagamoyo começou por ser utilizado pela
FRELIMO como um campo de multivalências que respondia a uma série de necessidades
básicas inerentes à luta de libertação, até ser destinado, em exclusivo, ao ensino. A sua
função inicial consistia em filtrar todos aqueles que vinham de Moçambique com o
propósito de se juntar ao movimento de libertação, sujeitando-se aqui a um interrogatório
preliminar, a fim de excluir as ações de espionagem e a infiltração de agentes da PIDE,
findo o qual, e depois de comprovada a idoneidade dos sujeitos, estes eram então
encaminhados para os respetivos campos de formação militar.

«Portanto, esta era uma das funções de Bagamoyo, que também funcionava como
escola primária, que mais tarde passou a ser secundária (quando o Instituto passou para
lá), e fundamentalmente acumulou estas duas atividades. Se bem que, quando
Nachingwea começou a funcionar a bom ritmo, as pessoas já nem chegavam a Bagamoyo,
por ser perto de Dar-es-Salaam – sendo que essa triagem também se passou a fazer naquele
campo». (Entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Em 1969, a FRELIMO reestruturou Bagamoyo com o apoio do Instituto


Moçambicano, orientando-o, em exclusivo, para o ensino. Inicialmente, foi aqui instalada
uma escola primária com valências de formação mais alargada, mas, posteriormente, em
virtude dos conflitos de 1968 que levaram ao encerramento da escola secundária de Dar-
es-Salaam, este campo foi identificado como a melhor alternativa para receber os
estudantes do secundário. A sua localização relativamente distante da cidade (e da
influência negativa que, na perspetiva da direção da FRELIMO, esta exercia sobre os

178 Vide mapa em anexo, p. 362.


197
jovens) permitia uma reabertura das aulas em ambiente controlado, bem como a adoção
de uma abordagem educativa diferente, onde se primava por um carácter de cunho
paramilitar, com o objetivo de prevenir situações semelhantes às de 1968, formatando os
jovens na obediência ao ideário da FRELIMO.
Assim, Bagamoyo, foi reestruturado de forma a trabalhar apenas com uma
população estudantil de adolescentes e jovens adultos que frequentava os níveis de ensino
mais avançados e de formação técnica.
O ensino secundário, a educação de adultos e os cursos técnicos, obrigaram à
transferência, numa primeira fase, dos três primeiros anos do ensino primário para
Tunduru, e numa segunda fase do quarto ano. Desta forma, a escola passava formalmente,
a partir de janeiro de 1969, a ser um centro de ensino pensado em exclusivo para a
formação de quadros técnicos e superiores da Frente, não comportando mais a instrução
primária das crianças, apesar de as aulas do nível secundário terem sido retomadas apenas
em 1970. No âmbito da formação imediata de quadros 179 , o Instituto oferecia aqui
formações relativamente curtas, em áreas práticas que tentavam responder às solicitações
resultantes da luta de libertação, nomeadamente, na capacitação de professores, com dois
cursos e a duração de seis meses cada; na formação em ciências, com um curso e a duração
de doze meses; na formação em administração, com dois cursos e a duração de quatro
meses; e no ensino primário para adultos, com dois cursos de seis meses e um curso de
doze meses180.
Nesta época, o campo prestava assistência a cento e trinta e três estudantes, aos
quais acresciam professores, auxiliares e pessoal em trânsito, com uma previsão de rápido
crescimento181.

179 Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo.


180 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
181 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes da Escola Secundária na
Noruega, 8 de fevereiro 1973.
198
A oferta formativa, de carácter intensivo, permitia que os alunos recuperassem, em
tempo recorde, os anos de paragem dos estudos, ou mesmo de iliteracia. Respondendo,
assim, quer às suas necessidades pessoais, quer às exigências do movimento de libertação,
que dependia de meios humanos com competências técnicas para responder às inúmeras
solicitações da luta e ao cenário desejável da independência de Moçambique. Também os
cooperantes estrangeiros que não falavam português, como testemunha a enfermeira
Maria Salghetti (entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo), passavam
inicialmente aqui algumas semanas a fim de aprenderem os rudimentos do idioma, antes
de seguirem para os seus postos de trabalho.
Após os conflitos de 1968 que envolveram o Instituto Moçambicano182, obrigando-
o a encerrar as aulas, a escola secundária reabria as suas portas a 25 de outubro de 1970183,
em Bagamoyo, depois de uma reestruturação profunda que se propunha a garantir «que a
escola ficasse enquadrada na FRELIMO e na luta»184.
Geograficamente, encontravam-se aqui reunidas todas as condições para alojar este
nível de instrução, já que o campo de Bagamoyo pela sua localização ficava distante, quer
da cidade, quer da fronteira com Moçambique, o que facilitava a proteção dos alunos e
dos professores. Procurava-se, assim, afastar os jovens de tudo quanto dispersasse a sua
atenção, promovesse a irreverência, ou pusesse em causa o sentido de obediência para
com a FRELIMO. A cidade, enquanto palco preferencial de propagação de algumas ideias
consideradas reacionárias e contrárias à ideologia revolucionária da Frente, foi tida como
a principal responsável pela corrupção das mentes jovens. Pelo que, a solução encontrada
passava pela distância e pelo afastamento, de forma a contrariar as más influências185.
Segundo Nyeleti Mondlane, «o mecanismo de seleção de alunos passou a ser mais
criterioso e a estrutura paramilitar da escola de Bagamoyo trouxe mais disciplina e coesão.
Os quadros que daqui saíram, na sua maioria, deram um grande contributo para o país,

182 Vide: 3.2 A crise de 1968-69, p. 106.


183 Informação prestada por Teresa Veloso durante o tempo em que esteve presente na entrevista
realizada a Jacinto Veloso (14 de outubro de 2015, Maputo).
184 Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo.
185 Jacinto Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo.
199
assegurando sectores chave como a educação, defesa e agricultura» (entrevista realizada
a 9 de novembro de 2015, Maputo).
Este tipo de solução tinha ainda a vantagem de permitir acautelar o trabalho e a
segurança dos elementos brancos ao serviço do movimento de libertação. Os militantes
brancos da FRELIMO, mesmo depois do II Congresso, e não obstante o veemente repúdio
da Frente em relação a todos os atos de racismo, continuavam a enfrentar, interna e
externamente, atos, pontuais, de hostilidade mais ou menos velada devido à sua cor de
pele. Da mesma forma, também a segurança e bem-estar dos cooperantes estrangeiros
ligados ao ensino constituía uma fonte de preocupação constante para o movimento de
libertação. Conforme nota Jacinto Veloso, «os vários moçambicanos de pele mais clara,
bem como os brancos estrangeiros, acabavam por ir parar a Bagamoyo porque era o único
lugar onde podiam estar sem problemas e onde, obviamente, eram úteis» (entrevista
realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).
No cômputo geral, esta escola permitia, graças à sua localização e à sua identidade
paramilitar186, responder a uma série de solicitações que começavam, desde logo, pela
necessidade de formar quadros imbuídos, política e ideologicamente, no espírito da luta
pela libertação, com uma forte adesão às orientações internas da FRELIMO e aos seus
ideais, com noções muito claras de disciplina e militância, e onde se encontravam
garantidas as condições básicas necessárias à sobrevivência e à segurança do coletivo.

«Os professores estavam lá todos, mas Bagamoyo era quase como um colégio
militar. Os alunos andavam fardados e nas férias iam fazer treinos militares e trabalhos

186 Conforme recorda Nyeleti Mondlane: «estávamos sempre vestidos com farda militar, pingo de
chuva, e marchávamos em turmas sempre que houvesse formatura. Fazíamos marcha militar no recinto de
instrução nos dias festivos, como o 25 de setembro que era o dia das forças armadas. Na altura da libertação
nacional fazia-se uma parada militar com os alunos.» (Entrevista realizada a 9 de novembro de 2015,
Maputo). Este cunho militar só era possível no entender de Elisabeth Sequeira, graças aos reitores,
escolhidos entre as chefias militares: «Quando eu cheguei era o Mário Cive, [que] era um chefe militar e a
disciplina era extremamente rigorosa, muito forte, muito militar, mas, ao mesmo tempo, com um espaço
muito grande para a crítica, para as pessoas falarem...» (Entrevista realizada a 19 de novembro de 2015,
Maputo).
200
de alfabetização. Portanto, não podia ser exatamente como era em Dar-es-Salaam.
Bagamoyo, apesar de não ter chegado a ser campo militar, foi o primeiro campo da
FRELIMO. Recebeu muitos moçambicanos que dali passavam para outros campos de
treino, ou eram selecionados para o exterior e só depois passou a escola secundária.
Fizeram-se melhoramentos. Todos os professores, incluindo os estrangeiros, foram [para]
lá viver.» (Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

Os alunos eram obrigados, diariamente, a fazer a formatura, sob pena de sofrerem


penalizações, e, nos dias festivos, todo o corpo discente participava numa parada militar.
A educação formal paramilitar pressupunha a integração do maior número de jovens
possível no ideário revolucionário, educando-os num espírito de missão nacional,
patriótico e igualitário, de cunho socialista, totalmente alinhado com a FRELIMO.
Depois de iniciar a sua atividade em 1970, com cinquenta e dois estudantes, em que
apenas quatro eram raparigas187, a escola secundária de Bagamoyo, com o passar dos anos,
foi aumentando o número de alunos, de ambos os géneros, procedendo ao reforço da
correspondente oferta formativa188:

«A reabertura da Escola Secundária da FRELIMO, em Bagamoyo, fez-se com


novos alunos que tinham completado a quarta classe em escolas da FRELIMO. No campo
de Tunduru, ou mesmo nas escolas do interior de Moçambique, foi selecionado um grupo
de cinquenta e dois alunos. Foram criadas duas turmas da quinta classe, em finais de
outubro de 1970, e, no ano letivo seguinte, essas turmas passariam para a sexta classe,
com novos alunos a entrar na quinta classe, e assim por diante.» (Teresa Veloso in Jacinto
Veloso, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

187 No entanto, era esperado, desde o início, que, ao longo dos anos, mais raparigas integrassem o
corpo discente, tal como veio a acontecer, já que, desde sempre, o empoderamento feminino foi considerado
uma prioridade para a FRELIMO e, consequentemente, para o Instituto Moçambicano, como estratégia de
luta contra a pobreza.
188 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
201
A lotação da escola assistiu a um crescimento constante ao longo do tempo. Em
1972 encontravam-se a estudar cento e cinquenta e cinco alunos, dos quais vinte e um
foram destacados para o treino de capacitação de professores189. No ano seguinte, 1973,
estes números passaram para cento e oitenta alunos, a frequentar três níveis do ensino
secundário, acrescidos de vinte professores do ensino primário em estágio. Em 1974, a
escola via a sua capacidade aumentada para mais de duzentos e cinquenta alunos nos
quatro níveis escolares190.
Devido à expansão contínua a que esteve sujeito desde a sua implementação191, o
campo de Bagamoyo foi sendo palco de sucessivas ampliações das suas instalações, o
que permitiu, não só aumentar a capacidade de acolhimento ao maior número possível de
estudantes, bem como alargar o tipo de propostas formativas que lhes proporcionava.
Ainda em 1974, o número de alunos inscritos e a frequentar as aulas ultrapassava os
duzentos e cinquenta, esperando-se que atingisse os trezentos192.

«A escola secundária em Bagamoyo, Tanzânia, tem crescido sem cessar, e neste


momento tem cinco níveis escolares. No ano de 1974, o número dos estudantes situar-se-
á entre os duzentos e cinquenta e os trezentos. O contínuo bombardeamento e terrorismo
feito pelas tropas portuguesas não têm permitido estabelecer uma escola secundária no
Moçambique livre, dado que uma escola destas requer uma quantidade de equipamento
técnico de valor em condições de estabilidade.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Projeto do Instituto

189 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes da Escola Secundária na
Noruega, 8 de fevereiro 1973.
190 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, de 5 de abril de 1974.
191 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), carta enviada pelo Instituto Moçambicano a Eistein Erikson, 1 de outubro de 1972.
192 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
202
Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973, p.1).

Gerir um espaço com esta magnitude, capaz de responder a todas as solicitações


das escolas, em solo tanzaniano mas também das zonas libertadas, não demonstrava ser
uma tarefa fácil, exigindo uma orientação estrita e muito cuidada, muito assente na
autossuficiência. Em tudo aquilo em que não conseguia ser autossuficiente, este campo,
tal como os seus congéneres, contava com o trabalho de angariação de fundos do Instituto
Moçambicano, sendo que as doações podiam chegar em diversas formas, desde dinheiro,
necessário para as compras diárias, no mercado local, ou mensais, no mercado de Dar-es-
Salaam, até a apoios em espécime, desde roupa a material didático, ou artigos de higiene
íntima, que eram distribuídos tanto pelo pessoal, quanto pelos alunos. Já ao nível da
assistência médica, o centro, tal como os seus congéneres, dispunha do seu próprio
dispensário, equipado através das doações de material médico de primeira necessidade,
ainda que, para cuidados maiores, o socorro tivesse de ser prestado pelo hospital Américo
Boavida, uma vez que em Bagamoyo não se dispunha de um médico.
As necessidades do campo aumentavam ao ritmo do seu rápido crescimento, o que
fazia de Bagamoyo, enquanto equipamento escolar, um reflexo do sucesso das escolas
primárias nas zonas libertadas pela FRELIMO. Esta escola agregava os estudantes que
tinham iniciado a sua escolaridade na Tanzânia, mas, especialmente, uma maioria de
alunos proveniente das escolas primárias existentes nas zonas libertadas, promovendo a
convivência de elementos oriundos de diferentes províncias do país193.
Graças ao aumento da oferta escolar que beneficiava os alunos dos territórios
moçambicanos sob alçada da FRELIMO, e que promovia o ensino infantil a partir de uma
idade regulamentar mais próxima dos parâmetros internacionais, as turmas em Bagamoyo
tendiam a ser, progressivamente, compostas por estudantes de faixas etárias mais baixas194.

193 Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo.


194 Nyeleti refere que ela própria era uma das alunas mais novas na escola, mas tinha colegas numa
margem de idade entre os doze e os trinta anos, sendo os mais velhos obviamente uma minoria. (Entrevista
realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).
203
Verificou-se também um aumento na frequência académica do sexo feminino que, de dez
alunas em 1973, passou para vinte em 1974195.
Contudo, o constante aumento da população estudantil nesta escola prendia-se
essencialmente com a guerra. Uma vez que, o conflito armado e o risco iminente de
ataques do exército colonial não permitiam a implementação de escolas secundárias em
solo moçambicano, por meter em causa toda a logística inerente a este nível de ensino. Os
professores com competência científica e disponibilidade não existiam em número
suficiente para responder às necessidades de mais do que uma escola, e o material didático
e pedagógico, tão dispendioso quanto necessário ao ensino secundário, exigia uma
manutenção permanente e cuidada, impossível de manter em locais que apresentavam uma
grande probabilidade de terem de vir a ser evacuados.
Aquando da independência de Moçambique os alunos mais avançados
encontravam-se na oitava classe, conforme confirma Elisabeth Sequeira, diretora
pedagógica196 de Bagamoyo: «as turmas eram de cerca de trinta, trinta e poucos, alunos e
nós chegámos a ter duas turmas da quinta, sexta e sétima, acho que só uma turma da oitava
classe... Duzentos e tal alunos, mais ao menos. Terminámos na oitava porque entretanto
chegou a independência» (entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo). Com
o encerramento da escola, muitos destes estudantes mais velhos foram chamados a
desempenhar funções técnicas no país recém-independente, enquanto os colegas mais
novos puderam prosseguir os seus estudos numa nova escola em território moçambicano.
Independentemente das origens heterogéneas do grupo de jovens estudantes, a
convivência entre professores e alunos transcorria com a maior normalidade possível, num
clima de camaradagem e respeito mútuo, enquadrados numa realidade de constante

195 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
196 Este era, per si, um título mais formal do que executivo, e Elisabeth Sequeira explica-o desta
forma, «fui para Bagamoyo como professora e só depois lá, com as mudanças, é que, a certa altura, fiquei
como diretora pedagógica, mas não era bem um título... Nós só tínhamos o chefe de campo que era o reitor,
tudo o resto eram professores, mas havia um grupo de professores que funcionava como a direção do
centro.» (Entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).
204
observação recíproca, limitada a uma dinâmica espácio-temporal sui generis. As regras
militares fundiam-se com as orientações ideológicas da FRELIMO, alunos e professores
conviviam num enquadramento de grande respeito hierárquico, num cenário rígido,
pautado pela camaradagem entre pares e pelo respetivo igualitarismo social entre alunos.
A título de exemplo, uns e outros, reuniam-se ao mesmo tempo no refeitório. As refeições
eram iguais para todos, com especial predominância dos produtos locais cultivados na
machamba. Mas, ao jantar, os docentes eram agraciados com uma espécie de entrada
especial a título de reconhecimento.

«Tínhamos hora de acordar e para o pequeno-almoço, em que tínhamos de estar


todos no refeitório ao mesmo tempo, depois tínhamos hora de trabalho – eu tinha que
preparar as aulas e tinha o meu horário. […] Todos os que davam aulas em Bagamoyo
viviam lá mesmo, era um Centro Educacional, a 70 km de Dar-es-Salaam. Onde mais se
poderia viver? A vila era pequena, ficar no centro educacional de Bagamoyo era a melhor
e a única opção. […] Nós tínhamos que nos preparar e depois à hora do almoço penso
que tocava um sino... Almoçávamos no mesmo refeitório dos alunos, mas na mesa dos
professores e penso que a comida era a mesma 197 […] e depois havia aulas e à tarde
tínhamos um tempo livre em que passeávamos por ali, conversávamos, juntávamo-nos
debaixo das árvores, havia alguma conversa... (Teresa Veloso, entrevista realizada a 17
de novembro de 2015, Maputo).

O quadro docente da escola, de proveniência heterogénea, era composto por


professores de várias nacionalidades, desde moçambicanos militantes da FRELIMO, a
cooperantes internacionais dos mais diversos países: Países Baixos, Itália, RDA, EUA,

197 Segundo Elisabeth Sequeira (entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo), o mata-
bicho (pequeno almoço), era composto por pão, jam (compota), às vezes margarina, leite (geralmente leite
condensado com chá). As refeições eram iguais para professores e alunos, com exceção do jantar, a única
altura em que os professores tinham uma refeição ligeiramente diferente da dos alunos (cuja refeição era
composta por farinha com peixe, ou com feijão, ou com caril de folhas). Porém, os docentes viam o seu
jantar reforçado com um pequeno «petisco», como peixe frito, ou iscas de porco.
205
Brasil e Reino Unido198. Estes, para além de prepararem e darem as respetivas aulas, eram
ainda responsáveis pela redação de grande parte dos manuais de estudo que usavam, tendo
para esse fim, ao seu dispor, uma biblioteca e um laboratório científico equipado com os
melhores instrumentos da época199

«Havia uma boa biblioteca… Na parte da geografia, aparentemente, era mais fácil
para mim porque era uma matéria ligada às ciências... Havia muitos livros, com boas
imagens e recordo-me que aí havia um programa: estudávamos a constituição morfológica
da terra... […] Havia vários aparelhos retroprojetores de transparentes, mas também um
aparelho que eu nunca tinha visto antes, nem nunca vi depois, que, com o recurso a um
livro colorido com um mapa, ou do corpo humano, (porque eu estava a dar ciências
naturais, ou da Terra, com as suas várias camadas) me permitia projetar diretamente na
parede de forma ampliada... E isto eram grandes ajudas didáticas.» (Teresa Veloso,
entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo).

As disciplinas escolares lecionadas no campo dividiam-se por módulos


pedagógicos que abordavam matérias de Medicina, Farmácia, Biologia, Geometria,
Aritmética, Álgebra, Física, Química, Desenho, História, Geografia, Português, Inglês,
trabalhos práticos de carpintaria, trabalho com ferro, alumínio e jardinagem, Educação
Política, Educação Social e treino comercial200. O ensino era assegurado por um grupo de
nove professores201, entre os quais o reitor, coadjuvados por oito pessoas disponíveis para

198 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, de 5 de abril de 1974.
199 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
200 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes da Escola Secundária na
Noruega, 06 de abril 1973.
201 O corpo docente era bastante flutuante, sobretudo aquele que pertencia aos quadros da FRELIMO,
já que as suas aulas podiam ser interrompidas caso fossem destacados para outra missão, obrigando assim
a constantes processos de substituição de professores.
206
eventuais necessidades, enquanto se aguardava pela chegada, num futuro próximo, de
mais seis professores contratados, ou em fase de contratação, que em fevereiro de 1974
ainda não se encontravam no local202.
Apesar da crescente demanda de docentes, o seu número manteve-se sempre aquém
das necessidades, limitando-se a um aumento tímido do grupo ao longo do tempo, o que
obrigou a direção da escola a encontrar, numa base recorrente, soluções de improviso.
Ainda assim, em 1973, só para alojar o pessoal docente, eram já necessárias duas
residências203.
A escola, em franco crescimento e constante reconstrução, potenciava, entre todos
os seus elementos, um espírito de camaradagem, sacrifício e voluntarismo. Professores e
alunos estavam unidos numa mesma missão e mesmo os docentes estrangeiros, apesar de
poderem trazer consigo alguma rigidez metodológica, não ficavam imunes a todo o
sentimento e esforços partilhados no campo. Elisabeth Sequeira recorda o ambiente e
dinâmica paramilitar a que eram sujeitos todos os elementos residentes:

«Toda a gente trabalhava, alunos e professores... Estávamos em guerra, era normal


que assim fosse. Toda a organização do centro era muito mais militar do que escolar. Era
normal, a guerra e a luta de libertação estavam presentes em cada momento da nossa vida.
Ninguém reclamava com nada, quer dizer, se a comida não estivesse tão boa até
poderíamos reclamar com o cozinheiro, que podia fazer melhor, mas se não houvesse
dinheiro para comprar, não havia... Realmente o centro de Bagamoyo tinha uma grande
disciplina...» (Entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

202 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes da Escola Secundária na
Noruega, 06 de abril 1973.
203 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes da Escola Secundária na
Noruega, 8 de fevereiro 1973.
207
Em virtude da situação de convivência restrita ao espaço ocupado pelo campo, ao
seu carácter de internato, e às circunstâncias da guerra, esta comunidade escolar
colmatava, na medida do possível, as lacunas resultantes da ausência de uma rede familiar,
substituindo-a através do desenvolvimento de um suporte emocional forte. Os professores
mostravam-se conscientes das suas funções alargadas, assumindo diariamente, e por
arrasto, um papel e responsabilidade constantes junto destes jovens que viviam condições
de exceção, quer para o bem, quer para o mal. O sentimento de pertença junto do coletivo,
agregado a um estilo de vida em regime de camarata entre os alunos, fazia-se sentir,
superando toda e qualquer noção de individualidade.

«O que posso dizer de Bagamoyo? Éramos professores e recebíamos os estudantes


que vinham do interior ou do centro piloto de Tunduru, que funcionava como escola
primária. Ficava no sul da Tanzânia e nós dávamos aulas todos os dias, de manhã e de
tarde. Havia aulas normais das várias disciplinas e havia muitas aulas práticas (de
laboratório, oficinas e trabalho agrícola), tínhamos sempre muitas atividades. Era uma
escola internato, onde todos os professores, particularmente os que estavam na direção,
estavam de serviço praticamente vinte e quatro horas. A qualquer hora, da manhã, tarde
ou noite, alguém podia bater à porta a precisar de alguma coisa. Os alunos estavam ali e
não tinham outra família que não todos nós. Éramos uma grande família para todos eles
e preocupávamo-nos com quem estava doente, quem não se sentia bem, estava triste ou
tinha recebido alguma notícia má ou boa: os irmãos que tinham casado, desaparecido, ou
o que quer que fosse... Então, era uma coletividade familiar, embora muito grande: nós
tínhamos cerca de duzentos alunos.» (Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de
novembro de 2015, Maputo).

Neste sentido, os professores tinham consciência da importância de responder a


algumas solicitações especiais por parte dos alunos, numa clara tentativa de normalizar o
mais possível esta rotina feita de circunstâncias particulares, conforme recorda Elisabeth
Sequeira:

208
«Havia tarefas em que as raparigas se queriam organizar para fazer, mas não faziam
parte das disciplinas. Elas vinham pedir para eu ensinar a fazer “isto ou aquilo”, coser,
bordar, fazer bolos... Recordo-me que a Frauke [uma professora cooperante holandesa]
volta e meia ensinava a fazer um bolo diferente». (Entrevista realizada a 19 de novembro
de 2015, Maputo).

A diretora pedagógica demonstra bem a forma como os estudantes eram encarados,


enquanto um fim em si mesmos, isto é, a razão de existir do campo e, a longo termo, a
garantia possível para a viabilidade da luta e, consequentemente, do país independente.
Assim, no sentido de uniformizar ideologicamente os jovens estudantes e de contrariar, à
partida, qualquer postura considerada reacionária, a escola estava encarregue da formação
do «Homem Novo» enquanto desígnio social da FRELIMO. Neste sentido, todos os
alunos usufruíam de um tratamento igualitário e coletivista, independentemente da sua
ascendência familiar ou género. Um exemplo claro desta atitude marcou uma das mais
famosas e jovens alunas de Bagamoyo, Nyeleti Mondlane, filha mais nova de Janet e
Eduardo Mondlane, que ingressou na escola em 1971, aos nove anos de idade, e onde
permaneceu até ser transferida com os colegas para a escola de Ribaué, em Moçambique.

«Em 1971, ia completar dez anos no início de 1972. Anteriormente tinha estado na
Escola Internacional da Tanzânia, em Kurasini, e, por razões de segurança, acharam que
nós, os filhos [de Eduardo e Janet Mondlane], devíamos ir para locais seguros. […] A
minha primeira imersão política enquanto jovem foi na escola de Bagamoyo, onde se
aprendia o que era Moçambique, as províncias, as diferentes línguas, tribos, a cultura, o
que era ser revolucionário, o que era necessário para libertar Moçambique... Todas essas
noções eu aprendi durante o primeiro ano em Bagamoyo. Não falava português... Fui
retirada duma espécie de “casulo” que a mim me parecia seguro, de um ambiente familiar,
e imersa numa outra família - com a tragédia de termos perdido o pai em 1969. As minha
colegas de Bagamoyo são as minhas melhores amigas até hoje. […] Era um engrenar,
necessário para que eu socializasse... Mas não foi difícil, no sentido em que era miúda e
as pessoas compreendiam... Havia um princípio na escola: que eu não devia, nem podia,

209
ter privilégios. Nem no dia 3 de fevereiro [dia da morte de Eduardo Modlane e dos heróis
da revolução] eu era escolhida para ir no carro da escola para as comemorações no
cemitério...» (Entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

A rotina diária dos jovens do campo começava cedo com a realização de exercícios
físicos, a que se seguia a respetiva formatura, prosseguindo depois com o
encaminhamento dos alunos para a escola. As fontes escritas referem que as aulas tinham
início às 7h30m e terminavam às 16h45m, altura em que se concluía cada dia com uma
canção que expressava a liberdade e a gratidão à FRELIMO. O jantar era servido às 18h
e, após a limpeza da cozinha, quando restava tempo, os estudantes aproveitavam para se
dirigir à pequena biblioteca existente204, ou retiravam-se para estudar por mais duas horas,
contando, sempre que necessário, com o auxilio dos professores205.

«Acordávamos às 4h30m da manhã. Às 5 h. uns iam à ginástica, outros às limpezas,


ao banho, carregar a água, quem estivesse de castigo ia cumpri-lo, para todos estarmos às
7 horas na formatura, onde se distribuíam tarefas a todos os alunos (limpeza, cozinha,
cortar lenha, ir à machamba, era uma atividade diária) e íamos às aulas. Estudava-mos até
às 13h30m206 e íamos almoçar, à tarde fazíamos as diferentes atividades na escola. Uma
escola limpa, organizada, mas com sentido de disciplina militar. A maior parte dos alunos
da escola de Bagamoyo vinham das escolas primárias, do interior, ou do centro
educacional de Tunduru, e tinham de passar pela formação militar antes de virem para a
escola secundária da FRELIMO. Então, todos (talvez com a exceção da minha pessoa e

204 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
205 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pela Operação Workday da Noruega ao Instituto Moçambicano, 20 de fevereiro 1974.
206 Esta informação entra em contradição com as fontes escritas, pelo que acreditamos que possa
ocorrer uma de duas situações: por um lado, dado que o testemunho de Elisabeth Sequeira, diretora
pedagógica da escola, também corrobora a existência de um período de aulas na parte da tarde, é possível
que este horário não tivesse sido usado para todos os níveis escolares; por outro lado, Nyeleti Mondlane,
uma das alunas mais novas, pode estar a ser traída pela memória.
210
mais duas, ou três) tinham formação político-militar.» (Nyeleti Mondlane, entrevista
realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

Para além do ensino formal e da formação cívica, implícita na rotina coletiva de


tarefas que visavam a manutenção do espaço comunitário, os alunos tinham acesso a um
outro tipo de educação política e formatação ideológica, onde as diretrizes políticas e
militares adotadas pela FRELIMO se encontravam bem marcadas. Todos sem exceção,
alunos e professores da Frente, participavam semanalmente em encontros de turma onde,
muito ao jeito marxista-leninista em voga na época, se levava a cabo uma discussão
segundo uma formulação de critica e autocrítica, decorrente do processo revolucionário
de formatação ideológica individual e coletiva. Os jovens eram encorajados a discutir
problemas interpessoais e a reportar situações de colegas que tivessem feito algo com o
qual não concordavam, submetendo a responsabilidade individual ao julgamento coletivo
permanente e a uma efetiva adesão à doutrina social e política. Mesmo os professores não
fugiam a este escrutínio público, demonstrando maiores níveis de consciência e rigor
ideológico.
A FRELIMO não aceitava que se pusesse em causa a sua ação. Na sua essência, a
eventual falta de democraticidade, ou do direito à individualidade e privacidade, era
encarado como um mal menor resultante do momento político que o movimento de
libertação vivia. Tempos extremos exigiam medidas extremas que rapidamente eram
incorporadas e respeitadas.

«No limite da segurança da FRELIMO. Qualquer coisa que pusesse em causa a


maneira como se fazia, que pudesse de alguma maneira levantar a suspeita de que estava
a pôr em causa a própria FRELIMO, era logo rejeitada. Posso dar exemplos: nós,
professores e alunos todos tínhamos reuniões uma vez por semana para ouvir opiniões,
onde se criticava fortemente (mais do que alguma vez se poderia fazer hoje) a maneira de
falar, a maneira de se dirigir a este, ou àquele aluno, por não ter cumprido bem esta, ou
aquela tarefa, porque tinha havido desleixo, todo o tipo de críticas... Mas, não se podia
nunca criticar uma decisão da FRELIMO. Se a FRELIMO decidisse que, naquele ano,

211
todos os alunos iriam, durante as férias, para o interior em campanhas de alfabetização e
que nós teríamos de preparar o livro de alfabetização para os alunos usarem, toda a gente
cumpria e não criticava. Eu acho que não passava pela cabeça de ninguém pôr em causa
a decisão. Ora, se isso é democracia, ou não é, bem, eu acho que é a democracia possível
em guerra.» (Elisabeth Sequeira, 19 de novembro de 2015, Maputo).

A adesão de todos os militantes à doutrina socialista revestia-se de uma importância


vital já que ancorava o futuro andamento da luta à estratégia desenhada para o país na
versão pós-independência. Assim, era de extrema relevância educar os alunos no sentido
da disciplina ideológica, com a direção da escola a escolher para essa tarefa apenas os
professores moçambicanos. Estes, desempenhavam a função também na respetiva
condição de militantes da FRELIMO:

«Foi daí que eu deixei a matemática, porque tínhamos o Jan Draisma207 que podia
dar a matemática toda e mais alguma, o Kindler208 e, depois, outro alemão, que também
davam a disciplina. Portanto, aquilo que eles não podiam dar eu tinha de o fazer. Passei
para a disciplina de História da FRELIMO e materialismo dialético, porque não havia
outra alternativa e não havia mais ninguém. Educação Política era assim que se chamava.
Era a História da FRELIMO, incluindo toda a História da colonização de África e o
materialismo dialético que fazia entender as coisas (como o mundo estava organizado e
porque é que estava organizado assim, como é que o colonialismo aparece, o fascismo, a
I e II Guerras Mundiais, os movimentos de libertação, os países socialistas e o capitalismo
– nós tínhamos de pesquisar para fundamentar a razão da nossa causa e explicar porque
tínhamos de lutar daquela maneira).» (Elisabeth Sequeira, 19 de novembro de 2015,
Maputo).

A tarefa de doutrinamento político e ideológico encontrava-se facilitada, uma vez


que a entrada da esmagadora maioria dos estudantes em Bagamoyo era antecedida pela

207 Professor cooperante de nacionalidade holandesa.


208 Professor cooperante da RDA.
212
respetiva formação militar, ministrada em Nachingwea, que os preparava dentro dos
parâmetros de ordem e obediência hierárquica que a escola exigia. Assim, estes jovens
eram, desde cedo, expostos a uma filosofia política que implicava o espírito de sacrifício
e subordinação pessoal à luta de libertação. Esta visão inerente à criação de uma nova
Nação estava dependente de uma postura ideológica com um cariz, simultaneamente,
laico e religioso, ou seja, estes jovens eram formados por uma organização laica que
promovia uma devoção à FRELIMO e à revolução semelhante a um fenómeno de fé na
salvação coletiva, cujas diretrizes políticas não se punham em causa.
A configuração social e ideológica do Estado moçambicano, que viria, após a
independência, a assumir um cunho legal e paternalista em relação aos seus cidadãos,
começava assim a ser desenhado através da adesão coletiva a uma visão política com um
cariz messiânico e redentor, assente na ideia do «Homem Novo» enquanto construtor da
nova sociedade, com os alunos a desempenharem o papel de fieis obreiros. Neste sentido,
não lhes era permitido abandonar a noção de missão permanente, individual e coletiva,
projetada, visual e inconscientemente, no uso contínuo da farda militar “pingo de chuva”.
O expediente psicológico funcionava como um detonador emocional na ligação de
dependência simbiótica entre o futuro Estado-nação, a FRELIMO e os cidadãos
moçambicanos.

«Quando estamos na escola secundária podemos sentir o vibrar do enorme


conhecimento físico e mental. Talvez porque a escola albergue e eduque um grupo de
jovens dinâmicos e sagazes prontos a agir, a meter na prática o que têm na mente. […]
Durante as férias grandes os estudantes retornam a Moçambique para viver e trabalhar
junto da população, de outra forma, provavelmente, seria fácil esquecerem as centenas de
milhar dos nossos compatriotas que tão ansiosamente aguardam o seu regresso
permanente. […] Esta é uma escola em crescimento, com os estudantes e os seus
professores a perseguirem um único objetivo – uma nova sociedade para Moçambique -
e não há dúvida de que é graças a estes elementos que fazem as coisas acontecerem
debaixo dos nossos pés.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto

213
Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de
abril de 1974, pp. 5,6).

Neste sentido, e muito graças à falta de meios, os jovens do campo de Bagamoyo,


vistos como futuros quadros, divulgadores, por excelência, do «Homem Novo», eram
preparados na perspetiva de desempenharem um papel onde não se sentissem apenas
alunos, mas também construtores e responsáveis pelas instalações da sua escola, tendo
sido mesmo criada uma comissão de estudantes para ajudar a gerir o campo 209 .
Estimulava-se, desta forma, o surgimento de um sentimento misto de responsabilidade
social, orgulho coletivo, e legítima ambição de ascendência hierárquica, enquanto elite
instruída, cujo mérito esperava-se que se viesse a plasmar na construção da Nação, à
semelhança do trabalho que era efetuado no próprio campo. Assim, era exigido aos
estudantes um esforço suplementar nos trabalhos de construção de infraestruturas básicas
e de suporte do dia a dia, tais como a abertura de poços para fornecimento de água
potável 210 , a execução de soluções para o saneamento básico, ou providenciar à sua
autossuficiência através do que aprendiam nos programas escolares de formação prática
em construção, carpintaria, costura e produção agrícola211.

«Estavam a fazer obras nas casas de banho (eram latrinas bastantes melhoradas, ao
estilo casa de banho turca) e penso que ao lado estavam também os chuveiros... Ou seriam
noutro lado, porque ali havia pouca água? Agora não me recordo bem... E havia algumas
construções pré-fabricadas de metal em chapas e penso que os chuveiros eram num
edifício desses. Os alunos estavam a construir na carpintaria suportes de madeira para
colocar o rolo de papel higiénico e eu estava a achar aquilo ótimo, fantástico e bastante

209 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
210 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
211 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
214
limpo, porque cada uma das latrinas tinha um balde de água, o que significava a existência
de bastantes regras de higiene. Muitas coisas eram feitas pelos próprios alunos...» (Teresa
Veloso, entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo).

Tal como nos outros campos, cuja permanência, independentemente de todos os


esforços, era essencialmente precária na sua natureza, a rotina diária estava longe de ser
calma e previsível. Os dias em Bagamoyo não transcorriam sem as dificuldades inerentes
à vivência numa situação de notória instabilidade, pautada por um constante esforço no
sentido de atingir a autossuficiência, e tornando mais difícil a adaptação para alguns dos
seus elementos, o que só se tornava possível graças a uma fé inabalável na conquista da
libertação.

«Foi uma experiência difícil no princípio, sem dúvida... Saída de uma casa típica
de classe média para uma escola paramilitar. Não comíamos mal no sentido em que
faltasse comida, porque nunca aconteceu, mas tínhamos de ir para a machamba, cortar
lenha, carregar água na cabeça, lavar a própria roupa. Lembro-me de uma vez ter
carregado um balde cheio de água para tomar banho... Tínhamos de descer uma colina
para ir buscar água doce a um poço, ao pé do mar, e subir era horroroso... Coloquei o balde
à porta da casa de banho para ir buscar a minha toalha e o sabão e, quando regressei, estava
um boi a beber toda a água do meu balde. Trágico! Gosto muito de animais, mas nesse dia
tive dificuldade em perdoá-lo, eu era pequenina e havia problemas de água na Tanzânia...
(Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

Porém, apesar de todas as dificuldades, esta não deixava de ser uma escola como
todas as outras, onde, dentro das necessidades básicas dos estudantes, estavam incluídas
as atividades extracurriculares, especialmente no que ao desporto dizia respeito. Com o
incontornável futebol212 a marcar presença, entre outras atividade desportivas e culturais,
misturadas com muita brincadeira entre os mais novos. O desporto funcionava como um

212 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 –
1973, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano a Miss Heivik, S/D.
215
agente de coesão e gestão de stress dentro do grupo, ao mesmo tempo que permitia aos
jovens interiorizarem a disciplina individual através da máxima mens sana in corpore
sano.

«Tínhamos bolas, um campo desportivo para futebol, andebol, voleibol


(basquetebol não, porque não havia campo cimentado). Éramos muito bons em futebol e
voleibol, fazíamos campeonatos, havia claque das turmas... Isso aí... Em termos de
desporto estávamos muito bem organizados. […] Era como na aldeia... Um grupo de
jovens ia à machamba, naturalmente com adultos, e havia um chefe de grupo, que era
sempre um adulto também, mas brincava-se a caminho, na volta, enquanto lá se estava...
Por exemplo, quando íamos abrir campos novos definia-se que determinada turma tinha
de trabalhar até um sítio específico do campo... Então trabalhávamos o mais rápido
possível para no fim ficarmos nas nossas brincadeiras. Era a vida típica de um qualquer
campo.» (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

O trabalho na machamba, condição sine qua non para prover às necessidades


básicas da alimentação de todos quantos estavam alojados no campo, era partilhado pelos
alunos e respetivos professores, militantes da FRELIMO, que o viam, de forma orgulhosa,
como resultado do seu prestígio que os obrigava a dar o exemplo enquanto membros
ativos da Frente. Um verdadeiro privilégio que se poderia também adivinhar na roupa, já
que, mesmo não sendo obrigatório, todos, com exceção dos professores cooperantes,
optavam por usar farda militar, ainda que tivessem acesso aos fardos de roupa recebidos
pelo Instituto Moçambicano.

«Para mim era tudo muito novo e eu sentia um grande privilégio em haver uma
forma de poder participar neste enorme projeto... A parte cultural foi fantástica... A ida
aos fins de semana às machambas... Eu nunca tinha cultivado batata doce, nem sabia
como era... Eles (os alunos) todos me ajudaram. […] Todos éramos soldados da
FRELIMO, prontos para receber qualquer ordem, qualquer missão, a qualquer instante...

216
Se nos chamassem a qualquer momento para nos enviar para outro sítio, íamos sem
questionar!» (Teresa Veloso, entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo).

Como estratégia de disciplina e formatação ideológica, durante os período


correspondente à maior pausa letiva, a FRELIMO impunha que todos os estudantes de
Bagamoyo fossem destacados para as comunidades libertadas em Moçambique, de forma
a aí viverem e trabalharem enquanto agentes de alfabetização 213, conforme se recorda
Nyeleti Mondlane:

«Fazíamos alfabetização de adultos e eu fui indicada para essa função na missão de


Nangololo, em Cabo Delgado – uma experiência linda em retrospetiva. Conhecer os
combatentes e as pessoas nas zonas libertadas, a sua organização a nível da educação, da
saúde, da agricultura. Era fascinante ver o nível de organização das populações e ver in
loco o que ouvíamos na Tanzânia, porque a maior parte do trabalho educacional e de saúde
era organizado a partir de lá, como o movimento logístico de enviar medicamentos e
armamento para dentro de Moçambique... Então, entrando em Cabo Delgado, pude
observar na realidade o que tinha aprendido e foi interessante». (Entrevista realizada a 9
de novembro de 2015, Maputo).

Mesmo durante os fins de semana havia uma rotina de trabalho destinada a alunos
e professores. Nomeadamente, trabalhava-se ao sábado na machamba, no cultivo dos
alimentos que ajudavam a complementar a dieta escolar. O domingo era reservado para
dia de descanso, mas, ainda assim, era aproveitado pelos alunos das mais variadas formas,
optando por tratar dos seus pertences pessoais, ou dedicando-se ao que mais gostavam e
podiam fazer no recinto, quer a nível de grupos, participando em jogos e demais
brincadeiras, quer a um nível mais individual. Este era o único dia da semana que podiam
dedicar a si próprios e às suas necessidades.

213 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
217
«Fins de semana: os domingos eram dias de desporto e de relaxar... Tínhamos de
acartar água e lavar a nossa roupa de manhã, passá-la à tarde; ouvir música... Muita gente
tinha rádios na escola e ouvíamos a rádio Tanzânia... Era dia de relaxar, sim... [...] Era
difícil ter vida privada...Vivíamos em casernas, dormíamos em beliches, usávamos casas
de banho, salas de aula e refeitórios comuns. Tínhamos tudo em comum. Eu era muito
virada para o desporto... Todo o tempo livre que tinha ia jogar com bola e ter com os meus
amigos no campo de futebol, mas havia alunos que gostavam muito de ler – que hoje são
ministros e diretores – sim, podia-se ver num e outro sítio, especialmente à sombra das
muitas mangueiras existentes, alguns alunos quietos a lerem. Muitas amigas minhas
escreviam para as suas casas, na esperança que alguém fosse para o interior e pudesse
entregar as cartas. Escrever era uma coisa que as minhas amigas faziam muito. E, bom,
vivíamos de malas feitas, portanto, fins de semana, tempo privado, as minhas amigas
abriam as malas e tiravam as roupas e as coisas que guardavam para um dia... Pressupondo
que uma vez por ano haveriam de ir a casa, ou estar perto das suas casas durante a
alfabetização de adultos. Elas organizavam-se muito bem para esse momento, a mala que
iam deixar em casa, e a mala que usariam. As coisas que se guardavam e se iam adquirindo.
Não tínhamos dinheiro, era proibido ir a lojas, tínhamos de ficar na escola (outra
característica militar da nossa escola), tínhamos de ter autorizações especiais para ir à vila,
explicando porque se ia.» (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de
2015, Maputo).

Apesar do regime de internato existente no campo, e da respetiva proibição de sair


do recinto sem autorização superior decorrente da disciplina militar, a verdade é que os
alunos mantinham contactos regulares com a aldeia vizinha, criando amizades e até
mantendo relações amorosas214. Ainda que proibidas, as escapadelas eram uma constante

214 Os namoros entre alunos eram proibidos e, no caso de resultarem em gravidezes, as alunas eram
expulsas da escola e obrigadas a regressar às respetivas famílias, ou a ir para o campo de Tunduru, onde
tinham os filhos e eram encaminhadas para profissões técnicas. Apesar da educação sexual ser abordada
nas aulas de biologia, namorar era um assunto tabu para a direção da escola. Vide: 4.3 Campo, escola e
centro infantil de Tunduru, p. 183.
218
entre os adolescentes, o que levava alguns pais da comunidade local a reclamar junto da
direção da escola, originando grande desconforto de parte a parte. Segundo Nyeleti
Mondlane, a permanência desta prática resultava, em grande medida, da cumplicidade
existente nas camaratas e da ausência de barreiras físicas eficazes no próprio campo, cuja
direção, por falta de meios, optava por confiar no sentido de honra dos jovens.

«Eu não penso que houvesse muitas escapadelas da escola, penso que havia certas
pessoas que sabiam ausentar-se. Nós não tínhamos uma segurança férrea... Havia uma
estrada e a nossa escola ficava dos dois lados... Não havia um posto de segurança de cada
lado que controlasse entradas e saídas... E havia muita cumplicidade, como num quartel.»
(Entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

As punições para com os alunos faltosos estavam contempladas no regulamento


interno do campo, e a indisciplina não era encarada de ânimo leve, nem pelos professores,
nem pelos próprios estudantes, cujas falhas eram sancionadas com vários castigos severos
que poderiam mesmo configurar uma expulsão. A natureza e gravidade das faltas
disciplinares era variada e podia resultar de comportamentos tão díspares quanto a
ausência na formatura, o não cumprimento das tarefas estipuladas, ou até fazer
comprovadamente parte de redes de boatos e intriga, o que levava os alunos a uma
autocensura constante e a tentarem-se proteger de uma forma coletiva215.

«Se havia discussões não podiam escalar muito, numa situação paramilitar, gritar,
ou levantar a voz, é considerado indisciplina. Nunca vi uma agressão física em todo o
tempo que estive na escola. Ou se era expulso, caso se fosse responsável pelo ato, ou, no
mínimo, levava-se um castigo valente. Nunca assisti a uma agressão física na escola da
FRELIMO!» (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

215 Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo.


219
Como tem vindo a ser demonstrado, mediante a orientação ideológica da
FRELIMO, Bagamoyo acumulava as funções de escola, com as de laboratório social e
incubador de estratégias políticas, por excelência. Desta forma, chamava a si a
responsabilidade pela formação integral e normativa dos futuros quadros técnicos do
território independente de Moçambique.
Face às necessidades acrescidas e aos desafios de desenvolvimento que o novo país
traria, esperava-se que a escola continuasse a crescer e a especializar o seu ensino até que
a independência fosse uma realidade, sempre com o apoio internacional.
As diversas atividades projetadas prendiam-se com a oferta de cursos de literacia e
a apresentação de seminários para mulheres e jovens, subordinados à discussão do papel
da mulher na nova sociedade, bem como a outros temas, mais ligados ao crescimento
físico, emocional e mental das crianças216. Neste esforço, o Instituto em conjunto com as
diversas organizações femininas da FRELIMO, Destacamento Feminino e OMM, bem
como a própria Frente, mostravam o seu empenho e a sua crença no papel da mulher
enquanto participante ativa na nova sociedade, a par com a conquista de uma autonomia
progressiva em relação aos tradicionais papéis de género.
Os professores estavam conscientes do tema da igualdade entre mulheres e homens
e nas aulas alertavam para a importância do empoderamento feminino. As questões de
género eram debatidas e, independentemente da guerra, mas sobretudo devido a ela,
estavam mais do que nunca na ordem do dia, ainda que não fossem encaradas como uma
agenda per se, mas parte de um todo, ou seja, considerava-se que, face às necessidades,
todas as pessoas capazes eram poucas para levar a cabo a tarefa da construção de um novo
país:

«Havia uma visão de igualdade de género espantosa para aquele tempo. Eu acho
que é preciso saber e estar consciente que numa luta de libertação são precisos todos e
que é a única forma de organizar uma sociedade sustentável, vencedora. Só é possível
com o envolvimento de todos. Então, eu não posso afirmar que nós o fizéssemos naquele

216 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
220
tempo [com consciência], acho que alguns talvez... Mas a maioria queria o envolvimento
das mulheres porque precisava delas. Não éramos tantos para deixar de lado metade. É a
partir daquela necessidade prática que se desenrola... Se se precisa de todas essas mulheres
e se se precisa que elas tenham uma família que as apoie, então tem de se defender que
essa mulher seja respeitada. As coisas vieram umas atrás das outras. Recordo-me que
enquanto professora de educação política ensinava tudo e mais alguma coisa. Falava da
parte dos Direitos do Homem e como é que a educação que se dá perpetua paradigmas.
Eu dava um exemplo que sempre gostei de dar e que os alunos adoravam (até hoje se
recordam): em todas as sociedades aquilo que se quer manter enquanto estatuto do homem
ou da mulher começa de bebé; na minha cultura do tempo colonial as coisas das raparigas
tinham de ser cor de rosa e as dos rapazes tinham de ser azuis – depois houve a modalidade
do amarelo que dava para os dois, mas já era uma nova fase. A partir do momento em que
começa a brincar, toda a gente gosta de subir às árvores, desde que seja livre... Então, se
algum deles cai, e se é uma menina quem toma conta pede para não chorar porque fica
feia, se é um rapaz ordena para não chorar porque tem de ser forte. São paradigmas que
acompanham toda a vida e é assim que se edificam e perpetuam comportamentos.»
(Elisabeth Sequeira, 19 de novembro de 2015, Maputo).

Dentro de uma visão educativa inovadora para a época, a escola de Bagamoyo foi-
se preparando, ao longo do tempo e enquanto se aguardava pela independência, para
permanecer como a escola de referencia da FRELIMO. Alunos e professores acreditavam
numa luta de longa duração, pelo que a revolução de 25 de abril em Portugal apanhou uns
e outros totalmente desprevenidos.
Os jovens, que estavam a ser psicológica e fisicamente preparados para uma guerra
que se deveria arrastar, mas que acabou por terminar subitamente, sonhavam em ser
guerrilheiros, em ajudar a libertar o seu país. Com a independência, sentiram-se arrastados
para uma situação desconhecida e para a qual ainda não se reconheciam totalmente
preparados. Assim, optaram por responder com voluntarismo:

221
«No meu nível, mais novinhos, queríamos ser militantes da FRELIMO.
Queríamos libertar Moçambique. E havia uma particularidade na nossa maneira de
pensar... Não estávamos a contar com o 25 de abril... Para nós, os mais novos, a luta ir-se-
ia arrastar por muitos anos...Tinha começado em Cabo Delgado e Niassa, estava em
Manica e Sofala, e nós íamos entrar em Lourenço Marques. Pensávamos assim… Então,
nós, os mais novos, que não acompanhávamos os acontecimentos internacionais com
muito cuidado, fomos apanhados de surpresa. […] Nós só queríamos vir para
Moçambique. Quando aconteceu o 7 de setembro217 [de 1974], os alunos da escola de
Bagamoyo pediram à direção autocarros para entrar em Moçambique, para lutar contra
aqueles que tinham ocupado a Rádio Moçambique e se autoproclamavam nacionalistas.
E foi necessário que o presidente [Samora Machel] viesse à nossa escola para nos dizer
que tivéssemos juízo, para termos confiança no processo, que estava tudo a correr bem e
que nós tínhamos a tarefa de continuar a estudar, porque Moçambique precisaria de
quadros. E foi exatamente o que aconteceu... Os mais velhos quando vieram para
Moçambique foram dirigir escolas e unidades económicas, porque muitos portugueses
tinham-se retirado. Numa idade muito jovem ficaram diretores de escolas... Foi
interessante... (Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

Após os Acordos de Lusaka 218 , e perante a fuga da esmagadora maioria dos


portugueses que viviam em Moçambique, a FRELIMO não encontrou outra solução que
não passasse pelo jovens estudantes para responder às necessidades do novo país. Atribuía,
assim, aos alunos dos níveis mais avançados de Bagamoyo diversas tarefas em serviços
correspondentes a quadros médios, já que, de facto, estes faziam parte do grupo dos
moçambicanos com maior formação técnica disponível. Os jovens instruídos
encontravam-se, agora, numa posição que lhes permitia pôr em prática tudo aquilo para o

217 A 7 de Setembro de 1974 foram assinados na capital da Zâmbia, entre Portugal e a FRELIMO,
os Acordos de Lusaka. Neste documento, o Estado português reconheceu formalmente o «direito do povo
de Moçambique à independência».
218 Acordos assinados a 7 de setembro de 1974.
222
qual estavam a ser preparados, bem como ajudar a divulgar por todo o território
moçambicano a ideologia que o novo poder iria adotar no governo da Nação:

«A escola da FRELIMO de Bagamoyo e o Instituto Moçambicano é que permitiram


que, depois da independência, houvesse gente para tomar conta do país. Os meus alunos
que estavam na oitava classe, todos eles vieram para os ministérios, escolas, hospitais,
trabalhar, assumiram chefias de fábricas. Eu acho que nós, com as imensas dificuldades
que tivemos, fizemos maravilhas. Acho que o Instituto Moçambicano teve um papel muito
grande nisso. E, digamos assim, o movimento de solidariedade mundial que o permitiu.
Os movimentos de apoio aos movimentos de libertação foram importantíssimos.»
(Elisabeth Sequeira, 19 de novembro de 2015, Maputo).

Por seu turno, os alunos mais novos, deslocados para o território moçambicano,
puderam prosseguir a sua educação na nova escola que substituiu Bagamoyo, a escola de
Ribaué, em Nampula. Esta, acolheu-os, assim, a partir de 1975, num regime de maior
liberdade e tolerância, como qualquer escola aberta à comunidade e com um currículo
normal a desempenhar a sua função num país livre e em paz219.

4.5. Mbeya e o Orfanato, Rutamba, Songea, Kianga e Mtwara.

Dos vários campos de refugiados moçambicanos sob direção da FRELIMO, os mais


importantes e sobre os quais se encontra um maior volume de informação disponível são
os centros situados nas localidades de Tunduru e Bagamoyo. Contudo, outros congéneres
existiram em território tanzaniano e com grande impacto na vida dos moçambicanos que
neles encontravam auxílio e refúgio.
Nos documentos estudados sobre o Instituto Moçambicano não foram encontradas
referências a campos importantes como Nachingwea ou Kongwa. Não porque estes não
revelassem carências ou não dependessem do trabalho do Instituto, mas muito
provavelmente porque, enquanto campos exclusivos para treino militar, não se tornava

219 Feliciano Gundana, entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo.


223
conveniente, nem profícuo, que fossem nomeados nos inúmeros pedidos de ajuda
humanitária ou nos relatórios de prestação de contas, enviados aos doadores. Assim,
continuaremos apenas a referirmo-nos aos campos citados na documentação consultada.
Não obstante, as fontes orais recolhidas apenas identificarem Tunduru como o único
orfanato da FRELIMO. Já segundo as fontes escritas, Mbeya foi um centro com uma
função muito particular, uma vez que era aqui que se encontrava o orfanato por excelência
da Frente, dirigido em parceria com o Instituto Moçambicano e a Liga Feminina de
Moçambique (LIFEMO).
Em 1969, o orfanato de Mbeya encontrava-se ainda em fase de projeto e, a fim de
justificar a sua construção, já então se apontava para um número superior a duzentas
crianças órfãs recenseadas nas zonas livres de Moçambique e a necessitar de ajuda
urgente220.
A condição de órfão era atribuída, tanto pelo Instituto Moçambicano, quanto pela
LIFEMO, a toda a criança pequena que houvesse perdido os membros da sua família, ou
que se encontrasse ela própria perdida do seu núcleo familiar devido ao conflito militar,
ou estando apenas afastada da família em virtude do engajamento de ambos os
progenitores na luta, e na ausência de elementos da família próxima que se pudessem
responsabilizar pela sua educação. Por vezes, era relativamente fácil encontrar quem
tomasse conta destas crianças. Porém o quadro mostrava-se mais complexo quando as
crianças se achavam doentes ou a sofrer de desnutrição severa, tornando-se difícil
encontrar-lhes um tutor, sendo muitas vezes preferível para a sua segurança retirá-las do
seu ambiente até que recuperassem a saúde221.

«Parece inevitável que as nossas crianças tenham de sofrer com dor, calor, frio e
fome em condições mínimas de sobrevivência. Centenas de crianças morrem devido à
falta de abrigo e instalações médicas. Porém, não há alternativa às nossas dificuldades
atuais, sem a luta, as nossas famílias nunca se libertarão do domínio colonial que nos

220 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.11-12.
221 Idem.
224
mantém pobres e às nossas crianças sem possibilidade de educação ou de uma vida
digna.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969,
p.12)

Este orfanato, construído em Mbeya, no sul da Tanzânia, geograficamente situado


a 817 km a oeste de Dar-es-Salaam (a 906 km da fronteira terrestre com Moçambique)222,
perto da fronteira com a Zâmbia e o Malawi, apresentava-se como um refúgio, onde as
crianças tinham acesso a comida de qualidade e a cuidados médicos adequados, até que
o seu quadro clínico se encontrasse estabilizado. Após o momento em que lhes fosse dada
a alta clínica, e não tendo ainda idade para iniciar a escola primária em Tunduru, tentava-
se encontrar familiares que tomassem conta delas. Em alternativa, seriam encaminhadas
para famílias de acolhimento que as inserissem no seu seio familiar.223
O orfanato apresentava-se então como um centro educativo transitório com
necessidades específicas no que aos órfãos dizia respeito, mas também conciliava as suas
funções com o acolhimento e acompanhamento de jovens mães solteiras, oriundas
especialmente da comunidade estudantil. Estas jovens, graças ao apoio de bolsas
escolares locais, usufruíam aqui de programas educativos que lhes davam a oportunidade
de frequentar cursos especiais de formação doméstica, nomeadamente economia
doméstica, ou formação em secretariado, entre outras224, ainda que fossem impedidas de
seguir o programa de estudos que haviam adotado previamente225.
Com o avançar da guerra o número de órfãos aumentou, pelo que a opção tomada
pelas entidades competentes foi no sentido de dividir estas crianças entre Mbeya e
Tunduru, tendo ambos os centros sido obrigados a aumentar a sua capacidade de

222 Vide mapa em anexo, p. 362.


223 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.12.
224 Idem.
225 Vide: 4.1.1. O confronto dos jovens com as autoridades militar e patriarcal: o empoderamento
feminino, p. 147.
225
resposta.226 Porém, assim que as zonas libertadas foram ficando estabilizadas e em paz,
os serviços de assistência à comunidade foram progressivamente passando para o
território moçambicano, considerando-se imperioso que também um orfanato lá fosse
estabelecido, nomeadamente em Cabo Delgado. Contudo, não existe qualquer informação
da criação de um estabelecimento do género até à declaração de independência.
Apesar da informação recolhida nas fontes documentais, Hélder Martins, por seu
turno, imputa atualmente outras valências de assistência médica ao campo de Mbeya,
nomeadamente como local de pernoita e convalescença para pacientes moçambicanos
seguidos em hospitais tanzanianos, negando categoricamente a existência de um orfanato,
que reporta única e exclusivamente para Tunduru:

«Mbeya foi uma coisa transitória e nunca foi uma clínica. Era uma casa para doentes
que só careciam dos tratamentos ambulatórios que faziam no hospital tanzaniano, mas
tinham que ficar hospedados em alguma parte. Foi na verdade um depósito de doentes
que recebiam alguns cuidados médicos… Mbeya era um local de passagem de muita
gente e, a uma certa altura, houve a ideia de retirar gente de Dar-es-Salaam porque se
considerava que a vida da cidade corrompia as pessoas, que depois não queriam combater
e as mulheres já não queriam ir para Tunduru... Mbeya era um local de passagem por
excelência, muito perto das fronteiras do Malawi e da Zâmbia. Esta era uma forma de
travar as pessoas e também alguns doentes que estavam em regime ambulatório e que
tinham tratamentos nos hospitais da Tanzânia, de forma a que não ficassem na cidade de
Dar-es-Salaam e fossem para lá, enquanto nós construíamos o hospital de Mtwara. Os
pacientes que necessitassem de cuidados hospitalares entravam no hospital da Tanzânia,
mas os médicos recusavam ter pacientes que podiam estar em regime ambulatório a
ocupar camas, estes pacientes tinham necessidade de uma casa onde vivessem, e foi assim
que se criou essa espécie de dormitório de doentes ambulatórios. […] Nunca houve um
orfanato em Mbeya...» (Entrevista realizada a 14 de outubro de 2015; Maputo).

226 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa 3, Pasta O, Comissariado Político, Cópias da correspondência
expedida para o Instituto Moçambicano, Secção do Comissariado Político Nacional para Janet Mondlane,
10 de outubro de 1969.
226
Sobre os campos tanzanianos situados nas localidades de Rutamba (situado a 498
km a sul de Dar-es-Salaam, e a cerca de 150 km da fronteira natural do rio Rovuma),
Songea (934 km a sudoeste de Dar-es-Salaam, perto da fronteira do Niassa) e Kianga (a
578 km a sul de Dar-es-Salaam, em localização desconhecida, dentro do perímetro de
Mtwara, a cerca de 40 km da fronteira natural do rio Rovuma)227 encontram-se parcas
informações. Contudo, a sua importância para a manutenção da qualidade de vida
possível dos refugiados moçambicanos não era despiciente. De facto, Rutamba e Songea,
tal como Bagamoyo nos seus primórdios, e mesmo as zonas limítrofes no mato,
funcionaram como campos de férias obrigatórios para os alunos da Escola Secundária de
Dar-es-Salaam, permitindo-lhes conhecer as condições no terreno da luta e incentivando-
os a desenvolver uma série de atividades com os estudantes residentes228.
Em 1965, o campo de Rutamba, tinha uma população de cerca de doze mil
refugiados, para os quais foi necessário construir novas escolas e onde se procedia
também ao ensino de adultos (Manghezi, p.269). Segundo os relatórios de 1968,
assegurava-se aqui a instrução a duzentas crianças ao cuidado de quatro professores,
sendo que no ano seguinte o número de alunos cresceu exponencialmente para o dobro,
com dez professores responsáveis pela educação de quatrocentas crianças229.
Os centros de acolhimento de Songea e Kianga acumularam também a função de
suporte ao campo de Mtwara, no apoio prestado ao Hospital Dr. Américo Boavida. De
facto, já desde 1965, cinco anos antes da abertura do hospital, Songea vinha-se a preparar
para levar a cabo nas suas instalações uma série de programas destinados ao ensino de
enfermagem 230 .O que acumularia com as funções de centro de acolhimento para as

227 Vide mapa em anexo, p. 362.


228 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pasta sem cota, Presidência, Correspondência trocada com
individualidades/instituições na Europa 1963-68, Relatório do Instituto Moçambicano, por ocasião do seu
2º aniversário, 1 de setembro de 1965.
229 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.51.
230 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pasta sem cota, Presidência, Correspondência trocada com
individualidades/instituições na Europa 1963-68, relatório do Instituto Moçambicano, por ocasião do seu
227
mulheres chegadas do interior de Moçambique, dada a sua proximidade com a fronteira
do Niassa, para além de continuar a funcionar enquanto lar e escola de vinte e cinco
raparigas que tinham aqui a oportunidade de se alfabetizarem e aprenderem rudimentos
de costura, noções de higiene e nutrição (Manghezi, pp. 262, 269).
Contudo, é de notar que todos estes dados fundamentados em fontes escritas são,
mais uma vez, contrariados pelas orais, podendo o facto ser justificado pelo tempo
passado entretanto.
Uma outra explicação pode ser dada ao nível dos próprios centros, isto é, a
memória construída à posteriori sobre os campos pode, eventualmente, revelar uma
gestão mais eficaz destes espaços, bem como dos meios mobilizados para a luta,
demonstrando como a capacidade de adaptação e flexibilidade de certos campos teria
contribuído para a extinção de alguns deles, numa lógica de concentração e otimização
de recursos. Poder-se-á, também, dar o caso de o Instituto ter apoiado, de uma forma mais
dinâmica do que o recordado, alguns campos que não estariam sob a alçada da FRELIMO
e, compreensivelmente, usar esse facto nos relatórios de forma a captar maior volume de
doadores e doações, ou simplesmente, pela circunstância da relativa importância de uns
em relação aos outros trair a memória dos entrevistados, que pura e simplesmente
relegaram esta informação para segundo plano.
Hélder Martins desvaloriza efetivamente a importância de campos como Songea,
Rutamba e Kianga:

«Songea era um lugar, uma espécie de ponto de passagem para entrar no Niassa,
onde havia sempre gente em trânsito. [...] Agora os outros sítios como Rutamba e Kianga
eram postos de fronteira onde se atravessava o Rovuma, não eram centros... E há outros
para além destes... Era possível que tivessem tido refugiados no princípio... Quando
começou a luta, os portugueses fizeram bombardeamentos massivos de napalm - então
fugiu muita gente, eu acho que em Rutamba chegou a haver um campo de refugiados,
mas foi gradualmente desmantelado... Aquela gente foi integrada nas comunidades; os

2º aniversário, 1 de setembro de 1965.


228
que quiseram combater foram combater, os que não quiseram foram à vida deles... Mas
estes sítios, funcionavam como postos de travessia da fronteira [entre a Tanzânia e
Moçambique], que eram móveis por natureza, até porque os portugueses acabavam por
os descobrir, mas não funcionaram como verdadeiros campos de refugiados... Às vezes
nesses sítios havia um armazém onde se guardava material para distribuir pelas zonas
libertadas porque não se conseguia atravessar o Rovuma no mesmo dia... Mas a maior
parte desses armazéns eram clandestinos, não eram armazéns da FRELIMO, eram,
outrossim, comerciantes locais que ajudavam a FRELIMO, uns eram moçambicanos que
viviam na Tanzânia há mais tempo, outros eram mesmo tanzanianos, que tinham lojas e
tinham os armazéns, então as coisas eram depositadas ali fingindo que era mercadoria
própria. É possível que o Instituto tenha dado algum dinheiro inicial... Quando eu cheguei,
em 1965, ainda existiam alguns campos de refugiados daquela primeira vaga de gente
que fugiu dos bombardeamentos... E lembro-me do nome de Rutamba, mas eu nunca
visitei, até porque estava sob a alçada do governo da Tanzânia.» (Entrevista realizada a
14 de outubro de 2015, Maputo).

Contudo, Salghetti é muito mais generosa ao nível dos detalhes, nomeadamente


sobre o campo de Kianga, indo ao encontro das fontes escritas ao descrevê-lo como um
apoio de grande importância ao Hospital Américo Boavida. Kianga justificava-se
essencialmente pela existência de duas residências para doentes, com lotação para 200
camas que aumentavam a capacidade de internamento hospitalar231. Era aqui que ficavam
alojados os pacientes que, tendo alta hospitalar, ainda necessitavam deste para a
continuação dos seus tratamentos ambulatórios, numa espécie de consulta externa muito
rudimentar, permitindo assim a sua convalescença de uma forma clinicamente controlada,
algo que nunca aconteceria nas zonas libertadas.

«Contando com um centro afastado em Kianga, onde permaneciam os


convalescentes antes de regressarem às zonas libertadas... Mas não ficava dentro do

231 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Conclusões de uma carta de autor desconhecido com o carimbo da FRELIMO, 1974.
229
recinto hospitalar, distava dele cerca de 1 km... Um outro sítio, portanto... Quando tinham
alta muitos não podiam voltar imediatamente para o interior, eram feridos de guerra,
amputados... Faziam ali a convalescença e recuperação... Eles eram de facto seguidos...
No sentido em que, quando não se sentiam bem, vinham ao hospital... Sim pode-se
considerar uma consulta externa desta forma, porque os médicos só existiam ali, nunca
iam para o interior... Eles vinham... Era como se vivessem nas suas casas, mas como não
as tinham na Tanzânia, alojavam-se nestas instalações [Kianga] que funcionavam apenas
como residência, onde dormiam e comiam… Era verdade que não vinham às consultas
apenas convalescentes, havia doentes menos graves que não necessitavam de baixa e que
iam para lá [Kianga] e vinham à consulta, ou fazer pensos...» (Maria Salghetti, entrevista
realizada a 20 de outubro de 2015; Maputo).

Já o centro de Mtwara (561 km a sul de Dar-es-Salaam, perto da fronteira com Cabo


Delgado, a cerca de 50 km do Rio Rovuma)232 tinha uma função muito especial, dado
que era o campo que diretamente albergava e apoiava o Hospital Dr. Américo Boavida,
confundindo-se com este. Era aqui que se encontravam alojados os alunos dos vários
cursos ministrados no hospital. Assim, em 1974, mesmo existindo duas residências de
estudantes, continuava-se a pedir fundos para ampliar e construir novas instalações233.
Em qualquer dos centros, a dinâmica de gestão diária era a mesma, envidando-se
todos os esforços no sentido de dotar os espaços do máximo de condições de
autossubsistência, nomeadamente com produção agrícola e animal e onde colaborava
toda a gente que não estivesse acamada 234.

232 Vide mapa em anexo, p. 362.


233 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Lista de Fornecimento
de Material, 24 de abril de 1974.
234 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (A), Nota de pedido e despesa enviada pelo D.P. e Comércio, 12 de janeiro 1974.
230
4.6. As escolas nas zonas libertadas de Moçambique: Províncias de Cabo
Delgado, Tete e Niassa.

Na medida em que as condições no terreno nas zonas libertadas de Moçambique


iam ficando estabilizadas, os serviços foram progressivamente sendo relocalizados no
território, de forma a conseguir preparar a independência, ajudando simultaneamente as
populações afetadas pela guerra e prevenindo a deslocação de mais refugiados para a
vizinha Tanzânia. Mesmo sob a ameaça de ataques por parte do exército colonial, as
escolas primárias nas zonas livres de Moçambique verificaram, ao longo dos anos, um
crescimento exponencial, para o qual contribuía uma menor necessidade de equipamento
pedagógico face ao ensino secundário, que lhes conferia uma maior flexibilidade em
situação de ataque, permitindo a evacuação e relocalização dos alunos e das estruturas de
forma rápidas e eficaz. Este crescimento foi verificado mesmo na província de Tete, onde
a maioria da população era dependente da FRELIMO para todas as atividades
socioeconómicas235.
Com o avanço da luta armada para Manica e Sofala, ponderava-se, em 1974, o
alargamento de todos os serviços subsidiados pelo Instituto a estas duas províncias.236

«Para nós, uma zona libertada não se resume à zona a que chegamos e descansamos
satisfeitos por termos expulsado a ordem colonial. Liberdade significa a construção da
Nação e a reconstrução nacional, e desde o primeiro momento em qualquer área libertada,
escolas e centros médicos são erigidos, quais fontes a brotarem do chão. Uma nova forma
de vida começou.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano,
caixa A, Processo DEC 1971-1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974).

A relação dos professores destas escolas, situadas nas zonas libertadas de


Moçambique, fazia-se quase exclusivamente com a FRELIMO, ao ponto de os

235 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
236 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
231
professores se identificarem apenas com o trabalho da Frente237 a quem reconheciam os
esforços no sentido de garantir a sobrevivência das populações num clima de insegurança
e com a paz possível. Contudo, todos os meios de que estes dispunham para levarem a
cabo a sua função ficavam a dever-se a um trabalho de retaguarda, exaustivo e hercúleo,
por parte do Instituto Moçambicano, que lhes dirigia grande parte da sua atenção.

«Alguma relação havia... Uma parte do apoio material era conseguido através do
Instituto... Mas, uma relação mais profunda não sei... Talvez com Tunduru... Com as
escolas das zonas libertadas era difícil, até porque para vir para território moçambicano
era necessária uma autorização especial. O Instituto atuava como complemento a tudo o
que fosse necessário para que as escolas pudessem realizar as suas missões. [...] Por
exemplo, há muitas pessoas que não teriam tido acesso à escola se a FRELIMO não
tivesse criado escolas nas zonas libertadas, mas é possível que nestas escolas os cadernos,
lápis e até roupa tivesse vindo através do Instituto... Aí sim, há uma relação... Na verdade,
existe um número considerável de quadros que passaram por lá...» (Feliciano Gundana,
entrevista realizada a 22 de outubro de 2015, Maputo).

Manghezi (2001, p.269) atribui ao Instituto a orientação, logo em 1966, de setenta


e duas escolas existentes nas zonas libertadas, para uma população estudantil de sete mil
crianças.
Em 1968, na província de Cabo Delgado, dependiam do trabalho do Instituto
Moçambicano cento e cinquenta professores que davam aulas de alfabetização a doze mil
crianças no primeiro ano de escolaridade, acrescentando duzentas crianças no segundo
ano e trinta crianças no terceiro ano, com igual número de estudantes adultos, também a
frequentar o terceiro ano238. Para a mesma data, na província do Niassa, encontravam-se
seiscentas crianças sob tutela de quinze professores e, no ano seguinte, os números
aumentaram para quatro mil e quinhentas crianças ao cuidado de quarenta professores.

237 Polly Gaster, entrevista realizada a 15 de setembro de 2015, Maputo.


238 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp. 55,56.
232
Só ao nível dos terceiros anos o número de alunos se manteve estável nos trinta elementos
naqueles dois anos239. Para a província de Tete, a mais instável até ao final da guerra, os
números eram todos calculados por estimativas. Assim, em 1969 para vinte professores
esperava-se um número de alunos num intervalo entre quinhentos e mil240.
Numa brochura de 1973, lançada pelo Fundo Africano, sobre Angola, Guiné e
Moçambique, estimava-se que a população estudantil das escolas móveis do ensino
primário, isto é, das escolas instaladas em zonas militarmente instáveis com capacidade
de constante mobilidade, nas zonas libertadas de Moçambique, ascendesse a mais de vinte
mil alunos:

«De maior importância são os mais de 20.000 jovens moçambicanos a frequentar


as escolas móveis no Moçambique libertado. O programa educativo do Instituto
Moçambicano está orientado para o futuro desses continuadores [nome pelo qual eram
chamadas as crianças que deveriam continuar a luta e a revolução], e continuação da luta
[de libertação].» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
A, Processo DEC 1972-1974 (B), Brochura Africa Fund Projects: Angola, Guinea,
Mozambique, 1973, p.13).

Os estudantes destas escolas, apesar de viverem nas zonas libertadas, com todas as
dificuldades acrescidas que esse facto ocasionava, tinham as mesmas oportunidades que
os seus colegas que viviam nos campos de acolhimento da FRELIMO na Tanzânia, ao
ponto de terem tido a oportunidade de representar Moçambique libertado e a juventude
da FRELIMO em encontros internacionais, conforme esclarece Teresa Veloso:

«Quando cheguei, logo nos primeiros dias, o professor de Português, Edmundo


Libombo, foi acompanhar um grande grupo de alunos de Bagamoyo - mas também alunos
vindos das escolas primárias do interior e de Tunduru - que iam participar na Conferência

239 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.55,56.
240 Idem.
233
Internacional da Juventude em Berlim 241 , em 1973... Este grande grupo de jovens e
crianças tinha de ser acompanhado por adultos e alguns dos professores residentes de
Bagamoyo foram acompanhá-los... Recordo-me da equipa de atividades culturais - teatro,
dança e declamação – que se estava a preparar para fazer uma apresentação em Berlim.
Apresentaram no centro de Bagamoyo o espetáculo como despedida, o que me
impressionou muitíssimo. Eram músicas, danças e cantos fantásticos, e eu não conhecia
muito da cultura, do canto e da dança do Moçambique negro (eu tinha vivido em
Lourenço Marques, com muito pouco contacto com a população moçambicana).»
(Entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo).

Para ajudar neste trabalho em prol da alfabetização e da educação e também para


envolver os alunos mais adiantados no esforço pela luta de libertação, consciencializando-
os da realidade vivida pelas populações no interior moçambicano, a escola secundária de
Bagamoyo242 enviava, durante as férias, os seus estudantes mais velhos para as zonas
libertadas, de onde a maior parte era oriunda, com o duplo objetivo de formar a sua
consciência cívica, enquanto ajudavam a difundir a ideologia da FRELIMO.

«Nas férias tínhamos de ir para as zonas libertadas – vinham autocarros buscar-nos...


Nos primeiros três anos não pude ir porque era muito jovem, mas depois da assinatura
dos Acordos de Lusaka [em setembro de 1974], tive o privilégio de me juntar ao grupo
que ia para Mueda, em Cabo Delgado, e fomos até ao rio Rovuma, atravessámo-lo de

241 Quando Teresa Veloso refere a Conferencia Internacional da Juventude de Berlim, na verdade,
está-se a reportar ao 10º Festival da Juventude e dos Estudantes, realizado na cidade de Berlim, na então
República Democrática Alemã, em 1973, sob o lema «Pela Solidariedade Anti-Imperialista, Paz e
Fraternidade!», organizado pela Federação Mundial das Juventudes Democráticas. Este evento político e
cultural era realizado anualmente, desde 1947, e tinha como objetivo a reunião internacional da juventude
alinhada com os valores socialistas (Laranjeiro, 2016, p.87).
242 A escola secundária do Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam também enviava os seus
alunos, durante as férias, para o apoio à alfabetização, educação política e treino físico, ainda que sempre
em campos de acolhimento situados na Tanzânia. Para aprofundar melhor este assunto, vide os pontos: 4.2
A escola secundária em Dar-es-Salaam, p. 171; e 4.4 A escola secundária de Bagamoyo, p. 196.
234
canoa e marchámos três dias. Fui a única menina que conseguiu chegar ao destino, as
outras desistiram. Mas foi uma experiência única.» (Nyeleti Mondlane, entrevista
realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo).

Tendo sempre em atenção a importância de controlar o melhor possível a qualidade


educativa dos serviços prestados nas zonas libertadas, o Instituto Moçambicano, em
conjunto com o Departamento de Educação da FRELIMO, mantinha encontros
formativos mensais com grupos alternados de vinte professores, reunindo-os em
seminários sobre educação e instrução organizativa243.
De facto, a formação veiculada para os professores das zonas libertadas tinha de ser
constantemente alvo de um trabalho meticuloso, dado que, os aglomerados populacionais
que as suas escolas serviam, quer pela distribuição geográfica muito espaçada, quer pelo
risco de instabilidade a que estavam constantemente sujeitos, tornavam-se muito mais
permeáveis às ações de contrainformação e ao que a FRELIMO receava serem «desvios
ideológicos». Os alunos destas escolas de interior constituíam um grupo preferencial, quer
ao nível da disseminação de ideias contrárias à ideologia da FRELIMO, quer na sua
prevenção. Panzer demonstra a importância deste trabalho ao relacioná-lo com os
distúrbios de 1968: «Como foi evidenciado pelos eventos ocorridos na escola secundária
da FRELIMO em março de 1968, a educação e o cenário educativo – quer em escolas
“formais”, ou escolas do “mato” pertencentes à FRELIMO – geravam potenciais focos de
conflito geracional, étnico, de classe, racial e de género.» (2009, p. 808).
O Instituto, até ao seu encerramento, e mesmo após ter assumido uma função mais
virada para a angariação e recolha da ajuda humanitária, nunca descurou o ensino, nem
se demitiu da sua função de apoio ao projeto educativo da FRELIMO, tanto na Tanzânia,
quanto nas zonas libertadas de Moçambique.
O trabalho efetuado pela Frente foi sempre acompanhado à distância pelos membros
e cooperantes brancos do Instituto, uma vez que, por motivos de segurança militar,
raramente tiveram oportunidade de visitar o trabalho revolucionário que ajudaram a

243 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.66.
235
orquestrar. De facto, estes militantes da Frente, devido à sua cor de pele, facilmente eram
confundidos com as forças portuguesas, levando à desconfiança e instabilidade das
populações. Simultaneamente, a FRELIMO não podia, nem queria, comprometer a
segurança dos cooperantes ao levá-los para zonas onde a instabilidade ainda era
frequente244.

4.7. Editora, publicações e bibliotecas

A FRELIMO publicava regularmente jornais e panfletos internos, de forma a fazer


chegar as notícias da Frente, bem como os seus avanços na luta armada, a todos os cantos
do território moçambicano e tanzaniano onde se encontrasse a resistência moçambicana.
Das publicações de circulação interna com tiragem regular destacavam-se a Voz da
Revolução e o 25 de setembro, enquanto boletins informativos com fins propagandísticos.
Simultaneamente, publicava-se em língua inglesa, para os mesmos efeitos, o Mozambique
Revolution, destinado, quer aos moçambicanos da diáspora, quer à generalidade dos
apoiantes estrangeiros da luta pela independência do país245.
Assim, tendo em atenção a importância inerente à circulação de informação, a
FRELIMO, por intermédio do Instituto Moçambicano, usufruiu de material e
equipamento técnico que lhe permitiu ter uma palavra a dizer na importante guerra de
contrainformação, tão necessária quanto urgente, num conflito que também dependia da
opinião internacional:

«A Finlândia, também, financiou todo o equipamento de informação, como


contraponto à “máquina de desinformação” extraordinária de Portugal. Dentro do espírito
nórdico de democracia, foi considerado que a FRELIMO teria o direito de fazer, também,
a sua contrainformação e para isso foi financiada toda uma central de informação, com

244 Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo.


245 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.104.
236
impressora, fotografia, todas as coisas anexas à função e o equipamento para uma rádio,
etc... O Instituto Moçambicano foi o simples veículo para obter o financiamento...»
(Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

A Frente respondia, desta forma, à guerra de contrainformação a que estava sujeita


através de um trabalho de divulgação internacional de panfletos e imagens próprias que
denunciavam e provavam a deturpação da informação apresenta pelas forças coloniais,
nomeadamente, sobre o controlo de território e a adesão popular ao regime colonial.
Assim, graças ao apoio do Instituto Moçambicano, e ao seu projeto de ajuda humanitária,
foi permitido à FRELIMO arrecadar fundos que colocavam em marcha todo um
empreendimento que mais não foi do que a construção de um Estado embrionário. Na
realidade, apesar das várias publicações da FRELIMO serem da responsabilidade dos
respetivos departamentos de informação e educação, a sua edição encontrava-se a cargo
do Instituto Moçambicano, que era simultaneamente responsável pela editora,
publicações e bibliotecas.
Os panfletos da Frente, especialmente os que se destinavam à comunidade
internacional, desempenhavam um papel fulcral na luta diplomática pelo reconhecimento
do direito à autodeterminação de Moçambique e, consequentemente, pela legitimação da
FRELIMO enquanto solução governativa para o futuro país. Neste sentido, tanto quanto
informar a comunidade internacional sobre os combates entre o movimento de libertação
e o exército colonial, importava mostrar o sucesso do projeto educativo da Frente
enquanto estratégia de desenvolvimento nacional. O movimento de libertação
demonstrava, assim, através da divulgação de imagens das escolas e dos campos de
acolhimento, que não estava apenas a lutar pela independência de um território mas,
sobretudo, pelo futuro de todos os moçambicanos, com os jovens a serem os primeiros
beneficiários do legado do movimento de libertação e os mais bem colocados no processo
de escolha de quadros de relevo no futuro país independente.
A pretexto da angariação de fundos para a ajuda humanitária, ia-se procedendo à
construção de uma narrativa de legitimação de poder, através da uma aproximação aos

237
países doadores ocidentais, onde não faltavam nem a aproximação às práticas pedagógicas
defendidas por estes.

«A escola secundária da FRELIMO foi beber ao modelo ocidental o método


pedagógico, a disciplina escolar e as práticas educativas. Baseados em evidencias visuais
tiradas de panfletos produzidos pelo Instituto em 1965 e 1967, vemos os estudantes
sentados em fila (frequentemente dois em cada carteira) olhando para o professor que,
invariavelmente, mantinha a disciplina na sala de aula, e controlava a “narrativa” da
instrução. As imagens produzidas por estes panfletos eram usadas para obter fundos de
grupos simpatizantes de ajuda internacional e, por conseguinte, eram utilizadas como
ferramentas de propaganda, através das quais, a juventude em contexto educativo era
exposta de forma a se enquadrar na imagem do progresso revolucionário. Outros panfletos
da FRELIMO, tais como “Mozambique and the Mozambique Institute, 1972”, que
apresentam na capa crianças do orfanato, justapõem imagens de crianças feridas de
muletas e jovens saudáveis em contexto produtivo e educativo.» (Panzer, 2009, p.813).

Ao nível interno da Frente, a carência de manuais escolares e demais material


didático em língua portuguesa era, compreensivelmente, um dos problemas de maior
envergadura no que ao ensino dizia respeito, colocando em risco todo o sistema educativo
desenhado para os alunos moçambicanos nos territórios tanzaniano e nacional. Assim, os
professores das escolas secundárias tiveram de ser os autores dos próprios manuais que
utilizavam nas aulas, e daqueles que iriam ser posteriormente utilizados nas zonas
libertadas, adaptados de programas e manuais estrangeiros e trabalhados de forma a
responder às necessidades exigidas pelo ensino em contexto de guerra e da construção do
«Homem Novo» moçambicano. A maioria destes manuais eram obtidos no Brasil e em
Portugal. Contudo, as diferenças culturais tornavam-se um obstáculo difícil de contornar
para as crianças do ensino primário246.

246 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp. 18,19.
238
«A nossa língua-franca é, apesar de tudo, o Português, embora o Inglês seja uma
das disciplinas da escola secundária, os Moçambicanos aptos a utilizá-lo são uma minoria.
Nas escolas primárias não pode ser, claramente, usado de todo. Um pequeno número de
livros de estudo e outros oriundos de Goa247 e do Brasil foram obtidos entre 1965 e 1966,
tendo dado alguma ajuda não obstante o facto de muitos estarem ultrapassados.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p. 18)

O Brasil vivia uma realidade muito diferente daquela a que as crianças


moçambicanas estavam habituadas, pelo que os seus livros representavam um desafio
acrescido aos professores do movimento de libertação. Na maior parte dos casos, para a
generalidade dos assuntos estudados, a solução encontrada passava pela procura de
manuais estrangeiros, preferencialmente traduzidos de outras línguas para o português.
Porém, a demanda não se tornava fácil e Portugal continuava a ser a melhor fonte de
materiais, especialmente no que ao ensino primário dizia respeito. Contudo, estes estavam
naturalmente orientados pela defesa das políticas coloniais, o que tornava os seus
conteúdos inapropriados para os alunos das escolas dos campos de acolhimento educativo
e das zonas libertadas 248 . A acrescer a este facto, o recém-criado projeto do sistema
educativo moçambicano visava um duplo objetivo: descolonizar a mundivisão dos
estudantes e dotá-los com materiais modernos, dando, desde já, ênfase às necessidades do
futuro país africano em desenvolvimento, imprimindo-lhe um cunho ideológico muito
vincado. Assim, foi-se tornando incontornável a produção em série dos próprios manuais
escolares, segundo as diretrizes gizadas entre o Instituto Moçambicano e o Departamento
de Educação e Cultura da FRELIMO.

247 Devido ao facto de Goa ter sido incorporada no Estado Indiano em 1961, podemos pressupor que
os livros em língua portuguesa oriundos deste território eram os remanescentes do período relativo ao
império português.
248 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp. 19,20.
239
Os professores da escola secundária - primeiro os da escola secundária do Instituto
Moçambicano em Dar-es-Salaam e posteriormente os de Bagamoyo - foram incumbidos
de, no seguimento das suas tarefas pedagógicas, elaborarem os manuais e restantes
materiais escolares que seriam disponibilizados em todas as escolas da FRELIMO. Para
o efeito, eram utilizadas máquinas de stencil 249 que foram vendo a sua capacidade
esgotada pela intensa utilização, quer para o material didático, quer para as várias
publicações editadas pela editora sob alçada do Instituto.
Ainda dentro do espírito da formação contínua e autodidata, as bibliotecas
afiguravam-se como outra das grandes preocupações do Instituto com a educação.
Compreensivelmente, estas eram um dos pilares do sistema educativo, especialmente para
os alunos dos cursos de formação e para os do nível secundário.
A primeira biblioteca surgiu mesmo antes de as instalações do Instituto
Moçambicano estarem concluídas, ainda em 1963 (Manghezi, 2001, p. 238). A língua
portuguesa desempenhou, desde logo, um dos grandes entraves à aquisição de livros. Em
1968 havia menos de oitocentos livros em português numa coleção de cerca de três mil
volumes250. De facto, o Instituto começou, ainda em 1963, a receber obras em língua
inglesa, doadas por organizações não governamentais.
A biblioteca da escola secundária de Dar-es-Salaam começou por ser a biblioteca
de referência, com títulos sobre desenvolvimento económico, educação e saúde. Na
ausência de um bibliotecário de formação, este cargo era ocupado por um dos professores
em part-time que, entre 1967 e 1968, assegurou a expansão parcial da biblioteca,
trabalhando com catálogos obtidos no Brasil e em Portugal, o que permitiu acumular um
número crescente de livros em português, adquiridos com recurso a fundos que foram
sendo disponibilizados, ou a doadores que respondiam a pedidos concretos.

«Nós tínhamos material que recebíamos de muitas doações captadas pelo Instituto.
Recordo-me que até recebemos livros em português. [...] Por vias e vias, sempre chegava

249 Sistema de reprodução em série de documentos (policópia).


250 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp 17-20.
240
material de Portugal (livros, literatura vária). Recordo-me que os estudantes
moçambicanos que estavam em Portugal também juntavam livros para mandar. Quais os
caminhos que seguiam, não sei, mas que nós tínhamos livros em português, isso é uma
verdade. Não eram muitos, mas tínhamos.» (Elisabeth Sequeira, 19 de novembro de 2015,
Maputo).

No final de 1968, a biblioteca do Instituto Moçambicano, que já se encontrava em


condições para funcionar como biblioteca central, adquiriu (num país de expressão
portuguesa não especificado) um arquivo de livros em stock, o que veio a reforçar, em
cerca de cem volumes, três pequenas bibliotecas subsidiárias, estabelecidas em julho de
1968 nos campos de acolhimento da Tanzânia251.
A previsão para o biénio 1969/70 apontava para, através dos fundos recolhidos pelo
Instituto Moçambicano, continuar a expansão da biblioteca central e das suas subsidiárias
nos campos, bem como para o estabelecimento de novos equipamentos. Assim, eram
esperados aproximadamente dez mil volumes de uma coleção em língua portuguesa, com
ênfase para material de trabalho de referência em educação, acrescido de temas
generalistas, considerando-se prioritária a constituição de uma coletânea especial sobre a
África portuguesa. Acrescentava-se a esta coleção uma subscrição de uma lista
selecionada de revistas generalistas, em língua portuguesa, bem como em Inglês e Francês,
com especial referência a África, para dar início a uma secção de periódicos. No mesmo
sentido, desenvolviam-se esforços visando a compra de manuais que não podiam ser
produzidos na editorial do Instituto, especialmente aqueles de Física, Química, Botânica
e Zoologia que continuavam a ser necessários, para além de manuais técnicos e
linguísticos, como dicionários para os professores das escolas primárias252.

251 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.18.
252 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.19,20.
241
«Ainda há muito que falta fazer. Os nossos planos, graças aos fundos, permitirão,
nos próximos dois anos, uma expansão das coleções em língua Portuguesa para cerca de
10.000 volumes. […] À medida que a nossa coleção aumenta, a necessidade imediata
passará por uma maior organização. […] A continuidade das nossas bibliotecas
subsidiárias depende dos recursos da biblioteca da Escola Secundária, e de programas de
formação intensiva para os seus responsáveis.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto Moçambicano, outubro -
dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.19,20).

O estabelecimento de um catálogo tornava-se, assim, a primeira prioridade, ao que


se seguia a organização dos arquivos de panfletos e das coleções de periódicos. O bom
funcionamento das pequenas bibliotecas dependia, por conseguinte, do contínuo e
profícuo contacto entre a biblioteca do Instituto e as suas congéneres dos programas de
formação.
Toda esta logística tinha uma envergadura que exigiu, numa segunda fase, uma
grande centralização de recursos com esforços dedicados em exclusivo à sua
implementação, sendo já necessário o trabalho de um bibliotecário a tempo integral no
projeto, cuja dedicação se prendia com a logística necessária a qualquer biblioteca com
dependentes, ou mesmo com a pesquisa e aquisição de livros em situações sui generis.
Em relação ao Brasil a distância dificultava compreensivelmente as aquisições,
sendo, no entanto, este o menor dos problemas do Instituto, já que com Portugal as
dificuldades políticas levantavam muitos mais problemas que precisavam de ser
trabalhados, exigindo um esforço grande para se obter, por meios indiretos, publicações
governamentais portuguesas, particularmente sobre o desenvolvimento e a economia de
Moçambique.

242
Capítulo 5 – A Saúde

5.1. Equipamentos: cuidados básicos no âmbito da saúde

A dimensão dos equipamentos sob responsabilidade do Instituto Moçambicano


cresceu a um ritmo consistente com a intensificação da luta pela independência.
Compreensivelmente, as necessidades sentidas neste período corresponderam ao aumento
do número de refugiados, empurrando o Instituto Moçambicano para um patamar único
no seu género no que dizia respeito à assistência humanitária nos movimentos de
libertação das colónias portuguesas 253 . Ao apoiar os moçambicanos deslocados na
Tanzânia, ou a viver nas zonas libertadas de Moçambique, colocava a totalidade dos seus
recursos no terreno e tentava dar uma resposta, o mais satisfatória possível, nas múltiplas
áreas do desenvolvimento humano, estabelecendo os pilares necessários a um verdadeiro
contrato social. Assim, desde a sua formação, o Instituto Moçambicano, esteve envolvido
na organização da área da saúde em conjunto com o Departamento de Saúde254 da Frente,
tornando-se, a partir do II Congresso da FRELIMO, o responsável exclusivo pela
administração dos equipamentos desta (Brito et al [1980-1985], s/p).
Ao garantir de forma continuada o fluxo de doações, o Instituto controlava, não só
todos os equipamentos, o pessoal e as infraestruturas, bem como desenvolvia projetos e
gizava soluções que diziam respeito à saúde de mais de um milhão de moçambicanos255,
quer nos campos de refugiados da Tanzânia, quer nas zonas libertadas de Moçambique,
sempre ajudando a pôr em prática as políticas sanitárias da FRELIMO.

253 Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo.


254 A partir de 1966 passou a chamar-se Direção dos Serviços de Saúde da FRELIMO (Hélder
Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).
255 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano ao Fundo Africano, 28 de março 1974, p.1.
243
«O Instituto Moçambicano esteve quase sempre envolvido, de uma forma, ou de
outra, nos programas de saúde. Primeiro foi a clínica em Dar-es-Salaam destinada a todos
os estudantes refugiados; depois as clínicas noutras zonas da Tanzânia; depois começaram
os cursos de assistência médica rural. Agora foi pedido ao Instituto para fazer todos os
passíveis no apoio dos serviços de saúde.» ( AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p. 8).

Graças às doações internacionais, o Instituto Moçambicano pôde montar um


programa de saúde ambicioso. Partindo da instalação de uma clínica 256 , em Dar-es-
Salaam, que respondia às necessidades médicas dos estudantes moçambicanos, extensível
aos do KIEC (que pagava pelo acompanhamento médico dos seus alunos, ajudando a
gerar receita financeira), passou a apoiar clinicamente a restante comunidade refugiada
sob responsabilidade da FRELIMO, criando condições para a subsequente instalação de
clínicas noutras partes da Tanzânia, de forma a responder às inúmeras e muito dispersas
solicitações257.

«A clínica era propriedade do Instituto, este é que comprou o edifício, tendo-o


originalmente alugado como lar feminino até terminarem as obras na escola. Como havia
poucas estudantes na altura, também servia como residência de professores... Eu próprio
fiquei lá instalado durante umas duas ou três semanas... Só depois é que foi transformado
em clínica, mas foi um processo que durou algum tempo... Ainda se manteve aquela
dualidade clínica de atendimento dos estudantes, nossos e do Instituto Afro-americano.
Também recebíamos os pacientes da FRELIMO que lá se dirigissem, se bem que, em

256 Esta clínica fora antecedida por uma outra situada também nas imediações da cidade de Dar-es-
Salaam, no bairro de Janguane, sob a responsabilidade exclusiva da FRELIMO, mas que funcionava em
condições muito precárias e que acabou por ser votada ao abandono, transferindo-se os seus serviços para
a clínica do Instituto.
257 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
244
geral, eu encaminhava estes pacientes para o fim da tarde, de forma a atender os
estudantes primeiro. Havia um arranjo e eu fazia as consultas da FRELIMO na cidade, da
parte da manhã. […] Aquilo, de facto, era muito grande, quando foi transformado em
clínica comportava quartos de internamento, sala de aula, sala de consulta, sala de espera,
sala de enfermagem, laboratório, tinha espaço para tudo...» (Hélder Martins, entrevista
realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Esta necessidade justificava (e justificava-se) quer (com) a formação de quadros


para a saúde, quer (com) o apoio às vítimas da guerra, conforme confirma Hélder Martins,
simultaneamente, Diretor dos Serviços de Saúde da FRELIMO e Diretor do Programa de
Saúde do Instituto Moçambicano, entre os anos de 1966 e 1968:

«Desde o dia do convite [que me foi feito], Mondlane anteviu logo a hipótese da
formação na área da saúde, acrescentando-se ao programa inicial do Instituto
Moçambicano o programa de saúde, já que aquela estava teoricamente prevista desde o
início, de forma muito vaga, não existindo ainda forma de a implementar. A minha ida
permitiu essa implementação. Nos estatutos [do Instituto Moçambicano] há uma cláusula
que dá uma certa abertura para outras atividades que viessem a ser necessárias nesse tal
conceito de “apoio às vítimas do colonialismo”... Abria a porta para, a meio do caminho,
poder-se ter outras iniciativas, e assim gizou-se logo o programa de saúde como um
programa, de certo modo, de formação, sendo que posteriormente toda a assistência
médica prefigurava as condições necessárias para ensinar, não na teoria, mas na prática,
com o recurso a uma clínica. E foi assim que se comprou um edifício onde se montou
uma clínica médica, como meio de campo prático de formação. Então, a área da saúde
prevista de forma vaga passou a poder ter forma concreta, desenvolvendo-se o Programa
de Saúde, já com todos os seus detalhes. [...] Foi neste contexto que surgiu a possibilidade
de prestar assistência às vítimas da guerra, dos bombardeamentos, e que surgiu o dinheiro
para o hospital de Mtwara.» (Entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

245
A responsabilidade da gestão da área da Saúde, quer no Instituto, quer na FRELIMO,
passou, em 1966, a pertencer à mesma pessoa, o Dr. Hélder Martins, que assumiu ambos
os cargos de Diretor do Programa de Saúde do Instituto Moçambicano e de Diretor dos
Serviços de Saúde da FRELIMO, até à sua expulsão da Tanzânia, em virtude dos conflitos
ocorridos em 1968258.
Esta junção de cargos na mesma pessoa permitiu uma maior e mais eficiente
cooperação na planificação e operacionalização do projeto da saúde como um todo, entre
ambas as instituições. Prevenia-se, assim, a perda da informação ou eventuais atrasos na
exequibilidade dos programas, tornando possível desenhar projetos mais ambiciosos ao
nível da prestação dos cuidados de saúde que resultavam num plano médico-sanitário
mais abrangente e num apoio clínico mais direcionado para as necessidades da luta de
libertação. Daqui resultou, na década de 70, na abertura de um Hospital Central da
FRELIMO na Tanzânia, o Hospital Dr. Américo Boavida, em Mtwara, que passou a
socorrer os moçambicanos que necessitavam de maiores cuidados médicos,
especialmente ao nível de doenças endémicas e traumas.
A dinâmica envolvida no trabalho conjunto da FRELIMO e do Instituto
Moçambicano, na pessoa do mesmo Diretor, resultava, também, num maior e mais rápido
acesso aos recursos internacionais, ainda que os doadores apresentassem grandes
ressalvas em doar dinheiro e bens para a ajuda clínica à FRELIMO e aos seus militantes
diretamente envolvidos nos confrontos militares. Contudo, Hélder Martins, confirma que
a Frente de Libertação fazia uso universal dos meios para a ajuda humanitária endossados
em exclusivo à obra do Instituto Moçambicano, havendo uma preocupação efetiva e
constante em contornar as regras estabelecidas para o acesso aos fundos. Assim, incluíram
a população das zonas libertadas e os militares no grupo das vítimas da guerra
beneficiárias dos fundos e do trabalho do Instituto, recorrendo ao primado da obrigação
moral correspondente à prestação de ajuda médica a todo o moçambicano que dela
necessitasse sem, no entanto, fugir à transparência exigida pelos doadores:

258 Vide: 2.3 A Crise de 1968-69, p. 60; 3.2 A Crise de 1968-69 no Instituto Moçambicano, p. 106.
246
«Eu era a charneira entre os dois, a FRELIMO e o Instituto Moçambicano. Quando
era necessário algo do Instituto que servia para a FRELIMO, eu é que fazia “habilidades”,
mas sempre com muito cuidado devido ao controlo dos doadores nórdicos. Nós, que
estávamos no Instituto, éramos da FRELIMO e tentávamos manobrar as coisas, sempre
dentro das regras. E ao longo do tempo esses doadores começaram a demonstrar uma
maior abertura em relação ao alcance da ajuda – a única ressalva que eles sempre fizeram
foi em relação ao material bélico.» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro
de 2015, Maputo).

A saúde deixava então de ser uma preocupação direcionada apenas aos refugiados
moçambicanos em solo tanzaniano. Com o avançar da guerra, e a conquista de zonas
libertadas em Moçambique, a FRELIMO preocupava-se em encorajar a população
deslocada à reconstrução das aldeias em áreas consideradas seguras, de forma a tentar
travar o fluxo de refugiados que atravessavam a fronteira com a Tanzânia. Nesse sentido,
a saúde era encarada, não só como um direito individual de todo o moçambicano, mas
também como uma estratégia que visava o reassentamento populacional no território.

5.1.1. A formação médico-sanitária enquanto suporte clínico comunitário.

Com o aumento da responsabilidade e raio de ação médico-sanitária, houve a


necessidade de implementar vários cursos vocacionados para a assistência médica rural,
com especial enfoque na enfermagem, tendo sido esta a forma que o Instituto e a Frente
encontraram para aumentar o número de quadros que pudessem responder aos anseios de
uma população depauperada e grandemente carenciada das condições de vida mais
básicas259.

«Apesar de os serviços de educação e de saúde estarem a ser disponibilizados à


escala possível no maior número de lugares possível, outra ajuda torna-se impraticável

259 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.8,9.
247
face à falta de fundos e de material. Estes problemas básicos atingiram uma magnitude
que já não nos é possível ignorá-los.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do Instituto Moçambicano,
outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.10).

A solução passou por formar, através de cursos intensivos, uma categoria intermédia
de auxiliares de saúde a que se ofereceria uma formação básica de enfermagem, de forma
a estarem aptos a proceder a pequenos atos clínicos que lhes permitiriam resolver in loco
situação médicas pontuais sem recurso a grandes meios. Estes agentes, que na época se
equiparavam a enfermeiros, eram instruídos durante seis meses a um ano, através de uma
formação eminentemente prática, pelas equipas clínicas residentes que prestavam serviço,
inicialmente, na clínica do Instituto Moçambicano e, posteriormente, no Hospital Dr.
Américo Boavida.
Concluída a respetiva formação, os assistentes de enfermagem eram enviados para
os campos de acolhimento da FRELIMO na Tanzânia e, na sua esmagadora maioria, para
as zonas libertadas em Moçambique, onde prestavam serviço às populações e apoiavam
localmente o esforço de guerra.

«A Tanzânia e o Malawi tinham uma categoria de profissional da saúde chamada


“Medical Assistant” que vinha de uma experiência que a OMS divulgou da antiga União
Soviética e que consistia em formar gente para diagnóstico e terapêutica em pouco tempo.
Mesmo não sendo licenciados, aprendiam estas técnicas com meios rudimentares de
diagnóstico, de forma a saberem interpretar alguns exames clínicos básicos e a aplicar
alguma terapêutica também básica. Os tanzanianos e os malawianos formaram equipas
destas com muito bons resultados, apesar de demorarem quatro anos a formar cada um
destes técnicos... Mas era necessário formar gente mais depressa e em maior número e
então começaram a formar assistentes de saúde rural (rural health assistants) e eu tive
acesso a alguns dos programas dos tanzanianos. Portanto, quem idealizou os nossos
auxiliares de enfermagem fui eu, mas inspirando-me em experiências internacionais e
adaptando-os às nossas condições específicas, nomeadamente as da guerra, onde a

248
pequena cirurgia era de vital importância, apesar de termos chegado mesmo a fazer
cirurgias com recurso a anestesia com éter, o que já entra na categoria de grande cirurgia.
Eu dei aulas a três cursos de auxiliares de enfermagem, mas depois houve um médico
tanzaniano a continuar... […] Aliás, depois da independência trouxemos esta prática para
Moçambique, que ainda hoje existe com o nome de “técnico de medicina”
correspondendo ao “medical assistant”, e “agente de medicina” correspondendo ao “rural
medical aid”.» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Apesar de o Dr. Hélder Martins reivindicar como sua a idealização dos cursos de
auxiliar de saúde, as fontes escritas remetem o início deste programa de formação para
1965. Este seria também o ano em que o clínico chegaria a Dar-es-Salaam, pelo que é
razoável admitir que o programa de formação já tivesse sido sujeito a experiências-piloto
em alguns dos centros de acolhimento educacionais do Instituto Moçambicano
(nomeadamente no campo de Songea). O projeto, dirigido em parceria pelo Instituto e
pela Direção de Saúde da FRELIMO, foi inicialmente destinado às mulheres e
enquadrado no plano de engajamento feminino na luta de libertação260.
As melhores alunas eram direcionadas para completar os seus estudos no
estrangeiro, ao abrigo das bolsas de estudo facultadas pelos países cooperantes. A
documentação consultada indica ainda que, só posteriormente, este curso e respetivos
benefícios foram alargados aos homens261.
Devido aos distúrbios ocorridos em 1968, Hélder Martins foi obrigado, a par com
os seus camaradas brancos, a sair da Tanzânia, o que provocou a interrupção de todos os
projetos de apoio humanitário que, tal como este, estavam a ser postos em prática. A
prestação de cuidados médicos e a formação para a saúde só voltaram a ser retomados
posteriormente e já nas instalações do Hospital Dr. Américo Boavida, em Mtwara262.
Com a abertura deste hospital a responsabilidade sobre todos os cursos ligados à saúde
passou para a sua alçada.

260 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pasta sem cota, Presidência – Correspondência trocada com

individualidades/instituições na Europa, 1963-68.


261 Idem.
262 Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.

249
5.1.2. Uma tentativa de implementar o planeamento familiar

Antes mesmo do Hospital Dr. Américo Boavida, a clínica do Instituto


Moçambicano em Dar-es-Salaam foi pioneira em muitas áreas e o ensino aliado ao apoio
médico foi porventura o seu maior feito, cujas consequências se viriam a sentir ao longo
de toda a época da luta de libertação. Contudo, esta não foi a única nota de pioneirismo.
Na verdade, graças ao pedido de algumas mulheres de dirigentes que queriam poder
controlar a sua vida reprodutiva foi possível encontrar aqui um verdadeiro programa-
piloto de planeamento familiar, no qual se disponibilizava a pílula contracetiva,
enquadrada num programa internacional mais vasto.

«Eu tinha solicitações para disponibilizar meios anticoncecionais a mulheres de


dirigentes. A pílula anticoncecional era recente naquela altura, eu próprio tive de aprender
sobre o método, que só apareceu depois da minha saída da Universidade. Na Tanzânia a
pílula não era autorizada. Contudo, isto coincide com uma época em que existia neste
país um programa de saúde que patrocinava duas clínicas de planeamento familiar: uma
no hospital Aga Khan, para gente com poder económico, e uma outra clínica que
funcionava num dispensário, para gente pobre... E eu aproveitei para fazer o curso com
eles, sobre a pílula e dispositivos intrauterinos, que apareciam pela primeira vez naquela
altura, sendo que me forneciam o equipamento todo gratuitamente com a contrapartida
de eu preencher umas fichas, já que este projeto estava inserido num estudo multicêntrico
à escala mundial.» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Aproveitando o trabalho de organizações internacionais na implementação de


práticas conducentes ao planeamento familiar, o Instituto Moçambicano e a FRELIMO,
na pessoa do seu Diretor para a Saúde, levaram a cabo um projeto que poderia, de facto,
ter revolucionado a vida das mulheres moçambicanas, na época, e que aumentaria o seu
empoderamento social com consequências sociais de grande envergadura, caso tivesse
tido seguimento à semelhança dos outros projetos na área da saúde.

250
De facto, a partir do pedido de algumas mulheres casadas para terem acesso a
métodos contracetivos, quer Hélder Martins, enquanto clínico, quer Janet Mondlane,
enquanto mulher americana habituada a uma maior liberdade pessoal, tentaram apresentar
a ideia às jovens estudantes do Instituto, sensibilizados pelo flagelo das gravidezes
precoces que obrigava as jovens a recorrer a abortos clandestinos ou a abandonar o seu
projeto de vida para assumir responsabilidades parentais263.

«Apareciam alunas grávidas no Instituto Moçambicano e no Instituto Afro-


Americano também já tinham aparecido várias. […] Mas, fazer um programa de
contraceção (porque [com] aquelas miúdas, não sendo casadas, não se considerava
planeamento familiar) não era fácil, com facilidade criava agitação nas pessoas que
achavam que estes dois brancos, o Hélder Martins e a Janet, “estão a corromper as nossas
raparigas”... […] O programa foi instituído no Instituto Moçambicano, para onde estas
senhoras se dirigiam, e eu aproveitava para falar com as moças sobre os cuidados a ter
para evitar uma gravidez indesejada. Até porque quem sofria e eram punidas ou tiradas
dos estudos eram elas. Eles, em geral, não eram punidos e nós achávamos que esta
situação não estava correta e que era necessário alterar este paradigma para, no caso de
existirem medidas repressivas, serem os dois a sofrê-las264...» (Hélder Martins, entrevista
realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Contudo, este projeto de controlo de natalidade não prosseguiu no Hospital Dr.


Américo Boavida, eventualmente devido a impedimentos culturais, mantendo a questão
sexual no domínio do tabu social para a maioria das mulheres moçambicanas, ainda que
as senhoras casadas, nomeadamente as que tinham conhecimentos sobre as práticas
contracetivas, pudessem pedir, de motu próprio, este tipo de apoio no hospital local
tanzaniano, onde, no âmbito da cooperação entre os hospitais da FRELIMO e da Tanzânia,

263 Vide: 4.1.1 O confronto dos jovens com as autoridades política, militar e patriarcal: o

empoderamento feminino, p. 147.


264 Segundo Manghezi (2001, p. 338), só a rapariga era expulsa caso engravidasse. Esta situação de

desigualdade de tratamento só se veio a modificar no final da guerra, na escola de Bagamoyo, passando a


proceder-se à expulsão do casal.
251
usufruíam dos métodos de contraceção facultados em consultas de obstetrícia e
ginecologia.
Porém, a procura, por parte das mulheres moçambicanas em idade fértil, de
estratégias que visassem o planeamento familiar implicava não só que estas fossem
casadas (a única forma de fugir minimamente à reprovação social), bem como exigia um
nível cultural mais elevado, o que mantinha o desnível social e promovia a manutenção
de práticas arcaicas e obscurantistas na saúde materno-infantil, com dolo frequente para
a saúde feminina.

«Nós não demos essas aulas [de educação sexual e planeamento familiar], nem
distribuímos os métodos contracetivos... Se as mulheres quisessem podiam ir ao hospital
de Ligula [um dos bairros da cidade de Mtwara], mas era uma iniciativa pessoal. Ali
tinham médicos chineses e maternidade, com obstetrícia e ginecologia.... Mas nós não
fazíamos isso. [...] Iam lá com uma credencial passada por nós.» (Maria Salghetti,
entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Esta parceria entre as unidades de saúde moçambicana e as tanzanianas manteve-se


até ao fim da luta de libertação, nomeadamente ao nível das especialidades médicas
inexistentes no Hospital Dr. Américo Boavida. Entre o hospital da FRELIMO e o
tanzaniano, que distavam poucos metros um do outro na localidade de Mtwara, a
cooperação de meios e serviços era total, sem que houvesse lugar a qualquer pagamento,
dependendo apenas de uma credencial que dava acesso aos cuidados de saúde do
congénere. Para além de usufruir desta parceria, os refugiados moçambicanos podiam
ainda recorrer aos serviços médicos tanzanianos independentes, nomeadamente nas
consultas de especialidade dentária e oftalmológica, sempre que se encontravam longe
das clínicas da FRELIMO. Quando havia disponibilidade financeira o Instituto
Moçambicano ajudava a custear estas consultas, bem como, o transporte e a dieta
especial265.

265 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
252
Esta estrutura abrangente ao nível dos cuidados médicos permitiu levar a cabo uma
tarefa que se revelou de capital importância ao longo dos anos para o bem-estar dos
refugiados militantes da FRELIMO. A sua implementação resultou dos esforços
conjuntos entre o Instituto Moçambicano e a Direção dos Serviços de Saúde da
FRELIMO, que contavam com o trabalho de uma administração central para a saúde que
dispunha apenas de seis funcionários no seu total.266

5.2. O Hospital Dr. Américo Boavida

Na Tanzânia, o principal centro de saúde do Instituto Moçambicano foi construído


perto do campo de refugiados em Mtwara, recebendo o nome de Hospital Dr. Américo
Boavida 267 . Pretendia-se, assim, satisfazer as necessidades sanitárias da FRELIMO,
respondendo a duas grandes urgências: por um lado, o tratamento dos casos clínicos de
maior complexidade apresentados pelos combatentes e refugiados, nomeadamente, ao
nível do trauma, da cirurgia, e da saúde oral268, e, por outro, o provimento das condições
técnicas necessárias para o desenvolvimento de cursos profissionais na área.
Apesar de alguns dos mais destacados militantes da FRELIMO serem enfermeiros
com formação especializada e experiência hospitalar, o facto é que o seu número sempre
ficou aquém das necessidades. Estes elementos, quase todos formados no regime colonial,
não só se encontravam num número residual, como acabaram por exercer outras tarefas
dentro do movimento de libertação, obrigando por isso a Frente e o Instituto a uma
solução de recurso que passava por formar assistentes de enfermagem que pudessem

266 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.
267 O seu nome deve-se à homenagem prestada pela FRELIMO ao médico angolano morto pelas
tropas portuguesas num ataque durante a luta de libertação do seu país, Angola.
268 Apesar de os enfermeiros terem aprendido com um médico francês um método simples de
raspagem de cáries e extração dentária, os casos mais complexos de medicina dentária continuaram a ser
encaminhados para o vizinho hospital local tanzaniano, segundo o testemunho de Maria Salghetti
(entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).
253
assegurar os cuidados clínicos no novo hospital, nos dispensários dos campos de
acolhimento e, sobretudo, nas zonas libertadas de Moçambique.

«Destes todos [Samora Machel269, Aurélio Manave270 e Leonardo Cumbe271], quem


trabalhou realmente na assistência no hospital foram Chaúque272 e Samuel Dhlakama273,
que foram responsáveis diretamente pela saúde da FRELIMO, sendo provisoriamente
diretores do hospital... um depois do outro... Não na assistência direta... Eu sei que
Aurélio Manave ainda chegou a ser professor no curso de [assistente de] enfermagem
dado por Hélder Martins. Os outros não… [...] O resto eram enfermeiros formados na
FRELIMO, não sei se lhes chamavam “assistentes”... Todos eles tinham um ano de curso,
ninguém tinha os quatro anos... Todos lhes chamavam “enfermeiros” e era um curso de
enfermagem; claro que, comparando com os níveis de formação de um país independente,
deveriam ser considerados auxiliares de enfermagem. Mas, depois da independência,

269 Samora Moisés Machel, enfermeiro em Lourenço Marques no Hospital Central Miguel
Bombarda, atual Hospital Central de Maputo, abandonou Moçambique para aderir à FRELIMO, na
Tanzânia, em 1963, onde viria, no decorrer da luta pela independência moçambicana, a desempenhar as
funções Chefe do Departamento da Defesa e, posteriormente, Presidente da FRELIMO.
270 Enfermeiro no Hospital Central Miguel Bombarda, em Lourenço Marques, abandonou
Moçambique para se juntar à FRELIMO na Tanzânia, em 1965, onde viria a exercer as funções de
enfermeiro na clínica do Instituto Moçambicano. Posteriormente, em 1968, foi nomeado, a título provisório,
Diretor dos Serviços de Saúde da FRELIMO.
271 Enfermeiro no Hospital Central Miguel Bombarda, em Lourenço Marques, abandonou
Moçambique na companhia de Aurélio Manave para se juntar ao movimento de libertação moçambicano
na Tanzânia, em 1965. Viria a exercer, entre outras, as funções de formador nos campos educacionais da
Tanzânia e nas bases provinciais da FRELIMO, onde chegou a Chefe Provincial da Saúde no interior de
Moçambique.
272 João Chaúque, enfermeiro, abandonou a colónia de Moçambique para se juntar ao movimento
de libertação moçambicano na Tanzânia. Viria a exercer temporariamente funções no Hospital Dr. Américo
Boavida e, posteriormente, iria prestar serviço nas zonas libertadas e em pleno teatro de guerra.
273 Enfermeiro, militante da FRELIMO, que prestou serviço nas zonas libertadas e em pleno teatro
de guerra. Exerceu temporariamente funções no Hospital Dr. Américo Boavida, tendo sido o último Diretor
dos Serviços de Saúde da FRELIMO.
254
todos passaram por cursos breves de equiparação para serem enfermeiros ou técnicos de
medicina ou parteiras. […] Prefiro falar de enfermeiros de um ano… Quando eu cheguei,
todo o pessoal que lá estava a trabalhar não tinha curso, então entraram todos no primeiro
ano, exceto o tal Chaúque. que era o responsável... (Maria Salghetti, entrevista realizada
a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Segundo Manghezi (2001, p. 283), o Hospital Dr. Américo Boavida foi


consequência de um trabalho conjunto entre Janet Mondlane e Hélder Martins, tendo o
clínico ficado responsável pela supervisão do projeto (desde o seu desenho técnico à
planificação operacional) até ao momento da sua expulsão do território tanzaniano em
1968. A infraestrutura, que só começou a funcionar em 1970, tornou-se o centro clínico
por excelência da resistência moçambicana durante o restante período da luta de
libertação.

«Eu não fui o primeiro médico do Hospital Américo Boavida. Concebi o hospital e
dirigi todo o processo, desde a elaboração do projeto e início da construção. Entretanto,
em junho de 1968 fui expulso da Tanzânia (como pode ver no meu livro “Sakrani” [2001])
e a construção parou. Mais tarde, o presidente Mondlane recrutou um engenheiro que
terminou a obra. Quando o hospital foi inaugurado, eu não estava na Tanzânia. […]
Houve aquela ideia de Samora que eu aprovei: “vamos fazer tudo entre moçambicanos”,
e acabei por ser o “arquiteto”... Bom, eu é que me prestei a ser “arquiteto” e desenhei o
esquisso do hospital, e depois havia 2 desenhadores que puseram aquilo a rigor e o projeto
foi aprovado no Conselho Municipal de Mtwara, sem um único verdadeiro arquiteto
envolvido... […] Mais tarde, quando me vim embora, as obras pararam e o Mondlane
teve de chamar um engenheiro porque, até ali, eu é que acompanhava o seu andamento:
fazia de mestre de obras e a compra dos materiais de construção, com o apoio de um
administrativo que lá tínhamos… […] Depois da construção do hospital em Mtwara, o
foco das ações de Saúde foi transferido para lá. Quando os médicos búlgaros chegaram
foram logo para Mtwara e, devido às confusões que ocorreram em Dar-es-Salaam [os

255
confrontos de 1968]274, a FRELIMO começou a tirar o máximo de pessoas da cidade para
Naschingwea, ou Tunduru.» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de
2015, Maputo).

Apesar de Hélder Martins não reconhecer atualmente a importância do Instituto


Moçambicano enquanto mentor e organizador deste projeto, declarando que não entende
porque se associa o Hospital Américo Boavida ao Instituto275, a quem atribui um o papel
secundário de mero captador de fundos, o facto é que a construção deste hospital foi,
efetivamente, um feito pensado e realizado em conjunto, entre a FRELIMO e o Instituto
Moçambicano. Isto permitiu, assim, dar toda uma nova dinâmica às infraestruturas que
apoiavam a luta e os guerrilheiros, ainda que o funcionamento do equipamento hospitalar,
no seu todo, só fosse possível graças ao trabalho da angariação de donativos e à
cooperação internacional de que o Instituto era responsável.

«De facto, os fundos para a sua construção foram conseguidos graças ao Instituto,
mas o Hospital Boavida nunca foi um programa deste, que apenas funcionou como
mecanismo de captação de doações, uma vez que tinha desenvolvido uma grande
capacidade de mobilizar os doadores através da sua “capa” humanitária, especialmente
em zonas onde a FRELIMO tinha maior dificuldade. […] Foi neste contexto que surgiu
a possibilidade de prestar assistência às vítimas da guerra, dos bombardeamentos e que
surgiu o dinheiro para o hospital de Mtwara (infelizmente não sei dizer de onde veio, mas
penso que veio dos nórdicos)276. […] Assim, como o hospital de Mtwara foi entregue à
FRELIMO, o curso de enfermagem que eu tinha começado e que já não tinha condições
para continuar em Dar-es-Salaam foi transferido para Mtwara, sob a responsabilidade de
um médico tanzaniano e de outro búlgaro. Mais tarde, já por volta de 1972 ou 73, houve

274 Vide: 2.3 A Crise de 1968-69, p. 60; e 3.2 A Crise de 1968-69 no Instituto Moçambicano, p.106.
275 Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.
276 Segundo Manghezi (2001, p. 283), o hospital Dr. Américo Boavida terá recebido o financiamento
para a sua construção do ACOA, Comité Americano para a África.
256
apoio de outros médicos e enfermeiros, embora a maioria fosse por curtos períodos.»
(Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

Por razões óbvias, que se prendiam com o carácter e importância das doações e
imposições dos doadores, todas as infraestruturas médicas, ou outras, que dependiam de
apoios externos para a sua sobrevivência, tinham necessariamente que ser reportadas
como exclusiva responsabilidade do Instituto Moçambicano, sob pena de se perder todo
e qualquer apoio, mesmo que no terreno a sua gestão dependesse dos diversos
departamentos da FRELIMO. Esta situação tornava-se mais premente e dramática no
caso do hospital, já que este dependia em grande medida de um trabalho exaustivo de
cooperação internacional.

«O hospital de Reggio Emilia [em Itália] [...] tinha uma espécie de geminação com
o hospital da FRELIMO em Cabo Delgado (um hospital que se resumia a um conjunto
de palhotas)... Tudo o que era feito para o hospital de Cabo Delgado passava pelo hospital
de Mtwara na Tanzânia que era o centro das atividades de saúde da FRELIMO... Através
do hospital de Reggio Emilia, fui enviada na qualidade de técnica destacada para lá
trabalhar [no Hospital Américo Boavida] durante um ano. [...] [Este hospital italiano]
ajudou muito. Enviou material, enviou-me a mim e um fantástico técnico de próteses que
veio tirar as medidas e decalques aos amputados, regressando de Itália no ano seguinte
para as aplicar, e funcionaram todas. Posteriormente, enviámos a Reggio Emilia dois
amputados para aprenderem a fazer a manutenção das próteses, que regressaram [a
Moçambique] e trabalharam... Foi muito importante porque as pessoas recomeçaram a
andar. […] Deram muito apoio e depois mandámos para lá pessoas estudar enfermagem…
[…] Tínhamos muitos donativos. Os medicamentos eram todos oferecidos, sobretudo
pelos países socialistas... Os países ocidentais enviavam sobretudo amostras... Mas o
grosso dos medicamentos vinha da União Soviética, Bulgária, Roménia... Às vezes da
China... Não eram pagos... Portanto, só a despesa em medicamentos, em algodão, [era
integralmente poupada]... Talvez o Instituto comprasse alguma coisa com os fundos
recebidos, mas tudo, até o material de pensos, para a sala de operações, era oferecido...

257
Tudo era oferecido... Desinfetantes, tudo...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de
outubro de 2015, Maputo).

O Hospital Dr. Américo Boavida - que fazia parte de uma rede de serviços de saúde
à população refugiada moçambicana, e era beneficiário do apoio especializado da
UNICEF e da OMS - encontrou acolhimento, desde o seu início, junto do governo
tanzaniano, que incumbiu as autoridades locais da responsabilidade de atribuir terras para
a sua construção, tendo estas sido concedidas, com uma área estimada em 25.000 m2, por
um período de 99 anos277. Assim, o hospital foi inserido na malha urbana de Mtwara,
utilizando os serviços de água, gás, eletricidade, telefone e recolha de resíduos da cidade.
Com a crescente dificuldade em conseguir água através do fornecimento normal da
cidade, encontrava-se prevista, no caderno de encargos de expansão das instalações, a
construção, a partir de 1974, de vários tanques de água para o uso exclusivo do hospital278.
Na verdade, a água e a luz eram uma preocupação constante, obrigando a uma
ginástica de gestão interna grande e especialmente complexa, se considerarmos as
exigências de uma unidade hospitalar vocacionada para traumas de guerra localizada num
território com muitas carências graves de bens essenciais.

«Uma vez, em 1972, fomos sobrevoados em Mtwara por um avião de


reconhecimento português e a partir daí começámos a manter as luzes apagadas à noite.
Claro que, se havia uma operação acendiam-se as luzes, mas muitas vezes, também
fazíamos operações à luz de candeeiro [a petróleo], mas não por causa da guerra, mas
porque realmente faltava a luz. […] Falta de água... Saía uma água vermelha, vermelha...
Tínhamos as batas todas encarnadas, não saía mais... As fraldas das crianças também

277 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
278 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
258
todas encarnadas...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015,
Maputo).

Apesar de sediado na cidade de Mtwara, na Tanzânia, o Hospital Dr. Américo


Boavida, era considerado pelo Instituto como uma parte integrante e fulcral do
desenvolvimento dos serviços de saúde do Moçambique livre279. Esta infraestrutura, que
tinha a seu cargo a responsabilidade de prover aos cuidados de saúde dos refugiados
moçambicanos, em exclusivo, nunca tendo estado incluída nos planos de
desenvolvimento da Tanzânia, ainda que, em situações pontuais, houvesse cooperação
entre os hospitais, quer em equipamento, quer através da provisão de material médico280,
especialmente em relação às reservas de sangue e seus derivados281.

«O hospital está situado em Mtwara mas não é destinado para o uso da comunidade
local [tanzaniana]. Por essa razão, os dados relativos à localidade não são relevantes neste
contexto. As condições de vida em Mtwara são similares às de Moçambique, uma vez
que Mtwara está situada perto da fronteira moçambicana.» (AHM, Arquivo FRELIMO,
Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Projeto do
Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973, p.4)

O facto de este equipamento sanitário do movimento de libertação moçambicano


se encontrar localizado junto ao Hospital Regional de Mtwara (também chamado de
hospital de Ligula) levou a que, na altura, se pensasse em usar os blocos operatórios deste.

279 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
280 Idem.
281 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
259
Esta ideia, contudo, foi rapidamente colocada de parte, respeitando a independência de
ambas as instituições, apesar da sua colaboração pontual282.

«Nós tínhamos uma grande colaboração com o hospital vizinho de Ligula,


tanzaniano, que prestava os serviços que não tínhamos... Por exemplo a maternidade e
toda a parte de obstetrícia e ginecologia ficava a cargo dos tanzanianos... O hospital ficava
mesmo ao lado do nosso, confinava com o nosso… Existia uma grande cooperação com
Ligula... Oftalmologia e odontologia eram lá também… Os tanzanianos eram
extraordinários com a FRELIMO, um apoio incrível... Nunca pagámos nada [no que aos
meios hospitalares dizia respeito]... Bastava dizer “FRELIMO” e recebíamos de volta
imediatamente um sorriso aberto...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro
de 2015, Maputo).

Tendo iniciado a sua atividade com consultas externas, em maio de 1970, o


Hospital Dr. Américo Boavida só veria as suas enfermarias concluídas em junho do
mesmo ano283, arrancando com: sessenta e sete camas284 na enfermaria, um laboratório,
uma farmácia, salas para tratamentos e gabinetes de consultas, cozinhas, lavandarias,
instalações para esterilizar utensílios, um edifício administrativo, residências para
colaboradores e estudantes, salas de aulas, e um armazém de grandes dimensões
destinado ao armazenamento de medicamentos e equipamentos hospitalares. O
atendimento aos utentes era feito em consultas externas, e em regime interno para os
pacientes hospitalizados285.

282 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório enviado à Dinamarca elaborado pelo Instituto de Moçambique, junho 1970.
283 Idem.
284 Maria Salghetti, apesar de ter este número como referência, acredita que se referia ao número
total de camas do bloco hospitalar. (Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).
285 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório enviado a Dinamarca elaborado pelo Instituto de Moçambique, junho 1970.
260
Maria Salghetti recorda-se de ter chegado ao Hospital Dr. Américo Boavida em
finais de agosto de 1971:

«O hospital nesta altura já estava terminado, perfeito, bem construído... Tinha duas
enfermarias, uma masculina e uma feminina, onde também ficavam internadas as
crianças; uma pequena sala de operações, que era simplesmente um quarto (muito, muito
rudimentar mas que funcionava perfeitamente); a cozinha, a lavandaria e o depósito de
medicamentos central que eram distribuídos pela rede de saúde da FRELIMO; três
divisões que pertenciam aos escritórios dos serviços administrativos; e por fim os
dormitórios para o pessoal, onde fiquei...[...]E os estudantes residiam todos dentro do
recinto do hospital...» (Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Segundo os dados do Instituto Moçambicano, durante o primeiro ano de


funcionamento do hospital (1970/71), foram atendidos quase setecentos pacientes em
regime de internamento, com uma média diária de trinta e dois pacientes em consultas
externas. O custo mensal do hospital rondava os 60.000 TZS, correspondente, mediante
ajustes à taxa de inflação atual, a 3.600.000 MZN, ou a 48.000 EUR 286, servindo uma
população que o Instituto calculava ser de um milhão de refugiados. Este hospital também
dava assistência ao campo de Tunduru e servia como escola, de modo a formar os
estudantes de enfermagem e os técnicos de medicina rural, preparando-os para prestar
assistência nas localidades mais isoladas. No seu todo, inicialmente, mantinha ao serviço
setenta e cinco funcionários, incluindo os operários.287
Na sua função de direção e gestão dos serviços de saúde das zonas libertadas e dos
territórios de apoio aos refugiados, o hospital dividiu a sua zona de operações em quatro
grandes regiões sanitárias que abrangiam os territórios da Tanzânia e Moçambique sob
domínio da FRELIMO (nomeadamente, as províncias moçambicanas de Cabo Delgado,

286 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um cambio atual de 300 MZN.
287 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório enviado a Dinamarca elaborado pelo Instituto de Moçambique, junho 1970.
261
Niassa e Tete). Englobando cento e cinquenta centros de assistência médica e um staff de
cerca de setecentas e cinquenta pessoas, foi atribuído a cada uma daquelas regiões um
modelo de centro sanitário em conformidade com a competência técnica da pessoa
responsável pela unidade288.
Face a cenários médicos de alto risco, passíveis de medidas excecionais no terreno,
o Hospital Dr. Américo Boavida organizou pequenas equipas multidisciplinares, cuja
flexibilidade de movimentação permitia dar uma resposta imediata à ocorrência de surtos
epidémicos. De facto, nos inícios de 1974, na província de Tete, encontravam-se duas
equipas médicas a combater o surto de cólera que começara nas zonas ocupadas pelas
tropas portuguesas. As equipas no terreno estavam a ser apoiado pelo Hospital Dr.
Américo Boavida289.
Obedecendo aos objetivos programados para um hospital central, este
desempenhava várias funções, desde local especializado no tratamento dos casos clínicos
mais graves, permitindo a formação teórica e prática do pessoal auxiliar de enfermagem,
até à gestão e acolhimento da farmácia geral da Frente, bem como o de local de
armazenamento de equipamento hospitalar290.
A farmácia central, que respondia às solicitações de todos os centros médicos do
movimento de libertação, quer nas zonas libertadas, quer dentro do território tanzaniano,
foi construída num edifício anexo ao hospital Dr. Américo Boavida, ainda que
administrativamente continuasse a ser gerida a partir de Dar-es-Salaam. Esta

288 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
289 A documentação consultada não esclarece se os dois médicos que encabeçavam as equipas de
combate à cólera pertenciam aos quadros do Hospital Dr. Américo Boavida ou se estavam integrados em
alguma ONG que tivesse acorrido ao surto e colaborasse pontualmente com o hospital da Frente. (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974, Pedido da
FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro de 1974).
290 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
262
infraestrutura, dada a sua importância, era um lugar muito movimentado, já que ali se
armazenavam todos os medicamentos e os equipamentos recebidos no estrangeiro, ou
comprados localmente. Muito desse material voltava a ser reembalado com o objetivo de
ser distribuído pelos respetivos centros médicos291.
Num relatório apresentado em dezembro de 1973, o hospital tinha registados nos
seus quadros de pessoal: dois médicos chefes residentes 292 , trinta e sete médicos
assistentes estagiários (a terminar o seu curso no início do ano seguinte), dois técnicos de
laboratório, dez enfermeiras e cinquenta trabalhadores gerais, que haviam dado
assistência durante o ano que findava a cerca de oitocentos e sessenta e seis internamentos,
setecentas e vinte e quatro operações e oito mil quatrocentas e cinco consultas externas293.
A equipa médica era integralmente constituída por médicos expatriados, já que o
hospital colaborava na formação de médicos oriundos de várias partes do mundo e de
várias especialidades, ao abrigo do regime de cooperação entre a FRELIMO e os seus
países de origem294.

291 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp 8,9.
292 Esperava-se que durante o ano de 1974 um terceiro clínico se juntasse à equipa. Os médicos
residentes a trabalhar no Hospital Dr. Américo Boavida eram expatriados, nomeadamente oriundos de
países do Leste da Europa, que vinham colaborar nos esforços da luta pela independência de Moçambique
através de programas de cooperação assinados entre os seus países e a FRELIMO. Muitos deles faziam
aqui as suas residências de especialidade (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano,
caixa A, Processo DEC 1973-1974 (B), Carta da Frente da Libertação de Moçambique endereçada à
Direção do Instituto Moçambicano, 29 de junho de 1974).
293 Hélder Martins discorda dos números de consultas, operações e internamentos aqui apresentados,
referindo-se a eles como inferiores à realidade e não exatos. Já Salghetti opta por não dar estimativas,
referindo que não se recorda de todo. Contudo os números que aqui apresentamos são os que que constam
em relatório oficial elaborado pelo Instituto Moçambicano (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano
entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda, Departamento Internacional de Assistência
Técnica, dezembro de 1973).
294 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Pedido da FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro de 1974.
263
«O casal de médicos búlgaros, os Slavov... O marido tinha a especialidade em
trauma e a esposa em pediatria. Depois, no fim tivemos ainda um médico brasileiro com
a esposa... Mesmo no final, o primeiro casal regressou à Bulgária, tendo sido substituído
por dois colegas também do seu país com quem eu praticamente só me cruzei… [...] Que
eu conheça, tivemos o maravilhoso dentista francês [...]; depois veio um médico
moçambicano que estava a estudar na União Soviética, o Serpião, e o Dr. Palange, que
também foi estudar para um país do Leste da Europa... Mas eram recém-formados, era só
mesmo para se integrarem no trabalho e durante pouquíssimo tempo (um mês, dois
meses).... Depois veio até o Dr. Mucumbe, entre abril e setembro de 1974, ainda antes do
governo de transição, mas não para trabalhar, só para conhecer as condições do terreno...
Estava a fazer a especialidade de ginecologia e obstetrícia na Suíça. Era bolseiro, mas não
sei dizer se era do Instituto Moçambicano ou não... Mas é provável... Ele foi enviado pela
FRELIMO… Havia médicos que vinham por pouquíssimo tempo, não propriamente
estagiários e não num número tão elevado...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20
de outubro de 2015, Maputo).

Ao nível logístico, o serviço de internamentos disponibilizava setenta camas para a


unidade cirúrgica e de trauma, sendo que as consultas externas e as urgências, com
tratamento de ambulatório, também tinham disponíveis enfermarias onde podiam
permanecer entre cento e cinquenta a trezentos pacientes de cada vez295.
A fim de fazer face à necessidade de camas para recobro, sempre que era necessário
o Hospital Dr. Américo Boavida, recorria aos campos de acolhimento de Kianga e
Rutamba. Estes centros funcionavam como alojamento de pacientes oriundos do interior
de Moçambique, bem como enfermaria, permitindo a convalescença e recuperação dos
doentes que se dirigiam amiúde ao hospital para a realização de pensos e tratamentos
diversos, antes de regressarem às zonas libertadas. Kianga, por ser o mais próximo,
distando apenas cerca de 1 km do hospital, funcionava como a enfermaria de suporte mais
imediato nos casos que necessitavam de acompanhamento frequente do pessoal hospitalar,

295 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.


264
contribuindo, assim, para a quota de trezentas camas disponibilizadas aos utentes pela
Direção dos Serviços de Saúde da FRELIMO296.
Os pacientes das enfermarias externas, na generalidade, dividiam-se entre dois
grupos: o que aguardava vaga de internamento no hospital e, um outro, em processo de
convalescença297.

«Eram atendidos doentes graves, mas dentro daquelas sessenta e sete camas, ou
setenta, caso colocássemos umas camas extra, o que acontecia às vezes... […] A maior
afluência de pacientes era devida às doenças mais comuns... Apareciam muitas doenças
respiratórias... O hospital só atendia os pacientes moçambicanos dos campos da
FRELIMO e os que vinham das zonas libertadas. Havia um campo de refugiados em
Lindi, mas nós não tínhamos contacto com ele. […] Se atacavam uma aldeia vinham
mulheres, crianças, para além dos homens e dos guerrilheiros. Então entravam oito, dez,
não sei... Chegavam a pé até à fronteira e socorriam-se no lado tanzaniano onde existiam
pequenos postos da FRELIMO que chamavam a ambulância via rádio...» (Maria Salghetti,
entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Dentro do leque de episódios clínicos que obrigava a uma maior fluência hospitalar,
encontravam-se as doenças mais comuns em Moçambique à época: bilharziose, parasitas
intestinais, malária, tuberculose, filariose, lepra, hidrocele, hérnias, doenças
dermatológicas e desnutrição. A estas juntavam-se os casos decorrentes da guerra, ou seja,
situações do foro da traumatologia e da cirurgia, tais como: estilhaços corporais, fraturas,
queimaduras por fogo e napalm, e amputação de membros298.

296 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.


297 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Pedido da FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro de 1974.
298AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Holanda, Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
265
«Nós não recebíamos feridos muito graves, isto é, recebíamos feridos graves, mas
não ao ponto de necessitarem de cuidados intensivos. Porque esses, infelizmente,
morriam antes de chegarem até nós… O trajeto era efetuado a pé, em macas levadas à
mão, pelo que os doentes realmente graves com feridas de pulmão, tórax, não conseguiam
chegar com vida... Chegavam sim, os amputados ou pacientes com feridas em órgãos não
vitais e também pessoas com doenças várias, mas cuidados intensivos, propriamente ditos,
nós não tínhamos.» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015,
Maputo).

A dedicação do pessoal hospitalar era «total e constante». Assim, ainda que os


elementos da FRELIMO ligados à saúde não vivessem em alerta permanente, faziam da
causa moçambicana a sua missão de vida. Mesmo desdobrando-se em cuidados com os
pacientes, dentro e fora das instalações médicas, continuavam a demonstrar
disponibilidade para executar qualquer tarefa que lhes fosse destinada pela Frente de
Libertação.

«O meu dia a dia começava com o acordar de manhã e depois assistir ao hastear da
bandeira e cantar o hino da FRELIMO... Posteriormente, o Diretor do hospital, ou o
oficial de dia que o representava, indicava-nos as tarefas do dia, independentemente dos
turnos, só depois matabichávamos [tomávamos o pequeno almoço] e íamos trabalhar para
o hospital, até terminar o serviço, sem horas estipuladas... Até às 16 ou 17h, com o
intervalo do almoço. Não era uma vida que se vivesse em emergência permanente, só
quando chegava um grande número de feridos... Era uma vida normal... E, depois, à tarde,
havia aulas para o tal curso de enfermagem. […] Claro que havia turnos do hospital, mas
nós, enquanto responsáveis, a qualquer hora éramos chamados, dia ou noite. Trabalhava-
se o que era necessário trabalhar. […] Íamos à praia todos os fins de semana, todos os
domingos, e levávamos os feridos, os operados, porque o médico búlgaro recomendava
que tomassem banho de mar e apanhassem sol e as feridas ficavam limpas... Então
levávamos todos eles, os amputados... Era um prazer aliado ao trabalho, mas os doentes
que levávamos já estavam razoavelmente bem, não eram os graves. A praia era fantástica,

266
era uma felicidade ir à praia...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de
2015, Maputo).

Com o passar dos anos, sem uma solução à vista para o conflito armado entre
Portugal e a FRELIMO e com o aumento exponencial de pessoas ao cuidado do
movimento de libertação, quer nas zonas libertadas, quer na Tanzânia, o Instituto
Moçambicano confrontava-se com a necessidade de expansão do Hospital Dr. Américo
Boavida. Assim, em 1974, enquanto remetia os pedidos de fundos para este fim junto do
governo dos Países Baixos (a quem o Instituto se reportava para este caso em particular),
levava a cabo a ampliação das instalações e a construção de novas alas, na medida das
possibilidades e dos recursos obtidos até esse momento.
Em 1974 os planos de expansão do hospital apresentados no caderno de encargos
da obra contemplavam: novas salas de aula, em bloco de cimento, e o seu equipamento;
armazéns com cerca de 4.000 m3, em chão de cimento, com tetos e paredes levantados
em pré-fabricado, equipados com câmaras frigoríficas e uma grua; um tanque de água em
cimento; a aquisição de quatro ambulâncias tipo Land Rover 299 ; a construção de
residências para homens, mulheres e restante staff, em cimento e telhado de zinco, e pré-
escolas para os filhos do pessoal. Neste sentido o Instituto aguardava que todos os
trabalhos da obra estivessem concluídos no máximo até vinte meses após a sua
contratação, apesar das inúmeras dificuldades de construção encontradas no terreno:
ausência total de materiais de construção e o correspondente atraso no andamento dos
trabalhos300.

299 O hospital tinha ao seu dispor uma ambulância que era chamada via rádio sempre que os feridos
mais graves, vítimas dos ataques das tropas portuguesas, conseguiam chegar à fronteira com a Tanzânia.
Nas palavras de Salghetti: «No fim acho que eram duas, mas a maior parte do tempo apenas tivemos uma
ambulância. O seu uso dependia das chamadas. Não eram utilizadas todos os dias, só para quando éramos
chamados via rádio [em consequência dos ataques] ...» (Entrevista realizada a 20 de outubro de 2015,
Maputo).
300 A este propósito, o Instituto Moçambicano tinha preferência pela empresa de construção e de
venda de materiais D. P. Shapriya e Companhia Lda., dado considerar que eram os únicos construtores de
confiança em Mtwara. Estes eram contratados numa base regular pelo governo tanzaniano para trabalhar
267
Por esta altura, já nas vésperas da declaração da independência de Moçambique, o
custo mensal do Hospital Dr. Américo Boavida cifrava-se em 65.000 TZS,
correspondente, mediante ajustes à taxa de inflação atual, a cerca de 3.900.000 MZN, ou
a cerca de 52.000 mil EUR301, (excluindo os medicamentos), com os respetivos encargos
a aumentar mensalmente. Esta situação obrigava o Instituto Moçambicano a lançar apelos
constantes e a manter vivas as expectativas neste e noutros programas que permitiam, não
só receber auxílio com antecedência, como ver o seu valor aumentado. Apesar de
reconhecer que as organizações ou governos estrangeiros não tinham a obrigação de
prestar auxilio ao hospital302, os encargos continuavam a aumentar, independentemente
das doações e do facto de o Instituto procurar as alternativas mais económicas para
responder às suas necessidades303.

«Bom... No início era-me pago um salário, mas passados uns meses eu abdiquei,
pedindo para me tratarem como os outros enfermeiros da FRELIMO304. Ninguém era

nos projetos das escolas secundárias. Como resultado direto da falta de material de construção no local, o
que encarecia os produtos, aventava-se a possibilidade de se importar o material destinado ao telhado e às
janelas, tendo em preocupação a redução de custos. (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao
Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda, Departamento Internacional de Assistência Técnica,
dezembro de 1973.)
301 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um cambio atual de 300 MZN.
302 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
303 A título de exemplo, um dos médicos residentes, Dr. Slavov, aconselhou Janet Mondlane no
sentido de o Instituto Moçambicano contactar a Igreja Luterana a fim de comprar medicamentos no depósito
do governo em Mtwara, dado que, segundo as informações que teria obtido, estes eram de qualidade e muito
baratos. (HM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973 –
1974 (B), Telegrama de Dr. Slavov para Janet Mondlane, S/D).
304 A enfermeira Maria Salghetti pediu para aderir à FRELIMO, após o término do seu ano de
trabalho no Hospital Dr. Américo Boavida, rescindindo o seu contrato de técnica cooperante destacada
268
pago... Exceto uma enfermeira tanzaniana que lá trabalhava antes de mim, mas, com a
minha chegada, ela saiu e eu fiquei praticamente com o seu salário e, passados poucos
meses, eu abdiquei do salário... Não podia ser a única pessoa paga... Os búlgaros, não
sei... Mas provavelmente eram pagos pela Bulgária… Eu não tinha filhos... Mas cada
enfermeira, ou pessoal colaborador que tivesse filhos, recebia 5 TZS por semana para
comprar alguma coisa para a criança… Para mim dava para comprar desodorizante...
Seriam atualmente talvez 300 MZN [cerca de 2,70 EUR à cotação atual]... Era uma coisa
mínima para comprar fruta, rebuçados, “baby oil”, essas coisas...» (Maria Salghetti,
entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

De facto, também aqui os colaboradores, militantes da FRELIMO, não auferiam de


qualquer salário, sendo-lhes, contudo, disponibilizado um pequeno valor destinado a
gastos menores. E, apesar da permanente disponibilidade para responder a qualquer
emergência médica, estes não deixavam de tomar como sua a responsabilidade do cultivo
de uma machamba, cuja finalidade consistia em melhorar a dieta hospitalar.

«A dieta nutricional, em relação a outros campos da FRELIMO, era boa, no sentido


em que comíamos carne pelo menos duas vezes por semana e o resto dos dias tínhamos
feijão com massa ou arroz. Havia salada porque tínhamos uma horta grande que
cultivávamos nos finais de semana... Todos os fins de semana era necessário trabalhar na
horta que ficava situada mesmo à beira da estrada onde passavam os tanzanianos. […]
Portanto, tínhamos hortaliças frescas graças à horta, bem como papaias e bananas com
frequência. A dieta era igual para todos: doentes e pessoal, mas era melhorada por
exemplo em relação a Tunduru, onde só comiam feijão e massa...» (Maria Salghetti,
entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

Às vicissitudes várias que dificultavam em grande medida a gestão de um projeto


desta dimensão acrescia a falta crónica de verbas, muitas vezes só ultrapassável com a

assinado com o hospital de Reggio Emilia.


269
boa vontade dos comerciantes da zona que facilitavam o crédito 305 , bem como os
contratempos inerentes às questões burocráticas resultantes das constantes interações
com as autoridades aduaneiras tanzanianas306.

«Estamos encarando necessidades no tocante ao levantamento de certos artigos de


primeira necessidade nas lojas para uso do Hospital – nestes dias, como o Barco não
chega até cá307, muitas coisas não se encontram nas lojas onde temos direito a crédito.
Portanto, somos obrigados a comprar por “cash”. […] Realmente trata-se de um problema
grande porque nem temos “GÁS” para a cozinha – temos que comprar lenha e uma grande
parte de comida.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano,
caixa A, Processo DEC 1973-1974 (B), Carta do hospital Américo Boavida ao Instituto
Moçambicano, 24 de junho de 1973).

Porém, independentemente de todas as dificuldades e com o aumento das


necessidades sanitárias por parte dos refugiados moçambicanos as fontes mostram que,
em 1974, o Instituto Moçambicano ponderava seriamente a construção de outro hospital
central na Zâmbia308, para onde a FRELIMO pensava expandir os seus serviços médicos,
de forma a apoiar mais eficazmente a abertura de bases militares naquele país, na tentativa
de assegurar novas frentes de ataque no território moçambicano. Simultaneamente,

305 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Carta do hospital Américo Boavida ao Instituto Moçambicano, 24 de junho de 1973.
306 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Carta da Frente da Libertação de Moçambique a Janet Mondlane, 20 de novembro de 1973.
307 O transporte de mercadorias para abastecer a cidade de Mtwara fazia-se, então, preferencialmente
por mar, dado que é uma cidade costeira. Da mesma forma, o envio de material doado e/ou comprado pelo
Instituto Moçambicano para o Hospital Américo Boavida também se fazia preferencialmente por via
marítima. Contudo, este tipo de transporte era muito permeável às condições meteorológicas, metendo em
causa o abastecimento da zona.
308 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Conclusões e partes dispersas de uma carta de autor e destinatário desconhecidos, com o
carimbo da FRELIMO de 1974.
270
estudava-se a hipótese de transformar a clínica existente no campo de educação de
Tunduru em unidade hospitalar, com valências semelhantes ao de Mtwara309.
A simples ideia da construção de dois novos hospitais, na Zâmbia e em Tunduru,
revela, por um lado, a descrença numa resolução rápida do conflito colonial entre Portugal
e a FRELIMO e, por outro, a noção de que as novas frentes de ataque só alcançariam
sucesso caso o movimento de libertação viesse a conseguir estabelecer bases militares na
Zâmbia. Contudo, a revolução de 25 de abril de 1974 em Portugal fez com que estes
projetos deixassem de ser necessários, ainda que continuassem a ser trabalhados até
meados desse ano, altura em que todos os esforços e atenções se direcionaram para as
negociações que levariam à declaração de independência de Moçambique e para a
preparação de projetos de apoio humanitário destinados à realidade do novo país.

5.3. O Hospital Dr. Américo Boavida enquanto escola

O Hospital Dr. Américo Boavida também exercia as funções de escola, sendo esta
uma das suas componentes mais importantes, já que o Instituto Moçambicano tinha a seu
cargo, não só a totalidade dos refugiados moçambicanos em solo tanzaniano, mas também
a população de todas as zonas libertadas.
Tendo em consideração os meios sanitários de que o Instituto Moçambicano e a
FRELIMO dispunham para cuidar da saúde de uma população estimada em mais de um
milhão e duzentas mil pessoas só nas zonas libertadas, num território instável e de grande
dispersão populacional, com uma dimensão superior a 250.000 Km2, recorrendo a
recursos rudimentares em todos os campos, mas particularmente no da saúde,310 tornava-
se imperativo que a tarefa fosse assumida de forma resiliente, mas sobretudo
demonstrando flexibilidade e criatividade na gestão diária do projeto. Assim, o Hospital

309 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho do Fundo para as Crianças da ONU, 2 de janeiro de 1974.
310 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano ao Fundo Africano, 28 de março 1974.
271
Dr. Américo Boavida, na sua condição de unidade de saúde central da FRELIMO, foi
confrontado com a necessidade de chamar a si a missão de formar quadros clínicos e
sanitários que pudessem prestar a assistência possível e minimamente adequada às
localidades mais isoladas, preferencialmente no âmbito da medicina de prevenção311.

«Em termos médicos, estamos a planear aprofundar as áreas de investigação e de


medicina preventiva. No próximo ano pequenas equipas serão treinadas no diagnóstico e
tratamento de parasitoses. Desta forma, esperamos poder melhorar a saúde nas zonas
libertadas. Estamos a estudar também a possibilidade de proceder a grandes campanhas
de vacinação contra a varíola, sarampo e tuberculose. Sem dúvida, o Hospital Dr.
Américo Boavida é o primeiro centro de saúde moçambicano a estender os seus serviços
a uma vastíssima população.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-1971, Relatório enviado pelo Instituto
Moçambicano à Dinamarca, junho 1970, p.5).

Os cursos ministrados destinavam-se, inicialmente, à instrução de futuros


paramédicos, ou técnicos de medicina rural. Mas, posteriormente, com o alargamento do
território libertado e a consequente necessidade de técnicos com conhecimentos mais
aprofundados no âmbito dos cuidados básicos de saúde, a formação evoluiu no sentido
de aumentar o número de auxiliares de enfermagem, reconhecidos internamente como
enfermeiros312.
Obviamente, o hospital não se considerava uma extensão de uma faculdade de
medicina e apenas se limitava a gerir, da melhor forma possível, os recursos humanos de
que dispunha, tentando um verdadeiro exercício de fazer «omeletas sem ovos». Porém,
não podendo formar quadros superiores, deixava ao Instituto Moçambicano a tarefa de
conseguir, junto dos doadores, bolsas de estudo que permitissem aos jovens

311 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Relatório enviado pelo Instituto Moçambicano à Dinamarca, junho 1970.
312 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, p.8.
272
moçambicanos prosseguir, no estrangeiro, uma formação na área da saúde: enquanto
médicos especialistas, especialistas em Saúde Pública, ou enfermeiros313.
Assim, no ano de 1974, aguardava-se a chegada ao Hospital Dr. Américo Boavida
do primeiro médico moçambicano, formado ao abrigo da ajuda prestada pelos países
cooperantes314.
Ainda que os quadros de pessoal hospitalar se fossem mantendo estáveis ao longo
dos anos, a carência de técnicos não permitia responder de forma eficaz ao aumento das
solicitações. Por isso, devido à gritante falta de apoio no terreno, o hospital, à semelhança
do que tinha sido feito na clínica de Dar-es-Salaam, optou por formar meios segundo as
suas condições e necessidades, em regime intensivo, e utilizando para isso os
profissionais ao seu serviço. Deste modo, o hospital passou a manter um programa de
formação constante, sob orientação de dois médicos e de, pelo menos, duas enfermeiras,
destinado a habilitar quer pessoal paramédico, quer enfermeiros, sob a premissa de ensino
para enfermagem prática, ou seja, aprendendo-fazendo315.

«O Dr. Hélder fez dois cursos que terminaram em 1968, mas os seus alunos foram
todos para as zonas libertadas. No hospital não tínhamos enfermeiros dele, mas pessoal
que aprendeu na prática, muitos tinham aprendido com esses tais alunos do Dr. Hélder,
até nas zonas libertadas... Então, quando eu e os médicos búlgaros chegámos, reiniciámos
os cursos de enfermagem de um ano. Todos os que já trabalhavam empiricamente no
hospital entraram e foram alunos de enfermagem, mantendo o hospital a trabalhar...»
(Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

313 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Conclusões de uma carta de autor desconhecido com o carimbo da FRELIMO, 1974.
314 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
315 Idem.
273
Em 1972 havia vinte e cinco alunos finalistas a frequentar um curso teórico-prático
de paramédicos com a duração de dez meses. No ano seguinte, o número subiu para trinta
e sete estudantes com o curso a aumentar a sua duração para um ano completo, sendo que,
a acrescer a estes números, anualmente eram também formados dez enfermeiros através
do método prático. Os técnicos que atingissem as melhores qualificações de todos os
cursos, e após obterem experiência suficiente no terreno, ficavam aptos a lecionar, por
sua vez, dois cursos de seis meses com uma média de cento e setenta finalistas por ano316.
Os currículos escolares, cujos programas sofriam uma revisão anual, foram criados
pelos médicos e enfermeiros do Hospital Dr. Américo Boavida, mediante a aprovação do
Diretor dos Serviços de Saúde da FRELIMO317.
Maria Salghetti recorda os desafios do ensino no hospital da FRELIMO, onde os
alunos, com pouca preparação académica e num contexto de pressão imposto pela guerra,
aprendiam competências técnicas com os médicos e enfermeiros, cooperantes
internacionais, que, para o efeito, acumulavam funções como professores. Neste contexto
específico, a língua e as culturas muito diversas entre si representavam só mais uma das
idiossincrasias que obrigavam todos os elementos a manterem um espírito de adaptação
e improviso constantes.

«À tarde havia aulas para o tal curso de enfermagem... Então, vinham os médicos
dar aulas, ele [Dr. Slavov] de traumatologia e primeiros socorros aos feridos de guerra e
ela [esposa do Dr. Slavov e também médica] de pediatria. Eu dava aulas de enfermagem
e o Chaúque dava de ética. No início, os médicos búlgaros tinham muita dificuldade com
o português, então eu assistia às suas aulas, tirava apontamentos e depois dava outra vez
a aula... Os alunos faziam-lhes perguntas e eles [os médicos] não eram capazes de
responder, então pegavam nos seus apontamentos, procuravam a frase e repetiam, mas

316 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Relatório do Instituto Moçambicano para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974.
317 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
274
não sabiam explicar de outra maneira... Então, eu fazia esse trabalho. Depois aos poucos
foram aprendendo a falar Português. […] No início não foi fácil porque, com três semanas
de Português... Dei aulas até 1974. […] Falava Português, desde o início... [...] [Com os
médicos búlgaros] o problema eram os gestos que acompanham as confirmações e
negações que na cultura soviética [sic] eram opostas às nossas [exemplifica com a cabeça]
e que no trabalho numa enfermaria é perigosíssimo. Mas eles eram ótimos, viviam numa
casa fora do recinto hospitalar, tinham duas crianças – uma pequenina e outra que
frequentava a escola tanzaniana em swahili.» (Entrevista realizada a 20 de outubro de
2015, Maputo).

A FRELIMO oferecia emprego a tempo integral a todos os formandos após a


conclusão do curso. Estes novos técnicos, em que o hospital se apoiava para a gestão
diária da assistência médica, eram enviados para os vários centros clínicos da Frente onde,
sob a supervisão de colegas experientes, prosseguiam o seu trabalho, a título de estágio.
Aqui tinham a obrigação e oportunidade de manter uma atualização académica e prática
constantes. Caso se distinguissem pela qualidade do serviço que prestavam, era-lhes dada
a oportunidade de prosseguir estudos para uma formação mais abrangente e qualificada318.
Assim, os técnicos de saúde tinham a oportunidade de ver as suas competência e lealdade
para com os ideais da FRELIMO recompensadas através de um incentivo que lhes
consagrava a possibilidade de aumentar, de forma progressiva, as suas qualificações. O
que, a pensar num contexto de Moçambique independente, lhes permitia um melhor
posicionamento na corrida aos quadros técnicos do aparelho de Estado. No caso das
mulheres, esta situação tornava-se mais flagrante, uma vez que, permitia o seu
empoderamento real, tal como era defendido pela FRELIMO.

«Eu tive muitas alunas entre 1971 e 1974... Acho que os números andavam em 50%
para ambos os géneros. […] Elas vieram para Moçambique e foram todos (mulheres e

318 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
275
homens) integrados no serviço nacional de saúde [depois da independência], fizeram
cursos de promoção e integraram-se nos níveis da altura e estudaram, outros chegaram
mesmo a quadros, outros foram técnicos de medicina e alguns talvez tenham tirado [a
licenciatura de] medicina.» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015,
Maputo).

As condições de admissão aos cursos ministrados no hospital limitavam-se aos


quatro anos de escolaridade completa, isto é, ao ensino primário concluído, após o qual
eram lecionadas as seguintes disciplinas curriculares: Anatomia, Psicologia, doenças
infectocontagiosas, Parasitologia, doenças de pele, noções básicas de olhos, nariz e
garganta, Ginecologia, Nutrição, Farmacologia, enfermagem geral, saúde pública,
Matemática, organização social, entre outras.319
Após a conclusão da sua formação, os técnicos de saúde estavam autorizados a
prescrever medicamentos de tipo generalista, pelo que, a aprendizagem da prescrição e
manuseamento de medicação básica assumia uma importância vital, a fim de minimizar
os riscos para a saúde dos pacientes. Assim, a preocupação com a reposição permanente
dos stocks deste tipo de medicamentos tinha, não só em atenção as necessidades
fisiológicas dos doentes, mas também a importância da sua apresentação e manuseamento
em cenário de formação. E ainda que, de tempos a tempos, se verificasse a falta de
compostos específicos, as falhas raramente eram sentidas, apesar da curta validade
daqueles medicamentos devido às constantes dificuldades no seu acondicionamento e
armazenamento320.
A par com o cuidado em formar técnicos que pudessem valer no terreno, o Instituto
e o hospital apostavam na chamada medicina preventiva, com o objetivo de obter um
maior controlo sanitário e epidemiológico da população. Este acompanhamento
profilático revelou-se de extrema importância ao facultar conhecimentos sobre noções
básicas de higiene e primeiros socorros a professores, estudantes do ensino secundário,

319 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Pedido da FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro de 1974.
320 Idem.
276
líderes dos comités locais e militares, que, posteriormente, eram encarregados da
divulgação da informação pela sua comunidade321. Simultaneamente, em Tunduru, no
campo que acolhia maior número de mães solteiras, sozinhas, e órfãos, encontrava-se
com frequência uma equipa composta por um médico e uma enfermeira com o único
objetivo de dar formação às mulheres sobre os partos, cuidado infantil e nutrição322.
Atualmente, Moçambique continua a beneficiar do legado deixado pela escola do
Hospital Dr. Américo Boavida, já que, devido à permanente falta de meios humanos que
possam responder às necessidades clínicas da população de todo o território e graças à
experiência adquirida durante o período da luta de libertação, o país ainda conserva a
prática de formação contínua no âmbito da medicina rural.
Os agentes sanitários continuam a ser o apoio imediato da população mais
carenciada e distante dos centros urbanos, quer através da prescrição de medicamentos
generalistas, quer ajudando na continuação de tratamentos e interpretação de receituário,
ou respondendo às mais variadas dúvidas sanitárias.

5.4. Os dispensários, ou centros de saúde básicos, da Tanzânia às zonas


libertadas de Moçambique: as províncias de Cabo Delgado, Tete e Niassa

O Instituto Moçambicano, responsável pela organização dos serviços de saúde da


FRELIMO, acompanhou os avanços da frente de guerra ao expandir a sua atividade do
Sul da Tanzânia para as zonas libertadas do Norte de Moçambique. Alocava assim, na
medida do possível, os meios sanitários e de saúde para um vasto território com mais de
um milhão de pessoas deslocadas e sem quaisquer cuidados médicos.

321 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro de 1973.
322 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Pedido da FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro de 1974.
277
À medida que as tropas portuguesas iam recuando no território moçambicano, a
situação sofria uma agravamento resultante da evacuação progressiva dos escassos
serviços que o domínio colonial português disponibilizava para a população local,
transformando problemas básicos em situações de catástrofe humanitária 323 . Assim,
ainda em território tanzaniano, e englobados na construção dos campos de refugiados,
para além das escolas e dos centros de formação, construíram-se dispensários que
apoiavam os moçambicanos aí refugiados324. Estes centros médicos estavam destinados
a desempenhar uma dupla função comunitária, quer enquanto apoio generalizado às
populações residentes nas suas imediações, quer como postos de representação médica
para receber os casos que não podiam ser tratados com sucesso nos centros de primeiros
socorros, criados para o efeito em cada zona e distrito do Moçambique livre. Tentava-se
assim, através dos meios possíveis, responder à carência generalizada de pessoal
acreditado, de equipamentos, e de medicamentos mais básicos, nas zonas libertadas325.

«”Dispensário” provém de uma expressão inglesa que significa o lugar onde se


dispensam medicamentos. Mais do que uma farmácia, é um lugar onde se consulta o
paciente, fornecendo-se os medicamentos, no final, de forma gratuita. Os moçambicanos,
influenciados pela língua inglesa falada na Tanzânia, é que começaram a usar o termo que
nunca existiu na terminologia colonial portuguesa...» (Hélder Martins, entrevista
realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

A saúde nas zonas libertadas de Moçambique estava sob a responsabilidade direta


do Hospital Dr. Américo Boavida que, a fim de melhorar e agilizar todo o processo de
apoio às populações, optou por adotar o esquema de organização territorial da FRELIMO,

323 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.10,11.
324 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Livreto finlandês sobre cooperação e desenvolvimento, S/D.
325 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969, pp.8,9.
278
dividindo os territórios sob a sua coordenação em quatro grandes áreas sanitárias. Assim,
tentava-se fazer face ao quadro humanitário dramático decorrente da total ausência de
meios, da guerra e dos deslocamentos populacionais massivos que obrigavam a
reassentamentos populacionais.
Cada uma destas regiões beneficiava de um orçamento próprio destinado às
despesas com a saúde, englobando, entre outros itens, as necessidades decorrentes das
consultas e tratamentos, como o transporte ou dietas especiais, quer no setor público,
quer no setor privado, para o qual, pontualmente, eram encaminhados casos destinados a
tratamentos dentários de maior complexidade e oftalmológicos 326 . A maioria destes
episódios clínicos refletiam os problema de saúde vividos no interior de Moçambique, já
que o governo português tinha negligenciado a expansão dos cuidados médicos, mesmo
para as doenças mais comuns327.

«Os Colonialistas portugueses cruelmente negligenciaram a expansão dos serviços


de saúde ao nosso povo, mesmo no caso das doenças mais comuns. Em consequência há
um rasto de problemas médicos a necessitarem de tratamento dignas de empatia para
qualquer pessoa com um mínimo de humanidade.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas
DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974, Pedido da FRELIMO ao
governo Finlandês, janeiro, 1974, p.3).

Devido ao perigo iminente de pandemias, foi levado a cabo, em 1966, um plano de


vacinação com duas campanhas, particularmente destinado ao interior moçambicano.
Segundo Hélder Martins, este não terá tido qualquer comparticipação do Instituto
Moçambicano, dependendo apenas do Departamento de Saúde da FRELIMO. Contudo,
dado o entrosamento entre ambos os organismos, não nos parece ilógico que o Instituto
estivesse de alguma forma envolvido em operações desta envergadura, mesmo que esse

326 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro – dezembro, 1969, pp8,9.
327 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Pedido da FRELIMO ao governo Finlandês, janeiro, 1974.
279
envolvimento apenas se limitasse ao acondicionamento dos materiais. Na verdade, a
documentação consultada demonstra que, entre 1971 e 1973, o Instituto Moçambicano
solicitou fundos para vacinas, nomeadamente, à OXFAM Canadá328 e ao Comité para a
Libertação de Moçambique, Angola e Guiné329, tendo recebido respostas favoráveis por
parte destas organizações.

«O plano de vacinação era destinado ao interior de Moçambique... Embora, também


vacinássemos as pessoas que estavam na Tanzânia... Houve duas campanhas: na primeira
vacinámos cerca de duzentas e cinquenta mil pessoas, na segunda já vacinámos
oitocentas mil, porque as zonas libertadas aumentaram... Vacinámos quando existiu risco
de epidemia de varíola. Eu sempre arranjei as vacinas no Quénia, que as fabricava e no-
las oferecia, sendo que apenas tinha de ir lá buscá-las. O Mondlane escrevia uma carta e
o Instituto não tinha nada a ver com isso... A vacinação fazia parte do programa da
FRELIMO, no que se referia a zonas libertadas e interior de Moçambique, o Instituto não
tinha nada a ver com isso... Quando muito podia angariar alguns recursos. Por exemplo,
os medicamentos que o Instituto angariava, primeiro iam para os armazéns de Janguane,
que eram da FRELIMO e depois é que iam para o interior de Moçambique. No início,
essas dádivas de medicamentos tinham essa restrição de não ir para o interior de
Moçambique mas, a partir de uma certa altura, os nórdicos não levantaram mais
problemas...» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

No caso das situações clínicas mais graves, os pacientes das zonas libertadas eram
primeiramente enviados para os postos sanitários mais bem equipados dos campos de

328 Sobre a OXFAM Canadá vide: 6.4 OS EUA e Canadá, p. 305. (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas
DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-1973 (A), Carta de agradecimento enviada à
OXFAM - Canadá, 21 de junho, 1973).
329 Sobre o Comité para a Libertação de Moçambique, Angola e Guiné vide: 6.7 Outros Países, p.325.
(AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-1974 (B),
Carta enviada pelo Comité para a Libertação de Moçambique, Angola e Guiné ao Instituto Moçambicano,
7 de janeiro, 1974).
280
refugiados, que funcionavam como centros de triagem. Aqui, os enfermeiros existentes
tinham a responsabilidade de enviar os casos verdadeiramente graves e que exigiam
cuidados hospitalares mais complexos para o hospital central Dr. Américo Boavida, uma
vez que todos estes postos enfermavam do mesmo problema comum: falta generalizada
de pessoal, medicamentos e equipamento330.
Entre vários dispensários existentes nos campos de refugiados, com maior ou
menor capacidade de resposta aos problemas médicos da população, os três maiores
situados no território tanzaniano localizavam-se nos campos de Bagamoyo e Tunduru e
na cidade de Dar-es-Salaam (até 1968)331.
Embora a assistência fosse fornecida à maior escala possível, a ausência de meios,
fundos e material tornava-se flagrante, dependendo, na sua esmagadora maioria, das
doações internacionais, o que dificultava uma resposta célere e abrangente aos inúmeros
problemas causados pela guerra. Desta forma, quer o Instituto, quer a FRELIMO, eram
obrigados a utilizar, com frequência, soluções de recurso para situações de maior alcance.
Contudo, mesmo estas as soluções de improviso só eram possíveis graças ao apoio
concedido pelos doadores.

330 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro – dezembro, 1969, p.8.
331 Idem.
281
Capítulo 6 – As Doações

6.1. Os doadores e os cooperantes

Num projeto com a envergadura do Instituto Moçambicano, cuja missão só era


possível tendo como suporte um conjunto de doadores e cooperantes fortemente
comprometidos com a simpatia pelos valores da causa moçambicana, a principal função
de Janet Mondlane e da sua equipa prendia-se com o objetivo de manter em constante
funcionamento uma verdadeira campanha de marketing, onde as redes de contactos e
solidariedade internacionais e a constante demonstração de resultados estavam sempre na
linha da frente.
Assim, tendo em atenção a natureza dos apoios concedidos, quer por organizações
de apoio humanitário, quer por países simpatizantes com a causa moçambicana,
verificamos que, umas e outros, tanto podiam agir enquanto meros doadores,
desempenhando o seu papel no desbloqueamento de verbas e na angariação de doações
em géneros destinados ao Instituto Moçambicano, como podiam, simultaneamente,
apoiar a Frente através de acordos de cooperação quer com o Instituto, quer com a
FRELIMO (especialmente no caso do países da Europa do Leste), recebendo estudantes
na suas escolas e universidades, ou enviando agentes técnicos de cooperação para
trabalharem em regime de colaboração local nos equipamentos que o movimento de
libertação de Moçambique geria em território tanzaniano.

«Os contactos principais faziam-se na Tanzânia, mesmo... Com as embaixadas [dos


países doadores], com o Comité para a Libertação de África, e depois saíam delegações
para o Comité da Descolonização das Nações Unidas, ou para a OUA, que também era
recente, criada em 1963 (uma das suas primeiras realizações foi o Comité para a
Libertação de África). […] Havia muitos contactos com os comités de solidariedade afro-
asiáticos dos países socialistas. E existiam redes de comités de solidariedade (como o
inglês), por toda a Europa e também nos EUA, cujas componentes de trabalho [realizado]
se prendiam com a captação de fundos mas, também, com doações de ajuda médica, e
282
que nos últimos anos se encontravam mais ou menos coordenados, especialmente a partir
da conferência de Roma 332, com reuniões anuais. […] O Instituto Moçambicano teve
ligações com eventuais financiadores e apoiantes de vária ordem. […] Tantos... A decisão
de financiamento era um ato político para estas instituições. À OXFAM, por exemplo, foi
difícil apoiar a FRELIMO, dado que nasceu de uma tradição quaker de não violência e
tiveram de se certificar que o dinheiro por eles doado não iria apoiar a parte militar. Assim,
o Instituto viu-se obrigado a transmitir à OXFAM que o hospital não negaria o acesso a
tratamento aos soldados [moçambicanos] feridos, então essa organização teve de
equacionar este tipo de dilemas, reconhecendo-os. Mas, para isto, muito contribuiu
também o programa contra o racismo que o Conselho Mundial das Igrejas 333 se
encontrava a elaborar, com toda a argumentação teológica acerca da “guerra justa”– e no
qual a FRELIMO desempenhou um papel importante.» (Polly Gaster, entrevista realizada
a 23 de setembro de 2015, Maputo).

O Instituto Moçambicano conseguiu orquestrar ao longo do tempo toda uma


estrutura de captação de fundos para o apoio humanitário que se revelou pioneiro à época,
dada a dimensão dos valores, esforços, meios, e beneficiários envolvidos.

332 A 1 de julho de 1970, o Papa Paulo VI recebeu em audiência os líderes dos movimentos de
libertação das colónias portuguesas, Agostinho Neto (MPLA), Amílcar Cabral (PAIGC) e Marcelino dos
Santos (FRELIMO), abrindo um precedente ao mais alto nível entre a Santa Sé e o Estado Português, o que
viria a ser crucial para a legitimação internacional da causa anticolonial. Este encontro foi precedido pela
«Conferência de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas», realizado em Roma entre os dias
27 e 29 de junho, do mesmo ano, com o apoio do Partido Comunista Italiano e de um grupo católico laico.
Para mais informação sobre as relações entre o Vaticano, Portugal e os movimentos de libertação, vide:
Manuel Braga da Cruz (1998) e Alda Milani e Vincenzo Russo (2012).
333 O «Programa de Combate ao Racismo» do Conselho Mundial das Igrejas foi lançado em 1979.
Este documento resultou do progressivo envolvimento das igrejas protestantes na situação política da África
Austral, e da sua proximidade religiosa e política aos líderes dos movimentos de libertação. O apoio
monetário concedido pelo «Programa de Combate ao Racismo» aos movimentos de libertação, a partir da
década de 70, gerou controvérsia junto das igrejas da África do Sul, bem como de algumas congéneres dos
países ocidentais. Contudo, este tipo de apoio foi reafirmado quer por igrejas africanas, quer pelas principais
denominações religiosas americanas e europeias. Sobre este assunto, vide: Minter (2007).
283
Este esforço de grande envergadura, envolveu múltiplas organizações e Estados
simpatizantes com a causa moçambicana. Demonstrando-se crucial para a FRELIMO,
dado que permitiu, não só, meter em pé um verdadeiro Estado Social capaz de responder
às necessidades do movimento de libertação, como foi fundamental enquanto meio de
experimentação de estratégias de desenvolvimento social que viriam a ser replicadas no
Moçambique independente.

«Como dizia o Nkrumah334 na independência do Gana: “o Gana é livre, mas não


será plenamente livre enquanto África não esteja livre do colonialismo”. […] Existiam,
sim, movimentos de solidariedade com as lutas de libertação em países estrangeiros,
como o Vietname por exemplo, por parte dos países ocidentais e socialistas, que se
ocupavam da ajuda médica, etc., com grande envergadura, mas sem a estrutura [da ajuda
pautada à luta] moçambicana.» (Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de
2015, Maputo).

Ao nível central do movimento de libertação, o trabalho era coordenado entre as


suas duas organizações (FRELIMO e Instituto Moçambicano) e, tal como Teresa Veloso
afirma, «o Instituto interagia com as relações exteriores e com o Marcelino dos Santos
que as dirigia» (entrevista realizada a 17 de novembro de 2015, Maputo).
Para a FRELIMO tornava-se difícil, especialmente durante a década de 60,
encontrar apoios para a causa moçambicana junto dos governos social-democratas da
Europa do Norte, dado que, estes, mantinham relações diplomáticas estáveis com
Portugal (membro da NATO 335 ) e não as queriam pôr em causa devido à política
ultramarina portuguesa. Assim, o Instituto Moçambicano tornou-se num meio

334 Líder político africano, desempenhou, no Gana, os cargos de primeiro-ministro, entre 1957 e
1960, e presidente, entre 1960 e 1966. Foi um dos fundadores do Pan-Africanismo, envolvendo-se
amplamente nos movimentos de descolonização africana.
335 Organização do Tratado do Atlântico Norte, de que Portugal é um dos membros. Esta organização
promove uma aliança militar de defesa coletiva entre países norte-americanos e europeus, instituída pelo
Tratado de Washington a 4 de abril de 1949.
284
preferencial que permitia ao movimento de libertação captar estes apoios ao abrigo da
ajuda humanitária, criando, simultaneamente, as bases que iriam favorecer a construção
de uma rede de solidariedade e simpatia junto da comunidade civil dos países doadores.
Ao se transformar num embaixador preferencial da causa moçambicana na Europa
e na América do Norte, o Instituto abria desta forma uma outra frente de luta aos níveis
da diplomacia e dos direitos humanos.

«O Eduardo [Mondlane] disse-nos uma vez que tinha enviado alguém em 1963
para Inglaterra, penso que o [Uria] Simango, mas que não deu resultado absolutamente
nenhum e que não voltaram a repetir a experiência. Também não era fácil entrar, com os
vistos e a pressão dos portugueses com a imagem dos terroristas. A primeira visita do
Eduardo [Mondlane] a Inglaterra resultou no despedimento do jornalista português,
correspondente na BBC, por ter deixado passar a sua voz em direto. O que se podia fazer,
e os simpatizantes da causa faziam, era noticiar uma reunião, por exemplo, ou algo que
outro órgão de informação teria noticiado. Agora, colocar a voz em direto não era
permitido no serviço português da estação, mas no inglês já era. Isto foi em 1968, na
primeira visita que organizámos a partir de Dar-es-Salaam. Nós fizemos pressão e mesmo
tendo trabalhado para o movimento anti-apartheid, criámos uma organização específica,
o Comité para a Libertação de Moçambique, Angola e Guiné, que depois das
independências se transformou no centro de informação, o MAGIC, Centro de
Informação sobre Moçambique, Angola e Guiné. […] Cada vez que alguém da
FRELIMO ia a Inglaterra era um problema com [as autoridades da] migração. […]
Portugal tinha as suas alianças, os governos [europeus] eram conservadores, havia a
OTAN [NATO], os Estados membros que vendiam armas para Portugal...» (Polly Gaster,
entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo).

Na tentativa de dar a maior visibilidade possível à causa moçambicano e ao drama


dos refugiados, o movimento de libertação apoiava-se na exposição mediática da Diretora
do Instituto que, ao ser a cara mais visível do projeto assistencial da FRELIMO, tornava-

285
se, simultaneamente, a embaixadora preferencial do movimento na Europa do Norte e nos
EUA.
O Instituto Moçambicano, sob a capa de uma organização independente e apolítica,
foi o veículo encontrado para atingir os objetivos humanitários a que a sua Diretora e a
própria FRELIMO desde logo se propuseram, pelo que não era de estranhar o
desdobramento de Janet Mondlane em constantes viagens com o objetivo de dar a
conhecer a obra, recolher simpatias e apoiantes políticos para a independência de
Moçambique e, sobretudo, recolher fundos que permitissem continuar a missão do
Instituto.336

«[As redes de solidariedade internacional] eram construídas e reconstruídas


constantemente, sim. Nem ela, nem o Eduardo [Mondlane] tinham experiência da Europa.
Provavelmente o Eduardo teria conhecido algumas pessoas nas Nações Unidas, mas
apenas isso… […] Na década de 60 a FRELIMO teve de começar do zero. Depois de se
constituir, a primeira tarefa era preparar a luta armada e os treinos. [...] Depois foi
crescendo essa outra parte do trabalho social, seguindo-se as zonas libertadas com o recuo
dos portugueses e o aumento dos refugiados. E a parte social cresceu e ampliou-se e
tornou-se um complemento fundamental da política estratégica da FRELIMO.» (Polly
Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo).

Com o evoluir da guerra evoluíram e complexificaram-se também as relações


diplomáticas entre o Instituto Moçambicano e os Estados doadores.
Os EUA, primeiro apoio do Instituto, foram pontualmente cedendo às pressões da
diplomacia portuguesa, retirando progressivamente os apoios endossados ao Instituto que
se viu obrigado a procurar ajuda de forma muito mais consistente junto dos países da
Europa do Norte e do Canadá. Esta progressiva mudança no eixo dos países simpatizantes
resultava também de uma mudança operativa substancial no alcance humanitário dos
apoios, com os doadores a deixarem gradualmente de se opor a que o material escolar,

336 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
(A), Carta enviada para Janet Mondlane, 20 de setembro, 1973.
286
medicamentos, e outros bens, seguissem para as zonas libertadas em Moçambique,
exigindo, apenas, que as doações nunca pudessem ser usadas na obtenção de material
bélico. Esta nova postura abriu caminho à prestação de assistência às vítimas da guerra e
dos bombardeamentos, permitindo, assim, um financiamento em maior escala
direcionado para a saúde, o que se refletiu na construção de um hospital central que
respondia, o melhor possível, aos ferimentos decorrentes do conflitos.337

«Além dos fundos iniciais que obteve das fundações Ford e Rockefeller [EUA],
posteriormente, o Instituto foi capaz de uma grande mobilização nos países nórdicos,
onde a FRELIMO mobilizava, mas sentia muito mais dificuldade em angariar recursos.
[…] As fundações doadoras não queriam que a ajuda fosse canalizada para os
combatentes, apenas para os refugiados vítimas do colonialismo… [...] A partir de uma
certa altura as fundações americanas deixam de estar tão interessadas em financiar o
Instituto, apesar de os programas de Saúde terem ajudado a aumentar os apoios,
particularmente da fundação Rockefeller, mas, com a viragem política nos EUA
(Kennedy foi assassinado)338 toda a política externa mudou e começaram a ver que o
Instituto Moçambicano estava muito colado à FRELIMO, então retraíram-se, obrigando
a Janet a virar-se para os países nórdicos. Este processo sofreu uma certa evolução... […]
Em 1973 os nórdicos já não tinham nenhuma objeção de que os recursos fossem para o
interior de Moçambique, a única linha vermelha situava-se apenas no que dizia respeito
ao material bélico. O Instituto passou a ser, digamos, um instrumento de angariação de
fundos já para a ajuda à luta armada… Por exemplo, a central impressora que veio da

337 Entrevista realizada a Hélder Martins a14 de outubro de 2015, Maputo.


338 A morte de Kennedy, em 1963, não teve um efeito substancial na mudança da política externa
dos EUA, nomeadamente no que toca ao apoio dado ao Instituto Moçambicano, já que este só começou o
seu trabalho no terreno no mesmo ano, 1963. Contudo, nos seus dois primeiros anos de funcionamento, o
grosso do apoio recebido pelo Instituto era oriundo das grandes fundações americanas, tendo este começado
a diminuir a partir de 1964. Os EUA foram sendo, pontualmente, permeáveis às pressões de Portugal em
relação à postura demonstrada face aos movimentos de libertação (especialmente a partir da presidência de
Nixon), e o seu apoio ao Instituto Moçambicano foi progressivamente sendo posto em causa, ainda durante
a década de 60. Sobre as relações diplomáticas entre Portugal e os EUA, vide: Freire Antunes (2013).
287
Finlândia... Eles sabiam que era para a FRELIMO e que ia ser gerida por esta, mas o
Instituto Moçambicano funcionou como o intermediário. […] Outra exigência destas
agências (Ford, Rockefeller e mais tarde os nórdicos) não se prendia apenas com o facto
de o Instituto ser constituído no formato de fundação, mas com a sua organização, sendo
obrigado a uma contabilidade transparente, para saberem exatamente em que era gasto o
dinheiro.» (Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo).

O Instituto não ficou alheio à progressiva e consistente viragem à esquerda da


FRELIMO. A Frente, ao optar pela via militar acabou a ter de procurar aliados junto dos
países do Leste, da China e dos países africanos que, desde o início, apoiavam as lutas
pela independência no continente. Esta opção, tomada em resposta à inoperância dos
países ocidentais face ao colonialismo português, foi apoiada pelo Instituto Moçambicano
que apoiava as alianças estratégicas do movimento de libertação, apesar de se financiar
junto de países e organizações não governamentais ocidentais, onde assegurava uma
reputação e estrutura legal de independência face à FRELIMO, ainda que se demonstrasse
próximo do movimento de libertação.

«O trabalho de solidariedade na Europa estava a crescer e ela participou em muitos


acontecimentos onde representou a FRELIMO.[...] [Janet Mondlane] esteve na Holanda,
na Itália, na Grã-Bretanha. Esteve na Suíça e na Alemanha Ocidental. Esteve nos países
escandinavos. E, onde quer que fosse, tinha amigos à espera e combinava o trabalho de
solidariedade com a recolha de fundos.» (Manghezi, 2001, p.321).

A opção política de viragem à esquerda ajudava a colmatar as novas e urgentes


necessidades que iam insurgindo no decorrer da guerra. Afinal, havia a necessidade de
gerir uma área equivalente a um país médio (250.000 km2) dentro de um vasto território
em guerra, dominado por Portugal, enquanto potência colonial. Mais do que as opções
políticas e ideológicas, estava em causa a sobrevivência, não só de uma reivindicação
independentista, mas sobretudo de milhares de pessoas que contavam diariamente com o
apoio do novo poder no terreno.

288
«Não havia outra solução para a falta de apoios por parte do mundo ocidental, mas
também teve a ver com uma obrigação, ainda rara na altura, de os movimentos de
libertação terem de tomar conta das zonas libertadas. O que levantou uma série de
questões em que ninguém tinha pensado... Primeiro, o objetivo era apenas a
independência, mas, no entretanto, foram confrontados com o facto de terem um vasto
território libertado e que carecia de governação. Era uma verdadeira luta das “duas linhas”.
As questões foram surgindo, e o II Congresso [da FRELIMO] foi decisivo339!» (Polly,
Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo).

Os diversos doadores do Ocidente, entre Estados e organizações políticas, religiosas


e não governamentais, encontravam-se empenhados em apoiar esta causa sob a premissa
de salvaguarda dos Direitos Humanos. Sempre dentro da sua lógica de apoio às vítimas
da guerra, através do formalmente independente Instituto Moçambicano, não colocando
em risco qualquer relação diplomática que pudessem ter com Portugal. Assim, o apoio
em géneros era tão essencial, nomeadamente quanto à disponibilização dos mais diversos
meios, físicos e humanos, e através do envio para o terreno de técnicos cooperantes.

«Eu ouvi falar da FRELIMO em 1970 através de um parasitólogo italiano que


passava todas as suas férias de verão em África – onde conheceu Marcelino dos Santos,
em Dar-es-Salaam. Posteriormente, [o parasitólogo] deslocou-se a Roma na sequência da
visita da delegação dos movimentos de libertação das colónias portuguesas ao Vaticano,
interagindo com todos eles... Pertencia ao Partido Comunista Italiano… Após a sua
temporada de verão de 1970 na Tanzânia, voltou a Itália e organizou uma conferência
onde explicou que a Frente de Libertação de Moçambique necessitava de técnicos de
saúde, e o meu irmão, que estava presente na altura, decidiu falar-me dela; eu tinha

339 O II Congresso da FRELIMO foi essencial para a reestruturação estratégica do movimento de


libertação de Moçambique. Neste congresso ficou estabelecido o alinhamento ideológico do movimento a
partir dali, refletindo-se não só no andamento da luta, mas permitindo já lançar pontos de referência para
Moçambique independente. Sobre este assunto vide: 2.4 O II Congresso e a mudança definitiva de rumo
ideológico, p. 62.
289
acabado de terminar o curso de enfermeira chefe e procurava trabalho... Aconselhou-me
esta experiência que deveria ter sido de apenas um ano… [...] O Instituto era aquele que
nos fornecia tudo... […] Não tínhamos contacto com o doadores... As visitas, mais do que
os doadores, eram os jornalistas... Mas, o Instituto era o portador de tudo o que vinha...
Recebíamos até fardos de roupa usada do Norte da Europa... Da Suécia sobretudo...
Gorros de lã, roupa com peles de animais, luvas, e as pessoas usavam... O que se
comprava era a comida [que não conseguíamos produzir em quantidade e diversidade
suficiente]...» (Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo).

A principal preocupação social e humanitária, quer da FRELIMO, quer do Instituto


Moçambicano, prendia-se com a sobrevivência diária da população a seu cargo. Apesar
de todo o esforço conjunto e do empenho geral, a autossustentabilidade das populações
não foi conseguida durante os dez anos de luta, conforme atestam os documentos
disponíveis sobre o tema ao enfatizarem regularmente as dificuldades sentidas pelas
comunidades.
Efetivamente, as machambas dos campos de acolhimento na Tanzânia não supriam
as necessidades alimentares diárias dos refugiados que delas dependiam, e, nas zonas
libertadas de Moçambique, a produção agrícola era escassa e flutuante, muito devido ao
clima, mas, sobretudo, aos avanços e recuos constantes do teatro de guerra e dos ataques
aéreos, com fogo, napalm e desfolhantes químicos, que obrigavam as populações a viver
em constante sobressalto. Contudo, sempre que as colheitas resultavam em excedentes
agrícolas, estes eram encaminhados para o comércio local ou internacional (no caso de
produtos como o caju e o amendoim, bem como algumas peças de artesanato), a fim de
encorajar um progressivo aumento de competências que permitissem uma maior
liberdade económica da população moçambicana. Assim, foram gizados vários projetos
de cooperação que visavam o incentivo do processo de troca de produtos agrícolas, mas

290
também de artesanato, entre os moçambicanos e as cooperativas indianas na Tanzânia340,
bem como a venda direta em espaços próprios da Frente341.

«Havia cooperativas de artesãos, particularmente macondes, que estavam em vários


sítios. Havia uma cooperativa que estava em Dar-es-Salaam, não me recordo do nome do
bairro. Havia outra em Tunduru, no centro piloto, e até em Nachingwea, e depois havia
aqueles que vinham do interior. Havia peças magníficas que os combatentes traziam do
interior para essa finalidade exatamente [arrecadar fundos]. Portanto, [as peças de
artesanato vendidas para o estrangeiro] não eram feitas em Bagamoyo, eram feitas por
artesãos, principalmente escultura maconde e também peças trabalhadas de marfim.»
(Elisabeth Sequeira, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo).

Não raras vezes, a população via-se no constrangimento de ter de proceder à troca


direta de produtos, fruto das dificuldades inerentes ao comércio, especialmente no que
reporta aos preços praticados342.
Os agricultores estavam sujeitos a toda uma série de dificuldades que lhes alteravam
constantemente os planos. Tinham de aguardar um tempo considerável pelos bens que
compravam, adquirindo-os em pequenas quantidades, o que elevava os preços. Esta
circunstância era ainda agravada pelo facto de os seus produtos nem sempre serem
vendidos a um preço justo, dado que a necessidade de escoamento da mercadoria
perecível se revelava mais urgente. Tudo isto obrigava a uma engenharia financeira difícil,
limitando o retorno económico.343

340 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM, 6 janeiro, 1971.
341 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
(A), Carta enviada à OXFAM, junho, 1973.
342 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Relatório narrativo submetido pela OXFAM Canadá ao Instituto Moçambicano, 13 de junho 1972.
343 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM, 6 janeiro, 1971.
291
O objetivo principal destes projetos económico-sociais consistia em responder a
duas vertentes de carácter humanitário menos urgente, mas mais ligadas ao
desenvolvimento de infraestruturas potenciadoras da autossuficiência. Por um lado,
tentava-se que os moçambicanos pudessem fornecer os seus produtos agrícolas
excedentários (arroz, milho, batata-doce, sal, abóbora, amendoim, entre outros) às
cooperativas existentes em território tanzaniano, por forma a poder adquirir outro tipo de
produtos tais como tecidos, roupa, utensílios domésticos, sabão, sal e equipamentos para
a agricultura, para a pesca e de escritório344.
Ocasionalmente as trocas podiam ser diretas entre produtores moçambicanos e
vendedores tanzanianos, ou estrangeiros a operarem naquele país. Neste caso, os produtos
preferenciais para troca direta consistiam em caju, sementes de sésamo, amendoim e
peixe seco, provenientes da província do Niassa345.
Por outro lado, era pedido aos doadores que ajudassem na construção de espaços
que permitissem o armazenamento e comércio de bens, quer maioritariamente em
território tanzaniano, quer nas zonas libertadas. Esperava-se, assim, que os
moçambicanos pudessem fazer frente às dificuldades sentidas na troca de produtos,
especialmente naqueles destinados à exportação, muito sujeitos a flutuações de
quantidade, preço e escoamento. Ao permitir a existência em stock de todos os produtos
e equipamentos necessários para a produção em grandes quantidades, encorajava-se uma
política baseada na prática de preços justos, tanto para os agricultores, como para os
fornecedores dos armazéns, com a vantagem do controlo do stock ficar sob a
responsabilidade do Instituto Moçambicano (que para o efeito indicou entre cinquenta a
setenta e cinco trabalhadores com experiência346, responsáveis por gerir toda a operação
e garantir o acesso de todos os agricultores aos produtos)347.

344 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 –
1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM, 6 janeiro, 1971.
345 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Relatório narrativo submetido pela OXFAM Canadá ao Instituto Moçambicano, 13 de junho 1972.
346 Pressupomos que fossem moçambicanos militantes da FRELIMO formados para o efeito.
347 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
292
«A necessidade prende-se com o estabelecimento de centros de trocas em
Moçambique onde os utensílios e os equipamentos agrícolas estejam aptos a ser
adquiridos pelo camponês quando este traz os seus produtos para venda. Os bens serão
comprados a intermediários na Tanzânia ao melhor preço e transportados para
Moçambique numa quantidade adequada e pronta a ser vendida. Depois da compra dos
bens pelo camponês, estes serão repostos na loja sempre que necessário, e a mercadoria
agrícola para exportação será transportada pela fronteira para venda na Tanzânia, no
momento em que se consiga obter o melhor preço.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas
DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 – 1973, Projeto submetido
pelo Instituto Moçambicano à OXFAM, 6 janeiro, 1971, p.2).

Nestes centros de comércio local moçambicanos procedia-se a uma categorização


da mercadoria em três grandes grupos: - um primeiro que englobava sabão, sal e açúcar;
um segundo respeitante a roupa, artigos domésticos, utensílios de agricultura, entre outros;
e um terceiro de pequenas utilidades como, óleo para cabelo, brincos, pulseiras, acetonas
para remoção de vernizes, entre outros. Do lucro do valor total da venda dos produtos era
retirada uma pequena percentagem para o reforço do grupo um, a acrescer ao transporte.
No entanto, a maior percentagem de investimento inicial pertencia ao grupo três, já que
esta tipologia de produtos era, à partida, mais cara348.
Os projetos de cooperação com estas características de desenvolvimento social,
pontuais no tempo e espaço, materializavam-se em programas de bolsas de estudo,
medicamentos, e na promoção da autossustentabilidade das populações através da
agricultura, do comércio, e do apoio aos transportes349.
Para o transporte geral de mercadorias usava-se desde o carrego humano, ou a força
de tração animal, nomeadamente burros, passando pelas bicicletas350. A este propósito,

1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM, 6 janeiro, 1971.


348 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
(A), Carta enviada à OXFAM, junho, 1973.
349 Idem.
350 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
293
Polly Gaster recorda as dificuldades sentidas nas zonas libertadas de Moçambique: «os
stocks foram geridos de uma forma centralizada nas províncias, não nos chegavam
pedidos isolados do centro de saúde A ou B... E o material era carregado, na sua maioria
à cabeça, pelas mulheres. Já o carrego por burros não resultou tão bem...» (Entrevista
realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo).
Contudo, apesar de os transportes serem manifestamente escassos para as
necessidades, o Instituto Moçambicano era detentor de dois carros, um camião e duas
ambulâncias que percorriam constantemente parte da Tanzânia, mas também o território
moçambicano, sob controlo da FRELIMO, acudindo a todo o trabalho solicitado pelo
Instituto, entre as zonas libertadas, os campos de educação, Dar-es-Salaam, as escolas, e
o Hospital Dr. Américo Boavida351.

«É óbvio que o nosso problema de transportes vai crescer em vez de diminuir – o


novo hospital, o orfanato, a escola de Tunduro a aumentar, o crescente número de escolas
em Moçambique a exigirem abastecimento. Assim, decidiu-se tentar construir um sistema
de transportes que possa satisfazer as necessidades de um programa que já cresceu para
lá das escassas condições existentes.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa B, documentos avulsos, Programa do Instituto Moçambicano,
outubro - dezembro 1968, janeiro – dezembro, 1969, p.17).

Dada a situação de guerra em Moçambique, e com o aumento constante das


necessidades mais básicas, o Instituto dependeu sempre do esforço dos doadores
internacionais para todas as suas valências, estando constantemente a emitir pedidos de
verbas para os mais variados fins e a fornecer relatórios para justificar os gastos das
mesmas e os novos pedidos, conseguindo, assim, obter, na medida do possível, os valores
que lhe permitiam construir um orçamento com o qual pudesse trabalhar ao longo do ano,

(A), Carta enviada à OXFAM, junho, 1973.


351 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos avulsos,
Programa do Instituto Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro – dezembro, 1969, pp.16,17.
294
particularmente após 1974, altura em que as verbas disponíveis começaram a declinar,
obrigando a um duplicar dos esforços na solicitação de apoios352.
A esmagadora maioria dos apoios era feita em espécime. As doações em dinheiro
eram transformadas com frequência pelas organizações doadoras, a pedido do próprio
Instituto, em material necessário às necessidades dos vários projetos de apoio humanitário.
Desde roupa, equipamentos, ou material médico, tudo era comprado mediante os pedidos
manifestados pelo Instituto Moçambicano e posteriormente enviado por transporte
marítimo para a Tanzânia, ao cuidado do Instituto Moçambicano, que os desalfandegava
e procedia à primeira distribuição geral.

«Eu ajudava a Janet Mondlane, na luta pela libertação nacional, na função dela que
era a de angariar fundos. Eu era sua assistente. Ela viajava para o exterior e deixava-me
uma série de tarefas para eu realizar em conjunto com outros camaradas. […] Desses
contactos que ela conseguia vinha ajuda, material não bélico: roupa, comida, de saúde...
O meu trabalho e o do meu colega consistia em localizar os contentores que vinham nos
barcos e ficavam no porto de Dar-es-Salaam. Nós tínhamos o número do navio e toda a
documentação correspondente aos contentores, depois de os localizarmos entravámos em
contacto com o governo da Tanzânia e, às vezes, com outras instituições, inclusive com a
esposa do Presidente Nyerere, Maria Nyerere, para nos ajudarem a retirar as doações que
nos eram destinadas... Às vezes era difícil, muita confusão para desalfandegar, pagar
direitos, pedir para nos ressarcirem o dinheiro pago... Toda esta parte burocrática, até o
material estar connosco, era o nosso trabalho. […] Éramos só três, não, quatro... Nós
trabalhávamos de uma manhã à outra se fosse preciso.» (Marcelina Chissano, entrevista
realizada a 18 de novembro de 2015, Maputo).

Em virtude do golpe militar verificado em Portugal a 25 de abril de 1974, e com a


consequente perspetiva internacional de que a descolonização viesse a ocorrer a breve
trecho, os países doadores, que colaboravam com a obra do Instituto Moçambicano, foram

352 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Carta de propaganda do Comité para o Moçambique livre, 18 de novembro, 1974.
295
gradualmente reduzindo o seu apoio monetário à causa, obrigando o Instituto a desdobrar-
se em contactos de forma a reverter a situação. Relembrando o aumento das
responsabilidades da FRELIMO, agora face à totalidade do território, Janet Mondlane
citava as palavras de Sharfudine Khan, apoiante da luta de libertação moçambicana junto
na América do Norte, ao «considerar a data de independência [de Moçambique] como o
início da verdadeira revolução» 353 . Fundamentava, assim, os novos pedidos de
financiamento e cooperação, alertando para o aumento das responsabilidades da Frente
no novo país.
Até à independência de Moçambique, o Instituto Moçambicano cumpriu com a sua
função, apoiando a FRELIMO numa missão assistencial que, graças ao apoio humanitário
internacional, estabeleceu, na prática, um Estado Social dentro da resistência armada,
beneficiando todos os moçambicanos sob responsabilidade da Frente, dentro de um
paradigma maior, associado ao movimento de libertação e ao nascimento do «Homem
Novo», que já preconizava o ideal social do país independente.

«Penso que teve a ver com o crescimento das atividades do Instituto. Obviamente
que as coisas ficaram mais descentralizadas, não sendo já o Instituto responsável por fazer
tudo, [mas] apenas por garantir os financiamentos para que tudo funcionasse, como no
hospital de Mtwara. Os pacientes não queriam saber de onde vinha o dinheiro, apenas
queriam os seus problemas resolvidos.» (Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de
setembro de 2015, Maputo).

353 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (A), Carta de propaganda do Comité para o Moçambique livre, 18 de novembro, 1974.
296
6.2. A Tanzânia e a OUA

O Instituto Moçambicano contou, desde o início da sua atividade, com o apoio


declarado, quer da Tanzânia, quer da Organização da União Africana (OUA)354.
Desde logo, a Tanzânia foi um dos primeiros Estados a demonstrar grande apoio às
pretensões da FRELIMO, defendendo internacionalmente a independência do território
moçambicano.
Julius Nyerere, na sua qualidade de Presidente da Tanzânia, foi um dos grandes
aliados da Frente na luta anticolonial e, posteriormente, do Estado moçambicano
independente. Como prova do seu encorajamento e cooperação, o governo tanzaniano
mandatou os seus ministros a dar todo o apoio necessário aos projetos do Instituto
Moçambicano, fornecendo-lhe inclusive o enquadramento legal necessário para as
funções assistenciais a que este desde logo se propôs, enquanto Instituto e fundação355.

«O Instituto Moçambicano recebeu o maior encorajamento e cooperação do


governo do Tanganica no desenvolvimento dos seus programas: o Presidente Nyerere
pessoalmente assegurou-se que os vários ministérios nos facultavam todo o apoio que
necessitámos para arrancar com o projeto. […] O Ministro da Educação do Governo do
Tanganica é o Presidente Honorário do Conselho de Curadores do Instituto
Moçambicano.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
A, Processo DEC 1964-1975, Relatório para o ACNUR, 27 de julho, 1964, p.2)

Para além do enorme esforço que implica, para qualquer país, o acolhimento de
refugiados de guerra, a Tanzânia ainda facultou as condições necessárias para que a
assistência concedida pelo Instituto fosse uma realidade dentro de um enquadramento de

354 A OUA, Organização da União Africana, criada em 1963, visava unir os países africanos
independentes num esforço de entreajuda contra todos os tipos de colonialismo e neocolonialismo,
apoiando simultaneamente os movimentos de libertação dos países ainda sob domínio de potências
estrangeiras.
355 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Relatório para ACNUR, 27 de julho, 1964.
297
independência institucional, nomeadamente ao nível logístico. Após ter procedido ao
assentamento de milhares de refugiados moçambicanos, cuja organização e gestão
dependia exclusivamente de organizações tanzanianas, o país permitiu à FRELIMO e ao
Instituto Moçambicano o estabelecimento de diversos campos de acolhimento,
transformados em campos de treino militar, geridos pela Frente; e em campos de
assistência e educativos, geridos pelo Instituto, fornecendo ainda o terreno para o Hospital
Dr. Américo Boavida, em regime de concessão por noventa e nove anos, com uma área
de cerca de vinte e cinco mil metros quadrados356.
Tal como todos os organismos do movimento de libertação de Moçambique, o
hospital tinha como sua exclusiva beneficiária a população moçambicana. E, apesar de se
encontrar inserido na malha urbana de Mtwara, de onde utilizava os serviços de água, gás,
eletricidade, telefone e recolha de resíduos, não se encontrava incluído nos planos de
desenvolvimento da Tanzânia para a cidade, independentemente de existirem acordos
pontuais de cooperação entre a unidade sanitária e o hospital local, quer em equipamento,
bem como em provisões de material médico357.
Na realidade, ao permitir à FRELIMO, e ao Instituto Moçambicano, a gestão
autónoma dos campos de acolhimento, nas valências de treino militar, assistencial, e
educativa, dentro do seu território, as autoridades tanzanianas apoiaram na prática a
criação e manutenção de um Estado Social sob responsabilidade do movimento de
libertação que se refletia na qualidade de vida dos refugiados moçambicanos, mas
também nas populações das zonas libertadas de Moçambique. Este facto, não só resultou
numa mais valia imediata para o desenrolar da luta, como, sobretudo, permitiu à Frente
desenhar e ensaiar estratégias de governação que viriam a ter um forte impacto no futuro
do Moçambique independente.

356 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro,1973.
357 Idem.
298
Simultânea e pontualmente, eram facultados pelo governo tanzaniano outro tipo de
apoios358, nomeadamente ao nível da educação e formação através da atribuição de bolsas
de estudo concedidas pela própria TANU 359 , bem como, pelo Serviço Cristão aos
Refugiados do Tanganica360 (TCRS), que também prestava apoio à comunidade refugiada
moçambicana (Manghezi, 2001, p. 269).
Igualmente, e sem surpresa, o Instituto ainda contava, dentro do cenário das
organizações africanas, com o alto patrocínio da OUA que, dentro das suas possibilidades,
disponibilizava verbas para os mais variados fins, desde assistência técnica, à concessão
de bolsas de estudo em universidades de países africanos, ou materiais de construção e
equipamentos para os campos de acolhimento e para as zonas libertadas361.
De grande valor era ainda a pressão diplomática que, quer a Tanzânia, quer a OUA,
exerciam junto dos organismos internacionais e países estrangeiros a favor da
reivindicação independentista da FRELIMO, focando constantemente a atenção da
comunidade internacional nas dificuldades sentidas pelo povo moçambicano362.

«Reporta esta à nossa conversa do outro dia sobre os detalhes pedidos pela agência
da UNICEF no sentido de autorizar a aquisição de materiais de construção para os campos
de Mtwara e Tunduro. Envio em anexo um extrato detalhado do projeto para uso do
levantamento das quantidades. Na esperança que tenham e continuem a tomar as medidas

358 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Conclusões de uma carta de autor desconhecido com o carimbo da Frelimo, 1974.
359 A União Nacional Africana do Tanganica (TANU), começou por ser o principal movimento de
luta pela independência do atual território da Tanzânia, tornando-se posteriormente o partido no governo
do país, desde a sua independência até à década de oitenta.
360 Esta organização religiosa tanzaniana foi fundada em 1964 pela Igreja Luterana Evangélica da
Tanzânia, em conjunto com o Conselho Cristão da Tanzânia e com a rede ecuménica global. O seu trabalho
tem vindo a ser feito no sentido de prestar apoio humanitário às comunidades mais carenciadas na Tanzânia.
361 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho da Organização da União Africana, 11 de novembro, 1974.
362 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho do Fundo para as Crianças da ONU, 2 de janeiro, 1974.
299
necessárias à rápida entrega dos materiais.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-1975 (A), Despacho da
Organização da União Africana, 11 de novembro, 1974, p.1).

A OUA, enquanto embaixadora internacional dos movimentos de libertação


africanos e parceira diplomática da FRELIMO junto da ONU, exerceu ao longo do tempo
e durante todo o processo de reivindicação da independência de Moçambique uma
pressão política constante junto das mais diversas agências internacionais. Ao focar
estrategicamente o seu raio de ação político nas agências da ONU responsáveis pelos
campos da saúde, educação, assistência social, comércio e agricultura, colocava a causa
moçambicana no âmbito da luta pelos direitos humanos, beneficiando, assim, o trabalho
do Instituto Moçambicano.

«O Ministério da Saúde, em nome do Governo da Tanzânia requereu oficialmente


assistência à OMS, ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e à UNICEF,
para o Movimento de Libertação nas suas cartas HEC. 259/111/196 de 15 de dezembro e
HEC/259/111/197 de 18 de dezembro, 1973.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-1975 (A), Despacho do Fundo
para as Crianças da ONU, 2 de janeiro, 1974, p.2).

Desta forma, garantiam-se os fundos para o apoio humanitário e, simultaneamente,


dava-se à causa moçambicana uma exposição externa e mediática muito difícil de obter
de outro modo363. Como é óbvio, o Instituto Moçambicano não podia abdicar deste tipo
de parcerias, já que elas configuravam a sua rede de suporte internacional.

363 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho do Fundo para as Crianças da ONU, 2 de janeiro, 1974
300
6.3. ONU e as suas agências: UNICEF, UNESCO, ACNUR, OMS, FAO e OIT

Numa situação de calamidade humanitária, decorrente do cenário de guerra como


a que Moçambique e os moçambicanos estavam a viver, a Organização das Nações
Unidas não podia deixar de, pelo menos, minorar o sofrimento das vítimas do conflito364
através das suas várias agências, nomeadamente a UNICEF, a UNESCO, o ACNUR, a
OMS, a FAO e a OIT365.
A otimizar o seguimento e estreitamento das relações de cooperação entre aqueles
organismos e o Instituto Moçambicano encontrava-se a anterior ligação de trabalho de
Eduardo Mondlane à ONU, o que resultava claramente da facilidade do casal Mondlane
em criar redes de apoio muitos próximas da sua causa, mesmo que para isso fizessem
valer laços de amizade pessoais a fim de desbloquearem situações mais prementes e de
maior gravidade, ainda que mantendo um relativo e compreensível secretismo sobre o
assunto366. Prova desta situação é a ligação muito próxima com o Príncipe Sadruddin Aga
Khan, Alto Comissário da ONU para os Refugiados, entre os anos de 1965 e 1977, e
amigo pessoal do casal Mondlane, que apoiou a título pessoal e com dinheiros próprios
a obra do Instituto Moçambicano, tendo pedido, no entanto, segredo pelo facto, de forma
a não comprometer a sua posição dentro da ONU:

«Não dei a conhecer a sua oferta, com exceção do Comité Executivo do Instituto
Moçambicano, tendo em conta o que falámos na sua casa de Dar-es-Salaam sobre a sua

364 A ONU apesar de ter como um dos seus princípios base o “direito à autodeterminação dos povos”
e, nesse sentido, ter por diversas vezes dado voz, em sede de Assembleia Geral, aos líderes dos movimentos
de libertação das colónias portuguesas, nunca adotou medidas contra Portugal pela sua política ultramarina,
em grande medida devido à confluência de interesses entre Portugal e os Estados Unidos da América (um
dos membros do Conselho de Segurança da Organização).
365 UNICEF: Fundo das Nações Unidas para a Infância; UNESCO: Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura; ACNUR: Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados;
OMS: Organização Mundial de Saúde; FAO: Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura; OIT: Organização Internacional do Trabalho.
366 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-
1975, Carta de agradecimento a Sua Alteza, o Príncipe Sadruddin Aga Khan, 25 de março, 1965.
301
posição enquanto Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, e ao serviço
de todos os governos. Caso fosse possível, gostaria de dar a conhecer abertamente a sua
oferta.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1964-1975, Carta de agradecimento a Sua Alteza, o Príncipe Sadruddin
Aga Khan, 25 de março, 1965, p. 1).

Esta situação também se verificaria seguramente a nível institucional fora do âmbito


da ONU, junto dos mais diversos doadores, dado que o casal, e particularmente Janet
Mondlane, se desdobrava em contactos no estrangeiro, de forma a poder captar o maior
apoio possível para a FRELIMO e para o Instituto Moçambicano. O principal objetivo
da movimentação diplomática consistia em não deixar cair no esquecimento a causa
moçambicana junto dos tradicionais doadores (Manghezi, 200, pp. 243-364).
Todas as agências da ONU vocacionadas para o apoio humanitário e o
desenvolvimento colaboravam em estreita ligação, quer com as organizações
internacionais, quer com a maioria dos países doadores367, de forma a disponibilizar ao
Instituto Moçambicano as condições necessárias à obtenção e otimização de apoios,
maioritariamente em géneros, mas também em fundos. Estes meios, uma vez na posse do
Instituto, passavam à FRELIMO que, posteriormente, os distribuía pelos campos de
refugiados, pelas zonas libertadas, e pelo Hospital Dr. Américo Boavida, abrangendo a
totalidade das suas áreas de intervenção368.
Como é compreensível, o Instituto Moçambicano contava em grande medida com
os fundos oriundos das agências pertencentes às Nações Unidas para completar o seu
orçamento anual. Estes valores configuravam não só a maioria das verbas disponíveis,
como também um fluxo de dinheiro relativamente constante que permitia desenvolver o
trabalho de forma consistente. Ainda assim, o calendário de execução orçamental
obrigava o Instituto a um processo de engenharia financeira grande, já que o

367 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 –
1973, Relatório para a ONU, ACNUR, 5 de abril, 1974.
368 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho do Fundo para as Crianças da ONU, 2 de janeiro, 1974.
302
desbloqueamento das verbas nem sempre se fazia atempadamente, sendo que, na
esmagadora maioria das vezes, a sua distribuição se realizava de forma parcelar ao longo
do ano369, obrigando a maioria dos projetos a uma construção e conclusão faseadas370.

«Em anexo encontra um orçamento detalhado do projeto da Alta Comissão das


Nações Unidas para os Refugiados Nº. RF/TAN.1/70 para o Instituto Moçambicano para
os projetos do hospital de Mtwara e para a escola primária de Tunduro. O orçamento
corresponde apenas à primeira tranche e totaliza 176,400 TZS [correspondente, mediante
ajustes à taxa de inflação atual, a 10.584.000 MZN, ou a cento e 39.569 EUR371]» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970
– 1971, Carta enviada ao Alto Comissariado para os Refugiados, 11 de agosto de 1970).

As avaliações e reavaliações 372 , dos montantes cedidos eram constantes e


obrigavam à apresentação cíclica de relatórios 373 e a um esforço permanente de
transparência contabilística374, com demonstração, não só dos montantes recebidos em
dinheiro, bem como a descrição total dos bens e materiais doados375, que podiam ser do

369 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Carta de agradecimento ao representante da ACNUR em Dar-es-Salaam, 14 de janeiro, 1972.
370 Vide: tabelas em anexo, p. 373.
371 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um câmbio atual de 300 MZN.
372 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Acordo suplementar entre o Alto Comissariado para os Refugiados e o Instituto Moçambicano, entre
23 de janeiro de 1974 e 4 de fevereiro 1974.
373 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Documento do Alto Comissariado para os Refugiados a agradecer o relatório de 5 de abril de 1974,
25 de maio de 1974.
374 Vide tabelas em anexo, pp. 364-373.
375 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970
– 1971, Carta enviada ao Alto Comissariado para os Refugiados, 11 de agosto de 1970.
303
mais variado tipo, desde produtos médicos, higiene, alimentação, roupas, a material de
escritório e escolar, ou sobre gastos em transportes e combustíveis376.
Para além das doações em dinheiro e espécime, as diversas agências da ONU
também mobilizavam recursos humanos, quer seus, quer subcontratados na Tanzânia ou
países limítrofes, no sentido de apoiar no terreno o trabalho e a gestão do projetos do
Instituto Moçambicano, tanto na área da saúde377, quanto na do ensino, nomeadamente
ao nível técnico, e com especial foco no incremento e apoio às técnicas de produção
agrícola378.
Às vésperas da revolução portuguesa, os planos desenhados pelos Instituto
Moçambicano para o futuro dos equipamentos a que dava apoio, como a escola de
Bagamoyo, continuavam a ser discutidos, com vários projetos pensados e outros a serem
executados, fruto de acordos entre o Instituto e a UNESCO, num protocolo que visava
parte das comemorações do primeiro aniversário da OMM, realizado em 1974.

«Vários organismos das Nações Unidas encontram-se atualmente envolvidas em


várias áreas com o Movimento de Libertação de Moçambique (FRELIMO), num processo
de construção nacional – UNESCO, UNICEF, FAO, ILO, OMS – e nós estamos felizes
de trabalhar com eles.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano,
caixa A, Processo DEC 1971-1974, Relatório para a ONU, UNHCR, 5 de abril de 1974,
p.1).

Ao longo do ano de 1974, e após o 25 de abril, à medida que se ia conseguindo


perceber o que o futuro traria e em que moldes, o Instituto começou a direcionar os seus

376 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974-
1975 (A), Despacho da UNICEF, 29 de janeiro, 1974.
377 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973 –
1974 (B), Carta do Instituto Moçambicano à Direção do Centro Educacional de Tunduru, 27 de junho,
1974.
378 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974
– 1975 (C), Comunicado da FRELIMO, 3 de outubro, 1974.
304
esforços para a realidade do Moçambique independente, mantendo essa postura até ao seu
encerramento em 1975.

6.4. Os EUA e Canadá

Os Estados Unidos da América foram, desde logo, os primeiros parceiros de Janet


e Eduardo Mondlane no seu esforço pela assistência humanitária junto dos refugiados
moçambicanos, muito em resultado do facto de ela ser de origem americana e de ele ter
sido professor universitário e colaborador da ONU naquele país, o que facilitou a criação
de uma rede de influência. A acrescer a esta realidade, o casal mantinha uma relação de
proximidade com as igrejas cristãs americanas, de que ele tinha sido um beneficiário
direto. Estas igrejas, bem como o seu Conselho Mundial, implantadas no continente
africano através dos seus projetos missionários, não deixaram de se identificar com a
causa nacionalista moçambicana, acarinhando a independência.
Apesar de os EUA terem mantido um discurso de apoio às descolonizações
defendidas pela ONU, nunca, com exceção da presidência Kennedy 379 , confrontaram
Portugal com as suas políticas coloniais. Contudo, também não se opuseram a que
organizações não governamentais de grande dimensão a nível nacional como as
fundações Ford, Rockefeller380 e Rowntree381 utilizassem os seus fundos para apoiar os
refugiados moçambicanos e as vítimas da guerra colonial através dos projetos
apresentados pelo Instituto Moçambicano (Manghezi, 2001, p. 224).

«Os Quakers Americanos, o Fundo Phelps-Stokes, que tinha financiado o Eduardo


quando chegou aos EU[A]. A Fundação Rockefeller e a Fundação Ford foram algumas
das maiores organizações que eles contactaram para além dos seus muitos contactos

379 John F. Kennedy foi o 35º Presidente dos EUA entre 1961 e 1963. Para aprofundar as relações
diplomáticas deste período entre os EUA e Portugal vide: Freire Antunes (2013).
380 Hélder Martins, entrevista realizada a 14 de outubro de 2015, Maputo.
381 Nyeleti Mondlane, entrevista realizada a 9 de novembro de 2015, Maputo.
305
privados. […] A Fundação Ford tinha-lhes concedido um donativo para começar a escola
[…] Em Dar estava tudo à espera dela: o Eduardo [Mondlane] tinha-lhe pedido para lhe
fornecer parte do dinheiro que tinham recolhido e comprou um Centro, onde os
refugiados/estudantes podiam viver. Isto não era coberto pelo donativo da Fundação
Ford.» (Manghezi, 2001, pp. 224- 235).

Estas grandes instituições filantrópicas dos EUA que tiveram um papel determinante
durante os primeiros anos do Instituto Moçambicano, foram progressivamente reduzindo
o seu contributo na medida em que o país ia cedendo à pressão diplomática exercida por
Portugal, refletindo a mudança estratégica ao nível da política internacional norte-
americana após a morte do Presidente Kennedy, em 1963.

«A Fundação Ford concedeu um donativo principalmente devido ao seu


relacionamento pessoal de alguns anos antes entre Frank Sutton, que era o seu
representante em Nairobi, e Eduardo [Mondlane]. [...] Até onde eu compreendo, os
portugueses ameaçaram a Ford Motor Company. [...]Embora a Administração da
Fundação fosse separada da Administração da Ford Motor Company [...] penso que para
eterna vergonha deles – não continuaram o financiamento.» (John Gerhard in Manghezi,
2001, p. 257).

Os fundos angariados junto destas organizações foram essenciais no arranque da


obra do Instituto Moçambicano, e, apesar de os pedidos serem remetidos anualmente para
cobrir a totalidade das despesas do Instituto, as verbas recebidas acabavam por ser
canalizadas para os mais variados fins: desde a construção de instalações, até às
necessidades básicas a que o Instituto e a sua obra tinham de responder diariamente na
ajuda prestada aos milhares de moçambicanos sob responsabilidade da FRELIMO.
Por sistema, a manifestação de interesse para angariação de verbas apresentada
junto dos doadores começava por apresentar formalmente o Instituto Moçambicano, a
que se seguia o relatório detalhado de todos os projetos que, ao longo do tempo, vinham
a ser lançados e apoiados pelo Instituto. Descrevia-se, assim, em pormenor a obra

306
realizada em cada um dos projetos ao longo do ano corrente, fundamentando o orçamento
descritivo para as necessidades do ano seguinte.

«Para que o esquema orçamental do Instituto Moçambicano siga a sequência


cronológica do ano escolar, com início a 1 de janeiro, 1969, o ano fiscal foi mudado do
original período de 1 de outubro - 30 de setembro para um ano fiscal que decorrerá de 1
de janeiro – 31 dezembro. […] Acreditamos que este sistema será consideravelmente mais
conveniente para os devidos efeitos contabilísticos e para a gestão de programas.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro – dezembro 1968, janeiro – dezembro 1969, p. 20).

O Instituto Moçambicano não contava apenas com o apoio destas grandes


instituições norte-americanas que, apesar de oferecerem uma preciosa ajuda aos
orçamentos anuais iniciais, foram progressivamente afastando-se do papel de grandes
doadores, criando espaço para a intervenção de outras organizações da sociedade civil,
nomeadamente as religiosas.
Graças aos contactos e vivências do casal Mondlane nos Estado Unidos da América,
foi possível criar uma verdadeira rede de apoios oriundas de sectores sociais muito
diferente, a começar pelo Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos 382 , que
apoiou primeiramente os estudos do jovem Eduardo Mondlane e que continuou, depois,
a apoiar o projeto assistencial e político do casal. O Instituto, pelo seu caráter de urgência
humanitária, enquadrava-se com facilidade em redes alargadas de ativismo social, onde
não só os adultos, mas também as crianças puderam intervir. Várias escolas norte-
americanas, cujos projetos educativos visavam a responsabilidade e solidariedade globais,
sensibilizaram os seus alunos para o drama vivido pelas crianças moçambicanas,
nomeadamente, através do apadrinhamento de projetos patrocinados pela UNICEF e pela

382 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
– 1974 (A), Projeto do Instituto Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda,
Departamento Internacional de Assistência Técnica, dezembro, 1973.
307
UNESCO. Foi, assim, possível recolher doações, canalizadas pelos meios do ACNUR,
com destino ao melhoramento da escolas do Instituto e à expansão das suas bibliotecas383.

«Agradecemos o cheque número 683251, na totalidade de 856,80 USD


[correspondente, mediante ajustes à taxa de inflação atual, a 51408 MZN, ou a 685
EUR384], que foi enviado pelas crianças das escolas do Estados Unidos para os cheques
de oferta da UNESCO para o Instituto Moçambicano. Ficámos felizes por receber este
presente porque estamos a desenvolver um grande esforço na expansão das nossas
bibliotecas destinadas às crianças de Moçambique do ensino primário e secundário.»
(AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo
DEC 1964 – 1975, Carta de agradecimento e resposta ao representante do ACNUR em
Dar-es-Salaam, 5 de julho, 1968).

Simultaneamente, o Fundo Africano 385 , pertencente ao Comité Americano para


África, foi financiando os projetos do Instituto desde 1965 (data da sua criação) até 1974,
algumas vezes em parceria com a Fundação Rubin386, ou cooperando com outras agências,
quer da ONU, quer da sociedade civil e, sobretudo, com organizações religiosas387, dando
total liberdade na utilização assistencial das verbas, desde que estes projetos não
interferissem com a política do governo português, solicitando para o efeito vários

383 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964
– 1975, Carta do representante da ACNUR em Dar-es-Salaam, 28 de junho, 1968.
384 Estes valores correspondem ao valor aproximado à época, mediante informação da enfermeira
Maria Salghetti, que fez corresponder 5 TZS a um câmbio atual de 300 MZN.
385 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Carta enviada pelo Fundo Africano ao Instituto Moçambicano, 6 de abril, 1973.
386 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Carta enviada pelo Fundo Africano ao Instituto Moçambicano, 19 de outubro, 1973.
387 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Cartas enviadas pelo Fundo Africano ao Instituto Moçambicano, 15 de janeiro, 26 de junho,
1974, 10 de setembro, 1974.
308
encontros com o Instituto Moçambicano a fim de garantir que os financiamentos
pudessem fluir sem inconveniente de maior388.

«O Fundo Africano trabalha em proximidade com outras agências, tanto nacionais,


quanto internacionais. Tem vindo a contribuir com as Nações Unidas no Fundo de Apoio
para a África Austral, e com o Fundo Internacional de Defesa e Ajuda para a África
Austral. Em programas e projetos específicos, o Fundo Africano tem coordenado bolsas
e assistência com agências que trabalham no terreno, tais como o Conselho Mundial das
Igrejas, o Conselho Nacional das Igrejas, Serviço Mundial de Igrejas, os Conselhos
Cristãos Africanos locais, agências especializadas das Nações Unidas (ACNUR,
Programas Escolares), e outras. Os fundos são angariados junto de pequenas fundações,
através de contribuições privadas, e de listas de correspondentes postais.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972
– 1974 (B), Brochura de Divulgação do Fundo Africano “Projectos do Fundo Africano:
Angola, Guiné, Moçambique”, 1973-74, p.1).

Na América do Norte, o Instituto Moçambicano contou ainda, ao longo do tempo,


com o apoio incondicional da OXFAM Canadá (confederação de organizações de apoio
internacional)389, que fez questão em auxiliar das mais diversas formas o Instituto até ao
final da guerra. Das suas doações contavam-se desde, verbas mediante relatório de
despesas390, alimentação, vestuário, material médico e cirúrgico391, treino de pessoal392,

388 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (B), Cartas enviadas pelo Fundo Africano ao Instituto Moçambicano, 10 de abril, 17 de setembro,
1974.
389 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1973, Carta de agradecimento enviada à OXFAM Canadá, junho, 1973.
390 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM Canadá, 6 de janeiro, 1971.
391 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1973, Carta enviada a Janet Mondlane pela OXFAM Canadá, junho, 1973.
392 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
309
ou mesmo material de escritório, pescas e agricultura 393 , bem como, parte do
financiamento para construção394 e bens de transporte395.

«O Instituto Moçambicano uma vez mais dirige-se à OXFAM Canadá para requerer
ajuda para o povo de Moçambique. Esta é a segunda vez que um pedido é efetuado, a
primeira vez foi em 1971, do qual resultou uma resposta favorável. Os fundos foram
usados no desenvolvimento da economia das zonas libertadas de Moçambique. O atual
pedido recai novamente no campo do comércio e da produção. A propósito dos avanços
da economia das áreas libertadas de Moçambique, deve ser feita uma menção especial à
ajuda recebida da OXFAM Canadá destinada à compra de bens essenciais... […] Estas
contribuições foram em grande parte responsáveis pelos sucessos que alcançámos durante
o ano passado.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
A, Processo DEC 1972 – 1973, Relatório descritivo submetido pela OXFAM Canadá ao
Instituto Moçambicano Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM
Canadá para a Ajuda ao Desenvolvimento, 1973-74, p.1).

A par destes apoios, o Instituto passou a contar com a crescente importância das
doações disponibilizadas por alguns Estados e organizações europeias, colmatando assim
a perda de receitas oriundas dos EUA. Este realinhamento estratégico e diplomático do
Instituto Moçambicano permitiu-lhe prosseguir e aumentar o alcance da sua obra.

1973, Carta enviada a Janet Mondlane pela OXFAM Canadá, 21 de junho, 1973.
393 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1973, Relatório descritivo submetido pela OXFAM Canadá ao Instituto Moçambicano, 13 de junho, 1972.
394 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Projeto submetido pelo Instituto Moçambicano à OXFAM Canadá, 6 janeiro, 1971.
395 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Relatório descritivo submetido pela OXFAM Canadá ao Instituto Moçambicano, 13 de junho, 1972;
AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974 – 1975 (B),
Comunicação da Scania, filial da Tanzânia, para o Instituto Moçambicano sobre a aquisição de um camião,
13 de março, 1975.
310
6.5. Os países escandinavos, a Holanda e a Suíça

Quer os países da Europa do Norte (Noruega, Suécia, Dinamarca, Finlândia e


Holanda), quer a Suíça, colaboraram ao longo do tempo com o Instituto Moçambicano,
independentemente de não poderem fazer o mesmo com a FRELIMO, por razões óbvias
dependentes das suas relações diplomáticas com Portugal.
Portugal descrevia a FRELIMO como um grupo terrorista, tornando, assim,
virtualmente impossível a ajuda direta por parte da comunidade internacional ocidental,
especialmente dos Estados membros da NATO. Contudo, apesar de o Instituto
Moçambicano não deixar de ser um “braço social” do movimento libertação de
Moçambique e portanto da guerrilha, continuava, através da capa de fundação
independente, a ser a única solução encontrada para ajudar os refugiados moçambicanos,
e apoiar, de uma forma, ainda que não declarada, as reivindicações anticoloniais e
nacionalistas de Moçambique.
Como resposta à progressiva perda de apoio das grandes organizações filantrópicas
sediadas nos EUA, Janet Mondlane viu-se obrigada a construir e solidificar redes de
solidariedade europeias, nomeadamente junto dos países liberais do norte da Europa, mais
recetivos aos movimentos anticoloniais e ao drama humanitário396.

«O Conselho Mundial das Igrejas tinha decidido [em 1964] dar 52.000 USD, que
correspondia a 2/3 do pedido de financiamento que ela [Janet Mondlane] tinha feito. Ela
tinha feito também um primeiro contacto com os suecos (o Comité para os Refugiados) e
com os holandeses (Partido Trabalhista e algumas organizações privadas) e o ACNUR
em Genebra. Tudo isto era necessário porque a Fundação Ford tinha interrompido o seu
apoio ao Instituto. [...] Os países do Leste forneceram material escolar e o British
Council397 [forneceu o apoio] para a Biblioteca. A [Agência de Informação dos Estados

396 Polly Gaster, entrevista realizada a 23 de setembro de 2015, Maputo.


397 Organização Internacional do Reino Unido para as relações culturais e oportunidades educativas.
Tendo sido fundado em 1934, abriu os primeiros centros internacionais em 1938, o que faz do British
Council a organização para as relações culturais mais antiga do mundo.
311
Unidos] USIS398 e a Fundação Friedrich Ebert399 ajudavam também mas a Janet estava
agora a trabalhar cada vez mais com os escandinavos, que estavam a dar financiamentos
volumosos.» (Manghezi, 2001, pp. 256,7-269).

Os apoios prestados pelos países escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e


Finlândia) tanto se podiam concretizar enquanto atos individuais das agências de cada
país, como ao nível da cooperação conjunta, no âmbito do Conselho Nórdico. Contudo,
sempre em estreita colaboração com as agências para o desenvolvimento pertencentes às
Nações Unidas400.

«Foi-nos pedido pela Sra. Janet R. Mondlane que vos informássemos [ao Banco
Comercial de África] que o valor de 300.000 coroas suecas foi entregue pelo Governo da
Suécia ao nosso departamento [ACNUR] em Genebra para ser transferido para as contas
do Instituto Moçambicano em Dar-es-Salaam. Pedimos telegraficamente à nossa Sede
[sede europeia da ONU, em Genebra] a 10 de novembro que expedisse esta transferência,
o que confiamos que acontecerá brevemente.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,

398 Esta agência, que operou entre 1953 e 1999, foi previamente chamada Serviços de Informação
dos Estados Unidos. O seu objetivo prendia-se com a “diplomacia pública”, isto é, com uma postura
propagandística dos EUA no estrangeiro, de forma a fazer frente à propaganda da URSS. Neste sentido,
também promovia programas culturais e educativos que apoiavam o ensino além-fronteiras.
399 Fundada em 1925 como legado político de Friedrich Ebert, primeiro Presidente
democraticamente eleito na Alemanha. Após a sua proibição em 1933, foi refundada em 1947, data a partir
da qual tem vindo a trabalhar para o entendimento e cooperação internacionais. A Fundação, diretamente
associada ao Partido Social-democrata alemão e comprometida com os valores fundamentais da democracia
social, apoia, entre muitos outros projetos, os jovens no acesso ao conhecimento.
400 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1966
– 1967, Memorando do representante da ACNUR em Dar-es-Salaam para o Alto Comissariado em Genebra,
29 de março, 1967; AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo
DEC 1970 – 1971, Carta enviada a Janet Mondlane, 1 de abril e 11 de Outubro, 1970; AHM, Arquivo
FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971 – 1974, Relatório de, para
a ONU, ACNUR, 5 de abril, 1974; AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa
A, Processo DEC 1974 – 1975 (C), Livreto finlandês sobre cooperação e desenvolvimento, S/D.
312
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1966 – 1967, Carta enviada ao Banco
Comercial de África pelo representante do ACNUR em Dar-es-Salaam, 15 de novembro,
1966).

As relações de cooperação entre os países doadores e o Instituto Moçambicano


desenrolavam-se de forma estreita e, apesar de Janet Mondlane viajar com frequência em
missão de captação de fundos 401 , as visitas de representantes dos países doadores ao
terreno não se faziam rogadas, o que servia, igualmente, como forma de publicidade, já
que permitia uma maior visibilidade da obra do Instituto Moçambicano, assim como da
causa da FRELIMO pelo direito à independência de Moçambique, e à legitimidade da sua
vontade de governar402.

«Numa reunião efetuada nas instalações do Instituto Moçambicano a 11 de junho


de 1973, o objetivo central em discussão centrava-se no esforço conjunto por parte dos
Governos Escandinavos em fornecer ajuda monetária à FRELIMO para projetos não-
militaristas [sic] da nossa organização [FRELIMO e Instituto Moçambicano]. A
FRELIMO em inúmeras ocasiões solicitou ajuda em dinheiro, bem como em espécie.
Nesse sentido, foram discutidas formas de operacionalizar os fundos monetários. Foi
declarado pelos representantes escandinavos que a ideia era sua, em nome pessoal, e não
tinha sido sugerida nem comunicada aos respetivos governos. A discussão foi puramente
exploratória.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1974, Relatório das conversações entre a FRELIMO e o Governo
Finlandês, 11 de fevereiro, 1974, p.1).

Numa fase posterior, sensivelmente a partir de 1968, os doadores ocidentais


aceitaram apoiar os projetos de desenvolvimento não militar da FRELIMO, aceitando

401 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970 –
1971, Carta enviada a B. Broguard - DANIDA, 29 de setembro, 1971.
402 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.
313
oficialmente o Instituto Moçambicano como «braço social» da Frente, assim, esta passou
a poder lançar pedidos de ajuda humanitária em nome próprio.
Em virtude desta assunção da FRELIMO enquanto entidade assistencial e
promotora de desenvolvimento por parte da maioria dos doadores, Janet Mondlane passou
a poder delegar, ainda que esporadicamente, a sua função de representação para captação
de fundos para o apoio humanitário em representantes do movimento de libertação que
se encontrassem em visita de sensibilização para a causa moçambicana, junto dos países
cooperantes com o Instituto. Já o contrário também se verificava, dado que era a Diretora
do Instituto Moçambicano quem muitas vezes representava a FRELIMO. Assim, ambas
as instituições tentavam gerir comummente os recursos existentes de uma forma eficaz,
eficiente e produtiva.
As doações auferidas pelo Instituto e pela FRELIMO estavam sempre sujeitas a
retificações decorrentes de reavaliações constantes, mediante as crescentes necessidades
dos projetos a que se destinavam 403 . Simultaneamente, a atribuição destas verbas
dependia de processos de seleção morosos e rigorosos, condicionando em muito a gestão
dos orçamentos anuais desenhados pelo Instituto Moçambicano404.

«Fomos [ACNUR] notificados pela nossa Sede de que o Governo Dinamarquês


concordou em prolongar o acordo [com o Instituto Moçambicano] até 30 de junho de
1973. O Governo Dinamarquês, contudo, insiste na necessidade de formalizar o novo
prazo para a implementação do projeto. Agradecemos que nos informem com urgência
sobre a data apontada para a submissão da nova proposta de orçamento, dado que
gostaríamos de acrescentar o acordo suplementar ao dossier de extensão do projeto e
alteração de orçamento.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto
Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-1974, Instituto Moçambicano, Carta do
representante do ACNUR em Dar-es-Salaam, 12 de março de 1973).

403 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1970-
1971, Instituto Moçambicano, Carta enviada pela DANIDA a Janet Mondlane, 1de junho, 1971.
404 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1974, Carta de agradecimento ao representante da ACNUR em Dar-es-Salaam, 14 de janeiro, 1972.
314
As doações oriundas dos países escandinavos eram concretizadas de diversas
formas 405 , quer através de montantes financeiros, que tanto podiam ser entregues ao
Instituto Moçambicano, como podiam ser enviados diretamente aos fornecedores dos
bens solicitados 406 , quer, na sua esmagadora maioria, através da entrega de géneros
materiais de vária espécie: alimentação, vestuário, material médico, ou equipamentos.

«Para além do nosso próprio tremendo esforço, os nossos amigos além-fronteiras


têm vindo a dar o seu contributo para o nosso sucesso. Nós de facto dependemos da ajuda
de vários governos e muitas organizações no suporte de programas de saúde, educação,
produção e comércio, e segurança social. Honestamente esperamos que o Governo da
Finlândia se junte ao crescente número de nações que nos fazem chegar diretamente ajuda
material. A atual proposta presente ao Governo da Finlândia está ligada ao sector da saúde,
e diretamente com o Hospital da FRELIMO…» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974, Pedido da FRELIMO ao governo
Finlandês, janeiro de 1974, p.1,2).

Como já foi referido, para além do apoio dado pelo bloco dos países escandinavos,
cada país, per se, colaborava com a causa moçambicana, através das suas agências
nacionais que apoiavam projetos humanitários específicos.
Pela sua parte, a Noruega respondeu às solicitações do movimento de libertação
moçambicano através de apoio financeiro e doações em géneros 407 . Contudo, a sua
estratégia humanitária não se resumia ao apoio estatal, mas também englobava a
sociedade civil, nomeadamente ao nível da educação. Desde cedo, crianças e jovens
norueguesas eram integrados em projetos que visavam a formação para uma cidadania

405 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974,
Relatório sumário entre a FRELIMO e o representante dos Governos Escandinavos na Tanzânia, 11 de
junho, 1973.
406 Idem.
407 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1973, Carta enviada a Frantzen – Real Consulado da Noruega, 15 de novembro, 1973.
315
ativa, cooperante e solidária através dos programas educativos das escolas do país, cujos
alunos chegavam a escolher onde aplicar os valores monetários oferecidos408.

«Queridos amigos da União dos Estudantes das Escolas Secundárias […] em março
passado quando discutimos [numa reunião conjunta entre o Instituto Moçambicano e a
FRELIMO] aturadamente onde os fundos da campanha deviam ser usados, ficou decidido
que os fundos dos estudantes Noruegueses deviam ir para algo muito concreto e
selecionou-se o apoio à construção da nossa escola secundária em Bagamoyo. […] Uma
vez que a vossa campanha apenas se realizou em setembro de 1972, disseram-nos que os
fundos só estariam disponíveis em março de 1973. Espero que a campanha tenha corrido
bem. […] Anexo um relatório dos fundos utilizados para vossa informação.» (AHM,
Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano à União dos Estudantes das Escolas
Secundárias Norueguesas, 8 de fevereiro, 1973).

Em toda esta dinâmica entre entidades cooperantes e beneficiários, era essencial


que o Instituto Moçambicano justificasse o trabalho realizado por si, não só com relatórios,
mas também com recurso a fotografias409 e filmes410 que cumpriam uma dupla função: a
justificação dos valores recebidos e uma sensibilização contínua para a causa
moçambicana, potenciando a recolha de doações411 através de verdadeiras operações de
marketing. Contudo, apesar da exigência na observação de um conjunto de regras rígidas,

408 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pela Operação Workday [Operasjon Dagsverk] ao Instituto Moçambicano, 20 de
fevereiro, 1974.
409 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972
– 1973, Carta enviada a Janet Mondlane pelo Comité Especial Norueguês para a ajuda de 70 refugiados
da África do Sul, S/D.
410 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pelo Instituto Moçambicano a H. Heivik, 12 de agosto, 1971.
411 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971-
1973, Carta enviada pela Operasjon Dagsverk ao Instituto Moçambicano, 12 de março, 1971.
316
era permitido ao Instituto que mantivesse a sua liberdade na escolha do destino a dar às
doações, desde que este cumprisse os requisitos humanitários finais e de desenvolvimento,
e não militares.

«Tal como foi discutido na nossa reunião [entre a FRELIMO, o Instituto


Moçambicano e os representantes do Real Consulado Norueguês], a nossa organização
[o movimento de libertação] entende que a ajuda que tem sido prestada à FRELIMO, sob
novos moldes, tem tido um maior significado e alcance político do que tinha nos anos
anteriores. Simultaneamente, entendemos que a ajuda prestada é para ser usada em
projetos não militares e respeitamos essas restrições. A bem da mútua cooperação
esperamos que este apoio em particular seja utilizado de forma a encorajar a população
Norueguesa a entender a luta pela libertação do povo Moçambicano, mas também a
estabelecer princípios de trabalho flexíveis que melhor respondam aos interesses do nosso
povo.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1972 – 1973, Carta enviada a Olav Myklebust e Frantzen – Real
Consulado da Noruega, 25 de junho, 1973).

A Suécia, através da Agência Sueca para a Cooperação e Desenvolvimento (SIDA),


empenhou-se politicamente num apoio ativo à missão do Instituto Moçambicano,
procedendo a inúmeras doações412 e patrocinando o desenvolvimento dos projetos deste,
desde o seu início413, até ao seu encerramento em 1975414.

412 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974
– 1975 (C), Nota enviada ao Instituto Moçambicano pelo hospital Dr. Américo Boavida, 6 de outubro, 1972.
413 AHM, Arquivo FRELIMO, Caixa e Pasta sem cota, Presidência, 1963-68, Correspondência
trocada com individualidades e instituições na Europa, Relatório do Instituto Moçambicano por ocasião
do seu 2º aniversário, 1 de setembro, 1965.
414 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1972-
1974 (A), Nota de pedido e despesa enviada pelo Departamento Político e Comércio da FRELIMO, 5 de
janeiro, 1974.
317
«Depois desta experiência [retenção de material doado na alfândega tanzaniana,
originando uma soma avultada em taxas], sugiro que no futuro o sistema de envio direto
das guias de remessa da Europa para o Instituto Moçambicano continue como
anteriormente, ou em alternativa, se forem enviadas para a SIDA em Dar [Embaixada da
Suécia em Dar-es-Salaam], que sejam entregues por mensageiro ao Instituto, e que neste
caso a pessoa autorizada pelo Instituto possa receber a documentação. Estas medidas
poderão ajudar a minimizar as ocorrências deste tipo de situações dispendiosas. […] Em
conclusão, devo notar que os sapatos [doados] foram já transportados para o Sul [sul da
Tanzânia e zonas libertadas de Moçambique] para serem distribuídos. Gostaríamos de vos
agradecer os presentes extra que nos vão ser tão úteis.» (AHM, Arquivo FRELIMO,
Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1974 – 1975 (C), Carta
enviada pelo Instituto Moçambicano à SIDA, Suécia, 10 de agosto, 1972, p.2).

A Dinamarca começou a apoiar a ação humanitária da FRELIMO ainda na década


de 60. Contudo, o apoio estatal deste país foi sendo gradual ao longo do tempo, e, a partir
de 1971, o Instituto Moçambicano fazia notar, em relatório ao ACNUR 415, um maior
envolvimento daquele na questão moçambicana, cujo aumento do volume de ajudas
representava para a FRELIMO uma posição clara de apoio à causa da independência de
Moçambique.

«Os fundos concedidos pelo Governo Dinamarquês através do ACNUR foram


sendo utilizados ao longo de um grande período de tempo e muitas mudanças tiveram
lugar desde a receção dos primeiros fundos. Várias agências das Nações Unidas estão
agora envolvidas num projeto ou noutro com a Frente de Libertação de Moçambique
(FRELIMO) no processo de construção de uma Nação […] O Governo da Dinamarca foi
progressivamente marcando uma posição política na ajuda ao movimento de libertação
em 1971, e os fundos que se seguiram deram um contributo considerável na continuação
da luta pela liberdade.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano,

415 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Relatório enviado ao ACNUR, ONU, 5 de abril, 1974.
318
caixa A, Processo DEC 1971 – 1973, Relatório enviado ao ACNUR, ONU, 5 de abril,
1974, p.1).

Apesar de tudo, as negociações mantidas entre a sua Agência Governamental para


a Cooperação e Desenvolvimento Dinamarquesa (DANIDA) e o Instituto Moçambicano
foram-se desenrolando com um considerável grau de complexidade, ao ponto de os
fundos doados nunca terem sido diretamente canalizados para o Instituto, mas sempre
através de uma terceira entidade de apoio humanitário e ao desenvolvimento416.
Já a Finlândia, para além de endossar o seu apoio enquanto Estado, também
participava em parceria e cooperação nos projetos escandinavos e nos projetos no âmbito
das agências da ONU. A complementar este apoio estatal, o Instituto Moçambicano
também podia contar ainda com as doações de organizações da sociedade civil finlandesa.

«Por iniciativa do Comité para os Festivais Finlandeses, a Rádio Melody da


Emissora de Radiofusão Finlandesa organizou uma angariação de fundos para as frentes
de libertação das colónias Portuguesas. Esta angariação é gerida pela Cruz Vermelha
Finlandesa [sic]. A vossa [FRELIMO] parte do dinheiro angariado atinge cerca de 8.600
marcos Finlandeses (2.340 dólares americanos), que vos serão enviados da Finlândia na
forma de medicamentos, ou material médico.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-1975 (A), Carta enviada à
FRELIMO por Matti Railio, Comité para os Festivais Filandeses, 2 de setembro, 1973).

A Holanda também cooperou com a obra do Instituto Moçambicano, quer através


de programas de ajuda específicos, quer atribuindo bolsas de estudo destinadas a
estudantes africanos417, nomeadamente através dos projetos humanitários apoiados pela

416 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
– 1975 (B), Relatório Interno da FRELIMO sobre os Fundos da Dinamarca, S/D.
417 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
– 1975 (B), Relatório Interno da FRELIMO sobre os Fundos da Dinamarca, S/D.
319
OXFAM NOVIB (organização internacional que continua, atualmente, a ter
representação na Holanda).418
Também as organizações da sociedade civil holandesa419 tiveram um peso enorme
nas doações dirigidas ao Instituto, e, de todas as organizações cooperantes, houve uma
que se destacou em todo o processo: a Fundação Eduardo Mondlane420.
Esta instituição, sediada na Holanda, foi fundada em 1969, por funcionários das
várias agências governamentais ligadas ao Ministério para o Desenvolvimento e
Cooperação daquele país, como reação à morte de Eduardo Mondlane. Os seus objetivos
prendiam-se com a luta pela independência das colónias portuguesas e o seu trabalho
consistia em fazer pressão pela causa nacionalista, particularmente pela independência de
Moçambique. Inicialmente, a fundação desenvolveu o seu trabalho junto dos movimentos
de libertação das colónias portuguesas, passando depois a colaborar com os países recém-
independentes, até ao seu encerramento em 1997.
Até 1975, a Fundação Dr. Eduardo Mondlane, funcionou como uma espécie de
embaixadora da causa na Europa, desempenhando simultaneamente o papel de
angariadora de fundos e doações estatais e civis, bem como, o de agitar consciências e
angariar simpatias para o drama moçambicano. O seu trabalho junto da sociedade
holandesa foi fundamental, gerando uma onda de solidariedade social com um amplo
alcance temporal e espacial junto das mais diversas instituições do país: desde
organizações pertencentes às várias confissões religiosas do país; até instituições

418 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Carta para a Fundação Dr. Eduardo Mondlane, 17 de dezembro, 1973; AHM, Arquivo FRELIMO,
Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Projeto do Instituto
Moçambicano entregue ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda, Departamento Internacional
de Assistência Técnica, dezembro, 1973.
419 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular de informação interna para a FRELIMO da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, S/D.
420 Arquivo da Fundação Eduardo Mondlane disponível in
https://socialhistory.org/en/collections/eduardo-mondlane-foundation, acesso a 30 de outubro, 2016.
320
educativas421, envolvendo várias escolas secundárias do país; bem como organizações de
solidariedade social com cariz laico; e mesmo junto de vários órgãos de informação.

«A Fundação [Dr. Eduardo] Mondlane recebe muitos pedidos de escolas


secundárias da Holanda que desejam apadrinhar uma escola de um dos movimentos de
libertação. Querem doar material e suporte financeiro para a escola apadrinhada e
pretendem divulgar na Holanda informação sobre a guerra nas colónias portuguesas e
sobre as relações entre Portugal - Nato - EEC [Comunidade Económica Europeia]. A
Fundação Eduardo Mondlane pretende integrar estas solicitações num projeto escolar. A
Fundação Eduardo Mondlane estimulará e coordenará o projeto...» (AHM, Arquivo
FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A),
Carta enviada por Wil van Til, Fundação Dr. Eduardo Mondlane, ao Instituto
Moçambicano, S/D).

Entre as várias organizações da sociedade civil a quem foram pedidos apoios e


cooperação ao longo da luta de libertação, podem-se elencar as seguintes: - o movimento
X-Y422, de alinhamento político de esquerda, suportava financeiramente os movimentos
de libertação de forma incondicional, tendo ajudado o Comité de Angola423 e a Fundação
Dr. Eduardo Mondlane; - a campanha quaresmal dos bispos católicos holandeses,
Yestemaktic, que financiava pequenos projetos; - a ajuda ecuménica a igrejas e a
refugiados, de cariz protestante, que pagava os salários de dois professores em Bagamoyo,
com possibilidade de estender o seu apoio à agricultura e ajuda médica; - a Mensen in
Nood, grupo de ajuda católica a pessoas necessitadas, pertencentes à rede da Caritas

421 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, 10 de abril, 1974.
422A Fundação para o Movimento X-Y desenvolvia os seus esforços na luta contra o apartheid sul-
africano, e contra a política colonial de Portugal, junto da comunidade holandesa.
423 O Comité de Angola surge no âmbito da luta contra o apartheid sul-africano e contra a política
colonial de Portugal. Apesar de ser ativo na angariação de fundos, nunca conseguiu a expressão política da
Fundação Dr. Eduardo Mondlane.
321
Internacional, pagavam um salário a um professor holandês em Bagamoyo e ofereciam
ajuda em géneros na ocorrência de calamidades; - a sede geral dos diáconos e os seus
departamentos para a ajuda internacional protestante, que trabalhava com a ajuda
ecuménica a igrejas e a refugiados; - o programa de rádio protestante Wild Geese, que
esporadicamente oferecia pequenas somas de dinheiro, recolhidas em campanhas de
angariação de fundos, junto dos ouvintes, para ajuda humanitária; - a título excecional
também se poderiam recolher receitas através da emissão de selos infantis; - a MEMISA,
Missão Católica de Ajuda Médica, com acesso a grandes fundos; - a EMMAUS Países
Baixos, movimento solidário católico que ajudava em fundos e géneros424.
Todas estas organizações se encontravam ligadas a três grandes grupos de trabalho
para programas de auxílio que prestavam ajuda financeira e material: OXFAM NOVIB
(fundação holandesa protestante afiliada da OXFAM internacional), CEBEMO
(organização católica de cofinanciamento para programas de desenvolvimento) e ICCO
(organização ecuménica para o desenvolvimento e cooperação, um grupo laico), que
complementavam os seus orçamentos com uma percentagem de verbas
governamentais425.
A rede de contactos e cooperação da Fundação Dr. Eduardo Mondlane junto das
organizações de cariz religioso atingiu uma maturidade tal que chegou mesmo a transpor
fronteiras encontrando aliados no seio das confissões religiosas de vários países da
Europa Ocidental, bem como das organizações de ajuda humanitária correlacionadas,
com um maior impacto ao nível do apoio social426.
Por fim, a Suíça, país neutral por tradição, também acabou por desempenhar um
papel importante nas estratégias de cooperação do Instituto Moçambicano. Aqui,
localizava-se a sede europeia da ONU, mas também a delegação suíça da OXFAM
NOBIV, de quem o Instituto Moçambicano era beneficiário. Contudo, a principal razão

424 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular de informação interna para a FRELIMO da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, S/D.
425 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular de informação interna para a FRELIMO da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, S/D.
426 Idem.
322
que fazia da Suíça um dos países de referência para o movimento de libertação
moçambicano prendia-se particularmente com os laços de amizade e cooperação entre o
Instituto, a FRELIMO, e os grupos missionários protestantes deste país alpino427.

«Os diferentes “Grupos Terceiro Mundo” na Suíça realizaram este ano uma ação
nacional sob o mote “Liberdade para África”. Organizámos uma campanha de informação
de apoio à luta da população oprimida da África Austral, particularmente os movimentos
de libertação nas colónias Portuguesas.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC,
Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A), Carta do Grupo
Terceiro Mundo enviada ao Instituto Moçambicano, 14 de novembro, 1973).

Como já foi referido, as relações bilaterais entre as confissões religiosas


protestantes e o movimento de libertação moçambicano foram não só cimentadas pelo
trabalho missionário suíço, mas também pela história e influência de Eduardo Mondlane
na missão suíça em Moçambique (Manghezi, 2001, pp.153-210).
Enquanto país de acolhimento de diversas sedes de movimentos internacionais de
ajuda humanitária como a Terre des Hommes 428, ou de grandes organizações como o
Comité Mundial das Igrejas429, a Suíça tornou-se um dos principais países na Europa a
acolher o projeto do Instituto Moçambicano e a sua Presidente, Janet Mondlane.

427 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973-
1974 (B), Carta do Departamento de Missionários das Igrejas Protestantes da Suíça ao Instituto
Moçambicano, 11 de junho, 1974.
428 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular de informação interna para a FRELIMO, da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, S/D.
429 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1971
– 1973, Carta enviada à OXFAM Canada, junho 1973.
323
6.6. Os países socialistas

Com a viragem da FRELIMO aos ideais políticos perfilhados pela esquerda e


graças às relações bilaterais entre a Frente, os países do Leste da Europa, e o Governo
Chinês, o Instituto também acabou por recolher apoios junto destes países, criando uma
rede de apoio humanitário que se estendia da Europa à China, ainda que os países em
questão colaborassem mais diretamente, e de forma regular, com a FRELIMO.
Apesar de a maior parte das doações com que o Instituto Moçambicano contava nos
seus orçamentos anuais ser resultado das relações deste com as agências de ajuda
humanitária e de desenvolvimento da ONU, bem como com organizações religiosas,
laicas, ou governamentais, de países ocidentais, o apoio prestado pelos governos e
organizações do chamado bloco de Leste e da China não eram, de todo, despiciendas430.
Ao longo dos anos, o Instituto pôde contar com algumas verbas, mas sobretudo com
o envio de meios humanos que colmatavam a sua carência ao nível dos quadros técnicos,
bem como de bens de primeira necessidade, meios de transporte, e uma grande quantidade
de medicamentos e restante material médico431.

«Considerando o trabalho que a família Slavov realizou no nosso meio para o


desenvolvimento da nossa Luta na frente sanitária, achamos que devemos ter uma
despedida solene mostrando assim a gratidão e satisfação. Também aproveitaremos da
mesma ocasião para recebermos os novos médicos, que chegarão para substituir a família
Slavov.» (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A,
Processo DEC 1973 – 1974 (B), Carta enviada por Samuel Dhlakama, Diretor dos
Serviços de saúde da Frelimo, ao Instituto Moçambicano, 29 de junho, 1974.)

Revestiam-se de igual importância os apoios que permitiam conceder bolsas de


estudo aos estudantes enviados pelo Instituto Moçambicano para as escolas e

430 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.


431 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Relação de material
a receber no ano de 1973, S/D.
324
universidades dos países do Leste da Europa, permitindo assim a formação de quadros
tão necessários à resistência e ao futuro de Moçambique432.

6.7. Outros países

Para além dos aqui elencados, outros países houve que apoiaram o esforço
humanitário do Instituto Moçambicano.
Desde logo, no Reino Unido, o Comité para a Libertação de Moçambique, Angola
e Guiné (MAGIC) ocupou-se de uma série de tarefas importantes para a visibilidade e
defesa da causa moçambicana. Angariou fundos e géneros de todo o tipo para doação,
inclusive produtos médicos 433 , preparou conferências e coordenou projetos com o
objetivo de ajudar os movimentos de libertação das colónias portuguesas a encontrarem
uma estratégia de luta conjunta, mantendo sempre um trabalho permanente na retaguarda,
visando a sensibilização da opinião pública e dos media através de ações de campanha
que defendiam a descolonização dos territórios ultramarinos sob a custódia de Portugal434.

«Esta carta refere-se às propostas para uma Conferência dos Grupos de Apoio e
Solidariedade com a FRELIMO, MPLA e PAIGC a ter lugar durante a Páscoa de 1974
em Inglaterra. Apesar de, no ano passado, não termos tido uma resposta escrita de um
terço dos grupos (conforme solicitado na nossa carta). Tendo em atenção outros contactos
que tivemos com vários grupos, sentimos que existem bases para uma reunião bem-
sucedida em 1974. Pelo que estamos prontos a realizá-la em Inglaterra como tínhamos
previamente concordado». (AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto

432 Sequeira, Elisabeth, entrevista realizada a 19 de novembro de 2015, Maputo.


433 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
(A), Carta enviada a Polly Gaster, por Janet Mondlane, 5 de dezembro, 1973.
434 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973
(A), Carta do Comité para a Liberdade em Moçambique, Angola e Guiné, 11 de dezembro, 1973.
325
Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1973 (A), Carta do Comité para a Liberdade em
Moçambique, Angola e Guiné, 11 de dezembro, 1973, p.1).

Também as associações internacionais de ajuda humanitária com cariz cristão de


países como a França, Bélgica, ou a Alemanha Ocidental435 deram o seu contributo para
a obra do Instituto Moçambicano, conforme é confirmado pela correspondência interna
entre a Fundação Dr. Eduardo Mondlane e o Instituto Moçambicano: «em quase todos os
países da Europa Ocidental existem Campanhas Quaresmais de Bispos. Alemanha, […]
Bélgica, […] França. […] Têm à sua disposição fundos avultados». (AHM, Arquivo
FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-1974 (A),
Circular de informação interna para a FRELIMO, da Fundação Dr. Eduardo Mondlane,
S/D, p.3)
Já em relação a Itália, encontramos, não só a solidariedade de organizações políticas
e de ajuda humanitária, como uma rede de relações institucionais bilaterais que visavam
um apoio direto e imediato, sendo o caso mais flagrante o hospital de Reggio Emilia. Esta
instituição, que colaborou com o hospital Dr. Américo Boavida através do Instituto
Moçambicano, não só enviou doações de equipamento e material médico, como também
quadros clínicos voluntários que colaboravam ativamente e formavam técnicos no
terreno 436 . Simultaneamente, recebeu nas suas instalações bolseiros moçambicanos,
prestando-lhes formação em várias especialidades médicas.

«Em resposta à carta do camarada G. Soncini, Presidente do Arci[s]pedale S. Maria


Nuova, Reggio – Emilia, Itália, em que se pede a lista de alguns candidatos a curso de
saúde. Propomos os seguintes 7 nomes, juntamente os cursos que se deseja que tirem.»
(AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo
DEC 1973 – 1974 (B), Carta do Departamento de Saúde da FRELIMO ao Departamento
das Relações Exteriores da FRELIMO, 26 de junho, 1974).

435 AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processos DEC 1973-
1974 (A), Circular de informação interna p/ FRELIMO, da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, S/D.
436 Maria Salghetti, entrevista realizada a 20 de outubro de 2015, Maputo.
326
De facto, ao longo de uma década de guerra entre Portugal e as forças da FRELIMO,
o Instituto Moçambicano soube fomentar e manter uma onda de solidariedade alargada
para com as vítimas do conflito, estivessem estas refugiadas na Tanzânia ou vivessem nas
zonas que iam sendo paulatinamente libertadas do domínio colonial, permitindo, no limite,
a sobrevivência da população.
O trabalho desenvolvido mostra-se mais impressionante se se tiver em conta que a
esmagadora maioria das verbas e bens doados que o Instituto angariava advinham de uma
rede de cooperação estabelecida com países interessados em manter boas relações
diplomáticas com Portugal, obrigando-os a encontrar uma solução que passava pela
intermediação de associações diversas e de instituições internacionais por forma a
contornar a pressão diplomática portuguesa. As redes de solidariedade transnacional,
criadas e mantidas ao longo de anos pelo Instituto Moçambicano, só foram possíveis
graças, não só à gestão permanente da noção de causa justa, mas sobretudo ao «jogo de
cintura» que o Instituto soube demonstrar em todo o processo da luta pela independência
de Moçambique.

327
Conclusão
Moçambique foi palco, ao longo do século XX, de vários episódios de contestação
ao domínio colonial saídos de diversos setores da sociedade moçambicana. Paralelamente
à contestação, foram sendo criados alguns núcleos de influência, dentro e fora das
fronteiras, que vieram a desempenhar um papel fundamental na contestação política e
social da colónia. De entre eles, o Núcleo de Estudantes do Ensino Secundário de
Moçambique (NESAM), de onde viriam a sair alguns dos líderes mais importantes da
Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), bem como, a criação inicial de vários
movimentos nacionalistas pela independência de Moçambique, a União Democrática
Nacional de Moçambique (UDENAMO), a Mozambican African National Union
(MANU), e a União Nacional Africana de Moçambique Independente (UNAMI),
fundados em países limítrofes por emigrantes e refugiados moçambicanos, tornaram-se
de capital importância para a tomada de consciência contra a política colonial preconizada
por Portugal.
Por seu turno, na metrópole, a Casa dos Estudantes do Império, fundada por
iniciativa do Estado colonial como uma residência de estudantes, cujo objetivo visava
também manter sob controlo os jovens africanos ali alojados, acabou por funcionar, à
revelia do que era suposto, como um meio de divulgação das ideias nacionalistas, com
alguns dos mais destacados líderes dos movimentos de libertação das colónias
portuguesas a passarem por ali antes de seguirem para o exílio.
A confluência de ideias e ideais nacionalistas e independentistas dos jovens
estudantes africanos a viverem na metrópole, na sua maioria militantes, ou simpatizantes
dos vários movimentos de libertação das colónias portuguesas, posteriormente obrigados
ao exílio político, foi determinante na construção de uma consciência política coletiva e
na adoção de uma ação concertada na luta anticolonial. A Conferência das Organizações
Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP), resultado dessa união, acabou por ser
determinante no esforço de luta contra o colonialismo, permitindo uma grande
visibilidade internacional da causa e a colaboração interna de todos os envolvidos.
A consciência social e política de contestação popular contra o poder colonial em
Moçambique viria ainda a ser galvanizada por episódios de particular violência contra a
328
população, como o massacre de Mueda, em 1960, que acabou a funcionar como
catalisador da resistência organizada e promotor das ideias nacionalistas.
Da união dos três movimentos políticos pró-independência de Moçambique,
UDENAMO, MANU e UNAMI, surgiu, em 1962, uma frente unida de contestação e luta
anticolonial, a FRELIMO, presidida por Eduardo Mondlane, com o apoio declarado do
então Presidente do Tanganica, Julius Nyerere, e o reconhecimento da Organização da
Unidade Africana (OUA).
Em resultado do estabelecimento da sede da FRELIMO em Dar-es-Salaam,
tornaram-se cada vez mais visíveis as dificuldades com que se deparava o crescente
número de refugiados moçambicanos que procuravam asilo no sul do território que viria
dar origem à Tanzânia. Esta situação dramática que, já em 1962, afetava cerca de
cinquenta mil pessoas deslocadas, segundo números do Ministério do Interior do governo
do Tanganica, era encarada com preocupação dado que, naturalmente, tinha tendência a
aumentar, tal como se veio a verificar, especialmente após o início da declaração de guerra
do movimento de libertação contra Portugal, em 1964.
Como resposta a esta situação humanitária e, simultaneamente, com o surgimento
da FRELIMO, o casal Janet e Eduardo Mondlane moveu esforços no sentido de,
inicialmente, criar uma rede de suporte para os jovens refugiados moçambicanos,
interessados em prosseguir os estudos que tinham sido obrigados a interromper com a
saída de Moçambique, tendo já em vista a formação de quadros para o apoio à luta pela
independência.
Assim, em 1963, era formalmente fundado, em Dar-es-Salaam, o Instituto
Moçambicano, sob a direção de Janet Rae Mondlane, com o apoio internacional do
Instituto Afro-Americano e da sua escola, o Centro Internacional de Kurasini (KIEC),
subsidiário de fundos norte-americanos e de um projeto de voluntariado desenvolvido
pelos alunos de Harvard. Inicialmente, o projeto foi pensado no sentido de estabelecer
uma parceria com o KIEC que se disponibilizava a permitir aos jovens moçambicanos
com instrução primária prosseguirem os seus estudos, sendo que o Instituto se
responsabilizava por lhes providenciar um local de alojamento, cuja construção era
financiada através de fundos angariados junto de fundações de apoio humanitário e para

329
o desenvolvimento, como as Fundações norte-americanas Ford e Rockefeller.
Contudo, os fundos e o restante apoio humanitário foram, desde logo,
condicionados pelas próprias organizações doadoras que não se queriam ver envolvidas
em conflitos diplomáticos entre o seu país de origem e Portugal, obrigando a que o
Instituto Moçambicano se apresentasse como uma organização com personalidade
jurídica independente da FRELIMO. Face a esta exigência, o Instituto foi legalmente
constituído como uma fundação independente de ajuda humanitária, com obrigatoriedade
de prestação de contas e um conselho de administração onde se encontravam presentes
elementos externos ao movimento de libertação, nomeadamente representantes do país
de acolhimento.
Prevendo-se um aumento do fluxo de refugiados, bem como das suas necessidades
mais básicas, foi permitido ao Instituto, desde logo, através do âmbito alargado dos seus
estatutos, a possibilidade de abrir todo um leque de competências que iam para além do
mero acolhimento, ou do ensino de jovens estudantes, focando-se também na ajuda
humanitária dos moçambicanos vítimas do colonialismo.
Apesar desta independência formal relativa à FRELIMO, o Instituto Moçambicano
fazia parte do movimento de libertação, com quem colaborava, na realidade, como um
dos seus órgãos internos, estando representado nas suas reuniões ao mais alto nível e
discutindo os seus projetos e o seu enquadramento no âmbito das necessidades da Frente.
Excetuando os voluntários e funcionários estrangeiros que colaboravam com o Instituto
e a comunidade infantil que posteriormente veio a ser apoiada, todos os trabalhadores e
beneficiários do Instituto Moçambicano eram militantes da FRELIMO, não sendo de
estranhar por isso que este funcionasse, de facto, como o seu braço de ação social por
excelência, permitindo-lhe captar fundos que, de outra forma, nunca seriam atribuídos a
um movimento armado.
Apesar da parceria educativa com o KIEC, rapidamente o Instituto Moçambicano
se apercebeu das dificuldades dos jovens em acompanhar o programa curricular daquela
escola, pelo que optou por fornecer uma opção intermédia, construindo uma escola-
internato, de forma a poder apoiar a esmagadora maioria dos alunos moçambicanos que
não se encontravam ao mesmo nível de formação dos seus colegas tanzanianos. Este

330
espaço, longe de se limitar a um recinto escolar, foi pensado para responder a um leque
mais vasto de solicitações, permitindo, não só o alargamento ao ensino técnico, como
também criando as condições necessárias para a expansão das competências do Instituto
naquelas que viriam as suas diversas áreas de ação humanitária, como plataforma na
logística de que o Instituto se servia, e nas metodologias de apoio que utilizava. Assim, o
Instituto Moçambicano cumpria os objetivos patentes nos seus estatutos, permitindo uma
mobilização alargada de recursos para apoio aos refugiados, para além do ensino, e
abrindo, simultaneamente, desta forma, espaço para todas as atividades complementares
que permitiam a execução dos objetivos da política de apoio social da FRELIMO.
Ao longo do tempo, a responsabilidade do Instituto Moçambicano estendeu-se a
todo um projeto de cariz social mais alargado, dando instrumentos à FRELIMO para se
organizar no espaço físico e social em território tanzaniano e moçambicano, construindo
um verdadeiro proto-Estado, o que lhe permitiu, não só demonstrar internacionalmente a
legitimidade política do movimento de libertação e a sua efetiva capacidade para governar
Moçambique no pós independência, mas, sobretudo, ensaiar estratégias de governação
que se adaptassem ao país independente.
Do vário apoio disponibilizado à FRELIMO pela Tanzânia, um dos mais
importantes foi a concessão ao movimento de libertação de terrenos que permitiram a
instalação de bases de treino militar relativamente perto da fronteira com Moçambique,
dando condições à Frente, não só para o treino dos seus militares, bem como permitindo
uma base de apoio aos ataques contra as forças portuguesas. Destas bases militares,
algumas, nomeadamente as situadas nas localidades tanzanianas de Bagamoyo, Tunduro,
Mbeya, Rutamba, Songea, Kianga e Mtwara, acabaram por ser destinadas à instalação de
campos de acolhimento e educação de refugiados, mudando-lhes o seu objeto e
permitindo, através dos programas de educação e saúde aí desenvolvidos, levar a cabo
uma verdadeira política social vocacionada para o desenvolvimento da população
moçambicana, em parceria com o Instituto Moçambicano que funcionava como o gestor
operacional destes programas, garantindo-lhes fundos e doações oriundas dos doadores
internacionais, bem como desempenhando a função de intermediário junto dos
voluntários internacionais que colaboravam no terreno.

331
Com o evoluir da guerra e à medida que a FRELIMO vai conquistando território no
interior de Moçambique, vai ser desenvolvido um esforço no sentido de manter as
populações nas zonas libertadas, de forma a aliviar o fluxo de refugiados para a Tanzânia
e a garantir uma ocupação e controlo efetivo do terreno conquistado por parte do
movimento de libertação. Esta realidade vai apresentar uma série de novos desafios à
Frente, dado que esta será obrigada a garantir condições mínimas de sobrevivência e
estratégias de desenvolvimento a uma população que habitava um território sujeito a
flutuações de cariz militar, sem delimitações fixas e, portanto, mais passível de constantes
deslocações internas forçadas.
De facto, a partir de 1968, a guerra colonial vai sofrer uma inflexão que se vai
refletir em vários planos, do militar, ao político, passando pela mudança da postura
internacional face ao reconhecimento e legitimação das reivindicações de
autodeterminação dos territórios sob domínio de Portugal, o que teve o seu ponto mais
significativo na audiência papal aos dirigentes dos movimentos de libertação das colónias
portuguesas a 1 de julho de 1970. Neste sentido, Moçambique vai ser palco de uma
mudança de estratégia militar significativa, cuja amplitude teve consequências políticas
de grande envergadura.
As forças portuguesas centraram as alterações estratégicas em três grandes eixos: a
conquista das populações através da ação psicológica e o seu aldeamento forçado; a
africanização do exército e um aprofundamento das relações bilaterais com a África do
Sul, Rodésia e Malawi; e, por último, o lançamento de uma ofensiva militar de grande
escala que seria posta em marcha a partir de 1970 com duas operações significativas, a
Operação Nó Górdio e, o seu complemento, a Operação Fronteira. Contudo, este esforço
final das Forças Armadas portuguesas não obtém o resultado pretendido, e, ao invés, a
FRELIMO consolida-se política e militarmente no território moçambicano.
A realidade das zonas libertadas e o avanço no teatro de guerra vão, na prática,
forçar a FRELIMO a, desde logo, encontrar soluções administrativas e governativas que
substituíssem o vazio deixado pelo poder colonial, respondendo às necessidades básicas
de uma população que, em 1974, corresponderia, segundo dados da própria Frente, a cerca
de um milhão e duzentas mil pessoas espalhadas entre os campos de acolhimento da

332
Tanzânia e, na sua maioria, nas zonas libertadas em Moçambique. Este esforço só foi
possível graças à ação concertada entre o Instituto Moçambicano e a Frente de Libertação.
Ainda que, internamente, o trabalho do Instituto fosse percecionado pela generalidade
dos militantes do movimento como exclusivo na área da educação, nomeadamente
confundindo-o com a escola secundária de Dar-es-Salaam, ao ponto de, ainda atualmente,
ser recorrente, mesmo na historiografia, a ideia de que o Instituto se limitava à escola
secundária e que, por isso, tenha sido encerrado ao mesmo tempo que esta, continuando-
se, assim, a negligenciar o seu trabalho de maior envergadura enquanto angariador de
fundos e doações internacionais que se vieram a revelar essenciais para o trabalho
assistencial levado a cabo pela FRELIMO, de que era um órgão ativo.
De facto, o Instituto Moçambicano, efetivamente começou por dar uma maior
atenção à educação, já que esta era um dos eixos fundamentais nos projetos da Frente,
permitindo investir, desde logo, na formação de quadros, perspetivando a criação do
«Homem Novo» em que o movimento de libertação entendia assentar as bases da luta
para uma nova sociedade liberta, política e mentalmente, do colonialismo. Assim, até
1968, a sede do Instituto Moçambicano, em Dar-es-Salaam, partilhou as suas instalações
com a escola secundária, criada em exclusivo para a formação dos jovens refugiados
moçambicanos. Este, que foi o primeiro objeto de trabalho do Instituto Moçambicano,
providenciava níveis de ensino entre o 5º e o 7º ano de escolaridade, de forma a que os
alunos pudessem transitar entre o ensino primário da colónia portuguesa, ou de uma das
escolas primárias do movimento de libertação, e o KIEC, no sentido de, caso se
proporcionasse, prosseguirem os seus estudos no ensino superior, com recurso a bolsas
de estudo oferecidas por organizações e países cooperantes.
Aqui, as aulas eram garantidas por professores, licenciados ou não, militantes do
movimento de libertação, mas também com recurso a professores voluntários, enviados
por instituições humanitárias que cooperavam no terreno com o trabalho do Instituto,
sendo que os currículos escolares e os materiais utilizados em sala de aula eram
elaborados, na sua maioria, pelos próprios docentes, adaptando as matérias lecionadas às
necessidades da luta e aos programas do ensino tanzanianos. Contudo, não se limitando
ao ensino regular, o Instituto preocupou-se também com outro tipo de formação mais

333
técnica, vocacionada para várias áreas que pretendiam no imediato suprir as necessidades
básicas dos refugiados, bem como desenvolver as linhas orientadoras da FRELIMO.
Assim, a área da saúde demonstrou-se um exemplo perfeito da aliança entre a formação
e a resposta dada às necessidades mais imediatas identificadas no terreno.
Inicialmente, tendo em conta as necessidades médicas da população, o Instituto
Moçambicano estabeleceu uma clínica e laboratório em Dar-es-Salaam, transformando a
clínica de apoio aos estudantes, que funcionava dentro das suas instalações, num serviço
de prestação de cuidados médicos e de ensino que alargava o âmbito do socorro aos
refugiados moçambicanos sob responsabilidade da FRELIMO. Posteriormente, os
serviços médicos seriam centralizados num novo equipamento hospitalar construído para
o efeito no campo de acolhimento de Mtwara, o Hospital Dr. Américo Boavida. Desta
forma, eram formados, com recurso ao ensino prático, técnicos assistentes de enfermagem,
vocacionados para prestar assistência médico-sanitária nos campos de acolhimento e nas
zonas libertadas.
Ao nível do ensino, aquele que era ministrado na escola secundária de Dar-es-
Salaam pretendia não só formar quadros para o movimento de libertação e para responder
ao esforço de guerra, mas também formar uma nova consciência social e política,
militante, que deveria ser adotada por todos os moçambicanos, em conformidade com a
ideologia veiculada pela FRELIMO. Lançavam-se assim as bases para uma sociedade
nova, anticolonial, anti-imperialista, de cunho marcadamente socialista, igualitário, que
repudiava o racismo e a sociedade tradicional patriarcal, combatendo as rivalidades
étnicas e regionalistas que o Estado colonial promovia de forma a exercer um controlo
mais efetivo sobre os ímpetos nacionalistas.
Esperava-se que o «Homem Novo» saído da revolução fosse o construtor da nova
realidade no Moçambique independente, e que os jovens estudantes dos ensinos
secundários e superior, imbuídos deste espírito revolucionário, contribuíssem, ainda
durante a luta, para a divulgação ideológica deste conceito, através de missões de
alfabetização realizadas entre os refugiados e nas zonas libertadas, visando a legitimação
política da FRELIMO e motivando a população para aderir ao esforço militar.
A formação política que o Instituto Moçambicano e, consequentemente, a

334
FRELIMO impunham aos seus jovens estudantes, e aos militantes na generalidade,
implicava uma rutura tão grande nos níveis de estrutura mental, social e política que
acabou por fazer eclodir uma série de contestações e lutas internas durante o anos de 1968,
muito por influência, e na sequência, de confrontos instigados por fações rivais dentro do
movimento de libertação, cuja violência se alastrou ao recinto da escola, colocando em
causa a própria Frente, nomeadamente a sua liderança, e forçando, in extremis, a Direção
do Instituto a encerrar formalmente a escola secundária em 1969.
Estas ideias fraturantes veiculavam uma mensagem política e social que colocava
em causa, de forma flagrante, os poderes tradicionais e coloniais, bem como as visões
raciais, colonialistas, de classe e de género que a maioria dos moçambicanos reconhecia
e mimetizava e que, em última instância, punham em confronto duas visões opostas no
seio da FRELIMO. Por um lado, a Direção da Frente com a sua estratégia de rutura social
e política bem definida, e por outro, uma fação mais tradicionalista e conservadora que,
colocava em causa a estratégia da luta e exigia a expulsão dos militantes brancos,
pretendia manter o modelo social e acusava as etnias do Sul de Moçambique de usurpação
do poder, incendiando os ânimos e influenciando os estudantes.
Esta situação, aliada ao conflito intergeracional e a uma autorrepresentação
inflacionada do valor individual que os alunos demonstravam, ao perspetivarem a sua
importância enquanto futuros quadros da Nação independente, veio-se a revelar,
simultânea e paradoxalmente, uma ameaça para a continuidade da própria Frente. Ao
colocar em causa a legitimidade da liderança do movimento, bem como as suas estratégias,
deu origem a uma situação de contestação política e doutrinária que só viria a ficar
resolvida no II Congresso, graças a um reforço da liderança interna da FRELIMO e à
consequente aposta na reafirmação da sua doutrina revolucionária, do ideal socialista e
de estratégias preventivas de futuros desvios ideológicos, mantendo o projeto educativo,
ainda que noutros moldes, enquanto conceito chave a partir do qual a Frente pretendia
imprimir, ao longo do tempo, a sua ideologia revolucionária no tecido político, social e
económico do país independente.
Dentro das estratégias de transformação do tecido social, poucas tiveram
implicações tão grandes quanto as alterações impostas à condição de género, cujo

335
paradigma vinha a mudar desde a criação do Instituto Moçambicano. Este promoveu e
estimulou uma fragmentação do panorama cultural e social vigente através da
oportunidade dada às raparigas para estudarem em condições semelhantes aos colegas do
sexo masculino, o que, aliado à mudança dos papéis tradicionais de representação de
género que a FRELIMO promovia, nomeadamente ao trazer as mulheres para o esforço
de guerra através da sua integração militar no Destacamento Feminino, favoreceu uma
mudança ao nível da perceção coletiva sobre o tema que se estenderia no tempo, e que
ainda hoje faz de Moçambique uma situação de exceção no que aos direitos das mulheres
diz respeito, quando comparado com a realidade da maioria dos países da África Austral.
Independentemente dos conflitos que levaram ao encerramento da escola
secundária de Dar-es-Salaam, o projeto educativo prosseguia o seu curso em alguns dos
campos sob alçada da FRELIMO, alastrando-se para o interior de Moçambique à medida
que a Frente ia conquistando território às forças coloniais. Apesar do grande responsável
pelos currículos escolares ser o Departamento da Educação e Cultura da FRELIMO, com
verdadeiro poder de decisão final sobre matérias e metodologias, continuava a ser da
responsabilidade do Instituto Moçambicano providenciar todos os aspetos, ao nível
administrativo e financeiro, para que nada faltasse na preparação ideológica, identitária e
de quadros, da futura Nação.
Para além de todos os outros projetos de ajuda humanitária e de desenvolvimento
em que estava envolvido, o Instituto continuava a manter o seu raio de ação pelas diversas
escolas e programas de ensino, direcionados, quer para grande parte dos refugiados na
Tanzânia, quer para os moçambicanos a viverem em território libertado: da escola
secundária, reaberta em 1970 no campo educativo de Bagamoyo, às escolas primárias,
ministrando o ensino regular em conjunto com diversos cursos especiais intensivos do
ensino primário, de capacitação de professores, de administração, e nas áreas da saúde e
da agricultura.
Tendo sempre o cuidado de formar quadros técnicos que correspondessem às
necessidades da luta e precavendo já o futuro do país independente, a educação mantinha
o seu estatuto prioritário e estratégico, não sendo descurada nem nos diversos
assentamentos populacionais das zonas libertadas, onde, apesar da instabilidade inerente

336
a uma situação de conflito militar, foram estabelecidas escolas destinadas à alfabetização
de crianças e adultos com recursos aos materiais fornecidos pelo Instituto Moçambicano,
sendo que estas crianças, uma vez terminada a quarta classe, eram transferidas para a
escola do campo de Bagamoyo.
Mesmo à distância, através de uma gestão administrativa e financeiramente
criteriosa, o Instituto continuava a ser muito interventivo nas dinâmicas e estratégias dos
vários campos de acolhimento no Sul da Tanzânia. Em Tunduro, Mbeya, Rutamba,
Songea, ou Mtwara, ministrava-se um ensino especializado que abrangia, desde a
alfabetização de crianças e adultos, a cursos vocacionados para áreas técnicas, tais como:
capacitação de professores do ensino primário, secretariado, puericultura básica, nutrição,
artesanato, produção agrícola, de alfaiataria e sapataria.
Especial enfoque merece o campo de Bagamoyo, para onde foi transferida a escola
secundária da FRELIMO e a partir da qual se esperava que os alunos pudessem prosseguir
estudos no estrangeiro, através de bolsas de estudo oferecidas por países cooperantes e
doadores (situação que não se chegou a verificar, uma vez que o processo de
independência apanhou os alunos mais velhos em fase de conclusão de estudos).
A partir de 1968, o Instituto, uma vez liberto da função de escola secundária, da
clínica e da respetiva formação para a saúde, recentrou e intensificou todos os seus
esforços no trabalho de angariação de fundos e doações feito junto de países e
organizações de apoio humanitário simpatizantes da causa moçambicana, ainda que
mantivesse outras funções administrativas nas áreas sociais e assistenciais dentro da
Frente.
A editorial da FRELIMO continuava ao cargo do Instituto que era responsável, não
só por todas as edições da Frente, bem como pela publicação e angariação de manuais
escolares e pelas pequenas bibliotecas ao cuidado das escolas dos campos de acolhimento
da Tanzânia, e das zonas libertadas de Moçambique.
Contudo, esta redefinição de estratégia operacional retirou ao Instituto visibilidade
perante a maioria dos militantes do movimento de libertação que, apesar de continuarem
a beneficiar do seu trabalho, acreditavam que o Instituto Moçambicano tinha terminado
as suas funções com o encerramento da sua escola. Mas a realidade afigurava-se outra,

337
com um cenário em que as necessidades de cariz social e humanitário com que a
população moçambicana se deparava, quer na Tanzânia, quer nas zonas libertadas,
aumentavam ao ritmo da escalada da guerra entre a FRELIMO e as forças militares
portuguesas. Em virtude desta situação, e com uma quantidade cada vez maior de
população sob a responsabilidade direta do movimento de libertação, o Instituto foi
encarregue de assumir formalmente os assuntos sociais da FRELIMO, acumulando com
as suas funções de então, o cuidado, formação e encaminhamento social dos deslocados
de guerra, dos deficientes e dos órfãos.
Perante a crescente responsabilidade social da FRELIMO, o Instituto Moçambicano
viu-se obrigado a reforçar o seu trabalho enquanto instituição de recolha de apoio à ajuda
humanitária e ao desenvolvimento junto da comunidade internacional, transformando-se
num representante oficial da causa moçambicana e, consequentemente, do movimento de
libertação, em países que, devido às suas relações diplomáticas com Portugal, não podiam,
nem queriam, apoiar um movimento que o governo português chamava terrorista, sendo
obrigados a um exercício de diplomacia informal, canalizando os apoios concedidos às
vítimas do colonialismo através de intermediários que cooperavam diretamente com o
Instituto.
Foram estes apoios que possibilitaram à FRELIMO, por intermédio do Instituto
Moçambicano, uma expansão constante ao nível da resposta social que abrangia em
particular as áreas educativas e da saúde.
Visando a angariação e manutenção de fluxos constantes de fundos para as vítimas
do colonialismo, e perante a necessidade de mostrar obra feita, poucos projetos terão tido
tanto impacto junto dos doadores e cooperantes quanto o das escolas dos principais
campos de acolhimento, ou a construção e equipamento de um hospital-escola em Mtwara,
que permitia o ensino em contexto de formação prática de quadros técnicos sanitários
destinados à criação e reforço de uma rede de cuidados médicos primários em todas as
zonas libertadas, bem como centralizava os meios humanos e o equipamento necessário
e disponível para o tratamento dos casos clínicos mais graves, encaminhados pelos
restantes campos de acolhimento, na Tanzânia, bem como do interior de Moçambique.

338
De facto, durante todo o período da luta de libertação, a educação e a saúde foram
os dois pilares da política social da FRELIMO, para a qual muito contribuiu o trabalho
do Instituto Moçambicano, já que a juntar às necessidades normais de uma população
deslocada, havia ainda que ter em conta as vítimas do conflito militar.
Com a saída do médico responsável pela clínica do Instituto Moçambicano, em Dar-
es-Salaam, em virtude dos conflitos de 1968, quer a clínica, quer o programa de ensino
para assistentes de enfermagem, foram encerrados. Porém, tendo em conta as
necessidades médicas da população, o programa de saúde foi retomado num outro
formato, que já vinha a ser projetado desde 1966, por forma a poder aumentar a
capacidade de resposta dos serviços de saúde da FRELIMO.
Assim, a Frente reorganizou todo o seu sistema de apoio sanitário, centralizando os
serviços médicos num só espaço, o Hospital Dr. Américo Boavida. Construído no campo
de acolhimento de Mtwara, para uso exclusivo dos pacientes moçambicanos, este
equipamento tinha ao seu cuidado todos os refugiados moçambicanos na Tanzânia, os
casos mais graves vindos das zonas libertadas, e as vítimas da guerra, militares ou civis,
acumulando com as funções de depósito geral de medicação e instrumentos hospitalares.
A construção e o funcionamento do hospital, para o qual o Instituto Moçambicano
angariava fundos e demais doações em forma de medicamentos, instrumentos médico-
cirúrgicos e até de uma ambulância, só foi possível graças aos programas de apoio
humanitário e projetos de cooperação financiados por países e organizações não
governamentais, bem como por hospitais estrangeiros, simpatizantes da causa
moçambicana. O trabalho realizado neste equipamento foi assumido por uma equipa de
médicos, e de uma enfermeira-chefe, voluntários em regime de agente de cooperação no
terreno, que não só exerciam o seu trabalho normal, como retomaram o programa de
formação prática para assistentes de enfermagem e quadros sanitários direcionados ao
provimento interno das necessidades de pessoal hospitalar e, sobretudo, à medicina rural,
com o objetivo de prestar a assistência possível e minimamente adequada nas localidades
mais isoladas das zonas libertadas em Moçambique, cujo território ascendeu a 250.000
km2.

339
Ao longo do tempo, e em consequência do arrastamento da guerra por uma década
(entre 1964 e 1974), o Instituto Moçambicano viu-se na contingência de aumentar e
expandir os pedidos de apoio para o projeto assistencial, candidatando-se ao maior
número possível de projetos de apoio humanitário concedido por múltiplas organizações
para o desenvolvimento e países cooperantes.
O Instituto começou por contar com o apoio de diversas organizações dos Estados
Unidos da América, os primeiros parceiros de Janet e Eduardo Mondlane no seu esforço
pela assistência humanitária junto dos refugiados moçambicanos. Nos EUA começaram
por construir uma rede de influências que beneficiava da condição de cidadã americana
de Janet Mondlane e aproveitava o facto de Eduardo ter sido professor universitário e
colaborador da ONU naquele país, onde também mantinham uma importante relação de
proximidade com as igrejas cristãs americanas, as quais, graças ao trabalho do Conselho
Mundial das Igrejas e aos seus projetos missionários no terreno conheciam a realidade
social e política do continente africano.
Apesar de os EUA manterem um discurso de apoio às descolonizações defendidas
pela ONU, nunca confrontaram verdadeiramente Portugal com as suas políticas coloniais,
com exceção da presidência Kennedy. Ainda assim, o governo norte-americano não se
opôs, inicialmente, a que organizações não governamentais de grande dimensão a nível
nacional, como as Fundações Ford e Rockefeller, utilizassem os seus fundos para apoiar
os refugiados moçambicanos e as vítimas da guerra colonial através dos projetos
apresentados pelo (formalmente independente) Instituto Moçambicano. Contudo, estas
grandes instituições filantrópicas dos EUA, que tiveram um papel determinante durante
os primeiros anos do Instituto, foram progressivamente reduzindo o seu contributo a
partir de 1964, na medida em que o país ia cedendo à pressão diplomática exercida por
Portugal, refletindo a mudança estratégica ao nível da política internacional norte-
americana após a morte do Presidente Kennedy.
Como resultado da perda do significativo volume de contribuições oriundas das
grandes fundações dos EUA, a Diretora do Instituto Moçambicano depressa se viu
obrigada a dirigir e aumentar o seu foco nos pedidos de apoio para outros países, e
respetivas organizações institucionais, religiosas e da sociedade civil. Obtendo uma

340
resposta positiva e concertada ao longo do tempo, nomeadamente do Canadá, dos países
da Europa do Norte, da Holanda, da Suíça, e de alguns países do bloco de Leste,
continuando a manter o apoio inicial da Tanzânia, da OUA e das diversas agências de
apoio humanitário e para o desenvolvimento da ONU, com quem o Instituto sempre
manteve um bom entendimento, bem como apoios pontuais de outros países europeus e
mesmo com o governo chinês (apesar da relação quer da China, quer de generalidade dos
países do Leste da Europa, ser mais estreita com a FRELIMO, com quem mantinham
uma relação direta, vocacionada para a ajuda militar).
Para a FRELIMO, foi muito difícil, especialmente durante a quase totalidade da
década de 60, encontrar apoios para a causa moçambicana junto dos governos da Europa
Ocidental, ou mesmo no Canadá, dadas as suas relações diplomáticas estáveis com
Portugal (membro da NATO), uma vez que este persistia na acusação de terrorismo
quando se referia aos movimentos de libertação das colónias. Assim, o Instituto
Moçambicano tornou-se num meio preferencial que permitia à Frente captar estes apoios
ao abrigo da ajuda humanitária, criando, simultaneamente, as bases que iriam favorecer
a construção de uma rede de solidariedade e simpatia junto da comunidade civil dos
países doadores.
Numa fase posterior, por volta de 1968, em virtude de um descrédito cada vez maior
do governo português e de uma onda de movimentos populares de contestação social de
cariz humanitário, pacifista, anticolonial, e de defesa da autodeterminação dos povos que
se alastraram um pouco por todos os países democráticos, nomeadamente da Europa
Ocidental, exercendo pressão política sobre os respetivos governos, verificou-se uma
mudança ao nível dos principais países doadores e cooperantes ocidentais, que aceitaram
apoiar os projetos de desenvolvimento não-militar da FRELIMO, reconhecendo o
Instituto Moçambicano como o “braço social” da Frente, dando assim alguma abertura
que permitia ao movimento de libertação poder lançar pedidos de ajuda humanitária em
nome próprio, ainda que de forma complementar aos projetos que continuavam a ser na
sua maioria remetidos em nome do Instituto.
Porém, todo este percurso que permitiu um trabalho que configurou um Estado
Social durante os dez anos de luta armada pela independência de Moçambique, deveu-se

341
em grande medida à ação do Instituto Moçambicano que, inicialmente, se transformou
no embaixador preferencial da causa moçambicana perante os países democráticos da
Europa e na América do Norte. O Instituto abriu, desta forma, uma outra frente de luta,
aos níveis da diplomacia e dos direitos humanos, criando redes de influência informais
junto dos governos e dos respetivos cidadãos, com quem colaborava diretamente, ou por
intermédio da ONU.
Todas as agências da ONU vocacionadas para o apoio humanitário e
desenvolvimento (UNICEF, UNESCO, ACNUR, OMS, FAO e OIT) colaboravam em
estreita ligação, quer com grupos e organizações internacionais de apoio humanitário e
social, quer com a maioria dos países doadores, de forma a disponibilizar ao Instituto
Moçambicano as condições necessárias à obtenção e otimização de apoios e recursos,
maioritariamente em géneros, mas também em fundos, destinados inicialmente apenas
aos refugiados moçambicanos. Porém, com o agravar do conflito, o apoio passou a
abranger a totalidade das vítimas do colonialismo, em resultado de uma mudança de
estratégia política no eixo dos países simpatizantes que deixaram, gradualmente, de se
opor a que o material escolar, medicamentos, e outros bens, seguissem para as zonas
libertadas em Moçambique, exigindo, apenas, que as doações nunca pudessem ser usadas
na obtenção de material bélico, o que era garantido, nomeadamente através do envio
constante de relatórios discriminados, como prova demonstrativa do trabalho realizado e
dos resultados obtidos.
A análise das fontes, ainda que lacunar, indicia que a esmagadora maioria destes
apoios era feita em espécime, sendo que a norma relativa às doações em dinheiro passava,
frequente e maioritariamente, pela sua aplicação na compra de material correspondente
às necessidades imediatas dos vários projetos de apoio humanitário, cuja aquisição era
efetuada, preferencialmente nos, e pelos próprios países doadores. Roupa, equipamentos
ou material médico, tudo era comprado mediante os pedidos manifestados pelo Instituto
Moçambicano e, posteriormente, enviado por transporte marítimo para a Tanzânia, ao
cuidado do Instituto, que os desalfandegava e procedia à primeira distribuição geral.
Assim, uma vez na posse do Instituto, passavam aos respetivos departamentos da
FRELIMO que, posteriormente, os distribuíam pelos campos de refugiados, pelas zonas

342
libertadas, e pelo Hospital Dr. Américo Boavida, abrangendo a totalidade das suas áreas
de intervenção social.
Os apoios prestados pelos países escandinavos (Noruega, Suécia, Dinamarca e
Finlândia) tanto se podiam concretizar através das agências de cada país, como ao nível
da cooperação conjunta, no âmbito do Conselho Nórdico. Contudo, sempre em estreita
colaboração com as agências para o desenvolvimento pertencentes às Nações Unidas.
Nestes países a existência de uma sociedade civil fortemente engajada permitiu que a
estratégia humanitária não se resumisse ao apoio estatal, assumindo um papel
determinante na ajuda ao Instituto através das suas várias organizações e instituições
pertencentes aos mais diversos quadrantes civis, com carácter religioso, político, de
intervenção social laica, ou mesmo educativo.
Na Holanda, a criação da Fundação Dr. Eduardo Mondlane, com fundos públicos,
concedeu ao Instituto Moçambicano a existência de uma plataforma institucional, que lhe
permitia manter de forma permanente ações de angariação de fundos e de sensibilização
para a causa moçambicana, direcionadas quer aos cidadãos holandeses, quer aos cidadãos
dos países vizinhos. De facto, também em países como a França, a Bélgica, ou na
Alemanha Ocidental, foi dado um contributo para a obra do Instituto através de
associações internacionais de ajuda humanitária com cariz cristão, e em Itália,
encontramos, não só a solidariedade de organizações políticas e de ajuda humanitária,
bem como uma rede de relações institucionais bilaterais que visavam um apoio direto e
imediato, sendo o caso mais flagrante o hospital de Reggio Emilia que, através de um
projeto de geminação com o Hospital da FRELIMO em Cabo Delgado, doou
equipamento e material médico, bem como enviou quadros clínicos voluntários,
nomeadamente para o Hospital Américo Boavida, e se disponibilizou a receber nas suas
instalações bolseiros moçambicanos, prestando-lhes formação em várias especialidades
médicas.
A Suíça, país historicamente neutral, acabou por desempenhar um papel importante
na narrativa do Instituto Moçambicano, já que era aqui que se localizavam, não só a sede
europeia da ONU, mas também algumas das sedes de grandes organizações
internacionais de ajuda humanitária de cariz protestante de que o Instituto era beneficiário.

343
A acrescer a este facto, estabeleceram-se laços de amizade pessoal e de cooperação
institucional entre os grupos missionários protestantes e o casal Mondlane, que se
mantiveram após a morte do Presidente da FRELIMO, fazendo deste um dos países de
referência para o movimento de libertação moçambicano.
Os inúmeros apoios a que o Instituto Moçambicano teve acesso, através de um
aturado trabalho de angariação de fundos e doações, só foram possíveis graças ao
empenhamento de uma rede internacional de apoio ao movimento de libertação de
Moçambique, bem como ao esforço constante da Diretora do Instituto, que se desdobrava
em viagens de sensibilização e captação de doadores para a causa, permitindo que a
FRELIMO pudesse colocar em prática um verdadeiro Estado Social à margem da sua
atividade militar.
Também o Reino Unido, histórico aliado de Portugal, não se manteve indiferente à
polémica relativa à questão colonial portuguesa. Ainda que não se tenha formalmente
envolvido ao nível da cooperação, nele nasceu um dos mais importantes e ativos grupos
civis europeus defensores da causa moçambicana, graças ao trabalho de alguns cidadãos
que já tinham sido cooperantes da FRELIMO na Tanzânia, de onde foram expulsos em
virtude dos conflitos de 1968. O Comité para a Libertação de Moçambique, Angola e
Guiné, ocupou-se de uma série de tarefas importantes para a visibilidade e defesa da causa
anticolonial. Angariou fundos e géneros de todo o tipo para doação, inclusive produtos
médicos, preparou conferências e coordenou projetos com o objetivo de ajudar os
movimentos de libertação das colónias portuguesas a encontrarem uma estratégia de luta
conjunta, mantendo sempre um trabalho permanente na retaguarda, visando a
sensibilização da opinião pública e dos media através de ações de campanha que
defendiam a descolonização dos territórios ultramarinos sob a custódia de Portugal.
Apesar de o Instituto Moçambicano ter, maioritariamente, cooperado com países e
organizações ocidentais, contou ainda com o apoio de alguns países do bloco de Leste e
do governo chinês, que, mesmo tendo uma relação política e militar intensa e direta com
a cúpula da FRELIMO, disponibilizaram ao Instituto, a título complementar, não só
algumas verbas, mas sobretudo meios humanos que colmatavam as carências de quadros
técnicos, enviando ainda bens de primeira necessidade, meios de transporte, e uma grande

344
quantidade de medicamentos e restante material médico. A acrescer a este apoio, revestiu-
se de igual importância a concessão de bolsas de estudo aos estudantes enviados pelo
Instituto Moçambicano, por intermédio da FRELIMO, para as escolas e universidades da
URSS e dos países aliados desta, permitindo assim a formação de quadros tão necessários
à resistência e ao futuro de Moçambique.
Toda a rede de suporte internacional construído ao longo de uma década de guerra,
entre Portugal e as forças da FRELIMO, demonstra a capacidade do Instituto
Moçambicano em fomentar e manter uma imensa onda de solidariedade para com as
vítimas do conflito, estivessem estas refugiadas na Tanzânia ou vivessem nas zonas que
iam sendo paulatinamente libertadas do domínio colonial, permitindo, no limite, a
sobrevivência da população. A amplitude do trabalho desenvolvido mostra-se mais
impressionante se se tiver em conta que a esmagadora maioria das verbas e bens doados
que o Instituto angariava advinham de uma rede de cooperação estabelecida com
organizações de países interessados em manter boas relações diplomáticas com Portugal.
As redes de solidariedade transnacional, criadas e mantidas ao longo de anos pelo
Instituto Moçambicano foram possíveis graças, não só à gestão permanente da noção de
causa justa, mas sobretudo ao «jogo de cintura» que o Instituto soube demonstrar em todo
o processo da luta pela independência de Moçambique. A dinâmica ao nível das relações
públicas que a Diretora do Instituto soube manter ao longo dos anos, garantiu uma
visibilidade internacional à causa moçambicana que transcendeu o mero apoio
humanitário, ajudando, na verdade, a legitimar a FRELIMO enquanto movimento de
libertação, e posicionando-a, aos olhos da comunidade internacional, como único
candidato com competência governativa nas vésperas da independência.
Com a independência de Moçambique, o Instituto Moçambicano foi encerrado,
transferindo as suas funções para a alçada estatal do novo país. Este facto não foi notado
pela esmagadora maioria dos militantes da FRELIMO que acreditavam que aquele havia
sido formalmente encerrado em 1968.
Se se excetuar a biografia de Janet Mondlane, publicada em 2001, e algumas
referências pontuais à escola secundária de Dar-es-Salaam em obras publicadas
recentemente, compilando testemunhos sobre o período da luta de libertação, o Instituto

345
Moçambicano e o seu contributo para a Independência de Moçambique foram votados ao
esquecimento coletivo, não merecendo a atenção historiográfica que lhes é devida.
Muitas razões poder-se-ão encontrar para esta ausência no registo da memória
coletiva: desde a confusão de funções entre a escola secundária e o Instituto, que
partilhavam o mesmo nome e espaço, o que de alguma forma pode ter contribuído para
ocultar a sua real importância para a história política da Frente; a uma passagem da
Diretora para uma posição de menor visibilidade no interior da FRELIMO, decorrente da
morte, em 1969, do seu cônjuge e Presidente da Frente, Eduardo Mondlane, dando espaço
para a legitimação da nova Direção do movimento de libertação; ou porque, a partir de
1968, a maioria dos Estados doadores apresentaram uma inflexão nas suas políticas
diplomáticas, cedendo às pressões da sociedade civil, muito sensibilizada pelas grandes
causas humanitárias e de direitos civis, com grande enfoque nas lutas de libertação
colonial, colocadas em evidência num contexto de efervescência internacional contra a
guerra do Vietname, passando a aceitar os pedidos de ajuda humanitária da FRELIMO,
como complemento dos do Instituto Moçambicano, o que terá feito com que os militantes
do movimento associassem em exclusivo todo o trabalho assistencial à Frente de
Libertação, dado que era do conhecimento geral que o Instituto tinha sido criado pela
própria FRELIMO, e que, aparentemente, para a maioria dos moçambicanos, se tinha
limitado à função de escola que entretanto tinha sido encerrada.
A abrangência do apoio social prestado pela FRELIMO, com o contributo do
trabalho realizado pelo Instituto Moçambicano, acabou por se tornar uma verdadeira
experiência social de grande impacto junto dos milhares de moçambicanos que, pelas
circunstâncias políticas e militares da época, ficaram sob a alçada da Frente, permitindo-
lhe erguer um proto-Estado com uma política efetiva de Estado Social que se estendia
dos campos de libertação situados no sul da Tanzânia até às zonas paulatinamente
libertadas de Moçambique.
Apesar de o Instituto Moçambicano não ter sido caso único na sua condição de
organismo formalmente independente a prestar apoio humanitário no âmbito da luta pela
libertação das colónias portuguesas, dado que Angola assistiu a uma breve tentativa de
implementação de dois organismos do género, que pretendiam providenciar às

346
necessidades mais básicas dos refugiados angolanos nas zonas fronteiriças do Congo
Léopoldville, a verdade é que, tendo em consideração a sua dinâmica internacional,
abrangência de trabalho, penetração no tecido social junto da população moçambicana
refugiada na Tanzânia, e a viver nas zonas libertadas em Moçambique, bem como a sua
permanência temporal até à declaração de independência, o Instituto acabou por se revelar
um fenómeno sem comparação dentro dos movimentos de libertação das colónias
portuguesas, permitindo, simultaneamente, granjear uma rede internacional de simpatia
para com o movimento e a sua causa, para além de possibilitar a experimentação de
estratégias que posteriormente foram utilizadas no Moçambique independente. Os
militantes do movimento de libertação, de quem era esperado uma ação condizente com
o espírito do «Homem Novo», tomavam agora posse de Moçambique independente, com
o objetivo de estender os ideais e as práticas da revolução a todas as suas províncias.
Assim, foram chamados a assumir funções administrativas e técnicas, substituindo os
colonos que regressavam à metrópole. Os novos quadros moçambicanos tinham estudado
e trabalhado ao abrigo do projeto social da FRELIMO, com cujo legado se identificavam
em exclusivo, mas que nunca poderia ter sido o mesmo, nem ter tido a mesma amplitude,
sem o trabalho fundamental do Instituto Moçambicano.
Para a execução deste estudo fundamentámo-nos no importante espólio documental
que se encontra no Arquivo da FRELIMO, ao abrigo do Arquivo Histórico de
Moçambique, que nos facultou toda uma nova linha de interpretação sobre a história da
luta de libertação moçambicana. Contudo, dado o caráter eminentemente lacunar dos
documentos ali salvaguardados, fomos obrigados a nos socorrer do testemunho de alguns
dos atores principais para esta época histórica que, na sua condição de ativistas do
Instituto Moçambicano, nos permitiram analisar aprofundadamente o trabalho do
Instituto e o seu contributo dentro da FRELIMO para a luta de libertação. De facto, uma
vez que todos os entrevistados exerceram um papel de relevo dentro do Instituto nas suas
mais variadas funções, permitiram-nos aprofundar de forma crítica a informação
veiculada pelas fontes escritas. Assim, a salvaguarda da memória do Instituto
Moçambicano no seu papel de coadjuvante na luta de libertação nacional de Moçambique
manter-se-ia essencialmente incompleta sem o recurso a estes testemunhos preferenciais.

347
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Tempo, Maputo
Nº 726, 9 de setembro de 1984
Nº 808, 6 de abril de 1986

360
Anexos

361
Anexo 1 - Mapas

Mapa 1: Campos de acolhimento da FRELIMO na Tanzânia.

Fonte: mapa trabalhado a partir de: https://www.lonelyplanet.com/maps/africa/tanzania/

362
Mapa 2: Zonas libertadas de Moçambique em 1968/69.

Fonte: AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, documentos
avulsos, Mapa das zonas libertadas de Moçambique (1968).

363
Anexo 2 - Quadros

Quadro 1: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para as escolas dos


campos educativos da FRELIMO na Tanzânia.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

364
Quadro 2: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para as zonas libertadas
de Moçambique.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 3: Orçamento de 1969 para o programa de apoio às jovens grávidas no campo


de acolhimento de Mbeya.

Obs.: valores
em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS = 300MZN = 4€,
mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

365
Quadro 4: Orçamento de 1969 para os programas educativos de Bagamoyo.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 5: Orçamento da Administração Central do campo Mbeya (?) para 1969.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

366
Quadro 6: Valores estimados dos Kits Pessoais para o Instituto Moçambicano para o ano
de 1969.

Obs.: valores em xelins


tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS = 300MZN = 4€, mediante
informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 7: Orçamento de 1969 para a editora.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

367
Quadro 8: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para a Administração de
Moçambique interior.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 9: Orçamento de 1969 para o orfanato (Moçambique interior?).

Obs.: valores em xelins tanzanianos


(TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS = 300MZN = 4€, mediante informação da
enfermeira Maria Salghetti.

368
Quadro 10: Orçamento de 1969 para o programa de apoio aos deficientes de
Moçambique interior.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 11: Estimativa do número de pessoas em processo de deslocação forçada no


interior de Moçambique, em 1969.

369
Quadro 12: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para os gastos comuns
no Moçambique interior.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 13: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para os Serviços


Sanitários dos campos educativos da Tanzânia.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

370
Quadro 14: Orçamento de 1969 para a Administração Central da Saúde.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

371
Quadro 15: Orçamento de outubro de 1968 a dezembro de 1969 para a construção e
equipamento do Hospital Dr. Américo Boavida 1969.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

372
Quadro 16: Orçamento para os anos de 1970 e 1971 para o Hospital Dr. Américo Boavida.

Obs.: valores em xelins tanzanianos (TZS). Correspondência a um cambio atual aproximado: 5TZS =
300MZN = 4€, mediante informação da enfermeira Maria Salghetti.

Quadro 17: Valores de doações parcelares recebidas pelo Instituto Moçambicano entre
1964 e 1974.

Obs.: valores em dólares americanos (USD).

373
Anexo 3 - Fotografias

Fig. 1 e 2: Livro de Matemática para a 2ª Classe

Fonte: Arquivo pessoal Teresa Veloso.

Figura 3: Escola secundária de Bagamoyo

Fonte: Arquivo pessoal Teresa Veloso.

374
Fig. 4: Relatório do Instituto Moçambicano para a ACNUR.

Fonte: AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa A, Processo DEC 1964-1975,
Relatório para UNHCR, 27 de julho de 1964, p.2.

375
Fig. 5: Capa do Programa orçamental do Instituto Moçambicano para o período de
outubro de 1968 a dezembro 1969.

Fonte: AHM, Arquivo FRELIMO, Pastas DEC, Instituto Moçambicano, caixa B, Programa do Instituto
Moçambicano, outubro - dezembro 1968, janeiro - dezembro 1969.

376

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