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GOMES DE MATOS: O DICIONÁRIO DE LINGÜÍSTICA E GRAMÁTICA 159

POSFÁCIO/POSTSCRIPT

O DICIONÁRIO DE LINGÜÍSTICA E GRAMÁTICA:


NOTAS DE UM LEITOR-POSFACIADOR
(The Dictionnary of Linguistics and Grammar:
Notes from a Reader and a Posface Writer)

Francisco GOMES DE MATOS


(UFPE)

Este importante legado mattosiano tem uma história singularíssima:


foi lançado em 1956, pelo Centro de Pesquisas da Casa de Rui Barbosa
(RJ), com o título de Dicionários de Fatos Gramaticais (DFG); em 1965, J.
Ozon-Editor (RJ) publicou a segunda edição, intitulada Dicionário de Filo-
logia e Gramática e, em 1977, postumamente, a Editora Vozes (Petrópolis,
RJ) publicou a sétima edição, sob o título atualizado de Dicionário de Lin-
güística e Gramática (DLG). Ao que saiba, trata-se de um caso único na
bibliografia lingüística brasileira: uma obra de referência receber três títu-
los, reflexo do desenvolvimento da ciência da linguagem entre nós.
Aos interessados em conhecer detalhes da expressiva e inspiradora obra
mattosiana – aqui relembrada neste auspicioso volume comemorativo do
centenário do saudoso amigo-mentor-colega, de quem tive o privilégio de
ser aluno, no I Instituto Latino-Americano de Lingüística em Montevidéu,
realizado na Universidad de la República, sob os auspícios do PILEI, Pro-
grama Interamericano de Lingüística e Ensenãnza de Idiomas; estivemos juntos,
como docentes, no memorável Instituto Interamericano de Lingüística no
México (janeiro-fevereiro de 1968) e em outros eventos, no Brasil e no
exterior, – recomendo a leitura dos textos Sinopse dos Estudos Lingüísticos no
Brasil (Hamilton Elia); Biobibliografia, Nota dos Editores para a 7a.
edição; Advertência para a 3a. e 2a. edições e, Explicação Preliminar da
1a. edição, no volume póstumo de 1977, com sucessivas edições até esta
data.

D.E.L.T.A., 20:ESPECIAL, 2004 (159-164)


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Para dar uma idéia da importância desses textos que antecedem o


corpus lexicográfico do DLG, formulo três perguntas cujas respostas po-
dem ser encontradas através da leitura atenta da Explicação Preliminar da
1a. edição: 1) Qual o sentido de fatos, na locução fatos gramaticais? 2) Quantas
vezes fatos ocorre no referido texto e em que contextos? 3) A quem Mattoso
agradece, com elevado senso de humildade autoral? Fosse o grande pionei-
ro da Lingüística no Brasil atualizar seu uso de fatos gramaticais, que termo
poderia ter usado? Talvez conceitos lingüísticos e gramaticais, ou, mais ao gos-
to dos colegas que atuam na importantíssima área da Terminologia (ciên-
cia dos termos), “Dicionário de terminologia lingüístico-gramatical”.
Especulando mais um pouco: em vez de optar por emprego, à página 31 da
citada Explicação, Mattoso refere-se à “compreensão do funcionamento da
língua a cujo bom emprego se pretende chegar”. Atualmente, emprego po-
deria ser substituído por uso. Ainda sobre esse uso mattosiano de emprego,
chamo atenção para o verbete sobre tal conceito: ali, com antecipador sen-
so sociolingüístico, o autor do também pioneiro e longevo Manual de Ex-
pressão Oral e Escrita estabelece uma tipologia de usos, ao explicar: “Há
empregos usuais, inusuais e inadequados” (p.104). Falar de empregos
usuais e inusuais não surpreende tanto, mas referir-se a empregos inade-
quados constitui gratíssima surpresa para quem consultar o DLG neste ano
de 2004.
Ao comentar sobre alguns aspectos da singularidade do DLG, não
posso deixar de me referir à magistral capacidade comunicativa mattosia-
na: seu português escrito é erudito, formal, elegante. Por falar em uso
erudito, há um verbete sobre vocábulos eruditos (p. 108), no qual são exem-
plificados contrastes de uso léxico. Assim, ao lado dos substantivos popu-
lares pobre, ouro, temos os adjetivos eruditos paupérrimo e áureo.
Uma coisa admirável nesse dicionário é sua bibliografia multilíngüe:
há fontes em português, francês, inglês, espanhol, alemão e italiano. Ou-
tra exemplaridade da obra! Quanta coisa de interesse socioestilístico-
lingüístico-pragmático pode ser encontrada no DLG! Como Mattoso po-
deria ter atualizado seu repertório conceitual-terminológico, decorridos
quase cinqüenta anos da publicação de seu DLG?
Devo ter começado a usar o pioneiríssimo Dicionário de Lingüística e
Gramática, do saudoso amigo-mentor Mattoso (assim a ele me dirigia) em
meados da década de 50, quando eu cursava o Bacharelado em Letras
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Anglo-Germânicas na Faculdade de Filosofia da então Universidade do


Recife. Três coisas me atraíam naquele volume: 1) ser identificado como
“Referente à língua portuguesa”: tenho a impressão de que muitos poucos
leitores param para refletir sobre a importância desse subtítulo, tanto para
a bibliografia lingüística em português, quanto para a história da forma-
ção lingüística de professores de nosso idioma; 2) a qualidade estilística
dos verbetes: Mattoso produz um português erudito, que sociolingüistica-
mente poderíamos caracterizar como sendo uso formal. Assim, no verbete
língua, lê-se: “[...]sistema de sons vocais por que se processa numa comu-
nidade o uso da linguagem humana” (DFG, p. 158) interdisciplinaridade
subjacente a diversos conceitos-termos. Exemplifico: “A linguagem é uma
faculdade imensamente antiga da espécie humana e deve ter precedido os
elementos mais rudimentares da cultura material” (p. 159). Essa afirma-
ção mattosiana, inspirada em Sapir (1954), reflete um pouco a influência
da Psicologia daquela época, em que se optava por faculdade. Hoje, muitos
prefeririam dizer sistema cognitivo. Para a ocorrência do adjetivo mental em
DLG, veja-se o verbete comunicação (p. 77). Para conceitos de áreas afins,
consulte-se estilística (p. 110), folclore (p. 117), retórica (p. 209).
Coube ao notável franciscano Clarêncio Neotti (amigo de Mattoso, de
sua esposa Maria Irene e deste articulista) a tarefa de relatar, em Nota dos
Editores para a 7a. edição (1977), como surgiu a idéia de acrescentar-se um
Posfácio ao DLG. Nas palavras do referido teólogo, atualmente residente
em Roma: “Ao aceitar o pedido de Dona Maria Irene Ramos Câmara, viú-
va de Joaquim Mattoso Câmara Jr., de continuar a publicação do livro, lhe
fizemos duas propostas: o acréscimo de um posfácio com os principais ter-
mos lingüísticos desenvolvidos após a morte do Prof. Mattoso Câmara
(1970); e a mudança do título para Dicionário de Lingüística e Gramática.
Dona Maria Irene concordou com ambas as propostas” (p. 25). Em segui-
da, o ex-Diretor da revista Cultura Vozes (que a Mattoso dedicou um núme-
ro em sua homenagem ), justifica a generosa escolha deste articulista para
escrever o posfácio: “por ser bom conhecedor, como ex-discípulo e amigo
de Mattoso Câmara, de toda a obra de quem já foi chamado de Pai da
Lingüística no Brasil” (p. 26). Esse fato marcou profundamente minha
missão como lingüista. Na verdade, ter sido convidado a acrescentar ver-
betes ao DLG foi mais que um imenso desafio profissional: oportunizou
que, privilegiadamente, tivesse meu nome incluído numa obra de meu
antigo mestre e que pudesse compartilhar, com os usuários daquele volu-
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me, um pouco do conhecimento que eu vinha construindo em meu traba-


lho como lingüista aplicado.
Graças a essa oportunidade única, pude expor alguma coisa de minhas
atitudes, crenças e antevisões (consulte-se o verbete lingüística humanística/
humana, em que formulei a idéia embrionária do que, no início da década
de 90, viria a chamar “paz comunicativa” e, no início deste século, “Lin-
güística da Paz” (cf. meu livro Comunicar para o Bem. Rumo à Paz Comunica-
tiva. São Paulo: Editora Ave Maria, 2002).
Dificílima foi a decisão de quantos verbetes incluir no Posfácio e por
quê. Para que os leitores possam avaliar o produto final – 25 verbetes e 62
referências suplementares (de livros, artigos, revistas); organizações atuan-
tes na Lingüística no Brasil (ABRALIN, GEL, dentre outras); informação
sobre universidades brasileiras que ofereciam programas de pós-graduação
em Lingüística; lista de organizações internacionais, Biblioteca Mattoso
Câmara – esclareço que, em 1997, já tinha concluído minha pós-gradua-
ção em Lingüística (Mestrado pela University of Michigan, Ann Arbor,
EUA e doutorado pela PUC-SP), tendo sido aluno de lingüistas no exte-
rior, dentre os quais Fries, Gumperz, Halliday, Lado e Pike.
Ao consultar-se o DLG, vale lembrar que, por formação, Mattoso era
um estruturalista-funcionalista, com forte pendor para a interdisciplinari-
dade, em parte devido à influência recebida de seu notável mestre Roman
Jakobson e, em parte, por causa do impacto do pensamento sapiriano
(Mattoso traduziu um dos clássicos da Lingüística contemporânea: A Lin-
guagem. Introdução ao Estudo da Fala, de Edward Sapir, publicado há 50
Anos pelo Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro). Aos interessados
em outros detalhes biográficos, recomendo a leitura da Biobliografia, na
edição póstuma do DLG, e da Sinopse dos Estudos Lingüísticos no Brasil (Ha-
milton Elia), além do indispensável magistral volume organizado por Cris-
tina Altman sobre a Pesquisa Lingüística no Brasil (1968-1988), publicado
pela Editora Humanitas, da Universidade de São Paulo.
Quais os 25 verbetes acrescentados ao DLG? Aceitabilidade, aplicada
(Lingüística), aquisição da linguagem, casos (gramática dos), competência, com-
petência comunicativa, criatividade lingüística, desempenho (atuação ou perfor-
mance), distintivos (traços), empatia comunicativa, estratificacional (gramática),
formal (uso), glossemática, gramaticalidade, humana (Lingüística), informal (uso),
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neutro (uso), padrão, paráfrase, pragmática, profunda (estrutura), psicolingüísti-


ca, semiótica, sociolingüística, usuário (gramática do). Fosse atualizar o Posfá-
cio, certamente incluiria gramática do português falado, análise do discurso,
ecolingüística, lingüística de corpus, lingüística histórica, lingüística cognitiva, lin-
güística da paz, história /historiografia da lingüística, teoria da comunicação (o
DLG menciona esse termo, no verbete encodização), variedade (o DLG in-
clui um verbete para variação, no qual são exemplificadas variantes (do
fonema, do morfema, do semantema e de padrões frasais). O conceito ‘va-
riedade’ teria seu lugar ao sol terminológico, pois a variação se manifesta
através de variedades (geográficas, sociais, individuais, históricas) e estas se
concretizam, por assim dizer, através de variantes (léxicas, sintáticas, prag-
máticas, etc). Observe-se, entretanto, que em seu verbete registro, Mattoso
assim usa variedades: “As variedades no registro abrangem todos os níveis
da língua – o léxico, a morfologia, a sintaxe, a estilística”. Ao escolher
registro, Mattoso estava sob influência da terminologia do que ele identifi-
cou como ‘Escola Lingüística de Londres’ (veja-se o verbete escola, no qual
são explicitadas seis escolas: a neogramática, a de Praga, Londres, Yale,
M.I.T e Genebra). Aos que admiram a contribuição chomskiana à lingüís-
tica, lembraria que, no verbete sobre escola, Mattoso refere-se à escola Ge-
rativa ou Transformacional. Aos pesquisadores da importante área de estudos
tradutórios, recomendo a consulta ao verbete transformação (p. 234), no
qual Mattoso exemplifica alguns casos de “transformação em frases equi-
valentes”.
Finalmente, como o DLG, patrioticamente, tem o subtítulo Referente
à Língua Portuguesa, recomendaria a leitura do verbete português (Mattoso
faz magistral Síntese da história de nossa língua) que, hoje, atualizaríamos
com a bibliografia tão diversificada disponível, sob forma impressa e ele-
trônica (cf. o site da Comunidade de Povos de Língua Portuguesa (CPLP):
www.cplp.org).
Em suma, como leitor e privilegiado prefaciador (neste caso, por ge-
nerosidade da saudosa Maria Irene Câmara, da Editora Vozes e por bonda-
de divina ), poderia contar muito mais. Em vez disso, convido os leitores a
uma leitura ou re-leitura do Dicionário de Lingüística e Gramática, um mar-
co na história/historiografia da Lingüística em língua portuguesa e um
legado inestimável de quem tanto a amou (Mattoso começou como pro-
fessor do que, na época, se chamava língua pátria) e, após obter o grau de
arquiteto, dedicou-se à ciência da linguagem. Mattoso Câmara foi mais
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que um humanista: humanizador, através de suas obras, de caráter descri-


tivo e didático, cuja longevidade comprova a relevância sustentável do
pensamento mattosiano.
Em 1966, tive o privilégio de resenhar o DLG na revista HISPANIA
(p. 181:182), da American Association of Teachers of Spanish and Portuguese.
Decorridos 28 anos, escrevo estas notas, como leitor-posfaciador. Outro
privilégio, entretanto, continuará: o de ser usuário fiel do DLG, por seu
pioneirismo, seu foco na língua portuguesa, e pela erudição-concisão-exa-
tidão com que Mattoso partilha com tantas gerações seu saber lingüístico-
gramatical.
E-mail: [email protected]

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