Acto Interlocutivo PDF

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Versão On-line ISBN 978-85-8015-076-6

Cadernos PDE

OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE


NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE
Artigos
LEITURA: UM PROCESSO INTERLOCUTIVO

Jaquicilene Ignácio da Silva1

Me Flávio Brandão Silva2

Resumo: Este artigo objetiva discutir, a partir do relato da proposta de intervenção pedagógica
„‟Crônica; uma conversa poética‟‟, aspectos relacionado ao ensino e aprendizagem da leitura. As
aulas foram organizadas sob o formato de Unidade Didática e tiveram como público alvo alunos do
ensino fundamental fase II do Centro de Educação Básica de Jovens e Adultos de Umuarama.
Pretendíamos com a proposta de ensino possibilitar a construção do conceito de leitura como um
processo dialógico e interativo, construído a partir das marcas textuais e do posicionamento
colaborativo e ativo do leitor no preenchimento dos vazios deixados pelo autor. As reflexões teórico-
metodológicas foram construídas por meio do diálogo com os autores que reproduzem a filosofia de
linguagem apresentada por Mikhail Bakhtin.

Palavras-chave: Leitura. Dialogismo. Crônica.

Introdução

O texto aqui organizado configura-se na apresentação e avaliação das


reflexões feitas durante o Programa de Formação Continuada (PDE). O curso tem
duração de dois anos e ao longo desse período, o professor PDE é direcionado pelo
orientador e pelas leituras que este sugere, a fim de que consiga cumprir cada uma
das etapas de formação.
Iniciamos nossos estudos a partir dos seguintes questionamentos: leitura é
um conteúdo que precisa ser ensinado? Como? O modelo de leitura apresentado
nos livros didáticos contribui para que o aluno associe o conceito de leitura à busca
de respostas no texto? Por que a maioria dos jovens, adolescentes e adultos
conclui o ensino básico sem o domínio da leitura? Falta interesse dos alunos? Ou
falta conhecimento dos professores sobre as etapas e procedimentos para o ensino
e aprendizagem da leitura?

1
Professora PDE 2013, do Centro de Educação Básica de Jovens e adultos de Umuarama, em Umuarama, PR.
2
Orientador. Docente do curso de Letras da Unespar, campus de Paranavaí. Mestre em Linguística e Língua
Portuguesa pela Unesp – Araraquara. Graduado em Letras pelas UEM.
Para compreender melhor as questões relacionadas à ineficiência da escola
pública em formar leitores, fomos levados a pensar no cotidiano escolar e nas
concepções de linguagem e de leitura que direcionam o fazer pedagógico dos
professores da escola básica. Nossos conceitos foram reconstruídos a partir da
leitura de autores que reproduzem a filosofia de linguagem apresentada por Mikhail
Bakhtin.
Objetivávamos, por meio desse estudo, identificar quais estratégias de ensino
o professor de Língua Portuguesa pode utilizar para ampliar o nível de leitura dos
alunos do ensino fundamental fase II.
A práxis objetivada durante a formação é aqui apresentada nos itens „‟Relato‟‟
e „‟Análise dos resultados‟‟.

Aspectos Teóricos

A disciplina de língua portuguesa objetiva ampliar a habilidade comunicativa e


assegurar a seus falantes o domínio pleno do idioma. O aprendizado dos vários
modos em que a linguagem se aporta - ou oralidade, leitura e escrita - contribui de
forma significativa para colocação ou recolocação do indivíduo na sociedade.

É tarefa da escola possibilitar que seus alunos participem de diferentes


práticas sociais que utilizem a leitura, a escrita e a oralidade, com a
finalidade de inseri-los nas diversas esferas de interação. Se a escola
desconsiderar esse papel, o sujeito ficará à margem dos novos letramentos,
não conseguindo se constituir no âmbito de uma sociedade letrada.
(PARANÁ, 2008, p. 48)

Logo ampliar o conhecimento linguístico e discursivo do aluno é possibilitar


que este se aproxime das diversas questões sociais de modo ativo, entendendo-se
como parte de um processo interlocutivo marcado pelos mais variados discursos
ideológicos. Conforme Bakhtin/Volochinov (1995)

[...] cada palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se


entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A
palavra revela-se, no momento de sua expressão, como produto de relação
viva das forças sociais.‟‟ (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1995, p.66).

Durante vários anos, as aulas de Língua Portuguesa reproduziram o conceito


de que aprender a língua era ter domínio sobre as nomenclaturas. No entanto com o
avanço dos estudos linguísticos, com o surgimento da sociolinguística e demais
ciências relacionadas à linguagem, o ensino da língua passou a ser revisto e/ou
reformulado.
A primeira menção sobre essa nova perspectiva é encontrada no Currículo
Básico. Observa-se, a partir da implantação deste, a percepção de que o ensino da
língua não pode limitar-se ao estudo da gramática normativa. Mais que nomear, o
aluno necessita compreender que a língua é o mais eficiente mediador das relações
humanas e quanto maior for o domínio dos falantes sobre aquela, melhores serão
suas relações como o mundo.
O Currículo Básico esclarece ainda que, não há supremacia de uma prática
sobre as demais, ou seja, é fundamental ampliar o domínio linguístico na escrita,
porém não se pode excluir o ensino da leitura e da oralidade. „‟ [...] optamos por um
ensino não mais voltado à teoria gramatical ou ao reconhecimento de algumas
formas de língua padrão, mas ao domínio efetivo de falar, ler e escrever.” (PARANÁ,
1990, p. 56)
Neste trabalho, o enfoque maior foi dado à leitura, ou como desenvolvê-la de
modo a afastá-la, mesmo que de maneira tímida, da ineficiência. Contudo, conforme
Geraldi (1985), a forma como cada professor ensina a leitura, a oralidade e a escrita,
está diretamente relacionada à concepção de linguagem que o orienta. Portanto,
antes de falarmos da leitura e dos elementos que a compõem, façamos uma breve
análise sobre a linguagem.
Em consonância com Mikhail Bakhtin, a linguagem é um processo dialógico e
social. Social porque só existe a partir das relações com o outro, na
interdependência entre os interlocutores é que se pode conceber a linguagem,
jamais autônoma. Dialógica, pois é só a partir das trocas com o outro que o
processo comunicativo existe, por meio de atitudes responsivas. O interlocutor, no
processo comunicativo, não recebe apenas a mensagem, mas também é sujeito na
construção desta. Ou seja, a mensagem, para ser construída depende, também, das
inferências do ouvinte-sujeito.
Além de dialógica e social, Bakhtin apresenta outra característica da
linguagem, o plurilinguismo. Todo enunciado nunca está só, não é apenas um, mas
vários e é construído a partir dos encontros que o locutor teve com outros textos,
com aquilo que vivenciou em seu meio social e cultural. Cada novo enunciado é a
releitura de outros enunciados, com os quais o locutor dialogou e que o auxiliam no
processo de construção de novos textos.
Diferente de Saussure, que apresenta a língua como código, cujo objetivo é
transmitir uma mensagem, Bakhtin elege o discurso como seu objeto de estudo, ou
a língua viva, real, não ideal, produzida por falantes distintos. Para Bakhtin (2003),
não há linearidade no processo comunicativo, uma vez que a mensagem não
obedece a um sistema fechado de emissor, mensagem e receptor, o que se
configura é o enunciado, unidade de comunicação.
Pode-se afirmar que a concepção interacionista de linguagem não é a única a
conduzir o processo de ensino e aprendizagem da língua, a compreensão de
linguagem como expressão do pensamento, ou transmissão de informações ainda
se faz muito presente nas aulas de língua portuguesa.
De acordo com Geraldi (1985) a concepção de ensino da língua como
expressão do pensamento, entende a linguagem como um processo individual e
mental, pois se organiza no interior da mente humana, independente das relações
externas; logo falar mal é pensar mal.
O ensino da língua, sob esta perspectiva, limita-se ao ensino da gramática
normativa. Não há destaque para a leitura ou para a oralidade, visto que a
aprendizagem da língua relaciona-se apenas ao domínio das regras gramaticais.
Assim, as aulas cuja concepção de linguagem é a expressão do pensamento
pouco colaboram para a aquisição da expressão culta, pois não há aulas de leitura.
Os textos, na maioria das vezes antologias literárias, são usados como pretexto para
exercícios de gramática.
De acordo com Geraldi (1985), a linguagem como instrumento de
comunicação objetiva transmitir informações, independente do lugar social de seus
usuários, ou da ação destes sobre os enunciados.
Na prática de sala de aula, a concepção apresentada por Saussure trouxe
pouca mudança para o ensino da língua, pois privilegia, como a anterior, o estudo da
gramática, enxergando o texto como pretexto para o ensino de regras. Quanto ao
„‟ensino‟‟ da leitura, limita-se à historiografia e às análises literárias „‟aos moldes
franceses (escansão, rimas, ritmo, estrofes),‟‟ os fragmentos de texto são usados
para responder a questionários sobre personagens principais e secundários, espaço,
foco narrativo ´´. (PARANÁ, 2008, p. 45).
É na relação de alteridade apresentada por Bakhtin que objetivamos
direcionar o nosso trabalho com a leitura. O leitor a ser alcançado, na perspectiva
interacionista da linguagem, é aquele que decodifica, mas também compreende,
interpreta, seleciona, reconstrói seu conhecimento a partir dos encontros que faz
com os diálogos textuais que encontra. Para chegar a esse leitor, alguns
pressupostos precisam nortear o ensino e aprendizagem da leitura.
Geraldi (1985) afirma que é fundamental professor e aluno conhecerem o
„‟para que‟‟ de cada situação de aprendizagem. Solé (1998) esclarece e particulariza
a afirmação de Geraldi, ao explicitar que antes de propor a leitura de determinado
texto, o professor precisa deixar claro quais objetivos deverão ser alcançados
mediante tal ação.
Portanto, antes de o aluno realizar qualquer leitura precisa conhecer os
porquês de tal procedimento. Se o objetivo que o leva a leitura é localizar
informações precisas em um texto científico, por exemplo, a leitura, será seletiva e
dinâmica. Caso o objetivo seja seguir instruções para montar um objeto, a leitura
será global, minuciosa e atenta ao todo. O leitor recorrerá a pausas,
questionamentos, reorganização de ideias, sínteses, se o objetivo for „‟ler para
aprender‟‟ e esta será mais eficiente, caso o leitor saiba exatamente que
aprendizado almeja construir. Enfim, cada situação de leitura exige uma postura do
leitor. De acordo com Solé (1998)

[...] ainda que o conteúdo de um texto permaneça invariável, é possível que


dois leitores com finalidades diferentes extraiam informação distintas do
mesmo. Assim, os objetivos da leitura são elementos que devem ser
levados em conta quando se trata de ensinar as crianças a ler e a
compreender. (SOLÉ, 1998, p. 22)

Além de ter definidos os objetivos, que outros elementos são pertinentes ao


se abordar o ensino da leitura? Quais os modelos de leitura mais presentes em sala
de aula?
De acordo com Solé (1998) várias foram as definições para o ato de ler, mas
de uma maneira geral, há um consenso entre os estudiosos do assunto acerca de
dois grandes modelos para explicar o processo de leitura: o ascendente (buttom up)
e o descendente (top down).
O primeiro compreende a leitura como simples decodificação e oralização do
código, ou seja, a capacidade de nomear signos linguísticos e transformar grafemas
em fonemas, ou letra em som. Nesse modelo, são ignorados os recursos como;
ironia, polissemia, marcas linguísticas...
O modelo ascendente considera o leitor diante do texto como alguém que, de
forma „‟ascendente, sequencial e hierárquica‟‟, (SOLÉ, 1998, p. 23), nesse modelo, o
leitor identifica primeiro a letra, depois a palavra, mais tarde frases e só depois o
texto.
O segundo modelo, ou descendente, coloca o leitor em evidência, atribuindo a
este relevante importância para a construção de sentido do texto.
Há, no modelo descendente, certo exagero, perigoso - a nosso ver - acerca
da autonomia do leitor. Conforme Foucambert (1994) apud Fregonesi (1999) „‟ a
leitura é atribuição de um significado ao texto escrito: 20% de informações visuais,
provenientes do texto; 80% de informações que vêm do leitor...”
Considerando-se que, em um país como o nosso, cujos leitores eficientes
representam a minoria da população alfabetizada, os enunciados construídos a
partir desses encontros – texto/leitor – apresentam grandes chances de serem
frágeis.
Os dois modelos apresentados, ora colocam o texto em evidência, ora o leitor.
De acordo com a concepção interacionista da linguagem, ambos apresentam um
conceito limitado do ato de ler. Segundo Bakhtin (2003), o enunciado se constrói a
partir da relação dialógica entre os interlocutores, não havendo supremacia de um
sobre o outro.
Assim, tem-se um terceiro modelo de leitura, que se aglutina e acrescenta aos
dois anteriores, é o chamado modelo interativo. No modelo interativo, ler consiste
em: decodificar, compreender, inferir, preencher, relacionar, dialogar, sintetizar,
reconstruir dentre outros infinitivos. Nesta perspectiva de leitura, o leitor é sujeito da
ação e posiciona-se diante do texto, de modo ativo, transformando-o e
transformando-se.
Pode-se afirmar que os três modelos de leitura, ainda estão muito presentes
nas práticas pedagógicas, apesar de a maioria dos professores dizer que apenas o
último faz parte de seu cotidiano. Parece-nos que essa diversidade não está
relacionada à escolha.
Há, ainda, muita dúvida quando se trata do ensino da prática discursiva da
leitura. O que é aula de leitura? Quais procedimentos envolvem esse fazer?
Desenvolver o gosto pela leitura é o mesmo que ensinar a ler? Aula de leitura é levar
o aluno à biblioteca?
Acreditamos que há distinções significativas entre desenvolver o gosto pela
leitura e ampliar o conceito de leitura dos alunos. Gosto relaciona-se à liberdade,
satisfação, encontro, curiosidade e depende mais das atitudes do professor do que
das palavras.
Desenvolver o gosto, conforme a contribuição de um dos participantes do
GTR (Grupo de trabalho em rede), não parece combinar com nota, fichas, resumos.

P1 - ...uma das principais causas do insucesso do ensino de leitura em


nossas escolas é a falta de conhecimento de nossos professores com
relação à metodologia para o ensino de leitura.
Penso que seja por isso que em muitas escolas ainda persiste o arcaico
sistema organizado por algumas pedagogas que, mandam os alunos à
biblioteca com a obrigação de pegar um livro (que não seja de poemas e
não contenha muitas figuras) para lê-lo e depois de uma semana entregar
um resumo valendo nota. Infelizmente, muitos ainda chamam esse
procedimento de projeto de leitura.
Sabemos que essa metodologia vai de encontro à formação de futuros
leitores

Melhorar a capacidade de ler dos alunos envolve dentre outras ações, o ato
de planejar. É no planejamento que o professor seleciona o gênero, escolhe as
estratégias e os tipos de leitura que deverão ser realizados para que o objetivo da
aula seja alcançado de modo satisfatório.
Solé (2008) apresenta quatro estratégias que podem ser usadas pelos
professores para mediar o ensino e a aprendizagem da leitura. Sendo elas:
Previsão, inferência, checagem e seleção.
A previsão tem como finalidade principal despertar o interesse do aluno pela
leitura do texto, pois possibilita o exercício de antecipar-se a, ou seja, leva o leitor a
construção de um enredo fictício para o texto, que durante a leitura será confirmado,
ou negado. Essa estratégia geralmente desperta a curiosidade do leitor.
Vale ressaltar que a estratégia de previsão não é acionada apenas antes da
leitura, ela acompanha o leitor ao longo de todo o processo de leitura. Conforme
Solé (1998), à medida que o leitor conhece as características das personagens e
identifica seus papéis (antagonistas ou protagonistas) é levado a se antecipar às
ações dessas e, conforme a leitura avança, tais previsões vão sendo desmontadas
ou concretizadas.
A inferência consiste em preencher os vazios deixados pelo autor. Como todo
texto está incompleto, cabe ao leitor articular seus conhecimentos históricos, sociais,
humanos, científicos, dentre outros, para preenchê-lo.
As estratégias de escrita utilizadas pelo autor para que a leitura seja um
processo ativo, são as mais variadas possíveis, sendo ora uma figura de linguagem,
uma data, a escolha de um ou outro vocábulo, uma imagem, enfim, isso vai
depender do estilo de cada autor e do gênero textual escolhido para a construção da
mensagem. O que não pode ser desconsiderado é a necessidade de o leitor saber
que, por melhor que seja o autor, ele jamais irá dizer tudo, até porque tal
procedimento limitaria o texto e o colocaria numa perspectiva não dialógica de
linguagem.
A seleção está diretamente relacionada ao objetivo da leitura, pois, em função
deste, o leitor será levado ora a filtrar as informações e fazer leitura dinâmica, ora a
reler um mesmo parágrafo, capítulo, ou livro.
Além de prever, selecionar e inferir, é importante, ao final da leitura, checar às
previsões feitas, ou seja, verificar se o autor foi previsível, ou se surpreendeu. Ainda
por meio da checagem, é possível perceber quais mudanças ocorreram no próprio
leitor, ou seja, pode-se analisar como este entrou e como saiu da leitura. Qual
conhecimento novo adquiriu? Que conceitos foram ampliados?...
Outras estratégias podem e devem ser usadas para que a construção do
sentido do texto seja alcançada, conforme contribuição de um dos professores
participantes do GTR:

P1 - Como material de apoio para quem busca novas metodologias, sugiro


aos colegas a leitura e o estudo do material produzido pelo MEC para o
desenvolvimento das oficinas da Olimpíada de Língua Portuguesa.
As estratégias ali presentes são atuais e diversificadas... audição das
crônicas com sonoplastia... coletânea de textos dos mais variados autores
de diversas épocas... identificação das características específicas do gênero
a partir dos texto...

Outro procedimento apresentado pelas DCEs como um caminho eficiente


para a imersão do aluno na cultura letrada e, consequentemente, para a
aprendizagem da expressão culta, é o ensino da língua a partir do gênero.
Para o trabalho das práticas de leitura, escrita, oralidade e análise
linguística serão adotados como conteúdos básicos os gêneros discursivos
conforme suas esferas sociais de circulação. ( PARANÁ, 2008, p. 96)

Todo enunciador escolhe de acordo com sua finalidade comunicativa uma


forma „‟ relativamente estável‟‟ socialmente aprendida para dizer o que deseja.
Segundo Bakhtin (2003), toda comunicação é feita por meio dos gêneros, por
isso estes são os mais variados, pois atendem e organizam todas as relações
interpessoais. Além de heterogêneos, os gêneros são mutáveis, uma vez que
nascem da e para as relações humanas, à proporção que estas se modificam ou se
aprimoram aqueles também sofrem alterações.
O gênero selecionado para conduzir nossas análises e reflexões sobre o
ensino e a aprendizagem da leitura foi à crônica. A crônica, segundo a crítica, é um
gênero ‟anfíbio‟‟, que transmutou do relato histórico para conversa poética. O
vocábulo é de origem grega Khronus relativo a tempo. O registro mais antigo do
termo, no ocidente, relaciona-se, segundo Massaud Moisés, a uma lista de fatos
históricos apresentados a partir de uma ordem cronológica.
Nas Escrituras, a crônica nomeia dois dos quarenta e seis livros do antigo
testamento da Bíblia Cristã, sendo: livro das Crônicas I e II, que consistem em relatar
os fatos mais importantes da história dos reis Davi e Salomão. Algumas Bíblias
apresentam o subtítulo, „‟Paralipômenos” que equivale a Restos.
Na Idade Média e no Renascimento, cronista era o escrivão contratado pelos
reis para relatar os fatos históricos de seu tempo, obedecendo também a uma
sequência cronológica. Fernão Lopes escreveu crônicas sobre os sete primeiros reis
de Portugal, com o objetivo de preservar a história de seu tempo. Em muitos países
europeus, o gênero ainda está relacionado à historicidade.
A partir do século XIX a crônica brasileira ganha aspectos literários, passando
a designar um texto curto, de temática cotidiana e linguagem coloquial, que usa o
jornal como principal suporte para alcançar o leitor, fato que contribui para a
brevidade do gênero. Além do envelhecimento instantâneo peculiar ao jornal, toda
crônica lembra uma conversa informal, limitada a apresentar opiniões pessoais
sobre os mais variados assuntos, sem a necessidade de levar o leitor a grandes
reflexões, o que determina o caráter temporal presente no gênero.
Metodologia

As aulas foram organizadas sob o formato de Unidade Didática, técnica de


ensino que consiste na seleção de conteúdos significativos, organizados de modo a
possibilitar que o aluno compreenda o assunto selecionado em sua totalidade.
A implementação ocorreu entre os meses de março e julho de 2014 e teve
como público alvo alunos do ensino fundamental fase II, do Centro Estadual de
Educação Básica de Jovens e Adultos de Umuarama.
O material didático produzido foi organizado em três momentos: o primeiro
destinado a apresentar o conceito de leitura, de modo a compreendê-la como um
processo dialógico e significativo para o alcance da autonomia. O segundo momento
destinou-se a apresentar a genealogia do gênero crônica. No terceiro momento,
objetivou-se a leitura a e análise das crônicas selecionadas e à avaliação.
Nas atividades, foram utilizadas as estratégias de leitura definidas por Solé
(1998) antecipação, inferência e checagem.
Procurou-se demonstrar, por meio de leituras compartilhadas, que o texto é
uma unidade de sentido e, que, na crônica, como em outros gêneros a narração é
um dos recursos utilizados para que o autor exemplifique seu ponto de vista sobre o
fato discutido. Além de que, cabe ao leitor identificar quais estratégias foram
selecionadas pelo autor, relacionar estas à função comunicativa da qual o gênero se
ocupa, e construir, em um processo interativo, o que o enunciado disse.

Relato da Implementação e Discussão

A implementação teve início no mês de março de 2014. Após apresentar a


finalidade do projeto, tema e provável tempo de duração, iniciamos o diálogo com os
alunos sobre a prática discursiva de leitura.
A estratégia utilizada para identificar qual conceito de leitura os alunos traziam
foi o levantamento dos conhecimentos prévios. A partir das respostas apresentadas
aos questionamentos (O que é ler? Como a leitura contribui para a formação
humana? No Brasil, todos sempre tiveram acesso à leitura?), pudemos identificar
que, para o grupo, ler era decodificar. Conforme exemplifica uma das falas coletadas
(A1) „‟... ler é ser independente, é chegar no terminal e não precisar de ajuda para
entrar na circular certa‟‟.
Diante da afirmação de que ler é decifrar o código escrito, um novo
questionamento foi proposto. „‟ Se ler é decifrar letras, pode-se afirmar que todos os
brasileiros alfabetizados leem de modo eficiente diferentes gêneros produzidos em
língua Portuguesa? Os alunos se posicionaram de modo negativo frente à questão e
acrescentaram que ler é compreender.
Para proporcionar a compreensão de leitura como um processo interativo,
dialógico e social, pautado nas trocas entre autor e leitor, utilizou-se explicitação oral
e leitura compartilhada dos textos sugeridos pela Unidade.
Um dos textos utilizados para relacionar leitura à interação entre autor/leitor
foi „‟ Ler devia ser proibido‟‟, visto que a propaganda produzida pela Universidade de
Salvador utiliza a ironia como importante estratégia para a construção do sentido do
texto.
Após a leitura, foram feitas algumas questões orais, dentre elas: „‟O que o
texto diz?‟‟ Diante dos questionamentos, um dos alunos respondeu: „‟Está escrito
uma coisa, mas na verdade ele diz outra‟‟. Nesse momento, discutiu-se sobre a
inferência, ou a necessidade do leitor articular os conhecimentos que possui para
em um processo ativo construir o sentido do texto.
A fim de relacionar leitura à autonomia, fez-se um novo questionamento: „‟ Os
livros podem ser uma ameaça?‟‟ Apesar da discussão possibilitada pelo o texto
anterior - „‟Ler devia ser proibido‟‟ - os alunos só relacionaram leitura a perigo, caso
esta abordasse temas relacionados à violência. A leitura compartilhada dos itens
“Curiosidade” (Livros e conflitos) e “Você sabia” (poema „‟Carta de um contratado„‟,
de Antônio Jacinto) foi a estratégia utilizada para estabelecer a relação entre
domínio sobre o conhecimento historicamente produzido e a submissão de um grupo
a outro.
No segundo momento, buscou-se, por meio de explicitação oral, possibilitar o
entendimento a respeito de como a linguagem organiza as ações humanas, ou seja,
de como a língua - oral e/ou escrita - é responsável por todas as interações que o
sujeito realiza em seu cotidiano. Discutiu-se sobre alguns textos que fazem parte da
esfera jornalística, a fim de que os alunos compreendessem o conceito de gênero e
a importância deste para a construção do sentido do texto.
Na sequência, realizou-se a leitura em voz alta da crônica „‟No interior do
Paraná, Saltimbancos que somos‟‟ de Inácio de Loyola Brandão - texto publicado em
O Estado de São Paulo, em 21 de setembro de 2012. Após a leitura, propusemos
alguns questionamentos como: não se trata de um texto informativo, por que está no
jornal? Qual a finalidade deste tipo de texto? Seria possível transportá-lo para outro
suporte como o livro, por exemplo?
Fez-se explicitação oral e leitura compartilhada da genealogia do gênero
crônica - texto apresentado na Unidade - com o objetivo de distinguir crônica
jornalística de crônica literária.
Após discussões os alunos concluíram que o texto “No interior do Paraná,
Saltimbancos que somos” não poderia ser publicado em um livro, por tratar-se de
um texto cujo assunto limitava-se ao momento presente e, portanto, no futuro, o
conteúdo do livro ficaria sem sentido.
O terceiro momento consistiu em experimentar o gênero. Optou-se por
trabalhar com três autores sendo eles: Inácio de Loyola Brandão, Rachel de Queiros
e Rubem Braga. A apresentação dos autores se deu a partir dos livros, cujos textos
organizaram os diálogos sobre o gênero selecionado, seguindo a ordem respectiva
dos autores citados, Crônicas para ler a escola, Cenas Brasileiras e 200 crônicas
escolhidas.
Aproveitou-se o momento de apresentação dos autores para propagandear
outros livros como; Memorial de Maria Moura, Dôra Doralina, As três Marias, O
Quinze, A casa do Morro Branco, de Rachel de Queiros, Veia Bailarina de Inácio de
Loyola Brandão, dentre outros.
O trabalho de ensino e aprendizagem da leitura teve início com o textos
„‟Homem feliz na chuva” e „‟Ajeitando os cabelos na Avenida Paulista‟‟, de Inácio de
Loyola Brandão. Após antecipações, leitura em voz alta feita pela professora, e
leitura compartilhada, procurou-se apresentar algumas características do gênero
crônica presentes nos textos lidos como: caráter confessional, temática cotidiana e
uso do discurso direto como estratégia para aproximar o gênero do diálogo oral.
Para levar o aluno à compreensão de que cada autor possui um estilo
característico, nas demais aulas, fizemos a leitura de dois textos de Rachel de
Queiroz („‟Um caso obscuro‟‟; „‟Metonímia, ou vingança do enganado‟‟) e de outros
três de Rubem Braga („‟A mulher e seu passado‟‟; „‟Uma tarde em Buenos Aires‟‟ e
„‟Coração de mãe‟‟).
Diante dos textos de Rachel de Queiroz, os alunos mostraram-se apáticos,
antes mesmo da leitura dos textos - „‟muito longos‟‟ - a leitura compartilhada foi uma
necessidade, tanto para a construção de sentido dos textos, quanto para o interesse
em conhecê-los. Outra dificuldade encontrada pelos alunos foi perceber o uso ora do
caso, ora do conto como estratégias utilizadas para a escrita da crônica.
O tipo de leitura utilizada para a crônica „‟A mulher e seu passado‟‟, de Rubem
Braga foi à silenciosa, pois nos aproximávamos da conclusão da implementação e
ainda não sabíamos se as discussões sobre a compreensão do texto como unidade
de sentido haviam sido assimiladas pelos alunos.
A atividade possibilitou verificar que os alunos entendiam partes do texto, mas
não o compreendiam como uma unidade de sentido. Identificou-se também que a
leitura em voz alta, realizada pela professora, ampliava, significativamente, a
compreensão dos alunos.
Para as demais crônicas de Rubem Braga usamos a leitura silenciosa,
seguida da leitura em voz alta, ambas realizadas pelos alunos. Pôde-se constatar
que grande parte desconsiderava os sinais de pontuação usados no texto. Houve
necessidade de discutir a questão.
O último momento da implementação foi o de avaliar, o que se deu por meio
de avaliações de leitura (questões objetivas e subjetivas) e por meio de um
questionário.

Considerações Finais

Um dos objetivos da Unidade era possibilitar a compreensão de leitura como


um processo dialógico e interativo, construído a partir das marcas textuais e do
posicionamento colaborativo e ativo do leitor no preenchimento dos vazios deixados
pelo autor.
Em princípio, como já apresentado, os alunos relacionavam leitura à
decodificação e à busca de informações no texto. Pôde-se verificar a ampliação
deste conceito, conforme resposta dada ao questionamento “Além de reconhecer as
letras, o que o leitor deve fazer para compreender o sentido dos textos? ‟‟(questão
que fazia parte do questionário apresentado ao grupo no final da implementação).
Com relação à questão, alguns alunos responderam (As)‟‟Preencher os espaços,
vazios do texto, com seu próprio conhecimento‟‟.
Quanto ao modo individual dos alunos se relacionarem com os textos, ou
como cada um lê, foram feitas as seguintes observações: diante de questões
abertas de verificação de leitura, os alunos demonstraram usar de inferências para
estabelecer relação com o texto. No entanto, a compreensão do texto como unidade
de sentido não se efetivara. Já frente a questões objetivas, verificou-se que os
alunos, além de preencher os vazios deixados pelo autor, compreenderam o texto
como unidade de sentido.
Quanto à percepção dos alunos sobre a importância da leitura como um
mecanismo significativo para o alcance da cidadania, afirma-se que alguns alunos
mostraram-se mais dispostos a dialogar com os textos escritos. No entanto, fatores
como carga horária de trabalho, TV, „‟Internet‟‟, dentre outros, ainda se colocam
como obstáculos para uma maior interação com a língua escrita.
De um modo geral, conclui-se que a ampliação do conceito de leitura do
professor, devido à experiência vivenciada (PDE), foi bem mais significativa que a
dos alunos.
Os estudos e trabalhos realizados ao longo do curso de formação continuada
PDE levaram-nos a compreender que, para ampliar o nível de leitura dos alunos,
além de discutir a organização da linguagem por meio dos vários gêneros
discursivos e, possibilitar a compreensão do texto como unidade de sentido, é
preciso ensinar a língua.
É a língua a mediadora da relação autor/leitor. Logo quanto maior o
conhecimento linguístico do leitor melhor será a comunicação.

Referências

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Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, M. (VOLOCHINOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. Ed. 7.


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FREGONEZI, D. E. Elementos de ensino de língua portuguesa.São Paulo: Arte &


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