Entre A Roça e A Cidade - Weitzman

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RODICA WEITZMAN

ENTRE A ROÇA E A CIDADE: um processo de invenção


de práticas alimentares e agrícolas

Rio de Janeiro
2011
RODICA WEITZMAN

ENTRE A ROÇA E A CIDADE: um processo de invenção de


práticas alimentares e agrícolas

1 vol.

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira

Rio de Janeiro
2011

2
Weitzman, Rodica.
Entre a roça e a cidade: um processo de invenção de práticas alimentares e agrícolas /
Rodica Weitzman.
Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional – PPGAS, 2011
x, 106f.: il.; 31cm., viii, 203 p.
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.
1. Minas Gerais 2. Agricultura 3. Alimentação 4. Práticas
5. Mobilidade. I. Palmeira, Moacir Gracindo Soares. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. III. Título

3
Rodica Weitzman

ENTRE A ROÇA E A CIDADE: um processo de invenção de práticas


alimentares e agrícolas

ORIENTADOR: Prof. Moacir Gracindo Soares Palmeira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Aprovada por:

___________________________________________________
Moacir Gracindo Soares Palmeira, Dr., PPGAS/MN/UFRJ

__________________________________________________
Adriana de Resende Barreto Vianna, Dra., PPGAS/MN/UFRJ

___________________________________________________
John Cunha Comerford, Dr., CPDA/UFRRJ

4
Para Jaqueline Evangelista Dias
por seu apoio em todos os momentos

5
AGRADECIMENTOS

Ao longo deste longo percurso, muitas pessoas contribuíram com o processo de


construção desta dissertação. Em primeiro lugar, agradeço meu orientador,
Professor Moacir Palmeira, pelo apoio às ideias centrais que nortearam esta
pesquisa, pela leitura minuciosa e pelo rigor em relação aos princípios do
trabalho etnográfico. Seu comprometimento com o desenvolvimento de uma
produção etnográfica consistente e fiel às sutilezas que transparecem no trabalho
de campo é motivo de bastante admiração;
Ao professor John Comerford, sou muito grata pelas inúmeras conversas
instigantes, pelos livros emprestados e pelo apoio ao caminho trilhado ao longo
desta dissertação;
À professora Adriana Vianna, agradeço as aulas inspiradas que tive o privilégio de
assistir durante este período de estudos, sua paciência para ouvir minhas várias
inquietações e seu incentivo nos momentos de desânimo diante das pressões do
mundo acadêmico. É um verdadeiro privilégio ter como integrantes da banca
examinadora desta dissertação pessoas com quais me identifico e que tanto
admiro;
Ao professor Márcio Goldman, agradeço sua disponibilidade de discutir alguns
conceitos-chave que perpassaram a produção etnográfica;
Ao professor Gilberto Velho, agradeço sua abertura para compartilhar algumas
interfaces entre os temas abordados na minha pesquisa e a literatura existente no
campo da Antropologia Urbana;
À Secretaria do PPGAS – UFRJ, meu reconhecimento pela qualidade do auxílio
prestado nas questões administrativas;
À Biblioteca, agradeço especialmente à equipe de bibliotecárias, que sempre me
atenderam com presteza e delicadeza;
Agradeço ao CAPES pela bolsa de estudos, que possibilitou minha dedicação às
aulas, ao trabalho de campo e à elaboração da dissertação;
A Marcio Mattos de Mendonça, coordenador do Programa de Agricultura Urbana da
Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), sou grata
por ter me apresentado a algumas lideranças de comunidades urbanas no Rio de
Janeiro onde são realizados trabalhos de Agricultura Urbana, durante a etapa da
pré-pesquisa. Estas aproximações com diferentes contextos foram fundamentais

6
no sentido de fomentar minha compreensão dos principais temas abordados nesta
Dissertação;
À Rosângela Pezza Cintrão, agradeço imensamente sua disposição em me ajudar em
todos os momentos – desde a apresentação à comunidade onde realizei o trabalho
de campo até a procura de dados complementares no IBGE. Também, não posso
deixar de reconhecer a importância de nossos diálogos frutíferos sobre as diversas
facetas da Agricultura Urbana – um tema que nos aproxima há bastante tempo e
tem uma relação direta com esta Dissertação;
Agradeço à Cláudia Prado e Rosana Morgado Calvet, bibliotecárias do Centro de
Documentação e Disseminação de Informações do IBGE (CDDI), no Rio de
Janeiro, que me auxiliaram no acesso aos microdados do universo do Censo
Demográfico de 2000 (os microdados do Censo de 2010 ainda não estavam
disponíveis), no trabalho de identificação dos oito setores censitários que
abrangem o Morro dos Prazeres e Escondidinho (que, pela divisão dos setores,
não podem ser desagregados), bem como com a indicação da localização dos
microdados na página do IBGE. Elas me auxiliaram, ainda, na identificação da
área mínima de ponderação dos dados da amostragem do Censo Demográfico,
que permitiram identificar o percentual de mineiros entre a população e outros
dados importantes sobre o processo de migração. No entanto, a área de
ponderação (unidade mínima de análise) é muito ampla, englobando uma grande
parte dos bairros de Santa Teresa e Cosme Velho, o que impossibilitou o
levantamento para os fins desta pesquisa.
À Maria Emília Pacheco, agradeço sua confiança na minha capacidade de enfrentar
mais um desafio na minha vida profissional e aprecio as preciosas trocas de
conhecimentos e experiências que tivemos ao longo destes anos;
Aos colegas do Museu Nacional, agradeço, especialmente, à Rita de Cássia Melo
Santos, Marcelo Moura Mello e João Vicente Marques Lagüéns pelas longas
conversas, livros emprestados e bons conselhos;
À Lilian Alves Gomes, Paulo Victor Leite Lopes, Magdalena Sophia Toledo e
Camila Becattini Pereira de Caux, nunca esquecerei o incentivo que me deram
nos momentos de baixa astral e os encontros agradáveis que tivemos dentro e fora
da sala de aula;
Aos amigos e amigas que sempre estiveram ao meu lado, me dando força durante este
processo árduo: Juliana Malerba, Fernanda Carneiro, Laetícia Jahlil, Gerardo

7
Cerdas, Elisa Cotta de Araújo, Emma Siliprandi, Ivana Cristina Lovo, Antônio
Nicoliello, Gabriela Scotto e Rosana Heringer;
Ao meu companheiro, Marcelo Vianna, por sua paciência e carinho, especialmente,
durante a “reta final”;
À minha mãe, Dorothy E. Weitzman e meu pai, Martin L. Weitzman, que mesmo
com a distância física que nos separa há tantos anos, se fizeram presentes e
acompanharam o desenvolvimento desta Dissertação na medida do possível;
Finalmente, deixo registrada minha gratidão a todos os mineiros em Morro dos
Prazeres e Escondidinho, Rio de Janeiro (RJ) e Ubaporanga (MG) que
colaboraram para a realização desta pesquisa. Sem sua acolhida carinhosa e
abertura para minhas indagações teria sido difícil realizar um trabalho etnográfico
de tanta densidade em um período relativamente curto de trabalho de campo.

8
RESUMO

WEITZMAN, Rodica. Entre a roça e a cidade: um processo de invenção de práticas


alimentares e agrícolas. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2011.

O objetivo deste trabalho é analisar o fluxo de relações forjadas entre dois espaços: a
roça e a cidade, o que envolve um olhar aguçado para a plasticidade dos
significados associados ao rural x urbano/ passado x presente diante dos
processos de deslocamento. Estes processos não se referem meramente a uma
alteração espacial. Envolvem “idas e voltas” no espaço e no tempo e implicam
em uma ressignificação das lembranças. Para explicitar as continuidades e
descontinuidades entre rural x urbano, passado x presente, pretendo focalizar as
práticas alimentares e agrícolas exercidas por mineiros oriundos da área rural que
se deslocaram para as comunidades Morro dos Prazeres e Escondidinho,
localizadas na cidade do Rio de Janeiro. Sendo o alimento bastante elucidativo da
mobilidade que caracteriza este processo de “idas e voltas”, a evolução das
representações sociais em torno das comidas e dos alimentos ocupa um lugar de
destaque nas trajetórias individuais e coletivas destes mineiros. Este estudo tem
como intenção se debruçar sobre a proliferação de invenções realizadas em
espaços domésticos e públicos, que vai além de meras adaptações de práticas
agrícolas e alimentares empregadas no passado para um novo contexto, repleto de
condições diferenciadas, próprias do ambiente urbano. Transparecem diversas
formas de se apropriar dos diversos espaços que compõem a territorialidade
urbana e de criar um circuito social de trocas em torno dos seus recursos naturais.
Estas iniciativas se traduzem no que posso chamar de “bricolagem” de recursos
disponíveis e acontecimentos novos, fruto de um processo criativo que não pode
ser simplesmente reduzido a uma síntese entre elementos do passado e do
presente. Entretanto, ela nega a história como mera reprodução. O que se percebe
é que as estruturas de significação remetem ao passado, mas ao mesmo tempo,
são reorganizadas e reestruturadas num processo contextual.

Palavras-chave: Minas Gerais, Agricultura, Alimentação, Práticas, Mobilidade.

9
ABSTRACT

WEITZMAN, Rodica. Entre a roça e a cidade: um processo de invenção de práticas


alimentares e agrícolas. Rio de Janeiro, 2011. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
2011

The objective of this particular piece of work is to analyze the ebb and flow of
relations constructed between two spaces: the rural areas and the city, which
involves a detailed look at the plasticity of meanings associated with rurality x
urbaneness/ the past x the present in the face of changes of residence. The process
of moving to the urban sector does not only involve a spacial alteration. It
involves a “coming and going” between two geographic spaces and two periods
of time. In order to make more explicit the continuity and discontinuity between
rurality x urbaneness/ the past x the present, I will focus on the agricultural and
food practices of people originally from the rural áreas of Minas Gerais, who
have dislocated to Morro dos Prazeres and Escondidinho – urban communities
located in the city of Rio de Janeiro. Since food is quite elucidating of the
mobility that characterizes this process of “coming and going”, the evolution of
social representations around eating and food is contextualized within the
individual and collective trajectories of this particular population. This study has
the intention of gaining a greater understanding of the proliferation of creative
experiments carried out in domestic and public spaces, that goes beyond mere
adaptations of agricultural and food practices that were used in the past to new
and different urban conditions. In such a process, one is able to witness different
forms of appropriating the diverse spaces that make up the urban territorality and
of creating social circuits that involve exchanges of its natural resources. These
diversified experiments can be translated into what I would call a “bricolage” of
available resources and new occurrences, the result of a creative process that
cannot simply be reduzed to a fusion of elements from the past with elements
from the present. Such a process denies history as mere repetition of old patterns
and customs. What one perceives is that the underlying structures of meaning
intrinsic to such social practices taken on by people originally from Minas Gerais
may seem to be visible traces of continuity in their lives as former agricultural
workers, but they are reorganized and restructured in the new urban context.

Key-words: Minas Gerais, Agriculture, Food, Practices, Mobility.

10
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................16 

1. O MORRO DOS PRAZERES E A ROÇA: CONTINUIDADES E


DESCONTINUIDADES NA RECONSTRUÇÃO NARRATIVA ........................30 
1.1 QUE ROÇA É ESSA? ESSA ROÇA QUE “PARECE ESTAR DENTRO DA
GENTE”?.................................................................................................................30 
1.2 AS MARCAS DAS LEMBRANÇAS: O LUGAR DA MEMÓRIA NO FLUXO
RURAL-URBANO..................................................................................................34 
1.3 A COMPOSIÇÃO DO MORRO DOS PRAZERES E DO MORRO DO
ESCONDIDINHO: AS EXTENSÕES E LIMITES DA COMUNIDADE.............36 
1.3.1 Um olhar aguçado sobre a localidade: é um morro só? ..........................36 
1.3.2 Processo de ocupação territorial: a consolidação de subdivisões e
demarcações.....................................................................................................38 
1.4 HISTÓRIAS CONTADAS SOBRE O PROCESSO DE CHEGADA EM
MORRO DOS PRAZERES E ESCONDIDINHO A PARTIR DE UM ESQUEMA
CONTRASTIVO E COMPARATIVO....................................................................42 
1.5 INSTITUIÇÕES QUE REPRESENTAM DUAS FONTES DE “ORDEM
SOCIAL”: O TRÁFICO E A RELIGIOSIDADE ...................................................51 
1.5.1 O tráfico ..................................................................................................51 
1.5.2 A Igreja Católica .....................................................................................54 
1.6 TRABALHO: SIGNIFICAÇÕES CONTRASTANTES NA ROÇA E NA
CIDADE ..................................................................................................................56 
1.7 OS SUSTOS DIANTE DA MULTIPLICIDADE DE OPÇÕES DE
COMÉRCIO NO ÂMBITO URBANO ...................................................................61 

2. COMIDA DA CIDADE E COMIDA DA ROÇA/ COMIDA CARIOCA E


COMIDA MINEIRA: MARCAS CLASSIFICATÓRIAS QUE REGEM O
TRÂNSITO RURAL-URBANO...............................................................................66 
2.1 SITUANDO O ALIMENTO NO CONTEXTO DO FLUXO ENTRE A ROÇA
E A CIDADE ...........................................................................................................66 
2.2 AS MARCAS DAS CLASSIFICAÇÕES ALIMENTARES ............................69 
2.2.1 Forte/fraco...............................................................................................69 
2.2.2 Fartura .....................................................................................................72 
2.3 ENQUADRAMENTOS EMBLEMÁTICOS DAS COMIDAS NAS
REFEIÇÕES ............................................................................................................74 
2.3.1 Arroz e macarrão.....................................................................................76 
2.3.2 Mandioca.................................................................................................77 
2.3.3 Fubá e angu .............................................................................................78 
2.3.4 O pão.......................................................................................................79 
2.4 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES NOS HÁBITOS
ALIMENTARES – OS PRATOS NOVOS QUE “ESTÃO NA MODA” E AS
COMIDAS TÍPICAS DA ROÇA ............................................................................81 
2.5 O PRATO TÍPICO: “COMIDA CARIOCA” X “COMIDA MINEIRA” .........84 
2.6 A REFEIÇÃO ENQUANTO PROCESSO SOCIAL: A COMENSALIDADE 87 

3. REPRESENTAÇÕES EM TORNO DO LOCAL DE MORADIA COMO


REFERENCIAL DE ENRAIZAMENTO NUM ETERNO IR E VIR .............90 
3.1 A CASA: ALVO DE UMA TRAGÉDIA QUE DESENCADEIA UM

11
PROCESSO DE VULNERABILIZAÇÃO SOCIAL..............................................90 
3.2 “NOSSO SOFRIMENTO ESTÁ DENTRO DA GENTE”: AS MARCAS
DEIXADAS PELA “FERIDA ABERTA” ..............................................................92 
3.3 DIFERENTES GRAUS DE VITIMIZAÇÃO: EXPLICAÇÕES DADAS
SOBRE A TRAGÉDIA ...........................................................................................96 
3.4 A CASA: REFERÊNCIAS EM TORNO DO ESPAÇO CONQUISTADO .....98 
3.4.1 Contabilização da casa a partir das indenizações ...................................98 
3.4.2 A casa construída: gestão de moradias e terrenos na territorialidade
urbana...............................................................................................................99 
3.5 DUAS VIAS DE REAÇÃO DIANTE DA CRISE INSTALADA: IMPULSOS
PARA RETORNO AO LUGAR DE ORIGEM OU APEGO À CASA
CONSTRUÍDA......................................................................................................104 
3.5.1 A primeira via de reação: os impulsos de fuga .....................................105 
3.5.2 A segunda via de reação: o apego à casa construída e aos seus arredores
........................................................................................................................106 

4. AS “IDAS E VOLTAS”: MODALIDADES ORGANIZATIVAS DOS


DESLOCAMENTOS ESPACIAIS ........................................................................110 
4.1 A AMBIGUIDADE INERENTE À SITUAÇÃO DE QUEM SE DESLOCA: O
ETERNO “IR” E “VIR” ........................................................................................112 
4.2 DIVERSAS MODALIDADES DE “IDAS E VOLTAS” ENTRE ROÇA E
CIDADE ................................................................................................................114 
4.3 AS IDAS E VOLTAS DA DONA ROSA E DE SEU NATALINO:
CULTIVANDO AS RELAÇÕES DE PARENTESCO NO LUGAR DE ORIGEM
................................................................................................................................117 
4.4 AS TRAJETÓRIAS DOS QUE VOLTARAM PARA SEU LUGAR DE
ORIGEM: O PROCESSO DE REINSERÇÃO NO ESPAÇO RURAL ...............120 
4.4.1 A história de Humberto: a realização do seu sonho..............................122 
4.4.2 A história de Seu Roberto: “De lá e daqui” ..........................................123 
4.5 A FESTA DOS AUSENTES: UM ENCONTRO ENTRE “OS DE FORA” X
“OS DE DENTRO” ...............................................................................................125 
4.5.1 O surgimento da Festa dos Ausentes: a ideia por detrás de sua
concretização..................................................................................................125 
4.5.1.1 Ser uma “festa família”: a reunião dos ausentes para “reviver o
clima que tinha aqui” .....................................................................................127 
4.5.1.2 Um “encontro” entre os dois lados: os que ficaram, “os de dentro”
e os que partiram, “os de fora”.......................................................................128 
4.5.2 A Festa dos Ausentes e seu efeito irradiador: a replicação da ideia em
outros níveis e âmbitos...................................................................................132 
4.5.3 A evolução histórica da Festa dos Ausentes: mudanças no seu
planejamento e gestão ....................................................................................133 
4.5.4 “Dentro” x “Fora” / “Local” x “Extralocal”: a mostra de produtos locais
da roça como um contraponto com representações da vida urbana...............135 

5. PLANTAR COMO UMA FORMA DE "LEMBRAR DO PASSADO" E DE


REINVENTAR O MOMENTO PRESENTE: A AGRICULTURA DA QUAL
NÃO SE DEPENDE PARA VIVER.......................................................................139 
5.1 O CASO DE DONA ROSA: AS DIVERSAS MOTIVAÇÕES PARA
PLANTAR – CONCRETIZAÇÃO DE UM DESEJO ..........................................140 
5.2 “NÃO DÁ PARA PLANTAR AQUI” X “A GENTE SEMPRE DÁ UM

12
JEITO” – OS DESAFIOS DE PLANTAR NO AMBIENTE URBANO..............141 
5.3 DOIS TIPOS DE AGRICULTURA - AGRICULTURA DOS QUE “VIVEM
DA PLANTAÇÃO” - “PLANTAR PARA COMER” X AGRICULTURA DOS
QUE “NÃO VIVEM DA PLANTAÇÃO” - “PLANTAR COMO UM
PASSATEMPO”....................................................................................................143 
5.4 O CERNE DO PROCESSO INVENTIVO: “VOCÊ É DOIDA MÃE?” ........145 
5.4.1 O fluxo de dar e receber / pedir e oferecer............................................145 
5.4.1.1 “Queria mostrar um trabalho meu”: o ato de oferecer...............147 
5.4.1.2 O alimento, a planta ou a semente como canal de comunicação no
circuito social: de que modo se operam estas transações ..............................148 
5.5 INICIATIVAS DE PLANTIO EM ESPAÇOS DOMÉSTICOS.....................151 
5.6 BRICOLAGEM: A JUSTAPOSIÇÃO E REARRANJO DE ELEMENTOS
HETEROGÊNEOS NOS PROCESSOS INVENTIVOS ......................................155 
5.7 RECONFIGURAÇÃO DOS ESPAÇOS NO ÂMBITO DOMÉSTICO E
TRANSFORMAÇÕES NOS PAPÉIS SOCIAIS DESENVOLVIDOS................156 
5.8 DIFERENTES FORMAS DE SIGNIFICAÇÃO DE ESPAÇOS E RECURSOS
– QUEM É “DONO” DE QUÊ?............................................................................160 
5.8.1 O nível de acesso aos recursos naturais: “Este mato não é de ninguém”
........................................................................................................................160 
5.8.2 Ocupação de terrenos considerados públicos: o direito de uso.............162 
5.8.3 Impasses que dificultam os processos de plantação em espaços públicos
........................................................................................................................166 
5.8.4 Modalidades de controle social: princípios organizadores da gestão das
áreas coletivas ................................................................................................168 
5.9 AS IDAS PARA MATO – FONTE DE ACESSO AOS RECURSOS
NATURAIS ...........................................................................................................170 

6. CONCLUSÕES ....................................................................................................174 
6.1 QUE COLETIVIDADE É ESSA? – “OS MINEIROS”..................................174 
6.2 O MAPEAMENTO DAS RELAÇÕES NO PROCESSO DE
SOCIABILIDADE – ADENTRANDO NUMA “REDE SOCIAL” .....................176 
6.3 PROCESSOS IDENTITÁRIOS – O ENRAIZAMENTO DA IDENTIDADE
MINEIRA EM MEIO DOS FLUXOS INCESSANTES DE “IR E VIR”..............178 

7. REFERÊNCIAS...................................................................................................181 

8. ANEXOS..............................................................................................................188 
ANEXO 1 Morro dos Prazeres e Escondidinho – Santa Teresa - Rio de Janeiro-RJ
– Localização e Vista Geral ...................................................................................188 
ANEXO 2 Morro dos Prazeres e Escondidinho – Rio de Janeiro - Tragédia de 6 de
Abril 2010 - Cobertura da Imprensa .....................................................................190 
ANEXO 3 Acesso a áreas para plantio e coleta de plantas – Morro dos Prazeres –
Rio de Janeiro - RJ.................................................................................................193 
ANEXO 4 Caminhadas da D. Rosa para coletar plantas “no mato” - Floresta da
Tijuca – Rio de Janeiro - RJ...................................................................................197 
ANEXO 5 Trabalho Informal de Ubaporanguenses no Rio de Janeiro.................200 
ANEXO 6 Ubaporanga – MG – Mapas e Localização..........................................201 
ANEXO 7 Festa dos Ausentes de Ubaporanga-MG: impressos...........................202 
ANEXO 8 Desfile Escolar na Festa dos Ausentes de Ubaporanga-MG ..............208 

13
Índice de Fotos

Foto 1 Vista do Morro dos Prazeres mostrando a área verde na parte superior e a
parte chamada de “Morro dos Paraíba”. Observar a ponte Rio-Niterói, ao fundo e uma
área de deslizamento na floresta da Tijuca, ocorrida também em abril de 2010. ......189 
Foto 2 Placa da Rua dos Mineiros, no Escondidinho, Rio de Janeiro - RJ...............190 
Foto 3 Reportagem sobre o deslizamento – “Bombeiros e voluntários vasculham os
destroços de 10 casas no Morro dos Prazeres” . Revista Época (abril/2011) ............190 
Foto 4 Reportagem sobre o deslizamento – “A dor da perda” - pai carregando corpo
de filho morto no deslizamento. Revista Época (abril/2011) ....................................191 
Foto 5 Cruz no local de desabamento das casas .......................................................191 
Foto 6 Casa da D. Ana (lado direito superior da foto), com área de deslizamento ao
lado, na parte de baixo da R. Gomes Lopes...............................................................192 
Foto 7 Trecho da Rua Gomes lopes, em reconstrução.............................................192 
Foto 8 D. Rosa pegando terra perto do casarao para sua horta no terraço................193 
Foto 9 Sr. João e D.Rosa olhando para o local da plantação do Sr. João e
conversando sobre as plantas. ....................................................................................193 
Foto 10 Plantação do Sr. João em lote vago .............................................................194 
Foto 11 Sr. João em sua plantação.............................................................................194 
Foto 12 Muro da casa da D.Ana, ao lado do local do deslizamento.........................195 
Foto 13 Plantação da D. Ana – Mamão, mandioca, cana e hortaliças......................195 
Foto 14 D.Ana cuidando das plantas em sua casa ...................................................196 
Foto 15 Quintal da D.Ana - Árvore próxima ao muro que traficantes pediram para ser
cortada por impedir a visão da facção inimiga. .........................................................196 
Foto 16 Sr. Antonio e D.Rosa no viaduto da R. Gomes Lopes, olhando para a
plantação do Sr. Antonio (embaixo do viaduto) e conversando sobre as plantas......197 
Foto 17 D. Rosa identificando plantas no caminho, à beira do trilho do trenzinho do
corcovado...................................................................................................................197 
Foto 18 D. Rosa apontando para mudanças ocorridas na vegetação da floresta da
Tijuca .........................................................................................................................198 
Foto 19 D. Rosa identificando o ponto de coleta da capiçoba.................................198 
Foto 20 D. Rosa colhendo capiçoba ........................................................................199 
Foto 21 D. Rosa colhendo obobró (orapronóbis) no mato.......................................199 
Foto 22 Irmão da D.Rosa descascando mandioca em barraca na feira da Glória –
Rio de Janeiro ............................................................................................................200 
Foto 23 Ala Riquezas de Ubaporanga”: Carro Alegórico “Riquezas da Roça” .......208 
Foto 24 Ala Riquezas de Ubaporanga”: Carro Alegórico “Riquezas da Roça”,
representando os produtos da roça.............................................................................208 
Foto 25 Rainha com ramos de café na peneira e nos cabelos...................................209 

14
Foto 26 Ala “Riquezas de Ubaporanga”: Carro alegórico da “família
ubaporanguense..........................................................................................................209 
Foto 27 Carrro alegórico da Família Ubaporanguense: “Ausente e Presente”.........210 
Foto 28 Momento festivo durante a festa: “ausentes” moradores do Morro dos
Prazeres e Escondidinho tocando pagode. .................................................................210 

Índice de Figuras

Figura 1 Imagem de Satélite do Morro dos Prazeres e Escondidinho. Ã direita, a parte


de cima do morro. A R. Gomes Lopes se situa ao centro, no sentido vertical ..........189 
Figura 2 Imagem de Satélite do Morro dos Prazeres e Escondidinho, com zoom na R.
Gomes Lopes (no centro da foto), que divide as duas localidades. ...........................189 
Figura 3 Mapa das Regiões de Planejamento do IBGE em Minas Gerais. Os
municípios de Ubaporanga e Caratinga ficam localizados na região do Rio Doce ...201 
Figura 4 Mapa do Município de Ubaporanga mostrando os distritos, que
correspondem aos diferentes córregos. A maior parte das pessoas que vieram para os
Morros dos Prazeres e Escondidinho são dos distritos de S. José de Batatal e de S.
Sebastião de Batatal, além da cidade de Ubaporanga e seus arredores. ....................201 
Figura 5 Programação da IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985 ..........202 
Figura 6 Material do IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985.................203 
Figura 7 Material do IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985.................204 
Figura 8 Letra da Música criada para o IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga -
1985............................................................................................................................206 
Figura 9 Material sobre a festa dos ausentes, relatando a história do evento ...........207 

15
INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve origem em uma inquietação que tem me


acompanhado ao longo de minha vida profissional como técnica e consultora de
ONGs e movimentos sociais em Minas Gerais, engajados na promoção de
experiências no campo agroecológico1, tanto na área rural quanto nas comunidades
periféricas das cidades.
Minha inquietação parte de uma postura crítica em relação à abordagem
dicotômica de campo/cidade que tem prevalecido no bojo das intervenções realizadas
por estas diversas organizações sociais e em algumas formulações que subsidiam tais
intervenções advindas das Ciências Sociais, principalmente, do campo da Geografia.
Desde o início do século XX, observa-se a construção de formulações teóricas
e metodológicas que sedimenta a imagem da cidade como representação das forças da
modernidade, com capacidade para suprimir qualquer vestígio da ruralidade.
Prevalecia, na época, uma visão da urbanização – inerente às abordagens das linhas
teóricas neomarxistas – como um fenômeno que dependia do êxodo dos trabalhadores
rurais do campo e traçava um plano fatalístico em relação ao iminente
desaparecimento do campesinato.
Portanto, de algum modo, se previa que as atividades agrícolas, exercidas na
área rural, seriam suplantadas pelas modalidades da vida urbana. Esta oposição entre
campo e cidade vem aliada à antítese tradicional/moderno, passado/futuro
(SOROKIN; ZIMMERMAN; GALPIN, 1965; LÉFEBVRE, 1970; KAYSER, 1996) e
contribui para o enquadramento do mundo rural nos moldes de um passado
idealizado, que tem sido literalmente engolido pelos processos acelerados da
crescente industrialização.
Esta concepção ganha corporalidade na hora de observar a postura
epistemológica de algumas organizações diante do seu público-alvo e na execução das
ações previstas nos seus projetos sociais. Havia um esforço para desenvolver

1
No final dos anos 1980, constituiu-se uma rede de organizações em Minas Gerais (REDE
PTA), visando a formulação de um novo modelo de desenvolvimento para agricultura. No início, o
foco do trabalho das organizações era a multiplicação e intercâmbio de tecnologias alternativas, que
pudessem contestar a suposta “validade” dos pacotes tecnológicos “pré-fabricados” disseminados pela
Revolução Verde. Com o passar dos anos, essa concepção de trabalho evoluiu para o conceito de
Agroecologia, que se refere não apenas às práticas agrícolas, mas integra os princípios agronômicos,
ecológicos e socioeconômicos. Segundo Mussuoi; Pinheiro (2002), a Agroecologia é uma ciência
“baseada em princípios como a diversidade, solidariedade, cooperação, respeito à natureza, cidadania e
participação (…) com possibilidades de distribuição mais justa de renda, poder e responsabilidades”.

16
abordagens metodológicas que pudessem questionar os princípios da Teoria do
Difusionismo que fundamentava a visão convencional da extensão rural no Brasil
desde os anos 1970.
A construção de projetos voltados para o fortalecimento da organização do/as
agricultores/as, dentro do paradigma da Agroecologia, que se consolidou nos anos
1990, tinha como locus de ação o campo e se constituía em uma aposta no potencial
da agricultura familiar, diante das pressões da ideologia da Revolução Verde e da
ameaça crescente do agronegócio. Portanto, não havia uma discussão sobre os
desdobramentos do êxodo dos agricultores para a cidade e os impactos destes fluxos
migratórios sobre as práticas agrícolas e alimentares.
Parecia prevalecer uma ideologia assimilacionista em torno dos processos
migratórios como se os agricultores, ao se deslocarem para a cidade, deixassem para
trás este legado da “roça” e se tornassem máquinas, controladas pelos ritmos da vida
moderna. A metrópole, enquanto espaço de reconfiguração de outros modos de
subjetivação e fonte de surgimento de novas modalidades da atividade agrícola, não
entrava na pauta destas organizações.
A multiplicidade de invenções em torno do alimento que perpassavam as
práticas agrícolas e extrativistas protagonizadas por sujeitos que não mais se
constituíam enquanto camponeses, mas que encontravam traços de uma nova
identidade em meio à dinâmica intricada das comunidades urbanas, não era foco
central das indagações feitas por estas organizações.
Iniciativas de ocupação de solo nas áreas periféricas para plantação em
quintais e espaços públicos têm crescido em termos de visibilidade e abrangência nos
últimos anos. Entretanto, havia pouca discussão sobre o desenvolvimento de uma
produção para autoconsumo e geração de renda nas favelas das grandes cidades.
Entre uma grande variedade de organizações que atuam no movimento
agroecológico no Brasil, havia apenas duas que apostavam nas comunidades urbanas
como plano de suas intervenções e, vale salientar, enfrentavam dificuldades para
pautar as questões relevantes a estas temáticas – alimentação e agricultura – diante do
amplo leque de articulações e mobilizações que tinha como ponto de partida a
realidade do campo.
Muitas estratégias empregadas para preservar e incentivar as práticas
agrícolas, oriundas da vida camponesa na área rural, estavam ancoradas em
reificações sobre o rural enquanto espaço idealizado, que lutava para manter suas

17
tradições, no bojo de uma relação assimétrica forjada com a cidade. Mesmo com a
incipiente mobilização em torno da bandeira da “agricultura urbana”2, ainda havia
uma dificuldade para compreender o campo e a cidade como pontos que estão
estruturalmente interligados, como Redfield (1953) apontava nas suas formulações
teóricas3.
Portanto, ao encarar esse projeto de pesquisa, minha intenção, inicialmente,
era problematizar tanto a suposta cristalização do espaço rural como algo fixo no
passado, quanto a plasticidade atribuída aos processos de modernização, associados
aos espaços urbanos e enquadrados num projeto para um futuro próximo. Apostava na
hipótese erguida por Redfield (1953) de que não tem campo sem cidade e tinha a
intenção (um pouco ambiciosa, por sinal) de comprovar a relação que decorre do
imbricamento entre estes dois universos.
Destarte, neste estudo etnográfico, acredito que não seria possível iluminar a
complexidade das dinâmicas sociais observadas no meio urbano sem depurar as
origens destas populações, pois suas práticas são imbricadas nas referências do
passado, mesmo que haja um movimento criativo de reatualização das mesmas, que
engendra uma proliferação de novas invenções.
Minha intenção é adotar uma leitura meticulosa sobre a complexidade da
relação campo-cidade que possa fugir dos padrões que demarcam a abordagem
dicotômica. Em suma, busco ir além de uma leitura dos processos de urbanização e
dos deslocamentos entre campo e cidade que se conformam apenas aos termos ditados
por uma “grande narrativa pré-concebida” (COMERFORD, 2006).
Ao reconhecer que as categorias migração e urbanização têm sido óticas
limitantes para captar a complexidade própria dessas configurações que constituem o
foco de minha análise, um dos meus primeiros exercícios, do ponto de vista teórico,
era buscar críticas já realizadas sobre a produção dessas categorias e novas
abordagens sobre o debate já travado, postas no universo intelectual (SEYFERTH et

2
A Agricultura Urbana é um termo que tem sido empregado pelas organizações sociais e
órgãos governamentais para nomear as atividades desenvolvidas dentro ou na periferia de diferentes
cidades do mundo. E que envolvem o cultivo de plantas e a criação de animais, a reciclagem de
resíduos e água com fins produtivos e o processamento e distribuição de produtos alimentares e não
alimentares. A produção pode ser destinada para o consumo doméstico ou pode ser comercializada,
gerando renda extra para as famílias e contribuindo na economia doméstica (WEITZMAN, 2008).
3
Redfield (1953) traz um esquema para compreender as interconexões entre o rural e o urbano
que rompe com uma visão evolucionista e foca na relação construída. Para este autor, a área rural e a
área urbana participam do mesmo universo. O camponês já pressupõe a existência da cidade, portanto,
“a cultura do camponês” é a mesma cultura que existe na cidade. Neste esquema relacional, não existe
um dualismo entre “dois polos” supostamente distintos e opostos.

18
al., 2007; ALMEIDA; PALMEIRA, 1977; SAYAD, 1998; FERGUSON, 1999).
Uma chave de leitura neste empreendimento intelectual é que o campo e a
cidade deveriam ser apreendidos numa visão dialética, tendo como foco de análise os
modos de vida e valores que cada um destes âmbitos exprime. Sinalizo aqui minha
principal inquietação, motor que justamente impulsiona meus enredos intelectuais –
explorar de que forma as memórias de uma vivência enraizada na área rural se
expressam e ganham novos significados no tecido heterogêneo e híbrido do espaço
urbano, sedimentada no caráter multívoco das interações sociais. Parto do pressuposto
de que o processo de deslocamento, que envolve “idas e voltas”, não se refere
meramente a uma alteração espacial, mas implica em um processo de ressignificação
das lembranças, que passa pelas modificações nas referências de memória
(HALBWACHS, 1994, 2006; TADESCO, 2004).
As pessoas que se deslocaram da área rural para as comunidades urbanas
fazem uso de um conjunto de mecanismos para a reinterpretação e reformulação do
passado, associado à vida anterior “na roça”, o que possibilita uma renovação do
sentido e uma atualização de estratégias reprodutivas. Procuro adentrar para a esfera
dos agentes coletivos, na qual diversas facetas das tradições alimentares e agrícolas
que foram legados de um passado se encontram incorporadas nas práticas sociais da
atualidade e servem como os principais vetores do movimento inventivo, na produção
do novo.
A presente investigação não se propõe apenas a constatar o grande número de
mineiros que habitam o aglomerado urbano, nem tampouco discorrer sobre os
motivos da vinda. Dito isto, minha intenção é compreender de que forma este vínculo
entre o passado e o presente, entre a roça e a cidade se renova e se reatualiza no cerne
de suas práticas cotidianas, ou seja, de que forma o passado se torna um referencial
para lidar com o momento presente.
Pretendo abordar a atualização de estratégias reprodutivas como processos
criativos e inventivos, com limites mais alargados, que possam ser vistos de múltipas
óticas. Logo, um cuidado que tive desde o início do trabalho de campo era não tomar
a ruralidade como um resquício do passado, definido como permanências culturais.
Tem momentos que nós, pesquisadores(as), no auge do trabalho de campo,
caímos em algumas armadilhas que reforçam dicotomias que, a princípio, não fariam
parte do corpo de nossas formulações teóricas e insights. Assinalava, contudo, que
desde o início, seria necessário ter mais vigilância para não congelar as realidades

19
invisibilizadas e não reduzi-las a um enquadramento do passado idílico no momento
presente.
Para debruçar-se mais detidamente sobre os trânsitos que ocorrem entre dois
espaços – o rural e o urbano – meu entendimento era que não se tratavam de
processos migratórios que têm como pressuposto apenas um ponto de partida e um
ponto de chegada, mas ilustram de forma bem nítida um fluxo contínuo de idas e
voltas.
Para a realização deste estudo, foi importante recorrer a novas compreensões
dos processos de migração – ou mobilidade e deslocamento – que caracterizam o
fluxo rural-urbano. Os deslocamentos serão analisados enquanto um acontecimento
histórico que atinge tantos os que partem quanto os que ficam e que envolve um
estágio de ambiguidade em relação à temporalidade. Procuro apresentar este trânsito
não como um ato de rompimento com o lugar de origem, mas como uma vivência que
estabelece nexos entre dois universos – a roça e a cidade.
Mesmo adotando uma abordagem mais fluida do movimento capilar que
caracteriza esse “ir e vir”, sempre reconheço a importância de incluir este ponto de
partida nas minhas indagações.
Tendo como pano de fundo deste estudo etnográfico a relação rural-urbano,
senti a necessidade de conduzir o trabalho de campo de tal forma que não ficasse
restrito apenas ao âmbito urbano. Isto é, imaginava a comunidade urbana como foco
de minha investigação etnográfica, mas considerava fundamental traçar uma conexão
com os lugares de origem.
Pretendia explorar as várias ramificações desta relação rural-urbano ao
analisar as diversas configurações dos deslocamentos. Por exemplo, se o trânsito se
apresentava como um processo realizado “em bloco” e contava com uma articulação
prévia entre as famílias no lugar de origem, antes da vinda, se era realizada de forma
mais individualizada, de que forma as redes de relações entre parentes, familiares e
conhecidos foram sendo tecidas no âmbito da cidade e se estas redes estabeleciam
pontos de conexão com seus lugares de origem.
Por causa de minha experiência de trabalho no período de 1998-2008 com
comunidades rurais de Minas Gerais, em parceria com sindicatos e associações
comunitárias,4 eu tinha percebido há bastante tempo que existia um movimento

4
Faço referência, aqui, aos meus trabalhos como Assessora Técnica em duas ONGs: O

20
intenso de deslocamentos para o Rio de Janeiro, especialmente, por parte dos
agricultores que eram originalmente das regiões da Zona da Mata e Vale do Rio Doce.
Como uma primeira etapa desta pesquisa, baseada nas informações fornecidas
por informantes-chave nas comunidades mineiras de Carangola, Divino e Tombos, na
região da Zona da Mata, fiz uma série de visitas às comunidades urbanas no Rio de
Janeiro, nas quais havia uma representatividade maior de mineiros, oriundos da área
rural.
Considero que o exercício etnográfico começa a partir do momento em que se
embarca numa viagem para encontrar o “terreno fértil”, com as condições adequadas
para suscitar nossa curiosidade epistemológica. Ou seja, as etapas preliminares que
implicaram numa série de sondagens sobre as possibilidades de dada comunidade, se
tornaram o ponto focal para o trabalho de campo e desvendaram uma série de
inquietações que, de certa forma, nortearam a condução de minhas investigações ao
longo do trabalho realizado. Por este motivo, considero fundamental relatar as
percepções que tive a partir de algumas visitas iniciais.
Cito primeiro o caso de Campo Grande, uma comunidade periférica que não
se constitui enquanto favela e na qual a representatividade mineira se apresenta de
modo organizado. Quatro ruas são literalmente tomadas por migrantes de Tombos e
segundo os entrevistados, as redes de re’lações são imbricadas, a partir de afiliações
familiares e comunitárias fundadas no contexto da comunidade rural.
A explicação para o alto nível de organização, no espaço urbano, dos mineiros
oriundos de Tombos, poderia ser buscada por meio de algumas informações sobre seu
lugar de origem. Tombos é uma das comunidades da região de Zona da Mata que se
destaca por seu papel central nos processos políticos e pelo fortalecimento de suas
formas organizativas: Sindicato, Comissão de Trabalhadoras Rurais, entre outras.
Tomo como referência aqui as elaborações de Comerford (2006), sobre a
conformação dessas configurações em que parentes e quase-parentes se concentram
em dadas localidades, de tal forma que famílias camponesas agem como unidades não
puramente locais, mas regionais e até nacionais. O caso de Campo Grande é uma
exemplificação deste fenômeno – ao representar uma articulação que atravessa os
limites rurais e urbanos. Encaixa-se perfeitamente numa descrição feita pelo próprio

“Centro da Mulher”, do Movimento do Graal, e a Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas que


têm o objetivo de fortalecer processos organizativos na área rural de Minas Gerais em torno de
Agroecologia, Segurança Alimentar e Nutricional e Relações Sociais de Gênero. E também, aos
trabalhos realizados, por mim, como consultora independente durante o período referido acima.

21
Comerford (2006): “Determinados bairros (na cidade) funcionam efetivamente como
extensões, não só de determinadas famílias, mas até mesmo de determinadas
‘comunidades’ ou ‘córregos’ (COMERFORD, 2006, p. 9).
Um contraste deste exemplo seria a comunidade Maré – emblema da
amalgação que resulta dos deslocamentos a partir de diversas localidades. Neste local,
há uma representatividade significativa de mineiros, nordestinos e angolanos que se
encontram entrelaçados no mapa da comunidade, ou seja, houve uma miscigenação
no próprio processo de ocupação do espaço geográfico e por causa desta diversidade
foi difícil localizar os mineiros. Em contraponto com a vivência em Campo Grande,
não se transparecem estratégias de organização interna das camadas mineiras.
O movimento que deu origem às perguntas norteadoras do trabalho de campo
foi fecundado por incursões realizadas a estas e mais algumas comunidades urbanas
no mês de março de 2010, antes da escolha da comunidade que serviria como escopo
do meu trabalho etnográfico. Finalmente, optei por uma comunidade que estava “fora
da rota” e talvez, em parte, por isso mesmo, represente, a meu ver, uma boa opção.
Minha entrada na comunidade Morro dos Prazeres se deu a partir do momento
em que fui apresentada à minha informante-chave, Dona Rosa, por uma amiga que
achava que esta senhora, originalmente de Ubaporanga, MG mantinha os traços e
comportamentos que a enquadravam no perfil de uma agricultora e teria algum eco
com o tema de minha pesquisa. Ela também me informou que a comunidade de Morro
dos Prazeres poderia me interessar porque tinha “muitos mineiros”.
Fui ao primeiro encontro com Dona Rosa sem maiores intenções e fiquei
surpresa ao descobrir como ela costurava conexões com vários outros mineiros. Visto
a partir do prisma do meu recorte teórico, a figura da Dona Rosa e o caráter multívoco
das relações forjadas por ela, a nível local, já se configurava um terreno poroso que
justificaria o prosseguimento de minhas investigações.
Fiquei impressionada com a explosão de iniciativas no campo das práticas
agrícolas e alimentares5 que encontrei desde minha primeira ida à comunidade –
questão central para análise no meu empreendimento etnográfico. Também, percebi a
possibilidade de fazer uma ponte entre a comunidade urbana e o lugar de origem no

5
Sinalizo aqui que durante minha experiência de trabalho numa ONG em Belo Horizonte, a
Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas (que desenvolve projetos de desenvolvimento
socioambiental com comunidades urbanas de Belo Horizonte, MG), já tinha conhecido vários
experimentos de Agricultura Urbana, que manifestavam este lado “inventivo” das práticas agrícolas em
espaços diversificados.

22
próprio trabalho etnográfico. A maior parte dos mineiros que reside em Morro dos
Prazeres e Escondidinho6 é oriunda da região do Vale do Rio Doce, mais
especificamente dos municípios de Caratinga e Ubaporanga, sendo que o último inclui
os distritos de São José do Batatal e São Sebastião do Batatal7.
A relação estabelecida entre Ubaporanga e Morro dos Prazeres/Escondidinho,
que se fortalece pelas constantes “idas e voltas” e por meio da celebração das festas
comemorativas como a Festa dos Ausentes, claramente fornecia subsídios para
realizar um trabalho de campo que pudesse incluir estadias nas duas localidades. Em
suma, Morro dos Prazeres e Escondidinho encaixavam-se nos critérios que
fundamentavam as bases teóricas e metodológicas do meu projeto de pesquisa,
mesmo reconhecendo os aspectos instigantes que descobri nos outros lugares
visitados.
Neste universo de mineiros foi possível entrevistar 39 famílias, oriundas de
diversas regiões. Dentro destas famílias, eu focava, em geral, no casal; realizei as
entrevistas separadas com a mulher e o homem e, em alguns casos, fazia entrevistas
com os filhos. A maior parte dos entrevistados era de Ubaporanga o que explica
minha decisão em focalizar especificamente esse fluxo. No total, tive contato com 50
famílias em Morro dos Prazeres e Escondidinho, por meio de visitas às áreas de
plantio e extrativismo, idas à missa e reuniões sobre a remoção com autoridades
políticas durante um período de seis meses, de abril a setembro de 2010. Meu período
de trabalho de campo, em Ubaporanga, foi de sete dias, em novembro de 2010 e lá
tive contato com 36 pessoas. Com alguns consegui efetivar entrevistas formais,
enquanto com outros realizei visitas informais, junto com Dona Rosa.
A decisão de focalizar as transformações nas práticas alimentares e agrícolas
encontrava eco nos subsídios que surgiram no trabalho de campo, a partir do exercício
etnográfico. Isto é, nas histórias contadas, o alimento aparecia nas falas com bastante
ênfase, muitas vezes sem nenhum tipo de direcionamento na condução das perguntas

6
Inicialmente, eu acreditava que tudo era “uma coisa só”: Morro dos Prazeres. Depois,
comecei a perceber as subdivisões internas. No próximo capítulo, esclareço as distinções entre estes
dois segmentos que dividem o mesmo território: Morro dos Prazeres e Escondidinho.
7
Ressalto aqui que a maior parte dos mineiros, alvo de minha pesquisa, falavam que eram
oriundos da “região de Caratinga”. Dona Rosa afirma que a tendência de encaixar todos em uma
categoria só, no caso Caratinga se deve ao fato de que “somente tem Caratinga no mapa. E também
porque antes Caratinga era a única cidade da região”. Várias localidades que antes eram consideradas
distritos de Caratinga foram emancipadas e hoje são consideradas “cidades” ou “municípios”, como é o
caso de Ubaporanga, Santa Bárbara e São Cândido. Portanto, um amplo leque de outras localidades são
submetidas à categoria classificatória de Caratinga, apesar de hoje possuir uma certa autonomia
identitária (Ver mapa nos Anexos).

23
feitas. As categorias utilizadas variavam entre referências feitas a cada tipo de
alimento, comidas e plantas, entretanto, o que ficou perceptível era a centralidade
destes elementos, ao falar do processo de deslocamento e da inserção no meio urbano.
Frequentemente, os mineiros entrevistados falavam de sua saudade das
“comidas mineiras”, de sua terra natal e de sua estranheza com o que se constitui “a
comida carioca”. Falavam ainda do trânsito alimentar – o esforço para trazer
alimentos, plantas e mudas da roça para cidade, de sua paixão pela plantação, de seus
vários experimentos agrícolas e de sua busca incessante por plantas, alimentos e
mudas nos quintais dos vizinhos e nas áreas verdes que rodeiam a comunidade
urbana.
Um dos postulados do próprio exercício etnográfico é a disposição do/a
pesquisador/a para lidar com os imprevistos – com questões que supostamente
poderiam ser vistas como “periféricas” ao tema central, mas que “atravessam o
caminho”. A noção de “alteridade” que, de certo modo, norteia a apreensão do objeto
de nossas pesquisas, já vem acompanhada da compreensão de “distância social” como
algo a ser atravessada ou superada, o que implica numa postura de despojamento
diante dos elementos estranhos encontrados no bojo dos processos sociais. O ato de
pesquisa em si implica em passar por vários filtros relacionais. Têm momentos que
pode haver um processo de tensionamento entre a proposta já travada em torno das
temáticas de interesse da pesquisadora e a dinâmica imbricada da realidade social, que
apresenta uma multiplicidade de bifurcações pouco previsíveis de antemão.
No meu trabalho de campo, este desafio se fez presente, ao reparar como a
tragédia causada pelo período das chuvas, em abril de 2010, resultando no
desabamento de 15 casas e matando 21 pessoas, mobilizou a comunidade de Morro
dos Prazeres de tal forma que se tornou o assunto principal das conversas, tanto o luto
vivenciado pelos moradores diante do acontecido, quanto a ameaça da remoção por
causa da precariedade das moradias.
Isto é, o cenário da tragédia pairava sobre a vida das pessoas e engendrou uma
atmosfera de tensão e sofrimento, que não poderia escapar à sintonia fina de minhas
investigações. A tragédia – enquanto fato social total 8 – foi canalizador de uma série
de sentimentos e preocupações que certamente não teriam surgido em “circunstâncias

8
“Fato Social Total” foi um conceito introduzido por Marcel Mauss que tem orientado o
enfoque dado ao estudo dos fenômenos sociais. Ele diz que “nesses fenômenos (...) exprimem-se de
uma vez e de um só golpe toda a sorte das instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas, políticas e
familiares ao mesmo tempo – e econômicas” (MAUSS, 1985, p. 147).

24
normais”. Há uma força melódica nas histórias contadas justamente por revelar uma
série de negociações costuradas entre o plano do extraordinário – o lugar das crises e
momentos críticos – e o plano ordinário (DAS, 2008). Por outro lado, o
acontecimento inesperado foi uma janela aberta que me possibilitou analisar mais
detidamente as sutilezas por detrás dos fatos que, muitas vezes, fogem de nosso olhar
atencioso.
Diante de condições adversas, a potência da experiência e as nuances no
estado de subjetivação que estas vivências engendram, apontam caminhos para
compreender as modalidades de agência destes coletivos. Qual é o valor que
determinadas pessoas atribuem a algumas situações e vivências e quais são os
sentimentos que selecionam em seu campo de ação? Na negociação dos danos vividos
num cenário político, onde as dores que contam se convertem em indenizações, se
entra num terreno pantanoso regido pela ordem das recompensas.
Atentar para os detalhes minuciosos no contexto de uma situação vivida
mostra como as reações dos que vieram da área rural de Minas Gerais ativam os
nexos desta complexa rede familiar e social e, ao mesmo tempo, se vinculam com
processos macroestruturais.
Neste sentido, tomo como referência a definição de “sofrimento social”
(KLEINMAN, 1997) na qual, as vidas individuais sofrem os efeitos da violência
social, que recaem sobre os níveis local, nacional e global. A descrição dos fatos
observados à luz deste conceito me impulsiona a desviar de uma leitura personalista
dos dramas vivenciados.
O que me interessa aqui é descortinar os desdobramentos deste processo de
sofrimento social, ao investigar de que forma este evento desencadeia uma nova
relação com o lugar de moradia – no âmbito privado – e também com o Estado – que,
na esfera pública, passa a regulamentar e controlar as condições da ocupação
territorial e orquestrar uma nova linguagem: a mensuração dos danos.
A densidade do exercício etnográfico consistiria em depurar os
desdobramentos da tragédia – tendo como ponto de partida a interferência do Estado
na vida dos mineiros enraizados em Morro dos Prazeres e Escondidinho, por meio de
um discurso pautado na remoção das famílias e na conversão de dores em
recompensas financeiras. Cabe examinar os cruzamentos entre este discurso, ancorado
no poder institucional, e as reações das famílias que vieram de Minas Gerais –
especialmente no que se refere ao sentimento de posse em relação à casa construída e

25
levando em consideração trajetórias marcadas pelo trânsito.
O que a tragédia revela é o poder da casa como dispositivo de segurança,
pertencimento e garantia de autonomia. A contingência de ter que deixar a casa por
causa da ameaça da remoção, o que implicaria em novos deslocamentos, coloca em
jogo as representações em torno do local de moradia como referencial de estabilidade
e enraizamento num eterno “ir e vir”. Portanto, os múltiplos significados das práticas
alimentares e agrícolas no espaço urbano foram revelados no “olho do furacão” – no
imbricamento entre os legados deste sofrimento social e as histórias de conquista de
um lugar que pudesse servir como referência para uma coletividade que se emaranha
nos enredos dos fluxos.
Lançando mão destas considerações iniciais sobre os rumos de minha
experiência etnográfica e o modo específico como se deu o exercício da escrita,
ressalto as dificuldades que enfrentei ao empreender o trabalho de campo na periferia
de uma grande cidade, tendo em vista a crescente violência que vem se instalando e as
incertezas decorrentes dos conflitos armados.
Circular pelo Morro dos Prazeres, tornando-me alvo de observação por parte
de homens e meninos armados, não foi uma experiência agradável e, em vários
momentos, tive dúvidas em relação aos riscos que minha presença, enquanto elemento
estranho, poderia acarretar. Por outro lado, na primeira etapa de minhas incursões ao
campo, quase sempre fui acompanhada por Dona Rosa, o que me garantiu maior
segurança e liberdade de deslocamento.
Minha mobilidade pela comunidade passava por um tipo de “controle social”,
do qual, de início, não tive consciência. Entretanto, com o passar do tempo, percebi
que uma das marcas de minha entrada era meu ponto de referência na rede de
relações, ou seja, para transitar livremente pelo Morro dos Prazeres e Escondidinho,
precisava estar ligada a alguém, neste caso, Dona Rosa.
Comerford (2003) destaca a importância de levar em consideração o processo
de mapeamento interno das comunidades rurais na região de Zona da Mata,
perpassando pelo que ele chama de “territórios de parentesco”.
Segundo o autor, uma das formas de controle da entrada de uma presença
estranha é exercida pela seguinte pergunta: “você é parente de quem?” e qualquer tipo
de enquadramento social é um procedimento comum nas comunidades. Porém, no
caso de Morro dos Prazeres e Escondidinho, se intensifica, tornando-se uma questão
extraordinária por causa do tráfico.

26
O poderio está incrustado no comando do tráfico, que se opera por uma lógica
nebulosa, difusa e mutável. Este domínio não está sedimentado em uma figura fixa de
forma permanente, mas sim em uma circularidade inerente ao exercício da liderança.
A ambiguidade inerente ao exercício deste poderio se revela da seguinte forma: os
próprios moradores expressam dificuldade na identificação das pessoas que se
responsabilizam por esta função. Desmistificar as bases do poderio, o tráfico, constitui
uma tarefa proibida, sendo que a sensação de autoridade que ele exala, cresce
gradativamente justamente pela própria aura misteriosa que lhe rodeia.
A pergunta: “você é parente de quem?” não é feita diretamente, mas há um
processo de controle social que envolve uma sondagem sobre suas ligações com a
localidade. Contudo, mesmo nunca sendo explicitado no nível do discurso, percebi
que minhas entradas estavam sendo monitoradas e meu grau de associação com
alguém conhecido era um critério básico para permitir minha livre circulação pela
localidade.
A colaboração da Dona Rosa nas minhas visitas fertilizou as relações dela com
a vizinhança mineira e serviu como uma espécie de redescoberta da natureza dos seus
vínculos sociais. Portanto, sua colaboração sinaliza o potencial transformador da
própria etnografia, do ponto de vista metodológico e epistemológico.
Ao privilegiar Dona Rosa, enquanto informante-chave, senti que a pesquisa
constituiu um conjunto de ações que possibilitava a reformulação do seu lugar neste
processo contextual, possibilitando o exercício da reflexividade.
Por várias vezes, minha informante-chave ficou surpresa ao descobrir que
alguém era parente de um conhecido lá da roça ou que ela tinha conhecido a família
de tal pessoa num período de trabalho no roçado de uma das fazendas, há 40 anos. Ao
acompanhá-la em suas idas para o “mato”, às missas na Igreja e nas visitas aos
quintais onde ocorria a troca de mudas, havia no cerne destes encontros, a costura de
histórias individuais e coletivas, que serviam como “mediadores” da sedimentação
das ligações sociais, a partir do processo interativo.
Em diversos momentos, Dona Rosa testemunhava que ficava surpresa ao
encontrar tantos pontos comuns nas histórias contadas, potencializados, em grande
parte, pelos encontros que o processo da pesquisa proporcionava. Assim, a pesquisa
foi conduzida de tal forma que ela, em si, deixava brotar a criação e o fortalecimento

27
de laços. Este fato alerta para o desencadeamento do próprio movimento rizomático9
que o processo da pesquisa possa favorecer. Os encontros engendram confluência de
fluxos, suscitando o estreitamento de múltiplos pontos de conexão entre diversos
componentes relacionáveis.
Para finalizar, apresento a forma como esta Dissertação está estruturada. No
capítulo 1, introduzo o leitor ao contexto de Morro dos Prazeres e Escondidinho e
enfatizo a primazia a ser dada à produção de lembranças enquanto um elemento
constituinte da própria realidade social no momento presente. Minha intenção é
mostrar de que forma as representações da roça, associadas ao passado e imbuídas de
certa ambiguidade, têm servido para propagar uma sensação de continuidade e, ao
mesmo tempo, de mudanças e rupturas, no processo de inserção no meio urbano.
No capítulo 2, abordo de modo mais frontal o lugar do alimento enquanto
componente de um modelo referencial que se constrói a partir dos contrastes e
paralelos entre dois espaços geográficos – a roça e a cidade e, dois tempos, o passado
e o presente. Focalizo os esquemas valorativos e componentes ideológicos que
determinam as escolhas alimentares. O trânsito rural-urbano é caracterizado por
deslocamentos não apenas no espaço físico, mas também se faz presente na flutuação
dos significados atribuídos às categorias alimentares no contexto observado.
No capítulo 3, descrevo os desdobramentos de um acontecimento inesperado:
o desabamento de 15 casas, que matou 21 pessoas, em abril de 2010 e enfatizo as
repercussões deste momento crítico, por constituir um momento privilegiado para
examinar de que forma a memória coletiva se atualiza. De certo modo, este
acontecimento foi um canalizador para depurar mais detidamente as nuances da
dinâmica intricada com o local de moradia e o peso atribuído à construção da casa,
além de compreender o nível de apego aos espaços ocupados e apropriados pelos
mineiros na territorialidade urbana.
A complexa rede de significados que nutrem a noção de casa serão
explorados, a fundo, a partir do material etnográfico. Desta forma, o foco de minha
análise será o impacto que esta situação social teve sobre os modos de subjetivação
dos mineiros, tocando especificamente na constelação de sentimentos e percepções
9
Rizoma é um modelo epistemológico na teoria filosófica de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
O conceito de rizoma representa um contraponto aos sistemas centrados e focaliza as multiplicidades,
os movimentos, os devires. Segundo os autores: “O rizoma se refere a um mapa que deve ser
produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas
entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o
inverso." (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p. 32-3).

28
que foram suscitados como, por exemplo, a autonomia, a inclusão, o enraizamento e o
apego.
No capítulo 4, examino, de forma minuciosa, a capilaridade que caracteriza os
movimentos de mobilidade e deslocamento inerentes ao fluxo rural-urbano. Procuro
apresentar o processo de “idas e voltas” como uma relação continuamente revigorada
que estabelece nexos entre dois universos – a roça e a cidade.
Um caso altamente ilustrativo deste fenômeno é a viagem organizada
anualmente com destino a Ubaporanga, MG onde acontece a Festa dos Ausentes. A
ausência de um segmento da população do seu lugar de origem por causa de sua ida
para a área urbana se torna um marco constitutivo de sua identidade e um motivo de
celebração numa determinada época do ano.
Demonstra também os múltiplos rumos deste trânsito: a festa é montada a
partir de Ubaporanga, lugar de onde partiram muitos mineiros enraizados em Morro
dos Prazeres e Escondidinho. Assim, vale destacar que esta iniciativa não emana de
quem partiu, mas de quem ficou.
O capítulo 5, por fim, traz uma aproximação entre a capacidade criativa que
impulsiona a explosão de práticas alimentares e agrícolas no contexto de Morro dos
Prazeres e Escondidinho e o debate já travado sobre tradição e invenção cultural.
Enfoco a invenção de práticas alimentares e agrícolas num novo processo contextual
que, em alguns momentos, remete a determinadas experiências vividas no passado,
mas que também assume configurações inusitadas.
A espinha dorsal desta última parte do estudo etnográfico consiste na análise
de um conjunto de práticas sociais por meio das quais diferentes nexos são
continuamente costurados com o alimento, tendo em vista as trajetórias individuais e
familiares. Portanto, busco traçar o movimento rizomático inerente às práticas de
plantio e coleta de plantas alimentícias no espaço urbano, que estabelecem diversos
pontos de conexão com elementos heterogêneos, mediante diversas modalidades de
ocupação territorial.

29
1. O MORRO DOS PRAZERES E A ROÇA: CONTINUIDADES E
DESCONTINUIDADES NA RECONSTRUÇÃO NARRATIVA

1.1 QUE ROÇA É ESSA? ESSA ROÇA QUE “PARECE ESTAR DENTRO DA
GENTE”?

A Grosso modo, a espinha dorsal deste estudo etnográfico é justamente as


histórias contadas pelos moradores que vieram de diversas partes do estado de Minas
Gerais, do que chamam coletivamente de roça e, atualmente, residem em Morro dos
Prazeres e Escondidinho, duas comunidades próximas, localizadas na região central
de Rio de Janeiro. Estas comunidades estão localizadas justamente na interseção entre
a Zona Sul e a Zona Norte, no bairro de Santa Teresa.

Estes deslocamentos, que refletem trajetórias flutuantes e envolvem um


processo fluido de “idas e voltas”, subvertem determinados pressupostos que integram
o arsenal teórico em torno dos estudos migratórios. O conceito de migração, da forma
como tem sido tradicionalmente abordado no mundo intelectual, representa uma ótica
limitante diante de histórias que não se restringem apenas a um ponto de partida e um
ponto de chegada e que não são marcadas por um rompimento definitivo com o lugar
de origem. Evito empregar o termo migrante como categoria descritiva, porque não é
utilizado pelos mineiros entrevistados, ou seja, eles não se nomeiam migrantes em
nenhum momento.

Para eles, a categoria operante é ser mineiro – um traço constituinte da


identidade e um elemento-chave no seu processo de autoidentificação – que não
diminui em intensidade com o passar dos anos, mesmo depois de se deslocar para
outro estado. Como afirma um informante, oriundo de Caratinga: “Nunca esqueço que
sou mineiro. Se alguém perguntar de onde sou, sempre respondo que sou de Minas
Gerais. Não importa que esteja no Rio há 42 anos – nunca vou deixar de ser mineiro”.
Portanto, para o foco desta pesquisa etnográfica, ser mineiro remete ao seu
lugar de origem: “a roça”. A frase de Dona Rosa, moradora de Morro dos Prazeres e
oriunda de Ubaporanga, exprime esta relação intricada com “a roça”: “A gente nunca
esquece da roça. Parece que está dentro da gente”.
As narrativas estão ancoradas em um ponto de referência: “a roça”, enquanto
imagem que é revivida e reconstruída nas histórias contadas, de tal forma que “parece
estar dentro da gente”.
Para os mineiros que se deslocaram para a cidade, a roça significa “o lugar

30
onde tem plantações” e indica um tipo de trabalho específico, que é o trabalho
agrícola – além de modos de vida interligados àquele espaço. Destaco este ponto
porque no quadro referencial destes mineiros, não é a comunidade rural, de forma
genérica, que acumula significados, mas é “a roça” – pelo conjunto de atividades
ligadas à produção agrícola que ela denota.
As atividades agrícolas podem ser localizadas espacialmente nesta roça, que se
subdivide em áreas especificamente voltados para cada tipo de plantio: roçado, quintal
e pomar. Dona Rosa discorre sobre as funções de cada um destes espaços no
mapeamento da roça. O roçado é um espaço considerado extenso, mais afastado da
casa, onde “se planta milho, feijão e café” 10; o pomar é um espaço voltado para
plantação de frutas; e o quintal geralmente fica próximo a casa, onde se faz a horta. A
horta geralmente é de “verdura e cheiro verde”, mas pode também incluir ervas
medicinais.
Os outros depoimentos sobre os espaços para plantio na roça não diferem
muito da visão apresentada por Dona Rosa sendo que, em alguns casos, não há
menção do pomar e o quintal é visualizado como um local para plantio de uma
diversidade maior de espécies – árvores frutíferas, verduras, legumes e ervas
medicinais11.
Portanto, busco situar esta representação da roça dentro do universo
ideológico de quem se desloca no espaço. Que roça é essa? Como ela serve de
contraponto para a realidade vivenciada, atualmente, no contexto de uma comunidade
urbana? Ao mesmo tempo, como ela continua “vivendo dentro das pessoas”, ou seja,
de que forma os mineiros estabelecem continuidades com o que foi vivido, fazendo
uma ponte com lembranças que não apenas são resíduos de um passado distante. E,
por fim, como a relação com esta roça, que constitui o legado de um passado repleto
de vivências, não se estanca, mas ao contrário, se transforma continuamente na
reconstrução narrativa?

A roça – considerada o lugar de origem – assume diversos significados. Para

10
Nas falas dos mineiros entrevistados, há um peso atribuído ao roçado, como o espaço onde se
realiza o grosso do trabalho produtivo. Isto é, há uma dicotomia claramente estabelecida entre o
roçado, enquanto espaço produtivo, o quintal e o pomar, enquanto espaços reprodutivos, considerados
como quase extensões do âmbito doméstico.
11
Esta observação sobre o mapeamento dos espaços para plantio no contexto da roça se tornará
mais relevante quando analisar os espaços ocupados para efetivação das práticas agrícolas dos mineiros
no meio urbano, no capítulo 5 desta Dissertação.

31
alguns, ela é representada como o paraíso perdido, enquanto para outros, é para onde
não se quer “voltar mais”, sendo marcada pelos registros de sofrimento e miséria. Em
muitos casos, a mistura entre estes dois registros é expressa pelos modos de
subjetivação12. São forças divergentes que se explicitam no processo de elaboração da
realidade vivida.

Estas diversas conotações, atribuídas à categoria “roça”, remetem a uma


contribuição feita por Barth (2000), ao enfatizar a importância de levar em
consideração o fato de que o significado de determinadas situações ou objetos é
construído em relação, no próprio ato da interação. Para o autor, a relação com
memória não é estática e as pessoas lembram e relembram o que foi vivido a partir do
lugar que estejam ocupando em um determinado momento.

A decorrência lógica desta posição é que “os atos permanecem sempre


contestáveis e seu significado pode ser reescrito” (BARTH, 2000, p. 176), logo, Barth
(2003), destaca o caráter marcadamente variável que os eventos passados assumem e
abrem espaço para a desordem inerente aos processos sociais, pois nem todos os
componentes se encaixam como se fossem peças de um quebra-cabeça.

Neste sentido, é preciso atentar para o fato de que os significados atribuídos à


vida urbana, no momento presente, ou à vida na roça, como fragmento de um passado
não tão alheio passam por alterações, determinadas em grande parte pela relação

12
Modos de subjetivação constituem um conceito-chave de minha análise a partir do material
etnográfico. Parto do pressuposto de que “subjetividade” é algo que não se limita ao indivíduo e não se
embasa numa divisão entre os complexos intrafamiliares e sociais e o plano pessoal.
A visão iluminista tende a relacionar a subjetividade com a identidade individual e com o
funcionamento racional – são marcas incrustadas em nossa concepção de um “ser livre e autônomo” na
sociedade moderna. Tomo como referência, portanto, uma outra interpretação da subjetividade, trazida
por Guattari; Rolnik (2005), que ultrapassa a oposição clássica entre sujeito individual e sociedade.
Segundo estes autores, “é a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de
determinações coletivas de várias espécies, (não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia e
tantas outras)” (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p. 43).
Portanto, a subjetividade é plural, pois é produzida por instâncias individuais, coletivas e
institucionais e “ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras
instâncias segundo uma causalidade unívoca” (GUATTARI,1992). Partindo deste entendimento de
subjetividade, como um terreno que revela a justaposição entre o coletivo e o individual, o social e o
pessoal, procede a noção de “modos de subjetivação” trazida por Guattari; Rolnik (2005).
Modos de subjetivação se referem às formas de expressão deste processo de “singularização
subjetiva”, ou seja, são os sistemas de percepção, de sensibilidade, de memória, de sociabilidade, de
corporalidade e de desejos que transparecem a partir da interferência de diversas determinações
coletivas. Estes modos de subjetivação são considerados singulares, porque não há repetição nos
processos vividos, sendo que a interioridade se instaura no cruzamento de múltiplos componentes de
forma inusitada.

32
fluida que se constrói entre os diversos posicionamentos.
Seu João, de 80 anos, oriundo de Teófilo Otoni, MG e residente do alto da
Colina13, há 46 anos, exprime diversas impressões sobre o universo da roça que
revelam a ambiguidade inerente às lembranças na reconstrução narrativa.
Seu João é conhecido localmente como “João Feijão” porque “plantava muito
feijão” no lote vago em frente de sua casa, que ele transformou em uma horta há 20
anos. Sua fala inicial, em uma de minhas primeiras visitas a sua casa, expressa a ideia
de que a roça é justamente a representação de um passado que deveria “cair no
esquecimento”: “Aqui as pessoas chegam aqui e perguntam: ‘Seu João, não tem
vontade de voltar para roça não?’ Aí eu falo na hora: ‘Não quero nem saber de roça.
Em todos estes anos aqui, nunca mais voltei para roça. Porque sofri muito lá. Não tem
mais ninguém lá”.
Em seguida, ele compartilha o registro de sofrimento e carência que
caracterizava sua vida na roça na região de Teófilo Otoni até os 32 anos de idade,
quando veio para o Rio de Janeiro:

“A vida na roça é muito ruim. Minha mãe e meu pai morreram e vivíamos
numa fazenda. Naquele tempo, pobre não tinha direito a nada. Éramos sete
irmãos pequenos. Somente tinha capim, boi na fazenda. A gente era
morador e não tinha nada. Saíamos de dentro do mato e comíamos
tangerina, mesmo não sendo madura. A gente sofreu”. [João]

Ao mesmo tempo em que relata as dificuldades que enfrentava na área rural,


fala com orgulho de sua horta, plantada na frente de sua casa, faz referência aos
conhecimentos adquiridos ao longo de vários anos de experiência com plantação do
roçado e reconhece o potencial da plantação, inclusive enquanto uma alternativa
diante de situações de carência e fome. Porém, ele alega que os outros que, em
diversos momentos, ele nomeia de cariocas, não sabem valorizar as práticas agrícolas
e destroem as plantações.
Nas palavras dele: “O público não sabe dar valor. Pé de banana mata fome de
muita gente. Pé de cana mata fome de muita gente. Mas, acabam com tudo, não dão
valor. Eu dou valor porque eu vivo disso aí”.

Para ele, praticar agricultura com dedicação e empenho significa “dar valor” para os

13
Refere-se a um dos segmentos da comunidade Morro dos Prazeres, como será explicado na
próxima seção deste capítulo.

33
frutos da atividade agrícola, sendo que ele “dá valor” porque “vive disso aqui”.
Portanto, ao mesmo tempo em que “não quer nem saber de roça”, o retorno da
atividade agrícola é importante para sua sobrevivência, como era também quando
morava na roça. Seu João enfatiza o sofrimento que a roça engendra, mas ao mesmo
tempo, aciona as práticas agrícolas com uma naturalidade, como se esta habilidade
fosse uma marca registrada, herdada dos tempos vividos na roça e automaticamente
empregada na vida cotidiana. A seguinte fala ilustra este pensamento: “Já trabalhei a
terra há tanto tempo, mas se já foi agricultor algum dia, não se perde nunca mais. É só
olhar para uma planta e já sei o que fazer com ela. Não tem jeito de não mexer com
planta”.
Concluo, então, que a roça se remete aos momentos sofridos, mas ao mesmo
tempo, representa uma rica fonte de aprendizagem em relação às práticas agrícolas.
São justamente estas forças contrastantes que se encontram no tecido de lembranças e
que concedem um tom de ambiguidade à relação estabelecida com a roça.

1.2 AS MARCAS DAS LEMBRANÇAS: O LUGAR DA MEMÓRIA NO FLUXO


RURAL-URBANO

Para estes mineiros que “nunca esquecem que são mineiros”, a memória
engendra as relações costuradas com as pessoas, objetos e coisas que se agregam num
universo de “aqui e agora” – no contexto da cidade – mas que, ao mesmo tempo, se
remetem ao que foi vivido – na roça. Assim, este trânsito não se refere apenas a um
deslocamento entre dois pontos – campo e cidade – mas envolve também o
movimento incessante de “ir e vir” na reconstrução das lembranças que transgridam
as bases desta suposta polaridade e proporcionem a criação de novos registros. Neste
capítulo, minha intenção é justamente enfocar as condições sociais da produção das
lembranças.

Conforme a visão de Halbwachs (2006), memória deve ser pensada como uma
dinâmica que se desdobra na reinterpretação e reformulação do passado e que
possibilita a renovação do sentido. A memória não constitui um repositório de
imagens cristalizadas no passado, ela é um processo de reconstrução narrativa. O
processo de reconstrução, que envolve o ato de relembrar, é realizado em função do
presente, logo, ocorre uma reformulação no presente de ideias e imagens do passado,
em sintonia com o que Halbwachs (1994) chama de “quadros sociais de memória”.
Como Bourdieu (1977) aponta, a prática, no momento presente, não é simples

34
execução, mas é uma recriação constante, que interage com o universo simbólico dos
sujeitos e com as condições sociais nas quais estão imersas.

Um outro conceito-chave, introduzido por Halbwachs (1994), se refere à


conotação social que é inerente à produção das lembranças; isto é, apesar da memória
supostamente se referir a uma faculdade, a priori, do espírito humano, que pertence ao
plano individual, deve ser entendida como um fenômeno construído coletivamente.

A memória portanto, não é um patrimônio constituído, mas é ativada no


exercício incessante que os grupos sociais exercem para afirmar seu pertencimento ao
coletivo, no interior de um sistema de inter-relação. Em suma, a ativação da memória
coletiva serve como um mecanismo para sustentar, em nível cognitivo e simbólico, o
sentido da identidade, cultivada a partir de identificações e referências
compartilhadas. Os quadros sociais, um componente importante do seu modelo
teórico, atuam como princípios de estruturação, dando suporte para o efeito
desencadeador da memória no seio dos coletivos.

Portanto, o foco de interesse aqui neste capítulo é acompanhar, de certo


modo, o desencadeamento da memória coletiva, pela organização ativa das
experiências vividas. Talvez para retratar o papel dinâmico que a memória exerce na
vida cotidiana, seja interessante empregar o conceito de “memória-mundo”
(DELEUZE, 1985), pois é como se a memória não fosse um dispositivo que opera
internamente, regendo a subjetividade no sentido mais pessoal do termo, mas são os
sujeitos que se movem dentro de uma “memória-mundo”.

Quais são as instâncias nas quais os quadros sociais da memórias são ativadas?
Como o movimento da “memória-mundo” se exprime, na costura das histórias dos
moradores que vieram da área rural em Minas Gerais? Quais são os elementos que o
mineiro utiliza para compor um quadro referencial no qual ocorre uma redefinição do
significado da área rural – seu lugar de origem – e revigora, em outras bases, as
representações do espaço urbano?

No processo de contar a história de sua chegada em Morro dos Prazeres e


Escondidinho que, naquele momento, constituía-se num território marcado por sua
estranheza – os mineiros destacam os traços marcantes deste novo lugar a partir da
montagem de um esquema referencial, composto pelas lembranças da roça. Nas bases
deste esquema referencial, encontra-se um jogo entre duas forças aparentemente

35
divergentes – a descontinuidade e a continuidade. Ao longo deste capítulo, pretendo
mostrar de que forma o esquema referencial serve como eixo norteador do processo
de inserção no meio urbano.

1.3 A COMPOSIÇÃO DO MORRO DOS PRAZERES E DO MORRO DO


ESCONDIDINHO: AS EXTENSÕES E LIMITES DA COMUNIDADE
1.3.1 Um olhar aguçado sobre a localidade: é um morro só?

Antes de deter-me no processo de chegada e inserção no meio urbano,


pretendo situar os leitores no contexto analisado e explicitar suas extensões, limites e
subdivisões. Qual morro é esse que constitui o destino de tantos mineiros?
Há uma nebulosidade em relação à extensão geográfica da área que constitui o
foco de minha pesquisa. Iniciei o trabalho de campo na parte nomeada de Morro dos
Prazeres, perto do prédio da Associação de Moradores e a quadra – tendo como ponto
de referência a moradia de Dona Rosa.
No início, tratava a comunidade como uma unidade, nomeada de Morro dos
Prazeres, não tinha percepção de diferenciações internas. No entanto, aos poucos, ao
adentrar pelos becos e ruas, descobri várias subdivisões que levam outros nomes.
Como um primeiro passo no trabalho etnográfico, tentei me aproximar das categorias
nativas que exprimem as apropriações feitas pelos próprios moradores de sua
localidade. Aos poucos, alguns mineiros que residem nos vários segmentos
explicaram a composição interna do morro e as terminologias empregadas para
denominar cada uma destas partes.
Da Rua Gomes Lopes para baixo, tendo como linha divisória o viaduto14, é
chamado de Escondidinho, que se estende até o Rio Comprido. Para cima do viaduto,
seria o que consideram a favela propriamente dita – Morro dos Prazeres e, finalmente,
no alto do morro, tem a parte chamada de Colina. Estas diferenciações geográficas
são acompanhadas por concentrações de determinadas populações conforme seu lugar
de origem, o que aponta para a força das identidades regionais na composição interna.
Na Colina, há uma parte denominada Morro dos Paraíba e no segmento chamado
Escondidinho, tem uma rua com nome de Rua dos Mineiros. Mais adiante, analisarei
o significado da Rua dos Mineiros na história de chegada dos mineiros a esta

14
O viaduto foi construído durante o Programa Favela Bairro e sua construção foi um dos
motivos da indenização de algumas casas que precisavam ser removidas. A construção do viaduto foi
mencionada inúmeras vezes nos relatos, por constituir um marco nos rearranjos espaciais, interferindo
diretamente no processo de ocupação territorial.

36
comunidade e na sedimentação de seus vínculos sociais.
Ao reconhecer estas subdivisões, percebi que não seria possível fazer um
tratamento unívoco da localidade estudada. Alguns mineiros entrevistados destacam
com mais ênfase estas diferenciações internas; outros afirmam que é um “morro só” e
que o nome que prevalece é Morro dos Prazeres e uns destacam que quando vieram
da roça, a região habitada, por eles, era nomeada de Morro Santa Teresa e depois
passou a adquirir o rótulo de Morro dos Prazeres.
Nos censos pesquisados15, Morro dos Prazeres é listado separadamente de
Escondidinho em alguns momentos. Outras vezes, a categoria regente parece ser
Morro dos Prazeres, como se englobasse Escondidinho e as outras subdivisões, neste
caso, Colina e Morro dos Paraíba.
Não obstante esta ambiguidade nas terminologias e nomeações decidi ser fiel
às categorias nativas. Apesar de reconhecer as outras subdivisões, percebi que há uma
linha divisória que é mais marcante na determinação das afiliações e identificações,
esta é a divisão entre estas duas partes – Morro dos Prazeres e Escondidinho.
Os mineiros de Escondidinho sempre afirmavam nas conversas que não
pertencem ao Morro dos Prazeres, enquanto os que residem na Colina se consideram
como fazendo parte de uma subdivisão que se localiza dentro de “um morro só”.
Portanto, ao longo desta Dissertação, estarei fazendo referência a Morro dos Prazeres
e Escondidinho como comunidades diferenciadas, apesar de sua proximidade.
Morro dos Prazeres e Escondidinho são duas comunidades localizadas na zona
central do Rio de Janeiro. Hoje, têm uma população de 3.528 pessoas e abrigam 928
domicílios. Em relação aos fluxos, em 1960, foi registrado que a maior parte dos
moradores veio do estado ou do município do Rio de Janeiro e que, moradores
originários de outros estados, vinham, em maior número, de Minas Gerais e, em
segundo, da Paraíba (IBGE, 2000).
Entre os entrevistados, merecem destaque os seguintes lugares de origem:
Muriaé, Governador Valadares, Ponte Nova, São João del Rei, Ubá, Senador Firmino,
Tombos, Carangola, Teófilo Otoni, Caratinga e Ubaporanga, municípios de Minas
Gerais. Ao longo do trabalho etnográfico, foi possível constatar que a maior parte dos
mineiros que chegou à comunidade urbana veio dos municípios de Caratinga e

15
Os censos que foram acessados na procura de dados secundários sobre a localidade são os
realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IGBE) e pelo Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos (IPP), sendo que o IPP trabalha com os dados do IBGE.

37
Ubaporanga, localizados na região do Vale do Rio Doce.
Ser de um determinado lugar se torna bastante significativo no mapeamento
das relações que constituem o cerne do empreendimento etnográfico, pois o exercício
de questionar os pertencimentos familiares e locais não apenas era uma iniciativa
empreendida por mim, na função de pesquisadora, que considerava tal informação
pertinente para o esboço de minha investigação etnográfica. Também era importante
para os próprios mineiros, que estreitam laços a partir da verificação de confluências
de origem. Como afirma Comerford (2006, p. 4): “Incluir cada indivíduo em alguma
família e buscar sua origem em algum lugar, evidencia o quanto isso é crucial no
quadro de referências de navegação social desse universo”.
É importante ressaltar que, dentro do movimento que caracterizava minhas
investigações, a partir da figura central de Dona Rosa, era possível constatar que uma
grande porcentagem de entrevistados veio de Ubaporanga, o mesmo lugar de origem
da minha informante-chave.
Em vários momentos, Dona Rosa ficava surpresa com o grande número de
conterrâneos em Morro dos Prazeres e Escondidinho. É como se, ao longo do
processo da pesquisa, ela estivesse descobrindo as convergências e lembrando-se de
conexões forjadas lá no passado e, também, foi possível desvendar o mistério em
torno de Ubaporanga, pois parecia que a potência do lugar de origem estava ancorada
nos inegáveis processos de “idas e voltas”, inerentes aos deslocamentos.
Os laços intensificavam a partir de uma volta ritualizada que unia parentes e
amigos anualmente: a Festa dos Ausentes. Esta festa é construída a partir da
perspectiva “dos que ficaram”, reforçando assim os pontos de conexão entre diversas
gerações. Filhos, netos e bisnetos que originalmente não tinham nenhuma relação
direta com esta localidade, passam a frequentar um lugar que existia apenas nas
lembranças dos seus pais, avôs e bisavôs16.

1.3.2 Processo de ocupação territorial: a consolidação de subdivisões e


demarcações

As duas demarcações territoriais: Rua dos Mineiros e Morro dos Paraíba são
reflexos de como os fluxos se organizam. Este processo organizativo se concretiza
espacialmente, pelas demarcações feitas, mas começa anteriormente à vinda, ou seja,
há uma articulação prévia para vir e o movimento de “vir para cidade” exerce um

16
A Festa dos Ausentes será analisada no capítulo 4 desta Dissertação.

38
“efeito cascata”.
Como será visto posteriormente, a maior parte dos mineiros veio porque um
parente, amigo(a) ou conhecido(a) já tinha vindo para Morro dos Prazeres ou
Escondidinho e muitos chegaram em busca de determinadas referências – os
“primeiros que vieram” – que são aqueles que “receberam os recém-chegados” e
serviram como fonte de apoio no processo de aquisição de moradias e empregos.
Muitos destes recém-chegados foram morando de favor nas casas dos parentes ou
conhecidos e, eventualmente, construíram suas moradias por perto, na mesma área.
Portanto, nota-se que, desde o início, o processo de ocupação dos territórios foi se
configurando a partir de afinidades – em termos identitários – e as demarcações
passaram a representar códigos de identificação ao navegar por este tecido imbricado
de relações.
Vários residentes na Rua dos Mineiros contam que hoje, apesar de ainda
residir “alguns mineiros”, a rua foi perdendo esta característica tão marcante e foi se
diluindo de tal forma que, para alguns, o nome da rua perdeu seu significado
original17. Eliza Rosa Brandão da Silva, Presidente da Associação da Sociedade de
Amigos de Morro dos Prazeres, alega que as distinções regionais diminuíram com o
tempo por causa do processo de adensamento populacional. Como ela mesma afirma:
“Hoje tem mais mistura entre as pessoas porque há menos espaço”.
Segundo a entrevistada, várias subdivisões, que se dão territorialmente como
os que “moram no asfalto” e os que “moram nos becos” são reflexos de uma
hierarquia interna. As ressemantizações são formas de se diferenciar, diante do
contexto circundante. Como ela afirma:
“Tem uns que sentem moradores de asfalto. Dizem que quem mora lá em
cima são moradores da favela. Mas, esta divisão não existe – porque é um
morro só. Na realidade, é uma coisa só. Mas, as pessoas fazem uma
separação de graus da sociedade. É uma questão de preconceito”. [Eliza
Rosa]

O “asfalto” se refere à Rua Gomes Lopes e constitui-se uma linha divisória na


localidade, que marca a diferenciação entre Morro dos Prazeres, a região que se
estende para cima – e Escondidinho, a região que se estende para baixo.18
Os mineiros entrevistados que moram em Morro dos Prazeres – incluindo a

17
O processo de nomeação da Rua dos Mineiros e as alterações que tem ocorrido na sua
composição ao longo dos anos será um ponto a ser aprofundado, posteriormente, nesta Dissertação.
18
Ver imagem de satélite nos Anexos.

39
Colina – não destacam a diferença entre eles e os moradores que residem na rua
Gomes Lopes, esta marcação é apenas reforçada pelos moradores da Rua Gomes
Lopes. Uma moradora, Dona Ana, oriunda de Águas Claras, próxima a Carangola e
que reside atualmente na Rua Gomes Lopes, ao lado do lugar onde ocorreu o
desabamento das casas19, reforça estas demarcações espaciais e identitárias quando
distingue claramente entre “moradores de Santa Teresa” e “moradores da favela”. Nas
suas próprias palavras: “Isso aqui é Santa Teresa. Isso não é favela. Pode ver que tudo
aqui é casa boa – não tem barracão. Aqui a gente paga imposto, paga tudo. Aqui tem
banheiro, tudo direitinho”.
Para Dona Ana e outros mineiros que moram na região da Rua Gomes Lopes
para baixo, há uma série de características que definem o favelado: “Quem não paga
imposto”; “quem não tem banheiro” e “quem não tem casa boa”. Portanto, a
denominação de Santa Teresa é um rótulo forjado a partir de uma relação de oposição
com a categoria favela.
A carga social que se associa à imagem do favelado é citada pela maior parte
dos mineiros entrevistados, vários informantes que moram em cima da Rua Gomes
Lopes, na área denominada de Morro dos Prazeres, ressaltam que a categoria de
favelado, de algum modo, é quase análoga à marginalização experimentada na sua
condição anterior, quando eram agregados nas propriedades dos fazendeiros.
Entretanto, não obstante esta nomeação de favela, na maior parte dos casos, parece
haver uma aceitação desse lugar de moradia por parte dos mineiros. As tensões
surgem em relação à nova geração: Dona Rosa relata a vergonha que suas filhas
sentem em relação ao Morro dos Prazeres. Conforme seus relatos, elas fingem para os
namorados e amigos que moram em outra localidade.
Os depoimentos explicitam de que forma o Programa Favela Bairro20, iniciado
em 1997, foi um divisor de águas no que se refere à imagem forjada da própria
comunidade local. Para muitos informantes, a partir da execução das ações
contempladas por este Programa, as favelas passaram a ser identificadas como bairros

19
Ver fotos do local onde ocorreu o deslizamento nos Anexos.
20
O Programa Favela Bairro foi a peça-chave da administração do César Maia nos anos 1990.
Este programa visava incorporar as favelas à cidade formal por meio da seguinte missão: solucionar
problemas como saneamento básico, drenagem, contenção e serviços sociais. Há algumas queixas em
relação à condução do Programa. Alguns moradores atestam que ele não foi conduzido da mesma
forma que era previsto no projeto original e que as obras “pararam no meio do caminho”. Segundo
alguns entrevistados, a interrupção do projeto em 2003 revela o descaso das autoridades, pois existiam,
no projeto, medidas para contenção de encostas que, possivelmente, poderiam ter evitado a tragédia
que ocorreu em abril de 2010.

40
ou comunidades. Alguns moradores apontam o caráter político desta troca de
terminologia, como transparece no trecho de depoimento do Seu Sebastião, mineiro
de Senador Firmino que, atualmente, reside no Morro dos Prazeres, na área
denominada de Colina: “O governo de César Maia queria mostrar serviço – por isso,
inventou este Favela Bairro – e também queria que a gente fosse igual a todo mundo,
mais parte da cidade. Acho que foi bom e depois passamos a chamar Morro dos
Prazeres de comunidade”.
Outra moradora, Dona Vitalina, oriunda de Carangola acompanhou as obras
do Programa Favela Bairro e discorre sobre o quê esta mudança em terminologia
denota, em termos identitários: “Agora não falam mais favela. Ensinam a gente a falar
bairro. Quando fizeram algumas obras na comunidade, mandaram a gente dizer que
não era mais uma favela”.
Conforme os depoimentos de vários moradores, o Programa Favela Bairro
alterou a aparência das comunidades de tal forma que Morro dos Prazeres e
Escondidinho passaram a ter “mais cara de bairro”. Ao abrir as ruas, asfaltar os becos
e construir escadas houve mais facilidade para receber material de construção para
suas casas – uma das atividades mais significativas para as famílias mineiras durante
os primeiros anos depois de sua chegada. Segundo Jeremias, um morador oriundo de
Ubaporanga: “Agora está melhor. Aqui onde morava tinha trilha. Muita gente aqui
construiu casa carregando material nas costas. Não tinha passagem”.
Também, a partir deste Programa, nomes foram atribuídos aos becos, o que
contribuiu para a circulação local e a entrega de correspondências. Dona Rosa lembra
claramente que, enquanto antes, “nossas cartas vinham pelo Pedro Ribeiro”,21 a partir
do Programa Favela Bairro, “a Light botou ordem nisso”.
Também, houve alterações espaciais: algumas casas tiveram que ser
removidas devido à construção de um viaduto em cima da Rua Gomes Lopes, o que
também teve uma interferência direta no mapeamento das áreas. Algumas áreas
embaixo do viaduto que eram consideradas privadas ficaram vazias depois de
desmanchar as casas e passaram a ser vistas como “terras da Prefeitura”, por serem
associadas à “obra de César Maia” como explorarei mais adiante, no capítulo 5 desta
Dissertação.

21
Pedro Ribeiro era conhecido como um dos moradores mais antigos, oriundo do município de
Ubaporanga. Ele acolhia os que chegavam de Minas Gerais e lhes ajudava a arrumar emprego,
recebendo suas correspondências e vendendo fiado os produtos do seu armazém.

41
Apesar desta alteração nas configurações espaciais e, consequentemente, na
imagem do local habitado – a partir da implantação do Programa Favela Bairro –
outros mineiros entrevistados atestam que o rótulo de favela não é facilmente
eliminado, sendo que remete à própria formação da comunidade. Fátima, uma
moradora de Morro dos Prazeres, oriunda de Caratinga, afirma a relevância desta
nomeação: “É difícil tirar de repente esta nossa fama de favela, porque tudo isso aqui
foi terra invadida. Ninguém é dono de nada aqui. É diferente de um bairro, onde você
compra lote, constrói casa, paga IPTU – tudo direitinho”.

1.4 HISTÓRIAS CONTADAS SOBRE O PROCESSO DE CHEGADA EM MORRO


DOS PRAZERES E ESCONDIDINHO A PARTIR DE UM ESQUEMA
CONTRASTIVO E COMPARATIVO

A maior parte das pessoas entrevistadas era empregada (as) de fazendeiros,


antes de sua vinda para a cidade, e recebia a metade ou o terço da produção como
recompensa por seus esforços. Das 39 famílias entrevistadas – somando cerca de 117
pessoas – apenas cinco entrevistados mencionam a experiência de terem sido sitiantes
ou donos da terra e, mesmo assim, por um período curto.
Apenas dois entrevistados se identificam por seu histórico de terem sido
fazendeiros. Entretanto, enfatizam que esta categoria perdeu o significado que tinha
na área rural a partir de sua chegada em Morro dos Prazeres, pois “aqui estamos todos
no mesmo barco”.
Quando perguntei para os mineiros porque resolveram vir especificamente
para Morro dos Prazeres e Escondidinho, eles me disseram que escolheram estas
localidades pelas relações já estabelecidas. Quer dizer, já tinham parentes (primos,
maridos, tios) que moravam nestas comunidades e serviram como ponto de apoio no
processo de sua chegada. Além de parentes, também existia um núcleo de mineiros –
João Miranda, Zé Mineiro e Pedro Ribeiro – todos oriundos de Ubaporanga – que
foram “os primeiros a chegar” e acolhiam os recém-chegados.
Além de ajudar na procura de moradia, eles também davam força a estes
recém-chegados na busca de emprego. Os depoimentos de Josué e Paulo, ambos
oriundos de Ubaporanga, revelam as contribuições tanto de Pedro Ribeiro quanto de
Zé Mineiro neste trânsito rural-urbano:

“Muitos saíram de Minas e chegavam no Morro Santa Teresa para procurar


Pedro Ribeiro. Tinha uma tendinha em Morro dos Prazeres – ali vendia

42
arroz, feijão, macarrão. Ele recebia todo mundo de Minas – de todas
aquelas partes – Ubá, Caratinga, Entre Folhas, Ubaporanga. Era
originalmente do lado do Batatal, do município de Ubaporanga. Morava ali
– era o pé direito da gente. Dava apoio, arrumava barraca para a pessoa
morar. Tinha uma barraca que era referência para nós mineiros – era
número 187. Todo mundo dava endereço dali – para receber
correspondência”. [Josué]

“Zé Mineiro morava embaixo – no topo de Escondidinho. Ali morava a


mineirada. Ali que tem a Rua dos Mineiros – deram este nome depois por
causa de Zé Mineiro – sabe? Ele ajudou muito os mineiros quando
chegavam no Morro. Matava porcos e vendia toucinho fiado. Podia pagar
no final do mês”. [Paulo]

O irmão de Zé Mineiro, Luiz Mineiro, também era uma fonte de apoio para os
mineiros porque conseguiu empregar vários recém-chegados nas obras realizadas pela
Prefeitura, sendo que era uma liderança que se articulava com as autoridades políticas
e era sempre chamado para ajudar na realização de diversos projetos locais. Segundo
sua filha, Luiz Mineiro era reconhecido por seu espírito festivo e sua capacidade
agregadora na montagem dos mutirões. Nas palavras de sua filha, Vanessa:

“Ele adorava aqui – era a vida dele. Meu pai conhecia esta comunidade na
palma da mão. Ele trabalhava com a Associação de Moradores de
Escondidinho – era diretor de obras da Associação. Mas, ele falava em
nome de todo mundo – não representava apenas os moradores de
Escondidinho. Para ele, era um morro só. As pessoas da Prefeitura
gostavam muito dele. E ele tinha as pessoas certas com ele. Sabia quem
gostava de trabalhar e quem não gostava. Ele tinha a folha de pagamento
de todos.”
É interessante notar que mesmo morando em Escondidinho e trabalhando para
a Associação que representa esse segmento da comunidade local, “ele falava em nome
de todo mundo, pois para ele, era um morro só”. Sua capacidade para abrigar os
mineiros recém-chegados, articular possibilidades de trabalho junto com a Prefeitura e
coordenar as obras no Morro, foram motivos para nomear uma rua de Rua dos
Mineiros em sua homenagem. A esposa de Luiz Mineiro, Dona Magna, conta a
história da formação da rua em Escondidinho:

“O pessoal da Prefeitura era muito ligado a ele. Foi a Prefeitura que botou
o nome de Rua dos Mineiros – queriam colocar esta rua em homenagem a
Luiz Mineiro. Porque ele era um dos mineiros mais conhecidos na
comunidade e todo mundo que chegava ia primeiro nele. A Prefeitura
botou o nome de Rua dos Mineiros porque tinha mais mineiros que outra
coisa. Gostavam mais desta parte”.

Nos anos 1960 e 1970, quando um grande número de mineiros chegou “no

43
Morro”, a Rua dos Mineiros era o ponto de chegada, mas, com o passar dos anos, a
rua foi perdendo esta marca. Quando perguntava para os moradores porque esta rua
era chamada de Rua dos Mineiros, as pessoas contavam os motivos de sua fundação,
e, ao mesmo tempo, enfatizavam as alterações que ocorreram na composição da rua
ao longo dos anos. Enquanto antes era apenas ocupada pelos mineiros, no momento
atual, é mais misturada.
Entretanto, a placa escrita Rua dos Mineiros continua fixada próxima à entrada
de uma das casas que se localiza no início da rua, como uma lembrança imemorial de
suas origens22.
Nos relatos de alguns informantes oriundos do município de Ubaporanga, o
processo para chegar ao Rio de Janeiro é contado como se tivesse sido uma
peregrinação sofrida – primeiro, por causa da falta de dinheiro para “bancar a viagem”
e, segundo, pela fantasia forjada em torno de Rio, enquanto uma cidade alheia,
“distante de tudo”, o que dificultava a chegada.
Segundo alguns informantes, “naquela época, ir para Rio de Janeiro era como
ir para os Estados Unidos” e era difícil viabilizar a ida. O meio de transporte mais
comum para quem queria ir para a cidade era o “caminhão das galinhas” de Ailton e
Juca, dois comerciantes que levavam galinha caipira para vender no Rio de Janeiro e
aceitavam os ubaporangenses como passageiros “escondidos no meio” ou pendurados
“em cima das grades”.
Beto, filho do Sr. Ailton, compartilha o seguinte relato: “Muitos não tinham
nem dinheiro – mas estavam atrás deste sonho – queriam chegar ao Rio de Janeiro de
qualquer jeito. Meu pai dava dinheiro para que as pessoas pudessem chegar e deixava
eles irem escondidos no meio das galinhas. Ele levava as pessoas lá em cima, no
Morro Santa Teresa, porque lá tinham onde ficar”.
Para os que não encararam esta travessia e ficaram em Ubaporanga, Morro dos
Prazeres e Escondidinho, ambos chamados de Morro Santa Teresa, na época, já eram
locais conhecidos por sua mineiridade.
O Morro Santa Teresa era visto como o destino mais comum dos
ubaporangenses que iam para a cidade de Rio de Janeiro nos anos 1950 e 1960. Um
residente de Ubaporanga, cujos familiares se deslocaram para Morro Santa Teresa,
comenta acerca das características deste fluxo: “Tinha que ser chamado de Morro dos

22
Ver foto da placa de Rua dos Mineiros nos Anexos.

44
Mineiros – não Morro Santa Teresa. A maioria era de Minas. Ia um e depois ia outro.
Era efeito cascata. Hoje tem muitos descendentes de Ubaporanga no morro. Não cabe
mais. São muitos”.
O desejo de vir para cidade tinha como motor um primeiro impulso. Não
usarei aqui o termo motivação, porque pressupõe certa premeditação ou planejamento
prévio da ação realizada como se fosse um ato voluntário ou uma escolha consciente –
o que estes casos não revelam pelos caminhos trilhados.
Quando perguntei aos entrevistados porque vieram para Rio de Janeiro, muitos
alegaram que vieram porque nesse período, as fazendas estavam dispensando os
empregados. Dona Rosa compreende que esta ação, de “dispensar empregados”,
estava ligada às pressões do movimento sindical com o surgimento de leis
trabalhistas, chamada por ela de Reforma Agrária. Para ela, a reforma agrária foi um
movimento que “botou medo nos fazendeiros”. Medo, como ela explica, de que “os
empregados” pudessem “tomar a terra deles”; “reinvindicar seus direitos” e “pedir seu
direito ao pedaço de terra”.
Dois informantes do município de Ubaporanga relatam a situação de
insegurança que experimentaram diante de sua expulsão das lavouras: “Os fazendeiros
achavam que tinham que repartir – dar um pedaço de terra para cada um que morava
lá – por isso, ficaram com medo e botaram todo mundo para fora. Arrumaram um
jeito de não ter mais como plantar”, ou então, “Viemos para Rio porque não tinha
mais trabalho. O fazendeiro mandou a gente ir embora. Naquela época, enchia as
favelas de gente aí”.
Dona Rosa conclui que o “esvaziamento dos empregados” na área rural foi tão
expressivo que inviabilizou o trabalho agrícola e deixou os fazendeiros sem
possibilidades de dar continuidade ao processo produtivo. Nas suas próprias palavras:
“Os fazendeiros estão acabados mais que a gente. Tem fazendeiro que não tem
plantação – somente tem gado. Sem a gente, ficou difícil continuar. Acabam
vendendo suas terras e indo para rua.”
Alguns mineiros entrevistados, tanto antigos sitiantes quanto empregados de
fazendas, citam “o cansaço da terra” como um fator que inviabilizou a produção
agrícola e que também provocou sua saída. A maior parte dos entrevistados ressalta a
imagem que construíram em torno do Rio de Janeiro na época de sua saída – como
espaço que garante condições de maior segurança no trabalho, simbolizado pela
aquisição da carteira assinada e pelos direitos sociais associados.

45
A possibilidade de um maior ganho, em termos monetários, dentro dos
padrões de um salário estipulado por lei e a promessa de uma maior valorização que a
carteira assinada poderia representar, com todos os benefícios sociais associados, era
um fator determinante na decisão de batalhar “uma vida melhor” no meio urbano. Na
maior parte dos casos, como constam nas entrevistas, esta hipótese foi confirmada ao
se inserirem no mercado de trabalho.
Dona Marlene, que mora em Ubaporanga, sinaliza o contraste entre as
condições trabalhistas nas fazendas e as condições oferecidas pelo mercado da grande
cidade, numa conversa com sua irmã, Dona Rosa. Este diálogo é bastante revelador
das concepções subjacentes à categoria de trabalho:

- M: “Achávamos que o mínimo era fora de comum. Porque não tinha nem
salário mínimo. Achávamos que era de outro mundo”.
- R: “E todos nós que fomos para Rio tivemos salário mínimo. Aí, vimos
como na roça éramos escravos sem saber”.
- M: “E nós aqui que ficamos em Ubaporanga, pensamos assim: A pessoa
vai para cidade, vai comer sentado. Vai ficar sossegado. Isso é o que as
pessoas falavam na época. Deve ser porque achavam que lá na cidade não
teria que trabalhar duro”.
- R: “E não tem nada ver. Eu trabalhei muito na roça, mas trabalhamos
também demais na cidade. Tínhamos que trabalhar demais para construir
nossa casa, para ter nossas coisas. Mas aprendi na cidade que tenho
direitos. Carteira assinada, aposentadoria – não sabia nada disso antes de
vir para cá”. [Marlene e Rosa]

Este diálogo revela o peso atribuído ao salário mínimo e aos outros benefícios
associados à carteira assinada – anteriormente desconhecidos. O trabalho urbano está
associado à garantia de estar assegurado pelas leis trabalhistas. O salário e a
aposentadoria são itens que preenchem os critérios essenciais para alcançar uma
posição de relativa segurança. São encarados como direitos adquiridos apenas a partir
da chegada na cidade. Esta situação é um contraste com a vivência na fazenda,
descrita da seguinte forma: “lá não tinha direitos”; “nem sabiam que tinha como
ganhar um salário mínimo” e “eram escravos sem saber”.
O nível de exigência em relação a cada tipo de trabalho desenvolvido – na
cidade ou na roça – é outro fator que entra nesta comparação entre os dois universos.
É interessante perceber o contraste construído entre “comer sentado”, o que denota ter
garantia de segurança no trabalho – e que vem embutido o significado de não ter que
trabalhar duro – associado ao meio urbano, por um lado e, por outro lado, a sensação
de ter vivenciado a escravidão – trabalho duro no qual se sujeita a uma autoridade: o
fazendeiro – sem receber a devida recompensa – associado à roça.

46
Alguns mineiros decidiram se arriscar na criação de novos empreendimentos
no meio urbano. “Mexer com pão”: vender pão de forma independente ou através de
padarias estabelecidas era considerado um bom negócio. Nina, uma ubaporangense,
expressa claramente sua opinião sobre a rentabilidade deste negócio: “Muitos saíram
para o Rio de Janeiro para vender pão. Detrás deste pão, tem outras coisas”.
A vinda de Dona Branca, oriunda de Ubaporanga, para o Rio de Janeiro está
bastante relacionada com seu envolvimento com o produto. Ela foi para Rio por este
motivo e “criou seus filhos vendendo pão”. Dona Branca conta sobre o processo de
construção deste empreendimento:

“Dá certo mexer com pão porque pão – ninguém fica sem ele. Todo dia
tem saída. 19 anos que estamos movimentando o pão. Morei 19 anos no
Rio. Criamos nossos filhos vendendo pão. Quando arrumei para meu filho
ir para Rio de Janeiro, ele estava com 15 anos. Foi trabalhar numa padaria.
Começou a trabalhar com padaria de rua”.

Como será visto no próximo capítulo, quando as padarias abriram nos lugares
de origem da maior parte das famílias mineiras, o pão era visto como uma novidade e
introduziu um novo elemento nas práticas alimentares. Para adquiri-lo, era necessário
exercer certo esforço – guardar dinheiro para comprá-lo ou realizar trocas, como fica
implícito nos depoimentos. Portanto, é interessante notar de que forma, o que
representava uma certa descontinuidade em relação aos hábitos alimentares da roça,
se tornou um ponto de entrada no universo urbano.
Pão constituiu-se numa ponte com as vivências anteriores, porque “lidar com
pão” foi uma aprendizagem adquirida nas pequenas cidades, circundantes às
propriedades rurais. De novo, se vê de que modo a continuidade convive com a
descontinuidade no tecido de lembranças destes mineiros.
Dona Branca demonstra a circularidade inerente a este movimento de idas e
voltas. Ela voltou para Ubaporanga há seis anos, mas seus filhos ainda residem no Rio
de Janeiro, lugar que ela visita com frequência. Ela alega que “está sempre indo e
voltando” e, de certo modo, vive em eterno trânsito entre os dois espaços.
Ela é uma entre muitas que, mesmo voltando para seu lugar de origem, ainda
cultiva relações com o espaço urbano23. Portanto, a saída do espaço urbano não
significa efetivar um rompimento definitivo. Há uma fluidez na relação rural-urbano

23
O capítulo 4 aborda, de forma mais frontal, as “idas e voltas”, inerentes aos fluxos. Nesse
capítulo, faz-se referência a outros mineiros que voltaram para seu lugar de origem, mas ainda
mantiveram contato com o Rio de Janeiro.

47
que perdura no tempo e fortalece os vínculos construídos.
Alguns mineiros contam que sabiam que o mercado de trabalho da grande
cidade apresenta mais alternativas e queriam fazer tudo ao seu alcance para garantir
um bom emprego. Jaime, oriundo de Ubaporanga, conta que apenas terminou a quarta
série e sentia que a falta de uma educação escolar lhe dificultaria encontrar um bom
emprego. Ele foi um dos tantos que procurou Dona Odete, uma liderança na área de
Educação Escolar e diretora de longa data de uma escola em Ubaporanga, para pedir
um diploma fraudado, na época, procurou ela “sem vergonha”, mas hoje ele
reconhece que “não estava certo”.
Segundo Dona Odete, muitos que se interessavam em ir para Rio de Janeiro
lhe procuravam para pedir que ela vendesse diploma – entendendo que era a via de
acesso ao mercado de trabalho e uma garantia do maior aproveitamento das
oportunidades.
A figura do patrão no contexto da cidade se torna uma representação mais
suave e humanizadora, em comparação com as lembranças do fazendeiro na área
rural. A figura do patrão na cidade, a partir das descrições feitas, não é visto como
alguém que manifesta um comportamento opressivo, apesar de propagar uma relação
assimétrica.
Em quase todas as histórias contadas, os patrões são representados como
aqueles que estabelecem vínculos empregatícios, através dos quais os direitos
trabalhistas são assegurados. A generosidade dos patrões é retratada em várias
circunstâncias como um ato gratuito não guiada por intenções paternalistas. Segundo
vários entrevistados, no início de sua estadia em Morro dos Prazeres e Escondidinho,
os patrões se tornaram grandes aliados, pois passaram a colaborar com a construção
das casas e a compra de utensílios domésticos.
Quando a maior parte dos mineiros chegou ao Rio de Janeiro, por volta dos
anos 1960, não existia um sistema de iluminação pública ou água. Alguns mineiros
testemunham a dificuldade para ter acesso à água, assim que chegaram à comunidade.
O quadro contrastivo, embasado numa comparação entre a roça, onde havia fácil
acesso aos recursos naturais, e a cidade, onde era mais difícil garantir livre uso de
água, serviu como um pano de fundo para internalizar esta situação nova. No seguinte
trecho de depoimento de Luís Eduardo, oriundo de São José de Batatal, o informante
compara a situação encontrada com a abundância dos recursos naturais na roça:

48
“Na roça, tinha rio – era melhor – apanhava água perto do rio – mas, aqui
na cidade, tinha que descer para pegar água na Assunção. Tivemos que
acostumar rapidinho e pegar água na mina para lavar roupa. E água doce –
pegava com os vizinhos que tinham água encanada ou levantava cedo para
ficar na fila lá onde tinha uma caixa de água, que era da Associação. A
caixa ficava cheia para que todo mundo pudesse pegar. Eu vinha e
colocava 10 latas na fila e algumas pessoas achavam que não podia. Dava
briga”. [Luís Eduardo]

Outro morador, Seu João que, antigamente, era agregado nas fazendas na
região de Teófilo Otoni, enfatiza o aspecto festivo deste acontecimento: a procura
pela água. No seu depoimento, a comparação é feita em outras bases – entre a
situação vivida “naquele tempo”, a partir de sua chegada no Rio de Janeiro, quando “a
gente sofria muito” e a situação vivida hoje, quando acesso a água e luz é garantido.
Nas suas palavras:
“Naquele tempo, a gente sofria muito... não tinha água, não tinha luz, não
tinha nada. Mas, quando as mulheres carregavam água, era uma festa neste
morro. E também quando faltava água, eram quarenta mulheres dizendo
que ‘não tem como fazer comida porque não tem água’. [João]

Vale notar que o estado de carência causada pela falta de água e sua procura,
de forma coletiva, é retratado tanto como uma fonte de possíveis conflitos quanto
como uma convergência de forças – o que Seu João chama de “uma festa neste
morro”, experimentada pelas mulheres que carregavam a água.
O que merece ser salientado nestes dois depoimentos é a forma como se dá a
produção das lembranças, a partir do manejo de uma comparação múltipla. É dizer
que, no primeiro depoimento, está operando o quadro contrastivo entre roça e cidade,
enquanto no segundo depoimento, está operando outro esquema comparativo,
estabelecido entre dois pontos – ontem e hoje – no âmbito urbano. Entretanto, nestes
dois pontos – ontem e hoje – está embutida a comparação que se enquadra na relação
contrastiva entre a roça e a cidade. É como se hoje fosse a cidade e antes, a roça.
Portanto, a ambiguidade das lembranças reside em dois níveis de relações
estabelecidas a partir de uma série de contrastes e comparações.
Nos registros sobre sua chegada em Morro dos Prazeres e Escondidinho,
vários mineiros relatam seu desejo de voltar para a roça, assim que enfrentaram os
primeiros desafios. Tiveram que lidar com uma série de experiências desagradáveis:
lugares apertados com pouco espaço para tantos familiares, falta de estrutura básica
como fogão de gás, geladeira, barracas construídas em materiais como bambu e
estuque, que não ofereciam conforto nem firmeza. Destaco o seguinte depoimento da

49
Dona Francisca, oriunda de Ubaporanga:

“Eu morei num quarto só com minha sogra. Sentia que estava morando de
favor. Era toda de madeira podre. Neste tempo, voltei para Minas de novo.
Meu marido ficou trabalhando. Somente voltei quando tinha a casa alugada
para mim. Não dá para ficar na lama. Falei que somente voltaria quando
tivesse casa mesmo para alugar”. [Francisca]

Talvez esta sensação de estranheza com as carências se explica, em parte, pela


diferença com os dias atuais, quando se tem garantido uma série de comodidades.
Portanto, este quadro contrastivo opera de tal forma que as carências vividas logo na
chegada são compreendidas como se fossem componentes da vida na roça, enquanto
as comodidades do momento presente são associadas com a cidade.
Segundo Eliza, “a comunidade foi feita na base de mutirão”. Os moradores se
uniram para colocar os primeiros bicos de luz e para construir um sistema interno de
abastecimento de água. As Igrejas Católicas e Escolas na comunidade exerciam uma
função social de extrema importância, por causa das doações feitas para pessoas mais
necessitadas, entre elas, os mineiros recém-chegados. Dona Rosa mencionou que sua
família passava fome nos primeiros anos do seu estágio em Morro dos Prazeres e
dependia das doações da Escola Júlio Lopes, na forma das sobras dos lanches
escolares. Como ela afirma:
“Ao final do dia, a diretora mandou levar para casa a comida que sobrava
para aquelas mães que tinham muitos filhos. Matava fome mesmo.
Enchiam as vasilhas com macarrão e frango, porque sabiam que a renda
familiar era pouca. Era comida boa – vinha cada pedaço grandão de frango
dentro da comida”. [Rosa]

Algumas características que apontam pela continuidade entre a roça e o


destino final deste trânsito – Morro dos Prazeres e Escondidinho – facilitaram o
processo de transição que se inicia a partir da chegada. Uma característica marcante
do Morro dos Prazeres e Escondidinho que foi citada por vários moradores como
sendo algo que lhes remete à imagem forjada da roça é o alto nível de vegetação que
se mantém, mesmo diante da densidade populacional causada pelo processo de
ocupação do morro. Vitor, oriundo da região de Caratinga, expressa o sentimento de
felicidade que teve no momento de sua chegada: “Aqui encontrou com sua roça”, pois
o verde que lhe rodeia traz “lembranças do roçado”.
A extensão de áreas verdes no meio da comunidade ressalta a beleza física do
lugar e também incentiva o uso destes terrenos e lotes vagos para finalidades de

50
plantio, como será analisado mais adiante. Como a moradora Josefina, oriunda de
Muriaé, ressalta: “Este morro tem muito verde – muita árvore, muitas plantas. Vira e
mexe uma árvore está caindo em cima de um barracão”.

1.5 INSTITUIÇÕES QUE REPRESENTAM DUAS FONTES DE “ORDEM


SOCIAL”: O TRÁFICO E A RELIGIOSIDADE

1.5.1 O tráfico

A violência era vista como uma novidade que, aos poucos, foi sendo
internalizada pelos recém-chegados, como componente do “modo de vida urbano”;
entretanto, no início, era motivo de susto. Maria do Carmo, moradora de
Escondidinho e oriunda de Ubaporanga, comenta sobre a situação de violência
enfrentada na área urbana, em contraste com a realidade no campo: “Eu vim a
conhecer arma aqui, apenas no Rio. Lá tinha pólvora que bota dentro da espingarda e
dá tiro. Só sai fumaça e fogo… não tem bala. É para tirar na cara de quem tirava a
virginidade da filha... ou para matar cobra e passarinho. Somente se faltasse respeito
com a filha, usava violência”.
Dona Rosa descreve seu primeiro contato com a violência na comunidade
como um grande empecilho, que lhe incentivou a cogitar um possível retorno ao seu
lugar de origem:
“Teve um dia que o comando no morro disse ‘não pode sair ou vão
morrer’. Isso foi uma lembrança muito forte – aí, todo mundo ficou
escondidinho embaixo da escada. Aí, pensei: vou juntar minhas trouxas e
vou embora. E aí, Diamantino, meu marido, falou: ‘deixa de ser boba – não
vai continuar. Já acalmou aqui’. Ele nunca dava o braço a torcer. Aí, falei
com ele: ‘se você não vai, eu te deixo aí e eu vou para a casa de meus
pais.’ Mas, pensei: ‘eu não tenho dinheiro – então, o jeito é ficar’. Cheguei
neste dia a pensar em ir na Prefeitura e pedir a passagem de volta. Nem sei
se eles iam me atender – se me ajudariam. Mas, acabou que fui ficando... a
gente foi rezando... Deus não queria que eu fosse”. [Rosa]

Segundo Dona Rosa, a violência naquela época era “pior” porque “tinha
conflito entre dois comandos”. Ela lembra claramente do dia da invasão do Comando
Vermelho, quando “tomaram conta do morro”. Descreve esta invasão de forma
detalhada: “Falaram para não andar pelo morro porque ia morrer todo mundo. Fiquei
à noite na casa de um conhecido, lá embaixo. Mataram muita gente – o morro estava
cercado. Tinha cabeça dentro da lixeira. Eu tive muito medo. Eles achavam que todos
estavam dando apoio para o outro comando”.
Dona Rosa mantém uma posição mais ponderada sobre a situação da violência

51
nos dias de hoje, devido à calmaria, a nível local, comparada com os momentos mais
turbulentos logo após sua chegada. Nas suas próprias palavras: “Agora a gente fica
como se estivesse anestesiada”.
Esta sensação, de “estar anestesiada”, se intensifica nos momentos de visita
por parte de parentes. Segundo Dona Rosa, sempre os visitantes ficam assustados ao
avistarem homens carregando armas “logo na entrada”, enquanto ela “nem presta
atenção” nestes pequenos sinais da violência.
Ela enfatiza que a violência exerceu um efeito sobre as relações internas, teve
uma interferência na convivência entre os vizinhos. O medo da violência foi um fator
que acarretou um distanciamento entre os vizinhos, o que explica porque “as portas
sempre ficam trancadas”. No seguinte trecho de depoimento, ela faz um contraste com
as relações cultivadas no ambiente da roça:

“Antigamente, visitar os vizinhos era um passeio. Os vizinhos ficavam


longe na roça – tinha que ir até eles. Íamos lá na casa de um, depois na
casa de outro – para conversar. Hoje, é tão diferente. Na cidade, a gente
conversa em cima do telhado. Eu tenho costume de conversar com Arlete
quando vou lá para o telhado para mexer com as plantas”. [Rosa]

O contraste se dá da seguinte forma: enquanto na roça, se fazia visitas nas


casas dos vizinhos, na cidade, se conversa “em cima da laje”, ou seja, há uma
limitação na liberdade e autonomia que é possível exercer no nível das relações
internas da comunidade urbana que não era sentida no contexto da roça.
Apesar dos constrangimentos causados pelo tráfico, nos dias atuais, a
violência parece ser uma lei básica da vida no morro que é respeitada por todos e que
faz parte do mecanismo operativo do poder local. Eliza acredita que conviver com o
tráfico é uma necessidade para “se dar bem no morro”, pois como ela mesma afirma:
“Tudo aqui é movido através de um poder. Este poder é respeitado. E se sabe – se
alguém viola este respeito, terá alguma penalização”.
Segundo Aparecida, moradora do Morro dos Prazeres e oriunda de
Ubaporanga, o respeito é um pré-requisito para que a violência não assuma grandes
proporções e não interfira na vida comunitária: “Tem que saber lidar com a violência.
Se você mexe com eles, aí perde respeito. Se você respeita, não acontece nada. Tem
que manter o respeito.”
Esta informante também afirma que uma função social exercida pelos
traficantes é a construção de um Sistema de Justiça a nível local. Segundo ela, a

52
distorção deste sistema seria o exercício de um tipo de retaliação, a partir de interesses
puramente pessoais: “Se você chegar neles e reclamar de alguém, aí eles vão atrás.
Alguns podem usar isso como um tipo de retaliação. Isso não é bom”.
Seu João, oriundo de Teófilo Otoni, que mora na parte de Morro dos Prazeres
chamada de Colina, alega que o tráfico constitui um escudo de proteção diante de
possíveis invasões e perigos e precisa ser reconhecida como uma força organizadora
das interações sociais. Segundo ele, aconteciam incidentes de roubo com mais
frequência na comunidade antes do tráfico “impor seu comando”. Nas suas palavras:
“Os traficantes são como segurança. Antes, as pessoas apanhavam roupa no varal dos
outros. Hoje, ninguém mexe. Por causa da lei que arrumaram – disseram que não
querem ladrão neste morro. Esta rapaziada aí ficou boa para gente”.
As repercussões do tráfico, que mesmo de forma velada e capilar, estabelecem
mecanismos de controle – são perceptíveis quando se analisa as modalidades de
gestão das áreas vazias e abandonadas a nível local.
Há um tipo de controle social que é exercido sobre o mapa da comunidade de
tal forma que os movimentos de ocupação ou uso de terras que aparentemente “não
são de ninguém” chegam ao conhecimento dos traficantes e “precisam passar por sua
aprovação” 24. Segundo Dona Rosa, “não há nada que nós fazemos que eles não estão
vendo”. A sensação de estar sempre exposto, numa situação de alta visibilidade – de
tornar seus atos publicamente vistos e sujeitos a um olhar vigilante – é um mecanismo
que reforça substancialmente o exercício do poder local.
A visão do poder exercido pelos traficantes na capilaridade das relações
cotidianas, como descrita por Eliza, nos remete ao conceito de “micro-poder”
introduzido por Foucault, ao situá-lo no nível do próprio corpo social (FOUCAULT,
1979).
Ao afirmar que o poder se manifesta mediante uma relação fluida e difusa em
todas as partes e não somente se efetiva a partir de uma dinâmica de “transmissão
vertical” que emana de um centro para as áreas periféricas, o autor traz uma
concepção do poder que se assemelha ao mecanismo operativo que impulsiona as
ações dos traficantes no morro. Esta operação silenciosa e conivente com as estruturas
regentes da comunidade local, talvez explique sua suposta eficácia.

24
No capítulo 3, este ponto será examinado de forma mais detalhada.

53
1.5.2 A Igreja Católica

Outra instituição que exerce um tipo de poder local, embora de forma bem
diferenciada que o tráfico, é a Igreja Católica. Ela representa uma força agregadora
nas relações sociais e um ponto de encontro entre os mineiros. Os morros têm duas
igrejas: uma localizada na parte mais central da comunidade, considerada Morro dos
Prazeres, acima da Rua Gomes Lopes, e outra localizada no Escondidinho.
No trabalho de campo, minhas idas para assistir à missa com a Dona Rosa, na
igreja localizada em Morro dos Prazeres, foram momentos privilegiados para
conhecer os aglomerados de mineiros e descobrir onde estavam localizados nos
diversos segmentos da comunidade local. Segundo Dona Rosa, a igreja possibilita
múltiplas formas de organização, tem várias pastorais, entre elas, a Pastoral da
Limpeza e dos Doentes, dos quais se pode participar e também são organizadas
romarias e procissões.
Portanto, Dona Rosa frisa a necessidade de “fazer sua parte”, participando
ativamente das atividades promovidas pela instituição. Nas palavras dela: “A igreja é
o único lugar onde se encontra. Isso que acho é a união. Muita gente fala que gente do
interior é mais unida. Mas, eu digo: aqui se a gente quiser também dá para ser assim
igual era na roça”.
A Igreja Católica é citada diversas vezes pelos entrevistados como uma
instituição que ofereceu apoio aos recém-chegados, especialmente, aos mineiros.
Destaco o seguinte trecho de depoimento, da Dona Antônia, oriunda de São José, da
Pedra Bonita: “Graças a Deus, quando vim para cá, os amigos da Igreja me ajudaram.
Falaram que EU era mineira, então iam me ajudar. Ajudavam muito os mineiros
naquela época com doações de roupa, comida. Nesta época, tinha mais mineiro no
morro que nordestino – sempre fomos muitos”.
O que vale destacar neste depoimento é a ênfase dada à solidariedade prestada
pela Igreja aos mineiros. Em outras conversas, alguns deles citam o alto nível de
deslocamentos de pessoas oriundas de Minas Gerais para Morro dos Prazeres e
Escondidinho, comparando com outros estados e regiões. Entretanto, sem me prender
tanto neste detalhe – em relação a qual o fluxo pudesse ter sido mais intenso e,
portanto, um motivo para receber mais apoio na acolhida – o que merece se ressaltar
aqui é a ligação entre ser mineiro e pertencer à Igreja Católica.
A Igreja Católica, desde a chegada dos mineiros, serve como um ponto de

54
apoio e facilita a organização interna deste aglomerado. As missas não deixam de ser
um momento de reencontro, entre os mineiros, pois logo depois da finalização da
missa, eles se agregam na entrada e colocam “as fofocas em dia”.
Em relação às conversões religiosas, nas opiniões expressas, parece haver uma
associação entre o surgimento de novas religiões – e a chegada na cidade. Segundo
Seu Sebastião, um mineiro oriundo de Senador Firmino que, na área rural, era sitiante
e seguidor da fé católica, os motivos da conversão religiosa no meio urbano são
vários: “muitas pessoas mudam de religião “por causa de dinheiro” ou porque “está na
moda ser evangélico”. Em contraponto à cidade, a roça é visualizada como um lugar
de maior homogeneidade em termos religiosos. Nas palavras dele:

“Todo mundo era religioso na roça – todo mundo ia na igreja. Também


tinham as festas religiosas. Lá ninguém tinha preguiça de ir na igreja. E
todo mundo era da mesma religião. Agora surgiu outra religião. Naquela
época, era uma coisa só – tinha menos mistura de religião”. [Sebastião]

A conversão à fé evangélica, que vem ocorrendo com maior frequência nos


últimos 20 anos, tanto na comunidade urbana quanto nos lugares de origem destes
mineiros, é bastante criticada em diversos depoimentos. Dona Ivone, mineira oriunda
de Governador Valadares, afirma que “os mineiros são católicos e sempre mantém
sua fé”. A conversão à fé evangélica é citada como um fator que contribui para a
“falta de união” entre os mineiros.
O poder da Igreja também está na base de explicação da “desgraça” que
ocorreu na comunidade em abril de 2010. O fato de que a maior parte dos mineiros
que morreram terem sido evangélicos e que estavam realizando um ato de protesto
contra Nossa Senhora um dia antes da tragédia foi mencionada por Dona Ana, uma
católica originalmente de Águas Claras, próxima a Carangola, como uma base
explicativa diante das mortes destas famílias mineiras e seu próprio salvamento.
Este ponto será examinado mais adiante – ao analisar a tragédia25, no entanto,
aproveito aqui apenas para sinalizar as implicações desta conversão evangélica, que é
percebida como uma suposta traição.
Esta visão reflete o papel que a Igreja Católica desempenha a nível local,
enquanto ponto de convergência entre os mineiros. Enquanto a religião evangélica
representa a possibilidade de um desvio de caminho, o catolicismo é um sinal de

25
Ver o capítulo 3 para maior análise desta interpretação dada pela Dona Ana e suas
implicações.

55
continuidade dos modos de vida da roça no meio urbano.
Assim, a fé católica é cultivada pela grande maioria dos mineiros
entrevistados. A participação nas missas e nas atividades pastorais são atividades
centrais na sua rotina semanal. A maior parte dos mineiros entrevistados parecem se
esforçar para “manter viva a fé” – em parte, porque cultivar a religiosidade é um elo
que conecta o passado com o presente, a roça com a cidade.

1.6 TRABALHO: SIGNIFICAÇÕES CONTRASTANTES NA ROÇA E NA


CIDADE

As histórias contadas se desdobram em registros que revelam a centralidade


do trabalho, como se fosse um traço constituinte da identidade mineira. É citado como
fonte de prazer ou desconforto, como lugar da valorização ou desvalorização, em
termos financeiros como espaço de luta, pelo esforço exigido e como tecido para a
costura de relações familiares.
As lembranças da roça são emaranhadas numa dinâmica que envolve a
construção de uma relação com o alimento. Dito de outro modo, os mineiros
dificilmente se referem à vida na roça sem citar os processos de plantio, colheita e
consumo dos alimentos. Lidar com alimento, mediante as etapas do ciclo produtivo, é
encarado como um trabalho – que dá sentido para a existência e inscreve suas marcas
por meio de esquemas valorativos.
Portanto, no caso dos mineiros que constituem o foco desta pesquisa, a
atividade agrícola até hoje serve como motor dos processos identitários. Quando Dona
Rosa menciona a ideia de voltar para Minas Gerais por causa da ameaça da remoção e
esta ideia é descartada, em outro momento, porque “lá não tem o que fazer”, percebe-
se que seu anseio, que se exprime no discurso, está extremamente ligado às
contingências de trabalho.
Sua impressão da roça hoje é como o lugar de não-trabalho, onde “só
substitui o trabalhador com máquina para colher café, estas coisas. Não tem mais
serviço lá não”, ou seja, o fato de que a roça prescinde hoje da força humana diverge
da imagem anteriormente construída a partir de sua vivência na juventude, como um
lugar que exige trabalho árduo. As mudanças que têm ocorrido na roça são foco de
um diálogo entre Dona Rosa e Dona Margarida, ambas de Ubaporanga:

-M: “Passei 10 anos sem ir lá. Fui há um ano e pouco. Acho que mudou
muito – mas, quase não se vê plantação. Vê somente eucalipto. Não vê

56
feijão, arroz”.
-R: “Agora na roça, está igual na cidade – ninguém quer plantar mais nada
porque o custo de vida subiu muito. As pessoas começaram a aposentar, o
governo arrumou a aposentadoria – aposentando aquelas pessoas mais
idosas. E muita gente acha melhor pegar aquele dinheiro e comprar as
coisas que plantar”.

Portanto, há uma dificuldade para conciliar o lugar da roça com a falta de


atividade agrícola; é como se estas duas imagens se complementassem na cadeia das
lembranças.
As lembranças sobre o trabalho realizado na roça são caracterizadas pela
ambiguidade já que, em alguns momentos, o trabalho está imbuído de uma carga
afetiva, enquanto em outras instâncias, é retratado como uma experiência sofrida.
Também, a oscilação nas impressões sobre as experiências de trabalho tidas na roça se
explica pela mudança de perspectiva, a partir da inserção no mercado de trabalho no
âmbito urbano.
Na citação abaixo, Dona Vera, oriunda de Caratinga, exprime a natureza
multifacetada que os trabalhos realizados na roça assumem no tecido de suas
lembranças a partir do lugar que ela ocupa na atualidade. O que constituía fonte de
prazer quando era criança, hoje está marcado pela dureza e adversidade:

“Plantar – aprendi na roça. Não esqueci nada. Eu plantava arroz, feijão,


milho – e preparava a terra para plantar. Lá tinha moças mais velhas que
eu. Eu era menor. Eu não podia ficar para trás – elas iam capinando. Se
não acompanhassem, eu não ganhava igual elas. Adorava – era tudo festa.
Agora sinto que era sofrido. Ganhava alguma coisa, mas era muito pouco.
O saco que vinha junto com adubo que usávamos para plantar era usado
para fazer nossas roupas. Minha mãe somente conseguia comprar algumas
coisas ao final do ano quando o patrão dava”. [Vera]

Além do caráter ambíguo das lembranças, as experiências de trabalho na roça


possuem uma carga afetiva bastante expressiva que transparece nos relatos. Dona
Leda, oriunda da região de Zona da Mata, lembra de todos os detalhes das etapas da
produção da rapadura, iniciando com o plantio da cana, com uma nitidez que
transmite o frescor do momento vivido. Dona Conceição, de Ubaporanga, em uma
conversa com Dona Rosa, lembra, com saudade, dos mutirões – uma estratégia
utilizada entre os agricultores que tinham necessidade de mão de obra e não tinham
condições de pagar trabalhador. Nas palavras dela:

“Todo mundo plantava naquela terra – limpava aquilo tudo. Quando

57
terminava de limpar aquilo ali, iam para outra lavoura. Não podiam pagar
com dinheiro – então, trocavam trabalho. Meu povo ia trabalhar nas
plantações do pai da Rosa – terminava lá – via que era super limpo – e
logo depois, todo mundo ia para o meu. Às vezes, eram 20 ou 30 fazendo
aquilo. Tenho saudade daquilo”. [Conceição]

Numa outra conversa, que transcorre entre Dona Rosa e Dona Chiquinha
durante uma visita realizada a sua casa em Entre Folhas, um município localizado
próximo a Ubaporanga, Dona Chiquinha se lembra dos mutirões como um momento
de união entre as famílias:
“Trabalhei na fazenda de Lulu, onde Teresa e Rita também trabalhavam. O
dia que mais gostava era quando juntavam as famílias – íamos para as
casas, uma da outra, para fazer as trocas. Os pais organizavam. Juntavam
pais e filhos para trabalhar o dia. Era bom demais. Nos divertíamos
muito.”[Chiquinha]

Na situação contada a seguir, Seu Sebastião, oriundo de Senador Firmino, e


um dos poucos mineiros entrevistados que possuía terra própria mostra claramente a
ligação entre as relações familiares – imbuídas de uma carga afetiva – e o processo
produtivo:

“Queria muito comprar um violão e aí, meu pai me falou assim – te dou
um conselho: ‘prepare a terra, planta arroz e na colheita, vende arroz e
compra o violão’. Peguei e fiz isso… plantei arroz, amadureceu… ficou
cheizinha [sic]... e quando a arroz estava desta altura assim, socava... deu 8
sacos de arroz. Vendi 4 sacos, comprei o violão com muito sacrifício, com
meu trabalho. Segui o conselho do meu pai”. [Sebastião]

Nesta recordação, o esforço que envolve o trabalho realizado – que Seu


Sebastião nomeia de sacrifício – teve como recompensa a aquisição de um violão. Em
outro momento, Sebastião diz que “não lidava com dinheiro” – “trabalhava junto com
seus irmãos e seu pai na propriedade” e seu pai fazia gestão dos recursos.
Portanto, ganhar seu próprio dinheiro para depois investir na compra de um
instrumento que pudesse ser usado para seu lazer e diversão trazia uma conotação
afetiva para a categoria de trabalho. O registro que sedimenta na camada das
lembranças é a costura de uma relação intricada entre o esforço realizado e a
recompensa – algo muito mais que apenas um bem material adquirido.
No outro polo do continuum das lembranças forjadas em torno do processo
produtivo na roça, prevalece uma conotação negativa, justamente pela condição de
muitos mineiros – por terem sido sujeitados à autoridade do fazendeiro e por não
terem tido uma recompensa financeira que pudesse compensar o esforço exigido.

58
Histórias foram contadas que mencionam “fazendeiro que atacava gado no meio do
milho”, “não recompensou com nada na hora de mandá-los embora”, “Pedia que eles
fizessem comida, mas não deixava que eles comessem nada”.
Muitos se referem ao trabalho realizado na roça como trabalho escravo, o que
seria um contraste com as condições trabalhistas encontradas na área urbana. Isto não
significa a inexistência de situações desagradáveis, nas experiências de trabalho no
contexto da cidade, porém, o que merece destaque aqui é o valor atribuído pelos
mineiros a determinados sinais de segurança e proteção como a carteira assinada.
Os seguintes depoimentos explicitam situações vividas por três mineiros na
faixa etária de 50 a 60 anos de idade, no período em que trabalhavam em fazendas no
município de Ubaporanga. Apontam a gama de valores e significações que se
agregam em torno das situações de trabalho em dois universos – a roça e a cidade:

“Na roça, trabalhava, mas não ganhava. E aqui, ganhamos um dinheirinho.


Lá trabalhávamos nas propriedades dos fazendeiros – era meia, meia –
mas, era mais para ele. A terra era do patrão… e trabalhávamos para dar
lucro para ele”.(Josué)

“Lá, fazendeiro não assinava nenhum documento. Em nosso tempo, não


existia isso – não pagava nem sindicato. E não precisava porque
morávamos na propriedade deles. Aqui tem carteira assinada. Foi uma
grande diferença. Senti realizado. Na roça não… mas, aqui sim… porque
praticamente estou trabalhando por minha conta”. (Luís Eduardo)

“Naquela época, tratavam mal os empregados. Empregado era empregado,


patrão era patrão. Era quase um pouco de escravidão. Porque lá onde meu
pai nasceu, na fazenda, lá peguei um pouco da escravidão. Todo mundo lá
trabalhava na fazenda. Primeiro, os patrões comem, para depois os
empregados comerem – mas a comida é diferente, não é a mesma comida.
E se escapar, eles vão atrás para buscar”. [Valdir]

Nestes três depoimentos, se estabelece um contraste entre aqui e lá. Nas


referências feitas à roça, há uma variedade de lacunas: “não ter documento”, “não
possuir sua própria propriedade” – e também uma série de situações sociais marcadas
pela relação assimétrica entre patrão e empregado: “Trabalhar para dar lucro para
ele”, “Comer depois do patrão”.
Em relação à cidade, há uma variedade de impressões partilhadas a partir de
vivências tidas – que contrastam com a realidade na área rural – “Ganhar
dinheirinho”, “Ter carteira assinada” e “Trabalhar por sua conta”.
Para o mineiro que faz referência à escravidão – Sr. Valdir – a sensação de ter
sido escravo apenas transpareceu depois de sua saída da fazenda e de sua mudança

59
para cidade – a partir do seu primeiro emprego com carteira assinada.
Como ele declara: “Antes achava que era assim mesmo. Que todo mundo
vivia deste jeito”. Assim, as conotações negativas que ele registra em relação a sua
vida na roça se tornaram perceptíveis por contrastarem com a satisfação proveniente
dos primeiros empregos no meio urbano. Isto mostra de que modo o esquema
contrastivo entre roça e cidade opera para ressaltar aspectos negativos das vivências
tidas no passado.
Na mudança para cidade, houve a necessidade de se adaptar a um mercado de
trabalho repleto de diferentes tipos de trabalho – o que significou passar por um
processo de aprendizagem de novas ferramentas. Na roça, também havia as
especializações, muitos acumulavam outros ofícios dentro da roça, além do trabalho
agrícola.
Entretanto, nas entrevistas realizadas, os registros sobre trabalhos realizados
no lugar de origem demonstram que a maior parte dos entrevistados enfocava o
trabalho agrícola. Os outros trabalhos realizados eram considerados periféricos. Um
exemplo é o pai de Dona Rosa, que era carpinteiro e pedreiro, mas se dedicava,
principalmente, à produção agrícola.
Na cidade, ocorreu o desenvolvimento de novas profissões. Em relação aos
tipos de trabalho exercidos pelos mineiros na cidade, a maior parte das mulheres se
envolve com trabalho doméstico, enquanto os homens trabalham como pedreiros,
jardineiros, cobradores de ônibus e donos de vendinhas.
Um ponto a salientar é a combinação dos setores informais26 e formais na
estratégia de sobrevivência – observa-se tanto a execução de serviços no mercado
informal, quanto o exercício de empregos formalizados. Há uma elasticidade na
negociação de um amplo leque de trabalhos do caráter informal, dentro dos tempos
disponíveis, como Dona Rosa demonstra no seguinte depoimento:

“Hoje tenho um emprego fixo, graças a deus – faço serviço doméstico num
condomínio na Rua Almirante Alexandrino. Mas, sempre trabalhava na

26
Alguns mineiros se envolvem de forma bastante intensa nos trabalhos do setor informal. Ver,
nos Anexos, a foto do irmão da Dona Rosa, Toninho, que trabalha na Feira da Glória, como feirante de
diversos alimentos: mandioca e feijão andu, entre outros. Ele assumiu esse trabalho num primeiro
momento como uma complementação do seu emprego fixo, cobrador de ônibus. Atualmente, trabalha
apenas como feirante de alimentos, em diversos pontos da cidade de Rio de Janeiro. Mostra orgulho do
seu trabalho, apesar das condições precárias diante das fiscalizações e as incertezas em relação à venda,
pois como ele afirma: “Quando estou mexendo com os alimentos, lembro da roça. Quando corto a
mandioca, lembro dos dias que passei plantando com meu pai, embaixo daquele sol quente”.

60
casas dos outros como faxineira e nas horas quando estava sem dinheiro,
eu vendia latinha para comprar verdura. Ainda faço isso. Tem dia de
reciclagem: quarta, quinta e sexta. Economizo vendendo latinha e com o
dinheiro que tiro disso compro verdura e legume, porque, às vezes, não dá
somente com o dinheiro do meu trabalho no condomínio. Também,
algumas coisas que acho na reciclagem posso usar para plantar.Meus filhos
me chamam de louca – eu deixo que eles me chamem de louca – digo:
“podem me chamar”. [Rosa]

Iniciar novos empregos no contexto da cidade representa um processo de


aprendizagem. Valdete, oriunda de Ponte Nova, MG conta sobre sua experiência
como aprendiz de um novo trabalho, enquanto empregada doméstica:

“Quando comecei a trabalhar na casa da Dona Sandra, ela me ensinou


desde a estaca zero. Como se colocar uma mesa, o tipo de material para
fazer as coisas... porque lá em Minas, a gente usava areia para lavar as
panelas. E aqui não. Lá em Minas, acordava 5 horas da manhã e ia para
fogão de lenha... você mexia um angu... fazia um caldeirão... jogava o peso
nas costas… com uma garrafa de água você ia para mato… às vezes
chegava no mato e falava: ‘esqueci o garfo…vou ter que fazer um garfo
com casca de cana’…estas coisas”.

Em algumas ocasiões, assumir um novo emprego facilitava a aquisição de


novas ferramentas, por exemplo, aprender comidas tipicamente cariocas. Dona Eva,
oriunda de Ubaporanga, compartilha o processo de aprendizagem de novas receitas
para o café da manhã, no seu primeiro trabalho como empregada doméstica:

“Tive que aprender novas coisas porque fui para casa de família. Em
Minas, tinha somente broa e biscoito de polvilho. Milho assado, aipim
cozido. A broa de fubá – fazíamos na panela, colocávamos a brasa por
cima. Aqui era bem diferente. Eu não podia fazer aquela broa de antes e
tinha que aprender logo como fazer bolos para as madames”.

Aprender a fazer comida “carioca” para as madames significava atender suas


preferências alimentares – o que se constituía em mais uma lição aprendida no
mercado de trabalho da área urbana.

1.7 OS SUSTOS DIANTE DA MULTIPLICIDADE DE OPÇÕES DE COMÉRCIO


NO ÂMBITO URBANO

No contexto do Morro dos Prazeres e Escondidinho, os relatos revelam uma


aposta no trabalho, como uma atividade que possa garantir um retorno financeiro e,
consequentemente, possibilitar uma boa alimentação, pois prevalece a noção de que

61
uma maior quantidade de opções alimentares está disponível no meio urbano.
Portanto, o meio urbano, além de apresentar várias possibilidades de emprego,
ampliando assim, o leque de ferramentas e ofícios a serem aprendidos – também
oferece uma diversidade de produtos a serem consumidos – incluindo múltiplas
opções alimentares.
Nas histórias contadas, observa-se “os sustos” que os mineiros levam quando
deparam com este amplo leque de opções alimentares. As histórias contadas revelam
sensações de fascinação e empolgação diante das opções oferecidas pelo comércio. O
meio urbano parece suscitar o instinto para consumir, o que envolve também uma
remodelagem das forças de desejo. Vejamos, a seguir, a fala de Dona Raimunda,
oriunda de Carangola: “Foi tão estranho quando entrei num supermercado pela
primeira vez. Fiquei doidinha quando vi tantas coisas nas prateleiras. Antes, na roça,
nem queria ter aquelas coisas – nem sabia que tinha. Agora, dá vontade de comprar
muitas coisas”.
Dona Raimunda conta sobre a descoberta de um mundo de coisas que nunca
tinha visto antes e revela “a vontade de comprar” o que deseja. Neste processo, o que
não se conhecia antes passa a ser um objeto de desejo.
Esta ênfase dada ao consumo implica em uma reformulação da relação
estabelecida com dinheiro, o que acarreta em uma nova forma de lidar com a gestão
dos recursos.
Em entrevistas, um total de nove mineiros, que passou anos de sua infância e
adolescência trabalhando em fazendas, falou que não tinham acesso ao dinheiro, pois
ele raramente passava por suas mãos, sendo que era a figura do pai que comandava as
transações de venda de produtos da roça e, de vez em quando, realizava compras no
mercado, numa cidade próxima.
Ao analisar esta falta de acesso ao dinheiro, por parte dos entrevistados, é
preciso levar em consideração as diferenças geracionais e as relações de poder entre
pais e filhos. Entretanto, nas histórias contadas, é significativo que a compra não é
enfatizada como se fosse uma atividade central. Ao contrário, os entrevistados
testemunham que apenas se comprava alguns mantimentos como o sal no mercado
local. Um destes mineiros, Seu Mateus – oriundo da comunidade de Divino, na região
de Zona da Mata mineira, esclarece a relação estabelecida com o mercado no contexto
da roça:
“Antes, todos íamos para roça para trabalhar. E tinha tudo na roça. Antes

62
não comprávamos quase nada no mercado. No fim do ano, apenas meu pai
comprava alguma coisa no mercado. Hoje é outra coisa – não tem como
deixar de ir ao mercado. Dependemos dele para tudo”. [Mateus]

Enquanto na área rural, havia uma maior ênfase na produção agrícola para
subsistência, ou seja, se dependia da plantação para viver. No meio urbano, é o
trabalho realizado por empregos adquiridos que garante acesso ao comércio e lhe
permite consumir produtos alimentícios.
Dona Lúcia, oriunda de Ubá, MG destaca claramente sua percepção das
diferenças entre “a comida da roça” e “a comida da cidade”, a partir do prisma de
trabalho. Enquanto na roça, “se tinha que dar duro” para plantar, colher e comer; na
cidade, o trabalho representa a principal via de acesso ao comércio. Nas suas palavras:
“Era diferente a comida aqui na cidade porque era tudo pronto. Quando cheguei aqui,
achei estranho – nunca tinha esse costume de ir ao supermercado, sacolão, açougue. O
que achei mais estranho ainda é que aqui não tinha que dar duro para plantar e
colher”.
Em todos os níveis de produção e consumo, há uma proliferação de novas
possibilidades que eram praticamente desconhecidas no ambiente da roça e que, neste
novo contexto, são associadas com marcas e rótulos. Dona Vilma, oriunda de
Caratinga elucida a sensação que este novo cenário provoca:

“Levei um susto quando cheguei aqui, porque não estava acostumada a ver
tantas coisas – muitas coisas que nunca vi antes. Quando fui para o sacolão
pela primeira vez, vi muitas verduras e frutas diferentes – coisas que não
conhecia antes. Lá na roça, não tinha cenourinha. Não era comum na roça.
Batata baroa – era o que a gente considerava como cenoura. Lembro uma
vez meu pai decidiu plantar cenoura – até ficou bonito. Deu tanta cenoura!
Sabe como minha mãe fazia? A gente não sabia o que fazer com aquilo.
Ela cortava e fritava – ficava murchinha. Depois que aprendemos que era
para comer cru ou cozido! Lá somente tinha aquela abóbora-de-água.
Beterraba também – não conhecia lá. Outra coisa que não conhecia lá –
caqui. E quando fui ao supermercado – nossa! É tão grande – e tem de
tudo! Tantas marcas diferentes – nem sabia o que deveria comprar. Ficava
perdida – porque tinha que escolher... e eram tantas opções.” [Vilma]

O susto que Dona Vilma sentiu, surge a partir do seu enfrentamento com um
novo contexto, no qual são encontrados produtos que não conhecia, anteriormente, lá
na roça. Logo, há uma descontinuidade entre suas experiências anteriores na roça e
sua vida na cidade que fica evidente ao lidar com uma maior complexidade de
produtos e tipos de comércio.

63
Ao relatar sua primeira ida ao supermercado – um espaço de “tantas marcas
diferentes” que “nem sabia o que deveria comprar”, pois “não estava acostumada a
ver tantas opções” – Dona Vilma revela claramente as mudanças que surgem a partir
de sua inserção num universo voltado para o consumo.
Não vou restringir minha análise apenas às novidades que foram introduzidas
a partir da aproximação com os estabelecimentos comerciais do meio urbano. O que
se nota é que tem ocorrido uma maior complexidade nos circuitos de produção e
consumo nos últimos quarenta anos, de tal forma que este susto não apenas é
ocasionada pela estranheza que se sente quando se enfrenta as novidades do meio
urbano.
Também é possível sentir um susto quando se depara com a ampliação de
alternativas de consumo ao voltar para seu lugar de origem como o Seu Adilson,
residente de Ubaporanga, retrata de modo claro no seguinte trecho de depoimento:
“Hoje globalizou. O que acho ali em Rio também acha aqui. Hoje, a maior
parte dos mantimentos é de fora. As lojas estão vendendo coxinhas – esta
alimentação industrializada está em todo lugar. Quem saiu de Ubaporanga
para Rio há 40 anos atrás, volta aqui e fica doido quando vê que tudo
mudou – que aqui é quase igual o Rio de Janeiro. Na sua época, tinha
pouco comércio e viviam basicamente da lavoura. Mudou muito. Mas, eles
achavam que sempre ia ficar igual era antes – por isso, levam um susto”.
[Adilson]

Neste depoimento, Seu Adilson aponta uma relação de continuidade entre a


roça e a cidade. A frase “hoje globalizou” demonstra claramente que as demarcações
anteriormente mais incisivas em relação à grande cidade e à pequena cidade do
interior deixaram de ser tão operantes.
Destarte, tanto o susto ocasionado pelo fato de perceber que “tudo mudou –
que aqui é quase igual ao Rio de Janeiro”, quanto o susto que se sente ao ver “tantas
marcas diferentes que nem sabia o que deveria comprar” revela o imbricamento entre
as forças de continuidade e descontinuidade. Ao mesmo tempo em que haja rupturas
com processos vividos anteriormente – a partir da introdução de produtos “que não se
conhecia” – também, há pontos de continuidade entre os dois universos – “aqui” e
“lá”.
No próximo capítulo, aprofundarei esta reflexão iniciada ao adentrar em outro
campo de análise – acerca dos hábitos alimentares enquanto representações sociais –
componentes de um sistema cultural que é repleto de símbolos, significados e
classificações.

64
Explorarei as mudanças nas práticas alimentares – focando a inserção dos
mineiros no meio urbano, repleto de novas opções – com o objetivo de elucidar o que
se descarta, o que se preserva, o que se sustenta e o que se transforma. Como será
visto, a seguir, os alimentos condensam, em diferentes planos, o modo específico de
construir a identidade mineira a partir do fluxo rural-urbano.

65
2. COMIDA DA CIDADE E COMIDA DA ROÇA/ COMIDA CARIOCA E
COMIDA MINEIRA: MARCAS CLASSIFICATÓRIAS QUE REGEM O
TRÂNSITO RURAL-URBANO

2.1 SITUANDO O ALIMENTO NO CONTEXTO DO FLUXO ENTRE A ROÇA E


A CIDADE

Abordo a alimentação enquanto fenômeno sociocultural, historicamente


derivado. Isto é, se supõe que a alimentação não é somente uma necessidade básica,
voltada para suprir os impulsos do organismo e, portanto, não cabe na sua abordagem
apenas olhares unilaterais. As ações de plantar, colher e comer são interligadas e
passam pela “seleção, escolhas, ocasiões e rituais, imbrica-se com a sociabilidade,
com idéias e significados, com as interpretações de experiências e situações”
(CANESQUI; GARCIA, 2005, p. 9). Nas palavras de Woortmann (1978):

[...] alimento é algo “representado”, isto é, apreendido cognitiva e


ideologicamente. Nem tudo que pode ser comido, ou possa constituir
alimento, é percebido como tal. Ademais, o comer não satisfaz apenas as
necessidades biológicas, mas preenche também funções simbólicas e
sociais (WOORTMANN, 1978, p. 4).

Portanto, os alimentos e as comidas são situados em um universo simbólico e


devem ser compreendidos a partir de um sistema de significados que é culturalmente
variável. O consumo dos alimentos está sempre condicionado pela dinâmica intricada
deste sistema de significados. Segundo Mintz (1990), este sistema de significados está
ancorado nas “histórias que os alimentos contam”, o que faz com que os humanos
transformem o que poderia ser uma atividade simples e instintiva em uma ação
extremamente complexa e simbolicamente carregada.
Tomando como referência esta posição, se os alimentos são contextualizados
dentro das trajetórias individuais e coletivas – eixo central deste estudo etnográfico –
as comidas ingeridas relatam histórias associadas com o passado das pessoas que os
consomem. Portanto, para compreender os hábitos alimentares, será indispensável
manter, como pano de fundo, o quadro referencial entre o passado e o presente, a roça
e a cidade, que é subjacente a este sistema de significados (MINTZ, 1990).
Entretanto, a pergunta dos leitores neste momento poderia ser: por que se
propõe a efetivar uma análise da alimentação em um estudo que focaliza o trânsito
rural-urbano? Uma parte da resposta reside no seguinte raciocínio: tanto a comida
quanto o alimento são bastante elucidativos da mobilidade que caracteriza este
processo de “idas e voltas” no tempo e no espaço.

66
Num estudo realizado sobre os hábitos alimentares em camadas de baixa renda
em várias regiões do Brasil, Velho (1977) discorre sobre a centralidade assumida pela
alimentação no processo de ressignificação das vivências e na consolidação da
identidade social, a partir de um esquema referencial, o que constitui um dos traços
definidores de minha abordagem epistemológica e metodológica. Segundo o autor:

Na verdade, a própria trajetória dos grupos e indivíduos no espaço


(sobretudo nos casos de migração) e no tempo (visão de passado e do
presente) é marcada pela alimentação e suas modificações, o que acaba por
ser também incorporado à identidade social (VELHO, 1977, p. 45).

Nota-se que cada vez que os mineiros entrevistados contavam detalhes sobre
sua vida na roça citavam as relações costuradas com o alimento – seja mediante o
plantio, a colheita ou o consumo. As lembranças sempre constituem uma passagem
pelo profícuo campo das práticas agrícolas e alimentares. Desta forma, a opção por
privilegiar o alimento e a comida nesta cartografia do trânsito rural-urbano reside no
poder simbólico inerente aos mesmos, enquanto elementos que se remetem à roça –
grande ponto de referência destes mineiros.
A lógica interna do processo produtivo “é mais do que uma sequência de
ações técnicas. Quando comunicado a nós, pela fala, torna-se um processo discursivo,
ganhando com isso múltiplos significados” (WOORTMAN, 1997, p.10). Neste
sentido, reparo a força narrativa do relato da Dona Leda, oriunda da região de Zona da
Mata mineira, onde trabalhava nas fazendas e que também, em alguma época, passou
a morar no seu próprio terreno, herdado do seu avô.
Em seu relato, ela explica as etapas que integram o plantio de café e a
preparação de rapadura. Ela conta com uma minúcia inegável que transporta o ouvinte
para o momento vivido:
“Plantar café, alinhar café, dar uma cova… tinha que saber dar a cova27.
Lembro de tudo isso como se fosse ontem. A gente não esquece. Lembro
de plantar cana, depois moer a cana – para depois fazer a rapadura.
Ficávamos lá muito tempo mexendo... Depois de muito tempo, ficava
pronto”. [Leda]

Quando Dona Conceição, conterrânea de Ubaporanga, mostrou interesse em


acompanhar Dona Rosa e eu em nossa viagem para seu lugar de origem, a primeira
pergunta dela era em relação ao período de nossa ida. Queria saber se iríamos na

27
Cova refere-se à abertura que é deixada na terra, mediante golpes de enxada. A cova é o lugar
onde são depositadas as sementes.

67
“época das frutas”. Ela relatou, em seguida, uma série de lembranças acerca do
universo da roça – quando era criança – todas ancoradas na vivência de “chupar
laranja no pé” e colher outras frutas no quintal, em uma relação estabelecida com o
lugar de origem que é marcada pela afetividade subjacente a determinadas vivências
tidas com o alimento.
O alimento e a comida também representam fatores de mediação no fluxo de
mudanças que acompanha as trajetórias destes mineiros por meio dos seus
deslocamentos pelo espaço. A força narrativa em torno das lembranças que envolvem
o alimento e a comida passa por uma reatualização a partir das continuidades e
descontinuidades que são costuradas com o que foi vivido no momento presente.
Este foco transparece ao explicitar as mudanças ocorridas nos hábitos
alimentares no processo de enraizamento das famílias mineiras no Morro dos Prazeres
e Escondidinho. É evidente que o alimento e a comida refletem as flutuações inerentes
a este trânsito.
Todas as histórias contadas são atravessadas pelas alterações sofridas em
termos de trabalho, moradia, religiosidade e relacionamentos – e o alimento não é
exceção. Assim, um enunciado que orientou minha navegação por este universo
social foi em relação às mudanças decorrentes da relação forjada com o alimento e
com a comida – as rupturas, transformações e ressignificações.
No capítulo 5, explorarei este processo de ressignificação mais a fundo ao
discorrer sobre as práticas agrícolas e alimentares que se materializam nos diversos
espaços da comunidade, envolvendo plantio e extrativismo de plantas alimentícias,
legumes e verduras.
A seguir, analisarei o que se sustenta e o que se transforma neste fluxo rural-
urbano, tendo como foco as opções alimentares – focalizarei as classificações
alimentares, os enquadramentos das comidas nas refeições e as representações sociais
da “comida da roça” / “comida mineira” / “comida da cidade” / “comida carioca”.
Como ponto de partida, considero fundamental contextualizar o uso dos
termos – comida e alimento – baseados nas compreensões nativas. Os mineiros que
constituem o foco desta pesquisa etnográfica usam a palavra comida quando referem
aos componentes da refeição e chamam os alimentos pelo nome de cada um – seja
verdura ou legume, logo, o alimento não é utilizado como rótulo pelos mineiros
entrevistados.
Ao longo deste texto, usarei tanto o termo comida, quando faço referência às

68
comidas preparadas – as refeições – quanto o termo alimento, quando faço referência
a cada tipo – exemplos: mandioca, fubá – analisado ao longo do texto.

2.2 AS MARCAS DAS CLASSIFICAÇÕES ALIMENTARES

Os mineiros entendem a comida a partir de determinadas classificações. No


ato de classificar, o que importa não são os agrupamentos, mas as relações que são
estabelecidas entre as categorias (LÉVI-STRAUSS, 1976, 2003), isto é, tomo como
referência a definição das classificações sociais como uma força ordenadora do
mundo social (BOURDIEU, 1990) sendo que, para os mineiros, a classificação é uma
forma de organizar as relações forjadas com o alimento e a comida.

As classificações sociais como acontece nas sociedades arcaicas que


operam, sobretudo, através de oposições dualistas – masculino/feminino,
alto/baixo, forte/fraco, etc. organizam a percepção do mundo social e, em
determinadas condições, podem realmente organizar o próprio mundo
(BOURDIEU, 1990, p.165)

Nesta parte, o foco de minha análise reside nos significados atribuídos a


determinados alimentos e como estes significados se agregam em torno de algumas
categorias, de que forma são estabelecidas convergências e contrastes entre estas
categorias e até que ponto as novas condições vigentes, a partir do deslocamento para
a cidade, interferem nas apropriações efetivadas.

2.2.1 Forte/fraco

A noção de “comida forte” – aliada à roça – se embasa no seu contraste com


“comida da cidade” – como revela o depoimento da Dona Lúcia, oriunda de Ubá,
quando perguntei sobre seu estado de saúde:

“Não tenho nem anemia. Porque comia bem na época. Porque a comida era
forte. Lá tínhamos mais saúde. Lá na roça, pegava o café no pé e botava
para secar. Depois torrava. Somente pegava milho, ralava. Fazia feijão –
tirava casca e cozinhava. Arroz – limpava no pilão. Tudo o que a gente
comia era forte e era da época. Porque não tinha química nem nada. Você
pegava no pé. Aquele feijão que hoje está no saco não é fresquinho. Hoje,
é diferente porque é tudo pronto. Não tem que dar duro para plantar ou
para colher”.

As classificações dos alimentos são imbuídas de contrastes e paradoxos. O que


transparece neste trecho de depoimento da Dona Lúcia é de que forma a classificação

69
“comida forte” está fundamentada num quadro contrastivo entre rural/urbano e
passado/presente.
Uma característica que é associada à comida da roça, como se fosse um traço
constituinte do próprio alimento, é a noção da “força”. Segundo Dona Lúcia, que
trabalhava como empregada das fazendas e participava diretamente do processo
produtivo, a força dos alimentos que compunham sua dieta na roça se deriva do nível
de empenho, no sentido do esforço físico.
É como se a exigência do processo produtivo implicasse em uma maior
consistência dos alimentos consumidos. “Colher na época” e “não ter química nem
nada” também constituem sinais da maior consistência da comida da roça. “Comer
bem” significa ter “comida forte” e “ser fresquinho” – o que também representa um
escudo contra as doenças e promove “mais saúde”, logo, a salubridade está associada
com a ingestão de “comida forte”.
No outro polo desta cadeia de significações, residem os alimentos consumidos
na cidade, que se destacam por não serem visivelmente conectados com o esforço
físico da atividade agrícola e por possuírem “químicas”, agrotóxicos e uma série de
outros aditivos que extraem as vitaminas, empobrecem o alimento e trazem doenças.
Mesmo sem utilizar o termo “fraco”, opera-se uma oposição nesta fala, ou seja, a
“comida da cidade” passa a significar negação, relativa ou absoluta, das
características da “comida da roça” – há uma perda significativa de sua força, seu
frescor, sua vitalidade.
No depoimento de Dona Deca, mineira oriunda de São José do Batatal, a
palavra fraco é utilizada a partir da descrição de comida congelada, claramente
associada com Rio de Janeiro: “Carne e frango era congelado. Fomos descobrir isso
no Rio de Janeiro. Como que pode isso aí? Esta comida é fraca demais. Fica parado
ali”.
A linha divisória entre forte/fraco está ancorada nas noções de saúde/doença,
de tal forma que parece haver uma distinção entre processos de saúde, associados com
a força, e processos de adoecimento, associados com fraqueza. Alguns alimentos,
vistos como mais fortes, supostamente são mais saudáveis, enquanto alimentos fracos
contribuem para o enfraquecimento do organismo e o surgimento de doenças.
Este pensamento se exprime de uma forma mais nítida quando as entrevistadas
destacam a maior incidência de diabetes e outras doenças crônico-degenerativas como
hipertensão e obesidade logo depois da vinda para a cidade. O depoimento de Dona

70
Margarida, oriunda de Ubaporanga, em relação ao seu processo de adoecimento,
ilustra esta questão:

“Lá na roça, eu nunca fui doente nem nada. Ninguém ficava – nem minha
mãe, nem meu pai. Minha mãe, às vezes, pegava planta no mato para fazer
chá quando ficava gripada, mas não passava disso. Depois de vir para cá, o
médico me falou que estava com diabetes. É ruim demais. Não posso
comer isso, não posso comer aquilo... tive que cortar muita coisa. Acho
que fiquei assim porque passei a comer mais carne vermelha, massa, doces
– coisas que não comia lá na roça. Aquelas comidas fortes – couve
fresquinho, angu feito de nossa fubá – não tem mais do jeito que era”.
[Margarida]

Dona Margarida, como muitas outras entrevistadas, cita o maior consumo de


“alimentos fracos” – carnes congeladas, enlatados, massas, empadas – como um fator
determinante nos processos de adoecimento.
Woortmann (1990), em seu trabalho Com parente não se neguceia28, aponta
este fenômeno como uma tendência da própria modernização associada à
industrialização e à mecanização das práticas agrícolas e alimentares, já que, em suas
palavras: “com a modernização, a terra, a comida, os corpos das pessoas e o corpo
social se tornam fracos” (WOORTMANN, 1990, p. 45).
As lembranças pintam um quadro pitoresco em relação à saúde da população
que reside na área rural. A força das comidas que se consome na roça, junto com o ar
puro e o contato com a natureza parecem ser fatores agregadores para um estado de
saúde plena. Em suma, se deslocar para cidade parece ser análogo ao processo de
adoecimento, visto pelo prisma das categorias alimentares.
Nota-se que esta relação entre processos de saúde e doença e as categorias
alimentares ganha seu contorno por meio das prescrições de uso de determinados
alimentos em diversos tipos de situações. Seria o caso das percepções em torno do
período pós-parto.
Segundo Dona Rosa, na roça, depois do parto, a mulher deveria comer apenas
comida “fraca”, que consistia nos seguintes alimentos: água de fubá e sopa de galinha.
Comida “fraca” era sempre relegada às pessoas “doentes” e a mulher no período pós-
parto, por ter perdido muito sangue e por passar por um estágio de recuperação, era
enquadrada como uma pessoa “doente”.

28
Baseado nas observações feitas por ele e outros autores sobre áreas ocupadas por agricultores
em Sergipe e em várias partes da Amazônia.

71
Portanto, durante 40 dias, ela era privada das comidas consideradas “fortes” –
que seriam verduras, arroz, feijão e carne de porco – até depois do período de
“resguardo”.
A vida no meio urbano impulsionou modificações na apropriação das
categorias forte/fraco, no caso do período de “resguardo”. Dona Rosa conta que, na
cidade, o período de resguardo não é cercado dos mesmos cuidados. A mulher depois
de dar a luz não é tratada como se estivesse doente e pudesse apenas aguentar
comidas mais fracas. O seguinte trecho de depoimento é significativo sob este
aspecto: “Tive sete filhos aqui no Rio. Aqui, se acaba de ter neném e já te dão farinha,
carne assada – comida forte. Eu podia comer de tudo lá no hospital. Adorava. E logo
depois, já estava trabalhando de novo”.
O que merece destaque é que estas categorias – forte/fraco – não são
abdicadas a partir do fluxo rural-urbano. Embora haja uma inversão nas
representações, a matriz ideológica, subjacente a estas categorias, se opera no âmbito
urbano com a mesma intensidade.

2.2.2 Fartura

Fartura é um operante que exerce uma função classificatória, sendo que há


alimentos associados com “épocas de fartura” e outros adquiridos em condições de
maior escassez ou aperto. Portanto, mesmo que os informantes não usem sempre este
termo, muitas vezes falam de coisas que remetem à ideia de fartura.
Nas falas, fartura transparece não apenas como uma grande quantidade de
alimentos – “era muita comida”, “lá não passávamos necessidade” – mas também
remete à ideia de diversificação dos bens alimentícios – pois “tínhamos de tudo”,
“tinha muita fartura das coisas”. 29
Desta forma, embora seja um componente ideológico presente nos discursos, a
noção de fartura está imbuída de ambiguidade, os registros de uma “época de fartura”
se localizam em diversos pontos deste fluxo entre os tempos atuais e o passado.
Fartura não está associada, necessariamente, às melhores condições

29
As compreensões nativas em torno da categoria fartura se relacionam com o conceito trazido
por Woortmann (1977): “Fartura está referida a bens alimentícios de origens diversas (animal e
vegetal), assim como à quantidade dos alimentos de que se pode dispor” (WOORTMANN, 1977, p.
27).

72
financeiras, pois há uma série de fatores que interferem na imagem forjada da “mesa
farta”. A “mesa farta” sublinha a autonomia que o agricultor (a) exerce sobre o
processo produtivo, por um lado, e, por outro, o nível de acesso que se tem a um
mercado que oferece uma maior abundância e diversidade de alimentos.
Para três mineiros entrevistados (uma mulher e dois homens) que trabalhavam
nas fazendas na área rural da região do Vale do Rio Doce, a “mesa farta” é
potencializada a partir da vivência na cidade, isto é, as múltiplas opções de comércio
no espaço urbano proporcionam o maior acesso a uma gama ampla de alimentos.
No contexto do Morro dos Prazeres e Escondidinho, os mineiros em questão
mencionam a compra com bastante frequência – como sendo uma garantia de acesso a
um maior leque de opções. A compra é valorizada como uma via de acesso a uma
alimentação diversificada e de qualidade.
Há uma lógica da interligação entre a compra e a fartura – é como se uma
ampla gama de alimentos fosse garantida por meio do trabalho realizado. Parece
haver a ideia de que o trabalho, como categoria, abre todas as portas num mercado
repleto de múltiplas opções de comércio, que se norteia pela noção de “livre
escolha”30.
Por outro lado, para quatro mineiros entrevistados (2 homens e 2 mulheres),
oriundos da região de Governador Valadares e Zona da Mata – que viviam a condição
de sitiantes ou trabalhadores em fazendas – a roça traz lembranças de uma
alimentação rica, tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade. Este
trecho de depoimento, da Dona Vitalina, oriunda de Carangola revela esta perspectiva
sobre a fartura:
“Lá não passava dificuldade. Arroz colhia – preparava em casa. Feijão, a
mesma coisa. Milho, a gente colhia. Lá também pegávamos aquelas frutas
– nem tinha onde espremer. Tinha uma bacia grande. Botava. Deixava lá
um pouco e chamava todo mundo – todo mundo sentava ali para se
alimentar de frutas. Como era bom! Tinha de tudo – podíamos comer à
vontade”. [Vitalina]

Diante do valor da compra e do consumo no ambiente urbano, persiste, no


outro polo, uma noção elástica em relação aos outros valores inerentes ao alimento na
área rural, que não passa pelas conotações monetárias. O fato de que os alimentos da
30
Os fundamentos do sistema capitalista estão ancorados no Iluminismo dentro do contexto de
Europa no século VIII. Apostava na liberdade individual como canalizador para dar prosseguimento
aos seus próprios interesses e promover o crescimento econômico. Portanto, a noção de “livre escolha”
é um elemento constituinte da categoria de trabalho no contexto do sistema capitalista na época
moderna. Este assunto é explorado também no final do capítulo 1.

73
roça não precisam ser comprados – apenas colhidos – é um ponto de destaque em
várias falas. Como Dona Leda, da região de Zona da Mata, enfatiza:

“Quem ainda mora na roça não tem noção do valor que tem. Aqui tudo é
comprado. Lá não. Quando voltava, fazia tanta coisa – ia para os roçados
para ver as plantações. Gosto de ver o amendoim para arrancar… ia e
ficava muitos dias. Pensava assim – na cidade, se quiser fazer suco tem que
comprar e aqui posso pegar no pé e fazer na hora”.

Para outro informante, Seu Antônio, ex-trabalhador nas fazendas da região de


Zona da Mata mineira, a fartura é um elemento-chave nas suas recordações; não
obstante, ele lembra que nem sempre era garantida. Ele fala da fartura como se fosse
uma característica mutável e volátil, pois “tem dias que o milho farta [sic]… e tem
outros dias que não tem”. As condições oscilantes do processo produtivo e os fatores
climáticos interferiam no rendimento da produção, o que determinava a fartura ou não
fartura.

2.3 ENQUADRAMENTOS EMBLEMÁTICOS DAS COMIDAS NAS REFEIÇÕES

Além da “força” inerente aos alimentos da roça, outras qualidades são


mencionadas, entre elas, seu frescor, por serem colhidos na hora, e sua pureza, por
serem plantados sem agrotóxicos. Parece haver um viés romântico e sentimentalista
em relação às vantagens da “comida da roça”, explicada em parte por uma cadeia de
relações imbricadas entre o plantio – e todos os procedimentos técnicos provenientes
desta ação – e a colheita e consumo dos alimentos. As falas remetem a uma visão
cíclica dos movimentos em torno do plantio, colheita e consumo. É como se o valor
do alimento – em termos biológicos e sociais – fosse derivado do empenho que exige
o processo produtivo num sentido mais amplo. Os seguintes depoimentos explicitam
os enquadramentos do alimento – emblemático da roça – nas representações dos
mineiros:
“Tinha que comprar tudo aqui. Lá apanhava na hora. Naquela época, não
tinha nem geladeira. Matava porco. Não tinha congelado. Aqui, até o
frango tem um gosto diferente”. [Josefina]

“Na roça, era mais carne de porco. Matava, fazia gordura. Aqui chega tudo
cozido, porque bota no gelo. O gelo cozinha qualquer coisa. Tira o gosto
da comida”. [Francisca]

“E angu feito de milho novo? Chega a dar uma liga. O gosto é tão
diferente”. [Maria]

74
“Custou acostumar com a fruta aqui. Lá, pegava no pé. Tudo que você
pega tem vitamina. Aqui, compra e logo depois fica amassada. Quando
compro uma couve, logo depois que chego em casa, já está murcha”.
[Helena]

Estes depoimentos explicitam um jogo de oposições entre “lá” e “aqui” –


subjacente ao esquema referencial contrastivo que orienta os enquadramentos dos
alimentos e comidas. É interessante observar que, em todos esses quatro depoimentos,
os informantes enfatizam a questão de “gosto” como elemento-chave de sua relação
com os alimentos e as comidas.
Ao discorrerem sobre as mudanças ocorridas nos alimentos a partir de sua
vinda para cidade, três dos mineiros entrevistados fazem referência às alterações no
gosto. As alterações no gosto são relacionadas com as estratégias de preparo. O “angu
feito de milho novo”, que “chega a dar liga” no processo de preparação, tem um
“gosto diferente”. No caso das carnes congeladas, o efeito do gelo “cozinha qualquer
coisa” e tira esse gosto especial que se preservava na roça, quando se matava o porco
e consumia a carne na hora.
Parece haver uma ligação entre o frescor e a pureza dos alimentos e a
preservação do seu sabor diferenciado, entretanto, uma observação importante é que
não necessariamente possuir estas qualidades – frescor e pureza – implica serem
alimentos mais saudáveis. Dentre os mineiros enraizados em Morro dos Prazeres, há
alguns que enfatizam a importância de usar “gordura do porco”, que dá um “gosto
especial” para a comida, mesmo reconhecendo que talvez não seja tão recomendável
do ponto de vista de sua salubridade.
Como afirma Dona Sebastiana, tia do Seu Natalino e oriunda de Ubaporanga
“a comida tem que ser feita com gordura do porco. Se for feita com óleo, não fica
boa”. Dona Eli, oriunda de Caratinga conta sobre como preparava gordura de porco
na roça e expressa a importância do seu uso na comida:

“Gordura do porco – pode ser um pouquinho de nada, mas dá um sabor.


Lá, matava um porco, separava a carne, o torresmo. Aquela carne ficava
curtindo… ficava fresca. Fritava muito bem… ficava na gordura. Ficava
um mês. Fomos criados com a gordura de porco. Quando refogava com
couve – que delícia que era”. [Eli]

Estas distinções entre “alimento saudável” e “não saudável” começaram a


operar a partir da vinda para cidade, principalmente, com a imposição de prescrições

75
nutricionais, advindas dos médicos e nutricionistas.
Aparecida, oriunda de Ubaporanga, expressa a dificuldade de obedecer à regra
imposta pelos médicos, em relação à exigência de substituir gordura de porco por
óleo:
“Se pudesse colocar gordura de porco na comida, seria muito melhor.
Perde aquele gosto da comida com óleo. Mas, não posso mais. Tenho
pressão alta. Antes a gente não sentia nada. Agora, veio pressão alta, estas
coisas. O médico já me falou para não comer mais gordura de porco, mas
não consigo acostumar com óleo”. [Aparecida]

Alguns alimentos carregam inscrições de um tempo vivido e estas marcas se


tornam significações sedimentadas que ditam as relações forjadas com o ato de
comer, no meio urbano. Cito a seguir as significações conferidas a determinados
alimentos, a partir de um referencial contrastivo como o café, por exemplo. Segundo
os mineiros, o café era mais grosso, mais pesado no contexto da roça e, geralmente, se
tomava o café com “garapa” ou “se moía a cana e colocava no café”.
Hoje, na cidade, os entrevistados descrevem o café consumido como um “café
que tem mistura” e dizem que “não se sabe de onde vem”, o que denota a falta de
controle sobre o processo produtivo que gera o produto, condições que não existiam
no contexto da roça.

2.3.1 Arroz e macarrão

O arroz, assim como o macarrão, era considerado uma comida de luxo,


consumido apenas “nos domingos”. No caso do arroz, Dona Vera, oriunda de
Ubaporanga, ressalta que “não tinha como comer todo dia porque a quantidade era
pouca”. Macarrão tinha significações diferenciadas dependendo da forma como era
feito, os informantes lembram que o macarrão era mais grosso e preparado geralmente
com frango, como ensopado.
É interessante observar a primazia atribuída a determinadas comidas que
extrapolam os parâmetros da alimentação cotidiana, no caso, tanto do macarrão
quanto do arroz. São as comidas servidas apenas em ocasiões especiais, ou pela
escassez – no caso de arroz – ou pela novidade que o alimento representava – como
era o caso do macarrão.
Como diz Dona Conceição, oriunda de Ubaporanga: “Macarrão – a gente fazia
assim – pegava milho e feijão e trocávamos por macarrão. Macarrão era novidade.
Era comida de domingo. Não era igual aqui – onde o macarrão é do dia a dia. Pouco

76
se importa aqui com macarrão”.
Portanto, há uma diferenciação entre o que era “comida de domingo” –
considerada novidade no contexto da roça – e o que se tornou “comida de dia a dia”
no contexto da cidade.

2.3.2 Mandioca

A mandioca é um alimento que possui bifurcações, tanto por se desdobrar em


uma multiplicidade de tipos, quanto pelas diferentes significações possíveis,
associáveis a cada um destes tipos. Logo, segundo alguns entrevistados, no contexto
da comida carioca, ocorre um certo reducionismo de sua riqueza inata. Para alguns, a
própria mudança de nome da mandioca para aipim – seria um sinal desta tendência
reducionista e empobrecedora. Seu João, oriundo de Teófilo Otoni, MG discorre sobre
os múltiplos tipos da mandioca, enfatizando sua proliferação:

“Lá em Minas, a mandioca é um mundo de coisas. Não é uma coisa só. É


mandioca… mandioca brava de fazer farinha. Não se come. E mandioca
massa é de comer. Quando se fala assim: vamos arrancar aquela mandioca
brava para fazer farinha… aquela não se come. Aqui não tem mandioca
brava. Aqui só fala em aipim. Fico pensando – é porque não tem? É porque
eles não conhecem mandioca brava do mato igual a gente conhece?” [João]

Quando Seu João afirma que “mandioca é um mundo de coisas” e que “não é
uma coisa só”, ele também elucida que esse “mundo de coisas” é ordenado mediante
classificações – determinadas pela linha divisória entre “o que se come” e “o que não
se come”.
No seu discurso, nota-se uma associação entre o conhecimento adquirido
acerca de determinadas espécies que “não se come” – no caso, “mandioca brava” – e
o ambiente no qual se encontra. Conhecer mandioca brava envolve uma aproximação
maior com “o mato”. Ele claramente delimita uma categoria de “conhecedores do
mato”: “a gente” – entendendo aqui que “a gente” se refere aos que cresceram na roça
e cultivavam uma relação mais próxima com os ambientes circundantes.
É significativo que Seu João estabelecesse esta diferenciação entre os que
viveram na roça e aqueles que não tiveram esta vivência, o que será explorado mais
adiante, no capítulo 5, ao explorar suas práticas de plantio no meio urbano.
Alguns mineiros notam a mudança na terminologia – o que era mandioca,
antigamente, se tornou aipim, no contexto de Rio de Janeiro. Tatiane, oriunda de
Ubaporanga, conta sua sensação de estranheza, diante desta mudança nos termos: “As

77
pessoas lá da casa onde trabalhava me pediram um dia para comprar aipim. Rodava o
mercado tantas vezes – não sabia que aipim era mandioca. Não esqueço disso até
hoje”.

2.3.3 Fubá e angu

Os seguintes depoimentos revelam claramente os valores atribuídos ao fubá:

“Até hoje gosto de fubá. Faço o angu quase todo dia, mas também gosto
muito de fubá com leite. Fubá fininho com leite. É uma delícia. E mingau
de fubá substitui o pão. Não precisa de pão”. [Laura]

“Faço muito mingau de couve. Mas, todos aqui foram criados com angu.
Angu é o que não pode faltar. Quando meu neto vem, tem que comer angu.
Angu, couve – gostava muito de farofa também – frango de quintal”.
[Natália]

“Hoje de vez em quando faço broa de fubá. Lembro de como fazíamos lá.
Como não tinha forno de barro, a gente fazia no fogão de lenha. Cobria e
botava carvão em cima”. [Terezinha]

Fubá com leite, mingau de fubá, mingau de couve, broa de fubá, são muitas as
comidas derivadas do próprio fubá, que fazem parte da culinária dos mineiros. O fubá
é extremamente valorizado, mas o angu é citado com maior frequência por ser
considerado uma comida indispensável quando se trata da refeição mineira.
Para os mineiros em questão, o prato “tem que ter angu” – é o fator
complementar que preenche as lacunas da refeição, diante de outras carências. Nas
palavras de Rosângela, nascida em Morro dos Prazeres e filha de pais mineiros:
“Angu era uma coisa que ajudava na comida. Porque, às vezes, não tinha mistura31.
Não tinha carne. Aí, a gente fazia angu para aumentar a comida”.
Em muitas histórias contadas, angu aparece como um elemento que ajudava,
especialmente, na época na qual os mineiros chegavam à cidade e “passavam
necessidade”. É descrita como uma comida “forte”, que “mata a fome”.
O que se tornou um aspecto bastante instigante nas minhas investigações era a
descoberta de que angu tem uma presença expressiva no prato, é considerado
imprescindível na composição das refeições. Assim, enquanto o arroz e o macarrão,
nos tempos vividos na “roça”, eram considerados alimentos suplementares – que
ocupavam um lugar periférico na refeição, angu é um alimento imbuído de certa

31
Aqui “mistura” se refere à verduras. É um termo muito utilizado no discurso dos mineiros.

78
atemporalidade, sendo que perdura até os dias de hoje como elemento central das
refeições.
No fluxo de mudanças que é inerente ao campo dos hábitos alimentares, é
notável a manutenção de determinados alimentos como angu – que se constitui em um
dos pilares da comida mineira e, portanto, não pode faltar – e a substituição de outros,
como o pão pela mandioca e inhame cozido ou broa de fubá no café de manhã.
É difícil explicar porque determinados alimentos são mais susceptíveis às
forças da mudança enquanto outros se tornam elementos constituintes das refeições.
Ao longo do trabalho etnográfico, precisei me atentar para os significados, associados
a alguns alimentos, que garantem sua centralidade nas refeições, enquanto outros
perdem seu lugar e passam a ser menos indispensáveis.

2.3.4 O pão

O pão é citado como um alimento que, gradualmente, ganhou maior


importância na alimentação cotidiana durante os anos vividos na roça. Alguns
lembram que, na roça, o pão começou a ser valorizado a partir da abertura da primeira
padaria na cidade próxima. Dona Maria, oriunda de Senador Firmino, explicita seu
desejo de adquirir o pão, por ter sido, para ela, um bem quase fora do alcance - “uma
coisa de outro mundo”. Nas suas palavras: “Pão era muito difícil – quando comíamos,
achávamos que era uma coisa de outro mundo – de tão gostoso que era”.
Dona Rosa lembra das trocas que eram feitas – de ovos por pão – para garantir
o pão no café da manhã. Pão, por ser um alimento advindo “de fora”, que fazia parte
do conjunto de relações do comércio local, obedecia outras “regras sociais”. Alguns
mineiros, como Dona Rosa, citam as “trocas”, mas, a maior parte dos mineiros
entrevistados enfatizou o fato de que o pão apenas poderia ser adquirido a partir das
transações monetárias. A seguinte história, contada por Dona Francisca, oriunda de
Ubaporanga, ilustra, de forma nítida, o esforço que precisava exercer para adquirir
este produto tão almejado:

“Quando meu pai quebrava milho, a gente perguntava – pai, pode catar
milho? Ele falava: ‘pode’. A gente pegava e vendia não sei quantos quilos.
Aí, vendíamos e ficávamos felizes porque poderíamos comprar pão. A
gente queria pão. Pão era chique. A gente não tinha pão em casa. Minha
mãe fazia broa, bolo – mas queríamos pão lá da padaria. Catava milho,
feijão – meu pai falava: bota lá e vai lá e compra pão”. [Francisca]

79
Dona Vitalina também conta sobre o processo árduo de conseguir juntar
dinheiro para “comprar pão” e as repercussões de tal aquisição no nível das relações
de vizinhança:

“Pão... não tínhamos costume de comer lá. Era mais broa – pão suado. Este
pão francês – era uma novidade. Lembro que guardávamos moedas por
meses para conseguir comprar o pão. Era um sacrifício danado! Mas
queríamos tanto ter nosso pão e poder mostrar para os outros! E os filhos
de nossos vizinhos ficavam com inveja porque a gente conseguia pão...
sentíamos tão alegres, orgulhosos”. [Vitalina]

É importante frisar que o objeto de desejo era “o pão da padaria”. Isto é, o


surgimento de pão era associado com a expansão de comércio nas pequenas cidades –
ponto agregador das comunidades rurais circundantes. Dona Conceição conta sobre o
surgimento da primeira padaria na cidade mais próxima, Ubaporanga: “Tinha muita
fartura das coisas, mas não circulava dinheiro na roça. Eu lembro que quando a gente
começou a se interessar por comprar alguma coisa na cidade – foi quando abriu a
primeira padaria. A primeira padaria somente abriu depois que tinha 7 anos de idade”.
Nas lembranças de alguns mineiros, o pão é representado como algo trazido –
“de fora” “para dentro” – pelo processo de urbanização, era o que começou a aparecer
nos mercados locais e regionais, dentro dos pequenos aglomerados. O pão “foi
introduzido”. Era uma novidade, um item de luxo, que tinha que ser “adquirido”.
Portanto, adquirir pão “era chique” e possuir aquilo, suscitava sentimentos de
orgulho em quem conseguia “tê-lo”, além de provocar “inveja” nos “filhos dos
vizinhos”. A aquisição de pão, enquanto objeto de consumo, representava uma marca
de distinção na matriz das relações sociais. No caso de alguns objetos – entre esses
“alimentos” – ocorre uma conversão “dos bens em signos” – o que Bourdieu (1974)
nomeia de um processo de “consumo simbólico”. Tais bens, convertidos em “signos”,
podem conferir distinções, em termos de posicionamento e status social:

(…) as diferenças propriamente econômicas são duplicadas pelas


distinções simbólicas na maneira de usar esses bens, se for preferível, no
consumo e, mais ainda, no consumo simbólico (ou ostentatório) que
transmuta os bens em signos, as diferenças de fato em distinções
significantes, ou, para falar como lingüistas, em ‘valores’, privilegiando a
maneira, a forma de ação ou do objeto em detrimento de sua função.
(BOURDIEU, 1974, p.16)

Apesar de ter conhecido o pão pela primeira vez na área rural, a associação de

80
pão com a vida urbana aparece de modo reiterado nos discursos de vários mineiros,
quando expressam suas motivações e intenções para emplacarem na proposta de vir
para a cidade e iniciar novos empreendimentos. Enquanto pão era considerado
novidade na roça, no contexto da cidade, é tão corriqueiro que “ninguém fica sem
ele”, o que explica o sucesso garantido de empreendimentos em torno da venda de
pão como padarias.
Segundo Dona Branca, que ficou um período em Morro dos Prazeres e depois
voltou para seu lugar de origem, Ubaporanga, muitos saíram para a cidade com a
intenção de vender pão, no auge do trânsito entre a região de Caratinga e o Rio de
Janeiro. Na época, a venda de pão era considerada um “grande negócio” e uma aposta
quase garantida em termos de rendimento financeiro. Nas suas próprias palavras:

“Muitos saíram da roça pensando em vender pão na grande cidade. E até


hoje muita gente vai para o Rio de Janeiro para vender pão. Pão – ninguém
fica sem ele. Todo dia tem saída. 19 anos fiquei no Rio movimentando o
pão. Criamos nossos filhos vendendo pão”.

2.4 CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES NOS HÁBITOS


ALIMENTARES – OS PRATOS NOVOS QUE “ESTÃO NA MODA” E AS
COMIDAS TÍPICAS DA ROÇA

Algumas mineiras entrevistadas fazem um esforço para acomodar as


preferências alimentares da nova geração. Contam que tiveram que fazer algumas
adaptações no intuito de “satisfazer seus netos” como, por exemplo, servir “pratos
novos, que estão em moda”, como lasanha, kibe, estrogonofe e frango assado.
Dona Heloisa, oriunda de Ubaporanga, conta que utiliza “livros de receita” ou
“pega receitas novas no rádio” para experimentar em casa, o que “agrada sua filha”.
Dona Rosa considera que estes pratos são altamente sofisticados e afirma que não
consegue aprender novas receitas, do modo que continua fazendo a mesma comida
“de lá de Minas”. Em ocasiões especiais, como Dia das Mães, ela conta que cada uma
das filhas faz seu prato e, geralmente, “inventam moda” – fazem “frango assado com
queijo em cima”, “macarrão com molho branco”, “lasanha com presunto”.
Ao mesmo tempo em que acontece a introdução de novos pratos para suprir os
“desejos” da nova geração, existe simultaneamente um movimento em torno da
preservação das comidas que eram consumidas na roça, o que se efetiva mediante as
voltas periódicas para o lugar de origem. Isto é, alguns mineiros relatam seu esforço

81
contínuo para levar determinados alimentos como milho, feijão, café, queijo, carne de
sol e toucinho de porco nas suas voltas periódicas.
Os seguintes depoimentos testemunham este esforço para levar determinados
alimentos da roça para a cidade:

“Levava feijão – um tipo que se chama Mulatinho. É um feijão pintado –


aqui no Rio de Janeiro, é chamado de mulatinho. Mas, como meus filhos
não gostam deste feijão – apenas gostam do preto – não levo mais”. [Dona
Eli]

“Gosto de comprar macarrão lá – é muito melhor que aqui. Quando vou


nos parentes [sic] de Diamantina, eles fazem um macarrão grosso – fica
amarelinho…fazem com frango. Fica muito gostoso. Eu sempre quero
levar este tipo de macarrão – porque não acho na cidade”. [Dona Lourdes,
oriunda de Minas Novas, MG]

“Verdura não dá para trazer porque estraga rápido. Eu sempre trago fubá
de milho – de lá é melhor. Milho não trago não – trago fubá. O bolo feito
com ele é bem melhor. Para fazer bolo, botava aquele fubá dentro de um
saco… despejava e juntava no fundo. Tirava para fazer aquele bolo. Era
chamado o olho do milho”. [Dona Célia, oriunda de São José de Batatal,
MG]

Dona Laura, oriunda de Caratinga, conta que era seu pai que levava os
alimentos “da roça” para ela e os outros irmãos quando mudaram para a cidade:

“Ele levava cebola, repolho – estas coisas... quando mudamos para cidade.
Às vezes, colhia arroz. Levava. Era muito trabalhoso – levar um saco de
arroz. Falava que era para nós mesmos – para comer. Não queria que
morássemos na cidade no início. Parece que trazia comida para dar
saudade na gente – queria que a gente desistisse e voltasse para roça. Mas,
depois acostumou com a cidade e resolveu vir”. [Laura]

É interessante notar que Dona Laura concebe esta postura por parte do seu pai
– de “levar comida da roça” para os filhos – como uma ação direcionada, que tinha
como objetivo “seduzir” os filhos e incentivar sua volta. A comida representa uma via
que possibilitaria suscitar o sentimento de saudade e sedimentar as conexões com o
lugar de origem.
De algum modo, este processo de “levar alimentos da roça” representa uma
atualização da memória coletiva, pois o alimento está associado com uma série de
práticas e vivências ancoradas no passado que são revividas ao serem trazidas para o
momento presente. É como se o alimento fosse um dispositivo que desencadeia uma
série de outros referenciais que estão incrustados num tempo vivido.
O caso de Dona Rosa é bastante elucidativo no que tange ao poder catalisador

82
do alimento – ao ilustrar como “o café da roça” pode desencadear uma série de
referências calcadas nos modos de vida da roça. Trazer o café do interior de Minas
Gerais – do seu lugar de origem – faz parte de uma cadeia de outras ações. Ela conta
que comprou um moinho para moer o café e um fogão de lenha é utilizado para torrá-
lo – ambos estão situados no terraço.
Dona Rosa afirma que consumir o café da roça se torna “gostoso” quando faz
parte de um conjunto de outras práticas, isto é, quando está associado com as
atividades de moer e torrar. Nas suas palavras:

“O gostoso é torrar o café no fogão de lenha e depois colocar no moinho


para moer. Depois gosto de guardar o café em uma lata bem fechada. Sente
diferença no sabor, este café é mais puro, mais gostoso. Bem diferente
daquele café que a gente compra – parece que tem uma mistura ou é
porque fica armazenado por muito tempo. Eu trago 3,4 quilos deste café e
fico lá em cima moendo e torrando – passo um tempo lá fazendo isso. Os
vizinhos dizem assim – ‘o arroz está queimando!’ Pensam que é a panela
de arroz queimando e por isso, dá aquele cheiro! Dura muito tempo –
quando faço café moído”. [Rosa]

A diferença no gosto é um dos pontos de destaque no café trazido da roça – “é


mais puro, mais gostoso” se comparado com o café comprado, que “tem uma mistura
ou fica armazenado por muito tempo”. É interessante notar que as divergências entre
os dois tipos de café se dão a partir do “gosto” – sendo que o sabor diferenciado do
café da roça parece ser, em grande parte, ligado às etapas que envolvem seu processo
de preparação.
É como se esta cadeia de ações – “torrar o café no fogão de lenha” e depois
“colocá-lo no moinho para moer” – contribui para incrementar seu sabor e torná-lo
mais “gostoso”, além de aumentar sua durabilidade e constituir uma forma de “reviver
os costumes”. Por um lado, Dona Rosa afirma que efetivar estas etapas no processo
produtivo – moer e torrar café – não deveria significar tanta diferença no processo de
consumo. Entretanto, como ela afirma de forma bastante enfática: “Gosto de fazer
tudo – moer, torrar – sei lá porquê. Acho que é uma forma de reviver os costumes” e
ainda enfatiza que esta prática é coletiva – na sua opinião, quase todos os mineiros,
quando vão para roça “para passear” tem este costume de trazer grãos de café para
torrar.
Ela também repassa uma parte do café moído para alguns vizinhos que não
são mineiros ou para aqueles que são, mas que não voltam frequentemente para Minas
Gerais. Segundo Dona Rosa, uma vizinha, em particular, de origem sergipana, pede

83
sempre “os grãos” – simplesmente “pelo prazer de moer”.
A mineira enfatiza que quando acende o fogão de lenha, além de torrar café,
aproveita para cozinhar feijão e fazer fubá. Como disse: “Não tem nada tão gostoso
como a comida feita no fogão de lenha. Quando acendo o fogão de lenha, mato um
pouco minha saudade da roça. Parece que estou na roça de novo”.
“Acender o fogão de lenha” é um ato que “mata a saudade” do seu lugar de
origem. Cultivar determinadas práticas que remetem ao processo de preparação dos
alimentos, vivenciadas em um outro tempo e em um outro espaço, constitui-se em
uma estratégia para que perdure “a roça” no momento presente.

2.5 O PRATO TÍPICO: “COMIDA CARIOCA” X “COMIDA MINEIRA”

A “comida carioca” adquire significados a partir de sua relação de oposição


com “a comida mineira”. Isto é, ao deparar-se com uma série de diferenças em relação
à comida que conheciam na roça, os mineiros, no momento de sua chegada, evocam a
categoria “comida carioca” – para distinguir da “comida da roça”. O que se nota neste
processo de diferenciação, é que a mineiridade ganha contornos.
Há um enunciado da “comida mineira”. Características são delineadas e
traços se tornam definidores desta culinária. Esta suposta unidade em relação à
comida dos mineiros não é dada, a priori, mas este enquadramento se dá justamente a
partir da vivência dos contrastes.
Começo por uma análise da refeição principal – o almoço – como operante
que possibilita visualizar o que constitui a “comida mineira”. É possível reconstruir
uma imagem do prato típico, a partir das lembranças que foram relatadas, dos tempos
vividos na roça? Busco evitar uma possível homogeneização dos hábitos alimentares,
entretanto, a partir dos relatos, transparecem os elementos-chaves deste prato: feijão,
angu, canjiquinha32 e verduras.
Há um processo de tensionamento entre a verdura e a carne neste referencial
contrastivo entre a roça e o momento atual, isto é, diferentes pesos são atribuídos a
cada um, dependendo do processo contextual. No contexto da roça, o que mais se
consumia era carne de porco ou galinha, por serem animais criados lá e, assim
mesmo, não eram consumidos todos os dias.
Há depoimentos que refletem certa nostalgia em relação à criação de animais

32
Canjiquinha é descrita como uma comida salgada – milho quebrado. Na roça, era preparada
no lugar de arroz em algumas ocasiões. Dona Rosa conta que, às vezes, é feita com costela de porco.

84
e o consumo de carne de porco e galinha “fresquinha” – contrapontos com as carnes
congeladas que são vendidas na cidade. A escassez de carne na roça é expressa por
Dona Leide – oriunda de Ubaporanga e ex-empregada nas fazendas: “Carne era difícil
na roça porque não existia todo tipo de carne. Havia um pedaço de carne por semana
– algo assim”.
A dificuldade de ter acesso a vários tipos de carne, em parte, explica sua pouca
frequência na alimentação cotidiana. Enquanto a carne não esteve sempre presente na
refeição, a verdura era um traço definidor da comida mineira, porque “é o costume”
como a seguinte fala de Dona Maria, oriunda de Senador Firmino, MG revela: “Não
deixa de ter verdura. É o costume. Sempre tem. Tem gente que come só come arroz,
feijão e macarrão. Estas coisas. Parece que a gente não comeu. Tem que ter verdura,
legume”.
A carne é o elemento-chave do modelo contrastivo estabelecido entre “a
comida da roça” e “a comida da cidade”. Enquanto na roça, a verdura sempre ocupava
um lugar de centralidade no prato, na cidade, a comida carioca é caracterizada pela
ênfase atribuída à carne na refeição. Toninho, irmão da Dona Rosa, enfatiza este
ponto:
“Aqui se come carne todo dia. Lá era somente para o dia de domingo. Era
especial carne de domingo… e parece que era mais gostoso. Dizem que
mineiro come muita gordura, muita carne de porco. Mas tem aquele dia da
semana… não é todo dia. Aqui carne é a mesma coisa que verdura – carne
é a mesma coisa que batata. Não sabe chegar ao fogão sem ter alguma
carne…” [Toninho]

Como fator de diferenciação, os mineiros entrevistados enfatizam o fato de


que, na comida carioca, as verduras apenas representam “enfeites” no prato. Ivone,
mineira oriunda da região de Governador Valadares, explicita as diferentes
significações que os cariocas atribuem às verduras, no seguinte depoimento: “Na
comida mineira sempre tem que ter verdura – e a verdura fresquinha… colhida na
hora. O carioca fala: “Não sou lagarta para comer verdura. Lagarta que come as
verduras. Carioca que fala isso”.
Outro ponto que merece destaque é a interpretação dada à verdura. No
contexto da comida carioca, é reduzida à “alface e tomate”, enquanto, na comida
mineira, há uma maior diversificação nas escolhas feitas e um apreço por algumas
espécies como a couve e a variedade de plantas nativas33.

33
Plantas nativas são plantas originárias da zona onde elas crescem, isto é, não são espécies que

85
Para o Sr. João, plantas nativas brotam da terra naturalmente, o que remete ao
potencial da terra para gerar, pois “nem tudo tem que ser plantado”. Apresento o
seguinte diálogo entre o Sr. João e Dona Rosa, sobre a variedade de espécies de
plantas nativas que “nascem no mato” e que lembram dos seus tempos vividos na
roça:

J: “Nascia caratinga na queimada. Lembro até hoje. Deus é bom… deixou


tanta coisa boa. Nasce tanta coisa boa da terra, sem plantar. Os cariocas
não entendem isso – que nem tudo tem que ser plantado. Que podemos
aproveitar do que a natureza nos dá – a terra nos dá tanta coisa boa”.
R: “Eu lembro de caratinga. É uma batata. Minha mãe ralava aquilo e fazia
bolo. Era gostoso!”
J: “E caruru de viado? Nossa… a gente ia para mato sempre para pegar.
Minha mãe pedia – ela adorava. Eu não acho muito bom. Deixa um gosto
estranho na boca”.
R: “E beldroega? Aqui perto acha muita beldroega. É boa para salada”.
J: “Tem muito por aqui. Mas o povo carioca acha que tudo é mato. Não
conhece”.
R: “O que mais gosto é de serralha. Lá em Minas, ocupa muito espaço a
serralha. Outro dia achei muito lá pro lado do Casarão”.
J: “Lá na roça a gente sempre comia serralha com angu. É bom com angu”
[João e Rosa]

Estas interações – motivadas pela troca de informações sobre os diversos usos


das plantas alimentícias – são muito comuns entre os mineiros. As plantas e os
alimentos representam pontos de partida para conversar sobre diversos assuntos,
ligados aos tempos vividos na roça.
O que merece destaque no diálogo apresentado acima é a sensação, expressa
por Seu João, de que “os cariocas não conhecem” e “não entendem” este universo de
plantas e “acham que tudo é mato”. Para ele, há uma série de códigos sociais que “o
povo carioca” não consegue decifrar. Portanto, ele estabelece demarcações entre os
cariocas e os mineiros embasadas no nível de conhecimento que cada um possui
acerca das plantas alimentícias e suas diversas funções.
Nas minhas andanças com Dona Rosa pela comunidade e nas suas visitas nas
casas de vizinhos, ela falava sobre as plantas nativas com bastante frequência – quais
eram os pontos para encontrá-las e como prepará-las. Além de serralha, ela sempre
ficava à procura de capiçoba, taioba e obobro – plantas alimentícias que “ficam bem
gostosas” ao lado do “angu bem feitinho”. Lembro de um dia no qual passamos
embaixo de viaduto, onde ela parou por 10 minutos, tentando avistar capiçoba, porque

foram introduzidas em território brasileiro. Os mineiros mencionam com mais frequência as seguintes
plantas nativas: capiçoba, obobro (ou orapronóbis), taioba e serralha.

86
“Natalino (seu marido) tinha falado que tinha visto muita capiçoba por aí”. Como
analisarei mais à frente, os mineiros se unem na procura destas plantas nas áreas
públicas e no mato circundante e, em alguns momentos, também conseguem
encontrá-las em alguns supermercados e feiras34.
A imagem do prato apresenta um quadro conciso das representações em torno
da comida. Nas minhas indagações, ao perguntar o que vinha à mente quando se
visualizava o “prato carioca”, ficava bastante explícito nas respostas o lugar de
ausência que a refeição carioca ocupa. Isto é, o que tem na comida mineira, não tem
na comida carioca – uma é construída a partir da falta do outro. Neste sentido,
segundo Dona Antônia, o “prato carioca” seria:

- “O que é o prato carioca? Batata frita com arroz. “É tudo branco,


amarelo. Não tem cor. Somente tem salada de tomate”. [Dona Antônia,
oriunda de São José da Pedra Bonita, MG]
- “Já acostumamos com comida carioca. É macarrão, é bife com fritas.
Macarrão bem soltinho”. [Dona Vilma, oriunda de Caratinga]

- “Meus filhos são cariocas. Não gostam de verdura não. Carioca gosta de
carne, batata frita, arroz, feijão e carne de boi”. [Dona Deca, oriunda de
São José de Batatal]

2.6 A REFEIÇÃO ENQUANTO PROCESSO SOCIAL: A COMENSALIDADE

Quais são os significados atribuídos à refeição enquanto processo social? Em


vários depoimentos, ficou evidente que a comensalidade – “comer juntos” – pode se
constituir em um momento de disputa de diversos interesses, no qual transparecem as
tensões em torno das diferenças geracionais.
Segundo Dona Rosa, diariamente, a hora de almoço se tornou um processo de
tensionamento com seu filho – por causa das diferenças de gostos e preferências. Ela
descreve como seu filho, que trabalha à noite e apenas acorda na hora de almoço,
rejeita a maior parte da refeição preparada e sempre sai para “comprar fiado”, no
armazém da esquina, um pedaço de linguiça para fritar. Ele apenas come o feijão e
arroz preparado pela mãe.
Ela enfatiza a atitude individualista dele, quando sai para procurar “sua
própria comida” diante de um contexto que, para ela, é extremamente coletivo – o ato

34
Este tema será explorado mais detalhadamente no capítulo 5 desta Dissertação.

87
de comer juntos. Como ela afirma: “Ele não é igual à gente, que gosta de verdura.
Não foi criado na roça. Ele sempre quer alguma coisa gordurosa, e diz que se não
tiver carne, não serve. Já é bem carioca. E não faz diferença para ele sentar com a
gente para comer. Ele somente quer comer as coisas que ele gosta e pronto – não está
nem aí para o resto”.
O que está em jogo na situação retratada é a rejeição de um filho que “já é
bem carioca” das comidas tradicionalmente mineiras. Aqui há uma demarcação
claramente estabelecida entre duas categorias identitárias: carioca vs. mineiro – que
passa pelos gostos e costumes alimentares.
O que vale ressaltar é que o ato de rejeição do filho não sinaliza apenas a
recusa de comer comidas mineiras, preparadas pela mãe, mas também é uma rejeição
do momento da comensalidade no contexto familiar. Ou melhor, o processo de
tensionamento vivenciado com o filho gira em torno não apenas do conteúdo das
refeições, mas também dos significados associados à comensalidade, enquanto
processo social.
Algumas histórias contadas revelam as funções da refeição enquanto processo
social. A comensalidade representa um veículo de socialização, isto é, contribui
ativamente para a sedimentação de vínculos sociais. Neste sentido, a comida pode ser
um indicador dos códigos sociais que regem os eventos coletivos. Determinadas
comidas como, por exemplo, galo com macarrão, canjiquinha35, pé de moleque estão
sempre associados aos momentos vividos coletivamente como mutirões ou festas
religiosas.
É interessante observar, também, de que forma o momento de finalização dos
mutirões, realizados para efetivar as obras em Morro dos Prazeres, era marcado pela
partilha de comidas, uma situação análoga do que acontecia nas “festas de
acabamento” dos mutirões nas lavouras. Os nexos entre esses dois tipos de eventos,
de cunho social, realizados no passado e no presente, são revelados no
desenvolvimento das histórias contadas.
Ao ouvir uma conversa entre Dona Rosa e Dona Dalva, esposa do falecido
Luiz Mineiro, percebe-se como este paralelo se estabelece, no desenrolar da conversa:

- R: “Eu lembro quando acabava a lavoura, no último dia, levava aquele

35
Canjiquinha é milho quebrado, preparado como sopa ou como arroz. Muitos mineiros falam
que, no lugar de arroz, faziam canjiquinha. Às vezes, preparavam canjiquinha com costela de porco.

88
galho de café mais carregado e falava que era bandeira. Era quando
terminava a apanhação de café. Minha mãe fazia galo com macarrão…
aquela panelada de comida que era para a festa de acabamento”
- D: “Aqui em casa, Luiz gostava de fazer estas comidas – quando
terminavam as obras, os vizinhos todos vinham. Fazia galo com macarrão,
canjiquinha… Aqui em casa fazia. Os vizinhos todos vinham comer – ai,
meu Deus!” [Dalva e Rosa]

Este diálogo, construído a partir da percepção das semelhanças observadas


entre dois eventos de cunho social, realizados em âmbitos diferenciados – na roça e na
cidade – e em duas temporalidades distintas – no passado e no presente – mostra os
elementos que sustentam os hábitos alimentares, independente de fatores de tempo e
localidade. Dito de outro modo, a refeição traz no seu bojo tanto a continuidade
quanto a descontinuidade.
Do mesmo modo que os mineiros aprendem a lidar com os contrastes entre
diferentes tipos de comida e formas de se alimentar no meio urbano, não se pode
afirmar que há uma ruptura radical com as tradições que marcam a “comida mineira”,
a partir desta inserção social. Determinadas práticas associadas à partilha da comida e
certas representações sociais em torno de elementos centrais da refeição se sustentam
e perduram neste trânsito rural-urbano.

89
3. REPRESENTAÇÕES EM TORNO DO LOCAL DE MORADIA COMO
REFERENCIAL DE ENRAIZAMENTO NUM ETERNO IR E VIR

3.1 A CASA: ALVO DE UMA TRAGÉDIA QUE DESENCADEIA UM


PROCESSO DE VULNERABILIZAÇÃO SOCIAL

“Escutei – foi 8 horas da manhã. Você precisava ver – veio lá de cima. A


casa do meu irmão lá em cima foi parar aqui embaixo. Parecia que era o
fim do mundo”. (Josefina, oriunda de Caratinga)

Este relato expressa o pavor que se instalou na comunidade de Morro dos


Prazeres na terça-feira, dia 6 de abril, quando chuvas intensas provocaram o
desabamento de 15 casas e mataram 21 pessoas. Este evento, em um nível
microscópico, revela o nível de vulnerabilidade dos que constroem suas casas em
condições precárias.36
A tragédia foi um momento privilegiado que, de certo modo, recontextualizou
minha pesquisa. Foi a partir de um olhar aguçado para um acontecimento como esse,
que abala qualquer sensação de segurança em relação ao lugar de moradia, que
consegui decifrar os significados que os mineiros atribuem a sua principal referência
de enraizamento no espaço urbano: a casa e seus arredores. Portanto, nesta análise,
focalizo a casa – enquanto alvo deste processo de vulnerabilização social. A casa, tal
como a comida, que foi analisada no último capítulo, adquire novas significações
simbólicas no meio de um eterno ir e vir.
Para pessoas que, na maior parte dos casos, residiam anteriormente nas casas
cedidas pelos fazendeiros, a vigência da relação de moradia – sentir dono de uma casa
e seus arredores – apenas ocorreu no contexto da área urbana. Mesmo que este direito
não esteja formalizado pelas vias legais e através de medidas formalizadas e
documentadas, há uma sensação de enraizamento que se consolida a partir da casa
construída e seus arredores – em alguns casos, encarnado pelo quintal, enquanto
extensão do espaço doméstico.
A contingência de se tornar um grupo de risco, de ter sua casa interditada e de

36
Nos últimos anos, tem havido um aumento nas tragédias causadas em parte por fatores
ambientais como enchentes e chuvas intensas – que recaem, principalmente, sobre os pobres,
moradores de áreas que são mais expostas aos processos de desmoronamento e degradação ambiental
nas margens de córregos e encostas de morros. Portanto, há uma relação direta entre as moradias da
população de baixa renda e a precariedade ambiental, sendo que as ocupações predatórias de morros,
mangues e fundos de vales tendem a provocar frequentes desmoronamentos e enchentes.

90
perdê-la, já representa uma desestabilização das bases forjadas no cerne do fluxo
rural-urbano, suscitando impulsos divergentes – o instinto de fuga, o anseio de voltar
para o lugar de origem ou o apego ao território urbano. Os testemunhos dos mineiros
que temem “ser removidos” soam como manifestos de apego à representação da casa
– ligada a um tempo vivido – por pessoas cujas vidas foram marcadas por um estado
de flutuação e desequilíbrio, inerente aos deslocamentos.

Quando ocorre uma modificação neste arranjo material, isto é, a transformação


espacial de um bairro ou cidade ou a demolição de uma casa – os hábitos são
perturbados e é como se “uma parte sua morreu” (HALBWACHS, 2006, p.164).
Mesmo a nomeação de um lugar como “área de risco” e a ameaça de uma mudança no
arranjo material – a iminência da casa interditada e a remoção – incita sentimentos
intensos de dor aguda e tristeza. Como ilustra o depoimento da Dona Ana, oriunda de
Águas Claras, MG: “Oi meu deus...nem terminei de fazer minha casa. Tem hora que
dá vontade de morrer, dá vontade de chorar”.
Assim, parto do pressuposto de que a memória coletiva se configura em um
contexto espacial (HALBWACHS, 2006), pois segundo este autor, os movimentos e
pensamentos do ser humano se regulam pelos significados associados às construções
físicas e aos objetos materiais. As lembranças se prendem a essas imagens – sejam as
paredes de uma casa, o fogão de lenha da cozinha ou as plantas do quintal.
Neste sentido, é importante situar a casa como componente de um sistema
simbólico37, permeada por práticas sociais, como Marcelin (1996) aponta em uma
pesquisa realizada sobre famílias negras na Bahia, na qual estabelece conexões entre a
família, parentesco, etnicidade e casa: “A casa como construção física não é separada
dos corpos que a habitam ou que nela transitam, nem das redes de pessoas que a
modelam.” (MARCELIN, 1996, p. 80).
Ao conceber a casa como uma construção espacial que não pode ser separada
da construção simbólica que ela encarna, é possível também compreender a afirmação
de Halbwachs (2006, p. 188), quando ressalta que “jamais saímos do espaço”. Isto é, a
memória do que foi vivido está intrínseca à construção espacial e simbólica. Como o

37
Nota-se que pouca atenção tem sido dada à simbologia e dinâmica da casa na periferia
urbana. Um dos poucos antropólogos que priorizaram esta perspectiva, nos seus estudos sobre as
comunidades urbanas, foi Klauss Woortman (1982). Segundo o autor, considerar a importância da casa
é fundamental “não apenas de um ponto de vista material, óbvio, mas igualmente por constituir uma
categoria central de um domínio cultural e um mapa simbólico de representações ideológicas”
(WOORTMAN, 1982, p. 119).

91
autor afirma: “Quando tentamos resgatar uma época em que já não conseguimos
imaginar os lugares, nem mesmo confusamente, chegamos também à regiões do
passado que nossa memória não atinge” (HALBWACHS, 2006, p. 89).

3.2 “NOSSO SOFRIMENTO ESTÁ DENTRO DA GENTE”: AS MARCAS


DEIXADAS PELA “FERIDA ABERTA”

Antes de me aprofundar sobre o cruzamento entre o acontecimento do dia 6 de


abril e as representações em torno do local de moradia, farei uma descrição da
situação da tragédia que constituiu, de fato, o ponto de partida para minha entrada
neste tema.
Entrei no campo logo após a tragédia e imediatamente senti as marcas
deixadas pela incidência, tanto pela dor transmitida através das histórias contadas,
quanto pelos rastros incrustados no mapa da comunidade, ao passar pelo local de
deslizamento. Nove meses depois ainda transparece a imagem de um “sistema
desordenado”. Mesmo depois de algumas medidas tomadas, parece que não existe
uma forma de expurgar fisicamente os sinais da ocorrência.
Os mineiros entrevistados contam que logo depois da tragédia, um raio foi
traçado em torno do lugar de deslizamento de tal forma que passou a representar
simbolicamente “uma chaga”, “uma ferida aberta” – termos utilizados pelos
entrevistados – e a área foi rotulada formalmente pelas autoridades como uma área de
risco. A demarcação da “área de risco” pela Defensoria Pública contém medidas
precisas – são 60 m em torno do lugar que foi atingido pelas chuvas – mas, para a
maior parte dos moradores parece uma decisão arbitrária.
Dona Sebastiana, oriunda de Ubaporanga, chamou o lugar de um “buraco que
ficou no meio da comunidade” e que “nunca mais vai deixar de existir” 38. Segundo
ela:
“Estavam mexendo aí logo depois daquela noite da tragédia. Depois
pararam. Eu vejo esse lugar como mina. Foi todo quebrado pela metade.
Eles descascaram, arrancaram tudo e deixaram pela metade. Não importa o
que fazem ali – sempre quando passar por ali, vou lembrar do que
aconteceu naquele dia – dos gritos do desespero, dos corpos no chão.
Volta tudo como se fosse ontem”. [Sebastiana]

Também nota-se um tom de reclamação em relação ao descaso dos técnicos da


Defesa Civil, que “arrancaram tudo e deixaram pela metade”. Este descaso com o

38
Nos Anexos desta Dissertação, constam as fotos do lugar de deslizamento.

92
lugar da tragédia agrava a situação, isto é, a ferida aberta que se mantém preservada
no mapa da comunidade, cultiva as lembranças do dia 6 de abril de forma que “volta
tudo como se fosse ontem”.
Para muitos mineiros entrevistados, o deslizamento desencadeou uma nova
percepção do seu processo de vulnerabilização39 e do discurso fabricado em torno de
“risco” pelas autoridades políticas. Alguns identificam que a classificação população
de risco começou a operar-se como categoria vigente, por parte das autoridades, a
partir da tragédia, de acordo com o depoimento de Dona Lúcia, oriunda de Ubá,
“Sabiam que tinha risco lá e não fizeram nada. Depois culpam o morador que ficou lá.
Mas, às vezes, o morador não tem saída – não tem nem para onde ir”.
Este depoimento revela a percepção da informante em relação às
consequências de uma postura extremamente negligente, encarnada pelas autoridades,
que acarreta na maior vulnerabilidade desta população – de tal forma que “o morador
não tem saída”. Em vez de tomar medidas preventivas antes do acontecimento, pois
“sabiam que tinha risco lá”, a intervenção estatal apenas se faz presente depois de ter
ocorrido a tragédia, embasada numa culpabilização dos atingidos por estarem
ocupando uma localidade exposta às condições precárias.40
O descaso das autoridades também é apontado por Eliza, presidente da
Associação de Morro dos Prazeres, quando ela denota o caráter político do
acontecimento, a partir da afirmação do que foi uma tragédia anunciada. Em sua
opinião, o descaso reside na falta de compromisso com a finalização das obras já
iniciadas, como foi o caso do Programa Favela Bairro, que “parou pela metade”,
impedindo a priorização de projetos emergenciais como a contenção de encostas, o
que poderia ter prevenido a contingência de situações desastrosas.
Segundo Eliza, se Luiz Mineiro, uma liderança que se encarregava da
coordenação das obras comunitárias e apoiava a realização de projetos que pudessem
conter os efeitos de uma possível crise, ainda fosse vivo, “teria ficado revoltado com o

39
Segundo Ascelrad (2006, p.2), vulnerabilidade é uma noção imbuída do seguinte sentido: “É
uma noção relativa – está normalmente associada à exposição aos riscos e designa a maior ou menor
susceptibilidade de pessoas, lugares, infra-estruturas ou ecossistemas sofrerem algum tipo particular de
agravo”. (Idem). O autor afirma que, em vez de enfocar o “risco” como se fosse um fator isolado seria
preferível articular as condições que proporcionem a suscetibilidade de sujeitos e os agravos
decorrentes destas situações (Idem).
40
A intervenção do Estado no período após o deslizamento, por meio de medidas pragmáticas
que visavam a resolução das contingências das famílias que pudessem estar mais expostas aos “riscos”,
representa a continuidade de uma política intervencionista e reformista que abarcava as comunidades
consideradas “favelas” desde o final dos anos 1940. Sobre o assunto, vide: VALLADARES (1978,
2005); ABREU (1997); CORREIA (2003).

93
que aconteceu, porque ele avisou sobre a questão das encostas. Três anos antes de
acontecer esta tragédia, ele avisou. A Prefeitura não falou mais nada, não fez nada”.
Para Dona Vera, oriunda de Ubaporanga, a omissão de Poder Público reside
numa justificativa mal fabricada – no que tange ao encobrimento das causas
estruturais do acontecimento. Em seguida, ela descreve as discordâncias que surgiram
durante as reuniões realizadas com o Poder Público logo após o incidente, em grande
parte, ocasionadas pela resistência em compreender os verdadeiros fatores que
levaram a esta situação social:

“Nas reuniões, o assunto era que desabaram as casas. Mas, a gente sabe
que as casas não simplesmente desabaram, porque é coisa que veio de cima
– pedra, entulho e lixo que desceu. O que arrancou as casas foi lá de cima
– a casa por si só não derrubou. E isso tinha que ser visto antes. Mas, eles
não dão chance para o morador falar alguma coisa – eles falam, falam…
quando alguém fala alguma coisa, eles cortam. Não dá tempo de falar.
Mas, mesmo assim, em uma reunião teve discussão – eu lembro. As
pessoas insistiram para não tirar as casas. Falaram que tinha que fazer
contenção de encostas para ficar melhor, mas não tirar.” [Vera]

Em seguida, Dona Vera ainda alega que, no discurso das autoridades, a


tragédia é retratada como sendo decorrente das “forças da natureza” – uma
justificativa que aparentemente livra as autoridades de sua responsabilidade diante do
acontecido:

“Acho que eles pensam muito assim – como se fosse coisa somente da
natureza. Chovia muito, encharcou e aí desceu tudo. Mas não era apenas
isso que aconteceu. Tenho pouco estudo. Mas, tenho uma visão – eu vejo o
que pode ser prevenido antes. Poderiam ter prevenido tudo isso aqui”.
[Vera]

As forças da natureza são vistas como incontroláveis e imprevisíveis, uma


visão que contribui para a força política deste tipo de discurso. O que ele camufla é
que as tragédias que ocorrem com mais frequência, nos últimos anos, não são apenas
fatos aleatórios. São decorrentes de uma relação assimétrica, estabelecida
historicamente entre diferentes segmentos sociais.41

41
Em outro momento, pretendo explorar mais a fundo as implicações deste processo chamado
por Lopes (2004) de uma nova onda de “ambientalização” dos conflitos sociais. Há um tom
diferenciado nos discursos oficiais, que se deve em grande parte às interligações causais desta tragédia,
diante de um quadro de “crises ambientais” que vêm se agravando nos últimos 10 anos e que recaem,
principalmente, sobre os pobres, moradores de áreas que são mais expostas aos processos de
desmoronamento e degradação ambiental – margens de córregos e encostas de morros. O discurso em

94
Kleinman (1997) analisa as mudanças nos modos de subjetivação que as crises
e tragédias acarretam nos indivíduos e nos coletivos e nomeia este processo de
“Patologia do Sofrimento Social”. O autor alega que a pessoa que é sujeitada a um
estado agudo de sofrimento se torna uma vitima – alguém que supostamente padece
da habilidade de “se representar” e precisa ser representado pelos outros.

No caso de Morro dos Prazeres, os atingidos42 pelo deslizamento foram


rapidamente transformados em pessoas deslocadas e desarraigadas – objetos de
diversas medidas: indenizações, pagamento de Aluguel Social e remoções. Na esfera
pública, o Estado passa a regulamentar as condições da ocupação territorial e
orquestrar uma nova linguagem: a mensuração dos danos. Parece que não há como
escapar à transformação de danos em recompensas e de ameaças em perdas.

Uma moradora, Dona Antônia, oriunda de São José de Pedra Bonita, expressa
a sensação ocasionada pelo efeito homogeneizador da Patologia do Sofrimento Social:

“Nosso sofrimento está dentro da gente. Dizem que todo mundo vai ter que
sair. Ficamos abandonados – não temos luz, cortaram telefone. Falaram
que a gente tem que sair das casas, pegar o Aluguel Social – eu queria ficar
na minha casa até resolver tudo. E aí, a partir do momento que dão o
cheque, dão somente 3 dias para sair de casa. Imagine! Fica difícil viver
deste jeito.” [Antônia]

A tragédia possui uma potência englobante, ou seja, mesmo reconhecendo que


todos os moradores de Morro dos Prazeres não foram atingidos diretamente pelo
deslizamento e não serão afetados da mesma forma pelas medidas políticas propostas
para conter a crise, há uma sensação de pânico que se alarga pela atmosfera e parece
alcançar todos que se encontram dentro das fronteiras da comunidade local.
No processo de conversão de uma tragédia em uma ação política, de caráter
intervencionista, as pessoas perdem suas particularidades e são convertidas em meras
vítimas da mesma situação social. Dona Francisca, oriunda de Ubaporanga, explicita a
negligência por parte das autoridades, no sentido de enxergar todos como se fossem
vítimas, sujeitadas, no mesmo grau, a situações de risco, a partir da crise instalada:

torno de “área de risco” como um fenômeno que demanda mensuração, quantificação, previsão e
calculabilidade está calcado agora num debate travado pela precariedade acarretada pelas incertezas
ambientais.
42
Atingido é um termo que abarca vários níveis de vitimização diante da tragédia – desde os
que morreram durante o desabamento; os que perderam parentes; os que foram obrigados a desocupar
suas casas por estarem localizadas numa área de risco e os que ocupam terrenos ao lado do local de
deslizamento.

95
“No início, diziam que todos teriam que sair. Além de fazer um montão de
reuniões falando nisso, passaram pelas casas e marcaram as casas. Foram
para colocar tinta na parede para identificar as casas – riscaram se era de
risco. Tinha três cores diferentes – preto, vermelho e verde. Preto era alto
risco, vermelho significava um risco um pouco menos grave. Esqueci o
que era o verde. Só sei que ficamos em pânico – quase todo mundo ficou
assim. Depois acho que perceberam que não dava para tirar todos de uma
vez – que ia ter que ser aos poucos. Sei lá. Pararam de falar tanto nisso”
[Francisca]

Segundo Eliza, o ato de interdição tem sido conduzido de forma arbitrária. Ela
defende a demolição apenas das casas próximas aos deslizamentos e denuncia a
tendência por parte da Defensoria Pública e Defesa Civil de fazer uma leitura
superficial da situação de todas as moradias, como se todas estivessem ocupando
situações de risco. Nas suas próprias palavras: “Como você interdita uma área sem
fazer o laudo de avaliação técnica? Isso é um absurdo. Do jeito que estão fazendo,
todo mundo está tendo que sair sem ter algo comprovado”.

3.3 DIFERENTES GRAUS DE VITIMIZAÇÃO: EXPLICAÇÕES DADAS SOBRE


A TRAGÉDIA

Levando em consideração a implementação de políticas que busquem


uniformizar os efeitos da tragédia e englobar o público afetado em apenas uma
categoria: os atingidos; se torna importante descortinar estas homogeneizações e
reconhecer que existem graus diferenciados de vitimização.

Para Dona Ana, originária de Águas Claras, próxima à Carangola, há uma


explicação que advém do plano divino para explicar seu salvamento de um
deslizamento que atingiu todas as casas em volta, deixando ela imune, enquanto os
outros se tornaram vítimas. A casa dela continua inteira ao lado de um buraco que
atravessa a comunidade – onde houve o deslizamento. Uma vizinha, Natália, conta “o
milagre que aconteceu com Dona Laura” no dia do incidente: “Ela foi retirada pelos
Bombeiros, mas não queria sair nem jeito nenhum. Disse que foi um milagre o que
aconteceu com ela. Ela ficou uma semana fora e depois voltou para sua casa. Falou
assim: ‘Ninguém me tira daqui”.

Mesmo sendo declarada como uma área de risco, desde o início, Dona Ana
não concordava com a posição do Poder Público e negava a possibilidade de ser
retirada, até o último instante do prazo estipulado pelas autoridades. Seu filho, José,

96
conta que ela ficou “plantada” na casa sem embalar as coisas para mudança, mesmo
diante dos avisos em relação à iminência da remoção.

Talvez o fato de que Dona Ana foi salva de uma forma inexplicável e quase
milagrosa explica sua ânsia para explicitar a composição do grupo de pessoas que se
tornaram “vítimas” – com o qual ela não se identifica – como se tivesse que existir
alguma explicação em bases lógicas para seu salvamento diante das circunstâncias.
Em alguns momentos, durante nossas conversas, ela alegava que a maior parte dos
“atingidos pela tragédia” eram mineiros43.

A primeira vez que ouvi esta resposta foi a partir de uma pergunta que fiz
sobre o tipo de relações que Dona Ana mantinha com as vítimas da tragédia, já que
mora próximo à localidade onde ocorreu o deslizamento. A resposta dela, nesta
ocasião, era que não se relacionava muito com “o povo de lá” e, em seguida,
descreveu os traços deste segmento que foi diretamente atingido pela tragédia.

O fato de que ela fez esta marcação – frisou que as vítimas eram mineiros num
primeiro momento – já revela o peso desta categoria identitária nas suas relações
sociais. Observa-se que a maior parte dos vizinhos com quais ela mantém relações
mais íntimas são mineiros.

Como Dona Ana também é de origem mineira, parece que ela precisava focar
num ponto-chave que pudesse servir como um diferencial, tendo um poder explicativo
em relação aos motivos do seu salvamento – o que acabou sendo a religiosidade.

Depois de caracterizar as vítimas como mineiros, a informante mencionou


que uma característica marcante do “grupo de mineiros que morreu” é que “quase
todos eram crentes”. Nas suas palavras: “Naqueles dias, tinham feito uma caminhada
contra Nossa Senhora. Achavam que não era mãe de Deus. Estavam no lugar errado
na hora errada. Estavam agindo de mal fé [sic]”, o que esta frase elucida é que a
explicação pela morte destas pessoas e por seu próprio salvamento passa pelas crenças
religiosas.

A afirmação de que “estavam agindo de mal fé” expressa claramente sua


percepção de que os “crentes” estavam, de certa forma, indo “na contramão” da fé
católica e que o castigo constitui uma forma de represália.

43
A representatividade mineira entre os mortos foi um ponto de destaque também em uma
conversa com Eliza, ela estima que das 21 pessoas que morreram na tragédia, 18 eram mineiros.

97
O fato de “mineiros crentes” terem sido as principais vítimas aponta por uma
dupla traição: Dona Ana alia os mineiros ao catolicismo e esta associação fica claro
ao afirmar que aqueles que se tornaram vítimas “estavam agindo de má fé [sic]”.
Como apontei no capítulo 1, a fé católica é central na afirmação da identidade mineira
a nível local 44. Diversos entrevistados fazem referência à capacidade da Igreja para
aglutinar os mineiros e, de certo modo, parece cumprir a função de ser um núcleo de
organização da população mineira em Morro dos Prazeres e Escondidinho.

A roça é lembrada por Seu Sebastião, um mineiro oriundo de Senador


Firmino, como um lugar onde “era um coisa só. Tinha menos mistura de religião”.
Aponta a cidade como o local no qual “surgiu outra religião” – a fé evangélica.
Portanto, na leitura da Dona Ana, as vítimas são duplamente culpadas por terem sido
mineiros e evangélicos – de certa forma são classificadas como traidoras.

A observação feita por Dona Ana acerca desta linha divisória entre quem foi
vitimizado pela tragédia e quem se salvou, revela certa tendência à formação de
facções que atinge o que, à primeira vista, poderia aparecer como uma unidade
homogênea: os mineiros. A indagação da Dona Ana demonstra de que forma os
mineiros se juntam e se diferenciam nos processos vividos. Portanto, os mineiros
enraizados no Morro dos Prazeres e Escondidinho não constituem uma frente
unificada, pois este coletivo é atravessado por diversas fragmentações internas.

3.4 A CASA: REFERÊNCIAS EM TORNO DO ESPAÇO CONQUISTADO


3.4.1 Contabilização da casa a partir das indenizações

A conversão das “perdas” em “indenizações” é uma medida dolorosa para as


famílias que são forçadas, de forma repentina, a se sujeitar à “contabilização” de um
bem simbólico coletivo – a casa – carregado de uma série de valores e emoções não
mensuráveis. A sensação expressa por muitos moradores é que estão sendo sujeitados
a um processo de negociação estabelecido a partir de parâmetros assimétricos.
A seguinte fala de Dona Vitalina, oriunda de Carangola, expressa a sensação
de que o sacrifício que envolveu a construção das casas “não tem preço” e, portanto,
não é negociável em termos financeiros:

44
Ver capítulo 1 para maior detalhamento sobre este ponto.

98
“Vai espremendo todo o dinheiro para investir em construção. Constrói
com sacrifício danado – e aí, acontece uma coisa dessas e querem te retirar.
E a verdade é que nunca dão o valor que você realmente gastou. Nunca se
consegue comprar nada em lugar nenhum com este valor que eles te dão. É
muito injusto”.

José, o filho da Dona Ana, aquela que se recusa a sair de sua casa, mesmo
diante das ameaças das autoridades, confirma as dificuldades encontradas nos
processos de mediação com o Poder Público, sendo que os valores oferecidos não se
aproximam do valor gasto na construção:

“Olha a sinuca que a gente está. Eles propõem um valor – falam que temos
que sair. Minha mãe não quer nem saber – não dá ouvido para eles. A
gente gastou uma vida inteira para fazer isso aqui. Eles ofereceram 50 mil
para esta casa – dá 10 mil para cada quarto. Com este dinheiro, se quiser
fazer outra casa, não dá nem para comprar um lote”.

Nestes dois depoimentos, entra outro fator no arsenal simbólico casa: o fator
construir. É difícil separar o fator casa do fator construir, pois são dois processos
entrelaçados nas histórias contadas.
Nas entrevistas realizadas, se percebe que a casa deriva seu peso simbólico do
processo de construção enquanto operação coletiva, isto é, a mobilização de recursos
humanos e materiais, a partir dos mecanismos socioculturais e faz parte do valor
atribuído à casa construída (MARCELIN, 1996). Portanto, o “sacrifício danado” com
que se constrói a casa, envolvendo inúmeros recursos econômicos e humanos,
tampouco faz parte dos cálculos feitos no processo de indenização.
Seja para deslocar-se para Frei Caneca, descrito como um “presídio” seja para
receber algum recurso financeiro que supostamente deveria cobrir o valor do imóvel,
o que está em jogo nestas diversas situações é o significado atribuído a casa – algo
que não cabe nas transações, pois não constitui um mero objeto a ser negociado ou
trocado. As duas opções apresentadas: indenização do lugar de moradia ou
deslocamento para Frei Caneca – não conseguem suprir a lacuna deixada pela falta
desta referência nas trajetórias dos mineiros – a casa construída.

3.4.2 A casa construída: gestão de moradias e terrenos na territorialidade


urbana

Dona Rosa é uma das entrevistadas que frisam o sacrifício que implicou a
construção de sua casa, num primeiro momento, e depois as reformas realizadas nela.

99
Ela conta que inicialmente, foi comprada “uma barraca velha” que foi desfeita, isto é,
a construção foi um processo de “desfazer” da estrutura antiga e iniciar um novo
projeto habitacional. Como ela expressou de modo claro em alguma ocasião:

“Tive que pegar vários trabalhos por um tempo aí e tudo que entrava era
para a construção da casa. Era um sacrifício para mim e para Natalino, mas
sabia que valia a pena. Lembro que meu padrinho, Jucita, falou que daria
certo a construção da casa se os dois trabalhassem. Isso deu um ânimo para
mim – me fez querer trabalhar mais.” [Rosa]

Este depoimento é bastante revelador dos significados associados ao processo


de construção da casa – um processo que envolve “sacrifício”, mas que “vale a pena”.
Marcelin (1996), na sua tese sobre famílias negras na Bahia, explica os vários fatores
que influenciam a construção de uma casa, enquanto operação coletiva: “Construir é
uma operação coletiva porque ela põe em jogo negociações matrimoniais, a
organização ou o reforço de um espaço físico (um território) onde se exerce a
experiência familiar, as estratégias individuais e coletivas, recursos econômicos e
humanos” (MARCELIN, 1996, p. 93).
No caso desta pesquisa etnográfica, a partir das histórias contadas, percebi
que o valor simbólico da casa na territorialidade urbana é derivado do seu processo de
construção, o que envolve uma série de negociações, reestruturações do espaço,
recursos e estratégias, como Marcelin (1996) aponta.
Nas conversas realizadas, parece que o ato de construir consolida mais ainda o
sentimento de apego em relação a este bem simbólico coletivo – a casa. Portanto,
como este processo de identificação com a casa construída se revela nas trajetórias
dos mineiros que chegaram da roça? Qual é o nível de apropriação que os mineiros
fazem, grosso modo, do espaço da casa e dos seus arredores? E quais são as
categorias que prevalecem na gestão de moradias e terrenos no território urbano?
A sensação expressa por muitos moradores é que estão assentados em cima da
“propriedade de alguém.” O Sr. João afirma, de forma enfática, que “não somos
donos da terra... só da casa”, isto é, há uma diferenciação estabelecida entre o sentido
atribuído a casa, como um bem sobre qual se tem “escritura”, o que comprova seu
nível de identificação com tal espaço e o terreno ocupado, que é visto como fruto de
um ato de invasão.
Alguns mineiros entrevistados contrapõem esta posição ao alegar que o morro
foi doado por Iyara Vargas, parente de Getúlio Vargas, nos anos 1960, quando

100
começaram a construir suas casas. Seu Natalino, marido de Dona Rosa, expressa sua
opinião em relação à doação das terras: “Este terreno não era de invasão como dizem.
Não é que a gente tomou conta de tudo isso que está vendo aqui. A gente tem direito
de estar aqui. Foi uma parente de Getúlio Vargas que doou este terreno para gente. E a
Prefeitura depois tomou conta”.
Outra moradora, Ivone, oriunda de Governador Valadares, MG acredita que “o
chão onde se constrói” tem um dono – e este dono é o “governo”: “O chão onde
construímos esta nossa comunidade é do governo. Somente somos donos da casa que
construímos. O terreno é dele”.
É interessante notar que as referências feitas ao governo apenas aparecem na
hora de se referir ao terreno ocupado, às obras realizadas e às respostas diante do
desabamento das casas – estes são os significados que acumulam em torno de sua
intervenção na localidade. Entretanto, há visões divergentes em relação à classificação
das terras ocupadas e apropriadas para construção de moradias. Enquanto uns alegam
que seja do Governo, outros afirmam que “ninguém é dono”.
Seu Mauro, oriundo de Caratinga, expressa sua opinião em relação ao nível de
apropriação que se pode exercer sobre a terra ocupada: “Ninguém é dono deste chão,
pois este chão não tem dono. Todo mundo tem suas casas e eu tenho direito sobre
minha casa. É bem melhor que lá na roça, pois lá, o fazendeiro não deixa o morador
fazer uma casa na terra dele”.
É possível perceber, neste depoimento, o quadro comparativo que orienta as
percepções em torno da “casa” – por um lado, é colocada a cidade, onde se torna
possível exercer “direito sobre a casa” e, por outro lado, está posta a roça, onde “o
fazendeiro não deixa o morador fazer uma casa na terra dele”. A conquista de sua
própria casa, um marco nas histórias contadas, parece contrastar com a vivência
anterior na roça, onde a maior parte dos mineiros “viviam de favor” e não possuíam
nem seu próprio terreno nem a casa na qual residiam. Apesar de não ser “dono deste
chão”, a sensação expressa neste depoimento é de posse em relação a casa, sobre o
qual se exerce “direito” – o que se torna ainda mais relevante ao analisar as reações
diante da tragédia ocorrida.
A noção de posse, em vez de “propriedade”, constrói um entendimento do uso
como a categoria que prevalece na gestão de moradias e terrenos45. Entretanto, há uma

45
Como na maior parte das favelas, não houve apropriação, de forma privada, da terra ocupada

101
distinção claramente estabelecida entre o tipo de vínculo construído com a casa
construída e o nível de identificação em torno do terreno que se usa para construir, até
em termos legais e formais. Nos depoimentos, o sentimento de “ser dono” apenas
aparece em relação à casa habitada – que passou por um processo de formalização
deste direito na maior parte dos casos – o que tende a conferir uma sensação de maior
legitimidade.
Pedro, oriundo do São José de Batatal, município de Ubaporanga e que,
anteriormente, trabalhava como empregado das fazendas, explicita o processo de “se
tornar dono” do seu lugar de moradia e o que significou a formalização e legitimação
deste direito perante os outros:

“Antes, não tinha direito de posse. Não tínhamos direito a nada. Antes não
éramos donos dos barracões. César Maia fez isso para a gente. Aí levamos
‘documento’ na Associação. Depois, os relógios foram dados – cada um
era identificado pela conta de luz. Agora sinto que isto aqui é minha casa e
todos sabem onde eu moro”.

Este depoimento revela o significado da casa, enquanto espaço a partir do qual


é possível se localizar socialmente, perante os outros. É como se a casa se constituísse
em uma série de documentos que lhe concede um “lugar social” na comunidade local.
Enquanto o barracão é mantido num estado nebuloso, de extrema informalidade; a
casa, associada à colocação dos relógios e à identificação por conta de luz, representa
um direito formalizado via documento e instaura uma nova percepção em relação ao
lugar de moradia – a sensação de ser “dono”.
Dona Rosa também concebe o governo César Maia, por meio do Programa
Favela Bairro, como um divisor de águas, no sentido de conceder maior legitimidade
às moradias, pois é ele “que deu direito a casa como propriedade”. Nas suas palavras:
“No tempo de Favela Bairro, a gente não tinha barraco bom. Aí, Cesar Maia
indenizou algumas pessoas e deslocou estas pessoas para lugares melhores. Para os

e, portanto, a categoria operante para compreender o manejo e gestão das moradias e seus arredores
seria “posse”, que se define no Estatuto das Cidades pelo “uso” que se faz da terra – seja para
construção de casas, seja para outras finalidades. O Estatuto das Cidades é a denominação oficial da
Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta o capítulo “Política Urbana” da Constituição
Brasileira. O Estatuto das Cidades trata das funções sociais da propriedade urbana. O capítulo de
Política Urbana, da Constituição de 1988, em combinação com o Estatuto da Cidade e o texto da
Medida Provisória n. 2.220, dá as diretrizes para a política urbana do país, nos níveis federal, estadual e
municipal.

102
que já tinham casa construída, só ficou legalizada no Favela Bairro. Ele deu direito à
casa como propriedade. Colocou luz, melhorou as ruas”.
Dona Rosa é a única entrevistada que cita a questão da propriedade. No seu
depoimento, aparece a categoria propriedade em relação à legitimização do espaço da
casa enquanto âmbito privado. O processo de formalização do domínio exercido sobre
a casa e as melhorias realizadas ao redor das moradias durante o Programa Favela
Bairro lhe concedem a sensação de ter conseguido normalizar e legalizar seu
“direito”.
As diferenciações internas entre os vários segmentos da comunidade local
interferem em como se formalizaram os múltiplos usos dos terrenos e das moradias.
No segmento localizado próximo ao lugar onde ocorreu o deslizamento das casas, no
final da Rua Lopes Gomes, os moradores pagam IPTU, o que implica em uma maior
formalização dos seus direitos sobre a moradia, enquanto na parte de cima,
considerada a “favela”, propriamente dita, é preciso fazer um recibo de compra e
venda na Associação.
Eliza alega que o papel da Associação de Moradores é “dar esta legitimidade”
às transações monetárias realizadas em torno da casa e que este recibo emitido tem
validade. Entretanto, o nível de formalidade em torno do direito à casa construída é
um ponto de distinção entre os vários segmentos.
A maior parte dos moradores que “pagam IPTU” tem casas com quintal e
moram “no asfalto”: a Rua Gomes Lopes. São características que lhes diferenciam
dos moradores “da Rua Gomes Lopes para cima” – conhecidos pelos nomes de Morro
dos Prazeres e Colina. Seu João afirma que alguns “fazem questão” de marcar esta
diferença, mas, em sua opinião, “o morro é uma coisa só”. Nas suas próprias palavras:
“A única coisa que é diferente é que moram lá embaixo. Mas, é uma coisa só”.
Em vários momentos, esta distinção é mencionada como um fator decisivo nos
direitos exercidos sobre o lugar de moradia, especialmente, ao tocar no assunto da
ameaça da remoção, que se tornou mais iminente depois das chuvas e do desabamento
das casas em abril de 2010. O filho da Dona Ana, José, que reside na área onde os
moradores pagam IPTU – na área asfaltada – faz questão de diferenciar este segmento
dos outros, ao discorrer sobre a iminência da remoção:

“Aqui pagamos IPTU, pagamos tudo direitinho. Lá em cima, na favela,


não é assim. Lá somente tem barracão. Aqui conseguimos construir uma
casa boa, depois de muita luta. E agora ter que sair daqui – parece um

103
castigo de Deus. Fizemos tudo direitinho – estamos com todos os papéis.
Não é justo nos tirar daqui”. [José]

A distinção entre barraco e casa é claramente demarcada neste trecho de


depoimento. Os que têm sua situação legalizada são aqueles que possuem casa,
enquanto “os outros”, geralmente associados com a parte chamada de favela,
“somente tem barracão”.
Alguns mineiros entrevistados, ao contar suas histórias, descreviam o
processo de chegada da roça como um período de transição, quando moravam em
“barracões”, enquanto o momento de “construção da casa” é identificado claramente
como um marco que possibilitou que se tornassem moradores efetivos da localidade e
se sentissem parte do espaço geográfico.
Transparece, neste depoimento, uma percepção da injustiça que significa a
expulsão da casa conquistada, especialmente, diante da situação dada – ter pago “tudo
direitinho”. Portanto, há uma série de códigos que operam entre os que “pagam tudo
direitinho”, o que lhes concedem um status de segurança relativa. Aqui aparece a
noção de merecimento ou não-merecimento da injustiça que foi infligida após o
acontecido a partir de uma avaliação da conduta em torno da casa construída.
A necessidade de afirmar os direitos individuais sobre os terrenos e casas
diante da intervenção estatal é bastante perceptível nos discursos dos mineiros
entrevistados. O apego ao local de moradia e o sentimento de posse se reforçam
mutuamente diante da crise, como pode ser visto na próxima seção.

3.5 DUAS VIAS DE REAÇÃO DIANTE DA CRISE INSTALADA: IMPULSOS


PARA RETORNO AO LUGAR DE ORIGEM OU APEGO À CASA
CONSTRUÍDA

“Acontecimentos” inesperados como tragédias e crises, que afetam


diretamente o funcionamento dos coletivos – são momentos privilegiados para
examinar como a memória coletiva se atualiza. De que forma o referencial contrastivo
entre o passado e os tempos atuais serve como uma matriz para lidar com o
sofrimento e a dor a partir da experiência vivida? Quando um evento crítico
desencadeia relutâncias diante da contingência da perda de realizações que se
concretizaram no momento presente, há uma tendência a se recorrer às reificações de
um passado idealizado, que pode representar um refúgio diante das dificuldades

104
vividas. Assim, imaginar uma possível volta para o lugar de origem configura a
possibilidade de reviver aspectos positivos da roça – uma fonte de conforto no meio
de uma crise vivida no meio urbano.
Ao mesmo tempo, há uma tendência em afirmar Morro dos Prazeres e
Escondidinho como os locais aos quais se pertence, situados dentro de uma trajetória
que se iniciou a partir do deslocamento para o espaço urbano e que se finalizou com a
conquista de um lugar de moradia.
O que está no centro desta história é a força do espaço doméstico – que inclui
a casa construída e, em alguns casos, o quintal. Enfatizo aqui o quintal como
componente do espaço doméstico, porque o sentimento de apego ao lar também passa
pelos espaços que o compõem.
Mesmo explorando a possibilidade de uma volta à roça, onde reside “a paz”,
há um enorme apego ao espaço da casa – lugar conquistado como seu em meio a estes
deslocamentos. Deixar a casa é mais duro que a perspectiva de voltar. A possibilidade
de ter que se deslocar mais uma vez – seja para o “antigo presídio” Frei Caneca, seja
para o lugar de origem, perante a ameaça da remoção, representa um grande
empecilho e gera frustrações, por causa da perda irreparável da casa construída.

São duas vias de reação que aparentemente são divergentes – o anseio de fuga
– que se expressa pelo desejo de retornar ao lugar de origem – e o apego à casa
construída. Entretanto, estes dois impulsos se convergem e confluem em torno da
valorização do espaço doméstico – a casa e suas extensões. Isso faz sentido ao refletir
sobre os significados da casa – como representação de algo fixo e constante em meio
às trajetórias flutuantes dos mineiros.

3.5.1 A primeira via de reação: os impulsos de fuga

À primeira vista, os impulsos de fuga demonstram de que forma remeter às


imagens do passado se torna um mecanismo de defesa diante de uma situação de
incerteza em relação ao futuro. Voltar para roça é um desejo expresso por muitos
mineiros, devido à situação de insegurança que é ocasionada pela precariedade nas
condições habitacionais. São reforçadas as expressões de nostalgia em relação à vida
que se tinha “na roça”, visualizada como um lugar onde se mantém a paz – uma
imagem que diverge das incongruências provocadas pelas crises que perpassam o

105
espaço urbano.

Dona Rosa e seu marido Natalino sempre dialogaram sobre a possibilidade de


voltar para Ubaporanga, mas foi descartada como opção viável, de forma imediata,
por estar condicionada à materialização da aposentadoria. Também, os apegos – aos
filhos e à casa e horta construída – sempre foram fatores que impediram esta decisão.
Entretanto, diante da ameaça da remoção e possível indenização da casa, ela expressa
seu interesse em precipitar a volta. A seguinte frase exprime este pensamento em
torno da volta para Minas Gerais: “Se vier a interditar nossa casa e quiser colocar a
gente naquele presídio lá, eu queria indenização, para a gente ir embora para Minas.
Meu marido veio de lá agora e disse que não tem trabalho lá...então, seria somente
para aposentar. Mas, pelo menos lá temos paz. Aqui não”.

No seu depoimento, nota-se que o presídio se torna um operador a partir de um


quadro comparativo. O que é interessante perceber é a dificuldade em enxergar a casa
no presídio, isto é, o presídio é visto a partir de sua polaridade com a casa. Esta frase:
“se quiser colocar a gente naquele presídio lá” expressa a impossibilidade de
visualizar este lugar em termos habitacionais.

Seu João também expressa o anseio de voltar para seu lugar de origem, que se
aguça a partir do seu desejo de fugir da confusão gerada pelos desdobramentos da
tragédia: “Eu investi numa casa aqui – tenho toda uma história para contar. Mas,
sempre pensei em voltar para Minas no dia que me aposentar, porque eu tenho muita
saudade da roça – acho que nunca aceitei este lugar como meu lugar. Agora, com esta
confusão toda, não tenho dúvidas que vou voltar para roça . Lá é meu lugar”.

Nesses dois depoimentos, fica claro que a possibilidade da volta à roça se


torna uma opção viável por causa da insegurança gerada em torno da casa construída.
A paz e tranquilidade foi transferida do lugar de moradia no meio urbano para a roça,
diante de condições incertas em relação aos desdobramentos da crise instalada.

3.5.2 A segunda via de reação: o apego à casa construída e aos seus arredores

A possibilidade de remoção aguça as condições precárias de moradia e parece


desconsiderar o esforço feito para construir um ponto de referência em Morro dos
Prazeres e Escondidinho, encarnado pelo símbolo da casa construída. Isso suscita, por

106
outro lado, uma expressão de apego à casa e o quintal, espaços extremamente
valorizados nas histórias contadas. Como Halbwachs (2006) afirma, a memória
coletiva está sedimentada em um contexto espacial. O que se observa é que as
lembranças associadas à vinda para cidade e as conquistas posteriores se encontram
registradas nas paredes das casas; um bem material que possui todas as marcas dos
processos vividos.

Ao mesmo tempo em que Dona Rosa consolida a imagem da roça como um


lugar de “paz” diante das pressões e contingências que recaem sobre sua família no
período após a tragédia, ela reconhece que a vinda para cidade ofereceu um grande
benefício: a construção de uma casa, da qual ela é dona, fruto de muito trabalho e
também das colaborações por parte de antigos patrões. A ambivalência do seu irmão,
em relação à possível volta para roça, no seu ponto de vista, está ligada à perda da
segurança que representa uma morada construída. Como ela afirma: “Ele pensa assim:
Para quê voltar? Lá trabalhava a vida inteira e não construiu nada. Aqui, pelo menos,
foi possível construir alguma coisa”.

Este depoimento revela a satisfação que advém da construção de algo a partir


do trabalho realizado. Enquanto na roça, o trabalho realizado não possibilitava a
construção de alguma coisa, a cidade é vista como um lugar que abre as
possibilidades para a materialização de desejos e anseios – representada pela
construção de uma casa. Portanto, a vinda para a cidade está associada a uma história
de conquistas de bens materiais – seja a casa, seja os alimentos que podem ser
comprados, como visto nos capítulos anteriores.

Há uma cadeia lógica entre trabalho e dinheiro que possibilita a aquisição de


alimentos e a construção de moradia. Esta cadeia lógica que interliga o esforço do
trabalho realizado com os frutos gerados por ele fica explícita na fala de Eli:

“Vim para cá com a roupa de corpo. Consegui tudo com a graça de Deus.
Não sou rica, mas pelo menos tem um canto para morar. Isso que é
importante. Pelo menos não tinha um teto quando vim morar aqui e pelo
menos agora tenho um teto. Não tinha minha própria casa na roça e agora
tenho uma casa que consegui construir. Posso trabalhar, ter meu dinheiro.
Isso é tudo”.

“Ter um canto para morar” é reconhecido como sendo fruto de um


investimento, possibilitado pelo esforço do trabalho realizado. Este processo de

107
autorealização, que não foi possível se concretizar no contexto da roça, é literalmente
encarnado na estrutura da casa e, ao perdê-la, se perde a história associada com esta
conquista.

Vários mineiros entrevistados falam de forma emocionada sobre seu


sentimento de posse em relação a casa, diante da possibilidade de perder este bem
simbólico coletivo:

“A gente lutou para ter nossas casas. Mas eles querem botar a gente fora de
qualquer jeito. Carregávamos material com carrinho de mão...para fazer
esta casa, eu carregava tanta coisa – até carreguei tijolo nas costas. A gente
mesmo batemos [sic] a laje.” [Mateus, oriundo de Divino, MG]
“Mexeu com o interior todinho. Mexeu com meus sentimentos – saber que
vamos ter que sair daqui. Sempre falava que não queria ficar mais aqui,
que ia voltar para roça, mas ao mesmo tempo, foi com muito sacrifício isso
aqui”. [Vilma, oriunda de Caratinga, MG]
“Estão falando que vamos ter que sair. Jogar para rua não podem – né? Eu
peço a Deus que minha casa não esteja em perigo. Não vieram aqui, não
avaliaram nada ainda. Minha casa é pobre, mas é minha. Esta casa tem
história. Meu marido fez isso tudo aqui. Ele é um conhecido. E foi tudo
com suor – para ajeitar a casa, toda”. [Eli]
“Oi meu Deus... nem terminei de fazer minha casa. Tem hora que dá
vontade de morrer, dá vontade de chorar” [Ana]

O apego à localidade não apenas se limita às fronteiras da casa, como estrutura


física, mas inclui os arredores – o quintal e as plantações contidas nele. José conta que
a dificuldade de sua mãe de desapegar da casa e aceitar a recompensa oferecida pelo
Poder Público está extremamente ligada aos seus anos de dedicação à horta, pois
“cada planta aí tem uma história para contar”. Nas palavras dele: “Ela gosta de
espaço...ela vai ali...vai aqui. Gosta muito de ter sua horta. Eu trabalho o dia inteiro –
aí tem como esquecer mais rápido. Mas, ela vai ficar em casa. Aí complica. Ela ama
suas plantas. Não consegue nem pensar em largar todas aqui”.

A nora de Dona Ana, Tatiane, que está casada com seu outro filho, afirma que
seu quintal, repleto de uma diversidade de plantas, flores e árvores frutíferas, é igual à
roça. Assim, ela conseguiu construir um espaço na atualidade que lhe remetesse ao
seu passado. Este gesto representa uma conciliação interna entre dois espaços e dois
tempos. Isto é, um passado idealizado não precisa ser procurado num tempo perdido –
está incorporado no quintal, pelas plantas que compõem a passagem do seu presente.
Como ela mesmo afirma:

“Agora fiz um muro. Mas, antes de ter o muro, se olhar para frente – tem

108
mata. Mas é a mesma coisa. O verde lembrava de lá – a fazenda do meu
pai – tinha muito capim, era verdinho. Talvez por isso, gostei muito daqui.
Lembrar do passado, me faz bem. Aqui no quintal, me dá a sensação de ser
roça. Aqui se não sair para rua, não vejo ninguém. Estou aqui na minha
rocinha” [Tatiane].

Ter não apenas uma casa, mas também uma “rocinha” na área urbana é o
maior sinal de enraizamento na localidade. O quadro referencial, calcado nas lacunas
e preenchimentos de um passado vivido na roça, não deixa de orientar as decisões
tomadas diante de um momento crítico.

Ao final, a tragédia do dia 6 de abril revela que a aposta na casa construída se


revigora sobre novas bases na área urbana enquanto a fuga para roça parece como
uma resposta transgressora diante do desafio posto. O que está em jogo – tanto nas
situações dos que querem voltar para roça, quanto nos casos dos que se agarram ao
seu espaço doméstico enquanto conquista que não pode ser perdida – é a questão da
casa. Casa como lugar de construção – gerada pelo trabalho realizado. Casa como
espaço que registra os rastros de uma trajetória vivida num fluxo incessante – entre a
roça e a cidade.

109
4. AS “IDAS E VOLTAS”: MODALIDADES ORGANIZATIVAS DOS
DESLOCAMENTOS ESPACIAIS

As “idas e voltas” assumem várias facetas no fluxo rural-urbano. A abordagem


desta Dissertação privilegia uma olhar atencioso para “as idas e voltas” que não se
enquadram em deslocamentos espaciais. Pressupõe-se que há também formas de ir e
voltar na memória – de trazer o passado para o momento presente e atualizar estas
lembranças mediante as práticas sociais.
Destarte, neste capítulo, justamente pretendo explorar os deslocamentos
espaciais – as voltas para o lugar de origem que são realizadas em diversas
circunstâncias e possuem várias modalidades organizativas. Ao longo deste capítulo,
analisarei mais detidamente as diversas vias buscadas para cultivar vínculos e
sustentar relações com o “lugar de onde se partiu”. Neste processo de atualização da
memória coletiva, o “lugar de origem” deixa de ser um local cristalizado no passado –
atrelado a uma teia de lembranças embasadas apenas no que foi vivido.
É importante sinalizar que esses movimentos que transcorrem entre a roça e a
cidade não se encaixam dentro de um único formato, o que fica implícito ao analisar
os diversos casos de “idas e voltas”. Há casos de pessoas que vivem num “estágio
intermediário” entre “lá” e “aqui”, pois estão sempre transitando entre os dois espaços
e possuem vínculos em ambos, por terem vivido um período de suas vidas tanto na
cidade quanto na roça. Há também pessoas que moravam no Rio de Janeiro por algum
período e já voltaram para seu lugar de origem, mas fazem visitas periódicas a Morro
dos Prazeres e Escondidinho para manterem contato com amigos, conhecidos e
parentes. As várias situações apresentadas ao longo deste capítulo demonstram
claramente que não há “um ponto de partida” e “um ponto de chegada” pré-
determinado nestas diversas idas e voltas. Seria melhor retratar esse trânsito como um
componente embutido em trajetórias que não se cristalizam em um território fixo, mas
refletem a fluidez que é constituinte dos movimentos de “ir e vir”.
Neste capítulo, utilizarei algumas classificações para retratar os dois polos
deste fluxo – “quem partiu” e se caracteriza como “ausente”, por um lado, e por outro
lado, “quem ficou” e se caracteriza como “presente”. Entretanto, é importante evitar a
padronização e cristalização destas categorias em função da manutenção de uma
relação dicotômica. Não se pode negar que há um jogo entre estas categorias –
ausentes e presentes – que transparece nas diversas modalidades de “idas e voltas”,

110
como pretendo explorar ao longo deste capítulo. Quem partiu não necessariamente
está ausente da realidade da roça, como também quem ficou não está fixado no espaço
rural, mas experimenta certa mobilidade. Isto é, há uma ambiguidade inerente a cada
um destes estágios.
Além de explorar a ambiguidade inerente a cada um destes estágios, pretendo
destacar o imbricamento entre estes dois polos, que se encontram continuamente em
interação. Não serão tratados como dois polos que não se interagem, sendo que um,
em parte, é o reflexo do outro. Sayad (1998) mostra claramente esta inter-relação
quando afirma que partir e ficar são duas faces de uma mesma realidade social. Isto é,
os que partem fazem parte do conjunto dos que ficam, sendo que os pontos de
conexão são múltiplos. Para Sayad (1998) a alteridade é uma condição que explicita
este estado de dupla identificação. Isto é, quando se fala de si, de sua própria
identidade – enquanto “quem partiu” – necessariamente está também falando do
outro, de “quem ficou”. Embora possam estar divididos no espaço, “quem ficou” e
“quem partiu” se encontram unidos na vivência de um tempo único.
Neste capítulo, escolho o trânsito entre Morro dos Prazeres e Escondidinho
(RJ) e Ubaporanga (MG) como foco de minha análise. Esta opção se explica pelo alto
nível de deslocamentos entre esses dois lugares, sendo que a maior parte dos mineiros
entrevistados ao longo do meu trabalho de campo é originalmente do município de
Ubaporanga, que engloba os distritos de São José do Batatal e São Sebastião do
Batatal. Diversas modalidades de “idas e voltas” – algumas realizadas de forma
organizada e coletiva, outras de forma mais individualizada – têm sido
constantemente cultivadas, favorecendo o imbricamento das ligações entre “aqui” e
“lá”. Portanto, esta teia de interconexões apenas aparece com tanta complexidade no
caso de Ubaporanga–Morro dos Prazeres/Escondidinho, o que justifica este mergulho
para compreender, mais a fundo, as nuances dessa inter-relação.
Estas “idas e voltas” se operam em territórios definidos, mas abrangem
unidades bem mais amplas, que ultrapassam as fronteiras geográficas. Um dos seus
efeitos é nutrir elos entre famílias distantes, estendendo assim o alcance dos laços
familiares, além de aproximar o campo da cidade. De certo modo, estes
atravessamentos espaciais, facilitados, em parte, por eventos promovidos anualmente
como a Festa dos Ausentes, que será abordada mais adiante, possibilitam maiores
aproximações não apenas entre quem partiu e quem ficou, mas também entre gerações
novas, que não experimentaram diretamente os impactos destes deslocamentos.

111
4.1 A AMBIGUIDADE INERENTE À SITUAÇÃO DE QUEM SE DESLOCA: O
ETERNO “IR” E “VIR”

“Às vezes, penso que estou passeando no Rio de Janeiro. Sinto que estou
de morada – e aí, me dá um susto. Tem 42 anos que estou aqui e penso –
Oi meu Deus. Não tem mais nada em Minas. Fico pensando: o que vou
fazer lá? Os parentes não estão mais lá. Tios, pais – não tem quase mais
ninguém”. [Rosa]

Esta fala de Dona Rosa reflete a ambiguidade inerente à condição de alguém


que se desloca espacialmente e que encara sua vivência no meio urbano como se fosse
meramente “um passeio” – uma experiência passageira, sem data marcada para a
volta. Logo, ela experimenta um processo eternamente transitório entre um estado
provisório e uma situação duradoura. É justamente neste estágio de “entre”, no cerne
da alteridade, que ela paradoxalmente “se enraiza” – nos fluxos de um processo que, à
primeira vista, pode aparecer discordante, repleto de tensionamentos e contradições.
Como este trecho de depoimento exprime, Dona Rosa ainda não considera sua
mudança para o meio urbano como um transplante definitivo e, de certo modo, vive
em suspenso, pois sempre cogita a possibilidade da voltar para seu lugar de origem.
Ela conta que seu marido está ansioso para voltar e há muito tempo, “está esperando o
caminhão de Juca para fazer a mudança”.46
Ao mesmo tempo, ela descarta esta possibilidade inúmeras vezes, ao enfatizar
seu vínculo com os filhos, que estão habituados ao Morro dos Prazeres, ao falar do
seu lugar de moradia, construída com tanta dedicação e ao citar as amizades criadas,
principalmente, com outros mineiros, no contexto da cidade.
Do ponto de vista pragmático, Dona Rosa acredita que seria necessário
aposentar-se para viabilizar uma volta para Ubaporanga. Para ela e para vários outros
mineiros no Morro dos Prazeres, a aposentadoria é um condicionante para a volta.
Nas suas próprias palavras: “Muitos não deixaram nada lá. Ficamos presos aqui na
cidade. Aí, não tinha como voltar sem aposentar”.
Para Dona Rosa, é importante “deixar algo lá” – seja uma casa, um pedaço de
terra ou os vínculos com parentes que ficaram. São formas de cultivar a relação fluida
entre roça e cidade e evitar um rompimento definitivo com o lugar de origem. Assim,

46
Juca foi citado no capítulo 1 como alguém que facilitava o processo de deslocamento de
muitos mineiros porque levava estas pessoas para o Rio de Janeiro no seu caminhão, quando
transportava galinhas para venda. Ele também é frequentemente contratado por mineiros para “fazer a
mudança”.

112
“ficar preso na cidade” é uma condição ocasionada pela incapacidade de “deixar algo
lá”. A forma de evitar este estado de “ficar preso na cidade” seria encarar o estágio
ambíguo – no “entre” “lá” e “aqui” – como um elemento constituinte da própria
identidade47.
Esta fluidez, inerente aos fluxos que caracterizam os movimentos de
deslocamento lhe possibilita conciliar a junção destes dois universos – “lá” e “aqui” –
em vez de romper com um para deslocar-se definitivamente para o outro. Desta
forma, Dona Rosa encontra sua zona de conforto nestas idas e voltas entre
Ubaporanga e Morro dos Prazeres – neste espaço intermediário, no qual ela possa
fomentar uma rede de relações extensiva e abrangente, com diversos pontos de
conexão.
Ao transitar entre os dois espaços com bastante frequência, a sensação de
ambiguidade é sentida de forma bastante aguda. Por um lado, voltar para visitar um
lugar de onde partiu, causa estranhamentos e abala a sensação de enraizamento
territorial. Os seguintes trechos de depoimentos de alguns entrevistados em Morro dos
Prazeres que voltam frequentemente para seu lugar de origem em Minas Gerais
revelam uma fusão entre diversos sentimentos – saudade, tristeza, alegria e prazer:

“Fico triste quando vou para roça. Parece que o coração fica apertado.
Pelas lembranças”. [Rosa]

“De tempos em tempos, dá uma saudade da terra da gente. Não sei porquê.
Mas, sempre dou um jeito de ir para matar esta saudade”. [Dona Célia]

“Fico alegre conversando lá na roça – parece que sou dona daquilo ali.
Depois, levo um choque. Parece um trauma”. [Terezinha]

Por outro lado, Seu Milton, que foi para o Morro dos Prazeres no auge dos
deslocamentos, durante os anos 1960, e voltou 25 anos depois para sua terra natal,
“fica perdido” quando vai para Morro dos Prazeres para uma visita:

“Eu chego lá e fico perdido. Me abraçam mas não lembro de cada um. Os
velhos – os que foram primeiro – todos morreram lá – Zé Ribeiro, Luiz
Mineiro, Pedro Ribeiro. Agora estão os netos tomando conta. Naquela

47
Parto de uma concepção mais fluida da identidade, caracterizada pelos fluxos que marcam o
trânsito dos mineiros pelos espaços rural e urbano. Neste sentido, a leitura adotada vai na contramão de
diversas abordagens sociológicas e antropológicas que tendem a focalizar a identidade como algo que
se fortalece a partir do enraizamento num espaço localizado, como ponto final de um caminho trilhado.

113
época, Rio era igual os Estados Unidos. A gente ficava maravilhado com
aquilo ali. Agora não”. [Milton]
A sensação expressa por Milton – que não consegue se localizar na rede de
relações na comunidade urbana, onde morou por tantos anos, por ter perdido as
referências de sua época – pode ser comparada com a sensação de Dona Rosa, quando
diz que não consegue pensar em voltar mais para roça, porque “os parentes não estão
mais lá”.
Ao final, são as relações forjadas com parentes, amigos e conhecidos que
determinam o sentimento de enraizamento, independente de se localizar fisicamente
naquele espaço. Sem esses vínculos sociais, a interrogação da Dona Rosa se torna
bastante relevante – “o que vou fazer lá?”.

4.2 DIVERSAS MODALIDADES DE “IDAS E VOLTAS” ENTRE ROÇA E


CIDADE

O movimento de ir embora para cidade não é uma via única. Isto é, a maior
parte dos ubaporanguenses que se enraizou em Morro dos Prazeres e Escondidinho
nutre seus vínculos com o lugar de origem, por meio de voltas, realizado de diversas
formas. Algumas são realizadas em massa e passam por estratégias organizacionais
como é o caso das viagens realizadas para participar do processo eleitoral.
Segundo alguns ubaporanguenses, a vinda “dos de fora” na época de votar já é
bastante visível, pois “chegam em bloco” e “geralmente, há uns 20 ônibus
estacionados na praça”, sinalizando sua chegada. Segundo Dona Cândida, diretora de
longa data de uma escola em Ubaporanga e uma das pessoas mais envolvidas nos
processos políticos da região, votar representa apenas um pretexto para voltar:

“Muita gente falava que voltava para votar, mas vinha por outros motivos.
Votar era uma forma de não perder o vínculo. A relação é tão forte que na
política, as pessoas não transferiam o título. Pessoas de fora marcavam
presença no período eleitoral. Fretavam até ônibus para votar. Era uma
forma de reviver a família. Hoje tem 200 pessoas que votam – todo ano
chegam”. [Cândida]

Portanto, mesmo reconhecendo que possa haver outros motivos para voltar
que ultrapassam a simples necessidade de votar, não há dúvida de que existe um
vínculo significativo que passa por afinidades políticas e que incentiva a organização
destas viagens de forma coletiva. Portanto, a ligação política com o lugar de origem,

114
extremamente conectada com as dinâmicas locais, prevalece, apesar da distância
física.
Outras voltas são realizadas de forma individualizada e são as motivações
pessoais que regem sua realização. Os namoros entre quem partiu e quem ficou quase
sempre surgem a partir da iniciativa de “quem é de fora”. Um ubaporanguense, Sr.
Adão conta que, muitos mineiros, voltam da cidade “falando carioca” e “andando de
carro novo” para impressionar as meninas. Conta que querem namorar com meninas
da roça porque “são consideradas bobas” e “vivem sonhando com a grande cidade”.
Este mesmo informante refere-se a esses namoros como se fossem um tipo de
“roubo”. De acordo com ele, os “meninos da cidade roubam as meninas de
Ubaporanga e as levam embora para cidade”.
Esta fala revela um processo de controle social exercido sobre esse tipo de
volta, que é associada com o sequestro das meninas nativas, dada a força da palavra
roubo. A reclamação feita gira em torno do fato de que são rapazes “de fora” que
interferem na dinâmica local, ao “roubar” as meninas e levá-las embora. Reflete uma
postura de proteção perante “nossas meninas”, que possam ser sujeitadas às ações
invasoras dos “de fora”. O que é interessante notar, aqui, é a imagem forjada em torno
do mineiro que desloca para cidade, como alguém que não cabe mais dentro dos
parâmetros da comunidade local. Isto é, quem era “de dentro” adquire outra nomeação
– passando a ser “de fora”.
Esta categoria – “de fora” – ganha peso ao explorar as relações estabelecidas
entre “quem partiu” e “quem ficou” – relações constituintes do próprio fluxo rural-
urbano – como será visto mais adiante.
Outro movimento que gira em torno de iniciativas individuais são os processos
de “levar e trazer” alimentos e comidas, o que engendra uma gama de relações
entrelaçadas entre roça e cidade. De certo modo, é como se o alimento fosse um canal
de intermediação entre estes dois universos. Constitui uma forma de levar consigo
uma parte do que representa o lugar de origem. Quando os que deslocaram para
Morro dos Prazeres e Escondidinho visitam Ubaporanga, alguns alimentos específicos
são priorizados para levar embora, como se fossem emblemáticos do lugar de origem.
Dona Francisca, moradora de Morro dos Prazeres, explica este processo de
“trânsito alimentar”:
“Eu gosto de levar aqueles alimentos que me lembram daquele tempo na
roça – sabe? Às vezes, me dá uma saudade de comer aquele feijão, colhido
no pé... é outro sabor. E o café – é o que mais me dá saudade. Não consigo

115
acostumar com aquele café comprado aqui na cidade… já perdeu o gosto.
Não é a mesma coisa”.

A saudade que Dona Francisca sente em relação a determinados alimentos da


roça está extremamente ligada ao sabor, que constitui uma marca registrada dos
alimentos plantados e colhidos no ambiente da roça. Isto é, os alimentos que ela leva
são os alimentos que preservam “sabores” e “gostos” que remetem a um tempo
vivido.
Dona Odete, que mora em São José do Batatal, conta que seus filhos que
moram, atualmente, em diversos lugares do Rio de Janeiro, inclusive Morro dos
Prazeres – e voltam três vezes ao ano – “sempre resolvem levar muita comida daqui”
na hora de ir embora. Segundo Dona Odete: “Quando meus filhos vêm aqui, eles
sempre resolvem levar laranja, limão, ovo, couve e galinha. Arrumam latas e mais
latas para levar. Eu empresto todas as bolsas que tenho para eles. Levam de tudo”.
Dona Aparecida, que morou um período em Morro dos Prazeres e volta
periodicamente para visitar os filhos que ainda residem lá, conta que o que eles mais
esperam de sua visita são as comidas típicas da “roça”: “Quando vou para lá, meus
filhos ficam em volta de mim. Querem saber logo o que trouxe de bom de comida.
Minha comida é tão bruta – bem simples mesmo – mingau de inhame, chuchu com
jiló, frango com quiabo – mas eles adoram”.
Há parentes que repetidamente mandam alimentos e comidas via transporte
público e há encomendas feitas para quem vai e volta com frequência. Seu Sebastião,
dono de uma farmácia em Ubaporanga e grande conhecedor da história local e
regional, discorre sobre esta movimentação em torno das “comidas daqui”:

“Já observei há muito tempo que quem saiu de Ubaporanga não consegue
esquecer estas comidas daqui. Mães mandam taioba, couve, queijo,
linguiça e galinha caipira para seus filhos no Rio de Janeiro. Eles gostam
de galinha caipira para fazer sopa – para fazer frango com macarrão grosso
– fica amarelinho pela gordura do galo. Quando alguém vem aqui, eles
pedem um montão de coisas – pedem goiabada cascão da casa de fulano,
pedem para arranjar um tipo de quiabo grosso que só tem aqui. Pedem fubá
da roça – que é bem mais grosso. Falam assim – traz aquela farinha torrada
da avó. Sabem que é somente aquela que serve”. [Sebastião]

Sr. Sebastião explica que “a ligação de alimento é mais de lá para cá”, porque
“lá, no Rio de Janeiro, não tem tanta novidade”. Sr. Joaquim, que residia no Rio de
Janeiro por um determinado período e já voltou para Ubaporanga, conta que “não
sente saudade das comidas de lá”. Isto é, o movimento inverso – de trazer ou pedir

116
comidas cariocas – é quase inexistente.
A tia de um sobrinho que foi embora para Morro dos Prazeres, Dona Manuela,
conta que quando ele vinha, sempre “trazia camarão, caranguejo e peixe para quem
não conhecia a praia – para conhecer algo do mar”.
Entretanto, estas comidas nunca chegaram a ser pedidas nem por Dona
Manuela, nem pelos outros parentes e amigos de Ubaporanga – apenas representam
“presentes” que, de algum modo, possibilitam certa aproximação a um local
desconhecido – o Rio de Janeiro.
O movimento de pedir e receber alimentos, que parte dos mineiros, revela o
poder do alimento e da comida enquanto registro de um tempo vivido. O apego à
determinadas comidas é um sinal do apego à localidade. Para os que nasceram e
foram criados na roça, as comidas e alimentos são símbolos que, de certa forma,
possibilitam voltar no tempo e se reconectar com experiências associadas a um
determinado ambiente físico.

4.3 AS IDAS E VOLTAS DA DONA ROSA E DE SEU NATALINO:


CULTIVANDO AS RELAÇÕES DE PARENTESCO NO LUGAR DE
ORIGEM

Muitos moradores de Morro dos Prazeres e Escondidinho voltam com bastante


frequência para Ubaporanga e seus arredores, fora de ocasiões especiais como
votações, festas do final do ano e datas comemorativas e religiosas (aniversários ou
Páscoa).
É o caso de Dona Rosa e seu marido, Natalino. Suas viagens são realizadas
de forma sistemática – de dois em dois meses – mas nunca vão juntos por “medo de
deixar a casa sozinha”. Seu Natalino conta que não se sente seguro deixando os filhos
sozinhos, especialmente, perante o quadro de violência na comunidade, que “tem altos
e baixos”.
Seu Natalino, quando volta, tende a permanecer em Ubaporanga por períodos
maiores. Suas visitas geralmente duram o período de um mês e, segundo Dona Rosa,
ele “aproveita bem a visita”. Natalino tem costume de se hospedar na casa do seu tio
dentro de Ubaporanga, mas segundo um dos seus primos: “ele não fica quieto nenhum
momento – está sempre na rua, batendo perna, visitando todo mundo. Gosta muito
também de andar nas plantações dos parentes, lá na roça”.
Dona Rosa conta que um dos grandes prazeres de seu marido é sua descoberta

117
de vínculos de parentesco, como relata a seguir: “Quando ele volta de viagem, ele
conta que descobriu que fulano é um primo distante, ou que fulana é tia do seu avô
pelo lado do pai, que nem conheceu. Você precisa ver como ele fica alegre. Ele gosta
muito de andar por lá para descobrir estas coisas”.
A observação da Dona Rosa elucida, de modo bastante claro, de que forma
Seu Natalino se localiza socialmente pela rede familiar, nas suas andanças por seu
lugar de origem. A navegação social por aquele universo é norteada, primordialmente,
pelas relações de parentesco e à medida que Seu Natalino vai descobrindo mais um
parente, o alcance desta rede familiar aumenta. Por isso, a extensão desta rede
familiar, em algum grau, é um indicador da intensidade do seu vínculo com o lugar de
origem.
Dona Rosa volta por períodos menores – geralmente, fica no máximo, por
duas semanas – e sempre se hospeda na casa de sua irmã, Teresa. Tive o privilégio de
acompanhá-la em uma de suas idas costumeiras, quando fui para Ubaporanga para
realizar uma etapa do meu trabalho de campo, no mês de novembro de 2010.
Ela faz o mapeamento das visitas a serem realizadas, baseando-se no nível de
proximidade que mantém com cada um que participa de sua rede de relações
familiares. É como se esta rede familiar fosse uma bússola que orienta os caminhos
traçados. Tive a oportunidade de observar mais de perto como ela cultiva relações
com seus parentes durante a estadia.
A rodada de visitas é planejada de tal forma que ela tenta deixar quase nenhum
parente “fora da rota”, apesar de confessar que há uma ordem de prioridades. Ela
prioriza sempre as visitas tanto à sua tia, irmã de sua mãe, que mora atualmente
dentro da cidade, quanto às suas primas, também por lado de sua mãe, que possuem
propriedades na área rural.
Ela sempre mantém contato com conterrâneos que voltaram para Ubaporanga
e seus arredores depois de passar uma estadia em Morro dos Prazeres, como é o caso
de Humberto, de quem ela comprava “galinha caipira”; Santiago, seu padrinho de
casamento, e Chiquinha, que criou seus filhos juntos com os dela na mesma época.48
A mineira afirma que “gosta muito de conversar com eles” e que “parece que
se entendem”, em parte, porque “já viveram aqui e lá”. Em algum grau, o nível de
afinidade que ela sente em relação a estas pessoas pode ser mais intenso por causa de

48
Chiquinha e Dona Rosa também eram amigas de infância. Trabalharam juntas na “fazenda de
Lulu”, próxima a Ubaporanga, quando eram crianças.

118
uma dupla identificação – são pessoas que, como ela, tem um pé em dois mundos.
Dona Rosa sente uma espécie de co-responsabilidade pelo cuidado de sua tia,
irmã de sua mãe. Em vários momentos, ela falou da tristeza de sua tia, que vendeu o
pedaço de terra na roça para comprar uma casa na cidade, em grande parte, pela
pressão do seu marido, mas que não se conformou com esta mudança.
Nas suas visitas, dona Rosa faz uma tentativa de consolá-la por esta perda e
fica evidente que ela se identifica profundamente com a experiência da tia. Além de
simpatizar com este processo de deslocamento, pelo qual ela também passou – mesmo
em proporções diferentes – a vida da Dona Rosa também foi marcada pela perda da
terra.
Em uma de nossas visitas para a área rural, ela indica o terreno que era de sua
mãe com lágrimas nos olhos. Uma marca na sua trajetória foi a saída da família para a
“rua”49 depois que seu pai vendeu este pedaço de terra. Ela conta que “até hoje, não
entende exatamente o que aconteceu”, sendo que esta negociação transcorreu “entre
homens”. A partir daquele momento, foram obrigados a trabalhar “para os outros” –
em diversas fazendas e, conforme seus relatos, aumentou a carência econômica da
família por causa da perda de sua autonomia, associada à posse da terra. Sinalizo que
a história contada por Dona Rosa acerca do seu passado na roça é marcada por uma
ruptura que demarca dois períodos: antes e depois da venda do terreno.
O passado, portanto, não é um fluxo sem interrupções e sem quebras.
Acontecimentos como esses ressaltam a ambiguidade em torno do que foi vivido.
Para Dona Rosa, rever a história de sua tia certamente mexe em suas feridas. Interfere
também na própria produção das lembranças – lembranças de uma relação construída
com a roça que foi marcada pela ruptura com a posse da terra. Tadesco (2004)
constata o processo de reconstrução do passado a partir destas quebras e
descontinuidades: “O passado não se conserva inteiro no decorrer do tempo nem com
a totalidade da consciência do espaço, como analisou Bergson, mas se constrói e se
reconstrói a partir de faltas, de ausências” (TADESCO, 2004, p. 96).
Ao acompanhar Dona Rosa, testemunhei o impacto destas “rodadas” na roça
no sentido da atualização da memória. O que poderia se tornar um registro congelado
na teia de lembranças daquele tempo gradualmente vem passando por modificações, a

49
Rua é uma palavra que significa cidade na linguagem nativa. Muitos fazem referência à rua
quando falam do seu deslocamento das propriedades localizadas na “roça” para a cidade do interior –
uma vivência bastante comum, especialmente, quando houve perda de terras.

119
partir das voltas periódicas.
Ao passar pelas extensões de terra, ela expressava a tristeza de ver terras
vazias e plantações convertidas em “monocultura de eucalipto” ou “pasto para criação
de gado”. Nas suas palavras: “Quando vinha aqui, gostava de ver o verde, gostava de
ver as plantações. Agora somente tem eucalipto e pasto. Perdeu a graça”. Para Dona
Rosa, “aquela roça” que conhecia no passado não é a mesma roça que hoje – o que
suscita, obviamente, uma certa nostalgia daquele tempo.
No decorrer das conversas com seus parentes, um assunto frequentemente
abordado era a dificuldade para manter as plantações. Vários diagnósticos são feitos
acerca do “enfraquecimento” da terra e seus parentes enfatizam, inúmeras vezes, a
necessidade de depender de uma série de produtos químicos, que possam “tratar” da
fraqueza da terra – como se a fraqueza fosse uma condição inata. Várias vezes,
quando perguntei por que a terra tornou-se “fraca”, as respostas confirmaram a
representação desta fraqueza como algo que, de forma repentina, começou a
prejudicar o processo produtivo. O trecho do depoimento da prima de Dona Rosa,
Dona Maria, expressa sua visão sobre este fenômeno: “Hoje a terra é mais fraca. Vai
enfraquecendo. Parece que não tem jeito. Antes, a terra era mais forte. Era mata,
quando desmatava, não precisava colocar adubo nem nada – ela produzia direitinho.
Era só plantar. Colhia muito”.
Logo, um registro que prevalece é a associação da terra com força e
abundância no passado, quando “tudo dava” sem tanto esforço e investimento. Esta
imagem contrasta com o momento presente, que exige mais recursos para garantir um
rendimento razoável, dada a crescente fraqueza da terra. A roça deixa de representar o
lugar da fartura, da produção ilimitada, do sustento em termos alimentares – e passa a
ser uma fonte precária – uma “fonte que secou”. Estas alterações na imagem da roça
têm repercussões sobre o quadro contrastivo rural/passado x urbano/presente – eixo
norteador das vivências e experiências acumuladas.

4.4 AS TRAJETÓRIAS DOS QUE VOLTARAM PARA SEU LUGAR DE


ORIGEM: O PROCESSO DE REINSERÇÃO NO ESPAÇO RURAL

A rede de relações entre os parentes que residem em Ubaporanga e seus


arredores constitui um tecido bastante denso e complexo, sendo que os pontos de
interconexão são múltiplos. Durante minhas andanças no trabalho de campo, quando

120
fui apresentada a “alguém”, a referência dada era sempre a partir das relações de
parentesco, isto é, a pessoa era apresentada como sendo parente “de fulano”. Portanto,
parente é um operante na mediação das relações sociais50 e neste mapeamento da
localidade, os pertencimentos – definidos a partir das afiliações familiares – já se
tornam um fator significativo no quadro de referências. É o que determina as
identificações identitárias diante dos deslocamentos espaciais.
Assim, várias pessoas que se deslocaram para Morro dos Prazeres e
Escondidinho e depois voltaram para Minas Gerais contam que, na volta, sentiram
“como se nunca tivessem saído”. Talvez esta sensação seja ocasionada pela dinâmica
oscilante e fluida do fluxo rural-urbano, o que facilitou sua inserção na comunidade
rural quando voltaram por um período prolongado. Ou seja, elas sempre mantiveram
contato com seu lugar de origem, da mesma forma que as famílias ubaporanguenses
nunca as perderam de vista.
Parece existir um tipo de monitoramento das “idas e voltas” destas pessoas por
parte da rede de famílias ubaporanguenses, de forma que o fluxo para fora e de volta
para dentro não sai do campo de observação do círculo social ao qual pertencem
(COMERFORD, 2003, p. 44).
Como Comerford (2003) aponta, este controle social é exercido de tal forma
que as pessoas que se deslocaram não deixam de “pertencer ao universo dos
mapeamentos” (COMERFORD, 2003, p. 44). Suas trajetórias, mesmo durante o
período de ausência – que não era de total ausência, por causa das constantes “idas e
voltas” – são acompanhadas por esta rede extensiva de afiliações familiares. Sua volta
também é acompanhada com a mesma atenção minuciosa – de tal forma, que estas
pessoas passam a pertencer novamente à comunidade a partir dos referenciais
familiares, fazendo parte das práticas de familiarização e sociabilidade que constituem
o que Comerford (2003) chama de “territórios de parentesco”.
A seguir, focarei algumas histórias de pessoas que voltaram para Ubaporanga
depois de um período no Morro dos Prazeres e Escondidinho e se inseriram de novo
nestes “territórios de parentesco”. Vivem no “entre”, no “aqui” e no “lá”, pois suas
trajetórias exprimem a incessante movimentação entre esses dois polos. São dois
tempos distintos, duas vivências diferentes – que se interligam na teia de lembranças.

50
Esta reflexão é inspirada no trabalho de Comerford (2003) que tem como foco de sua análise,
os sindicatos de trabalhadores rurais da Zona da Mata de Minas Gerais, no qual o autor focaliza a
dinâmica de sociabilidade na roça e explora o conceito de “territórios de parentesco”.

121
4.4.1 A história de Humberto: a realização do seu sonho

Começo pela história de Humberto, casado com Vitória, filha de Pedro


Ribeiro, um dos primeiros que se deslocou para Morro dos Prazeres e ajudou na
acolhida dos mineiros51. Vitória conta que seu pai ajudou Humberto na construção dos
seus dois empreendimentos – uma aviária e um chiqueiro para criação de porcos.
Segundo Vitória, que já tinha se casado com Humberto neste período, os
empreendimentos, avaliados pela ótica econômica, “deram certo”: “Aviária que
tínhamos – vendia muito bem. No Rio, tudo o que se fazia vendia. Coxinha, tudo.
Para trabalhar e para vender no Rio, é uma maravilha”.
Dona Rosa lembra da área onde Humberto criava os porcos no Morro dos
Prazeres e, em diversas ocasiões, sinalizou o local em nossas andanças pelos circuitos
internos da comunidade. Ela também lembra claramente do momento da volta de
Humberto para Ubaporanga – quando “saiu a indenização” do Programa Favela
Bairro.
Humberto conta que foi indenizado na época por causa da construção do
viaduto – em cima da Rua Gomes Lopes – e com este recurso nas mãos, foi possível
viabilizar sua volta. Ele relata que há muitos anos estava sonhando com esta volta. A
indenização, portanto, não foi encarada como uma expulsão forçada, mas quase como
um convite para materializar esta iniciativa de voltar para sua terra natal.
Como ele explicita, talvez sem este recurso não teria voltado. Queria voltar
“com condições para construir algo” e este “algo” era atrelado à aquisição de terra
para desenvolvimento de um projeto pessoal, voltado para a produção agrícola. O
valor atribuído por ele ao processo de “construção”52 transparece na conversa. A terra
adquirida surge na sua trajetória como uma conquista consolidada, que ocasiona uma
sensação de merecimento e de concretização de sonhos.
Segundo Vitória, “Humberto queria um terreno porque quando era criança,
morava na terra dos outros”. Ela conta que foi difícil sobreviver apenas a partir do
rendimento da plantação, o que forçou o deslocamento do casal e sua filha para

51
Para maiores informações sobre Pedro Ribeiro e seu papel na acolhida dos mineiros recém-
chegados, ver o capítulo 1 desta Dissertação.
52
Ver referências em relação à noção de “construção” no capítulo 3, ao tratar dos significados
associados à construção da casa. O valor atribuído aos bens construídos (seja casa, seja um chiqueiro
ou roçado) se deriva, em grande parte, dos mecanismos socioculturais subjacentes ao processo de
construção enquanto operação coletiva e da mobilização de recursos humanos e materiais.

122
“rua”,53 onde compraram uma casa. Entretanto, o terreno não foi vendido, porque
“para Humberto, vender o terreno seria igual deixar de acreditar no seu sonho”.
Vitória aprofunda sobre os detalhes da situação atual: “Humberto está aposentado. Aí,
dá para comprar as coisas e viver tranquilo. Ele sempre tinha o desejo de morar na
roça e ter seu próprio pedaço de terra. Por isso, não vende aquele pedaço de terra, de
jeito nenhum. Realizou o sonho dele”.
Entretanto, Vitória não deixa de comparar as duas situações: a roça e a cidade
– pela ótica econômica. Ela considera que, no Rio, “qualquer negócio dá certo”,
enquanto em Ubaporanga, não vislumbra possibilidades para novos projetos que
possam gerar renda. Ela lembra do sucesso que tiveram nos trabalhos realizados no
setor informal em Morro dos Prazeres – venda de coxinhas, etc. com uma certa
nostalgia e lamenta as dificuldades que têm enfrentado para consolidar algum
empreendimento em Ubaporanga. Assim, a volta é vista sobre distintos olhares – por
um lado, representa a conquista de um sonho que poderia ter ficado pra trás e, por
outro, significa um retrocesso, em termos financeiros.
É importante salientar que sua volta para Ubaporanga não representa uma
decisão definitiva. Isto é, a transitoriedade que caracteriza os fluxos de ir e vir está
implícita nos processos vividos. Durante a conversa, os dois falaram da filha que
ficou em Morro dos Prazeres e reafirmaram suas ligações com o lugar onde passaram
uma parte significativa de suas vidas. Eles vão com frequência para o Rio de Janeiro,
para visitar a filha e para rever as velhas amizades, mas comentam que mudaram seus
sentimentos em relação ao lugar onde residiam – sentem-se “chocados com a
violência” e com a “confusão” que gera aquele ambiente, pois “já se acostumaram
com a paz que tem aqui”.

4.4.2 A história de Seu Roberto: “De lá e daqui”

A história da volta de Seu Roberto para Ubaporanga também está marcada por
dificuldades financeiras – devido ao desafio de sobreviver apenas a partir do
rendimento da produção agrícola. Ele conta que foi para o Rio de Janeiro para morar
em Escondidinho, em 1966, com 17 anos de idade. Trabalhou com carteira assinada
durante 40 anos, como porteiro de um prédio que ficava no bairro 3 Irmãos. Ele conta

53
Rua refere-se à cidade de Ubaporanga. É uma das categorias nativas mais usadas para
distinguir “a roça” – onde tem as plantações – do centro comercial, que depois da emancipação, se
constituiu enquanto cidade.

123
que “lá ganhava bem e tinha hora extra”. A volta dele para a região em torno de São
Sebastião do Batatal foi, em parte, motivada pelo processo político, sendo que ele se
tornou vereador em 1997.
Entretanto, mesmo gostando de política, ele esclarece que o real motivo de
sua volta foi “sua paixão pela plantação”. Seus dois filhos, Andrea e Ailton, ainda
moram em Escondidinho e ele e sua esposa transitam entre os dois lugares. Como sua
esposa, Dona Deca, afirma: “Ainda não acostumei de novo com a vida na roça.
Basicamente vivo lá e aqui. Passo duas semanas lá, duas semanas aqui. É assim.
Gosto desta vida – assim, aproveito do que tem de bom lá e aqui. Especialmente agora
que não tem que pagar passagem – posso ir e voltar à vontade”.
Quando perguntei para Dona Deca e Seu Roberto em qual dos dois lugares
eles se sentiam mais em casa, ela respondeu da seguinte maneira: “Acho que a casa da
gente está dentro da gente. Eu gosto de saber que sou de lá e daqui também. Gosto de
poder ir para lá quando me dá vontade. Aí, quando canso de lá e quero um pouco da
roça, volto para cá. É uma vida boa”.
Esta sensação – de “viver lá e aqui” – é inerente à condição de quem vive
intensamente os deslocamentos, de tal forma que o processo de enraizamento
transcorre no próprio movimento entre os dois polos.
Seu Roberto avalia que atualmente se tornou mais difícil “viver da roça”. Ele
conta que “antes, era como se a terra fosse da gente”. Hoje, é preciso enfrentar
diversas barreiras que dificultam o processo produtivo e provocam o efeito inverso –
o distanciamento da própria terra. Dentre estas barreiras, ele destaca a desvalorização
do produto no mercado, a dificuldade de confiar em pessoas para trabalharem
conjuntamente na produção agrícola e a vigilância ambiental.
Ele conta que hoje “não se pode cortar nada” por causa da legislação e “há
helicópteros que passam por aqui” para “fazer fiscalização”. Esta vigilância excessiva,
no seu ponto de vista, “tira a liberdade da gente para usar nossa terra do jeito que a
gente bem entende”. Ao fazer uma comparação entre a cidade e a roça, ele destaca
que “para trabalhar, prefere estar lá”. De ponto de vista econômico, ele percebe os
maiores benefícios da vida urbana, por causa da segurança dos direitos sociais
associados ao emprego. Todavia, ao mesmo tempo, reconhece a vantagem de estar
novamente inserido no ambiente da roça – principalmente, pela paz que se adquire.
Enquanto a cidade é retratada como um espaço que oferece maior segurança
em termos trabalhistas, a roça é visualizada como um refúgio que oferece paz e

124
tranquilidade diante das turbulências da vida moderna. Portanto, os dois polos são
visualizados a partir de um quadro contrastivo e comparativo e a volta para a roça não
significa necessariamente uma opção definitiva por um, em detrimento do outro.

4.5 A FESTA DOS AUSENTES: UM ENCONTRO ENTRE “OS DE FORA” X “OS


DE DENTRO”

Nesta seção, pretendo explorar estratégias organizativas que são buscadas para
sustentar a relação rural-urbano e que ultrapassam ligações pessoais e familiares.
Existe um esforço coletivo para preencher a lacuna deixada pela ausência dos que se
deslocaram que se encarna em um momento celebrativo realizado anualmente: a
chamada Festa dos Ausentes. A festa é um evento que acontece em Ubaporanga,
desde 1981, geralmente no mês de agosto e busca a junção entre os ausentes (quem se
deslocou para fora da comunidade local) e os presentes (os moradores do município),
com o intuito de estreitar estes laços intra e interfamiliares e reforçar os vínculos com
o lugar de origem.

4.5.1 O surgimento da Festa dos Ausentes: a ideia por detrás de sua


concretização

Descobri a existência desta festa, por meio de uma conversa entre dois filhos
de pessoas que são originalmente de Ubaporanga: Márcio, o filho de Dona Anita e
Sérgio, o filho de Dona Rosilene.
Naquele momento, no início de agosto, eles estavam se organizando para a
viagem, sendo que a data de realização da Festa dos Ausentes já estava próxima.
Sérgio perguntava a Márcio se ele tinha informações sobre a data da saída. Eu me
intrometi no meio da conversa, pedindo maiores detalhes. O que achei interessante é o
fato de ser uma conversa entre duas pessoas da nova geração, que cresceram em
Morro dos Prazeres e tiveram contato limitado com o lugar de origem dos seus pais. A
partir daquele momento, percebi o alcance desta festa – ela transcende diferenças
geracionais. Segundo Márcio, a Festa exerce uma espécie de efeito “irradiador”.
Quem já foi “sempre quer voltar” e “contagia os outros”, de forma que “cada ano tem
mais gente querendo ir e tem que sempre colocar mais ônibus”.
Descobri logo depois a complexidade do processo organizativo em torno deste
evento. Seu Áureo, que chegou a Morro dos Prazeres e Escondidinho no início dos

125
anos 1960, se encarregou de organizar a viagem desde o primeiro ano de sua
realização.
Ele conta que envolve um trabalho árduo – de contratação de ônibus,
fechamento dos pacotes (a excursão hoje envolve estadia no único hotel54 em
Ubaporanga e refeições) e preparação das atrações musicais a serem apresentadas.55
Infelizmente, apesar de haver uma articulação prévia, na última hora, a Festa foi
cancelada este ano, devido à coincidência da data do evento com o processo eleitoral.
Segundo Seu Áureo, o Prefeito de Ubaporanga estava com receio de marcar a
festa porque poderia ser interpretada como sendo parte da campanha política.
Destarte, não tive oportunidade de assistir a realização da Festa. Entretanto, durante
minha estadia em Ubaporanga, em novembro de 2010, tive a oportunidade de adquirir
maiores informações sobre ela e compreender seus efeitos não apenas sobre “quem
partiu”, mas também sobre “quem ficou”, ou melhor, para os que recebem “os
ausentes” de volta.
A Festa dos Ausentes foi ideia de um grupo de ubaporanguenses ausentes:
Getúlio Resende, Jaime Resende, Zé Lopes e Sebastião Ferreira – no ano de 1980.
Este grupo de homens, todos na faixa etária de 70 e 80 anos, são de “famílias
influentes”, “filhos de comerciantes” e se deslocaram para lugares considerados
próximos como Caratinga e Ipatinga – apenas nos últimos 20 anos.
Seu Áureo comenta que é um grupo de “ausentes bem presentes”, pois “não
esquecem a origem deles”. Ele conta que Getúlio Resende, meu principal informante,
é um dos ausentes “mais presentes” e exerce um papel bastante ativo em Ubaporanga,
como Presidente do Centro Espírita, “sempre ajudando as pessoas mais pobres”.
Na época de sua concepção, os idealizadores explicam que era considerada
“uma festa popular”. Não contava com apoio político e não possuía um orçamento
para sua realização. Até o ano de 1992, em cada festa havia um coordenador – os
primeiros foram deste grupo de idealizadores – e existia uma comissão gestora, que
apoiava a organização. Segundo Getúlio Resende, que atualmente reside em Ipatinga,

54
Seu Áureo conta que, no início, as pessoas “de fora” ficavam hospedadas nas casas dos
parentes. A receptividade dos ubaporanguenses, no sentido de providenciar o alojamento dos ausentes,
era citada como um aspecto que refletia “o espírito” da Festa. Com o aumento do número de pessoas
vindo de fora, tornou-se necessário encontrar uma outra estrutura de alojamento, o que foi possível a
partir da construção do primeiro hotel em Ubaporanga.
55
A turma de Morro dos Prazeres e Escondidinho já é conhecida por “seu grupo de pagode” que
“faz o maior sucesso” durante os dias do evento. A Festa dos Ausentes prevê momentos de
apresentação cultural, organizados por “grupos de ausentes” de diversas localidades.

126
a Festa foi pensada como um momento de “encontro” – de reaproximação dos
ausentes com sua cidade natal.
Nas conversas que tive com os idealizadores da Festa, durante o período de
meu trabalho de campo em novembro de 2010, ficou claro que este evento foi
fundado em cima de uma série de princípios e valores que constituem, de algum
modo, os eixos norteadores de sua realização, como mostrarei a seguir.

4.5.1.1 Ser uma “festa família”: a reunião dos ausentes para “reviver o clima que tinha
aqui”

A “espinha dorsal” da festa sempre foram as famílias, especialmente, as


“famílias tradicionais”,56 que já tinham esse costume de reunir os membros ausentes.
Getúlio analisa que, nas dinâmicas locais, o poder de mobilização, que garante a
existência da festa, depende de um fator catalisador – uma pessoa que ocupa o centro
da estrutura familiar e que tem a capacidade de juntar os vários membros, não
obstante a distância das mesmas. Nas palavras de Seu Getúlio: “Tem que ter uma
pessoa que pode fazer a família reunir. Geralmente, é o foco. Quando esta pessoa
morre, a família se dispersa”.
Portanto, esta fala explicita, de modo bastante esclarecedor, a função social
das “famílias tradicionais”: agregar seus membros, conter os efeitos da dispersão e
contribuir para a coesão social. Isto é, quem formula a ausência é a família, nos seus
movimentos primordiais de “trazer de volta” quem já se dispersou por meio de
reuniões familiares. Logo, o que está em jogo na comemoração da Festa dos Ausentes
é a tentativa de suprir uma função exercida pela rede familiar para que os “núcleos
familiares” se mantenham intactos perante as supostas turbulências causadas pelos
deslocamentos.
Na sua concepção original, a Festa dos Ausentes, em algum grau, constituía-se
em um momento singelo para “socializar esta tarefa”, isto é, não seria apenas a
responsabilidade de cada família trazer de volta “seus ausentes”. Getúlio Resende
explica que a intenção era “recriar um clima” que existia a partir de uma rede de

56
Ver nos Anexos, uma foto que mostra o primeiro carro alegórico do desfile escolar - uma das
atividades que faz parte da programação oficial do evento. Na frente deste carro, no qual um casal de
crianças está sentado – uma criança de uma família “ausente”, outra criança de uma família “presente”
– uma bandeira está pendurada com o seguinte título: “Família Ubaporanguense”. O fato de ser o
primeiro carro no desfile comprova a importância das famílias tradicionais nas representações em
torno de Ubaporanga e na própria concepção da Festa dos Ausentes.

127
relações de cooperação e acolhimento nos tempos antigos. A seguinte descrição feita
por ele capta as intenções deste momento celebrativo:

“Vieram os ausentes de Goiânia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo,


Governador Valadares, Brasília. O negócio era reviver o clima que tinha
aqui durante 2, 3 dias. Nós gostávamos porque era uma festa família. Aí,
entro e tomo um café. Tínhamos estes princípios. Tipo - ‘vou ir ao Rio,
lembrar que pulava na água aí, pegar traíra ali’. Alugávamos uma casa.
Tinha um lugar de referência para juntar ubaporanguenses ausentes. Tinha
exposição de fotos. Falavam assim - ‘esta senhora foi minha parteira. Ou –
este menino aí – curei o umbigo dele. A mãe dele é minha comadre. Fui
costureira de sua mãe’. A gente queria escutar estas coisas. E escutava. Era
bom demais sentir este calor humano”. [Getúlio]

Este depoimento revela que a Festa não era concebida como uma cadeia de
atividades programadas – era visualizada como uma série de encontros espontâneos
que giravam em torno da recordação de lembranças. Portanto, a reunião dos ausentes
era para lembrar dos momentos marcantes de um passado compartilhado – uma
oportunidade propícia para estreitar as relações57.
Tadesco (2004) chama atenção para a dimensão dinâmica da própria memória
e afirma que as referências em comum em relação ao passado servem para manter a
coesão dos grupos, como fica implícita na seguinte citação: “Sentir e contar histórias
em comum significa dar possibilidade de criação e fortalecimento comunitário”
(TADESCO, 2004, p. 36).
A Festa tinha como objetivo promover interações sociais que, de algum modo,
poderiam nutrir os vínculos coletivos e dar sentido à Festa, conforme sua concepção
original. Esta classificação – festa família – aponta o efeito irradiador exercido pelas
relações de parentesco. Ou seja, a família é vista como a unidade que encadeia a
movimentação da comunidade inteira.

4.5.1.2 Um “encontro” entre os dois lados: os que ficaram, “os de dentro” e os que
partiram, “os de fora”

Getúlio Resende claramente enfatizou que este encontro entre “os ausentes” e

57
Ver os materiais referentes à Festa dos Ausentes nos Anexos, que retratam claramente a
função social deste momento, no sentido de fomentar as lembranças do tempo vivido e “matar
saudades”. A próxima frase é extraída de um dos materiais divulgados no 4º Encontro: “É tempo de
risos, um encontro de lágrimas alegres, lembranças da ternura passada, fé no futuro, porque um
encontro fraterno nos faz crer no amanhã. Rever a terra, as ruas, as pessoas. Abraçar os amigos, ver os
conterrâneos, reencontrar-se em mil recordações que o tempo não matou”.

128
“os presentes” está no cerne da concepção da própria festa, isto é, constitui-se, de
certo modo, sua razão de ser. Esta polaridade entre “presentes” e “ausentes” está
aliada a uma outra relação de opostos complementares: “os de dentro” e “os de fora”.
A festa se sustenta enquanto ação, a partir da ideia de que “os de dentro” –
“os presentes” – convidam “os de fora” – “os ausentes” – para participar. Isto é, há
um movimento em curso – de dentro para fora.
Também, Getúlio frisou que a ideia que se tinha é que este movimento – de
dentro para fora – ia se crescendo com o passar dos anos, de tal forma que fosse
possível envolver diversas gerações – os filhos e netos dos ausentes.
Quando perguntei para Seu Áureo sobre quem geralmente participa desta
excursão, isto é, qual é a composição deste grupo que parte de Morro dos Prazeres e
Escondidinho, rumo a Ubaporanga todos os anos, ele respondeu da seguinte maneira:

“Hoje tem muito mais jovens. Os filhos e netos dos ubaporanguenses


gostam de ir, porque dizem que é uma bagunça boa. Antes, no início, era
uma turma mais velha – aqueles que eram originalmente de lá, da roça.
Agora não. São seus filhos e netos que estão indo – e voltam todos os
anos”.

Márcio, filho de Dona Anita, tem ido nas excursões durante os últimos dez
anos e sempre incentiva a participação de outros meninos de sua geração que também
são filhos de ubaporanguenses. Ele concorda com Seu Áureo, em relação à
composição do grupo que participa da Festa, quando afirma que “hoje a maior parte
de quem vai são pessoas de minha idade – somos uma turma bem jovem” e conta suas
impressões em relação à Festa:

“Minha mãe sempre me falava muito sobre como vivia lá na roça. E a


primeira festa foi bem o que minha mãe viveu. Mas, depois foi mudando –
era música funk, sertaneja, eletrônica. Todo mundo tinha salto deste
tamanho. A primeira vez, tiramos onda de ser carioca. Meninas prestavam
mais atenção. Namorava cada dia uma. Depois, mudou muito. Ser carioca
não é mais um diferencial. A música que tocam aqui tocam lá”. [Márcio]

Como Márcio aponta, esta distinção entre “carioca” x “não-carioca” – uma das
linhas divisórias entre Ausentes e Presentes – tem se diluído com o passar dos anos.
Márcio, ao enfatizar o fato de que “ser carioca não é mais um diferencial” revela uma
mudança significativa na própria gestão da festa e no seu direcionamento, o que
aprofundarei mais adiante.

129
Neste sentido, é interessante notar a ênfase dada por Getúlio ao alcance do
poder de articulação “dos de dentro”. Em vários momentos, ele ressalta sua
capacidade para mobilizar ausentes de diversos locais, a partir de um estratégia de
mobilização que incluía uso de todos os meios de comunicação, principalmente,
jornais e rádios e faz questão de destacar a grande diversidade em termos de lugares
de origem dos ausentes que participaram do 2º Encontro dos Ausentes, realizado em
agosto de 1983. Getúlio cita todas as localidades, registradas em um caderno que ele
guarda com lembranças dos eventos realizados: Belo Horizonte, Ipatinga, Vitória,
Coronel Fabriciano, Caratinga, São Domingos, Teófilo Otoni, José Monlevade,
Alvinópolis, Viçosa, Juiz de Fora, Governador Valadares, Inhapim, Braúnas, Santa
Rita, Santo Antônio da Cabilda, Janpruca, Sobrália, Volta Grande, Rio de Janeiro, São
Paulo e Brasília.
O encontro entre os dois lados (“os de dentro” com “os de fora”) representa
um momento para refletir e repensar os percursos de cada um e lembrar a cadeia de
transformações que ocorreram a partir dos deslocamentos. Mauro, uma das pessoas
que se envolvia na organização das primeiras festas, lembra das conversas realizadas
entre “ausentes” e “presentes” nos momentos de socialização e convivência. É neste
momento que “quem partiu” lembra dos momentos vividos “na roça” e faz uma
reflexão sobre os motivos de sua saída. Seu depoimento exprime o caráter das
reflexões feitas:
“Muitos lembram porque saíram – dizem que saíram para buscar uma
vida melhor, para buscar mais oportunidades. E muitos falam que
lamentam ter saído. Eles falam do sonho da tranquilidade, da calmaria.
Durante esta festa, parece que refletem mais sobre as coisas. Muitos
falam assim: ‘Quando aposentar, volto para cá” [Mauro]

Há dois momentos, durante a festa, que são visivelmente marcados pelo


encontro entre estes dois grupos: os ausentes e os presentes. Um é o jogo de futebol
que acontece entre Rio de Janeiro x Seleção de Ubaporanga e que constitui-se em uma
tradição consagrada, na visão dos entrevistados. Outro é a Cerimônia de Homenagem
de um Ausente e um Presente, visando o reconhecimento de suas diversas
contribuições à vida social de Ubaporanga.
O que merece destaque é que a homenagem em si representa um ato que busca
equilíbrio entre duas categorias sociais - “quem ficou” e “quem partiu”, ou seja, o
ritual que está subjacente a esta ação depende dos dois lados para se perpetuar e fazer
sentido. É interessante destacar que os dois momentos tem conotações diferentes: o

130
jogo de futebol ressalta a competição entre duas localidades, o que está embasada
numa relação de polaridade, enquanto a cerimônia que presta homenagem a um
ausente e um presente sublinha a complementariedade entre dois componentes
supostamente opostos.
Ao compreender que a base ideológica da Festa reside neste “encontro” entre
dois lados – “os presentes” que são “os de dentro” – e “os ausentes” que são “os de
fora” – penso que seja imprescindível examinar mais a fundo os significados por trás
da última categoria mencionada: “os de fora”. No seu estudo sobre a evolução das
festas comunitárias camponesas no contexto francês, Champagne (1977) enfatiza a
importância da presença externa – “os de fora” – como um elemento constituinte dos
eventos promovidos.
Porém, no caso da análise de Champagne, “os de fora” não são os que se
deslocaram – são turistas que estão visitando um lugar desconhecido. Assim, no caso
que constitui o foco de minha análise, a Festa dos Ausentes; “os de fora” representam
pessoas que não estão totalmente distantes da realidade de Ubaporanga, isto é,
possuem alguma conexão, devido a sua história familiar – ou são pessoas que
cresceram na roça e se deslocaram para outras localidades, ou são seus filhos e netos.
É dizer, a categoria dos “de fora” possui uma certa ambiguidade, pois não são pessoas
totalmente externas, já que, de algum modo, são posicionadas neste lugar
intermediário – entre “fora” e “dentro”.
Da mesma forma que evito fazer uma leitura simplificadora e reducionista da
categoria dos “de fora”, também é fundamental problematizar, de algum modo, a
categoria dos “de dentro”. Os “presentes” não representam uma categoria homogênea
– sendo que os próprios gestores da festa em questão – que são vistos como sendo “de
dentro” – são classificados como ausentes, o que mostra as variações inerentes à
própria classificação de ausentes.
Como eles se deslocaram para lugares próximos à Ubaporanga nos últimos 20
anos – um período relativamente recente – e ainda se envolvem ativamente na vida
social da cidade – não são vistos pelos ubaporangenses como ausentes autênticos.
Como Seu Áureo disse, o melhor rótulo para classificá-los seria “Ausentes bem
presentes”. Isso é um reflexo da própria ambiguidade destas classificações.

131
4.5.2 A Festa dos Ausentes e seu efeito irradiador: a replicação da ideia em
outros níveis e âmbitos

Sebastião Ferreira, um dos idealizadores da Festa, alega que foram “os


primeiros” na região a realizar um evento como esse e foi um exemplo que inspirou
replicações desta ideia em outras regiões como a “Festa do Barralonguense Ausente”,
realizada no município de Barra Longa, a “Festa do Santa Ritense Ausente”, realizada
no município de Santa Rita de Minas e a “Festa de Aguaboense Ausente”, realizada
no município de Água Boa.
Há dois anos, São José do Batatal, considerado um distrito de Ubaporanga,
onde se constata um número expressivo de pessoas que se deslocaram para Morro dos
Prazeres e Escondidinho, passou a organizar a Festa “Batatenses Ausentes”, inspirada
no exemplo da “Ubaporanguenses Ausentes”, que conta com o apoio da Prefeitura de
Ubaporanga para sua realização.
Também, ele destaca que a Festa dos Ausentes é geralmente aliada às festas
realizadas em torno de determinadas comidas e alimentos, em diversas cidades
vizinhas. Dentre elas, ele cita a “Festa do Inhame”, em Inhapim, a “Festa de Arroz”
em Vargem Grande e a “Festa do Tomate” em Iapu.
Dentro do formato destas festas, que celebram a colheita de determinados
alimentos, os ausentes geralmente são agregados e homenageados. Também, nos
aniversários das cidades, na programação, frequentemente há uma parte voltada para
homenagear os ausentes. Segundo o informante, outros rótulos são criados na maior
parte dos casos para atrair mais atenção, sendo que tais eventos também são
visualizados como momentos turísticos, que possuem finalidades comerciais.
A Festa dos Ausentes é um fenômeno que se aplica não apenas a nível
regional e estadual. Também tem se ampliado para além das fronteiras nacionais: em
2009, realizou-se o 1º Encontro de Ubaporangenses Ausentes em Boston (EUA) e foi
realizada na mesma época que a festa em Ubaporanga, com a intenção de reforçar as
conexões entre os dois eventos. Segundo Dênis, funcionário da Prefeitura, foi feito
um vídeo do evento nos Estados Unidos que “passou no telão” durante os dias da
Festa dos Ausentes em Ubaporanga e se tornou uma de suas grandes atrações.

132
4.5.3 A evolução histórica da Festa dos Ausentes: mudanças no seu planejamento
e gestão

As óticas sobre a Festa dos Ausentes são múltiplas e variam de acordo com o
posicionamento social de cada ator social envolvido. Os idealizadores da festa
declaram que a festa perdeu sua razão de ser a partir das interferências do processo
político. Alegam que a estruturação da cidade, sinalizada por sua emancipação, foi um
fator determinante na perda do seu caráter informal e cerimonial.
Logo, a emancipação da própria cidade significou uma alteração no sistema de
gestão, de ponto de vista organizacional. Renata, sobrinha de Getúlio, traz um retrato
de como era a organização da Festa, antes da emancipação, no período de 1981-1991:

“Antes era mais animada. Mandava convite para fora. Nas primeiras,
lembro que Luciano mandou convite para todos os rádios, onde tivessem
ubaporanguenses. As barracas tinham estrutura de bambu – com cobertura
de capim. Eram rústicas. As pessoas ficavam dentro das barracas. Alguém
tinha que ficar. As famílias se envolviam tanto nessa época – lembro que
cada casa hospedava as pessoas. Não tinha hotel na época. Muita gente
falava assim – vamos pintar a casa para receber as pessoas. Combinavam
quem daria almoço para a banda tocar”. [Renata]

A partir de 1992, quando houve a emancipação da cidade, a Festa passou a ser


apoiada e promovida pela Prefeitura. Chegou a ter uma dimensão mais comercial, a
partir do maior envolvimento das lojistas e diminuiu significativamente a participação
dos moradores no seu planejamento e gestão. Dona Ilda, uma das pessoas que se
envolvia ativamente na organização da Festa desde o início, relata as mudanças
ocorridas:

“Quando a Prefeitura se responsabilizou pela festa, perdeu o calor humano.


Causou alguns desentendimentos. Antes não se exigia bandas caras.
Acontecia bingos para custear despesas. Fazia-se campanhas para levantar
recursos. As primeiras festas eram mesmo dos Ausentes. Hoje não – as
pessoas vêm somente para fazer bagunça, dançar. De ausente, não tem
nada hoje”. [Ilda]

Este trecho de depoimento mostra a transformação que houve na própria


caracterização da Festa – deixou de ser uma “festa de família” e se tornou uma “festa
de bagunça”. Segundo vários ubaporanguenses entrevistados que acompanharam a
organização deste evento desde sua concepção, na medida em que a Festa dos

133
Ausentes foi ganhando mais reconhecimento, a participação ampliou-se. Aos poucos,
começaram a vir “amigos” dos ausentes, até que eventualmente houve uma perda de
controle sobre esta participação externa.
Nota-se que as listas de participantes, indicando o local de residência de cada
um, apenas constam nos primeiros anos de sua realização58. Segundo Dona Ilda, a
própria categoria “ausentes” perdeu sua força, o que envolve uma alteração no
significado atribuído à classificação das “pessoas que vêm”: “os de fora”. Segundo
Dona Ilda: “Hoje parece que a Festa está mais voltada para aquelas pessoas da cidade.
Antes não era assim. Agora, a música que tocam aqui é a mesma música que tocam lá.
A única coisa que mostra um pouco mais nosso jeito da roça é a feira de produtos
locais que ainda acontece, no domingo. Mas, mudou muito”.
Para Sebastião Ferreira, um dos sinais de que a Festa perdeu sua concepção
original foi o domínio dos “de fora”. Quando ele refere “aos de fora”, não está
tratando dos ausentes, mas de uma frente de aliados – pessoal da Prefeitura e lojistas.
Nas suas palavras: “Entraram interesses. Não é para os de fora botar barraca. Estão
fazendo a festa a toque de caixa”.
Segundo ele, houve uma mudança na gestão do próprio evento. Enquanto
antes, tinha uma Comissão que determinava as regras e procedimentos composta, em
grande parte, pelos idealizadores desta Festa, atualmente, quem controla a
organização são os que ele chama de políticos: o Prefeito, funcionários da Prefeitura e
donos das lojas. Na medida em que o público foi se ampliando e houve uma diluição
na própria categoria de ausentes, tão caro à base ideológica da festa realizada, também
os interesses comerciais e políticos começaram a ter uma maior interferência na sua
organização. Na opinião de Sebastião, a Festa se tornou um jogo de interesses que tem
como palco um campo político turbulento e disputado.
Quando ele se refere aos “de fora” – que neste caso, seriam os “políticos” –
como os que exercem um controle excessivo sobre a articulação e gestão da festa na
atualidade, fica explícito que o equilíbrio entre “dentro” e “fora” – que é um princípio
inerente à própria concepção da festa – não tem sido mantido. Houve uma inversão na
operação destas categorias – “dentro” e “fora” – de tal forma, que “os de dentro” – o
grupo de Ausentes bem presentes que se constitui nos idealizadores da Festa – não
está mais exercendo o papel que cabia a eles: serem gestores da Festa, nos moldes

58
Encontrei as listas de presença das primeiras festas realizadas, até o ano de 1991, nos
arquivos da Biblioteca Pública de Ubaporanga.

134
organizacionais originalmente estabelecidos. É importante deixar claro que esta
configuração de “dentro” e “fora” sempre constituiu um operante na gestão do evento
em questão – mesmo que os componentes de cada polo mudem, conforme as
circunstâncias.59
A expressão “estão fazendo a festa de toca de caixa” já demonstra o que ele
percebe como falhas organizacionais, em grande parte, ocasionadas pelo
atravessamento de “outros interesses”. A própria organização da Festa, a partir do ano
de 1992, passou a representar um momento de disputa de hierarquias e lugares
sociais. Nos relatos feitos de cada uma das festas realizadas, foi possível captar as
dinâmicas que subjazem as relações de poder. As festas podem ser vistas como “loci
privilegiado” para uma leitura crítica das diferenciações, afastamentos e alianças
estratégicas que caracterizam o jogo de interação social. (MENEZES, 1996)60.

4.5.4 “Dentro” x “Fora” / “Local” x “Extralocal”: a mostra de produtos locais da roça


como um contraponto com representações da vida urbana

Não obstante as mudanças que têm ocorrido ao longo dos anos, alguns
princípios são mantidos, embasados na centralidade atribuída a este encontro entre “os
de dentro” e “os de fora”. Neste sentido, vê-se como a Festa parece ser um jogo
social que ainda se sustenta a partir de uma relação de polaridade, embasada na
seguinte lógica: “os de dentro”, os nativos que são associados aos “valores locais” e
produzem “produtos locais” – se compactuam com representações cristalizadas da
roça e dependem da presença “dos de fora” para validar suas práticas sociais.
A lógica subjacente a este encontro pressupõe que a reaproximação dos
ausentes ao seu lugar de origem passa necessarimente por uma valorização dos
elementos da “roça” dos quais são afastados. Neste jogo, o que se observa é o exagero
dos dois polos – nem “os de dentro” podem ser encaixados na imagem apresentada –
como arquétipos de uma roça idealizada – e nem todos que são “de fora” são tão de

59
Ver a seção 4.5.1.2 para mais detalhes sobre esta polaridade entre “os de dentro” e “os de
fora” a partir das categorias de “presentes” e “ausentes”.
60
Menezes (1996) ilustra de que forma as festas revelam as dinâmicas do grupo social
mediante suas múltiplas operações: “Por mais variada que seja a abordagem específica de cada autor,
todos concordam que as festas, pela amplitude das relações sociais que ativam para que se realizem,
constituem-se num fenômeno singular que permite visualizar o grupo social que as celebra em
operação, isto é, a sociedade em movimento. Neste sentido, podem ser classificadas como um fato
social total, de acordo com a definição que Mauss (1985) estabeleceu para o conceito, definição
significativa para espelhar sua riqueza e dificuldade analítica enquanto um fenômeno social”
(MENEZES, 1996, p. 2).

135
fora, sendo que muitos que passaram por um processo de deslocamento espacial,
ainda assim, cultivam vínculos estreitos com o lugar de origem.
Algumas atividades que busquem “valorizar os valores locais” e eram
incorporadas na festa desde o início, são mantidas até os dias de hoje, embora a festa
tenha se tornado uma festa “mais comercial” no último período. Estas atividades
voltadas para afirmação dos valores locais: a feira de produtos locais e o desfile
escolar – representam uma delimitação clara entre o que é “local” e o que é
“extralocal” ou “de fora”.
Segundo Ana, uma professora muito envolvida na organização da Festa desde
sua criação, a mostra dos produtos alimentícios oriundos da roça ocorre em dois
momentos distintos durante a programação – um é na feira de exposição dos
“produtos locais e regionais” – que inclui artesanato e produtos alimentícios “da roça”
(doces, biscoitos, verduras e legumes) – e outro é no desfile escolar, no qual sempre
constata-se a presença de um carro alegórico intitulado “Riquezas da Roça”61. Uma
parte desta feira envolve a mostra dos tamanhos e pesos de determinados alimentos,
supostamente com o objetivo de demonstrar o rendimento da produção agrícola. Ela
explica que o objetivo desta exposição é “valorizar o produto rural” e esta valorização
passa necessariamente pela comprovação de sua capacidade produtiva. Como Ana
explica: “Um ano, um agricultor trouxe uma abóbora de 2,5 m. Outro ano, era um pé
de mandioca de muitos quilos – nem lembro quantos. As pessoas da cidade ficam
impressionadas quando passam nas barracas. E eles procuram coisas da roça para
levar embora”.
Um agricultor, Manoel, oriundo dos arredores de Ubaporanga, próximo a São
José do Batatal, compartilha sua experiência de participar deste espaço de exposição:

“Eu já participei umas duas vezes desta Festa. A gente trouxe nossa
produção – coloquei aí para todo mundo ver. Às vezes eu fico pensando:
aposto que ninguém vai se interessar. Faz algum tempo que caiu a
produção no roçado – não está como era antes. Mas, é bom estar ali,
porque as pessoas passam e olham mesmo – parece que nunca viram uma
mandioca, um inhame – um bolo de milho. Fico pensando: será que este
povo saiu da roça e já esqueceu como que é?” [Manoel]

A exposição faz sentido na medida em que esteja voltada para “os de fora”.

61
Nos Anexos, há várias fotos mostrando o carro alegórico de “Riquezas da Roça”, com a
Rainha levando um pé de café na peneira. Dentro do carro, há outros alimentos e plantas da roça que
supostamente representam os frutos das plantações.

136
Isto é, sempre “se expõe para alguém” e este “alguém” geralmente representa aqueles
que estejam fora das margens do grupo social circundante. Champagne (1977), ao
tratar das festas comunitárias camponesas no contexto francês, um estudo no qual
trabalha estritamente com duas categorias opostas: “os de dentro” e “os de fora”,
afirma que a festa em si não faz sentido sem a presença de um público.
Ou seja, a própria construção da festa, enquanto evento, está pautada na
presença externa – na intervenção dos “de fora”. Os que vêm “de fora” já trazem
consigo a possibilidade de validar aquele universo social. A festa pode ser pensada
como um espaço onde “os de fora” e “os de dentro” conversam e convivem, mas
também se distinguem, hierarquicamente. Isto é, ela também é um loci de
diferenciação social.
Assim, além da oposição entre “dentro” e “fora”, o que opera neste caso são as
divisões que se estabelecem a partir das significações agregadas em torno dos
universos rural x urbano. A mostra de “produtos locais”, oriundos do espaço da roça,
faz sentido exatamente porque funciona como um contraponto com as representações
da vida urbana. Até que ponto esta manifestação dos “valores locais”, por parte dos
“de dentro” – não representa uma certa reconstituição de um modo de vida
tipicamente campesino para agradar um público que seja externo – mas não tão
externo assim – como é o caso dos ausentes?.
No seu estudo sobre a evolução das festas comunitárias camponesas,
Champagne (1977) aponta que os agricultores são conduzidos a participar de um
processo de “folklorização” da condição campesina, ao exporem suas práticas
tradicionais nestas ocasiões. Talvez ocorra uma certa romantização em torno das
representações de uma ruralidade que pretende se perdurar no tempo como se fosse
algo estável e cristalizado. Resta saber até que ponto esta exposição de produtos locais
e regionais, que ocorre no contexto de um reencontro e negociação com “os de fora”,
tem se constituído em um momento de comprovação da validade das identidades e
ofícios de “quem ficou”, diante de “quem partiu”.
De qualquer forma, a própria base ideológica da Festa, enquanto tradição,
pressupõe uma afirmação de princípios e valores “de dentro” – ou melhor, da
localidade – como estratégia de reaproximação dos ausentes. Isto envolve
necessariamente uma revisão de determinados conceitos e noções diante dos
deslocamentos – o que seria representado simbolicamente como “local”; o que “a
roça” traz como conjunto de significados, o que passa a significar “o lugar de

137
origem”. O que fica claro é que as voltas periódicas, realizadas de forma
individualizada ou por meio de eventos coletivos, influenciam os sentimentos de
identificação com o lugar de origem e, consequentemente, alteram as referências
construídas em torno da cidade. No entanto, este é um assunto para ser aprofundado
em um trabalho posterior, como desdobramento desta pesquisa etnográfica.

138
5. PLANTAR COMO UMA FORMA DE "LEMBRAR DO PASSADO" E DE
REINVENTAR O MOMENTO PRESENTE: A AGRICULTURA DA QUAL
NÃO SE DEPENDE PARA VIVER

“Plantar é uma forma de lembrar do passado”


(Dona Rosa)

A fala na epígrafe deste capítulo é bastante elucidativa da força do passado no


momento presente. Ela revela as práticas agrícolas como um dos modos de dar
continuidade às experiências vivenciadas anteriormente como agricultores e trazer
alguns fragmentos do universo da roça para o ambiente da cidade. Isto é, não
representa um mero legado que se deixa “lá” como resquício de um passado alheio
diante dos processos de deslocamento.
Entretanto, a tradição62 alimentar e agrícola herdada dos tempos vividos na
roça, não apenas se desloca para o momento presente, mas transcorre um processo de
reestruturação de significados. No seu estudo sobre as trajetórias dos trabalhadores da
mina que atravessam os espaços rurais e urbanos nos processos migratórios na
Zâmbia, Ferguson (1999) faz uma afirmação revelando de que forma as práticas
urbanas assumem diferentes lógicas sociais, mesmo parecendo espelhar as tradições
oriundas da ruralidade. Segundo ele: “Even when urban practices seemed to resemble
rural traditions, they had wholly different significances and social logics under urban
conditions” (FERGUSON,1999, p. 88).
Assim, a abordagem que adoto em relação às práticas agrícolas e alimentares
não se restringe a uma mera repetição das tradições e hábitos, enquanto modelos
estáticos e pré-estabelecidos que transcendem as barreiras geográficas e temporais.
Parto do pressuposto de que os aprendizados aliados ao processo produtivo na roça
são reatualizados, flexibilizados e reconfigurados para novas condições sociais.
Portanto, o momento presente exige uma capacidade ativa, inventiva e criativa, como
examinarei mais adiante.

62
Entendo “tradição” não como algo imutável e cristalizado, localizado num passado
imemorial, mas como algo que esteja aliado aos processos de criação e invenção e que se molda e se
transforma diante de novos contextos culturais. Entretanto, entendo que a tradição, enquanto aquele
conjunto de conhecimentos e práticas, que se acumula a partir das relações forjadas com alimento e
comida no ambiente da roça e que se associa ao processo produtivo praticado pelos agricultores na
época em que trabalhavam na área rural, tende a assumir novas configurações no meio urbano.

139
5.1 O CASO DE DONA ROSA: AS DIVERSAS MOTIVAÇÕES PARA PLANTAR
– CONCRETIZAÇÃO DE UM DESEJO

Como pesquisadora, tive mais condição de adentrar no universo da Dona Rosa


e compreender suas motivações para plantar, além das opções tomadas por ela no
campo das práticas agrícolas e alimentares. Isso se explica, em grande parte, pela
relação estabelecida entre nós ao longo do trabalho de campo – uma relação de
extrema confiança – e também pela paixão que compartilhamos pela plantação, pois
eu sempre tive horta em casa e tenho o costume de trocar mudas e sementes com
pessoas que possuem este mesmo interesse. Desta forma, ao longo deste capítulo,
darei um maior destaque às experiências vividas por Dona Rosa e suas interações com
outros mineiros – regidas em grande parte por seu amor e dedicação às plantações.
No seu caso, o que se observa é que o desejo incessante de cultivar relações
com as plantas alimentícias é permeado por suas crenças religiosas. Seu impulso para
plantar é mediado pela profunda fé na orientação de Deus, como transparece de modo
claro no seguinte discurso:

“Deus dá conforme a necessidade. Na hora que estávamos começando a


levantar a casa – todo dinheiro era para construção. Não sobrava nada. Aí a
gente vinha aqui na mata e encontrava os alimentos que precisávamos. E
minha mãe falava: Deus dá o frio conforme o cobertor. Conforme a
necessidade, você obtém aquilo. Enquanto a gente precisava, a gente
achava muitas plantas. Também Deus deve orientar a gente como plantar,
conforme a necessidade. Deve pensar assim – não posso só dar... tem que
plantar também para colher. Plantava quando precisava. Agora estou
voltando a plantar. Deu aquela coragem. Mas, quando vamos para mato
não achamos as plantas que achávamos antes. Não estou falando que fiquei
rica, mas tem meu trabalho, meu marido tem… Todo mundo trabalhando.
Acho que Deus escureceu nossa visão... deu para outros que precisam
mais. Não sei... é minha maneira de pensar”. [Rosa]

Portanto, sua relação estreita com a natureza, enquanto fonte de recursos


naturais é pautada na sabedoria de Deus, que “dá conforme a necessidade”. No
discurso de Dona Rosa, a questão da “precisão” aparece como certas situações de
caráter emergencial, que impulsionam tanto a procura de plantas no mato quanto o
plantio nos espaços disponíveis.
As duas fontes – tanto o mato quanto os espaços onde ela faz sua horta – se
complementam nos momentos de “precisão”. A pobreza e fome que experimentou nos
primeiros anos de sua estadia em Morro dos Prazeres foi uma força impulsora para a
atualização das práticas alimentares e agrícolas e o rendimento da produção agrícola,

140
realizada em condições precárias e limitadas, parece ser uma prova da intervenção
divina.
Na narrativa da Dona Rosa, o ato de plantar também é citado como uma
válvula de escape para finalidades de relaxamento, distração e lazer:

“Fátima, minha filha, fala: ‘Mãe, você tem a cabeça quente, mexendo com
tanta planta. Eu falo… oi, as plantas são vivas, né? A gente conversa com
elas... a gente distrai muito. Olhando as plantas, até o aborrecimento acaba.
A gente sente que tem vida. Ela acha que poderia estar passeando, me
distraindo. Falo que prefiro ficar plantando que passear.” [Rosa]

“Nunca fui de ensinar muito para minhas filhas, mas elas viram com que
era. Dava muito couve. Falam que é bobagem porque pode comprar couve
– é tão barato. Aí, eu falo assim: É barato, mas eu posso até evitar comprar
e vou conviver com ela - o que é tão bom… me alegra muito”. [Rosa]

Nesses dois depoimentos, transparece uma relação de intimidade que se


cultiva com as plantas e que é costurada a partir da própria conversa. Há uma
satisfação enorme derivada da prosa que, aos poucos, vai sendo construída com estes
seres vivos. Elas não apenas servem como fontes de alimentação, que visam suprir as
necessidades básicas, mas também representam uma boa companhia – com as quais se
possa nutrir a própria convivência.

5.2 “NÃO DÁ PARA PLANTAR AQUI” X “A GENTE SEMPRE DÁ UM JEITO” –


OS DESAFIOS DE PLANTAR NO AMBIENTE URBANO

Vários mineiros comentam que, apesar de “gostar muito de plantar”, sentem-


se impedidos de experimentar o plantio devido às limitações inerentes aos espaços do
ambiente urbano. Escutei várias vezes a fala: “Não dá para plantar aqui”. Esta
sensação, acerca da limitação do espaço, está embasada num contraste que se
estabelece com as condições da roça, onde os mineiros se lembram da maior
abrangência dos espaços para plantio – seja no roçado, seja no quintal.63 Portanto, é
difícil cogitar a possibilidade de “dar certo” quando se realiza a plantação nos espaços
pequenos e limitados, que compõem o âmbito doméstico (frente da casa, laje, terraço).

63
Ver o capítulo 1, onde faço referência às significações atribuídas aos espaços utilizados para
plantio no contexto da roça – roçado, quintal, pomar. Estas referências se tornam importantes ao
analisar os usos dos espaços disponíveis no ambiente urbano, como será visto ao longo deste capítulo.
Dona Rosa alerta para a mudança no significado de determinados espaços voltados para plantio, como
seria o caso da “horta”. Enquanto “horta” na roça era um espaço onde se plantava apenas verduras e
cheiro verde, na cidade, “se mistura tudo”.

141
Por exemplo, no discurso da Dona Raimunda, mineira oriunda de Governador
Valadares, há uma tensão posta entre o desejo de plantar e as condições concretas da
comunidade urbana, que não comporta determinadas práticas. Ela se apega ao sonho
de conquistar um lugar que possa conter todas as plantas e alimentos que tinha lá na
roça. Como ela disse: “Queria muito uma casa com quintal... um quintal grande, onde
coubessem todas minhas plantas. Mas, aqui no morro é difícil demais achar um lugar
assim”.
Para ela, o espaço precisaria ter uma maior elasticidade para caber tal
diversidade. Há uma dificuldade de conciliar este desejo – de maior diversificação de
plantas – com as moradias apertadas e comprimidas que se encontra em Morro dos
Prazeres.

“A coisa melhor do mundo você sabe… é ter suas galinhas no quintal para
pegar seus ovos. Saber que o que está comendo ali é uma coisa limpa. Meu
sonho é ter um lugar com tudo o que tinha lá na roça. Como as nordestinas
falam: ‘Sinto falta do meu pedaço de terra’. É assim que eu sinto.”
[Raimunda]

Todavia, enquanto têm alguns mineiros que desistem de plantar pelas


limitações físicas que são postas, há outros que estão dispostos a experimentar formas
variáveis de plantar em espaços pequenos e apertados.
Nas casas de vários mineiros entrevistados, há uma multiplicidade de
experimentos de plantio, feitos em recipientes de várias naturezas – que ocupam
lugares em diferentes cantos do espaço doméstico. Dona Rosa, que coleta latas e
outros recipientes para reciclagem, conta que os guarda para aproveitar na plantação e
repassa para outros vizinhos que também gostam de plantar, mas não tem espaço
suficiente para desenvolver tal atividade do jeito que gostariam e, assim, precisam
“improvisar com o que tem”.
Dona Ivone, por exemplo, afirma que, mesmo “não tendo onde plantar, a gente
sempre dá um jeito. Arruma latinha e pega muda com uma vizinha, ou lá no Casarão,
onde tem muitas plantas”. Em suma, mesmo lidando com os aspectos constritores da
situação dada – de não ter acesso às terras mais extensas para plantio – expresso de
modo sintético em diversos depoimentos – há uma multiplicidade de alternativas
procuradas.
Esta capacidade de lidar com as circunstâncias dadas e “aproveitar do que se

142
tem” é uma manifestação da criatividade que os mineiros conseguem empregar nas
suas diversas iniciativas de plantação, de tal forma que estão empenhados num
processo de invenção e experimentação64. O impulso para relacionar com o universo
das plantas e dos alimentos, seja através das idas constantes para áreas coletivas e
matas virgens na procura de determinadas espécies, seja mediante novas práticas
agrícolas em diversos espaços locais, é expresso de várias formas, como mostrarei
mais adiante.
É um impulso criativo que também se manifestava no contexto da roça de
diversas formas. Nesta passagem pelo universo das plantas e alimentos, sempre
surgiam inovações e invenções. Apesar de perceber, pelas experiências analisadas,
que a criatividade destes mineiros talvez tenha se acentuado mais no contexto da
cidade, não se deveria enquadrar esses experimentos novos como um processo
totalmente inusitado, que apenas se concretiza no ambiente urbano, já que, em algum
grau, são expressões de uma relação contínua que tem como fio condutor as práticas
exercidas no contexto da roça.
Portanto, como tenho ressaltado ao longo desta Dissertação, as continuidades e
descontinuidades, as permanências e rupturas são forças que convivem e agem
conjuntamente no campo das práticas agrícolas e alimentares.

5.3 DOIS TIPOS DE AGRICULTURA - AGRICULTURA DOS QUE “VIVEM DA


PLANTAÇÃO” - “PLANTAR PARA COMER” X AGRICULTURA DOS
QUE “NÃO VIVEM DA PLANTAÇÃO” - “PLANTAR COMO UM
PASSATEMPO”

O processo de cultivo é encarado como algo bem distinto do que era


vivenciado anteriormente na roça, fazendo parte do quadro comparativo e contrastivo
entre roça x cidade; passado x presente. Uma diferença marcante se refere às
sensações ocasionadas por aquela atividade em cada um destes contextos. Seu João,
que planta no lote vago na frente da casa dele, faz uma observação sobre os tempos
que leva a produção agrícola, tanto no contexto da roça, quanto no contexto da cidade.
Nas suas próprias palavras:

64
Invenção constitui uma chave de leitura para elucidar o desenvolvimento das práticas
agrícolas no meio urbano. Mais adiante, pretendo aprofundar os significados associados com o
processo inventivo no contexto analisado.

143
“Aqui as pessoas vivem de emprego – a gente pode até plantar, mas
sempre pode ir lá e comprar. Lá não, a gente plantava e demorava tanto.
Feijão – até ficar maduro e pegar no ponto de apanhar… até colher o milho
e fazer um mingau de milho, demorava muito. Tinha que esperar para
colher aquilo. Aqui não…chega tão depressa porque parece que não
estamos esperando por ele…parece que chega logo...lá não…Demora.
Porque a gente está esperando para poder comer. Dependia daquela planta.
Aqui não...planta bananeira e aqui a pouco está dando cachos. Porque aqui
não vivemos da plantação. A grande diferença está aí”.

Aqui Seu João está se referindo à sensação de “espera”, uma postura adotada
diante dos processos de produção agrícola. Enquanto se espera, a roça demora mais
para render frutos e quando “não se espera por ele”, as coisas “chegam tão depressa”.
A sensação de que “demora mais” para dar frutos “lá”, no contexto da roça, passa
pelo tempo vivido. Ou melhor, nas suas lembranças, a demora está relacionada com a
espera – o que se torna necessário para finalmente conseguir comer aquilo que se
planta.
Ele ainda associa esta sensação de espera com o nível de dependência que se
tem em relação aos frutos gerados, a partir da atividade realizada. Enquanto “lá”, na
roça, onde “dependia daquela planta”, “tinha que esperar para colher aquilo”, “aqui”,
na cidade, onde “não vivemos da plantação”, “chega tão depressa”. Logo, há uma
clara diferenciação em relação ao peso social atribuído à atividade agrícola em cada
um destes contextos. No retrato que Sr. João desenha, a cidade é vista como o lugar
onde “as pessoas vivem do emprego” e, portanto, o plantio representa um tipo de
passatempo, porque não se planta para comer. Como contraponto, na roça, a atividade
agrícola é voltada para a sobrevivência e possui uma finalidade definida – se planta
para comer.
Assim, Seu João faz uma diferenciação entre dois tipos de agricultura – aquela
que é voltada para comer e aquela que se desenvolve como passatempo. Na cidade, a
associação entre emprego e compra já prescinde da plantação como meio de
subsistência e plantar, enquanto atividade ocupa um lugar secundário. Embora esta
atitude expressa pelo Sr. João em relação à caracterização da agricultura desenvolvida
na cidade como um mero passatempo possa parecer uma desqualificação dessa prática
social, ele é extremamente dedicado à sua plantação, de tal forma que é reconhecido
localmente como “Sr. João do Feijão” 65.

65
Segundo Eliza, este apelido foi atribuído ao Sr. João quando ele começou sua plantação
porque “plantava muito feijão. Era o que mais plantava, e sem pedir, ele dava feijão para todo mundo”.

144
5.4 O CERNE DO PROCESSO INVENTIVO: “VOCÊ É DOIDA MÃE?”

“Se a gente for achando vasilha, a gente vai plantando e vai pendurando.
Eu não tenho paciência e estou sempre querendo mudar. Minhas plantas
estavam bonitas – mas, de repente, penso que não quero isso mais, meto a
mão e arranco tudo. Parece que estou começando tudo de novo, mas é que
eu sempre tenho uma ideia nova e não tenho pena de arrancar o que já fiz
para depois fazer outra coisa. As meninas dizem: ‘Você é doida mãe?
Estava tão bonito!” [Rosa]

Este depoimento da Dona Rosa revela de que forma a criatividade se


desenvolve, no cerne do processo inventivo. Não há receio de “começar tudo de
novo” – “arrancar” o que foi feito para logo “fazer outra coisa” – uma postura que é
vista por suas filhas como um ato de loucura.
Para adentrar nas múltiplas possibilidades de cultivo e colheita de plantas e
alimentos, exploradas pelos mineiros no meio urbano, torna-se fundamental examinar
de que forma este processo inventivo brota – partindo de onde – e acompanhar,
cuidadosamente, o percurso do seu movimento expansivo.

5.4.1 O fluxo de dar e receber / pedir e oferecer

Para fomentar este processo de experimentação e invenção, a produção


agrícola depende de alguns insumos como sementes e mudas. Portanto, uma das
atividades que observei com bastante frequência ao longo do meu trabalho de campo,
é o movimento de troca de tais insumos. O alimento, a planta ou a semente trocada se
torna um canal de comunicação entre quem se deslocou e quem ficou no lugar de
origem, ou entre as pessoas que plantam ou “gostam de planta” a nível local. Em
suma, seja em qual âmbito for, serve como uma via de intermediação das relações
sociais.
De algum modo, o fluxo de dar e receber ou pedir e oferecer mudas e
sementes representa uma cadeia de ações que possui um efeito multiplicador, isto é,
gera um circuito social. Neste trânsito constante, como mostrarei a seguir, existem
muitas possibilidades de interação, que refletem um impulso criativo voltado para a
multiplicação dos conhecimentos e práticas adquiridas.
Inúmeras vezes, nas minhas andanças com Dona Rosa, observei ela pedindo
mudas de couve ou taioba quando eram encontradas nos quintais dos mineiros

145
visitados. Quando Dona Rosa ficou sabendo que Dona Ana já tinha ido embora,
devido à remoção forçada, por habitar um local próximo ao deslizamento66, ela
expressou tristeza porque queria ter pegado algumas mudas no seu quintal antes de
sua saída – especialmente “obobro” 67, uma espécie cada vez mais difícil de encontrar
nos arredores do Morro dos Prazeres. Ela também contou que plantou uma muda de
manjericão no terraço e que ela, finalmente, estava se firmando, de tal forma que “já
dava para fazer outras mudas”. Ela oferecia as mudas a algumas vizinhas durante as
visitas realizadas: “já estou com sete mudas de manjericão lá em casa – todas bem
bonitas”. Ao acompanhar o trajeto da Dona Rosa, percebi que as várias modalidades
de viabilizar as trocas neste circuito social – dar e receber/pedir e oferecer –
perpassam a maior parte de suas interações, no nível local.
Quando passei um período de trabalho de campo em Ubaporanga, o lugar de
origem de muitos mineiros enraizados em Morro dos Prazeres68, notei que a troca de
mudas e sementes era também um dos assuntos principais nas conversas. Em uma
ocasião, Dona Rosa perguntou para seu padrinho de casamento se tinha recebido as
sementes de mamão, oriundas de sua plantação em cima do terraço, trazidas por
Marlene, sua irmã. Na hora de ir embora, Dona Rosa também levou várias mudas,
encontradas no quintal de Marlene, além de diversos alimentos, doados por vizinhos e
familiares em Ubaporanga e nos arredores como banana, grãos de café e feijão
colhido.
O oferecimento de sementes e mudas oriundas de um quintal urbano para
parentes que residem em Ubaporanga e o movimento inverso – o oferecimento dos
mesmos por parte dos moradores da roça para seus parentes na cidade – é uma das
manifestações das “idas e voltas” que caracterizam os deslocamentos não-espaciais
entre a cidade e a roça e podem ser considerados catalisadores dos vínculos sociais69.
As doações e trocas de informações, sementes, mudas e alimentos atravessam
as distâncias geográficas e estabelecem múltiplos nexos de conexão.

66
A situação particular da Dona Ana, diante da tragédia do dia 6 de abril é contada com maiores
detalhes no capítulo 3 desta Dissertação.
67
Obobro é o nome usado pelos mineiros entrevistados – em vez de “orapronóbis” – uma planta
nativa bastante valorizada na culinária.
68
Grosso modo, as descobertas feitas durante o período de trabalho de campo em Ubaporanga
estão contidas no capítulo 4 desta Dissertação.
69
No capítulo 4, desta Dissertação, abordo estas idas e voltas entre as comunidades urbanas –
Morro dos Prazeres e Escondidinho e a área rural de Ubaporanga que envolvem, como uma de suas
modalidades, o trânsito de “levar e trazer” alimentos, plantas, mudas e sementes.

146
5.4.1.1 “Queria mostrar um trabalho meu”: o ato de oferecer

Dona Rosa esclarece que estas doações – dos alimentos colhidos do seu
quintal – também constituem formas de mostrar seu trabalho para o outro. São
resultados concretos do rendimento de sua iniciativa em produção agrícola no meio
urbano. Ela conta que levou doce de mamão, feito a partir do mamão colhido do seu
quintal, e café, moído dos grãos trazidos de Minas Gerais, para sua filha em Brasília
numa visita realizada em setembro de 2010. Nas suas próprias palavras:

“Queria mostrar algum trabalho meu. Os grãos de café vêm das plantações
dos meus parentes lá em Minas, mas foi com meu moinho lá em casa que
virou pó de café. Levei também o doce de mamão – queria mostrar o que
tinha na minha plantação do terraço – queria mostrar que deu certo. Queria
mostrar uma coisa diferente – é que nunca tenho nada para levar. É bom
dar como presente algo que eles não tem”.

O oferecimento de doce de mamão e café – ambos produtos que testemunham


seu esforço – não representam um simples presente, mas é um gesto que revela seu
desejo de “mostrar algum trabalho seu”. Neste gesto, há uma vontade de mostrar que
seu experimento de plantação no terraço “deu certo”, que não é apenas a invenção
“doida” de uma louca e que, mesmo ali, num lugar pouco utilizado para tal finalidade,
é possível plantar e render frutos a partir desta produção.
Neste processo, há um tom de competição agonística que pode ser detectada
nas entrelinhas. É como se quisesse provar a viabilidade de sua plantação, realizada
em cima do terraço – enquanto uma invenção que não se encaixa nos padrões da
atividade agrícola – diante dos outros.
É interessante também notar a extensão deste circuito social e de que forma
estas doações desencadeiam uma série de ações e reações. Seus parentes de
Ubaporanga lhe oferecem grãos de café e ela leva o café moído para a filha em
Brasília. Isto é, ela usa o mesmo tipo de expediente que é usado com ela – oferecer
algo – que representa, de algum modo, uma doação gratuita. Esta ação, portanto, se
repercute nos diferentes níveis e âmbitos.

147
5.4.1.2 O alimento, a planta ou a semente como canal de comunicação no circuito
social: de que modo se operam estas transações

Observei que os que se incluem neste circuito social são, na maior parte dos
casos, mulheres. Apenas notei a presença de três homens nestas interações. O ato de
cuidar – seja dos filhos, dos doentes ou das plantas – é uma tarefa socialmente
associada às mulheres, o que talvez explique o predomínio das mulheres nas trocas
realizadas.
A troca não é contabilizada, isto é, há uma fluidez entre o dar e receber e entre
o pedir e oferecer que marca estas relações. O fato é que o plantio não representa um
meio de sobrevivência, como seria no contexto da roça – isto é, “não se vive da
70
plantação” – talvez seja um dos motivos que pudesse explicar porque este lado da
dádiva71 aparece de forma tão intensa nas situações analisadas.
Em muitos casos, os moradores falam apenas da doação de mudas, sementes e
alimentos e não enfatizam o que “ganham em troca”. Entretanto, neste circuito social,
quase sempre existe algum sistema de compensações, como será visto nos casos
apresentados a seguir. Parece ser um dos princípios que garante o equilíbrio entre as
relações sociais costuradas.
Roberto, que planta num terreno vazio,72 em frente ao seu bar, dá banana para
os outros e Ana Maria, que tem um quintal lá em cima, na região da Colina, conta que
“está sempre dando couve, jiló, inhame, taioba e batata doce” para os vizinhos. Ela
afirma que quase sempre recebe alguma compensação para suas doações. Porém,
muitas vezes, não é imediato e não é o que motiva o ato de doação.
As múltiplas significações embutidas no ato de doação e as dimensões das
relações forjadas a partir das modalidades de troca aparecem de forma explícita na
narrativa da Ana Maria:

70
Esta distinção entre dois tipos de agricultura – por um lado, a agricultura dos que “vivem da
plantação” - “Plantar para comer” e, por outro lado, a agricultura dos que “não vivem da plantação” -
“Plantar como um passatempo” aparece na seção 5.2 deste capítulo.
71
Dádiva pode ser definida como o que é dado ou presenteado – uma oferta ou um donativo.
Entende-se por dádiva tudo o que circula em nome do laço social.
72
Mais à frente, neste mesmo capítulo, aprofundarei sobre os diferentes significados associados
aos espaços na comunidade – especialmente aqueles que supostamente pertencem “a ninguém” e são,
consequentemente, considerados “espaços públicos”, como seria o caso dos terrenos vazios ou lotes
vagos.

148
“Muitas coisas que tem aqui minha mãe trouxe de Minas. Trouxe três tipos
de cana, três tipos de banana, pé de limão, muda de couve, manga e
semente de abóbora. E tudo saiu bem aqui... até morango. Aqui a terra é
muito boa. Não sei como minha mãe conseguia morango – oi, que coisa
linda! E ela falava assim – já que lá em Minas me deram todas estas
plantas, não vamos guardar para nós – vamos dar para os outros. Ela
sempre estava dando. Ela foi embora mas eu continuei com as plantas.
Não sei como as pessoas descobrem….fazem fila para pedir. O tempo todo
pedem. E as pessoas pedem porque eles plantam. Cada hora trazem alguma
coisa – às vezes demora, mas depois vêm com alguma mudinha, alguma
verdurinha do seu quintal – ou um pedaço de bolo. Com Sr. João por
exemplo, como ele ama planta, está sempre trocando comigo. Quando
colhe banana, ele me dá…quando a gente colhe, a gente dá. Às vezes ele
empresta uma ferramenta para mim – e eu depois mando para ele um
montão de couve. Mas, tudo isso por causa da planta. Porque ele gosta de
planta e nós também gostamos de planta”.

Ao explicar como a mãe foi trazendo mudas e sementes do interior para


fomentar sua plantação no meio urbano, Ana Maria mostra claramente de que forma
uma ligação é cultivada entre as gerações, ultrapassando as fronteiras geográficas. De
certo modo, há um conjunto de conhecimentos, práticas e vivências que são
repassados da mãe, oriunda da roça, para a filha, que nasceu e cresceu no âmbito
urbano e esta transmissão – de geração para geração – é intermediada pelas plantas –
isto é, acontece “tudo isso por causa da planta”. Esta transmissão geracional se mostra
efetiva, de tal forma que a nova geração dá continuidade às práticas agrícolas, pois
como Ana Maria afirma: “Ela foi embora, mas eu continuei com as plantas”.
Aparece no depoimento da Ana Maria outra postura que também é
incorporada neste circuito de trocas: pedir. No entanto, há critérios que determinam a
aceitação dos pedidos – se supõe que quem pede é quem planta. Isto é, quem pede já
participa deste jogo de dar e receber, oferecer e pedir.
As retribuições são realizadas mediante diversos objetos. Ana Maria menciona
a retribuição que se faz via um pedaço de bolo – o que revela também de que forma a
comida está sendo incluída neste circuito de trocas.
Há uma distinção claramente demarcada entre trocadores permanentes e
trocadores temporários. Seu João é citado como alguém com quem Ana Maria
consegue construir uma relação de troca permanente, o que se caracteriza por maiores
variações no nível das trocas efetivadas. Aparece, por exemplo, a atividade do
empréstimo – Seu João empresta a ferramenta para Ana Maria que “paga com couve”.
No diálogo entre Dona Rosa e Dona Palmira, ambas oriundas de Ubaporanga,
que se conhecem desde a infância e trabalharam juntas na mesma época numa das

149
fazendas, transparecem as formas de sociabilidade que são cultivadas mediante as
trocas. Este diálogo das duas sintetiza, de modo muito claro, os enredos
desencadeados a partir das trocas:

R: Onde achou o obobró? Meu marido já me disse que tem muito perto do
Casarão, mas não estou achando. Obobró nasce quando chove… e está
muito seco – deve ser por isso que não encontro.

P: Achei lá atrás do Casarão – lá também tem muita taioba e serralha. Mas,


faz tempo que peguei estas mudas. Não sei se ainda tem.

R: Vou lá ver. Na quarta, fui lá em cima, perto do Cristo – tinha quase


nada – Não tem mais chuchu, banana, jaca e café. Tudo está se acabando.
Mas achei muita capiçoba – ao lado da trilha do trem… Você tinha que
ver! Foi de repente – quando olhei ao lado, vi um montão de capiçoba!
Esta semana estamos somente comendo capiçoba – no almoço, na janta.
Natalino adora.

P: Está mais difícil achar capiçoba aqui. Talvez vá lá – antes ia lá por


lado dos bombeiros... achava muito. Eu adoro aquela folha – aquele gosto
– sinto falta. Aqui – vamos embaixo... quantas mudas de obobró você
quer?

R: Vamos pegar as melhores… esta aqui, e essa também é boa. Lembrei –


estou com umas mudas de couve que a Dona Ivone me deu – você quer
umas?
P: Sim... quero sim! Estou sem couve. Tinha um canteiro lindo de couve –
mas acabou... e tem um tempo que não faço angu com couve. Meu marido
está reclamando. Você foi para roça a semana passada? Encontrei com seu
marido – ele me disse que estava lá.
R: Fui sim... Voltei na segunda… ia te falar que estou com café – quer para
moer?
P: Quero sim! Que saudade daquele cheiro! Outro dia, Jussara me
perguntou por que não estava moendo café – falei com ela que não tem
mais grãos... tem muito tempo que não vou lá! As meninas adoram o
cheiro do café moído – fresquinho!

Neste diálogo, a troca não apenas passa pelo oferecimento de mudas e


alimentos, mas envolve também o intercâmbio de informações. Informações valiosas
são trocadas sobre as características marcantes das plantas – “obobró nasce quando
chove” – e sobre as localidades onde se encontra determinadas espécies – “atrás do
Casarão”, “perto do Cristo” ou “ao lado dos bombeiros”.
A troca de informações sobre as localidades indicadas para encontrar
determinadas plantas apresenta uma espécie de mapa que orienta a navegação pelos
espaços na comunidade e pelos seus arredores. Neste circuito social, o mapeamento é
construído de forma coletiva. O que se nota é que há uma espécie de sociabilidade que
é cultivada entre as pessoas a partir de determinados códigos. As informações em
relação à localização de plantas alimentícias são compartilhadas, mesmo que a

150
procura seja feita de forma individualizada.
Passar pelos becos de Morro dos Prazeres na companhia de mineiros, muitos
deles conterrâneos, oriundos do mesmo lugar de origem, como frequentemente fazia
depois das missas73 aos domingos, era sempre um momento privilegiado para observar
o fluxo de informações trocadas sobre as plantas encontradas no caminho. Era um
momento para compartilhamento de estratégias de uso de determinados recursos
naturais ou de recordação das receitas que eram empregadas nos tempos da roça,
envolvendo alguns tipos de alimentos encontrados ao longo do caminho.
Numa destas caminhadas, lembro de Dona Irene compartilhando com Dona
Conceição como a “folha de batata doce” era deliciosa em sopas e como a “folha de
chuchu” servia para baixar pressão alta. Ambas eram plantas encontradas na beira dos
becos trilhados. Considero que estas trocas – tanto de objetos – sementes e mudas –
quanto de informações sobre seus múltiplos usos – intensificam não apenas o espírito
de experimentação que caracteriza as práticas de plantio e colheita, mas também os
processos de sociabilidade, geradores de vínculos sociais.
As conversas, assim como as trocas, têm como foco central o universo das
plantas, alimentos ou sementes. Sinalizam a centralidade destas coisas ou objetos no
estreitamento dos vínculos sociais. As relações forjadas em diálogos, como os vistos
acima, são atravessadas por diversos elementos heterogêneos, de tal forma que as
conexões são estabelecidas no “entre” – no cerne desta junção74.

5.5 INICIATIVAS DE PLANTIO EM ESPAÇOS DOMÉSTICOS

As diversas iniciativas de plantio são reflexos de um processo de


experimentação que explora as possibilidades de uso de determinados espaços que
compõem o âmbito doméstico. A seguir, focarei nas trajetórias de algumas mineiras
que empregaram diversas estratégias e, aos poucos, acumularam um “conhecimento
especializado” – a partir do desenvolvimento de iniciativas de plantação que

73
Durante o trabalho de campo, a missa se tornou um ponto de encontro com meus
entrevistados. Segundo Dona Rosa, a missa representa um lugar privilegiado para encontrar com outros
mineiros. Ela estima que a maior parte dos frequentadores seja oriunda de Minas Gerais.
74
Rizoma é uma categoria analítica apropriada para explicitar o que acontece neste espaço onde
as conexões são estabelecidas no “entre”. A noção de rizoma não pode ser encaixada nos moldes de
formas organizativas convencionais e pressupõe a falta de hierarquização entre “humanos” e “não-
humanos”. Um rizoma não se comporta como uma entidade ou tipo que possui algum formato fixado,
ele é um mapeamento das relações intensivas (“devires”) e de múltiplos pontos de conexão entre
elementos heterogêneos (DELEUZE; GUATTARI, 2004).

151
acarretaram em novas formas de utilizar os espaços disponíveis.
Começo pela narrativa de Dona Rosa: ela conta que o primeiro local escolhido
para fazer uma horta75 foi o espaço onde hoje está localizada a cozinha. Fez os
canteiros e plantou chuchu, quiabo, uva, maracujá e abóbora. Ela conta que “tudo deu,
e que era uma benção” porque também era uma época na qual sua família “passava
muita necessidade”.
Com o Programa Favela Bairro, foi necessário abrir mais as ruas e tirar uma
parte da casa, o que acarretou na desistência do projeto iniciado. A horta foi desfeita,
o que inicialmente foi um motivo de desânimo. Entretanto, segundo Dona Rosa, “o
desânimo não durou muito” e logo depois ela começou a imaginar outras alternativas,
mesmo diante dos espaços limitados que compõem o âmbito doméstico.
Surgiu a ideia de construir uma horta em cima do terraço da casa, o que foi
descartada inicialmente por seu marido pela suposta falta de pragmatismo em tal
“ideia maluca”. Quando seu marido viajou para Ubaporanga, Dona Rosa pediu a
ajuda do seu filho para viabilizar a construção desta horta e comprou o material
necessário. Quando seu marido voltou de viagem, já tinha vários canteiros.
Dona Rosa explica que seu marido “já começou a gostar quando viu o que
tinha sido feito”. Porém, imediatamente suspeitou que pudesse “vazar” e
consequentemente, desmanchou o trabalho feito e refez os canteiros. Ela lembra que
tiveram que pegar terra durante três dias – “deu uma dor nas costas”. A primeira coisa
que plantou foi couve e, aos poucos, foi arrumando mudas e sementes de outros
alimentos com vizinhos. A horta hoje é uma miscigenação de diversos tipos de
espécies: flores, plantas medicinais e alimentos. Segundo Arlete, sua vizinha oriunda
de Sergipe, Dona Rosa tem um espírito de experimentação que é incansável, pois “ela
está sempre movimentando com a terra”. Sua paixão pelo ato de plantar, em todas as
suas dimensões, está claramente refletida no discurso de Arlete:

“Ela sempre gostou de plantar. O marido sempre fazia apenas canteiro para
coisas de comer. Mas ela não – ela faz canteiro de flores e também para
comer – planta de tudo. Qualquer planta ela traz – coloca uma em cima da
outra. Às vezes, não dá certo, porque não tem espaço – acaba sufocando.
Uma vai tirando a vitamina da outra. Planta também quer espaço... estar

75
Segundo Dona Rosa, horta na roça possui outros significados – seria um espaço voltado para
o plantio apenas de verduras e cheiro verde que, geralmente, é cercado de bambu e se encontra dentro
do quintal. Na cidade, horta se refere a um espaço onde “mistura tudo”, isto é, não há distinção entre as
espécies plantadas, geralmente, não é cercada, e é construída em qualquer espaço – num lote vago, em
cima do terraço, em frente à casa. Ela conta que, muitas vezes, nem usa o termo horta, mas refere a sua
plantação como “minhas plantas”.

152
alegre, contente… as folhas balançando. Mas, ela gosta demais de planta.
Dá mamão... dá tudo ali… já plantou maracujá, chuchu… ela tem uma
disposição…”

Como Arlete ressalta, no depoimento acima, a paixão de Dona Rosa pela


plantação é tão marcante - “ela gosta demais de planta” – que ela “ planta de tudo” –
isto é, não apenas se restringe às plantas alimentícias, mas também gosta de fazer
canteiro de flores.
A diversidade que está contida no âmbito do espaço doméstico não apenas se
restringe às espécies de planta, sendo que também, em determinado momento, Dona
Rosa já se envolveu na criação de porcos. Dona Rosa conta que ela começou este
empreendimento a partir da iniciativa do seu genro, pois “não tinha lugar para guardar
os porcos”. Assim, ela guardava os porcos lá em cima, no terraço, próximo à horta
construída.
A seguir, ela conta os detalhes desta experiência com criação animal: “Até
gostei – dava banho 3 vezes ao dia. Um dia, chamei o nortista para matar o porco.
Pensei que ia matar igual se faz em Minas – me deu uma raiva. Jogaram a cabeça fora
– os miúdos, o fígado… jogou tudo fora. Ficou apenas um pedaço de carne. Nunca
mais quis criar porco. Foi tanto trabalho para pouca coisa”.
Dona Rosa alega que sua paixão pela plantação se fortaleceu a partir do
incentivo do governo Leonel Brizola, nos anos 1980. Segundo ela, o Governo Brizola
incentivava as pessoas a plantarem em “qualquer lugar”, como se não existisse
nenhum impedimento para realizar a atividade agrícola no meio urbano. As
estratégias empregadas durante esse período para estimular a plantação na área urbana
são descritas neste trecho do depoimento da Dona Rosa:

“A gente naquela época somente pensava em comprar, comprar. Eu


sempre lembrava dos tempos na roça – lembrava de como era bom plantar
e colher – mas para mim, era tão distante. Não tínhamos na cabeça que a
gente, com cuidado, poderia plantar alguma coisa. Leonel Brizola
incentivava as pessoas a plantar. Na própria escola distribuía semente.
Falava que em qualquer cantinho, dava para plantar. Acho que com a fala
de Brizola, surgiu este efeito em mim e em outras pessoas – de querer
plantar. Minha cunhada – ela também começou a plantar. Depois
colocaram obra aí, e estragou as plantas dela”.

A próxima narrativa, da Dona Sandra, oriunda de Carangola, revela sua busca


para novas alternativas de plantio, não apenas a partir da diversificação dos espaços,

153
mas também pela combinação de diversos materiais. Na sua narrativa, ela destaca que
sua primeira iniciativa de plantio foi em cima da laje do seu filho – onde plantou
boldo, manjericão, couve e mostarda – em latas velhas de óleo, potes de margarina,
uma garrafa pet de refrigerante e um vaso sanitário. Segundo ela, qualquer coisa que
achava – o que, a princípio, parecia ser “lixo jogado” – poderia se converter em um
recipiente vazio. Porém, conta que teve que desistir deste projeto inicial porque “os
ratos mexeram” nas plantações.
Passou, então, a contemplar outras localidades para plantio, mesmo contando
com um espaço muito restrito, em termos espaciais. O único espaço que parecia
viável para plantio era na frente de sua casa. Porém, ela disse que teve que “usar sua
imaginação” para aproveitar de um espaço tão limitado.
A preocupação inicial que ela teve girou em torno da construção de barreiras
entre as fronteiras do âmbito privado – a casa – e o “beco” – por onde passam as
pessoas. Ela explicava que tinha medo que as plantas pudessem ser destruídas e queria
garantir algum tipo de proteção.
Finalmente, ela juntou uma diversidade de materiais – pedaços de madeira,
metal, arame, tela, barbante e garrafas de plástico – para construir algo que pudesse
servir para pendurar os vasinhos em sentido vertical e protegê-los do entorno.
Ela conta a história de cada um dos materiais encontrados. Nas suas palavras,
“os ferros que tem aí eram de um balanço que tinha na praça”; “Os pedaços de arame
e de tela encontrei num lugar onde deixam entulho, na rua de baixo”; “as garrafas
achei com meus vizinhos”. A junção destes materiais heterogêneos foi um passo
fundamental no desenrolar do próprio processo inventivo. Como ela mesmo afirma,
“não sabia como ia ser antes de montar – fui pegando as coisas na rua e não sabia o
que ia fazer. Aí, na hora de colocar todas as coisas juntas, uma coisa encaixou na
outra, e deu certo”. Ela se utiliza dos recursos disponíveis com a finalidade de criar
algo que funciona. Entretanto, a invenção apenas se concretiza no momento vivido.
Neste sentido, a construção desta invenção assemelha-se ao ato criativo,
testemunhado por alguns artistas. Muitas vezes, não se sabe, antes de criar, qual será o
resultado final. No entanto, enquanto a maior parte dos artistas tem como objetivo
principal criar uma obra que visa uma maior originalidade em termos estéticos, Dona
Sandra focaliza o lado pragmático de sua invenção.

154
5.6 BRICOLAGEM: A JUSTAPOSIÇÃO E REARRANJO DE ELEMENTOS
HETEROGÊNEOS NOS PROCESSOS INVENTIVOS

O que observei, ao longo do trabalho do campo, na rodada de visitas


realizadas, é o que chamarei de um espírito de experimentação. Os mineiros
entrevistados que se dedicam à plantação estão o tempo inteiro experimentando –
criando novos arranjos para as plantas a partir de diversos tipos de materiais que se
encaixam em vários cantos – em cima da laje, em frente a casa e assim por diante.
Seus experimentos variam desde a experiência de pegar uma muda no meio da
mata e transplantá-la para uma lata na entrada da casa até a vivência de criar um
arranjo de diversos materiais para suspensão de plantas, num sentido vertical. Todas
estas invenções atestam a força criativa – ao aproveitar os recursos disponíveis para
construção de algo desconhecido, que se materializa apenas a partir do fazer. A
curiosidade e a inquietação, forças impulsoras do processo de experimentação,
possuem múltiplas apropriações e significações na narrativa dos entrevistados.
Na construção destes novos arranjos, existe um plano de continuidade com
suas práticas agrícolas no contexto da roça, quando exerciam a função de agricultores,
mesmo que tenham acontecido alterações nas finalidades da agricultura praticada. Em
algum grau, continuam agricultores, mas “não plantam mais para comer”. Isto é, a
agricultura ocupa um novo lugar na vida cotidiana ou como Seu João sinaliza, passa a
ser um passatempo, porque “não vivemos da plantação”.
Entretanto, as estruturas de significação, enraizadas nas vivências como
agricultores ou filhos de agricultores no passado, são recontextualizadas nas práticas
atuais. Mesmo com a incorporação de novos elementos nos arranjos feitos, a invenção
não surge de um vazio. Ela sempre é feita em cima de alguma coisa que já existe.
Esta noção de que a invenção não surge de um vazio, mas sempre é feita em
cima de alguma coisa, é uma chave de leitura que se reverbera no trabalho
desenvolvido por Wagner (1975), no que tange à relação dialética entre invenção e
convenção. Segundo o autor, a condição para invenção é dada pela convenção cultural
e a preservação de convenções culturais é dada pelo processo inventivo. Convenção
cultural, no contexto das práticas agrícolas analisadas, pode ser entendida como
“tradição”. É um conhecimento sobre os procedimentos referentes à plantação,
extraído da experiência prática na roça e dos ensinamentos transmitidos de geração

155
para geração. A convenção sempre é um fator a ser considerado no universo das
práticas, pois a invenção apenas surge a partir do que já existe. De fato, “a convenção
é re-criada continuamente no percurso da ação” (WAGNER, 1975, p. 104).
Os tipos de invenção no campo agrícola que se evidenciam nas experiências
relatadas se traduzem no que posso chamar de uma “bricolagem” de recursos
disponíveis e acontecimentos novos, fruto de um processo criativo que vai muito além
de uma mera síntese entre conhecimentos acumulados nas experiências adquiridas na
roça e as novidades do meio urbano.
Os rearranjos feitos nestas bricolagens não apenas se referem à própria
fabricação dos experimentos, mas também às alterações espaciais que ocorrem ao
tomar conta de lugares que não são originalmente designados especificamente para
esta função – a atividade agrícola.
Espaços que, anteriormente, não eram visualizados como possíveis lugares
para plantio, assumem esta função como é o caso da laje ou do terraço. Este processo
de reconfiguração dos espaços no âmbito doméstico implica em uma ressignificação
de suas funções e acarreta em transformações na cartografia das relações familiares,
como mostrarei a seguir.

5.7 RECONFIGURAÇÃO DOS ESPAÇOS NO ÂMBITO DOMÉSTICO E


TRANSFORMAÇÕES NOS PAPÉIS SOCIAIS DESENVOLVIDOS

Na sua narrativa, Dona Rosa explicita que é ela que “toma conta” da
plantação, o que implica no surgimento de alguns pontos de tensão nas relações de
poder dentro do âmbito familiar. Ela constrói um quadro comparativo com a roça,
onde os espaços de domínio de cada sexo, em relação às atividades agrícolas
desenvolvidas, eram mais fragmentados e diversificados. Na sua descrição da
distribuição de tarefas na roça, ela relaciona o desempenho de tais atividades com a
alocação dos espaços, como fica implícito no seguinte trecho de depoimento:

“Lá, na roça, meu pai e irmãos tomavam conta do roçado, onde plantavam
milho, feijão, café – estas coisas mais pesadas. A gente ia, às vezes, para
ajudar – minha mãe, eu e minhas irmãs. Era bastante longe de casa. A
gente gostava de ir, mas quem mandava lá era meu pai. E ele era bravo.
Minha mãe – ela gostava muito de plantar – sabe? Ela fazia o serviço de
casa, mas o que ela gostava mesmo era cuidar de suas plantas. Ela tomava
conta do quintal... cercou o quintal por causa dos bois e fez uma horta bem
bonita. Lá, ela plantava muita verdura, cheiro verde – estas coisas. Às
vezes, ela mandava a gente fazer canteiro, jogar semente, capinar – aprendi

156
muitas coisas com ela. E ela também cuidava do pomar – onde tinha as
frutas. Lá tinha muito espaço e poderia plantar de tudo. A gente comia
muitas coisas que ela plantava na horta e no pomar”. [Rosa]

No seu discurso, Dona Rosa trata não apenas da divisão das tarefas por sexo,
mas também da diferença entre “ajudar” e “mandar” – distintas modalidades para
quem se envolve na produção agrícola. Ela se coloca no lugar de ajudante, pois
ajudava a desenvolver atividades em determinadas esferas – tanto no roçado, quanto
no quintal – mas sempre tinha “quem mandava”, isto é, quem exercia um nível de
domínio sobre aquele espaço.
Esta posição de autoridade de “quem manda” – ou do seu pai ou de sua mãe,
respectivamente, difere de acordo com o espaço em questão. Logo, fica implícito que
o lugar que os diferentes membros ocupam dentro do grupo doméstico está
estreitamente ligada a sua posição em relação às atividades desenvolvidas em cada
uma das esferas (HEREDIA, 1979) 76.
O exercício de poder – quem decide o quê – depende de como se determina a
gestão dos espaços das unidades familiares. Na área urbana, não existe “o roçado”
como um espaço mais afastado da casa, em proporções maiores, portanto, as
atividades agrícolas obrigatoriamente precisam se restringir e se acomodar aos
espaços existentes. Na sua própria narrativa, Dona Rosa afirma que o desafio de
plantar no espaço doméstico é encarado principalmente pelas mulheres – sendo que os
homens tendem a duvidar da viabilidade e rendimento, em termos produtivos, deste
tipo de iniciativa. Nas suas próprias palavras:

“Na roça, nosso espaço era outro. Minha mãe sempre tomava conta do
quintal e do pomar – mas era pouco espaço, comparando com o roçado.
Claro que aqui temos menos espaço ainda para plantar! Aqui não tem
roçado. Mas, os homens continuam pensando que tem que plantar mais,
num lugar mais amplo. Eles não acham que plantar em espaço pequeno vai
dar em alguma coisa. Quando falava que ia plantar no terraço, meu marido
sempre falava que estava sonhando alto demais, que não dava certo plantar
em cima da casa – lá no alto – que estava doida”. [Rosa]

Segundo Dona Rosa, à medida que a plantação teve algum rendimento,

76
A ligação entre posição social, espaços ocupados e atividades desenvolvidas constitui o foco
da pesquisa desenvolvida por Heredia (1979) sobre a relação entre a unidade de produção e a unidade
de consumo nas famílias da área rural em Pernambuco. Neste trabalho, a autora afirma que a oposição
masculino-feminino não é uma simples divisão de tarefas, mas se expressa em outra oposição: casa-
roçado. Ela mostra de que forma a relação de oposição entre casa e roçado “organiza toda a experiência
de vida das unidades familiares, incluindo também as instâncias da vida cotidiana” (HEREDIA, 1979,
p. 77).

157
ocorreu uma mudança no posicionamento do seu marido diante do acontecido. O
terraço primeiramente era visualizado como um espaço “não produtivo”, isto é, seu
marido não cogitava a possibilidade de que aquele espaço pudesse servir para fazer
uma plantação e que esta plantação pudesse render frutos.
Como ela explica, a opinião de Natalino era que em um “espaço pequeno” não
“daria em alguma coisa”, sendo que a produção agrícola, no contexto da roça, era
associada com um lugar mais amplo e mais afastado – o roçado.
Para ele, tal ideia – de plantar no terraço – constituía-se numa comprovação da
loucura da Dona Rosa, num primeiro momento. Porém, quando “deu certo”, o terraço
ganhou um novo sentido através das práticas agrícolas. De algum modo, houve uma
ressignificação e reconfiguração do desenho interno do âmbito doméstico.
O fato de que a lógica produtiva se faz presente dentro das fronteiras do
âmbito doméstico – num lugar que não é tradicionalmente visto como produtivo –
perturba as bases da oposição entre produtivo x não produtivo que sustentava a
divisão dos espaços para plantio no contexto da roça77.
O sucesso desta iniciativa, que foi iniciada e executada, principalmente, por
Dona Rosa, num espaço que, à primeira vista, foi motivo de desprezo, teve um efeito
sobre as relações de poder. Quando a plantação feita em cima do terraço começou a
render frutos, seu marido quis assumir a responsabilidade pela invenção diante dos
amigos e vizinhos.
Dona Rosa conta, de forma bem humorada, a tensão que se agravou entre ela
e seu marido, quando houve um reconhecimento público do sucesso da horta
plantada:

“Quando ele vê que a horta está bonita, ele chama os colegas dele e diz:
‘olha o que plantei’. Observa os maracujás e fala como orgulho – tem
muito maracujá. Aí, eu falo – ‘maracujá que eu plantei’… aí, ele fala:
‘canteiro que eu fiz’… aí eu falo: ‘se eu não plantasse não tinha’… Aí, ele
fala: ‘mas se não tivesse feito canteiro, não teria maracujá.’ Aí, ao final eu
disse assim: ‘tá, quem fez o canteiro foi você…mas quem buscou a terra
foi [sic] nós dois”.

77
No contexto da roça, o espaço produtivo, propriamente dito, era visto como o roçado. Era
onde se plantava os alimentos considerados mais importantes, tanto para o consumo doméstico, quanto
para as finalidades de comercialização e ficava sobre o domínio dos homens. O quintal e pomar
desempenhavam um papel secundário. Apesar de servir como fonte para a alimentação da família, por
serem em menor escala e por estarem sobre o domínio das mulheres, não tinham a mesma importância
dentro da produção agrícola.

158
Num determinado momento, durante uma de nossas conversas, ela analisa o
que está em jogo neste tipo de interação. Na sua leitura, é uma cadeia de ações e
reações – ela, de repente, exerce um poder sobre a gestão dos espaços, de tal forma
que ele acha que “quer dominar o homem” e, consequentemente, tenta se reposicionar
nesta dinâmica imbricada das relações. Estas atitudes são reveladas nos pequenos
gestos no cotidiano, como ela afirma na seguinte frase: “Ele quer enfiar o feijão no
meio da couve. Aí, eu falo – não dá. Ele acha que quero dominar o homem”.
Mesmo quando Seu Natalino se envolve mais diretamente nas tarefas de
cuidado da horta, Dona Rosa dá a direção, o que revela “quem manda”, de fato, na
plantação realizada no espaço doméstico. A mineira aponta que ocorre uma inversão
de papéis, pois enquanto na roça, ela “ia para roçado somente para ajudar”, na cidade,
é ela que “decide o que vai ser plantado, quantas vezes deve molhar as plantas e como
cuidar delas”.
Ela sinaliza a boa vontade do seu marido, mas deixa claro que ele precisa de
orientação: “Ele sempre gostou, mas não tem paciência para plantar. Planta algo, mas
logo depois fica seco. Eu falo com ele – plantei uma coisa – aí sei que tem que ficar
cuidando – tem planta que seca – tem que molhar”.
De certo modo, a lógica de oposição entre dois espaços, ligada à diferenciação
de tarefas designadas para homens e mulheres no contexto da área rural, também se
faz presente no universo urbano, quando se analisa as práticas agrícolas. Ao longo da
pesquisa, observei que todas as iniciativas de plantação em espaços públicos – sejam
lotes vagos, terrenos baldios ou áreas abandonadas – são protagonizadas pelos
homens. Seu João, Seu Antônio e Roberto ocuparam78 espaços públicos para projetos
de plantio e persistiram nestes empreendimentos, mesmo diante de interferências
como as invasões e a crescente degradação e poluição ambiental. De fato, o que se
observa é uma clara divisão de espaços por gênero; enquanto as mulheres prevalecem
nas invenções realizadas no nível doméstico, os homens impulsionam os trabalhos de
plantio realizados em espaços afastados da casa, que tem alguma semelhança com os
roçados79.

78
Mais adiante, explorarei o significado desta ocupação dos espaços públicos para finalidades
de plantação. Mesmo formalmente constituindo terrenos dos quais “ninguém é dono”, na maior parte
dos casos, ocorre um processo de legitimização do seu uso, diante das autoridades locais.
79
Mesmo fazendo uso desta analogia, considero importante pontuar que os próprios agentes
desta ação – os homens que se envolvem na plantação nos espaços públicos – não usam o termo roçado
para descrever o espaço utilizado para desenvolver suas atividades agrícolas. Geralmente, falam de
“minhas plantas”, “minha plantação” ou “minha horta”.

159
A ocupação de espaços supostamente públicos para a concretização de
estratégias individuais ou familiares explicita uma nebulosa fronteira entre
público/privado, em termos de noção de posse e propriedade. Qual é o domínio que
cada um exerce sobre espaços privados – casa e quintal – por um lado e por outro,
sobre as áreas abandonadas, lotes vagos ou extensões de mata, que não configuram
propriedade privada? Qual é o nível de autonomia que cada um pode exercer nas
determinações sobre os diversos usos destes espaços? Na próxima seção, examinarei,
mais a fundo, as significações em torno de espaços que supostamente “não pertencem
a ninguém”, a partir de diversas estratégias de intervenção. Também, pretendo
ressaltar as formas variadas de controle da gestão destas áreas, exercidas pelo poder
local – seja em relação aos “terrenos que não pertencem a ninguém”, seja em relação
às áreas privadas.

5.8 DIFERENTES FORMAS DE SIGNIFICAÇÃO DE ESPAÇOS E RECURSOS –


QUEM É “DONO” DE QUÊ?

Dentro do âmbito urbano, evidenciam-se diferentes formas de significação de


espaços e recursos, mediante as práticas agrícolas e alimentares. Neste processo de
ocupação espacial, os níveis de pertencimento que se tem em relação a determinadas
áreas e os limites dos direitos de uso e gestão destes espaços aparecem com certa
nebulosidade.

5.8.1 O nível de acesso aos recursos naturais: “Este mato não é de ninguém”

Os processos de ocupação e uso dos territórios urbanos apontam para uma


linha tênue entre “o que é meu”, “o que é nosso” e “o que não é de ninguém”. Há o
exemplo da Dona Rosa e Dona Arlete, sua vizinha sergipana que, de longa data,
fazem idas semanais à mata no Parque da Tijuca, distante cerca de 5 km de sua
residência, para colher diversas plantas nativas como capiçoba, obobró, taioba e frutas
(jaca, abacate, banana, manga verde) que são distribuídas entre os vizinhos.
Elas relatam que, várias vezes, foram questionadas e detidas pelas guardas que
vigiam esta área. Segundo Dona Rosa e Dona Arlete, este controle sobre os recursos
naturais contidos nestas áreas não é uma ação justificável, justamente porque “este
mato não é de ninguém”. No seguinte trecho de depoimento, Dona Rosa conta um
incidente no qual teve que enfrentar estas autoridades locais:

160
“Uma guarda chegou um dia e falou: ‘Vocês vão deixar isso tudo aí. Sabia
que esta é a comida dos bichos, dos macacos?’ A gente tinha um sacolão
cheio de mamão, chuchu, jaca, banana. Pensamos – os bichos iam comer o
quê? Iam comer chuchu? Nós falamos assim: ‘Não, mas tem muita coisa
aqui, dá para gente também’. Aí, ele nos disse: ‘E bom vocês não
responder não – porque eu posso prender vocês – sabia? Aparecida ainda
enfrentou ele: ‘Você está com a geladeira cheia... por isso, está implicando
com a gente. Você não sabe como que a gente vive’. Parece que ele se
comoveu – nos deixou ir, mas ficamos pensando depois – este mato não é
de ninguém. Eles fingem que dominam aquilo ali – mas não são donos de
nada. O Estado nem sabe que existe isso aqui. Então, tudo que a gente vai
fazer, tem que dar satisfação...é um abuso. As pessoas tem que dividir com
eles...mas, não tem que pedir obediência deles não. Poderiam deixar,
porque, às vezes, se perde o que tem. Mas não – não usam e não deixam
tirar”.

Para Dona Rosa, o fato de “não ser de ninguém” é uma característica marcante
de territórios supostamente livres como o mato e opera como uma licença que lhes
concede acesso livre aos recursos naturais. Descaracterizaria o mato se, de repente,
passasse a ter “dono”. Ela ainda faz a seguinte afirmação: “Acho bonito vir para mato.
Mas, nunca quis ser dona disso aqui”.
Este pensamento, em relação à elasticidade inerente aos territórios acessados,
é expresso por Dona Rosa num diálogo que transcorre entre ela e Marlene, sua irmã,
durante minha estadia em Ubaporanga:

M: “Na Bíblia, fala que a terra não era nem para vender. Era para tudo
mundo ter posse.”.
R: “Na minha lei, deveria ser assim. Não deveria nem medir”.
M: “Penso que deveria ser dividido de acordo com o tamanho da família.
Me parece justo”.
R: “Penso agora que nossa terra está lá em cima. Nosso pedaço está
guardado lá no céu”.

Esta concepção da Dona Rosa, em relação aos espaços acessados – de que o


mato é um espaço livre, não possui limites e “não tem dono” – é o que nutre suas idas
sistemáticas para colher plantas alimentícias de diversos tipos. Conta que mesmo
tendo que lidar com estas resistências por parte das autoridades locais, ela e Dona
Arlete nunca desistiram desta atividade. As idas para mato sempre foram bastante
frequentes e os momentos destacados no seu discurso se referem não apenas à procura
e colheita das plantas, mas também ao processo de preparo (fabricação de doces e
refeições) e à socialização de alguns alimentos coletados com vizinhos a nível local,

161
depois de retornar das caminhadas. Esta ação se desdobra em várias fases: cada uma
imbuída de um sentido e envolvendo diversos atores sociais, como pretendo mostrar
mais adiante.

5.8.2 Ocupação de terrenos considerados públicos: o direito de uso

Em relação aos casos de plantio em terrenos considerados públicos, relato


várias situações que revelam os processos de gestão destas áreas. Começo pelo
exemplo de Dona Isabel, oriunda de Caratinga, moradora do Escondidinho, que relata
a paixão que seu marido tinha pela plantação. Nos últimos anos de sua vida, fez uma
horta e plantou diversos alimentos em alguns canteiros num terreno localizado em
cima de sua casa, próximo ao viaduto da rua Gomes Lopes. Ela relata a história da
seguinte forma:
“Quando ele aposentou, começou a fazer esta horta, porque tinha tempo.
Ele dizia assim: ‘Depois que aposentar, não vou trabalhar para ninguém’.
Ele plantava couve, cebolinha, chicória, pé de acerola e pé de pitanga. Deu
tomate, jiló. Em cada cantinho, plantava alguma coisa. Era uma beleza.
Não dava invasão. Mas, também todo mundo gostava dele – e ele sempre
dava para os outros” [Isabel].

Ela afirma que a área onde ele começou a plantar ficou “meio abandonada”
depois das obras do Programa Favela Bairro, quando muitas famílias foram
deslocadas e suas casas foram desmanchadas para viabilizar a construção do viaduto
em cima da Rua Gomes Lopes. Ele começou esta iniciativa de plantação de forma
bastante tímida, mas foi eventualmente a Prefeitura que lhe concedeu o terreno. Ela
ressalta que “o pessoal da Prefeitura achou a horta bonita e falou com ele que poderia
continuar. Também falaram que iam cercar a horta para não dar invasão”.
A intervenção da Prefeitura, como autoridade, neste caso específico, se
explica pela área onde está localizado o terreno – numa área que foi atingida pelas
obras do Programa Favela Bairro. A partir do momento da realização das obras, e com
a desocupação da área, o lugar embaixo do viaduto passou a ser visto como um
espaço abandonado, que estava sob a jurisdição da Prefeitura.
Há outro exemplo do Seu Antônio,80 oriundo da região de Zona da Mata
mineira, que fez sua plantação embaixo do viaduto, porque lá a “terra é boa”. A horta

80
Ver fotos da plantação de Sr. Antônio nos Anexos.

162
conta com uma diversidade de plantas – pé de andu81, pé de acerola, goiaba, mamão,
tangerina, limão, laranja, graviola, abacate, taioba, couve, aipim e batata doce.
Ele conta que o pedaço de terra era do seu pai, mas os vizinhos o acusam de
ter invadido aquele terreno. Atualmente, ele está empenhado na formalização do seu
direito de uso, tentando acessar documentos nos órgãos responsáveis que possam
comprovar que a terra lhe pertence. Sua esposa, Dona Teresa, relata que tais
dificuldades – a acusação de que esta terra não lhe pertence – causa desânimo diante
do impulso para plantar. Nas suas próprias palavras: “Para você roubar algum terreno
para poder plantar, você apanha... porque depois da terra pronta, vão dizer que não é
seu”.
Esta controvérsia em torno do dono efetivo dos terrenos acontece com
frequência em Morro dos Prazeres e Escondidinho e remete à história da própria
ocupação das comunidades. A realização de obras, como aconteceu no caso do
Programa Favela Bairro, também teve uma interferência neste processo de definição
dos pertencimentos por ter implicado em algumas alterações espaciais. Alguns
moradores contam que a remoção de muitas casas nas áreas localizadas embaixo do
viaduto deixou, como marca, uma certa nebulosidade em relação à gestão destes
terrenos.
Dona Rosa comenta que o lugar embaixo do viaduto é um espaço impróprio
para plantio porque “ficou abandonado e é pouco respeitado pelos moradores em
volta”. Ela explicita as complicações de usar tal espaço para finalidades da produção
agrícola: “Ficou vazio depois da Favela Bairro. Mas, não é lugar próprio para plantar
verdura. Barreira de maracujá e chuchu ainda dá porque é fora do chão. Mas, pessoas
com preguiça sempre jogam lixo ali”.
Também cito o caso de Seu João que, há 20 anos, faz uma plantação na frente
da casa dele82, numa área considerada lote vago, pois era uma área abandonada, onde
as pessoas começaram a jogar lixo e ele interveio por acreditar que “não poderia ficar
assim”.
O que era no início um projeto de limpeza deste terreno se tornou uma
iniciativa bem sucedida – uma horta que possui uma diversificação de espécies.
Segundo este informante, quando os moradores perguntam para ele se poderia exercer

81
É um tipo de feijão. No Rio de Janeiro, o nome utilizado é guandu, mas segundo Dona Rosa,
os mineiros chamam este feijão de andu, porque “os mineiros falam assim – de qualquer jeito”.
82
Ver fotos da plantação de Seu João nos Anexos.

163
“direito de uso” em relação a este terreno, o mesmo responde que sim, pois a “terra é
de ninguém”. Conforme sua explicação, na área urbana, os habitantes tem direito
sobre sua moradia – a casa construída – mas, não exercem esta mesma autoridade
sobre o terreno ocupado. Nas suas próprias palavras, “ninguém é dono deste chão. Da
terra, ninguém é dono”.
Observa-se que Seu João constrói sua noção de posse mediante um quadro
contrastivo forjado a partir da polaridade cidade/roça. Em vários momentos, ele faz
um contraste da situação atual com sua vida anterior, na roça, quando “vivia de favor”
e não exercia nenhum direito, nem sobre o terreno nem sobre a moradia.
Enquanto afirma que, na roça, o fazendeiro “é dono de tudo”, na cidade, ele
destaca inúmeras vezes o usufruto da liberdade associada à ocupação territorial. Um
grande diferencial, no seu ponto de vista, é a liberdade para construir um imóvel a
partir da ocupação do solo. O trânsito comparativamente livre pelo território urbano,
mesmo com a vigência de determinadas normas e regras sociais, é um ponto chave na
sua leitura da realidade vivida.
Segundo Eliza, a ocupação desta área por Seu João é validada pelas
autoridades locais – o “comando” de traficantes e a direção da Associação – porque é
uma área de risco que não pode ser utilizada para a construção de casas. Portanto, a
ocupação desta área para outras finalidades, que não seja construção, é vista com bons
olhos e Seu João enfatiza o apoio moral que ele recebe pelo trabalho de plantação.
Ao mesmo tempo, o mineiro fala que os moradores da Colina – região onde
reside – “acabam com tudo”. Portanto, ele aprecia a permissão cedida pelas
autoridades locais, especificamente por parte dos traficantes. Reconhece que o poder
local rege sobre a gestão dos espaços coletivos e que precisa do aval do “comando do
tráfico” para prosseguir com seu projeto de plantação.
A paixão expressa por Seu João pelo plantio é contagiante. De fato, ele é uma
referência local neste campo da produção agrícola. Nas minhas andanças pela
comunidade, muitos moradores entrevistados citam o “Seu João do Feijão” – seu
apelido consagrado localmente – como um exemplo que inspira os outros a plantarem
por seu amor e dedicação ao desenvolvimento da atividade agrícola.
Ao mesmo tempo em que ele parece duvidar da sustentabilidade das práticas
agrícolas no meio urbano, mediante a afirmação de que “não vivemos da plantação” e
que “não é para se alimentar”, afirma inúmeras vezes sua dedicação à plantação,
como uma alternativa que possa prover suas necessidades básicas porque ele “vive

164
disso aí”. Esta atitude paradoxal transparece no seu discurso pelas seguintes falas: “É
porque gosto da roça. Não posso dizer que é para me alimentar não... mas adoro
minhas plantas” ou “O público não sabe dar valor. Pé de banana mata fome de muita
gente. Pé de cana mata fome de muita gente. Mas, acabam com tudo, não dão valor.
Eu dou valor porque eu vivo disso aí”.
Sua esposa partilha da mesma paixão pela plantação. No entanto, os espaços
são bem divididos: enquanto Seu João se envolve na plantação na frente de sua casa
que, em alguns momentos, ele chama de horta, sua esposa se responsabiliza por um
espaço bem mais restrito – o quintal – que está localizado atrás da casa.
No quintal, tem um pé de café e planta coentro, cebolinha, serralha e alface.
Numa parte cercada, tem criação de galinha. No terreno na frente da casa, Seu João
planta banana, andu, feijão-de-corda, cana, couve, pé de acerola e mamão. É
interessante observar que o planejamento em relação ao que vai ser plantado é feito
pelo casal, de forma coletiva, e parece haver um esforço para que haja uma
complementação entre os dois espaços.
Mais uma vez, observa-se uma divisão entre homens e mulheres em termos de
espaços utilizados para a produção agrícola. Enquanto Seu João se ocupa de um
espaço mais extenso que fica um pouco afastado da casa – análogo ao roçado – sua
esposa se dedica ao espaço interno da casa onde está localizado o quintal.
Passo agora a analisar o caso de Roberto, oriundo de Governador Valadares, e
dono de um bar que se localiza na entrada de Morro dos Prazeres, ao lado da
Associação Comunitária. Ele planta numa área que está localizada na frente do seu
estabelecimento.
Ele começou plantando bananeiras com o objetivo de evitar que a área se
tornasse uma lixeira e alega que “a terra é boa”, pois todos os anos rendem frutos. Já
plantou acerola, fruta-de-conde, repolho, tomate, quiabo, couve-flor e aipim.
Muitos moradores fazem referência a este terreno como se pertencesse a
Roberto – o que demonstra que usufruir da área passa a significar um tipo de posse.
Este fato revela a nebulosidade entre ocupação e posse, presente desde o início da
história de construção das moradias por parte dos recém-chegados, sendo que não
havia uma formalização do direito do uso do terreno para construção.
Esta fronteira tênue entre o que se utiliza para diversas finalidades e o que
constitui um objeto de posse é um fator determinante nos processos de gestão dos
espaços coletivos voltados para a produção agrícola.

165
5.8.3 Impasses que dificultam os processos de plantação em espaços públicos

Tanto Seu João quanto Seu Antônio se queixam do desrespeito dos outros
moradores em relação a estas áreas. Os principais impasses para plantação nestas
áreas têm sido a poluição ambiental, a invasão de animais e a destruição dos
alimentos plantados.
Seu Antônio reclama dos porcos que têm invadido a área plantada, além de
moradores que jogam lixo indevidamente, atrapalhando assim o desenvolvimento da
plantação. Segundo este informante, a área embaixo do viaduto se constitui em uma
lixeira e este acúmulo de lixo sempre atrapalhou a produção agrícola. Porém, nos
últimos anos, se tornou um grande impasse, inviabilizando o processo produtivo.
Roberto reclama, principalmente, das crianças, que apanham os alimentos
antes de terem amadurecido e “não os deixam crescer”, fazendo uma espécie de
brincadeira. Seu João registra a mesma queixa. São “os cariocas” que “não deixam as
plantas cresceram”, sendo que “quando a cana e a banana começam a amadurecer,
quebram e cortam tudo”.
Segundo Seu João, esta vontade de destruir as plantações pode ser observada,
principalmente, nos que não tiveram vivência com a roça – os que ele rotula de
“cariocas”. Em vários outros momentos, ele faz uma diferenciação entre os cariocas e
os mineiros. Para ele, os mineiros têm um respeito maior para as plantações e
procuram a preservação das tradições da roça, enquanto os cariocas possuem uma
relação mais distante com o alimento – que apenas se constitui em um objeto de
consumo e, em alguns casos, se torna um objeto de destruição.
Esta visão sobre os diferentes comportamentos dos cariocas e mineiros é
claramente explicitada em dois trechos distintos do seu discurso:

“Aqui o carioca somente conhece planta dentro do Armazém para comprar


e comer”

“A mãe da Ana Maria, Maria, gosta de plantar porque era da roça. E


quando a mãe dela foi embora ela cortou tudo. Tinha banana deste
tamanho ali. Cortou o pé de abacate. A mãe dela dava valor porque era da
roça... mas ela não... porque é carioca...Foi criada por aqui...”

É interessante notar que a categoria de mineiros – que é determinante na


construção de uma identidade coletiva – se consolida apenas a partir da ênfase dada

166
ao seu oposto – os cariocas. Ou seja, a categoria os mineiros apenas emerge como
categoria nativa a partir de uma estratégia de diferenciação.
O fato de que as categorias mineiros e cariocas se emergem a partir das
relações forjadas, no cerne de um processo interativo que elucida as fronteiras e
limites intergrupais, nos remete à leitura de Barth (2003) em relação à construção de
identidades étnicas.
Para o autor, as identidades coletivas não constituem entidades fechadas e
imutáveis, mas se estruturam a partir da diferenciação entre grupos em interação. Da
mesma forma, as categorias mineiros e cariocas não são dadas, a priori, e não
constituem unidades portadoras dos grupos sociais.
A categoria identitária mineiros, apenas ganha corporalidade a partir de sua
relação contrastiva com os cariocas – uma relação que é pautada nas diferenciações
detectadas, mediante as práticas agrícolas e alimentares.
Também, vale ressaltar que a diferenciação entre estas duas categorias
identitárias ocorre no curso dos discursos sobre práticas alimentares e agrícolas. É
nesta hora que as diferenciações são ressaltadas83.
No capítulo 2, foi visto como a mineiridade se impõe a partir do contraste
estabelecido entre “o prato carioca” e “o prato mineiro”, ou seja, a desvalorização, por
parte dos “cariocas”, de alguns elementos considerados indispensáveis na refeição
mineira como as verduras, causa estranhamento e reforça as diferenças entre dois
polos.
Da mesma forma, vale notar que os atos de destruição das plantações dos
mineiros, cometidas pelos cariocas, são criticados a partir de um viés do
distanciamento social. Mais uma vez, isto demonstra como as relações forjadas com o
alimento e a comida assumem um lugar de centralidade na construção de identidade
mineira.
Em relação à destruição das áreas coletivas, Eliza aposta que esta ação é
consequência da falta de um sistema local de monitoramento. Portanto, na sua
opinião, precisaria haver um maior controle sobre as áreas que, supostamente, “não
tem dono”, uma tarefa que cabe à Associação Comunitária. Como ela afirma:

“Se todo mundo chega e meter a mão, o que vai acontecer? Já tem casos de

83
Ver o capítulo 2, que trata especificamente das mudanças nas formas de se relacionar com o
alimento – por parte dos mineiros – a partir dos deslocamentos.

167
crianças arrancarem cachos de banana totalmente verdes, que não dá para
consumir. Somente pela prática da destruição. Se não tiver uma ordem,
vira uma bagunça. Qualquer coisa que vai fazer... a primeira coisa é
procurar a Associação de Moradores para saber se aquele lugar pode ser
ocupado... Tem que saber se é encosta, área de preservação ambiental.”
[Eliza]

É curioso que o tráfico, que tem sido citado como uma autoridade local que se
responsabiliza pelas retaliações e punições em casos de infrações84, não faz nenhuma
intervenção quando as plantações são invadidas. Talvez uma explicação pelo que
pode ser interpretada como uma falha no Sistema de Justiça local seja que a maior
parte das invasões é realizada pelas crianças e há uma certa permissividade quando se
trata das “brincadeiras de crianças”.

5.8.4 Modalidades de controle social: princípios organizadores da gestão das


áreas coletivas

Em todas as situações relatadas, cabe analisar mais detidamente as facilidades


e dificuldades encontradas para efetivar a gestão das áreas utilizadas para plantio. No
caso de Seu Antônio, há uma disputa acirrada em relação ao direito de uso da área
ocupada. Enquanto ele alega que o terreno lhe pertence, os vizinhos expressam
dúvidas. Os atos invasivos e destrutivos – como jogar lixo em cima das plantações –
podem ser interpretados como atos de resistência diante do suposto uso indevido do
terreno por parte de Sr. Antônio.
Nos casos de João e Antônio, ambos desfrutam de certa liberdade em relação
aos seus projetos de plantio. Nestas situações, o que poderia representar o uso
indevido de terras coletivas – por serem plantações feitas em lotes vagos e em
terrenos supostamente abandonados – não está carregado deste tipo de conotação,
mediante a categoria empregada pelos entrevistados para caracterização destas áreas –
“terra de ninguém”. Parece haver uma certa liberdade em relação ao uso destas áreas,
que faz parte de um conjunto de códigos caracterizados pela nebulosidade em torno
das barreiras construídas em torno do que constitui público/privado e ocupação/posse.
Logo, a nível local, há uma série de regras que operam como princípios
organizadores desta gestão e possibilitam um tipo de monitoramento do uso destas
áreas, mesmo que não seja tão visivelmente reconhecido como tal.

84
Ver o capítulo 2 para maiores detalhes sobre a atuação dos traficantes, enquanto autoridades
locais.

168
Nas narrativas, mesmo sem tocar diretamente no assunto, os informantes se
referem a uma espécie de controle social – uma permissão cedida pelas autoridades
locais para garantir livre uso destas áreas.
Assim, constituir “terra de ninguém” não é análoga à falta de regulações em
relação ao seu uso, pois autoridades locais: os traficantes, a Associação e, em alguns
casos, a Prefeitura – exercem um poder decisório sobre sua gestão. Observa-se, no
caso do marido da Dona Isabel, que foi a Prefeitura que cedeu para ele um terreno
ocioso, que se localizava na área atingida pelas obras do Programa Favela Bairro.
Por outro lado, Dona Rosa expressa sua revolta quando descreve o nível de
controle do tráfico sobre uma área pública que, a seu ver, não pertence a ninguém e
possui recursos naturais que deveriam ser acessados livremente, sem restrições.
Ela conta que há uma área em frente ao Casarão, na entrada da comunidade,
que está cheia de bananeiras que foram plantadas por alunos da escola para impedir a
queda de barreira durante a implantação do Programa Favela Bairro. Dona Rosa
explica como o acesso livre às bananas tem se tornado mais restrito por causa do
controle exercido pelos traficantes:

“Amadureceu muita banana aqui, mas se quiser tirar, tem que pedir ao
chefe do morro. Meu marido que disse. Ele disse que não vai se humilhar
mais e pedir coisas que não é de uma pessoa. Vai ter que se rebaixar e
pedir. Todo mundo tinha que ter acesso às plantações. Não tinha que pedir
a ninguém”. [Rosa]

Uma situação contada por Dona Ana revela a extensão do domínio exercido
pelo tráfico sobre a gestão das áreas privadas. Portanto, seu campo de controle social
ultrapassa as distinções entre esferas públicas e privadas.
Ela conta que o “chefe” pediu que ela cortasse uma árvore “cheia de flor” no
seu quintal “para clarear para eles”. Esta ação visava dar uma maior visibilidade para
vislumbrar os inimigos do outro morro. Ela lamentou o fato de ser obrigada a cortar
uma árvore, sendo que tudo que faz parte do seu quintal tem um valor imensurável
para ela, em termos simbólicos. Como ela afirma: “plantei tudo que você está vendo
aqui com muito carinho. E cada planta está aqui porque merece estar aqui”.
Entretanto, no seu discurso, não transparece nenhum tom de reclamação em
torno do nível de interferência dos traficantes na gestão destes bens privados. Esta
ação é vista como um procedimento padrão que faz parte de um sistema de

169
regulamentação e vigilância exercido pelos traficantes a nível local.

5.9 AS IDAS PARA MATO – FONTE DE ACESSO AOS RECURSOS NATURAIS

A parceria firmada entre Dona Arlete, sergipana,85 e Dona Rosa, mineira, que
gira em torno da organização das idas para “tirar plantas” no mato, é motivada não
apenas pela necessidade física – causada por carências na alimentação cotidiana – mas
também pelo prazer que representa este trânsito por áreas afastadas e livres.
Arlete explica o que significa “o mato” para ela, no contexto de sua história de
vida em Sergipe:
“Eu vivia dentro do mato – porque meu pai era índio. Não era para vender
alimento – era somente para comer. Pegava planta no mato. Tem muitas
plantas no mato. Tem macaco enorme… que fica lá no mato. Gosto muito
do mato. Eu me arranho toda... minhas pernas são todas marcadas de
mato... mas eu nem ligo. Agora estou com 64 anos… a gente cansa mais,
fica mais devagar. Mas, é muito bom. Quando estou com dor de cabeça, na
hora de ir embora, não sinto mais nada”. [Arlete]

“O mato” possui diferentes significados para ela e para Dona Rosa. Arlete
explicita as diferentes significações que o mato ocupa na história de vida de cada
uma:
“Eu falava que somente vivia no mato lá em Sergipe. Ela também só vivia
no mato plantando. Claro que eram matos diferentes – sabe? Eu morava no
mato lá... mas conheço mais mandioca, peixe e camarão – o mato era ao
lado do mar. Rita conhece mais as folhas – obobró e capiçoba... acho que
tem mais estas coisas em Minas. Ela me mostrou a capiçoba – a gente pega
e come na hora… refoga com alho...serve com angu. Fica uma delícia”.
[Arlete]

Ao realizarem estas caminhadas há 30 anos, as duas mulheres ganharam um


nível de conhecimento sobre as características marcantes dos recursos naturais
contidos no mato, os pontos onde determinadas plantas podem ser encontradas e as
condições para colheita. Arlete explica que “o tempo” de cada alimento é um fator
levado em consideração nas caminhadas. Como ela afirma: “Quando é tempo de
manga, a gente busca manga. Quando é tempo de jaca, buscamos jaca. Quando é
tempo de café, buscamos café”.
As duas contam os detalhes do processo de colheita de cada tipo de alimento
na época que iniciaram estas idas para o mato. Mediante as narrativas, percebe-se a

85
É interessante notar que Dona Arlete é a única pessoa, na rede de relações da Dona Rosa, que
não é mineira.

170
intimidade que elas conseguiram construir com cada um dos alimentos oriundos do
mato e as estratégias empregadas para “ler os sinais da natureza”:
“Já deu muito mamão… mas aquele mamoeiro não vinga mais. A gente
tirava a raiz, para fazer igualzinho o doce de mamão. A gente não perdia
nada do mato. A receita de doce de mamão era de nós duas. A gente não
achava nada, às vezes, e aí, trazia a raiz do mamão”. [Arlete]

“Todo ano a gente vem aqui para ver se está florindo... e aí, sabe se vai dar
café. Consigo saber quando vai dar… a gente aprendeu tudo isso na roça.
Se aqui na beirada tem, geralmente lá dentro do mato, também tem”.
[Rosa]

O café é citado como um dos alimentos que mais se encontrava no mato,


explicado em parte pelo seguinte hipótese: a possível existência de uma fazenda com
senzala, nos tempos da escravidão, onde se produzia café em larga escala. Dona Rita
explicita as origens do café colhido: “Já não tem café como antigamente. Para lá de
Silvestre, tinha fazenda. Tem casas lá – deve ter sido senzala. A gente apanhava muito
café. Café vem da escravidão”.
O processo de colheita dos alimentos constitui apenas um componente de um
processo que se desdobra em várias etapas. Inclui também o preparo dos alimentos
colhidos e sua distribuição para os vizinhos. Os próximos depoimentos revelam as
etapas posteriores à colheita no mato:

“Pegávamos muito café – 5 kg por dia. Tinha muito. Já apanhei muito


café. Trazia para cá... secava... depois separava ele da casca e torrava...
Todo mundo sentia o cheiro do café... o cheiro vai longe. Aí, eu dava para
todo mundo – sentia que estava no Norte…” [Arlete]

“A gente gosta de pegar planta no mato porque pega na hora e faz. A


couve não, compra no mercado ou na feira e já está murcha. Eu trazia um
chuchu bem miudinho... não esperava ele nem crescer. E assim que
chegava, colocava no feijão… colocava chuchu como se fosse carne.
Colocava chuchu no meio – ficava cozidinho no meio. Antes, fazia
refogado e as meninas não gostavam. Deste jeito, todo mundo comia”.
[Rosa]

“Capiçoba – a Dona Rosa adora e eu comecei a gostar também. A gente


gostava de pegar muito e assim que chegávamos em casa, a gente refogava
com alho. Fica uma delícia – você precisa ver. Ela corta igual couve. E
servimos junto com angu. Era parte de nosso almoço sempre quando a
gente voltava do mato.” [Arlete, oriunda de Sergipe]

Estar no mato também é uma oportunidade para entrar em maior intimidade

171
com as plantas alimentícias e descobrir suas diversas qualidades. Dona Rosa conta um
incidente que ocorreu no meio do mato, quando foi forçada a comer capiçoba crua,
por causa de um ataque de fome excessivo e, consequentemente, fez uma descoberta
em relação ao seu valor nutritivo:

“Um dia estava no mato e não tinha trazido comida comigo. Peguei a
capiçoba, lavei e comi. De repente, fiquei boa. Aí, vi que tem uma
substância muito forte – não sei que tipo de vitamina. Tem que levar para
cientista ver – levar a um laboratório. A gente come porque gosta, mas não
sabe o bem que faz. Neste dia, vi isso – como a capiçoba é uma planta que
faz bem para saúde”. [Rosa]

Dona Rosa comenta a maior escassez de alimentos no mato, o que tem a ver
com mudanças ambientais. Ela observa que “o mato está fechando muito”, o que
explica, em grande parte, a falta de café. Analisa que a maioria dos pés de café fica
sufocada quando o mato fecha, sendo que “uma coisa abafa a outra”.
Também acredita que pode ter diminuído a quantidade de alimentos devido à
forma inadequada de fazer a colheita, sendo que existem formas de tirar as plantas
sem destruí-las. Como ela afirma: “Dizem que tem uma maneira de tirar café que no
outro ano, dá o dobro. Dizem que se não se sabe colher o café, na próxima vez, não
brota. Tem que saber colher sem passar a mão no galho e sem machucar o pé do café.
Mas a gente não queria nem saber”.
Dona Rosa conta que as idas para mato têm diminuindo substancialmente nos
últimos anos, em grande parte, por causa da diminuição das plantas e alimentos, além
do cansaço ocasionado pela sobrecarga de trabalho na rotina do dia a dia. Como
Arlete está com menos condição de acompanhá-la, nos últimos tempos, ela tem ido
com Seu Natalino.
No entanto, Dona Rosa afirma que ainda é uma prática da qual ela desfruta
bastante e pretende continuar fazendo estas caminhadas, mesmo na presença de outras
companhias. Isto revela que “as aventuras no mato” não apenas cumprem uma função
pragmática – retirar alimentos e plantas para o próprio sustento. Segundo ela, “tomar
conta” de um espaço livre e extenso como é o mato representa um ato de liberdade –
um passeio, uma diversão e uma fonte de lazer, como fica implícito na seguinte fala:
“A gente sempre fazia farra no mato”.
Em suma, este capítulo evidencia de que forma os mineiros – o foco da
pesquisa realizada – costuram novas relações com as plantas, alimentos e sementes a

172
partir de um processo inventivo que impulsiona a ação criativa. As áreas ocupadas e
trilhadas por estas pessoas no meio urbano, a partir da materialização de suas práticas
alimentares e agrícolas, compõem um mapa no qual transcorrem reconfigurações dos
usos dos espaços e das funções sociais associadas com tais espaços. O plantio e a
procura de plantas nos espaços privados e públicos representam formas de dar
continuidade às vivências tidas na roça, mas também representam a reatualização
destas práticas sociais em um novo contexto, repleto de condições inusitadas.
Os mineiros tentam manter a agricultura no contexto da cidade, mas não é “a
agricultura da roça” – a agricultura da qual se depende, para comer e para viver. Há
uma nova relação estabelecida com esta agricultura, praticada no âmbito urbano –
uma agricultura que constitui um passatempo, da qual não se depende para viver.
Entretanto, o fato de ocupar um novo lugar nas trajetórias destes mineiros não diminui
o peso simbólico atribuído a estas práticas, como fica implícito pelas diversas
estratégias empregadas para garantir sua eterna renovação e reatualização.
Portanto, é no cerne das trajetórias destes mineiros – que atravessam as
fronteiras entre o passado e o presente, a roça e a cidade, a tradição e a invenção – que
as práticas agrícolas e alimentares encontram novas significações e, ao mesmo tempo,
se afirmam como traços definidores da identidade mineira.

173
6. CONCLUSÕES

Em qualquer exercício etnográfico, acredito que somos desafiados (as) a rever


nossas bagagens conceituais, muitas vezes trazidas a priori. Nesta experiência
etnográfica, fui desafiada a avaliar criticamente algumas categorias analíticas, tendo
como norte de minha análise as sutilezas e nuances que foram suscitadas mediante o
fértil trabalho de campo em dois âmbitos – o espaço urbano – lugar onde os
“mineiros” se enraízam – e a “roça” – seu lugar de origem. Em suma, a teoria não é
um campo conceitual estagnado e intocável. Os operantes conceituais e
metodológicos são eternamente revistos e reformulados através da experiência vivida
no campo, onde a ação serve como fonte de retroalimentação da própria reflexão
efetivada.
Portanto, este estudo etnográfico traz no seu bojo alguns operantes conceituais
e metodológicos que pretendo ressaltar como sendo chaves de leitura na construção
desta Dissertação. As percepções que adquiri a partir de minha imersão em
determinados contextos me permitiu acolher novas concepções – em torno de grupos,
redes sociais e identidades.

6.1 QUE COLETIVIDADE É ESSA? – “OS MINEIROS”

O primeiro ponto é em relação à caracterização dos sujeitos que protagonizam


este estudo etnográfico. Desde o momento no qual decidi focar nos mineiros que se
deslocam da área rural para Rio de Janeiro, fiquei na dúvida em relação ao rótulo que
pudesse ser adequado para retratar a concentração destas pessoas no espaço urbano.
Tenho ficado atenta para não reduzir este processo analítico a uma mera tipologização
desta coletividade, lembrando que o foco de minhas atenções são suas trajetórias
individuais e coletivas.
Antes de embarcar numa análise mais minuciosa desta coletividade, considero
fundamental afirmar que meu caminho metodológico, do ponto de vista etnográfico,
representou uma opção por ouvir as histórias de vida, que incluem pontos de partida e
pontos de chegada, mas não constituem uma evolução linear. Encarava trajetória
como algo circular – repleto de “idas e voltas” – e não como uma sequência de
acontecimentos sucessivos.

174
Logo, entendo que os acontecimentos biográficos dos mineiros são como
pedaços de pano que compõem o tecido que estaria costurando ao longo do trabalho
etnográfico. Neste sentido, minha intenção sempre era ressaltar o dinamismo dos
fluxos que perpassa as histórias contadas e caracteriza o eixo central de minha análise.
Cabe agora o seguinte questionamento: que coletividade é essa? O fato de ser
mineiro já é uma força agregadora das trajetórias analisadas? Aqui observo uma
característica marcante: é uma coletividade ramificada por dentro, o que nos remete à
sua capilaridade. Estes mineiros são marcados por situações diversas de “idas e
vindas” que caracterizam os próprios deslocamentos.
Portanto, o termo grupo vem carregado de um princípio organizativo que não
exprime o caráter informal, dinâmico e espontâneo dos fluxos vivenciados por esta
coletividade. Quando descobri uma rua chamada Rua dos Mineiros86, onde a maior
parte deles se agregou nos anos 1960 e 1970, a noção de grupalidade ficou mais
fortalecida no meu imaginário, pois percebia claramente que há critérios de
associatividade que fundamentam essas interações.
Entretanto, tive que arrancar esta concepção para dar prosseguimento ao
trabalho de campo, pois me parece que abdicar de determinados postulados teóricos
que norteiam nossa compreensão dos processos sociais e se sobrepõem à dinâmica
imbricada das situações, também faz parte do exercício etnográfico.
Um esquema interpretativo que esteja imbuído por meus próprios princípios
pode subliminar a natureza multifacetada da realidade social, pois como Wagner
(1981) afirma, parte do pressuposto de que os nativos sejam como nós para que
possamos entendê-los.
Cito Wagner (1981), no que se refere ao olhar exercido por muitos
antropólogos sobre formas de organização social: “Nations, societies, and groups are
the social forms or manifestation of the reliance on order, organization and
consistency that pervades our whole approach to collective doing and understanding
as an unquestioned assumption” (WAGNER, 1981, p.103).
Grupos sociais devem ser concebidos em termos de processos constantes de
construção e negociação, em vez de serem tratados como se fossem entidades fixadas
e imutáveis. Gillis (1996) afirma que grupos não devem ser vistos como objetos
impermeáveis ou identidades essencializadas. Podem ser melhor compreendidos

86
Ver foto da placa da Rua dos Mineiros nos Anexos.

175
como “processos simbólicos que emergem e se dissolvem em contextos particulares
de ação” (GILLIS, 1996, p. 30).
Portanto, minha tarefa, desde o início desta pesquisa, era buscar um tratamento
de situações sociais em que são encontrados agregados de pessoas que não se
encaixam nos modelos pré-fabricados. Segundo Wagner (1981), para apreender os
arranjos coletivos, é válido se debruçar sobre os modos pelos quais as pessoas se
organizam socialmente, pois, esses arranjos exprimem múltiplas expressões de
sociabilidade.
Assim, neste trabalho, minha intenção foi elucidar as dinâmicas sociais que
prevalecem nas trajetórias dos mineiros, oriundos da roça e que se encontram de
forma concentrada no aglomerado urbano, sem reduzi-las a uma noção de “grupo” ou
“corporação”, por conta de um viés tipologizante.

6.2 O MAPEAMENTO DAS RELAÇÕES NO PROCESSO DE SOCIABILIDADE


– ADENTRANDO NUMA “REDE SOCIAL”

O segundo ponto que quero ressaltar se refere às configurações deste processo


de sociabilidade que se inscreve no espaço social. Como pesquisadora, tenho
procurado traçar uma cartografia destas trajetórias familiares, marcadas pelo
dinamismo inerente ao processo inventivo em torno das relações forjadas com
pessoas, alimentos e plantas.
No decorrer do trabalho de campo, desenhei um mapa de navegação social,
orientado pelas práticas de familiarização. O que norteava minhas investigações eram
os pontos de conexão entre as famílias mineiras e fiquei bastante atenta aos meios de
mediação destas relações sociais: as plantas, os alimentos e as sementes que
intermediam as “trocas” através das quais certas famílias estreitam seus vínculos.
Tomo como referência a definição de Comerford (2003) de “territórios de
parentesco”, apesar de reconhecer que, neste contexto, a formação de núcleos de
sociabilidade não era orientada apenas pelos laços de parentesco, como acontece em
muitas comunidades rurais.
A definição que o autor aplica a estes territórios merece destaque: “São um
fenômeno da ordem do discurso, da retórica e da hermenêutica nativa, mais do que de
ordem topográfica, jurídica ou econômica” (COMERFORD, 2003, p. 41).
O mapeamento desta rede social emana inicialmente a partir da figura de

176
Dona Rosa, minha informante-chave? Desde o início, quem abriu meu caminho nas
incursões em campo foi ela, uma referência na construção de vínculos com várias
outras pessoas de Minas Gerais que foram posteriormente entrevistadas. Dona Rosa
foi a força propulsora de vários encontros inusitados como, por exemplo, as idas para
o “mato” e as visitas aos quintais e plantações realizadas em espaços públicos – que
contavam com a participação de outros mineiros.
Logo, os encontros estabeleciam pontos de conexão não apenas entre seres
humanos – os mineiros – mas, também com os não humanos – plantas, sementes e
diversos alimentos. É como se eu estivesse acompanhando os pontos de conectividade
estabelecidos a partir de um indivíduo específico enquanto foco organizador central –
o que alguns antropólogos que se debruçam sobre as estruturas das “redes sociais”,
chamariam de ego 87.
O estudo das redes sociais surgiu a partir de uma insatisfação por parte dos
antropólogos sociais com os moldes convencionais da análise estrutural-funcionalista
que não conseguia captar o escopo das chamadas sociedades complexas
(BOISSAVAIN, 1973).
O foco nos comportamentos sociais como se fossem regidos por regras,
deveres e papéis sociais incorporava uma estruturação excessivamente formal e
engessada aos processos sociais que não era condizente com a realidade flutuante.
Portanto, a abordagem de redes sociais buscava ressaltar a flexibilidade dos atores
sociais na composição de vínculos, a partir de afinidades, que não significaria uma
cristalização em pertencimentos grupais. Considerava vários fatores que,
anteriormente, tinham sido negligenciados – como a agência exercida pelos
indivíduos, as opções pessoais e a possibilidade da mudança social. Redes sociais é
um conceito que se aproxima das dinâmicas locais – consegue captar sua fluidez, que
ultrapassa fronteiras demarcadas e se ramifica em várias direções.
Assim, considero que a noção de “rede social” é indicada para retratar a
complexidade da teia de relações imbricadas entre os mineiros – foco desta análise.
Entretanto, apesar de Dona Rosa ser meu principal interlocutor no desenrolar desta
etnografia, penso que a cartografia que tenho tentado delinear é um mapa de
multiplicidades com diversos pontos de entrada e saída. Ou melhor, não gira em torno

87
Sobre rede de relações sociais pode-se consultar os seguintes autores: MITCHELL (1968,
1969, 1973), EPSTEIN (1969), BOTT (1970) ou BOISSEVAN (1987), BARNES (1987), MAYER
(1987) citados em FELDMAN-BIANCO (1987).

177
de uma figura central e engloba encontros com componentes virtualmente
relacionáveis. A heterogeneidade das relações que são o foco de minha análise me
remete ao movimento rizomático, sendo que os traços que ligam as relações no
sistema rizomático são de naturezas variadas. As trocas de mudas e sementes, a busca
de alternativas para plantio em pequenos espaços e as idas para o mato para procurar
alimentos e plantas estreitam laços entre as pessoas de tal forma, que parece que os
não humanos: “objetos da natureza” também se incluem nestas configurações.
Portanto, uma de minhas intenções neste estudo etnográfico tem sido no
sentido de acompanhar as redes costuradas entre os mineiros, sem interromper o fluxo
de suas conexões nas barreiras de categorias tratadas a priori. Tentei elucidar as
invenções criativas geradas a partir de suas práticas agrícolas no meio urbano, que
possibilitam a montagem de uma justaposição de elementos heterogêneos – plantas,
alimentos, sementes, pedaços de metal, terra, pessoas. Estas criações possibilitam a
consolidação de novos arranjos, gerados a partir do processo inventivo – algo que
ultrapassa apenas a junção de elementos encontrados nas trilhas do passado com
elementos novos que surgiram no contexto atual. São diversos pontos de conexão de
diferentes densidades que se entrecruzam no cerne das relações costuradas pelas redes
sociais.

6.3 PROCESSOS IDENTITÁRIOS – O ENRAIZAMENTO DA IDENTIDADE


MINEIRA EM MEIO DOS FLUXOS INCESSANTES DE “IR E VIR”

Para finalizar, faço uma reflexão sobre os processos identitários no contexto


deste estudo etnográfico. Muitas vezes, os processos identitários são visualizados
como o ápice de uma evolução linear – traçada no tempo e no espaço; logo, diversas
abordagens sociológicas e antropológicas tendem a focalizar a identidade como algo
que se fortalece a partir do enraizamento num espaço localizado, como se
representasse o ponto final de um caminho trilhado.
Porém, em um estudo etnográfico como esse, focado nas trajetórias flutuantes
dos mineiros – que não se posicionam nem “aqui” nem “lá” – não há a possibilidade
de encaixar tal fluidez nos moldes de uma identidade fixa e cristalizada. Ao longo
desta Dissertação, foi possível ilustrar de que forma a identidade mineira ganha
contornos não a partir de sua imobilidade – sua fixação no tempo e no espaço – mas
pelo contrário, mediante os fluxos que marcam seu percurso pelos espaços rural e

178
urbano.
A cidade não pode ser enquadrada como um lugar que encerra este percurso e
os deslocamentos destes mineiros não são caminhos de única via ou viagens sem
volta. A visão apresentada a partir das trajetórias dos mineiros que se encontram em
terras cariocas é de uma mobilidade sem fim – que não se reduz aos deslocamentos
apenas espaciais, mas também passa pelos deslocamentos não-espaciais.
Ou seja, há infinitas formas de vivenciar estes deslocamentos, que constroem
uma linha tênue entre o passado e o presente, a roça e a cidade e que vão muito além
de um mero trajeto trilhado entre um ponto de partida e um ponto de chegada.
São as práticas alimentares e agrícolas que fazem a costura entre tantos pontos
encontrados nestes fluxos e concedem uma sensação de continuidade para trajetórias
que, à primeira vista, podem parecer fragmentadas e distanciadas de suas origens,
assim, estas “idas e voltas” no tempo revelam o papel dinâmico exercido pela
memória, enquanto força organizadora das experiências vividas.
O que se nota é que as estruturas de significação, baseadas nos referenciais de
um passado vivido no contexto da roça regem a atualização de relações, vivências e
discursos no momento presente, dentro dos contornos do ambiente urbano.
As continuidades e permanências que se observa não representam resquícios
de um passado imemorial que são transplantados para o momento presente na sua
inteireza, sem passar por nenhuma transmutação.
Em contrapartida, estes pontos de interseção entre o passado e o presente são
canalizados de diversas formas e se expressam mediante várias configurações. Elas
podem ser identificadas nas representações sociais que giram em torno dos elementos
centrais da refeição “mineira” que perduram no tempo e nas categorias e
classificações que continuam ordenando o conjunto de relações forjadas com o
alimento e a comida na vida cotidiana.
Podem também ser visualizadas no circuito de trocas de plantas, sementes,
mudas e alimentos – que, além de constituir estratégias para preservar tradições e
conhecimentos adquiridos “naqueles tempos”, também são catalisadores do
estreitamento de vínculos sociais. Finalmente, podem ser avistadas nas iniciativas de
plantio que se materializam em diversos cantos dos âmbitos domésticos e públicos,
mediante a junção de vários materiais e recursos – manifestações de um desejo e
impulso de plantar que “não morre” e faz com que “a roça parece estar dentro da
gente”.

179
Entretanto, as descontinuidades, contrastes e rupturas também se exprimem no
cerne destas práticas e transparecem nas diferenciações detectadas em relação às
apropriações feitas da casa construída e da terra ocupada. Enquanto na roça, “se vivia
de favor” e o fazendeiro era “dono de tudo”; na cidade, é possível exercer direito de
posse sobre a casa construída, que passa a ser encarnada como símbolo de
enraizamento e estabilidade em meio às trajetórias flutuantes dos mineiros.
Porém, na roça, a maior parte dos mineiros não tinha seu próprio terreno e
plantava nas terras “dos fazendeiros”; na cidade, eles passaram a ocupar áreas
públicas, das quais supostamente “ninguém é dono”, para plantar ou colher plantas
alimentícias.
Se evidenciam também na relação dicotômica que se estabelece entre dois
tipos de agricultura – aquela que é praticada na roça, “da qual se dependia para comer
e para viver” e aquela que é praticada no âmbito urbano e constitui um passatempo,
da qual “não se depende para comer”. Nesta agricultura da cidade – da qual “não se
depende para comer” – o âmbito doméstico é redimensionado para viabilizar as
práticas agrícolas. Enquanto na roça, o quintal e o pomar eram designados para
plantio; na cidade, a falta de espaços disponíveis demanda uma reconfiguração
interna, de tal forma que o terraço, a laje e a frente da casa são aproveitados para esta
finalidade.
Portanto, as trajetórias destes mineiros, retratadas ao longo desta Dissertação,
trazem no seu bojo tanto a continuidade quanto a descontinuidade. É no cruzamento
entre o passado e o presente, a roça e a cidade, que as práticas agrícolas e alimentares
se consolidam enquanto traços constituintes da identidade mineira, ao mesmo tempo
em que transcorre uma alteração nas suas significações. Logo, não é um lugar fixo
que determina a sedimentação dos processos identitários, sendo que os mineiros se
enraizam neste estágio de ambiguidade, no meio destes deslocamentos espaciais e
não-espaciais. É neste movimento eterno de “ir e vir” – que se reflete na produção das
lembranças – que a identidade mineira se enraiza. É uma identidade que se
transforma, que se renova e que encontra novos significados a partir de sua imersão
no meio urbano carioca.

180
7. REFERÊNCIAS

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1997.

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187
8. ANEXOS

ANEXO 1 MORRO DOS PRAZERES E ESCONDIDINHO – SANTA


TERESA - RIO DE JANEIRO-RJ – LOCALIZAÇÃO E VISTA GERAL

188
Foto 1 Vista do Morro dos Prazeres mostrando a área verde na parte superior e a parte
chamada de “Morro dos Paraíba”. Observar a ponte Rio-Niterói, ao fundo e uma área de
deslizamento na floresta da Tijuca, ocorrida também em abril de 2010.

Figura 1 Imagem de Satélite do Morro dos Prazeres e Escondidinho. Ã direita, a parte de cima
do morro. A R. Gomes Lopes se situa ao centro, no sentido vertical

Figura 2 Imagem de Satélite do Morro dos Prazeres e Escondidinho, com zoom na R. Gomes
Lopes (no centro da foto), que divide as duas localidades.

189
Foto 2 Placa da Rua dos Mineiros, no Escondidinho, Rio de Janeiro - RJ

ANEXO 2 MORRO DOS PRAZERES E ESCONDIDINHO – RIO DE


JANEIRO - TRAGÉDIA DE 6 DE ABRIL 2010 - COBERTURA DA
IMPRENSA

Foto 3 Reportagem sobre o deslizamento – “Bombeiros e voluntários vasculham os destroços de


10 casas no Morro dos Prazeres” . Revista Época (abril/2011)

190
Foto 4 Reportagem sobre o deslizamento – “A dor da perda” - pai carregando corpo de filho
morto no deslizamento. Revista Época (abril/2011)

Foto 5 Cruz no local de desabamento das casas

191
Foto 6 Casa da D. Ana (lado direito superior da foto), com área de deslizamento ao lado, na
parte de baixo da R. Gomes Lopes.

Foto 7 Trecho da Rua Gomes lopes, em reconstrução

192
ANEXO 3 ACESSO A ÁREAS PARA PLANTIO E COLETA DE PLANTAS –
MORRO DOS PRAZERES – RIO DE JANEIRO - RJ

Foto 8 D. Rosa pegando terra perto do casarao para sua horta no terraço

Foto 9 Sr. João e D.Rosa olhando para o local da plantação do Sr. João e conversando sobre as
plantas.

193
Foto 10 Plantação do Sr. João em lote vago

Foto 11 Sr. João em sua plantação

194
Foto 12 Muro da casa da D.Ana, ao lado do local do deslizamento.

Foto 13 Plantação da D. Ana – Mamão, mandioca, cana e hortaliças

195
Foto 14 D.Ana cuidando das plantas em sua casa

Foto 15 Quintal da D.Ana - Árvore próxima ao muro que traficantes pediram para ser cortada
por impedir a visão da facção inimiga.

196
Foto 16 Sr. Antonio e D.Rosa no viaduto da R. Gomes Lopes, olhando para a plantação do Sr.
Antonio (embaixo do viaduto) e conversando sobre as plantas.

ANEXO 4 CAMINHADAS DA D. ROSA PARA COLETAR PLANTAS “NO


MATO” - FLORESTA DA TIJUCA – RIO DE JANEIRO - RJ

Foto 17 D. Rosa identificando plantas no caminho, à beira do trilho do trenzinho do corcovado

197
Foto 18 D. Rosa apontando para mudanças ocorridas na vegetação da floresta da Tijuca

Foto 19 D. Rosa identificando o ponto de coleta da capiçoba

198
Foto 20 D. Rosa colhendo capiçoba

Foto 21 D. Rosa colhendo obobró (orapronóbis) no mato

199
ANEXO 5 - TRABALHO INFORMAL DE UBAPORANGUENSES NO RIO DE
JANEIRO

Foto 22 Irmão da D.Rosa descascando mandioca em barraca na feira da Glória – Rio de


Janeiro

200
ANEXO 6 – UBAPORANGA – MG – MAPAS E LOCALIZAÇÃO

Figura 3 Mapa das Regiões de Planejamento do IBGE em Minas Gerais. Os municípios de


Ubaporanga e Caratinga ficam localizados na região do Rio Doce

Figura 4 Mapa do Município de Ubaporanga mostrando os distritos, que correspondem aos


diferentes córregos. A maior parte das pessoas que vieram para os Morros dos Prazeres e
Escondidinho são dos distritos de S. José de Batatal e de S. Sebastião de Batatal, além da cidade
de Ubaporanga e seus arredores.

201
ANEXO 7 FESTA DOS AUSENTES DE UBAPORANGA-MG: IMPRESSOS

Figura 5 Programação da IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985

202
Figura 6 Material do IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985

203
Figura 7 Material do IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985

204
(Continua)
n

205
Figura 8 Letra da Música criada para o IV Encontro dos Ausentes de Ubaporanga - 1985

206
Figura 9 Material sobre a festa dos ausentes, relatando a história do evento

207
ANEXO 8 DESFILE ESCOLAR NA FESTA DOS AUSENTES DE
UBAPORANGA-MG

Foto 23 Ala Riquezas de Ubaporanga”: Carro Alegórico “Riquezas da Roça”

Foto 24 Ala Riquezas de Ubaporanga”: Carro Alegórico “Riquezas da Roça”, representando os


produtos da roça.

208
Foto 25 Rainha com ramos de café na peneira e nos cabelos

Foto 26 Ala “Riquezas de Ubaporanga”: Carro alegórico da “família ubaporanguense

209
Foto 27 Carrro alegórico da Família Ubaporanguense: “Ausente e Presente”

Foto 28 Momento festivo durante a festa: “ausentes” moradores do Morro dos Prazeres e
Escondidinho tocando pagode.

210

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