A Lógica Da Vida

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A lógica da vida – como uma velha área da matemática pode ajudar a abrir caminho por

entre a confusão das fake news e da brutalidade das discussões.

«Que a época atual é propícia não só à rápida disseminação de teorias falsas e ideias
perigosas como ao insulto enquanto forma (ou substituto) da argumentação, todos sabemos. Veja-
se qualquer página de comentários a assuntos correntes na internet. Poder-se-á dizer que é
democrático, pois toda a gente tem o direito de se fazer ouvir. Infelizmente, o estilo transitou para a
política mainstream, e hoje há políticos – e em particular, um Presidente dos Estados Unidos – que
insulta habitualmente os adversários políticos, faz bullying sobre quem o contraria e promove as
teorias mais bizarras sobre assuntos de grande importância. Diz-se que o exemplo vem de cima, e
seria ingénuo pensar que o exemplo de Trump não tem efeitos sobre o clima geral da discussão
pública. Embora Eugenia Chang, em “A Arte da Lógica num Mundo Ilógico”, evite mencionar o nome
dele, ninguém que leia o livro fica na dúvida. Basta ver a quantidade de vezes que ela mostra o seu
repúdio por gente que fala por cima dos outros e os brutaliza em vez de argumentar racionalmente.
A sua solução, ou melhor, a sua contribuição para tentar melhorar a qualidade do debate, é a
matemática. Mais precisamente, a lógica. Não se trata de encontrar respostas definitivas para as
coisas, embora Cheng tenha as suas opiniões, que transparecem nos exemplos que dá.
Genericamente, ela perfilha as posições e preocupações progressistas dos seus estudantes no Art
Institute de Chicago, onde é scientist-in-residence. Mas reconhece que há zonas cinzentas e a
verdade não raro tem limites. “Parte do desacordo acerca dos argumentos na vida é inevitável, pois
resulta da incerteza genuína acerca do mundo. Mas outra parte é evitável e podemos evitá-la
usando a lógica”, escreve. “As demonstrações matemáticas são geralmente muito mais extensas e
complexas do que os argumentos típicos da vida comum. Um dos problemas dos argumentos da vida
comum é que, com frequência, acontecem com muita rapidez e não há tempo para construir um
argumento complexo. Mesmo que houvesse tempo, os períodos de atenção tornaram-se demasiado
curtos. Se não resolvermos a questão com uma revelação espetacular, é muito provável que muitas
pessoas não nos acompanhem.” Nos 280 caracteres de um tweet, a brevidade é manifestamente
excessiva. “Resolver problemas da vida diária não é tão simples e não devemos de ser capazes de
fazê-lo com argumentos de uma ou duas frases, ou através de uma utilização direta da intuição” –
outra aparente referência ou Presidente dos EUA, que costuma elogiar a sua própria capacidade
instantânea de compreender tudo. E, mesmo nas zonas cinzentas, há instrumentos lógicos que
ajudam o navegante. Nascida em Hamppshire, em Inglaterra, Cheng estudou matemática em
Cambridge e especializou-se em Teoria das Categorias. É também uma pianista de nível profissional.
Livros como “How to Bake Pi” e “Beyond Infinity” afirmaram-na como uma excelente divulgadora de
ciência, com um sentido de humor onde não falta autoironia e uma tendência sedutora para usar
metáforas alimentares, nomeadamente envolvendo doces. O seu apelo essencial, se quisermos
resumir, é a um ritmo de discussão mais amplo. Um ritmo onde seja possível analisar os argumentos
dos outros e compreender de onde vêm – que valores essenciais refletem e qual a coerência interna
que possuem, ou não. Aí a lógica é um instrumento valioso. Ao aplicar níveis diferentes de
abstração, ela reduz os argumentos a mecanismos ou esquemas essenciais que permitem construir
analogias e identificar falsas equivalências e falsas dicotomias, revelar contradições e identificar
paradoxos, aparentes ou reais, e revelar outras estruturas subjacentes.
Como ilustração de falsa equivalência, Cheng refere uma resposta dada por vezes a quem
acha que meninas e meninos devem poder brincar com os mesmos brinquedos: não se deve querer
transformar meninos em meninas e vice-versa. O argumento original não diz isso, mas garantir que
sim transforma-o numa posição à qual é muito mais fácil responder. A tática é desonesta, conforma
Cheng nota, mas isso não a impede de ser utilizada diariamente a propósito de questões bastante
diferentes, tanto públicas como pessoais. Ambos estes tipos de questões são tratados no livro.
Desde as nuances do privilégio (objeto de um diagrama inspirado nos fatores de 30 a partir do qual
se fazem distinções vitais) até ao assédio sexual e à violência policial sobre negros, passando pela
abrangência dos serviços sociais, o direito universal à educação, a liberdade de expressão – se somos
obrigados a tolerar os intolerantes, e a dar-lhes plataformas para falarem – as eleições de 2016, e
até as dificuldades em perder o excesso de peso, os temas parecem ser todos pessoalmente caros à
autora. Quem diz caros diz emocionais. De facto, como a autora nota, nem sempre a lógica tem a
última palavra. Em si mesma, ela não diz se determinadas coisas são certas ou erradas; tudo
depende dos pressupostos, ou axiomas, de onde se parte. Cheng assume alguns dos seus, incluindo
a importância da bondade e do conhecimento científico, bem como a sua preferência pelos falsos
negativos sobre os falsos positivos, outra opção com enormes consequências na vida e em
discussões de variadíssimos tipos. No seu melhor, a lógica dá instrumentos para entender os
argumentos dos outros e os outros; e, com sorte, para facilitar uma discussão verdadeira. Claro que
muitas pessoas não querem realmente discutir, mas apenas afirmar as suas opiniões, tratando
aquilo que os seus oponentes dizem, ou vão tentando dizer, como uma espécie de deixas para
continuar o monólogo. É a argumentação enquanto performance, no sentido mais estéril. Mas
mesmo aí, a consciência das estratégias seguidas para fazer isso – muitas das quais Cheng explica
neste livro – pode ajudar a pessoa que está de boa-fé na discussão a fazer frente à barragem. Se os
erros lógicos forem identificados instantaneamente, ou as motivações de quem fala compreendidas
graças ao desmontar do argumento, é mais fácil dar uma resposta rápida e eficiente. Afinal, parte do
êxito do bullying passa por ter a última palavra.
“Na vida, há muitas formas de demonstrar que temos razão. Uma delas é berrar bem alto.
Outra é dizendo a todos os que discordam de nós que são estúpidos”, escreve Cheng. Em contraste
direto estão o método científico, que procura provas que confirmem ou não uma ideia, e a lógica,
que constrói os seus argumentos por implicação e de forma gradual. Explicar isso é a principal
justificação deste livro, que também funciona como introdução a conceitos básicos de uma área
pouco conhecida.» (Luís M. Faria, In Revista Expresso, março 2020)

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