ARQUIVO Texto

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 17

HISTÓRIA EM CRÔNICAS/CRÔNICAS DA HISTÓRIA:

FORTALEZA NAS DÉCADAS INICIAIS DO SÉCULO XX

JOSÉ DE ARIMATÉA VITORIANO DE OLIVEIRA

Para depreendemos, sob a ótica do historiador que no presente lança seu olhar
para o passado, as identidades urbanas que se constituíam na Fortaleza no início do
século XX, lançamos mão de relatos que, inseridos no contexto de mudança do período,
nos fornecem um panorama apto a captar o “espírito da época” (PESAVENTO,
1997:29).
Esse denominado “espírito da época” deve ser visado e considerado a partir da
concepção que estabelece a cidade de Fortaleza como um lugar de produção sócio-
econômico, político e cultural, lugar esse cuja definição tomamos de empréstimo a
Michel de Certeau.1
Para tal, se faz necessário que se construa uma narrativa a partir da análise das
narrativas em forma de crônica que abordaremos a seguir, para que assim se consiga
captar uma ação social que fora capaz de produzir certos vínculos, como também certas
identidades tendo como cenário a cidade de Fortaleza nas décadas iniciais do século
passado.
Acerca dessa discussão, nosso norte será o proposto por Paul Ricoeur, quando
este afirma que “de acordo com a orientação geral da historiografia que privilegiamos, o
referente último do discurso da história é a ação social em sua capacidade de produzir
vínculo social e identidades” (RICOEUR, 2007:396).
E como o referente último do discurso historiográfico (ou da narrativa histórica)
é a ação social, devemos, então, direcionar nosso olhar para os atores que viveram e
deram sentido a essas ações, buscando enfatizar com as crônicas históricas as quais
lançamos mão esses tais atores de uma história (sucessão de acontecimentos) já
decorrida e que chega até os nossos dias para sua devida apreciação enquanto história
(ciência historiográfica).


Mestre em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor das Faculdades INTA-CE.
1
Conforme ressalta Certeau, "toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-
econômico, político e cultural" (CERTEAU, 1982:66).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 1
Para ilustrar e conformar referido intento, cabe a seguinte citação de Ricoeur:

O historiador não tem apenas como contraponto mortos, para os quais ele
constrói um túmulo escriturário; ele não se dedica apenas a ressuscitar
viventes de outrora, que não existem mais, mas que existiram; ele se dedica a
re-apresentar ações e paixões. Quanto a mim, associo, explicitamente, a tese
favorável à idéia de que o referente último da representação historiadora é o
vivente antigo, atrás do ausente de hoje na história, à mudança de paradigma
que, na “guinada crítica” dos Annales dos anos 80, promoveu o que pôde
chamar de “paradoxo do ator”. A história visa não apenas ao vivente de
outrora, na retaguarda do morto de hoje, mas ao ator da história decorrida,
desde que se decida “levar a sério os próprios atores” (RICOEUR, 2007:396).

Como o historiador não apenas tem os mortos (ou seja, o passado) como
contraponto, cabe a esse, também, repensar sua relação (na escrita, na confecção de seu
texto) com o presente e mesmo com o futuro. Aqui mais uma vez recorreremos aos
escritos de Ricoeur:

Ora, as perplexidades mais tenazes, concernentes ao tratamento “factício” do


tempo pelo historiador, dizem respeito à articulação do saber histórico sobre
o trabalho de memória no presente da história. Gostaria de mostrar que, na
atitude por princípio retrospectiva comum à memória e a história, a
prioridade entre essas duas perspectivas do passado é indecidível. A
ontologia do ser histórico que abraça a condição temporal em sua tripartição
– passado, presente, futuro – está habilitada a legitimar esse caráter
indecidível, sob a condição da abstração do presente e do futuro (RICOEUR,
2007:396-397).

E ao utilizar as crônicas (ditas históricas, mas também tidas como


memorialísticas) visando à articulação do saber histórico sobre o trabalho de memória,
articulação essa proporcionada através justamente dessas crônicas, intentamos
precisamente visar essa memória que se faz viva no presente da história (ou do
historiador).
Antes de prosseguirmos, contudo, cabe esclarecer o sentido que imprimimos
aqui ao termo “crônica”. Esse termo deriva diretamente do nome do deus grego Cronos
e este por sua vez está diretamente relacionado ao tempo. Do nome do deus temos a
derivação resultante, "chronica", para daí alcançarmos o termo usual hoje em dia
empregado em língua portuguesa. Em suma, sempre que fazemos menção à palavra
“crônica”, devemos levar sempre em consideração que ela retém em si uma intrínseca e
inseparável ligação com o tempo.2

2
Ricoeur faz referência, diretamente, ao termo "tempo crônico". Cf. RICOEUR, 2007:163.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 2
E essa ligação da crônica com o tempo pode também ser auferida quando de
uma percepção acerca da época na qual a tomamos para análise. Sua conotação
atualmente empregada pode ser percebida na seguinte descrição de Sandra Pesavento:

Antes de tudo, cabe esclarecer que trataremos a crônica na sua acepção


contemporânea, ou seja, aquela narrativa curta, difundida pelos jornais, frente
a um mundo transformado pela modernidade urbana e pelos meios de
comunicação de massa, tal como se processou na civilização ocidental a
partir do século XIX. Nesta instância, a crônica é aquele artigo de consumo
diário, rápido e preciso, que se apresenta como produto a ser consumido por
um público leitor de jornal. (PESAVENTO, 2004:63).

Destarte, ousamos complementar o exposto por Pesavento, aditando-lhe mais um


significado, para que assim tenhamos um apanhado mais de acordo com nossas
pretensões. Assim sendo, recorremos à apresentação feita por Otacílio Colares ao livro
de crônicas "História Abreviada de Fortaleza", onde se pode ler que:

No caso deste livro de Mozart Soriano Aderaldo, a palavra “crônica” deverá


ser admitida em sentido duplo: o moderno, que subentende literatura em
prosa utilizando poeticamente fatos e coisas conhecidas do dia-a-dia, e o
antigo, que significa recomposição sentimental de fatos e coisas que
merecem resguardadas, sob pena de, com o tempo, ficarem perdidas sob a
pátina do tempo (COLARES, 1974:10).

Como podemos perceber no citado acima por Colares, a crônica (menos no


sentido contemporâneo ou moderno que no antigo) tem como alvo o tempo. Nesse caso
visa-se, sobretudo, um resguardo do tempo, para que com isso se proporcione o
recompor de fatos e de coisas que com o seu passar se vão desvanecendo.
A pátina do tempo, ao desbotar-se justamente com o seu transcorrer, vale-se da
crônica para que esse mesmo tempo tenha a possibilidade de ser resguardado. E o que
afinal se resguarda, com tal resguardo que se faz do tempo, senão as memórias?
Ainda dentre as definições de “crônica”, recorramos inicialmente a uma não
“definição”:

Sem ser tão despretensiosa e ligeira quanto supõe parte da crítica, a crônica
não se presta também a definições gerais que tentem, de uma tacada,
englobar todos os seus sentidos e características, como se fosse possível
chegar a uma sua suposta essência. Se a própria delimitação dos diversos
gêneros literários se mostra frágil e incerta, qualquer definição abstrata de
crônica terá sempre, como limite, a concretude de cada um desses pequenos
artigos. Escritas em verso ou prosa, ligadas à verdade ou ao sonho, têm em
comum o tipo de relação que estabelecem com a indeterminação da história
(CHALHOUB; NEVES; PEREIRA, 2005:17).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 3
Acerca do enquadramento da crônica a um determinado gênero, Afrânio
Coutinho a considera:

Gênero literário de prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral


efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e a argúcia na
apreciação, a graça na análise dos fatos miúdos e sem importância, ou na
crítica das pessoas (COUTINHO, 1971:109).

Outro autor que considera a crônica como uma fonte apropriada para a análise
dos fatos miúdos do dia-a-dia é Antônio Cândido, que em seminal artigo sobre o
assunto nos convida a ver a grandeza da crônica, qual seja, a grandeza da vida ao rés-
do-chão:

Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão


das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa
revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma
grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas (CÂNDIDO,
1992:14).

Consideramos ainda que chegar, através das crônicas, a esse “espírito da época”
que houvera marcado o período aqui estabelecido, não nos levaria a um caminho
unívoco, mas sim a uma polissemia de significados e sentidos. Conforme ressalta
Certeau, “o writing, ou a construção de uma escrita (no sentido amplo de uma
organização de significantes) é uma passagem, sob muitos aspectos, estranha. Conduz
da prática ao texto” (CERTEAU, 1982:94).
A construção de uma escrita constitui um momento delicado, passagem estranha,
parafraseando Michel de Certeau. Ampliando o sentido da palavra “passagem”, temos
tratar-se de um local por onde se passa; passadouro; um local de ligação.
E a que estaria a ligar afinal, nessa passagem, a escrita? Para Paul Ricoeur a
questão da escrita “não constitui, de modo nenhum, a problemática única do texto”
(RICOEUR, 1989:110). Teríamos também de levar em consideração o mundo que ela
abre. Ricoeur propõe que:

A tríade discurso-obra-escrita ainda constitui apenas o tripé que suporta a


problemática decisiva, a do projecto de um mundo, a que eu chamo o mundo
da obra e onde vejo o centro de gravidade da questão hermenêutica. Toda a
discussão anterior servirá apenas para preparar a deslocação do problema do
texto para o do mundo que ele abre (RICOEUR, 1989:110).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 4
Evidente que para o presente trabalho não devemos nem podemos gravitar
unicamente ao redor da questão hermenêutica delineada acima por Ricoeur. Mas rica é
sua contribuição, nesse quesito, à nossa problemática da escrita, problemática esta que
findará por desaguar em nossa abordagem acerca das crônicas sobre a cidade de
Fortaleza.
Se Certeau enfatiza a passagem da prática ao texto, o mesmo se propõe Ricoeur,
quando esse analisa o momento no qual o discurso se torna texto. E sobre o discurso
salienta ainda que “apenas o discurso, dizíamos nós, visa as coisas, se aplica à realidade,
exprime o mundo” (RICOEUR, 1989:120).
E nada mais apropriado que a crônica para exprimir um mundo específico (a
cidade de Fortaleza nas décadas iniciais do século passado) e ter a marcante
característica de buscar aplicar-se à realidade outrora vivida.
Ressaltamos que essa “realidade” deve ser compreendida sob a ótica do tempo
vivido por cada autor, ou seja, estamos fazendo referência à “realidade de cada autor”,
daí “estabelecendo uma reflexão sobre se o autor, ao escrever a crônica, está a fazer
uma história do seu tempo” (PESAVENTO, 2004:64).
Com relação a esse tempo, em um primeiro momento, iremos recorrer a três dos
principais cronistas cuja temática central é a cidade de Fortaleza e seu cotidiano.3 Com
tais autores temos visões díspares que dizem respeito não somente aos significantes de
suas próprias narrativas, mas que também ressaltam os significados do próprio ato de
suas narrativas e dos resultados daí decorrentes, posto que a crônica assume, para cada
um deles, o sentido seja de retrospectiva ou então o significado de narrar fatos
extraordinários e banais.
O primeiro desses cronistas mencionados, Otacílio Colares, considera que:

O trabalho do cronista, muita vez, em certas retrospectivas que promove, não


tem outro sentido que não o de tornar de novo conhecidos fatos e gente que,
com o passar do tempo, se vão perdendo, juntamente com os ossos dos que
por derradeiro os ouviram relatados dos maiores (COLARES, 1980:13).

Por sua vez, João Nogueira observa que:

3
Basta atentarmos para os títulos das três obras neste ponto abordadas, cujo foco centrado na capital
cearense, fica visível nos próprios títulos: Crônicas da Fortaleza e do Siará Grande; Fortaleza velha:
crônicas; Fortaleza descalça.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 5
Todo mundo sabe que a História e a crônica, de preferência, conservam os
fatos extraordinários e raros: guerras, terremotos, proezas de um herói, etc.,
deixando na sombra e quase no olvido os fatos da vida ordinária
(NOGUEIRA, 1981:106).

Enquanto isso, Otacílio de Azevedo ressalta as "esquisitices" daqueles por ele


considerados como tipos curiosos, ou seja, redundando desses tipos fatos nada
extraordinários:

Fortaleza esteve sempre cheia de tipos curiosos capazes de chamar a atenção


de quantos tivessem oportunidades de vê-los. Suas esquisitices, seu “humor”,
adereços, atitudes – tudo isso ficou gravado na crônica da cidade
(AZEVEDO, 1992:145).

Observamos dessa forma a multiplicidade de significados e sentidos que


comportam em si mesmas as crônicas. Conquanto Otacílio Colares atribua à crônica
uma significação muito similar ao da ciência historiográfica conforme a tratamos nos
moldes atuais (tornar de novo conhecidos fatos e gente), vemos João Nogueira “remar
contra a maré” dos que consideram a crônica como relativa tão-somente aos fatos
miúdos do dia-a-dia e afirmar que essas mesmas crônicas servem para conservar os
fatos extraordinários e raros, ao passo que Otacílio de Azevedo atribui-lhe um sentido
de história, mas não da história ciência, como o faz Colares, mas sim da história como o
acontecimento em si.
Acerca dessa discussão sobre a história e seus significados (história como
ciência ou como o acontecimento em si), cabe aqui um adendo. Em língua portuguesa,
diferente de outros idiomas (inglês com History e Story e alemão com Historie e
Geschichte, por exemplo) não temos diferenças entre essas duas vertentes. Porém, no
presente texto o significado dessas duas formas será aplicado tanto para a narrativa
proveniente do trabalho da ciência histórica quanto para a narrativa oriunda das
crônicas.
Dito isso, nesse momento a presente discussão vai enveredar pela relação
existente entre a crônica e a história, visto que “história e literatura são formas de „dizer‟
a realidade". (PESAVENTO, 2000:7). Essa realidade é visada de forma distinta por
ambas as consortes mencionadas:

História e literatura reconfiguram um passado. Trata-se, no caso da história,


de uma reconfiguração “autorizada”, circunscrita pelos dados fornecidos pelo
passado (as fontes), pela preocupação da investigação sobre documentos,
pelos critérios e exigências científicas do método. A literatura, ao contrário,

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 6
permite que o imaginário levante vôo mais livre e amplamente, que ele fuja,
numa certa medida, aos condicionamentos impostos pela exigência da
verificação pelas fontes.
Literatura e história se distinguem também pelo tipo de leitura que tencionam
provocar. A literatura tenta incitar, antes de mais nada, à empatia, à
identificação; ela visa criar uma proximidade entre o leitor e o passado, lá
onde a história pressupõe uma distância crítica entre o leitor, de um lado, e o
passado e o discurso do historiador, de outro. Ao mesmo tempo, o historiador
adota uma atitude mais “autoritária”. Ao domesticar, ao fixar, ao encaixar o
tempo com o objetivo de apresentar a sua visão do passado, ele apresenta “o
que poderia ter sido” como “o que foi”. É baseando-se no seu estatuto
científico que a história justifica a sua legitimidade como narração do
passado (DE DECCA; LEMAIRE, 2000:11-12).

Porém, muito mais que insuperáveis diferenças, teríamos consideráveis


similitudes, que se baseariam no aspecto ficcional empregado à realidade quando de sua
apreensão na forma de narrativa historiográfica: “a História – pela interpretação, pelo
subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também uma ficcionalização do
real” (SILVEIRA, 1992:27).
Trata também Paul Ricoeur dessa aproximação (ou se preferirmos
entrecruzamento) envolvendo as duas formas de narrativa abordadas nesse momento no
presente trabalho, que são a histórica e a ficcional.4 É e ao próprio Ricoeur a quem
vamos recorrer abaixo para uma breve apreciação acerca desse tema:

Por entrecruzamento da história e da ficção, entendemos a estrutura


fundamental, tanto ontológica quanto epistemológica, em virtude da qual a
história e a ficção só concretizam cada uma sua respectiva intencionalidade
tomando empréstimos da intencionalidade da outra. Essa concretização
corresponde, na teoria narrativa, ao fenômeno do "ver como...". (...)
Avizinhamo-nos pelo menos duas vezes do problema da concretização: uma
primeira vez quando tentamos, na esteira de Hayden White, elucidar a relação
de representância da consciência histórica com o passado enquanto tal, por
meio da noção de apreensão analogizante; a segunda vez quando, numa
perspectiva próxima da de R. Ingarden, descrevemos a leitura como uma
efetuação do texto considerado como uma partitura a executar. (...) Essa
concretização só é atingida na medida em que, por um lado, a história se
serve, de algum modo, da ficção para refigurar o tempo e, por outro lado, a
ficção se vale da história com o mesmo objetivo. Essa concretização
recíproca assinala o triunfo da noção de figura, na forma do figurar-se que...
(RICOEUR, 1997:316-317).

Tendo a ciência historiográfica, tal qual a literatura, em última análise, a ficção


como horizonte (guardadas todas as devidas proporções concernentes à verificação das
4
Cf. sobremodo acerca de tal discussão, o quinto capítulo da segunda seção, intitulado "o
entrecruzamento da história e da ficção", capítulo este que encontra-se por sua vez dividido em duas
partes, a saber, "a ficcionalização da história" e a "historicização da ficção", da seguinte obra:
RICOEUR, 1997:315-333.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 7
fontes e ao método), havemos de pensar como Hayden White. Não no que diz respeito a
seu “relativismo” que aboliria todas as fronteiras entre história e literatura, entre
realidade e ficção. Mas sim quando esse autor conclui que “toda explanação histórica é
retórica e poética por natureza” (WHITE, 1995:11).
A diferença primordial que podemos verificar entre a história e a crônica, ou
melhor, entre o historiador e o cronista, não estaria tão-somente na óbvia objetividade e
na determinada intencionalidade da escrita de ambos, mas sim na subjetividade de suas
respectivas pertinências explicativas, visto ser o cronista aquele que compila e historia
os fatos, sendo o historiador aquele que interpreta o fato, através do exame subjetivo
(SILVEIRA, 1992:29). Ou seja, enquanto o cronista compila, cabe ao historiador
interpretar. Porém, compilando ou interpretando, ambos almejam, ao final de suas
incursões, narrar. É a narrativa o fim a ser atingido tanto por quem escreve a crônica
como por aquele que produz a história (como representação historiadora).
Encetando um questionamento sobre a discussão concernente ao ato de narrar,
temos o seguinte problema: "que diferença separa a história e a ficção, se ambas
narram?" (RICOEUR, 2007:253). Acerca dessa discussão, recorramos ao prefácio (da
edição original de 1938) escrito por Eusébio de Sousa para o livro de crônicas de
Raimundo de Menezes. Conforme Sousa:

Suas crônicas, leves e sutis, tão bem feitas e tão bem coordenadas têm, para
mim, como diria alguém, um sabor mágico, sugestionador, um fortíssimo
poder de evocação, porque nelas há muita coisa deliciosa, um colorido que
sobrepuja, na fixação de individualidades e de fatos (SOUSA, 2000:24).

Prosseguindo na apreciação introdutória da obra cronística de Menezes, ressalta


ainda Sousa que:

Não é só para mim que as suas crônicas têm valor. Sei – e estou certo disso –
existir nesta terra muita gente que aprecia esse gênero de literatura, por certo
o mais apropriado para se conhecer a História, pois, está mais ou menos
verificado – se não estou enganado, foi Mário Melo quem isso escreveu – que
só os especialistas procuram ler e estudar essa mesma História nas suas
fontes, enquanto a maioria demonstra agrado em ler fatos esparsos, máxime
se a narrativa se afasta do estilo adequado ao cronologista (SOUSA,
2000:25).

Conforme podemos deduzir do exposto acima por Eusébio de Sousa, caberia


somente aos especialistas, nesse caso específico os historiadores, construir uma
narrativa através de uma interpretação dos fatos (ler e estudar as fontes). Tal rigor não

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 8
seria necessário aos cronistas, por exemplo, posto que estes poderiam apresentar, já que
a eles caberia tão-somente a compilação dos fatos, um afastamento de um estilo (rigor)
adequado ao cronologista, leia-se mais uma vez, historiador.
Podemos, dessa maneira, considerar que a diferença mater entre a narrativa
histórica e aquela em forma de crônica não inviabiliza o intercurso entre ambas no que
concerne sua condição de narrativa (afinal, ambas narram, devendo-se considerar e
ressaltar aí a intencionalidade de quem dispõe e usufrui de cada uma dessas formas de
narrar), pois conforme salientado abaixo, tais narrativas representariam dois tipos
(válidos) de inteligibilidade:

Em vez de jogar uns contra os outros adversários e defensores da pertinência


explicativa da narrativa enquanto ato configurante, pareceu mais útil
interrogar-se sobre a forma como podem compor-se juntos dois tipos de
inteligibilidade, a inteligibilidade narrativa e a inteligibilidade explicativa
(RICOEUR, 2007:254-255).

E essas duas formas de inteligibilidade logo acima mencionadas, a narrativa e a


explicativa, podem ser auferidas tanto na crônica como na história, visto que "a
coerência narrativa tem raízes na primeira e articula-se com a segunda" (RICOEUR,
2007:255). Ambas, história e crônica, narram e explicam, a sua própria maneira,
determinados fatos e acontecimentos.
Já com relação a tal coerência narrativa, acreditamos que essa deva ser
enfatizada como um processo que se manifestaria, afinal, desde a construção do texto
até a participação daquele sujeito que lê determinada obra narrativa, todo esse processo
inserido em um contexto de inteligibilidade. Acerca das intenções e expectativas (ou
seja, da coerência) desse sujeito que lê, bem, aqui não nos cabe tecer comentários ou
ponderações, visto que dito intento fugiria de nossa almejada alçada.
Dando seguimento, chegamos a outro autor que se refere à associação entre a
narrativa histórica, a subjetividade e a ficcionalidade. Esse autor é Jörn Rüsen. Para esse
historiador alemão:

A história é apreendida, pela linguagem e pela metáfora, como campo de


experiência, como o supra-sumo do que é interpretável historicamente (na
narrativa). Essa apreensão se dá no domínio global da experiência do tempo,
antes de serem elaborados, em forma de teorias, conceitos elementares ou
categorias. Essa apreensão não depende da conceituação de uma teoria
específica. Tirar daí a conclusão que o conhecimento histórico possui caráter
fundamentalmente poético, “literário” ou “retórico”, não convence, se esses

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 9
termos tiverem a conotação de “não-científico” ou “incapaz de ser científico”
(RÜSEN, 2007:63).

Sendo assim, considerando o imediatamente acima exposto por Rüsen no que


tange o cuidado que cabe ao historiador em sua labuta, que nunca deve perder de vista o
caráter científico da história, também não devemos ignorar a ligação da ciência histórica
com aspectos comumente mais relacionados à literatura, tais quais a ficcionalidade.
Mas se a história é uma ciência (com todos os preceitos e obrigações que se
exigem e impõem a qualquer campo de atuação epistemológica) com características que
não a deixam escapar totalmente da ficcionalidade, persiste-nos a questão: e a crônica,
onde se situa? Como podemos seguramente classificá-la? Será ela, ao contrário da
história, uma ficção (literatura) com pitadas de ciência? Encontramos em outro autor,
Raimundo Girão, uma resposta que nos parece plausível: seria a crônica uma quase
história.
Mas cabe a ressalva: não seria qualquer crônica, mas sim especificamente um
modelo, a crônica-histórica. Cita Girão, ao tratar de sua obra cujo título já é deveras
elucidativo quanto a seu objetivo (Fortaleza e a Crônica Histórica), que:

O nosso intuito é particularizar, em atinência à capital cearense, a sua


crônica-histórica, a qual bem se poderá dizer que é uma quase-história com
a diferença de que a História registra e desseca friamente o fato-histórico, ao
passo que a Crônica-história não pretende ir ao exame fundo desse fato, é
mais por cima, mais literária, menos exigente (GIRÃO, 1983:9).

Para Raimundo Girão, portanto, a diferença principal entre a ciência histórica


(que pode ser considerada como História, com maiúsculo) e a crônica, ou posto de outra
forma, entre o historiador e o cronista, é que cabe ao primeiro registrar e dessecar
(também caberia o verbo dissecar?) friamente os fatos (seria essa frieza proveniente do
rigor cientifico?), enquanto ao segundo não caberia tal rigor, posto que a ele não
competiria ir ao exame mais profundo dos fatos, sendo por isso mesmo sua postura
menos exigente.
Porém, essa “menor exigência” que caberia e se esperaria do cronista não o
livraria de certo “rigor”, pois o cronista-histórico não se desvencilha da exigência de
verdade:

O cronista-histórico faz, na verdade, uma espécie de obra artística, querendo


apresentar ao leitor as coisas e os fatos de modo menos rígido, ao contrário

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 10
mais ameno, suave, sem contudo esquecer que não os deve enfeitar a ponto
de transformá-los em mentira. A criatividade do crítico-histórico não é
liberta, imaginosa, senão muito encostada à chamada verdade histórica, ainda
que mais literariamente escrita. O verdadeiro cronista-histórico não inventa,
não entrega o espírito ao devaneio, às idealizações que se comportam dentro
das outras espécies de crônicas: crônica literária, crônica social, crônica
esportiva, crônica religiosa, etc (GIRÃO, 1983:9).

Ao tratar das limitações que caberiam ao “verdadeiro” cronista-histórico, que


não inventa, Girão nomeia as outras variedades de crônica, como que demonstrando
claramente sua intenção em delimitar o campo reservado à crônica histórica.
Esse campo, portanto, afasta-se sobremaneira do literário, fazendo com que a
crônica dita histórica, na visão de Girão, esteja entre a literatura e a ciência histórica, ou
seja, se ela é “quase história”, por extensão podemos considerá-la também “quase
literatura”.
Tal delimitação proposta por Raimundo Girão é utilizada pelo historiador
Sebastião Rogério Ponte (que a ele diretamente faz menção), que na introdução a
reedição do livro “Coisas que o Tempo Levou”5, livro este “de crônicas históricas sobre
Fortaleza entre o século XIX e início do século XX” (PONTE, 2000:10), observa que:

Coisas que o Tempo Levou... não é um livro de História, mas de crônicas


históricas. A crônica histórica, ressalta o historiador Raimundo Girão, é um
gênero literário que se move na fronteira entre história e literatura: embora
tenha preocupações artísticas, sem compromisso maior é com a história, mas
sem precisar aprofundar-se nos rigores exigidos pela investigação histórica.
Nesse sentido, continua Girão, a crônica histórica é quase história (PONTE,
2000:11).

É interessante perceber o salientado acima pelo historiador Ponte, que assim


também intitula Girão, mas que observa que o autor de “Coisas que o Tempo Levou”,
Raimundo de Menezes, era “bacharel em Direito, não era historiador, não pertencia ao
Instituto Histórico do Ceará” (PONTE, 2000:11). Daí a ressalva que esse não era, de
fato, um livro de história, mas sim de crônicas históricas.
Mesmo sendo caracterizada como uma “quase história”, a narrativa em forma de
crônica não perdera (e nem poderia perder) o cuidado, a atenção ou mesmo a
desconfiança (como que uma advertência aos historiadores) que a fazem acompanhar e
que constantemente devem ser lembrados, pelo historiador, através da simples presença
do advérbio “quase”.

5
Cuja edição original é do ano de 1938.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 11
Ainda na apresentação do livro de Raimundo de Menezes, continuamos na
apreciação do explorado por Ponte:

Por outro lado, o cronista histórico não deve perder completamente de vista o
teor artístico que cabe a esse gênero, devendo, porém, atentar para o risco de
não “enfeitar” demais os fatos abordados a ponto de esvaziá-los. Ou seja: a
crônica histórica não permite a invenção ou a idealização facultadas apenas
às crônicas puramente literárias, não históricas (PONTE, 2000:11-12).

Como à crônica histórica não seria permitida a invenção, conforme observa


acima Ponte, podemos depreender o quão cuidadosos eram (ou ao menos deveriam ser)
os cronistas históricos no que concerne a veracidade de suas narrativas. Um exemplo
que podemos citar é o de João Nogueira, que ao tratar desse assunto, em uma crônica
sua, deixa bem claro que toda crônica “tem sempre por ponto de partida um grãozinho
de verdade” (NOGUEIRA, 1981:186).
À preocupação que os cronistas tinham com a veracidade juntava-se uma outra,
a que dizia respeito ao temor de ter seus textos fora da perfeita conformidade com a
língua vernácula, como bem o demonstra Otacílio de Azevedo, que ao relatar a
apreensão quando do lançamento de seu primeiro livro, no ano de 1916, salienta que
“lia e relia, vezes angustiado, à procura de um possível erro tipográfico que pudesse ser
visto pelos leitores” (AZEVEDO, 1992:258).
A inquietude de Azevedo em se ter um texto acurado, sem máculas que
pudessem lhe atribuir seus leitores, demonstra bem a relação que envolve a escrita de
um texto com os leitores deste mesmo texto. E essa relação carrega consigo, como bem
o assinala Azevedo, toda uma carga de tensão. Ilustrando bem essa conexão, recorremos
a uma análise feita por Thana Mara de Souza, a partir de sua leitura de Sartre. Dessa
forma temos que:

Assim, se ele [o escritor] cria, já não é capaz de ler o que escreveu, e é por
isso que apela para o leitor a fim de que este faça sua escrita existir. A prosa
só existe pelo esforço conjunto do escritor e do leitor, e é nessa relação tensa
e necessária que a obra de arte se torna um objeto concreto e imaginário
(SOUZA, 2008:121).

Se a relação é tensa, do mesmo modo é necessária, pois somente existe o escritor


se porventura houver leitores (tal premissa aplica-se, sobretudo, se estamos a falar de
crônicas). E essa confluência permite que a obra de arte, no nosso caso a narrativa em

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 12
forma de livro, se torne um objeto que assume em si tanto características concretas
quanto imaginárias.
Tendo a cidade de Fortaleza, portanto, como o palco onde se consubstanciava e
personificava essa relação, nos vemos diante de uma cidade que vivia um período
enlevado em diversas transformações. Tais transformações se refletiam no cotidiano e
no imaginário dos citadinos.
Daí considerarmos que ressaltamos com as crônicas a relevância destas serem
"uma narrativa por excelência apropriada para o estudo do imaginário de uma época"
(PESAVENTO, 1997:34).
Sobre esse caráter imaginário e representativo que recai sobre a narrativa em
forma de crônica (mas do mesmo modo também à narrativa histórica), recorremos nesse
momento a Ricoeur, quando este se vale de um "fenômeno" para exemplificar tal
situação. Para esse autor "é no fenômeno do rastro que culmina o caráter imaginário dos
conectores que marcam a instauração do tempo histórico" (RICOEUR, 1997:320). E o
que vem a ser esse rastro? Ou melhor, como podemos identificá-lo para daí perscrutá-
lo? Informa-nos, então, Ricoeur que:

São justamente as atividades de preservação, de seleção, de agrupamento, de


consulta, que mediatizam e esquematizam, por assim dizer, o rastro, para
transformá-lo na última pressuposição da reinscrição do tempo vivido (o
tempo com um presente) no tempo puramente sucessivo (o tempo sem
presente). Se o rastro é um fenômeno mais radical do que o do documento ou
do arquivo, em compensação é o processamento dos arquivos e dos
documentos que faz do rastro um operador efetivo do tempo histórico
(RICOEUR, 1997:320).

Teríamos assim definido o caráter imaginário das atividades que mediatizam e


esquematizam o rastro, atividades estas que por sua vez viabilizariam a consecução do
trabalho historiográfico, como também da narrativa literária (crônicas). Esse caráter:

É atestado no trabalho de pensamento que acompanha a interpretação de um


resto, de um fóssil, de uma ruína, de uma peça de museu, de um monumento:
só lhe atribuímos seu valor de rastro, ou seja, de efeito-signo, ao nos afigurar
o contexto de vida, o ambiente social e cultural, em suma, (...) o mundo que,
hoje, falta, por assim dizer, ao redor da relíquia. Mas tocamos aqui, com a
expressão afigurar-se, numa atividade do imaginário que é mais fácil de
cingir no âmbito da análise que se segue. (RICOEUR, 1997:320-321).

Segue adiante, assim, Paul Ricoeur em sua análise acerca do papel mediador
exercido pelo imaginário no que tange sua validade como um rastro que se preza a uma

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 13
apreciação, em forma de narrativa, do tempo vivido. Porém, por aqui ficamos nesse
ponto especificamente abordado, tentando ao menos, a partir do exposto acima, ressaltar
a importância dos rastros que por nós são tidos e havidos como, sobretudo, a
experiência de vida dos autores das crônicas aqui abordadas nesse tempo vivido e nesse
espaço habitado.
Essa experiência, que se consubstancia em narrativa a partir do imaginário
desses respectivos autores, afigura-se no contexto da vida de cada um deles, no
ambiente social e cultural representado pela cidade de Fortaleza no período específico
de confecção de suas obras.
Além da noção acima proposta por Ricoeur acerca do rastro, que mediatizaria e
esquematizaria o imaginário, também se faz importante ressaltar que a crônica só se
torna uma narrativa apropriada para se depreender o imaginário de um determinado
lugar em uma época específica se tivermos uma convenção, que atribui à narrativa do
autor uma consistência realmente plural, ou seja, é este sujeito plural que sustenta o
discurso.
De acordo com Certeau “o nós do autor remete a uma convenção (dir-se-ia em
semiótica, que ele remete a um „verossímil enunciativo‟). No texto ele é a encenação de
um contrato social „entre nós‟. É um sujeito plural que „sustenta‟ o discurso”
(CERTEAU, 1982:71).
Finalmente chegamos ao ponto em que se evidenciariam os autores/escritores,
ou melhor, os cronistas históricos que tanto merecem nossa atenção, além obviamente
de suas respectivas obras. Porém, não cabe aqui, devido ao tamanho limitado do texto,
ir a esses autores e nos debruçar mais detidamente sobre suas narrativas, mas ao menos
urge que façamos mais uma justificativa acerca da utilização das crônicas como uma
relevante fonte para o “fazer-se história”.
Observamos que de uma maneira distinta ao do documento no sentido positivista
do termo, a crônica requer uma abordagem muito específica, retratada pela relação entre
ficção e história. De acordo com Margarida de Souza Neves, através das crônicas,

É possível uma leitura que as considere “documentos” na medida em que se


constituem como um discurso polifacético que expressa, de forma certamente
contraditória, um “tempo social” vivido pelos contemporâneos como um
momento de transformações (NEVES, 1992:76).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 14
Acerca da crônica e de sua importância para o historiador do presente em sua
ânsia por apreender as sensibilidades passadas, temos que,

O ofício do historiador, contudo, nos faz olhar para as crônicas passadas


como registros sensíveis de um tempo e nelas procurar realizar aquela
ambição de captar o sentido das ações e das formas dos homens do passado
perceberem a si próprios e ao mundo. Para o historiador do presente a crônica
se oferece como um exercício imaginário para a apreensão das sensibilidades
passadas PESAVENTO, 1997:31).

As crônicas podem ser consideradas relevantes documentos na labuta


empreendida pelo historiador porque se estabelecem enquanto elementos que descrevem
as novidades desse momento de transformações situado nas décadas iniciais do século
XX, captando assim suas sensibilidades. Nada melhor que as crônicas, portanto, para se
captar elementos que, devido sua presumível "irrelevância", costumam passar
despercebidos por outras formas de registro do passado.
Tendo em vista a discussão anterior e apesar de enfatizarmos não ser essa a
nossa intenção aqui, a de enveredarmos pelas questões pertinentes às sensibilidades,
bem cabe uma referência acerca da compreensão desse termo. Conforme o define
Sandra Pesavento:

Sensibilidades se exprimem em atos, em ritos, em palavras e imagens, em


objetos da vida material, em materialidades do espaço construído. Falam, por
sua vez, do real e do não real, do sabido e do desconhecido, do intuído ou
pressentido ou do inventado. Sensibilidades remetem ao mundo do
imaginário, da cultura e seu conjunto de significações construído sobre o
mundo. Mesmo que tais representações sensíveis se refiram a algo que não
tenha existência real ou comprovada, o que se coloca na pauta de análise é a
realidade do sentimento, a experiência sensível de viver e enfrentar aquela
representação. Sonhos e medos, por exemplo, são realidades enquanto
sentimento, mesmo que suas razões ou motivações, no caso, não tenham
consistência real (PESAVENTO, 2003:58).

Ainda de acordo com Sandra Pesavento, é este mundo do sensível que incorre
nas formas de valorizar e classificar o mundo ou de atuar diante de determinadas
situações e agentes sociais. Em suma,

As sensibilidades estão presentes na formulação imaginária do mundo que os


homens produzem em todos os tempos. Pensar nas sensibilidades, no caso, é
não apenas mergulhar no estudo do indivíduo e da subjetividade, das
trajetórias de vida, enfim. É também lidar com a vida privada e com todas as
suas nuances e formas de exteriorizar – ou esconder – os sentimentos
(PESAVENTO, 2003:58-59).

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 15
Enfim, é no fato de terem abordado, através de suas crônicas históricas, o mundo
que se produziu no seu referente tempo, qual seja, as décadas iniciais do século passado,
que direcionamos nossa atenção para essas narrativas que tinham na cidade de Fortaleza
a inspiração e seu palco privilegiado de ação, onde se atuava (vivia) em uma época de
muitas transformações, muitas das quais magistralmente captadas pelos cronistas
históricos.
Eis assim, basicamente, a intenção primordial das crônicas históricas escritas
sobre a cidade de Fortaleza nas décadas iniciais do século passado: preservar o tempo
pretérito (o tempo vivido pelos cronistas, com todas as transformações advindas nesse
período) para que aqueles que viveram a época narrada se lembrem/recordem e para que
aqueles que não viveram tal período possam tomar conhecimento póstero.
Como nos enquadramos nesta última categoria, é através e a partir desse
conhecimento, oriundo das narrativas em forma de crônica, que elaboramos nossa
própria narrativa, em suma, também uma narrativa, porém historiográfica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça. 2. ed. Fortaleza: UFC/Casa de José de


Alencar, 1992.
CÂNDIDO, Antônio. A vida ao rés-do-chão. In: CÂNDIDO, Antônio (et al.). A
crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1982.
CHALHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo Affonso de
Miranda (org.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no
Brasil. Campinas, SP: ed. Unicamp, 2005.
COLARES, Otacílio. Á guisa de apresentação. In: ADERALDO, Mozart Soriano.
História abreviada de Fortaleza e crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza:
Imprensa Universitária da UFC, 1974.
______. Crônicas da Fortaleza e do Siará Grande. Fortaleza: Ed. UFC/PMF, 1980.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 2. ed., v. 6. Rio de Janeiro: Sul
América, 1971.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 16
DECCA, Edgar Salvadori de; LEMAIRE, Ria (org.). Pelas margens: outros caminhos
da história e da literatura. Campinas, SP: Ed. da Unicamp; Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 2000.
GIRÃO, Raimundo. Fortaleza e a crônica histórica. Fortaleza: Imprensa Universitária
da UFC, 1983.
NEVES, Margarida de Souza. In: CÂNDIDO, Antônio (et al). A crônica: o gênero, sua
fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Unicamp; Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
NOGUEIRA, João. Fortaleza velha: crônicas. 2. ed. Fortaleza: Ed. UFC/PMF, 1981.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Crônica: a leitura sensível do tempo. Anos 90, Porto
Alegre, n. 7, jul. 1997.
______ (org.). Leituras cruzadas: diálogos da história com a literatura. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS, 2000.
______. História e história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
______. Crônica: fronteiras da narrativa histórica. História Unisinos, São
Leopoldo/RS, v. 8, n. 10, jul/dez 2004.
PONTE, Sebastião Rogério. Introdução. In: MENEZES, Raimundo de. Coisas que o
tempo levou: crônicas históricas da Fortaleza antiga. Fortaleza: Ed. Demócrito Rocha,
2000.
RICOEUR, Paul. Do texto a acção: ensaios de hermenêutica II. Porto: RÉS, 1989.
______. Tempo e narrativa. Tomo III. Campinas, SP: Papirus, 1997.
______. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Ed. UNICAMP,
2007.
RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado: teoria da história II: os princípios da
pesquisa histórica. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 2007.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Fernão Lopes e José Saramago, viagem – paisagem –
linguagem, cousa de veer. In: CÂNDIDO, Antônio (et al.). A crônica: o gênero, sua
fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Ed. da Unicamp; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
SOUSA, Eusébio de. Prefácio da edição original. In: MENEZES, Raimundo de. Coisas
que o tempo levou: crônicas históricas da Fortaleza antiga. Fortaleza: Ed. Demócrito
Rocha, 2000.
SOUZA, Thana Mara de. A relação entre escritor e leitor. In: Sartre e a literatura
engajada: espelho crítico e consciência infeliz. São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 2008.
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Ed.
Universidade de São Paulo, 1995.

Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011 17

Você também pode gostar