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“O Brasil não é para principiantes”. A conhecida frase de Tom Jobim parece captar a
essência do trabalho do Professor Paulo Emilio Matos Martins, nascido em Belém (PA) e
radicado no Rio de Janeiro, Paulo Emilio reúne qualidades dignas de nota. Além de ser um
pesquisador metódico e comprometido com a realidade nacional, coordenador e fundador do
Núcleo de Estudos de Administração Brasileira (ABRAS) - grupo de pesquisa brasileiro mais
antigo sobre Estudos Organizacionais, área Administração do Diretório de Grupos de
Pesquisa (CNPq), é um professor dedicado a seus alunos e uma figura humana da maior
estirpe. Também é um erudito, conhecedor da cultura mundial e nacional, figura rara nos
tempos atuais, exibindo em sua biblioteca uma coleção invejável de grandes clássicos da
literatura mundial, muitos dos quais afirma ter relido incontáveis vezes.
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Janeiro, 2001) e Hucitec (São Paulo, 2018), provavelmente sua produção literária mais
importante - resultado de uma obstinada pesquisa documental, bibliográfica e de campo,
realizada ao longo de mais de uma década, seguindo os passos de Antônio Conselheiro e da
Guerra de Canudos no sertão nordestino e buscando compreender a organização social e o
sistema de poder “conselheirista” no Bello Monte (BA, 1893-1897). Alguns chegam a brincar
que Paulo Emilio é um pouco Euclides da Cunha, tamanha sua identificação com Canudos e a
história de Conselheiro e do povo que lá viveu e foi sacrificado. Não, à toa, entre seus muitos
prêmios e títulos, encontra-se o Mérito Euclidiano, conferido em 2009 pela Casa de Euclydes
da Cunha da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Diria que ele também é um
pouco Conselheiro, considerando sua indignação permanente com as desigualdades e
mazelas deste país e seu ímpeto em buscar, na história e nos autores brasileiros, explicações
que nos façam compreender melhor e transformar a nossa realidade. Paulo Emílio é, nesse
sentido, um investigador dos Estudos Organizacionais Críticos “de sinal trocado” - aludindo
sua tese de doutoramento sobre a autoridade de Antônio Conselheiro como sendo a de um
“coronel com o sinal trocado”, ou um “coronel pelo avesso”, em paródia à metáfora euclidiana
do sertanejo como um “homem pelo avesso” - que subverte a tradição epistemológica do
campo, marcada pelo funcionalismo, pelo culto ao estrangeiro e pela aceitação da mimesis na
produção do conhecimento.
A entrevista que gerou este texto ocorreu ao longo de duas tardes em sua casa em
Nova Friburgo (RJ), totalizando, aproximadamente, oito horas de gravações. A temática inicial
era o Pensamento Social Brasileiro nos Estudos Organizacionais, mas falar sobre Canudos
acabou se mostrando inevitável. Durante a edição deste texto, tive dúvidas sobre o quanto das
muito interessantes histórias sobre sua pesquisa de campo deveria deixar na versão final. Ao
fim e ao cabo mantive muitas passagens inteiras, que, juntas, terminam por formar um
panorama muito interessante sobre a importância de estudar o “espaço-dinâmica
organizacional” brasileiro (expressão esta cunhada pelo entrevistado) a partir do
pensamento social que sobre o mesmo se produz.
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Para realizar essa entrevista tive o privilégio de ser recebido por Paulo Emilio, por um
final de semana, em seu escritório de trabalho, localizado em na região serrana fluminense,
em meio a Mata Atlântica. Espaço este que, além abrigar uma invejável biblioteca muito
organizada e um arquivo de documentos, também reúne itens curiosos, por exemplo, um
antigo gramofone em perfeito funcionamento, motivo pelo qual Paulo Emilio se refere a sua
residência como sendo, também, “uma espécie de museu”. Entre ótimas refeições e passeios
conheci um pouco mais do homem por trás do professor. Quando começamos esta entrevista,
ele perguntou se eu me importava de deixar uma trilha de jazz ao fundo, para ajudar as ideias
a fluírem. Em certo momento, serviu dois copos de whisky para nos aquecer (não sei se o
corpo ou o espírito). Paulo Emílio tem muito o que dizer, e diz. Espero que essa entrevista
inspire outros acadêmicos na busca pelo comprometimento com a realidade nacional, pelo
gosto por objetos de pesquisa que permitam o resgate de nossa história e a valorização de
nossa produção intelectual. Que seja também uma lembrança perene sobre a importância da
busca pela profundidade teórica e empírica, contradizendo uma realidade produtiva que
empurra os acadêmicos cada vez mais rumo ao que é rápido, efêmero, passageiro e ilusório.
PROFESSOR PAULO EMILIO, PARA INICIARMOS, VOCÊ PODERIA CONTAR COMO VOCÊ SE
TORNOU PROFESSOR DE ADMINISTRAÇÃO?
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Comecei a trabalhar muito cedo como educador. Iniciei aos 18 anos de idade,
ministrando aulas de Geometria Descritiva para o cursinho de vestibular onde eu havia me
preparado para os exames de ingresso na Universidade. Iniciei, portanto, como professor em
uma área completamente diferente da qual eu hoje atuo. Mas, de certa forma, devo a minha
descoberta da Administração à Engenharia.
cima (apontando para uma prateleira de sua biblioteca), aquilo ali é o meu arquivo de
trabalhos técnicos de engenharia. Eu não consigo descartar nada. Ali têm trabalhos
importantes. Eu jurei, para mim mesmo, que, um dia, escreveria um livro técnico sobre a
história da engenharia industrial no Brasil, e aquela coleção contém preciosos documentos
históricos, registros de momentos que a minha geração - que está se retirando - viveu. Ali tem
coisas fantásticas como, por exemplo, documentos dos estudos para as montagens dos: vão
central (caixões metálicos) da Ponte Rio–Niterói, das comportas da Usina Hidrelétrica de
Itaipu, do reator da Usina Nuclear de Angra dos Reis, do reator e de outros equipamentos de
grande porte do polo petroquímico da Bahia, dos altos-fornos da ampliação e modernização
do parque siderúrgico brasileiro e de outros levantamentos de cargas que, com a limitação
dos equipamentos de manobra disponíveis no Brasil de então, exigiam muita criatividade e
redobrado cuidado no planejamento e cálculo dessas operações.
Assim, a decisão de mudar de área de atuação profissional foi muito difícil, quando eu
já era um engenheiro sênior, mas eu nunca me arrependi de havê-la tomado. Eu já estava
mesmo cansado de sair correndo para dar aula e fazer isso como uma segunda atividade. Era,
então o início dos anos 1980. Depois veio o curso de mestrado em Administração Pública na
EBAP/FGV, o doutoramento em Administração de Empresas na EAESP/FGV e a dedicação
exclusiva à Universidade.
VOCÊ PODERIA FALAR UM POUCO MAIS SOBRE O INÍCIO DE SUA CARREIRA ACADÊMICA
PROPRIAMENTE DITA.
Em 1984, ano de meu ingresso na carreira docente do Ensino Superior Federal, como
professor concursado da Universidade Federal Fluminense (UFF) começa, de fato, a minha
maior dedicação integral à Academia e o aprofundamento no Pensamento Social Brasileiro.
Eu ministrava, então, uma disciplina eletiva para o curso de graduação em Administração da
UFF e propus como tema de estudos a História Administrativa do Brasil. Iniciávamos o curso
com a administração brasileira do período colonial e os modelos organizacionais que o
sucedem historicamente. Dessa época emerge a necessidade de historicizar o que eu
denomino “espaço-dinâmica organizacional” no Brasil (público e privado) tanto do ponto de
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Ainda dentro dessa disciplina, depois incluída como matéria obrigatória no currículo
da UFF com o nome de Administração Brasileira (1991), nasceram as primeiras pesquisas de
alunos (de graduação) por mim orientadas, abrindo espaço para o surgimento de um grupo
de pesquisa, então denominado Grupo de Investigação em História Administrativa do Brasil
(1988). Este foi o embrião do grupo que hoje se chama Núcleo de Estudos de Administração
Brasileira (ABRAS), sediado no PPGAd/UFF. Os documentos dos projetos pioneiros do ABRAS
atestam que ele é o sexto grupo de pesquisa mais antigo da área de Administração no Brasil e
o primeiro nos Estudos Organizacionais, de acordo com uma investigação recente (ainda
inédita) feita pelo ABRAS no banco de dados do Diretório dos Grupos Brasileiros de Pesquisa
do CNPq.
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Foi na EBAPE que iniciamos nossa parceria acadêmica com o grupo Organização e
Práxis Libertadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, principalmente através da
Professora Maria Ceci Misoczky. Estreitamos, então, os nossos laços e interesses acadêmicos
comuns ampliando o uso do pensamento social e da literatura interpretativa do Brasil como
referência teórica nos Estudos Organizacionais. Em comum elaboramos o projeto O
Pensamento Social Brasileiro na Qualificação do Ensino e da Pesquisa em Administração e
fomos contemplados com o seu financiamento pela CAPES. Desse projeto participou, também,
como instituição convidada, a UFF que, então, trabalhava na criação do seu Programa de Pós-
Graduação em Administração (PPGAd) com foco em Administração Brasileira e a utilização
intensiva do Pensamento Social Brasileiro como tema e referência teórica de concentração.
Esse fato tem a ver com o interesse nosso em focar o ato administrativo como um
fenômeno histórico e culturalmente referenciado. Quando falamos de gastronomia, falamos
das culinárias oriental, africana, brasileira, amazônida, etc. Isso tem a ver com o modus
operandi e a “cosmogonia” que estruturam os valores dessa cultura e de sua dinâmica social.
A maneira como se dá a vida organizacional é, como eu entendo, um fato cultural, e por isso,
histórico e também singular. Foi essa a razão que despertou a curiosidade dos colegas latino-
americanos e ibéricos pelo Pensamento Social Latino-Americano e as nossas raízes comuns. A
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Posso dizer, muito rapidamente, que a análise orientada para a realidade social
brasileira supõe o estudo da memória nacional, além da interpretação das representações
sociais resultantes de nossa práxis organizacional. E que essa memória invoca o Pensamento
Social e as interpretações do Brasil, não apenas os de origem acadêmica, mas também aqueles
que resultam da criação popular da nossa gente, incluindo aí a memória física (arquitetura,
indústria, pintura etc.), oral, literária e musical. Os Sertões, por exemplo, não é um livro
acadêmico. Ainda que seu autor, Euclides da Cunha, tenha alimentado o desejo de um
concurso, jamais realizado, para o magistério na Escola Politécnica e ministrado apenas
algumas poucas aulas no Colégio Pedro II, sua obra interpretativa do espaço-dinâmica
organizacional do semiárido nordestino (Os Sertões) e da Amazônia (À Margem da História)
são preciosas fontes para o conhecimento de nossa sociedade. Outros autores, como Sérgio
Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal foram acadêmicos e escreveram a
partir da memória nacional, sendo, também, fontes importantes para a compreensão de nossa
realidade. O primeiro, mais conhecido por sua obra Raízes do Brasil e o segundo, pelo seu Os
Donos do Poder e o terceiro, por Coronelismo, Enxada e Voto. Temos, ainda, o caso singular
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do Gilberto Freyre que até hoje se discute se a sua obra é ou não uma tese científica. Se
analisarmos desapaixonadamente Casa-Grande & Senzala e os demais livros daquela trilogia,
encontraremos a primeira grande obra historiográfica, na linha da École des Annales
produzida no Brasil a incorporar a revolução que a historiografia havia realizado na França
do início do século XX; ainda que essa obra já tenha sido, inclusive, classificada como um
romance.
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Acredito que sim. Acho que um dos desafios de ministrar essa disciplina é estar
sempre atualizando sua vasta e diversa bibliografia, buscando novas possibilidades de ver
nossa formação social, explorando novas ideias e novos autores. Este ano, por exemplo,
introduzimos uma novidade nessas disciplinas. Analisamos a obra A Tolice da Inteligência
Brasileira de Jessé Souza (2015), autor crítico das elites brasileiras e dos clássicos
interpretativos do Brasil, como os antes mencionados. Trata-se uma análise centrada na tese
da não superação da ordem escravocrata em nossa cultura e da “violência simbólica” que essa
nos legou, tese essa muito lúcida e que encontra na figura de Joaquim Nabuco o pioneiro de
sua proposição. Souza é, entretanto, um acadêmico que desqualifica alguns desses clássicos,
atribuindo aos mesmos uma leitura apressada de Max Weber. Pessoalmente concordo
inteiramente com essa análise que leva as elites brasileira a naturalizarem a gritante
desigualdade social de nossa sociedade, mas discordo da forma como Souza classifica esses
clássicos ao atribuir-lhes a denominação de “culturalistas conservadores”. Sobre este assunto
eu brinco com meus alunos dizendo que sou tentado a escrever um trabalho com o título: A
Tolice de A Tolice da Inteligência Brasileira (risos), parodiando Marx em sua crítica à obra
Filosofia da Miséria de Proudhon com a sua Miséria da Filosofia.
No Brasil de hoje eu vejo com muita alegria e esperança o trabalho de alguns poucos
grupos de pesquisa que buscam encarar com seriedade as interpretações do Brasil, seu
pensamento social e a reflexão histórica, política e cultural sobre as organizações, desertando,
assim, da mera transposição (malfeita) de culturas exóticas e compreendendo melhor nossas
idiossincrasias próprias. Nós acadêmicos temos a responsabilidade de conduzir essa
bandeira, devemos deixar muito claro para os nossos alunos e orientandos essa singularidade
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Claro, nenhuma mudança se faz saltando degraus. Quando olho para o pensamento
crítico que vem de fora, vejo algum funcionalismo no CMS, algum ranço com nova roupagem.
Acho que a linha de trabalho dos que estão pensando criticamente as organizações no Brasil é
mais ousada, mais “guerreireana” e “tragtenbergueana” do que o main stream.
Lembro agora uma curiosidade sobre o Fernando Prestes Motta, um depoimento dele
no qual se autocriticava por ter criado o termo Teoria Geral da Administração. Acho que
adotei para mim, também, o exercício da autocrítica. Eu sou de uma geração na qual ser
positivista era o máximo, sobretudo na Administração. Muitas vezes eu coloco o meu
pensamento em julgamento. Não preciso dizer que, em geral, não o absolvo. Não reelaboraria
trabalho algum que fiz do mesmo modo outra vez. Há em todos, ainda, um viés positivista
muito forte. Foram cinco anos de escola de engenharia, não sei mais quantos anos estudando
e ensinando geometria, portanto, eu não renego o meu viés positivista e universalista do
conhecimento, apenas o submeto à crítica. O Darcy Ribeiro tem uma frase maravilhosa sobre
isso, ele fala em ciências da natureza e “consciência social”. Ele não fala em ciências exatas e
ciência social.
As coisas mudam. Hoje as pessoas fazem mestrado e doutorado muito cedo. Isso é uma
coisa nova e interessante. Quando me candidatei ao mestrado na EBAP eu tinha mais de dez
anos de formado e de experiência organizacional em diversas funções. Depois, já concursado
e professor naquela Escola me dei conta da dinâmica dos tempos: imagino que lá atrás fui
selecionado para cursar a pós-graduação por não ser mais um menino recém-saído da
faculdade, que não tem ideia do que é a dinâmica de uma organização (como muitos pós-
graduandos de hoje). Então, se dava preferência para quem tivesse experiência
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E FALANDO MAIS SOBRE SEUS TRABALHOS PREGRESSOS, UM TEMA QUE NÃO PODERIA
DEIXAR DE ABORDAR NESSA ENTREVISTA É SUA PESQUISA SOBRE CANUDOS E
ANTÔNIO CONSELHEIRO. É SABIDO QUE SE TRATA DE UM TRABALHO MUITO
INTERESSANTE E AMPLAMENTE RECONHECIDO NO CAMPO DOS ESTUDOS
ORGANIZACIONAIS BRASILEIROS, TENDO PROFUNDA INFLUÊNCIA EM SUA TRAJETÓRIA
PESSOAL E INTELECTUAL. COMO VOCÊ CHEGOU A ESTE TEMA?
Na verdade Antônio Conselheiro nunca chamou aquele lugar de Canudos. Esse foi um
nome pejorativo, porque havia na região às margens do rio Vaza-Barris (que banha a
localidade) uma vegetação canífera típica da região e que os indígenas usavam para pitar
fumo, daí originando-se o nome de Canudos. Os conselheiristas nunca chamaram sua vila de
Canudos. Eles organizaram uma comunidade alternativa que tinha o nome de Bello Monte e
que foi de curta vida, tendo sido fundada em junho de 1893, período das festas de Santo
Antônio - seu padroeiro - e tendo sido destruída e massacrada a sua população em início de
outubro de 1897. Portanto, foi uma comunidade que durou, apenas, quatro anos, terminando
naquele sangrento conflito.
Eu sempre tive uma curiosidade sobre essa história e confesso que conhecia muito
pouco sobre Canudos, não muito mais do que a leitura de Os Sertões de Euclides da Cunha
que, por sinal, é uma bela obra literária, ainda que uma fonte com forte viés inclinado às
forças que massacraram o Bello Monte conselheirista.
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Essa é uma história longa. Tive alguma dificuldade em conduzir e financiar o trabalho
de campo. A pesquisa foi extensa, levou mais de dez anos (1988-1999). Enfrentei questões
ainda não respondidas e muito relevantes para a historiografia sobre o tema. Eu buscava
indicadores que apontassem que Canudos foi, também, um fato administrativo relevante.
Guiado pela ideia de que, ao contrário do que afirma a historiografia oficial, aquela
comunidade sertaneja não foi produto do delírio coletivo de fanáticos mas sim um projeto de
reinventar a ordem social do Sertão – tese central do meu trabalho e que está colocada de
forma inequívoca na confissão de Antônio Conselheiro ao deixar o seu estado natal,
respondendo a um seu conterrâneo:
1Luciano Zajdsznajder foi professor da EBAPE, trabalhando nas áreas de teoria das organizações, administração
pública, sistema empresarial brasileiro e filosofia social. Graduado em Filosofia e Letras pela UFRJ, com
mestrado em Economia pela Columbia University e doutorado em Comunicação Social pela Unirio. Era
reconhecido pelos colegas como um pensador ousado e provocador.
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Sob o ponto de vista do que poderia designar como eficácia desse projeto, a minha
pesquisa revela que Conselheiro concluiu 29 obras sociais (entre igrejas, capelas,
restaurações de cemitérios, açudes e a fundação de dois arraiais, hoje os municípios de
Crisópolis e Canudos no estado da Bahia), número este que interpreto como indicador de um
projeto muito bem-sucedido. Em meu livro, antes mencionado, detalho mais sobre a obra do
construtor Antônio Conselheiro nos sertões dos estados da Bahia e de Sergipe.
Sim, eu me impus o compromisso de reeditá-lo, após mais de quinze anos que sua
primeira edição se esgotou, o que aconteceu ao final de 20182. Na tese central que defendo na
obra faço uma homenagem a Euclides da Cunha que, como um poeta da prosa, gostava de
figuras de linguagem como oximoros, metáforas, metonímias, etc. Euclides classifica Antônio
Conselheiro como sendo “um homem pelo avesso” (conforme mencionado na introdução da
entrevista). Então, eu concluo que o poder político que ele tinha sobre seus liderados era o de
um “coronel com sinal trocado” ou, parodiando aquele autor, de um “coronel pelo avesso”. Em
2002 o professor Dawid Danilo Bartelt da Freie Universtät Berlin defendeu sua tese de
doutorado em História, naquela universidade, utilizando essa mesma figura metafórica na
interpretação da autoridade do Antônio Conselheiro proposta na minha tese A Reinvenção do
Sertão (EAESP/FGV, 1999).
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3 Com destaque para os: Maj. Constantino Nery, que publicou, em 1998, o primeiro livro sobre o tema; Ten.
Henrique Duque-Estrada de Macedo Soares, autor de A Guerra de Canudos, publicado no mesmo ano de Os
Sertões – 1902 e outros
4Entre eles: Euclides da Cunha – de A Província, depois, O Estado de São Paulo; Manoel Benicio – do Jornal do
Commercio etc.
5Dentre os quais: Francisco Cavalcante Mangabeira, sextanista de medicina voluntário incorporado ao Serviço
de Saúde do Exército e que publicou o seu testemunho no poema Tragédia Épica em 1900; e Alvim Martins
Horcades, também acadêmico de medicina voluntário e diretor do Hospital de Sangue da tropa e correspondente
do Jornal de Notícias de Salvador
6 Com destaque para o depoimento do frei João Evangelista Giuliani de Monte Marciano - enviado pelo
arcebispado da Bahia à Canudos em 1895 com a missão de dissuadir os conselheiristas de sua experiência
comunitária. O relato deste religioso (1895) é uma preciosíssima e muito rara fonte primária sobre o arraial do
Bello Monte e sua organização
7Paulo Emílio destaca ainda escritos mais recentes, inéditos quando de sua investigação, finalmente publicados
por Pedro Lima Vasconcellos (2017) em conjunto com os manuscritos de 1897 e notas explicativas do seu
editor.
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efetivos disponíveis. Esse conflito interno havia envolvido mais da metade do exército
brasileiro da época.
O governo chegou a um ponto que estava sem saber o que fazer. A força militar da
Bahia já estava envolvida nos combates em Canudos desde o seu início, adjunta ao Exército.
Então o governo federal fez um apelo aos estados da federação para que o socorressem com
suas forças públicas estaduais. Sobre essa história, eu escrevi alguns artigos. Sendo paraense,
nunca havia entendido, antes, por que havia em minha cidade natal um bairro com o nome
Canudos? Por que a Polícia Militar paraense tem Canudos como uma página de glória? Em Os
Sertões, Euclides da Cunha destaca a participação dessa corporação, em conjunto com a tropa
do estado do Amazonas, no final dos embates e no cerco final ao arraial conselheirista.
O estado do Pará decidiu, então, enviar dois batalhões para lutar nos sertões. O estado
do Amazonas o acompanhou com um batalhão, sob o comando do coronel Antônio Sérgio Dias
Vieira da Fontoura, comandante do destacamento amazônida em missão em Canudos e
patrono daquela corporação policial. Os três batalhões da Região Norte seguiram de navio até
a Bahia e, ao chegar em Salvador, foram deslocados por terra para o teatro de operações, já
quase ao final do conflito. Este destacamento, chegou às terras baianas em meio à situação
crítica de um exército exaurido e sem condições de impor a sua força. A Amazônia vivia à
época o esplendor da era da borracha. Enquanto as tropas federais se alimentavam de graxa
dos canhões, Euclides nos conta sobre a pomposa chegada das tropas amazônidas à Salvador -
um espetáculo de ostentação e riqueza: impecáveis uniformes engalanados, instrumentos
musicais dourados importados da Europa, em resumo, uma tropa esbanjando a fortuna
auferida com a exportação da hevea brasiliensis deslocada de seu sítio para o massacre final e
a destruição da paupérrima comunidade conselheirista da caatinga.
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Pará (na época as unidades federadas replicavam localmente o sistema bicameral da União) e
localizei aquela com a discussão/decisão de responder ao clamor do Governo Federal
enviando tropas locais para lutar em Canudos.
Lendo essas atas eu pude compreender o que acontecia é que essa região do Brasil
(com mais da metade da área total do território nacional) era totalmente isolada do restante
do país. Com a economia gomífera (maior produto da pauta de exportações brasileiras da
época), a riqueza e o dinheiro que rolou naquela região fez suas elites locais se europeizaram;
construíram palacetes por toda a cidade e dois excelentes teatros líricos (os maiores de então
nas terras brasílicas) e enviaram seus filhos para formação acadêmica nas mais famosas
universidades do velho continente. As avenidas, percorridas por bondes elétricos ingleses –
grande modernidade de então –, eram denominadas boulevards. Não sei se essa elite era ou
não separatista, como se imaginava no resto do país, mas foi nesse quadro que se criou um
sentimento de resposta positiva ao pedido de socorro da República e o envio das tropas locais
para o Sertão.
A minha avó paterna, a professora Maria de Nazaré Leal Uchôa Martins, contava que
seu pai o dr. João Raolino Uchôa, médico formado em Paris, cidade onde viveu e clinicou por
algum tempo, educou seus filhos em francês, idioma que minha avó falava fluentemente, sem
jamais ter ido à França ou outro país da mesma cultura e aprendido antes da língua vernácula.
Essa capa é ilustrada com uma foto das cerca de mil fotografias feitas durante a minha
pesquisa de campo nos sertões (do Ceará à Bahia). Eu chegava em Canudos em 1995, pela
primeira vez, e uma severa e prolongada seca assolava a região. A Canudos de hoje é uma
pequena cidade ao lado do local onde o Bello Monte foi fundado. No governo Vargas foi
decidido inundar aquela região com o represamento das águas do rio Vaza Barris para
construir um açude voltado à irrigação da agricultura local. No período dos governos
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militares dos anos 1960-80 a velha Canudos, renascida dos escombros do Bello Monte, foi
submersa nas águas do rio que outrora a banhava. Há, assim, uma narrativa de que o Bello
Monte foi massacrado e incendiado pelas forças da Velha República e afogado pelo
autoritarismo da ditadura empresarial-militar. A verdade é que o projeto de irrigação da
região do Vaza Barris nunca floresceu.
As ruínas da igreja emergindo das águas represadas do açude de Cocorobó, que ilustra
a capa da primeira edição do meu livro, foi amplamente difundida pela Imprensa, no
centenário da Guerra de Canudos, como sendo obra do Conselheiro. Entretanto, a foto que
batizei de “a catedral submersa do Sertão” – inspirado no prelúdio de Debussy sobre a lenda
da ilha de Ys8 e de sua catedral sob as águas, e de onde soava o dobrar de seus sinos, o canto
de seus monges e a música do seu órgão -, não é a mesma construída por Antônio Conselheiro
mas uma segunda edição desta, provavelmente feita com as mesmas pedras/tijolos da templo
conselheirista destruído e incendiado. É uma bela e sedutora foto. Ela me fala muito da
história da gente sofrida do Bello Monte. Eu gosto dela e a tenho ampliada em um quadro
sobre a minha cama.
Quando cheguei ao local pela primeira vez9 a seca prolongada castigava, mais uma vez,
o Sertão. Desde que o açude de Cocorobó foi construído, nunca seu nível tinha estado tão
baixo. Com a ajuda de um menino canudense e seu pequeno barco a remos navegamos por
toda uma tarde pelo espelho-d’àgua daquele lago artificial, o fotografei e o filmei. Assim, a
sorte me fez protagonista de um furo de reportagem com uma foto e entrevista cedidas ao
jornal O Estado de São Paulo10. Depois, essa mesma foto esteve exposta em diversas
10Publicadas em sua edição de 29 de março de 1995 no Caderno 2 com o título de Memória, Seca traz de volta a
história de Canudos.
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localidades na mostra que organizei por ocasião do centenário da Guerra de Canudos e que
denominei Canudos: perdão!; ainda, ilustrou revistas e livros e foi editada em vídeo, com
excertos literários e sonoros sobre o tema.
Fonte: Editora FGV, Rio de Janeiro, 2001 e Hucitec, São Paulo, 2018.
Foi muito boa, pois eu tive muita dificuldade para financiar minha investigação de
campo (US$ 15 mil, em valores da época) e, com o convite para apresentar a mostra
fotográfica Canudos: perdão! e para palestrar sobre o tema, principalmente no ano do
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centenário daquele conflito (1997), eu pude viajar e financiar, parcialmente, o meu trabalho
de pesquisa.
Ainda desse contato germinador com a cidade natal do Bom Jesus Conselheiro e sua
gente ficaram: a instituição do dia 13 de março (data do nascimento do líder sertanejo) como
feriado municipal de Quixeramobim, a celebração da festa Conselheiro Vivo, a construção do
Memorial Antônio Conselheiro (na praça principal da cidade), com projeto do arquiteto e
compositor quixeramobiense Fausto Nilo e uma série de eventos culturais e acadêmicos
anuais e publicações celebrando a temática Sertão, Antônio Conselheiro e o Bello Monte.
Bom, depois de ser solto após prisão na Bahia, motivada pelas elites da época, ele se
consolida como uma lenda entre os sertanejos, ainda que como fanático que era levou seus
seguidores à morte coletiva. E aí vem o resto da história, a parte mais conhecida. Antes de ir
para Bello Monte ele fundou a atual cidade de Crisópolis, antigo arraial do Bom Jesus
(provavelmente, 1884). É interessante ressaltar que o beato do Sertão viveu muito mais
tempo nessa localidade do que na sua Bello Monte de brevíssima existência e trágico fim. A
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igreja Matriz local, consagrada ao Bom Jesus, construída pelo Conselheiro de 1886 a 1892,
conserva, em perfeito estado, um belíssimo altar de madeira talhada (fotografado e publicado
em meu livro), provavelmente obra do carpinteiro do grupo, mestre Manoel Faustino (ou
Feitosa?). Talvez essa seja a mais preciosa obra remanescente da arquitetura do reinventor
do Sertão. Quando a visitei11, coincidentemente, na data do natalício de Euclides da Cunha,
uma ordem de padres holandeses eram os párocos locais e ela estava muito bem cuidada.
Em meu livro detalho a trajetória de vida do beato do Sertão, sua peregrinação pelos
estados nordestinos em que viveu e espalhou a sua doutrina, deixou suas obras públicas e sua
morte no Bello Monte (1897), pouco antes da destruição do seu projeto de reinventar o
Sertão.
Após sua prisão na Vila do Itapicuru (1876) e deportação para seu estado natal
Conselheiro decide se interiorizar Sertão adentro, fugindo, assim, da perseguição dos
senhores das terras daquele vale. É aí que ele decide se estabelecer e realizar o seu projeto de
uma comunidade alternativa na região conhecida como Canudos. O motivo da escolha desse
local na mais árida região da caatinga baiana tem uma dupla versão. A primeira é que lá já
existia uma pequena capela abandonada, sagrada a Santo Antônio, em terras do dito Santo.
Ele já havia passado por lá em suas peregrinações e imaginava que naquele local, um sítio
isolado e protegido por cadeias de montanhas, estaria em segurança com sua gente. A
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segunda versão é de que em Canudos já existia um pequeno povoado e não apenas a velha
capela em ruínas. O fato é que ele, provavelmente em junho de 1893, deixa o arraial do Bom
Jesus (hoje município de Crisópolis), que fundou, acompanhado por cerca de 300
camponeses, seus seguidores, e se estabelece na região de Canudos, futuro Bello Monte, e
inicia seu projeto de construção de uma sociedade fraterna e igualitária de inspiração cristã.
Como estudar essas dialéticas do fato administrativo? Para tanto utilizei o modelo
semiológico (Tetraedro Semiológico das Organizações) proposto na tese de doutoramento em
Administração que se converteu no livro A Reinvenção do Sertão, e que analisa a semiose da
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Dessa análise pude inferir que seria razoável entender que o projeto conselheirista de
reinventar o Sertão se desenvolveu em três fases e três diferentes modelos de organização e
governança assim descritos: Primeira Fase – Religiosa-Assistencial12, grupo peregrino pelos
sertões; Segunda Fase – Religiosa-Administrativa-Militar13, fase da Comunidade do Bello
Monte, fixação e crescimento do grupo, seu pico populacional, período de maior
complexidade organizacional do movimento e estrutura colegiada de governança e do esforço
bélico de defesa do Bello Monte; Terceira (derradeira) Fase – Militar14, final da guerra,
destruição do Arraial e de sua organização complexa (divisão intensiva do trabalho e
autoridade e governança colegiada (Colegiado do Santuário).
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REFERÊNCIAS
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diskursives Ereignis. Stuttgart: Franz Steiner, 2003.
CONSELHEIRO, Antonio. Apontamentos dos preceitos da divina lei de nosso senhor Jesus
Cristo, para a salvação dos homens. São Paulo: É Realizações Editora, 2017.
CUNHA, Euclides; DE CAMARGO MONFRÊ, Dermal. À margem da história. Săo Paulo: Editôra
Lello Brasileira, 1967.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global Editora e Distribuidora, 2019.
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HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela
elite. Lisboa: Leya, 2015.
VASCONCELOS, Pedro Lima. Antonio Conselheiro por ele mesmo. São Paulo: É realizações,
2017.
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