Tom Wolfe - Da Bauhaus Ao Nosso Caos
Tom Wolfe - Da Bauhaus Ao Nosso Caos
Tom Wolfe - Da Bauhaus Ao Nosso Caos
AO NOSSO CAOS
Título original
FROM BAUHAUS TO OUR HOUSE
capa
ANA MARIA DUARTE
revisão
W ENDELL SE T Ú BAL
SANDRA PÁ SSARO
o-na-fonte
'es de Livros, RJ
CDD - 709.04057
724.91
CDU - 7.036.7
89-0974 72.036.7
TOM WOLFE
DA BAUHAUS
AO NOSSO CAOS
Tradução de
LIA WYLER
�r.ú_,
Rio de Janeiro - 1990
Crédito das fotos:
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bos mesquinhos numa fantasia horizontal de palacete inglês da Res
tauração. Vi carpinteiros e marceneiros e compradoras carregando
mais cornijas, abobadilhas, pilastras, molduras talhadas, nichos, mais
painéis com dobras de linho, mais lareiras (sem fogo) enfeitadas com
festões de frutas em mogno, mais lÚstres, apliques, candelab ros, so
fás de couro e relógios de carrilhão do que Wren, lnigo Jones, os
irmãos Adam, Lord Burlington e os Dilettanti, trabalhando juntos,
poderiam ter imaginado.
Rue de Regrei: A Avenida das Américas em Nova York. Ruas e Mies van der ruas
de "caixas de vidro''. Habitações operárias com cinqüenta andares de altura.
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de vi
E se m udam sem dar um pio! - mesmo que as "caixas
dro " os apa vor e.
Essas im pressões não são apenas minhas, posso garantir. Se al
guém quise r provas detalhadas é só freqüentar as conferências, sim
pós io s e deb ates em que os arquitetos hoje se reúnem para discutir
a situação da arte. Confessam-se apavorados. Com a cara mais lim
pa d irão que a arquitetura moderna está exaurida, acabada. Até eles
mesm os caçoam das "caixas de vidro". Usam esse termo com uma
risadi nha. Philip Johnson, que construiu para si uma casa de vidro
e m Connecticut em 1949, diz a frase com o deleite de um antiquá
rio, do j eito que alguém falaria de uma velha armação de cama de
bronze descoberta no sótão.
Em todo o caso, o problema está em vias de ser resolvido,
t ranqüilizam-nos. Há agora novas abordagens, novos movimentos,
novos ismos: Pós-modernismo, Modernismo Tardio, Racionalismo,
Arquitetura Participativa, Neocorbusianismo, e os Los Angeles Sil
vers . Que se resumem em quê? Em coisas tais como construir mais
"caixas de vidro" e revesti-las de vidro espelhado para que reflitam
as "caixas de vidro" vizinhas e disto rçam as tediosas linhas retas
transformando-as em curvas.
Acho o relacionamento atual do arquiteto com o cliente nos Es
tados Unidos maravilhosamente excênt rico, beirando a perversida
de. No passado, aqueles que eram cont ratados e pagos para projetar
palácios, catedrais, teatros, bibliotecas, universidades, museus, mi
nistérios, terraços sobre colunas e casas de campo cheias de alas não
hesitavam em transformá-las em visões da própria glória. Napoleão
queria transformar Paris na Roma dos Césares, só que com música
mais ressonante e mais mármore. E assim foi feito. Seus arq uitetos
lhe deram o Arco do Tri unfo e a Madeleine. Seu sobrinho, Napo
leão III, queria t ransformar Paris em Roma com Versailles de que
bra e assim foi feito. Seus arquitetos lhe deram a Ópera de Paris,
um anexo ao Lou v re e quilômetros de novas avenidas. Palmerst@n
certa vez j ogou fora os resultados de um concu rso de projetos para
o novo Ministério do Exterior britânico e disse ao mais importante
arquiteto do renascimento gótico da época, Gilbert Scot t , gue o cons
truísse no est ilo clássico. E Scott assim fez, porque foi o que Pal
merston o mandou fazer.
Em Nova York, Alice Gwynne Vanderbilt mandou George Brow
ne Post projetar um castelo francês na esq uina da Quinta Avenida
com a Rua Cinqüenta e Sete, e ele copiou o Castelo de Blois até no
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detalhe do cinzelado nas t ravas de bronze das janelas de batentes .
Para não ficar atrás, Alva Vanderbilt contratou o arquiteto america�
no mais famoso da época, Richard Morris Hunt, para projetar uma
casa de verão em Newport , réplica do Petit Trianon , e ele assim fez,
com prazer. Estava pronto a satisfazer essa ou qualquer outra fanta
sia dos Vanderbilts. " Se quiserem uma casa com uma chaminé em
baixo", dizia ele, " farei uma". Mas a partir de 1945 os nossos pluto
cratas, burocratas, presidentes de conselhos, diretores executivos, co
missários e presidentes de faculdades so frem uma mudança inexpli
cável . Tornam-se insegutos e reticentes. De repente estão prontos a
aceitar aquele copo de água gelada na cara, aquele tapa revigorante
na b ó ca, aquela reprimenda pelo excesso de gordura em sua alma
burguesa, conhecida como arquitetura moderna.
E por que? Não sabem dizer. Erguem os olhos para ·as fachadas
nuas dos edifícios que compraram, aquelas estruturas gigantescas que
odeiam tão radicalmente, e eles próprios não conseguem entender.
Suas cabeças chegam a doer.
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O PRÍNCIPE DE PRATA
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grinação, a figura mais deslumbrante de todas era Walter Gropius,
fundador da Escola Bauhaus. Gropius abriu a Bauhaus em Weimar,
a capital alemã, em 1919. Era mais que uma escola; era uma comu
na, um movimento espiritual, uma abordagem radical da arte sob
todas as formas, um centro de filosofia comparável ao Jardim de
Epicuro. Gropius, o Epicuro dessa peça, tinha trinta e seis anos, os
cabelos negros e bastos penteados para trás, era magro, vestia-se com
apuro e simplicidade, era irresistivelmente atraente para as mulhe
res, correto e educado à maneira clássica alemã, fora tenente da ca
valaria na guerra, condecorado por bravura, um.a figura que trans
pirava calma, certeza e convicção no centro do turbilhão.
A rigor, não era aristocrata, uma vez que o pai, emb�ra ,abasta
do, não pertencia à nobreza, mas as pessoas não podiam deixar
de pensar nele como se o fosse. O pintor Paul Klee, que ensinava
na Bauhaus, chamava Gropius de o "Príncipe de Prata". Prata era
perfeito. Ouro seria demasiado vistoso para um homem tão fino e
preciso. Gropius parecia um aristocrata que por um milagre de sen
sibilidade tivesse conservado todas as virtudes da linhagem e se des
pojado de todos os esnobismos e pesos mortos do passado.
Os j ovens arquitetos que acorreram à Bauhaus para viver, estu
dar e aprender com o Príncipe de Prata falavam em "começar do
zero". Gropius emprestava apoio a qualquer experiência que qui
sessem fazer, desde que as fizessem .em nome de um futuro limpo
e puro. Até novas religiões como a Mazdaznan. Até mesmo regimes
alimentares naturais. Durante um certo período em Weimar a dieta
na Bauhaus consistia unicamente de uma papa de legumes frescos.
Era tão insossa e fibrosa que precisavam temperá-la repetidamente
com alho para que tomasse um gosto qualquer. A esposa de Gro
pius à época era Alma Mahler, ex-Sra. Gustav Mahler, a primeira
e mais importante representante daquela espécie maravilhosa do sé
culo XX, a Viúva da Arte. Os historiadores nos informam ter ela
comentado anos mais tarde que os marcos do estilo Bauhaus eram
os cantos de vidro, os telhados planos, os materiais honestos e a es
trutura explícita. Mas ela, Alma Mahler Gropius Werfel - desde en
tão acrescentara o poeta Franz Werfel ao enredo - garantia que a
característica mais inesquecível do estilo Bauhaus era ''o bafo de
alho". Contudo! - que puro, que limpo, que glorioso era . come
. .
çar do zero!
Marcel Breuer, Ludwig Mies van der Robe, Lázló Moholy-Nagy,
Herbert Bayer, Henry van de Velde - todos foram professores na
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Bauháus em algum momento, ao lado de pintores como Klee e Jo
sef Albers. Albers ensinava o famoso Bauhaus J!'orkurs, ou curso in
trodutório. Albers entrava na sala, depositava uma pilha de jornais
na mesa, e informava aos alunos que voltaria dali a uma hora. Nes
se ínterim, deviam transformar as folhas de jornal em obras de arte.
Quando retornava, encontrava castelos góticos feitos de jornal, ia
tes feitos de jornal, aviões, bustos, pássaros, estações de trem, coi
sas surpreendentes. Mas sempre havia algum aluno, um fotógrafo
Walter Gropius, o Príncipe de Prata. O Deus Branco n.01. Jovens arquitetos iam
estudar a seus pés. Alguns, como Philip Johnson, só conseguiram se levantar muitas
..
décadas depois.
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ou um vidreiro, que simplesmenJe pegava uma folha de jornal e a
dobrava uma vez armando-a como uma tenda e deixava por isso mes
mo. Albers apanhava a catedral e o avião e dizia:
" Esses objetos foram projetados para serem executados em pe
dra ou metal e não em j ornal ." Então apanhava a tenda feita dis
traidamente pelo fotógrafo e exclamava: " Mas isso! - isso utiliza
a alma do jornal. O papel pode ser dobrado sem partir. O papel tem
força tensiva, e uma vasta área pode se sustentar em duas arestas
finas. Isso! - é uma obra de arte em jornal ." E todos os córtices
cerebrais na sala trocavam isso em miúdos. Tão simples! Tão belo . . .
Era como s e a luz penetrasse n o cérebro obtuso d a pessoa pela pri
meira vez. Puxa vida! - começar do zero!
E por que não . . . O país do j ovem bauhiiusler, a Alemanha, fo
ra esmagado na guerra e humilhado em Versailles; a economia en
.
trara em colapso num delírio de inflação; o kaiser se fora; os social
democratas tinham assumido o poder em nome do socialismo; ban
dos de jovens ricocheteavam pelas cidades bebendo cervej a à espera
de uma revolução ao estilo soviético vinda do leste ou, no mínimo,
de algumas brigas violentas. Destroços, ruínas fumegantes - come
çar do zero! Se a pessoa fosse jovem era uma maravilha. Começar
do zero significava nada mais que recriar o mundo.
É bem instrutivo - face ao espantoso efeito que teria na vida
dos Estados Unidos - recordar algumas das exortações daquele cu
rioso momento vivido na Europa Central há sessenta anos:
"Pintores, arquitetos, escultores, a quem a burguesia paga alta
recompensa pelas obras - por vaidade, esnobismo e tédio - Ou
çam ! Esse dinheiro está manchado com o suor, o sangue e a energia
nervosa de milhares de pobres seres humanos acossados. Ouçam! É
um lucro suj o. . . Precisamos ser verdadeiros socialistas - precisamos
fazer brilhar a maior virtude socialista: a fraternidade dos homens."
Assim rezava o manifesto do Novembergruppe, que incluía
Moholy-Nagy e outros projetistas, que mais tarde se r�uniriam a Gro
pius na Bauhaus. Gropius era presidente do Arbeitsrat für Kunst
·
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O interesse de Gropius pelo "proletariado" ou "socialismo" afi
nal não passou de algo estético, de um modismo, um pouco como
0 interesse dos presidentes Truj illo da República Dominicana ou Mao
da República Popular da China no republicanismo. Todavia, con
forme disse Dostoievski, as idéias têm conseqüências;p-estilo Bau
haus tinha origem em determinados pressupostos sólidos. Primeiro,
a.nova arquitetura estava sendo criada para os operários. O mais sa
grado dos obj etivos: aperfeiçoar a habitação do trabalhador. Segun
do, a nova arquitetura devia rej eitar tudo que fosse burguês. Uma
vez que quase todos os envolvidos, tanto arquitetos quanto burocra
tas social-democratas, eram eles mesmos burgueses no sentido lite
ral e social da palavra, "burguês " tornou-se um epíteto que signifi
cava qualquer coisa que se quisesse. Referia-se a qualquer coisa que
não se gostasse nas vidas das pessoas acima do nível de um servente
de pedreiro. O importante era não ser apanhado desenhando alguma
1 1
A Bauhaus. O reduto de Gropius, construido depois que a Bauhaus se mudou
de Weimar para Dessau em 1925.
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coisa para a qual alguém apontasse e comentasse, com devastador
desdém: "Que coisa mais burguesa".
Os sociais-democratas tanto da Alemanha quanto da Holanda
estavam financiando conj untos habitàcionais operários e, por razões
políticas próprias, éontràtando j ovens arquitetos antiburgueses co
mo Gropius, Mies van der Robe, Biuno Tuut e J. J.P. Oud, que aos
vinte e oito anos fora nomeado arquiteto-chefe da cidade de Rotter
dam . Oud era membro de um grupo holandês conhecido como de
Stijl (o Estilo). A Bauhaus e o de Stijl, a exemplo do Novembergruppe
à prova de burguesia, não eram academias nem firmas; na verdade
não se pareciam com nenhuma organização na história da arquite
tura anterior a 1 897. Em 1 897, em Viena, um grupo de artistas e ar
quitetos, que incluía Otto Wagner e Josef Olbrich, form aram um gru
po chamado de Dissidência Vienense e formalmente "romperam"
com a organização cultural austríaca oficialmente reconhecida, a
Künstlerhaus. Nem mesmo os impressionistas franceses tinham ten
tado tal coisa; o Salon des Refusés que organizaram não passara de
um grito estridente dirigido ao Instituto Nacional: Queremos entrar!
A Dissidência de Viena (e as de Munique e Berlim) deram origem
a uma forma inteiramente singular de associação, o reduto de arte.
Um reduto de arte anunciava-se, de uma forma ou de outra, em
geral através de um manifesto: "Acabamos de retirar a divindade
da arte e da arquitetura das mãos da estrutura oficial de arte J (a
Academia, o I nstituto Nacional, o Künst/ergenossenschaft, ou sej a
o que fo r ) , e ela agora habita conosco, n o nosso reduto. Deixamos
de depender do patrocínio da nobreza, dos empresários, do Estado,
ou de quaisquer outras entidades externas, para a nossa divina emi
nência. Doravante, qualquer um que queira se banhar na luz divina
da arte deve ir a nós, ao nosso reduto, e aceitar as formas que cria
mos. Não permitimos alterações, encomendas especiajs, ôu imposi
ções de clientes. Sabemos o que é melhor. Somos os donos exclusi
vos da verdadeira visão do futuro da arquitetura.' ' Os componentes
de um reduto formavam uma comunidade artística, reuniam-se re
gularmente, concordavam com certos princípios morais e estéticos
e os anunciavam ao mundo. A Dissidência Vienense - a exemplo
da Bauhaus de vinte anos depois - construiu realmente um reduto
concreto sob a forma de um edifício modelar, a Casa da Dissidên
cia, a que denominaram "um templo de arte".·
A criação desse novo tipo de comunidade provou-se absoluta
mente estimulante para artistas e compositores, bem como para ar-
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quitetos, em toda a Europa, nos primeiros anos deste século. Somos
independentes da sociedade burguesa que nos cerca! (Apaixonaram-se
pelo termo burguês.) E superiores a ela ! Foram os redutos que pro
duziram o gênero de vanguardismo que constitui uma boa parte da
história da arte do século XX. Os redutos - fossem cubistas, fau
vistas, futuristas ou dissidentes - apresentavam uma tendência na
tural ao esoterismo, à geração de teorias e formas que frustravam
a burguesia. Não tardaram a descobrir que o recurso mais perfeito
era pintar, compor, desenhar em código. A genialidade peculiar dos
primeiros cubistas, tais como Braque e Picasso, não foi criar " novas
maneiras de ver " mas criar códigos visuais para as teorias esotéricas
de seu reduto. Por exemplo, a técnica cubista de pintar um rosto em
perfil cartunesco, com os dois lados do mesmo lado do nariz, ilus
trava duas teorias: (1) a teoria da ausência de relevo, advinda da idéia
de Braque de que uma pintura não era mais que uma determinada
composição de cores e forma sobre uma superfície plana; e (2) a teo
ria da simultaneidade, derivada das descobertas feitas no novo cam
po da estereótica indicando que uma pessoa vê um obj eto simulta
neamente de dois ângulos. Na composição musical, Arnold Schoen
berg começou a pesquisar música matematicamente codificada que
se a maioria dos compositores achou confusa� que dirá a burguesia
- donde tanto mais irresistível a atração que exerceu na nova era
do reduto de arte.
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alto da montanha e trouxemos de volta a Palavra, e agora declara
mos que... "
petir entre si para estabelecer quem tinha a visão mais pura. E o que
determinava a pureza? Ora, aquela velha estória do que era burguês
(sórdido) e do que era não-burguês (puro).
A luta para ser o menos burguês de todos tomou-se um tanto
desvairada. Por exemplo, no início da jogada, em 1919, Gropius foi
a favor de trazerem simples artesãos para a Bauhaus, peões, traba
lhadores honestos, gente de testa enrugada e unhas largas que fizes
se peças a mão para os interiores arquitetônicos, móveis simples de
madeira, objetos simples de cerâmica e vidro, uma coisa simples aqui,
outra coisa simples ali. Isso parecia muito operário, muito não
burguês. E se interessou também pelos desenhos curvilíneos de ar
Quitetos expressionistas como Erich Mendelsohn. As teatrais formas
curvas de Mendelsohn rompiam todas as concepções burguesas de
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ordem, equilíbrio, simetria e as rígidas construções de alvenaria. Tu
do bem - mas mesmo assim você foi um pouco ingênuo, Walter!
Em 1922 realizou-se o 1 Congresso Internacional de Arte Progressi
va em Dusseldorf. Foi o primeiro encontro de arquitetos dos diver
sos redutos de toda a Europa. Logo de saída puseram em discussão
essa estória de não-burguês. Theo van Doesburg, um dos mais ar
dentes autores de manifestos, deu uma única olhada nos trabalha
dores honestos e nas curvas expressionistas de Gropius, soltou uma
risadinha desdenhosa e exclamou: Que coisa tão burguesa! Só os ri
cos podiam comprar objetos bonitos, conforme demonstrara a ex
periência do movimento Artes e Ofícios na Inglaterra. Para ser não
burguesa, a arte tinha que ser produzida à máquina. Quanto ao Ex
pressionismo, suas formas curvilíneas eram um desafio à máquina e
não à burgue � Não eram apenas de fabricação cara, eram "vo
luptuosos" e ' s1,mtuosos". Van Doesburg, com seu monóculo, na
riz comprido e surpreendente desdém, podia fazer essas qualidades
parecerem burguesas a ponto de provocarem mal-estar. Gropius era
uma força espiritual sincera, mas era também suficientemente pers
picaz e competitivo para perceber que van Doesburg o estava encur
ralando em um canto incômodo.
Da noite para o dia, Gropius imaginou uma nova máxima, um
novo componente heráldico para o reduto Bauhaus: "Arte e Tecno
logia - uma Nova Unidade! " Completo com ponto de exclamação
e tudo! E agora? Isso devia segurar van Doesburg e todas as coma
dres holandesas. Trabalhadores honestos, unhas largas e curvas de
sapareceram da Bauhaus para sempre.
Mas isso foi apenas o começo. As definições, argumentos e acu
sações e as contra-acusações, contra-argumentos e contradefinições
do que era e não era burguês tornaram-se tão requintados, tão rare
feitos, tão arcanos, tão dialéticos, tão escolásticos . . . que finalmente
o desenho arquitetônico em si passou a visar apenas uma coisa: ilus
trar a Teoria do Século deste mês a respeito do que era finalmente,.
infinitamente e absolutamente não-burguês. Os edifícios se torna
ram teorias construídas em concreto, aço, madêira, vidro e estuque.
(Materiais honestos, não-burgueses, teoria de.) Por dentro e por fo
ra, eram brancos ou beges com um ocasional detalhe contrastante
em preto e cinza. Bruno Tuut, membro do novo grupo de Mies van
der Robe, o Círculo, desenhara sua parte do conjunto habitacional
operário de Hufeisen, em Berlim, com fachadas vermelhas. " Frente
Vermelha!" bradava, caso houvesse alguém demasiado obtuso para
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entender. Bruno era um sujeito simpático. E Deus sabe que era pro
fundamente não-burguês... emocional e intelectualmente... Afinal de
contas, era marxista até nas veias saltadas da testa. Era o tipo de
homem a Quem naturalmente encarregaram de projetar um conjun
to habitacional operário chamado Cabana do Pru Tomás (Onkel Toms
Hütte) em Berlim. Mas uma fachada vermelha? De cor? Bem, que-
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.
ro dizer, puxa - que coisa burguesa! Por que não fo i até o fim e
pintou capuchinhas na fachada como fez Otto Wagner com a sua
Casa Majólica em Viena em 1910! Ah, como caçoaram do pobre Bru
no por causa de sua querida fachada vermelha. A partir de então,
branco, bege, cinza e preto tornaram-se as cores patrióticas, a ban
deira geométrica, de todos os arquitetos dos redutos.
Com isso adeus cor. Brandiu-se esse tufão sagrado, a Teoria,
até que os edifícios projetados pelos artistas dos. redutos passaram
a não visar muito mais que isso. Tornaram-se supremamente, ·divi
namente não-funcionais, einbora tudo fosse feito em nome da " fun
cionalidade", a palavra funcional sendo um dos vários eufemismos
para não-burguês.
Por exemplo, existia agora a teoria inviolável do telhado plano
e da fachada lisa. Decidira-se, na batalha das teorias, que os teTha
dos de águas e cornijas representavam as "coroas" da antiga nobre
za, à qual a burguesia passava a maior parte do tempo imitando.
Portanto, dali em diante só haveria telhados planos; telhados planos
formando impecáveis ângulos retos com as fachadas dos edifícios.
Nada de cornijas. Nada de beirais. Esses jovens arquitetos trabalha
vam e construíam em cidades como Berlim, Weimar, Roterdã, Ams
terdã, aí pela altura do paralelo 52, que também passa pelo Canadá,
ilhas Aleutas, Moscou e Sibéria. Nessa faixa do globo, com neve e
chuva suficientes para deter um exército, como a história demons
trara mais de uma vez, não havia isso de telhado plano funcional
e de fachada funcional sem beirais.• Na verdade é difícil imaginar on
de tal construção poderia ser considerada funcional, a não ser no De
serto Pintado. Todavia, não houve recuo do telhado plano e da fa
chada lisa. Tomara-se o próprio símbolo da arquitetura não-burguesa.
Nada de beirais; e com isso, muito depressa, um dos marcos do tra
balho dos redutos, que nunca se fazia referência nos manifestos, pas
sou a ser a parede exterior de reboco bege ou branco permanente
mente manchada e riscada pela água.
E havia ainda o princípio da "estrutura explícita". A burguesia
sempre fora perita em fachadas falsas (nem é preciso dizer), grossas
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paredes de alvenaria e outros materiais nobres, cobertos de todo o
tipo de quina e aresta e dintel e arcos revestidos de pedra, elementos
antropomórficos aconchegantes como entablamentos e capitéis, pi
lastras e colunas, plintos e bases rusticadas, para criar a impressão
de cabeça, tronco e pés; e todo o tipo de despropósito - agulhas,
telhas vitrificadas, sacadas envidraçadas, consoles - com o intuito
de criar uma impressão desonesta do que ocorria dentro da casa ar
quit�tural ou. socialmente. Tudo isso teve que ser dispensado. Toda
a alvenaria, todo aquele granito, mármore, arenito e tij olos cerâmi
cos maciços e "luxuosos" eram suspeitos, a não ser quando obvia
mente usados de maneira a não sobrecarregar. Dali em diante as pa
redes seriam finas películas de vidro ou estuque. (Pequenos tijolos
vitrificados de cerâmica bege também eram válidos quando necessá
rios.) Uma vez que as paredes já não eram usadas para sustentar a
construção - isso agora era tarefa das estruturas de aço, concreto
. ou madeira - era desonesto fazer as paredes parecerem atarracadas
como as de um castelo. A estrutura interior, os elementos fabrica
dos por máquinas, os retângulos mecânicos, a alma moderna de um
edifício devia estar expressa no seu exterior, completamente livre de
adornos sobrepostos. A expressão máxima desse princípio era a Ca
sa Schroeder do arquiteto Gernt Rietveld do movimento de Stijl. Riet
veld vestiu o exterior de projeções cuja única função era indicar o
reticulado, o diagrama, o paradigma, a progressão geométrica em
que os planos se baseavam. Assombroso! Que virtuosidade! Que coisa
tão não-burguesa!
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em grande detalhe nos anos que antecederam a guerra. Mas Sant'Elia,
que morreu na guerra, não foi nada comparado à estrela do mundo
artístico parisiense, o suíço Le Corbusier. Le Corbusier era o tipo
do intelectual incansavelmente racionalista que somente a França é
capaz de amar de todo o coração, o lógico que voa cada vez mais
alto em círculos concêntricos sempre decrescentes até que, .numa úl
tima indução absolutamente inevitável, ele desaparece pela própria
abertura fundamental e sai na quarta dimensão sob a forma de um
longilíneo passarinho fusco.
Os instintos de Corbusier com relação à era do reduto foram
impecáveis. Anos antes, ele parecia ter compreendido o que veio a
se tornar um axioma na competição artística do século XX. Ou se
ja, de que o jovem artista ambicioso tinha que aderir a um "movi
mento", uma "escola", um ismo - o que equivale dizer, a um redu
to. Ou ele se dispunha a aderir a uma igrejinha e subscrever seus códi
gos e teorias ou desistia de qualquer esperança de prestígio. Esmiuça-
A Vil/a Savoye projetada por Le Corbusier. Telhado plano. Fachada lisa. Estuque
branco. E "estacas" (pilotis). "Coluna" era uma palavra burguesa.
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se em vão a história da arte e da arquitetura a partir de 1900 em bus
ca de uma figura de grande prestígio que, à maneira de Thoreau,
marche ao ritmo de um tambor diferente, o gênio solitário cuja obra
só possa ser descrita como sui generis. (Com a possível exceção de
Frank Lloyd Wright, cujo destino examinaremos daqui a pouco.) Ao
invés, a muito aclamada figura solitária que encontramos é q artista
ou arquiteto que, a exemplo de Kasimir Malevich, é suficientemente
inteligente para se ocultar sob a exterioridade de um movimento, de
um ismo, e fundar o reduto de um homem só. Ou, se consegue en
contrar um companheiro, um reduto de dois homens. E então pro
clama: "Sou um suprematista! (ou um purista! ou um orfista!) Não
pensem que estou aqui sozinho! O resto da rapaziada vai chegar a
qualquer momento!" Le Corbusier deu o braço ao colega Amédée
Ozenfant - e passou a ser o Purismo.
Le Corbusier era um homem magro, pálido, míope que andava
numa bicicleta branca, metido em um terno preto e justo, camisa
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branca, gravata preta, óculos redondos de aros pretos como os de
uma coruja e um chapéu-coco preto. Aos espantados circunstantes,
ele explicava que se vestia assim para parecer o mais arrumado, pre
ciso e anônimo possível, para ser o perfeito manequim produzível
em série na Era da Máquina. Chamava as casas que projetava de
"máquinas de morar". Le Corbusier ia a Alemanha e a Holanda e
era muito conhecido em todos os redutos e em todos os congressos,
conferências, simpósios e debates, em todos os lugares em que se
fizesse ouvir a batida insistente do manifesto, a música dos redu-
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tos: Declaramos ...! Declaramos ...! Declaramos ...! Ele era
veemente, incisivo, brilhante, era Tomás de Aquino, os jesuítas, Dou
tor Sutil e os escolásticos, Marx, Hegel, Engels, e o Princípe Kro
potkin num homem só. Seu Vers une architecture era um evangelho.
Por volta de 1 924 era considerado um dos gênios reinantes da nova
arquitetura. No seu mundo ele era . . . Cor bu! do mesmo jeito que Ore
ta Garbo era Gar bo! Tudo por força do seu manifesto, do seu fana
tismo, e de um punhado de casinhas: construídas para o irmão, para
Ozenfant, para os parentes e boêmios. Em seguida construiu uma
para Mamãe e Papai . O asilo para idosos da Mamãe, que ela cus
teou e teve que agüentar, tornou-se o próprio símbolo da arquitetu
ra de reduto.
Foi a sina particularmente triste de Le Corbusier morar e traba
lhar na França. Quem na França ia aceitar os termos de um reduto
de arquitetura? Que seriam: " Doravante, quem quer que deseje se
banhar naquela luz divina deve vir a nós, ao nosso reduto, e aceitar
as formas que criamos. Não permitimos alterações, nem encomen
das especiais nem imposições de clientes.' ' Quem se aventuraria! Pra
ticamente ninguém, a não ser que estivesse possuído de um amor
semelhante ao da mãe de Corbu ou fascinado pelo Le Moderne, co
mo o urbanizador Frugés, que encarregou Le Corbusier de projetar
apartamentos econômicos na cidade de Pessac, Bordeaux, em 1925 .
A maioria dos mortais em posição de encomendar edifícios prefe
riam o estilo Belas-Artes, a síntese dos últimos dias dos refloresci
mentos que começaram na Renascença. Os redutos nem possuíam
pú blico, nem clientela no sentido comum. A realidade brutal é que
era difícil os arquitetos de redutos arranjarem trabalho a não Ger que
houvesse um governo - normalmente socialista - que tivesse real
mente decidido: precisamos imprimir um novo estilo por aqui, e pa
rece que vocês têm um. Tomem aqui o orçàmento; façam o que qui
serem .
Afinal, foi o governo social-democrata alemão de Stuttgart que
entregou a Le Corbusier uma das principais incumbências de sua car
reira. lsso aconteceu em 1927, e graças a Mies van der Rohe. O gover
no de Stuttgart encarregou Mies de uma exposição de conjuntos ha
bitacionais operários, o projeto Weissenhof Werk bund. Apesar do
orçamento extremamente exíguo, Mies conseguiu transformar o pro
jeto em uma feira mundial de conjuntos habitacionais. Chamou Le
Corbusier da França, Oud e Mart Stam da Holanda, e Victor Bour
geois da Bélgica e outros onze alemães, inclusive Gropius, Bruno Taut,
26
0 irmão de Bruno, Max, e Peter Behrens. Os não-participantes se sur
preenderam com a harmonia ou mesmice (dependendo se gostavam ou
não do estilo) da obra desses arquitetos de quatro países diferentes .
Era como se um novo estilo internacional estivesse no ar. A verdade
é que o mecanismo interno de competição nos redutos, o perene re
ducionismo - não-burguês! - os colocara todos no mesmo cubí
culo minúsculo, que não cessava de encolher, como o quarto num
conto de Poe. A não ser que desistissem inteiramente do divino j o
go, não lhes seria possível distinguir um do outro de forma visível
a qualquer mortal exceto outro arquiteto de reduto equipado, como
um criptógrafo, com as lentes da Teoria.
E que aparência tinham esses conj untos operários? Não
burguesa, mas por pouco: os telhados planos, sem cornij as, as pare
des lisas, as janelas, sem arquitraves, dintéis, capitéis ou frontões,
nas cores únicas dos redutos, branco, bege, cinza e preto. Os interio
res não tinham coroas nem diademas. Tinham cômodos imaculada
mente brancos, despoj ados, purgados, liberados, livres de quaisquer
revestimentos, cornij as, abobadilhas, molduras (para não falar no res
to), pilastras, e até frisos ogivados nos tampos das mesas e perola
dos nas gavetas. Apresentavam grandes vãos livres, acabando com
a velha obsessão burguesa, individualista, de intimidade. Nada de
papéis de paredes, nada de reposteiros, nada de tapetes grossos e flo
ridos, nada de abajures com copas e bases franj adas que pareciam
vasos ou colunas gregas, nada de paninhos rendados, bricabraques,
consoles de lareira, cabeceiras de cama ou disfarces para radiadores.
Deixavam as serpentinas dos radiadores nuas, honestas, abst ratas,
objetos esculturais que eram . E nada de móveis estofados com teci
dos "bonitinhos". A mobília era feita de materiais honestos em tons
_ n aturais: couro, tubos e aço, verga, cana-da-índia, lona; quanto mais
leves - e mais duros - melhor. E nada de tapetes e carpetes " lu
xuosos". Linóleo cinza ou preto era o quente.
E que achavam os operários da casa operária? Ah, eles se quei
xavam , como era de sua natureza nessa etapa da história. Em Pessac
os pobres _coitados frenéticos viravam os cubos nus de Corbu pelo
avesso tentando fazê-los aconchegantes e coloridos. Mas era compreen
sível. Conforme dizia o próprio Corbu, precisavam ser "reeducados"
para compreender a beleza da "Cidade Radiosa" do futuro. Em ques
tões de gosto, os arquitetos agiam como benfeitores culturais dos ope
rários. Não adiantava consultá-los diretamente, já que, conforme Gro
pius observava, ainda se encontravam "intelectualmente subdesen-
27
volvidos". De fato nisso residia a grande atração do socialismo para
os arquitetos na década de vinte. O socialismo era a resposta políti
ca, o grande sim-senhor às reivindicações aparentemente impossí
veis e absurdas dos arquitetos dos redutos, que insistiam que o clien
te ficasse de boca calada. No socialismo, o cliente era o trabalhador.
Ai dele, o desgraçado só agora estava começando a tirar o pé da la
ma. Entrementes, o arqtJiteto, o artista e o intelectual resolveriam
a vida dele. Usando a frase de Stalin, seriam os engenheiros de sua
alma. Nos blocos de apartamentos que construiu em Berlim para
os empregados da Siemens, o "engenheiro da alma" Gropius deci
diu também poupar os operários dos tetos altos e dos corredores lar
gos, além de outros objetos e decorações fora de moda. Tetos altos
e corredores largos e "amplidão" sob qualquer forma eram gran
diosidade burguesa, expressa em espaços ocos ao invés de sólidos.
Tetos de 2,IOm de altura e corredores de 90cm eram a medida certa
para ... recriar o mundo.
28
çar do zero não fazia sentido algum nos Estados Unidos. A triste
verdade é que os Estados Unidos não tinham sido reduzidos a es
combros fumegantes pela Primeira Guerra Mundial. Saíram da guerra
por cima.
O único combatente não demolido, dizimado, exaurido, ou ati
rado numa revolução. Era agora uma das Grandes Potências, j ovem,
em ascensão, explodindo de vigor e de uma saúde sobre-humana. E
não era só isso, não possuía monarquia nem nobreza a derrubar, de
sacreditar, culpar, vilanizar ou atacar de alguma forma. Nem mes
mo possuía burguesia. Na ausência de uma nobreza ou tradição de
nobreza, o conceito europeu de burguesia não podia ser aplicado.
(Escritores americanos, fascinados pelo exemplo europeu ,
importaram-no mesmo assim, como se importa um par de sapatos
Lobb ou um vidro de caviar Beluga, e começaram a falar de " bu
j oasi ", " Babbitt ", " u fanismo� e todo o resto.) Havia muito pouco
interesse pelo socialismo. E menos ainda por conj untos operários.
Nem ·se falava nisso.
Contudo . . . tinha que ser! Como é que alguém podia retroceder
depois de ter visto a Cidade Radiosa? A grande visão da nova arqui
tetura européia de conj untos operários tinha que ser levada aos Es
tados Unidos pelos meios que fossem necessários, da forma que fosse
possível . De qualquer forma.
ó j ovem príncipe de prata destacando-se dos destroços ao fundo!
29
li
UTOPIA LIMITADA
31
no passado distante . . . e em seguida concluíam que ele era apenas
"meio-moderno". O que equivalia a dizer que já era e podia ser es
quecido.
Quanto ao orgulho da arquitetura americana do século XX, o
arranha-céu, eles mal conseguiam conter o riso. Os arranha-céus eram
composições vâzias decoradas com "festões" e Deus sabe o que mais.
Os arquitetos americanos, e muito particularmente os arquitetos de
arranha-céus, estavam sempre dispostos a "desfigurar" seus edifí
cios com um mau traço, se o cliente exigisse. Os europeus, insinua
vam, dariam as costas a um contrato antes de se submeter a uma
idiotice dessas.
Em seu p refácio ao The lnternational Style em forma de livro,
o diretor do M useu de Arte Moderna, Alfred Barr, deu uma olhada
nos remates, nas coroas, dos arranha-céus mais famosos de Nova
O Empire State Building (esquerda) e o Chrysler Building (direita). Ah, como ca
çoaram dos enfeites de árvore de Natal no topo!
32
Yor k . Ficou estarrecido. "As gárgulas de aço inoxidável do Chrysler
Building' ', "o fantástico mastro de amarração no alto do Empire Sta
te" - como é que se materializavam tais vulgaridades! Muito sim
ples: os arquitetos americanos paravam e escutavam o que o cliente
tinha a dizer. Já ouvira até arquitetos argumentarem, talvez cinica
mente, que os pavorosos enfeitezinhos e ocas grandiosidades eram
" ful'lcionais". uma vez que uma das funções de um edifício era agra
dar ao cliente. " Exigem", dizia Barr, "que levemos a sério o gosto
arquitetônico dos especuladores imobiliários, administradores imo
biliários e corretores hipotecários! ' '
Hitchcock e Johnson gastaram muitas páginas analisando os
projetos dos grandes ' ' funcionalistas' ' - e nenhuma analisando ques
tões inconvenientes tais como operários, habitações operárias e socia
lismo, e menos ainda as batalhas desvairadas entre redutos. Havia
apenas o comentário obscuro e ocasional de que os arquitetos ame
ricanos não podiam " reivindicar para seus arranha-céus e edifícios
de apartamentos a ampla j ustificativa sociológica que existe para os
conj untos habitacionais operários, as escolas e os hospitais da Eu
ropa".
De fato, não davam qualquer indicação de que o Estilo I nter
nacional - e e sse rótulo pegou imediatamente - tivesse se origina
do em um contexto social, uma terra firme, de qualquer tipo.
Apresentavam-no como uma tendência inexorável , de natureza meteo
rológica, como uma mudança de tempo ou uma maré. O Estilo I nter
nacional era nada menos que o primeiro grande estilo universal desde
os reflorescimentos medieval e clássico, e o primeiro estilo verdadei
ramente moderno desde o Renascimento. E se os arquitetos ameri
canos quisessem pegar essa onda, ao invés de serem engolfados por
ela, primeiro teriam que compreender uma coisa: o cliente só era le
vado em conta na hora de custear a obra. Se cooperasse, e não fosse
muito chato, admitia-se que participasse da nova visão. De que ma
neira isso funcionaria na prática, ninguém dizia. Uma maré precisa
va dar explicações?
A mostra e o catálogo criaram uma fantástica agitação na co
munidade americana de arquitetura, principalmente devido à impor
tância do museu em si. O Museu de Arte Moderna era o complexo
colonialista inflado a dimensões prodigiosas. Na Europa, os movi
mentos de vanguarda, quer fossem fauvistas, cubistas, neoplasticis
tas ou a Bauhaus, eram iniciados e desenvolvidos por artistas e ar
quitetos. Na Europa, é claro, nem se precisava repetir. Numa etapa
33
posterior, como acontecera em Viena após a virada do século e em
Paris e Londres no início da década de vinte, os empresários mais
aventureiros e outros membros da burguesia talvez os apoiassem, por
razões políticas ou por piedade cultural ou simplesmente para pare
cerem-chiques, " modernos' ', e nada burgueses. Só nos Estados Uni
dos acontecia exatamente o oposto. Só nos Estados U nidos os em
presários e suas esposas apresentavam a arte e a arquitetura de van
guarda e abriam caminho com a bandeira desfraldada incitando os
profissionais a segui-los, se tivessem agilidade mental para tanto.
O Museu de Arte Moderna, afinal de contas, não era bem filho
intelectual de socialistas e boêmios visionários. Fora fundado na sa
la de estar de John D. Rockefeller, Jr. , para sermos mais precisos,
em companhia de A. Conger Goodyear, e a Sra. Cornelius Newton
Bliss e a Sra. Cornelius J. Sullivan. Tinham visto seus congêneres
em Londres regalando-se com o chique e a excitação de Picasso, Ma
tisse, Dérain, e o resto de Le Moderne e estavam decididos a importá
lo para Nova York e para si. Em 1929 inauguraram o museu e con
solidaram o modernismo europeu na pintura e na escultura,
institucionalizaram-no da noite para o dia, de maneira avassalado
ra, como o novo padrão para as artes americanas. A exposição In
ternational Style estava destinada a fazer o mesmo pelo modernis
mo europeu em arquitetura.
Os nossos vanguardistas visionários! Rockefellers, Goodyears,
Sullivans e Blisses! ó petroleiros, madeireiros, comerciantes de se
cos e suas mulheres!
Foi maravilhoso. Parecia o enredo da opereta de Gilbert e Sulli
van, Utopia Limited. O Rei Paramount, governante de um paraíso
tropical, ouvindo contar que os ingleses eram a última palavra em
matéria de roupas, fala, modos e cultura, converte sua corte ao esti
lo inglês. Ele e seus servidores despem imediatamente os saiotes, fo
lhas de palmeiras e orquídeas e enfiam calções, sobrecasacas, peru
cas, espartilhos, saias rodadas e sapatos de bico fino. E ordenam aos
súditos que façam o mesmo. Perplexos, mas impressionados, eles obe
decem.
Na opereta, como se poderia prever, o rei e seus conterrâneos
descobrem, com o passar do tempo, que os costumes nativos afinal
eram melhores; e o alvo da última risada são os europeus. Nesse ponto
Gilbert e Sullivan e o mundo artístico de Nova York se distanciam.
Nem por um instante os petroleiros e os madeireiros ou seus súditos
- os artistas - t iveram a menor dúvida de que as idéias européias
34
eram melhores. Durante toda a década de trinta, os artistas locais,
n otadamente Arshile Gorky, murmuraram e protestaram que o mu
seu dedicava' todos os · seus recursos às obras européias e nunca lhes
dava uma chance. Mas eles não estavam realmente interessados. O
complexo colonialista se tornara tão intenso que a reação-padrão à
reputação dos europeus não era competir com eles mas imitá-los,
muitas vezes com total descaramento.
O modelo de Gorky era Picasso, e pouco lhe importava se al
guém sabia disso. Um amigo disse a Gorky que, em sua opinião, .as
obras mais recentes de Picasso pareciam feitãs com preguiça e des
leixo. Em muitas telas as bordas estavam borradas. Havia até pingos
de tinta escorridos .
• " Se Picasso borra" - disse Gorky - "então eu borro. Se ele .
pinga, eu pingo."
No momento seguinte, porém, sua posição parecia insustentá
vel . Caía em depress ão. Certo dia convocou todos os artistas que co
nhecia para uma reunião em seu estúdio.
" Vamos enfrentar" - disse-lhes. " Estamos falidos."
Tal era a atmosfera mental em que Hitchcock e Johnson intro
duziram o Estilo Internacional . Mal sabiam que eram apenas o men
sageiro Elias, os Mahaviras, os arautos batistas de um evento mais
milagroso do que qualquer deles teria ousado suplicar: a vinda.
35
111
OS D E U S ES B RA N COS
Os Deuses Brancos!
Vieram finalmente do c éu !
37
Gropius foi nomeado diretor da Escola de Arquitetura de Har
vard , e Breuer se reuniu a ele. Moholy-Nagy abriu a Nova Bauhaus,
que 'acabou se transformando no Chicago Institut e of Design. Al
bers abriu uma Bauhaus rural nas montanhas da Carolina do Norte,
no Black Mountain College. Mies instalou-se como decano de ar
quitetura no Armours I nstitute de Chicago. E não só como decano;
Ludwig Mies van der Rohe. O Deus Branco n.02. Ele enfiou metade dos Estados
Unidos nos cubos criados para os operários alemães.
38
mestre- cons trut or também . Deram-lhe um campus universitário pa
ra criar, v inte e um prédios ao todo, quando o Armour Institute se
fundiu ao Lewis Institute para formar o Illinois Institute of Techno
logy. Vinte e um grandes prédios, em plena Depressão, num momento
em que as construções tinham quase parado nos Estados Unidos -
para um arquiteto que só terminara dezessete obras em sua carreira
ó Deuses Brancos !
Tuntas prostrações ! Tantas homenagens! O Museu de Arte Mo
derna homenageou Gropius com uma mostra denominada " Bauhaus:
1919-1928", anos em que Gropius a dirigiu. Philip Johnson, agora
com trinta e quatro anos, não conseguiu mais resistir a presença físi
ca d os deuses. levantou acampamento rumo a Harvard para estu
·
dar arquitetura aos pés de Gropius. Começando do zero! (Se a ver-
dade fosse dita ele teria preferido estudar ao pés de Mies, mas para
um rapaz supremamente urbano como era Johnson, podemos estar
certos de que a idéia de se mudar para Chicago, Illinois, durante três
anos, era um pouco mais zero do que tinha em mente.)
Foi embaraçoso, talvez . . . mas era o tipo de coisa com que se
aprende a conviver. . . Em três anos o curso de arquitetura americana
mudara, por completo. Não era tanto pelos edifícios que os alemães
projetaram nos Estados Unidos, embora Mies viesse a se tornar in
fluentíssimo uma década depois. Era mais pelo sistema de ensino
que introduziam. E não só isso, era a presença deles em si. As criatu
ras mais fabulosas de toda a mitologia da arte americana do século
XX - ou seja, aqueles fascinantes artistas europeus posando de for
ma tão exótica com os destroços ao fundo - estavam . . . ali!... en
tão!... na terra do complexo colonialista . . . para governar, em pessoa,
a grande Nigeriazinha das Artes.
Essa curiosa fase da história colonial tardia de maneira alguma
se restringia à arquitetura, porque o complexo colonialista permea
va tudo. Estrelas dos dois grandes movimentos rivais da pintura eu
ropéia, os cubistas e os surrealistas, começaram a chegar como refu
giados em fins da década de trinta e início da de quarenta. Léger,
Mondrian, Modigliani, Chagai!, Max Ernst, André Qreton, Yves Tun
guy - Ó deuses brancos! A Cena Americana e a pintura Social Rea
lista dos anos 30 desapareceram para nunca mais reaparecer. Com
os europeus, os artistas de Nova York aprenderam a criar a própria
igrej inha.
O primeiro reduto de arte americano, a chamada Escola de Ex
pressionismo Abstrato, de Nova York formou-se na década de qua-
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renta, com reuniões regulares, manifestos, novas teorias, novos có
digos visuais, o pacote completo. Arnold Schoenberg, o deus bran
co de todos os deuses brancos da música européia, chegou refugia
do em 1 936. Nos quarenta anos seguintes, a música séria nos Esta
dos Unidos tornou-se uma nota de rodapé na teoria da composição
séria de Shoenberg. Havia uma considerável ironia nisso. Muitos com
positores consideravam o jazz americano e os compositores ameri
canos da qualidade de George Gershwin, Aaron Copland e Ferde Gro
fé forças libertadoras, saídas para a hiper-racionalização da música
de vanguarda européia tipificada por Schoenberg. Mas os composi
tores americanos sérios, de um modo geral, não queriam saber dis
so. Agiam como sauditas a quem se dissesse que suas tendas são ma
ravilhosas porque são tão. naturais e indígenas e ecológicas. Queriam
o artigo genuíno - o artigo europeu - e o agarraram com todas
as forças. Dali em diante falava-se de Gershwin, Copland e Grofé
com condescendência ou então flagrante desdém.*
Na arquitetura, naturalmente, o Príncipe de Prata tornou-se o
principal dirigente, o governador da colônia, por assim dizer. O en
sino de arquitetura em Harvard se transformou da noite para o dia.
Tudos começavam do zero. Todos agora aprendiam os fundamentos
do Estilo Internacional - o que equivale a dizer, o estilo do reduto.
Toda a arquitetura tornou-se uma arquitetura não-burguesa, embo
ra deixassem o conceito em si discretamente inexplícito, por assim
dizer. As velhas tradições das Belas-Artes tornaram-se heresia, bem
como o legado de Frank Lloyd Wright, que para começar mal che
gara às escolas de arquitetura. Em três anos, tudo que se poderia
chamar de importante contribuição americana à arquitetura contem
porânea - de autoria de Wright. H. H. Richardson, criador do
românico-rústico americano, ou Louis Sullivan, líder da "escola de
Chicago" de arranha-céus - tinha caído ao nível das notas de ro
dapé, dos matagais do ibid.
O próprio Wright ficou furioso e, uma das raras vezes na vida,
perplexo. Era difícil dizer o que o incomodava mais: o fato de sua
obra ter sido desdenhada pelos europeus ou o fato de passar a ser
40
tratado como uma espécie de cadáver ambulante. Não o privaram
de honrarias e reverências, mas quando as prestavam, na maioria das
vezes pareciam homenagens póstumas. O Museu de Arte Moderna,
por exemplo, realizou uma exposição da obra de Wright em 1 940 -
mas acoplada a uma mostra da obra do diretor de cinema D. W. Grif
fith, que se aposentara em 1 93 1 . Mies fez uma declaração muito ele
gante falando da genialidade de Wright e da maneira como abrira os
olhos dos arquitetos europeus... antes da Primeira Guerra Mundial...
Mas quanto à gratidão que poderia ter sentido diante dos oitenta
e tantos edifícios que Wright projetara desde então, ele nada disse.
O final da d �cada de 20 e o início da década de 30 tinham sido
desastrosos para Wright. Já completara cinqüenta e oito anos quan
do, em 1 925, um incêndio destruiu seu estúdio em Taliesin, Wiscon
sin. Problemas com a amante, Miriam Noel, pareciam paralisar o
seu trabalho. Os negócios tinham sofrido uma séria queda mesmo
antes da Depressão: Wright finalmente se entocara, como um russo
branco em penúria, no refúgio reconstruído em Taliesin, com uns
doze aprendizes, conhecidos como os Companheiros de Thliesin, e
seus chapéus de feltro de copa chata e aba revirada, boinas, colari
nhos altos e gravatas esvoaçantes, e suas pelerines de Stev�nson, o
alfaiate de Chicago. O próprio Wright fora aprendiz de Sullivan e
rompera com o mestre ou fora despedido - cada qual tinha a sua
versão - mas Wright levara consigo a visão de Sullivan de lima ar
quitetura totalmente nova e totalmente americana, nascida do solo
e do espírito americano do Meio-Oeste. Bom, agora, finalmente, em
fins da década de trinta havia uma arquitetura totalmente nova nos
Estados Unidos, e viera diretamente da Alemanha, Holanda e Fran
ça, o componente francês sendo Le Corbusier.
Todas as vezes que Wright lia que Le Corbusier terminara um
edifício, -dizia aos companheiros: "Bom, agora que terminou um edi
fído, vai escrever quatro livros sobre ele." Le Corbusier fez uma vi
sita aos Estados Unidos - e criou uma fobia a esse país - e Wright
criou uma fobia a Le Corbusier. Recusou a única oportunidade de
conhecê-lo. Não quis ser obrigado a lhe apertar a mão. Quanto a
Gropius, Wright sempre se referia a ele como "Herr Gropius ". Não
queria lhe apertar a mão, tampouco. Certo dia Wright fez uma visi
ta surpresa a um canteiro de obras em Racine, Wisconsin, onde a
primeira de suas casas "Usonianas", versões de custo médio dos so
lares projetados na Prairie School, estava em construção. O Lincoln
Zephyr verm elho de Wright parou na entrada. Um de seus aprendi-
41
zes, Edgar Tufei, ia ao volante, servindo de motorista. Naquele ins
tante, vinha saind.o do prédio um gr upo de homens. Entre eles nin
guém menos que o próprio Gropius, que viera à Universidade de W is
consin fazer uma palestra e se mostrara ansioso por ver alguma coi
sa do trabalho de Wright. Gropius aproximou-se, pôs a cabeça na
janela e falou:
- Sr. Wright, é um prazer conhecê-lo. Sempre admirei o seu
trabalho.
Wright nem mesmo sorriu ou ergueu a mão. Meramente virou
a cabeça um tantinho à toa na direção do rosto à janela e disse pelo
canto da boca:
- Herr Gropius, o senhor é convidado da universidade local.
Só queria dizer que são tão esnobes aqui quanto em Harvard, só
que não falam com o sotaque da Nova Inglaterra. - E dizendo isso
voltou-se para Tufei: - Bom, temos que ir andando, Edgar! -
Recostou-se, e o Zephyr vermelho partiu veloz, deixando Gropius
e seu séquito na calçada sem saberem o que fazer com seus sófrisos
radiosos de orelha a orelha.*
Ponto para Papai Frank! - era como os Companheiros cha
mavam Wright quando não se achava por perto. Mas foi um ponto
sem ressonância. Papai Frank acabara de ver o rosto do alemão que
o substituíra no papel de Futuro da Arquitetura Americana.
Tufei e seus Companheiros eram os únicos seguidores de Wright
a essa altura. Entre os estudantes de arquitetura nas universidades
só se ouvia falar do Estilo Internacional. O entusiasmo vinha cres
cendo desde que os peregrinos regressaram da Europa e o Museu de
Arte Moderna começou a fazer publicidade dos arquitetos dos re
dutos. Quando os deuses brancos repentinamente desembarcaram,
o entusiasmo se transformou em conversão, num sentido religioso.
Havia um zelo por esse estilo que ultrapassava as paixões comuns
no gosto estético. Foi o fervor esotérico, hierofântico do reduto que
se apossou de todos. " Doravante, a divindade da arte e a autorida
de do gosto habitam conosco. ." Os departamentos de arquitetura das
.
• Edgar làfel, Apprentice to Genius: Yars with Frank Llloyd Wright (Nova York:
McGraw-Hill Book Company, 1979).
42
tratos não estavam mesmo contribuindo muito para a prosperidade
da arquitetura. As novas construções tinham quase que cessado. Is
so fazia com que fosse ainda mais fácil para a comunidade de arqui
tetu ra aderir às teorias dos deuses brancos e começar do zero.
O estudo da arquitetura deixava de ser uma questão de apren
der um-conj unto de técnicas e alternativas estéticas. Antes que desse
por si, o estudante se via atraído por um movimento que lhe confia
va um conj unto de p rincípios invioláveis de estética e moral. O cam
pus universitário em si se transformava em um reduto físico, como
ocorrera com a Bauhaus. Qu'ando os estudantes falavam de arquite
tura, era com um sentido de missão. Os redutos universitários ame
ricanos diferiam entre si - num grau íntimo, da mesma forma que
de Stijl diferia da Bauhaus. Harvard era Bauhaus pura . Em Yale fa- ·
A Casa Robie projetada por Frank Lloyd Wright, Chicago, 1906. Exemplar do
seu Estilo Pradaria e do seu sonho de uma arquitetura inteiramente americana.
Continue sonhando, continue sonhando...
43
se as tediosas pinturas renascentistas! Afinal de contas, vej am os de
senhos de Mies. Ele não usava sombreado algum, apenas linhas rá
pidas, secas e retas, despoj adas e incisivas. E vejam os de Corbu !
Sua técnica de desenho - um verdadeiro rabisco! Um j orro desor
denado de idéias ! Suas pinturas eram aquarelas em tons lilases e cas
tanhos, ligeiras e terríveis como uma tempestade! Gênio! - a pes
soa 1 precis ava deixar que a coisa esguichasse! Declaramos:
"Acabaram-sé os penosos detalhes do renascimento clássico! " - e
as faculdades cederam. Por volta de 1 940, os esboços do palpitante
passarinho fusco de Corbu tinham se transformado no padrão mo
derno de desenho. Com a euforia um tanto medonha de Savanarola
queimando as perucas e as fantasias das ricaças florentinas, os de
canos de arquitetura saíram instruindo os zeladores para j ogarem fora
todos os gessos de detalhes clássicos, recursos pedagógicos que ti
nham se acumulado durante mais de meio século. Quero dizer, puxa
Frank Lloyd Wright por volta de 1935. Ele espiou o futuro da arquitetura ameri
cana ... e viu a cara de Walter Gropius. Não ficou nada satisfeito.
44
vida, todas aquelas fontes esquilinas e capitéis do templo de Vesta ...
Que coisa tão burguesa!
Em Yale, no concurso anual de desenho, um júri sempre esco
lhia um estudante que era com efeito o melhor da mostra. Mas ago
ra os estudantes se rebelavam. E por quê? Porque das escrituras fa
zia parte a frase do próprio Gropius: ' 'o erro pedagógico fundamental
das academias nasce da sua preocupação com a idéia da genialidade
individual." A ex.pressão favorita de Gropius e Mies era trabalho "de
equipe". A própria firma de Grbpius em Cambridge não se chama
va Walter Gropius & Associados, Inc. , hem nada parecido com isso.
Chamava-se T he Architects Collaborative. Em Yale os estudantes in
sistiam em um trabalho de grupo, um projeto em colaboração, para
substituir a corrida obscena pela glória individual.
46
logia e de suas lógicas e dialéticas rigorosamente construí�as. Não
a aceitam e não a compreendem. Qualquer possível ligação que os
conjuntos operários ou os ideais antiburgueses tivessem com um pro
grama político, na Alemanha, Holanda ou qualquer outro lugar, fugia
à sua compreensão. Só percebiam o lado sentimental da coisa.
Lembro-me dos planos ousados que os jovens arquitetos de Yale e
Harvard faziam para o homem do povo no início da década de cin
qüenta. Esse era o termo que usavam, homem do povo. Tinham a
vaga noção de que o homem do povo era µm trabalhador, e não um
executivo de publicidade, mas tirante isso era tudo Trilby e Dickens.
Projetavam coisas para o homem do povo até 'os detalhes verdadei
ramente íntimos, tais como interruptores de lâmpadas. O novo ho
mem do povo liberado viveria como um Asceta Instruído. Seria mo
delado à imagem do bacharel boêmio de Greenwich Village dos fins
da década de quarenta - camisas de lã escura de Hudson Bay, pale
tós de tweed, calças de flanela, cachimbos de urze branca, sandálias
& simplicidade - exceto que iria viver num.a enorme colméia de vi
dro e aço, isto é, em um conjunto habitacional de Estilo Internacio
nal com elevadores, ao invés de um prédio de quatro andares em are
nito pardo sem elevador. Quanto à ideologia, não é preciso dizer mais.
Mas compreenderam em toda a precisão de implante de agulha este
reotáxica o lado criativo dos redutos. Em Yale os estudantes come
çaram a reparar que tudo que projetavam, tudo que o corpo docen
te projetava, tudo que os críticos-visitantes (que faziam a crítica dos
trabalhos estudantis) projetavam . . . parecia igual. Todos desejavam
a mesma . . . "Caixa" . . . de vidro e aço e concreto, substituindo-os oca
sionalmente por tijolinhos bege. Isso se tornou conhecido como ' 'A
Caixa de Yale' '. Desenhos irônicos da caixa de Yale começaram a apa
recer nos quadros. "A Caixa de Yale no Deserto Mojave" - e lá
estava o desenho de ' 'A Caixa de Yale' ' em meio às moitinhas de
artemísia e as iúcas a nordeste de Palmdale, Califórnia. "A Caixa
de Yale visita o ursinho Puff ' ' - e lá estava o desenho do cubo de
vidro e aço no alto de uma árvore, a casa de brinquedo da crian a Ç
do futuro. "A Caixa de Yale em Busca do Capitão Nemo" - e lá
estava o desenho da Caixa de Yale a vinte mil léguas submarinas com
um periscópio no alto e uma hélice atrás. Havia alguma coisa glo
riosamente deswirada nessa estória de A Caixa de Yale! - mas na
da se alterou. Mesmo nos momentos a sério ninguém conseguia de
senhar outra coisa exceto caixas de Yale. A verdade é que a essa altu
ra os estudantes de arquitetura de todos os Estados Unidos estavam
47
encerrados nessa caixa, a mesma caixa que os arquitetos dos redutos
tinham construído em volta deles na Europa, vinte anos antes.
O apartamento de todo j ovem arquiteto, o quarto de todo estu
dante de arquitetura, era aquela caixa e aquele santuário. E no san
tuário havia sempre o mesmo ícone. Ainda o vejo. A sala de estar
era um espaçozinho mesquinho nos fundos de um prédio sem eleva
dor. O sofá era um colchão sobre uma porta lisa sustentada por tijo
los e coberto com burel de frade. Havia mais burel de frade à guisa
de çortina e no assoalho um tapete de sisal que deixava marcas cor
diformes nas solas dos pés da pessoa pela manhã. O lugar era ilumi
nado por lâmpadas térmicas com refletores de alumínio em concha
em que se substituíam as lâmpadas térmicas i>or lâmpadas comuns.
A uma ponta do tapete havia. . . a cadeira de Barcelona. Mies a dese
nhara para o pavilhão alemão na Feira de Barcelona de 1929. O ideal
platônico de cadeira, puro aço inoxidável e couro de habitação ope
rária. a peca mais perfeita em matéria de desenho de móveis do sé
culo XX. A cadeira de Barcelona alcançava o preço atordoante de
550 dólares, e isso no atacado. Quando se contemplava aquele obje
to sagrado no tapete de sisal, sabia-se que se estava em uma casa
onde um arquiteto novato e a jovem esposa tinham sacrificado tudo
para trazer para casa o símbQlo da missão divina. Quinhentos e cin
qüenta dólares! Ela chegara a abrir mão do serviço de fraldas e esta
va lavando as fraldas no tanque. A coisa ganhou tais proporções que
se eu visse uma cadeira Barcelona, onde quer que fosse, imediata
mente - no clássico estímulo-resposta - sentia cheiro de fraldas
desfraldadas ao vento.
Mas se já tinham a cadeira, por que a mulher ainda estava la
vando as fraldas a mão? Porque uma cadeira era apenas metade do
caminho para Meca. Mies sempre as usava aos pares. O estado de
graça, a Cidade Radiosa, eram duas cadeiras Barcelona, uma de ca
da lado do tapete de sisal, diante do sofá de porta, sob a luz dos
refletores térmicos.
Se um rapaz sofresse e se sacrificas&e dessa forma, cortasse as
gorduras de sua vida mental e revelasse o brilho Mazda no ápice
de sua alma - quem no mundo terreno exterior, poderia detê-lo?
Foi por volta dessa época, fins da década de quarenta e início
da de cinqüenta, que O Cliente nos Estados Unidos começou a per
ceber que algo muito estranho ocorrera com os arquitetos. Em Yale
o primeiro brusco sobressalto - muitos se seguiriam - ocorreu em
1953 com uma ampliação da Yale Art Gallery. Escassos dez anos an-
48
tes, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Yale completara um pro
grama de obras de vastas proporções que transformara o campus uni
versitário em algo tão próximo a Oxford e Cambridge quanto seria
possível à mente humana conceber de uma hora para outra no sul
de Connecticut. Edward Harkness, sócio de John D. Rockfeller, e
John Sterling, que fizera fortuna com estradas de ferro, doaram a
maior parte do dinheiro. Dezoito fortalezas medievais se ergueram,
torre após torre, em estilo Gótico Universitário, para abrigar dez co
légios residenciais (o Yale Mid-Atlantic para dormitórios), quatro es
colas de graduação, uma biblioteca, uma usina de força, cuja cha
miné de contrafortes lembrava a Catedral de Rhéims, um ginásio de
dez andares conhecido como a Catedral do Suor, e a Harkness Tu
wer de vinte e um andares, com um carrilhão no alto. Todas essas
estruturas altaneiras tinham fachadas rusticadas. O Reflorescimen
to Gótico foi levado a extremos não só de usarem armações de chum
bo nos caixilhos das vidraças como também de mandar artesãos so
prarem, gravarem e pintarem as vidraças com desenhos medievais,
muitos deles minuciosas representações de figuras religiosas e ani
mais míticos, e instalá-las a intervalos aparentemente fortuitos. O
resultado foi um campus universitário quase unificado, arquitetu
ralmente, a exemplo da Jefferson University na Virgínia. Fossem quais
fossem as conseqüências, Yale tornou-se para os barões empresariais
a imagem do colégio luxuoso para os filhos da elite que iriam dirigir
o novo império americano.
O anexo da galeria de arte, na esquina das ruas York e Chapei
em New Haven, foi o principal projeto de Yale após a Segunda Guerra
Mundial. Nomearam arquiteto um homenzinho grisalho chamado
Louis Khan. Sua maior recomendação era aparentemente ser amigo do
diretor do departamento de arquitetura, George Howe. A galeria exis
tente, construída vinte e cinco anos antes, era um palauo italiano
de estilo românico projetado por Egerton Swartwout, um arquiteto
de Yale, e fora custeada por Har kness. T inha maciças cornijas e un\
pesado telhado de ardósia. Do lado da Rua Chapei, abriam-se gran
des janelas emolduradas por arcos duplos de pedra.
O anexo de Kahn foi... uma "caixa" ... de vidro, aço e concreto
e minúsculos tijolinhos be�e. Suas maquetes e desenhos deixavam
claro que do lado da Rua Chapei não haveria arcos, cornijas, pedras
talhadas, telhado inclinado - apenas uma parede absolutamente cega
de pequenos tijolos bege vitrificados. Os únicos detalhes discerní
veis nessa superfície lustrosa e lisa seriam quatro cintas estreitas de
49
concreto (cornijas lineares), a intervalos aproximados de 3m. Aos
olhos de um marciano ou do aluno padrão de Yale, mal se poderia
distinguir tal edifício de uma loj a de departamentos Woolco em um
shopping center. No principal salão da galeria destinado ao público
o teto era um tetraedro de concreto cinza, inteiramente visível . Isso
dava ao interior a aparência de uma garagem subterrânea.
Os administradores de Yale tiveram um choque. Kahn era ar
quiteto há vinte anos mas fizera pouco mais que trabalhar como
arquiteto-assistente, sob a supervisão de Howe, entre outros; em al
guns proj etos habjtacionais. Sua aparência também não impressio
nava muito. Era baixo. Tinha cabelos ralos, branco-avermelhados,
que apontavam em todas as direções. O rosto era todo retalhado em
conseqüência de um acidente na infância. Usava camisas amassadas
e ternos pretos. As costas de suas mangas eram lustrosas. Sempre
carregava um charutinho de uma cor infeliz na boca. A gravata per
manentemente frouxa. Era míope, e nas classes em que trabalhava
como crítico-visitante, via-se Kahn segurando a planta baixa de um
aluno medindo quase um metro, a menos de dez centímetros do ros
to, e girando a cabeça sobre o papel como um radar.
50
Mas isso era apenas exteriormente. Lá no íntimo dessa ruína pa
recia haver um cerne forj ado de confiança . . . e destino arquitetôni
co... Kahn entrava na sala de aula, encarava os alunos meio cego,
abria a boca . . . e de suas entranhas saía uma voz notável:
- Todo edifício precisa ter. . . alma própria.
Certo dia entrou na sala e começou uma aula com as seguintes
palavras:
- A luz . . . é. - Seguiu-se uma pausa que pareceu durar sete
dias, apenas suficientemente longa para recriar o mundo.
Sua aparência física insólita só tornava esses momentos mais
impressionantes. A paixão visionária do homem era irresistível . To
dos se sentiam esmagados.
Kahn encarou os administradores desse mesmo j eito, e a voz fa
lou:
- Que querem dizer com " Não tem nenhuma relação com o
edifício existente" ? Não compreendem? Não v�em? Não vêem as cor
nij as lineares? Elas expressam as linhas do piso do edifício existente.
Elas revelam a estrutura. Durante um quarto de século, esses pisos
estiveram escondidos pela alvenaria, completamente escondidos. Ago
ra ficarão à mostra. Agora toda a estrutura ficará à mostra. A for
ma honesta - a beleza, como preferem chamá-la - só pode resul
tar de uma estrutura visfvel!
Estrutura visível? Ele disse estrutura visfvel! Perplexos mas um
tanto intimidados, como se Cagliostro ou Jacmel Hoongan lhes fa
lassem, os administradores de Yale cederam ao destino da arquitetu
ra e agüentaram o tranco como gente grande.
Administradores, diretores, conselheiros, comissões municipais
e diretores executivos vêm agüentando como gente grande desde
então.
51
IV
Nesse ponto nos deparamos com uma das ironias da vida americana
no século XX. Afinal, este foi o século americano, no mesmo espíri
to em que se poderia considerar o século XVI I I o século britânico. Es
te é o século em que os Estados Unidos, o j ovem gigante, tornou-se
a nação mais poderosa da Terra, inventando os meios de arrasar o
planeta ao acionar um simples botão, mas também os meios de fu
gir para · as estrelas e explorar o resto do universo. Este é o século
em que os Estados Unidos se tornou a nação mais rica da história
do mundo, com uma riqueza que alcançou todos os níveis da popu
lação. As energias e os apetites carnais e os prazeres até mesmo das
classes operárias - o próprio termo agora parece antiquado -
tornaram-se enormes, fantásticos, excitantes, absurdos. O carro da
família americana foi um Buick Electra de 6, 70m e 425 cavalos com
rabo-de-peixe e dois seios de borrachas preta no pára-choque dian
teiro. As férias do entregador de bebidas americano ou de estivador
de carga passaram a ser duas semanas em Barbad ó s com a terceira
esposa ou a nova gata. A convenção da indústria americana passou
a ser uma orgia regada a gim em um coliseu municipal do tamanho
da cidade de Roma, e oferecia no estacionamento carretas estocadas
com prostitutas deitadas em fofos tapetes para uso exclusivo dos ·
membros daquela associação. O estilo de vida do americano fez o
resto da humanidade contemplá-lo com inveja ou nojo mas sempre
com a8 sombro. Em suma, foi o período americano de vigorosa tur
bulência j uvenil do tipo que-se-danem eu quero é me liberar - e
qual é a arquitetura que o país tem para mostrar? Uma arquitetura
cujo credo proíbe toda manifestação de exuberância, poder, impé
rio, grandiosidade, e até mesmo animação e leveza de espírito por
serem todos como o máximo do mau gosto.
53
A gente se prepara para dar um salto incrível por cima dos te
lhados do mundo - e ouve um pigarro de concerto.
Em suma, o estilo arquitetônico reinante, nessa verdadeira Ba
bilônia do capitalismo, foi o dos conj untos habitacionais. Conjun
tos habitacionais, concebidos por um punhado de arquitetos de re
dutos em meio aos destroços da Europa no início da década de vin
te, erguiam-se agora por toda parte, sob a forma de anexos de gale
rias de arte tradicionais, museus para mecenas, apartamentos para
ricos, sedes de empresas, prefeituras, casas de campo. Usaram-no para
toda e qualquer finalidade, na verdade, exceto para habitação ope
rária.
Não que habitações operárias nunca tenham sido construídas
para trabalhadores. Na década de cinqüenta e início da de sessenta
o governo federal ajudou a financiar a versão americana do Siedlun
gen alemão e holandês da década de vinte. Aqui receberam o nome
de conj untos habitacionais públicos. Mas de alguma maneira os tra
balhadores, mesmo sendo intelectualmente subdesenvolvidoi., con
seguiram evitar tais conjuntos públicos. Chamaram-nos simplesmente
de "conj untos ' ', e os evitaram como se tivessem mau-cheiro. Os tra
balhadores - se por esse nome nos referimos às pessoas que têm
emprego - rumaram ao invés para os subúrbios. Acabaram em lu
gares como Islip, Long Island e o San Fernando Valley em Los An
geles, compraram casas com tetos tradicionais de ardósia e revesti
mento de tábuas sobrepostas, e nada de estruturas aparentes se pu
dessem evitar, com cópias de lampiões a gás nas entradas e caixas
de correio equilibradas em pedaços de correntes enrijecidas que pa
reciam zombar da lei da gravidade - quanto mais engraçadinhos
e velhuscos os detalhes, tanto melhor - e encheram essas casas de
"cortinas " que desafiavam qualquer descrição e carpetes de parede
a parede onde se podia perder um sapato, e no quintal construíram
chUFrasqueiras e tanques com peixes em que urinavam querubins de
concreto, e estacionaram os Buick Electras à porta enquanto as
lanchas-cruzeiro Evinrude descansavam em reboques no telheiro
além . .
Quanto aos honestos obj etos esculturais projetados para os in
teriores das habitações operárias, tais como as cadeiras de Mies e
Breuer, os proletários ou não tomaram conhecimento delas ou as tra
taram com desprezo porque eram visivelmente desconfortáveis. Es
ses móveis são hoje símbolos de riqueza e privilégio, adaptados prin
cipalmente aos gostos das mulheres de empresários que passam dia-
54
riamente no D & D Building, o principal bazar de decoração de No
va York. O móvel mais famoso de Mies, a cadeira Barcelona, é atual
mente vendida no varejo a 3 .465 dólares e somente através de deco
radores. O preço exorbitante deve-se em grande parte aos materiais
não-burgueses e honestos da habitação operária: aço inoxidável e cou
ro. Hoje em dia pode-se encomendar o couro apenas no tom negro
ou em tons castanhos. No início da década de setenta, parece, certos
elementos burgueses andaram mandando fazê-la nas variações mais
chocantes . . . couro de zebra, peles Holstein., jaguatirica e tecidos bo
nitinhos.•
As únicas pessoas que continuam presas em conjuntos públicos
hoje nos Estad011 Unidos são as que não trabalham em lugar algum e
vivem encostadas na previdência social - esses são os únicos habi
tantes dos "conjuntos" - e, naturalmente, os ricos urbanos que mo
ram em edifícios como o Olympic Tower na Quinta Avenida em No
q
va York. Desde a década de cin üenta o termo "edifício �e alto lu
xo" passou a denotar um determinado tipo de prédio de apartamentos
que na realidade não é nada mais que os Siedlungen de Frankfurt
e Berlim, unidades sobrepostas, trinta, quarenta, cinqüenta andares
de altura, que sãQ alugadas ou vendidas à burguesia. O que é o mes
mo que dizer, habitação puramente não-burguesa exclusiva da bur
guesia. Por ve7.es as torres são feitas de aço, concreto e vidro; ou
tras, de vidro, aço e tijolinhos vitrificados brancos ou beges. Mas
os tetos são sempre baixos, com menos de 2,40m, os corredores, exí
guos, as salas, estreitas, mesmo quando são compridas, os quartos,
pequenos (l..e Corbusier sempre foi a favor disso), as paredes finas,
as portas e janelas não têm esquadrias, as juntas não têm molduras,
as paredes não têm rodapés, e as janelas não abrem, embora por ve
zes haja pequenas saidas de ar ou venezianas. A construção é inva
riavelmente ordinária tanto no sentido pejorativo quanto no literal.
Que os construtores pudessem apresentar essas ' 'caixas' ' na década
de cinqüenta, descaradamente, como um luxo e que homens e mu
lheres bem-educados as aceitassem como luxo - é um testemunho
objetivo dos que são obtusos demais para ironias sobre o domínio
estético da estética de reduto, do Príncipe de Prata e suas legiões co
loniais nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial.
Todos os instrumentos respeitados de opinião sobre arquitetura
ss
e refinamento, da Domus à House & Garden, afirmaram aos habi
tantes da urbe americana que isso é que era viver. Isso era o bom
gosto atual; isso era moderno e não tardou que o Estilo Internacio
nal passasse a ser conhecido simplesmente como arquitetura moder
na. Todos os domingos, o The New York Times publicava na seção
de design a foto do mesmo tipo de apartamento. Comecei a pensar
nele como aquele apartamento. As paredes eram sempre imaculada
mente brancas e sem molduras, esquadrias, rodapés e todo o resto.
Na sala de estar havia uns 17 .000 watts de spots R-40 encaixados em
latas brancas e suspensas do teto, compondo o que se conhece como
traék lighting. Havia sempre um conjunto de cadeiras moldadas,
abençoadas por Le Corbusier, em que ninguém nunca sentava por
que acertava o incauto na altura dos rins como um golpe de caratê.
A mesa de j antar era uma prancha acetinada de madeira clara (nada
de ornatos nas bordas ou nos pés), cercada por um conjunto de ca
deiras de tubos de aço em forma de S e assento de palha, projetadas
por Mies van der Robe - a segunda cadeira mais famosa do século
XX, sendo a primeira, a cadeira Barcelona de sua própria autoria,
mas também uma das cinco mais desastrosamente desenhadas, de
tal modo que na altura em que chegava o prato principal, pelo me
nos um convidado já caíra de cara no bisque de lagosta. Perto havia
uma palmeira ou uma dracena ou qualquer outra enorme planta tro
pical, porque a mobília era tão enxuta e lisa e nua e despojada que
se não houvesse algum exemplar prodigioso e copado de planta vi
toriana cultivada em viveiro a sala parecia absolutamente vazia. O fo
tógrafo sempre conseguia colocar a planta no primeiro plano, de mo
do que a cena nua além era algo que se espiava através de um arabesco
de vegetação equatorial. (E aquele apartamento continua conosco, to
dp domingo.)
E daí se a pessoa vivia num edifício que parecia uma fábrica
e tinha o aconchego de uma fábrica, e pagava uma nota preta por
ele? Todo edifício moderno de qualidade parecia uma fábrica. Essa
era a moda atual. Era só pensar no campus universitário que Mies
construíra para o Illinois Institute of Technology, a maior parte na
década de quarenta. O edifício principal com as salas de aula pare
cia uma fábrica de sapatos. A capela parecia uma usina de força.
A usina de força em si, também projetada por Mies, parecia bem
mais espiritual (conforme observaria Charles Jencks), graças à cha
miné, que pelo menos se projetava em direção ao céu. O edifício da
escola de arquitetura tinha armações de aço negro atravessando o
56
telhado de cada lado da entrada principal, à moda das lavadoras de
carros de Los Angeles. Todos os quatro eram "caixas" de vid ro e
aco. A verdade era que isso era inevitável. O estilo do reduto, com
os seus tabus não-burgueses, reduzira de tal modo as opções do ver
dadeiro crente que todo edifício, e a casa de praia não menos que
o arranha-céu, acabava tendo a mesma aparência geral.
E daí? Os termos caixa de vidro e repetitivo, primeiramente usa
dos como termos humilhantes, transformaram-se em insígnias de
honra. Mies teve muitos imitadores americanos, Philip Johnson, 1 .
M . Pei, e Gordon Bunshaft sendo o s mais famosos e mais espalha
fatoso� B os mais descarados. Os maledicentes diriam que cada um
dos edifícios de Philip Johnson era uma imitação de Mies van der
Robe. E Johnson arregalaria os olhos e daria aquele seu maravilho
so sorriso de falsa inocência e responderia: " Sempre adorei ser cha
mado de Mies van der Johnson." Bunshaft projetara o Lever Uou
se, sede empresarial da companhia de sabões e detergentes l.ever Bro
thers, na Park Avenue. O edifício fez tal sucesso que se tornou o pro
tótipo da "caixa de vidro" americana, e Bunshaft e sua firma, Skid
more, Owings & Merril fizeram muitas variações do mesmo projeto.
À acusação de que só projetava "caixa de vidro", Bunshaft gostava
de retrucar: " É verdade, e vou continuar a projetá-las até fazer uma
que eu goste."
Para um hierofante do reduto, era fácil demonstrar confiança !
Que lhe importava dizerem que estava imitando Mies ou Gropius ou
Corbu ou qualquer um deles ? Era o mesmo que acusar um cristão
de imitar Jesus Cristo.
A estrela de Mies subira sem parar desde a sua chegada aos Es
tados Unidos em 1938, devido em grande parte à influência de Phi
lip Johnson. Johnson escolhera Mies como um dos quatro grandes
modernistas na sua mostra do Estilo Internacional em 1932. Em se
guida ajudou-o a emigrar para os Estados Unidos e a conseguir o
extraordinário emprego no Armour Institute. Em 1947, quando a.
maioria dos edifícios projetados por Mies para o campus universitá
rio estavam em andamento, Johnson publicou o primeiro livro so
bre sua obra. Mies estava beirando os sessenta, mas graças a John
son embarcou em uma nova e gloriosa carreira nos Estados Unidos.
Todavia, com ou sem Johnson, Mies sabia se arranjar sozinho nu
ma era de redutos de arte. Fora diretor de arquitetura do November
gruppe nos idos de 1919; fundara a revista do grupo, G (de Gestal
tung, "força criativa"); tornara-se um exímio propagandista com um
57
À esquerda: O Lever House projetado por Gordon Bunshaft, a mãe de todas as
caixas de vidro, fértil como uma coelha. À direita embaixo: O Seagram Building.
Mies levanta uma casa de operário de trinta e oito andares e as capitalistas a usam
como sede de corporação. Notem-se as cortinas e persianas: só são permitidas três
posições - baixadas, erguidas, e meia altura. À direita, no alto: canto do Sea
gram Building. Vigas de abas largas em bronze sob medida aplicadas ao exterior
para "expressar" as verdadeiras escondidas sob o concreto.
58
talento para aforismos. O mais famoso era " Menos é mais", ao qual
acrescentou: " Minha arquitetura é quase nada." Sua idéia era com
binar os elementos usuais dos conj untos operários de maneira que
fossem austeros e elegantes ao mesmo tempo, na mesma linha do
que hoje se conhece por " minimalismo". Pessoalmente M ies estava
longe de ser austero. Era um indivíduo grande, gordo mas bonitão,
que fumava charutos caros. Nada menos que coronas. Parecia mais
um industrial do Ruhr. Era também uma criatura afável , a tal pento
que até'Frank Lloyd Wright gostava dele. Era o único deus branco
que Wright conseguia tolerar.
Em 1 95 8 , o único e maior monumento à arquitetura dos redu
tos holandeses e alemães foi erguido na Park Avenue, defronte ao
Lever House. Foi o Seagram Building, projetado pelo próprio Mies,
com a colaboração de Philip Johnson como assistente. O Seagram
Building era habitação operária, absolutamente não-burguesa, trin
ta e oito andares plantados na Park Avenue para a firma que produ
zia o uísque de centeio chamado Four Roses . Combinando com a
cor da garrafa de uísque americana, as vidraças dessa caixa de vidro
e aço, a maior de todas, eram âmbar-escuro. Quanto ao aço expos
to, bom, uma vez que aço âmbar não existia, exceto quando enfer
ruj ava, escolheram o bronze. Não estariam com isso acrescentando
cor, como fizera o pobre Bruno Taut? Não, bronze era bronze; era
essa a cor que tinha quando saía da fundição. Quanto ao vidro, to
do vidro acabava adquirindo uma corzinha, em geral esverdeada.
Colori-lo de âmbar era apenas um controle de coloração feito pela
máquina. Certo? (Além do mais, era uma obra de Mies.) A exposi
ção do material apresentara um problema. A visão de Mies da má
xima pureza não-burguesa era um edifício composto apenas de vi
gas de aço e vidro, com laj es de concreto formando os pisos e tetos.
Mas agora que se encontrava nos Estados Unidos, deparou-se com
os códigos de obras e de prevenção de incêndios. O aço era fantásti
co para edifícios altos porque podia suportar grandes tensões late
rais bem como sustentar grandes cargas. Sua fraqueza era que o ca
lor de um incêndio poderia provocar o empenamento do aço. Os có
digos americanos exigiam que os elementos estruturais de aço fos
sem revestidos de concreto ou outro material à prova de fogo. Isso
só retardou Mies um pouquinho. Já resolvera o problema em Chica
go, nos edifícios de apartamentos que construíra em Lake Shore. O
que fez foi revestir os elementos de aço de concreto conforme exi
giam, e revelá-los a seguir, expressá-los, colocando vigas de abas largas
59
na parte externa do concreto, como se dissesse: "olhe! É isso que
há por dentro." Mas colocar coisas no exterior dos edifícios . . . Não
era isso exatamente que se conhecia em outras eras, por ornatos so
brepostos? Havia algum j eito de se chamar uma coisa dessas de fun
cionan Nenhum problema. No cerne do funcional, como todos sa
biam, não residia a função mas a qualidade espiritual conhecida por
não-burguês. E o que poderia ser mais não-burguês do que vigas de
abas largas sem adornos, saídas diretamente das manoplas de um
operário de construção.
60
solidez penduravam simulacros de cortinas que pareciam os varais
dos cortiços de Nápoles, qualquer coisa que afastasse aquele sol de
ferver os miolos e escaldar os olhos que incendiavam as vidraças todas
as tardes . . . E durante a noite os zeladores, a polícia sectária de Mies
cumprindo ordens rigorosas, invadia e arrancava essas patéticas bar
ricadas erguidas à visão pura dos deuses brancos e do Príncipe de
Prata. Com o tempo, todos desistiram e aprenderam como fizera a
haute bourgeoisie, a agüentar a coisa como homens.
Até aprenderam a aceitar os dois grandes argumentos circulares
dos sectários de Mies. Para os filisteus que ainda eram tão gauches
a ponto de dizer que faltava à nova arquitetura a riqueza de detalhes
da velha arquitetura das Belas-Artes, os elementos de gesso, de me
tal, a alvenaria e assim por adiante, os sectários de Mies diriam com
considerável condescendência: ' ' Ó timo. Arranj em-nos artesãos que
façam esse tipo de trabalho e então conversaremos. Eles não existem
mais." Verdade. Mas por quê? Henry Hope Reed conta que uma vez
ia de carro pela Rua Cinqüenta e Três Oeste em Nova York, na dé
cada de quarenta, com alguns empregados da E . F. Caldwell & Co. ,
uma firma especializada em obras em bronze e luminárias. Quando
o carro passou pelo Museu de Arte Moderna, os homens começa
ram a brandir os punhos para o museu e a gritar: ' ' Esse maldito mu
seu está nos destruindo! Esses filhos da mãe estão nos matando! ' '
Nos tempos prósperos d a arquitetura de Belas-Artes, a Caldwell em
pregava mil serralheiros, marmoristas, maquetistas e projetistas. Ago
ra a companhia estava resvalando para a insolvência, juntamente com
muitas outras firmas do ramo. Não é que o artesanato estivesse mor
rendo. Muito ao contrário, o Estilo Internacional é que estava aca
bando com a demanda desses produtos, principalmente na constru
ção comercial . Usando o mesmo argumento, aos que se queixavam
que os edifícios do Estilo Internacional eram acanhados, tinham pa
redes demasiado finas interna e externamente e, de um modo geral,
um aspecto ordinário, a resposta astuta era: ' 'Atualmente é dema
siado caro construir em qualquer outro estilo." Mas não era dema
siado caro, apenas mais caro. O ponto crítico era aquilo- que as pes
soas tolerariam ou não esteticamente. Era possível construir em es
tilos ainda mais baratos do que o Estilo Internacional . Por exemplo,
a Inglaterra começou a fazer experiências com escolas e conj untos
habitacionais construídos à semelhança de hangares de aviões, com
metal corrugado preso com cabos de retenção. Os arquitetos de lá
também diziam: "Atualmente é muito caro construir em qualquer
61
outro estilo". Tulvez um dia desses todo o mundo (tout /e monde )
aprendesse a agüentar isso também como homem .
A Comissão de Seleção esteve de prontidão o tempo todo, para
auxiliar no processo. Acabara-se a época de monarcas da importân
cia de um Ludwig II da Bavária, ou de autocratas do mundo dos
negócios como um Herbert F. Johnson da Johnson Wax, que sele
cionava pessoalmente os arquitetos para os grandes edifícios públi
cos. Os governos e as empresas agora entregavam a tarefa à Comis
são de Seleção. E a Comissão de Seleção tipicamente incluía no mí
nimo um arquiteto de prestígio, que, por ter prestígio, era natural
mente um produto dos redutos. E à medida que chegavam os des
conc�rtantes e proibitivos proj etos dos outros arquitetos de redutos,
os vários diretores e executivos que participavam da comissão se di
rigiam confusos ao arquiteto que os tranqüilizava: ' 'Atualmente é
caro demais construir em qualquer outro estilo". E: " Ótimo.
Arranj em-nos os artesãos que façam esse tipo de trabalho . e então
conversaremos." E o círculo se fechou para sempre. E os mais pode
rosos entre os poderosos aprenderam a agüentar a coisa como
homens.
62
idéia de Corbu de " ruas suspensas ". Uma vez que não havia no con
j unto nenhum outro lugar onde pecar em público, tudo que talvez
acontecesse normalmente em bares, bordéis, clubes, bilhares, gale
rias de j ogos, armazéns, paióis de milho, horta de nabos, montes de
feno, cocheiras, agora se desenrolava nas ruas suspensas. Os buleva
res de Corbu faziam o Gin Lane de Hogarth parecer uma rua de so
nho à beira-mar, em Southampton , Nova York. As pessoas decentes
bateram em retirada, mesmo que isso significasse viver em buracos
nas calçadas. Milhões de dólares e incontáveis reuniões da comissão
e projetos especiais foram gastos numa tentativa desesperada de tor
nar o Pruitt-lgoe habitável. Em 1 97 1 , a força-tarefa final convocou
uma reunião geral de todos que ainda habitavam o conj unto. Pedi
ram sugestões aos residentes. Foi um momento histórico por duas
razões. A primeira porque pela primeira vez nos cinqüenta anos de
história de conj u ntos operários, alguém finalmente pedira dois tos
tões de opinião ao cliente. A segunda, o coro. O coro começou ime
diatamente: "Explodam . . . o conj unto! Explodam . . . o conj unto! Ex
plodam . . . o conj unto! Explodam . . . o conj unto! Explodam . . . o con
j unto ! " No dia seguinte a força-tarefa refletiu sobre a sugestão. Os
63
pobres coitados estavam certos. Era a única solução. Em j ulho de
1 972, a cidade dinamitou os três blocos centrais do Pruitt-lgoe.
Essa parte da saga dos conjuntos operários ainda não termi
nou. Mal começou . Quase ao mesmo tempo que o Pruitt-lgoe era
demolido, o conjunto Oriental Gardens era erguido em New Haven,
a cidade modelo da renovação urbana nos Estados Unidos. O arqui
teto, um dos membros de reduto do maior prestígio, era Paul Ru
dolph, decano da Yale School of Architecture. O departamento
de habilitação e desenvolvimento urbano do governo federal, que cus
teava o projeto, saudou o traço audacioso de Rudolph como a visão
dos projetos habitacionais do futuro. O Oriental Gardens era for
mado de conj untos de módulos pré-fabricados. Nunca se acabava
com um número maior de desprivilegiados do que de apartamentos.
Podia-se continuar a acrescentar módulos e a agrupar os coitados
dos migrantes até Bridgeport . O problema era que os módulos não
se encaixavam muito bem . Pelas frestas entravam o frio e a chuva.
Portas afora, as que ainda se abriam, saíram as pessoas respeitáveis
que de início tinham entrado. Por volta de setembro de 1 980 só res
tavam dezessete inquilinos. No início de 198 1 , o próprio departamento
que o financiara, o HUD, começou a demoli-lo.
Outros monumentos americanos em homenagem aos conjun
tos operários da Europa Central da década de vinte começaram a
se desmoronar por contra própria. Havia gigantescos ginásios espor
tivos e centros de convenções, tais como o Hartford Civic Center,
com telhados planos. A neve foi demais para eles - mas sofreram
um colapso piedoso, prestando ao caírem homenagem ao dito de que
os telhados inclinados eram burgueses.
64
V
OS APÓSTATAS
65
obras local para pôr um fim à frustrante infestação. Até aí, tudo bem;
uma rej eiçãozinha de parte dos filisteus prestava bons serviços a um
arquiteto no reduto. As credenciais de Stone eram tão impecáveis,
de fato, que o Museu de Arte Moderna o escolheu como arquiteto,
juntamente com Philip L. Goodwin , para construir o seu prédio da
Rua Cinqüenta e Três Oeste, quase na esquina da Quinta Avenida,
no local onde antes se erguiam os palacetes de John D. Rockefeller,
Jr. e do próprio John D. Ali se ergueria o edifício-modelo do museu
para mostrar a toda Nova York o Estilo Internacional . Stone · fora
escolhido para conceber a aula-objeto, a nave-capitânea da Utopia,
Ltda. No momento em que a embaixada de Nova Déli foi inaugu
rada, o /e monde da arquitetura elegante, o que equivale dizer, o mun
do dos redutos europeus que tinham suas bases nas universidades,
largou Stone como se ele fosse um vigarista. Ouro aqui e Luxuoso
lá e mármore acolá e curvas por toda a parte. . . Que coisa tão bur. . .
Não, era burguesa n e plus ultra. Não havia hipótese nem d o próprio
Mies, mestre da viga de abas largas em bronze, arranjar argumentos
para escapar ileso de uma produção dessas. E o que era mais morti
ficante é que Stone nem mesmo tentou argumentar. Deu adeuzinho
ao Estilo Internacional. Aos críticos do seu Kennedy Center em Was
hington, uma versão grandemente ampliada do Taj Maria, Stone re
torquiu que o edifício representava "2.500 anos de cultura ocidental
e não 25 anos de arquitetura moderna". O homem nem chegava a
ser relapso. Era pura e simplesmente um apóstata. Renunciara aos
princípios fundamentais.
Classicamente, a sina do apóstata é aquela maldição conhecida
por anátema. No mundo da arquitetura, entre aqueles que estavam
em posição de construir ou destruir reputações, todo edifício que
Stone projetou a partir de então foi sepultado em excomunhão. Quan
do o Museu de Arte Moderna decidiu erguer um anexo da Rua Cin
qüenta e Três Oeste, não havia uma chance em mil de Stone ser es
colhido para ampliar o próprio projeto. A tarefa coube ao arquiteto
de reduto mais em voga, Philip Johnson, agora formado pela escola
de arquitetura de Harvard, quiçá ainda aos pés do Príncipe de Pra
ta. Em uma das reviravoltas mais simpáticas da história da arte ame
ricana, ao invés, Stone foi escolhido por Huntington Hartford para
projetar sua Gallery of Modem Art, a nove quarteirões de distância
do Columbus Circle. Hartford era um independente na cena artísti
ca, colecionàdor de pré-rafaelitas e de Salvador Dali , para mencio
nar apenas dois de seus gostos fora de moda. Estava construindo
66
um museu especificamente para desafiar a Utopia, Ltda. e todas as
suas obras. Lembro-me vividamente dos risinhos maquinais, do re
virar de olhos que a menção do edifício de Stone para Hartford pro
vocava à época. As críticas dos colunistas de arquitet1,1ra foram bas
tante más. Mas nem mesmo termos como " kitsch para os ricos " e
" pirulitos de mármore" transmitem a maligna atmosfera psicológi
ca em que Stone se viu. Por fim , ficou reduzido a retrucar coisas
do gênero " Qualquer chofer de táxi de Nova York lhe dirá que é o
edifício favorito dele". Depois de tud9 que fez ! De uma vida inteira !
Os dois Stones. 1939: Edward Durell Stone, o verdadeiro crente, projeta o edifício
do Museu de A rte Moderna (esquerda). 1964: Edward Durell Stone, o apóstata,
faz a Ga/lery of Modem A rt pdra Huntington Hartford. "Pirulitos de Mármo
re! " bradaram os verdadeiros crentes.
67
- ser acuado, finalmente, ao último refúgio populista de um Mic
key Spillane ou de uma Jacqueline Susan . . . ó Senhor! Anátema!
É de se notar .Que os negócios de Stone n�10 entraram em colap
so a partir da apostasia, apenas seu prestígio foi afetado. O Taj Ma
ria operou milagres na sua clientela em termos comerciais. Afinal,
o Estilo Internacional era bem odiado até por aqueles que o enco
mendavam . Havia ainda outros que de saída se dispunham a chegar
a extremos para não ter qualquer relação com ele. Ficavam bastante
satisfeitos de encontrar um arquiteto com credenciais modernistas,
mesmo que tivesse cometido deslizes, que quisesse lhes oferecer ou
tra coi�a. Mas em termos de reputação na fraternidade, Stone era
veneno. Colocara-se aquém de qualquer cogitação séria. Abando
nara a corte. Estava fora do j ogo.
A experiência de Eero Saarinen foi semelhante, embora as hos
tilidades não tenham sido tão virulentas. Saarinen pertencia a uma
aristocrática linhagem de arquitetura modernista. O pai , Eliel , era
um arquiteto finlandês muitas vezes comparado aos Dissidentes de Vie
na. Saarinen fora arquiteto do Estilo Internacional convencional até
1956, quando projetou o terminal da Trans World Airlines no Aero
porto Idlewild (hoje Kennedy) em Nova York. O edifício foi cons
truído com materiais convencionais, vidro, aço e concreto, mas pa
recia inequivocamente. . . uma águia. Seu terminal para o Aeroporto
Dulles em Washington era a escultura ainda mais escandalosa de um
pássaro em vôo com sugestões de pagode. . . O ringue I ngalls para
hóquei no gelo em Yale lembrava uma baleia ou uma tartaruga. (Não
são os primeiros animais que o hóquei no gelo traz à lembrança, mas
vá lá.) No caso de Saarinen, as formas curvilíneas eram o menor dos
males. O homem degenerara para uma espécie de zoomorfismo hin
du . Saarinen decidira trilhar um caminho próprio, numa franca di
ligência para se tornar o gênio singular da arquitetura do século XX.
Declarou que gostaria de conquistar "um lugar na história da ar
quitetura". Escolhem a era errada. Havia gênios na arquitetura, mas
não podiam ser singulares. Tinham que fazer parte de um reduto,
de um "consenso", para usarmos um termo de Mies. O mundo dos
redutos simplesmente observou-o desaparecer nas pantanosas bru
mas zoomórficas. Raras vezes o atacaram diretamente, como acon
teceu com Stone. Foi banido de cogitação, e ponto final . Lembro
me de ter escrito um artigo para a revista Architectu re Canada em
que mencionei Saarinen em termos que indicavam que era digno de
estudo. Encontrei um dos articulistas de arquitetura mais conheci-
68
dos de Nova York em uma festa, e ele me puxou de parte para me
dar uns conselhos paternais.
- Gostei do seu artigo - falou - e concordo com o seu ponto
de vista, em princípio. Mas preciso lhe dizer que só irá prej udicar
a sua causa se usar Saarinen como exemplo. As pessoas simplesmente
não vão levá-lo a sério. Quero dizer, Saarinen...
Gostaria de poder de alguma forma descrever a expressão de
seu rosto. Era um misto de desdém e sacudir de ombros em que
O teto alado de E:ero Saarinen para o Dulles Internacional A irport (no alto) e o
seu terminal em forma de águia para a TWA enfureceram os modernistas. A ori
ginalidade do traço se tornara um pecado capital.
69
os franceses são tão bons, a expressão que indica que o assunto é
tão outré, tão infradesprezível, tão de la boue, que não se pode nem
perder tempo analisando-o sem se contaminar.
O princípio ilustrado pelo caso Saarinen foi o seguinte: nenhum
arquiteto poderia conquistar uma grande reputação fo ra dos redu
tos, que agora se encontravam sediados nas universidades. O ar
quiteto que insistisse em seguir um caminho próprio não tinha a me
nor chance de ser saudado como pioneiro de uma nova e importante
corrente. Na melhor das hipóteses, poderia esperar que o conside
rassem excêntrico, tais como Saarinen ou os arquitetos de Oklahoma,
Bruce Goff e Herbert Greene. (Já de saída Oklahoma não era um
ponto de observação tão fantástico assim .) Na pior das hipóteses se
ria um apóstata, anatematizado, como Stone.
70
de ombros e aquela expressão. Lapidus, aquela expressão e uma
risota.
Lapidus começara a carreira no teatro e daí fora para Colum
bia estudar arquitetura, com a idéia de ser cenógrafo. Terminou ar
quiteto. Não se deteve nem um momento com debates sobre mate
riais honestos e estrutura aparente. Sua visão permaneceu teatral do
princípio ao fim. Tinha uma abordagem americana à Rimsky Kor
sakov que era, a seu modo, tão completa e monolítica, quanto a de
Gropius ao modo dele. Quando Lapidus projetava um hotel de fé
rias, desenhava tudo, até o galão nas j aquetas dos garçons, embora
os incorporadores raramente fossem meticulosos na execução de tais
detalhes. Seu saguão para o Americana Hotel em Miami Beach, com
uma floresta tropical enfiada em um cone de vidro, ombro a ombro
com uma versão. Duas Semanas na Flórida da grande escadaria da
Ó pera de Paris - bom, ali estava a opulenta vida americana do pós
guerra, numa única e espalhafatosa e grandiosa imagem.
Em 1 970 a obra de Lapidus foi escolhida para tema de uma mos
tra e debate da Architectural League of New York intitulada: " Mor
ris Lapidus: a arquitetura do prazer.' ' Habitualmente isso era uma
honra. No caso de Lapidus ficou difícil dizer o que era. Convidaram
me para participar da mesa - provavelmente, quando me lembro
agora, na esperança de que apresentasse uma perspectiva "pop". (Es
sa tal de " pop" já passara a ser uma das maldições da minha vida.)
A atmosfera do debate foi um tanto artificial e constrangedora -
Lapidus em pessoa apareceu na platéia. Seu trabalho estava sendo
encarado mais como um fenômeno pop do que como arquitetura,
a exemplo do que acontecia com Dick Tracy ou com os filmes de
Busby Berkeley. Passei o tempo todo tentando meter meus dois tos
tões sobre o problema geral da representação do poder, da riqueza
e da exuberância americanos na arquitetura. Foi o mesmo que falar
de numerologia no Yucatán . O mal-estar inicial passara e os arquite
tos reunidos começaram previsivelmente a desancar o trabalho de
Lapidus. Ao final , o próprio Lapidus se levantou e disse que os so
viéticos certa vez o convidaram a ir à Rússia projetar casas popula
res e tinham ficado satisfeitos com os resultados. Em seguida sentou
se. Ninguém entendeu nada, a não ser que aquilo fosse uma reivin
dicação desesperada de algum redentor significado social . .. que o
tornasse menos radiativo em um mundo arquitetônico que sucum
bira aos hotéis, edifícios de luxo, escolas e sedes empresariais estilo
conj unto habitacional operário.
71
De lá para cá, John Portman ocupou o lugar de Lapidus. Seus
gigantescos hotéis, verdadeiras zigurates babilônicas, com saguões
de trinta andares, j ardins suspensos e elevadores de cristal , tiveram
maior sucesso que qualquer outro gênero de arquitetura para firmar
o estilo do centro de cidade, do glamour urbano nas décadas de se
tenta e oitenta. Mas nos redutos universitários - não é Qtle ele sej a
atacado . . . ele s implesmente não existe. É invisível. Assume o s con-
72
tornos indefinidos do arquiteto folclórico. Torna-se uma versão ex
tremamente comercial (e portanto irredimível) de Simon Rodia, que
construiu o Watts Towers. Afinal o que era um saguão-zigurate Hyatt
senão uma produção Watts Tower com a ajuda de corretores hipote
cários e elevadores automáticos?
Nos redutos universitários não havia hipótese de um arquiteto
conquistar prestígio com uma arquitetura que fosse totalmente sin
gular ou especificamente americana em espírito. Nem mesmo Wright
conseguiu tal feito - nem mesmo Wright com a mais fantástica pro
dução de obras da história da arquitetura americana. De 1928 a 1935,
apenas dois projetos de Wright foram construídos. Mas em 1 9 3 5 ele
edificou Fallirtgwater, uma residência para Edgar J. Kaufmann, Sr. ,
pai de um de seus aprendizes. Essa estrutura de laj es de concreto,
ancoradas na rocha e que se projetam sobre uma cascata nas monta
nhas da Pennsylvania, foi o começo da última fase da carreira de
Wright . Tinha sessenta anos de idade, então. Nos vinte e três anos
seguintes, até morrer, em 1959, c_om a idade de noventa e um anos,
ele produziu mais da metade da obra de sua vida, mais de 1 80 edifí
cios, inclusive a sede das Ceras Johnson em Racine, Wisconsin, a man
são de Herbert F. Johnson, Wingspread, em Tuliesin West, o cam
pus µniversitário Florida Southern, as casas usonianas, o Price Com
pany Tower e o Museu Guggenheim . Nos redutos universitários isso
granjeou para Wright uma reputação semelhante à de Andrew Wyeth
no mundo da pintura: tudo bem em termos de velharia.
De certa forma, a própria produtividade de um homem como
Wright, Portman ou Stone era um ponto contra, dada a nova atmos
fera intelectual nas universidades. Ah, não era nada difícil, supunha
se, sair em campo e lisonjear, seduzir e dançar para os clientes e ga
nhar contratos para construir edifícios. Mas o indivíduo corajoso
era aquele que permanecia no reduto, mantinha-se na órbita univer
sitária e arriscava os primeiros dez, vinte anos de sua carreira na com
petição intelectual, fazendo um edificiozinho ocasional, quando apa
recesse uma boa oportunidade à moda de Corbu: uma casa de verão
para um amigo, uma ampliação para a casa de algum membro do
corpo docente e - se tudo mais falhasse - aquela velha possibili
dade sempre à mão, do asilo para mamãe, que ela custearia. Já não
bastava construir prédios extraordinários para o mundo ver. O mun
do podia esperar. Agora era necessário ganhar a competição que se
realizava unicamente no âmbito da arquitetura acadêmica.
lànto assim que nas artes maiores americanas o prestígio era
73
agora determinado pelas igrejinhas ao estilo europeu. Por volta de
meados da década de sessenta, o caso da pintura era realmente gra
ve. O reduto dos expressionistas abstratos conseguira se manter no
poder uns dez anos, mas depois disso novas teorias, novos redutos,
novos códigos co.neçaram a se suceder uns aos outros numa corrida
alucinada. Arte Pop, Arte ótico-cinética, Minimalis}Ilo, Abstração
Linear, Cores Puras, Arte Ecológica, Arte Conceituai - a parciali
dade natural dos redutos com relação ao que era arcano e frustrante
ultrapassou todos os limites conhecidos. O espetáculo era uma coisa
de doidos, mas os jovens artistas tendiam a acreditar - e correta
mente - que era possível chegar � uma posição proeminente sem
entrar no jogo. No campo da música séria, o caso era ainda mais
desesperador; de fato, era praticamente terminal. Nos redutos uni
versitários, os compositores tinham se tornado tão ultra-Schoenber
guianos, tão exoticamente abstratos que mais ninguém do mun
do exterior demonstrava o menor interesse, e muito menos com
preensão, no que ocorria. Nas cidades, nem mesmo o exército de Gi
deão que se conhece . por " público freqüentador de concertos" se
sentia atraido por um só programa de música contemporânea. E eles
só aconteciam nas salas de concerto universitárias. Aqui no campus
universitário o programa começa com "Maple Leaf Rag" de Scott
Joplin, seguido de uma das primeiras composições de Stoc ic hausen
" Punkte", e depois dos "Ensembles for Synthesizer" de Babbitt,
um toque de Easley Blackwood e Jean Barraqué para variar um pou
co, e a apresentação obrigatória de algo diferente ou, como dizem,
de uma peça "conjectural" para piano, metais, sintetizador Moog
e computador, de Iannis Xenakis. O programa termina com " You
Gotta Be Modernistic" de James P. Johnson. Joplin e Johnson, na
turalmente, são aconchegantes e familiares como um acalanto, mas
são essenciais ao programa. As mesmas trinta e cinco ou quarenta
alminhas, todas pertencentes ao corpo docente e discente da univei:-
sidade, constituem a ;'.'latéia de todo evento de música contemporâ
nea. O medo indizível é que nem elas compareçam a não ser que
lhes prometam um docinho no início e um docinho no fim . Os nú
meros de Joplin e Johnson são bem aceitos porque os dois eram pre
tos e pouco apreciados como compositores sérios em sua época.
Os coreógrafos mostraram-se lentos em compreender a idéia do
reduto, talvez porque a dança sempre parecera, por sua própria na
tureza, uma representação. Mas por volta da década de sessenta já
tinham recuperado o tempo perdido. George · Balanchine, o coreó-
74
gra.fo russo que emigrara para os Estados Unidos, via Paris, em 1934,
por volta de 1 962 já estava encenando balés neoclássicos abstratos
no Lincoln Center. Coreógrafos tais como Merce Cunningham e Yvo
nne Rainer puseram-se a eliminar todos os traços de sexualidade da
dança, mesmo na simples classificação de papéis masculinos e femi
ninos, todos os traços de narrativa, cenário e figurinos, até mesmo
todos os traços de música como fonte de marcação de dança. Na
realidade, indivíduos de todas as artes pareciam obcecados com a
criação de igrejinhas, com a proposta de frustrar a burguesia, por
menos prováveis que parecessem as possibilidades. Por exemplo, a
fotografia sempre parecera uma forma de expressão dotada de uma
implacável obviedade. Mas os fotógrafos e seus teóricos, a eXemplo
de John Szarkowski, curador de fotografia da Utopia, Ltda., come
çou a descobrir uma maneira de contornar esse obstáculo. Braque
não exigira o reconhecimento de que a pintura não passava de uma
disposição de formas e cores numa superfície plana? Ou sej a, não
transformara em virtude o Que sempre parecera um defeito? Claro
que sim. Portanto agora Szarkowski & Co. transformavam em virtude
o que sempre fora considerado defeito em fotografia: falta de niti
dez, perspectivas grotescas, cores irreais, imagens cortadas pela mol
dura do filme, e. assim por diante. Realizaram seu objetivo: conse
guiram tprnar a fotografia absolutamente frustrante para os que não
estivessem dispostos a entrar no reduto e aprender as teorias e os
códigos.
Igrejinhas! Redutos! Códigos! Novos arcanos! A moda européia
provou ser irresistível. Até os romancistas. O carro-chefe da ficção
americana no século XX fora o romance e o conto realista. O ro
mance realista americano da década de trinta alcançara considerá
vel prestígio na Europa, precisamente devido ao seu rústico vigor ani
mal . Os realistas americanos pareciam tão livres e dionisíacos Quan
to os músicos de j azz . Mas no fim da década de sessenta os jovens
escritores americanos mais talentosos da universidade - e poucos
escritores novos vinham de QualQuer outra parte - agora tendiam
a encarar o romance realista como uma forma irremediavelmente an
tiquada e primitiva. Saíram expurgando de sua obra todos os diálo
gos realistas, cor local, questões sociais, ou outras facetas da vida
real. Procuraram escrever fábulas modernas ao estilo dos mestres con
temporâneos europeus, tais como Kafka, Zamyatin e os dramatistas
Pinter e Beckett
O século XX, o século americano, já transcorrera agora dois ter-
75
ços - e o complexo colonialista estava mais forte que nunca. Os jo
vens filósofos nas universidades andavam completamente embasba
cados com a moda francesa das pseudo-abordagens analíticas da fi
losofia, tais como o Estruturalismo e o Desconstrutivismo, A idéia
era que as velhas preocupações "idealistas" da filosofia do século
XIX - Deus, Liberdade, Imotlalidade, o destino do homem - eram
incorrigivelmente ingênuas e burguesas. A preocupação certa da fi
losofia era a natureza do significado. Ou seja, a preocupação certa
da filosofia eram os arcanos da própria. igrejinha filosófica. Numa
era em que as guerras tinham se tornado tão abrangentes que eram
conhecidas como guerras mundiais - em que as pessoas se concen
travam em metrópoles de escala e complexidade nunca antes imagi
nadas pelo homem - em que os conflitos raciais começa� a sa
cudir a estabilidade do globo � em que o homem usurpou o poder
divino de mergulhar o mundo na destruição - numa era dessas, qual
era a preocupação dominante dos filósofos americanos? Ora, era a
mesma dos filósofos franceses a quem eles idolatravam. De dia, os
estruturalistas construíam a estrutura do significado e ponderavam
sobre o significado da estrutura. De noite, os desconstrutivistas de
moliam o edifício intelectual. E no dia seguinte os estruturálistas re
começavam tudo de novo. . .
ó fiéis colonos!
Não era necessário nem à pessoa mais culta preocupar-se mui
to tempo com a filosofia, a pintura ou a música contemporâneas. No
caso da música, era óbvio que não era necessário nem mesmo se preo
cupai:. Mas o caso da arquitetura era bem diferente. Não havia a me
nor hipótese de evitar os modismos dos redutos de arquitetura, por
mais esotéricos que se tornassem . Na arquitetura, a moda intelec
tual era exibida de cinqüenta a cem andares de altura nas cidades
e.em infindáveis perspectivas pintadas por de Chirico nos shopping
malls dos novos subúrbios americanos.
· O conjunto habitacional .
76
VI
OS ESCO LÁSTl. C OS
77
trai é quase aceitável' ', segundo um dos seus ditados. E também o
eram os projetos habitacionais (Levittown) e as faixas comerciais (Las
Vegas).
Venturi parecia estar dizendo que j á era hora de afastar a arqui
tetura do mundo elitista das universidades - dos redutos - e torná-la
de novo conhecida, confortável, aconchegante, e atraente para as pes
soas comuns; e tirá-la do nível da teoria devolvendo-a ao terreno com
prometedor e inconsistente e todavia fértil da vida real.
Era por essa razão que as pessoas se sentiam tão frustradas com
os edifícios de Venturi em si. Havia pouquíssimos edifícios de Ven
turi, compreensivelmente, uma vez que era jovem e rebelde. (Um era
da Mamãe.) Na época em que Complexity and Contradiction in A r
chitecture foi publicado, seu único edifício de porte era o Guild Hou
se, um conjunto quaker de apartamentos para idosos em Filadélfia.
Para um jovem tão direto (entre os arquitetos, qualquer pessoa c o m
menos de cinqüenta anos era jovem), Venturi trabalhava de uma ma
'neira um tanto. . . experimental. Se estava se- afastando do moder
nismo, recuava meio sem jeito, com passii:i hos miúdos e pisadas le
ves. De fato, o Guild House apresentava uma semelhança curiosa
mente intensa com a Frente Vermelha de Bruno Tuut ! - o conjunto
operário construído em Berlim trinta e sete anos antes. E Bruno, ape
sar do ocasional lapso no bom gosto, como por exemplo usar cores,
dedicara a vida a fazer tudo certinho dentro do figurino ortodoxo.
À primeira vista, as palavras de Venturi pareciam rebeldes. Mas seus
projetos nunca passaram de obras tímidas.
Uma pista para esse enigma era o fato de Complexity and Con
tradiction ter sido publicado numa série do Museu de Arte Moder
na. Em Utopia, Ltda. , não se publicavam livros sobre "os alicerces
teóricos da arquitetura moderna' ' escrito por apóstatas.
As credenciais a-;adêmicas de Venturi eram excelentes. Estuda
ra arquitetura em Princeton e integrava o corpo docente de Yale. A
exemplo do amigo Louis Kahn, também estudara um ano em Roma
como bolsista da American Academy. Na realidade, Venturi era o
clássico intel ectual-arquiteto da nova era: jovem, esguio, fala macia,
calmo, irônico, urbano, educadíssimo, charmoso com a dose certa
de reticência, sofisticado nos usos e estratégias da arquitetura mo
derna, capaz de misturar palavras simples a eruditas, referências his
tó ricas d o tipo mais esotérico - Lutyens, Soane, Vanbrugh, Borro
mini - a referências mais banais - quadros de avisos. sinais elétri
·cos, shopping-centers, caixas de correio de portão. Complexity and
78
Contradictions apareceu com endossos comoventes e até ligeiramente
pomposos sob a forma de uma apresentação assinada pelo eminen
te historiador da arquitetura, Vincent Scully, e de um prefácio de Ar
thur Drexler, curador de arquitetura do Museu de Arte Moderna.
Scully disse que a obra de Venturi ' 'parece adquirir um status trági
co na tradição de (Frank) Furness, Louis Sullivan, Wright e Kahn".
(O elo trágico entre os quatro, pelo que se pode concluir do texto
O Hufeisen Siedlung em Berlim, 1926, projetado por Bruno Taut (no alto) e o
Guild House em Philadelphia, 1963, de Venturi. Foram precisos trinta e sete anos
para chegarmos a esse ponto.
79
de Scully, é que em alguma época todos tiveram que trabalhar na
Filadélfia.
Examinado com maior atenção, o tratado de Venturi afinal não
é nenhuma apostasia mas, ao invés, saltos agéis e brilhantes do alto
do muro que cerca o reduto. Para começar, ele o chama de um "sua
ve' ' manifesto. Mas manifestos n ão são suaves. São mandamentos,
trazidos do alto da montanha, ao ribombar do trovão. Na realidade,
Complexity and Contradiction não é manifesto algum; Venturi não
tenta retirar a divindade da arte e a autoridade do gosto da sede so
cial . Ele assinala isso desde o início:
"Gosto de complexidade e contradição em arquitetura. Não gos
to da incoerência ou arbitrariedade da arquitetura incompetente nem
das preciosas filigranas do pitoresco ou do ·expressionismo." Jtadu
ção: eu, tanto quanto vocês, sou contra o que é burguês (pitoresco,
precioso, intrincado, arbitrário, incoerente, e incompetente). Além
disso, tanto quanto vocês, não tenho interesse no que é meramente
excêntrico (ao estilo de Saarinen ou de Mendelsohn). Venturi conti
nua: "Ao invés, falo de uma arquitetura complexa e contraditória
baseada na riqueza e ambigüidade da experiência moderna, inclusi
ve naquela experiência que é inerente à arte." Essa é por sinal a frase
mais importante do livro. Inclusive naquela experiência que é ine
rente à arte. Tradução: tanto quanto vocês, estou trabalhando aqui
entre essas quatro paredes. Ainda sou membro do reduto. Não se
preocupem, as complexidades e contradições que vou lhes mostrar
com sua "vitalidade desordenada", não serão recolhidas das tolices
do mundo exterior (exceto, ocasionalmente, para obter efeitos espi
rituosos) mas da nossa própria experiência enquanto filhos do Prín
cipe de Prata, daquela experiência que é inerente à arte; ou seja; das
lições esotéricas de Mies, Corbu e Gropius sobre a arquitetura mo
derna em si. Vou lhe!i mostrar como fazer arquitetura que divirta,
encante, cative outros arquitetos.
Essa foi, então, a genialidade de Venturi. Conduziu o modernis
mo à sua era escolástica. A Escolástica na Idade Média era a teolo
gia que testava a sutileza dos outros teólogos. A Escolástica do Sé
culo XX era a arquitetura para testar a sutileza dos outros arquite
tos. Venturi tornou-se o Roscellinus da arquitetura moderna. Ros
cellinus, um dos escolásticos mais brilhantes, andou beirando a he
resia e a excomunhão, sugerindo que a lógica absoluta talvez exigis
se que sendo Jesus Cristo, Deus e o Espírito Santo triunos (a doutri
na da Trindade), então Deus e o Espírito Santo também possuíam
80
corpo, orelhas, dedos dos pés, tudo enfim. Mas não foi excomunga
do, e não foi considerado herege. Estava apenas levando a lógica ao
seu limite e fazendo-a dar uns saltos ornamentais e, é de se presu
mir, procurando fazer seu nome. Nem por um instante questionou
a divindade de Deus ou a existência da Trindade. E aqui temos Ven
turi e, pelo que nos diz respeito, a arquitetura Pós-Moderna, como
é em geral conhecida.
Nem por um instante Venturi questionou as preJll i ssas funda
mentais da arquitetura moderna; ou sej a , que se destinava ao po vo ;
que deveria ser não -b urguesa e despojada de ornato s, que havia uma
inexorabilidade histórica nas formas a serem usadas; e que o arqui
teto, de seu posto de observação no interior do reduto, decidira o
que era melhor para o povo e o que ele inevitavelmente deveria receber.
De maneira mu�to espirituosa Venturi redefiniu esses dois tópi
cos mitológ\cos da agenda do reduto - o po vo e o n ão -burguês -
81
pressionismo, certo? Heróica, original, elitista, expressionista - que
coisa tão burguesa!
Com isso Venturi fez aos sectários de Mies exatamente o que
tinham feito a Otto Wagner, Josef Hoffmann, e aos arquitetos da
Dissidência Vienense meio século antes. Consignou-os à barcaça de li
xo do desviacionismo burguês.
Quanto ao povo, a classe média-média, Venturi a encarou exa
tamente da mesma maneira que o Príncipe de Prata encarara o pro
letariado de cinqüenta anos antes. Era culturalmente subdesenvolvi
da, embora Venturi nunca tivesse sido gauche a ponto de usar tais
expressões. Não se devia perder tempo perguntando-lhe do que gos
tava. Como era hábito nos redutos, o arquiteto fazia as decisões nes
sa área.
As decisões de Venturi lembravam as de Gr'opius, que resolvera
que os operários deviam viver em habitações de tetos baixos, quar
tos pequenos e corredores estreitos. Venturi explicava que as pessoas
tinham todo o direito de ter em casa os símbolos explícitos e fami
liares que a ornamentação podia oferecer. Assim sendo no alto de
seu Guild House colocou uma gigantesca antena de televisão de alu
mínio anodizado dourado. Não estava porém ligada a nenhum tele
visor. Era um "símbolo para os idosos".
Símbolo para os idosos? Scully ofereceu uma explicação mais
ampla. A antena de televisão de Venturi era surpreendéntemente di
reta, revigorantemente cândida. ' 'Afinal, uma antena de televisão na
escala correta coroa (o edifício), da mesma forma que preenche -
e é apenas um fato, nem bom nem mau - a vida dos n.ossos velhos.
Sej a qual for a dignidade que haja nisso, Venturi a incorpora, mas
não nos mente nem uma vez a respeito dos fatos.' ' A frase ' 'seja qual
for a dignidade' ' referia-se, presumivelmente, à dignidade dos men
tecaptos da classe méd•a-média esperando os anos dourados termina
rem narcotizados pela luz azulad a e tísica do aparelho de TV. Exata
mente qual a extensão do prazer, se é que houve algum, que os resi
dentes de Guild House encontraram nesse slmbolo explícito e fami
liar, ele não nos contou.
Mas e daí ! A antena de televisão do Guild House era acima de
tudo uma amostra do talento de Venturi para a piada modernista.
A televisão era uma peça de ornato e, sobretudo, uma coroa, um re
mate, tanto quanto o " fantástico mastro de amarração" no alto do
Empire State Building - isto é, uma óbvia violação do Estilo I nter
nacional . Mas na realidade era apenas uma antena de televisão, que
82
é um objeto comum produzido em série (ótimo) cuj a função exige
(ótimo) que seja colocado no alto de um edifício. Assim sendo so
mente aqueles em quem o arquiteto desse um toque teriam possibili
dade de percebê-la como um ornamento, para começar. Temos aqui
um exemplo do que na era de Venturi se tornou conhecido como " re
ferência irônica' '. E o mesmo se aplica ao acabamento dourado da
antena. O ouro, como no caso da folha de ouro de Stone, era o epí
tome de tudo que havia de irremediavelmente burguês na arquitetu
ra. Mas alumínio anodizado dourado já era diferente, não é mes
mo? Era um material convencionalmente usado para produzir em
massa o brilho cotidiano da classe média-média, como por exemplo
nas barras ajustáveis de um carrinho de TV.
Venturi insinuou que se o Guild House não fosse dirigido por
quakers, que são contra as imagens, ele teria coroado o edíficio "com
um à madona de braços abertos feita de gesso policromático' '. Teria
coroado . . . mas não o fez. As sediciosas exaltações que Venturi fazia
"do vernáculo" levavam as pessoas a procurar não só madonas
de gesso mas muito mais em seus edifícios. Mas por alguma razão
nunca as encontravam. A estratégia de Venturi era violar o tabu -
sem o violar. Usou tij olos aparentes (burguês) na parte superior da
fachada do Guild House - afinal era apenas um tijolo escuro espe
cialmente escolhido para combinar com os tijolos "enfarruscados
de smog" das decadentes habitações operárias à volta (não-burguês).
Colocou uma enorme coluna (burguês) na entrada - mas afinal não
possuía ornatos (não-burguês), nem capitel (não-burguês) nem fron
tão (não-burguês). Não a assentou de lado, mas bem no meio da en
trada, fazendo-a perder a imponência (burguês) e parecer mais es
premida (não-burguês). As sacadas receberam gradis decorativos (bur
guês à E. D. Stone), mas pareciam ter sido estampados pelo proces
so industrial mais barato possível, como se ugassem uma prensa per
furadora (definitivamente não-burguês).
ó complexidade! ó contradição! Violar o tabu - sem violá-lo!
Que virtuosidade! Venturi teve seus detratores, mas ninguém nos re
dutos conseguia deixar de se impressionar. Ali estava um homem que
pulava, gritava, dava saltos mortais na beirinha do muro do mostei
ro - sem escorregar nem cair uma única vez.
É claro, um marciano - ou, podemos presumir com relativa
segurança, um velho de Philadelphia instalado no Guild House até
o fim dos seus dias televisivos - olhou para o edifício e viu apenas
uma anônima estrutura institucional moderna, descorada (vermelho-
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enfarruscada) típica. Mesmo nos redutos, havia os que cometiam o
erro de descrever a obra de Venturi nesses termos. Philip Johnson
e Gordon Bunshaft chamavam o trabalho de Venturi de " feio" e "co
mum' '. Ambos viveram para se arrepender. Venturi era brilhante nes
sas situações. Era um mestre do j iu-j itsu . A exemplo dos fauvistas
e cubistas de antanho, adotava cada epíteto como uma máxima glo
riosa. "Feio e comum ! " - exclamou. Então transformou-o em "F &
C" e brincou um pouco com a sigla. É melhor F & C do que " H
& O " - heróico e original, que era a postura dos sectários de Mies
tais como Johnson e Bunshaft . H & O, J & B. . . que coisa tão bur
guesa.
Venturi muitas vezes elogiou os artistas pop da década de ses
senta, como se estivessem restabelecendo uma espécie de ligação en
tre as artes superiores e a cultura popular. A estratégia de Venturi
era, na verdade, exatamente a mesma dos artistas pop - e nenhum
deles tinha o menor interesse na cultura popular além da ludicidade
e afetação. A arte pop não era uma revolução. Os artistas pop, não
menos que os expressionistas abstratos a quem eclipsaram, continua
vam a observar religiosamente os princípios fundamentais do mo
dernismo no tocante ao plano ("a integridade do plano da pintu
ra" ) e ao não-ilusionismo. Tinham o cuidado de só fazer pinturas
de outras pinturas - rótulos, cartuns, bandeiras, páginas de núme
ros - de tal modo que os colegas hierofantes percebessem que não
estavam realmente voltando ao realismo. Os proponentes de Jasper
John diziam que suas pinturas de bandeiras e números, por exem
plo, eram as pinturas mais planas e mais não-ilusionistas já expos
tas, porque retratavam coisas que eram pela própria naturez a bidi
mensionais e abstratas. A pop era uma brincadeira, uma piscadela
travessa, mas no fundo respeitosa, à ortodoxia da época.
A muitos arquitet�s mais jovens, a Grande Piscadela de Ventu
r.i era irresistível. O homem era um gênio. Imaginara a estratégia per
feita para desbaratar a turma antiga, os adeptos da caixa de Mies,
sem procurar desmantelar o sistema do reduto em si. Venturi desco
brirà seus pontos vulneráveis: primeiro, a pavorosa solenidade e. exa
gerada seriedade; segundo, a idade e distanciamento da vida moder
na. As idéias de formas produzidas à máquina e em massa vinham
do período anterior à Primeira Guerra Mundial. A abordagem à Mies
para atingir o ideal não-burguês resumira-se em se tirar o ' 'vernáculo
industrial" do "outro lado da sociedade", nas palavras de Venturi, e
introduzi-lo nas "áreas nobres da cidade". Venturi estava fazendo
84
o mesmo, só que atualizando o processo. Usava o "vernáculo co
mercial" (comercial de Las Vegas) e o "vernáculo do empresário da
construção" (os loteamentos suburbanos). Morram as vigas de abas
largas. Vivam uma antena de TV aqui e um gradil de ferro perfura
do ali . Isso é que era o bom da coisa. Afinal Venturi estava apoian
do um princípio fundamental dos redutos. Mantinha-se fiel ao ou
tro lado da sociedade. Guardava a fé não-burguesa.
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ta. Na apresentação de Complexity and Contradiction in A rchitectu
re descrevera o livro como a obra mais importante de arquitetura des
de Vers une architecture de Corbusier. Os anos seguintes provariam
que tinha razão. Venturi foi o primeiro arquiteto a realizar uma mu
dança importante no reduto do Príncipe de Prata. E à semelhança
de Roscellinus, Venturi tinha seus inimigos, e alguns bem rancoro
sos. Mas um a um foram envolvidos no j ogo absolutamente sério
que ele iniciara: arquitetura de infinita sutileza para deleite e espan
to dos outros arquitetos. Desvendavam-se os novos arcanos! de um
monge para outro.
A recessão do i nício da década de setenta intensificou o proces
so. Ela destruiu a estrutura comercial da arquitetura americana quase
tão inteiramente quanto a Grande Depressão quarenta anos antes.
H ouve na década de sessenta uma fantástica expansão na constru
ção civil; praticamente todos os principais centros urbanos no Leste
americano foram reconstruídos em pouco tempo. Fundaram-se mui
tas firmas novas de arquitetura, e outras tantas mais antigas cresce
ram a ponto de empregar mais de cem pessoas. A expansão chegou
a um fim natural no momento em que se iniciava a derrocada finan
ceira. Da noite para o dia, ou assim parecia, de trinta a quarenta
por cento dos arquitetos estavam desempregados. Firmas com du
zentos empregados ficaram repentinamente reduzidas a dez. Sócios
principais passaram a atender telefones. E desenhistas fo ram pro
movidos a vice-presidentes. Dessa forma, ao invés de receberem sa
lários, ganhavam participação nos lucros, que j á não existiam. En
tão sobreveio o êxodo. Metade dos arquitetos dos Estados Unidos
parecia estar trabalhando, quando estavam, para o Xá do Irã . Qua
renta por cento pareciam estar trabalhando para o Rei Saud , o Bom.
O restante continuou no país batalhando pela fama no âmbito da
competição intelectual Jas academias.
Em 1 972, um novo reduto, conhecido como o dos . Brancos, ou
os Cinco de Nova Yor k , fez o seu lançamento com um livro intitu
lado Five A rchitects. Os cinco sendo Peter Eisenman, Michael Gra
ves, John Hejduk, Richard Meier, e Charles Gwathmey. Representa
vam o papel de Anselmo ou Abelardo frente ao Roscellinus de Ven
t uri. Na tentativa de parecerem originais sem violar os pressupostos
fundamentais do modernismo, assumiram a posição de que o verda
deiro caminho se encontraria não na terra da massa média-média
em expansão mas no retorno aos princípios iniciais. Sua idéia era
retornar ao mais puro dos puristas, ao Dr. Purismo em pessoa, Le
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Corbusier, e explorar as sendas que ele indicara. O Apolinário do
grupo era Colin Rowe, pro fessor de arquitetura em Cornell, que es
crevera uma influente exegese da obra de Le Corbusier. Receberam
o nome de Brancos porque praticamente todos os seus edifícios eram
branco s, por dentro e por fora, con:io os do mestre.
Sua posição era que Corbu abrira um universo de formas cor
retas e inevitáveis porque procediam do próprio cerne - "da estru
tura profu n da" para usar uma expressão de Eisenman - do signi fi
cado da arquitetura. O significado da arquitetura? Para a maioria
que se aproximava dos Brancos desprevenida, isso era uma noção
desconcertante. Mas . . . ah ! - os Brancos estavam preparados para
os olhares intrigados.
A essa época a filosofia - e o jargão - da lingüística estrutu
ral francesa estava na crista da onda nas universidades americanas.
Até Venturini, com toda aquela conversa de " vernáculos ", "códi
gos", " referências", e "ambigüidades", fora afetado pelo modismo.
O Estruturalismo nascera na França no que se poderia chamar de
brumas do Marxismo Maneirista ou Tardio. Os estruturalistas pre
tendiam que a linguagem (e portanto o significado) tem uma estru
tura profunda imutável, que brota da própria natureza do sistema
nervoso. Instintivamente, as classes dominantes, os capitalistas, a bur
guesia, tinham se apropriado dessa estrutura para seus desígnios pes
soais e a saturaram com uma espantosa propaganda interna.
Se essa idéia parecesse um tanto incompreensível , não impor
tava. O que importava é que os estruturalistas eram pessoas dedica
das a destrinchar toda essa confusão burguesa até os ossos. Os estru
turalistas beneficiavam o povo pela própria natureza de seu traba
lho. Portanto não havia necessidade de andar se metendo em políti
ca. A mesma aura de beneficência envolvia os Brancos. A verdade
pura e simples é que seria quase impossível se importarem menos
com política. Em todo o caso, não precisaram fazê-lo. Presumia-se
que as experiências experimentalistas eram boas para o povo.
A obra dos Brancos era identificável à pr i meira vista. Seus edi
fícios eram brancos . . . e frustrantes. Mal permitiam a introdução do
ocasional toque preto ou cinzento, como por exemplo a faixa preta
pintada na base da parede para desempenhar a função dos antigos
(e burgueses) rodapés. Estavam convencidos de que o caminho para
o não-burguês, na nova era, era se manterem escrupulosamente pu
ros, como Corbu se mantivera escrupulosamente puro, e serem frus
trantes. Frustrantes era a contribuição deles.
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88
Corbu era transparentç comparado a, digamos, Peter Eisenman,
um arquiteto que dirigia o Institute for Architecture and Urban Stu
dies em Nova York, e que lançou os dois principais órgãos dos Bran
cos, Oppositions e Skyline. Eisenman seria Corbu, se Corbu tivesse
ido algum dia à' Holanda e sido hipnotizado por Gerrit Rietveld. Ei
senman projetava edi fícios brancos que eram o Paraíso da Estrutura
Expressa. Eram como uma peça de música serial de Milton Babbitt.
O leigo achava-os absolutamente incompreensíveis. O entendido -
o colega arquiteto de reduto - conseguia distinguir que havia uma
espécie de padrão, uma espécie de paradigma complexo, subj acente
a todós os estranhos ângulos e proj eções, mas droga, não conseguia
imaginar qual era. A própria alma esotérica humana clamava por
uma explicação.
Mas as explicações de Eisenman não aj udavam muito, mesmo
ao iniciado. Eisenman adotara sem reservas a tal lingüística . . . Ou
tros andavam falando de nuanças sintáticas e semiologia da infra
estrutura e semântica da superestrutura e morfemas do espaço ne
gativo e dos polifemas da pós-imagem arquitetônica. Falavam de coi
sas como a "articulação do perímetro da estrutura percebida e seu
diálogo com a paisagem circundante". (Isso levou um lógico de Har
vard a perguntar: "E o que foi que a paisagem disso? " O arquiteto
não teve nada literal a relatar.) Mas eles eram todos redatores da Uni
ted Press lnternational , não podiam ser mais simples, comparados
a Eisenman. A grande genialidade de Eisenman era usar expressões
relativamente claras do jargão lingüístico e fazer a pessoa engolir em
seco levando o cérebro de roldão. " O signi ficado sintático aqui de
finido", dizia, " não está ligado ao significado que se soma aos ele
mentos -0u às verdadeiras relações entre os elementos mas à relação
entre as relações".
Eisenman era uma graça. Levava qualquer homem vivo a engo
lir em seco com uma única frase. Eisenman era um purista de tal
ordem que nas poucas vezes em que se construíram as casas que
proj etou, não se referia a elas pelos nomes dos donos, como faziam
outros arquitetos (por exemplo, a casa Robie de Wright , a casa Sebo-
89
roeder de Rietveld). Referia-se às casas por números: Casa 1, Casa
I I , e assim por diante. Era como se não pertencessem a ninguém,
embora alguém tivesse pago por elas. Pertenciam à estrutura pro
funda da arquitetura; ou se preferirem, à história. Seu confrade Hej
d u k referia-se às casas que projetava p o r números p o r u m a razão
diversa. Nenhuma delas j amais fora construída. Eram tratados de
teoria corbusiana em duas dimensões, tais como a " Hemicasa", que
consistia em plantas baixas e projeções axonométricas baseadas no
semicírculo, semilosango e semiquadrado. A única obra que Hejduk
tinha a seu crédito era a reforma do interior do pr incipal edifício
da Cooper Union em Nova Yor k , cidade onde era decano da escola
de arquitetura. Era bastante singular: um barco corbusiano enfiado,
contra todas as expectativas, numa garrafa de estilo Belas-Artes. Vi
o pela primeira vez quando compareci à reabertura dos trabalhos da
Cooper Union em 1 980. Mal consegui me concentrar no evento em
pauta. O Cooper U nion fora declarado tombado, de modo que Hej
d u k não pudera mexer n o exterior. O exterior continuava praticamente
igual ao que era quando Fred A. Petersen o projetara cento e vinte
e cinco anos antes. Era uma grande valsa de arenito pardo com j a
nelas em arco, cesuras, cornij as e loggias, ao estilo palazzo italiano,
ocupando um quarteirão inteiro. E no interior? No interior da velha
casca de alvenaria, a um enorme custo, Hej d u k ampliara a pequena
Villa Savoye de Corbu como se fosse um balão. As paredes brancas,
as rampas, os gradis tubulares, os cilindros . . . Era tudo muito bizar
ro. E por que fizera isso? Porque sendo um verdadeiro arquiteto de
reduto, um verdadeiro Branco, um verdadeiro Neopurista, não po
deria fazer outra coisa. Petersen projetara grandes j anelas ao longo
das escadas. A idéia era captar o máximo possível de luz natural pa
ra iluminá-las. Mas isso signi ficava que qualquer um que descesse
as escadas poderia oií.ar para fora e ver grandes seções da maldita
alvenaria parda e burguesa de Petersen. Assim sendo, Hejduk en
cerrou meticulosamente as escadas em cilindros corbusianos bran
cos, convertendo-as em caixas. No alto, na escuridão de cada pata
mar, havia um único tubo circular fluorescente de 22 watts, sem qual
quer adorno, do tipo que se conhece em Nova York pelo nome de
Au réola de Senhorio.
90
VI I
B RA N C O - P RAT EA DO,
C I N ZA- P RAT EA D O
91
Os Brancos protestaram aos gritos. Gritaram com tanta viru
lência que nunca mais os arquitetos americanos se atracaram direta
mente pela imprensa. Gritaram, mas na realidade os Venturi lhes pres
taram um grande favor. Fizeram os Brancos parecerem uma das duas
grandes legiões que se enfrentavam nas planícies celestes pela alma
do movimento moderno. O próprio futuro da arquitetura america
na parecia estar dependendo do resultado do combate entre os Bran
cos e os arquitetos pop, ou Venturianos ou do Eixo Yale-Filadélfia . . .
o u que nome tenham. Alguém sugeriu "Cinzentos", que era o mais
simples. Então passou a ser os Brancos contra os Cinzentos. Era só
o que se ouvia nas universidades, os Brancos contra os Cinzentos;
os jovens arquitetos começaram a tomar partido. O fato de que os
dois lados continuassem a obedecer aos pressupostos do modernis
mo parecia ficar esquecido na agitação.
Os jovens arquitetos europeus não conseguiam crer no que es
tava acontecendo. Aqueles eternos colonizadores, aqueles nativos
obedientíssimos, os americanos, tinham usurpado a vanguarda, ima
ginem só, da teoria da arquitetura. Estavam se divertindo a valer,
mesmo em meio à depressão comercial que afetava a profissão. A
mesma depressão atingira a arquitetura européia. Em alguns aspec
tos, fora até mais grave. Encomendas particulares quase já não exis
tiam . Os arquitetos sentavam-se por ali mordiscando estudos gover
namentais de viabilidade, qualquer coisa que aparecesse. Por que não
fazer como os americanos? Um teórico de arquitetu ra poderia cons
truir uma reputação sem encomendas. Poderia no mínimo obter con
vites para palestras e seus desenhos poderiam valer dinheiro.
Sej a como for, os racionalistas nasceram nesse momento. Os
principais racionalistas eram um italiano, Aldo Rossi, um espanhol,
Ricardo Bofill, e dois irmãos de Luxemburgo, Leon e Robert Krier.
Os racionalistas se assemelhavam aos Brancos na medida em que
acreditavam que o ca1ninho inevitável e verdadeiro do modernismo
era voltar aos princípios iniciais. Mas achavam que os Brancos não
tinham retrocedido o suficiente. Os racionalistas gostariam de retro
ceder no mínimo ao século XVIII; melhor ainda ao início do Renas
cimento. Os racionalistas queriam construir edifícios pré-século XIX
- despojados de toda a ornamentação burguesa. A idéia era retro
cederem à época anterior à revolução industrial, anterior ao capita
lismo; ou seja, anterior ao capitalismo ter poluído a arquitetura com
a sua corrupção.
As brumas marxistas que envolviam o racionalismo eram ain-
92
da mais densas, mais sufocantes e mais sentimentais do que as que
envolviam os estruturalistas. Os racionalistas tinham a noção român
tica e prolecultista de que os mestres artesãos do Renascimento cons
truíam a partir de impulsos naturais e inevitáveis do povo, como se
isso decorresse de alguma espécie de estruturalismo dos reflexos mo
tores . O fato de que os edifícios fossem em geral encomendados e
pagos por reis, déspotas, duques, pontífices e outros autocratas não
importava. Pelo menos não eram capitalistas .
Não tardou muito e os racionalistas estavam acrescentando um
certo sabor primitivo ao debate americano sobre arquitetura. Nas
conferências de arquitetura nos Estados Unidos, saíam gritando
" I moral ! " para qualquer um com quem discordassem . Eram cons
trangedores, mas fascinantes. Venturi os enfurecia. " Imoral ! " Ven
turi exaltava a sordidez do capitalismo na sua fase moderna, ou se
ja, a faixa comercial. " I moral ! Corrupto! Americano! "
Quanto ao trabalho que faziam, parecia . . . bem , estranhamente
Apartamentos em Milão, projetados por A/do Rossi, orgulho dos Ratos. A rquite
tura à prova de burguesia para a escola européia dos marxistas primitivos, ultra
ortodoxos.
93
fascista. Tunto na Itália quanto na Alemanha, a arquitetura tinha
apresentado traços clássicos despoj ados dos ornatos ou esti i izados.
Quando lembravam isso a racionalistas como Leon Krier, eles per
diam as estribeiras. Fascista ou não, o trabalho de Aldo Rossi era
fantasmagórico. Com as arquitraves, dintéis, arcos compostos e to
do o resto removido, suas janelas renascentistas acabavam com o as
pecto de lúgubres espaços vazios mergulhados em so m bras. Os ra
cionalistas não tardaram a ficar conhecidos como Ratos.
Os arquitetos britânicos mostravam-se céticos a respeito dessa
teorizaç�o, mas nem por isso menos intrigados. Um j ovem arquite
to americano, Charles Jencks, cujo trabalho lembrava o de um adepto
de Venturi-Moore, foi à Inglaterra e publicou um livro intitulado The
Language of Post-Modern A rchitecture, em que catalogava e anali
sava todas as novas correntes. Qualquer que fosse seu status como
arquiteto ele imediatamente se firmou como o autor de arquitetura
mais instruído e espirituoso em atividade. O termo pós-modernismo
foi adotado para todas as manifestações posteriores à exaustão do
modernismo em si. Conforme o próprio Jencks comentou com rara
felicidade, o pós-modernismo talvez fosse um termo muito confor
tável. Informava o que a pessoa estava abandonando sem contudo
comprometê-la com nenhum destino em particular. E estava certo.
O novo termo por si só tendia a criar a impressão de que o Moder
nismo terminara porque fora substituído por algo novo. De fato, os
pós-modernistas, fossem Brancos, Cinzentos ou Ratos, nunca saí
ram da caixinha sobressalente que Gropius, Corbu e os holandeses
criaram em 1920. Na maioria contentaram-se simplesmente em pro
mover mudanças nos mesmos conceitozinhos estanques, agora com
sessenta anos, em · benefício próprio.
94
- Suponho que isso sej a uma cena que não se vê todo o dia,
um arquiteto entregando dinheiro a artistas.
A platéia riu educadamente, indicando ter percebido a tentati
va de gracej o, sem contudo entender muito bem qual fosse.
- Mas, por outro lado, muitas coisas mudaram - continuou
Bunshaft . - Costumávamos premiar arquitetos por fazerem edi fí
cios. Agora premiamos arquitetos por fazerem desenhos.
Em seguida sentou-se. Nem um pio da platéia. Apenas uns pou
cos - todos arquitetos de reduto - tinham uma leve idéia do que
queria dizer. Bunshaft não mencionara Graves, que se encontrava
sentado atrás dele no palco, nem olhou em sua direção. Mas Graves
era o ú nico arquiteto que recebera um prêmio, e era verdade: fora
premiado por desenhos. Ou melhor, por seus desenhos, teorias, sua
posição de Branco r�idente de Princeton, ou Neopurista. Não por
construir, iss o é certo. Podia-se contar as construções de Graves nos
dedos de uma mão. " Construções " - uma ampliação aqui, uma
reforma ali , e umas casinhas. Todas pareciam obrn de Gerrit Riet-
95
veld de porre, graças à mexplicável " b rotação de hera" sob a forma
de corrimãos, tubos e vigas de que Robertson se queixara.
E daí! Na nova atmosfera intelectual, na fase escolástica da ar
quitetura moderna, a carreira de Graves brilhava com uma incon
fundível radiância. Havia algo sórdido em se construir muito. Mes
mo entre os Brancos, os New Yor k Five, falava-se de Gwathmey e
Meier solto voce, como pesos leves, principalmente porque tinham
uma boa clientela e ganhavam realmente dinheiro com a arquitetu
ra. Meier era superior a Gwathmey porque, além de construir edifí
cios, ensinava em Harvard e enunciava teorias devidamente obscu
ras. Não eram, no entanto, tão profundamente obscuras quanto as
de Graves.
Quando Graves falava " leituras múltiplas inerentes a um códi
go de abstração" e "um nível de participação que envolve a intera
ção da pessoa com o edifício", quase alcançava as alturas estrutura
listas de Eisenman. (Quas�. faltava pouco; Eisenman conseguira se
tornar absolutamente obscuro;) As teorias de Graves eram conheci
das e discutidas nos departamentos de arquitetura de todas as uni
versidades importantes do país. Suas aquarelas de edifícios não
construídos eram lilases, azuis, breves, e terrivelmente belas, como
uma tempestade. Corbu! Bastava se falar em " Michael ", como os
amigos o chamavam, e todo arquiteto aspirante no circuito sabia que
se tratava de Michael Graves.
Não se podia dizer o mesmo de Gordon Bunshaft - apesar das
dezenas de gigantescos edifícios de vidro que projetara ou inspirara.
Nos redutos universitários podia-se dizer "Gordon" ou até " Gor- .
don Bunshaft ", e só o que se recebia era um olhar tão vidrado quanto
a fachada do l.ever Ho'use.
Ao diabo com os edifícios gigantescos! Todo arquiteto esperto
1 sabia que antes de mais nada era preciso se sobressair na competi
ção intelectual dos redutos. Houvera uma inegável pureza em Cor
bu, em sua carreira bem como em seus desenhos. Corbu triunfara
unicamente pela inteligência e genialidade, pelos manifestos, trata
dos, discursos, debates, desenhos, planos visionários e a pura força
moral de sua missão. Tornara-se um dos maiores arquitetos do mun
do, respeitado e admi rado por todo arquiteto de vanguarda; criara
aquela Cidade Radiosa que era ele próprio - sem o benefício de
encomendas, clientes, orçamentos, construções. Todas essas coisas
tinham lhe chegado às mãos mais tarde. Com o tempo receberia en
comendas de projetos como a do complexo de Chandigarh na pro-
96
víncia indiana de Punjab. Os clientes, os governos, os construtores,
os povos do mundo, tinham-no procurado porque ele era a Cidade
Radiosa, que fora uma criação de sua mente e nada mais que sua
mente. Tinham lutado, finalmente, para entrar no seu reduto, que
fora chamado, muito acertadamente, · de " Purismo".
Esse mesmo processo apenas se iniciava para Graves. Portland ,
Oregon, acabara de contratá-lo para construir o novo Public Servi
ces Building. Provocaram furor em Portland tanto o proj eto proposto
quanto o modo pelo qual Graves fora escolhido - falou-se muito
na influência de Philip Johnson - mas não se pode mudar o fato
de que foram as vitórias intelectuais de Graves nos redutos universi
tários que o levaram a isso, ao primeiro grande edifício, ou pelo me
nos o primeiro que tinha probabilidade de ver construírem. Havia
ainda dividendos incidentais, mas lucrativos. Os fabricantes de mó-
97
veis começaram a procurar as estrelas do pós-moder nismo para de
senhar salões de exposição. Graves foi contratado para projetar sa
lões para a Sunar Company em Nova York, Chicago, Los Angeles
e Houston. Venturi foi contratado para desenhar um novo salão de
exposição em Nova York para a Knoll I nternational, a firma espe
cializada em móveis modernos mais conhecida do país.
Em fins da década de 70, os arquitetos mais sintonizados pro·
curavam criar uma nova abordagem para a empresa de arquitetura.
Criavam firmas que combinavam as duas vertentes da competição
moderna - a construção de edifícios e a teorização da arquitetura
- numa única entidade. Ou sej a, transformaram as firmas em re
dutos. Ofereciam uma determinada ab �dagem do desenho, um con
j unto de formas, uma filosofia - e um filósofo, um porta-voz, aca
dêmico, profundo, e até abstruso, se o protocolo assim o exigisse.
A Arquitectonica, a SITE e a Friday Architects foram as gue mais
se destacaram . A vida no reduto empresarial chegava a ter um quê
da existência comunal na Bauhaus ou no de Stij l . James Wines da
SITE tornou-se um convidado assíduo em conferências de arquite
tura nos Estados U nidos e na Europa. Suas fachadas à Magritte pa
ra a cadeia de loj as Best eram ao mesmo tempo escultura ou "arte
ambiental ", para usar um termo de época, e arquitetura. De qual
quer modo, o desperdício de . tanto talento e inteligência c om uma
cadeia de loj as perpetrado pela SITE enfureceu os Ratos. Eles pen
saram, pensaram, e finalmente acharam Qmas palavrinhas para Wi
nes e a SITE: " Imoral ! Corrupto! Americano! "
Para o arquiteto ambicioso, ter uma teoria tomou-se tão vital
e natural quanto· ter um telefone. Finalmente, a pressão atingiu até
John Portman. Ele resolveu que já estava na hora de elaborar uma
filosofia. Escreveu um ensaio para a Architectural Recoro. Bom, Port
man podia ter mudado a aparência do centro das cidades america
nas, mas nesse j ogo ele era novato. Sua mensagem foi demasiado
clara e compreensível por inteiro. Tinha a profundidade e a capaci
dade de emudecer de um pingo de chuva. As pessoas gostam de ár
vores e de água e de edifícios p úblicos numa escala humana, e é isso
que devemos lhes dar. . . teorias ao nível daquilo que as pessoas que
rem. Bom, como se pode imaginar. . . o que riram do pobre John Port
man por causa disso!
Contudo, pareceu vital , até para os gigantes comerciais, ao me
nos entrar na nova jogada. Dezembro passado, a firma de Gordon
Bunshaft, Skidmore, Owings & Merrill, os gigantes comerciais da
98
moda das velhas caixas de vidro de Mies, deram um passo um tanto
desesperado. Convidaram os editores da Harvard Architecture Re
view para organizar um debate particular de arquitetos para discutir
com eles os últimos progressos do pós-modernismo: A revista com
pareceu com Graves, Stern, Steven Peterson e Jorge Silvetti. Sentaram
se a uma mesa em forma de U no H arvard Club em Nova York dian
te da 1equipe de arquitetos da Skidmore, Owings & Merril - e lhes
fizeram uma preleção como se fossem estudantes de arquitetura re
cebendo as primeiras críticas de seus projetos. O grupo Skidmore
apresentou slides dos trabalhos recentes, para provar que não se li
mitavam a construir caixas de vidro tipo Lever House. O fato é que
também estavam projetando caixas de vidro baixas com cantos cur
vos e coisas que tais. Os pós-modernos, tanto Brancos quanto Cin
zentos, não quiseram saber. Stern disse: "Os edifícios que a Skid
more constróí são monótonos - tanto faz serem altos ou baixos,
largos ou estreitos, quem viu um viu todos." Os Skidmores nem se
deram ao trabalho de revidar.
ó Destino . . . Em momento algum parece ter ocorrido aos pre
sentes a graça de estarem ali sentados os principais arquitetos - co
mercialmente falando - no campo das grandes construções públi
cas dos Estados Unidos, dispondo-se - dispondo-se? - suplican
do pela oportunidade - de sentarem calados e receberem uma boa
chamada de quatro arquitetos que somados só tinham uns poucos
edifícios maiores que uma residência. Bom, qual era a graça? Tal era
o domínio da mentalidade de reduto, da nova Escolástica, sobre a
profissão de arquiteto.
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abandonar sua posição purista - e o j argão estruturalista. (Nas uni
versidades, o próprio Estruturalismo estava sendo questionado pelo
novo conceito de E ntropia, que afirmava não haverem afinal estru
turas profundas. lógicas, definidas; o mundo era incerto, conjetural,
de circo.) Graves começou a elaborar variações extremamente sutis
da teoria de Venturi. Buscou uma síntese maior de B rancos e Cin
zentos, uma que fosse digna de Abelardo ou Duns Scotus. Conti
nuava a empregar os "códigos de abstração" dos Brancos - mas
os códigos se referiam ao conhecido ambiente de arquitetura da po
bre classe média-média de Venturi. Por exemplo, na ampliação de
uma casa em Princeton ele criou uma projeção de vigas verticais e
horizontais que mais parecia uma escultura de David Smith adapta
da por Rietveld - e pintada de azul. Supostamente isso deveria re
fleti r o céu azul, familiar e média-média sob o qual a pessoa cami
nhava.
Se é que alguém chegou realmente a perceber isso ou não não
era tão importante quanto reconhecer a sofisticação da abordagem .
Posteriormente, Graves foi se aproximando pouco a pouco da idéia
de Moore de j ogar com formas clássicas, notadamente colunas, so- ·
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Mount Vernon em Washington] em forma de casa parece um pouco
com a idéia de Jasper Johns de fazer uma pintura da bandeira dos
Estados Unidos". Quanto a abrigos ornamentados não é preciso di
zer mais. Bob Venturi só estava acrescentando um pouco 'mais de
afetação ao tema, fazendo mais algumas de suas brilhantes e diver
tidas referências irônicas. No cerne da verdadeira ornamentação ar-
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quitetônica, como bem compreendiam os ecléticos arquitetos do sé
culo XIX, encontrava-se um impulso para o enriquecimento e em
belezamento, e não o aplainamento e a generalização. Por volta de
1978 tornara-se aparente que nem mesmo com uma arma apontada
para a cabeça Venturi teria produzido uma peça decorativa e enfei
tada. Simplesmente não conseguia forçar a mão a se mover sobre
o pairei com essa intenção. Não conseguia produzir tal resposta mo
tora. Continuou sendo, mesmo depois de tudo, O' mais leal dos súdi
tos do Príncipe de Prata.
Explorar um � aveníqa que se abre para um sistema de ornamen
tação novo, direto (sem ironia), exuberante (sem afetação) na arqui
tetura americana em fins do século XX teria sido um progresso re
volucionário. Teria sido também herético. Nenhum arquiteto ameri
cano ambicioso, com a cabeça no lugar, tentaria isso. E nenhum ar
quieto que tentasse teria probabilidade de produzir qualquer efeito
expressivo no curso da arquitetura americana. Toda a estrutura dos
redutos e de igrej inhas, com as suas recompensas, psíquicas e mun
danas, teria que ser desmontada primeiro. ·
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ousaria ir tão longe a ponto de pôr uma coisa dessas no alto de um
edi fício. É como se Venturi tivesse realmente colocado a madona de
gesso no topo do Guild House e não apenas falasse em fazer isso
e afinal colocasse a antena de TV do conj unto para idosos. A pape
leira da AT & T beirava perigosamente, perigosamente, perigosamen
te. , . a inconfundível, nua e crua apostasia!
E hoje há indícios de que estej a sendo interpretada como tal.
Nos red utos, começa-se a ouvir falar de Johnson do jeito que fala
vam de Edward Durell Stone depois da i nauguração do Taj Maria.
Mas Johnson cont inuou a ser um tático tão habilidoso quanto
Vent uri. Em discursos e palest ras ele conseguia fazer chegar aos ou
vidos dos fiéis que em áreas tais como a da atitude perante o cliente
ele �ontinuava a ser o clássico modernista. Contava que um cliente,
a AT & T, fora "tão perspicaz que lhe dera uma pista. Dissera: ' Por
favor não faça um telhado plano! ' ' '.
Era muito reco n fortante! Podia-se imaginar a cena: o diretor
execut ivo, o presidente do conselho, e toda a comissão de seleção,
representando a maior corporação da história humana, acercavam
se do arquiteto, mold á ndo bolas de neve i m aginárias com as mãos
e diziam: " Por favor, Sr. Johnso n , não queremos de maneira algu
ma interferir. Só queremos pedir, por favor, meu senhor, que não
nos faça um telhado plano.' '
E que foi que o cl iente achou do que o senhor fez? Ah, foi en
graçadíssimo, respondeu Johnson. "O presidente do conselho disse:
Isso sim é um edi fíciO! Em outras palavras, um edifício é um edi fí
cio; mas um edi fício não é um edi fício se é uma caixa de vidro. O
que possam pensar que sej a um edi fício, não tenho bem certeza. É
o mesmo que alguém dizer ' Isso sim é uma casa ! ' quando finalmen
te vê uma caixa de sal."
No reduto houve um certo alívio, Johnson provavelmente co
metera apostasia, mas eles continuavam sem perceber. Só pagaram
a conta. O mundo exterior continuava de fora como sempre. As no
vas massas continuavam a se debater na lama média-médi a . A bur
guesia continuava frustrada. O brilho do Príncipe de Prata conti
nuava a i luminar a Cidade Radiosa. E o cliente continuava a agüen
tar o tranco feito homem .
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Este livro foi composto pela Memphis Produções Gráficas Ltda .
e impresso na Editora Vozes Ltda.
em fevereiro de 1990 para a Editora Rocco Ltda .