Heidegger e A Tecnica

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CRAIA, E.

Heidegger e a técnica: sobre um limite possível

Heidegger and the technique: about a possible limit

Eladio Craia

Doutor de Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor da Pós-Graduação em


Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR - Brasil, e-mail:
[email protected]

Resumo

O artigo aborda a reflexão de Martin Heidegger sobre a Técnica a partir de leitura de A


questão da Técnica. Nesse sentido, o texto acompanha o movimento da analise heideggeriana
para expor seus elementos centrais. Assim, primeiramente o artigo mostra como o
pensamento de Heidegger sobre a técnica deve ser colocado sob o prisma da questão mais
geral de sua filosofia: a pergunta pelo sentido do Ser. Num segundo momento, o texto
organiza os principais conceitos que estruturam a reflexão heideggeriana sobre a técnica:
essência da técnica; desocultamento do Ser, modos epocais, desabrigar. Esses conceitos-chave
são articulados com o resto do aparato conceitual do texto. Finalmente, o artigo analisa as
consequências de certos postulados de Heidegger sob a perspectiva de certos limites que tais
postulados poderiam implicar tanto para a interrogação heideggeriana da técnica quanto para
a reflexão sobre a técnica em geral.

Palavras-chave: Heidegger. Técnica. Ontologia. Ser.

Abstract

The article discusses Martin Heidegger's reflection on the technique from reading the text
The question of the technique. In this sense the text accompanying the movement to expose
Heidegger's analysis of its key elements. So, first the article shows how Heidegger's thought
about the technique should be placed under the prism of the more general question of his
philosophy: the question of the meaning of Being a second time the text organizes the core
concepts that structure the reflection on Heidegger technique: the essence of the technique;
unconcealment of Being, epochal modes. These key concepts are articulated with the rest of
the conceptual apparatus of the text. Finally, the article analyzes the consequences of certain
postulates of Heidegger's perspective limits that such assumptions could lead to both
Heidegger's interrogation technique as for reflection on the technique in general.

Keywords: Heidegger. Technique. Ontology. Being.


Introdução

A saturação contemporânea de interrogações — e respostas — sobre o problema geral


da técnica — ou, segundo certas abordagens, da tecnologia contemporânea —, é o horizonte
reflexivo em que o presente texto encontra seu âmbito de sentido mais geral. Essa
multiplicidade permite constatar o árduo que resulta definir as características centrais do
modo de ser técnico, pois ele mesmo não possibilita — pelo menos a partir de seus variados
modos fenomênicos de operar —, o reconhecimento de um núcleo que remeta, sem
deslocamentos, à sua própria estrutura ontológica. Por outro lado, essas dificuldades
apontadas decorrem, também, do lugar que ocupamos na qualidade de interrogadores, dado
que, de algum modo, já nos encontramos ―na‖ técnica, somos ―com‖ a técnica. Aquilo que se
apresenta de modo complexo perante as ambições de nosso questionar, ao mesmo tempo nos
atravessa e nos constitui.
Dada essa variedade de possibilidades de leitura, uma advertência liminar se torna
necessária: desde o princípio apontamos os dois limites claros que balizam nossa análise;
primeiro: não consideramos a epistemologia moderna e seus desdobramentos contemporâneos
como domínio de análise privilegiado para abordar a questão da técnica; segundo: não
negociamos com as reflexões éticas um modo determinado de valorar o horizonte técnico.
Pelo contrário, nos centraremos e limitaremos a uma leitura ontológica do fenômeno técnico.
Em virtude dessa perspectiva, excluiremos deliberadamente abordagens de caráter
sociológico, moral ou político, sem dúvidas pertinentes e necessárias no interior de outros
recortes de análise, mas que excederiam os limites de nossos objetivos no presente texto.
Assim definida nossa esfera de trabalho, e a partir de suas exigências analíticas, nos
centraremos, na presente pesquisa, na reflexão de Martin Heidegger sobre a técnica. De fato, é
conhecido que no âmbito do pensamento contemporâneo entorno à questão da técnica, o
filósofo alemão aparece como um autor essencial, como uma das grandes vozes que nos
convoca a pensar em termos estritos ―a própria técnica‖ a partir de seu epicentro ontológico1,
antes de iniciar qualquer abordagem centrada em algumas das várias consequências
fenomênicas ou semânticas da técnica2.

1
É verdade que, de várias formas, a preocupação já pairava no clima espiritual da época na qual Heidegger
deflagra sua análise, especialmente na Alemanha de Weimar — e naquela outra Alemanha que a sobreviveu,
aquela dos eventos sem retorno. Para uma abordagem mais detalhada, ver BRÜSEKE, 2001, p. 10 ss.
2
Parece-nos que no mesmo período só Ortega y Gasset poderia acompanhar Heidegger neste registro; isto é
assim, dado que o filósofo espanhol também procurou, com anterioridade no tempo e com rigorosidade
exemplar, desvendar as dobras da essência da técnica.
Assim, no que segue, tentaremos expor certos aspectos, bem como determinadas
margens, da especulação referida à técnica aberta por Martin Heidegger.

A análise da técnica

Comecemos situando a questão: Que diz a reflexão de Heidegger sobre a técnica


quando analisada no seu sentido mais geral e transitado, aquele que organiza uma opinião e
norteia uma escola?
Em primeira instância é necessário recordar que sua questão básica e perene — isto é,
aquela pergunta que interroga o sentido do Ser — é, de algum modo, transformada na própria
questão pela técnica, de modo que esta última só encontra seu sentido sobre o fundo do
questionamento sobre o Ser enquanto tal. Vejamos mais de perto. Concordo, pode mudar.
O problema da técnica não só é relevante em Heidegger pela riqueza especulativa que
o filósofo atinge na análise desse problema, mas também porque constitui, em termos de
determinação da obra do filósofo alemão, um dos temas constantes do seu pensamento,
aparecendo nos distintos momentos de seu pensamento já catalogados pela historiografia
filosófica. Por esse motivo, é necessário reconhecer que as reflexões e, em geral, o

Por outro lado, ambos os filósofos questionam a técnica desde algum lugar da fenomenologia de matriz
husserliana e, nesse questionar, interrogam, (com profundidade e linguagem diferentes), o destino histórico de
ocidente. Mais significativo é o fato de que os dois pensadores insistam em que a técnica não é simplesmente,
ciência aplicada, nem uma parte secundária da episteme moderna, pelo contrário, tratar-se-ia do maior fenômeno
cultural do ocidente contemporâneo. Esse modo de conceber a técnica deve ser colocado do lado de um
artificialismo profundo; com efeito, a produção técnica por parte do homem implica em uma ruptura radical com
qualquer forma de ―destreza‖ natural, ou qualquer tipo de instinto criativo baseado em uma natureza própria do
ser humano. Assim, não se trata de uma projeção natural do corpo e da razão do homem através da técnica e de
seus artefatos, ao contrário trata-se de uma pura criação que tem a ver com um horizonte que transcende
qualquer vetor de naturalidade que possa ser adjudicado ao sujeito tecnicamente ativo. Justamente, o perigo da
técnica radica em que ela não é uma continuação ou potencialização de nossa natureza animal ou biológica, mas
uma alta produção de nosso espírito e, portanto, um problema da cultura e do pensar, não da biologia ou da
antropologia de cunho biologista.
Ora, reconhecidas essas coincidências, é pertinente marcar algumas diferenças claras entre Ortega e Heidegger.
Nesse sentido, enquanto que para Ortega a técnica é um meio que, ainda que esconda sua essência, viabiliza a
realização de um projeto humano determinado, para Heidegger, a técnica, entendida, segundo veremos, como
modo de desocultamento do Ser e da verdade, implica uma instância destinal que nada tem a ver com um projeto
individual ou coletivo a ser desenvolvido. Por esse motivo, e apesar de o pensador espanhol não partir de uma
antropologia filosófica, é possível articular a questão da técnica com uma pergunta pelo homem, ainda que de
modo exterior à própria técnica. Já para Heidegger, vincular, de qualquer modo o pensamento da técnica com
alguma forma de interrogante antropológico implicaria recair na metafísica do sujeito nos moldes da filosofia
moderna.
relacionamento do filósofo alemão com a problemática da técnica possuem, necessariamente,
diferentes matizes e etapas, segundo o período de sua filosofia3.
Ora bem, aquilo que se manteve mais ou menos constante nesses diferentes períodos, é
a caracterização da técnica como modo de ser epocal, e, portanto, intrinsecamente vinculada
— de diversos modos, segundo o momento de sua filosofia —, com a questão do
―desocultamento‖ (Entbergung) do Ser4.
Com efeito, para Heidegger existiriam diferentes modos do Ser se manifestar, segundo
as características com as quais o desocultamento venha a acontecer em diferentes ―épocas‖;
estes momentos podem ser designados como ―diagramas epocais‖. Entendemos por diagramas
épocais aqueles períodos nos quais surge e se desdobra um determinado modo de
desocultamento do Ser e certo tipo de desenvolvimento do espetáculo do mundo ôntico, isto é,
o universo daquilo que se apresenta, até seu esgotamento e seu respectivo desaparecimento na
espera de outro modo de desocultamento5. Trata-se da forma e do sentido ontológico sob os
quais o mundo se manifesta em diferentes épocas; ou, dito mais radicalmente: o modo em que
as coisas se apresentam com sentido para isto que nós mesmos somos. Colocada a questão
dessa maneira, se impõe um esclarecimento fundamental com relação ao problema do estatuto

3
Resumidamente, é possível reconhecer (pelo menos) três etapas na obra heideggeriana em relação à
problemática da técnica.
No seu primeiro período, aquele que, poderíamos dizer, acaba um ano depois da publicação de Ser e Tempo,
Heidegger considerou a técnica como um lugar onde se manifesta o mundo do Dasein, isto é, como um modo de
desvelar-se o horizonte histórico e o momento ―epocal‖ em que se insere o homem. Através da técnica como
utilidade, e do uso dos elementos técnicos, se mostra o modo de relacionar-se do indivíduo com ―seu‖ mundo.
Na instrumentalidade se articula o Dasein no seu relacionamento fundamental, isto é, na abertura ao mundo que
lhe pertence. A partir do ano de 1929 até o final da década de 1930, aproximadamente, se desenvolve a segunda
etapa no pensamento heideggeriano sobre a técnica. O deslocamento com respeito ao anterior período se dá por
causa de dois motivos centrais, pelo menos: a) a mudança própria do pensamento de Heidegger para uma
problemática cada vez mais preocupada com a superação da metafísica, entendida como superação do princípio
de fundamentação; b) o encontro com o pensamento de Ernst Junger, em particular com seu artigo ―A
mobilização total‖, e a consequente preocupação relacionada com o surgimento do novo estatuto político
alemão, circunstancia estas que guiariam a Heidegger por outros caminhos filosóficos. A reflexão centra-se,
então, na técnica como fenômeno que, embora global, se manifesta de modo particularmente dramático, na
decadência espiritual da Alemanha, estado este que deve, com urgência, ser superado.
O terceiro momento, por fim, inicia-se a partir da década de 1940 e segue-se, com algumas variações, até o fim
da produção do filósofo. A este período pertencem, só para indicar alguns: A sentença de Anaximandro; Carta
sobre o Humanismo; Sendas perdidas; e, particularmente importante para nós, A questão da técnica; Martin
Heidegger, ―A questão da técnica‖, em Cadernos de Tradução n. 2, DF/USP, 1997; em diante (HEIDEGGER,
1997). Inicia-se neste período o singular movimento de retorno ensaiado por Heidegger à primeira origem grega,
a certa história particular da filosofia, a uma interrogação mais firme sobre a essência da técnica e, por último, a
certo modo de desassossego íntimo e singular.
4
Seguimos aqui a tradução proposta pelo Professor Benedito Nunes em seus vários trabalhos sobre Heidegger
para o neologismo Entbergung criado por Heidegger. Com relação à mesma problemática de tradução, em
circunstâncias específicas, o professor Marco Aurélio Werle utiliza a expressão des-abrigar ou desabrigar, junto
com desocultar, em particular para traduzir Entbergen.
5
A relação entre os diferentes diagramas epocais não deixa de ser uma questão maior no pensamento de
Heidegger. Não sendo este nosso tema principal, nos limitemos a ressaltar, por enquanto, que, sob hipótese
alguma esta relação deve ser pensada como uma evolução ou como uma relação causal simples. Mais adiante,
voltaremos brevemente a este ponto.
―histórico‖ desses momentos epocais. Esse esquema heideggeriano não responde à exigência
da filosofia clássica de pensar o mundo sob o prisma de um processo histórico geral e
inteligível na sua essência. Pelo contrário, a forma de ―historicidade‖ que se constitui e
caracteriza através dos diferentes diagramas não opera como uma linha neutra de tempo que
seria externa ao próprio diagrama; em sentido oposto, é o modo do desocultamento que abre e
define a forma histórica de uma época. Não se trata da ―historiografia‖ como sucessão de
eventos encadeados e reconhecíveis, mas da historicidade como teatro das formas de
manifestação do Ser6.
É no âmbito desse horizonte conceitual que a técnica é definida como um ―diagrama
epocal do desocultamento‖ e talvez, como pretendemos mostrar mais adiante, o mais decisivo.
Ora, no que corresponde estritamente à esfera técnica, como pensar este diagrama epocal por
ela desdobrado?
Comecemos, pois, com as palavras com as quais o próprio Heidegger abre sua
conferência do dia 18 de novembro de 1953, intitulada A questão da técnica:

A seguir, questionaremos a técnica. O questionar constrói num caminho. Por isso é


aconselhável, sobretudo, atentar para o caminho e não permanecer preso a
proposições e títulos particulares. O caminho é um caminho de pensamento. Todos
os caminhos de pensamento, mais ou menos perceptíveis, passam de modo incomum
pela linguagem. Questionamos a técnica e pretendemos com isso preparar uma livre
relação para com ela. A relação é livre se abrir nossa existência (Dasein) à essência
da técnica. Caso correspondamos à essência, estaremos aptos a experimentar o
técnico (das Technische) em sua delimitação (HEIDEGGER, 1997, p. 42, grifo do
autor).

A questão com a qual é aberta essa reflexão por parte de Heidegger é tão clara quanto
decisiva: qual é a essência da técnica? ―A essência de algo vale, segundo antiga doutrina, pelo que
algo é. Questionamos a técnica quando questionamos o que ela é‖ (HEIDEGGER, 1997, p. 43).
É desse modo, e com essa drástica simplicidade, que o pensar acerca da técnica deixa
de ser um problema meramente ―instrumental‖, para tornar-se um questionar pelo seu
fundamento ontológico. A sentença heideggeriana que inaugura esse deslocamento reflexivo é
tão densa quanto lapidar: ―a essência da técnica não é técnica‖.

A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. Quando procuramos a


essência da árvore, devemos estar atentos para perceber que o que domina toda a
árvore enquanto árvore não é uma árvore, possível de ser encontrada entre outras
árvores.

6
Segundo diversos comentadores e tradutores, existiria todo um complexo jogo expressivo e semântico
elaborado por Heidegger acerca desta questão. Assim, o filósofo mobiliza os diferentes sentidos e etimologias
das expressões alemãs historisch; geschichtlich; geschichte e geschick. Ver nota n. 9 em HEIDEGGER, 1997, p.
69.
Assim, pois, a essência da técnica também não é de modo algum algo técnico. E por
isso nunca experimentamos nossa relação para com a sua essência enquanto somente
representarmos e propagamos o que é técnico, satisfizermo-nos com a técnica ou
escaparmos dela (HEIDEGGER, 1997, p. 42-43).

Um novo conjunto de possibilidades se abre no campo da própria filosofia da técnica.


No interior da pergunta heideggeriana, não é mais possível pensar a técnica desde a própria
técnica, nem com ferramentas de reflexão que partem da técnica como pressuposto. Por esse
mesmo motivo, é absolutamente inútil, para Heidegger, e desde o ponto de vista de um
questionar radical, pensar a técnica como sendo o conjunto dos meios materiais para que,
através de certo fazer, o homem consiga alcançar determinados fins.

Todos conhecem os dois enunciados que respondem à nossa questão. Um diz:


técnica é um meio para fins. O outro diz: técnica é um fazer do homem. As duas
determinações da técnica estão correlacionadas. Pois estabelecer fins e para isso
arranjar e empregar os meios constitui um fazer humano [...]
A concepção corrente de técnica, segundo a qual ela é um meio e um fazer humano,
pode, por isso, ser chamada de determinação instrumental e antropológica da técnica
(HEIDEGGER, 1997, p. 43).

Estamos assim no limiar do deslocamento proposto por Heidegger na sua abordagem


da técnica. Para superar essa concepção corrente da técnica, segundo o pensador alemão, será
necessário dar um passo atrás na reflexão e interrogar o âmbito em que esta própria concepção
instrumental-antropológica se enraíza. Isso implica que se trata, agora, de questionar, num
sentido geral, o modo sob o qual esse ente que nós mesmos somos se constitui, e ao mesmo
tempo se relaciona com as coisas e seu sentido como mundo. Ora, ao falar da relação entre
mundo e coisas por um lado, e o Dasein por outro, aquilo que imediatamente é colocado em
pauta é a forma de verdade que se mobiliza nessa relação.
Efetivamente, a técnica moderna é uma forma nova de desocultamento do Ser, isto é,
em certo sentido, um novo modo de ―verdade‖.

A técnica não é, portanto, meramente um meio. É um modo de desabrigar. Se


atentarmos para isso, abrir-se-á para nós um âmbito totalmente diferente para a
essência da técnica. Trata-se do âmbito do desabrigamento, isto é, da verdade
(HEIDEGGER, 1997, p. 53).

Isso é assim porque, para Heidegger, a verdade não se baseia nem no princípio de
adequação nem num esquema da revelação, mas, justamente, acontece no ―desocultamento ou
desabrigar‖. Deixar que a ―coisa seja‖, insiste Heidegger, isto é, permitir que o ente recorte
sua verdade sobre o fundo do Ser, sob a diferença do Ser, sempre oculto. Certo, pode mudar.
Manifestação no ocultamento do Ser sob o aparecimento do ente. É uma síntese da frase
anterior; esta sentença, algo mais lúdica, está referida à anterior. Ora, se for necessário, pode
modifica-la para deixa-la mais clara. Essa dinâmica do ocultamento e desocultamento entre o
Ser e o ente proposta por Heidegger, ou, segundo os próprios conceitos heideggerianos, entre
o ôntico e o ontológico, constitui o centro da noção do pensador alemão sobre a verdade,
aquilo que se deu em chamar, de modo vago e não pouco problemático: ―o retorno à
concepção originária grega de verdade‖. Heidegger mostra a articulação entre a questão da
técnica e a noção de verdade por ele postulada do seguinte modo:

Havíamos dito, contudo, que a determinação instrumental da técnica estava correta.


Com certeza. A certeza afirma sempre alguma coisa que é adequada ao que está à
frente. Mas, para ser correta, a afirmação não necessita de modo algum desocultar
em sua essência o que está à frente. Somente onde um tal desocultamento acontece
dá-se o que é verdadeiro. Por isso, o que é meramente correto ainda não é o
verdadeiro. Somente o verdadeiro nos leva a uma livre relação com o que nos toca a
partir de sua essência (HEIDEGGER, 1997, p. 45).

Colocado desse modo, torna-se evidente que o questionar da verdade da técnica não
admite uma abertura proveniente da própria certeza que os saberes sobre a técnica mantêm
com relação a ela mesma. Assim, por exemplo, a técnica não pode ser entendida desde a
própria tecnologia moderna e seus pressupostos, nem sua essência interrogada com análises
baseadas em concepções epistemológicas construídas desde a ciência moderna para definir a
técnica na sua relação com ela, isto é, a Técnica entendida como tecnociência 7. Ora, do
mesmo modo que a possibilidade de pensar a técnica não se encontra na própria técnica, esta
possibilidade tampouco se encontra no simples abandono dela a partir de uma escolha volitiva
que nos levaria a promover um olhar ―exterior‖ à técnica — entre outros motivos, porque tal
abandono não parece possível nesse ponto histórico, dado seu estado atual de
desenvolvimento. Segundo um caro exemplo heideggeriano, a superação dessa forma de
aporia passa por ―transcender a situação‖: do mesmo modo que a dor não é realmente
eliminada fugindo da situação que a origina, mas enfrentando-a até objetivá-la, isto é, até sua
transformação em uma dor simplesmente observada, de forma que o sujeito estabeleça uma
distância entre ele e a presença persistente da coisa, assim deve ser feito, do mesmo modo,
com a técnica8.

7
É justamente isto que sucede quando a tecnologia, isto é, a aliança entre técnica e ciência, se erige em
paradigma de toda ação, resultando, portanto, em mais um modo do dogmatismo objetivado que não admite
outra leitura que não seja sua própria, e que se torna, além do mais, incapaz, de reconhecer-se a si mesmo como
dogma.
8
Um dos mais destacados representantes da filosofia da técnica, Carl Mitcham, (MITCHAM, 1989, p. 70 ss.),
entende que esta estratégia geral heideggeriana consistiria, em certo sentido, em defender o Eu da presença
De qualquer modo, essa curiosa forma de transcender um problema mediante sua
observação calma, assemelhando-se ao estado contemplativo, é a estratégia de abordagem que
propõe Heidegger com respeito à técnica: contemplar a técnica, experimentar tranquilamente
sua presença utilizando os sentimentos e o intelecto como barreiras protetoras diante de sua
irremediável agressão. Assim, para Heidegger, o distanciamento que procura a serenidade
(Gelassenheit) do pensar é o único pharmacon efetivo quando defrontados com a inexorável
presença das coisas perante a consciência, nesse caso específico, da vasta técnica moderna.
Enfim trata-se, com Heidegger, de pensar a essência da técnica, isto é, sua verdade,
como forma epocal do desvelamento, com a serenidade que nos permite vivenciá-la não de
fora, mas desde o seio de seu modo de aparecer, ou nas palavras de Heidegger na citação
anterior: numa livre relação com o que nos toca, dado que: ―Técnica é um modo de
desabrigar. A técnica se essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o
desocultamento, onde acontece a Aletheia‖ (HEIDEGGER, 1997, p. 56).

A essência da técnica

Para Heidegger, o modo de ser técnico — a técnica contemporânea — comporta uma


irredutível singularidade; por outro lado, e em decorrência desse traço singular, a época da
técnica nos ameaça de modo total. ―O que é a técnica moderna? Também ela é um desabrigar.
Somente quando deixarmos repousar o olhar sobre este traço fundamental, mostrar-se-á a nós
a novidade (Neuartige) da técnica moderna‖. Analisaremos a continuação e estrutura que
sustenta essa afirmação (HEIDEGGER, 1997, p. 57).
A mais decisiva característica desse modo de desvelamento é a de obrigar o ente a se
manifestar como fonte de energia passível de ser armazenada para, depois, ser libertada de um
modo abstrato e indeterminado. O epifenômeno desse processo visa à transformação ou
determinação das coisas na forma que mais convenha à própria técnica através da operação do
homem de acordo com seus fins, como afirmam as concepções clássicas de técnica que
anteriormente mostrávamos. Ora, isso possibilita esse modo de se manifestar da técnica e,
justamente, o âmbito anterior do desabrigar. A técnica moderna desoculta o Ser e deixa
aparecer o ente provocando-o, interpelando-o e, assim, o descaracteriza e especifica tantas
vezes quanto o homem quiser, e sob o aspecto que deseje. A técnica descobre, transforma,
acumula e distribui as coisas segundo fins e objetivos específicos e calculáveis.

impertinente de uma realidade, transformando-a em objeto de contemplação, isto é, neutralizando sua ação
causal mediante sua transcendentalização (presenciar a presença).
O desabrigar que domina a técnica moderna, no entanto, não se desdobra num levar
à frente no sentido da poesis. O desabrigar imperante na técnica moderna é um
desafiar (Herausfordern) que estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer
energia suscetível de ser extraída e armazenada enquanto tal (HEIDEGGER, 1997,
p. 57).

Segundo essa verificação heideggeriana, a coisa deixa de ser o que ela poderia ser
como possibilidade, tanto em sua singularidade quanto em seu sentido genuíno. Inexorável, a
técnica mostra as entranhas da coisa, agora nomeada como ―objeto‖, sua intimidade tornada
estrutura inteligível e numérica, a coisa como simples parte da matéria, fragmento anônimo e
quantificável do mundo natural. A técnica já não cria coisas únicas e ao mesmo tempo
indeterminadas pela multiplicidade de seus eventuais usos, pelo contrário, produz desde a
operação daquilo que Heidegger chama de ―subsistência‖ (Bestand), um constante depósito de
objetos sempre disponíveis, sempre prontos para serem manipulado e descartado; o
subsistente.

O que assim é invocado tem sua própria posição (stand). Nomeamos essa posição de
subsistência (Bestand). A palavra significa aqui algo bem mais essencial do que
somente ―previsão‖. A palavra ―subsistência‖ eleva-se agora à categoria de um
título. Ela significa nada menos do que o modo pelo qual tudo o que é tocado pelo
desabrigar desafiante se essencializa (HEIDEGGER, 1997, p. 61).

Para Heidegger, uma situação tal nunca tinha acontecido antes na história, dado que,
em outros períodos epocais, cada matéria, cada coisa, podia manter sua especificidade ao
entrar em uma relação, ainda que de serviço, com o homem; um serviço limitado e que não
oblitera a abertura ao mundo do qual faz parte. Assim, o vento continuava a falar entre as pás
do moinho; e na estátua de mármore e na construção de granito, a rocha continuava a se
manter, como ela mesma, e a partir dela mesma, para citar figuras caras a Heidegger.
Contrariamente, com a técnica moderna tudo é transformado em depósito ou
disponibilidade, posto para o consumo e a utilidade segundo fim.

O desabrigar que domina a técnica moderna tem o caráter do pôr no sentido do


desafio. [...] O pôr que desafia as energias naturais é um extrair (Fördern) em duplo
sentido. É um extrair na medida em que explora e destaca. Este extrair, contudo,
permanece previamente disposto a exigir outra coisa, isto é, impelir adiante para o
máximo proveito, a partir do mínimo de despesas. O carvão extraído da reserva
mineral não é posto para que esteja, apenas em geral e em qualquer lugar à mão. Ele
é armazenado, isto é, posto para o calor que está encomendado para gerar vapor,
cuja pressão impele a engranagem por meio da qual a fábrica permanece operando.
A central hidroelétrica está posta no rio Reno. Ela coloca (stell) o Reno em função
da pressão de suas águas fazendo com que, deste modo, girem as, turbinas [...]. A
central hidroelétrica não esta construída no rio Reno como a antiga ponte de
madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que está
construído na central elétrica (HEIDEGGER, 1997, p. 58-60).

Em última instância, trata-se de uma determinada forma de desocultar o ser: o


desvelamento como total ―disponibilidade‖ (Gestell) ou ―plasticidade‖; o Ser como utilidade e
o ente como mero útil. Mas a disponibilidade ou a utilidade não são, elas mesmas, em
absoluto algo técnico na sua essência, pelo contrário, elas mesmas operam a modo de
condição de possibilidade, ou, para sermos mais específicos, como sendo a própria essência
da técnica. Assim, é a ―atitude tecnológica‖ perante o mundo o que opera como precondição
ou marco ―transcendental‖ da compreensão, dentro da qual o real é desocultado ou
manifestado modernamente como mundo técnico.
Por outro lado, qualquer modo de diferenciação autêntica na esfera do ôntico é
abortado desde uma homogeneização operada no modo de desocultamento ontológico técnico.
Dessa sorte, para Heidegger, uma das características fundamentais da época técnica é a
uniformização de qualquer singularidade, tudo se torna matéria de troca e de equivalências,
―cálculo‖. Porque tudo é homogêneo, tudo pode ser trocado e funcionalmente substituído, mas
qualquer intercâmbio é sempre precedido por um cálculo; a técnica calcula, e onde o cálculo
impera, o pensar é suspenso. Assim, a operação de um constante calcular é o modo de banir
do espírito de um povo o espaço para o autêntico pensar.
Surge então o interrogante maior; como o homem chegou a esse estado lamentável
para ele e paro o pensar que lhe outorga autenticidade? Poderíamos ter escolhido, isto é,
tínhamos alternativa, ou estávamos, desde o princípio, condenados a esse ―destino‖? Essa é,
justamente, a categoria que está em jogo no centro da questão — Geschick, canonicamente
traduzida como destino.

A essência da técnica moderna repousa na armação. Esta pertence ao destino do


desabrigar. Os enunciados dizem outra coisa do que diz o discurso muitas vezes
constante, de que a técnica é o destino de nossa época, onde destino designa algo
que não pode ser desviado de um transcurso inalterável (HEIDEGGER, 1997, p. 55).

A técnica é um destino, uma instância a que poderíamos chamar com o neologismo


―destinal‖, no desocultamento; mas, para Heidegger — e isto é o profundamente novo —, o
destino não é uma fatalidade, uma necessidade sem solução. Trata-se de uma forma destinal
que comporta no seu seio a possibilidade de toda liberdade verdadeira, no sentido do
desabrigar. Quanto mais o ente que nós mesmos somos sabe e consegue escutar e fazer parte
da verdade do desocultar, mais livre e autêntico se torna. A liberdade não é um ato volitivo,
resultado de uma vontade independente, mas uma coparticipação do homem na clareira do
Ser, entendida como iluminação a partir do desocultamento ontológico.

A essência da liberdade, originariamente, não está ordenada segundo a vontade ou


apenas segundo a causalidade do querer humano.
A liberdade domina o que é livre no sentido do que é focalizado, isto é, do que se
descobre. A liberdade está num parentesco mais próximo e mais íntimo com o
acontecimento do desabrigar, isto é, da verdade. Todo desabrigar pertence a um
abrigar e ocultar. Mas o que está oculto e sempre se oculta é o que liberta, isto é o
mistério. Todo desabrigar surge do que é livre, vai para o que é livre e leva para o
que é livre (HEIDEGGER, 1997, p. 57, grifo do autor).

Desse modo, o homem não pode escolher os caminhos do desocultar — que, por outro
lado, são vários —, só pode reconhecer e ―escolher‖ participar no desocultamento, e, nesse
participar, reconhecer o oculto, aquilo que se mantém em reserva. A escolha do homem é
vinculada à sua capacidade de escutar o Ser e nessa escuta se libertar, e não na pretensiosa
possibilidade de escolher os destinos do mundo.

Mas se pensamos a essência da técnica, então experimentaremos a armação como


um destino do desabrigar. Assim, já nos mantemos na liberdade do destino que de
modo algum nos aprisiona numa coação apática, fazendo com que perpetuemos
cegamente a técnica ou, o que permanece a mesma coisa, nos insurjamos
desamparadamente contra ela e a amaldiçoemos como obra do diabo. Ao contrário:
se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos
inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora (HEIDEGGER, 1997, p.
58, grifo do autor).

A consequência dessa perspectiva é vital para o pensar heideggeriano, dado que


implica o abandono da noção de ―sujeito‖ moldada pela modernidade. Com efeito, não se
trata de um sujeito volitivo entendido como causa movens originária e de um mundo
assumido como resultado, como efeito dessa forma de vontade subjetiva.
Assim, levando em conta esse deslocamento em relação ao sujeito, somos obrigados a
dar um passo a mais. Pensar a técnica de modo radical visando a desvendar seu estatuto
ontológico implica reconduzir o olhar até um ponto além, ou aquém, daquele ―limite natural‖
da Modernidade chamado de Sujeito, e inclusive de suas formas ―deveis‖, os modos de
subjetivação. Em um sentido mais genérico, quer dizer que qualquer forma de
antropologização deve ser considerada de ordem derivada; isto é, podemos pensar inclusive
no advento de formas singulares de subjetivação, segundo certas formulações
contemporâneas, mas estas não formam a instância ontológica central para começar a pensar a
técnica. Com efeito, como demonstra Heidegger, a questão da técnica não é tributária de uma
forma ―homem‖ ou, mais pontualmente, ―Sujeito‖ que lhe seja anterior; pelo contrário,
adquire seu estatuto próprio no horizonte da interrogação do Ser. Ora, essa perspectiva
eminentemente ontológica carrega implicações decisivas em aspetos relativos ao que
poderíamos chamar de destino histórico de Ocidente9. Uma delas, talvez a mais escandalosa
para alguns setores do pensar, é a impossibilidade de organizar um corpus ético ou moral em
relação à técnica. Com efeito, entendida como desocultamento destinal que expõe o ente sob o
modo da interpelação e o cálculo, independente de qualquer ato de volição individual ou
coletiva, a técnica não comporta variáveis morais, dado que toda esfera moral ou ética implica
um sujeito como agente — seja este passivo ou ativo —, da atividade e do comportamento.
Não é viável predicar do mundo técnico um conjunto, ainda que reduzido, de valorações
éticas ou morais porque falta o alicerce fundamental onde ancorar a rede de atividades
derivadas desses valores: falta o sujeito da moral e do agir. Ora bem, qualquer cartografia que
vise expor as linhas centrais da abordagem da técnica promovidas pelos mais variados agentes
e saberes, mostrará que essas se articulam, em geral, a partir de um campo conceitual que
pressupõe uma antropologia geral, e, por esse motivo, subsidiário da operação de uma
antropologia filosófica. Parece claro que, de algum modo, e em algum momento, o homem
deve estar presente, como agente que mobiliza ou cria a técnica, como responsável moral, ou
como destinatário de suas vantagens ou tragédias. Nenhuma dessas formas sobrevive em
Heidegger.
Verificamos nesse breve percurso pela questão da técnica em Martin Heidegger que o
horizonte para o qual o pensador alemão conduz a reflexão se constitui num ponto sem
retorno, um limite. A radicalidade do pensamento heideggeriano leva a interrogação até suas
últimas consequências pensáveis em termos ontológicos. E, no entanto, continua a ser um
limite; a questão heideggeriana que interroga a técnica possui, ela mesma, sua própria
margem e sua própria exterioridade. No que segue, percorreremos um desses limites da
reflexão heideggeriana.

O perigo da técnica e um limite possível de Heidegger

É habitualmente repetido — desde que Heidegger o anunciou pela primeira vez de


modo lapidar — que algum acréscimo significativo deve ser articulado no postulado básico
que indica que a técnica é um modo de desocultamento ontológico, um diagrama epocal
determinante de mundo. Esse acréscimo declara que a época da técnica não seria um modo

9
Neste sentido, mais uma vez, é possível afirmar que sua reflexão se encontra em alguns pontos com a de
Ortega.
qualquer ou um diagrama a mais, senão um horizonte ontológico singular e decisivo, detentor
de certos predicados que o fariam único e, quiçá, final, constituindo-se, então, num perigo
essencial para homem.

Uma vez levado a estas possibilidades, o homem está, a partir do destino, colocado
em perigo. O destino do desabrigamento é, enquanto tal, em todos os seus modos,
um perigo, e, por isso, necessariamente um perigo10.
O destino do desabrigar não é em si qualquer perigo, mas é o perigo.
(HEIDEGGER, 1997, p. 59, 61, grifo do autor).

Tratar-se-ia do lugar e do momento em que o pensamento não possui já espaço; ou o


modo no qual o acabamento do horizonte de sentido desse mundo poderia ser levado à sua
concretização. A técnica comporta o poder de acabar com o pensar e com o Mundo como
mundo de sentido para esse ente que nós mesmos somos. Isso porque, como modo de
desocultamento ontológico, a técnica tornar-se-ia a determinante de certo ―sentido do
Mundo‖; a técnica ―mundifica‖, diz Heidegger, mas mundifica ―de modo total‖.

A armação, porém, não põe apenas em perigo o homem em sua relação consigo
mesmo e com tudo o que é. Enquanto destino, ela aponta para o desabrigar do tipo
do requerer. Onde este desabrigar impera, toda possibilidade diferente de desabrigar
é afastada; sobretudo, a armação oculta aquele desabrigar que no sentido da poesis
deixa surgir-à-frente no aparecer aquilo que se apresenta. Em comparação com isso,
o pôr que desafia impulsiona na relação oposta para aquilo que é. Onde impera a
armação, todo desabrigar é marcado pela cobrança e segurança da subsistência.
(HEIDEGGER, 1997, p. 63, grifo do autor).

A técnica implicaria, então, o ―máximo perigo‖, dado que possui o ―poder‖ de acabar
com o pensar e com o mundo como Mundo do filosofar fundamental, aquele que,
eventualmente, poderia se abrir à questão do Ser. A técnica interpela, exige que o ente se
―apresente‖, que se coloque segundo o modo da utilidade e do cálculo, isto é, segundo a
perspectiva da impossibilidade do desocultar originário. A técnica, enquanto ―destinal‖ é, ao
mesmo tempo, o modo ―mais perigoso‖ do desvelamento, posto que exige e condena o ente na
sua totalidade a recortar-se sobre um determinado modo de apresentação e, portanto, um
modo de ser que inibe qualquer acesso à clareira do Ser.

Tão logo o que estiver descoberto não mais interessar ao homem como objeto, mas
exclusivamente como subsistência, e o homem no seio da falta de objeto apenas for
aquele que requer a subsistência, – o homem caminhará na margem mais externa do
precipício, a saber, caminhará para o lugar onde ele mesmo deverá apenas ser mais
tomado como subsistência. Entretanto, justamente este homem ameaçado se arroga
como a figura do dominador da terra (HEIDEGGER, 1997, p. 63).

10
Itálico no original, negrito nosso.
Duas perigosas leituras poderiam ser reivindicadas seguindo essa interpretação.
Uma primeira leitura poderia indicar que Heidegger estaria operando a partir de um
pressuposto implícito e arriscado: aquele que afirma a ―possibilidade de pensar a totalização
do Ser‖ e a homogeneidade de seu desocultamento. Com efeito, o vigor heideggeriano na
exposição dos perigos da técnica pareceria indicar que além do espaço por ela mesmo aberto,
nada de nobre ou de fundamental em relação ao homem poderá subsistir; isto é, com a
expressão ―domínio total e global da técnica‖, Heidegger estaria indicando um modo de
desocultamento que, por fim, haveria homogeneizado todo o existente sob uma única rubrica
ontológica. A técnica, então, seria assumida como o primeiro e único diagrama epocal de
desocultamento ontológico a conquistar a eliminação da pluralidade e da diferença. Caso
assim fosse, a hipótese do fim da filosofia e do pensar, efetivamente, se teria efetivado; nada
poderia ser feito para escapar dessa ruinosa situação derivada da proeminência inusitada e
brutal de um diagrama árido e impositivo. A técnica seria, de qualquer sorte, um verdadeiro e
derradeiro destino, não já a morada do Ser, mas o sarcófago do pensar. O mundo do Dasein
teria perdido a possibilidade de aceder à clareira (lichtung) fundamental; assim, o domínio
global da técnica deveria ser lido como metáfora da trágica clausura do pensar.

A armação impede o aparecer e imperar da verdade. O destino, que no requerer


manda (schickt), é, assim, o extremo perigo. A técnica não é o que há de perigoso.
Não existe uma técnica demoníaca, pelo contrário, existe o mistério da sua essência.
A essência da técnica, enquanto um destino do desabrigar, é o perigo. Agora, quem
sabe, a mudança de significado da palavra ―armação‖ torna-se um pouco mais
familiar para nós, quando a pensamos no sentido do destino e do perigo.
A ameaça dos homens não vem primeiramente das máquinas e aparelhos da técnica
cujo efeito pode causar a morte. A autêntica ameaça já atacou o homem em sua
essência. O domínio da armação ameaça com a possibilidade de que a entrada num
desabrigar mais originário possa estar impedida para o homem, como também o
homem poderá estar impedido de perceber o apelo de uma verdade mais originária
(HEIDEGGER, 1997, p. 65).

Ora bem, duas questões levantadas pelo próprio Heidegger nos permitem, com certa
tranquilidade, aliviar esta perspectiva finalista e, ao mesmo tempo, instaurar certa tensão na
reflexão; aquilo que aqui definimos como limite. Ambas as questões às quais apontamos são
colocadas sob o signo geral da letra de Hölderlin, citada pelo próprio Heidegger, a já famosa:
―Mas, onde há perigo, cresce também a salvação‖, (trecho do hino Patmos, segunda versão).
A primeira é mais clara e quase histórica; com efeito, não podemos esquecer que, para
Heidegger, os modos do desocultamento são plurais e variados, e que se ―sucedem‖, como já
antecipamos, sem relação causal. Não havendo uma relação causa-efeito não é possível
postular um caminho ou uma via central que conduza os destinos do desocultamento até um
ponto determinado ou até uma conclusão que simplesmente oblitera. Os modos epocais do
desocultamento ontológico não respondem a uma lógica histórica baseada, por sua vez, em
uma lógica teleológica dinamizada em um modelo causal. Assim, a dinâmica epocal é
pensada fora de qualquer processo teleológico que procuraria seu ponto final, seja este
majestoso ou patético. Portanto, a época da técnica não deve ser caracterizada como porto de
chegada nem como forma de acabamento ou completude de certo processo. Podemos
fundamentar melhor isso recordando o acima indicado, isto é, que o modo destinal não é, para
Heidegger, uma simples necessidade ou obrigatoriedade histórica baseada na preeminência do
presente como leitor do passado. Nesse sentido, esclarece Jaques Taminiaux: ―Por outras
palavras, graças a uma reapropriação transformada não apenas das noções aristotélicas de
poiesis e poinon como também da noção aristotélica de Theoria. É em função do tempo,
insiste a introdução ao curso sobre O Sofista [...]‖ (TAMINIAUX, 1995, p. 163). E, citando o
próprio Heidegger nos Cursos de Marburgo:

[...] O Ser é compreendido a partir do presente, ingenuamente a partir do fenômeno


do tempo no qual, todavia, o presente e apenas um modo. Questão: como é que o
presente tem esse privilégio? Não tem o passado e o futuro o mesmo direito? Não é
preciso compreender o Ser a partir do conjunto da temporalidade? (TAMINIAUX,
1995, p. 163).

Nesse sentido, a variedade de modos epocais, bem como sua não articulação
teleológica, se constitui, então, como tópicos heideggerianos nevrálgicos para escapar do
pressuposto da técnica como totalizante11. A aporia que nos parece subsistir nesse recorte e
que analisaremos adiante se organiza em torno do problema da existência de uma história
identitária do Ser em Heidegger.
Com relação à segunda questão que nos permitiria escapar de uma eventual leitura
finalista de Heidegger, sem dúvida a mais importante para nossa perspectiva de trabalho, a
mesma passa pela afirmação de que tanto os modos epocais do desocultamento quanto a
historia do esquecimento do Ser não são homogêneos; pelo contrario, eles carregam fendas e
dobras. Sendo assim, é pensar, sem trair exageradamente Heidegger, que nunca houve
homogeneização do Ser em seus modos de desocultamento. Por tal motivo, tampouco o

11
E, no entanto, nos resta ainda o acaso, caso Heidegger nos permita esse modo de expressão; com efeito, dito
todo o anterior, ainda poderíamos pensar que, não por determinação de um processo causal, mas por puro acaso,
chegamos a um fim. De qualquer modo, a técnica, em virtude de seu modo totalizante de desabrigar sempre seria
um fim, nosso fim enquanto filósofos, enquanto tradição, o como historia da metafísica, mas um fim
reconhecível de modo singular sobre outros desaparecimentos epocais. Deixamos esta questão de lado neste
ensaio; sua análise nos remitiria a outros textos de Heidegger que não encontram seu lugar no presente recorte.
desabrigar técnico, isto é, o ―domínio‖ da técnica contemporânea, comporta uma abrangência
―planetária ou totalizante‖ em termos ontológicos.

Se a essência da técnica, a armação, é o estremo perigo e se a palavra de Hölderlin


diz ao mesmo tempo algo de verdadeiro, então o domínio da armação não pode se
esgotar em apenas obstruir todo brilhar de cada desabrigar e todo aparecer de
verdade. Então, a essência da técnica deve antes justamente abrigar em si o
crescimento daquilo que salva.
Assim, a essencialização da técnica abriga em si o que menos poderíamos supor, o
possível emergir da salvação (HEIDEGGER, 1997, p. 82).

Há — ou poderia haver — mundo, no sentido de abertura mundificante, fora de certo


modo proeminente de desocultamento, bem como certa interioridade diferenciada. Portanto,
seria possível dizer, com mais precisão, que quando Heidegger fala de modos de
desocultamento do Ser em termos gerais, e de modo técnico em particular, não está
pressupondo a absoluta e total presença deste modo no mundo. Não se trata de uma camada
ontológica homogênea e completa que deixaria os entes aparecerem sob uma perspectiva
unificada. Trata-se, na realidade, de uma preponderância ou proeminência de um modo de
aparecimento das coisas sob a luz do desocultar-se do Ser, mas não de uma tipologia geral e
universal. Os modos epocais sempre comportaram fissuras e diferenças que não são da mesma
natureza do desocultamento preponderante.
Tudo isso nos coloca perante um problema que deve ser resolvido desde outra
perspectiva, dado que, como consequência dessas máscaras de oxigênio que Heidegger nos
coloca, se cria uma tensão entre o máximo perigo anunciado e a não menos anunciada
possibilidade da salvação. A questão é que ainda devemos pensar em termos de salvação.
―‗Salvar‘, porém, diz mais. ‗Salvar‘ é: recolher na essência para assim primeiramente trazer a
essência a seu autêntico aparecer‖ (HEIDEGGER, 1997, p. 82). Perigo e salvação andam
ombro com ombro no modo de desocultar técnico. Como isso é possível sem um plano de
fundo que possibilite essa coparticipação?
Sabemos que não existe na reflexão heideggeriana uma história teleológica baseada
em relações causais, isto é, uma historiografia. No entanto, uma forma de historicidade é
delineada com passos firmes por Heidegger, alguma coisa de historiografia parece subsistir no
espírito do grande professor alemão; referimos-nos àquela que se cifre na expressão ―história
do esquecimento do Ser‖, da qual a época da técnica seria o último e mais radical estágio. É
bem conhecido que para Heidegger a história da filosofia pós-socrática se confunde com a
história da metafísica, e esta, por sua vez, com a história do esquecimento do Ser. Ora, como
Heidegger chega a esta constatação especulativa? Por outro lado, quais são os pressupostos
que trabalham nesta verificação heideggeriana?
A questão central é aquela que gira em torno da ―decisão‖ de Heidegger de traçar uma
história que procure o idêntico no horizonte da diferença, e não vice-versa. Com efeito, expor
a história do esquecimento do Ser implica procurar, na vastidão do pensar, aquilo que há de
idêntico, que se impõe como mesmidade; procurar na sutileza da vida e da filosofia aquilo que
se repete como norma ou padrão. Indicamos anteriormente que o próprio Heidegger nos
permitia pensar na não homogeneidade dos modos de desocultamento, que os diagramas
epocais comportam fendas e complexidades intrínsecas. Apesar dessa possibilidade
especulativa, Heidegger prefere elaborar a história do comum, daquilo que insiste e se repete
como idêntico, ou seja, do esquecimento do Ser, em lugar de desenhar o mapa dos lugares
onde o pensar permitiu o surgimento da diferença, do excêntrico com relação ao modo geral
do esquecimento. Heidegger nos expõe como, historicamente, é possível pensar, e mostrar,
que o Ser foi esquecido, mas não nos apresenta os momentos ou as circunstâncias em que esse
esquecimento generalizado foi ludibriado pelo diferente, por alguma forma de clinâmen. O
pensador alemão insiste em marcar o que de idêntico acontece na história do pensar, mas com
esse gesto deixa escapar os momentos que poderiam ser utilizados como o mais íntimo motor
da reflexão filosófica. Parece como si na história identitária elaborada por Heidegger, a fenda
que permite abrir o pensar é subestimada. O que acontece é que eu não quero afirmar
taxativamente que isso acontece com Heidegger. Eu quis dizer que ―da toda a impressão que
...‖. Senta-se a vontade para corrigir como você considere melhor. (Esclareço que sou
argentino, então, as vezes cometa erros de estilo). O pensador da diferença mais radical, a
diferença ontológica, parece ―esquecer‖ a diferença quando ela irrompe no horizonte do
pensamento; mas, o próprio ―salto atrás‖ que Heidegger propõe como modo de abrir o espaço
para o pensamento, não é já uma das expressões da diferença? Acreditamos que sim. Por isso
insistimos na sua importância, e na falta de reivindicação ontológica por parte de Heidegger.
Assim, não há em Heidegger teleologia, nem unicidade nas formas de desocultamento;
mas, por outro lado, há uma tentativa rigorosa de expor uma linhagem baseada na identidade,
e não uma carta de navegação pensada a partir da diferença.
Esse limite merece ser abordado, verificado e, eventualmente, pensado.

Considerações finais
Como consequência da reflexão heideggeriana sobre a técnica, torna-se imperioso
reconhecer que esta não se resume a seu corpus fenomenológico, nem a seu aparecimento
ôntico nos diversos dispositivos e apetrechos manufaturados; por outro lado, suas forças não
se esgotam em um ―esgotamento‖ generalizado do pensar.
Assim, coloquemos mais uma questão: que sucederia se a técnica nada acabasse, nem
nada impossibilitasse, mas, pelo contrário, permitisse a emergência fática e dinâmica de um
modo de ser que, em lugar de representar o máximo perigo, nos exigisse pensar desde outro
horizonte sua própria chave ontológica?
Acreditamos, justamente, que esta é a perspectiva mais pertinente para pensar a
questão da técnica, isto é, não observar aquilo que ela clausura, mas aquilo que ela abre. Nada
se fecha necessariamente, pelo contrário, a técnica também ―produz‖.
Assim, sob esse paradigma, a própria Técnica poderia criar a ―condição de
possibilidade‖ para a salvação do ―pensar fundamental‖ sob outro signo e sob outros modos
de desocultamento, diríamos, continuando com a terminologia heideggeriana. Na própria
Técnica se engendraria o modo de escapar da Técnica como fechamento. Não nos referimos
somente ao fato perfeitamente visível da superprodução que surge do técnico, mas também, e
em especial Esta frase está mal colocada, (algum copiar-colar errado). Pode tirar.
A salvação não cresce do perigo, cresce ―onde há perigo‖; cresce quando, no seio do
atroz, se abre um espaço. Esse espaço foi nomeado de vários modos: o salto atrás, a reserva, o
incontornável como inacessível, a fenda, a dobra ontológica; trata-se de alguns dos vastos
nomes da Diferença.
Enfim, talvez seja necessário verificar com mais demora e cuidado, no permitido pelas
margens deste trabalho, quais são as implicações de uma eventual regência de uma forma de
identidade no seio da ontologia fundamental e quais poderiam ser as consequências para o
pensamento da técnica dessa pegada identitária.
Por essa via poderíamos extrair as maiores e mais férteis consequências daquilo que o
próprio Heidegger manifestou explicitamente quando postulou que a Técnica poderia
engendrar sua própria superação, ou até a salvação do pensar. Nas afirmações sobre a
capacidade criadora do modo técnico, e não só sobre sua capacidade destruidora, Heidegger
deixa entrever, implicitamente, essa possibilidade, dado que, na verdade, é a história da
Metafísica que está em jogo. Assim, a Técnica seria para o horizonte metafísico, seu ponto
mais desenvolvido, bem como seu pomposo final. Desse modo, devemos lembrar que: ―[...]
poeticamente habita o homem sobre esta terra‖. E, por esse motivo, nos diz o filósofo,
citando o poeta e não mais à filosofia: ―Mas, onde há perigo, cresce, também, a salvação‖.
(HEIDEGGER, 1997, p. 91, grifo do autor).

Referências

BRÜSEKE, F. J. A técnica e os riscos da modernidade. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.


HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Cadernos de Tradução, n. 2, p. 40-93, 1997.
MITCHAM, C. Qué es la filosofía de la tecnología? Trad. César Cuello Nieto. Barcelona:
Anthropos, 1989.
ORTEGA y GASSET, J. Meditação sobre a técnica. Trad. José Francisco P. de Almeida
Oliveira. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991.
TAMINIAUX, J. Leituras da ontologia fundamental. Trad. João Carlos Paz. Lisboa:
Instituto Piaget, 1995.

Recebido: 12/11/2012
Received: 11/12/2012

Aprovado: 20/02/2013
Approved: 02/20/2013

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