Rumi A Paixão Pela Unidade PDF
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20-41
ISSN 1677-1222
Resumo
Na rica tradição mística do islã, Rûmî tem despontado como uma de suas figuras mais
luminosas. Como místico, revelou com grande intensidade poética os temas do amor e da
unidade do ser humano com o mistério sempre maior de Deus. O objetivo deste artigo é
situá-lo na tradição do sufismo e apresentar, de forma sintética, alguns traços de sua
reflexão mística: a paixão pela unidade, o trajeto para a unidade, a evidência de Deus e a
religião do amor.
Abstract
In the rich Islamic mystical tradition, Rûmî is one of the most luminous figures. He is one of
the mystics who revealed with great poetical intensity the themes of love and of the unity of
the human being with the always greater mystery of God. The aim of this article is to situate
him in the Sufi tradition and synthetically to introduce some traces of his mystical thought: the
passion for unity, the trajectory to unity, the evidence of God and the religion of love.
1. Introdução
O grande interesse suscitado pelo diálogo inter-religioso nos tempos atuais tem favorecido o
processo de aproximação teórico e existencial de tradições religiosas distintas e de suas
experiências místicas. Impõe-se com cada vez maior clareza a necessidade deste contato
mais estreito, desta abertura à alteridade, como requisitos essenciais para uma justa
avaliação das outras tradições religiosas. Verifica-se, igualmente, que um dos campos mais
ricos e promissores do diálogo ocorre no âmbito da experiência mística, onde, em um nível
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2. A marca do Sufismo
O Sufismo é o nome mais recorrente para designar a experiência mística do Islã, traduzindo
uma “dimensão interior” muitas vezes desconhecida ou desapercebida da tradição islâmica.
O termo Sufismo, tradução de tasawwuf, deriva-se da raíz suf, que em árabe significa lã. De
fato, na experiência primordial do sufismo, os primeiros ascetas revestiam-se com o hábito
de lã, de modo semelhante aos eremitas cristãos, em sinal de penitência e destacamento do
mundo2. A idéia que predomina é a da “pureza”(safa), sendo o sufi aquele “puro de coração”
1 Eva de VITRAY-MEYEROVITCH. Islã, l´autre visage. Paris: Albin Michel, 1995, p. 69-70. A autora sublinha a
presença de inúmeros pontos comuns entre Rûmî e São Francisco de Assis, que morreu quando Rûmî tinha 19
anos. Ver também: Id. Rûmî e o sufismo. São Paulo: ECE, 1990, p. 23 e 54-57; José Jorge de CARVALHO. O
encontro de novas e velhas religiões. In: Alberto MOREIRA & Renée ZICMAN (Orgs.). Misticismo e novas
religiões. Petrópolis: Vozes/USF/IFAN, 1994, p. 92.
2 Reynold Alleyne NICHOLSON. Poetas y místicos del Islã. Madrid: Arkano Books, 1999, p. 16-17; A.J.
ARBERY. Introduzione alla mistica dell´Islam. Genova: Marietti, 1986, p. 28; Annemarie SCHIMMEL. Le
soufisme ou les dimensions mystiques de l´Islam. Paris: Cerf, 1996, p. 30 e ss. Essa obra foi recentemente
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traduzida para o espanhol. Id. Las dimensiones místicas del Islam. Madrid: Trotta, 2002.
3 G.C. ANAWATI & Louis GARDET. Mystique musulmane: aspects et tendances - expériences et techniques. 4
ed. Paris: J.Vrin, 1986, p. 13.
4 Djalâl od-Dîn RÛMÎ. Masnavi. São Paulo: Dervish, 1992, p. 155-156. Trata-se da tradução brasileira da edição
inglesa sintética de E.H. Whinfield. Para a tradução integral cf. Djalâl od-Dîn Rûmî. Mathnawi: la quete de l
´Absolu. Paris: Rocher, 1990 (tradução de Eva de Vitray-Meyerovitch e Djamchid Mortazavi). Na edição francesa
a parábola do elefante encontra-se no livro III, 1259-1267. Outra famosa tradução do Masnavi foi feita por
R.A.Nicholson, em 1925. Trata-se de uma clássica e exata tradução, mas que não difere muito da tradução aqui
utilizada (de Meyerovitch). No presente ensaio, utilizar-se-á sobretudo a tradução francesa, enriquecida em
alguns casos com a tradução brasileira. Para efeito de precisão, as citações virão no próprio texto com o cógico
M (de Masnavi), seguida do número do livro em romanos e dos parágrafos em árabico. Infelizmente a tradução
brasileira não numerou os parágrafos, o que dificulta o trabalho do pesquisador.
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Nos três primeiros séculos do Islã, que se iniciam a partir da Hégira (ano 622), a experiência
mística sufi será caracterizada pela doutrina ascética, como a renúncia do mundo (zuhd),
passando para a afirmação do tema do amor gratuito a Deus (hubb), até chegar ao
amadurecimento espiritual com a ênfase no tema do conhecimento de Deus (ma´rifa). Deste
primeiro período podem ser mencionados alguns nomes importantes, como Hasan al Basri
(643-728), Rabi´a al-Adawiyya (+ 801), Dhu´n-Nun (+ 859), Abu Yazid Bistami (+ 874), Abu-l-
Qasim al-Junayd (+ 911) e Abu Mansur Ibn Husayn al-Hallaj (857-922). Nos séculos IV e V
da Hégira, que correspondem aos séculos X e XI d.C., ocorrerá uma mudança importante na
história do Sufismo, depois das tensões com a ortodoxia vigente no período anterior, que
resultaram no martírio de al-Hallaj. No novo momento vai haver um importante processo de
justificação da existência do Sufismo no contexto da sociedade islâmica, representado
sobretudo pela presença de Abu Hamid al-Ghazzali (+ 1111). Trata-se do período de
organização e consolidação do Sufismo. Entre os séculos XII e XIV d.C., o movimento
conhecerá a irradiação de obras fundamentais nos campos da filosofia, literatura e poesia. É
nesse contexto que vai ganhar vida a riqueza da poesia mística persa, da qual o grande
expoente será Djalâl-od-Din Rûmî (1207-1273)7.
5 Veja por exemplo Reynold Alleyne NICHOLSON. Poetas y místicos del Islam. Op.cit., p. 21-34; Annemarie
SCHIMMEL. Le soufisme ou les dimensions mystiques de l´Islam. Op.cit., p. 24-27.
6 Louis MASSIGNON. Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane. Paris: Cerf, 1999,
p. 104. Assim como do Corão procedem as alegorias típicas da mística muçulmana: ibidem, p. 108-109; G.-C.
ANAWATI & L.GARDET. Mystique musulmane. Op.cit., p. 77; Marijan MOLÉ. I mistici musulmani. Milano:
Adelphi, 1992, p. 143; Juan Martín VELASCO. El fenómeno místico: estudio comparado. Madrid: Trotta, 1999, p.
235 e 242.
7 Para um histórico do Sufismo nos períodos assinalados, cf. Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme... Op.cit., p.
41-130, 323-422.
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Apesar de sua profunda ligação corânica, os místicos sufis encontraram em sua trajetória
uma viva oposição da ortodoxia islâmica, que resistiu ao singular sentido alegórico atribuído
pelos sufis aos ritos e cerimônias tradicionais, bem como à sua peculiar interpretação do
Corão. A tensão entre esoterismo e exoterismo não é exclusiva da tradição sufi, mas comum
às diversas tradições religiosas. Há, sempre, a presença de dificuldades, tensões e mesmo
conflitos abertos entre os guardiães da religião oficial, que se pretendem portadores da
exclusiva gramática das normas, dogmas e práticas consideradas legítimas, e aqueles que
buscam a dinâmica de uma religião interior, que não se detém diante das diferenças, na
busca do mistério sempre maior de Deus8. Esta é uma estranha aporia presente na trajetória
histórica do Sufismo: aqueles que mais amam atraem para si o rancor e o ódio dos
exotéricos. Como sublinha Rûmî, muitos dos hipócritas que se refugiam na forma exterior
são os que, antes, “derramaram o sangue de cem verdadeiros crentes em segredo” (MIV,
2177).
A descoberta de um sentido religioso novo, que aciona alegria no coração, suscita uma
dinâmica de liberdade na experiência religiosa, que se destaca do aspecto puramente
exterior da religião, provocando a oposição dos segmentos mais oficiais, dos teólogos e dos
juristas. Isto não significa que os místicos sufis deixassem de observar as fórmulas externas
do culto, mas a intensidade de sua experiência exigia algo mais. Para eles, a observância
ritual devia ser acompanhada de um correspondente “movimento do coração” - caso
contrário, perderia o seu sentido mais profundo.
3. Rûmî e o Sufismo
Não há místico sufi tão conhecido no Ocidente como Djalâl-od-Din Rûmî. Na visão de Erich
Fromm, Rûmî foi “um dos maiores humanistas e místicos muçulmanos”, antecipando em
duzentos anos traços essenciais do humanismo renascentista, como as idéias da tolerância
religiosa e da força criativa fundamental do amor9. São inúmeras as traduções de suas obras
para as línguas ocidentais, sendo sobretudo seus poemas místicos apreciados e
8 Juan Martín VELASCO. El fenómeno místico. Op.cit., p. 243-244. Ver também: G.-C. ANAWATI & L.GARDET.
Mystique musulmane. Op.cit., p. 77-78 e Reynold Alleyne NICHOLSON. Poetas y místicos del Islam. Op.cit., p.
84.
9 Eric FROMM. Prefácio. In: A. Reza ARASTEH. Rumi, el persa, el sufi. Barcelona: Paidos Orientalia, 1977, p.
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Rûmî nasceu no ano de 1207 na província de Balkh, berço da civilização persa. De seu pai,
Baha´uddin Walad, um conhecido teólogo e mestre espiritual, herdou o interesse pelas
questões teológicas e místicas. Em razão do temor da ameça mongol, das hordas de Gengis
Khan, a família de Rûmî partiu, entre os anos 1215 e 1228, para uma série de viagens,
começando pela peregrinação a Meca e Medina e fixando-se temporariamente em Aleppo,
na Síria ou Damasco. Em 1228 chegaram à Anatólia Central, radicando-se finalmente em
Konya. No tempo de Rûmî, Kônia era refúgio de inúmeros literatos, artistas e místicos do
mundo islâmico oriental. Era conhecida não apenas por sua grande beleza, mas pela
admirável tolerância reinante. Tratava-se de um dos raros lugares seguros e protegidos
contra a devastação mongol.
Do primeiro casamento, com Gevher Hatun, ocorrido quando tinha 18 anos, Rûmî teve seu
primeiro filho, Sultâm Walad, nascido em 1226. Ele será um dos seus importantes
biógrafos12. Alguns anos após a morte de sua primeira esposa, Rûmî contraiu matrimônio
com Kirâ Khâtûn, de família cristã, com a qual terá mais dois filhos. Após a morte de seu pai,
ocorrida em 1231, Rûmî passou a conviver com Burhanud-Din Mahaqiq, antigo discípulo de
Walad, com o qual passou a aprender durante uma década os mistérios do conhecimento
místico. Após a partida de seu mestre, Rûmî “já havia alcançado o respeito e a admiração
dos buscadores espirituais da rica capital dos Seljúcidas. Aos 37 anos, Rûmî já se tornara
mestre, versado em filosofia, poesia clássica, teologia, jurisprudência e moral. Possuidor de
uma reputação consolidada, centenas de discípulos seguiam-no. Enfim, Rûmî tornara-se o
11 Durán KHÁLID. Afghanistan. In: Werner ENDE & Udo STEINBACH (Eds). L´Islam oggi. Bologna: EDB, 1991,
p. 358-374.
12 Sultan VALAD. La parole secrete. L´enseignement du maître soufi Rûmî. Paris: Le Rocher, 1988.
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O decisivo acontecimento espiritual em sua vida foi, porém, o encontro com o velho nativo
Shams ud-Din de Tabriz, no ano de 1244. O encontro de Rûmî com o dervixe errante, que
tinha cerca de 60 anos, provocou a grande transformação em sua vida. Há inúmeras versões
sobre o encontro destes “dois oceanos espirituais”, e todas elas indicam a experiência de
estupefação mútua que fez brotar uma das mais espetaculares e ricas histórias de união
mística. Segundo José Jorge de Carvalho, esta profunda união entre dois indivíduos é
singular e única, “algo extremamente raro, em que duas pessoas conseguiram penetrar as
esferas recôndidas da realidade extra-sensorial e extra-racional, e ver juntos a mesma
dimensão, o mesmo espaço, a mesma fração da verdade absoluta”14. Da inspiração desse
encontro nasceu uma das obras mais vastas e impressionantes de poesia mística, as
famosas odes místicas de Rûmî, o Divan de Shams de Tabriz, inteiramente consagrado à
experiência do amor, que, para além de sua manifestação terrestre, expressa a hipostase do
amor divino.
Na construção de sua vasta obra em poesia e prosa, Rûmî sofreu uma gama variada de
influências, das quais o grande referencial permanece sendo o Corão e a tradição do profeta
Mohammed (Maomé). Os biógrafos do místico assinalam também o influxo de outros
místicos sufis importantes como Bistami, Dhu´n-Nun, Ibn ´Arabi e al-Hallaj. Ao lado da
tradição islâmica pode-se ainda assinalar influências neo-platônicas e da tradição grega-
cristã capadócia. A principal obra de Rûmî, o Masnavi, constitui uma feliz conjunção de
poesia mística e tratado teológico-filosófico. Esta monumental obra, também denominada
“Corão em lingua persa”, está divivida em seis livros, contendo cinquenta e um mil versos
(25.630 dísticos)15. O seu tesouro principal, como lembra Mevlana, é o despojamento e a
unidade (MVI, 1525 e 1528). Há, também, um importante tratado em prosa, denominado
Fihi-ma-fihi, que pode ser literalmente traduzido por “nisso está o que aqui está”. Neste “livro
13 José Jorge de CARVALHO. Introdução. In: Jalal ud-Din RÛMÎ. Poemas místicos. São Paulo: Attar, 1996, p.
13.
14 Ibidem, p. 26. Segundo Meyerovitch, a presença de Shams revela para Rûmî “une ouverture sur une autre
dimension, un dévoilement, l´enivrement de l´amour divin, au-delà de toute logique discursive”: Introduction.
Mathnawî. Op.cit., p. 29.
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do interior”, Rûmî exerce a função de mestre espiritual, com ensinamentos precisos visando
a compreensão de seu pensamento16. Quanto à obra lírica, já se mencionou suas odes
místicas (Divan de Shams de Tabriz)17. Pode-se também elencar suas famosas quadras de
amor, Rubâ´yât18, e suas cartas19.
17 Mawlana Djalâl od-Din RÛMÎ. Odes mystiques (Dîvân-e Shams-E Tabrîzî). Paris: Klincksieck, 1973; Jalal ud-
Din RÛMÎ. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabris. Op.cit.; Marco LUCCHESI. A sombra do Amado.
Poemas de Rûmî. Rio de Janeiro: Fisus, 2000.
21 Ibidem, p. 15.
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pode haver senão Deus sob o manto do dervixe. Deus em sua Unidade é o tesouro
escondido, mais perto do humano do que sua própria veia jugular. Mais próximo do humano
que o vínculo que o une à sua própria alma. Os amantes são como falenas queimadas na
tocha da face do Amado (MII, 2575). Onde quer que Ele acenda sua flama, “miríades de
almas amorosas são queimadas” (MII, 2574).
Esta idéia foi anteriormente sistematizada na tradição islâmica por Ibn´Arabi (sec. XII d.C).
Com a doutrina da wahdat al wujûd, Ibn´Arabi busca assinalar a Realidade como essência
de tudo. O “Ser Absoluto” (al wujûd al-mutlaq) é, para ele, a essência de tudo o que existe. O
ser de Deus é único em seu princípio e múltiplo em sua forma de manifestação. A Realidade
é simultaneamente una e fonte de toda existência limitada, que é sempre existência
derivada. Para Ibn´Arabi, Deus é sempre a Unidade que está por trás da multiplicidade e das
aparências23.
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Não é simples o itinerário que leva o sujeito ao encontro do Amado. Como mostra Rûmî, o
Amado está sempre disponível e presente, ao alcance de uma acolhida. O amante jamais
busca o Amado sem ser antes buscado por ele. O que ocorre, porém, é que nem sempre o
sujeito encontra-se preparado e disponível para abraçá-lo. Há entre ele e o Amado o elo
limitador do “eu”. Para Rûmi, enquanto o ser humano não destrói o seu “eu”, não consegue
ser verdadeiramente um amigo de Deus. Para ilustrar esta idéia, ele desenvolve uma
singular história no Masnavi, onde relata o encontro de um homem que bate à porta de um
amigo. Ao ouvir o toque da batida, o amigo interroga: “Quem és tu, ó homem fiel?”. Em
resposta ele diz: “Sou eu”. O amigo o rechaça, justificando que não é dado o momento de
entrar, pois não há lugar na casa para aquele que não passou pelo fogo da experiência.
Desolado, o homem parte e, durante um ano de viagens e separação, sente o calor de um
coração ardente, que passou pela chama da consumação. Ao retornar para a casa do
amigo, bate à sua porta, com receio, respeito e temor de que uma palavra descuidada
pudesse escapar de seus lábios. Ao bater, o amigo indaga: “Quem está à minha porta?”. Ele
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responde: “És tu que estás à porta, ó sedutor de corações”. O amigo então disse: “Já que
sou eu, que eu entre; não há lugar para dois “eus” nesta casa” (MI, 3056-3063).
Seguindo uma lógica presente na tradição islâmica, Rûmî assinala que é necessário “morrer
antes de morrer” (M IV, 2271,2272 e 1372). Trata-se de condição fundamental para o
renascimento do ser espiritual (M V, 551)25. Não há como se achegar ao Bem Amado, senão
renunciando à própria vida. É o que diz Rûmî em diversos momentos de sua obra: “O
amoroso busca ardentemene o bem amado: quando o bem amado vem, o amoroso se vai”
(M III, 4620)26. A presença do Amado é como a chama do amor que, quando se eleva,
consome tudo o que não é o Bem Amado (M V, 588). Nada resta senão Deus. O destino do
amante é morrer para si mesmo: dele só permanece o nome (M V, 2023)27. “Diante de Deus,
não pode haver dois “Eu”. Tu dizes “Eu” e Ele diz “Eu”; ou bem tu morres diante d´Ele ou
então Ele que morre diante de ti, para que toda a dualidade desapareça. Mas Ele não pode
morrer nem objetivamente, nem subjetivamente. Pois, Ele é o ser vivo que não morre
jamais.”28
O morrer antes de morrer corresponde para Rûmî à morte mística, que deve anteceder à
morte física. Trata-se da morte do “pequeno eu”29. Este estado de aniquilação do eu e sua
absorção no Amado é o ideal místico de fanâ (MI, 3054). Esta absorção no Amado faz com
25 No famoso clássico de Nizami sobre Laila & Majnun, originalmente registrado em versos no século XII, há
uma passagem que diz: “Mas se você 'morre' antes de morrer, voltando as costas para o mundo e para a face
de Jano, você irá alcançar a salvação suprema da vida eterna”: NIZAMI. Laila & Majun. A clássica história de
amor da literatura persa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 110.
26 Idéia retomada em outra passagem: “Tel est celui qui cherche la Cour de Dieu: quand Dieu arrive, le
chercheur est annihilé” (MFIII, 4658). Ou também: “Quando Deus aparece a seu ardente amante, o amante é n
´Ele absorvido, e não lhe resta nem um fio de cabelo”: MIII, tradução brasileira, p. 194.
27 “De mon existence ne demeure en moi rien que le nom; en mon être il n´y a que toi, ó toi dont les désirs sont
exaucés” (MF V, 2023). “È tempo d´amore: l´Amato, come il sangue nelle vene e nella pelle, scorre in me. Di me
non resta più che un nome, tutto il resto è lui”: RÛMÎ. Canzone d´amore per Dio – Rubâi´yât. Torino: Piero
Gribaudi, 1991, p. 83. “De la sorte, je suis devenu anéanti comme le vinagre, en toi que es un océan de miel”
(MF V, 2024).
29 Para Nicholson, este morrer antes de morrer traduz uma transmutação do homem interior. Não significa,
como indica, a destruição da natureza inferior, mas sua purificação de seus atributos negativos: “são estes
atributos a ignorância, o orgulho, a inveja, a falta de caridade, os quais devem ser extinguidos e transmutados
nas qualidades opostas, quando a vontade se entrega a Deus e quando o pensamento se concentra em Deus.
'Morrer para si' significa realmente 'viver em Deus'”: Reynold Alleyne NICHOLSON. Poetas y místicos del Islam.
Op.cit., p. 45.
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que a condição efêmera do ser humano transforme-se em realidade eterna, que não morre
jamais. Rûmî serve-se do exemplo da fragilidade da gota d´água, sempre ameaçada pela
impetuosidade do vento e da terra. Ela só se protege do risco de sua dispersão quando é
lançada no mar, que é a sua fonte. No mar, ela está protegida do calor do sol, do vento e da
terra. No mar, sua forma exterior desaparece, mas sua essência permanece inalterada (M
IV, 2615-2618). Para que se dê o acesso ao coração purificado, que possibilita esta
experiência de despojamento radical, é necessário, segundo Rûmî, captar o sentido
espiritual, uma razão iluminada pela luz divina. Não há outro caminho possível para se
alcançar a iluminação, a inspiração divina e a visão mística.
30 Para Rûmî, o conhecimento que vem adquirido pelos sentidos e não pela experiência mística é um
conhecimento fragilizado e temporário, como a maquiagem das damas (MFI, 3447-3449). Ver também MFI,
3278-3280; MFI, 3902; MFII, 2327.
31 Seria aqui importante sublinhar o que diferencia o conhecimento exotérico do conhecimento esotérico.
Conforme Pablo Benito, “enquanto o exotérico segue somente a rota conhecida, traçada no mapa, o iniciado
explora além disso a dimensão da experiência interna e, em sua peregrinação pela senda do conhecimento,
rastreia os atalhos da inspiração, seguindo os indícios que encontra em seu passo, sem se deter mais do que o
necessário nas sucessivas pousadas e paisagens que, como degraus de sua ascensão, vai deixando para trás”:
Pablo BENEITO ARIAS. A linguagem das alusões no sufismo segundo Ibn´Arabi de Múrcia. In: Faustino
TEIXEIRA (Org.). No limiar do mistério: mística e religiões. São Paulo: Paulinas (prelo).
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De acordo com a visão de Rûmî, o conhecimento de Deus não é obtido pelo intelecto ou
pelo conhecimento discursivo (ilm), mas unicamente pela iluminação divina. E o órgão
essencial que faculta esta acolhida é o coração (qalb). Não o órgão de carne e sangue, mas
o órgão espiritual e sutil da percepção mística. Na tradição sufi, o coração é o “receptáculo
cristalalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus: a inesgotável,
infinita manifestação da Divindade na morada da união”32. Em linha de continuidade com
esta tradição, Rûmî indica que “na gota de sangue do coração encontra-se o dom de uma
jóia que Deus não destinou nem aos mares nem aos céus” (MI, 1017). O coração é “o lugar
onde se alçam os raios da lua e a abertura das portas (da Realidade) para o místico” (MII,
165). O coração físico, purificado e iluminado pelo amor, deixa de ser um simples órgão de
carne e sangue para transformar-se em órgão espiritual que percebe o invisível. Assim como
o coração é a luz que confere brilho ao olhar, é a luz de Deus que confere brilho ao coração
(MI, 1126-1127).
32 Luce LÓPEZ-BARALT. Estudio introductorio. In: Abu-l-Hasan AL-NURI DE BAGDAD. Moradas de los
corazones. Madrid: Trotta, 1999, p. 36. Ver também: Yalal-ud-Dîn RÛMÎ. Mística y poesía en el Islam, p. 33, 36 e
84; Reynold Alleyne NICHOLSON. Poetas y místico... Op.cit., p. 67-68. Como indica Rûmî, Deus faculta a cada
instante um desejo diferente ao coração, e a cada instante um incêndio (brûlure) diferente (MFIII, 1639); a cada
instante uma revelação nos recônditos mais secretos da alma: RÛMÎ. Odes Mystiques. Op.cit., p. 39. E também:
MFI, 3485 (as inumeráveis imagens que recebe o coração). Ver ainda. Luce LÓPEZ-BARALT. Asedios a lo
indecible. Madrid: Trotta, 1998, p. 77-79.
33 Para Rûmî, o pir é o guia sábio, o homem santo, que protege os buscadores contra os riscos e desvios da
caminhada em direção ao Amado. É o mergulhador que auxilia a penetrar no horizonte inusitado do doador do
segredo: MFII 167-175; MFII, 1934 MFI, 2942-2943; MFV, 1063.
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sua face. Fosse ele purificado de toda ferrugem e mácula, refletiria o brilho do Sol de Deus”.
(MP, 19 e MI 34)
Para ilustrar esta idéia, Rûmi desenvolve a história da discussão entre os artistas bizantinos
e chineses a propósito da arte da pintura (M I, 3467s). Os dois grupos de artistas discutiam
diante do Sultão sobre seus pendores particulares. Os chineses, de um lado, gabavam-se de
serem os melhores artistas. Por sua vez, os bizantinos diziam ser portadores da perfeição.
Para decidir a disputa, o Sultão destinou dois cômodos de uma casa para serem pintados
por cada um. Os dois cômodos estavam um diante do outro. Os chineses dedicaram-se com
todo esforço e habilidade na arte de colorir a sua sala. Ao contrário dos chineses, os
bizantinos recusaram todas as tintas, e optaram por limpar da melhor forma possível o seu
cômodo, retirando dele toda a sujeira e ferrugem. As paredes tornaram-se puras e limpas
como o céu. Uma vez terminado o trabalho, os dois grupos sujeitaram-se à inspeção do
Sultão. A sala dos bizantinos ganhou o prêmio. Estava tão profundamente polida que ela
refletiu em suas paredes todas as cores da outra sala, com uma infindável variedade de tons
e matizes. Rûmî serviu-se desta história para ilustrar a importância da purificação de todos
os atributos do eu que impedem captar a essência brilhante do próprio sujeito. Os bizantinos
são, para Rûmî, como os sufis, que se purificam de todos os desejos. A pureza do espelho
polido é como o coração que recebe inumeráveis imagens (MI, 3485). Segundo Rûmî,
aqueles que poliram o seu coração escaparam dos perfumes e cores, vindo a contemplar
sem cessar a Beleza a cada instante (MI, 3492). É este trabalho que, segundo Rûmî,
favorece o auto-esvaziamento místico e a pobreza espiritual (MI, 3497).
Segundo Rûmî, a estação34 mais importante no caminho místico e no trajeto para a Unidade
é a pobreza (faqr). Não necessariamente a pobreza de um mendicante ordinário, mas
sobretudo o estado no qual o sujeito vive a experiência radical de estar absolutamente pobre
diante do Criador ou, como diz o Corão, “pobre de Deus” (35,15)35. Um dos personagens que
aparece no Masnavi de Rûmî, e que serve para marcar esta centralidade da pobreza, é
Ayás, o favorito do célebre rei Mahmud de Ghazni. Tendo sido escolhido pelo rei, causou
inveja aos outros cortesãos. Estes, no intuito de desclassificá-lo , denunciaram ao rei o
34 Há no sufismo uma distinção entre estações (maqamat) e estados espirituais (ahwal). As estações são fruto
do esforço humano enquanto os estados são dons de Deus.
35 Annemarie SCHIMMEL. L´incendie de l´âme. L´aventure spirituelle de Rûmî. Paris: Albin Michel, 1998, p. 184
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estranho hábito que Ayas mantinha de retirar-se numa câmara secreta e ali trancar-se.
Suspeitavam que guardasse ali moedas roubadas do tesouro, ou vinho e bebidas proibidas.
Na realidade, o que Ayás guardava no cômodo que visitava todos os dias eram seus velhos
sapatos e sua roupa rasgada, que costumava usar antes das honras recebidas. Era a forma
que encontrava para recordar permanentemente sua origem humilde e evitar o perigoso
orgulho, seguindo a pista dada no Corão, de que o ser humano deve considerar o material
de que foi criado (86,5). Com essa história Rûmî queria lembrar aos discípulos que a
semente de onde procederam é a da própria sandália, do sangue e da veste de lã, sendo
todo o resto um dom de Deus (MV, 2115)36.
5. A evidência de Deus
Em toda a obra de Rûmî perpassa a imagem do Deus misericordioso e omnicompassivo (Al-
Rahman), de absoluta proximidade (tashbih). Deus, para os muçulmanos, se manifesta sob
dois aspectos: da majestade (jalâl) e da beleza (jamâl). Há em Rûmî um acento nesta última
dimensão, que pontua o dado da proximidade, do Deus como Amado. Não é possível
escapar de sua misericórdia. Deus sempre acompanha o ser humano: “Pelo explendor do
meio-dia, e pela noite quando serena, Teu Senhor não te abandonou nem te odeia” (Corão,
93,1-3). Este tema da Sura da Manhã é sempre lembrado por Rûmî: de Deus como um
amoroso que toma a mão do arqueiro e lhe inspira o sopro criador. O Deus misericordioso
acolhe estreitamente seu servidor e não o abandona um só instante (MII, 2533).
36 A história de Ayás e Mahmud é descrita no livro V do Masnavi, a partir do parágrafo 1857. Rûmî compara o
amor de Ayás aos seus trapos ao amor embriagado de Majnum por Layla. O caminho da humildade é canal de
acesso à experiência do Uno. Ayás é para Rûmî um exemplo para o crente, pois para ele o paraíso é dos
simples (MVI, 2370-2371).
37 Djalâl-od-Dîn RÛMÎ. Rubâi´Yât. Op.cit., p. 65. Para a tradução brasileira: Faustino TEIXEIRA & Volney
BERKENBROCK (Orgs.) Sede de Deus. Orações do judaísmo, cristianismo e Islã. Petrópolis: Vozes, 2002, p.
26 (livro que recolhe 36 orações de Rûmî, dentre uma série de outras orações das tradições monoteístas).
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Deus é como o primeiro amor, que não abandona jamais o coração (MII, 2619), e sua graça
transborda abundantemente e continuamente sobre o ser humano (MI, 3923). É a água que
busca o sedento, antes mesmo que este vá ao seu encontro (MI, 1741). O amante nunca
busca o Amado sem ser antes buscado por Ele (MIII, 4393). Na visão de Rûmî, Deus está
presente no íntimo do coração: é o sempre-já-aí. O Deus transparente que é diafania mais
que epifania. Mas Dele há sempre que recordar, permanentemente. Quando há no coração
a presença da centelha do amor de Deus, a correspondência de amor vem imediatamente
(MIII, 4396). Para Rûmî, Deus está sempre presente na invocação do fiel. A súplica do
amante por Allah corresponde ao “aqui estou” (labbayka) de seu Amado (MIII, 189s). É o que
está dito igualmente no Corão: “Recordai-vos de Mim, que eu me recordarei de vós” (2,152).
O importante para o amante é mostrar-se sedento: “Não busques a água; mostra apenas
que que estás sedento, e a água jorrará ao seu redor” (M III, 3212 e MII, 1940). Rûmî quer
mostrar, aqui, a impressionante dimensão da Misericórdia universal de Deus, a mais
poderosa força nutriz: “Quando à terra falta calor, o céu manda calor; quando lhe falta
umidade e orvalho, o céu os envia” (MIII, 4405). O coração é o decisivo espaço da presença
do Mistério. Nem a terra, nem o céu, nem o empíreo podem conter tal presença, mas sim o
coração do verdadeiro crente (MI, 2654-2655).
Uma das mais belas passagens do Masnavi relata a história de Moisés e o pastor, que
traduz de forma magnífica esta idéia. Certa vez, Moisés ouviu um pastor que rezava de
forma espontânea: “Ó Deus, mostra-me onde estás, para que eu possa tornar-me Teu
Servo, para que eu amarre Tuas sandálias e que eu penteie Teus cabelos, para que eu lave
Tua roupa, mate Teus piolhos, traga Teu leite, oh meu adorado! Que eu beije Tua mão
amada, que eu massageie Teu pé amado e no momento de dormir, balance Tua pequena
cama. Ó Tu, a quem todas as minhas cabras são ofertadas em sacrifício; ó Tu em quem eu
penso, lânguido, pleno de desejo de amor”. Ao ouvir a oração do pastor, Moisés, o profeta
legalista, repreende-o severamente, identificando-o como alguém perverso e ímpio, por
referir-se ao Deus juiz de forma assim tão familiar e estúpida. Para ele, o grande Deus não
necessitava de um semelhante serviço. Diante de tal atitude, o pastor, envergonhado e
transtornado, com a alma queimada, rasga suas roupas e retira-se para o deserto. Neste
momento, veio do céu uma revelação de Deus a Moisés, que dizia: “Separaste meu servidor
de Mim. Eis que viestes para reconciliar meu povo comigo, e não para afastá-lo de Mim. De
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todas as coisas, a mais detestável a meus olhos é o divórcio. Dei a cada povo uma forma de
expressão. (...) Não tenho necessidade de seus louvores, estando acima de toda
necessidade. (...) Não considero as palavras que são ditas, mas o coração que as oferece,
pois o coração é a essência e a palavra acidente. (...) Ó Moisés, aqueles que amam os belos
ritos são de uma classe, aqueles cujos corações e almas ardem de amor são de outra. (...)
Não é preciso virar-se para a Caaba quando se está nela, e mergulhadores não precisam de
sapatos. (...) A religião do amor é diferente de todas as outras religiões, pois para os
amantes, Deus é a fé e a religião”. Em seguida, Deus infundiu no íntimo do coração de
Moisés os mistérios que palavra humana alguma alcança. As palavras invadiram seu
coração, transformando radicalmente sua visão. Após compreender a reprovação de Deus,
Moisés corre ao deserto em busca do pastor. Ao encontrar-se com ele, assim se expressa,
movido de compaixão: “Não busque regra alguma, nem método de adoração; diga tudo o
que seu coração aflito deseja. Tua blasfêmia é a verdadeira religião, e tua religião é a luz do
espírito: estás salvo, e graças a ti um mundo inteiro salvou-se igualmente” (MII, 1720-1785).
Com esta bela história de Moisés e o Pastor, Rûmî quer reforçar a idéia da presença
graciosa de Deus que age de forma diversificada nos corações, provocando expressões
distintas e particulares de acolhimento, para além das rígidas fronteiras traçadas pelas
ortodoxias muitas vezes frias e insensíveis. Nada mais importante para Rûmî do que a
gratuidade do amor a Deus, um amor que é auto-finalizado; um amor que existe não em
função de um temor ou de uma esperança, mas que encontra em Deus mesmo sua razão de
ser (MIII, 1910-1913; 4595-4599).
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Rûmî foi sempre considerado um dos místicos mais abertos para a dinâmica inter-religiosa.
Trata-se de um verdadeiro apóstolo da abertura ao outro. A pluralidade inter-religiosa vem
por ele reconhecida: “É impossível termos aqui uma única religião, exceto no dia do Juízo
Final, quando todos os homens forem um único ser e se dirigirem a um único lugar”40. Mas
esta diversidade existe em razão das formas que são distintas, mas o significado último é
sempre o mesmo, pois Deus é único. E se o significado é sempre o mesmo, uma vez que o
objeto do louvor é, na verdade, só Um, pode-se concluir que “todas as religiões são uma só
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religião” (MIII, 2123)41. O mistério de Deus é como o raio de luz que bate sobre um muro, ou
como a lua que reflete num poço. Os seres humanos muitas vezes dedicam o seu louvor não
à realidade da lua, que está no céu, mas à sua imagem refletida no poço, o que leva às
discórdias, diferenças e impiedade (MIII, 3127-3132).
A religião do amor é aquela que vem sempre acompanhada das boas ações. Mais
importante do que as expressões da fala é a realidade de afirmação de um sentido reto. Na
visão de Rûmî, as más ações constituem expressão de um coração corrompido, produzindo
um hálito negativo junto às narinas de Deus (MIII, 169). Quando há pureza na experiência de
louvor a Deus, a impureza se levanta e vai embora (MIII, 186). Não há, segundo Rûmî,
melhor companheiro do que as obras para atravessar a existência. Nem os amigos, nem
todas as riquezas e bens da terra conseguem acompanhar o ser humano para além da
tumba, mas sim a excelência de suas ações (MV, 1045-1047). Deus é melhor invocado com
41 Estamos aqui diante da dialética de Rûmî, que de um lado reconhece a singularidade das experiências
diversificadas, mas que de outro capta a dinâmica de unidade que vige entre as mesmas. Ver também, a
propósito, Fihi-ma-fihi, p. 75.
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a língua dos atos, pois a língua das palavras é frágil (MV, 1044). O amor, como indica Rûmî
no Rubâi´yât, é o fiel escudeiro do ser humano nos tempos de sua avaliação derradeira:
7. Conclusão
Não constitui tarefa simples traduzir a reflexão mística de Rûmî. Toda a sua obra vem
desenvolvida com linguagem resguardada pela presença de um simbolismo complexo, de
contos esotéricos e significação escondida. A linguagem esotérica, como lembra Pablo
Beneíto, é uma linguagem técnica pontuada pela inspiração mística. Trata-se de uma
linguagem alusiva, distinta do comentário exotérico do significado explícito. Ela “desempenha
uma função fundamental e constitui um procedimento insubstituível no processo de
transmissão de experiência imediata ou compreensão interna”43. Foram inúmeros anos
dedicados por Rûmî à redação de sua extensa obra poética, que culmina no grandioso
Masnavi. Muitos de seus poemas foram compostos em estado de grande inspiração mística,
e foram ditados, cantados e recitados para os seus discípulos que os guardavam na
memória para depois serem escritos. Há em alguns de seus livros, e em particular no
Masnavi e no Fihi-ma-fihi, uma impressionante combinação de imaginação poética e
argumentação lógica que não seguem necessariamente um fio condutor retilínio. Talvez por
isso, como lembrou José Jorge de Carvalho, “a seqüência de imagens de alguns dos seus
gazéis pareça, às vezes, ao leitor um tanto errática, livre, quase bizarra à primeira vista, a
exigir uma segunda ou terceira leitura para que o campo das associações possa revelar sua
coerência, permitindo uma melhor apreciação de sua estranha beleza. Todavia, apesar da
extrema liberdade do seu processo de composição e da singularidade de muitas de suas
imagens, impressiona a transparência da mensagem poética e doutrinal de Rûmî”44.
Quando se toma como referência sua obra fundamental, o Masnavi, que foi talvez o ponto
de apoio mais importante na redação deste artigo, percebe-se que ele apresenta uma
43 Pablo BENEÍTO ÁRIAS. A linguagem das alusões... Art.cit., p. 10.
44 José Jorge de CARVALHO. Introdução. In: Jalal ud-Din RÛMÎ. Poemas místicos. Op.cit., p. 38.
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síntese pessoal reelaborada de quase todas as teorias místicas conhecidas no séc. XIII. Mas
de uma tal complexidade que dificulta, quando não impossibilita, a edificação teórica de um
sistema místico propriamente dito a partir de suas narrações e parábolas45. As noções
esotéricas estão pontuadas nos dois níveis, simbólico e explicativo, presentes no Masnavi. A
recorrente linguagem simbólica e alusiva serve também como instrumento para resguardar
os mistérios da Realidade suprema.
Um dos traços que mais impressionam na leitura de sua obra é a forma peculiar e única com
a qual ele expressa a presença do fiel diante do mistério inesgotável de Deus, do fiel que,
mesmo desconhecendo a chave de acesso à sua presença, coloca-se à sua sombra: “Um
dia, um homem chegou diante de uma árvore. Viu folhas, ramos, frutos estranhos. A cada
um perguntou o que eram essas árvores e esses frutos. Nenhum jardineiro o compreendeu,
nem sabia o nome da árvore, nem lhe pôde indicar o que ela poderia ser. O homem disse a
si mesmo: Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei
meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então
me colocar a sua sombra.”46
A presença deste mistério na vida de Rûmî é tão impressionante que só o silêncio é capaz
de dar conta da lâmina de seu conteúdo. Muitos de seus poemas terminam conclamando o
silêncio:
Silêncio!
E depois mais silêncio.
Não use a boca para falar.
A boca é para provar dessa doçura47
O discurso é pobre face ao explendor do mistério. Ele recua diante da luz. É como o anjo
Gabriel na viagem noturna: não consegue acompanhar o trajeto do profeta Mohammad
diante da força e o vigor da presença do Mistério48. Guarda-se o silêncio para ver mais
45 É o que mostra por exemplo Annemarie SCHIMMEL. Le soufisme... Op.cit., p. 390.
46 Djalâl-od-Dîn RÛMÎ. Lettres. Op.cit., p. 149-150. Veja a tradução brasileira em: Eva de VITRAY-
MEYEROVITCH. Rûmî e o sufismo. São Paulo: ECE, 1990, p. 106.
48 Esta viagem noturna, que muito inspirou os sufis, diz respeito à noite em que o anjo Gabriel levou o profeta
Mohammed da mesquita sagrada de Meca à Mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém. Nesta noite Deus revelou ao
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claramente, para ouví-Lo falar (MIII, 1305-1307). Segundo Rûmî, “aquilo que um só olhar
percebe, é impossível de manifestar pela língua ao longo dos anos” (MIII, 1994). Não há
como expressar com palavras as alegrias da união com o Amado. Sobre os lábios dos
santos, indica Rûmî, há um ferrolho, mas em seu coração habitam inúmeros mistérios: “seus
lábios são silenciosos, embora seu coração esteja repleto de vozes” (MV,2238).
profeta alguns de seus sinais. Conforme a tradição, retomada por Rûmî no Masnavi, o anjo Gabriel não
consegue acompanhar o profeta até o fim nesta experiência de proximidade. Ele teria dito: “Si je m´avance vers
toi à la distance d´une portée d´arc, je serai immédiatament consumé” (MIV, 1889). Ver também Corão 53,8-10;
17,1 e 81,19s.
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